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A ILÍADA E O HUMANISMO DE HOMERO

A Ilíada de Homero — primeira grande conquista do povo grego: conquista da


poesia — é o poema do homem na guerra, dos homens consagrados à guerra pelas suas
paixões e pelos deuses. Ali um grande poeta fala da nobreza do homem frente a esse
flagelo detestável, do homem arrebatado por Ares — bebedor de sangue... o mais odioso
dos deuses». Ali fala da coragem dos heróis que matam e morrem com simplicidade, do
sacrifício voluntário dos defensores da pátria, da dor das mulheres, do adeus do pai ao
filho que o continuará, da súplica dos velhos. E muitas outras coisas: a ambição dos chefes,
a sua cupidez, as querelas, as injúrias com que se cumulam, e mais a cobardia, a vaidade, o
egoísmo, lado a lado com a bravura, a amizade, a ternura. A piedade mais forte que a
vingança. Fala do amor da glória que eleva o homem à altura dos deuses. Fala desses
deuses omnipotentes e da sua serenidade. As suas paixões ciosas, o seu caprichoso
interesse e a sua profunda indiferença pela turba dos mortais. Acima de todas as coisas,
este poema, onde reina a morte, fala do amor da vida, e também da honra do homem, mais
alta que a vida e mais forte que os deuses.
(…)
Se quisermos caracterizar o génio de Homero, diremos, antes de mais, que é um
grande, um prodigioso criador de personagens. A Ilíada é um mundo povoado, e povoado
pelo seu criador de criaturas originais, diferentes umas das outras, como o são os seres
vivos. Homero teria o direito de se apropriar da frase de Balzac: «Eu faço concorrência ao
registo civil.» Esta faculdade de criar seres em grande número, distintos uns dos outros,
com o seu estado civil, os seus sinais característicos, o seu comportamento próprio (hoje
diríamos: com a sua impressão digital), possui-a Homero no mais alto grau, como Balzac e
também como Shakespeare, como os maiores criadores de personagens de todos os
tempos. Para fazer viver uma personagem — sem a descrever: pode dizer-se que Homero
não descreve nunca —, basta por vezes ao poeta da Ilíada atribuir-lhe um só gesto, uma
palavra única. Assim há centenas de soldados que morrem nos combates da Ilíada. Certas
personagens entram no poema apenas para nele morrerem. E sempre ou quase sempre é
um sentimento diferente em relação à morte que exprime esse gesto pelo qual o poeta dá a
vida no instante mesmo em que a retira. «E Diores tombou no pó, de costas, estendendo os
braços para os seus companheiros.» Criou muitas vezes um poeta um ser para tão pouco e
por tão pouco tempo? Um simples gesto, mas que nos toca no fundo, dando-nos a conhecer
Diores no seu grande amor da vida.
(…)
Quase todas as personagens da Ilíada são soldados. A maior parte destes soldados
são bravos. Mas é notável que nenhum seja bravo da mesma maneira.
A bravura de Ájax, filho de Telémon, é pesada: bravura da resistência. Ájax é um
homem grande, de ombros largos, “enorme”. Esta bravura é como um bloco que ninguém
remove. Uma comparação (que escandalizava os nossos clássicos pela sua vulgaridade não
épica (!) e à qual se fez já alusão) define-o na sua teimosia. «Muitas vezes um burro, na
berma de um campo, resiste às crianças. Como que escorado, podem partir-lhe em cima
pau após pau: uma vez que entrou no trigo basto, fará a colheita. As crianças castigam-no
de pancadas. Pueris violências! Não o farão mexer-se dali enquanto não se fartar. Assim
combatia o grande Ájax...»
Ájax tem a coragem da obstinação. Pouca impetuosidade na ofensiva, a sua massa
de «javali» a isso se não presta. Pesado de espírito como de corpo. Não estúpido, antes
limitado. Há coisas que ele não compreende. Assim, na embaixada dos chefes junto de
Aquiles, não compreende que o herói se obstine por causa de Briseida: «Por causa de uma
só rapariga!», exclama, «quando vimos oferecer-te sete, belíssimas, e ainda por cima
montes de outros presentes.»
A rudeza de Ájax serve-o admiravelmente na defensiva. Deram-lhe ordem de ficar
onde o puseram, e aí fica. Limitado no sentido etimológico da palavra: à maneira de um
limite que é posto ali para dizer que não se deve passar além. O poeta chama-lhe uma
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torre, um muro. Bravura de betão. Ei-lo no barco que defende, caminhando no castelo da
proa «a grandes passadas», dominando todo o espaço a guardar, matando a lançadas
metódicas os assaltantes um após outro, ou armando-se, se preciso for, de um enorme
croque de abordagem. A sua eloquência é a de um soldado. Diz-se em três palavras: não
arredar pé. «Com quem mais contam?», grita ele... «Só nos temos a nós... Logo, a salvação
está nas nossas mãos.» O desânimo é outra coisa que não compreende. Sabe que uma
batalha não é um «baile», como ele mesmo diz, mas um lugar onde «no corpo a corpo
pomos em contacto os braços e a coragem com os do inimigo». Então «sabe-se num
instante, e ainda bem, se se vai morrer ou continuar vivo». Eis os pensamentos simples
que fazem, no meio do combate, nascer «o sorriso no rosto terrível de Ájax».
A bravura de Ájax é a do espartano ou do romano antecipado, do espartano a quem
o regulamento militar proibia recuar, de Horácio Cocles sobre a sua ponte. Bravura de
todos os bons soldados que se deixam matar para aguentar. Heroísmo pintado por
Homero muito antes que Plutarco o tenha passado ao copiador, ao alcance do primeiro
homem de letras que apareça.
Diferente é a bravura de Diomedes. Coragem, não de resistência, mas de ímpeto.
Não bravura espartana, mas furia francese. Diomedes tem fogosidade e o atrevimento da
juventude, tem a labareda. É ele o mais jovem dos heróis da Ilíada, depois de Aquiles. A sua
juventude é atrevida para com os mais velhos. Na cena nocturna do conselho dos chefes,
Diomedes mostra-se impetuoso a atacar a conduta de Agamémnon: pede que o rei dos reis
apresente desculpas a Aquiles. Entretanto, no campo de batalha, é um soldado
disciplinado, aceita tudo do general-comandante, mesmo as mais injustas censuras.
Diomedes é um soldado sempre pronto a marchar, tem alma de voluntário. Após
um duro dia de batalha, é ainda ele que se oferece para um perigoso reconhecimento
nocturno no campo troiano. Gosta de fazer mais que o seu dever. Uma embriaguez leva-o
para o mais aceso do combate. Quando todos os chefes fogem diante de Heitor, Diomedes é
ainda empurrado para a frente pela coragem que nele habita. A sua lança participa desta
embriaguez: «A minha lança está louca entre as minhas mãos», diz. Leva o próprio velho
Nestor a precipitar-se contra Heitor. É preciso que Zeus, que quer a vitória de Heitor,
expulse com relâmpagos os dois bravos do campo de batalha. «A labareda branca jorrou
terrível e caiu, entre o odor do enxofre queimado, mesmo à frente do carro de Diomedes.
Os cavalos amedrontados procuram esconder-se debaixo do carro, as rédeas escapam-se
das mãos de Nestor...» Mas Diomedes não tremeu.
Homero deu a Diomedes a coragem mais brilhante de todo o poema. O mancebo
combate tão longe dos seus que «do filho de Tideu» (Diomedes), diz o poeta, «não podeis
saber se luta do lado dos de Tróia ou dos Aqueus».
As comparações que Homero usa para o mostrar aos nossos olhos têm sempre um
carácter arrastante: ele é a água duma torrente que na planície derruba as sebes dos
pomares e esses diques de terra com que os camponeses procuram deter a água que
transborda. Para acentuar a qualidade desta coragem brilhante, Homero acende em pleno
combate uma labareda simbólica no alto do capacete de Diomedes.
Este herói recebe enfim do poeta o privilégio único de combater contra os ses. Nem
Aquiles nem nenhum dos outros se arriscam a enfrentar os xtais que se juntam aos
combates dos mortais. Só Diomedes, em cenas de singular grandeza, leva a temeridade ao
ponto de perseguir e atacar Afrodite. Apolo, e depois o próprio Ares. Ataca a deusa da
beleza que tentava furtar-lhe um adversário troiano que ele derrubava. Fere-a e faz correr
o sangue. «O seu dardo agudo, através do ligeiro véu tecido pelas Graças, entra na pele
delicada do braço, e, acima do punho da deusa, jorra o sangue imortal. Do mesmo modo,
fere Ares, e o deus dos combates solta um rugido como o de dez mil guerreiros. Tudo isto
sem arrogância. Não há presunção ímpia em Diomedes. Nada além desse fogo interior que
o impele a todas as audácias. Diomedes é um apaixonado. Mas que diferença singular a que
há entre o apaixonado sombrio que é Aquiles e Diomedes, o apaixonado luminoso!
Diomedes é um entusiasta.
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Entusiasta: a palavra designa em grego (a etimologia o indica) um homem que traz


em si o sopro divino. Uma deusa é amiga de Diomedes: a belicosa mas sábia Atena habita
nele, confunde com a dele a sua alma. Sobe ao lado de Diomedes no carro. É ela que o lança
no coração da peleja, ela que o enche de força e de coragem — «Ama-me, Atena!», grita-lhe
Diomedes —, ela que aponta aos seus golpes o ardente Ares, «esse furioso, o Mal
incarnado», diz Atena, deus detestado pelos homens e pelos deuses, porque desencadeia a
guerra hedionda, esse deus que entre os Gregos sempre teve poucos templos e altares.
A fé que deposita na palavra de Atena é, para Diomedes, a fonte profunda da
coragem.
Esta fé dá, por momentos, a este soldado aqueu um ar de parentesco com um
cavaleiro da nossa Idade Média. Diomedes é o único da Ilíada que pode ser denominado
cavaleiresco. Um dia, antes de iniciar o combate com um troiano de quem ignora o nome,
sabe, no momento em que o vai ferir, que esse nome é Glaucos e esse homem o neto de um
hóspede de seu avô. «Então o bravo Diomedes sentiu grande alegria e, cravando a lança na
terra nutriente, dirigiu ao seu nobre adversário estas palavras plenas de amizade: Em
verdade tu és um hóspede da minha casa paterna e os nossos laços vêm de velha data...
Não me lembro de meu pai, era muito pequeno quando ele morreu... Por ele e por teu pai,
sejamos doravante amigos um para o outro. Tu, na Argólida, serás sempre o meu hóspede,
e eu serei o teu na Lícia, no dia em que for a essa terra. Evitemos as nossas lanças na
batalha. Tenho outros Troianos a matar e tu outros Aqueus... Troquemos as nossas armas,
para que todos saibam que nos orgulhamos de ser amigos e hóspedes por nossos pais...»
Dito isto, os dois guerreiros saltam dos carros, apertam as mãos e firmam amizade.
A cena é irradiante. Homero não podia atribuir este gesto generoso a nenhum
outro dos seus heróis que ao entusiasta Diomedes. Cena surpreendente, mas cujo fim nos
surpreende mais ainda. Assim ela se conclui: «Mas nesse instante Zeus confundiu o
espírito de Glaucos, que deu a Diomedes armas de ouro em troca de armas de bronze — o
valor de cem bois pelo de nove.»
O poeta não nos diz que o seu favorito tenha ficado satisfeito. Dá-o no entanto a
entender, uma vez que Diomedes não faz notar a Glaucos o erro. Este grão de rapacidade
na alma cavalheiresca de Diomedes é o contraveneno do idealismo convencional que
ameaça de perigo mortal toda a obra cujas personagens são heróis. Profundo realismo de
Homero na pintura do coração humano.

*
Não há só soldados na Ilíada, há mulheres, há velhos. E entre os soldados não há
apenas valentes, há Páris.
Os estranhos amores de Páris e de Helena estavam, segundo a tradição, na origem
da guerra de Tróia. Continuam presentes e activos, com uma força singular, no conflito da
Ilíada.
Páris era o sedutor e o raptor de Helena. Primeiro autor da guerra, era também
vencedor de Aquiles, a quem matava com a sua flecha. É de crer que houve um tempo em
que, nas epopeias do ciclo de Tróia anteriores à Ilíada, Páris era apresentado como o herói
da guerra que provocara, o campeão de Tróia e de Helena.
Parece ter sido o próprio Homero que, substituindo-o neste nobre papel por seu
irmão Heitor, personagem mais recente no ciclo troiano, fez de Páris o cobarde da Ilíada.
Em todo o caso, o instinto dramático de Homero coloca Páris nos antípodas de Heitor e
mantém, através de todo o poema, um conflito permanente entre os dois irmãos. Heitor é o
puro herói, o protector e salvador de Tróia, Páris é quase o cobarde no estado puro, é «o
flagelo da sua pátria».
Não é que Páris não experimente por repentes o prestígio do ideal do seu tempo:
quereria ser bravo, mas, ser bravo em actos — o seu coração e o seu belo corpo de
cobarde, no instante decisivo, recusam-se. Com muitos gemidos e desculpas, promete a
Heitor segui-lo ao combate, que abandonou sem razão que colha. Explicações miseráveis:
«Retirei-me para o meu quarto, para me entregar ao desgosto.» Promessas vacilantes:
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«Agora minha mulher me aconselha com doces palavras que volte ao combate...» (Estas
doces palavras tínhamo-las nós ouvido antes. Uma salva de injúrias que Páris engolia
quase sem resposta.) E continua: «E eu próprio creio bem que será melhor assim... Espera-
me, pois. Deixa apenas que envergue a minha armadura. Ou antes, parte, eu te seguirei, e
penso que me juntarei a ti.» Para um soldado, não falta desenvoltura ao tom.
Certos pormenores materiais desenham ainda a cobardia de Páris. O arco é a sua
arma preferida. Permite-lhe evitar o corpo a corpo que faz «tremer os seus joelhos e
empalidecer as faces». Para desferir o arco, esconde-se atrás dos seus camaradas ou da
estela dum túmulo. Se fere um inimigo, «salta para fora do esconderijo, a rir às
gargalhadas».
Contudo, Páris não é o cobarde absoluto. O medo afasta-o da peleja, mas acontece
que a vaidade, o desejo de gloríola lá o reconduz. Porque Páris é vaidoso da sua beleza,
vaidoso da pele de pantera que traz sobre os ombros mesmo no combate, vaidoso do seu
penteado em caracóis que é um penteado de mulher. É vaidoso das suas armas, que passa
o tempo a polir no aposento das mulheres, enquanto os outros se batem. Tudo isto, trajes e
beleza — e a sua maneira de «mirar as raparigas», a sua paixão das mulheres, os seus
triunfos de sedutor —, não deixou de fazer de Páris, em Tróia, uma personagem talvez
desprezada, mas importante. De bom grado ele juntaria aos diversos títulos de
«subornador», com que Heitor o vergasta como insultos, o título de bravo guerreiro. Com a
condição de obter com pouco trabalho — com o seu arco — esse certificado de bravura.
Apanhado neste conflito da gloríola e do medo, Páris sai dele com o desembaraço e as
reticências meio sinceras que marcam de facto a sua própria incerteza sobre os
sentimentos que, afinal, prevalecerão em si. Este belo rapaz, cobarde e vaidoso, em cujo
leito Afrodite lança Helena revoltada, será, afinal, apenas desprezível?
A análise psicológica no simples plano humano não permite responder a esta questão. Não
atinge Páris no seu cerne.
A pessoa de Páris só se explica se reconhecermos que ela é o lugar duma
experiência a que teremos de chamar religiosa. Insultado por Heitor, Páris admite sem
dificuldade que o seu irmão o censurou justamente da sua cobardia. O que ele não aceita é
a injúria feita à sua beleza e aos seus amores. Ele replica ao irmão, não sem justo orgulho:
«Não tens o direito de me censurar pelos dons encantadores da loura Afrodite. Não
devemos desprezar os dons gloriosos dos deuses. É o Céu que os outorga, e nós não temos
meio de fazer nós próprios a nossa escolha.» Como se tomou altivo o tom do leviano Páris!
Chegou a sua vez de dar lições a Heitor. Os dons que recebeu do Céu, não os «escolhe» o
homem, foram-lhe «dados». Foi de Afrodite que ele recebeu a graça da beleza, o desejo e o
dom de inspirar o amor. Amor e beleza, dons gratuitos, coisas divinas. Páris não permite
que os rebaixem, que insultem assim uma divindade. Não escolheu, foi objecto de uma
escolha: tem consciência de ser um eleito. (O facto de ele receber o divino na sua carne não
deve impedir-nos de admitir que Páris faz uma experiência religiosa autêntica.)
A partir daqui compreendemos a perfeita coerência do carácter de Páris. A sua paixão não
é a de um simples gozador, é uma consagração. Não lhe dá apenas o prazer dos sentidos —
embora lho dê, indiscutivelmente —, aproxima-o da condição da divindade. A sua
leviandade, a sua indiferença, atingem a serenidade dos deuses bem-aventurados. Não há
mais questões a pôr. Desprendido doutros cuidados que não sejam os de Afrodite, vai
buscar, à consciência de ser o representante dela entre os homens, contentamento,
plenitude, autoridade. A sua vida é simplificada porque é dirigida.
É certo que, no mundo da guerra onde vive, se comporta como um cobarde. A sua
vontade é fraca ou nula. Mas esta fraqueza fundamental, é capaz de a encher
completamente a força de Afrodite. Páris achou no abandono à vontade divina uma forma
de fatalismo que o dispensa do esforço e o liberta do remorso. A sua piedade justifica a sua
imoralidade. E que grandeza no seu apelo ardente a Helena quando Afrodite, depois de o
arrancar à lança de Menelau, o transporta ao leito perfumado onde sua mulher, à força, vai
ter vai ter com ele: «Vamos! deitemo-nos e saboreemos o prazer do amor. Nunca o desejo
a este ponto se apoderou de mim, apertando-me a alma. Não, nem mesmo no dia em que,
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arrebatando-te da tua bela Lacedemónia, ganhei o mar com os meus barcos, e na ilha de
Crânao me uni a ti no amor — não, não, nunca como te amo nesta hora em que a volúpia
do desejo me possui.»
Afrodite fala pela boca de Páris, Afrodite força cósmica, e confere-lhe grandeza, por
mais pobre que seja o instrumento que escolheu — esse cobarde que o povo troiano
«revestiria de vontade de uma túnica de pedras!»
A uma distância infinita de Páris, Helena, sensível mais do que sensual, coloca-se,
pelo seu carácter, no pólo inverso de Páris. Moral diante do seu amante amoral, resiste à
paixão que Afrodite lhe inflige, quereria recusar-se ao prazer que esta a obriga a partilhar.
A amoralidade de Paris procedia da sua piedade, a moralidade de Helena revolta-a contra
a deusa. Ambos belos e ambos apaixonados, a sua beleza e a sua paixão são dons que eles
não podem afastar e que constituem o seu destino.
Contudo, a natureza de Helena era feita para a ordem e a regra. Ela evoca com pena
o tempo em que tudo lhe era fácil, no respeito e na ternura dos laços familiares. «Deixei o
meu quarto nupcial, os parentes, a minha família querida… Por isso, entre lágrimas vou
penando.» Julga-se a si mesma com severidade, acha natural o juízo severo feito sobre ela
pelo povo troiano. Helena ainda se consolaria do seu destino se Páris fosse valente se
tivesse honra, como era o caso de seu marido Menelau, que ela dá como exemplo de
coragem ao amante. Nada dispunha pois a moral Helena a desempenhar, na glória que a
poesia confere, o papel da mulher adúltera, instrumento de ruína de dois povos.
Paradoxalmente, Homero fez desta esposa culpada, por quem Aqueus e Troianos se
exterminam, uma mulher simples que só pedia que a deixassem viver obscuramente a sua
vida de boa esposa e de tema mãe. Há paradoxo desde que os deuses entram nas nossas
vidas — pelo menos estes deuses homéricos que não apreciam muito a moral que nós
inventámos para nos defendermos deles. Afrodite apoderou-se de Helena para manifestar
a sua omnipotência. Verga a sua vítima sob a dupla fatalidade da beleza e do desejo furioso
que inspira aos homens. Helena torna-se a imagem da própria Afrodite.
E é esta inquietação religiosa que se apossa dos homens na sua presença. Qualquer
coisa que, por um instante, lança os velhos de Tróia em êxtase e tremor e faz desatinar a
experiência. Quando a vêem subir às muralhas onde estão reunidos, estranhamente dizem:
«É justo que, por uma tal mulher, Aqueus e Troianos sofram longas provações, porque ela
se assemelha, de maneira terrível, às deusas imortais.» Terríveis velhos estes, que
justificam a selvática matança de dois povos pela simples beleza de Helena!
Contudo, nem todos os Troianos se enganam. Nem Príamo nem Heitor confundem
Helena, mulher simples e bondosa, Helena que se odeia a si mesma, Helena que odeia a sua
paixão incompreensível e contudo a ama, como ama Páris, no sentido de que não poderá
nunca desligar-se dele — essa Helena que é toda humana, não a confundem com a beleza
fatal que está nela como uma labareda destruidora, manifestação da omnipotência divina.
«Para mim», diz Príamo, «não és tu a culpada, mas os deuses.»
Helena não é senhora das consequências da sua beleza. Essa beleza, não a quis ela
nem a cultivou. Recebeu-a como uma maldição do Céu, tanto como um dom. A sua beleza é
também a sua fatalidade.

*
Eis agora, após estas estrelas brilhantes, mas de segunda grandeza, os astros
cintilantes da Ilíada, Aquiles e Heitor. Nestes dois sóis do poema, Homero ilumina dois
modos tão essenciais da vida humana que é difícil vivê-la a uma certa altitude sem
participar de um e de outro. Aquiles aparece em primeiro lugar como uma imagem da
juventude e da força. Jovem pela idade (anda pelos vinte e sete anos), é-o sobretudo pelo
calor do sangue, pela fogosidade das suas cóleras. Juventude indomada, que cresceu na
guerra e que não aceitou ainda nem sequer conheceu o freio da vida social.
Aquiles é a juventude e é a força. Uma força segura de si mesma, que os fracos
imploram para se defenderem dos humores dos grandes. Assim faz Calcas, o adivinho, no
limiar da Ilíada. Interrogado por Agamémnon sobre a causa da peste que caiu sobre a
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armada, Calcas hesita em responder. Sabe que é perigoso dizer a verdade aos poderosos.
Implora a protecção de Aquiles. O jovem herói promete-lhe a sua força sem reserva:
«Tranquiliza-te, Calcas. Ninguém entre os Aqueus, vivo eu e com os olhos abertos,
levantará contra ti mãos violentas… ainda que designasses Agamémnon, que se glorifica
de ser o mais poderoso dos Aqueus.» Eis a primeira imagem de Aquiles, irradiante de
força.
Mais adiante, quando, desafiado por Agamémnon, rompe em ameaças, essa força
afirma-se com orgulho no amplo juramento (que apenas citarei parcialmente) que Aquiles
faz de não mais agir. «Sim, por este ceptro sem folhas nem ramos, que não reverdecerá
mais depois que o bronze o cortou na árvore da montanha... em verdade, por este ceptro
entregue aos Aqueus por Zeus para que eles ditem a justiça, e em seu nome mantenham as
leis, não tardará que o pesar da ausência de Aquiles invada todos os filhos dos gregos, e
temerás de impotência de os salvar quando eles caírem numerosos sobre os golpes
mortais de Heitor, e tu sentir-te-ás irritado e dilacerado no mais fundo da alma por teres
ultrajado o mais bravo dos Aqueus. — Assim falou o filho de Peleu e, lançando ao chão o
ceptro dos pregos de ouro, sentou-se.»
A partir daí, e durante mais de dezoito cantos, a Força está imóvel. Imagem tão
impressionante nesta imobilidade mortal para os Gregos, como na sua fúria nos cantos de
batalha de Aquiles. Porque nós sabemos que, para salvar o exército. bastaria que Aquiles,
que «se sentou», se levantasse. Ulisses. No centro da sua ausência, diz-lhe: «Levanta-te e
salva o exército...»
Finalmente, a Força levanta-se. «E Aquiles levantou-se... Uma alta claridade
irradiava da sua cabeça até ao Céu, e ele avançou até à borda do fosso. Ali, de pé, soltou um
grito, e esta voz suscitou entre os Troianos um tumulto indizível.»
Para pintar a força de Aquiles, Homero tem comparações de grande poder. Aquiles
é semelhante a um vasto incêndio que estrondeia nas gargantas profundas da montanha; a
espessa floresta arde, o vento sacode e rola as labaredas: assim se precipitava Aquiles,
como um deus, matando todos aqueles a quem perseguia, e a terra negra escorria sangue.
Ou ainda tira o poeta, não já de um flagelo natural, mas da imagem dum trabalho
pacífico, um ponto de comparação do furor destruidor de Aquiles. ‘Tal como dois bois de
larga fronte calcam a cevada branca numa eira circular e como os grãos sob as patas dos
animais que mugem se escapam das hastes frágeis, assim, impelidos pelo magnânimo
Aquiles, os cavalos pisavam os cadáveres e os escudos. E todo o eixo estava inundado de
sangue e os taipais do carro escorriam das gotas de sangue que saltavam das rodas e dos
cascos dos cavalos. E o filho de Peleu era ávido de glória, e o sangue sujava as suas mãos
inevitáveis.»
Força destruidora, força maculada de sangue, assim surge Aquiles nos cantos mais
terríveis do poema. Aquiles é atroz. Raramente um poeta levou o horror mais longe que
em cenas como a da morte do adolescente Licáon. A súplica desta criança desarmada, a
lembrança do seu primeiro encontro com Aquiles no pomar de seu pai, a história do seu
salvamento inesperado, tudo isto enternece, mas apenas para tornar mais brutal a
resposta de Aquiles, mais selvática a morte e mais horrível o gesto de agarrar o cadáver
pelos pés e de o lançar aos peixes do Escamandro entre imprecações.
Em tudo isto, é ainda um homem, ou nada mais que um bruto, este filho duma
deusa? Um homem em todo o caso, pela sua extrema sensibilidade às paixões. É aqui que
está a mola psíquica da força de Aquiles: sensível às paixões, e da maneira mais aguda,
devorado pela amizade, pelo amor-próprio, e pela glória, e pelo ódio A força de Aquiles, o
mais vulnerável dos homens, só se declara, com uma violência inaudita, no fluxo da paixão.
Aquiles, que parece aos olhos horrorizados de Licáon, aos nossos, tão insensível, tão
inflexível, só é inflexível porque está todo ele retesado por uma paixão que o endurece
como o ferro, só é insensível a tudo porque é unicamente sensível a ela.
Nada de sobre-humano, nada de divino neste homem, se o divino é o impassível.
Aquiles nada domina, tudo sofre. Briseida, Agamémnon, Pátroclo, Heitor — a vida
desencadeia nele, destes quatro pontos cardeais do seu horizonte sentimental, uma
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tormenta após outra, de amor ou de ódio. A sua alma é como um vasto céu, jamais sereno,
onde a paixão amontoa e faz rebentar incessantes tempestades.
A calma nunca passa de aparência. Assim, na cena de reconciliação com
Agamémnon, Aquiles, para quem este títere que tanto o ulcerou já não conta, está pronto a
todas as concessões, até as mais generosas, e de repente, porque tardam em partir, a
paixão nova que o possui, a amizade que pede vingança, faz rebentar a calma da superfície.
Ele grita: «O meu amigo está morto, deitado na minha tenda, traspassado pelo bronze
agudo, os pés para a entrada, e os meus companheiros choram em redor dele... E eu, eu não
tenho outro desejo no coração que a carnificina, o sangue e o gemido dos guerreiros.»
Aquiles é uma sensibilidade violentamente abalada pelo objecto que deseja,
lamenta ou detesta no momento presente, cega para todo o resto. A imagem passional
pode mudar: é Agamémnon, Pátroclo ou Heitor. Mas logo que tomou posse da alma, ela
põe em movimento todo o ser e desencadeia a necessidade da acção. A paixão é, em
Aquiles, uma obsessão que só pela acção pode ser aliviada.
Este encadeamento — paixão, sofrimento, acção — é Aquiles. Mesmo depois da
morte de Heitor, quando parece que a paixão saciada (mas não está na sua natureza sê-lo
alguma vez) o deveria deixar em paz.
«Acabada a luta, os soldados dispersaram-se, voltaram às naves, a fim de comer e
gozar do suave sono. Mas Aquiles chorava, lembrando-se do companheiro querido, e o
sono, que a tudo doma, não o visitava a ele. Andava de um lado para o outro, deplorando a
perda da força de Pátroclo e do seu coração heróico. E lembrava-se das coisas realizadas e
dos males sofridos em comum, de todos os seus combates e dos perigos enfrentados no
mar infinito. A esta lembrança, as lágrimas caíam-lhe, ora deitado de lado, ora de costas,
ora com o rosto contra a terra. Depois levantou-se bruscamente, com o coração
intumescido de dor, e foi ao acaso pela borda do mar, até ao momento em que, quando a
Aurora aparecia por cima das vagas e dos promontórios, atou Heitor atrás do carro e duas
vezes em volta do túmulo de Pátroclo o arrastou. Depois voltou à sua tenda para repousar
e deixar Heitor estendido, com o rosto no pó.»
Viu-se neste texto como a imagem passional, sobretudo no silêncio nocturno,
invade o campo da consciência, faz subir na alma todas as recordações, torna a dor
pungente, até que se desencadeie a acção que, por um momento, liberta da angústia.
Eis a primeira chave de Aquiles: paixões fortes que se aliviam graças a violentas
acções. Um homem assim, começa por parecer um puro indivíduo, O demónio do poder,
que se alimenta e se acresce de todas as suas vitórias, parece ter-se tornado a lei única da
pessoa de Aquiles. O herói quebra e pisa todos os laços que o ligavam à comunidade dos
seus camaradas, a todos os outros homens. A paixão, pela acção dissolvente e anárquica
que lhe é própria, aniquila nele o sentido da honra, vota-o à mais desumana crueldade.
Quando Heitor vencido e moribundo lhe dirige o apelo mais pungente que na Ilíada se
encontra, rogando-lhe apenas que o seu corpo seja entregue aos seus, Aquiles responde:
«Cão, não supliques nem pelos meus joelhos nem pelos meus pais. Tão verdade como eu
quereria ter a força de cortar o teu corpo em pedaços e de comer a tua carne crua pelo mal
que me fizeste, ninguém afastará dos cães a tua cabeça, ainda que me oferecessem dez ou
vinte vezes o teu resgate, ainda que Príamo pusesse na balança o teu peso em ouro... Não,
tua mãe não te chorará num leito fúnebre. Os cães e as aves te devorarão todo.»
Neste caminho deserto por onde Aquiles avança, é para a solidão mais inumana
que ele marcha. Vota-se à sua própria destruição. Vêmo-lo já na cena em que fala de
abandonar o exército, sem cuidar do desastre dos seus. Atreve-se a declarar preferir a
velhice à glória. Viver velho, remoendo dia após dia o seu rancor, é negar o sentido da sua
vida. Não o pode fazer.
Em verdade, Aquiles ama a vida, ama-a prodigiosamente e sempre no instante e no
acto. Sempre pronto a apoderar-se do que ela lhe traz de emoção e acção, estreitamente
cingido ao presente, agarra com avidez tudo quanto cada acontecimento lhe oferece.
Pronto para matar, pronto para a cólera, pronto para a ternura e mesmo para a piedade, a
tudo acolhe, não à maneira do sage antigo, com uma igual indiferença, mas à maneira
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duma natureza robusta, faminta, que se alimenta de tudo com igual ardor. Extraindo
mesmo do sofrimento a alegria. Da morte de Pátroclo tira ele a alegria da carnificina, e o
poeta diz-nos, no mesmo momento, que «uma dor horrível enchia o coração de Aquiles» e
que «as suas armas eram asas que o impeliam e erguiam o príncipe dos povos».
Este arrebatamento da vida é em Aquiles tão forte que tudo nele parece desafiar a
morte. Nunca pensa nela, a morte não existe para ele, de tal maneira está ligado ao
presente. Duas vezes é avisado: se matar Heitor, morrerá. Responde: que me importa?
Antes morrer que ficar junto das naves, inútil fardo da terra». Ao seu cavalo Xanto, que
singularmente toma a palavra para lhe anunciar a morte no próximo combate, responde
com indiferença: «Para quê anunciar a minha morte?... Sei que o meu destino é morrer
longe de meu pai e de minha mãe. E contudo não me deterei antes de ter fartado os
Troianos de combates. — Assim falou e, com grandes gritos, impeliu os cavalos para as
fileiras da frente. A sageza de Aquiles é, aqui, profunda. Ama a vida o bastante para
preferir a intensidade dela à duração. É este o sentido da escolha que fizera na juventude:
a glória conquistada na acção, eis uma forma de vida que lhe inspira um amor ainda mais
violento que uma vida que decorresse sem história. Esta escolha, após um instante de
fraqueza, é mantida com firmeza, A morte em glória é também a imortalidade na memória
dos homens. Aquiles escolheu viver até nós e para além de nós.
Assim o indivíduo Aquiles se liga pelo amor da glória à comunidade dos homens de
todos os tempos. A glória não é para ele apenas um túmulo solene, e sim a pátria comum
dos homens vivos.
Há ainda uma cena da Ilíada, a mais bela, em que Aquiles, de outro modo, revela a
humanidade profunda do seu ser. Uma noite em que trouxera, depois de o ter arrastado
atrás do carro, o corpo de Heitor para a sua tenda, recorda, no silêncio, o amigo morto. De
súbito, Príamo, o velho pai privado do seu filho, apresenta-se perante ele, com risco da
vida. Ajoelha aos pés de Aquiles, «beija aquelas mãos assassinas que lhe mataram tantos
filhos». Fala do pai de Aquiles, Peleu, que vive ainda na sua terra distante e se regozija à
ideia de que o filho está vivo. Ousa suplicar a Aquiles que lhe restitua o corpo de Heitor
para que este receba honras fúnebres. Aquiles é tocado até ao fundo alma pela invocação
de seu pai. Levanta docemente o velho e, durante uns instantes, choram ambos, um por
seu pai e por Pátroclo, o outro por Heitor. Aquiles promete a Príamo restituir-lhe o corpo
do filho.
Assim se conclui, numa cena de extrema beleza e de humanidade tanto mais
luminosa quanto a não esperávamos de Aquiles, o retrato deste duro herói da paixão e da
glória.
*
E agora, admirável Heitor, gostaríamos de falar de ti em termos líricos. Mas
Homero, que trata todas as suas personagens com igual imparcialidade, que não faz nunca
juízos sobre elas, no-lo proíbe. O poeta quer ser apenas o estanho do vidro, que permite às
suas criaturas reflectirem-se no espelho da sua arte.
Contudo, Homero não consegue esconder-nos a sua amizade por Heitor. Ao passo
que os traços da pessoa de Aquiles os foi buscar à mais antiga tradição da epopeia,
Homero modelou Heitor com as suas próprias mãos, usando, talvez, quando muito, um
esboço rudimentar anterior. Heitor é uma criatura de eleição. Mais do que nenhuma outra,
o poeta diz nela a sua fé no homem. Não nos esqueçamos também de fixar este ponto ao
escrever um poema no quadro geral da guerra de Tróia, o que implica a vitória dos Gregos,
poema no qual não esconde o seu patriotismo helénico, Homero vem a escolher o chefe
dos inimigos para encarnar, nele, a mais alta nobreza humana que pode conceber. Há aqui
uma prova de humanismo que não é rara entre os Gregos.
Como Aquiles e como a maior parte das personagens de epopeia, Heitor é bravo e
forte. Comparações brilhantes, jamais tingidas de sangue, desenham a sua força e a sua
beleza. Tal como o garanhão, alimentado de cevada abundante e longo tempo preso à
manjedoura, parte de súbito o laço, e, num galope que faz ressoar o solo, corre a
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mergulhar-se nas águas do claro rio, e depois, de cabeça erguida, sacudindo as crinas,
orgulhoso da sua beleza, salta até onde pastam as éguas, assim Heitor, etc... »
Tão bravo como Aquiles, a bravura de Heitor é no entanto duma qualidade
inteiramente diferente. Não é bravura de natureza, mas de razão. Coragem conquistada
sobre a sua própria natureza, disciplina que se impôs a si própria. A paixão de Aquiles
pode comprazer-se na guerra; Heitor, esse, detesta a guerra. Di-lo com simplicidade a
Andrómaca: teve de «aprender» a ser bravo, a combater na primeira fila dos Troíanos. A
sua coragem é a mais alta coragem, a única que, segundo Sócrates, merece esse nome,
porque, não ignorando o medo, o supera. Quando Heitor vê avançar ao seu encontro Ájax
«monstruoso, com o seu sorriso no rosto medonho», não pode reprimir um movimento de
temor instintivo. Movimento apenas corporal: o seu coração começa a «bater» mais forte
no peito. Mas domina este medo físico. Para vencê-lo, apela para a sua «ciência» do
combate. «Ájax», diz: «não procures assustar-me como a uma criança débil... Eu possuo a
ciência de tudo quanto diz respeito à batalha. Sei a maneira de derrubar homens... Sei, à
esquerda, à direita, opor o escudo de couro que é a minha boa ferramenta de guerra... Sei,
no corpo a corpo, dançar a dança do cruel Ares.»
Heitor não ignora a tentação da cobardia. Tendo ficado às portas de Tróia para
enfrentar Aquiles, para matá-lo ou ser morto por ele, ainda lhe é fácil afastar as súplicas
que, do alto das muralhas, lhe dirigem seu pai e sua mãe para que entre na cidade. Estas
súplicas dilaceram-no, representando-lhe o incêndio de Tróia, o extermínio ou a
escravização dos seus, que se seguiriam à morte. O respeito humano basta-lhe contudo
para repelir a tentação. Mas depois, abandonado a si mesmo, estranhos pensamentos, no
silêncio do seu coração, perturbam este valente. Pensa na morte certa, se trava combate.
Não será tempo ainda de o evitar? Porque não voltar, com efeito, para o abrigo das
muralhas? Por um momento, pensa mesmo em implorar a Aquiles, em depor as armas
junto da muralha para se oferecer sem defesa ao adversário. Porque não propor-lhe um
acordo em nome dos Troianos? (Porque não, realmente?) Durante um momento compraz-
se nestas imaginações, pormenoriza as cláusulas dum contrato razoável. De repente, tem
um sobressalto. A sua loucura, a sua fraqueza aparecem-lhe claramente. Retoma o domínio
de si. «Em que pensa o espírito?» Não, não implorará a Aquiles. Não se deixará matar como
uma mulher. Não entrará desonrado em Tróia. O tempo dos devaneios passou, tão longe
dele agora como os amores da mocidade. «Já não se trata hoje de falar do carva1ho ou do
rochedo, como o rapaz e a rapariga que ternamente conversam entre si.» Trata-se de olhar
a morte de frente, trata-se de saber morrer como um valente. Para lutar contra a cobardia,
não há somente o respeito humano, o amor-próprio, há a honra, mais alta que a vida.
Aquiles não precisa de reflectir para ser bravo. Heitor é bravo por um acto de
reflexão e de razão. Esta razão tão firme arranca-lhe por vezes palavras belas. Um dia em
que seu irmão Polidamas, obedecendo a um presságio sinistro e aliás verídico, o convida a
interromper o combate, Heitor, que não pode duvidar de que o presságio seja seguro, mas
que quer combater apesar de tudo, replica-lhe: «O melhor presságio é combater pela nossa
terra.» Palavra surpreendentes numa época em que os presságios têm grande autoridade e
não se deixam desafiar, sobretudo para um homem piedoso como Heitor.
Mas só a honra e a razão não explicam Heitor. É preciso falar das fontes profundas,
das fontes afectivas da sua coragem. A honra não é para Heitor um conceito do espírito,
um «ideal», é combater pela terra que ama, morrer por ela se preciso for, combater para
salvar sua mulher e seu filho da morte ou da escravatura. A coragem de Heitor não é a
coragem do sage: não se funda, como a de Sócrates, por exemplo, na indiferença pelos bens
terrenos, alimenta-se, pelo contrário, do amor que lhes dedica.
Heitor ama a sua pátria. Ama «a santa Ílion e o povo de Príamo de lanças de
freixo». Ama-os até ao ponto de os defender contra todas as esperanças. Porque ele sabe
que Tróia está perdida. «Sim, eu sei-o, um dia a santa Tróia perecerá...» Mas o amor,
justamente, não se detém em tais certezas: nós defendemos até à última hora aqueles a
quem amamos. Toda a acção de Heitor se orienta para a salvação de Tróia. Ao passo que
Aquiles não liga importância a sentimentos sociais, Heitor está firme no amor que dedica à
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sua cidade, aos seus concidadãos, a seu pai, que é também seu rei. A Aquiles, chefe ainda
meio selvagem duma tribo em guerra e a quem a guerra ainda mais desciviliza, a quem ela
rebaixa por vezes ao nível do bruto, opõe-se Heitor, o filho da cidade que defende o seu
território e a quem esta impõe, mesmo na guerra, a sua disciplina social Aquiles é
anárquico. Heitor é cívico Aquiles quer matar em Heitor aquele a quem odeia. Heitor
apenas deseja matar o inimigo mortal de Tróia. «Permitam os deuses», roga ele, ao lançar
o seu último dardo, «que tu recebas o ferro da minha lança no teu corpo. A guerra seria
menos pesada para os Troianos se eu te matasse: és tu o seu pior flagelo.» A guerra não
impede Heitor de ser ao mesmo tempo cívico e civilizado: o seu patriotismo não precisa do
ódio ao inimigo.
Civilizado é-o ainda no sentido de que está sempre pronto a concluir um pacto com
o adversário. Tem o sentimento claro de que o que une os homens pode vencer o que os
separa. E diz a Ájax: «Façamos um ao outro glorio presentes, para que digam tanto os
Aqueus como os Troianos: bateram-se por causa da guerra que devora as vidas e
separaram-se depois de terem firmado um pacto de amizade.»
Em Aquiles, que o odeia, Heitor vê ainda um dos seus semelhantes, com o qual não
lhe parece quimérico querer tratar: pensa em propor-lhe entregar aos Gregos Helena e os
tesouros roubados por Páris, sem falar duma parte das riquezas de Tróia. Não há nisto
apenas uma tentação de cobardia. Há também a persistência dum velho sonho de Heitor:
um pacto que reconciliaria os inimigos. Há sobretudo essa repulsa profunda pela violência,
que inspira toda a sua conduta, mesmo no instante decisivo em que a razão condena
imediatamente o projecto como uma fantasia.
Mais tarde ainda, precisamente antes do combate, propõe a Aquiles um último
pacto, humano e razoável. Ele sabe que este combate é o último. (‘Eu te vencerei, ou tu me
vencerás.., diz.) Mas a ideia do pacto domina-o ainda. «Façamos um pacto e demos o
prémio aos deuses. Não penso, por mim, infligir-te monstruosos ultrajes, se Zeus me
outorgar resistir e arrancar-te a vida. Apenas te despojarei das tuas armas ilustres, depois
entregarei o teu corpo aos Aqueus, Aquiles. Faze o mesmo comigo».
Aquiles repele-o com brutalidade. «Heitor, não venhas falar-me de pactos entre
nós, maldito! Seria o mesmo que falar de acordo leal entre os leões c os homens, entre os
lobos e as ovelhas…» E acrescenta estas palavras que marcam bem o sentido da proposta
de Heitor, ao mesmo tempo que definem Aquiles: «Não nos é permitido amarmo-nos, tu e
eu.» Ao passo que Aquiles não sai do particular em que a paixão o encerra, Heitor move-se
no universal. Este entendimento que ele esboçava, este projecto de pacto, é nada mais
nada menos que o princípio, ainda elementar, mas seguro, do direito das gentes.
Mas o amor enérgico que Heitor dedica ao seu país, e que parece já alargar-se à
comunidade dos homens, assenta numa base mais profunda e mais viva. Heitor ama os
seus. Heitor está solidamente enraizado no amor duma mulher e duma criança. Todo o
resto daí deriva. A pátria não é apenas, para ele, os muros e a cidadela de Tróia e o povo
troiano (não se trata, escusado seria dizer, duma concepção de Estado a defender), a pátria
são as vidas que lhe são preciosas entre todas as vidas, e que ele quer salvar, na liberdade.
Nada mais carnal que o amor de Heitor pela sua terra. Andrómaca e Astianax são as
imagens concretas mais claras, mais peremptórias, da pátria. Ele o diz a Andrómaca, antes
de a deixar para ir combater:
«Sei que o dia virá em que a santa Tróia perecerá, e Príamo, e o bravo de Príamo.
Mas nem a desgraça futura dos Troianos, nem a de minha mãe, do rei Príamo e de meus
irmãos corajosos, que cairão sob os golpes dos guerreiros inimigos, me afligem tanto como
a tua, quando um Aqueu couraçado de bronze te roubar a liberdade e te levar, chorosa. E
tu tecerás os panos do estrangeiro, e tu levarás a água das fontes... Porque a dura
necessidade o há-de querer... E uma grande dor te pungirá ao pensares neste esposo que
terás perdido, único que poderia ter afastado de ti a servidão. Mas que a pesada terra me
cubra morto antes que eu ouça os teus gritos, antes que te veja arrancada daqui.»
Andrómaca ainda há pouco suplicava a Heitor que não se expusesse ao combate.
Agora não pode mais, porque sabe que ele defende a sua mútua ternura. Há nesta última
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conversa dos dois esposos qualquer coisa de muito raro na literatura antiga: a perfeita
igualdade no amor que eles se testemunham Falam ao mesmo nível, amam-se ao mesmo
nível. Heitor não ama em Andrúmaca, nem em seu filho, bens que lhe pertençam: ama,
neles, seres de um valor igual ao seu. Tais são os bem-amados que Heitor defende até ao
fim. Quando está diante de Aquiles, imagem do seu destino —, desarmado e perdido, ainda
se bate contra toda a esperança, faz ainda um pacto com a esperança.
É o momento em que já os deuses o abandonam Heitor julgava ter a seu lado seu
irmão Deifobo, mas era Atena que, para o enganar, tomara a forma do irmão. Lançado o
último dardo, quebrada a espada, pede uma arma a Deifobo. Mas não há mais ninguém,
está sozinho. Então conhece o seu destino, fixa-o agora na deslumbrante claridade da
morte. «Ai de mim! eis que os deuses me chamam para a morte. Julgava meu irmão a meu
lado, mas ele está nas nossas muralhas. Atena enganou-me. Agora a má sorte está perto,
aqui, já não há refúgio... Eis que o destino me arrebata.»
Inteiramente lúcido, Heitor conhece o seu destino, vê a morte de tão perto que lhe
parece tocá-la. Mas dir-se-ia que a esta mesma visão ele vai buscar urna força nova. Logo
acrescenta: «Eis que o destino me arrebata. Mas, em verdade, não quero morrer sem lutar.
Farei qualquer coisa de grande que os homens do futuro saberão…»
O instante da morte é ainda o da luta. Heitor responde ao destino com uma acção
de homem – uma acção que a comunidade dos homens considerará grande.
Assim o humanismo de homem nos propõe nesta personagem uma imagem do
homem, ao mesmo tempo verdadeira e exaltante. Heitor é um homem que se define no
amor dos seus, no conhecimento dos valores universais, e, até ao seu último suspiro, no
esforço e na luta. Parece, ao morrer, lançar à morte um desafio. O seu grito de homem —
esse grito de homem em trabalhos de humanidade melhor — quer ele que seja ouvido
pelos «homens do futuro», por nós.
Aquiles, Heitor: oposição não apenas de dois temperamentos humanos, mas de
dois estádios da evolução humana.
A grandeza de Aquiles ilumina-se aos clarões de incêndio de um mundo que parece
em vias de desaparecer, esse mundo aqueu da pilhagem e da guerra. Mas estará esse
mundo bem morto?
Não sobreviverá ele ainda no nosso tempo?
Heitor anuncia o mundo das cidades, das comunidades que defendem o seu solo e
o seu direito. Fala da sageza dos pactos, das afeições familiares que prefiguram a vasta
fraternidade dos homens.
Nobreza da Ilíada, grito de verdade vindo até nós. Altura e justeza que o poema
recebe destas duas grandes figuras contrárias de Aquiles e de Heitor. Contradição ligada
ao desenvolvimento da história e que bate ainda nos nossos corações.

André Bonnard, A Civilização Grega, Edições 70, Lisboa, 2007, tradução de José Saramago, pp.29-53

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