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Universidade Federal de Minas Gerais

Literatura, História e Cultura na Antiguidade e na Idade Média: A República de Platão.


Professor: Jacyntho José Lins Brandão
Aluno: Danilo de Albuquerque Furtado

A Riqueza na República de Platão

Apesar de frequentemente se voltar para a composição e natureza da ‘alma’ (ψυχή)


humana, a República de Platão também é, em larga escala e em conformidade com seu
título, uma obra focada na constituição política. Não é surpreendente, portanto, que
Platão pontue várias instâncias de seu pensamento com considerações acerca da função,
do lugar e dos efeitos da riqueza sobre o ambiente da pólis e da alma dos homens,
enquanto seres integrantes da sociedade. Em particular, a riqueza (e a possibilidade de
indivíduos acumularem bens em geral) frequentemente figura como um incentivo
contrário ao espírito de harmonia e unidade que não raro é mencionado como
fundamental para a saúde da pólis1.
A relação que Platão cria com o conceito de riqueza neste texto não é, no entanto,
uma de simples abstenção ou negação absoluta do valor dos bens materiais, e é nosso
intuito fazer uma breve análise de algumas passagens da República para explorar
algumas nuances do papel que as riquezas apresentam ao longo da obra. Consideremos
primeiramente, por exemplo, outra passagem que identifica novos problemas associados
à riqueza, mas que agora aparecem nos dois graus extremos de sua posse:
[ΣΩ]: τοὺς ἄλλους αὖ δημιουργοὺς σκόπει εἰ τάδε διαφθείρει, ὥστε
καὶ κακοὺς γίγνεσθαι.
[ΑΔ]: τὰ ποῖα δὴ ταῦτα;
- πλοῦτος, ἦν δ᾽ ἐγώ, καὶ πενία.
- πῶς δή;
- ὧδε. πλουτήσας χυτρεὺς δοκεῖ σοι ἔτ᾽ ἐθελήσειν ἐπιμελεῖσθαι τῆς
τέχνης;
- οὐδαμῶς, ἔφη.
- Ἀργὸς δὲ καὶ ἀμελὴς γενήσεται μᾶλλον αὐτὸς αὑτοῦ;
πολύ γε.
[...]
[ΣΩ]: καὶ μὴν καὶ ὄργανά γε μὴ ἔχων παρέχεσθαι ὑπὸ πενίας ἤ τι ἄλλο
τῶν εἰς τὴν τέχνην τά τε ἔργα πονηρότερα ἐργάσεται καὶ τοὺς ὑεῖς ἢ
ἄλλους οὓς ἂν διδάσκῃ χείρους δημιουργοὺς διδάξεται. [Platão.
República. Livro IV, 421d-e]
[Sóc.]: Observa os demais trabalhadores, e dize-me se essas condições
os estragam, a ponto de deixa-los ruins.
[Ad.]: Quais serão?
- A riqueza – lhe falei – e a pobreza.
- Como assim?
- É o seguinte: se o oleiro fica rico, achas que ainda queira ocupar-se
com sua profissão?
1
Cf. livro III, 417a: “καὶ οὕτω μὲν σῴζοιντό τ᾽ ἂν καὶ σῴζοιεν τὴν πόλιν: ὁπότε δ᾽ αὐτοὶ γῆν τε ἰδίαν καὶ
οἰκίας καὶ νομίσματα κτήσονται, οἰκονόμοι μὲν καὶ γεωργοὶ ἀντὶ φυλάκων ἔσονται ...” (‘E assim [os
guardiões] se salvariam e também salvariam a cidade: por outro lado, quando obtiverem terra privada e
casa e dinheiro para si próprios, serão administradores [privados] e lavradores ao invés de guardiões...’)
- De modo nenhum – respondeu.
- Porém de dia em dia se tornaria mais preguiçoso e descuidado?
- Muito.
[...]
[Sóc.]: Por outro lado, se por causa da pobreza não pudesse adquirir os
instrumentos de sua profissão e tudo mais que se relacione com ela,
não apenas fabricaria produtos inferiores, como ensinaria mal aos
filhos seu próprio ofício ou a quem quer que tomasse como discípulo.
[Platão. República. Livro IV, 421d-e. Trad.: Carlos Alberto Nunes]

Vemos, portanto, que os dois extremos de posse dos bens – a riqueza e a pobreza –
são indesejáveis para o exercício de uma profissão (de um artesão, pelo menos). É certo
que os motivos pelos quais cada extremo se torna prejudicial a um artesão são bastante
diferentes: enquanto a deficiência da pobreza é de uma ordem bastante pragmática (ela
previne que o artesão ‘adquira os utensílios ou outra coisa das que dizem respeito a sua
técnica’ [ὄργανά ... παρέχεσθαι ὑπὸ πενίας ἤ τι ἄλλο τῶν εἰς τὴν τέχνην], o que gera um
resultado negativo em seu produto final), a deficiência da riqueza tem um aspecto mais
interior, tornando o próprio artesão mais ‘preguiçoso’ (ἀργός) e ‘descuidado’ (ἀμελής).
Ainda assim, é interessante notar que essa utilidade prática dos bens materiais é
tamanha ao ponto de não poder ser ignorada.
De fato, Platão também aborda o dinheiro em si com olho na utilidade prática que
ele tem. Ao iniciarem suas primeiras considerações acerca de como seria a justiça
(δικαιοσύνη) na cidade, e através de que processo a cidade em si se forma, temos o
seguinte desenvolvimento no que concerne à função da moeda:
[ΣΩ]: ἐν αὐτῇ τῇ πόλει πῶς ἀλλήλοις μεταδώσουσιν ὧν ἂν
ἕκαστοι ἐργάζωνται; ὧν δὴ ἕνεκα καὶ κοινωνίαν ποιησάμενοι
πόλιν ᾠκίσαμεν.
[ΑΔ]: δῆλον δή, ἦ δ᾽ ὅς, ὅτι πωλοῦντες καὶ ὠνούμενοι.
- ἀγορὰ δὴ ἡμῖν καὶ νόμισμα σύμβολον τῆς ἀλλαγῆς ἕνεκα
γενήσεται ἐκ τούτου.
- πάνυ μὲν οὖν.
[Sóc.]: E com respeito à própria cidade, de que modo será feita a
permutação do que cada um produzir com seu trabalho? Foi para
isso, precisamente, que se congregaram e fundaram a cidade.
[Ad.]: É evidente – respondeu – que será por meio de compra e
venda.
- Daí, então, terá de surgir um mercado e a moeda representativa
do valor das trocas.
- Perfeitamente. [Platão. República. Livro II, 371b. Trad.: Carlos
Alberto Nunes]

Particularmente importante é notar que Sócrates e Adimanto estão estabelecendo a


necessidade do dinheiro antes mesmo de começarem a examinar, instados pela crítica de
Glauco, como se fundaria uma “cidade luxuosa” (τρυφῶσαν πόλιν) e “inchada”
(φλεγμαίνουσαν)2, isto é, até mesmo uma cidade “saudável” (ὑγιής) tem utilidade e

2
Cf. 373e.
necessidade do dinheiro como facilitador das trocas dos bens básicos entre seus
habitantes. Esse tratamento dos vários tipos de bens que compõem a riqueza baseado na
utilidade e necessidade não é, certamente, incomum no pensamento grego antigo: não é
coincidência que a palavra que eles usam para riqueza é χρήματα, que se traduz mais
literalmente por “as coisas úteis”3.
Nesse sentido, não é surpreendente que um homem que sabe atribuir um valor
adequado às suas riquezas encontre alguma admiração da parte de Sócrates – e de fato,
vemos Platão construir esse exato encontro em sua obra, à medida que Sócrates
interroga Céfalo:
[ΣΩ]: ... ἀλλά μοι ἔτι τοσόνδε εἰπέ: τί μέγιστον οἴει ἀγαθὸν
ἀπολελαυκέναι τοῦ πολλὴν οὐσίαν κεκτῆσθαι;
[...]
[ΚΕ]: ... ἔγωγε τίθημι τὴν τῶν χρημάτων κτῆσιν πλείστου ἀξίαν εἶναι,
οὔ τι παντὶ ἀνδρὶ ἀλλὰ τῷ ἐπιεικεῖ καὶ κοσμίῳ. τὸ γὰρ μηδὲ ἄκοντά
τινα ἐξαπατῆσαι ἢ ψεύσασθαι, μηδ᾽ αὖ ὀφείλοντα ἢ θεῷ θυσίας τινὰς
ἢ ἀνθρώπῳ χρήματα ἔπειτα ἐκεῖσε ἀπιέναι δεδιότα, μέγα μέρος εἰς
τοῦτο ἡ τῶν χρημάτων κτῆσις συμβάλλεται. ἔχει δὲ καὶ ἄλλας χρείας
πολλάς: ἀλλὰ ἕν γε ἀνθ᾽ ἑνὸς οὐκ ἐλάχιστον ἔγωγε θείην ἂν εἰς τοῦτο
ἀνδρὶ νοῦν ἔχοντι, ὦ Σώκρατες, πλοῦτον χρησιμώτατον εἶναι.
[Sóc.]: ... Porém, dize-me agora apenas uma coisa: no teu modo de
pensar, qual foi a maior vantagem que te proporcionou tua fortuna?
[...]
[Céf.]: ... acrescentarei que a riqueza é de grande vantagem, porém
não para todos; apenas para as pessoas equilibradas. Ela é que enseja a
possibilidade de deixar a vida sem receio de haver mentido, embora
involuntariamente, e de não ter ficado devendo sacrifício a nenhum
dos deuses nem dinheiro a ninguém. Para tudo isso a riqueza contribui
em grande parte. Muitas vantagens mais ela ainda apresenta; porém,
umas pelas outras, não vacilo em declarar que não é a de menor
importância, Sócrates, para o homem de bom-senso o fato de ser rico.
[Platão. República. Livro I, 330d/331a-b. Trad.: Carlos Alberto
Nunes]

Por mais que Sócrates vá questionar, logo em seguida, a ideia de justiça implícita
nessa asseverativa de Céfalo (dado que está explicando meios pelos quais um homem
pode assegurar-se de que não ‘cometeu injustiças’ [ἀδικέω] antes da morte) (331c), em
nenhum momento dá a entender que o intuito de Céfalo de se utilizar de sua riqueza
para garantir que está vivendo uma vida justa (ou, pelo menos, garantir que não está
vivendo uma vida injusta) é repreensível, incorreto ou inerentemente ruim. De fato, seu
contraexemplo acerca da natureza da justiça é especificamente circunstancial, sugerindo
que, em termos genéricos, sua avaliação da justiça não está de todo incorreta 4: não é
impossível, portanto, que um homem sensato utilize a riqueza de maneira justa
(pontualmente, ao menos) – por mais que a posse abundante de bens tenha uma forte

3
Note-se também o enfoque similar que Aristóteles dá ao aspecto da utilidade da riqueza ao discutir as
virtudes associadas a ela na Ética a Nicomâco, 1120a.
4
Mas também, certamente, não se pode dizer que está correta, uma vez que parece corresponder a uma
‘opinião verdadeira’ do que a o genuíno ‘conhecimento’ acerca da justiça.
tendência a impelir os homens a se tornarem piores, como vimos no exemplo anterior
em 421d.
Pensando nesse traçado feito até agora é que devemos considerar o ponto através do
qual o desejo pela riqueza em si é explorado mais longamente no diálogo: quando
Sócrates pondera a natureza da pólis e do homem oligárquicos. Talvez a primeira coisa
a se observar sobre o modo como Platão concebe a oligarquia é sua posição relativa às
outras constituições; de fato, é a intermédia entre as cincos delineadas por Sócrates,
estando entre a aristocracia e a timocracia que lhe são superiores e a democracia e a
tirania que lhe são inferiores – de modo que este “elogio” pelo menos poderia se dar
para homens e cidades oligárquicas: não são os piores. É importante ter isto em mente
para contextualizar as duras críticas que Platão irá desenvolver desse regime, que não
são poucas. A mais fundamental, talvez, seja essa:
τοὐντεῦθεν τοίνυν, εἶπον, προϊόντες εἰς τὸ πρόσθεν τοῦ
χρηματίζεσθαι, ὅσῳ ἂν τοῦτο τιμιώτερον ἡγῶνται, τοσούτῳ ἀρετὴν
ἀτιμοτέραν. ἢ οὐχ οὕτω πλούτου ἀρετὴ διέστηκεν, ὥσπερ ἐν
πλάστιγγι ζυγοῦ κειμένου ἑκατέρου, ἀεὶ τοὐναντίον ῥέποντε;
A partir desse ponto [em que se tornam oligárquicos] – continuei –
empenham-se cada vez mais em acumular riquezas e, quanto maior
valor lhe emprestam, menos concedem à virtude. Não é certo que a
riqueza e a virtude se comportam reciprocamente como se estivessem
colocadas nos dois pratos da balança, movimentando-se em sentido
contrário? [Platão. República. Livro VIII, 550e. Trad.: Carlos Alberto
Nunes]

É importante reiterar que o apreço pela riqueza por si mesma de fato não aparece
como nada sequer marginalmente semelhante a uma virtude em nenhum momento da
República. O máximo que podemos afirmar é que os bens materiais têm sua utilidade
(limitada quanto seja, diante das virtudes que são benéficas à alma em si, por exemplo)
e talvez que um homem sensato pode compreender quais usos da riqueza engendram
verdadeiros benefícios para si. Pensando nisso e no fato de que a oligarquia representa a
primeira5 constituição dominada pelo ἐπιθυμητικός (‘a parte desejosa’), é bastante óbvio
que alguém que ama as riquezas está longe de ser virtuoso, no pensamento que Platão
apresenta através desse diálogo.
No entanto, mesmo diante todas as muitas falhas de caráter de um homem do tipo
oligarca, há nuances:
... τῷ γε φειδωλὸς εἶναι καὶ ἐργάτης, τὰς ἀναγκαίους ἐπιθυμίας μόνον
τῶν παρ᾽ αὑτῷ ἀποπιμπλάς, τὰ δὲ ἄλλα ἀναλώματα μὴ παρεχόμενος,
ἀλλὰ δουλούμενος τὰς ἄλλας ἐπιθυμίας ὡς ματαίους.
[...]
ἆρ᾽ οὖν οὐ τούτῳ δῆλον ὅτι ἐν τοῖς ἄλλοις συμβολαίοις ὁ τοιοῦτος, ἐν
οἷς εὐδοκιμεῖ δοκῶν δίκαιος εἶναι, ἐπιεικεῖ τινὶ ἑαυτοῦ βίᾳ κατέχει

5
Dentro do esquema que caminha da melhor forma de constituição de uma pólis (ou de um homem)
passando por constituições progressivamente piores – depois da aristocracia, governada pelo λογιστικός, e
da timarquia, governada pelo θυμοειδής, temos a oligarquia, a democracia e a tirania todas dominadas
pelo ἐπιθυμητικός.
ἄλλας κακὰς ἐπιθυμίας ἐνούσας, οὐ πείθων ὅτι οὐκ ἄμεινον, οὐδ᾽
ἡμερῶν λόγῳ, ἀλλ᾽ ἀνάγκῃ καὶ φόβῳ, περὶ τῆς ἄλλης οὐσίας τρέμων;
... pelo seu espírito de sovinice e o amor ao trabalho: só satisfaz aos
mais necessários desejos, sem se permitir nenhum gasto supérfluo,
dominando sempre os demais apetites, por considera-los fúteis.
[...]
E de tudo isso, não é evidente que semelhante indivíduo conquista
fama de justo no desempenho de suas atividades, por exercer violência
louvável sobre as paixões inferiores, porém não por estar convencido
de que não é melhor segui-las nem por amansa-las com argumentos?
Não! Por necessidade e medo, por temer a perda de seus bens. [Platão.
República. Livro VIII, 554a/554c-d. Trad.: Carlos Alberto Nunes]

Não deve haver dúvida de que tudo o que Sócrates diz aí figura como uma crítica.
Mesmo se preferirmos uma tradução menos carregada negativamente para φειδωλὸς que
a opção de Carlos Alberto Nunes por “espírito de sovinice” – algo como “frugalidade”,
digamos – o desenvolvimento das ideias deixa claro que não há enormes vantagens em
se dominar os ‘desejos ruins’ (κακὰς ἐπιθυμίας) quando isto não é feito de forma
consciente e deliberada, através do λογιστικός. Mas Platão é habilidoso em permitir que
se entrevejam pequenos acertos da mentalidade oligárquica até mesmo em meio a essas
críticas, e é através desses contrastes pontuais que as sutilezas do pensamento se
aprofundam e revelam relações complexas e não-binárias entre o homem e os diversos
elementos com que ele convive.
A riqueza é indubitavelmente uma perigosa tentação capaz de distrair os homens de
suas atribuições mais nobres e de um ofício adequado à sua natureza. Mas também
encerra em si bens absolutamente essenciais para a vida humana, dentre os quais até
mesmo o dinheiro tem um papel fundamental em facilitar as trocas que impelem os
seres humanos a viverem juntos em uma pólis, de forma que é necessário aprender
como lidar com a necessidade das riquezas e extrair delas as maiores utilidades que,
como seu próprio nome – χρήματα – indica, elas efetivamente têm.

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