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V D I V M
TEMAS FILOSÓFICOS, JURÍDICOS E SOCIAIS

HANS KELSEN
PROFESSOR DE DIREITO PÚBLICO
DA UNIVERSIDADE DE VIENA

TEORIA GERAL
DO ESTADO
TRADUÇÃO DE

FERNANDO DE MIRANDA
LICENCIADO EM DIREITO
PELA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

1938
LIVRARIA ACADÊMICA

SARAIVA & C.A — editores


15, Largo do Ouvidor
S. PAULO
COLECÇÃO STVDIVM

VOLUMES PUBLICADOS;

1 — O Advogado, de Henri-Robert, tradução e prefácio


de J. Pinto Loureiro.
2 — O Magistrado, de Pierre Bouchardon, tradução e pre­
fácio de J. Pinto Loureiro.
*3"— Organização do Estado Novo Italiano, de G. Roux,
tradução de Fernando Miranda.
4 — O Médico, de Maurice de Fleury, tradução e prefácio
do Prof. A. da Rocha Brito.
5 — 0 Homem de Ciência, do Prof. Carlos Richet, tradu­
ção de Maria d’Antas de Campos Tavares, revisão e pre­
fácio do Dr. Agostinho de Campos.
6 — 0 Padre, de Mgr. E. Julien, tradução do P.e Luiz Lopes
de Mello.
7 — A Filosofia no Século XX, de Heinz Heimsoeth, tra­
dução do Dr. Cabral de Moncada.
Oscar d’Alva Filho
Ns de Tombo

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IMPRENSA PORTUGUESA
108 — Rua Formosa — 110
----------- PORTO -----------
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INTRODUÇÃO

Sob a designação de « Teoria Geral do Estado >


é costume englobar uma grande quantidade de pro­
blemas.
Em primeiro lugar, o problema da natureza do
Estado, natureza que resulta das suas relações com
a sociedade, a moral em geral e a ciência política
em particular, e também — ponto muito importante
— com o direito. Depois, a teoria dos elementos do
Estado: poder público, território, povo. Em seguida,
a teoria das funções ou poderes do Estado: legis­
lação, jurisdição, administração;— a dos órgãos do
Estado; — a das formas do Estado (monarquia e
república). E é costume terminar pela teoria das
uniões de Estados.
A « Teoria Geral do Estado» merece, realmente,
êsse nome? Há razões que levem a considerá-la uma
dÀsciplina autônoma? A resposta afirmativa resulta
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* evidente do facto dos seus problemas constituírem


• um sistema completo e necessário. Nunca, de resto,
í até hoje, se salientou a conexão dêstes problemas
com a suficiente clareza.
i Ora, a « Teoria Geral do Estado» só deixará de
t nos aparecer como um agregado, mais ou menos
■ arbitrário, de questões heteróclitas, só demonstrará a
sua unidade científica, quando conseguir estudar e
resolver todos os problemas reunidos sob o seu nome,
por intermédio de um só e único principio funda­
mental.
E o que vamos tentar fazer nas páginas que se
' segúem.
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CAPITULO I

O Estado

Os dois sentidos da palavra ordem; — o Estado


— ordem normativa

0 Estado é uma ordem da conduta humana.


Quando dizemos que o Estado é um «agrupa­
mento » ou uma « associação » de indivíduos, suben­
tende-se que êsse agrupamento ou essa associação,
que êsse laço entre os homens a que chamamos
Estado, tem o seu fundamento, ou melhor, con­
siste numa certa regulamentação, na subordinação
das relações dos homens entre si a uma certa
ordem.
Mas a palavra «ordem» emprega-se em dois
sentidos diferentes: ao falar em « ordem da natu­
reza», entendemos, por esta expressão, que os cor­
pos se conformam, de-facto, com as leis naturais,
e o fazem em virtude de uma necessidade. Esta
necessidade é a do princípio geral de causalidade,
8 TEORIA GERAL DQ ESTADO

em relação ao qual uma lei natural, qualquer que


ela seja, é sempre uma lei especial. Por conse­
quência, é impossível que, na natureza, um corpo
«infrinja» ou «viole», em qualquer tempo, uma
i lei natural. Esta idea ó absolutamente inconcebível.
| | Se, numa determinada hipótese, um corpo se com­
porta de maneira diversa da prevista numa pre­
tensa lei natural, isso prova que a ciência formu­
lou essa lei de maneira inexacta e que, portanto,
é preciso rectificá-la por forma que o facto novo
. apareça como regular./ A ordem da natureza é,
simplesmente, o conjunto, o sistema das leis
i naturais./
Mas a palavra «ordem» pode ser empregada
t nurnjputro sentido e designar um sistema de nor­
mas, de regras, e não de leis naturais. Uma norma
, ou regra não exprime o que, na realidade, se passa
e deve, necessariamente e sem excepção, passar-se;
uma norma determina aquilo que, em direito,

( deveria sempre passar-se, mesmo que, por vezes,


aconteça que assim não suceda na realidade.
i ------ ■> Uma ordem normativa só pode, razoavelmente,
i aplicar-se aos factos da conduta humana ou a
I outras categorias de factos que os condicionem ou
j dêles resultem. De resto, é evidente que os factos
de conduta humana fazem, igualmente, parte inte­
grante da ordem da natureza, v
Uma regra (e o que dela vamos dizer aplica-se
igualmente bem à própria ordem normativa) obriga
0 ESTADO &

os indivíduos a adoptar uma certa conduta, a pra­


ticar certo acto e a abster-se de um outro. Mas,
mesmo que nos não conformemos com as suas
determinações, — deixando de fazer o que devía­
mos ou fazendo aquilo de que devíamos abster-nos,
— a regra não deixa, por isso,; dejmbsistir. E certo
que, então, diremos que a regra foi «violada»,
mas isso, por forma alguma significa que.ela deixa
do estar em vigor. A sua validade não foi atingida.
Ora, é precisamente nessa validade (Geltung)
que consiste a existência das regras. E uma ordem
normativa pode ser válida mesmo quando a rea- f
lidade não é perfeitamente conforme com ela; ao
contrário, só com esta condição de conformidade T
é possível a existência de uma ordem natural. [
A regra que nos diz «não se deve roubar.» ou
«não se deve mentir», continua a ser válida,
mesmo que um indivíduo roube ou minta. Ao
passo que as leis da natureza é que devem
adaptar-se aos factos, são os factos — isto._..é,_a&
acções ou abstenções dos homens, — que precisam,
de adaptar-se às regras.

A validade da ordem estadal

Tanto na linguagem corrente, como para o


jurista, a palavra «Estado» designa uma ordem
que é, sobretudo, normativa. Desta maneira, pode-
10 TEORIA GERAL DO ESTADO

t mos'compreender, sem necessidade de lhes dar ufn


j sentido quási místico» um certo número de propo-
/ sições, muito frequentes, respeitantes à natureza
• do Estado.
O Estado, afirma-se por exemplo, é essencial­
mente Poder: por conseqüência, ele é superior aos
indivíduos que estão submetidos às suas regras.
Esses indivíduos são os seus «súbditos».
Para compreender a natureza do Estado, é pre­
ciso pensar que dêle imanam certos imperativos.
E, se o podemos considerar como um poder supe­
rior aos indivíduos, membros do grupo que cons-
titue o Estado, é apenas porque êle é uma ordem
que lhes impõe uma certa conduta, um sistema de
regras sobre a conduta humana. Fala-se também,
d certo, do «poder da natureza»; diz-se que os
■corpos estão «submetidos» às leis naturais, que
< indicam » como eles devem comportar-se. Simples
analogia, evidentemente — de resto bastante imper­
feita — entre a natureza submetida a um Deus ou
a leis naturais e o Estado submetido a um rei ou
a leis jurídicas./Com esta cómparação não se pre­
tende identificar a ordem da natureza e a ordem
estada!./ Tendo os homens começado por especular
sôbre si mesmos e sôbre as suas relações mútuas,
tendo, assim, a ciência política surgido antes das
■ciências naturais, não é de admirar que estas últi­
mas, a princípio, se tenham servido dos conceitos
que a primeira tinha criado para compreender o
0 ESTADO 11

rEstado e que a natureza tenha sido representada


como um grande Império. De-facto, a noção de
lei natural deriva da idea de regra, não sem ter,
de resto, tomado uma significação diversa.

O Estado — ordem válida

O Estado não .é apenas < poder >. Afirma-se,


sempre, também, que êle é, essencialmente, < Von­
tade», ou que tem por essência uma vontade. Essa
vontade, diz-se, é distinta da vontade dos indiví­
duos. Não há dúvida que ela tem, ou melhor, o
Estado, como vontade, tem por instrumentos indi­
víduos e as suas vontades; mas a vontade do
Estado não se confunde com as vontades particu­
lares dos indivíduos que lhe estão submetidos:
ela é maior que a sua soma, que a sua simples
adição, à qual é superior.
Estas afirmações, que não têm o menor sentido
positivo quando se queira ver nesta misteriosa
«vontade do Estado > uma realidade psíquica —
psicologicamente falando, só há vontades indivi­
duais—, passam a tê-lo, pelo contrário, se consi­
derarmos as palavras «vontade do Estado» como
uma expressão.-metafórica da validade óbjectiva
da. ordem normativa a que chamamos Estado.
A existência do Estado é propriamente do domí­
nio desta validade de direito (Soll-Geltung).
12 TEORIA GERAL DO ESTADO

A eficácia da ordem estadal (x)

Bem diferente é o problema da da


ordem estadal. Na verdade, a ordem estadal não é
somente válida; é também — pelo menos até certo
ponto — eficaz. Não só, em direito, ela deve sei'
acatada, mas é também, de-facto? mais ou menos
respeitada e obedecida; os homens conformam-se
aproximativamente com as suas determinações.
No entanto, esta forma de nos exprimirmos oculta
um equívoco que provoca graves mal entendidos.
Com efeito, não é, rigorosamente, uma .regra (ou
a ordem normativa) que é eficaz; os indivíduos
conhecem a regra e pensam nela e é êsse pensa-
mento, essa idea, que <age», incitando-os a regu-
lar a sua conduta pela norma.
Um indivíduo sente a tentação de roubar, mas
lembra-se da determinação do Estado, que proíbe
o roubo; esta idea desvia-o do seu projecto.
A regra, em si mesma, é um facto extra-psicoló­
gico. Exprime o- que deve ser (ein Sollen). Não

(1) Tínhamos, inicialmente, empregado «estadual >,


mas, em virtude dessa expressão ser usada no Brasil com
um sentido diferente daquele em que íamos empregá-la,
preferimos utilizar «estadal», para evitar possíveis con­
fusões.
__ __ (Nota do tradutor).
0 ESTADO 13

há nada de comum entre a sua «validade > e a


< realidade * de um objecto submetido ao determi-
nismo da natureza. Pelo contrário, a idea da regra
é um facto puramente psicológico, um fenômeno,
e pode, portanto, ser causa ou efeito. É ela que
< affe > > que leva 0 homem a conformar a sua con­
duta com a regra. Por consequência, é necessário
fazer uma distinção nítida entre a regra, que
I «quere», isto é, deve ser respeitada e a represen-
/ tação da regra, que «age», por outras palavras,
J faz com que a regra seja obedegidu. Fala-se da
eficácia da regra, como se fala da sua validade.
Trata-se de uma simples abreviação, que não deve
fazer-nos esquecer que a palavra «regra» não se
refere, nos dois casos, à mesma noção.
A ordem estadal não_éf portanto, somente vá-
lida, é, também, — no sentido que acabamos de
indicar —, dotada de eficácia. Todavia, não deve­
mos concluir desta afirmação que ela é análoga à
ordem natural, quere dizer, formada por leis idên­
ticas às destay^Ainda que tivéssemos de reconhe­
cer que não há ordem válida sem um certo grau
de eficácia, essa conclusão continuaria a ser falsa^/
Talvez, provisoriamente, pudéssemos dizer: uma
r certa eficácia é a condição < sine qua non >, mas
não a condição «per quam», da validade da ordem
estadal,
Mas, examinando a questão mais de perto,
pouco importa que seja precisamente a idea da
i
14 TEORIA GERAL DO ESTADO

[ordem em si que leve os indivíduos a conforma-


!rem-se, todos eles, com as suas prescrições/E, evi­
dentemente, difícil determinar a razão porque os
indivíduos obedecem às regras estadais; pode, no
entanto, afirmar-se que, geralmente^dião é pen-
Isando no imperativo do Estadq/bu, pelo menos,
não é exclusivamente por issq/Com freqüência
são, por exemplo, as ideas de ordem religiosa ou
moral que os desviam de cometer um delito. Não
é o mêdo da sanção adstrita à regra estadal, mas
a sua crença em Deus ou a preocupação do bem
dos seus semelhantes ou da estima pública, que
os leva a respeitar os imperativos do Estado.
E, portanto, preferível definir a relação entre
a validade da ordem estadal e o domínio dos factos,
pela forma seguinte: uma ordem estadal só pode
ser considerada válida quando aquêles que ela
pretende dirigir se conformam, até um certo
ponto, com as suas determinações. /
Admitir o contrário seria um absurdo!
E verdade que, ainda hoje, há teimosos que
afirmam, por exemplo, quo a ordem tzarista con­
tinua a ser válida na Rússia e que tudo o que lá
se passou depois da revolução é contrário ao
direito, sob o pretexto de que a antiga ordem foi
modificada por forma extra-legal. E uma idea
insensata! Realmente, o que significa proclamar
válida uma ordem, em face da qual nada do que
actualmente existe seria regular?
0 ESTADO 1&

Mas, inversamente, também não devemos exi­


gir que a conduta dos sujeitos da ordem norma­
tiva seja absolutamente conforme às determinações
desta. Até mesmo é preciso que a realidade possa
estar em contradição com essa ordem, é necessária
que haja a possibilidade de agir contràriamente
às suas regras, < violá-las »; senão, essa ordem nãa
seria uma ordem normativa. Afirmar que as coisas
devem passar-se como na realidade se passam, sów
aparentemente corresponde a enunciar uma regra.j
A realidade, de-certo, estaria sempre de acôrdo.
com essa regra, mas ela não teria, evidentemente,
a Paenor razão de ser. Em resumo, a realidade não
pode ser a imagem perfeita da ordem normativa,
mas deve, no entanto, ter um mínimo de seme-
llianças com o seu modelo ideal. A relação entre
ambas move-se, portanto, entre dois limites, o que -
torna o problema muito mais complexo.

Validade e eficácia

Depois do que acabamos de dizer, talvez haja


quem admita que o Estado é uma ordem norma­
tiva, mas continuando, provàvelmente, a sustentar
que o Estado é, senão exclusivamente pelo menos
igualmente, um poder, uma fôrça, èm suma, u.ma
realidade natural e, como tal, eficaz. A apoiar esta
tese hão-de, provàvelmente, invocar-se as manifes­
16 TEORIA GERAL DO ESTADO

tações mais correntes e mais características do


poder do Estado, da sua «existência»: canhões, me­
tralhadoras, bombas, fortificações — prisões, forca
o guilhotina.
IMas, na realidade, todas estas coisas inanima­
das vão, verdadeiramente, buscar a sua significação
ao facto de serem empregadas pelos homens. Ora^
o que, em última análise, leva estes a fazê-lo, são
as suas representações, particularmente a idea de
que devern agir ..como ordenam as regras estadais.
íO poder do Estado só pode, portanto, ser a força
ide impulsão das representações relativas à ordem
Jestadal. Se, cingindo-nos às aparências, pensarmos
que é nesta eficácia que consiste, verdadeiramente,
a existência do Estado, então fica o Estado na
mesma situação que Deus: só existe emquanto
p acreditamos nêle. Neste caso, seria difícil, — de
harmonia com o que dissemos acerca das razões
que levam os homens a conformar-se com as
A regras —, determinar o que, neste «poder esta-
i dal», pertence propriamente ao Estado, e o que,
1 no fundo, deve ser atribuído a Deus. Uma tal
i> existência ó de ordem puramente subjectiva. Só
1 é de ordem objectiva a validade da ordem nor-
'I mativa, designada pelas palavras ^Estado» ou
j «Deus.».
V
O ESTADO 17

A «ímputação» ao Estado

Um empirismo simplista e inabalável objectará


que—, partindo da idea de que a existência da
ordem estadal, é a sua validade —, êste raciocínio
tem um carácter excessivamente dedutivo, porque
esta existência não é empírica, visto não ser a das
coisas da natureza. Mas mesmo se, para formar
uma idea do Estado, quisermos encarar somente
a realidade sensível, quere dizer, os factos pura­
mente empíricos, chegaremos, inevitavelmente, ao
mesmo resultado. Com efeito, veremos apenas
acções humanas, uma quantidade infinita de actos
individuais. O que distinguirá e caracterizará,
nessa massa, o grupo dos actos estadais? Em vir­
tude de que critério havemos de imputar certos
actos individuais, não ao indivíduo que dêles é
autor, mas, como que através dêle, a um outro
sujeito, a um sujeito ideal que supomos, de certa
forma, por detrás dêsse indivíduo, numa palavra,
acfcEstado ?
Com efeito, se os nossos sentidos apenas regis-
tamactos individuais, é porque a jqualidade de
< acto estadal > não corresponde a nenhuma pro­
priedade sensível que certos actos possuam. Só
por meio de uma operação mental, a que chama­
mos ímputação, atingimos esta noção do Estado
<sujeito > dêsses actos. Mas, só há um critério que
2 ~~
18 TEORIA GERAL DO ESTADO

permite qualificar como actos estadais certos actos


individuais, imputá-los ao Estado: a sua confor-
midade com uma ordem válida, o facto das regras
dessa ordem os terem previsto e terem regulado
em que condições e por que pessoas de viam ser
praticados. A qualificação de «estadal» dada a um
acto, significa, portanto, antes de mais nada, que
ele corresponde à ordem estadal, no sentido de que
esta o regulou, que êlo faz parte, dela e pode, por
conseguinte, s.exrlhe^jrelacionado. O Estado, como
* sujeito destes actos, é uma expressão pela qual se
| personifica a unidade dã~ ordem. Pôr em relação
o acto com a ordem total, tomando, para isso,
como base, a norma que o regula, é a «imputa-
\ ção» ao Estado. |O Estado é, por assim dizer, o
centro de convergência de todos os actos jjua-
lificados como estadais em virtude desta impu-
tação. I

Imputação normativa e imputação natural

Para esclarecer completamente a originalidade


desta imputação normativa — procedimento inte­
lectual que não tem equivalente nas__ciências
naturais — e, especialmente, a necessidade do seu
carácter normativo, o melhor meio é compará-la
com uma maneira de agir análoga usada nestas
ciências e a que podemos, igualmente, chamar
O ESTADO 19

imputação./Enunciar uma função qualquer de um


organismo natural, é fazer uma imputação natural./
Porque, é relacionar a função de uma parte do
organismo com êsse organismo inteiro, impu­
tar-lhe um acto, considerando-o como o sujeito
indivisível dêsse acto, porque ele se produz no
interior do sistema.
O Estado será, por consequência, um orga­
nismo natural e os indivíduos como que as suas
células ou os seus órgãos? Conclusão demasiada­
mente apressada, à qual se chega por desconheci­
mento da diferença essencial que separa estas
duas espécies de imputação. A imputação < natu-
ral > faz-se em relação a um todo — o organising
vivo—, cuja unidade é imediatamente apercebida
pelos nossos sentidos. Ao contrário, não podemos
ver o Estado como uma unidade, só distinguimos
actos individuais. E necessário fazer uma opera­
ção mental: precisamos de„supQ;ç. por hipótese,
uma ordem válida, para distinguir de .todos os
outros os actos qualificados como estadais. Mas
há mais: qualquer órgão de um ser vivo, tem
essa qualidade de órgão sob todos os aspectos,
em toda a sua actividade vital e em tôdas as
suas funções. A menor modificação que se pro­
duza na mais pequena parte de um dêsses seres,
pode ser relacionada com o organismo inteiro.
Sempre que qualquer dos seus órgãos entra em
actividade, pode dizer-se que o mesmo acontece
20 TEORIA GERAL DO ESTADO

com todo o organismo, como sujeito activo ou


passivo de tôdas as funções da totalidade dos
seus órgãos.
Diversamente acontece em relação ao Estado,
algumas vezes chamado o organismo social. Quando
dizemos que o Estado é <formado> de indivíduos,
esquecemo-nos de que, mesmo ao mais omnipo-
tente dos Estados, só pertence uma pequena parte
do sêr, ou melhor, das funções dêsses indíyjíduQS.
Nem todos os actos de um indivíduo que, em
determinada ocasião, é órgão do Estado, são actos
estadais. São inúmeros os actos de um funcioná­
rio, absolutamente indiferentes sob o ponto de
vista do Estado e que nada interessam à ordem
estadal. O juiz, por exemplo. só_ pratica umacto
estadal, só é, por conseqüência, órgão do Estado,
quando profere uma sentença em circunstâncias,
num IügaF~ e com formalidades determinadas.
E, portanto, necessário estabelecer um princípio
de selecção para distinguir entre as funções de
um homem que age, em certas circunstâncias,
como órgão do Estado, as que fazem parte do
sistema estadal. JSste princípio de selecção (des­
conhecido, pelas razões precedentemente indica­
das, na imputação natural), é a regra que imprime
a determinado
------- ------- acto o carácter_ de estadal. Só são
---- ------
actos estadais aqueles que uma norma previu e
regulou; só nêles é o Estado que age. E isto
explica a razaõ da existência de um fenômeno
0 ESTADO 21

especificamente social: a nulidade, o acto estadal


nulo. Porque, um acto individual pode ter sido
querido como estadal e, todavia, não o ser sob o
ponto de vista objectivo: é um acto estadal nulo,
nulidade proveniente de não preencher as condi­
ções exigidas pela ordem estadal, acto nulo não
so jcírídica, mas, também, socialmente falando,
por mais que se pretenda distinguir estes dois
pontos de vista.

O Estado — esquema interpretative

O que faz de um acto individual um acto


estadal, o que o eleva do domínio da natureza
para um domínio diferente, regido por outras leis,
é, por conseqüência, a interpretação especial que
dêle_se pode dar, sob o ponto de vista dessa ordem
válida que é o Estado. E por isso que podemos
considerar essa ordem como um esquema inter­
pretative, um sistema ideal, por conseqüência
uma criação do espírito, que permite reconhecer
em certos factos o carácter de actos estadais,
quando êles são conformes a êsse sistema. Os que
pensam que só é real o mundo sensível poderiara,
a isto, objectar que, mesmo um esquema ideal, só
pode servir para interpretar factos reais, perceptí-
veisj e, em virtude dêste raciocínio, afirmar:
O Estado não_é_o sistema ideal destinado a inter­
22 TEORIA GERAL DO ESTADO

pretar fagtosjreais; o Estado é o conjunto destes


factos reais, interpretados de harmonia com uma
certa ordem ideal. Poderíam, então, julgar, que
tinham salvo a tese da realidade natural do
Estado.
Mas para que serve esta pequena trapaça, se
temos que acabar por reconhecer que êsses factos
reais não tem, nessa qualidade, nenhum caracter
estadal, que essa qualidade de «estadal» resulta,
precisamente, dessa ordem ideal ja pertence a esse
domínio ideal, porque, najbasedo qualquer pro-
posição importante a respeito do Estado, se toma
em consideração essa ordem ideal, ou, mais preci­
samente, porque cada uma dessas proposiçoes é
sempre uma afirmação relativa à natureza e con­
teúdo dessa ordem. Isto é provado pelos proble­
mas da teoria geral do Estado.

Normas e sociedade

caracter normativo do Estado não o distin­


gue, essencialmente, das outras formações sociais,
constituídas, igualmente, por çistemas de regras.
Qualquer laço social é uma ligação essencialmente
normativa: no fundo, o tecido social não passa de
uma obrigação —, a obrigação recíproca dos indi­
_ * estabelecida
víduos, I -I . . pela ordem normativa, a uma
determinada conduta. E inútil ir procurar a natu­
O ESTADO 23

reza da sociedade em determinadas relações pura­


mente reais, certas maneiras de agir dos
em
indivíduos, isto é, em puros factos, que obedece-
riam ao princípio da causalidade. Debaixo dêste
ponto de vista, seria impossível compreender a
razão porque só a conduta dos homens uns para
bs outros teria um carácter social e não teria,
igualmente, êsse carácter a sua conduta para com
os animais e as coisas inanimadas. Se apenas
tomarmos em consideração relações de facto — por
outras palavras, relações de causas para efeitos —,
o laço que existe entre dois homens não difere do
que existe entre uma causa e um efeito físico.
E unicamente por as regras e a regulamentação
por uma ordem normativa não poderem, razoavel­
mente, aplicar-se a um objecto diverso da conduta
humana, que devemos reservar o qualificativo de
sociais para as relações entre os homens e que o
laço social é, essencialmente, um laço normativo,
uma obrigação. Sob êste ponto de vista, a < socie­
dade» apresenta-se como um reino diferente do
da < natureza >, e só então é possível a existência
de uma ciência social independente das ciências
naturais. Todas as tentativas para tratar a socio­
logia como uma espécie de ciência natural, devem,
por consequência, levar à dissolução desta disci­
plina. Conduzida por êsse caminho, é raro que
ela se não transforme em psicologia individual,
quando não apresenta — como tantas vezes acon­
24 TEORIA GERAL DO ESTADO

tece —, sob a capa de uma terminologia pedida às


ciências naturais, raciocínios ético-políticos, vol­
tando, assim, a cair, no fim de contas e a-pesar-de
tudo, no domínio das normas.
Sem, de resto, aprofundarmos mais esta ques­
tão, notemos, no entanto, que a oposição entre
natureza e sociedade, que é uma oposição entre
ser (Sein) e deve ser (Sollen), entre lei natural
e regra, realidade e valor, coincide, também, na
sua parte essencial, com a oposição entre natureza
e espírito. O Estado, como fenômeno social que é,
faz parte do domínio do espírito e não do domínio
da natureza.

O Estado — ordem de coacção

Se o Estado, como todas as formações sociais,


é uma ordem, um sistema de regras, em que
difere dos outros agrupamentos sociais?
A ordem estadal distingue-se das outras or-
dens sociais, principàlmente, por ser uma orfiem
ãe coacção (Zwangsordnung). Não só no sentido
de que o facto de pertencer a ela não depende,
sob certo aspecto, da vontade dos que lhe estão
submetidos, pois essa característica se encontra
noutros sistemas sociais —, porque o caracter coac-
tivo não é, no fundo, mais do que a expressão da
validade objectiva das normas. O que a ordem de
<■
O ESTADO 25
Ç

coacção estadal tem de especial, é que é ela quem í


institue a coacção, as suas regras é que estabe-
lecem que, em certas condições, um indivíduo
deverá tomar contra outro uma.medida de coac­
(
ção.. Exemplifiquemos: Se um indivíduo se com­
porta de certa maneira, isto é, faz ou deixa de
fazer determinada coisa, um outro indivíduo —
o órgão do Estado—, deverá proceder contra êle
a um acto de coacção.
Estes actos são de dois tipos: a pena e a
execução. Esta ameaça de coacção tem por fim
<
incitar os homens a evitarem a realização ou apli­
cação da coacção, por meio da conduta apropriada.
(
(

Estado e direito í
(

Resulta de aí que o aparelho decoacção, em (


que, geralmente, se pretende ver à característica
do Estado, é jdêntico à ordem jurídica. As regras
que constituem a ordem estadal, são as regras do (
dirêitq^Á. norma jurídica é a regra em virtude
da qual se opera a Ímputação ao Estado/que,
como sujeito dos actos estadais, é a personificação
da ordem jurídica^
A regra de direito é, como lei jurídica, na
esfera do Estado e do direito, homóloga à lei
natural. A lei natural é uma afirmação hipoté­ o
tica, que estabelece uma relação causai entre dois u
-V
28 TEORIA GERAL DO ESTADO

factos. Identicamente, a regra de direito liga uma


conseqüência jurídica a uma condição jurídica.
A conseqüência jurídica—, o acto de coacção—,
é a verdadeira reacção do direito, e, ao mesmo
tempo, a acção característica do Estado, como apa­
relho de coacção: é o acto estadal. E o indivíduo
qualificado para o praticar, é o órgão do Estado.
No entanto, ulteriormente mostraremos que,
ao lado desta definição formal, segundo o seu
carácter jurídico, do acto e do órgão estadais, e,
por conseguinte, do Estado, existe, também, uma
definição material.

A regra de direito; o sujeito de direito;


o direito subjectivo; norma primária
e norma secundária

E pela natureza do laço que une a hipótese


e a conseqüência que a lei jurídica — a regra de
direito — difere, essencialmente, da lei natural: êste
laço não é a necessidade causai (das Müssen der
Kausalitdt), mas a necessidade normativa (das
Bollen der Zurechnung). Se chamamos imputação
à relação que a regra jurídica estabelece entre dois
factos, a imputação é, na esfera do sistema cha­
mado Estado ou direito, homóloga ao princípio
de causalidade no sistema da natureza. A impu­
tação do direito penal—, à qual, até agora, era,
O ESTADO 27

geralmente, reservado este nome —, aparece, então,


como um simples caso especial do princípio geral
de imputação: é a pena que é imputada ao delito.
Desta imputação de um facto (conseqüência
jurídica) a um outro facto (condição jurídica),
é necessário distinguir a imputação de um facto
a uma pessoa: esta consiste em relacionar um
certo facto, previsto por uma regra de determi­
nada ordem, com essa ordem (total ou parcial),
considerada na sua unidade.
A imputação ao Estado é, apenas, um caso
.particular desta espécie de imputação; o Estado
• é,jioentanto, a personificação mais compreensiva,
a personificação total do direito, ao passo que
todos os outros sujeitos de direito são personifica­
ções de ordens jurídicas parciais.
I 0 conjunto das regras que se aplicam à con­
duta de um só indivíduo, constitue uma ordem
parcial, cuja personificação dá aquilo a que se'
chama a pessoa física.
Tratando-se de uma ordem parcial — seja qual
for a maneira como se lhe fixem os limites —, que
regule a conduta recíproca de vários indivíduos
compreendidos num mesmo grupo, obtém-se a
pessoa jurídica.
Um sujeito de direito não é, portanto, um ser
dotado de uma existência distinta e diversa da
existência da ordem jurídica, mas sim a personi-
ficação, total ou parcial, desta última.
28 TEORIA GERAL DO ESTADO

Da mesma maneira, o direito subjectivo não


é uma coisa diferente do direito objective, mas
é, antes, êsse mesmo direito, encarado sob um
aspecto particular. Por «direito subjectivo*, deve­
mos, antes de mais nada, compreender a regra
de direito na sua japlicação a certos indivíduos,
isto é, a obrigação jurídica que pesa sobre êles de
adoptarem uma conduta contrária àquela que é
sancionada pela coacção instituída pela regra.
A obrigação jurídica tem, portanto, por objecto,
a conduta que —, como vimos—, a ordem estadal
visa a provocar. Apresentando esta sob a forma
de regra—, válida sòmente se suposermos que a
coacção deve ser evitada —, obtém-se a regra de
direito secundária, que enuncia um imperativo.
A regra primária, aquela que institue a coacção,
impõe, portanto, como condição do exercício dessa
coacção, a conduta contrária àquela que a regra
secundária prescreve imperativamente. Por conse­
guinte, podemos, em resumo, representar a regra
de direito total, que contém a norma primária
e a norma secundária, como uma espécie de regra
dupla: Em certas e determinadas condições,
um indivíduo deve comportar-se de certa maneira;
bjl se o não faz, um outro indivíduo —, o órgão
do Estado —, deve, segundo um processo deter­
minado, exercer contra êle uma certa coacção.
Rigorosamente falando, a regra secundária ou
imperativa é supérflua; limita-se a exprimir, para
O ESTADO 29

maior clareza, a relação que já resulta da regra


primária e que nós qualificamos de obrigação
jurídica.
Por consequência, toda a regra de direito esta­
belece uma obrigação jurídica, mas não um direito
subjectivo, individual, o que é um outro aspecto,
mais restricto, do direito sob o seu aspecto sub­
jectivo. Só podemos falar de direito subjectivo no
sentido técnico da palavra, quando, nas condições
a que a regra de direito liga um efeito jurídico,
um indivíduo — que temos de supor como tendo
nisso interêsse — faz uma declaração de vontade
tendente a produzir êsse mesmo efeito —, de
maneira que a ordem jurídica é, em certo sentido,
posta à sua disposição contra o obrigado.

A aplicação da sanção: os «órgãos do Estado»

Originàriamente, a aplicação da sanção — pena


ou execução —, é confiada àquele cujos .interesses,
assim protegidos4>ela ordem._jurídica, são lesados.
E o filho quem, no sistema da «vendetta >, deve
.vingar-se do assassino do pai; é o credor quem
'pode apoderar-se da pessoa do devedor, como de
um penhor. São estas as formas primitivas da
pena e da execução e aquêles que as põem em
acção são, também, «órgãos»: o filho e o credor
agem, apenas, como órgãos da comunidade, como
30 TEORIA GERAL DO ESTADO

instrumentos da ordem, porque é ela que os habi­


lita a aplicar a sanção por ela estabelecida. E é
por isso que os actos de coacção a que eles proce­
dem não constituem novos delitos.
Só mais tarde é que estes actos se tornaram a
função exclusiva de certos indivíduos qualificados |
como órgãos do Estado no sentido estricto —,
«agentes públicos». Esta evolução é o resultado
da divisão do trabalho social. Nada se pode objec-
I tar a quem queira reservar o emprego da palavra
í Estado para este caso em que a ordem de coacção
I institue órgãos assim especializados. Mas devemos
I compreender perfeitamente que entre esta ordem
I jurídica e a ordem jurídica primitiva há, apenas,
I uma diferença de organização técnica e não uma
I diferença de natureza. Está na lógica da evolução
I aqui indicada que a função do órgão especializado
C constitue, para êle, uma obrigação, no sentido de
que, se a não desempenhar, se expõe a uma sanção
característica dos órgãos do Estado (stricto sensu):
I a pena disciplinar. Esta obrigação, quere dizer,
l a função destes «órgãos do Estado», pode, então,
I ter—, como veremos ulteriormente—, um objecto
I diferente dos actos de coacção (ou do processo que
ll os prepara). Estes «órgãos do Estado», pagos por.
(I um tesouro central, submetidos ao direito discipli­
i nar, podem ser obrigados a uma actividade de pre­
I
visão, quere dizer, a tudo aquilo a que habitual­
I
mente se chama «administração» no sentido lato da
I
I
O ESTADO 81

palavra. Se, por Estado, entendermos o conjunto


dêsses órgãos do Estado, dos agentes públicos,
podemos dizer que o Estado, alóm da jurisdicio-
nal, pode, também, desenvolver uma actividade
administrativa. Desta maneira, em face do con­
ceito formal do Estado, que compreende a totali­
dade do sistema do direito, o conjunto de todos
os factos jurídicos, obtém-se um conceito material
mais restrict©, que só abrange certas regras, certos
elementos jurídicos; identicamente, ao lado da
noção formal de órgão estadal, existe uma noção
material mais restricts, que só compreende os
actos jurídicos praticados por uma certa categoria
de indivíduos. No entanto, o conceito formal e lato
do Estado ou do órgão do Estado deve — como
resulta das nossas explicações — ser considerado
o conceito fundamental.

A dualidade do Estado e do direito

A tese que acabamos de desenvolver (de har­


monia com a qual Estado e Direito são a mesma
coisa, sendo o Estado idêntico à ordem jurídica—,
quer se trate da ordem jurídica total ou de uma
ordem jurídica parcial—, da qual, como sujeito
de direito, como pessoa, êle não é mais do que
a personificação), contradiz a concepção corrente,
segundo a qual Estado e Direito são duas enti­
32 TEORIA GERAL DO ESTADO

dades diferentes, ainda que unidas por um laço


qualquer. Apresenta-se, nela, o Estado como
«sustentáculo», como «criador» ou «guardião»
do Direito; faz-se, quanto possível, preceder, no
tempo, o Direito pelo Estado, e diz-se, ainda, que,
no decurso da história, o Estado se submete, mais
ou menos livremente, ao Direito, ao seu «pró­
prio» direito e, por assim dizer, se obriga juridi­
camente a si mesmo, etc. A construção exacta
desta relação entre o Estado e o Direito passa por
ser o problema mais difícil da teoria do Estado
e do Direito, problema ao qual, ató hoje, só têm
sido dadas soluções abundantes em contradições
internas. Isto é fácil de compreender; porque o
dualismo do Estado e do Direito não ó mais do
que um dos inúmeros exemplos de desdobramento
do objecto do conhecimento, de que está cheia
a história do espírito humano. Do que não passa
de um meio usado pelo conhecimento para apreen­
der o seu objecto, uma representação auxiliar que
permite dar unidade à multiplicidade e diversi­
dade das relações — a personificação—, faz-se um
objecto provido de uma existência própria, des­
dobrando o objecto originário do conhecimento.
Cria-se, assim, um problema puramente aparente:
o das relações de dois obje.ctos_que. na realidade,
são apenas um. Não pode encontrar-se uma solu­
ção satisfatória para um problema que não existe,
que é uma simples aparência de problema. Só
0 ESTADO 33

podemos eliminá-lo. O exemplo mais frizante, na


história do espírito humano, é-nos dado pelo pro­
blema da relação entre Deus e o mundo (a natu­
reza). Foi necessário um trabalho infinito para con­
vencer o homem de que Deus não é mais do que
á personificação da natureza, concebida como um
sistema de leis. Este problema da relação entre
Deus e o mundo assemelha-se, em todos os seus
traços essenciais, ao problema da relação entre
o Estado e o Direito.

Caracter jurídico dos problemas da teoria


geral do Estado

Se consideramos o Estado uma ordem jurídica,


devemos poder propor e resolver todos os proble­
mas da teoria geral do Estado„sob êsse ponto de
vista único. Ora, com efeito, não só é isso que
sucede, mas até só com essa condição é que podem
ver-se claramente os apertados laços que unem
os problemas estudados, e que, por conseqüência,
as soluções dadas se apresentam como um sistema
harmonioso e completo. E assim fica, também,
confirmada a exactidão da hipótese em si, isto é,
a identidade do Estado com o sistema do direito.
E, de-facto, todos os problemas da teoria geral do
Estado são problemas relativos à validade e à cria­
ção da ordem jurídica, problemas de direito.
3 ~
34 TEORIA GERAL DO ESTADO

Os elementos do Estado: poder público, territó­


rio do Estado, povo, são, simplesmente, a validade
da ordem estadal em si e a sua validade no espaço
e quanto às pessoas. A questão da natureza das
formações jurídicas que nascem de uma organiza­
ção territorial do Estado, ó um caso particular do
problema geral do domínio de validade territorial
da ordem estadal: o que, nela, se discute, são os
problemas da centralização e da descentralização,
ponto de vista do qual podem encarar-se a descen­
tralização administrativa, as circunscrições descen­
tralizadas, as províncias, as fracções de Estado, etc.
e, também, especialmente, tôdas as uniões de
Estados.
A teoria dos trêsjyoderes ou funções do Estado,
tem por objecto as fases sucessivas da criação da
ordem jurídica.
Os órgãos do Estado só podem ser concebidos
como factores da criação do direito. E as formas
políticas são, apenas, os diferentes métodos de cria­
ção da ordem jurídica, metaforicamente qualificada
de «vontade do Estado».
Todos estes problemas da teoria geral do Estado
se referem à natureza, quere dizer, à forma, ou ao
conteúdo da ordem estadal. O nosso estudo incide,
apenas, sôbre o conteúdo possível desta ordem e só
pode, por isso, levar à fixação de tipos, A questão
do conteúdo legítimo da ordem estadal nao per-
tence à teoria geral do Estado, mas sim à política
í>

O ESTADO 35

teórica, à ciência política como disciplina espe­


culativa, àquilo a que poderemos chamar a teoria
política, a-fim-de. distinguir essa disciplina da teo­
ria geral do Estado. Esta, se quiser manter o seu
método em toda a sua pureza e integridade, deve,
absoluta e rigorosamente, excluir qualquer intro­
missão do ponto de vista político.
curso
#tST* A00

frREHO PÔUJAO

CAPÍTULO II
/
A validade da ordem estadal
( Estática )

SECÇÃO I

A noção de validade

(O * poder público »; — a soberania; — Estado


e direito das gentes)

O «poder» do Estado: a validade


da ordem jurídica

s 3 Estado é, geralmente, representado como um


agrupamento de indivíduos, vivendo num territó­
rio nitidamente delimitado e submetidos a um
poder juridicamente organizado/*De harmonia com
esta definição, o Estado seria como que um com­
posto de três elementos de igual importância:
território, povo e poder público, e deveria ter —
ainda que só em consideração do segundo dêsses
elementos, dos indivíduos que o formam — qual­
38 TEORIA. GERAL DO ESTADO

quer coisa de um objecto, de um corpo. E, natu­


ralmente, a êste segundo elemento —, o mais fácil
de distinguir—, que a concepção vulgar empresta
a maior importância.
Não podemos adoptar esta maneira de ver.
O Estado, dissemos nós, não é um grupo de indi­
víduos submetidos a um poder organizado; o
Estado é uma ordem, uma ordem à «autoridade»
da qual estão submetidos indivíduos —, seria
melhor dizer: cujas normas regulam a conduta
humana.

A < autoridade» desta ordem, dêste sistema


de regras jurídicas, ó, simplesmente, a sua vali- •
dade. Graças a essa autoridade, diz-se, o Estado
«domina» os indivíduos. E ela que Ihos «sub­
mete», que Ihos «subordina», tornando-os seus
«súbditos». Estas palavras são outras tantas ex­
pressões figuradas da idea de que o Estado repre­
senta para o indivíduo uma ordém obrigatória.
Quando, ao falar dos indivíduos, dizemos que eles
estão submetidos ao poder do Estado, isso signi­
fica, na realidade, que a sua conduta cai sob a
.alçada de regras de sanção, de normas de coacção,
cujo conjunto forma um Sistema, uma ordem
única.
O poder estadal não ó um simples facto. Se o
fôsse, consistiria numa relação causai e, mais
especialmente, tratando-se de conduta humana,
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 39

numa relação de causa para efeito psíquico, ou —,


na linguagem dos psicólogos —, de motivação. Se
apenas encararmos os factos em si, só conhece­
remos o indivíduo, os seus estados de alma e as
&uas acções; a realidade social há-de escapar intei­
ramente ao nosso conhecimento, assim como o
sentido em que falamos do poder do Estado. Com
efeito, um indivíduo, ao determinar a conduta de
um outro indivíduo, seja qual fôr o meio empre-
Igado — manifestação de vontade ou violência —
[age precisamente como qualquer causa física.
Portanto, se o poder estadal consistisse, pura e
simplesmente, nesta espécie de eficácia, nenhuma
diferença de natureza separaria o Estado, sujeito
dêsse poder, de qualquer outra causa natural.
As relações compreendidas na designação de < Es­
tado >, não se distinguiriam das outras relações
causais, e, além disso, seria, então, preciso consi­
derá-las como puras relações de poder «bruto»,
material.
Esta concepção levaria, quando muito, à cha­
mada tese do «direito do mais forte», quere dizer,
à afirmação de que o mais forte determina a con­
duta dos mais fracos, o que, de resto, quando
dela excluímos todos os elementos normativos, se
reduz à banalidade^ de afirmar que às causas cor­
respondem efeitos.
a Ora, falando do < poder» ou da «dominação»
lestadais, da subordinação dos indivíduos ao Es-
40 TEORIA GERAL DO ESTADO

tado, pensa-se em coisa bem diferente: que o


Estado, ou melhor, o indivíduo que o representa,
não só tem, de-facto, o poder de ordenar, de
exprimir uma vontade relativamente à conduta
de outros indivíduos, mas, também ainda, que
tem qualidade, isto é, competência para fazê-lo,
numa palavra, que é uma autoridade e que não
só êsses indivíduos lhe obedecem de-facto, mas
também que lhe devem obedecer, que são obri­
gados a fazê-lo, que as ordens dadas por êle têm,
para os outros, o valor de normas. Tudo isto
em virtude de uma ordem que regula a conduta,
tanto daquele que estabelece a regra, como daque­
les que com ela se conformam; só esta ordem
permite «relacionar» a conduta de um ou dos
outros com o Estadp—, a sua personificação —, de
lha «imputar». De maneira que, sem• esta ordem
normativa, não haveria Estado, em nome do qual
um_ acto qualquer pudessse ser praticado e ao
qual, em^qualquer sentido, se pudesse estar subqr-
dinadoA
Se repelirmos esta concepção do Estado-ordem
normativa, adoptaremos o ponto de vista anar­
quista, que nega ao Estado existência própria
e só vê relações de pura força material onde,
quem lhe reconheça essa existência, só vê rela­
ções de direito.
Que essa ordem deve, também, ser eficaz e até
que ponto o deve ser, já anteriormente o prová-
A VALIDADE DA ORDHM ESTADAL 41

mos. Mas não se podería definir o poder estadal


unicamente por esta eficácia da ordem estadal,
para, em seguida, a opor, como tantas vezes se faz,
à validade desta ordem, que definiria o direito.
Porque só é possível compreender a verdadeira
natureza dêstes «efeitos», dêste «poder estadal»,
em função e como uma consequência da validade
dessa ordem jurídica que se esforçam por opor
ao Estado, ató na terminologia; — tentativa, de
resto, necessariamente incerta, porque se podería
chamar, igualmente bem e até, talvez, melhor
ainda, à eficácia da ordem jurídica, poder jurídico
ou autoridade do direito.

A «soberania» do Estado

Aos olhos dos teóricos modernos, o poder


estadal seria caracterizado pela sua soberania.
A. soberania seria, portanto, não como, durante
muito tempo, se ensinou, uma qualidade de um
órgão do Estado, príncipe ou povo, mas um atri­
buto do próprio Estado. Consideram, com tôda
a razão, esta doutrina um progresso importantísr
simo.
Se é uma propriedade do Estado —, ou do
poder estadal, com o qual é,~ freqüentemente, iden­
tificado o Estado —, a soberania nãopode ser
uma propriedade sensível, como aconteceria se êle
42 TEORIA GERAL DO ESTADO

tivesse uma realidade empírica; é o atributo de


uma ordem jurídica: a propriedade de ser uma
ordem suprema, uma ordem que não deve a sua
validade a uma ordem superior.
De acordo com esta definição, a soberania falta
em todas as sociedades cuja ordem é subordinada
a uma ordem superior, na qual funda o seu prin­
cípio de validade. O problema da soberania está,
portanto, naturalmente ligado ao das relações
possíveis entre dois sistemas normativos.
Um conjunto de regras constitue uma ordem,
um sistema relativamente independente, quando
a sua validade pode ser relacionada com uma
única norma, a que chamaremos a norma ou a
regra fundamental dessa ordem. Com efeito, o
direito apresenta a particularidade de regular a
sua própria criação; uma regra de direito deter­
mina como deve ser estabelecida outra regra.
Neste sentido, a segunda depende da primeira.
Este laço de dependência que une entre si os dife­
rentes elementos de uma ordem jurídica, é o prin­
cípio gerador da sua unidade. A validade de uma
norma jurídica funda-se, precisamente, na norma
que lhe regula a criação: uma norma é válida se
foi estabelecida de conformidade com esta, que é,
em relação a ela, uma norma superior. Assim,
uma sentença contém uma norma individual, cuja
validade se funda numa lei, a validade da qual,
por sua vez, assenta na Constituição.
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 43

Entre duas ordens normativas pode existir


uma relação de subordinação ou de coordenação.
Uma ordem está subordinada a outra ordem
quando a sua validade se funda numa das regras
desta última, por outras palavras, quando a sua
norma fundamental, dela faz parte integrante;
porque, desta maneira, tôda a ordem inferior, em
virtude da sua própria base, passa a ser um fra­
gmento, um elemento de uma ordem superior,
que, de resto, talvez englobe ainda outras ordens.
A ordem superior é, ao mesmo tempo, a mais
compreensiva.
Será, portanto, a ordem suprema ou soberana,
aquela cuja norma fundamental não pertence a
nenhuma outra ordem, a nenhum outro sistema
de regras positivas —, por outras palavras, tem
um princípio de validade que não ó comum a
nenhuma outra regra —, porque não foi «criada»,
formulada, em conformidade com as prescrições
de uma norma qualquer. A norma fundamental
de uma ordem suprema ou soberana não pode,
com efeito, ser uma norma positiva, mas apenas
uma norma suposta, hipotética. Por conseqüência,
se o Estado é soberano, é porque a validade e, por
conseguinte, a unidade dêsse sistema de regras
a que nós chamamos ordem estadal, deriva, em
última análise, de uma regra que se supõe ser
|a primeira das normas fundamentais, aquela que
Ijá não é necessário justificar ou deduzir. Esta pro-
44 TEORIA GERAL DO ESTADO

posição não comporta outra interpretação. Com


efeito: o princípio da validade de uma norma
individual qualquer (ou de um acto estadal con­
creto) encontra-se numa certa lei. Mas, porque
é válida essa lei, porque representa ela uma regra
obrigatória, porque se enquadra num certo sis­
tema estadal? Em virtude de uma lei constitucio­
nal, cuja própria validade repousa, talvez, sôbre
uma ou várias outras leis constitucionais, tôdas
elaboradas de conformidade com as Constituições
precedentes; mas chegamos, por fim, a uma Cons­
tituição que não foi feita de acordo com as pres­
crições de nenhuma Constituição anterior, a uma
< primeira > Constituição positiva. Que esta, e, com
ela, tôdas as regras de direito que nela se fundam,
sejam válidas, temos de supô-lo, emquanto nos
limitarmos a considerar o Estado e o seu direito.
E desta hipótese, e só dela, que ..resultam a uni-
dade da ordem estadal e o carácter j urídico de
todos os actos que formam o Estado; ela deter­
mina que devem respeitar-se as regras formuladas
pelo órgão que elaborou a primeira Constituição.
Podemos chamar-lhe a Constituição no sentido
ideal da palavra, por oposição às Constituições
positivas. Esta norma fundamental suprema —
é da sua essência instituir o órgão legislador
supremo, que, por sua vez, delega em outros
órgãos legisladores e assim sucessivamente —
funda, com a unidade do Estado, a sua soberania.
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 45

O Estado aparece, pois, como uma ordem supe­


rior a tôdas as outras, como uma ordem suprema.

A «unicidade» (Ausschliesslichkeit)
da ordem soberana

Consideremos como exemplo de ordem não


soberana, porque está subordinada e, por conse-
qüência, incorporada noutra — no Estado —, a
comuna. A lei municipal —, válida . para todo o
território do Estado —, determina os órgãos da
comuna que são autorizados, em certas matérias,
a formular regras válidas nos limites do seu ter­
ritório.
Com efeito, a ordem ou a regra «superior»
que institue uma autoridade competente para
criar outras regras, não só funda a validade da
ordem subordinada —, que esta criará—, mas
pode, também, determinar-lhe certos elementos,
em especial o território em que será válida e as
matérias que, vàlidamente, regulará.
A ordem superior fixa, soberanamente, as com­
petências. E êsse o verdadeiro laço quê existe
entre a soberania e esta autoridade suprema em
matéria de competência (Kompetenzhoheit). As re­
gras que assentam na constituição municipal, for­
mam o estatuto municipal, que personifica a
comuna; e as diferentes comunas, juridicamente
46 TEORIA GERAL DO ESTADO

delimitadas pela lei municipal, são coordenadas


no quadro do sistema estadal total. Dois ou
vários sistemas de regras só podem, portanto, ser
coordenados, se todos forem subordinados a uma
ordem superior, que, delegando-os, os coordena
e os faz, por consequência, ingressar numa ordem
total, de que ela, como êles, ó um simples ele­
mento. Mas de aqui resulta que só pode haver
uma única ordem soberana, no sentido próprio da
palavra, que é a ordem total. Quando uma ordem
é qualificada de soberana, é, portanto, simples­
mente, porque ó considerada como uma ordem
total. Por conseguinte, ó absolutamente impossí­
vel que a soberania pertença, simultânea e igual­
mente, a vários sistemas de normas ou a várias
comunidades jurídicas. O sistema normativo, ao
mesmo tempo que é uno (o,que exprime a idea
de soberania), é, igualmente, único. Não podemos
admitir a coexistência de duas ou mais regras ou
ordens válidas, sem lhes fazer repousar a validade
num só e mesmo princípio. Esta unidade do sis­
tema normativo, corresponde à unidade do conhe­
cimento normativo. Não podemos, pois, imaginar
dois sistemas de regras que sejam simultanea­
mente válidos, a-pesar-de independentes e isolados
um do outro. Seria necessário reconhecer a sobe­
rania a cada uma dessas duas ordens e, por con­
sequência, a autoridade suprema em matéria de
competência. Assim, cada uma delas teria, por
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 47

isso mesmo —, pelo menos virtualmente , a


possibilidade de se tornar extensiva ao território
e às matérias que a outra vàlidamente rege.
Daqui surgiría a possibilidade de um conflito
sem solução, consistindo na necessidade de afirmar
a validade de normas contraditórias.
Ora, o princípio da não-contradição aplica-se,
também, ao conhecimento normativo Ç1).

(1) Direito e moral. — Vamos dar um resumo das pági­


nas qué E.EL8EN consagrou ao problema das relações do
direito e da moral, no seu Allgemeine Staatslehre.
l.° — Pode falar-se em obrigação jurídica? (§ 12 B, pá­
gina, 61). Há quem sustente que só a moral obriga e que,
por conseqüência, só existem obrigações morais. Juridica­
mente falando, só poderia dizer-se: o direito sanciona êste
ou aquele acto.
Isto corresponde, no fundo, a renunciar à representa­
ção auxiliar, constituída pelas normas secundárias. Mas
a obrigação jurídica não deixa, por isso, de subsistir, por­
que o laço que une as duas partes da regra jurídica—,
hipótese e sanção —, é bem um laço normativo (ein Sollen).
Uma regra de direito .aam_Qbrigacão jurídica, é uma idea
contraditória, porque a obrigação jurídica é, simplesmente,
a regra de direito na sua aplicação ao indivíduo, de quem
regula a conduta.
Um acto é obrigatório quando é regulado pelo sistema
do direito. Na obrigação jurídica, por conseqüência, não
pode haver obrigação moral —, cuja violação tivesse efei­
tos jurídicos—, que se oponha ao direito objective; assim
como, nos direitos subjectivos (Berechtigungen) — o direito
objective não protege, nem garante direitos morais. Para
I

48 TEORIA GERAL DO ESTADO


erg,-^ asMi.

Soberania do Estado e direito internacional

Do que fica dito, resulta que a tese da sobe­


rania do Estado, temnor corolários as duas pro­
posições seguintes: —Não há ordem jurídica
superior ao Estado, nem sequer o direito inter-
nacional. E, por conseguinte, 2.° — Não há comu-
nidade jurídica que lhe seja coordenada, que seja
igualmente soberana.

o direito só tem valor a obrigação que se funda no próprio


direito objective.
2.° — O sistema da moral e o sistema do direito (§ 20 B,
páginas, 104 e 105). Dizendo que o sistema normativo é
necessariamente uno, não se pretende negar que «exis­
tam > outras regras além das regras de direito. Mas, essas
regras não são válidas, e, neste sentido, não existem para
o sistema estadal. O jurista deve abstrair da moral, o mo­
ralista abstrair do direito; o ponto de vista juridico e o
ponto de vista moral excluem-se um ao outro: é preciso
escolher entre ambos. É_ a idea da.jmid,ade sob o ponto
de vista do conhecimento jurídico: sob pena de insphi-
veis contradições, só um dos dois sistemas dejregras deve,
sempre, ser considerado válido.
Sem dúvida, existem, na realidade, para os indivíduos,
conflitos de obrigações: mas, se isso interessa a ciência das
causas, a psicologia, a ciência das normas não tem que se
importar com isso, porque estuda as regras como realida­
des objectivas, em si mesmas: para ela, de duas regras
contraditórias e ^m conflito, só uma pode ser válida e
enquadrar-se num sistema determinado de valores.
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 49

A idea de uma multiplicidade de comunidades


jurídicas, de Estados coordenados, ó inconciliável
com a teoria da soberania do Estado, da primazia
da ordem estadal; implica, necessàriamente, a
existência de uma ordem superior a todos os
Estados, que pode, só ela, coordená-los, delimi­
tar-lhes os respectivos domínios de validade, por
outras palavras, corresponde à afirmação da supre­
macia da ordem jurídica internacional.
Entre estas duas concepções, a actual ciência
jurídica e política hesita e perde-se em contradi­
ções. Por um lado, procura manter a soberania do
Estado e, pelo menos na generalidade, nega até a
existência, do. unFTdireito internacion al s uperior
aos Estados e que os obrigue juridicamonteF Mas,
por outro lado, os seus representantes ensinam,
quási sem excepção, que ao lado do seu próprio
Estado, de quem êles afirmam a soberania — e a
que chamaremos de aqui para diante, brevitatis
causa, a ordem estadal, ou ainda o Estado nacio­
nal (Eigenstaat) — há outros Estados ignalmente
soberanos e, pela sua natureza, iguais uns aos
outros. f

a) A primazia da ordem estadal nacional

Optando pela primazia da ordem estadal, ou,


mais exactamente, da ordem estadal nacional, não
4
50 TEORIA GERAL DO ESTADO

nos condenamos, por forma alguma, a negar a


existência de relações jurídicas entre o Estado
nacional «soberano» e os outros Estados, e a
negar a estes o carácter de ordens ou de comuni­
dades jurídicas; mas só poderemos considerá-los
como ordens inferiores, delegadas e não coorde­
nadas.
E a esta construção que conduz a teoria, ainda
muito espalhada, do «reconhecimento», segundo
a qual um Estado estranjeiro só existe juridica­
mente para o Estado nacional «soberano», quando
é «reconhecido» por êle: êsse reconhecimento não
é mais do que uma delegação. Se a «vontade» do
Estado nacional deve ser, verdadeiramente, uma
vontade suprema, soberana, seremos perfeitamente
consequentes fazendo do seu consentimento como
que o título de existência jurídica de qualquer
outra comunidade. Mas êste Estado soberano
toma, então, as proporções de uma ordem jurí­
dica universal — pelo menos debaixo do ponto de
vista formal. As suas relações com os outros Esta­
dos «reconhecidos» são, por conseguinte, regula­
das por normas que fazem parte da ordem jurí­
dica nacional. O direito internacional toma, então,
o aspecto de um «direito nacional externo» —,
e ató somente com a extensão em que as regras
assim qualificadas foram voluntariamente aceites
pelo Estado nacional soberano, em que o Estado
nacional «reconheceu» êsse direito internacional
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 51

— concepção que também tem os seus defensores,


os quais, na verdade, a não levam até às suas
últimas conseqüências e não deixam, por vezes,
de adoptar as da teoria contrária.

b) A supremacia do direito internacional

Porque, com tôda a evidência, certas teses


quási universalmente adoptadas implicam a hipó­
tese da supremacia do direito das gentes, que,
colocando este acima do Estado, torna a sua vali­
dade independente dele.

Em primeiro lugar, por exemplo, a idea (em


que nós já falámos) da coordenação dos Estados,
por outras palavras, o princípio da sua igualdade
de direito. Com efeito, admitir que o direito
inter-estadal é «um direito nacional externo»,
isto é, que as relações do Estado nacional com
os Estados estranjeiros são relações de ordem
superior com ordens inferiores delegadas, equi­
vale, no fundo, a negar o próprio direito inter­
nacional. _

0 mesmo sucede com a afirmação da identi­


dade do Estado, através e a-pesar-das transforma­
ções revolucionárias da Constituição.
Na hipótese da soberania do Estado, isto é, se,
5'2 TEORIA GERAL DO ESTADO

com efeito, dermos ao Estado, como princípio jurí­


dico e de unidade, uma norma fundamental hipo­
tética, que seja a base da Constituição positiva,
o Estado só permanecerá idêntico a si mesmo
emquanto a Constituição se mantiver imutável ou
quando seja modificada de acordo com os preceitos
da sua própria lei. Se, pelo contrário, a Consti­
tuição fôr transformada revolucionàriamente, sem
respeito pelas formas prescritas —, porque, sob
o ponto de vista jurídico, a revolução não passa
de uma solução de continuidade no direito —,
precisamos de supor uma outra norma fundamen­
tal, com mais precisão, uma norma fundamental
que institua como órgão legislativo supremo uma
nova autoridade —, a que foi estabelecida revolu­
cionàriamente. Mas, desta forma, fica quebrada a
continuidade da evolução jurídica. O Estado fun­
dado sobre a nova Constituição, não é idêntico ao
que se apoiava na antiga e que, por conseguinte,
se fundava numa norma fundamental diferente.
E êste, igualmente, o verdadeiro significado da
proposição já enunciada pelos antigos, de que
a identidade do Estado é uma conseqüência da
identidade da Constituição; excepto em que é, na
realidade, a Constituição no sentido teórico ou
ideal da palavra e não a Constituição positiva,
quem garante essa identidade.
Mas, admitindo a tese da supremacia da ordem
jurídica internacional, obtém-se uma outra inter-
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 53

pretação da revolução (ou do golpe de Estado,


a revolução de cima para baixo). Com efeito,
o direito internacional positivo admite que um
poder que, no seu conjunto, consegue fazer-se obe­
decer pela população de determinado território,
deve ser considerado como uma autoridade legí­
tima, em relação a êsse território e a êsses indi­
víduos— nem que êle seja um usurpador ou um
comitê revolucionário e a ordem por êle estabele­
cida resulte, por conseguinte, de uma violação da
Constituição até à data em vigor. E dêste facto
que o direito internacional faz derivar a validade
da ordem estadal, é esta a sua concepção do
Estado, da revolução vitoriosa (ou do golpe de
Estado triunfante), que êle consagra como pro­
cesso de legislação constitucional. A continui­
dade jurídica ó, portanto, mantida, mesmo em
caso de revolução ou de golpe de Estado. O pro­
blema da identidade é, pois, um problema mate­
rial: em direito—, em direito internacional—,
há identidade — a-pesar-de uma ruptura jurí­
dica relativa, quere dizer, na esfera do direito
interno —, quando a nova ordem estadal é, de
uma maneira geral, válida para o mesmo terri­
tório e para os mesmos indivíduos que a antiga,
compreendendo o Estado, aproximadamente, o
mesmo território e os mesmos indivíduos que
antes da revolução.
Mas, desta maneira, a continuidade jurídica
54 TEORIA GERAL DO ESTADO _ -

é igualmente mantida, quer o mesmo Estado con­


tinue a existir a-pesar-da revolução ou do golpe
de Estado (exemplo: o Império Alemão), quer de
um único Estado nasçam vários Estados novos
(exemplo: a Áustria e os seus Estados sucessores,
depois da revolução de 1918).
Citemos, por fim, a afirmação constante e quási
geral, de que os Estados não podem colocar-se fora
do direito das gentes.

c) A relação entre as duas hipóteses

E, todavia, impossível afirmar que só a teoria


da supremacia da ordem jurídica internacional se
justifica cientificamente. Se só ao Estado nacional
reconhecermos qualidade para decidir o que é e o
que não é direito, a hipótese contrária satisfaz
perfeitamente. Assim como não existem argumen­
tos científicos capazes de convencer um anarquista
de que as relações dos indivíduos assentam, não
sôbre a força pura, mas sôbre regras jurídicas,
porque esta interpretação supõe a aceitação pré­
via do postulado da existência dessa norma funç
damental hipotética em que já falamos, assim
também não é possível demonstrar cientificamente
a necessidade de encarar as relações entre Estados
como relações jurídicas entre sujeitos (quere dizer>
ordens personificadas) coordenados. E, de-facto,
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 55

muitos autores sustentam, ainda hoje, que o «di­


reito internacional», na realidade, não é direito.
Em presença desta afirmação, o jurista deve limi­
tar-se a verificar que, aqueles que negam o direito
internacional, fazem das relações entre Estados,
a mesma idea que o anarquista faz das relações
entre indivíduos.
O que, sob o ponto de vista da ciência do
direito — que não é o da política ou da moral —,
estamos no direito de condenar é, somente, por
um lado, a mistura inconseqüente das duas teorias
contraditórias da supremacia do direito interna­
cional e da soberania do Estado, e, por outro, a
concepção, ainda exposta com frequência, segundo
a qual o direito internacional seria, também, um
verdadeiro direito, ao lado do direito interno,
mas formariam dois sistemas completamente autô­
nomos, independentes um do outro, sem nenhum
elemento comum —, porque esta teoria dualista
contradiz o postulado fundamental de unidade,
que é válido para todos os sistemas de conheci­
mento científico.

A natureza jurídica do «direito internacional»

Preguntar se o direito internacional é, verda­


deiramente, um direito, equivale, portanto, antes
d.e mais nada, a fazer a seguinte interrogação: há
56 TEORIA GERAL DO ESTADO

um princípio único que permita declarar válidas


as chamadas regras de direito internacional e as
regras estadais—, as quais, in contestavelmen te,
são «direito»—, ou, por outras palavras, o
sistema das regras internacionais e o sistema
das regras estadais podem encerrar-se no qua­
dro de um só e único sistema de regras válidas,
e como?
Quanto a saber se os materiais que constituem
o «direito internacional» são suceptíveis de rece­
ber a forma característica da regra jurídica, quere
dizer, de uma norma sancionadora, é uma questão
que só aparece em seguida. E o problema da san­
ção própria do direito internacional, da guerra.
As obrigações estabelecidas pelo direito interna­
cional, têm, como última sanção, a guerra, quê o
Estado lesado nos seus interesses, — protegidos
pelo direito internacional — é autorizado a fazer.
Portanto, o direito internacional, sob o ponto de
vista técnico, ainda está numa situação muito pri­
mitiva, porque ainda não institue órgãos especia­
lizados. Chamando «-civitas máxima*, Estado uni­
versal, à comunidade jurídica nascida do direito
internacional, empregamos, portanto, a palavra
«Estado» num sentido muito lato. Mas o que,
por essa forma, pretendemos exprimir, é que nada,
nem na natureza do Estado, na sua soberania, nem
na do direito internacional óu do direito em
geral, pode opor-se ao progresso dêste direito —,
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 57

quer se julgue êsse progresso possível ou impos­


sível, favorável ou funesto, sob o ponto de vista
político.

SECÇÃO II

Validade no espaço, validade no tempo


e validade quanto às pessoas

(Teoria do território do Estado; — teoria do povo)

Validade territorialmente limitada ou ilimitada

As regras da ordem estadal regulam sobre­


tudo —, como vimos —, a conduta humana; ora,
esta desenvolve-se no espaço e no tempo. O espaço
e o tempo constituem, portanto, elementos neces-
• sários das regras jurídicas. Quando uma delas
prescreve: < se X faz esta ou aquela coisa, Y deve
aplicar-lhe uma sanção», é necessário que ela
determine onde e quando o primeiro desses factos
— e, por consequência, o segundo — deve produ­
zir-se. Se o lugar e o momento não estivessem,
assim, especificados, a regra, não valendo em parte
alguma nem nunca, seria, na realidade, desprovida
de validade.
58 TEORIA. GERAL DO ESTADO

Portanto, sob este ponto de vista, só é possível


distinguir duas categorias de regras: umas que
pretendem ser válidas sempre e em toda a parte
e outras que só querem ser válidas num espaço
e num tempo limitados.

A «sedentariedade» (Sesshaftigkeit)

Afirmar que é essencial a uma certa colec-


tividade o facto de os seus membros serem
sedentários, corresponde, no fundo, a dizer que
a ordem por ela personificada só é válida para
um território, não só nitidamente delimitado,
mas também imutável em relação a outros ter­
ritórios. t
Não é verdadeiro dizer-se acerca do Estado:
a validade da ordem estadal é, por essência, limi­
tada no espaço. Bem ao contrário, a «sedentarie­
dade», a-pesar-de ser, hoje, a regra, não é uma
característica necessária do Estado. Todas as carac­
terísticas da organização estadal podem, também,
encontrar-se nos «povos nômadas», isto é, mesmo
quando os limites do território para que é válida
a ordem estadal se deslocam, pouco a pouco ou
subitamente.
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 59

A delimitação do território dos Estados


pelo direito internacional

Graças a essa limitação no espaço da validade


í do sistema estadal, podem coexistir uma imen­
sidade de Estados, sem que, entre êles, surjam,
I inevitavelmente, conflitos. Mas, em direito posi-
| tivo, só uma regra superior pode limitar, sob
* qualquer aspecto, a validade de uma regra ou de
um sistema de regras, bem como determinar-lhe
'■ o conteúdo, em qualquer sentido. E, portanto,
essa —, como claramente resulta das nossas ante­
riores exposições —, a função característica do di­
reito internacional: delimitar a porção de espaço,
o território para o qual será válida cada ordem
estadal, isto ó —, visto que essa porção de espaço
hv não é outra coisa —, fixar os limites do território
do Estado. 0 elemento capital que define este
I'- • território, é a «validade > e não a < eficácia real >
i ' do sistema estadal; porque, do facto de um acto
ser, realmente, praticado em certo lugar, não
í resulta, necessariamente, que êsse lugar esteja
£ compreendido no território do Estado cujo direito
' o previa (exemplo: o acto irregularmente prati­
cado em território estranjeiro).
A noção de território do Estado assenta, por­
tanto, sem a menor dúvida, sobre a idea do
Estado-ordem válida; vejamos uma outra prova
60 TEORIA GERAL DO ESTADO

desta afirmação: o que faz a unidade desse terri­


tório, é o facto de, em toda a sua extensão, ser
válida a mesma ordem jurídica, pouco importando
que êle seja geograficamente, ou antes, natural­
mente fraccionado.
Esse território não é, contràriamente à concep­
ção corrente, uma superfície, uma porção nitida­
mente delimitada da superfície do globo, mas
sim um espaço de três dimensões: porque a ordem
estadal é válida, assim como, de resto, ó eficaz,
não só para um certo comprimento e largura, mas
também numa certa profundidade e numa certa
altura. O império do Estado —, para empregar as
expressões correntes —, estende-se, também, por
cima e por baixio dessa superfície terrestre, só na
qual é costume pensar quando se fala do territó­
rio do Estado. Na realidade, os territórios dos
diferentes Estados constituem, geogràficamente
falando, cones cujo vértice comum é o centro da
terra. Não há normas internacionais que fixem
limites a êsse território no sentido da altura.
Mas mesmo o limite do Estado que corre à
superfície da terra, e que é, só por si, designado
por «fronteira do Estado», não limita de forma
absoluta a validade local do seu direito. Em regra
geral, o direito das gentes só em princípio limita
essa validade, sob reserva de possíveis derogações.
Esta limitação refere-se bem mais à realização
da conseqüência —, sanção e processo preliminar
A VALIDADE DA OBDEM ESTADAL 61

da sanção (intimação administrativa, sentença) —,


do que à realização da condição (delito, acto jurí­
dico). O delito pode ser cometido em qualquer
lugar; o processo de repressão só pode ser ins­
taurado no interior das fronteiras, nos limites do
território do Estado stricto sensu.
Mas são inúmeras as excepções, os casos em
que um Estado tem o direito de praticar certos
actos fora do seu território propriamente dito:
no mar livre, a bordo dos navios nacionais; no
estranjeiro, os actos diplomáticos dos seus repre­
sentantes, por exemplo, uma declaração de guerra;
ou, mais geralmente, todos os actos praticados em
virtude de uma convenção com outro Estado.
Seria, portanto, falso, afirmar que no território
de um Estado, só um direito é válido —, o seu
ii
próprio direito; porque, na proporção em que,
it
nesse território, um Estado estranjeiro pode pra­
ticar certos actos, o direito desse outro Estado é
também válido. Não existe, em direito, um «prin­
cípio de impenetrabilidade > do Estado, em vir­
tude do qual dois Estados não poderiam coexistir
no mesmo lugar. Este princípio ó extraído do
dogma da soberania e de uma hipóstase do
Estado. c
Ainda há outros casos de coexistência de
vários Estados no mesmo território, isto é, casos o
em que vários direitos são válidos na mesma por­
ção de espaço: a) 0 condomínio, em que um o
to
62 TEORIA GERAL DO ESTADO

território está colocado sob a dominação comum


de dois Estados, quere dizer, submetido a regras
que tanto podemos considerar como fazendo parte
do direito de um dos Estados como do direito do
outro; ò) Certas uniões entre Estados, especial­
mente o Estado federal, em que o Estado central
(Oberstaat) tem como território o próprio terri­
tório dos Estados-membros.
O direito internacional limita, portanto, em
regra geral, a validade de cada sistema jurídico
ao território determinado pelas «fronteiras do
Estado»; mas admite, em certos casos, que o
direito de um Estado pode ser válido no território
de um outro Estado, que um Estado pode pra­
ticar certos actos jurídicos fora do seu território,
por outras palavras, existir no território de um
Estado estranjeiro.

A limitação dos Estados no tempo

Em princípio, a existência do Estado é limi­


tada no tempo, exaetamente como no espaço; —
a-pesar-de, na verdade, os teóricos do direito
público ainda, até hoje, não terem, por assim
dizer, olhado para esta questão, verosimilmente
porque o Estado nunca limita a priori a sua pró­
pria duração e pretende ter uma existência, isto
é, uma validade eterna.
/ ■

f A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 63

i E ainda o direito internacional que limita no


tempo a validade do direito interno, como acon-
■ tece quanto ao espaço; é êle que regula não só o
; nascimento, mas também o desaparecimento dos
É Estados como fenômenos jurídicos, assim como
o direito interno regula a formação e a dissolução
das comunidades jurídicas incorporadas no Estado
(associações, sociedades, comunas, etc.).
0 direito interno também, por vezes, deter­
mina, directamente, o tempo pelo qual serão váli­
das certas regras. Em princípio, uma regra de
direito vale até à sua abrogação por uma regra
contrária (lex posterior derogat priori). Pode, no
entanto, acontecer que se determine antecipada­
mente o tempo .pelo qual ela será válida, de
I maneira que, expirado um certo prazo ou quando
se dê determinado acontecimento, deixa, automà-
ticamente, de estar em vigor.

A limitação, quanto às pessoas, da validade


■ do sistema estadal

5 Assim como só é válido num espaço e por um


tempo limitados, o direito interno também só é
válido para um número limitado de indivíduos,
s Estes indivíduos formam o que, na doutrina tra­
dicional, se chama o povo (Btaatsvolk). Dois pro-
' blemas, e só dois, surgem a êste respeito: por um
64 'TEORIA GERAL DO ESTADO

lado, quais são os indivíduos para quem a ordem


jurídica é válida, ou melhor, cuja conduta está
submetida às suas regras; e, por óutro lado, de
que maneira as regras jurídicas podem aplicar-se
à conduta humana. A teoria do povo não com­
preende outra; é uma teoria puramente jurídica.
Já vimos quanto é inexacta a idea de que o
Estado é «formado» por indivíduos. Com efeito,
as regras estadais não alcançam o indivíduo in­
teiro, mas apenas alguns dos seus actos, acções ou
abstenções. O indivíduo só faz parte do povo na
proporção em que está submetido à dominação
estadal. E, precisamenté por esta razão, nem todos
os indivíduos que se encontram no território do
Estado fazem parte do povo. São dele excluídos
aquêles que, em virtude de regras do direito
positivo, não estão sujeitos à aplicação do direito
estadal, como, por exemplo, os representantes
diplomáticos beneficiários do chamado previlégio
de extra-territorialidade. Pode, de resto, haver
diferentes categorias de pessoas, submetidas às
regras estadais em diversas proporções. Citemos,
somente, como exemplo, em que teremos de vol­
tar a falar, a situação do monarca absoluto e dos
seus súbditos.
Por outro lado, fazem também parte do povo
indivíduos que não habitam o território do Estado ■
stricto sensu: isso resulta, especialmente, da insti­
tuição da nacionalidade (Staatsbürgerschaft),
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 65

A teoria do povo como teoria


do direito subjectivo

Podemos conceber três tipos de relações entre


a conduta humana e as regras jurídicas. Ou o
indivíduo —, relação passiva —, está submetido
à ordem jurídica, no sentido estricto de ser juri­
dicamente obrigado a uma certa conduta; ou
então —, relação activa —, o indivíduo cria a
regra, em virtude do direito atribuir a um acto
seu a qualidade de facto gerador de direito:
êle tem, então, o que, na terminologia usual,
se chama um direito subjectivo (Berechtigung).
Einalmente —, relação negativa —, a conduta
humana pode não ser objecto de qualquer regra
jurídica: o indivíduo é, então, livre em face do
Estado. E certo que, com frequência, são confun­
didos o segundo e o terceiro dêstes tipos, ou por
se considerar o indivíduo como livre desde que
sobre êle não pese qualquer obrigação, ou por,
inversamente, se considerar, também, a «liber­
dade», como um direito subjectivo.
Conclue-se, portanto, que a teoria do povo
é, simplesmente, a teoria das obrigações e dos
direitos subjectivos, isto é, a teoria do di­
reito sob o seu aspecto subjectivo. E, portanto,
um êrro opor o direito objective ao direito sub­
jectivo; o direito subjectivo não é mais do que
66 TEORIA GERAL DO ESTADO

a aplicação aos indivíduos do direito objective.


Assim desaparece um dualismo funesto para a
ciência.

A obrigação jurídica e a noção do sujeito

Da concepção corrente do povo nasce, antes de


mais nada, a idea de que os indivíduos «formam»
o Estado, por estarem submetidos ao seu domí­
nio, por serem os seus «sujeitos» ou «súbditos».
O facto de participarem activamente, por qual­
quer maneira, nessa dominação, seria um elemento
secundário. Por conseqüência, a teoria do Estado
mostra, com maior clareza do que a teoria clássica
do direito, o papel verdadeiramente essencial da
obrigação jurídica; mostra nitidamente que, na
sua essência, a regra jurídica estabelece uma obri­
gação; que ,o Estado, ou o direito; é, antes de
mais nada, uma ordem obrigatória.
E coisa secundária saber se ela também con­
fere direitos e em que proporção o faz, por outras
palavras, saber se também associa os sujeitos à
elaboração das regras que os obrigarão. Esta par­
ticipação na criação do sistema estadal, é, de resto,-
o ponto de vista decisivo, que permite expor os
sentidos principais —, que são numerosos'—, do
conceito de direito subjectivo (Bereehtigung), por
uma forma ao mesmo tempo natural e sistemática..
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 67

"T'- Os «direitos subjectivos»:


A) Os direitos politicos

A elaboração do direito constitue, com efeito —,


já o indicámos e mais para diante teremos ocasião
de dizê-lo de maneira mais precisa —, um pro­
cesso no decurso do qual a regra jurídica, a
princípio geral e abstracta, se individualiza e se
concretiza gradualmente.
Há, por conseguinte, várias categorias de di­
reitos subjectivos, conforme o acto criador do
«direito subjectivo», como acto de participação
na elaboração do direito, dá origem a uma norma
geral ou a uma norma individual.
Se as leis, isto é, as regras gerais, são obra
imediata daqueles mesmo a quem obrigam, que
a elas ficarão subordinados, quere dizer, são obra
do povo, temos a democracia directa. A este sis­
tema - corresponde o direito do indivíduo parti­
cipar na assembléia do povo, de nela falar e votar.'
Se, porém, as leis são formuladas por uma
assembléia de representantes eleitos pelo povo,
estamos perante uma democracia indirecta, repre­
sentativa ou parlamentar. Então o processo de
elaboração das disposições gerais, da «formação da
vontade do Estado», decompõe-se em duas fases:
eleição dos deputados e votação pelo Parlamento.
Temos, então, dois direitos subjectivos: l.° — Um
68 TEORIA GERAL DO ESTADO

direito subjectivo dos eleitores —, que são um


grupo mais ou menos extenso de indivíduos:
o eleitorado; 2.° — Um direito subjectivo dos elei­
tos: o direito subjectivo de ser membro do Par­
lamento, o direito de, nêle, falar e votar.
São estes factos, estas condições da legislação,
que se consideram, essencialmente, como direitos
políticos. Podemos caracterizá-los, genèricamente,
como de ordinário se faz, dizendo que êles con­
ferem aos seus titulares uma participação na for­
mação da vontade estadal.
Isto tem o defeito de definir, de maneira dema­
siadamente restricta, a vontade do Estado, isto é,
o sistema do direito, que, como já vimos, com­
preende outras coisas além das regras gerais, das
leis; e, assim, nesta definição, todo e qualquer
direito teria a aparência de um direito político.
Por isso, não podemos deixar de distinguir entre
vontade geral e vontade individual do Estado.
Finalmente, se a regra geral não é, nem me-
diata nem imediatamente, criada pelo «povo»,
mas imposta por um só indivíduo, em face do
qual todos os outros são «sem direitos», e que é
o único a tê-los para com êles, o « povo » não tem
qualquer direito político, quere dizer, os indiví­
duos, à excepção de um só, não criam o direito: é
a autocracia. Mas, no entanto, existe um «povo»,
porque a característica essencial do «povo» é a
submissão obrigatória às regras jurídicas, à qual,
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 69

pelo contrário, escapa o « autocrata >, único titjrlar


de direitos, que, por consequência, não deve fazer
parte do povo—, o que é admitido, com efeito,
pela teoria pura do Estado autocrático.

B) Os modos de criação das obrigações:


° — Por acto unilateral: a) — O acto
l.
estadal imperativo

A criação de uma regra pode resultar de um


acto bilateral ou de um acto unilateral — con­
forme aquêle que vai ficar obrigado deva ou não
concorrer com uma manifestação de vontade para
o nascimento da sua obrigação.
Consideremos, em primeiro lugar, o segundo
caso, cujo exemplo típico é o acto estadal impera­
tivo: sentença ou ordem administrativa. Esses
actos são, hoje, interpretados como o exercício,
não de um direito subjectivo, mas de uma função.
E claro que uma coisa não exclue a outra: con­
sidera-se, por exemplo, o eleitor, ao mesmo tempo
como um órgão e como o titular de um direito;
e qualquer participação na formação da vontade
do Estado (é esta a definição oficial, pelo mpnos
dos direitos políticos) ó, necessàriamente, uma fun­
ção. Mas, nos actos estadais individuais, pratica­
dos por funcionários, o seu carácter de agentes
públicos faz desaparecer, visivelmente, o de partes
70 TEORIA. GERAL DO ESTADO

ou de interessados. No geral, não ó dos «direitos»


do órgão que se fala, mas da sua competência
e esta palavra designa, então, não só os limites do
seu poder jurídico, mas êsse próprio poder.
Há, no entanto, excepções: a mais caracterís­
tica ó a do monarca, cuja competência é, geral­
mente, qualificada de «direito».

B) —A acção judicial

E um outro exemplo de criação unilateral de


obrigações: certas regras jurídicas determinam
que a aplicação da sanção (e todo o processo que
a prepara) dependerá de uma manifestação de
vontade do indivíduo lesado, da acção judicial,
demanda ou recurso, que êle pode intentar. É um
direito subjectivo no sentido próprio da palavra.
E, efectivamente7 o interêsse individual é, aqui,
tomado em especial consideração. O presuntivo
interessado, em virtude da ordem jurídica ser
posta à sua disposição, participa, então, de ma­
neira particularmente importante, na formação da
vontade estadal, tal como ela se manifesta na sen­
tença pedida na «actio» ou no acto administra­
tivo reclamado.
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 71

B) 2.° — Por acto bilateral: o contrato

0 caso tipo do segundo modo de criação das


obrigações, é o acto jurídico chamado contrato.
Em virtude de uma regra geral e por efeito
de uma declaração de vontade concordante de
dois indivíduos, ambos são, ou só um deles é,
obrigado a fazer certas coisas previstas no con­
trato. E o caso-tipo do direito individual, subjec­
tivo; e no entanto, ainda neste caso, pelo nome de
direito subjectivo, se designa, evidentemente, um
acto de participação na «formação da vontade
estadal», na criação do direito. Na verdade, em
•que consiste essa « autonomia da vontade», senão
no facto da lei delegar nas partes contratantes,
para elas próprias determinarem o conteúdo das
regras jurídicas individuais, por outras palavras,
prosseguirem o processo de criação do direito.
Se, ao falarmos aqui em «direito subjectivo», qui-
,sermos aludir à participação no processo de cria­
ção do direito objectivo, poderemos então — como
habitualmente se faz — distinguir o « direito » que
se exerce pela conclusão do contrato, do direito
que se manifesta na demanda ou no recurso, por­
que se trata, realmente, de momentos diferentes
desse processo. Mas a teoria tradicional não ex­
prime com clareza esta distinção, quando diz que
X) primeiro dêsses direitos faz valer uma pretensão
72 TEORIA GERAL DO ESTADO

contra o contratante e o outro uma pretensão con­


tra o Estado —, a obrigação da autoridade estadal
ter uma certa conduta.

2^ Direito público e direito privado

0 pedido formulado contra o Estado na < actio*,


assim como outros factos de participação na for­
mação da vontade estadal, são, com frequência,
incluídos nos direitos públicos subjectivos, ao
passo que a demanda dirigida contra o contra­
tante é considerada um direito subjectivo pri­
vado.
Infelizmente, o uso que se faz, hoje em dia, da
distinção entre direito público e direito privado,
é muito incerto e, por vezes, contraditório. Para
lhe fixar, aproximadamente, a significação, temos
de encarar essa oposição como uma divisão das
relações de direito —, quere dizer, das obrigações
e dos direitos subjectivos —, por consequência,
das regras jurídicas individuais, segundo a forma
porque elas são estabelecidas. Tendo em conside­
ração o carácter essencial que lhe reconhecemos,
trata-se de saber se a obrigação jurídica — à qual
pode corresponder um direito subjectivo — nasce
com ou sem a colaboração do futuro obrigado, ou
melhor, por uma manifestação de vontade unila­
teral do detentor do direito, ou pelo concurso das
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 73

vontades dêste e do obrigado. No primeiro caso,


a relação será de direito público, no segundo será
de direito privado.
0 critério é, portanto, o mesmo que serve para
a distinção das formas políticas, isto é, da auto­
cracia e da democracia: participação ou não par­
ticipação do sujeito da regra de direito na sua
elaboração. Ambas as distinções opõem dois méto­
dos de criação das regras de direito, mas uma
das regras gerais, a outra, pelo contrário — a pri­
meira —, das disposições individuais. Esta não se
deduz, portanto, da essência do próprio direito;
é um puro fenômeno de direito positivo. E, natu­
ralmente, possível que êste último ligue certas
consequências a esta diferença de método na ela­
boração das regras individuais —, por exemplo,
que a irregularidade de um acto de direito público
só tenha como sanção a sua anulação, ao passo que
a de um acto de direito privado arrastaria a sua
nulidade ab initio.
Mas estas diferenças são, também, o resultado
de prescrições positivas, que não são impostas
pela essência do direito em geral, nem pela do
direito público ou do privado em especial l1).

(1) Kelsen consagrou ao problema da distinção entre


o direito público e o direito privado uma boa parte do seu
livro Allgemeine Staatslehre, dando-lhe grande desenvolvi­
mento. Resumidamente, diz o seguinte:
74 TEORIA GERAL DO ESTADO

/
As liberdades individuais

Entre os direitos subjectivos ainda, geralmente,


4 inclaida a liberdade individual, compreendida
como a ausência de regras obrigatórias sôbre
determinado ponto. Até, no geral, se apresenta
uma grande lista desses direitos subjectivos do

Podem distinguir-se três teorias capitais sôbre o cri­


tério e o objecto desta divisão do direito.
1. a— A teoria dos interêsses. Segando esta teoria, o di­
reito público seria o conjunto das regras jurídicas que
têm em vista o interêsse geral e o direito privado seria o
conjunto das que são formuladas no interêsse individual.
Trata-se de um ponto de vista meta-jurídicò: não
podemos dividir as rogras de direito em vis^a do seu fim,
mas unicamente segundo o sou conteúdo ou a sua estruc-
tura. De resto, cada uma delas tem em vista os dois inte­
rêsses ao mesmo tempo: «Sempre que uma regra protege
um interêsse individual é de interêsse colectivo >, quer se
trate de uma regra de «direito público > ou de < direito
privado ». Num certo sentido, a distinção coincidiría com
a do direito objective e do direito subjectivo: o interêsse
protegido ou direito subjectivo, é sempre o interêsse indi­
vidual; a protecção do interêsse ou direito objective, é
sempre o interêsse colectivo.
Conclusão: esta oposição, podendo ser aplicada a tôdas
as relações de direito, não permite qualquer distinção
entre elas.
2. a — Direito imperativo e direito suplectivo. Esta oposição
encontra-se em todos os ramos do direito. O contrato apa-
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 75

indivíduo, dessas liberdades individuais: direito


à liberdade da pessoa, isto é, o direito de não ser
prêso ou de só o ser em determinadas circunstân­
cias;— o direito de exprimir livremente o pensa­
mento, especialmente a liberdade da imprensa; —
o direito à liberdade de pensamento e de consciên­
cia;— o direito à liberdade de associação e de
reünião;—direito à liberdade de ciência; — direito

rece, também, fora do direito privado e as ordens indivi­


duais'nem sempre são de direito público (ex.:— patrão
, e operário); o mesmo acontece quanto à disposição que
j resulta do facto da aplicação da sanção ter, às vezes, como
/ condição, uma manifestação de vontade do interessado.
\ Esta distinção assenta, de resto, igualmente na idea
fundamental da < teoria dos interêsses »: o interêsse colec-
•.tivo é tomado em maior consideração nas disposições
imperativas.
8.a — Teoria da superioridade (Mehrwertstheorie). Esta
r. teoria procura distinguir umas das outras as próprias
I relações de direito: as relações de direito privado, que,
então, se chamam, simplesmente, «de direito», poriam em
l presença pessoas iguais; nas relações de direito público,
'VÍ
ou «relações de poder» ou de «dominação», interviriam
dois sujeitos desiguais. O critério de distinção seria, por­
tanto, a diferente qualidade dos sujeitos em presença.
O Estado teria um valor jurídico superior. Partindo dêste
' critério, podem incluir-se na segunda categoria as rela­
ções entre titulares do poder público, mesmo que sejam
iguais.
Critica: l.a — Esta teoria assenta numa falsa concep­
ção da relação de direito. A relação de direito não resulta
76 TEORIA GERAL DO ESTADO

à liberdade da propriedade, isto é, que o Estado


não atente contra a propriedade individual; —
direito de livre emigração, etc.
Todavia, como se conclue do que anteriormente
expusemos, isto não são direitos. O que está fora
do direito não é direito; a «liberdade*, que con­
siste em escapar às garras das regras de direito,
é um conceito jurídico puramente negativo.

de uma «qualificação jurídica» de relações anteriormente


existentes entre certos sujeitos. Os sujeitos de direito
fazem parte da ordem jurídica e não se lhe opõem como
entidades diferentes. A relação de direito é, na realidade,
uma relação entre factos e não uma relação entre pessoas.
Os sujeitos são simples personificações de um certo sis­
tema de regras. Só é possível fazer entre êles uma única
distinção, conforme personificam o sistema total do direito
ou um sistema parcial de normas. 2.a—Em que consisti­
ría, com efeito, essa superioridade jurídica reconhecida
a certas pessoas? Residiría no fundamento da obrigação
jurídica — acordo de vontades num caso, acto unilateral
no outro — e no agente da sanção. Ha veria, portanto, entre
os dois ramos do direito, uma diferença de principio. Mas
encaremos os factos, quere dizer, a conduta individual e
não as pessoas: num e noutro caso, a fôrça obrigatória da
manifestação de vontade, por outras palavras, do acto
jurídico, resulta de uma regra geral, que dêle faz a condi­
ção de certos efeitos de direito. A ordem administrativa
e o contrato assentam, igualmente, em última análise
sobre a Constituição. Quando o direito determina « obede­
çam às ordens de certos e determinados indivíduos», ou
« conformem-so com os contratos que tenham realizado»,
A VALIDADE DA OBDEM ESTADAL 77

Mas é, igualmente, evidente que o domínio da


liberdade jurídica não se deixa decompor num
número limitado de liberdades especiais. O indi­
víduo tem a liberdade de praticar qualquer acto,
desde que o acto contrário não seja objecto de
uma obrigação jurídica. E, por conseqüência, tanto
teriá o direito de respirar, ou de passear, etc.. ..,
como o direito de exprimir livremente a sua opi-

e castiga a violação da ordem ou do contrato, exige, como


condição da obrigação, uma manifestação de vontade que,
nos dois casos, continua o processo de criação do direito,
individualizando regras gerais: ordem «soberana» e con­
trato são, com efeito, duas regras individuais. E as rela­
ções entre o acto de coacção e uma ou outro, são as mesmas.
A idea de que, no primeiro caso, a pessoa que aplica a
sanção é a mesma que faz nascer a obrigação e no segundo
caso, pelo contrário, é uma pessoa diferente, resulta de
uma ilusão provocada pela personificação.
Quando consideramos os indivíduos cuja conduta é
regulada pela regra, verificamos que, no geral, a ordem
e a sanção não emanam do mesmo indivíduo. Os actos de
um e do outro, são, igualmente, «imputados» ao Estado:
o que exprime, simplesmente, a unidade do sistema que
os regula.
Lato sensu, o contrato é, também, um acto estadal,
porque pode ser relacionado com a ordem tomada na sua
unidade. O facto do agente da sanção ser designado pelo
indivíduo cuja ordem criou a obrigação, pode ser uma
importante diferença técnica, mas não constitue o princí­
pio de uma distinção essencial entre relações de direito;
porque, também numa relação de direito privado, é precisa
78 TEORIA GERAL DO ESTADO

nião ou de pertencer à religião que mais lhe agra­


dasse. Fora da ordem estadal — e esta esfera, que
a teoria se esforça por encher com as liberdades
individuais, é estranha à ordem jurídica — não
pode haver outro «direito», além do direito natu­
ral. Por isso, ninguém pode, juridicamente, rei­
vindicar uma liberdade contra o Estado, ou —,
como tantas vezes se diz —, uma abstenção dêste.

uma manifestação de vontade de, pelo menos, um dos


indivíduos que criaram a obrigação (acção judicial), para
que'intervenha a sanção. Não há, portanto, factos jurí­
dicos que tenham um valor superior aos outros; todos têm
o valor que lhes atribue o sistema do direito, quere dizer,
as regras de grau superior.
O direito pode ligar certas conseqüências jurídicas
a acontecimentos exteriores: todavia não se afirma que
êles tenham um valor superior por darem origem a obri­
gações, sem o consentimento dos indivíduos.
De resto, esta divisão das relações de direito de har­
monia com o carácter do acto que as funda, não coinci­
diría, por forma alguma, com a divisão tradicional das
matérias pelo direito público e pelo direito privado.
A distinção entre direito público e direito privado,
está estreitamente relacionada com a oposição entre Es­
tado e Direito e com um dos seus corolários, segundo o
qual a administração não seria execução das leis, mas
actividade «livre», «no quadro da lei».
Portanto, se Estado e Direito designam uma só e única
realidade—, um sistema normativo—, não pode haver
diferença de natureza entre direito público e direito pri­
vado. .
k VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 79

A protecção das liberdades individuais


pela Constituição

Esta teoria está, no entanto, relacionada com


uma prática, de resto muito discutível, das Cons­
tituições modernas, as quais, em regra geral, con­
têm, com efeito, uma lista dos «direitos indivi­
duais». Nascidos da doutrina do direito natural,
que admitia que o Estado é limitado por regras
absolutas, com uma origem a êle estranha, são
hoje, como elementos do direito positivo, o objecto
de normas estadais.
Se os considerarmos como proibições que o
Estado formularia contra si mesmo, como regras
pelas quais êle se interdiría certas intervenções
na esfera das liberdades dos súbditos, são, pelo
menos, supérfluos. Na verdade, o que significa^
proibir certos actos estadais, se êsses actos, em-
quanto não são expressamente ordenados, em-
quanto certos indivíduos, na qualidade de órgãos
do Estado, não forem autorizados, ou melhor,
obrigados a fazê-los, não são juridicamente possí­
veis? 0 indivíduo tem o direito de fazer tudo o
que não lhe é proibido pelo Estado, isto é, pelaa
regras de direito. O Estado, ou antes, o indivíduo
que é o seu órgão, só pode, por seu lado, fazer
aquilo que o direito expressamente lhe permite.
Porque, para ter o carácter de acto estadal, um
80 TEORIA. GERAL DO ESTADO

facto necessita de estar juridicamente regulado.


Isto é verdadeiro, não só quando ao Estado de
direito (Bechtsstaat) no sentido técnico da ex­
pressão, mas até quanto ao Estado autocrático.
Somente, neste último caso, o princípio da lega­
lidade dos actos estadais individuais não manifesta
claramente a sua existência, porque está, implici­
tamente, admitido, que todos os actos do autócrata
constituem leis.
Portanto, se as Constituições modernas contêm
uma lista das liberdades individuais, com a afir­
mação de que o Estado não tem o direito de
intervir nesta ou naquela esfera livre, absoluta­
mente em nada se modificaria o conteúdo do
direito com a eliminação de semelhante regra —,
pelo menos sempre que ela não serve para retirar
ao Estado um poder que êle, até essa data, tivesse.
A sua inutilidade torna-se particularmente clara
quando se formulam essas regras —, o que é fre­
quente—, pela maneira seguinte: o Estado não
deve intervir em certas esferas de liberdade, a
não ser baseado numa lei. Porque qualquer acto
estadal supõe êsse fundamento legal.
Estas consagrações das liberdades individuais
só têm um sentido verdadeiro quando revestem a
forma de leis constitucionais, quere dizer, quando,
para modificar os textos que as consagram, é pre­
ciso realizar certas condições suplementares, como,
por exemplo, reünir uma maioria excepcional.
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 81

Então, com efeito, só uma lei de revisão consti­


tucional poderá autorizar essa intervenção na
esfera de liberdade garantida, que, assim, goza,
realmente, de uma protecção jurídica reforçada,
sem, de resto, se tornar, por isso, objecto de um
«direito». Mas a garantia constitucional não deve,
como, por vezes, acontece, tomar a forma seguinte:
a propriedade é inviolável, excepto nos casos de
expropriação previstos na lei; ou: a expressão do
pensamento é livre, nos limites fixados pela lei.
Porque, então, a Constituição, autorizando as leis
ordinárias a regular a liberdade em questão, su­
prime imediatamente a garantia que acaba de
estabelecer.

O papel essencial da obrigação

Não é necessário que os sujeitos passivos das


regras de direito, isto é, «o povo», ao mesmo
tempo que têm obrigações, tenham direitos sub­
jectivos. Ao passo que a ordem estadal deve, por
essência, obrigar um grupo de indivíduos, que um
grupo de indivíduos só forma um Estado quando
a sua conduta é determinada por meio de regras
jurídicas obrigatórias, é possível, mas não neces­
sário, que estas lhes dêem, por seu turno, direitos
subjectivos, associando-os à criação da ordem jurí­
dica, quere dizer, fazendo de um acto da sua
6
82 TEORIA GERAL DO ESTADO

parte a condição de certas regras gerais ou indi­


viduais.
E evidente que não é necessário que o povo
tenha direitos políticos. Mesmo nos Estados mo­
dernos, ainda não há muito tempo que os súbdi­
tos participam, também, no trabalho legislativo.
E, ainda hoje, o grau dessa participação é muito
variável. E evidente que as mulheres também
fazem parte do povo, porque o direito lhes impõe
obrigações; mas ainda não alcançaram direitos
políticos em toda a parte. A democracia não é
uma forma necessária do Estado.
Mas, mesmo em matéria de regras indivi­
duais, o ideal da autocracia consiste em ser um
só homem—, que não está pessoalmente subme­
tido à ordem estadal stricto sensu e que, por con­
seqüência, não faz parte do «povo»—, quem as
formula. É certo que esta idea não é susceptível
de ser absolutamente realizada. Mas traduz-se na
ficção segundo a qual os indivíduos de que o
autocrata é obrigado a servir-se para legislar ou
administrar, aos quais deve, por conseqüência,
dar um papel na formação da vontade estadal,
são, apenas, seus representantes, êle próprio, por
assim dizer, os seus alter ego. Em todo o caso,
o número dêsses homens é, relativamente à massa
do povo, infinitamente pequeno. E mesmo nas de­
mocracias modernas, o princípio democrático, isto
é, os direitos políticos, limitam-se à participação
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 83

do povo na legislação, continuando a execução—,


justiça e administração —, a ser organizada se­
gundo o princípio autocrático. Actualmente, os
sujeitos passivos das normas não têm, verdadeira­
mente, o direito político geral de colaborar no
executivo como colaboram no legislativo; a evo­
lução nesse sentido ainda está no início.
Mas mesmo a forma de direito subjectivo que
consiste em a ordem jurídica ser posta à disposi­
ção do indivíduo para a protecção dós seus inte­
rêsses por meio da actio (demanda ou reclamação),
mesmo essa espécie de participação na formação
da vontade do Estado, não é da essência dêste,
como poderia fazê-lo pensar o facto desta moda­
lidade de técnica jurídica ser extremamente usual,
até nas monarquias absolutas.
A acção individual junto da justiça, condicio­
nando a aplicação da sanção, está por tal forma
ligada ao princípio da propriedade privada, que
um sistema político que não reconhecesse esta,
por exemplo o Estado socialista, não teria de
fazer uso dêste processo. Um estado dêsses não
conferiría direitos subjectivos, neste sentido. Mas,
se renunciar a estabelecer obrigações jurídicas,
isto é, a estabelecer sanções para certos factos,
essa ordem deixará de ser um Estado, porque já
não será uma ordem de coacção.
Idênticamente, não é essencial à idea da ordem
estadal dar o menor lugar à autonomia da vontade.
84 TEORIA GERAL DO ESTADO

Saber até que ponto isso é possível, é umá


questão diferente.
Com efeito, nós só discutimos aqui um pro­
blema: só a relação passiva dos indivíduos com
as regras de direito é essencial ao Estado, ou
também o é a relação activa?

A nacionalidade

Na verdade, nem sequer é essencial à ordem


estadal a organização da protecção do indivíduo,
quere dizer, que ela faça corresponder uma san­
ção a qualquer acto lesivo da vida, da saúde, da
honra ou dos interêsses econômicos dos indiví­
duos. Até certo ponto, isto constitue, geralmente,
um elemento da ordem jurídica. Mas o número
dos indivíduos assim protegidos é muito variável.
Lembremo-nos dos Estados em que uma grande
parte, talvez a maioria, dos indivíduos, os escra­
vos, não gozam desta protecção. O estranjeiro,
sinônimo de «inimigo», de início não é protegido
e não tem o menor direito. A pouco e pouco,
foi-lhe concedida uma protecção e até, mais tarde,
lhe foram reconhecidos direitos. Ao indivíduo sem
protecção e sem direitos ou ao estranjeiro que
tem menos direitos, opõe-se o nacional.
Esta noção de nacional ainda hoje tem sua
importância, em virtude do estranjeiro ainda não
A VALIDADE DA ORDEM ESTaDAL 85

ter todos os direitos. É, porém, certo que, de uma


maneira geral, no que se refere aos chamados di­
reitos privados e a uma parte dos direitos públicos,
está em pé de igualdade com o nacional.
Ele pode, por exemplo, exactamente como o
nacional, reclamar das . autoridades, em seu pro­
veito, a protecção da ordem jurídica, por meio de
uma acção. Mas continua a não ter os chamados
direitos políticos strieto sensu.
Também não está sujeito ao serviço militar
obrigatório, nos países em qué êste existe. Quanto
ao mais, em matéria de deveres, a situação do
estranjeiro é, em princípio, a mesma do cidadão.
O dever especial de obediência e fidelidade dos
nacionais, cuja existência tem, por vezes, sido
afirmada, não passa de um postulado de moral polí­
tica, sem qualquer significação jurídica, emquanto
não é expresso em sanções ou obrigações jurídicas
concretas.
As autoridades políticas só podem expulsar
do território do Estado os estranjeiros e não os
nacionais, excepto, por vezes, em circunstâncias
particulares, a título de penalidade para certos
delitos.
Só os nacionais gozam, no estranjeiro, da pro­
tecção diplomática dos representantes do seu país.
São estes os aspectos mais frequentes da ins­
tituição da nacionalidade, no direito moderno.
Relativamente à aquisição e à perda da nacio­
86 TEORIA GERAL DO ESTADO

nalidade, os diversos direitos contém disposições


francamente divergentes.
A nacionalidade é, sem dúvida, uma institui­
ção geral dos Estados modernos, mas também não
é essencial ao Estado. Não há Estado sem súbdi­
tos, mas pode havê-lo sem nacionais. E, na medida
em que está submetido às regras estadais, também
o estranjeiro faz parte do povo. Mesmo que não
tenha direitos, mas apenas obrigações. O povo
não é formado só pelos nacionais; estes formam,
somente, no seio do povo, um grupo de indiví­
duos munidos de direitos e sobrecarregados de
obrigações em elevado número.

SECÇÃO III

«
A organização territorial do Estado

(Teoria da centralização e da descentralização:


teoria das uniões de Estados)

Descentralização total ou parcial

A organização territorial do Estado resulta


das disposições que, no interior do seu território,
regulam a validade local das normas jurídicas.
Com efeito, estas, ou têm tôdas o mesmo
domínio de validade —, todo o território do Es-
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 87

tado —, ou, pelo contrário, umas são válidas para


todo o território e outras apenas para uma parte
desse território: chamaremos às primeiras normas
«entrais e às segundas normas não-centrais ou
locais. As normas locais formam ordens jurídicas
parciais, constituem*comunidades jurídicas subor­
dinadas, que são consideradas como «membros»,
territorial mente diferenciados do Estado. Esta
forma de organização territorial do Estado, ó a
< descentralização >.
O grau de descentralização — e, por conseqüên­
cia, de centralização, porque os dois termos são
correlatives — depende da proporção, em número
e em importância, das normas centrais e das nor­
mas não-centrais. A centralização seria total se
tôdas as regras do sistema estadal, sem excepção,
fossem válidas em todo o território; # descentra­
lização seria total se cada regra fôsse válida só
para uma parte dêsse território. Neste segundo
caso, para estarmos em presença de um todo orga-
nizadoi de uma comunidade unitária descentrali­
zada, é, ainda, necessário supormos, pelo menos,
uma norma hipotética fundamental, válida para
todo o território e de harmonia com a qual tôdas
as regras ulteriormente formuladas só serão váli­
das para uma parte dêsse território.
Mas, de-facto, nunca nem um nem outro dês-
tes casos-límites foi realizado em direito positivo.
Entre estes dois extremos escalonam-se todos os
88 TEORIA GERAL DO ESTADO

tipos parciais de descentralização e, por conse­


quência, de centralização.
A separação das diferentes normas em centrais
e não-centrais pode operar-se segundo dois prin­
cípios: ou por graus da ordem jurídica (exemplo:
tôdas as leis constitucionais serão válidas em
todo o território; qualquer outra norma, quer
seja geral ou individual, só terá validade em
certa parto dêsse território); ou —, independente­
mente do grau —, por matérias, por objectos de
regulamentação (exemplo: as regras de direito
civil serão normas centrais; as regras de direito
industrial, pelo contrário, serão normas puramente
locais).

O elemento estático e o elemento dinâmico

0 critério de distinção entre a centralização e


a descentralização é, portanto, a diferente exten­
são do território para que são válidas as regras
jurídicas —, o que é um elemento estático.
Mas, subsidiàriamente, podemos, também, es­
tudar, sob um ponto de vista dinâmico, a forma
como essas regras são criadas e, por conseguinte,
a natureza dos órgãos que as formulam.
São possíveis dois sistemas: as normas centrais
e as normas locais são formuladas por um só e
único órgão ou por órgãos diferentes.
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 89

Em boa verdade, nenhum dos dois sistemas


caracteriza, exclusivamente, uma ou outra das for­
mas de organização territorial do Estado. Todavia,
o carácter centralizador de um Estado revela-se
mais profundamente, quando tôdas as normas cen­
trais são criadas por um único órgão, que será
quanto possível simples; mas um Estado não é
descentralizado só porque essas normas são esta­
belecidas por diferentes órgãos, ou provenientes de
actos diferentes de um só órgão (por exemplo, con­
forme a matéria regulamentada: sistema dos depar­
tamentos administrativos). Inversamente, nada se
oporia, teoricamente, a que, num Estado descen­
tralizado, tôdas as regras locais, ou mesmo tôdas
as regras tanto centrais como locais, fôssem cria­
das por um único órgão, ou melhor, por um único
agente, ainda que por meio de actos diferentes:
haveria, então, união pessoal entre os órgãos das
diversas ordens subordinadas, ou mesmo entre
órgãos centrais e órgãos locais. Evita-se, de resto,
empregar êste último sistema, precisamente por­
que a descentralização deve permitir regular dife­
rentemente uma mesma matéria para as diver­
sas partes do território do Estado; instituem~se,
de preferência, órgãos próprios para cada uma
delas.
SO TEORIA GERAL DO ESTADO

Descentralização perfeita ou imperfeita

Descentralização total ou descentralização par­


cial, é uma questão de grau de descentralização.
Impõe-se uma outra distinção, essa qualitativa,
entre descentralização perfeita e descentralização
imperfeita.
A descentralização ó perfeita quando as nor­
mas locais são estabelecidas de maneira: l.° defi­
nitiva; 2.° independente.
1.°—Definitiva: isto é, sem que as normas
centrais possam revogá-las ou substituir-se a
' elas.
2. °—Independente: quere dizer, sem que as
normas centrais tenham qualidade para lhes modi­
ficar o conteúdo.
A descentralização é, pelo contrário, imper­
feita, quando falta o primeiro ou o segundo dês-
tes elementos.
Exemplo do primeiro caso: um Estado federal
admite o princípio de que <as leis federais estão
acima das leis dos Estados federados» (Bundes-
rechi bricht Landrecht); exemplo do segundo caso:
a lei central fixa os princípios da regulamenta­
ção, de que a lei local só terá de estabelecer os
detalhes.
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 91

Classificação das colectividades jurídicas


segundo o seu grau de descentralização

Conforme o seu grau crescente de descentrali­


zação, as colectividades jurídicas podem classifi­
car-se pela maneira seguinte:

A) O Estado unitário:
l.° — A descentralização administrativa

E uma forma de descentralização imperfeita,


no domínio do executivo. O Estado é, neste caso,
geralmente dividido em províncias administrati­
vas ou judiciárias, as províncias em departamen-
í tos, os departamentos em circunscrições. -Estas
.' divisões delimitam os territórios para os quais
serão válidas as regras individuais (decisões admi­
nistrativas ou sentenças) que os órgãos hierar-
quizados (ministro, governador de província, pre­
feito, sub-prefeito;—Supremo tribunal, Tribunal
provincial, Tribunal de apelação, Tribunal de
circunscrição) são chamados a formular.
A execução —, que consiste em aplicar a lei,
estabelecendo regras individuais —, produz-se, pri­
meiro, no quadro da mais pequena divisão. Mas
a sentença do Tribunal de circunscrição ou a
decisão do sub-prefeito, não são definitivas. Pela
92 TEORIA GERAL DO ESTADO

via hierárquica, isto é, a requerimento dos interes­


sados, o órgão superior pode anulá-las ou modifi­
cá-las. Mas, em matéria judicial, a regra superior
não pode determinar o conteúdo concreto da regra
inferior; é nisso que a justiça difere da adminis­
tração: os Tribunais são, em princípio, indepen­
dentes, as autoridades administrativas não o são.

A) 2.° — As colectividades descentralizadas


(Selbstverwaltungskorper)

Estas colectividades nascem da autonomia


administrativa, que é uma combinação da des­
centralização com o princípio democrático, quere
dizer, com o princípio da auto-determinação.
O órgão instituído para formular as regras
locais individuais e também certas regras gerais,
é eleito por aquêles a quem elas irão obrigar.
A ordem assim criada dá origem às colectivi­
dades descentralizadas ou locais, cujo tipo é a
comuna.
A competência municipal é limitada, porque
a descentralização só atinge, aqui, certos objectos
e, em princípio, só se aplica às disposições indivi­
duais. No entanto, os órgãos da comuna podem,
por vezes, estabelecer regras locais gerais, dentro
do quadro das leis centrais —, os chamados «esta­
tutos autônomos».
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 93

A autonomia é perfeita quando a descentrali­


zação é perfeita; pelo menos em relação aos órgãos
centrais do Estado, construídos segundo o princí­
pio autocrático. Na realidade, estes não deixam de
ter, na maioria dos casos, um direito de fiscaliza­
ção; podem anular, quando não podem modificar,
os actos ilegais da colectividade descentralizada.
Várias colectividades administrativas autôno­
mas podem reünir-se formando um agrupamento
superior; então, já não há apenas um, mas dois
graus, pelo menos, de administração autônoma
democrática: neste caso, a descentralização pode
ser menor nas relações entre as colectividades
locais inferiores e a colectividade local superior.
Nada se opõe, até, à sua ligação hierárquica e a
que se conceda à instância superior o poder de
anular, e até de modificar, os actos da instância
inferior.
Porque, se os órgãos da administração autô­
noma atingiram, no Estado moderno, um alto grau
de descentralização, isso deve-se, principalmente,
ao facto do Estado e, em especial, as suas autori­
dades centrais, serem organizadas segundo o prin­
cípio autocrático, ao passo que os órgãos locais,
em especial as comunas, sempre têm tido uma
constituição democrática.
Descentralizar êsses órgãos políticos autôno­
mos, era excluir a influência dos órgãos centrais
autocráticos. A luta pela autonomia administra­
94 TEORIA GERAL DO ESTADO

tiva não é mais do que uma luta pela democracia.


Afirmar que as colectividades descentralizadas têm
um direito próprio em face do Estado, como tan­
tas vezes fazem os teóricos, ó erigir em exigência
de direito natural um postulado político. Hoje,
com a democratização geral do Estado, já não há
motivo, nem sequer político, para estabelecer uma
oposição de princípio entre administração estadal
e administração autônoma.
A administração autônoma aparece-nos, ape­
nas, como uma forma especial da administração
estadal.

B) Os «Países» (Ã)

No sistema dos «Países» (Lãnder), a descentra­


lização aplica-se também às normas gerais. Tanto
a execução como a legislação são partilhadas entre
órgãos centrais e órgãos locais; as comunidades
subordinadas que estes últimos representam, cha­
mam-se «países».

(1) E esta, como se sabe, a expressão empregada pela


Constituição alemã de 1919 e pela Constituição federal
austríaca de 1920; o artigo 2.° desta é assim redigido:
« O Estado federal (austríaco) é formado pelos Países autô­
nomos (selbsttindige Ldnder)... (segue-se a sua enumera­
ção)».
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 95

É, de resto, difícil distinguir os Países das


colectividades descentralizadas de uma certa im­
portância, especialmente dos agrupamentos de
comunas (Kommunalverbãnãe) ou «províncias au­
tônomas», sobretudo se, por um lado, estas colec­
tividades possuem uma certa competência em
matéria legislativa (pelos «estatutos autônomos»,
a que, por vezes, chegam a chamar «leis provin­
ciais») e se, por outro lado, os órgãos legislativos
e, eventualmente, até os órgãos executivos dos
«Países», têm um carácter democrático, isto ér
são eleitos. Nesse caso, os «Países» apenas se dis­
tinguem pela sua competência legislativa mais
extensa.

C) O Estado federal e os seus Estados-membros

O Estado federal é caracterizado por dois


factos:
l.° — Da execução e da legislação ordinária,
a descentralização estende-se à legislação constitu­
cional.
As autoridades locais têm, nesta matéria, uma
competência limitada ou ilimitada, conforme a
Constituição central traça ou não um quadro às
Constituições locais. Pode dizer-se que existe,
ássim, uma autonomia constitucional, de resto
mais ou menos extensa.
«6 TEORIA GERAL DO ESTADO

Mas êste primeiro facto não é suficiente para


caracterizar o Estado federal, porque essa auto­
nomia, também, rigorosamente, pode encontrar-se,
pelo menos até um certo ponto, no sistema dos
«Países». Para que os membros do Estado federal
constituam Estados, é preciso além disso:
2.°—Que participem na legislação ou, até, na
execução central.
Tècnicamente, realiza-se esta condição com­
pondo o órgão legislativo de dois corpos: uma
Assembléia eleita pelo povo inteiro (Câmara popu­
lar, Volkskammer), e uma Câmara formada pelos
delegados dos Parlamentos ou dos governos locais
{Lãnde>kammer, Câmara dos Estados).
E esta organização do poder legislativo central
que caracteriza o Estado federal. A Câmara dos
Estados pode, além disso, estar, também, associada
à execução central.
O Estado federal apresenta, em geral, ainda
uma outra característica: a igualdade de influência
de todos os Estados-membros na Ldnderkammer
sobre a formação da vontade estadal, porque cada
um dêles dispõe de igual número de votos, isto é,
de representantes, seja qual fôr a sua importância.
Mas esta regra tem excepções.
0 mesmo acontece quanto às relações entre a
Câmara popular e a Câmara dos Estados. Geral­
mente, as duas Câmaras são iguais, mas pode
suceder que uma seja privilegiada em relação à
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 97

outra, tendo, por exemplo, a Câmara dos Estados,


apenas voto suspensivo acêrca dos projectos de lei
votados pela Câmara popular.
O Estado federal será, portanto, caracterizado
por um certo grau e uma certa forma de descen­
tralização. Só o conteúdo da sua Constituição nos
permitirá qualificar um Estado como federal. Não
teremos que tomar em consideração a maneira
como o Estado se formou, quer tenha sido em
conseqüência de um tratado entre dois Estados,
até então soberanos, quere dizer, somente subor­
dinados ao direito internacional, quer, pelo con­
trário, tenha sido em virtude de uma lei, pela
qual um Estado unitário decidiu transformar-se
em Estado federal.
E o problema da soberania —, saber quem é
soberano: os Estados-membros ou a Confederação,
o Bund, as ordens locais ou a ordem central, ou
esta e aquelas ao mesmo tempo —, (problema que
tanto embaraça a doutrina), aparece, então, como
um pseudo-problema.

D) A Confederação de Estados
(paralelo com o Estado federal)

Mas então, se o Estado federal corresponde,


simplesmente, a um certo tipo de descentraliza­
ção, nenhuma diferença de princípio o separa da
7
98 TEORIA. GERAL DO ESTADO

Confederação de Estados. Esta só dele se distin­


gue por uma descentralização mais acentuada.

a) h divisão das competências

Como no Estado federal, encontramos na Con­


federação de Estados uma distribuição das com­
petências legislativa e executiva entre uma auto­
ridade central e várias autoridades locais.
Mas, no Estado federal, é a autoridade central
que possue as competências essenciais, ou, pelo
menos, a competência central e a local equili­
bram-se mais ou menos —, sendo, especialmente,
os negócios estranjeiros, tanto quanto possível,
inteiramente reservados à Confederação, ao Bund.
Pelo contrário, na Confederação de Estados, a
competência federal, do Bund, constitue a excep-
ção, tanto quanto à extensão como à importância;
os Estados-membros querem, em princípio, reser­
var para êles a competência total; só algumas
matérias lhes são retiradas; confiam-se, por exem­
plo, os negócios estranjeiros ao Bund, mas, geral­
mente, sem ser de maneira exclusiva, conservando
os Estados-membros, mesmo nestes assuntos, uma
certa competência ao lado da sua.
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 99

b) A legislação

Além disso, o órgão legislativo central, em vez


de sair do sufrágio popular directo, compõe-se de
delegados dos governos dos Estados confederados.
Todos os membros, pelo menos em princípio, lá
têm uma representação igual; para tomar uma
resolução exige-se, em geral, em certas matérias
importantes, especialmente para as alterações à
Constituição, não a simples maioria, mas a unani­
midade de votos.
E, coisa particularmente importante, as leis
centrais ou federais, não são imediatamente obri­
gatórias: só obrigam os cidadãos depois de serem
promulgadas pelos diferentes Estados.
O processo legislativo, sob este aspecto, só está
parcialmente centralizado; uma fase importante—
a promulgação, o acto final que confere a força
obrigatória —, é das atribuições das autoridades
locais.

c) O executivo

A organização do executivo federal é muito


rudimentar na Confederação de Estados; ainda
nisso, ela difere do Estado federal. Este possue,
ao lado do seu órgão legislativo, o seu próprio
100 TEORIA GERAL DO ESTADO

órgão governamental e, geralmente, também o


seu chefe de Estado próprio, como o Estado uni­
tário; na Confederação de Estados, pelo contrário,
é o órgão legislativo central quem, imediatamente
por si ou por intermédio de uma comissão, exerce
as atribuições centrais de ordem executiva.
Os actos do executivo também, como regra
geral, só possuem uma força obrigatória mediata;
mas as excepções são, aqui, mais frequentes do
que na legislação.
E conveniente assinalarmos a organização do
exército: a competência, nesta matéria, pertence
aos Estados-membros.
Normalmente, cada um deles fornece, em caso
de guerra, um determinado contingente militar e
todos êsses contingentes reunidos são colocados
sob o comando supremo de um general federal,
que pode ser eleito pelo órgão legislativo central
da Confederação ou imediatamente designado pela
Constituição federal.
As despesas da Confederação são cobertas pelas
contribuições dos diferentes Estados confederados.
No Estado federal, é à Confederação que pertence,
em princípio, a confecção e a execução das leis de
finanças, que obrigam imediatamente os súb-
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 101

d) K «execução federal»

Contra o Estado-membro ou o Estado confe­


derado que falta às obrigações que a Constituição
federal lhe impõe para com a Confederação, dispõe
esta da execução federal, sanção militar análoga
à guerra.
No Estado federal, sucede que esta responsabi­
lidade colectiva e restituitória (Erfolgshaftung) ((i)
*x)
ó substituída pela responsabilidade individual e
por falta (Schuldhaftung) do órgão do Estado-

(i) Por Erfolgshaftung entende-se uma responsabili­


dade que, sem tomar em conta a falta, visa, simplesmente,
a reparar o dano causado.
O têrmo «responsabilidade restituitória» é usado
pela escola sociológica francesa, e foi lá que o fomos
buscar.
E. Durkheim (A divisão do trabalho social, 4.B edição,
1920, páginas, 33-34) divide as sanções em restituitórias
e repressivas.
As sanções restituitórias «não implicam, necessaria­
mente, um sofrimento do agente; consistem, apenas, na
restituição das coisas ao seu Estado anterior, no restabe­
lecimento das relações perturbadas na sua forma normal,
quer o acto incriminado seja reconduzido à fôrça ao tipo
de que se desviou, quer seja anulado, isto é, privado de
todo o seu valor social».
As sanções repressivas consistem, essencialmente, «numa
dor ou, pelo menos, numa deminuíção infligida ao agente,'
102 TEORIA GERAL DO ESTADO

-membro que a Constituição federal encarregava


de executar as obrigações desse Estado, e que,
por conseqüência, uma jurisdição objectiva tem
de verificar a existência da infracção e pronunciar
a condenação (x).

E) As outras uniões de Estados

Nas uniões de Estados (Staatenverbindungen),


só são válidas para todos os membros certas dis­

têm por objecto atingí-lo na sua fortuna, na sua honra,


na sua vida ou na sua liberdade, privá-lo de qualquer
coisa que êle disfruta >.
P. Fauoonnbt (A responsabilidade, Paris, 1920) alarga
a classificação, acrescentando as «sanções aprovativas »»
isto é, « remuneratórias > ou « premiativas >, às sanções
repressivas, para com elas formar o grupo das sanções
retribuitórias.
Paralelamente, distingue a responsabilidade restituitória
e a responsabilidade retribuitória.
• /

(Nota do tradutor francês).

(!) «Falar de uma sanção dirigida contra o Estado,


nessa qualidade, no caso de êle não cumprir as suas obri­
gações, nada significa, porque êle nunca pode ser o sujeito
passivo de uma sanção...
Só a conduta individual pode ser objecto doumaobri-
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 103

posições individuais, quere dizer, certos actos exe­


cutivos, com exclusão das leis.

a) As Uniões

Este grupo compreende, antes de mais nada,


as Uniões (Unionen). A união é o laço que
existe entre Estados de monarca comum. Reveste
duas formas diferentes: a União real e a União
pessoal.

gação. Impor uma obrigação a um Estado, é obrigar um


indivíduo que deve, como órgão, executá-la e que, por
conseguinte, será designado pela Constituição do próprio
Estado.
Uma regra obriga um Estado a certo acto. Isto o que
quere dizer? Simplesmente que êsse acto é ordenado; quem
deverá fazê-lo, é uma questão que à Constituição do Estado
interessado compete resolver.
Suponhamos que a obrigação não é executada; o di­
reito pode reagir por duas maneiras diferentes: ou institue
uma sanção contra o indivíduo que violou a sua obrigação,
que agiu irregularmente, ou prevê, simplesmente, uma san­
ção em geral, sem lhe precisar a natureza, nem o paciente,
confiando a sua exacta determinação à discrição do órgão
encarregado de aplicá-la. Portanto, salvo disposições posi­
tivas em contrário, essa sanção poderá ser dirigida con­
tra todos os súbditos». (Allgemeine Staatslehre, § 31 C,
página 212).
104 TEORIA GERAL DO ESTADO

l.° — A União real

Trata-se de monarquias constitucionais, em que


os actos do monarca devem ser referendados por
um ministro responsável? Deverá haver ministros
comuns para os interêsses comuns, quere dizer,
aqueles para os quais os actos administrativos
valem, simultaneamente, para os dois Estados
unidos—, são, no geral, os negócios estranjeiros
e a guerra —; se assim não acontecer, os actos do
monarca deverão ser referendados pelos ministros
competentes dos dois Estados unidos. No primeiro
caso, todos os órgãos dos ramos comuns da admi­
nistração (representação diplomática e exército)
serão, também, comuns. Nada, de resto, exclue
a existência, ao lado do exército comum, de
um exército autônomo de cada um dos Estados
unidos.
A administração comum é juridicamente orga­
nizada por leis de cada um dos Estados unidos,
leis não comuns, mas de conteúdo idêntico. Em
conseqüência, é preciso tomar certas medidas para
assegurar a concordância dessas leis, instituir
comissões parlamentares comuns ou que se comu­
niquem mutuamente as suas resoluções. Assim se
esboça uma organização que tende a aproximar
a União da Confederação de Estados e, eventual­
mente, até, do Estado federal.
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 105

2.°—A união pessoal

Na união pessoal, o monarca é comum, mas


nenhum acto executivo é válido para os dois
Estados unidos.
Assim, não pode ser firmado nenhum tratado
internacional comum. O monarca comum deve,
para isso, assinar dois tratados, um para cada um
dos seus dois Estados. Só a pessoa do Chefe de
Estado é comum, mas não a função, nem, por
conseqüência, o órgão.

b) Protectorado

Chama-se protectorado a uma união entre dois


Estados, em que um dêles —, o Estado protec­
tor —, se obriga para com o outro a protegê-lo
internacionalmente, em especial contra os ataques
de terceiros Estados, renunciando o Estado pro­
tegido, em troca, ao exercício de certas funções.
Essas funções referem-se, especialmente, à polí­
tica externa e o Estado protegido é representado
em tôdas as relações internacionais ou nas mais
importantes dessas relações, pelo Estado protector;
por outras palavras, os actos executivos dos órgãos
do Estado protector valem, igualmente, nessas
matérias, para o Estado protegido.
106 TEORIA GERAL DO ESTADO

Por esta razão, chama-se ao protectorado união


não-paritária, para a distinguir, por exemplo, da
União real, com a qual, no resto, tem muitas
semelhanças.

c) Tratado Internacional

Finalmente, qualquer tratado internacional pelo


qual dois ou mais Estados assumem certas obri­
gações, seja qual fôr o seu fim, cria uma União
de Estados lato sensu.
Para classificar estas uniões é preciso, antes de
mais nada, ver se, em virtude do tratado que as
funda, certas regras de direito, gerais ou indivi­
duais, poderão ser vàlidamente formuladas para
todo o território dos Estados interessados. Segundo
a extensão e a importância dessas matérias comuns,
obteremos formações com maior ou menor analo­
gia com os tipos qualificados, num sentido mais
, restricto, como uniões de Estados — Estado fede­
ral, Confederação de Estados, Uniões, etc.

F) A comunidade jurídica internacional

A comunidade jurídica internacional é, tam­


bém, uma união de Estados.
O direito das gentes comum ou costume, é um
A VALIDADE DA ORDEM ESTADAL 107

sistema de regras gerais válidas para toda a comu­


nidade. A sua Constituição, isto é, a regra de
harmonia com a qual serão estabelecidas novas
regras gerais, está enunciada no princípio pactA
sunt servanda.
Com efeito, este princípio significa que regras
gerais válidas no território de dois Estados, podem
ser estabelecidas por um órgão formado de repre­
sentantes desses Estados, por uma decisão unâ­
nime. A designação desses representantes é entre­
gue, pelo direito das gentes, às Constituições dos
diferentes Estados. Os órgãos estadais que firmam
um determinado tratado internacional —, chefes
de Estado, ministros dos negócios estranjeiros,
Parlamentos —, constituem, por si, um órgão da
comunidade jurídica internacional, órgão geral ou
órgão parcial, conforme todos os Estados ou só
alguns participam dêsse tratado.
A comunidade jurídica internacional, repre­
senta, portanto, o tipo de uma ordem jurídica
parcialmente descentralizada. Por meio de trata­
dos internacionais, podem, em seguida, formar-se,
no interior desta comunidade, comunidades par­
ciais. Formações que, por assim dizer, se inserem
entre a comunidade total e as ordens jurídicas
parciais.

E assim que a idea de descentralização se


revela como o princípio fundamental de organi-
108 TEORIA GERAL DO ESTADO

zação das diferentes comunidades jurídicas, como


o verdadeiro principium individuaiionis, que, em
face da idea de unidade, do principium unitatis —,
a norma fundamental —, funda a diversidade
das formações jurídicas: ela é a lei que per­
mite ordená-las tôdas numa série rigorosamente
contínua, que, começando na simples comunidade
do contrato de direito civil, chega, insensivel­
mente, através da associação, da comuna, da pro­
víncia, do Estado-membro, do Estado unitário,
do Estado federal, das Uniões de Estados ou da
comunidade do tratado internacional, à comuni­
dade internacional universal.
CAPÍTULO III

A criação da ordem estadal


(Dinâmica)

SECÇÃO I

As suas fases: Os três poderes ou funções do Estado

Legislação e execução

A doutrina tradicional ensina que o poder


estadal, uno na sua essência, se divide em três
< poderes > coordenados —, legislativo, executivo
e judiciário—, correspondentes a três funções
fundamentais do Estado: legislação, administração
e justiça.
Mas, como já vimos, por «poder estadal» deve­
mos, na realidade, entender, simplesmente, a vali­
dade de um sistema jurídico. Por conseqüência,
êsse poder é, necessariamente, uno e indivisível;
qualquer função do Estado é uma função jurídica
110 TEORIA GERAL DO ESTADO

e, por conseguinte, a teoria das funções do Estado


deve encarar o funcionamento do direito, o seu
automatismo próprio, por outras palavras, a dinâ­
mica jurídica.
As funções do Estado são, portanto, funções
de criação do direito e o seu conjunto constitue
o processo, de multíplices fases, da regulamentação
jurídica.
Com efeito, o direito tem a característica de
regular a sua própria criação: tôdas as normas
jurídicas são estabelecidas de harmonia com as
prescrições de uma norma superior, e, por sua
vez, determinam, também, como será estabelecida
uma norma inferior. Criar uma norma é, por­
tanto, ao mesmo tempo, aplicar uma outra norma:
o mesmo acto é, simultaneamente, de criação e de
aplicação do direito.
No decurso dêsse processo indefinidamente re­
novado, que engendra formas cada vez mais con­
cretas, as normas adquirem um conteúdo cada vez
mais individualizado.
A oposição entre legislação e execução — legis
latio e legis executio —, compreendendo neste úl­
timo têrmo (lato sensu) ao mesmo tempo a juris­
dição e a administração, que ambas cabem, com
efeito, na noção mais larga de execução das leis,
reduzimos a duas as três funções tradicionalmente
indicadas —, e a oposição a que ela correspon­
dería entre criação e aplicação do direito, é, por-
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 111

tanto, não absoluta e rígida, mas relativa no mais


alto grau: exprime, simplesmente, a-relação de
duas fases sucessivas do processo de criação dó
direito.
Os três poderes encarados pela doutrina tradi­
cional correspondem, unicamente, a três pausas
que o direito positivo acentua especialmente, ou
que têm qualquer outra importância de ordem polí­
tica. < O que, na realidade, se verifica, não é, por
forma alguma, a coexistência do funções mais ou
menos isoladas ou até de natureza diferente, mas
uma sobreposição, uma hierarquia de regras jurí­
dicas, em que as mais altas condicionam as outras.

Os graus da ordem jurídica:


A) A Constituição

No alto dêste edifício, desta pirâmide jurídica,


encontra-se a regra fundamental ou primária, que
assegura a unidade do sistema jurídico no seu
movimento de criação —, mais precisamente, a
regra fundamental do direito internacional ou a
do direito interno nacional, conforme se admita
a primazia de um ou do outro direito. Esta regra
.tem por função instituir um primeiro órgão de
criação dô direito, e forma, neste sentido, a Cons­
tituição no significado teórico ou ideal da palavra,
aquilo a que chamaremos a Constituição hipotética.
112 TEORIA GERAL DO ESTADO

O legislador assim designado estabelece as


regras da legislação, por outras palavras, da
criação das normas gerais: é a Constituição po­
sitiva.
Com efeito, no sentido mais lato e material da
palavra, a Constituição é um sistema de normas
que regula a criação de outras normas. Num sen­
tido mais restrict©, só nela se compreendem as
regras sobre a criação das normas jurídicas dos
graus superiores, especialmente das leis. Neste
sentido, a Constituição ó apenas a escorva da
criação do direito, por assim dizer; é um simples
quadro, que só recebe um conteúdo positivo por
meio das leis, elaboradas de acordo com as suas
prescrições.
Há portanto, perfeitamente, razão para distin­
guir, por vezes, ao lado da simples legislação
e como uma função especial, a legislação constitu­
cional, ou, de acordo com a personificação cor­
rente, ao lado do poder legislativo, um poder
constituinte. Realmente, pode acontecer que a
Constituição submeta a revisão das leis constitu­
cionais a regras diferentes das que regulam a
confecção das leis ordinárias, ou porque insti­
tua ao lado do órgão legislativo ordinário, um
órgão propriamente constitucional —, uma Cons­
tituinte —, ou porque, mais simplesmente, só
sejam diferentes as formalidades, conservando-se
o mesmo órgão.
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 113

Desta distinção entre leis constitucionais e


leis ordinárias, resulta a noção de forma constitu­
cional, inexactamente qualificada de Constituição
no sentido formal.
Nesta forma constitucional, podem, em se­
guida, moldar-se outras matérias jurídicas diver­
sas da Constituição no sentido restricto e material
da palavra, quere dizer, das regras sobre legisla­
ção. Assim, por exemplo: as regras acêrca dos
actos supremos do poder executivo, por conse­
quência reguladoras da posição e da competência,
não só dos órgãos legislativos, mas também dos
órgãos executivos supremos; e também os cha­
mados direitos e liberdades fundamentais, isto é,
as limitações fixadas à intervenção do Estado em
certas esferas de liberdade do indivíduo. Devendo,
todo e qualquer acto estadal, ter uma disposição
legal que o autorize, exigir, para alguns dêles,
uma disposição constitucional, equivale a garantir
uma certa liberdade pela lei constitucional for­
mal. A não ser que esta delegue essa garantia na
legislação ordinária, dizendo, por exemplo: a li­
berdade de opinião é garantida nos limites fixados
pela lei. Esta forma de garantia não tem qualquer
valor ou significado.
Combinando os diferentes elementos, obtém-se
a noção corrente e muito lata de Constituição:
a Constituição é o conjunto das normas que regu­
lam a situação dos órgãos superiores do Estado
8
114 TEORIA GERAL DO ESTADO

e as relações entre o poder público e os indiví­


duos que lhe estão submetidos.

B) A lei e o regulamento

Um grau abaixo da Constituição —, com­


preendida no sentido restrict© e material que
precisamos —, está a legislação.
Legislar ó, no significado próprio, estabelecer
regras jurídicas gerais, seja qual fôr o órgão
legislativo —, órgão democrático ou autocrático:
Parlamento, monarca e Parlamento ou só mo­
narca. Todavia, a noção e a natureza da legisla­
ção só se distinguem claramente quando ela se
opõe, nitidamente, à execução, ou melhor, quando
o estabelecimento das regras gerais e o das re­
gras individuais, obedecem a regimes diferentes.
A diferença consiste, geralmente, no seguinte: o
povo —, ou os seus representantes —, participa na
confecção das leis, eventualmente em colaboração
com o monarca; a execução, pelo contrário, fica
nas mãos do monarca, sendo necessário conjunta­
mente com ministros responsáveis, ou, mais geral­
mente, nas mãos do chefe de Estado. Uma deci­
são do Parlamento (ou da assembléia do povo)
com a adjunção eventual do acordo do monarca,
representa, então, a forma legal ou lei no sentido
formal. Esta forma pode receber um conteúdo
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 115

diferente do das regras gerais, desde que a Cons­


tituição o permita —, por exemplo, disposições
individuais ou disposições sem valor jurídico,
quere dizer, sem caracter obrigatório —; e assim
surge a distinção entre lei no sentido formal e lei
no sentido material.
As Constituições modernas admitem, em geral,
também, a título excepcional, que certas regras
gerais, ou, em certas circunstâncias, tôdas as
regras gerais, sejam formuladas por um órgão
diferente do órgão normal da legislação, do le­
gislador (Parlamento ou Parlamento e chefe de
Estado). Já, então, se não fala em leis, mas em
«decretos» ou regulamentos. Em geral, a Consti­
tuição concede a tôdas as autoridades administra­
tivas o poder de estabelecer, nos limites da sua
competência e com base na lei, isto é, para regu­
lar os detalhes da sua execução, regulamentos com­
plementares (Durchführungsverorãnungen). Estes
regulamentos constituem um grau inferior em
relação à lei, que, até certo ponto, concretizam:
nêles, o processo de criação do direito continua
para além da fase em que é criada a lei.
Coisa diferente são os regulamentos com fôrça
de lei, quere dizer, que substituem uma lei ou
revogam uma lei existente; são os chamados
regulamentos de necessidade ou de excepção (Not
ou Ausnahmsverordnungen). Muitas Constituições
modernas autorizam, com efeito, o Chefe do Es­
116 TEORIA GERAL DO ESTADO

tado ou o govêrno, a publicar, provisoriamente,


em certas circunstâncias excepcionais —, quando
o órgão legislativo normal, o Parlamento, não
pode funcionar, por exemplo, em caso de guerra,
de perturbações internas, etc. —, regulamentos
em vez das «leis» propriamente ditas; — êsses
regulamentos também são designados por «leis
provisórias» ou «regulamentos com fôrça provi­
sória de lei». No geral, estes regulamentos devem
ser submetidos, oportunamente, à aprovação do
«legislador», que pode revogá-los.
Na pirâmide do direito, colocam-se ao lado da
«lei>, imediatamente abaixo da Constituição, que,
na realidade, institue, então, dois órgãos legisla­
tivos: um órgão normal e um órgão excepcional.

C) l.°—A sentença

Para alcançar toda a sua significação, a dispo­


sição geral e, por conseqüência, abstracta, que
liga a certo facto uma determinada conseqüência,
deve ser individualizada. É necessário verificar se
o facto previsto in abstracto pela regra geral,
existe in concreto, e, no caso afirmativo, aplicar,
isto é, em primeiro lugar ordenar e, em seguida,
fazer funcionar a sanção prescrita igualmente
in àbstracto. E este o papel da sentença, é esta a
função da justiça, do poder judicial. Esta função
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 117

não tem, por forma alguma, um carácter pura­


mente declarative, ao contrário do que a doutrina
tem admitido. A-pesar-da terminologia engana­
dora—, «dizer o direito», «achar o direito»—,
que poderia fazer-nos pensar que os juizes se
limitam a declarar, a exprimir o direito já con­
tido na regra geral, a jurisdição é, na realidade,
uma função constitutiva e a sentença um verda­
deiro acto de criação do direito. Só a sentença ó
que cria uma relação entre a condição e a con­
seqüência jurídicas concretas. Desempenha, no
domínio individual, o mesmo papel desempenhado
pela lei no domínio geral. Ela é, assim, uma regra
jurídica individual, a individualização ou a con­
cretização duma regra jurídica geral ou abstracta;
julgar, é continuar o processo de criação do direito,
a marcha do geral para o individual.
Só o preconceito que afirma estar todo o
direito contido nas regras gerais, por outras pala­
vras, a identificação irrónea do direito com a lei,
pôde obscurecer esta noção.

C) 2.° — O contrato

0 direito ainda se concretiza ou individualiza


por outras maneiras. Entre a lei e a sentença,
insere-se o contrato, que individualiza o primeiro
elemento da regra geral—, a condição—, e que
118 TEORIA GERAL DO ESTADO

figura entre as regras que os tribunais têm de


aplicar em direito civil. As partes, por delegação
da lei, regulam elas próprias as suas relações recí­
procas. O papel da sentença limitar-se-á, então,
a estabelecer que as obrigações assim criadas
foram violadas e a ligar a essa verificação a san­
ção, isto é, a execução.

C) 3.° — A administração indirecta

A função administrativa também consiste em


individualizar ou concretizar as regras legais.
E o que se exprime chamando-lhe, correntemente,
«execução». Mas temos de distinguir, aqui, dois
tipos de administração:
l.° — A administração pública indirecta. E uma
verdadeira jurisdição, uma função inteiramente
análoga à justiça ordinária. A administração pú­
blica serve-se, neste caso, para atingir os seus
fins, exactamente dos mesmos processos que a
justiça: as leis e regulamentos administrativos,
de uma maneira geral, depois, individualmente, as
decisões (Entscheidungen) das autoridades admi­
nistrativas, ligam aos actos que a administração
quere proibir uma sanção, penalidade ou exe­
cução administrativas. Sentença e decisão admi­
nistrativa são dois actos da mesma natureza; só
difere a situação jurídica dos órgãos que esta­
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 119

belecem a regra individual: os juizes são inde­


pendentes, ao contrário das autoridades adminis­
trativas, que o não são.
A decisão administrativa é, portanto, análoga
à sentença. A disposição administrativa (Verfü-
gung) (x)—, a segunda das duas categorias de
actos administrativos, — é equivalente ao con­
trato do direito civil: concretiza o facto-condição
previsto na regra administrativa geral. A lei
habilita a autoridade administrativa a estabelecer
uma regra individual —, unilateral, ao contrário
do contrato. E ainda a ela que incumbe, se essa
regra vier a ser violada, verificar êsse facto, ao
qual a decisão administrativa ligará uma sanção
administrativa.
Qual a razão porque certas matérias são regu­
ladas por leis penais e civis, isto é, por leis apli­
cadas por juizes independentes, criminais e civis?
Porque são outras, pelo contrário, regulamenta­
das nas leis administrativas, isto é, em leis que
são aplicadas por autoridades administrativas, não
independentes? Isso só historicamente pode expli­
car-se.
Afirma-se, com frequência, que existe uma
oposição de princípio, fundamental, entre a exe-

(1) Por Entscheidung compreehde-s# o acto adminis­


trativo que decide acêrca de um direito litigioso; por Per-
fügung, a ordem administrativa. ,
120 TEORIA GERAL DO ESTADO

cução pelos tribunais e a execução pela adminis­


tração, em virtude do poder descricionário desta.
Tese insustentável: qualquer acto de execução é,
mais ou menos, uma manifestação do «poder des­
cricionário* do órgão que está encarregado dela,
porque, se a regra geral não pode, nunca, deter­
minar completamente o acto jurídico que a indivi­
dualizará, inversamente, nenhum acto de execução
é possível sem uma disposição geral que, por
qualquer forma, o determine. Sem dúvida, o pro­
cesso preparatório da sentença ó bem diverso do
que precede o acto administrativo; mas isso tem
apenas uma importância secundária. Verifica-se,
de resto, na evolução recente do direito, uma ten­
dência muito nítida para fazer desaparecer essa
diferença.

C) 4.° — A administração directa

Mas, na administração, o Estado pode não se


limitar a impor obrigações aos súbditos, sob a
ameaça de uma pena ou de uma execução; pode,
também, realizar êle próprio, directamente, os fins
da administração. E a administração directa ou
imediata. . *
Exemplo: A adjninistração sanitária procede
mediatamente obrigando os** indivíduos, por meio
de leis sanitárias, £ proc^ler de certa e deter­

r
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 121

minada forma em caso de epidemia, a queimar,


por exemplo, os fatos dos doentes, a construir e
sustentar hospitais à sua custa, etc., sob a ameaça
de uma pena. Pelo contrário, há administração
directa quando o próprio Estado constrói hospi­
tais, nomeia médicos, trata dos doentes, etc.
Traduzindo isto em linguagem jurídica: na
administração directa, certos indivíduos, qualifi­
cados de «órgãos do Estado», têm obrigações
conformes aos fins desejados pela administração,
ao passo que na administração mediata essas obri­
gações pesam sôbre os súbditos. Só devem ser
considerados como «órgãos do Estado», neste sen­
tido restricto da palavra —, que opõe o órgão do
Estado ao simples súbdito —, certos indivíduos
que a técnica jurídica designa por um nome abso­
lutamente preciso — os agentes públicos. E na teo­
ria dos órgãos do Estado que, mais exactamente,
determinaremos esta noção. Limitemo-nos, aqui,
a dizer que se trata de funcionários profissio­
nalmente obrigados a uma certa actividade, sub­
metidos ao direito disciplinar e recebendo uma
remuneração fixa de um fundo central chamado
Tesouro ou Tesouro público, fundo que serve,
igualmente, para cobrir as outras despesas da
administração, e que é aliment^dq^ pelas contribui­
ções dos súbditos. •

I
122 TEORIA GERAL DO ESTADO

A separação dos poderes

A teoria da «separação dos poderes» teve


a sua origem num postulado de ordem política,
segundo o qual as três grandes funções do Es­
tadolegislação, justiça e administração —, de­
vem ser repartidas entre três órgãos ou grupos
de órgãos independentes e tecnicamente isolados
uns em relação aos outros. A maior parte das
Constituições modernas admite, em princípio, êsse
postulado, mas nenhuma o aplica completamente.
A própria monarquia constitucional —, a fór­
mula política logo desejada quando se invocava
esta teoria —, apresenta derogaçoes importantes
do princípio: o monarca aparece como órgão,
simultaneamente, da legislação e da execução;
os órgãos supremos da administração —, os minis­
tros—, são responsáveis perante o órgão legisla­
tivo; os juizes são nomeados pelo govêrno, etc.
Os Estados democráticos têm tendência para con­
centrar tôdas as funções do Estado nas mãos do
povo ou dos seus representantes; os Estados auto­
cráticos, nas do monarca. O dogma da separação
dos poderes não se deduz, portanto, nem da idea
autocrática, nem da idea democrática. Só o expli­
cam as circunstâncias políticas em que êle nasceu:
nas vésperas da grande revolução democrática,
num tempo em que o povo principiou a levan-

t
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 123

tar-se, abertamente, contra o poder absoluto do


monarca, e quando a massa dos súbditos recla­
mava, cada vez mais energicamente, para participar
na legislação, os homens de Estado conservadores
propuseram êsse dogma, que concede o poder
legislativo a uma representação popular (e ainda
com a restrição de a partilhar com o monarca),
mas reserva, só para o soberano, a execução. Decla­
rando a execução — o que é contraditório com a
sua noção e a sua própria essência — função inde­
pendente da legislação, êsse dogma visa asse­
gurar ao órgão que dela está investido, uma
situação independente do Parlamento, e uma posi­
ção de segunda linha para o princípio monár­
quico em retirada.
O poder estadal, essencialmente uno, deve
ser dividido, a-fim-do monarca conservar, quanto
possível, pelo menos uma parte intacta e ilimitada,
para servir de contrapêso à outra. A teoria da
separação dos poderes contém, portanto, a idea de
uma divisão do poder político, a idea de impedir
uma concentração de poderes demasiada, e pode,
por isso, convir também a uma organização demo­
crática. Mas o que, em democracia, parece essen­
cial, é menos separar os poderes, por outras pala­
vras, confiar cada uma das três grandes funções
a um órgão diferente, que dividir o poder, isto é,
fraccionar o exercício de uma só e mesma função
entre vários agentes, que tenham, tanto quanto
124 TEORIA. GERAL DO ESTADO

possível, interêsses políticos opostos, isto é, fazer


exercer cada função por um órgão composto.
Nas Constituições modernas, a separação da
justiça e da administração é muito mais acen­
tuada que a da legislação e da execução. Todavia,
com a aproximação crescente do processo admi­
nistrativo e do processo judicial, entre outras
razões pelo desenvolvimento da justiça adminis­
trativa, a importância dessa separação não cessa
de deminuir.

SECÇÃO II

Os órgãos do Estado

Órgão, função, representante do órgão

A ordem estadal é, em todos os seus graus,


criada por indivíduos; regulamenta ela própria
as suas funções, determinando as regras de um
grau superior as condições em que serão estabele­
cidas as inferiores. E, portanto, < órgão » do Estado,
aquêle que, por qualquer forma, contribue para
criar ou aplicar as regras estadais. De harmonia
com as nossas explicações anteriores, criar uma
regra, é, ao mesmo tempo, executar outra. Há duas
excepções a esta regra: postular a norma funda­
mental é um acto ainda puramente normativo, sem
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 125

qualquer parte de execução; e, inversamente, o


último acto de execução, a realização efectiva da
coacção, já não é criador de direito.
A teoria do Estado encara — notemo-lo — não
o representante do órgão (Organtrãger), mas a
própria função, objectivamente, como acto legis­
lativo ou executivo. Ela só toma em conta o indi­
víduo que desempenha a função, o Organtrãger
como tal, na medida em que êle realiza o acto
prescrito pelo direito.
E esta, portanto, a noção mais lata e, ao
mesmo tempo, fundamental, do órgão, que define
êste formalmente, pela natureza e não pelo con­
teúdo jurídico dos seus actos. Neste sentido, a
realização de qualquer acto juridicamente pres­
crito e, em consequência, imputável ao sistema
estadal considerado na sua unidade, constitue o
exercício de uma função e o autor do acto é um
órgão do Estado.

O órgão no sentido material: o funcionário

Decompondo esta noção compreensiva da "fun­


ção, obtóm-se, primeiro, uma definição mais res-
tricta e material: a aplicação da sanção depois
de um processo preparatório. Debaixo dêste ponto
de vista, a sanção aparece como o verdadeiro acto
estadal, a acção ou a reacção do direito.
126 TEORIA GERAL DO ESTADO

Com o progresso da divisão do trabalho


a realização da sanção é confiada pelo direito a
uma certa categoria de indivíduos, que formam
a máquina estadal no sentido restrict© da palavra.
Ulteriormente, pode acontecer que esses indiví­
duos sejam, igualmente, encarregados de outras
funções, dessa administração directa em que já
falamos.
O conjunto dos actos que apresentam estes
caracteres — actos praticados pelos órgãos do Es­
tado no sentido material da palavra — constitue
o conceito material do Estado. A êsse conceito
corresponde um conceito material do órgão do
Estado, cujos princípios são: l.° — Em primeiro
lugar, o caracter obrigatório do exercício da fun­
ção; essa obrigação—, que tem por objecto a fun­
ção pública —, tem como característica ser san­
cionada por consequências de ordem disciplinar.
2.°—Em segundo lugar, o caracter profissional da
função: a função disciplinarmente sancionada deve
ser exercida como uma profissão, um ofício. A este
último aspecto está ligado o carácter remunerado
da função. Com efeito, o funcionário ó remune­
rado pelo Tesouro Público, quere dizer, do mesmo
patrimônio que subvenciona, igualmente, as outras
despesas, inevitáveis num sistema econômico indi­
vidualista, que resultam do funcionamento do
Estado. A existência de um fundo central comum,,
destinado ao conjunto dos fins estadais, ó, aqui,.
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 127

da maior importância: só são considerados órgãos


do Estado, os funcionários que por êle são pagos,
e isto influe na definição material do Estado; êsse
Tesouro constitue, por assim dizer, a espinha dor­
sal, a pedra angular dessa construção bastante
estável, a que damos o nome de «aparelho do
Estado». O órgão do Estado, no sentido material,
ou o «agente público >, distinguem-se, além disso,
pelas particularidades da sua situação jurídica.
Esta assenta, em geral, nos Estados modernos,
sôbre um acto de nomeação, que escapa às regras
I do direito civil sôbre o contrato de prestação de
serviços; está submetido a prescrições especiais:
a instituição do funcionário, a formação da «rela­
ção de serviço público» (õffentlichrechtliches ou
Staatsdienstverhãltnis), supõe uma manifestação de
vontade da sua parte; mas êle não toma parte na
determinação das suas obrigações. O efeito jurí­
dico do seu contrato ó regulado sem o seu acordo,
sob uma forma geral, pela lei do serviço (Diens-
tordnung), assim como a organização hierárquica
dos agentes públicos em categorias e em classes
de ordenados.
Em geral, o funcionário não pode ser demitido
por um acto unilateral, excepto no caso de sanção
disciplinar, por falta de cumprimento dos seus
deveres e tem direito, assim como a sua viúva
e filhos menores, a uma pensão de reforma.
128 TEORIA GERAL DO ESTADO

A noção material do Estado

Os órgãos, ou antes, os actos que apresentam


os caracteres indicados, ou ainda o sistema que
os regula, constituem o «aparelho estadal». Mas
entre o conceito restricto e material do Estado
e o domínio geral do sistema estadal, não existe
uma separação firme e nítida: em primeiro lugar,
há órgãos do Estado, neste sentido material, que
não apresentam todos os caracteres que enumerá­
mos. Em segundo, vê-se, na realização de certos
actos, funções estadais, a-pesar-dos seus autores
não serem funcionários. Por exemplo, na eleição do
Parlamento: os eleitores não reunem, no entanto,
nenhum dos caracteres indicados, nem sequer
alguns; o mesmo sucede quanto à confecção das
leis pelos deputados ou pelo monarca. Em relação
ao conceito jurídico lato e formal do Estado —
o único que entra em conta na maioria dos pro­
blemas da teoria geral do Estado —, o conceito
material e restricto constitue uma espécie de
núcleo em via de formação, mas que em nada se
diferencia, radicalmente, do resto da massa celular
em que está envolvido. Ainda, até hoje, de resto,
nenhum teórico tentou determinar-lhe os con­
tornos exactos.
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 129

A criação dos órgãos estadais

O direito, ao mesmo tempo que estabelece as


regras de uma certa função, deve determinar,
também, o indivíduo que terá de a desempenhar.
A êsse respeito, pode formular regras gerais e abs-
tractas e, então, um certo número de indivíduos
possuem as condições pessoais exigidas. É preciso,
portanto, em seguida, investir um dêles na fun­
ção, por um acto de nomeação individual: é a
criação do órgão, que pode ter lugar por nomea­
ção, por eleição ou à sorte. Ou—, o que é uma
segunda hipótese —, as qualidades exigidas podem
só existir, ao mesmo tempo, num único indivíduo:
é o caso do monarca hereditário. Pareceria que
um acto de criação seria, neste caso, inútil.
Na realidade, não é assim, porque é preciso um
acto que institua juridicamente «o agente», um
acto que estabeleça, vàlidamente, qual é o indiví­
duo que possue, só êle, a qualidade em questão
(no nosso exemplo, a qualidade de filho mais vélho
do falecido príncipe). A doutrina tradicional fala
aqui, por oposição aos órgãos criados, em órgãos
designados imediatamente pela lei. Na realidade,
há sempre um acto de criação; mas a segunda
forma é um caso-limite, um caso de auto-criação.

9
180 TEORIA GERAL DO ESTADO

Órgãos simples e órgãos compostos

Uma função pode ser exercida por um só indi­


víduo: temos, então, um órgão simples; ou com
o concurso de vários indivíduos: teremos, então,
um órgão composto.
Há duas espécies de funções compostas, con­
forme os diversos agentes que formam o órgão têm
de realizar, todos êles, os mesmos actos, ou, pelo
contrário, actos materialmente diferentes, a) No
primeiro caso, podemos, de novo, distinguir se os
elementos do órgão são dois (exemplo: dois Côn­
sules ou duas Câmaras de um Parlamento), ou
mais de dois (exemplo: o chefe do Estado pro­
mulga um regulamento, com a assinatura de todos
os ministros). E necessário assinalar um caso espe­
cial: os diversos órgãos, que, pelas suas mani­
festações de vontade concordantes, concorrem para
o acto total, têm, por vezes, uma organização
especial: presidente, regulamento (para as delibe­
rações), votos segundo o princípio majoritário:
fala-se, então, de órgão colegial, b) Exemplo do
segundo caso: a legislação no Estado moderno.
Compõe-se, essencialmente, dos actos seguintes:
1.° — Proposta do govêrno ou de um membro do
Parlamento, etc., que tem por objecto: que o Par­
lamento decida ocupar-se de certo projecto de lei.
2. ° — Voto do Parlamento ou das duas Câmaras
' A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 131

do Parlamento, que significa: certa matéria deve


constituir o objecto de uma lei. 3.°—0 acordo
eventual do chefe do Estado tem o mesmo signi­
ficado, 4.° — mas não o tem a promulgação, a qual
deve confirmar que, por ocasião da confecção da
lei, foram respeitadas as regras constitucionais.
E finalmente 5.° — a publicação, que tem um fim
diverso do voto do Parlamento. O órgão legisla­
tivo, não é nem o Parlamento só por si, nem o
Chefe do Estado, mas o conjunto de todos aqueles
que têm de proceder aos actos que concorrem para
formar o acto legislativo.
Quando uma função é assim composta, tor­
na-se necessário regular a ordem porque serão dis­
postos os diversos actos elementares. É o que se
chama o < processo > (processo de confecção das
leis, por exemplo). 0 < processo» no sentido res-
tricto, isto é, o processo civil e o processo penal,
também não passa de um caso especial. Porque
a função jurisdicional constitue, também, um acto
funcional composto —, composto de uma série de
actos elementares.
Das nossas explicações resulta que a distinção
corrente entre órgãos independentes e órgãos de­
pendentes, é extremamente relativa; no fundo,
tôdas as funções são, de certa maneira, inter-de-
pendentes; por conseguinte, só há, igualmente,
actos funcionais independentes num sentido muito
relativo; só é independente a sua totalidade, o
132 TEORIA GERAL DO ESTADO

processo de incessante criação do direito na sua


integralidade, isto é, o Estado como função total,
o Estado na sua totalidade.

A «normalidade» das funções estadais

A função estadal obedece a um princípio


fundamental, a que chamamos < princípio de nor­
malidade», ou <de regularidade» (conformidade
com as normas ou com o direito). A «legalidade
da execução» é, apenas, um caso particular dêsse
princípio geral, que domina tôda a actividade
estadal. A maneira de garantir o respeito por êsse
princípio, é uma questão especial de técnica jurí­
dica. Podem instituir-se, para êsse efeito, diferen­
tes garantias: nulidade ou anulabilidade do acto
irregular; responsabilidade disciplinar, ou (se
houve um prejuízo) responsabilidade pecuniária
do órgão, autor da violação.
A êste problema está ligado um outro: o órgão
que deve aplicar uma disposição jurídica terá qua­
lidade para lhe controlar a regularidade, quere se
trate de um órgão no sentido restricto da palavra,
ou de um «súbdito»? Teoricamente e em princí­
pio, temos de admitir a afirmativa e, por conse­
qüência, que pode não a aplicar se a julga irregu­
lar, a não ser que uma disposição de direito positivo
lhe limite essa faculdade. As restrições a êste res­
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 133

peito podem ser mais ou menos latas, mas o direito


positivo não poderia proibir absolutamente o exer­
cício dessa fiscalização; se êle determinasse que
tôda a gente é obrigada a aplicar qualquer disposi­
ção que se apresente com a pretensão subjectiva de
valer como regra de direito, a ordem jurídica não
teria o menor significado. Porque ela significa que
deve valer como regra, o que torna obrigatória a
sua aplicação. A nulidade absoluta do acto jurídico
irregular é um caso limite, que não pode ser intei­
ramente excluído do direito positivo, ainda que a
tendência dêste último para só pronunciar a anu-
labilidade possa ser levada extremamente longe.

Órgãos subordinados e órgãos coordenados

Precisamos de distinguir o problema da situa­


ção dos órgãos estadais em face das regras que
devem aplicar, do das relações dos órgãos estadais
entre si. Entre dois dêsses órgãos pode existir
uma relação de subordinação ou uma relação de
coordenação. Esta última só pode definir-se negati­
vamente, como sendo a ausência de uma relação
de subordinação.
Há subordinação, no sentido mais lato, entre
aquêle que estabelece uma regra e aquêle que tem
de conformar-se com ela. Na realidade, a subordi­
nação só existe entre aquêle que aplica a regra e a
134 TEORIA GERAL DO ESTADO

regra que êle deve aplicar e não entre êle e o que a


estabeleceu. E à regra que devemos submeter-nos,
com ela devemos conformar-nos, e não ao indivíduo
que — submetido, por sua vez, a outras regras —:,
a formulou. Só neste sentido há subordinação,
superioridade, hierarquia, no sistema do Estado.
Num sentido mais restricto, não se fala de
subordinação em todos os casos em que alguém
deve conformar-se com a regra que outro indiví­
duo estabeleceu. Porque, quando se trata de regras
gerais, a pessoa daquele que as formula passa,
visivelmente, mais para a retaguarda; somos leva­
dos, em conseqüência, a só ver relações de subor­
dinação quando se trate de regras individuais, —
por exemplo, de ordens de serviço.
Da subordinação, é preciso distinguir a rela­
ção que existe entre dois órgãos, um dos quais
institue o outro, e, também, a relação de ordem
disciplinar existente entre dois órgãos, um dos
quais, a instância disciplinar, deve exigir a res­
ponsabilidade do outro, se êle agir irregularmente.
O superior nem sempre, nem necessariamente,
exerce o poder disciplinar.

O órgão supremo: o Chefe do Estado

Se um órgão não está subordinado a nenhum


outro órgão, se não tem «superior», no sentido
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 185

restricto que acabamos de indicar, é um órgão


«supremo». Afirma-se, às vezes, que um Estado
só deve ter um órgão supremo; ó um postu­
lado do direito natural. A maior parte dos Esta­
dos modernos, pelo contrário, têm vários órgãos
« supremos»; o «Ghefe do Estado», regra geral,
é, apenas, um deles. 0 que o caracteriza, ó, exclusi­
vamente, um conjunto de funções que, ordinaria­
mente, são da sua competência: a representação
do Estado no exterior, e, em especial, a conclusão
de tratados internacionais, a declaração de guerra;
—a nomeação dos funcionários e, especialmente,
dos ministros, os quais, na medida em que têm de
referendar os actos do Chefe do Estado, lhe estão
coordenados, na qualidade de órgãos supremos
da administração, como chefes de departamentos
administrativos;—a outorga de títulos e distinções
honoríficas; —o direito de perdão e de indulto; — a
disposição da fôrça armada. Mas pode muito bem
acontecer que algumas dessas funções não sejam
da atribuição do Chefe do Estado.

Os órgãos secundários

Ensina-se, geralmente, que é preciso distinguir


os órgãos estadais em órgãos primários e órgãos
secundários. Seriam secundários os órgãos que não
representam o Estado, mas são considerados como
136 TEORIA GERAL DO ESTADO

representantes de um outro órgão, de um órgão


primário.
Na realidade, trata-se de uma ficção política,
excepto em duas hipóteses: a) Se o órgão secun­
dário exerce, a título excepcional, uma função nor­
malmente confiada ao órgão qualificado de primário;
b) Se o órgão primário está autorizado a regular
materialmente a actividade do órgão secundário.
Isto condena a chamada teoria da representa­
ção, isto é, a afirmação de que o Parlamento
moderno é um órgão secundário do povo — que
seria, portanto, êle próprio, um órgão estadal
primário —, que o Parlamento se limita a expri­
mir a vontade do povo: pura ficção política, que
deve, simplesmente, servir para manter a crença
ilusória na soberania nacional, na medida em que
— como efectivamente sucede na maior parte dos
Estados representativos — a função do «povo»,
isto ó, dos eleitores, está limitada à criação do
Parlamento e uma disposição de direito posi­
tivo declara o Parlamento, ou os seus membros,
independentes do «povo», na sua actividade. Da
mesma forma, a teoria que faz do juiz — que ó
independente — o representante do monarca cons­
titucional, a quem a Constituição retirou o poder
judicial: ficção política — que serve para levantar o
prestígio do monarca — mesmo quando a lei deter­
mina que as sentenças devem ser proferidas < em
nome do monarca».
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 137

SECÇÃO III

Os seus métodos: As formas políticas

A noção de forma política. A autocracia


e a democracia puras

Pela expressão <forma» do Estado, no sentido


em que, correntemente, se fala de república e de
monarquia como formas diferentes do Estado, é
preciso compreender o método particular pelo
qual é criado o sistema estadal, o direito. Qual
é, na constituição da ordem estadal, o papel
dos seus súbditos? Os sujeitos das regras de
direito participam na sua elaboração e, no caso
afirmativo, em que medida? E êste o critério das
diversas formas políticas. E, portanto, a idea de
auto-determinação, quere dizer, a idea de liber­
dade, no sentido político da palavra, e a idea
inversa, que, dialècticamente falando, permitem
ordenar a série das formas políticas. A idea de
liberdade, como negação de todo o Estado, domina
toda a especulação social.
A forma política que corresponde à idea de
liberdade, é a democracia, na qual são os próprios
sujeitos das regras de direito que as estabelecem;
na autocracia, pelo contrário, êles nunca partici-
188 TEORIA GERAL DO ESTADO

pam na sua criação, a qual é função de um único


indivíduo, que não está sujeito a elas, o autocrata,
o qual, por conseqüência, aparece como senhor de
todos os outros indivíduos. Se admitirmos que um
grupo social é, sempre, constituído por um sistema
de regras, o papel desempenhado na sua criação
pelos que a elas estão submetidos pode servir de
critério de distinção de tôdas as formas sociais em
geral e não apenas das formas políticas. Poderia,
até, mostrar-se, aprofunáando mais o assunto, que
é êste o critério decisivo de distinção de tôdas
as formas jurídicas, o princípio da classificação
essencial de todos os factos de criação do direito.

Autocracia e democracia reais

Autocracia e democracia são tipos ideais, que


nunca se encontram perfeitamente realizados no
direito positivo.
Um único indivíduo não poderia, material­
mente, sobretudo nos nossos vastos Estados mo­
dernos, estabelecer sozinho a totalidade das regras
jurídicas, gerais e individuais. O autocrata tem,
por conseqüência, que delegar em representantes
(plenipotenciários, governadores, sub-comandan-
tes, etc.), rodear-se de auxiliares (conselheiros,
informadores, etc.); mas, assim, afastamo-nos da
idea autocrática pura.
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 139

Inversamente, nem todos os sujeitos da ordem


estadal têm a capacidade física ou intelectual neces­
sária para participar na sua constituição (crianças,
alienados e criminosos — na medida em que se
considere como conciliável com as exigências
democráticas a de um mínimo de moralidade).
Além disso — o que atinge ainda mais grave­
mente os princípios — num Estado verdadeira­
mente democrático, as regras de direito deviam
nascer de uma decisão unânime de todos. E por
isso que a doutrina do direito natural, lógica
consigo mesma, faz nascer o Estado como um
contrato. Tomando as coisas estrictamente, deveria,
até, fazer depender a validade de qualquer regra e
do conjunto da ordem estadal do assentimento
permanente de cada um dos seus sujeitos; a idea
de auto-determinação exigiria que qualquer indi- » (
víduo podesse subtrair-se a certa e determinada y.
regra e até sair da própria comunidade jurídica,
retirando-lhe o seu consentimento inicial. Mas
isto significaria a dissolução completa do Estado e ■
de tôdas as formas sociais em geral. E de aí que '
resulta o princípio de que a vontade obriga para j.
sempre, uma vez exprimida —, idea que está na j
base da regra pacta sunt servanda. E daqui vem ,
também — continuando, ainda, esta tendência —, ,
a substituição do princípio da unanimidade pelo
da maioria: para estabelecer ou modificar uma i !
regra jurídica, basta o consentimento de metade I '
140 TEORIA GERAL DO ESTADO

e mais um dos indivíduos a quem ela é destinada


a reger. Sem isto, seria possível a um só indiví­
duo, recusando o seu consentimento, opor-se ao
desenvolvimento, isto é, às transformações do di­
reito, que seria, então, a expressão da vontade de
uma minoria. Portanto, se abstrairmos do nasci­
mento da ordem social e se, por outro lado, admi­
tirmos que é impossível conceder ao indivíduo a
faculdade de se subtrair unilateralmente à aplica­
ção dessa ordem, conclue-se que ó o princípio
majoritário o que assegura a maior concordância
entre a chamada «vontade» da colectividade, isto
é, ordem objectiva, e a vontade dos indivíduos
que a constituem—, que, noutros têrmos, realiza
o mais completamente possível, a idea de auto-
-determinação, de liberdade.

As formas mistas

A realidade histórica só nos apresenta, por­


tanto, formas intermediárias entre os dois tipos
ideais e extrêmos que nós distinguimos, natural­
mente mais ou menos próximas de um ou de
outro desses tipos. Em qualquer Estado se encon­
tram elementos de um e do outro tipo; rigorosa­
mente falando, não se pode, portanto, qualificar
nenhum estado de autocracia ou de democracia,
mas, apenas, caracterizar a proporção em que êle
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 141

combina o princípio autocrático e o princípio


democrático. Isto deve-se, sobretudo, à estrutura
da ordem estadal, tal como já a analisamos ante­
riormente. Com efeito, não há necessidade de
seguir, para estabelecer as regras de todos os
seus graus, um só método. Um sistema democrá­
tico de legislação pode muito bem combinar-se
com um executivo autocrático; podem, mesmo,
aplicar-se os dois métodos ao mesmo tempo a um
só grau dessa ordem.
Sob êste ponto de vista, a distinção habitual
das formas políticas em monarquia e república,
aparece como um contra-senso. E preciso, afas­
tando essas etiquetas, proceder à análise das for­
mas reais que elas recobrem, para descobrir a rela­
ção essencial na estrutura política dos Estados,
isto é, mostrar como nela se combinam o princípio
autocrático e o princípio democrático.

Os tipos de Estados: A) As antigas


formas de monarquia

A monarquia absoluta já hoje não têm interêsse


teórico, mesmo sob as formas chamadas teocracia,
patriarcado ou Estado patrimonial (x). Estas últi-

(1) Patriarcado ou patriarchalisher Slaat é o Estado


<no qual o monarca é considerado como pai dos seas súbdi-
142 TEORIA GERAL DO ESTADO

mas expressões não designam, de resto, em rigor,


tipos políticos realmente diferentes, mas, sim­
plesmente, teorias políticas que interpretam a
estrutura positiva de um determinado Estado e
tentam dar-lhe uma justificação à posteriori, refe­
rindo o valor e o carácter obrigatório das pres­
crições por êle formuladas a um princípio tido
por absoluto, como Deus, a propriedade ou o pai.
Também não há razão para estudar, hoje,
certas formas antigas da monarquia moderada, por
exemplo: o Estado feudal e a monarquia do antigo
regime (standische Monarchic) í1).
A única forma que ainda vale a pena estudar é
a monarquia constitucional. Tanto mais que ela ser­
viu de modêlo para as modernas repúblicas demo­
cráticas —, não entrando, também, em linha de
conta, as repúblicas aristocráticas. Em primeiro lu­
gar, julgou-se necessário dar, igualmente, a essas re­
públicas democráticas, um «Chefe de Estado», mu­
nido de atribuições relativamente extensas, tanto
em matéria de legislação como de execução. 0 que,
na monarquia constitucional, caracteriza o titular

tos e estes como seus filhos. — O Patrimonialstaat é o Estado


em que o «monarca é considerado proprietário do solo do
Estado > (Allgemeine Staatslehre, página 332).
(1) Esta expressão designa o Estado em que o poder
é partilhado entre o rei e os Estados gerais, representando
as diferentes ordens da Nação (A. S. página 337).
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 1A3

dessas funções, é o carácter hereditário da sua


posição. Essa hereditariedade não se enquadra de
forma perfeita com a idea autocrática, à qual cor­
responde muito melhor a designação, pelo autó-
cràta reinante, do seu sucessor. Sob este ponto de
vista, é a monarquia electiva a que mais se apro­
xima do tipo da república democrática, com o seu
Chefe de Estado eleito por um período limitado.

B) Monarquia constitucional e República


democrática: organização da legislação

Na monarquia constitucional, o monarca não


exerce, em princípio, só êle, na sua integralidade,
uma função independente. Em primeiro lugar,
certas funções, como a função jurisdicional, são-
-Ihe retiradas pela Constituição; mas, indepen­
dentemente disso, êle só pode agir juridicamente
com o concurso de outros órgãos.
Quanto à legislação, ó o Parlamento que li­
mita o seu poder: as leis resultam, com efeito, de
um voto do Parlamento, sancionado pelo monarca.
Monarca e Parlamento são, neste caso, factores
completamente coordenados, ainda mesmo quando,
como acontece ordinariamente, o monarca dispõe
de uma alta influência sobre a actividade do Par­
lamento, pelo facto de ser êle quem o convoca, o
prolonga e o dissolve. A doutrina oficial da monar­
144 TEORIA GERAL DO ESTADO

quia constitucional fêz quanto pôde para obscure-


cer esta situação, afirmando, graças a uma teoria
qualquer, que o monarca tem uma posição privi­
legiada: simples falsificação política do direito posi­
tivo. Em boa verdade, estas teorias cristalizaram-se
na fórmula de promulgação das leis, consagrada
pela própria Constituição. Afirma-se, no texto das
leis, que elas são publicadas como uma ordem do
soberano, ordem que êste formula com a aprova­
ção do Parlamento; mas o teórico que quere apre­
ciar as relações entre o monarca e o Parlamento,
não é obrigado a respeitar essa afirmação.
Quando não tem o direito de sanção, mas uni­
camente o direito de veto, absoluto ou apenas sus­
pensive, a respeito dos projectos de leis votados
pelo Parlamento, o monarca só tem uma função
legislativa eventual. E êste o caso mais frequente,
quanto aos Chefes de Estado das repúblicas demo­
cráticas, quando o seu papel não se reduz, sim­
plesmente, a confirmar que a lei foi feita de har­
monia com as determinações da Constituição.

C) O executivo na monarquia constitucional


e na República democrática

E, correntemente, admitido que o monarca cons­


titucional é o chefe do executivo; esta afirmação
assenta, também, numa doutrina difundida pelos
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 145

teóricos do constitucionalismo, contràriamente às


regras constitucionais positivas, e por motivos polí­
ticos. Em primeiro lugar, a jurisdição —, que é um
ramo da execução —, é-lhe retirada pela indepen­
dência, constitucionalmente garantida, dos juizes.
Mas o direito de nomeação dos juizes, o direito
de perdão e de indulto, como todos os demais
actos de administração, também não pertencem ao
monarca só, mas a êle conjuntamente com um
ministro responsável. Porque se exige que todos
os actos do monarca (mesmo o seu acordo com
as leis e a abertura e encerramento das sessões
parlamentares) tenham a assinatura de um mi­
nistro—, em princípio, do ministro competente
segundo o assunto. Isto significa que, quando
o texto da Constituição diz: o monarca faz estes
e aqueles actos (conclusão de tratados interna­
cionais; nomeação de funcionários, promulgação
de regulamentos, etc.), não é propriamente êle
quem os faz, mas um órgão composto, do qual
o monarca faz, simplesmente, parte, assim como
os ministros. Monarca e ministro estão, portanto,
coordenados um com o outro: o monarca não é,
como tanta vez se afirma, superior do ministro.
É, sem dúvida, êle quem o nomeia, mas isso nada
tem que ver com a questão,—sem esquecer, de
resto, que o acto de nomeação do ministro deve,
também, conter a referenda ministerial.
A-pesar disto, as Constituições das repúblicas
10
146 TEORIA GERAL DO ESTADO

democráticas, exprimem-se, também, por tal forma,


que somos levados a acreditar que o Chefe de
Estado pode, sozinho, realizar certos actos. Dizem
elas: o presidente celebra os tratados, o presidente
nomeia os funcionários, etc., a-pesar-de, na reali­
dade, todos esses actos serem praticados, conjunta­
mente, pelo presidente e pelos ministros.
Ordinariamente, esta exigência da referenda
ministerial para os actos do monarca, funda-se na
sua irresponsabilidade, que o subtrai a qualquer
sanção e até a qualquer processo (exceptuando,
por vezes, os processos civis, que devem, geral­
mente, ser julgados por um Tribunal especial).
r • • * •
E por isso que se impõe aos ministros uma respon­
sabilidade mais extensa; podem ser acusados pelo
Parlamento e condenados, quando há lugar a isso,
por êle ou por um Alto-Tribunal de Justiça, por
ilegalidade culposa dos seus actos, por conseqüên­
cia, mesmo tratando-se de actos simplesmente
referendados por êles. Exigir que um acto seja
referendado, é, portanto, antes de mais nada, sub­
metê-lo à fiscalização do Parlamento. A «inviola­
bilidade» da pessoa do monarca, que acompanha,
sempre, a sua «irresponsabilidade», equivale a
uma protecção jurídica reforçada — isto é, garan­
tida por penas agravadas — da vida, da integridade
física e da honra do monarca.
0 Chefe de Estado das repúblicas democráticas
é, geralmente, responsável —, ainda que numa
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 147

fraca extensão, por imitação da monarquia consti­


tucional —; todavia é, também, costume exigir
que os seus actos sejam referendados por minis­
tros responsáveis. A instituição da referenda toma,
então, um outro sentido: serve para criar uma
dupla responsabilidade.

D) República presidencial e governo


convencional

A república democrática conservou, portanto,


em geral, uma instituição característica da monar­
quia constitucional: a coexistência de um Chefe
de Estado e de um gabinete formado por minis­
tros, quere dizer, por chefes dos departamentos
administrativos. No entanto, dois tipos de Estados
procuram triunfar dessa dualidade.
Temos, em primeiro lugar, aquêle a que pode­
mos chamar a República presidencial (Prüsidents-
chaftsrepublik), em que o Presidente — quanto pos­
sível directamente eleito pelo povo — tem poderes
muito extensos, e em que, por conseqüência, o
gabinete perde a sua importância; acontece, até,
por vezes, que o Chefe de Estado exerce, ao
mesmo tempo, as funções de chefe do govêrno;
os membros do gabinete estão-lhe, então, subordi­
nados, na qualidade de simples secretários de
Estado, nomeados por êle e parlamentarmente
148 TEORIA GERAL DO ESTADO

irresponsáveis. O princípio da separação dos pode­


res— compreendido, é certo, de uma forma um
pouco doutrinária — favorece esta tendência.
E, por outro lado, o govêrno convencional ou
directorial (Parlamentsherrschaft), tipo da sobera­
nia parlamentar radical, em que não há Chefe de
Estado e em que o govêrno, eleito, organizado em
ministério ou em conselho (ex.: a Suíça), é res­
ponsável perante o Parlamento, mas não tem qual­
quer influência sobre a sua actividade.
Entre estas duas encontram-se, naturalmente,
diversas formas intermediárias.

O Parlamento

Tanto na monarquia constitucional, como na


república democrática, o Parlamento é nomeado
pelo povo, ou melhor, pelo corpo eleitoral, que
representa o elemento democrático. Só aqui estu­
daremos essa forma de democracia indirecta que é
a República parlamentar, porque não pode, hoje,
sèriamente, ter-se em conta a pura democracia
directa, em que são os cidadãos titulares do direito
de voto e reunidos em assembléia popular, que
formam, por si próprios, a vontade do Estado, ou,
rigorosamente, em que só êles fazem as leis.
Na monarquia constitucional-tipo, o Parla­
mento compõe-se de duas Câmaras, sendo só uma
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 149

delas eleita pelo povo inteiro, a quem pode passar


por representar, e sendo a outra formada, em parte,
por membros hereditários e outra parte por mem­
bros escolhidos pelo monarca, e servindo para re­
presentar os interesses de certos grupos especial­
mente favorecidos. As repúblicas democráticas
julgam, também, às vezes, dever adoptar o sis­
tema da dualidade das Câmaras, que é, no entanto,
uma derogação do princípio democrático; mas, se
quiser evitar-se que a segunda Câmara seja uma
inútil cópia da primeira, a própria constituição
levanta dificuldades, que dificilmente poderão re­
solver-se por forma judiciosa.
Notemos que a coexistência de uma Câmara
popular e de uma Câmara dos Estados no Estado
federal nada tem que ver com o sistema da duali­
dade das Câmaras, tal como se encontra no Estado
unitário centralizado; porque a instituição de uma
segunda Câmara se explica, então, pela idea de
descentralização, que ela serve para tornar mais
efectiva.

Os sistemas eleitorais

Em que extensão serve o Parlamento para


realizar o ideal democrático? Isso depende do sis­
tema eleitoral que serve de base à escolha dos
seus membros.
150 TEORIA GERAL DO ESTADO

O ponto capital é, aqui, a extensão do direito


de sufrágio: sufrágio universal ou sufrágio res­
tricto. A universalidade do direito de sufrágio tem
o seu fundamento na idea de que é preciso asso­
ciar o maior número possível de sujeitos do direito,
ao acto da formação do Parlamento.
Aparece, em seguida, a questão da igualdade
do direito de sufrágio; por essa igualdade, pre­
tende-se que cada eleitor disponha de uma parte
igual de influência sobre o resultado da votação.
Finalmente, surge o último problema: de har­
monia com que princípio será um candidato decla­
rado eleito membro do Parlamento?
Há dois princípios. Segundo o princípio majo­
ritário, só deve ser declarado eleito aquele que
obteve mais de metade dos votos vàlidamente
expressos. Segundo o princípio proporcionalista,
pelo contrário, a cada agrupamento político é
atribuído um número de mandatos, proporcional
à sua força numérica.
O princípio proporcionalista realiza, melhor do
que o princípio majoritário, a idea democrática,
encarada como ideal de autonomia dos indivíduos.
Porque, aplicando-o, em princípio, cada indivíduo
é representado pelo seu próprio deputado, isto é,
pelo próprio representante em quem votou; no
outro sistema, pelo contrário, só a maioria eleito­
ral está representada por deputados da sua ten­
dência política, e não a minoria. A representação
A CRIACÃO
t DA ORDEM ESTADAL 151

proporcional assenta, portanto, em certo sentido,


sôbre o princípio da unanimidade. E certo que
tem de ceder o lugar ao princípio majoritário nas
decisões do Parlamento e, assim, afastamo-nos —,
como já mostramos —, até certo ponto, de resto
inevitável, do ideal de liberdade da democracia.
De resto, notemo-lo, a idea proporcionalista só é,
também ela, aproximativamente realizável. Pri­
meiro, porque a repartição de um certo número de
mandatos entre grupos políticos numericamente
desiguais, só pode realizar-se por números inteiros,
ao passo que o cálculo exacto da proporção mate­
mática daria, em geral, fracções. Qualquer que
seja o método empregado para calcular o resul­
tado, nunca, portanto, êle dará uma proporção
perfeita entre o número de votos obtidos e o
número de mandatos atribuídos a cada grupo;
a proporcionalidade será, sempre, aproximativa.
Mas, além disso, é preciso, para conceder um man­
dato a um grupo, exigir que êle reüna um número
mínimo de votos. Com efeito, se o grupo mais
pequeno tivesse direito a um mandato, então, no
caso limite teórico dêsse grupo ser formado só por
um eleitor, o número de deputados deveria ser
igual ao número de eleitores. Seria o abandono
do princípio representativo; seria a democracia
directa.
152 TEORIA GERAL DO ESTADO

Iniciativa popular e referendum

A justificação que dela tentamos fazer pela


idea de liberdade, confirma que essa tendência
para a democracia directa, é inerente ao princí­
pio porporcionalista. Porque a democracia directa
representa, naturalmente, um grau de democracia
muito superior à democracia parlamentar ou indi­
recta —, que corresponde ao princípio técnico da
divisão do trabalho social. Isso explica que haja
quem se recuse, por vezes, a considerar o parla­
mentarismo, o sistema representativo, como demo­
crático, quere dizer, a ver nêle uma realização
da liberdade política. E isto deixa, igualmente,
compreender certas tendências democráticas recen­
tes; procura-se introduzir no sistema representa­
tivo, que, a-pesar-de tudo, hoje se impõe, certas
instituições que o aproximam da democracia di­
recta; em vez de limitar a grande massa dos
titulares dos direitos políticos —, o < povo» —,
que é, segundo a ficção da soberania popular —
sustentáculo da ideologia democrática — a verda­
deira detentora da força pública, ao simples acto
da eleição do Parlamento, pretende-se fazê-la par­
ticipar mais directamente na própria legislação.
Com êsse fim, as Constituições modernas dão um
lugar cada vez maior a duas dessas instituições:
a iniciativa popular e o referendum. A inicia-
A CRIAÇÃO DA ORDEM ESTADAL 153

tiva popular, é o direito, concedido a uma mi­


noria de cidadãos, de propor uma lei, que o Par­
lamento deve, em seguida, discutir e votar.
O referendum consiste em submeter, em certas
condições, uma lei votada pelo Parlamento à vota­
ção do povo.

A significação filosófica das formas políticas

Contra a democracia parlamentar, que —, com


diversas variantes —, pode ser considerada como
a forma política de hoje, a forma do «Estado de
cultura» (KuUurstaat), elevam-se, de há algum
tempo a esta parte, vozes cada vez mais nume­
rosas. E evidente que ela não satisfez as grandes
esperanças que parecia autorizar no tempo da
monarquia absoluta, em que era preciso lutar
para obtê-la. Assim, voltam a opor-lhe a idea
autocrática, sob a forma de ditadura, ou procuram
uma terceira fórmula política, que triunfe da
antinomia entre autocracia e democracia. Jul­
gou-se tê-la encontrado na organização por classes
profissionais. E uma ilusão. Porque, para a solução
dos conflitos de interêsses que surgiríam também
no seio dessa organização, não se poderia deduzir
dêsse sistema um princípio que o caracterizasse;
em última análise, temos sempre de escolher entre
o método autocrático e o método democrático.
154 TEORIA GERAL DO ESTADO

A esta oposição, já reconhecida pelos Antigos,


nem a vida, nem a teoria podem escapar em ma­
téria política. Porque, na sua última essência, elá
identifica-se com a eterna oposição em que está
encerrado o conhecimento e, por conseguinte, a
vontade humana, entre duas concepções do mundo
e duas tabelas dos valores contrários: os da meta­
física do absoluto, por um lado, e os do positivismo
ou do empirismo relativistas, pelo outro.

FIM
ÍNDICE DAS MATÉRIAS

Pág.

Introdução....................................................................... 5 '
Capítulo I — O Estado................................................ 7
Os dois sentidos da palavra ordem; — o Estado
— ordem normativa . ...... .................................... '7
A validade da ordem estadal ...... 9
O Estado — ordem válida.................................... 11
A eficácia da ordem estadal.................................... 12
Validade e eficácia................................................ 15
A «imputação» ao Estado.................................... 17
Imputação normativa e imputação natural . . 18
O Estado — esquema interpretative .... 21 *
Normas e sociedade................................................ 22
O Estado — ordem de coacção.............................. 24 *
Estado e direito..................................................... 25
A regra de direito; o sujeito de direito; o di­
reito subjectivo; norma primária e norma
secundária.............................................. . 26
A aplicação da sanção: os «órgãos do Estado» 29
A dualidade do Estado e do direito .... 31
Carácter jurídico dos problemas da teoria geral
do ^Estado........................................................... 33
156 TEORIA GERAL DO ESTADO

Pág.

Capítulo II — A validade da ordem estadal (Estática) 37

Secção I — A noção de validade (O «poder público»;


— a soberania; —Estado e direito das gentes) 37<
O «poder» do Estado: a validade da ordem
jurídica.............................................................
37
A «soberania» doEstado..................................... 41
A «unicidade» (Ausschliesslichkeit) da ordem
soberana...................................................... 45
Soberania doEstadoe direito internacional. . 48
a) A primazia da ordem estadal nacional . . 49
b) A supremacia do direito internacional . . 51
c) A relação entre as duas hipóteses. ... 54
A natureza jurídica do «direito internacional» 55

Secção II — Validade no espaço, validade no tempo


e validade quanto às pessoas (Teoria do ter­
ritório do Estado; — teoria do povo) ... 57 ->
Validade territorialmente limitada ou ilimitada 57
A < sedentariedade » (Sesshaftigkeit) .... 58
A delimitação do território dos Estados pelo di­
reito internacional.................................... 59
A limitação dos Estados no tempo........................ 62 *
A limitação, quanto às pessoas, da validade do
sistema estadal.......................................... 63
A teoria do povo como teoria do direito sub­
jectivo ............................................................. 65
A obrigação jurídica e a noção de sujeito . . 66
Os «direitos subjectivos»: A) Os direitos polí-
i ticos........................................................................ 67
B) Os modos de criação das obrigações: l.° —
Por acto unilateral: a) — O acto estadal im­
perativo .................................................................. 69
B) b) — A acção judicial.................................... 70
B) 2.° — Por acto bilateral : o contrato ... 71
ÍNDICE DAS MATÉRIAS 157

Pág.

Direito público e direito privado........................ 72


As liberdades individuais................................... 74
A protecção das liberdades individuais pela
Constituição..................................................... 79
O papel essencial da obrigação .............................. 81
-» A nacionalidade..................................................... 84 1 ■

Secção III — A organização territorial do Estado


(Teoria da centralização e da descentraliza­
ção; teoria das uniões de Estados) . . . 86 ’
Descentralização total ou parcial........................ 86
O elemento estático e o elemento dinâmico . . 88
Descentralização perfeita ou imperfeita ... 90
Classificação das colectividades jurídicas se­
gundo o seu grau de descentralização ... 91
A) O Estado unitário: l.° — A descentralização
administrativa ................................... 91
A) 2.° — As colectividades descentralizadas
(Selbstverwaltungskõrper) .............................. 92
B) Os « Países >..................................................... 94
C) O Estado federal e os seus Estados-mem-
bros....................................................................... 95*
D) A Confederação de Estados (paralelo com o
Estado federal)............................................... 97
a) A divisão das competências........................ 98
b) A legislação..................................................... 99
c) O executivo ..................................................... 99
d) A «execução federal>.......................................... 101
E) As outras uniões de Estados.............................. 102
a) As Uniões.................................................................. 103
1. ° — A União real...................................................... 104
2. ° — A União pessoal................................................ 105
b) Protectorado............................................................105
c) Tratado internacional.......................................... 106
F) A comunidade jurídica internacional. . . 106
158 TEORIA GERAL DO ESTADO

Pâg.
Capitulo III — A criação da ordem estadal (Dinâmica) 109

Secção I — As suas fases: Os três poderes ou fun­


ções do Estado.............................................. 109 «
Legislação e execução................................................ 109
Os graus da ordem juridica: A) A Constituição 111
B) A lei e o regulamento.......................................... 114
C) l.° — A sentença...................................................... 116
C) 2,° — O contrato...................................................... 117
C) 3.° — A administraçãoindirecta .... 118
C) 4.° — A administração directa............................. 120
A separação dos poderes.......................................... 122

Secção II—Os órgãos do Estado.............................. 124'*


Órgão, função, representante do órgão . . . 124
O órgão no sentido material: o funcionário . . 125
A noção material do Estado ....... 128
A criação dos órgãos estadais.............................. 129
Órgãos simples e órgãos compostos . . . . 130
A < normalidade > das funções estadais . . . 132
Órgãos subordinados e órgãos coordenados . . 133
O órgão supremo: o Chefe do Estado .... 134
Os órgãos secundários.......................................... 135

Secção III — Os seus métodos: As formas políticas 137


A noção de forma política. A autocracia e a de­
mocracia puras................................................ 137
Autocracia e democracia reais.................................... 138
As formas mistas............................................................ 140
^Os tipos de Estados: A) As antigas formas de
monarquia......................................................... 141
B) Monarquia constitucional e República de­
mocrática: organização da legislação. . . 143
C) O executivo na monarquia constitucional e
na República Democrática.................................... 144
ÍNDICE DAS MATÉRIAS 159

Pfig.
D) República presidencial e governo conven­
cional ........................................................................ 147
O Parlamento................................ '................................ 148
Os sistemas eleitorais................................................ 149
Iniciativa popular e referendum.............................. 152
A significação filosófica dasformas políticas . 153 i

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