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1.ª edição – 2001; 2.ª edição – 2002; 3.ª edição – 2003; 4.ª edição – 2006; 5.ª
edição – 2007; 6.ª edição – 2009; 7.ª edição – 2011 – 8.ª edição – 2012
© desta edição [2013]
EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA.
GISELLE TAPAI Diretora Responsável
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Fechamento desta edição [02.08.2013]
ISBN 978-85-5321-530-0
SUMÁRIO
CONCLUSÃO
CAPÍTULO VI Interpretação
32. Motivo e objeto da interpretação
33. Indeterminação relativa do grau inferior em relação ao grau superior
34. Indeterminação intencional dos graus inferiores
35. Indeterminação não intencional dos graus inferiores
36. A norma como moldura dentro da qual há várias possibilidades de
execução
37. Os denominados métodos de interpretação
38. A interpretação como ato de conhecimento ou de vontade
39. A ilusão da segurança jurídica
40. O problema das lacunas
41. As denominadas lacunas técnicas
42. Teoria das lacunas do legislador
Este pequeno livro contém breve exposição dos pontos básicos das
considerações científicas que eu e meus discípulos há cerca de duas décadas
defendemos e que são designados pelo nome de Teoria Pura do Direito.
Limito-me, neste livro, a fazer uma exposição positiva de minha teoria,
sem perder tempo discutindo com os diversos adversários que tenho
encontrado em meu caminho, no decorrer da vida.
Creio que posso fazê-lo, porque, em meus outros livros, mantive sempre
com eles inúmeras discussões.
Outro motivo que me induz a evitar a crítica é a convicção íntima de que
a ideia sucinta da Teoria Pura do Direito, delineada nas linhas que se seguem,
é a prova probatíssima de que a discussão apaixonada e muitas vezes violenta
que se trava ao redor dessa teoria não deve obedecer a motivos meramente
teóricos.
Na realidade, estamos diante de uma luta da política contra a ciência, luta
em que também estão empenhadas as mais diferentes orientações políticas,
reacionárias ou revolucionárias, socialistas ou liberais, timbrando todos em
não aceitar o conhecimento objetivo do Estado e do Direito, desnivelado de
qualquer tipo de ideologia.
Nessa luta, na realidade, a ciência tem conservado um nível bem alto e
conseguido excelentes vitórias, mais diante da natureza do que da sociedade,
já que os homens têm grande interesse em adquirir uma concepção livre do
acontecimento natural, pelo benefício que isso possa trazer para a técnica.
Em nossos dias, esse interesse prevalece sobre os interesses políticos.
Antes, a humanidade pretendia, a duras penas, conservar a ideia cósmica
contida nos livros santos.
Não há muita probabilidade de organizar, de certo modo, a técnica social
e, em especial, as técnicas jurídicas e políticas, investigando apenas a
natureza da sociedade.
Tal correlação não é clara e a única vantagem que pode oferecer uma
ciência social liberada não reúne, em si, evidente clareza.
Por isso, entendemos que sempre haverá partidos políticos que esperam
receber da verdade social mais desvantagens do que benefícios.
Esse o motivo pelo qual, não podendo abdicar da ideologia que
professam, passam a combater a teoria social que não lhes dá o que
pretendem.
Nesta época de radicais comoções sociais, de violenta transferência de
poder de umas mãos para outras, não tenho maiores ilusões a respeito, pois
estou certo de que as possibilidades de êxito na luta em que se empenha a
Teoria Pura do Direito são, hoje, menores do que nunca.
Creio, porém, que minha teoria poderá despertar um pouco de atenção
nos países em que a Constituição garanta a liberdade da ciência.
Viena, setembro de 1933.
PRÓLOGO DE KELSEN
A EDIÇÃO DE THEVENAZ *
Neuchâtel, 1953.
* A edição francesa tem por título Théorie pure du droit. Introduction à la science du droit,
Neuchâtel, editions de la Bacconnière, 1953, tradução de Henri Thévenaz.
VIDA E OBRA DE
HANS KELSEN
Hans Kelsen nasceu em 1881 na cidade de Praga, que, na época, não era a
capital da Tchecoeslováquia, mas fazia parte do imenso e poderoso Império
Austro-Húngaro. Morreu nos Estados Unidos, na cidade de Orinda, no Estado
da Califórnia, em 1973, aos 92 anos, quando, naturalizado norte-americano
havia muitos anos, estava consagrado mundialmente como o fundador da
Escola Normativista, ou Escola de Viena.
Em 1884, seus pais radicaram-se em Viena, cidade que é considerada seu
berço de nascimento.
Fato marcante na vida de Kelsen foi sua tumultuada fuga da Alemanha e
ida para os Estados Unidos, tendo passado, antes, pela Espanha e pela Suíça.
Na primeira fase, quando se encontrava em Viena, colaborou na redação
da Constituição da Áustria, em 1920, época em que mostrava o direito como
um monumento granítico, conjunto de normas hierarquizadas, verdadeira
geometria de conceitos jurídicos fundamentais.
O contato posterior, nos Estados Unidos, nas Universidades de Harvard
(1941-1942) e da Califórnia (1945), com o direito consuetudinário do
Common Law trouxe-lhe nova perspectiva e visão, passando Kelsen a
considerar o direito de um modo mais plástico, fundado nos precedentes.
Aos 24 anos, publicou famosa monografia histórica, intitulada Die
Staatslehre des Dante Alighieri, com a qual obteve o grau de doutor em 1906
e passou a residir em Heidelberg, cuja Universidade frequentou, e depois em
Berlim, onde se aprofundou mais nos estudos jurídicos e filosóficos.
Conquistou, em 1911, o cargo de Livre-Docente em Direito Público e
Filosofia do Direito, quando, então, publicou o relevante estudo sobre os
Problemas básicos da teoria do direito constitucional. Em 1919, foi
promovido a professor de Direito de Viena.
Em 1920, baseou-se na lapidar construção jurídica de seu discípulo Adolf
Merkl e completou o sistema hierarquizado da ordem normativa, publicando
trabalho profundo, ainda hoje citadíssimo, obra em que pela primeira vez
surge sua ideia de identificar o Estado com o direito.
Com o livro Direito do Estado Austríaco, de 1923, tornou-se o mais
notável dos constitucionalistas da Áustria.
Suas preleções na Universidade foram editadas em livro, com o título
Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre).
Em 1930, aceitou a cátedra na Universidade de Colônia, lecionando
durante três anos, quando por motivos políticos foi afastado do cargo pelo
partido nacional-socialista, o futuro partido nazista, que dominara o governo.
Foge rapidamente da Áustria, pouco depois, e leciona, primeiro na
Universidade de Barcelona e depois na de Genebra.
Escola de Viena é o nome que se deu ao grupo de juristas encabeçado por
Kelsen e seguido por famosos juristas como Adolf Merkl, Josef Kunz, Alfred
Verdross, Franz Weyr, Felix Kauffmann e Felix Schreier.
Kelsen, com propósitos didáticos, esboçou um sumário da Teoria Geral
do Estado, traduzido para diversas línguas.
A tradução que aqui apresentamos foi nada mais que um resumo, escrito
em alemão pelo próprio Hans Kelsen, em 1933, versando alguns temas não
tratados em sua obra mais ampla, a Allgemeine Staatslehere.
Esta obra, Teoria Pura do Direito, do antigo e prestigiado professor das
Universidades de Viena e Colônia, foi escrita para estudantes e, por isso, é
livro que se propõe a dar noção panorâmica dos aspectos mais significativos
de sua doutrina.
Foi este opúsculo – e não a obra volumosa – que escolhemos, Agnes e eu,
para figurar na coleção publicada pela Revista dos Tribunais, coleção
composta dos pequenos grandes livros, já publicados, de Beccaria (Dos
delitos e das penas), Maquiavel (O príncipe), Ihering (A luta pelo direito) e
as Institutas do Imperador Justiniano.
ROBERT WALTER
Devem ser prescrições impostas por seres humanos, quer por meio de
atos de vontade explícitos, quer mediante costumes e não, portanto,
através de regras atribuídas a autoridades sobre-humanas, como Deus ou
a natureza.
Devem ser prescrições estabelecidas para os seres humanos, isto é,
destinados a eles. Para esboçar preliminarmente essa “destinação” a
seres humanos, diríamos que ela abrange, enquanto as estabelece, uma
determinada conduta – dispondo, habitualmente, de força coercitiva
organizada – ou os habilita para determinados atos.
O sistema de regras que se tem aceito deve ser efetivo, quer dizer,
seguido ou cumprido de modo geral.
1. GENERALIDADES
No sentido mais geral, norma significa que algo deve ser.
Pode-se caracterizar a norma como o sentido de um ato de vontade, mas é
preciso diferenciar estritamente este sentido do dever ser e o ato efetivo de
vontade. O ato de vontade reside na esfera do ser, seu significado na esfera
do dever ser.
Nessa medida, a Teoria Pura do Direito é, em sentido filosófico, uma
teoria “realista”, a partir da existência (validade) de normas como fenômeno
específico na esfera do dever ser, da mesma maneira em que se admite,
reiteradamente, a existência das coisas na esfera do ser.
A cada ciência normativa corresponde a tarefa de fazer enunciados sobre
a existência e o conteúdo das normas. Esses enunciados das normas deverão
diferenciar-se estritamente das próprias normas, sobre as quais se fazem
afirmações. Isso, principalmente, porque a norma descreve uma disposição, a
qual vale enquanto que o enunciado sobre a norma não vale, já que é o bem
verdadeiro ou falso.
É preciso acrescentar que a Teoria Pura do Direito só alcançou,
paulatinamente, o critério da separação apenas necessária de norma e
enunciado sobre a norma, e as conseqüências últimas desta opinião foram
retiradas mais tarde. Estas consequências recaem em especial na ideia de que
não pode haver nenhuma lógica das normas, uma vez que as regras da lógica
poderiam aplicar-se melhor às proporções descritivas das normas.
2. NORMAS JURÍDICAS
Nem todas as normas que se adotam são normas jurídicas. Também se
trata de norma de moral e de costumes. Elas têm de diferenciar-se das normas
jurídicas. Esta delimitação só poderá ser indicada aqui de modo muito
simplificado. As normas jurídicas são normas de um sistema, que, para o caso
de violação da norma, prevê, no final, uma sanção, isto é, uma força
organizada, especialmente uma pena ou uma execução.
Em sua doutrina, mais tarde, Kelsen admitiu uma categoria própria das
normas jurídicas derrogativas, normas estas que possuem,
precisamente, o conteúdo para anular outra norma jurídica. Tais normas
se apoiam, certamente, em normas de autorização, mas não contêm
nenhuma autorização, apenas uma função específica. Se elas devem ser
consideradas como uma categoria própria de normas, é algo discutido,
atualmente, em doutrina.
4. DISPOSIÇÕES JURÍDICAS
As normas jurídicas desenvolvem uma estrutura muito complexa. Em
consequência, é interessante para mostrar a construção integral da ordem
jurídica. O trabalho do jurista, porém, é elaborado, regularmente, com
simples partes de normas jurídicas. Em geral, não se configuram normas
jurídicas completas, mas trata-se apenas dos elementos jurídicos dos quais se
formam as normas jurídicas. Estas partes – o material jurídico construído –
podem ser denominadas “disposições jurídicas”. Normalmente, estas são
descritas e se investiga sua função. O fato de que a totalidade dos conceitos
de normas de direito se conforme, fundamenta-se em que apenas pertence ao
material jurídico aquilo que contribui para a construção de uma norma
jurídica. Não se deve ocultar que, no âmbito da estrutura normativa, dentro da
ótica da Teoria Pura do Direito, ainda se deverá acrescentar muito, no futuro.
Capítulo III
A TEORIA DA FORMAÇÃO ESCALONADA DO SISTEMA JURÍDICO
Com o que foi dito sobre a doutrina jurídica de Kelsen e as posições a ela
referentes, só foi possível dar uma visão limitada desse edifício teórico
relativamente amplo. Felizmente, ele tem sido formulado e esclarecido em
numerosas publicações. Felizmente, também, não é uma teoria terminada e
arquivada, mas em permanente desenvolvimento, uma teoria para cuja
construção posterior todos estão convocados.
TEORIA PURA DO DIREITO
1. A “PUREZA”
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do direito positivo. Tão-somente
do direito positivo e não de determinada ordem jurídica. É teoria geral e não
interpretação especial, nacional ou internacional, de normas jurídicas.
Como teoria, ela reconhecerá, única e exclusivamente, seu objeto.
Tentará responder à pergunta “o que é” e “como é” o direito e não à pergunta
de “como seria” ou “deveria ser” elaborado. É ciência do direito e não
política do direito.
Intitula-se Teoria “Pura” do Direito porque se orienta apenas para o
conhecimento do direito e porque deseja excluir deste conhecimento tudo o
que não pertence a esse exato objeto jurídico. Isso quer dizer: ela expurgará a
ciência do direito de todos os elementos estranhos. Este é o princípio
fundamental do método e parece ser claro.
Mas um olhar sobre a ciência do direito tradicional, da maneira como se
desenvolveu no decorrer dos séculos XIX e XX, mostra claramente como
isso está longe de corresponder à exigência da pureza.
De maneira desprovida de todo espírito crítico, o direito se mesclou à
psicologia, à biologia, à ética e à teologia.
Hoje em dia não existe quase nenhuma ciência especial, em cujos limites
o cultor do direito se ache incompetente. Sim, ele acha que pode melhorar sua
visão do conhecimento, justamente conseguindo pedir emprestado a outras
disciplinas. Com isso, naturalmente, a verdadeira ciência do direito se perde.
2. FATO NATURAL (ATO) E SEU SIGNIFICADO
A Teoria Pura do Direito procura delimitar claramente o objeto de seu
conhecimento em duas direções, uma vez que sua autonomia, através do
sincretismo metódico, é colocada em perigo.
O direito é um fenômeno social, mas a sociedade tem objeto
completamente diverso da natureza, na medida em que é uma conexão de
elementos inteiramente diferentes.
A ciência do direito não deve tornar-se ciência da natureza, pois o direito
deve distinguir-se claramente da Natureza. Mas isso é muito difícil, já que o
direito – ou o que se costuma designar mais proximamente como tal – pelo
menos em parte, no âmbito da natureza, parece ter existência natural.
Se alguém analisar qualquer estado de coisas (Sachverhalte) considerado
como direito, como, por exemplo, uma deliberação do Parlamento, um ato
administrativo, uma sentença judicial, um delito, podem distinguir-se dois
elementos: um deles é um ato no tempo e no espaço, um ato perceptível
sensorialmente, um acontecimento exterior, sendo na maior parte
comportamento humano; o outro, é um ato ou acontecimento (fato)
igualmente inerente ou ligado a um sentido, a um significado específico.
Numa sala reúnem-se pessoas; umas fazem discursos, algumas se
levantam de seus lugares, outras permanecem sentadas; isso é um
acontecimento externo. O significado: elaborou-se uma lei.
Um homem, em vestes talares, fala, sobre uma alta plataforma, dirigindo
algumas palavras a pessoas diante dele. Esse acontecimento externo significa
uma sentença judicial.
Um comerciante escreve uma carta a outro, com determinado conteúdo; o
outro responde com outra carta; isso significa: firmaram um contrato.
Alguém, por meio de certos atos, causa a morte de outrem; isso significa,
juridicamente, um homicídio.
* Köpenick não é nome de pessoa, mas nome de um bairro de Berlim (por nós visitado em
1990) onde, em 1906, um sapateiro, vestido de Capitão do Exército, entregou ao Prefeito
um mero papel, dizendo que era uma ordem das autoridades militares. (N. dos T.)
Capítulo II
DIREITO E MORAL
8. DIREITO E JUSTIÇA
Quando a Teoria Pura do Direito delimita a natureza, ela procura os
limites que separam a natureza do espírito.
A ciência do direito é ciência espiritual e não ciência natural. Pode-se
discutir se a antítese natureza e espírito coincide com realidade e valor, ser e
dever ser, lei causal e norma; ou se o âmbito do espírito é mais amplo do que
o do valor, do dever ser ou da norma.
Mas não se pode negar que o direito, como norma, é uma realidade
cultural e não natural. Por essa razão se apresenta a tarefa de se distinguir
entre direito e natureza e outros fenômenos espirituais, especialmente entre
normas de outra espécie. Cabe aqui, antes de tudo, dissociar o direito de
outras ciências, já que sempre foi erradamente associado à moral.
Naturalmente, não se nega, com isso, a exigência de que o direito deva ser
moral, isto é, deva ser bom. Essa exigência se entende por si mesma; o que
ela realmente significa, é outra questão. Repele-se somente o ponto de vista
de que o direito, como elemento da moral e que o direito, como direito, em
algum sentido e de algum modo, seja moral.
Quando o direito se apresenta como um elemento da moral, isso se torna
obscuro, se significar uma exigência natural para que o direito seja
apresentado como moral, ou, se isso significar que o direito, como parte
integrante da moral, possui um caráter efetivamente moral, tenta-se atribuir
um valor absoluto ao direito, levando-se em conta a moral.
Como categoria moral, direito significa o mesmo que justiça. Essa é a
expressão para a verdadeira ordem social, ordem essa que alcança
plenamente seu objetivo ao satisfazer a todos.
A aspiração da justiça é – encarada psicologicamente – a eterna aspiração
da felicidade, que o homem não pode encontrar sozinho e, para tanto,
procura-a na sociedade. A felicidade social é denominada “justiça”.
Embora a palavra seja também usada, de vez em quando, no sentido de
excesso de direito positivo, é empregada, principalmente, como excesso de
leis. Parece, então, “não jurídico”, de modo que uma norma geral, nesse caso,
será utilizada, mas em outro caso, não, ainda que seja logo aceita; isso parece
“não jurídico”, sem considerar-se o valor da própria norma geral. Essa
linguagem corrente refere-se ao relativo valor dos julgamentos, por excesso
de leis.
“Justo”, aqui, é meramente outra palavra para “jurídico”.
Na realidade, como várias acepções do direito significam “justiça”, isso
tem valor absoluto; seu conteúdo não pode ser determinado através da Teoria
Pura do Direito.
Sim, o direito – e isso é provado pela história do espírito humano, que há
milênios se preocupa inutilmente com a solução desse problema – não pode
ser de modo algum alcançado através do conhecimento racional.
A justiça, diferentemente do direito positivo, deve apresentar uma ordem
mais alta e permanece em absoluta validade, do mesmo modo que todo
empirismo, como a idéia platônica, em oposição à realidade e como a coisa-
em-si transcendental, se opõe a fenômenos.
O mesmo caráter metafísico que o dualismo ontológico possui, também o
têm a justiça e o direito. E, como aquele, assim também este tem tendência
otimista ou pessimista, conservadora ou revolucionária, com a qual se
apresenta com dupla função: a realidade, que é a ordem do Estado ou da
sociedade, que ora está de acordo, ora contestando, em contradição com o
ideal perseguido.
E assim como – apenas por mera hipótese – é impossível determinar a
essência da ideia ou da coisa-em-si, também no conhecimento científico, isto
é, racional, dirigido à experiência, é impossível responder, por essa mesma
via, à pergunta “em que consiste a justiça”?
Todas as experiências semelhantes, até hoje, só levaram a fórmulas
completamente vazias, tais como: “Faze o bem e evita o mal”, “A cada um o
que é seu”, “No meio está a virtude” (“Halte die richtige Mitte”, isto é,
“Conserva o meio certo”) e assim até o “imperativo categórico” é totalmente
sem conteúdo.
Se nos voltarmos à determinação do dever ser, como o valor absoluto, e à
ciência, esta nada mais sabe dizer senão: tu deves ser o que deves ser; uma
tautologia, atrás da qual – em variado aspecto e trabalhoso disfarce – a base
lógica da identidade oculta o conhecimento: bom é bom e mau é mau, justo é
justo e não injusto e a é a e não não-a.
A justiça, ideal da vontade e do comportamento, ao contrário da ciência,
deve fazer-se invisível na ideia de transformar a verdade, que encontra sua
expressão – negativa – no princípio da identidade.
Esse desnaturamento do problema é a consequência inevitável da
logificação de um objeto estranho à lógica, desde o início.
Observando-se, do ponto de vista do conhecimento racional, só existem
interesses e, com isso, conflitos de interesses, cuja solução só acontece
através de uma ordem de interesses, que ou se harmonizam, conciliando-se
um com o outro, ou conflitam entre si, e, à custa de conciliarem-se um com o
outro, instituem uma compensação, um compromisso entre interesses
contrários.
Uma e outra ordem têm valores absolutos, o que é “justo” e não
fundamental diante do conhecimento racional. No caso em que houvesse uma
justiça, no sentido de que se costuma referir à existência dela (da justiça)
quando se pretende alcançar determinados interesses através de outros, o
direito positivo seria completamente inútil e sua existência totalmente
incompreensível.
Em vista da existência de um bem absoluto, diante da natureza, da razão
ou da vontade divina, da ordem social resultante, a atuação dos legisladores
dos Estados seria a tentativa insensata de iluminar artisticamente a luz solar
mais clara.
A objeção normal: embora houvesse uma justiça, ela não deixava – ou, o
que é o mesmo, não manifestava – um objetivo, o que é uma contradição em
si; e nesta sua típica contradição está o típico disfarce ideológico do estado
das coisas, de modo penoso.
Justiça é um ideal irracional. Seu poder é imprescindível para a vontade e
o comportamento humano, mas não o é para o conhecimento. A este só se
oferece o direito positivo, ou melhor, encarrega-se dele.
Quanto menos se protestar, mais este se separa daquele, nitidamente;
quanto mais se cede ao esforço do poder, o direito, de algum modo, valerá
como tribunal e tanto mais se realiza com o avanço da tendência ideológica,
que assinala a teoria natural clássica-conservadora: isso não chega tanto a um
conhecimento do direito válido, como da mesma maneira, muito mais a uma
produção do direito, a um esclarecimento, que se conta através de uma prova,
de que o direito positivo é resultado de uma ordem natural, divina ou sensata,
isto é, absolutamente justa; enquanto a revolucionária teoria do direito natural
desempenha um papel diminuto na proporcionalidade da história da ciência
do direito, com a intenção de perseguir as leis contrárias.
A validade do direito positivo, que será assim questionada, que essa
contradição signifique, de algum modo, uma ordem absoluta exposta, e, desse
modo, a realidade do direito seja mostrada numa luz desfavorável, condiz
com a realidade.
b) A norma secundária
Se em relação ao objetivo do ordenamento jurídico se pressupõe a
exigência de que os homens devam comportar-se de modo a evitar o ato
coercitivo ameaçador, pode-se, então, resumir o ordenamento jurídico numa
soma de normas, em que aparece, dirigida, a conduta que é o objetivo do
ordenamento jurídico, como, por exemplo: não se deve matar, deve-se
restituir um empréstimo recebido etc. Deve-se, porém, saber que, desse
modo, fica sem expressão a relação com o ato coercitivo, essencial para o
caráter jurídico da norma A norma, que determina a conduta que evita a
coação – e que é o objetivo do ordenamento jurídico – significa apenas uma
norma jurídica com a condição de que deve expressar-se de forma abreviada,
por questões de comodidade na exposição, o que somente a proposição
jurídica enuncia integral e corretamente: que sob as condições da conduta
contrária deve acontecer um ato coercitivo, como consequência. Essa é a
norma jurídica em sua forma primária. A norma que determina a conduta, que
evita a coação, só pode valer como norma jurídica secundária.
Em relação à situação fática, estabelecida por ela como devida – com a
conduta que evita a coação e que é o objetivo do ordenamento jurídico –, a
antijuridicidade, que é a condição do ato coercitivo, representa, sem dúvida,
uma espécie de negação, até uma contradição. Mas esse fato não está em
nenhuma contradição lógica com a norma secundária que estabelece o
contrário. Esta (contradição) só pode existir entre duas proposições de
“dever” ou entre duas proposições de “ser”, mas nunca entre uma proposição
que enuncia um “dever ser” e outra, que enuncia um “ser”, mas não pode
existir entre duas normas de “dever” e uma fática de “ser”.
A figura a deve, não-a deve, constitui uma contradictio logica, mas não a
figura a deve, não-a é. O contrário da norma é uma das contradições lógicas
de categoria completamente diversa.
A oposição, em que se coloca uma situação de fato, com a norma que
estabelece o contrário, não pode ser designada, na verdade, como lógica –
talvez como teleológica, uma vez que se possa aceitar o telos como finalidade
objetiva.
Para a norma secundária, assim como para a expressão do objetivo do
direito, muitas vezes os tradicionais conceitos de antijuridicidade e de
repressão apontam como contraditórios ou correspondentes ao direito. Pode-
se aceitar o pressuposto desde que, primeiro, (se aceite) a conduta
condicionante do ato coercitivo, e segundo a conduta que evita o ato
coercitivo.
A Teoria Geral do Direito, tal como foi desenvolvida pela ciência jurídica
do século XIX, caracteriza-se pelo dualismo desintegrador, que domina o
sistema inteiro e todos os seus problemas. É a herança da Teoria do Direito
Natural, cujo lugar foi ocupado pela Teoria Geral do Direito.
O dualismo do direito natural consiste – como já se mostrou – em que,
acima da ordem estatal do direito positivo, uma ordem natural superior,
divina, racional ou natural seja aceita, cuja função, pelo menos entre os
representantes clássicos da Teoria Natural do Direito dos séculos XVII e
XVIII – o que sempre deve ser enfatizado – foi conservadora e legitimista.
O positivismo do século XIX, na verdade, não abdicou inteiramente –
como já foi dito – de uma legitimação do direito por um valor ultrapositivo;
mas só o fez indiretamente, sob a superfície de seus conceitos. A produção
jurídica do direito positivo não foi tanta em matéria de um direito diferente e
superior, como do próprio conceito de direito. Não se trata agora do
denominado dualismo imanente e não manifesto, mas sim daquele dualismo
trans-sistemático notório, que se apresenta na distinção entre o direito
objetivo e subjetivo, público e privado, e entre outros inúmeros pares
opostos, e não, por fim, no antagonismo entre Estado e direito. A função
desse dualismo, que aparece de forma tão variada e de aspectos tão distintos,
não é a de legitimar a ordem jurídica, como também a de impor certos limites
à estruturação do seu conteúdo. Se o primeiro vale muito especialmente para
a oposição entre Estado e direito, o último vale, inegavelmente, para a
distinção entre direito objetivo e subjetivo. A oposição entre direito público e
privado é extraordinariamente equívoca e, por isso, sua função ideológica não
é uniformemente determinada.
b) A pessoa “jurídica”
Assim como a pessoa física, também a denominada pessoa jurídica é
apenas a expressão unitária de um complexo de normas, isto é, de um
ordenamento jurídico, e exatamente daquele que regula a conduta de uma
pluralidade de homens. Ela ou é a personificação de um ordenamento parcial,
como a que constitui o estatuto de uma associação, ou um ordenamento total,
que constitui uma comunidade jurídica, que abrange todas as comunidades
parciais e que, comumente, é representada pela pessoa do Estado.
Tão pouco quanto a pessoa física, também a pessoa jurídica tem uma
existência natural-real. “Real”, nesse sentido natural, é apenas a conduta
humana, regulada pelas normas, que podem ser estruturadas de vários pontos
de vista. A aceitação de que a pessoa jurídica seja diferente das pessoas
físicas, mas estranhamente uma realidade não perceptível, ou um
superindivíduo, formado por organismos sociais, é a ingênua hipostasição de
um desígnio, de uma representação jurídica auxiliar.
Assim como a pessoa física não é um homem, a pessoa jurídica não é um
super-homem. Os deveres e direitos de uma pessoa jurídica devem resolver-
se em deveres e direitos do homem, ou seja, em normas que regulam a
conduta humana, estabelecendo-a como deveres e direitos. Que o
ordenamento jurídico estatal singular obrigue ou autorize uma pessoa
significa que converte em dever ou autorização sua conduta, sem determinar-
lhe o sujeito. Sua determinação – a delegação vigente no ordenamento
jurídico estatal – será abandonar o ordenamento parcial, cuja unidade se
expressa na pessoa jurídica. É uma comunicação, isto é, por intermédio do
ordenamento jurídico parcial, de obrigação e autorização, para os indivíduos.
e) Limitação da responsabilidade
Se a pessoa jurídica, isto é, o homem que age como seu órgão, tenha feito
valer o direito creditório, que é o direito creditório coletivo dos indivíduos
que constituem a sociedade, personificada na pessoa jurídica, então cai na
execução do patrimônio coletivo dos indivíduos que formam a sociedade
parcial. Se, porém, a pessoa jurídica for obrigada a uma prestação, significa
que, pelo seu não cumprimento, a execução não será contra o patrimônio
individual dos membros, mas contra seu patrimônio coletivo, que será sempre
patrimônio deles.
Nessa limitação da execução ao patrimônio coletivo dos indivíduos, que
constituem a sociedade que age como pessoa jurídica, nessa denominada
limitação da responsabilidade, acha-se uma marca característica das pessoas
jurídicas de direito privado. Entretanto, não se aplica, ou não se aplica em
primeira linha, às pessoas jurídicas de direito público; assim, principalmente,
às pessoas jurídicas do Estado, que como personificação de um ordenamento
jurídico total abrangem todos os ordenamentos jurídicos parciais, todas as
pessoas físicas e jurídicas neles incorporadas e é, portanto, o ponto final da
imputação central.
c) Jurisdição
A norma geral que une, abstratamente, uma determinada situação de fato
à também determinada consequência, abstratamente determinada, procura a
individualização, para chegar, finalmente, ao seu significado. É preciso
verificar se existe, in concreto, uma situação de fato, que a norma geral
determina in abstracto e é necessário, nesse caso concreto, que exista um ato
coercitivo legal, ou seja, que se ordene primeiro e se realize depois e que seja
prescrito, in abstracto, pela norma geral. Isso é realizado pela sentença
judicial, função essa da denominada jurisdição ou poder judicial. Essa função
não possui – como o indica a terminologia juris dictio (dizer o direito –
Recht-sprechung), judicatura (encontrar o direito – Rechts-Findung) e como
é aceita na teoria – um caráter meramente declaratório, como está na lei – que
é a norma geral – direito acabado, no pronunciamento ou na revelação de um
ato do Tribunal.
A função da denominada jurisdição é muito mais constitutiva, criadora de
direito, na verdadeira acepção da palavra. Pois existe uma situação de fato
concreta, ligada a uma específica consequência jurídica, e toda essa relação é
criada pela sentença judicial. Assim, como ambas as situações de fato são
ligadas nas relações do geral pela lei, assim deverão estar unidas, na relação
do individual, pela sentença judicial. Por isso é que a sentença judicial é uma
norma jurídica individual, uma individualização ou concretização da norma
geral ou abstrata, a continuação do processo de produção do direito, do geral
para o individual. Somente o preconceito, de acordo com o qual todo direito
está contido na norma geral, a identificação errônea do direito com a lei,
poderia obscurecer esse ponto de vista.
d) Justiça e administração
Pode-se demonstrar que tanto a jurisdição como a administração são
individualizações e concreções de leis, isto é, de leis administrativas. Sim,
grande parte delas, as que são designadas, normalmente, como administração
estatal, não se distinguem funcionalmente de modo algum das que se
denominam jurisdição ou justiça, uma vez que do ponto de vista técnico o
fim do Estado se alcança através do aparato administrativo, da mesma forma
que pelos tribunais: se se consegue o (estado) social desejado, ou seja, o que
o legislador considera como tal, reagindo-se contra o oposto por meio de um
ato coercitivo, a ser concretizado por órgãos estatais, em outras palavras:
obrigando-se, juridicamente, os súditos a seguir uma conduta social
desejável.
Não há diferença essencial entre o fato de que a honra das pessoas seja
protegida, porque os tribunais atribuem a ofensa ao ofensor, e que a
segurança das pessoas no trânsito das ruas seja garantida, porque as
autoridades administrativas multam o motorista em excesso de velocidade.
Num caso, fala-se em Justiça, no outro, em Administração, de modo que
existe uma diferença na posição organizada do juiz somente explicável
historicamente, ou seja, por sua independência, que na maioria das vezes
(mesmo que não seja sempre) lhe falta; a concordância essencial consiste, em
ambos os casos, em que a finalidade do Estado só se realiza de forma média.
Uma diferença funcional entre justiça e administração existe quando a
finalidade do Estado só se realiza, de imediato, através de órgãos estatais,
quando estes, aqui juridicamente obrigados, realizam o estado social
diretamente e, como se costuma dizer, o próprio Estado (isto é, seu órgão) é
que constrói ou dirige escolas e estradas de ferro, assiste a doentes em
hospitais etc. Esta administração direta é, na realidade, essencialmente
diferente da atividade jurisdicional, porque esta última, de acordo com sua
essência, é a perseguição mediata dos fins do Estado, tendo, por isso,
afinidade com a administração indireta.
Sendo administração e justiça duas funções diferentes, aquela só pode ser
contraposta a esta como administração direta. Para uma sistematização
conceitualmente correta das funções jurídicas, o limite entre elas evolui de
modo completamente diverso ao que apresenta, hoje em dia, e a organização
habitual e histórica dos aparatos jurídicos – sem levar em consideração a
legislação – se decompõe em dois grupos de autoridades relativamente
isolados entre si, que, em sua maior parte, realizam funções iguais.
O verdadeiro conhecimento da natureza dessas funções, a substituição da
diferença entre justiça e administração, através da diferença entre
administração direta e indireta, não deveria ficar sem reação para aquela
organização.