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Revina da Faculdade de Leas “SUINGUAS E LITERATURAS- Porta, XVI, 2001 pp. 221-239 RAUL BRANDAO E VITORINO NEMESIO: AFINIDADES ESPIRITUAIS E ESTETICAS ‘ste lio & feito com notas de viagom, quase sem retoques, ‘Apenas amplici um ow outro quatro, procurando sempre ni tirar a ffescura is primeiras impressBes.[..] N3o poder eu pintar com palevras alguns dos sitios mais pitorescos das ithas, despertando nos leitores 0 ‘desejo de os verem com os scus préprios los!» Raul Brandio, in As HIhas Desconhecidas Estas palavras de Raul Brandio, que podemos ler na nota «Em trés Linhas» que antecede As IIhas Desconhecidas, livro publicado em 1926, sintetizam uma arte impressionista que atinge a sublimidade em Os Pescadores ¢ uma intensidade inigualavel neste livro magnifico, que tem como subtitulo Notas e Paisagens. A especificidade destes dois livros no contexto da vasta obra brandoniana tem sido muitas vezes sublinhada pela critica, designadamente por Guilherme de Castilho, que os vé como um «incompardvel diptico de prosa impressionista» e Ihes consagra um notavel capitulo no estudo critico-biogréfico dedicado ao autor de Hiimu: denominado «A Paisagem e a Luz»! . Titulo que é retirado de uma «Carta» enviada pelo escritor a Albino Forjaz de Sampaio, pouco tempo antes da sua morte: «Quanto a mim ndo s6 me no considero um grande escrito, digno de figurara na ccolecgio Patricia, mas nem sequet me tenho como eseritor. Considero-me um homem ‘em lute com um fantasma.[.. A parte que the pertence discrimina-se perfeitamente da parte que me pertence, © em que me detenho, com alegra, a ixar a paisagem e alu Porque eu adoro a luz espléndida e o outro s6 gosta de nédoas escuras; onde emprego azul, emprega ele negro, ¢ di-se muito bem s6 com uma tinta ¢ dor (..}° " CASTILHO, Guitherme de - Vida ¢ Obra de Raul Brando, Lisboa, Bertrand, 1979, p. 84 2 In Menéras, Obras Compleas I, Lisboa, Jornal do Foro, 1969 [Didria de Nofcias, 6-12-1930) hiatio nosso. 221 MARIA JOXO REYNAUD O impressionismo também fulge em Corsdrio das Ithas, o livro mais bran- doniano de Vitorino Nemésio, publicado trinta anos depois de As IThas Desconhecidas, em 1956. Numa sucinta «Adverténcia», o Autor diz-nos que a obra «é fruto de viagens aos Acores (1946 ¢ 1955) ¢ da preocupagao do [seu] espirito por essas ilhas, a qual sempre e por varios modos nele tende a resolver-se por escrito». As circunsténcias em que a obra foi produzida sao também esclarecidas por le. Trata-se de uma compilagao de textos publicados anteriormente na imprensa, ou lidos na rédio. Depois do «Intréito - A Madeira ¢ os Agores», segue-se 0 conjunto de textos que sto uma espécie de «diario de bordo», tendo por titulo «Primeiro Corso», datado de 1946. As datas dos capitulos so, de um modo geral, as que correspondem & da sua publicago no Didrio Popular ow a sua leitura na Emissora Nacional. 0 «Segundo Corso» (1956) congrega um conjunto de textos de caricter diaristico ¢ evocativo, sendo a escrita atravessada pela meméria de uma infancia distante, mas feliz. Nemésio acrescenta ao conjunto um «corso erratico» pelas [has Canérias, com a data de 1954, colocando todos os textos sob a designacao comum de Womab, que propde como antetitulo. Mas, ser melhor regressarmos & década de vinte, mais exactamente ao Verao de 1924, quando um acaso feliz junta a bordo do mesmo navio Raul Brandao ¢ Vitorino Nemésio, para uma viagem rumo as Ilhas, de que nascera uma amizade definitiva. O primeiro vai em busca de matéria para mais um livro de crénicas ¢ ‘memérias; 0 segundo vai gozar um periodo de férias na sua longinqua terra natal. Com vinte e trés anos de idade, Nemésio é um escritor em prinefpio de carreira, que sonha dar a conhecer a Raul Brando os lugares mais belos da sua amada Ilha. O testemunho deste primeiro encontro com o Autor de Hiimus é percorrido por um entusiasmo que reflecte uma admiragao genuina: ‘«, [da] «égua em vagalhes cada vez mais cinzentos e maiores, que as velhas de penante e plumss, sentadas de bombordo a estibordo © que se atrevem com 0 oceano Antico, fazem o possivel por amesqui- har», Estou a vé-lo. Esgrouviado © grave, - grave de forga interior, - debrugava-se a ‘meu lado na amutada do paquete, que os rebocadores jd iam aliernadamente desatracan- do. [..] Creio que Camara Reis mo apresentou ja quando o San Miguel recolhia a ponte de rodas [..] Desembarcdmos na Madeira com um professor primério das Flores, [..] © ‘comemos fruta no mercado, que ele fixaria depois com uma ffescura colonial. ..] De tarde volte a terra, mas ele preferiuficar a bordo, onde assistiu, como de um camarote de frente, aquele especticulo de dguas azuis © montes verdes * A primeira viagem, em navio da Insulana; a segunda, de avi8o militar, em 1955. CF. Corsdrio das Hhas, Lisboa, Liv. Bertrand, p. 35. 222 RAUL BRANDAO E VITORINO NEMESIO: AFINIDADES ESPIRITUAIS E ESTETICAS [Em toda a viagem desenvolvi um espionagem convieta cm tomo do seu do seu vvlto pernalts, descoberto& popa pata melhor se impregnar da largura salina e do vento, c desci com ele, o comandante Rio ¢ o Mestre Miguel as fornalhas{... ‘Mas, depois da chegada & Terceira, nio tornei a vé-lo nas ilhas. Conseguira arrancar-Ihe a promessa de uma visita demorada ao meu casinhoto de Santo Ant6nio, sobranceiro ao Porto Martins (... No pOde ir. [.-] Apontava as emogoes de b cearteiras de papel comercial de capa negra, cs vezes bebia café de uma garrfa térmica, 0 sou grande regalo. [..j»* Até ao fim da vida, Nemésio nao se cansaré de aproveitar as oportunidades que the permitem evocar um encontro que marcou o inicio de uma amizade que se foi aprofundando numa convivéncia mais intima, em virtude das afinidades espirituais e estéticas que ligam os dois escritores. Na correspondéncia trocada por ambos fica patente a afeigdo profundissima, quase reverencial, de Nemésio por aquele a quem chama Mestre, e cujo talento singular jamais deixard de enaltecer nas suas charlas radiof6nicas, ou, mais tarde, nas suas charlas televisivas. Os que foram seus alunos ouviram-no falar de Brando umas vezes com recolhimento, outra com exaltagdo. O texto «Raul Brandio, intimo» ¢ ampliado e publicado, como capitulo auténomo, na sec¢do «Temas Portugueses» de Sob os Signos de Agora, livro editado em 19325 Na primeira parte, que corresponde ao texto publicado na Seara Nova, encontramos trés textos datados. Os dois primeiros so uma preciosissima evocagio da visita que Vitorino Nemésio e sua mulher fizeram & Casa do Alto em Outubro de 1927, a convite de Raul Brando. Ai permaneceram o tempo suficiente para que Nemésio pudesse dar-nos, em meia diizia de tragos impressionistas, o ambiente de trabalho do escritor. O primeiro tem a data de «3 de Outubro»: ‘Tomo estes apontamentos sobre o meio habitual do escritor na sua propria ‘mesa de trabalho, do lado oposto Aquele em que ele se senta, Como nio hé aqui outros petrechos de escrita, uilizo-me dos seus: uma ‘caneta com anilha de borracha para evita ocalo de escrivlo; pena lanceolada ~e no de ‘aluminio, como as de que ea gosto, -¢ um frasco de tinta da China retintamente preta [.-J. Os linguados também sio os dele, oblongos e iguais(..} (0 luxo foi carride daqui como um lobo a estadulho: s6 0s mévcis © a ecoragdo quase imperceptivel do interior lembram um homem de letras. # 0 buraco papéis ("déem-me um buraco e papéis", esereve cle algures), 0 cenériod’ O Siléncio eo Lume que se trai nas Memérias.»* In Raul Brandao intimo, publicado na Seara Nova, n° 275 (5-12-1931), 5d, Sob as Signos de Agora, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932, pp. 211-23: "td ibid, pp. 213 €214 223 ‘MARIA JOAO REYNAUD O segundo texto ¢ datado de «4 de Outubro» e dé-nos alguns detalhes sobre Casa «do senhor Bardo ou Barandio do Alto, como a gente do sitio Ihe chamay de solida implantagio no ponto mais elevado dos «terrenos fartos da quintan, deten- do-se na descrigao do alpendre do «andar nobre», «que corre de uma das empenas da casa até dois tergos da frente, [...] tem cinco pilares desembaragados de gra- nito, este granito que deve ser, se algum dia pensarem num monumento ao escritor, pelo menos o pedestal»’ As paginas seguintes, escritas quatro anos mais tarde em Coimbra («2 de Setembro de 1931»), sio aquelas em que Nemésio relata 0 seu encontro com Brando a bordo do San Miguel, a que junta alguns dados que sio fruto da obser- vvagdo atenta do escritor e das conversas havidas entre ambos: «Da earreira das armas trouxe o horror a secura e & rispides [.... Sem querer, eixou no El-Rei Junot, nA Conspiragio de Games Freire, no preficio de O Cerco do Porto do Coronel Owen eno Il volume das Memérias 0 vinco disfargado da profissio de empréstimo a que recorrera quando, aluno do Curso Suporior de Letras de Lisboa, foi atingido pela lei de roerutamentoieremissivelo® Ao texto publicado na Seara Nova junta Nemésio outros dois: «Na Morten’ ¢ « Espélion'". Se, nesta série de textos, Vitorino Nemésio se abstém de fazer juizos es- téticos muito rigorosos acerea do escritor,prometendo «um ensaio global sobre 0 homem £05 livros», projecto para sempre adiado, ndo deixa de concluis, em jeito de balango, ue Raul Brandio «conguistou a notoriedade palmo a palmo, com arrancos proprios © inconfundiveis, e por isso mesmo o seu grito humano ecoard sempre com um timbre distinto entre nés»!® Estas consideragdes sugerem-nos uma primeira reflexdo em tomo dos dois escritores que tem a ver, justamente, com uma vocagdo universalista que s6 a muito custo thes tem sido reconhecida. No caso de Vitorino Nemésio, a situagao é talvez menos grave ¢ injusta: por um lado, em consequéncia da fecunda actividade das comunidades agorianas imigradas nos Estados Unidos da América, que mantém. vivas, em varios planos, as suas tradigdes culturais; e, pelo outro, em resultado do acolhimento extremamente caloroso que Nemésio teve no Brasil, quer como professor universitério, quer como romancista, poeta ¢ cronista, junto de uma "1d. ibid. pp. 218 € 219, " Id, ibid, pp. 225-226. Este detalhe ¢ importante e deve ser posto em confronto com as infor- ‘mages fornecidas por Guilherme de Castilho em Vida e Obra de Raul Branddo (Cr. «Vida Militar, p.23es8). ° Td, ibid, pp. 226-230, "1d, ibid., pp. 230-235. "id. ibid, p, 220. id. ibid, p, 227 224 RAUL BRANDAO E VITORINO NEMESIO: AFINIDADES ESPIRITUAIS E ESTETICAS geragio de intelectuais brasileiros, em parte ainda viva, e de um pléiade de profes- sores universitérios que continuam a cultivar a meméria daquele que mais teré feito para estreitar os elos afectivos e as relagdes culturais entre os dois paises. Num livro breve, mas precioso, A. M. B. Machado Pires, um dos grandes cespecialistas agorianos da obra nemesiana (e autor do sugestivo «Prefacion a uma criteriosa edigdo de As Ihas Desconhecidas, publicada em 1987'*) reine quatro ensaios, 0 primeiro dos quais - «Raul Brandio ¢ Vitorino Nemésio» ~ dé o titulo ao volume. £ um estudo que nos interessa particularmente, porque pde em paralelo 08 dois escritores'*: nao s6 pelas razdes anteriormente enunciadas, mas sobretudo por aquilo que podemos considerar como uma espécie de comum insularidade no contexto da literatura portuguesa do século XX, a qual nos surge por vezes perturbada por conceptualizagdes periodolégicas mais ou menos apressadas que 0 tempo se encarregara de corrigir. Como sublinha o A. na «Nota Introdutéria», ha nos dois escritores uma funda «consciéncia da fragilidade do Homem perante a desgraca e 0 Destino», derivada, em parte, da circunstincia biogrifica de ambos se terem criado em convivéncia com 0 mar e com os que dele retiram o seu sustento quotidiano; e, também, um sentimento afim de insularidade, de que brota uma comum religiosidade eésmica, que, no caso de Brandio, Ihe permitiu a apreensio genuina de «um eixo césmico que passa pelas ilhas e na alma de cada agoriano»!> (© mesmo que essencialmente tematiza a obra de Nemésio. Tirar ilagdes literariamente pertinentes da afinidade espiritual que os une, no intuito de abrir ‘novos horizontes de leitura as suas obras — apesar dos tragos que vincadamente distinguem os dois universos ficcionais — é 0 objectivo do primeiro mais extenso destes estudos'® ‘A vocagao universalista da obra nemesiana enraiza, segundo Cecflia Meireles, nessa «concentrada forga quase silenciosa que é um dom das Ihas». A Autora de Poetas Novos de Portugal (Rio de Janeiro, 1944) no passa despercebida essa capacidade rara e admiravel de o poeta Nemésio captar ¢ expressar o singular aquele nivel de profundidade em que este naturalmente comunga no vasto € memorial fundo humano. Idéntica capacidade, que é a maior virtude dos grandes escritores, se reconhece em Brando, que demandou as IIhas em Junho de 1924, para dar noticia do seu achamento nesse minucioso relato que é uma obra-prima 'S BRANDAO, Raul - As JIhas Desconhecidas ~ Notas e Paisagens, Prefécio de Ant6nio M. B. Machado Pires, Lisboa, Editorial Comunicagdo, 1987, Raul Branddo ¢ Vitorina Nemésio, Lisboa, INCM, Col. Temas Portugueses, 1989, "Sy. ibid, p.9 "OE id, ibid, pp. 11-36. 225 MARIA JOKO REYNAUD do nosso impressionismo literério, mas onde encontramos péginas que Lautréamont poderia subscrever («Moi, je fais servir mon génic a peindre les délices de la cruautés!”), Ao proceder a um breve enquadramento geracional dos dois escritores, Machado Pires comega por referir as linhas de forga que percorrem a literatura finissecular (da krisis radical, traduzida na reacgdo antipositivista, que & expressa pela «correlagao decadentismo /anarquismo», a progressiva afirmagio, numa diversidade de registos, da consciéncia patriética e da vontade de renascimento espiritual e cultural) e que sao indissociéveis do aparecimento de sinais de mutagdo epistemoldgica e postica, genericamente detectaveis ao longo da producao textual da geracdo de 90»'*, Ora a obra de Raul Brandao é, sem diivida, o notével exemplo. de uma reorientagao individualizada e absolutamente inovadora nos caminhos da ficedo portuguesa do primeiro tricénio do século XX. Lembra-nos 0 A. que disso mesmo teve a exacta percepgdio Nemésio, ao evoci-lo como «a individualidade mais forte da literatura portuguesa, mau grado um estilo sem plano, um idedrio desteito em nebulosas sentimentais e um instinto que deformava a realidade para traté-la a seu goston!?. Num texto bem mais recente (uma homenagem & «Geragio Centendriay a que «coube a estrela do ano de 1867»), publicado por Vitorino Nemésio em 1967, na Coléquio, podemos encontrar uma anéloga perplexidade perante Brandio: «a sua obra palpita de um secreto impulso de fuga, despaisamento e ubiquidade. Ser de onde se nao é ¢ estar onde nao se poden®®. Na verdade, a diltima frase mais Parece um desabafo nostilgico de Nemésio, separado até ao fim da sua alma mater, @ que pertence um pedago vital da sua personalidade © do seu coragdo: «o despaisamento é mais duro ¢ inflexivel do que o transplanten, confessa ela em Corsdrio das Ihas”. In BACHELARD, Gaston ~ Lautréamont, Pats, Lib. José Corti, 1974, p. 29. Vd. «0 Atlantico Agoriano», ed. cit, pp. 147-148. Oscar Lopes sublinha, a par de «0 pitoresco dos dois principais livros de viagens [que] anuncia a cada passo os hébitos amadores de um pintor de cavalete» ¢ define a sua westética visual», a ocorréncia de «cenas de carnificina piscatéria de uma extraordindria violencia que lembra episédios dos Chants de Maldoror de Lautréamont: tal o da ™matanga selvéticae instil dos botos [..J; etal 0 dos marraxosm [ef. ed. cit. p. 145]. Vd. Entre Fialho @ Nemésio. |, Lisboa, INCM, Col, Temas Portugueses, 1987, pp. 361-362. "8 Of, id, ibid, pp. 1-18. '° Apud ob. cit. pp. 19-20. Vd. Sob os Signos de Agora, p. 227, 2 Vd. Coliquio, n* 46, Lisboa, Fundagi0 Calouste Gulbenkian, Dez. 1967, *! NEMESIO. Vitorino - Corsério das Thas. pref. de A. M. B. Machado Pites, 2* ed Bertrand, 1983, p. 89. boa, 226 RAUL BRANDAO E VITORINO NEMESIO: AFINIDADES ESPIRITUAIS E ESTETICAS entemecido apego & terra portuguesa é outro dos tragos comuns aos dois esctitores destacado por Machado Pires, , porventura, aquele que funda o paralelismo entre As Ithas Desconhecidas e Corsdrio das Ithas. Separa estes livros uma distancia cronolégica de 22 a 30 anos, com o que isso implica de afastamento geracional e de ‘completa mutagio do cena histérico-social e paisagistico: «Mas opitoresco do antigo Funchal, que Raul Brandio se delicioua pintarn’ As /2has Desconhecidas, desapareceu ‘ou atenuou-se»”? . No entanto, do ponto de vista tematico-formal, a semelhanga logo se impée: narrativas de viagem com itinerdrio idéntico, estrutura fragmentéria de didrio ¢ inscrigdo do género na tradi¢ao da viagem literdria. Lé estio as alusdes de Nemésio a Chateaubriand e a outras figuras literrias que cultivaram o género: «Ja dizia Chateaubriand, que passou por lé em mogo: Init farol de noite, sinal sem testemunha de dia» (Nemésio refere-se a ilha do Pico)” E com extrema subtileza que Machado Pires demonstra como essas obras correspondem a dois modos paradigmiticos de ler/sentir as Ilhas: para Brandio ‘adesconhecidas» e para Nemésio «revisitadas»”* . No livro do primeiro, ¢ a memoria da viagem que se textualiza, sobrelevando 0 propésito, as vezes traido, de uma fidelidade ao real, propria do inguérito realista; no segundo, a par dessa mesma preocupacdo de objectividade, 6a meméria que ata os fios do discurso, permitindo © redimensionamento dos lugares numa vasta rede de referéncias culturais & sentimentais. A pretexto deste confronto, 0 A. faz uma andlise da «atitude contemplativa impressionistan que caracteriza a vertente «diurna» € «apolinea» da obra de Raul Brandio, apoiando-se, para isso, em exemplos extraidos de Os Pescadores ¢ de Portugal Pequenino, um livro to injustamente esquecido”*> Mas sio As IWhas Desconhecidas que lhe permitem contrapor a0 cimpressionismo atlanticon (assim the chamou Aquilino Ribeiro) do visionério lirico que é Brandao, o impressionismo «sentimental» de Nemésio”® , mais telirico ¢ elaborado. Se a fixagdo do mundo exterior é, no primeiro, sobretudo visual € evanescente (trabalhada, do interior, pela decomposicao que abre na esorita uma dimensio espectral, fazendo-a deslizar para um expressionismo dramatico), no segundo ela ¢ firme, lapidada, escandida pelo «sentido do uso condensado e certeiro da lingua?” , sem o frémito de inquietagdo que percorre até uma simples frase do autor de Heimus: 7 td. ibid. p, 50. 2 id, ibid. p. 131 CE id, bid, p. 32 * CF. id, ibid., pp. 26-31 Cr id, tid. p34 2 Cid, ibid, p.35. 227 MARIA JOKO REYNAUD «Hi escritores que fazem com os bieos da pena o que os pintores conseguem com Pélo de pincel e espatula, Raul Brandao era desses, Levava uma hora, ¢ mais, diante das Daisagens, a notar cores ereflexos, tons © matizes... Assim descansava dos seus sliléquios de pocta e de filbsofe do espanto e do sonkoy?™ Um outro aspecto reaigado por Machado Pires, e que nos parece fundamental neste confronto, 6 0 fascinio de ambos pela lingua portuguesa nos seus miiltiplos tsos e registos, enquanto meio vivo e prodigioso de comunicagio humana, 0 qual € inseparavel da intensa solicitagao que o real quotidiano, concreto e multifacetado exerce sobre os dois escritores. Dai a comum incidéneia num subgénero como a erénica (jomalistica e radiofénica), a que ambos se consagraram com a devogio € © talento que a converte em pura literatura. Ai esto, para o confirmar, As has Desconhecidas ¢ Corsério das Ithas, que comecam pot ser notéveis erénicas de viagem, Diriamos, para concluir, que um dos escritores que mais contribuiu para 0 conhecimento dos Agores e da Madeira foi Raul Brandio. Ao chamar «descomhecidas» és has que de certo modo redescobre, o seu intuito é levar os leitores a verem-nas «com os seus préprios olhos», como sublinha na breve nota introdutéria. Aos olhos do poeta-escritor elas serdo sempre «o territério da Tembranga» (para nos apropriarmos de uma belissima expresso de Nemésio), a qual jamais deixard de partithar com os seus leitores, através de uma linguagem ue, sem deixar de ser uma realizagdo suprema do chamado realismo documental, nos chega impregnada de uma forca poética que nos proporciona uma vivéncia directa, total ¢ intensa dos lugares descritos e a fruigio desmedida de viajantes imaginérios. Compreende-se, pois, que Vitorino Nemésio, um ilhéu-peregrino que softeu as dores de vérios «transplantes», recorde até ao fim da vida a viagem de Julho de 1924 «com Raul Brando empenhado no sen inquérito as Ihas Desconhecidasn : de que foi testemunha e ciimplice. E que tenha pressentido a dor do «transplanten, ainda que temporério, que muitas vezes o terd assaltado, como quando escreve. «otho para a ilha descarnada pelo vento, t&o forte de inverno que o sino tange sozinho, ¢ sinto-me como nunca me senti, isolado do mundo. Que vim eu aqui fazer?»*. Além do mais, esta viagem foi o esteio maritimo de uma amizade profunda e quase intima, 1a, ibid, p. 89, 2. ibid, p. 92. * Vitorino Nemésio in «Raul Branddo, timo», in ob. cit, p. 222, 228 RAUL BRANDAO E VITORINO NEMESIO: AFINIDADES ESPIRITUAIS E ESTETICAS Na iltima carta ditigida por Vitorino Nemésio a Raul Brando, em que the anuncia o nascimento de mais um filho pouco tempo antes do falecimento do ‘Autor de Os Pobres, podemos ler: «Desde Julho que nde comunicamos, ¢ apesar disso nao o esqueci um s6 momento. ‘A sua influéncia pessoal na minha vida é uma das maiores;é, em certo sentido a tnica: de ninguém recebi como de siti forte sugestio para viver c viver amando e fazendo passar por mim, como se fossem humanas, odas as coisas do contomo» [Coimbra (Cr de Colas), 14.X11930}"! A resposta de Raul Brando, numa carta que ter sido uma das dltimas por ele escritas, datada de «Lisboa, 28 de N.° 1930», nao se faz esperar. Dela retiramos este passo por demais elucidativo: 40 que cu quero dizer-Ihe mais uma vez nestaslinhas ripidas é quanto 0 admiro [..J. O meu querido amigo esta no principio da vida e eu no fim, ¢ s6 mais tarde compreendera a felicidade de ter uns poucos de filhos, aos quais hi-de deixar uma obra ¢ um nome. Eu nem isso; morro com @ ideia de que a minha farrapada nao serve para nada.» ‘A humildade destes dois grandes escritores, que convive por forma muitas vezes dissimulada com a angiistia do artista que duvida do valor da sua obra, é 0 trago mais evidente da sua superioridade espiritual. Cada um se entrega com ardor 4 contemplagtio do mundo quotidiano, tentando captar por detrés da incessante variagdo do homem «ondoyant et divers» a esséncia da eternidade redentora em que ambos eréem, Maria Jodo Reynaud 514, «Correspondéncia entre Vitorino Nemésio e Raul Brando», por Ant6nio Mateus Vilhena, in Arguipélago, Lingus ¢ Literaturas,«Vitorino Nemésio 1978-1988)», Vol X ~ 1988, Ponta Delgada, p23. yd, ibid, p. 232. 229

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