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Memória de Inês de Castro

Há qualquer coisa de miraculoso no encontro em que Pedro repara pela primeira vez,
com atenção, em Inês. O infante tinha chegado da Atouguia, com seu ar despreocupado,
meio aborrecido e cheio de uma sede insaciável. Foi Inês que preparou na cozinha a
bebida de Pedro. Ele agradeceu ligeiramente com a cabeça e bebeu, sem reparar em
mais nada. Quando ergueu a cabeça e fitou o rosto de Inês, reparou, intrigado, que os
cabelos desta pareciam despedir labaredas. Era um lume que crepitava em silêncio. Foi
então que Inês, de forma inesperada, lhe encostou a ponta dos dedos na face. Todas as
margens do ser, a esse contacto, foram incendiadas, os diques derrubados. Foi, porém,
um gesto inocente, quase pueril. A célebre gaguez de Pedro pode datar desse instante. O
amor foi nele o terror dum susto. [...]

Inês ganhou Pedro e depois a própria coroa portuguesa, não por um privilégio de
matrimónio, mas pelo privilégio humano dos seus próprios dons. Ela encarnava
qualidades humanas raras e todo o seu corpo era a expressão silenciosa das mais altas
virtudes do homem. [...]

- Senhora, abri, que é El-Rei de Portugal.

Inês estava junto da janela onde esvoaçava o lençol branco do seu enxoval. Mandou
Fátima ir passear pela alameda com as crianças. A solidão do aposento apareceu-lhe
como a expressão do seu sacrifício. Preparava-se para a morte como se tinha antes
preparado para o amor. Penteou-se e vestiu-se de branco. Inês vestiu-se de branco para
morrer e pôs nas mãos um colar de pedras que Pedro lhe dera. E fê-lo, não para
interpelar Afonso, mas para mostrar à morte a sua aliança com a vida. [...]

A entrada do rei e dos seus conselheiros nos aposentos de Inês foi intempestiva. Vinham
sobretudo preparados para um longo desacordo com Inês, mas a gelada indiferença
desta petrificou-lhes os intentos. Todas as tradicionais hesitações atribuídas a Afonso no
momento de assassinar Inês devem-se justamente à inesperada atitude dela: nem filhos
nem palavras. É fácil vencer um opositor armado e feroz, mas é difícil matar uma
mulher que, em vez de brandir argumentos, nos apresenta um vestido branco cheio de
silêncio. [...]

O sol declinava no horizonte. Afonso trazia enfim a mão manchada de sangue e os olhos
baixos. [...]

Pedro, de madrugada, quando chegou à alameda dos olhos de água, onde hoje é a fonte
dos amores, avistou o lençol branco a esvoaçar ao vento. Teve de arrombar sucessivas
portas fechadas, no palácio deserto, enquanto gritava desalmadamente por Inês.
Quando viu o corpo de Inês desfeito em sangue, a voz ficou-lhe presa na garganta. A
célebre gaguez de Pedro, tão falada por Femão Lopes, não era congénita. A gaguez de
Pedro foi a consequência imediata da morte de Inês. Se o amor, em vida de Inês, lhe
tirou o significado das palavras, o amor, com a morte, tirou-lhe para sempre a fala. Era
de madrugada e em Coimbra levantavam-se os primeiros rumores sobre a morte de Inês
de Castro. Amanheceu baço e sem luz aquilo que foi o dia.

António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, Lisboa, 1990

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