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ENEIDA - Virgílio

Capítulo 1: A Queda de Tróia

Quebrantados pelo prolongamento da guerra que tinham empreendido


contra Tróia, antiga cidade no litoral da Ásia Menor, os gregos reuniram-se
em conselho para estudar a decisão a tomar. Havia nove anos que a sua
poderosa esquadra de mil navios e cem mil homens aportara àquelas regiões,
mas não estavam agora mais perto do objectivo — atacar, saquear, destruir
e incendiar a cidade — do que no dia da chegada. As Parcas tinham-lhes
sido adversas: Aquiles, o seu príncipe mais temido e vencedor de inúmeros
campeões troianos, fora derrubado por uma traiçoeira flechada de Páris, no
calcanhar, seu único ponto vulnerável. Ájax suicidara-se e a perda de tantos
chefes e soldados reduzira o exército grego a uma sombra do que fora.
Também os barcos, de tanto tempo ao seco, na praia, mostravam sinais de
desgaste e estariam, em breve, imprestáveis.

Já não tinham esperança de poder conquistar a cidade do rei Príamo


por ataque directo. Tinham-no tentado muitas vezes, mas sofreram perdas
terríveis ante as altas muralhas da cidadela e a vigorosa defesa dos sitiados,
aguerridos e bem treinados na arte de guerrear.

Mas os troianos sofreram, igualmente, pesadas baixas. Heitor, filho do


rei Príamo, e o melhor dos seus campeões, fora morro por Aquiles num
combate singular. A fina flor da juventude troiana manchara já de sangue
aquelas praias.

Reuniram-se os chefes de todas as facções do exército grego, pois este


era formado por guerreiros vindos de várias partes da Grécia sob o comando
de Agamémnon, rei de Argos. A deusa Minerva, com divina astúcia, incutiu
então na mente de um dos príncipes ali reunidos, de nome Epeu, a ideia de
que deveriam construir uma enorme estátua de madeira representando um
cavalo, no bojo do qual ficariam escondidos cem homens dos mais valentes.
Os gregos fingiriam que haviam desistido de conquistar a cidade,
levantariam o acampamento e embarcariam nos seus navios, deixando o
cavalo na praia para que os troianos o recolhessem para dentro da sua

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cidadela. A esquadra, entretanto, em vez de retornar à Grécia, ficaria
escondida atrás da ilha de Ténedos, próxima dali, e afamada outrora pelas
suas riquezas, mas que era agora apenas uma enseada e um ancoradouro
pouco seguro. E tudo fizeram rápida e confiantemente.

Assim que correu a noticia de que o inimigo abandonara a luta e


partira, houve como que um suspiro de alivio de toda a cidade sitiada, livre,
agora, da opressão de muitos anos. Abriram-se as portas e saíram todos,
alegres, a olhar os restos do acampamento grego, com um misto de
curiosidade e terror. Aqui estiveram acampados os guerreiros de Dólopes e
ali tinha o cruel Aquiles as suas tendas. Mais além, era o lugar dos navios e
depois o dos combates campais. Juntara-se um grande grupo, admirado, à
volta do cavalo — presente a Minerva, como julgavam — e discutia sobre o
destino a dar-lhe. Timetes, um dos filhos de Príamo, achava aconselhável
levá-lo para dentro dos muros da cidade, pois assim o queriam os deuses.
Cápis e outros eram de opinião contrária. Suspeitando dos gregos, mesmo
quando ofereciam presentes, desejavam atirar ao mar a figura enorme,
queimá-la ou mesmo abrir o seu oco bojo e verificar o que continha. Todos
tomavam partido e nada se decidia.

Foi então que apareceu, vindo da cidade na direcção do grupo, o


sacerdote Laocoonte que, ainda de longe, bradou:

— Ó desgraçados troianos, que loucura tão grande se apossou de vós,


que acreditais que o inimigo se retirou, deixando-nos em paz! Será que nada
aprendestes com as artimanhas de Ulisses? Ó amigos, não confieis nesse
cavalo. Ou há gregos armados que nele se ocultam, ou essa máquina foi aqui
deixada para observar as nossas posições e investir contra os nossos muros.
Temo os gregos mesmo quando nos deixam presentes.

Assim dizendo, arremessou uma lança com toda a força dos seus
vigorosos braços contra a ilharga da enorme figura a seu lado. A arma
penetrou na madeira, vibrando, e, não fosse a excitação e a vozearia
reinantes e o espírito pouco precavido dos troianos, ainda hoje a sua cidadela
estaria de pé e intacta, pois embora da cavidade proviesse um gemido e um
tinir de ferros, ao penetrar-lhe a lança, a turba de nada se apercebeu.

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Entretanto, nesse momento, aproximavam-se do grupo alguns pastares
conduzindo um jovem de mãos atadas as costas, seguidas de uma multidão
ululante que insultava e ameaçava o cativo que, por suas roupas e linguajar,
era evidentemente grego. Apesar de haver medo nos seus olhos, encarava a
plebe com altivez e desafio. Tinha-se arriscado entre os próprios inimigos
para desempenhar o seu papel no ardiloso plano dos gregos.

Trazido à presença do rei Príamo, o jovem prisioneiro ergue a voz e


diz:

— Ai de mim, que as terras e mares já não podem receber! Qual a sorte


de um miserável que já não pode estar junto dos seus, pois são eles mesmos
que lhe exigem a vida?

Condoídos com o tom lamentoso da fala, os troianos acalmaram-se um


pouco e dispuseram-se a ouvi-lo mais.

— Exortemo-lo a falar. Que diga qual a sua linhagem e o que o traz


aqui.

Mais encorajado, voltou-se então o grego para Príamo e falou:

— Na verdade, ó rei, confessar-te-ei todas as coisas que sei, sejam


quais forem as consequências. Não nego que sou grego e se a fortuna me fez
a mim, Sinão, infeliz, não me fará mentiroso e enganador. Talvez, acaso já
tenhas ouvido falar de Palamedes, da família Belo. Esse jovem corajoso e
inocente era o meu melhor amigo. Como se opusesse à guerra, mataram-no,
sob falsa acusação de traição, e Ulisses, de fraca, foi o autor do nefasto
crime. Desesperado com a morte do meu amigo, levantei altas vozes e
prometi ser-lhe o vingador, se algum dia voltasse à minha pátria, Argos.
Excitei desse modo grandes ódios contra mim e Ulisses começou a intrigar-
me junto dos meus companheiros e a lançar-me pérfidas acusações. Não
descansou enquanto, com a ajuda de Calcante... Mas porque vos conto todas
estas tristes coisas, se tratais todos os gregos da mesma forma? Tomai a
vossa vingança e com um só golpe ponde fim às minhas desgraças, pois mais
nada posso esperar.

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Replicou então Eneias, acalmando-lhe os temores:

— Queremos conhecer quão grandes podem ser os crimes e astúcias


dos gregos. Continua, pois.

Ao que ele, fingindo o que não era, prosseguiu:

— Muitas vezes, os gregos, cansados de uma guerra tão longa e


sentindo fraquejar as forças, as armas, os mantimentos e o animo, desejaram
deixar Tróia e voltar à pátria. E oxalá o tivessem feito! Mas sempre que se
decidiam a isso, parece que os ventos e o mar se combinavam para lhes
alterar os desígnios. A ideia de que os deuses fossem contrários à nossa fuga,
aterrava-nos. Assim, perplexos, resolvemos enviar Euripilo para consultar
os oráculos de Apolo. Foi e voltou trazendo este vaticínio horrível: Aquando
pela primeira vez, ó gregos, viestes para o litoral troiano, aplacastes o vento
com o sangue e a morte de uma donzela. O regresso também deve ser regado
com o sangue e o sacrifício de uma alma de grego.» Ao ouvir isto, a multidão
de guerreiros baixou a cabeça, horrorizado, e um frio temor percorreu-lhe os
ossos até a medula, pois não sabia a quem Apolo escolheria. Por entre grande
vozearia, Ulisses avançou com o adivinho Calcante e exigiu-lhe, na frente
de todos, que revelasse quem era a vítima preferida dos deuses. Já os meus
amigos me profetizavam a escolha da dupla astuciosa, mas calados
esperavam o que sucederia. Calcante recolheu à sua tenda e lá permaneceu,
silencioso, dez dias. Finalmente, pressionado pelo Itaco, rompeu o silêncio
e apontou-me para o sacrifício do altar. Todos, alegres de se terem livrado
da morte, aprovaram a escolha, pois sempre se sabe resistir com galhardia à
desgraça que se abate sobre os outros. O dia fatídico aproximava-se e eu,
aterrado, via ultimarem-se os preparativos para os rituais sagrados: a carne
salgada, os pões, as fitas em torno da minha cabeça e os banhos com água
santificada. Digo-vos, então, que quebrei os laços que me prendiam e fugi,
escapando a um destino cruel e injusto. Durante a noite, escondi-me entre as
algas, numa lagoa próxima, até que fossem embora. Não tenho mais
esperança de rever a pátria, os meus filhos, o meu saudoso pai e é até
possível que esses entes queridos expiem a minha culpa no altar do
sacrifício. E eu te peço, ó rei, pelos deuses justos—se é que alguma justiça

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resta entre os mortais—, que tenhas piedade de quem já tanto sofreu, e tanto
sofreu injustamente.

O bom rei Príamo, a quem subiram as lágrimas aos olhos, ouvindo


aquela história repleta de mentiras, foi o primeiro a desamarrar-lhe os
atilhos, dizendo:

— Quem quer que sejas, esquece a partir deste momento os gregos


traiçoeiros, pois serás um dos nossos. Agora diz-me a verdade sobre estas
muitas coisas que te interrogo. Para que construíram este enorme cavalo? De
quem foi a ideia? Que pretendem com tal coisa? É acto de fé ou máquina de
guerra? Vamos, fala.

Sinão, expoente da astúcia e perfídia gregas, levantou para os astros as


mãos já livres das cadeias e exclamou:

— Ó fogos eternos, invoco-vos como testemunhas da verdade, a vós e


à vossa divindade inviolável! A vós, altares e espadas pérfidas, aos quais
fugi, e a vós, fitas sagradas que trouxe comigo! Posso agora renegar os
juramentos sagrados de fidelidade aos meus, posso odiá-los e tudo dizer,
pois já não estou ligado à pátria por quaisquer laços. Só espero que tu, Tróia,
mantenhas as promessas de me poupar a vida, se eu contar a verdade e te
prestar um grande serviço. Toda a esperança dos gregos nessa guerra
indefinida sempre esteve depositada no auxilio de Minena. No entanto,
desde que esses dois ímpios, Diomedes, filho de Tideu, e Ulisses, filho de
Laerte, ousaram cometer o crime monstruoso de atacar o santuário da deusa,
matar-lhe os guardas e roubar a sagrada efígie, ainda com as mãos tintas de
sangue, desde aquele instante a sorte passou a ser-lhes adversa, o animo
abateu-se-lhe e as suas forças fraquejaram, pois fora-lhes retirada a
protecção da deusa. E não ficaria Minerva sem mostrar-lhe, por prodígios
tremendos, o seu desagrado. Nem bem os gregos colocaram a estátua da
deusa guerreira na praça do seu acampamento, quando chamas brilhantes lhe
saíram dos olhos ameaçadores, suor salgado desceu pelos seus membros e
três vezes saltou a imagem no ar, caindo, depois, no chão, com o escudo a
vibrar e a lança a tremer. De imediato, Calcante aconselhou a fuga pelos
mares, pois os augúrios terríveis indicavam que Tróia não poderia ser

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destruída pelas armas gregas a não ser que — depois de consultarem os
oráculos em Argos — voltassem inesperadamente com os deuses
domésticos, mais armas e tropas frescas.

Neste momento mesmo, pois, demandam eles a Grécia, aproveitando


o mar calmo e o vento forte. Antes, porém, aconselhado pelo sacerdote,
construíram essa imagem à semelhança de cavalo, como penitência pela
acção sacrílega. Entretanto, fizeram-na bastante alta para que, não passando
nos portões, não pudésseis levá-la para a cidadela, onde daria protecção ao
vosso povo. Augurou ele, ainda, que, se ousásseis violar esse presente à
deusa, grande ruína se abateria sobre o império de Príamo (que os deuses
virem esse presságio contra o próprio Calcante!), mas que, se pelas vossas
próprias mãos, conseguísseis introduzi-lo na cidade, r n t ao a Ásia toda
seguiria em grande guerra até os muros das cidades gregas e enorme glória
se reservaria a vossos netos.

Tão bem Sinão mentia e desfiava a sua teia de histórias, que todos nele
acreditaram. Os seus suspiros e lágrimas conseguiram aquilo que a valentia
de Aquiles, de Ulisses e de todos os gregos, em dez anos, não tinha
conseguido.

E, para maior peso e veracidade das palavras falsas do grego, outro


prodígio aconteceu e fez a todos estremecer de horror. Laocoonte, sacerdote
de Neptuno, com os seus dois filhos, imolava um grande touro, junto aos
altares sagrados. E eis que duas serpentes, de enormes espirais, surgiram do
mar calmo, da direcção de Ténedos, e, nadando, se aproximaram velozmente
da praia. Os seus ventres cortavam as ondas e as suas cristas sanguíneas
elevavam-se acima das águas, com enorme ruído e espuma. Alcançaram a
costa e seguiram pelo campo, os olhos tintos de sangue e fogo. E as línguas,
vibrantes nas bocas, sibilavam horrendamente. Pálidos de medo, os troianos
recuaram, enquanto os monstros avançavam directamente para onde se
achava Laocoonte. Cada uma das serpentes atacou um dos meninos e logo,
enroscando-se nos pequenas corpos, lhe devoraram-lhes os membros.
Atacaram, então, Laocoonte — que viera em socorro dos filhos com
lanças—, apertando-o com os seus fortíssimos anéis, dois no corpo e dois no
pescoço, enquanto lhe derramavam na cabeça sangue podre e veneno negro.

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Soltando gritos horrendos — qual touro que foge do altar ferido no pescoço
por machadada mal desferida—, o sacerdote procurava desenvencilhar-se
daquele incrível aperto e estendia os braços para os astros. Depois de um
derradeiro arranco que lhe esmagou o tórax, as duas serpentes rastejaram
para a parte mais alta do templo e lá se ocultaram no escudo e nos pés da
imagem da cruel deusa.

Novo pavor se introduziu, então, em todos os corações. Diziam que


Laocoonte pagara o crime de ferir com uma lança o cavalo sagrado.
Exigiram todos que a estátua fosse conduzida ao templo da deusa, cuja
protecção deveriam implorar. Enquanto uns derrubavam os arcos dos
portões e abriam os muros, outros lançaram uma corda grossa ao pescoço da
efígie. Com muitos a empurrar e a puxar, a máquina sinistra penetrou, cheia
de homens e de armas gregos, na própria cidadela troiana. Em volta, moços
e moças acompanhavam a multidão, cantando cânticos sagrados e brincando
com a corda que arrastava o madeiro. Ó pátria, ó Tróia, residência dos deuses
e invicta na guerra! Quatro vezes estacou o cavalo no limiar dos portões e
outras tantas vezes saiu do seu bojo um som semelhante ao tinir de armas.
Os troianos, todavia, surdos e cegos a tudo o que não fosse a sua intenção de
fazer entrar o presente divino, nada ouviram e nada perceberam. Por toda a
parte Se enfeita a cidade e o templo com ramagens festivas.
Apenas Cassandra, filha de Príamo e pitonisa, os advertia do perigo,
predizendo dias negros para Tróia. Mas, tida por todos como meia louca,
pouco se importaram com os seus vaticínios.

Entrementes, o céu escurece, trazendo a noite. Os troianos, dispersos


pelas muralhas, entregaram-se ao sono, o primeiro repouso sossegado e
tranquilo em muitos anos. A falange grega, então, partiu de Ténedos,
aproveitando a escuridão. e demandou a costa, já tão conhecida. Da nau
capitania brilhou um sinal luminoso e Sináo, à espreita, correu a soltar os
guerreiros gregos da sua prisão voluntária no bojo oco do cavalo de madeira.
Descendo por uma corda, saíram os chefes Tessandro e Estenelo, o cruel
Ulisses e Acamante, Toante, Pirro, filho de Aquiles, e muitos outros.
Também estavam escondidos o médico militar grego, Macáon, Menelau e o
próprio inventor da armadilha, Epeu. Livres, correram para a cidadela, onde
mataram os guardas entregues ao sono, abriram os portões e logo se juntaram

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às tropas, que, depois de desembarcadas, tinham avançado velozmente pela
planura.

Nesse momento, os habitantes, cansados da grande movimentação do


dia, estavam entregues à primeira fase do sono reparador, mas logo o rumor
da batalha, os gritos dos homens em luta, e os lamentos e gemidos dos
feridos ressoaram pelas ruas estreitas. A cidade inteira acordava.

Enquanto isso, Eneias, o mais bravo dos guerreiros de Tróia, que


dormia em casa de Anquises, seu pai, sonhava que Heitor, filho de Príamo e
morto por Aquiles em combate singular, lhe aparecia sujo, ensanguentado e
de pés inchados, arrastado por dois cavalos a cujas rédeas estava amarrado.

Quão diferente era daquele outro Heitor que costumava voltar,


triunfante, com os despojos gregos ou a atirar archotes acesos contra os
navios inimigos! A barba esquálida, os cabelos colados pelo sangue e as
muitas feridas que recebera, quando fora arrastado três vezes em torno dos
muros da cidade, apareciam agora distintamente. Eneias, chorando, parecia
dirigir estas palavras ao amigo:

— Ó luz de Tróia, ó esperança fiel, porque te demoraste? Donde vens,


ó Heitor? Porquê esse horrível aspecto e por que razão te voltamos a ver,
nós, cansados de luta, sofrimentos e mortes? Onde está a tua figura serena?

O fantasma de Heitor nem ouviu as palavras, nem respondeu a Eneias,


e apenas disse, soltando do peito um gemido doloroso.

— Ai! Foge, ó filho de Vénus, e salva-te destas chamas! O inimigo


está senhor dos muros e a cidadela cai. Toma os tesouros e os penares da
pátria, reúne-te aos companheiros e, depois de percorrido o mar, procure
acha local onde fundes novo reino!

Embora a casa de Anquises fosse retirada do centro da cidade e cercada


de árvores protectores, o fragor crescente da batalha despertou Eneias, que,
intrigado, subiu ao terraço mais alto para olhar ao longe. Vislumbrou,
claramente, vários incêndios que ardiam e escutou o tumulto que reinava.

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Qual pastor que pára estupefacto no alto de um rochedo, quando a chama se
lança na seara, soprada pelos ventos furiosos, ou quando rápida torrente
transbordando do leito, alaga os campos, arruma as sementeiros vice jantes
e as lavouras preparadas e arrasta as árvores arrancadas dos bosques,
também assim ficou Eneias no seu posto. Abriram-se-lhe as portas da
verdade e percebeu então a cilada dos gregos.

Já o palácio de Deífobo fora presa das chamas e também o de


Ucalegonte, que Ihe ficava próximo. O céu reflectia a luz dos incêndios até
no próprio mar.

Num assomo de raiva, atirou-se pelas escadas e armou-se para o


combate. Pouca esperança lhe restava, mas o seu espírito impelia-o a reunir
os companheiros que pudesse e a lançar-se à luta. Só tinha um laivo dá
esperança, que era o pensamento de como seria glorioso morrer de arma na
mão, combatendo.

Já no limiar da porta, pronto para sair, encontrai Panto, filho de Otrias


e sacerdote de Apolo e da cidade, carregando o objectos do culto e as
imagens dos deuses domésticos e seguido pelo netinho. Dirigiu-lhe então
várias perguntas e o velho, apavorado e trémulo. respondeu-lhe:

—Chegou o dia fatídico para Tróia. Eis o seu fim e o fim da grande
gló ria dos troianos. Júpiter já não nos favorece e só tem olhos para a Grécia
cujos filhos dominam agora a nossa cidade incendiado. Cem homen armados
saíram do bojo do grande cavalo de madeira e Sináo, o mentiro so, zomba
de nós e ateia fogo às nossas casas, enquanto os navios gregos de regresso
de Ténedos, despejam às nossas portas e nas nossas ruas milha rãs de
guerreiros. Tenta-se uma débil resistência, mas tudo é inútil.

Ouvindo tais palavras e cego de raiva, Eneias lançou-se a correr na


direcção donde lhe pareceu ser maior o fragor da luta. A ele se juntaram
Ripeu Épito, Hípanus, Dimante, Corebo, filho de Mídgon — jovem que vier
a Tróia trazido por um exaltado amor a Cassandra, a fim de emprestar o seu
auxilio e apoio ao futuro sogro —, e muitos outros que ali vinham ter,
guiados pelo claro luar.

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Falou-lhes, então, Eneias:

— Ó jovens de coração valoroso, se tendes realmente uma vontade


firme de me acompanhar nesta empreitada final a que me lanço, pensai
primeiro nas nossas possibilidades. Todos os deuses, cujo favor sustentava
este reino, se retiraram e estão agora do lado do inimigo. Ireis lutar por uma
cidade incendiado, mas, se assim o quereis, corramos para a batalha e nela
pereçamos. Os vencidos têm uma única salvação, que é a de não esperar
salvação alguma.

Elevados assim os animas daqueles jovens, partiram quais lobos


rapaces que, aguilhoados pela fome, perambulam à noite, enquanto os
filhotes, de fauces abertas, os esperam no covil. Avançavam para o meio das
lanças inimigas, para a morte certa, na direcção do centro da cidade.
Envolvia-os a noite escura. Quem, no futuro, poderia narrar as desgraças, o
sofrimento e a triste sorte daquela cidade, outrora dominadora e poderosa e
que agora caía por terra? Por toda a parte se viam corpos estendidos, nas
ruas, nas casas, nos altares.

Mas não eram somente troianos, pois muitos gregos foram abatidos
pela defesa heróica dos vencidos. Em tudo havia o cruel odor da morte,

O primeiro grupo de inimigos que encontraram era chefiado por


Andrógeo, que, tomando-os por soldados gregos, aproximou-se e assim,
amistosamente, lhes falou:

— Apressai-vos, guerreiros! Que demora é a vossa? Estamos a saquear


a cidade incendiado e vós sã agora chegais dos navios?

Imediatamente, porém, reconheceu que estava no meio de inimigos,


Estupefacto, a voz presa na garganta, recuou rápido, como aquele que,
distraído, pisa no campo a cobra e, assustado, se afasta do réptil que se
enrosca irado para a picada peçonhenta. Era tarde, porém. Mais numerosos,
Eneias e os seus atacaram e mataram todos os gregos. Pela primeira vez em
muitas horas, a fortuna sorria-lhes.

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Então Corebo, animado com aquele sucesso, disse:

— Ó companheiros, sigamos o caminho da salvação que os deuses nos


mostram. Troquemos de armas, roupas e emblemas com o inimigo abatido.
Não é hora de se exigir valor ou traição num inimigo.

Assim falando, colocou na cabeça o elmo emplumado de Andrógeo,


agarrou no seu escudo e embainhou a sua espada. Também Ripeu, Dimonte
e todos os outros o imitaram e atiraram-se ao inimigo, travando inúmeros
combates e abatendo centenas de guerreiros. Alguns gregos, ante aquela grei
corajosa e aguerrida, fugiam para o litoral onde os esperavam os barcos.
Outros, apavorados, subiam de novo ao cavalo de madeira, procurando
refúgio no seu bojo protector.

Mas quem pode confiar nos deuses irritados?

Eis que o grupo avista então Cassandra, filha de Príamo, que era
arrastada pelos cabelos desgrenhados para fora do templo de Minerva. Em
vão levantava ela os olhos inflamados para o céu, as mãos atadas atrás das
costas. Corebo, ao ver a sua amada, sentiu-se possuído de uma cólera
insuportável e, disposto a morrer, lançou-se no meio do inimigo que a
conduzia. Os companheiros seguiram-no, armas erguidas, mas—ó engano
fatal— do alto das muralhas os defensores da cidade tomaram-nos por
inimigos, pois assim o indicavam os seus penachos gregos, e uma chuva de
lanças e setas provocou terrível mortandade entre os troianos disfarçados.

Os gregos, passado o primeiro susto e vendo a sua presa escapar-se-


lhe das mãos, investiram então todos à uma contra Eneias e os seus. Eram o
feroz Ájax, os dois filhos de Atreu e todo o exército dos Dólopes. Como
ventos contrários que lutam, às vezes num turbilhão, fazendo ondear os
bosques e revolver as ondas, como Neptuno que enfurece o mar até aos mais
profundos abismos, também assim avançaram os gregos de toda a parte.
Muitos dos que tinham sido afugentados pelos falsos inimigos nos combates
das ruas voltavam agora—reconhecido o logro—com maiores fúria e cólera.
Vencidos pelo número, os troianos iam tombando. Corebo foi o primeiro a
sucumbir pela mão de Peneleu, junto ao altar de Minerva. Caiu também

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Ripeu, o mais justo de todos os de Tróia. Hispanis e Dimante foram
trespassados por lanças amigas atiradas do alto. Nem a piedade, nem as
insígnias sagradas salvaram Panto, o sacerdote de Apolo. Somente Eneias e
um punhado de bravos viviam ainda e o herói, erguendo os braços para o
céu, gritou:

— Ó cinzas de Tróia! Ó fogos mortuários de meus antepassados!


Tomo -vos por testemunhas de que não fugi das armas, dos perigos e do
inimigo e, se o destino tivesse querido que eu morresse, eu o faria lutando.

Então, fim, Pélias e ele próprio—o primeiro já mais velho e o outro


com ferimentos produzidos por Ulisses—afastaram-se dali e dirigiram-se ao
palácio do rei Priamo. Ai se travava um furioso combate. Os gregos subiam
por escadas apoiadas às muralhas tentando alcançar as ameias, enquanto se
protegiam com os escudos dos projécteis lançados de cima. Os troianos
arrancavam telhas, pedras, tijolos, ornamentas e traves douradas —tudo o
que pudesse será ir de projéctil—, dos torreóes. O portão principal estava
guardado por uma fileira cerrada de espadas desembainhadas.

Tomado de novo alento, Eneias correu a juntar-se aos defensores,


entrando no palácio por uma passagem secreta que o ligava à casa de Heitor.
Por ela costumava Andrómaca, esposa do infeliz filho de Príamo, ir à casa
dos sogros levando o filho Astianax. Eneias subiu à cumeeira e juntou-se
aos outros naquela luta inútil. Com as espadas, escavaram os alicerces de
um alto bastião e fizeram-no tombar sobre os gregos reunidos ao pé das
muralhas, matando muitos deles. No entanto, cada vez surgiam mais e mais
gregos, que não eram contidos pelos projécteis que lhes arremessavam.

Diante da própria porta do vestíbulo já estava Pirro, filho de Aquiles,


esplendoroso nas suas armas e na sua armadura reluzente, mortal parecendo
uma cobra que, terminado o Inverno, sai da toca e, após ter comido ervas
venenosas e mudado de pele, se dirige coleante para o campo ensolarado, a
língua bífida vibrando, estendida, e a boca sibilante. Junto a ele, lutavam o
seu escudeiro Automedonte, o grande Périfas, condutor dos cavalos de
Aquiles, e a flor da juventude de Siros, pátria de Pirro, atirando archotes e
setas inflamadas para os tectos e cumeeiras dos telhados. Agarrando num

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machado de dois gumes, o próprio Pirro atacou os batentes de bronze do
portão, arrancando-o do suporte e pondo à vista o grande salão de colunas
do rei Príamo. Destruíram as almofadas de carvalho de uma porta que dava
para o interior da casa e por essa passagem espalharam-se os gregos pelos
aposentos reais, travando luta com os poucos defensores que restavam.

O interior do palácio ressoava com o clangor da batalha, os gritos das


mulheres e os gemidos dos feridos. Pirro, com o ardor herdado do pai
Aquiles e louco de fúria assassina, tudo levara de roldão com os seus, como
o rio que, rotos os diques, se espalha pelos campos e arrasta à frente rebanhos
e estábulos. Lá estava Neoptólemo, furioso na carnificina, com os dois filhos
de Atreu. Os gregos eram então senhores daquele palácio de cinquenta
quartos, daquelas portas cinzeladas com o ouro roubado aos bárbaros e dos
tesouros da família.

Quanto a Príamo, ao ver a cidade incendiada, os defensores vencidos


e a soldadesca grega invadindo o seu próprio palácio, correu aos aposentos
reais, vestiu-se da armadura e empunhou as armas havia muito abandonadas,
com o corpo frágil e a mão trémula. Reuniu-se então a Hécuba e às filhas
que oravam aos deuses junto ao altar do átrio do palácio, ao ar livre. Ali
havia um toureiro que espargia a sua sombra amiga sobre os penares
troianos. Vendo o velho marinheiro, armado e preparado para a luta,
exclamou a esposa:

— Que ideia cruel foi essa, infeliz consorte, de te cingires com armas?
Para onde vais? Não vês que nem o próprio Heitor, com a sua força e a sua
coragem, nos seria de algum valor? Recolhe-te aqui, junto aos nossos
deuses, pois eles ou nos salvarão ou nos farão morrer todos juntos.

Assim falando, ajudou o ancião a subir os degraus e sentou-se no lugar


sagrado. Eis, porém, que Polites entrou no pátio. Era um de seus filhos,
ferido, fugindo do ferro implacável de Pirro, que o seguia nos calcanhares.
Ali mesmo o alcançou e, na frente dos pais, enterrou-lhe a lança, prostrando-
o sem vida.

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ENEIDA - Virgílio
Sentindo-se à beira da morte, Príamo não se conteve e, encolerizado
pela brutalidade da cena, exclamou:

— Por esse crime, que os deuses — se alguma justiça existe no céu


que se importe com tais acções — te dêem o merecido prémio, a ti, que me
fizeste ver a morte do meu filho! No entanto, aquele Aquiles — de quem
falsamente te dizes filho — assim não procedeu para com o inimigo Príamo,
pois, aceitando os direitos e a lealdade de um suplicante, me devolveu, a
mim, o pai, o corpo do meu querido filho Heitor, para que lhe desse uma
sepultura condigna.

Assim dizendo, lançou, com fracas forças, o seu dardo contra Pirro.
Este apenas levantou o escudo, recebendo o impacto do ferro no bronze
redondo, e exclamou:

— Contarás, pois, essas coisas e irás como mensageiro a meu pai, ao


filho de Peleu. Não esqueças de contar-lhe que eu, seu filho, estou
degenerado. E agora morre.

Agarrou então o velho rei pelos cabelos brancos com a mão esquerda
ainda tinta do sangue do filho, arrastou-o até o altar e, levantando a espada
cintilante, cravou-a até os copos na ilharga do ancião. Assim morreu Príamo,
cujo corpo, degolado, jaz anónimo nas praias de Tróia, outrora poderosa e
dominadora.
Eneias, chegando pouco depois e vendo o morticínio, ficou transido de
horror e de tristeza. Estava agora sozinho. Os seus poucos companheiros ou
estavam mortos ou se tinham separado, esgotados do esforço da luta.
Vagando sem rumo pelos grandes salões do palácio, em tudo via as marcas
do sangue e da morte. Veio-lhe então à lembrança a imagem do seu querido
pai, da esposa Creusa, abandonada, a casa saqueada e o perigo que corria o
seu filhinho Ascânio.

Corria na direcção do lar quando, ao passar perto do santuário de


Vesta, nu Helena, escondida a um canto. Ao ver as chamas dos fogos
sagrados tremeluzindo e iluminando o vulto da mulher agachada, apossou-
se do coração de Eneias uma imensa cólera. Nasceu-lhe 0 desejo de vingar

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ENEIDA - Virgílio
em Helena a pátria agonizante. Não era ela a causa última de todas as
desgraças? Seria justo que ela voltasse incólume a Esparta e à Grécia, como
rainha, revendo o esposo, a casa, os pais e os filhos e acompanhada de uma
multidão de escravas e escravos troianos, depois de Príamo ter morrido pela
espada, depois da cidade ter sido incendiada e depois do sangue troiano ter
manchado tantas vezes as areias brancas daquelas praias? Não! Isso não
poderia suceder! E, embora não seja glorioso punir uma mulher, nem pareça
tão alto louvor, seria no entanto elogiado quem lhe desse o castigo merecido.

Possuído de ódio e premido por tais pensamentos, Eneias, com a


espada desembainhada, dirigia-se para o templo, quando lhe apareceu de
súbito a mãe, a deusa Vénus. Jamais lhe surgira numa visão assim tão clara
e resplandecente, exactamente como refulgia entre os deuses de Olimpo. E
ela pronunciou estas palavras, segurando-lhe o braço quase assassino:

— Filho, que dor tão grande faz medrar tão incontrolável ira? Porque
te enfureces? Por que razão, em vez de voltares a tua vista para aquela
mulher, não procuras antes o teu pai Anquises, alquebrado pelos anos?
Porque não indagas se a tua esposa Creusa e o pequenino Ascânio são vivos?
Se neles não tivesse eu pensado e deles cuidado, já as chamas os teriam
devorado e o ferro cruel os teria trespassado. Não é naquela mulher, Helena,
ou no seu raptor, Páris, que deves pôr a culpa dos desastres de Tróia, mas na
cólera dos deuses que determinaram derrubá-la do alto do pedestal. Olha,
dissiparei com o meu poder a nuvem que tolda os teus olhos mortais e lhes
impede de ver as coisas como realmente são. Aqui, onde vês grandes
construções a desmoronarem-se, pedras arrancadas, fumo e poeira, verás
Neptuno com o seu tridente, atacando os próprios alicerces da cidade e
fazendo-lhes aluir os muros. Mais do que todas, possuída de ódio contra a
tua raça, divisarás a cruel Juno, dominando as portas e chamando mais tropas
dos navios. E mais além, Minerva, resplandecendo numa nuvem com a
figura da Medusa pintada no escuro, está de posse da cidadela. O próprio rei
Júpiter incute animo ao inimigo e redobra-lhe as forças, instigando os deuses
contra os teus. Mas não temas, filho, as ordens de tua mãe, nem lhe recuses
obedecer. Apressa a fuga e põe fim a esses esforços vãos. Nunca me afastarei
de ti e conduzir-te-ei a outra pátria.

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ENEIDA - Virgílio
Assim dizendo, a linda Vénus desapareceu nas sombras espessas da
noite. Apareceram então a Eneias coisas nunca antes reveladas e ele viu os
deuses, com semblantes cruéis e grande poderio, a auxiliar os gregos no
assalto final a Tróia. E esta parecia abater-se em chamas e desfazer-se nos
seus alicerces. Era como o carvalho dos altos montes, que, atacado de todos
os lados pelos machados dos camponeses, range, verga, balança, farfalha,
geme e por muito tempo ameaça cair, até que, com um derradeiro alento —
abalado no seu cume — pouco a pouco se deixa vencer pelas feridas do
machado e rui, arrastando tudo das alturas. Trazido de novo à realidade pela
deusa, Eneias correu para o lar, escapando milagrosamente ao fogo e ao ferro
do inimigo.

Chegando a casa, correu para o pai e disse-lhe que se preparasse para


a fuga, mas o ancião recusava-se a prolongar a existência longe dos destinos
de Tróia destruída, e a sofrer o exílio:

— Vós — exclamou —, que tendes o sangue moço e que as forças


robustas mantêm com todo o vigor, empreendei a fuga. Se os moradores do
Olimpo tivessem querido prolongar-me a vida, não teriam destruído esta
cidade. Sou por eles odiado e desprezado e eu mesmo porei fim aos meus
dias por minhas próprias mãos. Nada me resta nesta vida inútil, desde que
Júpiter me bafejou com os ventos do raio e me atingiu com o fogo.

Apesar das instancias do filho, Anquises persistia em recordar as suas


mágoas, permanecendo inabalável na sua decisão. De nada adiantaram
também as lágrimas de Creusa e do neto Ascânio. Desesperado com a
resolução do pai, Eneias voltou a envergar a armadura e, empunhando as
armas, disse:

— Lanço-me, pois, à morte infeliz e todos a sofreremos. Esperavas


pois meu pai, que eu te abandonasse aqui e prosseguisse sozinho com os
outros?

Como pode uma blasfémia assim sair de uma boca paterna? Se os


deuses decidiram destruir esta cidade de modo a que ninguém nela sobreviva
e se te agrada juntares-te e aos teus a Tróia, os teus desejos serão realizados.

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ENEIDA - Virgílio
Dentro em pouco aqui estará Pirro, saciado de sangue, depois de ter morto
primeiro o filho de Príamo à vista do pai e, a seguir, este próprio junto aos
altares. Ó Vénus! ó mãe querida! Foi para isto que me tiraste do meio das
chamas e me conduziste são e salvo através das lanças e das espadas do
inimigo? Foi para os ver todos mortos, a Ascânio, a Creusa e a meu pai,
Anquises, seus sangues misturando-se no chão? Às armas, todos! Trazei-me
as armas! O último dia chama-nos, a nós, os vencidos! Deixai-me enfrentar
os gregos.

Ataviado então para a luta, Eneias dirigiu-se novamente para a porta


da casa onde apareceu a sua esposa Creusa, com o menino Ascânio ao colo.
Abraçando-se a seus pés, falou assim:

— Se vais resolvido a morrer, leva-nos também contigo para o que a


sorte nos reservar. Mas, se tens alguma esperança de sobreviver, defende
primeiro o teu lar. Se partes, a quem entregas o teu filho, a mim, tua esposa,
e o teu velho pai?

E ao dizer tal coisa, enchia a casa com o seu pranto. Ocorreu então um
prodígio que os deixou estupefactos. Sobre a cabeça do menino Ascânio,
que se achava entre os braços dos chorosos pais, apareceu uma ligeira
labareda. Espargiu-se o fogo sobre os cabelos da criança e lambia os seus
canudos sem, no entanto, causar qualquer queimadura. A chama subia e
descia ao longo da testa. Aterrados, os pais sacudiram-lhe os cabelos
incendiados, tentando apagar as chamas sagradas com égua. Então,
Anquises, alegre, levantou os olhos e os braços para os astros e bradou:

— Ó omnipotente Júpiter, se atendes a alguma prece, olha para nós


que te pedimos! E se alguma piedade te merecemos, dá-nos teu auxilio, ó
pai, e confirma esses agouros.

Mal o ancião proferira aquelas palavras e eis que, do lado esquerdo da


casa, se ouviu o ribombar de um trovão e uma estrela caiu do céu, deixando
atrás de si um facho de luz. O astro cadente passou por sobre os telhados e
mergulhou na escuridão, para os lados dos bosques do monte Ida, deixando

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ENEIDA - Virgílio
um sulco luminoso no firmamento e espalhando um penetrante odor de
enxofre queimado.

Prostrado em adoração às potesdades celestiais, bradou Anquises:

— Não há tempo a perder. Eu vos sigo e deixar-me-ei conduzir para


onde quiserdes. Deuses Átrios, conservei a minha familia e protegei o meu
neto. Certo é o vosso augúrio e Tróia está sob a vossa protecção.

Enquanto isso, os incêndios aproximavam-se deles, pelas muralhas e


pelos telhados.

—Vamos, pois, querido pai, eu te levarei às minhas costas. Seremos


um sã nessa fuga, para o perigo e para a fortuna. Creusa acompanhar-me-á
bem como o menino Ascânio e todos os servos e guerreiros que assim o
desejarem. Quem sai da cidade, logo depara com uma colina onde existe um
velho templo de Ceres, há muito abandonado. Seguindo caminhos diversos,
todos procuraremos atingir aquele ponto. Tu, ó pai, toma os objectos
sagrados e as imagens dos deuses domésticos, pois, saindo eu de tantas lutas
e morticínio, não seria justo que os tocasse antes de banhar-me em águas
correntes.

Cobrindo as costas com uma pele de leão, Eneias ergueu o seu velho
pai. O menino Ascânio deu-lhe a mão, seguindo-o com os passinhos
apressados. A esposa Creusa acompanhava-o mais atrás. Evitando os lugares
iluminados, avançaram cautelosamente pelas ruas sombrios. A Eneias, a
quem a* há bem pouco não aterravam as chuvas de lanças e os batalhões
inimigos avançando de espada nua, tudo fazia estremecer. Qualquer som o
sobressaltava, temendo pelo companheiro e pela carga preciosa. Já se
aproximavam das portas, parecendo-lhes mesmo ter percorrido todo o
caminho quando, de repente, lhes chegou aos ouvidos o som de passas
cadenciados. O ancião, olhando para a escuridão, exclamou:

— Ó filho, foge, que vejo aproximarem-se escudos brilhantes e metais


reluzentes.

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ENEIDA - Virgílio
Assustado e confuso, Eneias apressou a caminhada, embrenhando-se
por vielas e becos pouco conhecidos, abandonando o percurso que lhe ser
tão familiar. Olhando, passado um momento, para trás, a fim de ver se todos
o seguiam de perto, parou subitamente, pois não via a sua esposa Creusa. De
facto, nunca mais a veria.

«Ter se ia perdido — pensou — ou parou para descansar? Que outro


destino terrível teve? Ó Deuses do Céu, ter-se-á Creusa atrasado, cansada e
sido atacada e morta por aquela patrulha de gregos que acabamos de ver?»

Não podendo procurá-la, lançou-se então pelos portões e atravessou a


planura, correndo, até subir o outeiro, onde estava o templo de Ceres, deusa
do trigo dourado. Fazendo descer então a sua preciosa carga, Eneias andou
entre os companheiros e verificou que todos ali estavam. Só faltava a sua
esposa.

Indignou-se, então, com os deuses e com os homens, na sua


perturbação e cólera. Aquilo suplantava em dor tudo o que sofrera, vendo e
ouvindo a queda de Tróia e a morte de seus filhos. Escondeu os seus
companheiros num vale sombrio, bem como o menino e o seu pai, a quem
confiou a guarda dos penares troianos. Nada lhe importava mais. Decidiu
retornar à cidade, cingir as armas e lançar-se de novo à rua, disposto a
arrostar todos os perigos.

Inicialmente, caminhou para as muralhas e, pela noite dentro,


percorreu novamente o caminho seguido na fuga, rebuscando os vãos
escuros dos portões. Por toda parte, olhava horrorizado a desolação e o
silêncio da cidade agonizante. A sua casa, ocupada pelos gregos, era presa
das chamas até aos mais altos cumes dos telhados. Aproximou-se do palácio
de Príamo e da cidadela. Lá no templo de Juno, Fénix e Pirro recolhiam e
guardavam o botim. De todos os lados chegavam os guerreiros com os
tesouros arrebatados aos santuários e ao palácio: pedras, taças de ouro e prata
e ricas vestimentas. As crianças e as mães, cativas, esperavam em longa
fileira, apavoradas. Apesar do perigo, Eneias chamava por Creusa em alta
voz, bradando em vão pela esposa nas sombras escuras.

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ENEIDA - Virgílio
Já cansado de percorrer as ruas sem rumo, eis que lhe apareceu à frente
o fantasma da esposa, maior que a sua figura terrena. Ficou estupefacto,
eriçaram-se-lhe os cabelos e a voz prendeu-se-lhe na garganta. Acalmando-
o, passou o espírito a falar-lhe:

— Ó querido esposo, por que tanto te entregas a essa dor inútil? Tais
coisas não acontecem à revelia dos deuses, nem quer Júpiter que leves
Creusa como tua companheira. Esperam-te vastas extensões de mares e um
longo exílio. Chegaras a Itália, que os gregos chamam Hespéria, e lá, onde
o Tibre corre por entre os campos férteis, te espera um novo reino, que
fundarás, e uma nova esposa. Esquece, pois, tua querida Creusa. Eu, como
descendente de Dárdano e nora da deusa Vénus, não verei, ao menos, a
Grécia, nem servirei de escrava a seus soberbas senhores, pois a grande mãe
assim me resolveu conservar nesta terra. E agora, adeus, e cuida bem do
nosso filho.

Deixando Eneias banhado em lágrimas, a visão afastou-se. Três vezes


quis ele abraçá-la, mas sempre lhe fugia a figura das mãos, como acontece
nos sonhos. Triste e acabrunhado com a morte de Creusa, Eneias regressou
ao lugar onde tinha deixado os companheiros e aos poucos o animo voltou-
lhe ao espírito, pois percebeu que muitos outros troianos — homens,
mulheres e crianças — tinham conseguido escapar e reunir-se ao pequeno
grupo inicial. Batidos, cansados, rasgados, feridos muitos deles, mas todos
ansiosos em acompanhá-lo para onde ele os quisesse levar.

A noite terminava agora e os primeiros alvores do dia já iluminavam


o cume do monte Ida. Dirigiram-se, então, para as florestas, à procura de
abrigo, quando já se aproximava a linda aurora.

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ENEIDA - Virgílio

Capítulo 2: Partem os Troianos

Depois da queda de Tróia e da destruição da c idade pelos gregos,


Eneias e os seus companheiros refugiaram-se nas florestas do monte ida e lá
permaneceram algum tempo. Conformados com a sorte amarga que o
destino lhes reservara, resolveram construir uma esquadra de vinte navios e
nela partir em busca de nova pátria.

No inicio do Verão, já tudo pronto, Anquises mandou levantar ferros


e lá foram eles, mar fora, velas enfunadas ao vento, lançando um último
olhar saudoso às costas da terra amada onde existira Tróia.

Depois de vários dias de viagem, aportaram numa região de vastos


campos habitados pelos trácios e que outrora fora dominada pelo belicoso
Licurgo. Ais Eneias lança as fundações duma cidade a que deu o nome de
Eneida, começando a construir-lhe as fortificações.

Certo dia, estava ele na praia, oferecendo sacrifícios a sua mãe, a deusa
Vénus, aos deuses protectores do inicio das coisas e ao próprio Júpiter, o
supremo habitante do Olimpo, quando resolveu subir a uma colina próxima,
de cume coberto de pequenas moitas. Aproximou-se de uma delas e tentou
arrancar da terra um arbusto verde com cujos ramos pretendia cobrir os
altares sagrados. Aconteceu então um prodígio tenebroso, que lhe fez gelar
o sangue nas veias. Das raízes partidas da árvore arrancada escorreu sangue
negro que empapou a terra, manchando-a com a sua podridão. Transido de
pavor, Eneias, tentando explicação para o mistério, arrancou outro arbusto.
Também das raízes deste escorreu sangue escuro. A sua imaginação
trabalhava febrilmente. Invocando as ninfas campestres e o deus Marte para
que levantassem o mau presságio, o troiano agarrou de novo um terceiro
arbusto e, apoiando os joelhos na terra, tentou tirá-lo do solo. O prodígio dos
prodígios! Ouviu-se então um gemido lacrimoso vindo do fundo de um
sepulcro e chegou até ele uma voz que dizia:

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ENEIDA - Virgílio
— Eneias, Eneias, porque dilaceras um infeliz? Deixa em paz um
morto e não manches as tuas mãos com o meu sangue. Sou o teu
compatriota, Polidoro, aqui neste lugar por muitas lanças trespassado e
morto. Foge destas costas ingratas e cruéis!

Oprimido de medo, Eneias ficou estupefacto, com os cabelos eriçados


e a voz presa na garganta. Lembrou-se então que o infeliz rei Príamo havia
mandado furtivamente aquele jovem, Polidoro, ao rei da Trácia para que o
educasse, quando percebeu que a cidadela de Tróia não resistiria por muito
mais tempo ao assédio dos pregos. Polidoro levara consigo uma grande
fortuna para pagar a educação. Entretanto, o traiçoeiro rei, quando soube que
os troianos tinham sido derrotados, passou-se para o lado dos gregos e,
depois de mandar assassinar o jovem, apossou-se de todo o ouro que este
trouxera.

Voltou então Eneias para junto dos seus companheiros e contou-lhe o


prodígio que presenciara, perguntando-lhes sobre o que achavam que
deveriam fazer. Todos foram unânimes em partir daquela terra ímpia onde o
sagrado direito da hospitalidade tinha sido tão cruelmente vio lado.

Antes, porém, realizaram o funeral de Polidoro. Cavaram uma grande


sepultura em volta da qual dispuseram altares em sua honra, enquanto a
mulheres choravam, com fitas azuis e negras nas cabeças e os cabelos soltos
tudo segundo o costume. Depois de derramarem leite quente e sangue
sagrado no sepulcro, fecharam-no, invocando mais uma vez a alma do jovem
infortunado.

Então, mais confiantes em si, fizeram-se aos mares, deixando para tras
as terras que tinham começado a lavrar e a cidade começada a construir.

Delos, berço de Apolo e Diana, era uma ilha que nos tempos idos
vagava incessantemente, para lá e para cá, ao sabor das ondas, entre Giaros
e Micon. O deus, agradecido à sua terra natal, fixou-a, na entanto, para que
fosse venerada e pudesse arrostar os ventos. Para lá se dirigiram Eneias e os
seus camaradas, entrando com os navios no seu porto seguro.
Desembarcaram, a fim de levar ao deus os seus sacrifícios, e foram recebidos

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ENEIDA - Virgílio
pelo rei Anio, que reconheceu o seu velho amigo Anquises. Apertaram-se as
mãos direitas em sinal de hospitalidade e foram conduzidos ao palácio real.
Eneias dirigiu-se então ao templo de Apolo e lá fez uma invocação:

— Ó Apolo, dai-nos uma morada estável, a nós que estamos cansados.


Queremos uma cidade protectora e fortificada onde possamos criar os nossos
filhos. A quem devemos seguir? Para onde nos mandais ir? Onde quereis
que construamos as nossas casas? Dai-nos, ó pai, um presságio!

Mal tinha acabado de falar e tudo começou a tremer: o portal do


templo, os ramos sagrados sobre o altar, a própria colina onde estavam.
Gemiam as trípodes e abriu-se o sacrário. Perante aquilo, Eneias e os seus
camaradas rojaram-se ao chão, enquanto Ihes chegava aos ouvidos uma voz:

— Ó filhos de Dardanios, endurecidos nos combates da vida, a terra


donde sairam os vossos antepassados vos receberá. Procurai-lhe pois, o solo
fértil e lá Eneias será rei e fundará uma nova raça.

Grande alegria apossou-se então dos troianos que tinham ouvido a


profecia divina. Indagavam-se, no entanto, em grande confusão, que terras
seriam aquelas para onde Apolo os tinha mandado retornar.

Depois de pensar profundamente durante algum tempo, disse


Anquises, pai de Eneias:

— Ouvi, ó chefes, e tende esperança. Os berços da nossa nação ficam


situados no meio do mar, na ilha de Creta, do grande Júpiter e dos montes
Ida. Há cem grandes cidades naquele reino fertilíssimo. De lá partiu Teucro,
nosso primeiro antepassado directo, aportando às costas de Dardânio e lá
fundando Tróia, que hoje, saqueada pelos gregos, está reduzida a cinzas. Lá
em Creta também morava Cibele, a máe-montanha dos deuses, muito
prendada na arte de curar e na agricultura. Vagando pelos bosques escuros
das encostas, tocava as suas flautas e guiava o seu carro puxado por leões
domesticados. A seu lado, dançavam sacerdotes loucos, os coribantes,
cortando a própria carne com facas enquanto gritavam, uivavam e tocavam
os címbalos em fúria alucinada. Vamos, pois, e sigamos para onde nos

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ENEIDA - Virgílio
conduzem as ordens dos deuses. Aplaquemos os ventos e velejemos para
Creta, que, se Júpiter nos ajudar, veremos ao terceira dia de viagem.

Imolaram um touro a Neptuno, outro a Apolo, uma ovelha preta à


Tempestade e uma outra, branca, aos Zéfiros felizes.

Chegou-lhes então a noticia de que o rei Idomeneu, de Creta,


abandonara a ilha, deixando-a deserta, e que as casas, ruas e cidades estavam
livres de inimigos e à disposição dos rroiar^los Houve um brado de alegria
entr os exilados, os quais, auxiliados por vento de popa, logo chegaram à
ilha

Eneias deu imediatamente início à construção de uma cidade, a quê


chamou de Pérgamo, exortando a sua gente, satisfeita com o nome que Ihe
recordava a pátria, a amar os seus lares e a construir uma fortaleza.

Passou-se o tempo e floresceu a colónia. A terra era cultivada, os moço


felizes casavam-se com as donzelas sorridentes. Eneias promulgava as leis
e distribuía habitações e campos entre os seus companheiros.

Nova calamidade, no entanto, abateu-se sobre eles. Uma pestilência


mortal, vinda de um ponto obscuro do céu, encheu o ar, atacando as árvores
e as searas. As pessoas morriam ou arrastavam os corpos combalidos pelos
campos estéreis, queimados pelo Sol escorchante. Reinava a fome e a sede.
Anquises aconselhou que se retornasse ao oráculo de Apolo, em Delfos,
suplicando-lhe perdão e indagando novamente para onde deveriam seguir
rumo.

Aconteceu, por aqueles dias, que Eneias teve um sonho em que via as
imagens sagradas dos deuses domésticos trazidas das ruínas fumegantes de
Tróia. A lua cheia, entrando pela janela aberta, iluminava-os e eles dirigiam-
lhe a palavra serenando-lhe os animas:

— O que Apolo te diria em Delfos, nós te diremos aqui, e agora, como


seus mensageiros. Nós, que te temos acompanhado nas tuas andanças e luta

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ENEIDA - Virgílio
depois de incendiado Tróia; nós, que por ti guiados cruzamos os mares
revoltos; nós, teus deuses domésticos, te dizemos agora para partir.

Apolo não te aconselhou estes litorais de Creta, mas sim um lugar que
os gregos cognominaram de Hespéria, terra antiga, famosa pelas armas e
pela fecundidade do solo. Foi há muitos anos habitada pelos homens de
Enótria, mas chama-se agora Itália, do nome do seu chefe. De lá veio
Dárdano e o pai lásio, donde provem a nossa família. É lá que fundarás o teu
reino, pois Júpiter te negou os campos de Creta. Agora vai, leva alegre essa
mensagem a teu pai e parte para a Itália, para a cidade de Corinto.

Atónito com a visão e a voz dos deuses, Eneias acordou com um suor
frio a percorrer-lhe o corpo. Nem lhe parecia sonho, tal a nitidez dos
semblantes, dos cabelos e dos corpos. Estendeu as mãos para os céus e
derramou ricas oferendas sobre o fogo sagrado. Jubiloso e já calmo depois
dá ter oferecido o sacrifício aos deuses, dirigiu-se a Anquises e narrou-lhe o
facto. Reconheceu seu pai que se tinha enganado, pois que agora se lembrava
serem os troianos descendentes de duplo tronco de linhagem. E disse:

— Ó filho, Cassandra foi a única pessoa que me contou tais coisas,


mas na ocasião não lhe dei ouvidos. Referiu-se também à Hespéria e aos
reinos de Itália. Mas quem acreditaria que os troianos algum dia haveriam
de navegar para tão longe? E quem acreditaria em Cassandra? Obedeçamos
a Apolo e sigamos, pois, nosso destino.

Satisfeitos, prepararam-se todos para a partida e abandonaram de novo


os seus lares. Alguns troianos ficaram em Creta, enquanto a esquadra se
perdia ao longe no horizonte, velas enfunadas ao vento.

Já no mar alto, sem terra à vista, o céu escureceu-se de nuvens e veio


a escuridão, a chuva e a procela. Os ventos revolviam as águas e ondas
gigantescas embatiam nos barcos, alçando-os nas alturas e atirando-os para
os fundos abismos. As nuvens ocultaram o dia, os relâmpagos brilhavam. A
frota de Eneias perdeu então o rumo e errava sem destino no mar negro. O
próprio piloto Palinuro declarou que não distinguia mais o dia da noite e que
estava perdido.

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ENEIDA - Virgílio
Três dias e três noites ficaram assim vagando ao sabor dos ventos na
negra cerração. No quarto dia avistou-se terra, com montes e fumo. Arriando
as velas, os marujos lançaram-se aos remos e já os barcos fendiam a espuma
branca, varrendo as águas azuladas. As terras que se aproximavam eram
duas ilhas do mar Jónio, que os gregos denominavam Esrrófades. Lá
habitavam as Harpias e a sua rainha, a cruel Celeno, depois de expulsas da
casa do rei Fineu da Trácia. Como castigo ao ultraje sofrido, os deuses
tinham cegado o soberano, que sofrera enormes tormentos nas mãos dos
malvados seres alados.

Aquelas horrendas criaturas tinham rostos de mulher, pálidos e


famintos, asas, corpo e garras semelhantes às das aves de rapina. Jamais se
levantaram das regiões infernais monstros mais repulsivos ou ferozes que
aqueles. Tudo se estragava ao seu toque imundo e o mau cheiro exalado
pelos seus corpos odiosos era insuportável aos homens. I Logo que entraram
no porto, os troianos divisaram alegres rebanhos de bois e cabras pastando
pelos campos. A eles se lançaram imediatamente, oferecendo parte das
presas em holocausto a Júpiter e aos deuses menores. Preparavam-se para a
refeição ali mesmo na praia, dispondo copiosas iguarias na mesa, quando de
súbito desceram do céu as horrendas Harpias que, sacudindo as asas e
emitindo gritos agudos, roubaram o alimento e tudo mancharam com o seu
tacto imundo. Delas elevava-se uma voz sinistra. Logo os companheiros de
Eneias procuraram um lugar bem abrigado, numa reentrância da praia, sob
uma rocha côncava e bem cercado de árvores. De novo puseram as mesas e
prepararam o fogo dos altares. De pontos obscuros do céu surgem
novamente os monstros alados em grande alarido. Com as unhas retorcidas
atacaram as iguarias, sujando-as com a boca.

Eneias decide, então, atacar os seres odiosos e ordena aos seus


companheiros que escondam as espadas e os escudos sob as ervas.
Advertidos por um sinal de trombeta de Miseno, que ficara num observatório
à espreita do terceiro ataque, os troianos acometeram contra as aves. Mas de
nada lhes valeram o ferro e o bronze das armas, pois as Harpias, imortais
que eram, nada sofriam com os seus golpes. Não obstante, fugiram para os
céus com um alarido ensurdecedor.

26
ENEIDA - Virgílio
Somente a sua rainha, Celeno, pousada numa rocha a certa distancia,
permaneceu ali e gritou para os guerreiros:

— Ó troianos imbecis! Pretendeis, depois de matar os bois e os


novilhos que pastavam, trazer-nos também a guerra e expulsar-nos de nossa
terra? Preparai-vos para um mau augúrio: o pai omnipotente o predisse a
Apolo e este mesmo má transmitiu. Agora eu vos digo: demandai a Itália e
lá chegareis, se os bons ventos vos ajudarem. Mas vossa cidade não se
firmará antes que vos ataque uma fome cruel, tão cruel que sereis obrigados
a devorar a madeira das próprias mesas. Esse é o castigo da perseguição que
nos movestes.

Assim dizendo, bateu as asas e voou para o bosque.

Grande medo assaltou então Eneias e os seus companheiros. Já não


ousavam senão orar e pedir aos deuses perdão, fossem eles entes sublimes
ou aves cruéis e nojentas. Anquises, com as mãos estendidas, invocou na
praia as grandes divindades:

— Ó deuses, proibi estas ameaças! Ó deuses, afastai tal desgraça e


sede propicias a vossos filhos.

No mesmo instante, soltaram as amarras e fizeram-se ao mar,


abandonando aquelas plagas malditas. Com os ventos enfunando as velas, lá
foram os troianos por sobre as ondas espumantes do risonho mar Jónio,
passando ao largo das espessas florestas de Zacinto, Duliquo e Samos e os
rochedos de Nérito. À direita apareceu-lhes Itaca, o reino de Laerte.
Amaldiçoaram a terra cruel de Ulisses. Surgiu então o cume nebuloso do
monte Leucates e o templo de Apolo, sendo aquele local temido pelos
navegadores. Cansados, demandaram o porto e entraram na pequena cidade.
Desceram os ferros, prendendo os navios firmemente ao litoral. Felizes e
agradecidos por terem evitado tantas vezes o inimigo grego e conseguido
chegar àquele local seguro — maior sorte do que podiam esperar—os
troianos dedicaram-se logo aos sacrifícios divinos, imolando vários touros a
Júpiter, acendendo os fogos sagrados nos altares e realizando os ritos
habituais.

27
ENEIDA - Virgílio
Na praia, os jovens divertiam-se com lutas e jogos, segundo os
costumes de Tróia.

Permaneceram naquela terra durante o Inverno, enquanto os ventos


açoitavam as águas geladas. Com a chegada da Primavera, aprestaram-se
novamente para partir, enquanto Eneias fixava num pilar do templo um
escudo grego, de bronze, conquistado na luta, colocando nele a seguinte
inscrição:

ENEIAS (CONSAGROU) ESTAS ARMAS (OBTIDAS) AOS


GREGOS VITORIOSOS

Agarrados aos remos, os troianos fizeram-se ao mar. Logo perderam


de vista as cidades altas dos feácios, costearam o litoral do Epiro e, entrando
no porto Caónio, chegaram à elevada cidade de Butroto. Ai, ouviram uma
história fantástica. Diziam que, tendo morrido Pirro, Heleno, filho de
Priamo, agraciado pelos deuses com o dom da profecia, reinava em várias
cidades gregas. Segundo a noticia, Pirro tomara Andrómaca, viúva de
Heitor, para esposa, agora já mulher de Heleno. Fora através desse
casamento que o filho de Príamo se tornara rei dos gregos.

Intrigado com o que lhe contavam, Eneias ardia no desejo de falar ao


seu velho amigo Heleno e esclarecer toda a história. Assim, afastou-se do
litoral onde permanecia a esquadra e os companheiros e dirigiu-se à cidade.
Inesperadamente, porém, aconteceu encontrar Andrómaca num bosque,
junto a um pequeno rio artificial, construído pelos troianos, saudosos da sua
pátria, à semelhança do seu homónimo, o Simois, que serpenteava
alegremente por entre as colinas de Tróia, até encontrar o seu irmão, o
poderoso Xantos, que desaguava no oceano. Andrómaca realizava os seus
ritos funerários habituais, colocando dádivas sobre o altar e chamando o
espírito de Heitor para uma rumba vazia ornada de relva verde. Longe, lá
peno da cidade incendiado, jaziam os ossos do herói morto por Aquiles. Ao
lado dos dois altares que ladravam o túmulo, ela chorava, de cabeça baixa.
Ao ver Eneias e reconhecendo-o como troiano, por sua armadura e capacete
empenachado, Andrómaca empalideceu e os seus joelhos fraquejaram,

28
ENEIDA - Virgílio
caindo desmaiada. Depois de certo tempo, os seus olhos abriram-se
novamente e ela murmurou:

— És tu, nascido da deusa Vénus, homem de carne e osso? Se a suave


luz terrena te deixou, Eneias, e não és mais que um espírito, dá-me noticias
de meu querido esposo Heitor.

Assim falando, enchia o santuário com o seu pranto e gemidos.


Perturbado por ver tanto sofrimento, Eneias respondeu:

— Estou vivo, é verdade, e arrasto a minha vida por entre mil e um


perigos. Mas que te reservou o destino, Andrómaca, viúva de homem tão
valoroso? Gozas de grande fortuna? É verdade que estas casada com Pirro,
o terrível filho de Aquiles?

A isso ela baixou os olhos e respondeu com voz fraca e humilde:

— Oh! Quão feliz foi aquela donzela, filha de Príamo, morta ao pé da


sepultura de um inimigo, junto às altas muralhas de Tróia, que não foi
destinada a ser a esposa cativa de um senhor vitorioso e arrogante. Como foi
pior o meu sofrimento! Incendiada Tróia, assassinado o meu filho, levada
pelos mares longínquos sob o jugo da escravidão, tive de suportar o desprezo
do descendente de Aquiles, que roubara a vida do meu querido Heitor.
Aconteceu que esse jovem soberbo se afeiçoou a Hermione, filha de Leda e
noiva de Orestes, e roubou-a na véspera do casamento. Entregou-me então
a Heleno, filho de Príamo. Assim, eu, uma escrava, casei-me com um
escravo. Orestes, no entanto, infamado por grande amor à noiva arrebatada
e assolada pelas Fúrias, atacou Pirro desprevenido e matou-o, junto dos
altares dos seus ancestrais, com uma punhalada no coração. Pela morte de
Pirro, parte de seus reinas passou por herança a Heleno, que a denominou
Caônia em honra a seu irmão Caone. Aqui fundou ele uma cidade, à
semelhança de Tróia, e uma cidadela elevada, a que chamou Pérgamo, em
homenagem àquela outra, destruída. Mas dize-me, Eneias, que fados te
trouxeram aqui? Ou que deus te conduz às nossas praias sem o saberes? Que
é feito do menino Ascanio? Ainda vive esse filho a ti dado por Creusa? Tem
o menino saudades da mãe morta? Brilha nele o valor do pai e do tio Heitor?

29
ENEIDA - Virgílio
Assim falava Andrómaca, suspirando e chorando, quando chegou
Heleno, herói filho de Príamo, acompanhado de grande séquito.
Reconhecendo os seus patricios, saudou-os alegre e levou-os para o palácio.
Ao aproximarem-se da cidade, os recém-chegados estacaram, maravilhados.
Ali estava uma pequena Tróia e também uma Pérgamo em tamanho menor.
E mais um riacho, a que Heleno chamava de Xantos, e um templo a Apolo.

Durante alguns dias os troianos gozaram dos favores da cidade amiga.


O rei fazia os impossíveis para lhes tornar a vida agradável e doce. Eneias,
ansioso por partir, via o vento que enfunava as velas, mas resolveu primeiro
aconselhar-se com Heleno, que tinha o dom da profecia. Perguntou-lhe
então:

— Ó filho de Tróia, intérprete dos deuses, que conheces as vontades


de Apolo, que lês nas tripodes, nos ramos de louro, que conheces os astros,
o canto das aves, os presságios do seu voo, vamos, fala. Sabes que os
augúrios divinos me têm indicado incessantemente que demande a itália.
Diz, pois, qual é o nosso destino, que perigos nos esperam e como os
poderemos evitar. A Harpia Celeno profetizou-nos uma terrível fome antes
que alcancemos o nosso objectivo.

Heleno, depois de imolar alguns novilhos aos deuses, segundo o


costume, desatou as fitas da cabeça e pediu as bênçãos do céu. Depois,
conduzindo Eneias ao templo, assim respondeu:

— Ó Eneias, filho de uma deusa! Porque tenho a certeza que os deuses


te guiarão pelos mares adentro até às terras da Itália e do Lácio, contar-te-ei
os desígnios dos Céus, para que possas evitar os perigos que te assaltarão na
longa viagem. No entanto, é preciso primeiro que não te impressiones com
a lúgubre profecia da Harpia. Em segundo lugar, deixa-me dizer-te que não
estás tão perto da Itália quanto pensas. Deverás navegar para o ocidente por
muitos mares desconhecidos, antes que vejas as costas rochosas que são o
teu destino. Mas evita, cauteloso, o litoral que primeiro avistares, pois são
as costas orientais da Itália, povoadas pelos perversos gregos.

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ENEIDA - Virgílio
Lá fundaram as suas cidades os locros de Naricia, o rei Idomeneu, que
abandonou Creta, e também lá está a famosa cidade de Filoctetes, chefe de
Melibeu e a pequena Petilia, forte nos seus muros altos. De tudo isso
rnantém-te afastado, Eneias, e cruza o mar Jónio na direcção sul. Veras então
o estreito de Peloro. Em tempos passados, conta a lenda que aquelas massas
de terra eram uma só e que num dia de grande catástrofe a terra estremeceu,
separando-as e o mar avançou com impero pelo sulco aberto, afias tando as
costas da Hespéria e da Sidlia. Ao veres a entrada daquele estreite canal
afasta-te para o mar largo, para longe das terras e das águas à tu, direita.
Mantém o rumo à esquerda, navegando para o sul ao longo d, costa da Sidlia
até o ponto mais meridional da ilha, rodeia-o e faz-te a norte, directo ao teu
objectivo. Se tens amor à vida, não te aventures pele Peloro, pois lá te
espreitam grandes perigos. Naquele lugar habitam duas divindades
monstruosas. A direita, debaixo do penhasco mais alto, mor: Cila numa
caverna submersa. Essa terrível deusa mantém em torno de si amarrados, um
bando de mastins uivantes e verdes como o mar. A part, superior do seu
corpo é de mulher. Para baixo é um horroroso monstro marinho, com ventre
de lobo e muitas caudas de delfim, que chicoteiam e se agitam sem cessar.
Não te atrevas uma vez sequer a olhar o monstro pois está sempre à espreita,
pronto a arrebatar com as suas vorazes mandíbulas os homens do convés. A
esquerda, onde uma penedia lisa se alç do oceano, mora Caríbdis. Três vezes
por dia, aspira ela para o seu vasta ventre as enormes ondas de água salgada,
fazendo girar o mar em torn, em remoinho gigantesco. Qualquer navio que
lá se aventurar, afundar-se para sempre. Depois de um certo tempo, o
monstro volta a cuspir a águ para os ares, como se quisesse molhar os astros.
Quando finalmente, depoi de contornares a ponta meridional da Sicilia, te
estiveres a aproximar da costas ocidentais da Itália, avistarás a cidade de
Cumas, perto da qual esta os lagos do Averno. As suas margens são cobertas
de bosques escuros onde as árvores murmuram misteriosamente. Lá irás
consultar uma pro fetisa inspirada que trabalha debaixo de um rochedo
côncavo, predizendo os destinos e escrevendo nomes e letras nas folhas.
Essa profetisa dispõe as folhas de modo regular e ordenado no interior da
sua caverna, que fica próxima de uma colina onde reluz o templo de Apolo.

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ENEIDA - Virgílio
Dizem que o deu lhe confia muitos dos seus segredos. As folhas
permanecem imóveis e na saem de seus lugares. Porém, se um vento brando,
aberta a porta, as agite mistura, a sibila não se preocupa com o seu destino e
nem procura, sequei reuni-las.

Por isso mesmo, os homens que vão consultá-la pouca fé põem nos
seus conselhos e profecias. No entanto, tu, Eneias, não receies perde algum
tempo, mesmo se os teus companheiros te censurarem e os vento prósperos,
enchendo as velas com força, convidem à viagem, e vai sem falta visitar a
sibila, solicitando-lhe os oráculos. E que da, por sua própria vontade, abra a
boca e pronuncie as palavras. Conhecer então os povos que habitam a Itália,
as lutas que terás de travar e os modos pelos quais poderás evitar as
desgraças ou suportá-las melhor. Bons augúrios te dará, se a venerares. Dir-
te-ei agora os sinais que te indicarão onde construir uma cidade em terra
pacifica. Conserva-os guardados na mente. Certo dia, depois de
desembarcares naquela parte da costa ocidental da Itália conhecida por Lácio
— linda terra com campos férteis e pastagens exuberantes, por entre as quais
corre o suave Tibre — chegar a um tranquilo lugar junto a um riacho. Ai
verás, sobre a margem arenosa, uma porca, branca, cor de neve,
amamentando uma ninhada de porquinhos recém-nascidos, todos também
brancos, cor de neve. Sobre esse chão levantarás as muralhas da tua cidade.
Uma última advertência te farei ainda, Eneias! Quando os navios entrarem
nos portos estranhos, oferece sacrifícios aos deuses — principalmente a Juno
— segundo o costume, dispondo os altares e cobrindo a cabeça com um véu
púrpura, para que nenhuma figura hostil surja entre os fogos sagrados
perturbando os presságios. Que tu, teus companheiros, teus filhos e teus
netos sigam os ritos e satisfaçam a vontade da deusa que tanto odeia a tua
raça! É isto e mais nada o que te posso dizer, porque mais não me permitem
os deuses. Vai, pois, Eneias, e com os teus feitos eleva até aos astros o nome
de Tróia.

Acabada a profecia, Heleno ordenou que fossem levados para os


navios presentes riquíssimos de ouro e marfim, bem como caldeirões de
prata. Trouxeram um peitilho de metal com presilhas douradas e um
capacete reluzente, com um enorme penacho feito de crina de cavalo. Era a

32
ENEIDA - Virgílio
armadura de Pirro. A Anquises, Heleno ofereceu lindos cavalos. Completou
o número de remadores e forneceu armas aos seus compatriotas.

O vento apresentava-se favorável e Anquises não queria demorar-se


mais. Dirigiu-se-lhe, então, o filho de Príamo e intérprete de Apolo:

—Ó Anquises, dignificado com a augusta aliança de Vénus, lá adiante


jaz Lácio, aquela terra rica, esperando por vos, além do Tibre. Não demoreis,
que o vento vos é propicio e muitos mares tendes por cruzar.

Andrómaca também veio à praia despedir-se, triste com a separação, e


trouxe um bonito lenço de pescoço para Ascânio. Para ele e para os outros
trouxe igualmente vestuários bordados com fios de ouro e tapetes por ela
mesma tecidos. Disse então ao menino:

— Eu te dou estes presentes, meu filho, para que te recordes do amor


de Andrómaca, esposa de Heitor. Aceita-os como últimas dádivas dos teus
parentes, ó única imagem ainda viva de meu amado filho, Astianax. Vejo-o
nos teus olhos, no teu rosto e nas tuas máos. Se não tivesse morrido, teria
agora, aproximadamente, a tua idade — um lindo jovem prestes a tornar-se
homem.

Eneias, pesaroso, afastou-a, dizendo:

— Para vós, amigos e parentes, já não há trabalhos, pois sois felizes,


enquanto nós somos chamados a outras plagas distantes. Não mais tendes de
cruzar os mares e podeis ficar aqui a admirar estas imagens do Xanto e de
Tróia que construístes e que os deuses hão-de proteger dos gregos. Se algum
dia, favorecidos pela sorte, chegarmos à foz do Tibre barrento e levantarmos
os muros de uma nova cidade, então nós lá e vós aqui, todos descendentes
de Dárdano, faremos uma sã Tróia em espírito.

Partiram por fim, avançando pelo mar junto aos campos vizinhos de
Ceraúnia, procurando o caminho mais curto para a Itália. Chegou a noite,
entretanto, e acharam um bom local para descansar do esforço daquele dia e
ali mesmo, na praia, se entregaram ao reparador sono. Não ia a noite

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ENEIDA - Virgílio
avançada quando Palinuro, o piloto, se levantou do leito e se pôs a observar
os astros e a escutar os ventos. Lá estavam a estrela Arturo, as Híades
chuvosas, os dois Trióes e Orion, no seu fulgor dourado. Deu então um sinal
vibrante. Era a ordem para levantar o acampamento e partir, aproveitando o
mar calmo. Já então nascia a aurora, afugentando as estrelas, e logo
chegaram à costa baixa da Itália.

Acates foi o primeiro a vê-la e a anunciá-la. Eneias e os seus


companheiros saudaram-na, de imediato, com altos bradas. Anquises,
revestindo de touros uma grande taça de vinho, pôs-se de pé na popa e
invocou os deuses derramando o líquido no mar:

— Ó deuses, senhores do mar, da terra e das tempestades, dai-nos uma


viagem fácil e fazei os ventos soprarem propícios.

A brisa chegou mais forte e logo avistaram o porto e, no alto, o templo


de Minerva. Recolheram as velas, guarneceram os remos e aproaram os
barcos para o litoral. O porto era curvo e nos rochedos fronteiras estrondeava
o mar em branca espuma. A entrada era flanqueado por duas linhas de
recifes, uma de cada lado, meio ocultos entre a espuma e as ondas. O templo
de Minerva ficava situado numa colina alta, branco e brilhante contra o
fundo escuro das árvores. Quando se aproximaram mais um pouco,
encobriram-se da vista as altas penedias. Eneias divisou um primeiro
presságio. Eram quatro cavalos, brancos como a neve, que pastavam na
relva. Anquises exclamou:

— Anuncias guerra, ó terra hospitaleira, pois para a guerra se armam


os cavalos. Contudo, às vezes esses mesmos corcéis são atrelados aos carros
e recebem freios nas bocas. São, nesse caso, augúrio de paz.

Armados os altares, ofereceram sacrifícios a Minerva, que primeiro os


recebera, e também a Juno, segundo os conselhos de Heleno. Mas não se
demoraram. Logo, depois de orarem aos deuses, deixaram aquelas paragens
suspeitas e lançaram-se ao mar, velas paridas ao vento forte. Avistaram o
golfo de Tarento, mas nele não penetraram, sempre no rumo sul. Evitaram
também os perigosos baixos de Cilaceu. Na noite seguinte, viram ao longe,

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ENEIDA - Virgílio
por entre a névoa, o imenso vulcão Etna. Nesse momento o mar gemia, os
rochedos espumavam e as ondas quebravam-se com fúria na praia. Bradou
então Anquises:

— Companheiros, afastai-vos daqui, que estamos fora do rumo.


Aquela é a afamada rocha de Canbdis. Lembrai-vos do que Heleno nos
contou sobre ela.

Obedeceram a toda pressa e Palinuro foi o primeiro a voltar para a


esquerda a proa do barco que rangia. Com auxílio dos remos e do vento,
todos o seguiram. Mas já as ondas os elevavam aos céus e os faziam descer
aos abismos do mar. Três vezes os escolhas soltaram clangor tremendo e três
vezes as águas subiram aos astros. Salvos, mas cansados do Sol e do vento,
perderam o rumo, indo ter à região dos Ciclopes. Estes eram uma horrenda
raça de gigantes canibais que só tinham um olho, enorme, bem no meio da
testa.

Eneias e os seus patrícios, no entanto, nada sabiam dos perigos dessa


terra terrível e aproaram os navios para a praia, preparando-se para passar a
noite acampados. O ancoradouro era vasto e calmo e dali avistava-se o
rugidor Etna. De vez em quando, o vulcão atirava aos céus uma nuvem
negra, num turbilhão de fava e de cinza candente. Voavam bolas de fogo e
pedregulhos arrancados das entranhas da montanha. As rochas derretiam-se
e fervia o abismo fundo. Dizia a lenda que o corpo de Encélado, meio
queimado por um raio de Júpiter, se revolvia eternamente naquela massa
fervente, exalando fogo, como se fosse um grande braseiro, com toda a
enorme massa do vulcão sobre si. Conforme o gigante arfava o peito ou se
virava para um lado ou para o outro, toda a Sialia gemia e tremia, enquanto
o céu se cobria de nuvens de fumo.

Ante aquela visão aterradora, os exilados refugiaram-se nos bosques


próximos durante toda a noite, tremendo de pavor a cada novo relâmpago e
estrondo da montanha poderosa.

No dia seguinte, quando se levantava do mar a Aurora dourada,


afastando do céu as nuvens chuvosas, eis que subitamente saiu das solvas

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ENEIDA - Virgílio
uma figura desconhecida de homem, extremamente magro, vestido com
farrapos, estendendo-lhes suplicante a máo. Os troianos encararam-no.
Apesar da imundície espantosa e da barba longa do estranho, viram que se
tratava de um grego e que provavelmente tomara parte no assalto e no saque
à sua querida cidade. Reconhecendo os trajes e as armas troianos, o
desconhecido parou, aterrado, mas em seguida atirou-se para a frente
precipitadamente, exclamando:

— Ó troianos, peço-vos, pelos astros, pelos deuses celestes e pela luz


que emana dos céus, que me leveis daqui! Conduzi-me a quaisquer
paragens! Sou grego, reconheço-o, e confesso que ataquei a majestosa Tróia.
Se julgardes grande demais o meu crime, atirai-me às ondas como castigo,
para que morra. Se tal acontecer, ainda assim ficarei alegre de ter perecido a
mãos humanas.

Assim dizendo, arrojou-se aos pés de Eneias e dos seus, abraçando-


lhes os joelhos. Exortaram-no então a que dissesse quem era, de quem
descendia e de como os fados o tinham trazido àquele lugar. O próprio
Anquises deu a mão direita ao jovem e fortificou-lhe o ânimo, de modo que
o infeliz começou a contar a sua história:

— Sou de fraca, companheiro do infeliz Ulisses, e meu nome é


Aquémenes. Sou filho de Admasto. Vindos de Tróia, paramos aqui para nos
refazermos. Eu e os meus companheiros fomos aprisionados pelo rei dos
Ciclopes, Polifemo, em sua caverna. Quando os outros escaparam daquela
prisão tenebrosa, deixaram-me, inadvertidamente, pois eu tinha-me
escondido num recesso profundo do escuro antro daquela mansão de festins
sangrentos.

Ó deuses, suo ainda de horror quando penso naquele local e no seu


cruel senhor. Sendo embora gigantesco, não é fácil de se ver, nem afável ao
trato. Alimenta-se das entranhas e do sangue negro dos infelizes que
consegue capturar. Eu mesmo o vi, deitado de costas no centro do covil, a
quebrar de encontro às rochas os corpos de dois dos nossos. Prendendo-os
na mão enorme comia-lhes os membros, enquanto lhes escorria o sangue
escuro e tremiam as carnes ainda quentes, entre os dentes colossais. Mas tal

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ENEIDA - Virgílio
crime não ficou impune e nem Ulisses o permitiria. Assim, quando o
monstro, farto com as iguarias e adormecido pelo vinho forte que o esperto
Ítaco lhe colocara à mão, se entregou a profundo sono, nós, orando aos
deuses, vazamos-lhe o único olho que se esconde sob a sinistra fronte, com
um estaca aguda e incandescente. Mas fugi, ó desgraçados, fugi e cortai as
amarras dos vossos barcos. Tão grande quanto Polifemo, que ordenha cem
ovelhas a uma só vez, vagueiam por perto cem outros Ciclopes, nestas praias
curvas e nestes montes. Durante estes três últimos meses tenho-me arrastado
na floresta, por entre as cavernas desertas ou habitadas por feras. De vez em
quando subo a uma elevação para olhar de longe os enormes gigantes e
estremeço ao som do bater dos seus pés e do estrondear da sua voz. Só me
tenho alimentado de frutas silvestres, ervas e raízes. Numa dessas ocasiões
avistei esta armada que demandava a costa e resolvi entregar-me a ela,
qualquer que fosse a origem. Fugir dos Ciclopes, basta-me. Podeis agora
dar-me o destino que quiserdes.

Mal tinha o grego acabado de falar, avistaram eles no cume de um


monte o próprio pastor Polifemo, movendo entre as ovelhas a sua enorme
corpulência e caminhando na direcção da praia. Era horrenda essa visão do
monstro disforme e cego. Como bastão, usava um pinheiro cortado, para
firmar os passas. Atingindo o mar, o Ciclope levou com as mãos água
salgada à órbita tinta de sangue que Ulisses lhe vazara. Rangiam-lhe os
dentes de dor e, embora já tivesse avançado muitos metros mar adentro, as
ondas mal Ihe chegavam aos quadris.

Apavorados, os troianos lançaram-se à fuga, carregando consigo o


grego. Levantaram as amarras e, inclinados e quedas nos bancos, davam aos
remos sem descanso. Porém, o Ciclope ouviu-os e voltou-se para onde
estavam, golpeando o ar e o mar com as mãos, sem direcção.

Encolerizado por não conseguir encontrá-los, soltou um berro


formidável, que fez estremecer a água, a terra e até as próprias cavernas do
Etna.

O brado chamou a atenção dos outros Ciclopes, que surgiram dos


bosques e das montanhas, correndo na direcção da costa. Era um grupo

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ENEIDA - Virgílio
horrendo, ali parado, impotente para alcançá-los porque não tinha barcos, a
agitar o porte gigantesco e a balançar as cabeças de um só olho.

O medo fez Eneias e os outros soltar as velas a todo o vento. A pequena


esquadra seguiu ao largo da costa siciliana, passando pela ilha de Ordgia e
transpondo a pantanosa foz do Heloro, de águas estagnadas. Costearam os
altos penhascos de Paquino, o ponto mais meridional da Sicília e, ao longe,
surgiu Camerina, com as suas montanhas. Já então os corajosos barcos
troianos de alta proa sulcavam o mar Tirreno, na costa oeste da ilha.
Deixaram para trás as palmeiras de Selino e cautelosamente atravessaram os
baixios de Lilibeu, perigosos devido aos seus muitos recifes ocultos,
chegando às costas áridas de Drépano. Foi ai que aconteceu uma desgraça
não prevista por Heleno, nem por Celeno, a rainha das cruéis Harpias.
Morreu Anquises, o bom pai do herói Eneias e consolo de todas as suas
dificuldades.

— Ó melhor de todos os pais! — chorava o troiano. — Assim me sois


tirado, mas os cuidados e canseiras que tivestes comigo não o foram em vão.
Eu, vosso filho, aqui fico para vos prantear e procurar o nosso objectivo de
acordo com o vosso sábio conselho.

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ENEIDA - Virgílio
Capítulo 3: Eneias Chega a Cartago

Navegavam os exilados, depois da morte de Anquises, seguindo para


o norte, em busca da terra que os vates lhes tinham indicado.

Até então, os navegantes tinham sofrido pouca interferência dos


deuses. Mas agora, enquanto sulcavam as ondas, Juno chegou ao mar
Tirreno e olhou para baixo, encolerizada. O seu ódio pela raça troiana não
diminu~ra mesmo com o passar dos anos, e muitas eram as razões para isso.
Permanecia-lhe ainda, bem vivo na memória, o julgamento de Páris,
decidindo que Vénus era a rainha da beleza, mais linda que ela, Juno—e do
que Minerva—e que, portanto, deveria ficar com a maçã dourada lançada
por Éris, a deusa da discórdia, no banquete do Olimpo.

Outra causa do ódio de Juno aos descendentes de Dardanos era a honra


concedida a Ganimedes, lindo jovem filho de Tros, antigo rei de Tróia. Uma
grande e negra águia, enviada por Júpiter raptara o mancebo e levara-o para
o Olimpo onde vivia agora servindo as taças douradas de néctar aos seus
habitantes. Suplantara assim a deusa Hebe, filha de Juno, que antes
desempenhava aquela função.

Mas havia ainda uma terceira razão, que era a predilecção da augusta
esposa de Júpiter pela antiga colónia fenícia chamada Cartago, situada nas
costas da África do Norte. Juno amava aquela cidade mais do que todas as
outras e lá guardava o seu carro e as suas armas. Tivesse ela poder para tanto
e Cartago dominaria o mundo, reinando sobre todas as outras nações.
Imensamente ricos, bravos e fortes na arte da guerra, os cartagineses eram
governados por uma rainha, Dido.

Juno ouvira dizer que, um dia, uma raça oriunda do sangue troiano
sairia da Itália e lançaria por terra a cidadela de Dido e que haveria de surgir
um povo soberbo na guerra para tal feito. Assim o tinham disposto as Parcas.
Temia esse dia e lembrava-se da guerra que empreendera ao lado dos gregos
contra a raça amaldiçoada e tentava, há anos, servindo-se de todo o seu
poder, afastar Eneias e os seus companheiros do Lácio, criando toda a
espécie de dificuldades, para que não fundassem a nação romana. Disse

39
ENEIDA - Virgílio
então a deusa para consigo: «Porque deverei eu desistir desta empresa a que
me lancei e evitar que os troianos cheguem à Itália? Porque tanto me
perturbam as Parcas?

Como pôde Minerva incendiar a esquadra dos gregos e fazê-los


perecer afogados, só porque um homem, Ájax, filho de Oileu, a ofendeu?
Como lhe foi permitido encher o céu de coriscos, dispersar os navios,
revolver as ondas com vendavais e arrebatar num turbilhão o seu ofensor,
espetando-o num rochedo pontiagudo, a exalar chamas do peito varado? E
eu, a rainha do Céu, esposa de Júpiter, a mim não me permitem as Parcas
destruir os Emanescentes de um povo a quem há tantos anos guerreio! Não!
Eu, Juno, a rainha dos deuses, não me afastarei dos meus desígnios! E se tal
acontecer, quem me adorará no futuro ou depositará oferendas ao pé dos
meus altares?» Revolvendo na mente pensamentos de raiva e de despeito,
dirigiu-se Juno a Eólias, lugar onde o rei Éolo refreia os ventos e as
tempestades dentro de uma caverna. Ali contidos, eles, indignados, fremem
e murmuram no coração da montanha. Éolo, empunhando um ceptro e
sentado num trono elevado, acalma-lhes os animas. Se não o fizesse, decerto
sairiam em louca fúria, varrendo os ares, os mares, as terras e o próprio céu.
E foi por temer isso que Júpiter os aprisionou naquele abismo, debaixo de
montanhas, dando-lhes um rei que os contivesse em rédea curta ou os
soltasse em fúria tempestuosa, conforme Ihe aprouvesse. L Chega então
Juno e assim Ihe fala: — Ó Éolo, que recebeste do pai omnipotente o poder
de amansar e encapelar as ondas com o vento, um povo meu inimigo cruza
agora o mar Tirreno, na direcção da Itália e em busca do exilio. Imprime
força aos ventos, alaga as popas, dispersa a esquadra e atira os homens ao
mar. Tenho em meu poder catorze ninfas de beleza estonteante, sendo que
Deiopéia é a mais linda de todas elas. Esta eu te darei em casamento e com
ela muitos filhos terás, se aquiesceres ao meu pedido.

Ao que Ihe respondeu o rei dos ventos:

— Ó rainha, teus desejos são ordens para mim, pois não é por tua graça
que aqui estou, soberano deste reino e possuidor deste ceptro? É pela tua
vontade que desfruto da amizade de Júpiter e participo dos banquetes do
Olimpo e é por ela que comando os ventos e as tempestades.

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ENEIDA - Virgílio
Assim falando, bateu com o ceptro na rocha oca a seu lado e... O
Deuses do Olimpo, quem poderá descrever o barulho que se seguiu! Os
ventos, ansiosos de liberdade depois de longa reclusão, lançaram-se, em
imenso turbilhão, pela porta que lhes fora aberta.

O Euro, o Noto e o Africo atiraram-se sobre o oceano ao mesmo


tempo, revolvendo-o todo, desde os abismos mais profundos, e
arremessando gigantescas ondas sobre os litorais. Assaltada a pequena
armada por aquela fúria eólica, os marinheiros gritavam e o cordarne tinia,
enquanto negras nuvens toldavam o Sol e faziam do dia noite. Estrondeavam
os céus e coriscavam os relâmpagos. Os troianos sentiam a morte iminente.
Os seus membros distendiam-se, o seu sangue enregelava-se. Eneias,
gemendo, estendeu as mãos para os céus e bradou:

— Mil vezes felizes os que morreram em Tróia, junto a seus pais. Lá


estão, nas suas rumbas, o valente Heitor e o aguerrido Sarpedon. Porque não
cai também, vencido por Diomedes, naqueles campos onde o rio Simois
corre sobre tantos escudos e capacetes arrastando os corpos dos guerreiros
para o mar? Porque terei eu de receber o mar sem fim como sepultura, onde
não serei nem recordado nem venerado?

Nesse momento, um terrível vagalhão atingiu-lhe o barco. Partiram-se


os remos e o navio, desgovernado, ofereceu o flanco às ondas. Três
embarcações, impelidas pelo vento, foram atiradas para os escolhas ocultos
que os italianos chamavam Altares. Outras três foram levadas para os bancos
de areia e outra, que transportava Orontes e os seus marinheiros lícios, foi
engolfada por uma gigantesca vaga pela popa, redemoinhando e rangendo.
E eis o bravo piloto tragado pelo turbilhão ante os próprios olhos de Eneias.

A tempestade dispersou a esquadra. Boiavam nas águas as armas, o


madeirame e os tesouros que tinham trazido de tão longe. Já tinham sido
engolidos pelo mar rugidor os navios de Acates, de Abante e do velho
Aletes. Os que restavam tinham as juntas dos costados abertas, metendo
água. Entretanto, sentiu Neptuno, pela agitação do mar e pelo sibilar do
vento, que uma tempestade se soltara e que todo o seu reino se revolvia.
Irritadíssimo, subiu à superfície e elevou a cabeça acima das ondas. Deparou

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ENEIDA - Virgílio
logo com a frota de Eneias, toda espalhada, enquanto os troianos,
sucumbidos pela força e fragor dos ventos rugidores, estavam quase no
limite da resistência.

Contrariado, percebendo ser aquilo resultado da ira de Juno, chamou a


si o Euro e o Zéfiro e disse-lhes: — Porventura, ó ventos, apoderou-se de
vós tamanho orgulho e arrogância que ousais misturar o céu e a terra e
levantar tamanhas massas de égua sem a minha permissão? Eu vos
castigarei. . . má s antes ide ligeiros ao rei Éolo e dizei-lhe que eu, não ele,
sou o senhor dos oceanos e que a mim coube o tridente por sorte. A ele é
permitido comandar os grandes rochedos, em cujas cavernas permaneceis
prisioneiros. E lá, somente, reina Éolo. Dizei-lhe que vos mantenha cativos
até que lhe dê ordem para vos soltar.

Assim falando, Neptuno acalmou o mar e pôs em fuga a s águas


encapeladas, fé zê n do surgir nova mente o Sol. Tritão, senhor da s ondas,
e Cimóteo, ninfa do mar, apressaram-se a libertar os navios encalhados nas
areias e nos rochedos. Os outros, foi o próprio Neptuno que, com o seu
tridente, os soltou da lama. Chicoteando os cavalos, seguiu o grande deus no
seu carro por sobre as onda s. Como sucede as vezes quando um populacho
irado, a brandir archotes e a atirar pedras, se acalma ao ver um homem
honrado e de bom carácter, muito respeitado, que lhe aparece a dizer
palavras sensatas, assim também desaparecia o fragor do mar, quando o pai
Neptuno voava ligeiro pelas cristas marinhas. Mergulhando para o seu
palácio no mar Egeu, abriram-se-lhe as ondas à frente, e golfinhos e focas
brincavam ante os seus cavalos velozes.

Os eneidas, exaustos, procuravam então o litoral mais próximo onde


pudessem aportar. Dirigiram-se para a Líbia, na África do Norte, e ai
encontraram um bom ancoradouro. A entrada era estreita e cercada, de cada
lado, por uma linha de recifes que quebrava a força das vagas. Dentro, a água
era plácida, lisa, confinada por enormes penha sãos, cujos cumes possuíam
espessos bosques escuros. Num dos lados da passagem viram uma caverna
cheia de estalactites. Era morada de ninfas, com as suas água s deliciosas e
cristalina s.

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ENEIDA - Virgílio
Embarcaram para a praia, reunindo os sete navios salvos entre os vinte
de que a esquadra se compunha. Saudosos da terra, os troianos atiraram-se
à areia hospitaleira, estendendo os músculos e secando as roupas. Acates
acendeu o fogo com uma pederneira, fazendo uma fogueira com folhas e
lenha seca, enquanto os outros traziam os sacos de cereal molhados de água
salgada e abriam-nos para fazê-los secar. Depois, trituravam-no entre as
pedras, para o pão.

Nesse interim, Eneias subiu a um rochedo e dirigia a vista para o mar,


procurando divisar o vulto conhecido de algum navio troiano que também
tivesse escapado à tormenta. Nada viu na direcção das águas. Voltou-se para
terra e avistou três bandos de veados a pastar nas proximidades da praia.
Agarrando no arco e nas setas conduzidas pelo fiel Acates, fez tombar os
três chefes, de grandes galhadas e cabeças levantadas, pondo em fuga os
animais por entre os bosques frondosos. Lançando-se em sua perseguição
abateu mais quatro, perfazendo o total de sete, um para cada navio. Depois
de suprir os seus patrícios de carne farta e de bom vinho que obtiveram nas
costas da Sicília, Eneias, vendo os seus companheiros desanimados, falou-
lhes assim:

— Ó amigos, as nossas provações têm sido duras. Entretanto, embora


as nossas perdas sejam grandes, conseguimos pelo menos salvar-nos. O Pai
Celestial nos preservara de outros perigos. Chegastes perto dos rochedos de
Cila e do antro de Caribdis, pisastes na terra dos Ciclopes e de tudo
conseguistes sair com vida. Levantai, pois, os vossos animas e mandai
embora os temores vãos. Talvez até um dia vos venha a ser agradável
recordar tais aventuras, cheias de perigos e de situações variadas, nesta nossa
jornada para o Lácio, onde os oráculos nos predizem uma existência pacifica
e feliz. Lá faremos ressurgir o reino de Tróia. Perseverai e conservai-vos
para as coisas venturosas.

Embora o seu rosto e a sua voz simulassem esperança e coragem, o seu


coração comprimira-se de dor e desespero.

Preparam-se todos para a refeição, trinchando os veados e assando os


pedaços nos espetos. Deitaram-se para restaurar as forças e procuravam

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ENEIDA - Virgílio
aquecer-se com o vinho generoso, sentados em torno das fogueiras e
conversando — entre o receio da morte e a esperança de vê-los novamente
— sobre os seus companheiros perdidos. Eneias pranteava a sorte do ardente
Otontes de Amico, de Lico, do forte Gras e do corajoso Cloanto.

Júpiter, olhando, do seu majestoso trono no Olimpo, para o mar, as


terras, os litorais e os povos espalhados, fixou a vista no reino da Líbia.
Vénus, com os olhos banhados em lágrimas, aproximou-se dele, dizendo:

— Ó tu, que governas eternamente as coisas não só dos homens má


também dos deuses e os amedrontas com o teu raio! Que crime tamanho
pôde o meu Eneias, que coisa horrenda puderam os troianos comete contra
ti, que não lhes permites que cheguem às terras da Itália? Não havia
prometido que desses remanescentes dos troianos sairia, com o passar do
anos, a rasa dos romanos, que seriam dirigentes de outros povos, possui
dores do mar e donos da terra toda? Porque mudaste, ó pai? Sabendo d^(
destino glorioso que os esperava, consolava-me eu da triste sorte de Tróia
incendiado e queimada. Mas a fortuna continua a ser-lhes ingrata. Ó grande
rei, quando porás fim a isso? Porque permitiste que os nossos navios fossem
destruídos e o meu filho querido e os seus companheiros lançados a uma
praia deserta? Porque Ihes destruíste tantos barcos e os colocaste [ao
afastados na costa italiana? É essa a recompensa da virtude?

Júpiter, sorrindo para Vénus, com o rosto sereno, beijou-a levemente


nos lábios e disse:

— Não tenhas medo, ó filha, que os destinos dos teus permanecerão


imutáveis. Ele, o grande Eneias, verá as costas do Lacio como prometi, e a
sua fama chegará às estrelas. Não é outra a minha intenção. Dir-te-ei, pois,
revelando-te os segredos do destino, já que tanto te atormentas, que ele fará
uma grande guerra na Itália, subjugará os povos ferozes, dará cidades e leis
aos homens, fundando uma grande metrópole com muralhas, a que chamará
Lavínio, em honra de sua esposa. O pequeno Ascânio, que então será
chamado fulo, suceder-lhe-á no trono e reinará por trinta anos. Mudará a
sede da cidade, de Lavínio para Alba Longa, transformando esta numa
fortaleza fortíssima. Ali dominará a dinastia de Heitor, até que uma rainha

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ENEIDA - Virgílio
sacerdotisa, Reia Sílvia, dê à luz dois gémeos: Rómulo e Remo, filhos de
Marte, o deus da guerra, os quais serão amamentados por uma loba.

Rómulo continuará a linha dinástica e chamará romanos aos seus


descendentes. Para estes não designei um fim do império, nem no tempo
nem no espaço, porquanto serão eternamente reis da terra. Juno, que
amedrontada anda fustigando os mares e a terra contra o teu filho, mudará
de ideia a respeito dos romanos e ajudar-me-á a apoiá-los. Os dessa nação
de toga serão senhores do mundo. As terras gregas, Micenas, Ftia e Argos
gemerão sob o seu jugo. Da descendência troiana nascerá um César, cujo
império só a oceano limitará e cuja glória subirá aos astros. Seu nome será
Júlio, derivado do grande Iulo, e tu, tranquila, o receberás um dia no céu,
carregado com os despojos do Oriente. Estarão então terminadas as guerras
bárbaras e as portas da batalha serão cerradas com ferro e assim mantidas
com trancas bem ajustadas. O furor ímpio, com as suas armas sangrentas
afastadas e as mãos atadas às costas com cem nós de bronze, bramirá
impotente com a boca ensanguentada e nojenta. E tudo isso eu o proclamo
solenemente, e seja feita a minha vontade.

Dito isto, Júpiter enviou Mercúrio a Cartago para que se abrissem as


terras e as fortalezas da cidade aos troianos, em franca hospitalidade, e para
que Dido, ignorando o que o Destino havia previsto, não os expulsasse.
Rápido nas suas asas, voou Mercúrio ate as praias da Líbia e até a cidade,
onde entregou a mensagem divina à rainha. Ela e o seu povo abandonaram
imediatamente as intenções cruéis. No coração de Dido surgiram animas
benévolos e amáveis para com os estranhos.

No entanto, Eneias, que passara a noite a meditar sobre várias coisas,


resolveu sair e explorar novos lugares, assim que surgiu a aurora. Desejava
saber que terras eram aquelas para onde os levara o vento, e que seres as
habitavam — se homens ou feras — pois não via sinais de civilização.
Deixando os navios escondidos debaixo de um rochedo que se projecta sobre
as águas, num lugar cercado de árvores, partiu com Acates, levando cada um
a sua lança de ferro. Quando seguiam por um trilho na floresta, surgiu-lhes
à frente Vénus, disfarçada sob a forma de uma linda donzela, carregando

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ENEIDA - Virgílio
armas. Eneias não sabia se a moça era espartana ou grega, como Harpálice,
a rainha guerreira da Trácia.

Dos seus ombros pendia um arco. Os cabelos soltos ondeavam ao


vento. Usava botas de couro vermelho até o meio das pernas, mas os joelhos
estavam nus e as pontes da túnica flutuante tinham sido atadas com um nó.
Disse-lhes ela:

— Salvé, estranhos. Vistes por acaso alguma das minhas irmãs


errantes por aqui, com a aliava e a pele do lince mosqueado e talvez
perseguindo algum javali espumante e correndo em grande algazarra?

Eneias, em resposta, exclamou:

— Não vimos nem ouvimos nenhuma das tuas irmãs por estas
garagens, ó — como te chamarei? — donzela, ou talvez Diana, irmã de
Apolo, pois não tens rosto nem voz humanos. Ou serás uma ninfa? De
qualquer forma, auguramos-te felicidade e desejamos apenas que nos digas
sob que céus e em que praias aportamos. Não conhecemos nem os homens
nem os lugares desta região onde andamos agora e onde viemos ser batidos
pelas ondas e pelo vento. Muitos carneiros imolaremos em tua honra, se nos
auxiliares.

Ao que Vénus replicou:

— Não exijo sacrifícios, pois não sou aparentada com os deuses


sagrados. É costume das moças de Tiro trazer aliava e usar coturnos de caça.
Estes são os rei nos púnicos, o povo de Tiro, na Fenícia, e a cidade chama-
se Cartago. Mais além fica a Líbia, de bárbaros guerreiros. Governa este
império a rainha Dido, que viajou de Tiro, fugida do irmão. É longa a sua
história de injúrias sofridas, de modo que dela só te darei um resumo. O seu
marido muito amado era Siqueu, o mais rico dos fenícios, com quem se
casou, jovem ainda, e sob os melhores augúrios. Mas o senhor dos reinos de
Tiro era seu irmão, Pigmalião, o mais cruel de todos os homens. Morto o
velho rei, nasceu a discórdia entre os dois cunhados e Pigmalião, ímpio e
cego pela ambição de ouro, apanhou, certa vez, Siqueu, inocente e

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ENEIDA - Virgílio
desprevenido junto aos altares, e matou-a com uma punhalada certeira no
coração.

Com desculpas, evasivas e mentiras ocultou por muito tempo o


hediondo crime à irmã, que tanto amava o marido, iludindo-a com vagas e
vás esperanças. No entanto, a própria imagem do esposo insepulto apareceu
a Dido. Com o seu rosto belo e pálido, mostrou-lhe os altares e o peito
atravessado pela adaga, revelando-lhe tudo sobre o crime. Aconselhou-a
então a preparar a fuga rapidamente e a sair da pátria, apontando-lhe, durante
o sonho, o local do tesouro escondido que a auxiliaria na empreitada.
Trémula de pavor, Dido acordou e reuniu junto de si os companheiros fiéis
e outras pessoas que odiavam o tirano. Velozmente, dirigiram-se ao porto,
apossaram-se de navios já preparados para a partida, carregaram-nos com o
tesouro e fizeram-se ao mar. Aqui chegando, compraram aos líbios um local
onde pudessem erguer a sua cidade— tanto de terra quanto pudesse estar
contido numa pele de touro, diz a lenda. Astutamente, os homens de Tiro
cortaram a pele em fios finíssimos e ligando-os conseguiram abarcar uma
vasta região. É nessa linha que se erguem agora as suas muralhas. Mas quem
sois e donde viestes? Para onde ides?

Suspirando profundamente, respondeu Eneias:

— Ó deusa, se tens tempo para ouvir e se eu te contar, desde os


primórdios, todas as aventuras por que passamos e os percalços que
sofremos, a tarde findará antes que eu termine. Os caprichos de uma
tempestade arremessaram-nos às costas da Líbia, a nós trazidos por diversos
mares da antiga Tróia, de que por certo já ouvistes falar. Eu sou Eneias,
conhecido e famoso em muitas terras, e comigo trago numa esquadra os
penares troianos, salvos do inimigo. Procuro a Itália, pátria de meus
antepassados. Embarquei no litoral troiano com vinte navios e segui os
destinos mostrados pela deusa minha mãe. Restam-me, agora, apenas sete
barcos, avariados pelas ondas e pelo vento. Aqui estou eu, desconhecido, de
tudo necessitado, expulso da Europa e da Ásia, a percorrer os desertos da
África.

Vénus, no entanto, atalhou-lhe a narrativa que tanta dor lhe causara:

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ENEIDA - Virgílio
— Afluem quer que sejas, não penses que és tão odiado pelos deuses.
Se o fosses, eles não te permitiriam chegar a Cartago. Agora vai ao palácio
da rainha. Mas primeiro dar-te-ei boas noticias: se os meus pais não me
ensinaram erradamente a perscrutar o futuro, os teus companheiros e os
outros navios da tua frota não se afundaram entre as ondas como pensaste e
corará sim levados pelos ventos a bom ancoradouro, a um dia de viagem
deste local. Olha! Vês como aqueles doze cisnes, há pouco atacados por uma
águia e dispersos em todas as direcções, voltam agora em longa fileira?
Assim como eles, que retornam alegremente à água, batendo ruidosamente
as asas e soltando gritos, também os teus navios e os teus companheiros
velejam agora para cá. Caminha, pois, e segue essa trilha.

Assim falando, a deusa afastou-se. O seu colo, de resplandecente cor


rosa, o perfume divino de ambrósia dos cabelos e o seu andar levíssimo
indicavam claramente qual a sua natureza. Eneias, reconhecendo na fugitiva
a mãe, seguiu-a dizendo:

— Porque motivo, ó mãe cruel, enganas tantas vezes o teu filho com
falsas aparências? Porque não nos é permitido juntar as mãos e ouvir e
retribuir palavras sinceras?

Depois dessas queixas e acusações, dirigiu então os passas para as


muralhas. Vénus, porém, cobrira-as com uma espessa nuvem, a fim de que
ninguém a pudesse ver ou tocar, causar-lhe demora ou fazer-lhe perguntas.
e eh, a própria deusa, retirou-se por entre as nuvens na direcção de Pafos,
onde, na sua morada, ardem permanentemente, em sua honra, cem altares,
com incenso e flores.

Eneias e o amigo seguiram pela vereda que lhes fora indicada e logo
chegaram ao topo de uma encosta, da qual se divisava a cidade com os seus
baluartes. Pararam admirados ante a febril actividade dos Ínicios, que
transformavam a aldeia de choupanas numa cidade moderna. Levantavam-
se os portões, calçavam-se as ruas, erguiam-se as muralhas da cidadela,
cavava-se o fosso. Era a lei que chegava, a justiça que se impunha.

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ENEIDA - Virgílio
Aqui, grupos de homens dragavam um ancoradouro. Além, outros
lançavam as fundações de um teatro ou extraiam blocos de pedra da
montanha para construir colunas enormes que circundavam o palco das
representações. Assemelhavam-se às abelhas que, ao Sol do Verão, saem
pelos campos floridos à frente dos enxames e, todas juntas, realizam mais
uma vez aquelas tarefas antigas como o mundo, colhendo o doce néctar e
enchendo os seus favos até transbordarem com o fino suco das flores. Não
há qualquer descanso para aquelas operarias aladas até o fim do estio,
quando as colmeias estão cheias de mel grosso, perfumado e doce. Assim
parecia a Eneias essa colónia de Tiro e disse, olhando para as torres da
cidade:

— Felizes sois, que já levantais as vossas muralhas.

Envolvidos na nuvem que lhes mandara Vénus — coisa admirável! —


os dois troianos introduziram-se no meio do povo e ninguém se apercebeu
deles.

No centro da cidade, erguia-se um bosque de aprazível sombra. Ali,


naquele mesmo lugar, tinham os cartagineses — náufragos de Tiro lançados
àquelas paragens pelas ondas e pelo tufão — desenterrado uma cabeça de
bronze representando um fogoso cavalo. Era o primeiro sinal que Juno lhes
enviara de que a sua nação haveria de ser notável na guerra, rica e poderosa
por muitos séculos. Dido, a rainha, ordenara que ali se construísse um grande
templo em homenagem à deusa a quem costumava oferecer ricas oferendas.
Tinha portais de bronze e de bronze eram as suas vigas. As portas de prata
giravam em gonzos de cobre e abriam-se na base de uma enorme escadaria
de mármore brilhante.

Eneias divisou uma coisa que lhe fez recobrar o animo e a esperança.
Enquanto esperava a rainha, corria a vista pelos painéis que ornavam o
templo — trabalho paciente de muitos artistas — e percebeu que neles
estavam representados os combates travados em Tróia, que já se haviam
divulgado por todo o mundo.

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ENEIDA - Virgílio
Ali brilhavam os feitos de Agamémnon, de seu irmão Menelau e de
Aquiles, filho de Peleu, e também aparecia Príamo, rei de Tróia. Eneias,
sentindo chegarem-lhe lágrimas aos olhos, virou-se para o seu amigo e
exclamou:

— Ó Acates, que lugar, que região, que terra ainda não conhecerá as
nossas desventuras? Eis Príamo! Aqui também vemos as boas acções
recompensadas e as tristezas e aflições regadas por lágrimas. Isto há-de
trazer-nos alguma coragem, companheiro, pois o reconhecimento da nossa
linhagem só nos pode ser vantajoso nessa terra estranha.

Com os olhos enevoados de lágrimas, permaneceu longo tempo a


observar as figuras. Aqui eram os gregos fugindo em debandada em torno
da cidadela de Pérgamo, seguidas de perto pelos aguerridos jovens troianos.
Ali eram estes que corriam para as suas muralhas, perseguidos por Aquiles,
enfeitado de plumas, que os acossava no seu carro. Mais adiante, via-se o rei
Reso da Trácia, assassinado durante o sono por Diomedes, e também as
mulheres troianas, de cabeça baixa e com os longos cabelos em desalinho
sobre o rosto, que se dirigiam ao templo de Minerva levando à deusa como
oferenda uma túnica ornamental, com esperança de que Minerva atendesse
às suas súplicas. Lá estava Tróilo, filho de Príamo, estrangulado por Aquiles
em combate singular, e Heitor, o herói troiano, a quem o mesmo grego
matara, desfilando em seguida três vezes em frente às muralhas da cidade
com o corpo arrastado pela biga. Num outro quadro, Príamo estendia os
braços, suplicando o corpo de Heitor, que Aquiles propusera entrega-ta troco
de resgate. A visão do carro e do cadáver do amigo arrancou um grande
gemido do peito de Eneias. Reconheceu-se também a si mesmo, lutando
contra os príncipes gregos Aquiles e Diomedes. Viu também Pentesileia
conduzindo aguerrida os batalhões de amazonas, com os seus escudos em
forma de lua.

Eneias estava embevecido na contemplação dos quadros do templo,


quando dele se aproximou Dido, a rainha, com o seu porte elegante e
acompanhada de um numeroso séquito de jovens.

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ENEIDA - Virgílio
O troiano reparou na grande beleza da soberana que andava com graça
tal, que nenhuma outra mulher mortal a poderia suplantar. Assim como
Diana, que com o seu arco e a sua aliava, a cabeça loura acima das outras
densas, segue à frente do bando de donzelas dançarinas—mil ninfas da
floresta — pelas margens floridas do Eurota, aquele rio da distante Grécia,
ou percorre as trilhas das montanhas de Delfos, levando alegria ao peito de
Latona, sua mãe, assim também a rainha Dido passava entre a sua gente
concitando-a a trabalhar.

Ao chegar ao templo, sentou-se num lindo trono sob a abóbada central.


Desse lugar promulgava leis, emitia decretos e dava ordens ao povo
cartaginês para a construção da cidade, dividindo sábia e equitativamente as
tarefas entre todos.

De repente, Eneias viu chegar, no meio de grande acompanhamento e


barulho, Anteia, Sergesto e o forte Cloanto com muitos outros troianos que
o tufão dispersara no mar e impelira para outras pragas. Eneias, estupefacto,
e Acates, cheio de alegria e de medo, ali quedavam, impacientes por apertar
as mãos dos companheiros, numa confusão de sentimentos. Decidiram
permanecer escondidos na nuvem que Vénus lhes dera e observar a sorte dos
outros, em que costa haviam sido arrojados e como se encontravam ah agora.

Logo que entraram e lhes foi dada permissão para falar em frente da
rainha, Ilioneu, o mais velho de todos, adiantou-se e disse:

— Ó rainha, a quem Júpiter permitiu construir uma cidade e domar os


povos bárbaros, nós, troianos infelizes, levados pelos ventos por todos os
mares, rogamos-te que não mandes incendiar os nossos navios e que nos
concedas a hospitalidade que Júpiter deseja que seja concedido a todos os
estrangeiros em infortúnio. Não estamos aqui para a guerra ou para saquear
os teus tesouros. A nós, vencidos, não sobra animo, nem falta orgulho para
tal. Há um lugar que os gregos chamam Hespéria, terra antiga e famosa pela
força das armas e fertilidade do solo, outrora habitada pelos enótrios. Agora
chamam-na de Itália, do nome do seu chefe.

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ENEIDA - Virgílio
Dirigíamos os nossos rumos para lá, mas uma súbita borrasca
arremessou-nos sobre penedos ocultos e dispersou completamente a nossa
frota. O céu, no entanto, salvou-nos da destruição e com doze navios
conseguimos alcançar porto seguro, de onde, aproveitando o mar calmo,
aqui chegamos sem mais demoras. Mas que raça de homens habita aqui, tão
cruel que a nós, náufragos, querem repelir-nos, recusar-nos a hospitalidade
e ainda ameaçam incendiar os nossos barcos? Se desprezais o género
humano e as armas mortais, lembrai-vos de que os deuses sabem decidir o
que é justo e injusto. Tínhamos Eneias, chamado o Bom, como rei, e
ninguém o suplantava em rectidão de carácter. Mas, ai! Temo que o seu
espírito esteja agora entre as sombras. No entanto, se os destinos o
conservaram, se ainda respira o ar, não jaz nas entranhas cruéis da terra, e
voltar para nós, segui-lo-emos sem medo. E não temas qualquer
animosidade por causa do bem que fizeres, pois serás recompensada por
tudo o que nos ofereceres. Permite, eu te imploro, que ponhamos as nossas
embarcações a seco e que de vigas e tábuas extraídas das árvores das tuas
florestas possamos reparar os danos causados pelas ondas e pelo vento.

Dido, envergonhada e de olhos baixos, respondeu-lhe:

— Tirai do coração o medo, ó troiano, e afastai as vossas aflições. A


necessidade de proteger o meu novo reino, cujas muralhas ainda não estão
completas, obrigou-me a tomar precauções e a dispor guardas ao largo.
Quem não conhece a história de Tróia, de Eneias e seus companheiros, os
incêndios e a guerra tão cruenta? Nós, cartagineses, não estamos tão
afastados da civilização que ignoremos tais coisas. Quer desejais chegar à
grande Hespéria ou à Sicília, eu vos farei acompanhar de escolta e vos
auxiliarei com as minhas próprias riquezas. Se, por outro, lado preferirdes
permanecer comigo, partilharei convosco o que tenho e esta cidade será
minha e vossa e, depois que colocares nas praias os navios, troianos e tírios
serão um só povo. Oxalá o próprio rei Eneias, trazido pelos mesmos ventos
que vos conduziram, aqui estivesse! Mandarei palmilhar as praias da Líbia
e pesquisar os lugares mais remotos, pois é possível que ele, arremessado à
tosta, vagueie por entre as florestas e as cidades.

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ENEIDA - Virgílio
Com o coração transbordante de felicidade com as palavras de Dido,
Eneias e os seus companheiros estavam ansiosos por romper a nuvem e
apresentar-se. Falou então Acates:

— Ó homem nascido da deusa, que pensas agora fazer? Tudo corre


bem, os homens e as armadas estão a salvo, só faltando um que nós próprios
vimos submergir por entre as ondas. Tudo corresponde à profecia de tua
mãe.

Apenas proferira estas palavras, a nuvem que os envolvia abriu-se


repentinamente, desaparecendo no ar sereno. A figura de Eneias refulgia em
luz deslumbrante, à semelhança de um deus. A própria Vénus lhe dera um
lindo cabelo, mocidade no rosto e olhos cativantes, como o artista hábil dá
ao marfim ou faz brilhar a prata reluzente ou o mármore de Pavos engastados
em ouro.

Apresentou-se o herói à rainha e a ela se dirigiu com estas palavras:

— Eu sou Eneias, o troiano, a quem procurais e que foi salvo das


ondas. Tu foste a única que te compadeceste da sorte de Tróia e que nos
recebes no seio da tua cidade e do teu palácio, a nós, fugitivos dos gregos,
exaustos de percorrer a terra e o mar, lutando contra os elementos e
necessitado de todas as coisas. ó Dido, não está em nosso poder dar-te os
devido agradecimentos, nem para tanto bastariam todas as posses da grande
nação troiana, espalhadas por toda a terra. Que os deuses — se alguns deles
olhar propicias para os bons, se justiça há em alguma parte, se o bem é
pesado contra o mal—te tragam as divinas recompensas! Ó rainha, de que
pai tão ditosos nasceste, que época tão gloriosa te vê viver! Enquanto os rio
correrem para os mares, enquanto as sombras das árvores percorrerem o
vales dos montes, enquanto o céu se encher de astros, sempre a tua honra e
o teu nome serão louvados em todas as terras.

Com o coração transbordante de felicidade com as palavras de Dido,


Eneias e os seus companheiros estavam ansiosos por romper a nuvem e
apresentar-se. Falou então Acates:

53
ENEIDA - Virgílio
— Ó homem nascido da deusa, que pensas agora fazer? Tudo corre
bem, os homens e as armadas estão a salvo, só faltando um que nós próprios
vimos submergir por entre as ondas. Tudo corresponde à profecia de tua
mãe.

Apenas proferira estas palavras, a nuvem que os envolvia abriu-se


repentinamente, desaparecendo no ar sereno. A figura de Eneias refulgia em
luz deslumbrante, à semelhança de um deus. A própria Vénus lhe dera um
lindo cabelo, mocidade no rosto e olhos cativantes, como o artista hábil dá
ao marfim ou faz brilhar a prata reluzente ou o mármore de Pavos engastados
em ouro.

Apresentou-se o herói à rainha e a ela se dirigiu com estas palavras:

— Eu sou Eneias, o troiano, a quem procurais e que foi salvo das


ondas. Tu foste a única que te compadeceste da sorte de Tróia e que nos
recebes no seio da tua cidade e do teu palácio, a nós, fugitivos dos gregos,
exaustos de percorrer a terra e o mar, lutando contra os elementos e
necessitado de todas as coisas. ó Dido, não está em nosso poder dar-te os
devido agradecimentos, nem para tanto bastariam todas as posses da grande
nação troiana, espalhadas por toda a terra. Que os deuses — se alguns deles
olhar propicias para os bons, se justiça há em alguma parte, se o bem é
pesado contra o mal—te tragam as divinas recompensas! Ó rainha, de que
pai tão ditosos nasceste, que época tão gloriosa te vê viver! Enquanto os rio
correrem para os mares, enquanto as sombras das árvores percorrerem o
vales dos montes, enquanto o céu se encher de astros, sempre a tua honra e
o teu nome serão louvados em todas as terras.

Vénus, no entanto, arquitectava novas artimanhas. Quis que Cupido,


tomando o aspecto do menino Ascânio, se apresentasse à rainha e lhe ateasse
na alma o fogo de um amor abrasador por Eneias. Temia a deusa da beleza
que os cartagineses não fossem fiéis e desconfiava da sua ambígua
linguagem. Perturbava-a o ódio de Juno aos troianos e esperava, com aquele
plano, conservar Dido a seu lado. Chamando Cupido, o deus-menino do
amor, assim lhe falou:

54
ENEIDA - Virgílio
— Ó filho meu, a quem confio todo o meu poder de escravizar os
corações de moços e donzelas! Ó filho, que não temes os raios do próprio
Júpiter, é a ti que agora me dirijo. Sabes bem que teu o irmão Eneias tem
percorrido os mares agitados e aportado a praias selvagens por obra da
iníqua Juno. Tu o sabes e te tens compadecido das suas adições. Agora,
Dido, da Fenícia, retém-no e fá-lo demorar-se com palavras lisonjeiras.
Temo o resultado dessas amabilidades e creio que Juno está por trás de tudo
isso. Assim, quero que a rainha se prenda a Eneias por grande amor e que
nenhuma outra influência a faça mudar de ideias. A ti cabe envolvê-la com
enganos e incendiar-lhe o coração. Ouve, agora, o meu plano. O príncipe
Ascânio, a chamado do pai, prepara-se para ir a Cartago, levando à rainha
os presentes que Júpiter houve por bem aprovar que fossem salvos das
chamas e dos escombros de Tróia. Esconderei o menino, adormecido, num
recinto sagrado — sobre o monte Idábio ou na minha ilha de Citera — para
que de nada desconfie. Tu então te disfarçarás nele e dele representarás o
papel durante uma noite. Assim, quando Dido, feliz, te receber no banquete,
quando te abraçar e beijar, tu lhe irás inculcando o fogo oculto do amor e
contagiando-a com o veneno da paixão.

Cupido — o Amor — obedeceu às palavras da querida mãe e, tirando


as asas, imitou o modo de andar e de falar de Ascânio, seguindo com Acates
para a cidade. Nesse interim, Vénus prostrara o menino em profundo sono e
levara-o para os altos bosques da Idália, onde, à sombra de uma manjerona
que exalava o perfume das suas flores, o deixara adormecido.

Quando Cupido e Acates entraram no grande salão do palácio onde a


rainha já estava sentada, entre os seus convidados, à mesa do banquete, lá
também, próximos, Eneias e os seus companheiros, com muitos jovens
cartagineses, se reclinavam nos tapetes púrpura. Os servos derramaram água
de jarros de prata sobre as mãos dos convidados, trouxeram malhas e
serviram pão de trigo. Cinquenta criadas depuseram então, sobre a mesa,
uma longa série de iguarias. A seu cargo estavam também os fogos que
ardiam em honra dos deuses. Cem raparigas e cem rapazes serviam a comida
e o vinho. Todos estavam alegres, rindo e gracejando, enquanto tomavam os
seus lugares à mesa.

55
ENEIDA - Virgílio
À vista dos recém-chegados, correu um frémito de admiração entre os
convidados, maravilhados com o menino e com os presentes de Eneias. Dido
era a mais inflamada de todos. Olhava-os deliciada e os seus olhos brilhavam
de alegria. Cupido dirigiu-se primeiro a Eneias. Abraçou e beijou o falso pai,
que nada percebeu. Caminhou, depois, para a rainha, que o tomou nos
braços, acariciando-o como o faria uma mãe, nada sabendo das desgraças
que lhe adviriam daquele gesto. Suave e paulatinamente, o deus foi-lhe
infiltrando no coração o amor por Eneias, apagando da sua mente a
recordação do marido Siqueu e tentando despertar aquele coração há muito
desacostumado de amar.

Terminado o banquete, retiraram-se os restos dos alimentos e


trouxeram os vinhos generosos. Caia a noite e as conversas enchiam o salão,
mas a escuridão fugia diante dos lustres acesos que pendiam do tecto
dourado e das tochas nas paredes. A rainha pediu e encheu de vinho uma
taça, pesada pelas muitas pedras preciosas que a ornavam e pelo sólido ouro
de que era feita. Ergueu-a nas duas mãos, enquanto o silêncio se fazia pelas
salas:

— Ó Júpiter, que promulgasses as leis da hospitalidade, concedei hoje


felicidade aos tírios e aos troianos! Que os nossos descendentes se lembrem
deste dia. Baco, o deus da alegria, esteja presente e também a boa Juno.
Quanto a vós, cartagineses, aplaudi e celebrai essa reunião.

Assim dizendo, verteu sobre a mesa a taça de vinho bebendo em


seguida. Ofereceu-a depois a Birias, aconselhando-o a beber. Ele, sequioso,
fez esgotar a taça espumante. Depois, os outros chefes fizeram o mesmo.
Enquanto isso, Iopas, de longos cabelos, tocava a lira dourada, entoando as
canções que o célebre Atlas lhe ensinara. Cantava a Lua errante e os eclipses
do Sol; a origem dos homens e dos animais, da chuva e do fogo; louvava a
estrela Arturo, as Hiades chuvosas, os dois triões e as duas Ursas; explicava
por que os sóis de Inverno se apressam tanto a mergulhar no oceano e por
que há noites tão compridas. Os cartagineses aplaudiam-no ruidosamente e
os troianos imitavam-nos.

56
ENEIDA - Virgílio
Dido, sorvendo grandes goles do amor, prolongava a noite, fazendo
muitas perguntas a Eneias sobre Príamo e o valente Heitor e sobre
Diomedes, o filho de Tideu, sobre quão forte era Aquiles e sobre a sua
armadura feita por Vulcano, ferreiro imortal dos deuses. Por fim, disse:

— Conta-me, Eneias, desde a primeira origem, as ciladas dos gregos e


as tristezas dos teus. Fala-me das tuas peregrinações, pois já sete sóis são
passados desde que partistes de Tróia.

57
ENEIDA - Virgílio
Capítulo 4: Eneias e Dido

Ficaram todos em silêncio e, reclinando-se nos macios divãs,


voltaram-se, expectantes, para Eneias. O troiano, passando assim a foco das
atenções, começou a narrar a triste história do destino da sua cidade. Falou-
lhes da captura do grego Sinão e do estratagema do cavalo de madeira. Os
seus ouvintes encheram-se de horror e de pena quando ouviram a descrição
do saque e do incêndio da florescente cidade, do assalto e da profanação dos
templos e dos santuários. Mencionou a selvajaria brutal de Pirro, filho de
Aquiles, e a coragem do rei Príamo. Fez desfilar todos os acontecimentos
aos ouvidos dos cartagineses, terminando com a sua chegada às praias da
Líbia. E já passava muito da meia-noite quando findou.

Dido, a rainha, não desviava os olhos do herói, presa ao sortilégio das


r suas palavras. Várias vezes a narrativa — tão comovente que era — lhe
fazia vir lágrimas aos olhos e arfar o peito. Enquanto ouvia a história, o seu
amor por aquele que a contava ardia, e ardia cada vez mais profundo na sua
alma. Escutava-o — lábios entreabertos e respiração suspensa — a falar
moderadamente dos próprios feitos e os olhos luziam-lhe de um amor que r
não conseguia esconder.

A noite, passou-a em claro a rainha, consumida pela paixão que lhe


devorava o sangue e que não a deixava afastar da mente o rosto, as palavras
e os gestos do herói. Quando se aproximou a aurora de açafrão, fazendo fugir
do céu e da terra as sombras da noite, Dido levantou-se e dirigiu estas
palavras a sua irmã Ana:

— Que noite má passei, entre insónia e pensamentos agitados! Que


hóspede é este que entrou na nossa casa e tanto perturba a minha alma? Com
tal rosto, tais armas e tais feitos, não posso deixar de acreditar que seja filho
dos deuses. O temor dá a conhecer os animas fracos.

Continuou Dido:

— E como lhe foram ingratos os destinos e como o perseguiram as


lutas, sem que se lhe alquebrassem a coragem e a inabalável certeza de

58
ENEIDA - Virgílio
vencer! Apesar de eu ter tomado a firme resolução de jamais receber outro
homem em casamento, depois de meu amado Siqueu ter sido tão
cobardemente assassinado, trazendo-me sofrimento e pena, sinto-me
fraquejar ao olhar a beleza desse troiano. Ele foi o único, após a morte do
meu querido esposo, a fazer estremecer o meu coração e vacilar a minha
vontade. Apesar disso, desejo que os abismos mais profundos da terra se
abram para mim, que o Pai Omnipotente me arremesse com seus raios para
as sombras escuras e eternas do Érebo, antes que eu, Dido, fique surda à voz
do pudor e desafie impudentemente as suas leis. Aquele que primeiro se uniu
a mim pelos votos do amor e do casamento, levou o meu coração para a
rumba.

— Ó minha irmã, mais querida que a terna luz do Sol, não fales assim.
Consumir-te-ás sozinha, chorando durante toda a tua mocidade por um amor
perdido? Crês tu que os restos sepultados se importam com o modo como
procedes? Deixarás de gozar os prazeres que te podem dar uma prole
numerosa e sadia? É verdade que nenhum dos pretendentes — dos muitos
que em Tiro e aqui na Líbia se apresentaram — conseguiu até hoje
conquistar o teu coração. Mas porque resistir a um amor que se apresenta
tão agradável? E não te esqueças do lugar onde ergueste a tua cidade. De um
lado, as cidades da Getúlia, raça insuperável na guerra, as númidas selvagens
e Sirte. Pelas bandas do deserto ameaçam-te os barceus, sem falar nas
ameaças que poderão surgir de Tiro e do teu irmão. Foi Juno e foram os
deuses que para aqui fizeram aproar as quilhas das birremes troianas. Já
pensaste quão grandiosa poderá ser a tua cidade se, por esse casamento, aos
cartagineses unires os troianos, tão bravos nos feitos das armas? Penitencia-
te junto aos deuses, celebra-lhes sacrifícios enquanto engendras mil e um
modos de fazer Eneias demorar-se junto a nós até a chegada do feio Inverno,
altura em que o mar embravecido, o vento que açoita os barcos e as forças
do firmamento em desalinho o impedirão de fazer-se ao mar por alguns
meses.

A chama do amor que Cupido plantara no coração de Dido foi assim


insuflada pelas palavras animadoras de Ana, ao mesmo tempo que abafava
a voz do pudor.
Foram então as duas irmãs percorrer os altares e orar aos deuses. De acordo

59
ENEIDA - Virgílio
com o costume, imolaram ovelhas de dois anos a Ceres, deusa legisladora e
padroeiro da fertilidade dos campos. A Apolo, a Baco e, sobretudo, a Juno,
que guarda ciosa os laços do matrimónio. A formosa Dido, ela própria,
segurando na mão direita uma taça, derramou vinho sagrado entre os chifres
de uma vaca branca, pedindo os favores dos deuses. Seguia pelo templo ante
os altares e imagens dos deuses, renovando as oferendas e procurando ler os
presságios nas entranhas quentes das reses sacrificadas. Ai! Espíritos ignaros
dos adivinhos! De que servem os vaticínios, os votos e os altares, se uma
mulher está apaixonada? Uma chama devora-lhe a medula e sangra uma
tenra ferida no seu peito.

E inquieta, e infeliz, ela vagueia pela cidade, sem poder repousar ou


dormir—tal qual a gazela incauta que, ferida pela seta traiçoeira do pastor,
é por este perseguida, e pelos cães, e que, esperando e buscando refúgio
numa moita acolhedora, corre e voa pela solva, sem saber que o ferro
mortífero lhe está preso à ilharga.

Dido conduziu Eneias num passeio pelas muralhas, mostrando-lhe as


riquezas e os progressos da cidade. Começava a falar, quando teve de
interromper o que dizia, porque, aproximando-se a noite, recolheram
novamente ao salão do banquete, onde Eneias, instado pela rainha
apaixonada, repetiu os lances e os feitos da história de Tróia, já contada. E
nem por isso lhe era menor a atenção de Dido, que o ouvia embevecida.

Depois de se separarem, já adiantada a noite, estando as estrelas a


aconselhar o sono, ficou a rainha, triste e solitária, no palácio. Longe de
Eneias, a sua imaginação via-o e ouvia-o permanentemente. Para minorar a
sua dor, tomava nos braços o pequeno Ascânio, vendo, com olhos
apaixonados, no rosto do filho, as feições do pai. Já não pensava na sua
cidade de torres altas, na juventude que se exercitava para as batalhas, nem
nos portos e baluartes que seriam a garantia de Cartago contra os inimigos.
Num último e doloroso gemido, atirou-se soluçando sobre o divã, onde
Eneias estivera deitado naquela noite, antes de partir.

60
ENEIDA - Virgílio
Quando Juno percebeu que Dido estava loucamente presa pelos laços
do amor e que nem a sua reputação ameaçada a fazia recuar nos seus
intentos, voltou-se para Vénus e disse:

— Lograste, na verdade, grande vitória ao conseguir de tal modo


arrebatar a alma dessa mulher. Mas porque tiveste medo das muralhas e do
povo de Cartago? Qual é o teu propósito? Para que ficaremos nós
eternamente discutindo? Façamos um conluio para unir esses dois jovens em
laços permanentes. Já tens o que procuravas. Dido arde de paixão
inextinguível. A esse povo que a nós ambas pertence, governemo-lo as duas
igualmente. Que a rainha obedeça a um marido troiano e que este e os seus
companheiros sejam o dote a incorporar ao reino.

Vénus, no entanto, percebendo que a intenção secreta de Juno era fixar


Eneias na Líbia, fazendo-o desistir dos planos de alcançar a Itália,
respondeu:

— Quem haveria de tão insensato que preferisse a guerra contigo em


vez de aceitar uma tal proposta de paz? Mas não sei se Júpiter aprovará que
tírios e troianos tenham a mesma cidade e formem um único povo. A ti, que
és sua esposa, é permitido sondar-lhe o espírito. Vai, pois, ter com ele e eu
te seguirei.

Juno retomou então a palavra:

— Cumprirei essa missão. Mas presta atenção, Vénus, ao que te direi


agora, a fim de que atinjamos o nosso objectivo o mais depressa possível.
Eneias e a infeliz rainha Dido preparam-se para uma caçada no bosque, a ser
feita logo que os primeiros raios de Sol iluminarem a terra. Sobre eles
lançarei uma nuvem negrejante misturada com granizo e abalarei o céu com
o trovão. Os caçadores, preocupados no momento em lançar as redes em
torno da moita, assustar-se-ão com tais prodígios e fugirão em todos os
sentidos, sendo envolvidos por uma espessa treva. Dido e o herói de Tróia,
entretanto, permanecerão juntos e irão refugiar-se numa gruta. Ai, eu e tu
nos apressaremos em uni-los como marido e mulher.

61
ENEIDA - Virgílio
Vénus concordou, rindo do astucioso plano da rainha do Céu.

Surgiu no dia seguinte a linda aurora, deixando o seu leito no oceano,


e já saiam os caçadores pelos portões da cidade, a cavalo, com as redes e
lanças de ponta larga A matilha de cães de fino faro seguia-os, rápida.
Enquanto isso, os lordes e príncipes cartagineses esperavam a rainha às
portas do palácio. Ela demorava-se a levantar do leito e o seu corcel,
ricamente ajaezado de ouro e púrpura, mordia os freios espumantes e batia
as ferraduras reluzentes. Finalmente, apareceu Dido, seguida de grande
séquito, radiante de beleza e magnífica no andar — mulher incomparável —
com a sua túnica purpúrea bordada a ouro. Trazia aljava também de ouro e
os seus cabelos estavam atados de fitas do mesmo metal precioso.

Também de ouro, uma maravilhosa fivela prendia-lhe a túnica. E todos


seguiram contentes e animados, cartagineses, troianos, o menino Ascânio e
o próprio Eneias, mais garboso que nunca. Tal qual Apolo quando, deixando
a sua moradia de Inverno, vem visitar a mãe em Delfos, onde as multidões
devotas, numa mistura de cretenses, dríopes e agatirsos, se reúnem em torno
dos altares, enquanto o próprio deus avança pelos cumes dos montes, linda
coroa a prender-lhe os cabelos dourados e as setas retinindo na aljava ao
ombro, assim caminhava Eneias, garboso, imponente e belo.

Chegaram as encostas dos montes, onde a floresta é quase


impenetrável e viram cabritos monteses, pulando e correndo pelos rochedos.
De um outro lado, veados atravessavam em bandos os campos e levantavam
nuvens de poeira na fuga pelos montes perigosos. Ascânio, ousado e atrevido
na sua juventude, deliciava-se no seu fogoso cavalo, ultrapassando ora estes
ora aqueles — desejando que lhe aparecesse à frente um javali espumante
ou um fulvo leão.

Entretanto, começava a baixar do céu um rumor crescente. Surgiu uma


nuvem que, despejando granizo, se abateu sobre eles. Todos — tírios,
dardanios e o menino Ascânio — se espalharam por toda a parte, à procura
de abrigo. Das montanhas, precipitavam-se torrentes de água.

62
ENEIDA - Virgílio
Dido e o chefe troiano refugiaram-se na mesma gruta e nela a deusa
guardiã dos votos do matrimónio uniu-os casamento.

Os céus, testemunhas dos ritos nupciais, relampejavam e as ninfas nos


altos das montanhas gritavam de alegria em louco desvario. E esse seria o
primeira dia da fatídica sorte que se abateria sobre a infeliz Dido.

O Boato correu célere pelo interior do paus, pelas cidades e pelas


aldeias. De todos os deuses, é ele o mais rápido e o mais perverso. Pequeno,
ao principio, vai-se insinuando com medo por entre as multidões que
conversam, mas logo cresce e, dentro em pouco, é um gigante, de cabeça
nas nuvens, que corre sobre o solo: monstro tão rápido de pés e asas que a
verdade, por mais que se apresse, nunca o alcança. Cada pena do seu corpo
inchado tem um olho vigilante—é digno de ser dito —, outras tantas línguas
vibrantes, outras tantas bocas sussurrantes e outros ouvidos atentos. Voa
através da escuridão da noite sem nunca dormir. Durante o dia, senta-se nos
telhados altos e nas torres, proclamando o falso e o verdadeiro, mas
apresentando-os, traiçoeiramente, como verdade.

Agora, juntando pedaços de conversas, de rumores, misturando a meã


tira e a verdade, contava que Dido se juntara a Eneias, de sangue troiano e
que os dois estavam a passar o inverno inteiro em ociosidade irresponsável,
negligenciando os seus deveres para com súbditos e reinas. E, assim a fera
divindade espalhou pelo reino e pelas regiões limítrofes o boato infame, que
crescia cada vez mais à medida em que ia avançando.

Chegando aos ouvidos do rei Iarbas, essa noticia inflamou-lhe os


animo e exacerbou-lhe a cólera. Filho de Anion e da raptada ninfa
Garamantes levantara ele cem templos a Júpiter em cujos cem altares se
guardava o fogo eterno em honra ao Pai do Céu e repetidas vezes se faziam
sacrifícios de ovelhas e se colocavam grinaldas festivas às portas. E eis que
larbas, rei dos getúlios, encolerizado com o boato, assim se queixou a
Júpiter, elevando-lhe as mãos defronte dos altares, entre as estátuas dos
deuses.

63
ENEIDA - Virgílio
— Ó Júpiter omnipotente, a quem nós mouros escuros adoramos e
oferecemos libações, vês estas coisas? Será que trememos em vão, ó Pai,
quando atiras os teus raios, iluminas as nuvens com fogos ocultos ou as fazes
ribombar com teu trovão? Essa mulher, a quem vendemos um pedaço da
nossa terra para que construísse a sua cidade e para que a cultivasse, e que
recusou a minha oferta de casamento, recebeu agora Eneias como seu senhor
e aceitou prazenteiramente no seu reino um bando de troianos efeminados,
que perfumam o cabelo e levantam os fracos queixas com tiras. Teremos
nós, teus devoras adoradores, de suportar tal afronta?

O poderoso Júpiter escutou estas palavras de larbas, seu servo, que lhe
erguia as mãos e abraçava os altares e volveu os olhos para as muralhas reais
de Cartago e para o par que, envolvido no seu amor, se esquecera de outras
coisas mais elevadas. Chamou então Mercúrio, seu mensageiro, e disse-lhe:

— Vai, meu filho, corre, chama os zéfiros e voa à Líbia para dizer ao
chefe dardanio — que agora vive em Cartago da Tmia, sem se preocupar
com os factos futuros — que eu, Júpiter, lhe envio esta mensagem: não foi
para tal destino que a sua formosa mãe o salvou duas vezes das armas dos
gregos e sim para fundar na Itália um novo e poderoso reino que, fremente
de guerra, propagaria a alta geração dos troianos e submeteria a orbe inteira
à sua lei. Se nenhuma glória de tão grandes acções o excita e nem o anima o
esforço para obtê-la, que pelo menos se lembre de seu filho Ascânio e pense
do que o privará. Que quer Eneias? Com que esperança se detém no meio
do povo inimigo? Não pensa na descendência que deverá lançar nos campos
de Lavínio? Que parta! Que lance os barcos ao mar e que navegue! É isso
que determino e é essa a minha mensagem.

Mal se calou e já Mercúrio, apressado, se dispunha a obedecer à ordem


do grande pai. Primeiramente, calçou as suas sandálias de ouro, que o
sustentam no ar com as suas asas e o impelem com um sopro rápido por
sobre as terras e por cima dos mares. E agarrou então na varinha com que
faz sair do inferno as almas pálidas ou para lá as envia, com a qual dá e tira
o sono ou reabre os olhos dos mortos, e, confiado nela, repete os ventos e
avança entre as nuvens agitadas.

64
ENEIDA - Virgílio
Já a voar, viu as cristas e as vertentes escarpadas do granítico Adas,
cuja cabeça sustenta o céu e está cercada de nuvens negras. O vento e a
chuva castigam-lhe as faces, correm rios pelo seu queixo enrugado e a sua
barba hirsuta está eriçada de gelo. Como o seu avô materno o fizera pela
primeira vez, também Mercúrio parou por uns momentos no monte alto e a
seguir atirou-se dos céus para baixo, qual o pássaro que tenta apanhar o
peixe, aterrando nas costas arenosas da Líbia.

Lá viu Eneias, que auxiliava os cartagineses na erecção das muralhas


e na construção dos edifícios. A sua espada, marchetada de jaspe dourado,
reluzia, e o seu manto, pendente dos ombros, brilhava com a púrpura de Tiro.
Eram dádivas ricas da riquíssima Dido. Chegando a ele, disse-lhe o deus-
mensageiro:

— Vejo que tu, aqui e agora, lanças os fundamentos da grande Cartago


e, preso pelos laços do matrimónio a bela mulher, constróis uma cidade. Ai
de ti, esquecido do teu reino e das tuas coisas! O próprio rei do Olimpo, que
move com sua vontade os céus e as terras, me envia a ti e me manda trazer
essas ordens pelos ares. Que pensas tu? Que esperas, gastando aqui a tua
mocidade, ocioso, pelas terras da Líbia? Se não te importa a glória que te
espera, se não te estimulam os esforços para obtê-la, pensa ao menos no teu
filho e no que Ihe deixarás de dar se aqui permaneceres. Ele cresce e a ele
estão destinados as terras da Itália e o reino romano.

Assim falando, Mercúrio abandonou a sua forma humana, e


desapareceu num ténue vapor.

Aterrado com a visão divina, Eneias emudeceu, e os cabelos eriçaram-


se-lhe. Surgiu-lhe um desejo imenso de deixar aquelas terras aprazíveis e
obedecer à vontade dos deuses. Mas que fazer? Como poderia ele dirigir-se
à rainha, ofuscada de paixão? Como começaria a falar-lhe? E a sua mente
confusa passava de uma resolução a outra e não conseguiu decidir-se durante
algum tempo. Finalmente, anteviu uma solução.

Chamou Mnesteu, Sergesto e o valoroso Seresto e ordenou-lhes que


preparassem a frota em segredo, que juntassem os companheiros na praia,

65
ENEIDA - Virgílio
que preparassem as armas, dissimulando e ocultando, no entanto, o mais
possível a verdadeira causa dos preparativos, enquanto ele, Eneias, tentaria
junto à rainha achar ocasião mais propícia para lhe dar a notícia. Rápida
mente, as suas ordens foram executadas.

Mas Dido pressentiu o estratagema — quem pode enganar uma alma


apaixonada? —, percebendo logo a intenção de Eneias. Foi o mesmo
impiedoso Boato que lhe trouxe notícias da armada que se preparava para a
viagem. Furiosa, vociferando de cólera e de desfeito, os olhos faiscando, as
maçãs do rosto lívidas, a infeliz torcia as mãos e gemia:

—Traiçoeiro, traiçoeiro, mil vezes traiçoeiro, infiel miserável. Como


pudeste esperar esconder de mim uma acção tão feia e partir calado da minha
terra? Não, não tens coração. E saber que foi só por tua causa que abandonei
a honra e ignorei a voz do pudor! E ainda mais, planejas navegar durante os
meses do Inverno, quando os vendavais cruéis varrem os mares, tão ansioso
estás por me abandonar. Porventura foges de mim? Por estas lágrimas, pela
tua mão direita, pela nossa união, pelas nossas núpcias iniciadas, por alguma
coisa que tenhas achado agradável em mim, eu te peço, suplico, fica! Se
algum amor me tens, ou piedade existe no teu peito pelo reino que —estou
certa — ruirá com a tua partida, ouve-me. Por tua causa me odeiam os povos
da Líbia, os chefes selvagens da Numídia e até me são hostis os próprios
tírios, da minha raça e sangue, sob o jugo opressor de meu irmão Pigmalião.
Por ti, vi meu nome arrastado na lama e a minha fama, que se elevava até os
astros, também. A quem me abandonas, moribunda? Acaso esperarei que
venha meu irmão destruir-me as muralhas, ou que o chefe gétulo, larbas, me
leve cativa? Porque deverei eu ficar aqui, à espera de sorte horrível, sei por
minhas próprias mãos, posso ter melhor destino? Tivesse eu, ao menos, tido
um filho da tua linhagem, antes que tão cruelmente partisses... Um
pequenino Eneias que brincasse pelo palácio e cujas feições me fizessem
lembrar as tuas, decerto não me julgaria tão abandonada e enganada!

Calou-se. Eneias, seguindo os conselhos de Júpiter e reprimindo no


coração a piedade pela rainha infeliz — pois se a esses sentimentos desse
vazão, temia não poder controlá-los e acabar por ser desviado do seu intento
—, assim respondeu, em poucas palavras:

66
ENEIDA - Virgílio
— Ó rainha, jamais poderei negar que o teu merecimento é enorme,
pelo muito que tens feito por mim e pelos meus e que, enquanto eu viver,
permanecerás em mim como a mais doce das lembranças. O querida Dido,
quanto me recordarei das horas contigo passadas! E não penses que me iria
agora pelos mares de modo furtivo e traiçoeiro. Não fui eu que
voluntariamente dirigi os meus barcos para estas praias, e nem propus
casamento ou aliança. Quisessem os destinos que eu levasse a vida segundo
os meus desejos e escolhesse as alegrias e cuidados, que daria toda a minha
atenção e toda a minha força ao bem-estar de Tróia, cidade onde nasci e
berço da minha raça. Se tal poder me entregassem as Parcas, já as muralhas
orgulhosas da cidade se elevariam novamente para os céus, e dos vencidos
e mortos estaria a cuidar. Ela, porém, foi destruída e nossa raça arrancada de
seu solo natal. Mandaram agora Apolo e os oráculos que eu vá para a grande
Itália. É esse o meu desejo e é essa a minha nova pátria, onde iniciarei uma
nova dinastia troiana. Tu, Dido, que vieste a estas costas com o povo de Tiro,
olha para as muralhas de Cartago, para o templo de Juno, para as novas
construções e para tudo o mais com orgulho e amor, pois aqui plantaste novo
rebento da tua raça. Porque não queres então que os troianos façam o
mesmo? Quando durmo, quantas vezes me aparece em sonhos a imagem
irritada de meu pai Anquises, advertindo-me, censurando-me e prevenindo-
me para que não prive o pequeno Ascânio das glórias de um império. Há
pouco foi o próprio mensageiro de Júpiter que me apareceu e falou,
reprovando a minha conduta e indicando-me o caminho a seguir. Cessa,
pois, de nos mortificar, aos dois, com os teus queixumes. Se demando a
Itália, não o faço por minha vontade.

Mas Dido, cega de paixão e orgulho ferido, encarou-o de alto a baixo,


olhos reluzentes, e falou:

— Nem uma deusa é tua mãe, nem Dárdano origem da tua raça, ó
pérfido. Mas o Cáucaso horrendo te fez nascer nas agrestes penedias e a ti
te amamentaram os tigres da Hircania! Oh, deuses do Céu! Como é de pedra
o coração dos homens! Porventura se comoveu ele com as minhas lágrimas?
Porventura baixou os olhos, envergonhado do seu procedimento?
Porventura, reconhecendo o erro, condoeu-se da mulher que o ama? Oh, que
palavras acharei que lhe comovam o coração! Nem a grande Juno nem o seu

67
ENEIDA - Virgílio
augusto esposo podem olhar indiferentemente para tais coisas. Como se
pode confiar mais em alguém, quando eu, Dido, rainha de Cartago, vendo-o
arremessado à praia, náufrago e necessitado de tudo—a ele e aos
companheiros—e então, louca que fui, salvei-o da morte, ajudei-o e dei-lhe
parte dos meus reinas. Ai! Como me inflamam as Fúrias a dizer tais coisas!
E agora o pérfido alega não ter vontade própria, que Apolo, os oráculos e o
mensageiro real Mercúrio o mandam fazer isto ou aquilo. És bem querido
dos deuses para que se dêem a esse trabalho e ainda te enviem o fantasma
do teu pai para te aconselhar durante o sono. Não te detenho, nem te refuto
as palavras! Vai, segue para Itália com os ventos, demanda o teu reino pelas
ondas. Na verdade, espero—se os deuses piedosos alguma coisa podem—
que hás-de sofrer perigos e suplícios entre os rochedos e muitas vezes hás-
de invocar o nome de Dido. Eu, ausente, seguir-te-ei com chamas negras e
quando a fria morte tiver separado os meus membros do espírito vital, como
sombra estarei presente em todos os lugares. Sofrerás castigos, ó perverso,
e a noticia de que sofres chegará até às mais profundas cavernas onde eu
estiver.

Faltou-lhe então a voz e com o coração partido retirou-se a infeliz Dido


da frente do troiano. Servas pressurosas ampararam-na e conduziram-na
quase desmaiada para o leito.

Eneias, todavia, desejoso por lhe acalmar o espírito e dizer-lhe


palavras doces que lhe minorariam a dor da separação, não podia recuar
perante a ordem dos deuses e dirigiu-se à praia para ver como iam os
preparativos da partida.

Tudo era actividade. Remendavam-se as velas, consertavam-se os


remos, prendia-se o cordame, calafetavam-se os cascos secos. Em longas
colunas desciam os troianos da cidade com mantimentos, apetrechos e armas
para a viagem, como formigas que, com a aproximação do Inverno, atacam
o monte de trigo para o armazenar no formigueiro e movimentam-se ao
longo dos campos de restolho em longas colunas escuras, cada insecto
lutando com o seu grão, a vereda roda fervendo na azáfama.

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ENEIDA - Virgílio
Enquanto isso, Dido, que olhava do alto da cidadela todos esses
preparativos, que pensamentos não tinha, que gemidos não soltava, vendo o
mar, a praia, os gritos dos homens atarefados? Perverso amor, a que não
obrigas tu os corações dos mortais! Pensou, lavada num rio de lágrimas e
pondo o orgulho de lado, em tentar junto de Eneias, novamente, que
desistisse da projectada partida, salvando-a da morte que planejara para si
mesma. E disse à irmã:

— Ó Ana, vês como se apressam e correm na praia? Chegam de toda


a parte, já o vento lhes enfuna as velas e os marinheiros, alegres, enfeitam
as proas. Se eu pude esperar tão grande dor, também a poderei suportar.
Entretanto, Ana, faz-me um favor a mim, tão desgraçada. Vai ter com
Eneias—tu, a quem o pérfido costumava chamar de amiga e confiava todos
os segredos mais íntimos da alma—, quando ele estiver sozinho, e fala-lhe.
Eu não jurei com os gregos arruinar o povo troiano ou enviar navios para o
combater. Não se recusará a conceder a uma mulher infeliz uma última
graça. Não lhe peço que conserve os laços do nosso casamento, nem que
abandone a ideia de ir para Itália, mas que apenas retarde um pouco a sua
partida, até que tenha passado a estação tormentosa. Poderei assim vencer
esta tristeza que me assoberba e aprender a sofrer resignadamente. Diz que
não lhe falarei mais dos laços matrimoniais quebrados e da alcova nupcial
abandonada. É só o que lhe peço e acho que não me recusará.

A angústia afogou o coração de Eneias ao ouvir da boca de Ana tais


queixumes de dor inexaurível, mas o nobre varão permanecia inflexível em
seguir o destino decretado pelas Parcas. Da mesma maneira que, quando os
ventos sopram daqui e dali, tentando arrancar do solo um carvalho gigante
pelas raízes, se ouve o farfalhar gigantesco, abalando profundamente o
tronco, mas a árvore resiste, presa firmemente aos rochedos, a copa alta
apontando para o céu e as raízes afundando-se cada vez mais na terra, assim
também o herói era instado e batido pelas súplicas de Ana. E embora o seu
caridoso coração se confrangesse de dor, não ousava desobedecer às ordens
divinas.

Então, a infeliz rainha, aterrada com o destino miserável que a


esperava, resolveu suicidar-se e dirigiu-se aos altares que brilhavam à luz

69
ENEIDA - Virgílio
dos fogos de incenso para fazer os seus votos e firmar a sua resolução.
Enquanto orava—coisa horrível de contar-se!—a água sagrada escureceu e
o vinho derramado em honra dos deuses transformou-se em sangue. Mas
nada contou do que vira a sua irmã. De um templo de mármore existente no
átrio do palácio e dedicado a seu esposo, permanentemente enfeitado com
panos brancos e ramagens verdes, pareceu-lhe ouvir a voz do falecido que a
chamava na noite escura, enquanto a coruja solitária enchia as trevas com o
seu canto fúnebre em prolongados pios lamentosos. Angustiavam-na,
também, outras predições mais antigas e até mesmo a visão de Eneias a
perseguia em sonhos. Pareceu-lhe vagar sozinha sempre, triste e
acabrunhada, procurando e chamando os da sua raça, à semelhança de
Penteu, rei de Tebas, que em transe avistava o bando de Túrias e dois sóis e
cidades, muralhas, torres e cidadelas em dobro. Ou quando Orestes, filho de
Agamémnon, fugia da mãe assassina, que o seguia brandindo archotes
flamejantes e serpentes negras de Dira, a Fúria vingativa. Também agora
Dido, alucinada, obcecada pela ideia do suicídio, decidia no fundo do
coração a hora e o modo.

Dido voltou-se, porém, para sua irmã Ana e dirigiu-lhe estas palavras,
escondendo as suas intenções:

— Encontrei, ó irmã, um caminho — alegra-te comigo — que, ou me


restituirá o meu Eneias, ou me separará dele. Perto do termo do oceano e do
ocaso do Sol está o país distante dos etíopes, onde o poderoso Atlas gira o
mundo, marchetado de estrelas nos ombros. Há lá uma sacerdotisa da nação
de Massilia, guarda do templo das Hespérides, as ninfas da noite, órfãs de
pai. Era ela que dava alimento ao dragão e vigiava o ramo sagrado,
derramando sobre ele mel e sementes de papoula. Os seus sortilégios podem
libertar o amor do coração de quem o deseje, podem secar a torrente dos
rios, inverter a marcha das estrelas e acordar os fantasmas nocturnos. A terra
geme à sua passagem e as árvores estremecem quando ela percorre a encosta
da montanha. Revelou-me ela como praticar tais artes e livrar-me do meu
sofrimento, mas juro aos céus, querida irmã, que convoco essas mágicas
contra a minha vontade. Peço-te, portanto, cara Ana, que faças construir uma
pira no pátio interno, ao ar livre, e coloques sobre ela as armas que o infiel
deixou na minha alcova, como também as suas tónicas e vestes e por último

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ENEIDA - Virgílio
o leito nupcial, pois desejo destruir tudo o que possa lembrar-me aquele
homem abominável Foi assim que a sacerdotisa de Massília me disse que
fizesse.

Tão bem escondeu Dido as suas verdadeiras intenções, que Ana não
desconfiou dos planos fatídicos da irmã, julgando que as instruções
estranhas que a rainha lhe dera eram fruto da sua grande dor, tal qual
ocorrera com ela mesma, depois da morte de seu marido Siquém.

Pronta a enorme pira, feita de pedaços de pinho e carvalho, a rainha


adornou o local com grinaldas e coroas de flores e ramos. Sobre a pira,
estava a cama onde foram colocadas a armadura, a espada e as roupas de
Eneias, bem como uma estatueta que o representava. Em volta, arrumaram-
se os altares e Dido, cabelos soltos, oficiou os ritos sagrados como
sacerdotisa. Clamou alto três vezes, pelos cem deuses, por Érebro e Caos,
pela Trlplice Hécare, pelo espírito dos mortos e, acima de tudo, por Diana,
a deusa radiante da caça.

A água vinda da ponte de Averno foi espargida sobre os altares. Lá


colocou ela também ervas cortadas ao luar, com foices de bronze, húmidas
ainda de veneno negro; por fim, lançou à pira um sortilégio de amor tirado
da testa de um potro recém-nascido, antes que a mãe o amamentasse. Ela
mesma, com as mãos lavadas e sacramentadas, os pés descalças, a túnica
solta, convocou os deuses e as estrelas para que a olhassem antes de morrer
e fossem testemunhas do seu destino. Orou aos deuses justos para que se
compadecessem dela, infeliz amante, cujo amor o Céu fizera sem igual em
calor e profundidade.

Agora nada a podia deter. A sua sorte estava lançada.

Era noite e os corpos fatigados gozavam um merecido sono. As


florestas e os mares tempestuosos tinham-se aquietado e os astros percorrido
metade do seu caminho nocturno. O campo silenciara e os animais que
povoam os lagos e os campos eriçados de silvados repousavam nos seus
refúgios, no fundo das águas ou no cimo das árvores. Só não descansava a
rainha de Cartago, insone na sua infelicidade, sem alívio para a alma

71
ENEIDA - Virgílio
torturada: Uma agonia de saudade ainda a assoberbava e a maré do amor
apaixonado afogava-lhe o peito arfante.

«Que farei? — pensava. — Posso por acaso procurar novamente os


pretendentes recusados, esses númidas de pele escura a quem tantas vezes
desprezei, e humilhar-me, oferecendo-me para esposa? Irei com os navios,
aceitando Eneias, o troiano orgulhoso, como meu senhor? Receber-me-ia ele
assim, levando-me para as terras que demanda? Oh, Dido arruinada, não
conheces ainda a perfídia profunda de seus corações? Devo persegui-los,
fazendo regressar ou destruir os seus barcos antes que partam? Não, rainha
infeliz, morre como mereces, termina todas as tuas dores com a lamina
afiada. Tu, querida irmã, a quem as minhas lágrimas convenceram, foste a
primeira a incentivar-me para esse amor louco, carregando-me com tais
sofrimentos. Como lamento agora não ter mantido os meus votos de
casamento com Siqueu e passar a vida sem pecado, sem vergonha e sem
cuidados. Ah, Siqueu, alma querida, quebrei os votos que fiz sobre tuas
cinzas!»

Os navios aguardavam, prontos para desfraldar as velas ao vento,


enquanto os troianos gozavam o repouso merecido. Ao próprio Eneias, que
dormia no convés de popa do seu navio, surgiu uma visão do divino
mensageiro que o preveniu. Mercúrio, cabeleira dourada, e radiante na sua
juventude vigorosa, falou-lhe severamente:

— Ó filho de uma deusa, como consegues conciliar o sono quando


tudo se apresenta tão mal? Não vês os perigos que te rondam por todos os
lados e que te aguardam no futuro? Louco! Não ouves soprar os ventos
favoráveis? Dido, decidida a morrer, tem o coração a ferver de Kria contra
ti e os teus enganos. Porque não foges daqui rápido, enquanto é possível?
Em breve, veras que o mar estará coalhado de navios inimigos e que os teus,
transformados em archotes candentes, espalharão o seu madeiro pelas areias
brancas, fazendo ferver a água do mar. E isso acontecerá se a aurora te
encontrar nestas terras. Animo, vamos, rompe as amarras e parte, que a
mulher é um ente inconstante e volúvel.

72
ENEIDA - Virgílio
Tendo falado assim, sumiu-se o deus na noite escura, e Eneias,
aterrado pela visão, levantou-se rápido e gritou aos companheiros:

— Acordai depressa, homens, sentai-vos aos remos e soltai as velas.


Um deus enviado do alto Olimpo incita-me de novo a apressar a fuga e a
levantar ferros. Nós te seguimos, ó divino Mercúrio, e obedecemos ao teu
chamado. Oh! Vós, divino mensageiro, que estais junto a nós e nos sois
propicio, ajudai-nos e mostrai-nos o nosso caminho.

Logo desembainhou a espada coruscante e cortou as amarras dos


barcos. Todos se animaram, lançando-se aos remos, desfraldando as velas.
E lá seguiram, proas altas, cortando os mares Errios, na crista e na espuma
das ondas azuladas.

Agora, já a aurora, com a sua luz primeira inundava as terras, deixando


o leito cor de açafrão de Titá. Assim que Dido, subindo aos altos mirantes
do palácio, avistou a armada, panos brancos alegres ao vento, que se afastava
rumo a Itália, enquanto ali ficavam as praias mudas, desertas de remadores
e navegantes, o seu desespero atingiu o auge. Batendo no peito e arrancando
os formosos cabelos, bradou:

— Ó Júpiter, como pode partir assim um estrangeiro que ludibriou a


rainha dos cartagineses, sem que estes não corram às armas, não os persigam
nos nossos navios? Ide, apressai-vos, trazei archotes e empunhai as espadas!
Oh, pobre de mim! Que coisas digo que pareço louca? Agora é tarde!
Quando ele aportou aqui da primeira vez, eu rente do pecado. Seria, então,
a altura certa para o atacar, para lhe cortar todos os membros e os espalhar
nas ondas. Devia tê-los passado a fio de espada, até mesmo ao menino
Ascânio. Mas fui tola. Ofereci-lhe a partilha das minhas riquezas e da minha
coroa, em vez de lhe saquear o acampamento e lhe queimar os navios!

E, rindo loucamente:

— Poderia, antes de matá-lo, tê-lo entretido com iguarias e vinhos e


palavras ternas e então servir-lhe a carne fresca do seu próprio Ascânio como
alimento. O filho seria, em verdade, um prato apetitoso para o pai.

73
ENEIDA - Virgílio
E continuando na fala alucinada:

— Ó Sol, que iluminas com as tuas chamas todas as almas da terra, e


tu, Juno, intérprete e testemunha dos meus sofrimentos, e tu, Hécate, deusa
terrível da noite, que os homens invocam nas encruzilhadas, e vós, Fúrias
vingadoras, ouvi essa última prece de Dido, antes que ela morra, e voltai o
vosso poder contra os maus. Se é necessário que o malvado Eneias chegue
aos portos estrangeiros e desembarque na terra que os gregos chamam
Hespéria, se a vontade de Júpiter assim o exige, se assim está determinado
pelo Destino, que ao menos — e é essa a minha vingança —, que ao menos
uma nação brava e guerreira lhe caia em cima com as suas armas, impondo-
lhe uma tremenda luta, que o expulse daquelas costas e lhe arrebate o filho
dos braços. E que, derrotado Eneias, se conseguir aliados, que também estes
sejam esmagados, e que o herói troiano veja a morte dos companheiros. Que
a paz desvantajosa que aceitar não lhe permita gozar dos prazeres de seu
reino e que abandone a luz alegre da terra, morto antes do tempo,
permanecendo o seu corpo insepulto na areia. Tudo isso eu vos peço, ó
deuses, e esse é o meu último pedido antes de derramar o meu sangue.
Quanto a vós, cartagineses, persegui com ódio a sua descendência e toda a
geração futuro, alimentando o espírito de vingança nas minhas cinzas! Que
nunca amizade ou paz haja entre os dois povos. Das nossa cinzas surja algum
vingador que persiga a fogo e ferro os descendentes de Dárdano. Agora e
sempre, em todo o tempo futuro, sejam as nossas praias contrárias as deles,
as nossas ondas contrárias às deles, as nossas armas contrárias às deles.
Lutemos, nós e a nossa descendência, contra Eneias e a sua descendência.

Procurando o mais rápido meio de suicidar-se, chamou Barce, antiga


ama de Siqueu, seu marido, e disse:

— Encontrava-me inocente do pecado. Seria, então, a altura certa para


o atacar, para lhe cortar todos os membros e os espalhar nas ondas. Devia
tê-los passado a fio de espada, até mesmo ao menino Ascânio. Mas fui tola.
Ofereci-lhe a partilha das minhas riquezas e da minha coroa, em vez de lhe
saquear o acampamento e lhe queimar os navios!

E, rindo loucamente:

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ENEIDA - Virgílio
— Poderia, antes de matá-lo, tê-lo entretido com iguarias e vinhos e
palavras ternas e então servir-lhe a carne fresca do seu próprio Ascânio como
alimento. O filho seria, em verdade, um prato apetitoso para o pai.

E continuando na fala alucinada:

— Ó Sol, que iluminas com as tuas chamas todas as almas da terra, e


tu, Juno, intérprete e testemunha dos meus sofrimentos, e tu, Hécate, deusa
terrível da noite, que os homens invocam nas encruzilhadas, e vós, Fúrias
vingadoras, ouvi essa última prece de Dido, antes que ela morra, e voltai o
vosso poder contra os maus. Se é necessário que o malvado Eneias chegue
aos portos estrangeiros e desembarque na terra que os gregos chamam
Hespéria, se a vontade de Júpiter assim o exige, se assim está determinado
pelo Destino, que ao menos — e é essa a minha vingança —, que ao menos
uma nação brava e guerreira lhe caia em cima com as suas armas, impondo-
lhe uma tremenda luta, que o expulse daquelas costas e lhe arrebate o filho
dos braços. E que, derrotado Eneias, se conseguir aliados, que também estes
sejam esmagados, e que o herói troiano veja a morte dos companheiros. Que
a paz desvantajosa que aceitar não lhe permita gozar dos prazeres de seu
reino e que abandone a luz alegre da terra, morto antes do tempo,
permanecendo o seu corpo insepulto na areia. Tudo isso eu vos peço, ó
deuses, e esse é o meu último pedido antes de derramar o meu sangue.
Quanto a vós, cartagineses, persegui com ódio a sua descendência e toda a
geração futuro, alimentando o espírito de vingança nas minhas cinzas! Que
nunca amizade ou paz haja entre os dois povos. Das nossa cinzas surja algum
vingador que persiga a fogo e ferro os descendentes de Dárdano. Agora e
sempre, em todo o tempo futuro, sejam as nossas praias contrárias as deles,
as nossas ondas contrárias às deles, as nossas armas contrárias às deles.
Lutemos, nós e a nossa descendência, contra Eneias e a sua descendência.

Procurando o mais rápido meio de suicidar-se, chamou Barce, antiga


ama de Siqueu, seu marido, e disse:

— Querida ama, traz aqui minha irmã Ana, Diz-lhe que se apresse a
banhar-se na água do rio e a trazer ovelhas novas para serem sacrificadas.
Tu mesmo, Barce, enfeita a tua cabeça com as coroas funéreas. Quero

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ENEIDA - Virgílio
oferecer a Júpiter os sacrifícios que preparei, segundo os rituais, e pôr fim
aos meus sofrimentos, entregando o meu corpo às chamas da pira onde pus
a efígie do troiano.

Logo partiu Barce para cumprir as ordens da senhora. Enquanto isso,


Dido, agitada e inquieta com o fim que se aproximava, olhos sanguinolentos
e face descomposta a reflectir a sombra pálida da morte, precipitou-se pelo
interior da casa e subiu ao alto da pira. Lá, desembainhando a espada de
Eneias — presente tão querido, mas quem adivinharia o fim para o qual seria
usado!—e olhando para as roupas troianas e para o leito nupcial, parou um
momento e pensamentos tristes lhe trouxeram à boca estas últimas palavras:

— Ó doces relíquias de um tempo feliz, mas tão curto, que só por isso
as Parcas o permitiram, recebei esta vida e libertai-me dos meus sofrimentos.
Vivi e terminei a missão que o destino me tinha imposto e agora a minha
majestosa sombra vai para debaixo da terra. Fundei uma grande cidade. Vi
subir as suas muralhas. Vinguei o meu esposo e castiguei o meu irmão
inimigo. Teria sido feliz se nunca as quilhas troianas tivessem tocado minhas
praias.

E, lançando-se sobre o leito, continuou:

— Morrerei sem vingar-me, mas morrerei. Que os cruéis olhos


troianos olhem para estas chamas lá do mar distante e que elas lhes levem
os agouros do meu fim.

Então, enquanto pronunciava essas últimas palavras, as suas damas


vêem-na calda sobre a espada desembainhada, a lamina ensopada de sangue,
a mão tinta de vermelho. Elevou-se um clamor dos átrios e o boato percorreu
velozmente a cidade. As casas estremeciam com as lamentações, gemidos e
gritos das mulheres. A cidade inteira se levantava como que polvilhada de
fermento, assaltada por inimigos ou presa das chamas.

Aflita e apavorada, a irmã precipitou-se pelo meio de todos, trémula,


lacerando a rosto com as unhas, batendo com os punhos cerrados no peito,
chamando pelo nome a rainha moribunda:

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ENEIDA - Virgílio
— Ó Dido, era esse então o sacrifício que planeavas, enganando a tua
irmã com um rosto calmo e palavras traiçoeiras! Nunca pensei que esse fosse
o destino da pira, dos altares e dos sacrifícios. E porquê, ó Dido, não levas a
tua irmã contigo? Que esperança de felicidade me resta? Porque me negas a
participação no teu destino? Essa mesma espada, na mesma hora, poderia
ter-nos levado a ambas. Tu nos destruíste, pois agora eu, o Senado e todo o
povo cartaginês aqui ficamos desamparados. Todos os nossos planos e todas
as nossas construções são agora ruínas. Mas deixa-me banhar a tua ferida,
estancar o sangue, se possível, e ouvir talvez o último suspiro da tua boca.

Assim falando, subiu os altos degraus da pira e, abraçando a irmã que


expirava, acalentou-a no seio e, entre gemidos, enxugava-lhe o sangue
escuro com o vestido. Dido tentou levantar-se, mas faltaram-lhe as forças e
caiu novamente. A ferida no peito fazia-lhe a respiração estertorosa. Três
vezes se ergueu, levantando-se e apoiando-se sobre o cotovelo, e três vezes
caiu sobre o leito com os olhos amortecidos que em vão procuravam a luz
do dia.

A omnipotente Juno, compadecida da sua prolongada dor e da agonia


da infeliz rainha, mandou a deusa Íris para soltar o espírito em luta, da carne
que o prendia. Rápida como um raio de luz, voou a mensageira com mil
cores reflectidas à luz do Sol poente, nas suas penas orvalhadas.
Aproximando-se da rainha, a deusa colocou a sua boca no real ouvido,
pálido, e sussurrou:

— Leva esta oferenda a Prosérpina, a deusa escusa dos Mundos das


Sombras, e liberto o teu espírito.

Depois, cortou um cacho dourado dos cabelos de Dido. E foi então que
todo o calor desapareceu daquele corpo lindo e que a sua alma torturada se
dissipou nos ventos.

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ENEIDA - Virgílio

Capítulo 5: Os Jogos Fúnebres

Entretanto, os navios troianos sulcavam já o meio do mar escurecido.


Voltando-se, Eneias avistou chamas e fumo, elevando-se das muralhas de
Cartago. Apesar de desconhecer a causa daquilo, uma terrível suspeita da
verdade invadiu-lhe o coração, fazendo-o sofrer, pois sabia bem do que e
capaz a alma de uma mulher enlouquecida de amor. Mas logo perderam de
vista a terra e de todos os lados o mar imenso cercava-os. Mais uma vez
escurecia o céu e chegavam as trevas e as águas agitavam-se. Exclama o
piloto Palinuro:

— Ai! Porque é que tão grandes nuvens cercam o céu? Que nos
preparas tu, Neptuno?

Mandou logo recolher as velas e guarnecer os remos, continuando:

— Ó magnânimo Eneias, não creio que cheguemos à Itália com este


céu, mesmo que fossem os próprios deuses a prometer-mo. O ar condensa-
se nuvens e os ventos vindos do poente escuro sopram de través nos nossos
barcos. De nada nos adiantará lutar contra os elementos enfurecidos. Melhor
seria conformarmo-nos às suas forças e seguirmos para as praias próximas
da Sicília, terra de teu irmão Érice, agora governada por Acostes. Acredito
que o rumo que seguimos de momento nos levará até ela, antes que decorra
muito tempo.

Respondeu-lhe Eneias:

— Vejo, na realidade, que os ventos há muito insistem nisso e que


contra eles lutas em vão. Muda a tua rota, pois nenhum lugar me seria mais
agradável do que a terra em que Acestes Dardânio me aguarda e onde
repousam os restos de meu querido pai Anquises e de meu irmão Érice.

Pouco depois, surgiam-lhe à frente as praias conhecidas. O troiano


Acestes, de pé no alto de elevada colina, avistou-os quando a armada ainda

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ENEIDA - Virgílio
vinha longe e, quando se aproximaram, reconheceu a silhueta familiar dos
barcos. Correu imediatamente para a praia e recebeu-os alegremente,
conduzindo Eneias e os companheiros para sua casa. Embora as suas
instalações fossem rústicas, procurou dar-lhes todo o conforto possível.

No dia seguinte, de madrugada, Eneias reuniu os viajantes e falou-lhes


assim do alto de um outeiro:

— Ó grandes descendentes de Dárdano, geração do sangue nobre dos


deuses, são agora passados doze meses desde que entregamos à terra os
restos do meu querido pai e erguemos altares nos quais vertemos os nossos
prantos. Chegou assim o dia que — se não me engano —reservei para
sempre para o luto, bem como para a honra. Esteja onde estiver, nos mares
tempestuosos, entre os selvagens da Getúlia ou cativo de alguma cidade
grega, ainda assim, sempre nesse dia, cumprirei os votos anuais, oferecerei
sacrifícios e rezarei ante os altares sagrados. Mas neste momento não
estamos entre perigos, mas sim no ancoradouro seguro de um velho amigo,
um dos da nossa raça, e se assim acontece creio ser por vontade dos deuses.
Vamos todos, pois, prestar homenagem festiva à memória de Anquises.
Peçamos, portanto, aos deuses ventos propícios e que eu continue a oferecer-
lhes todos os anos estes sacrifícios sagrados, depois de edificada a nossa
cidade. Acestes ofereceu-nos generosamente duas reses para cada navio.
Agora vamos ao banquete e as oferendas sagradas aos nossos deuses
domésticos, bem como aos que protegem a morada do nosso anfitrião. Daqui
a nove dias, quando a aurora benéfica inundar o mundo de luz com os seus
raios, terminado que estiver o nosso luto, realizaremos os jogos Knebres.
Convido todos a comparecerem para vermos quem será o campeão dos
barcos na regata, da corrida a pé, dos certames de luta e do lançamento do
dardo. Escolheremos quem melhor atira com o arco, e a todos os vencedores
daremos troféus. Mas neste momento, amigos, pranteemos nosso pai,
ornando as nossas frontes com coroas funéreas.

Assim tendo falado, Eneias cingiu a cabeça com os sagrados ramos de


murta. Hélimo imitou-o, o mesmo fazendo Acestes, já mais maduro de
idade, o jovem Ascânio e o resto da juventude troiana. Da assembleia,
milhares de pessoas lideradas por Eneias dirigiram-se para o túmulo. Ali

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ENEIDA - Virgílio
oferecendo a Baco, segundo o ritual, dois copos cheios de vinho puro,
verteu-os no chão, o mesmo fazendo com duas taças de leite fresco e duas
de sangue sagrado. Lançando flores de púrpura sobre a rumba assim falou:

— Salve, pela segunda vez, ó santo pai. Salve, cinzas, espírito e


sombras paternas, que a ti não te permitiram os deuses acompanhar-nos aos
territórios do Lácio.

Mal tinha pronunciado essas palavras quando, debaixo dos altares,


surgiu uma grande serpente que continuou pacificamente o seu caminho,
boleando em torno do túmulo. O seu dorso era marchetado de manchas
azuladas e um brilho mosqueado de ouro inflamava-lhe as escamas, como
nas nuvens o arco-íris emite mil reflexos coloridos quando o Sol se lhe opõe.
Ante os olhares estarrecidos de Eneias e dos outros, o réptil seguiu a sua
marcha para, finalmente, e enrolando os longos anéis nas taças e nos pratos,
provar das iguarias e beber do vinho sagrado. Satisfeita, a cobra retirou-se
para o seu refúgio sob os altares. Prosseguiram todos nos sacrifícios e rituais
sem saber se o animal encarnava algum génio local ou o espírito do próprio
Anquises. Mataram cinco ovelhas, cinco porcos e cinco bezerros
negrejantes, tudo segundo o costume e de novo derramaram vinho e
invocaram os manes do pai de Eneias. Oferendas foram sendo empilhadas
sobre os altares e, então, acesas as fogueiras, assaram e comeram a carne dos
animais abatidos.

Mas chegou finalmente o nono dia e a aurora já brilhava sobre o mar


calmo num céu sem nuvens. A fama e o nome ilustre de Acestes atraíram
muitos habitantes das regiões circunvizinhas que enchiam as praias para
assistir aos jogos e alguns para neles tomar parte, disputando com os troianos
os cobiçados troféus. Estes foram expostos à vista de todos, antes de iniciado
o certame, sobre trípodes sagradas. Eram coroas verdes e palmas para os
vencedores, armas cobertas de púrpura, moedas de ouro e de prata e muitas
outras coisas valiosas. Mas do alto dum cômoro, uma trombeta anunciava já
que as pugnas iam começar.

O primeiro acontecimento dos jogos foi a regata, nela tomando parte


as quatro embarcações mais rápidas da frota troiana. Mnesteu, com os seus

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ENEIDA - Virgílio
robustos remadores, impelia a veloz Baleia. Gias comandava a grande
Quimera, verdadeira cidade flutuante, impulsionado por três linhas de
remadores. Sergesto conduzia a Centauro e na Cila ia Cloanto.

Naquele local havia, a certa distancia da costa, um rochedo batido


pelas ondas espumantes, mas que se elevava tranquilo sobre a superfície da
água, servindo de pouso as aves marinhas quando o mar estava calmo. Foi
lá qu Eneias colocou, como sinal para os corredores da regata, uma baliza
verde feita de um ramo frondoso. Seria ali que as embarcações deveriam da
a volta e regressar ao litoral.

Tiraram à sorte para escolher as raias. Os próprios comandantes do


barcos, de pé nas popas, brilhavam nas armaduras de ouro e púrpura
enquanto os jovens remadores, nus até à cintura, se sentavam nos banco e
empunhavam os remos. Atentos, nervosos, todos aguardavam o sinal dá
partida o coração cheio de desejo pelos louvares da vitória. Soou a trombeta
e os remos mergulharam juntos no oceano, levantando a branca espuma
Como cães livres das pelas, lançaram-se os navios ao mesmo tempo par. a
frente, abrindo sulcos no mar. E os remadores, estimulados pelos gritos dos
capitães, enterravam os remos na água calma. Nunca giraram tão rápidas as
rodas da biga numa corrida, quando os condutores chicoteiam os corcéis
galopantes e sacodem as rédeas sobre as crinas esvoaçantes. A multidão,
reunida no litoral, irrompeu em aplausos e gritos frenéticos, estimulando os
seus favoritos. A floresta e os morros ressoavam com o gritar de dez mil
gargantas.

Gias passou à frente dos outros competidores e o seu barco deslizava


veloz sobre as ondas. Seguindo-o de perto, vinha Cloanto, superior em
remadores, mas cujo navio era mais pesado. Um pouco atrás a Baleia e a
Centauro corriam emparelhadas, com pequena vantagem ora para uma, ora
para outra.

Já se aproximavam agora do rochedo que marcava o meio da regata.


Gias, à frente, gritou então para Manete, piloto do seu barco.

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ENEIDA - Virgílio
— Porque descambas tanto para a direita? Estás fora do rumo. Deixa-
a aproximar-se do rochedo!

Bradou de novo para o piloto, vendo que a rival Cila já tomara o


caminho mais curto, interpondo-se entre o seu navio e a rocha. A Cila passou
a rasar o perigoso escolho e logo alcançou as águas seguras à frente de todas.
Enraivecido, Gias avançou direito ao seu piloto. Com um rápido golpe de
braço, arrancou-o do seu posto, atirando-o às águas, sem consideraçao pela
sua dignidade nem pela segurança do navio, e ele mesmo ocupou o leme.
Exortando os remadores a plenos pulmões, virou a embarcação na direcção
dos rochedos. Enquanto isso, o pesado Manete, já velho, saia encharcado da
água e, com dificuldade, trepara para uma rocha, pondo-se a seco. A
assistência inteira riu com gosto da sua figura patética, vomitando a água
salgada que engolira.

Alegraram-se os dois barcos mais atrás, com a esperança de vencer


Gias, que perdera terreno com a manobra. Sergesto seguia à frente na sua
Centauro, com quase um barco de diferença em relação à Baleia. Mnesteu
percorria as fileiras de remadores admoestando-os nestes termos:

— Ó amigos de Heitor, que escolhi como companheiros, quando Tróia


se aproximava do fim, esforçai-vos nesses remos. Mostrai agora aquela força
e coragem que usastes nas terras da Getúlia e nas águas do mar Jónio. Não
vos peço que vençais a corrida e que conquisteis o primeiro prémio, mas
acho que ainda poderemos ultrapassar Gias. Livremo-nos da vergonha de
ser os últimos a chegar à costa!

Logo se lhes redobrou o vigor e a popa bronzeada tremia com os golpes


dos grandes remos. Com a respiração ofegante, a boca seca, o suor
escorrendo-lhes pelo dorso retesado, os jovens da Baleia viram a Fortuna
sorrir-lhes, pois Sergesto, na sua pressa de ultrapassar a Quimera, pelo
espaço estreito entre aquela e os rochedos, conduziu o seu navio por sobre
os escolhas submersos. E lá ficou, irremediavelmente preso. Quebraram-se
os remos e, embora a tripulação corresse a pesca-los com varas e ganchos,
era tarde: o bravo navio estava fora da corrida.

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ENEIDA - Virgílio
Animado pelo sucesso, Mnesteu já via o seu barco, aligeirado pelo
esforço redobrado dos remadores, atingir as águas livres e correr pelo mar
aberto. Qual pomba afugentada subitamente do seu ninho, que se debate com
ruído e depois cor. ta o ar tranquilo, sem sequer mover as asas, assim também
a Babeia sulcava o mar na direcção da costa, deixando Sergesto a debater-
se preso ao escolho, implorando debalde por socorro e procurando safar-se
com o auxílio dos remos partidos. Já ultrapassavam então a Quimera que,
privada do seu experimentado piloto, cedia terreno atrapalhada pelo seu
grande peso.

Lançou-se então Mnesteu à perseguição da Cila de Cloanto.


Redobraram os aplausos e o ar ressoava com os gritos dos assistentes. O
coração do comandante da Baleia rejubilava, na esperança de ultrapassar o
contendor e vencer a regata. O acidente com Sergesto fazia-o acreditar que
os deuses lhe haviam destinado a palma da vitória. Orava aos ventos e
estimulava a guarnição. Parecia agora que o navio de Mnesteu sobrepujaria
o Cila entrando à sua frente no porto, mas Cloanto estendeu os braços para
o mar e assim orou:

— Ó Neptuno e deuses que tendes o domínio das planícies marinhas


onde agora deslizo, a vós, eu, alegre, sacrificarei ante os vossos altares,
nessas praias, um touro branco e, por esta promessa, espalharei as suas
entranhas pelas ondas e nelas derramarei o vinho.

Assim falou e todo o coro das Nereidas e a virgem Panopeia o ouviram


no fundo mar. O próprio Neptuno impeliu o navio com a sua poderosa indo.
Então, mais ligeira que os próprios ventos, a Cita encaminhou-se para a costa
e entrou no ancoradouro.

Eneias reuniu então todos os assistentes e, segundo o costume,


declarou Cloanto vencedor, colocando-lhe na cabeça uma coroa de verdes
touros. Seguidamente, concedeu-se ao vitorioso troiano que escolhesse
como galardão três novilhos, presentes, vinhos e moedas de prata para as
tripulações de cada um dos seus navios. Os outros capitães receberam
dádivas especiais. A Cloanto, coube uma túnica de púrpura ricamente
recamada de ouro e bordada com a figura de Ganimedes, o menino de pés

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ENEIDA - Virgílio
ligeiros, favorito de Júpiter, que leva a taça de néctar aos lábios dos deuses
sedentos. Ele, a quem uma águia negra, enviada do Olimpo, arrebatou nas
garras ante o olhar espantado dos guardas e o latido enraivecido dos cáes.

Mnesteu, que terminara em segundo na regata, recebeu uma cota de


malha com presilhas de ouro, que o próprio Eneias arrancara ao cadáver de
Demóleo, morto perto do veloz rio Simois, próximo da soberba Tróia. Era
tão grande o seu peso que eram precisos dois criados para a transportar mas,
apesar disso, Demóleo envergava-a e com ela posta lançava-se em
perseguição dos troianos. Ao terceiro classificado, Gias, capitão da
Quimera, couberam dois caldeirões de bronze e taças de prata com baixos-
relevos representando cenas de batalha.

Já estavam todos os vencedores premiados, na posse dos presentes e


com as fitas vermelhas a cingir-lhes as fontes, e ainda Sergesto, que
arrancara o seu barco, a custo de muitos esforços e habilidade, dos rochedos
traiçoeiros, se dirigia para o litoral com a nau a meter água e os remos
partidos pendendo-lhe ao lado. Como a serpente que muitas vezes —
surpreendida no meio do caminho pela roda de bronze que a esmaga ou pelo
viajante que a fere de morte com uma pedra — procura fugir em vão, dando
grandes voltas com o corpo, enraivecida, os olhos ardentes e a cabeça
levantada, a língua sibilante para fora, enquanto a parte ferida coleia no solo
sem forças e sem direcção, assim também se movia lento o navio de
Sergesto. Suspensas as velas, o vento ajuda-o a entrar no porto, enquanto a
multidão o apupa e troça da tripulação. Eneias presenteou o comandante com
o prémio prometido, alegre com o salvamento do navio e dos companheiros.
Foi-lhe dada uma escrava, mulher de Creta, bem versada nas artes
domésticas.

Com Eneias à frente, dirigiram-se então todos a um campo coberto de


relva, cercado de bosques e outeiros por todos os lados. No meio do campo
havia um lugar já preparado para onde se encaminhou o tirano. Sentando-se,
anunciou os prémios para a disputa seguinte, a corrida rasa, estimulando os
ânimos dos que quisessem competir. Apresentaram-se vários troianos e
sicilianos. Niso e Eunalo foram os primeiros, este último famoso pela sua
beleza e juventude e ao outro ligado por grande amizade. Seguiram-se-lhes

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ENEIDA - Virgílio
o real Diores, da egrégia estirpe de Príamo, Sálio e Pátron e mais dois
mancebos da Sicília, Hélimo e Panope, habituados às florestas e
companheiros do velho Acestes. Além desses, muitos outros de menor
categoria se apresentaram a Eneias, que assim lhes falou:

— Ouvi estas minhas palavras e alegrai-vos. Nenhum de vós deixará


de ser premiado por mim. Poderão conquistar dois dardos resplandecentes
de ferro, fabricados em Creta, e uma machadinha esmaltada de prata. Esse
galardão será para todos. Os três primeiros, receberão, além dos prémios,
coroas de louro. O primeiro levará um cavalo ricamente ajaezado, o segundo
uma aliava das Amazonas cheia de setas da Trácia, com largo cinto de ouro
e com uma fivela em que rebrilham pedras preciosas. Quanto ao terceiro, o
prémio será um capacete grego.

Ditas essas palavras, os contenderes tomaram posicao e, ao sinal


conhecido, partiram rápidos e deixaram para trás o ponto de partida,
espalhando-se no terreno à semelhança de gotas de chuva, olhos fitos na
chegada. Niso partiu na frente e corria mais veloz que as asas do raio ou que
o vento, com Sálio nos calcanhares. Em terceiro, vinha Euríalo, depois
Hélimo e, a par deste, Diores, os ombros roçando-se. Já cansados,
aproximavam-se da chegada, quando o infeliz Niso escorregou nuns restos
de entranhas de reses sacrificadas sobre a relva, caindo prostrado na lama e
no sangue. Não esquecendo, no entanto, a sua amizade por Eunalo,
atravessou-se diante de Sálio, fazendo-o tropeçar e estatelar-se na areia
grossa. Aproveitando a oportunidade, lançou-se Euríalo pela brecha e, sob
os aplausos e murmúrios lisonjeiros da multidão, terminou em primeiro.

Em segundo, chegou Hélimo e em terceiro, Diores. Sálio, já refeito,


reclamou aos gritos contra o esbulho sofrido e pedia aos chefes que lhe
restituíssem o galardão que lhe cabia por direito. O público, no entanto, nada
sabendo do motivo da queda, favoreceu Euríalo, que negara ter ludibriado
quem quer que fosse e era ajudado pela sua juventude e beleza e pelos fortes
apelos que Diores dirigia aos assistentes. Acalmando o vozearia, falou então
Eneias:

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ENEIDA - Virgílio
— Ó jovens, a ordem das honras não será alterada. A ti, Euríalo, eu
proclamo vencedor e receberás o primeiro prémio e, portanto, tu, Sálio, és o
segundo. Mas, penalizado pela tua má sorte, dar-te-ei um prémio de valor
igual ao do primeiro.

Então, entregou-lhe uma linda pele de leão dos desertos da Líbia,


carregada de pelos fulvos e de garras encastoadas a ouro. Disse Niso nessa
altura

— Se os vencidos têm tão grandes prémios e se te compadeces dos que


caíram, que prémios receberei eu, a quem a fortuna madrasta enganou, da
mesma forma que a Sálio?

E mostrava, ao mesmo tempo, o rosto e os membros sujos de lama e


de sangue. Rindo, Eneias ordenou que lhe dessem um escudo, obra de
Didimáon, arrancado pelos gregos da porta do templo de Neptuno.

Em seguida, era a vez das lutas de boxe. Disse então Eneias:

— Agora, vejamos quem dentre vós tem força e coragem para lutar
com os punhos envoltos em peles.

Separou então os prémios: para o vencedor, um novilho com os chifres


e cascos encastoados a ouro e, como prémio de consolação, para o vencido,
uma espada e um capacete de plumas.

Adiantou-se Darete, gigantesco de estatura, com as poderosas


espáduas, os braços musculosos e as coxas potentes. Lutador famoso em
toda parte, fora ele quem, durante os jogos do funeral de Heitor, derrubara o
grande i campeão Butes, deixando-o agonizante no solo. Agora, diante de
Eneias, alçava a cabeça orgulhosa e, passeando os olhos desafiadores em
redor, fazia zunir o ar com poderosíssimos socos. Mas ninguém se
apresentava para o combate, tão grande era o medo que tinham dos seus
músculos de aço. Contente com a recusa dos contenderes em se
apresentarem na arena, dirigiu-se a Eneias e, segurando o novilho oferecido
como prémio, por um chifre, declarou:

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ENEIDA - Virgílio
— Ó filho de Vénus, se ninguém ousa entregar-se ao combate, para
que serve estar eu aqui à espera? Manda trazer os prémios.

Todos aplaudiam e gritavam pedindo que lhe fossem dados os


presentes. O severo Acestes censurou Entelo, sentado na relva a seu lado,
com estas palavras:

— Ó Entelo, tu que foste outrora o mais forte dos heróis, consentirás


agora que sejam levados tão cobiçados prémios, sem que se trave qualquer
combate? Onde estão as artes da luta que te ensinou o divino Érice? Onde
está a tua fama conhecida em toda a Sicília? Que representam os despojos
pendentes das paredes da tua casa?

Ao que Entelo respondeu:

— Nem o louvor nem a glória se afastaram de mim repelidos pelo


medo, nem é este que me impede agora de responder ao desafio do homem,
mas sim o sangue já mais frio da idade madura e as forças já gastas com o
passar dos anos. Tivesse eu aquela mocidade de outrora, na qual esse
blasonador exulta confiante, e grande prazer teria em enfrentá-lo, embora
pouco importância dê a prémios.

Em seguida, lançou na arena um par de grandes luvas de áspero couro


de boi usadas antigamente pelo próprio Érice. A multidão pasmou ante o seu
enorme tamanho e os botões de ferro e chumbo que as adornavam. O
arrogante Darete recuou, espantado, recusando o combate, enquanto Eneias
pegava nas luvas e as examinava detidamente. Falou então o velho Entelo:

— Eneias, meu senhor, o teu irmão Érice deixou-me essas luvas como
herança. Ainda se podem ver as manchas de sangue no couro. Com elas lutou
contra o poderoso Hércules e morreu. Eu mesmo já as usei em muitas lutas,
quando o sangue me pulsava rápido nas veias, antes que a idade,
espezinhando a juventude, tivesse encanecido a minha cabeça com
cinquenta Invernos. Mas se achas grandes e amedrontadoras essas luvas,
havias então de ver aquelas com que lutava o invencível Hércules! Ah, essas,
sim, eram maravilhosas. Mas se tu, Darete, não ousas enfrentar essas luvas

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ENEIDA - Virgílio
sicilianas, lutemos, desde que assim o aprovem o príncipe Eneias e Acestes,
com luvas de igual peso. Terás assim oportunidade de provar a verdade da
tua arrogância.

Assim falando, despiu a túnica e, encaminhando-se para o centro da


arena, lá parou como um autêntico gigante e, apesar dos muitos anos que
tinha, ostentando uma poderosa massa de músculos.

Eneias mandou então vir luvas de igual peso e com elas revestiu as
mãos dos dois lutadores. Estes, já prontos, aprumaram-se na ponta dos pés e
defrontaram-se, atentos e ousados. Por algum tempo lutaram, atirando aqui
e ali um golpe, estudando a reacção do outro e esquivando-se das respostas
prontas. Darete era melhor no jogo de pernas e confiante na sua mocidade.
Entelo tinha membros poderosos e um corpo gigantesco, mas os seus
movimentos eram mais lentos, os joelhos mais trémulos e a respiração mais
ofegante. Houve uma violenta troca de golpes no peito, nas Grelhas, na
cabeça e nos queixas. Entelo era um rochedo firme, quase imóvel,
desviando-se apenas, de olhos vigilantes, dos punhos do adversário. Darete
parecia um grupo de máquinas de guerra a atacar uma cidade.

Subitamente, Entelo lançou um violentíssimo golpe à cabeça de


Darete, que, alertas o previu e, ligeiro, se esquivou para o lado. Não
encontrando resistência ao seu movimento, a poderosa massa de músculos
de Entelo perdeu o equilíbrio e, levada pelo próprio impulso, desabou
pesadamente no chão como acontece às vezes no monte Ida, quando um
grande pinheiro apodrecido nas raízes cai fragorosamente no solo, no meio
de enorme estardalhaço. Perante o acontecido, ergueram-se a um só tempo
os espectadores troianos e sicilianos, mas não se quebrantou o animo do
siciliano, que se levantou encolerizado. A vergonha da queda deu-lhe novas
forças e lançou-se no encalço de Darete, o qual, aterrorizado com o ímpeto
do adversário, fugia pela praia, recebendo toda a espécie de golpes na
cabeça, qual granizo que ribomba nos telhados cobertos de nuvens escuras.

Eneias suspendeu então o castigo e, pondo fim ao combate, consolou


o cansado Darete com estas palavras:

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ENEIDA - Virgílio
— Ó infeliz, que loucura é essa que se apossou do teu espírito? Não
vês que te são contrárias as vontades dos deuses? Cede a eles, pois!

De seguida, encerrou os combates, enquanto os companheiros de


Darete o carregavam para os navios, os joelhos feridos, a cabeça zonza,
balançando de um lado para outro, a boca vomitando sangue espesso
misturado com dentes partidos, juntamente com o prémio do perdedor, a
espada e o capacete. A Entelo coube a palma de louro e o touro.

Então, o vencedor exclamou:

— Ó filho de uma deusa, e vós, ó troianos, conheceis agora quão


grande era a minha força na juventude e de que morte salvastes Darete,
retirando-o do combate.

Parou então diante do bezerro e, levantando a mão direita com a luva


de couro, aplicou-lhe um tremendo murro no meio da testa, esmagando-lhe
o cérebro. Fulminado o animal caiu por terra, com o corpo a tremer. Bradou
então Entelo:

— Eu te ofereço, ó Érice, aqui te ofereço a vida deste novilho que


acredito te será mais propicia que a do pobre Darete, e neste momento
abandono as luvas e a arte da luta.

Chegara a vez dos certames de flecha e arco. Eneias, avançando com


outros para o navio de Seresto, retirou-lhe o mastro, que foi depois plantado
no meio da arena. À sua ponta foi atada, por meio duma longa corda, uma
pomba, que serviria de alvo aos atiradores. Estes reuniram-se em torno do
capacete de bronze para procederem ao sorteio. O primeiro foi Hipocoonte,
filho de Hirtaco, que recebeu grandes aplausos. Seguiram-se-lhe Mnesteu,
há pouco vencedor da regata e ainda com a coroa de touros na cabeça. O
terceiro foi Euricion, irmão do ilustre Pandaro, que, encarregado de romper
a aliança, foi o primeiro a arremessar a lança para o meio dos gregos. Por
último, a sorte coube a Acesres, que, com mãos envelhecidas, tentava
competir com os jovens.

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ENEIDA - Virgílio
Passaram então os competidores a experimentar as armas, vergando os
arcos e examinando as setas, enquanto a pomba voava daqui para ali,
inquieta e saltitante, tentando fugir mas sempre contida pelo liame.
Preparou-se então Hipocoonte e a sua seta ligeira cortou os ares na direcção
do alvo fugidio, mas falhou e cravou-se vibrando, com um som seco, no
mastro. A ave, aterrada, tremeu e desatou a voar, alucinada e desorientada.
Em seguida avançou Mnesteu com o arco, fez pontaria e soltou a corda.
Também falhou o alvo, acertando, em vez disso, no nó que atava a corda ao
mastro. Livre, voou o animal pelos ares, fugindo à triste sorte a que a
destinavam. Euricion, o atirador que se seguia pela ordem, já tinha a arma
preparada e, vendo o pássaro a fugir, invocou o espírito de seu irmão
Pandaro e disparou a seta, que atravessou a pomba quando esta já penetrava
numa nuvem escura. E a ave caiu morta, no chão.

Só restava Acestes. Este, no entanto, ostentando destreza semelhante


à do pai, lançou a sua flecha aos ares, fazendo vibrar a corda do arco.
Ocorreu então um súbito e maravilhoso prodígio, pois a seta, ao atingir as
nuvens, tornou-se incandescente e, descrevendo no ar uma senda luminosa,
desfez-se num fumo ténue, como acontece com as estrelas candentes que,
soltas do céu, riscam o firmamento e desaparecem.

Pasmados ficaram os sicilianos e troianos, os corações suspensos de


espanto e temor, invocando as divindades do Olimpo. Aceitando o agouro
que se apresentava, Eneias abraçou alegremente Acestes e encheu-lhes as
mãos de prémios, dizendo-lhe:

— Toma, ó pai, porque o grande rei do Olimpo quis que recebesses,


por tal prodígio, honra extraordinária. Terás este presente do meu próprio
pai — uma taça, com figuras em relevo, que outrora me foi dada pelo trácio
Cisseu, para que a levasse a Anquises, como penhor da sua amizade.

Assim dizendo, cingiu-lhe a fronte com as verdes palmas e proclamou


Acestes o vencedor. Nem mesmo o bom Euricion invejou a honraria dada
ao outro, embora fosse ele que tivesse abatido a ave no céu. O homem que
cortara o laço do pássaro e o que enterrara a seta no mastro, receberam
também os seus presentes.

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ENEIDA - Virgílio
Mas, ainda mal terminara o certame de tiro de flechas e já Eneias
chamara a si Epitida, o guarda e companheiro fiel do jovem Ascânio,
dizendo-lhe:

— Vai e diz a Ascânio que prepare o esquadrão de jovens cavaleiros e


que o traga até aqui para fazer evoluções em honra de meu nobre pai
Anquises.

Ordenou que limpassem o campo. Chegava nesse momento a


cavalaria, reluzente nas suas vestes e jaezes das montarias. Toda a
assistência, entre a qual muitos pais daqueles mancebos, aplaudiu
entusiasticamente aquela flor da juventude da Sicília e de Tróia, todos com
a cabeleira cingida com coroa de flores alinhadas, segundo o costume.
Levavam duas lanças de pau de cerejeira, armadas de ferro na extremidade,
alguns traziam aljavas leves, e um colar flexível de ouro retorcido descia-
lhes pelo pescoço e peito.

Eram três esquadrões, cada um com o seu capitão. Cada esquadrão era
composto por dois grupos de seis cavaleiros, perfazendo um total de trinta e
seis. Um dos grupos era comandado pelo neto de Priamo, filho do nobre
Polites, morto por Pirro diante do próprio pai, e que seria famoso em terras
da Itália. Montava o jovem um cavalo negro da Trácia com manchas
brancas, como brancas eram também as paras e a testa. Em seguida, vinha
Átis, amigo intimo do menino Ascânio. Este passou a seguir, esplendoroso
na sua formosura e garbo, cavalgando um animal da Líbia, presente da
infortunada Dido como memória do seu amor. Seguiam-se-lhe os outros
jovens em montarias sicilianas do rei Acestes.

Os troianos receberam com estrondosos aplausos os garbosos


cavaleiros, neles reconhecendo as feições dos seus antepassados. Depois que
os esquadrões fizeram a volta ao campo, Epítida, de longe, gritou uma ordem
e fez estalar o chicote. De imediato, saíram os três esquadrões a galope, para
depois cada um se dividir em igual número de fileiras e formar em colunas.
Depois, fazendo uma rotação, estenderam-se numa comprida linha e
carregaram furiosamente pelo campo com as lanças em riste. Seguiram-se

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ENEIDA - Virgílio
outras manobras, fechando, abrindo e entrelaçando círculos, carregando e
retrocedendo em combates simulados.

Diz-se que antigamente a ilha de Geta tinha um labirinto, sem portas


nem janelas, sem saídas nem entradas, com milhares de passagens e ladeado
por paredes lisas. Tão intrincado era o recinto que qualquer um que nele
caísse vaguearia sem rumo, para sempre perdido, sem encontrar nunca um
caminho de saída.

Assim também os troianos corriam, giravam, abriam e fechavam


fileiras, leques, círculos, faziam fugas e combates simulados, à semelhança
dos delfins que, nadando pelos mares, cortam as ondas em alegres
brincadeiras. Tal costume seria implantado mais tarde por Ascânio, entre os
seus súbditos, quando governasse a sua cidade de muros altos, lembrando-
se daqueles exercícios, daqueles combates figurados, daqueles ensinamentos
da arte da guerra através do desporto e que tinham constituído uma das
alegrias da sua mocidade. A grande Roma os receberia e conservaria através
dos tempos chamando Tróia ao jogo e Esquadrão Troiano aos jovens
cavaleiros. O treino a que assim se submetiam foi o cerne do enorme poderio
da terra dos Césares.

Mas, enquanto todos os troianos prestavam reunidos a sua homenagem


ao bom pai Anquises, lá no Olimpo continuava Juno a maquinar a desgraça
deles, em nada diminuído o ressentimento em relação à nação de Eneias, e
resolveu enviar Iris à Sicília. Deslizando pelo arco de mil cores, chegou a
deusa acima da multidão que, ansiosa, esperava as outras provas:
lançamento de dardo e disco, luta livre, e outras. Viu então o porto deserto,
a armada abandonada e na areia um grupo de mulheres troianas que
choravam juntas as suas mágoas. Diziam:

— Ah, quanto tempo ainda viajaremos por esses mares além, antes que
encontremos repouso?

Desejavam os muros amigos de uma cidade, uma lareira e uma casa


abrigada. Meteu-se íris entre elas, tomando a forma da velha Béroe, esposa
do trácio Dóriclo, e disse:

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ENEIDA - Virgílio
— Ó miseráveis, a quem os gregos vencedores não arrastaram à morte,
na guerra junto as muralhas de Tróia! Ó nação infeliz, que desgraças mais te
esperam para o futuro? Já se passam sete anos que somos levados por esses
mares e terras estranhas, depois da destruição da nossa pátria. Quanto mais
viajamos pelos rochedos inóspitos, mais a Itália se afasta, embalada pelas
ondas. Aqui estamos nós em terra amiga, nos reinas de Érice e Acestes,
nosso anfitrião. Quem nos proíbe de lançar os nossos muros nestas praias e
dar uma cidade aos troianos? Para que, afinal, roubamos do inimigo os
nossos deuses domésticos, se em nenhuma parte conseguimos reconstruir a
nossa pátriaT róia, rever os nossos rios Xanto e Simois? Portanto, vinde
comigo e apressemo-nos a queimar os navios infaustos.

Apareceu-me em sonhos a figura da pitonisa Cassandra, que distribuía


fachos ardentes. Procurai aqui Tróia — disse — aqui tendes a vossa casa. Já
é tempo de assim procedermos. Há aqui quatro altares levantados a Neptuno.
Oremos para que os deuses nos dêem fogo e coragem.

Assim falando, avançou primeiro a deusa Íris, disfarçada em forma


humana, e arrebatou de um altar o archote traiçoeiro. Levantando-o no braço
direitos agitou-o no ar e arremessou-o contra os navios. Os pensamentos das
mulheres troianas perturbaram-se e os seus ânimos confundiram-se com a
fala e a acção decidida da pérfido divindade. Uma delas, a mais velha,
chamada Pirgo, antiga ama dos filhos de Príamo, falou:

— Ó mães troianas, esta mulher não é a vossa Béroe, não é a esposa


de Dóriclo. Notai-lhe os sinais da formosura divina, os olhos ardentes. Que
espírito estranho a anima, que rosto, que som de voz, que passas, que andar?
Eu mesma há pouco deixei Béroe no seu leito, adoentada, triste porque só
ela não nos podia auxiliar nas homenagens ao pai Anquises.

Mas as matronas, inicialmente vacilantes e indecisas, olhavam os


navios com maus olhos, entre o amor excessivo à terra onde estavam e os
reinas prometidos pelos destinos. Nesse momento, a deusa Íris abriu as asas
e lançou-se pelo espaço aberto, cortando grande arco-íris entre as nuvens.
Atónitas com o prodígio e impelidas pelo furor, bradaram todas elas e
arrebataram as tochas e os ramos dos altares lançando-os aos barcos. O fogo

93
ENEIDA - Virgílio
propagou-se rápido pelo cordame, pelos bancos dos remadores, pelos
próprios remos e pelas popas e proas pintadas de fresco.

Eumelo, vendo o desastre, correu rápido na direcção do túmulo de


Anquises, perto do qual se realizavam os jogos. Todos ouviram atónitos as
noticias e Ascânio, à frente do seu esquadrão de jovens cavaleiros, lançou-
se a todo o galope na direcção da costa. Ali chegado, bradou:

— Que loucura é essa? Que furor possesso se apossou das vossas


mentes? Ó mulheres imbecis, não foram navios gregos que queimastes, mas
sim os vossos próprios e nessas chamas se esvai a esperança que nos
animava. Olhai, é Ascânio, filho de Eneias, que vos fala.

Lançou o capacete ao chão, mostrando o rosto. Chegavam então


Eneias e o resto dos troianos. Nesse interim, as mulheres apavoradas tinham-
se disperso em fuga por toda a costa, procurando refúgio nos bosques, nas
grutas e nas moitas. Tristes, enchia-se-lhes agora o coração de pesar e
desolação pela acção cometida, a alma esvaziada do ódio que lhes inculcara
a pérfida Juno. Mas esses sentimentos não faziam baixar as chamas do
incêndio ateado, que creditavam alto e mais alto. Sob a madeira húmida
ardia a estopa, vomitando uma fumarada negra e o fogo lento ia comendo as
quilhas, o cavername. Foram vãos a grande quantidade de água e os esforços
dos filhos de Dárdano para extinguir a nefanda obra.

Desesperado, Eneias rasgava as vestes e implorava o auxilio dos


deuses, estendendo as mãos para os céus:

— Ó Júpiter omnipotente, se ainda não nos odeias até o fundo da tua


alma, se ainda te sobram restos de piedade e compaixão pelos esforços
humanos, concede agora, ó pai, que a nossa pobre armada escape das
chamas, e salva da destruição os bens troianos! Ou então, Júpiter, nada
mereço e mata-me neste exacto momento com o teu raio mortífero e enterra-
me nesta praia com a tua mão direita, pois desgraça nenhuma maior me falta!

Apenas tinha pronunciado essas palavras e uma negra tempestade, fora


de toda a ordem e previsão, formou-se sobre as suas cabeças e precipitou-se

94
ENEIDA - Virgílio
em aguaceiros copiosos. As elevações e os campos tremiam com o trovão.
O céu escuro desmanchava-se em torrentes liquidas. As popas enchiam-se e
fervia e chiava o madeirame rubro ainda. O fogo foi completamente extinto
e somente quatro navios se perderam.

Abalado com o funesto acontecimento, Eneias passeava inquieto de lá


para cá, pensamentos confusos, não conseguindo decidir se seguia para Itália
ou permanecia ali, esquecendo os augúrios divinos.

Falou então o velho Nantes, ele mesmo treinado e famoso em muitas


artes pela deusa Minerva, que prognosticava desgraças e previa a grande ira
dos deuses e assim consolava Eneias:

— Ó filho de uma deusa, vamos seguindo para onde os destinos nos


levam e nos tornam a trazer. Quaisquer que sejam, suportaremos todas as
desventuras. Aqui tens Acestes Dardanio, o teu irmão de estirpe divina.
Junta-te a ele nos conselhos e se ele o quiser une as duas casas. Deixa-lhe
aqui na Sicília as guarnições dos navios queimados, os que já não querem
viajar, os velhos, as mães fatigadas de tanto esforço e tudo e todo que, fraco
e temeroso do perigo à frente, ainda tens contigo. Aqui ficarão e fundarão
uma cidade que se chamará Acesta, de altos muros.

Movido pelas palavras do velho amigo, Eneias encaminhou-se, ainda


indeciso, para o leito, pois a noite escura, trazida por dois cavalos, já cobria
o céu. Durante o sono, apareceu-lhe o rosto do bom pai Anquises, que desceu
dos céus e pronunciou subitamente estas palavras:

— Ó filho, outrora mais querido do que a vida, enquanto esta me


restava. O filho, fiador dos destinos troianos, aqui venho por ordem de
Júpiter, que do fogo te salvou os navios e de ti teve compaixão. Obedece aos
bons conselhos do velho Nantes e leva para Itália os jovens escolhidos e os
corações valorosos. Lá te espera, no Lácio, uma nação cruel e intratável.
Antes, porém, deverás atravessar a morada infernal de Plutão, os seus
bosques, o terrível Averno e de lá deverás vir ao meu encontro, pois preciso
de te falar. Não habito o Tártaro, aquele lugar de almas torturadas, mas sim
o Elísio, de campos verdejantes e céus brilhantes. Aqui moram os melhores

95
ENEIDA - Virgílio
e para aqui, depois do sacrifício de muitas ovelhas negras, te guiará a Sibila.
Para ti, serão então desvendados os nomes de todos os teus sucessores e o
lugar onde se levantarão os muros da tua cidade. E agora, adeus! A noite
húmida conclui metade de seu giro e o Sol nascente já me lança o seu bafo
com os cavalos ofegantes.

E, dizendo isso, dissipou-se no ar num fumo ténue.

— Para onde corres? Para onde te retiras? De quem foges? Quem te


afasta dos nossos braços? — exclamou então Eneias.

Ao acordar, recordou-se da troca de palavras com o pai. Revolveu as


brasas das trípodes, reavivando os fogos sagrados amortecidos e espalhou a
farinha pelos altares, em profunda veneração aos deuses do seu lar e da sua
raça. Chamou depois os companheiros, Acestes em primeiro lugar contando-
lhes o mandado recebido de Júpiter por intermédio do espírito de seu pai e
as próprias recomendações deste. O rei siciliano ficou encantado por receber
no seio das suas terras aquele outro ramo da família troiana constituído por
aqueles que, cansados ou enjoados de tanta viagem, queriam, por fim,
estabelecer-se naquelas praias.

Os restantes lançaram-se, animados de espírito e de forca, à reparação


dos barcos semi-destruídos, substituindo as tábuas devoradas pelas chamas,
aparelhando os remos, calafetando as juntas. São poucos em número, mas
grandes no esforço. Enquanto isso, Eneias demarcava, com o arado, o
pedaço de terra que lhes fora concedido para a construção da cidade,
escolhendo por sorteio a localização das casas. Aquela chamar-se-ia, por sua
vontade, Tróia. Foi levantado um altar a Vénus, próximo do santuário de seu
irmão Érice. Destinou-se um sacerdote e um vasto bosque sagrado ao túmulo
de Anquises.

Decorridos os nove dias depois do funeral, já os troianos se tinham


banqueteado, estavam findos os jogos fúnebres e colocavam-se as últimas
oferendas sobre os altares. Uma brisa suave arrepiava de leve a superfície
calma do mar, chamando-os à aventura. Mas as despedidas foram longas e
tristes. Homens, mulheres, velhos e crianças abraçavam-se e choravam

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ENEIDA - Virgílio
juntos. Os que, antes, achando a vida do mar áspera e violenta, tinham
preferido ficar, já agora arrependiam-se e queriam partir, aguentando todos
os rigores da viagem. Eneias consolava-os com palavras amigas e, não
podendo conter as lágrimas, entregava e confiava os seus parentes a Acestes.

Em seguida, Eneias mandou abater três novilhos ao deus Érice, uma


ovelha à tempestade e soltar as amarras. Com ramos de oliveira atados à
cabeça, o chefe troiano ia na proa alta de um dos navios. Segurando uma
taça de vinho, lançava ao mar as entranhas das vítimas e vertia o rubro
líquido nas ondas verdes. Surgindo pela popa, um forte vento impeliu-os
rápido, afastando-os do litoral. Os remadores porfiavam nos remos ferindo
o reino de Neptuno.

Vénus, porém, inquieta e cheia de cuidados pelos filhos, dirigiu-se ao


deus dos oceanos com estes queixumes:

— Ó Neptuno, a grande ira de Juno, insaciável que é, obriga-me a


dirigir-te esta prece. Nem o tempo nem piedade alguma abrandam a esposa
de Júpiter, que não descansa nem se resigna à vontade do deus pai ou aos
desígnios das Parcas, na sua perseguição implacável aos descendentes de
Dárdano. Não lhe basta ter destruído a poderosa Tróia, nem ter arrebatado
os seus filhos de encontro a mil e um perigos, pois persegue os próprios
ossos e cinzas da cidade morta. Somente ela sabe as causas de tão grande
furor. Tu mesmo, Neptuno, és testemunha de quão grandes tempestades
levantou Juno no mar da Líbia, confundindo mares e céus com a ajuda do
rei dos ventos, Éolo. Ela atreveu-se a isso nos teus próprios domínios!
Agora, há pouco, e também com um hábil estratagema, fez as mulheres
troianas incendiarem as naus e, perdida parte da esquadra, obrigou o meu
bom filho Eneias a deixar muitos companheiros em terra estranha. O que te
peço, pois, agora, senhor dos oceanos, é que simplesmente os deixes chegar
às margens do Tibre Laurentino. A tal não se opuseram as Parcas nos
destinos traçados, e não é, portanto, justo que eu te peça este favor?

Neptuno, dominador dos mares profundos, assim respondeu:

97
ENEIDA - Virgílio
— É lícito, Vénus, que confies nos meus reinas e no meu poder, pois
foi destas próprias águas e espumas que nasceste na tua radiante beleza. Só
eu, e eu somente, posso dominar a fúria do mar. Embora não tenha em
grande apreço os troianos, pela má acção de Páris, sempre admirei Eneias.
Quando Aquiles, perseguindo ferozmente os exércitos troianos, os levara de
roldão, até às suas próprias muralhas, matando tão grande número de
dardanios que os rios Xanto e Simois já não davam mais vazão a tantos
corpos, não salvei eu o teu querido Eneias da morte certa nas mãos terríveis
do filho de Peleu, escondendo-o numa nuvem Ainda agora desejo auxiliá-
lo. Portanto, afasta os teus temores. Asseguro-te que ele chegará — embora
um de seus bravos companheiros pereça na viagem — aos portos de Cumas
e Averno, de onde está escrito que irá aos Campos Elísios encontrar-se com
o pai Anquises.

Acalmando com essas palavras a alma cheia de temores da formosa


deusa, Neptuno atrelou os cavalos de crinas douradas ao seu carro azul.
Balançando as rédeas, o deus seguiu ligeiro por sobre as ondas. Aplainavam-
se as marés à sua passagem e fugiam as nuvens no vasto céu. Rejubilava-se
o oceano. Vastas baleias esguichavam água alegremente com os seus
enormes dorsos, lisos e brilhantes, a arfar, enquanto os golfinhos pulavam e
mergulhavam em intenso júbilo. Na sua esteira magnífica, seguia o séquito
de imortais do mar: ninfas e deuses das águas profundas — o velho cortejo
de Glauco e Palémon, filho de Ino, os ligeiros Tritóes e todo o cardume de
Forco. À esquerda, acompanhavam-no Tétis, mãe de Aquiles, Mélite, a
virgem Panopeia e muitos outros.

Soprava bom vento na superfície calma do mar e Eneias ordenou que


se levantassem os remos e que se abrissem as velas. Todos obedeceram
prazenteiramente, cada um na sua tarefa determinada e, levados pelas brisas
ligeiras, que enfunavam as lonas estendidas, rumaram os troianos para a
Itália. Cansados, os remadores estenderam-se nos bancos para tirar o
repouso merecido, enquanto Palinuro, piloto da nau capitania, permanecia
alerta ao leme, mandando voltar as velas ora para aqui ora para ali,
aproveitando os menores movimentos do ar que encrespavam o mar banhado
pela lua.

98
ENEIDA - Virgílio
Então, ao mando de Juno, Morfeu, o deus do sono, foi silenciosamente
até ao local e parou defronte dele sob a forma do ilustre navegante Forbas,
dizendo-lhe:

— Palinuro, filho de Iásio, as ondas gentis e as brisas suaves nos


levam. Tira esta hora para descansar. Deita a cabeça e fecha os olhos
fatigados. Deixa que eu te substituirei.

Levantando a custo as pálpebras pesadas de sono, respondeu Palinuro:

— Porventura pensas tu que não conheço a aparência enganadora do


mar tranquilo e das ondas sossegadas? Mandas que eu confie nesse monstro
traiçoeiro? Como podes pedir-me que entregue o nosso bom chefe Eneias
aos ventos pérfidos, sabendo como sabes que já fomos por eles mil vezes
enganados, sob a aparência de céu sereno?

E, agarrado ao leme, fitava as estrelas, mas Morfeu bateu-lhe nas


frontes direita e esquerda com um ramo molhado nas águas do rio Letes e
nas húmidas gotas da lagoa Estígia. Toda a sua luta contra a poderosa
divindade do sono foi inútil e o fiel piloto fechou os olhos, adormecendo
profundamente. Morfeu projectou-o então, de cabeça, nas ondas e, abrindo
as asas, desapareceu na direcção dos céus. Apesar dos angustiosos gritos e
chamados do piloto, de nada se aperceberam os companheiros, imersos em
profundo sono, e a armada seguiu para a frente, silenciosamente, pelas águas
escuras, entregue à vontade de Neptuno.

Depois de um certo tempo, Eneias acordou e, vendo o seu barco


desarvorado, tomou-lhe o leme.

— Ó triste sorte — chorou o rei troiano — tiveste tu, Palinuro, meu


velho amigo e piloto habilidoso, levado pelo mar de que sempre
desconfiaste! O teu corpo jazerá insepulto em alguma praia desconhecida.

99
ENEIDA - Virgílio

Capítulo 6: Eneias no Mundo das Sombras

Chorando a perda do amigo fiel, Eneias dirigiu a frota troiana para


Cumas. Os barcos giraram e encostaram as popas à areia, enquanto as altas
proas apontavam para a oceano. A garra tenaz das ancoras prendia-os à
praia. Desembarcou então aquele punhado de jovens aguerridos e vigorosos
nas costas da tão esperada Itália. Enquanto uns se preocupavam em acender
fogo com as pederneiras, outros apanhavam lenha nos bosques ou
exploravam as redondezas.

Eneias dirigiu-se então à floresta e escalou uma grande elevação no


amo da qual existia um imponente templo dedicado a Apolo. Próximo deste
ficava a enorme caverna, o antro da horrenda e ameaçadora Sibila, em cujos
ouvidos os deuses vinham murmurar os seus segredos.

Diz a lenda que Dédalo, o artífice habilidoso cujas artes e invenções


enchiam os homens de espanto, se aventurou um dia a lançar-se aos ares
com umas asas por ele mesmo fabricadas e que colara às costas com cera.
Fugindo de Minos, rei de Creta, Dédalo voou com seu filho Ícaro, que o pai
também dotara de asas semelhantes às suas. Mas Ícaro, alegre com a leveza
que lhe permitia flutuar no ar à semelhança dos pássaros, tentou voar —
apesar das advertências do pai — próximo demais do Sol. A cera,
amolecendo com o calor de Hélio, fez cair as asas dos ombros do imprudente
jovem, que mergulhou então nos mares profundos, não mais sendo visto na
terra. Fora igualmente Dédalo que construíra os caminhos tortuosos e sem
fim do Labirinto, onde o rei Minos mantinha prisioneiro o Minotauro, aquele
monstro de duas formas, metade touro, metade homem. Chegando a Cumas
nas suas asas artificiais, Dédalo erguera esse templo a Apolo, feito de puro
mármore branco. Nas suas portas de bronze esculpira, em alto-relevo, muitas
cenas trágicas. Entre elas, Eneias e os companheiros viram a morte de
Andrógeo, filho do rei Minos, e também o destino triste dos Cecrópidas
atenienses, os quais, como castigo, tinham de dar, por ano, sete dos seus
filhos para serem devorados pelo Minotauro. Do lado oposto a essas figuras,

100
ENEIDA - Virgílio
via-se o amor pecaminoso de Pasífica, esposa de Minos, e seu filho disforme,
o próprio Minotauro, que um dia seria destruído por Teseu.

Também lá estaria representado Caro, filho de Dédalo, se a dor e a


saudade não tivessem paralisado a mão do pai artista. Duas vezes tentara
ferir o bronze com o martelo para esculpir a cena da queda, mas duas vezes
lhe faltaram as forças.

Enquanto Eneias observava as esculturas ali gravadas por mão de


mestre, chegou Acates, seu companheiro, que fora mandado chamar por
Sibila. Vinha acompanhado por Deífobe, filha de Glauco e sacerdotisa de
Apolo e de Diana.

— Não é hora — disse a piedosa donzela — de admirar odiosamente


essas figuras, por mais maravilhosas que sejam. Vem, que é tempo de
realizar os sagrados sacrifícios. Oferecei a Apolo sete toucinhos e outras
tantas ovelhas escolhidas.

Assim falando, conduziu Eneias para dentro do templo. Ao lado deste


e cavada na própria rocha, havia uma enorme caverna de cem bocas de onde
saiam as respostas da Sibila. Já se estavam a aproximar da porta, que era
uma daquelas passagens, quando Deífobe observou:

— Agora procura as respostas do oráculo.

Ao pronunciar estas palavras, empalideceu-lhe subitamente o rosto, o


coração batia apressado e a respiração saia-lhe do peito em estertores
arquejantes. Como que bafejada pelo espírito do deus que se avizinhava, a
sua voz assumiu uma tonalidade fantasmagórica:

— Porque demoras, Eneias, a fazer os teus rogos e preces às


divindades? Antes disso, a Sibila não te revelará o destino.

Um tremor frio se apossou dos ossos e dos músculos do troiano e no


íntimo do seu peito Eneias assim orou:

101
ENEIDA - Virgílio
— Ó Apoio, sempre compadecido da triste sorte de Tróia e de seu
povo. tu que guiaste as lanças de Dárdano e os esquadrões de Páris contra
Aquiles, aqui estou eu, Eneias, que por ti orientado já por tantos mares
naveguei e pela nação dos massilios e pelas terras da Líbia já andei.
Agradeço-te o favor de já estar em terras da Itália e espero que permitas que
resistamos até o término da viagem ao antigo Lácio, nas margens do Tibre
amarelo. Exorto-vos, deuses e deusas que tanto têm odiado e perseguido a
nação troiana, a que acalmeis agora os vossos corações vingativos e nos
livreis dos males futuros. Tu, profetisa e sabedora de tudo o que há-de vir —
não te peço reinas que o Destino não me tenha atribuído —, permite que os
troianos e os seus penares se fixem no Lácio. Se tal acontecer, a Apolo e a
Diana mandarei erigir um belo templo de mármore sólido e instituirei dias
festivos em honra desses deuses. A ti também, Sibila, levantarei altares e
santuários onde os oráculos conservarão as tuas místicas palavras escritas
em páginas imperecíveis. Mas — eu te peço — não lances os teus segredos
divinos às frágeis folhas caídas das árvores, que se dispersam à mais leve
das brisas.

A profetisa, cheia de inspiração, vagueava na caverna, enquanto o


deus, entrando no seu peito, se apossava da sua alma e lhe soprava as
mensagens divinas através dos lábios. As palavras eram murmuradas por
cem vozes saídas das cem bocas do antro e a todos alcançavam:

— Ó tu, finalmente livre dos perigos do grande mar! Perigos maiores


te esperam em terra! Os dardanios chegarão ao reino de Lavínio, eu o digo.
Afasta portanto do peito esse receio, pois desejarão nunca ter vindo. Vejo
guerras, guerras espantosas e o Tibre espumando de tanto sangue. Em vão
procurarás auxilio de outras cidades e nem Juno esquecerá a sua velha rixa
com a nação troiana. Também se levantará contra ti um inimigo tão
impiedoso quanto Aquiles e da mesma forma nascido de uma deusa. Assim
como a estrangeira Helena foi a causa primeira das desgraças de Tróia, assim
também outra esposa estrangeira e estrangeiros esponsais serão origem de
muitas tristezas de guerras para vós. Mas ide para a frente com coragem,
troianos. Não cedais aos maus Fados, mas levantai-vos triunfantes sobre
eles, pois assim vereis a glória e vossa fama se elevará até as estrelas. O

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ENEIDA - Virgílio
caminho da tua salvação — ainda que te pareça estranho — far-se-á por
meio de uma cidade grega.

Foi assim que a Sibila de Cumas pronunciou as suas fatídicas


profecias: a verdade meio escondida entre as palavras severos, mas
claramente inteligível.

Quando viu cessar o frenesi alucinado da mulher cujos lábios


silenciaram, Eneias disse:

— Nenhum dos perigos e trabalhos por que passei, ó sacerdotisa, me


veio

sem que o esperasse, pois bem sabia quão difícil seria a tarefa quando
parti de Tróia para levantar os muros da nova cidade em terras estrangeiras.
Uma coisa agora te peço. Como estamos aqui às próprias portas do Inferno,
ao lado dos pântanos escuros do Averna, para onde transbordam as águas
daquele rio lôbrego que é o Aqueronte, seja-me lícito ir até à presença e à
fala do meu querido pai Anquises, ensina-me o caminho e abre-me as portas
sagradas. Aos meus próprios ombros o salvei por entre as chamas que nos
cercavam e das lanças gregas que nos perseguiam e retirei-o do meio dos
inimigos. Acompanhando-me, embora fraco de forças, ele viajou comigo
pelos mares, arrostando as ameaças do céu e da terra, para além do que a sua
idade lhe teria permitido. Apareceu-me, há dias, em sonhos e ordenou-me
que te procurasse, pois me indicarias o caminho que até ele me levaria.
Compadece-te, pois, Sibila, do pai e do filho, tu, ó benfazeja, que foste
encarregada por Hécate de velar pelos bosques infernais do Averno. Se
Orfeu pôde trazer do Mundo das Sombras a alma de Eurídice, por magia da
lira de cordas sonoras da Trácia, se Pó1ux redimiu o irmão, indo e vindo
continuamente por esse caminho, como o fizeram também Teseu e Hércules,
porque não o poderei eu, igualmente nascido de uma deusa, da própria filha
de Júpiter?

A Sibila respondeu:

103
ENEIDA - Virgílio
— Ah!, divino filho do troiano Anquises, é coisa fácil, fácil demais
mesmo, deslizar para baixo, para o Reino das Sombras. Noite e dia lá estão
abertas as portas de Plutão, dando-te as boas-vindas. A dificuldade é voltar
novamente ao ar puro do Céu. Isso, sim, é tarefa árdua. Somente aqueles
amados de Júpiter, filhos dos próprios deuses e uns poucos mortais, cujos
feitos brilhantes o céu aplaudiu, conseguiram voltar daquele vale escuro. Lá
estão bosques negros e impenetráveis e os rios Cocito, Estígio e Aqueronte
para barrar o caminho de volta. Se alimentas, porém, um tão grande desejo
no teu coração, se tens coragem de atravessar duas vezes o Estígio, de ver
duas vezes o Tártaro, se te apraz empreender uma jornada tão temerária,
aprende antes os ensinamentos que te vou dar. Numa arvore sombria do
Averno está escondido um ramo de ouro flexível, tanto na haste quanto nas
folhas, e que dizem estar consagrado à infernal Prosérpina, esposa de Plutão,
deus do Mundo das Sombras. Toda a floresta procura esconder o ramo
valioso dos olhos dos mortais, mas somente aquele que o encontrar e
arrancar poderá retornar, são e salvo, da jornada. Arrancado o ramo, outro
logo surge, -coberto da mesma maneira do reluzente metal. Com os olhos
para o alto, pois, Eneias, procura o ramo e, depois do encontrares, colhe-o
segundo os rituais sagrados. Se os Fados te chamam, ele cederá facilmente
e deslizará até atrás de ti, mas de contrário não haverá força mortal capaz de
separá-lo do tronco a que pertence, nem o cortaria o aço mais afiado. Leva-
o como oferenda a Prosérpina. Mas há mais uma coisa que te quero dizer.
Ainda desconheces tal facto, mas o corpo do teu amigo Miseno jaz neste
momento sobre a areia tinta de sangue, ao lado da frota troiana. Vai e
enterra-o primeiro.

A Sibila calou-se e as muitas bocas das cavernas também se


silenciaram. Com as feições entristecidas pela noticia, Eneias deixou o antro
da pitonisa, enquanto no seu espírito tumultuavam as lembranças daqueles
acontecimentos misteriosos. Acates acompanhava-o, também preocupado e
pensativo. No caminho procuravam em vão interpretar as palavras da
adivinha sobre o corpo que devia ser sepultado.

— A quem se referia ela? — perguntou Acates. — Que cadáver iremos


enterrar?

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ENEIDA - Virgílio
Mas, oh! Quando chegam à praia deparam com o pobre Miseno, morto
de morte indigna. Filho de Éolo, não havia outro mais valente para estimular
os homens com a sua trombeta de bronze, no auge da luta. Ao lado de Heitor,
travara combates que o fizeram famoso, ora usando a lança, ora soprando a
corneta. Depois que Heitor fora morto por Aquiles em combate singular,
Miseno unira-se a Eneias, como seu companheiro, pois não aceitaria
continuar a carreira ao lado de lutador ou guerreiro de menos valor. A um
brado da sua tromba, de desafio aos deuses, Tritão, lorde do mar e invejoso
do mortal, mergulhara-o de surpresa nas ondas espumantes, entre os
rochedos, matando-o.

Por isso, todos em volta o pranteavam com grande dor, principalmente


Eneias. Mas logo se dedicaram sem demora a executar os mandados da
Sibila e construíram com arvores uma elevada pira para a cremação do
corpo. Estimulados por Eneias, dirigiram-se ao bosque, que ressoava ao soro
das laminas dos machados, abatendo os carvalhos, os freixos, as azinheira e
os pinheiros. O próprio rei troiano colaborava no abate, pranteando o sei
amigo e dizendo:

— Oh! Se me aparecesse agora aquele ramo de ouro nesta grande


floresta, já que a profetisa me falou tão acertadamente da morte de Miseno!

Mal pronunciara estas palavras e eis que duas pombas vieram voando
do céu e se lhe pousaram à frente, na verde relva. Reconhecendo as
mensageiras de sua mãe Vénus, Eneias rejubilou e falou:

— Sede minhas guias, ó pombas, se algum caminho há e levai-me


pelos ares para o bosque onde está o ramo dourado. E tu, ó mãe, não me
abandones nesta arriscada empresa!

Parou, então, observando o procedimento das aves. Estas avançavam


aos poucos, em voo lento, para que ele não as perdesse de vista. Chegando
ao limite da escura floresta do Averno, elas voaram rápido sobre as árvores
e alçaram-se na direcção dos céus, mas logo mergulharam velozmente para
a terra de novo, indo pousar numa árvore alta entre cuja folhagem Eneias
distinguiu um brilhar de folhas douradas que, ressaltando contra o fundo

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ENEIDA - Virgílio
escuro, dividia os raios de Sol em mil matizes diversos. Parecia uma
trepadeira que no frio Inverno verdeja com folhas novas rode urdo o tronco
escuro e seco com anéis cor de açafrão. Tal era a visão que lhe dava o ouro
pendente da sombria azinheira. Eneias, apressado quebrou-o e com ele
dirigiu-se à morada da Sibila.

Na praia, os troianos prestavam as últimas honras aos restos do


companheiro Miseno. Levantada a grande fogueira de achas grossas,
cobriram os lados com ramos escuros e ciprestes fúnebres, adornando-a na
parte superior com as armas resplandecentes do morto. Outros aqueceram
água nos vasos de bronze e lavaram e perfumaram o corpo frio do amigo.
Todos choravam ao colocá-lo no esquife, vestido de púrpura. Este foi então
transportado nos ombros dos guerreiros, segundo o antigo costume, e
colocado no alto da pira. E, desviando os olhos banhados de lágrimas,
atearam fogo aos ramos. Na fogueira consumiam-se também incenso,
iguarias e taças com azeite vertido.

Depois que caíram as cinzas e o fogo se extinguiu, lavaram com vinho


os restos mortais de Miseno, enquanto o troiano Corineu recolhia os ossos
numa urna de bronze e dava três voltas aos companheiros, borrifando-os
com água pura. Com um ramo de oliveira cheio de frutos, proferiu as últimas
palavras do ritual. Levaram então a enorme sepultura mandada erigir por
Eneias — e junto dela ficaram também as armas, o remo e a trombeta do
bravo guerreiro — para o sopé de um monte chamado agora Miseno,
conservando-lhe o nome glorioso, através dos séculos.

Terminadas as cerimónias, Eneias dirigiu-se a uma caverna na rocha,


profunda e espaçosa, com um grande abertura protegida por um lago de
águas negras e pelas árvores sombrias de um bosque. Tão fétido era o vapor
que se elevava daquelas águas através das gargantas que nenhuma ave podia
voar impunemente sobre elas, sem morrer. Era o terrível Averno, o Lugar
sem Aves, como lhe chamavam os gregos. Por aquela boca horrível
escancarava-se o caminho para as regiões infernais, para as próprias portas
do Inferno. Ali a Sibila sacrificou quatro novilhos negros, derramando-lhes
primeiro vinho pela testa e arrancando pelos da testa e atirando-os aos fogos
sagrados como primeira oferenda. Chamava então Hécate, poderosa no Céu

106
ENEIDA - Virgílio
e no Mundo das Sombras. À medida em que se iam degolando as gargantas
das vítimas, recolhia-se o sangue quente e espumante em taças. O próprio
Eneias feriu com a sua espada uma ovelha negra em honra à Terra e à sua
irmã Noite, e uma vaca estéril em honra de Prosérpiria. Começaram então
os sacrifícios a Plutão, deus dos infernais reinas da perpétua escuridão. Sobre
um grande altar negro como a noite, lançou ele as chamas as vísceras inteiras
dos novilhos, regando-as com taças de gordura derretida.

Já se aproximava a aurora. O chão começou a estrondear, os cumes das


árvores agitaram-se e cães uivavam à sombra. Era Prosérpina que chegava.

— Ó profanos, afastei-os para longe, longe daqui! — bradou a


profetisa. — Retirai-vos todos para o bosque. E tu, Eneias, é chegada a tua
hora. Desembainha a espada e reúne toda a tua coragem, pois será necessário
um coração intrépido.

Assim falando, entrou, rápida, pela boca escancarada da caverna,


acompanhada do rei trotarão. Dizia ele:

— Ó deuses, que tendes o império das almas e das sombras silenciosas!


Seja-me concedido, por vontade vossa, revelar os segredos sepultados no
seio da terra e das trevas.

Seguiam pela intensa escuridão da caverna, a profetisa à frente, pelos


átrios vazios do reino fantasmagórico de Plutão, como se fossem viajantes
perdidos numa floresta, à noite, procurando o caminho numa trilha incerta,
parco e irregularmente iluminada por um mortiço luar, filtrado através das
ramagens. Mas logo se lhes abriram à frente as próprias portas do Inferno e
lá viram prostrados a Tristeza e os Cuidados. As Pálidas Doenças
rastejavam. Era a morada da Velhice Triste, do Medo, da Fome, da
Indigência repugnante e dos pecados da Juventude. Olhavam horrorizados
para os monstros disformes da Guerra, da Disputa amarga, do traiçoeiro
Assassínio — o trio horrendo agachado, cabelos colados de suor e sangue.
Lá estava também o Sono, doce irmão da Morte cruel.

107
ENEIDA - Virgílio
Então, sobressaindo na sua imponência e altura, avistaram um enorme
e antigo olmeiro, debaixo de cujas folhas — dizem — são tecidos os falsos
sonhos. Continuaram, vendo a Discórdia, cuja cabeleira de víboras é atada
com fitas ensanguentadas e muitos outros monstros e várias feras, entre os
quais os centauros, com cabeça e tórax de homem e quartos traseiros de
cavalo; os Cilas biformes e o gigante Briaréu, de cem braços; a Hidra de
Lerna, morta por Hércules, cujas nove cabeças sibilavam horrivelmente; a
Quimera, cuspindo fogo; as terríveis Górgonas, de corpo de serpente; as três
Harpias, de asas pretas e cheiro nauseabundo. Ante tais visões aterradoras,
o corpo do troiano tremia violentamente. Levantou a espada contra os
monstros e avançou para eles, mas a companheira advertiu-o de que eram
formas sem vida, fantasmas.

Chegaram assim ao caminho que leva as águas do Aqueronte. Ali o


escuro rio do Mundo das Sombras gira em poderoso redemoinho, pesado de
areia e de lama, lançando-se então no Cocito e no Esúgio, onde se reúnem
as correntes desses dois rios. Caronte, barqueiro horrendo na sua terrível
imundície, barba cerrada e branca a pender-lhe do queixo, guarda essas
paragens. Os seus olhos estão cheios de fogo, a cabeleira nojenta cobre-lhe
os ombros, amarrada com um nó. É ele que conduz as almas de um para o
outro lado do rio, empurrando a barca com um pau e dirigindo as velas.

Naquele momento, estava ele na margem mais próxima, onde uma


multidão de mortos se comprimia, aguardando a sua vez. Eram donzelas,
mães, pais e heróis. Meninos e jovens queimados nas piras funéreas, como
as muitas folhas caídas das árvores aos primeiros sinais do Outono, ou
quando as aves se juntam, voando do mar para a terra, vindas do alto e
procurando regiões mais quentes. Os mais próximos imploravam a
passagem a Caronte, estendendo-lhe os braços, mas o barqueiro severo
escolhia-os e deixava entrar só alguns no barco, enquanto, com o pau,
empurrava os outros para longe da margem.

Admirado e penalizado com o espectáculo, perguntou Eneias à Sibila:

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ENEIDA - Virgílio
— Ó pitonisa, explica-me o que quer essa multidão perto do rio. Que
pedem essas almas? Porque são umas transportadas, ao passo que a outras o
barqueiro Caronte lhes nega a viagem?

Respondeu-lhe assim a velha sacerdotisa:

— Ó filho de Anquises, prole dos deuses, vês as profundas águas do


Cocito e do Estige, em nome dos quais deuses e mortais fazem juramentos,
as vezes verdadeiros, às vezes falsos? Toda esta multidão é constituída por
pobres que ficaram sem sepultura. Não lhes será permitido atravessar o rio
antes que os seus restos repousem nas rumbas ou que os seus corpos sejam
cromados nas piras. Se tal não acontecer, aqui ficarão vagando cem anos e
até duas vezes cem anos, antes que deles se condoa o triste Caronte.

Parou ali Eneias, observando as sombras sem destino e delas se


compadeaa. Viu o troiano Leucáspis e Orontos, chefe da armada lícia. A
ambos, que haviam partido de Tróia com Eneias, enfrentando todos os
perigos, a sorte fora madrasta, atirando-os às águas e deixando-os sem
sepultura, destruindo os barcos. E então dele se aproximou a alma de
Palinuro, o bravo piloto da própria nau-capitania da frota dardania, há pouco
tempo atirado e afogado no oceano pelo pérfido Morfeu. E Eneias falou-lhe:

— Ó Palinuro, qual dos deuses a nós te roubou e te submergiu no mar?


Vamos, diz. Porque Apolo, que a mim antes nunca mentira, disse-me que
estarias são e salvo comigo até aos confins do Lácio.

A pálida sombra do piloto respondeu:

— Ó capitão Eneias, filho de Anquises, não te enganou o oráculo de


Febo, nem um deus me afundou no mar. Ao cair, arrastei comigo o leme, ao
qual estava seguro no meu posto, guiando o barco. Juro que o meu medo de
morrer afogado não foi maior do que o que tive sabendo que a tua nau,
despojada de direcção, estava entregue aos ventos e as ondas. Durante Ires
dias e três noites segui pelos mares frios empurrado pelo Noto violento.
Somente ao quarto dia, levantado na crista de uma onda, divisei as terras da
Itália. Pouco a pouco fui nadando, aproximando-me da costa, até que atingi

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ENEIDA - Virgílio
um lugar seguro, agarrando-me a um rochedo. Mas, ah! Os meus dias
estavam contados! Ali mesmo naquele local, me mataram os bárbaros
habitantes com as suas lanças. Agora, o mar possui o meu corpo e os ventos
arremessam-me à praia. Ó Eneias, pela quente luz do Géu, pelo teu pai e por
teu filho Ascânio, livra-me desse destino triste. Pesquisa as praias de Vélia
em busca do meu corpo e sobre ele lança alguns punhados de terra. Que os
deuses desses reinos escuros debaixo da terra considerem tal coisa rim
funeral e concedam paz à minha alma sem descanso, pois antes disso

Interveio então a Sibila, dizendo:

— Cessa os teus lamentos, Palinuro, e não penses que as tuas súplicas


poderão alterar os destinos do Céu. Mas ouve o que te digo e consola-te, pois
os povos vizinhos da costa onde foste lançado deverão, pela vontade divina,
fazer-te um honroso funeral com todos os rituais, construindo uma grande
sepultura para ti. Dai em diante, aquele litoral passará a ser conhecido por
todos como o cabo Palinuro.

E de facto assim o é até hoje. Com aquelas palavras a alma do piloto


encheu-se de alegria e terminaram os seus cuidados.

Avançaram de novo os dois carninbantes, aproximando-se do rio.


Vendo-os, ainda no seu barco, a caminhar pelo bosque silencioso, Caronte
gritou-lhes, enraivecido:

— Quem quer que sejas, ó tu, que vens armado para nossas águas, diz
já a que vens e detém o teu passo. Este é o reino da Morte, do Sono e da
Noite. Não me é permitido transportar nesta barca corpos vivos. Já o fiz antes
e arrependi-me. A Hércules, Teseu e Pírito levei-os para o outro lado, a eles
que eram descendentes de deuses e invencíveis de força. Hércules tentou
acorrentar o guardião do Tártaro e os outros dois acharam que podiam roubar
a rainha Prosérpina dos aposentos do próprio deus Plutão.

Assim lhe respondeu então a profetisa:

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ENEIDA - Virgílio
— Não tenhas medo, Caronte, pois não estamos imbuídos dessas más
intenções, nem as nossas armas são portadoras de violência. O gigantesco
cão porteiro, Cérbero, guardião do Tártaro, poderá continuar a amedrontar
as pobres almas condenadas com o seu ladrar monstruoso. Prosérpina
continuará a descansar em paz, sem ser importunado. O meu companheiro
Eneias, famoso pela sua piedade e valor, veio falar com seu pai, Anquises.
Se a sua fama ainda não chegou a estas paragens ou se a elas não dás
importância, olha pelo menos para este ramo de ouro que trago para a tua
rainha.

Calando-se, retirou o galho dourado de debaixo das vestes. A ira de


Caronte cessou imediatamente e, depois de admirar a oferenda durante longo
tempo, o carrancudo barqueiro dirigiu a sua embarcação para a praia Em
seguida, expulsou dela as almas sentadas nos longos bancos, ante os seus
protestos e gemidos, fazendo entrar o rei troiano e a profetisa. Gemeu e
adornou o frágil barco sob o peso desusado de corpos vivos, fazendo entrar
bastante água, mas o barqueiro hábil levou-os são e salvos até à outra
margem.

Reclinado no seu imenso antro, o cão Cérbero fazia tremer os ares com
o ladrar das suas três gargantas e o sibilar das muitas serpentes enroscadas
nos seus pescoços. A profetiza, vendo o perigo, lançou ao monstro uma
beberagem soporífero feita de mel e de ervas condimentadas que foi
imediatamente engolido. Adormecido assim o guarda, Eneias e a sua
companheira lançaram-se rápidos pela passagem, entrando na própria casa
de Plutão.

Logo à entrada, depararam com o espectáculo triste de muitas almas


de crianças, que, impedidas de gozar a vida, já que haviam sido arrebatadas
pela morte dos braços maternos, ainda pequenas, choravam e lamentavam o
seu destino. Junto a elas estavam os que, condenados por crimes não
cometidos, tinham morrido inocentes. Mas também lá não lhes faltava juiz.
O rei Minos ali se encontrava, agitando a urna, realizando os julgamentos e
escolhendo os jurados. Mais além, apareciam os espíritos dos suicidas, que,
assoberbados pelas desgraças, odiaram a luz e o calor da terra, acabando
com as próprias vidas. Estavam condenados a vagar eternamente por entre

111
ENEIDA - Virgílio
os pântanos escuros que bordejam o Estige. Como desejariam agora voltar
ao altar da vida, pouco lhes importando quanto trabalho e tristeza tivessem
de sofrer!

Não longe, surgiram os campos das Lágrimas em cujas veredas


estreitas, cercadas por floresta de mirtos por todos os lados, se escondiam os
que um amor cruel e rude matara. Nem a morte os livrara das suas dores e
cuidados. Lá estavam Fedra, esposa de Teseu, Prócris e a triste Erifile
mostrando as feridas recebidas do filho pérfido. Viram também Evadne e
Pasífa, esposa do rei Minos.

Entre eles vagava também a infeliz Dido, há pouco morta. Vendo a sua
sombra escura, Eneias parou enternecido, como quem vê a lua surgir de entre
as nuvens e, chorando, falou-lhe:

— Ó Dido infeliz, agora me faço certo do que já me perseguia como


suspeita atroz! De que tinhas posto fim aos teus sofrimentos com a minha
espada. Ai! Eu fui a causa da tua morte! Juro, ó rainha, pelas estrelas e pelos
deuses do céu e pela fé, se alguma existe nas profundezas da terra, que foi
contrariado que me retirei das tuas praias. Não fui eu, mas os deuses que me
obrigaram a fugir de ti como agora me imperem através destas sombras, por
estes reinos escuros e estas águas tenebrosas. Não podia eu crer que te
pudesse causar tão grande dor com a minha retirada. Pára e não te retires da
minha vista. De quem foges? É esta a última vez que te falo, pois assim o
dispõem os deuses.

Com estas palavras, Eneias procurava abrandar a cólera que se


derramava pelo olhar do espírito da rainha, e chorava. Ela, irritada,
conservava os olhos fitos no solo, não movendo sequer o rosto às palavras
dele, à semelhança de uma estátua de pedra ou de mármore. Finalmente,
afastou-se, fugindo para a floresta sombria, onde o antigo esposo Siqueu lhe
acalmava as dores, igualando-a no amor. Eneias, comovido com a triste sorte
que o Destino reservara à infeliz, seguiu-a por longo tempo chorando,
compadecido.

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ENEIDA - Virgílio
Prosseguiram na jornada, entrando logo nos campos ocupados pelos
varões ilustres, mortos na guerra. Lá lhes saíram ao encontro Tideu e
Parténofe, afamados pela guerra contra Tebas, e o fantasma pálido de
Adastra, rei de Argos, e muitos outros valentes príncipes, tanto troianos
quanto gregos, vidas ceifadas na grande guerra de Tróia. Eneias, vendo-os
em longa fila, chorava o destino dos grandes guerreiros e as almas
acercaram-se dele. Aprazia-lhes a visão do herói, caminhavam a seu lado e
inquiriam-no sobre os motivos da sua vinda. No entanto, os inimigos, das
falanges de Agamémnon, começaram a tremer, vendo Eneias nas suas
roupas e armas que reluziam na sombra. Enquanto alguns lhe viravam as
costas, saindo em desabafada correria, como faziam na guerra, procurando
abrigo atrás das muralhas que tinham construído em torno dos navios, outros
abriam os lábios tentando soltar bradas de guerra, mas nem sequer um
suspiro safa das suas bocas abertas.

Ali encontrou Deífobo, filho de Príamo, o corpo todo despedaçado,


cruelmente golpeado no rosto, tendo ambas as mãos e o nariz cortados com
golpes terríveis, a testa ferida e as orelhas decepadas. Vendo-o, Eneias
percebeu que o herói procurava esconder os ferimentos e chamou-o então:

— Ó omnipotente Deífobo, tão nobre descendência de Dárdano, quem


te infligiu tão cruéis castigos? A quem foi permitido tanto contra ti? A última
noticia de ti dizia-me que, cansado com tão grande carnificina dos pelasgos,
tinhas caldo sobre um monte de homens mortos e feridos. Eu mesmo te
levantei no litoral uma sepultura vazia e três vezes te invoquei a alma em
altas vozes. O teu nome e as tuas armas guardam aquele lugar, pois não pude,
ó amigo, encontrar-te o corpo.

O filho de Príamo respondeu com estas palavras:

— Ó caro Eneias, cumpriste o teu dever de amigo e agradeço-te. O que


vês no meu rosto e no meu corpo, fizeram-mo muitos gregos — entre dás
Aquiles e Menelau — reunidos em volta do meu leito, quando eu, depois
dos fatigantes trabalhos do dia em que se levou o cavalo traiçoeiro para
dentro da cidadela, tirava um merecido um repouso. Saibas também que as
portas se lhes foram abertas pela vil Helena, que dessa maneira procurava

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ENEIDA - Virgílio
aplacar a ira do marido para o facto de ter fugido com Páris. Ela mesma,
depois de eu ter adormecido, retirou da casa todas as armas, inclusive a
minha fiel espada pendurada à minha cabeceira. Mas vamos, diz-me, que
acontecimentos te trouxeram vivo a este lugar? Porventura vens trazido
pelos erros do mar ou pelos conselhos dos deuses?

Enquanto assim conversavam, a aurora, com as suas quadrigas


douradas, ia já a meio do seu curso. Se continuasse, todo o dia se escoaria.
Admoesto-lhe então a Sibila:

— Ó Eneias, a tarde vai avançando e estamos a chorar. Aqui há uma


bifurcação: o caminho à direita vai dar às muralhas do grande Plutão e aos
Campos Elísios, mas o da esquerda conduz ao horrível Tártaro, onde são
punidos os maus.

Deífobo então respondeu-lhe:

— Ó grande sacerdotisa, não te irrites. Afastar-me-ei para recolher-me


às trevas. Vai, Eneias, e segue melhores destinos.

Subitamente, o herói troiano olhou para trás e viu no sopé de um


penhasco, à esquerda, um grande castelo cercado por um muro tríplice e
circundado pelo rio de fogo chamado Flagelante, que corria em leito de
pedra. Barravam a passagem enormes portões de ferro presas a grossos
pilares de diamante, tão poderosos que nenhum mortal — e mesmo poucos
filhos dos deuses — os poderiam derrubar. Lá, numa altíssima torre de ferro,
estava sentada uma Fúria, Tisífone, com as vestes ensanguentadas, em
vigília permanente e de guarda à entrada, noite e dia. Dali, Eneias ouvia
partir ruídos de arrastar de cadeiras, de açoites selvagens, de gritos
alucinantes e de gemidos. Parou, aterrado, com a face pálida como a cal.

— Dize-me, ó profetisa, de que espécie de crimes são culpados aqueles


e a que penas foram condenados? Porque se eleva um tão grande gemer?

— Ó rei ilustre dos troianos, a nenhum mortal piedoso é permitida a


entrada naquela porta, mas quando Prosérpina me colocou como guardiã dos

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ENEIDA - Virgílio
bosques de Averno, ela mesma me ensinou os castigos dos deuses e tudo me
mostrou. Rodamonte de Creta Governa essas garagens más, ouve os
condenados e as culpas, castiga as fraudes, obriga sob torturas a confessar
os pecados contra os mortais — pecados deixados sem confissão até a hora
da morte, alegrando-se os seus detentores com uma falta vá. Imediatamente,
Tisífone, vingadora, armada de azorrague, olhos cruéis iluminados de
alegria ao levantar e baixar o chicote, açoita os culpados. Na outra mão agita
as suas hórridas serpentes e lança as Fúrias suas irmãs, tão selvagens quanto
ela mesma.

Abriram-se as portas da morada infernal e a Sibila gritou a Eneias:

— Vês Tisífone sentada em guarda permanente ao portão? Lá dentro,


naquele vestíbulo, tem assento uma hidra cruel, mais cruel que as cem
Fúrias, com as suas cinquenta bocas negras. Mais adiante está o Tártaro
propriamente dito, abismo escancarado que atinge, na sua profundidade,
duas vezes a altura do Olimpo à terra. Naquele poço de dor e tristeza, os
filhos de Tita, os primeiros filhos da antiga Terra, foram lançados pelo raio
relampejante de Júpiter e lá agora se revolvem em agonia. E lá estão também
os enormes filhos gémeos de Alódio, que tentaram com as mãos rasgar o céu
e arrancar o omnipotente Júpiter do seu trono dourado. Também vi
Salmoneu, condenado por tentar imitar os sons do Olimpo e os raios de
Júpiter. Galopando arrogantemente no seu carro de quatro cavalos pela
Grécia, agitava um archote flamejante e batia os bronzes — pobre imitação
dos barulhos do Olimpo — exigindo divindade para si mesmo. Louco!
Julgou poder imitar com o bronze e o tropel dos cavalos o trovão e o raio!
No entanto, o Todo-Poderoso lançou-lhe o seu raio por entre as nuvens
espessas — não archotes ou nós de pinheiro soltando fumaça negra, desta
vez — arremessando o ímpio às profundezas do Inferno, entre imenso
turbilhão de chamas. Também lá estava Títio, filho da Terra, mãe de todas
as coisas.

(continuou)

— O seu corpo estende-se por muitos hectares e um abutre cruel come-


lhe eternamente, com o bico adunco, o fígado, abrindo-lhe dia e noite o peito

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ENEIDA - Virgílio
cujas fibras renascem para que o castigo se prolongue sempre e sempre. E
também Ixiáo e Piritu, sobre os quais se alteia sobranceiro um penhasco
gigantesco, sempre a ponto de desabar-lhes em cima. A sua vista está
disposto um sumptuoso banquete preparado com magnificência real, mas ao
lado senta-se uma Fúria, que, a cada movimento dos dois para alcançar as
iguarias, se ergue brandindo um archote e soltando i trovões pela boca. Ali
estavam encarcerados os muitos que tinham morto pai ou irmão, ou feito
grande mal a um vizinho, ou que amontoaram riquezas sem fim, nada
repartindo com as famílias — e eram os em maior número —, ou então era
um traidor que vendera a pátria ao inimigo, alguém que roubara a noiva de
outro ou forçara a filha a casar-se contra a vontade. Todos são culpados de
crimes horrendos e não me indagues que castigos lhes foram inventados
pelos deuses. Uns são condenados a levar ama grande pedra até ao cimo da
encosta. Ao chegarem próximo do topo, da escapa-se-lhes das mãos e rola
de novo para baixo e eles têm de a ir buscar, assim fazendo eternamente.
Outros giram sem cessar, com os membros arados aos raios de uma roda.
Entre eles está Flégias que, com outros com Banheiros infiéis, arcou fogo ao
templo de Apoio em Delfos, profanando o santuário sagrado. Ele clama
incessantemente, em altas vozes, da escuridão: «Tende cuidado. Aprendei a
justiça e não ofendais os deuses.» Mas porque te relato todas as histórias
desses pobres miseráveis? Devemos apressar-nos, pois já vejo adiante as
paredes e os portões no interior dos quais devemos depositar as nossas
oferendas.

Então, dirigindo-se naquela direcção, Eneias borrifou o corpo com


água fresca e colocou o ramo dourado no limiar dos portões. Portanto, rendo
levado à deusa o presente desejado, chegaram eles aos campos alegres, aos
vergéis frescos, às arvores deliciosas e às habitações abençoadas que são os
Campos Elísios. Ali, é maior a claridade do Sol e mais bonito o brilho das
estrelas —astros todos próprios do lugar e diferentes dos da terra — e ali as
almas afortunadas têm o rosto iluminado de alegria, divertindo-se nos jogos,
nas danças ou com versas poéticos. Ali estava Orfeu, o sacerdote trácio, com
as suas vestes compridas, afinando nas harmoniosas cordas da citara sete
diferentes tons, ora fazendo-as soar com os dedos, ora com a palheta de
marfim. Também lá viram os antigos pais da dinastia troiana, Teucro e
Dárdano, fundadores da raça.

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ENEIDA - Virgílio
De longe, Eneias admira-lhes os carros de guerra, as armas reluzentes
e os cavalos soltos que pastavam por roda a parte, tudo sob a forma de
sombras. Tão forte era o gosto dos antigos por aquelas coisas que até para
ali as tinham levado. Através da floresta, serpenteia o Eridano, que, vindo
do mundo superior, ali faz um pequeno percurso, para em seguida subir de
novo na direcção do mar.

Pouco adiante, chegaram a um riacho murmurejante que deslizava


entre toureiros flagrantes. Outras sombras ali estavam. Eram as dos homens
muitos virtuosos e a quem os deuses muito amavam; os que tinham perecido
defendendo a pátria; os que tinham dedicado a vida terrena à procura da
verdade — sacerdotes, filósofos e poetas cujos cânticos haviam inspirado
pensamentos nobres nos corações dos homens; e também aqueles que
tinham conquistado a estima do povo pelo seu altruísmo. Todos eles, de fita
branca amarrada à cabeça, se reuniram em torno dos viajantes, quando lhes
perguntou a Sibila:

— Onde poderemos encontrar Anquises? Por causa dele viemos e


atravessámos o Érebo.

Uma das sombras, a mais destacada entre as outras, pertencente ao


poeta Museu, assim falou:

— Nenhum de nós aqui tem morada fixa. Habitamos os bosques


espessos, os leitos das ribeiras e os prados frescos dos rios. Mas vós, se a
vossa vontade assim o quer, subi a esse cabeço e logo vos porei no caminho
certo.

Seguiram então o poeta, que se adiantou e lhes apontou uma encosta


arborizada. Desceram e encontraram Anquises lá em baixo, no vale. Ali, o
anão olhava pensativamente as almas que estavam para nascer. Ao ver o
filho, estendeu-lhe os braços e, com os olhos em lágrimas, exclamou:

— Ó filho querido, por fim vieste. É verdadeiro o grande amor que


tens por teu pai e só ele te poderia trazer incólume através de perigos tão
grandes. É-me permitido assim ver o teu rosto, ó filho, e ouvir e fazer ouvir

117
ENEIDA - Virgílio
palavras conhecidas. Na verdade, contei dia a dia, hora a hora, o tempo que
levarias para aqui chegar. Diz-me, agora, por que terras e mares andaste no
teu caminho árduo! Que grandes perigos e dificuldades enfrentaste? Quanto
temi pela tua estada em Cartago!

— Ó pai, foi a tua imagem, aparecendo-me muitas vezes em sonhos,


que me obrigou a vir aqui. A armada troiana está segura no mar Tirreno.
Permite, permite, ó pai, que eu aperte a tua mão direita e que não te afastes
do meu abraço.

Ao recordar tantas coisas, as lágrimas enchiam-lhe o rosto. Tentou três


vezes abraçar a sombra do pai, mas a imagem fugidio escapava-lhe das
mãos, qual vento ligeiro, à semelhança do que acontecia nos sonhos. Nesse
momento, Eneias viu, num vale, um bosque isolado, cujas árvores
murmuravam à brisa, diante do qual, na pradaria, corria o rio Letes. Nas
margens do curso de água agitavam-se muitíssimas sombras, indo e vindo,
atarefadíssimas como abelhas num campo cheio de flores. Todo o local
ressoava com a azáfama e Eneias, sem saber o que era aquilo, olhava
espantado para o grande ajuntamento. Eis que Anquises disse:

— Esses filho, são os espíritos que estão destinados a subir novamente


à terra para serem reencarnados. Bebem a água do Letes e, ao fazerem-no,
esquecem totalmente a vida anterior. São almas que algum dia habitarão as
corpos dos teus netos. Chamei-te aqui para te mostrar estas coisas, a fim de
que continues depois a caminho da Itália, com maior vigor, para lançares lá
as raízes de uma nova raça.

— Ó pai, devo crer que daqui sairão as almas outra vez para a luz, a
dar vida nova aos corpos humanos? E porque tanto desejam elas voltar a
respirar o ar da terra?

— Na verdade eu te direi, ó filho, o segredo desses mistérios divinos,


pois o véu que cobre os olhos de todos os mortais foi agora retirado da minha
vista. Em primeiro lugar, fica a saber que o céu e a terra, os mares e a lua, o
Sol e as estrelas brilhantes são todos sustentados pelo grande espírito
flamejante, grande mente omnisciente, de onde provem todas as coisas

118
ENEIDA - Virgílio
vivas—as raças dos homens, os animais das florestas, as criaturas aladas e
todas as formas estranhas que habitam as águas dos oceanos. Cada liorma
mortal toma dentro de si uma porção maior ou menor desse espírito
universal, embora grande parte de seu fogo divino esteja sufocado e tolhido
pelo cárcere da carne. É dessas centelhas inextinguíveis que emana todo o
temor e desejo, todo o sofrimento e alegria, todo o amor e esperança. Quando
vem a morte e o espírito é libertado da prisão corpórea, alguns dos defeitos
que manchavam a forma terrena ainda se apegam a ele, devido à sua longa
permanência na terra, e carrega-os para o Mundo das Sombras.

(Continuou)

— Esses espíritos que vês amontoados nas margens do Letes já


sofreram a punição e as manchas de culpa foram-lhes lavadas pelas torrentes
espumantes ou queimadas pelos fogos purificadores. Depois disso, vieram
então para estes Campos Elísios e aqui permanecem até que a última mancha
seja totalmente apagada, nada restando senão o espírito imaculado. Não se
passarão menos de mil anos antes que um espírito, inocente agora de
qualquer pecado, esteja pronto para ser reencarnado. Então, a chamado
divino, as almas purificadas vêm para as margens do Letes e, bebendo das
suas águas, perdem toda a lembrança da sua vida anterior na terra e retornam
à luz superior.

Acabando de falar, Anquises levou Eneias para o meio de uma grande


aglomeração fantasmagórica. Juntamente com a Sibila subiram a um outeiro
donde pudessem ver e conhecer melhor os que ali se reuniam.

— Vem — disse Anquises — e mostrar-te-ei, dentro do que posso,


algo das glórias que daqui em diante acompanharão a descendência
dardania, que netos terás na Itália, que almas ilustres hão de herdar o teu
nome.

Vem e revelar-te-ei os teus destinos. Aquele jovem que se encosta a


uma lança inofensiva, o primeiro da linha que se prepara para respirar os
ares do céu, é teu filho, Eneias, o mais moço de todos os que te dará Lavínia,
tua esposa, em idade avançada. Seu nome será Sílvio e ele, misturando o seu

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ENEIDA - Virgílio
sangue ao que corre nas veias italianas, fundará uma nova dinastia. Aquele
próximo dele é o espírito de Procas, que será um dos maiores heróis da nação
troiana e um dos primeiros daquela descendência a sentar-se no trono da
nação que ergueras, meu filho. Lago em seguida, estão as almas de Cápis,
Numitor e Sílvio Eneias, que te fará reviver o nome, também notável pela
piedade e pelo valor nas armas. Os dois primeiros fundarão as cidades de
Nomento Gábios e de Fidena, respecrivamente, e muitas outras serão
também erigidas em campos que agora nem nome têm. A suma sacerdotisa
fila dará à luz um filho, Rómulo, cujo pai será o deus da guerra, Marte. Como
este, o filho usará um capacete com duas plumas e a ele Marte destinou
grandes feitos guerreiros na terra.

Reinará sobre a ínclita Roma, cidade de varões ilustres e cujas torres


se elevarão de sete colinas dentro dos muros protectores. Sob os seus
auspícios, a núncio romana estenderá o seu poder pelas terras e igualará, no
seu merecimento, o próprio Olimpo. Volta agora os teus olhos para mais
adiante e vê César, chamado Júlio, o teu segundo filho Iulo — agora
chamado Ascânio —, e lá Augusto César, filho de Júlio, que trará a Idade
do Ouro a Lácio. Governará o seu povo com mão bondosa, procurará a paz
abençoada e fará leis que levarão a justiça até ao mais humilde dos súbditos.
Os seus domínios estender-se-ão por toda a África e Ásia, até às terras
bárbaras do Norte, que também se curvarão ao seu jugo. Nem mesmo
Hércules reinou algum dia sobre uma tão grande extensão de terras.

E Anquises apontou muitos outros que, no devido tempo, subiriam à


terra e tomariam parte em importantes acontecimentos:

— Ali estão os reis Tarquínios e Bruto vingador, e Paulo Emílio, que


destruirá Argos, e Micenas de Agamenão, vencendo Perseu da Macedónia,
assim vingando os antepassados de Tróia e os templos profanados de
Minerva. O grande Catão, a geração dos Gracos e os dois Cipiões, flagelos
da guerra na Líbia. Outros povos terão sem dúvida melhores escultores,
melhores advogados, melhores astrónomos e melhores matemáticos, mas sol
povo romano caberá a tarefa de impor as leis, governar os povos, propor as
condições de paz, poupar os submissos e subjugar os soberbas. Vês que vem
entrando Cláudio Marcelo, armado de ricos despojos. Será o maior de todos

120
ENEIDA - Virgílio
os heróis, sustentando a república romana, destruindo os cartagineses e
subjugando o rebelde gaulês.

Assim iam Eneias, Anquises e a Sibila percorrendo a região e vendo


todas aquelas coisas. O coração de Eneias rejubilava e o seu animo exalava-
se ao sentir o destino glorioso que os deuses tinham reservado à sua
descendência. Anquises instruía-o sobre o carácter e modos dos povos do
Lácio, para onde logo iria. Disse-lhe das guerras que iria enfrentar, dos
trabalhos por que passaria e da melhor maneira para sair das dificuldades.

Há dois portões que dão salda ao Mundo das Sombras. Um é escuro e


feito de chifre e é por este que os espíritos sobem ao mundo superior para se
reencarnarem. O outro é de um branco brilhante, de marfim polido, mas é
falso. Apenas os sonhos enviados pelas almas e os visitantes do Inferno o
atravessam. Anquises levou o filho e a Sibila pela porta de marfim e dali
passaram rapidamente à terra.

Indo directo à frota, Eneias fez-se ao mar e, navegando para o norte,


ao longo da costa italiana, lançou ferros num plácido ancoradouro.

121
ENEIDA - Virgílio

Capítulo 7: Os Troianos Desembarcam na Itália

Nessa época morreu também outra pessoa muito querida de Eneias, a


sua ama Caieta, a um dia de viagem, por mar, da foz do Tibre. O bom troiano
cremou-lhe o corpo em alta pira, segundo os rituais e baptizou aquelas
prauas com o nome da velha serva que durante tantos anos o acompanhara.
Terminados os funerais, fizera-se de novo ao mar e navegaram toda a noite
com a luz clara da lua iluminando as águas. Costearam o litoral próximo do
promontório Circeu, cujos bosques ressoam com os cânticos da filha do Sol,
Circe, a feiticeira. Nos seus soberbas palácios, ela queima o cedro cheiroso
para iluminar a noite. Ouvem-se o rugir e o bramir de ledes, ursos e lobos
enfurecidos. São todos homens que a cruel sacerdotisa transformou em
animais por meio de beberagens mágicas, dando-lhes o aspecto de feras.
Para que os troianos não sofressem os sortilégios do local, houve por bem
Neptuno enfunar-lhes as velas dos barcos para que, rápidos, se afastassem
daquelas terras amaldiçoadas e águas revoltas.

Já o mar se avermelhava com os raios do Sol e, elevada ao éter, a


dourada aurora surgiu no seu coche cintilante, quando os ventos amainaram
e toda a brisa cessou repentinamente. Fazendo funcionar os remos, os barcos
dardanios avançaram mais lentamente, quando Eneias, da proa da nau-
capitania, divisou o Tibre, amarelo e redemoinhado, que desaguava no mar.
Nas margens e nos ares, várias aves acostumadas àquelas paragens
voluteavam e enchiam a atmosfera com os seus gorjeios. Eneias ordenou
que aproassem para terra e alegres entraram na foz do rio sombrio.

O rei Latino, na ocasião já velho e alquebrado, governava


pacificamente os seus territórios e cidades. Filho do profeta Fauno, que
proclamava ser descendente do próprio Saturno, seria assim o primitivo
tronco de toda a raça. Não rendo filhos, pois o único varão fora-lhe
arrebatado ainda jovem pela morte, Latino possuía, contudo, uma formosa
filha, Lavínia, agora em idade casadoira. Havia muitos pretendentes, no
grande Lácio e por toda a Ausónia, à mão da princesa. Entre eles destacava-
se, pela sua beleza e linhagem, Turno, a quem a rainha, esposa de Latino,

122
ENEIDA - Virgílio
desejava extremamente ter como genro, ao que no entanto se opunham os
mais terríveis presságios dos deuses.

Havia, na parte mais retirada do palácio, um toureiro sagrado,


conservado havia muitos anos com religioso respeito. Dizia-se que o próprio
Latino o consagrara pessoalmente a Apolo quando, ao iniciar a construção
da cidade, o encontrara. Certo dia, um número enorme de abelhas —
prodígio admirável de ser contado!— fora trazido através do ar límpido, as
abelhas todas unidas pelos pés; pousaram no topo da árvore sagrada, ficando
o enxame pendente dos frondosos ramos. Disse então um oráculo:

— Vejo chegar um herói estranho que dominará a cidade com a sua


tropa.

Além disso, num dia em que a jovem Lavinia espalhava incenso nos
altares e os perfumava, de pé junto a seu pai, aconteceu outro prodígio. Os
cabelos dela incendiaram-se e toda a cabeça, as longas tranças e o diadema
de pedras preciosas arderam em luz fulgurante e envolta em penetrante
fumaça. Os adivinhos, chamados à pressa, vaticinaram que a princesa ilustre
haveria — por força de tais agouros — de ter um futuro brilhante, mas
também previram uma sangrenta guerra.

Perturbado com estes presságios, o rei Latino dirigiu-se aos oráculos


de seu pai Fauno para consultar os bosques, ao pé da cascata Albúnea, a
maior da floresta. Ali, naquelas sombras espessas, a fonte sagrada exalava
um vapor acre e somente a música líquida das águas quebrava, rolando, o
silêncio terrível da escuridão. Ali iam os sacerdotes levar as suas ofertas aos
deuses e passar a noite estendidos sobre as peles das ovelhas sacrificadas, e
então apareciam-lhes figuras volteando e ouviam vozes. E conseguiam
conversar com os deuses, falando ao Oqueronte nas profundezas do Averno.
- O venerável Latino dirigiu-se então àquele mesmo local e, depois de
imolar, segundo o ritual, cem ovelhas de lã espessa, deitou-se sobre as peles
empilhadas das vítimas. Subitamente, saiu da floresta uma voz que dizia:

— Não procures unir a tua filha a esposo desta região, ó filho meu,
nem confies no casamento já planeado. Estão para chegar à tua cidade

123
ENEIDA - Virgílio
homens estrangeiros e entre esses procures aquele que, como teu genro,
elevará até aos astros o nome de Latino. Os seus descendentes terão um
império cujos limites serão o ocaso e o nascer do Sol, de um a outro oceano.

A estas palavras de Fauno, seu pai, o rei voltou à cidade e logo a Fama
espalhava a noticia por todo o reino, mesmo antes que as birremes troianas
tocassem as margens relvosas do Tibre amarelo.

Eneias, seu filho Iulo e os principais chefes descansavam à sombra de


frondosa árvore, enquanto era preparada uma refeição com bolos e maças
silvestres. A massa de trigo foi estendida na relva, à guisa de mesa,
colocando-se os outros alimentos por cima. Depois de terem comido estes
últimos, a fome era tão grande ainda que atacaram às dentadas o bolo que
servia de mesa.

Exclamou então fulo:

— Ai! Comemos até a mesa.

Eneias perturbou-se imediatamente com as palavras preferidas pelo


filho, lembrando-se da terrível profecia da horrenda rainha das Harpias.
Susteve a fala do jovem e disse:

— Salve, terra que os destinos dizem pertencer-me e a vós, fiéis


penares de Tróia. Salve! Aqui estão a nossa morada e a nossa pátria. Tinha-
nos sido profetizado que, quando levados a praias desconhecidas, serramos
obrigados a devorar as próprias mesas tal seria a fome voraz que nos
assaltaria. Disse-me o meu bom pai Anquises que então estariam terminadas
as nossas andanças e que deveríamos construir nesse local as nossas
primeiras habitações. Eis-nos, pois, chegados ao termo do nosso exílio.
Alegremo-nos e aos primeiros raios do Sol exploremos estes lugares,
busquemos saber que homens neles vivem e onde estão as muralhas desta
nação Vamos dividir-nos em vários grupos e guiemos os nossos passos em
diversas direcções. Mas agora fazei libações a Júpiter e invocai com preces
o meu pai Anquises, tornando a pôr o vinho nas mesas.

124
ENEIDA - Virgílio
Assim falando, cingiu a testa com ramos frondosos e suplicou ao
Génio do lugar e à Terra, antes de o fazer às outras divindades, as ninfas e
aos rios ainda desconhecidos. Invocou a Noite e os astros que se levantam
nas trevas. Orou a Júpiter, à sua mãe troiana, à sua mãe no Céu, Vénus, e a
seu pai no Érebo, Anquises.

E, apesar do céu se apresentar límpido e claro, Júpiter lançou três


trovões do alto Olimpo e ele mesmo, lá do éter, mostrou uma nuvem
resplandecente de raios de luz e ouro, fazendo movê-la com a sua mão
poderosa. Rapidamente, espalhou-se pelas hastes troianas a boa nova de que
tinham arribado finalmente ao seu destino e que era chegado o dia de
edificarem uma nova Tróia. Alegres, prepararam um lauto banquete com
grandes libações de vinho aos deuses.

Quando, no dia seguinte, a formosa aurora já lançava os primeiros


clarões sobre a terra, os troianos espalharam-se, observando a cidade, os
campos e as praias da região. Sabiam que ali habitavam os fortes latinos e
que aqueles eram os Lagos da fonte Numícia.

Sabiam que o caudaloso rio era o Tibre. Eneias ordenou que cem
representantes, escolhidos entre todas as classes nas fileiras troianas, fossem
à cidade, cobertos de ramos de oliveira, levando presentes ao monarca e
pedindo paz para os recém-chegados. A ordem foi cumprida com rapidez.
Enquanto aguardava o seu regresso, Eneias escolhia o local para o
acampamento, demarcando a posição das paliçadas e dos fossos e fazendo
levantar as primeiras tendas.

Nesse momento, os delegados já avistavam as torres e muralhas da


cidade latina. À entrada, alguns meninos e jovens exercitavam-se em
evoluções equestres, praticavam a direcção dos carros de guerra, treinavam
o tiro com arco e flecha, lançavam o dardo e o disco, ou desafiavam-se para
a corrida de velocidade ou para a luta. Um mensageiro partiu imediatamente
para o palácio, levando ao rei a noticia da chegada de estrangeiros
corpulentos, com trajos desconhecidos. Preparando-se para recebê-los o
velho rei sentou-se no trono e ordenou que os troianos fossem introduzidos.

125
ENEIDA - Virgílio
O palácio do rei Latino, suspenso em cem colunas, situava-se na parte
mais elevada da cidade e as suas fortificações e altas torres podiam ser vistas
a muitos quilómetros de distancia, em qualquer direcção. Cercava-o,
escondendo a parte inferior das muralhas, um escuro bosque de ciprestes. O
enorme salão principal era um exemplo magnífico da arte dos construtores
antigos. O tecto elevado, dourado, era finalmente esculpido em alto-relevo
pelas mãos de muitos artistas célebres e as paredes de bronze e latão polido
reflectiam a luz de mil velas, somando o brilho ao esplendor. Era ali que os
reis realizavam os primeiros sacrifícios, depois de coroados: O edifício era
para eles um templo. Ali se faziam os banquetes sagrados, se imolava o
carneiro e se reuniam os senadores em torno das extensas mesas. No
vestíbulo estavam dispostas por ordem, efígies, talhadas em cedro, dos
antepassados do rei: Italo, o augusto Sabino, plantador de vinha, o velho
Saturno, a imagem de Jano, de duas faces, e muitos outros soberanos, desde
a origem da dinastia, além dos heróis mortos ou feridos na defesa da pátria.

Nas portas sagradas estavam pendurados armas, partes de carros de


guerra, alfanges curvos e penachos de capacetes, enormes ferrolhos de
portas, escudos e rostos arrancados da proa dos navios inimigos. O próprio
Pico, domador de cavalos, lá estava representado, empunhando a trombeta
Quirinal e coberto com a sua toga. Sentado no interior do templo dos deuses
e no trono dos seus antepassados, o rei Latino fez entrar os troianos, assim
lhes dirigindo a palavra:

— Dizei a que vindes, ó descendentes de Dárdano! Já sabemos quem


sois e qual a vossa cidade e vossa raça, pois que a fama vos precedeu nessa
viagem pelo mar! Que procurais? Que motivo trouxe os vossos navios e vós,
que necessitais de ajuda, às praias do Lácio, através de tantos perigos do
oceano? Ou entrastes no porto e subistes o rio por engano, impelidos pelas
tempestades, batidos pelos ventos e alquebrados pelas fadigas dos que
viajam? Não vos recusaremos hospitalidade. Estais entre os latinos, nação
originária de Saturno, filha de Tita, e dos mais antigos dos deuses, que
praticam a justiça não por pressão ou pelo rigor das leis, mas através da sua
boa índole. Rege-os a moral antiga dos deuses.

Respondeu-lhe Ilioneu, companheiro de Eneias:

126
ENEIDA - Virgílio
— Ó rei, digno filho do deus Fauno, nenhuma negra tempestade nos
obrigou, impelidos pelas ondas, a abordar estas costas, nem qualquer astro
ou litoral nos enganou no nosso rumo. Pensada e intencionalmente para aqui
nos dirigimos, exilados que fomos do nosso reino incendiado e destruído,
outrora o mais glorioso de quantos o Sol, vindo do Oriente, iluminava. A
origem da nossa raça vem de Júpiter e é o Tróia no Eneias, seu descendente
por parte da deusa Vénus, que aqui nos envia. De todos é conhecida a guerra
cruel travada pelos gregos contra a nossa grei e o fim triste que teve. Saídos
incólumes da tempestade de ferro e fogo que os deuses fizeram chover sobre
as nossas cabeças pelas mãos de Agamémnon, Menelau, Aquiles, Pirro e
outros, cruzamos os extensos mares, aqui chegando com a esperança de que
tu nos concederias uma pequena sede para os deuses da nossa pátria, um
pedaço de praia e o ar e a água comum a todos. Não seremos indignos do
teu reino, nem deixará a tua fama de ser por nós engrandecida nem se
apagará das nossas mentes o reconhecimento por tão grande favor. Juro
pelos destinos de Eneias e pelo seu braço valoroso na paz e na guerra, que
muitos foram os povos que a nós se apresentaram oferecendo aliança. Mas
os destinos dos deuses obrigaram-nos a prosseguir viagem e a procurar as
vossas terras. Dárdano, aqui nascido, para aqui volta. Apoio impeliu-nos
incessantemente para o Tibre e para as águas sagradas da fonte Numícia.
Eneias vem, por meu intermédio, oferecer-te estes insignificantes presentes,
restos salvados da outrora enorme fortuna da infeliz Tróia. Esta taça de ouro
era usada pelo próprio Anquises nos seus sacrifícios, junto aos altares. Com
este manto, distribuía o pobre rei Príamo a justiça entre os seus súbditos.
Aqui estão o seu ceptro, a sua coroa sagrada e as suas vestes, tecidas e
bordadas pelas damas troianas.

A tais palavras de Ilioneu, o rei Latino conservava um expressão fixa


no rosto, imóvel como que pregado ao solo.

Não lhe entusiasmavam o manto, o ceptro, a taça e os outros presentes,


pois tinha o pensamento fixo nas palavras de seu pai, o deus Fauno,
aconselhando-o a casar a filha com um estrangeiro ali vindo a chamado dos
deuses, sob auspícios felizes. Do consórcio nasceria descendência que
subjugaria o mundo inteiro. Finalmente, alegrando-se, exclamou:

127
ENEIDA - Virgílio
— Protejam os deuses as nossas empresas e o seu presságio! Ser-te-á
dado o que desejas, troiano. Aprecio os presentes enviados pelo teu rei.
Enquanto governar, não vos faltarão os produtos do campo fértil nem a
riqueza a que estáveis habituados na vossa Tróia opulenta. E, agora, que o
próprio Eneias — se tão grande é o seu desejo de se juntar a nós como aliado
e de aceitar a nossa hospitalidade — venha e veja um rosto amigo. Para mim,
será o primeiro penhor da nossa aliança apertar a mão do vosso soberano.
Levai-lhe agora em resposta o seguinte: tenho uma filha que nem os oráculos
do santuário de meu pai, nem os numerosos prodígios do céu, permitem unir
em matrimónio a homem destas terras. Predizem os adivinhos que virão
estrangeiros de terras longínquas e que dessa união sairá formosa
descendência capaz de elevar a nossa fama até às estrelas. Julgo que os
destinos o apontam, a ele Eneias, como meu sucessor. Se tal é verdade, diga-
lhe que muito me alegro.

Tendo preferido estas palavras, Latino ordenou que fossem colocados


à disposição dos embaixadores troianos cem dos trezentos corcéis
magníficos existentes nas cavalariças reais — um para cada um — cobertos
de mantos purpurinos e xaireis bordados e com freios de ouro. A Eneias
mandou de presente um carro puxado por dois cavalos de estirpe imortal,
que lançavam fogo pelas ventas. Com tais dádivas e propostas de paz, os
troianos retornaram ao acampamento.

Nesse momento, a implacável Juno cruzava os ares e avistou Eneias


alegre e a frota Sardónia ancorada, enquanto os troianos lançavam os
alicerces da sua nova morada. De olhar fixo e coração trespassado de cólera,
a deusa soltou do peito estas palavras:

— Ah, raça odiosa, cujos destinos são tão contrários aos meus! Não
morreram esses homens nas batalhas infindável da guerra, não foram
capturados, não pereceram nas chamas da cidade!

E continuou Juno:

— Escaparam das Fostes gregas, dos perigos que lhes criei em vão no
mar Tirreno, de Cila e Canódis, e até mesmo, lançados que foram à costa

128
ENEIDA - Virgílio
selvagem da Líbia, encontraram a bondosa rainha Dido que os encheu de
regalias. Agora, por fim, alcançaram a terra que desejavam nas margens do
Tibre. Acho que ou o meu poder está diminuído ou o meu ódio abrandado.
Como posso eu, a grande esposa de Júpiter, que nada tenho deixado de tentar
contra essa raça amaldiçoada, ser vencida por Eneias? Se o meu poder não
é suficiente, eu me humilharei e implorarei favores a quem quer que seja. Se
não se comoverem os deuses do Olimpo, recorrerei ao Aqueronte. Se não
posso evitar que Eneias venha a reinar no Lácio por força do seu casamento
com Lavinia — pois assim o dispuseram as Parcas —, seja-me pelo menos
permitido adiar o mais possível tal união e levantar grandes dificuldades à
vitória de Eneias.

E, alçando os braços, exclamou:

— Que tal consórcio se faça só à custa de muito sangue! Que Eneias


seja outro Páris e que o seu amor por outra mulher traga a guerra e o fogo à
recém-nascida Tróia!

Assim dizendo, pousou no solo italiano e chamou das moradas


infernais a horrenda Fúria Alecto, que traz no coração as guerras tristes, as
irás, as traições e os crimes malditos. Até o próprio Plutão detesta a
monstruosidade e as suas irmãs do Tártaro odeiam-na. Chegou ela —
horrenda de se ver com as suas víboras nojentas enroscando-se e
escorregando nos cabelos — defronte da rainha do céu, que assim falou:

— Donzela, filha da Noite, que podes voltar irmão contra irmão e


família contra família, introduzir dissensões e mortes nas moradas, cabem-
te mil nomes, tens mil artes de destruir. Presta-me um serviço pessoal,
auxílio particular, para que eu continue a gozar da merecida fama e honra
que tenho. Quero evitar que troianos e latinos se unam em casamento e
tomem posse dos territórios da Itália. Põe em acção o teu génio fecundo,
rompe a aliança feita, semeia pretextos de guerra. Que os guerreiros queiram
as armas e a elas corram!

Impregnada dos venenos de Górgona, Alecto dirigiu-se inicialmente


ao Lácio, ao sumptuoso palácio do monarca e introduziu-se silenciosamente

129
ENEIDA - Virgílio
nos aposentos da rainha Amata, a quem atormentavam as noticias da
chegada dos troianos e do projectado casamento da filha com Eneias. A
pérfida deusa arremessou-lhe uma serpente, saída dos seus cabelos azulados,
que logo se introduziu sub-repticiamente entre as vestes da rainha. Esta, sem
dar por isso, era envolvida pelo hálito envenenado do asqueroso réptil,
insensível ao tacto dos mortais. A horrível víbora enroscava-se em torno do
pescoço de Amata, introduzia-se-lhe entre os cabelos e passeava o corpo
viscoso ao longo dos membros da infeliz rainha, soprando-lhe no fundo do
coração ódio e desejo de briga intensos. O seu veneno, misturando-se-lhe no
sangue, inflamou-lhe os sentidos e envolveu-lhe os ossos em fogo,
alcançando-lhe o cerne da alma. Derramando um rio de lágrimas ante a
perspectiva de um casamento que lhe desagradava, bradou ela a Latino:

— Ó marido, tens coragem de entregar a tua filha a esses estrangeiros


troianos? Não tens compaixão dela, de ti mesmo, nem te compadeces da mãe
a quem o pérfido ladrão abandonará ao primeiro vento favorável, rumando
para o mar alto com a minha inocente filha? Não foi assim que fez Páris na
Grécia, arrebatando Helena para a cidadela de Tróia? Que fim levou a tua
honrada lealdade, tu que tantas vezes e tão solri Éden te prometeste a mão
de Lavinia a meu sobrinho Turno? Se as ordens de teu pai Fauno são para
que a dês em casamento a genro estrangeiro, devemos considerar como tal
toda a terra que não esteja directamente sob o nosso domínio. Não pertence
Turno a outra tribo? Acho que é essa a interpretação que deverá ser dada às
palavras do oráculo do bosque. Ele não pertence ao nosso reino, em verdade,
pois os seus antepassados eram da longínqua Grécia. Reina ele agora sobre
os rótulos e assim podes torná-lo como teu genro, sem prejudicares a
profecia.

Percebendo que, apesar dos seus insistentes apelos, Latino não se


demovera da sua intenção de casar Lavínia com Eneias, Amata, envenenada
até o âmago pelo visgo da serpente, caiu em frenesi espantoso e saiu
correndo em louca disparada pelas ruas da cidade. Como pião que gira,
lançado pelo fino cordel das mãos dos meninos e faz longos círculos na
calçada, enquanto a multidão admira espantada o brinquedo infantil, assim
também a infeliz rainha percorria apressadamente os campos e as cidades
vizinhas, estarrecendo tudo e todos com a sua aparência estranha.

130
ENEIDA - Virgílio
Então, como que possuída do espírito do deus Baco, Amata fugiu com
a filha para as montanhas, escondendo-se no próprio coração da floresta
mais deserta e esperando assim protelar o casamento troiano.

— Salve, Baco! — gritava. — Tu és o único pretendente digno de


Lavínia. É em tua honra que ela acena com as grinaldas de hera. É para ti
que ela dança e para ti deixa crescer o cabelo ondulado.

A sua loucura propagou-se a outras pessoas. Por toda a parte as mães,


com os Feitos inflamados da paixão selvagem, abandonaram os lares e iam
unir-se a ela na orgia. Com os pescoços nus, os cabelos flutuando
loucamente ao vento, enroladas em peles e carregando chuços envoltos em
ramos de vinha, lançavam ao ar gritos penetrantes. A própria Amata, no
meio das outras mulheres, ardendo em cólera, segurava um facho inflamado
e proclamava o casamento de sua filha com Turno. Revirando
desvairadamente os olhos sanguinolentos, gritava:

— Ó mães do Lácio, ouvi, onde quer que estejais, se alguma


compaixão tendes da infeliz Amata em vossos corações, se algum amor
tendes às vossas filhas, soltai as fitas das vossas tranças e cerebral comigo
estas orgias sagradas.

Assim a tinha transformado Alecto, a pérfida divindade, levando-a à


loucura. A Fúria, terminada a sua tarefa na casa de Latino — pondo a esposa
contra o marido — voou com as asas negras para o reino rótulo de Turno.
Chegando-se ao jovem na hora mais escura da noite, Alecto abandonou a
cara e os membros horrendos de Fúria, transformando-se em figura de velha,
f cá hedionda sulcada de rugas. Os cabelos brancos, ligou-os com alva fita,
neles colocando um ramo de oliveira. Era agora Cálibe, antiga sacerdotisa
de Juno e do templo, e apresentou-se ao jovem com estas palavras:

—Turno, consentirás tu que tantos esforços tenham sido gastos


inutilmente e que o teu ceptro seja entregue aos dardanios? O rei recusou-te
o consórcio e em teu lugar é admitido um estrangeiro! Suportarás tal
escárnio? Levanta e chama o teu povo às armas. Cai sobre esses troianos
estrangeiros e queima-lhes os navios. Vai e diz ao rei Latino que — a menos

131
ENEIDA - Virgílio
que mantenha a sua palavra de te dar Lavínia como esposa — passará a
contar-te entre os inimigos. Foi a própria omnipotente filha de Saturno que
me mandou dizer-te estas coisas na calada da noite. Portanto, andar vai
resoluto e ordena que os teus guerreiros se armem e saiam das portas para a
guerra. Extermina os chefes troianos que acamparam junto ao rio famoso,
queima-lhes as naus. Assim manda a suprema vontade dos deuses do
Olimpo.

Então o rapaz, zombando da sacerdotisa, respondeu-lhe:

— Já me chegou aos ouvidos, diferentemente do que pensas, a noticia


de que uma frota troiana chegou ao Tibre. Não me julgues possuído de medo
nem que a real Juno se tenha esquecido de nós. A tua velhice, ó mãe, enche-
te de torpor, impede-te de ver a verdade e em vão te assoberba a
preocupação. Não me apoquentes nem me tentes fazer agir segundo as tuas
sinistras profecias. Trata tu de zelar pelas imagens dos deuses e conservar
os seus templos e deixa que as guerras e a paz sejam feitas por aqueles que
devem fazê-las.

Perante tal resposta, Alecto encheu-se de cólera e voltou ao seu aspecto


sobrenatural. Quando ele acabou de falar, um tremor súbito invadiu-lhe os
membros. Os olhos abriram-se-lhe desmesuradamente. Silvava já
horrendamente a Fúria, as mil serpentes revoluteando na cabeça, os olhos
chamejantes. Estalando o látego bradou:

— Então, tenho a mente enfraquecida pela idade? E não distingo a


verdade da mentira? Ó jovem tolo, já vejo que te arrependes das tuas ousadas
palavras e que gostarias de tê-las de volta à garganta. Olha, príncipe
orgulhoso! Pareço alguém cuja mente apodrece com a idade? Sou
demasiadamente velha para dar atenção as disputas dos reis e aos negócios
dos reinos? Só sirvo mesmo para cuidar dos altares, longe dos perigos da
guerra? É assim que se fala a Alecto, a mais poderosa das Fúrias, em cujas
mãos estão a guerra e a morte?

Assim falando, arrojou ao príncipe um archote flamejante que se lhe


cravou no peito com chamas enegrecidas de fumaça. Transido de terror e já

132
ENEIDA - Virgílio
ansioso pela guerra, Turno saltou do leito e pegou nas suas armas, ordenando
aos seus capitães que formassem as tropas e marchassem para o Lácio.

Enquanto Turno enchia os ouvidos dos rótulos com os seus cânticos


de guerra e as suas invocações a Marte, Alecto voou pressurosa para o
acampamento troiano, com as negras asas infernais, dirigindo-se para o local
onde o jovem fulo realizava uma caçada com os companheiros, levando
todos redes e cães. Ao longo de uma trilha, ela lançou o odor peculiar do
veado, fazendo os cães seguirem por ali numa Kria alucinante. Com os
focinhos rente ao solo, os mastins ladravam alto, em desabafada corrida. Foi
esse o princípio do engano fatal que inflamou o animo da guerra entre os
habitantes da região e desabou desgraças sem conta sobre o filho de Eneias
e os seus companheiros.

Os filhos de Tirreu, guarda dos rebanhos reais, tinham recolhido um


veadinho recém-nascido de junto da mãe e tinham-no criado com todo o
carinho, sendo agora um animal de extraordinária beleza, com grande
galhos. A irmã dos jovens, de nome Sílvia, cuidara do veado, treinando-o
com mil mimos. Com a mão carinhosa afagava-o, penteava e escovava o seu
pêlo lustroso e adorava enfeitar-lhe os galhos nascentes com flores. Já
adulto, o animal pastava solto, de dia, pela floresta, retornando à noite para
dormir no estábulo tão amigo.

Possuídos de raiva, os cães saíram de Iulo em perseguição do veado


que placidamente mitigava a sede num riacho de margens verdejantes. O
próprio Ascânio, entusiasmado com o achado e pensando nos elogios a
serem recebidos por tão cobiçada presa, encurvou o arco e disparou a flecha
certeira. A deusa Alecto guiou-lhe a mão segundo os seus intentos, fazendo
o ferro cruel trespassar a ilharga e o ventre do animal. Em louca disparada
fugiu o veado ferido e, gemendo, refugiou-se no estábulo conhecido, onde
ficou a arfar, com o dorso ensanguentado, como que a implorar socorros.

Assustada, Sílvia correu ao local e o espectáculo do seu animal


estimado encheu-a de pesar e de espanto. Aos seus gritos acorreram os
outros da casa e todos os camponeses da região se reuniram, de ira atiçada
pela Fúria Alecta, que observava a cena oculta na espessa floresta. Armando-

133
ENEIDA - Virgílio
se de paus e archotes, foices, machados e tudo o que pudesse servir de arma,
saíram pelos campos e bosques à procura da fera selvagem que acreditavam
ter atacado o pobre veado.

Mas Alecto, como abutre horrendo e sedento de carniça, já se


empoleirara, batendo as asas, no mastro que encimava o estábulo e dali
soprava a cometa de chifre que os pastares usavam para alertar todos os
arredores em caso de perigo. Tremendo, no entanto, era o barulho
sobrenatural do instrumento. Ressoava pelas florestas e ribombava nas
colinas. Foi ouvido nas margens do longínquo lago de Diana, ao lado das
águas sulfurosas do rio Nar e também nas fontes do lago Velino. As mães
aterrorizadas apertaram os filhinhos ao peito, enquanto por toda a parte os
homens empunhavam as armas e rumavam para o local donde partia o som.
^Cairam assim sobre os caçadores troianos que, em tão grande inferioridade
numérica, teriam sido dizimados, não fosse a tropa de soldados amigos que
saiu rápida do acampamento em seu auxilio.

Alinharam-se então as duas fileiras apostas, agora já sem paus, pedras,


foices e machados, mas com lanças, espadas e machados de guerra. O
conflito propagava-se e o Sol brilhava naquela seara horrível de ferros nus,
de escudos reluzentes e de capacetes altaneiros, como acontece quando o
mar se vai aos poucos encapelando, forçado pelo vento, as ondas alteando-
se cada vez mais, até que finalmente sobem aos astros verdadeiras
montanhas de água, para depois se desdenharem nos fundos abismos.

Logo de início, o jovem Álmon, o mais velho dos filhos de Tirreu, foi
prostrado por uma seta estridente que lhe atravessou a garganta, cortando-
lhe a voz e também a vida. Muitos corpos de homens c Eram junto dele. Até
o velho Galeso, um dos homens mais justos e também mais ricos daquela
região, foi morto ao tentar introduzir-se entre os dois bandos como
medianeiro da paz. A ele pertenciam cinco grandes rebanhos de ovelhas e
outros tantos de bois. As suas terras eram lavradas por cem charruas.

Enquanto assim se travava o combate indeciso, a hórrida deusa Alecto,


depois de semear a discórdia, a luta, o ódio e a morte por toda a parte, deixou
a Hespéria e voou ufana até Juno, a quem disse:

134
ENEIDA - Virgílio
— Eia, lá tens a discórdia acesa e a guerra furiosa! Se assim o
desejares, posso espalhar a loucura por toda a zona circunvizinha e realizar
alianças com ambos os partidos e, então, toda a Itália se incendiará e nos
corações inflamados dos seus filhos nascerá o desejo de guerra insana.

— Não, deusa infernal, já basta de terrores e insídias. Vai agora para a


tua morada no Tártaro e junta-te às tuas irmãs, pois Júpiter poderá zangar-
se e castigar-te, caso te demores mais tempo no ar superior. Os pretextos
para a guerra já estão plantados com raízes firmes. Se necessário mais
esforço nesse sentido, eu mesmo o farei.

Então a Fúria, satisfeita com o trabalho realizado, retornou as suas


paragens escuras junto ao rio Cocito. Há na itália, no centro do país e no
sopé das altas montanhas, um lugar afamado em todo o mundo que é o vale
Ansancto. O flanco negro de um bosque cerca-o por todos os lados e o lugar
é cortado por um rio caudaloso que, batendo de encontro aos rochedos do
seu leito, faz redemoinhos tortuosos. Ali se apresentam uma medonha
caverna e os respiradouros do reino do cruel Plutáo. Uma grande extensão
de água transbordada do Aqueronte e lança vapores pestilentos por toda a
parte. Foi num daqueles boqueirões que mergulhou Alecto no seu caminho
para o Mundo das Sombras.

Em cima, no Lácio, houvera trégua e os pastares transportavam os seus


mortos, entre eles o jovem Álmon, filho de Tirreu, e Galeso, horrivelmente
desfigurado. Foram reunidos para implorar aos deuses e a seu bom pai
Latino que pusessem fim àquela guerra sem propósito. Mas já então se
aproximava Turno, que, com discursos inflamados, lhes acendeu novamente
o animo pela luta, pela morte, pelo sangue, dizendo estas palavras candentes:

— Quebrou-se um solene compromisso. Latino busca um filho


estrangeiro que venha poluir o nosso puro sangue italiano, e eu, Turno, sou
expulso das suas portas enquanto lá recebem uma tribo de além-mar.

Reuniram-se aos componentes aquelas mães que, atacadas pela


loucura de Amata, erravam pelos bosques e pediam guerra, guerra! Assim,

135
ENEIDA - Virgílio
todos se uniram contra a vontade, os oráculos e os presságios dos deuses,
numa guerra ímpia, e cercaram obstinados o palácio do rei Latino.

Este resistia aos anseios do populacho como um rochedo enorme que,


isolado no meio do mar, permanece firme, indiferente as ondas que
estrondeiam sem cessar contra a pedra sólida, em turbilhões de branca
espuma. Mas como a nenhum poder é dado triunfar sobre a vontade
irresistível do povo, as coisas encaminhavam-se aos poucos, segundo os
destinos traçados pela implacável Juno, e o venerando rei, invocando com
fervor os deuses e os céus indiferentes, disse:

— Ai! Somos arruinados pelos destinos e arrastados pela procela! Vós


mesmos pagareis, desgraçados, com o vosso sangue sacrílego o castigo
desse crime. E a ti, Turno, cuja parte na culpa é maior, está reservado um
justo castigo. Implorareis então o perdão divino, mas já será tarde. Quanto a
mim, já me vejo próximo do túmulo e a guerra apenas me privará de uma
morte sossegada.

Calou-se então e encerrou-se nos seus aposentos reais, entregando aos


outros a direcção dos negócios. O horrível clamor dos homens sedentos de
sangue ressoou por toda a região e de todos os lados afluíam soldados em
fogosos corcéis. Afiavam-se os chuços de pedra e os machados, havia muito
tempo postos de lado, colocavam-se novas cordas nos arcos e lustravam-se
as armaduras e capacetes com banha de porco. Eram cinco cidades do Lácio
— além de Laurento, cidade de Latino — aprontando bigornas e forjando
novas armas: Atina, Tíbure, Ardea, Crustuméria e Antemnas Os camponeses
derretiam os arados, foices e enxós e retemperavam as espadas dos seus
antepassados. Aplaudiam os chamados das trombetas de guerra e reuniam-
se em torno dos estandartes.

O primeiro a apresentar-se foi Mezêncio, desprezados dos deuses, com


os seus batalhões armados e acompanhado do filho Lauso, notável pela sua
formosura, só excedida por Turno. O jovem, domador de cavalos e vencedor
de feras, trouxe de Agilina mil soldados. Seguia-se-lhes o esbelto Aventino,
descendente de Hércules, no seu carro de guerra coroado de palmas e puxado
por uma parelha de soberbas corcéis.

136
ENEIDA - Virgílio
O seu escudo ostentava o emblema paterno — cem serpentes e a
horrível Hidra de nove cabeças, também cercada de répteis. Os seus
comandados traziam lanças e espadas sem ponta aguda. O próprio Aventino
entrou nos salões reais com uma rústica pele de leão pendendo-lhe dos
ombros, com uma mandíbula de ferozes dentes do animal ornando-lhe a
cabeça e a juba revolta caindo-lhe pelos ombros e pescoço.

E muitos outros vieram com os seus guerreiros para formar um grande


exército em Laurento. O rei Ébalo, filho da ninfa Sebeto, trouxe inúmeras
tribos de Rufras e de muitas outras regiões sob o seu jugo. Haleso, filho de
Agamémnon, inimigo fidagal da raça troiana, atrelou os seus cavalos ao
carro de guerra e chegou à frente de milhares de guerreiros, que, ávidos de
luta e de glória, à moda dos teutões, lançavam dardos atados por longos fios
aos pulsos, para os recolherem depois, ou espadas pequenas e curvas para o
combate corpo a corpo. Também apareceu Ufente, vindo da montanhosa
Nérsia, chefiando o seu clã calejado nas árduas caçadas e que movia guerra
incessante a todos os povos vizinhos que viviam do saque e do roubo. Tão
vigilante permanecia sempre, que até ao lavrar e semear os campos conduzia
armas. E não nos esqueçamos de Umbrão, sacerdote da gente Marrúbia, que,
enviado pelo rei Arquipo, ali no Lácio se apresentava com o seu capacete
adornado de folhas de oliveira, pronto para fazer sarar os ferimentos com
bálsamos feitos de ervas por ele mesmo colhidas. Tinha também o poder
mágico de acalmar as víboras, prostranda-as em sonolência, e de curar as
suas mordeduras venenosas. E apesar disso — das suas ervas e das suas
mágicas — uma lança troiana o mataria.

Continuava a apresentação dos muitos cujo coração Alecto enchera de


ódio e rancor contra os recém-vindos companheiros de Eneias. Lá apareceu
Carnila, da tribo Volsca, guerreira comandante de batalhões e esquadrões de
cavalaria armados de ferro e bronze. Nunca pusera as mãos em trabalhos
domésticos, pois desde donzela que se habituara a arrostar os duros certames
masculinos. Tão veloz era na corrida, diziam, que podia correr sobre as
hastes do trigal plantado sem sequer mover os frágeis caules ou deslizar
sobre a crista das ondas com os pés enxutos. Admirados, todos a olhavam a
desfilar, vinte passos à frente da sua tropa de donzelas, com uma túnica de
púrpura real caindo aos ombros, o cabelo louro preso com um diadema de

137
ENEIDA - Virgílio
ouro. Aos olhos do povo ela não parecia menos formosa que Diana, a deusa
caçadora. Do seu ombro pendiam um carcás e um arco e na mão levava uma
haste de mirro encastoada em aço.

No meio da grande multidão, destacava-se Turno, de cabeça mais alta


que todos os outros. O seu capacete reluzente de três plumas, trazia esculpida
uma figura da Quimera que cuspia fogo à semelhança de um Etna em
miniatura—no mais aceso do combate. Quanto mais sangue derramassem as
suas armas, mais quente sala o hálito do monstro. Gravado em alto-relevo
no seu escudo, via-se a imagem de Io, antiga e maravilhosa sacerdotisa de
Juno, a quem Júpiter transformara numa novilha cor de neve. Ali aparecia,
esculpida no bronze, a pequena vaca sagrada atada a uma oliveira, enquanto
Argos a vigia com cem olhos, incessantemente abertos, sem nunca dormir.

Agora formavam todas as tropas à retaguarda do comandante-em-


chefe. A planície rebrilhava com o fulgor do aço e do bronze, ouro e prata,
até onde a vista alcançava. Oceano de plumas e penachos ondulava ao vento
e a terra tremia com o estrondear de milhares de pés, com o bater dos cascos
e o rumorejar das rodas. O ar era cortado por milhares de vozes e pelo
clangor das armaduras.

Era costume antigo no Lácio, como era também em Roma, quando as


legiões saiam a combater os bárbaros, que, ao ser declarado o estado de
guerra, se fizessem grandes rituais dirigidos ao deus Marte. No seu templo
havia duas portas denominadas as Portas da Guerra, fechadas por cem traves
de bronze e cem barras de ferro de eterna duração. Ali estava sempre pastada
a imagem do deus Jano, de duas faces. Decidida a luta, deveria o rei Latino
mandar notificar Eneias, e ele mesmo abrir as portas do fatídico templo. No
entanto, desgostoso com tudo o que via, Latino refugiara-se nos seus
aposentos, recusando-se a qualquer coisa. Então a própria Juno, filha de
Saturno, desceu dos céus e ela mesma empurrou as pesadíssimas portas,
abrindo o caminho para a carnificina.

138
ENEIDA - Virgílio

Capítulo 8: Eneias em Apuros

Houve grande comoção entre as fileiras cerradas quando Turno


levantou o estandarte de guerra. Ressoaram as trombetas, excitaram-se os
corcéis e ouviu-se um retinir de armas por todo o campo. O Lácio inteiro ali
reunido animava-se contra o inimigo. Os capitães arrancavam os homens
dos arados e das foices, deixando as culturas abandonadas, percorriam as
cidades e os campos arrebanhando guerreiros para as suas legiões. O
príncipe rótulo enviou Vénulo, mensageiro, à cidade do grande Diomedes,
para pedir auxilio contra os dardanios, acampados às margens do Tibre.
Dizia a mensagem que Eneias queria coroar-se rei do Lácio. Diomedes,
afamado herói da guerra de Tróia, conhecia melhor — as sim se esperava —
as tácticas de batalha de Eneias, troiano, que Turno e os seus comandados.

No entanto, enquanto se passavam estes acontecimentos não tinha


sossego a mente inquieta do jovem Turno. Pensava em vários planos, ora
aceitando-os, ora recusando-os, como quando a luz incide trémula sobre a
água, vinda do Sol ou da Lua, e vagueia daqui para ali e para acolá, em
muitos lugares.

Era noite e o profundo sono por toda a terra apoderara-se dos animais
cansados, das aves e do gado, quando Eneias se deitou na praia, ao relento
frio, com o coração inquieto por aqueles preparativos de guerra, dando
repouso merecido ao corpo. Apareceu-lhe então em sonhos o velho Tiberino,
deus do rio, surgido por entre a folhagem dos altos choupos, com o cabelo
encanecido meio escondido entre os ramos das árvores. Um véu cinzento de
névoa pendia-lhe do rosto e uma coroa de caniços adornava-lhe a cabeça. E
falou-lhe:

— Ó descendente da raça dos deuses que plantas a cidade troiana no


meio dos inimigos, segundo a vontade dos deuses e as predições dos
oráculos, não temas as ameaças de guerra, nem afrouxes o animo na empresa
a que te lançaste, pois no fim vencerás. A cólera e o ressentimento dos
deuses já se aplacaram contra ti.

139
ENEIDA - Virgílio
E continuou:

— Em breve, para que não penses serem as minhas palavras vapores


ténues de sono ocioso, em breve hás-de encontrar, deitada sob as azinheiras
que margeiam o grande rio, uma enorme porca branca com trinta leitões,
todos também brancos como a neve, amamentando-se nela. Este será o lugar
da cidade que fundaras e nela encontrarás a recompensa e o repouso para
todos os teus esforços. Ali reinará Ascânio por trinta longos anos e a cidade
passará a ser conhecida como Alba Longa Isso eu te juro e é a minha
profecia. Agora, ouve-me com atenção, pois te direi porque e como sairás
vencedor, apesar das dificuldades actuais. A cerca de três dias de viagem,
subindo o meu curso sagrado com os barcos, vive um povo cujo rei é
Evandro, neto de Palas, o famoso governante da antiga Arcádia. Ele,
Evandro, construiu a sua cidade nas colinas altas e baptizou-a de Palanteia.
São inimigos dos latinos, a quem constantemente têm feito guerra. Vai,
portanto, aos seus domínios e une-te a eles como aliado. Eu próprio te guiarei
pelo meu curso até lá, evitando as margens traiçoeira e vencendo a
correnteza pela força dos remos. Eia, pois, filho de uma deusa, ergue-te e,
segundo o costume, dirige súplicas a Juno ao romper da aurora, abrandando
com oferendas a sua cólera implacável e as suas ameaças perigosas. Caso
venças, tributa a mim, Tiberino, deus do rio, as devidas honras, pois nas
minhas margens verdejantes surgirá uma grande cidade, morada de Cesares
e capital do mundo.

Assim fé ou o Tibre e, depois, procurando o interior das águas,


escondeu-se no leito profundo. O sono abandonou então Eneias, que, de pé,
olhando o Sol que nascia, tomou, de acordo com o rito, um pouco de água
do rio nas mãos côncavas e dirigiu ao céu estas palavras:

— Ninfas, ó ninfas laurentinas, que dais origem a todos os rios e


riachos! Que tu, Pai Tuberino, e tuas águas sagradas me recebam a mim,
Eneias. no vosso seio e me afastem de todo o perigo. Seja qual for o lugar
de onde brutas, seja qual for a tua fonte de origem, ó rio formoso, tu — que
te compadeceste das nossas dificuldades —, tu terás sempre lugar nos meus
sacrifícios e orações. Oh! Basta que sejas propício e confirmes o que disseste
na tua profecia.

140
ENEIDA - Virgílio
Escolheu então duas birremes de sua frota e mandou que as
equipassem de remos fortes e homens seleccionados. Ao mesmo tempo,
guarneceu-os de armas. Então, de repente, quando a expedição já estava
pronta para partir, saltou-lhes aos olhos o prodígio admirável! Viram sobre
a margem uma porca branca que amamentava trinta porquinhos da mesma
cor. Eneias sacrificou-os imediatamente no altar de Juno e, em seguida,
todos partiram, os dorsos fortes dos remadores curvados nos bancos e a
multidão aplaudindo da margem. O Tibre, naquela noite longa, susteve a sua
correnteza poderosa, estendendo as suas águas bonançosas à maneira de uma
planície, de lagoa dormente ou de tranquilo paul, a fim de facilitar o esforço
dos troianos. As birremes deslizavam céleres e parecia aos homens que
estavam numa densa floresta, tão brilhante e claro era o reflexo das margens
arborizadas na superfície imóvel da água. Também os seus escudos,
armaduras e capacetes reluzentes reflectidos na superfície liquida
constituíam um bizarro espectáculo. Durante toda a noite, sem descanso, os
remos feriram a água. O Sol já passava do seu zénite, no dia seguinte, quando
avistaram ao longe os muros, a cidadela e uns poucos tectos da cidade de
Evandro, naquela época em pouca prosperidade. Para lá aproaram os bravos
navios.

Casualmente, o rei da Arcádia estava naquele dia a oferecer um solene


sacrifico ao grande Hércules e a outros deuses, num bosque fora da cidade.
Juntamente com ele, achavam-se o seu filho Palas e os principais chefes e
conselheiros do reino, todos ofertando incenso e sangue tépido das vitimas
às divindades. Ao avistarem os altos navios com os fortes tripulantes a
mover-lhes os remos silenciosos, grande pânico se apoderou de todos e
levantaram-se predispondo-se à luta, mas o bravo Palas proibiu que
interrompessem as cerimónias sagradas e ele, sozinho, lançou mão de um
dardo, correu para a pequena elevação que dominava o rio e gritou:

— Jovens guerreiros, que motivo vos traz aqui por caminhos que
desconheceis? Para onde vos dirigis? Que raça é a vossa e qual é a vossa
pátria? Trazeis a guerra ou a paz?

De pé na alta popa, respondeu então Eneias, estendendo-lhe o símbolo


da paz, um ramo de oliveira:

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ENEIDA - Virgílio
— Somos troianos, inimigos dos latinos. Estes perseguem-nos e
querem mover-nos uma guerra cruel. Procuramos o rei Évandro. Leva-lhe a
noticia de que nós, dardanios, o queremos como aliado nas armas.
Espantado com o que ouvia, pois a fama dos nomes de Tróia e de Eneias era
sobejamente conhecida por aquelas paragens, Palas respondeu alvoroçado:

— Desembarca e vem à presença de meu pai. Fala-lhe, entrando como


hóspede em nossos lares.

Dirigindo-se aos troianos, apertou a mão direita de Eneias e seguiram


os dois para dentro do bosque sagrado. Ao encontrar Evandro, Eneias falou:

— Ó tu, melhor dos gregos, a quem quiseram os destinos que eu me


apresentasse com o ramo de oliveira, propondo paz e pedindo aliança.
Apesar de teres sido um dos capitães que destruíram a nossa linda cidade
com o ferro e o fogo, não tenho medo. Ao contrário, sabia que me receberias
com prazer, pois, quando recuamos no tempo e procuramos os nossos
antepassados, vemos que as duas raças tiveram origem numa só raiz. Não te
enviei mensageiro. Eu mesmo vim e como penhor das minhas boas intenções
ofereço a minha própria vida. A nação latina — que há muito combates em
guerra cruel — quer expulsar-nos do Tibre para que, dominando todo o
litoral da Hespéria, de alto a baixo, possa finalmente fazer curvar os vossos
pescoços a seu jugo. Dá-me a tua fé e recebe a minha. Nós temos corações
intrépidos na guerra, temos animas corajosos e guerreiros calejados nas
batalhas.

Enquanto Eneias assim falava, o rei Evandro olhava-o de alto a baixo,


examinando a sua figura. Por fim, respondeu-lhe:

— Como eu te recebo e reconheço cheio de alegria, ó mais valente dos


troianos! Como me recordo das palavras de teu pai, da voz e do semblante
do ilustre Anquises! Lembro-me de Príamo, que, em visita aos reinos de sua
irmã Hesíone, passou pelos gélidos territórios da Arcádia. Era eu apenas um
jovem imberbe e ficava a admirar os chefes troianos. Mas Anquises a todos
excedia em estatura. O meu espírito juvenil ardia em desejos de dirigir-lhe a
palavra e apertar-lhe a destra. Mostrei-lhe em passeio as muralhas do nosso

142
ENEIDA - Virgílio
reino e ele, ao retirar-se, deu-me de presente um carcás com setas lícias, uma
túnica bordada a ouro e dois freios também do mesmo metal, agora em poder
de meu filho Palas. Por tudo isso, não só te ofereço a mão direita como
aliança, como determino que o meu reino se apreste em tudo o que puder de
homens e armas para te dar auxílio. E já que estais aqui, celebrei connosco
esses sacrifícios sagrados que não nos é lícito retardar mais. Estejais agora
em casa e sentai-vos à nossa mesa.

Voltaram então os servos com os vinhos e iguarias que já tinham sido


retirados. Evandro dispôs os guerreiros em seus lugares e fez sentar Eneias
num trono forrado de peles de leão. Um jovem garboso e o sumo sacerdote
trouxeram as entranhas assadas do touro, enquanto outros apresentavam as
cestas, cheias até à borda, de pão de trigo e frutas, ou serviam o vinho tinto
em cuias de prata.

Saciada a fome, terminado o festim sagrado, assim falou o rei Evandro:

— Não foi uma superstição vã que nos impôs estes sacrifícios solenes,
estas refeições tradicionais, estes ritos perante os altares. Eles são dirigidos
à augusta presença dos deuses em agradecimentos a terríveis perigos dos
quais nos livramos. Olha, troiano, aquele rochedo elevado onde a encosta da
montanha se vê despida de árvores e onde jazem os restos estraçalhados de
uma agulha de pedra! Ali, outrora, havia uma grande caverna bem no
coração da montanha, lugar inacessível aos raios do Sol, onde habitava a
figura de Caco, meio homem, meio fera.

E continuou o rei Evandro:

— O seu antro tinha as portas sempre adornadas com cabeças


ressequidas de vítimas humanas, às vezes horrendas na podridão. O solo era
coalhado de ossos e o lugar cheirava a sangue por toda a parte. O pai desse
monstro era Vulcano, que emprestava os fogos que Caco costumava vomitar
de seu imenso ventre. Um dia por aqui aconteceu passar Hércules, recém-
vindo da vitória sobre Gérion, aquele monstro com uma cabeça e um tórax,
mas de ventre e pernas triplicados. O grande herói vinha tangendo diante de
si um rico rebanho, despojos arrebatados ao monstro venado. Aqui parou

143
ENEIDA - Virgílio
para descansar, tendo ceado em minha casa. Caco, no entanto, a quem não
faziam recuar os piores crimes, foi possuído de enorme cobiça pelas lindas
reses de cor arroxeada e, aproveitando-se da calada da noite, veio aos meus
estábulos onde os animais descansavam, arrebatando quatro dos melhores
touros e igual número de vacas de beleza imaculada. Mas, para que as
marcas dos cascos não revelassem o caminho para a sua cova, ele conduziu-
os de costas, puxando-os pelas caudas e escondeu-os nas mais profundas
gargantas da montanha. Esperava assim iludir o seu fortíssimo proprietário.
No entanto, quando Hércules se preparava para reencetar a caminhada, o
rebanho encheu o bosque com os seus mugidos. Uma das novilhos
escondidas respondeu ao chamado do fundo recesso onde se achava.
Enfurecido por ter sido ludibriado, Hércules pegou numa pesadíssima clava
cheia de nós e, em cólera, subiu ao cume da montanha. Pela primeira vez,
vimos Caco apavorado. O medo deu-lhes asas aos pés e ele, veloz como o
vento, refugiou-se no interior da caverna onde baixou as correntes —
forjadas por seu pai Vulcano — que sustinham o enorme rochedo,
bloqueando inteiramente a entrada do covil. Chegou então Hércules,
olhando aqui, buscando ali, perscrutando acolá, transportado de furor, com
os dentes a tanger. Percorreu toda a montanha à cata de uma fenda ou de um
ponto fraco do tecto pedregoso por onde pudesse penetrar na câmara sem sol
do monstro. Três vezes tentou afastar o gigantesco rochedo com as suas
poderosas forças, mas três vezes fracassou, sentando-se no vale, fatigado.
Do dorso da caverna, erguia-se uma rocha aguçada, verdadeiro pináculo, que
servia de morada às aves de rapina. Como dente de gigante, ela aprumava-
se, meio inclinada na direcção do rio, para o lado esquerdo. Hércules,
colocando-se do lado direito, agarrou-a com os seus braços de ferro e,
forçando daqui para ali, conseguiu finalmente abalá-la, arrancando-a da
base. Atirou-a então para baixo e a enorme pedra espatifou-se, com
tremendo rumor que abalou os céus e espantou o próprio rio no seu leito.

E continuou:

- Agora aparecia descoberta a imensa morada de Caco, lá no coração


da montanha, parecendo que haviam aberto as portas dos próprios reinas
infernais e que as sombras dos mortos seriam expostas à luz do dia. Com
dardos, cacetes e pedras, Hércules investiu então contra Caco, surpreendido

144
ENEIDA - Virgílio
de súbito pela claridade inesperada e buscando refugio no bojo da caverna,
donde soltava Remendos rugidos. Acuado, vendo-se sem salda, o monstro
passou a vomitar da garganta torrentes de fumo, envolvendo toda a caverna
em negra escuridão, só quebrada pelas chamas que lhe partiam da boca.
Enfurecido, Hércules atirou-se para dentro do antro e, enfrentando o fumo e
as chamas, lançou os braços em torno do peito de Caco, apertando-o num
anel de ferro. Estrebuchava o monstro, olhos esbugalhados, enquanto o
herói, agarrando-lhe a garganta, lhe prendia a respiração, impedindo-o de
vomitar fogo e fumaça. Finalmente, a sua carcaça amoleceu e caiu ao solo,
morto: Hércules surgiu então do interior do monte, conduzindo os seus
touros e vacas e arrastando o cadáver disforme pelos pés. Assim foi afastado
para sempre o pesadelo que oprimia o nosso povo havia tanto tempo. A partir
desse dia, e em agradecimento a Hércules, fomos tornando estes ritos cada
vez mais solenes com o passar dos anos. Venham, pois, troianos! Entrelaçai
os vossos cabelos com coroas e derramai o vosso vinho em honra àquele
poderoso deus.

Então o rei, fronte ornada de ramos de louro, levantou a taça e todos


verteram alegremente o vinho sobre a mesa.

Mas já se aproximava a noite e Véspera chegava. Puseram novamente


a mesa para um segundo banquete. Aproximou-se uma longa fila de
sacerdotes, andando devagar, com Policio à frente, todos cingidos de peles
de animais selvagens, conforme o costume, e segurando archotes acesos.
Traziam muitas salvas cheias de novas oferendas para os deuses, e
colocaram-nas em cima dos altares. Os sacerdotes de Marte, os sálios,
apresentaram-se cantando em volta dos altares flamejantes, com as testas
cingidas de ramos de choupo. Em dois grupos, os jovens e os anciãos
cantaram e dançaram muitas músicas em honra a Hércules, descrevendo-lhe
as façanhas.

Disseram, por exemplo, como, quando ainda criancinha, ele


estrangulara as serpentes gémeas postas no seu berço por sua madrasta Juno.
Como reduzira poderosas cidades a cinzas. Como realizara os doze trabalhos
que a uma ordem de Juno lhe impusera o rei Euristeu. Exclamavam:

145
ENEIDA - Virgílio
— Tu, ó invencível, despedaças nas tuas mãos os monstros
bimembros, filhos das nuvens, matas o Minotauro e o Icao enorme da
Nemeia, atravessas o lago Estige e enfrentas Cérbero, o guardião do Inferno.
Nenhum ser te amedronta. Nem o próprio Tifeu, brandindo as armas por
cima da cabeça, nem a Hidra de Lerna te conseguiu vencer com as suas nove
bocas e mil serpentes. Salve, verdadeiro filho de Júpiter, vem com a tua
presença propícia favorecer os nossos festins sagrados.

Com esses versos celebravam os feitos de Hércules, encerrando com a


história de Caco, já narrada pelo rei aos troianos. Toda a floresta ressoava
com os cânticos e as folhagens estremeciam.

Concluídas as cerimónias do culto, regressaram todos à cidade. O rei


caminhava vergado ao peso dos anos. A seu lado, iam Eneias e Palas.
Seguiam, conversando, contando o rei ao troiano a história da raça e
mostrando-lhe os pontos mais interessantes da região. Eneias estava
encantado com o que via e frequentemente soltava exclamações de surpresa,
perguntando e respondendo, querendo saber tudo sobre a origem dos
árcades. E dizia o rei:

— Olha para esta floresta! Era, outrora, habitada por faunos e ninfas,
bem como por homens nascidos dos troncos duros dos carvalhos. Não
tinham qualquer grau de civilização, não sabiam — arar a terra, juntar
riquezas ou fazer economias. Viviam entre o dia de hoje e o de amanhã, com
o que lhes dessem a caça e a pesca e com as frutas, raizes e folhas que
conseguissem apanhar. No entanto, fugindo às armas de Júpiter, aqui veio
bater Saturno, de quem o Pai Omnipotente usurpava os reinas, expulsando-
o do Olimpo. Saturno modificou e civilizou essa raça inculta de homens que
vivia dispersa pela região.

Deu-lhes leis e governou-os durante muitos séculos como rei, em paz


serena. Com o tempo, entretanto, a região voltou a regredir, passando a
imperar o furor e a ambição. De Ausónia e da Sicília chegaram tropas e estas
terras mudaram de nome e de dono muitas vezes. Finalmente, aqui cheguei
eu, expulso da minha pátria e seguindo pelos caminhos do mar. Apoio, o

146
ENEIDA - Virgílio
deus dos oráculos, e os conselhos de minha mãe, a ninfa Carmenta, aqui me
conduziram.

Mostrou então a Eneias o altar e a porta a que hoje chamam Carmental


em honra à deidade mãe do rei Evandro e muitos outros lugares hoje
importantes e conhecidos de todos. Chegaram a um bosque e Evandro falou

— Um deus, não se sabe ao certo qual, habita esta floresta e esta colina
de cume cheio de árvores. Os árcades acreditam ter visto várias vezes Júpiter
em pessoa quando agitava o escudo na mão direita, convocando as nuvens
da tempestade. Olha para aquelas duas cidades destruídas: as muralhas por
terra, as ruínas dos edifícios e os monumentos atestam o grau de civilização
dos homens de passado longínquo. Uma dessas fortalezas foi levantada pelo
deus Jano e a outra pelo próprio Saturno. E por isso se chamam Janiculo e
Satúrnia.

Conversando, tinham chegado à habitação modesta do rei. Por toda a


parte os rebanhos recolhiam aos currais.

— Estas mesmas portas — disse o rei — viram passar o poderoso


Hércules, curvando a sua alta cabeça, quando eu era apenas um rapazola.
Esforça-te, ó meu hóspede, por desprezar as riquezas e entra sem desdém
pela minha pobreza.

Levou então o rei troiano, por essa altura já fatigado dos acontecimento
tos do dia, até ao seu coxim macio, coberto de folhas e de pele de urso da
Líbia.

Já a noite, com as suas asas foscas, cobria a terra. Vénus, com mil
motivos para inquietar o seu coração de mãe, pois sabia das ameaças dos
laurentinos e da fúria guerreira que reinava na região, foi ter com Vulcano,
seu esposo, e assim lhe falou:

— Enquanto os reis gregos devastavam Pérgamo, a condenavam à


ruína, a queimavam com archotes, nenhum auxilio pedi para os seus infelizes
habitantes. Não te pedi armas nem socorro, pois não queria que te

147
ENEIDA - Virgílio
afadigasses inutilmente, caríssimo esposo, posto que eu muito devesse aos
filhos de Prumo e muitas vezes lamentasse os cruéis sofrimentos de Eneias.
Este, agora, seguindo ordens do omnipotente Júpiter, chegou à região dos
rótulos. Venho, suplicante, rogar que dês armas a meu filho. Sou mãe!
Repara que as tropas se reúnem, que as muralhas fecham os portões e os
arsenais aguçam o ferro das armas contra os meus.

Vénus aproximou-se do marido e enlaçou-o nos seus níveos braços.


Vulcano, a princípio hesitante, cedeu finalmente ao calor e ao frescor da
esposa linda, à fragrância do seu cabelo. A sua alma incendiou-se de amor e
uma chama percorreu-lhe as veias até ao âmago dos ossos. Como quando as
nuvens enegrecidas são iluminadas pelo clarão esfuziante do raio, assim
também o rosto de Vulcano se acendeu de alegria e rejubilou-se a própria
deusa, contente do poder da sua beleza. E o deus falou:

— Para que procuras razões tão distantes, Vénus? Fugiu de ti a


confiança que me tens? Se tivesses querido, eu teria fabricado armas
invencíveis para os príncipes troianos e poderia ter salvo Tróia, pois nem
Júpiter todo-poderoso nem as Parcas se importariam de ver a cidadela de
Príamo resistir maus de dez anos. Agora, se estás disposta a guerrear, aqui
estou eu para te prestar o auxilio que queres, até onde a minha arte o permitir.
O que se puder fazer com o ferro fundido, o que puderem os fogos e os
sopros dos foles, não duvides, que te darei.

Assim falando, abraçou-se à esposa e, depois, reclinado no seu colo,


adormeceu em plácido sono. Na manhã seguinte, já estava o deus na forja.
Situava-se esta numa ilha pedregosa, ao lago da costa siciliano. Lá
trabalhava ele na vasta caverna subterrânea. Lá lidavam os seus operários
com os martelos e as bigornas. Os Ciclopes gigantescos, Brontes, Estéropes
e Pirácmon tinham escavado galerias que traziam o fogo dos caldeirões do
Etna para a forja divina. Nus até à cintura, trabalhavam sem parar para
Vulcano, fazendo armas, escudos, trípodes, braseiros e muitas outras coisas,
de acordo com os desejos dele. Agora enchiam grandes cadinhos com ferro,
estanho e cobre, zinco, ouro e prata. Derramavam as torrentes flamejantes
de metal derretido nos moldes ou mergulhavam-no, assobiando e fervendo,
na água, para subjugar o seu calor abrasador e temperá-lo. Segurando as

148
ENEIDA - Virgílio
peças com as tenazes, batiam no metal macio com as marretas, dando-lhes
forma antes que esfriassem. Virando-o daqui para ali, dali para aqui, faziam
chover golpe após golpe, em ritmo alucinante.

Quando Vulcano, seu senhor e mestre da oficina, surgiu no meio deles


achou-os entregues a muitas tarefas. Já tinham caldeado e polido parte dá
um raio dos muitos que Júpiter arremessa por todo o céu sobre a terra
Tinham juntado três porções de granizo, três de nuvem chuvosa, três dá fogo
rutilante e três de vento impetuoso. Misturavam agora ao sinistro artefacto
o terrível fragor do trovão. Noutra parte da caverna terminavam um carro de
guerra de Marte, para que o deus percorresse a terra em sua rodas velozes,
incitando os homens à luta. Outros poliam um escudo para Minerva, sobre
o qual tinham esculpido em ouro a terrível cabeça de Górgona, de olhos a
girar nas órbitas, um ninho de serpentes no alto da testa e línguas
dardejantes.

Vulcano gritou-lhes, elevando a voz acima do estrondear da caverna:

— Largai tudo, suspendes os trabalhos começados, Ciclopes do Etna,


e voltai a vossa atenção para mim. Tendes de fabricar armas para um valo
roso guerreiro. Atacai a vossa tarefa com força, rapidez e perícia, nada dá
demoras.

E calou-se, pois já todos os operários da forja divina se aplicavam por


igual e velozes ao trabalho. O bronze corria em rios, bem como o metal
aurífero, e o aço homicida caldeava-se na gigantesca fornalha. Fizeram um
formidável escudo para Eneias, capaz, só ele, de resistir a todos os dardos
latinos, pois eram sete as laminas circulares unidos umas às outras.
Manejavam os foles, despejavam o metal derretido, brandiam os martelos
ou aplicavam as tesouras.

Enquanto o deus Vulcano apressava os trabalhos nas forjas do


subsolo, a benfazeja luz da aurora despertava Evandro no seu leito humilde
e ele escutava o canto dos pássaros madrugadores. Levantou-se, cobriu o
corpo com uma túnica, calçou os pés em sandálias rústicas e afivelou à
cintura a espada. Saiu, precedido de dois guardas e dois caís. Lembrara-se

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ENEIDA - Virgílio
da coro versa e do auxilio prometido aos troianos e dirigiu-se ao quarto de
Eneias Este não era menos madrugador. Aproximou-se então o rei,
acompanhado de seu filho Palas, de Eneias, que conversava com Acates.
Apertaram-se as mãos direitas e começaram a conferência. Disse primeiro
Evandro:

— Ilustre chefe troiano, sempre acreditei vossa vida salva do incêndio


e da destruição de Tróia, como também sempre duvidei que estivésseis
vencido. Sáo fracas as forças que vos podemos oferecer como auxílio. Estão,
bem o sei, em desproporção com a glória de Pérgamo. É certo, entretanto,
que as Parcas aqui te enviaram no momento oportuno! Não longe daqui
eleva-se a sede de Agila, cidade antiga, fundada por um povo de raça lídia,
sobre altos rochedos. Sabeis que a Letria é uma nação aparentada à vossa,
pois a sua capital ficava próxima de Tróia. São experimentados na guerra e
eram felizes e prósperos sob o governo de seus antigos reis. Tudo, entretanto,
mudou, quando o cruel Mezêncio subiu ao trono. O seu caminho como
governante está manchado de sangue. Para quê contar-vos as mortes
abomináveis? Para quê narrar os bárbaros atentados do tirano contra a vida
e a propriedade dos súbditos? Que os deuses lhe reservem os castigos
merecidos! Chegou a inventar um novo género de torturas, fazendo ligar os
vivos aos mortos por mãos e rostos, deixando-os apodrecer juntos,
misturados em sangue e pus.

Continuou:

— Por fim, cansados de tantas crueldades, juntaram-se os súbditos


enraivecidos e atacaram o palácio, ateando fogo ao edifício e matando todos
os seus partidários. Mezêncio, no entanto, conseguiu escapar para o
território dos rótulos, onde Turno lhe deu guarida. Sublevou-se, então, toda
a Etrúria com justo motivo, reclamando o rei para o castigo merecido. São
esses mil guerreiros lídios, Eneias, que procurarei colocar sob as tuas ordens.
Os navios deles estão no porto, prontos para zarpar contra o reino inimigo,
mas um antigo profeta insiste que não o façam. Diz ele: «O bravos guerreiros
de uma raça antiga! Ninguém há na Itália capaz de levar povo tão valoroso
à guerra. Esperai um pouco com paciência e dos mares surgirá um
estrangeiro que vos levará à vitória!» Os chefes ódios acataram a palavra do

150
ENEIDA - Virgílio
oráculo e acamparam junto ao porto. Chegaram a enviar-me embaixadas,
oferecendo-me a coroa e o ceptro do reino, para que os liderasse, mas a
minha idade já não permite que me lance em tais proezas. Exortaria o meu
filho a assumir o posto, não fosse ele herdeiro de outro reino por parte de
sua mãe de origem sabina. Tu, a quem os deuses, a idade, o valor e a força
favorecem, apresenta-te candidato e reúne troianos e italos. Aqui tens o meu
filho Palas como companheiro. E a minha esperança e salvação. Acostuma-
o, sob a tua direcção, às artes de Marte. Contigo seguirão quatrocentos
cavaleiros do meu reino.

Eneias e o fiel Acates ficaram silenciosos por um momento, com os


olhos fixos no chão. Muitos pensamentos lhes vinham à mente. As
dificuldades da tarefa, a falta de armas e as peripécias da guerra. Então,
subitamente, surgiu do céu um sinal enviado por Vénus. Relâmpagos
cortaram o firmamento, a terra tremeu com o fragor do trovão que rugia e
estourava continuamente, enquanto um som de trombeta partia das nuvens.
Tudo parecia desabar de repente no mundo em convulsão. Erguendo a vista,
divisaram o rutilar de armas entre o ajuntamento de nuvens. Todos pararam
estupefactos ante aquela visão sobrenatural, mas Eneias, percebendo que era
um sinal da sua divina mãe, convocando-o para a luta, disse:

— Ah, meu hóspede benquisto, não procures saber agora que


acontecimento anunciam estes prodígios, mas sabe que é a mim que o céu
se dirige.

(Continuou)

— Vénus, minha mãe, predisse que haveria de enviar esses presságios,


se a guerra sobreviesse, e pelos ares me faria trazer auxilio com armas de
Vulcano. Ai! Quantas mortes ameaçaram os desgraçados laurentinos! E tu,
ó Turno, como tenho piedade de ti! Que quantidade de escudos, de capacetes
e valentes corpos de heróis rolarão nas tuas águas, ó pai Tiberino!

Saíram logo a oferecer sacrifícios a Hércules e aos deuses domésticos.


Em seguida, Eneias foi para os barcos troianos e dentre os seus tripulantes
escolheu os mais valentes para serem seus tenentes na guerra. Os outros

151
ENEIDA - Virgílio
embarcaram e, deslizando céleres pelas águas do Tibre, foram levar a
Ascânio e ao restante da pátria troiana noticias do pai e dos acontecimentos.
Apresentaram-se os cavaleiros árcades postos à disposição de Eneias e a este
foi trazido um maravilhoso corcel coberto com uma fulva pele de leão, cujas
unhas encastoadas de ouro rebrilhavam.

Subitamente, chegou a noticia de que se aproximavam, vindas das


fronteiras da cidade, tropas montadas. O deus da guerra já ameaçava todos
de perto. O medo crescia, as mães apertavam os filhos contra o peito.
Evandro, segurando a mão do filho como despedida, chorava copiosamente
dizendo:

— Oh! Se Júpiter me devolvesse aos meus anos passados! Tal qual eu


era quando em assalto às cidades inimigas derrotei a primeira linha de
combatentes e, vencedor, fiz uma fogueira com montões de escudos!
Quando, com esta mão que aqui vês, enviei ao Tartaro o próprio rei Erilo, a
quem sua mãe, Ferónia, dera ao nascer — prodígio espantoso de contar-te!—
três almas e três armaduras. Três vezes tinha de ser derrubado pela morte.
Todavia, este meu braço arrancou-lhe todas as vidas e despojou-o de outras
tantas armaduras. Se fosse mais jovem, não me separaria agora em parte
alguma dos teus braços, filho, nem jamais Mezêncio teria zombado de meu
reino, nem cometido tantos crimes torpes. Mas eu vos suplico, ó deuses, e
sobretudo tu, ó Júpiter, soberano de todos eles, compadecei-vos do rei da
Arcádia e ouvi os lamentos de um pai. Se os vossos decretos divinos, se os
destinos me devolverem Palas incólume, se eu ainda voltar a vê-lo na terras
peço-vos a vida.

(Continuou)

— Estou pronto a suportar quaisquer trabalhos. Se, pelo contrário, me


ameaçais, ó Parcas, com alguma desgraça infanda, que neste momento,
agora — quando ainda está descido o véu do futuro —, me seja arrebatado
o fio da vida enquanto tenho nos braços o meu filho querido, minha única e
derradeira consolação, para que não venha noticia mais pungente ferir os
meus ouvidos.

152
ENEIDA - Virgílio
E, não resistindo mais à dor da separação, o rei desmaiou, sendo
conduzido nesse estado, pelos servos, para sua casa.

Mas já sairá a cavalaria pelas portas abertas. Eneias ia à frente de todos,


seguido pelo fiel Acates e logo pelos os outros capitães troianos. Palas, no
meio dos cavaleiros, sobressaia devido à sua túnica e ao refulgir das suas
armas, qual outro Lúcifer, e brilhante como a estrela da manha nascendo no
oceano. As mães, com os corações trémulos, postavam-se no alto das
muralhas e com a vista acompanhavam a nuvem de poeira e as coortes
fulgurantes que se afastavam.

Havia um riacho de águas frias que serpenteava através de um grande


e escuro bosque de ciprestes. Colinas rodeavam o local por todos os lados,
formando um vale agradabilíssimo. Esse bosque era grandemente
reverenciado pelos habitantes da região, porque, segundo a lenda, os antigos
pelasgos, os primeiros habitantes daquela parte do Lácio, o tinham
consagrado a Silvano, deus dos campos e dos rebanhos, a quem dedicaram
um dia no calendário. Foi ali que Eneias e os seus garbosos cavaleiros
fizeram alto para dar água e pasto aos animais, para jantar e passar a noite.
Tendo-se afastado um pouco aos companheiros, para meditar, Eneias viu
surgir-lhe à frente a sua mãe, Vénus, que desceu das nuvens com o seu
presente, o escudo e as armas que Vulcano, seu marido, lhe fizera. Enquanto
o herói meditava sobre os riscos e oportunidades da batalha, a deusa
aproximou-se e abraçou-o com ternura, dizendo:

— Aqui tens as armas prometidas, fabricadas pelas artes de meu


esposo. Não temas, pois, meu filho, desafiar para o combate os soberbas
laurentinos ou o próprio Turno.

Dispôs então as armas reluzentes, bem arrumadas debaixo de um


frondoso carvalho. Eneias, maravilhado com a dádiva, não se cansava de
passear os olhos extasiados pelos objectos de guerra. Admirava-os,
segurava-os e revirava-os nas mãos. O capacete de penacho, a couraça,
rutilante, imensa, qual nuvem azulada que se inflama aos raios do Sol e
refulge ao longe. As perneiras de ouro refundido, a lança e a contextura do
escudo, impossível de descrever. Nele se via esculpida toda a história da

153
ENEIDA - Virgílio
Itália, não só dos acontecimentos passados, mas também dos factos
presentes e até futuros, pois não o deixara por menos o imortal Vulcano, no
desejo de agradar à esposa. Ali estavam representados os dois meninos
gémeos, Rómulo e Remo, e a loba que os amamentaria. As altas muralhas e
torres de Roma, ainda não levantadas. As mulheres sabinas, raptadas pelos
jovens romanos. Rómulo pregando a guerra, Mécio, que por suas mentiras
era esquartejado por quadrigas atadas aos membros e postas a galopar em
direcções diversas. Tulo, mais tarde, arrastando pela selva os pedaços do
mentiroso, com o sangue gotejando nas moitas e ensopando a terra. Os
descendentes de Eneias lutando valentemente pela liberdade. Os gansos de
prata do Capitólio grasnando loucamente pelas ruas, alertando assim os
romanos de que os inimigos bárbaros, os gauleses, lhes estavam às portas, e
também estes, agachados nas touceiras escuras, prontos para assaltar as
muralhas

Eneias acompanhava todas estas cenas com os dedos e, de vez em


quando, os seus lábios soltavam exclamações de surpresa ante a perfeição e
delicadeza da escultura e da arte dos berreiros gigantescos.

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ENEIDA - Virgílio

Capítulo 9: Os troianos são Cercados

Enquanto isso, Juno, filha de Saturno, enviava pelos ares a sua


mensageira Íris ao encontro de Turno. A deusa irisada encontrou-o sentado
no bosque de seu avô Pilumno, num vale sagrado. Disse-lhe então:

— Turno, o correr do tempo apresenta-se agora como uma excelente


oportunidade que não pediste e com a qual nem mesmo sonhaste. Eneias,
tendo deixado os seus companheiros, as suas armas e os navios no
acampamento, foi ao reino de Evandro. De lá seguiu para outras cidades
vizinhas onde arma uma força de camponeses lídios. Que esperas? Reúne os
teus cavalos e carros e assalta o acampamento de surpresa.

Assim falando, abriu as asas e elevou-se nos ares, traçando um grande


arco multicolor nas nuvens. O príncipe, reconhecendo-a, seguiu-a alçando
os braços na sua direcção e exclamando:

— Íris, jóia do céu, quem aqui te enviou para me favorecer? Porque,


de súbito parece o tempo tão claro? Vejo o céu entreabrir-se e estrelas
fulgurando no firmamento. Táo grandes são esses presságios que não ouso
desobedecer-te, ó tu, que me envias à guerra.

Tomou então água do rio na concha das mãos e encheu os ares com
votos e orações aos deuses.

Pouco depois, já todo o exército do Lácio marchava em campo aberto.


Eram milhares de soldados, num oceano de penachos coloridos e armaduras
douradas. Comandando a vanguarda, seguia Messapo, enquanto os filhos de
Tirro seguiam à retaguarda. No seu lugar de chefe, no meio da tropa,
ostentava-se altivo Turno, empunhando a espada desembainhada e a todos
excedendo em estatura, como o Ganges que surge imponente com seus sete
tributários num curso silencioso, ou como o Nilo, de águas fecundas, quando
se retira das planícies.

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ENEIDA - Virgílio
De dentro das suas fortificações rústicas, os dardanios avistaram um.
nuvem de poeira que se ia tornando cada vez maior e mais espessa. Caúct
foi o primeiro a vê-la e logo bradou:

— Que negra poeira é essa que se aproxima, camaradas? Não serás


amigos, por certo. Rápido, fechai os portões! Pegai em armas! Guarnece os
postos!

Em grande algazarra, retiraram-se todos os troianos das vizinhanças,


recolhendo-se à cidadela improvisada. Assim o tinha ordenado Eneias, bom
conhecedor das tácticas de guerra, advertindo-os também de que durante a
sua ausência não saíssem em hipótese alguma para combater em campo raso,
dando preferência à luta do alto dos muros e torrões da trincheira. Assim
trataram de executar as suas ordens, apesar do ardor e da cólera contra os
rótulos os impelirem à peleja gloriosa, corpo a corpo, na planície.

Turno, adiantando-se com vinte cavaleiros escolhidos à marcha mais


lenta do exército, apresentou-se de repente às portas do acampamento
troiano. Montava um negro cavalo da Trácia, de malhas brancas, e
encimava-lhe a cabeça um capacete de ouro e um penacho vermelho. Gritou
para os que o acompanhavam:

— Ó bravos companheiros, quem de vós virá comigo primeiro


enfrentar esses troianos atrevidos que desembarcaram sem permissão nas
nossas praias?

Assim falando, arrojou o seu dardo aos ares como sinal de batalha e,
orgulhosamente, dirigiu-se para o baluarte. Toda a tropa gritando
belicosamente, acompanhou-o, num clangor hórrido de guerra, admirando-
se do animo medroso do adversário, que se recusava a dar-lhes combate em
campo aberto. Rubro de cólera, Turno espreitava os muros, aqui e ali, na
esperança de descobrir um ponto mais vulnerável. Era como o lobo que,
insidioso, espreita o aprisco dos mansos cordeiros e freme de fome, frio e
ira junto às grades, enquanto os animaizinhos, recolhidos, batem fracamente,
e procura um meio ou outro de forçar a entrada e saciar as entranhas ávidas
de sangue. Assim também o comandante rótulo seguia de um lado para o

156
ENEIDA - Virgílio
outro, aumentando-lhe o despeito no coração à procura de um meio —
traiçoeiro ou brutal — de vencer as defesas troianas, fazendo-as sair para a
planura.

Próximo do acampamento, cercada de três lados por paliçadas de


madeira e do quarto lado pela vastidão do rio Tibre, estava ancorada a frota
dardania. Para ela se voltou então a atenção de Turno, que ordenou aos seus
homens que trouxessem archotes. Uma chuva de fogo caiu sobre os barcos.
O céu rebrilhava com o seu clarão e uma fumaça escura como mortalha
encobria tudo. Entretanto, apesar de choverem archotes aos milhares, as
embarcações desafiavam o fogo e não se incendiavam.

Ó Musas, que divindade salvou a frota troiana de incêndio tão


desastroso? Dizei se é verá a tradição segundo a qual, há muitos anos,
quando Eneias, ainda nas encostas do monte Ida, próximo às ruínas de Tróia,
se aprestava a fim de partir para o exílio, Cibele, a própria mãe dos deuses,
assim falou a Júpiter:

— Concede, ó filho, a mim que te peço, o que tua querida mãe te roga,
agora que és senhor do Olimpo. Tenho uma floresta de pinheiros, de mim
estimada há longos anos, nas encostas escuras do monte Ida. Lá, os troianos
me levavam oh erras e agora eu, de bom grado, cedi algumas árvores a
Eneias para que construísse a sua frota. Entretanto, um grande receio me
atormenta e quero que me livres dele. Peço-te que, mesmo batidos pelos
ventos, arremessados pelas forças das ondas e atingidos pelas chamas, não
sejam esses navios destruídos. Que a sua madeira sagrada os preserve
sempre!

Júpiter, na sua omnipotência, respondeu-lhe:

— Ó mãe, porque pedes que navios construídos por mãos mortais


sejam imortais? Porque pedes que a Eneias seja dada tal protecção dos céus
contra todos os perigos? Nem mesmo a um deus se concedem tais coisas.
Mas eu prometo-te que um dia, quando as naus do herói troiano o tiverem
transportado para as praias da Itália, na foz mesma do Tibre, eu lhes darei a
imortalidade e elas perderão a forma actual que têm. Transformar-se-ão em

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ENEIDA - Virgílio
deusas do mar azul e juntar-se-ão a Doto, Galateia e a outras filhas de Nereu
— bando alegre de ninfas que se divertem em incontidas evoluções no seio
das ondas espumosas.

Chegara, portanto, o dia determinado e cumpria-se o voto de Júpiter.


As rochas ardentes do exército de Turno nada podiam contra os navios
construídos com aquela madeira sagrada.

Enquanto as chamas chore iam sobre os barcos, uma luz estranha


brilhou no horizonte e uma grande nuvem passou deslizando pelo
firmamento, enquanto uma voz altíssima — a voz de Cibele, mãe dos deuses
— soava:

— Não vos apresseis, ó dardanios, em defender os vossos navios, pois


estão mais seguros contra o fogo de Turno que as águas dos mares. São
minhas árvores sagradas! E agora, densas das águas, ide! É a minha ordem.

Imediatamente, as popas desprenderam-se das areias arrebentando as


amarras e os navios embicaram para o fundo do mar, surgindo logo depois
sob a forma de formosíssimas ninfas que pulavam e dançavam como
golfinhos graciosos, afastando-se da costa.

Os acontecimentos prodigiosos deixaram os rótulos estupefactos e


aterrorizados. Messapo encheu-se de pavor, que atingiu também os seus
cavalos, mas não a Turno, que, vendo os agouros pelo seu lado bom, disse:

— Estes presságios são contra os troianos. O próprio Júpiter tirou-lhes


a única esperança que restava: a fuga por mar. Terão eles agora de enfrentar
os dardos e as espadas dos nossos bravos guerreiros. A terra está em nosso
poder, somos-lhes muitas vezes superiores em número e do nosso lado
reúnem-se quase todos os povos da Itália! As profecias dos deuses, embora
o inimigo as tome a seu favor, em nada me aterram. Obedeceram aos
desígnios de Apolo e cumpriram-se as promessas das Parcas e eles chegaram
às terras do Lácio, mas a partir deste momento somos nós que temos o
destino nas mãos. Não lhes bastou ver as muralhas de Tróia destruídas, para

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ENEIDA - Virgílio
quererem tentar novas aventuras? Quanto a vós, valentes guerreiros, dizei-
me qual de vós vem comigo arrasar a ferro e fogo essas rústicas trincheira.

(continuou)

— Contra os troianos não preciso de armas de Vulcano, nem de mil


navios, ainda que todos os etruscos fossem seus aliados. Não necessitam,
como na guerra contra os gregos, temer as trevas da noite, o cobarde roubo
da estátua de Minerva, nem que sejam assassinadas as sentinelas dos seus
bastiões. Também não nos esconderemos no bojo de um cavalo, à luz do dia.
Rodearemos abertamente essas fortificações a ferro e fogo, para que não
pensem que somos os gregos que Heitor entreteve durante dez anos. Mas
agora, como já se passou a maior parte do dia e essas primeiras tentativas
terminaram com êxito, cuidai alegres de vossos corpos, meus guerreiros, que
bem mereceis esse repouso. Amanhã espera-vos o combate.

Messapo ficou então encarregado de vigiar as portas com sentinelas e


de cercar os muros com fogueiras. Foram colocados doze postos, cada um
com cem homens de tónicas purpurinas, penachos e armaduras de ouro
cintilante, rondando e revezando-se em horas certas. Enquanto uns velavam,
outros entregavam-se ao descanso ou bebiam vinho deitados na relva. As
fogueiras luziam na escuridão.

Do alto das suas trincheiras, os troianos observavam tudo, atentos ao


menor movimento junto as portas e prestes a lançar mão das armas. Seresto
e Mnesteu, a quem Eneias nomeara como chefes em seu impedimento, não
descansavam. Toda a guarnição estava alerta pelos muros, depois de ser feito
o sorteio para ver quem ocuparia os postos mais perigosos, e cada um
cumpria o seu dever. O grande guerreiro Niso, filho de Hírtaco,
incomparável no lançamento do dardo e arqueiro exímio, guardava o portão
principal. Perto dele estava Euríalo, seu amigo íntimo, jovem ainda e famoso
pela beleza das feições. Disse Niso:

— São por acaso os deuses, Euríalo, que insuflam este ardor na minha
mente ou são os nossos próprios desejos que, de tão veementes, nos parecem
como sendo vontade das divindades? Há muito tempo que me agita o

159
ENEIDA - Virgílio
pensamento de tentar ou um combate ou uma outra grande empresa. V&
como estão confiantes os rótulos, a ponto de relaxarem a guarda, certos da
sua força, entregando-se ao sono e ao vinho? Raras fogueiras ainda brilham
e por toda a parte reina o silêncio. Ouve, pois, o meu plano. Todos aqui
querem que seja enviada uma mensagem a Eneias, dizendo-lhe o que ocorre,
para que venha guiar-nos. Nada almejo mais do que a glória de ser portador
de tal notícia. Acho que pela falda daquele outeiro não distante poderei achar
saida para a cidade de Evandro.

Euríalo respondeu:

— Certamente, amigo Niso, não pensavas em atirar-te a tão arriscada


empresa sozinho, deixando-me para trás! Ofeltes, meu pai, acostumado as
lides de Marte, não me instruiu assim quando me educava no meio dos
perigos da grande guerra de Tróia. Desde criança que tenho visto a selvajaria
da batalha e os morticínios e assisti ao incêndio da minha própria casa. Não,
Niso, não iras só, pois aqui está alguém para quem a vida não é um preço
muito alto a pagar-se pela fama e glória.

Retrucou-lhe o amigo:

— Não esperava outra coisa de ti e nunca me passou pela cabeça que


refogasses do perigo ou que não te empregasses com o máximo valor no
cumprimento de qualquer missão. E nenhum outro desejaria eu mais, caro
amigo, ter como companheiro, na ocasião de perigo. Mas devesse eu, por
algum desejo das Parcas, encontrar a morte e desejar-te-ia vivo, para que me
desses um funeral condigno, resgatando o meu corpo ao campo de batalha
ou ao inimigo, a troco de dinheiro e — se algum obstáculo houvesse a tal
coisa—que a meu corpo desaparecido fossem realizadas honras fúnebres e
reservado sepulcro vazio. És muito jovem ainda e a tua idade é digna da
vida. Além disso, como poderia eu olhar novamente a tua mãe nos olhos, ela
que, desprezando o conforto da terra de Acestes, preferiu seguir-te por todos
os perigos do mar, se por acaso retornasse sem o seu filho querido?

Euríalo, porém, manteve-se resoluto:

160
ENEIDA - Virgílio
— Inutilmente procuras pretextos. A minha resolução já foi tomada e
não a mudarei. Apressemo-nos.

Assim falando, acordou os sentinelas que os iam render no quarto.


Dirigiram-se os dois a Ascânio. Pelo acampamento repousavam todos, os
corpos e os corações aliviados das fadigas. Os chefes dos troianos e os
guerreiros mais importantes deliberavam, no entanto, sobre quem seria o
mensageiro enviado a Eneias. Reuniram-se no centro do acampamento,
apoiando-se, de pé, nas altas lanças, escudos no outro braço. Niso e Euríalo
apresentaram-se então, dizendo terem um assunto de suma importância para
falar. Solicitaram apenas alguns minutos de atenção, o que lhes foi
concedido. Niso adiantou-se e disse:

— Companheiros de Eneias, ouvi as nossas palavras com boa vontade


e descontei a vossa idade no julgamento do que vamos relatar. Acabamos de
examinar um local óptimo para surtida ao inimigo, que, mergulhado no sono
e no vinho, não dá sinal de vida. As fogueiras estão quase extintas. Esse
lugar fica próximo da encruzilhada dos dois caminhos da porta voltada para
o mar. Se nos permitis tentar a sorte, vereis que em poucas horas
conseguiremos aqui trazer Eneias à frente de muitos guerreiros.
Conhecemos bem o caminho, pois já o palmilhamos várias vezes durante as
caçadas, chegando mesmo a acompanhar o rio até um lugar de onde, por
entre os vales escuros, avistamos as primeiras casas do reino de Arcádia.

O prudente Aletes, já curvado pelos anos, respondeu-lhes então:

— Deuses da minha pátria, sob cuja protecção sempre está Tróia, vós
não tencionais, apesar de todos os perigos por que passamos, destruir
inteiramente a nossa raça, pois ainda suscitais tanta coragem e valor nos
guerreiros descendentes de Dárdano.

Assim falando, abraçava os jovens e apertava-lhes a mão direita,


enquanto as lágrimas lhe calam pelo rosto copiosamente. E continuou:

— Que recompensas, que prémios dignos julgais que vos podem ser
concedidos, ó guerreiros, por actos de tão assinalado vigor? Serão os deuses

161
ENEIDA - Virgílio
e a vossa própria consciência que mais vos premiarão, mas também Eneias
não deixará passar tal amor ao dever sem ser reconhecido, e aqui, fascínio,
ainda no vigor da idade, o conservará vivo por muitos e muitos anos.

— Certamente — acrescentou Ascânio —, eu, para quem a única


salvação consiste no regresso de meu pai, juro-vos, Niso, pelos grandes
Penates, pelo deus Lar e pelo santuário da deusa Vesta, que toda a esperança
que tenho a deposito em vós. Trazei o meu pai, restitua-me a presença dele,
pois nada de mal acontecerá estando ele aqui. Dar-vos-ei dois copos feitos
de prata, ornados com figuras em relevo, que meu pai trouxe de Arisba, e
também duas trípodes, dois talentos de ouro e uma taça antiga ofertada pela
rainha Dido. E mais, se algum dia a meu pai couber, como vencedor, o ceptro
da Itália e os despojos dos latinos vencidos, será vosso o lindo corcel que
ora monta Turno, com todas as suas armas e vestimentas de ouro, além do
escudo e do capacete de plumas purpúreas, pois a tudo excluirei da sorte.
São prémios já a ti concedidos, ó Niso. Muitos escravos e presentes também
te dará Eneias, além das terras que actualmente possui o rei Latino. A ti,
Eurfalo, de cuja idade já me aproximo, a ti me chego e abraço como
companheiro. Nenhuma glória procurarei sem ti. Quer trate a paz, quer faça
a guerra, ouvirei sempre os teus conselhos.

Em resposta ao jovem Ascânio, disse Eurfalo:

— Rogo aos deuses, príncipe, para que nunca me aches indigno de tão
alta honra e que nunca falte à tua confiança. Mas tenho um favor a pedir-te.
Minha mãe, já de avançada idade, pertence à família de Príamo. Não a releve
Tróia, nem tão pouco a Sicília do rei Acestes. Quero, no entanto, deixa-la
ignorante da perigosa missão a que me lanço, pois o céu é testemunha de
que não poderia suportar-lhe as lágrimas. Peço-te, portanto, que a consoles
e ampares, porque a minha partida a fará enormemente infeliz. Se assim o
prometeres, irei mais esperançoso enfrentar todos os perigos.

Comoveram-se até as lágrimas os rudes guerreiros troianos que


assistiram à cena e, mais do que todos, enterneceu-se o coração do jovem
Ascânio ao ver essa prova de amor filial. E assim se expressou:

162
ENEIDA - Virgílio
— Podes confiar, que teu desejo será satisfeito, pois assim te fazes
digno pela empresa arriscada que ora encetas. Sim, será como mãe para mim
e somente lhe faltará o nome de Creusa. Grande reconhecimento devemos
prestar a mãe que tem um filho tão valoroso. Quaisquer que sejam as
consequências da tua missão, juro por esta cabeça — pela qual antes meu
pai costumava jurar — que todas essas coisas a ti prometidas serão
reservadas à tua mãe e à tua família.

E calou-se, chorando. Entregou a Euríalo uma belíssima espada


guarnecida de ouro, que o insigne artista cretense Licáon adaptara a uma
bainha de marfim. Mnesteu presenteou Niso com uma felpuda pele de leão
e o fiel Aletes trocou o seu capacete com o de Euríalo. Partiram bem
armados. Os principais chefes do acampamento acompanharam os dois até
aos portões desejando feliz êxito na missão. Mostrando animo e prudência
viril — muito superior ao que os seus tenros anos faziam supor —, o jovem
Ascânio deu-lhe as últimas instruções, mas o vento carregou-as para longe.

Saindo da paliçada, transpuseram os fossos e, pelas sombras da noite,


penetraram no acampamento que lhes deveria ser fatal. Por toda a parte se
viam guerreiros deitados na relva, adormecidos ou embriagados. Os carros
de guerra, parados na areia, apontavam as lanças para o céu, enquanto os
homens se encostavam aos jaezes, arreios e rodas, entregues ao repouso.
Niso então disse:

— Euríalo, devemos empregar o nosso braço em algum feito audaz e


a ocasião é-nos propícia. O caminho é por aqui. Fica alerta à retaguarda,
enquanto embebo a minha lamina no sangue latino.

Assim dizendo, investe com a espada contra o soberbo rei Ramnete,


amigo pessoal de Turno, que dormia ressonando em cima de sumptuosos
tapetes. Matou também três escravos que jaziam perto, entre as armas reais
e o escudeiro Remo, o condutor da biga de guerra. A esses e a muitos outros,
degolou com a lâmina afiada, qual leão faminto Misto que, à noite, espalha
o terror no curral de ovelhas mudas e inertes de medo, e ruge com a boca
ensanguentada. Camas, tapetes e a própria terra ficaram ensopados de
sangue negro.

163
ENEIDA - Virgílio
Não era menor a mortandade que Euríalo infligir aos inimigos.
Inflamado de ódio, enfureceu-se e avançou de espada nua enviando muitas
almas de corpos adormecidos ao Orco e até mesmo de um acordado, Reto,
que, temeroso, se refugiara atrás de um vaso. O troiano, no entanto,
acompanhou-o e cravou-lhe no peito a espada, até aos copos. Reto deixou a
vida vomitando sangue purpúreo juntamente com vinho, enquanto Euríalo
prosseguia na matança. Já se dirigia aos companheiros de Messapo, junto
aos quais as fogueiras quase apagadas iluminavam fracamente os corceis que
pastavam na relva. Mas alertou-o Niso:

— Cessemos, pois a inimiga aurora já nasce. Já demos castigo


merecido ao inimigo e abrimos uma larga estrada para nós.

Deixando de lado muitas armas ornadas de prata maciça, bem como


taças e esplêndidos tapetes, Euríalo apoderou-se das insígnias de Ramnete e
do boldrié com botões de ouro, colocando na cabeça o capacete de Messapo.
Fugiram então do perigo.

No entanto, alguns cavaleiros, mandados vir por Turno da cidade do


rei Latino, já se aproximavam do acampamento, em número de
aproximadamente trezentos. Os reflexos do capacete de Euríalo traíram os
fugitivos e, apesar da escassa luz reinante na madrugada, a tropa avistou-os.
Volscente, chefe do esquadrão, bradou então:

— Alto, guerreiros! Qual o motivo da vossa marcha? Porque estais


armados? Para onde vos dirigis?

Nada respondendo, os dois troianos apressaram a marcha, procurando


ocultar-se na escuridão da floresta. De toda a parte convergiram os
cavaleiros buscando os fugitivos e guardando todas as saídas. Confundindo-
se no escuro, que mal permitia distinguir a trilha por onde seguia, Euríalo
atrasou-se, enquanto Niso conseguia escapar, passando além dos lagos onde
o rei Latino possuía urnas férteis pastagens. Só muito tarde deu por falta do
amigo e exclamou:

164
ENEIDA - Virgílio
— Ó infeliz Eu ralo, em que lugar te deixei eu? Por onde te procurarei,
percorrendo novamente todo o caminho tortuoso da floresta traiçoeira?

E ia assim seguindo o caminho inverso, quando ouviu o tropel e os


gritos da cavalaria que os perseguia. Surgiu então Eurialo, arrastado, preso,
por dois cavaleiros. Com o pensamento atordoado, Niso não sabia o que
fazer, para onde se virar. Pensava:

«Como posso eu, sozinho, salvar meu o amigo dentre tantos? Devo
lançar-me à minha própria perdição, atirando-me para cima dos inimigos e
encontrando morte rápida, embora gloriosa?»

Levantando a lança, olhou para o céu banhado de luar e orou:

— Ó tu, Diana, jóia dos astros e protectora dos bosques, auxilia-me


nesta empreitada. Se alguma vez o meu pai Hírtaco ofereceu por mim
dádivas nos teus altares, se eu mesmo lá depus algumas, depois das minhas
caçadas, ou as dependurei no tecto do teu santuário, ou as fixei no vestíbulo
sagrado, permite que eu ponha em debandada esta gente e dirige a minha
lança através dos ares.

Em seguida, segurou o ferro com todas as suas forças e arremessou-o.


Sibilando, a arma cortou as sombras da noite e cravou-se nas costas de
Sulmone, que caiu vomitando sangue, com os flancos a arfar, agonizante.
Animado com o feito, Niso levantou outra lança e o ferro assassino foi-se
cravar na cabeça de Tago, atravessando-lhe o cérebro. Enfurecido,
Volscente ordenou que se buscasse o inimigo oculto, mas em parte nenhuma
o conseguiram encontrar.

Não importa — disse então o chefe da tropa, dirigindo-se a Enrolo —


, tu pagarás com o teu cálido sangue a morte dos meus soldados.

E, desembainhando a espada, avançou contra Euríalo. Niso, aterrado


com a sorte do amigo, adiantou-se, sem poder mais conter-se, e exclamou:

165
ENEIDA - Virgílio
— Alto! Matai-me a mim, que fui eu quem disparou os dardos. Voltai
contra mim o ferro, ó rótulos. De todo o crime sou eu o autor. Esse ai nada
tentou, nada pode e de tal são testemunhas os céus.

Ainda não acabara de falar e já a espada, impelida com força,


trespassava as costas de Eunalo, que rolou no solo nas vascas da morte, com
o sangue a escorrer-lhe dos membros, e o pescoço exanime a pender-lhe dos
ombros. Parecia uma flor purpúrea que, cortada pelo arado, desfalece
moribunda ou as papoulas que, de hastes curvadas, pendem os seus copos,
cheios de chuva.

Alucinado de dor com a morte do amigo, Niso lançou-se para o meio


dos rótulos, com a espada flamejante e os olhos a faiscar de ódio e de desejo
de vingança. Por toda a parte lhe eram vibrados golpes, mas ele só a
Volscente procurava e, abrindo caminho por entre laminas cortantes,
chegou-se ao inimigo que bradava por socorro e enterrou-lhe a espada
fulmínea pela boca. Trespassado já de muitos golpes, atirou-se ao corpo do
amigo exalando o último alento.

Felizes ambos! Se os versos do poeta algum valor têm, nenhum dia


jamais vos riscará da memória dos séculos enquanto os romanos habitarem
o imortal rochedo do Capitólio.

Os rótulos transportaram então a presa e os despojos para o


acampamento, chorando a morte do seu chefe. Lá, o ambiente não era menos
triste. A madrugada tinha encontrado Ramnete, Serrano, Numa e muitos
outros soldados e servos exangues, sem vida. Já então a aurora, com a sua
primeira luz deixava o leito de açafrão de Tita e inundava a terra com a sua
claridade matinal, com o Sol a dardejar os seus raios e tornando todos os
objectos bem distintos.

Turno, envergando já a sua armadura refulgente, percorria o


acampamento a galope, despertando os guerreiros e elevando aos céus gritos
de vingança. Espetando as cabeças dos dois troianos na ponta de duas lanças,
os rótulos seguiram em grande gritaria na direcção do baluarte. Dentro deste,
os companheiros de Eneias reforçavam a parte esquerda dos muros,

166
ENEIDA - Virgílio
porquanto a direita era protegida pelas éguas do rio. A ausência de Eneias e
a visão horrível e macabra das cabeças dos dois jovens mortos, ainda
gotejando sangue, abatia-lhes o moral.

A mensageira Fama, correndo veloz nos seus pés alados, já fizera


chegar a noticia aos ouvidos da mãe de Euríalo. Frio gélido percorreu-lhe os
ossos, e caiu-lhe da mão a lançadeira da roca. A lá emaranhou-se. A pobre
mulher precipitou-se então, fora de si, para as muralhas, por entre os
soldados. Não se apavorou nem com os gritos de guerra nem com as setas e
encheu os ares com o seu pranto:

— É então nesse estado que te vejo, ó Euríalo? Pois tu, repouso único
da minha velhice, pudeste deixar-me só? Não permitiste que a mãe dissesse
adeus a seu filho, indo para tão difícil empresa? Ai de mim! Agora jazes em
terra inimiga, presa dos cães e das aves de rapina! Eu, tua mãe, não te
acompanharei nos teus funerais, não te fecharei os olhos, não te lavarei as
feridas, nem te vestirei com as roupas que eu, cuidadosa, preparava dia e
noite! Aonde irei procurar-te? Que terra possui agora os teus despojos, os
teus membros arrancados, o teu cadáver mutilado? Foi isso, meu filho, essa
cabeça que ora me mostras, que segui desde a Tróia longínqua, por todos os
mares e perigos? Trespassai-me, se tendes dó. Arrojai contra mim todas
essas setas, ó rótulos, matai-me a mim com o ferro. Ó Júpiter, ó grande pai,
compadece-te de mim e precipita-me com o teu raio no Tártaro, cortando os
laços que me prendem a esta vida miserável.

Os corações dos troianos esmoreceram com esse pranto e todos


exalaram lamentos. O animo para o combate alquebrava-se. Ao mando de
Iulo, dois guerreiros ampararam a infeliz anciã e conduziram-na para a sua
tenda.

Mas eis que soou a trombeta ao longe. O som terrível do bronze


retumbante e o clamor das vozes ávidas de combate enchiam os ares.
Primeiro avançavam os volscos, uma massa compacta de guerreiros, com os
escudos levantados, protegendo-lhes as cabeças, à semelhança do casco de
uma tartaruga. Atacavam os portões, transpunham os fossos e encostavam
escadas aos muros procurando os lugares onde fosse mais rala a linha de

167
ENEIDA - Virgílio
defensores. Estes, por sua vez, atiravam de cima toda a sorte de projécteis,
tentando penetrar na forte armação da tartaruga. No local em que uma tropa
dá rótulos mais os ameaçava, os troianos conseguiram fazer cair do alto um
enorme rochedo que se abateu sobre o inimigo compacto, provocando uma
terrível mortandade. Adoptando agora uma táctica diferente, os assaltantes
abandonaram o ataque frontal e tentavam despovoar os baluarte
arremessando dardos e setas. Mezêncio, noutro local, hórrido no aspecto
vingativo, tentava incendiar a paliçada com archotes.

Peço-vos, ó Musas, e a vós, Calíope, inspirai o poeta e permiti que


descreva as minúcias dessa guerra cruel.

Num dos ângulos da posição havia uma torre alta e forte donde os
dardânios, colocados em posição vantajosa em relação aos atacantes,
dizimavam as fileiras dos rótulos que tentavam conquistar o baluarte de
qualquer maneira. Turno e um bando de guerreiros atacaram a torre com
archotes, procurando incendiá-la. Um dos fachos, atiçado pelo vento,
inflamou as tábuas e a posição perigava. Lá dentro, os troianos em tumulto
atropelavam-se, tentando fugir ao calor da fogueira que já lhes ardia aos pés.
Recuaram todos para uma parte da armação, que não resistiu à carga e
desabou, com tremendo ruído e confusão. A enorme massa de madeira
incendiada soterrou entre os seus escombros quase todos os que nela se
encontravam, ficando muitos com os peitos trespassados pelas próprias
armas ou esmagados pelas traves de madeira. Apenas se salvaram Heleno e
Lico. O primeiro, simples soldado troiano, de espada e escudo, viu-se de
repente no meio de milhares de soldados de Turno, de um lado, e das
falanges latinas, do outro. Como a fera que, encurralada em apertado circulo
de caçadores, arremete feroz contra os dardos e, não desconhecendo a sorte
que a espera, se lança de um salto sobre as pontes afiadas dos chuços, assim
também o guerreiro, decidido a morrer, se atirou pata o meio dos inimigos e
para o local donde via romper os dardos em riste.

Lico, no entanto, muito mais ágil na corrida do que o companheiro,


fugiu por entre os golpes que lhe eram vibrados de toda a parte e, alcançando
os muros amigos, tentou alcançar as altas ameias de onde os companheiros

168
ENEIDA - Virgílio
lhe estendiam as mãos. Mas Turno perseguia-o nos calcanhares e trespassou-
o com o dardo, gritando:

— Acaso esperaste, insensato, poder escapar às minhas mãos?

E arrancou-o da muralha onde estava seguro, tal qual a águia de Júpiter


que, cortando os ares elevados, empolga com as garras aduncas uma lebre
ou um cisne de penas brancas. Por todos os lados se levantou um gigantesco
clamor de aplauso ao feito e os atacantes lançaram-se ao assalto com
redobrado vigor, invadindo e entulhando os fossos com montões de terra ou
arrojando setas inflamadas contra os torreões.

Dizem que foi nessa batalha que Ascânio, pela primeira vez, entesou
o arco e lançou a sua seta ligeira contra o inimigo e não contra as feras como
o fizera até então. O destino do ferro alado do filho de Eneias foi Numano,
de sobrenome Rémulo, e que há pouco tempo se casara com a irmã mais
nova de Turno. Avançando na primeira fileira, o jovem rótulo bradava aos
troianos frases dignas e indignas de referência, o peito arrogante pelo
consórcio recente. Dizia:

— Não vos envergonhais de estar encarcerados de novo num cerco e


numa paliçada, ó frígios, duas vezes derrotados? São estes os heróis que
querem desposar as nossas donzelas? Que deus, que loucura vos trouxe ao
Lácio? Não é esta a Grécia, nem aqui está Ulisses. Raça dura desde o tronco,
assim que as nossas crianças nascem, levamo-las aos rios e enrijarmo-las no
contacto com a água gélida e corrente. Desde meninos que se dedicam à caça
e a percorrer as solvas. O nosso desporto e divertimento é domar potros e
atirar com arco e flecha. Os moços cultivam a terra e são acostumados a
viver com pouco ou então pegam em armas e vão-se à guerra. Toda a nossa
vida se passa no manejo das armas. Nem a velhice nos debilita as forças ou
alquebra os ânimos. Escondemos os cabelos brancos com os capacetes e
apraz-nos trazer presas recentes e viver dos despojos conquistados.

(continuou)

169
ENEIDA - Virgílio
— Vós amais os trajes pintados com açafrão e púrpura. O vosso
coração é cheio de preguiça e gostais de vos entregar à dança. As vossas
tónicas são enfeitadas com mangas e as vossas mitras são-no com fitas, ó
troianas, pois nem verdadeiros troianos sois. Ide para os altos do Díndimo e
juntai-vos lá às loucas seguidores de Gibele que dançam ao som da flauta,
dos tambores e dos pífaros. Deixai as armas aos homens e abandonai a
guerra.

Rubro de cólera ante tais insultos à sua raça, Ascânio não pôde conter-
se. Ajustou uma seta à crina e, alçando os olhos para o céu, fez a Júpiter esta
invocação:
— Ó Pai Omnipotente, favorecer a minha audácia nascente. Eu mesmo te
levarei aos altares um novilho de fronte dourada.

O pai dos deuses ouviu-o e fez trovejar como agouro a parte esquerda
do céu que no momento se apresentava serena. A seta, puxada para trás com
o arco retesado, partiu sibilando horrivelmente e atingiu a cabeça de Rémulo,
e o farpão atravessou-lhe as frontes.

— Vai agora, rótulo, e zomba da virtude em tom orgulhoso como o


fizeste há pouco. Esta é a resposta dos troianos, duas vezes vencidos.

O entusiasmo dos defensores foi enorme. Os aplausos prorromperam


de todos os pontos da posição e a sua vontade de resistir duplicou.

Apolo, sentado numa nuvem e observando o acampamento troiano,


dirigiu então estas palavras ao jovem guerreiro:

— Prossegue com novo alento, ó jovem guerreiro! Assim é que se


chega aos astros. Pela descendência de Assácaro e por teu merecimento,
cessarão todas as guerras e reinará a paz. Tróia não te podia conter. Era
pequena para ti.

Lançando-se para baixo, o glorioso deus apresentou-se a Ascânio sob


a figura do velho Butes, antigo escudeiro de Anquises, e agora aio do jovem.

170
ENEIDA - Virgílio
Em tudo era agora Apolo semelhante ao ancião: na voz, nos gostos, nos
cabelos brancos e até na armadura barulhenta. E disse:

— Filho de Eneias, que te seja bastante o ter prostrado aquele


formidando guerreiro rótulo com uma seta. O grande Apolo concedeu-te esta
primeira glória e não tem inveja da tua destreza. Ainda é cedo para tomares
parte na guerra, ó criança!

Assim falou Apolo e logo se afastou dos olhos dos mortais,


dissolvendo-se na brisa. Os chefes dardanios, porém, aperceberam-se pelo
retinir do carcás cheio de setas douradas que o grande deus estivera entre
eles e foram unânimes em proibir Ascânio de combater. Voltaram então aos
seus postos, onde continuavam os ardores da batalha cruel.

A gritaria levantava-se por todas as muralhas e pelos baluartes.


Retesavam-se os arcos, trabalhavam as correias, choviam os dardos
cobrindo o solo e chocavam-se os capacetes e os escudos convexos. O
combate era furioso como quando a chuva açoita os prados ou as nuvens
fazem chover saraiva sobre os mares, ou quando Neptuno, irado, solta os
ventos em aquosa tempestade e rasga no céu as nuvens cavernosas.

Pandaro e Bítias, filhos de Alcanor, Ideu, a quem a silvestre Iera


educara nos bosques sagrados de Júpiter, eram dois moços fortes como os
abetos e firmes como os montes da sua pátria. Confiando nas armas, abriram
a porta que lhes estava confiada por ordem dos chefes e, de moto próprio,
desafiavam o inimigo a entrar nos muros. Plantados do lado de dentro, à
direita e à esquerda, pareciam duas torres de ferro, com os capacetes de
plumas refulgindo nas altas cabeças, tais como dois carvalhos gigantes nas
margens do rio Pó. Assim que viram a entrada que lhes era oferecida,
precipitaram-se os rótulos, mas logo fugiram, chefes e soldadesca, perdendo
muitos a vida ali no limiar das trincheiras.

Redobrando o animo, já se animavam os troianos a pequenas surtidas,


indo combater o inimigo fora das muralhas. Chegou então a Turno, que em
outra parte levava o terror e a mortandade aos defensores, a notícia de que
os troianos, de portas abertas, já começavam a oferecer combate em campo

171
ENEIDA - Virgílio
raso. Excitado, em cólera violenta, para lá se dirigiu o chefe rótulo. Prostrou,
de imediato, Antífates com uma seta certeira, fazendo-a penetrar por uma
grande ferida no estômago, donde saiu uma golfada de sangue espumoso. A
sua espada estendeu Méropo, Erimante e muitos outros por terra. Também
fez cair Bítias, um dos irmãos sentinelas não com uma seta, mas com uma
lança, que, sibilando a velocidade imensa, atravessou duas couraças de
couro e muitas chapas de metal dourado. Os seus enormes membros caíram
prostrados e o grande escudo retiniu sobre ele na queda que fez tremer o
chão.

Marte, deus omnipotente da guerra, introduziu assim nos latinos brio


e forças, enquanto aos troianos enchia de negro terror. De todos os lados
acudiram os rótulos, pois ali lhes era dada ocasião de combater de igual para
igual. Pandaro, no entanto, vendo o corpo do irmão estendido e sentindo a
fortuna adversa, empurrou a porta com força, fechando-a novamente. Muitos
troianos tinham ficado, todavia, do lado de fora dos muros, no combate
aceso. No meio do roldão dos que se precipitaram à última hora para dentro
da protecção da fortaleza, vinha o rei rótulo qual tigre cruel que é trazido
para o meio do rebanho inerme.

Logo lhe relampejou nos olhos uma sinistra luz e as suas armas
retiniam com hórrido som, enquanto o penacho sanguíneo tremia e a bocarra
do capacete soltava brilhantes fulgores. Subitamente, os companheiros de
Eneias reconheceram o seu rosto odioso e os seus enormes membros.
Precipitou-se então o gigantesco Pandaro e, ardendo em cólera pela recente
morte do irmão, disse:

— Este não é o palácio de Amata prometido como dote. Estás num


acampamento inimigo. Não tens poder para sair daqui.

Sereno e confiante nas armas, Turno respondeu-lhe, sorrindo:

— Começa, troiano, e se tens coragem luta comigo. Assim poderás


contar a Príamo, no Mundo das Sombras, que aqui também foi encontrado
um Aquiles.

172
ENEIDA - Virgílio
Pandaro, empregando o máximo da sua força, atirou-lhe então uma
duríssima lança, cheia de nós. Juno, filha de Saturno, desviou o golpe e a
arma cortou os ares sibilando e cravou-se na porta.

— Não escaparás, no entanto, como acabei de escapar, a esta minha


laminar pois nem ela nem quem vibra agora este golpe, são como tu.

E, elevando-se nas pernas, alçou a espada e desferiu tremendo golpe


na testa de Pandaro, cuja cabeça se abriu em duas. Ouviu-se um baque e a
terra pareceu tremer. Tomados de pavor, os troianos afastaram-se em todas
as direcções e, tivesse Turno a ideia de abrir as trancas dos portões e de
chamar os companheiros, e aquele teria sido o último dia da guerra e do povo
de Eneias. Mas o furor e a sede de sangue faziam-no avançar. Alcançou
Faléris e Giges, decepando-lhes as pernas e em seguida perseguiu os que
fugiam, cravando-lhes nas costas lanças arrancadas dos cadáveres. Juno
dava-lhe forças e coragem sem par. E prosseguia atacando todos, prevenidos
ou desprevenidos, que se lhe cruzavam à frente. Alcançou Linceia, que se
dirigia contra ele e chamava os companheiros. A cabeça do troiano,
decepada com um fortíssimo golpe, foi cair a muitos metros de distancia.
Até mesmo Creteia — companheiro e amigo das Musas, cujo único deleite
era tanger as cordas da lira, cantando em versas músicas suaves e os feitos
brilhantes de batalhas inolvidáveis — caiu sob o seu ferro assassino.

Chegando aos ouvidos dos intrépidos chefes Seresto e Menesteu, a


notícia do estrago que o chefe rótulo fazia dentro das suas próprias
fortificações e do pavor que a todos infundia, enfureceram-se estes e
Menesteu bradou aos que corriam:

— Para onde fugireis mais longe? Para ande vos leva essa corrida?
Que outros muros e trincheiras tendes depois destes? Um só homem, ó
guerreiros, cercado por todos os lados no vosso próprio entrincheiramento,
tem causado tantos danos nas vossas fileiras e enviou já tantos ao Orco? Não
vos compadeceis, homens sem coragem, não vos envergonhais da vossa
infeliz pátria, dos vossos antigos deuses domésticos, do vosso chefe Eneias?
Inflamados por tais palavras, os dardanios recobraram o animo e avançaram
em fileiras cerradas. Turno, achado agora pelo número, ia recuando pouco a

173
ENEIDA - Virgílio
pouco na direcção do rio. Em grande algazarra, os defensores iam-no
apertando cada vez mais e mais, como quando uma turba de caçadores
persegue um leão irritado com dardos, enquanto a fera vai recuando,
assombrada, ameaçadora, o olhar feroz, sem que quer a fúria quer o brio lhe
façam voltar as costas, mas não podendo, também, romper em frente a
floresta de armas. Também assim se ia afastando Turno. Irado, avançou por
duas vezes, pondo todos em debandada para os muros, em grande confusão.

Mas agora era quase toda a guarnição do campo que o caçava. Nem
mesmo Juno podia dar-lhe forças contra tantos, pois o Pai Júpiter,
omnipotente, já lhe enviara a mensageira Íris, ordenando a sua esposa que
retirasse imediatamente Turno do acampamento troiano. Nem o seu escudo,
nem a sua espada, conseguiam resistir mais à avalanche que se lhe abatia em
cima. De todos os lados lhe choviam os golpes. O seu capacete rangia com
as espadeiradas, calam-lhe setas aos montes em cima e a sua armadura
retinia com as pedradas. A couraça abria-se nas costuras e as plumas
vermelhas, que ainda há pouco ondulavam orgulhosas ao vento, tinham sido
cortadas. O seu escudo estava cheio de mossas. Não podendo resistir já ao
martelar incessante, Turno abeirou-se da própria barranco do Tibre e atirou-
se às águas amarelas que o levaram para a outra margem, onde, rejubilantes,
os companheiros o acolheram.

174
ENEIDA - Virgílio

Capítulo 10: A Assembleia dos Deuses

Entretanto, abria-se a augusta morada dos deuses no Olimpo e o


omnipotente Júpiter a todos convidava para um conselho. Dali se observava
todo o Universo e também os acampamentos dos dardanios e dos latinos.
Depois das divindades terem tomado os seus assentos, assim lhes falou
Júpiter:

— Nobres habitantes do céu, porque mudastes de opinião novamente?


Há pouco parecia-me que vos tínheis reconciliado com a descendência de
Príamo. Porque lutais com rancores tão acerbos? Eu proibira que os latinos
guerreassem ou hostilizassem os recém-vindos troianos. Porquê tal burla à
minha proibição? Que causas levaram estes e aqueles povos a procurar a
guerra? Não vos apresseis, pois chegará o tempo de uma guerra justa,
quando a iracunda Cartago enviar à Itália as suas legiões, que, transpondo
os Alpes, espalharão o terror e a aflição por todo o Lácio. Ser-vos-á, então,
permitido lutar com ódios e alterar os acontecimentos. Mas agora, enquanto
essa época não chega, acalmai os vossos animas e celebras uma aliança.

Quando Júpiter acabou de falar, a linda Vénus levantou-se e assim


disse:

— Ó pai, senhor eterno dos homens e dos deuses, és o único aqui a


quem é lícito implorar. Vês como os rótulos insultam e como Turno avança
impávido entre os seus milhares de guerreiros e corcéis, orgulhoso dos
favores que Marte lhe concede. Os troianos já estão ameaçados dentro do
próprio entrincheiramento, pois lá se travam combates, e os fossos estão
atapetados de cadáveres e inundados de sangue, e Eneias, ignorante do que
se passa, continua ausente. É possível, ó pai, que nunca consintas aos
troianos o favor de se livrarem de um cerco? Também agora estão outra vez
ameaçados os muros da Tróia renascente e outro Aquiles se levanta entre os
inimigos. Se foi sem tua permissão que os troianos desembarcaram nas
margens do Tibre, que expiem então na guerra o seu pecado! Porém, se
aceitando o conselho dos oráculos e os muitos prodígios do céu, lá foram

175
ENEIDA - Virgílio
eles ter, de acordo com o que determinaram as Parcas, porque lhes serão
modificados agora os destinos? Para quê relembrar a frota incendiado na
terra de Acestes?

E continuou:

— Os ventos e as tempestades desencadeados em fúria no mar


Tirreno? Íris enviada das nuvens com mensagens para os seus inimigos? E
por fim Alecto, que, chamada do Tártaro infernal, semeou a discórdia e o
ódio no coração de todos os homens? Não me preocupo com o império.
Esperamos o que tu nos prometias enquanto a fortuna o permitiu. Vençam
aqueles que achares que devem ser os vencedores. Se Juno, tua indómita
esposa, não permite que os meus filhos se estabeleçam em lugar algum da
terra, seja-me pelo menos concedido retirar da batalha o jovem Ascânio.
Deixa que o neto sobreviva e que não pereça a raça. Que Eneias seja por
toda parte perseguido pelas ondas e pelos inimigos, se a mim me for dado
salvar o filho e subtraí-lo aos horrores da guerra. Tenho Amato, Pafo e
Cítera, além da minha morada em Idália e lá o colocarei, sem armas e sem
glória, para que passe a vida. Nem lhe permitirei que se oponha a Cartago,
quando esta oprimir a Itália. De que lhes adiantou escapar aos perigos da
guerra e do mar, dos incêndios e das lanças gregas, se em nenhuma parte
podem os troianos lançar os alicerces de uma nova Pérgamo? Seria melhor
tê-los deixado perecer a todos no combate e na defesa da pátria querida e
honrar com as suas cinzas as margens do Xanto e do Simois.

Juno, ouvindo tais queixumes, adiantou-se, possuída de cólera, e


vociferou:

— Porque me obrigas a romper o meu tão caro silêncio e a desafogar


ressentimentos antigos? Quem, entre homens e deuses, obrigou Eneias a
apresentar-se ao rei Latino, assim provocando a guerra? Pelo destino que lhe
era traçado ou pelos conselhos de Cassandra veio ter ao Lácio, mas fomos
porventura nós que o exortamos a abandonar o acampamento, deixando a
direcção da guerra entregue a uma criança? Fomos nós que lhe dissemos
para procurar a aliança de outros povos, agitando nações tranquilas? Que
deus, que poder meu, funesto, o expôs a perigos? Porque citas Juno ou sua

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ENEIDA - Virgílio
mensageira Íris enviada dos ares? Achas indigno que Turno, de tão nobre
linhagem quanto o teu Eneias, arme os seus guerreiros e reúna os seus
corcéis para defender as terras ameaçadas pelo estrangeiro? Que diremos
nós quando os troianos atacarem os muros latinos com ferro e fogo,
premirem com o seu jugo os campos e levarem os despojos roubados?

E continuou Juno:

— Que diremos quando arrancarem das mãos dos pais filhas já


prometidas a outros, quando com uma das mãos pedirem a paz, enquanto
com a outra acenam as armas? Tu podes subtrair o teu filho às lanças
inimigas, transformar os seus barcos em ninfas. Porque não nos será
permitido ajudarmos os rótulos? Eneias está ausente, ignorando o que se
passa e que assim continue. Tu mesmo disseste que tens Pafo e a elevada
Clteta. Porque então provocas uma cidade aguerrida e os corações
destemidos dos meus bravos guerreiros? Acaso somos nós que pretendemos
derrubar dos alicerces os miseráveis restos de Tróia? Qual foi a causa
primeira de tudo isso, de se levantarem em armas a Europa e a Ásia, de se
romperem as antigas alianças? Não foi o rapto de Helena? Foi por meu
conselho que o miserável Páris a tirou de Esparta? Ou dei eu armas e
fomentei guerras pelo amor? Agora é tarde para te levantares com queixas e
reclamações, censurando a quem não deves.

Ao discurso de Juno, a maior parte dos deuses pôs-se a seu favor.


Discutiam em murmúrios como quando o vento faz agitar as primeiras folhas
das árvores, anunciando a tempestade aos navegadores. Mas Júpiter dispôs-
se a falar e então reinou o silêncio na morada dos deuses. Também a terra
ficou trémula de susto nas suas bases, o elevado éter não se agitava, as brisas
aquietaram-se e o mar aplacou as suas ondas. E ele disse:

— Guardai em vossos corações estas palavras: como não é possível


unir Talos e troianos em aliança, nem pôr fim a essa discórdia entre a minha
augusta esposa Juno e a minha querida filha Vénus, decreto que esses
mortais, sejam de um ou de outro lado, sigam os seus próprios destinos sem
que eu os impeça ou ajude. Não favorecerei nem um nem outro. Deixai-os
seguir os conselhos de seus próprios corações para o próprio bem ou para a

177
ENEIDA - Virgílio
própria desgraça. Não sou o rei de ambos? Então, não farei distinção entre
eles e exorto-vos a que não o façais também!

Terminando de falar, agitou a poderosa cabeça e todo o Olimpo


estremeceu. Levantou-se então e o grupo de deuses acompanhou-o até às
portas do elevado salão.

Nesse interim, os rótulos continuavam a atacar sem cessar as portas,


as muralhas e os torreões dos dardanios com todos os meios possíveis. Estes,
no entanto, resistiam bem entrincheirados, sem qualquer esperança de fuga
ou salvação, já com as fileiras com grandes claros. Entre eles, agitava-se e
lutava o jovem Ascânio, esquecido dos conselhos de Apolo. Os seus canudos
dourados, cardos desordenadamente, reflectiam os raios do Sol e separavam-
se com riqueza de matizes, como se fossem pedras preciosas. O seu capacete,
amassado de muitos golpes, jazia no chão.

Enquanto assim porfiavam dura e cruelmente os dois exércitos, Eneias


navegava nos altos mares iluminados pela luz da lua. Com efeito, partindo
da cidade de Evandro, chegara ao acampamento etrusco onde se apresentara
ao rei declarando o seu nome, raça e estirpe e oferecendo-se para combater
Turno e Mezêncio. Então, a nação Lídia, seguindo os vaticínios dos oráculos
e as ordens dos deuses, embarcara nos navios sob as ordens de um chefe
estrangeiro. Ornamentada de leões troianos, seguia à frente a nau-capitania
de Eneias. Este ia sentado junto a Palas que ora o consultava sobre a posição
dos astros que os guiavam ria rota escura, ora o fazia rememorar peripécias
e aventuras passadas. Vinham em seguida muitos outros navios com os
conveses e bancos repletos de soldados — cerca de dez mil — de todas as
partes da Etrúcia. Eram trinta navios carregados de guerreiros encouraçados
e corcéis de guerra, que sulcavam o Tirreno para salvar a recém-nascida
Tróia de morte prematura.

E já o dia se sumira do céu e a branca Febo chegava na sua carruagem


noctívaga no meio do Olimpo. Era o próprio Eneias que segurava o leme do
seu barco, incapaz de dormir ou de descansar na ansiedade pela sorte dos
seus. Surgiu-lhe então à frente um coro de ninfas — eram os navios troianos
que se tinham metamorfoseado — brincando nas águas, fendendo as ondas.

178
ENEIDA - Virgílio
Reconheceram o rei e cercaram o navio em grupos. Cimodoceia, a
mais faladora, segurou na popa com a mão direita, enquanto com a esquerda
continuava a nadar. E, elevando-se acima da borda, disse a Eneias, que não
a reconhecia:

— Estás de vigia, Eneias, filho da deusa? Bem o fazes e larga o pano


todo, eu to aconselho. Somos nós teus antigos barcos, outrora árvores do
monte Ida, agora ninfas do mar. Como o pérfido rótulo nos perseguia a ferro
e fogo, tivemos de quebrar as amarras e fugir. A mãe dos deuses,
compadecida, deu-nos esta forma e concedeu que como densas das ondas
aqui passássemos as nossas vidas. Neste momento, os muros da nova Tróia
são violentamente atacados e Ascânio mal pode resistir com as fracas forças
que lhe restam. A força de cavalaria que, conforme o combinado, viria
prestar auxilio ao acampamento, depara já com uma síria resistência por
parte dos esquadrões de Turno. Ao alvorecer, verás os teus muros. Levanta-
te, ordena aos teus companheiros que se armem e encouracem e tu mesmo
empunha o formidando escudo para ti fabricado pelo Senhor do Fogo que o
tornou invencível e lhe cingiu as bordas de ouro. Antes que o Sol atinja
amanhã o seu zénite, estará a planície juncada de corpos inimigos.

Eneias espantou-se com aquela fala e com a aparição das ninfas, mas,
passado o susto, o seu coração rejubilou-se e? elevando os olhos para as
estrelas, assim orou:

— Ó graciosa mãe dos deuses, senhora do Ida, sê agora tu para mim a


auxiliadora do combate. Realiza este agouro das tuas ninfas e vem guiar os
troianos.

E foi só essa curta oração. Mas a luz da madrugada começava já a


surgir no horizonte e Eneias disse aos companheiros que transmitissem por
sinais aos outros navios a ordem de preparar para o combate. Pouco depois,
avistavam as fortificações troianas e também eram vistos pelos defensores
cujo animo redobrou ante a chegada do auxilio tão longamente esperado. A
gritaria festiva e a atitude dos sitiados fizeram com que Turno e os seus se
voltassem e foi só então que viram, estupefactos, os barcos que aproavam às
praias, numa tremenda demonstração de poderio.

179
ENEIDA - Virgílio
De pé, na proa da nau-capitania, vinha Eneias, com o capacete
refulgindo na cabeça, o penacho como que incendiado e o escudo reflectindo
a luz do Sol como dardos de puro ouro. Turno, no entanto, tomou
rapidamente a decisão de ocupar as praias antes que o inimigo
desembarcasse e procurava inflamar o entusiasmo nas suas fileiras:

— A vós, que sempre desejastes aniquilar o inimigo, aqui se oferece


uma esplêndida ocasião. O momento de combater está nas vossas mãos, ó
soldados. Que cada um se lembre da sua esposa, da sua casa, dos seus filhos
e dos seus feitos gloriosos noutras pelejas. Procurai imitar as acções dos
nossos heróis. Corramos para a praia e ataquemos o inimigo enquanto este,
desembarcando, está desordenado. A sorte é amiga da audácia.

E então, deixando parte dos homens a manter o cerco, avançou com os


outros para enfrentar os Lídios que, com os navios a atingir já o mar raso,
iniciavam o desembarque. Os guerreiros usavam todos os meios para chegar
a terra firme. Uns esperavam o recuo da onda para saltar, outros
escorregavam pelos remos, outros, ainda, mais felizes, desciam por
pranchas.

Tarcão, um dos comandantes etruscos, vendo a demora e avistando um


local onde o mar era mais manso, gritou pata a sua guarnição:

— Força, bravos remadores! Força nesses remos! Avançou rápido e


embiquemos a nossa proa directamente na areia. Façamos a nossa quilha
cavar um profundo sulco na terra inimiga. Se atracarmos bem, pouco me
importarei se a barcaça naufragar.

Outros navios se seguiram na arremetida arrojada e a manobra foi feliz


para todos, excepto para o barco do próprio Tarcão, que, batendo nu m
cachopo submerso, lá ficou preso entre destroços de mastros, de remos e de
bancos quebrados.

Já então Turno levava o grosso do exército contra os que já tinham


desembarcado. Fileiras cerradas, a pé e a cavalo, arqueiros e lanceiros, a
poderosa força de guerra alinhava-se diante dos etruscos. Eneias foi o

180
ENEIDA - Virgílio
primeiro a investir contra os Ítalos, matando muitos deles. Vénus, vigilante
a seu lado, protegia-o e defendia-o dos golpes inimigos. As setas e dardos
choviam-lhe em cima, mas a deusa fazia-os desviar, como o vento que afasta
as gotas de chuva.

Messapo, filho de Neptuno, partiu então a galope, acompanhado da


sua selvagem corte, para cima do herói, disposto a terminar com os seus dias.
Turno, por seu lado, estimulava as suas forças a empurrar os invasores para
o mar. Mas eram iguais as energias. Nem se avançava, nem se recuava.
Como os ventos desencadeados que lutam na amplidão do espaço com
animo e forças iguais, não cedendo uns aos outros, nem as nuvens nem o
mar, ali também a peleja se mantinha duvidosa. Era osso contra osso, medula
contra medula, músculo contra músculo, nenhum cedendo, nenhum
avançando. :

Ninguém poderia dizer, ao olhar para a batalha desesperada, quem


seria o vencedor ou o vencido.

Noutro lugar da planície, onde outrora uma torrente de água inundara


o campo enchendo-o de pedregulhos e de árvores arrancados, lutavam os
cavaleiros de Palas. Ali o solo irregular dificultava o uso dos animais e os
guerreiros, pouco afeitos à luta a pé, cediam perante os latinos. Bradou-lhes,
então Palas esta exortação:

— Para onde fugis, companheiros? Por vós, pelas vossas ínclitas


proezas, pelo nome do vosso rei, pelas batalhas que já vencestes, por todas
as minhas esperanças, resisti! A recuar, não se escapa! Avancemos e
abramos caminho salpicado de cadáveres desses cães latinos ululantes. Não
são deuses que atacamos, mas simples mortais como nós. Eles não têm nem
mais mãos, nem mais vidas!

E avançou com os seus batalhões cerrados. Inflamados nos seus


animas pelas palavras de censura, os árcades encheram-se de brios, vendo
os feitos do chefe que se adiantava, ceifando inimigo atrás de inimigo, a
todos vencendo e derrubando. Assim como quando se levantam os ventos
do Verão e o pastor incendeia o capim e a floresta, que rugem e esbravejam

181
ENEIDA - Virgílio
no enorme fragor das chamas que avançam, também os companheiros do
herói Palas lhe seguiam os passas abrindo caminho na maré humana que os
oprimia..

Mas Lauso, herói rótulo e filho do cruel Mezêncio, não permitia que
os seus soldados fraquejassem à vista do tremendo morticínio causado pelo
filho de Evandro. Avançando por entre a confusão de espadas, dardos, arcos,
soldados vivos e agonizantes que gritavam, gemiam e brandiam as armas,
Lauso conseguiu finalmente defrontar-se com o chefe adversário. Eram
ambos notáveis pela estatura e, moços, a sua idade não diferia muito. Mas
Júpiter havia decretado que não pelejariam.

Nesse momento, advertido do perigo que corria Lauso, Turno


acometeu veloz pelo campo no seu carro, bradando:

— Alto com o combate, que esse inimigo está reservado para mim.
Desejaria que o próprio pai aqui estivesse como espectador.

Abriram-se as fileiras dos rótulos, obedecendo à sua ordem e Palas


avistou então Turno. Mediu-o de alto a baixo e gritou em resposta à fala do
tirano:

— Em breve encontrarei a glória, vivo ou morto. Termina as ameaças


e avança.

Assim falando, caminhava pela planície, enquanto o medo enregelava


o coração dos árcades. Turno saltou do carro e aproximou-se qual leão que,
do alto rochedo, ao avistar o touro que se prepara para o combate, desce e
avança orgulhosamente ao encontro do inimigo. Palas, quando calculou que
o chefe rótulo já estava a uma distancia suficiente para o arremesso do dardo,
invocou Hércules nestes termos:

—Pela hospitalidade de meu pai e pela nossa mesa à qual comeste, eu


te peço, ó forte deus, que me favoreças no combate. Que me seja permitido
despojar o inimigo agonizante das suas armas e que os seus olhos mortiços
sejam condenados a ver o vencedor antes de se fecharem para sempre.

182
ENEIDA - Virgílio
No alto Olimpo, Hércules ouviu a prece e uma lágrima sentida desceu-
lhe dos olhos, ao mesmo tempo que as suas feições se entristeciam.
Consolou-o então Júpiter com estas palavras amigas:

— Para cada um as Parcas determinaram o último dia. A duração da


vida é para todos curta e irrevogável. Mas a fama é eterna e pode prolongar-
se até o final dos tempos. Os feitos gloriosos de um mortal viverão muito
além das vidas de homens ainda nem nascidos, pois tal é a recompensa do
valor. Mesmo filhos de deuses calcam ao lado das muralhas de Tróia. Sim,
até mesmo meu filho Sarpédon lá sucumbiu. Também a Turno já chamam
os destinos e os seus dias estão contados.

E o grande deus todo-poderoso desviou, pesaroso, os olhos do


acampamento rótulo.

Mas já Palas lançara a sua lança com toda a força e de imediato


desembainhara a refulgente espada. O pesado dardo perfurou o bordo do
escudo de Turno e, atravessando a sua cota de malha no ombro, fez-lhe um
ferimento ligeiro na pele. Após sopesar a sua arma durante algum tempo, o
rótulo arremessou-a contra o jovem árcade. Era um chuço potentíssimo, de
madeira de carvalho e de afiada ponta de ferro. Ainda não morrera nos ares
o brado vingativo — De se o meu ferro penetra melhor — e já a lança
alcançava o escudo de Palas e, penetrando através das suas muitas laminas
de ferro, e outras tantas de bronze, além das várias peles de touro que o
envolviam, rompeu a resistência da couraça e o peito heróico do infeliz
jovem. Em vão arrancou este da ferida o ferro ainda quente, pois por ela
jorrou o sangue e se lhe escapou também a vida. Caiu ferido, o escudo
retinindo. A boca espumante de sangue mordia a terra hostil. De pé sobre o
cadáver, bradou Turno:

— Arcades, lembrai-vos das minhas palavras e transmiti-as a Evandro.


Remeto-lhe novamente Palas, que me foi enviado. Eu lhe concedo a honra
de um túmulo, se tal coisa pode constituir consolação para um pai. Não lhe
custará pouco a hospitalidade que deu a Eneias.

183
ENEIDA - Virgílio
Arrancou então o enorme boldrié do vencido, cujo corpo foi então
retirado pelos companheiros.

Ó mente dos homens, ignorante do destino e do futuro, que não se


curva com humildade e não afoga o orgulho, quando a Fortuna o favorece.
Chegaria para Turno o dia em que ele desejaria, com toda a força da sua
alma, ter aprisionado Palas com vida para obter um vultoso resgate, em vez
de lhe pisotear o cadáver e se apossar dos seus ricos despojos.

Seguia o grupo, transportando o corpo do jovem estendido sobre o


próprio escudo. Ó tu, que vais regressar a teu pai, cheio de tristeza e também
de orgulho! O primeiro dia de batalha foi para ti também o último, mas
morreste como herói e deixaste o campo juncado de corpos inimigos!

A Eneias chegou então a noticia da morte de Palas e que Turno, senhor


da situação, ameaçava seriamente as tropas árcades naquele local. Como
louco, lançou-se então para o combate, abrindo com a sua espada enormes
claros nas fileiras inimigas. Mas o seu objectivo era Turno, que não
conseguia encontrar. Via as plumas vermelhas do capacete do rótulo a
flutuar ao longe, num vislumbre confuso, mas, antes de se aproximar,
capturou como prisioneiros quatro filhos de Sulmona e outros tantos filhos
de Ufente, que pretendia sacrificar aos manás sagrados, por ocasião do
funeral de Palas. Lançou o veloz dardo contra Magão, mas tendo este,
baixando-se, desviado o golpe, Eneias investiu para ele, de espada em riste.
Apavorado, o homem abraçou-se aos joelhos do herói troiano suplicando:

— Pelas cinzas de teu pai, pelas esperanças de Iulo que se faz homem,
eu te peço que me conserves a vida. Perdoa ao filho e perdoa ao pai. Tenho
um magnifico palácio onde estão escondidos muitos talentos de prata
lavrada, como também uma grande quantidade de ouro bruto e trabalhado.
Uma só vida poupada não influirá nos destinos dos troianos.

Eneias retrucou-lhe:

— É a herança de teus filhos, essa riqueza toda que me ofereces.


Turno, ao assassinar Palas, impossibilitou todos os resgates, toda a troca de

184
ENEIDA - Virgílio
vidas por ouro. Tudo o que é costume na guerra foi abolido por aquela morte.
É assim que o quer o espírito de meu pai Anquises e assim também pensa
Ascânio.

Agarrando o guerreiro pelo capacete, torceu-lhe o pescoço e neste


enterrou a espada até aos copos. Atacou em seguida o filho de Hémon,
sacerdote de Apolo e Diana, o qual, aterrado, disparou pelo campo em
grande correria. Eneias, no entanto, alcançou-o e prostrou-o com um golpe
certeiro. Seresto, que assistira ao lance, despojou-o das armas como
oferenda ao deus Marte.

E muitos outros conheceram as suas armas, pois a dor da morte do


príncipe árcade tornaram-no alucinado de cólera. Assim caíram mortos
Cécula e Umbkao, que tentaram restabelecer a formação das tropas. A
Anxure decepou a mão esquerda, como castigo pelas palavras arrogantes
que lançara ao troiano. A Tárquito, que se pavoneava atrás das armas, Eneias
decepou a cabeça de um só golpe, cortando-lhe a voz ainda na garganta, voz
que suplicante queria dizer muitas coisas. Parecia ter cem braços, tal qual
Egéon, o ímpio, que diziam que cuspia fogo pelas suas cinquenta bocas e
que levantava contra os raios de Júpiter as suas cinquenta espadas e outros
tantos escudos.

Agora já virava a maré da batalha. Ascânio e os sitiados, aproveitando


-se da confusão e do morticínio lançados por Eneias no campo inimigo, já
tinham deixado o entrincheiramento e combatiam na planície.

Chegou-se então Júpiter e disse a Juno:

— Minha caríssima esposa, tal como julgava, lá esta Vénus protegendo


as forças troianas. Percebo que esses guerreiros não têm animo intrépida e
sofredor de perigos.

Aquiesceu Juno, declarando:

— Porque, cato senhor, tanto encorajaste essa tua filha teimosa e tanta
dor me trouxeste ao coração? Se ainda me amas, como outrora me amavas

185
ENEIDA - Virgílio
— e espero que sim —, concede-me esse favor que te peço. Dá-me o direito
de subtrair Turno aos perigos do combate e levá-lo incólume a seu pai
Dauno. Não permitas que o seu sangue inocente coroe a vitória troiana Ele
é da nossa estirpe por parte de Pilumno, seu avô, que muitas vezes encheu,
com mão liberal, os teus altares de oferendas.

O rei do etéreo Olimpo retrucou-lhe:

— Se me pedes que adie por pouco tempo a sua hora fatal, concedo-te
o que me pedes. Até ai chega o meu poder de modificar o curso do Destino.
Porém, alimentas esperanças vas se esperas com isso alterar o correm da
guerra ou mesmo adiar o seu fim.

Juno, banhada em lágrimas, continuou:

— Faria algum mal se, por detrás dessas tuas palavras duras, se
escondesse um coração brando e que Turno, ao vencer esses invasores da
sua terra pudesse alcançar uma velhice venerável? Mas não, triste fim
aguarda o inocente, que, para gáudio de tua filha, irá encontrar morte
prematura. Como se rejubilaria o meu coração, se soubesse que sou levada
por temores infundados! Oh! Não serás capaz, ó pai e esposo, de alterar o
que dispuseste e salvá-lo do triste fado? Se não o podes fazer, deixa-me, pelo
menos, livrá-lo da presente desventura.

E, descendo veloz das nuvens, a rainha do Olimpo foi direita ao local


da peleja, no seu carro reluzente, antes que Júpiter mudasse de ideias.
Escondida numa nuvem, agarrou nalguns farrapos dela e com eles
confeccionou um fantasma, à semelhança da figura de Eneias. Em tudo—
vestes, armas e escudo reluzentes, penacho do capacete flutuando ao vento
e até mesmo no garbo e andar—a figura era a perfeita reprodução do
original. No entanto, era de substância imaterial e fugidia como as sombras
que passeiam no reino de Plutão ou as formas que nos aparecem em sonhos.
A imagem percorria altiva as primeiras fileiras de combatentes e, avistando
Turno, adiantou-se na sua direcção e lançou-lhe um dardo. Com um som
fantasmagórico, a arma passou próximo da cabeça do rótulo. Como que

186
ENEIDA - Virgílio
apavorado, a figura voltou-se e disparou em furiosa correria na direcção da
praia próxima.

Turno, completamente iludido pela perfeição do fantasma, espantou-


se com a sua atitude, pois não podia conceber o troiano atirado em fuga,
acobardado. E gritou-lhe:

— Para onde foges; Eneias? Não desprezes a tua noiva recente de


modo tão leviano! O meu braço dar-te-á a terra pela qual cruzaste os oceanos
ou pelo menos a porção de que realmente precisas

Assim vociferando, perseguia a sombra brandindo a espada, não


reparando em que eram os ventos que a afastavam do objectivo. Por acaso,
atracado a um rochedo elevado, ainda lá permanecia o navio lódão que
trouxera o rei Osírio com seus homens. A trémula imagem do fugitivo
atravessou a prancha lançada da borda à terra e avançou barco adentro. O
ligeiro Turno seguiu-a atento e poisou no convés logo atrás dela, mas, assim
que Juno o viu seguro, cortou os cabos que prendiam o barco à costa e,
levado por uma brisa ligeira, lá se foi ele afastando das praias.

Nesse momento, a sombra etérea do troiano desvaneceu-se na


atmosfera, ante os olhos espantados do Talo. Já agora deslizava veloz o
barco, levado por uma forte ventania, para o mar alto. Turno, sem conseguir
compreender o que se passara, ouvia os sons da batalha cruenta diminuírem
cada vez mais lá longe e compreendeu que os céus o tinham feito cair numa
armadilha. Levantando os braços para os astros exclamou:

— Ó Pai Omnipotente, de que crime tão grande me julgas-te culpado


para que eu receba tão horrível castigo? Para onde sou arrebatado? Tornarei
a ver o meu torrão natal, os muros da minha cidade, os meus companheiros,
o meu pai? Que vergonha é que eu, Turno, tenha desertado de meus
guerreiros, deixando-os perecer nas mãos troianas! Que poço bastante
profundo haverá que possa esconder-me do desprezo dos meus? Ó ventos,
sede compadecidos e levai-me com este navio para os escolhas traiçoeiros
ou atirai-o às costas desertas de uma terra selvagem, onde não me sigam os
rótulos ou a noticia do acto praticado.

187
ENEIDA - Virgílio
O seu pensamento agitava-se, enlouquecido, indo de uma ideia para
outra, e para outra ainda, sem cessar. Se, como um louco, se deveria
trespassar com o ferro da lança, se embeberia a lamina nua da espada nas
costas, se se atiraria às ondas e procuraria a nado atingir a terra distante, para
de novo se lançar contra as armas dos troianos. Três vezes esteve à beira de
tentar cada uma daquelas saídas, mas três vezes Juno lhe susteve as forças,
e o navio, levado pelas marés e pelos ventos e orientado pela mão da deusa,
chegou finalmente a um ponto muito ao sul do litoral de onde partira, perto
da antiga cidade de seu pai Dauno.

Enquanto isso, na planície, Eneias, não a mortalha sem forças, mas o


próprio herói em carne e osso, vibrante de energia, desbaratava fileiras e
fileiras inimigas. Por toda a parte a vitória sorria aos troianos, pois os rótulos,
sem 0 seu chefe, estavam em debandada.

Por avisos de Júpiter, Mezêncio assumiu a liderança e reuniu os seus


dispersos batalhões. Lançaram-se todos os troianos ao ataque do cruel
guerreiro, rei de Agila, mas este avançava pela turba qual rochedo que,
exposto às fúrias dos ventos e das ondas do mar, resiste a toda a violência
do céu e da terra, permanecendo inabalável. Aquele monumento de
crueldade e vilania não era um cobarde. A sua fulgente espada ceifou muitos,
os seus dardos poderosos muitos trespassaram e muitos tiveram as cabeças
esmagadas pelas pesadas pedras arrojadas. Entre eles caiu Mimanre, da
mesma idade e companheiro de Páris.

Avançava Mezêncio pelo campo, brandindo a lança, tão grande como


o gigante Orion que percorre a pé os caminhos aquosos de Nereu, quando
Eneias o avistou e se lhe dirigiu. Mezêncio aguardava-o, impávido e imóvel.
Chegando a uma boa distancia para o dardo, exclamou Eneias:

— Vale-me tu agora, ó minha destra, único deus para mim e tu, ó


dardo, que arrojo.
Saiu a arma pelos ares com um som estridentíssimo, mas, ricocheteando no
escudo do troiano, foi atingir Antores, companheiro de Hércules, vindo da
Grécia para auxiliar Evandro. Eneias lançou outro dardo com extrema
violência e velocidade. Desta vez, a aguçada ponta de ferro perfurou as três

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ENEIDA - Virgílio
laminas de bronze, três de linho e três couros de boi do escudo do inimigo e
enterrou-se junto à sua virilha. Vendo correr sangue do rei, o troiano sacou
da espada e avançou célere sobre Mezêncio que, atordoado com a pancada
e atrapalhado com o chuço que lhe pendia do corpo, começou a recuar. Então
Lauso, alarmado, lançou-se entre o inimigo e seu pai e, aparando os golpes
daquele, protegia a retirada deste. De todos os lados acudiam os rótulos e
uma saraivada continua de setas e dardos cala sobre o filho de Vénus. Este
encobria-se com o escudo qual agricultor ou viajante que, protegendo-se do
granizo repentino ou da chuva inesperada que desaba na estrada ou no
campo, procura refugio debaixo de um rochedo saliente ou numa caverna,
esperando que o sol volte a brilhar. E gritava encolerizado para Lauso:

— Ó tu que vais morrer, para onde te retiras? Não tentes maiores


proezas que as que te permitam as tuas fracas forças. A tua piedade filial
leva-te à desgraça!

Mas o amor ao pai prendia o jovem ali e, embora a feia Morte lhe
soprasse o hálito gélido no pescoço, não se atemorizou. Eneias adiantou-se
então e, de um só golpe, atravessou o escudo e o peito do jovem, enviando-
lhe rapidamente o espírito para o Mundo das Sombeas. Vendo empalidecer
as feições do jovem, Eneias compadeceu-se, pois lembrara-se do amor que
também lhe dedicava Ascânio. E disse:

— Que coisa ainda te poderei eu dar, jovem infeliz, como recompensa


pelos teus feitos gloriosos e por tua virtude? Guarda as tuas armas. Não as
tomarei, porque as honraste e restituo o teu corpo aos teus parentes, se te e
grato repousar a seu lado.

Nesse interim o pai, Mezêncio, fora levado pelos seus guerreiros às


margens do Tibre, onde repousava encostado a um carvalho, enquanto
estancava o sangue da ferida. Dos ramos pendia o seu capacete e a armadura
jazia na relva ao lado. Rodeavam-no vários chefes a quem ele, combatido e
ofegante, dirigia várias perguntas, desejando noticias do filho, Lauso. Mas
outros já se aproximavam com o cadáver exânime, as lágrimas a correrem
das suas faces rudes.

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ENEIDA - Virgílio
Horrorizado e alucinado de dor, o pobre pai arrancava a barba e
derramava poeira na própria cabeça, chorando amargamente.

— Ó filho querido, julgaste a minha vida tão preciosa ou pensaste que


eu lhe queria tanto, para assim te exporás à espada de Eneias e trocar os
muitos anos que te sobravam por os tão poucos que me restam? Não estou
agora vivo, só porque tu morreste? Ai de mim! Só me restava, desgraçado e
infeliz, o exílio! Fui eu mesmo, filho, que maculei o teu e o meu nome, com
os meus crimes, terminando expulso do trono e do reino paternos. Somos
adiados pelo nosso próprio povo. Se tivéssemos procedido doutra maneira,
amar-nos-ia grandemente. Há muito que mereço o castigo. A morte, para
mim, sob qualquer forma que viesse, seria justa e oportuna. Entretanto, eu
vivo contra a minha vontade, e tu, Lauso, tens a vida cortada na flor da
juventude. Mas morrerei também.

Em seguida, gemendo, levantou-se combatido e ordenou que lhe


trouxessem o cavalo, corcel valoroso que já o levara a muitas vitórias. Falou
então, entristecido, ao animal:

— Rebo, temos vivido muito tempo juntos, como companheiros.


Levar-me-ás de volta ao combate e, ou venceremos Eneias, trazendo-lhe os
despojos e a cabeça escorrendo sangue, ou morreremos juntos, pois nunca
poderias suportar no dorso, como senhor, um príncipe troiano.

Montou, muniu-se de vários dardos, firmou o capacete de plumas na


cabeça e avançou a galope pelo meio dos combatentes. No fundo do coração,
ferviam-lhe uma vergonha imensa, a insónia misturada com a dor, o valor
consciente e o amor agitada pela furta. Três vezes bradou por Eneias, em
altas vozes, até que este o ouviu e exclamou, contente:

— Finalmente, o grande Apolo e o pai dos deuses permitem que te


apresentes contra mim.

Respondeu-lhe Mezêncio:

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ENEIDA - Virgílio
— Porque me atemorizas, homem cruel, depois de teres assassinado o
meu filho? Era esse o único meio através do qual me conseguirias derrotar.
Não tememos a Marte, nem a qualquer dos deuses. Chega de bazófia, pois
venho decidido a tudo. Aí vai.

Assim dizendo, lançou o seu poderoso chuço contra o troiano e logo


atirou outro e mais outro, enquanto galopava em largos círculos em torno do
inimigo. Mas o escudo de bronze de Eneias desviava as armas, pois para isso
o fabricara Vulcano, esposo de Vénus e senhor das forjas eternas. Cansado
já do combate que se demorava, Eneias adiantou-se e enviou uma tremenda
lançada à testa do corajoso ginete. Este empinou-se e caiu, prendendo o
cavaleiro sob o seu corpo agonizante. Enorme clamor subiu aos ares, partido
de troianos e latinos. Eneias, com a espada desembainhada, correu para
Mezêncio caído e disse-lhe:

— Onde estão agora, tirano impetuoso, a tua feroz energia e indómita


coragem?

Mezêncio ergueu os olhos para ele, ainda altivo, apesar de estar à


mercê do inimigo, e retrucou:

— Inimigo cruel, porque me insultas e me ameaças com a morte? Nela


não há nenhum crime. Não vim dar-te combate sem nela pensar, nem foi
essa a atitude de Lauso quando me salvou. Só uma coisa te peço, se algum
favor concedes ao adversário derrotado: permite que o meu corpo seja
coberto com alguns punhados de terra. Sei que dos meus não posso esperar
compaixão, mas sim ódio implacável. Sustém, eu te peço, a ânsia de
vingança e concede que a meu filho faça companhia no sepulcro.

Quando terminou, recebeu a ponta da espada na garganta e, no mesmo


momento, expirou.

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ENEIDA - Virgílio

Capítulo 11: O Rei Latino Pede Paz

Entretanto, a aurora surgia, iluminando o oceano. A primeira


preocupação de Eneias foi pagar tributo aos deuses, embora os seus
pensamentos estivessem voltados para os preparativos dos funerais dos
companheiros. Sobre um tronco de carvalho, ao qual se cortaram os ramos
todos, plantados pelos guerreiros num pequeno cômoro, mandou ele que se
dispusessem os despojos do chefe inimigo como troféu a Marte, o deus da
guerra. Do lado direito foi pregado o capacete emplumado, depois a lança
quebrada e a armadura, muito rachada e escura de sangue. Do lado esquerdo
do tronco, fixou-se o enorme escudo do tirano e em cima disso tudo colocou-
se a espada com a bainha de marfim. Assim pronta a oferenda, Eneias
dirigiu-se à multidão:

— Ali, amigos, estão as armas vencidas de um rei orgulhoso mas


odiado. Grande vantagem alcançamos nós já nesta luta. Agora temos aberto
o caminho para o rei e para os muros latinos. Preparai as vossas armas, pois
o inimigo, morto Mezêncio e desaparecido Turno, está agora sem chefe,
sendo Latino velho e trémulo. Não tomais, pois, o futuro! Assim que os
deuses declararem que podemos partir, nós o faremos e sem demora. Mas
antes confiemos à terra os corpos insepultos dos nossos companheiros, que
esta é a única honra esperada por aqueles que, na margem do Aqueronte,
esperam. Ide, pois, e ornai com valiosos presentes essas almas privilegiadas
que nos permitiram ganhar esta pátria. Que seja Palas o primeiro a ser
enviado à cidade de Evandro. Funesto dia roubou ao nosso convívio um
moço de tão nobres virtudes.

Dirigiu-se para o local onde uma grande multidão de guerreiros,


escravas e mulheres troianas de cabelos soltos, segundo o costume, velava o
corpo do príncipe. Lá estava também o velho Acetes, que fora outrora
escudeiro do rei Evandro. À aproximação do troiano, o recinto ressoou com
os lamentos e os prantos. Olhando para o pálido rosto e para o jovem peito
perfurado pela lança inimiga, Eneias sentiu os olhos encherem-se-lhe de
lágrimas e exclamou:

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ENEIDA - Virgílio
— Ah, amigo fiel, como me entristeço por te ter negado a Fortuna uma
vida mais longa! Que, ao menos, te tivesse concedido a visão das minhas
muralhas a levantarem-se do solo latino. Então, em vez de jazeres aqui, terias
retornado ao reino de teu pai, cheio de despojos do inimigo. Mas, oh! Como
dispuseram diferentemente, as Parcas!

E continuou:

— Quão diferente das promessas que fiz a teu pai, quando por ocasião
da despedida, entregando-te aos meus cuidados, me assegurava que eu partia
para uma luta cruel contra inimigos intrépidos e aguerridos. E agora,
alimentado por vã esperança, talvez faça votos e encha os altares de
oferendas, enquanto nós, tristes, acompanhamos às honras fúnebres aqueles
que já nada devem as divindades. Infeliz és tu, ó Evandro, que assistirás aos
funerais do filho. São estes o nosso regresso e triunfo tão esperados! É esta
a promessa que te fiz! Mas, pelo menos — se isso pode servir de consolo —
não o verás cair a golpes vergonhosos, nem ocasião terás de desejar-lhe não
ter nascido. Que grande auxilio perde agora a Itália, e a ti, Ascânio, de que
bom companheiro a morte te priva!

Às suas ordens, então, mil guerreiros de todo o exército partiram


escoltando o cortejo fúnebre. Teceram primeiro um féretro de grades,
flexível, com varas de medronheiro e de carvalho, e fizeram um tecto de
folhas para tal leito. E nesse féretro colocaram o corpo do pobre moço.
Quase vivo em aparência, fazia lembrar uma violeta delicada ou um jacinto
mimoso que, colhidos há pouco por uma gentil donzela, não tivessem
perdido ainda o brilho e o frescor. Eneias mandou vir duas vestes, que a sua
bem-amada Dido lhe tecera, entremeando os fios de ouro, e com elas
revestiu o cadáver. Ao lado do esquife foram arrumados os cobiçados troféus
tomados aos inimigos derrubados pelo próprio Palas. Seguiam ainda, mãos
atadas às costas, os prisioneiros que expiariam as suas vidas junto ao altar
dos deuses e na pira funerária para satisfação dos olhos paternos. Aos chefes
arcádios, ordenou Eneias que preparassem troncos ornados com as armas
dos principais inimigos mortos e que os nomes destes ali fossem gravados.
Ao lado do cortejo, caminhava o velho Acetes, passas trôpegos, dando
Cunhadas no peito, as faces enrugadas cheias de arranhões que a si próprio

193
ENEIDA - Virgílio
fizera com as unhas. Atirava-se constantemente ao chão, para junto do
féretro. Seguia-se um enorme bando de troianos, etruscos e arcádios com as
armas abaixadas. Palas era acompanhado nessa última viagem pelo seu
cavalo, de crina a cobrir-lhe os olhos, e também por carros salpicados de
sangue rótulo. A sua lança e o seu capacete eram levados por guerreiros. As
outras armas e despojos estavam na posse de Turno.

Avançando um pouco, assim se despediu Eneias:

— Os mesmos destinos horríveis da guerra chamam-nos para outras


lágrimas. Adeus, adeus para sempre, ó grande Palas!

E, voltando, seguiu directo para o acampamento. Mas então já


chegavam mensageiros da cidade latina trazendo ramos de oliveira e
solicitando a Eneias que lhes restituísse os corpos dos mortos estendidos
pelos campos, para que lhes dessem sepultura condigna.

Não há guerra — diziam — com soldados que já não respiram o ar do


céu. Queriam homens que os ajudassem a construir piras para a cremação
dos cadáveres, e que Eneias os perdoasse, a eles de quem até há bem pouco
tempo o troiano recebia hospedagem e amizade. E respondeu-lhe então
Eneias.

— Que má fortuna nos levou, ó homens do Lácio, a tão tremenda


guerra? Dou-vos a paz aos mortos, porém mais alegremente a concederia
aos vivos. Não teria aportado a estas praias, se a tal não me tivessem levado
todas as predições dos oráculos e ordens dos deuses durante tantos anos de
exílio. Nenhuma espada vos teria oposto, se não tivésseis aceitado os maus
conselhos de Turno, rei da Rutúlia. Se assim o desejava, que nos movessem
— ele e o seu povo, sozinhos — guerra contra nós, tratar os, sem ser preciso
que vos trouxesse a vós, latinos, para o conflito, quebrando os nossos laços
de amizade. Ide agora e queimai os vossos mortos. Aos nossos daremos o
mesmo destino.

Silenciosos e cabisbaixos, os mensageiros do rei Latino ouviram a fala


real e interrogavam-se uns aos outros com os olhos.

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ENEIDA - Virgílio
O velho Drances, que sempre se opusera aos planos de Turno, tentando
contrabalançar os seus rancores e as suas acusações, disse assim:

— Varão troiano, grande fama e maior pelos feitos guerreiros, que


louvores poderei erguer-te aos céus? Admirar-te-ei primeiro pelos teus actos
de justiça ou pelas espantosas façanhas? Nós, agradecidos, levaremos as tuas
palavras até à nossa cidade e refaremos a tua aliança com o rei Latino, se a
tal nos ajudar a Fortuna. Quanto a Turno, que procure outras alianças.
Ajudar-te-emos de bom grado a lançar os alicerces da nação troiana que
surge e os nossos ombros carregarão felizes as pedras que erguerão os teus
muros.

Todos, de modo unânime, apoiaram e aplaudiram as palavras do seu


porta-voz. Foi estabelecida uma trégua de doze dias e, durante esse período,
troianos e latinos percorriam os montes e os bosques, em paz, sem se
atacarem. A faina era intensa na floresta, pois era preciso construir muitas
piras. Soávamos machados, retumbavam as árvores na queda, gemiam os
carros transportando madeira.

Enquanto isso, já chegara ao rei Evandro a notícia de que se


aproximava o cortejo fúnebre de seu filho, sobre o qual, poucas horas antes,
fora informado estar vencedor no campo de batalha. Conforme o costume, a
cidade encheu-se de luto e pelas estradas, campos e portões brilhavam tochas
funerárias. Choravam as mães e Evandro, sem poder conter-se, lançou-se à
frente, ao encontro do féretro, e abraçou-se ao cadáver soluçando:

— Palas, não foram estas as promessas feitas a teu pai. Oxalá não te
tivesse eu tão cedo confiado ao deus Marte! Bem sabia eu a quantos perigos
te impeliriam a glória e a fama, numa primeira peleja. Triste começo para
um guerreiro jovem! Desditoso ensaio para a guerra! E vós, deuses, que não
ouvistes quaisquer das minhas preces e não recebestes quaisquer das minhas
oferendas! Ó esposa virtuosa, cuja morte benfazeja te impede de ver e ouvir
o que agora sou obrigado a ver e ouvir! Transpus, diferentemente, o meu
destino na vida. Antes me tivessem os rótulos trespassado de setas a mim,
que me aliei aos troianos!

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ENEIDA - Virgílio
(continuou)

- De bom grado trocaria de destino com meu filho e a mim agora me


acompanhariam essa pompa, esse cortejo e essas lamentações ao meu
palácio. Não vos culpo, ó Eneias, nem renego nem maldigo a hospitalidade
dada, a destra estendida, a aliança feita. As Parcas tinham-me reservado
essas coisas para a velhice. E já que prematura morte esperava Palas, que me
sirva de triste consolo o facto dele ter sucumbido em pleno campo de
batalha, depois de ter prostrado no pó muitos volscos. Maiores honras
fúnebres não te poderia prestar eu do que estas que agora te trazem os
grandes troianos, o piedoso Eneias, os heróis da Etrúria e o exército tirreno.
Trazem eles em exibição os troféus daqueles que derrubaste. Também tu,
Turno, estarias a ornamentar um tronco de carvalho com os teus troféus, se
fosses igual em idade, a meu filho. Mas, deuses do Olimpo, por que razão
aqui retenho estes guerreiros com as minhas lamentações Ide, e não vos
esqueçais de dizer ao vosso rei que, se eu, Evandro, prolongo a minha vida
depois da morte de meu filho, só o faço para poder chegar um dia à profunda
morada dos Manes levando a noticia de que Eneias venceu e matou Turno,
o rótulo.

Já a aurora trazia aos míseros mortais a sua luz radiosa, acometendo-


os novamente de trabalhos e de preocupações, e troianos e latinos tinham
erguido as suas piras nas areias brancas da praia. Segundo o costume, ali
cremavam ao fogo vivo os corpos dos seus heróis, enchendo o céu de negra
fumaça. Com as suas armaduras reluzentes e as armas a faiscar, a pé e a
cavalo, três vezes rodeavam as fogueiras soltando lúgubres clamores. A
[errai as armas, os rostos ficaram regados pelas lágrimas daqueles guerreiros
rudes que viam os amigos, os parentes, os irmãos, os filhos e os pais a
empreenderem a última jornada. Depois, lançaram ao fogo os despojos
retirados aos latinos mortos: capacetes, espadas maravilhosas, freios e rodas,
escudos e lanças. Ao mesmo tempo imolavam muitos novilhos ao hórrido
deus da guerra, sobre as próprias chamas que consumiam os corpos dos
companheiros. E não se retiraram do local antes que as labaredas, já muito
baixas, encarassem a noite húmida e o céu refulgente de estrelas.

196
ENEIDA - Virgílio
Do outro lado, os pobres latinos tinham o mesmo procedimento.
Muitos corpos eram cromados, outros sepultados ali mesmo na areia e outros
ainda enviados às cidades vizinhas, para os braços e cuidados dos parentes.
Não havia, porém, nem honras nem cânticos. Os muitos cadáveres eram
atirados de qualquer maneira, em grande confusão, às piras imensas. Depois
do terceiro dia de actividade, rebuscaram os restos das fogueiras e
sepultaram os ossos e as cinzas remanescentes. Na cidade opulenta do rei
Latino ressoavam no ar os lamentos do grande luto. Mães, noras, irmãs,
órfãos, todos detestavam a imagem do Marte cruel e abominavam a aliança
com os rótulos. Bradavam, enraivecidos e incitador pelo implacável
Drances, que ele Turno, apenas acompanhado pelos seus homens e armas é
que deveria lutar pelo reino da Itália. Drances afirmava que a Eneias só
interessava o rei rótulo e nada mais era reclamado para o combate. Mas
também muitos outros — tomando o partido da rainha Amata — defendiam
a continuação da aliança, lembrando os feitos heróicos de Turno, as suas
proezas guerreiras e os troianos que vencera.

No meio da discórdia e da confusão que reinavam entre os latinos, eis


que regressavam os embaixadores enviados à cidade de Diomedes, para
pedir auxílio ao grande guerreiro grego. Eram más as noticias. De nada
tinham servido os esforços, os presentes, as súplicas, o ouro oferecido. Que
procurassem outras alianças ou então que o rei Latino pedisse a paz aos
troianos. O próprio rei desmaiou ao ouvir a noticia. A cólera dos deuses, o
grande revés nas armas, os funerais e prantos que enchiam toda a cidade
advertiam-no de que Eneias fora trazido àquelas costas por força dos
destinos. Mandou, então, reunir os principais chefes, lordes e conselheiros
do reino em grande assembleia no palácio. Acorreram todos, pressurosos, e
encheram o grande salão do trono onde o rei, mais velho e de maior
autoridade, tomou assento com o semblante carregado. Pediu a Vénulo, o
chefe da embaixada que fora à Grécia, que expusesse os resultados de sua
missão. E, obedecendo, assim falou ele:

— Ó cidadãos latinos, fizemos a perigosa jornada até Argiripa, cidade


fundada por Diomedes, o grego poderoso, um dos principais vencedores do
baluarte de Tróia. Lá chegados, apresentamos os nossos presentes e

197
ENEIDA - Virgílio
declaramos nome e pátria. Dissemos que povos nos trouxeram a guerra e
que motivos nos tinham levado à Grécia.

Diomedes, depois de nos ouvir, respondeu com voz tranquila:

— Ó filhos da Itália? que destino infiel vos rouba a paz serena e vos
persuade a tomar parte em guerras de êxito incerto? Todos nós, gregos, que
assaltamos, destruímos, queimemos e saqueámos a grande cidade de Tróia,
todos nós sofremos muito. Não falo somente das adversidades da guerra que
ceifaram a vida de muitos companheiros junto às muralhas imponentes da
cidade ou encheram o Simois e o Xanto de cadáveres helénicos, mas de
coisas acontecidas mais tarde, depois de carregados os navios com o produto
do saque. Como pensávamos ser felizes, como julgávamos proteger-nos os
deuses! Mas escutai como sofremos. Primeiro, atravessamos uma tremenda
tempestade desencadeado por Minerva, que nos desbaratou a frota em todas
as direcções. A seu mandado, o rei Neoptólemo fez brilhar luzes traiçoeiras
que levaram muitos barcos ao naufrágio nas suas costas de escolhas
submersos. Menelau, filho de Atreu, andou exilado por oito longos anos nas
terras dos egípcios. Agamémnon, seu irmão, o mais poderoso dos reis
gregos, foi assassinado, às portas do palácio real, pelas mãos ímpias da
esposa e das do seu traiçoeiro amante. Plissas vagou pelos oceanos durante
muitos anos, enfrentando toda a espécie de perigos, incluindo Circe, a
feiticeira, e os ciclopes do Etna Pereceram na aventura todos os seus
companheiros e ele mesmo só conseguiu retornar à pátria em condições
miseráveis. Para cúmulo da desgraça, lá o esperavam uma casa delapidada
por libertinos, a sua fortuna gasta, a esposa apoquentada pela malta que
ainda ameaçava a vida do filho. Pirro, filho de Aquiles, foi morto por uma
punhalada, quando orava aos deuses junto aos altares. Idomeneu foi expulso
da sua terra em Creta, tendo ido fundar um reino na Itália. Quanto a mim, os
deuses proibiram-me que voltasse a ver a minha terra natal e a minha bela
esposa Cálidon, que me esperava saudoso. Os meus companheiros foram
transformados em pássaros que fogem através dos ares, vagueiam pelos rios
ou soltam gritos estridentes e lamentosos em torno das ilhas pedregosas no
meio dos oceanos. No entanto, que poderia eu esperar, eu que — ó insensato!
— ataquei com a espada a formosa Vénus na planície troiana, ferindo-a na
mão direita. Não, amigos, não me exorteis a tais combates. Não farei guerra

198
ENEIDA - Virgílio
alguma contra os troianos. Esses presentes que trazeis, levai-os a Eneias e
com ele fazei a paz.

Diomedes continuou:

— Poderoso guerreiro lá está, eu vos digo, pois com ele tercei lanças
e sei que sempre Apolo e Vénus estão a seu lado. Tivesse Pérgamo mais dois
valentes como ele e hoje chorarmos morte e luto da Grécia invadida e
arrasada. Não foram nessa altura as suas mãos, juntamente com as de Heitor,
que fizeram Tróia resistir dez anos a todos os exércitos gregos reunidos? Ide,
pois, latinos, e procurai aliar-vos a ele de qualquer forma, pois o vosso poder
alcançará todas as nações, até mesmo nos limites da terra, e a vossa fama
chegará à morada dos deuses! É esta, portanto, ó excelente rei, a resposta de
Diomedes e a sua opinião a respeito da guerra.

Intenso murmúrio levantou-se no ajuntamento que ouvia o


embaixador, comentando todos a resposta do nobre grego. Parecia um rio a
que as pedras retardam a rápida corrente e a que vai aumentando o ruído
num crescendo assustador, até que as próprias margens estremeçam. Mas o
rei Latino levantou a destra e calaram-se todos. Invocando primeiro os
deuses, disse ele:

— Era meu desejo, ó súbditos, e teria sido bem melhor que esta
assembleia se tivesse reunido assim que as coisas começaram a acontecer e
não agora, quando o inimigo já sitia as nossas muralhas. Sabemos, cidadãos,
que fazemos guerra desigual contra raça divina, contra guerreiros
invencíveis a que não há combates que fatiguem. Perdei, depois da resposta
de Diomedes, a esperança — se algum dia a tivestes — no auxilio estranho,
mas entes deposite cada um a esperança em si mesmo. Vede, no entanto,
como é fraca essa esperança. A ruína do reino está patente aos vossos olhos.
A ninguém lanço a culpa, pois houve a maior coragem que poderia haver e
em luta entraram todas as forças. Ouvi-me agora e aplicai a vossa atenção às
minhas palavras. Possuo campos próximos do rei Tusco, cultivados pelos
rótulos e auruncos. Proponho que seja cedida aos troianos aquela região,
bem coma a crista coberta de pinheiros das elevações próximas. Assinemos
um tratado, façamos uma aliança e chamemo-los amigos do reino. Se tão

199
ENEIDA - Virgílio
grande é a força que os impeliu para o Lácio, que ali se estabeleçam e ergam
a sua cidade. Mas se é seu desígnio buscar ainda outras pragas, ajudemo-los
a construir vinte navios de carvalho, porque os seus foram metamorfoseados
em ninfas nas ondas.

Continuou o rei Latino:

— Cortemos a madeira, arrumemo-la nas praias, coloquemos à sua


disposição bronze, mão-de-obra, apetrechos e tudo o que precisarem. Como
primeira medida, vemos enviar cem delegados latinos com propostas e
tratados. Que se apresentem a Eneias com ramos de oliveira nas mãos e
também muitos presentes, grande quantidade de ouro e de marfim, além das
insígnias da nossa realeza, que são um trono de ouro e uma veste. Peço-vos
agora a vossa opinião ao que acabo de dizer.

Adiantou-se Drances, aquele mesmo rival e inimigo de Turno, cuja


glória o atormentava com rancor concentrado e com os aguilhões da inveja.
Rico e eloquente, o seu braço era tímido na guerra, mas as suas opiniões
como conselheiro eram grandemente acatadas. Levantou-se e disse:

— Tu nos propões, ó rei, uma coisa e todos temos em mente uma só


opinião, mas não ousamos expressá-la. Com a tua permissão, eu o farei,
embora aquele a quem me refiro possa ameaçar-me a vida. Ele, o falso herói,
que, enquanto os seus e os nossos guerreiros caiam ensopando a terra de
sangue quente, fugia do campo de batalha e procurava refúgio na casa de seu
pai. A Eneias, a quem planeias enviar muitos presentes, envia mais um, que
lhe agradará sobremodo—a tua filha Lavinia. Com esse casamento se
firmará a aliança eterna e todos os povos da Itália viverão em paz. Não
permitas que qualquer violência, de quem quer que seja, obste a essa tua
resolução. Se, porém, é grande o pavor que te enche o coração,
convoquemos o próprio Turno e juntos lhe imploremos que restitua ao rei
Latino o direito que lhe assiste. Porque deverão as planícies encher-se de
cadáveres pela disputa entre dois homens? Agora eu apelo para ti, ó Turno,
autor e causa de tantas desgraças para o Lácio, para que tenhas piedade de
teus patrícios. Deixa o orgulho, dá-te por vencido e retira-te. Funerais, já
vimos bastantes. Ou, então, se te impele a glória, se te crês merecedor de tão

200
ENEIDA - Virgílio
alto valor, se tanto queres este palácio como dote, vai sozinho, enfrentar o
corajoso Eneias com o peito descoberto! Pois então, para que Turno ganhe
uma esposa real, deveremos nós verter o nosso sangue latino? Não! Agora,
olha frente a frente aquele que desafias!

Este discurso enfureceu Turno, que retrucou:

— Nunca, Drances, te faltaram as palavras certas e fáceis, quando a


guerra exige braços e feitos. És o primeiro que se apresenta quando são
convocados os conselheiros, mas não são pelavas vazias—embora ditas em
tom ousado e altissonante — que repelirão o inimigo das muralhas, que o
expulsarão dos fossos. Tu, ó vilão cínico, acusas-me de cobardia. Mostra-
me, então, os montes dos inimigos que derrubaste e os muitos troféus que
ornamentam a tua morada. É ocasião de provares o que a tua coragem pede.
Não precisamos ir longe para procurar o adversário. Ele está aqui, perto das
nossas cidades, ao redor das nossas muralhas. Porque não te adiantas? Será
que todo o teu valor estará na tua língua empolada e nos teus pés ligeiros?
Mentiroso, que falsamente me acusas de virar as costas aos inimigos! Eu, na
verdade vencido! Pergunta ao corpo de Pandaro, de Bitia, e dos muitos
guerreiros troianos que enviei ao Tártaro, quando encerrado e preso dentro
do seu próprio entrincheiramento. Não há salvação nesta guerra! Chega de
falsos medos por uma raça duas vezes vencida, chega de deprimir os
guerreiros latinos! Silencia essa língua mentirosa e guarda o veneno atrás
dos dentes! Ou então sai pelos portões e vai aterrar com as tuas palavras o
inimigo fora das muralhas. Há milhares deles marchando pata cá. Porque te
deténs? Avança, guerreiro intrépido, e conduz-nos à vitória! Agora dirijo-
me a ti, ó rei e pai, e as tuas graves deliberações. Se realmente não vês
nenhuma esperança nas nossas armas, se estamos de animo tão abatido, e se
por causa de uma batalha perdida consideramos perdida a guerra, então
peçamos a paz e estendamos a Eneias as mãos desarmadas. Se, ao menos,
nos restasse algum valor! Mais felizes do que nós são aqueles que, para não
verem tal vergonha, caíram moribundos nas praias ítalas. Mas se nos sobram
recursos, se temos uma juventude aguerrida quase intacta, se há tantas
cidades e povos ítalos para nos auxiliarem e, se por outro lado, a vitória dos
troianos lhes custou milhares de vidas, se eles tiveram os seus funerais, se o
desastre foi igual para todos, porquê desfalecer e desistir logo no começo da

201
ENEIDA - Virgílio
guerra? Porque se vos enche a alma de medo, antes de ouvir o som da
trombeta da Morte? O tempo e o êxito inconstante da vida muitas vezes
mudam as coisas para melhor. Não estou desanimado por Diomedes nos ter
recusado ajuda. Há muitos outros que cerrarão fileiras a nosso lado, como
Messapo, Tolúmio e vários chefes de outras tribos. Logo alcançaremos
brilhante vitória nos campos laurentinos.

(continuou)

— Ai está também Camila, rainha de intrépido clã dos volscos,


esperando com as suas indómitas amazonas. Porém, se é só a mim que os
troianos reclamam para o combate, se isso é do vosso agrado, se somente eu
sirvo de obstáculo ao bem comum, irei confiadamente contra Eneias para o
defrontar em combate singular, embora seja feroz como Aquiles e como este
use armas forjadas por Vulcano. Contra ele pelejarei de igual para igual, por
tua filha, ó rei, minha noiva ameaçada.

Enquanto os latinos assim discutiam, Eneias avançava com o seu


exército. Irrompeu um mensageiro na assembleia, anunciando, alarmado,
que os troianos se dirigiam para a cidade e uma força tirrena descia o rio
Tibre e cobria toda a planície. Logo se perturbaram os ânimos do povo.
Grande confusão e murmúrio enchiam o salão e muitos partiram do palácio
bradando às armas. Os jovens gritavam, as donzelas empalideciam e
tremiam os velhos gemiam, lamentando-se e torcendo as mãos. Um rumor
ensurdecedor elevava-se aos ares, como um bando de passarás, gritando com
estrépito, que baixa velozmente de uma nuvem para pousar num bosque, ou
como os cisnes, que se elevam aos ares com um enorme bater de asas e
vozearia junto às águas do Padusa.

Aproveitando-se da situação, assim gritou Turno:

— Eia, ó cidadãos! Enquanto os dardanios e etruscos invadem o vosso


reino, armados, aqui estais sentados e tranquilos em assembleia, louvando a
paz!

E rápido, precipitou-se para fora do salão e deu as ordens de combate

202
ENEIDA - Virgílio
—Vai, Vóluso, e manda que se armem os volscos. Faz marchar os
rótulos. Tu, Messapo, e tu, Coras, dispondo a cavalaria diante das muralhas.
A outros ordenarei que guarneçam os muros e os bastiões. Siga-me o restante
dos guerreiros e sejamos os primeiros a terçar espadas com os troianos.

Imediatamente, toda a população acorreu às muralhas. Febrilmente,


cavavam trincheiras em frente às portas, transportavam podres e estacas para
os muros e reforçavam os portões. A trombeta rouca de Marte dava o sinal
cruento da guerra. Até as mães tomavam os seus postos nos baluartes. O
perigo a todos chamava, a velhos, a jovens e a donzelas. A própria rainha
Amata encaminhou-se para o templo de Minerva, localizado na cidadela, em
outeiro elevado, e colocou oferendas sobre os altares, atiçando os fogos de
incenso. Era seguida pela formosa Lavinia, causa de tantas desgraças, com
os olhos baixos. Amata e outras mulheres pronunciaram então, do pórtico
do templo, esta invocação:

— Ó Minerva, poderosa nas armas, tu, que presides à guerra, quebra


nas mãos do troiano salteador o dardo, e prostra-o por terra. Estende-o
moribundo aos pés dos nossos vencedores.

Turno, fulgurante na sua armadura dourada, com os olhos acesos pela


alegria da batalha próxima, o coração sem medo, avançou para o portão. Lá
o esperava Camila com as suas tropas de amazonas. Apearam todos e logo
bradou a rainha:

— Peço-te, ó príncipe dos rótulos, que me permitas, a mim e ao


exército volsco, que sejamos os primeiros a encontrar os cavaleiros troianos.
Tu guardas com a infantaria os portões e as muralhas, enquanto nos
adiantamos.

Turno, com os olhos fixos na intrépida moça, respondeu:

— Ó honra da Itália, ó heroína, que agradecimentos poderei dar-te ou


que favores poderei conceder-te? Vejo que o teu animo se sobrepõe a todos
os perigos e proponho que repartas comigo os esforços da luta. Sagaz nas
tácticas de guerra, Eneias enviou à frente a sua cavalaria ligeira e — segundo

203
ENEIDA - Virgílio
as informações trazidas pelos nossos exploradores — ele mesmo marcha
aceleradamente com outras tropas por entre os bosques e, transpondo a crista
das montanhas, pretende atacar a cidade por aquele lado. O meu plano é
surpreender o próprio Eneias e a sua gente em emboscada traiçoeira nas
gargantas desertas da montanha. Tu, tendo a teu lado Messapo, os latinos e
os guerreiros de Tiburno, atacarás a cavalaria, enquanto os outros se
defendem dos nossos projécteis. Vai agora, que eu te seguirei assim que
aprontar as defesas da cidade.

Despediram-se, então, tendo Turno exortado os chefes a combater


valentemente sob as ordens de Camila e partiram para as suas missões.

Próximo da cidade havia um local muito apropriado para a emboscada.


O estreito caminho era bordejado por escarpas altas, densamente
arborizadas, de onde uma tropa oculta podia dizimar, com dardos, setas,
pedras e rochedos enormes, outra que 0 atravessasse.

Entretanto, no etéreo firmamento, Diana, filha de Latona, conversava


com a veloz Ópis, uma das suas companheiras favoritas, e dizia entristecida:

— Minha cara ninfa, Camila, a quem prezo mais que a qualquer outro
mortal, marcha neste momento para uma guerra cruel e muito temo por sua
sorte. Amo-a desde que era criança. Quando o seu pai Métabo foi expulso
do seu reino pelos súbditos cansados e atormentados pela tirania do cruel
rei, este fugiu levando a filha apertada ao peito. Fugiu e correu até certo
ponto onde um rio tormentoso da enchente lhe barrava o caminho. Viu-se
então em situação desesperada, os inimigos surgindo de todos os lados e o
obstáculo rugidor e intransponível à frente. De repente, ocorreu-lhe uma
ideia. Atou a criancinha a uma fortíssima lança de carvalho que transportava,
envolvendo-a primeiro em cascas de cortiça de uma árvore. Depois, puxando
o braço para trás, enquanto a mão firme segurava a arma, assim orou: «Ó
Diana, benéfica donzela habitante das florestas, eu, o próprio pai, te devoto
esta serva, que dedicará toda a sua vida ao teu louvor. Guarda-a, peço-te,
pois eu ta confio.» E, assim falando, arrojou o dardo com a sua máxima
força. A criança cruzou a torrente pelos ares e foi cair incólume na margem
oposto. Métabo lançou-se, ele próprio, ao rio, atravessou-o rapidamente a

204
ENEIDA - Virgílio
nado, agarrou na sua preciosa carga e escapou a tempo aos perseguidores,
atravessando a espessa Horesta. Daí em diante passou a evitar as cidades,
vilas e lugares frequentados pelos homens e criou a filha entre os pastares e
nos caminhos desconhecidos da selva. As suas camas eram de folhas, o seu
tecto protector era a copa das arvores e os seus passeias, os covis das feras.
Alimentou-a com leite quente do úbere das águas.

(continuou)

- Fiel à promessa que me fizera, o pai colocou-lhe um arco nas mãos e


um carcás ao ombro, assim que Camila aprendeu a andar. Logo a criança
passou a atirar as pequeninas setas e em pouco tempo rivalizava com Métabo
na caça. Em vez de ornamentas de ouro e roupas vistosas, a menina usava
uma pele de tigre que lhe envolvia o corpo. Esse treino rude fê-la forte de
osso e de medula, de modo que, quando moça, podia desafiar já qualquer
homem na corrida, ou na força dos braços. Por fora crescia em beleza e
feminilidade mas, apesar de muito cobiçada, mãe alguma a conseguiu para
nora, pois a mim somente se dedicava. Quisera eu que ela não fosse a tal
peleja, contra os troianos, como o determinaram as Parcas. Vai, pois, ninfa
querida, desce às fronteiras latinas, toma este arco e uma seta da minha
aliava. Que todo aquele que violar com as armas o corpo querido de minha
serva Camila, seja troiano ou ítalo, pague com sangue a ofensa. Depois eu
conduzirei o seu corpo morto numa nuvem, para que seja sepultado na sua
pátria, juntamente com as armas, que não lhe serão arrebatadas pelo inimigo.

E então partiu célere a ninfa Ópis, enquanto as forças troianas já


avançavam pela planície com os etruscos. A terra tremia com o bater de
cascos de milhares de corcéis que galopavam curto, as rédeas tensas,
meneando as cabeças. Todo o campo se eriçava de pontas de lanças e o ar
brilhava reflectindo o Sol nas férreas pontas. Do lado oposto vinham
Messapo, os rápidos latinos, Coras com seu irmão e os esquadrões da jovem
Camila. Também eles enristavam as lanças, recurvando os braços e
brandindo os dardos. Aumentava num crescendo assustador o alarido dos
cavaleiros e o frémito dos cavalos. E já um e outro exército, tendo avançado
até certa distancia, fizera alto, preparando-se para o choque final, à medida
do dardo e da seta. De repente, após um momentâneo silêncio, os dois lados

205
ENEIDA - Virgílio
acometeram com violência inaudito, os gritos estridentes dos homens, os
cavalos em galope trepidante, ao mesmo tempo que disparavam as setas,
que, por seu número, e à semelhança do granizo, escureciam o Sol.

Tirreno foi o primeiro a investir contra o latino Aconteu. De lanças em


riste, chocaram-se os dois com tremenda violência. Bateram os peitos dos
cavalos, quebrando-se, e o latino, derrubado com a impetuosidade do raio,
caiu longe, morto. Retrocederam então os seus comandados e avançaram os
cavaleiros troianos, perseguindo-os até perto das muralhas mas, nesse ponto,
voltaram-se, reorganizaram a formação e dessa vez foram os troianos que
fugiram levados pelos cascos ágeis dos seus corcéis.

Também com os rótulos e etruscos se passava a mesma coisa.


Avançavam de uma feita para logo em seguida recuarem, premidos pelas
lanças adversárias. A batalha toda assemelhava-se ao mar quando, furioso,
investe contra a praia e alaga as areias até longe com a força das suas ondas,
para logo se retirar de novo, recuando para o líquido leito e abandonando o
terreno conquistado.

Numa terceira fase o combate generalizou-se. Já não corriam


velozmente para lá e para cá os inimigos, mas cada um procurava o
adversário que havia de ferir. E encheu-se o céu com o gemido dos
moribundos e o grito audaz dos vencedores. Corpos de cavalos semimortos,
misturados com a carnificina dos guerreiros, envolviam a terra num pélago
de sangue.

No meio da confusão exultava Camila, armada da aliava de casca de


coco das amazonas, ora arremessando flechas, ora lançando mão de cortante
machadinha. Nos seus ombros brilhava um arco de ouro, presente de Diana.
Até mesmo na fuga manejava-o com perícia, lançando traiçoeiras setas para
trás. Que guerreiro, ó terrível amazona, derrubaste primeiro com o teu
dardo? Qual seria o último? Quantos corpos lançaste por terra moribundos?

Órnito, caçador afamado dos etruscos, viu-se separado dos esquadrões


que se retiravam. Cobria-lhe os ombros uma grande pele de touro bravo.
Enorme goela entreaberta e dentes alvibrilhantes de lobo ornamentavam-lhe

206
ENEIDA - Virgílio
o capacete. Nas mãos agitava um rústico chuço. Altíssimo de estatura, a sua
cabeça sobressaía acima da turba. Aproveitando-se do seu atraso, Camila
trespassou-o com uma seta e disse-lhe rancorosa:

— Julgavas, ó tirreno, que caçavas feras nos bosques. Chegou o dia


em que expiarás as tuas bazófias por mãos femininas. Todavia, aos manás
de teus pais irás glorioso dizer que morreste às mãos da valorosa Camila.

Noutro lance, o filho de Auno, que habitava os Apeninos, achou-se


frente a frente com a invencível amazona.

Vendo que não poderia escapar, recorreu à astúcia, dizendo:

— Que grande façanha é esta é para ti, que és mulher, se usas o cavalo?
Apeia e dispõe-te para o combate a pé. Logo saberás de quem é a vantagem.

Enfurecida com o desdém do troiano, Camila desceu do animal,


entregando-o a uma companheira e, de pé no solo, impávida nas suas armas
e escudo refulgente, desembainhou a espada. Julgando tê-la ludibriado, o
guerreiro, sem sequer se apear, torceu as rédeas do corcel, esporeou-o e
disparou em aterrada fuga.

— Ó ligúrio traidor, em vão tentas a astúcia contra o valor maior. Nem


mesmo a fraude te salvará!

Assim gritando, Camila avançou velocíssima pela planície no encalço


do cavaleiro, ultrapassando-o. Postou-se na frente do animal e, segurando-
lhe as rédeas; atacou o ligúrio, prostrando-o morto com tanta facilidade e
rapidez como o falcão que se lança do alto rochedo sobre a pomba perdida
nas nuvens e lhe segura o corpo e rasga a carne com as garras aduncas,
fazendo cair o sangue e as penas pela atmosfera.

Enquanto isso, Júpiter observava o combate do alto Olimpo, o cenho


carregado e o animo aborrecido, pois a ajuda de Diana fazia perigar os seus
desígnios. Instigou, por isso, em Tarção, líder etrusco, uma força de dez

207
ENEIDA - Virgílio
homens e uma coragem de vinte leões. O chefe, assim estimulado, galopou
para o local onde as suas tropas fraquejavam e bradou:

— Ó tirrenos, almas sem brio! Ó sempre fracos, que medo e que


cobardia tão grande se apoderou de vossos corações? Uma simples mulher
põe-vos em debandada e derrota os nossos batalhões! Para que então, essas
espadas e lanças nas vossas mãos? Nunca os vi recuar quando se trata de
amores, de dança, de música ou de taças cheias de vinho até a borda!

Gritando, esporeou o cavalo na direcção de onde o combate era mais


aceso. Avistou Vénulo e arremeteu sobre ele, arrebatando-o da sela e
prosseguiu no galope prendendo o adversário contra o peito.

Vénulo resistia ao forte aperto de Tarção e lutavam os dois


desesperadamente, quando um grito gigantesco de aplauso se elevou de um
e de outro bando pela proeza heróica. 0 etrusco quebrara a ponta de ferro da
lança latina e conseguiu finalmente achar um ponto vulnerável na armadura
de Vénulo e furou-lhe a garganta, tal como a águia dourada que, baixando
de repente, agarra numa serpente, crava-lhe as unhas e a leva pelos ares,
ferida, retorcendo-se em sinuosas espirais, escamas eriçadas, boca sibilante
e pescoço retorcido.

Os etruscos, com o orgulho ferido pelas palavras causticantes do chefe


e pelo seu valente feito, redobraram de esforços. Entre eles havia um,
chamado Arunte, que vigiava todos os movimentos de Camila, seguindo-a
por todos os pontos do campo silencioso e furtivo, espreitando o momento
oportuno. Aproveitando-se do facto da atenção da amazona estar toda
concentrada em Cloreu, antigo sacerdote troiano consagrado a Cibele e que
agora refulgia no campo de batalha com a sua túnica cor de açafrão e as suas
armas reluzentes, montado em soberbo corcel, Arunte fez a pontaria contra
o alvo perseguido e assim orou:

— Ó Apolo, maior dos deuses depois de Júpiter, a quem nós primeiro


adoramos, em honra de quem ardem as piras de pinheiros e por quem
ousamos atravessar as brasas ardentes, permite, pai omnipotente, que se

208
ENEIDA - Virgílio
apague essa desonra para nossas armas. Não te peço os despojos da donzela
vencida nem presa alguma, pois outros feitos meus me trarão glória.

Só desejo derrubar esse flagelo dos troianos com o meu dardo e voltar
obscuro para a minha pátria.

Apoio ouviu-o e concedeu que se cumprisse parte do seu voto, mas o


restante perder-se-ia nos ares. Morreria Camila, mas não veria Arunte os
altos muros da sua cidade. Essa última súplica, levaram-na os ventos
ligeiros, Dele partiu a lança, sibilante, ferrada puramente na ponta, na
direcção do alvo. Acompanhavam-no os volscos, o olhar aterrado, o coração
oprimido, a voz presa na garganta.

Encontrando um ponto vulnerável na armadura da moça, o férreo


projéctil penetrou-lhe profundamente no peito. As companheiras,
assustadas, correram a amparar a rainha moribunda. Alegre pelo feito e ao
mesmo tempo temeroso pelas consequências, Arunte fugiu veloz, pouco
confiante nas suas armas, à semelhança do lobo que, tendo morto o pastor
ou um grande novilho, foge veloz para a floresta escura, antes que os dardos
o persigam, ventre colado, cauda entre as pernas, cheio de medo.

A própria Camila tentou arrancar o farpão da ferida, mas a penetração


fora profunda e a arma estava presa. Caiu meio desmaiada, fechando-se-lhe
os olhos para a morte e tornando-se-lhe lívida a face. Disse então a Aca, a
mais dedicada das suas companheiras:

— Até aqui, irmã Aca, tive forças para pelejar. Agora me prostra uma
ferida cruel e tudo em torno se escurece, coberto de trevas. Foge e leva a
Turno estas últimas recomendações. Digo-lhe que me substitua na peleja e
afaste os troianos da cidade. E agora, adeus!

Ao dizer estas últimas palavras, amoleceu-lhe o corpo e caiu da sela,


morta, soltando as rédeas. Um clamor imenso encheu o campo de batalha,
enquanto avançavam as fileiras cerradas das tropas dos troianos e dos
tirrenos e os esquadrões árcades de Evandro.

209
ENEIDA - Virgílio
Mas a ninfa Ópis, enviada por Diana, viu das elevadas nuvens a morte
de Camila e, gemendo, exclamou:

— Ai, donzela, que o teu castigo foi demasiadamente cruel por teres
batalhado os dardanios! De nada te serviu teres honrado Diana durante anos,
recusando matrimónio, percorrendo as nossas florestas com o carcás ao
ombro. Não quer a tua rainha que sofras uma morte vergonhosa e que
chegues ao Aqueronte sem estares vingada. Quem cometeu tal cume, pagará
com merecida morte.

Subindo então a um cômoro do campo de batalha, viu ao longe Arunte,


inflado o peito de vão orgulho. Tal e qual uma amazona, a ninfa segurou no
arco, colocou nele a seta dada por Diana e retesou a arma até o farpão do
pequeno dardo se encostar na madeira trabalhada. Partiu com endereço certo
a seta mortal, sibilando por cima da multidão de guerreiros. O matador de
Camila ouviu-a apenas uns segundos antes que o ferro agudo lhe penetrasse
o peito. Os companheiros ignoraram-no, deixando-o a morder o pó,
agonizante, naquela terra estranha. E Ópis elevou-se aos céus, dizendo:

— Morre agora, poltrão, mais vil de todos os nossos inimigos. É essa


a recompensa pelo teu feito desprezível.

No entanto, a morte da amazona lançara o Fanico entre as fileiras das


suas companheiras. O terror, como o fogo que se propagava na selva, atingiu
também os rótulos, que fugiram desordenadamente para as muralhas, atrás
das jovens guerreiras. Mas perseguia-os de perto a cavalaria etrusca,
dizimando os fugitivos sem piedade. Os cascos dos cavalos em disparada
abalavam a planície coberta de uma nuvem escura de poeira. Nos bastiões
já se ouvia o clamor das mães, sentindo a desgraça. O tropel dos
perseguidores troianos foi tão veloz que muitos penetraram pelos portões
abertos à frente dos fugitivos. Estabeleceu-se então o combate generalizado.
Lutava-se corpo a corpo, dentro e fora das muralhas. Eram terríveis o bater
das armas, os gritos, os gemidos e também o morticínio. Até mesmo as mães,
as crianças e os anciãos, com os cabelos soltos e os olhos desvairados,
pelejavam do alto dos muros, atirando dardos, bolas de fogo e pedras sobre
a turba confusa de amigos e inimigos que se digladiavam lá em baixo.

210
ENEIDA - Virgílio
O Sol já se punha quando Aca, a fiel companheira de Camila, alcançou
Turno ainda emboscado na floresta à espera da tropa de Eneias. Contou-lhe,
em Fanico, que os batalhões volscos tinham sido derrotados, que Camila
morrera e que, sendo-lhe Marte favorável, o inimigo avançava destruindo
tudo, e que o medo se apossara de todos. Furioso, Turno abandonou a
posição que ocupava e da qual se lançaria em emboscada a Eneias. Já
desciam pela planície as suas tropas, quando Eneias, transposto o local
perigoso sem novidade, saiu do bosque e lançou-se em perseguição do
inimigo que se dirigia à cidade. Prosseguiam ambos e a batalha seria
iminente, se não se tivesse retirado Apoio do céu, fazendo chegar a noite
benfazeja e trazendo descanso merecido aos homens e aos cavalos fatigados.
Ambos os exércitos acamparam defronte dos muros, a curta distancia um do
outro, para passar a noite.

211
ENEIDA - Virgílio

Capítulo 12: O Combate Final

Turno, vendo as suas legiões completamente derrotadas, já não


alimentando esperanças de que a sorte da guerra pudesse mudar, sentia-se
impelido a cumprir a promessa feita de enfrentar Eneias em combate
singular. Como o ledo que, ferido pelo dardo certeiro do caçador, avança e
vagueia, urrando e sacudindo a juba, até quebrar com a boca ensanguentada
a arma que lhe penetrara a carne, assim também Turno, inflamado de
coragem e cólera, se dirigiu ao rei Latino:

— Ó grande rei, chegou finalmente a hora de enfrentar Eneias. Não


me deterei mais. Realizemos, ó senhor, os sagrados rituais e façamos o
juramento. Deixa que todo o seu povo tome conhecimento. Que sejam os
deuses do Olimpo testemunhas do que digo. Ou com este meu braço
derrubarei Eneias, descendente de Dárdano, ao Tártaro, lavando assim a
honra do reino derrotado, ou, caso seja ele o vencedor, deixá-lo-ei levar
Lavínia.

Com voz calma respondeu Latino:

— Ó príncipe valoroso do Lácio, intemerato de espírito e ansioso pelo


combate, é necessário que pesemos e consideremos com cuidado todas as
eventualidades de tal aventura. Tens um futuro glorioso à frente. A ti
pertencem as terras de teu pai Dauno, com muitas cidades ricas que o teu
valor já conquistou. Aqui mesmo, do meu reino, por minha morte, terás um
bom quinhão e há muitas outras donzelas solteiras por toda a região, de
nobre estirpe. Falo-te francamente, Turno, sem rodeios e dando às palavras
o sentido que merecem. Quero que as leves no coração e medites no seu
significado. Todos os vaticínios dos homens e oráculos dos deuses me
proibiam de unir a minha filha Lavinia em matrimónio a qualquer dos seus
pretendentes anteriores. Vencido pela amizade que te dedico, vencido pelos
laços de sangue e pelas lágrimas da esposa aflita, quebrei os votos da religião
e dos tratados e, renegando a promessa feita de dar a Eneias Lavinia como
esposa, tomei das armas cruéis. Desde esse dia, Turno, vês que desgraças

212
ENEIDA - Virgílio
sem conta se abateram sobre o meu reino e principalmente sobre ti, que
suportas o fardo maior da guerra. Duas vezes fomos vencidos no campo de
batalha e agora aqui estamos encerrados nesta cidade como último baluarte.
As correntes do Tibre ainda serão tintas do nosso sangue e nos campos
alvejam os ossos. Porque sou tão inconstante em minhas resoluções?

(continuou)

— Que loucura é esta que me faz variar a vontade? Se depois da tua


morte no combate me irei aliar aos troianos, porque não pomos termo a esta
disputa, ainda quando estás com vida? Que dirão os rótulos, comigo
aparentados, que dirá o resto da Itália se eu — que a fortuna desminta as
minhas palavras — estiver a entregar à morte o pretendente da minha filha?
Considera bem, pois, as vicissitudes da guerra. Compadece-te de teu velho
pai.

Irritadíssimo de ter de ouvir aquele apelo, Turno replicou:

— Deixa por minha conta, ó tu, o mais bondoso dos monarcas, esse
cuidado que sentes por mim e permite-me alcançar a glória a troco da vida.
Eu também, caro rei, sei vibrar um dardo como Eneias e a minha espada
também corta os ares e fere a carne. Juno tomará especiais cuidados para
que sua mãe, Vénus, não o esconda numa nuvem, afastando-o da batalha
como o fez quando estava quase a sucumbir sob uma lança grega.

Também a rainha Amata lhe fazia comoventes apelos:

—Turno, por estas lágrimas que vês rolares dos meus olhos, por
qualquer coisa pela qual tens deferência e pela amizade que me tens,
abandona o teu desejo de luta. Tu és agora a minha única esperança, meu
único consolo na velhice infeliz. A glória e o poder do reino latino dependem
de ri. És a estaca que escora a casa vacilante. Só esta coisa te rogo. Desiste
de combater com o troiano. Seja qual for o fim que tiveres, Turno, não ficarei
neste mundo odioso sem ti, nem, cativa, verei Eneias como genro.

213
ENEIDA - Virgílio
Lavinia ouvia as palavras da mãe com as faces regadas de lágrimas,
enquanto um vivo rubor lhe cobria as maças do rosto. Era como se alguém
tivesse tingido o marfim da Índia com a púrpura cor de sangue, ou quando
os brancos lírios se avermelham misturados as rubras rosas num ramalhete.
O príncipe, com os olhos turvados de amor, encarava-a finamente.

O seu coração entusiasmava-se mais ainda pelo combate e assim


respondeu a Amata:

— Não sigas, ó mãe, eu te peço, não sigas com lágrimas e maus


agouros a quem parte para as lides de Marte, pois nem a Turno é permitido
adiar o dia da própria morte. Leva, pois, Ídmon, esta mensagem ao rei
troiano: logo que arroxear a aurora da manhã, trazida pelas suas rodas
purpúreas, não traga ele as suas tropas contra as minhas, porque acho
preferível decidir a guerra só com o nosso sangue; A mão de Lavinia ficará
para quem for vencedor no campo de batalha.

Retornou então ao seu palácio e mandou que preparassem o carro de


guerra. Alegrava-se vendo, à sua frente, Prementes, os animais, m As
brancos que a neve e mais rápidos que o vento. Pressurosos, os condutores
continham-nos, acariciando-lhes o peito e penteando-lhes as crinas. O
próprio Turno envergou a couraça reluzente de ouro e bronze, ajustando-a
bem ao corpo, para que não lhe estorvasse as mãos que manejariam a espada
e o escudo. À cabeça ajustou o capacete de penas rubros. A sua espada era
trabalho de Vulcano, que a fizera para Dauno, pai do príncipe. O próprio rei
das forjas eternas a mergulhará candente no Estige negro. Segurou a
potentíssima lança, despojo arrebatado a um inimigo, e, fazendo
movimentos com a arma no ar, exclamou:

— Ó dardo, amigo antigo e fiel, tu que nunca frustraste os meus votos,


é chegado o dia que de ti mais necessitarei. Antes, o valente Actor e agora
Turno empunha-te. Concede que eu derrube o corpo e rasgue com o braço
vigoroso a couraça arrancada ao troiano efeminado! Permite que a poeira lhe
manche os cabelos frisados com ferro aquecido e perfumados com mirra.

214
ENEIDA - Virgílio
Do seu rosto inflamado e enfurecido brotavam chamas de ódio,
enquanto o ar vibrava com os seus velozes golpes. Até a barba parecia eriçar-
se-lhe.

Nesse ínterim, o mensageiro chegara ao acampamento troiano e o


arauto com a trombeta de bronze fizera chegar aos ouvidos de Eneias a
proposta e a proclamação dos termos da paz.

Embora menos feroz no discurso e mais calmo na aparência, mas


igualmente ansioso pelo combate, o chefe troiano preparou-se para enfrentar
o príncipe rótulo. Estava contente de não haver necessidade de maior
morticínio e que ele e Turno decidiriam a contenda sozinhos.

Apenas a aurora nascente começava a inundar de luz os cumes dos


montes, no dia seguinte, quando se abriram os portões da cidade e para fora
se precipitaram os batalhões rótulos completamente armados, como que para
a peleja. Mas, como sinal de paz, plantaram as lanças no chão, a elas fixando
os escudos. Levantaram em seguida altares com a terra relvada, trouxeram
água das fontes enquanto os sacerdotes, com os seus aventais e as testas
ornadas de flores de vários matizes, acendiam os fogos sagrados. Do outro
lado avançavam os exércitos troiano e tirreno, também armados como para
os desígnios de Marte e, a um sinal, fixaram os seus dardos e os seus escudos
no chão, tal como tinham feito os rótulos. As mães, as velhas e as crianças
pejavam os baluartes altos, os muros, os telhados e as torres das casas, na
ânsia de ver o combate.

Surgiram então os principais participantes do grandioso espectáculo.


Primeiro veio o rei Latino em sua quadriga, todo reluzente na pompa da
realeza. Um diadema com doze raios de ouro — emblema do Sol — cingia-
lhe as frontes. Acompanhava o príncipe Turno, noutro carro puxado por dois
cavalos brancos, a brandir nas mãos duas lanças de ponta larga Do lado
oposto aproximou-se Eneias, com a espada desembainhada, o escudo em
frente ao peito e junto a ele Ascânio. Logo surgiu um sacerdote, vestido de
branco, com as duas vitimas que seriam imoladas aos deuses nos altares onde
rebrilhavam os fogos de incenso: uma ovelha lanuda e uma porca sedosa.
Sacrificados os animais, avançaram os dois contenderes e espalharam a

215
ENEIDA - Virgílio
carne salgada sobre os altares e com as suas facas cortaram pêlos das testas
da porca e da ovelha, atirando-os aos braseiros. A seguir, verteram sobre o
solo taças douradas cheias de vinho.

Eneias rezou assim, com a espada novamente desembainhada:

. Ó Sol, sê agora testemunha para mim, que te invoco, bem como a ti,
terra e ao Pai todo-poderoso e a u também, Juno, rainha do Céu, a quem rogo
expulses para sempre do teu coração o ódio mortal que devotas à minha raça,
e a ti, Marte, a quem deliciam os clamores da guerra. Invoco também as
fontes, os fios, as águas correntes e todas as potestades do Universo e do
azul profundo. Se porventura a vitória couber a Turno, fica assente que todos
os troianos, comandados por Iulo, meu filho, aqui mesmo deporão as armas
e retirar-se-ão, vencidos, para a cidade de Evandro, sem mais combater.
Porém, se a vitória nos sorrir — e disso tenho pouca dúvida —, como espero
que o confirmem os deuses pelo seu poder divino, não mandarei que sejam
os ítalos subjugados nem que entreguem seus reinas, mais sim que os dois
povos, sem vencedor nem vencido, se unam em aliança eterna e em
condições iguais. Eu vos darei o nosso culto e os nossos deuses.

O rei Latino conservará as suas armas e o seu império. Nós, troianos,


levantaremos a nossa cidade, a que Lavinia, então minha esposa, emprestar.
O seu nome.

Latino, olhando para o céu, estendeu o braço direito para os astro. e


assim falou:

— Pelas mesmas coisas eu juro, Eneias, pela terra, pelo mar e pelo
astros; por Apolo e Diana; por Jano, de dois rostos, e pelo infernal pode do
deus Plutão. Ouça Júpiter estas minhas palavras, ele que firma os tratados
com o seu raio e fulmina os perjuras. Coloco a minha destra sobre os altares
sagrados e invoco por testemunha esses fogos e as divindades a que são
acesos. Jamais será rompida a paz entre os ítalos e os troianos, aconteça o
que acontecer. Nenhuma força me desviará desse caminho, ainda que
revolva a terra, o mar e as aves, provocando cataclismos. E isso eu proclamo
agora, tão certo como sei que este meu ceptro — cortado da árvore-mãe no

216
ENEIDA - Virgílio
bosque e encastoado em ouro, prata e marfim pelo artista—jamais produzirá
ramos nem dará sombra com as suas folhas.

Sacrificaram então mais vítimas aos deuses, colocando-lhes as


entranhas sobre os altares, de acordo com o costume.

Durante aqueles discursos, os rótulos olhavam inquietos para o seu


príncipe, o coração pesaroso e as faces tristes, pois não acreditavam que
pudesse vencer Eneias e que, portanto, estava condenado à morte. Esvaído
agora da sua ansiedade e arrogância, com a face lívida e passo lento, Turno
avançou para o altar onde fez uma humilde oração.

Nesse ínterim, Juno olhava do cume do monte Albano—só mais tarde


assim chamado—os dois exércitos, troiano e laurentino, formados na
planície, enquanto os reis firmavam o acordo. Desgostosa, dirigiu-se à irmã
de Turno, Juturna, a quem Júpiter muito amava, metamorfoseando-a numa
deusa dos lagos e rios. E assim falou:

— Ninfa dos rios, muito prezada por meu augusto esposo, sabes como
a ti te tenho preferido a todas as mulheres. Enquanto a fortuna consentiu e
assim o permitiram as Parcas, protegi Turno e o seu reino, mas vejo agora
aproximar-se o seu fim e os meus olhos afastam-se horrorizados, do acordo
que ora se celebra na planície e do combate que se seguirá. Caso queiras
tentar uma última coisa por teu irmão, aqui estou para te ajudar.

Chorando, Juturna batia no peito, mas Juno atalhou-lhe a mágoa


dizendo:

— Esta não é ocasião para lágrimas. Se há ainda alguma esperança,


salva o teu irmão da morte. Ou... se preferires, acende novamente o espírito
da guerra e desfaz os tratados firmados. Sou eu que te aconselho que tentes.

A ninfa ali ficou, entristecida, a olhar o espectáculo. Vendo, no


entanto, que o receio pelo desfecho da peleja desigual crescia no coração dos
rútulos, transformou-se ela em Camerto, guerreiro famoso pelos feitos nas

217
ENEIDA - Virgílio
armas e pela alta linhagem da família e dirigiu-se aos batalhões rótulos
nestes termos:

— Não tendes vergonha, ó guerreiros, de expor uma só vida pelas


vossas todas, que são tão bravas? Acaso em número e em forças não somos
todos iguais? Ai estão essas tropas troianas, árcades e etruscas, mas assim
mesmo nós os ultrapassamos em número pelo dobro. A fama de Turno, em
verdade, elevar-se-á até ao Olimpo, pois aos deuses se sacrifica nesse altar
e seu nome imortal será proferido por todas as bocas, enquanto nós, que
agora vemos morrer o vosso príncipe, curvaremos depois o pescoço ao jugo
do senhor soberbo.

O sentir dos guerreiros rótulos inflamava-se com estes apelos. Crescia


a agitação nos batalhões. Até mesmo os latinos e laurentinos já começavam
a mudar de opinião. Eles, que agora finalmente esperavam o fim do combate
e da guerra, com a salvação dos seus reinas, já corriam às armas e clamavam
pela suspensão da contenda entre Eneias e Turno.

Juturna então fez vir do céu admirável prodígio que alicerçou as suas
palavras no coração dos guerreiros. Uma águia, voando alto, atacou
subitamente, em veloz descida, um bando de aves ribeirinhas e conseguiu
prender, com as suas garras, um grande cisne. Ante os olhares embasbacados
dos ítalos, as aves em debandada voltaram da sua fuga e — ó prodígio! —
obscureceram o ar com as suas penas e atacaram e perseguiram o terrível
inimigo até que este, esgotado de forças e vencido pelo peso da presa, a
largou e desapareceu nas nuvens. Um gigantesco murmúrio de admiração e
espanto percorreu as fileiras rótulas e latinas, pois viam representada,
naquele agouro do céu, a sua própria situação.

Tomaram as armas novamente e então exclamou Tolúmnio, o


adivinho:

— Era isto, era isto o que muitas vezes pedi com os meus votos. Aceito
e reconheço a vontade dos deuses. Comigo e sob a minha direcção sacai das
espadas e das lanças, ó guerreiros, a quem amedronta um estrangeiro odioso
que vem devastar as nossas praias! Fugirá, estou certo, e em breve as suas

218
ENEIDA - Virgílio
velas mancharão o mar azul de branco. Vós, unidos de espírito, cerrai as
vossas fileiras e, combatendo, defender o rei que vos querem arrebatar!

Assim falando, correu para a primeira fileira e lançou um dardo contra


as hostes inimigas, que, pacificas, aguardavam o inicio do combate.
Levantou-se um enorme til mor no campo ante a visão do dardo, que com
ruído estridente fendia os ares. Os guerreiros inflamaram-se em tumulto,
mas, já certeira, a arma mortífera encontrara as costas de um dos nove
robustos filhos de Gilipo, o árcade, prostrando-o morto na areia.

Cegos de raiva e de dor pela morte vil do irmão, os outros lançaram-


se contra o inimigo com lanças e espadas nuas. Foram atacados pelos
laurentinos e também vieram os troianos, os árcades, os rótulos e os latinos.
Generalizava-se o combate e de todos se apoderou unicamente a ânsia de
combater. Os altares, as taças, as oferendas, os braseiros, todos os objectos
de culto e de veneração desabaram e foram destruídos sob a tempestade de
ferro que se lhes abateu em cima. Levando as imagens dos seus deuses,
ultrajados pela quebra do tratado tão solenemente firmado pouco antes,
fugiu o rei Larino. Outros atrelavam os carros ou montavam nos seus cavalos
e partiam para a peleja.

Messapo, satisfeito com o rompimento da aliança, atropelou


aguerridamente o rei Auleste, das tropas tirrenas. Auleste recuou tropeçando
e caindo, embaraçado, no meio dos destroços dos altares destruídos.

Sem lhe dar tempo pata se levantar, Messapo avançou rápido e


prostrou-o com uma lançada certeira dizendo:

— Morre aqui mesmo, que outra vítima melhor não poderiam querer
os deuses.

Acorreram outros ítalos e despojaram o corpo, ainda quente, das suas


armas e insígnias reais. No meio da confusão e do caos, o piedoso Eneias
estendia a mão direita desarmada e, com a cabeça descoberta, chamava todos
à razão em altos gritos:

219
ENEIDA - Virgílio
— Para onde ides nessa fúria? Que repentina discórdia é essa que se
alevanta, depois de firmados os acordos? Oh! Reprimi a vossa cólera! A
mim, só a mim cabe o direito de lutar. Deixai-me pelejar sozinho e tirai o
peso do coração.

No meio da algazarra infernal de Marte, uma seta ligeira e veloz


atingiu o herói. Não se sabe até hoje quem a vibrou. Quem foi? Teria algum
deus resolvido combater entre os rútulos? A glória desse feito ilustre ficou
ignorada e ninguém se gabou de ter ferido Eneias.

Turno, vendo Eneias ser retirado do combate, enquanto se


perturbavam os animas troianos, inflamou-se de repentina esperança. Pediu
que trouxessem o seu carro e os seus cavalos e, de um salto, assumiu
pessoalmente as rédeas. Avançando qual furacão pelo campo de batalha,
ceifava as fileiras inimigas, manejando a espada, a lança e as setas com igual
perícia, enquanto os cavalos e as rodas abriam claros entre os guerreiros,
atropelando-os e esmagando-os. Incitando os animais suados com gritos e
chicotadas, fazia-os passar qual rolo compressor sobre mortos e vivos, com
os cascos tintos de vermelho sangue. Pareciam os vagalhões do Egeu
profundo que vão sendo impelidos por um vendaval do norte. Assim eram
levados de roldão os batalhões troianos diante do príncipe rótulo.

Eneias fora conduzido pelos companheiros para longe do fragor da


batalha. Quebrada a haste da seta, Acates, Ascânio e Mnesteu tentaram tirar
o farpão, mas este resistia, tão profundo estava cravado.

Eneias, irritado e preocupado com a sorte dos seus guerreiros, pediu-


lhes que abrissem a ferida com uma ponta afiada e lhe permitissem voltar ao
combate. Apresentou-se então ao herói valoroso, que estava de pé, apoiado
na sua comprida lança, Iápis, filho de Iaso, e sacerdote de Apolo, a quem o
deus, por muito amar, ensinara pessoalmente as artes médicas, os vaticínios,
a música com a citara, bem como curar as velozes setas. O velho lápis
sentou-se ao lado do guerreiro e banhou o seu ferimento com água do rio,
que retirava de uma cuia onde dissolvera o pó de várias ervas. Com uma
pinça tentou arrancar o farpão malévolo, mas a operação foi inútil. Não o
ajudavam naquele momento as artes de Apolo. O horror ia tomando conta

220
ENEIDA - Virgílio
de todos, à medida em que se aproximava o fragor da batalha. O ar começava
a encher-se de poeira e as primeiras setas e dardos principiavam a cair sobre
o acampamento. Os cavaleiros já se aproximavam e tudo parecia perdido.

Então Vénus, penalizada pela cruel dor infligida ao filho, foi como
mãe carinhosa ao monte Ida, na ilha de Creta, onde colheu o dictamno, caule
felpudo de grandes folhas e flores avermelhadas, planta que as cabras,
quando feridas, comem. Envolta em invisível nuvem, a deusa aproximou-se
de Iápis e esmigalhou alguns botões da planta benfazeja dentro da água com
que o médico tentava curar o rei, adicionando ao líquido miraculosa
ambrósia e panaceia, que tudo cura. Mal uma gota do preparado divino caíra
sobre a ferida, a hemorragia cessou e a dor aliviou. Puxando suavemente a
ponta do ferro assassino, Iápis conseguiu retirá-lo com facilidade. De
imediato, Eneias sentiu voltarem-lhe as forças e levantou-se. Bradou então
o médico:

— Tragam-lhe as armas, que não foram minhas as artes que o curaram.


Há um deus a agir por aqui.

Eneias tornou a vestir a sua armadura, empunhou a espada e a lança e,


depois de abraçar Ascânio, despedindo-se, partiu rápido para a batalha,
seguido de perto por Anteu e Mnesteu e todo um cerrado batalhão. Então, a
planície turvou-se com a poeira levantada e a terra tremia, abalada, sob os
pés da falange troiana, que avançava.

Turno, numa elevação fronteira, avistou o inimigo que retornava e


encheu-se-lhes, a ele e aos rótulos, o coração de medo. Juturna retirou-se
apavorada de perto do irmão. Qual nuvem que, desencadeado a tempestade,
avança para as costas pela superfície do mar e, pressentida ao longe pelos
lavradores, lhes enche a alma de terror, pois destruirá as árvores, arruinará
as sementeiros e deitará tudo por terra à sua passagem, assim também
caminhavam os troianos com o seu valoroso chefe à Eente. Caíram as
primeiras fileiras rótulas e os outros, apavorados, viraram as costas em fuga
desabafada, num grito uníssono de terror. Desdenhando do adversário que
fugia, Eneias percorria o campo juncado de cadáveres à procura de Turno,
pois só a este julgava digno da sua lamina.

221
ENEIDA - Virgílio
Com o espírito transtornado pelo receio, voltou então a irmã de Turno
à peleja. Alucinada, derrubou Metisco, condutor do carro do príncipe, por
entre as rédeas dos corcéis e, empunhando-as, disparou em louca corrida
pelo campo de batalha. Qual negra andorinha que no palácio opulento
volteja nos tectos, ora aqui, ora ali, baixando e subindo, voando e pousando,
em volta dos pórticos e perto dos tanques, assim também Juturna, assumindo
a forma de Metisco, conduzia o príncipe por entre a confusão da peleja,
andando rapidamente, às voltas e aos zigue-zagues, nunca parando, nunca o
deixando pelejar, e afastando-o aos poucos do combate.

Enquanto isso, Eneias procurava o inimigo aqui, ali e acolá, por entre
os batalhões dispersos, e chamava-o em alta vozes. Mas sempre que o ouvia,
afastava-se Juturna, veloz, no carro, virando-lhe as costas e desaparecendo
na confusão, sob gritaria e poeira.

Messapo, aproximando-se velocíssimo, viu o herói e arremessou-lhe


um dos dardos poderosos que levava. Prevenido, Eneias ajoelhou-se e
cobriu-se com o escudo, protegendo-se do golpe. A arma certeira passou-lhe
todavia, de raspão na cabeça, cortando-lhe o penacho do capacete.
Encolerizado, Eneias lançou-se com tremendo furor ao combate e a sua
espada e a sua lança — com Marte a seu favor — causam uma enorme
mortandade.

Quem poderia narrar em versas, ó Júpiter, o que se passou naquela


manha na planície, onde o trai no e o rótulo dizimavam ondas de
adversários? Porque te aprouve, ó Pai, que não se conservasse a paz
alcançada? Todas as fileiras e as últimas reservas estavam empenhadas.
Mnesteu, o impetuoso Seresto e Messapo, domador de cavalos, o corajoso
Asilas e a falange dos toscanos e os esquadrões de cavaleiros árcades, todos
se misturam num único e gigantesco combate.

Vénus fez então nascer na mente do filho a ideia de levar o seu exército
até aos muros da cidade e surpreender os latinos com essa súbita arremetida.
Eneias encarou a cidade, momentaneamente afastada dos horrores da guerra,
tranquila. Imediatamente lhe surgiu o pensamento de uma luta menos
custosa. Chamou os principais chefes, Mnesteu, Sergesto e Seresto e fê-los

222
ENEIDA - Virgílio
reagrupar todos os troianos a uma certa distancia das muralhas, numa
elevação. E aí lhes dirigiu a palavra:

— Que nada nos retarde, companheiros! O poderoso Deus dos Céus


está do nosso lado e depende de nós o destino desta cidade que aqui vedes.
A menos que nos reconheçam vencedores e se submetam ao nosso jugo, o
dia de hoje verá cair essa cidade pela força das armas. Os seus telhados serão
incendiados e o povo escravizado A ruína reinará por toda a parte. Porque
deverei eu esperar por novo acordo, porque esperar que Turno, vencido, se
resolva a oferecer-me novamente um combate singular? Dentro dessas
muralhas está a fonte e causa de todas as dificuldades. Destruamos a cidade
e teremos a paz.

Uma poderosa legião compacta de guerreiros em forma de cunha


atacou os portões, enquanto outros lançavam archotes ardentes aos telhados
ou escalavam os bastiões com escadas. Eneias, de pé no meio dos atacantes,
incentivava-os e, em altas vozes, acusava o rei Latino. Tomando os deuses
por testemunhas, escusava-se da responsabilidade por aqueles combates,
pois os ítalos tinham violado dois tratados de paz. Surgia a discórdia entre
os sitiados. Uns queriam entregar a cidade e abrir as portas aos troianos,
chegando a trazer para as muralhas o próprio rei, mas outros conduziam as
armas e a defesa continuava.

Tudo era confusão e os partidos opostos não se entendiam. Entretanto,


era comum a todas o medo mortal que se apossara dos seus corações e
muitos, pensando meramente na própria segurança, procuravam apenas um
lugar para se esconderem. A praça do mercado fervilhava de gente que corria
daqui para ali, e dali para aqui, sem saber o que fazer. Parecia uma colmeia
que o caçador prevenido enche de fumo espesso e sufocante, enquanto as
abelhas, voando, zunindo e chocando-se, vão e vêm, sem direcção, batendo
alucinadas nas paredes de cera, procurando em vão um refúgio.

Enquanto isso, a rainha Amata, vendo do alto do seu palácio que o


inimigo já se aproximava, começando a escalar as muralhas, forçar os
portões e lançar uma chuva de setas, dardos e archotes candentes por sobre
os telhados, e que em nenhum lugar havia rótulos para lhes opor resistência,

223
ENEIDA - Virgílio
julgou que o infeliz Turno morrera numa das peripécia da contenda. Com a
mente perturbada pela dor da perda irreparável do jovem muito amado,
gritava que ela, Amata, era a causa, a culpa, a origem de tantas desgraças e,
alucinada, desvairada, resolvida a morrer, rasgou uma larga tira das suas
vestes, enforcando-se com ela numa alta trave do tecto do palácio.

Lavínia, ao saber da notícia, ficou desesperada. Arrancava os touros


cabelos e arranhava as faces com as unhas. Outras, muitas outras mulheres
latinas a ela se juntaram e o palácio estremecia e retumbava com o choro, o
pranto, os gemidos, os lamentos e o soluçar sem fim.

Espalhara-se já por toda a cidade a notícia do funesto acontecimento,


trazendo ainda maior desanimo aos laurentinos. Oprimido pela morte
infausta da esposa, foi o rei Latino, as roupas rasgadas e os cabelos em
desalinho, chorando a ruma da cidade e mais uma vez lamentando não ter
resistido as pressões e tomado Eneias como genro. Turno, na outra
extremidade do campo, perseguia um pequeno troço de inimigos, fracos e
tímidos, pois para lá o levaram os cavalos conduzidos pelas mãos divinas da
sua irmã Juturna. De repente, a brisa trouxe-lhe aos ouvidos o tumulto e o
fragor da batalha que tomavam conta da cidade.

— Ai de mim! — bradou o príncipe — que novos sons horríveis ouço


subir da cidade laurentina? Porque um tal clamor enche os ares vindo de
diversas direcções?

Assim pensando, parou o carro, desorientado, tomando as rédeas.

A sua irmã, não mais metamorfoseada no condutor Metisco, dirigiu-


lhe a palavra:

— Fiquemos por aqui, caro Turno, persigamos os troianos nesta


região, pois aqui a vitória está nas nossas máos. É só colhê-la. Outros na
cidade saberão defender as suas casas. Eneias leva grande mortandade aos
Talos. Paguemo-lo com a mesma moeda. Não nos retiremos com menos
honras ou com menos guerreiros vencidos.

224
ENEIDA - Virgílio
— O minha irmã, desde há muito te reconheci, quando Bolaste o
tratado de paz e te intrometeste nos negócios da guerra. Mas agora, em vão,
como deusa me enganas. Mas quem te permitiu saíres do Olimpo e vir ver
esta carnificina e a morte de teu infeliz irmão? Agora, tudo está perdido, pois
fomos abandonados pelos deuses, mas juro por todos eles que não morrerei
cobarde. As aleivosias de Drances ainda me são farpas no coração, apesar
de todos os meus guerreiros saberem que fui afastado da peleja por artes da
ardilosa Juno. Esta terra nunca verá Turno fugindo aos seus inimigos. A
morte não é tão horroroso para que barganhemos a vida pela honra. Vós, ó
sombra de meus antepassados, sede-me propícias e recebei-me de alma pura.
Não vos envergonharei!

Surgiu-lhe então à frente o guerreiro Saces, levado pelo cavalo a


galope por entre os inimigos, com o rosto ferido por uma seta. E implorou a
Turno:

— Ó príncipe, em ti reside a nossa última esperança e salvação.


Compadece-te dos teus. Neste mesmo momento, Eneias ataca e força os
portões, ameaçando arrasar a cidade e escravizar o povo. Os archotes
inflamados chovem já sobre os tectos e é para ti que estão voltados os
corações dos latinos.

(continuou)

— O rei não sabe que partido tomar, enquanto a tua querida e muito
afeiçoada tia e rainha Amata se desligou por suas próprias mãos deste
mundo. Apenas Messapo e Atinas resistem ainda frente às portas, mas cresce
e eriça-se um oceano de dardos a seu redor e as setas das falanges troianas
escondem a luz do Sol. E enquanto tudo isso acontece, tu diriges o teu carro
pelo campo deserto!

Turno, estupefacto e confuso pelas muitas informações recebidas,


encheu-se de vergonha e de dor. O amor próprio e o orgulho ficaram feridos
profundamente, enquanto se lhe agitava no coração a cólera — por ter sido
ludibriado —, e o altivo sentimento do valor pessoal. Tudo lhe fervia no
pensamento. Voltando à calma depois de uns momentos, olhou na direcção

225
ENEIDA - Virgílio
da cidade. Mas já grossos rolos de fumaça se elevavam para o céu e as
chamas brilhavam à distancia. O inimigo tinha incendiado uma alta torre,
que ele, Turno, fizera construir para a defesa, imponente no seu tamanho e
móvel sobre rodas.

— Cara irmã — exclamou —, cessa de demorar-me, que os destinos


assim o exigem. Está escrito que deverei enfrentar Eneias em duelo singular
e também que morrerei de morte gloriosa, sem ser desonrado. Deixa-me,
irmã, eu te peço.

Deixando Juturna entristecida, saltou do carro e disparou veloz pela


planície, entre os inimigos, debaixo das setas e rompendo pelos batalhões.
Aproximando-se dos portões, onde Messapo e Atinas, com coragem
indómita, resistiam com poucos homens à vaga da falange troiana prestes a
engoli-los, Turno levantou o braço e gritou com todas as suas forças:

— Parai já, ó rótulos, e vós, ó latinos, sustai os vossos dardos. Eu só,


como o pacto o exigia, deverei resolver a disputa com a minha espada. Que
venha Eneias, pois anseio por encontrá-lo, face a face, homem a homem.

Afastaram-se todos, abrindo um grande círculo, e Eneias, que ouvira o


chamado, teve o coração inundado de alegria e mandou, apressado,
suspender o ataque à cidade. Pararam todos, tomando posição, para melhor
verem o combate.

E já se aproximava Eneias na corrida, lançando o seu dardo com


estupenda força. Turno também arremessara o seu, mas ambos erraram o
alvo. Chocaram-se os dois gigantes de valentia, com arrojo e destreza no
combate das armas. Soavam e retiniam os escudos de bronze e coruscavam
as espadas cintilantes nos golpes velozes. A terra estremecia. Como na
planície ou no monte elevado, dois touros, com as frontes voltadas, investem
em luta terrível, enquanto os pastares assustados se retiram e todo o gado se
conserva mudo de medo, aguardando aquele que dominará o bosque e a
quem seguirá o rebanho, assim também se empenharam Eneias e Turno na
contenda que atingia o auge da violência, batendo-se os escudos e capacetes.

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ENEIDA - Virgílio
No alto Olimpo, Júpiter assistia a tudo e conservava os dois pratos da
balança em perfeito equilíbrio. Nos pratos estavam os seus destinos e só ele,
omnisciente, sabia quem deveria morrer e quem deveria vencer.
Aproveitando-se de um momento julgado oportuno, Turno elevou o seu
enorme corpo na ponta dos pés e, levantando ao máximo a poderosa espada,
fê-la cair sobre o capacete do troiano. Tudo como que de súbito, estacou, as
vozes presas na garganta, os corações suspensos, os olhos parados, pois
creram — latinos, rútulos, árcades, etruscos e troianos — ter chegado o fim.
Mas a espada quebrou-se junto aos copos e Turno, vendo-se ali, a destra a
segurar a arma inútil, o inimigo preparando o golpe final, disparou em
desabafada fuga, mais veloz que o vento. Dizem que, na precipitação de
recomeçar o combate, depois da quebra do acordo, o rótulo subira ao carro
empunhando uma outra espada — a do cocheiro Metisco — que não a bem
testada e temperada lamina poterna. Aquela lhe servira enquanto encontrara
pela frente inimigos timoratos e fracos de força e couraça. No entanto, contra
a armadura, o escudo e o capacete forjados pelos Ciclopes do Etna a
mandado de Vulcano, a lamina saltou em estilhaços qual frágil vidro,
ficando os fragmentos na areia dourada.

Prosseguia Turno na correria, fazendo círculos desordenados. Eneias


perseguia-o, mas o ferimento recente e as forças esgotadas com a perda de
sangue impediam-no de correr muito. O fugitivo esquivava-se agilmente do
troiano, entrando e saindo nas fileiras formadas, correndo atrás das touceiras
e charcos, ao mesmo tempo que gritava aos seus companheiros que lhe
trouxessem a própria espada.

Mas eram impedidos por Eneias, que ameaçara de morte imediata


qualquer homem que ousasse responder ao apelo do príncipe, enquanto
procurava alcança-lo. Eneias viu o dardo que ele mesmo lançara contra o
rótulo logo no inicio da peleja. A arma estava profundamente cravada num
tronco de oliveira, árvore essa dedicada ao deus Fauno e que era
especialmente reverenciada pelos marinheiros salvos à fúria do mar. Eneias
parou e tentou arrancá-la do madeiro, a fim de atirá-la contra Turno, que tao
habilmente estava a escapar à sua espada. O rútulo, sentindo a intenção de
Eneias, orou, tomado de terror:

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ENEIDA - Virgílio
— Fauno, deus dos latinos, tem dó de mim e prende esse ferro na tua
madeira que sempre venerei e que os troianos, pelo contrário, profanaram,
cortando-a para limpar o campo de batalha.

A prece de Turno foi ouvida e respondida, pois mesmo a grande força


do troiano não conseguiu arrancar a arma da oliveira sagrada. Mas, enquanto
isso, já veloz se apresentara Juturna, ainda disfarçada em Metisco,
entregando ao irmão a sua verdadeira espada. Indignada com a intromissão
indébita da ninfa, Vénus veio rápida dos ares e arrancou o chuço da madeira.
Defrontaram-se novamente os dois gigantes: um, Eneias, com a lança, e o
outro, Turno, com a lamina fria da espada paterna.

Entretanto, no alto Olimpo, o grande Júpiter assim repreendia a su.


esposa Juno:

— E agora, ó mulher-deusa, astuta sem igual, insuperável no poder dá


odiar, que planeias ainda no teu coração ardiloso? Já tiveste a tua vez. Até
uma seta atirada por um mortal conseguiste fazer atingir Eneias, filho dá
minha filha. Por meio de Juturna anulaste os acordos celebrados. Lançaste a
discórdia na casa real, acendeste a guerra abominável em toda a Itália e agora
fazes a irmã de Turno devolver-lhe a espada perdida, quando a sua sorte já
estava lançada. Chegou o momento supremo. Pudeste persegui esta raça
através dos mares depois de lhe destruir a pátria, mas agora a tu: maldade
tem fim. Basta, Juno, antes que sintas o poder do meu rancor.

A filha de Saturno, cabisbaixa, disse em resposta:

— Grande Júpiter, foi só por conhecer a tua vontade que refreei o


desejo de lutar junto de Turno, inflamando-lhe os batalhões e levando a
morte e a desolação aos descendentes de Dárdano. Confesso que persuadi
Juturna a fazer as últimas tentativas para prolongar a vida do irmão. Juro-te,
todavia, que não foi a minha mão que armou o arco e disparou a seta que
feriu Eneias. Isso juro pela cabeça implacável da fonte do Estige, único
terror religioso que foi inspirado aos deuses do Olimpo. Mas agora, como
me ordenas, afastarei os meus olhos da plamcie encharcada de sangue e
deixarei que os morrais resolvam as suas querelas com as suas próprias

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ENEIDA - Virgílio
forças. Agora que me retiro, uma coisa só te suplico, ó Pai Omnipotente, a
mim, filha de Saturno, deus que primeiro se estabeleceu naquela terra. Peço-
te que, depois de unidos Eneias e Lannia em casamento, e que ligadas as
duas raças num só reino que viverá em paz, decretes que os latinos não
mudem o seu antigo nome, nem que se tornem troianos ou sejam assim
chamados. Nem que os filhos da terra adoptem a língua e os costumes
estrangeiros. Subsista o Lácio, subsistam os reis latinos durante séculos!

Suplica-vos que, enxertado no antigo tronco troiano o rebento latino,


cresça e cresça até obscurecer com a sua fama e o seu nome — Roma — os
antepassados.

Sorrindo perante o pedido da teimosa deusa, Júpiter declarou:

— Ó Juno, és realmente filha do duro Saturno e verdadeira esposa


minha! Que mulher mais adequada poderia querer o rei dos deuses? Vai
agora e acalma esses rancores, pois te concedo o que pedes. Vencido, de
bom grado me rendo. Os ítalos manterão a linguagem de seus pais e também
se manterá o seu nome. Aos cultos misturá-los-ei, enquanto os troianos
desaparecerão como tradição. A raça daqui saída, misturada em sangue,
excederá todas as outras em qualidade e a ti, mais que a qualquer outro deus
e mais que em qualquer outra nação, ela celebrará os sacrifícios e oferecerá
os Votos.

Alegre com essas promessas, Juno, cessados os rancores e resignado o


espírito, retirou-se para a sua morada, enquanto Júpiter voltava os seus
pensamentos para o desenrolar do combate e procurava meio de afastar
Juturna do lado do irmão.

Havia dois demónios, irmãs da Fúria Megera, nascidas da Noite no


mesmo dia que aquela. Como a Megera e Alecto, esses horrendos monstros
do Tártaro tinham por cabeleira milhares de serpentes venenosas que
coleavarn e agitavam sem cessar os seus anéis asquerosos, Ao comando de
Júpiter elas duas — nas suas asas rápidas como o vento — podiam levar a
morte, a miséria, a pestilência, a doença ou qualquer outro mal imaginável
aos pobres mortais ou engolfar as nações em lura suicida. O Todo-Poderoso

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ENEIDA - Virgílio
enviou um desses entes demoníacos ao local onde Eneias e Turno pelejavam.
Como uma seta embebida em mortal veneno, a Fúria cruzou os ares nas suas
asas negras e, chegando à vista dos batalhões troianos e Ítalos, tomou a
forma de pássaro, desses que à noite, pousando nas tumbas desertas do
cemitério, agoura, pia e canta até tarde pelas sombras. Assim
metamorfoseado, o demónio passava e repassava, voando em frente ao rosto
do rótulo príncipe, enquanto este lutava e roçava também as suas asas no
escudo do jovem. Um completo pavor deixou os membros de Turno sem
comando e um estranho torpor e fraqueza foi-se apoderando deles. A sua
pele eriçava-se e tremia, os seus cabelos levantaram-se e tão engolfado de
medo ficou que a voz se lhe prendeu na garganta.

Juturna, que de longe reconhecera o bater de asas da Fúria,


desesperada, chorava e, arrancando os cabelos e ferindo o próprio rosto,
dizia:

— Ó irmão querido, em que mais te posso ajudar? Que artifício ainda


poderei empregar para adiar o teu fim cruel? Posso eu, ninfa, opor-me a esse
monstro infernal? Já deixo a batalha, ó Fúria, pois vejo que mão mais
poderosa, a do próprio Júpiter, pousou sobre um dos pratos da balança e
selou o destino de Turno. Bem conheço esse rufar de asas sinistras e sei que
vens a mandado do Pai magnânimo. Ó Deus dos Céus, é isto que me dás em
troca do amor tão livremente oferecido? Porque me concedeste a
imortalidade? Pois se tal não fosse, eu também poderia pôr fim a tudo e
acompanhar o meu irmão ao Reino das Sombras.

E então a ninfa, cobrindo a cabeça com um véu azul, escondeu-se entre


as águas do Tibre.

Eneias, nesse interim, aproximou-se do ítalo e, levantando a lança,


bradou:

— Que mais queres, ó Turno? O que mais te retarda? Porque te retrais


ainda mais. A nossa pugna não é a corrida a pé, mas o combate aproximado,
com armas ferinas. A ti cabe o prémio de velocidade, e já não precisas de
mostrar quanto podes nesse desporto.

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ENEIDA - Virgílio
— Não são as tuas palavras e Gravatas, ó troiano, que me aterram, mas
os deuses e principalmente Júpiter, que é adverso.

Levantou do solo enorme pedregulho que ali se encontrava há dezenas


de anos, servindo de marco entre propriedades adjacentes. Tão pesado era
que dificilmente doze homens o teriam transportado. Erguendo o calhau
acima da cabeça, com os dois braços, o rótulo atirou-o contra o adversário.
Mas tão enfraquecido se achava pelo sopro maléfico do ente infernal, que os
joelhos fraquejaram, os braços amoleceram e a pedra não transpus senão
metade do caminho até ao alvo. E, exactamente como no sono o lânguido
repouso nos fecha os olhos de noite e em vão queremos prolongar a corrida
e sucumbimos desalentados, a voz presa na garganta, os braços sem acção,
os pés colados ao solo, assim também se via Turno, graças às artes de Júpiter.
Voltou-se para a cidade, de onde cresciam grossos rolos de fumo, olhou pata
as suas tropas e para o inimigo. Tremendo e meio cego, já via a lança de
Eneias elevar-se. Não havia meio de escapar. Nem a sua irmã nem os seus
cavalos ali estavam para levá-lo para longe.

O troiano, vendo o inimigo trémulo, como que atordoado e assustado,


aproveitou a oportunidade e arremessou o dardo. Nunca fez a balista maior
estrépido quando acerta pedras nas muralhas, nem tão alto ressoa a chicotada
do raio como o ruído daquela arma cruel que cruzou os ares silvando com
hórrido bramir e, atravessando o potentíssimo escudo e a couraça inferior do
guerreiro, se lhe cravou na coxa. O grande Turno caiu ferido, ajoelhando-se.

O clamor da turba que assistia fez retinir as montanhas e ondear as


arvores nos bosques. O vencido, humilde e suplicante, dirigiu-se ao
vencedor, estendendo-lhe os braços. Apesar disso, nada disse de
vergonhoso:

— Mereci, por certo, a morte, nem a procuro evitar com as minhas


súplicas. Usa o teu direito. Mas se — lembrando-te de teu pai Anquises —
queres demonstrar um pouco de compaixão por um pobre pai, pensa na
velhice infeliz de Dauno e restitui-me aos meus, vivo ou morto, como
preferires. Vencestes e aqui, rótulos e latinos, vêm estender-te as mãos

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suplicantes. Agora toma Lavínia por esposa e não tentes mais os deuses com
a tua vingança.

Eneias, com a espada desembainhada e levantada em cima da cabeça


do guerreiro vencido, comovia-se com essa fala e, embora Turno se
recusasse a pedir-lhe que o poupasse, esse pensamento começava a ganhar
corpo na mente do troiano. Mas, subitamente, o seu olhar caiu no boldrié
que o outro envergava e que reconheceu ser de Palas, a quem Turno prostrara
morto, arrebatando os despojos. Vendo esse paramento guerreiro, a dor
amarga da recordação do amigo subiu-lhe ao coração e, inflamando de
cólera, exclamou:

— Porque motivo é que tu, vencido aqui no campo de batalha, hás-de


escapar com vida, enquanto pendem do teu ombro os despojos dos meus
companheiros? Não sou agora Eneias, mas sim Palas, filho de Evandro, que
se vinga no teu sangue criminoso.

E a sua mão, célere, enterrou a espada no peito do inimigo, cujo


espírito fugiu gemendo para o Mundo das Sombras.

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Título: Eneida
Autor: Virgílio
Ano de Edição: 1
Páginas: 235
Sinopse:
A Eneida (Aeneis em latim) é um poema épico latino escrito por Virgílio no
século I a.C.. Conta a saga de Eneias, um troiano que é salvo dos gregos em
Troia, viaja errante pelo Mediterrâneo até chegar à península Itálica. Seu
destino era dar origem à descendência dos fundadores de Roma.

Esta é uma versão em prosa, traduzida para o português.

Excerto:
«Assim que correu a noticia de que o inimigo abandonara a luta e partira,
houve como que um suspiro de alivio de toda a cidade sitiada, livre, agora,
da opressão de muitos anos. Abriram-se as portas e saíram todos, alegres, a
olhar os restos do acampamento grego, com um misto de curiosidade e
terror.»

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