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Octavio Mora

Ausência Viva

Texto das orelhas: Entre os novíssimos a personalidade de Octavio Mora parece-me uma das
mais marcadas pela vocação da poesia. O autor de “Ausência Viva” é um poeta com o gôsto da
expressão sóbria, precisa e velada por um nobre pudor. O mistério da adolescência se
transfigura nos poemas de Octavio Mora graças a uma contenção, a uma disciplina que
distingue o poeta e vae dar-lhe certamente um lugar aparte na literatura brasileira. Essas
qualidades que assinalo em Octavio Mora, essa maneira de conduzir-se sem transbordamento,
sem excessos não resulta nem em secura nem em artificialismo. O poeta não se expande no
exagêro dramático, não sae da sua mas nem isso perde a graça húmida, o sumo, a riqueza
humana. Sente o leitor que Octavio Mora se esquiva, procura não exibir sentimentos
extraordinários mas isso não impede que possa êle reconhecer no poeta uma participação
comovida nos dramas do mundo e na vida.

Admiro nesse poeta que começa a sua jornada em hora ainda matinal a nobreza e a
maturidade de uma inteligência e de uma sensibilidade fora do comum.

Augusto Frederico Schmidt, 18/4/56

Texto das orelhas: Octavio Mora nasceu no Distrito Federal em 4 de maio de 1933.

Fêz suas primeiras letras com Beatriz Guimarães Rocha e estudou no Colégio de São Bento,
que sem dúvida exerceram grande influência na sua formação.

Cursa atualmente o 6º ano da Faculdade Nacional de Medicina.

Publicou seus primeiros poemas há dois anos no “Correio da Manhã”. Em outros jornais e
revistas (“Diário Carioca”, “Universidade”) assinou seu nome por extenso: Octavio Eugenio
Mora y Araujo de Couto e Silva.

De descendência (sic) mineira e argentina, sofreu desde cedo o impacto dessas duas culturas.

Os poemas que constituem esse livro são de diferentes épocas, principalmente 1954-55.

A vinheta é de Otaviano.

--

Octavio Mora

Ausência Viva

1956

LIVRARIA SÃO JOSÉ

Rua São José, 38

RIO DE JANEIRO
Dedicatórias

A MEUS PAIS
MEUS TIOS
MEUS AVÓS

A A. F. SCHMIDT
A M. A. ASTURIAS
E ALEXANDRE EULALIO

Epígrafre

a M. E.:
“Todo lo llenas tu, todo lo llenas”
(NERUDA)

a B.
e a OLGA
PRESENÇA DE IFIGÊNIA

Efigenia cruzó extranjero


en las rutas, y sin hablar
le siguió, sin saberle nombre
porque el hombre parece el mar
(GABRIELA MISTRAL)

IFIGÊNIA

Como estátua de vento, pedra gasta,


sopra Ifigênia sempre na memória,
e estamos nela sem escapatória
como o tempo nas pedras : só se afasta,
(devido à semelhança com o vento
de seu todo), para estar em nós, aérea,
desprovida de contôrnos, em matéria
capaz de dar volume ao pensamento
que surge do que some: quando volta
volta cheia de pássaros e tudo
se lhe gruda ao olhar: reminiscência
de seus passos, o pássaro se solta
e em nós gravita a terra: conteúdo
e volume final de sua ausência.

IFIGÊNIA — REENCONTRO
Deparamos com ela de regresso
e era a mesma Ifigênia que ficara
com o mesmo sorriso em toda a cara
e o mesmo rio no seu corpo impresso:
Encontramos o tempo e seu progresso:
Ifigênia era a mesma, não mudara,
Ifigênia, tão límpida e clara
que nunca possuiu nenhum recesso
onde a luz desaguasse que não fôsse
nela mesma. Ifigênia transparente,
atravessando a luz ficava intacta,
atravessando a morte ficou doce:
Atravessâmo-la perpètuamente
Ifigênia, cristal de longa data.

SOPRA IFIGÊNIA

Sopra Ifigênia: o mar para adiante


permanece infinito, mas encurta
o tempo à nossa frente: seu semblante
tão próximo de nós, logo se furta
e aproximam-se as ilhas, breve espuma,
para sumirem instantâneamente
na memória, cujo ôco se avoluma
espalhando arquipélagos: ausente,
o ventou que a levou, a tornou lasto:
Agora venta, o mar nela se enxuga
e o sal aumenta as praias: com matéria
de nuvens, Ifigênia firma o mastro,
sopra sempre Ifigênia, forma aérea,
componente do mar, salina em fuga.

IFIGÊNIA — ARQUIPÉLAGO AMADO

Procurando Ifigênia, substituo


as coisas pelas ilhas, e a lembrança
me guia pelo tempo: da mudança
de tudo, tiro o vento: continuo,
prossigo por mim mesmo, e adiante,
ilha por ilha vou redescobrindo
o arquipélago amado: cada instante
deixa sinais na areia: vou seguindo
as pegadas do tempo, e a ampulheta
vai deixando cair a mesma areia
pelo istmo da sêde: pela estreita
pessagem da memória, cada veia
verte o seu conteúdo transeúnte
até que em Ifigênia o mar se junte.

IFIGÊNIA —ESTÁTUA AÉREA

Ifigênia, de pé na solidão,
acompanha os navios, ganha altura,
caminha pela morte e se procura,
irrefreável de sofreguidão,
através dessa inerte multidão
dos vivos que povôam a amargura:
Durante a vida apenas escultura,
abandona, com toda a mansidão
que sempre teve, a fixa e dura pose
do mármore que a teve toda a vida:
Respira agora e sopra a ventania,
levantando-se assim, adormecida,
sôbre seu próprio corpo, que jazia
e jaz, sem que ninguém nêle repouse.

IFIGÊNIA

Dir-se-ia que o mar não tem limites,


porém a cada passo deparamos
com a presença de Ifigênia morta —
e as coisas dêste mundo são convites:
Convidam a tocar-lhe o corpo aéreo
todas as coisas que ao redor fitamos —
Ifigênia, substância que transporta,
e muda os continentes de hemisfério,
quando vamos tocar-lhe o corpo, some,
desaparece em nós, porém por fora,
como se fôsse a nossa pele, toca
(pondo a doçura toda de seu nome
na carícia, que é muda, mas demora),
a saudade recente que provoca.

REALIDADE DOS MITOS

ULISSES
Porque volvió sin regresar Ulises
(M. A. ASTURIAS)

Ulisses em Ítaca, vivo ausente.


Talvez seja resíduo da viagem,
mas é tão pouc minha esta paisagem
que só posso estar longe desta gente:
Se foi minha, cortaram-na tão rente
que a memória mudou tôda a folhagem —
Falávamos idêntica linguagem —
Falo agora linguagem diferente:
Vivo em Ítaca ausente: minha fronte
alargou-se, meus olhos são maiores,
e na memória trago outros países:
Contudo, já foi meu êste horizonte,
já fui jovem aqui: olho arredores,
E vejo Ítaca ao longe, sem raízes.

PROMETEU

Quotidiano penedo da memória,


a vida a que estou preso pela luz
funde meus olhos. Pétala, o tempo,
como saber se é pálpebra ou abutre?
Cristaliza-se o vento. Trajetória,
sacrifica o azul buscando azuis
e deixa nas salinas, contratempo,
as dimensões. De mar, o mar se nutre.
Prometeu por amor, vejo a salina
e é meu fígado eternamente inteiro
bicado pelo tempo, que evapora:
Evola a flor primeiro na retina
e só depois no olfato: passageiro
o amor devora o fígado de outrora.

PROMETEU

Mais que a terra, me atrai a tua leveza;


fascina-me teu centro de águas vivas
em hélice ao redor de um tempo atado
às últimas fronteias do silêncio
que sôbre o mundo esparzes como mares:

Teu cabelo envolve pássaros e bosques


todo um céu cabe em tuas mãos e sexo:

E se te esqueço, desce a noite,


num esquecimento de muitas bússolas
e muitas agulhas desnorteadas.

Detem-se o tempo sôbre teus passos


e sôbre conchas e velas de tua viagem,
para que tenhas em mim a gravidade
dos mundos que te deram pássaros
e céus incólumes como penedos.

Sou Prometeu, e estou preso à memória


como os deuses à sua eternidade.

Mas o tempo devora-se: em meus olhos


a terra centra o pássaro, e por dentro
o pêso de tua ausência ergue cidades.

ULISSES

Jamais pus algodão em meus ouvidos


para calar o mar. Se o não ouvia,
era porque enlevado me fazia
mar adentro. Sentia-lhe os ruídos
como se fôssem passos meus, perdidos
em algum litoral de terra fira.
E o silêncio do mar, a maresia
pesava em mim: dos tombos repetidos
extraía, substância vã das ondas,
a espuma inesgotável dos projetos:
Vertiginosas construções do instante,
as viagens faziam-se redondas
e abarcavam o mundo: incompletos,
os círculos fechavam o viajante.

PENEPOLE

Penélope o espera, e além dela


a solidão de ver ao regressar
ter sido inútil. Para além do mar
um outro mar sem horizontes ela
o destino de todos. Mas a bela
Penélope jamais ouviu falar
dêsse outro mar; talvez seja o olhar
talvez o tempo. Mas nenhuma vela
seria útil ainda para um homem
na sua solidão. De volta, brusca-
mente, todos os conhecidos somem —
e nem se reconhece quando deita
ao lado de Penélope, que busca
refazer sua imagem já desfeita.

RUTE

Eis que Rute, com os olhos de água mansa


vem segura de si, jovem antiga,
ignorante da posse e da esquivança;
em alheio terreno, doce espiga,
espigas vem colher com mão amiga
de pássaros e céus: a semelhança
com tudo que a rodeia, tudo a liga
(entre espigas, trazendo a da lembrança)
a êsse homem que chamam de Boaz:
amou-o pelo olhar a jovem Rute
como quem ama o tempo, sendo jovem,
conforme as estações: pois a comovem
as barbas de Boaz, olhando atraz
cada espiga no tempo repercute.
ARIADNE

Estende-me Ariadne o invisível


e interminável carretel dos dias
de minha solidão: as mãos, vazias,
pegam a todo instante o impossível
mas não sabem retê-lo: previsível,
calculamos o tempo, porém frias,
as datas acontecem, e as bacias
confluem ás colheitas: perceptível
a morte está nas coisas ao redor
mas imprevista: em viagem secreta
por dentro de mim mesmo, sou bem eu.
Procuro a luz em cada pormenor:
desembarco afinal na ilha de Creta,
e o mito faz o resto: sou Teseu.

MINAS À DISTÂNCIA

ENTRE MONTANHAS

Entre montanhas — vales; entre a terra


e o céu, comum, a mesma eternidade
apenas com maior profundidade
no convívio dos homens com a serra.
E entre os homens apenas a linguagem
do silêncio, revolve a terra e lavra
a solidão das pedras. A palavra
adquire a antiguidade da paisagem.
Entre as pedras, apenas a ameaça
de rolarem ao longo das encostas
para sempre. Porém nada se passa
entre os homens: de cume para cume
os mesmos vales, onde foram postas
as montanhas, as mesmas de costume.

CHUVÔSO

Chuvôso, o gado nas encostas lentas


de Minas, à distância se ilumina
e verde e úmido na chuva fina,
dissolve-se nas formas nevoentes
da memória. Cidades ladeirentas
as de Minas! A água da chuva mina
suas casas, e chove nas capelas,
nos homens, nas igrejas. E rumina
um céu de nuvens úmidas, cinzentas,
o seu gado. Sem portas, sem janelas,
na solidão mais sólida e na serra
mais fria, Minas olha sem distância
suas próprias cidades, pela terra
desfazendo-se em ar, sólida ânsia.

NAS ENCOSTAS DO TEMPO

Diamante fôsco, nublado


caminho na cerração,

vejo cabêças de gado


no pasto açude, cercado
por cêrcas de solidão,

atônitas, tantas vêzes


desfazendo-se no ar,
que outras seriam

se os mêses
não fossem, no tempo, rêses

fechando os olhos em mar.

Diamantina, 1953.

DIAMANTINA, 53

Com perfil de neblina diluída,


em contôrnos de névoa dissipada,
concentras em meus olhos êsse aspecto
recôndito e insubmisso: dissolvida,
te pareces à serra, que apagada,
delineia montanhas no ar concreto.

Uma casa fechada em outra casa,


gelada, reduzida a um fogo extinto:
Uma casa fechada, sem acesso
na qual o vento sopra, quando sinto
nevoenta, nos olhos, de regresso,
ao passar pelo tempo, a dôr de uma asa.

Regressas com a ausência: de perfil


como as montanhas vejo-te à distância
passam campos por mim, depressa passam:
Passam águas — são rios; casas — são,
são casas sim, nos olhos de quem viu
os teus passos na névoa, sem substância.

OURO PRETO

Ao sairmos de nós, pela friagem


penetramos em sua intimidade,
e falamos com certa propriedade
sôbre igrejas e casas: a paisagem
limitou-se nas almas a uma imagem
de céu: só nas igrejas, claridade
a paisagem adquire, e realidade
perceptível aos homens em viagem
através da memória: cada igreja
aproxima o terrestre, quase aéreo,
daquilo que, longínquo, se deseja:
Ao sairmos de nós, visão exata,
encontramos a vida e é mistério,
nebulosa extração de antiga data.

OUTRO PRETO — 2

A atmosfera do tempo tudo envolve


em Ouro Preto. Intacta na memória
permanece a cidade que, incorpórea,
na névoa de si mesma se dissolve.
Ouro Preto está só. Tôda se volve
para a luz. Para a sombra sua glória
volta enfim. Triste pátina, a história
se deposita no ouro e lhe devolve
a escuridão que teve. Como o ocaso
Ouro Preto se incrusta nas entranhas
da memória, e o tempo lhe dá asas.
Paisagem de Ouro Preto, suas casas
desabam (como o tempo em seu atrazo)
na memória, fechada entre montanhas.

OURO PRETO — 3

I
Esta ciudad, que, precipitante,
ha tantos siglos que se viene abajo.
(GONGORA)

Aqui, dirão, foi Ouro Preto.


Sobre e desce a sua sombra
a procurar-se no tempo,
mas nada resta. E é tudo.
Suas íngremes ladeiras
imóveis, fora do tempo,
bateiam a água da chuva
para o fundo mais pesado.
E as casas desabam, pôdres.
Igreja, quantas igrejas
restam ainda? Nenhuma
poude sair de seu adro.
As igrejas estão prêsas
nesta Ouro Preto vazia.
Seus Santos de faces fundas,
de olhos fitos no invisível
contemplam-se mortos, mudos.
A palidez de seus Santos
escorre pelas paredes
e tudo é chuva. Nublado,
o céu de Ouro Preto pesa
e tudo se desconjunta..
As casas e os homens, tudo.
A própria luz desmorona
com as casas de Ouro Preto.
E um dia será mais nada.
Escombros, e sob a terra
profetas, deuses e santos
apodrecendo-se mútuos.
O círculo das montanhas
cada vez mais apertado
envolve Ouro Preto morta.

II

Ouro Preto começa


a desfazer-se. O tempo
já pode ser sentido
atrás das casas. Caem
as casas de Ouro Preto.
E atrás do tempo, oculto
ouve-se Jeremis
de longe, que o lamenta.
Nem pedra sôbre pedra,
nem uma casa ao lado
de outra, há de ficar
para dizer: aqui,
fechada entre montanhas
a luminosidade
foi sólida, e no ar
erguiam-se as igrejas
e casas de Ouro Preto,
em lágrimas de pedra
desfaz-se Jeremias.
Desfazem-se em seus olhos
as casas de Ouro Preto.

CONGONHAS

Encontram-se os profetas nesta serra


como se fôssem êles as montanhas
e encostas suas sombras. Nas entranhas
do tempo, a memória se faz terra
e falam-se em silêncio os que, profetas,
parecem-se às montanhas e estão sós
porque entre êles há vales. Muda, a voz
de deus, volta a ganhar feições concretas
de pedras inexorável: porém vário
como os dias, o ânimo e seu quadro
torna as caras humanas ou medonhas:
encontram-se os profetas neste adro
mas não entram na igreja — solitário
cada um dos profetas de Congonhas.

A MESA
(de Carlos Drummond)

Sentam-se à mesa todos os parentes


e são tantos que a mesa diminui,
parece que é menor: o tempo flui
mas estamos aqui, todos presentes,
os que vivem ainda e os ausentes:
entre nós a tristeza se imiscui,
voltam as desavenças, e reflui
mastigado rancor a nossos dentes:
reúnem-se os parentes comensais
à mesa de um amor que repercute
além de seus limites animais:
manchada de rancores a toalha,
o tempo à cabeceira nos deglute,
e a vida se reduz a uma migalha.

RUMINA AS HORAS

O boi rumina as horas. Lentamente


puxa o carro dos dias, e se arrasta
através da paisagem: o boi pasta
uma realidade outra, diferente,
envolta em névoa: apenas existente,
a terra para o boi pouco se afasta,
reduzida em seu âmbito, mais vasta
sem as lacunas do oceano ausente:
olha o boi a paisagem, ou medita
sôbre memórias de passado humano,
voltado para a própria solidão?
O tempo é pastoril, quotidiano,
e nos lugares onde o boi habita
caminha com a mesma lentidão.

CRUZEIRO

Pedra de solidão junto ao caminho,


e uma cruz de madeira desolada
fincada contra o céu: último espinho
para o olhar de quem já não vê nada.
Desanda o tempo, mas em vão. A terra
sabe contar os dias: quando um homem
junta os pés, vira árvore, e somem
para sempre as raízes. Tem a serra
uma montanha a mais, (talvez um dente)
cada vez que alguém morre: e é difícil
tirar-se do lugar uma montanha
cujas pálpebras baixam, precipício:
A cada passo a mesma cruz estranha
entre pedras e nuvens, pela frente.

CASA VELHA
(Santa Casa)

Encravada no centro da cidade


com pássaros cantando entre as paredes
de pedra e argamassa, de silêncio.
E o silêncio, amálgama de trinos
prolonga os corredores e são ruas
muito longe do trânsito das urbes.

Sobrepassas, tranquila, teus limites,


e és mais que a simples casa com seus pássaros
porque a velhice transformou-se em clima:

A atmosfera pesada se suaviza


e as paredes de pedra simplificam
a equação do calor na intimidade:

Sentimos que é calor de corpo humano


e o protegido coração murmura
sendo um núcleo de sombra e água fresca.

As árvores ensinam teu acesso:


muralhas de velhice sorridente,
seus pássaros têm asas de borracha

e sob os pés se deitam do barulho:


em borbulhas e círculos concêntricos
transformam, nos ouvidos de quem ouve

os ruídos que caem no teu líquido


silêncio interior de claustro vivo
onde os homens caminham com as plantas:

De pedra e argamassa, de silêncio,


esquina vegetal de homens e pássaros,
saindo-se de ti, somos fantasmas
na cidade de pressa que esquecemos.

SENTIMENTO ELEGÍACO

SILÊNCIO

O morto, no seu terno mais escuro,


recebe-nos deitado: e à presença
dos parentes, na sua indiferença
responde com um gesto quase duro
de pedra solitária: sôbre a mesa,
vestido como em todos os retratos,
inúteis como o corpo, seus sapatos
aonde o levarão? a que tristeza
difícil de esquecer? o morto junta
seus passos pela vida com os pés
imóveis afinal: e vê-se exposta
sôbre o rosto impassível a pergunta
dos que ficaram, como que através
de si mesmos, buscando uma resposta.

ELEGIA
(a Cangica)

Na terra jazes para sempre. Nada


pode nos devolver o que se foi
com nossas lágrimas. Porque chorada
foste, já não és senão u nome
que meu hálito embaça — e contudo
dói ainda, conquanto já não sôe
nas pedras que te cobrem. Me consome
uma tristeza funda de homem mudo
mas ainda que sinta a tua falta
nada posso fazer. Sinto que vie
em mim a tua sombra, se reparo
no silêncio que corre, uiva e salta
atrás do vento. Porém nunca tive,
nem te reencontraria tendo faro.

ENTERRO — 1

Um último passeio pelas ruas,


um punhado de terra derradeiro
e a solidão da morte: prisioneiro,
se lembranças ficaram, não são suas:
As árvores, o esquecem: logo somem
seus passos: tudo a terra, vã, deglute,
e só o que tem raízes, repercute:
sòmente como homem fica o homem:
quatro palmos de terra: é o bastante
para a árvore viva dos retratos
se o acolhe a memória no seu seio:
mas ao menos descansa: seus sapatos
cansarão de esperar que se levante
depois de dar seu último passeio.

ABANDONO
Onde estão teus habitantes
ó cidade abandonada?
Eram pássaros migrantes?
Está tudo como dantes
porém a vida, mudada.
Ariadne bem amada,
quedê o fio dos instantes?
nem Ariadne nem nada
devolve à casa fechada
defuntos vivos e amantes.

ENTÊRRO — 2

Minúsculo assim dentro de um caixão


eis um homem enfim com sua vida
de início ao fim, a táboas reduzida —
quatro táboas e mais uma, a do chão,
aquela que lhe dita a posição
que terá para sempre, a mais comprida,
igual em comprimento e tão despida
quanto a que o cobrirá de solidão.
Se a de baixo é menor sendo assoalho
parece entre as dos lados apertado
mas é com a de cima que amortalho
o seu sono de gêlo evaporado.
E o seu corpo que sempre foi cascalho
finalmente está líquido, parado.

CASA MORTA
(em Minas)

A casa estava atrás de cada porta.


As paredes espessas eram brancas
e de pedra. De ferro eram as trancas
com que o tempo, a sós na casa morta
trancara-se por dentro. O assoalho
de madeira sonora nos transporta
por longos corredores. Grande aorta
comum aos que viveram e sumiram
a morte vem em busca de agasalho.
Idênticos os mortos, semelhantes,
passeiam pela casa. Por dentro
parece que maior a construíram.
A casa ficou tal como era dantes —
mas me sinto de fora quando entro.
AUSÊNCIA VIVA

ALTURA SOLITÁRIA

O pássaro inaugura a solidão


onde só o tempo, solitário, vôa.
A sós, dilata o ar. E vive atôa.
Desaparece, e o ar ganha amplidão.
Assemelha-se a nós. Voando some,
e aqui, dirige os olhos para cima.
Aéreo como a vida, como o clima,
o pássaro voando não tem nome.
Suas asas dilatam seus domínios
e plana sôbre as ilhas: vã leitura
extram de seu vôo os adivinhos.
A leveza da terra que nos falta
converte-se no pássaro em altura
e a própria solidão parece alta.

SUGESTÃO DE VENTO

Cavalo em fuga, sugestão vento


anulando as distâncias na paisagem
aérea de seu fôlego. Uma aragem
desprende-se da terra em movimento
sob as patas: o ar torna-se lento
diante do cavalo; e atrás, agem
fôrças estranhas, à sua passagem
subtraindo os vestígios. Alimento
de cavalos em fuga, o ar corrente
é feno e evidência de horizonte
na planície do tempo sem substância
que os cavalos devoram. Realmente:
torna-se a terra sólida defronte
dos cavalos, e estende-se à distância.

DESGASTE

Arredondando as pedras fica impresso,


petrifica-se o vento num penedo,
virando pelo avesso o que é segredo,
virando eternidade pelo avesso:
Petrifico-me em ti desde o comêço —
penhasco inamovível do degredo
postergaste meus dias desde cedo
e gastei-me em arestas de insucesso:
Silenciosos minutos de infinito
imprimiram o mar na pedra nua
gravando aquilo que não fôra dito:
Secou-se o mar na pedra, que flutua,
e afundamos num vento de granito,
mas o tempo, detido, continua.

SOB O PESO DAS PÁLPEBRAS

Abre os olhos a estátua, prisioneira


de seu próprio volume. Quando olhada,
sente as pálpebras baixas, e esboça
sob a forma ajustada de fronteira,
em seu olhar de pedra uma pedreira
pesada e pesarosa: transplantada,
só dentro de si mesma, resguardada
contra o tempo e a vida rotineira
pelas pálpebras baixas, a matéria
retraida, transforma-se em conquista
sôbre a forma, volátil, de hora certa:
e em pedra fixa, mas em parte aérea,
esconde sob as pálpebras a vista,
prefere imaginar que está desperta.

CRIAÇÃO

Preparo a argila do tempo


e a manhã vai, vagarosa,
fazendo-se por si mêsma.

Modelo uma treva espêssa


que por dentro e que por fora
me rodeia: surgem formas
que em mim estavam vazias
e onde o dia, lentamente
derrama seu conteúdo:

Porque logo ficam cheias


fecham-se as formas, e guardam
um volume sem saída.

Tornam-se opacas. A côr


contudo, revela aos olhos
a luz que ficou fechada:
salta aos olhos o volume,
e as dimensões iluminam
as superfícies que dormem.

RETRATO
(um Modigliani)

Seu rosto jovem como antigo esbôço,


salta, movido por estranha mola
e encontra o ar, aéreo, pela gola
com uma revoada de alvorôço
percorrendo os olhares. Mais que môço,
aflora, e é tão rápido que evola,
porém mais que perfume, flor, corola,
transborda pelo talo do pescoço
para o alto: liberta nosso olhar
como que solta pássaros, e nós,
absorvidos por ela e o prodígio
de seus olhos azuis, sumimos no ar,
perdemos a noção de estar a sós
e somos para sempre seu vestígio.

SONETO NÚMERO 1
(Fragmentos de uma corôa)

A amada tira a roupa, e em espuma


parece ter estado, porque é alva
de epiderme e paisagem: uma a uma
descobrimos belezas sem ressalva
e amamos nela o dia, que clareia
seus encantos recentes como as horas:
compreendemos o tempo, cuja areia
situa, como praias, as auroras
ao longo de seu corpo litorâneo:
penínsulas, seus seios se desprendem
para a frente, e o mar se continúa
para atrás: as nádegas, de estranho
mar baías, são ondas e nos prendem
a seu corpo tão leve que flutua.

SONETO NÚMERO 2

Ao seu corpo, tão leve que flutua


dirigimo-nos nós eternamente
e o sol procura nela o continente
que todo mar promete, mas recua
para além de si mesmo: sem esfôrço
dominamos o ar, a tempestade
e ao começarmos a sentir saudade
de nós mesmos, achamos em seu dorso
de continente à vista, ao alcance,
país onde deitar nosso cansaço
e estímulo: seguimo-la, e é sua
a paisagem que despe de relance
nosso olhar: e despe-a cada passo
mas sòmente deitada fica nua.

SONETO NÚMERO 7

Parecendo irreal, pura miragem,


engano dos sentidos imprecisos,
a amada mostra o corpo: com sorrisos
que são gestos do olhar, muda de imagem
como os ventos de fôrça e direção:
Marítima, a mada mostra a praia
mas ao desembarcarmos em sua saia
mergulhamos em imaginação:
estamos novamente no alto mar
da própria solidão, numa viagem
com destino ignorado: e atravez
de nós mesmos, viaja nosso olhar
sem saber por aonde andam os pés:
o horizonte é limite da paisagem.

SONETO NÚMERO 11

A amada adota formas insuspeitas


ao olhar de quem ama, quando amada,
e surge, dessa bruma dissipada
como a paisagem, ao redor: bem feitas
todas elas, aquelas com que surge
e aquelas que apresenta, transitórias
como a névoa, porém satisfatórias
por obra de surpresa: quando urge
deitá-la sôbre o chão, toma distância
e afasta-se, em todos os sentidos,
(e em todos igualmente) cuja ânsia
coloca seu contôrno em movimento:
e amanhecem os dias, atraídos
por nosso olhar ainda sonolento.

SONETO NÚMERO 12

A nosso olhar ainda sonolento


seus encantos acenam, em convites
flagrantes e reais, que logo o vento
carrega muito além de seus limites:
e seu corpo limita com países
aéreos como a luz e o impossível
desejo de prendê-la: perceptível
pela sombra que deixa, são raízes
nossos pés, e só vemos arredores,
plantados como as árvores, em nós:
nos sentidos, que pássaros comovem
e abandonam, vazios, são maiores
os olhos onde os dias buscam foz
para o inédito vôo que promovem.

PERENIDADE LITORÂNEA

A amiga deita na areia.


Estende-se junto a mim
recém saída do mar.

A areia, como uma concha


recebe-a: de muito longe
vem-me sua voz, em viagem:
a amiga dá-me notícias
de minha imaginação,
e ao embarcar em seus olhos
encontro estranhos países.

Litorais acidentados,
os de seu corpo se atraem:
mas em seus olhos imensos
como baía nenhuma,
como baías, cuja água
fosse marítima e doce,
refugio-me fugindo
aos vendavais de mim mesmo:

Atrai-me o mar de seu corpo


como sempre, e o naufrágio
pouco me assusta: conheço-a
como nem ela imagina:
se a mão mergulho, no fundo
sinto seu seio, de areia.
sem que se possa enxugar:
pois em mim desaguam rios
de novidade tão grande
que o meu amor é perene.

TRIUNFO DE ESPUMA

Transparente o sorriso de seus dentes brancos


transparente o crepúsculo e a noite circundante
pululam pássaros além de seu sorriso

Ponho-lhe a mão no seio e há música em meus dedos


sei música de tudo, orquestra-se o silêncio
e transmito com trompas o que me diz seu búzio

As gaivotas conservam domínios e equilíbrio


transferem-se contudo, e trazem a atmosfera
bordoando-a com ida no pano de sua blusa

onde dois ventos duros apontam como lanças


forcejam como as ondas por despender-se da água
rasgando a superfície com um triunfo de espuma.

ELEONORA

De olhos fitos na distância


ouve o silêncio.

Cabêlo sôlto,
chamando o vento,
dando-te ao vento
para ficar,

nos olhos grandes


tens a tristeza
dos litorais.

Pássaro e sonho
encontram-se em teu sexo.

Mares revôltos
de sal, e nuvens
de solidão.

Virgem salgada,
mar litorâneo,

Deixa a tristeza
pousar no silêncio:

Deixa pousarem teus olhos


na distância
para que as ilhas, remotas,
e os pássaros,
nunca te esqueçam

( . . . diante do vento
dando-te ao vento
para ficar).

AUSÊNCIA VIVA

Saíram rios eternos de si mesmos para o mar.


A amiga saiu do vento, por isso mal pode estar.
De substância diferente fizeram-na os vendavais.
Ontem ainda aqui estava, hoje por onde andarás?
Pelas margens da memória chorando um rio sem par.

Colhendo a flor de suas águas um homem se faz corrente.


Sob os rios de sua ausência vou parecendo-me à chuva.
Esqueço a terra, e através da saudade que me inunda,
atravesso-me a mim mesmo, e em meu peito pulsa o mar.

Pulsa em mim, mas sem as ondas, (oscilação de seus seios)


que já do mar não se soltam pois que só sabem morrer
e é vacuo puro a lembrança da mulher, quando não volta
e apenas voltam as aves que puderam partir.

Espero-a tão sem segredos que a vejo através mim.


E tão delgado, que a luz me atravessa, não tem sombra
meu corpo, e a minha sombra, menos minha do que dela
atravessando-me a luz, recorta a amada no chão.

Ando em seu corpo deitado, longe de mim, no caminho


de todos os devaneios: deixo que fuja seu corpo
entre margens, fluvial: é puro aluvião a terra,
e seu corpo o continente dos oceanos que adia.
Os crepúsculos, na terra, queimam um dia sem fim.

DINÂMICA AMOROSA

Como um projétil armazeno impulsos


contra o vértice vivo de seus passos,
e a carícia das ondas cobre tudo.
Cobre a mulher que não diz nada, e olha
navios que partiram ante-ontem
por águas que sumiram atraz dêles
e deixaram apenas, de vestígio,
baías de oceano enclausurado
na memória dos homens
que passeiam com tôda a solidão
sôbre os ombros vergados,
dentro do olhar parado,
fixado na distância
e aderido à calvície do passado
que entremostra seus mastros arrancados
pela fúria das rotações da terra.

Passiva como a terra a mim se entrega


e argumento com ventos, quando explico,
pesquisando em seu corpo a lei das viagens,
os fluxos e refluxos,
dilatações e retrações do mar
que se confirma na respiração
de praias estreitadas ou mais largas,
do mar de meus pulmões
e pássaros de sexo igual ao meu:
dou-me à maré vazante e a recheio
com incêndios efêmeros de palha
que a deixam pela como um meio dia.

SAZÃO TARDIA

Deitado ao lado de uma espiga jovem


compartilhamos uma mesma ausência.
E a mesma inumerável solidão
das águas, quando uníssonas promovem
a surdina, como uma confidência
de fôlhas, de longígua multidão,
levou-nos de roldão,
trazendo uma carícia
tão doce e sem malícia,
tão como o trigo e seu ciclo puro,
tão como aquilo que no amor procuro,
(o nódulo da vida e seu objeto),
que ali fiquei, futuro,
madurando na espiga um céu completo.

CORÇA

Em si mesma encurralada
sente ladrar o arvorêdo,
córrego de água apressada
finge-se morta, parada
entre as árvores do mêdo:

Escapa ao cêrco fatal


graças aos galhos pra dentro
que o gamo traz no frontal
e ela no nó vegetal
das atrações de seu centro.

Em sendo árvore, ser vento,


e em sendo vento, ser corça,
plantada a cada momento
reside-lhe toda a fôrça.

E sendo assim tão veloz


que some sem um ruído,
de pronto os cães estão sós
e em cada tronco uma voz
sugere um rumo seguido.

De cada rumo provável


parece que os está vendo,
mas a selva impenetrável
absorve a corça, palpável
em selva se convertendo.

Selvagem e silenciosa
leva os cães ao desespêro:
nos galhos vertiginosa
some a corça misteriosa
deixando seu bosque inteiro.

PARENTESCO PERDIDO
Entre as montanhas, redondas,
o mar que no mar sumia,
em convívio quotidiano
com o vento, os navios
e a prática do impossível —

ali vivia, pousara


cansado de uma viagem
que procurava lembrar,

estrangeiro em terra firme,


desentranhando as raízes
de um parentesco afetivo
com os pássaros, tão próximos
de tudo que me atraía —

A cidade de meus dias


ficava ao pé das montanhas
fincada quase no mar.

VALE DOS VALES

Barrancos de treva espessa


desbarrancam solidão.

Passam éguas por meus olhos


galopando vento e rio,
e atropelando os limites
que a linha azul das montanhas
impõe às aves do chão.

Passam éguas por meus olhos


e deitam-se em minhas mãos

e uma febre de galopes


turbilhoando meu sangue
multiplica meu alento,
e dissipa a cerração.

Vertentes de altura viva


sucedem-se umas às outras
e conduzem-nos por dentro
da própria circulação
Ao vale dos outros vales
que dorme de olhos abertos
com marés concatenadas
e os peixes todos vivendo
da mesma respiração.

E UM HÁLITO DE VENTO

Galopa a terra — desordena a crina


toda de árvores, e um hálito de vento
percorre seu pescoço de colina.
Intacta, mostra a terra o que gerou:
São séculos de campo em movimento,
pálpebra o tempo, do sol, que a fecundou.

SISMÓGRAFO

Reconhecem-se os homens pelo seu silêncio


pelo modo de andar, pelo tamanho
de seus passos, e o diâmetro do olhar.

Alguns, os silenciosos, que descobrem


o mundo a cada instante, ficam mudos
para que os olhos possam relatar
tudo que viram e tudo que verão,
para que possam os ouvidos rudes
perceber o que os búzios oferecem —

Reconhecem-se, mais que pelos ombros


pela sombra, e mais que pela sombra
pelo modo de andar ao mesmo tempo
sôbre todos os raios, e estações,
que tangenciam a circunferência
nunca a mesma, da terra e seu fascínio.

Reconhecem-se os homens, pelo vento


que os precede, e as raízes que deixam,
e o clima que introduzem de passagem.

COLONIÃO

Regiões onde o gado é manso e doce


onde o gado bovino é quase humano,
cortando o capinzal ao rés do chão,
Ali, diante do rio que nos trouxe
descobrimos que o tempo mede um ano
e a paisagem varia com a estação:

Ali venta e se curva como foice


Cada feixe de pasto, quotidiano.

APRENDIZ
(Rimbaud)

Evoca a própria infância: nas raízes


do infortúnio que traz, tudo o coloca
diante do seu tempo: e o que evoca
pelo jôgo de sílabas felizes
fornece-lhe uma chave: são países
perdendo-se de vista, que êle toca
dentro de cada um: e desemboca
no mar da multidão sem diretrizes
com fronteiras fechando na descrença
cada um: descobre o mundo inteiro
dividido em milhões, posse de poucos:
a máquina, voraz, os homens roucos:
sobrenadando porém, na indiferença,
um que outro aprendiz de feiticeiro.

CRÔNICA
(Tirada de Elsie Lessa, a Henriqueta Lisbôa.)

Sente-se o ar das montanhas


na sua alma, e a paisagem
que reflete, tem tamanhas
semelhanças com a imagem
de seu Deus, que o vê. Recorta
eterna, em suas figuras,
a alma sem amarguras
de uma cidade já morta:
Mas de Sabará, sòmente
são as datas: cada vez
mais longe de tudo, sente
fugir o chão a seus pés?
ou quer fugir, e está presa
a si mesma, triste e mansa,
por uma imensa tristeza?
grava o que tem na lembrança
ou de outra vida, que apenas
pela esperança conhece
são estas almas serenas
que se descarnam em prece?
Suas figuras se calam.
Só seus olhos (infelizes
êstes sêres com raízes
num outro mundo) nos falam:
sobre si mesmos. Contudo,
com alguns traços (nervuras
do desenho) nas gravuras
de Gabriela, seu Deus mudo
sobressai: no fundo, o enlêvo
é mais uma linha da alma
e Gabriela na palma
de Deus, grava em relêvo.

ARQUITETURA INCÓGNITA

Nasce de um pé esquecido sôbre a areia —


não a viagem, que tem sempre sabor
de longe ineludível e imprevisto;
nem a ave do sonho em que divagas,
pedra sôlta que nasceu para ter sido
fôlha, mais que fôlha, córrego insubmisso;
nem as solidões que a ilha passeia
pelos arquipélagos do amor —

Nasce de um pé esquecido sôbre a areia —


quando pequeno é o boi de tanto campo,
e o córrego saudoso de tão só;
quando as recordações outro crepúsculo
consomem, longe das quedas dágua
e todos os silêncios participam
de tua ausência tão próxima do ar triste
que essas tardes inclinam ao chuvoso

Nasce de um pé esquecido sôbre a areia —


não o temor que tinhas de perder-me,
os navios incógnitos da noite,
nem o silêncio morno das gaivotas
que passeavam no vento ares parados
e depois aprenderam a ventar —

O passo, que não demos e deixamos


nessa esquina de chuvas que se encontram,
como as faces dos dados sôbre a mesa
onde tôdas as pátrias são as mesmas
e todos os amantes se parecem,
Para que se assemelhem as gaivotas
quando fôr tempo de se inaugurar,
novo elemento, reinos faunas e flora,
novos deuses de pedra em teu encalço —

Herbívoras penínsulas te buscam,


mares e deuses batem-se em tua planta:
Há arquiteturas submersas em teu pé,
teu calcanhar é côncavo no fundo!

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