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Universidade Federal de Minas Gerais

Seminário de Literaturas Clássicas e Medievais: Um itinerário amoroso pela poesia didática


romana.
Professor: Matheus Trevizam
Aluno: Danilo de Albuquerque Furtado

Riqueza na Ars Amatoria de Ovídio.

Non ego diuitibus uenio praeceptor amandi: 161


Nil opus est illi, qui dabit, arte mea;
Secum habet ingenium, qui, cum libet, 'accipe' dicit;
Cedimus: inuentis plus placet ille meis.
Pauperibus vates ego sum, quia pauper amaui; 165
Cum dare non possem munera, uerba dabam.
Não venho como preceptor do Amor dos ricos: quem dará, em nada
tem necessidade de minha arte. É bem engenhoso quem, quando bem
quer, diz: “Aceita”. Cedemos a ele, pois mais agrada que meus
inventos. Sou o vate dos pobres porque amei na pobreza <165>. Não
podendo dar dinheiro, dava palavras. (OVÍDIO, Ars amatoria, II, 161-
1661)

Pelo pouco que conhecemos da biografia de Ovídio, essa proposição do poeta de


que ele é o “vate dos pobres” (pauperibus vates) pode parecer estranha. Afinal, como
nos diz Volk (2010, p.22), “Ovid belonged to the equestrian order, the second-highest
class [...] in the highly stratified society of ancient Rome. This implies that the family
must have been well off”. Como a poesia de Ovídio (em particular a Ars amatoria e os
Remedia amoris) é frequentemente estruturada de forma a justamente desnortear e
enganar seus leitores2, poderíamos pensar que se trata apenas de mais um engodo
irônico do poeta, mais uma sutil forma pela qual ele reforça que nem todas suas palavras
correspondem com a realidade.

No entanto, há mais aí do que simplesmente a disjunção entre a personagem


histórica de Ovídio e sua persona poética que, por ser baseada nos moldes elegíacos,
1
Esta e todas as outras traduções da Ars amatoria utilizadas aqui são de Matheus Trevizam (2016).
2
Vide, por exemplo, ALLEN (1992, p.8): “[...] the treatises demand the reader’s belief, but their repeated
emphasis on illusion, deception, and seduction makes it almost impossible to judge them anything but
false. Thus by denying their own fictive status, the treatises raise the stakes for which the reader must
play: to trust the text in all its dishonesty, or to reject it completely”.
pode adequadamente se assumir que fosse (relativamente) pobre devido à sua negação
da tradicional carreira política-militar dos varões romanos 3 (podemos aqui remeter a
Tibulo, por exemplo, e seu desejo de viver uma vida agrária simples junto de sua
amada4). Apesar de sua preocupação com a riqueza e os bens materiais na Ars amatoria
ser bastante secundária, há instâncias o suficiente de ponderação acerca de tais
elementos para que possamos nos deter um pouco mais longamente acerca dessas
questões aqui.

Em primeiro lugar, é interessante destacar como mesmo dentro do trecho com que
iniciamos nossas colocações, já se cria um certo conflito para o ethos do magister. A
admissão explícita de que o rico não tem necessidade de seus ensinamentos (Nil opus
est illi, 162) e a implícita de que suas posses são superiores à arte de amar (Cedimus:
inuentis plus placet ille meis, 164) não só atestam para o (suposto) caráter interesseiro
das mulheres, mas também enfraquecem a autoridade do professor, visto que limitam o
público alvo de suas lições apenas aos “pobres” – ou, mais especificamente, aos
relativamente “pobres” dentre a elite romana que ainda podiam se entregar ao otium5 da
vida amorosa elegíaca.

De fato, pensada nesses termos, essa pressuposição de pobreza pode, para uma
sensibilidade moderna, parecer uma desonestidade em si. Afinal, se dentro do próprio
poema vemos classes inferiores que estão claramente excluídas dos jogos amorosos (a
não ser como eventuais ferramentas ou empecilhos dentro deles6), essa pretensão de se
apresentar como pobre pode parecer também desonesta. Mas o recorte social que Ovídio
faz de restringir seu poema apenas aos cidadãos romanos livres e cultos desmente a
possível falsidade aí inerente, pelo menos no que concerne seu próprio ponto de vista:
se são apenas esses homens livres que são contemplados dentro do espaço possível do

3
Cf. CONTE (1994, p.60-61): “[...] the didactic argument of the Remedia goes on to attack elegy in one
of its fundamental ideological presuppositions: the deliberate choice of otium desidiosum. If otium,
indolent laxity, nourishes the sickness of love, then the cure must begin with a commitment to the active
life: […]. […] above all, the activities of the forum and of war, whose refusal meant the elegiac poet’s
renunciation of career and respectability”.
4
TIBULO apud. GRIMAL (1991, p.178): “Consinto em passar na pobreza todo o caminho de minha
vida, desde que a cada dia o fogo brilhe em minha lareira, que eu mesmo enxerte em sua estação minhas
vinhas tenras, como um camponês, e árvores frutíferas com mão hábil [...]”.
5
Vide nota 3, acima.
6
Vide, p. ex., Ars amatoria, I, 351-358 (cumplicidade entre o amante e a criada da mulher desejada); II,
251-256 (ganhar a confiança de servas e escravos); III, 618-658 (como a mulher deve se esquivar dos
vigias de seu marido). Para as raras participações mais ‘diretas’ de servas no jogo amoroso, ver I, 375-
380; III, 665-666.
jogo amoroso7, as diferenças de poder aquisitivo entre uns e outros pode justificar essa
relativa “pobreza”; e em todo caso, a caracterização que Ovídio faz de seus discípulos
remete, antes de mais nada, às representações típicas de um jovem amante dentro do
gênero da elegia amorosa8.

O que é realmente intrigante, então, não é tentar determinar de que formas as


ponderações acerca da riqueza não condizem com os dados biográficos do autor ou com
o contexto histórico socioeconômico em que se insere, mas sim as contradições que
aparecem internamente aos ensinamentos do praeceptor amoris e às suas bases nos
poemas elegíacos de amor propriamente ditos.

Talvez um dos mais notáveis aspectos da Ars amatoria em sua postura perante
questões de bens materiais é o modo pelo qual o poeta-professor aconselha que se evite
dar presentes à mulher desejada:

Magna superstitio tibi sit natalis amicae: 415


Quaque aliquid dandum est, illa sit atra dies.
Cum bene uitaris, tamen auferet; inuenit artem
Femina, qua cupidi carpat amantis opes.
Que o aniversário de tua amada seja ocasião de grandes escrúpulos
para ti <415>, que o dia em que a deves presentear com algo seja
agourento. Por mais que te resguardes, ela vai tomar-te algo; a mulher
sempre encontra um artifício para tirar dinheiro de um amante
desejoso. (OVÍDIO, Ars amatoria, I, 415-418)
Se por um lado a representação negativa da mulher como uma interesseira ávida
por extrair bens de seus amantes tem sido até aqui uma constante, o amante elegíaco,
por outro, já começa a apresentar atributos incomuns a ele. Certamente é crível (no
espaço meta-literário, ao menos) que o ‘amante pobre’ que Ovídio deseja ensinar
precise se valer de quantas artimanhas puder para evitar grandes gastos na sua busca do
amor, visto que não teria os recursos para fazê-los. Mas que um amante elegíaco se
renegue de forma sistemática e deliberada a aquiescer a certos desejos de sua amada –

7
O que podemos ver de maneira manifesta nesse trecho: Nec tibi turpe puta (quamvis sit turpe,
placebit),/Ingenua speculum sustinuisse manu. (“Também não consideres humilhante (ainda que te
rebaixes, agradará) sustentar-lhe o espelho com tua mão de homem livre”). (OVÍDIO, Ars amatoria, II,
215-216). Todos os grifos são de nossa autoria, a não ser onde explicitamente indicado.
8
Para uma discussão mais aprofundada sobre como Ovídio faz a relação entre seus poemas e o gênero
elegia, ver CONTE (1994). Por mais que o gênero da Ars amatoria e dos Remedia amoris não sejam tão
facilmente ou unicamente identificáveis como elegia amorosa – vide a classificação de VOLK (2002)
desses textos como ‘poesia didática’ – o fundamental é que eles se referem constantemente aos temas,
personagens e situações típicas da elegia amorosa, mesmo que de forma atípica para o gênero em si.
ou melhor, de sua domina, já que estamos falando do espaço do seruitium amoris – não
condiz com a posição de subserviência9 em que deveria supostamente se colocar.

Até aí, podemos facilmente dizer que se trata apenas da desconstrução do gênero
elegíaco que perpassa a Ars amatoria10, e certamente é interessante ver como até em
pequenos detalhes pragmáticos desse tipo Ovídio problematiza a manutenção da vida no
estilo elegíaco. Mas alguns versos depois, mais incongruências começam a aparecer,
dessa vez internas:

Multa rogant utenda dari, data reddere nolunt; 431


Perdis, et in damno gratia nulla tuo.
Pedem que lhes deem muito para usar, e não querem restituir o que
lhes deram; prejudicas-te, sem nenhum lucro no prejuízo. (OVÍDIO,
Ars amatoria, I, 431-432)
Ora, como conciliar a ideia de que os ricos nada tem a ganhar com os
ensinamentos do magister amoris com essa afirmativa de que as mulheres não
“restituem” adequadamente aqueles presentes que elas aparentemente tanto pedem de
seus amantes? Mesmo que tais mimos não pesem tanto sobre o amante rico quanto
pesam sobre o ‘pobre’, ainda é de se esperar que este queira receber uma contrapartida
por seus “investimentos” na mulher. Ou deveríamos supor que os amantes ricos não
seriam assim tão cínicos? Parece improvável, dado que os discípulos de Ovídio são
encorajados a o serem muito mais:

Si dederis aliquid, poteris ratione relinqui; 445


praeteritum tulerit perdideritque nihil;
at quod non dederis, semper uideare daturus.
[…]
sic, ne perdiderit, non cessat perdere lusor,
et reuocat cupidas alea saepe manus. 450
Hoc opus, hic labor est, primo sine munere iungi;
ne dederit gratis quae dedit, usque dabit.
Se lhe deres algo, poderás ser deixado por cálculo <445>: então, ela
aproveitará o passado e nada perderá. Mas sempre poderás parecer
disposto a dar o que não deres. [...] assim, para não perder, o jogador
não cessa de perder, e o dado frequentemente atrai ávidas mãos

9
É esta própria posição de subserviência a que se alude no trecho da nota 6, acima.
10
Cf. TREVIZAM (2014, p.107): “Ovídio opta desta feita por ‘afrouxar’ os laços a unirem o amante à
mulher de sua escolha, de maneira, mesmo, incompatível com o obsessivo descontrole passional a
transbordar naquela outra produção literária”.
<450>. Eis a obra, eis o labor, ligar-se a uma mulher sem antes dar-lhe
um presente: não desejando ter dado de graça o que deu,
continuamente dará. (OVÍDIO, Ars amatoria, I, 445-452)
Se a mulher principia esse trecho fazendo um cálculo frio (“ratione”) de que já
pode sair “no lucro” de uma dada relação pelos bens materiais que obteve nela, o
conhecedor da arte de ‘amar’ não fica devendo em nada a ela: irá também tentar extrair
o máximo de sua ‘dama’ pelo mínimo de investimento – a única diferença é que ele não
está atrás de bens materiais. A comparação com o jogador de dados é particularmente
esclarecedora em transmitir as deficiências éticas desse comportamento, pois se nesse
caso a mulher é o jogador de dados, então o amante é o dono do jogo que lucra quando
“o jogador não cessa de perder” (non cessat perdere lusor). Também não devemos
supor que é mera coincidência que Ovídio designe pelo mesmo verbo (perdere) tanto o
prejuízo do discípulo em 431 (Perdis) e as perdas do jogador em 449 (perdiderit,
perdere): apesar de todas as censuras às mulheres por serem interesseiras, na verdade
ambas as partes do casal de amantes parecem estar simplesmente querendo “lucrar” o
máximo que podem do relacionamento ao mesmo tempo que minimizam suas “perdas”.

Essa ideia de que as duas partes de um relacionamento amoroso vivido conforme


a Ars amatoria estão em um constante processo de barganha elucida ainda mais o quão
não confiável é o conselho do magister amoris para as puellas no livro III. Vejamos
como os seguintes versos entram em conflito com o que fora dito antes:

Ite per exemplum, genus o mortale, dearum 87


gaudia nec cupidis uestra negate uiris.
Vt iam decipiant, quid perditis? Omnia constant;
mille licet sumant, deperit inde nihil. 90
Conteritur ferrum, silices tenuatur ab usu:
sufficit et damni pars caret illa metu.
Ó raça de mortais, segui o exemplo das deusas, e não negueis vossos
prazeres aos homens desejosos! Ainda que logo enganem, que
perdeis? Tudo fica como antes. Ainda que mil homens usufruam de ti,
nada se estraga <90>. O ferro gasta-se, os seixos são consumidos pelo
uso: mas vossas partes resistem e não temem dano algum. (OVÍDIO,
Ars amatoria, III, 87-92).
O tom jocoso dessa passagem que impele as mulheres a abandonarem o pudor e se
entregarem de bom grado aos homens já foi atestado 11, bem como a tendenciosidade dos
11
Cf. TREVIZAM (2014, p. 105): “Ora, não pode, então, ter deixado de ser humorístico para o leitor
culto da Ars amatoria ver nos versos que acabamos de citar como, em vez do emprego de semelhantes
palavras por um apaixonado com fins de obter a própria satisfação afetiva e erótica, o magister amoris
interesses próprios do praeceptor amoris que transparecem claramente nesse conselho12.
Mas se permitimos que a reaparição desse vocabulário de “perda” nos remeta aos versos
445 a 452 do livro I, reforçamos ainda mais a disjunção entre esse conselho e os
interesses da aluna que os recebe: pois se pela comparação com o jogador de dados já
vimos que a puella tem sim o que “perder” ao ser enganada por homem bem sucedido
na arte de “ligar-se a uma mulher sem antes ter-lhe dado um presente” (primo sine
munere iungi), a pergunta “que perdeis?” (quid perditis?) mostra-se ser ainda mais
desonesta. Similarmente, o “dano” (damni) que as partes íntimas da mulher
aparentemente não sofrem pode nos remeter facilmente ao “prejuízo” (damno) “sem
lucro” (gratia nulla) que o amante sofre em I, 432.

Pode parecer que essas comparações que fazemos entre as “perdas” que o homem
e a mulher podem sofrer como parte do relacionamento são falhas por operarem em
níveis distintos: as dos homens claramente se referem a posses materiais externas,
enquanto que a das mulheres jaz num nível mais abstrato de danos corporais ou de
favores sexuais que não se deveriam dar “de graça” (gratis). No entanto, o próprio
Ovídio aproxima esses dois níveis logo em seguida:

Et tamen ulla uiro mulier “Non expedit” inquit? 95


Quid, nisi quam sumes, dic mihi, perdis aquam?
Mesmo assim, a mulher diz ao homem que não convém <95>. Que
gastas, fala-me, a não ser a água do banho? (OVÍDIO, Ars amatoria,
III, 95-96).
A referência aí à água do banho perdida aponta primeiro para a necessidade de
uma técnica contraceptiva que as moças empregavam para evitar uma gravidez
indesejada13. Mas os versos também aludem à ideia de que não se gasta ‘nada além’
(nisi) desse pouco dispendioso recurso, de forma que até as “perdas” da mulher são
reinterpretadas em um âmbito material. Novamente vemos, então, um engodo do
professor-poeta, pois ao tentar reinterpretar quais seriam os possíveis prejuízos para as
mulheres em termos estritamente materiais, ele parece tentar fazê-las esquecer do
“verdadeiro valor” que seus dons eróticos apresentam no livro I: ser uma “moeda de
troca” para obtenção de presentes.

incita as mulheres à entrega sexual não importa a quem [...]”. (Grifos do autor).
12
IBIDEM: “[...] o elemento enganador dos preceitos do magister amoris, levando em conta o parceiro do
sexo oposto que se deseja ensinar a seduzir com ardis, é [...] algo recorrentemente presente no texto desde
a proposição do início de fazer do amor uma arte (I, 1-2)”. (Grifos do autor).
13
Como lemos em VEYNE (2008, p.222): “O contraceptivo mais usado era a água fria. Ora a água fria
mata o espermatozoide e não se ignora que os antigos já sabiam que o esperma era uma coisa viva.”
Outro aspecto muito curioso dos ensinamentos de Ovídio é que eles
aparentemente sempre visam proteger os bens materiais que cada uma das partes
possuem ao adentrar em um relacionamento amoroso. Já o vimos com clareza no caso
dos homens (I, 415-418), mas o temos também para as mulheres:

Sunt qui mendaci specie grassentur amoris 441


perque aditus talis lucra pudenda petant.
Nec coma uos fallat liquido nitidíssima nardo
nec breuis in rugas lingula pressa suas,
nec toga decipiat filo tenuissima, nec si 445
anulus in digitis alter et alter erit.
Forsitan ex horum numero cultissimus ille
fur sit et uratur uestis amore tuae.
“Redde meum!” clamant spoliatae saepe puellae,
Há os que ataquem com um tipo falso de amor e, por tais
aproximações, aspirem lucros vis. Não vos enganeis com cabelos
reluzentes pelo líquido nardo, nem com uma correia curta bem segura
por pregas, nem com uma toga de trama delicadíssima <445>, nem
com vários anéis que trouxer em seus dedos. Talvez, o mais refinado
dentre esses seja um ladrão e se abrase por amor de tuas vestes.
“Devolve o que é meu”, frequentemente gritam as moças espoliadas
[...] (OVÍDIO, Ars amatoria, III, 441-449)
Tal como antes, podemos discernir nesses versos um interesse escuso do magister
amoris ao dar tais conselhos para as jovens moças de Roma. Como ele recomenda aos
seus discípulos do sexo masculino que se abstenham de tomar cuidados excessivamente
‘afeminados’ na aparência14, dizendo que “O que convém aos homens é uma aparência
despojada” (Forma uiros neclecta decet) (I, 507), é evidente que está sugerindo às
mulheres que elas também devem favorecer esse tipo de aparência, para que tanto ele
quanto seus discípulos sejam mais bem-sucedidos em suas conquistas amorosas.

Mas parece inegável que transparece também um cuidado semelhante ao dos


homens de se precaver contra um amor que vá causar perdas materiais. Esse homem que
não aspira o ‘amor’ ao ir atrás das mulheres, mas sim “lucros vis” (lucra pudenda) é
claramente recriminado por ser um “ladrão” (fur), e o fato de que está lesando as
mulheres que engana de maneira muito similar a que elas lesam os homens ao se

14
Ars amatoria, I, 503-510.
aproveitar deles para ganhar presentes não constitui justificativa para tais atos –
diferentemente do que Ovídio fala acerca dos perjúrios no livro I15, por exemplo.

Ovídio parece até começar a esboçar sutilmente esse ‘vício’ feminino da atração
pela riqueza ao descrever o ladrão cheio de apetrechos 16 e definido como “o mais
refinado” (cultissimus), de modo que poderia facilmente partir daí para definir tais
perdas femininas como uma justa paga. Mas tal admoestação nunca se efetiva, e os
pedidos femininos de “Devolve o que é meu” (Redde meum!) aparecem mais como um
‘genuíno’ conselho de cuidado para as discípulas, que se compadeceriam da situação de
tais mulheres, e não tanto como uma pregação moral na qual se ridicularizariam tais
pedidos.

Se Ovídio, construindo a Ars amatoria dentro de um arcabouço elegíaco, está (ou


deveria estar) apenas interessado no amor, porque haveria essa sugestão de que se
devem proteger os bens tanto dos homens quanto das mulheres? Na verdade, não são
poucos os usos de pequenos e baratos bens materiais no decurso da relação amorosa.
Aconselhando sobre como seduzir uma dama nos circos, Ovídio diz: “Ninharias cativam
espíritos frívolos” (Parua leuis capiunt animos) (I, 158), e ao tratar da manutenção do
amor no livro II, já não é mais possível aos homens evitar por completo a necessidade
de se darem presentes; compete apenas saber escolher os baratos:

Nec dominam iubeo pretioso munere dones; 261


parua, sed e paruis callidus apta dato.
Não aconselho que presenteies tua senhora com bens de custo
elevado: dá-lhe coisas pequenas, mas dá astuciosamente, dentre as
pequenas, o que convém. (OVÍDIO, Ars amatoria, I, 261-262)
E de fato, Ovídio prossegue e relembra que os ricos podem facilmente superar os
poetas em suas conquistas amorosas através de seus recursos:

Ei mihi! Non multum camen honoris habet.


Carmina laudantur, sed munera magna petuntur; 275
dummodo sit diues, barbarus ipse placet.
15
Ars amatoria, I, 643-644: “Fallite fallentes; ex magna parte profanum / sunt genus; in laqueos quos
posuere cadant.” (“Enganai as enganadoras: em sua maior parte, são de uma laia criminosa; caiam, pois,
nos laços que armaram”).
16
Contraste-se, por exemplo, as mulheres atraídas a esse homem cheio de joias com a postura que Ovídio
adscreve implicitamente aos homens (ou, pelo menos, aos amantes elegíacos) em III, 129-132: “Vos
quoque non caris aures onerate lapillis,/quos legit in uiridi decolor Indus aqua,/nec prodite graues insuto
uestibus auro./Per quas nos petitis, saepe fugatis, opes.” (“Não onereis vossas orelhas com pedras caras,
tiradas das águas verdes pelo negro indiano <130>, nem avanceis carregadas com o ouro bordado nas
roupas. Pelos artifícios com que buscais conquistar-nos, frequentemente nos afastamos.”).
Aurea sunt uere nunc saecula; plurimus auro
uenit honos, auro conciliatur amor;
Ai de mim! Os poemas não são muito honrados: elogiam-se os
poemas, mas a exigência dos presentes vultosos continua <275>.
Contanto que rico, mesmo um bárbaro agrada. Esta é, em verdade, a
Idade de Ouro: muitíssimo acresce a honra com ouro, com ouro de
compra o amor; (OVÍDIO, Ars amatoria, I, 274-278)
A arte de Ovídio (quer entendida como sua poesia ou como a técnica de sedução
interna à Ars amatoria) sem dúvida busca minimizar o papel das riquezas dentro do
âmbito do jogo amoroso, mas está excessivamente consciente dos limites do amor
elegíaco para ignorar por completo essa questão. De fato, esse tipo de pontuação
pragmática frequentemente opera como uma forma de revelar o caráter fantasioso da
perspectiva elegíaca17. De fato, o poeta não só não ignora a questão, como chega a
mostrar um considerável apreço pelos bens materiais em determinadas situações,
especialmente no que tange sua relação com o refinamento cultural da cidade de Roma:

Simplicitas rudis ante fuit; nunc aurea Roma est 113


et domiti magnas possidet orbis opes.
Adspice quae nunc sunt Capitolia, quaeque fuerunt, 115
alterius dices illa fuisse Iouis.
Curia consilio nunc est digníssima tanto;
de stipula Tatio regna tenente fuit.
Quae nunc sub Phoeo ducibusque Palatia fulgent,
Quid nisi araturis pascua bubus erant? 120
Prisca iuuent alios; ego me nunc denique natum
gratulor: haec aetas moribus apta meis,
non quia nunc terrae lentum subducitur aurum
lectaque diuerso litore concha uenit,
nec quia decresunt effosso marmore montes, 125
nec quia caeruleae mole fugantur aquae,
sed quia cultus adest, nec nostros mansit in annos
rusticitas priscis illa superstes auis.
Uma rude simplicidade houve outrora; agora Roma é dourada e detém
as enormes riquezas do mundo que domina. Pondera o que o Capitólio
é hoje e o que foi <115>: dirás que pertenceu a outro Júpiter. Agora a
17
Cf. ALLEN (1992, p.20): “The Ars and Remedia reveal (though often in indirect ways) that the love
described in elegiac poetry is essentially the same as the poetry itself: both are artistic fantasies,
constructed by the reader and the poetic lover together.”
Cúria é digníssima de tamanha assembleia, mas foi de colmo sob o
reinado de Tácio. O Palatino, que agora resplandece sob Febo e os
líderes, que foi senão o pasto dos bois que o lavrariam <120>? Que
outros se deleitem com antiguidades; eu me regozijo por só agora ter
nascido; esta é a época apropriada aos meus costumes, não porque o
ouro dúctil é extraído da terra, a concha recolhida provém da costa
estrangeira, os montes decrescem pela extração dos mármores <125>
e o dique afasta as águas cerúleas, mas porque há refinamento, e não
mais vigora aquela rusticidade que sobreviveu aos longínquos
ancestrais. (OVÍDIO, Ars amatoria, III, 113-128)
Por mais que Ovídio clame que as riquezas que Roma agora possui não lhe
interessam, sua insistência em enumerar as variadas formas pelas quais esses recursos
materiais transformaram a cidade torna claro que o “refinamento” (cultus) que condiz
com seus “costumes” (moribus) nasce deles. Isto é excepcionalmente claro em suas
comparações do que eram os espaços da cidade (Capitólio, Cúria e Palatino) nos tempos
antigos e na sua própria época – e não é a primeira vez que elogia o resplendor de tais
construções18 ou que trata da rusticidade de tais ambientes no passado19. Se citamos
Tibulo anteriormente como exemplo da pobreza proferida como característica do poeta
elegíaco, já não podemos deixar de notar que seu desejo por uma simples vida agrária já
não corresponde em nada com os ensinamentos de Ovídio.

“Impressione-as a elegância” (Munditie placeant)20, diz Ovídio aos seus


discípulos; “Seduz-nos a elegância” (Munditiis capimur)21, às discípulas. Difícil negar
que pelo menos em parte essa ‘elegância’ advém de certos recursos materiais: as
mulheres devem fazer uso de cosméticos (III, 199-204) (e talvez até de um certo
livrinho que as ensinaria como utiliza-los22), de vestidos adequados a elas, mesmo que
não os mais caros (III, 169-192), e talvez até de uma peruca comprada (III, 165-168);
também os homens devem se preocupar com o que vestem (I, 512) e ter uma educação
de elite (I, 458-460; II, 121-122); e ambos devem conhecer os jogos (II, 203-208; III,
353-368).

18
Ars amatoria, I, 67-70: “Tu modo Pompeia lentus spatiare sub umbra/[...]/aut ubi muneribus nati sua
munera mater/addidit, externo mármore diues opus.” (“Apenas vagueia lento sob a sombra do pórtico
de Pompeu [...] ou onde a mãe aos dons do filho uniu seus dons, soberba obra em mármore
estrangeiro;”)
19
Ars amatoria, I, 103-106: “Tunc neque marmóreo pendebant uela theatro,/nec fuerant liquido pulpita
rubra croco;/illic, quas tulerant nemorosa Palatia, frondes/simpliciter positae scaena sine arte fuit;”
(“Então, nem pendiam panos dos mármores cênicos nem havia palcos borrifados pelo rubro açafrão: os
galhos que o copado Palatino produzira <105>, grosseiramente dispostos, eram um teatro sem arte;”)
20
Ars amatoria, I, 511.
21
Ars amatoria, III, 133.
22
Ars amatoria, III, 205-208, referindo-se ao poema de Ovídio, Medicamina faciei feminae.
Inegável, então, que os bens materiais têm seu lugar (por mais que secundário) na
arte amorosa de Ovídio, que não por acaso se dá apenas no ambiente urbano de elite de
Roma. Mas essa admissão ‘prática’ das funções da riqueza no jogo amoroso indica que
essas relações frequentemente são ditadas por interesses externos aos sentimentos
afetivos ou até mesmo aos desejos eróticos, e reforçam que há muito mais ilusão e
desonestidade operando na “verdadeira” técnica amorosa do que os arroubos passionais
sinceros que definem a elegia propriamente dita. Há sempre a negociação entre as partes
envolvidas que estão tentando obter o que elas desejam e se resguardar de perder o que
tem; há a necessidade de apresentar-se como “refinado” para que se seja levado a sério
como participante do jogo amoroso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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