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RESUMO
Ulisses é um personagem constante na literatura oci-
dental e Dante Alighieri foi um dos autores que o re-
trabalharam. Na Divina Comédia, Ulisses está na oitava
vala do oitavo círculo do Inferno, correspondente aos
fraudadores. Na construção do personagem, Dante re-
toma características de Ulisses da tradição grega e latina,
o que é analisado e comparado nesse artigo a partir das
elaborações de Homero e Virgílio. Ao fim, estabelece-se
uma relação entre Ulisses e os Dantes – autor e persona-
gem da Comédia.
O
mito de Odisseu/Ulisses é amplamente retomado e retrabalhado
pela tradição literária. Entre tantos exemplos, está Dante Alighieri,
que trata do personagem na Divina Comédia no Canto XXVI do
Inferno. O Ulisses do poeta florentino retoma elementos das épicas homéricas,
mas também, e principalmente, da tradição latina. Nesse trabalho, pretende-
-se comparar e contrastar características do Odisseu de Homero, do Ulisses de
Virgílio e do Ulisses de Dante. Confronta-se, ainda, o personagem de Ulisses
na Divina Comédia com o próprio Dante personagem, de modo a argumentar
que o herói grego serve, em certa medida, como um alter ego de Dante.
A Divina Comédia, escrita no início do século XIV, destaca-se na litera-
tura italiana e mundial por uma série de motivos, entre eles a erudição, pers-
Artuso, Alysson Ramos.
462 Ulisses no inferno da divina comédia – uma comparação do herói em dante, homero e virgílio
Odisseu na Ilíada
Na Ilíada, cuja consolidação escrita data por volta do século VIII a.C.,
Odisseu é um dos chefes gregos durante os 10 anos da guerra de Troia. Embora
a história tenha outros personagens como mais centrais, Odisseu não é apenas
um coadjuvante, sendo nomeado por Agamenon, junto com Aquiles e Ajax,
1
Ao se tratar do personagem nas obras homéricas, preferiu-se manter o nome da tradição
grega de Odisseu. Na discussão de Virgílio e Dante, manteve-se o nome Ulisses da tradição
latina.
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como um dos três heróis gregos mais temíveis (Canto I, v. 138). Sua primeira
aparição relevante se dá no Canto II, após o desentendimento entre Aquiles
e Agamenon que faz o Pelida se retirar do combate e sua mãe, Tétis, pedir a
Zeus que os gregos percam a guerra. Disposto a atender o pedido de Tétis,
Zeus envia a Agamenon um sonho enganoso de que ele venceria Troia e que,
portanto, era para as tropas irem para o combate. De modo a testar seus guer-
reiros, Agamenon os comunica do contrário de suas intenções (assim como
Zeus fez com o próprio general argivo): manda-os levantarem o acampamento
e voltarem para casa. Evidenciando o quanto o chefe maior dos gregos pode ser
desastroso em sua liderança, ao contrário de Zeus, as tropas não tomam a ini-
ciativa de se insuflar para permanecer na guerra, mas começam os preparativos
para retornarem para casa. É Odisseu, inspirado por Atena, sua protetora, que
incita os soldados, junto com Nestor, a honrarem seus postos de guerreiros e se
prepararem para a batalha. Trata-se de uma primeira indicação da capacidade
de convencimento de Odisseu, que usa de sua retórica, mas também de intimi-
dações físicas, como com Tersites (v. 246-269), para obter seu intento.
Outra passagem de interesse está no Canto III, quando Príamo obser-
va os argivos das muralhas de Troia e pergunta para Helena sobre os heróis
gregos. Ao indagar sobre um de estatura menor, ouve o seguinte de Helena:
“Esse é Odisseu, de Laertes nascido, astucioso guerreiro, / [...] / em toda sorte
de ardis entendido e varão prudentíssimo” (HOMERO, 2009a, p. 109). Em
seguida, o experiente Antenor também conta a Príamo de quando recebeu
Odisseu, junto com Menelau, como embaixador em tratativas diplomáticas
anteriores à guerra. Em seu discurso (v. 204-220), ressalta ser Odisseu um
orador sem paralelo, claro e conciso, mas também dissimulado. É o início da
caracterização de Odisseu como astucioso, dotado de uma inteligência persu-
asiva, digno de elevados cuidados intelectuais, vista sua capacidade retórica
e manipulativa. É o herói dotado da métis, que foi caracterizada por Marcel
Détienne e Jean-Pierre Vernant (2008, p. 25) da seguinte maneira:
guerra. Junto com Fenice, preceptor do Pelida, e Ajax, o maior dos guerreiros
após o próprio Aquiles, Odisseu leva presentes e honras para convencer o filho
de Tétis. Conhecedor dos ardis de Odisseu, é justamente em frente ao Itacen-
se que Aquiles se senta para a conversa e é dele que houve a enumeração de
riquezas e honras que receberia caso abrandasse sua cólera e voltasse ao com-
bate. Odisseu finaliza seu habilidoso discurso apelando ao feito extremamente
honroso que Aquiles, e somente ele, seria capaz de executar: derrotar Heitor,
o maior de todos os troianos, e assim ser venerado tal qual um deus por toda
a eternidade. Contudo, é também a Odisseu que Aquiles primeiro comunica
sua posição irredutível, por não perceber nele exatamente o ideal de honra
guerreira, mas o uso de todos os subterfúgios possíveis para se obter o que
se quer: “Filho de Laertes, de origem divina, Odisseu engenhoso, / [...] / Tal
como do Hades as portas, repulsa me causa a pessoa / que na alma esconde o
que pensa e outra coisa na voz manifesta” (HOMERO, 2009a, p. 122).
No Canto X, Diomedes e Odisseu vão espionar o acampamento troiano.
Agindo sorrateiramente durante a noite, novamente a construção de Odisseu
não é a do guerreiro tradicional, mas do engenhoso e, no entanto, disposto
a ações arriscadas. Sua astúcia e coragem são, inclusive, motivos pelos quais
Diomedes o escolheu entre outros candidatos para acompanhá-lo na missão
(v. 242-248). No caminho para o campo dos inimigos, se deparam com Do-
lão, teucro que vinha espionar os gregos. Capturam-no e o induzem a falar
onde estão acampados os troianos e seus aliados. Embora o embuste não seja
explícito, o diálogo de Dolão, que implora pela vida e oferece tesouros, e
Odisseu, que exige saber sobre o posicionamento, os cavalos e as armas troia-
nas, induz Dolão a dar todas as informações que lhe são pedidas achando que
poderá escapar da morte. Ao terem obtido as informações que precisavam,
Diomedes o mata. Na sequência, os dois heróis gregos tomam de assalto um
acampamento, matando uma dúzia de trácios e levando armas e cavalos. Ain-
da nesse episódio, é preciso notar que o filho de Tideu é quem fica responsável
pelo combate com os trácios, enquanto Odisseu rouba os cavalos, divisão de
tarefas induzida pelo Itacense em um ardil retórico com o próprio Diomedes.
Por saber que ele não manda no Tidida – guerreiro que foi capaz de ferir Ares
e Afrodite em batalha – lhe dá a ordem de desatar os cavalos enquanto ele,
Odisseu, supostamente cuidaria dos homens. Na continuação de sua fala, é
mais gentil em dizer “ou, se quiseres, dos homens se incumbe, deixando-me
Artuso, Alysson Ramos.
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Odisseu na odisseia
geral de sua caracterização, ainda que algumas passagens venham a ser desta-
cadas. Antes, contudo, é preciso distinguir alguns pontos.
O primeiro diz respeito à complexidade do universo da Odisseia frente ao
da Ilíada. Em geral, essa complexidade é atribuída à diferença de tempo passa-
da entre o registro escrito das duas obras que chegaram até nós: a Odisseia seria
algumas décadas posterior à Ilíada (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 25). Comen-
tadores como Aubreton (1968), Lesky (1995), Romilly (2001) e Vidal-Na-
quet (2002) defendem que houve alterações significativas nesse período, bem
como um possível amadurecimento do poeta que consolidou o texto. Entre
essas mudanças, cabe citar a maior complexidade do sistema social e político
na Odisseia, a posição dos deuses como mais alinhados com a ideia de justiça
e com intervenções mais raras sobre os humanos, um trabalho maior com a
psicologia e a potencialidade humana, no sentido de que, em comparação
com a Ilíada, há “menos força, mas mais sedução, discrição, meias-tintas, uma
psicologia mais matizada” (ROMILLY, 2001, p. 24) na Odisseia.
Um segundo ponto é a colocação de Todorov (2004) de que há dois
Odisseus na Odisseia, um que conta os feitos e outro que os vivencia, o que
acrescenta mais um eixo interpretativo para a obra:
sa de estares com o olho vazado, / dize ter sido o potente Odisseu, eversor de
cidades, / que de Laertes é filho e que em Ítaca tem a morada.” (HOMERO,
2009b, p. 168). Trata-se de sua hybris, do
noo dos Feácios. Astuto e conhecido mentiroso, suas histórias podem nunca
ter acontecido, sendo apenas parte de um estratagema para sensibilizar o rei e
conseguir ajuda em seu retorno para Ítaca.
Outra passagem relevante é a visita de Odisseu ao Hades, narrada no
Canto XI. Nessa visita, ele conversa com outros heróis gregos, vê a mãe e
consulta o adivinho Tirésias sobre seu futuro. No vaticínio que obtém sobre
como se dará sua morte, há uma ambiguidade muito enriquecedora para a
comparação com o Ulisses de Dante. A tradução de Carlos Alberto Nunes diz
o seguinte: “[...] distante do mar há de a Morte / te surpreender de maneira
mui doce e suave, ao te vires / enfraquecido em velhice opulenta e deixares um
povo / completamente feliz [...]” (HOMERO, 2009b, p. 193).
Se em um primeiro pode parecer que a morte encontrará Odisseu em
terra firme, distante do mar, cabe também pensar que a morte de Odisseu está
distante, quando estiver velho, mas que ela pode derivar do mar, no sentido
de que “do mar, há de a morte te surpreender”. Embora reconhecer essa dupla
possibilidade na tradução citada seja forçoso, tendo em vista as opções do pró-
prio tradutor, em grego a dubiedade é clara (FINLEY, 2002) e é assim descrita
por Freitas (2008, p. 2):
Tal controvérsia abre caminho para que Dante construa a sua versão para
a morte de Ulisses, que seria proveniente do mar.
Por fim, cabe caracterizar Odisseu na Odisseia como um herói não so-
mente de ideias, mas também de ações. Ele planeja, mas também age. É o
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Ulisses na eneida
ser o designado a proteger o butim, mas que também pode ser associado a sua
ambição e talvez mesmo a sua prudência em evitar batalhas além das necessá-
rias, já que, ao proteger o espólio, não participaria de confrontos secundários
remanescentes da tomada da cidade.
Assim como Ulisses conta seus feitos para o rei Alcínoo na Odisseia, na
Eneida sabemos desses fatos pela narrativa de Eneias à rainha Dido. Uma opo-
sição pertinente a colocada por Virgílio é que, ao contrário de Ulisses, Eneias
não centra sua história em seus feitos individuais, mas conta as tragédias e a
viagem de seu povo, povo o qual lidera e do qual se originarão os romanos.
Se, em Homero, a maioria dos gregos admirava a astúcia, os ardis e os
feitos de Ulisses, em Virgílio ele não é mais um exemplo compatível com a
honra troiana/latina. Isso se reflete nos adjetivos e nos epítetos utilizados para
descrevê-lo: ímpio, malicioso, mísero, hedonista, cruel, enganador, terrível,
artista do crime. Mesmo seu soldado, Aquemênides, encontrado por Eneias
na ilha dos Ciclopes, refere-se ao filho de Laertes em termos bastante pejorati-
vos: “Sou natural da ilha de Ítaca e um dos soldados de Ulisses, / o desgraçado,
Aquemênides me chamo. [...]” (VIRGÍLIO, 2014, p. 267). Vê-se, nessa passa-
gem, também o descuido de Ulisses com os seus. Na comparação com Eneias,
este seria incapaz de deixar para trás um companheiro por negligência ou por
estar focado demais em seus próprios interesses, como fez Ulisses.
Ainda nesse episódio, chama a atenção o fato de Eneias evitar o contato
com Polifemo, de quem sente medo (Livro III, v. 666-7), em contraposição à
citada ansiedade de Ulisses na Odisseia por tudo querer saber e experimentar
e que o leva a pedir hospedagem ao ciclope. Nesse sentido, Eneias seria mais
sábio por conhecer limites do que é prudente conhecer e vivenciar, bem como
por ter maior precaução com os seus ao não submeter seus companheiros a
riscos desnecessários. Na comparação dessa passagem na Odisseia e na Eneida,
Teixeira (2006, p. 59) argumenta que:
[...] consiste num discurso que faz entender outro, numa lin-
guagem que oculta outra. Pondo de parte as divergências dou-
trinárias acerca do conceito preciso que o vocábulo encerra,
podemos considerar alegoria toda concretização, por meio de
imagens, figuras e pessoas, de ideias, qualidades ou entidades
abstratas. O aspecto material funcionaria como disfarce, dissi-
mulação, ou revestimento, do aspecto moral, ideal ou ficcional.
(MOISÉS, 1974, p. 15).
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No verso 52, o Dante personagem questiona Virgílio, que o guia pelo In-
ferno, sobre uma chama de duas pontas. Como resposta, fica sabendo se tratar
de Diomedes e Ulisses, e três dos pecados cometidos pela dupla são listados:
“dentro daquela chama se ressente / o logro do cavalo, que foi porta; pra a dos
romanos garbosa semente; / e lamenta-se o ardil pelo qual, morta, / Deidâmia
ainda por Aquiles chora; / e por Paládio a pena se comporta”. (ALIGHIERI,
1998, p. 177).
Ulisses e Diomedes são heróis que tradicionalmente estão juntos nos
mitos gregos e latinos. Em Homero, isso foi citado no episódio de Dolão
na Ilíada e, na Eneida, no roubo do Paládio. Entre tantos outros mitos, há a
descoberta de Aquiles para que ele participasse da guerra, na qual a dupla se
disfarça de comerciantes e viaja até as terras de Licomedes. Havia rumores que
Tétis escondera Aquiles disfarçado de mulher na corte de Licomedes para que
ele não integrasse a tropa grega à Troia e lá perecesse. Como comerciantes, seus
cestos de joias e enfeites atraem a atenção das mulheres, mas, ao fundo de um
dos cestos, o pai de Telêmaco esconde algumas armas. Ao avistar e se interessar
por elas, Aquiles é revelado. Em algumas das versões da história, Deidâmia é a
mulher de Aquiles, que chora sua partida e posterior morte.
Nessa passagem, portanto, já se observa um Ulisses de Dante construído
a partir de elementos de Homero e de Virgílio – a parceria com Diomedes, o
estratagema do Cavalo de Troia, o assalto ao templo de Atena em Troia para
obter o Paládio –, mas acrescido de outras fontes da tradição greco-latina,
como a do disfarce de comerciante para assegurar a ida de Aquiles à guerra.
Ainda nesse trecho, evidenciando a capacidade de concisão e riqueza de
sentidos do Dante poeta, cabe observar a trapaça do Cavalo como gênese re-
mota de Roma. Essa é uma fala dita por Virgílio, justamente quem cantou na
Eneida as origens dos romanos, e contribui para se caracterizar Eneias e Ulisses
como opostos. Eneias – e por extensão o povo troiano/romano – não apenas
sobrevive ao ardiloso embuste do grego como o transforma em um feito muito
maior: o surgimento do Império Romano. Na concepção cristã de Dante, essa
é uma alegoria de como tragédias – no caso, a queda de Troia – podem ser
permitidas pela sabedoria divina por terem consequências benéficas no futuro
– o estabelecimento do povo de Eneias no Lácio.
Na sequência da passagem, Dante pede ansiosamente a Virgílio para fa-
lar com os heróis. Há o desejo explícito do Dante personagem em conhecê-los
Artuso, Alysson Ramos.
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[...] Quando
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“From the time we entered the torrid zone, we were never wearied with admiring, every
night, the beauty of the Southern sky, which, as we advanced toward the south, opened new
constellations to our view. We feel an indescribable sensation, when, on approaching the
equator, and particularly on passing from one hemisphere to the other, we see those stars,
which we have contemplated from our infancy, progressively sink, and finally disappear.
Nothing awakens in the traveler a livelier remembrance of the immense distance by which
he is separated from his country, than the aspect of an unknown firmament. The grouping
of the stars of the first magnitude, some scattered nebulae, rivaling in splendor the milky
way, and tracks of space remarkable for their extreme blackness, give a particular physiog-
nomy to the Southern sky. This sight fills with admiration even those who, uninstructed in
the branches of accurate science, feel the same emotion of delight in the contemplation of
the heavenly vault, as in the view of a beautiful landscape, or a majestic site. A traveller has
no need of being a botanist, to recognize the torrid zone on the mere aspect of its vegetation;
Artuso, Alysson Ramos.
482 Ulisses no inferno da divina comédia – uma comparação do herói em dante, homero e virgílio
and without having acquired any notions of astronomy, without any acquaintance with the
celestial charts of Flamstead and De la Caille, he feels he is not in Europe, when he sees the
immense constellation of the Ship, or the phosphorescent clouds of Magellan, arise on the
horizon.”
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Referência a esse fato se encontra no primeiro canto do Purgatório, nos versos 130-132.
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Cabe ressaltar que os pecadores da Divina Comédia estão nos círculos que, para Dante, me-
lhor os caracterizam, o que não significa que o pecado desse círculo seja o mais grave entre
os cometidos por eles.
Artuso, Alysson Ramos.
484 Ulisses no inferno da divina comédia – uma comparação do herói em dante, homero e virgílio
Essa proposição de que a principal falha do herói grego está em sua am-
bição por querer saber cada vez mais a ponto de seguir permanentemente o
Sol/conhecimento não é por outro motivo senão pela busca do conhecimento
com fim em si mesmo, sem que importe idade (velhos e tardos, como diz o
verso 106) ou limite. Entretanto, o que a Comédia mostra é que há limites
para os seres humanos conhecerem. No canto em questão, esse limite está
representado pelo Estreito de Gibraltar, as colunas de Hércules.
Retomando o conceito de figura de Auerbach (1997b), no qual uma
realidade tem validade por si própria, mas também prefigura outra posterior
mais definitiva, a figura pode ser, então, “algo real e histórico que anuncia al-
guma outra coisa que também é real e histórica. A relação entre os dois eventos
é revelada por um acordo de similaridade.” (AUERBACH, 1997b, p. 27). E
real deve ser entendido dentro do contexto de determinada obra ou mitologia,
não é necessariamente uma existência física incontestável. No caso, Hércules é
filho de Zeus, o deus supremo da mitologia grega, e representa uma prefigura-
ção de Cristo, filho de Deus. Foi, portanto, Hércules/Cristo quem estabeleceu
o limite ultrapassado por Ulisses.
Na cultura aristotélica, a mente é como um navio, sendo a popa a memó-
ria e a proa a imaginação. A viagem naval de Ulisses pode ser entendida como
essa alegoria aristotélica radical, na qual se pretendia obter o conhecimento
perfeito por meio do intelecto humano, sem a mediação da graça divina e du-
rante a mortalidade terrena. No entanto, tal pretensão se mostrou fracassada.
O desejo de conhecer levado ao extremo, que na tradição antiga era uma
característica positiva do herói homérico, se torna, em Dante, pecado por
desdenhar os limites da natureza humana. Também mostra a fraqueza do ho-
mem, abandonado à sua própria força, sem a orientação teológica da Graça,
afinal Ulisses não está atrás de um conhecimento para se aproximar de Deus,
sua busca não está alinhada com a fé, tanto que ele nem mesmo reconhece a
montanha que avista.
Nessa perspectiva, a perseguição desenfreada de Ulisses por um conhe-
cimento que lhe é proibido é comparável ao Pecado Original. Na tradição
bíblica, Deus impôs limites a Adão e Eva: não comer do fruto da Árvore do
Conhecimento. Ao fazerem-no, foram punidos, pois ultrapassaram o símbolo
de fronteira, a lei que o homem não deve violar: tentaram “ser como Deus,
conhecendo o bem e o mal” (Gênesis 3,5).
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Pátria Celeste. O acesso a essa Pátria lhe é negado, mas sua busca pode ser lida,
pelo ângulo do Auerbach, como a necessidade que até um pagão sente da esfera
divina. Nesse sentido, Ulisses teria a intuição de que existe algo mais, de algo
que excede a capacidade humana; é a sua prefiguração da verdade divina, mas
que só seria concebível aos humanos pelo sacrifício de Cristo, posterior, por-
tanto ao período do itacense. O rei de Ítaca, de certa forma, quer esse conheci-
mento para si e, por necessidade da viagem, ele também seria de ciência de seus
companheiros, mas a finalidade que o herói argivo daria às experiências vividas e
às aprendizagens adquiridas seriam de natureza muito diferente à finalidade do
conhecimento obtido pelo Dante personagem, a quem cabe compará-lo.
Assim como Ulisses, o Dante personagem (e aqui essa análise pode ter
pontos de encontro também com o Dante autor) apresenta seus momentos de
prepotência e audácia5. Ele também é reconhecido por sua capacidade argu-
mentativa, sua elevada retórica e seu intelecto superior. Nesse sentido, o Dante
personagem pode ter algum temor de acabar como Ulisses, afinal, como o
herói grego, sua curiosidade o leva a querer saber cada vez mais e o coloca,
ainda que com a razão aliada à fé e à prudência, na loucura (folle no original,
desatino na tradução) de uma viagem pelo desconhecido, como afirma o Dan-
te personagem no Canto II do Inferno:
5
Exemplo, entre tantos, é a passagem do Canto IV do Inferno, em que o Dante personagem,
acompanhado de Virgílio, encontra Homero, Horácio, Ovídio e Lucano. Nela, Dante autor
faz com que os poetas logo aceitem o Dante personagem em seu grupo, tomando-o, no
verso 102, como o “sexto entre tanto saber.” (ALIGHIERI, 1998, p. 46).
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Bloom (1995) limita sua comparação ao Dante autor, ainda que não
elabore detalhadamente seu argumento com elementos embasadores da obra,
também em razão da natureza e dos objetivos diversos de seu texto. De todo
modo, essa é uma lacuna que se pretendeu preencher no presente artigo.
Com essa exposição, propõe-se mais uma interpretação de porque não
fora Dante quem falou diretamente com Ulisses: de certo modo, ele é Ulisses.
Seja para escrever a Comédia, seja para percorrer os três reinos, ele teve que
desbravar mares e se aventurar, contando com sua audácia, coragem, obsti-
nação e autoconfiança para fazê-lo. No Ulisses de Dante, a busca se dá às
custas da família, de não mais retornar para a esposa, o filho ou o pai. Há de
argumentar que foram, possivelmente, também o orgulho e a obstinação que
fizeram Dante não encurtar ou pôr fim em seu exílio de Florença e retornar
para seus amigos e familiares, de quem morrerá afastado. É ainda nesse sentido
que cabe mais uma vez retomar Bloom (1995, p. 91):
Comer o pão de sal de outro homem, descer escadas que não são
nossas, é um preço que se paga pela busca. Ulisses está disposto a
pagar um preço mais final. Que experiência está realmente mais
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Referências
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São Paulo: 34, 1998.
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BERGAMINI, Kamila Brumatti. A divina originalidade na comédia de Dan-
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Estudos Literários, Vitória, v. 4, n. 4, p. 1-14, 2008.
Artuso, Alysson Ramos.
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ABSTRACT
Ulysses is a constant character in Western literature and
Dante Alighieri was an author that rework him. In the
Divine Comedy, Ulysses is in Hell, in the eighth ditch
of the eighth circle, corresponding to the fraudsters.
In the construction of this character, Dante recovered
Ulysses characteristics from Greek and Latin tradition,
which is analyzed and compared in this article with the
Homer’s and Virgil’s characters. At the end, Ulysses and
Dantes - author and character of Comedy – are related.