VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad.
Márcio Thamos)
ENEIDA, CANTO I
As armas e o varão primeiro eu canto,
aquele que o destino pôs em fuga,
e que do litoral de Troia veio
até a Itália, às praias de Lavínio.
5 Ao mar e a outras terras muitas vezes
a violência dos deuses o lançou
por causa do cruel rancor de Juno.
E muito ele sofreu também na guerra
até poder fundar uma cidade
10 e transferir seus deuses para o Lácio:
donde a raça latina e os pais albanos,
donde as muralhas da altaneira Roma.
Ó Musa, agora as causas me recorda:
a rainha dos deuses que sentiu?
15 Em que se lhe ofendeu a divindade
para impor ao varão piedoso e ilustre
tantos esforços e perigos tantos?
Quanta ira em espíritos celestes!
Cidade antiga, de colonos tírios,
20 longe da foz do Tibre e oposta à Itália,
era Cartago rica e belicosa.
A qualquer outra Juno a preferia,
até à própria Samos, é o que dizem;
ali as armas tinha e tinha o carro.
25 A deusa esforços já não poupa e quer,
se a sorte consentir, torná-la imensa.
Mas, de sangue troiano, como ouvira,
surgiria uma raça, a qual, um dia,
abalaria os tírios baluartes,
AENEIDOS LIBER I
[Hex. 1-7] Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris [Dec. 1-12]
Italiam fato profugus Lauiniaque uenit
litora, multum ille et terris iactatus et alto
ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram,
5 multa quoque et bello passus, dum conderet urbem
inferretque deos Latio, genus unde Latinum
Albanique patres atque altae moenia Romae.
Musa, mihi causas memora, quo numine laeso [Dec. 13-18]
quidue dolens regina deum tot uoluere casus
[Hex. 8-11] 10 insignem pietate uirum, tot adire labores
impulerit. Tantaene animis caelestibus irae ?
Vrbs antiqua fuit (Tyrii tenuere coloni) [Dec. 19-46]
Karthago, Italiam contra Tiberinaque longe
[Hex. 12-33]
ostia, diues opum studiisque asperrima belli ;
15 quam Iuno fertur terris magis omnibus unam
posthabita coluisse Samo ; hic illius arma,
hic currus fuit ; hoc regnum dea gentibus esse,
si qua fata sinant, iam tum tenditque fouetque.
Progeniem sed enim Troiano a sanguine duci
20 audierat Tyrias olim quae uerteret arces ;
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30 povo imbatível, largamente rei,
que a ruína da Líbia causaria:
assim as Parcas vinham já fiando.
Preocupa-se Satúrnia e rememora
a guerra antiga que levara a Troia,
35 pela caríssima Argos indo à frente;
os motivos da ira e a dura mágoa
não lhe deixam o peito e nunca esquece
o juízo de Páris, que despreza
e ofende-lhe a beleza; a raça infame,
40 e as honras do raptado Ganimedes.
Por isso inflama-se e do Lácio afasta
os troianos, sobejos do furor
dos dânaos todos e do acerbo Aquiles,
que erravam tantos anos pelos mares,
45 levados pelas forças do destino.
Quanta luta, fundar a forte Roma!
Assim que se afastavam da Sicília
rumo ao mar alto e alegres davam velas,
rasgando a bronze a espuma e o sal das ondas,
50 Juno, que traz no peito a eterna mágoa,
diz consigo: “Eu, vencida, desistir?
Da Itália desviar o rei dos teucros
não posso, sou tolhida pelos fados!
Não pôde acaso Palas abrasar
55 a esquadra dos argivos e afundá-los
por culpa insana só de Ajax de Oileu?
Das nuvens coriscantes, ela mesma,
lançando o fogo rápido de Júpiter,
fendeu as naus e o mar volveu com ventos;
60 num turbilhão, arrebatou Ajax,
cujo peito varado ardia em chamas,
e o encravou na ponta de um rochedo.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
hinc populum late regem belloque superbum
uenturum excidio Libyae : sic uoluere Parcas.
Id metuens ueterisque memor Saturnia belli,
prima quod ad Troiam pro caris gesserat Argis
25 (necdum etiam causae irarum saeuique dolores
exciderant animo ; manet alta mente repostum
iudicium Paridis spretaeque iniuria formae
et genus inuisum et rapti Ganymedis honores),
his accensa super iactatos aequore toto
30 Troas, reliquias Danaum atque immitis Achilli,
arcebat longe Latio, multosque per annos
errabant acti fatis maria omnia circum.
Tantae molis erat Romanam condere gentem.
[Hex. 34-49]
Vix e conspectu Siculae telluris in altum [Dec. 47-67]
35 uela dabant laeti et spumas salis aere ruebant,
cum Iuno aeternum seruans sub pectore uolnus
haec secum : « Mene incepto desistere uictam
nec posse Italia Teucrorum auertere regem ?
quippe uetor fatis. Pallasne exurere classem
40 Argiuom atque ipsos potuit submergere ponto
unius ob noxam et furias Aiacis Oilei ?
Ipsa Iouis rapidum iaculata e nubibus ignem
disiecitque rates euertitque aequora uentis,
illum exspirantem transfixo pectore flammas
45 turbine corripuit scopuloque infixit acuto ;
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Mas eu, que sou dos deuses a rainha,
que sou de Júpiter irmã e esposa,
65 combato o mesmo povo há tantos anos!
E haverá quem adore ainda Juno,
quem honre, suplicante, seus altares?”
Remoendo-se, em brasa o coração,
à Eólia a deusa vai, país dos nimbos,
70 lugar repleto de Austros desvairados.
Ali, em ampla gruta, os ventos brutos,
bem como as retumbantes tempestades,
sob seu mando, o rei Éolo presos tem
e os refreia, no cárcere, em grilhões.
75 Revoltosos, rugindo na prisão,
abalam com clamores a montanha.
No topo, cetro em punho, assenta-se Éolo,
modera os ânimos e abranda as iras.
E é certo que, se não fizesse assim,
80 os ventos varreriam pelos ares
mares, terras e mesmo o céu profundo.
Por isso, o onipotente pai prendeu-os
em cavernas sombrias, lhes impondo
o peso enorme de elevados montes
85 e, então, lhes deu um rei que por fidúcia
as rédeas retesar ou distender
soubesse quando fosse requestado.
A este, pois, vem Juno assim pedir:
“Ó Éolo, o pai dos deuses, rei dos homens,
90 concedeu-te acalmar ou sobreerguer
com o vento as vagas: povo hostil a mim
navega o Mar Tirreno e leva à Itália
Ílio com seus penates derrotados.
Incute aos ventos força e as naus destrói,
95 dispersa a frota e os corpos pelo mar!
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
ast ego, quae diuom incedo regina Iouisque
et soror et coniunx, una cum gente tot annos
bella gero. Et quisquam numen Iunonis adorat
praeterea aut supplex aris imponet honorem ? »
[Hex. 50-64]
50 Talia flammato secum dea corde uolutans [Dec. 68-88]
nimborum in patriam, loca feta furentibus Austris,
Aeoliam uenit. Hic uasto rex Aeolus antro
luctantis uentos tempestatesque sonoras
imperio premit ac uinclis et carcere frenat.
55 Illi indignantes magno cum murmure montis
circum claustra fremunt ; celsa sedet Aeolus arce
sceptra tenens mollitque animos et temperat iras ;
ni faciat, maria ac terras caelumque profundum
quippe ferant rapidi secum uerrantque per auras.
60 Sed pater omnipotens speluncis abdidit atris
hoc metuens molemque et montis insuper altos
imposuit, regemque dedit qui foedere certo
et premere et laxas sciret dare iussus habenas.
Ad quem tum Iuno supplex his uocibus usa est :
[Hex. 65-75] 65 « Aeole, namque tibi diuom pater atque hominum rex [Dec. 89-100]
et mulcere dedit fluctus et tollere uento,
gens inimica mihi Tyrrhenum nauigat aequor
Ilium in Italiam portans uictosque Penatis :
incute uim uentis submersasque obrue puppis,
70 aut age diuersos et disice corpora ponto.
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Catorze esculturais ninfas possuo;
de todas a mais bela, Deiopeia,
por justa recompensa te darei
em casamento estável para sempre,
100 e pai de bela prole tu serás”.
Então responde-lhe Éolo: “A ti, rainha,
compete só dizer o que desejas:
é meu dever cumprir as ordens tuas,
pois tu és quem garante o meu reinado
105 e o meu trono confirma junto a Júpiter;
no banquete dos deuses, tu me assentas,
e tu fazes de mim o poderoso
senhor das tempestades e dos nimbos”.
Dizendo assim, com a ponta do bastão,
110 fendeu de um lado o cavo da montanha:
os ventos, feito exército que avança,
pela abertura irrompem com fragor
e as terras vão varrendo em turbilhão.
Ao mar se lançam juntos o Euro, o Noto,
115 e o Áfrico abundante em tempestades
e desde as profundezas o revolvem
erguendo vastas vagas contra as praias:
os homens clamam, rangem as amarras.
As nuvens arrebatam de repente
120 o céu e a luz do dia aos olhos teucros:
a noite escura deita sobre o mar.
Os polos troam, fulge o espaço em chamas,
e em tudo a morte aos homens se apresenta.
Eneias sente um forte calafrio,
125 lamenta-se, abre os braços para os céus
e assim profere: “Oh! mil vezes feliz
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Sunt mihi bis septem praestanti corpore Nymphae,
quarum quae forma pulcherrima, Deiopea,
conubio iungam stabili propriamque dicabo,
omnis ut tecum meritis pro talibus annos
[Hex. 76-80]
75 exigat et pulchra faciat te prole parentem. »
Aeolus haec contra : « Tuos, o regina, quid optes [Dec. 101-108]
explorare labor ; mihi iussa capessere fas est.
Tu mihi quodcumque hoc regni, tu sceptra Iouemque
concilias, tu das epulis accumbere diuom
80 nimborumque facis tempestatumque potentem. »
[Hex. 81-101]
Haec ubi dicta, cauom conuersa cuspide montem [Dec. 109-136]
impulit in latus : ac uenti uelut agmine facto,
qua data porta, ruont et terras turbine perflant.
Incubuere mari totumque a sedibus imis
85 una Eurusque Notusque ruont creberque procellis
Africus et uastos uoluont ad litora fluctus ;
insequitur clamorque uirum stridorque rudentum.
Eripiunt subito nubes caelumque diemque
Teucrorum ex oculis ; ponto nox incubat atra.
90 Intonuere poli et crebris micat ignibus aether
praesentemque uiris intentant omnia mortem.
Extemplo Aeneae soluontur frigore membra ;
ingemit et duplicis tendens ad sidera palmas
talia uoce refert : « O terque quaterque beati,
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quem encontrou a morte junto aos pais,
em Troia, ao pé das célebres muralhas!
Ó Tidides, dos dânaos o mais forte,
130 quisera ter vertido à destra tua
esta alma e ter tombado em solo ilíaco,
onde o dardo do eácida prostrou
o bravo Heitor e o grande Sarpedão,
por onde corre o Simoente e arrasta
135 debaixo da corrente tantos corpos
e escudos e elmos de varões valentes!”
Enquanto fala, vem ferir a vela
uma borrasca de Aquilão, que estruge
e às estrelas imensa vaga eleva.
140 Remos racham; a proa dá de lado,
oferecendo às ondas o costado:
um precipício de águas sobrevém.
A uns suspende, a outros, se entreabrindo,
a vaga mostra a terra em meio às águas;
145 a fúria da maré revolve o fundo.
Três naus arrebatadas pelo Noto
vão de encontro a rochedos escondidos
(rochedos que se postam entre as ondas,
altares, como dizem os itálicos,
150 imenso dorso ascenso à superfície);
três outras o Euro arrasta do alto-mar
a sirtes arenosas – cena horrível! –
e as atira e as enterra nos baixios.
A do fiel Orontes e seus lícios
155 o próprio Eneias vê ser atacada
pelo mar que despenha sobre a popa:
de cabeça o piloto oscila e cai;
a nau três vezes gira em torvelinho
e perde-se no pélago voraz:
160 no vasto abismo, poucos homens nadam
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
95 quis ante ora patrum Troiae sub moenibus altis
contigit oppetere ! o Danaum fortissime gentis
Tydide ! mene Iliacis occumbere campis
non potuisse tuaque animam hanc effundere dextra,
saeuos ubi Aeacidae telo iacet Hector, ubi ingens
100 Sarpedon, ubi tot Simois correpta sub undis
scuta uirum galeasque et fortia corpora uoluit ! »
Talia iactanti stridens Aquilone procella [Dec. 137-168]
[Hex. 102-123]
uelum aduersa ferit, fluctusque ad sidera tollit.
Franguntur remi, tum prora auertit et undis
105 dat latus, insequitur cumulo praeruptus aquae mons.
Hi summo in fluctu pendent ; his unda dehiscens
terram inter fluctus aperit, furit aestus harenis.
Tris Notus abreptas in saxa latentia torquet
(saxa uocant Itali mediis quae in fluctibus Aras,
110 dorsum immane mari summo), tris Eurus ab alto
in breuia et syrtis urget, miserabile uisu,
inliditque uadis atque aggere cingit harenae.
Vnam, quae Lycios fidumque uehebat Oronten,
ipsius ante oculos ingens a uertice pontus
115 in puppim ferit ; excutitur pronusque magister
uoluitur in caput ; ast illam ter fluctus ibidem
torquet agens circum et rapidus uorat aequore uertex.
Apparent rari nantes in gurgite uasto,
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entre as armas e as tábuas e os tesouros
de Troia que flutuam sobre as águas.
A nau robusta de Ilioneu e ainda
a do valente Acates e também
165 as que levam Abante e o velho Aletes
resistir à tormenta já não podem:
com as junturas dos flancos afrouxadas,
recebem todas a água hostil e fendem.
Mas, cheio de apreensão, sentiu Netuno
170 tremer o mar imenso com rumor
e agitarem-se as águas mais profundas
por força de procela encomendada.
Mirando ao longe, eleva a fronte plácida:
na superfície, vê dispersa a frota,
175 os troianos premidos pelas ondas
e pelo firmamento que desaba
– de Juno a ira e o dolo o irmão percebe.
Ao Euro diz, chamando, e diz ao Zéfiro:
“Tão grande audácia vem de vossa raça?
180 Ousais turbar, sem que eu conceda, ventos,
o céu e a terra e erguer tamanhas vagas?
Eu vos...! mas urge as ondas aplacar,
depois me pagareis o atrevimento
com pena nunca vista: agora ide!
185 E ao vosso rei levai estas palavras:
nem o Império do pélago lhe coube,
nem o horrível tridente por destino,
mas a mim! Ele tem imensas grutas,
vossas moradas, Euro, seus palácios;
190 deles se orgulhe. Que Éolo reine mas...
lá, no encerrado cárcere dos ventos!”
Assim fala e, mais rápido que a fala,
aplana a superfície revoluta,
dispersa as nuvens, traz de volta o sol.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
arma uirum tabulaeque et Troia gaza per undas.
120 Iam ualidam Ilionei nauem, iam fortis Achatae,
et qua uectus Abas, et qua grandaeuos Aletes,
uicit hiems ; laxis laterum compagibus omnes
accipiunt inimicum imbrem rimisque fatiscunt.
Interea magno misceri murmure pontum [Dec. 169-178]
[Hex. 124-131] 125 emissamque hiemem sensit Neptunus et imis
stagna refusa uadis, grauiter commotus ; et alto
prospiciens summa placidum caput extulit unda.
Disiectam Aeneae toto uidet aequore classem,
fluctibus oppressos Troas caelique ruina.
130 Nec latuere doli fratrem Iunonis et irae.
Eurum ad se Zephyrumque uocat, dehinc talia fatur :
[Hex. 132-141] « Tantane uos generis tenuit fiducia uestri ? [Dec. 179-191]
Iam caelum terramque meo sine numine, uenti,
miscere et tantas audetis tollere moles ?
135 Quos ego... ! sed motos praestat componere fluctus.
Post mihi non simili poena commissa luetis.
Maturate fugam regique haec dicite uestro :
non illi imperium pelagi saeuomque tridentem,
sed mihi sorte datum ; tenet ille immania saxa,
140 uestras, Eure, domos ; illa se iactet in aula
Aeolus et clauso uentorum carcere regnet. »
[Hex. 142-156]
Sic ait et dicto citius tumida aequora placat [Dec. 192-212]
collectasque fugat nubes solemque reducit.
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195 Cimôtoe une-se a Tritão, e, juntos,
do perigoso escolho as naus empurram:
o próprio deus as toma em seu tridente,
as vastas sirtes abre, amansa as águas
e em rodas leves sobre o mar desliza.
200 Assim como acontece tantas vezes:
na multidão rebenta uma revolta,
a turba vil se exalta e logo joga
tochas e pedras (armas do furor);
um homem de virtude e muitos méritos,
205 respeitado por todos, aparece;
então cala-se o povo para ouvi-lo,
só com palavras ele doma os ânimos
e abranda os corações: do mesmo modo,
já cessa em todo o pélago o fragor
210 depois que o deus, as águas contemplando,
os cavalos volteia e, limpo o céu,
distende as rédeas e em seu carro voa.
Exaustos, os Enéiadas procuram
seguir na direção das praias próximas
215 e ao litoral da Líbia se dirigem.
O lugar é um recôncavo isolado:
uma ilha interposta forma um porto,
as ondas do alto-mar ali se quebram,
repartem-se e recuam em refluxo.
220 De um lado e de outro, fragas eminentes,
penhascos gêmeos, sobem para o céu;
ao longo de seus pés as águas calam.
Frondosa e farfalhante cena acima,
de sombra espessa um negro bosque assoma.
225 De frente para a ilha, no sopé,
uma gruta na rocha saliente;
dentro, água doce e, em pedra viva, assentos:
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Cymothoe simul et Triton adnixus acuto
145 detrudunt nauis scopulo ; leuat ipse tridenti
et uastas aperit Syrtis et temperat aequor
atque rotis summas leuibus perlabitur undas.
Ac ueluti magno in populo cum saepe coorta est
seditio saeuitque animis ignobile uolgus ;
150 iamque faces et saxa uolant, furor arma ministrat ;
tum, pietate grauem ac meritis si forte uirum quem
conspexere, silent arrectisque auribus astant ;
ille regit dictis animos et pectora mulcet :
sic cunctus pelagi cecidit fragor, aequora postquam
155 prospiciens genitor caeloque inuectus aperto
flectit equos curruque uolans dat lora secundo.
[Hex. 157-179] Defessi Aeneadae quae proxima litora cursu [Dec. 213-245]
contendunt petere, et Libyae uertuntur ad oras.
Est in secessu longo locus ; insula portum
160 efficit obiectu laterum, quibus omnis ab alto
frangitur inque sinus scindit sese unda reductos.
Hinc atque hinc uastae rupes geminique minantur
in caelum scopuli, quorum sub uertice late
aequora tuta silent ; tum siluis scaena coruscis
165 desuper, horrentique atrum nemus imminet umbra ;
fronte sub aduersa scopulis pendentibus antrum,
intus aquae dulces uiuoque sedilia saxo,
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moradia das ninfas do lugar.
Ali às naus cansadas não constrangem
230 cabos nem âncoras de dente adunco.
Eneias se encaminha para lá
com sete naus ao todo resgatadas.
Ardorosos por terra, desembarcam,
tomam posse da praia desejada
235 e, os corpos escorrendo ainda em sal,
os troianos estiram-se na areia.
Antes de tudo, Acates extraiu
da pedra uma faísca, alimentou-a
com folhas secas sustentando o fogo
240 e em gravetos a chama arrebatou.
E, apesar do cansaço, então apanham
o trigo corrompido pelas ondas
e os aprestos de Ceres e os dispõem
para torrar nas chamas e em seguida
245 moer na pedra os grãos recuperados.
No entanto, Eneias sobe no penhasco
e lança um largo olhar por todo o pélago
a ver se avista Anteu lançado ao vento,
as birremes dos frígios, talvez Cápis,
250 e as armas de Caíco em altas popas.
Nenhuma nau à vista, mas, na orla,
três cervos vê vagando; um bando os segue
e, em fila, vai pastando pelos vales.
Deteve-se o varão: seu arco empunha
255 e as flechas ágeis do fiel Acates
para abater primeiro os próprios guias,
de cabeças altivas e engalhadas;
então põe todo o bando em alvoroço
cravando setas no frondoso bosque.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
nympharum domus. Hic fessas non uincula nauis
ulla tenent, unco non alligat ancora morsu.
170 Huc septem Aeneas collectis nauibus omni
ex numero subit ; ac magno telluris amore
egressi optata potiuntur Troes harena
et sale tabentis artus in litore ponunt.
Ac primum silici scintillam excudit Achates
175 succepitque ignem foliis atque arida circum
nutrimenta dedit rapuitque in fomite flammam.
Tum Cererem corruptam undis Cerealiaque arma
expediunt fessi rerum, frugesque receptas
et torrere parant flammis et frangere saxo.
180 Aeneas scopulum interea conscendit, et omnem [Dec. 246-267]
[Hex. 180-197] prospectum late pelago petit, Anthea si quem
iactatum uento uideat Phrygiasque biremis
aut Capyn aut celsis in puppibus arma Caici.
Nauem in conspectu nullam, tris litore ceruos
185 prospicit errantis : hos tota armenta sequontur
a tergo et longum per uallis pascitur agmen.
Constitit hic arcumque manu celerisque sagittas
corripuit, fidus quae tela gerebat Achates,
ductoresque ipsos primum capita alta ferentis
190 cornibus arboreis sternit, tum uolgus et omnem
miscet agens telis nemora inter frondea turbam ;
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260 E não desiste até, vitorioso,
lançar por terra sete dos maiores,
igualando-os ao número das naus.
Voltando ao porto, faz a divisão;
depois reparte o vinho das vasilhas
265 que Acestes, generoso herói, lhes dera
ao deixarem as praias da Trinácria
e assim afaga os corações aflitos:
“Companheiros, lembremo-nos de outrora:
piores males tendes já sofrido.
270 Um deus também a estes dará fim.
Vós afrontastes a raivosa Cila
e os escolhos que rugem largo e fundo,
já vistes as cavernas dos Ciclopes.
Invocai vossos ânimos de volta,
275 afastai vossas tristes aflições.
Talvez um dia seja prazeroso
rememorarmos estes infortúnios.
Em meio a tantos riscos e percalços,
seguimos o destino e ao Lácio vamos,
280 onde afáveis moradas nos esperam,
pois lá é justo Troia ressurgir.
Perseverai: guardai-vos à bonança!”
Assim dizendo, aflito e preocupado,
a esperança simula no semblante,
285 no coração reprime a dor profunda.
Das reses, refeição futura, cuidam:
a pele arrancam, põem à mostra as carnes;
frementes nacos cortam uns e espetam,
outros na praia aquecem caldeirões.
290 Então refazem no alimento as forças:
deitados sobre a relva, ali se fartam
de Baco envelhecido e gorda caça.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
nec prius absistit quam septem ingentia uictor
corpora fundat humo et numerum cum nauibus aequet.
Hinc portum petit et socios partitur in omnis.
195 Vina bonus quae deinde cadis onerarat Acestes
litore Trinacrio dederatque abeuntibus heros
diuidit, et dictis maerentia pectora mulcet :
[Hex. 198-207] « O socii (neque enim ignari sumus ante malorum), [Dec. 268-282]
o passi grauiora, dabit deus his quoque finem.
200 Vos et Scyllaeam rabiem penitusque sonantis
accestis scopulos, uos et Cyclopia saxa
experti : reuocate animos maestumque timorem
mittite ; forsan et haec olim meminisse iuuabit.
Per uarios casus, per tot discrimina rerum
205 tendimus in Latium, sedes ubi fata quietas
ostendunt ; illic fas regna resurgere Troiae.
Durate, et uosmet rebus seruate secundis. »
Talia uoce refert curisque ingentibus aeger [Dec. 283-302]
[Hex. 208-222]
spem uoltu simulat, premit altum corde dolorem.
210 Illi se praedae accingunt dapibusque futuris ;
tergora diripiunt costis et uiscera nudant ;
pars in frusta secant ueribusque trementia figunt,
litore aena locant alii flammasque ministrant.
Tum uictu reuocant uiris, fusique per herbam
215 implentur ueteris Bacchi pinguisque ferinae.
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Fome aplacada, mesa recolhida,
dos amigos perdidos se perguntam
295 e entre a esperança e o medo se demoram:
talvez estejam vivos ou talvez,
a hora extrema tendo-os alcançado,
não possam mais ouvir quando chamados.
Principalmente Eneias o piedoso
300 chora em silêncio pela sina amarga
do forte Orontes, de Âmico e de Lico,
de Gias bravo e de Cloanto bravo.
Findavam-se os lamentos quando Júpiter,
de lá do éter profundo, contemplando
305 o navegável mar e as terras amplas,
os litorais e os povos abundantes,
no arco do céu de súbito parou,
pousando os olhos bem no reino líbio.
E enquanto a comoção lhe abala o peito,
310 aflita, os olhos rebrilhando em lágrimas,
lhe fala Vênus: “Ó eterno rei
que imperas sobre os homens, sobre os deuses,
e com a força do raio os apavoras,
o que fez meu Eneias contra ti,
315 que delito os troianos cometeram,
que, após sofrerem tanto pela Itália,
se fecha o mundo inteiro para eles?
Prometeste, sem dúvida, os Romanos,
poderosos de um novo sangue teucro,
320 que, no futuro, com o passar dos anos,
o mar e as terras todas deteriam.
O que te fez mudar de ideia, pai?
Meu consolo por Troia estava nisto:
depois da queda e das ruínas tristes,
325 poder fados com fados compensar.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Postquam exempta fames epulis mensaeque remotae,
amissos longo socios sermone requirunt,
spemque metumque inter dubii, seu uiuere credant
siue extrema pati nec iam exaudire uocatos.
220 Praecipue pius Aeneas nunc acris Oronti,
nunc Amyci casum gemit et crudelia secum
fata Lyci fortemque Gyan fortemque Cloanthum.
Et iam finis erat, cum Iuppiter aethere summo [Dec. 303-346]
[Hex. 223-253]
dispiciens mare ueliuolum terrasque iacentis
225 litoraque et latos populos, sic uertice caeli
constitit et Libyae defixit lumina regnis.
Atque illum talis iactantem pectore curas
tristior et lacrimis oculos suffusa nitentis
adloquitur Venus : « O qui res hominumque deumque
230 aeternis regis imperiis et fulmine terres,
quid meus Aeneas in te committere tantum,
quid Troes potuere, quibus tot funera passis
cunctus ob Italiam terrarum clauditur orbis ?
Certe hinc Romanos olim uoluentibus annis,
235 hinc fore ductores, reuocato a sanguine Teucri,
qui mare, qui terras omnis dicione tenerent,
pollicitus : quae te, genitor, sententia uertit ?
Hoc equidem occasum Troiae tristisque ruinas
solabar fatis contraria fata rependens ;
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Os varões, tantos transes por que passam,
fortuna idêntica os persegue ainda.
De provações não basta, grande rei?
Antenor, escapando dos aquivos,
330 pôde alcançar a Ilíria e em segurança
no reino dos Liburnos penetrar,
transpondo mesmo a fonte do Timavo,
donde por nove bocas salta um mar
que faz gemer os montes e prossegue,
335 sonoro pélago a inundar os campos.
Afinal, a cidade de Patávio,
moradia dos teucros, lá fundou,
deu nome ao povo e alçou de Troia as armas;
tranquilo agora, em doce paz descansa.
340 E nós, a tua própria descendência,
e nós, a quem consentes o alto céu,
perdidas nossas naus – desastre atroz! –,
arrasa-nos a ira só de um nume
e das praias da Itália nos afasta.
345 É essa a recompensa da piedade?
Assim é que devolves nosso trono?”
Sorrindo, o pai dos homens e dos deuses,
rosto que abranda o céu e as tempestades,
após beijar a filha, assim lhe fala:
350 “Citereia, não temas pelos teus,
inabalável é o destino deles.
A cidade e as muralhas de Lavínio,
muralhas prometidas, tu verás
e aos céus elevarás o grande Eneias,
355 pois te digo que não mudei de ideia.
Ele (já que te afliges, vou-te expor
os longínquos segredos do destino),
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
240 nunc eadem fortuna uiros tot casibus actos
insequitur. Quem das finem, rex magne, laborum ?
Antenor potuit mediis elapsus Achiuis
Illyricos penetrare sinus atque intima tutus
regna Liburnorum et fontem superare Timaui,
245 unde per ora nouem uasto cum murmure montis
it mare proruptum et pelago premit arua sonanti.
Hic tamen ille urbem Pataui sedesque locauit
Teucrorum et genti nomen dedit armaque fixit
Troia, nunc placida compostus pace quiescit :
250 nos, tua progenies, caeli quibus adnuis arcem,
nauibus (infandum !) amissis unius ob iram
prodimur atque Italis longe disiungimur oris.
Hic pietatis honos ? sic nos in sceptra reponis ? »
Olli subridens hominum sator atque deorum [Dec. 347-349]
255 uoltu, quo caelum tempestatesque serenat,
[Hex. 254-256]
oscula libauit natae, dehinc talia fatur :
« Parce metu, Cytherea, manent immota tuorum [Dec. 350-406]
[Hex. 257-296]
fata tibi ; cernes urbem et promissa Lauini
moenia sublimemque feres ad sidera caeli
260 magnanimum Aenean ; neque me sententia uertit.
Hic tibi (fabor enim, quando haec te cura remordet,
longius, et uoluens fatorum arcana mouebo)
11

levando uma terrível guerra à Itália,
povos ferozes há-de dominar,
360 leis e muralhas há-de impor aos homens
até o terceiro estio e três invernos
o encontrarem no Lácio feito rei,
depois de ter vencido enfim os rútulos.
E Ascânio, a quem Iúlo agora chamam
365 (pois Ilo era o apelido do menino
enquanto resistia o reino de Ílio),
completará a série, mês a mês,
de trinta grandes giros no poder
e, de Lavínio, a capital do reino
370 para a forte Alba Longa mudará.
Aí, por mais trezentos longos anos,
sempre a raça de Heitor governará
até Ília, a real sacerdotisa,
grávida, filhos gêmeos dar a Marte.
375 Feliz, com a fulva pele da mãe loba,
Rômulo acolherá então o povo,
erguerá as muralhas marciais
e aos romanos dará o próprio nome.
Nem tempo nem espaço imponho a estes:
380 não tem limite o Império que lhes dei.
E mesmo a rude Juno, que por medo
agora terras, céus e mar castiga,
depois de refletir melhor, também
ajudará comigo os teus romanos,
385 do mundo os donos, a nação togada.
Assim desejo. Lustros decorridos,
enfim um novo tempo chegará,
em que a casa de Assáraco há-de impor
a Ftia o jugo e à célebre Micenas,
390 além de Argos vencida dominar.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
bellum ingens geret Italia populosque ferocis
contundet moresque uiris et moenia ponet,
265 tertia dum Latio regnantem uiderit aestas,
ternaque transierint Rutulis hiberna subactis.
At puer Ascanius, cui nunc cognomen Iulo
additur (Ilus erat, dum res stetit Ilia regno),
triginta magnos uoluendis mensibus orbis
270 imperio explebit, regnumque ab sede Lauini
transferet, et longam multa ui muniet Albam.
Hic iam ter centum totos regnabitur annos
gente sub Hectorea, donec regina sacerdos
Marte grauis geminam partu dabit Ilia prolem.
275 Inde lupae fuluo nutricis tegmine laetus
Romulus excipiet gentem et Mauortia condet
moenia Romanosque suo de nomine dicet.
His ego nec metas rerum nec tempora pono :
imperium sine fine dedi. Quin aspera Iuno,
280 quae mare nunc terrasque metu caelumque fatigat,
consilia in melius referet, mecumque fouebit
Romanos, rerum dominos gentemque togatam.
Sic placitum. Veniet lustris labentibus aetas
cum domus Assaraci Pthiam clarasque Mycenas
285 seruitio premet ac uictis dominabitur Argis.
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Nascerá, de uma bela origem, César,
troiano que a um tempo estenderá
o Império ao Oceano e a fama aos astros;
Júlio, seu nome, o prende ao grande Iúlo.
395 Carregado de espólios do Oriente,
o acolherás no céu tranquila um dia;
será também nas preces invocado.
Então, os duros tempos se abrandando,
as guerras findas, ditarão as leis
400 Quirino e Remo, Vesta e Boa Fé.
Enfim, as portas lúgubres da Guerra
com travas e com ferro encerrarão
o impiedoso Furor, que rugirá,
sentado sobre as armas assassinas,
405 horrendo, a boca em sangue, as mãos às costas,
com cem grilhões de bronze a acorrentá-lo”.
Diz isso e das alturas logo envia
de Maia o filho a fim de abrir as terras
e a nova fortaleza de Cartago
410 aos teucros, em refúgio hospitaleiro;
que, do destino assim desprevenida,
dali não queira Dido os expulsar.
Batendo as asas pela imensidão,
às praias líbias chega o mensageiro;
415 as ordens cumpre e doma como quer
o encarniçado coração dos púnicos.
Predispõe-se a rainha mais que todos
com mansidão aos teucros acolher.
Aflito à noite, Eneias o piedoso,
420 ao despontar da luz revigorante,
resolveu explorar aquelas terras.
A que praias o vento os arrastara
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Nascetur pulchra Troianus origine Caesar,
imperium Oceano, famam qui terminet astris,
Iulius, a magno demissum nomen Iulo.
Hunc tu olim caelo spoliis Orientis onustum
290 accipies secura ; uocabitur hic quoque uotis.
Aspera tum positis mitescent saecula bellis ;
cana Fides et Vesta, Remo cum fratre Quirinus
iura dabunt ; dirae ferro et compagibus artis
claudentur Belli portae ; Furor impius intus
295 saeua sedens super arma et centum uinctus aenis
post tergum nodis fremet horridus ore cruento. »
Haec ait et Maia genitum demittit ab alto, [Dec. 407-418]
[Hex. 297-304]
ut terrae utque nouae pateant Karthaginis arces
hospitio Teucris, ne fati nescia Dido
300 finibus arceret. Volat ille per aera magnum
remigio alarum ac Libyae citus astitit oris.
Et iam iussa facit, ponuntque ferocia Poeni
corda uolente deo ; in primis regina quietum
accipit in Teucros animum mentemque benignam.
305 At pius Aeneas per noctem plurima uoluens, [Dec. 419-446]
ut primum lux alma data est, exire locosque
[Hex. 305-324]
explorare nouos, quas uento accesserit oras,
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e, homens ou feras – tudo vendo inculto –,
quem habitasse ali saber espera
425 para informar depois os companheiros.
De negras sombras e árvores cercada,
na vertente do bosque, esconde a frota
dentro da gruta aberta no rochedo,
e, acompanhado apenas por Acates,
430 duas lanças de ferro vai brandindo.
Na mata, ao seu encontro vem a mãe,
trazendo de uma virgem as feições,
de uma virgem de Esparta o traje e as armas,
ou semelhante a Harpálice da Trácia
435 quando os corcéis fustiga na corrida
e deixa para trás o rápido Euro,
pois carregava ao ombro um arco leve,
como entre as caçadoras é costume,
e tinha a cabeleira solta ao vento,
440 joelhos nus e um laço a suspender
as pregas ondeantes do vestido:
“Ei moços”, logo disse, “acaso vistes
uma das minhas – tiracolo e aljava,
de um lince a pintalgada pele usando –
445 tranquila por aí, senão aos gritos
caçando algum selvagem javali?”
E o filho assim a Vênus respondeu:
“Não vi tampouco ouvi colega tua,
ó virgem – como a ti me referir? –,
450 pois não tens a aparência dos mortais,
nem voz humana – és deusa com certeza:
de Febo a irmã, senão alguma ninfa!
Quem quer que sejas, oh! nos favorece,
os nossos sofrimentos alivia
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
qui teneant (nam inculta uidet), hominesne feraene,
quaerere constituit sociisque exacta referre.
310 Classem in conuexo nemorum sub rupe cauata
arboribus clausam circum atque horrentibus umbris
occulit ; ipse uno graditur comitatus Achate
bina manu lato crispans hastilia ferro.
Cui mater media sese tulit obuia silua
315 uirginis os habitumque gerens et uirginis arma
Spartanae, uel qualis equos Threissa fatigat
Harpalyce uolucremque fuga praeuertitur Eurum.
Namque umeris de more habilem suspenderat arcum
uenatrix dederatque comam diffundere uentis,
320 nuda genu nodoque sinus collecta fluentis.
Ac prior « Heus » inquit « iuuenes, monstrate, mearum
uidistis si quam hic errantem forte sororum
succinctam pharetra et maculosae tegmine lyncis,
aut spumantis apri cursum clamore prementem ».
325 Sic Venus ; et Veneris contra sic filius orsus : Dec. 447-460]
[Hex. 325-334]
« Nulla tuarum audita mihi neque uisa sororum,
o, quam te memorem ? uirgo, namque haud tibi uoltus
mortalis, nec uox hominem sonat ; o, dea certe
(an Phoebi soror ? an Nympharum sanguinis una ?),
330 sis felix nostrumque leues, quaecumque, laborem
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455 e nos conta em que praias deste mundo,
debaixo de que céus, nos encontramos.
Os homens e o lugar desconhecemos:
lançaram-nos aqui o vento e as vagas.
Por nossa destra, vítimas e vítimas
460 em teus altares hão-de sucumbir”.
E Vênus: “Não mereço tanta honra;
as virgens tírias portam sempre a aljava
e às pernas prendem borzeguins de púrpura.
De uma raça indomável, tens aqui
465 os tírios e a cidade de Agenor,
mas nos confins da Líbia: o reino púnico.
É Dido a governante deste Império;
para fugir do irmão, partiu de Tiro.
A injúria é longa, e longos os reveses...
470 mas vou contar somente o principal:
a infeliz era esposa de Siqueu,
o mais rico de todos os fenícios,
e o amava com ávida paixão.
A ele o pai a tinha dado e unido
475 ainda virgem em solenes núpcias.
Mas o reino de Tiro pertencia
ao irmão dela, o atroz Pigmalião,
criminoso sem par e sem piedade:
entre os dois veio o ódio se interpor.
480 Obcecado pelo ouro, às escondidas,
surpreendendo Siqueu desprevenido,
diante dos altares o transpassa
e não se importa com a paixão da irmã.
O delito ocultou por muito tempo
485 e com vãs esperanças iludiu
dissimuladamente a amante aflita.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
et quo sub caelo tandem, quibus orbis in oris
iactemur doceas ; ignari hominumque locorumque
erramus uento huc uastis et fluctibus acti :
multa tibi ante aras nostra cadet hostia dextra. »
335 Tum Venus : « Haud equidem tali me dignor honore ; [Dec. 461-513]
[Hex. 335-371]
uirginibus Tyriis mos est gestare pharetram
purpureoque alte suras uincire coturno.
Punica regna uides, Tyrios et Agenoris urbem ;
sed fines Libyci, genus intractabile bello.
340 Imperium Dido Tyria regit urbe profecta,
germanum fugiens. Longa est iniuria, longae
ambages ; sed summa sequar fastigia rerum.
Huic coniunx Sychaeus erat, ditissimus auri
Phoenicum, et magno miserae dilectus amore,
345 cui pater intactam dederat primisque iugarat
ominibus. Sed regna Tyri germanus habebat
Pygmalion, scelere ante alios immanior omnis.
Quos inter medius uenit furor. Ille Sychaeum
impius ante aras atque auri caecus amore
350 clam ferro incautum superat, securus amorum
germanae ; factumque diu celauit et aegram
multa malus simulans uana spe lusit amantem.
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Mas do esposo insepulto a própria imagem
apareceu-lhe em sonhos ostentando
nas faces uma incrível palidez;
490 os altares cruentos lhe mostrou,
mostrou-lhe o peito trespassado a ferro
e o crime à casa oculto desvelou.
Que fuja logo e deixe a pátria a exorta
e um antigo tesouro lhe revela,
495 para servir de auxílio na viagem:
aos montes, enterrados, ouro e prata.
Dido abalada preparava a fuga.
Congregaram-se aqueles que nutriam
pelo tirano ou medo ou ódio extremos.
500 O acaso ofereceu-lhes prestes naus,
delas se apossam, de ouro as acumulam.
Pelo mar são levadas as riquezas
do avarento e cruel Pigmalião:
uma mulher comanda a expedição.
505 Chegaram ao lugar em que verás
muralhas imponentes que se elevam
e a nova fortaleza de Cartago;
compraram toda a terra que pudessem
com o couro só de um boi delimitar;
510 seu nome Birsa, couro, vem do fato.
Mas vós, quem sois? Viestes de que praias?
E que caminho tendes a buscar?”
Ele responde, num suspiro fundo:
“Ó deusa, se eu contasse desde o início
515 (e fosses ouvir), antes que eu findasse
a narração dos nossos sofrimentos,
Vésper no Olimpo o dia encerraria.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Ipsa sed in somnis inhumati uenit imago
coniugis ora modis attollens pallida miris ;
355 crudelis aras traiectaque pectora ferro
nudauit, caecumque domus scelus omne retexit.
Tum celerare fugam patriaque excedere suadet
auxiliumque uiae ueteres tellure recludit
thesauros, ignotum argenti pondus et auri.
360 His commota fugam Dido sociosque parabat.
Conueniunt quibus aut odium crudele tyranni
aut metus acer erat ; nauis, quae forte paratae,
corripiunt onerantque auro. Portantur auari
Pygmalionis opes pelago ; dux femina facti.
365 Deuenere locos ubi nunc ingentia cernes
moenia surgentemque nouae Karthaginis arcem,
mercatique solum, facti de nomine Byrsam,
taurino quantum possent circumdare tergo.
Sed uos qui tandem ? quibus aut uenistis ab oris ?
370 quoue tenetis iter ? » Quaerenti talibus ille
suspirans imoque trahens a pectore uocem :
« O dea, si prima repetens ab origine pergam [Dec. 514-534]
[Hex. 372-386]
et uacet annalis nostrorum audire laborum,
ante diem clauso componet Vesper Olympo.
16

Por muitos mares, vínhamos de Troia
(se ouviste já falar na antiga Troia)
520 e às praias líbias fomos arrastados
ao acaso por uma tempestade.
Eneias o piedoso, tendo salvo
das mãos dos inimigos meus penates,
na frota os tenho e sou no céu famoso.
525 Busco a Itália, a nação do sumo Júpiter.
Com vinte naus lancei-me ao Mar da Frígia
– a deusa minha mãe mostrava a rota,
obediente aos fados, eu seguia –,
arrasadas pelo Euro e pelas ondas,
530 sete apenas me restam, e eu, misérrimo,
Europa e Ásia sendo-me vedadas,
pelos ermos da Líbia vou vagando”.
E Vênus, não podendo mais ouvir,
na dor e nos lamentos o atalhou:
535 “Sejas quem for, não creio que respires
sem permissão dos deuses o ar da vida,
tu que à cidade tíria enfim chegaste.
Segue logo ao palácio da rainha,
pois te anuncio a volta dos amigos
540 e a frota em segurança resgatada
após os Aquilões se dispersarem,
se em vão no augúrio os pais não me instruíram.
Olha o bando de doze alegres cisnes;
do éter descendo, o pássaro de Júpiter,
545 em céu aberto, há pouco os perseguia.
Parecem escolher agora as terras
em que pousar ou tê-las já escolhido;
batem asas e em fila a salvo brincam,
reunidos deram voltas e cantaram.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
375 Nos Troia antiqua, si uestras forte per auris
Troiae nomen iit, diuersa per aequora uectos
forte sua Libycis tempestas appulit oris.
Sum pius Aeneas, raptos qui ex hoste penatis
classe ueho mecum, fama super aethera notus.
380 Italiam quaero patriam et genus ab Ioue summo.
Bis denis Phrygium conscendi nauibus aequor,
matre dea monstrante uiam, data fata secutus ;
uix septem conuolsae undis Euroque supersunt.
Ipse ignotus, egens, Libyae deserta peragro,
385 Europa atque Asia pulsus. » Nec plura querentem
passa Venus medio sic interfata dolore est :
« Quisquis es, haud, credo, inuisus caelestibus auras [Dec. 535-552]
[Hex. 387-401]
uitalis carpis, Tyriam qui adueneris urbem.
Perge modo atque hinc te reginae ad limina perfer.
390 Namque tibi reduces socios classemque relatam
nuntio et in tutum uersis Aquilonibus actam,
ni frustra augurium uani docuere parentes.
Aspice bis senos laetantis agmine cycnos,
aetheria quos lapsa plaga Iouis ales aperto
395 turbabat caelo ; nunc terras ordine longo
aut capere aut captas iam despectare uidentur :
ut reduces illi ludunt stridentibus alis
et coetu cinxere polum cantusque dedere,
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550 Assim também teus jovens, tuas naus
já estão no porto ou vêm a toda vela.
Segue em frente e caminha pela estrada”.
Disse, e a cerviz de rosas refulgiu-lhe
ao virar-se, e os cabelos exalaram
555 um divino perfume de ambrosia;
deslizaram-lhe aos pés as vestes suas,
e no andar deusa inteira revelou-se.
Reconhecendo a mãe que se afastava,
ele a seguiu dizendo tais palavras:
560 “Por que enganas teu filho com disfarces
tu também tantas vezes insensível?
Por que não nos podemos dar as mãos
e nem trocar palavras verdadeiras?”
Queixoso assim, dirige-se às muralhas.
565 Mas Vênus entretanto foi cercando
de um ar obscuro e espesso os caminhantes
e os envolveu num denso véu de nuvens
a fim de que ninguém pudesse vê-los
e alcançá-los, causando-lhes demora
570 ao querer indagar-lhes a que vinham.
Ela então retirou-se para Pafos,
subindo aos céus, e alegre foi rever
seu templo e morada, onde cem altares
o ardente incenso de Sabá recendem
575 e o fresco aroma das guirlandas sopram.
E eles, tomando a trilha que se abria,
subiam já o outeiro dominante
que espreita os baluartes e as muralhas.
Eneias vê as portas da cidade,
580 os edifícios (antes só casebres)
e vê a agitação nas ruas prontas.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
haud aliter puppesque tuae pubesque tuorum
400 aut portum tenet aut pleno subit ostia uelo.
[Hex. 402-417]
Perge modo et, qua te ducit uia, derige gressum. »
Dixit et auertens rosea ceruice refulsit, [Dec. 553-575]
ambrosiaeque comae diuinum uertice odorem
spirauere ; pedes uestis defluxit ad imos ;
405 et uera incessu patuit dea. Ille ubi matrem
agnouit, tali fugientem est uoce secutus :
« Quid natum totiens, crudelis tu quoque, falsis
ludis imaginibus ? Cur dextrae iungere dextram
non datur ac ueras audire et reddere uoces ? »
410 Talibus incusat gressumque ad moenia tendit.
At Venus obscuro gradientis aere saepsit,
et multo nebulae circum dea fudit amictu,
cernere ne quis eos neu quis contingere posset
moliriue moram aut ueniendi poscere causas.
415 Ipsa Paphum sublimis abit sedesque reuisit
laeta suas, ubi templum illi, centumque Sabaeo
ture calent arae sertisque recentibus halant.
[Hex. 418-440] Corripuere uiam interea, qua semita monstrat. [Dec. 576-606]
Iamque ascendebant collem, qui plurimus urbi
420 imminet aduersasque aspectat desuper arces.
Miratur molem Aeneas, magalia quondam,
miratur portas strepitumque et strata uiarum.
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Aplicam-se ardorosamente os tírios:
uns, a erguer fortalezas, rolam pedras,
outros, a escolher onde as casas fiquem,
585 assinalam com sulcos o terreno;
tratam dos magistrados e das leis,
definem um senado venerável.
Ali escavam portos; mais além
lançam as amplas bases de um teatro
590 e altas colunas cortam da pedreira,
de encenações futuras nobre ornato.
Um trabalho tal qual o das abelhas:
incessantes, a cada novo estio,
pelos campos floridos, sob o sol,
595 saem guiando a cria já crescida
e então vão recolhendo o puro mel
e de néctar enchendo os doces favos
e recebem a carga das que chegam
e, como um batalhão, do cacho afastam
600 o bando preguiçoso dos zangões:
a labuta não para, e o mel desprende
um agradável cheiro de tomilho.
“Felizes dos que elevam já muralhas!”
– diz Eneias e admira os edifícios.
605 Envolto pela nuvem – coisa incrível! –,
caminha, sem ser visto, em meio aos homens.
No meio da cidade havia um bosque
de sombras abundantes e aprazíveis.
Da tormenta e das ondas acossados,
610 ali desenterraram logo os púnicos
o sinal que lhes dera Juno régia:
a fogosa cabeça de um cavalo,
indicando à nação, por muitos séculos,
prosperidade e distinção guerreira.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Instant ardentes Tyrii : pars ducere muros
molirique arcem et manibus subuoluere saxa,
425 pars optare locum tecto et concludere sulco ;
iura magistratusque legunt sanctumque senatum.
Hic portus alii effodiunt ; hic alta theatris
fundamenta locant alii, immanisque columnas
rupibus excidunt, scaenis decora alta futuris.
430 Qualis apes aestate noua per florea rura
exercet sub sole labor, cum gentis adultos
educunt fetus, aut cum liquentia mella
stipant et dulci distendunt nectare cellas,
aut onera accipiunt uenientum, aut agmine facto
435 ignauom fucos pecus a praesepibus arcent ;
feruet opus redolentque thymo fragrantia mella.
« O fortunati, quorum iam moenia surgunt ! »
Aeneas ait et fastigia suspicit urbis.
Infert se saeptus nebula (mirabile dictu)
440 per medios, miscetque uiris neque cernitur ulli.
[Hex. 441-493]
Lucus in urbe fuit media, laetissimus umbrae, [Dec. 607-682]
quo primum iactati undis et turbine Poeni
effodere loco signum, quod regia Iuno
monstrarat, caput acris equi ; sic nam fore bello
445 egregiam et facilem uictu per saecula gentem.
19

615 No local, a sidônia Dido erguia
a Juno um grande templo, muito rico
em oferendas ao poder da deusa.
Na entrada, era de bronze a escadaria,
de bronze era a fileira de colunas,
620 rangia a dobradiça em brônzeas portas.
Deu-se uma novidade nesse bosque
capaz de enfim o medo aliviar;
aí, pela primeira vez, Eneias
ousou ter esperança na ventura
625 e nas vicissitudes confiar.
Aguardando a presença da rainha,
os detalhes do grande templo observa;
avalia a riqueza da cidade
apreciando as obras dos artistas.
630 Das batalhas troianas vê a série
– a guerra já famosa em todo o mundo! –,
os Atridas e Príamo e Aquiles,
este cruel com uns, cruel com o outro.
Em pranto, assim parou dizendo: “Acates,
635 que recanto da terra, que país
já não conhece nossos sofrimentos?
Eis Príamo: a virtude aqui se louva,
aqui também se chora a dor humana.
Esquece o medo, irá salvar-te a fama!”
640 Falando e lamentando-se demais,
na vã pintura o ânimo sustenta
e banha o rosto em grosso rio de lágrimas,
pois em Pérgamo via os combatentes:
aqui os gregos fogem dos troianos;
645 ali os frígios, perseguidos, correm
– Aquiles, de penacho, vem no carro.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Hic templum Iunoni ingens Sidonia Dido
condebat, donis opulentum et numine diuae,
aerea cui gradibus surgebant limina nexaeque
aere trabes, foribus cardo stridebat aenis.
450 Hoc primum in luco noua res oblata timorem
leniit, hic primum Aeneas sperare salutem
ausus et adflictis melius confidere rebus.
Namque sub ingenti lustrat dum singula templo
reginam opperiens, dum quae fortuna sit urbi
455 artificumque manus inter se operumque laborem
miratur, uidet Iliacas ex ordine pugnas
bellaque iam fama totum uolgata per orbem,
Atridas Priamumque et saeuom ambobus Achillem.
Constitit et lacrimans « Quis iam locus » inquit « Achate,
460 quae regio in terris nostri non plena laboris ?
En Priamus. Sunt hic etiam sua praemia laudi ;
sunt lacrimae rerum et mentem mortalia tangunt.
Solue metus ; feret haec aliquam tibi fama salutem. »
Sic ait atque animum pictura pascit inani
465 multa gemens, largoque umectat flumine uoltum.
Namque uidebat uti bellantes Pergama circum
hac fugerent Grai, premeret Troiana iuuentus,
hac Phryges, instaret curru cristatus Achilles.
20

Perto dali, aos prantos reconhece
de Reso o acampamento, as brancas tendas
traídas pelo sono e pela noite,
650 que o cruento Tidides devastava
com grande mortandade e assim levava
para os seus campos os corcéis fogosos,
que dos pastos de Troia não provassem
e das águas do Xanto não bebessem.
655 Em outra parte, Troilo vai fugindo,
moço infeliz, que as armas já perdera
e que não era páreo para Aquiles:
pelos cavalos deixa-se levar,
preso ao carro vazio, pendendo o corpo,
660 segura ainda as rédeas e prossegue
– cabelo e nuca arrastam-se no chão,
na terra a lança adversa risca pó.
E, ao templo da implacável Palas iam,
suplicantes e tristes, as troianas,
665 desgrenhadas, no peito as mãos batendo,
levando um rico manto à deusa avessa,
que mantinha no chão os olhos fixos.
Em torno das ilíacas muralhas,
Aquiles arrastara Heitor três vezes
670 e o corpo a peso de ouro então vendia.
Nesse momento, ao ver o espólio e o carro,
ao ver do amigo o corpo já sem vida
e Príamo estendendo as mãos sem forças,
um profundo gemido Eneias solta.
675 Também se vê embatendo aquivos chefes
e as forças do Oriente reconhece
e o exército negro de Menão.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Nec procul hinc Rhesi niueis tentoria uelis
470 agnoscit lacrimans, primo quae prodita somno
Tydides multa uastabat caede cruentus,
ardentisque auertit equos in castra prius quam
pabula gustassent Troiae Xanthumque bibissent.
Parte alia fugiens amissis Troilus armis,
475 infelix puer atque impar congressus Achilli,
fertur equis curruque haeret resupinus inani,
lora tenens tamen ; huic ceruixque comaeque trahuntur
per terram, et uersa puluis inscribitur hasta.
Interea ad templum non aequae Palladis ibant
480 crinibus Iliades passis peplumque ferebant
suppliciter, tristes et tunsae pectora palmis ;
diua solo fixos oculos auersa tenebat.
Ter circum Iliacos raptauerat Hectora muros
exanimumque auro corpus uendebat Achilles.
485 Tum uero ingentem gemitum dat pectore ab imo,
ut spolia, ut currus, utque ipsum corpus amici
tendentemque manus Priamum conspexit inermis.
Se quoque principibus permixtum agnouit Achiuis,
Eoasque acies et nigri Memnonis arma.
21

Pentesileia vai guiando, em fúria,
as amazonas dos broquéis de lua,
680 e brilha entre milhares a guerreira
que ostenta um cinto de ouro e um seio nu:
a combater varões se atreve a virgem.
Enquanto fica absorto na pintura,
maravilhado e estático o dardânio,
685 a belíssima Dido vem ao templo,
e vêm em bando os jovens com a rainha.
Assim como nos píncaros do Cinto
ou nas margens do Eurotas vai Diana
a puxar um cordão de mil Oréades,
690 que de um e de outro lado se reúnem,
e, aljava a tiracolo, a todas elas
no porte e na postura a deusa excede
(cala um prazer no peito de Latona),
assim seguia Dido em meio ao povo,
695 assim alegre, a todos incitava
aos trabalhos do reino prometido.
Junto às portas da deusa, em trono altivo,
no centro, sob a abóbada do templo,
rodeada de guardas, assentou-se.
700 O direito e a justiça ministrava,
repartia igualmente ou sorteava
trabalhosas tarefas entre os homens,
quando Eneias de súbito distingue,
num afluxo de gente, Anteu, Sergesto
705 e o bom Cloanto junto de outros teucros
que a tormenta espalhara pelo mar
e, a outras praias, longe arremessara.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
490 Ducit Amazonidum lunatis agmina peltis
Penthesilea furens mediisque in milibus ardet,
aurea subnectens exsertae cingula mammae
bellatrix, audetque uiris concurrere uirgo.
[Hex. 494-519]
Haec dum Dardanio Aeneae miranda uidentur, [Dec. 683-717]
495 dum stupet obtutuque haeret defixus in uno,
regina ad templum, forma pulcherrima Dido,
incessit magna iuuenum stipante caterua.
Qualis in Eurotae ripis aut per iuga Cynthi
exercet Diana choros, quam mille secutae
500 hinc atque hinc glomerantur Oreades ; illa pharetram
fert umero gradiensque deas supereminet omnis
(Latonae tacitum pertemptant gaudia pectus) :
talis erat Dido, talem se laeta ferebat
per medios instans operi regnisque futuris.
505 Tum foribus diuae, media testudine templi,
saepta armis solioque alte subnixa resedit.
Iura dabat legesque uiris, operumque laborem
partibus aequabat iustis aut sorte trahebat :
cum subito Aeneas concursu accedere magno
510 Anthea Sergestumque uidet fortemque Cloanthum
Teucrorumque alios, ater quos aequore turbo
dispulerat penitusque alias auexerat oras.
22

Ele, pasmado, e Acates, aturdido,
ficam entre a alegria e o temor:
710 sedentos de abraçar os companheiros,
na dúvida, não sabem que fazer.
E, envoltos no vazio da nuvem, quedam,
atentos para a sorte dos varões:
tendo a frota em que praia, a que viriam,
715 pois de todas as naus legados eram,
que chegavam pedindo proteção
e o templo demandavam com clamor.
Entram enfim e, obtida a permissão,
o excelente Ilioneu tranquilo fala:
720 “Ó rainha, a quem Júpiter concede
erguer nova cidade e, com justiça,
a soberba dos povos refrear,
tristes troianos, nós, a quem os ventos
de mar em mar carregam, te pedimos:
725 de nossas naus afasta o fogo infando,
uma raça piedosa põe a salvo
e de perto examina o nosso caso.
Não viemos ferir a Líbia a ferro,
destruir lares, praias saquear.
730 Insolência tamanha não nos quadra,
nem são tão arrogantes os vencidos.
Hespéria é como os gregos denominam
a terra antiga e fértil, forte em armas,
que os colonos enótrios habitaram;
735 mas, do nome de um rei, segundo dizem,
Itália agora passam a chamá-la.
Eis nossa rota, quando de repente
surge das águas Órion nebuloso
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Obstipuit simul ipse, simul percussus Achates
laetitiaque metuque ; auidi coniungere dextras
515 ardebant ; sed res animos incognita turbat.
Dissimulant et nube caua speculantur amicti
quae fortuna uiris, classem quo litore linquant,
quid ueniant ; cunctis nam lecti nauibus ibant
orantes ueniam et templum clamore petebant.
520 Postquam introgressi et coram data copia fandi, [Dec. 718-773]
[Hex. 520-560]
maximus Ilioneus placido sic pectore coepit :
« O regina, nouam cui condere Iuppiter urbem
iustitiaque dedit gentis frenare superbas,
Troes te miseri, uentis maria omnia uecti,
525 oramus : prohibe infandos a nauibus ignis,
parce pio generi et propius res aspice nostras.
Non nos aut ferro Libycos populare penatis
uenimus, aut raptas ad litora uertere praedas ;
non ea uis animo nec tanta superbia uictis.
530 Est locus, Hesperiam Grai cognomine dicunt,
terra antiqua, potens armis atque ubere glaebae ;
Oenotri coluere uiri ; nunc fama minores
Italiam dixisse ducis de nomine gentem.
Hic cursus fuit,
535 cum subito adsurgens fluctu nimbosus Orion
23

e nos atira contra sirtes cegas
740 e com os Austros infrenes nos dispersa
entre as ondas altivas e as escarpas:
vosso litoral poucos alcançamos.
Que gente é essa, desumana e bárbara?
E que pátria permite tais costumes?
745 O refúgio da praia nos proíbem
e, em guerra, nem na areia nos toleram.
Se desdenhais dos homens e das armas,
os deuses imortais temei ao menos,
que do justo e do injusto se recordam!
750 Nosso rei era Eneias o piedoso;
não houve nunca um outro rei maior
na justiça ou nas armas e na guerra.
Se os fados nos conservam esse herói,
se a brisa etérea ainda o alimenta,
755 se já não jaz nas sombras tão cruéis,
não tenhas medo nem receio tenhas
de em teus favores teres-te apressado:
cidades e armas tem a terra sícula,
e, de sangue troiano, o ilustre Acestes.
760 Seja-nos permitido recolher
a frota maltratada pelos ventos,
talhar mastros e remos na floresta.
Se nos for dado então rumar à Itália
tendo de volta o rei e os companheiros,
765 à Itália e ao Lácio, alegres, nós iremos.
Porém, se a salvação nos foi roubada,
se acaso o mar da Líbia te tragou,
ó nobre e generoso pai dos teucros,
nem de Iúlo esperança já nos resta,
770 ao menos às paragens que deixamos
nos mares da Sicânia e ao rei Acestes
possamos nós ainda retornar”.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
in uada caeca tulit penitusque procacibus Austris
perque undas superante salo perque inuia saxa
dispulit ; huc pauci uestris adnauimus oris.
Quod genus hoc hominum ? quaeue hunc tam barbara morem
540 permittit patria ? hospitio prohibemur harenae ;
bella cient primaque uetant consistere terra.
Si genus humanum et mortalia temnitis arma,
at sperate deos memores fandi atque nefandi.
Rex erat Aeneas nobis, quo iustior alter
545 nec pietate fuit, nec bello maior et armis.
Quem si fata uirum seruant, si uescitur aura
aetheria neque adhuc crudelibus occubat umbris,
non metus, officio nec te certasse priorem
paeniteat : sunt et Siculis regionibus urbes
550 armaque, Troianoque a sanguine clarus Acestes.
Quassatam uentis liceat subducere classem
et siluis aptare trabes et stringere remos,
si datur Italiam sociis et rege recepto
tendere, ut Italiam laeti Latiumque petamus ;
555 sin absumpta salus, et te, pater optime Teucrum,
pontus habet Libyae nec spes iam restat Iuli,
at freta Sicaniae saltem sedesque paratas,
unde huc aduecti, regemque petamus Acesten. »
24

Fala Ilioneu, aclamam os dardânios.
E Dido, sem rodeios, rosto brando:
775 “Medo e aflição deixai de lado, teucros.
As condições de um reino tão recente
me exigem guarda austera nas fronteiras.
Quem não conhece a raça dos Enéiadas,
e a cidade de Troia, e a força e os homens,
780 e os incêndios tremendos dessa guerra?
Não somos tão grosseiros nós, os púnicos;
nem tão distante da cidade tíria
o Sol atrela ao carro seus cavalos.
À grande Hespéria e aos campos de Saturno,
785 ao rei Acestes e às fronteiras do Érice
– a salvo ireis aonde desejardes,
pois recursos e ajuda vos darei.
Quereis ficar no reino que edifico?
Esta cidade é vossa, as naus trazei
790 – troiano e tírio não distinguirei.
Quem dera o próprio rei Eneias fosse
aqui trazido pelo mesmo Noto!
Mas vou mandar às praias homens firmes
para os confins da Líbia vasculhar,
795 caso arribado tenha e errante esteja
por matas ou cidades a vagar”.
Ouvindo essas palavras, animados,
o pai Eneias e o valente Acates
há muito anseiam por romper a nuvem.
800 E Acates interpela então Eneias:
“Filho da deusa, agora o que pretendes?
Vês tudo a salvo, a frota e os companheiros;
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Talibus Ilioneus ; cuncti simul ore fremebant
[Hex. 561-578]
560 Dardanidae.
Tum breuiter Dido uoltum demissa profatur : [Dec. 774-796]
« Soluite corde metum, Teucri, secludite curas.
Res dura et regni nouitas me talia cogunt
moliri et late finis custode tueri.
565 Quis genus Aeneadum, quis Troiae nesciat urbem,
uirtutesque uirosque aut tanti incendia belli ?
Non obtunsa adeo gestamus pectora Poeni,
nec tam auersus equos Tyria Sol iungit ab urbe.
Seu uos Hesperiam magnam Saturniaque arua
570 siue Erycis finis regemque optatis Acesten,
auxilio tutos dimittam opibusque iuuabo.
Voltis et his mecum pariter considere regnis ?
urbem quam statuo, uestra est ; subducite nauis ;
Tros Tyriusque mihi nullo discrimine agetur.
575 Atque utinam rex ipse Noto compulsus eodem
adforet Aeneas ! Equidem per litora certos
[Hex. 579-612]
dimittam et Libyae lustrare extrema iubebo,
si quibus eiectus siluis aut urbibus errat. »
His animum arrecti dictis et fortis Achates [Dec. 797-844]
580 et pater Aeneas iamdudum erumpere nubem
ardebant. Prior Aenean compellat Achates :
« Nate dea, quae nunc animo sententia surgit ?
omnia tuta uides, classem sociosque receptos.
25

ausente apenas um, porém nós mesmos
o vimos afundar em meio às ondas.
805 No mais, é tudo como a mãe te disse”.
E mal falara, a nuvem que os cobria
de súbito dissipa-se no ar.
Eneias aparece feito um deus,
o busto resplendente em luz purpúrea
810 (pois a deusa, num sopro, dera ao filho
o ornato de magníficos cabelos,
um ar de rutilante juventude,
e nobre gentileza no semblante
– qual mãos que do marfim o encanto acrescem,
815 ou como ouro amarelo que se engasta
quer na pedra de Paros quer na prata).
Ele então, dirigindo-se à rainha
e a todos surpreendendo, assim falou:
“Eneias, o troiano a quem buscais,
820 eis-me aqui, resgatado ao mar da Líbia!
Ó única a chorar a dor de Troia
– tu que a cidade e a casa compartilhas
conosco, restos do furor dos Dânaos –,
por terra e mar sofrendo desventuras,
825 exaustos e enfrentando privações,
condignamente, Dido, agradecer-te
já não podemos nós, de modo algum,
nem o povo dardânio, que, disperso,
por todo o vasto mundo agora vai.
830 Se as divindades prezam os piedosos,
se a moral e a justiça têm valor,
que os deuses recompensem teus favores.
Ditoso é o tempo que te viu nascer,
ilustres são os pais que te geraram!
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Vnus abest, medio in fluctu quem uidimus ipsi
585 submersum ; dictis respondent cetera matris. »
Vix ea fatus erat cum circumfusa repente
scindit se nubes et in aethera purgat apertum.
Restitit Aeneas claraque in luce refulsit
os umerosque deo similis ; namque ipsa decoram
590 caesariem nato genetrix lumenque iuuentae
purpureum et laetos oculis adflarat honores :
quale manus addunt ebori decus, aut ubi flauo
argentum Pariusue lapis circumdatur auro.
Tum sic reginam adloquitur cunctisque repente
595 improuisus ait : « Coram, quem quaeritis, adsum.
Troius Aeneas, Libycis ereptus ab undis.
O sola infandos Troiae miserata labores,
quae nos, reliquias Danaum, terraeque marisque
omnibus exhaustos iam casibus, omnium egenos,
600 urbe, domo socias, grates persoluere dignas
non opis est nostrae, Dido, nec quidquid ubique est
gentis Dardaniae, magnum quae sparsa per orbem.
Di tibi, si qua pios respectant numina, si quid
usquam iustitia est et mens sibi conscia recti,
605 praemia digna ferant. Quae te tam laeta tulerunt
saecula ? qui tanti talem genuere parentes ?
26

835 Enquanto os rios correrem para o mar,
enquanto os montes derem sombra aos vales,
enquanto o céu estrelas sustentar,
a glória de teu nome sempre irá
comigo a qualquer terra que me chame!”
840 Assim falou e foi aos companheiros:
ao amigo Ilioneu estende a destra,
a Seresto oferece a outra mão,
e busca o cumprimento dos demais,
de Gias bravo e de Cloanto bravo.
845 Admirada primeiro com a figura,
depois com as desventuras do varão,
em seguida, a sidônia Dido fala:
“Que mal, filho da deusa, te persegue
nos riscos de tamanha desventura?
850 Que força te constrange às rudes orlas?
Não és Eneias do dardânio Anquises,
que, na margem do frígio Simoente,
a vigorosa Vênus concebeu?
Lembro bem quando Teucro foi a Sídon:
855 expatriado, atrás de um novo reino,
pedia a Belo ajuda, a meu pai, Belo,
que andava devastando a rica Chipre
e ali, vitorioso, dominava.
Já desde então conheço a dura sina
860 de Troia e, assim, teu nome e os reis pelasgos.
Pretendendo ele próprio descender
dessa estirpe troiana tão antiga,
seus inimigos teucros exaltava.
Ânimo, pois, rapazes: sois bem-vindos!
865 Também a mim, depois de muita luta,
quis a sorte firmar-me nesta terra.
Conhecendo desgraças semelhantes,
aprendo a socorrer os infelizes”.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
In freta dum fluuii current, dum montibus umbrae
lustrabunt conuexa, polus dum sidera pascet,
semper honos nomenque tuom laudesque manebunt,
610 quae me cumque uocant terrae ». Sic fatus amicum
Ilionea petit dextra laeuaque Serestum,
post alios, fortemque Gyan fortemque Cloanthum.
Obstipuit primo aspectu Sidonia Dido, [Dec. 845-882]
casu deinde uiri tanto, et sic ore locuta est :
[Hex. 613-642]
615 « Quis te, nate dea, per tanta pericula casus
insequitur ? quae uis immanibus applicat oris ?
Tune ille Aeneas quem Dardanio Anchisae
alma Venus Phrygii genuit Simoentis ad undam ?
Atque equidem Teucrum memini Sidona uenire
620 finibus expulsum patriis, noua regna petentem
auxilio Beli ; genitor tum Belus opimam
uastabat Cyprum et uictor dicione tenebat.
Tempore iam ex illo casus mihi cognitus urbis
Troianae nomenque tuom regesque Pelasgi.
625 Ipse hostis Teucros insigni laude ferebat
seque ortum antiqua Teucrorum a stirpe uolebat.
Quare agite, o tectis, iuuenes, succedite nostris.
Me quoque per multos similis fortuna labores
iactatam hac demum uoluit consistere terra.
630 Non ignara mali miseris succurrere disco. »
27

Diz isso e leva Eneias ao palácio
870 e que os templos se enfeitem determina.
Aos da praia despacha vinte bois,
cem javalis de pelo arrepiado,
e cem gordos cordeiros mais as mães:
alegrias de um dia dadivoso.
875 E, dentro do magnífico palácio,
prepara-se, no meio de um salão,
o banquete real com todo o luxo:
rica tapeçaria de alta púrpura,
prataria soberba pelas mesas,
880 e, em ouro cinzelado, os grandes feitos
dos antigos varões daquela raça,
desde as origens, numa longa série.
O amor paterno não sossega nunca,
e Eneias manda às naus o presto Acates,
885 que Ascânio informe e que à cidade o traga
(só pensa em seu Ascânio o pai querido),
e que traga também alguns presentes
tirados das ilíacas ruínas:
todo bordado em ouro, um manto rijo
890 e de acanto amarelo um véu cingido,
vestes que Leda à filha argiva dera,
vistoso mimo a Pérgamo levado
quando Helena seguia de Micenas
em direção às bodas proibidas;
895 mais o cetro que outrora usara Ilíona,
a mais velha das filhas do rei Príamo,
e seu colar de pérolas e ainda
seu dúplice diadema de ouro e gemas.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Sic memorat ; simul Aenean in regia ducit
tecta, simul diuom templis indicit honorem.
Nec minus interea sociis ad litora mittit
uiginti tauros, magnorum horrentia centum
635 terga suum, pinguis centum cum matribus agnos,
munera laetitiamque dii.
At domus interior regali splendida luxu
instruitur, mediisque parant conuiuia tectis :
arte laboratae uestes ostroque superbo,
640 ingens argentum mensis, caelataque in auro
[Hex. 643-656]
fortia facta patrum, series longissima rerum
per tot ducta uiros antiquae ab origine gentis.
Aeneas (neque enim patrius consistere mentem [Dec. 883-899]
passus amor) rapidum ad nauis praemittit Achaten,
645 Ascanio ferat haec ipsumque ad moenia ducat ;
omnis in Ascanio cari stat cura parentis.
Munera praeterea Iliacis erepta ruinis
ferre iubet, pallam signis auroque rigentem
et circumtextum croceo uelamen acantho,
650 ornatus Argiuae Helenae, quos illa Mycenis,
Pergama cum peteret inconcessosque hymenaeos,
extulerat, matris Ledae mirabile donum ;
praeterea sceptrum, Ilione quod gesserat olim,
maxima natarum Priami, colloque monile
655 bacatum, et duplicem gemmis auroque coronam.
28

Todo expedito, Acates ia às naus.
900 Mas Citereia trama um novo ardil:
que Cupido, mudando de aparência,
tome o lugar do ingênuo Ascânio e venha
e ofereça os presentes à rainha
e a faça arder de amor até os ossos;
905 pois do incerto palácio tem receio
e dos tírios bilíngues desconfia.
Juno atroz a preocupa – a noite volta... –,
e ela assim ao alado Amor recorre:
“Meu filho, minha máxima potência,
910 filho meu, força minha, que desprezas
as armas do supremo pai, tifeias,
venho a ti suplicando teu poder:
com seu ódio, ao redor dos litorais,
Juno acerba persegue pelo mar
915 Eneias, teu irmão; e bem o sabes,
pois tens compartilhado a nossa dor.
Dido, a fenícia, agora o tem consigo
e com brandas palavras o cativa,
mas temo essa hospedagem duvidosa:
920 Juno não vai deter-se a essa altura.
A rainha pretendo, pois, lograr
e envolvê-la nas chamas da paixão.
Que outro poder não possa dominá-la:
pegue-se a mim por grande amor a Eneias!
925 Ouve o que penso possas tu fazer:
a pedido de seu querido pai,
está-se preparando para ir
o filho do rei, meu maior desvelo,
à cidade sidônia, com presentes
930 das chamas e do mar de Troia salvos.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Haec celerans iter ad nauis tendebat Achates.
[Hex. 657-694]
At Cytherea nouas artis, noua pectore uersat [Dec. 900-948]
consilia, ut faciem mutatus et ora Cupido
pro dulci Ascanio ueniat, donisque furentem
660 incendat reginam atque ossibus implicet ignem.
Quippe domum timet ambiguam Tyriosque bilinguis,
urit atrox Iuno et sub noctem cura recursat.
Ergo his aligerum dictis adfatur Amorem :
« Nate, meae uires, mea magna potentia, solus,
665 nate, patris summi qui tela Typhoea temnis,
ad te confugio et supplex tua numina posco.
Frater ut Aeneas pelago tuos omnia circum
litora iactetur odiis Iunonis acerbae,
nota tibi, et nostro doluisti saepe dolore.
670 Nunc Phoenissa tenet Dido blandisque moratur
uocibus, et uereor quo se Iunonia uertant
hospitia : haud tanto cessabit cardine rerum.
Quocirca capere ante dolis et cingere flamma
reginam meditor, ne quo se numine mutet,
675 sed magno Aeneae mecum teneatur amore.
Qua facere id possis nostram nunc accipe mentem :
regius accitu cari genitoris ad urbem
Sidoniam puer ire parat, mea maxima cura,
dona ferens pelago et flammis restantia Troiae ;
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Vou escondê-lo num lugar sagrado,
na alta Citera ou sobre o monte Idálio,
adormecido e sem saber de nada,
de modo que não possa apresentar-se.
935 Por uma noite, nele te disfarça:
menino, imita os traços do menino!
E ao te pegar no colo Dido, alegre,
no banquete, entre goles de Lieu,
ao te abraçar e dar-te doces beijos,
940 inspira-lhe o veneno e o fogo ocultos!”
Da mãe querida as ordens recebendo,
as asas já deixou de lado Amor
e, bem faceiro, imita o andar de Iúlo.
Em sono brando Vênus banha Ascânio
945 e o carrega no colo com ternura
para a Idália, onde, em bosque montanhoso,
na sombra fresca, em meio às doces flores,
ele aspira o olor da manjerona.
E lá ia Cupido, após a ordem,
950 alegre e obediente, atrás de Acates,
com soberbos presentes para os tírios.
Quando chega, a rainha já se encontra,
sobre opulentas mantas reclinada,
num leito de ouro, cujo centro ocupa;
955 o pai Eneias e os demais troianos,
entrando, já se estendem sobre a púrpura.
Criados vertem água para as mãos
e toalhas de fino pelo trazem
e dos cestos de Ceres distribuem.
960 São cinquenta criadas incumbidas
de preparar os pratos em sequência
e de manter as chamas dos penates;
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
680 hunc ego sopitum somno super alta Cythera
aut super Idalium sacrata sede recondam,
ne qua scire dolos mediusue occurrere possit.
Tu faciem illius noctem non amplius unam
falle dolo et notos pueri puer indue uoltus,
685 ut, cum te gremio accipiet laetissima Dido
regalis inter mensas laticemque Lyaeum,
cum dabit amplexus atque oscula dulcia figet,
occultum inspires ignem fallasque ueneno. »
Paret Amor dictis carae genetricis, et alas
690 exuit et gressu gaudens incedit Iuli.
At Venus Ascanio placidam per membra quietem
inrigat, et fotum gremio dea tollit in altos
[Hex. 695-722] Idaliae lucos, ubi mollis amaracus illum
floribus et dulci aspirans complectitur umbra.
695 Iamque ibat dicto parens et dona Cupido [Dec. 949-986]
regia portabat Tyriis duce laetus Achate.
Cum uenit, aulaeis iam se regina superbis
aurea composuit sponda mediamque locauit ;
iam pater Aeneas et iam Troiana iuuentus
700 conueniunt, stratoque super discumbitur ostro.
Dant manibus famuli lymphas Cereremque canistris
expediunt tonsisque ferunt mantelia uillis.
Quinquaginta intus famulae, quibus ordine longam
cura penum struere et flammis adolere penatis ;
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cem outras e outros cem da mesma idade
enchem copos e servem iguarias.
965 Também os tírios vão chegando em grupos,
convocados ao ledo limiar,
e em leitos adornados se acomodam.
Os presentes de Eneias os encantam,
a aparência de Iúlo, um deus flagrante,
970 seu discurso enganoso, o fino manto,
e, cingido de acanto, o véu dourado.
Principalmente a mísera fenícia,
à futura desdita já fadada,
não se cansa de olhar e exulta e arde
975 diante do menino e dos presentes.
Depois que deu abraços em Eneias
e ao iludido pai fartou de amor,
ele busca a rainha, que o acolhe
e nele os olhos prende e prende a alma
980 – pois, enquanto o aconchega no regaço,
mal sabe Dido o deus que tem no colo!
E da mãe Acidália se lembrando,
a Siqueu ele apaga pouco a pouco
e um vivo amor começa a despertar
985 num coração há muito desusado,
num peito já cansado e sem calor.
Findo o banquete, mesas recolhidas,
bojudas copas enchem-se de vinho:
eleva-se um rumor, ecoam vozes.
990 Pelo imenso salão de teto de ouro,
rebrilham os suspensos candelabros,
e a luz das tochas vence a noite escura.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
705 centum aliae totidemque pares aetate ministri,
qui dapibus mensas onerent et pocula ponant.
Nec non et Tyrii per limina laeta frequentes
conuenere, toris iussi discumbere pictis.
Mirantur dona Aeneae, mirantur Iulum,
710 flagrantisque dei uoltus simulataque uerba,
pallamque et pictum croceo uelamen acantho.
Praecipue infelix, pesti deuota futurae,
expleri mentem nequit ardescitque tuendo
Phoenissa, et pariter puero donisque mouetur.
715 Ille ubi complexu Aeneae colloque pependit
et magnum falsi impleuit genitoris amorem,
reginam petit. Haec oculis, haec pectore toto
haeret et interdum gremio fouet inscia Dido
insidat quantus miserae deus. At memor ille
720 matris Acidaliae paulatim abolere Sychaeum
incipit et uiuo temptat praeuertere amore
iam pridem resides animos desuetaque corda.
[Hex. 723-756]
Postquam prima quies epulis mensaeque remotae, [Dec. 987-1033]
crateras magnos statuont et uina coronant.
725 Fit strepitus tectis uocemque per ampla uolutant
atria ; dependent lychni laquearibus aureis
incensi et noctem flammis funalia uincunt.
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A rainha pediu e encheu de vinho
uma taça, pesada de ouro e gemas,
995 que Belo e todos desde Belo usaram.
Pairou então silêncio no ambiente:
“Ó Júpiter, que dizem ser quem dita
leis à hospitalidade, concedei
seja grato este dia a todos nós
1000 – a nós, os tírios e os de Troia vindos –
e lembrado por nossos descendentes.
Baco, o rei da alegria, e a boa Juno
conosco estejam nesta reunião;
e vós, tírios, contentes, celebrai!”
1005 Dizendo assim, na mesa derramou
as primícias do vinho em honra aos deuses
e em seguida levou a taça aos lábios.
Num gesto decidido, a entrega a Bícias,
que da espumante pátera bebeu
1010 e se fartou de pronto em ouro pleno;
depois seria a vez dos outros chefes.
Dedilha Iopas, de cabelos longos,
lições de Atlante na dourada lira
– e canta a lua incerta e o sol cansado,
1015 e de onde os animais e os homens vêm,
e de onde vêm as águas, de onde o fogo;
e Arcturo, os dois Triões, chuvosas Híades;
e que motivo leva os sóis do inverno
a mergulhar com pressa no Oceano,
1020 e o que retarda a noite preguiçosa:
aplaudem muito os tírios e os troianos.
E, no alegre sarau, a triste Dido
de amor se embriagava em longos goles.
E muito perguntava sobre Príamo
1025 e muito perguntava sobre Heitor;
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
Hic regina grauem gemmis auroque poposcit
impleuitque mero pateram, quam Belus et omnes
730 a Belo soliti ; tum facta silentia tectis :
« Iuppiter, hospitibus nam te dare iura loquontur,
hunc laetum Tyriisque diem Troiaque profectis
esse uelis, nostrosque huius meminisse minores.
Adsit laetitiae Bacchus dator et bona Iuno ;
735 et uos, o coetum, Tyrii, celebrate fauentes. »
Dixit et in mensam laticum libauit honorem
primaque, libato, summo tenus attigit ore ;
tum Bitiae dedit increpitans ; ille impiger hausit
spumantem pateram et pleno se proluit auro ;
740 post alii proceres. Cithara crinitus Iopas
personat aurata, docuit quem maximus Atlas.
Hic canit errantem lunam solisque labores,
unde hominum genus et pecudes, unde imber et ignes,
Arcturum pluuiasque Hyadas geminosque Triones ;
745 quid tantum Oceano properent se tingere soles
hiberni, uel quae tardis mora noctibus obstet.
Ingeminant plausu Tyrii, Troesque sequontur.
Nec non et uario noctem sermone trahebat
infelix Dido longumque bibebat amorem,
750 multa super Priamo rogitans, super Hectore multa ;
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sobre o filho da Aurora, quais as armas,
sobre Diomedes, que cavalos tinha,
e sobre Aquiles, quão imenso fosse.
“Mas conta-nos, meu hóspede, do início,
1030 as insídias dos dânaos”, ela pede,
“as agruras dos teus e andanças tuas;
pois é o sétimo estio que já te leva,
de mar em mar, errante pelas terras”.
Referência da tradução:
THAMOS, Márcio. As armas e o varão: leitura e tradução do Canto I
da Eneida. São Paulo: Edusp, 2011, p. 319-403.
VIRGÍLIO (70-19 a. C.), Eneida, I (trad. Márcio Thamos)
nunc quibus Aurorae uenisset filius armis,
nunc quales Diomedis equi, nunc quantus Achilles.
« Immo age et a prima dic, hospes, origine nobis
insidias » inquit « Danaum casusque tuorum
755 erroresque tuos ; nam te iam septima portat
omnibus errantem terris et fluctibus aestas. »
Referência do texto em latim:
VIRGILE. Énéide: livres I-VI. 8e éd. Texte établi par Henri Goelzer et
traduit par André Bellessort. Paris: Les Belles Lettres, 1956, p. 6-34.
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