Elysia despertou subitamente de um sonho profundo no meio da noite,
sacudida pelo balanço do galeão de guerra que a transportava para a batalha. O suor frio escorria pelo seu rosto, enquanto tentava recuperar o fôlego. Sentou-se na cama, buscando clareza em meio à escuridão da cabine. Uma visão inquietante do Thessadarium, um objeto místico envolto em lendas obscuras, ainda se desenrolava em sua mente. Sentiu um aperto no peito, pressentindo que algo importante estava prestes a acontecer. Levantou-se da cama, ajustando o uniforme de guerra e passando a mão pelos cabelos vermelhos que caíam em mechas desordenadas sobre o rosto. Caminhou em silêncio pela cabine, tentando não acordar seus companheiros de batalha. A escuridão da noite era quebrada apenas pela luz tênue que entrava pelas pequenas frestas da janela. O mar agitado produzia um ruído constante, como se soubesse dos horrores que a batalha traria. Elysia sentiu um frio percorrer sua espinha, mas continuou caminhando até a porta da cabine. Elysia estava tão envolvida em seus pensamentos que mal notou quando um jovem soldado se aproximou dela. Ele era alto e magro, com o cabelo escuro amarrado em uma trança. Tinha um ar confiante e curioso ao mesmo tempo, como se estivesse sempre procurando por aventuras. O jovem soldado parecia surpreso ao vê-la naquele estado de inquietude emocional. Ele perguntou se estava tudo bem, mas Elysia não sabia como responder. Ela se sentiu vulnerável na presença do jovem, preocupada com a impressão que ele teria dela. Elysia respirou fundo e buscou acalentar seus pensamentos. Olhou para o jovem que a observava e percebeu que ele tinha um brilho nos olhos, como se estivesse pronto para qualquer coisa. Com prudência, Elysia observou o jovem guerreiro à sua frente. Seus olhos, que antes brilhavam com curiosidade e confiança, agora pareciam mostrar um anseio por batalha. Era como se ele ainda não tivesse sentido na pele os horrores da guerra, ainda romantizado com a ideia. Elysia, aos seus 27 anos, havia visto o suficiente para saber que a guerra não era um jogo. Viu mortes, destruição, dor e sofrimento em sua jornada, e não poderia deixar que a inocência do jovem a seu lado fosse sacrificada. – Meu nome é Demétrius – disse o jovem guerreiro, interrompendo os pensamentos de Elysia. – Elysia –, ela respondeu, mantendo a postura de liderança que havia assumido desde o início daquela missão. – O que o traz aqui, jovem? – Eu vim ver se estava tudo bem com você. Parecia preocupada –, respondeu Demétrius. Elysia hesitou antes de responder. Ela não queria assustar o jovem, mas também não podia mentir sobre a situação. – E quem não ficaria diante do que estamos prestes a fazer? Invadir as linhas inimigas, entrar de um forte guarnecido para capturar um nobre importante. Você sabe o que nos espera? –, questionou ela, fixando seus olhos nos de Demétrius. Ele hesitou por um momento antes de responder. – Eu sei que será uma batalha difícil, mas estou ansioso para lutar ao lado dos meus irmãos de armas – brandou o jovem soldado. Elysia viu no olhar de Demétrius a mesma vontade de lutar que ela própria tinha quando mais jovem. Mas agora, com a experiência adquirida, sabia que a batalha não era algo que se desejasse de livre e espontânea vontade. Havia um preço a ser pago, e nem sempre era um preço pequeno. – Tenha cuidado com o que deseja, Demétrius. A guerra não é algo a ser desejada. Ela traz consigo dor, sofrimento e morte. E uma vez que você começa, não há volta –, alertou Elysia, olhando nos olhos do jovem. Elysia e Demétrius continuaram andando pelo convés do navio noite a dentro, enquanto discutiam sobre a guerra. Demétrius mostrava entusiasmo com a possibilidade de lutar e fazer a diferença no campo de batalha, enquanto Elysia tentava mostrar que aquela guerra em particular não traria nada além de morte e destruição. – Eu entendo seu entusiasmo, Demétrius. Mas guerra não é um esporte ou uma competição. É uma tragédia– disse Elysia, olhando para o jovem com seriedade. – Mas nós estamos defendendo nosso reino, Elysia! Não podemos deixar os imperialistas invadirem e destruírem tudo o que construímos! – respondeu Demétrius, com firmeza. – Eu sei disso, Demétrius. Mas há outras formas de defender o nosso reino. A guerra não é a única solução. E mesmo que vençamos, a que preço? Quantas vidas serão ceifadas? Quantas famílias serão destruídas? – rebateu Elysia. – Eu entendo o que você está dizendo, Elysia. Mas acredito que a honra e o orgulho de lutar pelo nosso reino valem o risco – afirmou Demétrius, com determinação. Elysia suspirou, sabendo que era difícil mudar a opinião de alguém tão jovem e idealista. Tentou elaborar algum argumento, mas a voz do capitão da embarcação interrompeu seus pensamentos. – Chegamos, se preparem, soldados. Diante deles estava o destino daquela missão: O Forte de Ashara. As muralhas do forte eram altas e bem protegidas, e um profundo fosso cercava a fortaleza. Em cima das muralhas, havia inúmeras catapultas e arqueiros posicionados estrategicamente. A bandeira do inimigo tremulava no topo de uma das torres, indicando que eles já haviam sido avistados pelos defensores do forte. Elysia e Demétrius olharam para a fortaleza com uma mistura de admiração e temor. A ideia de enfrentar aquele imponente forte era assustadora, mas a adrenalina da batalha também os movia. O cenário ao redor do forte era deslumbrante. A praia era ampla e vazia, e as ondas batiam com força nas pedras. A península era repleta de uma vegetação exuberante, com árvores altas e flores coloridas. Mas a beleza natural do lugar não era capaz de distrair os soldados da tensão que pairava no ar. Tão logo as embarcações dos cratenses avançavam em direção à praia, límpida e fresca era tomada por clarões e o silêncio quebrado pelo som de explosões. Os cratenses desembarcaram sob um verdadeiro inferno de balas de canhão e tiros de mosquete. A praia, que antes parecia vazia e tranquila, agora estava tomada por uma fúria assassina: gritos em júbilos misturavam-se aos de dores e sofrimento daqueles que eram feridos. Demétrius, que até então só havia ouvido falar de batalhas, agora sentia o primeiro gosto amargo da guerra. Seu coração batia forte e sua mente estava confusa, mas Elysia com algum senso de liderança tentava orientá-lo. – Continue vivo, Demétrius! - gritou Elysia acima do barulho da batalha. – Precisamos chegar à parede do forte, não se distraia com a luta na praia. Nosso objetivo está além dessas linhas. No intervalo em que os mosquetes eram carregados e as balas de canhões postas no lugar de disparo, os imperialistas na muralha disparavam saraivadas de flechas. Os cratenses que desembarcavam vivos na praia ensaiava uma parede de escudo e tentavam avançar como podiam em direção a muralha. Em meio ao caos, Elysia procurava seus companheiros de missão. Embora desembainhasse seu gládio, não estava naquele momento preocupada com a batalha. Seu objetivo parecia distinto daquele. Bastou alguns corpos cair ao seu lado para a adrenalina tomar conta das suas ações. Instintiva, observou que o único companheiro de missão naquele momento era Demétrius. Agarrou o braço do jovem soldado, guiando ele em direção a um ponto específico da muralha, desviando dos disparos como podia, entregando seu destino a própria sorte. Os cratenses eram homens de poucas palavras, mas suas pernas lhes obedeciam. Em direção ao inimigo, marchavam em uma procissão que se assemelhava a uma espécie de reza em voz alta. Elysia, observadora atenta, captava o sussurrar entrecortado de orações ao deus da guerra, que emanavam a cada passada. Em momentos distintos, frases sussurradas se faziam audíveis em seus ouvidos. Soldados feridos no chão gargalhavam diante da morte, enquanto outros choravam e imploravam pela vida. Mas todos eles, sem exceção, evocavam o nome do deus Artór em preces fervorosas. Era o destino de todo cratense. Nesse cenário de fé e sacrifício, Elysia percebia como a oração era a âncora que mantinha os corações daqueles guerreiros firmes, mesmo em face da adversidade. Ela própria, tocada pela sinceridade dos pedidos, se juntava a eles em pensamento e oferecia sua própria prece ao deus da guerra:
"Ó Artór, senhor da batalha e da coragem,
Proteja estes homens na sua passagem. Com tua sabedoria, dê-lhes a estratégia, E com tua força, inspire-lhes a ousadia.
Ó deus da guerra, que teu gládio seja sua defesa,
E que tua armadura os proteja da vileza. Que tua luz ilumine a escuridão, E que tua glória lhes traga a salvação"
As palavras ecoavam em sua mente, enquanto avançavam em direção ao
inimigo. Para os cratenses, aquela marcha era sagrada, um ritual que lhes garantiria a vitória ou a morte. Elysia, agora, compartilhava daquela crença, sentindo-se protegida pela força daquelas preces. As preces pareciam fazer algum sentido para Elysia naquele momento. Com sorte, atravessaram o caótico campo de batalha sem serem alvejados. Bateram de frente com o frio das pedras que compunham a muralha. Recuperaram o fôlego e camuflaram-se na escuridão rente à muralha. Elysia conhecia cada detalhe do plano. Os espiões da resistência rebelde haviam lhe passado as informações necessárias para a invasão do forte, incluindo a existência de uma passagem de esgoto que os permitiria entrar despercebidos pelos soldados imperialistas. O mercenário contratado deveria abrir o portão e permitir a entrada do grupo, mas ele ainda não havia aparecido. Elysia tentava controlar a ansiedade que crescia em seu peito. Talvez ele tivesse se atrasado, talvez algo tivesse acontecido no caminho. A incerteza era sufocante. Foi então que um som cortou o ar noturno, um assobio agudo e curto. Elysia se virou rapidamente, mas não conseguiu ver nada além das sombras. O assobio soou novamente, desta vez mais perto, seguido por uma voz sussurrando palavras: – O mercenário traiu vocês. Ele está do lado do inimigo. Elysia sentiu um frio na espinha, seus pensamentos imediatamente se voltaram para o que poderiam fazer agora que haviam sido traídos. Precisava agir rápido, mas ao olhar para Demétrius, viu que ele já havia sacado seu gládio. Seria impossível lutar contra todo o exército imperialista que certamente os aguardava do outro lado do portão. Elysia respirou fundo, buscando a coragem que precisava ter em um momento como aquele. Seus olhos se fixaram no ponto de onde havia vindo o assobio e uma ideia surgiu em sua mente. Talvez houvesse uma maneira de contornar a traição do mercenário e ainda assim cumprir a missão. Ela se virou para Demétrius: – Não vamos lutar. Precisamos encontrar outra maneira de entrar no forte. Elysia e Demétrius se entreolharam, silenciosos, compreendendo um ao outro com um único olhar. Sabiam que não havia escolha, que precisavam confiar um no outro e em suas habilidades para conseguir adentrar ao forte. A tensão no ar era palpável quando Elysia se levantou, ajustando a espada na cintura. Demétrius seguiu-a, colocando a mão no ombro da jovem guerreira. – Vamos entrar pela passagem de esgoto. É nossa única chance, – disse ele, com uma voz encorajada. Elysia concordou, puxando a capa sobre a cabeça para se esconder melhor nas sombras da noite. Eles seguiram em silêncio, avançando lentamente em direção à entrada do esgoto. Demétrius foi o primeiro a se abaixar e entrar, seguido por Elysia. O cheiro nauseabundo quase a fez vomitar, mas ela se conteve, lembrando-se do objetivo maior. Caminharam por um longo tempo, sempre em alerta, até que finalmente chegaram à entrada que levava ao forte. Demétrius a abriu com cuidado, e eles se esgueiraram para dentro do forte, sem serem percebidos. A passagem os levou diretamente para o pátio interno do forte, onde os soldados imperialistas realizavam sua guarda. Elysia e Demétrius se esconderam atrás de algumas caixas de suprimentos, observando os movimentos dos soldados com atenção. Foi então que Elysia notou algo estranho: o mercenário, que deveria estar do lado dos imperialistas, parecia inquieto e nervoso. Seus olhos se moviam de um lado para o outro, como se procurasse por algo ou alguém. Elysia apontou discretamente para ele, chamando a atenção de Demétrius. – Acho que ele está tentando nos encontrar, – sussurrou ela, olhando fixamente para o mercenário. Demétrius assentiu, sem dizer nada, e os dois saíram de seu esconderijo, avançando silenciosamente em direção ao traidor. Com a cautela dos que têm a vida em jogo, Elysia caminhou sorrateiramente entre caixotes de suprimentos no interior do forte, enquanto, vindos da praia, os sons da batalha ecoavam em seus ouvidos. Enquanto seus irmãos tombavam nas areias da praia, Elysia persistia em sua missão, ciente de que suas vidas eram meras distrações para o sucesso do plano. A esperança e a responsabilidade pesavam em suas mãos, e ela sentia a magnitude da tarefa que lhe fora confiada. Desconfiando da lealdade do mercenário, após ouvir aquela voz antes de entrar no forte, Elysia aguardou o momento certo para abordá-lo. Esperou que os soldados imperiais se entregassem à luta e, então, dirigiu-se até ele, fazendo um leve ruído em um dos caixotes para que fosse notada pelo rapaz. De imediato, o mercenário voltou-se para ela, soltando um sorriso de reconhecimento e dirigindo-se em sua direção. Demétrius, por sua vez, sentiu-se ansioso, pois bastava um único soldado imperialista notar qualquer ação suspeita e o plano seria arruinado. Pior ainda, se a lealdade do mercenário estivesse comprometida, suas vidas estariam perdidas. Aqueles segundos pareciam uma eternidade, até que, enfim, o mercenário acenou discretamente para os dois, conduzindo-os a um beco oculto, protegido por pedras e imune aos olhos dos soldados inimigos. Naquele instante, a escuridão que envolvia o olhar de Elysia parecia também se infiltrar em sua mente. De repente, aquela voz que ouvira anteriormente emergiu à superfície: – Não confie nele, Elysia, ele é um mercenário. Mercenários são traidores. Traidores, sim senhor – dizia a voz, seguida por uma risada um tanto estranha. Elysia olhou em volta, mas desta vez não teve dúvidas: aquela voz não era real. Ou, se fosse, poderia ser algo místico? Era impossível não se questionar sobre sua sanidade naquele momento. Enquanto caminhava pelo beco, seguindo o homem, Elysia tentava desembaraçar seus pensamentos e concentrar-se no que era importante no momento. Entretanto, a voz continuava a incomodá-la: – Vocês morrerão, Elysia. A morte de seus companheiros será em vão. A missão está comprometida. Tudo está perdido – a risada insistente soava como um roteiro ensaiado. – Maldito, cale-se! – gritou Elysia, instintivamente, para a voz que a perturbava. Mesmo na escuridão do beco, ela percebeu que Demétrius e o mercenário estavam olhando para ela. Não precisava ver as expressões dos companheiros para saber que a julgavam. Ou, no mínimo, não entendiam por que ela dissera aquelas palavras.