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Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos

Ana Paula Pinto


Universidade Católica Portuguesa – Braga
appinto@braga.ucp.pt

Abstract

This essay deals with the mythical episode of the involuntary stay of Odysseus in the
Ogygia Island. Taking a comparative perspective, a parallel is drawn between the Homeric
model given by the Odyssey’s V canto – much more purified and ethic, wherein the
hero manages to escape from that “deviation” to the fundamental “course” of his inner
path, which is returning to the love of his family – and the sarcastic version of the Eça de
Queirós’ story The Perfection – where Odysseus fights for his right to return to his mortal
imperfection. In connection with this subject, it is discussed the traditional version of the
same myth, introduced by the poems of The Epic Cycle, which present the hero’s extra‑
marital affair (with Calypso) as one of many adulterous conquests of an anti‑hero, devoid
of moral principles.

Keywords: Greek Mithology; Greek Literature; Epic Poetry; Portuguese Literature; Eça de
Queirós.

1. O modelo homérico

As principais fontes antigas acerca do mito de Ulisses são os Poemas Homé-ri‑


cos; considerados desde a Antiguidade o mais elevado modelo de narrativa épica,
e empenhados no mesmo ideal do herói que vive para defender o sentido da sua
excepcional dignidade humana, eles comungam da mesma estrutura formal, dos
mesmos processos literários, e de equivalente fundo arqueológico e linguístico.
A Ilíada detalha como a cólera de Aquiles, ultrajado por Agamémnon,
precipita, ao fim de nove anos de cerco, a trágica solução do conflito armado
em Tróia, com a incontornável participação da astúcia de Ulisses: quando Aqui‑
les se retira do combate, insensível aos repetidos rogos dos companheiros, os
Troianos, liderados por Heitor, têm ocasião de repetir vários triunfos militares,
e estão mesmo a ponto de incendiar as naus gregas ancoradas na praia; deci‑
dido a evitar a desgraça, Pátroclo convence Aquiles a deixá‑lo apresentar‑se em
combate, camuflado sob a sua armadura invulnerável, mas acaba por morrer,

Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários, 13-2 (2009), 151-180


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junto das muralhas de Tróia, às mãos do príncipe troiano; Aquiles regressa então
ao combate, exclusivamente para vingar a morte do amigo, aniquilando Heitor;
os dois últimos livros do poema narram os funerais de Pátroclo, e a devolução do
cadáver vilipendiado de Heitor a seu infeliz pai, Príamo.
Já a Odisseia, que adopta como protagonista o rei de Ítaca, e da sua referên‑
cia onomástica retira o título, tem por tema fundamental o atribulado retorno do
herói à sua pátria e ao amor da família.
Ambas as narrativas começam num ponto em que a peripécia fundamen‑
tal (o cerco de Tróia / o regresso de Ulisses) se encontra à beira do desenlace,
mas a Odisseia apresenta, do ponto de vista da estrutura narrativa, muito maior
complexidade que a Ilíada 1: abarcando vários núcleos diegéticos, estruturados
em duas secções fundamentais, o poema divide‑se claramente em duas partes;
enquanto a primeira (livros I‑XII) mostra Ulisses fora de Ítaca 2, a segunda
(livros XIII‑XXIV) detalha a sua acção em território pátrio 3.
Em função dessa excepcional complexidade narrativa, o poeta tem de desen‑
cadear na Odisseia em simultâneo uma solução para um impasse em dois pontos
distintos da geografia mítica, ora em Ítaca, onde o herói se configura na memória
dos outros como uma dolorosa ausência, ora em Ogígia, onde ele surge como
uma presença impotente para a acção. A solução poética passa, por isso, pela
inscrição superior do destino do herói num projecto de justiça divina, validado
pelo Concílio dos deuses olímpicos.

1
Contrariamente aos analíticos, que o supõem de outro criador, os críticos unitários
reconhecem que este agradável canto de paz, dotado de maior complexidade narrativa,
mas menor paixão, manifesta, pela sua concepção ética, pela sua plasticidade e organização
diegética, e pela sua serenidade estilística, ser uma obra da maturidade artística do poeta.
2
Num primeiro conjunto de quatro livros, a Telemaquia, descrevem‑se as acções de
Telémaco em busca de notícias acerca do pai; nos livros V‑VIII acompanhamos os movi‑
mentos de Ulisses, a libertar‑se do amor possessivo de Calipso e a aportar ao território
feace; nos livros IX‑XII, por meio de uma analepse discursiva, Ulisses narra aos hospedei‑
ros Feaces as suas aventuras fantásticas, desde que abandonou o território saqueado de
Tróia, e se perdeu num universo exótico e misterioso.
3
Nos livros XIII‑XVI Ulisses faz a sua primeira investida no território de Ítaca, nas
instalações privadas do seu servo Eumeu, e apresenta‑se ao seu fundamental aliado, o
filho Telémaco; nos livros XVII‑XX introduz‑se disfarçado no ambiente familiar do palácio
e experimenta as iniquidades dos pretendentes; nos livros XXI‑XXIV, depois da fulcral
peripécia do reconhecimento, o herói executa no palácio contra os pretendentes crimi‑
nosos a vingança que lhe permitirá repor a ordem e resgatar dos ultrajes sofridos a sua
própria vida e a da família.
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Desde o início do primeiro canto, e pouco depois de o apresentar em duas


pinceladas breves como o homem astuto que muito sofreu 4, o poeta revela a
peculiaridade do destino de Ulisses: quando já todos os gregos que sobreviveram
às atrocidades do combate e às tormentas no mar se encontram em casa, ele,
que apenas desejava regressar à pátria e à mulher, é o único ausente, retido
por Calipso numa ilha longínqua ( 11-15). Esta singular situação, adiantada
pelo poeta, será reformulada pouco depois pela sensibilidade da deusa Atena,

4
As ocorrências do nome de Ulisses documentam‑se nos Poemas Homéricos, nas
suas variantes casuais, acompanhadas de epítetos genéricos ou distintivos. Incluem‑se
na primeira categoria todos aqueles que podem genericamente atribuir‑se a várias perso‑
nagens ou realidades épicas, por se adequarem à tradução de valores comuns partilha-
dos por todas elas (      
.
Reserva‑se a inscrição no segundo grupo àqueles epítetos que, traduzindo uma vivên‑
cia peculiar ou um traço essencial do carácter da personagem, apenas a ela podem ser
tributados Retirando as notações patronímicas (   e de origem
 ), que não representam traços relevantes de caracterização, podemos deduzir
no herói, pela sobreposição dos semas dos vários epítetos distintivos, uma personalidade
multiforme. Moldada pela integração dinâmica de duas forças, ela concretiza‑se em dois
traços característicos preponderantes: de um lado, a extrema prudência, feita da habi‑
lidade inigualável de, lançando mão a todos os recursos, prever, conceber e executar nos
seus mínimos pormenores um projecto e superar com sagacidade todas as dificuldades
(      )
de outro, a extrema paciência, força de ânimo irredutível, nascida da capacidade ilimi‑
tada de aceitação do sofrimento (  . Ambos os traços
de caracterização parecem, aliás, ter sido cuidadosa e intencionalmente associados pelo
poeta, na Odisseia, ao nome do herói. Com efeito, a escolha do antropónimo, que regular‑
mente manifesta, no texto épico, a propensão mimética da cultura arcaica para a busca da
verdade onomástica (vd. G. Lombardo 1993), revela‑se duplamente significativa no caso
particular de Ulisses, como nos revelam as sugestivas pistas de interpretação que o poeta
nos lega na digressão da cicatriz, do livro . Por um lado, a abordagem diegética do episó‑
dio de individualização pelo nome do recém‑nascido sugere a aceitação de um critério
arcaico, segundo o qual, na escolha onomástica, se deve preferir uma referência explícita
ou a uma característica ou a um acontecimento da vida do pai, da mãe, ou de um antepas‑
sado (um avô) da criança. A referência nominal de Ulisses começa, portanto, por privi‑
legiar curiosamente o vínculo hereditário da personagem com o avô materno, Autólico,
conhecido – e odiado – pela sua índole astuciosa e enganadora. É precisamente essa
hereditariedade marcante, confirmada a posteriori, em toda a acção épica (particular‑
mente a documentada na Odisseia) na versatilidade de carácter do herói, que emprestará
ao episódio de escolha do nome um fundamento simbólico.
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no Concílio olímpico, no início da narração: quando Zeus, a pretexto do exemplo


funesto do adúltero Egisto 5, censura a leviandade dos homens, sempre prontos a
atribuir ao capricho dos deuses o infortúnio que eles mesmos forjam com as suas
condutas criminosas, a deusa de olhos garços lembra ( 48-59) que o caso de
Ulisses configura, na verdade, uma injusta excepção: tendo sido sempre exem‑
plar nos procedimentos, o infeliz, retido ainda longe dos seus numa ilha distante,
no umbigo do mar 6, pelo obstinado assédio de Calipso, atormenta‑se e deseja a
morte. E quando Zeus, convencido pela argumentação da filha, reconhece que
compete à justiça divina liberar o herói, a quem está destinado regressar são e
salvo à pátria, apesar dos rancores de Poséidon, Atena prontifica‑se a ir ela a
Ítaca, enquanto Hermes descerá à divina ilha Ogígia, a manifestar a Calipso a
superior vontade de Zeus.
A visita de Atena a Telémaco 7, e a influência positiva que ela exerce, meta‑
morfoseada, na insegura personalidade em formação do jovem príncipe, deso‑
rientado desde a infância pela incerteza acerca do paradeiro do pai e do futuro da
família, ocupará os primeiros quatro cantos do poema, que funcionam como uma
unidade narrativa específica, reconhecida pela crítica com o nome individual de

5
A narrativa da morte criminosa de Agamémnon, promovida pela esposa adúltera
Clitemnestra e seu amante Egisto, e consequente vingança do filho Orestes – reincide na
Odisseia como um tema obsidiante: depois de um breve resumo da autoria do narrador
( 29-31), ele surge quase no início da narração, num discurso circunstanciado de Zeus
ilustrando a leviandade dos homens, incapazes de reconhecer as suas próprias culpas
( ); assumindo particular relevância ao longo da Telemaquia, é aqui reiterada‑
mente apontado como exemplo a Telémaco, o jovem filho confrontado dentro de casa
com as pretensões criminosas dos concorrentes do pai (por Atena/Mentes, em  298-
-300 por Atena/Mentor, em  234-35; por Nestor, em  193-98,  255-61, e  303-10), e
surge ainda referenciado por Telémaco a Nestor , em  247-50; e por Proteu, o Velho do
Mar, a Menelau, em  512-37. Além disso, o poeta compraz‑se em reformulá‑lo noutros
passos posteriores (em  385-464, e  19 sqq., pelo narrador; em  192-202, pela alma de
Agamémnon à de Anfimedonte), sublinhando, como tema fundamental da Odisseia, um
evidente confronto entre os dois núcleos familiares, a partir dos paralelismos evidentes
entre os papeis de Agamémnon /Ulisses, Clitemnestra /Penélope, Egisto /os pretendentes,
e Orestes / Telémaco.
6
A conotação simbólica implícita no sintagma “umbigo do mar” ( 50) parece repre‑
sentar a ilha como um ponto limite, uma espécie de fronteira do nada que o herói tem de
afrontar para regressar a si mesmo e ao seu próprio contexto humano
7
O nome do jovem, Telémaco (“que combate à distância”), já registado em duas
ocorrências da Ilíada ( 260 e  354) em que Ulisses se apresenta orgulhosamente como
 , parece reflectir a habilidade do pai no manejo do arco.
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Telemaquia 8. Durante este prelúdio narrativo – que o poeta usa habilmente não
só para emancipar o jovem 9, mas também para apresentar, por meio das suas
viagens e indagações pessoais, o retorno de cada um dos heróis que combateram
em Tróia – Ulisses, constrangido a um estatuto ambíguo, surge apenas reitera‑
damente lembrado pelo narrador, e sobretudo pelas personagens que o conhe‑
ceram (o filho, a esposa, os companheiros, os vizinhos, e os concorrentes) como
uma imagem, um fantasma de um mortal desaparecido do mundo dos vivos 10.
Só no momento de viragem, configurado pelo episódio de Calipso, no livro ,
Ulisses nos será apresentado como verdadeira personagem actante, retornada à
condição de ser vivo, para cumprir, dentro do enquadramento do seu próprio e
inalienável sofrimento, um particular destino heróico. Depois de se retomar, por
um mecanismo habitual da narrativa épica 11, o episódio do Concílio dos Deuses
( 1-42), com que se iniciara a narrativa no livro , Atena insiste indignada na narra‑
ção dos sofrimentos de Ulisses, retido à força numa ilha, longe da pátria, onde a famí‑
lia sofre, sem defesa, o assédio de inimigos, e lembra a responsabilidade dos deuses

8
Para a discussão circunstanciada da especificidade da Telemaquia, e da possibi‑
lidade, defendida pela crítica analítica, e combatida pela unitária, de ela representar um
poema autónomo, ou uma interpolação tardia, vd. a introdução de Stephanie West, in:
A. Heubeck e S. West 1981, p. LXXII sqq.
9
A transformação psicológica de Telémaco, que se manifesta embrionariamente
desde o primeiro encontro com Atena, e se reflecte na sua inesperada determinação de
reorganizar os papéis sociais no palácio (dando ordens à mãe, em  345-61, aos pretenden‑
tes, em  367-68, e em  299-321, aos criados, em  337-81; e protestando a sua indignação
perante a Assembleia dos Itacenses, em  1-221), atingirá o ponto alto durante as viagens
a Pilos e à Lacedemónia; aí ele aprofunda o vínculo de admiração que o liga ao pai ausente,
e conquista a coragem necessária para agir; além disso, o seu regresso, em , além de lhe
conceder a oportunidade de conquistar nobre fama, segundo o projecto inicial de Atena
( 95,  422), prova aos arrogantes pretendentes que o seu protesto público não foi um
desabafo destemperado de um adolescente desorientado, mas a manifestação explícita de
uma determinação adulta e coerente.
10
Significativa é, a esse título, a resposta de Telémaco à questão do hóspede (Atena
metamorfoseada em Mentes, rei dos Táfios, em  235 sqq.) sobre a irregularidade vivida
no palácio: foi vontade dos deuses, que decidiram tornar Ulisses o mais invisível,
obscuro, e ignorado dos homens:         /  
     /   /     �
 /                241-43).
  
11
O mecanismo de suspensão diegética, pela qual se narra posteriormente uma de
duas acções ocorridas em simultâneo.
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no adiamento do seu destino. Constrangido pela censura da filha, Zeus dispõe


( 29-42) que Hermes parta para Ogígia, a comunicar a Calipso o desígnio supe‑
rior dos deuses, o retorno do sofredor Ulisses ( 31    ) 12.
Narra‑se então a viagem do deus desde as alturas olímpicas ( 43-54), e a
sua chegada ( 55-94) à ilha longínqua, sobre o mar violáceo, onde encontra,
sentada a tecer e a cantar diante de uma lareira, dentro de uma gruta, a ninfa;
o poeta detém‑se a descrever, perante o olhar maravilhado do mensageiro dos
deuses, o idílico enquadramento da ilha – coberta de bosques frondosos, vestida
de flores, rescendente, timbrada de felizes arrulhos de aves e murmúrios de
águas vivas – antes de detalhar a entrevista das duas divindades, a sós 13, uma vez
que, indiferente a tanta beleza, que não deixaria insensível nem sequer um
imortal  73-74, o herói se ausentava diariamente da gruta, atormentando‑se
sempre com lágrimas e gemidos, de olhos postos no mar infecundo  82-84.
Incentivado pela prontidão da ninfa, que lhe manifesta a generosa hospitalidade
devida aos estrangeiros, Hermes expõe, então, a razão da sua visita: em obediên‑
cia às superiores instruções de Zeus, cumpre‑lhe anunciar que ela deve liberar
o mais infeliz dos heróis insignes que combateram em Tróia, a quem os fados

12
Nesse mesmo discurso, o pai dos deuses não deixa de apontar os próximos pade‑
cimentos do herói antes de aportar às costas de Esquéria (v. 33). Curiosamente, a apre‑
sentação do herói recorrerá, desde as primeiras referências do livro, conotada com os
epítetos do âmbito temático do sofrimento ( em  31; e , em  171,
354, 386, e  1: a primeira verdadeira aparição de Ulisses na diegese primária da obra
coincide precisamente com a sua nomeação como   feita pelo narrador
( 171 -       ). O poeta pretenderia com certeza
iniciar a narração do seu processo de gradual aproximação ao lar e à família a partir de um
momento de extremo infortúnio, sublinhando assim um dos aspectos que a saga heróica e
as aportações da tradição haviam delegado na sua complexa personalidade – a constância
de ânimo.
13
Note‑se que, em nítido contraste com todas as cenas descritivas de figuras femini‑
nas de relevo nos Poemas Homéricos no seu enquadramento domiciliário (sejam rainhas
e princesas humanas, ou divindades superiores), reincidentemente acompanhadas ou
das aias, ou de outras figuras pares, o episódio de Calipso parece sublinhar intencional‑
mente a absoluta solidão da deusa. Na verdade, exceptuando a alusão singular do serviço
das servas, no verso 199 – que parece configurar uma adaptação incoerente de uma cena
típica como a análoga do episódio de Circe – todo o episódio evidencia esse doloroso isola‑
mento, simbolizado pelas recorrentes descrições da ilha, localizada a distância extrema
( 49 sqq.,  55 sqq.,  244-47,  448 sqq., e   sqq.), e referido de forma explícita pela
sintomática observação de Hermes a Calipso, ao reconhecer que nem ele nem ninguém
procuraria voluntariamente aquele excepcional isolamento ( 99-102). Vd. supra, nota 6.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  157

determinaram não morrer longe daqueles que ama, mas rever parentes e
amigos, o palácio e a pátria ( 105-15). Reclamando embora do cruel ciúme
dos deuses, sempre prontos a obstar às relações amorosas das deusas com seres
humanos, Calipso aceita submeter‑se contrafeita aos desígnios impositivos de
Zeus, e desobrigar o herói a quem prometera com o seu amor a imortalidade e
a juventude eterna: à falta de outros meios que possa dispensar‑lhe (embarcação
ou tripulantes), oferecer‑lhe‑á conselhos. Cumprida a sua missão, o mensageiro
dos deuses regressa rapidamente ao Olimpo. Calipso procura o herói, que conti‑
nuamente desabafa junto do mar infecundo o seu profundo desalento 14, e acon‑
selha‑o a não se mortificar mais, porque de boa‑vontade 15 o deixará partir, sobre
uma jangada que ele mesmo construa, e onde recolha os generosos dons que ela
lhe não regateará. Sobressaltado, Ulisses suspeita da súbita mutação dos destinos
anunciada, mas a deusa assegura‑lhe, por um juramento sagrado, a honestidade
das suas intenções, e a compaixão do seu coração. Regressados ao aconchego da
gruta, e no enquadramento da sua sempre generosa hospitalidade, Calipso apre‑
senta os definitivos argumentos de persuasão ao herói astuto: respeitará a sua
vontade, qualquer que ela seja, mas assegura‑lhe que se não retornasse à pátria, e
à esposa por quem suspira, ele viveria mais confortavelmente em Ogígia, gozando
da imortalidade sem sofrimento, ao lado de uma criatura de superiores qualidades.
Sem negar a inferioridade da esposa, o herói admite que ainda assim anseia regres‑
sar à pátria, e que por esse projecto afrontará de coração paciente todas as agruras
que lhe estiverem destinadas. Sobrevém a noite, e deusa e herói partilham mais
uma vez da intimidade forçada 16. Ao amanhecer, Calipso conduz o herói ao bosque,

14
O poeta explicita a angústia do herói, incapaz de achar encanto na vida, forçado
a dormir todas as noites com a deusa, que já não lhe agradava, e torturando de dia o
cora-ção com a saudade:…        �
 /                
 ( 152-55).
15
Sem referir explicitamente a visita de Hermes, que condicionou irrevogavelmente
as suas primitivas disposições de o reter na ilha e dele fazer um marido imortal e isento da
velhice, a ninfa sugere apenas, de forma vaga, que essa parece ser a vontade superior dos
deuses, muito mais poderosos que ela:           
        169-70
16
A estrutura da cena típica de aproximação amorosa, referida em vários passos dos
Poemas Homéricos, implica um conjunto de esquemas repetidos (e.g., o enquadramento
temporal ocorre entre o anoitecer e o amanhecer; a iniciativa prende‑se com a deslocação
dos dois amantes, de mútuo acordo, para a cama; o espaço corresponde a um local isolado,
como aqui a gruta de Calipso). O procedimento narrativo tende também a repetir‑se: o
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disponibiliza‑lhe ferramentas, e indica‑lhe as melhores árvores. E enquanto ele


trabalha incansavelmente na construção de uma jangada, ela retira‑se para o
aconchego da gruta, e continua numa augusta impassibilidade os seus afazeres
femininos, tecendo e cantando. Ao quinto dia, dispensando‑lhe todos os dons da
hospitalidade que alegram o coração, a deusa despede sem mágoa o herói, depois
de lhe dar instruções fidedignas para a viagem, e faz soprar nas velas desfraldadas
um vento suave, propício, e sem perigo. O herói, alvoroçado, abandona por fim o
tranquilo refúgio de Ogígia, que ele aborrece, sobre a frágil jangada, e navega com
irrepreensível sucesso por dezassete dias. No entanto, a obstinação vingativa de
Poseídon, que o lobriga sobre as ondas, e contra ele insurge cruelmente ventos e
marés, arrastá‑lo‑á, descorçoado, a um último naufrágio 17.

poeta não detalha a aproximação, sugere‑a por uma paráfrase poética (“gozaram os praze‑
res do amor”), ou por uma sugestiva alusão simbólica; já as cenas de aproximações eróti‑
cas dos deuses, como a de Afrodite e Ares na Odisseia, e de Zeus e Hera na Ilíada, surgem
por regra mais detalhadas, e dando menos espaço à imaginação do auditório. A esta cena
típica de aproximação amorosa associam‑se sequencialmente outras cenas típicas (as que
antecedem o sono, de hospitalidade, refeição e banho, e as que o encerram, como o
vestir‑se ou armar‑se); a sequência nem sempre se sucede com as mesmas variações, e
a criatividade do poeta manifesta‑se na sua capacidade de adaptar a um novo contexto,
recriando‑a, uma estrutura eficiente, às vezes com uma ponta de humor (como na cena de
reencontro dos esposos Ulisses e Penélope, que, depois de um dia cheio de emoções, são
presenteados pela generosidade da deusa Atena com um excepcional prolongar da noite
– facto que nós vemos hoje, com a nossa visão científica e moderna, como um tempo de
dimensão psicológica. Associada à figura de Ulisses, a cena típica de aproximação amorosa
a figuras femininas recorre em apenas cinco passos da Odisseia: um com Calipso, em
  (traduzindo as sequências elementares); três com Circe (em  333-47, a variação
narrativa prende‑se com o exercício diplomático de negociação de interesses; em  478-
-541, destituída do elemento erótico, o herói desabafa a sua angústia ante a predição da
deusa; e em  31-142 com nova predição de futuras aventuras); e uma com Penélope (em
 241-348; com componente erótica e de comunicação).
17
A segunda parte do livro detalha a viagem ( 262-81), a tempestade suscitada pela
rancorosa obstinação de Poseídon ( 282-332), a intervenção solícita de Ino Leucoteia
( 333-64), o naufrágio ( 365-87, e o perigoso aportar à rochosa costa da ilha Esquéria,
território mágico dos Feaces, onde nu, vencido por um cansaço extremo, Ulisses tem de
buscar ainda na floresta um refúgio contra os perigos que a noite oculta ( 388-493). Desta
forma inicia o poeta o percurso diegético do herói, a partir de uma situação de prostração
sem par – que prepara antiteticamente o seu sucesso futuro.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  159

A aventura de Calipso, narrada pelo poeta no livro  – e retomada como


narrativa em primeira pessoa por Ulisses aos Feaces 18 e à esposa Penélope, na
intensa noite de reencontro conjugal (em  333 sqq.) 19, representa do ponto de
vista diegético a penúltima e a mais demorada das errâncias do herói 20 à margem
do universo humano e racional que ele deixou para trás quando abandonou o
território de Tróia – palco heróico onde forjou uma fama imperecível entre os
vindouros.
O episódio homérico representa um mecanismo narrativo eficaz e verosímil
para justificar o incomparável atraso do regresso do herói: o argumento exigia
que, chegado o filho à idade adulta, quase todos, à excepção da família e de uns
poucos amigos íntimos, o julgassem já morto. A ninfa Calipso, sem particular
densidade psicológica, e mais relevante para a estrutura do que para a essência
do poema, parece ser uma criação poética útil para a consecução de um propó‑
sito narrativo: o seu nome traduz deliberadamente uma função diegética, que
é a de reter por longo tempo o herói, escondendo‑o () aos olhos dos
homens. É possível que a personagem tenha sido uma invenção poética ad hoc

18
Ulisses inicia a sua apresentação aos Feaces, em  240 sqq., justificando a sua
excepcional presença em Esquéria, perante as suspeitas maternais de Arete: arrastado
pela vontade impositiva dos deuses à ilha Ogígia, depois de um terrível naufrágio, ali viveu
sete anos prisioneiro das atenções da deusa, até que ela o enviou sobre uma jangada, e,
mais uma vez maltratado pelo violento capricho de Poséidon, foi arrastado num naufrágio
à ilha Esquéria; seguindo o esquema épico da construção em anel, será de novo o episódio
de Calipso que encerrará, em  448 sqq., a narrativa das suas doze desventuras fabulo‑
sas, desde que abandonou vitorioso o território de Tróia. De notar que a narrativa em
primeira pessoa aos Feaces, os únicos dentre todas as criaturas fabulosas com que Ulisses
contactou nas suas viagens que conservam traços de alguma humanidade (idealizada), é
um artifício literário notável, que permite introduzir no desenvolvimento diegético tensão
dramática acrescida, e simultaneamente concede ao poeta épico – vocacionado por inspi‑
ração divina a contar os grandes acontecimentos heróicos, no enquadramento memorá‑
vel dos tempos antigos – o necessário distanciamento deste universo exótico, fantástico,
mágico e misterioso, em que peregrina errante, à margem da racionalidade, o seu herói.
19
Acrescem outras narrativas, como a de Proteu a Menelau, em  555 sqq.,
20
As séries de aventuras/errâncias de Ulisses são anunciadas por Circe ao herói
 490,  37-142) e recontadas por ele aos Feaces () e à esposa (); as aventuras, obede‑
cendo a uma estrutura sofisticada, são doze, e parte da crítica associou‑as às doze divisões
do zoodíaco; todas sublinham, de alguma forma, o poder da iniciativa e da coragem huma‑
nas face às forças negativas que se lhe opõem. Os episódios análogos das Sereias, de Cila
e Caríbdis, e, com explícita componente amorosa, de Circe, Calipso e Nausícaa surgem
como desvios na história do regresso do herói a casa e ao amor conjugal.
160  Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários

para a narrativa tradicional das aventuras de Ulisses. É certo que há várias outras
referências poéticas a Calipso, para além da homérica, mas não chegam a deta‑
lhar pormenores miticamente relevantes, e não há associada à sua figura nenhum
culto documentado: parecem ser desenvolvimentos posteriores, e mesmo assim
muito ténues, as referências do Catálogo das Oceânides (Theog. 359, onde se
refere uma graciosa Calipso  ) e do fr. hesiódico 150 (30‑31)
MW, (que alude à união da desejável Calipso com Hermes, donde nasceram os
Cefalénios). Também o Hino a Deméter fala apenas, numa referência descon‑
textualizada, da desejável Calipso (422‑23). O final da Theogonia, que trata
das várias relações de deusas com mortais, oferece já um primeiro sinal do
destino extra‑homérico, e, por isso mesmo, extra‑conjugal, da relação da ninfa
e do herói, quando anuncia que, unida a ele em amor, Calipso, divina entre
as deusas, deu a Ulisses por filhos Nausítoo e Nausínoo (Theog. 1017‑18) 21.
Já do ponto de vista simbólico, o episódio merece um comentário mais
extenso. Ele configura, na verdade, um desvio involuntário 22 ao projecto de
regresso a casa que o herói acalenta e explicita constantemente, e que não só o
narrador, como várias das personagens (Atena, Nestor, Menelau, Helena) reco‑
nhecem como o seu destino pessoal. Do ponto de vista da intriga, o episódio
permite actualizar uma das linhas temáticas fundamentais da Odisseia, que é a
da união matrimonial, estruturada sobre o princípio da sintonia afectiva e inte‑
lectual dos esposos, e, por isso, da necessária e natural fidelidade do seu vínculo
afectivo.

21
Os nomes das personagens, etimologicamente relacionados com o termo “nau”
– tal como o de várias personagens feaces, incluindo Nausítoo, o pai de Alcínoo – apropria‑
dos para designar o filho de um herói navegador e de uma Oceânide, surgem destituídos de
qualquer fundamentação mítica, e parecem justificar‑se apenas como duplicações simétri‑
cas dos nomes dos filhos de Circe. Já a referência hesiódica (Theog. 1011‑1016) à figura
de Circe merece um comentário distinto: quando o poeta conta que da relação de Ulisses
e Circe nasceram Ágrio e Latino, e ainda (num verso claramente acrescentado) o jovem
Telégono, que reinou sobre todos os Tirrenos, traz à colação personagens significativas do
ponto de vista da fundamentação mítica; o episódio, amplamente desenvolvido a partir
do século VI a.C. e da Telegonia, foi também referido por outros poetas, como Álcman.
22
Assim o explicita o herói nas suas narrativas em primeira pessoa ( 244 sqq; 29 sqq.;
 447 sqq. e o reforça constantemente o narrador (ou veiculando em discurso indirecto
as palavras do herói, como em  333 sqq; ou fazendo as suas próprias sínteses, em 
13-15  154-55) e as outras personagens (Atena em  55,  199,  13 sqq., Proteu, em 
555 sqq.; Hermes, em  105, etc).
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  161

É justamente nesse princípio fulcral da sintonia afectiva e da fidelidade


conjugal – apresentado em Esquéria pelo diplomático Ulisses ( 180-85) à ingé‑
nua princesa Nausícaa 23 como o principal encanto e fundamento de uma relação
matrimonial perfeita –

que os deuses te concedam tudo o que desejares em teu coração,


um marido e uma família; e que a ambos dêem a sintonia de espírito,
coisa excelente! Pois nada há de melhor ou mais valioso
do que quando, sintonizados nos seus pensamentos, um marido e uma esposa
gerem uma casa. Dano causam aos inimigos, e alegria a quem os estima… 24

que se alicerça, desde o primeiro episódio narrativo do Concílio dos deuses, a


estrutura simbólica do poema. Fundamentada no evidente contraste de natureza
dos núcleos familiares de Ulisses/Penélope/Telémaco, por um lado, e dos Atridas
Agamémnon/Clitemnestra/Orestes, e seu duplo Menelau/Helena /Hermíone, por
outro, a Odisseia propõe na verdade dois distintos destinos para o homem 25.

23
Que por ele começa a conceber uma paixonite adolescente, inspirada pelos desíg‑
nios de Atena, empenhada em garantir, no contexto hostil da ilha Esquéria, um meca‑
nismo de protecção para o seu predilecto.
24
Cf.  180-185:         
      
        
      
      
         
25
O poeta sublinha essa distinção logo a partir da atribuição dos epítetos patroními‑
cos aos heróis: Ulisses é, na verdade, filho de Laertes, que comprara a escrava Euricleia,
mas a respeitara sempre para não infligir à esposa legítima o desaire de uma humilhação
( 429), enquanto Agamémnon e Menelau, filhos de Atreu, surgem miticamente vincula-
dos ao crime paterno hereditário que atrai com uma maldição o castigo divino. O início
do poema e da narração ( 13-15 coloca a questão da duplicidade afectiva do herói,
que deseja regressar a casa e à esposa, mas é retido contra vontade por uma ninfa, que
o deseja por marido; o primeiro exemplo do discurso dos deuses, no Concílio olímpico,
é o de Egisto, o adúltero, assassinado por Orestes, filho de Agamémnon e Clitemenes‑
tra; os deuses lembram, a propósito deste exemplo paradigmático de adultério, a respon‑
sabilidade dos homens sobre o seu próprio destino iníquo (a leviandade humana e seus
falsos juízos desresponsabilizadores) e Atena contrapõe, como significativo, o exemplo
do seu predilecto, Ulisses, retido à força, apesar da sua isenção ética; deste exemplo
se parte pois para o caso concreto de Ulisses, cuja esposa é duramente assediada por
162  Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários

Enquanto o primeiro núcleo familiar, fundado sobre a evidente similaridade de


almas dos esposos 26, e obstinadamente decidido a uma fidelidade sem reservas
– apenas frustrada esporadicamente pelas aventuras extra‑conjugais a que Ulis‑
ses se vê arrastado por determinações superiores dos deuses – será tardia mas
irrevogavelmente premiado pela justiça divina com a felicidade 27, os segundos,
marcados de desencontro e de infidelidade, serão votados à dor, à indignidade e
à tragédia. Além disso, o espaço utópico, marginal e periférico, completamente
isolado nos confins da terra, onde o herói se encontra involuntariamente retido
na mais absoluta solidão humana, parece surgir no poema como o pretexto
poético para o submeter à tentação sublime de uma vida sobre‑humana, de eter‑
nidade e bem‑aventurança; confrontado com a ideia da imortalidade num espaço
de individualidade e solidão profundas, ele assume no entanto, voluntária, cons‑
ciente e livremente, a opção de regresso à sua natureza mortal, e à experiência
dual de partilha afectiva com aqueles que ama.

pretendentes iníquos; este paralelo vai ser constantemente referido no poema, por Atena/
Mentes/Mentor, e por Nestor, que incentivam Telémaco a reagir à semelhança de Orestes
( 295,  193 sqq  235 sqq) e por Menelau, que opõe a conduta criminosa da cunhada
Clitemnesta com a fiel de Penélope ( 91 sqq). De notar ainda a sintomática formulação
simétrica do adultério involuntário de Ulisses ( 154-55:       
 /        e o voluntário de Clitemnestra
( 272:        
26
O vínculo afectivo dos esposos denota‑se recorrentemente quer pela descrição de
Penélope, que se apresenta como um duplo do marido no carácter astucioso, prudente, e
de refinada desconfiança (ver, além do seu epíteto recorrente, “a prudente Penélope”, o
testemunho de Antínoo,  115 sqq “pensando no seu espírito tudo o que Atena lhe conce‑
deu / o conhecimento de belos lavores, bom senso e astúcias / como nunca se ouviu falar
em mulheres antigas / destas nenhuma pensava de modo semelhante a Penélope”), quer
pela alusão aos seus constantes estratagemas (particularmente o da teia) para iludir o
assédio criminoso dos pretendentes.
27
Que se traduz, segundo as palavras de Ulisses, em  180-185 (vd. nota 24), no
dano causado aos inimigos e na alegria de quem os estima, coroada de fama exem‑
plar entre os vindouros; os mesmos tópicos surgem claramente configurados, no final do
poema, no castigo dos criminosos pretendentes e seus aliados, e na reestruturação da
felicidade doméstica, no enquadramento abrangente de quantos continuaram a estimar e
a prestar apoio à família do herói ausente.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  163

2. A reinterpretação queirosiana

Eça de Queirós oferece‑nos, através do conto A Perfeição, uma curiosa rein‑


terpretação do episódio homérico de Calipso 28. Inscrito numa linha temática
reincidente, que – como diz Carlos Reis (2003), se fundamenta no motivo estru‑
turante do regresso 29, e de alguma forma representa, no imaginário pessoal do
autor, um reflexo autobiográfico da sua peculiar vivência de “exilado” – o conto
estrutura‑se em quatro sequências narrativas. As três primeiras apresentam
a situação de impasse dramático implícita no exílio forçado de Ulisses na ilha
Ogígia, segundo a perspectivação interior das três personagens fundamentais,
o herói mortal retido, a ninfa imortal que o retém, e, a estabelecer as bases de
negociação entre as suas disposições contraditórias, Mercúrio 30, o mensageiro
divino incumbido pelas forças superiores de fazer cumprir as determinações do
destino. A última sequência propõe a solução do conflito, que, por um desloca‑
mento semântico intencional e irónico, se configura não tanto, como no modelo
homérico, no regresso do herói à pátria e ao regaço amoroso da esposa, mas antes
no seu ansiado retorno à fascinante órbita da imperfeição, que não consome, mas
alimenta o coração dos homens.

28
Importa referir, como nota marginal, o facto reconhecido, através das investiga‑
ções de Santos Alves (1983), de Eça de Queirós ter tido acesso ao texto homérico através
de uma tradução francesa (de Leconte de Lisle) e de outras criações artísticas que tomam
por intertexto o mesmo legado clássico (Tennyson, Dante); este não é, no entanto, um
trabalho de investigação de fontes, mas apenas uma abordagem que permite surpreender
como um mito clássico específico, reconhecido a partir de uma ou várias referências poéti‑
cas da Antiguidade, é tratado num autor da contemporaneidade.
29
Que tão profundamente marca a biografia de várias das suas personagens princi‑
pais (Carlos da Maia em Os Maias, Fradique Mendes em A Correspondência de Fradi‑
que Mendes, Gonçalo Mendes Ramires em A Ilustre Casa de Ramires, e Jacinto em
A Cidade e as Serras).
30
Note‑se que Eça usa para os nomes das personagens divinas de Hermes e Zeus as
versões latinas Mercúrio e Júpiter. Já Eos não merece do autor a referência onomástica
latina recorrente de Aurora (pp. 382, 384). Todas as informações de paginação do conto
tomam por referência a edição Contos, Obras Completas de Eça de Queirós, vol. 9,
Resomnia Editores, 1988.
164  Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários

Contrariamente ao modelo do texto homérico, que, em consonância com os


primeiros quatro livros do poema, retarda a aparição do herói 31 para o momento
de viragem que sucede à explicitação da vontade irrevogável de Zeus a Calipso, o
texto queirosiano parte precisamente da focalização interna do herói, traduzida
indirectamente por um narrador extra‑diegético mas omnisciente; é, portanto,
pela perspectiva desalentada do mais subtil dos homens que, numa escura e
pesada tristeza, considera o mar muito azul (p. 375) 32 que a história se intro‑
duz. Enquanto, sem violentar as indicações fundamentais do modelo épico 33
detalha a descrição do herói, multiplicando as referências da sua resplendorosa
aparência, coberto da excepcional magnificência dos deuses bem‑aventura‑
dos, mas afogado da dor que só aos seres humanos se consente, o narrador faz
aparecer pela melancolia dos seus olhos o enquadramento maravilhoso da ilha
Ogígia 34; como em praticamente todo o texto, a fidelidade aos tópicos descritivos
homéricos (os bosques frondosos, as flores rescendentes, as aves arrulhantes, as
águas murmurantes) enriquece‑se de expansões de inigualável poder evocativo:
A divina ilha, com os seus rochedos de alabastro, os bosques de cedros e
tuias odoríferas, as messes eternas dourando os vales, a frescura das roseiras
revestindo os outeiros suaves, resplandecia, adormecida na moleza da sesta,
toda envolta em mar resplandecente. Nem um sopro dos Zéfiros curiosos, que
brincam e correm por sobre o arquipélago, desmanchava a serenidade do lumi‑

31
Saído muito gradualmente da sombra, de um estatuto fantasmagórico de não‑exis‑
tência, no espaço mágico de uma ilha algures, no umbigo do mar, indetectável pela expe‑
riência e pela vontade, ainda que premente, dos homens, onde só se chega por intermédio
dos deuses, e mesmo assim, obrigados pela obediência à vontade impositiva de Zeus ( 99,
103-04 e 146).
32
E não consegue deixar de comparar com profunda nostalgia como até aquele mar
que também banhava Ítaca, era lá tão desafiadoramente bravio, e ali tão maçadora‑
mente sereno (p. 377).
33
Tal como Homero, Eça sublinha desde o início da sua narrativa os dois traços
preponderantes da personalidade do herói (a inigualável prudência, e a ilimitada paci‑
ên-cia ou capacidade de aceitação do sofrimento), mas compraz‑se em multiplicar com
requinte os pormenores à volta deste núcleo significativo fundamental (particularmente
no domínio da descrição física, de uma riqueza sinestésica regularmente excepcional).
34
No modelo homérico, a descrição da ilha era feita através da focalização do narra‑
dor, que acompanha, omnisciente, o surpreendido deleite de Hermes, em visita à ilha.
Também as alusões às glórias passadas em território troiano ficam, no episódio, a cargo
do discurso directo da personagem divina, que as enuncia a Calipso como argumento para
justificar a irregularidade do anonimato forçado de herói de tanto prestígio.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  165

noso ar, mais doce que o vinho mais doce, todo repassado pelo fino aroma dos
prados de violetas. No silêncio, embebido de calor afável, eram duma harmo‑
nia mais embaladora os murmúrios de arroios e fontes, o arrulhar das pombas
voando dos ciprestes aos plátanos e o lento rolar e quebrar da onda mansa sobre
a areia macia. E nesta inefável paz e beleza imortal, o subtil Ulisses, com os olhos
perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia, revolvendo o queixume do
seu coração... (p. 375)

A excepcional angústia do herói, tão contrária ao enquadramento idílico,


oferece pretexto ao narrador para introduzir, como uma nostálgica memória do
herói exilado, a enunciação, em analepses sucessivas 35, das circunstâncias que o
arrastaram, pelo capricho irado dos deuses, trambolhando
na braveza mujidora das espumas sombrias, durante nove dias, durante nove
noites, até que boiara em águas mais calmas, e tocara as areias daquela ilha onde
Calipso, a Deusa radiosa, o recolhera e o amara! (p. 376)

do amoroso aconchego da família, para da glória dos muros fatais de Tróia, e de


uma vida
sempre tão agitada por perigos, e guerras, e astúcias, e tormentas, e rumos
perdidos (p. 376)

para a lânguida inércia da ilha. Exprime‑se então, num monólogo indirecto, o


profundo pesar do herói, que inveja a sorte dos companheiros mortos em combate,
ou no trágico alvoroço das ondas 36, fundamentado na consciência de que a perfei‑
ção inalterada dos dons que a deusa lhe prodigaliza, através do seu amor 37 e do

35
E cronologicamente desordenadas, como costuma suceder às lembranças humanas.
36
Em Homero, semelhante desabafo ocorre no início do naufrágio que sucede à
partida de Ogígia ( )
37
Recorre, como uma cena típica, absolutamente fiel ao modelo épico, o tópico da
aproximação erótica forçada: “Sobre uma rocha se sentava então, contemplando aquele
mar que também banhava Ítaca, lá tão bravio, aqui tão sereno, e pensava, e gemia, até
que as águas e os caminhos se cobriam de sombra, e ele recolhia à gruta para dormir,
sem desejo, com a Deusa que o desejava!..” (p. 377); “E ao herói, que recebera dos Reis
da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo engordar na ociosidade duma
ilha mais lânguida que uma cesta de rosas, e estender as mãos amolecidas para as igua‑
rias abundantes, e, quando águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo
com uma Deusa que, sem cessar, o desejava.” (p. 378); “Em breve os caminhos da ilha se
cobriram de sombras. E sobre os velos preciosos do leito, ao fundo da gruta, Ulisses, sem
desejo, e a deusa, que o desejava, gozaram o doce amor, e depois o doce sono.” (p. 386).
166  Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários

irrepreensível serviço das suas aias e intendentas 38, não consegue preencher
os anseios humanos do seu coração, nem apagar a saudade e a inquietação pela
esposa e pelo filho que deixou há muito em Ítaca. Contrariamente ao modelo
homérico, porém, o herói queirosiano reflecte, no segredo do seu coração, que,
mais intensa que essa saudade afectiva, se sobrepõe a da glória conquistada em
combate, e das excitantes vagabundagens, ao sabor do imprevisto 39. E enquanto
ele desfia, desalentado, o rol das alegrias perdidas, apercebe‑se de um inusitado
brilho que risca a serenidade dos céus, e suspeita, com perspicácia, da inespe‑
rada presença de um deus.
A segunda sequência centra na visita de Mercúrio, superiormente decidida
por Zeus, a sua unidade de acção. Reproduzindo o modelo homérico, a uma
primeira cena descritiva dos atributos divinos, sucede‑se a descrição das bele‑
zas inexcedíveis de Ogígia (mais uma vez detalhadas com excepcional riqueza
de pormenores), e da ninfa, que atrai 40 as atenções do mensageiro dos deuses,

38
Contrariamente ao modelo homérico, que parece sublinhar intencionalmente a
excepcional solidão da deusa, Eça transporta para a ilha Ogígia, possivelmente do modelo
análogo do episódio de Circe, as figuras servis das ninfas, e nelas coloca um irónico acento
de concupiscência: de algum modo, a presença das ninfas, reincidentemente de seio a
arfar, muito agitadas primeiro perante a presença masculina de Mercúrio, e depois diante
da musculada actividade de Ulisses, completamente absorto no trabalho que lhe permitirá
libertar‑se da obsessiva atenção de Calipso, parece deslocar para o universo feminino a
ideia fundamental da involuntária e dolorosa solidão que Homero concentrara na persona‑
gem de Ulisses. Essa notação a reflectirá ainda jocosamente o comentário de Mercúrio, ao
despedir‑se da deusa: “De resto!” acrescentou ”a tua ilha, oh, deusa, fica no caminho das
naves ousadas que cortam as ondas. Em breve talvez outro herói robusto, tendo ofendido
os Imortais, aportará à tua doce praia, abraçado a uma quilha... Acende um facho claro,
de noite, nas rochas altas!” (p. 382). A impressão que ressalta desta leitura é a de que os
deuses queirosianos são muito mais vivos, e permeáveis às emoções humanas, do que os
hieráticos deuses homéricos, quase sempre mais impassíveis.
39
De novo a enunciação discursiva dos gloriosos estratagemas (o da entrada em
Tróia disfarçado de mendigo, contado em Homero por Helena em  240 sqq., e o do cavalo
de madeira, contado por Menelau em  271 sqq.), e das aventuras fabulosas sucedidas
após a partida de Tróia (Polifemo, Cila e Caríbdis, as Sereias, que Homero coloca à respon‑
sabilidade de Ulisses na longa narrativa aos Feaces, nos livros ) é sintetizada aqui atra‑
vés do monólogo interior da personagem, que lhe confere maior intensidade dramática.
40
A personagem de Hermes surge na narrativa queirosiana enriquecida por um
traço de picante brejeirice, que não ecoa do modelo homérico do mesmo episódio, em ; é
provável que o autor a tenha talhado a partir da exposição aédica do episódio dos Amores
de Ares e Afrodite ( 266-367), onde a personagem, provocada pelos comparsas divinos,
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  167

cantando e tecendo. Quando Mercúrio se apresenta à entrada da gruta, e a


deusa, movida pela natural omnisciência divina 41, o acolhe com os justos dons
da hospitalidade, o deus apressa‑se a comunicar‑lhe as disposições olímpicas:
não está destinado a um herói como Ulisses, o mais subtil e desgraçado dos
príncipes que combateram em Tróia, permanecer na ociosidade imortal do
seu leito; ele deve ser restituído a Ítaca, e à esposa ardilosa 42. Embora agastada
pela disposição invejosa dos deuses, que assim lhe retiram aquele a quem ela
salvou, e a quem dispensou sem reservas o seu amor e a garantia de imortalidade
e de juventude eterna, a deusa compromete‑se a liberar Ulisses, ensinando‑lhe
o modo de construir uma jangada. Depois de Mercúrio se afastar – sugerindo
graciosamente que talvez não tarde a aparecer ali, arrastado pela ira dos deuses,
outro herói – Calipso procura Ulisses no extremo da praia, e anuncia‑lhe que é
determinação irrevogável dos deuses superiores a sua partida 43. À semelhança
do modelo homérico, o herói exprime a sua manifesta desconfiança, e ela, mara‑
vilhando‑se 44 de tanta prudência, apressa‑se a serenar‑lhe as dúvidas, e a mode‑
rar a sua ansiedade em partir, recolhendo com ele à gruta.
Ao longo da terceira cena, durante a refeição, a deusa tenta convencer o
herói das vantagens de permanecer em Ogígia, e fruir, com os dons imortais e
perfeitos que lhe poderia providenciar, de uma imortalidade sem cuidados, se
não desejasse rever a esposa mortal, tão inferior, na pátria longínqua. Mas Ulisses
rebate a argumentação, reconhecendo que, precisamente pelas suas limitações

não se escusa de manifestar a sua exaltada lascívia  333-343). De notar, no entanto,


que Homero tem regularmente o cuidado de desviar da sua responsabilidade enunciativa
para os discursos das personagens (neste caso, o aedo Demódoco) estes comportamentos
menos exemplares.
41
Que Homero enuncia unicamente no episódio análogo, em  78-80.
42
A versão queirosiana do mito desloca para o discurso de Hermes a alusão ao artifí‑
cio da teia, utilizado por Penélope para retardar as núpcias exigidas pela turba criminosa
dos pretendentes, e objecto, no texto da Odisseia, de três reelaborações discursivas, uma
da autoria de Antínoo, na Assembleia dos Itacenses, em  89-110 outra da própria Pené‑
lope ao hóspede desconhecido (Ulisses metamorfoseado em mendigo, em  138-156), e a
última pela imagem de Anfimedonte, no Hades, a Agamémnon (em  128-46). No episódio
homérico, a referência à esposa de Ulisses, feita ora pela deusa, que a ela se compara,
ora pelo herói, que aceita a justiça da comparação, não passa de uma alusão anónima.
43
A deusa homérica não é tão explícita nem autêntica na informação.
44
O discurso de Calipso parece ecoar, mais do que o correspondente homérico, a boa
disposição de Atena, em  290 sqq., ao testemunhar a refinada astúcia do herói, a tentar
enganá‑la, em Ítaca.
168  Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários

mortais, a esposa se lhe torna tão apetecida, enquanto a perfeição divina que a
marca, a ela e à paisagem idílica de Ogígia, inutiliza todas as suas virtudes e inca‑
pacidades (pp. 385‑86) 45:
O facundo Ulisses acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como
costumava na Assembléia dos Reis, à sombra das altas popas, diante dos muros
de Tróia, disse:
– Oh, deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope
te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu serás eterna‑
mente bela e moça, enquanto os deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhe‑
cerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude e
dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra
através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as lumi‑
nosas certezas. Mas, oh, deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de
frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congénere!
Considera como é penoso que, nesta mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho
das pastagens e a fruta dos vergéis, enquanto tu ao meu lado, pela inefável supe‑
rioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a ambrósia
divina! Em oito anos, oh, deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria;
nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impa‑
ciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio... E assim
trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade
não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfre‑
gue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua
inteligência de deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade: e, durante
o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te
contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento!
Oh, deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que,
como deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude
saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as
minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh, deusa, tu és impecá‑
vel: e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da
sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais:
“Foi culpa tua, mulher!”, erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso
sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os deuses me assaltem

45
O episódio detalha uma expansão queirosiana, sem correspondência no modelo
homérico, do tópico da recorrente insistência argumentativa de Calipso, rebatida sempre
sem hesitações pelo herói, que não cede à tentação da perfeição: quando, perante o entu‑
siasmo do herói pela arma que tem nas mãos, ela reincide na promessas de armas magní‑
ficas, Ulisses objecta que de nada valem as armas sem combates, ou sem homens que as
apreciem (p. 387). O episódio ecoa o da Ilíada em que, sensível aos rogos do filho Aquiles,
Tétis encomenda nova panóplia a Hefestos ( 65 sqq.).
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  169

no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e
repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame
dum amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o
lume se nutre dos ventos contrários!

Depois de mais uma vez partilharem a intimidade do leito, amanhece, e


Calipso guia o herói para a floresta, onde ele incansavelmente abate as árvores
seleccionadas e constrói, com a ajuda sempre solícita da deusa e das suas aias
agitadas, a embarcação.
Na quarta sequência narrativa, que corresponde ao início do quarto dia de
trabalhos, Ulisses dá por finda a jangada. Quase resignada à irreversibilidade da
partida, Calipso prodigaliza ao herói amorosos cuidados de despedida. Abrindo
um parêntesis de liberdade criativa, Eça esboça para a sua narrativa uma expan‑
são que não consta no modelo homérico, mas se configura como o desfecho
coerente da descrição psicológica das suas personagens. Calipso cede à tentação
de mais uma vez insistir, e pergunta se, a não ter ao longe uma esposa e um filho,
Ulisses continuaria inflexivelmente a desprezar os encantos imortais de que ali
goza. Pedindo‑lhe que se não escandalize, o herói reconhece com crueza que,
ainda assim partiria, porque precisamente a imutabilidade das coisas perfeitas
descorçoam o seu coração mortal, mais permeável à imperfeição. A deusa sorri
sem revolta, enquanto as ninfas se afadigam a dispor na superfície da jangada os
víveres para a viagem. Mas, alvoroçado, Ulisses estranha, e indigna‑se, denun‑
ciando a sua mesquinha cobiça: durante oito anos suportou a intimidade que ela
lhe impôs, e agora, à despedida, não irá ser compensado com os ricos presentes a
que tem direito? 46 Mais uma vez sem surpresa a deusa sorri, com sublime paciên-
cia, do descaramento do herói 47. E sem regatear, despede-o com magníficos
presentes, insistindo ainda que muitos pesares poderia ele evitar, se quisesse
permanecer no regaço do seu amor imortal. Contrariamente ao modelo homé‑
rico, em que Ulisses se resguarda da indignação da deusa, lembrando‑lhe a sua
proverbial capacidade de suportar a adversidade, o herói queirosiano, precipi‑
tando‑se na fuga, sublinha obstinadamente a certeza de que é da perfeição que
ele voluntária e ansiosamente se afasta.

46
A observação perturba pela insensibilidade e pela baixeza: o herói sugere com
notável indelicadeza que o convívio forçado com a deusa, equivalendo a um serviço pres‑
tado, corresponde naturalmente a um preço!
47
Mais uma vez se nota que o discurso de Calipso se aproxima mais do que Homero
atribui a Atena em  290 sqq, do que ao de Calipso em  182.
170  Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários

Distanciado já do modelo homérico, muito mais idealizado e ético, onde o


herói define como rumo, ou destino pessoal, o regresso à relação dual de um
matrimónio estruturado sobre o valor incontornável da fidelidade, e da parti‑
lha profunda de um ideal afectivo, a reinterpretação queirosiana do episódio
apresenta‑nos, por uma perspectiva algo sarcástica, um herói substancialmente
distinto. Individualista, astucioso e mesquinho, Ulisses já não anseia a todo
o custo rever‑se e recriar‑se na saudosa harmonia familiar, mas fundamenta a
sua humanidade na possibilidade de se reinventar na esfera aliciante da aven‑
tura, libertando‑se até das limitações de uma perfeição imutável, em que parece
anular‑se sobretudo o seu relativismo moral.

3. A versão Cíclica

Esta visão realista e algo desencantada que Eça apresenta, de um herói


desvirtuado pelas ignomínias humanas – o egoísmo, a cobiça, a falta de escrú‑
pulo, a perversão – não pode de alguma forma deixar de surpreender a quem
conhecer a personagem épica e a esfera idealista do mundo heróico homérico.
Serão, na verdade, um e o mesmo herói aqueles que nos propõem a Ilíada e a
Odisseia, por um lado, e A Perfeição, por outro?
A questão poderá dilucidar‑se se observarmos mais de perto, com cuidado e
olhar crítico, o modelo antigo. No tocante à figura de Ulisses, a Odisseia parece
já sugerir de forma velada, a par da luminosa imagem de isenção proposta desde
o início da narração pelas palavras lisonjeiras de Atena, no Concílio dos Deuses,
alguns pormenores de interpretação equívoca.
Sobressai em particular, pela relevância simbólica que assume, a alusão à
hereditariedade indigna do herói, avançada na digressão relativa à sua cicatriz
( 392 sqq.): na sequência da cena do banho que no palácio lhe é providenciado,
Ulisses é reconhecido pela ama Euricleia através de uma cicatriz que tinha desde
a adolescência; a pretexto do esclarecimento das circunstâncias em que o jovem
foi ferido, o poeta expõe então, numa longa digressão, a história do seu nasci‑
mento, e da escolha do seu nome, atribuída à responsabilidade do avô materno.
A referência nominal de Ulisses, enquadrada então num episódio de claro funda‑
mento simbólico 48, privilegia curiosamente o vínculo hereditário da personagem

48
Cfr. supra, nota 4. A abordagem etimológica documentada em  407 sqq. justi‑
fica a idoneidade mimética da designação do herói (a  : constituindo
um precioso indício da “atitude metalinguística” do poeta, ela associa explicitamente
o antropónimo, a pretexto da vivência determinante do avô, ao particípio 
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  171

com o avô materno, Autólico 49, conhecido – e odiado – pela sua índole astuciosa
e enganadora. Essa hereditariedade marcante surgirá confirmada de forma
quase profética não só no incidente da cicatriz (que acabará por definir sempre
perante os outros a sua identidade oculta), mas também ao longo de toda a acção
épica (particularmente a documentada na Odisseia), na duplicidade de carácter
do herói, ora marcado de excepcional versatilidade, ora destinado a incompará‑
vel sofrimento.
Apesar do cuidado demonstrado por Homero a sobrevoar de forma discreta
a indelicadeza do tema, também a insistência com que se documenta a ligação de
Ulisses a múltiplas figuras femininas 50 parece indiciar um tópico mítico de indis‑
cutível relevância e antiguidade. De igual modo se tem suspeitado, em alguns
quadrantes da crítica, da conduta hesitante de Penélope face aos Pretendentes

(possivelmente associado às raízes de dois verbos conotados, ao longo do poema, com o


nome : ora , sofrer, lamentar‑se, em  55,  160 E e  142 E 174, ora
, odiar ou ser odiado, em  62,  340 e 423, e  275). O nome (aliás, segundo
 , epónimo, isto é, dado em função de uma particularidade qualquer, pela qual deve
ser reconhecido quem o usa), apresentando‑se, então, em simultâneo, como a tributa‑
ção profética de um peculiar destino, confirmar‑se‑á como a metáfora de identidade do
seu portador, enquanto homem do ódio e da dor – no contexto imediato da digressão,
através do sinal físico da cicatriz, e no âmbito mais vasto de toda a narrativa épica, pela
inexcedível experiência de desventuras protagonizadas pelo herói. Ulisses, apresentado
desde os versos iniciais da proposição como o homem astuto que muito sofreu, simbo‑
lizará ao longo da Odisseia o ser humano, que arquitecta obstinadamente o seu próprio
destino, e fundamenta sem hesitação a sua identidade através não só de uma consciência
arguta, mas também de uma irredutível capacidade de sofrer, que o levam a superar todas
as forças estranhas e todas as vicissitudes inesperadas.
49
Veja‑se como, para nomear o avô inescrupuloso, o poeta arranjou um termo moti‑
vado (nome falante) de forte carga pejorativa, “o lobo em pessoa”. A tradição detalhava
as suas iniquidades para além da breve alusão de  395-96: enquanto na Ilíada ( 266)
se afirma que ele roubou um elmo precioso a Amíntor, Hesíodo (fr. 67b M.W.) lembra que
ele “apagava” todos os objectos em que tocava; o Etym. Magn. (s.v ) e Tzetzes,
Comm. ad Lyc. 344 representam‑no como ladrão de cavalos e de gado; a fundamentação
para esta tendência estaria no facto de ser não assalariado de Hermes, como se sugere em
 396-97, mas seu filho (Hesíodo, fr. 64 M.W., Eustátio ad Od.  416).
50
Esfera temática em que se inscrevem não só o episódio de Calipso, que agora
analisamos, mas também o de Circe, duplicado de uma mesma componente de aventura
amorosa adúltera, além do de Nausícaa, que corresponde a uma versão mais delicada, e
possivelmente também os das Sereias, e de Cila e Caríbdis, as variantes monstruosas do
mesmo tópico.
172  Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários

(ora rejeitando aberta ou dissimuladamente as suas aproximações, ora apresen‑


tando‑se, cheia de coquetismo, entre eles, para lhes propor uma prova que deci‑
dirá aquele que a desposará, precisamente quando se multiplicam à sua volta os
sinais de que o marido por quem tão longamente esperou está a chegar). Sinal
de ambiguidade parece também configurar‑se nas palavras do filho, muitas vezes
cheias de inoportuna agressividade contra ela, que poderiam ser meros sinais
de um destempero de revolta adolescente, se não se conciliassem, de alguma
forma obscura, com a sua surpreendente observação, diante de um estranho que
acaba de franquear as suas portas, sobre a eventualidade de não ser verdadeiro
o testemunho de Penélope quando afirma que Ulisses foi o seu pai ( 214 sqq.).
Acresce ainda, a quem suspeita da conduta da rainha, o facto de Ulisses não lhe
ter revelado a sua verdadeira identidade, como fez com todos os aliados insus‑
peitos, antes de chacinar todos os pretendentes 51.
Como se poderão, pois, interpretar estes indícios inexplicados?
De vários pormenores, apenas sugeridos em alusões breves, não circuns‑
tanciadas, dos Poemas Homéricos, podemos, na verdade, deduzir que os mitos
épicos, tradicionalmente transmitidos por gerações de poetas, eram reconheci‑
dos pelo auditório épico num enquadramento muito mais abrangente.
O tema da excepcional rapidez de Aquiles, por exemplo – uma provável
herança mítica tradicional, poeticamente documentada em Píndaro (Nem.
3.51) – surge apenas discretamente aludido por Homero, através da utilização
regular, na Ilíada, dos títulos epitéticos  v   v�
  v e . Contrariando, no entanto, a descrição
tradicional, implícita no formulário epitético utilizado, esta excepcional capaci‑
dade do herói não chega a comprovar‑se na diegese da Ilíada: depois de desistir
do protesto contra Agamémnon, e de voltar ao campo de batalha para vingar a
morte do amigo Pátroclo, o herói precisa, na verdade, da ajuda sobrenatural de
Atena para alcançar Heitor, na longa corrida em que ambos rodeiam as muralhas
de Tróia por três vezes! Do mesmo modo, o poeta renuncia a uma abordagem
explícita do tema mítico, amplamente conhecido e provavelmente muito antigo,
da invulnerabilidade do herói, conquistada por meio de rituais mágicos por sua

51
Autores posteriores (Sérvio, Pausânias, Apolodoro, Tzetzes, Cícero) transmitem a
versão obscena de que Penélope não teria feito, durante a ausência do marido, o esforço de
imaculada fidelidade que Homero lhe atribui, e se teria envolvido com o seu pretendente
predilecto, Anfínomo de Dulíquio, ou com todos eles; destas perversas ligações orgiás-
ticas teria nascido o monstruoso Pã, e se teria originado o ódio com que Ulisses a enviou
para casa do pai, em Mantineia, depois de a obrigar a prostituir‑se publicamente para o
compensar do património desbaratado durante o longo assédio dos seus amantes.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  173

divina mãe; as únicas alusões obscuras da Ilíada ao facto prendem‑se com a


extraordinária ansiedade que a sua presença (ou a de Pátroclo, envergando a sua
armadura), causa nos corajosos troianos, sempre dispostos a afrontar o inimigo.
Homero sobrevoa de forma discreta o tema, uma vez que um Aquiles invulne‑
rável seria, na verdade, um perfeito absurdo no contexto do seu poema, onde
qualquer herói fundamenta a sua excelência pela capacidade de afrontar, com
incondicional coragem, as forças hostis do mundo, e a inevitabilidade trágica da
morte. Mesmo os deuses bem‑aventurados têm de aceitar com revolta a irrever‑
sível mortalidade dos seus filhos humanos, como sucede a Zeus, pai de Sarpédon,
morto por Pátroclo (). Também o sombrio desespero de Tétis, mãe de Aquiles,
a socorrer o filho que há‑de morrer vencido por Páris – e que decide regressar
ao campo de batalha consciente do seu destino – é neste ponto sintomático; o
episódio, não explicitamente narrado na Ilíada, é no entanto utilizado como um
tema narrativo de crucial relevância ao longo de todo o poema. O próprio Aqui‑
les explicita em  115 sqq. a consciência da inevitabilidade da morte lembrando
que nem Héracles, o filho dilecto de Zeus, conseguiu escapar à morte. A profun‑
didade trágica da Ilíada fundamenta‑se precisamente na sombria lucidez com
que os heróis encaram a sua própria limitação humana – e é precisamente essa
lucidez trágica que comove o inflexível Aquiles, ao reconhecer na fragilidade de
Príamo, tragicamente privado dos mais nobres dos seus filhos, um reflexo do
mesmo inelutável destino do seu pobre pai mortal. Mesmo na menos austera
Odisseia (onde Menelau é isentado da morte por “ser genro de Zeus”,  561),
vemos como Aquiles lamenta amargamente no Hades a sua mortalidade consu‑
mada ( 488 sqq.).
Uma análise ainda que superficial dos Poemas do Ciclo Épico não nos dará
senão a confirmação de que, por trás dessa desconfortável impressão de equí‑
voco, se esconde frequentemente algum pormenor obsceno do mito que o espí‑
rito depurador de Homero omitiu. O Ciclo Épico corresponde a um reportório
lendário tradicional, anterior na concepção à formulação poética de Homero,
conservado e transmitido oralmente por uma legião anónima de aedos e rapso‑
dos; escrito e organizado num corpus com toda a certeza depois da Ilíada e da
Odisseia, ele compreende uma vasta colecção de antigos poemas narrativos, que
abordavam poeticamente a gesta dos antigos heróis Gregos, envolvidos nos dois
principais eventos bélicos da Idade Heróica, as guerras de Tebas e de Tróia. Este
corpus poético, ordenado numa sucessão cronológica – de modo a formar uma
série narrativa contínua, desde as origens do mundo (inaugurado pelas núpcias
de Urano e Geia) até ao final da Idade Heróica (marcada pela morte de Ulisses) –
parece obedecer ao projecto de apresentar, enquanto complemento das epopeias
maiores, as homéricas, uma espécie de sistematização e fixação do património
174  Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários

lendário grego supra‑regional. Depois da Titanomachia, uma espécie de prelúdio


divino, surgiam as três epopeias do Ciclo Tebano, a Oedipodia, a Thebais e os
Epigoni. Apresentava‑se por fim o Ciclo Troiano, onde se desenvolviam poetica‑
mente todos os feitos relativos à guerra de Tróia e ao regresso dos heróis omitidos
por Homero; este Ciclo Troiano compreendia os Cypria (com os antecedentes
da guerra, e os sucessos relativos aos primeiros nove anos de combate, que ante‑
cediam o início da Ilíada), a Aethiopis (que narrava a continuação da guerra, até
à morte de Aquiles), a Ilias Parva (com a narrativa dos funerais de Aquiles e da
disputa pelas suas armas, e do estratagema do cavalo de madeira), a Iliupersis
(sobre o episódio de Laocoonte, a destruição de Ílion e a partida das tropas aqueias
vencedoras), os Nostoi (com a narrativa do regresso dos heróis à pátria, que ante‑
cedia a Odisseia, narrativa particularizada do  de Ulisses), e a Telegonia
(com o tratamento poético das últimas aventuras e morte de Ulisses).
A partir da análise do reduzido corpus de versos originais 52, e do mais volu‑
moso manancial de informações posteriores acerca das composições cíclicas, os
especialistas 53 evidenciaram, na verdade, o claro contraste de estilo e mundivi‑
dências que distingue os poemas do Ciclo Épico dos Poemas Homéricos.
Sobressai antes de mais a evidência de que se multiplicam nos Poemas Cícli‑
cos valores e motivos míticos, com certeza muito antigos – nomeadamente no
âmbito do fantástico, do miraculoso, e do romanesco – que não acham por regra
acolhimento em Homero (em particular na Ilíada): quando não pode evitá‑los, o
poeta, com uma soberana austeridade, tende a racionalizá‑los, ou a envolvê‑los
num véu de discreta ambiguidade 54.

52
Desta pujante produção literária restaram, como ruínas de um mundo desapa‑
recido, pouquíssimos fragmentos: subsistem actualmente apenas cerca de 120 versos,
acrescidos de notícias indirectas, particularmente nos muito pormenorizados resumos
de Proclo. Em virtude desta exiguidade, é particularmente difícil – e porventura injusto –
avaliar a sua qualidade literária. Uma análise superficial dos fragmentos permite deduzir
que o propósito, denunciado pelos eruditos antigos, de apresentar uma complementação
sistematizada dos conteúdos míticos dos Poemas Homéricos – se fundamentou a nível
estilístico na reutilização do formulário tradicional de composição épica privilegiado por
Homero. Uma análise mais atenta dos fragmentos revela, porém, que, a par dessas analo‑
gias estilísticas superficiais, os poemas do Ciclo Épico manifestam uma mundividência
profundamente distinta da proposta pelos Poemas Homéricos.
53
Vd. em particular Jasper Griffin, 2001.
54
Veja‑se, por exemplo, o cuidado homérico em evitar o tema da responsabilidade
de Clitemnestra no homicídio de Agamémnon (em , e ), e em expor explicitamente a
conduta leviana e traiçoeira de Helena frente aos aqueus, em Tróia, em  244 sqq.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  175

Em evidente contraste com a galeria heróica dos Poemas Homéricos – cons‑


tituída por seres mortais, falíveis, e tragicamente conscientes dos seus próprios
limites frente ao outro e ao destino inevitável – as personagens do Ciclo Épico,
frequentemente figuras exóticas (como as Amazonas e o negro Mémnon, na
Aethiopis), muitas vezes retraídas por um ser divino à morte 55 (como Mémnon,
e Aquiles, salvos pelas respectivas mães, Aurora e Tétis, na Aethiopis), possuem
muitas vezes fantásticas capacidades extra‑humanas (veja‑se a excepcional rapi‑
dez no andar, ou a natural invulnerabilidade que Aquiles parece partilhar ali com
vários outros heróis). Elas são ainda amiúde detentoras de determinados objec‑
tos mágicos com que enfrentam sem dignidade o inimigo: assim parece justifi‑
car‑se, na verdade, a sobrenatural importância que assume na Épica Cíclica a
armadura de Aquiles, cuja visão inibe os inimigos, e cuja posse justifica, entre os
aliados aqueus, actos do mais profundo desequilíbrio (veja‑se a disputa de Aqui‑
les e Ájax, e o suicídio deste último, narrados na Aethiopis e na Ilias Parva).
A questão da impenetrabilidade da armadura de Aquiles, provavelmente inscrita
num tema mítico tradicional de grande fortuna narrativa, o das dádivas mági‑
cas apresentadas a Peleu no dia das suas núpcias (cf. Cypria), foi tratada por
Homero de uma forma profundamente discreta e racional. O pretexto usado por
Pátroclo para envergar a armadura do Pelida ( 40 sqq.) é ali, na verdade, apenas
o de afugentar os troianos com a convicção do regresso de Aquiles ao campo
de batalha. Cedendo à desesperada argumentação, Aquiles recomenda expres‑
samente ao amigo que, depois de atingido esse propósito, regresse ao acampa‑
mento, sem tomar para si as honras militares que lhe não pertencem – e sem se
expor a riscos desnecessários. Enquanto Pátroclo se reveste das armas (descri‑
tas apenas como belas, robustas, assustadoras e preciosas,  132 sqq.), e parte
para o combate, Aquiles invoca o favor dos deuses, para que o amigo regresse
são e salvo às naus, com as suas armas. Nenhum dos dois discursos do herói
parece compatibilizar‑se com a crença nos poderes mágicos de uma armadura
impenetrável. No entanto, o tema da impenetrabilidade da armadura parece ter

55
J. Griffin nota (2001: 372) que é verdadeiramente crucial a distinção de mundivi‑
dências revelada pelos Poemas Homéricos e pelas composições do Ciclo Épico no tocante
à morte e ao envelhecimento: contrariamente ao Ciclo Épico, na Ilíada a vida humana
– em fundamental contraste com a vida dos deuses, que gozam da imortalidade e da eterna
juventude – é sempre definida pela dupla inevitabilidade do envelhecimento e da morte,
processos naturais que jamais podem ser sobrenaturalmente revertidos; é precisamente
esta lúcida, e austera consciência da finitude humana que torna a Ilíada profundamente
realista e trágica, e que aprofunda consequentemente a excelência do heroísmo humano,
e a sublimidade do homem perante os deuses.
176  Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários

motivado as excepcionais circunstâncias, nunca explicitamente justificadas por


Homero, de Pátroclo ter de ser inicialmente despojado por Apolo da armadura
de Aquiles ( 793‑804), para ser vencido por Heitor, e de Aquiles, para vencer
Heitor, ter posteriormente de procurar uma parte do seu corpo não coberta pela
sua própria armadura ( 321 sqq.) – que o príncipe troiano utilizava orgulhosa‑
mente como incomparável despojo de guerra.
Por fim, e de forma ainda mais chocante, as personagens cíclicas surgem
muitas vezes retratadas sem pudor, com as suas perversões, os seus excessos
libidinosos, as suas covardias, traições, e condutas de uma crueldade mons-tru‑
osa: nos Cypria, por exemplo, o jovem Aquiles tenta fugir ao dever, esconden‑
do‑se entre mulheres na corte de Licomedes, mas a sua própria luxúria acaba
por denunciá‑lo e obrigá‑lo a partir; para se salvar da morte, e se vingar do irmão
Deífobo, o príncipe Heleno, filho de Príamo, fornece na Ilioupersis aos aqueus os
meios de destruírem a nação troiana; na Thebais, o blasfemo Capaneu é atingido
pelo violento raio de Zeus, e Tideu provoca a irreversível ira de Atena ao devorar,
já moribundo, o cérebro do oponente que o feriu em combate; também o covarde
Anfiarau, traído pela ambição da mulher, impõe ao filho a terrível responsabili‑
dade de manchar a vida e a consciência com o matricídio. Os sacrifícios humanos
(de Ifigénia nos Cypria, de Polixena na Ilioupersis) atravessam o imaginário
cíclico, e os homicídios, fundamentados por princípios culpados distintos do
sentido heróico do dever, obrigam frequentemente à expiação (como a de Aqui‑
les na Aethiopis, após a morte do compatriota Tersites).
Também no âmbito do pendor romanesco dos Poemas Cíclicos, se inscre‑
vem algumas das complexas histórias de relações amorosas entre seres divinos
e mortais (dentre as quais sobressaía a de Tétis e Peleu, narrada nos Cypria), e
o requinte de pormenor, muitas vezes de gosto duvidoso, com que se detalha a
vida sexual dos heróis: o passado amoroso de Aquiles, na corte do rei Licomedes,
em Ciros, era devassado nos Cypria, e as suas sucessivas ligações a várias figuras
femininas – sempre tocadas como por um halo de desgraça à sua proximidade –
eram denunciadas ao longo de vários dos poemas épicos (Ifigénia e Briseida nos
Cypria, Pentesileia na Aethiopis, Políxena na Ilioupersis).
Chamam também a atenção, nascidos do mesmo gosto de elaboração narra‑
tiva, alguns excessos passionais da vida das personagens mortais, envolvidas em
múltiplos casamentos, e dotadas de sinuosas linhas de descendentes: Helena,
por exemplo, pretendida por inúmeros Aqueus, e casada com Menelau, é arras‑
tada para uma complexa sucessão de relações adúlteras – todas cumuladas com
o nascimento de um filho – com os priamidas Páris, Deífobo e Heleno, até regres‑
sar compulsivamente ao marido, que pensa até ao último minuto viver apenas
para a matar (Ilias Parva, Ilioupersis, Nosti).
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  177

É precisamente neste enquadramento de ignomínias, e relativismo moral


desmedido, que, nos Cypria, se documenta como, apesar do juramento solene
feito a Menelau, Ulisses tenta evitar a incursão militar a Tróia, imposta por um
grave atentado à honra do soberano lacedemónio, com um subterfúgio que
deprime a sua dignidade heróica: tentando passar por louco perante a embaixada
que vem recrutá‑lo para a guerra, ele canta a despropósito e semeia sal na terra
irregularmente lavrada por uma insólita parelha constituída por um burro e um
boi. Palamedes, desconfiado de tão burlesca cena, obriga‑o a demonstrar cons-
ciência, colocando diante da charrua o pequeno Telémaco; desmascarado na sua
astúcia, o herói não descansa enquanto não executa com a ajuda de Diomedes
um projecto ignóbil de vingança, que levará à morte o talentoso filho de Náuplio.
Também na Ilias Parva se detalhava como a perfídia de Ulisses, a alcançar uma
vitória injustíssima na disputa das armas de Aquiles, levará Ájax, tão violenta‑
mente indignado a ponto de enlouquecer, a atacar os compatriotas, e a suici‑
dar‑se de seguida; o poema prosseguia narrando como Diomedes e Ulisses, cegos
de cobiça, tentavam reciprocamente matar‑se à traição para sozinhos virem a
conquistar a glória do roubo do Paládio.
Neste pormenor, a Telegonia fundamentava a sua excepcional trama diegé‑
tica na leviana promiscuidade com que, afastado a contragosto da jovem esposa
Penélope e do filho recém‑nascido Telémaco, Ulisses multiplicava durante a sua
ausência as aventuras extra‑conjugais, e o número de filhos, com Calipso, mãe de
Latino, e Circe, mãe de Telégono; para cúmulo de cinismo, após o regresso tardio
a Ítaca, e o reencontro com a família legítima, ele desposava ainda Calídice, rainha
dos Tesprotos, e com ela gerava Polipetes. O final novelesco da Telegonia, propi‑
ciado pela insólita proliferação de intrigas, propunha ao auditório, após a morte
de Ulisses, o casamento incestuoso de Penélope com o enteado Telégono, e de
Circe com o também enteado Telémaco – de modo que os dois irmãos assumiam
simultaneamente o aberrante vínculo de padrasto e enteado um do outro, e as
duas mulheres de Ulisses o de nora e sogra uma da outra, além de cunhadas dos
respectivos filhos, e madrastas dos maridos! A austeridade dos núcleos familia‑
res homéricos atrai, por flagrante oposição, a atenção dos especialistas (cf. Grif‑
fin 2001: 372 e ss.): tal como Helena tem apenas de Menelau, o marido legítimo,
uma filha, Hermíone, também Ulisses tem apenas de Penélope um único filho
amado, Telémaco, e Andrómaca de Heitor o pequeno Astíanax, cuja orfandade
os pais tanto receiam. Mais uma vez esta diferença acaba por traduzir na diegese
uma fundamental carga significativa: a relação hedonista e culpada de Helena
e Páris não poderá nunca comparar‑se nem com a profundidade emocional da
união de Heitor e Andrómaca, nem sequer com o seu próprio matrimónio legí‑
timo com Menelau, esboçado na Odisseia () dentro da discretíssima moldura de
178  Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários

uma melancólica reconciliação. A fragilidade de uma linha genealógica baseada


num herdeiro único marca, por sua vez, de particulares tons trágicos a solidão de
Laertes, de Ulisses e de Telémaco, frente à criminosa violência dos opositores.
Parece, pois, evidente que, sob uma superficial similaridade de estilo, as
composições do Ciclo Épico traduziriam concepções de vida, padrões de heroi‑
cidade, e atitudes abissalmente distintas das homéricas. Os Poemas Homéricos
oferecem, pelo contrário, como referência humana original, e permanentemente
válida, uma mundividência muito mais austera, realista, e trágica, onde os heróis
se definem no respeito consistente por um excepcional sentido de dignidade e
dever.
Não sendo um criador original ex nihilo, e servindo‑se de um reportório
tradicional que fornecia a todos os aedos e rapsodos os mesmos temas consagra‑
dos, Homero soube depurá‑los por um crivo muito próprio, e nimbá‑los de uma
luz única. Por isso o Ulisses homérico – e a sua nostalgia, a sua fé inabalável no
valor da fidelidade conjugal e da união familiar, e a sua certeza indefectível no
rumo que o herói traça com a ajuda dos deuses superiores – é radicalmente dife‑
rente do Ulisses dos Poemas Cíclicos – e das suas ambições, das suas perfídias,
das suas baixezas, dos seus desvios. Como o é também, embora servindo‑lhe de
modelo mítico, radicalmente distinto do Ulisses queirosiano, que, na busca posi‑
tivista da sua própria identidade, assume a orgulhosa consciência da sua morta‑
lidade, e por ela rejeita a perfeição com que lhe acenam as promessas divinas.

Referências

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Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos  179

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