Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Abstract
This essay deals with the mythical episode of the involuntary stay of Odysseus in the
Ogygia Island. Taking a comparative perspective, a parallel is drawn between the Homeric
model given by the Odyssey’s V canto – much more purified and ethic, wherein the
hero manages to escape from that “deviation” to the fundamental “course” of his inner
path, which is returning to the love of his family – and the sarcastic version of the Eça de
Queirós’ story The Perfection – where Odysseus fights for his right to return to his mortal
imperfection. In connection with this subject, it is discussed the traditional version of the
same myth, introduced by the poems of The Epic Cycle, which present the hero’s extra‑
marital affair (with Calypso) as one of many adulterous conquests of an anti‑hero, devoid
of moral principles.
Keywords: Greek Mithology; Greek Literature; Epic Poetry; Portuguese Literature; Eça de
Queirós.
1. O modelo homérico
junto das muralhas de Tróia, às mãos do príncipe troiano; Aquiles regressa então
ao combate, exclusivamente para vingar a morte do amigo, aniquilando Heitor;
os dois últimos livros do poema narram os funerais de Pátroclo, e a devolução do
cadáver vilipendiado de Heitor a seu infeliz pai, Príamo.
Já a Odisseia, que adopta como protagonista o rei de Ítaca, e da sua referên‑
cia onomástica retira o título, tem por tema fundamental o atribulado retorno do
herói à sua pátria e ao amor da família.
Ambas as narrativas começam num ponto em que a peripécia fundamen‑
tal (o cerco de Tróia / o regresso de Ulisses) se encontra à beira do desenlace,
mas a Odisseia apresenta, do ponto de vista da estrutura narrativa, muito maior
complexidade que a Ilíada 1: abarcando vários núcleos diegéticos, estruturados
em duas secções fundamentais, o poema divide‑se claramente em duas partes;
enquanto a primeira (livros I‑XII) mostra Ulisses fora de Ítaca 2, a segunda
(livros XIII‑XXIV) detalha a sua acção em território pátrio 3.
Em função dessa excepcional complexidade narrativa, o poeta tem de desen‑
cadear na Odisseia em simultâneo uma solução para um impasse em dois pontos
distintos da geografia mítica, ora em Ítaca, onde o herói se configura na memória
dos outros como uma dolorosa ausência, ora em Ogígia, onde ele surge como
uma presença impotente para a acção. A solução poética passa, por isso, pela
inscrição superior do destino do herói num projecto de justiça divina, validado
pelo Concílio dos deuses olímpicos.
1
Contrariamente aos analíticos, que o supõem de outro criador, os críticos unitários
reconhecem que este agradável canto de paz, dotado de maior complexidade narrativa,
mas menor paixão, manifesta, pela sua concepção ética, pela sua plasticidade e organização
diegética, e pela sua serenidade estilística, ser uma obra da maturidade artística do poeta.
2
Num primeiro conjunto de quatro livros, a Telemaquia, descrevem‑se as acções de
Telémaco em busca de notícias acerca do pai; nos livros V‑VIII acompanhamos os movi‑
mentos de Ulisses, a libertar‑se do amor possessivo de Calipso e a aportar ao território
feace; nos livros IX‑XII, por meio de uma analepse discursiva, Ulisses narra aos hospedei‑
ros Feaces as suas aventuras fantásticas, desde que abandonou o território saqueado de
Tróia, e se perdeu num universo exótico e misterioso.
3
Nos livros XIII‑XVI Ulisses faz a sua primeira investida no território de Ítaca, nas
instalações privadas do seu servo Eumeu, e apresenta‑se ao seu fundamental aliado, o
filho Telémaco; nos livros XVII‑XX introduz‑se disfarçado no ambiente familiar do palácio
e experimenta as iniquidades dos pretendentes; nos livros XXI‑XXIV, depois da fulcral
peripécia do reconhecimento, o herói executa no palácio contra os pretendentes crimi‑
nosos a vingança que lhe permitirá repor a ordem e resgatar dos ultrajes sofridos a sua
própria vida e a da família.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 153
4
As ocorrências do nome de Ulisses documentam‑se nos Poemas Homéricos, nas
suas variantes casuais, acompanhadas de epítetos genéricos ou distintivos. Incluem‑se
na primeira categoria todos aqueles que podem genericamente atribuir‑se a várias perso‑
nagens ou realidades épicas, por se adequarem à tradução de valores comuns partilha-
dos por todas elas (
.
Reserva‑se a inscrição no segundo grupo àqueles epítetos que, traduzindo uma vivên‑
cia peculiar ou um traço essencial do carácter da personagem, apenas a ela podem ser
tributados Retirando as notações patronímicas ( e de origem
), que não representam traços relevantes de caracterização, podemos deduzir
no herói, pela sobreposição dos semas dos vários epítetos distintivos, uma personalidade
multiforme. Moldada pela integração dinâmica de duas forças, ela concretiza‑se em dois
traços característicos preponderantes: de um lado, a extrema prudência, feita da habi‑
lidade inigualável de, lançando mão a todos os recursos, prever, conceber e executar nos
seus mínimos pormenores um projecto e superar com sagacidade todas as dificuldades
( )
de outro, a extrema paciência, força de ânimo irredutível, nascida da capacidade ilimi‑
tada de aceitação do sofrimento ( . Ambos os traços
de caracterização parecem, aliás, ter sido cuidadosa e intencionalmente associados pelo
poeta, na Odisseia, ao nome do herói. Com efeito, a escolha do antropónimo, que regular‑
mente manifesta, no texto épico, a propensão mimética da cultura arcaica para a busca da
verdade onomástica (vd. G. Lombardo 1993), revela‑se duplamente significativa no caso
particular de Ulisses, como nos revelam as sugestivas pistas de interpretação que o poeta
nos lega na digressão da cicatriz, do livro . Por um lado, a abordagem diegética do episó‑
dio de individualização pelo nome do recém‑nascido sugere a aceitação de um critério
arcaico, segundo o qual, na escolha onomástica, se deve preferir uma referência explícita
ou a uma característica ou a um acontecimento da vida do pai, da mãe, ou de um antepas‑
sado (um avô) da criança. A referência nominal de Ulisses começa, portanto, por privi‑
legiar curiosamente o vínculo hereditário da personagem com o avô materno, Autólico,
conhecido – e odiado – pela sua índole astuciosa e enganadora. É precisamente essa
hereditariedade marcante, confirmada a posteriori, em toda a acção épica (particular‑
mente a documentada na Odisseia) na versatilidade de carácter do herói, que emprestará
ao episódio de escolha do nome um fundamento simbólico.
154 Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários
5
A narrativa da morte criminosa de Agamémnon, promovida pela esposa adúltera
Clitemnestra e seu amante Egisto, e consequente vingança do filho Orestes – reincide na
Odisseia como um tema obsidiante: depois de um breve resumo da autoria do narrador
( 29-31), ele surge quase no início da narração, num discurso circunstanciado de Zeus
ilustrando a leviandade dos homens, incapazes de reconhecer as suas próprias culpas
( ); assumindo particular relevância ao longo da Telemaquia, é aqui reiterada‑
mente apontado como exemplo a Telémaco, o jovem filho confrontado dentro de casa
com as pretensões criminosas dos concorrentes do pai (por Atena/Mentes, em 298-
-300 por Atena/Mentor, em 234-35; por Nestor, em 193-98, 255-61, e 303-10), e
surge ainda referenciado por Telémaco a Nestor , em 247-50; e por Proteu, o Velho do
Mar, a Menelau, em 512-37. Além disso, o poeta compraz‑se em reformulá‑lo noutros
passos posteriores (em 385-464, e 19 sqq., pelo narrador; em 192-202, pela alma de
Agamémnon à de Anfimedonte), sublinhando, como tema fundamental da Odisseia, um
evidente confronto entre os dois núcleos familiares, a partir dos paralelismos evidentes
entre os papeis de Agamémnon /Ulisses, Clitemnestra /Penélope, Egisto /os pretendentes,
e Orestes / Telémaco.
6
A conotação simbólica implícita no sintagma “umbigo do mar” ( 50) parece repre‑
sentar a ilha como um ponto limite, uma espécie de fronteira do nada que o herói tem de
afrontar para regressar a si mesmo e ao seu próprio contexto humano
7
O nome do jovem, Telémaco (“que combate à distância”), já registado em duas
ocorrências da Ilíada ( 260 e 354) em que Ulisses se apresenta orgulhosamente como
, parece reflectir a habilidade do pai no manejo do arco.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 155
Telemaquia 8. Durante este prelúdio narrativo – que o poeta usa habilmente não
só para emancipar o jovem 9, mas também para apresentar, por meio das suas
viagens e indagações pessoais, o retorno de cada um dos heróis que combateram
em Tróia – Ulisses, constrangido a um estatuto ambíguo, surge apenas reitera‑
damente lembrado pelo narrador, e sobretudo pelas personagens que o conhe‑
ceram (o filho, a esposa, os companheiros, os vizinhos, e os concorrentes) como
uma imagem, um fantasma de um mortal desaparecido do mundo dos vivos 10.
Só no momento de viragem, configurado pelo episódio de Calipso, no livro ,
Ulisses nos será apresentado como verdadeira personagem actante, retornada à
condição de ser vivo, para cumprir, dentro do enquadramento do seu próprio e
inalienável sofrimento, um particular destino heróico. Depois de se retomar, por
um mecanismo habitual da narrativa épica 11, o episódio do Concílio dos Deuses
( 1-42), com que se iniciara a narrativa no livro , Atena insiste indignada na narra‑
ção dos sofrimentos de Ulisses, retido à força numa ilha, longe da pátria, onde a famí‑
lia sofre, sem defesa, o assédio de inimigos, e lembra a responsabilidade dos deuses
8
Para a discussão circunstanciada da especificidade da Telemaquia, e da possibi‑
lidade, defendida pela crítica analítica, e combatida pela unitária, de ela representar um
poema autónomo, ou uma interpolação tardia, vd. a introdução de Stephanie West, in:
A. Heubeck e S. West 1981, p. LXXII sqq.
9
A transformação psicológica de Telémaco, que se manifesta embrionariamente
desde o primeiro encontro com Atena, e se reflecte na sua inesperada determinação de
reorganizar os papéis sociais no palácio (dando ordens à mãe, em 345-61, aos pretenden‑
tes, em 367-68, e em 299-321, aos criados, em 337-81; e protestando a sua indignação
perante a Assembleia dos Itacenses, em 1-221), atingirá o ponto alto durante as viagens
a Pilos e à Lacedemónia; aí ele aprofunda o vínculo de admiração que o liga ao pai ausente,
e conquista a coragem necessária para agir; além disso, o seu regresso, em , além de lhe
conceder a oportunidade de conquistar nobre fama, segundo o projecto inicial de Atena
( 95, 422), prova aos arrogantes pretendentes que o seu protesto público não foi um
desabafo destemperado de um adolescente desorientado, mas a manifestação explícita de
uma determinação adulta e coerente.
10
Significativa é, a esse título, a resposta de Telémaco à questão do hóspede (Atena
metamorfoseada em Mentes, rei dos Táfios, em 235 sqq.) sobre a irregularidade vivida
no palácio: foi vontade dos deuses, que decidiram tornar Ulisses o mais invisível,
obscuro, e ignorado dos homens: /
/ / �
/ 241-43).
11
O mecanismo de suspensão diegética, pela qual se narra posteriormente uma de
duas acções ocorridas em simultâneo.
156 Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários
12
Nesse mesmo discurso, o pai dos deuses não deixa de apontar os próximos pade‑
cimentos do herói antes de aportar às costas de Esquéria (v. 33). Curiosamente, a apre‑
sentação do herói recorrerá, desde as primeiras referências do livro, conotada com os
epítetos do âmbito temático do sofrimento ( em 31; e , em 171,
354, 386, e 1: a primeira verdadeira aparição de Ulisses na diegese primária da obra
coincide precisamente com a sua nomeação como feita pelo narrador
( 171 - ). O poeta pretenderia com certeza
iniciar a narração do seu processo de gradual aproximação ao lar e à família a partir de um
momento de extremo infortúnio, sublinhando assim um dos aspectos que a saga heróica e
as aportações da tradição haviam delegado na sua complexa personalidade – a constância
de ânimo.
13
Note‑se que, em nítido contraste com todas as cenas descritivas de figuras femini‑
nas de relevo nos Poemas Homéricos no seu enquadramento domiciliário (sejam rainhas
e princesas humanas, ou divindades superiores), reincidentemente acompanhadas ou
das aias, ou de outras figuras pares, o episódio de Calipso parece sublinhar intencional‑
mente a absoluta solidão da deusa. Na verdade, exceptuando a alusão singular do serviço
das servas, no verso 199 – que parece configurar uma adaptação incoerente de uma cena
típica como a análoga do episódio de Circe – todo o episódio evidencia esse doloroso isola‑
mento, simbolizado pelas recorrentes descrições da ilha, localizada a distância extrema
( 49 sqq., 55 sqq., 244-47, 448 sqq., e sqq.), e referido de forma explícita pela
sintomática observação de Hermes a Calipso, ao reconhecer que nem ele nem ninguém
procuraria voluntariamente aquele excepcional isolamento ( 99-102). Vd. supra, nota 6.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 157
determinaram não morrer longe daqueles que ama, mas rever parentes e
amigos, o palácio e a pátria ( 105-15). Reclamando embora do cruel ciúme
dos deuses, sempre prontos a obstar às relações amorosas das deusas com seres
humanos, Calipso aceita submeter‑se contrafeita aos desígnios impositivos de
Zeus, e desobrigar o herói a quem prometera com o seu amor a imortalidade e
a juventude eterna: à falta de outros meios que possa dispensar‑lhe (embarcação
ou tripulantes), oferecer‑lhe‑á conselhos. Cumprida a sua missão, o mensageiro
dos deuses regressa rapidamente ao Olimpo. Calipso procura o herói, que conti‑
nuamente desabafa junto do mar infecundo o seu profundo desalento 14, e acon‑
selha‑o a não se mortificar mais, porque de boa‑vontade 15 o deixará partir, sobre
uma jangada que ele mesmo construa, e onde recolha os generosos dons que ela
lhe não regateará. Sobressaltado, Ulisses suspeita da súbita mutação dos destinos
anunciada, mas a deusa assegura‑lhe, por um juramento sagrado, a honestidade
das suas intenções, e a compaixão do seu coração. Regressados ao aconchego da
gruta, e no enquadramento da sua sempre generosa hospitalidade, Calipso apre‑
senta os definitivos argumentos de persuasão ao herói astuto: respeitará a sua
vontade, qualquer que ela seja, mas assegura‑lhe que se não retornasse à pátria, e
à esposa por quem suspira, ele viveria mais confortavelmente em Ogígia, gozando
da imortalidade sem sofrimento, ao lado de uma criatura de superiores qualidades.
Sem negar a inferioridade da esposa, o herói admite que ainda assim anseia regres‑
sar à pátria, e que por esse projecto afrontará de coração paciente todas as agruras
que lhe estiverem destinadas. Sobrevém a noite, e deusa e herói partilham mais
uma vez da intimidade forçada 16. Ao amanhecer, Calipso conduz o herói ao bosque,
14
O poeta explicita a angústia do herói, incapaz de achar encanto na vida, forçado
a dormir todas as noites com a deusa, que já não lhe agradava, e torturando de dia o
cora-ção com a saudade:… �
/
( 152-55).
15
Sem referir explicitamente a visita de Hermes, que condicionou irrevogavelmente
as suas primitivas disposições de o reter na ilha e dele fazer um marido imortal e isento da
velhice, a ninfa sugere apenas, de forma vaga, que essa parece ser a vontade superior dos
deuses, muito mais poderosos que ela:
169-70
16
A estrutura da cena típica de aproximação amorosa, referida em vários passos dos
Poemas Homéricos, implica um conjunto de esquemas repetidos (e.g., o enquadramento
temporal ocorre entre o anoitecer e o amanhecer; a iniciativa prende‑se com a deslocação
dos dois amantes, de mútuo acordo, para a cama; o espaço corresponde a um local isolado,
como aqui a gruta de Calipso). O procedimento narrativo tende também a repetir‑se: o
158 Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários
poeta não detalha a aproximação, sugere‑a por uma paráfrase poética (“gozaram os praze‑
res do amor”), ou por uma sugestiva alusão simbólica; já as cenas de aproximações eróti‑
cas dos deuses, como a de Afrodite e Ares na Odisseia, e de Zeus e Hera na Ilíada, surgem
por regra mais detalhadas, e dando menos espaço à imaginação do auditório. A esta cena
típica de aproximação amorosa associam‑se sequencialmente outras cenas típicas (as que
antecedem o sono, de hospitalidade, refeição e banho, e as que o encerram, como o
vestir‑se ou armar‑se); a sequência nem sempre se sucede com as mesmas variações, e
a criatividade do poeta manifesta‑se na sua capacidade de adaptar a um novo contexto,
recriando‑a, uma estrutura eficiente, às vezes com uma ponta de humor (como na cena de
reencontro dos esposos Ulisses e Penélope, que, depois de um dia cheio de emoções, são
presenteados pela generosidade da deusa Atena com um excepcional prolongar da noite
– facto que nós vemos hoje, com a nossa visão científica e moderna, como um tempo de
dimensão psicológica. Associada à figura de Ulisses, a cena típica de aproximação amorosa
a figuras femininas recorre em apenas cinco passos da Odisseia: um com Calipso, em
(traduzindo as sequências elementares); três com Circe (em 333-47, a variação
narrativa prende‑se com o exercício diplomático de negociação de interesses; em 478-
-541, destituída do elemento erótico, o herói desabafa a sua angústia ante a predição da
deusa; e em 31-142 com nova predição de futuras aventuras); e uma com Penélope (em
241-348; com componente erótica e de comunicação).
17
A segunda parte do livro detalha a viagem ( 262-81), a tempestade suscitada pela
rancorosa obstinação de Poseídon ( 282-332), a intervenção solícita de Ino Leucoteia
( 333-64), o naufrágio ( 365-87, e o perigoso aportar à rochosa costa da ilha Esquéria,
território mágico dos Feaces, onde nu, vencido por um cansaço extremo, Ulisses tem de
buscar ainda na floresta um refúgio contra os perigos que a noite oculta ( 388-493). Desta
forma inicia o poeta o percurso diegético do herói, a partir de uma situação de prostração
sem par – que prepara antiteticamente o seu sucesso futuro.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 159
18
Ulisses inicia a sua apresentação aos Feaces, em 240 sqq., justificando a sua
excepcional presença em Esquéria, perante as suspeitas maternais de Arete: arrastado
pela vontade impositiva dos deuses à ilha Ogígia, depois de um terrível naufrágio, ali viveu
sete anos prisioneiro das atenções da deusa, até que ela o enviou sobre uma jangada, e,
mais uma vez maltratado pelo violento capricho de Poséidon, foi arrastado num naufrágio
à ilha Esquéria; seguindo o esquema épico da construção em anel, será de novo o episódio
de Calipso que encerrará, em 448 sqq., a narrativa das suas doze desventuras fabulo‑
sas, desde que abandonou vitorioso o território de Tróia. De notar que a narrativa em
primeira pessoa aos Feaces, os únicos dentre todas as criaturas fabulosas com que Ulisses
contactou nas suas viagens que conservam traços de alguma humanidade (idealizada), é
um artifício literário notável, que permite introduzir no desenvolvimento diegético tensão
dramática acrescida, e simultaneamente concede ao poeta épico – vocacionado por inspi‑
ração divina a contar os grandes acontecimentos heróicos, no enquadramento memorá‑
vel dos tempos antigos – o necessário distanciamento deste universo exótico, fantástico,
mágico e misterioso, em que peregrina errante, à margem da racionalidade, o seu herói.
19
Acrescem outras narrativas, como a de Proteu a Menelau, em 555 sqq.,
20
As séries de aventuras/errâncias de Ulisses são anunciadas por Circe ao herói
490, 37-142) e recontadas por ele aos Feaces () e à esposa (); as aventuras, obede‑
cendo a uma estrutura sofisticada, são doze, e parte da crítica associou‑as às doze divisões
do zoodíaco; todas sublinham, de alguma forma, o poder da iniciativa e da coragem huma‑
nas face às forças negativas que se lhe opõem. Os episódios análogos das Sereias, de Cila
e Caríbdis, e, com explícita componente amorosa, de Circe, Calipso e Nausícaa surgem
como desvios na história do regresso do herói a casa e ao amor conjugal.
160 Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários
para a narrativa tradicional das aventuras de Ulisses. É certo que há várias outras
referências poéticas a Calipso, para além da homérica, mas não chegam a deta‑
lhar pormenores miticamente relevantes, e não há associada à sua figura nenhum
culto documentado: parecem ser desenvolvimentos posteriores, e mesmo assim
muito ténues, as referências do Catálogo das Oceânides (Theog. 359, onde se
refere uma graciosa Calipso ) e do fr. hesiódico 150 (30‑31)
MW, (que alude à união da desejável Calipso com Hermes, donde nasceram os
Cefalénios). Também o Hino a Deméter fala apenas, numa referência descon‑
textualizada, da desejável Calipso (422‑23). O final da Theogonia, que trata
das várias relações de deusas com mortais, oferece já um primeiro sinal do
destino extra‑homérico, e, por isso mesmo, extra‑conjugal, da relação da ninfa
e do herói, quando anuncia que, unida a ele em amor, Calipso, divina entre
as deusas, deu a Ulisses por filhos Nausítoo e Nausínoo (Theog. 1017‑18) 21.
Já do ponto de vista simbólico, o episódio merece um comentário mais
extenso. Ele configura, na verdade, um desvio involuntário 22 ao projecto de
regresso a casa que o herói acalenta e explicita constantemente, e que não só o
narrador, como várias das personagens (Atena, Nestor, Menelau, Helena) reco‑
nhecem como o seu destino pessoal. Do ponto de vista da intriga, o episódio
permite actualizar uma das linhas temáticas fundamentais da Odisseia, que é a
da união matrimonial, estruturada sobre o princípio da sintonia afectiva e inte‑
lectual dos esposos, e, por isso, da necessária e natural fidelidade do seu vínculo
afectivo.
21
Os nomes das personagens, etimologicamente relacionados com o termo “nau”
– tal como o de várias personagens feaces, incluindo Nausítoo, o pai de Alcínoo – apropria‑
dos para designar o filho de um herói navegador e de uma Oceânide, surgem destituídos de
qualquer fundamentação mítica, e parecem justificar‑se apenas como duplicações simétri‑
cas dos nomes dos filhos de Circe. Já a referência hesiódica (Theog. 1011‑1016) à figura
de Circe merece um comentário distinto: quando o poeta conta que da relação de Ulisses
e Circe nasceram Ágrio e Latino, e ainda (num verso claramente acrescentado) o jovem
Telégono, que reinou sobre todos os Tirrenos, traz à colação personagens significativas do
ponto de vista da fundamentação mítica; o episódio, amplamente desenvolvido a partir
do século VI a.C. e da Telegonia, foi também referido por outros poetas, como Álcman.
22
Assim o explicita o herói nas suas narrativas em primeira pessoa ( 244 sqq; 29 sqq.;
447 sqq. e o reforça constantemente o narrador (ou veiculando em discurso indirecto
as palavras do herói, como em 333 sqq; ou fazendo as suas próprias sínteses, em
13-15 154-55) e as outras personagens (Atena em 55, 199, 13 sqq., Proteu, em
555 sqq.; Hermes, em 105, etc).
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 161
23
Que por ele começa a conceber uma paixonite adolescente, inspirada pelos desíg‑
nios de Atena, empenhada em garantir, no contexto hostil da ilha Esquéria, um meca‑
nismo de protecção para o seu predilecto.
24
Cf. 180-185:
25
O poeta sublinha essa distinção logo a partir da atribuição dos epítetos patroními‑
cos aos heróis: Ulisses é, na verdade, filho de Laertes, que comprara a escrava Euricleia,
mas a respeitara sempre para não infligir à esposa legítima o desaire de uma humilhação
( 429), enquanto Agamémnon e Menelau, filhos de Atreu, surgem miticamente vincula-
dos ao crime paterno hereditário que atrai com uma maldição o castigo divino. O início
do poema e da narração ( 13-15 coloca a questão da duplicidade afectiva do herói,
que deseja regressar a casa e à esposa, mas é retido contra vontade por uma ninfa, que
o deseja por marido; o primeiro exemplo do discurso dos deuses, no Concílio olímpico,
é o de Egisto, o adúltero, assassinado por Orestes, filho de Agamémnon e Clitemenes‑
tra; os deuses lembram, a propósito deste exemplo paradigmático de adultério, a respon‑
sabilidade dos homens sobre o seu próprio destino iníquo (a leviandade humana e seus
falsos juízos desresponsabilizadores) e Atena contrapõe, como significativo, o exemplo
do seu predilecto, Ulisses, retido à força, apesar da sua isenção ética; deste exemplo
se parte pois para o caso concreto de Ulisses, cuja esposa é duramente assediada por
162 Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários
pretendentes iníquos; este paralelo vai ser constantemente referido no poema, por Atena/
Mentes/Mentor, e por Nestor, que incentivam Telémaco a reagir à semelhança de Orestes
( 295, 193 sqq 235 sqq) e por Menelau, que opõe a conduta criminosa da cunhada
Clitemnesta com a fiel de Penélope ( 91 sqq). De notar ainda a sintomática formulação
simétrica do adultério involuntário de Ulisses ( 154-55:
/ e o voluntário de Clitemnestra
( 272:
26
O vínculo afectivo dos esposos denota‑se recorrentemente quer pela descrição de
Penélope, que se apresenta como um duplo do marido no carácter astucioso, prudente, e
de refinada desconfiança (ver, além do seu epíteto recorrente, “a prudente Penélope”, o
testemunho de Antínoo, 115 sqq “pensando no seu espírito tudo o que Atena lhe conce‑
deu / o conhecimento de belos lavores, bom senso e astúcias / como nunca se ouviu falar
em mulheres antigas / destas nenhuma pensava de modo semelhante a Penélope”), quer
pela alusão aos seus constantes estratagemas (particularmente o da teia) para iludir o
assédio criminoso dos pretendentes.
27
Que se traduz, segundo as palavras de Ulisses, em 180-185 (vd. nota 24), no
dano causado aos inimigos e na alegria de quem os estima, coroada de fama exem‑
plar entre os vindouros; os mesmos tópicos surgem claramente configurados, no final do
poema, no castigo dos criminosos pretendentes e seus aliados, e na reestruturação da
felicidade doméstica, no enquadramento abrangente de quantos continuaram a estimar e
a prestar apoio à família do herói ausente.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 163
2. A reinterpretação queirosiana
28
Importa referir, como nota marginal, o facto reconhecido, através das investiga‑
ções de Santos Alves (1983), de Eça de Queirós ter tido acesso ao texto homérico através
de uma tradução francesa (de Leconte de Lisle) e de outras criações artísticas que tomam
por intertexto o mesmo legado clássico (Tennyson, Dante); este não é, no entanto, um
trabalho de investigação de fontes, mas apenas uma abordagem que permite surpreender
como um mito clássico específico, reconhecido a partir de uma ou várias referências poéti‑
cas da Antiguidade, é tratado num autor da contemporaneidade.
29
Que tão profundamente marca a biografia de várias das suas personagens princi‑
pais (Carlos da Maia em Os Maias, Fradique Mendes em A Correspondência de Fradi‑
que Mendes, Gonçalo Mendes Ramires em A Ilustre Casa de Ramires, e Jacinto em
A Cidade e as Serras).
30
Note‑se que Eça usa para os nomes das personagens divinas de Hermes e Zeus as
versões latinas Mercúrio e Júpiter. Já Eos não merece do autor a referência onomástica
latina recorrente de Aurora (pp. 382, 384). Todas as informações de paginação do conto
tomam por referência a edição Contos, Obras Completas de Eça de Queirós, vol. 9,
Resomnia Editores, 1988.
164 Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários
31
Saído muito gradualmente da sombra, de um estatuto fantasmagórico de não‑exis‑
tência, no espaço mágico de uma ilha algures, no umbigo do mar, indetectável pela expe‑
riência e pela vontade, ainda que premente, dos homens, onde só se chega por intermédio
dos deuses, e mesmo assim, obrigados pela obediência à vontade impositiva de Zeus ( 99,
103-04 e 146).
32
E não consegue deixar de comparar com profunda nostalgia como até aquele mar
que também banhava Ítaca, era lá tão desafiadoramente bravio, e ali tão maçadora‑
mente sereno (p. 377).
33
Tal como Homero, Eça sublinha desde o início da sua narrativa os dois traços
preponderantes da personalidade do herói (a inigualável prudência, e a ilimitada paci‑
ên-cia ou capacidade de aceitação do sofrimento), mas compraz‑se em multiplicar com
requinte os pormenores à volta deste núcleo significativo fundamental (particularmente
no domínio da descrição física, de uma riqueza sinestésica regularmente excepcional).
34
No modelo homérico, a descrição da ilha era feita através da focalização do narra‑
dor, que acompanha, omnisciente, o surpreendido deleite de Hermes, em visita à ilha.
Também as alusões às glórias passadas em território troiano ficam, no episódio, a cargo
do discurso directo da personagem divina, que as enuncia a Calipso como argumento para
justificar a irregularidade do anonimato forçado de herói de tanto prestígio.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 165
noso ar, mais doce que o vinho mais doce, todo repassado pelo fino aroma dos
prados de violetas. No silêncio, embebido de calor afável, eram duma harmo‑
nia mais embaladora os murmúrios de arroios e fontes, o arrulhar das pombas
voando dos ciprestes aos plátanos e o lento rolar e quebrar da onda mansa sobre
a areia macia. E nesta inefável paz e beleza imortal, o subtil Ulisses, com os olhos
perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia, revolvendo o queixume do
seu coração... (p. 375)
35
E cronologicamente desordenadas, como costuma suceder às lembranças humanas.
36
Em Homero, semelhante desabafo ocorre no início do naufrágio que sucede à
partida de Ogígia ( )
37
Recorre, como uma cena típica, absolutamente fiel ao modelo épico, o tópico da
aproximação erótica forçada: “Sobre uma rocha se sentava então, contemplando aquele
mar que também banhava Ítaca, lá tão bravio, aqui tão sereno, e pensava, e gemia, até
que as águas e os caminhos se cobriam de sombra, e ele recolhia à gruta para dormir,
sem desejo, com a Deusa que o desejava!..” (p. 377); “E ao herói, que recebera dos Reis
da Grécia as armas de Aquiles, cabia por destino amargo engordar na ociosidade duma
ilha mais lânguida que uma cesta de rosas, e estender as mãos amolecidas para as igua‑
rias abundantes, e, quando águas e caminhos se cobriam de sombra, dormir sem desejo
com uma Deusa que, sem cessar, o desejava.” (p. 378); “Em breve os caminhos da ilha se
cobriram de sombras. E sobre os velos preciosos do leito, ao fundo da gruta, Ulisses, sem
desejo, e a deusa, que o desejava, gozaram o doce amor, e depois o doce sono.” (p. 386).
166 Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários
irrepreensível serviço das suas aias e intendentas 38, não consegue preencher
os anseios humanos do seu coração, nem apagar a saudade e a inquietação pela
esposa e pelo filho que deixou há muito em Ítaca. Contrariamente ao modelo
homérico, porém, o herói queirosiano reflecte, no segredo do seu coração, que,
mais intensa que essa saudade afectiva, se sobrepõe a da glória conquistada em
combate, e das excitantes vagabundagens, ao sabor do imprevisto 39. E enquanto
ele desfia, desalentado, o rol das alegrias perdidas, apercebe‑se de um inusitado
brilho que risca a serenidade dos céus, e suspeita, com perspicácia, da inespe‑
rada presença de um deus.
A segunda sequência centra na visita de Mercúrio, superiormente decidida
por Zeus, a sua unidade de acção. Reproduzindo o modelo homérico, a uma
primeira cena descritiva dos atributos divinos, sucede‑se a descrição das bele‑
zas inexcedíveis de Ogígia (mais uma vez detalhadas com excepcional riqueza
de pormenores), e da ninfa, que atrai 40 as atenções do mensageiro dos deuses,
38
Contrariamente ao modelo homérico, que parece sublinhar intencionalmente a
excepcional solidão da deusa, Eça transporta para a ilha Ogígia, possivelmente do modelo
análogo do episódio de Circe, as figuras servis das ninfas, e nelas coloca um irónico acento
de concupiscência: de algum modo, a presença das ninfas, reincidentemente de seio a
arfar, muito agitadas primeiro perante a presença masculina de Mercúrio, e depois diante
da musculada actividade de Ulisses, completamente absorto no trabalho que lhe permitirá
libertar‑se da obsessiva atenção de Calipso, parece deslocar para o universo feminino a
ideia fundamental da involuntária e dolorosa solidão que Homero concentrara na persona‑
gem de Ulisses. Essa notação a reflectirá ainda jocosamente o comentário de Mercúrio, ao
despedir‑se da deusa: “De resto!” acrescentou ”a tua ilha, oh, deusa, fica no caminho das
naves ousadas que cortam as ondas. Em breve talvez outro herói robusto, tendo ofendido
os Imortais, aportará à tua doce praia, abraçado a uma quilha... Acende um facho claro,
de noite, nas rochas altas!” (p. 382). A impressão que ressalta desta leitura é a de que os
deuses queirosianos são muito mais vivos, e permeáveis às emoções humanas, do que os
hieráticos deuses homéricos, quase sempre mais impassíveis.
39
De novo a enunciação discursiva dos gloriosos estratagemas (o da entrada em
Tróia disfarçado de mendigo, contado em Homero por Helena em 240 sqq., e o do cavalo
de madeira, contado por Menelau em 271 sqq.), e das aventuras fabulosas sucedidas
após a partida de Tróia (Polifemo, Cila e Caríbdis, as Sereias, que Homero coloca à respon‑
sabilidade de Ulisses na longa narrativa aos Feaces, nos livros ) é sintetizada aqui atra‑
vés do monólogo interior da personagem, que lhe confere maior intensidade dramática.
40
A personagem de Hermes surge na narrativa queirosiana enriquecida por um
traço de picante brejeirice, que não ecoa do modelo homérico do mesmo episódio, em ; é
provável que o autor a tenha talhado a partir da exposição aédica do episódio dos Amores
de Ares e Afrodite ( 266-367), onde a personagem, provocada pelos comparsas divinos,
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 167
mortais, a esposa se lhe torna tão apetecida, enquanto a perfeição divina que a
marca, a ela e à paisagem idílica de Ogígia, inutiliza todas as suas virtudes e inca‑
pacidades (pp. 385‑86) 45:
O facundo Ulisses acariciou a barba rude. Depois, erguendo o braço, como
costumava na Assembléia dos Reis, à sombra das altas popas, diante dos muros
de Tróia, disse:
– Oh, deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope
te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu serás eterna‑
mente bela e moça, enquanto os deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhe‑
cerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude e
dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra
através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as lumi‑
nosas certezas. Mas, oh, deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de
frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congénere!
Considera como é penoso que, nesta mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho
das pastagens e a fruta dos vergéis, enquanto tu ao meu lado, pela inefável supe‑
rioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a ambrósia
divina! Em oito anos, oh, deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria;
nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impa‑
ciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio... E assim
trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade
não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfre‑
gue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua
inteligência de deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade: e, durante
o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te
contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento!
Oh, deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que,
como deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude
saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as
minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh, deusa, tu és impecá‑
vel: e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da
sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais:
“Foi culpa tua, mulher!”, erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso
sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os deuses me assaltem
45
O episódio detalha uma expansão queirosiana, sem correspondência no modelo
homérico, do tópico da recorrente insistência argumentativa de Calipso, rebatida sempre
sem hesitações pelo herói, que não cede à tentação da perfeição: quando, perante o entu‑
siasmo do herói pela arma que tem nas mãos, ela reincide na promessas de armas magní‑
ficas, Ulisses objecta que de nada valem as armas sem combates, ou sem homens que as
apreciem (p. 387). O episódio ecoa o da Ilíada em que, sensível aos rogos do filho Aquiles,
Tétis encomenda nova panóplia a Hefestos ( 65 sqq.).
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 169
no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e
repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame
dum amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o
lume se nutre dos ventos contrários!
46
A observação perturba pela insensibilidade e pela baixeza: o herói sugere com
notável indelicadeza que o convívio forçado com a deusa, equivalendo a um serviço pres‑
tado, corresponde naturalmente a um preço!
47
Mais uma vez se nota que o discurso de Calipso se aproxima mais do que Homero
atribui a Atena em 290 sqq, do que ao de Calipso em 182.
170 Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários
3. A versão Cíclica
48
Cfr. supra, nota 4. A abordagem etimológica documentada em 407 sqq. justi‑
fica a idoneidade mimética da designação do herói (a : constituindo
um precioso indício da “atitude metalinguística” do poeta, ela associa explicitamente
o antropónimo, a pretexto da vivência determinante do avô, ao particípio
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 171
com o avô materno, Autólico 49, conhecido – e odiado – pela sua índole astuciosa
e enganadora. Essa hereditariedade marcante surgirá confirmada de forma
quase profética não só no incidente da cicatriz (que acabará por definir sempre
perante os outros a sua identidade oculta), mas também ao longo de toda a acção
épica (particularmente a documentada na Odisseia), na duplicidade de carácter
do herói, ora marcado de excepcional versatilidade, ora destinado a incompará‑
vel sofrimento.
Apesar do cuidado demonstrado por Homero a sobrevoar de forma discreta
a indelicadeza do tema, também a insistência com que se documenta a ligação de
Ulisses a múltiplas figuras femininas 50 parece indiciar um tópico mítico de indis‑
cutível relevância e antiguidade. De igual modo se tem suspeitado, em alguns
quadrantes da crítica, da conduta hesitante de Penélope face aos Pretendentes
51
Autores posteriores (Sérvio, Pausânias, Apolodoro, Tzetzes, Cícero) transmitem a
versão obscena de que Penélope não teria feito, durante a ausência do marido, o esforço de
imaculada fidelidade que Homero lhe atribui, e se teria envolvido com o seu pretendente
predilecto, Anfínomo de Dulíquio, ou com todos eles; destas perversas ligações orgiás-
ticas teria nascido o monstruoso Pã, e se teria originado o ódio com que Ulisses a enviou
para casa do pai, em Mantineia, depois de a obrigar a prostituir‑se publicamente para o
compensar do património desbaratado durante o longo assédio dos seus amantes.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 173
52
Desta pujante produção literária restaram, como ruínas de um mundo desapa‑
recido, pouquíssimos fragmentos: subsistem actualmente apenas cerca de 120 versos,
acrescidos de notícias indirectas, particularmente nos muito pormenorizados resumos
de Proclo. Em virtude desta exiguidade, é particularmente difícil – e porventura injusto –
avaliar a sua qualidade literária. Uma análise superficial dos fragmentos permite deduzir
que o propósito, denunciado pelos eruditos antigos, de apresentar uma complementação
sistematizada dos conteúdos míticos dos Poemas Homéricos – se fundamentou a nível
estilístico na reutilização do formulário tradicional de composição épica privilegiado por
Homero. Uma análise mais atenta dos fragmentos revela, porém, que, a par dessas analo‑
gias estilísticas superficiais, os poemas do Ciclo Épico manifestam uma mundividência
profundamente distinta da proposta pelos Poemas Homéricos.
53
Vd. em particular Jasper Griffin, 2001.
54
Veja‑se, por exemplo, o cuidado homérico em evitar o tema da responsabilidade
de Clitemnestra no homicídio de Agamémnon (em , e ), e em expor explicitamente a
conduta leviana e traiçoeira de Helena frente aos aqueus, em Tróia, em 244 sqq.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 175
55
J. Griffin nota (2001: 372) que é verdadeiramente crucial a distinção de mundivi‑
dências revelada pelos Poemas Homéricos e pelas composições do Ciclo Épico no tocante
à morte e ao envelhecimento: contrariamente ao Ciclo Épico, na Ilíada a vida humana
– em fundamental contraste com a vida dos deuses, que gozam da imortalidade e da eterna
juventude – é sempre definida pela dupla inevitabilidade do envelhecimento e da morte,
processos naturais que jamais podem ser sobrenaturalmente revertidos; é precisamente
esta lúcida, e austera consciência da finitude humana que torna a Ilíada profundamente
realista e trágica, e que aprofunda consequentemente a excelência do heroísmo humano,
e a sublimidade do homem perante os deuses.
176 Revista Portuguesa de Humanidades | Estudos Literários
Referências
Alves, M. Santos
1983 “O legado clássico em Eça de Queirós através da cultura francesa”. In: Les
rapports culturels et litéraires entre le Portugal et la France, Actes
du Colloque, Paris, 11‑16 Octobre 1982. Paris: Fondation Calouste
Gulbenkian/Centre Culturel Portugais, pp. 393‑410.
1996 “O mito de Ulisses ou a queda na História”. In AA.VV. Literatura Compa‑
rada: Os Novos Paradigmas. Porto: Associação Portuguesa de Literatura
Comparada, pp. 569‑74.
Griffin, Jasper
2001 “The Epic Cycle and the Uniqueness of Homer”. In: Cairns, Douglas L. (ed.).
Oxford Readings in Homer’s Iliad. Oxford.
Lombardo, Giovanni
1993 “Il nome di Odisseo e la orthotes antroponomastica in Omero”. Helikon.
Ulisses e Penélope: rumo e desvios cíclicos 179
Reis, Carlos
2003 “Eça de Queirós e o motivo do regresso”. In: Oliveira, Francisco de (coord.).
Penélope e Ulisses. Coimbra: APEC, pp.269‑282.
West, Stephanie
1981‑86 “Introduzione ai libri I‑IV”. Odissea. Milano: Fondazione Lorenzo Valla,
Arnoldo Mondadori Editore, pp. lxxi‑xcix. “Classici Greci e Latini”.