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RT Textos Fundamentais 5

TEORIA PURA DO DIREITO

9.ª edição revista da tradução de


J. CRETELLA JR. e AGNES CRETELLA Texto traduzido diretamente do original alemão
Reine Rechtslehre, Leipzig e Viena, 1934, Frans Denticke Verlag, edição
resumida pelo próprio Kelsen, em cotejo com a edição alemã, de 1994, Scientia
Verlag Aalen (154 p.), versando alguns dos principais aspectos de sua obra
Allgemeine Staatslehre, correspondendo à tradução, de Madri, em espanhol, 1933
(83 p.), feita por Luis Legaz y Lacambra, contrapondose à edição completa de
1941, Losada, nova impressão em 1946 (mais de 300 p.).
© Direitos de tradução desta edição reservados pela EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS,
São Paulo, mediante expressa autorização dada pelo Presidente do Instituto Hans
Kelsen, de Viena, Professor ROBERT WALTER, em 7 de dezembro de 1999.

1.ª edição – 2001; 2.ª edição – 2002; 3.ª edição – 2003; 4.ª edição – 2006; 5.ª
edição – 2007; 6.ª edição – 2009; 7.ª edição – 2011 – 8.ª edição – 2012
© desta edição [2013]
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Fechamento desta edição [02.08.2013]
ISBN 978-85-5321-530-0
SUMÁRIO

Prefácio de KELSEN à primeira edição


Prefácio de KELSEN à segunda edição
Prólogo da edição de Viena
Prólogo de KELSEN à edição de Thévenaz
Vida e obra de HANS KELSEN
Histórico desta tradução

A TEORIA PURA DO DIREITO


ROBERT WALTER

CAPÍTULO I Noção geral


1. Sobre o objeto “direito positivo”
2. Sobre a teoria da dogmática
3. Motivos para a escolha do objeto e do método
4. Consequências da escolha do objeto e do método dogmático
5. Sobre a generalidade da teoria
6. Perfil histórico-científico da Teoria Pura do Direito
7. Sobre as bases filosóficas da Teoria Pura do Direito
8. O perfil histórico da Teoria Pura do Direito

CAPÍTULO II A teoria das normas


1. Generalidades
2. Normas jurídicas
3. Espécies de normas jurídicas
4. Disposições jurídicas

CAPÍTULO III A teoria da formação escalonada do sistema jurídico

CAPÍTULO IV A doutrina da interpretação

CAPÍTULO V Direito e Estado

CAPÍTULO VI Direito, ciência jurídica e lógica

CONCLUSÃO

TEORIA PURA DO DIREITO


INTRODUÇÃO A PROBLEMÁTICA CIENTÍFICA DO DIREITO
HANS KELSEN

CAPÍTULO I Direito e natureza


1. A “pureza”
2. Fato natural (ato) e seu significado
3. A autointerpretação do material social (o significado subjetivo e
objetivo)
4. A norma como esquema de interpretação
5. A norma como ato e substrato de sentido
6. Validade e âmbito de validade da norma
7. Conhecimento das normas jurídicas e sociologia jurídica

CAPÍTULO II Direito e moral


8. Direito e justiça
9. A tendência anti-ideológica da Teoria Pura do Direito

CAPÍTULO III O conceito de direito e a teoria da proposição jurídica


10. A teoria do direito natural e o positivismo jurídico
11. O “dever ser” como categoria do direito
a) O “dever ser” como ideia transcendental
b) O “dever ser” como categoria transcendental
c) Retorno ao direito natural e à metafísica
12. O direito como norma coercitiva
13. O conceito de antijuridicidade
14. O direito como técnica social
a) A eficácia do ordenamento jurídico
b) A norma secundária
c) Motivos da obediência ao direito
15. A negação do “dever ser”
16. O sentido normativo do direito
17. O “dever ser” e o “ser” do direito

CAPÍTULO IV Dualismo da teoria do direito e sua dominação


18. Origem jusnaturalista do dualismo do direito objetivo e subjetivo
19. Conceito de direito subjetivo
20. Conceito de sujeito de direito ou de pessoa
21. Significado ideológico dos conceitos de “direito subjetivo” e de
“sujeito de direito”
22. Conceito de relação jurídica
23. Conceito de dever jurídico
24. Redução do direito subjetivo ao objetivo
a) Norma jurídica como dever jurídico
b) Norma jurídica como autorização
c) Autorização como participação na produção do direito
25. Dissolução do conceito de pessoa
a) A pessoa “física”
b) A pessoa “jurídica”
c) Obrigação ou autorização mediata e imedata de indivíduos
d) Imputação (Zurechnung) central
e) Limitação da responsabilidade
f) Significado ideológico da antinomia indivíduo e sociedade
26. Caráter universalista da Teoria Pura do Direito

CAPÍTULO V Ordenamento jurídico e seu escalonamento


27. Ordenamento como sistema de normas
28. Ordenamento jurídico como conexão criadora
29. Significado da norma fundamental
30. Norma fundamental do ordenamento jurídico estatal singular
a) Conteúdo da norma fundamental
b) Validade e eficácia do ordenamento jurídico (direito e poder)
c) Direito internacional e norma fundamental do ordenamento
jurídico estatal singular
d) Validade e eficácia da norma jurídica única
31. Escalonamento do ordenamento jurídico
a) A Constituição
b) A legislação: conceito de fonte do direito
c) Jurisdição
d) Justiça e administração
e) Negócio jurídico e ato executivo
f) Relatividade da antítese entre produção e aplicação do direito
g) Posição do direito internacional no escalonamento
h) Conflito de normas de diversos graus

CAPÍTULO VI Interpretação
32. Motivo e objeto da interpretação
33. Indeterminação relativa do grau inferior em relação ao grau superior
34. Indeterminação intencional dos graus inferiores
35. Indeterminação não intencional dos graus inferiores
36. A norma como moldura dentro da qual há várias possibilidades de
execução
37. Os denominados métodos de interpretação
38. A interpretação como ato de conhecimento ou de vontade
39. A ilusão da segurança jurídica
40. O problema das lacunas
41. As denominadas lacunas técnicas
42. Teoria das lacunas do legislador

CAPÍTULO VII Métodos de produção do direito


43. Forma do direito e forma do Estado
44. Direito público e direito privado
45. Significado ideológico do dualismo do direito público e privado

CAPÍTULO VIII Direito e Estado


46. Dualismo tradicional do direito e Estado
47. Função ideológica do dualismo do direito e Estado
48. Identidade do direito e Estado
a) O Estado como ordenamento jurídico
b) O Estado como problema de imputação jurídica
c) O Estado como aparelho de órgãos funcionais
d) Teoria do Estado como Teoria do Direito
e) O poder do Estado como eficácia do ordenamento jurídico
f) Dissolução da ideologia da legitimidade

CAPÍTULO IX Estado e direito internacional


49. Essência do direito internacional
a) Graus do direito internacional: sua norma fundamental
b) Direito internacional como ordenamento jurídico primitivo
c) Obrigação e autorização meramente mediatos, através do direito
internacional
50. Unidade do direito internacional e do direito estatal singular
a) Unidade do objeto como postulado gnoseológico
b) Relação recíproca de dois sistemas normativos
c) Construção monista ou dualista
d) Primado do ordenamento jurídico estatal
e) Negação do direito internacional
f) Dissolução da “contradição” entre direito internacional e direito
estatal singular
g) Primado do ordenamento jurídico do direito internacional
h) O Estado como órgão da comunidade de direito internacional
i) A Teoria Pura do Direito e a evolução do direito mundial
PREFÁCIO DE KELSEN
A PRIMEIRA EDIÇÃO

Há mais de duas dezenas de anos comecei a elaborar uma Teoria Pura do


Direito, isto é, depurada de toda ideologia política e de todo elemento
científico-cultural, teoria jurídica presa à sua especificidade em razão da
legalidade inerente a seu objeto.
Desde o início, foi intenção minha alçar à altura de uma autêntica ciência,
de uma ciência do espírito, a Jurisprudência ou Ciência do Direito, que,
aberta ou veladamente, se exauriria quase que por completo em raciocínio
jurídico-político.
Tratava-se de explicar não suas tendências, dirigidas à criação do direito,
mas as investigações dirigidas, tão só, ao conhecimento do direito, abstração
feita a seus diversos aspectos, aproximando, tanto quanto possível, os
resultados obtidos, do ideal de toda ciência, ou seja, a objetividade e a
exatidão.
Posso hoje com satisfação constatar que não fiquei só nesta peregrinação.
Em todos os países cultos, em todos os círculos das tão variadas atividades
jurídico-profissionais, tanto por parte de teóricos como práticos, como por
parte de representantes de ciências afins, encontrei adesões alentadoras.
Formou-se um círculo de pensadores levados pelo mesmo objetivo e ao
qual se deu o nome de ‘minha Escola’, denominação que vale apenas na
acepção de que, nesta matéria, cada um procura aprender com o outro, sem
que, por isso, renuncie a seguir o próprio caminho.
Muito grande é também o número daqueles que, sem professar a Teoria
Pura do Direito, e até sem mesmo mencioná-la ou, mesmo, rejeitando-a,
francamente e pouco amistosamente, extraem dela resultados fundamentais.
A estes, particularmente, dirijo meus agradecimentos, pois eles, melhor do
que os adeptos mais fiéis, demonstram, mesmo contra a vontade, a utilidade
de minha teoria.
Além de reconhecimento e imitações, minha teoria provocou também
contestações, feitas estas com paixão quase sem similar na história da ciência
do direito e que de modo algum se explicaria por antagonismos de posições
que só agora vieram à tona.
Realmente, tais contestações em parte se baseiam em falsas
interpretações que, na verdade, frequentemente parecem ser completamente
dotadas de uma intenção e que, mesmo quando são sinceras, a todo custo
podem justificar a profunda exacerbação de meus adversários.
Na realidade, a teoria contestada de forma alguma é algo assim tão
completamente novo e nem está em contradição com tudo o que até hoje
apareceu. Ela pode ser compreendida como pleno desenvolvimento de
colocações que já se anunciavam na ciência jurídica positiva do séc. XIX.
Ora, desta mesma ciência procedem também meus adversários.
Não foi, pois, o fato de eu propor completa mudança de orientação para a
Ciência do Direito, mas por eu prendê-la a uma das orientações entre as quais
ela caminha insegura, não foi tanto a novidade, mas sim as consequências de
minha teoria, que provocaram este alvoroço na literatura. Isto, por si só, já
permite inferir que, na luta contra a Teoria Pura do Direito, não influem
apenas razões científicas, mas, antes de tudo, razões políticas e, portanto,
carregadas de forte carga emocional.
O problema de saber se se trata de ciência natural ou de ciência do
espírito não pode acirrar os ânimos a tal ponto, pois a separação entre uma e
outra ocorreu quase sem resistência.
Aqui se trata apenas de imprimir à ciência jurídica – setor afastado do
centro do espírito que só lentamente costuma claudicar empós do progresso –
movimento um tanto mais rápido, mediante contato direto com a Teoria Geral
da Ciência.
A luta não ocorre, na verdade, como as aparências levam a crer, pela
posição da Ciência do Direito no campo da ciência e pelas consequências que
disso resultam, mas pelas relações entre a Ciência Jurídica e a Política, pela
separação rigorosa entre ambas, pela renúncia ao inveterado costume de, em
nome da Ciência do Direito e, portanto, apelando para um plano objetivo,
defender axiomas políticos que podem apenas ter uma índole altamente
subjetiva, mesmo que se apresentem, com a mais pura boa-fé, como o ideal
de uma religião, de uma nação ou de uma classe.
Este o fundamento da contestação, que resvala pelo ódio, à Teoria Pura
do Direito, e esta a razão oculta da luta que lhe é movida por todos os meios.
Realmente, tal pressuposto atinge os interesses mais relevantes da sociedade
e, como consequência, não deixa de atingir os interesses profissionais dos
juristas.
Como é natural, estes, compreensivelmente, só, quando contestados
renunciam a crer e a fazer crer aos outros que, com sua ciência, possuem a
resposta à questão de saber como devem ser resolvidos “corretamente” os
conflitos de interesses dentro da ciência, que ele, porque conhece o Direito,
também é chamado a estruturá-lo quanto ao conteúdo; que ele, no seu afã de
ter influência na criação do Direito, leva diante dos outros políticos mais
vantagens do que um mero técnico da sociedade.
Em vista dos efeitos políticos – puramente negativos –, que importam a
necessária desvinculação da Política, em vista desta autolimitação da Ciência
Jurídica que muitos consideram como renúncia a uma posição hierárquica, é
compreensível que os contestadores não se sintam inclinados a fazer justiça a
uma teoria que propõe tais exigências.
Para poder combatê-la, não é preciso reconhecer-lhe a verdadeira
essência. Acontece, assim, que os argumentos que são dirigidos, não
propriamente contra a Teoria Pura do Direito, mas contra sua falsa imagem,
construída conforme as necessidades do possível contestador, anulam-se,
reciprocamente, e, portanto, tornam quase inócua uma contestação.
Dizem uns com desdém que minha teoria é destituída de qualquer
conteúdo, mero jogo vazio e de conceitos ocos. Dizem outros que o seu
conteúdo significa, pelas tendências revolucionárias, sério perigo para o
Estado constituído e para o seu Direito.
Como a Teoria Pura do Direito se mantém totalmente afastada de toda
política, afasta-se ela da vida real e, por isso, é destituída de qualquer valor
científico.
Esta é uma das objeções mais frequentemente suscitadas contra ela.
Ouve-se também com não menor freqüência a afirmação de que a Teoria Pura
do Direito não tem nenhuma possibilidade de satisfazer ao seu postulado
metodológico fundamental, sendo, isso sim, e tão só, a expressão de
determinada posição política. Qual dessas afirmações é a verdadeira?
Os fascistas qualificam-na de liberalismo democrático, os democratas
liberais ou socialistas consideram-na precursora do fascismo. Pelos
comunistas é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista,
pelos capitalistas-nacionalistas é desqualificada, classificando-se ora como
grosseiro bolchevismo, ora como disfarçado anarquismo.
O seu espírito é – afirmam muitos – semelhante ao da escolástica
católica, ao passo que outros, por sua vez, creem reconhecer, nela, nítidas
características de uma teoria evangélica do Estado e do Direito, não faltando
também os que pretendam estigmatizá-la com o traço de ateísmo.
Em resumo, não há nenhuma orientação política que não tenha
qualificado de suspeita a Teoria Pura do Direito, o que, aliás, lhe demonstra a
pureza, melhor do que ela própria poderia fazê-lo.
Não pode seriamente ser posto em dúvida o postulado metodológico a
que ela visa se, é que deve haver algo que mereça o nome de Ciência do
Direito. Dúvida reside apenas no que diz respeito ao ponto em que tal
postulado é realizável.
A respeito não se pode certamente deixar de lado a relevante distinção
que existe, precisamente, neste ponto, entre Ciência Natural e Ciência Social,
não porque a primeira não corra qualquer perigo de que os interesses
políticos possam influenciá-la.
A história prova o contrário e demonstra, à saciedade, que até uma
potência mundial se sentiu ameaçada pela notícia da verdade sobre o curso
dos astros.
Se a ciência natural conseguir a independência, em relação à Política, isso
ocorreu porque existia, nesta vitória, um interesse social ainda mais
poderoso: o interesse pelo progresso da técnica que só uma livre investigação
pode garantir.
Nenhum caminho da teoria social, porém, tão direto, tão imediatamente
visível, conduz a um progresso da técnica social propiciadora de vantagens
indiscutíveis, como o da Física e o da Química que leva à construção de
máquinas e à terapêutica médica.
Relativamente às ciências sociais falta ainda – e seu estado pouco
evoluído não é dos motivos que menos concorrem para tal – uma força social
que possa contrabalançar o interesse poderoso que tanto aqueles que detêm o
poder como também aqueles que ainda aspiram ao poder têm numa teoria
condizente com seus desejos, ou seja, numa ideologia social.
Isto sucede principalmente na nossa época, quando a guerra mundial e
suas consequências fizeram verdadeiramente sair dos eixos, em que os
fundamentos da vida social foram fatalmente abalados e, por isso, as
oposições dentro dos Estados se aguçaram até o extremo limite.
O ideal de uma ciência objetiva do Direito e do Estado só poderá ter
aceitação geral em períodos de equilíbrio social.
Assim, pois, nada parece mais inoportuno do que uma teoria do Direito
que pretenda manter sua pureza, enquanto para outras não há poder, seja qual
for, a que não estejam prestes a oferecer-se, quando já não se tem vergonha
de reclamar, em alto e bom som, e, publicamente, uma ciência política do
Direito e de reivindicar, para esta, o nome de “pura”, endeusando, assim,
como virtude o que, quando muito, só a mais penosa das necessidades
pessoais poderia relevar.
Se, entretanto, ouso resumir agora o resultado de meu trabalho anterior,
sobre o problema do direito, é com a esperança de que o número daqueles
que colocam mais alto o Espírito do que a Força seja maior do que possa
parecer hoje.
É, sobretudo, meu anseio que uma geração mais jovem não fique, no
meio do selvagem tumulto de nossos dias, totalmente despojada da fé numa
Ciência do Direito livre, e que fique também com a mais íntima convicção de
que suas influências não haverão de perder-se em futuro longínquo.
Genebra, maio de 1934.
PREFÁCIO DE KELSEN
A SEGUNDA EDIÇÃO

A segunda edição de minha Teoria Pura do Direito, editada pela primeira


vez há mais de um quarto de século, representa reelaboração completa dos
temas tratados na primeira edição e substancial aumento dos assuntos
tratados.
Embora, naquela ocasião, me tivesse limitado a formular os resultados
particularmente característicos de uma Teoria Pura do Direito, procuro agora
solucionar os problemas mais relevantes de uma Teoria Geral do Direito,
conforme os princípios da pureza metodológica do conhecimento científico-
jurídico e, além disso, de precisar, melhor do que antes, a colocação da
ciência jurídica no quadro geral das ciências.
Claro que uma teoria, cujo primeiro rascunho se encontra em meu livro
Hauptproblemen der Staatsrechtslehre, (ou, em vernáculo, Problemas
relevantes de Teoria do Direito do Estado, editado em Tübingen, 1911), não
poderia ter ficado sem nenhuma alteração durante tão longo período de
tempo.
Muitas alterações são já visíveis na General Theory of Law and State
(Cambridge, Massachussets, 1945) e na Theórie Pure du Droit (tradução
francesa da Reine Rechtslehre, feita pelo professor Henri Thévenaz,
Neuchâtel, 1953).
Na presente obra, chamo expressamente a atenção, nas notas finais do
livro, para as alterações mais importantes.
Trata-se, na maior parte das vezes, do desenvolvimento mais coerente de
princípios. No conjunto, como espero, trata-se dos frutos de uma explicitação
ou de um descomprometimento, que decorre de tendências que são inerentes
à própria teoria, que, no mais, continua inalterada quanto ao cerne essencial.
Diante da multiplicidade de conteúdo das diversas ordens jurídicas
positivas, em constante crescimento com o decorrer do tempo, uma Teoria
Geral do Direito sempre fica sujeita ao perigo de não abranger todos os
fenômenos jurídicos nos conceitos jurídicos fundamentais por ela definidos.
Muitos desses conceitos podem apresentar-se muito resumidos, outros
muito alongados. Plenamente consciente estou desse perigo ao fazer a
presente tentativa e, por isso, agradecerei, de coração, toda crítica construtiva
que sob este aspecto se faça.
Esta segunda edição da Teoria Pura do Direito não pretende também
constituir uma apresentação de resultados definitivos, mas mera tentativa que
ainda precisa desenvolver-se mediante complementações e outros retoques.
O fim desta Teoria terá sido alcançado se for considerada merecedora de
tal desenvolvimento – por outros que não o seu autor –, que atinge o limite de
sua vida.
Coloquei, antes desta segunda edição, de 1960, o Prefácio da primeira
edição, de 1934, pois esse Prefácio revela o estado científico e político em
que a Teoria Pura do Direito apareceu, no período da Primeira Guerra
Mundial de 1914-1918, e da comoção social por ela provocada, bem como a
repercussão que ela então encontrou na literatura.
Sob este prisma, o estado de coisas não se modificou muito depois da
Segunda Guerra Mundial, de 1939-1945, e das comoções políticas que ela
ocasionou.
Hoje, como ontem, a ciência jurídica objetiva que se circunscreve a
descrever apenas seu objeto choca-se com a ferrenha oposição de todos
aqueles que, desprezando os limites entre ciência e política, assinalaram ao
Direito, em nome daquela, determinado conteúdo, ou seja, acreditam poder
conceituar um Direito justo e, como consequência, juízo de valor para o
Direito positivo. A renascida metafísica do Direito natural, com esta
pretensão, passa a contrapor-se ao positivismo jurídico.
O problema da Justiça, enquanto problema de valor, fica fora de uma
Teoria do Direito que se circunscreve à análise do Direito positivo, como
realidade jurídica.
Tal problema, porém, é de tal relevância para a política jurídica, que
procurei expor, em apêndice, o que há a dizer sobre ele de um prisma
científico e, em especial, o que há para dizer sobre a doutrina do Direito
natural.
Cumpre-me agradecer, por fim, ao Dr. Rudolf A. Métall a elaboração da
lista dos meus escritos, e a ajuda preciosa que me deu na correção das provas
tipográficas.
Berkeley, Califórnia, abril de 1960.
PRÓLOGO DA
EDIÇÃO DE VIENA

Este pequeno livro contém breve exposição dos pontos básicos das
considerações científicas que eu e meus discípulos há cerca de duas décadas
defendemos e que são designados pelo nome de Teoria Pura do Direito.
Limito-me, neste livro, a fazer uma exposição positiva de minha teoria,
sem perder tempo discutindo com os diversos adversários que tenho
encontrado em meu caminho, no decorrer da vida.
Creio que posso fazê-lo, porque, em meus outros livros, mantive sempre
com eles inúmeras discussões.
Outro motivo que me induz a evitar a crítica é a convicção íntima de que
a ideia sucinta da Teoria Pura do Direito, delineada nas linhas que se seguem,
é a prova probatíssima de que a discussão apaixonada e muitas vezes violenta
que se trava ao redor dessa teoria não deve obedecer a motivos meramente
teóricos.
Na realidade, estamos diante de uma luta da política contra a ciência, luta
em que também estão empenhadas as mais diferentes orientações políticas,
reacionárias ou revolucionárias, socialistas ou liberais, timbrando todos em
não aceitar o conhecimento objetivo do Estado e do Direito, desnivelado de
qualquer tipo de ideologia.
Nessa luta, na realidade, a ciência tem conservado um nível bem alto e
conseguido excelentes vitórias, mais diante da natureza do que da sociedade,
já que os homens têm grande interesse em adquirir uma concepção livre do
acontecimento natural, pelo benefício que isso possa trazer para a técnica.
Em nossos dias, esse interesse prevalece sobre os interesses políticos.
Antes, a humanidade pretendia, a duras penas, conservar a ideia cósmica
contida nos livros santos.
Não há muita probabilidade de organizar, de certo modo, a técnica social
e, em especial, as técnicas jurídicas e políticas, investigando apenas a
natureza da sociedade.
Tal correlação não é clara e a única vantagem que pode oferecer uma
ciência social liberada não reúne, em si, evidente clareza.
Por isso, entendemos que sempre haverá partidos políticos que esperam
receber da verdade social mais desvantagens do que benefícios.
Esse o motivo pelo qual, não podendo abdicar da ideologia que
professam, passam a combater a teoria social que não lhes dá o que
pretendem.
Nesta época de radicais comoções sociais, de violenta transferência de
poder de umas mãos para outras, não tenho maiores ilusões a respeito, pois
estou certo de que as possibilidades de êxito na luta em que se empenha a
Teoria Pura do Direito são, hoje, menores do que nunca.
Creio, porém, que minha teoria poderá despertar um pouco de atenção
nos países em que a Constituição garanta a liberdade da ciência.
Viena, setembro de 1933.
PRÓLOGO DE KELSEN
A EDIÇÃO DE THEVENAZ *

Pensei imediatamente que deveria aparecer uma tradução francesa


quando, em alemão, foi publicada em 1934 sob o título de Reine Rechtslehre,
a exposição geral da Teoria Pura do Direito, mas, circunstâncias diversas,
especialmente a Segunda Guerra Mundial, impediram-me de providenciar
essa tarefa.
Mais de vinte anos se passaram desde o aparecimento em Viena da
edição alemã de 1933-1934.
Fácil é compreender que minha Teoria não poderia manter-se inalterada
durante período tão longo.
As objeções que me fizeram, os trabalhos que eu empreendi no campo do
direito internacional positivo e o exame de alguns problemas ligados à
Filosofia do Direito impulsionaram-me constantemente a repensar minha
concepção do direito e da ciência jurídica.
Vi-me, assim, levado a esclarecer diversos pontos, que não estavam
suficientemente claros e que deram lugar a interpretações errôneas.
Abandonei também uma ou outra de minhas teses, quando entendi que
não deveriam manter-se, mas creio que não modifiquei minha teoria em
nenhum ponto essencial.
O presente livro não poderia, pois, ser mera tradução da obra que
publiquei em 1934, diferindo desta em muitos acréscimos e modificações.
Por outro lado, mantive sem alterações o prefácio da edição alemã,
expondo ali não só as condições científicas e políticas que deram origem à
formação da Teoria Pura do Direito, logo depois da Primeira Guerra Mundial,
como também as reações suscitadas.
Desse ponto de vista, a situação apenas se modificou, o que me parece
bem significativo.
Devo acentuar, porém, que um dos objetivos principais da Teoria Pura do
Direito, que chegou a ser ainda o mais difícil de alcançar, foi o de manter a
ciência política separada da política.
A Segunda Guerra Mundial e os desequilíbrios sociais que provocou
acentuaram, realmente, a ameaça secular de uma subordinação da ciência à
política.
Graças ao senhor Henri Thévenaz me foi possível submeter ao público de
fala francesa os elementos essenciais da Teoria Pura do Direito.
A ele quero expressar aqui o meu mais vivo reconhecimento.

Neuchâtel, 1953.

* A edição francesa tem por título Théorie pure du droit. Introduction à la science du droit,
Neuchâtel, editions de la Bacconnière, 1953, tradução de Henri Thévenaz.
VIDA E OBRA DE
HANS KELSEN

Hans Kelsen nasceu em 1881 na cidade de Praga, que, na época, não era a
capital da Tchecoeslováquia, mas fazia parte do imenso e poderoso Império
Austro-Húngaro. Morreu nos Estados Unidos, na cidade de Orinda, no Estado
da Califórnia, em 1973, aos 92 anos, quando, naturalizado norte-americano
havia muitos anos, estava consagrado mundialmente como o fundador da
Escola Normativista, ou Escola de Viena.
Em 1884, seus pais radicaram-se em Viena, cidade que é considerada seu
berço de nascimento.
Fato marcante na vida de Kelsen foi sua tumultuada fuga da Alemanha e
ida para os Estados Unidos, tendo passado, antes, pela Espanha e pela Suíça.
Na primeira fase, quando se encontrava em Viena, colaborou na redação
da Constituição da Áustria, em 1920, época em que mostrava o direito como
um monumento granítico, conjunto de normas hierarquizadas, verdadeira
geometria de conceitos jurídicos fundamentais.
O contato posterior, nos Estados Unidos, nas Universidades de Harvard
(1941-1942) e da Califórnia (1945), com o direito consuetudinário do
Common Law trouxe-lhe nova perspectiva e visão, passando Kelsen a
considerar o direito de um modo mais plástico, fundado nos precedentes.
Aos 24 anos, publicou famosa monografia histórica, intitulada Die
Staatslehre des Dante Alighieri, com a qual obteve o grau de doutor em 1906
e passou a residir em Heidelberg, cuja Universidade frequentou, e depois em
Berlim, onde se aprofundou mais nos estudos jurídicos e filosóficos.
Conquistou, em 1911, o cargo de Livre-Docente em Direito Público e
Filosofia do Direito, quando, então, publicou o relevante estudo sobre os
Problemas básicos da teoria do direito constitucional. Em 1919, foi
promovido a professor de Direito de Viena.
Em 1920, baseou-se na lapidar construção jurídica de seu discípulo Adolf
Merkl e completou o sistema hierarquizado da ordem normativa, publicando
trabalho profundo, ainda hoje citadíssimo, obra em que pela primeira vez
surge sua ideia de identificar o Estado com o direito.
Com o livro Direito do Estado Austríaco, de 1923, tornou-se o mais
notável dos constitucionalistas da Áustria.
Suas preleções na Universidade foram editadas em livro, com o título
Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre).
Em 1930, aceitou a cátedra na Universidade de Colônia, lecionando
durante três anos, quando por motivos políticos foi afastado do cargo pelo
partido nacional-socialista, o futuro partido nazista, que dominara o governo.
Foge rapidamente da Áustria, pouco depois, e leciona, primeiro na
Universidade de Barcelona e depois na de Genebra.
Escola de Viena é o nome que se deu ao grupo de juristas encabeçado por
Kelsen e seguido por famosos juristas como Adolf Merkl, Josef Kunz, Alfred
Verdross, Franz Weyr, Felix Kauffmann e Felix Schreier.
Kelsen, com propósitos didáticos, esboçou um sumário da Teoria Geral
do Estado, traduzido para diversas línguas.
A tradução que aqui apresentamos foi nada mais que um resumo, escrito
em alemão pelo próprio Hans Kelsen, em 1933, versando alguns temas não
tratados em sua obra mais ampla, a Allgemeine Staatslehere.
Esta obra, Teoria Pura do Direito, do antigo e prestigiado professor das
Universidades de Viena e Colônia, foi escrita para estudantes e, por isso, é
livro que se propõe a dar noção panorâmica dos aspectos mais significativos
de sua doutrina.
Foi este opúsculo – e não a obra volumosa – que escolhemos, Agnes e eu,
para figurar na coleção publicada pela Revista dos Tribunais, coleção
composta dos pequenos grandes livros, já publicados, de Beccaria (Dos
delitos e das penas), Maquiavel (O príncipe), Ihering (A luta pelo direito) e
as Institutas do Imperador Justiniano.

J. CRETELLA JR. e AGNES CRETELLA


HISTÓRICO DESTA TRADUÇÃO

Entre os Textos Fundamentais, coleção de livros auxiliares ou


complementares aos estudos do direito, a RT lança agora o pequeno grande
livro de Hans Kelsen, intitulado Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre),
resumo do livro mais amplo Teoria Geral do Estado (Allgemeine
Staatslehre), feito pelo próprio autor, tratando de aspectos de sua obra que
deixaram de ser resolvidos na obra básica, texto este cuja tradução foi
autorizada pela Presidência do Instituto Hans Kelsen, de Viena.
Ao publicar, em 1925, a Allgemeine Staatslehre, preleções universitárias,
dizia Kelsen que, “ao resumir agora e completar os resultados de meus
trabalhos monográficos anteriores, num sistema da Teoria Geral do Estado,
observo, com mais nitidez do que antes, até onde minha obra se fundamenta
na dos grandes, que me precederam, sentindo-me fortemente vinculado à
orientação científica que, na Alemanha, teve, como representantes máximos,
os nomes de Georg Jellinek, Paul Laband e Karl Friedrich von Gerber”.
A Teoria Pura do Direito e a Teoria Geral do Estado são obras
despretensiosas, sem referências bibliográficas no texto e no rodapé, sem
pretensões polêmicas, destinando-se, ao contrário, a transmitir aos estudantes,
em linguagem clara e num estilo conciso, o pensamento do autor.
Há, desse modo, duas obras com o título de Teoria Pura do Direito, a
maior, com cerca de 300 páginas, e esta, resumida, com pouco mais de 100
páginas, não tendo o resumo, de modo algum, prejudicado o pensamento do
autor.
Ao iniciar esta tradução, procuramos localizar os que nos precederam
nesse trabalho.
Em primeiro lugar, a do professor João Baptista Machado, que publicou,
no Brasil, pela Editora Martins, excelente tradução da edição maior, 427 p.,
publicada também em Portugal, cujo original teve nova edição em 1992
(Viena, 403 p.).
Em Portugal, a edição menor foi a base da tradução empreendida pelo
licenciado Fernando Miranda, da Universidade de Coimbra (108 p.), com
extenso prefácio de Fernando Pinto Loureiro (73 p.), em 1939, edição da
Livraria Acadêmica Saraiva, sem indicação do original do qual se traduziu.
Em língua castelhana, entre outras, há três traduções: a de Jorge G.
Tegerina (215 p.), 1 ed., 1941 (214 p.), e 2. ed., 1946, feita na Argentina com
prefácio de Carlos Cossio; a de Luis Legaz y Lacambra, Madri, 1933 (83 p.),
tradução espanhola feita antes de seu aparecimento em alemão; e a de Moisés
Nilve, traduzida do francês, em 1953, feita em Neuchâtel (Suíça), 11. ed.,
1973 (200 p.).
Em língua italiana, o professor Renato Treves, com o título de La
dottrina pura del diritto, 1952, Giulio Einaudi Editore, traduziu do original
Reine Rechtslehre, Franz Denticke Verlag, Leipzig – Wien, o livro de Kelsen
(103 p.), em sua forma reduzida.
Ao contrário do que ocorre com o livro A luta pelo direito (Der Kampf
um’s Recht), de Rudolf von Ihering, livro que tem mais de cem anos e é
escrito em alemão rebuscado, difícil, precioso, poético, e com ortografia
arcaica de alguns vocábulos, o livro Teoria Pura do Direito (Reine
Rechtslehre, Einleitung in die rechtswissenschafliche Problematik), de Hans
Kelsen, é moderno, tem pouco mais de meio século, sendo, tanto na edição
maior, como na resumida, direto, profundo e criativo, mas prolixo, com
períodos longos, às vezes obscuros, com pontuação arbitrária, ocorrendo
inadequado emprego do ponto e vírgula, dos dois pontos, do travessão,
devendo ser lido sem pressa e interpretado a todo instante.

J. CRETELLA JR. e AGNES CRETELLA


A TEORIA PURA DO DIREITO*

ROBERT WALTER

CAPÍTULO I Noção geral


CAPÍTULO II A teoria das normas
CAPÍTULO III A teoria da formação escalonada do sistema jurídico
CAPÍTULO IV A doutrina da interpretação
CAPÍTULO V Direito e Estado
CAPÍTULO VI Direito, ciência jurídica e lógica
CONCLUSÃO

* O nome de Robert Walter é amplamente conhecido e conceituado no mundo jurídico.


Nascido em 30 de janeiro de 1931, em Viena, fez os estudos de Ciência do Direito e de
Ciência do Estado na Universidade de Viena, tendo obtido o título de doutor em Direito,
em 1953. Em 1957, exerceu as altas funções de Magistrado, e, em 1960, lecionou
Direito Constitucional, em Viena, tendo sido, em 1962, professor extraordinário de
Direito Público, na Universidade de Graz. Desde 1971 ocupa, complementarmente, o
cargo de diretor do Instituto Hans Kelsen. Em 1991, recebeu o título de doutor Honoris
Causa da Universidade de Salzburgo e, há pouco tempo, foi-lhe outorgada condecoração
austríaca para a Ciência e a Arte.
Entre seus numerosos livros e artigos publicados, distinguem-se, entre outros, os
seguintes: Der Aufbau der Rechtes Ordnung, 2. ed., 1974, sendo a 1. de 1964;
Osterreichischen Bundesverfassungsrecht, 1972; Grundriss des Österreichischen
Bundesverfassungsrechts, 1976, 8. ed., 1996; Hans Kelsen, ein Leben im Dienste der
Wissenschaft, v. 10, 1985, da série do Instituto Hans Kelsen; A Teoria do Direito de
Hans Kelsen, traduzida para o espanhol e publicada pela Universidade de Colômbia
(Bogotá), 1999, ensaio, traduzido por nós do castelhano, que abre este livro, dedicado à
tradução da Teoria Pura do Direito, do famoso mestre vienense Hans Kelsen. (N. dos
T.)
Capítulo I
NOÇÃO GERAL

SUMÁRIO: 1. Sobre o objeto “direito positivo” – 2. Sobre a teoria da


dogmática – 3. Motivos para a escolha do objeto e do método – 4.
Consequências da escolha do objeto e do método dogmático – 5.
Sobre a generalidade da teoria – 6. Perfil histórico-científico da
Teoria Pura do Direito – 7. Sobre as bases filosóficas da Teoria Pura
do Direito – 8. O perfil histórico da Teoria Pura do Direito.

Difícil é a tarefa que se me impõe de falar sobre a doutrina do direito de


Hans Kelsen, no reduzido âmbito de tempo de uma conferência,
particularmente por tratar-se de uma teoria muito elaborada, cuja construção
se estende por um espaço de cerca de noventa anos, para o qual contribuíram
numerosos e eruditos pesquisadores e que foi origem de abundante literatura
secundária. Até por isso já cabem algumas observações acerca da natureza da
teoria e suas ramificações, além de apresentar algumas “posições
características”.
A doutrina do direito, de Hans Kelsen – também denominada Teoria Pura
do Direito – é um programa para consideração científica, isto é, objetiva-
intersubjetivamente comprovável – do objeto “direito positivo”. Pode-se
qualificá-la como uma teoria geral da dogmática do direito positivo. Essa
qualificação requer, sob diferentes aspectos, uma explicação mais detalhada.

1. SOBRE O OBJETO “DIREITO POSITIVO”


O objeto que a Teoria Pura do Direito pretende apreender é aquele que,
na tradição da ciência jurídica, tem sido designado como direito positivo e
procura estudar esse objeto de perto:

Devem ser prescrições impostas por seres humanos, quer por meio de
atos de vontade explícitos, quer mediante costumes e não, portanto,
através de regras atribuídas a autoridades sobre-humanas, como Deus ou
a natureza.
Devem ser prescrições estabelecidas para os seres humanos, isto é,
destinados a eles. Para esboçar preliminarmente essa “destinação” a
seres humanos, diríamos que ela abrange, enquanto as estabelece, uma
determinada conduta – dispondo, habitualmente, de força coercitiva
organizada – ou os habilita para determinados atos.
O sistema de regras que se tem aceito deve ser efetivo, quer dizer,
seguido ou cumprido de modo geral.

2. SOBRE A TEORIA DA DOGMÁTICA


O modo pelo qual essas regras devem ser entendidas é o da dogmática,
isto é, elas deverão ser vistas como normas. Esse ponto é decisivo e será
esclarecido mais tarde.
Pode-se descrever as ordens dadas por alguns homens a outros homens e
suas consequências, com os meios da ciência natural – como atos de vontade
e como condutas correspondentes ou não a atos de vontade – e neste caso
tratar-se-ia de sociologia empírica. Procedimento semelhante não seria
cientificamente inadmissível, mas incide sobre o que a ciência jurídica
dogmática persegue fundamentalmente, ou seja, a maneira como os homens
devem comportar-se, de acordo com o direito, não obstante ao que se lhes
ordena realmente e como eles se comportam efetivamente.
Encontramo-nos, assim, diante de uma questão filosófica prévia da Teoria
Pura do Direito, que é de importância básica para ela; pode-se explicar o
mundo simplesmente como uma esfera do ser ou deve-se admitir também
controvérsias filosóficas sobre este problema – que é útil para o
conhecimento estabelecer a diferença entre o mundo do ser e o mundo do
dever ser e aceitar o bom senso das normas, inclusive das normas jurídicas,
no mundo do dever ser.
Resumindo este último ponto, pode-se dizer o seguinte: a Teoria Pura do
Direito contempla, normativamente, as regras efetivas, impostas por homens
para homens, isto é, como dispositivos de dever ser, como normas. Isso
constitui uma Teoria da Dogmática Jurídica.
A Teoria Pura do Direito está, assim, inteiramente consciente de que a
validade das normas – ou seja, sua existência específica no mundo do dever
ser – requer uma fundamentação. Para isso serve a teoria da norma
fundamental. Ela pode ser explicada da seguinte maneira: numa consideração
intrassistemática, pode-se atribuir a cada norma jurídica válida outra norma,
que fundamenta sua validade – a validade da sentença judicial, a autorização
do juiz, por meio da lei, a validade da lei, a autorização do Parlamento,
através da Constituição, a autorização que se outorga a uma assembleia (ou
conselho) constituinte, para promulgar uma Constituição. Essa interação
contínua de relações de validade atinge, entretanto, um limite. Este reside
onde, sem autorização jurídica, uma pessoa ou um grupo de pessoas “toma o
poder” – de maneira típica, como através de uma revolução ou um golpe de
Estado – e convoca, por exemplo, um conselho ou assembleia constituinte. Se
se pretende interpretar, como sistema válido de normas, um sistema de
ordens, que se tornou efetivo, ter-se-á de supor, então, que o primeiro ato –
puramente fático – se apoia numa autorização. Essa suposição é a norma
fundamental. Quem conhece as múltiplas controvérsias em torno da norma
fundamental provavelmente opinará que o assunto tem sido exposto aqui de
forma exageradamente simples. E, de fato, o foi.
Nesta altura, deve-se observar ainda que a primeira ordem fática não
pode ser considerada como fundamento das normas seguintes, porque ela é
somente um fato. E, como se sabe, de um ser não se pode deduzir um dever
ser, como já o havia assinalado David Hume.
Em consequência, uma “norma fundamental” não requer,
necessariamente, um fato-básico.
Mas com a doutrina da norma fundamental deve também ficar claro que a
Teoria Pura do Direito não leva a ordem jurídica positiva a uma “ordem
superior” – algo como uma ordem moral ou um direito natural. Ela deseja
apenas, justamente, apresentar o direito positivo, de maneira exclusiva.
Enquanto o apresenta apenas, precisamente, sob a forma de norma
fundamental, permanecem no vazio todas as objeções que acusam a Teoria
Pura do Direito de advogar a opinião de que todo homem estaria obrigado a
ordenamentos positivos efetivos, ainda que estes sejam reprováveis. Essa
questão continua ainda pendente de decisão. A Teoria Pura do Direito
esclarece, com isso, por completo, a problemática da obediência ao direito:
ninguém pode invocar, para sua justificativa final, o direito positivo. Cabe à
consciência de cada homem a decisão moral de obedecer ao direito positivo
ou rebelar-se contra ele. “O positivismo jurídico de Kelsen não justifica o
direito positivo…”, disse, acertadamente, Horst Dreier.

3. MOTIVOS PARA A ESCOLHA DO OBJETO E DO MÉTODO


Um problema que a Teoria Pura do Direito deve resolver é se é oportuno
escolher o objeto e o método de uma doutrina jurídica, na forma em que ela o
fez, isto é, descrever as regras de um poder social como normas válidas. Não
há sobre isso uma “resposta final”. Subjacente à escolha do objeto existe a
suposição de que há um interesse no conhecimento do sistema do direito
positivo – sem atentar, em absoluto, ao problema se corresponde a exigências
morais ou jusnaturalistas. Um exemplo deverá demonstrar isso: quem deseja
visitar a mãe enferma, numa terra distante, e levar-lhe um presente, não tem
como saber como é regulamentada a entrada de pessoas e a importação de
bens de forma moralmente correta, pois só saberá como estão regulamentados
de acordo com o direito positivo do país a que pretende viajar. Este
conhecimento exato deve tê-lo aquele que deseja criticar politicamente as
respectivas decisões.

4. CONSEQUÊNCIAS DA ESCOLHA DO OBJETO E DO MÉTODO DOGMÁTICO


Ao escolher o direito positivo como objeto da consideração normativa,
subentende-se que, em todos os enunciados, só pode tratar-se desse sistema
de normas. Unicamente este deve ser descrito. Somente desse modo é que
aparece claramente. Em consequência, toda mistura com outros sistemas
normativos (moral, direito natural) será excluída – no sentido da conhecida
tese da separação. Da descrição do direito positivo devem ser rigorosamente
diferenciados os problemas relativos a sua origem histórica, efeitos sociais e
valoração moral. Não se excluem, de maneira alguma, investigações sobre
estas questões, mas deverão ser empreendidas, contudo, em esferas
científicas próprias – a história do direito, a sociologia jurídica e a ética.
Ninguém negará que existem vínculos entre estas disciplinas, sublinhando,
entretanto, seu significado autônomo. Não se pode substituir dogmática
jurídica por história do direito, sociologia jurídica ou ética.

5. SOBRE A GENERALIDADE DA TEORIA


A Teoria Pura do Direito apresenta-se como uma teoria geral e não como
teoria de uma ou de várias ordens jurídicas determinadas. Isso não exclui o
fato de que alguns critérios teóricos, elaborados por ela, possam ser de
diferentes utilidades para diversas ordens jurídicas. Assim, por exemplo, a
teoria da construção escalonada da ordem jurídica poderá servir mais a
sistemas de estrutura complexa do que para a compreensão de ordens
jurídicas primitivas. Isso, porém, não lhe quebra a generalidade.

6. PERFIL HISTÓRICO-CIENTÍFICO DA TEORIA PURA DO DIREITO


Com a determinação do seu objeto do conhecimento, encontra-se a
Teoria Pura do Direito, histórico-cientificamente, por completo, na tradição
do positivismo jurídico-estatal, assim como se desenvolveu no século XIX,
em nosso âmbito cultural e que pode talvez distinguir-se com o nome de Paul
Laband. A vinculação existente deverá ser indicada biograficamente: com
Laband e Otto Mayer, Edmund Bernatzik realizou, em Estrasburgo, uma
estada investigativa, antes de se converter, entre 1894 e 1919, na cabeça
dogmática vienense do direito público. Kelsen tornou-se seu discípulo e, mais
tarde, seu sucessor. O que, sem dúvida, diferencia a doutrina de Kelsen do
positivismo jurídico-estatal é a base crítico-cognoscitiva de sua teoria, como
se percebe, principalmente, na doutrina da norma fundamental. O velho
positivismo converte-se no positivismo jurídico crítico da Teoria Pura do
Direito e com ele – como o formulou, expressamente, Horst Dreier – “na
mais consequente, clara e conceitualmente aguda forma da ciência do direito
positivista”.
Nesse ponto, convém esclarecer que a Teoria Pura do Direito, ao
contrário do que frequentemente se supõe, nada tem a ver com o positivismo
filosófico, nem com o neopositivismo do círculo de Viena, próximo a Moritz
Schlik. Como se sabe, Schlik recusa, por questão de princípio, uma
consideração normativa, o que Kelsen não podia aceitar.
Sem dúvida, a Teoria Pura do Direito liga-se ao empirismo lógico, no
empenho pelo conhecimento racional e a ética da pureza metódica.

7. SOBRE AS BASES FILOSÓFICAS DA TEORIA PURA DO DIREITO


Sobre as bases filosóficas da Teoria Pura do Direito formularam-se
numerosas reflexões, às quais também o próprio Kelsen deu motivo.
Entretanto, não tem muito sentido abordar demais esse aspecto. Toda teoria
de um âmbito especializado – também uma teoria dogmática jurídica – há de
ter, consciente ou inconscientemente, determinadas posições filosóficas
básicas, mas não terá, em nenhum caso, um determinado sistema filosófico
subjacente. Importantes posições fundamentais, adotadas pela Teoria Pura do
Direito, podem ser atribuídas a determinadas doutrinas da filosofia de Kant,
como, por exemplo, a admissão de um mundo do ser e um mundo do dever
ser, e a construção de uma norma fundamental, como pressuposto lógico-
transcendental, para poder explicar uma ordem coercitiva eficaz, como
sistema válido de normas. Kelsen qualificou isso, cautelosamente, como
aplicação analógica da teoria do conhecimento kantiano. Muitas das reflexões
feitas sobre o perfil filosófico da doutrina de Kelsen são infrutíferas, pelo que
não merecem maior abordagem. Deve ser mencionado, unicamente, o
empenho dos discípulos de Kelsen, Felix Kaufmann (1895-1949) e Fritz
Schreier (1897-1961), em fundamentar a Teoria Pura do Direito na
fenomenologia de E. Husserl. Kelsen está de acordo com Husserl na
delimitação perante o psicologismo, mas não segue os citados esforços de
seus discípulos.

8. O PERFIL HISTÓRICO DA TEORIA PURA DO DIREITO


Frequentemente se suscita a pergunta se existem motivos histórico-
sociais para o nascimento da Teoria Pura do Direito, em Viena, no começo de
nosso século, certamente em seu último período. Pode-se fazer referência ao
ambiente crítico geral da época. Sigmund Freud desenvolvia, então, sua
Psicanálise, surgia, paulatinamente, a Escola neopositivista do Círculo de
Viena, uma nova arte – pense-se, por exemplo, em Klimt – modifica-se, na
ruptura do tradicional, Schönberg começava com sua música dodecafônica e
estabelecia-se uma literatura crítica (certamente com Schnitzler). Pode-se
falar de um espírito de modernidade, em cujo âmbito havia também lugar
para uma nova Escola de Direito. Daí, é natural que a Teoria Pura do Direito
subtraia, ocasionalmente, sua conexão com a ciência positivista do século
XIX.
Entretanto, é algo digno de atenção o fato de que não exista uma relação
científica relevante com as tendências científicas dessa época. Há, sem
dúvida, certo contato entre Kelsen e Freud, mas deixando de lado os nexos
pessoais, com uma muito moderada incidência científica. Com a Escola
neopositivista do Círculo de Viena, Kelsen coincide, na verdade, no que diz
respeito à tendência antimetafísica, encontrando-se, não obstante, na mais
severa oposição a sua negação das ciências normativas.
No tocante a outro aspecto, talvez se possa fazer referência à determinada
conexão com a situação da ordem jurídica monárquica austríaca como Estado
multinacional. Para um juspublicista austríaco deveria ser claro, em certa
medida, que o direito não pode ser emanação de um espírito do povo
(Volksgeist) unificado, já que os numerosos povos da monarquia danubiana
só poderiam manter-se unidos, em primeira linha, pela ordem jurídica
comum, a qual estava muito próxima da concepção desse Estado,
principalmente como ordem jurídica, tal como o fez em geral, mais tarde, a
Teoria Pura do Direito.
Capítulo II
A TEORIA DAS NORMAS

SUMÁRIO: 1. Generalidades – 2. Normas jurídicas – 3. Espécies de


normas jurídicas – 4. Disposições jurídicas.

1. GENERALIDADES
No sentido mais geral, norma significa que algo deve ser.
Pode-se caracterizar a norma como o sentido de um ato de vontade, mas é
preciso diferenciar estritamente este sentido do dever ser e o ato efetivo de
vontade. O ato de vontade reside na esfera do ser, seu significado na esfera
do dever ser.
Nessa medida, a Teoria Pura do Direito é, em sentido filosófico, uma
teoria “realista”, a partir da existência (validade) de normas como fenômeno
específico na esfera do dever ser, da mesma maneira em que se admite,
reiteradamente, a existência das coisas na esfera do ser.
A cada ciência normativa corresponde a tarefa de fazer enunciados sobre
a existência e o conteúdo das normas. Esses enunciados das normas deverão
diferenciar-se estritamente das próprias normas, sobre as quais se fazem
afirmações. Isso, principalmente, porque a norma descreve uma disposição, a
qual vale enquanto que o enunciado sobre a norma não vale, já que é o bem
verdadeiro ou falso.
É preciso acrescentar que a Teoria Pura do Direito só alcançou,
paulatinamente, o critério da separação apenas necessária de norma e
enunciado sobre a norma, e as conseqüências últimas desta opinião foram
retiradas mais tarde. Estas consequências recaem em especial na ideia de que
não pode haver nenhuma lógica das normas, uma vez que as regras da lógica
poderiam aplicar-se melhor às proporções descritivas das normas.

2. NORMAS JURÍDICAS
Nem todas as normas que se adotam são normas jurídicas. Também se
trata de norma de moral e de costumes. Elas têm de diferenciar-se das normas
jurídicas. Esta delimitação só poderá ser indicada aqui de modo muito
simplificado. As normas jurídicas são normas de um sistema, que, para o caso
de violação da norma, prevê, no final, uma sanção, isto é, uma força
organizada, especialmente uma pena ou uma execução.

3. ESPÉCIES DE NORMAS JURÍDICAS


O problema de como se estruturam normas jurídicas e que espécies de
normas jurídicas devem diferenciar-se caracteriza o desenvolvimento da
Teoria Pura do Direito, e só poderá ser abordado numa detalhada discussão
de fundo. Entretanto, algumas ideias deverão ser expostas.

De certo modo, as normas coercitivas (normas de conduta) encontram-


se no ponto central de um sistema jurídico, prescrevendo aos homens
determinada conduta – por exemplo, não matar, pagar impostos.
Conduzir do lado direito – e, no caso de uma conduta inapropriada,
prevêm uma pena ou uma execução. Estas normas coercitivas possuem,
pois, uma parte ordenadora e uma parte sancionadora.
Um sistema jurídico, porém, não contém apenas normas coercitivas
ordenadoras, mas também normas de autorização. Como se costuma
dizer, o direito regula sua própria criação. Isso, na medida em que as
normas de autorização chamam determinadas pessoas (por exemplo, um
monarca ou um parlamentar), para criar ou derrogar um direito. Essas
normas podem ser denominadas produtoras de direito.

Mas normas de autorização (habilitação) são também as regras que não


autorizam a criação de direitos, mas sim sua execução. Para dar origem a uma
sentença ou a um ato administrativo, exige-se que a pessoa que os emite
tenha uma autorização jurídica. Através dela, converte-se em órgão da ordem
jurídica ou pode também ser obrigado à imposição do ato correspondente.
Aparece, então, uma norma coativa, assim ordenada. Este, entretanto, não
precisa ser o caso.

Em sua doutrina, mais tarde, Kelsen admitiu uma categoria própria das
normas jurídicas derrogativas, normas estas que possuem,
precisamente, o conteúdo para anular outra norma jurídica. Tais normas
se apoiam, certamente, em normas de autorização, mas não contêm
nenhuma autorização, apenas uma função específica. Se elas devem ser
consideradas como uma categoria própria de normas, é algo discutido,
atualmente, em doutrina.

No decorrer da evolução de sua doutrina, Kelsen também aceitou normas


jurídicas de permissão. Por meio de uma norma semelhante, uma norma
coativa deve derrogar-se ou limitar-se. Cabe assinalar que uma disposição
jurídica com este conteúdo pode ser interpretada como norma derrogatória ou
como parte restritiva de uma norma coativa. A adoção de normas de
permissão específicas, parece, assim, supérflua.

4. DISPOSIÇÕES JURÍDICAS
As normas jurídicas desenvolvem uma estrutura muito complexa. Em
consequência, é interessante para mostrar a construção integral da ordem
jurídica. O trabalho do jurista, porém, é elaborado, regularmente, com
simples partes de normas jurídicas. Em geral, não se configuram normas
jurídicas completas, mas trata-se apenas dos elementos jurídicos dos quais se
formam as normas jurídicas. Estas partes – o material jurídico construído –
podem ser denominadas “disposições jurídicas”. Normalmente, estas são
descritas e se investiga sua função. O fato de que a totalidade dos conceitos
de normas de direito se conforme, fundamenta-se em que apenas pertence ao
material jurídico aquilo que contribui para a construção de uma norma
jurídica. Não se deve ocultar que, no âmbito da estrutura normativa, dentro da
ótica da Teoria Pura do Direito, ainda se deverá acrescentar muito, no futuro.
Capítulo III
A TEORIA DA FORMAÇÃO ESCALONADA DO SISTEMA JURÍDICO

1. Nos hauptproblemen der Staatsrechtslehre (Problemas Principais da


Teoria Jurídica-Estatal, 1911), fundamento da Teoria Pura do Direito, Kelsen
se concentra, por completo, na análise das leis. A elaboração das leis e a
execução das leis permanecem, conscientemente, excluídas. A obra foi
dedicada, portanto, a uma consideração estática do direito. Isso mudou,
porém, sob a influência do discípulo de Kelsen, Adolf Merkl (1890-1970).
No prólogo da segunda edição (não modificada) dos Hauptproblemen (1923),
Kelsen escreveu sobre o desenvolvimento da doutrina, afirmando que havia
“tomado a teoria do escalonamento como parte essencial no sistema da
Teoria Pura do Direito”.
Merkl havia sustentado, em várias obras, a ideia de que o direito deveria
ser visto “como sistema de elaboração de forma escalonada”, e esse ponto de
vista converteu-se em uma parte firme da Teoria Pura do Direito, influindo,
também, muito além desse círculo. Isso conduz, na verdade, frequentemente,
a uma utilização por demais simplificada dessa teoria, que, em um exame
detalhado, é bastante complexa. Para apresentá-la sumariamente, atentemos
para duas diferentes graduações: o sistema escalonado segundo o
condicionamento jurídico e o sistema escalonado segundo a força
derrogatória.
2. Sobre o sistema escalonado segundo o condicionamento jurídico, deve-
se observar o seguinte: Ao poder comprovar normas jurídicas que permitem a
elaboração de outras normas jurídicas (ou de partes destas: disposições
jurídicas), pode-se estabelecer, antes de tudo, uma graduação, dentro da
ordem jurídica: a graduação entre as normas jurídicas que regulam a
elaboração e as disposições jurídicas e que obedecem a determinadas normas
de produção jurídica (regra de elaboração de direito) deriva sua validade da
norma produtora de direito e pode ser considerada “superior”, e as
disposições jurídicas elaboradas de acordo com ela, “inferiores”. A norma de
elaboração jurídica “superior” condiciona a norma elaborada “inferior”.
3. No sistema escalonado segundo a força derrogatória, trata-se de
divisão de formas jurídicas. As disposições jurídicas elaboradas conforme as
mesmas regras de produção possuem a mesma forma jurídica. Falamos, em
suma, sem considerar o conteúdo – da forma constitucional, a forma legal ou
a forma regulamentar, na qual se manifesta uma disposição jurídica. Estas
formas jurídicas irão dividir-se, agora, de acordo com o critério de sua força
derrogatória. Superior é a forma de direito, cujas disposições derrogam
preceitos em outra forma jurídica, a qual, entretanto, não pode derrogar outra
forma de direito, mediante disposições. Assim, as regulamentações na forma
constitucional podem derrogar, normalmente, as regulamentações na forma
legal, mas não vice-versa. Algo análogo vale para a relação da forma legal
com a forma regulamentadora.
4. Um problema difícil, que aqui não pode ser acompanhado de mais
perto, é o das relações dos sistemas escalonados entre si. Não trataremos,
porém, de detalhes. O que deve ser assinalado – porque é típico na Teoria
Pura do Direito – é que se trata de evidenciar, da maneira mais precisa
possível, a estrutura do direito positivo. Este é também o objetivo da doutrina
do escalonamento do sistema jurídico.
A teoria da formação escalonada da ordem jurídica caracteriza-se
também, e principalmente, pelo seguinte: Os graus superiores na construção
escalonada da elaboração do direito, podem determinar, em grande ou
pequena medida, os graus seguintes. Assim, por exemplo, o legislador é
normalmente menos limitado pela Constituição que o poder regulamentar ou
o juiz, pela lei.
Em todos os escalões, assinalam-se, não obstante, margens de liberdade
do órgão habilitado, tal como se manifestam no campo de ação configuradora
do legislador, na faculdade discricionária ou no campo jurídico
indeterminado. A teoria da formação escalonada procura, desta maneira,
resistir à ilusão de que a elaboração do direito seja um processo quase lógico
e indicar que, na ordem sucessiva, não só se executa o direito, como também
se cria o direito, e desse modo os atos jurídicos possuem, por um lado, função
executiva, e, de outro lado, função criadora do direito e, finalmente – para
citar a expressão de Merkl – possuem duplo aspecto jurídico e têm cabeça de
Jano.
Capítulo IV
A DOUTRINA DA INTERPRETAÇÃO

1. Se se entende por interpretação o processo intelectual que serve para


averiguar o conteúdo de uma disposição jurídica, deve-se relevar
primeiramente – em conexão com a teoria da construção escalonada – que é
uma ilusão supor ser possível encontrar sempre, mediante a interpretação,
uma solução correta. A interpretação só pode traçar, amiúde, um marco,
dentro do qual são racionalmente de igual valor, diferentes soluções. A
imposição de um ato jurídico – quer seja uma lei, quer seja uma sentença –
está assim determinada, apenas, enquanto o preceito superior contenha uma
predeterminação. O reconhecimento desta só pode ser tarefa de interpretação
jurídico-científica.
O que vai além disso unicamente pode ser valorado como proposta
político-jurídica.
2. O órgão chamado para fixar um ato jurídico deve ter, para isso, duas
tarefas diferentes: reconhecer em que medida está determinado pelo preceito
jurídico superior, tarefa que se cumpre mediante uma interpretação jurídico-
científica e, portanto, decidir dentro do marco estabelecido. Em
consequência, deve-se separar interpretação e aplicação.
3. À pergunta de como é possível a interpretação, uma teoria exata do
direito responderá, antes de tudo, que isso só pode ocorrer mediante o
emprego de métodos racionais, cujos resultados objetivos (intersubjetivos)
sejam verificáveis. Para isso, estão disponíveis, principalmente, os seguintes
métodos de interpretação:

Interpretação literal, que inclui a interpretação gramatical. Verificar o


significado das palavras – até certo ponto imprecisas – é uma tarefa que
deverá ser levada a cabo por meios racionais. É o mesmo que o uso das
regras gramaticais.
Interpretação histórico-subjetiva, isto é, a transmissão daquilo que o
legislador histórico quis efetivamente. Comprovar isso – naturalmente
dentro de seus limites – é possível pela consulta dos materiais.
A insistência em impor a vontade efetiva deve excluir, em especial, o fato
de que se recorra a um legislador fictício, ao qual – sem verificação –
poderão ser atribuídas muitas coisas.

Interpretação teleológica, hoje muito atual e moderna, não exclui o que


foi dito anteriormente. O que deve interessar a uma teoria exata é como
se transmite o telos. Se provém, por exemplo, do texto e dos materiais,
nada haverá para objetar a seu emprego na interpretação. Surge, por
acaso, apenas da vontade do intérprete, de modo que não pode ter
nenhum cabimento numa teoria exata.
Capítulo V
DIREITO E ESTADO

1. Um ponto característico da Teoria Pura do Direito é sua exclusão de


um exame jurídico do Estado, como fenômeno particular, junto à ordem
jurídica. Kelsen vê o Estado como “uma unidade especificamente normativa
e, de maneira alguma, como uma formação, de algum modo compreensível,
mediante a legalidade causal”. Kelsen estabeleceu essa teoria, em especial
contra a teoria dos dois rostos, de Georg Jellinek, a qual compreendia o
Estado tanto como “instituição jurídica” quanto, também, como “formação
social”. A forma na qual duas “partes” tão heterogêneas de um “objeto” são
apreendidas por meio de uma ciência é algo que, em Jellinek, não chega a ser
esclarecida. Kelsen se empenha em assinalar que o problema central da
“doutrina do Estado” deve ser conceituado e tratado como problema jurídico.
Sobre isso devemos atentar para alguns pontos: Conforme a “teoria dos dois
rostos”, o fenômeno social “Estado” é, em primeiro lugar, uma comunidade
de homens que se encontra sob um poder soberano. Com isso, suscita-se a
questão de saber por que “vários homens” formam uma “comunidade”
humana. Observa-se um grupo de seres humanos que de alguma maneira
vivem juntos e percebe-se que existem, entre eles, nexos multifacetados, de
intensidades diversas. Não pode ser fatal o que reúne os homens numa
comunidade estatal. É antes um critério normativo, precisamente a ordem
jurídica, o que os une, como se submetidos à norma. Os elementos do Estado
são compreendidos por Kelsen com rigoroso sentido jurídico.
De acordo com isso, o “território estatal” não deve ser visto como âmbito
de dominação fática, mas sim como âmbito de validade espacial da ordem
jurídica. O povo do Estado não se define como soma de homens, mas como
destinatários, obrigados ou autorizados, através da ordem jurídica. Trata-se,
com isso, do âmbito de validade pessoal da ordem jurídica.
É supérfluo caracterizar a comunidade “Estado” como “poder soberano”,
quando, por ordem jurídica, se entende uma ordem efetiva.
Também para a compreensão das “formas estatais” importa – como o
mostra uma observação mais detalhada – a conformação jurídica como está
expressa, principalmente, na Constituição.
O fato de que a “teoria dos dois rostos” seja exposta e defendida com
êxito é explicado por Kelsen pela tendência do pensamento humano em
associar formas abstratas com uma pessoa (“um portador”). Em conexão
precedente, associa-se a formação abstrata “ordem jurídica”, que não aparece
concebível por si só, com um “portador” (o criador) da ordem jurídica, o
Estado, contemplado como algo dado enfaticamente. Ocorre aqui, na
verdade, uma duplicação; supõe-se também o Estado forma da “ordem
jurídica”, apesar de ambos – em um exame correto – serem idênticos.
Como segundo motivo para a aceitação de um dualismo de Estado e
direito, poder-se-ia perceber o desejo político de contar, junto com o direito,
com um segundo sistema, ao qual se poderia invocar eventualmente.
“Atos de emergência”, por exemplo, que carecem de fundamento no
sistema jurídico, podem, pelo menos, ser justificados como “atos estatais”,
porque correspondem à “natureza” ou às “tarefas” de Estado – dizendo-o
abertamente: uma “razão de Estado”.
2. O conceito de “Estado” cumpre, na doutrina jurídica, o papel de um
ponto de imputação: fala-se em “órgão estatal” e de “ato estatal”, e com isso
diferenciam-se os “órgãos estatais” de outros homens e os “atos estatais” de
outros atos, ordenados por homens. Indaga-se que circunstância justifica essa
diferenciação e diz-se, a respeito: um “órgão do Estado” não é fenômeno
natural; é um homem, na medida em que se encontra habilitado pela ordem
jurídica, “pelo Estado”, e isso significa, exatamente, para atuar como
realizador da ordem jurídica. Um ato estatal não chega a sê-lo por possuir
determinadas qualidades físicas. O ato estatal de execução de uma pena
privativa de liberdade diferencia-se, no que se refere ao ato natural, de uma
detenção ilegal (sequestro). Trata-se de uma execução judicial, quando existe
uma autorização jurídica de privação de liberdade. Se um homem não
autorizado pela ordem jurídica age, não há aí um ato jurídico.
Nessa altura, é oportuno observar que a ordem jurídica reconhece
diferentes atos, que não correspondem exatamente às autorizações, como atos
jurídicos – como, por exemplo, a prisão ilícita, feita por um policial – mas, na
verdade, trata-se de uma autorização posterior. Assim se caracteriza o
“cálculo errôneo”, como Merkl denominou esse fenômeno. Ao falarmos de
“órgãos estatais” e de “atos estatais”, colocamos esses objetos em relação ao
“Estado”. Ele se converte num ponto de imputação. Em um exame correto, é
uma vinculação jurídica. O Estado mostra-se, assim, também, na conexão
objetiva, como fenômeno jurídico.
Capítulo VI
DIREITO, CIÊNCIA JURÍDICA E LÓGICA

Como já foi indicado, a Teoria Pura do Direito assinala, há muito tempo,


que as normas do direito – prescritivas ou autorizativas –, de um lado, e as
proposições descritivas da Ciência Jurídica, de outro lado, devem ser
diferenciadas de maneira rigorosa. Só mais tarde Kelsen esclareceu uma
consequência importante desse critério. Refere-se ela ao papel da lógica no
direito e na Ciência Jurídica. Kelsen sustenta a posição de que as regras da
lógica – como regras para proposições suscetíveis de verdade – podem
encontrar aplicação, sem dúvida, nos enunciados da Ciência Jurídica, sobre
normas de direito prescritivas. Com isso, ele tomou por base uma concepção
expressiva das normas. A posição da Teoria Pura do Direito nesse âmbito
problemático – universalmente discutida, em parte com aprovação, em parte
com crítica – refere-se, principalmente, ao problema do conflito de normas e
ao problema do silogismo normativo. Em resumo, sobre essa dificílima
questão, diremos o seguinte: No conflito de normas, é preciso que seja claro,
principalmente, que o conflito entre preceitos jurídicos não pode ser
solucionado por meio da lógica, mas, sim, mediante regras de direito (como,
por exemplo, a regra lex posterior derogat legi priori), que é completamente
“ilógica”. No denominado “silogismo normativo”, há que se diferenciar,
rigorosamente, os processos intelectuais da ciência do direito, dos processos
de execução e aplicação do direito: a premissa maior do silogismo jurídico
não é a lei, que deverá ser aplicada, mas um enunciado sobre ela; a conclusão
não é a sentença “judicial deduzida” – conseguida quase logicamente –, mas
a descrição do que, em atenção ao conteúdo da norma geral, deve ser
adequado ao caso concreto. A sentença judicial, porém, é primeiramente
fixada pelo juiz e, sem dúvida, com observância dos processos intelectuais da
ciência do direito, quando ele for chamado, pela ordem jurídica, para decidir,
“com fundamento na lei”. Não se pode ignorar, aqui, que a descrição da lei
que será aplicada pode dar ao juiz um “campo de liberdade”, ao qual será
possível impor, “com fundamento na lei”, isto é, quanto ao conteúdo,
diferentes sentenças. A consideração jurídico-científica pode conduzir aqui,
desde já, apenas à unificação do “campo de liberdade”. Dentro deste, o juiz
terá de decidir. Por isso apenas compreende-se uma das metades da moeda de
cada vez quando as sentenças judiciais são designadas parcialmente como
“conhecimento” e parcialmente como “decisões”.
A posição que tenho sustentado sobre as relações do direito e da lógica
foi objeto, recentemente, de um exame crítico de O. Weinberger, o que me
oferece a grata oportunidade de apresentar e explicar, outra vez, minha
opinião, bem resumidamente.
1. No meu conceito, as regras da lógica não valem para as normas
existentes no mundo do dever ser (válidas); nem as regras da lógica têm
validade para as coisas existentes no mundo do ser. Mas as regras da lógica
certamente valem para os enunciados sobre a existência ou sobre as
qualidades de normas e coisas. Se é isso que se denomina ou não “descrever”,
como já disse, não me importa.
2. Os enunciados sobre um determinado sistema de normas podem levar a
que se indique um “conflito normativo”, isto é, que existem preceitos
jurídicos que normatizam contraditoriamente (a deve ser – a não deve ser).
Esse conflito será percebido mediante os enunciados, sobre os preceitos
jurídicos, que se encontram em luta, ao se indagar o que deverá ser segundo a
Norma I, e o que deverá ser segundo a Norma II. Ao expressar isso por meio
de proposições, chega-se a duas proposições contraditórias sobre o devido (a
deve ser – a não deve ser). Weinberger afirma que entre as proposições, no
sistema normativo S vale como a norma “a deve ser”, e no sistema normativo
S vale como a norma “a não deve ser”, sendo que não há nenhuma
contradição, pois em conflito de normas ambas as proposições são
verdadeiras. Mas, para isso, esse divertimento lógico não serve! Melhor
dizendo, porque se produz uma contradição quando “descrevo”, por meio de
proposições, o conteúdo de ambos os preceitos jurídicos, com o que se
mostra, provavelmente, que a escolha da palavra “descrever”, no sentido de
assinalar o conteúdo dos preceitos jurídicos indicados, tem, sem dúvida, seu
significado. Não obstante, é indiferente a designação escolhida. Trata-se de
que eu, diferentemente de Weinberger, que associa os enunciados sobre a
existência (validade) da norma (“em S vale…”) com aqueles de conteúdo
(“em S vale, a deve ser”) – separo estes dois enunciados e, com respeito à
identificação do conflito de normas, só aplico os enunciados ao conteúdo.
3. O que Weinberger diz sobre consequências lógico-normativas, não
posso aceitar, de minha parte, como objeção à minha posição, pois eu parto
de outros pressupostos básicos, os quais só é possível apresentar aqui de
forma abreviada.
Não havendo nenhuma norma sem um ato de imposição normativa, o que
interessa saber, quando existe uma norma geral, para o achado de uma norma
individual correspondente é se uma norma semelhante foi imposta. Da
existência da norma geral, segundo a qual todos os ladrões devem ser punidos
com prisão, não se inclui, digamos logicamente, a existência da norma
individual, conforme a qual o ladrão A deve ser punido com prisão. Tal
norma individual tem de ser previamente estabelecida por um ato judicial,
isto é, a emissão da respectiva sentença. Por conseguinte, “nenhuma norma
individual vale como consequência de uma regra normativa geral
preestabelecida”, a não ser quando ela tiver sido imposta. Nesse aspecto, é
importante diferenciar entre as diversas possibilidades lógicas dedutivas da
realização do direito.
Nós partimos de um pressuposto que em um sistema jurídico de normas
gerais (“leis”), que determinam tipos legais de delitos e um marco
sancionador e para eles elegem um juiz, penalizam-se criminosos “com
fundamento na lei”, por meio das sentenças correspondentes. A tarefa que o
juiz tem e pode levar a cabo racionalmente é a de averiguar, com exatidão, o
conteúdo da norma geral, ou, para usar outros termos, de descrevê-lo. A
ciência do direito pode ajudá-lo nessa tarefa (aqui, concretamente, a
dogmática jurídico-penal). Portanto – e depois do achado nas comprovações
fáticas – o juiz sabe qual sentença deve (ou pode) impor, de acordo com as
leis. Disso pode resultar que sejam possíveis várias sentenças: basta pensar
em conceitos legais indeterminados quanto ao tipo legal e o marco
sancionador. O estabelecimento do ato da “sentença”, e com ele a produção
de normas individuais, não pode ser negado ao juiz por ninguém e, em
especial, não pode fazê-lo a ciência do direito. Esta não pode como que
“deduzir logicamente” a norma geral com o conteúdo da norma individual.
Pode, porém, na verdade – naturalmente sem consequências normativas –
investigar se o juiz se manteve nos termos da lei e faz isso ao comparar o
conteúdo da norma geral com o conteúdo da norma individual.
Com isso, esboçou-se como a reflexão racional (na aplicação de regras
lógicas) e a decisão voluntária se assemelham entre si na execução do direito,
mas permanecem, mesmo assim, estritamente separadas.
4. As considerações de Weinberger são estéreis enquanto polemiza
criticamente com meu tratamento do dilema de Jörgensen, porque parte de
fundamentos distintos dos meus. Isso se refere, principalmente, à minha
posição básica – que não é, como opina Weinberger, um “princípio de fé” –,
segundo a qual as regras da lógica se aplicam a proposições, mas não a
normas. Quando se nega isso, elude-se o dilema assinalado por Jörgensen e
não é necessário ocupar-se dele.
O que Weinberger alega, contra minha hipótese de um “mundo do dever
ser”, passa longe da questão. A objeção de que não existe “nenhum mundo
das normas como esfera do ser ignora a minha posição, já que eu construí o
‘mundo do dever ser’ como um mundo oposto ao “mundo do ser”.
Ademais, Weinberger crê poder fornecer também, na discussão sobre o
dilema de Jörgensen, seus argumentos contra a solução indicada por mim
com respeito ao conflito de normas e a dedução lógica referente às normas.
Esses argumentos já foram refutados.
Conclusão

Com o que foi dito sobre a doutrina jurídica de Kelsen e as posições a ela
referentes, só foi possível dar uma visão limitada desse edifício teórico
relativamente amplo. Felizmente, ele tem sido formulado e esclarecido em
numerosas publicações. Felizmente, também, não é uma teoria terminada e
arquivada, mas em permanente desenvolvimento, uma teoria para cuja
construção posterior todos estão convocados.
TEORIA PURA DO DIREITO

INTRODUÇÃO À PROBLEMÁTICA CIENTÍFICA DO DIREITO

Capítulo I Direito e natureza


Capítulo II Direito e moral
Capítulo III O conceito de direito e a teoria da proposição jurídica
Capítulo IV Dualismo da teoria do direito e sua dominação
Capítulo V Ordenamento jurídico e seu escalonamento
Capítulo VI Interpretação
Capítulo VII Métodos de produção do direito
Capítulo VIII Direito e Estado
Capítulo IX Estado e direito internacional
Capítulo I
DIREITO E NATUREZA

SUMÁRIO: 1. A “pureza” – 2. Fato natural (ato) e seu significado – 3.


A autointerpretação do material social (o significado subjetivo e
objetivo) – 4. A norma como esquema de interpretação – 5. A norma
como ato e substrato de sentido – 6. Validade e âmbito de validade da
norma – 7. Conhecimento das normas jurídicas e sociologia jurídica.

1. A “PUREZA”
A Teoria Pura do Direito é uma teoria do direito positivo. Tão-somente
do direito positivo e não de determinada ordem jurídica. É teoria geral e não
interpretação especial, nacional ou internacional, de normas jurídicas.
Como teoria, ela reconhecerá, única e exclusivamente, seu objeto.
Tentará responder à pergunta “o que é” e “como é” o direito e não à pergunta
de “como seria” ou “deveria ser” elaborado. É ciência do direito e não
política do direito.
Intitula-se Teoria “Pura” do Direito porque se orienta apenas para o
conhecimento do direito e porque deseja excluir deste conhecimento tudo o
que não pertence a esse exato objeto jurídico. Isso quer dizer: ela expurgará a
ciência do direito de todos os elementos estranhos. Este é o princípio
fundamental do método e parece ser claro.
Mas um olhar sobre a ciência do direito tradicional, da maneira como se
desenvolveu no decorrer dos séculos XIX e XX, mostra claramente como
isso está longe de corresponder à exigência da pureza.
De maneira desprovida de todo espírito crítico, o direito se mesclou à
psicologia, à biologia, à ética e à teologia.
Hoje em dia não existe quase nenhuma ciência especial, em cujos limites
o cultor do direito se ache incompetente. Sim, ele acha que pode melhorar sua
visão do conhecimento, justamente conseguindo pedir emprestado a outras
disciplinas. Com isso, naturalmente, a verdadeira ciência do direito se perde.
2. FATO NATURAL (ATO) E SEU SIGNIFICADO
A Teoria Pura do Direito procura delimitar claramente o objeto de seu
conhecimento em duas direções, uma vez que sua autonomia, através do
sincretismo metódico, é colocada em perigo.
O direito é um fenômeno social, mas a sociedade tem objeto
completamente diverso da natureza, na medida em que é uma conexão de
elementos inteiramente diferentes.
A ciência do direito não deve tornar-se ciência da natureza, pois o direito
deve distinguir-se claramente da Natureza. Mas isso é muito difícil, já que o
direito – ou o que se costuma designar mais proximamente como tal – pelo
menos em parte, no âmbito da natureza, parece ter existência natural.
Se alguém analisar qualquer estado de coisas (Sachverhalte) considerado
como direito, como, por exemplo, uma deliberação do Parlamento, um ato
administrativo, uma sentença judicial, um delito, podem distinguir-se dois
elementos: um deles é um ato no tempo e no espaço, um ato perceptível
sensorialmente, um acontecimento exterior, sendo na maior parte
comportamento humano; o outro, é um ato ou acontecimento (fato)
igualmente inerente ou ligado a um sentido, a um significado específico.
Numa sala reúnem-se pessoas; umas fazem discursos, algumas se
levantam de seus lugares, outras permanecem sentadas; isso é um
acontecimento externo. O significado: elaborou-se uma lei.
Um homem, em vestes talares, fala, sobre uma alta plataforma, dirigindo
algumas palavras a pessoas diante dele. Esse acontecimento externo significa
uma sentença judicial.
Um comerciante escreve uma carta a outro, com determinado conteúdo; o
outro responde com outra carta; isso significa: firmaram um contrato.
Alguém, por meio de certos atos, causa a morte de outrem; isso significa,
juridicamente, um homicídio.

3. A AUTOINTERPRETAÇÃO DO MATERIAL SOCIAL (O SIGNIFICADO


SUBJETIVO E OBJETIVO) Este “significado” não pode ser
simplesmente visto e ouvido, como um ato, como um
fato exterior (Tatbestand) assim como se percebem, em
um objeto, suas características e funções, tais como cor,
dureza, peso.
Assim, pode o ato – enquanto se expressa em palavras faladas ou escritas
– dizer algo, informar sobre seu significado. Nisso está até uma característica
especial de reconhecimento de determinado dado material social e
principalmente jurídico. Uma planta nada pode dizer ao que a investiga sobre
sua natureza científica. Ela não faz nenhuma tentativa de esclarecer a própria
origem científica.
Mas um ato social pode muito bem autointerpretar-se, isto é, declarar o
que significa. O ato da pessoa se liga a outro ato, de determinado significado,
que se expressa de algum modo e aquele a quem se dirige o ato deve entendê-
lo. Assim, também, ocorre com aquele que pode expressar-se claramente no
Parlamento, elaborar uma lei, ou dois particulares que manifestem a intenção
de praticar um ato jurídico.
Quem reconhecer o direito, principalmente diante de uma
autointerpretação dos materiais, antecipa-se ao conhecimento da interpretação
jurídica.
Daí surge a necessidade de distinguir-se entre o sentido subjetivo e
objetivo de um ato. O sentido subjetivo não precisa coincidir com o objetivo,
de modo que este ato, no sistema de todos os atos jurídicos, pertença ao
sistema jurídico.
Aquilo que o famoso Capitão de Köpenick* ordenou foi um ato que
pretendia ter um sentido subjetivo de comando (ordem) administrativo. Não
era objetivo, mas, sim, um delito.
Quando uma organização secreta, no intuito de libertar a pátria de
elementos perniciosos, condena à morte um de seus membros, considerado
traidor, considera, pois, subjetivamente, uma condenação à morte e assim a
denomina, mandando executá-la por um homem de confiança, sendo isso um
ato objetivo, que se encontra no sistema do direito objetivo – não a execução
de uma sentença de morte, mas um homicídio, embora esse estado de coisas
não se distinga de uma sentença de morte.

4. A NORMA COMO ESQUEMA DE INTERPRETAÇÃO


Esse estado de coisas exterior, em todo caso, no decorrer do tempo e do
espaço, ocorre de modo perceptível e, como tal, parte da natureza,
determinado por leis causais.
Só que esse fato, considerado como elemento do sistema da natureza, não
é objeto específico do conhecimento jurídico e, por isso, nada tem de
jurídico. O que converte esse fato em ato jurídico (ou antijurídico) não é a sua
faticidade (Tatsächlichkeit), nem sua certeza natural, isto é, seu “ser”
causalmente determinado e contido no sistema da natureza, mas sim o sentido
objetivo, ligado a esse ato e a seu significado.
Seu significado especificamente jurídico, ou seja, seu sentido jurídico
peculiar, contém os fatos em questão, através de uma norma, que se refere ao
seu conteúdo, que, por sua vez, lhe empresta significado jurídico, de modo
que o ato, conforme essa norma, possa ser interpretado.
A norma atua, portanto, como esquema de interpretação. Ela será
elaborada através de um ato jurídico que, igualmente, adquire significado
através de outra norma.
O fato da execução de uma sentença de morte não constituir um
assassinato, essa qualidade – sensivelmente não perceptível – acontece
primeiro através de um processo de raciocínio: pelo confronto com o Código
Penal e o Código de Processo Penal.
A acima mencionada troca de cartas significa firmar um contrato,
resultando única e exclusivamente de que esse fato se acha contido em
determinados preceitos do Código Civil.
A reunião de pessoas forma o Parlamento e a sua atividade resulta em lei;
em outras palavras: esses fatos têm um “significado”, o que quer dizer que
todo o fato de haver determinados preceitos corresponde à Constituição. Isso
quer dizer que o conteúdo de um acontecimento efetivo – de algum modo
antecipado – torna-se uma norma.

5. A NORMA COMO ATO E SUBSTRATO DE SENTIDO


O conhecimento jurídico é voltado para determinadas normas, que
conferem a certos fatos o caráter de atos jurídicos (ou não jurídicos) e que
também se originam de atos jurídicos semelhantes.
É preciso atentar para o fato de que a norma, no sentido de valor
específico, é um tanto diferente do ato psíquico no que ele for voluntário ou
representado. É preciso distinguir com clareza o fato de querer ou de
representar-se a norma voluntária ou representada da norma que, de algum
modo, foi querida ou representada.
Quando se fala em “produzir” uma norma, isso significa sempre um fato
existente que se refere à norma.
A Teoria Pura do Direito não é relativa a qualquer processo psíquico ou
acontecimento físico (corpóreo), quando se conhecem as normas ou quando
se procura entender algo jurídico. Conceber algo juridicamente não pode ser
outra coisa senão conceber esse algo como Direito.
Com a tese de que só as normas jurídicas podem constituir o objeto do
conhecimento jurídico, afirma-se apenas uma tautologia, pois, no Direito, o
único objeto do conhecimento jurídico é a norma; mas a norma é a única
categoria que, no âmbito da natureza, não encontra nenhuma aplicação.
Quando atos naturais são caracterizados como fenômenos jurídicos, isso
nada significa, senão que a validade das normas será mantida e seu conteúdo
se acha numa determinada correspondência com o fato real. Se o juiz
comprova um caso concreto – possivelmente um delito – dirige seu
conhecimento, em primeiro lugar, a um ser natural – tem lugar uma sentença,
próxima apenas a um fato natural.
Mas juridicamente sua sentença será, assim que se comprovar o fato e a
lei (a ele) correspondente, interpretada logo como “furto” ou “fraude”. E só
assim poderá interpretá-lo, desde que o conteúdo desse fato seja reconhecido,
de maneira totalmente específica, como o conteúdo de uma norma. Nesta,
deve-se observar que a ação do juiz, de modo algum, se exaure numa
sentença; isso será apenas uma preparação a um ato de vontade, que, por sua
vez, será realizado através da norma individual da sentença judicial.

6. VALIDADE E ÂMBITO DE VALIDADE DA NORMA


Quando se fala no processo de “validade” da norma, nada mais se deve
exprimir com isso, senão a existência específica da norma, a maneira especial
com que ela se apresenta, diversa do ser da realidade natural, que decorre no
espaço e no tempo.
A norma, como tal, não deve ser confundida com o ato, uma vez que ela
deve ser promulgada – existe – e não é um fato natural – não existe no espaço
e no tempo.
O conteúdo possível da norma é o mesmo conteúdo possível do fato real,
de modo que a norma, com o conteúdo desse fato real, com certeza refere-se
ao comportamento humano, tanto no espaço como no tempo, sendo que esse
determinado comportamento humano deve caminhar no sentido da norma, e
estar de acordo com o seu conteúdo.
A validade das normas que regulam o comportamento humano – em geral
– e, por conseguinte, a validade das normas jurídicas, em particular, é uma
validade espaço-temporal, na medida em que essas normas têm, como
conteúdo, eventos espaço-temporais.
Que a norma tem validade significa sempre que vale para algum espaço e
algum tempo, a saber, que a referência da norma a espaço e tempo é o âmbito
da validade espacial e temporal da norma. Esse âmbito de validade pode ser
limitado, mas também ilimitado.
A norma só pode ter validade para um determinado espaço e tempo, isto
é, de seu (próprio) ou de determinado espaço e tempo de outra norma, o que
quer dizer: apenas o precedente regulador, dentro de determinado espaço e
determinado tempo.
Ela também pode – conforme seu significado – ter validade sobre tudo, e
sempre, isto é, basear-se em precedentes, em qualquer lugar e sempre que
puder ocorrer.
Este é seu significado quando não houver nenhum espaço especial – e
prazo fixo. Ela não tem, então, espaço ou tempo, mas apenas determinado
espaço e determinado tempo; seu âmbito de validade de espaço e tempo é
ilimitado.
Ao lado da validade de espaço e tempo, pode-se distinguir uma validade
objetiva (ou material) da norma, enquanto a vista abrange os vários
comportamentos humanos que são normatizados: assim, por exemplo, o
comportamento religioso, econômico e político.
Quando se indaga sobre os homens, cujo comportamento é regrado, pode-
se distinguir as normas também de acordo com sua importância pessoal.
A importância objetiva também pode ser limitada ou ilimitada, no sentido
de que se crie, de determinada maneira, uma norma que pertença a
determinada ordem, com o conteúdo de todos os objetos que, de algum modo,
são objetos; assim, por exemplo, quando na Constituição de um Estado a
importância objetiva for dividida entre as normas da procuradoria e as
normas do estado-membro, que formam a ordem. O mesmo vale para a
importância pessoal.
Desse modo, as normas se voltam para uma moral universal, aplicável a
todos os homens, o que significa que possuem somente um âmbito de
validade pessoal limitado.

7. CONHECIMENTO DAS NORMAS JURÍDICAS E SOCIOLOGIA JURÍDICA


Enquanto se considera o direito como norma e a ciência
jurídica (que tem função diferente da dos órgãos que
criam o direito) como ciência dirigida ao conhecimento
das normas, delimita-se o direito diante da natureza e a
ciência jurídica como ciência das normas diante de
todas as outras ciências que procuram explicar os
fenômenos naturais, de acordo com a lei da causalidade.
Particularmente se delimita também diante de uma
ciência que se propõe a investigar causas e efeitos
daqueles eventos naturais que, qualificados pelas
normas jurídicas, se apresentam como atos públicos.
Nada se pode dizer contra tal estudo (ou investigação) se ele se
denominar sociologia e, especialmente, sociologia jurídica. Sobre suas
chances e seu valor, nada mais precisa ser dito aqui. Deve-se verificar apenas
se tal ciência jus-sociológica tem ou nada tem a ver com normas jurídicas,
com significado específico, mas sim com determinados eventos, sem
considerar sua relação com algo aceito como válido, desde que se trate de
norma. A sociologia jurídica não se refere a normas válidas, mas sim a
outras, que se apresentam como relações de causa e efeito entre estes e outros
fatos naturais. Pergunta-se até por meio de que causas um legislador teria
promulgado justamente essas normas e não outras e quais os efeitos que suas
disposições possuem.
Pergunta-se, também, de que modo os fatos econômicos, as ideias
religiosas, influem na atuação dos tribunais e por que motivos os homens
ajustam ou não seu comportamento à ordem jurídica.
O direito torna-se, assim, o reflexo do fato natural como fato consciente
dos homens que criam, seguem ou violam normas jurídicas.
Na verdade, não é o próprio direito que constrói o objeto dessa ciência;
há certos fenômenos paralelos na natureza, tais como a fisiologia, que
procura os processos químicos ou físicos pelos quais ou com os quais se
manifestam certos sentimentos, não podendo compreender esses mesmos
sentimentos, os quais como fenômenos psicológicos não podem ser
entendidos química e psicologicamente.
A Teoria Pura do Direito – como ciência jurídica específica – não dirige o
olhar para as normas jurídicas, consideradas como fatos de consciência, nem
para a vontade ou a apresentação das normas jurídicas, como estruturas
qualitativas voluntárias ou involuntárias. E só concebe alguns fatos enquanto
contiverem normas jurídicas, isto é, através de determinadas normas
jurídicas. Seu problema é o da legalidade específica de uma esfera de
significado.

* Köpenick não é nome de pessoa, mas nome de um bairro de Berlim (por nós visitado em
1990) onde, em 1906, um sapateiro, vestido de Capitão do Exército, entregou ao Prefeito
um mero papel, dizendo que era uma ordem das autoridades militares. (N. dos T.)
Capítulo II
DIREITO E MORAL

SUMÁRIO: 8. Direito e justiça – 9. A tendência anti-ideológica da


Teoria Pura do Direito.

8. DIREITO E JUSTIÇA
Quando a Teoria Pura do Direito delimita a natureza, ela procura os
limites que separam a natureza do espírito.
A ciência do direito é ciência espiritual e não ciência natural. Pode-se
discutir se a antítese natureza e espírito coincide com realidade e valor, ser e
dever ser, lei causal e norma; ou se o âmbito do espírito é mais amplo do que
o do valor, do dever ser ou da norma.
Mas não se pode negar que o direito, como norma, é uma realidade
cultural e não natural. Por essa razão se apresenta a tarefa de se distinguir
entre direito e natureza e outros fenômenos espirituais, especialmente entre
normas de outra espécie. Cabe aqui, antes de tudo, dissociar o direito de
outras ciências, já que sempre foi erradamente associado à moral.
Naturalmente, não se nega, com isso, a exigência de que o direito deva ser
moral, isto é, deva ser bom. Essa exigência se entende por si mesma; o que
ela realmente significa, é outra questão. Repele-se somente o ponto de vista
de que o direito, como elemento da moral e que o direito, como direito, em
algum sentido e de algum modo, seja moral.
Quando o direito se apresenta como um elemento da moral, isso se torna
obscuro, se significar uma exigência natural para que o direito seja
apresentado como moral, ou, se isso significar que o direito, como parte
integrante da moral, possui um caráter efetivamente moral, tenta-se atribuir
um valor absoluto ao direito, levando-se em conta a moral.
Como categoria moral, direito significa o mesmo que justiça. Essa é a
expressão para a verdadeira ordem social, ordem essa que alcança
plenamente seu objetivo ao satisfazer a todos.
A aspiração da justiça é – encarada psicologicamente – a eterna aspiração
da felicidade, que o homem não pode encontrar sozinho e, para tanto,
procura-a na sociedade. A felicidade social é denominada “justiça”.
Embora a palavra seja também usada, de vez em quando, no sentido de
excesso de direito positivo, é empregada, principalmente, como excesso de
leis. Parece, então, “não jurídico”, de modo que uma norma geral, nesse caso,
será utilizada, mas em outro caso, não, ainda que seja logo aceita; isso parece
“não jurídico”, sem considerar-se o valor da própria norma geral. Essa
linguagem corrente refere-se ao relativo valor dos julgamentos, por excesso
de leis.
“Justo”, aqui, é meramente outra palavra para “jurídico”.
Na realidade, como várias acepções do direito significam “justiça”, isso
tem valor absoluto; seu conteúdo não pode ser determinado através da Teoria
Pura do Direito.
Sim, o direito – e isso é provado pela história do espírito humano, que há
milênios se preocupa inutilmente com a solução desse problema – não pode
ser de modo algum alcançado através do conhecimento racional.
A justiça, diferentemente do direito positivo, deve apresentar uma ordem
mais alta e permanece em absoluta validade, do mesmo modo que todo
empirismo, como a idéia platônica, em oposição à realidade e como a coisa-
em-si transcendental, se opõe a fenômenos.
O mesmo caráter metafísico que o dualismo ontológico possui, também o
têm a justiça e o direito. E, como aquele, assim também este tem tendência
otimista ou pessimista, conservadora ou revolucionária, com a qual se
apresenta com dupla função: a realidade, que é a ordem do Estado ou da
sociedade, que ora está de acordo, ora contestando, em contradição com o
ideal perseguido.
E assim como – apenas por mera hipótese – é impossível determinar a
essência da ideia ou da coisa-em-si, também no conhecimento científico, isto
é, racional, dirigido à experiência, é impossível responder, por essa mesma
via, à pergunta “em que consiste a justiça”?
Todas as experiências semelhantes, até hoje, só levaram a fórmulas
completamente vazias, tais como: “Faze o bem e evita o mal”, “A cada um o
que é seu”, “No meio está a virtude” (“Halte die richtige Mitte”, isto é,
“Conserva o meio certo”) e assim até o “imperativo categórico” é totalmente
sem conteúdo.
Se nos voltarmos à determinação do dever ser, como o valor absoluto, e à
ciência, esta nada mais sabe dizer senão: tu deves ser o que deves ser; uma
tautologia, atrás da qual – em variado aspecto e trabalhoso disfarce – a base
lógica da identidade oculta o conhecimento: bom é bom e mau é mau, justo é
justo e não injusto e a é a e não não-a.
A justiça, ideal da vontade e do comportamento, ao contrário da ciência,
deve fazer-se invisível na ideia de transformar a verdade, que encontra sua
expressão – negativa – no princípio da identidade.
Esse desnaturamento do problema é a consequência inevitável da
logificação de um objeto estranho à lógica, desde o início.
Observando-se, do ponto de vista do conhecimento racional, só existem
interesses e, com isso, conflitos de interesses, cuja solução só acontece
através de uma ordem de interesses, que ou se harmonizam, conciliando-se
um com o outro, ou conflitam entre si, e, à custa de conciliarem-se um com o
outro, instituem uma compensação, um compromisso entre interesses
contrários.
Uma e outra ordem têm valores absolutos, o que é “justo” e não
fundamental diante do conhecimento racional. No caso em que houvesse uma
justiça, no sentido de que se costuma referir à existência dela (da justiça)
quando se pretende alcançar determinados interesses através de outros, o
direito positivo seria completamente inútil e sua existência totalmente
incompreensível.
Em vista da existência de um bem absoluto, diante da natureza, da razão
ou da vontade divina, da ordem social resultante, a atuação dos legisladores
dos Estados seria a tentativa insensata de iluminar artisticamente a luz solar
mais clara.
A objeção normal: embora houvesse uma justiça, ela não deixava – ou, o
que é o mesmo, não manifestava – um objetivo, o que é uma contradição em
si; e nesta sua típica contradição está o típico disfarce ideológico do estado
das coisas, de modo penoso.
Justiça é um ideal irracional. Seu poder é imprescindível para a vontade e
o comportamento humano, mas não o é para o conhecimento. A este só se
oferece o direito positivo, ou melhor, encarrega-se dele.
Quanto menos se protestar, mais este se separa daquele, nitidamente;
quanto mais se cede ao esforço do poder, o direito, de algum modo, valerá
como tribunal e tanto mais se realiza com o avanço da tendência ideológica,
que assinala a teoria natural clássica-conservadora: isso não chega tanto a um
conhecimento do direito válido, como da mesma maneira, muito mais a uma
produção do direito, a um esclarecimento, que se conta através de uma prova,
de que o direito positivo é resultado de uma ordem natural, divina ou sensata,
isto é, absolutamente justa; enquanto a revolucionária teoria do direito natural
desempenha um papel diminuto na proporcionalidade da história da ciência
do direito, com a intenção de perseguir as leis contrárias.
A validade do direito positivo, que será assim questionada, que essa
contradição signifique, de algum modo, uma ordem absoluta exposta, e, desse
modo, a realidade do direito seja mostrada numa luz desfavorável, condiz
com a realidade.

9. A TENDÊNCIA ANTI-IDEOLÓGICA DA TEORIA PURA DO DIREITO


Essas tendências ideológicas, cujas intenções e efeitos políticos são
evidentes, ainda prevalecem na dominação da atual ciência do direito, mesmo
na aparente superação da Teoria do Direito Natural.
É contra ela que se insurge a Teoria Pura do Direito, a qual apresenta o
direito como ele é, sem legitimá-lo como justo ou desqualificá-lo como
injusto; ela indaga do real e do possível, e não do direito justo. Nesse sentido,
é uma Teoria do Direito justo e também uma Teoria do Direito radical-
realista. Aproxima-se do direito positivo para avaliá-lo. Porta-se como
ciência, sem compromisso com nada, como direito positivo, que procura
entender sua existência e, através de uma análise, compreender-lhe a
estrutura. Procura, principalmente, servir a algum interesse político, fornecer–
lhe a ideologia, os meios pelos quais legitima ou desqualifica a atual ordem
social. Com isso, entra na mais forte contradição com a ciência do direito
tradicional, que – conhecida ou desconhecida, ora mais, ora menos – tem um
caráter ideológico. Justamente por sua tendência anti-ideológica é que a
Teoria Pura do Direito se manifesta como verdadeira ciência do direito. A
ciência tem o conhecimento como aspiração imanente, qual seja, revelar seu
objeto. A ideologia, porém, encobre a verdade, com a intenção de preservá-la,
de defendê-la, transfigurá-la, ou, na intenção de agredi–la, de destruí-la,
substituí-la através de outra, desfigurando-a.
Toda ideologia tem sua raiz na vontade, não no conhecimento, mas
originada em determinados interesses, ou melhor, no interesse pela verdade;
diante do que, naturalmente, nada se deve dizer sobre o valor ou a dignidade
desses outros interesses. Novamente o conhecimento rasgará o véu que a
vontade e as circunstâncias criaram. A autoridade, que cria o direito e que,
por isso, procura mantê-lo, pode indagar se um conhecimento, livre de
ideologia, pode servir ao objeto criado; e também às forças, que perturbam a
ordem existente procurando substituí-la por outra melhor, não podem, através
de tal conhecimento jurídico, saber muita coisa.
Uma ciência do direito não pode preocupar-se nem com uma nem com
outra. Tal ciência do direito será a Teoria Pura do Direito.
Capítulo III
O CONCEITO DE DIREITO E A TEORIA DA PROPOSIÇÃO JURÍDICA

SUMÁRIO: 10. A teoria do direito natural e o positivismo jurídico –


11. O “dever ser” como categoria do direito: a) O “dever ser” como
ideia transcendental; b) O “dever ser” como categoria transcendental;
c) Retorno ao direito natural e à metafísica – 12. O direito como
norma coercitiva – 13. O conceito de antijuridicidade – 14. O direito
como técnica social: a) A eficácia do ordenamento jurídico; b) A
norma secundária; c) Motivos da obediência ao direito – 15. A
negação do “dever ser” – 16. O sentido normativo do direito – 17. O
“dever ser” e o “ser” do direito.

10. A TEORIA DO DIREITO NATURAL E O POSITIVISMO JURÍDICO


O caráter ideológico da doutrina jurídica tradicional combatida pela
Teoria Pura do Direito já se revela na definição corrente do conceito de
direito. Ele se encontra até hoje sob a influência da teoria conservadora do
direito natural, que – como já foi dito antes – opera com um conceito de
direito transcendente. Tal conceito corresponde plenamente ao caráter
metafísico básico, que a filosofia possuía, durante o predomínio da Teoria
Natural, período este que coincide politicamente com o desenvolvimento do
Estado polícia da monarquia absoluta.
Com a vitória da burguesia liberal no século XIX começa uma
pronunciada reação contra a metafísica e a Teoria Natural. De mãos dadas
com o progresso das ciências empíricas, com uma dissolução crítica da
ideologia religiosa, ocorre a mudança da ciência jurídica burguesa da Teoria
Natural para o positivismo. Porém, por mais radical que esta mudança tenha
sido, ela jamais foi completa. O direito não mais foi considerado uma
categoria eterna e absoluta; reconheceu-se que seu conteúdo passa por uma
transformação histórica e que como direito positivo é um fenômeno
condicionado por circunstâncias de tempo e de espaço. Mas a ideia de um
valor absoluto do direito não se perdeu de todo, pois vive ainda na firme ideia
ética de justiça, conservada pela ciência do direito positivista.
Mesmo que a diferença entre justiça e direito seja enfaticamente
acentuada, esses dois termos permanecem, entretanto, ligados entre si por fios
mais ou menos visíveis.
Para ser “direito”, ensina-se, deve a ordem positiva estatal ter alguma
participação na justiça, seja realizando um mínimo ético, mesmo que se trate
de uma tentativa, seja – embora de modo insuficiente – um direito justo; para
ser um “direito”, o direito positivo deve corresponder, de algum modo,
mesmo modesto, à ideia de direito.
Mas, como o caráter jurídico da ordem estatal é considerado evidente, sua
legitimação é assegurada por essa teoria jurídica dos mínimos morais, que é
apenas uma Teoria de Direito Natural minimizada.
E esse mínimo de garantia chega aos tempos relativamente tranquilos do
domínio da burguesia, num período de relativo equilíbrio das forças sociais.
As últimas consequências dos princípios positivistas oficialmente
reconhecidos não aparecerão, e a ciência do direito, na verdade, não está
completa, mas assim mesmo está preponderantemente orientada no sentido
positivista.

11. O “DEVER SER” COMO CATEGORIA DO DIREITO


a) O “dever ser” como ideia transcendental
Esta posição espiritual se expressa claramente no conceito sob o qual se
subsume o direito positivo e o conceito de norma ou do “dever ser”. Na
verdade, novamente se acentua a não identidade das normas jurídicas e
morais, mas do ponto de vista jurídico não se questionará o valor absoluto da
moral. Embora isso pareça ocorrer só para que desse fundo de relativo valor
do direito surja algo tão nitidamente, assim também o mero fato, a existência
de um valor absoluto, aqui não seja negado pela ciência do direito, o direito
legítimo e sensível, cujo conceito jurídico não esteja sem repercussão. E, no
caso, se se encarar a moral como norma e se o sentido da norma jurídica,
assim como o da norma moral, se expressar num “dever ser”, permanece no
conceito da norma jurídica e no dever jurídico algo que provém do valor
absoluto, que é próprio da moral.
O juízo de que algo seja juridicamente normatizado, algum conteúdo que
seja devido ao direito, nunca está totalmente livre da representação de que é
tão bom, tão certo e tão justo. E, nesse sentido, o conceito do direito como
norma e “dever ser” não possui, através da ciência jurídica positivista do
século XIX, realmente nenhum elemento ideológico determinado.

b) O “dever ser” como categoria transcendental


O objetivo da Teoria Pura do Direito é livrar, desligar totalmente o
conceito de norma jurídica do conceito de norma moral da qual se origina, e
assegurar a legalidade do direito também perante a lei moral. De tal modo o
faz que a norma jurídica, como geralmente ocorre com a teoria tradicional,
assim como a norma moral como imperativo, não é entendida como juízo
hipotético, como associação específica de um fato, expresso de maneira
condicionada.
A norma jurídica converte-se em proposição jurídica, que apresenta a
forma básica da lei.
Assim como a lei natural associa determinado fato, como causa, a um
outro, como efeito, assim também a lei jurídica associa condição jurídica a
conseqüência jurídica, isto é, com a denominada consequência antijurídica.
Num caso, a forma do entrelaçamento dos fatos é a causalidade, no outro
caso é a imputação, reconhecida pela Teoria Pura do Direito como a
legalidade particular do direito. Assim como o efeito é atribuído à sua causa,
a consequência jurídica é também atribuída à sua condição jurídica; mas
aquela não pode ser encarada como sendo produzida causalmente por esta.
A consequência jurídica (antijurídica) deve ser atribuída à condição
jurídica. Este é o sentido do enunciado: alguém é punido “por causa” de um
delito; a execução contra o patrimônio de alguém é “por causa” da falta de
pagamento da dívida.
A aplicação da pena ao delito e a execução do fato antijurídico civil não
têm significado causal, mas, sim, significado normativo. A expressão disso
como “imputação” e, como tal, a expressão da existência específica do
direito, sua validade, significa que os fatos característicos, já que pertencem
aos fatos do sistema de “direito” – não outra coisa – em sua associação e
mutabilidade, são o “dever ser”, uma vez que a Teoria Pura do Direito
apresenta o direito positivo; assim também a expressão da legalidade causal é
um “ter de ser”. Trata-se, em ambos os casos, apenas da expressão da
conexão especificamente funcional dos elementos para o sistema respectivo –
aqui a natureza, ali o direito.
A causalidade, principalmente, nada mais significa quando é libertada do
sentido mágico-metafísico que lhe adere originariamente, quando se
apresenta – de maneira totalmente animista – por motivo de alguma força
secreta, que produz efeito por si mesma.
A ciência natural não pode abolir tal princípio causal despojado, pois nele
se manifesta apenas o postulado da conceitualidade da natureza, a que não
pode haver correspondência senão através do entrelaçamento dos fatos
incorporados ao nosso conhecimento. Diz a lei natural: se A é, assim deve ser
B, sem que com isso se mencione o valor, isto é, o valor moral ou político
dessa conexão.
O “dever ser” permanece como uma categoria relativamente apriorística
para a compreensão do material jurídico empírico. Nesse aspecto, é
indispensável, desde que seja concebido e expresso o modo específico pelo
qual os fatos do direito positivo se interligam, pois é notório que essa
interligação não é de causa e efeito.
Não é como causa e efeito que se pune o delito; um entrelaçamento
completamente diferente da causalidade é o que o legislador estabelece.
Totalmente diverso, mas tão inalterável quanto aquele. No sistema do direito,
isto é, por causa do direito, aplica-se a pena ao delito, sempre e sem exceção,
mesmo quando no sistema da natureza a pena possa faltar, por qualquer
motivo. Quando não falta, ela não deve ocorrer, exatamente como efeito do
delito, que atua como causa, mas pode ser estabelecida por outra causa,
mesmo quando o delito não tiver acontecido.
Costuma-se dizer: quando ocorre o denominado antijurídico, “deve”
acontecer a sequência “antijurídica”, de modo que esse “dever ser” tem
apenas – como categoria jurídica – o sentido específico em que a condição
jurídica e a consequência jurídica se correspondem na proposição jurídica.
Essa categoria do direito possui – e por isso se diferencia principalmente
de uma ideia transcendental do direito – caráter puramente formal.
Permanece aplicável, seja qual for o conteúdo dos fatos assim ligados, sejam
quais forem os atos concebidos como direito.
Nenhuma realidade social pode ser discutida por sua compatibilidade
com esta categoria jurídica, por causa da estrutura do seu conteúdo. No
sentido da filosofia kantiana, ela é gnoseológico-teórico-transcendental e não
metafísico-transcendental. Exatamente por isso conserva sua tendência
radicalmente anti-ideológica; e é precisamente nesse ponto que recebe a mais
violenta oposição da doutrina jurídica tradicional, que dificilmente pode
suportar que a ordem da República Soviética deva ser concebida como ordem
jurídica, do mesmo modo que a da Itália fascista ou a da França democrático-
capitalista.

c) Retorno ao direito natural e à metafísica


A teoria jurídica tradicional, desde a comoção social causada pela Guerra
Mundial, está prestes a retornar, em toda a linha, ao direito natural, do mesmo
modo que a filosofia tradicional está em pleno regresso à metafísica pré-
kantiana. Na mesma situação política que a nobreza feudal, no início do
século XIX a burguesia de meados do século XX volta para a mesma
ideologia política que a nobreza feudal defendia, exatamente, na luta contra
essa burguesia. E é justamente daí que a Teoria Pura do Direito extrai as
últimas consequências da filosofia anti-ideológica positivista e da teoria
jurídica do século XIX, na mais enérgica oposição aos adeptos da filosofia
transcendental kantiana e do positivismo jurídico.

12. O DIREITO COMO NORMA COERCITIVA Com a categoria formal


do “dever ser” ou da norma, só se conseguiu, porém, o
gênero próximo, não a diferença específica do direito. A
teoria jurídica do século XIX concordou, de modo
geral, que a norma jurídica seria uma norma coercitiva,
no sentido de que é uma norma de coação e, por isso
mesmo, se distingue de outras normas. Neste ponto, a
Teoria Pura do Direito segue a teoria jurídica positivista
do século XIX. Para ela, a consequência decorrente da
proposição jurídica, contida em determinada condição,
é o ato coercitivo estatal, isto é, a pena e a execução
coercitiva civil ou administrativa e somente por isso a
situação de fato condicionadora é qualificada de
antijurídica, e a condicionada, de consequência da
antijuridicidade.
Não se trata de nenhuma qualidade imanente, nem de qualquer referência
a uma norma metajurídica, com um valor moral, ou seja, transcendente do
direito positivo, o que faz com que determinada conduta humana tenha valor
antijurídico, como um delito – no mais amplo sentido da palavra –, senão
única e exclusivamente, que esteja na proposição jurídica como condição de
uma consequência específica, o fato de que a ordem jurídica positiva reaja
contra esse ato coercitivo.

13. O CONCEITO DE ANTIJURIDICIDADE


Se se considerar do ponto de vista imanente, que aceita a Teoria Pura do
Direito, o conceito de antijuridicidade chega a uma mudança substancial de
sentido. Não é intenção dos legisladores, nem das circunstâncias, que um fato
não desejado pela autoridade que estabelece as normas seja – como se
expressa incorretamente – socialmente prejudicial (embora só se possa dizer
que é assim considerado apenas pelo legislador) e determinante para o
conceito de antijuridicidade; contudo, a posição do fato questionado na
proposição jurídica é única e exclusiva: é a condição para a reação específica
do direito, para o ato coercitivo (que é a ação do Estado).
Antijuridicidade é a conduta determinada na proposição jurídica como
condição do homem contra quem se dirige o ato coercitivo estabelecido na
proposição jurídica como consequência. Como conduta do destinatário do ato
coercitivo, a situação de fato antijurídica distingue-se de todas as outras
condições da consequência jurídica.
Se – como nos primitivos ordenamentos jurídicos ou na antijuridicidade
imputada a uma pessoa – a consequência é dirigida contra outra que não
aquela que cometeu o fato antijurídico, só existe a suposição de que há um
vínculo – real ou fictício – entre uma pessoa e outra, aceito pelo legislador.
Trata-se aqui de responsabilidade pela antijuridicidade alheia. Assim, a
família do assassino responde por ele, o príncipe pelo delito de seus súditos, o
povo pelas infrações jurídicas cometidas por outros órgãos estatais
(responsabilidade coletiva). Entre o sujeito real da antijuridicidade e o objeto
da consequência jurídica existe sempre identidade física ou jurídica. Encarada
desta maneira, a antijuridicidade converte-se, de uma negação do direito, que
parece ser de um ponto de vista jus-político, em condição específica do
direito, e só assim, num objeto possível do conhecimento jurídico. Este só
pode conceber a antijuridicidade como direito. O conceito de antijuridicidade
desfaz-se de sua posição extrassistemática, em que só se pode manter através
de uma posição jurídica ingênua e aceita uma posição intrassistemática.
Exatamente assim procedem a ética e a teologia – ambas, formas de
conhecimento normativo – quando, na teodiceia, ou seja, em sua tentativa de
interpretar o mundo como um sistema do Bem, despojam o Mal de seu
caráter de mera negação do Bem, considerando-o apenas como condição para
a realização deste – na suposição de que o Mal conduz, finalmente, à
expiação e, desse modo, para a vitória do Bem.
A Teoria Pura do Direito desfaz a imagem de que os homens, por meio de
um ato antijurídico, “violem” ou “infrinjam” o direito. Mostra que o direito,
pela antijuridicidade, mal pode ser violado ou infringido, já que só pela
antijuridicidade atinge sua função essencial. A antijuridicidade não significa
– como faz crer a ótica tradicional – uma interrupção na existência do direito,
mas precisamente o oposto: na antijuridicidade confirma-se a existência do
direito, que consiste em sua validade: no “dever ser” do ato coercitivo, como
consequência da antijuridicidade.
Também nesse ponto a Teoria Pura do Direito opõe-se à teoria jurídica de
nosso tempo, que, na mais estreita conexão com sua inclinação pela Teoria
do Direito Natural, pretenderia abandonar o momento coercitivo, como
critério empírico do direito, acreditando reconhecer esse critério em seu
conteúdo interno e em sua concordância com uma ideia do direito. Somente
no caso em que a obrigatoriedade do direito se baseia na ótica imediata de seu
valor – quando o direito positivo é o depositário de uma ordem absoluta, isto
é, divina ou natural –, não precisa ser-lhe essencial a disposição da conexão,
sendo que sua validade repousa, exatamente como a da moral absoluta, na
coação interior, que traz consigo a evidência de sua obrigatoriedade. Este é
um conceito expressamente jusnaturalista.

14. O DIREITO COMO TÉCNICA SOCIAL


a) A eficácia do ordenamento jurídico
Se o direito, porém – considerado de modo puramente positivista –, não é
senão um ordenamento coercitivo exterior, só será concebido como uma
técnica social específica: a condição social desejada será por isso provocada
ou se procurará provocá-la, de modo que o posto da condição humana
contraditória signifique um ato coercitivo (o que é a privação coercitiva de
um bem: a vida, a liberdade, um valor econômico) como consequência.
O ordenamento jurídico parte, notadamente, do pressuposto de que os
homens, cuja conduta ele regula, consideram esse ato coercitivo um mal que
procuram evitar. O objetivo do ordenamento jurídico é, portanto, o de
motivar os homens a uma conduta, através da representação desse mal que os
ameaça, no caso de uma determinada conduta, uma conduta contrária. Nesta
motivação está a pretendida eficácia do ordenamento jurídico. Em relação a
ela limita-se o conteúdo das normas jurídicas – como o das normas sociais
em geral – à conduta humana. Somente um homem dotado de razão e
vontade pode ser motivado pela representação de uma norma a uma conduta
de acordo com ela.
Por isso, então, outros fatos diversos, que consistem em ações ou
omissões humanas, os denominados acontecimentos, com conexão essencial
com a conduta humana, aparecem no conteúdo de normas jurídicas, como sua
condição ou consequência.
Se ordenamentos jurídicos primitivos levam a consequências não só
contra os homens, mas também contra animais e coisas, tentando regular
também a conduta de sujeitos não humanos, é porque o primitivo animismo
também considera animados animais e coisas, isto é, interpreta a conduta
deles por analogia com a conduta humana.

b) A norma secundária
Se em relação ao objetivo do ordenamento jurídico se pressupõe a
exigência de que os homens devam comportar-se de modo a evitar o ato
coercitivo ameaçador, pode-se, então, resumir o ordenamento jurídico numa
soma de normas, em que aparece, dirigida, a conduta que é o objetivo do
ordenamento jurídico, como, por exemplo: não se deve matar, deve-se
restituir um empréstimo recebido etc. Deve-se, porém, saber que, desse
modo, fica sem expressão a relação com o ato coercitivo, essencial para o
caráter jurídico da norma A norma, que determina a conduta que evita a
coação – e que é o objetivo do ordenamento jurídico – significa apenas uma
norma jurídica com a condição de que deve expressar-se de forma abreviada,
por questões de comodidade na exposição, o que somente a proposição
jurídica enuncia integral e corretamente: que sob as condições da conduta
contrária deve acontecer um ato coercitivo, como consequência. Essa é a
norma jurídica em sua forma primária. A norma que determina a conduta, que
evita a coação, só pode valer como norma jurídica secundária.
Em relação à situação fática, estabelecida por ela como devida – com a
conduta que evita a coação e que é o objetivo do ordenamento jurídico –, a
antijuridicidade, que é a condição do ato coercitivo, representa, sem dúvida,
uma espécie de negação, até uma contradição. Mas esse fato não está em
nenhuma contradição lógica com a norma secundária que estabelece o
contrário. Esta (contradição) só pode existir entre duas proposições de
“dever” ou entre duas proposições de “ser”, mas nunca entre uma proposição
que enuncia um “dever ser” e outra, que enuncia um “ser”, mas não pode
existir entre duas normas de “dever” e uma fática de “ser”.
A figura a deve, não-a deve, constitui uma contradictio logica, mas não a
figura a deve, não-a é. O contrário da norma é uma das contradições lógicas
de categoria completamente diversa.
A oposição, em que se coloca uma situação de fato, com a norma que
estabelece o contrário, não pode ser designada, na verdade, como lógica –
talvez como teleológica, uma vez que se possa aceitar o telos como finalidade
objetiva.
Para a norma secundária, assim como para a expressão do objetivo do
direito, muitas vezes os tradicionais conceitos de antijuridicidade e de
repressão apontam como contraditórios ou correspondentes ao direito. Pode-
se aceitar o pressuposto desde que, primeiro, (se aceite) a conduta
condicionante do ato coercitivo, e segundo a conduta que evita o ato
coercitivo.

c) Motivos da obediência ao direito


Se a conduta humana, que corresponde realmente ao efeito da
representação que provoca a ameaça do ato coercitivo, é difícil de decidir,
certamente, em muitos casos, há motivos bem diversos, causados por
situações que conduzem ao direito. De maneira alguma se trata sempre de
medo da punição ou da execução; são (motivos) religiosos, morais, o respeito
pelos usos e costumes sociais, a preocupação com o banimento social, muitas
vezes a falta de estímulo a uma conduta antijurídica, que produzem uma
concordância entre direito e realidade. Isso – como o veremos mais tarde –
significa uma situação fática dos homens em relação à validade da ordem
jurídica, não necessariamente atribuída a sua eficácia, mas, sim,
relativamente às ideologias, cuja função é estimular ou levar a essa
correspondência.
À maneira específica do direito, isto é, pela fusão de uma conduta
humana, socialmente nociva, com um ato coercitivo, considerado como um
mal, pode-se perseguir qualquer objetivo social. Não como fim, mas sim
como meio específico é que se caracteriza o direito; donde se percebe,
claramente, por que a norma jurídica antes formulada, em si e sem considerar
a proposição jurídica que une a condição à consequência jurídica, não pode
ser a expressão da essência do direito. Este é um aparelho coercitivo, sem
nenhum valor político ou ético, aparelho coercitivo cujo valor depende –
como um meio – muito mais do direito como fim transcendental. Isso
também é uma das muitas interpretações da situação de fato, livre de toda
ideologia e compreendida como direito. Reconhece–se nela, de maneira
inegável, a condição histórica; com o que se mostra a conexão interna que
existe entre a técnica social de uma ordem jurídica coercitiva e um estado
social por ele mantido. O que é esse estado, seja ele visto pelo lado socialista,
com o caráter explorador de uma classe dominante, também é irrelevante do
ponto de vista da Teoria Pura do Direito. Pois não se leva em consideração a
finalidade, procurada e conseguida com o ordenamento jurídico, mas sim o
próprio ordenamento jurídico; e não se leva em consideração em relação a
essa finalidade, nem, portanto, como causa possível de determinado efeito –
pois o meio-fim-relação é apenas um caso especial da relação causal –, mas
na legalidade normativa do conteúdo do seu significado.

15. A NEGAÇÃO DO “DEVER SER”


Tal sentido normativo será, de vez em quando, totalmente negado.
Considera-se o direito, isto é, os atos considerados jurídicos, como meio para
conseguir determinadas condutas humanas, às quais esses atos são dirigidos,
como causas de determinados efeitos e se acredita poder perceber o
ordenamento jurídico na regularidade de certo curso da conduta humana.
Com isso, ignora-se, conscientemente, o sentido normativo com que esses
atos se apresentam, porque não se aceita o sentido diverso do “ser” e do
“dever ser”.
A afirmação – dos legisladores ou dos teóricos do direito – “Quem rouba
deve ser punido”, não deve ser encarada senão como uma tentativa de levar
os homens a deixar de roubar, porque seu crime será punido; ou como uma
tentativa de produzir nos homens determinadas representações, por cuja força
motivadora sejam induzidos a uma conduta adequada.
A posição jurídica de que o crime deve ser punido ou que não se “deve”
roubar é resolvida na afirmação do fato de que se procura induzir os homens
a não roubar ou a puni-los pelo crime, e que os homens sigam a regra de não
cometer crimes ou serem punidos por eles.
Percebe-se no direito – na relação entre os homens que o estabelecem e
os que o executam – uma empresa da mesma espécie que a do caçador, que
usa um engodo para atrair a caça. Esta comparação não só é exata porque a
motivação é comum a ambas as partes, como também porque, de acordo com
a caracterização da situação jurídica como norma (pelo legislador ou pela lei)
acontece um engano. Desse ponto de vista não “existe” nenhuma “norma”
com esse sentido; a afirmação de que este ou aquele “deve ser” não tem
nenhum sentido diverso do moral, nem especificamente jurídico-positivo,
como o admite a Teoria Pura do Direito. Dessa ótica surge o acontecimento
natural, que existe num nexo causal, não se levando em conta o sentido
específico com que se apresenta. Este, a norma ou o “dever ser” em que o
próprio direito se apresenta e é apresentado pela Ciência do Direito, aparece –
também depurado pela Teoria Pura do Direito – liberto de todo significado de
valor moral absoluto – como mera “ideologia”. Como “realidade” – e, como
objeto de conhecimento científico, só aparece sob a lei de causa e efeito, em
acontecimento de alma e corpo – a natureza.

16. O SENTIDO NORMATIVO DO DIREITO


Não discutiremos aqui se, sob esse ponto de vista, poderão ser concebidos
tais fenômenos sociais, se, por tal consideração, não deverá dissolver-se todo
o social, e, como objeto especial, deverá desaparecer. Pois muito se diria a
favor do caráter essencialmente ideológico do âmbito social e de que a
sociedade se distingue da natureza em geral apenas como uma ideologia se
distingue da realidade.
De qualquer modo, é certo que, por isso, o sentido específico do direito se
perde completamente. Se se tirar da “norma” ou do “dever ser” todo o
sentido, então não terá sentido afirmar: isso é juridicamente permitido, aquilo
é juridicamente proibido, isso me pertence, aquilo pertence a ti, X está
autorizado para, Y é obrigado a, e assim por diante, Em suma, os milhares de
enunciados pelos quais a vida do direito se manifesta diariamente perderiam
o significado. Pois é completamente diferente quando digo que A é
juridicamente obrigado a pagar 1.000 a B do que quando digo: existe uma
possibilidade de que A pague 1.000 a B. E quando digo: essa conduta é – no
sentido legal – um delito e – de acordo com a lei – deve ser punido, é ainda
mais diferente do que quando digo que quem praticou tal ato será, com toda a
probabilidade, punido. O sentido imanente em que o legislador se dirige ao
órgão aplicador da lei, esse órgão – na sentença judicial e no ato
administrativo – dirigido ao súdito, esse súdito – no negócio jurídico –
dirigido a outro súdito, não apreende o enunciado sobre o provável curso de
uma conduta. Tal enunciado provém de um ponto de vista transcendente. Ele
não responde à indagação especificamente jurídica: o que é jurídico, mas (à
indagação) metajurídica, que é o que acontece e presumivelmente acontecerá.
Se o sentido normativo do direito é apenas uma “ideologia”, uma Teoria
do Direito que abrange o sentido imanente do direito, o direito, tal como se
apresenta aos órgãos que o produzem e o aplicam ao público que procura o
direito, está direcionado à auto-legalidade de uma ideologia.
É disso que a Teoria Pura do Direito tem plena consciência. Sim, ao tirar
do “dever ser” do direito positivo, seu caráter metafísico–valorativo absoluto
(reduzindo-o apenas à expressão da união de conduta e consequência na
proposição) terá aberto o caminho a esse ponto de vista, do qual surge a
evidência do caráter ideológico do direito. Não se oculta, porém, que o que se
designa por “direito” tenha sentido especificamente normativo, dado a
determinados fatos, para um provável, mas preciso – mais tarde ainda mais
preciso – dado básico, mas não ao resultado de uma interpretação necessária;
não se pode provar a existência do direito como a dos fatos naturais e a das
leis naturais que os dominam, não se pode refutar uma postura com
argumentos forçados, como, por exemplo, a do anarquismo teórico, que se
recusa a ver, onde juristas falam de direito, algo diverso da força bruta.
Mas a Teoria Pura do Direito não crê ser necessário deduzir a
consequência de que seria preciso renunciar à categoria do “dever ser” em
geral, e, com ela, a uma teoria normativa do direito, isto é, a uma penetração
cognoscitiva e elaboração sistemática dos substratos espirituais, que,
originados de atos naturais, devem dar, em primeiro lugar, o sentido do
direito. A possibilidade e necessidade de semelhante teoria já foi
demonstrada pela existência milenar da Ciência do Direito, que – enquanto
houver um direito – serve à jurisprudência dogmática das necessidades
intelectuais dos que lidam com o direito.
Não há motivo para deixar insatisfeitas tais necessidades absolutamente
legítimas e desistir da Ciência do Direito. É impossível substituí-la pela
sociologia jurídica, já que esta se acha orientada para um problema
completamente diferente. Enquanto existir uma religião, enquanto tiver de
existir uma teologia dogmática, que não pode ser substituída por nenhuma
psicologia ou sociologia da religião, assim – enquanto houver um direito –
haverá uma teoria normativa do direito. Sua posição no sistema integral das
ciências é uma outra indagação, uma indagação secundária. O que faz falta
não é suprimir essa Ciência do Direito juntamente com a categoria do “dever
ser” ou da norma, ou então restringir-lhe o objeto e esclarecer criticamente
seu método.

17. O “DEVER SER” E O “SER” DO DIREITO


Que se possa aceitar o direito – em relação à realidade natural – como
ideologia e, apesar disso, exigir-se uma Teoria Pura, isto é, livre de
ideologias, não é, de maneira alguma, tão contraditório quanto parece. Sem
tomar em consideração o sentido múltiplo da palavra “ideologia” – que ora
significa o espírito em contraposição à natureza, ora uma representação que
encobre e deforma a realidade – deve-se atentar ao fato de que diferentes
ideologias se superpõem, às vezes, umas às outras, e que dentro do âmbito
das ideologias é preciso distinguir entre várias camadas, tornando relativa a
contraposição entre ideologia e realidade.
Se se considerar o direito positivo como ordenamento normativo em
relação à realidade do evento efetivo, nesse caso, de acordo com a pretensão
do direito positivo, deve concordar com ele (embora nem sempre concorde),
podendo-se, então, qualificá-lo como “ideologia”. Se for considerado, porém,
em relação a um ordenamento “mais alto”, que tem a pretensão de que o
direito positivo deve corresponder-lhe, talvez em relação ao direito natural,
para um ideal – de algum modo considerado – como justiça, nesse caso o
direito positivo se apresenta como “real”, como direito existente, e o direito
natural ou a justiça como ideologia.
A tendência anti-ideológica da Teoria Pura do Direito confirma que ela
procura isolar o direito positivo de qualquer tipo de ideologia da justiça
jusnaturalista.
A possibilidade da validade de uma ordem superior ao direito positivo
fica fora de discussão. Limita-se ao direito positivo, impedindo, assim, que a
Ciência do Direito passe por uma ordem superior ou procure extrair, de uma
ordem semelhante, sua justificativa; ou que abuse da discrepância entre um
ideal qualquer de justiça e o direito positivo, como argumento jurídico contra
a validade daquele.
A Teoria Pura do Direito é a teoria do positivismo jurídico.
Capítulo IV
DUALISMO DA TEORIA DO DIREITO E SUA DOMINAÇÃO

SUMÁRIO: 18. Origem jusnaturalista do dualismo do direito objetivo


e subjetivo – 19. Conceito de direito subjetivo – 20. Conceito de
sujeito de direito ou de pessoa – 21. Significado ideológico dos
conceitos de “direito subjetivo” e de “sujeito de direito” – 22.
Conceito de relação jurídica – 23. Conceito de dever jurídico – 24.
Redução do direito subjetivo ao objetivo: a) Norma jurídica como
dever jurídico; b) Norma jurídica como autorização; c) Autorização
como participação na produção do direito – 25. Dissolução do
conceito de pessoa: a) A pessoa “física”; b) A pessoa “jurídica”; c)
Obrigação ou autorização mediata e imediata de indivíduos; d)
Imputação (Zurechnung) central; e) Limitação da responsabilidade; f)
Significado ideológico da antinomia indivíduo e sociedade – 26.
Caráter universalista da Teoria Pura do Direito.

18. ORIGEM JUSNATURALISTA DO DUALISMO DO DIREITO OBJETIVO E


SUBJETIVO

A Teoria Geral do Direito, tal como foi desenvolvida pela ciência jurídica
do século XIX, caracteriza-se pelo dualismo desintegrador, que domina o
sistema inteiro e todos os seus problemas. É a herança da Teoria do Direito
Natural, cujo lugar foi ocupado pela Teoria Geral do Direito.
O dualismo do direito natural consiste – como já se mostrou – em que,
acima da ordem estatal do direito positivo, uma ordem natural superior,
divina, racional ou natural seja aceita, cuja função, pelo menos entre os
representantes clássicos da Teoria Natural do Direito dos séculos XVII e
XVIII – o que sempre deve ser enfatizado – foi conservadora e legitimista.
O positivismo do século XIX, na verdade, não abdicou inteiramente –
como já foi dito – de uma legitimação do direito por um valor ultrapositivo;
mas só o fez indiretamente, sob a superfície de seus conceitos. A produção
jurídica do direito positivo não foi tanta em matéria de um direito diferente e
superior, como do próprio conceito de direito. Não se trata agora do
denominado dualismo imanente e não manifesto, mas sim daquele dualismo
trans-sistemático notório, que se apresenta na distinção entre o direito
objetivo e subjetivo, público e privado, e entre outros inúmeros pares
opostos, e não, por fim, no antagonismo entre Estado e direito. A função
desse dualismo, que aparece de forma tão variada e de aspectos tão distintos,
não é a de legitimar a ordem jurídica, como também a de impor certos limites
à estruturação do seu conteúdo. Se o primeiro vale muito especialmente para
a oposição entre Estado e direito, o último vale, inegavelmente, para a
distinção entre direito objetivo e subjetivo. A oposição entre direito público e
privado é extraordinariamente equívoca e, por isso, sua função ideológica não
é uniformemente determinada.

19. CONCEITO DE DIREITO SUBJETIVO


Quando a Teoria Geral do Direito afirma que seu objeto, o direito, é dado
não só em sentido objetivo, como também subjetivo, ela situa com isso, na
base do sistema – e é esse o dualismo do direito objetivo e subjetivo –, uma
contradição de princípios. Afirma, desse modo, que o direito – como objetivo
– é norma, complexo de normas, isto é, ordem, e também – como subjetivo, e
completamente diferente daquele, para que não se possa subsumir nenhum
conceito superior, ou seja: interesse ou vontade.
Essa contradição não pode ser suprimida, pois entre o direito objetivo e
subjetivo existe uma relação e define-se este último como um interesse
protegido por aquele ou a vontade reconhecida e garantida por aquele. Sua
intenção original, o dualismo do direito objetivo e subjetivo, traduz o
pensamento de que este precede aquele, tanto lógica como temporalmente.
A representação é determinante: primeiro surgem os direitos subjetivos,
principalmente o de propriedade, esse protótipo do direito subjetivo (por via
da apropriação originária), e só mais tarde vem o direito objetivo, como
protetor da ordem estatal, reconhecendo e garantindo os direitos subjetivos
que aparecem independentemente dele. Essa concepção destaca-se
distintamente nos representantes da Escola Histórica do Direito, que não só
inauguraram o positivismo jurídico do século XIX como também
determinaram, de modo essencial, a formação conceitual da Teoria Geral do
Direito.
Assim, lê-se, por exemplo, em Dernburg: “direitos, em sentido subjetivo,
existiam historicamente, há muito tempo, antes de se desenvolver uma ordem
estatal autoconsciente. Baseavam-se na personalidade dos indivíduos e no
respeito que souberam impor e conseguir por sua pessoa e seus bens.
Somente por abstração se pode extrair da concepção de direitos subjetivos
existentes o conceito de ordenamento jurídico. É por isso uma concepção
anti-histórica e errada a de que os direitos, em sentido subjetivo, não sejam
senão resultado do direito, em sentido objetivo”.

20. CONCEITO DE SUJEITO DE DIREITO OU DE PESSOA Na mais


estreita conexão com o conceito de direito subjetivo, e
ainda considerado apenas como outra variante desse
conceito, acha-se o conceito de sujeito de direito ou
“pessoa”, como titular do direito subjetivo,
essencialmente referente ao proprietário. Aqui também
é decisiva a representação de um ente jurídico
independente da ordem jurídica, de uma subjetividade
jurídica que o direito subjetivo por assim dizer
encontra, seja no indivíduo seja em certas coletividades,
e que deve necessariamente reconhecer se não quiser
perder seu caráter de “direito”.
A oposição entre direito (em sentido objetivo) e subjetividade do direito,
que é uma contradição lógica da teoria, enquanto ambos são considerados
igualmente existentes, manifesta-se no sentido de que o direito objetivo,
como norma heterônoma, é o liame, além da coação, enquanto a essência da
personalidade jurídica será explicada exatamente como a negação de todo
liame, ou seja, a liberdade no sentido da autodeterminação ou autonomia.
Assim escreve Puchta: “O conceito básico do direito é a liberdade… o
conceito abstrato de liberdade é a possibilidade de se determinar alguma
coisa… O homem é sujeito de direito porque, a cada possibilidade de se
determinar, tem uma vontade”.
21. SIGNIFICADO IDEOLÓGICO DOS CONCEITOS DE “DIREITO SUBJETIVO”
E DE “SUJEITO DE DIREITO”

O fictício dessa definição do conceito de personalidade jurídica é


evidente. Pode-se falar na autodeterminação dos indivíduos, no campo do
direito, isto é, no campo do denominado direito privado, e justamente em
relação a essa situação de fato, criadora do direito, está a autonomia, em
sentido muito restrito e impróprio. Ninguém pode conceder direitos a si
mesmo, pois o direito de cada indivíduo só existe sob o pressuposto do dever
de outro e tal relação jurídica, de acordo com o ordenamento jurídico
objetivo, só pode ter lugar pela manifestação do acordo de vontades de dois
indivíduos. E assim mesmo, enquanto o contrato for firmado pelo direito
objetivo, como situação de fato, produtora de direito; de modo que a
determinação jurídica parte, em última análise, exatamente desse direito
objetivo, e não dos sujeitos de direito inferiores a ele, já que em direito
privado não existe autonomia total.
A função ideológica de toda essa definição conceitual, totalmente
contraditória em si, do direito subjetivo e do sujeito de direito, é fácil de
apreender: trata-se de manter a representação de que o direito subjetivo, ou
seja, o direito de propriedade, é uma categoria transcendental, diante do
direito objetivo, uma instituição, ante a qual a estrutura interna do
ordenamento jurídico se encontra diante de uma barreira intransponível. O
conceito de um direito subjetivo diferente do direito objetivo e independente
em relação a ele será tanto mais importante se se reconhecer a aquele, quer
dizer, ao ordenamento jurídico, que ainda garante a instituição da propriedade
privada como uma ordem variável e sempre mutável, criada pelo arbítrio
humano e não pela vontade eterna da divindade, que se conhece pela razão ou
que repousa na ordem da natureza; principalmente se essa ordem for
produzida por um processo democrático.
A ideia de um direito diferente do direito objetivo e independente dele em
sua existência, mas que não é menos, até talvez mais “direito” que aquele,
deve proteger a instituição da propriedade privada de uma revogação pelo
ordenamento jurídico. Não é difícil de entender por que a ideologia dos
direitos subjetivos se une ao valor ético da liberdade individual e da
personalidade autônoma quando essa liberdade também se acha sempre
ligada à propriedade. Um ordenamento que não reconhece a personalidade
livre do homem significa um ordenamento que não garante o direito subjetivo
e não deve ser considerado absolutamente como ordenamento jurídico.

22. CONCEITO DE RELAÇÃO JURÍDICA Acha-se totalmente na


orientação dessa ideologia considerar-se a relação do
direito com a sociedade e, em especial com a economia
vista como uma relação de forma e conteúdo; a relação
jurídica dentro do material social, interpretada como
“relação vital”, que somente receberia do direito sua
determinação exterior. Trata-se de uma orientação
“sociológica” da ciência do direito tradicional como
interpretação, que assim só é concebida, na verdade,
com tendências jusnaturalistas. E na mesma direção em
que o dualismo do direito objetivo e subjetivo tem por
finalidade a diferenciação entre as relações jurídicas em
pessoais e reais, segundo se trate de uma relação entre
sujeitos ou uma relação entre sujeito de direito e objeto
de direito, entre pessoa ou coisa. A relação jurídica real,
a relação jurídica por excelência é a propriedade; nisso
está contida toda a diferença. Será definida como
domínio exclusivo da pessoa sobre a coisa e, por isso,
será separada principalmente dos direitos de
fundamento creditório. Para essa sistemática também o
direito civil tem uma distinção importante, um caráter
pronunciadamente ideológico. Se ainda for mantida,
apesar da objeção cada vez maior, a propriedade da
pessoa sobre a coisa, não consiste senão numa
determinada relação do sujeito com outros sujeitos, isto
é, no dever de não perturbar um proprietário em sua
possibilidade de dispor da coisa e de excluir todos do
gozo da coisa – é evidente, então, já que a definição de
propriedade é a relação entre pessoa e coisa, e encobre
uma decisiva função social; função essa que pela teoria
socialista – seja pelo direito ou sem ele – fica aqui
designada como sendo “exploração”, uma função que,
de todo modo, consiste exatamente na relação do
proprietário com todos os outros sujeitos, que são
excluídos de toda intervenção na coisa que lhe pertence
e são obrigados, pelo direito objetivo, a respeitar o
poder do proprietário de dispor da coisa.
Ao contrário, a teoria tradicional do direito se opõe à admissão de que o
direito subjetivo, isto é, a faculdade de um indivíduo seja apenas permitir que
valha o reflexo do dever jurídico de outro. Cada vez mais e com maior
ênfase, os representantes dessa teoria acentuam o caráter primário dessa
faculdade, até identificá-la diretamente com o direito, o direito em sentido
subjetivo.

23. CONCEITO DE DEVER JURÍDICO


A segunda forma do direito subjetivo, o dever jurídico, é tratada pela
Teoria Geral do Direito de modo totalmente desfavorável. Até se afirma, de
vez em quando, que o dever nem é conceito jurídico, que apenas há deveres
morais em direito, meramente direitos subjetivos e não deveres jurídicos;
entretanto, a função essencial de um ordenamento, até mesmo de um
ordenamento coercitivo como o do direito, não pode ser outra coisa a não ser
a ligação normativa dos indivíduos a ele submetidos. E essa ligação
normativa não pode ser designada senão pela palavra “dever”, já que o dever
moral nada mais exprime senão a ligação do indivíduo com a validade da
norma moral. Pelo papel que o conceito de direito subjetivo desempenha,
como categoria da propriedade privada, há pouco sentido em estender tal
conceito ao dever jurídico; tudo o que o “direito subjetivo” no sentido da
teoria ideológica pode oferecer será também questionado, quando, no
conceito de dever jurídico, se lhe opõe um fator igual ou até primário.

24. REDUÇÃO DO DIREITO SUBJETIVO AO OBJETIVO


a) Norma jurídica como dever jurídico
É exatamente neste ponto que a Teoria Pura do Direito entra em ação
com sua crítica ao significado dominante, enfatizando, com a maior energia,
o conceito do dever jurídico. E neste ponto também tira apenas a última
consequência de certas ideias fundamentais, que já existiam na teoria
positivista do século XIX mas não foram desenvolvidas além de simples
esboço. Ela só reconhece no dever jurídico a norma jurídica em relação à
conduta estatuída e concreta de determinado indivíduo, ou seja, a norma
jurídica individualizada; e liberta o conceito de dever jurídico do de dever
moral, que interpreta da seguinte maneira: um homem está juridicamente
obrigado a determinada conduta enquanto a conduta contrária está contida na
norma jurídica como condição para um ato coercitivo antijurídico
qualificado.
Se o ato coercitivo se dirigir contra outro homem, diverso daquele cuja
conduta constitui a condição da antijuridicidade e – neste sentido – o
conteúdo do dever, pode-se falar em “responsabilidade” e diferenciar o
conceito de dever do de responsabilidade; desse modo, a responsabilidade
aparece como uma determinada espécie de dever. Com isso, o dever jurídico
é reconhecido como a única função essencial do direito objetivo.
Toda proposição jurídica deve, necessariamente, estabelecer um dever
jurídico, embora lhe seja possível estabelecer também uma autorização.

b) Norma jurídica como autorização


Existe, então, uma autorização quando entre as consequências da
antijuridicidade se inclui uma manifestação da vontade a ela dirigida na
forma de queixa ou de ação processual, por parte do autor, pela lesão em seus
interesses, causada pela antijuridicidade fática da situação. Somente em
relação a isso é que se individualiza a norma jurídica em autorização, e se
torna – em sentido diverso do dever jurídico – direito subjetivo, isto é, direito
de um sujeito, já que se coloca à disposição para que faça valer seus
interesses.
Como autorização, o direito subjetivo não se coloca diante do direito
objetivo como algo independente dele; pois só existe algo porque e enquanto
o direito objetivo é normatizado. A autorização é apenas uma forma possível
e de modo algum necessária do direito objetivo, uma técnica especial da qual
o direito pode dispor mas não precisa fazê-lo. É a técnica específica do
ordenamento jurídico capitalista, enquanto construída sobre a instituição da
propriedade privada, de modo que o interesse individual fica extremamente
visível. É a técnica que, além disso, não domina todas as partes do
ordenamento jurídico capitalista e que somente aparece plenamente
desenvolvida no campo do denominado direito privado e em algumas partes
do direito administrativo. O moderno direito penal já a superou, ao reintegrar
a parte lesada em seus interesses, por órgão estatal que, na qualidade de
autor, põe em movimento o processo para sanar a antijuridicidade.
Com essa ótica da Teoria Pura do Direito, na essência do que se
denomina direito, em sentido subjetivo, fica superado o dualismo do direito
subjetivo e objetivo. O direito subjetivo não é diverso do objetivo: é o próprio
direito objetivo, enquanto se dirige, com a consequência jurídica por ele
estabelecida, contra um sujeito concreto (dever) ou se lhe coloca à disposição
(autorização).
Se o direito subjetivo for assim reduzido ao objetivo, devolvido ao
objetivo, fica excluído todo abuso ideológico. Mas, antes de tudo, o conceito
de direito não se reduz a uma estrutura técnica do ordenamento jurídico. A
condição histórica da construção capitalista do direito é levada em conta no
próprio conceito de direito.

c) Autorização como participação na produção do direito


Reconhece-se o caráter de direito subjetivo, característico do direito
privado (no sentido de autorização), em que está a manifestação da vontade
dos interessados – sua queixa ou ação processual – aceita como parte
constitutiva essencial no processo em que se produz a norma individual da
sentença judicial, que abrange um fato antijurídico concreto: nesse caso, a
admissão de um direito subjetivo significa a autorização para a participação
na produção do direito.
Esta é a ótica sob a qual se pode entender também outras situações de
fato, que não se fazem valer como as autorizações de direito privado e são
dirigidas a manifestações de vontade antijurídicas. Estas são, particularmente,
os denominados direitos “políticos”. Costuma-se denominá-los como
influência, pois influenciam a vontade estatal, o que significa: a formação do
ordenamento jurídico – que é a expressão da “vontade estatal” – em que
tomam parte direta ou indiretamente.
Pensa-se, entretanto – quando, quase sempre, se trata do ordenamento
jurídico personificado como “vontade estatal” – apenas na manifestação geral
das normas jurídicas que constituem esse ordenamento nas leis. A
participação dos submetidos às normas na legislação é a marca da forma de
Estado democrática, diversa da autocrática, que exclui todos os súditos de
toda participação na formação da vontade estatal.
A legislação democrática pode-se desenvolver ou de modo imediato,
através do “povo”, ou seja, pelos submetidos às normas, à qual corresponde –
na denominada democracia direta – o direito subjetivo do indivíduo de
participar na assembleia popular legislativa, com voz ativa e voto. Ou a
legislação coloca o povo diante da imediatidade, o que significa que é ditada
por um parlamento eleito pelo povo. Neste caso, o processo de formação da
vontade estatal – ou seja, a criação geral do direito – é classificado em dois
estágios: a eleição do parlamento e a votação das leis pelos parlamentares
eleitos.
De acordo com isso, existe, neste caso, um direito subjetivo dos eleitores
– que formam um círculo maior ou menor: o denominado direito de voto; e
um direito subjetivo dos – relativamente poucos – eleitos: o direito a ser
membro do parlamento, o direito de votar e ser votado. Esses são os direitos
políticos, caracterizados por facultarem uma participação na formação da
vontade estatal, o que torna também o direito subjetivo privado um direito
político; isso também permite aos autorizados que participem na formação da
vontade estatal. Esta se expressa na norma individual da sentença judicial não
menos que na norma geral da lei. E quando o direito privado subjetivo pode
ser unido ao direito político, sob o mesmo conceito de autorização, isso só
acontece no caso de ambos terem função jurídica idêntica: a participação dos
submetidos às normas na criação do direito, portanto a expressão da função
de produção jurídica.
A denominada autorização “política”, no sentido mais restrito da palavra,
permite a participação na produção da norma geral, e a autorização de direito
privado permite a participação na produção da norma individual.
Considerando-se o direito subjetivo (no sentido de autorização) como
uma estruturação especial da função criadora do direito, desaparece
completamente toda a oposição entre direito objetivo e subjetivo; mostra-se,
então, de maneira muito nítida o caráter primário do dever jurídico diante do
(caráter) secundário da autorização. Enquanto aquele aparece como a função
própria e sem exceção de toda norma jurídica, esta se apresenta – como
autorização de direito privado – apenas como instituição de uma autorização
de ordenamento jurídico capitalista – ou do estabelecimento de um
ordenamento jurídico democrático.

25. DISSOLUÇÃO DO CONCEITO DE PESSOA Com isso está livre o


caminho para reconhecer no conceito de direito
subjetivo, ou de pessoa, apenas um recurso mental
artificial, um conceito auxiliar, que para o objetivo do
conhecimento jurídico conseguiu uma apresentação
clara do material dominado, sob a pressão de uma
linguagem jurídica antropomórfica-personalizadora.
“Pessoa” é apenas uma expressão unitária
personalizadora para um feixe de deveres e autorizações
jurídicas, isto é, para um complexo de normas: um
entendimento, que por ser falso, o direito, como objeto
do conhecimento, confirma como hipostase
duplicadora.
a) A pessoa “física”
Somente agora a antiga exigência da teoria positivista do direito pode
conceituar a pessoa física e jurídica como idênticas. “Pessoa física” não é –
como afirma a teoria tradicional – o homem. Isso não é um conceito jurídico,
e sim biológico-psicológico. Não exprime nenhuma unidade para o direito ou
para o conhecimento do direito.
O direito não apreende o homem em sua totalidade, nem com todas as
suas funções espirituais e corpóreas. Estabelece – como dever ou autorização
– apenas determinados atos humanos. Em outras palavras: o homem não
pertence, através de ordenamentos jurídicos, a comunidades constituídas
como um todo, mas apenas por ações e omissões isoladas, enquanto estas são
reguladas por normas do ordenamento social. Só assim é possível que o
mesmo homem possa pertencer a várias comunidades jurídicas, diferentes
entre si, de modo que o seu comportamento possa ser regulado por vários
ordenamentos jurídicos. Quando se deve distinguir o conceito científico-
natural de homem do conceito jurídico de pessoa, isso não significa que
“pessoa” seja uma espécie particular de homem, mas que ambos representam
duas unidades completamente diversas.
O conceito jurídico de pessoa ou de sujeito de direito só exprime a
unidade de uma pluralidade de deveres e direitos, ou seja, a unidade de uma
pluralidade de normas que estabelecem esses deveres e direitos. A pessoa
“física” correspondente ao homem individual é a personificação, isto é, a
expressão unitária personificada das normas que regulam a conduta de um
homem. É o “suporte” de todos os deveres e direitos, mas isso significa –
quando alguém se despoja da representação duplicada do seu caráter
substancial – o ponto comum de responsabilidade das situações de fato da
conduta humana, reguladas como deveres e direitos, o ponto central – por
assim dizer – daquela situação fática de conduta humana, estabelecida por
normas que constituem esses deveres e direitos e cuja individualização
provém da referência à conduta de um mesmo homem.
Esta é uma realidade natural, aquela uma representação auxiliar do
conhecimento jurídico, da qual se poderia também desistir. Facilita a
apresentação do direito mas não lhe é indispensável. Ela deve recorrer sempre
às normas que regulam a conduta humana – como dever ou direito. Que o
homem seja ou tenha uma personalidade jurídica não significa, em última
análise, senão que suas ações ou omissões constituem, de uma forma ou de
outra, o conteúdo das normas jurídicas.
Em relação à distinção fortemente mantida entre homem e pessoa, é
errado dizer, portanto, que o direito obriga ou autoriza as pessoas. O que
obriga e autoriza serão os homens. É conduta humana o que forma o
conteúdo das normas jurídicas e, daí, os deveres e direitos; e a conduta
humana não pode ser senão a conduta de homens individuais.

b) A pessoa “jurídica”
Assim como a pessoa física, também a denominada pessoa jurídica é
apenas a expressão unitária de um complexo de normas, isto é, de um
ordenamento jurídico, e exatamente daquele que regula a conduta de uma
pluralidade de homens. Ela ou é a personificação de um ordenamento parcial,
como a que constitui o estatuto de uma associação, ou um ordenamento total,
que constitui uma comunidade jurídica, que abrange todas as comunidades
parciais e que, comumente, é representada pela pessoa do Estado.
Tão pouco quanto a pessoa física, também a pessoa jurídica tem uma
existência natural-real. “Real”, nesse sentido natural, é apenas a conduta
humana, regulada pelas normas, que podem ser estruturadas de vários pontos
de vista. A aceitação de que a pessoa jurídica seja diferente das pessoas
físicas, mas estranhamente uma realidade não perceptível, ou um
superindivíduo, formado por organismos sociais, é a ingênua hipostasição de
um desígnio, de uma representação jurídica auxiliar.
Assim como a pessoa física não é um homem, a pessoa jurídica não é um
super-homem. Os deveres e direitos de uma pessoa jurídica devem resolver-
se em deveres e direitos do homem, ou seja, em normas que regulam a
conduta humana, estabelecendo-a como deveres e direitos. Que o
ordenamento jurídico estatal singular obrigue ou autorize uma pessoa
significa que converte em dever ou autorização sua conduta, sem determinar-
lhe o sujeito. Sua determinação – a delegação vigente no ordenamento
jurídico estatal – será abandonar o ordenamento parcial, cuja unidade se
expressa na pessoa jurídica. É uma comunicação, isto é, por intermédio do
ordenamento jurídico parcial, de obrigação e autorização, para os indivíduos.

c) Obrigação ou autorização mediata e imediata de indivíduos


Essa divisão de funções entre os ordenamentos total e parcial é possível
porque na conduta humana, que constitui o conteúdo da norma jurídica e,
portanto, da obrigação e da autorização jurídicas, pode-se distinguir um
elemento pessoal (subjetivo) e um elemento material (objetivo): o sujeito da
ação ou da omissão e a própria ação ou omissão, “quem” faz ou deixa de
fazer algo e “o que” foi feito ou deixou de sê-lo. A norma integral determina
ambos. Mas é possível que uma norma e, portanto, a obrigação e a
autorização só contenham um dos dois elementos.
Nesse caso será incompleta e necessita do complemento de outra norma
que leve à determinação do elemento que ainda falta.
Normas que – como se costuma dizer – obrigam e autorizam uma pessoa
jurídica a determinada conduta são normas que determinam apenas o
elemento objetivo, ou seja, um fazer ou deixar de fazer, mas que, com
referência à determinação do elemento subjetivo, isto é, do indivíduo, que
deve ter a conduta normatizada, delegam outra norma. Que uma pessoa
jurídica seja obrigada ou autorizada nada significa, pois os indivíduos, mas
somente os indivíduos, são obrigados e autorizados de modo mediato.

d) Imputação (Zurechnung) central


Deveres e direitos de uma pessoa jurídica são sempre deveres e direitos
de indivíduos enquanto deveres e direitos referentes à conduta humana. Só
que os indivíduos não “têm” esses deveres e direitos de modo comum, ou
seja, individual, mas de modo coletivo.
O que se denomina patrimônio de uma pessoa jurídica é o patrimônio dos
indivíduos que constituem a pessoa jurídica. Mas não podem dispor dele
como de um patrimônio individual, mas apenas segundo as determinações do
ordenamento jurídico parcial, cuja unidade está representada na pessoa
jurídica.
Se a pessoa jurídica tiver um direito creditório, isso significa um direito
creditório coletivo dos seus membros. O caráter coletivo do direito manifesta-
se, entre outras coisas, em que o ato de fazê-lo valer não é realizado por
qualquer indivíduo, mas através do órgão determinado pelo ordenamento
jurídico parcial; órgão desta comunidade jurídica constituída é esse indivíduo
que, porque e enquanto o ato por ele executado está estabelecido no
ordenamento jurídico parcial, constitui a comunidade jurídica e, por isso,
pode ser referido à unidade desse ordenamento.
Essa referência de uma situação de fato à unidade do ordenamento
também é designada como “imputação”; a “pessoa” é, de acordo com isso,
um ponto de “imputação”. Todos os atos da pessoa jurídica são atos do
indivíduo, imputados ao sujeito fictício, como se representa uma unidade de
ordenamento parcial ou total. Mas essa imputação – central – é uma operação
completamente diversa da antes mencionada imputação – periférica – com a
qual um fato não é referido à unidade do ordenamento, mas dentro do
ordenamento relativo a outro fato, isto é, a dois fatos relacionados um com o
outro, numa proposição jurídica.

e) Limitação da responsabilidade
Se a pessoa jurídica, isto é, o homem que age como seu órgão, tenha feito
valer o direito creditório, que é o direito creditório coletivo dos indivíduos
que constituem a sociedade, personificada na pessoa jurídica, então cai na
execução do patrimônio coletivo dos indivíduos que formam a sociedade
parcial. Se, porém, a pessoa jurídica for obrigada a uma prestação, significa
que, pelo seu não cumprimento, a execução não será contra o patrimônio
individual dos membros, mas contra seu patrimônio coletivo, que será sempre
patrimônio deles.
Nessa limitação da execução ao patrimônio coletivo dos indivíduos, que
constituem a sociedade que age como pessoa jurídica, nessa denominada
limitação da responsabilidade, acha-se uma marca característica das pessoas
jurídicas de direito privado. Entretanto, não se aplica, ou não se aplica em
primeira linha, às pessoas jurídicas de direito público; assim, principalmente,
às pessoas jurídicas do Estado, que como personificação de um ordenamento
jurídico total abrangem todos os ordenamentos jurídicos parciais, todas as
pessoas físicas e jurídicas neles incorporadas e é, portanto, o ponto final da
imputação central.

f) Significado ideológico da antinomia indivíduo e sociedade


Enquanto se reconhece a “pessoa” como a personificação de um
complexo de normas e, portanto – mais ou menos arbitrariamente
individualizada –, uma parte do ordenamento objetivo, que entre todos os
deveres e direitos por ele estabelecidos, entre os deveres e direitos de todas as
“pessoas”, cria uma unidade orgânica, isto é, sistemática – o direito de um é
sempre o dever de outro, não se deixando isolar-se, ambos, um do outro –,
fica também dissolvida a falsa antinomia entre indivíduo e sociedade em que
está perturbada a filosofia social tradicional, ao afirmar que o indivíduo é, ao
mesmo tempo, um todo e uma parte da sociedade.
Do ponto de vista do ordenamento objetivo ou da sociedade por ele
constituída, não existe absolutamente nenhum indivíduo autônomo, isto é,
não pode ser, de modo algum, apreendido como tal, por um conhecimento
dirigido à ordem social. Só se levam em conta os atos que constituem o
conteúdo do ordenamento, que são atos regulados pelo ordenamento e que
também pode ser expresso em outras palavras: para esse significado, o
indivíduo só existe como elemento constitutivo não autônomo da sociedade.
O indivíduo, como totalidade autônoma, é a mesma ideologia da
liberdade que a categoria especificamente jurídica de pessoa. E como essa,
também aquela tem a função de abrir uma vala contra os que não concordam
com determinados interesses e com pretensões excessivas do ordenamento
social constitutivo da sociedade. O indivíduo, diante da sociedade, que se
acha num conflito supostamente insolúvel, não é senão uma ideologia em luta
a favor de determinados interesses, contra a limitação desta, pelo
ordenamento coletivo.

26. CARÁTER UNIVERSALISTA DA TEORIA PURA DO DIREITO


Se tanto o conceito de direito subjetivo e de sujeito de direito for
despojado de toda função ideológica, todos os caminhos pelos quais se
ultrapassam os véus da personificação, até chegar às relações entre os
indivíduos, passa-se sempre por relações jurídicas reais, mais ainda, por
situações fáticas de conduta humana que estão unidas umas às outras pela
norma jurídica, isto é, como conteúdo da norma jurídica. Isso é o que
constitui a relação jurídica: a relação entre duas situações de fato, sendo uma
delas uma obrigação jurídica e a outra uma conduta humana que consiste
numa autorização.
A Teoria Pura do Direito dissolve o denominado direito subjetivo em
todas as formas sob as quais aparece: autorização, obrigação, sujeito de
direito, como entidade diversa do direito objetivo, concebendo-o apenas
como representação especial ou personificadora deste último, superando todo
o enfoque de sentido subjetivista do direito, no qual se situa o conceito de
conceito de direito, em sentido subjetivo: aquele conceito advocatício, aquele
que considera o direito apenas do ponto de vista dos interesses das partes, ou
seja, levando em conta seu significado para o indivíduo, enquanto lhe é útil,
isto é, que lhe serve os interesses, ou o prejudica, com a ameaça de um mal.
Esta é a postura específica da doutrina romana, que, baseada principalmente
na autorizada prática das respostas dos juristas romanos, foi aceita juntamente
com o Direito Romano.
A postura da Teoria Pura do Direito é, ao contrário, totalmente
objetivista-universalista. É dirigida, fundamentalmente, à totalidade do direito
e procura apreender os fenômenos singulares apenas em conexão sistemática
com todos os outros, em cada parte do direito e na função do todo. Neste
sentido, é um conceito verdadeiramente orgânico. Mas quando concebe o
direito como um organismo, não o entende como uma entidade
supraindividual, supraempírica-metafísica, no sentido biológico ou
psicológico – uma representação, por trás da qual se ocultam postulados
ético–políticos – mas apenas, única e exclusivamente, que o direito é um
ordenamento e, por isso, todos os problemas jurídicos devem ser encarados e
resolvidos como problemas de ordenamento. A Teoria Pura do Direito será
então liberada de todo juízo de valor ético-político, numa análise estrutural, a
mais exata possível, do direito positivo.
Capítulo V
ORDENAMENTO JURÍDICO E SEU ESCALONAMENTO

SUMÁRIO: 27. Ordenamento como sistema de normas – 28.


Ordenamento jurídico como conexão criadora – 29. Significado da
norma fundamental – 30. Norma fundamental do ordenamento
jurídico estatal singular: a) Conteúdo da norma fundamental; b)
Validade e eficácia do ordenamento jurídico (direito e poder); c)
Direito internacional e norma fundamental do ordenamento jurídico
estatal singular; d) Validade e eficácia da norma jurídica única – 31.
Escalonamento do ordenamento jurídico: a) A Constituição; b) A
legislação: conceito de fonte do direito; c) Jurisdição; d) Justiça e
administração; e) Negócio jurídico e ato executivo; f) Relatividade da
antítese entre produção e aplicação do direito; g) Posição do direito
internacional no escalonamento; h) Conflito de normas de diversos
graus.

27. ORDENAMENTO COMO SISTEMA DE NORMAS


O direito como ordenamento ou ordenamento jurídico é um sistema de
normas jurídicas. E a primeira questão a ser respondida aqui colocou a Teoria
Pura do Direito da seguinte maneira: o que fundamenta a unidade de uma
pluralidade de normas jurídicas porque uma determinada norma jurídica
pertence a um determinado ordenamento jurídico?
Uma pluralidade de normas forma uma unidade, um sistema, um
ordenamento, quando sua validade pode ser atribuída a uma única norma,
como fundamento último dessa validade. Essa norma fundamental, como
fonte comum, constitui a unidade na pluralidade de todas as normas que
integram um ordenamento. E que uma norma pertença a determinado
ordenamento só acontece porque sua validade – que constitui esse
ordenamento – pode ser referida à norma fundamental. Conforme a espécie
da norma fundamental, isto é, conforme a natureza do supremo princípio de
validade, pode-se distinguir duas espécies de ordenamentos (sistemas de
normas). Assim, as normas, que “valem” de certa maneira, ou seja, as que
indicam certa conduta humana, devem ser vistas como devidas, pela força de
sua essência, pois seu conteúdo possui uma qualidade imediatamente
evidente, que lhe confere validade.
E as normas possuem essa qualificação de conteúdo pelo fato de serem
referíveis a uma norma fundamental, sob cujo conteúdo pode subsumir-se o
conteúdo das normas que constituem o ordenamento, assim como o particular
sob o geral. Assim são as normas da moral.
Normas, como “não deves mentir”, “não deves enganar”, “deves cumprir
tuas promessas”, e assim por diante, provêm de uma norma fundamental da
veracidade. A norma fundamental: “deves amar os outros”, conduz a outras
normas: “não deves causar dano a outro”, “deves auxiliá-lo na necessidade”,
e assim por diante. Qual seja a norma fundamental de determinado sistema
moral não vem ao caso. O que interessa é saber que as várias normas de
moral já estão contidas numa norma fundamental, assim como a norma
particular está contida na geral e que, por isso, todas as normas morais
particulares são provenientes da norma fundamental geral por meio de uma
operação racional, isto é, por uma dedução a partir da particular. A norma
fundamental tem aqui um caráter material-estático.

28. ORDENAMENTO JURÍDICO COMO CONEXÃO CRIADORA Diferentes


são as normas de direito. Estas não valem por causa do
conteúdo. Todo e qualquer conteúdo pode ser direito.
Não existe conduta humana que, como tal, por sua
essência, esteja excluída de tornar-se o conteúdo de
uma norma jurídica. Sua validade não pode ser, por
isso, questionada se seu conteúdo não corresponder a
um valor material ou moral de algum modo
estabelecido. Uma norma vale como norma jurídica
apenas porque foi estabelecida de modo bem
determinado, criada segundo uma regra bem
determinada e estabelecida de acordo com um método
específico.
O direito só vale como direito positivo, ou seja, como direito
regulamentado. Da necessidade de ser regulamentado e da sua decorrente
autonomia em relação à moral e de sua validade como sistema de normas
provém a positividade do direito; daí a diferença essencial entre o direito
positivo e o denominado direito natural, cujas normas são deduzidas, como as
da moral, de uma norma fundamental e que, por força de seu conteúdo, são
consideradas imediatamente evidentes, em decorrência da vontade divina, da
natureza ou da razão pura.
A norma fundamental de um ordenamento jurídico positivo não é, em
compensação, nada mais que uma regra fundamental, conforme a qual são
produzidas as normas do ordenamento jurídico, a criação da estabilidade
fundamental da produção jurídica. Ela é o ponto de partida de um
procedimento; possui um caráter eminentemente dinâmico-formal. Desta
norma fundamental não se pode deduzir logicamente as normas do sistema
jurídico. Devem ser produzidas por um ato institucional especial – que não é
ato racional – mas volitivo. A instituição de normas jurídicas se desenvolve
de diversas maneiras: por meio de costumes ou pelo processo legislativo,
enquanto se tratar de normas gerais; por atos de jurisdição e por atos
negociais nas normas individuais.
A produção jurídica consuetudinária contrapõe-se a todos os outros
modos quando criação estatutária (Rechts-Setzung); esta é, portanto, um caso
especial de instituição do direito.
Se se referirem as normas de um sistema jurídico a uma norma
fundamental, isso acontece de modo a mostrar que a criação da norma
singular corresponde à da norma fundamental. Perguntando-se por que
determinado ato coercitivo, como, por exemplo, o ato de um indivíduo prive
outro de liberdade, encarcerando-o numa prisão, é um ato jurídico e, portanto,
pertencente a determinado ordenamento jurídico, assim será a resposta:
porque esse ato foi prescrito através de determinada norma individual por
uma sentença judicial.
Pergunta-se em seguida: por que essa norma individual vale, e justamente
como parte de um ordenamento jurídico bem determinado e recebe-se a
resposta: porque corresponde a uma lei do Código Penal. E se se indaga do
fundamento da validade do Código Penal, chega-se à Constituição do Estado,
de cujos artigos foi criado o Código Penal, pelo órgão para isso competente,
de um dos procedimentos prescritos pela Constituição.
Se se indagar, porém, sobre o fundamento da validade da Constituição,
sobre a qual repousam todas as leis e os fundamentos de todas as leis e atos
jurídicos, talvez se chegue a uma Constituição mais antiga e assim a uma
historicamente primeira, promulgada por um único usurpador ou por um
colégio formado de algum modo. E aqui, o que o primeiro órgão histórico da
Constituição estabeleceu como sua vontade, com validade de norma, é a
instituição básica de todo o conhecimento que extingue o ordenamento
jurídico que repousa nessa Constituição. A coação deve ser exercida sob
condições e da maneira determinada pelo primeiro constituinte ou das
instâncias por ele delegadas: essa é a formulação esquemática da norma
fundamental de um ordenamento jurídico (no sentido de um ordenamento
jurídico estatal único, do qual se falará daqui a pouco).

29. SIGNIFICADO DA NORMA FUNDAMENTAL


A Teoria Pura do Direito opera com essa norma jurídica fundamental
como se fora uma situação hipotética. Sob a suposição de que ela vale, vale
também o ordenamento jurídico sob o qual repousa. Confere ao ato do
primeiro legislador e, por isso, a todos os demais atos que repousam no
ordenamento jurídico, o sentido de “dever ser”, aquele sentido específico em
que a condição jurídica está ligada à consequência jurídica, na proposição
jurídica; e a proposição jurídica é a forma típica em que o material jurídico
positivo inteiro deve apresentar-se.
Na norma fundamental, acha-se, em última análise, o significado
normativo de todas as situações de fato constituídas pelo ordenamento
jurídico. Somente sob a suposição da norma fundamental pode o material
empírico ser interpretado como direito, isto é, um sistema de normas
jurídicas. Segundo a qualidade desse material, ou seja, desses atos que devem
ser considerados atos jurídicos, é que se julga também o conteúdo especial de
uma norma jurídica fundada num ordenamento jurídico especial. Ela é apenas
a expressão da necessária suposição de todo o conceito positivista do material
jurídico. Não vale, já que não é criada num procedimento jurídico, como
norma jurídica positiva, não é instituída, mas – como regulamento de todas as
imposições jurídicas, como procedimento jurídico positivo – é aceita. Com a
formulação da norma fundamental, a Teoria Pura do Direito não pretende
inaugurar um novo método de conhecimento da doutrina jurídica. Deseja
apenas salientar o que todos os juristas – quase sempre sem o saber – fazem
quando, na apreensão de seu objeto, recusam um direito natural do qual se
poderia originar a validade do ordenamento jurídico positivo, além de esse
direito positivo ser um ordenamento válido, não apenas como um fato, ligado
à motivação, mas como norma.
Com a teoria da norma fundamental, a Teoria Pura do Direito só procura
desvendar as condições lógico-transcendentais praticadas desde tempos
imemoriais, do método do conhecimento positivo, através de uma análise do
procedimento factual.

30. NORMA FUNDAMENTAL DO ORDENAMENTO JURÍDICO ESTATAL


SINGULAR

a) Conteúdo da norma fundamental


O significado da norma fundamental torna-se extremamente claro se um
ordenamento jurídico não for modificado por meio legal, mas por meio
revolucionário, através de um novo ordenamento; assim como a essência do
direito e da comunidade por ele constituída aparece mais claramente quando
se questiona sua existência.
Num Estado até então monárquico, um grupo de pessoas tenta, por meio
de uma revolta violenta, substituir um governo legítimo, monárquico, por um
governo republicano. Se for bem-sucedido, isto é, se a antiga ordem termina e
começa a vigorar a nova, assim que a conduta efetiva das pessoas (para
aquelas que desejam a validade dessa ordem) não acata mais a antiga ordem e
assim opera com a nova, como se fora um ordenamento jurídico, ou seja,
interpretam-se os atos realizados na execução como atos jurídicos e as
situações de fato que os infringem, como antijurídicas. Pressupõe-se uma
nova norma fundamental, não mais a dos monarcas, mas a que delega
autoridade ao governo revolucionário como sendo a autoridade juridicamente
estabelecida.
Se a tentativa for malograda, porque a nova ordem por ela estabelecida se
mostrou ineficaz por não lhe corresponderem, com sua conduta, os
destinatários da norma, o ato executado não será interpretado como uma
promulgação de Constituição, mas significará crime de alta traição, não como
instituto do direito, mas como infração ao direito, isto é, ao fundamento da
antiga ordem, cuja validade pressupõe a norma fundamental que delegava ao
monarca, autoridade produtora do direito.
Indaga-se do que depende o conteúdo da norma básica que fundamenta
determinado ordenamento jurídico e mostra-se então – uma análise de
sentenças judiciais de seu último pressuposto – nesta situação de fato em que
é produzido todo ordenamento jurídico que a efetiva conduta humana, ao
qual o ordenamento se refere, corresponde a um certo grau. Até um certo
grau não se exige uma correspondência total e sem exceção. Sim, é até
necessário que exista a possibilidade de uma discrepância entre o
ordenamento normativo e o âmbito do acontecimento efetivo com ele
coordenado. Pois sem tal possibilidade um ordenamento normativo não tem
absolutamente nenhum sentido. Não é preciso ordenar o que deve acontecer
por necessidade natural. Vale fundar um ordenamento social ao qual
corresponda sempre, e em todas as circunstâncias, a conduta humana efetiva
– a norma fundamental deve, antes de tudo, legitimar todo o ser possível:
“deve acontecer o que acontece de fato”, ou “tu deves, o que quiseres”. Tal
ordem seria tão sem sentido quanto o acontecimento a que se refere se não
lhe correspondesse, de modo algum, ou que fosse o contrário dele.
É por isso que um ordenamento normativo tem de perder sua validade
diante da realidade, que deixa de corresponder-lhe até certo grau. A validade
de um ordenamento jurídico que regulamenta a conduta de determinadas
pessoas encontra-se, portanto, em certa relação de dependência pelo fato de
que a conduta dessas pessoas corresponde ao ordenamento jurídico – à sua
eficácia, como se costuma dizer. Essa relação – que se pode designar, talvez
de modo figurativo, como a tensão entre o “dever ser” e o “ser” – não pode
ser determinada senão por um limite superior e outro inferior.
A possibilidade da correspondência não pode ultrapassar determinado
maximum, nem baixar de um determinado minimum.

b) Validade e eficácia do ordenamento jurídico (direito e poder) O


entendimento, nesta relação de dependência, pode facilmente levar
ao erro de identificar a validade do ordenamento jurídico com sua
eficácia, ou seja, com o fato de que a conduta humana a que se refere
o ordenamento jurídico corresponde a este, até certo grau. Só que
essa tentativa sempre renovada, que se recomenda pelo fato de
simplificar substancialmente a situação teórica, fracassa sempre. Pois
se se afirma que a validade, isto é, a existência específica do direito,
é uma realidade natural e, portanto, que se sobrepõe à realidade, ela
– só se não se identificar com a validade do direito – pode
corresponder ou contrapor-se a ele (ao direito). Assim como é
impossível abstrair-se da realidade, pela determinação da validade, é
também impossível identificar a validade com a realidade.
Se se colocar o conceito de realidade – como eficácia do ordenamento
jurídico – no lugar do conceito de poder, o problema das relações da validade
com a eficácia do ordenamento jurídico coincide com – o (problema) muito
corrente – do direito e do poder. E, nesse caso, a solução aqui tentada é a
formulação cientificamente exata da antiga verdade de que o direito
realmente não pode existir sem o poder, embora não seja idêntico ao poder.
Constitui – no sentido da teoria aqui desenvolvida – um determinado
ordenamento (ou organização) do poder.

c) Direito internacional e norma fundamental do ordenamento jurídico


estatal singular
De acordo com o princípio de que a validade de um ordenamento jurídico
possui determinada eficácia, ou melhor: determinada relação de
correspondência, expressa-se somente o conteúdo de uma norma jurídica
positiva, não do ordenamento estatal singular, mas do direito internacional.
Esse legitima – como se mostrará mais tarde – um poder que se estabelece de
fato e delega na esfera desse ordenamento coercitivo estabelecido, à medida
que é realmente eficaz.
Este princípio da efetividade, que é um princípio jurídico do direito
internacional, atua como norma fundamental dos diferentes ordenamentos
jurídicos estatais singulares; a Constituição elaborada pelo primeiro
constituinte histórico só tem validade sob o pressuposto de que é eficaz, de
que o ordenamento que se desdobra conforme seus princípios corresponde,
em geral, à realidade. Também um governo, que chegou ao poder através de
uma revolução ou um golpe de Estado, é considerado como governo legítimo,
no sentido do direito internacional, quando tem condições de impor
obediência duradoura a normas por ele ditadas.
Isso, porém, significa que um ordenamento coercitivo direto de direito
internacional é considerado ordenamento jurídico legítimo e obrigatório ou,
em outras palavras, que a comunidade constituída como Estado, no entender
do direito internacional, tem validade em todos os âmbitos, uma vez que esse
ordenamento se tornou duradouro e eficaz, mais exatamente para a região em
que este ordenamento lhe corresponde, em geral.
Se esta norma, que fundamenta os ordenamentos jurídicos de cada um
dos Estados, é considerada como norma jurídica positiva – e é o caso, quando
se concebe o direito internacional como superior a ordenamentos jurídicos
estatais únicos, abrangendo esses ordenamentos de delegação – então a
norma fundamental – no sentido específico aqui desenvolvido, de norma não
estabelecida, mas apenas pressuposta – não mais se pode falar em
ordenamentos jurídicos estatais únicos, mas apenas como base do direito
internacional. O princípio internacionalista da efetividade só pode valer como
norma fundamental relativa dos ordenamentos jurídico-estatais únicos.
Partindo-se do primado do direito internacional, desloca-se o problema da
norma fundamental, tornando-o problema do último fundamento da validade
de um ordenamento jurídico único, que abrange um ordenamento total. A isso
ainda se voltará.

d) Validade e eficácia da norma jurídica única


Do fato de que a validade de um ordenamento jurídico, como um sistema
fechado de normas jurídicas, depende de sua eficácia, ou seja, do fato de que
a realidade, à qual o ordenamento jurídico se refere, com seu conteúdo, como
um todo, não se conclui que esse ordenamento corresponda, de modo geral, à
validade de uma norma jurídica única, na mesma relação de dependência de
sua eficácia. Já a validade de um ordenamento jurídico como um todo não é
afetada pelo fato de faltar eficácia, tão só, a uma norma jurídica única desse
sistema. Essa norma continua valendo, enquanto permanecer na conexão
criadora de um ordenamento válido.
A pergunta sobre a validade de uma norma única encontra resposta dentro
do sistema, através de recurso à validade de todas as normas que
fundamentaram a primeira Constituição. Se esta vale, as normas que
fundamentam a criação de uma Constituição devem ser consideradas válidas.
O princípio internacionalista da efetividade refere-se também, de
imediato, apenas à primeira Constituição do ordenamento jurídico estatal
único e, portanto, se refere somente a esse como um todo, e não a cada uma
de suas normas jurídicas únicas.
Na possível independência da validade de uma norma jurídica única, em
relação à sua eficácia, mostra-se novamente a necessidade de distinguir
claramente entre os dois conceitos.
Mas assim como o direito internacional, assim também o ordenamento
jurídico estatal único pode erigir o princípio da efetividade, de algum modo,
para o âmbito do princípio jurídico positivo, e assim tornar a validade da
norma única dependente de sua eficácia. É o caso, por exemplo, quando a
Constituição (no sentido material) institui, ao lado do estatuto, também o
costume, como fonte do direito (ou o admite) e igualmente derroga uma
norma jurídica por via consuetudinária, ou seja, pela constante falta de
aplicação. Isso é, porém, a derrogação de uma norma até então válida.
A lei recentemente promulgada “vale”, antes ainda de poder ser eficaz. E
enquanto não houver desuetudo (desuso), a não aplicação da lei significa uma
situação de fato antijurídica. E também por essas circunstâncias, validade e
eficácia não podem ser identificadas.

31. ESCALONAMENTO DO ORDENAMENTO JURÍDICO


a) A Constituição
A análise da consciência jurídica positiva, que põe a descoberto a função
da norma fundamental, requer que se traga à luz uma particularidade singular
do direito: que o direito regula sua própria criação, de modo que uma norma
jurídica regula o procedimento pelo qual outra norma jurídica é produzida, e
– em diversos graus – também regula o conteúdo da norma a ser produzida.
Devido ao caráter dinâmico do direito, uma norma vale porque e até ser
produzida através de outra norma, isto é, através de outra determinada norma,
representando esta o fundamento da validade para aquela. A relação entre a
norma determinante da produção de outra e a norma produzida de maneira
determinada pode ser representada com a imagem espacial do ordenamento
superior e inferior. A que determina a produção é mais alta, e a produzida de
modo determinado é mais baixa. O ordenamento jurídico não é, portanto, um
sistema jurídico de normas igualmente ordenadas, colocadas lado a lado, mas
um ordenamento escalonado de várias camadas de normas jurídicas. Sua
unidade se deve à conexão, que acontece porque a produção e, desta forma, a
validade de uma reverte para a outra, cuja produção novamente é determinada
pela outra; um regresso que desemboca, finalmente, na norma fundamental,
na regra fundamental hipotética e, consequentemente, no fundamento de
validade mais alto, aquele que cria a unidade desta conexão de produções.
O escalonamento (Stufenbau) do ordenamento jurídico – e com isso se
pensa apenas no ordenamento jurídico estatal único – pode ser representado
talvez esquematicamente da seguinte maneira: o pressuposto da norma
fundamental – o sentido deste pressuposto já foi abordado anteriormente –
coloca a Constituição na camada jurídico-positiva mais alta – tomando-se a
Constituição no sentido material da palavra –, cuja função essencial consiste
em regular os órgãos e o procedimento da produção jurídica geral, ou seja, da
legislação.
Entretanto, a Constituição poderá determinar também o conteúdo das leis
futuras; e as Constituições positivas o fazem, não raro, prescrevendo ou
excluindo determinados conteúdos. No primeiro caso, geralmente só existe
uma promessa de promulgar leis, uma vez que por motivos técnico-jurídicos
uma sanção não pode ser convenientemente ligada à falta de promulgação de
leis, cujo conteúdo está prescrito.
Ao contrário, leis de determinado conteúdo podem ser coibidas pela
Constituição. Um típico elemento do catálogo de direitos fundamentais e de
liberdade, que constituem a parte integrante e típica das Constituições
modernas, nada mais é, essencialmente, senão uma determinação negativa. A
garantia constitucional de igualdade perante a lei ou de liberdade da pessoa,
de consciência, e assim por diante, não é senão a proibição de leis que tratam
desigualmente os súditos ou desrespeitam determinada esfera de liberdade.
Tais proibições, do ponto de vista jurídico, podem funcionar técnico-
juridicamente pela promulgação de uma lei inconstitucional sob a
responsabilidade pessoal de órgãos interessados – Chefe de Estado, Ministro
– ou concedendo a possibilidade de uma impugnação ou revogação de tais
leis. Isso no pressuposto de que a simples lei não possui força para revogar a
lei constitucional que lhe determina a criação e o conteúdo, e esta só pode ser
modificada ou revogada sob condições difíceis, como maioria qualificada,
quorum mais elevado, e assim por diante.
Isso significa que a Constituição, para ser modificada ou derrogada,
deverá prescrever um procedimento específico, mais complexo do que o
procedimento legislativo comum; deve haver, ao lado da forma legal, uma
forma constitucional específica.

b) A legislação: conceito de fonte do direito


Os graus mais próximos à Constituição são as normas gerais produzidas
no processo legislativo, cuja função consiste não só em determinar os órgãos
e o processo do conteúdo das normas individuais, comumente ditadas pelos
tribunais e pelas autoridades administrativas, mas também, e principalmente,
o conteúdo das mesmas. Enquanto cabe à Constituição o pesado encargo de
regular o procedimento da criação das leis, seu conteúdo, porém, só é
determinado em muito pequena medida, sendo tarefa da legislação, do
mesmo modo, a produção e a determinação do conteúdo dos atos judiciais e
administrativos. Isso, em forma de lei, se manifesta como direito, tanto
direito material como formal.
Ao lado do Código Penal e do Código Civil acha-se o Processo Penal e o
Processo Civil; ao lado das leis administrativas estão as leis sobre
procedimento administrativo. A relação entre Constituição e legislação é,
pois, essencialmente a mesma que entre lei e jurisdição e administração; só
que a relação entre determinação formal e material é diversa da determinação
dos graus inferiores e superiores. No primeiro caso, o momento do formal
supera o material, no segundo caso eles se equilibram.
O grau que na produção geral – através das regras da Constituição – está
na estrutura positiva dos ordenamentos estatais únicos, aparece, geralmente,
subdividido em dois ou mais graus. Aqui só se deve salientar a divisão em lei
e regulamento, que tem significado especial, em que a Constituição transfere,
em princípio, a produção de normas jurídicas gerais, basicamente, a um
Parlamento eleito pelo povo, mas a execução próxima das leis é através de
normas gerais, apreendidas por determinados órgãos administrativos; ou para
determinados casos de exceção, em lugar do Parlamento o governo deve
promulgar todas as normas necessárias ou algumas gerais.
As normas gerais, que não emanam do Parlamento, mas de uma
autoridade administrativa, serão designadas como regulamentos e são
regulamentos com força de lei. Por isso – assim como há uma forma
específica de Constituição – há também uma forma legal específica. Fala-se
de lei em sentido formal, para diferenciá-la de lei em sentido material. Esta
designa toda norma jurídica geral, aquela, ao contrário, designa a norma geral
na forma de lei, ou seja, aquela que é votada pelo Parlamento e segue as
determinações típicas da maioria das Constituições, publicada de determinada
maneira, como norma jurídica geral, ou designa todos os conteúdos
apresentados desta forma. A designação de “lei em sentido formal” é,
portanto, equívoca. Somente o conceito de forma de lei tem sentido unívoco,
uma vez que nele podem aparecer não apenas as normas gerais, mas também
as de conteúdos diversos.
Para simplificar, só se levará em consideração o caso de a produção das
normas gerais constitucionais, assim como a produção constitucional de
outras normas gerais, se se fizer por via estatutária, e não por via do costume.
Ambos são incluídos no conceito de “fonte do direito”. Essa é uma expressão
figurada e, por isso, ambígua. Não apenas pode significar esses dois métodos,
diferentes entre si – uma produção de normas conscientes de seu objetivo,
realizada através de órgãos centrais, e uma inconsciente, descentralizada,
normas gerais criadas pelos mesmos membros da comunidade jurídica –
como também o último fundamento da validade do ordenamento jurídico e,
com isso, significando o que aqui se exprime com o conceito de norma
fundamental.
Num sentido mais amplo, porém, “fonte do direito” significa toda e
qualquer norma jurídica, não apenas a geral, mas também a individual,
enquanto dela flui, assim como do direito objetivo, o direito em sentido
subjetivo, isto é, um dever jurídico ou uma autorização.
Assim, uma sentença judicial constitui a fonte para a obrigação especial
de um indivíduo e a autorização correspondente de outro. Essa ambiguidade
da expressão “fonte do direito” torna-a inútil. Em lugar da imagem, é
conveniente dar a definição clara e direta do problema, de cuja solução se
trata no momento. Aqui se encontra em questão a norma geral como “fonte”
da norma individual.

c) Jurisdição
A norma geral que une, abstratamente, uma determinada situação de fato
à também determinada consequência, abstratamente determinada, procura a
individualização, para chegar, finalmente, ao seu significado. É preciso
verificar se existe, in concreto, uma situação de fato, que a norma geral
determina in abstracto e é necessário, nesse caso concreto, que exista um ato
coercitivo legal, ou seja, que se ordene primeiro e se realize depois e que seja
prescrito, in abstracto, pela norma geral. Isso é realizado pela sentença
judicial, função essa da denominada jurisdição ou poder judicial. Essa função
não possui – como o indica a terminologia juris dictio (dizer o direito –
Recht-sprechung), judicatura (encontrar o direito – Rechts-Findung) e como
é aceita na teoria – um caráter meramente declaratório, como está na lei – que
é a norma geral – direito acabado, no pronunciamento ou na revelação de um
ato do Tribunal.
A função da denominada jurisdição é muito mais constitutiva, criadora de
direito, na verdadeira acepção da palavra. Pois existe uma situação de fato
concreta, ligada a uma específica consequência jurídica, e toda essa relação é
criada pela sentença judicial. Assim, como ambas as situações de fato são
ligadas nas relações do geral pela lei, assim deverão estar unidas, na relação
do individual, pela sentença judicial. Por isso é que a sentença judicial é uma
norma jurídica individual, uma individualização ou concretização da norma
geral ou abstrata, a continuação do processo de produção do direito, do geral
para o individual. Somente o preconceito, de acordo com o qual todo direito
está contido na norma geral, a identificação errônea do direito com a lei,
poderia obscurecer esse ponto de vista.

d) Justiça e administração
Pode-se demonstrar que tanto a jurisdição como a administração são
individualizações e concreções de leis, isto é, de leis administrativas. Sim,
grande parte delas, as que são designadas, normalmente, como administração
estatal, não se distinguem funcionalmente de modo algum das que se
denominam jurisdição ou justiça, uma vez que do ponto de vista técnico o
fim do Estado se alcança através do aparato administrativo, da mesma forma
que pelos tribunais: se se consegue o (estado) social desejado, ou seja, o que
o legislador considera como tal, reagindo-se contra o oposto por meio de um
ato coercitivo, a ser concretizado por órgãos estatais, em outras palavras:
obrigando-se, juridicamente, os súditos a seguir uma conduta social
desejável.
Não há diferença essencial entre o fato de que a honra das pessoas seja
protegida, porque os tribunais atribuem a ofensa ao ofensor, e que a
segurança das pessoas no trânsito das ruas seja garantida, porque as
autoridades administrativas multam o motorista em excesso de velocidade.
Num caso, fala-se em Justiça, no outro, em Administração, de modo que
existe uma diferença na posição organizada do juiz somente explicável
historicamente, ou seja, por sua independência, que na maioria das vezes
(mesmo que não seja sempre) lhe falta; a concordância essencial consiste, em
ambos os casos, em que a finalidade do Estado só se realiza de forma média.
Uma diferença funcional entre justiça e administração existe quando a
finalidade do Estado só se realiza, de imediato, através de órgãos estatais,
quando estes, aqui juridicamente obrigados, realizam o estado social
diretamente e, como se costuma dizer, o próprio Estado (isto é, seu órgão) é
que constrói ou dirige escolas e estradas de ferro, assiste a doentes em
hospitais etc. Esta administração direta é, na realidade, essencialmente
diferente da atividade jurisdicional, porque esta última, de acordo com sua
essência, é a perseguição mediata dos fins do Estado, tendo, por isso,
afinidade com a administração indireta.
Sendo administração e justiça duas funções diferentes, aquela só pode ser
contraposta a esta como administração direta. Para uma sistematização
conceitualmente correta das funções jurídicas, o limite entre elas evolui de
modo completamente diverso ao que apresenta, hoje em dia, e a organização
habitual e histórica dos aparatos jurídicos – sem levar em consideração a
legislação – se decompõe em dois grupos de autoridades relativamente
isolados entre si, que, em sua maior parte, realizam funções iguais.
O verdadeiro conhecimento da natureza dessas funções, a substituição da
diferença entre justiça e administração, através da diferença entre
administração direta e indireta, não deveria ficar sem reação para aquela
organização.

e) Negócio jurídico e ato executivo


A individualização e concretização das normas gerais acontece em certas
áreas jurídicas, como, por exemplo, no direito civil, não indiretamente,
através de um ato funcional de órgão estatal, como é a sentença judicial. Nas
normas jurídicas civis que se aplicam nos tribunais, entre a lei e a sentença
judicial, interpõe-se o negócio jurídico, que, em relação à situação de fato
condicionante, exerce uma função individualizadora.
Delegadas pela lei, as partes estabelecem normas concretas para o seu
comportamento recíproco, normas que estabelecem um comportamento
recíproco e cuja infração consiste na situação de fato verificada, criada pela
sentença judicial, a qual está ligada à consequência do ilícito, isto é, à
execução.
A última fase deste processo de produção jurídica, que tem seu começo
na promulgação da Constituição, é a realização do ato coercitivo, como
consequência da antijuridicidade.

f) Relatividade da antítese entre produção e aplicação do direito


O exame do escalonamento do ordenamento jurídico mostra que a
antítese entre a produção ou criação do direito, de um lado, e a execução ou
aplicação do direito, de outro, não tem aquele caráter absoluto que a teoria
tradicional do direito liga a essa antítese, que lhe é tão importante.
A maioria dos atos jurídicos é, ao mesmo tempo, ato de produção jurídica
e ato executivo. Com cada um desses atos jurídicos será executada uma
norma de grau mais alto e uma norma de grau inferior será produzida. Assim
se apresenta o primeiro ato constituinte – como execução da norma
fundamental, a legislação – que é a produção de normas gerais – como
execução da Constituição, sentença judicial e ato administrativo,
estabelecidas pela norma individual, como execução da lei, a realização de
atos coercitivos, como execução de ordens administrativas e sentenças
judiciais. O ato coercitivo possui, sem dúvida, caráter de pura execução,
assim como o pressuposto da norma fundamental possui caráter de puro
projeto de normas. Mas tudo o que se acha entre esses dois casos limite é, ao
mesmo tempo, produção e execução do direito.
Assim também o negócio jurídico, que não se pode opor, como ato de
aplicação jurídica – como o faz a doutrina tradicional – a um ato de
legislação, como ato de criação jurídica. Tanto a legislação como o negócio
jurídico são, igualmente, criação e aplicação do direito.

g) Posição do direito internacional no escalonamento


Se se aceitar que não existe apenas um único ordenamento jurídico
estatal, mas que existe uma pluralidade deles, coordenados e com a validade
juridicamente delimitada, em plena vigência, reconhece-se – o que será
mostrado mais adiante – que é o direito internacional positivo que realiza essa
coordenação dos ordenamentos jurídicos únicos e a delimitação recíproca de
seus âmbitos de validade, então deve-se conceber o direito internacional
como acima dos ordenamentos jurídicos pertencentes a uma comunidade
jurídica universal; com isso, a unidade de todo o direito é assegurada num
sistema escalonado consecutivo.

h) Conflito de normas de diversos graus


A unidade do ordenamento jurídico, construído de modo escalonado,
parece estar em questão, uma vez que uma norma de grau inferior não
corresponde a uma norma de grau superior determinante, seja em sua
produção seja em seu conteúdo, ou seja, quando é contrária à determinação
que constitui a supra e a infrarrelação do ordenamento. É o problema da
norma contrária à norma, que se apresenta aqui: a lei inconstitucional, o
regulamento, a sentença ou o ato administrativo contrários à lei ou ao decreto.
Como pode, indaga-se, ser mantida a unidade do ordenamento jurídico
como um sistema normativo lógico fechado quando entre duas normas de
graus diferentes desse sistema existe uma contradição lógica, quando a
Constituição, assim como a lei que a infringe, quando a lei e a sentença que a
contradiz estão válidas? Que este seja o caso não pode ser posto em dúvida
pelo direito positivo. Este figura como direito antijurídico e confirma sua
existência exatamente por diversas medidas, tanto para impedi-lo como para
restringi-lo. Mas ao fazê-lo, ao aceitar como válida, por quaisquer motivos,
uma, mesmo que indesejada norma, aceitalhe o caráter antijurídico. E este
fato significa que, como norma antijurídica designada como fenômeno, a lei
inconstitucional, a sentença ilegal etc., será realmente uma contradição lógica
entre uma norma mais alta e uma norma inferior, o que acontece por causa da
unidade do ordenamento jurídico. Mas isso não ocorre de maneira nenhuma.
Se for possível existir uma lei inconstitucional, ou seja, lei válida que
conflite com a prescrita pela Constituição vigente, ou pelo processo de sua
produção ou por seu conteúdo, este fato não pode ser explicado senão deste
modo: que a Constituição não só admite a validade da lei conforme à
Constituição, como também, em certo sentido, a validade da lei
inconstitucional, pois deste modo não se poderia falar da “validade” desta
última.
Que a Constituição queira também a validade da denominada lei
inconstitucional, isso acontece porque ela não só prescreve a lei produzida de
modo determinado, que deve ou não deve ter determinado conteúdo, como
também que, quando a lei for produzida de modo diferente do prescrito ou
tiver conteúdo diverso do prescrito, não deve ser considerada nula, mas com
validade desde aquele determinado instante até ser anulada por um Tribunal
Constitucional, em um processo regulado pela Constituição. É nessa conexão
de significado subordinado que a Constituição prescreve, às vezes,
expressamente, um mínimo, talvez a publicação em jornal legislativo, e pela
existência dele até que os tribunais considerem válida, até sua revogação, a
norma que se faz passar por lei.
É mais importante o fato de que a maioria das Constituições não prevê,
de modo algum, a revogação de leis inconstitucionais e se contenta com a
possibilidade de tornar pessoalmente responsáveis certos órgãos, como, por
exemplo, o chefe de estado ou ministro, pela aprovação de leis
inconstitucionais sem que se toque na validade dessas leis (inconstitucionais).
O que se denomina de “inconstitucionalidade” da lei não é, de modo
algum, uma contradição lógica em que o conteúdo da lei se choca com o
conteúdo da Constituição, mas uma condição estabelecida pela preliminar de
um processo, que tanto pode ser de revogação da lei – até então válida e,
portanto, constitucional – ou a punição de determinado órgão.
Os preceitos constitucionais referentes à produção e ao conteúdo das leis
só podem ser compreendidos em conexão essencial relativa à sua “violação”,
ou seja, às normas produzidas de modo diverso da previamente prescrita, ou
que possuam um conteúdo previamente prescrito.
Considerados sob esta ótica, ambos os preceitos formam uma unidade. Os
preceitos relativos à legislação constitucional mostram, assim, o caráter de
prescrições alternativas, pelo que ambas as partes da alternativa não podem
ser igualmente valoradas.
A diferenciação acontece no sentido de uma desqualificação da segunda
alternativa diante da primeira. E essa desqualificação se traduz pelo fato de
que a lei correspondente não ao primeiro mas ao segundo preceito
alternativo, justamente por causa dessa sua qualificação, é considerada
anulável pela Constituição ou declarada punível por causa de um órgão.
Nisso, porque a norma “antinormativa” possa ser revogada, ou porque um
órgão seja punido por causa dela, reside aquilo que se designa melhor como
“antinormatividade” (“inconstitucionalidade”, “ilegalidade”), ou como a
“falta” ou “deficiência” da norma.
Totalmente análogo é o caso da denominada ilegalidade do decreto ilegal
ou da ilegalidade da lei ou do ato judicial ou ato administrativo. Por este
último – percebe-se, no caso, nulidade absoluta – em que só existe a
aparência de uma norma jurídica e, portanto, nenhuma existe – uma norma
individual será criada que será considerada válida no sentido da lei e, pois,
legal enquanto não for revogada no processo prescrito por lei, em razão da
afirmação da ilegalidade. A lei contém não apenas o preceito de que a
sentença judicial e o ato administrativo são produzidos de determinado modo
e devem ter determinado conteúdo, como também o preceito de que uma
norma individual produzida de outro modo e com outro conteúdo, deve valer
até ser revogada num determinado processo por motivo de sua contradição
em relação ao primeiro preceito. Se o processo estiver esgotado ou se
nenhum processo desse tipo for previsto, então a norma de grau inferior
cresceu em “força jurídica” perante a norma superior.
Isso significa que a norma inferior permanece válida apesar de seu
conteúdo ser contrário à norma de grau superior e conforme o princípio
autoestabelecido pela norma superior da coisa julgada.
Não se pode entender o significado da norma de grau superior que
determina a produção e o conteúdo de uma norma de grau inferior sem a
determinação posterior que a norma de grau superior encontra no caso em
que a primeira determinação seja violada. A determinação da norma inferior,
através da superior, possui, portanto – também na relação entre a lei geral e o
ato judicial e ato administrativo individuais – o caráter de uma prescrição
alternativa. Se a norma individual corresponde à primeira das duas
alternativas, tem plena validade; se corresponde à segunda, terá validade
média, ou seja, pode ser revogada por causa de sua deficiência. Uma terceira
possibilidade não existe, pois a norma que não é anulável só pode ser
definitivamente válida ou nula, isto é, não ser nenhuma, apenas ter a
aparência de norma.
Pelo caráter alternativo que exclui a norma inferior determinada pela
superior, esta será excluída, de modo que a inferior apareça numa verdadeira
contradição lógica com a superior; pois uma contradição com o primeiro de
ambos os preceitos alternativos em que se divide a norma integral de grau
superior não é uma contradição com a norma integral de estrutura alternativa.
E ainda a contradição, que no processo previamente prescrito da norma de
grau inferior com o primeiro dos preceitos alternativos da norma de grau
superior, só aparece ao ser verificada pela instância competente. Qualquer
outra opinião sobre uma suposta contradição é juridicamente irrelevante.
Na esfera do direito, a “contradição” surge juntamente com a revogação
da norma contraditória. A denominada “antinormatividade” de uma norma
que se supõe válida por algum motivo não é, na verdade – quando se dispensa
a responsabilidade pessoal do órgão –, senão sua revogação por motivos
determinados possíveis, isto é, sua anulação, por meio de outro ato jurídico;
ou sua anulação, ou seja, sua negação como norma válida, pelo conhecimento
jurídico, a dissolução da aparência de norma jurídica válida.
A “norma antinorma” ou é apenas anulável, ou seja, uma norma válida
até sua anulação e, portanto, norma regular; ou é nula e, então, não é norma.
O conhecimento normativo não tolera nenhuma contradição entre duas
normas do mesmo sistema. O possível conflito entre duas normas válidas de
graus diversos é solucionado pelo próprio direito. A unidade no
escalonamento do ordenamento jurídico não é comprometida por nenhuma
contradição lógica.
Capítulo VI
INTERPRETAÇÃO

SUMÁRIO: 32. Motivo e objeto da interpretação – 33. Indeterminação


relativa do grau inferior em relação ao grau superior – 34.
Indeterminação intencional dos graus inferiores – 35. Indeterminação
não intencional dos graus inferiores – 36. A norma como moldura
dentro da qual há várias possibilidades de execução – 37. Os
denominados métodos de interpretação – 38. A interpretação como
ato de conhecimento ou de vontade – 39. A ilusão da segurança
jurídica – 40. O problema das lacunas – 41. As denominadas lacunas
técnicas – 42. Teoria das lacunas do legislador.

32. MOTIVO E OBJETO DA INTERPRETAÇÃO


Do exame do escalonamento do ordenamento jurídico surgem
consequências muito significativas para o problema da interpretação. Este é
um processo espiritual, que acompanha o processo de produção jurídica em
seu desenvolvimento, de um grau superior – determinado pelo superior – para
um grau inferior.
No caso normal, a interpretação da lei deve responder à indagação de
como se consegue extrair da norma geral da lei, em sua aplicação à uma
situação de fato concreta, a norma individual correspondente de uma sentença
judicial ou de um ato administrativo.
Mas existe também uma interpretação da Constituição enquanto ela for
válida – a Constituição, no processo de produção legislativa, na emissão de
procedimentos legislativos, pela elaboração de regulamentos de urgência e
outros atos constitucionais de imediato –, isto é, executar a Constituição num
grau inferior. Há ainda uma interpretação de normas individuais, sentenças
judiciais, ordens administrativas, negócios jurídicos, e assim por diante, em
suma, de todas as normas enquanto devam ser executadas, isto é, enquanto o
processo da produção e execução jurídicas passa de um grau para o seguinte.
33. INDETERMINAÇÃO RELATIVA DO GRAU INFERIOR EM RELAÇÃO AO
GRAU SUPERIOR

A relação entre um grau mais alto e mais baixo do ordenamento jurídico,


como entre Constituição e lei ou entre lei e sentença judicial, é uma relação
de determinação ou de liame: a norma de grau superior regula – como já foi
exposto – o ato pelo qual é produzida a norma de grau inferior (ou o ato de
execução, quando se trata mais dele); ela não determina apenas, com isso, o
processo em que se produz a norma inferior, mas também, eventualmente, o
conteúdo da norma a ser produzida.
Essa determinação, porém, nunca é completa. A norma de grau superior
não pode ligar o ato, pelo qual é executada, em todas as direções. Deve haver
sempre um espaço, ora maior, ora menor, de livre estimativa, de modo que a
norma de grau mais alto, em relação ao ato de produção da norma ou da
execução, tenha uma moldura que preencha esse ato. Até chegar a uma ordem
detalhada, é preciso deixar ao executor uma sensação de determinação.
Se o órgão A dispõe que o órgão B detenha o sujeito C, o órgão B deve
resolver, pelo próprio critério, quando, onde e como executará a ordem de
detenção, resoluções que dependem de circunstâncias externas, que o órgão
ordenador não previu e, na maioria das vezes, nem pôde prever.

34. INDETERMINAÇÃO INTENCIONAL DOS GRAUS INFERIORES


Disso resulta que todo ato jurídico, seja ato de produção do direito, seja
ato de pura execução, no qual se executa uma norma, essa norma é
determinada apenas em uma parte, mas indeterminada em outra parte. A
indeterminação tanto pode ser relativa à situação de fato condicionadora
como também à consequência condicionada, ou seja, tanto ao “como” como
também ao “o que” do ato a ser realizado.
A indeterminação pode ser diretamente intencional, isto é, provir da
vontade do órgão que estabelece uma norma mais alta. Assim se efetua o
estabelecimento de uma norma apenas geral – correspondente à sua essência
– sob o pressuposto de que a norma individual que se edita no seu processo
de determinação constitui o sentido da sucessão gradual das normas jurídicas.
O mesmo ocorre no caso da delegação.
Uma lei sanitária determina que, no caso de eclosão de uma epidemia, os
habitantes da cidade, sob penas da lei, tomem certas precauções para impedir
a propagação da doença. A autoridade administrativa terá o poder de
determinar de diferentes maneiras de que forma serão essas precauções
conforme as diferentes doenças.
A lei penal prevê, para o caso de determinado delito, uma pena pecuniária
ou privativa de liberdade, ou permite ao juiz decidir, no caso concreto, por
uma ou outra, e determinar sua extensão; pelo que, para essa mesma
determinação, na própria lei, pode ser estabelecido um limite superior e outro
inferior.

35. INDETERMINAÇÃO NÃO INTENCIONAL DOS GRAUS INFERIORES


A indeterminação do ato jurídico pode ser também a consequência não
intencional da natureza daquela norma, que, pelo ato em questão, deve ser
executada. Aqui se acha, na primeira linha, a pluralidade de significados de
uma palavra ou da frase na qual a norma se expressa: o sentido linguístico da
norma não é unívoco; quem tiver de executá-la, encontra-se diante de vários
sentidos. A mesma situação se apresenta quando o executor da norma crê
poder aceitar que, entre o significado verbal da norma e a vontade da
autoridade criadora da norma, existe uma discrepância pela qual se pode
verificar essa vontade. Em todo caso, deve ser possível pesquisar, de outras
fontes que não a expressão verbal da norma, enquanto essa não corresponder
à vontade dos legisladores tradicionais.
A denominada vontade do legislador ou a intenção das partes contratantes
que não corresponde às palavras contidas nessa lei ou no negócio jurídico é
uma das possibilidades geralmente reconhecidas pela doutrina tradicional do
direito. A discrepância entre vontade e expressão pode também ser total ou
parcial; esta última ocorre quando a vontade do legislador ou a intenção das
partes corresponde, ao menos, a uma das várias acepções que acompanha a
expressão verbal da norma.
A indeterminação do ato jurídico que está na base de uma norma pode
ser, finalmente, a consequência do fato de que duas normas que pretendem
valer simultaneamente – porque estão contidas na mesma lei – se
contradizem total ou parcialmente. (A indagação de como a unidade do
ordenamento jurídico se mantém diante do conflito entre uma norma de grau
superior e uma norma de grau inferior, que é o problema da norma contrária,
já foi tratada anteriormente em assunto relacionado com este).

36. A NORMA COMO MOLDURA DENTRO DA QUAL HÁ VÁRIAS


POSSIBILIDADES DE EXECUÇÃO

Em todos esses casos de indeterminação intencional ou não intencional


dos graus inferiores oferecem-se várias possibilidades de execução. O ato
jurídico de execução pode ser configurado de tal modo que possa
corresponder a um ou outro dos significados verbais da norma jurídica, ou
que, de algum modo, esteja de acordo com a vontade do legislador
(Normsetzers) ou com a expressão por ele escolhida, ou que uma ou outra das
outras duas normas contraditórias entre si concordem, ou que se resolva
como se as duas normas contraditórias entre si se houvessem revogado
mutuamente.
A norma a ser executada, em todos esses casos, forma apenas uma
moldura dentro da qual são apresentadas várias possibilidades de execução,
de modo que todo ato é conforme a norma, desde que esteja dentro dessa
moldura, preenchendo-a de algum sentido possível.
Entendendo-se por “interpretação” a verificação do sentido da norma a
ser executada, o resultado desta atividade só pode ser a verificação da
moldura, que representa a norma a ser interpretada e, portanto, o
reconhecimento de várias possibilidades que estão dentro desta moldura.
Nesse caso, a interpretação de uma lei não é necessária a uma decisão
como a única certa, mas leva, possivelmente, a várias decisões – enquanto só
se ajustam à norma a ser aplicada – do mesmo valor, mesmo que uma única
dentre elas se torne direito positivo numa sentença judicial.
O fato de que uma sentença judicial seja baseada numa lei nada mais
significa, na verdade, senão que se encontra no interior da moldura e que a lei
não significa que é uma das normas individuais possíveis dentro da moldura
da norma geral.
A doutrina jurídica tradicional crê poder esperar da interpretação não
apenas a verificação da moldura para o ato jurídico estabelecido, mas também
a espera da realização de uma tarefa mais ampla e está até disposta a ver nela
sua tarefa principal.
A interpretação deve desenvolver um método que possibilite preencher
acertadamente a moldura verificada. A teoria da interpretação comum fará
crer que a lei, aplicada ao caso concreto, só pode fornecer uma decisão
correta e que a “correção” juspositivista dessa decisão acha-se baseada na
própria lei. Apresenta, assim, o processo dessa interpretação de maneira tal
que parece tratar-se de um ato intelectual que a esclarece e compreende,
como se o intérprete só pusesse em ação sua compreensão e não sua vontade,
e como se através de uma compreensão pura se pudesse ter, entre as
possibilidades existentes, uma correspondente ao direito positivo, no sentido
de que se pudesse encontrar uma escolha certa de acordo com o direito
positivo.

37. OS DENOMINADOS MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO


Sob a ótica do direito positivo não existe critério pelo qual uma das dadas
possibilidades da aplicação da norma possa ser preferida à outra.
Simplesmente não existe – caracterizável como juspositivo – um método,
relativamente ao qual, dentre os vários significados linguísticos de uma
norma, só se possa salientar um como “correto”; naturalmente se se tratar de
muitas interpretações possíveis, isto é, em concordância com todas as outras
normas da lei ou do ordenamento jurídico.
Apesar de todos os esforços da doutrina jurídica tradicional, até hoje não
se conseguiu resolver o conflito entre vontade e expressão de maneira
objetivamente válida a favor de uma ou de outra. Todos os métodos de
interpretação desenvolvidos até agora só conduzem a um possível, jamais a
um único resultado justo.
Ater-se à negligência do texto e à vontade presumível do legislador ou
observar estritamente o texto e assim não se importar com a – quase sempre
problemática – vontade do legislador é, do ponto de vista do direito positivo,
inteiramente equivalente.
Se acontecer o caso de duas normas simultaneamente válidas se
contradizerem, então as três possibilidades lógicas de execução juspositivista
antes mencionadas estarão em uma mesma linha. É um esforço inútil querer
fundamentar “juridicamente” uma excluindo a outra.
Que o meio de interpretar o argumentum a contrario e a analogia sejam
totalmente sem valor, demonstra-o, suficientemente, o fato de que ambos
conduzem a resultados contrapostos, e não existe nenhum critério quando se
trata de aplicar um ou outro. Também o princípio dos denominados interesses
equilibrados não passa de uma formulação e não uma solução do problema
aqui exposto. Não fornece a medida objetiva em relação à qual interesses
contrários possam ser comparados entre si e, por conseguinte, poderem ser
resolvidos os conflitos de interesse.
Essa medida objetiva não leva à comparação de interesses opostos e,
assim, a poder resolver conflitos de interesses. Essa medida não pode ser
extraída da norma a ser interpretada ou da lei que a contém, ou ser procurada
em todo o ordenamento jurídico, como ensina a denominada teoria do
equilíbrio de interesses. Pois a necessidade de uma “interpretação” acontece
exatamente porque a norma a ser aplicada ou o sistema de normas deixa
abertas inúmeras possibilidades, o que quer dizer que não contém nenhuma
resolução sobre qual dos interesses em jogo é o mais alto; essa decisão, essa
determinação de hierarquia dos interesses é muito mais num ato de produção
normativa – permite, por exemplo, uma sentença judicial justa.

38. A INTERPRETAÇÃO COMO ATO DE CONHECIMENTO OU DE VONTADE


A representação em que se baseia a teoria tradicional de interpretação, de
que, de alguma forma de conhecimento do direito já existente possa ser
conseguida a determinação do ato jurídico a ser realizado, e que a norma
superior aplicável não a tenha efetuado, é uma representação da possibilidade
de uma interpretação abandonada de autoilusão.
A indagação sobre qual das várias possibilidades na moldura de uma
norma é a “justa” é – conforme a exposição – não uma indagação dirigida ao
conhecimento do direito positivo, não um problema jurídico-teórico, mas sim
político-jurídico. A tarefa: obter da lei a sentença judicial justa ou o ato
administrativo justo, é essencialmente o mesmo que criar, na moldura da
Constituição, as leis justas. Assim como da Constituição não se pode obter
leis justas, através da interpretação, da lei, também, não se pode obter
sentenças judiciais justas através da interpretação.
Certamente existe uma diferença entre esses dois casos, mas é apenas
quantitativa e não qualitativa e consiste em que a ligação dos legisladores
com o aspecto material é muito menor que a do juiz, já que aquele é
relativamente bem mais livre que este na criação do direito.
Mas este também é um criador do direito e é também relativamente livre
nessa função.
É exatamente por isso que a elaboração da norma individual no processo
de execução da lei, enquanto a moldura da norma geral for preenchida, é uma
função da vontade. Os comentários “científicos” em que deve apoiar-se a
atividade de execução da lei têm caráter absolutamente jurídico-políticos, são
propostas para igualar a feitura das leis e são experiências para influenciar a
função da criação jurídica dos tribunais e autoridades administrativas.
Uma vez que, pela aplicação da lei na necessária verificação da moldura,
dentro da qual o ato estabelecido deve estar contido, não há uma atividade
cognitiva, um conhecimento do direito positivo, mas sim de outras normas
que podem desembocar aqui, no processo da produção jurídica; normas de
moral, de justiça, de juízos sociais de valor, que costumam ser designados
com os chavões “bem do povo”, “interesse do Estado”, “progresso”, e assim
por diante. Sobre a validade e possibilidade de verificação deles, do ponto de
vista do direito positivo, nada se pode dizer. Vistas sob esta ótica, tais
determinações só podem ser caracterizadas negativamente: são determinações
que não se originam do próprio direito positivo. Em relação a este, a
instituição do ato jurídico é livre, isto é, na apreciação livre da instância
autorizada para a realização do ato; seria o caso, então, que o próprio direito
positivo, de algum modo, delegasse a norma metajurídica, como a moral, a
justiça e assim por diante, e que, por causa disso, essas normas fossem
transformadas em normas de direito positivo.

39. A ILUSÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA


O ponto de vista segundo o qual a interpretação seria o conhecimento do
direito positivo e, como tal, um processo para extrair novas normas das já
vigentes é o fundamento da denominada jurisprudência conceitual, também
descartada pela Teoria Pura do Direito. Esta destrói a opinião de que se
possam criar novas normas por via do conhecimento, opinião essa que, em
última análise, surge da necessidade de representar o direito como um
ordenamento forte, que determina a conduta humana e, em particular, a
atividade dos órgãos aplicadores do direito, principalmente, dos tribunais; de
modo que a função destes, assim como a interpretação, deve ser assim
encarada como o processo especial de normas já existentes, que deverão ser
descobertas por um determinado procedimento. É a ilusão da segurança
jurídica que a teoria tradicional do direito – consciente ou inconscientemente
– se esforça por manter.

40. O PROBLEMA DAS LACUNAS


Papel especial é reservado à interpretação para o preenchimento de
lacunas jurídicas. Embora não se distinguissem verdadeiras lacunas no
sentido de que um litígio jurídico seja suscetível de decisão, de acordo com
normas vigentes, já que a lei – como se diz – não pode ser aplicada nesse
caso e, por não haver um preceito, não existe.
Todo litígio jurídico consiste em que uma parte apresente uma
reivindicação contra a outra; e a decisão a favor ou contra depende de que a
lei, ou seja, uma norma válida, aplicável ao caso concreto, estabeleça ou não
uma obrigação jurídica imposta. Que não exista uma terceira possibilidade é
uma decisão sempre possível, e sempre com fundamento, isto é, aplicando-se
a lei. Também na decisão que é contra a pretensão aplica-se o ordenamento
jurídico vigente. Pois ao obrigar a pessoa, através do ordenamento jurídico, a
ter determinada conduta, garante a liberdade, além dessas obrigações
jurídicas.
Diante daquele que pretende de outro uma conduta não estabelecida pelo
ordenamento jurídico vigente, este último terá um “direito” concedido pelo
ordenamento jurídico, pela omissão dessa conduta, “direito” no sentido de
liberdade juridicamente garantida.
O ordenamento jurídico não contém apenas a proposição de que se está
obrigado a determinada conduta (enquanto a negação dessa conduta for
estabelecida como condição da específica consequência antijurídica), mas
também a proposição: (a pessoa) está livre de fazer ou não fazer aquilo a que
não está obrigada. Esta norma negativa é a que se aplica numa decisão, na
qual se nega uma pretensão, dirigida a uma conduta não convertida em dever.
Se mesmo assim ainda se fala, em certos casos, de uma “lacuna”, isso não
significa, como o sentido faz parecer, que uma decisão torna uma norma
logicamente impossível, mas apenas que – logicamente possível – uma
decisão favorável ou desfavorável seja aceita como inconveniente ou tão
injusta pela instância competente para a decisão que se incline a admitir que o
legislador nem tenha pensado, nesse caso, e se nele tivesse pensado tomaria
decisão diversa, como o deveria ter feito com base na lei. Esta aceitação pode
ou não ser exata – sua exatidão não será, na maior parte das vezes,
comprovada; em vista da obrigação constitucionalmente estabelecida de
aplicar a norma que o legislador efetivamente promulgou e não a que
presumivelmente teria promulgado, essa suposição é sem interesse.
Também – na visão do aplicador do direito – aplicar a lei má sem levar
em conta que aquilo que para uns é mau parece bom para outros. A
denominada “lacuna” não é, senão, a diferença entre o direito positivo e um
ordenamento considerado melhor, mais justo e mais correto.
Só porque se compara o ordenamento positivo com um deste tipo e assim
se percebe sua deficiência, pode-se afirmar (que há) algo semelhante a uma
lacuna. Que não se possa preencher tal lacuna pela interpretação percebe-se
por si mesma tão logo se reconheça a essência da lacuna.
A interpretação não tem aqui a função de aplicar a norma a ser
interpretada, mas, ao contrário, de eliminá-la para substituí-la por uma
melhor, mais correta, mais justa, em poucas palavras, uma norma desejada
por quem aplica o direito. Sob a aparência de complementar o ordenamento
jurídico, a norma original será revogada e substituída por uma nova. Uma
ficção da qual se faz uso especialmente quando a modificação legal das
normas gerais, por quaisquer motivos, for difícil ou impossível; pode existir
por se tratar de direito consuetudinário, que não pode ser modificado de
maneira alguma, por um processo racional ou porque as leis vigentes podem
ser vistas como de origem santa ou divina, ou porque o aparelho legislativo
não possa ser de modo algum movimentado ou por motivos outros.

41. AS DENOMINADAS LACUNAS TÉCNICAS


Ao lado das lacunas propriamente ditas distinguem-se, também, às vezes,
lacunas técnicas às quais se nega, do ponto de vista positivista, a existência
de autênticas lacunas, e cujo preenchimento é considerado possível por meio
da interpretação. Elas ocorrem quando o legislador deixa de normatizar o que
deveria ter normatizado, quando deve ser, em geral, tecnicamente possível
aplicar a lei. Só que aquilo que se designa como lacuna técnica ou é uma
lacuna no sentido original da palavra, isto é, uma diferença entre o direito
positivo e o direito desejado, ou aquela indeterminação que resulta por esse
caráter de moldura da norma.
A primeira acontece quando, por exemplo, a lei regula a obrigatoriedade
da venda, mas – como se costuma dizer – nada determina sobre quem arca
com o risco quando a coisa vendida perecer, sem culpa das partes, antes da
transferência. Porém, não acontece que o legislador “nada” determine sobre
isso, mas que o vendedor se liberte da obrigação de entregar a mercadoria ou
uma indenização; uma determinação que, muitas vezes, considera desejável
quem aqui afirma haver uma “lacuna”, mas uma determinação que não
precisa ser subentendida para tornar a lei aplicável. A lei sobre a obrigação do
vendedor de entregar a mercadoria não abre nenhuma exceção, nem no caso
mencionado de o vendedor assumir o risco.
A segunda espécie de lacuna acontece quando, por exemplo, a lei
determina que um órgão deve ser criado por eleição, mas não regula o tipo de
processo eleitoral. Isso significa que todo tipo de eleição, seja a proporcional
ou a da maioria, pública ou secreta, é legal. Para a realização da eleição, o
órgão autorizado para ela pode determinar, arbitrariamernte, o processo
eleitoral. A determinação do processo eleitoral é autorizada para uma norma
de grau inferior.
Outro exemplo: uma lei determina que um colegiado, para ser atuante,
deve ser convocado por seu presidente, mas, ao mesmo tempo, que eleja seu
próprio presidente, mas nada determina sobre a reunião do colegiado para o
caso de não haver nenhum presidente.
Não se pode atribuir a esta norma o sentido de que, caso não exista
nenhum presidente, qualquer modo de reunião será legal, mas apenas o
sentido de que, também nesse caso, o colegiado deve ser convocado por seu
presidente, senão não poderá, de modo algum, funcionar legalmente. Mas
aqui também não existe uma “lacuna”. Pois a lei exige que o colegiado,
mesmo que não possua presidente, deve ser por ele convocada. Se nada
houvesse prescrito para esse caso, qualquer reunião seria legal. A lei
prescreve aqui algo sem sentido, isto é, como as leis são obra humana, isso
não está excluído. Uma norma pode ter também um conteúdo sem sentido.
Nesse caso, nenhuma interpretação pode dar sentido a uma norma. E este
sentido não pode ser suprimido pelo da interpretação, desde que já não
estivesse contido nela.

42. TEORIA DAS LACUNAS DO LEGISLADOR


Embora as lacunas jurídicas não tenham existência, teoricamente, o
legislador pode, determinado por uma falsa teoria, pressupor a existência de
“lacunas”. Só que estas “lacunas” talvez sejam diferentes daquilo que o
legislador entende como tais. Este pode encontrar – e as encontra, no caso,
não raras vezes – quando não pode extrair nenhuma decisão da lei, como no
art. 6.° do Código Civil Austríaco e no art. 1.° do Código Civil Suíço.*
Se a lei permite ao juiz, como diz o art. 1.°, acima mencionado, no caso
de uma “lacuna”, tomar uma decisão como o faria se fosse legislador, isso
significa uma autorização, ao juiz, se considerar a aplicação da lei intolerável,
de julgar por seu próprio arbítrio em lugar da lei. O bom legislador não tem
condições de fazer correções à lei, mesmo em circunstâncias necessárias. Pois
deve contar, de antemão, com circunstâncias de fato, que não previu e nem
poderia ter previsto; as normas gerais não podem tratar senão de casos
comuns. Exatamente por isso ele não pode transcrever os casos em que tem
de se colocar no lugar do aplicador do direito; se pudesse fazê-lo, não
precisaria fazer-se substituto dele. Nada mais lhe resta senão deixar a decisão
para o aplicador do direito, sob o risco inevitável de que este também decida,
como legislador, os casos em que o legislador original quisesse aplicar a lei;
com isso, naturalmente, o fundamento da legalidade e, portanto, a validade
das normas gerais, aplicadas por tribunais e autoridades administrativas, é
colocada em questão, assim como o peso da produção do direito, desde o
legislador geral até o aplicador individual do direito.
Para diminuir esse perigo, a autorização para eliminar a lei é formulada
de modo que o aplicador do direito não se valha do extraordinário poder que
lhe é realmente transferido. O executor do direito deve pensar que só não
deve aplicar a lei nos casos em que não possa ser aplicada, por não conter em
si mesmo nenhuma possibilidade de aplicação. Ele deve saber que só é livre
quando ele próprio puder fazer as vezes de legislador, não porém sob outro
aspecto: quando tiver de se colocar no lugar do legislador. Que ele, na
verdade, esteja livre, também, nesse aspecto, é-lhe ocultado pela ficção da
“lacuna”.
Do geral ao particular, falta a premissa lógica que todo ato de aplicação
do direito representa. A denominada “lacuna” da lei é uma típica fórmula
ideológica.
A aplicação da lei, que neste caso é apenas – pela estimativa do executor
do direito – uma inconveniência jurídico-política, é apresentada como uma
impossibilidade lógico-jurídica.

* No livro de Kelsen, os artigos citados aparecem, provavelmente por engano, como


“parágrafos”. (N. dos T.)
Capítulo VII
MÉTODOS DE PRODUÇÃO DO DIREITO

SUMÁRIO: 43. Forma do direito e forma do Estado – 44. Direito


público e direito privado – 45. Significado ideológico do dualismo do
direito público e privado.

43. FORMA DO DIREITO E FORMA DO ESTADO


A teoria do escalonamento do ordenamento jurídico conceitua o direito
em seu movimento, em seu processo sempre renovado de autoprodução. É
uma teoria dinâmica, diferente de uma teoria estática do direito, que procura
compreendê-lo sem consideração por sua criação, apenas como ordenamento
produzido, sua validade, seu âmbito de validade etc.
No centro de um problema de dinâmica jurídica, está a indagação por
vários métodos de produção jurídica ou das formas do direito.
Reconhecendo-se a função essencial da norma jurídica, que obriga as pessoas
a determinada conduta (unindo a conduta oposta a um ato coercitivo, a
denominada consequência jurídica), acontece que desse ponto de vista
decisivo, do qual a criação da norma jurídica é julgada, resulta: se a pessoa,
obrigada pela norma e a ela submetida, participa ou não da criação dessa
norma que a obriga. Em outras palavras: se a obrigação tem lugar por sua
vontade ou sem ela, eventualmente até contra a sua vontade. Aquela
diferença, que comumente se designa como o contrário de autonomia e de
heteronomia, a doutrina jurídica essencialmente costuma ser utilizada no
Direito Penal.
Aqui aparece como diferença entre democracia e autocracia ou república
e monarquia; e aqui também fornece a divisão habitual das formas de Estado.
Mas aquilo que se concebe como forma de Estado é apenas um caso especial
da forma jurídica geral. É a forma jurídica, ou seja, o método de produção
jurídica, no grau mais elevado do ordenamento jurídico, que é o âmbito da
Constituição.
Com o conceito de forma de Estado assinala-se o método de produção de
normas gerais, regulamentado pela Constituição.
Se se entender como forma de Estado apenas a Constituição, como forma
de legislação, e assim se identifica o Estado – no conceito de forma de Estado
– com a Constituição, como forma de produção de normas jurídicas gerais, e
assim se identificam – como representação do direito, considerado apenas
como sistema de normas gerais, sem levar em conta que a individualização
das normas jurídicas gerais, o progresso da norma jurídica abstrata para a
concreta, deve cair na moldura do ordenamento jurídico.
A identificação da forma estatal com a Constituição corresponde por
completo ao preconceito de que o direito termina na lei. O problema da forma
de Estado, como indagação acerca do método de produção jurídica, acontece
não apenas no grau da Constituição, e não somente para a legislação, como
também para todos os graus de produção jurídica e, em especial para os
vários casos de instituição de normas individuais: ato administrativo,
sentença, negócio jurídico.

44. DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADO


Como exemplo bem característico, na sistemática da moderna ciência do
direito, está a distinção fundamental entre o direito público e o privado. Sabe-
se que até hoje não se conseguiu determinar de maneira plenamente
satisfatória essa diferença. De acordo com uma ótica bastante difundida,
trata-se de uma divisão das relações jurídicas, de modo que o direito privado
apresentaria uma relação entre sujeitos de igual ordem, juridicamente
equivalentes, e o direito público uma relação entre um sujeito subordinante e
outro subordinado, portanto, entre dois sujeitos, dos quais um tem valor
jurídico maior que o outro.
A relação típica de direito público é a que existe entre Estado e súdito.
Designam-se as relações de direito privado também como relações jurídicas
simples, como “direitos” – relações no sentido próprio e estrito da palavra
para contrapor-lhes as relações de direito público como “potestade” ou
relações de “domínio”. Do mesmo modo a diferença entre direito privado e
direito público tem, em geral, certo. Deixar de adotar o significado entre a
antítese entre direito e poder jurídico, ou ainda meio-jurídico, e especialmente
entre direito e Estado.
Se se observar de mais perto, no que consiste, na verdade, o valor maior
de certos sujeitos, sua superioridade sobre outros, percebe-se que se trata de
uma diferença de situações de fato, criadoras de direito. E a diferença de
medida é a mesma que serve de base na divisão das formas de Estado.
O maior valor jurídico do Estado, isto é, de seus órgãos, em relação aos
seus súditos consiste em que o ordenamento jurídico concede a pessoas
qualificadas de órgãos do Estado e ainda a alguns subordinados aos
denominados órgãos públicos, a capacidade de obrigar os súditos, através de
uma declaração unilateral de vontade (ordem).
Exemplo típico de uma relação de direito público é a ordem
administrativa, norma individual, ditada pelo órgão administrativo, pela qual
o destinatário da norma é juridicamente obrigado a uma conduta de acordo
com a ordem.
Diante dela, encontra-se, como relação de direito privado, o negócio
jurídico, especialmente o contrato, ou seja, uma norma individual, produzida
por contrato, por meio da qual as partes contratantes são obrigadas a um
comportamento de mútuo acordo.
Enquanto os sujeitos a serem obrigados participam da produção da norma
obrigatória – e é no que consiste, com efeito, a essência da produção jurídica
contratual – não tem o sujeito a ser obrigado, pela ordem administrativa do
direito privado, nenhuma participação na produção da norma obrigatória. É o
caso típico de uma produção jurídica autocrática de normas, enquanto o
contrato de direito privado apresenta um método totalmente democrático de
criação jurídica. Muito acertadamente, a antiga teoria denominou a esfera do
negócio jurídico como a da autonomia privada.

45. SIGNIFICADO IDEOLÓGICO DO DUALISMO DO DIREITO PÚBLICO E


PRIVADO

Se se conceituar a diferença decisiva entre direito privado e público,


como a diferença entre dois métodos de produção do direito, reconhece-se,
nos denominados atos públicos do Estado, exatamente atos jurídicos, como
nos negócios jurídicos privados; percebe-se, antes de tudo, que a
manifestação de vontade constitutiva da situação de fato, criadora de direito,
em ambos os casos, só é a continuação do processo de formação da vontade
estatal, assim como na ordem autoritária e também no negócio jurídico
privado, somente a individualização de uma norma geral – ali, uma lei
administrativa, aqui, o Código Civil – será executada, não parecendo, então,
tão paradoxal que a Teoria Pura do Direito, do ponto de vista universalista,
dirigido à totalidade do ordenamento jurídico assim como à denominada
vontade do Estado, perceba também no negócio jurídico privado, como
também na ordem autoritária, um ato estatal, isto é, uma situação de fato de
produção jurídica, imputável à unidade do ordenamento jurídico.
Com isso, a Teoria Pura do Direito torna relativa a antítese entre direito
privado e público, que erroneamente considerava absoluta a ciência jurídica
tradicional, transforma-a de extrassistemática, ou seja, de uma diferença entre
direito e não direito, entre direito e Estado, em intrassistemática; e se
considera, por isso mesmo, uma ciência, porque também dissolve a ideologia,
que está ligada, erroneamente, ao caráter absoluto da antítese em questão.
Ao apresentar-se a questão da antítese entre direito público e privado
como a antítese absoluta entre poder e direito, ou, pelo menos, entre
potestade do Estado e direito, irá produzir-se a representação, de como se no
domínio do direito público, e em especial – politicamente muito importante –
no direito constitucional e no direito administrativo, o princípio jurídico não
tivesse o mesmo sentido e nem validade na mesma intensidade que no âmbito
do direito privado, que se considera, por assim dizer, como o verdadeiro
âmbito do direito.
Domina ali, ao contrário daqui, não tanto o direito estrito, como, muito
mais, o interesse do Estado, o bem público, e este teria de ser realizado a todo
custo. Por isso, a relação entre norma geral e órgão executivo, no âmbito do
direito público, seria diversa da do direito privado; não como aqui, ligada à
aplicação de leis a casos concretos, mas a livre realização dos fins do Estado,
dentro da moldura da lei e, no caso de necessidade, isto é, no caso do
denominado direito de necessidade do Estado, até contra a lei.
Exame crítico mostra, entretanto, que toda essa diferença no direito
positivo não possui fundamento; enquanto ela quiser expressar mais, como o
fato de que a atividade legislativa, executiva e administrativa, na regra da lei,
está ligada em menor grau à atividade dos tribunais e que no direito positivo
concede-se a estes, no mais das vezes, uma amplitude menor de livre
discricionariedade que àqueles.
Essa teoria sobre a diferença de essência entre o direito público e o
privado envolve-se na contradição de sustentar como princípio jurídico, como
propriedade específica do direito público, o de ter liberdade em relação ao
direito, liberdade que ela reclama para o âmbito do direito público, como
âmbito vital do Estado. É por isso que, no melhor dos casos, poder-se-ia falar
de duas áreas jurídicas tecnicamente estruturadas de maneira diversa, não
porém de uma absoluta oposição de essência entre direito e Estado.
O dualismo, logicamente insustentável, não tem significado teórico, mas
apenas ideológico. Desenvolvido pela doutrina constitucional, deve assegurar
ao Executivo e ao aparelhamento administrativo a ele subordinado uma
liberdade, por assim dizer, deduzida da natureza das coisas; não uma
liberdade do direito, o que seria, afinal, impossível, mas da lei, das normas
gerais, criadas pela representação popular ou com sua colaboração essencial;
e, na verdade, não apenas no sentido de que existe uma ligação legal contínua
entre o Executivo e os órgãos administrativos, não só discordante na essência
de sua função, como também, duradoura, embora seja declarada suscetível de
remoção. E essa tendência é – na oposição habitual entre Executivo e
Parlamento – constatável não só nas monarquias constitucionais, mas
também nas repúblicas democráticas.
Por outro lado, o caráter absoluto da oposição entre direito público e
privado produz a representação de que só o âmbito do direito público, que é,
antes de tudo, o direito constitucional e o administrativo, fosse o domínio do
poder político, que estaria totalmente excluído da área do direito privado.
Já foi mostrado numa ligação anterior que essa oposição absoluta entre o
“político” e o “privado”, no âmbito do direito subjetivo, não existe, que os
direitos privados são considerados direitos políticos, no mesmo sentido em
que aqueles são designados unicamente assim, já que ambos, embora de
maneiras distintas, participam na formação da vontade estatal, ou seja, na
concessão do poder político.
Pela principal diferença entre uma esfera jurídica pública, isto é, política
e uma privada, isto é, apolítica, deve-se evitar o sentido de que o direito
“privado”, produzido no negócio jurídico contratual, não é menor no cenário
do poder político do que no direito público, produzido na legislação e na
administração.
Visto pela ótica da função, o que denominamos de direito privado, nesta
parte do ordenamento jurídico, na estrutura do todo jurídico, é apenas a forma
jurídica especial da produção econômica e da distribuição dos produtos,
correspondente ao ordenamento econômico capitalista; portanto, uma função
eminentemente política e de poder. A um ordenamento econômico socialista
outra forma jurídica seria adequada, não a autônomo-democrática, como a
apresenta o atual direito privado, mas – provavelmente – uma forma jurídica
heterônomo-autocrática, mais próxima ao nosso direito administrativo de
hoje.
Se essa seria uma forma mais satisfatória ou mais justa de
regulamentação, fica aqui apresentada. Isso a Teoria Pura do Direito não
pretende, e nem pode, resolver.
Capítulo VIII
DIREITO E ESTADO

SUMÁRIO: 46. Dualismo tradicional do direito e Estado – 47. Função


ideológica do dualismo do direito e Estado – 48. Identidade do direito
e Estado: a) O Estado como ordenamento jurídico; b) O Estado como
problema de imputação jurídica; c) O Estado como aparelho de
órgãos funcionais; d) Teoria do Estado como Teoria do Direito; e) O
poder do Estado como eficácia do ordenamento jurídico; f)
Dissolução da ideologia da legitimidade.

46. DUALISMO TRADICIONAL DO DIREITO E ESTADO


Na antítese que a doutrina tradicional do direito aceita entre direito
público e privado, já aparece, nitidamente, o dualismo violento, que domina a
moderna ciência do direito e, com ele, todo o nosso pensamento social: o
dualismo de Estado e direito. Quando a teoria tradicional do direito e do
Estado contrapõe o Estado como sendo um ente diferente do direito e, ao
mesmo tempo, afirma que o Estado é um ente jurídico, considera o Estado
sujeito de deveres jurídicos e direitos, isto é, como pessoa, atribuindo-lhe, ao
mesmo tempo, uma existência independente do ordenamento jurídico.
Assim como a teoria do direito privado aceitou, em sua origem, que a
personalidade jurídica do indivíduo precede, lógica e temporalmente, o
direito objetivo, isto é, o ordenamento jurídico, assim a Teoria do Estado
aceita o Estado como unidade coletiva, que se apresenta como sujeito de uma
vontade e de um modo de agir, independente e até preexistente ao direito.
Mas o Estado preenche uma missão histórica, assim se ensina, porque
cria o direito, o “seu” direito, o ordenamento jurídico objetivo, para então a
ele se submeter, com deveres e direitos. Assim o Estado, como ente
metajurídico, como uma espécie de macroanthropos onipotente, ou
organismo social, pressupõe o direito e, ao mesmo tempo, sujeita-se a ele,
como sujeito de direitos e deveres. É a famosa teoria “dos dois rostos e da
auto-obrigação do Estado”, que apesar das notórias contradições que lhe são
sempre imputadas defende com exemplar tenacidade contra todos os
protestos.

47. FUNÇÃO IDEOLÓGICA DO DUALISMO DO DIREITO E ESTADO


A tradicional Teoria do Estado e do Direito não pode, nesse seu
manifesto dualismo, prescindir do Estado e do direito. Pois cumpre uma
função ideológica, de significado extraordinário, embora superestimado.
O Estado deve ser apresentado como uma pessoa diferente do direito para
que o direito, então – esse direito produzido e a ele submetido –, possa
justificar o Estado. E o direito só pode justificar o Estado se for contraposto
como ordem essencialmente diferente do Estado, cuja natureza original, o
poder, é por ele pressuposto como ordenamento correto e justo.
Na mesma medida em que uma legitimação religiosa-metafísica do
Estado se torna ineficaz, essa teoria do direito do Estado deve tornar-se a
única justificativa possível do Estado.
Esta “teoria” do Estado, enquanto o afirma como pessoa jurídica, no
objeto do conhecimento jurídico, da Teoria do Direito do Estado, ao mesmo
tempo, acentua com a maior ênfase, que o Estado, como poder, algo
essencialmente diferente do direito, não pode ser conceituado juridicamente;
esta contradição, porém, não lhe causa nenhum prejuízo, pois as contradições
não são um sério obstáculo para as teorias ideológicas, às quais são
necessariamente inerentes.
Na verdade, as ideologias não objetivam o aprofundamento do
conhecimento, mas sim a determinação da vontade. Não importa tanto aqui
conceituar a essência do Estado, como, muito mais, fortalecer sua autoridade.

48. IDENTIDADE DO DIREITO E ESTADO


a) O Estado como ordenamento jurídico
Um conhecimento do Estado, livre de ideologias e liberto de toda a
metafísica e mística, não pode apoderar-se de sua essência de outro modo
senão concebendo essa formação social como um ordenamento da conduta
humana. Exame mais pormenorizado mostra que é um ordenamento
coercitivo social e que este ordenamento coercitivo deve ser idêntico ao
ordenamento jurídico, já que os mesmos atos coercitivos caracterizam ambos
e a mesma comunidade social não pode ser constituída por dois
ordenamentos distintos.
O Estado é um ordenamento jurídico. Mas nem todo ordenamento
jurídico pode ser designado como Estado; só o é quando o ordenamento
jurídico estabelece, para a produção e execução das normas que o integram,
órgãos que funcionam de acordo com a divisão do trabalho. Estado significa
ordenamento jurídico quando já alcançou certo grau de centralização.
Nas primitivas comunidades jurídicas pré-estatais, a produção das normas
jurídicas gerais realiza-se através do costume, ou seja, pela prática de cada
um dos seus membros; e nem para o estabelecimento da norma individual e
nem para a execução do ato coercitivo existem, originariamente, tribunais
centrais. A verificação da situação antijurídica, assim como a realização da
consequência antijurídica, é deixada àqueles – protegidos exatamente pelo
ordenamento jurídico – cujos interesses foram violados.
É o filho que, por terem matado seu pai, procura vingança contra o
homicida e sua família, ou é o próprio credor que pode pôr as mãos no
devedor moroso para ressarcir-se, talvez, pelo penhor. Estas são formas
primitivas de pena e de execução. Ao executar esses atos, os membros da
comunidade agem como órgãos do ordenamento jurídico e da comunidade
por ele constituída, pois agem, para isso, autorizados pelo ordenamento
jurídico. Apenas porque – por força de tal autorização – esses atos coercitivos
podem ser imputados à comunidade, já que é esta que reage contra a
antijuridicidade, sendo que não valem, em si, como nova antijuridicidade.
No decorrer de um longo desenvolvimento é que se formam, como
resultado do processo de divisão do trabalho, os órgãos centrais; é preciso
assinalar que estes são órgãos judiciais e de execução muito antes de serem
órgãos legislativos. Mas por mais poderoso que esse passo possa ser do ponto
de vista da técnica jurídica, a diferença entre ordenamento jurídico
descentralizado e centralizado é meramente quantitativa e não qualitativa e
também entre a comunidade jurídica primitiva e a estatal.
Enquanto não houver um ordenamento jurídico estatal mais alto, o
próprio Estado é o ordenamento jurídico ou a comunidade jurídica soberana.
Isso significa, em especial, que a validade territorial assim como a material
desse ordenamento jurídico são limitadas, uma vez que no ordenamento
coercitivo estatal sua validade se restringe a determinado espaço e a
determinados objetos, de modo que – ao menos materialmente – este
ordenamento não tem a pretensão de ter validade e de abranger todas as
relações humanas; mas significa que não tem nenhuma capacidade para
estender sua validade tanto no aspecto territorial como no material. Isso se
costuma denominar de altura de competência.
Mas assim que se eleva sobre os ordenamentos uniestatais o ordenamento
de direito internacional, o Estado não mais pode ser conceituado como
soberano, e sim como relativamente superior e apenas abaixo do direito
internacional, como ordenamento jurídico de direito internacional imediato.
Sua determinação mais próxima só pode ser dada pela representação de suas
relações com o ordenamento de direito internacional. A comunidade
supraestatal constituída não pode ser denominada Estado, como também não
o pode ser a comunidade jurídica pré-estatal pela falta de suficiente
centralização.

b) O Estado como problema de imputação jurídica


Que o Estado é – precisamente qualificado – um ordenamento jurídico
(que só se diferencia quantitativa e não qualitativamente), isso se percebe
porque toda manifestação de vida do Estado, de todo ato estatal, não pode
aparecer senão como ato jurídico, como ato de produção ou de execução de
normas jurídicas.
Uma ação humana só se torna ato estatal se for qualificada como tal por
uma norma jurídica. Sob a ótica de atos estatais únicos, em que o Estado se
desmembra em fenômeno dinâmico, encontra-se o problema do Estado como
problema da imputação jurídica. A questão se apresenta porque uma
determinada ação humana – e todo ato do Estado nada mais é senão uma ação
humana – não é imputada ao próprio homem, mas sim a um sujeito que se
pensa estar atrás dele.
A norma jurídica se apresenta como o único critério possível dessa
imputação. Enquanto se estabelece, de maneira específica, numa situação de
fato, uma ação humana ou uma norma jurídica, essa situação de fato pode ser
atribuída à unidade do ordenamento jurídico que contém uma norma
qualificada.
O Estado, como sujeito de atos estatais, ou seja, o Estado como pessoa,
nada mais é senão a personificação desse ordenamento, que como
ordenamento jurídico é aquele ordenamento coercitivo que só o Estado pode
conceber.
A imputação à pessoa do Estado converte a situação de fato imputado
num ato estatal, qualificando a pessoa que o executa como órgão do Estado.
A pessoa jurídica do Estado mostra, com isso, o mesmo caráter que qualquer
outra pessoa jurídica. Como esta, ela á a expressão da unidade de um
ordenamento jurídico, um ponto de imputação que, pela ótica do espírito
exigente do homem cognoscente, está facilmente disposto à hipóstase, a
supor o real, a representar o Estado, por detrás do ordenamento jurídico,
como um ser diferente dele.

c) O Estado como aparelho de órgãos funcionais


Assim que o ordenamento jurídico superou o primitivo período de
completa descentralização, assim que se formaram, para a produção e
execução das normas jurídicas, e, em especial, para a consumação de atos
coercitivos, órgãos que desenvolveram funções de acordo com a divisão do
trabalho, destaca-se, de maneira extrema, da massa de membros do Estado,
isto é, dos sujeitos às normas, um grupo de indivíduos, qualificados de modo
específico, como órgãos.
Está na essência dessa centralização – que, de resto, não é completa, uma
vez que certas funções de produção jurídica e execução continuam
descentralizadas – que a função dos órgãos dos atos divididos seja
estabelecida, em regra, como dever jurídico, ou seja, que através de uma
antijuridicidade específica a pena disciplinar seja sancionada para que a
função se torne, gradualmente, profissional e onerosa.
O órgão estatal que realiza suas funções converte-se – como titular da
função jurídica centralizada – em funcionário do Estado. Este é o órgão
juridicamente qualificado de forma determinada. Tal evolução, ligada à
passagem da economia natural para a monetária, estabelece um fisco estatal,
isto é, constitui um patrimônio central, cuja concessão e aplicação, aumento,
desperdício e saída são legalmente regulados, de maneira especial, e por ele
serão remunerados os órgãos funcionais do Estado, assim como serão pagos
os custos de sua atividade.
Do Estado, representado por esses órgãos funcionais, parte,
principalmente, toda atividade que antes já foi denominada de administração
imediata do Estado como decorrência direta do fim estatal.
Que não se trate de particular, mas sim do Estado, que ergue uma escola
ou ativa uma estrada de ferro, depende da qualificação especial da pessoa que
exerce essas funções. Ao aparelho integrado pelos órgãos funcionais estatais
está ligada a evolução judicial e administrativa do Estado. Mas não se pode
ignorar que até o Estado administrativo é um ordenamento coercitivo.
Estado administrativo é aquele cujos órgãos funcionais perseguem
diretamente o fim estatal, uma vez que estabelecem imediatamente a
condição social desejada. Não se limitam a produzir normas e executá-las,
nas quais – não os funcionários – os súditos são obrigados a uma conduta
social desejada, em que os órgãos – funcionários – reajam contra eles com
atos coercitivos, no caso de conduta contrária.
A administração estatal imediata é juridicamente efetuada como a
conduta social desejada pelos súditos, isto é, como dever jurídico dos órgãos
funcionais do Estado, ou seja, que o ordenamento jurídico indique a outros
órgãos estatais como reagir, com ato coercitivo, contra conduta contrária ao
dever. O Estado, como aparelho coercitivo, abrange o Estado, como aparelho
administrativo.
Com o desenvolvimento de um sistema de órgãos, que realizam funções
variadas, o conceito de órgão estatal coloca-se, em sentido mais estrito, como
um órgão juridicamente qualificado, específico, um órgão funcional, diante
do conceito de súdito, como particular.
O uso linguístico restringe, de modo geral, a denominação de órgão
estatal ao órgão funcional. Mas quem, como súdito não funcional, produz
normas juridicamente obrigatórias num ato de negócio jurídico, para o qual
tenha sido delegado pelo ordenamento jurídico, não é chamado de “órgão
estatal”, embora sua função seja a mesma da de um funcionário
administrativo que baixa um decreto. Só que o uso linguístico não é, de modo
algum, consequente.
O particular, que age como eleitor do Parlamento, exatamente como o
eleito e o Parlamento formado pelos eleitos, valem como “órgãos estatais”,
embora lhes falte a específica qualificação funcional, muitas vezes só porque
exercem uma função jurídica. Aqui aparece, justamente, o conceito primário
de órgão.
Ao conceito de órgão, em sentido estrito de funcionário burocrático,
corresponde um conceito especial e mais estrito de Estado, como a essência
dos órgãos funcionais. É um conceito muitas vezes aplicado o que se
expressa através de uma representação um tanto ingênua, em consequência da
qual o Estado constrói uma organização mais estrita e forte dentro de um
Estado, em sentido mais amplo, que abrange todos os súditos.
Do ponto de vista de uma exata análise estrutural, o conceito de órgão do
Estado – como pessoa-órgão – deve ser considerado, por isso, claramente,
embora de maneira personificadora, não um conceito correto de órgão-pessoa
– através do qual é substituído esse órgão-função.
Dentro da situação de fato da função-órgão acha-se a qualificação
especial das pessoas que realizam essa função, dos denominados titulares de
órgãos, personificados no conceito de órgãos estatais, mas apenas elementos
que constituem essa situação de fato.
Se se substitui, porém, o órgão estatal pela função estatal, coloca-se o
Estado, que se julga como o conjunto de órgãos estatais funcionais,
juntamente com o aparelho funcional, então o Estado se apresenta como um
sistema jurídico de funções bem determinadas, a saber, aquelas que devem
ser realizadas através do ordenamento jurídico, de modo específico, por
indivíduos qualificados como funcionários estatais; acrescentam-se-lhes,
ainda, outros, constituídos por órgãos não funcionais, como o órgão
legislativo.
Este Estado é um conjunto de situações de fato, juridicamente
qualificadas de determinada maneira e assim, finalmente, o sistema dessas
normas jurídicas qualificadas nessa situação de fato, isto é, um ordenamento
jurídico parcial, mais ou menos arbitrariamente destacado da totalidade do
ordenamento jurídico estatal.

d) Teoria do Estado como Teoria do Direito


O conhecimento de que o Estado é um ordenamento jurídico encontra sua
confirmação em que o problema é habitualmente apresentado do ponto de
vista de uma Teoria Geral do Estado e demonstrado como problema teórico-
jurídico, como problema da validade e produção do ordenamento jurídico.
O que se denomina de “elementos” do Estado, a soberania, o território e o
povo, não é senão a validade do ordenamento estatal em si, e o âmbito de
validade espacial e pessoal desse ordenamento.
Um caso especial no seio da questão do âmbito de validade espacial das
normas constituídas pelo ordenamento estatal: a natureza daquelas formações
jurídicas, que resultam de uma divisão territorial dos Estados, são os
problemas de centralização e descentralização, sob cuja ótica a
descentralização administrativa, os corpos de autoadministração, os países,
fragmentos de Estados etc., mas em especial também todas as uniões de
Estados podem ser conceituadas.
A teoria dos três poderes ou funções do Estado mostra, como seu objeto,
os diversos graus de produção do ordenamento jurídico; os órgãos do Estado
só podem ser entendidos como fatos da produção e execução do direito, e as
formas de Estado nada mais são senão os métodos de produção do
ordenamento jurídico, referidos, figurativamente, como a “vontade do
Estado”.

e) O poder do Estado como eficácia do ordenamento jurídico


Assim como se reconhece o ordenamento coercitivo do direito do Estado
como ordenamento e na personificação da unidade desse ordenamento do
Estado se reconhece a pessoa, pode-se compreender na eficácia do
ordenamento jurídico tudo o que se costuma designar como “poder do
Estado” ou o Estado como “poder”.
Esse não pode exteriorizar-se senão na força motivadora que se origina
nas representações que contêm as normas do ordenamento jurídico, isto é,
estatal. Todas as organizações externas em que se costuma vislumbrar o
poder do Estado, os cárceres e fortalezas, os patíbulos e as metralhadoras, são
em si objetos inanimados. Só se tornam instrumentos do poder estatal
enquanto forem usados pelos homens, no sentido de um determinado
ordenamento, enquanto a representação desse ordenamento, a crença de dever
agir de acordo com ele, motivar esses homens.
Conhecendo-se tudo isso soluciona-se o dualismo do Estado e direito
como uma daquelas duplicações que existem porque o conhecimento da
unidade constituída por seu objeto – e tal expressão de unidade é o conceito
de pessoa – a hipostatiza.
Entra então o dualismo de Estado-pessoa e ordenamento jurídico, do
ponto de vista do conhecimento teórico, num paralelo com o dualismo
igualmente muito contraditório de Deus e Mundo. A ideologia estatal
jurídico-política aparece apenas como um derivado e susbtituto da ideologia
teológico-lógico-religiosa, que concorda com ela em todos os pontos
essenciais.
Compreende-se, porém, que a identidade do Estado e do direito, que o
direito, o positivo, o direito que não se identifica com a justiça, é exatamente
o mesmo ordenamento coercitivo que aparece ao conhecimento como Estado,
que não fica encravado em imagens antropomorfas, mas que passa pelo véu
da personificação para as relações reais entre as pessoas, sendo então
decididamente impossível justificar o Estado através do direito. Assim
também é impossível justificar o direito pelo direito quando essa palavra não
for utilizada ora no sentido do direito positivo, ora no sentido de direito justo
ou justiça.
E então revela-se a tentativa de legitimar o Estado como Estado de
direito, totalmente inútil, uma vez que todo Estado deve ser um Estado de
direito, enquanto se entender Estado como “Estado de direito”, que “possui”
um ordenamento jurídico. Pois não existe nenhum Estado que não tenha ou
ainda não tenha um ordenamento jurídico, porque todo Estado é um
ordenamento jurídico, o que não contém nenhum juízo de valor.
Esse conceito de Estado de direito não pode ser confundido com aquele
que significa um ordenamento jurídico de conteúdo bem determinado, isto é,
um Estado que apresenta certas instituições como direitos de liberdade,
garantias para a legitimidade das funções dos órgãos e métodos democráticos
de produção jurídica. Perceber apenas num sistema jurídico assim estruturado
um “verdadeiro” ordenamento jurídico é um preconceito jusnaturalista.
Do ponto de vista de um positivismo jurídico consequente, não pode o
direito, assim como o Estado, ser conhecido senão como um ordenamento
coercitivo da conduta humana, sobre cujo valor moral ou de justiça nada se
pode declarar.
Desse modo, o Estado não pode ser juridicamente concebido, nem mais,
nem menos, a não ser como o próprio direito, o qual, como ordenamento
espiritual de conteúdo objetivo e, como tal, objeto do conhecimento jurídico-
normativo, como motivado e motivador de outros, ato-poder-anímico-
corporal, que é poder jurídico, e, assim, objeto da psicologia social ou da
sociologia.

f) Dissolução da ideologia da legitimidade


Esta dissolução crítico-metodológica do dualismo Estado-direito é, ao
mesmo tempo, a destruição irreverente de uma das mais eficazes ideologias
da legitimidade; daí a apaixonada resistência que a Teoria do Direito e a do
Estado tradicionais opõem à tese da identidade do Estado e do direito,
baseada na Teoria Pura do Direito.
Quando a Teoria Pura do Direito rejeita a legitimação do Estado pelo
direito, não é por considerar impossível toda legitimação do Estado. Contesta
apenas que a ciência do direito possa conseguir a justificação do Estado pelo
direito, ou – o que é o mesmo – do direito pelo Estado. E contesta, em
especial, que possa ser tarefa da ciência do direito justificar algo. Justificação
significa valoração; e valorações – sempre de caráter subjetivo – são coisas
da ética e da política, mas não do conhecimento objetivo. Só a este deve
servir a ciência do direito, se quiser ser ciência e não política.
Capítulo IX
ESTADO E DIREITO INTERNACIONAL

SUMÁRIO: 49. Essência do direito internacional: a) Graus do direito


internacional: sua norma fundamental; b) Direito internacional como
ordenamento jurídico primitivo; c) Obrigação e autorização
meramente mediatos, através do direito internacional – 50. Unidade
do direito internacional e do direito estatal singular: a) Unidade do
objeto como postulado gnoseológico; b) Relação recíproca de dois
sistemas normativos; c) Construção monista ou dualista; d) Primado
do ordenamento jurídico estatal; e) Negação do direito internacional;
f) Dissolução da “contradição” entre direito internacional e direito
estatal singular; g) Primado do ordenamento jurídico do direito
internacional; h) O Estado como órgão da comunidade de direito
internacional; i) A Teoria Pura do Direito e a evolução do direito
mundial.

49. ESSÊNCIA DO DIREITO INTERNACIONAL


a) Graus do direito internacional: sua norma fundamental
O direito internacional compõe-se de normas que, originadas de atos de
Estado – isto é, de órgãos competentes para isso, conforme ordenamentos
jurídicos únicos – para a produção de regras de relacionamento entre Estados,
ou seja, através do costume.
São as normas gerais de direito internacional, pois estabelecem direitos e
obrigações para todos os Estados. Entre elas, a de significado mais especial,
está a que comumente se designa pela fórmula pacta sunt servanda. Ela
autoriza a comunidade jurídica internacional a regulamentar sua conduta, isto
é, a conduta de seus órgãos e súditos, por meio de tratados.
O processo consiste em que, por meio do acordo declarado de vontade
dos órgãos competentes, sejam produzidas normas por dois ou mais Estados
que obrigam e autorizam os Estados pactuados. O direito internacional
contratual hoje vigente só tem caráter particular. Suas normas não valem para
todos, a não ser para dois ou para um maior ou menor grupo de Estados.
Constituem, apenas, comunidades parciais.
É preciso notar, porém, que o direito internacional contratual particular e
o direito internacional consuetudinário geral não devem ser considerados
como grupos de normas coordenadas. O fundamento de um constitui uma
norma, que pertence ao outro, ficando ambos na relação de grau mais alto
para um grau mais baixo.
E se se levar em consideração também as normas jurídicas produzidas
pelos tribunais internacionais e por órgãos similares, aparece ainda na
estrutura do direito internacional um terceiro grau. Pois a função de tal órgão
produtor de direito internacional repousa, por sua vez, num acordo de direito
internacional, portanto numa norma que pertence ao segundo grau do direito
internacional. Esta – por via do direito internacional, produzido por tratados
internacionais – repousa numa proposição de direito internacional
consuetudinário geral, na camada mais alta, e deve valer como a norma
fundamental do direito internacional e, com isso, também como
ordenamentos jurídicos estatais únicos, delegados pelo direito internacional,
uma norma que através da conduta recíproca do costume constituído pelos
Estados estabelece uma produção jurídica de fato. Que o direito internacional
consuetudinário geral seja, por sua origem, mais novo que os ordenamentos
jurídicos estatais únicos, não impede que estes encontrem, naquele, seu
fundamento de validade.
Também a família, como comunidade jurídica, é mais antiga que o
Estado centralizado – que abrange muitas famílias – e, não obstante, é no
ordenamento jurídico estatal que repousa a validade do ordenamento jurídico
familiar. A validade do ordenamento de um Estado-membro também é
baseada na Constituição do Estado Federal, embora o surgimento dele seja
precedido pelo dos Estados singulares, antes autônomos e só mais tarde
reunidos em um Estado Federal.
Não se deve confundir a relação histórica com a lógico-normativa.

b) Direito internacional como ordenamento jurídico primitivo


O direito internacional apresenta o mesmo caráter que o direito de um
Estado singular. Como este, é um ordenamento coercitivo. A proposição do
direito internacional é a mesma que a proposição jurídica do ordenamento
jurídico estatal singular e a ligação de uma (tida como danosa pela
comunidade) situação de fato como condição, e tendo como conseqüência um
ato coercitivo.
As consequências específicas do direito internacional são: a represália e a
guerra. Mas o direito internacional ainda é um ordenamento jurídico
primitivo. Encontra-se apenas no início de uma evolução, que o ordenamento
jurídico estatal singular já superou. Apresenta, no mínimo, uma
descentralização extrema em relação ao direito Internacional geral e,
portanto, para toda a comunidade do direito internacional.
Não existem aqui ainda órgãos que funcionem de conformidade com a
divisão do trabalho para a produção e execução das normas jurídicas. A
criação das normas gerais desenvolve-se através do costume ou do tratado, o
que significa: através dos membros da própria comunidade jurídica e não
através de um órgão legislativo especial. E o mesmo sucede com a aplicação
de normas gerais ao caso concreto.
É o Estado que se julga prejudicado em seus interesses, que deve decidir
se está diante de uma situação de fato de antijuridicidade pela qual um outro
Estado é responsável. E se este negar a antijuridicidade constatada, falta uma
instância objetiva que, num processo juridicamente regulamentado, decida o
litígio. O mesmo se aplica ao próprio Estado ofendido em seu direito, que é
autorizado a reagir contra o infrator pelo ato coercitivo estabelecido pelo
direito internacional geral, com represália ou guerra. É a técnica da autoajuda,
da qual se originou a evolução do ordenamento jurídico estatal singular. De
acordo com isso, vigora o princípio da responsabilidade coletiva e pelo
resultado, e não a responsabilidade individual e por culpa.
A consequência antijurídica não se dirige contra – como órgão de um
Estado singular ativo – a pessoa que causou a situação de fato antijurídica,
intencionalmente ou por negligência, mas contra outros, que não tinham
participado nela de modo algum mas não puderam impedi-la.
Represália e guerra não atingem os órgãos estatais que por ação ou
omissão, imputáveis ao Estado, ofenderam o direito internacional, mas a
massa de pessoas que formam o povo ou a um órgão especial, o exército, se é
que este possa ser separado do povo, dada a técnica bélica de hoje.

c) Obrigação e autorização meramente mediatos, através do direito


internacional
O direito internacional obriga e autoriza os Estados. Isso não significa –
como quase sempre se aceita – que não obrigue ou autorize os indivíduos.
Como todo direito é essencialmente a regulamentação da conduta humana,
um dever jurídico ou uma autorização não podem ter outro conteúdo senão a
conduta humana (outras situações de fato só com relação à conduta humana);
e isso não pode ser senão a conduta de indivíduos.
Que o direito internacional obriga e autoriza Estados significa apenas que
não obriga ou autoriza imediatamente os indivíduos, mas apenas de mediato
os obriga e autoriza, como ordenamento jurídico estatal singular (cuja
expressão personificadora é apenas o “Estado”).
A obrigação e autorização do Estado pelo direito internacional tem o
mesmo caráter que a obrigação e autorização de uma pessoa jurídica através
do ordenamento jurídico estatal singular. O Estado é uma pessoa jurídica e as
normas do direito internacional, que obrigam e autorizam os Estados como
tais, são normas incompletas e que necessitam de complemento. Elas apenas
determinam não o elemento pessoal da conduta humana, que devem ter,
necessariamente, como conteúdo, mas o que deve ser feito ou omitido, mas
não quem, isto é, qual o indivíduo humano que deve praticar a ação ou
omissão prescritas. A determinação desse indivíduo o direito internacional
deixa a cargo do ordenamento jurídico estatal singular.
Nessa delegação, esgota-se o sentido jurídico daquela particularidade do
direito internacional, segundo a qual “só obriga ou autoriza Estados” ou
segundo a qual só os “Estados são sujeitos de direito internacional”. O que se
expressa com isso é apenas a obrigação e autorização dos indivíduos pelo
direito internacional, de modo meramente mediato e por meio do
ordenamento jurídico estatal singular.
Por outro lado, essa apreensão apenas mediata da conduta humana
individual pelo direito internacional é somente a regra. Existem, nesse
sentido, tanto no âmbito do direito internacional consuetudinário, como no
Direito Internacional contratual, exceções muito importantes, casos em que a
norma de direito internacional obriga e autoriza imediatamente os indivíduos,
de modo que dessa norma não só surge, de imediato, o que deve ser feito ou
omitido, como também qual o ser humano que deve seguir a conduta de agir
ou omitir, pelo Direito Internacional; casos, então, em que indivíduos se
apresentam como sujeitos de Direito Internacional.
Na mesma medida em que o direito internacional se aprofunda, com sua
regulamentação, em matérias que, até então, eram normatizadas apenas pelo
ordenamento jurídico estatal singular, deve fortalecer sua tendência à
imediata autorização e obrigação dos indivíduos. Com isso, porém, em lugar
da responsabilidade individual pela culpa, deve entrar a responsabilidade
coletiva pelo resultado.
De mãos dadas com essa tendência – o que atualmente só se observa
entre comunidades particulares de direito internacional – caminha a formação
de órgãos centrais para a produção e execução de normas jurídicas. Essa
centralização se refere – do mesmo modo como na evolução do ordenamento
jurídico estatal singular – em primeiro lugar à jurisdição; ela objetiva a
formação de uma jurisdição internacional.

50. UNIDADE DO DIREITO INTERNACIONAL E DO DIREITO ESTATAL


SINGULAR

a) Unidade do objeto como postulado gnoseológico


Todo o movimento técnico-jurídico aqui apontado tem como última
tendência apagar a linha fronteiriça entre o direito internacional e o
ordenamento jurídico estatal singular, de modo que apareça, como meta final
da evolução jurídica real, dirigida à crescente centralização da unidade
organizada de uma comunidade universal de direito mundial, ou seja, a
formação de um Estado mundial. Atualmente, porém, não se pode falar disso
ainda. Somente existe uma unidade gnoseológica de todo o direito; isto é,
pode-se conceituar o direito internacional juntamente com os ordenamentos
jurídicos estatais singulares do mesmo modo que um sistema unitário de
normas, como se costuma considerar o ordenamento jurídico estatal singular.
A isso se opõe o entendimento tradicional, que pretende ver, no direito
internacional e no direito estatal singular, dois diferentes sistemas
normativos, totalmente independentes um do outro, reciprocamente isolados,
uma vez que as duas normas fundamentais repousam em sistemas normativos
diversos.
Esta dualística – ou, voltando à pluralidade dos ordenamentos jurídicos
estatais singulares, melhor denominá-la “pluralística” – construção é, sem
dúvida, logicamente insustentável, quando também as normas de direito
internacional, assim como as normas dos ordenamentos jurídicos estatais
singulares válidos, devem ser consideradas normas jurídicas.
Nesta ótica, aceita também pela doutrina dualista, está a exigência da
teoria gnoseológica de considerar todo o direito num só e mesmo sistema,
isto é, do mesmo ponto de vista como um todo fechado.
Enquanto a ciência jurídica pretende conceituar como direito, isto é,
como categoria de norma jurídica válida, o material caracterizado como
direito internacional – assim como a ciência da natureza – do mesmo modo
que se oferece como direito estatal singular a tarefa de apresentar seu objeto
como unidade. O critério negativo dessa unidade é a ausência de contradição.
Este princípio lógico vale também para o conhecimento no âmbito das
normas.
Não se pode afirmar a validade de uma norma com o conteúdo a, e ao
mesmo tempo com o conteúdo não-a. Na verdade, pode-se afirmar – e deve-
se fazê-lo, em vista dos fatos – que há normas de conteúdo excludente umas
de outras, realmente existentes e representadas pelos seus destinatários,
cumpridas ou não cumpridas. Pois essa afirmação – referente a fatos naturais
– contém menos uma contradição lógica do que uma verificação da eficácia
de duas forças, dirigidas uma contra a outra. Mas não se pode afirmar que
duas normas, com conteúdo lógico excludente entre si, tenham a mesma
validade, isto é, que a deva ser, ao mesmo tempo, não-a, como também não
se pode firmar que a seja também não-a.
Se se oferecem ao conhecimento jurídico normas jurídicas que, além
disso, se contradizem no conteúdo, esforçam-se em resolver essa contradição,
por meio de uma interpretação razoável, como mera contradição aparente. Se
isso não for conseguido, elimina-se o material interpretado como algo sem
sentido e, por essa razão, não existente na esfera jurídica, que é uma esfera de
sentido.
Com isso só se comprova uma tendência efetiva e imanente do
conhecimento jurídico. Na exposição do problema da interpretação esse
processo já foi discutido.

b) Relação recíproca de dois sistemas normativos


Visto que o jurista considera o direito internacional como o ordenamento
jurídico estatal singular, complexo de normas válidas, isto é, normas
obrigatórias e não – ou não apenas – conglomerado de fatos naturais, nem
pode concebê-los senão como esses complexos de normas num sistema isento
de contradição. Isso é possível, principalmente, de duas maneiras.
Dois complexos de normas – na aparência – diversos formam um sistema
unitário, de modo que um dos ordenamentos se apresenta subordinado ao
outro, ao encontrar neste seu fundamento de validade e, com isso, sua –
relativa – norma fundamental, a determinação fundamental de sua produção.
Ou de modo que ambos os ordenamentos aparecem igualmente ordenados, ou
seja, delimitados entre si, em seu âmbito de validade. Isso supõe, então, um
terceiro ordenamento superior, que determina a produção dos outros dois,
delimita-os reciprocamente em seu âmbito de validade e, assim, coordena-os
em primeiro lugar.
O âmbito de validade é – como se deduz do que foi dito acima – a
determinação de um elemento de conteúdo da norma inferior pela superior. A
determinação do processo de produção pode desenvolver-se de modo direto
ou indireto, conforme a norma superior determine o próprio processo em que
será produzida a inferior; ou quando se limita a estabelecer uma instância que
tem poder para produzir uma norma, à sua discrição, com validade para
determinado âmbito. Em tal caso, fala-se em delegação; e a unidade em que o
ordenamento superior está ligado ao inferior tem o caráter de um nexo de
delegação.
Decorre daí que a relação do ordenamento superior com vários
ordenamentos inferiores por ele delegados deve ser, ao mesmo tempo, a
relação do ordenamento superior total com os ordenamentos parciais por ele
abrangidos. Desde que a norma fundamental – relativa – do ordenamento
inferior constitui parte integrante do superior, pode-se pensar naquele como
conteúdo deste no ordenamento total.
A norma fundamental do ordenamento superior – como o grau mais alto
do ordenamento total – representa o fundamento mais alto de validade de
todas as normas – e também dos ordenamentos inferiores.
Se o direito internacional e o direito estatal singular constituem um
sistema unitário, sua relação recíproca deve ser então estruturada de uma das
duas formas aqui desenvolvidas.

c) Construção monista ou dualista


Contra uma construção monista, que para a Teoria Pura do Direito é
apenas uma consequência gnoseológica, argumenta-se o seguinte: que a
independência recíproca do direito internacional e do ordenamento jurídico
estatal singular resulta da possibilidade de contradições insuperáveis entre os
conteúdos de ambos.
Se essa afirmação estiver certa, será totalmente impossível afirmar que o
ordenamento jurídico estatal singular e o direito internacional e ainda dois
ordenamentos jurídicos estatais, lado a lado, sejam sistemas normativos
válidos, ao mesmo tempo.
É ainda menos possível admitir que a moral e o direito positivo, este
totalmente independente daquela, sejam simultaneamente válidos. Assim
como o jurista, quando opera com as proposições do direito positivo, como
normas válidas, deve abstrair da moral, enquanto esta se coloca em
contradição com o direito positivo, a construção dualista que deve limitar-se a
considerar um único ordenamento jurídico estatal próprio – cuja unidade
deve ser aceita como evidente – como o exclusivo sistema válido de normas
jurídicas; por outro lado, os outros ordenamentos jurídicos estatais singulares
e, em especial, o direito internacional – mais exatamente, o material assim
designado – não na categoria de norma válida, mas apenas em sua faticidade
e, portanto, não propriamente como direito, não em sua normatividade, que
seu próprio ordenamento jurídico estatal rotula como direito.
Este é o ponto de vista do homem primitivo, que com maior clareza
admite sua comunidade como comunidade jurídica e apenas o ordenamento
constituído por ela, como ordenamento jurídico; e de acordo com isso,
considera todos os que não pertencem à sua comunidade como “bárbaros”
sem lei e o ordenamento sob o qual vivem, se é que existe, não como
verdadeiro “direito”, não como seu direito próprio e equivalente ao seu. Isso
é um conceito para o qual não pode haver um autêntico direito internacional.
Esse até hoje ainda não foi superado. Vive – de certo modo – na
representação de que só o ordenamento estatal “direito” é direito em sentido
pleno e verdadeiro da palavra. E é também o ponto de partida – geralmente
inconsciente – da teoria dualista.

d) Primado do ordenamento jurídico estatal


Já que não é possível uma negação direta do caráter normativo não só do
direito internacional como também dos outros ordenamentos estatais, a
construção dualista, para fundamentar a natureza jurídica dos complexos
normativos do ordenamento jurídico estatal singular, deve apelar para uma
ficção. É a teoria segundo a qual se o direito internacional for obrigatório
para o próprio Estado e se os outros Estados forem considerados
comunidades jurídicas pelo próprio Estado, devem ser “reconhecidos” por
este como tais.
O fundamento da validade do direito internacional, assim como a dos
outros ordenamentos jurídicos estatais singulares, é deste modo assentado no
ordenamento jurídico estatal próprio, na “vontade” do próprio Estado como o
ser jurídico mais alto na esfera social.
O direito internacional, que só vale enquanto um Estado o reconhece
como obrigatório, não aparece, segundo este, como um ordenamento jurídico
supraestatal, e também como um ordenamento estatal singular, seu
ordenamento isolado, mas enquanto direito, como parte constitutiva do
ordenamento estatal próprio, como direito externo do Estado, isto é, como o
conjunto de todas as normas do ordenamento jurídico estatal, que regulam as
relações com outros Estados e que são aceitas por via do “reconhecimento”.
Como a existência jurídica dos outros Estados repousa no reconhecimento
pelo próprio, deve-se representar esse ordenamento jurídico como superior a
outros ordenamentos jurídicos estatais.
É como se o ordenamento jurídico estatal próprio, que aceitou o direito
internacional, o delegasse aos outros Estados, isto é, às autoridades
produtoras de direito, aqui consideradas para o âmbito ao qual foi delegado.
Este é o sentido justeórico da doutrina de que o outro Estado, como tal, isto é,
como ordenamento jurídico obrigatório, também do ponto de vista do Estado
próprio, possa valer e ser por ele reconhecido.
A teoria do reconhecimento estabelece um nexo de delegação entre o
ponto de partida da construção dos ordenamentos jurídicos estatais que se
formam e todos os demais ordenamentos jurídicos estatais singulares. Mas
deste modo fica restaurada a unidade da imagem jurídica mundial, e
precisamente através de uma tendência imanente ao conhecimento jurídico,
que se impõe também contra a vontade de seus portadores. Na verdade, essa
unidade não é restaurada sob o fundamento do primado do ordenamento do
direito internacional, mas sob o fundamento do primado do ordenamento
jurídico estatal singular.
Pela necessidade de conceber-se não só o ordenamento jurídico estatal
singular como também os outros e, principalmente, o direito internacional
como ordenamento jurídico válido, a construção dualista é levada a ser
suprimida, por si mesma, pelo caminho da teoria do reconhecimento que lhe
é indispensável.
Nas consequências, nunca bem examinadas por seus representantes,
percebe-se claramente a intenção política que constitui o fundamento desse
conceito: é a manutenção da representação da soberania do Estado de que o
Estado é a absoluta representação da mais alta comunidade jurídica. Essa
soberania só pode ser, naturalmente, da do próprio Estado, que constitui o
ponto de partida de toda a construção, pois a soberania desse Estado singular
é, nesse sentido original, incompatível com a soberania de outro Estado.
O dogma da soberania estatal, com o primado do ordenamento jurídico
estatal singular que dela resulta, corresponde inteiramente àquele conceito
subjetivo que, em sua consequência última, cai na ótica do solipsismo, que
quer conceituar o indivíduo singular, ou seja, o “eu”, como centro do mundo,
e por isso, este último como vontade e representação do “eu”. Ao radical
subjetivismo estatal se opõe o primado do ordenamento jurídico
internacional, como expressão de uma ótica especificamente objetiva do
mundo e do direito.

e) Negação do direito internacional


O subjetivismo que, para conceber o mundo, parte do próprio “eu” e que,
apesar de que este “eu”, estendendo-se até o Universo, não pode chegar por
sobre o próprio “eu” soberano, até um mundo objetivo, é incapaz de conceber
outro sujeito com a mesma pretensão à soberania, o “não-eu”, que se
apresenta como um ser da mesma natureza que o próprio “eu”, ao “tu”, que
também quer ser concebido como “eu”.
Assim é também a construção monista em que se converte o dualismo,
por sua tendência em sustentar o dogma da soberania por meio da teoria do
reconhecimento: o primado do ordenamento jurídico estatal próprio é
totalmente incompatível com a representação de uma pluralidade de Estados
equiparados, juridicamente delimitados entre si, em seu âmbito de validade.
O primado do ordenamento jurídico estatal próprio significa, pois, o
objetivo final não só da negação da soberania de todos os outros Estados e,
com isso, sua existência jurídica como Estados, no sentido de dogma de
soberania, mas também a negação do direito internacional.
Este deve experimentar, através da representação de sua admissão no
ordenamento jurídico estatal próprio, uma desnaturação completa, pois dentro
dos limites de um ordenamento jurídico estatal singular não mais pode
exercer sua função essencial, que é a equiparação de todos os Estados.
As normas que regulam a conduta do próprio Estado, o direito estatal
externo, que se tornou direito internacional, tem fundamento de validade na
Constituição do Estado, que acolhe o direito internacional. Sua validade pode
ser revogada, num caso extremo, conforme as regras dessa Constituição, por
uma mudança constitucional; mas com isso também será revogado o
reconhecimento dos outros Estados, que repousa na natureza jurídica de seu
ordenamento.
A teoria do primado do ordenamento jurídico estatal próprio retorna, em
sua consequência última, ao ponto de partida original: é apenas o
ordenamento jurídico estatal próprio que se admite como direito válido.
Ao lado da natureza ideológica do direito, o significado de certas
situações fáticas – como foi mostrado anteriormente –, o resultado de uma
interpretação apenas possível, que só acontece mediante o pressuposto da
norma fundamental, mas não como a interpretação necessária, também não se
pode negar a possibilidade teórica de um ponto de vista do qual só o
ordenamento do Estado próprio e o que dele se pode entender, deve ser
considerado direito.
Se se achar, porém, que devem ser evitadas as consequências que advêm
do primado do ordenamento jurídico estatal próprio, é então indispensável a
representação do primado do ordenamento jurídico internacional.

f) Dissolução da “contradição” entre direito internacional e direito


estatal singular
Na ficção empregada por necessidade pela construção dualista de que a
validade do direito internacional para o Estado singular repousa num
reconhecimento por parte daquele ocorre a supressão da principal objeção
que se faz à construção monista das relações do direito internacional e do
direito estatal singular e a possibilidade de contradições entre ambos.
Como podem essas ser possíveis quando é a mesma “vontade” que
reconhece o direito internacional e que se apresenta como ordenamento
jurídico estatal singular, principalmente quando se pensa que esta
denominada “vontade” do Estado é a expressão antropomórfica do “dever
ser” das normas? Aliás, o fato denominado “contradição” entre direito
internacional e direito estatal singular nada tem a ver com uma contradição
lógica. É apenas um caso especial de conflito, já antes examinado, entre uma
norma de grau mais alto e uma norma de grau mais baixo.
O que se afirma ser uma contradição entre o direito internacional e o
direito estatal singular, o fato, por exemplo, de a lei de um Estado estar em
contradição com um tratado de direito internacional, que um Estado firmou
com outro, sem que com isso fosse atingida a validade da norma estatal e da
norma de direito internacional, esse fato encontra completa analogia dentro
do ordenamento jurídico estatal singular, sem que, de algum modo, sua
unidade seja posta em dúvida.
Também a lei inconstitucional é uma lei válida e assim permanece, sem
que a Constituição seja considerada por ela revogada ou modificada.
Também a sentença judicial ilegal é norma válida e permanece vigente até ser
revogada por outra decisão.
Que a “antinormatividade” de uma norma não tem uma contradição
lógica entre uma norma inferior e uma superior, mas apenas a anulabilidade
da norma inferior ou a punibilidade de um órgão responsável, já foi
esclarecido anteriormente. Deve-se notar, no caso, que o estabelecimento de
uma norma “antinormativa” pode ser uma situação de fato antijurídica, a que
o ordenamento jurídico liga seu ato coercitivo como consequência
antijurídica.
A situação de fato antijurídica, como tal, não se encontra em nenhuma
contradição lógica em relação à norma estabelecida, como já foi dito antes.
Não existe, então, nenhuma dificuldade lógica no fato de que, através de um
ato, qualificado como antijurídico, se produzam normas jurídicas válidas.
O estabelecimento da norma pode estar ligado a consequências
antijurídicas, mas a norma assim estabelecida pode ser válida; válida não só
no sentido de que permanecerá válida até sua revogação, por um ato jurídico,
como também no sentido de que não pode ser absolutamente revogada, a
título de sua deficiência.
Esse é o caso da relação entre direito internacional e direito estatal
singular. O sentido em que o direito internacional obriga o Estado a quaisquer
atos e, em especial, ao estabelecimento de normas de conteúdo determinado,
é apenas porque o ato oposto ou o estabelecimento de uma norma estatal de
conteúdo oposto é a condição a que o direito internacional liga sua sanção
específica, a consequência da represália ou da guerra.
A norma do ordenamento jurídico estatal singular, produzida sob a
“violação” do direito internacional, permanece válida mesmo do ponto de
vista do direito internacional, pois este não prevê nenhum processo em que a
norma do ordenamento jurídico estatal singular possa ser “contrária ao direito
internacional”. Essa possibilidade só é dada no âmbito do direito
internacional particular.
A relação entre a norma de direito internacional e a denominada norma
contrária ao direito internacional do ordenamento jurídico estatal singular é a
mesma que se estabelece entre uma Constituição estatal singular que – por
exemplo, em seu catálogo de direitos fundamentais – determina o conteúdo
de leis futuras, e uma lei que viola direitos fundamentais e, por isso,
inconstitucional; pressupõe-se que essa Constituição, como ocorre em geral,
não estabelece um processo em que podem ser revogadas leis
inconstitucionais sob o fundamento de sua inconstitucionalidade, mas limita-
se à possibilidade de responsabilizar pessoalmente certos órgãos por causa da
aprovação das denominadas leis inconstitucionais.
A determinação do conteúdo do ordenamento jurídico estatal singular
pelo direito internacional resulta exatamente da determinação do conteúdo de
leis futuras por uma Constituição que não estabelece uma jurisdição
constitucional em sentido alternativo.
A possibilidade de um conteúdo diferente do prescrito não será excluída e
isso porque – mesmo que seja em segunda linha – será delegada. Sua
desqualificação resulta somente do fato de que o estabelecimento de tais
normas não prejudica sua validade, qualificada como situação de fato
antijurídica.
Nem essa nem a norma por ela produzida, denominada “contrária ao
direito internacional” está em contradição lógica com o direito internacional.
À aceitação de uma unidade do direito internacional e do direito estatal
singular, por esse lado, nada se opõe.

g) Primado do ordenamento jurídico do direito internacional


Essa unidade não se confirma apenas no sentido negativo da ausência de
contradição lógica entre ambos os complexos de normas, mas também no
sentido positivo. E mesmo quando – como se faz em geral e em particular,
também por parte do representante da construção dualista – se aceita que os
Estados ou, sem expressão personificada, que os ordenamentos jurídicos
estatais singulares estão coordenados entre si e delimitados juridicamente, em
seus âmbitos de validade, especialmente os territoriais. Isso só é possível se
sobre os ordenamentos jurídicos estatais singulares se estabelecer um
ordenamento jurídico delimitado em seu âmbito de validade coordenador,
que só pode ser o ordenamento jurídico do direito internacional e, de fato, o
é, pois são as normas do direito internacional que exercem essas funções.
Uma proposição jurídica, já antes mencionada, reconhecida igualmente
na teoria e na prática do direito internacional geral, determina (expressa de
maneira costumeira) que um governo que chegou ao poder por meio de uma
revolução ou de um golpe de Estado será considerado legítimo no sentido do
direito internacional se estiver em condições de prestar contínua obediência a
normas por ele editadas. Isso, porém, significa que um ordenamento
coercitivo imediato, isto é, ordenamento jurídico legítimo, ou seja,
obrigatório, em outras palavras, que a comunidade constituída por esse
ordenamento vale como Estado, no sentido do direito internacional,
exatamente para aquele âmbito, ao qual esse ordenamento corresponde em
geral.
Esse princípio da efetividade, que é uma proposição jurídica fundamental
do direito internacional positivo, significa, na aplicação aos ordenamentos
jurídicos estatais singulares, uma delegação do direito internacional.
Se o estabelecimento de um poder produtor de normas, cujo ordenamento
é de eficácia duradoura para determinado âmbito, representa, do ponto de
vista jurídico-positivo, a origem de uma autoridade instauradora de direito,
isso se deve a essa qualidade, que lhe é conferida pelo que o direito
internacional significa, já que o autoriza para a instituição do direito. Com
isso, o direito internacional determina, ao mesmo tempo, o âmbito espacial e
temporal de validade do ordenamento jurídico estatal singular, assim
constituído. O território do Estado singular, que é o espaço de validade do
ordenamento jurídico estatal singular, estende-se – através do direito
internacional – até onde é válido esse ordenamento. E o direito internacional
garante esse âmbito de validade territorial ao ligar suas específicas
consequências jurídicas a uma engrenagem nessa esfera protegida por ele.
A delimitação consiste – excluídas certas exceções – essencialmente no
fato de que todo Estado só pode aparecer nos limites de sua própria qualidade
de aparato coercitivo, isto é, dentro de seu próprio território garantido pelo
direito internacional; ou, expressando isso sem imagens, que o ordenamento
jurídico estatal singular só pode estabelecer seus atos coercitivos específicos
dentro do espaço de validade que lhe é concedido pelo direito internacional, e
que só esses atos podem ser realizados sem violação do direito internacional.
Desta maneira, torna-se juridicamente possível a proximidade entre si de
vários Estados, ou seja, de uma pluralidade de ordenamentos coercitivos. Mas
não só a contiguidade no espaço, mas também a proximidade no tempo, isto
é, o âmbito de validade temporal dos ordenamentos jurídicos estatais
singulares será determinado pelo direito internacional. O princípio jurídico da
efetividade rege o início e o fim da validade jurídica do ordenamento jurídico
estatal.
A origem e o declínio do Estado, vistos sob esta ótica, apresentam-se
também como fenômenos jurídicos, como a criação e a dissolução de uma
pessoa jurídica na moldura do direito estatal interno.
Também relativamente ao âmbito de validade material do ordenamento
jurídico estatal singular o direito internacional é significativo. Suas normas,
especialmente as produzidas através dos tratados de direito internacional,
podem abranger todos os objetos possíveis e, por isso, também aqueles que
até então eram regulados por ordenamentos jurídicos estatais singulares, que
limitam o âmbito de validade material destes últimos.
Os Estados singulares permanecem também sob a competência do direito
internacional, para normatizar, basicamente, tudo, mas conservam essa
competência apenas até o direito internacional se apoderar de um objeto,
retirando-o de uma livre regulamentação pelo ordenamento jurídico estatal
singular. Este já não possui mais nenhum grau de competência se se
considerar o direito internacional como ordenamento jurídico supraestatal.
Mas tem a pretensão da totalidade, restrita apenas pelo direito internacional,
ou seja, não limitada de antemão por este, a determinados objetos, como
outros ordenamentos ou comunidades jurídicas imediatas de direito
internacional e constituídos por tratados internacionais.

h) O Estado como órgão da comunidade de direito internacional


O Estado, cujo conceito pode ser doravante determinado pelo
ordenamento jurídico de direito internacional, é, pois, um ordenamento
parcial jurídico imediato, relativamente centralizado, de âmbito de validade
territorial e temporal limitado pelo direito internacional, e com respeito ao
âmbito de validade material, apenas restrito pela resssalva da pretensão de
totalidade do direito internacional.
Na apresentação personificadora costumeira, ordenamento jurídico
parcial, isto é, o Estado singular, pode ser designado como órgão da
comunidade de direito internacional. Somente como tal o Estado singular
participa da produção do direito internacional. Essa ótica é de significado
especial para a produção contratual do direito internacional, que na opinião
de muitos autores é o único caminho pelo qual o direito internacional pode
ser modificado e aperfeiçoado.
De acordo com isso, os autores supõem que a produção jurídica habitual,
mediante a qual é criado principalmente o direito internacional geral, é um
tratado tácito; e isso somente para manter o dogma da soberania, para poder
atribuir a validade do direito internacional à vontade livre do Estado singular.
Esta construção repousa, porém, num autoengano. Se o tratado for
considerado como situação de fato produtora de direito, a norma produzida
por ele não só deve participar da conclusão do tratado com um, mas com
ambos os Estados, coordenados entre si por este tratado, o que significa –
embora só mediatamente – obrigar e autorizar seus órgãos e súditos,
devendo-se então produzir uma norma que estabeleça o tratado estatal como
situação de fato produtora de direito. E esta norma não pode ser a norma de
um ordenamento jurídico estatal singular, só pode ser elemento de um mais
alto, acima do ordenamento jurídico estatal singular, como a primeira
coordenadora do ordenamento jurídico.
Por meio da norma de um ordenamento jurídico estatal singular – ou
expresso em sentido figurado: pela vontade do Estado singular – não pode
um outro Estado, ou seja, órgãos e súditos de outro Estado, ser obrigados e
autorizados. Se os Estados estão equiparados, o Estado só pode obrigar e
autorizar seus próprios súditos.
A competência de um Estado não se estende além do âmbito de validade
do ordenamento jurídico estatal singular. E como a competência de dois
Estados não pode ser somada como grandezas matemáticas, dois Estados
juntos também não têm condições – sem a delegação de um ordenamento
superior – de produzir normas que, como a norma produzida por tratado
estatal, tenham validade no âmbito de ambos.
Apenas do ponto de vista do direito internacional geral pode a produção
de normas de direito internacional ser teoricamente concebida, pois é o
direito internacional geral que regula essa produção jurídica ao qualificar
especificamente o tratado estatal como método de produção jurídica, isto é,
de obrigar os Estados a se conduzir de acordo com o tratado.
Vistos sob esse aspecto, os representantes de ambos os Estados
contratantes que participam da conclusão de um tratado formam um órgão
composto, porém unitário. É um órgão que, através da comunidade dos
Estados, é constituído pelo direito Internacional geral e não, talvez, um órgão
comum a ambos os Estados.
Como é o direito internacional que delega, no ordenamento jurídico
estatal singular, a determinação do indivíduo que externou a vontade do
Estado de firmar tratados, em nome deste, são os representantes de fato dos
Estados contratantes que intervêm na conclusão dos tratados e que são, em
primeiro lugar, enquanto órgãos parciais do órgão coletivo que produz a
norma contratual, órgãos da comunidade de direito internacional e, em
segundo lugar, é que cada um desses órgãos parciais é órgão de seu próprio
Estado.
Na verdade, não são os Estados singulares, como se costuma acentuar,
sob a influência do dogma da soberania, mas a comunidade dos Estados ou,
mais exatamente, a comunidade de direito internacional que produz o direito
originado de tratados internacionais; assim como é o Estado, que por meio de
órgãos estatais produz o direito estatal.
O Estado como órgão do direito internacional é apenas uma expressão
figurada para o ordenamento jurídico estatal singular que, juntamente com o
ordenamento jurídico de direito internacional e, por meio deste, encontra-se
com todos os demais ordenamentos jurídicos estatais singulares, naquela
delegação conjunta, cuja estrutura foi anteriormente descrita.
Tal expressão apresenta um significado totalmente positivo da unidade
dos sistemas jurídicos universais. Trata-se – para evitar equívocos, deve-se
acentuar isso sempre com ênfase – de unidade gnoseológica e não de
organização. Em sua estrutura, o Estado singular, como entidade jurídica, está
desligado do absolutismo em que o prende o dogma da soberania.
A Teoria Pura do Direito relativiza o Estado. Reconhece-o como grau
jurídico intermediário e consegue assim seu entendimento de que, desde a
comunidade de direito internacional universal, que abrange todos os Estados
e as comunidades jurídicas neles incluídas, e numa sequência contínua
conduz, gradualmente, as formações jurídicas transitórias umas às outras.

i) A Teoria Pura do Direito e a evolução do direito mundial


A dissolução teórica do dogma da soberania desse instrumento principal
da ideologia imperialista, dirigida contra o direito internacional, é uma das
mais importantes contribuições da Teoria Pura do Direito. Embora de
maneira alguma o tenha obtido com intenção política, pode, não obstante, ter
efeitos políticos, pois remove um obstáculo político que se opõe, de modo
quase intransponível, a todo aperfeiçoamento técnico do direito internacional,
a toda tentativa de uma centralização progressiva do ordenamento jurídico
internacional.
A Teoria Pura do Direito resiste a uma argumentação que esclarece uma
evolução desse tipo como incompatível com a natureza do direito
internacional ou com a essência do Estado, ou seja, com tudo o que deve
expressar o conceito de soberania. Ela desmascara a tentativa de dar, com o
auxílio desse conceito de argumento apenas político, a aparência de um
argumento lógico, que não pode ser refutado a não ser com um argumento
igualmente contrário, cuja natureza fosse irrefutável.
Exatamente por isso facilita uma tímida evolução político-jurídica através
de representações falsas, sem justificá-la ou postulá-la, pois como teoria lhe
permanece completamente indiferente.
A comprovação de tal resultado possível não pode prejudicar a pureza da
Teoria. Também a exata ciência natural, e, somente ela, torna possível, sem
se propor a isso, e justamente porque não tem por objetivo senão o
conhecimento puro, o progresso da técnica.
Nesse sentido, pode-se dizer que a Teoria Pura do Direito, ao assegurar a
unidade gnoseológica a todo o direito pela relativização do conceito de
Estado, cria um pressuposto significativo para a unidade da organização de
um ordenamento jurídico universal centralizado.
RT Textos Fundamentais 5

5. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito.


Hans Kelsen. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 9. ed. rev. da
tradução. São Paulo: RT, 2013.
Obras publicadas nesta Série

1. Dos delitos e das penas. Cesare Beccaria. Tradução de J. Cretella Jr. e


Agnes Cretella. 5. ed. rev. da tradução. São Paulo: RT, 2011.
2. O príncipe: com as notas de Napoleão Bonaparte. Niccolò Machiavelli.
Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 5. ed. rev. da tradução. São
Paulo: RT, 2009.
3. A luta pelo direito. Rudolf von Ihering. Tradução de J. Cretella Jr. e
Agnes Cretella. 6. ed. rev. da tradução. São Paulo: RT, 2010.
4. Institutas do Imperador Justiniano. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. 2. ed. da tradução. São Paulo: RT, 2005.
6. Do contrato social. J. J. Rousseau. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. 3. ed. rev. da tradução. São Paulo: RT, 2011.
7. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito e as instituições da
Grécia e de Roma. Fustel de Coulanges. Tradução de J. Cretella Jr. e
Agnes Cretella. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: RT, 2011.
8. Discurso sobre a servidão voluntária. Étienne de La Boétie. Tradução
de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo:
RT, 2009.
9. Institutas do Jurisconsulto Gaio. Gaius. Tradução J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. São Paulo: RT, 2004.
10. Curso de direito administrativo comparado. Jean Rivero. Tradução de J.
Cretella Jr. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: RT, 2004.
11. Espadas e símbolos: a técnica da soberania. James Marshall. Tradução
de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 2. ed. da tradução. São Paulo: RT,
2008.
Diagramação eletrônica:
Editora Revista dos Tribunais Ltda., CNPJ 60.501.293/0001-12.

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