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ENEIDA - Virgílio
cidadela. A esquadra, entretanto, em vez de retornar à Grécia, ficaria
escondida atrás da ilha de Ténedos, próxima dali, e afamada outrora pelas
suas riquezas, mas que era agora apenas uma enseada e um ancoradouro
pouco seguro. E tudo fizeram rápida e confiantemente.
Assim dizendo, arremessou uma lança com toda a força dos seus
vigorosos braços contra a ilharga da enorme figura a seu lado. A arma
penetrou na madeira, vibrando, e, não fosse a excitação e a vozearia
reinantes e o espírito pouco precavido dos troianos, ainda hoje a sua cidadela
estaria de pé e intacta, pois embora da cavidade proviesse um gemido e um
tinir de ferros, ao penetrar-lhe a lança, a turba de nada se apercebeu.
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Entretanto, nesse momento, aproximavam-se do grupo alguns pastares
conduzindo um jovem de mãos atadas as costas, seguidas de uma multidão
ululante que insultava e ameaçava o cativo que, por suas roupas e linguajar,
era evidentemente grego. Apesar de haver medo nos seus olhos, encarava a
plebe com altivez e desafio. Tinha-se arriscado entre os próprios inimigos
para desempenhar o seu papel no ardiloso plano dos gregos.
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Replicou então Eneias, acalmando-lhe os temores:
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resta entre os mortais—, que tenhas piedade de quem já tanto sofreu, e tanto
sofreu injustamente.
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destruída pelas armas gregas a não ser que — depois de consultarem os
oráculos em Argos — voltassem inesperadamente com os deuses
domésticos, mais armas e tropas frescas.
Tão bem Sinão mentia e desfiava a sua teia de histórias, que todos nele
acreditaram. Os seus suspiros e lágrimas conseguiram aquilo que a valentia
de Aquiles, de Ulisses e de todos os gregos, em dez anos, não tinha
conseguido.
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Soltando gritos horrendos — qual touro que foge do altar ferido no pescoço
por machadada mal desferida—, o sacerdote procurava desenvencilhar-se
daquele incrível aperto e estendia os braços para os astros. Depois de um
derradeiro arranco que lhe esmagou o tórax, as duas serpentes rastejaram
para a parte mais alta do templo e lá se ocultaram no escudo e nos pés da
imagem da cruel deusa.
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às tropas, que, depois de desembarcadas, tinham avançado velozmente pela
planura.
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Qual pastor que pára estupefacto no alto de um rochedo, quando a chama se
lança na seara, soprada pelos ventos furiosos, ou quando rápida torrente
transbordando do leito, alaga os campos, arruma as sementeiros vice jantes
e as lavouras preparadas e arrasta as árvores arrancadas dos bosques,
também assim ficou Eneias no seu posto. Abriram-se-lhe as portas da
verdade e percebeu então a cilada dos gregos.
—Chegou o dia fatídico para Tróia. Eis o seu fim e o fim da grande
gló ria dos troianos. Júpiter já não nos favorece e só tem olhos para a Grécia
cujos filhos dominam agora a nossa cidade incendiado. Cem homen armados
saíram do bojo do grande cavalo de madeira e Sináo, o mentiro so, zomba
de nós e ateia fogo às nossas casas, enquanto os navios gregos de regresso
de Ténedos, despejam às nossas portas e nas nossas ruas milha rãs de
guerreiros. Tenta-se uma débil resistência, mas tudo é inútil.
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Falou-lhes, então, Eneias:
Mas não eram somente troianos, pois muitos gregos foram abatidos
pela defesa heróica dos vencidos. Em tudo havia o cruel odor da morte,
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Então Corebo, animado com aquele sucesso, disse:
Eis que o grupo avista então Cassandra, filha de Príamo, que era
arrastada pelos cabelos desgrenhados para fora do templo de Minerva. Em
vão levantava ela os olhos inflamados para o céu, as mãos atadas atrás das
costas. Corebo, ao ver a sua amada, sentiu-se possuído de uma cólera
insuportável e, disposto a morrer, lançou-se no meio do inimigo que a
conduzia. Os companheiros seguiram-no, armas erguidas, mas—ó engano
fatal— do alto das muralhas os defensores da cidade tomaram-nos por
inimigos, pois assim o indicavam os seus penachos gregos, e uma chuva de
lanças e setas provocou terrível mortandade entre os troianos disfarçados.
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Ripeu, o mais justo de todos os de Tróia. Hispanis e Dimante foram
trespassados por lanças amigas atiradas do alto. Nem a piedade, nem as
insígnias sagradas salvaram Panto, o sacerdote de Apolo. Somente Eneias e
um punhado de bravos viviam ainda e o herói, erguendo os braços para o
céu, gritou:
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machado de dois gumes, o próprio Pirro atacou os batentes de bronze do
portão, arrancando-o do suporte e pondo à vista o grande salão de colunas
do rei Príamo. Destruíram as almofadas de carvalho de uma porta que dava
para o interior da casa e por essa passagem espalharam-se os gregos pelos
aposentos reais, travando luta com os poucos defensores que restavam.
— Que ideia cruel foi essa, infeliz consorte, de te cingires com armas?
Para onde vais? Não vês que nem o próprio Heitor, com a sua força e a sua
coragem, nos seria de algum valor? Recolhe-te aqui, junto aos nossos
deuses, pois eles ou nos salvarão ou nos farão morrer todos juntos.
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Sentindo-se à beira da morte, Príamo não se conteve e, encolerizado
pela brutalidade da cena, exclamou:
Assim dizendo, lançou, com fracas forças, o seu dardo contra Pirro.
Este apenas levantou o escudo, recebendo o impacto do ferro no bronze
redondo, e exclamou:
Agarrou então o velho rei pelos cabelos brancos com a mão esquerda
ainda tinta do sangue do filho, arrastou-o até o altar e, levantando a espada
cintilante, cravou-a até os copos na ilharga do ancião. Assim morreu Príamo,
cujo corpo, degolado, jaz anónimo nas praias de Tróia, outrora poderosa e
dominadora.
Eneias, chegando pouco depois e vendo o morticínio, ficou transido de
horror e de tristeza. Estava agora sozinho. Os seus poucos companheiros ou
estavam mortos ou se tinham separado, esgotados do esforço da luta.
Vagando sem rumo pelos grandes salões do palácio, em tudo via as marcas
do sangue e da morte. Veio-lhe então à lembrança a imagem do seu querido
pai, da esposa Creusa, abandonada, a casa saqueada e o perigo que corria o
seu filhinho Ascânio.
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em Helena a pátria agonizante. Não era ela a causa última de todas as
desgraças? Seria justo que ela voltasse incólume a Esparta e à Grécia, como
rainha, revendo o esposo, a casa, os pais e os filhos e acompanhada de uma
multidão de escravas e escravos troianos, depois de Príamo ter morrido pela
espada, depois da cidade ter sido incendiada e depois do sangue troiano ter
manchado tantas vezes as areias brancas daquelas praias? Não! Isso não
poderia suceder! E, embora não seja glorioso punir uma mulher, nem pareça
tão alto louvor, seria no entanto elogiado quem lhe desse o castigo merecido.
— Filho, que dor tão grande faz medrar tão incontrolável ira? Porque
te enfureces? Por que razão, em vez de voltares a tua vista para aquela
mulher, não procuras antes o teu pai Anquises, alquebrado pelos anos?
Porque não indagas se a tua esposa Creusa e o pequenino Ascânio são vivos?
Se neles não tivesse eu pensado e deles cuidado, já as chamas os teriam
devorado e o ferro cruel os teria trespassado. Não é naquela mulher, Helena,
ou no seu raptor, Páris, que deves pôr a culpa dos desastres de Tróia, mas na
cólera dos deuses que determinaram derrubá-la do alto do pedestal. Olha,
dissiparei com o meu poder a nuvem que tolda os teus olhos mortais e lhes
impede de ver as coisas como realmente são. Aqui, onde vês grandes
construções a desmoronarem-se, pedras arrancadas, fumo e poeira, verás
Neptuno com o seu tridente, atacando os próprios alicerces da cidade e
fazendo-lhes aluir os muros. Mais do que todas, possuída de ódio contra a
tua raça, divisarás a cruel Juno, dominando as portas e chamando mais tropas
dos navios. E mais além, Minerva, resplandecendo numa nuvem com a
figura da Medusa pintada no escuro, está de posse da cidadela. O próprio rei
Júpiter incute animo ao inimigo e redobra-lhe as forças, instigando os deuses
contra os teus. Mas não temas, filho, as ordens de tua mãe, nem lhe recuses
obedecer. Apressa a fuga e põe fim a esses esforços vãos. Nunca me afastarei
de ti e conduzir-te-ei a outra pátria.
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Assim dizendo, a linda Vénus desapareceu nas sombras espessas da
noite. Apareceram então a Eneias coisas nunca antes reveladas e ele viu os
deuses, com semblantes cruéis e grande poderio, a auxiliar os gregos no
assalto final a Tróia. E esta parecia abater-se em chamas e desfazer-se nos
seus alicerces. Era como o carvalho dos altos montes, que, atacado de todos
os lados pelos machados dos camponeses, range, verga, balança, farfalha,
geme e por muito tempo ameaça cair, até que, com um derradeiro alento —
abalado no seu cume — pouco a pouco se deixa vencer pelas feridas do
machado e rui, arrastando tudo das alturas. Trazido de novo à realidade pela
deusa, Eneias correu para o lar, escapando milagrosamente ao fogo e ao ferro
do inimigo.
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Dentro em pouco aqui estará Pirro, saciado de sangue, depois de ter morto
primeiro o filho de Príamo à vista do pai e, a seguir, este próprio junto aos
altares. Ó Vénus! ó mãe querida! Foi para isto que me tiraste do meio das
chamas e me conduziste são e salvo através das lanças e das espadas do
inimigo? Foi para os ver todos mortos, a Ascânio, a Creusa e a meu pai,
Anquises, seus sangues misturando-se no chão? Às armas, todos! Trazei-me
as armas! O último dia chama-nos, a nós, os vencidos! Deixai-me enfrentar
os gregos.
E ao dizer tal coisa, enchia a casa com o seu pranto. Ocorreu então um
prodígio que os deixou estupefactos. Sobre a cabeça do menino Ascânio,
que se achava entre os braços dos chorosos pais, apareceu uma ligeira
labareda. Espargiu-se o fogo sobre os cabelos da criança e lambia os seus
canudos sem, no entanto, causar qualquer queimadura. A chama subia e
descia ao longo da testa. Aterrados, os pais sacudiram-lhe os cabelos
incendiados, tentando apagar as chamas sagradas com égua. Então,
Anquises, alegre, levantou os olhos e os braços para os astros e bradou:
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um sulco luminoso no firmamento e espalhando um penetrante odor de
enxofre queimado.
Cobrindo as costas com uma pele de leão, Eneias ergueu o seu velho
pai. O menino Ascânio deu-lhe a mão, seguindo-o com os passinhos
apressados. A esposa Creusa acompanhava-o mais atrás. Evitando os lugares
iluminados, avançaram cautelosamente pelas ruas sombrios. A Eneias, a
quem a* há bem pouco não aterravam as chuvas de lanças e os batalhões
inimigos avançando de espada nua, tudo fazia estremecer. Qualquer som o
sobressaltava, temendo pelo companheiro e pela carga preciosa. Já se
aproximavam das portas, parecendo-lhes mesmo ter percorrido todo o
caminho quando, de repente, lhes chegou aos ouvidos o som de passas
cadenciados. O ancião, olhando para a escuridão, exclamou:
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Assustado e confuso, Eneias apressou a caminhada, embrenhando-se
por vielas e becos pouco conhecidos, abandonando o percurso que lhe ser
tão familiar. Olhando, passado um momento, para trás, a fim de ver se todos
o seguiam de perto, parou subitamente, pois não via a sua esposa Creusa. De
facto, nunca mais a veria.
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Já cansado de percorrer as ruas sem rumo, eis que lhe apareceu à frente
o fantasma da esposa, maior que a sua figura terrena. Ficou estupefacto,
eriçaram-se-lhe os cabelos e a voz prendeu-se-lhe na garganta. Acalmando-
o, passou o espírito a falar-lhe:
— Ó querido esposo, por que tanto te entregas a essa dor inútil? Tais
coisas não acontecem à revelia dos deuses, nem quer Júpiter que leves
Creusa como tua companheira. Esperam-te vastas extensões de mares e um
longo exílio. Chegaras a Itália, que os gregos chamam Hespéria, e lá, onde
o Tibre corre por entre os campos férteis, te espera um novo reino, que
fundarás, e uma nova esposa. Esquece, pois, tua querida Creusa. Eu, como
descendente de Dárdano e nora da deusa Vénus, não verei, ao menos, a
Grécia, nem servirei de escrava a seus soberbas senhores, pois a grande mãe
assim me resolveu conservar nesta terra. E agora, adeus, e cuida bem do
nosso filho.
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Certo dia, estava ele na praia, oferecendo sacrifícios a sua mãe, a deusa
Vénus, aos deuses protectores do inicio das coisas e ao próprio Júpiter, o
supremo habitante do Olimpo, quando resolveu subir a uma colina próxima,
de cume coberto de pequenas moitas. Aproximou-se de uma delas e tentou
arrancar da terra um arbusto verde com cujos ramos pretendia cobrir os
altares sagrados. Aconteceu então um prodígio tenebroso, que lhe fez gelar
o sangue nas veias. Das raízes partidas da árvore arrancada escorreu sangue
negro que empapou a terra, manchando-a com a sua podridão. Transido de
pavor, Eneias, tentando explicação para o mistério, arrancou outro arbusto.
Também das raízes deste escorreu sangue escuro. A sua imaginação
trabalhava febrilmente. Invocando as ninfas campestres e o deus Marte para
que levantassem o mau presságio, o troiano agarrou de novo um terceiro
arbusto e, apoiando os joelhos na terra, tentou tirá-lo do solo. O prodígio dos
prodígios! Ouviu-se então um gemido lacrimoso vindo do fundo de um
sepulcro e chegou até ele uma voz que dizia:
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— Eneias, Eneias, porque dilaceras um infeliz? Deixa em paz um
morto e não manches as tuas mãos com o meu sangue. Sou o teu
compatriota, Polidoro, aqui neste lugar por muitas lanças trespassado e
morto. Foge destas costas ingratas e cruéis!
Então, mais confiantes em si, fizeram-se aos mares, deixando para tras
as terras que tinham começado a lavrar e a cidade começada a construir.
Delos, berço de Apolo e Diana, era uma ilha que nos tempos idos
vagava incessantemente, para lá e para cá, ao sabor das ondas, entre Giaros
e Micon. O deus, agradecido à sua terra natal, fixou-a, na entanto, para que
fosse venerada e pudesse arrostar os ventos. Para lá se dirigiram Eneias e os
seus camaradas, entrando com os navios no seu porto seguro.
Desembarcaram, a fim de levar ao deus os seus sacrifícios, e foram recebidos
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pelo rei Anio, que reconheceu o seu velho amigo Anquises. Apertaram-se as
mãos direitas em sinal de hospitalidade e foram conduzidos ao palácio real.
Eneias dirigiu-se então ao templo de Apolo e lá fez uma invocação:
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conduzem as ordens dos deuses. Aplaquemos os ventos e velejemos para
Creta, que, se Júpiter nos ajudar, veremos ao terceira dia de viagem.
Aconteceu, por aqueles dias, que Eneias teve um sonho em que via as
imagens sagradas dos deuses domésticos trazidas das ruínas fumegantes de
Tróia. A lua cheia, entrando pela janela aberta, iluminava-os e eles dirigiam-
lhe a palavra serenando-lhe os animas:
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depois de incendiado Tróia; nós, que por ti guiados cruzamos os mares
revoltos; nós, teus deuses domésticos, te dizemos agora para partir.
Apolo não te aconselhou estes litorais de Creta, mas sim um lugar que
os gregos cognominaram de Hespéria, terra antiga, famosa pelas armas e
pela fecundidade do solo. Foi há muitos anos habitada pelos homens de
Enótria, mas chama-se agora Itália, do nome do seu chefe. De lá veio
Dárdano e o pai lásio, donde provem a nossa família. É lá que fundarás o teu
reino, pois Júpiter te negou os campos de Creta. Agora vai, leva alegre essa
mensagem a teu pai e parte para a Itália, para a cidade de Corinto.
Atónito com a visão e a voz dos deuses, Eneias acordou com um suor
frio a percorrer-lhe o corpo. Nem lhe parecia sonho, tal a nitidez dos
semblantes, dos cabelos e dos corpos. Estendeu as mãos para os céus e
derramou ricas oferendas sobre o fogo sagrado. Jubiloso e já calmo depois
dá ter oferecido o sacrifício aos deuses, dirigiu-se a Anquises e narrou-lhe o
facto. Reconheceu seu pai que se tinha enganado, pois que agora se lembrava
serem os troianos descendentes de duplo tronco de linhagem. E disse:
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Três dias e três noites ficaram assim vagando ao sabor dos ventos na
negra cerração. No quarto dia avistou-se terra, com montes e fumo. Arriando
as velas, os marujos lançaram-se aos remos e já os barcos fendiam a espuma
branca, varrendo as águas azuladas. As terras que se aproximavam eram
duas ilhas do mar Jónio, que os gregos denominavam Esrrófades. Lá
habitavam as Harpias e a sua rainha, a cruel Celeno, depois de expulsas da
casa do rei Fineu da Trácia. Como castigo ao ultraje sofrido, os deuses
tinham cegado o soberano, que sofrera enormes tormentos nas mãos dos
malvados seres alados.
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Somente a sua rainha, Celeno, pousada numa rocha a certa distancia,
permaneceu ali e gritou para os guerreiros:
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Na praia, os jovens divertiam-se com lutas e jogos, segundo os
costumes de Tróia.
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caindo desmaiada. Depois de certo tempo, os seus olhos abriram-se
novamente e ela murmurou:
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Assim falava Andrómaca, suspirando e chorando, quando chegou
Heleno, herói filho de Príamo, acompanhado de grande séquito.
Reconhecendo os seus patricios, saudou-os alegre e levou-os para o palácio.
Ao aproximarem-se da cidade, os recém-chegados estacaram, maravilhados.
Ali estava uma pequena Tróia e também uma Pérgamo em tamanho menor.
E mais um riacho, a que Heleno chamava de Xantos, e um templo a Apolo.
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Lá fundaram as suas cidades os locros de Naricia, o rei Idomeneu, que
abandonou Creta, e também lá está a famosa cidade de Filoctetes, chefe de
Melibeu e a pequena Petilia, forte nos seus muros altos. De tudo isso
rnantém-te afastado, Eneias, e cruza o mar Jónio na direcção sul. Veras então
o estreito de Peloro. Em tempos passados, conta a lenda que aquelas massas
de terra eram uma só e que num dia de grande catástrofe a terra estremeceu,
separando-as e o mar avançou com impero pelo sulco aberto, afias tando as
costas da Hespéria e da Sidlia. Ao veres a entrada daquele estreite canal
afasta-te para o mar largo, para longe das terras e das águas à tu, direita.
Mantém o rumo à esquerda, navegando para o sul ao longo d, costa da Sidlia
até o ponto mais meridional da ilha, rodeia-o e faz-te a norte, directo ao teu
objectivo. Se tens amor à vida, não te aventures pele Peloro, pois lá te
espreitam grandes perigos. Naquele lugar habitam duas divindades
monstruosas. A direita, debaixo do penhasco mais alto, mor: Cila numa
caverna submersa. Essa terrível deusa mantém em torno de si amarrados, um
bando de mastins uivantes e verdes como o mar. A part, superior do seu
corpo é de mulher. Para baixo é um horroroso monstro marinho, com ventre
de lobo e muitas caudas de delfim, que chicoteiam e se agitam sem cessar.
Não te atrevas uma vez sequer a olhar o monstro pois está sempre à espreita,
pronto a arrebatar com as suas vorazes mandíbulas os homens do convés. A
esquerda, onde uma penedia lisa se alç do oceano, mora Caríbdis. Três vezes
por dia, aspira ela para o seu vasta ventre as enormes ondas de água salgada,
fazendo girar o mar em torn, em remoinho gigantesco. Qualquer navio que
lá se aventurar, afundar-se para sempre. Depois de um certo tempo, o
monstro volta a cuspir a águ para os ares, como se quisesse molhar os astros.
Quando finalmente, depoi de contornares a ponta meridional da Sicilia, te
estiveres a aproximar da costas ocidentais da Itália, avistarás a cidade de
Cumas, perto da qual esta os lagos do Averno. As suas margens são cobertas
de bosques escuros onde as árvores murmuram misteriosamente. Lá irás
consultar uma pro fetisa inspirada que trabalha debaixo de um rochedo
côncavo, predizendo os destinos e escrevendo nomes e letras nas folhas.
Essa profetisa dispõe as folhas de modo regular e ordenado no interior da
sua caverna, que fica próxima de uma colina onde reluz o templo de Apolo.
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Dizem que o deu lhe confia muitos dos seus segredos. As folhas
permanecem imóveis e na saem de seus lugares. Porém, se um vento brando,
aberta a porta, as agite mistura, a sibila não se preocupa com o seu destino e
nem procura, sequei reuni-las.
Por isso mesmo, os homens que vão consultá-la pouca fé põem nos
seus conselhos e profecias. No entanto, tu, Eneias, não receies perde algum
tempo, mesmo se os teus companheiros te censurarem e os vento prósperos,
enchendo as velas com força, convidem à viagem, e vai sem falta visitar a
sibila, solicitando-lhe os oráculos. E que da, por sua própria vontade, abra a
boca e pronuncie as palavras. Conhecer então os povos que habitam a Itália,
as lutas que terás de travar e os modos pelos quais poderás evitar as
desgraças ou suportá-las melhor. Bons augúrios te dará, se a venerares. Dir-
te-ei agora os sinais que te indicarão onde construir uma cidade em terra
pacifica. Conserva-os guardados na mente. Certo dia, depois de
desembarcares naquela parte da costa ocidental da Itália conhecida por Lácio
— linda terra com campos férteis e pastagens exuberantes, por entre as quais
corre o suave Tibre — chegar a um tranquilo lugar junto a um riacho. Ai
verás, sobre a margem arenosa, uma porca, branca, cor de neve,
amamentando uma ninhada de porquinhos recém-nascidos, todos também
brancos, cor de neve. Sobre esse chão levantarás as muralhas da tua cidade.
Uma última advertência te farei ainda, Eneias! Quando os navios entrarem
nos portos estranhos, oferece sacrifícios aos deuses — principalmente a Juno
— segundo o costume, dispondo os altares e cobrindo a cabeça com um véu
púrpura, para que nenhuma figura hostil surja entre os fogos sagrados
perturbando os presságios. Que tu, teus companheiros, teus filhos e teus
netos sigam os ritos e satisfaçam a vontade da deusa que tanto odeia a tua
raça! É isto e mais nada o que te posso dizer, porque mais não me permitem
os deuses. Vai, pois, Eneias, e com os teus feitos eleva até aos astros o nome
de Tróia.
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armadura de Pirro. A Anquises, Heleno ofereceu lindos cavalos. Completou
o número de remadores e forneceu armas aos seus compatriotas.
Partiram por fim, avançando pelo mar junto aos campos vizinhos de
Ceraúnia, procurando o caminho mais curto para a Itália. Chegou a noite,
entretanto, e acharam um bom local para descansar do esforço daquele dia e
ali mesmo, na praia, se entregaram ao reparador sono. Não ia a noite
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avançada quando Palinuro, o piloto, se levantou do leito e se pôs a observar
os astros e a escutar os ventos. Lá estavam a estrela Arturo, as Híades
chuvosas, os dois Trióes e Orion, no seu fulgor dourado. Deu então um sinal
vibrante. Era a ordem para levantar o acampamento e partir, aproveitando o
mar calmo. Já então nascia a aurora, afugentando as estrelas, e logo
chegaram à costa baixa da Itália.
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por entre a névoa, o imenso vulcão Etna. Nesse momento o mar gemia, os
rochedos espumavam e as ondas quebravam-se com fúria na praia. Bradou
então Anquises:
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uma figura desconhecida de homem, extremamente magro, vestido com
farrapos, estendendo-lhes suplicante a máo. Os troianos encararam-no.
Apesar da imundície espantosa e da barba longa do estranho, viram que se
tratava de um grego e que provavelmente tomara parte no assalto e no saque
à sua querida cidade. Reconhecendo os trajes e as armas troianos, o
desconhecido parou, aterrado, mas em seguida atirou-se para a frente
precipitadamente, exclamando:
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crime não ficou impune e nem Ulisses o permitiria. Assim, quando o
monstro, farto com as iguarias e adormecido pelo vinho forte que o esperto
Ítaco lhe colocara à mão, se entregou a profundo sono, nós, orando aos
deuses, vazamos-lhe o único olho que se esconde sob a sinistra fronte, com
um estaca aguda e incandescente. Mas fugi, ó desgraçados, fugi e cortai as
amarras dos vossos barcos. Tão grande quanto Polifemo, que ordenha cem
ovelhas a uma só vez, vagueiam por perto cem outros Ciclopes, nestas praias
curvas e nestes montes. Durante estes três últimos meses tenho-me arrastado
na floresta, por entre as cavernas desertas ou habitadas por feras. De vez em
quando subo a uma elevação para olhar de longe os enormes gigantes e
estremeço ao som do bater dos seus pés e do estrondear da sua voz. Só me
tenho alimentado de frutas silvestres, ervas e raízes. Numa dessas ocasiões
avistei esta armada que demandava a costa e resolvi entregar-me a ela,
qualquer que fosse a origem. Fugir dos Ciclopes, basta-me. Podeis agora
dar-me o destino que quiserdes.
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horrendo, ali parado, impotente para alcançá-los porque não tinha barcos, a
agitar o porte gigantesco e a balançar as cabeças de um só olho.
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Capítulo 3: Eneias Chega a Cartago
Mas havia ainda uma terceira razão, que era a predilecção da augusta
esposa de Júpiter pela antiga colónia fenícia chamada Cartago, situada nas
costas da África do Norte. Juno amava aquela cidade mais do que todas as
outras e lá guardava o seu carro e as suas armas. Tivesse ela poder para tanto
e Cartago dominaria o mundo, reinando sobre todas as outras nações.
Imensamente ricos, bravos e fortes na arte da guerra, os cartagineses eram
governados por uma rainha, Dido.
Juno ouvira dizer que, um dia, uma raça oriunda do sangue troiano
sairia da Itália e lançaria por terra a cidadela de Dido e que haveria de surgir
um povo soberbo na guerra para tal feito. Assim o tinham disposto as Parcas.
Temia esse dia e lembrava-se da guerra que empreendera ao lado dos gregos
contra a raça amaldiçoada e tentava, há anos, servindo-se de todo o seu
poder, afastar Eneias e os seus companheiros do Lácio, criando toda a
espécie de dificuldades, para que não fundassem a nação romana. Disse
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então a deusa para consigo: «Porque deverei eu desistir desta empresa a que
me lancei e evitar que os troianos cheguem à Itália? Porque tanto me
perturbam as Parcas?
— Ó rainha, teus desejos são ordens para mim, pois não é por tua graça
que aqui estou, soberano deste reino e possuidor deste ceptro? É pela tua
vontade que desfruto da amizade de Júpiter e participo dos banquetes do
Olimpo e é por ela que comando os ventos e as tempestades.
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Assim falando, bateu com o ceptro na rocha oca a seu lado e... O
Deuses do Olimpo, quem poderá descrever o barulho que se seguiu! Os
ventos, ansiosos de liberdade depois de longa reclusão, lançaram-se, em
imenso turbilhão, pela porta que lhes fora aberta.
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logo com a frota de Eneias, toda espalhada, enquanto os troianos,
sucumbidos pela força e fragor dos ventos rugidores, estavam quase no
limite da resistência.
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Embarcaram para a praia, reunindo os sete navios salvos entre os vinte
de que a esquadra se compunha. Saudosos da terra, os troianos atiraram-se
à areia hospitaleira, estendendo os músculos e secando as roupas. Acates
acendeu o fogo com uma pederneira, fazendo uma fogueira com folhas e
lenha seca, enquanto os outros traziam os sacos de cereal molhados de água
salgada e abriam-nos para fazê-los secar. Depois, trituravam-no entre as
pedras, para o pão.
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ENEIDA - Virgílio
aquecer-se com o vinho generoso, sentados em torno das fogueiras e
conversando — entre o receio da morte e a esperança de vê-los novamente
— sobre os seus companheiros perdidos. Eneias pranteava a sorte do ardente
Otontes de Amico, de Lico, do forte Gras e do corajoso Cloanto.
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ENEIDA - Virgílio
sacerdotisa, Reia Sílvia, dê à luz dois gémeos: Rómulo e Remo, filhos de
Marte, o deus da guerra, os quais serão amamentados por uma loba.
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ENEIDA - Virgílio
armas. Eneias não sabia se a moça era espartana ou grega, como Harpálice,
a rainha guerreira da Trácia.
— Não vimos nem ouvimos nenhuma das tuas irmãs por estas
garagens, ó — como te chamarei? — donzela, ou talvez Diana, irmã de
Apolo, pois não tens rosto nem voz humanos. Ou serás uma ninfa? De
qualquer forma, auguramos-te felicidade e desejamos apenas que nos digas
sob que céus e em que praias aportamos. Não conhecemos nem os homens
nem os lugares desta região onde andamos agora e onde viemos ser batidos
pelas ondas e pelo vento. Muitos carneiros imolaremos em tua honra, se nos
auxiliares.
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ENEIDA - Virgílio
desprevenido junto aos altares, e matou-a com uma punhalada certeira no
coração.
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ENEIDA - Virgílio
— Afluem quer que sejas, não penses que és tão odiado pelos deuses.
Se o fosses, eles não te permitiriam chegar a Cartago. Agora vai ao palácio
da rainha. Mas primeiro dar-te-ei boas noticias: se os meus pais não me
ensinaram erradamente a perscrutar o futuro, os teus companheiros e os
outros navios da tua frota não se afundaram entre as ondas como pensaste e
corará sim levados pelos ventos a bom ancoradouro, a um dia de viagem
deste local. Olha! Vês como aqueles doze cisnes, há pouco atacados por uma
águia e dispersos em todas as direcções, voltam agora em longa fileira?
Assim como eles, que retornam alegremente à água, batendo ruidosamente
as asas e soltando gritos, também os teus navios e os teus companheiros
velejam agora para cá. Caminha, pois, e segue essa trilha.
— Porque motivo, ó mãe cruel, enganas tantas vezes o teu filho com
falsas aparências? Porque não nos é permitido juntar as mãos e ouvir e
retribuir palavras sinceras?
Eneias e o amigo seguiram pela vereda que lhes fora indicada e logo
chegaram ao topo de uma encosta, da qual se divisava a cidade com os seus
baluartes. Pararam admirados ante a febril actividade dos Ínicios, que
transformavam a aldeia de choupanas numa cidade moderna. Levantavam-
se os portões, calçavam-se as ruas, erguiam-se as muralhas da cidadela,
cavava-se o fosso. Era a lei que chegava, a justiça que se impunha.
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ENEIDA - Virgílio
Aqui, grupos de homens dragavam um ancoradouro. Além, outros
lançavam as fundações de um teatro ou extraiam blocos de pedra da
montanha para construir colunas enormes que circundavam o palco das
representações. Assemelhavam-se às abelhas que, ao Sol do Verão, saem
pelos campos floridos à frente dos enxames e, todas juntas, realizam mais
uma vez aquelas tarefas antigas como o mundo, colhendo o doce néctar e
enchendo os seus favos até transbordarem com o fino suco das flores. Não
há qualquer descanso para aquelas operarias aladas até o fim do estio,
quando as colmeias estão cheias de mel grosso, perfumado e doce. Assim
parecia a Eneias essa colónia de Tiro e disse, olhando para as torres da
cidade:
Eneias divisou uma coisa que lhe fez recobrar o animo e a esperança.
Enquanto esperava a rainha, corria a vista pelos painéis que ornavam o
templo — trabalho paciente de muitos artistas — e percebeu que neles
estavam representados os combates travados em Tróia, que já se haviam
divulgado por todo o mundo.
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ENEIDA - Virgílio
Ali brilhavam os feitos de Agamémnon, de seu irmão Menelau e de
Aquiles, filho de Peleu, e também aparecia Príamo, rei de Tróia. Eneias,
sentindo chegarem-lhe lágrimas aos olhos, virou-se para o seu amigo e
exclamou:
— Ó Acates, que lugar, que região, que terra ainda não conhecerá as
nossas desventuras? Eis Príamo! Aqui também vemos as boas acções
recompensadas e as tristezas e aflições regadas por lágrimas. Isto há-de
trazer-nos alguma coragem, companheiro, pois o reconhecimento da nossa
linhagem só nos pode ser vantajoso nessa terra estranha.
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ENEIDA - Virgílio
O troiano reparou na grande beleza da soberana que andava com graça
tal, que nenhuma outra mulher mortal a poderia suplantar. Assim como
Diana, que com o seu arco e a sua aliava, a cabeça loura acima das outras
densas, segue à frente do bando de donzelas dançarinas—mil ninfas da
floresta — pelas margens floridas do Eurota, aquele rio da distante Grécia,
ou percorre as trilhas das montanhas de Delfos, levando alegria ao peito de
Latona, sua mãe, assim também a rainha Dido passava entre a sua gente
concitando-a a trabalhar.
Logo que entraram e lhes foi dada permissão para falar em frente da
rainha, Ilioneu, o mais velho de todos, adiantou-se e disse:
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ENEIDA - Virgílio
Dirigíamos os nossos rumos para lá, mas uma súbita borrasca
arremessou-nos sobre penedos ocultos e dispersou completamente a nossa
frota. O céu, no entanto, salvou-nos da destruição e com doze navios
conseguimos alcançar porto seguro, de onde, aproveitando o mar calmo,
aqui chegamos sem mais demoras. Mas que raça de homens habita aqui, tão
cruel que a nós, náufragos, querem repelir-nos, recusar-nos a hospitalidade
e ainda ameaçam incendiar os nossos barcos? Se desprezais o género
humano e as armas mortais, lembrai-vos de que os deuses sabem decidir o
que é justo e injusto. Tínhamos Eneias, chamado o Bom, como rei, e
ninguém o suplantava em rectidão de carácter. Mas, ai! Temo que o seu
espírito esteja agora entre as sombras. No entanto, se os destinos o
conservaram, se ainda respira o ar, não jaz nas entranhas cruéis da terra, e
voltar para nós, segui-lo-emos sem medo. E não temas qualquer
animosidade por causa do bem que fizeres, pois serás recompensada por
tudo o que nos ofereceres. Permite, eu te imploro, que ponhamos as nossas
embarcações a seco e que de vigas e tábuas extraídas das árvores das tuas
florestas possamos reparar os danos causados pelas ondas e pelo vento.
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ENEIDA - Virgílio
Com o coração transbordante de felicidade com as palavras de Dido,
Eneias e os seus companheiros estavam ansiosos por romper a nuvem e
apresentar-se. Falou então Acates:
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ENEIDA - Virgílio
— Ó homem nascido da deusa, que pensas agora fazer? Tudo corre
bem, os homens e as armadas estão a salvo, só faltando um que nós próprios
vimos submergir por entre as ondas. Tudo corresponde à profecia de tua
mãe.
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ENEIDA - Virgílio
— Ó filho meu, a quem confio todo o meu poder de escravizar os
corações de moços e donzelas! Ó filho, que não temes os raios do próprio
Júpiter, é a ti que agora me dirijo. Sabes bem que teu o irmão Eneias tem
percorrido os mares agitados e aportado a praias selvagens por obra da
iníqua Juno. Tu o sabes e te tens compadecido das suas adições. Agora,
Dido, da Fenícia, retém-no e fá-lo demorar-se com palavras lisonjeiras.
Temo o resultado dessas amabilidades e creio que Juno está por trás de tudo
isso. Assim, quero que a rainha se prenda a Eneias por grande amor e que
nenhuma outra influência a faça mudar de ideias. A ti cabe envolvê-la com
enganos e incendiar-lhe o coração. Ouve, agora, o meu plano. O príncipe
Ascânio, a chamado do pai, prepara-se para ir a Cartago, levando à rainha
os presentes que Júpiter houve por bem aprovar que fossem salvos das
chamas e dos escombros de Tróia. Esconderei o menino, adormecido, num
recinto sagrado — sobre o monte Idábio ou na minha ilha de Citera — para
que de nada desconfie. Tu então te disfarçarás nele e dele representarás o
papel durante uma noite. Assim, quando Dido, feliz, te receber no banquete,
quando te abraçar e beijar, tu lhe irás inculcando o fogo oculto do amor e
contagiando-a com o veneno da paixão.
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ENEIDA - Virgílio
À vista dos recém-chegados, correu um frémito de admiração entre os
convidados, maravilhados com o menino e com os presentes de Eneias. Dido
era a mais inflamada de todos. Olhava-os deliciada e os seus olhos brilhavam
de alegria. Cupido dirigiu-se primeiro a Eneias. Abraçou e beijou o falso pai,
que nada percebeu. Caminhou, depois, para a rainha, que o tomou nos
braços, acariciando-o como o faria uma mãe, nada sabendo das desgraças
que lhe adviriam daquele gesto. Suave e paulatinamente, o deus foi-lhe
infiltrando no coração o amor por Eneias, apagando da sua mente a
recordação do marido Siqueu e tentando despertar aquele coração há muito
desacostumado de amar.
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ENEIDA - Virgílio
Dido, sorvendo grandes goles do amor, prolongava a noite, fazendo
muitas perguntas a Eneias sobre Príamo e o valente Heitor e sobre
Diomedes, o filho de Tideu, sobre quão forte era Aquiles e sobre a sua
armadura feita por Vulcano, ferreiro imortal dos deuses. Por fim, disse:
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ENEIDA - Virgílio
Capítulo 4: Eneias e Dido
Continuou Dido:
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ENEIDA - Virgílio
vencer! Apesar de eu ter tomado a firme resolução de jamais receber outro
homem em casamento, depois de meu amado Siqueu ter sido tão
cobardemente assassinado, trazendo-me sofrimento e pena, sinto-me
fraquejar ao olhar a beleza desse troiano. Ele foi o único, após a morte do
meu querido esposo, a fazer estremecer o meu coração e vacilar a minha
vontade. Apesar disso, desejo que os abismos mais profundos da terra se
abram para mim, que o Pai Omnipotente me arremesse com seus raios para
as sombras escuras e eternas do Érebo, antes que eu, Dido, fique surda à voz
do pudor e desafie impudentemente as suas leis. Aquele que primeiro se uniu
a mim pelos votos do amor e do casamento, levou o meu coração para a
rumba.
— Ó minha irmã, mais querida que a terna luz do Sol, não fales assim.
Consumir-te-ás sozinha, chorando durante toda a tua mocidade por um amor
perdido? Crês tu que os restos sepultados se importam com o modo como
procedes? Deixarás de gozar os prazeres que te podem dar uma prole
numerosa e sadia? É verdade que nenhum dos pretendentes — dos muitos
que em Tiro e aqui na Líbia se apresentaram — conseguiu até hoje
conquistar o teu coração. Mas porque resistir a um amor que se apresenta
tão agradável? E não te esqueças do lugar onde ergueste a tua cidade. De um
lado, as cidades da Getúlia, raça insuperável na guerra, as númidas selvagens
e Sirte. Pelas bandas do deserto ameaçam-te os barceus, sem falar nas
ameaças que poderão surgir de Tiro e do teu irmão. Foi Juno e foram os
deuses que para aqui fizeram aproar as quilhas das birremes troianas. Já
pensaste quão grandiosa poderá ser a tua cidade se, por esse casamento, aos
cartagineses unires os troianos, tão bravos nos feitos das armas? Penitencia-
te junto aos deuses, celebra-lhes sacrifícios enquanto engendras mil e um
modos de fazer Eneias demorar-se junto a nós até a chegada do feio Inverno,
altura em que o mar embravecido, o vento que açoita os barcos e as forças
do firmamento em desalinho o impedirão de fazer-se ao mar por alguns
meses.
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ENEIDA - Virgílio
com o costume, imolaram ovelhas de dois anos a Ceres, deusa legisladora e
padroeiro da fertilidade dos campos. A Apolo, a Baco e, sobretudo, a Juno,
que guarda ciosa os laços do matrimónio. A formosa Dido, ela própria,
segurando na mão direita uma taça, derramou vinho sagrado entre os chifres
de uma vaca branca, pedindo os favores dos deuses. Seguia pelo templo ante
os altares e imagens dos deuses, renovando as oferendas e procurando ler os
presságios nas entranhas quentes das reses sacrificadas. Ai! Espíritos ignaros
dos adivinhos! De que servem os vaticínios, os votos e os altares, se uma
mulher está apaixonada? Uma chama devora-lhe a medula e sangra uma
tenra ferida no seu peito.
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ENEIDA - Virgílio
Quando Juno percebeu que Dido estava loucamente presa pelos laços
do amor e que nem a sua reputação ameaçada a fazia recuar nos seus
intentos, voltou-se para Vénus e disse:
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ENEIDA - Virgílio
Vénus concordou, rindo do astucioso plano da rainha do Céu.
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ENEIDA - Virgílio
Dido e o chefe troiano refugiaram-se na mesma gruta e nela a deusa
guardiã dos votos do matrimónio uniu-os casamento.
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ENEIDA - Virgílio
— Ó Júpiter omnipotente, a quem nós mouros escuros adoramos e
oferecemos libações, vês estas coisas? Será que trememos em vão, ó Pai,
quando atiras os teus raios, iluminas as nuvens com fogos ocultos ou as fazes
ribombar com teu trovão? Essa mulher, a quem vendemos um pedaço da
nossa terra para que construísse a sua cidade e para que a cultivasse, e que
recusou a minha oferta de casamento, recebeu agora Eneias como seu senhor
e aceitou prazenteiramente no seu reino um bando de troianos efeminados,
que perfumam o cabelo e levantam os fracos queixas com tiras. Teremos
nós, teus devoras adoradores, de suportar tal afronta?
O poderoso Júpiter escutou estas palavras de larbas, seu servo, que lhe
erguia as mãos e abraçava os altares e volveu os olhos para as muralhas reais
de Cartago e para o par que, envolvido no seu amor, se esquecera de outras
coisas mais elevadas. Chamou então Mercúrio, seu mensageiro, e disse-lhe:
— Vai, meu filho, corre, chama os zéfiros e voa à Líbia para dizer ao
chefe dardanio — que agora vive em Cartago da Tmia, sem se preocupar
com os factos futuros — que eu, Júpiter, lhe envio esta mensagem: não foi
para tal destino que a sua formosa mãe o salvou duas vezes das armas dos
gregos e sim para fundar na Itália um novo e poderoso reino que, fremente
de guerra, propagaria a alta geração dos troianos e submeteria a orbe inteira
à sua lei. Se nenhuma glória de tão grandes acções o excita e nem o anima o
esforço para obtê-la, que pelo menos se lembre de seu filho Ascânio e pense
do que o privará. Que quer Eneias? Com que esperança se detém no meio
do povo inimigo? Não pensa na descendência que deverá lançar nos campos
de Lavínio? Que parta! Que lance os barcos ao mar e que navegue! É isso
que determino e é essa a minha mensagem.
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ENEIDA - Virgílio
Já a voar, viu as cristas e as vertentes escarpadas do granítico Adas,
cuja cabeça sustenta o céu e está cercada de nuvens negras. O vento e a
chuva castigam-lhe as faces, correm rios pelo seu queixo enrugado e a sua
barba hirsuta está eriçada de gelo. Como o seu avô materno o fizera pela
primeira vez, também Mercúrio parou por uns momentos no monte alto e a
seguir atirou-se dos céus para baixo, qual o pássaro que tenta apanhar o
peixe, aterrando nas costas arenosas da Líbia.
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ENEIDA - Virgílio
que preparassem as armas, dissimulando e ocultando, no entanto, o mais
possível a verdadeira causa dos preparativos, enquanto ele, Eneias, tentaria
junto à rainha achar ocasião mais propícia para lhe dar a notícia. Rápida
mente, as suas ordens foram executadas.
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ENEIDA - Virgílio
— Ó rainha, jamais poderei negar que o teu merecimento é enorme,
pelo muito que tens feito por mim e pelos meus e que, enquanto eu viver,
permanecerás em mim como a mais doce das lembranças. O querida Dido,
quanto me recordarei das horas contigo passadas! E não penses que me iria
agora pelos mares de modo furtivo e traiçoeiro. Não fui eu que
voluntariamente dirigi os meus barcos para estas praias, e nem propus
casamento ou aliança. Quisessem os destinos que eu levasse a vida segundo
os meus desejos e escolhesse as alegrias e cuidados, que daria toda a minha
atenção e toda a minha força ao bem-estar de Tróia, cidade onde nasci e
berço da minha raça. Se tal poder me entregassem as Parcas, já as muralhas
orgulhosas da cidade se elevariam novamente para os céus, e dos vencidos
e mortos estaria a cuidar. Ela, porém, foi destruída e nossa raça arrancada de
seu solo natal. Mandaram agora Apolo e os oráculos que eu vá para a grande
Itália. É esse o meu desejo e é essa a minha nova pátria, onde iniciarei uma
nova dinastia troiana. Tu, Dido, que vieste a estas costas com o povo de Tiro,
olha para as muralhas de Cartago, para o templo de Juno, para as novas
construções e para tudo o mais com orgulho e amor, pois aqui plantaste novo
rebento da tua raça. Porque não queres então que os troianos façam o
mesmo? Quando durmo, quantas vezes me aparece em sonhos a imagem
irritada de meu pai Anquises, advertindo-me, censurando-me e prevenindo-
me para que não prive o pequeno Ascânio das glórias de um império. Há
pouco foi o próprio mensageiro de Júpiter que me apareceu e falou,
reprovando a minha conduta e indicando-me o caminho a seguir. Cessa,
pois, de nos mortificar, aos dois, com os teus queixumes. Se demando a
Itália, não o faço por minha vontade.
— Nem uma deusa é tua mãe, nem Dárdano origem da tua raça, ó
pérfido. Mas o Cáucaso horrendo te fez nascer nas agrestes penedias e a ti
te amamentaram os tigres da Hircania! Oh, deuses do Céu! Como é de pedra
o coração dos homens! Porventura se comoveu ele com as minhas lágrimas?
Porventura baixou os olhos, envergonhado do seu procedimento?
Porventura, reconhecendo o erro, condoeu-se da mulher que o ama? Oh, que
palavras acharei que lhe comovam o coração! Nem a grande Juno nem o seu
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ENEIDA - Virgílio
augusto esposo podem olhar indiferentemente para tais coisas. Como se
pode confiar mais em alguém, quando eu, Dido, rainha de Cartago, vendo-o
arremessado à praia, náufrago e necessitado de tudo—a ele e aos
companheiros—e então, louca que fui, salvei-o da morte, ajudei-o e dei-lhe
parte dos meus reinas. Ai! Como me inflamam as Fúrias a dizer tais coisas!
E agora o pérfido alega não ter vontade própria, que Apolo, os oráculos e o
mensageiro real Mercúrio o mandam fazer isto ou aquilo. És bem querido
dos deuses para que se dêem a esse trabalho e ainda te enviem o fantasma
do teu pai para te aconselhar durante o sono. Não te detenho, nem te refuto
as palavras! Vai, segue para Itália com os ventos, demanda o teu reino pelas
ondas. Na verdade, espero—se os deuses piedosos alguma coisa podem—
que hás-de sofrer perigos e suplícios entre os rochedos e muitas vezes hás-
de invocar o nome de Dido. Eu, ausente, seguir-te-ei com chamas negras e
quando a fria morte tiver separado os meus membros do espírito vital, como
sombra estarei presente em todos os lugares. Sofrerás castigos, ó perverso,
e a noticia de que sofres chegará até às mais profundas cavernas onde eu
estiver.
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ENEIDA - Virgílio
Enquanto isso, Dido, que olhava do alto da cidadela todos esses
preparativos, que pensamentos não tinha, que gemidos não soltava, vendo o
mar, a praia, os gritos dos homens atarefados? Perverso amor, a que não
obrigas tu os corações dos mortais! Pensou, lavada num rio de lágrimas e
pondo o orgulho de lado, em tentar junto de Eneias, novamente, que
desistisse da projectada partida, salvando-a da morte que planejara para si
mesma. E disse à irmã:
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ENEIDA - Virgílio
dos fogos de incenso para fazer os seus votos e firmar a sua resolução.
Enquanto orava—coisa horrível de contar-se!—a água sagrada escureceu e
o vinho derramado em honra dos deuses transformou-se em sangue. Mas
nada contou do que vira a sua irmã. De um templo de mármore existente no
átrio do palácio e dedicado a seu esposo, permanentemente enfeitado com
panos brancos e ramagens verdes, pareceu-lhe ouvir a voz do falecido que a
chamava na noite escura, enquanto a coruja solitária enchia as trevas com o
seu canto fúnebre em prolongados pios lamentosos. Angustiavam-na,
também, outras predições mais antigas e até mesmo a visão de Eneias a
perseguia em sonhos. Pareceu-lhe vagar sozinha sempre, triste e
acabrunhada, procurando e chamando os da sua raça, à semelhança de
Penteu, rei de Tebas, que em transe avistava o bando de Túrias e dois sóis e
cidades, muralhas, torres e cidadelas em dobro. Ou quando Orestes, filho de
Agamémnon, fugia da mãe assassina, que o seguia brandindo archotes
flamejantes e serpentes negras de Dira, a Fúria vingativa. Também agora
Dido, alucinada, obcecada pela ideia do suicídio, decidia no fundo do
coração a hora e o modo.
Dido voltou-se, porém, para sua irmã Ana e dirigiu-lhe estas palavras,
escondendo as suas intenções:
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ENEIDA - Virgílio
o leito nupcial, pois desejo destruir tudo o que possa lembrar-me aquele
homem abominável Foi assim que a sacerdotisa de Massília me disse que
fizesse.
Tão bem escondeu Dido as suas verdadeiras intenções, que Ana não
desconfiou dos planos fatídicos da irmã, julgando que as instruções
estranhas que a rainha lhe dera eram fruto da sua grande dor, tal qual
ocorrera com ela mesma, depois da morte de seu marido Siquém.
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ENEIDA - Virgílio
torturada: Uma agonia de saudade ainda a assoberbava e a maré do amor
apaixonado afogava-lhe o peito arfante.
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ENEIDA - Virgílio
Tendo falado assim, sumiu-se o deus na noite escura, e Eneias,
aterrado pela visão, levantou-se rápido e gritou aos companheiros:
E, rindo loucamente:
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ENEIDA - Virgílio
E continuando na fala alucinada:
E, rindo loucamente:
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ENEIDA - Virgílio
— Poderia, antes de matá-lo, tê-lo entretido com iguarias e vinhos e
palavras ternas e então servir-lhe a carne fresca do seu próprio Ascânio como
alimento. O filho seria, em verdade, um prato apetitoso para o pai.
— Querida ama, traz aqui minha irmã Ana, Diz-lhe que se apresse a
banhar-se na água do rio e a trazer ovelhas novas para serem sacrificadas.
Tu mesmo, Barce, enfeita a tua cabeça com as coroas funéreas. Quero
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ENEIDA - Virgílio
oferecer a Júpiter os sacrifícios que preparei, segundo os rituais, e pôr fim
aos meus sofrimentos, entregando o meu corpo às chamas da pira onde pus
a efígie do troiano.
— Ó doces relíquias de um tempo feliz, mas tão curto, que só por isso
as Parcas o permitiram, recebei esta vida e libertai-me dos meus sofrimentos.
Vivi e terminei a missão que o destino me tinha imposto e agora a minha
majestosa sombra vai para debaixo da terra. Fundei uma grande cidade. Vi
subir as suas muralhas. Vinguei o meu esposo e castiguei o meu irmão
inimigo. Teria sido feliz se nunca as quilhas troianas tivessem tocado minhas
praias.
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ENEIDA - Virgílio
— Ó Dido, era esse então o sacrifício que planeavas, enganando a tua
irmã com um rosto calmo e palavras traiçoeiras! Nunca pensei que esse fosse
o destino da pira, dos altares e dos sacrifícios. E porquê, ó Dido, não levas a
tua irmã contigo? Que esperança de felicidade me resta? Porque me negas a
participação no teu destino? Essa mesma espada, na mesma hora, poderia
ter-nos levado a ambas. Tu nos destruíste, pois agora eu, o Senado e todo o
povo cartaginês aqui ficamos desamparados. Todos os nossos planos e todas
as nossas construções são agora ruínas. Mas deixa-me banhar a tua ferida,
estancar o sangue, se possível, e ouvir talvez o último suspiro da tua boca.
Depois, cortou um cacho dourado dos cabelos de Dido. E foi então que
todo o calor desapareceu daquele corpo lindo e que a sua alma torturada se
dissipou nos ventos.
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ENEIDA - Virgílio
— Ai! Porque é que tão grandes nuvens cercam o céu? Que nos
preparas tu, Neptuno?
Respondeu-lhe Eneias:
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ENEIDA - Virgílio
vinha longe e, quando se aproximaram, reconheceu a silhueta familiar dos
barcos. Correu imediatamente para a praia e recebeu-os alegremente,
conduzindo Eneias e os companheiros para sua casa. Embora as suas
instalações fossem rústicas, procurou dar-lhes todo o conforto possível.
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ENEIDA - Virgílio
oferecendo a Baco, segundo o ritual, dois copos cheios de vinho puro,
verteu-os no chão, o mesmo fazendo com duas taças de leite fresco e duas
de sangue sagrado. Lançando flores de púrpura sobre a rumba assim falou:
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ENEIDA - Virgílio
robustos remadores, impelia a veloz Baleia. Gias comandava a grande
Quimera, verdadeira cidade flutuante, impulsionado por três linhas de
remadores. Sergesto conduzia a Centauro e na Cila ia Cloanto.
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ENEIDA - Virgílio
— Porque descambas tanto para a direita? Estás fora do rumo. Deixa-
a aproximar-se do rochedo!
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ENEIDA - Virgílio
Animado pelo sucesso, Mnesteu já via o seu barco, aligeirado pelo
esforço redobrado dos remadores, atingir as águas livres e correr pelo mar
aberto. Qual pomba afugentada subitamente do seu ninho, que se debate com
ruído e depois cor. ta o ar tranquilo, sem sequer mover as asas, assim também
a Babeia sulcava o mar na direcção da costa, deixando Sergesto a debater-
se preso ao escolho, implorando debalde por socorro e procurando safar-se
com o auxílio dos remos partidos. Já ultrapassavam então a Quimera que,
privada do seu experimentado piloto, cedia terreno atrapalhada pelo seu
grande peso.
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ENEIDA - Virgílio
ligeiros, favorito de Júpiter, que leva a taça de néctar aos lábios dos deuses
sedentos. Ele, a quem uma águia negra, enviada do Olimpo, arrebatou nas
garras ante o olhar espantado dos guardas e o latido enraivecido dos cáes.
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ENEIDA - Virgílio
o real Diores, da egrégia estirpe de Príamo, Sálio e Pátron e mais dois
mancebos da Sicília, Hélimo e Panope, habituados às florestas e
companheiros do velho Acestes. Além desses, muitos outros de menor
categoria se apresentaram a Eneias, que assim lhes falou:
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ENEIDA - Virgílio
— Ó jovens, a ordem das honras não será alterada. A ti, Euríalo, eu
proclamo vencedor e receberás o primeiro prémio e, portanto, tu, Sálio, és o
segundo. Mas, penalizado pela tua má sorte, dar-te-ei um prémio de valor
igual ao do primeiro.
— Agora, vejamos quem dentre vós tem força e coragem para lutar
com os punhos envoltos em peles.
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ENEIDA - Virgílio
— Ó filho de Vénus, se ninguém ousa entregar-se ao combate, para
que serve estar eu aqui à espera? Manda trazer os prémios.
— Eneias, meu senhor, o teu irmão Érice deixou-me essas luvas como
herança. Ainda se podem ver as manchas de sangue no couro. Com elas lutou
contra o poderoso Hércules e morreu. Eu mesmo já as usei em muitas lutas,
quando o sangue me pulsava rápido nas veias, antes que a idade,
espezinhando a juventude, tivesse encanecido a minha cabeça com
cinquenta Invernos. Mas se achas grandes e amedrontadoras essas luvas,
havias então de ver aquelas com que lutava o invencível Hércules! Ah, essas,
sim, eram maravilhosas. Mas se tu, Darete, não ousas enfrentar essas luvas
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ENEIDA - Virgílio
sicilianas, lutemos, desde que assim o aprovem o príncipe Eneias e Acestes,
com luvas de igual peso. Terás assim oportunidade de provar a verdade da
tua arrogância.
Eneias mandou então vir luvas de igual peso e com elas revestiu as
mãos dos dois lutadores. Estes, já prontos, aprumaram-se na ponta dos pés e
defrontaram-se, atentos e ousados. Por algum tempo lutaram, atirando aqui
e ali um golpe, estudando a reacção do outro e esquivando-se das respostas
prontas. Darete era melhor no jogo de pernas e confiante na sua mocidade.
Entelo tinha membros poderosos e um corpo gigantesco, mas os seus
movimentos eram mais lentos, os joelhos mais trémulos e a respiração mais
ofegante. Houve uma violenta troca de golpes no peito, nas Grelhas, na
cabeça e nos queixas. Entelo era um rochedo firme, quase imóvel,
desviando-se apenas, de olhos vigilantes, dos punhos do adversário. Darete
parecia um grupo de máquinas de guerra a atacar uma cidade.
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ENEIDA - Virgílio
— Ó infeliz, que loucura é essa que se apossou do teu espírito? Não
vês que te são contrárias as vontades dos deuses? Cede a eles, pois!
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ENEIDA - Virgílio
Passaram então os competidores a experimentar as armas, vergando os
arcos e examinando as setas, enquanto a pomba voava daqui para ali,
inquieta e saltitante, tentando fugir mas sempre contida pelo liame.
Preparou-se então Hipocoonte e a sua seta ligeira cortou os ares na direcção
do alvo fugidio, mas falhou e cravou-se vibrando, com um som seco, no
mastro. A ave, aterrada, tremeu e desatou a voar, alucinada e desorientada.
Em seguida avançou Mnesteu com o arco, fez pontaria e soltou a corda.
Também falhou o alvo, acertando, em vez disso, no nó que atava a corda ao
mastro. Livre, voou o animal pelos ares, fugindo à triste sorte a que a
destinavam. Euricion, o atirador que se seguia pela ordem, já tinha a arma
preparada e, vendo o pássaro a fugir, invocou o espírito de seu irmão
Pandaro e disparou a seta, que atravessou a pomba quando esta já penetrava
numa nuvem escura. E a ave caiu morta, no chão.
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ENEIDA - Virgílio
Mas, ainda mal terminara o certame de tiro de flechas e já Eneias
chamara a si Epitida, o guarda e companheiro fiel do jovem Ascânio,
dizendo-lhe:
Eram três esquadrões, cada um com o seu capitão. Cada esquadrão era
composto por dois grupos de seis cavaleiros, perfazendo um total de trinta e
seis. Um dos grupos era comandado pelo neto de Priamo, filho do nobre
Polites, morto por Pirro diante do próprio pai, e que seria famoso em terras
da Itália. Montava o jovem um cavalo negro da Trácia com manchas
brancas, como brancas eram também as paras e a testa. Em seguida, vinha
Átis, amigo intimo do menino Ascânio. Este passou a seguir, esplendoroso
na sua formosura e garbo, cavalgando um animal da Líbia, presente da
infortunada Dido como memória do seu amor. Seguiam-se-lhe os outros
jovens em montarias sicilianas do rei Acestes.
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ENEIDA - Virgílio
outras manobras, fechando, abrindo e entrelaçando círculos, carregando e
retrocedendo em combates simulados.
— Ah, quanto tempo ainda viajaremos por esses mares além, antes que
encontremos repouso?
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ENEIDA - Virgílio
— Ó miseráveis, a quem os gregos vencedores não arrastaram à morte,
na guerra junto as muralhas de Tróia! Ó nação infeliz, que desgraças mais te
esperam para o futuro? Já se passam sete anos que somos levados por esses
mares e terras estranhas, depois da destruição da nossa pátria. Quanto mais
viajamos pelos rochedos inóspitos, mais a Itália se afasta, embalada pelas
ondas. Aqui estamos nós em terra amiga, nos reinas de Érice e Acestes,
nosso anfitrião. Quem nos proíbe de lançar os nossos muros nestas praias e
dar uma cidade aos troianos? Para que, afinal, roubamos do inimigo os
nossos deuses domésticos, se em nenhuma parte conseguimos reconstruir a
nossa pátriaT róia, rever os nossos rios Xanto e Simois? Portanto, vinde
comigo e apressemo-nos a queimar os navios infaustos.
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ENEIDA - Virgílio
propagou-se rápido pelo cordame, pelos bancos dos remadores, pelos
próprios remos e pelas popas e proas pintadas de fresco.
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ENEIDA - Virgílio
em aguaceiros copiosos. As elevações e os campos tremiam com o trovão.
O céu escuro desmanchava-se em torrentes liquidas. As popas enchiam-se e
fervia e chiava o madeirame rubro ainda. O fogo foi completamente extinto
e somente quatro navios se perderam.
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ENEIDA - Virgílio
e para aqui, depois do sacrifício de muitas ovelhas negras, te guiará a Sibila.
Para ti, serão então desvendados os nomes de todos os teus sucessores e o
lugar onde se levantarão os muros da tua cidade. E agora, adeus! A noite
húmida conclui metade de seu giro e o Sol nascente já me lança o seu bafo
com os cavalos ofegantes.
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ENEIDA - Virgílio
juntos. Os que, antes, achando a vida do mar áspera e violenta, tinham
preferido ficar, já agora arrependiam-se e queriam partir, aguentando todos
os rigores da viagem. Eneias consolava-os com palavras amigas e, não
podendo conter as lágrimas, entregava e confiava os seus parentes a Acestes.
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ENEIDA - Virgílio
— É lícito, Vénus, que confies nos meus reinas e no meu poder, pois
foi destas próprias águas e espumas que nasceste na tua radiante beleza. Só
eu, e eu somente, posso dominar a fúria do mar. Embora não tenha em
grande apreço os troianos, pela má acção de Páris, sempre admirei Eneias.
Quando Aquiles, perseguindo ferozmente os exércitos troianos, os levara de
roldão, até às suas próprias muralhas, matando tão grande número de
dardanios que os rios Xanto e Simois já não davam mais vazão a tantos
corpos, não salvei eu o teu querido Eneias da morte certa nas mãos terríveis
do filho de Peleu, escondendo-o numa nuvem Ainda agora desejo auxiliá-
lo. Portanto, afasta os teus temores. Asseguro-te que ele chegará — embora
um de seus bravos companheiros pereça na viagem — aos portos de Cumas
e Averno, de onde está escrito que irá aos Campos Elísios encontrar-se com
o pai Anquises.
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ENEIDA - Virgílio
Então, ao mando de Juno, Morfeu, o deus do sono, foi silenciosamente
até ao local e parou defronte dele sob a forma do ilustre navegante Forbas,
dizendo-lhe:
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ENEIDA - Virgílio
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ENEIDA - Virgílio
via-se o amor pecaminoso de Pasífica, esposa de Minos, e seu filho disforme,
o próprio Minotauro, que um dia seria destruído por Teseu.
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ENEIDA - Virgílio
— Ó Apoio, sempre compadecido da triste sorte de Tróia e de seu
povo. tu que guiaste as lanças de Dárdano e os esquadrões de Páris contra
Aquiles, aqui estou eu, Eneias, que por ti orientado já por tantos mares
naveguei e pela nação dos massilios e pelas terras da Líbia já andei.
Agradeço-te o favor de já estar em terras da Itália e espero que permitas que
resistamos até o término da viagem ao antigo Lácio, nas margens do Tibre
amarelo. Exorto-vos, deuses e deusas que tanto têm odiado e perseguido a
nação troiana, a que acalmeis agora os vossos corações vingativos e nos
livreis dos males futuros. Tu, profetisa e sabedora de tudo o que há-de vir —
não te peço reinas que o Destino não me tenha atribuído —, permite que os
troianos e os seus penares se fixem no Lácio. Se tal acontecer, a Apolo e a
Diana mandarei erigir um belo templo de mármore sólido e instituirei dias
festivos em honra desses deuses. A ti também, Sibila, levantarei altares e
santuários onde os oráculos conservarão as tuas místicas palavras escritas
em páginas imperecíveis. Mas — eu te peço — não lances os teus segredos
divinos às frágeis folhas caídas das árvores, que se dispersam à mais leve
das brisas.
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ENEIDA - Virgílio
caminho da tua salvação — ainda que te pareça estranho — far-se-á por
meio de uma cidade grega.
sem que o esperasse, pois bem sabia quão difícil seria a tarefa quando
parti de Tróia para levantar os muros da nova cidade em terras estrangeiras.
Uma coisa agora te peço. Como estamos aqui às próprias portas do Inferno,
ao lado dos pântanos escuros do Averna, para onde transbordam as águas
daquele rio lôbrego que é o Aqueronte, seja-me lícito ir até à presença e à
fala do meu querido pai Anquises, ensina-me o caminho e abre-me as portas
sagradas. Aos meus próprios ombros o salvei por entre as chamas que nos
cercavam e das lanças gregas que nos perseguiam e retirei-o do meio dos
inimigos. Acompanhando-me, embora fraco de forças, ele viajou comigo
pelos mares, arrostando as ameaças do céu e da terra, para além do que a sua
idade lhe teria permitido. Apareceu-me, há dias, em sonhos e ordenou-me
que te procurasse, pois me indicarias o caminho que até ele me levaria.
Compadece-te, pois, Sibila, do pai e do filho, tu, ó benfazeja, que foste
encarregada por Hécate de velar pelos bosques infernais do Averno. Se
Orfeu pôde trazer do Mundo das Sombras a alma de Eurídice, por magia da
lira de cordas sonoras da Trácia, se Pó1ux redimiu o irmão, indo e vindo
continuamente por esse caminho, como o fizeram também Teseu e Hércules,
porque não o poderei eu, igualmente nascido de uma deusa, da própria filha
de Júpiter?
A Sibila respondeu:
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ENEIDA - Virgílio
— Ah!, divino filho do troiano Anquises, é coisa fácil, fácil demais
mesmo, deslizar para baixo, para o Reino das Sombras. Noite e dia lá estão
abertas as portas de Plutão, dando-te as boas-vindas. A dificuldade é voltar
novamente ao ar puro do Céu. Isso, sim, é tarefa árdua. Somente aqueles
amados de Júpiter, filhos dos próprios deuses e uns poucos mortais, cujos
feitos brilhantes o céu aplaudiu, conseguiram voltar daquele vale escuro. Lá
estão bosques negros e impenetráveis e os rios Cocito, Estígio e Aqueronte
para barrar o caminho de volta. Se alimentas, porém, um tão grande desejo
no teu coração, se tens coragem de atravessar duas vezes o Estígio, de ver
duas vezes o Tártaro, se te apraz empreender uma jornada tão temerária,
aprende antes os ensinamentos que te vou dar. Numa arvore sombria do
Averno está escondido um ramo de ouro flexível, tanto na haste quanto nas
folhas, e que dizem estar consagrado à infernal Prosérpina, esposa de Plutão,
deus do Mundo das Sombras. Toda a floresta procura esconder o ramo
valioso dos olhos dos mortais, mas somente aquele que o encontrar e
arrancar poderá retornar, são e salvo, da jornada. Arrancado o ramo, outro
logo surge, -coberto da mesma maneira do reluzente metal. Com os olhos
para o alto, pois, Eneias, procura o ramo e, depois do encontrares, colhe-o
segundo os rituais sagrados. Se os Fados te chamam, ele cederá facilmente
e deslizará até atrás de ti, mas de contrário não haverá força mortal capaz de
separá-lo do tronco a que pertence, nem o cortaria o aço mais afiado. Leva-
o como oferenda a Prosérpina. Mas há mais uma coisa que te quero dizer.
Ainda desconheces tal facto, mas o corpo do teu amigo Miseno jaz neste
momento sobre a areia tinta de sangue, ao lado da frota troiana. Vai e
enterra-o primeiro.
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ENEIDA - Virgílio
Mas, oh! Quando chegam à praia deparam com o pobre Miseno, morto
de morte indigna. Filho de Éolo, não havia outro mais valente para estimular
os homens com a sua trombeta de bronze, no auge da luta. Ao lado de Heitor,
travara combates que o fizeram famoso, ora usando a lança, ora soprando a
corneta. Depois que Heitor fora morto por Aquiles em combate singular,
Miseno unira-se a Eneias, como seu companheiro, pois não aceitaria
continuar a carreira ao lado de lutador ou guerreiro de menos valor. A um
brado da sua tromba, de desafio aos deuses, Tritão, lorde do mar e invejoso
do mortal, mergulhara-o de surpresa nas ondas espumantes, entre os
rochedos, matando-o.
Mal pronunciara estas palavras e eis que duas pombas vieram voando
do céu e se lhe pousaram à frente, na verde relva. Reconhecendo as
mensageiras de sua mãe Vénus, Eneias rejubilou e falou:
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ENEIDA - Virgílio
escuro, dividia os raios de Sol em mil matizes diversos. Parecia uma
trepadeira que no frio Inverno verdeja com folhas novas rode urdo o tronco
escuro e seco com anéis cor de açafrão. Tal era a visão que lhe dava o ouro
pendente da sombria azinheira. Eneias, apressado quebrou-o e com ele
dirigiu-se à morada da Sibila.
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ENEIDA - Virgílio
e no Mundo das Sombras. À medida em que se iam degolando as gargantas
das vítimas, recolhia-se o sangue quente e espumante em taças. O próprio
Eneias feriu com a sua espada uma ovelha negra em honra à Terra e à sua
irmã Noite, e uma vaca estéril em honra de Prosérpiria. Começaram então
os sacrifícios a Plutão, deus dos infernais reinas da perpétua escuridão. Sobre
um grande altar negro como a noite, lançou ele as chamas as vísceras inteiras
dos novilhos, regando-as com taças de gordura derretida.
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ENEIDA - Virgílio
Então, sobressaindo na sua imponência e altura, avistaram um enorme
e antigo olmeiro, debaixo de cujas folhas — dizem — são tecidos os falsos
sonhos. Continuaram, vendo a Discórdia, cuja cabeleira de víboras é atada
com fitas ensanguentadas e muitos outros monstros e várias feras, entre os
quais os centauros, com cabeça e tórax de homem e quartos traseiros de
cavalo; os Cilas biformes e o gigante Briaréu, de cem braços; a Hidra de
Lerna, morta por Hércules, cujas nove cabeças sibilavam horrivelmente; a
Quimera, cuspindo fogo; as terríveis Górgonas, de corpo de serpente; as três
Harpias, de asas pretas e cheiro nauseabundo. Ante tais visões aterradoras,
o corpo do troiano tremia violentamente. Levantou a espada contra os
monstros e avançou para eles, mas a companheira advertiu-o de que eram
formas sem vida, fantasmas.
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ENEIDA - Virgílio
— Ó pitonisa, explica-me o que quer essa multidão perto do rio. Que
pedem essas almas? Porque são umas transportadas, ao passo que a outras o
barqueiro Caronte lhes nega a viagem?
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ENEIDA - Virgílio
um lugar seguro, agarrando-me a um rochedo. Mas, ah! Os meus dias
estavam contados! Ali mesmo naquele local, me mataram os bárbaros
habitantes com as suas lanças. Agora, o mar possui o meu corpo e os ventos
arremessam-me à praia. Ó Eneias, pela quente luz do Géu, pelo teu pai e por
teu filho Ascânio, livra-me desse destino triste. Pesquisa as praias de Vélia
em busca do meu corpo e sobre ele lança alguns punhados de terra. Que os
deuses desses reinos escuros debaixo da terra considerem tal coisa rim
funeral e concedam paz à minha alma sem descanso, pois antes disso
— Quem quer que sejas, ó tu, que vens armado para nossas águas, diz
já a que vens e detém o teu passo. Este é o reino da Morte, do Sono e da
Noite. Não me é permitido transportar nesta barca corpos vivos. Já o fiz antes
e arrependi-me. A Hércules, Teseu e Pírito levei-os para o outro lado, a eles
que eram descendentes de deuses e invencíveis de força. Hércules tentou
acorrentar o guardião do Tártaro e os outros dois acharam que podiam roubar
a rainha Prosérpina dos aposentos do próprio deus Plutão.
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ENEIDA - Virgílio
— Não tenhas medo, Caronte, pois não estamos imbuídos dessas más
intenções, nem as nossas armas são portadoras de violência. O gigantesco
cão porteiro, Cérbero, guardião do Tártaro, poderá continuar a amedrontar
as pobres almas condenadas com o seu ladrar monstruoso. Prosérpina
continuará a descansar em paz, sem ser importunado. O meu companheiro
Eneias, famoso pela sua piedade e valor, veio falar com seu pai, Anquises.
Se a sua fama ainda não chegou a estas paragens ou se a elas não dás
importância, olha pelo menos para este ramo de ouro que trago para a tua
rainha.
Reclinado no seu imenso antro, o cão Cérbero fazia tremer os ares com
o ladrar das suas três gargantas e o sibilar das muitas serpentes enroscadas
nos seus pescoços. A profetiza, vendo o perigo, lançou ao monstro uma
beberagem soporífero feita de mel e de ervas condimentadas que foi
imediatamente engolido. Adormecido assim o guarda, Eneias e a sua
companheira lançaram-se rápidos pela passagem, entrando na própria casa
de Plutão.
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ENEIDA - Virgílio
os pântanos escuros que bordejam o Estige. Como desejariam agora voltar
ao altar da vida, pouco lhes importando quanto trabalho e tristeza tivessem
de sofrer!
Entre eles vagava também a infeliz Dido, há pouco morta. Vendo a sua
sombra escura, Eneias parou enternecido, como quem vê a lua surgir de entre
as nuvens e, chorando, falou-lhe:
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ENEIDA - Virgílio
Prosseguiram na jornada, entrando logo nos campos ocupados pelos
varões ilustres, mortos na guerra. Lá lhes saíram ao encontro Tideu e
Parténofe, afamados pela guerra contra Tebas, e o fantasma pálido de
Adastra, rei de Argos, e muitos outros valentes príncipes, tanto troianos
quanto gregos, vidas ceifadas na grande guerra de Tróia. Eneias, vendo-os
em longa fila, chorava o destino dos grandes guerreiros e as almas
acercaram-se dele. Aprazia-lhes a visão do herói, caminhavam a seu lado e
inquiriam-no sobre os motivos da sua vinda. No entanto, os inimigos, das
falanges de Agamémnon, começaram a tremer, vendo Eneias nas suas
roupas e armas que reluziam na sombra. Enquanto alguns lhe viravam as
costas, saindo em desabafada correria, como faziam na guerra, procurando
abrigo atrás das muralhas que tinham construído em torno dos navios, outros
abriam os lábios tentando soltar bradas de guerra, mas nem sequer um
suspiro safa das suas bocas abertas.
113
ENEIDA - Virgílio
aplacar a ira do marido para o facto de ter fugido com Páris. Ela mesma,
depois de eu ter adormecido, retirou da casa todas as armas, inclusive a
minha fiel espada pendurada à minha cabeceira. Mas vamos, diz-me, que
acontecimentos te trouxeram vivo a este lugar? Porventura vens trazido
pelos erros do mar ou pelos conselhos dos deuses?
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ENEIDA - Virgílio
bosques de Averno, ela mesma me ensinou os castigos dos deuses e tudo me
mostrou. Rodamonte de Creta Governa essas garagens más, ouve os
condenados e as culpas, castiga as fraudes, obriga sob torturas a confessar
os pecados contra os mortais — pecados deixados sem confissão até a hora
da morte, alegrando-se os seus detentores com uma falta vá. Imediatamente,
Tisífone, vingadora, armada de azorrague, olhos cruéis iluminados de
alegria ao levantar e baixar o chicote, açoita os culpados. Na outra mão agita
as suas hórridas serpentes e lança as Fúrias suas irmãs, tão selvagens quanto
ela mesma.
(continuou)
115
ENEIDA - Virgílio
cujas fibras renascem para que o castigo se prolongue sempre e sempre. E
também Ixiáo e Piritu, sobre os quais se alteia sobranceiro um penhasco
gigantesco, sempre a ponto de desabar-lhes em cima. A sua vista está
disposto um sumptuoso banquete preparado com magnificência real, mas ao
lado senta-se uma Fúria, que, a cada movimento dos dois para alcançar as
iguarias, se ergue brandindo um archote e soltando i trovões pela boca. Ali
estavam encarcerados os muitos que tinham morto pai ou irmão, ou feito
grande mal a um vizinho, ou que amontoaram riquezas sem fim, nada
repartindo com as famílias — e eram os em maior número —, ou então era
um traidor que vendera a pátria ao inimigo, alguém que roubara a noiva de
outro ou forçara a filha a casar-se contra a vontade. Todos são culpados de
crimes horrendos e não me indagues que castigos lhes foram inventados
pelos deuses. Uns são condenados a levar ama grande pedra até ao cimo da
encosta. Ao chegarem próximo do topo, da escapa-se-lhes das mãos e rola
de novo para baixo e eles têm de a ir buscar, assim fazendo eternamente.
Outros giram sem cessar, com os membros arados aos raios de uma roda.
Entre eles está Flégias que, com outros com Banheiros infiéis, arcou fogo ao
templo de Apoio em Delfos, profanando o santuário sagrado. Ele clama
incessantemente, em altas vozes, da escuridão: «Tende cuidado. Aprendei a
justiça e não ofendais os deuses.» Mas porque te relato todas as histórias
desses pobres miseráveis? Devemos apressar-nos, pois já vejo adiante as
paredes e os portões no interior dos quais devemos depositar as nossas
oferendas.
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ENEIDA - Virgílio
De longe, Eneias admira-lhes os carros de guerra, as armas reluzentes
e os cavalos soltos que pastavam por roda a parte, tudo sob a forma de
sombras. Tão forte era o gosto dos antigos por aquelas coisas que até para
ali as tinham levado. Através da floresta, serpenteia o Eridano, que, vindo
do mundo superior, ali faz um pequeno percurso, para em seguida subir de
novo na direcção do mar.
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ENEIDA - Virgílio
palavras conhecidas. Na verdade, contei dia a dia, hora a hora, o tempo que
levarias para aqui chegar. Diz-me, agora, por que terras e mares andaste no
teu caminho árduo! Que grandes perigos e dificuldades enfrentaste? Quanto
temi pela tua estada em Cartago!
— Ó pai, devo crer que daqui sairão as almas outra vez para a luz, a
dar vida nova aos corpos humanos? E porque tanto desejam elas voltar a
respirar o ar da terra?
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ENEIDA - Virgílio
vivas—as raças dos homens, os animais das florestas, as criaturas aladas e
todas as formas estranhas que habitam as águas dos oceanos. Cada liorma
mortal toma dentro de si uma porção maior ou menor desse espírito
universal, embora grande parte de seu fogo divino esteja sufocado e tolhido
pelo cárcere da carne. É dessas centelhas inextinguíveis que emana todo o
temor e desejo, todo o sofrimento e alegria, todo o amor e esperança. Quando
vem a morte e o espírito é libertado da prisão corpórea, alguns dos defeitos
que manchavam a forma terrena ainda se apegam a ele, devido à sua longa
permanência na terra, e carrega-os para o Mundo das Sombras.
(Continuou)
119
ENEIDA - Virgílio
sangue ao que corre nas veias italianas, fundará uma nova dinastia. Aquele
próximo dele é o espírito de Procas, que será um dos maiores heróis da nação
troiana e um dos primeiros daquela descendência a sentar-se no trono da
nação que ergueras, meu filho. Lago em seguida, estão as almas de Cápis,
Numitor e Sílvio Eneias, que te fará reviver o nome, também notável pela
piedade e pelo valor nas armas. Os dois primeiros fundarão as cidades de
Nomento Gábios e de Fidena, respecrivamente, e muitas outras serão
também erigidas em campos que agora nem nome têm. A suma sacerdotisa
fila dará à luz um filho, Rómulo, cujo pai será o deus da guerra, Marte. Como
este, o filho usará um capacete com duas plumas e a ele Marte destinou
grandes feitos guerreiros na terra.
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ENEIDA - Virgílio
os heróis, sustentando a república romana, destruindo os cartagineses e
subjugando o rebelde gaulês.
121
ENEIDA - Virgílio
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ENEIDA - Virgílio
desejava extremamente ter como genro, ao que no entanto se opunham os
mais terríveis presságios dos deuses.
Além disso, num dia em que a jovem Lavinia espalhava incenso nos
altares e os perfumava, de pé junto a seu pai, aconteceu outro prodígio. Os
cabelos dela incendiaram-se e toda a cabeça, as longas tranças e o diadema
de pedras preciosas arderam em luz fulgurante e envolta em penetrante
fumaça. Os adivinhos, chamados à pressa, vaticinaram que a princesa ilustre
haveria — por força de tais agouros — de ter um futuro brilhante, mas
também previram uma sangrenta guerra.
— Não procures unir a tua filha a esposo desta região, ó filho meu,
nem confies no casamento já planeado. Estão para chegar à tua cidade
123
ENEIDA - Virgílio
homens estrangeiros e entre esses procures aquele que, como teu genro,
elevará até aos astros o nome de Latino. Os seus descendentes terão um
império cujos limites serão o ocaso e o nascer do Sol, de um a outro oceano.
A estas palavras de Fauno, seu pai, o rei voltou à cidade e logo a Fama
espalhava a noticia por todo o reino, mesmo antes que as birremes troianas
tocassem as margens relvosas do Tibre amarelo.
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ENEIDA - Virgílio
Assim falando, cingiu a testa com ramos frondosos e suplicou ao
Génio do lugar e à Terra, antes de o fazer às outras divindades, as ninfas e
aos rios ainda desconhecidos. Invocou a Noite e os astros que se levantam
nas trevas. Orou a Júpiter, à sua mãe troiana, à sua mãe no Céu, Vénus, e a
seu pai no Érebo, Anquises.
Sabiam que o caudaloso rio era o Tibre. Eneias ordenou que cem
representantes, escolhidos entre todas as classes nas fileiras troianas, fossem
à cidade, cobertos de ramos de oliveira, levando presentes ao monarca e
pedindo paz para os recém-chegados. A ordem foi cumprida com rapidez.
Enquanto aguardava o seu regresso, Eneias escolhia o local para o
acampamento, demarcando a posição das paliçadas e dos fossos e fazendo
levantar as primeiras tendas.
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ENEIDA - Virgílio
O palácio do rei Latino, suspenso em cem colunas, situava-se na parte
mais elevada da cidade e as suas fortificações e altas torres podiam ser vistas
a muitos quilómetros de distancia, em qualquer direcção. Cercava-o,
escondendo a parte inferior das muralhas, um escuro bosque de ciprestes. O
enorme salão principal era um exemplo magnífico da arte dos construtores
antigos. O tecto elevado, dourado, era finalmente esculpido em alto-relevo
pelas mãos de muitos artistas célebres e as paredes de bronze e latão polido
reflectiam a luz de mil velas, somando o brilho ao esplendor. Era ali que os
reis realizavam os primeiros sacrifícios, depois de coroados: O edifício era
para eles um templo. Ali se faziam os banquetes sagrados, se imolava o
carneiro e se reuniam os senadores em torno das extensas mesas. No
vestíbulo estavam dispostas por ordem, efígies, talhadas em cedro, dos
antepassados do rei: Italo, o augusto Sabino, plantador de vinha, o velho
Saturno, a imagem de Jano, de duas faces, e muitos outros soberanos, desde
a origem da dinastia, além dos heróis mortos ou feridos na defesa da pátria.
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ENEIDA - Virgílio
— Ó rei, digno filho do deus Fauno, nenhuma negra tempestade nos
obrigou, impelidos pelas ondas, a abordar estas costas, nem qualquer astro
ou litoral nos enganou no nosso rumo. Pensada e intencionalmente para aqui
nos dirigimos, exilados que fomos do nosso reino incendiado e destruído,
outrora o mais glorioso de quantos o Sol, vindo do Oriente, iluminava. A
origem da nossa raça vem de Júpiter e é o Tróia no Eneias, seu descendente
por parte da deusa Vénus, que aqui nos envia. De todos é conhecida a guerra
cruel travada pelos gregos contra a nossa grei e o fim triste que teve. Saídos
incólumes da tempestade de ferro e fogo que os deuses fizeram chover sobre
as nossas cabeças pelas mãos de Agamémnon, Menelau, Aquiles, Pirro e
outros, cruzamos os extensos mares, aqui chegando com a esperança de que
tu nos concederias uma pequena sede para os deuses da nossa pátria, um
pedaço de praia e o ar e a água comum a todos. Não seremos indignos do
teu reino, nem deixará a tua fama de ser por nós engrandecida nem se
apagará das nossas mentes o reconhecimento por tão grande favor. Juro
pelos destinos de Eneias e pelo seu braço valoroso na paz e na guerra, que
muitos foram os povos que a nós se apresentaram oferecendo aliança. Mas
os destinos dos deuses obrigaram-nos a prosseguir viagem e a procurar as
vossas terras. Dárdano, aqui nascido, para aqui volta. Apoio impeliu-nos
incessantemente para o Tibre e para as águas sagradas da fonte Numícia.
Eneias vem, por meu intermédio, oferecer-te estes insignificantes presentes,
restos salvados da outrora enorme fortuna da infeliz Tróia. Esta taça de ouro
era usada pelo próprio Anquises nos seus sacrifícios, junto aos altares. Com
este manto, distribuía o pobre rei Príamo a justiça entre os seus súbditos.
Aqui estão o seu ceptro, a sua coroa sagrada e as suas vestes, tecidas e
bordadas pelas damas troianas.
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ENEIDA - Virgílio
— Protejam os deuses as nossas empresas e o seu presságio! Ser-te-á
dado o que desejas, troiano. Aprecio os presentes enviados pelo teu rei.
Enquanto governar, não vos faltarão os produtos do campo fértil nem a
riqueza a que estáveis habituados na vossa Tróia opulenta. E, agora, que o
próprio Eneias — se tão grande é o seu desejo de se juntar a nós como aliado
e de aceitar a nossa hospitalidade — venha e veja um rosto amigo. Para mim,
será o primeiro penhor da nossa aliança apertar a mão do vosso soberano.
Levai-lhe agora em resposta o seguinte: tenho uma filha que nem os oráculos
do santuário de meu pai, nem os numerosos prodígios do céu, permitem unir
em matrimónio a homem destas terras. Predizem os adivinhos que virão
estrangeiros de terras longínquas e que dessa união sairá formosa
descendência capaz de elevar a nossa fama até às estrelas. Julgo que os
destinos o apontam, a ele Eneias, como meu sucessor. Se tal é verdade, diga-
lhe que muito me alegro.
— Ah, raça odiosa, cujos destinos são tão contrários aos meus! Não
morreram esses homens nas batalhas infindável da guerra, não foram
capturados, não pereceram nas chamas da cidade!
E continuou Juno:
— Escaparam das Fostes gregas, dos perigos que lhes criei em vão no
mar Tirreno, de Cila e Canódis, e até mesmo, lançados que foram à costa
128
ENEIDA - Virgílio
selvagem da Líbia, encontraram a bondosa rainha Dido que os encheu de
regalias. Agora, por fim, alcançaram a terra que desejavam nas margens do
Tibre. Acho que ou o meu poder está diminuído ou o meu ódio abrandado.
Como posso eu, a grande esposa de Júpiter, que nada tenho deixado de tentar
contra essa raça amaldiçoada, ser vencida por Eneias? Se o meu poder não
é suficiente, eu me humilharei e implorarei favores a quem quer que seja. Se
não se comoverem os deuses do Olimpo, recorrerei ao Aqueronte. Se não
posso evitar que Eneias venha a reinar no Lácio por força do seu casamento
com Lavinia — pois assim o dispuseram as Parcas —, seja-me pelo menos
permitido adiar o mais possível tal união e levantar grandes dificuldades à
vitória de Eneias.
129
ENEIDA - Virgílio
nos aposentos da rainha Amata, a quem atormentavam as noticias da
chegada dos troianos e do projectado casamento da filha com Eneias. A
pérfida deusa arremessou-lhe uma serpente, saída dos seus cabelos azulados,
que logo se introduziu sub-repticiamente entre as vestes da rainha. Esta, sem
dar por isso, era envolvida pelo hálito envenenado do asqueroso réptil,
insensível ao tacto dos mortais. A horrível víbora enroscava-se em torno do
pescoço de Amata, introduzia-se-lhe entre os cabelos e passeava o corpo
viscoso ao longo dos membros da infeliz rainha, soprando-lhe no fundo do
coração ódio e desejo de briga intensos. O seu veneno, misturando-se-lhe no
sangue, inflamou-lhe os sentidos e envolveu-lhe os ossos em fogo,
alcançando-lhe o cerne da alma. Derramando um rio de lágrimas ante a
perspectiva de um casamento que lhe desagradava, bradou ela a Latino:
130
ENEIDA - Virgílio
Então, como que possuída do espírito do deus Baco, Amata fugiu com
a filha para as montanhas, escondendo-se no próprio coração da floresta
mais deserta e esperando assim protelar o casamento troiano.
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ENEIDA - Virgílio
que mantenha a sua palavra de te dar Lavínia como esposa — passará a
contar-te entre os inimigos. Foi a própria omnipotente filha de Saturno que
me mandou dizer-te estas coisas na calada da noite. Portanto, andar vai
resoluto e ordena que os teus guerreiros se armem e saiam das portas para a
guerra. Extermina os chefes troianos que acamparam junto ao rio famoso,
queima-lhes as naus. Assim manda a suprema vontade dos deuses do
Olimpo.
132
ENEIDA - Virgílio
ansioso pela guerra, Turno saltou do leito e pegou nas suas armas, ordenando
aos seus capitães que formassem as tropas e marchassem para o Lácio.
133
ENEIDA - Virgílio
se de paus e archotes, foices, machados e tudo o que pudesse servir de arma,
saíram pelos campos e bosques à procura da fera selvagem que acreditavam
ter atacado o pobre veado.
Logo de início, o jovem Álmon, o mais velho dos filhos de Tirreu, foi
prostrado por uma seta estridente que lhe atravessou a garganta, cortando-
lhe a voz e também a vida. Muitos corpos de homens c Eram junto dele. Até
o velho Galeso, um dos homens mais justos e também mais ricos daquela
região, foi morto ao tentar introduzir-se entre os dois bandos como
medianeiro da paz. A ele pertenciam cinco grandes rebanhos de ovelhas e
outros tantos de bois. As suas terras eram lavradas por cem charruas.
134
ENEIDA - Virgílio
— Eia, lá tens a discórdia acesa e a guerra furiosa! Se assim o
desejares, posso espalhar a loucura por toda a zona circunvizinha e realizar
alianças com ambos os partidos e, então, toda a Itália se incendiará e nos
corações inflamados dos seus filhos nascerá o desejo de guerra insana.
135
ENEIDA - Virgílio
todos se uniram contra a vontade, os oráculos e os presságios dos deuses,
numa guerra ímpia, e cercaram obstinados o palácio do rei Latino.
136
ENEIDA - Virgílio
O seu escudo ostentava o emblema paterno — cem serpentes e a
horrível Hidra de nove cabeças, também cercada de répteis. Os seus
comandados traziam lanças e espadas sem ponta aguda. O próprio Aventino
entrou nos salões reais com uma rústica pele de leão pendendo-lhe dos
ombros, com uma mandíbula de ferozes dentes do animal ornando-lhe a
cabeça e a juba revolta caindo-lhe pelos ombros e pescoço.
137
ENEIDA - Virgílio
ouro. Aos olhos do povo ela não parecia menos formosa que Diana, a deusa
caçadora. Do seu ombro pendiam um carcás e um arco e na mão levava uma
haste de mirro encastoada em aço.
138
ENEIDA - Virgílio
Era noite e o profundo sono por toda a terra apoderara-se dos animais
cansados, das aves e do gado, quando Eneias se deitou na praia, ao relento
frio, com o coração inquieto por aqueles preparativos de guerra, dando
repouso merecido ao corpo. Apareceu-lhe então em sonhos o velho Tiberino,
deus do rio, surgido por entre a folhagem dos altos choupos, com o cabelo
encanecido meio escondido entre os ramos das árvores. Um véu cinzento de
névoa pendia-lhe do rosto e uma coroa de caniços adornava-lhe a cabeça. E
falou-lhe:
139
ENEIDA - Virgílio
E continuou:
140
ENEIDA - Virgílio
Escolheu então duas birremes de sua frota e mandou que as
equipassem de remos fortes e homens seleccionados. Ao mesmo tempo,
guarneceu-os de armas. Então, de repente, quando a expedição já estava
pronta para partir, saltou-lhes aos olhos o prodígio admirável! Viram sobre
a margem uma porca branca que amamentava trinta porquinhos da mesma
cor. Eneias sacrificou-os imediatamente no altar de Juno e, em seguida,
todos partiram, os dorsos fortes dos remadores curvados nos bancos e a
multidão aplaudindo da margem. O Tibre, naquela noite longa, susteve a sua
correnteza poderosa, estendendo as suas águas bonançosas à maneira de uma
planície, de lagoa dormente ou de tranquilo paul, a fim de facilitar o esforço
dos troianos. As birremes deslizavam céleres e parecia aos homens que
estavam numa densa floresta, tão brilhante e claro era o reflexo das margens
arborizadas na superfície imóvel da água. Também os seus escudos,
armaduras e capacetes reluzentes reflectidos na superfície liquida
constituíam um bizarro espectáculo. Durante toda a noite, sem descanso, os
remos feriram a água. O Sol já passava do seu zénite, no dia seguinte, quando
avistaram ao longe os muros, a cidadela e uns poucos tectos da cidade de
Evandro, naquela época em pouca prosperidade. Para lá aproaram os bravos
navios.
— Jovens guerreiros, que motivo vos traz aqui por caminhos que
desconheceis? Para onde vos dirigis? Que raça é a vossa e qual é a vossa
pátria? Trazeis a guerra ou a paz?
141
ENEIDA - Virgílio
— Somos troianos, inimigos dos latinos. Estes perseguem-nos e
querem mover-nos uma guerra cruel. Procuramos o rei Évandro. Leva-lhe a
noticia de que nós, dardanios, o queremos como aliado nas armas.
Espantado com o que ouvia, pois a fama dos nomes de Tróia e de Eneias era
sobejamente conhecida por aquelas paragens, Palas respondeu alvoroçado:
142
ENEIDA - Virgílio
reino e ele, ao retirar-se, deu-me de presente um carcás com setas lícias, uma
túnica bordada a ouro e dois freios também do mesmo metal, agora em poder
de meu filho Palas. Por tudo isso, não só te ofereço a mão direita como
aliança, como determino que o meu reino se apreste em tudo o que puder de
homens e armas para te dar auxílio. E já que estais aqui, celebrei connosco
esses sacrifícios sagrados que não nos é lícito retardar mais. Estejais agora
em casa e sentai-vos à nossa mesa.
— Não foi uma superstição vã que nos impôs estes sacrifícios solenes,
estas refeições tradicionais, estes ritos perante os altares. Eles são dirigidos
à augusta presença dos deuses em agradecimentos a terríveis perigos dos
quais nos livramos. Olha, troiano, aquele rochedo elevado onde a encosta da
montanha se vê despida de árvores e onde jazem os restos estraçalhados de
uma agulha de pedra! Ali, outrora, havia uma grande caverna bem no
coração da montanha, lugar inacessível aos raios do Sol, onde habitava a
figura de Caco, meio homem, meio fera.
143
ENEIDA - Virgílio
para descansar, tendo ceado em minha casa. Caco, no entanto, a quem não
faziam recuar os piores crimes, foi possuído de enorme cobiça pelas lindas
reses de cor arroxeada e, aproveitando-se da calada da noite, veio aos meus
estábulos onde os animais descansavam, arrebatando quatro dos melhores
touros e igual número de vacas de beleza imaculada. Mas, para que as
marcas dos cascos não revelassem o caminho para a sua cova, ele conduziu-
os de costas, puxando-os pelas caudas e escondeu-os nas mais profundas
gargantas da montanha. Esperava assim iludir o seu fortíssimo proprietário.
No entanto, quando Hércules se preparava para reencetar a caminhada, o
rebanho encheu o bosque com os seus mugidos. Uma das novilhos
escondidas respondeu ao chamado do fundo recesso onde se achava.
Enfurecido por ter sido ludibriado, Hércules pegou numa pesadíssima clava
cheia de nós e, em cólera, subiu ao cume da montanha. Pela primeira vez,
vimos Caco apavorado. O medo deu-lhes asas aos pés e ele, veloz como o
vento, refugiou-se no interior da caverna onde baixou as correntes —
forjadas por seu pai Vulcano — que sustinham o enorme rochedo,
bloqueando inteiramente a entrada do covil. Chegou então Hércules,
olhando aqui, buscando ali, perscrutando acolá, transportado de furor, com
os dentes a tanger. Percorreu toda a montanha à cata de uma fenda ou de um
ponto fraco do tecto pedregoso por onde pudesse penetrar na câmara sem sol
do monstro. Três vezes tentou afastar o gigantesco rochedo com as suas
poderosas forças, mas três vezes fracassou, sentando-se no vale, fatigado.
Do dorso da caverna, erguia-se uma rocha aguçada, verdadeiro pináculo, que
servia de morada às aves de rapina. Como dente de gigante, ela aprumava-
se, meio inclinada na direcção do rio, para o lado esquerdo. Hércules,
colocando-se do lado direito, agarrou-a com os seus braços de ferro e,
forçando daqui para ali, conseguiu finalmente abalá-la, arrancando-a da
base. Atirou-a então para baixo e a enorme pedra espatifou-se, com
tremendo rumor que abalou os céus e espantou o próprio rio no seu leito.
E continuou:
144
ENEIDA - Virgílio
de súbito pela claridade inesperada e buscando refugio no bojo da caverna,
donde soltava Remendos rugidos. Acuado, vendo-se sem salda, o monstro
passou a vomitar da garganta torrentes de fumo, envolvendo toda a caverna
em negra escuridão, só quebrada pelas chamas que lhe partiam da boca.
Enfurecido, Hércules atirou-se para dentro do antro e, enfrentando o fumo e
as chamas, lançou os braços em torno do peito de Caco, apertando-o num
anel de ferro. Estrebuchava o monstro, olhos esbugalhados, enquanto o
herói, agarrando-lhe a garganta, lhe prendia a respiração, impedindo-o de
vomitar fogo e fumaça. Finalmente, a sua carcaça amoleceu e caiu ao solo,
morto: Hércules surgiu então do interior do monte, conduzindo os seus
touros e vacas e arrastando o cadáver disforme pelos pés. Assim foi afastado
para sempre o pesadelo que oprimia o nosso povo havia tanto tempo. A partir
desse dia, e em agradecimento a Hércules, fomos tornando estes ritos cada
vez mais solenes com o passar dos anos. Venham, pois, troianos! Entrelaçai
os vossos cabelos com coroas e derramai o vosso vinho em honra àquele
poderoso deus.
145
ENEIDA - Virgílio
— Tu, ó invencível, despedaças nas tuas mãos os monstros
bimembros, filhos das nuvens, matas o Minotauro e o Icao enorme da
Nemeia, atravessas o lago Estige e enfrentas Cérbero, o guardião do Inferno.
Nenhum ser te amedronta. Nem o próprio Tifeu, brandindo as armas por
cima da cabeça, nem a Hidra de Lerna te conseguiu vencer com as suas nove
bocas e mil serpentes. Salve, verdadeiro filho de Júpiter, vem com a tua
presença propícia favorecer os nossos festins sagrados.
— Olha para esta floresta! Era, outrora, habitada por faunos e ninfas,
bem como por homens nascidos dos troncos duros dos carvalhos. Não
tinham qualquer grau de civilização, não sabiam — arar a terra, juntar
riquezas ou fazer economias. Viviam entre o dia de hoje e o de amanhã, com
o que lhes dessem a caça e a pesca e com as frutas, raizes e folhas que
conseguissem apanhar. No entanto, fugindo às armas de Júpiter, aqui veio
bater Saturno, de quem o Pai Omnipotente usurpava os reinas, expulsando-
o do Olimpo. Saturno modificou e civilizou essa raça inculta de homens que
vivia dispersa pela região.
146
ENEIDA - Virgílio
deus dos oráculos, e os conselhos de minha mãe, a ninfa Carmenta, aqui me
conduziram.
— Um deus, não se sabe ao certo qual, habita esta floresta e esta colina
de cume cheio de árvores. Os árcades acreditam ter visto várias vezes Júpiter
em pessoa quando agitava o escudo na mão direita, convocando as nuvens
da tempestade. Olha para aquelas duas cidades destruídas: as muralhas por
terra, as ruínas dos edifícios e os monumentos atestam o grau de civilização
dos homens de passado longínquo. Uma dessas fortalezas foi levantada pelo
deus Jano e a outra pelo próprio Saturno. E por isso se chamam Janiculo e
Satúrnia.
Levou então o rei troiano, por essa altura já fatigado dos acontecimento
tos do dia, até ao seu coxim macio, coberto de folhas e de pele de urso da
Líbia.
Já a noite, com as suas asas foscas, cobria a terra. Vénus, com mil
motivos para inquietar o seu coração de mãe, pois sabia das ameaças dos
laurentinos e da fúria guerreira que reinava na região, foi ter com Vulcano,
seu esposo, e assim lhe falou:
147
ENEIDA - Virgílio
afadigasses inutilmente, caríssimo esposo, posto que eu muito devesse aos
filhos de Prumo e muitas vezes lamentasse os cruéis sofrimentos de Eneias.
Este, agora, seguindo ordens do omnipotente Júpiter, chegou à região dos
rótulos. Venho, suplicante, rogar que dês armas a meu filho. Sou mãe!
Repara que as tropas se reúnem, que as muralhas fecham os portões e os
arsenais aguçam o ferro das armas contra os meus.
148
ENEIDA - Virgílio
peças com as tenazes, batiam no metal macio com as marretas, dando-lhes
forma antes que esfriassem. Virando-o daqui para ali, dali para aqui, faziam
chover golpe após golpe, em ritmo alucinante.
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ENEIDA - Virgílio
da coro versa e do auxilio prometido aos troianos e dirigiu-se ao quarto de
Eneias Este não era menos madrugador. Aproximou-se então o rei,
acompanhado de seu filho Palas, de Eneias, que conversava com Acates.
Apertaram-se as mãos direitas e começaram a conferência. Disse primeiro
Evandro:
Continuou:
150
ENEIDA - Virgílio
oráculo e acamparam junto ao porto. Chegaram a enviar-me embaixadas,
oferecendo-me a coroa e o ceptro do reino, para que os liderasse, mas a
minha idade já não permite que me lance em tais proezas. Exortaria o meu
filho a assumir o posto, não fosse ele herdeiro de outro reino por parte de
sua mãe de origem sabina. Tu, a quem os deuses, a idade, o valor e a força
favorecem, apresenta-te candidato e reúne troianos e italos. Aqui tens o meu
filho Palas como companheiro. E a minha esperança e salvação. Acostuma-
o, sob a tua direcção, às artes de Marte. Contigo seguirão quatrocentos
cavaleiros do meu reino.
(Continuou)
151
ENEIDA - Virgílio
embarcaram e, deslizando céleres pelas águas do Tibre, foram levar a
Ascânio e ao restante da pátria troiana noticias do pai e dos acontecimentos.
Apresentaram-se os cavaleiros árcades postos à disposição de Eneias e a este
foi trazido um maravilhoso corcel coberto com uma fulva pele de leão, cujas
unhas encastoadas de ouro rebrilhavam.
(Continuou)
152
ENEIDA - Virgílio
E, não resistindo mais à dor da separação, o rei desmaiou, sendo
conduzido nesse estado, pelos servos, para sua casa.
153
ENEIDA - Virgílio
Itália, não só dos acontecimentos passados, mas também dos factos
presentes e até futuros, pois não o deixara por menos o imortal Vulcano, no
desejo de agradar à esposa. Ali estavam representados os dois meninos
gémeos, Rómulo e Remo, e a loba que os amamentaria. As altas muralhas e
torres de Roma, ainda não levantadas. As mulheres sabinas, raptadas pelos
jovens romanos. Rómulo pregando a guerra, Mécio, que por suas mentiras
era esquartejado por quadrigas atadas aos membros e postas a galopar em
direcções diversas. Tulo, mais tarde, arrastando pela selva os pedaços do
mentiroso, com o sangue gotejando nas moitas e ensopando a terra. Os
descendentes de Eneias lutando valentemente pela liberdade. Os gansos de
prata do Capitólio grasnando loucamente pelas ruas, alertando assim os
romanos de que os inimigos bárbaros, os gauleses, lhes estavam às portas, e
também estes, agachados nas touceiras escuras, prontos para assaltar as
muralhas
154
ENEIDA - Virgílio
Tomou então água do rio na concha das mãos e encheu os ares com
votos e orações aos deuses.
155
ENEIDA - Virgílio
De dentro das suas fortificações rústicas, os dardanios avistaram um.
nuvem de poeira que se ia tornando cada vez maior e mais espessa. Caúct
foi o primeiro a vê-la e logo bradou:
Assim falando, arrojou o seu dardo aos ares como sinal de batalha e,
orgulhosamente, dirigiu-se para o baluarte. Toda a tropa gritando
belicosamente, acompanhou-o, num clangor hórrido de guerra, admirando-
se do animo medroso do adversário, que se recusava a dar-lhes combate em
campo aberto. Rubro de cólera, Turno espreitava os muros, aqui e ali, na
esperança de descobrir um ponto mais vulnerável. Era como o lobo que,
insidioso, espreita o aprisco dos mansos cordeiros e freme de fome, frio e
ira junto às grades, enquanto os animaizinhos, recolhidos, batem fracamente,
e procura um meio ou outro de forçar a entrada e saciar as entranhas ávidas
de sangue. Assim também o comandante rótulo seguia de um lado para o
156
ENEIDA - Virgílio
outro, aumentando-lhe o despeito no coração à procura de um meio —
traiçoeiro ou brutal — de vencer as defesas troianas, fazendo-as sair para a
planura.
— Concede, ó filho, a mim que te peço, o que tua querida mãe te roga,
agora que és senhor do Olimpo. Tenho uma floresta de pinheiros, de mim
estimada há longos anos, nas encostas escuras do monte Ida. Lá, os troianos
me levavam oh erras e agora eu, de bom grado, cedi algumas árvores a
Eneias para que construísse a sua frota. Entretanto, um grande receio me
atormenta e quero que me livres dele. Peço-te que, mesmo batidos pelos
ventos, arremessados pelas forças das ondas e atingidos pelas chamas, não
sejam esses navios destruídos. Que a sua madeira sagrada os preserve
sempre!
157
ENEIDA - Virgílio
deusas do mar azul e juntar-se-ão a Doto, Galateia e a outras filhas de Nereu
— bando alegre de ninfas que se divertem em incontidas evoluções no seio
das ondas espumosas.
158
ENEIDA - Virgílio
quererem tentar novas aventuras? Quanto a vós, valentes guerreiros, dizei-
me qual de vós vem comigo arrasar a ferro e fogo essas rústicas trincheira.
(continuou)
— São por acaso os deuses, Euríalo, que insuflam este ardor na minha
mente ou são os nossos próprios desejos que, de tão veementes, nos parecem
como sendo vontade das divindades? Há muito tempo que me agita o
159
ENEIDA - Virgílio
pensamento de tentar ou um combate ou uma outra grande empresa. V&
como estão confiantes os rótulos, a ponto de relaxarem a guarda, certos da
sua força, entregando-se ao sono e ao vinho? Raras fogueiras ainda brilham
e por toda a parte reina o silêncio. Ouve, pois, o meu plano. Todos aqui
querem que seja enviada uma mensagem a Eneias, dizendo-lhe o que ocorre,
para que venha guiar-nos. Nada almejo mais do que a glória de ser portador
de tal notícia. Acho que pela falda daquele outeiro não distante poderei achar
saida para a cidade de Evandro.
Euríalo respondeu:
Retrucou-lhe o amigo:
160
ENEIDA - Virgílio
— Inutilmente procuras pretextos. A minha resolução já foi tomada e
não a mudarei. Apressemo-nos.
— Deuses da minha pátria, sob cuja protecção sempre está Tróia, vós
não tencionais, apesar de todos os perigos por que passamos, destruir
inteiramente a nossa raça, pois ainda suscitais tanta coragem e valor nos
guerreiros descendentes de Dárdano.
— Que recompensas, que prémios dignos julgais que vos podem ser
concedidos, ó guerreiros, por actos de tão assinalado vigor? Serão os deuses
161
ENEIDA - Virgílio
e a vossa própria consciência que mais vos premiarão, mas também Eneias
não deixará passar tal amor ao dever sem ser reconhecido, e aqui, fascínio,
ainda no vigor da idade, o conservará vivo por muitos e muitos anos.
— Rogo aos deuses, príncipe, para que nunca me aches indigno de tão
alta honra e que nunca falte à tua confiança. Mas tenho um favor a pedir-te.
Minha mãe, já de avançada idade, pertence à família de Príamo. Não a releve
Tróia, nem tão pouco a Sicília do rei Acestes. Quero, no entanto, deixa-la
ignorante da perigosa missão a que me lanço, pois o céu é testemunha de
que não poderia suportar-lhe as lágrimas. Peço-te, portanto, que a consoles
e ampares, porque a minha partida a fará enormemente infeliz. Se assim o
prometeres, irei mais esperançoso enfrentar todos os perigos.
162
ENEIDA - Virgílio
— Podes confiar, que teu desejo será satisfeito, pois assim te fazes
digno pela empresa arriscada que ora encetas. Sim, será como mãe para mim
e somente lhe faltará o nome de Creusa. Grande reconhecimento devemos
prestar a mãe que tem um filho tão valoroso. Quaisquer que sejam as
consequências da tua missão, juro por esta cabeça — pela qual antes meu
pai costumava jurar — que todas essas coisas a ti prometidas serão
reservadas à tua mãe e à tua família.
163
ENEIDA - Virgílio
Não era menor a mortandade que Euríalo infligir aos inimigos.
Inflamado de ódio, enfureceu-se e avançou de espada nua enviando muitas
almas de corpos adormecidos ao Orco e até mesmo de um acordado, Reto,
que, temeroso, se refugiara atrás de um vaso. O troiano, no entanto,
acompanhou-o e cravou-lhe no peito a espada, até aos copos. Reto deixou a
vida vomitando sangue purpúreo juntamente com vinho, enquanto Euríalo
prosseguia na matança. Já se dirigia aos companheiros de Messapo, junto
aos quais as fogueiras quase apagadas iluminavam fracamente os corceis que
pastavam na relva. Mas alertou-o Niso:
164
ENEIDA - Virgílio
— Ó infeliz Eu ralo, em que lugar te deixei eu? Por onde te procurarei,
percorrendo novamente todo o caminho tortuoso da floresta traiçoeira?
«Como posso eu, sozinho, salvar meu o amigo dentre tantos? Devo
lançar-me à minha própria perdição, atirando-me para cima dos inimigos e
encontrando morte rápida, embora gloriosa?»
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ENEIDA - Virgílio
— Alto! Matai-me a mim, que fui eu quem disparou os dardos. Voltai
contra mim o ferro, ó rótulos. De todo o crime sou eu o autor. Esse ai nada
tentou, nada pode e de tal são testemunhas os céus.
166
ENEIDA - Virgílio
porquanto a direita era protegida pelas éguas do rio. A ausência de Eneias e
a visão horrível e macabra das cabeças dos dois jovens mortos, ainda
gotejando sangue, abatia-lhes o moral.
— É então nesse estado que te vejo, ó Euríalo? Pois tu, repouso único
da minha velhice, pudeste deixar-me só? Não permitiste que a mãe dissesse
adeus a seu filho, indo para tão difícil empresa? Ai de mim! Agora jazes em
terra inimiga, presa dos cães e das aves de rapina! Eu, tua mãe, não te
acompanharei nos teus funerais, não te fecharei os olhos, não te lavarei as
feridas, nem te vestirei com as roupas que eu, cuidadosa, preparava dia e
noite! Aonde irei procurar-te? Que terra possui agora os teus despojos, os
teus membros arrancados, o teu cadáver mutilado? Foi isso, meu filho, essa
cabeça que ora me mostras, que segui desde a Tróia longínqua, por todos os
mares e perigos? Trespassai-me, se tendes dó. Arrojai contra mim todas
essas setas, ó rótulos, matai-me a mim com o ferro. Ó Júpiter, ó grande pai,
compadece-te de mim e precipita-me com o teu raio no Tártaro, cortando os
laços que me prendem a esta vida miserável.
167
ENEIDA - Virgílio
defensores. Estes, por sua vez, atiravam de cima toda a sorte de projécteis,
tentando penetrar na forte armação da tartaruga. No local em que uma tropa
dá rótulos mais os ameaçava, os troianos conseguiram fazer cair do alto um
enorme rochedo que se abateu sobre o inimigo compacto, provocando uma
terrível mortandade. Adoptando agora uma táctica diferente, os assaltantes
abandonaram o ataque frontal e tentavam despovoar os baluarte
arremessando dardos e setas. Mezêncio, noutro local, hórrido no aspecto
vingativo, tentava incendiar a paliçada com archotes.
Num dos ângulos da posição havia uma torre alta e forte donde os
dardânios, colocados em posição vantajosa em relação aos atacantes,
dizimavam as fileiras dos rótulos que tentavam conquistar o baluarte de
qualquer maneira. Turno e um bando de guerreiros atacaram a torre com
archotes, procurando incendiá-la. Um dos fachos, atiçado pelo vento,
inflamou as tábuas e a posição perigava. Lá dentro, os troianos em tumulto
atropelavam-se, tentando fugir ao calor da fogueira que já lhes ardia aos pés.
Recuaram todos para uma parte da armação, que não resistiu à carga e
desabou, com tremendo ruído e confusão. A enorme massa de madeira
incendiada soterrou entre os seus escombros quase todos os que nela se
encontravam, ficando muitos com os peitos trespassados pelas próprias
armas ou esmagados pelas traves de madeira. Apenas se salvaram Heleno e
Lico. O primeiro, simples soldado troiano, de espada e escudo, viu-se de
repente no meio de milhares de soldados de Turno, de um lado, e das
falanges latinas, do outro. Como a fera que, encurralada em apertado circulo
de caçadores, arremete feroz contra os dardos e, não desconhecendo a sorte
que a espera, se lança de um salto sobre as pontes afiadas dos chuços, assim
também o guerreiro, decidido a morrer, se atirou pata o meio dos inimigos e
para o local donde via romper os dardos em riste.
168
ENEIDA - Virgílio
lhe estendiam as mãos. Mas Turno perseguia-o nos calcanhares e trespassou-
o com o dardo, gritando:
Dizem que foi nessa batalha que Ascânio, pela primeira vez, entesou
o arco e lançou a sua seta ligeira contra o inimigo e não contra as feras como
o fizera até então. O destino do ferro alado do filho de Eneias foi Numano,
de sobrenome Rémulo, e que há pouco tempo se casara com a irmã mais
nova de Turno. Avançando na primeira fileira, o jovem rótulo bradava aos
troianos frases dignas e indignas de referência, o peito arrogante pelo
consórcio recente. Dizia:
(continuou)
169
ENEIDA - Virgílio
— Vós amais os trajes pintados com açafrão e púrpura. O vosso
coração é cheio de preguiça e gostais de vos entregar à dança. As vossas
tónicas são enfeitadas com mangas e as vossas mitras são-no com fitas, ó
troianas, pois nem verdadeiros troianos sois. Ide para os altos do Díndimo e
juntai-vos lá às loucas seguidores de Gibele que dançam ao som da flauta,
dos tambores e dos pífaros. Deixai as armas aos homens e abandonai a
guerra.
Rubro de cólera ante tais insultos à sua raça, Ascânio não pôde conter-
se. Ajustou uma seta à crina e, alçando os olhos para o céu, fez a Júpiter esta
invocação:
— Ó Pai Omnipotente, favorecer a minha audácia nascente. Eu mesmo te
levarei aos altares um novilho de fronte dourada.
O pai dos deuses ouviu-o e fez trovejar como agouro a parte esquerda
do céu que no momento se apresentava serena. A seta, puxada para trás com
o arco retesado, partiu sibilando horrivelmente e atingiu a cabeça de Rémulo,
e o farpão atravessou-lhe as frontes.
170
ENEIDA - Virgílio
Em tudo era agora Apolo semelhante ao ancião: na voz, nos gostos, nos
cabelos brancos e até na armadura barulhenta. E disse:
171
ENEIDA - Virgílio
raso. Excitado, em cólera violenta, para lá se dirigiu o chefe rótulo. Prostrou,
de imediato, Antífates com uma seta certeira, fazendo-a penetrar por uma
grande ferida no estômago, donde saiu uma golfada de sangue espumoso. A
sua espada estendeu Méropo, Erimante e muitos outros por terra. Também
fez cair Bítias, um dos irmãos sentinelas não com uma seta, mas com uma
lança, que, sibilando a velocidade imensa, atravessou duas couraças de
couro e muitas chapas de metal dourado. Os seus enormes membros caíram
prostrados e o grande escudo retiniu sobre ele na queda que fez tremer o
chão.
Logo lhe relampejou nos olhos uma sinistra luz e as suas armas
retiniam com hórrido som, enquanto o penacho sanguíneo tremia e a bocarra
do capacete soltava brilhantes fulgores. Subitamente, os companheiros de
Eneias reconheceram o seu rosto odioso e os seus enormes membros.
Precipitou-se então o gigantesco Pandaro e, ardendo em cólera pela recente
morte do irmão, disse:
172
ENEIDA - Virgílio
Pandaro, empregando o máximo da sua força, atirou-lhe então uma
duríssima lança, cheia de nós. Juno, filha de Saturno, desviou o golpe e a
arma cortou os ares sibilando e cravou-se na porta.
— Para onde fugireis mais longe? Para ande vos leva essa corrida?
Que outros muros e trincheiras tendes depois destes? Um só homem, ó
guerreiros, cercado por todos os lados no vosso próprio entrincheiramento,
tem causado tantos danos nas vossas fileiras e enviou já tantos ao Orco? Não
vos compadeceis, homens sem coragem, não vos envergonhais da vossa
infeliz pátria, dos vossos antigos deuses domésticos, do vosso chefe Eneias?
Inflamados por tais palavras, os dardanios recobraram o animo e avançaram
em fileiras cerradas. Turno, achado agora pelo número, ia recuando pouco a
173
ENEIDA - Virgílio
pouco na direcção do rio. Em grande algazarra, os defensores iam-no
apertando cada vez mais e mais, como quando uma turba de caçadores
persegue um leão irritado com dardos, enquanto a fera vai recuando,
assombrada, ameaçadora, o olhar feroz, sem que quer a fúria quer o brio lhe
façam voltar as costas, mas não podendo, também, romper em frente a
floresta de armas. Também assim se ia afastando Turno. Irado, avançou por
duas vezes, pondo todos em debandada para os muros, em grande confusão.
Mas agora era quase toda a guarnição do campo que o caçava. Nem
mesmo Juno podia dar-lhe forças contra tantos, pois o Pai Júpiter,
omnipotente, já lhe enviara a mensageira Íris, ordenando a sua esposa que
retirasse imediatamente Turno do acampamento troiano. Nem o seu escudo,
nem a sua espada, conseguiam resistir mais à avalanche que se lhe abatia em
cima. De todos os lados lhe choviam os golpes. O seu capacete rangia com
as espadeiradas, calam-lhe setas aos montes em cima e a sua armadura
retinia com as pedradas. A couraça abria-se nas costuras e as plumas
vermelhas, que ainda há pouco ondulavam orgulhosas ao vento, tinham sido
cortadas. O seu escudo estava cheio de mossas. Não podendo resistir já ao
martelar incessante, Turno abeirou-se da própria barranco do Tibre e atirou-
se às águas amarelas que o levaram para a outra margem, onde, rejubilantes,
os companheiros o acolheram.
174
ENEIDA - Virgílio
175
ENEIDA - Virgílio
eles ter, de acordo com o que determinaram as Parcas, porque lhes serão
modificados agora os destinos? Para quê relembrar a frota incendiado na
terra de Acestes?
E continuou:
176
ENEIDA - Virgílio
mensageira Íris enviada dos ares? Achas indigno que Turno, de tão nobre
linhagem quanto o teu Eneias, arme os seus guerreiros e reúna os seus
corcéis para defender as terras ameaçadas pelo estrangeiro? Que diremos
nós quando os troianos atacarem os muros latinos com ferro e fogo,
premirem com o seu jugo os campos e levarem os despojos roubados?
E continuou Juno:
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ENEIDA - Virgílio
própria desgraça. Não sou o rei de ambos? Então, não farei distinção entre
eles e exorto-vos a que não o façais também!
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ENEIDA - Virgílio
Reconheceram o rei e cercaram o navio em grupos. Cimodoceia, a
mais faladora, segurou na popa com a mão direita, enquanto com a esquerda
continuava a nadar. E, elevando-se acima da borda, disse a Eneias, que não
a reconhecia:
Eneias espantou-se com aquela fala e com a aparição das ninfas, mas,
passado o susto, o seu coração rejubilou-se e? elevando os olhos para as
estrelas, assim orou:
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ENEIDA - Virgílio
De pé, na proa da nau-capitania, vinha Eneias, com o capacete
refulgindo na cabeça, o penacho como que incendiado e o escudo reflectindo
a luz do Sol como dardos de puro ouro. Turno, no entanto, tomou
rapidamente a decisão de ocupar as praias antes que o inimigo
desembarcasse e procurava inflamar o entusiasmo nas suas fileiras:
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ENEIDA - Virgílio
primeiro a investir contra os Ítalos, matando muitos deles. Vénus, vigilante
a seu lado, protegia-o e defendia-o dos golpes inimigos. As setas e dardos
choviam-lhe em cima, mas a deusa fazia-os desviar, como o vento que afasta
as gotas de chuva.
181
ENEIDA - Virgílio
no enorme fragor das chamas que avançam, também os companheiros do
herói Palas lhe seguiam os passas abrindo caminho na maré humana que os
oprimia..
Mas Lauso, herói rótulo e filho do cruel Mezêncio, não permitia que
os seus soldados fraquejassem à vista do tremendo morticínio causado pelo
filho de Evandro. Avançando por entre a confusão de espadas, dardos, arcos,
soldados vivos e agonizantes que gritavam, gemiam e brandiam as armas,
Lauso conseguiu finalmente defrontar-se com o chefe adversário. Eram
ambos notáveis pela estatura e, moços, a sua idade não diferia muito. Mas
Júpiter havia decretado que não pelejariam.
— Alto com o combate, que esse inimigo está reservado para mim.
Desejaria que o próprio pai aqui estivesse como espectador.
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ENEIDA - Virgílio
No alto Olimpo, Hércules ouviu a prece e uma lágrima sentida desceu-
lhe dos olhos, ao mesmo tempo que as suas feições se entristeciam.
Consolou-o então Júpiter com estas palavras amigas:
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ENEIDA - Virgílio
Arrancou então o enorme boldrié do vencido, cujo corpo foi então
retirado pelos companheiros.
— Pelas cinzas de teu pai, pelas esperanças de Iulo que se faz homem,
eu te peço que me conserves a vida. Perdoa ao filho e perdoa ao pai. Tenho
um magnifico palácio onde estão escondidos muitos talentos de prata
lavrada, como também uma grande quantidade de ouro bruto e trabalhado.
Uma só vida poupada não influirá nos destinos dos troianos.
Eneias retrucou-lhe:
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ENEIDA - Virgílio
vidas por ouro. Tudo o que é costume na guerra foi abolido por aquela morte.
É assim que o quer o espírito de meu pai Anquises e assim também pensa
Ascânio.
— Porque, cato senhor, tanto encorajaste essa tua filha teimosa e tanta
dor me trouxeste ao coração? Se ainda me amas, como outrora me amavas
185
ENEIDA - Virgílio
— e espero que sim —, concede-me esse favor que te peço. Dá-me o direito
de subtrair Turno aos perigos do combate e levá-lo incólume a seu pai
Dauno. Não permitas que o seu sangue inocente coroe a vitória troiana Ele
é da nossa estirpe por parte de Pilumno, seu avô, que muitas vezes encheu,
com mão liberal, os teus altares de oferendas.
— Se me pedes que adie por pouco tempo a sua hora fatal, concedo-te
o que me pedes. Até ai chega o meu poder de modificar o curso do Destino.
Porém, alimentas esperanças vas se esperas com isso alterar o correm da
guerra ou mesmo adiar o seu fim.
— Faria algum mal se, por detrás dessas tuas palavras duras, se
escondesse um coração brando e que Turno, ao vencer esses invasores da
sua terra pudesse alcançar uma velhice venerável? Mas não, triste fim
aguarda o inocente, que, para gáudio de tua filha, irá encontrar morte
prematura. Como se rejubilaria o meu coração, se soubesse que sou levada
por temores infundados! Oh! Não serás capaz, ó pai e esposo, de alterar o
que dispuseste e salvá-lo do triste fado? Se não o podes fazer, deixa-me, pelo
menos, livrá-lo da presente desventura.
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ENEIDA - Virgílio
apavorado, a figura voltou-se e disparou em furiosa correria na direcção da
praia próxima.
187
ENEIDA - Virgílio
O seu pensamento agitava-se, enlouquecido, indo de uma ideia para
outra, e para outra ainda, sem cessar. Se, como um louco, se deveria
trespassar com o ferro da lança, se embeberia a lamina nua da espada nas
costas, se se atiraria às ondas e procuraria a nado atingir a terra distante, para
de novo se lançar contra as armas dos troianos. Três vezes esteve à beira de
tentar cada uma daquelas saídas, mas três vezes Juno lhe susteve as forças,
e o navio, levado pelas marés e pelos ventos e orientado pela mão da deusa,
chegou finalmente a um ponto muito ao sul do litoral de onde partira, perto
da antiga cidade de seu pai Dauno.
188
ENEIDA - Virgílio
laminas de bronze, três de linho e três couros de boi do escudo do inimigo e
enterrou-se junto à sua virilha. Vendo correr sangue do rei, o troiano sacou
da espada e avançou célere sobre Mezêncio que, atordoado com a pancada
e atrapalhado com o chuço que lhe pendia do corpo, começou a recuar. Então
Lauso, alarmado, lançou-se entre o inimigo e seu pai e, aparando os golpes
daquele, protegia a retirada deste. De todos os lados acudiam os rótulos e
uma saraivada continua de setas e dardos cala sobre o filho de Vénus. Este
encobria-se com o escudo qual agricultor ou viajante que, protegendo-se do
granizo repentino ou da chuva inesperada que desaba na estrada ou no
campo, procura refugio debaixo de um rochedo saliente ou numa caverna,
esperando que o sol volte a brilhar. E gritava encolerizado para Lauso:
Mas o amor ao pai prendia o jovem ali e, embora a feia Morte lhe
soprasse o hálito gélido no pescoço, não se atemorizou. Eneias adiantou-se
então e, de um só golpe, atravessou o escudo e o peito do jovem, enviando-
lhe rapidamente o espírito para o Mundo das Sombeas. Vendo empalidecer
as feições do jovem, Eneias compadeceu-se, pois lembrara-se do amor que
também lhe dedicava Ascânio. E disse:
189
ENEIDA - Virgílio
Horrorizado e alucinado de dor, o pobre pai arrancava a barba e
derramava poeira na própria cabeça, chorando amargamente.
Respondeu-lhe Mezêncio:
190
ENEIDA - Virgílio
— Porque me atemorizas, homem cruel, depois de teres assassinado o
meu filho? Era esse o único meio através do qual me conseguirias derrotar.
Não tememos a Marte, nem a qualquer dos deuses. Chega de bazófia, pois
venho decidido a tudo. Aí vai.
191
ENEIDA - Virgílio
192
ENEIDA - Virgílio
— Ah, amigo fiel, como me entristeço por te ter negado a Fortuna uma
vida mais longa! Que, ao menos, te tivesse concedido a visão das minhas
muralhas a levantarem-se do solo latino. Então, em vez de jazeres aqui, terias
retornado ao reino de teu pai, cheio de despojos do inimigo. Mas, oh! Como
dispuseram diferentemente, as Parcas!
E continuou:
— Quão diferente das promessas que fiz a teu pai, quando por ocasião
da despedida, entregando-te aos meus cuidados, me assegurava que eu partia
para uma luta cruel contra inimigos intrépidos e aguerridos. E agora,
alimentado por vã esperança, talvez faça votos e encha os altares de
oferendas, enquanto nós, tristes, acompanhamos às honras fúnebres aqueles
que já nada devem as divindades. Infeliz és tu, ó Evandro, que assistirás aos
funerais do filho. São estes o nosso regresso e triunfo tão esperados! É esta
a promessa que te fiz! Mas, pelo menos — se isso pode servir de consolo —
não o verás cair a golpes vergonhosos, nem ocasião terás de desejar-lhe não
ter nascido. Que grande auxilio perde agora a Itália, e a ti, Ascânio, de que
bom companheiro a morte te priva!
193
ENEIDA - Virgílio
fizera com as unhas. Atirava-se constantemente ao chão, para junto do
féretro. Seguia-se um enorme bando de troianos, etruscos e arcádios com as
armas abaixadas. Palas era acompanhado nessa última viagem pelo seu
cavalo, de crina a cobrir-lhe os olhos, e também por carros salpicados de
sangue rótulo. A sua lança e o seu capacete eram levados por guerreiros. As
outras armas e despojos estavam na posse de Turno.
194
ENEIDA - Virgílio
O velho Drances, que sempre se opusera aos planos de Turno, tentando
contrabalançar os seus rancores e as suas acusações, disse assim:
— Palas, não foram estas as promessas feitas a teu pai. Oxalá não te
tivesse eu tão cedo confiado ao deus Marte! Bem sabia eu a quantos perigos
te impeliriam a glória e a fama, numa primeira peleja. Triste começo para
um guerreiro jovem! Desditoso ensaio para a guerra! E vós, deuses, que não
ouvistes quaisquer das minhas preces e não recebestes quaisquer das minhas
oferendas! Ó esposa virtuosa, cuja morte benfazeja te impede de ver e ouvir
o que agora sou obrigado a ver e ouvir! Transpus, diferentemente, o meu
destino na vida. Antes me tivessem os rótulos trespassado de setas a mim,
que me aliei aos troianos!
195
ENEIDA - Virgílio
(continuou)
196
ENEIDA - Virgílio
Do outro lado, os pobres latinos tinham o mesmo procedimento.
Muitos corpos eram cromados, outros sepultados ali mesmo na areia e outros
ainda enviados às cidades vizinhas, para os braços e cuidados dos parentes.
Não havia, porém, nem honras nem cânticos. Os muitos cadáveres eram
atirados de qualquer maneira, em grande confusão, às piras imensas. Depois
do terceiro dia de actividade, rebuscaram os restos das fogueiras e
sepultaram os ossos e as cinzas remanescentes. Na cidade opulenta do rei
Latino ressoavam no ar os lamentos do grande luto. Mães, noras, irmãs,
órfãos, todos detestavam a imagem do Marte cruel e abominavam a aliança
com os rótulos. Bradavam, enraivecidos e incitador pelo implacável
Drances, que ele Turno, apenas acompanhado pelos seus homens e armas é
que deveria lutar pelo reino da Itália. Drances afirmava que a Eneias só
interessava o rei rótulo e nada mais era reclamado para o combate. Mas
também muitos outros — tomando o partido da rainha Amata — defendiam
a continuação da aliança, lembrando os feitos heróicos de Turno, as suas
proezas guerreiras e os troianos que vencera.
197
ENEIDA - Virgílio
declaramos nome e pátria. Dissemos que povos nos trouxeram a guerra e
que motivos nos tinham levado à Grécia.
— Ó filhos da Itália? que destino infiel vos rouba a paz serena e vos
persuade a tomar parte em guerras de êxito incerto? Todos nós, gregos, que
assaltamos, destruímos, queimemos e saqueámos a grande cidade de Tróia,
todos nós sofremos muito. Não falo somente das adversidades da guerra que
ceifaram a vida de muitos companheiros junto às muralhas imponentes da
cidade ou encheram o Simois e o Xanto de cadáveres helénicos, mas de
coisas acontecidas mais tarde, depois de carregados os navios com o produto
do saque. Como pensávamos ser felizes, como julgávamos proteger-nos os
deuses! Mas escutai como sofremos. Primeiro, atravessamos uma tremenda
tempestade desencadeado por Minerva, que nos desbaratou a frota em todas
as direcções. A seu mandado, o rei Neoptólemo fez brilhar luzes traiçoeiras
que levaram muitos barcos ao naufrágio nas suas costas de escolhas
submersos. Menelau, filho de Atreu, andou exilado por oito longos anos nas
terras dos egípcios. Agamémnon, seu irmão, o mais poderoso dos reis
gregos, foi assassinado, às portas do palácio real, pelas mãos ímpias da
esposa e das do seu traiçoeiro amante. Plissas vagou pelos oceanos durante
muitos anos, enfrentando toda a espécie de perigos, incluindo Circe, a
feiticeira, e os ciclopes do Etna Pereceram na aventura todos os seus
companheiros e ele mesmo só conseguiu retornar à pátria em condições
miseráveis. Para cúmulo da desgraça, lá o esperavam uma casa delapidada
por libertinos, a sua fortuna gasta, a esposa apoquentada pela malta que
ainda ameaçava a vida do filho. Pirro, filho de Aquiles, foi morto por uma
punhalada, quando orava aos deuses junto aos altares. Idomeneu foi expulso
da sua terra em Creta, tendo ido fundar um reino na Itália. Quanto a mim, os
deuses proibiram-me que voltasse a ver a minha terra natal e a minha bela
esposa Cálidon, que me esperava saudoso. Os meus companheiros foram
transformados em pássaros que fogem através dos ares, vagueiam pelos rios
ou soltam gritos estridentes e lamentosos em torno das ilhas pedregosas no
meio dos oceanos. No entanto, que poderia eu esperar, eu que — ó insensato!
— ataquei com a espada a formosa Vénus na planície troiana, ferindo-a na
mão direita. Não, amigos, não me exorteis a tais combates. Não farei guerra
198
ENEIDA - Virgílio
alguma contra os troianos. Esses presentes que trazeis, levai-os a Eneias e
com ele fazei a paz.
Diomedes continuou:
— Poderoso guerreiro lá está, eu vos digo, pois com ele tercei lanças
e sei que sempre Apolo e Vénus estão a seu lado. Tivesse Pérgamo mais dois
valentes como ele e hoje chorarmos morte e luto da Grécia invadida e
arrasada. Não foram nessa altura as suas mãos, juntamente com as de Heitor,
que fizeram Tróia resistir dez anos a todos os exércitos gregos reunidos? Ide,
pois, latinos, e procurai aliar-vos a ele de qualquer forma, pois o vosso poder
alcançará todas as nações, até mesmo nos limites da terra, e a vossa fama
chegará à morada dos deuses! É esta, portanto, ó excelente rei, a resposta de
Diomedes e a sua opinião a respeito da guerra.
— Era meu desejo, ó súbditos, e teria sido bem melhor que esta
assembleia se tivesse reunido assim que as coisas começaram a acontecer e
não agora, quando o inimigo já sitia as nossas muralhas. Sabemos, cidadãos,
que fazemos guerra desigual contra raça divina, contra guerreiros
invencíveis a que não há combates que fatiguem. Perdei, depois da resposta
de Diomedes, a esperança — se algum dia a tivestes — no auxilio estranho,
mas entes deposite cada um a esperança em si mesmo. Vede, no entanto,
como é fraca essa esperança. A ruína do reino está patente aos vossos olhos.
A ninguém lanço a culpa, pois houve a maior coragem que poderia haver e
em luta entraram todas as forças. Ouvi-me agora e aplicai a vossa atenção às
minhas palavras. Possuo campos próximos do rei Tusco, cultivados pelos
rótulos e auruncos. Proponho que seja cedida aos troianos aquela região,
bem coma a crista coberta de pinheiros das elevações próximas. Assinemos
um tratado, façamos uma aliança e chamemo-los amigos do reino. Se tão
199
ENEIDA - Virgílio
grande é a força que os impeliu para o Lácio, que ali se estabeleçam e ergam
a sua cidade. Mas se é seu desígnio buscar ainda outras pragas, ajudemo-los
a construir vinte navios de carvalho, porque os seus foram metamorfoseados
em ninfas nas ondas.
200
ENEIDA - Virgílio
alto valor, se tanto queres este palácio como dote, vai sozinho, enfrentar o
corajoso Eneias com o peito descoberto! Pois então, para que Turno ganhe
uma esposa real, deveremos nós verter o nosso sangue latino? Não! Agora,
olha frente a frente aquele que desafias!
201
ENEIDA - Virgílio
guerra? Porque se vos enche a alma de medo, antes de ouvir o som da
trombeta da Morte? O tempo e o êxito inconstante da vida muitas vezes
mudam as coisas para melhor. Não estou desanimado por Diomedes nos ter
recusado ajuda. Há muitos outros que cerrarão fileiras a nosso lado, como
Messapo, Tolúmio e vários chefes de outras tribos. Logo alcançaremos
brilhante vitória nos campos laurentinos.
(continuou)
202
ENEIDA - Virgílio
—Vai, Vóluso, e manda que se armem os volscos. Faz marchar os
rótulos. Tu, Messapo, e tu, Coras, dispondo a cavalaria diante das muralhas.
A outros ordenarei que guarneçam os muros e os bastiões. Siga-me o restante
dos guerreiros e sejamos os primeiros a terçar espadas com os troianos.
203
ENEIDA - Virgílio
as informações trazidas pelos nossos exploradores — ele mesmo marcha
aceleradamente com outras tropas por entre os bosques e, transpondo a crista
das montanhas, pretende atacar a cidade por aquele lado. O meu plano é
surpreender o próprio Eneias e a sua gente em emboscada traiçoeira nas
gargantas desertas da montanha. Tu, tendo a teu lado Messapo, os latinos e
os guerreiros de Tiburno, atacarás a cavalaria, enquanto os outros se
defendem dos nossos projécteis. Vai agora, que eu te seguirei assim que
aprontar as defesas da cidade.
— Minha cara ninfa, Camila, a quem prezo mais que a qualquer outro
mortal, marcha neste momento para uma guerra cruel e muito temo por sua
sorte. Amo-a desde que era criança. Quando o seu pai Métabo foi expulso
do seu reino pelos súbditos cansados e atormentados pela tirania do cruel
rei, este fugiu levando a filha apertada ao peito. Fugiu e correu até certo
ponto onde um rio tormentoso da enchente lhe barrava o caminho. Viu-se
então em situação desesperada, os inimigos surgindo de todos os lados e o
obstáculo rugidor e intransponível à frente. De repente, ocorreu-lhe uma
ideia. Atou a criancinha a uma fortíssima lança de carvalho que transportava,
envolvendo-a primeiro em cascas de cortiça de uma árvore. Depois, puxando
o braço para trás, enquanto a mão firme segurava a arma, assim orou: «Ó
Diana, benéfica donzela habitante das florestas, eu, o próprio pai, te devoto
esta serva, que dedicará toda a sua vida ao teu louvor. Guarda-a, peço-te,
pois eu ta confio.» E, assim falando, arrojou o dardo com a sua máxima
força. A criança cruzou a torrente pelos ares e foi cair incólume na margem
oposto. Métabo lançou-se, ele próprio, ao rio, atravessou-o rapidamente a
204
ENEIDA - Virgílio
nado, agarrou na sua preciosa carga e escapou a tempo aos perseguidores,
atravessando a espessa Horesta. Daí em diante passou a evitar as cidades,
vilas e lugares frequentados pelos homens e criou a filha entre os pastares e
nos caminhos desconhecidos da selva. As suas camas eram de folhas, o seu
tecto protector era a copa das arvores e os seus passeias, os covis das feras.
Alimentou-a com leite quente do úbere das águas.
(continuou)
205
ENEIDA - Virgílio
acometeram com violência inaudito, os gritos estridentes dos homens, os
cavalos em galope trepidante, ao mesmo tempo que disparavam as setas,
que, por seu número, e à semelhança do granizo, escureciam o Sol.
206
ENEIDA - Virgílio
o capacete. Nas mãos agitava um rústico chuço. Altíssimo de estatura, a sua
cabeça sobressaía acima da turba. Aproveitando-se do seu atraso, Camila
trespassou-o com uma seta e disse-lhe rancorosa:
— Que grande façanha é esta é para ti, que és mulher, se usas o cavalo?
Apeia e dispõe-te para o combate a pé. Logo saberás de quem é a vantagem.
207
ENEIDA - Virgílio
homens e uma coragem de vinte leões. O chefe, assim estimulado, galopou
para o local onde as suas tropas fraquejavam e bradou:
208
ENEIDA - Virgílio
apague essa desonra para nossas armas. Não te peço os despojos da donzela
vencida nem presa alguma, pois outros feitos meus me trarão glória.
Só desejo derrubar esse flagelo dos troianos com o meu dardo e voltar
obscuro para a minha pátria.
— Até aqui, irmã Aca, tive forças para pelejar. Agora me prostra uma
ferida cruel e tudo em torno se escurece, coberto de trevas. Foge e leva a
Turno estas últimas recomendações. Digo-lhe que me substitua na peleja e
afaste os troianos da cidade. E agora, adeus!
209
ENEIDA - Virgílio
Mas a ninfa Ópis, enviada por Diana, viu das elevadas nuvens a morte
de Camila e, gemendo, exclamou:
— Ai, donzela, que o teu castigo foi demasiadamente cruel por teres
batalhado os dardanios! De nada te serviu teres honrado Diana durante anos,
recusando matrimónio, percorrendo as nossas florestas com o carcás ao
ombro. Não quer a tua rainha que sofras uma morte vergonhosa e que
chegues ao Aqueronte sem estares vingada. Quem cometeu tal cume, pagará
com merecida morte.
210
ENEIDA - Virgílio
O Sol já se punha quando Aca, a fiel companheira de Camila, alcançou
Turno ainda emboscado na floresta à espera da tropa de Eneias. Contou-lhe,
em Fanico, que os batalhões volscos tinham sido derrotados, que Camila
morrera e que, sendo-lhe Marte favorável, o inimigo avançava destruindo
tudo, e que o medo se apossara de todos. Furioso, Turno abandonou a
posição que ocupava e da qual se lançaria em emboscada a Eneias. Já
desciam pela planície as suas tropas, quando Eneias, transposto o local
perigoso sem novidade, saiu do bosque e lançou-se em perseguição do
inimigo que se dirigia à cidade. Prosseguiam ambos e a batalha seria
iminente, se não se tivesse retirado Apoio do céu, fazendo chegar a noite
benfazeja e trazendo descanso merecido aos homens e aos cavalos fatigados.
Ambos os exércitos acamparam defronte dos muros, a curta distancia um do
outro, para passar a noite.
211
ENEIDA - Virgílio
212
ENEIDA - Virgílio
sem conta se abateram sobre o meu reino e principalmente sobre ti, que
suportas o fardo maior da guerra. Duas vezes fomos vencidos no campo de
batalha e agora aqui estamos encerrados nesta cidade como último baluarte.
As correntes do Tibre ainda serão tintas do nosso sangue e nos campos
alvejam os ossos. Porque sou tão inconstante em minhas resoluções?
(continuou)
— Deixa por minha conta, ó tu, o mais bondoso dos monarcas, esse
cuidado que sentes por mim e permite-me alcançar a glória a troco da vida.
Eu também, caro rei, sei vibrar um dardo como Eneias e a minha espada
também corta os ares e fere a carne. Juno tomará especiais cuidados para
que sua mãe, Vénus, não o esconda numa nuvem, afastando-o da batalha
como o fez quando estava quase a sucumbir sob uma lança grega.
—Turno, por estas lágrimas que vês rolares dos meus olhos, por
qualquer coisa pela qual tens deferência e pela amizade que me tens,
abandona o teu desejo de luta. Tu és agora a minha única esperança, meu
único consolo na velhice infeliz. A glória e o poder do reino latino dependem
de ri. És a estaca que escora a casa vacilante. Só esta coisa te rogo. Desiste
de combater com o troiano. Seja qual for o fim que tiveres, Turno, não ficarei
neste mundo odioso sem ti, nem, cativa, verei Eneias como genro.
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ENEIDA - Virgílio
Lavinia ouvia as palavras da mãe com as faces regadas de lágrimas,
enquanto um vivo rubor lhe cobria as maças do rosto. Era como se alguém
tivesse tingido o marfim da Índia com a púrpura cor de sangue, ou quando
os brancos lírios se avermelham misturados as rubras rosas num ramalhete.
O príncipe, com os olhos turvados de amor, encarava-a finamente.
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ENEIDA - Virgílio
Do seu rosto inflamado e enfurecido brotavam chamas de ódio,
enquanto o ar vibrava com os seus velozes golpes. Até a barba parecia eriçar-
se-lhe.
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carne salgada sobre os altares e com as suas facas cortaram pêlos das testas
da porca e da ovelha, atirando-os aos braseiros. A seguir, verteram sobre o
solo taças douradas cheias de vinho.
. Ó Sol, sê agora testemunha para mim, que te invoco, bem como a ti,
terra e ao Pai todo-poderoso e a u também, Juno, rainha do Céu, a quem rogo
expulses para sempre do teu coração o ódio mortal que devotas à minha raça,
e a ti, Marte, a quem deliciam os clamores da guerra. Invoco também as
fontes, os fios, as águas correntes e todas as potestades do Universo e do
azul profundo. Se porventura a vitória couber a Turno, fica assente que todos
os troianos, comandados por Iulo, meu filho, aqui mesmo deporão as armas
e retirar-se-ão, vencidos, para a cidade de Evandro, sem mais combater.
Porém, se a vitória nos sorrir — e disso tenho pouca dúvida —, como espero
que o confirmem os deuses pelo seu poder divino, não mandarei que sejam
os ítalos subjugados nem que entreguem seus reinas, mais sim que os dois
povos, sem vencedor nem vencido, se unam em aliança eterna e em
condições iguais. Eu vos darei o nosso culto e os nossos deuses.
— Pelas mesmas coisas eu juro, Eneias, pela terra, pelo mar e pelo
astros; por Apolo e Diana; por Jano, de dois rostos, e pelo infernal pode do
deus Plutão. Ouça Júpiter estas minhas palavras, ele que firma os tratados
com o seu raio e fulmina os perjuras. Coloco a minha destra sobre os altares
sagrados e invoco por testemunha esses fogos e as divindades a que são
acesos. Jamais será rompida a paz entre os ítalos e os troianos, aconteça o
que acontecer. Nenhuma força me desviará desse caminho, ainda que
revolva a terra, o mar e as aves, provocando cataclismos. E isso eu proclamo
agora, tão certo como sei que este meu ceptro — cortado da árvore-mãe no
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ENEIDA - Virgílio
bosque e encastoado em ouro, prata e marfim pelo artista—jamais produzirá
ramos nem dará sombra com as suas folhas.
— Ninfa dos rios, muito prezada por meu augusto esposo, sabes como
a ti te tenho preferido a todas as mulheres. Enquanto a fortuna consentiu e
assim o permitiram as Parcas, protegi Turno e o seu reino, mas vejo agora
aproximar-se o seu fim e os meus olhos afastam-se horrorizados, do acordo
que ora se celebra na planície e do combate que se seguirá. Caso queiras
tentar uma última coisa por teu irmão, aqui estou para te ajudar.
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ENEIDA - Virgílio
armas e pela alta linhagem da família e dirigiu-se aos batalhões rótulos
nestes termos:
Juturna então fez vir do céu admirável prodígio que alicerçou as suas
palavras no coração dos guerreiros. Uma águia, voando alto, atacou
subitamente, em veloz descida, um bando de aves ribeirinhas e conseguiu
prender, com as suas garras, um grande cisne. Ante os olhares embasbacados
dos ítalos, as aves em debandada voltaram da sua fuga e — ó prodígio! —
obscureceram o ar com as suas penas e atacaram e perseguiram o terrível
inimigo até que este, esgotado de forças e vencido pelo peso da presa, a
largou e desapareceu nas nuvens. Um gigantesco murmúrio de admiração e
espanto percorreu as fileiras rótulas e latinas, pois viam representada,
naquele agouro do céu, a sua própria situação.
— Era isto, era isto o que muitas vezes pedi com os meus votos. Aceito
e reconheço a vontade dos deuses. Comigo e sob a minha direcção sacai das
espadas e das lanças, ó guerreiros, a quem amedronta um estrangeiro odioso
que vem devastar as nossas praias! Fugirá, estou certo, e em breve as suas
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ENEIDA - Virgílio
velas mancharão o mar azul de branco. Vós, unidos de espírito, cerrai as
vossas fileiras e, combatendo, defender o rei que vos querem arrebatar!
— Morre aqui mesmo, que outra vítima melhor não poderiam querer
os deuses.
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ENEIDA - Virgílio
— Para onde ides nessa fúria? Que repentina discórdia é essa que se
alevanta, depois de firmados os acordos? Oh! Reprimi a vossa cólera! A
mim, só a mim cabe o direito de lutar. Deixai-me pelejar sozinho e tirai o
peso do coração.
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ENEIDA - Virgílio
de todos, à medida em que se aproximava o fragor da batalha. O ar começava
a encher-se de poeira e as primeiras setas e dardos principiavam a cair sobre
o acampamento. Os cavaleiros já se aproximavam e tudo parecia perdido.
Então Vénus, penalizada pela cruel dor infligida ao filho, foi como
mãe carinhosa ao monte Ida, na ilha de Creta, onde colheu o dictamno, caule
felpudo de grandes folhas e flores avermelhadas, planta que as cabras,
quando feridas, comem. Envolta em invisível nuvem, a deusa aproximou-se
de Iápis e esmigalhou alguns botões da planta benfazeja dentro da água com
que o médico tentava curar o rei, adicionando ao líquido miraculosa
ambrósia e panaceia, que tudo cura. Mal uma gota do preparado divino caíra
sobre a ferida, a hemorragia cessou e a dor aliviou. Puxando suavemente a
ponta do ferro assassino, Iápis conseguiu retirá-lo com facilidade. De
imediato, Eneias sentiu voltarem-lhe as forças e levantou-se. Bradou então
o médico:
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ENEIDA - Virgílio
Com o espírito transtornado pelo receio, voltou então a irmã de Turno
à peleja. Alucinada, derrubou Metisco, condutor do carro do príncipe, por
entre as rédeas dos corcéis e, empunhando-as, disparou em louca corrida
pelo campo de batalha. Qual negra andorinha que no palácio opulento
volteja nos tectos, ora aqui, ora ali, baixando e subindo, voando e pousando,
em volta dos pórticos e perto dos tanques, assim também Juturna, assumindo
a forma de Metisco, conduzia o príncipe por entre a confusão da peleja,
andando rapidamente, às voltas e aos zigue-zagues, nunca parando, nunca o
deixando pelejar, e afastando-o aos poucos do combate.
Enquanto isso, Eneias procurava o inimigo aqui, ali e acolá, por entre
os batalhões dispersos, e chamava-o em alta vozes. Mas sempre que o ouvia,
afastava-se Juturna, veloz, no carro, virando-lhe as costas e desaparecendo
na confusão, sob gritaria e poeira.
Vénus fez então nascer na mente do filho a ideia de levar o seu exército
até aos muros da cidade e surpreender os latinos com essa súbita arremetida.
Eneias encarou a cidade, momentaneamente afastada dos horrores da guerra,
tranquila. Imediatamente lhe surgiu o pensamento de uma luta menos
custosa. Chamou os principais chefes, Mnesteu, Sergesto e Seresto e fê-los
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reagrupar todos os troianos a uma certa distancia das muralhas, numa
elevação. E aí lhes dirigiu a palavra:
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ENEIDA - Virgílio
julgou que o infeliz Turno morrera numa das peripécia da contenda. Com a
mente perturbada pela dor da perda irreparável do jovem muito amado,
gritava que ela, Amata, era a causa, a culpa, a origem de tantas desgraças e,
alucinada, desvairada, resolvida a morrer, rasgou uma larga tira das suas
vestes, enforcando-se com ela numa alta trave do tecto do palácio.
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— O minha irmã, desde há muito te reconheci, quando Bolaste o
tratado de paz e te intrometeste nos negócios da guerra. Mas agora, em vão,
como deusa me enganas. Mas quem te permitiu saíres do Olimpo e vir ver
esta carnificina e a morte de teu infeliz irmão? Agora, tudo está perdido, pois
fomos abandonados pelos deuses, mas juro por todos eles que não morrerei
cobarde. As aleivosias de Drances ainda me são farpas no coração, apesar
de todos os meus guerreiros saberem que fui afastado da peleja por artes da
ardilosa Juno. Esta terra nunca verá Turno fugindo aos seus inimigos. A
morte não é tão horroroso para que barganhemos a vida pela honra. Vós, ó
sombra de meus antepassados, sede-me propícias e recebei-me de alma pura.
Não vos envergonharei!
(continuou)
— O rei não sabe que partido tomar, enquanto a tua querida e muito
afeiçoada tia e rainha Amata se desligou por suas próprias mãos deste
mundo. Apenas Messapo e Atinas resistem ainda frente às portas, mas cresce
e eriça-se um oceano de dardos a seu redor e as setas das falanges troianas
escondem a luz do Sol. E enquanto tudo isso acontece, tu diriges o teu carro
pelo campo deserto!
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ENEIDA - Virgílio
da cidade. Mas já grossos rolos de fumaça se elevavam para o céu e as
chamas brilhavam à distancia. O inimigo tinha incendiado uma alta torre,
que ele, Turno, fizera construir para a defesa, imponente no seu tamanho e
móvel sobre rodas.
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ENEIDA - Virgílio
No alto Olimpo, Júpiter assistia a tudo e conservava os dois pratos da
balança em perfeito equilíbrio. Nos pratos estavam os seus destinos e só ele,
omnisciente, sabia quem deveria morrer e quem deveria vencer.
Aproveitando-se de um momento julgado oportuno, Turno elevou o seu
enorme corpo na ponta dos pés e, levantando ao máximo a poderosa espada,
fê-la cair sobre o capacete do troiano. Tudo como que de súbito, estacou, as
vozes presas na garganta, os corações suspensos, os olhos parados, pois
creram — latinos, rútulos, árcades, etruscos e troianos — ter chegado o fim.
Mas a espada quebrou-se junto aos copos e Turno, vendo-se ali, a destra a
segurar a arma inútil, o inimigo preparando o golpe final, disparou em
desabafada fuga, mais veloz que o vento. Dizem que, na precipitação de
recomeçar o combate, depois da quebra do acordo, o rótulo subira ao carro
empunhando uma outra espada — a do cocheiro Metisco — que não a bem
testada e temperada lamina poterna. Aquela lhe servira enquanto encontrara
pela frente inimigos timoratos e fracos de força e couraça. No entanto, contra
a armadura, o escudo e o capacete forjados pelos Ciclopes do Etna a
mandado de Vulcano, a lamina saltou em estilhaços qual frágil vidro,
ficando os fragmentos na areia dourada.
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ENEIDA - Virgílio
— Fauno, deus dos latinos, tem dó de mim e prende esse ferro na tua
madeira que sempre venerei e que os troianos, pelo contrário, profanaram,
cortando-a para limpar o campo de batalha.
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forças. Agora que me retiro, uma coisa só te suplico, ó Pai Omnipotente, a
mim, filha de Saturno, deus que primeiro se estabeleceu naquela terra. Peço-
te que, depois de unidos Eneias e Lannia em casamento, e que ligadas as
duas raças num só reino que viverá em paz, decretes que os latinos não
mudem o seu antigo nome, nem que se tornem troianos ou sejam assim
chamados. Nem que os filhos da terra adoptem a língua e os costumes
estrangeiros. Subsista o Lácio, subsistam os reis latinos durante séculos!
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enviou um desses entes demoníacos ao local onde Eneias e Turno pelejavam.
Como uma seta embebida em mortal veneno, a Fúria cruzou os ares nas suas
asas negras e, chegando à vista dos batalhões troianos e Ítalos, tomou a
forma de pássaro, desses que à noite, pousando nas tumbas desertas do
cemitério, agoura, pia e canta até tarde pelas sombras. Assim
metamorfoseado, o demónio passava e repassava, voando em frente ao rosto
do rótulo príncipe, enquanto este lutava e roçava também as suas asas no
escudo do jovem. Um completo pavor deixou os membros de Turno sem
comando e um estranho torpor e fraqueza foi-se apoderando deles. A sua
pele eriçava-se e tremia, os seus cabelos levantaram-se e tão engolfado de
medo ficou que a voz se lhe prendeu na garganta.
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— Não são as tuas palavras e Gravatas, ó troiano, que me aterram, mas
os deuses e principalmente Júpiter, que é adverso.
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suplicantes. Agora toma Lavínia por esposa e não tentes mais os deuses com
a tua vingança.
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Título: Eneida
Autor: Virgílio
Ano de Edição: 1
Páginas: 235
Sinopse:
A Eneida (Aeneis em latim) é um poema épico latino escrito por Virgílio no
século I a.C.. Conta a saga de Eneias, um troiano que é salvo dos gregos em
Troia, viaja errante pelo Mediterrâneo até chegar à península Itálica. Seu
destino era dar origem à descendência dos fundadores de Roma.
Excerto:
«Assim que correu a noticia de que o inimigo abandonara a luta e partira,
houve como que um suspiro de alivio de toda a cidade sitiada, livre, agora,
da opressão de muitos anos. Abriram-se as portas e saíram todos, alegres, a
olhar os restos do acampamento grego, com um misto de curiosidade e
terror.»
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