FURTADO, Danilo. Lestrigões Na Odisséia

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Universidade Federal de Minas Gerais

Seminário de Literaturas Clássicas e Medievais: Banhos e Banquetes na Odisséia


Professor: Teodoro Rennó Assunção
Aluno: Danilo de Albuquerque Furtado

Os Lestrigões no canto X da Odisséia

O objetivo do presente artigo é fazer alguns comentários gerais acerca do episódio

dos lestrigões no canto X da Odisséia de Homero. Apesar de se tratar de um episódio

bastante curto e resumido, compreendendo apenas 53 versos (Odisséia, X, 81-154), é

surpreendente o quão difícil é encontrar bibliografia específica relativa aos eventos aí

descritos. Afora comentários completos da Odisséia, como os de Heubeck (1989) e de

De Jong (2001), fomos capazes de encontrar, no decurso do levantamento bibliográfico

para esse artigo, poucos estudiosos que se debruçam sobre esse episódio em detalhes, e

mesmo os comentadores tendem (compreensivelmente, dada a relativa deficiência de

bibliografia) a ser relativamente econômicos em suas interpretações desses versos.

Curiosamente, mesmo quando esse episódio recebe de fato atenção,

frequentemente vemos ela ser mais voltada para a questão da geografia homérica da

Odisséia, se preocupando excepcionalmente com os primeiros seis versos (X, 80-86)1.

Estes se focam quase principalmente nos detalhes do nome Telépilos 2 (Τηλέπυλον. X,

82) e no verso 86, que descreve uma característica admitidamente notável acerca do

local onde habitam os lestrigões – lá “próximos são os caminhos da noite e do dia” 3

1
Heubeck (1989, p.47-48) cita algumas interpretações geográficas desses versos desde a antiguidade.
Mais recentemente, Marinatos (2001) e Nakassis (2004) ponderam tais elementos em suas tentativas de
descrever a cosmologia mitológica grega que estaria operando sobre as viagens fantásticas de Odisseu.
2
Por exemplo, tanto Nakassis (2004, p. 225) quanto Marinatos (2001, p.403) utilizam o termo para
embasar seus argumentos (e ver as respectivas notas de rodapé para discussão etimológica). Heubeck
(1989, p.48), por outro lado, observa a dificuldade de interpretação não só desse termo, como também da
relação sintática que existe na expressão Τηλέπυλον Λαιστρυγονίην (Od. X, 82).
3
As traduções da Odisséia são de Cristian Werner (2014), a não ser onde explicitamente indicado.
(ἐγγὺς γὰρ νυκτός τε καὶ ἤματός εἰσι κέλευθοι. X, 86) –, mas que não parece exercer

efeito nenhum sobre a narrativa que se desdobra enquanto Odisseu se encontra nela4.

Também nos comentários que se detém mais sobre o episódio normalmente

vemos pouca avaliação acerca de suas funções temáticas e de suas relações com outros

episódios. Reinhardt (1996, p.71) comenta, “[The adventure seems] to be there for no

other purpose than to explain the destruction of the fleet, with the exception of

Odysseus’ ship”, e Heubeck aceita essa leitura 5. De Jong (2001, p.253) amplia um

pouco a interpretação relacionando ao episódio de Éolo: “This adventure brings the

fulfilment of Aeolus’ imprecation (75): Odysseus suffers severe losses (eleven of his

twelve ships)”.

Enquanto podemos aceitar que tais interpretações são essencialmente corretas – é

inegável que o efeito mais sensível desse episódio é a perda da esquadra de Odisseu –

acreditamos que o episódio pode ser explorado mais profundamente, ponderando

algumas relações temáticas com outros pontos da Odisséia (em particular com o

encontro com o ciclope Polifemo6) e a intrigante interação entre as informações dadas e

as omitidas dentro de um episódio tão conciso. Com esse intuito, analisemos, então, a

aventura de Odisseu nas terras dos lestrigões.

O episódio se inicia com uma indicação nominal do lugar em que Odisseu e seus

companheiros chegam seis dias após saírem remando da ilha flutuante de Éolo (X, 78-

80). Oferece em seguida uma breve ponderação acerca dos hábitos sociais do povo que

4
De fato, as informações contidas nos versos 81-86 são tão secundárias para a trama que podemos até
mesmo questionar como Odisseu poderia saber a respeito delas para reparti-las.
5
“The importance of the episode is not so much its content as its function in the structure of the poem, as
Odysseus’ status is reduced”. (HEUBECK, 1989, p.47)
6
A omissão recorrente dos lestrigões em trabalhos acadêmicos que se debruçam sobre a famosa aventura
de Odisseu contra Polifemo é particularmente sentida – as fortes semelhanças entre os dois episódios
sugerem que se façam comparações entre eles. Vide página 15, especialmente notas 48 e 49.
aí habita, o que serve também para introduzir o elemento fantástico da ilha que

mencionamos anteriormente:

no sétimo chegamos à escarpada cidade de Lamos,


a lestrigônia Telépilos, onde pastor a pastor
chama, trazendo o rebanho, e o outro, levando, responde.
Lá o varão insone conquistaria dupla paga,
uma, apascentando bois, outra, vigiando brancas ovelhas:
próximos são os caminhos da noite e do dia.
(Odisséia, X, 81-86. Trad. Cristian Werner.)

É intrigante notar o quanto, desde o começo, os lestrigões serão identificados com

elementos de sociedade e de civilização. A primeira coisa que sabemos deles é que

habitam em uma ‘cidade’ ou ‘cidadela’ (πτολίεθρον). A menção que segue ao estilo de

vida pastoril já se apresenta um pouco mais ambígua, já que nos lembra de Polifemo

(IX, 187-189). Mas se Polifemo é apresentado como isolado dos outros ciclopes nesses

versos7 – e devemos notar que seu comportamento é dado como ainda mais antissocial

do que o dos outros ciclopes, que já “não cuidam uns dos outros” 8 (οὐδ᾽ ἀλλήλων

ἀλέγουσιν) (IX, 115) – os pastores lestrigões claramente se comunicam uns com os

outros rotineiramente. Também a ponderação que Odisseu faz acerca do “varão insone”

(ἄυπνος ἀνὴρ), apesar de hipotética, dá um indício do aspecto social deste povo: a ideia

de que se poderia ‘ganhar dois salários’ 9 (δοιοὺς ἐξήρατο μισθούς) sem dúvida remete a

um ambiente econômico construído em sociedade.

Apesar de não ser nosso foco principal, a questão da geografia que é

frequentemente ponderada nesses versos merece algum comentário, no interesse de se

apresentar uma análise o mais completa possível do episódio. Primeiramente,


7
“[...] aos outros [Cíclopes] não visitava [...]” (οὐδὲ μετ᾽ ἄλλους πωλεῖτ᾽. Od. IX, 188-189). Tradução
nossa.
8
Mas vide o problema da caracterização dos Cíclopes em Glenn (1978), Mondi (1983), e Hernández
(2000).
9
Cf., por exemplo, a opção de tradução que Frederico Lourenço utiliza para o verso (2011, p.280).
acreditamos que a tendência atual dos estudiosos, de pensar que as aventuras que

Odisseu narra para Alcínoo (afora o confronto com os cícones) se passam numa

geografia mítica, abandonando tentativas de identificar regiões reais que pudessem

corresponder às andanças do protagonista10, é muito mais proveitosa para o estudo da

obra e de seus significados.

No entanto, é importante lembrar que também as conexões feitas pensando nessa

geografia mítica devem ser, se possível, alicerçadas em vários pontos de análise. A

relação que frequentemente se faz entre os lestrigões e os cimérios 11 (XI, 11-19), por

exemplo, é interessante, mas se beneficiaria de mais embasamento, pois depende

unicamente de uma interpretação que, apesar de prevalente, poderia estar melhor

caracterizada. Esses dois povos são frequentemente contrastados porque se imagina que,

enquanto os cimérios vivem numa noite eterna, os lestrigões vivem sempre sob a luz do

sol.

Essa interpretação de dias eternos certamente dá conta da questão que se coloca

acerca do pastoreio revezado e constante que se faz dos bois e das ovelhas12, mas é

intrigante que se ignore tão sumariamente a menção explícita da presença da noite no

verso 8613 – em comparação com os cimérios, aos quais o sol é explicitamente negado14.

É possível reconciliar essas duas informações se concluirmos disso que se tratam de

dias mais longos que o normal, por exemplo, e podemos muito bem separar essa leitura

10
Cf. NAKASSIS (2004, p.215), com notas.
11
Cf. NAKASSIS (2004, p.224) e HEUBECK (1989, p.48).
12
Concordamos com Heubeck (1989, p.48), por exemplo, que “The other explanation offered in classical
times, that the Laestrygonians drove their cattle to pasture after nightfall because of an infestation of
gadflies […] cannot be reconciled with the text”.
13
I.e., se a terra dos lestrigões é onde os caminhos da noite e do dia são próximos, é difícil entender
porque deveríamos imaginar que a noite também não passa por lá. Pela comparação com o modo pelo
qual o poeta indica claramente que o sol não brilha sobre os Cimérios (vide nota seguinte), imaginaríamos
que providenciaria uma descrição igualmente explícita da negação completa da noite para os lestrigões
(ou da presença constante do sol para eles) – especialmente se estivesse concebendo-os como um par
oposto para estes mesmos Cimérios.
14
οὐδέ ποτ᾽ αὐτοὺς / ἠέλιος φαέθων καταδέρκεται ἀκτίνεσσιν (Od. XI, 15-16)
da (errônea) conclusão prévia de que isso caracterizaria, portanto, um verão nórdico 15.

Não pretendemos aqui afirmar que essa é, portanto, a leitura indubitavelmente certa do

trecho – apenas relembrar e reconhecer que o significado do trecho é de fato um tanto

obscuro para nós, e que, portanto, configura uma base fraca para o desenvolvimento de

uma teoria se não alicerçada em mais dados.

Superados os comentários geográficos, retornemos ao episódio dos lestrigões em

si. Depois dos versos que já analisamos, temos uma descrição minuciosa de um porto

(λιμήν) onde quase toda a esquadra de Odisseu irá aportar (X, 87-96). Trata-se de um

‘porto glorioso’ (λιμένα κλυτὸν – Od. X, 87), e uma descrição de um tal porto é

elemento recorrente na Odisséia – é assim tanto com o porto de Fórcis em Ítaca (XIII,

96-101) quanto com o porto da ilha das cabras (IX, 136-7; 147-8) e Heubeck (1989,

p.49) também aponta similaridades com o porto dos feácios (VI, 262-4). É interessante

notar que esse é o porto que encerra em si quase todas as características positivas

mencionadas nos outros: ele possui promontórios (ἀκταί) tal como o de Fórcis; uma

entrada estreita (ἀραιὴ εἴσοδός. X, 90) semelhante à dos feácios (lá descrito como λεπτὴ

εἰσίθμη. VI, 264); e é o mais bem protegido das ondas (κῦμα), pois enquanto o de

Fórcis protege apenas das ondas grandes (μέγα κῦμα. XIII, 99), o em Telépilos não

deixa entrar nem as grandes nem as pequenas (οὔτε μέγ᾽ οὔτ᾽ ὀλίγον. X, 94).

O porto dos lestrigões é, no entanto, deficiente em um aspecto. Ao contrário do

que acontece no porto da ilha das cabras, “onde de cabos não se precisa, nem lançar

âncoras nem prender amarras” (ἵν᾽ οὐ χρεὼ πείσματός ἐστιν, οὔτ᾽ εὐνὰς βαλέειν οὔτε

πρυμνήσι᾽ ἀνάψαι. IX, 136-7), e em Fórcis, onde “sem amarras, estão fundeadas as

naus” (ἄνευ δεσμοῖο μένουσι νῆες. XIII, 100-1), o porto em Telépilos força todas as

15
Cf. Heubeck (1989, p.48), Nakassis (2004, p.225, nota 45).
naus da esquadra (não apenas a de Odisseu 16) a se prenderem com amarras (ἔντοσθεν

λιμένος κοίλοιο δέδεντο πλησίαι. X, 92-3. Grifo nosso).

Os comentadores já observaram muito bem que toda a descrição do porto serve

como antecipação para o desfecho do episódio 17, mas menos atenção foi dada para o

fato de que o detalhe das amarras opera da mesma maneira 18. No entanto, apenas a nau

de Odisseu necessita do detalhe das amarras para facilitar sua rápida fuga (X, 126-7) –

além, é claro, do ainda mais importante posicionamento externo à baía onde as outras

naus estão. É curioso então que o poeta force os outros navios a se amarrarem num

porto ‘ideal’ onde “havia uma luzidia calmaria” (λευκὴ δ᾽ ἦν ἀμφὶ γαλήνη. X,94). Seria,

talvez, um sutil indício de que este porto não é tão ideal assim?

O detalhe de que Odisseu fundeia seu navio separado dos outros também é em si

curioso. Enquanto Heubeck enxerga nessa decisão os valores de um comandante

naval19, De Jong (2001, p.254) e Reinhardt (1996, p.90) apontam mais acuradamente

que há uma notável omissão dos motivos que o levam a fazê-lo. Teria ele pressentido

que o porto era uma armadilha? Ou estaria a interpretação de Heubeck correta, fazendo

com que, tal como no episódio de Éolo, a catástrofe que ocorre decorra ironicamente

justo da tentativa que Odisseu faz de guiar bem seus companheiros? O silêncio do poeta

provavelmente é de fato a melhor solução, justamente por permitir que o leitor

interprete as ações de Odisseu em termos dos valores que mais quiser enxergar nele

(quer seja a astúcia, quer seja a liderança). Além disso, como De Jong (2001, p.254)

bem apontou, é “part of his [the poet’s] strategy not to reveal the outcome of the episode

in advance”.
16
Cf. Od. X, 95-6.
17
Cf. Heubeck (1989, p.49): “[...] the ideal berth for the fleet is the cause of its destruction; 87-94 prepare
for 121-4); De Jong (2001, p.254): “This *’harbour’ description contains […] a unique element,
consisting of enclosing rocks (87-8). This […] detail prepares for 121-3 […]”.
18
I.e., Od. X, 95-6 antecipam 126-7.
19
“[...] the relatively exposed position of the flagship, which Odysseus has chosen out of a sense of
responsibility proper in a commander, allows escape” (HEUBECK. 1989, p.49).
Continuando, Odisseu escala até um mirante (σκοπιὴν ... ἀνελθών. X, 97) de onde

pode ver as terras em sua volta. Depois de ver que não há campos arados (X, 98), mas

que há fumaça (X, 99), ele escolhe alguns de seus companheiros para investigar o povo

que habita o local (X, 100-2).

Aqui há a ausência de um dos principais elementos que caracterizam a civilização

humana na Odisséia: a agricultura20. Este é o principal sinal de perigo que o poeta dá

antecipadamente, pois já nega a própria possibilidade que o próprio Odisseu desejará

averiguar em seguida, uma vez que, se os lestrigões não têm campos de trigo,

certamente não serão “homens que comem o pão” (ἀνέρες ... σῖτον ἔδοντες. X,101). Ao

contrário do que ocorre no episódio dos lotófagos, onde vemos a mesma fórmula de

investigação ser empregada21, ela aqui parece estar mais mal encaixada22. Não é curioso

que o poeta se utilize desses versos aqui? Mais sentido faria, talvez, que Odisseu se

indagasse acerca dos lestrigões da mesma forma que o faz a respeito dos ciclopes 23 (IX,

174-6).

O sinal da fumaça (καπνὸν ... ἀπὸ χθονὸς ἀίσσοντα. X, 99) por sua vez é mais

ambíguo. Certamente nos lembraremos que é um semelhante sinal que impele Odisseu a

explorar as terras dos ciclopes (IX, 167), mas o sinal do fogo também fora um indício

da proximidade do lar no episódio de Éolo24 (X, 30). Subsequentemente versos muito

20
A hierarquização na Odisséia das formas de vida ‘humana’ baseada na forma pela qual se produzem os
alimentos – 1º agricultores; 2º caçadores; 3º pastores – já foi atestada por Vidal-Naquet (1986, p.21), que
a relaciona, além disso, a uma divisão parecida feita por Aristóteles; similarmente, Assunção (2013, p.4)
citando Brent D. Shaw.
21
Od. X, 100-2 = Od. IX, 88-90.
22
No episódio dos lotófagos não há mirante que permitisse averiguar a presença ou não de campos
arados, e é o primeiro da série de episódios propriamente fantásticos. Assim, é razoável que Odisseu
presuma apenas que lá existam homens ‘civilizados’ como ele, que praticam agricultura. Esse já não é
mais o caso quando Odisseu chega à Telépilos: a essa altura, ele já sabe que há “homens” que usam o
fogo e, no entanto, não são agricultores e não comem pão.
23
E similarmente, faria mais sentido que Odisseu ainda estivesse imaginando a possibilidade de homens
que praticam a agricultura ao explorar as terras do ciclopes, já que lá também não teve a visão panorâmica
das terras que lhe permitiriam atestar a ausência de campos cultivados.
24
Note-se, no entanto, que nesse caso o que eles veem são os próprios fogos queimando, ou talvez até os
próprios homens que mantém os fogos vivos (πυρπολέοντας), e não só a fumaça como nos demais casos.
semelhantes irão aparecer no começo episódio de Circe25, mas neste momento Odisseu e

seus companheiros já aprenderam a temer um tal sinal: é forçoso a eles averiguar a

fumaça a despeito de sua relutância26.

Também devemos aqui nos perguntar para que os lestrigões estariam utilizando o

fogo. Por suas semelhanças com Polifemo, poderíamos assumir que não o utilizam para

assar e comer os bois e as ovelhas que pastoreiam (se alimentando, portanto,

primariamente de queijo e leite27); mas se esse for o caso, para que precisam de fogo?

Além de cozinhar, o fogo serve para iluminar e aquecer – contudo, se eles vivem numa

terra onde crê-se que há sol constante (ou, conforme nossa sugestão, pelo menos dias

muito longos), teriam eles a necessidade disso? Seria então mais sensato imaginar que

eles assam os animais domésticos que pastoram? E se esse for o caso, por acaso fazem

sacrifícios aos deuses?

Os companheiros de Odisseu desembarcam e começam sua investigação (X, 103-

4), e imediatamente aparecem ainda mais sinais de civilização, que recorrerão

insistentemente. Daqui até o fim do episódio, se menciona que os lestrigões vivem em

uma “cidade” (agora designada por ἄστυ) mais quatro vezes (X, 104; 105; 108; 118),

além de indicar a existência de uma “via plana” (λείην ὁδόν) por onde passam “carros”

(ἄμαξαι. X, 103), de um “rei” (βασιλεύς. X, 110) que mora em uma “casa” (δῶ. X,

111), e até uma “ágora” (ἀγορά. X, 114). A vida dos lestrigões é sem dúvida em

sociedade, e conta com elementos de civilização que estão ausentes na maioria dos

outros episódios fantásticos28.


25
Od. X, 97 = X, 148; e X, 98 é muito semelhante a X, 149.
26
Od. X, 189-202.
27
Os versos que descrevem o modo pelo qual Polifemo produz seu queijo sugerem que ele não utilizava o
fogo para essa tarefa – note-se que ele acende seu fogo (para iluminar sua gruta) depois de fazê-lo (Od.
IX, 246-251).
28
Cf. Nakassis (2004, p.225), que identifica os lestrigões com os cimérios não só pelo contraste dia e
noite eternos, mas também por eles serem uns dos poucos povos descritos no ambiente mítico da
Odisséia a terem instituições políticas típicas dos homens. Os outros que também apresentam tal
organização são os próprios feácios. Os feácios e os lestrigões certamente são os únicos a apresentarem
O trio investigador encontra então a filha do rei dos lestrigões, chamado Antífates,

pegando água de uma fonte29 (X, 105-8), e lhe perguntam sobre o rei do local e o povo

que comanda (ὅς τις τῶνδ᾽ εἴη βασιλεὺς καὶ οἷσιν ἀνάσσοι. X, 110). A cena sem dúvida

relembra o encontro de Odisseu com Nausícaa 30, e faz parte de um tema recorrente em

histórias folclóricas31. Mas o poeta esconde mais um sutil aviso dos perigos vindouros

ao nos informar sobre a progenitura da moça, pois ele diz que é a “filha altiva do

lestrigão Antífates”32 (θυγατέρ᾽ ἰφθίμῃ Λαιστρυγόνος Ἀντιφάταο. X.106.) – uma

palavra que já começa a sugerir o tamanho excepcional desse povo, descritos adiante

novamente como “altivos lestrigões” (ἴφθιμοι Λαιστρυγόνες. X, 119). Mas enquanto

nos é fácil passar desapercebidos por esse detalhe da linguagem 33, é um pouco mais

estranho que os companheiros de Odisseu não se deem conta do tamanho incomum de

sua guia. Devemos talvez supor que se trata de uma moça tão jovem que seu tamanho

ainda não desperta suspeitas?

Também é curioso notar como o poeta cria a resposta da moça aqui: ao contrário

do discurso direto que caracteriza outras instâncias desse tema, a jovem lestrigônia

apenas ‘indica’ ou ‘mostra’ (ἐπέφραδεν. X, 111) o caminho. O verbo não sugere tanto

uma resposta necessariamente verbal tanto quanto uma gestual (quer apontando a

direção ou convidando a segui-la até lá), e é difícil ignorar esse elemento da ausência de

uma ágora explicitamente: a descrição dos cimérios é curta demais para nos providenciar tais detalhes.
29
O nome da fonte – Artácia – é curioso. Cf. Heubeck (1989, p.49): “The name of the spring Artakie is
almost certainly drawn from an older Argonautica. […] The spring Artakie […] in Cyzicus was so named
by the inhabitants when the Argonaut legends set the goal of Jason’s quest at Colchis; naming the
Laestrygonian spring Artakie is therefore not intended to place the action on the Propontis […]”.
30
Descrito ao longo do canto VI da Odisséia. Identificamos os seguintes pontos de aproximação: 1) o(s)
estrangeiro(s) pede(m) informações sobre o rei e o povo do local para; 2) uma jovem moça que por acaso
é filha desse mesmo rei; 3) o encontro se dá próximo à uma fonte de água potável onde; 4) a moça está
desempenhando funções básicas de manutenção doméstica (lavar roupas; coletar água); 5) a moça indica
o caminho para o palácio de seu pai. Ver também a semelhança com VII, 18-29, onde Odisseu pede
informações para Atena, que está disfarçada como “uma virgem que segurava um cântaro” (νεήνιδι,
κάλπιν ἐχούσῃ. VII, 20).
31
Cf. De Jong (2001, p. 254).
32
Tradução de Cristian Werner.
33
Note-se que esse termo também é aplicado a outras mulheres que nada têm de monstruoso, como a
própria Penélope em XVI, 332.
falas diretas dos lestrigões quando o confrontamos com a estranha prolixidade do

ciclope que, ao contrário destes, é mais selvagem por não viver em sociedade.

Ao chegar na casa de Antífates, os companheiros de Odisseu final- e

abruptamente se apercebem do fato de que não estão lidando com homens comuns:

ficam horrorizados com a gigantesca rainha, que prontamente chama seu marido, e este

por sua vez logo revela a eles que estão lidando com ‘canibais’ 34 (X, 112-6). Tal como

antes, quando, pela rapidez e concisão pelo qual o descreve, o poeta obscurece o

problema da verossimilhança do trio de companheiros não desconfiar do tamanho da

filha de Antífates, aqui também ele parece passar por cima de outros pontos nos quais o

reconhecimento do caráter gigantesco do povo deveria se dar. Eles não teriam visto

nenhum outro lestrigão na cidade de que tanto ouvimos falar? Nem desconfiado do

tamanho das casas deles? A narrativa concisa e econômica permite que se ignorem tais

detalhes em prol dessa revelação súbita e impactante.

Os pontos de semelhança que esse primeiro confronto com o tamanho e a dieta

monstruosas dos lestrigões têm com a linguagem que descreve Polifemo já é bem

atestada nos comentadores. Heubeck (1989, p.49-50) o diz sucintamente:

The similarity between the Laestrygonians and Cyclopes is


emphasized by verbal parallels: the comparison (112-3) recalls ix 191-
2 […]; the cannibalism of the king (115) is described in the words
used of Polyphemus, ix 289-91, 311, 344.
[…] The Laestrygonians come on hearing their king’s cry; cf. the
Cyclops, ix 399-401 […]
[…] From the cliff, i.e. above the harbor, the Laestrygonians hurl
rocks at the Greek fleet. Unlike the Cyclops they are successful […]
Essas semelhanças entre os lestrigões e o ciclope, no entanto, não devem nos

cegar para a abundância de diferenças que vemos entre eles. Depois que os

34
Sobre a designação dos ciclopes como canibais, Hernández (2000, p.350, n.12): “It is difficult to
categorize the acts whether of the Cyclops or of Cronus as cannibalism, since neither does in fact
consume their own kind […]”. Aqui usamos o termo genericamente para designar antropófagos.
companheiros presenciam o ‘canibalismo’, eles são (de algum modo) capazes de fugir

imediatamente e voltar para a esquadra; mas os lestrigões, respondendo prontamente a

Antífates e trabalhando em conjunto, não dão chance para uma fuga (X, 117-24).

Mencionamos acima o detalhe curioso da resposta aparentemente taciturna da

filha de Antífates, mas em verdade, toda a comunicação dos lestrigões é feita com

pouquíssimas palavras. A mulher de Antífates, que ‘chama’ (ἐκάλει. X, 114) a seu

marido, junto do pastor genérico que também ‘chama’ (ἠπύει. X, 83) o outro 35, têm as

únicas ‘falas’ propriamente caracterizada dentro desse episódio, e mesmo assim estão

longe de entrar no âmbito de um verdadeiro discurso ou diálogo. E ao contrário do

antissocial e incivilizado Polifemo que, mesmo assim, ‘chama os ciclopes’

(Κύκλωπας ... ἠπύει. ΙΧ, 399), Antífates simplesmente ‘levantou um grito’ (τεῦχε βοὴν.

X, 118), aparentemente sem precisar de nenhuma palavra (propriamente dita) para

invocar seus semelhantes.

E que diferença observamos na resposta dos lestrigões ao ouvirem (ἀίοντες. X,

118) o grito de seu rei! Não sentem a menor necessidade de questionar Antífates da

mesma forma pela qual os outros ciclopes questionam Polifemo (IX, 401-6). Sem

precisar, aparentemente, de comando algum, já sabem para onde ir e o que fazer. Vimos

anteriormente que as condições ideais do porto em que os gregos estavam também

favoreceram sua destruição36. Mas se a ‘armadilha’ do porto é importante para a

destruição da frota, a velocidade com que os lestrigões atacam as naus também é

fundamental, pois mesmo que fossem atrasados pela dificuldade de sair pela boca

estreita da baía, alguns navios gregos poderiam muito bem ter se salvado graças ao

35
O verbo que designa a resposta do segundo pastor ao primeiro – ὑπακούει (X,86) – também sugere
poucas palavras. Com a raiz em ἀκούω, designa primordialmente um sinal explícito (pela voz ou pelos
atos, cf. LSJ, I, 2) de que se ouviu o chamado ou o que foi dito.
36
Página 6. Vide em particular nota 16.
aviso prévio dos companheiros que de fato ‘chegaram às naus’ (ἐπὶ νῆας ἱκέσθην. X,

117).

Essa não é a única vez que vemos uma resposta para um grito ser tão

eficientemente mortífera. Ao elaborar uma narrativa ‘mentirosa’ para Eumeu em Ítaca,

Odisseu – disfarçado de mendigo – conta como teria perdido seus companheiros de

guerra enquanto eles atacavam as terras dos egípcios (XIV, 257-280). Há uma série de

elementos paralelos nas duas narrativas. No ‘falso’ ataque aos egípcios temos a

utilização de mirantes (σκοπιὰς. XIV, 261) no começo, tal como o que Odisseu utiliza

(X, 98); em ambos os episódios os reforços que ouvem gritos (βοήν/βοῆς ἀΐοντες. X,

118; XIV, 266) estão na cidade (ἄστεος. X, 118; πόλιν. XIV, 265); ambos os reforços

vêm em grandes números (μυρίοι. X, 120; πλῆτο δὲ πᾶν πεδίον πεζῶν τε καὶ ἵππων.

XIV, 267) e com a estratégia de cercar seus inimigos (φοίτων ... ἄλλοθεν ἄλλος. X, 119;

περὶ γὰρ κακὰ πάντοθεν ἔστη. XIV, 270); e também no contra-ataque egípcio há a

presença de um rei (XIV, 278).

Ao que parece, esses dois episódios (juntamente com o dos cícones, que também

apresenta algumas semelhanças a eles) parecem nos relembrar quão perigosos são os

ataques efetuados por indivíduos que vivem em uma sociedade estruturada, capazes de

montarem (contra-)ofensivas estratégicas e velozes. Em termos de números absolutos de

fatalidades, nenhum dos encontros com monstros ‘isolados’ é tão mortal – nem

Polifemo nem Cila chegam perto de matar tantos companheiros de Odisseu37.

Claro que esses dois eventos também têm muitas características diferentes. Uma

das principais é que no ataque egípcio, os companheiros é que iniciam a violência num

37
Cila mata 6 gregos (XII, 245-6); Polifemo também 6 (IX, 289; 311; 344). Sabemos que Odisseu
comandava uma esquadra de 12 naus (IX, 159), e na ilha de Circe a nau de Odisseu ainda conta com 46
marinheiros (2 grupos de 22 companheiros mais dois líderes em cada grupo. X, 203-8). Se cada uma das
outras 11 naus que são destruídas em Telépilos tivesse em média essa mesma quantia de marinheiros, os
lestrigões seriam então responsáveis pela morte de 506 gregos.
contexto de guerra humana normal. O ataque dos lestrigões parece muito mais gratuito.

No máximo poderíamos mencionar que o poeta designa o horror que o trio que

desembarcou sente da gigantesca mulher com o verbo ἔστυγον (X, 113), que parece

indicar que a abominação deles se torna bastante explícita para a sua ‘anfitriã’ 38. Mas

isso dificilmente é comparável com os eventos do ataque nas margens do Nilo. Mais se

assemelha com a “falta de bons modos” de Odisseu e seus companheiros quando

adentram a caverna de Polifemo em sua ausência39 (IX, 216-8).

Também já vimos com Heubeck que, tal como Polifemo, os lestrigões lançam

rochas contra os navios gregos, mas com muito mais sucesso. É interessante notar como

os temas da hospitalidade e dos ξεινία, que foram associados aos pedregulhos atirados

pelo ciclope, não figuram aqui. E se pudermos dizer que, além de sua imprecação a

Posêidon, Polifemo também oferece uma espécie de πομπή40 não intencional quando

erra ao lançar uma pedra e gera uma onda que impele o navio de Odisseu para longe da

ilha41 (IX, 536-42), também esse elemento nos lestrigões está ausente: tal como no

desfecho do episódio de Éolo, onde a falta de πομπή força os gregos a remarem para

continuar a viagem (X, 78-9), também no desfecho dos lestrigões há a necessidade de

remar para escapar (X, 129).

Outra questão que não podemos deixar de analisar é o símile do verso 124, “tal

peixes trespassados, acabaram em detestável jantar” (ἰχθῦς δ᾽ ὣς πείροντες ἀτερπέα

δαῖτα φέροντο. X, 124). É interessante que parece sugerir que, além dos lestrigões que

estavam arremessando pedras dos rochedos, haveriam outros abaixo catando os gregos

38
Cf. entrada de στυγέω no LSJ, A: “[…] stronger than μισέω, for it means to show hatred, not merely to
feel it […]”. (Grifo do autor).
39
Cf. Assunção (2013, p.7), que explora o tema da quebra de hospitalidade nesse episódio.
40
Idem, p.16.
41
Compare-se com a πομπή de Éolo, que impele a esquadra de Odisseu com seu controle dos ventos (X,
25-6). Note-se também que num primeiro momento enquanto escapam de Polifemo, os companheiros de
Odisseu também remam (IX, 471-2)
dos destroços de suas naus (indicando, assim, ainda mais um elemento de seu trabalho

em equipe).

Além disso, esse símile abre muitas questões. A principal é a questão da comida,

em particular do lugar que a caça e a pesca ocupam dentro do mundo heroico

homérico42: outros comentadores já observaram que tanto Menelau em Faros (IV, 368-

9) quanto Odisseu na ilha do sol (XII, 330-2) veem os seus companheiros, forçados pela

falta de outros alimentos, se valerem de “recurvos anzóis”43 (γναμπτοῖς ἀγκίστροισιν)

para pescar, e que isso mostra que, em algum nível, esses guerreiros homéricos estão

cientes da pesca e dos peixes como alimentação 44, e acrescentamos que também no

símile que descreve o modo como Cila arrebata os companheiros do navio de Odisseu,

há o elemento de uma ‘vara de pesca’ (ῥάβδῳ. XII, 251).

Curiosamente, os lestrigões parecem ‘pescar’ de uma maneira totalmente

diferente. Ao dizer que retiram os gregos da água “tal peixes trespassados” (ἰχθῦς ὣς

πείροντες), temos mais a impressão da pesca realizada com arpões 45 do que com anzóis.

Conheceriam os gregos então ainda mais essa modalidade de pesca? Além disso,

devemos imaginar que os lestrigões já possuíam arpões e, disso, concluir que eles

comem peixes46? Ou pensar que se utilizavam de outra arma, como uma lança, para

trespassar os gregos? É interessante pensar que em todo caso se propõe então o uso de

uma arma manufaturada (mais um elemento que aponta para sua civilização, portanto),

que contrasta com as outras mortes efetuadas com os pedregulhos ou simplesmente com

as mãos nuas.

42
Cf. Assunção (2014).
43
Tradução de Frederico Lourenço.
44
“Poderíamos notar, junto com Ateneu (Deipnosophistae I, 13a-b), que se eles pescavam “com recurvos
anzóis” é porque os tinham trazido na nau (pois não os teriam fabricado ali) e porque conheciam
minimamente esta arte e supunham possível o seu uso [...]” (ASSUNÇÃO. 2014, p.4)
45
Cf. Vidal Naquet (1986, p.22): “The Laestrygones […] harpoon the Greeks like tuna fish and then eat
them”.
46
Mas note-se que aparentemente não há navios dos lestrigões no porto.
Podemos aqui nos deter um pouco para pensar em todas as semelhanças e

diferenças que vemos entre os lestrigões e Polifemo. Os elementos recorrentes

certamente apoiam a tese de que são ambos episódios baseados no tipo folclórico do

ogro comedor de gente47, mas é fascinante como a adaptação do material pode gerar

dois episódios tão distintos. A flexibilidade com que o material folclórico pode ser

reinterpretado torna-se evidente, e ponderações acerca de como a caracterização dos

ciclopes é transformada pela incorporação do folclore se beneficiariam dessa

observação48. E é intrigante que tanto se fale da relação que existe entre a selvageria e o

‘canibalismo’ de Polifemo49, sem, no entanto, se reconhecer a presença desses outros

‘canibais’ que existem num nível de civilização muito mais elevado.

Finalmente, chegamos ao final do episódio. Se aproveitando do fato de que os

lestrigões estão distraídos com a destruição da esquadra e a ‘pesca’ dos outros

companheiros50, Odisseu corta as amarras e eles remam para longe (X, 125-134). Já

comentamos como também esse gesto é antecipado no começo da narrativa 51, e não

temos muito mais o que acrescentar aos comentadores nesses últimos versos:

remetemos o leitor novamente aos comentários que identificam no resultado desses

eventos o próprio propósito do episódio52.

47
Cf. Mondi (1983, p.17), que faz na nota 1 um apanhado bibliográfico da conexão entre Polifemo e o
folclore do ogro comedor de gente.
48
De modo que devemos questionar, por exemplo, a conclusão de Mondi (1983, p.25) de que “It is the
clear intention of the poet to create this characterization of the Cyclopes as a cultural group at the
opposite extreme from the Phaecians on the scale of civilization and hospitality […]”. Também quando
eles nos diz que “The ogre was introduced into the poem as a Cyclops, in spite of the fact that the tale
demanded that this ogre have several characteristics that the traditional Cyclops did not” (Idem, p.37), a
existência dos lestrigões nos leva a questionar porque o poeta sequer teria que introduzi-lo como um
ciclope.
49
“We may inquire, then, whether this conjunction of a fertile and tranquil world, on the one hand, with
the cannibalism and the barbarous behavior of the protagonist, on the other, […], has significance for the
composition of the Cyclopeia […]” (HERNANDEZ. 2000, p. 350). Grifo nosso.
50
Cf. De Jong (2001, p.254).
51
Vide nota 18.
52
Vide página 2.
Indicamos apenas que o seguinte elemento identificado em Heubeck (1989, p.50),

“The ironic contrast, as the Greeks cut and run to save their lives, is in the drawn sword,

in the Iliad a heroic gesture”, pode ser ampliado para o fato de que contra Cila, Odisseu

também resolve tomar armas com o intuito de lutar (XII, 226-30). É curioso que contra

um único monstro de cuja força e imortalidade já fora avisado (XII, 116-23) Odisseu

resolva tentar dar combate para tentar salvar seus companheiros, mas que contra a turba

dos lestrigões nem contemple a possibilidade de lutar.

Com isso, fechamos nosso comentário do episódio dos lestrigões. A análise detida

desses 53 versos certamente levanta uma série dúvidas que não são facilmente

resolvidas. De fato, o aspecto resumido dos eventos narrados neles tendem a introduzir

muitos elementos sem fornecer para eles muita explicação53, de modo que saímos com

muito mais perguntas sobre as características dos lestrigões do que respostas.

No entanto, esperamos ter demonstrado que pelo pouco que podemos de fato

saber sobre eles, somos capazes de fazer um bom número de comparações e relações

temáticas com outros elementos da Odisséia, que nos permitem não só apreciar mais o

episódio em si, mas aprofundar também nossas análises dos outros episódios e da

estrutura geral do poema.

O tema da civilização e de suas relações com os hábitos alimentares em particular

parece se beneficiar de uma ponderação mais detida dos lestrigões, uma vez que as

características que mais claramente transparecem nesse povo são sua organização social

bastante próxima dos padrões gregos, mas associada a uma dieta que, apesar de

indefinida, claramente é anômala dado o ‘canibalismo’. Também é interessante ver o

tratamento paradoxal dado à relação da fala com a civilização ao nos depararmos com
53
De modo que somos inclinados a concordar com Reinhardt (1996, p.71, n.5) que “There must have
been much more originally. The story of the giantess who invites a guest and of the giant who comes
home in the evening and turns out to be a man-eater, is a widespread motif in ogre stories. […] But here
this motif remains undeveloped.”
um ciclope eremita que se apresenta para nós como muito mais conversador que os

sociais lestrigões.

Assim, esperamos que este comentário geral do episódio dos lestrigões se mostre

proveitoso para futuras análises da Odisséia, e que convide novos diálogos acerca

desses versos que ainda não foram plenamente apreciados. Também não desejamos que

a interpretação aqui sugerida seja, em qualquer medida, tida como definitiva, e sim mais

um ponto no diálogo com as bibliografias prévias e futuras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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hipótese antropológica). 2014. (Apresentação de Trabalho/Comunicação).
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2013, v. , p. 157-179.
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York: Oxford University Press, 1989, v.2.
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PURVES, Alex C. Wind and Time in the Homeric Epic. In: Transactions of the
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