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Em primeiro lugar, é interessante destacar como mesmo dentro do trecho com que
iniciamos nossas colocações, já se cria um certo conflito para o ethos do magister. A
admissão explícita de que o rico não tem necessidade de seus ensinamentos (Nil opus
est illi, 162) e a implícita de que suas posses são superiores à arte de amar (Cedimus:
inuentis plus placet ille meis, 164) não só atestam para o (suposto) caráter interesseiro
das mulheres, mas também enfraquecem a autoridade do professor, visto que limitam o
público alvo de suas lições apenas aos “pobres” – ou, mais especificamente, aos
relativamente “pobres” dentre a elite romana que ainda podiam se entregar ao otium5 da
vida amorosa elegíaca.
De fato, pensada nesses termos, essa pressuposição de pobreza pode, para uma
sensibilidade moderna, parecer uma desonestidade em si. Afinal, se dentro do próprio
poema vemos classes inferiores que estão claramente excluídas dos jogos amorosos (a
não ser como eventuais ferramentas ou empecilhos dentro deles6), essa pretensão de se
apresentar como pobre pode parecer também desonesta. Mas o recorte social que Ovídio
faz de restringir seu poema apenas aos cidadãos romanos livres e cultos desmente a
possível falsidade aí inerente, pelo menos no que concerne seu próprio ponto de vista:
se são apenas esses homens livres que são contemplados dentro do espaço possível do
3
Cf. CONTE (1994, p.60-61): “[...] the didactic argument of the Remedia goes on to attack elegy in one
of its fundamental ideological presuppositions: the deliberate choice of otium desidiosum. If otium,
indolent laxity, nourishes the sickness of love, then the cure must begin with a commitment to the active
life: […]. […] above all, the activities of the forum and of war, whose refusal meant the elegiac poet’s
renunciation of career and respectability”.
4
TIBULO apud. GRIMAL (1991, p.178): “Consinto em passar na pobreza todo o caminho de minha
vida, desde que a cada dia o fogo brilhe em minha lareira, que eu mesmo enxerte em sua estação minhas
vinhas tenras, como um camponês, e árvores frutíferas com mão hábil [...]”.
5
Vide nota 3, acima.
6
Vide, p. ex., Ars amatoria, I, 351-358 (cumplicidade entre o amante e a criada da mulher desejada); II,
251-256 (ganhar a confiança de servas e escravos); III, 618-658 (como a mulher deve se esquivar dos
vigias de seu marido). Para as raras participações mais ‘diretas’ de servas no jogo amoroso, ver I, 375-
380; III, 665-666.
jogo amoroso7, as diferenças de poder aquisitivo entre uns e outros pode justificar essa
relativa “pobreza”; e em todo caso, a caracterização que Ovídio faz de seus discípulos
remete, antes de mais nada, às representações típicas de um jovem amante dentro do
gênero da elegia amorosa8.
Talvez um dos mais notáveis aspectos da Ars amatoria em sua postura perante
questões de bens materiais é o modo pelo qual o poeta-professor aconselha que se evite
dar presentes à mulher desejada:
7
O que podemos ver de maneira manifesta nesse trecho: Nec tibi turpe puta (quamvis sit turpe,
placebit),/Ingenua speculum sustinuisse manu. (“Também não consideres humilhante (ainda que te
rebaixes, agradará) sustentar-lhe o espelho com tua mão de homem livre”). (OVÍDIO, Ars amatoria, II,
215-216). Todos os grifos são de nossa autoria, a não ser onde explicitamente indicado.
8
Para uma discussão mais aprofundada sobre como Ovídio faz a relação entre seus poemas e o gênero
elegia, ver CONTE (1994). Por mais que o gênero da Ars amatoria e dos Remedia amoris não sejam tão
facilmente ou unicamente identificáveis como elegia amorosa – vide a classificação de VOLK (2002)
desses textos como ‘poesia didática’ – o fundamental é que eles se referem constantemente aos temas,
personagens e situações típicas da elegia amorosa, mesmo que de forma atípica para o gênero em si.
ou melhor, de sua domina, já que estamos falando do espaço do seruitium amoris – não
condiz com a posição de subserviência9 em que deveria supostamente se colocar.
Até aí, podemos facilmente dizer que se trata apenas da desconstrução do gênero
elegíaco que perpassa a Ars amatoria10, e certamente é interessante ver como até em
pequenos detalhes pragmáticos desse tipo Ovídio problematiza a manutenção da vida no
estilo elegíaco. Mas alguns versos depois, mais incongruências começam a aparecer,
dessa vez internas:
9
É esta própria posição de subserviência a que se alude no trecho da nota 6, acima.
10
Cf. TREVIZAM (2014, p.107): “Ovídio opta desta feita por ‘afrouxar’ os laços a unirem o amante à
mulher de sua escolha, de maneira, mesmo, incompatível com o obsessivo descontrole passional a
transbordar naquela outra produção literária”.
<450>. Eis a obra, eis o labor, ligar-se a uma mulher sem antes dar-lhe
um presente: não desejando ter dado de graça o que deu,
continuamente dará. (OVÍDIO, Ars amatoria, I, 445-452)
Se a mulher principia esse trecho fazendo um cálculo frio (“ratione”) de que já
pode sair “no lucro” de uma dada relação pelos bens materiais que obteve nela, o
conhecedor da arte de ‘amar’ não fica devendo em nada a ela: irá também tentar extrair
o máximo de sua ‘dama’ pelo mínimo de investimento – a única diferença é que ele não
está atrás de bens materiais. A comparação com o jogador de dados é particularmente
esclarecedora em transmitir as deficiências éticas desse comportamento, pois se nesse
caso a mulher é o jogador de dados, então o amante é o dono do jogo que lucra quando
“o jogador não cessa de perder” (non cessat perdere lusor). Também não devemos
supor que é mera coincidência que Ovídio designe pelo mesmo verbo (perdere) tanto o
prejuízo do discípulo em 431 (Perdis) e as perdas do jogador em 449 (perdiderit,
perdere): apesar de todas as censuras às mulheres por serem interesseiras, na verdade
ambas as partes do casal de amantes parecem estar simplesmente querendo “lucrar” o
máximo que podem do relacionamento ao mesmo tempo que minimizam suas “perdas”.
Pode parecer que essas comparações que fazemos entre as “perdas” que o homem
e a mulher podem sofrer como parte do relacionamento são falhas por operarem em
níveis distintos: as dos homens claramente se referem a posses materiais externas,
enquanto que a das mulheres jaz num nível mais abstrato de danos corporais ou de
favores sexuais que não se deveriam dar “de graça” (gratis). No entanto, o próprio
Ovídio aproxima esses dois níveis logo em seguida:
incita as mulheres à entrega sexual não importa a quem [...]”. (Grifos do autor).
12
IBIDEM: “[...] o elemento enganador dos preceitos do magister amoris, levando em conta o parceiro do
sexo oposto que se deseja ensinar a seduzir com ardis, é [...] algo recorrentemente presente no texto desde
a proposição do início de fazer do amor uma arte (I, 1-2)”. (Grifos do autor).
13
Como lemos em VEYNE (2008, p.222): “O contraceptivo mais usado era a água fria. Ora a água fria
mata o espermatozoide e não se ignora que os antigos já sabiam que o esperma era uma coisa viva.”
Outro aspecto muito curioso dos ensinamentos de Ovídio é que eles
aparentemente sempre visam proteger os bens materiais que cada uma das partes
possuem ao adentrar em um relacionamento amoroso. Já o vimos com clareza no caso
dos homens (I, 415-418), mas o temos também para as mulheres:
14
Ars amatoria, I, 503-510.
aproveitar deles para ganhar presentes não constitui justificativa para tais atos –
diferentemente do que Ovídio fala acerca dos perjúrios no livro I15, por exemplo.
Ovídio parece até começar a esboçar sutilmente esse ‘vício’ feminino da atração
pela riqueza ao descrever o ladrão cheio de apetrechos 16 e definido como “o mais
refinado” (cultissimus), de modo que poderia facilmente partir daí para definir tais
perdas femininas como uma justa paga. Mas tal admoestação nunca se efetiva, e os
pedidos femininos de “Devolve o que é meu” (Redde meum!) aparecem mais como um
‘genuíno’ conselho de cuidado para as discípulas, que se compadeceriam da situação de
tais mulheres, e não tanto como uma pregação moral na qual se ridicularizariam tais
pedidos.
18
Ars amatoria, I, 67-70: “Tu modo Pompeia lentus spatiare sub umbra/[...]/aut ubi muneribus nati sua
munera mater/addidit, externo mármore diues opus.” (“Apenas vagueia lento sob a sombra do pórtico
de Pompeu [...] ou onde a mãe aos dons do filho uniu seus dons, soberba obra em mármore
estrangeiro;”)
19
Ars amatoria, I, 103-106: “Tunc neque marmóreo pendebant uela theatro,/nec fuerant liquido pulpita
rubra croco;/illic, quas tulerant nemorosa Palatia, frondes/simpliciter positae scaena sine arte fuit;”
(“Então, nem pendiam panos dos mármores cênicos nem havia palcos borrifados pelo rubro açafrão: os
galhos que o copado Palatino produzira <105>, grosseiramente dispostos, eram um teatro sem arte;”)
20
Ars amatoria, I, 511.
21
Ars amatoria, III, 133.
22
Ars amatoria, III, 205-208, referindo-se ao poema de Ovídio, Medicamina faciei feminae.
Inegável, então, que os bens materiais têm seu lugar (por mais que secundário) na
arte amorosa de Ovídio, que não por acaso se dá apenas no ambiente urbano de elite de
Roma. Mas essa admissão ‘prática’ das funções da riqueza no jogo amoroso indica que
essas relações frequentemente são ditadas por interesses externos aos sentimentos
afetivos ou até mesmo aos desejos eróticos, e reforçam que há muito mais ilusão e
desonestidade operando na “verdadeira” técnica amorosa do que os arroubos passionais
sinceros que definem a elegia propriamente dita. Há sempre a negociação entre as partes
envolvidas que estão tentando obter o que elas desejam e se resguardar de perder o que
tem; há a necessidade de apresentar-se como “refinado” para que se seja levado a sério
como participante do jogo amoroso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALLEN, Peter. The art of love: amatory fiction from Ovid to the Romance of the Rose.
Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1992.
CONTE, Gian Biagio. Love without Elegy: the Remedia amoris and the Logic of a
Genre. In: Genres and Readers: Lucretius, Love Elegy, Pliny’s Encyclopedia. Trad.
Glenn W. Most. Baltimore: John Hopkins University Press, 1994, p.35-65.
GIBSON, Roy K. The Ars Amatoria. In: KNOX, Peter E. (org.). A Companion to Ovid.
West Sussex: Blackwell Publishing, 2009.
GRIMAL, Pierre. O amor em Roma. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
KEITH, Alison. Sexuality and Gender. In: KNOX, Peter E. (org.). A Companion to
Ovid. West Sussex: Wiley-Blackwell Publishing, 2009.
VEYNE, Paul. O casal e a sexualidade em Roma. In: VEYNE, Paul. Sexo & poder em
Roma. Trad. Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p.187-243.
VOLK, Katharina. The poetics of Latin didactic: Lucretius, Vergil, Ovid, Manilius. New
York: Oxford University Press, 2002.