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A ASTÚCIA

DE NINGUÉM
SER E NÃO SER NA Odisseia

Uma interpretação do poema de Homero


seguida da tradução de oito cantos

ANDRÉ MALTA
1 ª edição
2018
A ASTÚCIA
DE NINGUÉM
SER E NÃO SER NA Odisseia

Uma interpretação do poema de Homero


seguida da tradução de oito cantos

ANDRÉ MALTA
texto ©André Malta

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por qualquer
meio sem a autorização do autor.

Coordenação editorial e Projeto GráfiCo Elza Silveira


imaGem da CaPa Polifemo (mármore, século II a.C.)
- Museu de Belas Artes de Boston

Nesta edição, respeitou-se o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

fiCha C ataloGráfiCa

M261a Malta, André.


2018 A astúcia de ninguém: ser e não ser na Odisseia. /
André Malta.
- Belo Horizonte : Impressões de Minas, 2018.
554 p.

ISBN: 978-85-63612-57-1

1. Homero – Odisseia – Crítica e interpretação.


2. Literatura grega. 3. Poesia e ficção épicas. I. Título
CDD: 883.1

Ficha catalográfica elaborada por: Júlia Gonçalves da Silveira


Bibliotecária/Documentalista
CRB-6 720

Impressões de Minas
rua Bueno Brandão 80 Floresta 31015-178
Belo Horizonte - MG
Tel. (31) 3492 2383
www.impressoesdeminas.com.br
pro meu filho Rocco
aprender a ser
em sigilo

Ana Martins Marques,


Como se fosse a casa

Iam de cabo em cabo nomeando


baías promontórios enseadas:
encostas e praias surgiam
como sendo chamadas

e as coisas mergulhadas no sem-nome


da sua própria ausência regressadas
uma por uma ao seu nome respondiam
como sendo criadas

Sophia de Mello B. Andresen,


“Mundo nomeado ou
descoberta das ilhas”
SUMÁRIO

Prefácio | 11

Parte I – A AStúcIA de nIngUéM | 17


Abertura | 19

1. Zeus e a (in)justiça | 24
Uniformidade e consistência | 26
Motivação divina, motivação humana | 40
(Contra)exemplo: Egisto, Clitemnestra, Orestes | 47

2. FUROR e glóRIA de telêMAcO | 52


Caracterização e desenvolvimento | 52
Da infância à idade adulta | 58
O jovem em ação | 80
O filho do pai | 87

3. OS PRetendenteS e A hOSPItAlIdAde | 106


Os crimes | 107
Antínoo e Eurímaco, Anfínomo e Liodes | 113
Modelos: Nestor, Menelau, Eumeu | 117
A punição anunciada | 122
A astúcia negativa | 130

4. A ARte de PenélOPe | 138


A mulher circunspecta | 139
O encontro com o mendigo | 148
O sonho e o desafio do arco | 156
A cama imóvel | 165

5. odisseu ec(a)lipsado | 173


Não-visto, não-dito | 175
O retorno, os deuses e o “ódio seu” | 182
Isolado com Calipso | 199
6. os feácios e a transição | 207
Fronteira náutica | 209
Casamento, esporte, política | 219

7. O cAntO dentRO dO cAntO | 228


O cego Demódoco | 230
Autoridade e novidade | 250
Odisseu “aedo” | 261

8. sendo e não sendo odisseu | 275


Contra o Ciclope | 277
Paragens e (ultra)passagens | 317
A volta (re)velada | 343

Parte ii – cantos traduZidos | 389

canto 1 | 393
(resumo dos Cantos 2 a 7) | 407
canto 8 | 410
canto 9 | 428
(resumo do Canto 10) | 445
canto 11 | 446
(resumo do Canto 12) | 465
canto 13 | 466
canto 14 | 480
(resumo dos Cantos 15 a 18) | 496
canto 19 | 498
(resumo dos Cantos 20 a 23) | 516
canto 24 | 518

glossário | 535
Obras citadas | 541
Prefácio

Interpretar a Odisseia é uma tarefa hercúlea e fadada, logo de saída, ao fra-


casso. A sensação de quem se coloca diante do poema com a intenção de compre-
endê-lo – de apreendê-lo em seu complexo conjunto – é de vertigem, uma vertigem
sedutora e estimulante, que nos convida a percorrer esse labirinto sabendo que não
há um ponto de chegada. É com uma clara consciência dessa aporia (vista como ri-
queza de toda grande obra) que este livro tem a intenção de ser, simultaneamente,
uma interpretação do mais famoso poema de Homero, com um foco específico e
delimitado, e um apanhado geral dos principais problemas enfrentados pelos seus
estudiosos nos últimos cem anos.
A questão interpretativa central aqui é: de que forma Odisseu (ou Ulisses)
pode ser visto como personagem moralmente intrincado, tal qual a tradição grega
em geral o pintava, isto é, não apenas como o herói sofredor que se torna o cam-
peão da justiça, conforme querem as leituras mais correntes, mas alguém cujo so-
frimento põe em xeque a presença de uma justiça sua absoluta e inquestionável?
Junto a essa pergunta principal colocam-se outras duas, uma de caráter mais geral
– de que maneira Homero nos apresenta esse conceito de justiça, na relação entre
deuses e homens? –, e outra mais particular: como isso se articula aos temas fun-
damentais no poema (explicitados por um jogo de palavras) da “astúcia”, mêtis em
grego, e do encobrimento/disfarce ou ser “ninguém”, mé tis no original? Na tentati-
va de responder a esses problemas, a ênfase deste estudo vai recair sobre o famoso
relato ou “apólogo” de Odisseu entre os Cantos 9 a 12 e, mais especificamente, no
episódio decisivo com o Ciclope, em que esses tópicos da esperteza/inteligência,
da identidade e do comportamento combinam-se de modo magistral, fornecendo
uma possível chave de leitura para o poema. A tese defendida é de que o herói astu-
to não só se desenvolve ao longo da Odisseia, mas, sobretudo, que reflete ele mes-
mo sobre esse desenvolvimento ao rever suas aventuras, e isso implica uma relação
nada simples entre saber justo e clarividente, de um lado, e afirmação/negação de
identidade, de outro.
Esse eixo central, no entanto, precisa, para sua apresentação, que outros ele-
mentos do poema sejam abordados, e por isso o trabalho toca em pontos que, ape-
sar da aparência de laterais, têm relação direta com a questão principal. Na realida-
de, o que se tentou fazer foi conferir um tratamento minimamente autônomo aos
personagens que orbitam em torno de Odisseu, tratamento que servisse como uma

11
espécie de introdução sem, contudo, perder de vista que os temas relacionados a
cada um deles (amadurecimento, (in)fidelidade, soberba) só têm de fato sentido
na associação com o herói principal. A postura adotada foi dupla: discutir os perso-
nagens apresentados nos cantos iniciais – Telêmaco, Penélope, os pretendentes –,
traçando um painel de seu comportamento do começo ao fim da narrativa (à luz do
qual o herói central pode ser melhor entendido); e, no caso específico de Odisseu,
fazer a análise seguir a ordem da narrativa, uma vez que é nele que se concentra a
interpretação. Há assim um movimento diverso entre os capítulos 1 e 4, mais abran-
gentes, e os capítulos 5 e 8, que se concentram no protagonista e são sequenciais.
Isso se explica, novamente, porque as outras figuras são vistas aqui em função de
Odisseu, e o desenvolvimento delas – com seus temas específicos – nos ajuda a en-
tender o desenvolvimento do herói. Nesse sentido, o capítulo final, “Sendo e não
sendo Odisseu”, de longe o mais extenso e denso do livro, fazendo a leitura do apó-
logo e da segunda parte do poema, é o ponto para o qual toda a discussão converge.
Vale dizer ainda que nessa estrutura, embora os capítulos façam remissão uns aos
outros e tenham sido redigidos em função do conjunto, sua leitura pode ser feita de
forma independente, como ensaios com vida própria.
Ao logo do texto, ficará claro que não houve aqui nenhuma intenção de
fazer um levantamento bibliográfico extenso – algo impossível em se tratando de
Homero. Como disse Denys Page em seu livro sobre a Odisseia, escrito há mais de
sessenta anos, quando a produção já era extensa, mas incomparável com o volume
atual: “Da série interminável de livros e ensaios que não é seguro negligenciar, por
mais que a leitura não seja proveitosa, ninguém é capaz de dominar mais do que
uma seleta e relativamente pequena proporção”.* Na verdade, na comparação com
outros trabalhos do tipo talvez a proporção aqui seja pequena demais, mas é preciso
deixar claro que isso faz parte de uma estratégia deliberada, segundo a qual se
evita – na bibliografia e nas notas – esse mapeamento tão recorrente nos trabalhos
acadêmicos atuais. A justificativa baseia-se na impressão de que a formação de
um labirinto de obras, se bem que informativa, cria um excesso de referências que,
além do efeito da dispersão, termina por se voltar contra a vontade inicial de discutir
e esclarecer: o autor fica refém da angústia de citar e citar (eu mesmo sei que não
estou livre dela), mas a citação na maior parte das vezes pouco ajuda no sentido
de construir uma argumentação própria e cerrada. Os interlocutores são trazidos à

* Denys Page, The Homeric Odyssey. Oxford: The Clarendon Press, 1955, p. 17.

12
baila quantitativamente, mas não qualitativamente. Seria ingenuidade, no entanto,
incorrer no extremo oposto e reduzir a interlocução a um mínimo: os problemas
relativos à poesia homérica são tantos e tão variados, que se debruçar sobre eles
sem uma preparação prévia, sem um cauteloso exame, por mais exíguo que seja,
representa uma superficialidade quase certa, um exercício de impressionismo que
não se casa bem com a atividade do estudioso aplicado. Sendo assim, é preciso tentar
encontrar um meio termo entre a avalanche bibliográfica – a “bibliografite” que se
tornou norma para a aferição da cientificidade de um trabalho – e a citação magra
e inane, que presume que a investigação pode prescindir do mergulho na produção
anterior. Talvez o trabalho ideal seja aquele que, dominando com segurança o vasto
material que tratou de seu tema, consiga extrair daí aquilo que é representativo,
pertinente ou ilustrativo, dando ao leitor as coordenadas principais da discussão
sem fazê-lo afogar-se em referências que, longe de esclarecer, só confundem e
obscurecem. Este trabalho está muito distante disso, mas foi com essa idealização
em mente que se buscou ser menos exaustivo.
Outra prática adotada aqui foi a de em vários momentos apresentar, por ex-
tenso, as passagens discutidas, para que o leitor não só veja que trecho narrativo está
em pauta, mas também possa avaliar com mais clareza a leitura específica propos-
ta a partir dos versos citados. Essas citações – da Odisseia, da Ilíada e da literatura
grega em geral (Hesíodo, Arquíloco, Sólon, Mimnermo, Platão, Aristóteles) – são
apresentadas em tradução, para que o debate não fique restrito aos especialistas.
Todas as versões, inclusive da literatura secundária, são de minha autoria, a não ser
quando há indicação em contrário. Os títulos das obras estrangeiras são vertidos
para o português no corpo do texto, mas mantidos na forma original nas notas. Já
as frases e termos gregos fundamentais, em vez de grafados em seu modo nativo,
são apresentados em transliteração para o alfabeto latino, com o único objetivo, mais
uma vez, de facilitar a leitura do leitor não especializado. Elaborei ainda um pequeno
glossário, com a relação dos principais nomes que aparecem ao longo do poema.
Na segunda parte, seguindo o mesmo esquema do meu trabalho sobre a
Ilíada (A selvagem perdição, de 2006), apresento a versão integral de oito cantos da
Odisseia (lá foram quatro), eleitos como os mais relevantes para o enfoque adotado
aqui. Os Cantos 1 e 24 são importantes porque correspondem ao princípio e à
conclusão do poema, trazendo à tona a relação entre inteligência e justiça explorada
na interpretação. Os Cantos 8, 9 e 11 são decisivos para a conexão entre canto,
olhar retrospectivo e astúcia, esta última encarada também sob a ótica do domínio

13
da linguagem; o Canto 9, especificamente, apresenta o embate com o Ciclope, que
aprofunda a relação entre esperteza e identidade. Já o Canto 13, trazendo o encontro
mais importante do poema entre Odisseu e a deusa Atena, é o que explora de forma
mais direta os movimentos e qualidades da figura astuta. Finalmente, os Cantos 14
e 19 são passagens fundamentais para que se perceba, nas mentiras contadas por
Odisseu a Eumeu e Penélope, sua relação com a palavra e seu encobrimento enquanto
herói “multiastuto”. No início de cada um desses episódios apresento um resumo dos
acontecimentos, com a indicação dos versos, resumo que contempla também os
cantos que não foram traduzidos, para que o leitor possa ter uma visão panorâmica
da ação. Isso não dispensa a leitura integral do poema, e várias passagens de cantos
que não foram traduzidos aqui aparecem vertidas por mim no corpo do estudo.
Os critérios adotados na transposição para o português, com os quais venho
trabalhando desde 1995, foram basicamente quatro: 1. emprego de duas redondi-
lhas maiores – o também chamado setessílabo – para traduzir cada hexâmetro, so-
lução capaz de acomodar melhor as informações do grego e, em diálogo com a nos-
sa tradição poética, evocar as origens orais de Homero (o sinal gráfico § marca para
o leitor, no interior de cada linha, a divisão entre as redondilhas); 2. uso de uma sin-
taxe não muito enviesada e que permitisse, tanto quanto possível, a reprodução da
simplicidade estrutural da épica e a manutenção dos seus cavalgamentos; 3. aten-
ção à construção “formular”, o que representou, na prática, um esforço para que a
repetição de expressões e versos (refrãos às vezes simples, às vezes complexos e
quase imperceptíveis) fosse preservada; e 4. coerência na transposição de termos-
-chave e seus cognatos, como astúcia (mêtis), ardil (dólos), atrevimento (atasthalíe),
justiça (díke), soberba (húbris) etc., para que a rede semântica original reaparecesse
em português. O objetivo foi conciliar esses quatro critérios sem qualquer preten-
são de infalibilidade. Desde a contagem métrica, nunca abandonada mas feita de
forma mais solta, sem acentuações e cesuras obrigatórias, passando ainda pela pos-
sível inversão sintática quando necessário destacar determinado elemento ou privi-
legiar outro critério mais relevante, e chegando finalmente às próprias “fórmulas”,
em várias ocasiões impossíveis de serem preservadas por causa do quebra-cabeça
sintático-semântico que esse complexo e irrecriável sistema representa para o tra-
dutor, o que se buscou foi não um mecanicismo rígido e aprisionador, mas sim um
equilíbrio razoável, com o propósito de que o estilo geral fosse simples. Apesar do
inegável artificialismo da dicção homérica, com sua mistura dialetal ímpar (o que
por si só justificaria artificialismos ou idioletos mais ou menos correspondentes na

14
língua de chegada), dada a dificuldade de se encontrar um equivalente em portu-
guês que fosse coerente e sem afetação, preferi privilegiar – com o despojamento e
um caráter mais pedestre – a fluência narrativa que marca essa poesia.
Um comentário importante sobre os nomes próprios e os jogos de palavra
que caracterizam a Odisseia. No primeiro caso, reforçando a posição mais conser-
vadora, adotei a postura de não tentar traduzi-los, mesmo alguns deles tendo um
significado translúcido no original, como Calipso (“A que encobre”) e Antínoo (“Con-
trassenso”), para ficar só em dois exemplos. No segundo caso, ao contrário, busquei
sempre um correspondente aproximado em português, como deve ficar claro para
o leitor nos trechos onde os trocadilhos ocorrem, sendo de todos eles os mais cons-
pícuos aqueles dois que envolvem o protagonista – entre “Odisseu” (Odusseús) e
“ódio seu” (na realidade, um verbo no grego, odússomai), e entre mêtis (“astúcia”) e
mé tis (“ninguém”), este último (não) traduzido por “astúcia de ninguém”.
Sobre o método geral de leitura adotado, vale também o que foi aplicado à
Ilíada em A selvagem perdição: contra a perspectiva histórica e analítico-científica da
filologia clássica, prefiro adotar uma abordagem mais literária e ensaística, ainda que
denunciando a formação habitual. Em outras palavras, não exploro a relação tempo-
ral precisa entre a Ilíada e a Odisseia e tampouco entre os poemas e a possível época
(ou épocas) que refletiriam; e, principalmente, não busco uma leitura vertical das pas-
sagens e problemas, embasada numa suposta objetividade no trato com o texto e as
referências bibliográficas, mas antes uma visão horizontal, que interligue as partes e
lhes dê um sentido maior, de conjunto, sentido esse admitido como inescapável cons-
trução do intérprete parcial que todos, especialistas ou não, nunca deixamos de ser.

Gostaria de expressar meu agradecimento àqueles que contribuíram


para a redação deste trabalho. Em primeiro lugar, ao CNPq, pela concessão da
bolsa de produtividade em pesquisa, triênio 2011-2014, e à FAPESP, pela con-
cessão da bolsa de pós-doutorado pelo período de um ano (2011-2012), junto à
Brown University (EUA), onde pude escrever parte substancial deste livro, ainda
que sua conclusão tenha se estendido por mais seis anos. Depois, a David Kons-
tan e Pura Nieto Hernández, que me acolheram em Providence/RI e debateram
comigo problemas relativos a Homero e à Odisseia. Deborah Boedeker e Johan-
na Hanink também foram minhas interlocutoras durante esse período, assim

15
como Antonio Orlando Dourado-Lopes, da Universidade Federal de Minas Ge-
rais, colega cuja companhia me ajudou a levar o projeto adiante no rigoroso
inverno passado no hemisfério norte. Como já disse Joaquim Nabuco em Minha
formação, “ninguém aspira o ar americano sem achá-lo mais vivo, mais leve,
mais elástico do que os outros”, e esse dinamismo, junto com a “impressão de
nitidez” que o mesmo Nabuco diz ter experimentado nos Estados Unidos, foi
um grande estímulo para a confecção deste trabalho.
Ao longo do tempo, versões parciais ou abreviadas de capítulos deste
projeto saíram como artigos, em revistas acadêmicas e livros coletivos: do Capí-
tulo 1, como “O tema da justiça e a velha novidade da Odisseia”, em Organon 31
(2016): 15-30; do Capítulo 2, como “Telêmaco e o personagem épico em cons-
trução”, em C. Werner, A. Dourado-Lopes e E. Werner (ed.), Tecendo narrativas:
unidade e episódio na literatura grega (São Paulo: Humanitas, 2015); do Capítulo
3, como “Considerações sobre os pretendentes na Odisseia”, em T. R. Assunção
e A. Dourado-Lopes (ed.), Reinterpretando Homero. Belo Horizonte: Relicário,
2018; do Capítulo 4, como “Penélope e a arte da indecisão na Odisseia”, em Nun-
tius antiquus 8 (2012): 7-28; do Capítulo 5, como “A sina de Odisseu e o que o
nome ensina”, em Filosofia e educação 9 (2017): 25-44; do Capítulo 6, como “Os
feácios e a transição de Odisseu na Odisseia”, em Acta scientiarum 39 (2017):
1-11; e, do Capítulo 7, como “A novidade do canto na Odisseia”, em G. Silva e
M.A. Oliveira Silva (ed.), A ideia de história na antiguidade clássica (São Paulo:
Alameda, 2017). Agradeço aos editores e pareceristas anônimos dessas publica-
ções pelos comentários e sugestões, que contribuíram para o enriquecimento
da discussão apresentada aqui.

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PARTE I
A ASTÚCIA DE NINGUÉM
Abertura

A abertura da Odisseia combina três temas que serão fundamentais para


o desenvolvimento da narrativa: astúcia, justiça e encobrimento. Embora mui-
tos estudiosos considerem que a introdução de fato está restrita aos versos 1-10
– que correspondem à invocação –, cito aqui também os versos 11-21, tomados
por alguns como igualmente pertencentes ao proêmio, porque descrevem a si-
tuação a partir da qual a ação se desenvolve:1

O varão me evoca, Musa, multiforme (polútropon), que muitíssimo


vagou depois de pilhar a sacra pólis de Troia,
e de muitos homens viu cidades e soube a mente,
e muitas dores no mar em seu ânimo sofreu,
almejando sua vida e a volta dos companheiros.
Mas nem assim os salvou, apesar de se empenhar,
pois pereceram por causa dos próprios atrevimentos (atasthalíeisin),
os tolos (népioi), que devoraram vacas do sobrepassante
Sol – que deles então retirou o dia da volta!
Disso a partir de algo, deusa de Zeus, nos fala também.
Todos os outros que tinham fugido ao íngreme fim
estavam em casa, a salvo da guerra e também do mar.
A ele apenas – carente da mulher e do retorno –
retinha a senhora ninfa, Calipso (Kalupsó), diva entre deusas,
em suas fundas cavernas, ansiando-o por esposo.
Mas, com o passar do tempo, quando veio enfim o ano
no qual os deuses tramaram seu regresso para casa,
pra Ítaca, nem então se livrou dos desafios,
mesmo entre os seus. Dele todos os deuses se apiedavam,
menos Posêidon, que contra o quase-deus Odisseu
sem parar se enfurecia, até atingir sua terra.
(Od. 1, 1-21)

1 É a posição adotada, por exemplo, por Peter Jones: “O ‘proêmio’ (proemium, introdução) da
Odisseia tecnicamente termina no verso 10. (...) [Mas] na realidade é mais vantajoso encarar
o proêmio como incluindo também os versos 11-21”. Ver Peter Jones, Homer’s Odyssey: a
commentary based on the translation of Richmond Lattimore. London: Bristol Classics Press,
1988, p. 1.

19
A astúcia é indicada logo no primeiro verso através do termo “multiforme”,
polútropos, adjetivo grego que, embora admita a tradução por “de muitos caminhos”,
parece antes destacar a ideia de versatilidade, de uma multiplicidade de recursos
mentais, de uma polivalência que será reafirmada inúmeras vezes na sequência por
outro qualificativo, o tradicional polúmetis (“multiastuto”) que acompanha Odisseu.
Em momentos decisivos do poema, a esperteza – entendida não só como inteligência
aguda, mas também como agilidade de ação, senso de oportunidade e domínio da
palavra – surgirá como característica fundamental para a resolução dos obstáculos
com que se depara o herói, e ele próprio, diante dos feácios, se apresentará como
aquele com quem pelos ardis todos os homens se preocupam (Od. 9, 19-20). Na
realidade, como se sabe, o papel central da mêtis, tão evidente em decorrência da
caracterização tradicional de Odisseu (neto do ladino Autólico) e de sua relação
com a deusa Atena, filha da própria Astúcia, não fica restrito ao protagonista do
poema, marcando também sua esposa e seu filho, ambos igualmente detentores
de epítetos recorrentes que destacam o mesmo traço de personalidade: períphron,
“circunspecta” (Penélope), e pepnuménos, “ponderado” (Telêmaco). Em suas ações,
a reflexão e a estratégia surgirão mais uma vez como ferramentais essenciais para o
enfrentamento das adversidades e o sucesso.
O tema da astúcia, por sua vez, vem interligado ao da justiça: Odisseu
se empenhou na salvação de seus companheiros, mas estes, “tolos” (népioi),
pereceram por seus “atrevimentos” (atasthalíai).2 Ao “esperto” contrapõem-
se os “insensatos”, e a insensatez é relacionada a uma transgressão, a um
comportamento desmedido. A ênfase sobre a responsabilidade humana – “por
causa dos próprios atrevimentos” – já nos prepara para o discurso de Zeus logo
a seguir e antecipa, num nível imediato, a condenação dos pretendentes de
Penélope, também eles desmedidos e a contrastar com a justiça de Odisseu.
Finalmente, o encobrimento é indicado pela permanência de Odisseu na
ilha de Calipso, cujo nome em grego – como o de muitos outros personagens no

2 Escolhi traduzir atasthalíe por “atrevimento”, ainda que se encontre a tradução por “estul-
tícia” em português, conforme sugestão de Jaa Torrano (Teogonia, v. 209 e 516, em Hesíodo:
Teogonia – A origem dos deuses. São Paulo: Iluminuras, 1987). O Dicionário Grego-Português dá
como primeiras acepções “tola presunção” e “orgulho insolente”, e sabemos que é possível
que o termo venha acompanhado da noção de “soberba”, húbris (Il. 11, 695; Od. 24, 282 e
352; Trab., 134). Trajano Vieira traduziu o termo por “insensatez” na abertura da sua Odisseia
(Homero: Odisseia. São Paulo: Editora 34, 2011) e Christian Werner por “iniquidade” (Homero:
Odisseia. São Paulo: Cosacnaify, 2014), enquanto o português Frederico Lourenço optou por
“loucura” (Homero: Odisseia. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2011).

20
poema – tem um sentido muito claro:3 Kalupsó é forma própria cunhada sobre o
verbo kalúpto, que quer dizer “encobrir”, “ocultar”, “envolver”. O herói experimen-
ta, portanto, na abertura da narrativa, uma “ocultação”, e essa condição indesejada
de Odisseu tem reflexos sobre aquela sua caracterização enquanto homem astuto
e justo que as primeiras linhas nos passam. Sabemos que a mêtis opera sim com o
desaparecimento, mas com um desaparecimento estratégico, com um “não ser” ou
“ser ninguém” (para se mencionar aqui o famoso episódio do Canto 9, ou mesmo a
segunda metade do poema) programado, e não com um encobrimento involuntá-
rio, em que se manifesta a falta de controle sobre a situação. Se Odisseu está oculto
à sua revelia, surge a dificuldade de vê-lo integralmente como homem astuto. Além
do mais, se o atrevimento dos companheiros foi o que fez com que fossem privados
do seu retorno, o retorno não consumado de Odisseu, motivado pela cólera de Po-
sêidon, contribui também para complicar uma abordagem exclusivamente positiva
do personagem, como quer a maioria dos estudiosos.
De qualquer modo, pode-se dizer que os versos iniciais da Odisseia dão ên-
fase, por um lado, à astúcia e sua associação à execução da justiça, e por outro à
ocultação e ao encobrimento. Daí o caráter abertamente moral ou ético do poe-
ma, preocupado em contrapor o justo ao injusto, o certo ao errado, tomando o
tópico da hospitalidade (natural num poema que fala de viagens e mendicância)
como um fio que atravessa toda a narrativa e determina a que lado pertencem os
personagens. Daí, também, a utilização do disfarce e do reconhecimento como
recursos dramáticos destacados, que fazem a ação avançar produzindo reviravol-
tas e transformações, e que em última instância são responsáveis por determinar
a própria condição gloriosa – ou inglória – dos heróis. Odisseu é a figura central
por meio da qual o poema de Homero explora as flutuações entre justo e injusto,
glorioso e inglório, manifesto e desaparecido, dando uma dimensão mais profun-
da a um esquema que, na aparência, está reduzido a simples polarizações. É a
instabilidade das situações vividas pelo protagonista no estabelecimento de sua
identidade, e que em parte ele próprio recapitula entre os Cantos 9 e 12, que con-
fere ao texto um poder de reflexão que extrapola o alcance moral de uma fábula
ou conto popular, uma vez que o esforço de nosso herói para voltar para casa e
restabelecer a justiça vem marcado pelo conflito com a divindade e com uma re-
visão de suas próprias ações, como se tentará mostrar adiante. Deve-se dizer que

3 Para uma lista com o esclarecimento do significado de vários nomes próprios no poema, e
a proposta de tradução para alguns deles, ver C. Werner, Homero: Odisseia, p. 619-623.

21
não é problema o fato de o proêmio não fazer referência a Penélope, Telêmaco e
aos pretendentes, e indicar apenas certas coordenadas do poema – como, aliás,
ocorre igualmente com a abertura da Ilíada. Do ponto de vista narrativo, é natural
que a atenção recaia sobre a última aventura com os companheiros e o momento
em que Odisseu fica, definitivamente, só. Rainer Friedrich esclarece a menção à
Trinácia nesse início da narrativa:

O episódio assinala uma etapa importantíssima na ação do épico, porque


a concepção do nóstos [“retorno”] de Odisseu determina que o herói
volte para casa em péssima situação, privado de seus homens e navios. O
poeta, portanto, tinha que se livrar da última nau e da tripulação em algum
momento, e a aventura na Trinácia criava a ocasião ideal. Essas perdas
reduzem o famoso líder de homens e combatente da Guerra de Troia à figura
do náufrago solitário (...) [Essa aventura] é assim um ponto de inflexão
significativo; daí sua proeminência no proêmio.4

Mas essa informação, junto com as outras, parece ter também a fun-
ção de chamar nossa atenção, enviesadamente, para os caminhos centrais da
Odisseia, de cuja história os ouvintes já tinham pleno conhecimento. É como
se sublinhar os tópicos principais fosse mais importante do que apresentar um
sumário preciso, porque assim o foco é direcionado não tanto para o que vai ser
dito, mas como e com que propósito isso vai ser dito. Além do mais, não se deve
ingenuamente esperar que um poema antigo seja desprovido de sofisticação e
da elaboração oblíqua de sentido: a poesia homérica está longe de operar com
uma lógica linear, em que tudo é dito de maneira clara. Como já apontou Jenny
Strauss Clay, à postura de negar toda e qualquer sutileza, reforçada pela equa-
ção “oralidade = simplicidade”,

subjaz uma premissa tácita sobre Homero: de que ele é direto, que seu
modo de composição e sua elaboração mental excluem a possibilidade de

4 R. Friedrich, “Thrinakia and Zeus’ ways to men in the Odyssey”, Greek, Roman, & Byzantine
Studies 28/4 (1987): 375-400, p. 394. Irene de Jong chama atenção para o mesmo ponto em
seu comentário, mostrando o isolamento de Odisseu não só por voltar sem os companheiros,
mas por ser o último a voltar de todos os guerreiros de Troia (“Todos os outros... estavam em
casa... a ele apenas...”, v. 11-13); ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey.
Cambridge: Cambridge University Press, 2001, p. 8.

22
ambiguidades ou subterfúgios. (...) [Mas] suas ambiguidades e aparentes
inconsistências podem ter um significado.5

É com essa visão que pretendemos ler a Odisseia, fazendo-o “de cima”,
para usar a expressão de J.-P. Vernant: as dificuldades devem ser explicadas com
base no pressuposto de que o poema fazia sentido para sua audiência e que esse
sentido, mesmo que perdido para nós em sua totalidade (se é que ele existiu
numa condição ideal), deve ser recriado pelo intérprete.

5 J. Clay, The wrath of Athena: Gods and men in the Odyssey. Princeton: Princeton University
Press: 1983, p. xiii e 6.

23
1. Zeus e a (in)justiça

Já tem sido devidamente destacado o caráter “programático” do pronun-


ciamento de Zeus na Odisseia, entre os versos 32 e 43 do Canto 1.6 Não é de se
estranhar que um discurso direto surja tão depressa nessa narrativa em terceira
pessoa – o gosto de Homero pelo que os gregos antigos chamavam de “imita-
ção” já era sublinhado por Platão e Aristóteles, e no poema, como sabemos,
mais da metade dos versos corresponde a falas de personagens.7 O que chama
a atenção é que o primeiro discurso venha da boca de Zeus, o deus supremo, e
que esse discurso, além de servir, com toda a sua gravidade, de paradigma mo-
ral para a ação subsequente, traga um breve mas peremptório posicionamento
sobre as questões correlatas do excesso humano e sua responsabilidade. Por
tais razões, tem sido extenso o debate dos especialistas sobre essas linhas, que
reproduzo a seguir em tradução para o português:

E entre eles falou primeiro o pai de homens e de deuses,


pois se lembrava em seu ânimo então do ilibado Egisto,
por Orestes telecélebre morto, o filho de Agamênon.
Dele lembrado, falou entre imortais tais palavras:
“Opópoi, como os mortais de fato culpam os deuses (theoùs aitióontai)!
Pois de nós, dizem, os males lhes vêm – mas são eles mesmos
que por seus atrevimentos (atasthalíeisin) além do quinhão (hupèr móron) têm dores,
tal como também Egisto além do quinhão (hupèr móron) casou-se
com a cortejada esposa do Atrida e à volta o matou,
ciente do íngreme fim, já que antes nós lhe dissemos,
enviando até ele Hermes, o vigilante Argicida,
para não matá-lo e não lhe cortejar a mulher,

6 Embora não haja uma nomenclatura fixa, vou me referir a essa passagem em que Zeus e
Atena dialogam, entre os versos 22-95, como “prólogo”. Ela vem se juntar assim ao “proê-
mio” (v. 1-21), de que faz parte, como vimos, a “invocação” (v. 1-10).
7 Poética, Cap. 24 (1460a5-12), e República 393b. Jasper Griffin, em seu artigo “Homeric wor-
ds and speakers”, Journal of Hellenic studies 106 (1986): 36-57, fala em 67% de versos dedica-
dos a discursos na Odisseia, e 45% na Ilíada. No total dos dois, diz ele, temos perto de 55%.
Veja-se também Mario Cantilena, “Sul discorso diretto in Omero” em Franco Montanari (ed.),
Omero tremila anni dopo: personaggi e strutture narrative. Roma: Edizioni di Storia e Lettera-
tura, 2009, p. 21-39.

24
‘pois de Orestes partirá a vingança (tísis) pelo Atrida
assim que se tornar moço e ansiar por sua terra’.
Assim disse Hermes, mas não pôde persuadir o espírito
de Egisto (pensando o bem), que pagou (apétisen) por tudo junto”.
(Od. 1, 28-43)

Embora Zeus não estabeleça, abertamente, um paralelo, o paradigma


aí apresentado tem ligação direta com a ação da Odisseia, onde reaparecerá
outras vezes, inclusive no canto que fecha o poema. Assim como Orestes –
tornando-se moço – puniu Egisto com a morte pelos seus crimes (cortejar a
mãe, Clitemnestra, na ausência do pai, Agamênon, e matar este depois em
seu retorno), Telêmaco, amadurecendo, deverá punir os pretendentes de sua
mãe, Penélope, pelos ultrajes cometidos. É interessante notar como o adjetivo
“telecélebre”, isto é, “célebre ao longe” (teleklutós, v. 30), que qualifica Orestes
e destaca seu feito glorioso, tem em sua formação um elemento idêntico, tele-,
ao que está presente no nome próprio Telémakhos, literalmente “o que luta ao
longe”, evocando assim a figura do jovem de Ítaca e antecipando sua fama.8
É verdade que a correspondência não é total, uma vez que Penélope
não será infiel, como foi Clitemnestra, e Odisseu – em sua volta – não só não
morrerá, como terá papel decisivo na punição dos invasores de seu palácio.
Mas o fundamental, aqui, é destacar, a partir desse conhecido exemplo, como
se articulam, nas ações humanas, excesso, sofrimento e castigo, de modo a
se estabelecer qual a responsabilidade dos homens e dos deuses pelos crimes
cometidos pelos mortais. É uma passagem com desdobramentos riquíssimos,
porque implica abordar algumas questões centrais, como a relação entre o
que vai dito aqui e o que vemos na Ilíada (isto é, se os poemas concordam ou
discrepam entre si), e a relação, num plano mais amplo, entre deuses e homens
na poesia homérica.

8 Paralelo notado por Irene de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 13. Vale
ressaltar, ainda, que sua função na poesia homérica é diversa da do epíteto amúmon, “ilaba-
do”, que aparece no verso imediatamente anterior (v. 29) para caracterizar Egisto: trata-se
aqui de uma adjetivação genérica e, no esquema de composição oral, funcional (cuja escolha
se deve a razões métricas), sem relevância para o contexto, que busca não louvar, mas cen-
surar o assassino do Atrida. Para uma visão diferente, ver o que diz Anne Amory Parry em seu
livro Blameless Aigisthos: a study of “amúmon” and other Homeric epithets. Leiden: Brill, 1973.

25
» Uniformidade e consistência

O primeiro ponto – a relação entre a Ilíada e a Odisseia – envolve, simulta-


neamente, uma discussão sobre a ética homérica, o desenvolvimento das duas
grandes epopeias gregas e a historiografia literária da Grécia Antiga; por causa da
amplitude do debate, só poderemos fornecer aqui algumas coordenadas princi-
pais. De modo geral, predomina até hoje a visão de que a Odisseia foi composta
depois da Ilíada. Não se trata, é claro, de reafirmar a célebre sucessão temporal
apresentada por Longino em seu Do Sublime (século I d.C.) – de que a Ilíada foi
composta na idade adulta de Homero, e a Odisseia, na velhice –,9 mas sim de pro-
por que a Odisseia traz marcas de uma concepção de mundo mais recente, como
que reproduzindo o movimento de renovação supostamente presente também
em Hesíodo na passagem da Teogonia para os Trabalhos e dias. Jenny Strauss Clay
resume bem essa abordagem, em seu livro A cólera de Atena, de 1983:

Segundo a visão amplamente defendida, a Odisseia – em comparação com


o que se encontra na Ilíada – anuncia uma concepção ética dos deuses mais
avançada, e uma visão mais ilustrada da justiça divina e da responsabilidade
humana. O argumento a favor da Nova Moralidade da Odisseia baseia-se no
discurso de abertura de Zeus, endereçado à assembleia divina, no Canto 1.
Posto no princípio da primeira cena do poema, imagina-se que esse discurso
tenha uma função programática, correspondendo a uma teodiceia que corrige,
critica e supera a postura moral da Ilíada.10

Esse tipo de abordagem – com destaque para as palavras de Zeus – vem


desde pelo menos Werner Jaeger, que a expôs num artigo de 1926,11 e a disposição
Ilíada-depois-Odisseia geralmente se insere num movimento maior de progressão
da poesia grega, que passaria pelas formas “líricas” até desembocar no teatro do sé-
culo V a.C. Se é fato que poucos hoje se baseiam na visão hegeliana e determinista

9 Ver Capítulo IX.13 do tratado.


10 J. Clay, The wrath of Athena, p. 215.
11 O artigo tratava do fragmento sobre a “Eunomia”, de Sólon, e associava seu conteúdo à
suposta “nova” noção presente na Odisseia. Ver a referência que faz ao próprio trabalho em Pai-
deia: a formação do homem grego. Tradução de Artur Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995,
p. 177-186. Ver também R. Friedrich, “Thrinakia and Zeus’ ways to men in the Odyssey”, p. 375.

26
– de que a literatura reflete o avanço do homem grego em direção à subjetividade,
sendo as obras testemunhos de diferentes etapas –,12 ainda assim o esquema tem-
poral se faz sentir com força, e as obras arcaicas, acompanhadas de datação precisa,
ainda são lidas como reflexos de momentos históricos distintos. O peso dado ao ca-
ráter tradicional e convencional dos textos felizmente cresceu, mas, me parece, não
a ponto de impedir que a filologia abandone suas origens positivistas e historicistas.
No caso de Homero, o que temos, na realidade, é um argumento muitas ve-
zes circular: a Odisseia é mais recente que a Ilíada porque nela podemos encontrar
elementos novos, e podemos encontrar elementos novos porque a Odisseia é mais
recente que a Ilíada. Restringindo essa mesma formulação ao plano moral – que é
o que nos interessa aqui –, poderíamos dizer, conforme aponta Clay, que a visão
comum consiste em ver uma justiça (com maior responsabilização humana) mais
claramente assentada na Odisseia em comparação com a Ilíada, e essa justiça pode
ser tomada ora como causa, ora como consequência da distinção temporal entre
os dois poemas. O termo “teodiceia” – originalmente cunhado em francês pelo fi-
lósofo alemão G. W. Leibniz, no início do século XVIII – desempenha aí um papel
importante, não só porque indica a existência indubitável de uma justiça divina (o
elemento “-dic-” corresponde ao grego díke, “justiça”), mas também porque acaba
por promover, por conta da paronomásia, uma identificação com a Odisseia, como
se este fosse de fato o poema que traz a discussão sobre o justo e o injusto.
Para se ter ideia do alcance desse tipo de abordagem, pode-se citar a
influente formulação sócio-psíquica e de matriz snelliana de Eric Dodds, segundo a
qual a passagem da Ilíada para a Odisseia representaria um movimento da “cultura
da vergonha” (“shame-culture”) em direção ao estabelecimento de uma “cultura da
culpa” (“guilt-culture”); é apenas nessa segunda etapa do desenvolvimento grego,
segundo diz ele em seu Os gregos e o irracional, de 1951, que de fato começaria a
se estabelecer uma justiça de Zeus.13 No entanto, dentre as várias proposições que
seguem (cada uma a seu modo) esse caminho, pretendo a título de exemplo discutir
aqui, muito rapidamente, apenas a de Klaus Rüter, que o esposa de maneira ampla

12 Bruno Snell tornou-se o autor emblemático dessa visão, com o seu A descoberta do espíri-
to, de 1946. Uma postura semelhante, mas mais refinada e complexa, encontramos no livro
clássico de Hermann Fränkel, Poesia e filosofia na Grécia Arcaica, cuja primeira edição é de
1951. Veja-se o título do último capítulo da parte referente à épica homérica: “The new mood
of the Odyssey and the end of epic” (tradução de Moses Hadas e James Willlis, New York:
Harcourt Brace Jovanovich, p. 85-93).
13 E. Dodds, The Greeks and the irrational. Berkeley: University of California Press, 1951, p. 32-33.

27
e ao mesmo tempo nada simplificadora em seu livro Interpretação da Odisseia, de
1969.14 Segundo Rüter, o mesmo movimento de “correção de ideias” que vemos
na passagem da Teogonia para os Trabalhos e dias de Hesíodo pode ser percebido
quando se vai da Ilíada para a Odisseia. Para ele,

a Ilíada é consistente ao apresentar a inseparável combinação de predestina-


ção fatal, controle divino e responsabilidade mortal pelas próprias ações, le-
vando ao crime e ao castigo. Mas não se deve supor que a mesma combinação
prevalece em toda a épica grega arcaica.15

Na sua visão, na Odisseia já há um sentimento diferente em relação à


“dignidade e correção dos deuses”, e estes, junto com o próprio destino, já não
podem ser vistos como seres que “intervêm e têm responsabilidade por cada
acontecimento”, como na Ilíada.16 Mais adiante, essa ideia é expressa através de
duas fórmulas retiradas dos proêmios de cada poema:

O proêmio da Odisseia deixa imediatamente claro que o sofrimento narrado, di-


ferentemente do que acontece na Ilíada, não será apresentado como resultado
do controle e da intenção divina. Não se pode mais dizer que “era feita a vontade
de Zeus” (Il. 1, 5), mas sim que “pereceram por causa dos próprios atrevimentos,/
os tolos” (Od. 1, 7-8). O destino e os deuses não carregam mais a responsabilida-
de. Ela tem que ser assumida pelos mortais e pelas suas ações. Agora aos mor-
tais é atribuída uma independência de ação antes desconhecida.17

Uma vez admitida essa nova relação entre deuses, destino e mortais,
Rüter chama atenção para o fato de que não se deve descartar a presença de
ideias mais antigas na Odisseia: o “novo pensamento” que percorre o poema
não foi capaz “de penetrar e remodelar da mesma maneira todas as partes”, ou
seja, não foi capaz de produzir uma renovação verdadeiramente uniforme, que

14 Cito a partir da tradução para o inglês do trecho que trata especificamente do discurso de
Zeus, “Zeus’ speech: Odyssey 1.28-43”. A versão é de H. M. Harvey, e está em I. de Jong (ed.),
Homer: critical assessments. 4 vols. New York: Routledge, 1999, vol. 4, p. 145-162.
15 K. Rüter, “Zeus’ speech: Odyssey 1.28-43”, p. 145 e 147.
16 K. Rüter, “Zeus’ speech: Odyssey 1.28-43”, p. 149.
17 K. Rüter, “Zeus’ speech: Odyssey 1.28-43”, p. 150.

28
se faria sentir, “em sua expressão mais acabada, não na épica, mas na lírica e na
filosofia”. Para o autor, o antigo e o novo andam lado a lado na Odisseia, mas,
enquanto este é enfatizado, aquele fica em segundo plano, o que torna bastan-
te aparente “a perda da unidade que tanto impressionava na Ilíada”.18
Ainda que tenha publicado sua obra na década de 60 e trabalhe com o
conceito de poesia tradicional, Rüter se revela, essencialmente, um tributário
do enfoque analista – cuja força jamais arrefeceu completamente no universo
da filologia de expressão alemã, onde brotou –, pois trabalha com a possibili-
dade de divergências (e diferentes estratos temporais) não só entre a Ilíada e
a Odisseia, mas no interior do próprio poema sobre Odisseu. Sua proposta, é
verdade, é mais rica do que as comumente encontradas, porque, embora defen-
da um avanço no nível de responsabilidade humana, como fazem outros, Rüter
não enxerga na Ilíada um quadro moral inconsistente – pelo contrário, para ele o
poema de Aquiles apresenta maior unidade, com sua engrenagem consistente
entre crime e castigo. Esse tipo de leitura, no entanto, acaba fracionando o poe-
ma em diversas camadas, levando o estudioso a agir como um detetive que tem
que juntar as diferentes peças do processo formativo e tentar dar a elas algum
sentido, mesmo que esse sentido seja a divergência ou dissonância.
De qualquer maneira, ficam questões pertinentes: como na Ilíada se
articulam crime e castigo? Que papel têm aí as divindades e o destino? A
Odisseia de fato desvincula os excessos humanos do âmbito divino? Podemos
falar em um amálgama moral em Homero, assim como falamos em amálgama
linguístico, material, social e histórico? Bernard Fenik, importante homerista
do século passado, propôs no seu livro Estudos da Odisseia, de 1974, que, no
plano ético, a poesia homérica pode ser a combinação de diferentes pontos de
vista – e deve-se sublinhar aqui que Fenik era um crítico ferrenho dos analistas
e conhecedor profundo de como operava a linguagem tradicional da épica
grega. Por causa do tratamento criterioso que confere a esse tópico e da clareza
de sua explicação – bastante plausível, a princípio (Homero é de fato produto
de uma “mistura” heterogênea) –, vou me deter um pouco mais em sua obra,
especificamente no capítulo fundamental “Hélio e Posêidon”, onde aborda o
que denomina de “problema da culpa”.19

18 K. Rüter, “Zeus’ speech: Odyssey 1.28-43”, p. 152.


19 B. Fenik, Studies in the Odyssey. Wiesbaden: Franz Steiner Verlag, 1974, p. 208-232.

29
A questão fundamental, para Fenik, é saber se a formulação de Zeus no
primeiro discurso do poema, claramente aplicável aos pretendentes de Penélo-
pe, pode ser estendida ao próprio Odisseu (alvo da cólera de Posêidon) e a seus
companheiros (alvos da cólera de Hélio, vernaculização do grego Hélios, “Sol”).
Na sua visão, todas as situações – inclusive a de Egisto, paradigmática – fazem
parte de um mesmo padrão ou motivo: “a incapacidade de se seguir um bom
conselho”.20 O problema, no entanto, estaria na admissão de que esses “crimes”
possuem uma mesma natureza moral. Segundo Fenik, o comportamento jac-
tante de Odisseu perante o Ciclope no Canto 9, quando – a despeito das pala-
vras em contrário dos amigos – revela seu nome e permite que se dê a punição
divina, é apenas “um erro tático”, e portanto a perseguição de Posêidon ao herói
“não tem a mesma base moral que se vê na punição de Egisto e dos pretenden-
tes, ainda que Odisseu enfrente problemas, como eles, por não ter seguido as
advertências recebidas antes”.21 Mais adiante, ele afirma:

Somos forçados a concluir que o padrão ético estabelecido por Zeus não se aplica à
história de Posêidon e Odisseu ou, dito de outro modo, que a perspectiva religiosa e
moral da Odisseia não é uniforme. (...) há uma profunda divisão: um dos incidentes
mais conhecidos não se conforma às categorias éticas dominantes, tal como são
exemplificadas pelo destino dos pretendentes e o paradigma de Egisto. Isso é no
mínimo surpreendente, e pede uma explicação.22

Ao abordar o crime dos companheiros de Odisseu, que devoram o gado


do Sol apesar de advertidos, Fenik defende igualmente que não se trata de atas-
thalíe, “atrevimento”, e que “a punição desses homens não pode ser equiparada
à punição divina que recai sobre os pretendentes”, o que o leva a concluir que
“nem a cólera de Hélio nem a de Posêidon conformam-se à digressão de Zeus

20 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 208.


21 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 210-211.
22 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 211-212. Não concordo com a leitura que Fenik faz do
kaí do verso 33. Parece-me que ele funciona aí como intensivo, “precisamente”, e não como
um “também” (ver, por exemplo, Od. 2, 64; e Il. 24, 105). De qualquer maneira, está claro que
Zeus relaciona os atrevimentos a dores extras, “além do quinhão”, e que fica implícito que as
dores “normais” fazem parte, inevitavelmente, do destino humano. O que não está claro é
que a perseguição de Posêidon a Odisseu faça parte desse segundo tipo de dor, dada “arbi-
trariamente” por Zeus, como quer Fenik (p. 211).

30
no prólogo, mas formam antes um par, tanto em seu aspecto divino, quanto em
suas semelhanças narrativas”.23 A ausência de uniformidade é enunciada assim:

O problema, de fato, é que a teologia da Odisseia parece inconsistente: níveis


mais antigos e mais novos de pensamento andam confortavelmente lado a
lado, e dois dos mais importantes episódios do poema não correspondam às
suas mais importantes diretrizes morais, tal como vêm exemplificadas pelos
pretendentes e explicadas por Zeus.24

Para Fenik, o fato de na própria invocação os companheiros de Odisseu


serem abertamente qualificados de “tolos” por seus “atrevimentos” – mesmo
termo que aparece depois na boca de Zeus, em sua reflexão geral – não desfaz
a inconsistência: “O incidente no Canto 12 [quando os amigos devoram o
gado do Sol] permanece em desarmonia com o pronunciamento de Zeus e
com o comentário editorial do próprio poeta [nos versos 7 e 8 do proêmio]”.25
Segundo o estudioso, ao contrário do que acontece com Egisto e com os
pretendentes, em relação aos quais se quer demonstrar “a justiça dos deuses
e sua preocupação com a moralidade humana”, Odisseu e seus companheiros
“não cometem nenhuma transgressão moral”, e simplesmente pagam pelos
seus atos equivocados, sem que se dê ênfase à motivação.26
Como explicar tal discordância? Vale citar na íntegra o que diz Fenik, em
sua abordagem sempre voltada para a estrutura típica:

Os épicos de Homero representam um amálgama histórico, cultural, linguís-


tico e intelectual. Eles são um rico repositório de contribuições de muitas
épocas e de gerações de poetas. Sua unidade não consiste num sistema filo-
sófico e teológico concebido de maneira lógica, no qual tudo que diz respei-
to a esse mundo é integrado num todo bem compartimentado. A unidade
consiste mais em certas estruturas narrativas e em ênfases dominantes im-
postas a uma subestrutura complexa. As cóleras de Hélio e Posêidon de fato

23 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 215.


24 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 216.
25 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 216.
26 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 217-218.

31
contradizem as palavras de Zeus no prólogo. Mas elas são tão semelhantes
entre si – no geral e no particular –, que só podem pertencer ao grupo mais
amplo de dobletes da Odisseia. Elas contribuem para a unidade estilística do
poema na mesma medida em que perturbam sua uniformidade ética.27

Mais adiante, ele ainda afirma:

Na Odisseia a discrepância é patente e nunca mitigada. Mas permanece o


ponto fundamental de que ambas as visões são poeticamente úteis e utili-
zadas para fins próprios. Um critério como o de “um quadro consistente dos
deuses” é inútil, porque a unidade da Odisseia reside num outro nível. Essas
visões diferentes indubitavelmente ganharam existência em épocas diferen-
tes; em relação a isso, os analistas sempre estiveram certos. Mas essas épo-
cas diferentes antecedem provavelmente os poemas homéricos, e o poeta
da Odisseia deve ter tido à sua disposição uma tradição de uma riqueza e
complexidade consideráveis. É simplificar demais pedir que ele mantivesse
consistência numa área cuja própria natureza, história, possibilidades poéti-
cas e desenvolvimento literário o levavam em direção à diversidade e, inevi-
tavelmente, à contradição interna.28

Conforme se vê, para Fenik o fator central que justificaria essa contradição
é, como diz com ênfase, “a funcionalidade de cada visão em seus respectivos
contextos”; para ele, não é possível resolver essa contradição numa conclusão
moral única, ainda que as diferentes visões dos deuses tragam, cada uma, sua
“preciosa verdade”; no final das contas, elas são escolhidas e apresentadas
segundo sua “adequação contextual”.29
Como foi dito mais acima, sua explicação para a incongruência moral se
baseia, de modo plausível, na característica junção de elementos diversos em
Homero, que entram a serviço da construção da narrativa. Fenik admite de bom
grado a unidade na estruturação dos poemas, com a repetição de motivos e a
variação de padrões narrativos – esse é o núcleo de todo o seu valioso trabalho

27 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 219.


28 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 220-221.
29 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 224-225.

32
com a poesia homérica –, mas, quando se trata do plano ético e teológico, ele
acaba abrindo espaço a uma visada de corte analítico, porque reforça a ideia
de um longo e acidentado processo de formação, com a mistura de elemen-
tos díspares e mal resolvidos, o que o faz falar em conceitos mais “primitivos
e antigos” e – como Rüter – numa Ilíada mais bem resolvida em comparação
com a Odisseia.30 No entanto, o próprio Fenik tem que admitir que o motivo da
cólera divina – exemplificado pela perseguição de Posêidon a Odisseu e de Hélio
aos companheiros e, segundo sua visão, divergente da teologia do “prólogo” –,
quando se manifesta fora dos relatos a Alcínoo, conforma-se à teologia inicial,
uma vez que Zeus e Atena destroem as naus acaias saídas de Troia porque nem
todos os homens eram justos, assim como Posêidon leva o Ájax Oilida à morte
depois de sua insolente jactância.31 Essa contradição patente nos mostra que
“simplificar demais” talvez não seja pedir consistência, mas desistir da investi-
gação de uma possível consistência.32
O fato é que os mesmos estudos da oralidade em que Fenik se apoia para
tirar muitas de suas brilhantes conclusões, deixando veementemente de lado a
dissecação dos poemas em partes díspares, nos mostram precisamente que a
Ilíada e a Odisseia são resultados coesos de um extenso desenvolvimento tradi-
cional. Nesse sentido, seu equívoco, a meu ver, consiste em não perceber que,
em Homero, ser compósito – em múltiplos aspectos, inclusive no moral – não
equivale a ser incongruente. Se por um lado é inegável, como mostram linguis-
tas, arqueólogos, historiadores e antropólogos, que Homero traz consigo sinais
de coisas e épocas diferentes entre si, de modo que sua poesia não deve ser as-
sociada integralmente a nenhuma delas, por outro lado é inegável também que
o que surge para leitores e ouvintes do poema é a impressão de um todo coeso
e unificado, da construção de uma realidade coerente, que faz sentido dentro
do universo narrativo. Vale a pena citar, a esse respeito, as palavras lúcidas de
Charles Segal, que contempla tanto o enfoque diacrônico quanto o sincrônico;
o foco aqui é a Odisseia, mas sua visão geral pode ser aplicada também à Ilíada:

30 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 218 e 220.


31 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 227.
32 No já citado artigo de Rainer Friedrich, que trabalha com o esquema evolutivo, buscar
uniformidade vai contra o cerne da religião politeísta, e por isso Posêidon e Hélio podem ser
divindades mais primitivas convivendo com deuses mais novos. Para ele, no entanto, Zeus é
sempre o mesmo ao longo da narrativa, e isso confere consistência moral ao poema. Ver seu
“Thrinakia and Zeus’ ways to men in the Odyssey”, p. 382.

33
A estrutura e a teologia da Odisseia são, acredito, unificadas e
interdependentes; e os episódios de Posêidon e Hélio nos Cantos 5, 9 e 12,
longe de serem anomalias ou meros resíduos de uma “Ur-Odyssee” [Odisseia
original], são pontos centrais para se clarificar as preocupações morais
unificadas do poema. (...) a evolução de uma concepção dos deuses cada vez
mais moral ao longo dos séculos não precisa excluir uma teologia coerente na
“composição monumental” da fase final do poema. Vistas diacronicamente,
divindades da natureza como Hélio, Proteu ou Circe podem bem representar
um tipo de deus mais antigo que Zeus ou Atena. Sincronicamente, porém,
essas diferenças entre tipos de divindades são parte da visão total do poema
a respeito do que os deuses podem e devem ser. Em outras palavras, Homero
reuniu (...) num todo artístico e conceitual noções de divindade mais antigas
e mais desenvolvidas, e assim embasou seu épico numa teologia moral
consciente de si.33

Nesse quadro moral íntegro, portanto, Homero não quer historiar nem o
Período Micênico, nem a Idade das Trevas, nem o Período Arcaico, mas combiná-
los num período que tem apenas existência poética, uma existência que faz
sentido em si e que fala diretamente à audiência. Nesse sentido, ela é uniforme
– não porque representa a sociedade ou a moral de uma época específica, mas
porque elabora um palco social e moral que propõe reflexões importantes para
diferentes épocas. A tese ainda dominante de que Homero fala para a audiência
do período em que supostamente os poemas foram compostos (século VIII a.C.)
e de que, portanto, os dados sociais são referentes a esse momento histórico
– ainda que recebam uma pátina de antiguidade e anacronismo –, não resiste
a um escrutínio mais detido. Kurt Raaflaub, por exemplo, a defende de modo
interessante, abrindo espaço para a existência de um amálgama que não invalida
(na sua visão) a datação mais precisa e a consistência do quadro. Para ele, é
preciso haver uma “identificação” entre cantor e ouvintes, que se dá em Homero
por meio da inserção das ações “num contexto social que é familiar à audiência”,
de tal modo que os poemas se tornam “contemporâneos em seu significado”. 34

33 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey. Ithaca: Cornell University Press, 1994, p.
195-196. Embora acredite num avanço da Ilíada para a Odisseia, Segal o aborda com modera-
ção e destacando afinidades (ver, por exemplo, p. 198 e p. 226).
34 K. Raaflaub, “Homeric society” em B. Powell & I. Morris (eds.), A new companion to Homer.

34
Mas, diante da sua defesa, levantaria pelo menos três questões (admi-
tindo-se a composição no século VIII a.C., que está longe de ser algo evidente).
A primeira diz respeito à relação geral que podemos estabelecer entre a socie-
dade de qualquer período da Grécia Antiga e a sociedade homérica, que evi-
dentemente trabalha com uma “suprarrealidade”, isto é, com personagens de
um universo grandioso, que vai muito além da existência comum. Sendo assim,
como essa sociedade heroica pode ser o retrato – o retrato deformado pela poe-
sia, bem entendido – de relações entre homens ordinários? É mais razoável ima-
ginar que se trata da construção de uma sociedade cuja existência está restrita
ao universo poético, mas que, simultaneamente, aborda valores que repercu-
tem sobre a audiência em sua existência cotidiana, sem refleti-la diretamente,
uma vez que conceitos aristocráticos como “prêmio” e “honra”, por exemplo,
não diriam respeito a grande parte do público ouvinte.
A segunda questão está ligada à necessidade de se propor um momen-
to histórico específico, para nele se ancorar a representação homérica. Aqui se
corre o risco da generalização infundada e da abstração excessiva, porque se
parte do princípio de que houve um único tipo de sociedade grega no século
VIII e de que é possível estabelecer suas coordenadas principais, quando, na re-
alidade, sabemos que a Grécia Arcaica era um aglomerado de cidades isoladas,
com ideais e valores muitas vezes distintos, que tentamos reconstruir com indí-
cios arqueológicos muitas vezes incertos. Novamente, é mais prudente propor
que os valores abordados por Homero – valores aristocráticos e heroicos – têm
uma existência autônoma, que não se liga nem a um espaço nem a um tempo
em particular. Não se trata, com isso, de propor uma existência no vazio: toda
criação poética deriva de uma realidade cultural própria, e não é diferente com
a Ilíada e a Odisseia. O que me parece problemático é estabelecer uma ligação
direta entre os poemas e certa época e certa sociedade, como se essa poesia
fosse menos eloquente para os gregos antes do século VIII, ou deixasse de ser

New York: Brill, 1997, p. 624-648, especialmente p. 628 e 648. Antes dele, Ian Morris já havia
defendido essa visão da poesia homérica como reflexo do mundo real em que viviam Homero
e sua audiência, no século VIII; ver seu artigo “The use and abuse of Homer”, de 1986, repro-
duzido em I. de Jong (ed.), Homer: critical assessments, vol. 2, p. 52-76. Para uma visão re-
cente, voltada mais para a historicidade interna dos poemas, ver Jonas Grethlein, “From ‘im-
perishable glory to history: the Iliad and the Trojan War”, em David Konstan & Kurt Raaflaub
(ed.), Epic and history. West Sussex: Wiley-Blackwell, 2010, p. 122-144, que cita a tentativa de
Joachim Latacz de retomar uma ligação precisa entre Homero e a Idade do Bronze (no livro
Troy and Homer: towards a solution of an old mystery. Oxford: Oxford University Press, 2004).

35
eloquente nos séculos subsequentes – VII, VI, V, IV –, por não refletir mais os
valores de uma suposta sociedade grega. O gosto pela novidade e pela trans-
formação, nesse caso, tende a desconsiderar a permanência de balizas morais
numa sociedade antiga, e sua repetida penetração através de poemas da den-
sidade das criações homéricas – ainda que os valores que veiculam não corres-
pondam, de uma maneira simples e imediata, à realidade das comunidades que
ouviam esses versos em diferentes partes do mundo grego.
Uma terceira e última questão provém do paralelo com a tragédia gre-
ga. Se nesse campo podemos afirmar com segurança uma relação direta entre
criação poética e um tempo e um lugar específicos (século V a.C., Atenas), isso
nos habilita a dizer que os dramas de Ésquilo, Sófocles e Eurípides retratam a
sociedade grega do período? À sua maneira, o teatro grego também trabalha
com uma mistura de elementos – por exemplo, ao colocar seus personagens,
heróis antigos, em situações que remetem ao contexto político democrático –,
mas é possível dizer que muitos de seus valores, ainda pertencentes ao univer-
so aristocrático, representam uma linha de continuidade em relação à poesia
arcaica, mesmo sendo essa forma poética um produto de uma determinada cir-
cunstância sociopolítica vivida por Atenas. Ou seja: se por um lado não se pode
negar seu forte enraizamento histórico, por outro não se deve deixar de atentar
para essa vontade de extrapolar uma realidade específica.
Voltando a Homero, prefiro, portanto, diante da escassez de dados
externos mais concretos e da consistência interna dos épicos, trabalhar com
essa ideia de uma realidade poética bem construída pela tradição, realidade
que, como o dialeto homérico, nunca teve existência cotidiana de fato, mas que
com seu artifício soa como verdadeira para o ouvinte. Se na origem está um
amálgama, o resultado é, paradoxalmente, uma ampla homogeneidade, sentida
não só no interior de cada um dos poemas, na conexão entre cada um de seus
cantos, mas também entre a Ilíada e a Odisseia, cujas narrativas apresentam a
mesma sociedade aristocrática, com seus valores essenciais sendo reafirmados
e discutidos a todo momento. Se há diferenças entre os épicos – e elas são
visíveis, e apontadas desde pelos menos Aristóteles –,35 devemos enxergá-las

35 Poética, cap. 24 (1459b13-17), onde está dito que a Ilíada é um poema “simples” e “paté-
tico”, e a Odisseia, “complexo” e “ético”. Para uma distinção moral entre os poemas a partir
dessa diferenciação aristotélica, sendo um visto como “trágico” e o outro como “não-trági-
co”, ver o artigo de Wolfgang Kullmann, “Gods and men in the Iliad and the Odyssey”, Har-

36
com cautela, e atribuí-las não à presença de mentalidades diversas ou momentos
históricos divergentes, mas a desenvolvimentos dramáticos específicos, com
ênfases próprias, que revelam, no seu conjunto, a riqueza de possibilidades à
disposição de uma mesma tradição épica. Veja-se o que diz Hugh Lloyd-Jones a
esse respeito em A justiça de Zeus, de 1971, uma das primeiras obras a valorizar
mais a continuidade do que a ruptura:

A inquestionável diferença entre o ambiente moral dos dois poemas homéricos


pareceu a alguns provar que a Ilíada é mais antiga, com base no princípio de que
houve um desenvolvimento ético entre a escrita da Ilíada e da Odisseia. Mas não
podemos ter realmente certeza de que essa diferença não se deva a uma diver-
gência de perspectiva entre dois poetas contemporâneos ou duas escolas de
poesia, ou mesmo entre os propósitos poéticos almejados por cada épico. (...) A
diferença em teologia e moralidade entre os dois poemas reflete uma diferença
no estilo e no propósito, e é inútil para se fixar a relação temporal entre eles.36

Uniformidade e consistência não significam, portanto, ausência de


diferenças e de gradações variadas, nem significam – vale acrescentar – au-
sência de problema e de contradição: o fato de Homero trabalhar, segundo
me parece, com um quadro moral consistente, nessa sociedade “suprarreal”,
não equivale a dizer que não existem nós e conflitos, os mesmos nós e confli-
tos que podemos encontrar em qualquer grande obra facilmente situável no
tempo e espaço, e que respondem pela complexidade das relações sociais em
qualquer cultura. Conforme aponta James Redfield, ao abordar o tópico da
moralidade em Homero:

Uma história é cheia de significados porque confronta motivações justificáveis


com consequências relevantes; os personagens fazem escolhas e gozam ou
sofrem o resultado. Nossa resposta é uma avaliação; uma história não precisa

vard studies in classical philology 89 (1985): 1-23. Para Kullmann, “a concepção diferente dos
deuses na Odisseia implica um maior afastamento do homem em relação à divindade, isto
é, maior independência e responsabilidade”, o que o faz pensar em poetas diferentes (ver p.
10); no entanto, ele se recusa a ver a contradição entre os poemas em termos de desenvolvi-
mento histórico, apontando como a teodiceia da Odisseia é mitigada em Hesíodo e Sólon, e a
concepção da Ilíada reaparece, por exemplo, em Sófocles (ver p. 19-21).
36 H. Lloyd-Jones, The justice of Zeus. Berkeley: University of California Press, 1971, p. 30-31.

37
ter uma moral, mas ela dever ser balizada por uma moralidade. (...) Se os
valores fossem desprovidos de ambiguidade, nossas vidas seriam tão sem
dramaticidade quanto as dos insetos (...) Com efeito, a vida é interessante e
o drama é possível porque a cultura coloca diante de nós não um conjunto
coerente de instruções, mas de dilemas e difíceis escolhas.37

Nesse sentido, as obras que buscam uma simples linearidade nos poe-
mas, uma férrea lógica moral, mostram-se incapazes de abordar o problema,
como é o caso do livro de Naoko Yamagata, Moralidade homérica, de 1994. Em-
bora ofereça, numa escrita límpida e sem grandes ambições teóricas, um ines-
timável exame de inúmeras passagens homéricas e seus termos fundamentais,
Yamagata fica refém de uma fragmentação excessiva, segundo a qual diferen-
tes partes dos poemas dificilmente dialogam entre si. Tomando como ponto
de partida o já citado livro de Lloyd-Jones, junto com outra contribuição funda-
mental na área, Mérito e responsabilidade, de Arthur Adkins, de 1960,38 a estu-
diosa revela, ao final, sua predileção pela visão deste último, para quem certa
amoralidade era esperada numa sociedade competitiva como a homérica, em
que o sucesso individual se sobrepõe à cooperação. Nesse tipo de abordagem,
nem Zeus nem os demais deuses encarnam uma concepção de moralidade con-
sistente (embora haja consistência entre os poemas na amoralidade...).39
Mais interessante que essas obras – nas quais se defende que não existe
um freio claro nas relações heroicas, nem um elo moral entre deuses e heróis – é
o já citado livro de Jenny Strauss Clay, A cólera de Atena. Partindo da mesma ideia
proposta por Fenik de que há uma aparente inconsistência moral na Odisseia, Clay
chega, no entanto, à conclusão de que a presença de dois papéis fundamentais
atribuídos às divindades – o de ciosos da justiça e o de perseguidores caprichosos

37 Ver seu artigo “The economic men” (p. 218-247) em Carl Rubino & Cynthia Shelmerdine
(ed.), Approaches to Homer. Austin: University of Texas Press, 1983, p. 218-219. Para Redfield,
a Ilíada e a Odisseia são mais ou menos contemporâneas (não se podendo propor entre elas
uma grande transformação cultural), mas a Odisseia já revelaria a nova “ética econômica” do
final do século VIII a.C.
38 Para uma avaliação da leitura que Adkins faz de Homero, ver o texto de Christopher
Rowe, “The nature of Homeric morality” em C. Rubino & C. Shelmerdine (ed.), Approaches
to Homer, p. 248-275.
39 Para uma crítica à visão de Adkins, ver A. Long, “Morals and values in Homer”, The Journal
of Hellenic studies 90 (1970): 121-139.

38
– se deve não a questões de funcionalidade narrativa, mas sim a uma “dupla
teodiceia”.40 Podemos resumir seu exame destacando os seguintes trechos:

O poema abarca tanto as Viagens de Odisseu quanto a Vingança, formando assim


uma unidade. A Vingança insiste na existência de um mundo justo e em deuses be-
nevolentes; as Viagens apontam para deuses indiferentes aos homens. No entan-
to, Homero não afirma simplesmente a superioridade de uma visão sobre a outra,
nem anuncia que uma é verdadeira e a outra falsa. (...)

A justiça dos deuses confirma sua existência, enquanto sua indiferença coloca em
questão seu significado e, em última instância, sua própria existência. As preces
e expectativas dos homens compelem os deuses a virem para o lado correto, ao
menos por vezes. A realização ocasional da justiça de modo exemplar, por deuses
fundamentalmente indiferentes aos homens, mas ciumentos de suas prerrogati-
vas: talvez seja essa a resposta de Homero e a mensagem de nossa Odisseia.41

Parece-me que o mérito do trabalho de Clay reside no esforço de bus-


car respostas a partir de uma interpretação sustentada do poema, de tal modo
que se consigam amarrar os fios da narrativa num todo coeso: a duplicidade faz
parte da construção de uma visão de mundo. O problema, no entanto, consiste
na bipartição Viagens/Vingança, simplista demais e, no fundo, tributária da lei-
tura de Fenik. Por que essa dupla teodiceia ficaria assim tão compartimentada?
Como explicar o trânsito de Odisseu por dois universos morais diversos? Que
consequências isso traria para a abordagem do personagem?42
Ainda prefiro trabalhar com a ideia de que há uma só moral nos poemas
homéricos, explorada sob diferentes ângulos, no interior de cada um dos
poemas. Diante disso, é preciso abordar minimamente os problemas centrais aí
envolvidos, para que assim se entenda o discurso de Zeus na abertura da Odisseia
e suas implicações para toda a narrativa. O ponto fundamental parece ser o das

40 Ver J. Clay, The wrath of Athena, p. 213-239 (que correspondem ao último capítulo do
livro). O problema vem enunciado nas p. 218-219.
41 J. Clay, The wrath of Athena, p. 236 e 239.
42 Thomas Van Nortwick, em seu livro The unknown Odysseus: alternate worlds in Homer’s
Odyssey (Ann Arbor: Michigan University Press, 2009), defende que há no poema duas visões
morais conflitantes de Odisseu, a do justiceiro (que chama de “centrípeta”) e a do “trickster”
(que chama de “centrífuga”); ver síntese da sua leitura nas p. 39-42.

39
relações entre deuses e homens: as divindades interferem nas ações humanas,
benéficas ou não? Os homens têm autonomia para agir, ou são vítimas de
uma predestinação? No caso de um ato excessivo, pelo qual necessariamente
pagam, a culpa pode ou não ser atribuída aos deuses?

» Motivação divina, motivação humana

Graças à contribuição de Albin Lesky,43 hoje podemos falar na existência de


uma “dupla motivação” na poesia homérica: em seu ambiente religioso, as ações
humanas não têm a “autonomia” que poderíamos esperar delas, podendo sempre
ser associadas a uma participação divina. Em outras palavras, todo e qualquer es-
tado mental, ato ou situação pode ser oriundo de uma intervenção sobrenatural,
“borrando” assim uma demarcação nítida entre o que é vontade divina e o que é
vontade humana. Quer se trate de um êxito, quer de um fracasso, de um ato justo
ou criminoso – em todos esses casos em que o homem é o agente, ao seu movimen-
to pode se sobrepor o movimento divino, que o reforça e corrobora. Essa sobrepo-
sição nem sempre é evidente: quando não temos explicitada a dupla motivação –
que para nós soa como contradição –, ora fica destacada apenas a ação mortal, ora
a divina; no entanto, mesmo nesses casos, a dupla motivação permanece latente,
podendo ser confirmada por outra passagem, ou de outra perspectiva. Para nós, é
difícil lidar com esse paradoxo. Conforme esclarece Lesky, a intervenção divina

que vem apenas se juntar à ação humana, ou os deuses que estão sempre junto
de seus protegidos, ajudando-os, representam conceitos que podemos enten-
der com facilidade ainda hoje. Mas que uma mesma ação (...) possa ser causa-
da ao mesmo tempo pelo homem e pelo deus, de uma maneira que não nos
permite separar as responsabilidades – isso constitui uma motivação unificada
que não pode ser analisada pela lógica moderna.44

Como consequência disso, temos uma contínua tensão na poesia homérica


entre predestinação e liberdade humana. O fato de as ações trazerem consigo essa

43 Seu artigo “Motivação divina e humana na épica homérica” é de 1961. Cito a partir da ver-
são, abreviada, em inglês, “Motivation by gods and men”, a cargo de H. M. Harvey, publicada
em I. de Jong (ed.), Homer: critical assessments, vol. 2, p. 384-403.
44 A. Lesky, “Motivation by gods and men”, p. 391.

40
duplicidade abre espaço para que sejam sentidas, simultaneamente, como um
impulso que vem de fora, e contra o qual o homem não pode lutar, e também como
fruto de uma decisão própria, tomada de acordo com uma deliberação autônoma.
O homem é responsável pelo que faz, mas não é inteiramente responsável; os
deuses são responsáveis pelos atos humanos, mas não inteiramente responsáveis.
Isso produz um efeito muito particular na poesia homérica, uma zona nebulosa que
traz a sensação de que o mundo tem uma ordem pré-definida, à qual o homem
deve se sujeitar, e uma ordem em suspenso, que paradoxalmente cabe a ele mesmo
definir. Em outras palavras, o mortal confia na existência de uma estrutura superior,
numa porção (moîra) a ele destinada e que o força a viver dentro de certos limites –
para o bem e para o mal –, mas isso não o impede de ter a consciência de que essa
estrutura não engessa seu agir. Esse agir, por sua vez, qualquer que seja a direção
tomada, termina sempre por convergir para essa estrutura, confirmando-a.
E aqui voltamos ao tema da responsabilidade e, mais especificamente, ao
discurso de Zeus no prólogo da Odisseia. Em minha leitura, esse pronunciamento
é mais um passo – passo fundamental, decerto – na discussão que a poesia
homérica propõe sobre motivações, ações e limitações nas relações entre deuses
e heróis. Se o que os poemas fazem, ao longo de suas narrativas, é combinar o
ponto de vista divino (imortal, detentor – em geral – do conhecimento máximo)
e o ponto de vista humano (mortal, limitado – em geral – em sua percepção),45
então a fala de Zeus surge como exemplo privilegiado da visão superior, que
apreende o ato excessivo do homem em toda a sua dimensão: quando os
mortais têm dores além do quinhão – ou seja, quando sofrem para além do que,
pela sua própria natureza, já deveriam sofrer –, eles próprios têm participação
decisiva nas desgraças que enfrentam. O que Zeus parece fazer, portanto, é
enfatizar esse espaço de liberdade humana, de responsabilidade – sobretudo
porque Egisto é previamente avisado do mal que o espera, caso opte pelo crime.
A ênfase sobre esse arbítrio, no entanto, não nos deve levar à conclusão de
que, nesse ato, a divindade está ausente: como vemos, ela está presente não
só como fonte de advertência, mas também como de posterior punição. Cito
novamente as palavras de Lesky:

45 Esse tipo de oposição faz parte do que Hermann Fränkel chamou de “contrasting foils”
(ver Early Greek poetry and philosophy, p. 525). Ela tem valor geral e deve ser nuançada dentro
dos poemas, uma vez que, de cena para cena, há diferentes graus de conhecimento entre os
deuses e entre os homens.

41
Preferimos ainda aqui voltar à nossa imagem das duas faces de uma mesma mo-
eda. Trata-se de dois lados de uma mesma situação – e ao longo desta análise ten-
tamos mostrar que, por um lado, os dois aspectos podem ser claramente combi-
nados, mas, por outro, podem se alternar e até se contrapor. (...) [Vemos] um jogo
intricado de conceitos que possui várias possibilidades de combinação, mas todas
elas dentro de uma estrutura bem-estabelecida. Parece-nos extremamente impor-
tante entender isso se quisermos entender a visão de mundo homérica. (grifo meu)46

Sendo assim, em geral, do excesso humano pode ressaltar, visto pelos


deuses, a liberdade de escolha, capaz de driblar a dose extra de dores; visto pelos
homens, porém, pode ressaltar uma determinação divina, inescapável, coercitiva.
No universo homérico, essas determinações não são contraditórias, não indicam
nem total autonomia, nem total predestinação. A abertura da Odisseia, no entanto,
ao destacar, nessa dança de pontos de vista, a perspectiva do deus supremo,
reforça para os leitores o poder de Zeus, seu conhecimento e sua ordem, ao mesmo
tempo que aponta para a distância entre a ampla percepção divina e o tateante
entendimento humano. Trata-se de um efeito recorrente da poesia homérica:
alçar o leitor – por conta do domínio da narrativa – ao plano da onisciência divina
e simultaneamente identificar esse mesmo leitor – por conta de sua natureza
humana – com os personagens heroicos, em sua dificuldade de entender como
operam as divindades. Como disse Reinhardt, “a ação divina tem um aspecto
duplo: o que entre os deuses é vontade contra vontade, plano e decisão, surge, aos
olhos humanos, como cego acaso e arbitrariedade”.47 No entanto, quando o herói
toma conhecimento – tardio – da sua situação, pode acontecer de suas palavras se
identificarem com as de Zeus, porque vê com clareza, como acontece com Heitor
no Canto 22 da Ilíada: “E agora, ao destruir a tropa pelos meus atrevimentos...” (nûn
d’epeì ólesa laòn atasthalíeisin emêisin, v. 104).
Diante disso, a fala inaugural de Zeus na Odisseia, ao enfocar os temas do
atrevimento e da responsabilidade, não representa um avanço ético: a interde-
pendência entre deuses e homens permanece a mesma da Ilíada. As dores em
excesso são resultado da concorrência de movimentos divinos e humanos, que

46 A. Lesky, “Motivation by gods and men”, p. 399-400.


47 K. Reinhardt, “Homer and the Telemachy, Circe and Calypso, the Phaeacians” [1946,
translated by P. Jones & G. M. Wright] em P. Jones & G. M. Wright, Homer: German scholarship
in translation. Oxford: The Clarendon Press, 1997, p. 222.

42
podem ser abordados de um ou outro ângulo, de tal modo que se evidenciem
as características de cada um. O excesso ou atrevimento, por sua vez, só pode
ser assim qualificado porque surge num mundo balizado por certos valores e
comportamentos, em que há limites pelos quais Zeus olha. Nesse sentido, há
aqui o mesmo motor dramático cujas engrenagens principais são o crime e sua
punição, a constituir um quadro moral estável.
A diferença notável em relação à Ilíada, contudo, se deve a uma aborda-
gem ao mesmo tempo mais enfática e mais simples. Mais enfática porque a ques-
tão vem posta logo de saída na boca de Zeus, direcionando nossa atenção para
o castigo do criminoso, e mais simples porque na maior parte do poema há uma
nítida contraposição entre os arrogantes pretendentes e o vingador Odisseu. Se
no poema de Aquiles as linhas demarcatórias estão borradas e cegueira e ruína
se combinam de maneira sutil, estendendo-se do protagonista da história a per-
sonagens como Agamênon e Heitor, na Odisseia tudo parece se encaminhar para
o desfecho feliz, em que o bem vence o mal. A exploração exaustiva do tópico
da hospitalidade, combinado a um ambiente doméstico, familiar, com ênfase na
defesa da propriedade, favorece a impressão de uma obra mais preocupada com
a justiça. Junte-se a isso uma participação divina claramente reduzida na compa-
ração com o poema maior (e uma aumento na presença do fantasioso e de efeitos
próprios do “conto popular”), e tem-se como resultado um poema nada trágico.
Isso não equivale a dizer que se trata de outra concepção: o Canto 24 da Ilíada, por
exemplo, nos dá a mesma sensação de “justiça” da Odisseia, por explorar tam-
bém, ainda que de maneira peculiar, a relação entre hospedeiro (Aquiles) e hós-
pede (Príamo), assim como o Canto 22 da Odisseia evoca, pela carnificina dos pre-
tendentes, o ambiente violento da Ilíada. Não são mundos diferentes que estão
em jogo, mas situações particulares, que trazem cargas dramáticas específicas.
O já citado Albin Lesky, apesar de trabalhar com a visão corrente de que
a Odisseia seria posterior à Ilíada, pedia cuidado àqueles que buscavam uma
diferenciação radical entre os épicos na relação entre deuses e homens:

Não é decerto nossa intenção desvalorizar a importante percepção de que


o discurso de Zeus no prólogo da Odisseia faz soar novas notas de reflexão
sobre controle divino e destino humano, colocando-se assim como um ponto
importante no desenvolvimento do pensamento grego. Mas o que estamos
tentando mostrar é que essa passagem não representa uma virada total; essa

43
ideia já aparecia na Ilíada, de que algo pode acontecer hupèr móron (Il. 2, 155;
20, 30; 21, 517) ou hupèr aîsan (Il. 16, 780; 17, 321).48

Para Lesky, a Odisseia não contém “elementos totalmente novos”, mas


apenas aborda, de um ângulo diverso, o que estava “tenuamente indicado” na
Ilíada. Em vez de pensar num desenvolvimento moral de um poema para o ou-
tro (que acha improvável, porque teria se dado de forma “espantosamente rá-
pida”), o estudioso trabalha com a hipótese de diferentes ambientes em que
os épicos teriam surgido, ou com a existência de diferentes poetas. O que me
parece mais importante, entretanto, é sua conclusão:

não devemos passar a impressão de que há um enorme golfo a separar o


mundo da Odisseia do mundo do épico mais antigo. Onde espaços de fato
aparecem entre eles (e o tamanho desses espaços é geralmente exagerado),
há pontes e ligações suficientes para que as duas obras sejam mantidas jun-
tas uma da outra.49

Não há, portanto, como negar as diferenças entre os poemas, mas é


preciso vê-las na devida perspectiva. No âmbito acadêmico, esse olhar vai aos
poucos ganhando cada vez mais fôlego. Num artigo bastante lúcido – em que
defende a presença de um sistema ético e teológico comum a toda a poesia he-
xamétrica –, William Allan reforçou a continuidade já proposta por Lloyd-Jones
35 anos antes, com nuances:

Embora o mesmo padrão de justiça esteja operante em ambos os épicos ho-


méricos, o poeta da Ilíada torna sua narrativa mais problemática, não apenas
através da presença de personagens troianos com os quais simpatizamos, mas
também ao colocar alguns deuses lutando ao lado deles. Já os pretendentes da
Odisseia, embora não sejam todos malvados, despertam bem menos simpatia
e não desfrutam de auxílio divino.50

48 A. Lesky, “Motivation by gods and men”, p. 395.


49 A. Lesky, “Motivation by gods and men”, p. 396.
50 W. Allan, “Divine justice and cosmic order in Early Greek epic”, The Journal of Hellenic
studies 126 (2006): 1-35, p. 12.

44
Mais adiante, ele ainda afirma, mesmo reconhecendo que “as
continuidades continuam a ser subestimadas ou obscurecidas”:

Não há como negar o tom mais explicitamente ético da Odisseia, evidente des-
de a primeira cena no Olimpo, mas isso não significa que a teologia da Odisseia
seja de algum modo diferente daquela que domina a Ilíada. Ambos os poemas
exploram os problemas inerentes à justiça divina e se, por um lado, a Odisseia
apresenta uma visão direta da preocupação dos deuses com padrões morais,
por outro apresenta também a realidade da intervenção divina de uma manei-
ra não menos perturbadora do que na Ilíada. Os épicos homéricos habitam o
mesmo universo moral e teológico, e ambos fazem perguntam semelhantes a
respeito dos deuses e em que medida suas ações estão conectadas a normas
sociais de justiça.51

Diante desse quadro – e atendo-nos à Odisseia –, não há também por que


não explorar outros possíveis desdobramentos do paradigma central de Egisto,
sobretudo no que diz respeito à figura de Odisseu e de seus companheiros. Trata-
se, em outras palavras, de tentar ver como no poema – com sua moral uniforme,
conforme estamos propondo – os “atrevimentos” podem influenciar também a
interpretação do personagem central e a relação com seus comandados, de modo
a constituir um elemento fundamental na narrativa. Mais do que um simples
conflito entre o justo Odisseu e os atrevidos pretendentes, poderíamos pensar num
conflito entre o justo e o atrevido Odisseu, já implicado nesse pronunciamento
inicial de Zeus – e reforçado pela pergunta posterior de Atena (“por que lhe vota
Zeus o ódio seu?”, Od. 1, 62). O tópico do encobrimento poderia representar uma
feliz fusão entre um aspecto positivo e outro negativo do personagem?
Como bem notou Douglas Olson em seu livro sobre a Odisseia, Sangue
e ferro, de 1995, Zeus parece estar usando a figura de Egisto e seu crime como
“um exemplo específico de um comportamento humano geral”, e isso fica evi-
denciado pelo “tal como também” do verso 35 (“tal como também Egisto...”).

51 W. Allan, “Divine justice and cosmic order in Early Greek epic”, p. 16. Ver também a po-
sição de Jim Marks, que fala no exagero conferido às diferenças entre o “aparato divino” da
Ilíada e da Odisseia, e que as visões que esses épicos apresentam em relação a Zeus radicam
em ênfases diversas, não sendo mutuamente excludentes; ver seu livro Zeus in the Odyssey.
Washington, D.C.: Center for Hellenic Studies, 2008, p. 2-3.

45
Segundo o estudioso, que busca rebater a visão de Fenik (para quem as palavras
do deus aqui têm alcance restrito, como vimos acima), não se está discutindo
aqui “o comportamento de um pequeno grupo de indivíduos com inclinação
para o crime, mas dos mortais enquanto classe, incluindo-se aí alguns dos me-
lhores entre eles”.52 De acordo com Olson,

Os argumentos de Fenik relativos a contradições teológicas no interior do tex-


to da Odisseia caem por terra rapidamente perante uma inspeção mais atenta,
já que as histórias de Homero mostram repetidas vezes como os seres huma-
nos trazem problemas para si mesmos em decorrência de suas próprias ações
impensadas, precisamente como Zeus afirma no prólogo.53

Em sua leitura, tanto as atitudes de Odisseu no Canto 9 quanto a de


seus companheiros no Canto 12 podem ser entendidas como “atrevimentos”
(atasthalíai) ou “atos atrevidos” (atásthala) – e são assim qualificadas: as dos
companheiros, não só no proêmio, como vimos (v. 7), mas também no Canto
12 (v. 300). O comportamento de Odisseu, por sua vez, é assim denominado
por Euríloco no Canto 10 (v. 437) e, “fingidamente”, por ele mesmo, no
Canto 18 (v. 139). Portanto, ainda que essa noção seja fortemente associada
aos pretendentes, cujos atos são vistos como atrevimentos uma dezena de
vezes,54 pode-se admitir que o comportamento excessivo de que fala Zeus
pode ser aplicado a outros personagens e – valendo para o protagonista da
narrativa – ganhar relevo na interpretação do poema. É interessante notar
que o já citado Rüter, em sua reflexão sobre a Odisseia, havia mostrado
como, na relação entre Odisseu e seus companheiros, ela compartilha com
a Ilíada a ideia de que as mortes dos comandados constituem uma forma de
punição ao líder (como quando os dânaos pagam, com a peste de Apolo, pelo
desrespeito de Agamênon).55 Uma leitura assim aprofunda a reflexão moral
sobre a Odisseia, porque se propõe analisar a transformação de Odisseu na

52 D. Olson, Blood and iron: stories and storytelling in Homer’s Odyssey. Leiden: Brill, 1995,
p. 207-208.
53 D. Olson, Blood and iron, p. 213.
54 Od. 3, 207; 16, 86 e 93; 17, 588; 18, 143; 20, 370; 21, 146; 22, 47, 317 e 416; 23, 67; e 24, 352
e 458.
55 K. Rüter, “Zeus’ speech: Odyssey 1.28-43”, p. 157.

46
narrativa, no sentido de mostrar “que o quadro ético é menos óbvio do que
às vezes se imagina”, conforme bem apontou R. Rutherford num artigo sobre
a “filosofia” do poema.56 O fato de o narrador não se posicionar abertamente
em relação ao herói principal, condenando-o (ao contrário do que faz com os
pretendentes), não constitui um problema de fato: essa característica só ajuda
a aproximar a apresentação de Odisseu do que vemos na Ilíada, e reforçar a
presença de uma rica ambiguidade na construção do personagem.

» (contra)exemplo: egisto, clitemnestra, Orestes

Mas deixo para abordar esse problema central da Odisseia mais adiante. Seria
importante, agora, investigar melhor como o paradigma de Egisto é apresentado no
poema. Vou me concentrar aqui no artigo fundamental de Uvo Hölscher, de 1967, so-
bre a saga Atrida na Odisseia.57 Ele resume assim a utilização do exemplo no poema:

Atena posteriormente [ao prólogo] discute a saga Atrida com Telêmaco, e o


velho Nestor e Menelau referem-se a ela como se dessem conta do evento
heroico de maior interesse à época. Também nos encontros de Odisseu com
os heróis de Troia no mundo ínfero – encontros que ocupam um lugar central
em seu relato aos feácios –, o próprio Agamênon tem a oportunidade de se
mostrar e falar de sua sina a Odisseu. Com diferentes interlocutores e ênfases,
isso se repete na segunda jornada ao Hades, no final do épico.58

Sendo mais específicos, podemos afirmar então que, ao longo da


narrativa, o paradigma é referido pelos menos mais dez vezes:

1. no Canto 1, por Atena-Mentes a Telêmaco (v. 298-300);


2. no Canto 3, por Nestor a Telêmaco (v. 193-198 e v. 255-312) e Atenas/Mêntor
a Telêmaco (v. 234-235);

56 R. Rutherford, “The philosophy of the Odyssey”, Journal of Hellenic studies 106 (1986):
145-162.
57 Minha discussão é a partir do trecho, apresentado com o título “The Atreid story in the
Odyssey” (tradução de C. Krojzl e S.R. van der Mije), em I. de Jong (ed.), Homer: critical asses-
sments, vol. 4, p. 419-430.
58 U. Hölscher, “The Atreid story in the Odyssey”, p. 419.

47
3. no Canto 4, por Menelau a Telêmaco (v. 91-92) e Proteu a Menelau (v. 514-537);
4. no Canto 11, por Agamênon a Odisseu (v. 409-434 e 452-453); e, finalmente,
5. no Canto 24, em poucos versos, por Agamênon a Aquiles (v. 96-97) e aos
pretendentes (v. 199-200).59

Ou seja, desde a “Telemaqueia”, passando pela narrativa central de Odis-


seu, até a conclusão do poema, o paradigma percorre a Odisseia como um fio
condutor, o que só vem confirmar quão “programática” é, de fato, a fala inicial
de Zeus. Hölscher, no entanto, mostra que nessas várias passagens não há uma
abordagem idêntica da história. Nas primeiras referências, entre os Cantos 1 e
4, as narrativas se complementam e a figura de Clitemnestra é deixada à som-
bra da de Egisto; assim como Zeus, Atena não fala dela no Canto 1:

Ou tu não ouves que glória obteve o divino Orestes


por entre todos os homens, ao matar o algoz do pai,
o ardiloso Egisto, o qual matara o célebre pai?
(Od. 1, 298-300)

Nos Cantos 3 e 4, por sua vez, ficamos apenas sabendo que Clitemnestra
morreu junto com Egisto (Od. 3, 310) e que também está associada ao dolo (Od.
3, 235; 4, 92), apesar de ter apresentado uma resistência inicial (Od. 3, 265-267).
Para Hölscher, há aí “um inquestionável esforço para tirar de Clitemnestra a
marca do adultério e jogar o peso maior da culpa para o homem que a seduziu”.60
Já nas duas passagens envolvendo os mortos, nos Cantos 11 e 24, a vi-
são é diferente: Clitemnestra surge como coautora do crime, ou mesmo como
sua mentora. Segundo Agamênon relata vividamente a Odisseu, sua morte foi
tramada por Egisto com a colaboração da esposa, tendo ela mesma se encar-
regado de assassinar Cassandra, e ainda se recusado a fechar os olhos e a boca
do esposo morto:

59 Pode-se incluir na lista a rápida menção ao retorno de Agamênon, feita por Odisseu a Ate-
na no Canto 13 (v. 383-384). Há ainda a referência feita pelo narrador no Canto 24 (v. 20-22),
quando se repetem os versos do “narrador” Odisseu do Canto 11 (v. 387-389). Ver D. Olson e
seu capítulo “The stories of Agamemnon”, em Blood and iron, p. 24-25.
60 U. Hölscher, “The Atreid story in the Odyssey”, p. 421.

48
mas foi Egisto que minha morte e lote preparando
matou-me com a funesta esposa (ouloménei alókhoi) – à casa chamando-me,
ao banquete –, como alguém mata um boi na manjedoura.
Assim morri morte digna de pena. E outros companheiros
sem repouso foram mortos, como suínos de alvas presas
(os da casa de abastado varão bastante capaz,
em casamento, ou conjunta festa, ou farta recepção).
Antes já presenciaste a morte de muitos homens,
num duelo assassinados ou na potente refrega,
mas vendo aquilo em teu ânimo muito te lamentarias
– como em torno da cratera e das mesas tão repletas
jazíamos no palácio, cheio o chão todo de sangue...
E ouvi – mais digna de pena – a voz da filha de Príamo,
Cassandra, a quem lá matou ardilosa (dolómetis) Clitemnestra
junto a mim, enquanto eu mesmo batia as mãos contra o chão,
erguendo-as, em torno à espada morrendo. E aquela cadela (kunôpis)
deu-me as costas – nem ousou a mim, que baixava ao Hades,
com as mãos fechar-me os olhos ou mesmo cerrar-me a boca!
Não há nada mais terrível, ou mais “cão”, que uma mulher,
qualquer uma que no espírito lance feitos desse tipo,
tal como também aquela tramou ultrajante feito (érgon aeikés),
preparando para o esposo a morte. E eu que imaginara
que seria sim saudado pelos meus filhos e escravos
ao ir pra casa; mas ela, bem ciente do que é odioso (lugrà iduîa),
sobre si verteu vergonha e sobre as que estão por vir,
as femininas mulheres, mesmo a que for benfeitora’.
(Od. 11, 409-434)

Odisseu, em seguida, lamentará que contra Agamênon a esposa tenha


armado um “ardil” (dólon, v. 439). Essa variação de enfoque, de acordo com
Hölscher, se explica segunda a função que o paradigma exerce na narrativa: na
“Telemaqueia”, deve-se dar destaque ao papel vingador de Orestes, modelo
para Telêmaco, enquanto nas outras partes é Clitemnestra que serve de contra-
exemplo para Penélope:

49
A saga Atrida tem a função de estabelecer a grande figura do filho vingador,
a partir do tradicional e conhecido mito, e com isso realçar outra figura
tradicional, mas não-heroica, Telêmaco, e sua recém-criada aristeía
[“excelência”]. (...) A história, tal como é apresentada na Nékuia [Canto 11],
tem um tom diferente. Trata-se aqui de um lamento elegíaco por uma vida
perdida. (...) Agamênon apresenta a figura de sua própria mulher, que não
permitiu que visse seu filho novamente. Embora não se deva esperar de
Penélope um tal comportamento, ele aconselha Odisseu a agir com cuidado
em seu retorno.61

Vale ressalta que, para Hölscher, não se trata de uma versão do mito di-
ferente daquela apresentada por Ésquilo em sua Oresteia., em que o filho mata
os dois criminosos.62 A mesma forma estaria na base tanto da narrativa épica
quanto do drama, apenas com os poetas trabalhando de diferentes modos seus
motivos – Homero, por exemplo, não dando ênfase ao matricídio e à cadeia de
crimes familiares, Ésquilo trazendo Clitemnestra para o primeiro plano e trans-
formando Egisto na figura menor:

Orestes só pode brilhar porque não aparece sob a luz do matricídio. Ele faz
o assassino Egisto pagar pela morte do pai, sendo que Egisto parece ser o
único responsável pelo crime – ainda que o poeta saiba da esperteza de Cli-
temnestra e de sua morte junto com o amante. Nenhuma sombra recai sobre
a figura de Orestes.63

Portanto, o paradigma tem dupla função: fazer, por um lado, com que
Orestes surja como modelo positivo para a ação de Telêmaco e, por outro, com
que Agamênon e Clitemnestra surjam como modelos negativos para a ação de
Odisseu.64 Pai e filho são os receptores, ao longo da narrativa, desse famoso

61 U. Hölscher, “The Atreid story in the Odyssey”, p. 422-423.


62 Ver o que diz Marylin Katz, Penelope’s renown: meaning and indeterminancy in the Odyssey.
Princeton: Princeton University Press, 1991, p. 44.
63 U. Hölscher, “The Atreid story in the Odyssey”, p. 424, e também p. 428.
64 Ver artigo de Pura Nieto Hernández, em que defende que temos aqui o mesmo contraste
entre Odisseu e Agamênon que vemos na Ilíada, o que aponta para seu caráter tradicional
(“Odysseus, Agamemnon and Apollo”, The classical journal 97/4 (2002): 319-334.

50
paradigma – o filho (Telêmaco), num movimento de exortação, recebendo as
palavras de figuras mais velhas e sábias, que o instruem; o pai (Odisseu), num
movimento de advertência, recebendo as palavras de uma figura de mesma ida-
de e posição, cujo destino já selado fala por si só. Em jogo está a justiça de Zeus:
por quais vias ela é posta em xeque, por quais vias ela é estabelecida. Nos dois
casos, a astúcia tem papel fundamental: positivamente, nas figuras dos vinga-
dores, que agem de modo inteligente; negativamente, na figura dos crimino-
sos, que agem de modo ardiloso.

51
2. FUROR e glóRIA de telêMAcO

É em torno de Telêmaco, filho de Odisseu, que giram os quatro cantos


iniciais da Odisseia, formando um conjunto batizado de “Telemaqueia”.65
A caracterização dessa figura tem suscitado uma série de discussões, não
exatamente pelas atitudes que toma ou deixa de tomar, mas antes pela sua
condição de jovem prestes a entrar na idade adulta. Telêmaco, ao contrário
dos outros heróis homéricos que desempenham papéis de destaque, não é um
homem feito. Essa posição singular é explorada com maestria por Homero, que
constrói a transição da figura ainda débil e imatura para o homem pronto para
os desafios e exigências da sociedade aristocrática em que vive. Essa transição
consiste basicamente na adoção de uma nova postura, ativa e reflexiva, e na
busca do estabelecimento da glória (kléos) que ele próprio, Telêmaco, imagina
perdida com o desaparecimento do pai.

» caracterização e desenvolvimento

A crítica especializada tem se perguntado se há de fato uma


transformação do personagem, e que transformação é essa.66 Desde o primeiro
volume da famosa obra de Werner Jaeger, Paideia, publicado em 1933, tem se
fortalecido entre os estudiosos, de diferentes formas, a visão favorável a uma
transformação.67 Como diz John Heath, num artigo de 2001:

65 A designação, ao que tudo indica, foi criada pelo alemão P.D.C. Hennings no século XIX.
Ver J. Petropoulos, Kléos in a minor key: the Homeric education of a little prince. Washington
D.C.: Center for Hellenic Studies, 2011, p. ix, e o que diz S. West em A. Heubeck et alii (ed.),
A commentary on Homer’s Odyssey. 3 vols. Oxford: Oxford University Press, 1988-1992, vol.
1, p. 52, nota 5. É importante lembrar que, para alguns estudiosos, a “Telemaqueia” engloba
também o Canto 15, quando se narra o retorno de Telêmaco a Ítaca, ou se estende mesmo
até o Canto 17. Ver H. Clarke, “Telemachus and the ‘Telemacheia’”, The American journal of
philology 84/2 (1963): 129-145, p. 130, e J. Pretropoulos e seu livro, p. 9
66 Deixo aqui de abordar uma possível relação do episódio com um rito de passagem ou ini-
ciação, conforme defendido, por exemplo, por Charles Eckert, “Initiatory motifs in the story
of Telemachus”, The classical journal 59/2 (1963): 49-57. Na narrativa moderna, o chamado
Bildungsroman, “romance de formação”, tornou-se um gênero próprio, exemplificado pela
obra de W. Goethe, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de 1796. No Brasil, temos o
clássico de Raul Pompeia, O Ateneu, de 1888.
67 W. Jaeger, Paideia, p. 53-60.

52
Um consenso crítico se impôs nos últimos 40 anos de que ao longo da Odisseia
Telêmaco amadurece. Os estudiosos apenas discordam, em geral, sobre
quando, como, quão completamente e com que significado temático esse
amadurecimento se dá; mas tem ficado cada vez mais claro que, de modos
variados, Homero cuidadosamente assinalou para sua audiência as etapas do
crescimento de Telêmaco.68

No entanto, há cerca de duas décadas Douglas Olson combateu parcial-


mente essa abordagem, fazendo lembrar – apesar do enfoque totalmente diverso
– o que defendia Wilamowitz em sua obra O retorno de Odisseu.69 Em linha gerais,
para ele não é possível dizer nem que Telêmaco, no plano social, no princípio da
trama não sabia como se comportar (pois ele mostra pleno conhecimento dos
valores da sociedade acaia), nem que, no plano psicológico, com a visita de Atena
ele sofre qualquer modificação. Assim, não se deve falar em “desenvolvimento
interno do personagem” nem em “crescimento pessoal decisivo”.70 Para Olson,

Falar dele [Telêmaco] como alguém que se “desenvolve” num plano interno
(...) é errar quanto aos reais interesses e preocupações de Homero. Na realida-
de, Telêmaco é o mesmo do começo ao fim; o que mudou ao final do Canto 1 é
que ele agora começa a agir com base nos sentimentos e desejos que já tinha
desde o começo (...).71

Parece-me que há um equívoco em postular a ausência de transformação


– o mesmo equívoco que seria postular, inversamente, uma profunda

68 J. Heath, “Telemachus pepnuménos: growing into an epithet”, Mnemosyne 54/2 (2001):


129-157, p. 129.
69 Ver o Capítulo 4, “Telemachos and the kléos of Odysseus” de seu Blood and iron, p. 65-90.
O livro de Wilamowitz é de 1927, e sua oposição a qualquer tipo de caracterização consistente
e desenvolvimento dos personagens se fundava, coerentemente, na visão analítica, segundo
a qual os poemas eram formados por diferentes camadas. Apanhados do desenvolvimento
da discussão são apresentados por Howard Clarke, no artigo “Telemachus and the ‘Telema-
cheia’”, p. 140, nota 16, e por Norman Austin em “Telemachos polyméchanos”, California stu-
dies in Classical Antiquity 2 (1969): 45-63, p. 45, nota 1. Clarke lembra que já em Porfírio e suas
Questões homéricas falava-se numa “educação” (paídeusis) de Telêmaco ao longo do poema.
Petropoulos (Kléos in a minor key, p. 9) também cita Porfírio.
70 Ver D. Olson, Blood and iron, p. 66, 75 e 76.
71 Ver D. Olson, Blood and iron, p. 78-79.

53
transformação. Abordar rapidamente essas posturas contrárias é importante,
porque com isso tocamos num problema central da poesia homérica: a forma
de caracterização e “desenvolvimento” dos personagens.
Em Homero, sabemos que os personagens centrais são pintados de for-
ma muito nítida, de tal modo que cada um ganha contornos próprios e espe-
cíficos, que permitem que diferenciemos imediatamente Aquiles de Odisseu,
Odisseu de Agamênon, Agamênon de Heitor, e assim por diante. Essa caracte-
rização “essencial” – que não deve ser tomada como “rasa” ou “estática” – não
passa, no entanto, nem por uma descrição física minuciosa desses heróis, nem
por um mergulho psicológico em suas almas ou consciências. A descrição – física
ou psicológica – é desnecessária, por um lado, porque essas figuras fazem parte
de um repertório tradicional, em que são constantemente “reaproveitadas” em
novos tratamentos das mesmas histórias. Daí não encontrarmos em Homero
a “apresentação” de Aquiles, Agamênon, Odisseu ou do próprio Telêmaco: os
nomes e as situações já trazem consigo uma caracterização tradicional, que é
ao mesmo tempo retrabalhada no contexto de cada poema. Se vemos Nestor
ser “introduzido” no Canto 1 da Ilíada (v. 247-252) ou Tersites no Canto 2 (v. 212-
224), ou ainda Euricleia neste Canto 1 da Odisseia (v. 428-435), devemos atribuir
esses procedimentos não a um desconhecimento dos personagens por parte da
plateia – pois eles são igualmente tradicionais –, mas a uma necessidade espe-
cífica, do contexto, de pôr em evidência certos atributos e assim emoldurar seus
discursos e/ou suas ações.72
Por outro lado, só podemos estranhar a ausência da descrição física e psi-
cológica (ou da própria paisagem, vista como extensão do personagem) se tomar-
mos essa prática – consagrada pelo romance moderno – como referência para
uma real caracterização e um real desenvolvimento.73 Mas a verdade é que, na

72 Ver o que diz sobre a questão Scott Richardson em seu livro The Homeric narrator. Nashvil-
le: Vanderbilt University Press, 1990, p. 36-50.
73 Veja-se, a esse respeito, o livro de Orhan Pamuk, The naive and the sentimental novelist
(Translated by Nazim Dikbas. Cambridge Mass.: Harvard University Press, 2010), onde diz
que “ler um romance significa olhar o mundo através dos olhos, da mente e da alma de seus
personagens”. Para ele, em Homero o personagem equivale a “uma característica que o
define, uma qualidade essencial que nunca se altera”; para exemplificar, Pamuk afirma que
Odisseu, “apesar dos momentos de medo e indecisão, é sempre magnânimo” (p. 59-62). É a
mesma visão que encontramos, por exemplo, no artigo de C. Millar e J. Carmichael, “The gro-
wth of Telemachus” (Greece & Rome 1/2 (1954): 58-64), onde afirmam que o jovem “é talvez
o único personagem da literatura grega que apresenta algum desenvolvimento” (por causa

54
poesia homérica, “conhecermos” um personagem e termos acesso a seu movi-
mento não passa por termos a noção clara de como é fisicamente (ou qual idade
tem), nem passa por termos acesso privilegiado aos seus sentimentos ou à ma-
neira como opera em seu íntimo. Nas palavras de Stephen Halliwell, Homero não
está empenhado em ver suas figuras como “indivíduos privados”, uma vez que
“as operações da mente são raramente concebidas na tradição grega como um
mundo próprio, fechado (embora às vezes possam esconder ou disfarçar seus
conteúdos)”.74 Conforme muitos já assinalaram, a caracterização na épica grega
passa por outros recursos, não menos eficientes que os do drama contemporâneo
– no sentido de conferir densidade e profundidade aos personagens (e podemos
lembrar aqui da figura de Penélope, analisada mais à frente, no Capítulo 4). Entre
esses recursos tem decerto papel determinante a ênfase dada tanto às ações/de-
cisões quanto às falas dos personagens (elaboradas, retoricamente, com efeitos
diversos) – ações/decisões que o narrador onisciente, em geral discreto, mas nem
sempre, observa “de fora”. Junte-se a isso o emprego da linguagem formular, com
seus epítetos tradicionais e certos versos padronizados que servem de opção para
introduzir os discursos, e temos as ferramentas básicas para que cada figura ga-
nhe, dentro do esquema tradicional, seu contorno próprio.75

de seu amadurecimento), uma vez que os demais, ao menos em Homero, “já são adultos e,
enquanto personagens, estáticos”, sendo “adequadamente descritos por um traço essencial”
(p. 58). Eles de certa forma estão apenas retomando o que já dissera John Scott, ao defender
que “Telêmaco é o único personagem da poesia homérica que se desenvolve durante a ação”
(“The journey made by Telemachus and its influence on the action of the Odyssey”, The clas-
sical journal 13/6 (1918): 420-428, p. 426). A distinção me parece equivocada, porque os per-
sonagens dos nossos romances também são definidos (ainda que não segundo os mesmos
recursos) por algumas características essenciais, que não se alteram e lhe conferem identida-
de. O problema reside no enfoque dado – esse sim bastante diferente entre a narrativa épica
antiga e a narrativa moderna em prosa.
74 Ver seu “Traditional Greek conceptions of character” em Christopher Pelling (ed.), Charac-
terization and individuality in Greek literature. Oxford: The Clarendon Press, 1990, p. 58-59. No
mesmo texto, Halliwell combate a visão de que as figuras retratadas em Homero são “frag-
mentadas”; citando a conhecida passagem do monólogo de Odisseu no Canto 20 (v. 18-21),
o estudioso defende uma apresentação complexa e unitária do personagem; ver p. 38-41.
75 Vejam-se os comentários de Richard Martin sobre a caracterização de Telêmaco no Canto
1 em “Telemachus and the last hero song”, Colby quarterly 29/3 (1993): 222-240, p. 228ss. Para
uma abordagem mais literária e sofisticada, veja-se o capítulo 2 do livro de Jasper Griffin,
Homer on life and death. Oxford: The Clarendon Press, 1980, p. 50-80; nas páginas iniciais, ele
faz um pequeno apanhado das discussões do século XIX e XX sobre a capacidade (ou falta de
capacidade) de Homero em elaborar personagens densos.

55
Ou seja, mais do que aquilo que o narrador em terceira pessoa diz minuciosa
e demoradamente que são (ou que eles próprios diriam que são, numa hipotética
narrativa em primeira pessoa), o que os diferencia e lhes dá substância é o que
fazem e o que dizem entre si (e, consequentemente, o que deixam de fazer e
silenciam). Portanto, é do choque entre suas vontade e palavras que emergem as
silhuetas particulares, como se os personagens progressivamente se esculpissem
uns aos outros, num movimento contínuo de caracterização mútua – e no qual a
linguagem padronizada serve de moldura. Só podemos apreender os heróis uns
em face dos outros: é com essa dinâmica que Homero trabalha, explorando as
ações que esperamos encontrar em qualquer poesia narrativa e juntando a elas –
e aqui reside a chave de seu sucesso – uma enorme quantidade de discursos, com
uma ampla variedade de propósitos e cores.
Com essa breve digressão em mente, é possível retornar a Telêmaco e à
afirmação de Olson de que o personagem não se desenvolve nos cantos iniciais
do poema. A citação apresentada acima traz, me parece, o equívoco e a solução
do problema. Olson tem razão quando diz que Telêmaco conhece plenamente
as balizas sociais de sua sociedade: o modo como recebe, hospitaleiramente,
Atena-Mentes, e critica os soberbos pretendentes, evidencia isso. No entanto,
sua abordagem valoriza excessivamente um aspecto “interno” do personagem,
que não sofreria qualquer alteração, uma vez que ele permanece com os mesmos
“desejos e sentimentos” do começo. O estudioso dá a impressão de negar um
tipo de desenvolvimento que só poderíamos postular em Homero se Homero
fosse Flaubert. Sua conclusão está correta, mas os princípios são equivocados. Ao
mesmo tempo, ele aponta para a resposta quando afirma que “o que mudou ao
final do Canto 1 é que ele [Telêmaco] agora começa a agir”. É esse agir, me parece,
que marca a transformação do jovem, mas que Olson quer negar como mola
fundamental da poesia homérica, ao insistir, da sua perspectiva psicológica, que
“Telêmaco é o mesmo do começo ao fim”.76 O fato, porém, é que mostrar mais
ação e reflexão (e, consequentemente, um modo de falar diverso) representa, em

76 É o que defende também John Heath, em sua crítica a Olson: “...considero que os atos em
si [de Telêmaco] nos cantos iniciais representam um desenvolvimento. No mundo homérico
é-se medido pelas ações, tanto físicas quanto verbais” (grifo original). Ver J. Heath, “Tele-
machus pepnuménos”, p. 129, nota 1. Já Uvo Hölscher defende que não há uma transforma-
ção de Telêmaco, mas uma única mudança básica. Ver seu “Penelope and the suitors” [1967,
translated by Simon Richter] em S. Schein (ed.), Reading the Odyssey: selected interpretive
essays. Princeton: Princeton University Press, 1996, p. 139.

56
Homero, uma evolução do personagem dentro da narrativa. Agir e não agir (veja-
se o caso emblemático de Aquiles na Ilíada), agir nessa ou naquela direção: assim
se desenvolve cada um dos heróis, ainda que ele mantenha sempre um traço
principal que o define. Isso não implica, contudo, que todo personagem homérico
se transforma, simplesmente porque faz e diz coisas: discursos e ações dão
forma ao caráter de todos eles, mas nem todos mudam ou evoluem. Podemos
admitir que personagens “coadjuvantes” sejam mais ou menos “estáticos” (o
que não quer dizer “rasos”) – como, por exemplo, o já citado Nestor, ou mesmo
os pretendentes na Odisseia –, mas uma afirmação assim não pode valer para
Aquiles, Agamênon e Heitor (na Ilíada), nem para Odisseu (como veremos mais à
frente) e Telêmaco na Odisseia. Todos eles passam por experiências que os fazem,
em certo(s) momento(s), agir/pensar de forma diversa daquela com que vinham
agindo/pensando, e é isso que estou chamando de desenvolvimento, evolução,
transformação. Eles não se tornam por isso necessariamente mais profundos,
ou moralmente diferentes – embora isso possa acontecer –, mas seu modo de
apreensão da realidade muda em certo grau. Numa narrativa, é natural que um
personagem central, em meio às ações que sofre e realiza, desenvolva-se/evolua/
transforme-se, mas isso não é obrigatório, e não é isso que obrigatoriamente lhes
dá densidade: Penélope parece ser um personagem que apresenta complexidade
sem se desenvolver ao longo da Odisseia.
Portanto, no caso de Telêmaco, independentemente da sua faixa etária,
já teríamos sim uma mudança evidente no seu comportamento, porque ele
passa a fazer algo. Homero, contudo, explora a coincidência dessa mudança no
agir com a passagem da infância para a idade adulta, tornando duplo o “de-
senvolvimento” do jovem. Telêmaco, ainda que saiba se portar e distinga com
clareza o comportamento adequado do inadequado, precisa aprender a passar
à ação característica da idade adulta. Em outras palavras, “tomar uma atitude”
representa, simultaneamente, uma evolução dramática natural do personagem
e uma passagem rumo à condição de homem feito, e não mais criança. É esse
movimento que vamos acompanhar – no seu modo de agir, refletir, falar – ao
longo dos quatro cantos da “Telemaqueia” e depois ainda, a partir do Canto 15,
quando se assinala definitivamente seu amadurecimento.
No poema, essa nova postura é deflagrada, como se sabe, pela presença
de Atena e se apresenta, em parte, como algo relativamente súbito, fruto des-
sa poderosa intervenção divina. Mais uma vez, estamos diante de uma dupla

57
motivação: a participação da deusa é decisiva, mas não elimina a autonomia
humana; Atena orienta Telêmaco, não o manipula simplesmente. Mais ainda:
se o novo comportamento é deflagrado por ela, nem por isso ele se impõe to-
talmente. Telêmaco não sofre uma “revolução”: passa sim a agir, mas seu ama-
durecimento é paulatino, e para ele contribui decisivamente a viagem a Pilos e
Esparta. Vejamos, em linhas gerais, como isso acontece.

» da infância à idade adulta

A cena do encontro entre Atena e Telêmaco compreende pouco mais de 200


versos (v. 96-323) e está entre as mais delicadas e saborosas da poesia homérica,
seja pelo modo como através do diálogo os personagens vão sendo alternadamen-
te caracterizados, seja pela ironia que perpassa a conversa, em função de Atena se
apresentar disfarçada. Por essa razão, faz lembrar nos leitores o encontro entre Prí-
amo e Hermes no final da Ilíada, com a qual, aliás, compartilha os versos iniciais da
descrição das “sandálias” calçadas pela divindade.77 A deusa surge como “Mentes,
condutor dos táfios” (v. 105), ao mesmo tempo que retém sua imagem própria de
deusa guerreira, pois “na mão ia brônzea lança” (v. 104), a mesma lança que o poeta
havia descrito em detalhes imediatamente antes de sua descida:

E pegou a lança audaz, afiada, com bronze agudo,


pesada, grande, robusta, com a qual doma fileiras
de heróis por quem tem rancor – ela, a do potente pai.
(Od. 1, 99-101)

São pequenas informações, mas fundamentais, porque apontam, nesse


estrangeiro assim descrito, para a figura do líder político e do guerreiro, e prenunciam
a matança daqueles por quem a deusa “tem rancor” (verbo kotéo). Mais importante
ainda é o fato de que Mentes é apresentado como um xeînos (v. 105), isto é, como
alguém que mantém uma relação de amizade com o palácio de Odisseu.78 O disfarce

77 Od. 1, 96-98 = Il. 24, 340-342.


78 O fato de Odisseu, em suas mentiras, fazer referência aos piratas táfios (Od. 15, 427; e
16, 426) não nos obriga a entender, me parece, que Atena esteja se apresentando aqui como
pirata, sobre cuja figura se tinha desprezo. Ver o que diz Peter Jones em Homer’s Odyssey, p.
10, e W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey. Vol. 1 (Books I-XII). Oxford: The Clarendon Press,
1876, p. 12.

58
não é sem propósito: com ele o tema da hospitalidade, central em todo o poema, já
é posto em movimento. Não por acaso, logo nos deparamos com a apresentação
negativa dos pretendentes, homens “sobranceiros” (agénoras), parasitas que se
divertem e banqueteiam à custa do rei ausente (v. 106-112). Nesses poucos versos
já fica enfatizado o clima de diversão e festa dos convidados indesejados, além do
controle que têm sobre posses alheias, ao se sentarem sobre “couros de bois que
os próprios tinham matado”. O narrador passa então diretamente para a figura de
Telêmaco, que, ao contrário dos pretendentes – desdenhosos das regras sociais –
repara no estranho à entrada e o recepciona. Emoldurada pela construção anelar
(“viu... viu”), a primeira imagem que temos do jovem é de alguém que sofre com a
ausência do pai e sonha com sua volta:

E bem antes que os demais a viu (íde) deiforme Telêmaco,


sentado entre os pretendentes, aflito na cara entranha,
visualizando no espírito o caro pai – se viesse
de repente e no palácio dispersasse os pretendentes,
obtendo ele próprio honra e sobre as posses reinando...
Nisso pensando, sentado entre aqueles, viu (eíside) Atena;
foi direto para a entrada, e se indignava em seu ânimo
que esperasse tanto à porta o hóspede...
(Od. 1, 113-120)

O contraste fica evidente: de um lado os “anti-hóspedes” se refestelam,


enquanto de outro Telêmaco, ciente do ritual da hospitalidade, sofre com a
invasão de seu palácio e o desaparecimento de Odisseu. Na mesma linha, os
versos 120-143, ao se ocuparem da recepção detalhada de Mentes, vão ser o
avesso da descrição seguinte do banquete dos pretendentes (v. 144-155). Depois
desse trecho narrativo mais longo, o diálogo entre o jovem e Atena se inicia de
fato, a partir do verso 156. Resumidamente, pode-se dizer que Telêmaco surge
como figura desesperançada, sem recursos para enfrentar os obstáculos que
tem diante de si, enquanto Atena desempenha o papel de um pai substituto,
que informa, orienta e exorta. As críticas aos pretendentes vêm dos dois,
promovendo a identificação e assinalando o lado justo: Telêmaco diz que eles
“devoram, impunes, sustento alheio” (v. 160), enquanto Atena exclama:

59
De que maneira soberba e arrogante me parecem
festejar pela morada! Ficaria indignado o homem
que visse tantas vergonhas – o que sensato chegasse!
(Od. 1, 227-229)

Ambos imaginam que, com a volta de Odisseu, os pretendentes pagariam


por seus crimes. Telêmaco diz:

Se eles entretanto o vissem já voltando para Ítaca,


todos então rezariam por ser mais ágeis nos pés
do que ser mais opulentos em ouro ou em vestimenta.
(Od. 1, 163-165)

Já Atena, antecipando a chacina do Canto 22, afirma:

Opópoi, sim, de Odisseu que se foi tu sentes muita


falta – que nos pretendentes sem respeito as mãos poria!
Ah, se ele chegasse agora, e à porta externa da casa
se postasse com seu elmo mais o escudo e as duas lanças,
deste modo, conforme eu da primeira vez o vi...
(...)
– se desse modo encontrasse Odisseu os pretendentes:
teriam todos ligeira morte e amargo casamento!
(Od. 1, 253-257/265-266)

Para Telêmaco, entretanto, a volta do pai se afigura como algo impossí-


vel: seus brancos ossos “talvez à chuva apodreçam,/ deitados em terra firme, ou
ondas no mar revolvam” (v. 161-162). Sua convicção é de que

(...) por morte má, morto agora está – e nós sem


consolo, mesmo se alguém dentre os homens sobre a terra
disser que ele há de chegar: morreu seu dia da volta!
(Od. 1, 166-168)

60
A ausência de consolo e esperança (o termo thalporé, que traduzimos por
“consolo”, em alguns manuscritos é substituído por elporé, “esperança”) o faz
ora desconfiar da própria linhagem ou renegá-la (v. 214-220), ora imaginar que o
fim inglório do pai o condena ao sofrimento (v. 234-243); sua herança não é mais
o renome, mas o pesar. Diante disso, Telêmaco – voltando, na parte final, aos
pretendentes – adota uma postura passiva, à espera da própria ruína:

(...) os deuses outras aflições me reservaram:


porque todos os melhores que têm poder sobre as ilhas
(sobre a frondosa Zacinto e sobre Dulíquio e Same),
e todos também que são chefes na rochosa Ítaca,
todos cortejam a minha mãe e consomem a casa.
E ela nem nega o odioso casamento nem consegue
tomar decisão, e aqueles devoradores a casa
fazem definhar. Depressa destruirão a mim também!
(Od. 1, 244-251)

Atena, em suas respostas, rebate a ideia de que Odisseu tenha morrido (dizen-
do a verdade pela metade) e logo aponta para a semelhança do jovem com o pai (v.
194-199 e 206-212), semelhança de que Telêmaco duvidará. Na sequência, a deusa
ainda censura de forma veemente sua passividade, como faz questão de ressaltar o
narrador (“muito exaltada”, v. 252).79 Incitando-o à ação, seus comandos principais são
dois – convocar uma assembleia para o dia seguinte e partir para Pilos e Esparta, em
busca de notícias do pai (v. 269-296). Atena, que já havia excluído, de passagem, qual-
quer possibilidade de o jovem ficar sem fama (“Os deuses não impuseram a ti linha-
gem anônima/ no porvir, já que Penélope deste jeito te gerou!”, v. 222-223), o interpela
finalmente assim, retomando o paradigma formulado anteriormente por Zeus:

(...) Tu não deves


levar a infância adiante, porque não tens mais idade!
Ou tu não ouves que glória obteve o divino Orestes

79 Trata-se, curiosamente, do particípio de um verbo (epalastéo) que aparece só aqui em Ho-


mero. George Dimock (The unity of the Odyssey. Amherst: The University of Massachusetts
Press, 1989, p. 17) explora um possível jogo de palavras entre esse particípio (ePALAStésasa)
e o epíteto Pallás, da deusa, que aparece no mesmo verso 252, e que traduzo por “Vibrante”.

61
por entre todos os homens, ao matar o algoz do pai,
o ardiloso Egisto, o qual matara o célebre pai?
Tu também, amigo – muito belo e imponente te vejo –,
sê valente, pra que algum dos pósteros te bem-diga!
(Od. 1, 296-302)

A esse nível propriamente narrativo, em que os personagens interagem


com vistas ao desenvolvimento da ação, vem se juntar na cena o nível que pode-
mos chamar de “cognitivo”, em que contrastam a condição divina e a humana. O
movimento de Telêmaco, por um lado, está inextricavelmente interligado ao da
deusa, de tal modo que há uma aproximação e identificação entre eles (lembre-se
que em Od. 2, 383 Atena assumirá as formas do próprio Telêmaco), mas, por outro
lado, certos elementos do diálogo servem para indicar, ao contrário, a distância
que separa um do outro. Veja-se particularmente este trecho da conversa:

TELÊMACO:
Mas vamos, me fala isto e relata sem torcer:
dos homens quem és, e de onde? Onde estão teus pais e pólis?
Chegaste aqui em que tipo de nau? Como os marinheiros
te trouxeram até Ítaca? Quem eles proclamam ser?
Pois penso que certamente não vieste a pé pra cá.
E conta com verdade tal coisa pra que eu bem saiba.
(Od. 1, 169-174)

ATENA:
Pois eu te relatarei isso sem nada torcer:
(...)
Proclamamos pelos nossos pais ser hóspedes um do outro,
desde o princípio, se acaso fores perguntar ao velho
herói Laertes, que dizem (phasí) que não se dirige mais
à pólis, mas que distante lá no sítio sofre dores,
com a velha serva, a qual dispõe comida e bebida
pra ele quando o cansaço se apodera de seus membros,
ao rastejar pela encosta do terreno com a vinha.
E agora vim, pois diziam (éphanto) que ele estava com seu povo,

62
teu pai – e entretanto os deuses prejudicam seu percurso.
(...)
Mas agora vou pra ti profetizar, tal qual mandam
os imortais em meu ânimo e qual penso que será
(mesmo sem ser adivinho, e de aves sem saber claro).
Não por muito tempo longe de sua cara terra pátria
ficará, nem se o prenderem por meio de amarras férreas:
pensará em como vir, porque ele é multiengenhoso.
(Od. 1, 179, 187-195 e 200-205)

Primeiramente, temos a ironia das palavras de Telêmaco: na série de frases


feitas que constituem os versos citados acima, seus dizeres ganham uma dimensão
de que não pode suspeitar, mas que nós, leitores e ouvintes, apreendemos. Das per-
guntas sobre as “origens” de Atena-Mentes até a expectativa de que fale a verdade
– passando ainda pelo modo como chegou a Ítaca –, tudo é construído de modo a
ter uma duplicidade de sentido, o que o jovem enuncia e o que de fato é. Atena não
pertence ao gênero humano (e, sem mãe, é a “nascida do potente pai”, obrimopátre,
Od. 1, 101), não vive em uma entre muitas pólis nem necessita de naus e marinhei-
ros, mas Telêmaco acerta em cheio ao dizer que certamente não foi a pé que chegou
a Ítaca. Sobre “falar a verdade”, podemos dizer que sim, Atena falará a verdade,
mas o fará mentindo, através da dissimulação, ou seja, do modo que é próprio da-
queles que possuem a astúcia e são capazes de revelá-la no emprego da palavra.80
A ironia das palavras de Atena já tem um caráter diverso, porque é
intencional: sabe o que dizer quando quer. Repare-se, por exemplo, no uso das
formas “dizem” e “diziam” (destacadas acima), que ela emprega astutamente
para reforçar um conhecimento impreciso e precário, que depende do relato
alheio. No primeiro caso – a informação sobre Laertes – os dados estão
corretos, mas no segundo – Odisseu já estar de volta – trata-se de um equívoco.
Esse recurso serve para forjar uma “limitação” no conhecimento da deusa, ao
mesmo tempo que nos informa de uma situação real – Laertes vive isolado no

80 No jogo entre “Mas vamos, me fala isto e relata sem torcer” (Telêmaco, v. 169), e “Pois
eu te relatarei isso sem nada torcer” (Atena, v. 179), de um lado, e “Mas vamos, me fala isto e
relata sem torcer” (Atena, v. 206) e “Pois então, hóspede, eu vou falar sem nada torcer” (Telê-
maco, v. 214), de outro, repare-se como as mesmas frases vão ganhando sentidos diferentes:
no caso de Telêmaco, o pedido é sincero e a afirmação é ingênua, enquanto em Atena temos,
em ambos os casos, expressões “fingidas” que reforçam seu conhecimento.

63
campo –, o que faz com que Atena seja assimilada à onisciência do narrador de
terceira pessoa. Podemos ver ainda nesse “ouvir dizer” uma referência sutil ao
movimento que o próprio Telêmaco deve adotar: “Mentes” é um viajante que
colhe informações em outros lugares sobre assuntos que lhe dizem respeito.
A parte em que fala da “profecia” tem uma ironia ainda mais acentuada,
e verdade e mentira se combinam de modo magistral: Atena não é um adivi-
nho, mas com seu conhecimento divino amplo pode adivinhar; e esse impulso,
claro, tem origem divina, mas não porque se trata de um mortal favorecido por
um poder sobrenatural. A predição, naturalmente, é verdadeira (Odisseu não
ficará longe por muito tempo), mas vale ressaltar como mais uma vez essa fala
certeira tem que usar o disfarce da limitação: quando diz “qual penso que será”
(hos teléesthai oío, v. 201), ela adota o modo de expressão habitual no homem,
em detrimento do que seria a proposição mais adequada na boca de um deus.
Veja-se como isso vem ilustrado pelo diálogo com Aquiles no Canto 1 da Ilíada,
onde não aparece disfarçada. Aí, é o herói que usa a forma da suposição (“Mas
vou te dizer, e penso que isso vai acontecer”, v. 204), enquanto Atena diz, tam-
bém profetizando, como neste Canto 1 da Odisseia, “pois vou te dizer assim, e
isso vai acontecer” (Il. 1, 212).
Depois de vistos esses pontos principais do diálogo entre o jovem e a
deusa, devemos nos perguntar: qual a reação de Telêmaco? Onde está indicada
sua transformação? No diálogo seguinte com a mãe, que desce de seu aposento
(para pedir que Fêmio procure outro tema para seus cantos que não o retorno
dos acaios de Troia), o ouvimos dizer:

“Quanto a ti, que coração e ânimo ousem escutar!


Pois não somente Odisseu perdeu o dia da volta
em Troia: inúmeros outros heróis também pereceram.
Agora, indo ao aposento, cuida dos trabalhos teus
– do teu tear, da tua roca – e ordena também às servas
que se lancem ao trabalho. Falar (mûthos) caberá aos homens
todos, e a mim sobretudo: é meu o poder (krátos) na casa!”.
E ela, espantada (thambésasa), foi já de volta para o aposento,
pois a fala ponderada (mûthon pepnuménon) do filho entrara em seu ânimo.
(Od. 1, 353-361)

64
Há três elementos importantes aí. Primeiramente, a afirmação de que o
pai “perdeu o dia da volta”, que ecoa o que já dissera a Atena-Mentes (v. 166).
Podemos supor que se trata de um Telêmaco ainda descrente, que fez ouvidos
moucos às palavras do hóspede, ou que trabalha com a recorrente desconfiança
que vemos ao longo do poema no que diz respeito ao retorno do herói principal.
Outra possibilidade – talvez mais atraente – seria considerar que já opera com
uma incipiente dissimulação,81 o que estabeleceria um contraste com sua fala
anterior: como é comum em Homero, a repetição das mesmas ideias (às ve-
zes com as mesmas palavras) pode promover uma diferenciação entre os con-
textos. Essa leitura talvez receba apoio do segundo elemento em destaque – a
afirmação da autoridade por meio do domínio da palavra (mûthos), que será
plenamente apresentado no Canto 2, em seu pronunciamento público na ágora
de Ítaca. Richard Martin pode ter razão ao afirmar que, aqui, se trata de uma
“bravata”;82 ainda assim, se a autoridade de fato não está presente, a afirmação
já denuncia uma tentativa de estabelecer algum tipo de poder, e parece vir re-
forçada logo abaixo pelo verso “E entre eles falou primeiro (érkheto múthon) o
ponderado Telêmaco” (v. 367), que destaca sua “liderança” discursiva.
Aqui vale a pena abrir um parêntese sobre o uso dessa construção formular
em outros passos de Homero; as demais ocorrências na épica (pelo menos as que
temos registradas) são três e nos permitem entender o valor geral da frase. Nos
dois passos em que Telêmaco não está presente, trata-se de uma figura masculina
afirmando sua autoridade diante da mulher. Heitor diz para Andrômaca na Ilíada,
com uma pequena variação em relação ao que temos no Canto 1 da Odisseia:83

Agora, indo ao aposento, cuida dos trabalhos teus


– do teu tear, da tua roca – e ordena também às servas
que se lancem ao trabalho. Guerrear (pólemos) caberá aos homens
todos, e a mim sobretudo, dos que residem em Ílion!”.
(Il. 6, 490-493)

81 É o que sugere, por exemplo, Irene de Jong em seu A narratological commentary on the
Odyssey, p. 37-38. Segundo ela, o próprio fato de Telêmaco responder à queixa da mãe dirigi-
da a Fêmio (e não o cantor) é o “primeiro sinal de sua nova assertividade”.
82 Ver seu comentário em Homer: The Odyssey. Translated by Edward McCrorie. Baltimore,
The Johns Hopkins University Press, 2004, p. 361.
83 Ver Matthew Clark, “Was Telemachus rude to his mother?”, Classical philology 96/4 (2001):
335-354.

65
Já Alcínoo diz a sua esposa, Arete, no Canto 11 da Odisseia:

(...) Seu transporte (pompé; de Odisseu) caberá aos homens


todos, e a mim sobretudo: é meu o poder no povo!”.
(Od. 11, 352-353)

Em ambos os casos é um homem, o senhor da casa, que afirma seu po-


der de decisão frente a algum pedido ou determinação da mulher. Na boca de
Telêmaco, portanto, essa construção tradicional aciona essa situação de afirma-
ção masculina, ainda que se associe aqui, pela circunstância, a uma hesitante
emancipação. A suspeita de que esses versos sejam um indício da sua mudança
confirma-se ao vermos o quarto e último exemplo dessa formulação típica; ela
surge na parte final da Odisseia (Od. 21, 350-3 = 1, 356-9), quando Telêmaco –
novamente se dirigindo à mãe – substitui o ato de “falar” (mûthos) pelo de “do-
minar o arco” (tóxon). A conexão entre as cenas é inevitável, e agora o leitor/ou-
vinte percebe que o que se insinuava no início do poema de fato se concretizou:
Telêmaco tem poder, e seu mûthos se converteu em érgon.84
Finalmente, fechando o parêntese e voltando ao Canto 1, nos versos
que se seguem a esse discurso direto de Telêmaco o narrador nos informa do
espanto (thambésasa) de Penélope com o comportamento do filho, sinal ine-
quívoco de uma postura nova; além do mais, como mostrou John Heath em
seu artigo, a qualificação da fala do jovem como sendo “ponderada” (mûthon
pepnuménon) parece jogar diretamente com o epíteto do herói, pepnuménos,
“ponderado”, que repetidas vezes introduz seus discursos – inclusive este diri-
gido a Penélope (“E disse a ela de volta o ponderado Telêmaco”, v. 345) e mais
outros três até o final do canto (v. 367, 388 e 412). O herói, tradicionalmente
“ponderado” – desde o verso 213, quando mostra fraqueza – vai aos poucos
“conquistando” seu qualificativo.85
A conversa seguinte, mais extensa, com os dois principais pretendentes,
Antínoo e Eurímaco, só confirma essa percepção de um Telêmaco em
transformação. Desde a interpelação inicial, nota-se um comportamento mais
agressivo por parte do jovem:

84 J. Petropoulos, Kléos in a minor key, p. 89.


85 J. Heath, “Telemachus pepnuménos”, p. 139.

66
“De minha mãe pretendentes de soberba hiperviolenta:
desfrutemos do banquete agora, mas que não haja
algazarra, que isto é belo – escutar a um aedo
do tipo que este aqui é, rival dos deuses na voz.
Mas na aurora, rumo à ágora andemos e lá sentemos
todos, a fim de que eu diga sem reservas (apelegéos) meu discurso:
que abandoneis o palácio! Preparai outros banquetes,
consumindo vossos bens, revezando-vos nas casas.
Contudo, se vos parece que isto é sim mais proveitoso
e melhor – a perda impune do sustento de um só homem –,
destruí! Eu vou bradar aos deuses que sempre são,
para ver se Zeus concede que sobrevenha o revide.
Que sem quem vos vingue então findeis dentro do palácio!”.
Assim disse, e todos eles – enfiando os dentes nos lábios –
se espantaram com Telêmaco, pois com coragem falara (tharsaléos agóreuen).
(Od. 1, 368-382)

A qualificação franca e direta dos pretendentes, sem meias palavras –


“de soberba hiperviolenta” (hupérbion húbrin ékhontes) –, ecoa as palavras de
Atena (hubrízontes, v. 227) e indica, simultaneamente, uma postura passional,
própria de quem fala “sem reservas” o discurso (apelegéos), como faz Aquiles
no Canto 9 da Ilíada, quando surge a mesma expressão (v. 309). Aí, o contexto
era de oposição a Odisseu (o dissimulado), mas aqui a linguagem repetitiva
também serve para aproximar o filho do pai: os dizeres “isto é belo – escutar
a um aedo/ do tipo que este aqui é, rival dos deuses na voz” são idênticos
aos que surgem na boca do protagonista no Canto 9 (v. 3-4), quando inicia
seu longo discurso diante dos feácios. A identificação serve para antecipar a
reunião dos dois e a execução da justiça de Zeus, de que fala Telêmaco no
final, com o ominoso verbo óloisthe, “findeis”, ocupando a última posição do
verso no original. Em suma, temos nessas linhas a combinação de dois movi-
mentos: do jovem determinado a pôr em prática as determinações de Atena
– a começar pela convocação da assembleia –, e do jovem ainda incerto de
como exatamente elaborar sua fala e manipular seus adversários. Telêmaco,
em outras palavras, assemelha-se a Odisseu, mas é também, por enquanto,
um anti-Odisseu.

67
A reação dos pretendentes é a mesma de Penélope: espanto (verbo
thaumázo), isto é, surpresa com uma postura totalmente inédita e inesperada.86
Se na fala com a mãe o narrador destacara a ponderação, aqui o que sobressai
é a ousadia: “com coragem falara” (tharsaléos agóreuen).87 Homero aproveita
essa “deixa” para elaborar uma ironia naquele que é o primeiro discurso dos
pretendentes no poema, dito pelo seu líder, Antínoo (cujo nome, literalmente,
significa “contrassenso”, “desrazão”, ou “de mente contrária, hostil”).

Telêmaco, são os deuses certamente que te ensinam (didáskousin)


a ser sublime orador e com coragem falar (tharsaléos agoreúein)...
Que na marítima Ítaca o Cronida não te faça
rei, o que, por nascimento, é tua herança paterna.
(Od. 1, 384-387)

O tom parece ser de sarcasmo, mas a confiança de Antínoo trai sua iminente
ruína, pois o que para ele são palavras vazias esconde a verdade da atual condição
de Telêmaco – ensinado e encorajado por Atena, determinado a resgatar a herança
paterna. Invertendo a leitura narratológica tradicional, segundo a qual a identidade
entre os versos 382, dito pelo narrador (“com coragem falara”), e 385, dito pelo per-
sonagem (“com coragem falar”), aponta para a presença, na voz narrativa, do ponto
de vista dos pretendentes – a chamada “focalização embutida” –,88 podemos dizer
que é a fala de Antínoo que, involuntariamente – com seu tom jocoso e sua falta de
conhecimento – reafirma o ponto de vista do narrador, o qual atesta a ligação entre
Telêmaco e Atena. Aquilo que é fala objetiva e onisciente se transmuda, manten-
do-se os mesmos termos, em fala subjetiva e insciente, e nós, leitores, podemos
acompanhar, de nossa posição privilegiada, ambas as perspectivas.
A resposta de Telêmaco sobre ser ou não rei (v. 389-398) é vaga – a afir-
mação enfática de que será “senhor” (ánax) da casa não assusta os invasores de
seu lar –, e quando vemos, na sequência, a manifestação de outro pretendente,
o efeito explorado é o mesmo que vimos em relação a Antínoo. Eurímaco (“o

86 Como diz J. Heath, “Telêmaco já apresenta os primeiros sinais do discurso elaborado do


pai”; ver seu “Telemachus pepnuménos”, p. 139.
87 Quando estes dois versos reaparecerem (Od. 18, 410-411; e 20, 268-269 = 1, 381-382), com
Telêmaco já tendo assumido outra condição, eles soarão de modo ainda mais forte do que aqui.
88 Essa é a leitura proposta por I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 40.

68
de amplo combate”) mostra-se curioso quanto à presença daquele misterioso
hóspede, que partiu subitamente e não parecia “mau” (kakós) de aparência:

Telêmaco, isso decerto jaz nos joelhos dos deuses


– quem na marítima Ítaca reinará sobre os acaios.
(...)
Mas desejo, nobilíssimo, te perguntar sobre o hóspede:
de que parte esse homem vem, de que terra ele proclama
ser, e onde se encontram sua família e seu solo pátrio.
Traz ele alguma mensagem sobre a vinda de teu pai,
ou aqui chega movido por motivo pessoal?
Quão de imediato – de um salto – se foi, e não ficou mais
pra ser conhecido! Mau não parece pelo rosto”.
(Od. 1, 400-401 e 405-411)

Atena, sabemos, ficará mais para ser “conhecida” (verbo gignósko). A


ironia do final ecoa a do início (“...jaz nos joelhos dos deuses”) e serve para aludir
a um motivo fundamental do poema, o do encobrimento-reconhecimento, ao
mesmo tempo que indica o desconhecimento dos pretendentes. É interessante
também notar como o sentido social dado às últimas palavras – “Mentes” tem
a aparência de uma aristocrata, deve pertencer aos “bons” – não exclui uma
possível leitura moral de kakós (e agathós): em mais uma inversão, “Mentes” é
dito “bom” (= justo) por quem é “mau” (= injusto), ainda que estas ideias escapem
a Eurímaco, que fica restrito à percepção social e a uma provável identificação
com o hóspede, que imagina ser também um rei: outro motivo central da
Odisseia, o do confronto entre aparência e essência, já fica sublinhado.
A resposta de Telêmaco, assim como acontecera em relação à mãe, tra-
balha com formulações anteriores para dar a elas novo sentido:

“Eurímaco, sim, morreu o retorno do meu pai!


Logo, a mensagens não ouço mais (de onde quer que elas venham)
nem ligo pra qualquer profecia que minha mãe
a um profeta pergunte, após chamá-lo ao palácio.
Aquele, porém, é hóspede de meu pai vindo de Tafos;
Mentes, o filho de Anquíalo experiente, proclama

69
ser, e agora sobre os táfios amantes de remos reina”.
Disse assim, reconhecendo no espírito a imortal deusa.
(Od. 1, 413-420)

São lamentos semelhantes, no tom geral, aos ditos a Atena, mas em


novo contexto. Se para Penélope Telêmaco dissera que “Odisseu perdeu o
dia da volta” (v. 354) – mas combinando a essa desesperança uma afirmação
surpreendente de autoridade –, aqui a ideia de que “morreu o retorno” do pai
surge, mais uma vez, mesclada a uma conduta diferente, em que ressalta a
capacidade de, simultaneamente, falar a verdade (Atena se apresentou de fato
como “Mentes”), mentir (Telêmaco dá sim ouvidos à profecia da deusa) e omitir
(o jovem sabe que “Mentes” é Atena). Parafraseando as frases do herói, falar
caberá agora a ele: o que era talvez apenas uma bravata começa, a partir da
conversa com os pretendentes, a ganhar um contorno mais nítido. Ele agora é
capaz de dizer algo (“disse assim”), mas evitar, de maneira calculada, a verdade
(“reconhecendo no espírito a imortal deusa”).
Diante disso, podemos afirmar com segurança que há uma súbita
mudança no comportamento do personagem – uma mudança de atitude, e não
uma completa transformação do seu caráter –, deflagrada pela presença da
divindade, que, como vimos, é percebida por Telêmaco. Essa percepção, como
sabemos, é indicada pelo narrador não apenas no passo citado acima (onde se
emprega de novo o verbo gignósko), mas também nesta passagem fundamental
(com o verbo noéo), que encerra o já comentado diálogo de Atena com o filho
de Odisseu:89

Depois de falar assim, foi-se Atena claros-olhos,


e tal qual ave voou ao alto. Mas em seu ânimo
já pôs furor e coragem (ménos kaì thársos), e o fez lembrar de seu pai
ainda mais que antes. E ele, percebendo (noésas) em seu espírito,

89 Não é uma questão menor saber se Telêmaco apenas reconheceu a presença de uma divin-
dade (que era incapaz de especificar) ou se sabia que se tratava de Atena. Irene de Jong conside-
ra que no verso 420 (“reconhecendo a deusa imortal”) temos uma “paralepse”, isto é, o narrador
assumindo o ponto de vista de Telêmaco e dando mais informações do que o jovem de fato
tinha. Ver A narratological commentary on the Odyssey, p. 34. Em favor dessa leitura, temos a
invocação do Canto 2 (v. 262), quando Telêmaco aparenta desconhecer a identidade da deusa
que lhe aparecera antes. Nestor desfaz qualquer dúvida em Od. 3, 375-379.

70
no ânimo então se espantou – pois pressentiu que era um deus.
E depressa aos pretendentes se juntou, herói deiforme.
(Od. 1, 319-324)

Esses versos são importantes porque chamam atenção para os dois atri-
butos que passam a fazer parte do “ânimo” (thumós) de Telêmaco depois – e por
causa – da entrevista com a deusa: furor (ménos) e coragem (thársos). Eles não
surgem aqui por acaso; é preciso lembrar que, no início do canto, Atena já havia
dito a Zeus:

Enquanto isso eu mesma irei a Ítaca, a fim de mais


incitar seu filho e em seu espírito pôr furor (ménos)
para que convoque à ágora os cabeludos acaios.
(Od. 1, 88-90)

Portanto, o poema explica a mudança de Telêmaco com base na aquisição


dessa intrepidez que Atena incutira em seu espírito – tão imediata e “sobrenatu-
ral” quanto o modo como “Mentes” desaparece do palácio (“e tal qual ave voou
ao alto”).90 De certa maneira, o espanto que ele causa na mãe e nos hóspedes
indesejados é fruto desse encontro espantoso com a deusa (“no ânimo se espan-
tou”, mesmo verbo thambéo), que faz dele um “herói deiforme” (isótheos phós,
literalmente, “igual a um deus”). Repare-se como essa fórmula de fim de verso,
presente mais doze vezes na Ilíada – mas só uma vez mais uma na Odisseia, apli-
cada justamente a Telêmaco (Od. 20, 124) –, deixa aqui de ser apenas um fóssil
metricamente conveniente para ganhar, na situação em que surge, um sentido a
mais: ele tem de fato uma proximidade com o âmbito divino, e no momento em
que se junta aos pretendentes o epíteto sublinha a distância que os separa.91
Assim, quando vemos Telêmaco falar “com coragem” (tharsaléos, v.
383, 385) diante de Antínoo e Eurímaco, estamos acompanhando a presença
repentina dessas qualidades antes inexistentes. Contudo, ainda que a noção de

90 Não se trata, ao que tudo indica, de uma comparação (“como uma ave voou”), mas sim
de uma metamorfose (“enquanto ave voou”). Podemos afirmar isso com base no que lemos
no Canto 3 (v. 371-372), onde Atena parte assumindo claramente o aspecto de um pássaro, e
o que lemos no Canto 22 (v. 240), onde se transforma em andorinha. Ver I. de Jong, A narrato-
logical commentary on the Odyssey, p. 33-34.
91 Leitura nesse sentido é feita por I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey p. 34.

71
“coragem” seja a destacada pelo poeta nessa conversa com os pretendentes, é no
termo ménos (“furor”) que quero me deter um pouco mais aqui, porque Homero
parece jogar com ele de maneira significativa, sublinhando, mais uma vez, a nova
condição do filho de Odisseu. Esse substantivo neutro tem, em grego, a ideia de
“ânimo, disposição, vitalidade”. Pierre Chantraine o define assim:

Diz-se do espírito que anima os corpos, mas, sempre como princípio ativo,
pode indicar a intenção, a vontade, a paixão, o ardor do combate, a força que
anima os membros; diz-se dos animais e, finalmente, de uma lança, dos rios
etc.; emprega-se como bíe [“força”] nas perífrases do tipo ménos Atreídao.92

Na Ilíada, é frequente encontrarmos, no ambiente de guerra, a referência ao


“furor” que brota em cada combatente depois de ouvir uma exortação ou coman-
do. Numa fórmula presente dez vezes entre os Cantos 5 e 16, e que corresponde a
um verso inteiro, ménos aparece quase como um sinônimo de thumós, a que vem
coordenado: “Assim disse, e incitou o ânimo e o furor de cada um” (hòs eipòn ótrune
ménos kaì thumòn hekástou). Ela é empregada, por exemplo, depois dos discursos
de Aquiles e Pátroclo dirigidos aos mirmídones, com o intuito de estimulá-los à luta
(Il. 16, 210 e 275). Na Odisseia, sua única ocorrência acontece quando Alcínoo convo-
ca os feácios à ágora, para que conheçam o novo forasteiro (Od. 8, 15). A esse sen-
tido mais positivo pode se juntar, em outros contextos, um mais negativo, em que
ménos, a exemplo de outras ideias correlatas em grego (como os citados thumós e
thársos), ganha a conotação de violência, fúria, de um ardor excessivo, de uma dis-
posição desmedida. É o que acontece quando aplicado na Ilíada a Aquiles (Il. 1, 207;
e 9, 679) e Agamênon (Il. 1, 282), e na Odisseia ao Ciclope (Od. 9, 457). Não é o caso,
naturalmente, de Telêmaco, que recebe da deusa uma súbita disposição favorável,
que corresponde, como bem viu Chantraine, a um “princípio ativo”: em sua situação
de inércia, ménos surge – positivamente – como uma capacidade de ação.
Há uma passagem esclarecedora da Ilíada, em que vemos como o
“furor” inculcado pela divindade tem o poder de subitamente levar o homem
impotente a agir. Trata-se da cena do Canto 16 em que o lício Glauco, flechado
por Teucro, pede a Apolo que cure seus ferimentos, para que assim ele possa
retornar ao combate:

92 Ver na entrada mémona do seu Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des
mots. Paris: Klincksieck, 1999.

72
“Pois tenho esta violenta ferida, e todo o meu braço
é atacado por dores agudas; meu sangue não
pode ser secado, e pesa por causa dela o meu ombro.
Não posso segurar firme a lança, nem ir lutar
com inimigos. E um homem – o excelente – pereceu,
Sarpédon, filho de Zeus! E esse nem salva seu filho...
Mas tu pra mim, senhor, esta violenta ferida cura,
adormece as dores, dá poder (krátos), para que exortando
os meus companheiros lícios os incite a guerrear,
e eu próprio, em torno do corpo caído morto, combata!”.
Assim disse, num clamor, e o ouviu o puro Apolo.
Parou de imediato (autíka) as dores, e secou o negro sangue
da trabalhosa ferida, e lhe pôs furor (ménos) no ânimo.
E Glauco reconheceu no espírito (e se alegrou)
que depressa (óka) o grande deus escutara o seu clamor.
(Il. 16, 517-531)

Fica claro aqui como o mortal pode sofrer uma transformação repentina
– notem-se os advérbios “de imediato” (autíka) e “depressa” (óka) – sob o influ-
xo divino, de tal modo que a inação é substituída por uma plena capacidade de
movimentos, a um poder físico e anímico. É precisamente isso que se deve ter
em mente nesse encontro em que Telêmaco recebe, de Atena, “furor”. É o mes-
mo tipo de favor que encontramos na Ilíada em relação a Diomedes, quando
Atena nele coloca também ménos kaì thársos:

E agora então ao Tidida Diomedes vibrante Atena


já deu furor e coragem (dôke ménos kaì thársos), pra que distinto entre todos
os argivos se tornasse, e obtivesse brava glória.
(Il. 5, 1-3)

Se a situação, neste Canto 1 da Odisseia, não é (ainda) de combate,


nem por isso podemos descartar a associação com o contexto bélico, não só
pela linguagem típica e porque a deusa, com sua lança, se liga naturalmente
a ele, mas também porque a ação de Telêmaco culminará, no final do poema,
num embate de fato com os pretendentes – já antecipado aqui por “Mentes”,

73
quando diz ao jovem que ele deve pensar em como matar os pretendentes
(Od. 1, 294-296).
Se deixarmos momentaneamente a discussão do texto e formos para
a análise etimológica do substantivo ménos, veremos que sua raiz *men- tem
um valor mais amplo. Segundo Chantraine, ela exprime essencialmente os
“movimentos do espírito” e, além do sentido físico e anímico que encontramos
no grego ménos, pôde dar origem também, num plano mais reflexivo e
intelectual, ao latim mens, “mente”. Mais importante ainda: a etimologia nos
faz ver que essa raiz entre na formação dos nomes dos personagens de que
Atena se disfarça para Telêmaco na parte inicial da Odisseia: o já citado Mentes,
presente apenas no Canto 1, e Mêntor, presente nos Cantos 2 e 3 (e, depois,
nos Cantos 22 e 24). Em grego, os dois nomes são construídos com o acréscimo
dos sufixos de agente -tes/-tor (Mén-tes/Mén-tor), de modo que, a princípio,
esses termos podem evocar a figura de um “acionador do furor”.93 Dizemos “a
princípio” porque tanto “Mentes” quanto “Mêntor” parecem ser nomes próprios
tradicionais; na Ilíada, há um “Mentes, líder dos cícones” (Il. 17, 73), e um lanceiro
Ímbrio cujo pai se chama “Mêntor” (Il. 13, 171). No primeiro caso, nota-se uma
semelhança com a Odisseia, pois novamente é um deus (no caso, Apolo) quem
assume as formas desse Mentes cícone – e o faz com o objetivo de estimular um
guerreiro à luta (no caso, Heitor). Não podemos determinar, portanto, o valor
exato desses nomes, isto é, se eles estavam diretamente ligados ao universo
semântico de ménos, como a raiz parece sugerir. De todo modo, não é descabido
imaginar que – no contexto da Odisseia – a associação fosse feita pelos ouvintes
entre Mentes/Mêntor e o papel que desempenham, de fomentadores da ação
de Telêmaco.94

93 Sobre esses sufixos, ver Pierre Chantraine, La formation des noms en grec ancien. Paris:
Librairie Ancienne Honoré Champion, 1933, Capítulo 27 (“Les dérivés masculins em -ta-”, p.
310-320) e Capítulo 28 (“Les dérivés athématiques em -ter-/-tor-”, p. 321-329). Segundo o es-
tudioso, -tor é um sufixo “mais raro” (p. 321) e, junto com -ter, acabou por desaparecer em
favor da forma bem mais difundida -tes (p. 317), o que pode nos levar a supor que, para a
audiência grega, o nome Méntes, restrito ao Canto 1, fosse o mais significativo dos dois.
94 G. Dimock, que explora exaustivamente em seu livro a etimologia dos nomes próprios na
Odisseia, diz apenas de Mentes que “seu nome sugere a ‘vitalidade’ (ménos) que ela [Atena]
pretende inspirar em seu protégé” (The unity of the Odyssey, p. 16). Deve ser lembrado aqui o
possível jogo na Ilíada com o nome de Heitor (Héktor), a partir de uma etimologia que liga o
verbo ékho a um sufixo de ação -tor (Il. 5, 472-473; e 24, 730), fazendo dele o “Protetor”. Ver W.
Stanford, Ambiguity in Greek literature. Oxford: Basil Blackwell, 1939, p. 100.

74
Indo mais longe, podemos inclusive pensar numa associação com o subs-
tantivo mêtis, tão fundamental no poema, o que faria da dupla também os “acio-
nadores da inteligência”, destacando assim o nível mais reflexivo. Seria uma as-
sociação imprópria, não autorizada pela nossa ciência etimológica. Tanto Pierre
Chantraine quanto Robert Beekes postulam uma raiz *meh1-, com a noção de
“medida”, para mêtis.95 Mas a etimologia fantasiosa e sugestiva dos gregos an-
tigos poderia, com base na similaridade sonora, permitir a aproximação, sobre-
tudo porque mêtis se forma pelo acréscimo de um sufixo de ação -tis.96 Ou seja,
a paronomásia (Méntes/Méntor/Mêtis), junto com as terminações -tes/-tor//-tis,
promoveria a reunião, nos nomes Mentes e Mêntor, das ideias de ardor e astúcia.
Deve-se lembrar aqui que, quando surge pela primeira vez para Telêmaco como
Mêntor, no Canto 2, Atena cobra de Telêmaco que se espelhe no “furor” (ménos,
v. 271) e na “astúcia” (mêtis, v. 279) do pai e não seja “insensato” (anoémon, v. 270
e 278), e que, posteriormente, no mesmo canto, quando cuida dos preparativos
da viagem para Pilos e Esparta, a deusa fala com um certo Nôemon (Noémon,
“Sensato”), filho de Frônio (Phrónios, “Pensativo”), que lhe empresta sua nau (v.
386-387). Sendo assim, a intervenção de Atena não se restringe ao plano físico e
anímico, mas contempla também o plano mental: ela é, efetivamente, a “mento-
ra” da ação e da reflexão (incluindo-se aí a capacidade discursiva) de Telêmaco.97
Esse estímulo de furor e astúcia, embora corresponda diretamente
ao caráter guerreiro e inteligente de Atena, não esgota sua interferência na
relação com Telêmaco. Há um outro elemento fundamental no poema, que não
diz respeito propriamente aos atributos do jovem, mas ao efeito que ele tem
sobre os demais homens. Se Mentes/Mêntor devem ser para Telêmaco o que
foi Fênix para Aquiles – uma espécie de preceptor e pai substituto, que o ensina
“a ser orador de falas e realizador de feitos” (Il. 9, 443) –, esses feitos e falas

95 Ver entradas em P. Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue grecque, e Robert


Beekes, Etymological dictionary of Greek. 2 vols. Leiden: Brill, 2010.
96 Como, por exemplo, em mántis, “adivinho”, ou phátis, “falação”. Ver P. Chantraine, La for-
mation des noms en grec ancien, Capítulo 23 (“Les noms d’action em -ti-), p. 277, onde afirma
que, no entanto, “foi o sufixo jônico-ático –sis que acabou se impondo em todos os dialetos”.
97 Vale a pena registrar que o substantivo “mentor” entrou nas línguas modernas através da
obra As aventuras de Telêmaco (1699), de François Fénelon, ele mesmo tutor do neto de Luís
XIV. Nessa narrativa didática, que recria a relação entre a disfarçada Atena e o jovem filho de
Odisseu, “Mêntor” ganha papel destacado. Ver Andy Roberts, “The origins of the term men-
tor”, History of Education Society Bulletin 64 (1999): 313–329.

75
implicam, necessariamente, a busca de um ideal transcentente no universo
aristocrático do guerreiro homérico: a glória (em grego, kléos). A próprio Atena
chama atenção para isso no prólogo, quando diz a Zeus:

E vou transportá-lo [a Telêmaco] a Esparta e para a arenosa Pilos,


a se informar sobre a volta do caro pai (se algo escuta)
– e para que brava glória (kléos esthlón) entre os homens o mantenha”.
(Od. 1, 93-95)

Em grego, kléos compartilha a mesma raiz do verbo klúo, “ouvir”, e em


alguns momentos pode deixar de ter o sentido forte de “glória” e significar apenas
“rumor”.98 Esta fala de Atena a Telêmaco, trabalhando com dois termos diferentes,
óssa, “notícia”, e kléos, “glória”, deixa bem clara a proximidade entre um e outro:

Já a ti darei conselho cerrado, caso obedeças:


apronta uma nau com vinte remadores – a melhor –
e parte pra te informares do teu pai já ido há muito,
a ver se algum dos mortais diz algo, ou se ouves Notícia (óssan)
vinda de Zeus, a qual mais leva glória (kléos) para os homens.
(Od. 1, 279-283)

Como se vê com clareza, o elemento central diz respeito à ideia de que


o herói deve ser “ouvido”, “falado”, deve possuir entre os humanos uma fama
que o faz ultrapassar a existência finita a que estão condenados os mortais. Na
definição de James Redfield:

O kléos está nas mãos dos outros: o kléos de um homem consiste no que os
outros dizem a seu respeito. (...) kléos é assim um tipo específico de identidade
social. Um homem tem uma história (que) é em certo sentido ele mesmo ou
uma versão de si mesmo (...) e, uma vez que sua história pode permanecer
depois que ele deixar de existir, ela é, sob certa ótica, a versão mais real dele.99

98 Por exemplo, Od. 16, 461; e 23, 137. Mas a fronteira não é sempre clara, como comenta
Anthony Edwards em seu Achilles in the Odyssey: ideologies in the Homeric epic. Königstein:
Verlag Anton Hain, 1985, p. 71 (ver sobretudo nota 2).
99 Citada por Peter Jones, “The kléos of Telemachus: Odyssey 1.95”, The American journal of

76
Ao contrário do que poderíamos imaginar, não se trata de uma reputação
adquirida apenas após a morte. O herói homérico alcança essa fama mesmo vivo
– produzindo uma memória coletiva sobre si mesmo que, em certo sentido,
confunde-se com sua própria existência. Isso o faz “viver” não só depois de
morto, mas lhe dá também “realidade” enquanto ainda vive. Essa memória,
por um lado, está sob constante ameaça, seja porque os atos realizados, e seus
sinais, podem ficar “escondidos” (caso de Odisseu, como veremos adiante),
seja porque se associam a uma má reputação, que “mata” a glória (situação
hipotética levantada por Aquiles em Il. 9, 415). Essa memória, por outro lado,
não fica restrita a um único indivíduo, podendo ser “transmitida” dentro de uma
mesma linhagem, como uma herança valiosa. Esse ponto é importante porque
a narrativa da Odisseia parte de uma possível ruptura entre a glória de Odisseu e
de seu filho para, ao final, reafirmar a identidade da estirpe.
As viagens de Telêmaco, portanto, munido de ardor e astúcia, representam
essa possibilidade de ser um “orador de falas e realizador de feitos” e, através desse
comportamento, apontam para a aquisição de um kléos que o identificará com o pai.
Seu movimento, sendo paralelo ao de Odisseu (viagem, hospitalidade, exposição ao
perigo, reconhecimento, aquisição de dádivas), representa, ao mesmo tempo, uma
crença na glória do pai e o estabelecimento da sua, que dela deriva. Buscar notícias do
pai, que lhe dão glória, significa ele mesmo ser objeto de notícias e glorioso. Em certo
sentido, portanto, “Mentes” e “Mêntor” são também “acionadores da memória”,
deflagradores desse “rumor coletivo” tão necessário à existência de Telêmaco. E aqui
mais uma vez o enfoque etimológico é precioso, uma vez que ele nos mostra que
à já citada raiz de *men- (de que deriva ménos) pertence ainda o verbo grego para
“lembrar”, mimnésko.100 É improvável que a audiência grega fizesse a conexão entre os
nomes próprios e mimnésko, mas vale notar que, ao partir do palácio, Atena-Mentes
fez Telêmaco “lembrar” (hupémnesen; verbo hupomimnésko) de seu pai (Od. 1, 321).
Sintetizando, podemos afirmar então que a intervenção de Atena tem
dois propósitos principais: estimular, através do furor e da reflexão incutidos,
que Telêmaco abandone a passividade e se torne um realizador de atos e pa-
lavras; e fazer com que essa sua nova postura resulte na obtenção de seu kléos
pessoal, que é uma confirmação do seu kléos familiar. Essa transformação, por

philology 109 (1988): 496-506, p. 499.


100 Ver entradas em P. Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue grecque, e R.
Beekes, Etymological dictionary of Greek.

77
sua vez (em curso na “Telemaqueia” e consolidada na segunda metade do po-
ema), confunde-se com a sua passagem da infância para a idade adulta, com o
estabelecimento de novas exigências e expectativas. Em outras palavras, ama-
durecer equivale a saber agir e falar (a deixar de ser infantil e tolo), e a ter de
buscar uma condição distinta entre os mortais. A fala abaixo de Atena ao jo-
vem – já citada aqui – parece resumir bem essa visão; repare-se como a “glória”
do exemplar Orestes é ouvida “entre todos os homens” e resulta de uma brava
ação, incompatível com a infância:

(...) Tu não deves


levar a infância (nepiáas) adiante, porque não tens mais idade!
Ou tu não ouves que glória (kléos) obteve o divino Orestes
por entre todos os homens, ao matar o algoz do pai,
o ardiloso Egisto astuto, o qual matara o célebre pai?
Tu também, amigo – muito belo e imponente te vejo –,
sê valente (álkimos), pra que algum dos pósteros te bem-diga (eù eípei)!
(Od. 1, 296-302)

Repare-se, também, que na exortação dos dois últimos versos, que conclui
a comparação entre Telêmaco e Orestes, há novamente a coordenação entre co-
ragem (“sê valente”) e glória (“para que algum dos pósteros te bem-diga”), e como
“Mentes” apresenta valentia e fama como consequências naturais do fato de Telê-
maco ser “muito belo e imponente” (mála... kalón te mégan te, v. 301). A tradução
de mégas por “imponente” não está incorreta, porque o termo, em contextos como
esse, está associado às ideias de tamanho e estatura. Mas não é descabido imaginar
que o termo tenha aqui a noção de “crescido” ou mesmo “adulto”, indicada pelos
dicionários,101 e que esteja retomando uma afirmação já feita pela deusa:

Mas vamos, me fala isto e relata sem torcer


– se com tal tamanho (tósos) és mesmo filho dele, de Odisseu.
A cabeça e os belos olhos parecem terrivelmente
com os dele, pois nós dois nos encontrávamos sempre
(Od. 1, 206-209)

101 Veja-se o que diz o dicionário Liddell & Scott, no verbete mégas (“A”, “I”, “b”): “full-grown,
of age as shown by stature”.

78
O pronome tósos pode, pelo contexto de descrição física, estar indican-
do simplesmente a estatura (“tão alto”, “tão imponente”) ou, ainda, a condição
de Telêmaco de homem feito (“tão crescido”).102 Nesse último sentido, o passo
nos faz lembrar a fala de Fênix a Aquiles no Canto 9 da Ilíada – o momento em
que relembra como cuidou do filho de Peleu como se fosse seu próprio rebento.
Nesses versos, temos a forma tosoûtos, uma variante mais enfática de tósos:

E te fiz assim tamanho (tosoûton), Aquiles símil aos deuses,


te amando de coração: com outro nunca querias
ir a um banquete ou mesmo provar algo no palácio
– até que finalmente eu te sentava em meus joelhos,
partia a carne primeiro pra ti e te dava vinho;
muitas vezes me molhaste a túnica sobre o peito
ao devolveres o vinho, durante a penosa infância (nepiéei).
(Il. 9, 485-491)

“Tamanho” aqui parece significar “assim crescido”, “o homem feito que és


hoje”, leitura reforçada pelo contraste com a referência à infância (nepiée). Em outras
palavras, foi Fênix que criou Aquiles desde a tenra idade até atingir a maturidade.
Mas é a própria Odisseia que confirma para nós, na sequência, a possibi-
lidade de tomarmos mégas e tósos no Canto 1 como alusões à idade adulta que
deve ser assumida por Telêmaco. Como sinal da transformação em curso – mas
ainda de forma inconsistente –, o jovem diz claramente a Antínoo:

Não basta, antes, terdes vós gastado muitas e belas


posses minhas, pretendentes, sendo eu ainda criança (népios)?
Mas agora sou adulto (mégas) e ouvindo o discurso de outros
me informo (...).
(Od. 2, 312-315)

Portanto, desde o Canto 1 Atena indica para Telêmaco que ele já é um


homem feito, e que as atitudes infantis são incompatíveis com essa nova
condição. É preciso abandonar a fase pueril e agir como um adulto. Mégas,

102 J. Petropoulos também levanta a hipótese dessa “implicação secundária” de tósos nesse
passo. Ver J. Petropoulos, Kléos in a minor key, p. 20.

79
“adulto”, “crescido”, e népios, “criança”, “infantil”, ecoam aqui as palavras de
“Mentes” no princípio do poema, exemplificando de maneira muito clara o
efeito da ascendência da deusa sobre o jovem, que agora estabelece um corte
entre o antes (infância) e o depois (maturidade). É essa ação afirmativa que
acompanhamos nos Cantos 2 (em que figura o discurso citado acima), 3 e 4, sob
o auxílio direto ou indireto da deusa. Primeiro na assembleia pública de Ítaca,
depois nos palácios de Nestor e Menelau, em linhas gerais vemos um Telêmaco
ainda vacilante tentando mostrar-se à altura do pai e assim estabelecer sua
reputação. Pretendo destacar aqui, rapidamente, os principais momentos dessa
evolução, para que se possa perceber como Homero constrói com habilidade
seus personagens principais – guardando suas características essenciais ao
mesmo tempo que os submete a circunstâncias transformadoras.

» O jovem em ação

O Canto 2 abre-se com o claro propósito de nos apresentar um novo Te-


lêmaco. Ao contrário do personagem passivo, indeciso e desesperançado do
episódio anterior, temos aqui (v. 1-14) um jovem armado com espada e lança,
“semelhante a um deus” (theôi enalígkios, v. 5), pronto a dar ordens (relativas à
convocação da assembleia) e coberto de graça (kháris, derramada sobre ele por
Atena, v. 12), alguém a quem todos olhavam com admiração. Ao tomar o assen-
to do pai na ágora, já tem início a identificação entre ele e Odisseu; não parece
um acaso o fato de, logo no verso 2, o jovem ser referido não pelo nome, mas
pela perífrase “caro filho de Odisseu” (Odussêos phílos huiós): a fórmula voltará
a ocorrer mais oito vezes no poema – a última delas, no Canto 16, logo antes do
reencontro entre pai e filho –, e sua utilização aqui pelo narrador parece querer
dizer que Telêmaco age, agora sim, em consonância com seu genitor.103
No entanto, como já vimos, esse lado ativo do jovem – subitamente ativo –
vem nuançado por uma capacidade ainda limitada de dialogar com os pretendentes
e de reagir à situação em que se encontra. Na sua primeira fala pública (v. 36-83),
predomina o tom queixoso (especialmente nos versos 46, 50 e 64), e o gesto final,

103 Od. 16, 48; as outras ocorrências: Od. 2, 35 e 415; 3, 64 e 352; 14, 515; e 15, 59 e 337. Ver
também a fórmula “caro filho do divino Odisseu” (phílos huiòs Odussêos theioîo) em Od. 15, 63
e 554; 17, 3; 20, 283; 21, 432; e 24, 151 (em Od. 3, 398, a fórmula aparece no acusativo, phílon
huiòn Odussêos theioîo).

80
de atirar o cetro ao chão, nos indica uma figura ainda passional e imatura, pela qual
toda a gente sente “piedade” (oîktos, v. 81).104 Como afirma John Heath,

ele ainda é inocentemente franco e pungentemente ineficiente em seu discur-


so, em que tenta em vão provar sua maturidade. (...) Tal franqueza, embora
ousada e verdadeira a longo prazo, é certamente contraproducente nesse mo-
mento e não abala de modo algum os pretendentes.105

As falas seguintes, em resposta a Antínoo primeiro (v. 129-145) e depois


a Eurímaco (v. 208-223), não alteram essa percepção, ainda que na segunda ele
comunique sua decisão de partir para Pilos e Esparta em busca de notícias do
pai. A entrevista com Atena na sequência (v. 260-297) – agora disfarçada de
Mêntor – de certa maneira reforça o que foi visto no Canto 1, com a deusa lhe
transmitindo ânimo e esperança, além de instruções práticas. Não surpreende,
assim, que logo depois Telêmaco seja, com Antínoo, mais sucinto e incisivo
(impedindo que o pretendente da mãe pegue em sua mão, v. 302 e 321) e não
reaja à troça dos hóspedes indesejados, que não acreditam na sua partida (v.
322-336). Não surpreende também que, no diálogo com a ama Euricleia, ele se
mostre resoluto em sair em viagem e – no estratagema de o fazer oculto à mãe,
ideia sua – comece a agir conforme se espera do filho do multiastuto Odisseu.
No plano formal, vale destacar rapidamente três elementos que con-
tribuem para pintar esse quadro de uma transformação em curso, ainda que
hesitante. Em primeiro lugar, temos por duas vezes a interpelação sarcástica
por parte de Antínoo, nos versos 85 e 203: “Telêmaco, incontrolável em furor
(ménos áskhete)”. Trabalhando com a noção fundamental de “furor” e dando
à fórmula, de sentido positivo (ver Od. 3, 104), um valor pretensamente falso,
Antínoo acaba por, ironicamente, indicar a verdade do que se passa com o
jovem. Outro dado interessante é a repetição das palavras de Atena do Canto
1, agora na boca de Telêmaco (v. 214-223):106 em Homero, esse recurso pode
promover a identificação entre os personagens e assinalar como o propósito

104 Não se pode deixar de mencionar a sugestiva comparação feita por R. Dawe, referida
por J. Petropoulos, entre esse gesto e o de atirar a raquete ao chão no tênis. Ver J. Petropou-
los, Kléos in a minor key, p. 83.
105 J. Heath, “Telemachus pepnuménos”, p. 140.
106 Od. 2, 214 ~ 1, 93; 2, 215 ~ 1, 281; 2, 216-217 = 1, 282-283; e 2, 218-223 = 1, 287-292.

81
divino se converte em ação humana. Finalmente, o uso na voz narrativa da
perífrase “a força sagrada de Telêmaco” (hierè ís Telemákhoio, v. 409) para in-
troduzir um discurso seu (em vez simplesmente do nome “Telêmaco”) acaba
por destacar essa nova condição do jovem e, só voltando a aparecer na parte
final do poema (mais seis vezes entre os Cantos 16 e 22), antecipa seu amadu-
recimento definitivo.107
Feita a travessia marítima, no palácio de Nestor em Pilos – primeira parada
de Telêmaco em sua viagem – vemos o jovem ainda assistido por Atena (sob a
forma de Mêntor), o que indica a necessidade que tem de um “estímulo” externo
para que não caia na retração e imaturidade. Logo que desembarcam em terra
firme, no diálogo entre a deusa e o filho de Odisseu, a ênfase na vergonha (aidós)
que o jovem sente indica com clareza como Telêmaco está diante do desafio de
passar para a idade adulta (Od. 3, 13-28). O termo grego aidós (v. 14 e 24) tem
aí claramente o sentido de “retração”, de uma falta de jeito em relação a como
se comportar numa terra estrangeira, diante de um rei mais velho e experiente.
Telêmaco assume, com total franqueza, a sua inibição e se diz “inexperiente/
não-provado em discursos cerrados” (oudé tí po múthoisi pepeíremai pukinoîsin,
v. 23). O emprego da forma perfeita do verbo peiráo (literalmente, “pôr à
prova”) mostra que o jovem nesse contexto está sendo “testado”, está sendo
submetido à “prova” de como empregar as palavras certas ao se dirigir ao seu
anfitrião. Sabemos que esse recurso será fundamental na segunda metade
do poema, quando Odisseu quererá “pôr à prova” seus servos e sua mulher;
trata-se de um mecanismo inerente ao homem astuto, e o fato de Atena “pôr à
prova” um Telêmaco não-provado é algo esperado da parte da deusa que é filha
da Astúcia. Nessa provação que é o amadurecimento de Telêmaco, é natural
que encontremos presente, mais uma vez, a chamada “dupla motivação”: ela
orienta e encaminha de modo decisivo, mas é preciso que haja espaço para a
ação humana ratificar esse estímulo (v. 26-27). Quando finalmente se dirige a
Nestor, o narrador nos diz que Telêmaco está mais corajoso, justamente por
causa da interferência divina, que nele pusera thársos (v. 75-78).

107 As outras ocorrências são em Od. 16, 476; 18, 60 e 405; 21, 101 e 130; e 22, 354). Deborah
Beck analisa com pertinência o uso dessa fórmula e de algumas outras que introduzem um
discurso (especialmente no Canto 16), com o intuito de mostrar como pode ter relação forte
com o contexto em que surgem. Ver seu artigo “Speech introductions and the character de-
velopment of Telemachus”, The classical journal 94/2 (1998/1999): 121-141.

82
A fala do jovem apresentada a seguir (v. 79-101), se não é uma peça de
oratória, não deixa de mostrar adequação e clareza. E o fato de Nestor destacar
isso em sua resposta – apontando a semelhança com as palavras de Odisseu
(v. 124 e 125) – mostra não só que Telêmaco está se saindo bem para quem era
inexperiente, mas que vai sendo reforçada a identificação com o pai de que já
falara Atena.108 Outro tópico fundamental surge já no fim do discurso do ancião,
quando, depois de dizer que não tem notícias de Odisseu, afirma:

Que coisa boa que reste o filho do assassinado


varão, já que aquele sim [Orestes] se vingou do algoz do pai,
do ardiloso Egisto, o qual matara o célebre pai.
Tu também, amigo – muito belo e imponente te vejo –,
sê valente, pra que algum dos pósteros te bem-diga!
(Od. 3, 196-200)

Voltam aqui o paradigma de Egisto-Orestes e o tema da glória, e a


retomada das mesmas palavras da deusa, ditas no Canto 1,109 servem para indicar
internamente, para Telêmaco, a premência do comportamento adulto e ativo,
em busca do renome. Assim como Orestes, ele também pode fazer justiça com
as próprias mãos. Na sua resposta, no entanto, ainda que o jovem mostre estar
ciente desse ideal aristocrático – realizar um grande feito que granjeie grande
glória –, o que fica destacado é o que imagina ser uma falta de capacidade
(dúnamis, v. 205), reforçada pela desanimadora falta de informações do pai
(“cheguei... sem notícias”, êlthon... apeuthés, dissera Nestor no v. 184). Nem
o fato de Nestor levantar a possibilidade de Telêmaco ser auxiliado por Atena
– mais uma ironia entre as várias desse canto, em que a deusa é mencionada
estando ela própria presente – demove o jovem de seu desânimo (v. 226),
o que provoca a intervenção enérgica de “Mêntor” (v. 230-238). A conversa
mostra, novamente, as vacilações que enformam o personagem nesse ponto
da narrativa, ora cheio de coragem e podendo manejar bem as palavras, ora
fazendo vir à tona seu desconsolo e passividade. De qualquer modo, o fato de

108 John Heath não deixa de ter razão ao apontar para o fato de que a comparação é sur-
preendente, porque Telêmaco pouco fez para merecer o elogio. Ver J. Heath, “Telemachus
pepnuménos”, p. 140.
109 Od. 3, 198-200 = 1, 300-302.

83
na sequência pedir mais detalhes a Nestor sobre o crime de Egisto (v. 248-252)
representa um possível alento para sua própria ação futura.
Há outro aspecto importante neste Canto 3 que merece ser abordado. Trata-
se do fato de Telêmaco ganhar um companheiro da sua idade e deixar, na parte final
do episódio, de ser acompanhado pela deusa. A saída de Atena-Mêntor é narrada
entre os versos 356 e 385 e serve como mais uma injeção de ânimo para o filho de
Odisseu: ao partir – como no Canto 1 – sob o aspecto de uma ave, provocando o
espanto de todos (v. 371-373), ela é reconhecida por Nestor, que diz a Telêmaco que
ele deve se imbuir de nobreza e valentia, pois tem como guia a deusa que honrava
seu pai (v. 375-379). Já o amigo Pisístrato, filho de Nestor, é introduzido logo no
começo do canto. Como jovem da mesma idade de Telêmaco – mas mais maduro
e acostumado a um ambiente de ordem –, Pisístrato, em sua discreta participação
no poema, tem a função de servir como referência para o comportamento do
filho de Odisseu e representar, também, o estabelecimento de seu primeiro elo de
hospitalidade mútua. O juízo do filho de Nestor e a similaridade com Telêmaco são
destacados entre os versos 36 e 53: o adjetivo penuménos, “ponderado”, empregado
com valor “particularizado” no verso 52 para qualificar Pisístrato, evoca diretamente
o epíteto distintivo de Telêmaco, identificando os personagens antes mesmo de eles
se conhecerem e reforçando a identidade etária apontada casualmente pelo filho
de Nestor. Em outros dois momentos do canto, o narrador assinalará com clareza
para os leitores/ouvintes o estabelecimento do companheirismo. No primeiro, eles
se deitam no mesmo cômodo (v. 397-401), e na segunda passagem partem juntos,
por terra, para Esparta (v. 481-483). Apesar do coleguismo, Pisístrato, como já
dissemos, em toda a sua participação representará uma espécie de espelho para
Telêmaco – o jovem emancipado que ele deve ser, como parece querer indicar, pela
força do contexto, o uso do epíteto genérico órkhamos andrôn, “líder de homens”
(v. 400, 454 e 482). Tanto na cena inicial como na breve menção à sua atuação no
sacrifício a Atena (v. 454), ele é não só o jovem piedoso e ciente das regras sociais –
como Telêmaco é –, mas também uma figura que desempenha com desenvoltura
essas tarefas. Veja-se, a esse respeito, sua intervenção no princípio do Canto 4
(v. 154-167), quando o filho de Odisseu surge mais uma vez como alguém que se
acabrunha, e é preciso que Pisístrato apresente o jovem amigo como o filho de fato
de quem aparenta ser, e o motivo por que chega (v. 156-167).
Pois é nesse Canto 4, já sem Atena, que se completa essa primeira fase
da formação de Telêmaco. Os elementos são semelhantes aos encontrados

84
no Canto 3. Sua falta de vivência do universo aristocrático é indicada logo
na primeira vez em que se manifesta e revela a admiração com o palácio de
Menelau (v. 71-75). Posteriormente, temos destacada a semelhança física com o
pai, no diálogo entre Helena e Menelau (v. 136-154), tópico fundamental em toda
a “Telemaqueia” e que vem reforçado quando Menelau chama atenção para a
semelhança entre Nestor e Pisístrato, já que este último diz “coisas ponderadas”
(pepnuména, v. 206). Não é preciso sublinhar, mas uma vez, a função modelar
desse jovem, chamado logo antes de “ponderado” (pepnuménos, v. 204) pelo
mesmo Menelau – e assim já qualificado por Atena, como vimos (Od. 3, 52).
Quando finalmente pede notícias de Odisseu, Telêmaco repete parte do que já
dissera a Nestor.110 É apenas uma fala sua mais adiante – já informado de que o pai
é retido pela ninfa Calipso (v. 557) – que provoca o elogio de Menelau: Telêmaco
solicitara não ser retido por muito tempo e que sua dádiva de hospitalidade
fosse trocada (v. 594-608),111 a que o rei retruca que o jovem provém de “bom
sangue” por suas palavras adequadas (haímatós agathoîo, v. 611).
Talvez mais importante do que a ação do jovem nesse canto seja a
possibilidade que tem de conhecer melhor o pai, através dos relatos de Helena (v.
235-264) e Menelau (v. 266-284), nos quais se destacam as qualidades tradicionais
de Odisseu: dissimulação, lábia, autocontrole, liderança, belicosidade.
Sobrepondo-se também em importância à sua ação está a reação, nesse mesmo
canto, de sua mãe e dos pretendentes a sua viagem, apresentada quando a cena
se desloca para Ítaca, a partir do verso 625. Essa parte final, retomando a discussão
sobre infância/maturidade, ratifica a transformação do jovem.
Os primeiros a ficarem sabendo da partida do jovem são os pretendentes.
Antínoo reage com surpresa ao que chama de “grande feito” (méga érgon, v. 663).
Por que a surpresa, se os pretendentes haviam sido informados das pretensões de
Telêmaco na assembleia do Canto 2? Porque, como diz aqui Antínoo, e como já dis-
sera Liócrito antes (Od. 2, 256), nenhum deles apostava que o filho de Odisseu fosse
capaz de tal empreitada. Mas, conforme a fala de Antínoo deixa claro, a realização
do feito sinaliza para todos o princípio do amadurecimento do jovem, de um “me-
nino novo” (néos paîs, v. 665) que começa a atingir “o metro da juventude” (hébes

110 Od. 4, 322-331 = 3, 92-101.


111 Como diz Richard Martin, “Telêmaco mostra ainda outro sinal de maturidade em sua
sensata recusa do que seria uma dádiva inútil [os cavalos], embora de valor”. Ver Homer: The
Odyssey, p. 369.

85
métron, v. 668). Trata-se, mais uma vez, do movimento narrado por Homero sendo
comentado pelos seus personagens: o Telêmaco do início do Canto 1 já não é visto
da mesma maneira neste Canto 4. A ideia de se lhe armar uma emboscada antes de
virar homem feito (v. 668-672) mostra nesse contexto que os pretendentes já veem
o jovem como um inimigo de fato, capaz de grandes realizações, e que por isso deve
morrer. Em outras palavras, só é possível pensar em assassinato quando Telêmaco
passa a ser uma ameaça, ou seja, começa a ingressar na idade adulta.
A surpresa de Penélope tem um sentido diferente. Trata-se, em primeiro
lugar, de uma surpresa dupla: ao contrário dos pretendentes, ela não fora in-
formada da viagem de Telêmaco (que, como vimos, decidiu sair às escondidas,
sem avisá-la); e a informação, quando chega – através do arauto Médon – já
vem acompanhada da notícia sobre a emboscada armada contra o filho em seu
retorno. Tomada pela dor, Penélope se lamenta (v. 722-741). O que mais chama
a atenção é que, do seu ponto de vista, a aventura não representa o amadureci-
mento do filho (como intuíra Antínoo), que ela insiste em ver como uma criança,
desamparada e exposta ao perigo. Vejam-se estas palavras reveladoras, ditas
em sonho ao “fantasma” da irmã, Iftima; o substantivo paîs, “filho”, próximo ao
adjetivo népios, “tolo” (ou “criança”), reforça em grego a ideia de infantilidade:

Agora meu filho (paîs) amado partiu em sua funda nau


– tolo (népios), sem conhecer bem nem ágoras nem esforços.
(Od. 4, 817-818)

No entanto, no confronto com as perspectivas apresentadas pelo narrador,


por Atena, por Telêmaco e pelos pretendentes, a de Penélope – sabemos, pelo
Canto 2, que Telêmaco já vai se familiarizando com as ágoras – serve para ratificar
o amadurecimento do filho, exatamente pela insistência da mãe em vê-lo como
criança, apesar dos indícios em contrário. Não conseguir aqui vê-lo como homem
crescido só colabora, no quadro geral, para que essa percepção se intensifique.
Resumindo então pode-se afirmar que esses quatro cantos iniciais do poema
mostram com muita clareza esse processo de amadurecimento ou crescimento de
Telêmaco, e que as hesitações e vacilações só servem para dar mais profundidade e
verdade ao personagem e à situação (embora “verdade”, aqui, não deva ser tomada
como sinônimo de “realismo”). Sua ação, sua iniciativa de partir em viagem, repre-
senta uma mutação da passividade para o “furor” próprio da idade adulta, e essa sua

86
“Odisseia em miniatura” – por mais frágil que possa parecer na comparação com ou-
tros feitos heroicos épicos – é responsável por lhe trazer “glória”, por fazer com que
seja visto e percebido dentro do universo aristocrático. Agora Telêmaco pode confiar
na identificação com o pai (não apenas física), pode ver como funciona uma realeza
justa e ordenada, pode firmar seus laços de hospitalidade (com Pisístrato), pode en-
frentar perigos e deles escapar, pode, enfim, ser reconhecido. Nesse sentido, para re-
tomar as palavras de Howrad Clarke, Telêmaco passa por uma espécie de “batismo”:

O que ele [Telêmaco] precisava antes de se encontrar com o pai era experi-
ência na sociedade heroica, e a viagem para Pilos e Esparta era a única alter-
nativa. Telêmaco tinha de ser batizado na vida heroica, comungar com seus
líderes e encontrar confirmação para seus valores, ou nunca seria um aliado
confiável para seu pai ou alguém apto a sucedê-lo. Kléos [“glória”] figura, junto
com areté [“excelência”], como um termo honorífico no vocabulário heroico, e
somente em lugares como Pilos e Esparta Telêmaco pode absorver o verdadei-
ro significado dessas ideias e se preparar para fazer jus a elas.112

» o filho do pai

A partir do Canto 5, o foco se volta para Odisseu e só voltamos a encon-


trar Telêmaco no Canto 15, ainda em Esparta, no palácio de Menelau. Nesse
longo intervalo, o tema do amadurecimento/aquisição de glória é abordado por
duas vezes, no diálogo entre Odisseu e Agamênon, no Canto 11, e no diálogo
entre Atena e Odisseu, no Canto 13. Em ambos os casos, há a suposição (ou a
expectativa) de que Telêmaco tenha se tornado homem. No Canto 11 (v. 447-
449), o Atrida diz que, quando os acaios partiram para a guerra, deixaram Pe-
nélope como “noiva recém-casada” (númphen néen), tendo ela um “filho sobre
o peito” (páis epì mazôi), ainda “criancinha” (népios), mas “que decerto conta
agora entre os varões (met’andrôn)”. No Canto 13, depois de a deusa avisar que
vai à Lacedemônia chamar Telêmaco, que para lá partira em busca de notícias
do pai, Odisseu pergunta a ela qual o motivo de submeter também o jovem
aos sofrimentos de quem vaga, ao invés de – sendo imortal e ciente de tudo
(pánta iduîa, v. 417) – informá-lo diretamente. Atena esclarece que assim agiu

112 H. Clarke, “Telemachus and the ‘Telemacheia’”, p. 133.

87
para que Telêmaco, que se encontra seguro e livre de sofrimentos, obtivesse
“brava glória” (kléos esthlón, v. 422). Um pouco antes, na mesma cena, Odisseu
já manifestara num clamor dirigido às ninfas locais (dissipada a névoa que o im-
pedia de reconhecer Ítaca) a esperança de ser protegido por Atena e de que esta
“fizesse adulto” seu filho querido (moi phílon huiòn aéxei, v. 360). São indicações
inequívocas da transformação (que nós, leitores, acompanhamos) vivida por
Telêmaco sob a interferência de Atena, e que interligam de modo claro fama e
ingresso na idade adulta.
Quando Telêmaco ressurge, novamente Atena tem papel decisivo. É ela
que aparece junto a ele durante a noite – sem disfarce – e o manda partir, sob
o pretexto de que deve olhar por suas posses e de que sua mãe recebe pressão
cada vez maior para se casar (v. 10-26).113 Junto com essa argumentação, novas
orientações práticas: deve evitar a emboscada dos pretendentes e, separando-
-se da tripulação na chegada, ir para a casa do porqueiro Eumeu (onde, como
sabemos, Odisseu já se encontrava desde o canto anterior).114 Apesar da repeti-
ção do que vimos anteriormente – o jovem à espera da intervenção da deusa e
de suas diretrizes –, podemos afirmar que temos aqui um Telêmaco já maduro,
embora isso não seja consenso entre os estudiosos. De acordo com Norman
Austin, por exemplo, se até o Canto 4 o jovem teve um papel mais passivo (no
sentido de ser alguém que observa, escuta e aprende), quando acorda Pisístrato
no Canto 15 o vemos de fato começar a agir; para ele, contudo, é o contato com
o pai, nesse ponto da narrativa, que vai ser decisivo para a formação do filho,
ainda que este deva ficar à sua sombra:

113 A cena é estranhamente “mecânica”, como apontou A. Hoekstra em A. Heubeck et alii


(ed.), A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 232.
114 Quantos dias Telêmaco permaneceu no palácio de Menelau? A questão da cronologia,
aqui e em outros passos de Homero, é muito debatida. Fico com aqueles que defendem,
neste caso, a passagem de trinta dias, por causa de certas indicações do poema (Od. 2, 374;
4, 588-599; 15, 3, 10, 65-68 e 88; e 16, 18, 33-34 e 365-368). Essa conta, é bom deixar claro,
jamais é feita por Homero. Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p.
362. Esse intervalo, ainda que difuso na narrativa, tem a vantagem de conferir mais verossi-
milhança ao amadurecimento de Telêmaco e espelhar a demora do pai (ver M. Apthorp, “The
obstacles to Telemachus’ return”, The classical quarterly 30/1 (1980): 1-22, especialmente p.
19-20, e E. Delebecque, Construction de l’Odyssée. Paris: Les Belles Lettres, 1980, p. 4-13 e 41-
42). Segundo Steve Reece, tal cronologia favorece ainda o que chama de “tema da retenção
do convidado”; ver seu The stranger’s welcome: oral theory and the aesthetics of the Homeric
hospitality scene. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1993, p. 72-76 e 90-91.

88
Aqui [a partir do Canto 15] Telêmaco é impedido de exercer plenamente sua in-
dependência de pensamento, devido ao reaparecimento em cena de Odisseu.
Com Odisseu no controle, Telêmaco tem poucas oportunidades de mostrar
seu talento próprio para enganos inventivos; ele deve desempenhar o papel
que lhe cabe. Esse papel secundário, porém, ainda é parte da sua educação em
curso. É apenas Odisseu em pessoa, o homem dos disfarces por excelência, o
Proteu dos mortais, que pode fornecer o paradigma pedagógico final. É essen-
cial que Telêmaco adentre os ritos superiores na companhia do pai. A viagem
de Telêmaco havia sido o componente em grande parte teórico da sua educa-
ção; em Ítaca surge a oportunidade para uma educação prática, com Telêmaco
observando e imitando il maestro, o próprio Odisseu.115

Mas há de fato uma educação ou um amadurecimento em curso na segunda


metade, que só estaria concluída com o fim do poema? Pelas indicações que veremos
a seguir, parece-me que não: depois de sua estadia no estrangeiro, Telêmaco surge
como um jovem pronto para lidar com a situação em seu palácio e em mais de uma
oportunidade há o reconhecimento, por parte de outros personagens (e dele próprio),
dessa sua chegada à idade adulta. Também não se pode dizer que só agora ele começa
a agir, como se até esse ponto da narrativa sua formação tivesse sido puramente
teórica ou passiva: embora suas ações não tenham sido muitas nem grandiosas – toda
a sua glória na realidade será, como já disse um estudioso, “em chave menor” –, elas
representam medidas práticas que contrastam com a apatia e inatividade anteriores,
e de certa maneira já proporcionavam uma identificação com o pai.116
Por outro lado, Austin tem razão em afirmar que, agindo em conjunto com
o pai, o elemento da astúcia ganha um destaque que não tinha tido até então e que
Telêmaco se transforma na companhia de Odisseu. No entanto, o poema não nos
apresenta isso como um processo, mas sim como um dado pronto: com a inter-
venção de Atena, o jovem já adquiriu essa capacidade, e o confronto com os pre-
tendentes vai apenas permitir que se manifeste aquilo que, na realidade, é parte
da natureza familiar. Assim, Telêmaco não aprende com o pai a ser astucioso, mas

115 N. Austin, “Telemachos polyméchanos”, p. 57.


116 A expressão é de J. Petropoulos, e dá título a seu já citado livro sobre Telêmaco, Kléos in
a minor key. Sobre a visão de que Telêmaco já age na parte inicial do poema, ver H. Clarke,
“Telemachus and the ‘Telemacheia’”, p. 141. Quanto à identificação entre as viagens do pai e
a do filho, ver o mesmo Clarke, p. 138.

89
antes mostra ser astucioso como o pai; é de novo o motivo da identificação sendo
explorado. Nesse sentido, considero que os Cantos 1 a 4 e os Cantos 15 a 24 são mo-
mentos bem diferentes no desenvolvimento do personagem:117 na primeira etapa
temos sim em curso a formação e o amadurecimento; na segunda, porém, Telêma-
co já é um homem feito, e é essa nova condição que permite que seja aliado do pai
na estratégia da vingança, em cuja base está a esperteza comum a ambos.
Detalhar todos os movimentos de Telêmaco ao longo desses dez cantos
(do 15 ao 24) seria algo longo e exaustivo; é preferível pôr em destaque algumas
falas e ações fundamentais, que ilustrem o que está sendo dito. Vou dividir esse
material em dois blocos: de um lado, as referências a um Telêmaco já crescido,
e de outro as intervenções suas em que mostra as mesmas qualidades do pai,
em atos e palavras. No primeiro caso, temos pelo menos meia dúzia de alusões
claras à nova condição do jovem. Veja-se o que diz a governanta Eurínome para
Penélope, com a barba valendo como índice de crescimento:118

Já está com tal idade (telíkos) o teu filho, o qual mutíssimo


rogaste aos imortais ver com sua barba crescida (geneiésanta).
(Od. 18, 175-176)

A própria Penélope reconhecerá que assim é, ao mencionar mais adiante a


conversa com Odisseu quando da partida deste para Troia: o marido havia dito a
ela que, no caso de não voltar vivo, ela deveria deixar a casa assim que o filho esti-
vesse com a barba crescida (o mesmo geneiésanta, Od. 18, 269-270); para a esposa,
“agora tudo se cumpre” (v. 271). Nesse mesmo canto (v. 215-217), a própria mãe diz,
diretamente para o filho, que ele não é mais “criança” (paîs), e sim um “adulto” (mé-
gas), alguém que atingiu “o metro da juventude” (hébes métron, expressão idêntica
à empregada por Antínoo em Od. 4, 668). Ela mesma reafirma esse ponto de vista

117 Para John Scott, no Canto 15 temos um “Telêmaco totalmente diferente”, praticamente
“um novo personagem”. Ver seu “The journey made by Telemachus and its influence on the
action of the Odyssey”, p. 424. Ver também I. de Jong, A narratological commentary on the
Odyssey, p. 363.
118 É preciso evitar confusão aqui: não estamos supondo uma transformação física de Telê-
maco, como se antes não tivesse a barba crescida. Fisicamente, ele já era um homem cresci-
do no começo do poema, como Atena indicara no Canto 1. O movimento consiste em fazer
com que ele aja e fale de modo que seu comportamento se harmonize com seu aspecto e ele
de fato se mostre adulto. Ver J. Petropoulos, Kléos in a minor key, p. 127.

90
no Canto 19, não só quando diz que o filho já um “varão” (anér, v. 160, termo que
abre o poema, em referência a Odisseu), mas também nestes versos fundamentais:

Meu filho, enquanto era ainda criança (népios) e solto de espírito (khalíphron),
casar não me permitia, deixando a casa do esposo;
agora que é grande (mégas) e atinge o metro da juventude (hébes métron),
roga até para que eu saia do palácio (...).
(Od. 19, 530-533; v. 532 = 18, 217, com ajuste do verbo)

Que esse amadurecimento é súbito e recente, deixa-o claro a fala de


Euricleia no Canto 22 (v. 426), quando diz que só há pouco Telêmaco se fez
adulto (néon aéxeto, mesmo verbo empregado por Odisseu em Od. 13, 360).
No contexto dramático, vemos que esse amadurecimento de Telêmaco – en-
carado agora como algo realizado, e não em curso – tem uma função importante:
servir de pressão para que a situação com os pretendentes se resolva logo. É seu
ingresso na idade adulta que – na segunda metade do poema – faz com que, de um
lado, Penélope se encaminhe para a escolha de um dos jovens que a assediam, e,
de outro, que os próprios pretendentes cogitem assassiná-lo. Como homem feito,
Telêmaco deverá olhar pelos bens e pela preservação do palácio, dando fim à situ-
ação de indefinição. Sabemos, naturalmente, que a volta de Odisseu impede esse
desfecho e que o filho não será o novo senhor do palácio; de todo modo, o fato
de ser essa a expectativa dos personagens que desconhecem o retorno do rei não
deixa de ser um elemento importante a sinalizar o amadurecimento do jovem. Por-
tanto, dramaticamente, é necessário que tenha se operado essa transformação de
Telêmaco, não só para que ele seja o aliado principal do pai, mas também para que
– tendo a casa um novo homem – a ação se encaminhe para o desafio do arco (que
determinaria o novo esposo de Penélope) e a vingança.
Podemos concluir a lista de alusões a esse novo Telêmaco citando as pas-
sagens em que ele próprio assim se afirma, agora de maneira consistente e não
vazia, como ocorria, por exemplo, no Canto 2 (v. 313-314). Vejam-se estes ver-
sos, ditos à mãe no Canto 18 e repetidos diante de Ctesipo no Canto 20:

Eu mesmo percebo no ânimo e conheço cada coisa (noéo kaì oîda hékasta),
seja boa, seja pior: antes era ainda criança (népios).
(Od. 18, 228-229 = 20, 309-310)

91
A parte final do verso, “antes era ainda criança” (ou “tolo”: o termo ad-
mite as duas traduções), aparece com uma pequena variação no Canto 19 (“e
eu era ainda criança”, v. 19), numa fala endereçada a Euricleia, com Telêmaco
mais uma vez contrastando seu comportamento de outrora com o atual. A
mudança deve servir de alerta: como diz Odisseu à serva Melanto, os abusos
não serão tolerados, porque Telêmaco “não tem mais a idade de antes” (oukéti
telíkos estín, Od. 19, 88).
No poema, como sabemos, todas essas afirmações de emancipação – di-
tas por ele próprio e por outros – vêm sustentadas por atos e palavras do jovem,
que nos ajudam a não ter dúvidas sobre seu novo estatuto. Desde o momento
em que acorda Pisístrato no Canto 15, para que deixem o palácio de Menelau,
até a participação na matança dos pretendentes e das servas infiéis (e na salva-
ção de Médon e Fêmio), passando pelos preparativos da vingança, temos um
personagem diferente daquele filho inseguro e dado a lamúrias do Canto 1. Seja
evitando encontrar Nestor, para que não fosse retido por mais tempo; seja co-
mandando seus companheiros e Eumeu; seja ainda agindo de modo firme, com
o mesmo Eumeu e com os pretendentes – mostrando-se preocupado com os
presentes que recebera em Esparta –, Telêmaco é a figura do jovem dotado de
furor e perspicácia, que busca o “vantajoso” (kérdea, Od. 20, 257).119 Repare-se
como isso fica indicado logo no primeiro diálogo com o pai, quando aconselha
que apenas as escravas sejam postas à prova (porque trabalham no palácio),
deixando-se os servos (que trabalham fora) para depois (Od. 16, 309-320).120
Talvez seja na relação com Odisseu – como mostrou Norman Austin – que
encontramos os elementos mais significativos dessa mutação, segundo a qual
Telêmaco é capaz não só de agir, mas de agir no momento oportuno, suportan-
do os insultos dos adversários e, principalmente, manipulando-os com palavras
inteligentes. A sintonia entre pai e filho nos é apresentada logo após o reencon-
tro entre ambos, no Canto 16. Depois de o jovem ouvir as notícias dadas pelo
porqueiro, o narrador nos informa que “a força sagrada de Telêmaco” sorriu e
olhou na direção do pai, mas evitou o olhar do servo (v. 476-477). Como apontou

119 Ver, respectivamente, Od. 15, 199-201; 15, 218-219, 287-288 e 503-507, e 16, 130-134; e
17, 393-395, 601, e 397-404, 18, 406-409, 20, 262-267, e 17, 71-83.
120 Como aponta Irene de Jong, esse teste dos servos que trabalham fora nunca ocorrerá,
mas Odisseu terá a oportunidade de avaliar dois deles, um bom (Filécio) e um mau (Melanteu),
quando vierem ao palácio. Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 400.

92
John Heath, trata-se aqui do “primeiro momento de conspiração com o pai”,
e o fato de o jovem se manter calado e se esforçar para manter a identidade
de Odisseu oculta são sinais de amadurecimento para quem era tão reativo e
sincero.121 O comentário de Deborah Beck vai na mesma linha, mas dá destaque
também a uma fórmula já aparecida no Canto 2 (v. 409):

Essa conclusão aparentemente simples do discurso demonstra, de várias ma-


neiras, a maturidade há pouco surgida de Telêmaco: seu sorriso sugere contro-
le da situação, ou ao menos conforto com ela, assim como a afinidade com seu
pai; ele mostra autocontrole quando, ao invés de falar, permanece calado, uma
vez que sabe, ao contrário de Eumeu, que o pobre mendigo abrigado na caba-
na é na verdade Odisseu; e o reaparecimento de um epíteto junto a Telêmaco
que aparecera antes apenas uma vez no poema, hierè ís Telemákhoio, confere
ao jovem algo do kléos de um herói homérico adulto.122

No Canto 17, a capacidade de suportar – tão característica do pai – é agora


também uma qualidade do filho. Depois de Odisseu ser atingido por um banco
arremessado por Antínoo e se manter firme “como uma rocha” (eúte pétre, v. 463),
acompanhamos a reação de Telêmaco: sente grande pesar (méga pénthos, v. 489),
mas não deixa nenhuma lágrima cair (v. 490); movimenta a cabeça em silêncio e
guarda pensamentos terríveis (v. 491).123 Também nos Cantos 20 e 21, nos instantes
finais que antecedem a matança, em pelo menos três momentos a resistência
emocional e a cumplicidade com o pai vêm destacadas. Inicialmente, senta o
mendigo na sala, lhe dá de comer e beber e garante-lhe proteção; aos pretendentes
ordena – admirados – que se controlem (Od. 20, 257-275). Mais adiante, no mesmo
Canto 20, após novos insultos dos cortejadores de Penélope, fixa o olhar no pai, à
espera do momento de pôr as mãos naqueles homens (v. 384-386). Por fim, já no
Canto 21, depois de o mendigo ter êxito com o arco, Telêmaco recebe um sinal do
pai, pega espada e lança e posta-se a seu lado (v. 431-434). Na primeira cena, temos

121 J. Heath, “Telemachus pepnuménos”, p. 146.


122 D. Beck, “Speech introductions and the character development of Telemachus”, p. 134.
123 Depois é a vez de Eurímaco arremessar um banco (Od. 18, 394-397) e Ctesipo o casco de
um boi (Od. 20, 299-302), ambos sem acertar o alvo. Nessas outras duas ocasiões, Telêmaco
protesta; numa delas, como vimos acima, dizendo que não é mais criança (20, 209-210).
Para Steve Reece, Telêmaco amadurece ao testemunhar esses abusos; ver seu The stranger’s
welcome, p. 176-177.

93
um Telêmaco claramente na posição de anfitrião – a afirmar, para o pai, o poder
de Odisseu sobre o palácio! Nas outras duas passagens, o silêncio é a forma mais
eloquente de marcar a sintonia entre os dois. Telêmaco agora está pronto para agir
e não desperdiça palavras. Quando as emprega, o faz sempre com um propósito
definido, revelando reflexão e, se preciso, sabendo fingir.
Essa possibilidade de ser agora um verdadeiro “orador de discursos” e, mais
ainda do que isso, um “manipulador” da linguagem, apresenta-se de maneira
muito vívida em pelo menos cinco ocasiões, entre os Cantos 15 e 21. A primeira
delas tem um sentido muito debatido pelos especialistas. Depois de acolher o
vidente Teoclímeno no momento em que partia de Pilos (Od. 15, 222-286; “seu
primeiro ato totalmente independente”, segundo Norman Austin”),124 Telêmaco
diz a ele, já em Ítaca, que não poderia levá-lo ao palácio, devido à presença dos
pretendentes; e conclui indicando a casa de Eurímaco como a melhor para seu
convidado se hospedar, sendo esse pretendente “ótimo homem” (áristos anér) e
o mais ansioso em desposar Penélope – caso a vingança não se desse antes do
casamento (Od. 15, 518-524). Diante do sinal divino que acompanha essa fala – o
voo à direita de um gavião de Apolo, a segurar com suas garras uma pomba –,
Teoclímeno, o vidente (mántis, v. 225), responde não haver raça mais real do que a
do próprio Telêmaco, a qual deterá sempre o poder (v. 531-534).
Por que Telêmaco indicaria a casa de um dos pretendentes? Por que, na se-
quência, o jovem, ao contrário do que dissera, envia o vidente para a casa do ami-
go Pireu (Od. 15, 539-546)? E por que Teoclímeno, depois de conduzido por Pireu
até a ágora de Ítaca (Od. 17, 71-72), acaba sendo acolhido no palácio de Odisseu
(Od. 17, 84-95)? Para D. Monro, W. Stanford e, mais recentemente, Irene de Jong,
Telêmaco simplesmente muda de ideia depois de receber o vaticínio.125 Peter Jo-
nes, por sua vez, propõe que se veja aí um tom sarcástico, sem maiores consequ-
ências.126 Bernard Fenik, na análise mais detalhada dos problemas envolvendo a
figura de Teoclímeno, defende que a sugestão inicial é fruto de um momentâneo
“pessimismo” de Telêmaco (Eurímaco seria “provavelmente a melhor escolha
naquelas circunstâncias”), e que a mudança de ideia provém de uma visão “mais

124 N. Austin, “Telemachos polyméchanos”, p. 58.


125 Ver D. Monro, Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 68; W. Stanford, The Odyssey of Homer. 2 vols.
London: St. Martin Press, 1947, vol. 2, p. 262; e I. de Jong, A narratological commentary on the
Odyssey, p. 382.
126 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 145.

94
otimista em decorrência do sinal favorável”; segundo ele, de modo geral a cena
se enquadraria no motivo típico do “acolhimento de um hóspede inesperado”.127
Mais radical é a leitura de Norman Austin, para quem a fala de Telêmaco
dirigida ao vidente não está de acordo com suas reais intenções: ou seja, em ne-
nhum momento ele cogitaria ver Eurímaco como um anfitrião do estrangeiro.
Sua conclusão seria apenas uma astúcia, um estratagema para receber um sinal
favorável que reafirmasse o poder de Odisseu na ilha:

devemos tomar sua conduta [de Telêmaco] em relação a Teoclímeno como


deliberada e sensata. Somos obrigados a aceitar a interpretação de C. H. Whit-
man de que Telêmaco buscou aqui solicitar um sinal, isto é, pôr os deuses à
prova proferindo o oposto do que crê ou espera ser verdade. Os versos finais
da fala de Telêmaco a Teoclímeno deixam claro que seus pensamentos e suas
palavras estão totalmente em desacordo.128

Embora o próprio Austin admita que se trata de um “método nada comum


de solicitar sinal divino”, a proposta de leitura é interessante. Ela precisa, no
entanto, ser detalhada. Há pelo menos dois elementos que Austin deixa de
fora e que são fundamentais: as palavras de Atena no começo do canto e a
percepção que Telêmaco tem de Teoclímeno. No primeiro caso, é importante
destacar que a deusa dissera ao jovem, no momento em que o instara a deixar
a Lacedemônia, que Penélope – durante a ausência do filho – estava sendo
pressionada a se casar com Eurímaco, superior aos demais nos dotes nupciais
(Od. 15, 16-18). Evidentemente, estamos diante de uma das mentiras de Atena,
mas é essa mentira que determina a referência a Eurímaco feita por Telêmaco
posteriormente, como bem mostrou Fenik.129 Poderíamos admitir que o jovem
toma as palavras da deusa como verdadeiras e que, portanto, ao sugerir que
esse pretendente abrigasse o recém-chegado estrangeiro, está sendo sincero.
Prefiro, contudo, manter a leitura de Austin e propor que ela é reforçada pela
identidade do jovem com Atena nesse ponto na narrativa, que o habilitaria
– a ele também – a usar a linguagem segundo suas (sinuosas) intenções. Em

127 Ver B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 233-244, e especialmente p. 236-239.


128 N. Austin, “Telemachos polyméchanos”, p. 58-59.
129 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 237.

95
outros termos: tomar o discurso de Telêmaco como um discurso astuto (em
que, de certa maneira, “testa” o que ouvira) faz com que o alinhemos a esse
procedimento típico da deusa, que acompanhamos desde o Canto 1 e segundo
o qual mentiras e verdades misturam-se de maneira consciente. O próprio fato
de Atena se mostrar ao jovem diretamente, sem disfarce algum, é algo singular,
e poder reforçar a identificação e esse novo estágio de Telêmaco.130
O segundo elemento é mais espinhoso e revela uma daquelas sutilezas
narrativas encontráveis em Homero: trata-se do fato – pouco notado, aparente-
mente, pelos estudiosos, mas que a visada narratológica ajuda a descortinar – que
Teoclímeno “jamais revela seu nome e seu status de vidente”,131 o que o coloca
dentro do motivo da “ocultação da identidade”. Isso poderia impugnar a proposta
de que Telêmaco estaria solicitando um sinal no diálogo com o estrangeiro, pela
simples razão de que não sabia que Teoclímeno era um vidente. Mas, ainda assim,
é possível dizer que a leitura se sustenta, porque Homero revela dessa maneira
para nós, leitores – que sabemos –, o caráter oportuno desse encontro, próprio de
quem é favorecido pela divindade. O desconhecimento traz, paradoxalmente, a
intuição de um conhecimento. De certa maneira, a cena nos faz lembrar aquela do
Canto 17 (v. 539-547), quando o espirro de Telêmaco funciona como sinal favorável
ao pedido de Penélope para que haja vingança. Em ambos os casos, há algo de
fortuito e não controlado, mas no final Telêmaco emerge como figura associada
a uma feliz coincidência. Não saber que Teoclímeno é um vidente ajuda a marcar,
para nós, sua afinidade com esse âmbito de um conhecimento mais profundo –
assim como ajudará a marcar, inversamente, o desconhecimento dos pretenden-
tes. Podemos considerar ainda a possibilidade de ele operar como uma espécie de
“duplo” de Odisseu, cuja identidade oculta serve para testar seus interlocutores.132
Com efeito, o (pequeno) papel atribuído a Teoclímeno no restante do po-
ema – profetizar a vitória de Odisseu e a desgraça dos candidatos ao trono de

130 A aparição da deusa entre os versos 1-9 do Canto 15 é bastante discutida: para B. Fenik
(Studies in the Odyssey, p. 166), ela fala em sonho com Telêmaco, mas o texto de Homero
deixa claro que o jovem está acordado (v. 7-8). Para de Jong, é provável que ela tenha se mos-
trado como Mêntor (A narratological commentary on the Odyssey, p. 364). Prefiro respeitar
o texto e aceitar que, dramaticamente, faz sentido que ela apareça sem disfarce e fale a um
Telêmaco desperto (o que sinalizaria, aqui, a postura inteligente).
131 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 372.
132 É a proposta de Steve Reece, “The Cretan Odyssey: a lie truer than truth”, The American
journal of philology 115/2 (1994): 157-173, p. 163.

96
Ítaca – terá função estratégica: o fato de Telêmaco levá-lo ao palácio servirá não
apenas para que se mostre, mais uma vez, a hospitalidade justa da linhagem
de Odisseu, em contraste com o comportamento dos convidados indesejados,
mas também para que surjam ocasiões em que, pela boca do profeta (Od. 17,
151-161; e 20, 350-370), a vingança seja reafirmada, reforçando a carga dramáti-
ca – e teológica – da parte final da narrativa. Depois disso, ele pode voltar para
a casa de Pireu (Od. 20, 371-372).133
Menos controversos são os passos em que Telêmaco mistura claramente
– para nós, leitores/ouvintes, e para o pai – verdades e mentiras, manipulando
os pretendentes (e a própria mãe) ao mesmo tempo que finge impotência. No
Canto 18, por exemplo, o jovem fala para o mendigo Iro que ele, Telêmaco, é
o anfitrião (xeinodókos, v. 64) e que com isso concordam Antínoo e Eurímaco,
“ambos ponderados” (pepnuméno ámpho, v. 65).134 A confusão entre o real (ele é
efetivamente o anfitrião) e o falso (Antínoo e Eurímaco não concordam com essa
posição, nem são ponderados) serve para reforçar a capacidade do ponderado
Telêmaco e podemos imaginar, como apontou John Heath, que “pai e filho devem
ter se regalado com a ironia”.135 Mais adiante, é Penélope o alvo da articulação
verbal e mental de Telêmaco. Tome-se o já citado discurso em resposta às
críticas que dela recebe por ter deixado Iro ser agredido pelo Odisseu-mendigo:
o filho se diz crescido e ciente de tudo, mas sem ajuda para lidar com homens vis
e incapaz de pensar em “tudo que é ponderado” (pepnuména pánta, v. 227-232).
No momento em que afirma seu amadurecimento, Telêmaco estrategicamente
o invalida, e só pode fazer isso – afirmar e negar – porque, como sabemos, há
sim quem o ajuda (Atena, o pai). Não por acaso, sua qualidade característica,
a ponderação, vem novamente explorada. Como afirma Heath, Telêmaco,
“ao negar seu epíteto, dá mais um passo para conquistá-lo; ironicamente, seu
controle da linguagem o pôs mais perto do que nunca da maturidade que ele
afirma aqui não ter”.136

133 B. Fenik (Studies in the Odyssey, p. 244) lembra da presença de outros personagens inci-
dentais na narrativa, como Nôemon. Sobre o papel de Teoclímeno neste Canto 15, deve-se re-
cordar que sua acolhida, por parte de Telêmaco, confere ao jovem uma posição importante de
“protetor e homem de poder” (ver George Dimock em seu The unity of the Odyssey, p. 202).
134 O fato de Telêmaco chamá-los de “reis” no verso anterior seria apenas mais uma ironia?
135 J. Heath, “Telemachus pepnuménos”, p. 147.
136 J. Heath, “Telemachus pepnuménos”, p. 148.

97
Mas talvez os discursos mais astuciosos do jovem sejam os que
encontramos no Canto 21, quando reage à proposta da mãe de que o novo
marido seja escolhido por meio de uma disputa. Primeiramente, Telêmaco
se manifesta com uma interjeição de lamento (ò pópoi), dizendo que Zeus o
deixou “sem entendimento” (áphrona) e que ele próprio ri (gelóo) e se compraz
(térpomai) com sua falta de entendimento (áphroni thumôi, v. 102-105). Depois,
convoca os pretendentes a armarem o arco o quanto antes (ele próprio quer
tentar...), para que a situação se resolva de uma vez por todas (v. 106-117). É
notável como Homero explora magistralmente a ironia, recorrendo por duas
vezes, num espaço de quatro versos, ao adjetivo áphron, “insensato”, e como a
referência ao riso – tão característico dos pretendentes, como veremos – vem
em apoio a essa falsa autocaracterização.137 Telêmaco faz o papel do tolo/criança
(népios) que, para seu próprio espanto (evidente na autocensura da “falta de
entendimento”), não se importa com o casamento iminente da mãe138 e encara
o desafio como diversão, não devendo, portanto, ser levado a sério em sua
pretensão de armar o arco. Junto com isso – reforçando ainda mais sua sensatez
–, temos a construção bem elaborada (com destaque para o parêntese entre os
versos 107 e 110, em que elogia a mãe, fechado com uma pergunta retórica), e
a possibilidade de tomarmos o riso como um riso “interno”, de satisfação pelo
desfecho próximo. O objetivo final – alcançado – é cooptar os pretendentes,
para que a prova se realize.
O contraste entre o que diz e o que faz é indicado logo na sequência
pelo narrador, que nos informa do modo ordenado com que o jovem dispôs
os machados, para espanto dos que observavam, e de como teria conseguido

137 O fato de o narrador não informar que Telêmaco fala “rindo” não nos deve levar à conclu-
são, como quer Stanley Hoffer, de que “Telêmaco não estava de fato dando risada, (...) mas
apenas usando uma pose retórica, sem descrever um acontecimento real”; ver S. Hoffer, “Te-
lemachus’ ‘laugh’: deceit, authority, and communication in the bow contest”, The American
journal of philology 116/4 (1995): 515-531, p. 515-517. A autocensura por estar se mostrando
alegre e risonho diante da situação nos leva naturalmente a imaginar que ele fala rindo, o que
reforça a construção teatral perante os pretendentes. A leitura de Douglas Olson, segundo a
qual temos aí um descontrole passageiro de Telêmaco, em reação à fala anterior de Antínoo,
não me parece fazer sentido no contexto; ver D. Olson, “Telemachos’ laugh”, The classical
journal 89/4 (1994): 369-372.
138 Para o sentido específico do verso 115, ver W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2,
p. 361, e S. Hoffer, “Telemachus’ ‘laugh’: deceit, authority, and communication in the bow
contest”, p. 524, nota 19.

98
armar o arco caso o pai não lhe tivesse dado um sinal em contrário – o que
comprova sua total superioridade sobre os pretendentes (v. 118-129). Telêmaco,
no entanto, não abandona a máscara, e inicia seu novo discurso com a mesma
lamentação infantil de antes (ò pópoi), se autodepreciando enquanto alguém “vil”
(kakós), “fraco” (ákikus), “muito novo” (neóteros), ao contrário dos “superiores”
(propherésteroi) pretendentes (v. 131-135). Norman Austin comentou assim toda
a cena, em que Telêmaco, seguro de seu força, inteligência e amadurecimento,
pode falar de covardia, fraqueza e imaturidade:

para a criança, todo procedimento é um divertido jogo. É exatamente essa


impressão que Telêmaco quer passar. Agora que se tornou um adulto ele
pode fazer o papel da criança boba, (...) [aqui ele] paga tributo à habilidade
pedagógica do pai adotando como disfarce o pólo oposto: a persona de um
idiota, histérico e infantil. Não se poderia achar ironia mais apropriada para
marcar o crescimento de Telêmaco na casa de Odisseu.139

Há uma última fala de Telêmaco que merece ser comentada, ainda


nesse Canto 21: aquela em que espertamente mimetiza a linguagem abusada
dos pretendentes, baseada na violência e na troça, e finge impotência. Por
meio desse novo recurso, ele conquista momentaneamente a “simpatia” dos
adversários e leva adiante o plano para matá-los. Lembremos o contexto: os
pretendentes dirigiam ameaças ao porqueiro porque este levava o arco para o
Odisseu-mendigo. Diante disso, Eumeu larga a arma, o que provoca a reação
veemente do jovem, que diz ao servo, “ameaçando-o” (apeilésas), para seguir
em frente, caso não quisesse ser expulso a pedradas; é o mesmo – diz – que faria
com os pretendentes, que maquinam males, se tivesse força (v. 369-375). Os
pretendentes dão risada e aliviam o rancor contra Telêmaco, enquanto Eumeu
volta a levar o arco para o mendigo. O discurso é todo feito para agradar os
inimigos, para que desse modo cedam: Telêmaco mostra que pode ser brutal
e desmedido com o porqueiro, mas se afirma impotente em relação aos mais
fortes pretendentes. Com isso tira deles sua última risada no poema. Note-se
ainda como a fórmula “maquinam males” (kakà mekhanóontai, v. 375), usada em
outros momentos em referência a eles (Od. 3, 213; 16, 134; e 17, 499), pode aqui

139 N. Austin, “Telemachos polyméchanos”, p. 61 e 62-63.

99
ser tomada como uma alusão às desgraças (kaká) que agora Odisseu e Telêmaco
tramam, conferindo uma camada a mais de ironia à cena.140
É importante ressaltar que os pretendentes não trabalham continuamente
com a ideia de que Telêmaco ainda é uma criança. Como vimos, desde o Canto 2
Antínoo já era capaz de notar a transformação que se operava no jovem; no Canto
16 ele pode afirmar que Telêmaco agora “é versado em conselho e pensamento”
(epistémon boulêi te nóoi te, v. 374), e no Canto 20 que é “límpido orador” (ligùn
agoretén, v. 274). Isso só nos obriga a dar ainda mais destaque ao fingimento do
filho de Odisseu, que consegue iludi-los mesmo diante dos sinais em contrário.
De certo modo, é como se eles experimentassem do próprio veneno, porque,
imaginando-se espertos e aptos a manipular Telêmaco, acabam enredados
na astúcia discursiva alheia. Que eles assim operavam, ilustra-o com muita
clareza uma passagem como esta, tirado do Canto 17, de construção simétrica e
antitética, e que nos mostra os pretendentes em volta do jovem

coisas boas (esthlá) proferindo e más (kaká) no fundo pensando.


(Od. 17, 65)

Se quisermos resumir essa transformação do jovem no plano da


linguagem, poderemos recorrer à já citada formulação de Heath, segundo a
qual a Odisseia nos mostra Telêmaco “incorporando” seu epíteto tradicional,
pepnuménos, “ponderado”, termo associado, em grego, sobretudo à capacidade
discursiva.141 Aplicado 46 vezes ao jovem no poema, para Heath

pepnuménos se liga não apenas ao modo como o discurso de Telêmaco se apre-


senta, mas também a seu impacto – eficiente, com autoridade, adulto, direto
e indireto, sincero e dissimulado (...) Ele deve aceitar finalmente sua herança,
emular o pai, proteger sua propriedade, falar e agir como um adulto em Home-
ro – enfim, crescer e incorporar seu epíteto.142

Mais adiante no mesmo artigo, ele diz ainda:

140 Lembre-se, no plano formal, da frase “semeando males para os pretendentes”, usada
ora para Odisseu (Od. 14, 110), ora para Telêmaco (Od. 17, 27).
141 J. Heath, “Telemachus pepnuménos”, p. 133-135.
142 J. Heath, “Telemachus pepnuménos”, p. 138.

100
O amadurecimento de Telêmaco, portanto, pode ser visto como a aceitação de
sua herança, e isso é revelado, ao menos em parte, pela sua transformação no
filho pepnuménos de Odisseu que o seu epíteto indicava que ele seria. Ele supe-
ra seu silêncio infantil e seu lamento ineficaz para se tornar um orador “sábio”,
que torna suas palavras realidade. Mas essa sabedoria discursiva na Odisseia
envolve não apenas saber quando e como falar, mas também quando não.143

Ser “ponderado”, portanto, representa estabelecer a identificação


com o pai, também ele qualificado por meio de um epíteto que destaca o
poder discursivo, polúainos, “multíloquo”. Já se notou que o nome do jovem,
Telémakhos, “o que combate longe”, é uma espécie de título de Odisseu, assim
como acontece com Astíanax (“senhor da cidade”) em relação ao pai, Heitor.144
O filho deve ser uma continuação e reafirmação do pai – talvez ainda mais numa
linhagem de filhos únicos, como é a de Arcísio-Laertes-Odisseu-Telêmaco (Od.
16, 117-120).145 Nesse sentido, o rebento deve buscar a glória do genitor. É o que
depreendemos, por exemplo, do discurso de Agamênon dirigido a Diomedes no
Canto 4 da Ilíada (v. 370-400), quando o líder do exército cobra que seu guerreiro
mostre o mesmo poder de Tideu.
Na Odisseia, vimos como se articulam estes três movimentos de Telêma-
co: buscar notícias do pai; buscar para si a glória do pai; estabelecer assim sua
própria glória. No Canto 13, num espaço de dez versos (v. 414-423), Atena trata
disso, ao dizer para Odisseu que Telêmaco, viajando, foi conquistar renome para
si, ao mesmo tempo que foi

...atrás da tua glória (peusómenos metà sòn kléos), se existente algures.


(Od. 13, 415)

O verso acima, como os estudiosos notaram, explora o sentido duplo de


kléos de que já falamos acima, podendo ser traduzido também assim:146

143 J. Heath, “Telemachus pepnuménos”, p. 155.


144 H. Clarke, “Telemachus and the ‘Telemacheia’”, p. 137.
145 Repare-se como essa ligação com o filho único serve para definir Odisseu na Ilíada (2,
260; e 4, 354).
146 Por exemplo, J. Petropoulos, Kléos in a minor key, p. 124.

101
...atrás de notícia tua (peusómenos metà sòn kléos), se existente algures.
(Od. 13, 415)

O poema, que é a afirmação máxima da glória de ambos, tematiza a pre-


cariedade dessa glória, e como agir para que ela se (a)firme. Na primeira parte
da narrativa, pode-se dizer que é a incerteza que vem destacada; na segunda,
ao contrário, é sua afirmação que ganha terreno, e quando Telêmaco fala da
fama do pai (Od. 16, 241; e 23, 124-125) é sua própria fama que está sendo es-
tabelecida e identificada à de Odisseu. A cena final mostra essa reunião (com
a inclusão também de Laertes) de forma inequívoca, nas últimas palavras de
Odisseu e do “ponderado” Telêmaco:

e a Telêmaco [Odisseu] exclamou de pronto, ao querido filho:


“Telêmaco, aprenderás isto indo agora tu mesmo
aonde, dentre os que lutam, se distinguem os melhores:
não envergonhar (kataiskhúnein) a raça dos ancestrais, que já antes
nos destacamos em força e valor por toda a terra”.
E disse a ele de volta o ponderado (pepnuménos) Telêmaco:
“Me verás, querido pai, se quiseres, com este ânimo
não envergonhar (kataiskhúnonta) a raça tua, seguindo o que dizes”.
Assim disse, e então Laertes se alegrou e assim falou:
“Mas que dia é esse, caros deuses! Sim, muito me alegro:
meu filho e seu filho têm contenda pela excelência!”.
(Od. 24, 505-515)

De certa maneira, o que temos aí é o pai cobrando do próprio filho o


comportamento glorioso, e este respondendo que já está à altura do modelo
masculino que é para ele Odisseu. Irene de Jong julga que a preocupação
vem fora de hora, uma vez que o jovem já provou amplamente seu valor no
massacre,147 mas a função aqui do diálogo parece ser a de dar o devido fecho
a um tópico fundamental. A intervenção de Laertes funciona apenas como
comentário a respeito dessa rivalidade tão desejada, indicada verbalmente,
como apontou W. Stanford, pela repetição do verbo “envergonhar” por parte

147 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 586.

102
de Telêmaco, junto com o “seguindo o que dizes” (hos agoreúeis).148
Para concluir, vale destacar que a superação da infância tem também
um sentido moral e cognitivo evidente no poema, uma vez que, conforme já foi
notado, o adjetivo népios, que traduzimos por “infantil” ou “criança”, em Homero
significa igualmente “tolo”. É o que vemos, por exemplo, no proêmio, quando os
companheiros de Odisseu são qualificados de népioi (v. 8).149 Na mentalidade grega,
infância e tolice eram ideia correlatas, de modo que, se abandonar a infância podia
representar abandonar a estupidez mental, mostrar estupidez mental na idade
adulta era uma forma de se infantilizar. Em várias passagens de Homero associar
determinadas palavras à infância surge como poderosa forma de recriminação. No
Canto 23 da Ilíada, por exemplo, a forma alternativa nepútios (“criancinha”) aparece
três vezes no momento em que dialogam Eneias e Aquiles (v. 178-258), na última
delas, no verso exortativo “Anda, vamos, não falemos mais isso, qual criancinhas”,
mesma linha presente em Il. 13, 292. Um bom exemplo, na Odisseia, nos dá o Canto
4, quando um certo Eteoneu é repreendido por Menelau ao hesitar se devia ou não
receber os forasteiros (Telêmaco e Pisístrato):

Antes, Eteoneu filho de Boétoo, tu não eras


tolo (népios), mas agora dizes tolices (népia), tal qual criança (páis).
(Od. 4, 31-32)

Assim, Telêmaco, ao deixar de ser criança, tornando-se adulto, deve pôr de


lado o comportamento tolo e inadequado, o que reforça ainda mais o contraste
com os pretendentes, explorado desde o Canto 1. Para ilustrar essa mudança,
seria interessante, neste ponto, mencionar a elegia de Sólon sobre as fases da vida
(27W). Ainda que o poema apresente preocupações bem diversas do que vemos em
Homero – a mais evidente delas sendo a atenção a uma medida exata do tempo
–, é curioso notar como a fase em que, diante da ausência de vinte anos do pai,

148 W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 429.


149 Para uma abordagem do significado desse termo – e sua debatida etimologia –, ver Susan
Edmunds, Homeric népios. New York: Garland Publishing, 1990, p. 1-9. A autora, em seu livro,
explora uma possível proximidade entre népios e épios, “gentil”, a partir de uma raiz comum
portadora da ideia de “conexão”. Ver também o já citado artigo de John Heath, que busca
ligar o termo à falta de capacidade discursiva. p. 131-142. Para uma abordagem mais ampla e
sociológica sobre a juventude na antiguidade, ver Marc Kleijwegt, Ancient youth: the ambiguity
of youth and the absence of adolescence in Greco-Roman society. Amsterdam: J.C. Gieben, 1991.

103
provavelmente se encaixaria Telêmaco (na passagem da terceira, dos 14 aos 21 anos,
para a quarta, dos 21 aos 28 anos), é exatamente a fase marcada pela demonstração
de “vigor” e “valor”. Apresento, em tradução, os doze primeiros versos:

O filho impúbere, ainda infantil, cultiva e expulsa


primeiro, em sete anos, o cerco dos dentes;
e quando então o deus leva a termo outros sete ciclos,
sinais da nascente puberdade surgem.
na terceira fase, o queixo (os membros em crescimento)
cobre-se de pelos: flor da pele em troca.
na quarta, em vigor qualquer um é, de longe, o melhor
– no que os varões dão sinais de valor.
Na quinta, é tempo de o homem estar lembrado de casar
e buscar gerar filhos pra adiante.
Na sexta, em tudo está sendo bem treinada a mente do homem
e não quer mais atos tolos cometer.
(...)

Repare-se como nas etapas iniciais a ênfase recai sobre a transformação


física, a ação propriamente dita só emergindo por volta dos vinte anos. É
curioso notar também que Odisseu se enquadraria na sexta fase (dos 35 aos 42),
em que a mente (nóos) adquire uma condição superior e é capaz de evitar os
erros. Essa afirmação, por sua vez, nos leva para uma derradeira pergunta em
relação a Telêmaco: como entender seu equívoco no Canto 22, da matança dos
pretendentes, quando quase põe tudo a perder ao permitir que os adversários
tivessem acesso às armas? Ele mesmo assim nos diz:

Pai, nisso fui eu mesmo, eu, que falhei (tóde g’émbroton) – ninguém mais é
culpado (aítios) –, que a porta densamente ajustada do quarto
deixei aberta: o vigia deles [dos pretendentes] foi superior.
(Od. 22, 154-156)

Podemos argumentar que Telêmaco se mostra tolo aqui, e que portanto


sua infância não foi totalmente superada? Parece-me que a inserção desse
deslize do jovem, nesse ponto da Odisseia, não tem a intenção de impugnar seu

104
amadurecimento, mas antes de confirmá-lo. Sabemos que o universo heroico
homérico não é marcado pela perfeição – longe disso: a excelência é uma condição
que os conduz a uma capacidade muitas vezes excessiva, poderosa demais,
arrogante demais. A reflexão sobre esse erro e a possibilidade de se assumir a
responsabilidade por ele podem, nesse sentido, funcionar como mais um atestado
da transformação vivida por Telêmaco no poema.150 Nesse sentido, é interessante
notar como a presença de Atena (disfarçada de Mêntor) logo em seguida (v. 205-
240), quando censura duramente Odisseu por uma momentânea fraqueza e
decide colocá-lo à prova – a ele e a Telêmaco –, parece vir se juntar a essa ideia da
falibilidade e da precariedade humanas, que de modo algum deve ficar associada
à infância. Telêmaco amadureceu, é um adulto, tem a ajuda da deusa, mas ainda
assim é mortal, e sua nova capacidade não deve perder, exatamente por isso, a
memória de sua condição.151

150 Deixo de lado aqui uma motivação simplesmente narrativa para o erro, que abre espaço
para a captura de Melanteu logo na sequência, reafirmando-se, assim, sua deslealdade.
151 Dimock comenta que nós, leitores, “simpatizamos” com esse rápido reconhecimento do
erro por parte de Telêmaco. Ver G. Dimock, The unity of the Odyssey, p. 300.

105
3. OS PRetendenteS e A hOSPItAlIdAde

Os pretendentes de Penélope são culpados de dois crimes principais na


Odisseia: o consumo contínuo dos bens do palácio de Odisseu, palácio que, na
ausência do rei, “invadem” diariamente (cortejando sua esposa e deitando-se
com suas servas), e os maus tratos que dispensam ao Odisseu-mendigo na se-
gunda parte da narrativa, ferindo o respeito devido ao estrangeiro suplicante.
De maneira geral, esse comportamento duplamente indevido consiste numa
transgressão à hospitalidade, cujas regras eram estritas na sociedade homérica
(caracterizada por um forte sentimento de reciprocidade) e sancionadas pelo
próprio Zeus. Na estrutura do poema, esses homens irão contrastar abertamen-
te com aqueles que sabem bem acolher – Telêmaco, Nestor, Menelau, Alcínoo,
Eumeu –, de tal maneira que seus crimes fiquem evidentes e a punição, justifi-
cada. Trata-se, de certa maneira, da mesma transgressão que está na origem
da Ilíada – o rapto de Helena perpetrado por Páris contra seu anfitrião, Menelau
–, transgressão que também exige uma punição aparentemente desproporcio-
nal (a destruição de Troia, determinada por Zeus, Il. 13, 351-354) e permite que
tanto o troiano quanto os pretendentes recebam a mesma qualificação, aleítes,
“ofensor” ou “infrator” (Od. 20, 121; Il. 3, 28).152 A participação destes últimos
na Odisseia, no entanto, não fica reduzida ao tópico da hospitalidade. Pode-se
dizer que também o tema da esperteza é relevante para a caracterização desses
personagens, que tramam emboscadas e empregam a palavra com fins escu-
sos. Sendo assim, eles servem de contraponto para a astúcia característica de
Odisseu e sua família e ajudam a complicar a reflexão sobre esse tipo de com-
portamento. Vemos, através dos pretendentes, como o uso de ardis não tem
um valor unívoco, podendo ora se aproximar, ora se distanciar de uma conduta
justa; ora ir ao encontro das sentenças de Zeus, ora as contrariar.
Pretendo abordar abaixo, em sequência, esses dois elementos – justiça
e inteligência – e mostrar como, em seu mau funcionamento, eles servem não
apenas para caracterizar negativamente os homens que cortejam Penélope,
mas também para chamar nossa atenção para esses temas em relação aos
outros personagens, sobretudo Odisseu. Portanto, estamos diante novamente
das questões fundamentais relativas à justiça, ao conhecimento e ao

152 Ver ainda o adjetivo alitémon (Il. 24, 17 e 186) e o verbo alit(r)aíno (Il. 24, 570 e 586; e 9, 375;
Trab. 241 e 330). Sólon, no seu fragmento 13W, sobre a justiça, usa ainda o adjetivo alitrós (v. 27).

106
desaparecimento (este último representado, no caso dos pretendentes, por sua
morte e existência no Hades, no Canto 24).

» Os crimes

Para que a matança dos pretendentes tenha a grandiosidade que se espera


de um poema épico e o feito de Odisseu e Telêmaco ganhe uma dimensão sobre-
-humana – própria desse passado heroico –, é preciso que poucos vençam muitos:
só assim se manifesta a superioridade da astúcia sobre a força e o caráter determi-
nante da intervenção divina. Na Odisseia, pai e filho devem superar 108 inimigos, nú-
mero extraordinário de que somos informados apenas na metade final do poema.
Ainda que certos elementos nos indiquem a presença de uma grande quantidade
de homens,153 é somente no Canto 16 que ficamos sabendo de fato quantos são os
pretendentes.154 No diálogo entre Telêmaco e Odisseu – ainda na cabana de Eumeu
–, o pai indaga sobre o número dos invasores de sua casa, e o filho lhe responde:

De pretendentes não há uma dezena nem duas,


mas muito mais: logo tu vais saber aqui o número.
Pois vindos lá de Dulíquio eles são cinquenta e dois,
jovens seletos (koûroi kekriménoi), e seis servidores seguem junto;
vindos de Same eles são, por sua vez, vinte e quatro homens (phôtes);
vindos de Zacinto já são vinte jovens (koûroi) acaios;
e, vindos da própria Ítaca, doze, todos os melhores (áristoi).
(Od. 16, 245-251)

153 Como nos versos 144-145 do Canto 1: “E entraram os sobranceiros pretendentes, que em
sequência/ com ordem foram sentando nas cadeiras e nos tronos”. Como afirma Samuel Bas-
sett, “as cadeiras, klismoí, só eram necessárias por causa do número inusual de convidados”;
ele ainda faz referência a outras passagens pelas quais podemos perceber que são muitos os
pretendentes (como Od. 3, 212; e 4, 669), e ressalta que é em razão dessa grande quantidade de
homens que os bens de Odisseu correm o risco de ser totalmente consumidos; ver “The suitors
of Penelope”, Transactions of the American philological association 49 (1918): 41-52, p. 43.
154 Podemos nos perguntar por que Tirésias no Canto 11 ou Atena no Canto 13 não deram
tal informação. No Canto 13, é curioso notar que Odisseu diz a Atena que com a ajuda dela ele
lutaria até mesmo “contra trezentos homens” (trikosíoisin ándressi, v, 390). Liócrito já havia
dito no Canto 2 que Odisseu, voltando, encontraria a morte ao lutar contra homens “mais
numerosos” (pleónessi, v. 251).

107
Desse total de cortejadores, apenas quinze são nomeados e oito de fato
têm voz.155 De modo geral, esse vasto grupo, que por vezes se expressa coletiva-
mente, é representado por dois nomes principais: Antínoo (23 falas) e Eurímaco
(13 falas). Como coadjuvantes, temos Anfínomo (a partir do Canto 16; 5 falas),
Agelau (a partir do Canto 20; 3 falas), Liodes (a partir do Canto 21; 2 falas), Lió-
crito (Cantos 2 e 22; 1 fala em cada), e Anfimedonte e Ctesipo (a partir do Canto
22; 1 fala cada).156 Esses homens, que são jovens, pertencem à aristocracia da
região, como deixa claro essa fala de Telêmaco a Atena no Canto 1 (repetida ao
pai no Canto 16, antes da fala apresentada acima):

porque todos os melhores (áristoi) que têm poder (epikratéousin) sobre as ilhas
(sobre a frondosa Zacinto e sobre Dulíquio e Same),
e todos também que são chefes (koiranéousin) na rochosa Ítaca,
todos cortejam a minha mãe e consomem (trúkhousi) a casa.
(Od. 1, 245-248 = 16, 122-125)

Penélope dirá a mesma coisa ao Odisseu-mendigo no Canto 19, com


variação nos dois versos finais:

porque todos os melhores que têm poder sobre as ilhas


(sobre a frondosa Zacinto e sobre Dulíquio e Same)
e esses que na própria Ítaca bem-visível já residem
a mim cortejam sem que eu queira e consomem a casa.
(Od. 19, 130-133)

155 W. Allen Jr. chama atenção para o fato de que 108 é o resultado da multiplicação de dois
números “favoritos” de Homero, 9 x 12; ver seu “The theme of the suitors in the Odyssey”,
Transactions of the American philological association 70 (1939): 104-124, p. 114. Samuel
Bassett, por sua vez, defende que 108 são os meses de solidão (9 anos sem Odisseu x 12
meses) de Penélope; ver “The suitors of Penélope”, p. 42.
156 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 38-39. Os outros sete
são: Eurínomo (Od. 2, 22; e 22, 242), Demoptólemo (Od. 22, 242 e 266), Pisandro (Od. 18,
299; e 22, 242, 268 e 299), Pólibo (Od. 22, 243 e 284), Euridamante (Od. 18, 297; e 22, 283),
Euríades (Od. 22, 267) e Elato (Od. 22, 267); como se vê, alguns são nomeados apenas na hora
de morrer (e Eurínomo é o único cuja morte não é narrada). As falas coletivas são expressas
através do emprego do indefinido tis, “um qualquer”. Para uma lista de seu uso na Odisseia,
ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 62-63.

108
Uma outra informação importante – para que se avalie na perspectiva correta
a participação violenta dos pretendentes – envolve o tempo em que agem do modo
como os vemos agir. Quem nos diz isso é o próprio Antínoo, no Canto 2, ao mencionar
o estratagema da mortalha de Penélope: a conclusão do tecido determinaria o prazo
para a escolha do novo marido, mas o que ela de dia tecia à noite desfazia – e isso du-
rou três anos, até no quarto o engano ser finalmente descoberto (Od. 2, 89, 106 e 107).
A informação é confirmada depois por Atena, em diálogo com Odisseu (Od. 13, 377).
Nesse período, os pretendentes têm o costume de se dirigir, de dia, para a casa de
Odisseu, de lá saindo ao anoitecer (Od. 1, 422-424). É por isso que no Canto 2 Telêma-
co afirma que não pode mais suportar esse tipo de comportamento, com a repetição
enfática da negação “não mais” num mesmo verso (ou éti... oud’éti, v. 63).
Essa situação arrastada se deve ao fato de que, com a incerteza sobre a
morte de Odisseu, nem pode Penélope se decidir a escolher um novo homem,
nem a casa ter – com o velho Laertes e o ainda imaturo Telêmaco157 – um novo
senhor. É o próprio jovem que comenta a respeito da hesitação da mãe, na con-
versa com Atena-Mentes:

E ela nem nega o odioso casamento nem consegue


tomar decisão, e aqueles devoradores (édontes) a casa
fazem definhar (phthinúthousin) (...).
(Od. 1, 249-251)

Sobre o trono vago, ele diz aos pretendentes:

Entretanto, entre os acaios, inúmeros outros reis (basilêes)


há na marítima Ítaca, tanto novos quanto antigos;
um deles terá o posto, morto o divino Odisseu.
Eu próprio, porém, serei o senhor (ánax) da nossa casa
e de escravos que pra mim pilhou divino Odisseu.
(Od. 1, 394-398)

Nesse contexto, a corte a Penélope ganha ares de comportamento


excessivo, não apenas porque se antecipa a uma possível notícia da morte do

157 Veja-se o que diz H. Clarke, “Telemachus and the ‘Telemacheia’”, p. 129.

109
rei, mas também porque representa um assalto ao trono e às riquezas desse
senhor ausente, conforme diz Telêmaco aos pretendentes (Od. 2, 55-58).
O anseio pela mulher é, ao mesmo tempo, um anseio por prestígio e poder
– numa sociedade, é bom lembrar, com uma monarquia relativa, na qual o
“rei” (basileús) é uma liderança acima de outras lideranças.158 Porém, em tais
circunstâncias – sem a confirmação de que Odisseu morreu (ainda que Penélope
o dê como morto já em Od. 2, 96) –, o livre curso desses anseios é indevido. De
fato, desde o princípio temos uma caracterização inequivocamente negativa
dos pretendentes. Na primeira menção a eles, Atena diz a Zeus que eles
em Ítaca “sem pausa (aieì hadiná)/ degolam sempre as ovelhas e curvos bois
bamboleantes” (Od. 1, 91-92),159 destacando seu consumo violento e sem fim,
não-sacrificial. Mais adiante, ela comentará com Telêmaco que aqueles homens
festejam de “maneira soberba e arrogante” (hubrízontes huperphiálos, Od. 1,
227) e perpetram muitas “vergonhas” (aískhea, v. 229). O próprio Telêmaco se
dirigirá depois a eles chamando-os de pretendentes “de soberba hiperviolenta”
(hupérbion húbrin ékhontes, v. 368)160 e reclamará da “algazarra” (boetús, v. 369)
que fazem. A voz narrativa também não poupa os cortejadores de Penélope:
eles recebem o epíteto tradicional “sobranceiros” (agénores, Od. 1, 106 e 144)
e são qualificados de “arrogantes” (huperphiáloisi, v. 134), além de sua violência
ser destacada pelo fato de forçarem Fêmio a cantar contra sua vontade (anágkei,

158 Pierre Carlier acredita que, mesmo não sendo o basileús um monarca, não vale a pena
abandonar a tradução tradicional por “rei”; segundo ele, no entanto, ainda que Antínoo e
Eurímaco recebam por duas vezes essa designação (Od. 18, 64-65; e 24, 179; e, talvez, numa
generalização aplicável a todos, no citado passo de 1, 394-395), ela não é aplicável a eles;
ver seu “Ánax and basileús in the Homeric poems”, em S. Deger-Jalkotzy & I. Lemos (ed.),
Acient Greece: from the Mycenaean palaces to the age of Homer. Edinburgh: Edinburgh Uni-
versity Press, 2006, p. 101-110. A ideia de que o casamento com Penélope representa poder
vem bem resumida pela fala de Telêmaco a respeito de Eurímaco: “...e quer muito/ desposar
a minha mãe e ter de Odisseu o prêmio (géras)” (Od. 15, 521-522). Sobre essa sugestão de
que o casamento trará consigo liderança em Ítaca, ver Marylin Katz, Penelope’s renown, p.
41. Eurímaco também diz a Odisseu, no Canto 22, que Antínoo cortejava Penélope com o
propósito oculto de ser rei (v. 52). John Halverson, no entanto, rebate a possibilidade de isso
estar em jogo na Odisseia, mas os exemplos que ele mesmo cita, de Édipo (com Jocasta) e
principalmente o de Clitemnestra (com Egisto) – paradigmático –, indicam o acesso ao trono
pela nova união, ainda que o mecanismo não fique inteiramente claro. Ver seu artigo “The
sucession issue in the Odyssey”, Greece & Rome 33/2 (1986): 119-128, p. 122-123. Ver também
R. Scodel, “The suitors’ games”, The American journal of philology 122 (2001): 307-327, p. 311.
159 A frase será repetida por Telêmaco no Canto 2, v. 319-320.
160 O verso inteiro é formular e reaparecerá em Od. 4, 321.

110
v. 154).161 O tumulto que causam também recebe atenção, quando se fala deles
como homens “ruidosos pelo palácio” (v. 365).
Ao longo de todo o poema, vai se reforçar, de diferentes perspectivas,
essa apreciação negativa. Além das repetidas críticas de Telêmaco, temos, por
exemplo, a condenação de Mêntor, no Canto 2, que se refere aos pretendentes
como homens “sobranceiros” (agénoras) a “praticar feitos violentos na maldade
de suas mentes” (érdein érga bíaia kakorraphíeisi nóoio, v. 235 e 236); a de Nestor,
no Canto 3, que fala mais uma vez das violências (bías, v. 216) que cometem; a
de Menelau, no Canto 4, quando os chama de homens “sem valentia” (análki-
des, v. 334); e especialmente a de Eumeu, no Canto 14 (v. 80-95), quando afir-
ma ao Odisseu-mendigo que ele devoram os porcos não se preocupando com
a “observância” (ópida, v. 82, ópidos, v, 88) divina, ideia ecoada posteriormente
por boiadeiro Filécio, outro servo fiel, no Canto 20 (ópida theôn, v. 215). Pené-
lope também enuncia diversas vezes suas críticas aos pretendentes. Em duas
passagens a mãe de Telêmaco é especialmente incisiva, deixando claro como o
crime dos que a cortejam consiste numa inversão do que é habitual e justo em
tais circunstâncias: preservam seus bens para dizimarem os alheios (Od. 17, 532-
537);162 desrespeitando o “normal” (díke) dos pretendentes, não dão banquete
– antes devoram impunemente o que não lhes pertence (Od. 18, 275-280). Esses
trechos nos remetem à fala de Atena no Canto 1, quando, sem esconder seu
descontentamento, perguntou a Telêmaco:

Mas que banquete (daís), que encontro é este? Precisas dele?


Recepção (eilapíne) ou casamento (gámos)? Pois não é festa conjunta (éranos).
(Od. 1, 225-226)

O termo eilapíne se contrapõe a éranos enquanto o banquete (daís) to-


talmente por conta do anfitrião à festa em que se dividem as contribuições (ou
que acontece a cada vez na casa de um conviva diferente). Mais adiante, no
próprio Canto 1, Telêmaco sugerirá aos pretendentes que, se querem o consu-
mo desenfreado, que adotem a segunda opção, consumindo seus bens (deles),
revezando-se nas casas (v. 374-375). O que temos portanto é uma recepção – o

161 Para uma lista de palavras negativas para qualificar os pretendentes, ver I. de Jong, A
narratological commentary on the Odyssey, p. 28.
162 Os quatro últimos versos já haviam sido ditos por Telêmaco (Od. 2, 56-58).

111
palácio de Odisseu arca com todas as despesas –, mas sem que o anfitrião tenha
feito um convite ou queira receber, de bom grado, os festejantes.163
Além das críticas vindas dos personagens que havia muito conviviam com os
pretendentes, temos também a do recém-chegado Odisseu. Destaco duas. Na pri-
meira, a ideia fundamental de atrevimento (atásthala) vem se juntar à de desonra
(atimázontas) a Penélope (Od. 18, 143-45). Na segunda, temos a significativa reu-
nião das noções de insulto (lóben), soberba (hubrízontes), atrevimento (atásthala) e
ausência de respeito (aidoûs) (Od. 20, 169-171). Depois de matar Antínoo – e imedia-
tamente antes do assassinato dos demais –, Odisseu volta a sublinhar os crimes dos
pretendentes, cuja insolência é destacada através do modo como são interpelados:

Cães (kúnes)! Pensastes que eu não mais pra casa retornaria


lá da terra dos troianos: consumíeis (katekeírete) minha casa,
deitando-vos violentamente (biaíos) com as minhas servas
e cortejando, vivo eu ainda, a minha mulher,
não temendo nem os deuses que habitam o vasto céu
nem indignação (némesin) alguma dos homens, por vir depois.
Atam-se agora em vós – todos – as pontas da destruição (oléthrou peírata).
(Od. 22, 35-41)

Finda a chacina, Odisseu pode ainda no mesmo Canto 22 resumir assim a


transgressão desses jovens,164 usando as mesmas palavras depois empregadas
por Penélope:

Pois nunca honravam (tíeskon) nenhum dos homens sobreterrenos


– fosse vil ou fosse bravo – que chegasse junto a eles.
(Od. 22, 414-415 = 23, 65-66)

Por fim, na fala de Haliterses dirigida aos parentes dos pretendentes


no Canto 24 – quando tenta em vão dissuadi-los da busca por vingança –,

163 Para uma discussão detalhada dos termos, que aparecem também em Od. 11, 415, ver
W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 24. Veja-se também o uso metafórico de
éranos em Tucídides 2.43.
164 Sobre os crimes e a morte dos pretendentes, ver Naoko Yamagata, Homeric morality,
p. 28-39.

112
novamente os crimes voluntários (cometidos a despeito das advertências, no
mesmo esquema de Egisto) são enfatizados:

Por vileza (kakóteti) vossa, caros, estes feitos ocorreram.


Não escutastes a mim e a Mêntor pastor de tropas
para pordes um fim à insensatez (aphrosunáon) dos vossos filhos,
que com vis atrevimentos (atasthalíeisi kakêisi) grande feito perpetraram,
dilapidando as riquezas e desonrando a consorte
do melhor varão – o qual pensavam não mais voltar.
(Od. 24, 455-460)

» Antínoo e eurímaco, Anfínomo e liodes

Apesar desse quadro consistente de condenação, não se deve imaginar


que os pretendentes formem um todo indistinto e não sejam permitidas nuances
e variações de um personagem para outro. Em mais um exemplo da capacidade
de caracterização em Homero, acompanhamos na Odisseia diferenciações
importantes entre suas figuras principais, as que dão voz ao grupo, e mesmo
divergências entre o ponto de vista dessas lideranças e da coletividade de
pretendentes. Os frios e cínicos Antínoo e Eurímaco, por um lado, formam
uma espécie de doblete – recurso típico do poema, como mostrou B. Fenik –,165
sendo apresentados pelo narrador como “líderes dos pretendentes” (arkhoì
mnestéron), pois eram “em excelência os melhores” (aretêi éxokh’áristoi, Od.
4, 629 = 21, 187).166 Os dois arremessam um banco contra o Odisseu-mendigo:
Antínoo o acerta no Canto 17 (com um thrênus, v. 462), Eurímaco erra o alvo no
Canto 18 (com um sphélas, v. 394). As famílias de ambos também tiveram uma
relação próxima com Odisseu na infância, o que torna seus crimes ainda mais
agudos: no Canto 16, Penélope relembra que Odisseu dera abrigo e proteção ao
pai de Antínoo quando chegara a Ítaca como suplicante (v. 424-430); logo depois
é a vez de Eurímaco recordar de quando Odisseu o sentara ao colo, dando-lhe

165 Outros exemplos são Eumeu e Filécio, Melanteu e Melanto, Euricleia e Eurínome, e An-
fínomo e Liodes (tratados mais abaixo). Ver B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 172-207 (para
Eurímaco e Antínoo, especialmente p. 198-207).
166 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 39, e ainda E. Delebecque,
Construction de l’Odyssée, p. 50-56.

113
comida e vinho (v. 442-444).167 Antínoo também se lembra de ter visto Odisseu
quando ainda era “criancinha” (páis népios, Od. 21, 95).
Como já vimos, desde suas primeiras intervenções no Canto 1, percebemos
o comportamento desrespeitoso da dupla, que só vai sendo reforçado na
sequência da narrativa: Eurímaco despreza a profecia de Haliterses sobre a volta
de Odisseu e lhe dirige ameaças (Od. 2, 178-193); Antínoo, por sua vez, afirma que
os culpados não são eles, mas Penélope (Od. 2, 87-88), e é o primeiro a propor –
ao saber da viagem do jovem – que se arme uma cilada contra Telêmaco (Od. 4,
669-672). Mais à frente, quando a emboscada fracassa, é o mesmo Antínoo que
propõe que matem o jovem “no campo ou no caminho”, antes que chegue ao
palácio (Od. 16, 364-392). Em seu apoio sai Eurímaco, o qual, diante dos protestos
de Penélope, lhe diz fingidamente que nada acontecerá ao filho (Od. 16, 435-447).
A despeito dessa sintonia – que os faz serem os primeiros alvos de Odisseu
(Od. 22, 15-16 e 82-83) –, há algumas diferenças importantes entre eles. Antínoo,
depois de morto, é descrito pelos próprios pretendentes como “em muito o me-
lhor/ dos jovens em Ítaca” (még’áristos/ koúron ein Ithákei, Od. 22, 29-30), distinção
que agora o coloca acima de Eurímaco, a quem vinha antes igualado em contrapo-
sição aos demais. O termo, naturalmente, não tem conotação moral, mas apenas
social e política; inversamente proporcional a sua posição de destaque na região
é sua justiça, sua piedade, o que faz dele, eticamente, o pior dos pretendentes.
Duas falas de Penélope sintetizam bem quem é Antínoo: quando contesta a visão
de que é áristos e aponta para sua “soberba” (húbrin), chamando-o de “maquina-
dor de males” (kakomékhane) e “louco” (márge) (Od. 16, 418-420); e quando, mais
à frente, reconhecendo que os pretendentes são “detestáveis” (ekhthroí), afirma
que Antínoo supera-os a todos (Od. 17, 499-504).
Eurímaco (também o “melhor” em Od. 15, 519-521; e 17, 415-416), sendo
igualmente inescrupuloso e vil, parece ainda assim se orientar minimamente
pelos valores de sua sociedade aristocrática, e isso talvez se evidencie na sua
preocupação com a fama que terá no futuro. É no Canto 21, no momento em
que deve armar o arco – e não consegue –, que ele expressa essa preocupação,
temendo a “censura” dos vindouros (elegkheíe, v. 249-255) e a vergonha que
recairá sobre eles ao serem malfalados (aiskhunómenoi phátin, v. 323-329). Mais
à frente, no Canto 22, com a morte surpreendente de Antínoo, Eurímaco vai se

167 Os versos nos fazem lembrar do mesmo cuidado que tinha o paternal Fênix com Aquiles
(Il. 9, 488-491).

114
lançar a uma tentativa fracassada de obter o perdão de Odisseu (reconhecendo
que suas palavras sobre os crimes dos pretendentes eram justas, v. 45-59), antes
de por fim incitar os outros a se lembrarem “da coragem e do combate” (v. 73).
Essa inequívoca liderança de Antínoo e Eurímaco não faz com que os 106
demais pretendentes sejam apenas uma massa de manobra e não tenham von-
tade própria. Veja-se, por exemplo, o momento em que reagem coletivamente
ao banco arremessado contra o Odisseu-mendigo, no Canto 17. Diante dos pro-
testos do agredido, Antínoo diz que, se não ficasse em silêncio, aqueles “jovens”
(néoi, v. 479) o arrastariam pela casa e o esfolariam; mas nesse ponto Homero
nos conta que “todos arrogantemente se indignaram” (pántes huperphiálos ne-
mésesan, v. 481) e que assim “um dos sobranceiros jovens falava” (tis eípeske
néon heperenoreónton, v. 482):

“Antínoo, belo não foi bater no infeliz errante,


destruidor! E se for sim um deus do céu, de cima?
Os deuses, se assemelhando a estrangeiros de outras terras,
tomando feitios de todo tipo percorrem as pólis,
vendo de cima a soberba (húbrin) dos homens e o bom governo (eunomíen)”.
Os pretendentes assim falaram, mas não ligou.
(Od. 17, 483-488)

Repare-se, no entanto, que a divisão no interior do grupo vem atenua-


da pelo fato de os jovens que protestam serem também eles “sobranceiros” e
a sua própria indignação vir acompanhada de um advérbio, heperphiálos, per-
tencente a uma família de palavras associada no poema aos pretendentes. Ou
seja, Homero faz um movimento que humaniza os pretendentes, tirando deles
a simples caricatura e lhes dando maior grau de “verdade”, mas ao mesmo tem-
po não deixa de condená-los, pelo simples fato de não se absterem do compor-
tamento desrespeitoso e nada fazerem em relação aos crimes de seus líderes.
Esse raciocínio vale para o mais “simpático” dos cortejadores de Penélope,
Anfínomo, cujo próprio nome já remete, em grego, à ideia de dubiedade.168
Sua primeira aparição se dá no Canto 16, quando, de modo enigmático, “ri
docemente” (hedù ekgelásas) ao ver que já voltavam os encarregados de

168 Segundo George Dimock, o seu nome “sugere a ambivalência de sua mente”. Ver G.
Dimock, The unity of the Odyssey, p. 214.

115
matar Telêmaco (v. 351-354).169 Diante do plano de Antínoo de assassinar
Telêmaco antes que ele pudesse voltar ao palácio, temos nova intervenção
sua. Apresentado pelo narrador como aquele dentre os pretendentes que mais
agradava a Penélope, por seu “bom juízo” (phersì agathêisin), Anfínomo se diz
inicialmente contrário ao assassinato: melhor seria sondar as vontades divinas
(boulàs theôn; Od. 16, 394-402). Imediatamente depois, porém, afirma: “Caso
as sentenças do grande Zeus deem aprovação,/ vou eu mesmo assassiná-lo e
incitar todos os outros” (v. 403-404).
Dois dias depois, diante de um mau agouro, é ele próprio que sugere o
cancelamento do plano (Od. 20, 245-247). Antes, no Canto 18, ele já recebera
um elogio do Odisseu-mendigo (v. 125-128), que o via, tal como o pai, “pondera-
do” (pepnuménos) e “varão atento” (epetêi andrí), mesma qualificação usada por
Atena para Odisseu no Canto 13 (v. 332). A reação de Anfínomo é descrita depois
nestes termos, destacando-se a dupla motivação:

Foi então pela morada, aflito na cara entranha,


cabeceando; seu ânimo pressentia sim o mal,
mas nem assim escapou à morte: prendeu-o Atena
– pra ser domado por mãos e por lança de Telêmaco.
(Od. 18, 153-156)

Sua morte no Canto 22 por Telêmaco (v. 89-98) – conforme antecipado


aí – deixa claro que, ainda que as intenções e os sentimentos pudessem ser di-
ferentes entre os pretendentes, todos, na prática, cometiam o mesmo crime
e, para efeito de punição, apenas os atos contavam. De todo modo, o fato de
Anfínomo considerar um possível assassinato de Telêmaco (“Caso as sentenças
do grande Zeus deem aprovação,/ vou eu mesmo assassiná-lo e incitar todos os
outros”) já serve para lhe roubar, ao menos do ponto de vista da justiça divina do
poema, qualquer dubiedade.
O mesmo vale para outro pretendente “benéfico”, Liodes, cuja participa-
ção é ainda menor que a de seu “doblete” Anfínomo. Aparecendo pela primeira
vez só no Canto 21, é ele que dá início às tentativas de se armar o arco, sendo
também apresentado favoravelmente pelo narrador: desempenhando a função

169 Para Irene de Jong (A narratological commentary on the Odyssey, p. 402), ele ri assim
porque a volta da nau “torna a sugestão de Eurímaco nos v. 348-350 supérflua”.

116
de “intérprete de sacrifícios” (thuoskóos), só a ele os atrevimentos (atasthalíai)
eram detestáveis (ekhthraí), e censurava (neméssa) os pretendentes (v. 144-148).
No seu discurso seguinte, depois de falhar com o arco, ele diz que a arma tirará a
vida de muitos (v. 153-154) e que todos devem ir cortejar outra mulher (v. 160). O
sentido dessa “morte” é figurado e se associa à vergonha decorrente do fracasso,
mas a fala é também uma irônica predição.170 A violenta resposta de Antínoo (v.
168-174) reforça uma apreciação positiva do personagem, que reaparece apenas
para morrer, numa cena que nos remete à inclemência da Ilíada. Agarrado aos
joelhos de Odisseu, Liodes suplica por piedade, dizendo não ter cometido “atre-
vimento algum” (oudé ti atásthalon), além de ter tentado fazer os pretendentes
– que com justiça morriam por seus “atrevimentos” (atasthalíeisin) – se absterem
dos “males” (kakôn) praticados; com sua morte, não haveria “gratidão” (kháris)
pelas “boas ações” (euergéon; Od. 22, 310-319). Odisseu, numa resposta curta,
rebate tais palavras dizendo que como intérprete de sacrifícios Liodes provavel-
mente pedira aos deuses que o rei nunca mais voltasse, e com a espada desfere-
-lhe um golpe no pescoço; segundo o narrador, a cabeça de Liodes ainda falava ao
cair na terra (v. 320-329).
Podemos duvidar da justiça do assassinato desse homem moderado,
mas o simples fato de Liodes ter se deixado ficar junto aos pretendentes – ten-
do, por sua atividade, essa relação especial com o divino – é motivo bastante
para incriminá-lo e fazer com que, apesar da boa retórica, tenha o mesmo des-
tino daqueles a quem chama de “amigos” (phíloi, Od. 21, 152). Como diz Irene
de Jong, o próprio uso da espada de Agelau é simbólico e mostra que Liodes “é
punido por associação”.171

» Modelos: nestor, Menelau, eumeu

Todos eles, portanto, pagam pelo mesmo crime principal: desvirtuamen-


to da hospitalidade tradicional, seja invadindo a casa alheia e consumindo seus
bens, seja (na posição violentamente assumida de “anfitriões”) maltratando o

170 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 512-513. Segundo George
Dimock, “o dom de Liodes para a profecia é maior do que pode saber, e suas palavras acaba-
rão por ser totalmente verdadeiras, embora não pela razão que sugere”. Ver G. Dimock, The
unity of the Odyssey, p. 282.
171 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 538.

117
hóspede estrangeiro. Que a hospitalidade deve servir de parâmetro privilegiado
para se medir a justiça ou injustiça de alguém fica claro nestes versos que, com
pequenas variações, aparecem quatro vezes no poema:

Ómoi, chego eu desta vez à terra de que mortais?


São por acaso selvagens (ágrioi), soberbos (hubristaí) e nada justos (oudè díkaioi),
ou são sim hospitaleiros (philóxeinoi) cuja mente é piedosa (theoudés)?
(Od. 6, 119-21 = 13, 200-2, ditos por Odisseu)

Mas vamos, me fala isto e relata sem torcer


– por onde vagaste, e a quais localidades chegaste
dos homens; e deles mesmos e suas pólis bem-povoadas,
tanto dos que são selvagens, ásperos (khalepoí) e nada justos,
quanto dos hospitaleiros cuja mente é piedosa.
(Od. 8, 572-576, ditos por Alcínoo)

enquanto eu, com minha nau e com os meus companheiros,


vou pôr à prova os varões daqui, para ver quem são
– se por acaso selvagens, soberbos e nada justos,
ou se são hospitaleiros cuja mente é piedosa.
(Od. 9, 173-176, ditos por Odisseu)

Como apontou Steve Reece no seu estudo dos elementos constitutivos


da cena de hospitalidade, essa oposição entre os pretendentes e os persona-
gens que sabem acolher vem indicada já no Canto 1 – na recepção a Atena-Men-
tes –, através de um afastamento que também é físico:

O contraste entre o comportamento de Telêmaco e o dos pretendentes é


acentuado na cena do banquete (...). Essa frase [quando o narrador diz que
sentaram “longe dos pretendentes”, v. 130-135] exprime tanto a distância es-
pacial quanto moral que separa os dois grupos: pois enquanto Telêmaco e
Atena-Mentes diligentemente observam os rituais que definem a natureza
recíproca da relação de xenía, os pretendentes demonstram com seu com-
portamento (...) que eles não desfrutam dessa relação recíproca nem com
Telêmaco nem com o forasteiro recém-chegado. A conversa discreta entre

118
Telêmaco e seu convidado no canto da sala representa o único vislumbre de
civilização numa Ítaca virada de pernas para o ar.172

Conforme mostra o estudioso, na parte final do poema (Cantos 17-21) os


pretendentes tomam para si o papel de senhores da casa, enquanto o senhor –
Odisseu – figura como convidado. Para Reece, não procede a objeção de que
não se trata aí propriamente de uma cena de hospitalidade, uma vez que Odis-
seu não seria exatamente um convidado em busca de uma recepção, mas antes
um herói que retorna para testar a lealdade dos que estão na sua casa. Mas o
fato é que, internamente, “o disfarce de xeînos permite que a relação convida-
do-anfitrião se desenvolva entre ele e os pretendentes”. Não é problema tam-
bém ser o hóspede aqui um mendigo, já que a distinção fica muitas vezes borra-
da no poema, com Odisseu sendo visto ora como mendigo pelos pretendentes
e servos infiéis, ora como convidado por Telêmaco, Penélope e servos fiéis.173 Na
realidade, Zeus é, indistintamente, protetor de ambos, como diz Eumeu nestas
linhas, todas as três enfaticamente iniciadas no original pelo termo xeînos:

Estrangeiro (xeîne), não é regra – nem vindo alguém pior que tu –


desonrar um estrangeiro (xeînon), pois que todos vêm de Zeus,
estrangeiros (xeînoi) e mendigos (ptokhoí) (...).174
(Od. 14, 56-58)

É o mesmo Eumeu que, no poema, nos indica claramente que o mendigo


deve ser tratado como um convidado; conforme mais uma vez analisou com
precisão Steve Reece, no caso do porqueiro os elementos da cena de hospitali-
dade foram livremente modificados para refletir as circunstâncias humildes que
o caracterizam. Desse modo, sua generosa acolhida, no Canto 14, contrasta ain-
da mais fortemente com a arrogância dos nobres pretendentes:

172 S. Reece, The stranger’s welcome, p. 50. Segundo ele, são 38 os elementos constitutivos
da cena “ideal” de hospitalidade; ver p. 6-7 e 207-231.
173 Segundo Reece, o termo xeînos é empregado 61 vezes nesse trecho do poema, enquan-
to ptokhós, “mendigo”, aparece apenas 12 vezes. Como diz, acompanhamos aí a “lenta pro-
gressão e elevação do mendigo anônimo para o convidado respeitado e o senhor autodecla-
rado”. Ver S. Reece, The stranger’s welcome, p. 165 e 166.
174 A parte final (“pois que todos vêm de Zeus,/ estrangeiros e mendigos”) já havia sido dita
por Nausícaa no Canto 6 (v. 207-208).

119
A hospitalidade de Eumeu não é apenas um ocioso cumprimento de obriga-
ções; é altamente apropriada, excepcionalmente generosa e intensamente
pessoal. Seu comportamento apropriado é demonstrado ao garantir explici-
tamente ao convidado que não irá interrogá-lo até que tenha se saciado de
comida e vinho. Sua generosidade é assinalada pela oferta do lombo, a porção
de honra, ao convidado, e por lhe dar uma cama junto à lareira, enquanto ele
próprio dorme do lado de fora. A natureza pessoal de sua hospitalidade é acen-
tuada ao longo da cena: oferece ao convidado a pele de cabra sobre a qual ele
próprio dormia para que nela se sentasse, partilha o vinho de sua própria taça
e oferece sua própria capa como cobertor. Odisseu, com razão, alegra-se com
a conduta do seu fiel servo.175

Na realidade, como sabemos, não é só o comportamento respeitoso de


Eumeu que serve de contraponto aos arrogantes jovens. Se excluirmos por ora
os feácios (que analisaremos mais adiante),176 temos ainda as figuras fundamen-
tais de Nestor e Menelau, que, já nos movimentos iniciais da narrativa, ajudam
a sublinhar o que deve ser uma conduta adequada em relação ao forasteiro que
chega inesperadamente, como o faz Telêmaco nos Cantos 3 e 4, em Pilos e Es-
parta, respectivamente. No livro de Reece, também esse ponto é abordado com
clareza, mostrando-se as afinidades – e também diferenças – entre as posturas
de Nestor e Menelau:

Em acentuado contraste com a anarquia de Ítaca, onde os pretendentes des-


prezam inteiramente os rituais de hospitalidade, Telêmaco encontra em Pilos
uma sociedade estável e ordenada, cujo governante muito se orgulha da ob-
servação escrupulosa de todos os detalhes desses rituais. Nestor é excepcio-
nalmente pio: sacrifícios, libações e orações abundam nessa cena, e são ingre-
dientes essenciais de como Nestor expressa sua hospitalidade para com seus
hóspedes (...) A hospitalidade de Nestor é afetuosa e intensamente pessoal,
embora as provisões para seus convidados seja algo simples; isso contrasta

175 S. Reece, The stranger’s welcome, p. 147-148 (omito na citação a referência, que está no
original, a todas as passagens). Para uma ótima síntese do tratamento dado por Homero a
Eumeu, ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 340-341.
176 Para uma visão da cabana de Eumeu como uma terra dos feácios “rústica”, com um
detalhamento das correspondências e contrastes, ver C. Segal, Singers, heroes, and gods in
the Odyssey, p. 163-168.

120
com a extravagante – e menos pessoal – hospitalidade a ser oferecida em se-
guida por Menelau em Esparta. Sob muitos aspectos, as cenas de hospitalida-
de em Pilos e Esparta funcionam como paradigmas da hospitalidade adequa-
da, com os quais todas as outras cenas de hospitalidade na Odisseia podem ser
comparadas ou contrastadas; elas constituem o padrão pelo qual perversões
ou inversões de hospitalidade podem ser reconhecidas nas cenas subsequen-
tes, particularmente nas viagens de Odisseu.177

Deve-se dizer que, mais do que simplesmente estabelecer uma contrapo-


sição hospitalidade/não-hospitalidade (entre quem oferece os xeínia, os “dons
hospitaleiros”, e quem não), Menelau e Nestor servem para indicar – nesse uni-
verso aristocrático – o que é a realeza sob uma condução justa, com sacrifícios
aos deuses e uma sociedade estável e próspera. Nesse sentido, os pretendentes
– sendo eles, como vimos, as figuras principais de Ítaca e das ilhas adjacentes –
não correspondem ao comportamento que deles se espera: dentro do binômio
básico que se associa à figura heroica (primazia atlética/guerreira e condução
honrosa da sua comunidade),178 esses jovens se mostram não apenas injustos
e perturbadores do bom governo (trocando uma liderança benéfica por outra,
funesta), mas também fracos e sem excelência física. A prova do arco vem co-
roar, no plano físico, o que era antes apenas uma disfunção social, evidenciando
a total incapacidade dos pretendentes e a distância que os separa de Odisseu e
Telêmaco (justos e aptos a esticar a arma).179
O que lemos efetivamente no Canto 21 é que, mesmo depois de recor-
rerem ao artifício de aquecer o arco e besuntá-lo com gordura, para que a tare-
fa fosse facilitada, eles não conseguiam esticá-lo, pois eram carentes de força
(bíes); ainda assim, Antínoo e Eurímaco continuaram a tentar, pois eram os “me-
lhores em excelência” (aretêi áristoi; v. 184-187). Esse último verso, já citado an-
teriormente, ganha outra dimensão nesse contexto: quase podemos ouvir certo
sarcasmo por parte da voz narrativa, por conta da contradição entre a posição
social que eles ocupam – e o que deles se espera – e aquilo que efetivamente
fazem (ou deixam de fazer). Os desrespeitosos pretendentes, como era de se

177 S. Reece, The stranger’s welcome, p. 59.


178 A passagem fundamental é a que traz a fala de Sarpédon no Canto 12 da Ilíada (v. 310-328).
179 Telêmaco teria conseguido na quarta vez (Od. 21, 125-129), se não tivesse sido orientado
pelo pai a não fazê-lo; já Odisseu não precisa fazer muito esforço (v. 425-426).

121
imaginar, são também fracos, comparáveis a corças (é o que diz Menelau em
Od. 4, 335-339). Pode-se afirmar, assim, que há um descompasso entre aparên-
cia e essência, que retoma, de modo invertido, o mesmo descompasso relativo
a Odisseu, entre o que aparenta ser e o que de fato é.

» A punição anunciada

Diante desse quadro de insolência, bem pintado e multifacetado, mas


inequívoco, a condenação e a punição surgem como algo certo. Como diz Hesí-
odo nos Trabalhos e dias, na formulação sintética e sentenciosa que é caracte-
rística desse poema:

Bens não se pegam (oukh harpaktá)! O dado pelo deus é bem melhor.
Pois se alguém com violenta mão (khersì biéi) grande opulência apanha,
ou com a língua espolia, tipo de coisa que muito
acontece quando o lucro (kérdos) ilude de vez a mente (nóon)
dos homens e o Desrespeito (Anaideíe) já escorraça o Respeito (Aidô),
fácil os deuses o enfraquecem, fazendo minguar a casa
de um varão, e por escasso tempo opulência o acompanha.
O mesmo quando maltrata suplicante (hikéten) ou estrangeiro (xeînon),
ou quando sobe na cama do próprio irmão para ter
no leito furtivo a esposa dele, fazendo o indevido (parakaíria),
ou quando insensatamente ofende (aliténetai) crianças órfãs,
ou quando ao idoso pai na soleira da velhice
repreende, contra ele lançando duras palavras:
pois com esse, sim, se agasta (agaíetai) o próprio Zeus, e no fim
por injustos feitos (égon ant’adíkon) dura retribuição (khalepèn amoibén) impõe!
(Trab., 320-334)

Do mesmo modo, Zeus não poupará os pretendentes. É a crença


expressa – também em forma de máxima – pelo piedoso Eumeu no já citado
passo do Canto 14: os deuses não gostam de “atos cruéis” (skhétlia érga), mas
apreciam a “justiça” (díken) e as “ações bem-fadadas” (aísima érga; v. 83-84).
De banqueteadores desenfreados, que, conforme já disse certo estudioso,
transformam essa ocasião piedosa – na qual se liba e se sacrifica às divindades –

122
em mera oportunidade para se beber e comer,180 eles passam a outro banquete,
sancionado pelos deuses. No que George Dimock chamou de “raro e magnífico
resumo do poeta”,181 Homero emprega a seguinte metáfora:

Rindo (geloíontes) os pretendentes tinham preparado a refeição (deîpnon),


doce (hédu) e adequada ao furor (menoeikés), e com muitos sacrifícios.
Nenhuma outra seria mais desgraciosa (akharísterorn) que a ceia (dórpou)
do tipo que logo estavam – a deusa e o varão potente –
pra lhes impor: pois primeiro tinham maquinado ultrajes (aeikéa mekhanóonto).
(Od. 20, 390-394)

Aqueles homens que não sacrificavam adequadamente – colocando em


dúvida a ordem divina – de certa maneira acabam sendo eles mesmos o banquete
sacrificial, que confirma o estabelecimento de uma vontade superior, justificada
em sua violência (a “ceia” será “desgraciosa”, isto é, sem kháris alguma) pelo fato
de a iniciativa do crime ter partido dos próprios pretendentes (que viam como
“doce” o consumo sem fim). A metáfora é importante, porque joga com o meca-
nismo de dom/contradom tão próprio das relações de hospitalidade: à refeição
preparada por eles corresponderá a preparada, em troca, por Atena e Odisseu.
Não por acaso, Antínoo será o primeiro a “provar” (nova metáfora) as flechas de
Odisseu (Od. 21, 98), e morrerá – acertado na garganta – no momento em que
leva a taça de vinho à boca, chutando em sua queda a mesa e derrubando a comi-
da no chão.182 A imagem da refeição é retomada pelo herói, numa fala dirigida a
Telêmaco, imediatamente antes de revelar sua identidade e dar início à matança:

É hora de preparar a ceia (dórpon) para os acaios,


à luz do dia, e depois hora de outra diversão,
com celebração e lira, coroamento do banquete (daitós).
(Od. 21,428-430)

180 Ver o artigo de Donald Lateiner, “The suitor’s take: manners and power in Ithaka”, Colby
quarterly 29/3 (1993): 173-196, p. 183-184. Anfínomo fala em libar aos deuses em Od. 18, 428-
419, e o narrador fala que fizeram libação em Od. 21, 272-273, mas o ritual é vazio.
181 G. Dimock, The unity of the Odyssey, p. 275.
182 Ver o que diz G. Dimock, The unity of the Odyssey, p. 295, e Donald Lateiner, “The suitor’s
take: manners and power in Ithaka”, p. 192.

123
Essa identificação entre Odisseu e narrador – tão importante na Odisseia,
como veremos depois – não acontece só aqui. Em outros momentos a voz nar-
rativa ecoa o que ele e outros personagens pensam dos pretendentes, como nos
versos em que sublinha o prazer que os jovens encontravam em seus passatem-
pos e sua contínua “soberba” (húbrin; Od. 4, 625-628 = 17, 167-170).
Homero, muito habilmente, desde o princípio do poema, à medida que
vai pintando essa soberba, vai antecipando a matança desses homens e justifi-
cando sua brutalidade, de tal modo que ela surja como algo absolutamente ne-
cessário. Com efeito, no Canto 1 já ouvimos falar, pela boca de Atena, da morte
de todos eles, quando diz assim a Telêmaco:

pensa logo na sequência nisso no ânimo e no espírito


– em como, no teu palácio, aos pretendentes então
vais matar, se por ardil ou às claras.
(Od. 1, 294-296)

Com a assembleia no Canto 2 – que, de certo modo, expõe o crime dos


pretendentes perante todos e deixa claro que, para remover esse grande nú-
mero de homens, será preciso usar força –183, temos mais um sinal inequívoco
da matança. Após as falas de Telêmaco, em que menciona o temor à fúria dos
deuses (theôn mênis, v. 66) e a crença na punição divina (palíntita érga, v. 144), o
narrador nos descreve o prodígio das duas águias que se atacam e partem pelo
lado direito, com a subsequente intervenção do áugure Haliterses, conhecedor
do voo das aves (146-176). O velho anuncia “grande pesar” (méga pêma, v. 163)
para os pretendentes com o retorno iminente de Odisseu, a semear “matança e
má sorte” (phónon kaì kêra, v. 165), e conclui:

Não profetizo (manteúomai) sem ter experiência, mas sabendo (eù eidós).
Pois afirmo sim que tudo para aquele [Odisseu] está cumprido,
tal como lhe relatei quando embarcaram pra Ílion
os argivos, e com eles o multiastuto Odisseu:
que após sofrer muitos males, perdendo os amigos todos,
só no vigésimo ano, irreconhecível a todos,

183 George Dimock chama atenção para esses pontos no seu livro, The unity of the Odyssey,
p. 19 e 35.

124
para casa voltaria. E isso tudo já se cumpre (pánta teleîtai).
(Od. 2, 170-176)

O fato de nós, leitores/ouvintes, sabermos que a profecia de Haliterses


se cumpre em relação a Odisseu – segundo a deliberação divina do Canto 1,
ele de fato vai voltar para casa depois de muito sofrer, e de ter visto a morte de
todos os amigos – só reforça o seu conhecimento e faz com que não tenhamos
dúvida nem da volta oculta (ágnoston, v. 175) do herói, que predisse e de novo
prediz, nem da morte iminente dos pretendentes, de que fala pela primeira
vez. Repare-se como os versos que introduzem o áugure (v. 157-160) desta-
cam sua perícia, com o emprego da mesma fórmula (“e, pensando bem, entre
eles então proferiu e disse”) que vemos associada ao sábio Nestor, e como ele
próprio, no verso 170, reafirma enfaticamente seu saber, para assim adver-
tir mais os jovens arrogantes. Na realidade, como a cena nos mostra, não se
trata simplesmente, no que diz respeito aos pretendentes, de criticá-los com
base no comportamento que adotam, mas sim de interpretar (mesmo sem
explicar em detalhe) um sinal vindo diretamente de Zeus em resposta às quei-
xas de Telêmaco.184 Sendo assim, o desprezo que Eurímaco, no tom violento e
ameaçador de sempre, demonstra em relação à profecia – dizendo-se melhor
que Haliterses em prever e negando a possibilidade de Odisseu estar vivo (v.
180-184) – vem incriminar ainda mais esses jovens e reforçar a necessidade de
punição exemplar com “matança” e “má sorte”. A ação livre, mais uma vez,
ratifica a determinação divina.
Essa cega confiança por parte dos cortejadores de Penélope ganha mais
um capítulo nesse mesmo Canto 2, quando é a vez de Liócrito atacar outro
homem prudente, Mêntor (o verdadeiro), que criticara a passividade do povo
frente às agressões cometidas contra o palácio, pelas quais os orgulhosos pre-
tendentes arriscavam “as próprias cabeças” (kephalás, v. 237). Em sua resposta,
Liócrito chama Mêntor de “errante de espírito” (phrénas eleé, v. 243) e rechaça
qualquer sublevação da massa, para em seguida acrescentar que, se Odisseu

184 Uma das águias representa Odisseu e a outra os pretendentes? Irene de Jong (A narra-
tological commentary on the Odyssey, p. 52-53) prefere ver referência “a Odisseu e Telêmaco
(embora Haliterses em sua exegese fale apenas de Odisseu)”. Ver também o que diz Peter
Jones, Homer’s Odyssey, p. 22. No Canto 22, o narrador descreve a matança dos pretendentes
como um combate entre abutres e aves (v. 302-309).

125
voltasse, encontraria a morte ao lutar com tantos homens (v. 246-251). A ironia
fica evidente: Liócrito sem querer prediz o retorno de Odisseu, mas sua igno-
rância do desígnio divino faz com que não reconheça a possibilidade de poucos
derrotarem muitos. Alguns versos depois, Atena – disfarçada de Mêntor – dirá a
Telêmaco para não se preocupar com o “plano e a mente” (boulén te nóon te) dos
pretendentes “insensatos” (aphradéon), pois não são “prudentes” (noémones)
nem “justos” (díkaioi): não sabem que vão “morrer todos num só dia” (ep’émati
pántas olésthai; Od. 2, 281-284).
Lembre-se ainda que no Canto 22, já depois de iniciada a matança, outro
pretendente, Agelau, é capaz de ameaçar Mêntor de morte (v. 217), sem saber
– como nós e Odisseu – que se trata, agora, de Atena disfarçada; e que, quando
a deusa desaparece, Agelau comemora o que vê como uma deserção do amigo
do rei (v. 249), o que o faz acreditar que Zeus lhe possa conceder a vitória (v.
252-253). São muitas inversões numa mesma cena, a indicar claramente – na
véspera da morte, e para justificá-la cada vez mais – o grau de conhecimento
desses homens arrogantes. Como afirma Sheila Murnaghan, “a diferença crucial
entre Odisseu e os pretendentes fica clara em termos de moralidade: na dife-
rença entre o respeito com que Odisseu se dirige a Mêntor e o descaso com que
Agelau tenta agredi-lo”.185
De fato, ao longo de toda a narrativa, Homero faz questão de nos mos-
trar como eles se mantêm firmes em seu propósito, a despeito dos sinais em
contrário, muitos dos quais são incapazes de perceber ou levar em considera-
ção. Numa cena curiosa do Canto 4, que traz à tona o problema da “duplica-
ção” das figuras humanas cujas formas os deuses temporariamente assumem,
Nôemon (literalmente, o “Sensato”; aquele que emprestara a nau a Telêmaco)
comenta com os pretendentes que o filho de Odisseu talvez pudesse ter partido
para Pilos na companhia de um deus, diante do fato de que vira Mêntor embar-
car junto e, depois, o mesmo Mêntor ainda em Ítaca (v. 652-656). Os jovens não
só ignoram o problema, como também, na sequência, pedem que Zeus destrua
a força de Telêmaco (v. 667-668). Ainda no Canto 21, em sua ilusão, eles podem
imaginar que terão o apoio de Apolo e outros deuses na disputa do arco (v. 362-
365) – nós, porém, já fomos informados pelo narrador, anteriormente, de que
Antínoo será o primeiro a morrer (v. 98-100).

185 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey. Princeton: Princeton University
Press, 1987, p. 90.

126
Essa arrogância ganha o reforço, na parte final do poema, de um elemen-
to fundamental – o riso –, com sua conotação de loucura e soberba.186 Ele, a
bem da verdade, já vinha indicado desde o Canto 2 (v. 301 e 323) e sublinhado
no Canto 18 (v. 111), sobretudo numa passagem divertida, quando Eurímaco,
depois das gargalhadas das servas infiéis (v. 320), faz troça da careca brilhan-
te do mendigo – sem, no entanto, ficar imune à ironia, quando diz que “não é
sem um deus” (ouk atheeí) que aquele homem chega (v. 353-355). Mais à frente,
numa cena magnífica do Canto 20, em que a insensatez dos “anti-hóspedes” se
combina com o amadurecimento de Telêmaco – e a intervenção de Atena e de
Teoclímeno tornam a chacina iminente –, a risada é determinante para se pin-
tar um quadro vívido da situação dos pretendentes. Primeiro temos as palavras
de Agelau, que responde aos protestos de Telêmaco contra mais uma tentati-
va de agressão dirigida ao Odisseu-mendigo: cinicamente, Agelau reconhece a
justiça das críticas do jovem e o aconselha a dar a mãe em casamento a um de
seus cortejadores, uma vez que em relação ao rei “estava claro que não mais re-
gressaria” (v. 333). Diante dessas palavras confiantes, Telêmaco se comporta de
modo astuto: retoma a hesitação sobre o que fazer já enunciada no Canto 2 (v.
130-137), mas com total controle da situação, evidente não só pelo discurso ago-
ra sucinto e fingido, mas sobretudo pelo jogo que insinua, no verso 339, entre o
nome de Agelau (no vocativo, Agélae) e as “dores” (álgea) do pai, fazendo assim
o anagrama antecipar, para nós, a desgraça dos pretendentes. Como conclusão,
expressa em forma de desejo aquilo que já sabe ser um fato: o deus não permitir
um novo casamento da mãe (v. 344). Nesse momento então lemos:

Assim Telêmaco disse. E neles [pretendentes] vibrante Atena


ergueu riso inextinguível (ásbeton gélo) e desviou o pensamento (nóema).
E eles agora já riam (geloíon) com mandíbulas alheias,
já comiam carnes repletas de sangue; seus olhos
ficaram cheios de lágrimas, e era um gemido por dentro.
E entre eles então falou Teoclímeno deiforme:

186 Ver o artigo de Marianthe Colakis, “The laughter of the suitors in the Odyssey”, The clas-
sical world 79/3 (1986): 137-141. Daniel Levine, num artigo interessante, mostra como, em
Homero, sendo o sorriso expressão de “superioridade, conciliação e afeição”, e jamais vindo
usado ironicamente (como o riso), os pretendentes jamais aparecem sorrindo; ver “Homeric
laughter and the unsmiling suitors”, The classical journal 78/2 (1982-1983): 97-104.

127
“Ah, infelizes! Que mal sofreis? Pela noite as vossas
cabeças estão envoltas, rostos e joelhos embaixo!
A lamentação se alastra, as faces se enchem de lágrimas,
e de sangue estão manchadas paredes e belas vigas.
O pórtico está repleto, repleto o pátio, de espectros
arremessados ao Êrebo, debaixo do breu. O Sol
desapareceu do céu, sobreveio horrível névoa!”.
Assim disse, e dele então todos riram docemente (hedù gélassan).
(Od. 20, 345-358)

O riso histriônico (que faz chorar) indica loucura, insensatez e descontrole,


e ao mesmo tempo insinua nervosismo e apreensão por parte dos pretendentes,
como se pressentissem a morte próxima. Na sequência, eles dão continuidade à
troça habitual (gelóontes, v. 374), dirigida a Telêmaco, a Odisseu-mendigo e ao vi-
dente – e então se dá a já citada intervenção do narrador, a falar da “refeição” que
lhes seria servida em resposta às gargalhadas (geloíontes, v. 390).187 Na realidade,
durante o confronto entre Odisseu e o mendigo Iro, no Canto 18, os pretendentes
– conforme nos diz o narrador – já tinham “morrido de rir” (géloi ékthanon, v. 100)...
Sobre a intervenção de Atena, deve-se mais uma vez destacar o meca-
nismo da dupla motivação: ainda que os pretendentes tenham cometido livre-
mente suas transgressões, como diz Odisseu depois de mortos – “e por seus
atrevimentos tiveram fim ultrajante” (tô kaì atasthalíeisin aeikéa pótmon epés-
pon, Od. 22, 416), ideia repetida depois por Penélope (Od. 23, 67) –, na mes-
ma fala citada o herói podia também afirmar, mesclando a perspectiva divina
e humana, que quem os subjugou foram a “Porção dos deuses e os atos cruéis”
(tóusde dè Moîr’edámasse theôn kaì skhétlia érga, v. 413). Odisseu, igualmente,
subjugará os pretendentes junto com um deus (Od. 21, 213).188 A ação divina,
portanto, apenas se sobrepõe e reforça o que é decisão humana: os jovens
realizam deliberadamente seus crimes, mas ao mesmo tempo eles já podem ser
vistos como uma imposição de Atena, para que se dê a punição, sejam eles mais
ou menos desregrados (Od. 17, 361-364). Independentemente das diferenças

187 Para uma análise da passagem, ver Daniel Levine, “Theoklymenos and the apokalypse”,
The classical journal 79/1 (1983): 1-7.
188 No Hades, a vingança é percebida pelo pretendente Anfimedonte como a associação de
Odisseu com um “mau nume” (kakòs daímon; Od. 24, 149).

128
existentes entre os pretendentes, suas ações – como vimos – os condenam em
bloco, e desde o princípio todos estão fadados à morte.189
Para concluir, é bom ressaltar que essa punição final não representará, de
maneira alguma, nova ofensa à hospitalidade, a despeito da reação dos paren-
tes dos jovens mortos. A necessidade de vingança que se aplica aos pretenden-
tes – como desrespeitadores das regras sociais – não se aplica a Telêmaco e seu
pai, como vai dito desde o Canto 1:

Contudo, se vos parece que isto é mais proveitoso


e melhor – a perda impune (népoinon) do sustento de um só homem –,
destruí! Eu vou bradar aos deuses que sempre são,
para ver se Zeus concede que sobrevenha o revide (palíntita érga).
Que sem quem vos vingue (népoinoi) então findeis dentro do palácio!
(Od. 1, 376-380 = 2,142-145)

O adjetivo népoinos, “sem punição”, vem empregado aí duas vezes, indi-


cando, primeiro, que os pretendentes – ainda impunes – devem ser punidos pelo
consumo dos bens de Odisseu, e, depois, que essa vingança ou revide não pedirá,
por sua vez, outra punição.190 A matança se ajusta assim duplamente ao paradig-
ma de Egisto: o transgressor é punido, de modo implacável, com a morte, e esse
assassinato não deflagra a necessidade de se estabelecer, mais uma vez, a justiça.
A omissão à perseguição de Orestes pelas Erínias, em decorrência do crime em
que ele próprio incorreu ao vingar o pai (tema das Eumênides de Ésquilo), é funda-
mental, portanto, para que o mito fique de acordo com a perspectiva da Odisseia.
O justiceiro, aqui, não se converte em criminoso. Daí também o silêncio sobre um
possível justiçamento da parte de Egisto ao matar Agamênon, pois estaria vin-
gando o crime de Atreu contra Tiestes, de que Ésquilo fala no final do Agamênon.
Há também “proporção” na forma como se dá a matança. O castigo
pode nos parecer hoje excessivo em relação ao crime, mas ele se insere numa
teologia mais profunda presente em Homero. Como diz Laertes no Canto 24, o
castigo tem um alcance maior:

189 Veja-se ainda a fala de Penélope depois do espirro auspicioso de Telêmaco (Od. 17, 547),
e também a do Odisseu-mendigo a Penélope (Od. 19, 558): ambos dizem que a morte virá a
todos os pretendentes, com a repetição do mesmo verso.
190 O ponto é bem discutido em W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 43.

129
Zeus pai, sim, de fato, ainda sois vós deuses no alto Olimpo,
se pagaram por soberba atrevida (atásthalon húbrin) os pretendentes!
(Od. 24, 351-352)

A punição, embora associada ao ambiente doméstico e particular, tem


implicações mais amplas, não podendo ser vista simplesmente como uma res-
posta a uma tentativa de usurpar a propriedade e a mulher de outrem. Confor-
me bem apontou Steve Reece,

os crimes dos pretendentes não são, portanto, meras transgressões pes-


soais; eles são crimes contra as instituições da sociedade civilizada e, por
extensão, contra os deuses que olham por essas instituições. A resposta,
por sua vez, de Odisseu aos crimes dos pretendentes não é a de um herói
vingativo, que devolve a afronta pessoal, mas sim a de um rei moralmente
correto, que, como instrumento da justiça divina, purga a vilania, reafirma
a integridade moral e restabelece as instituições que mantêm a sociedade
funcionando.191

» A astúcia negativa

É importante destacar que, em toda a ação criminosa dos pretendentes, a


astúcia – uma astúcia torta – desempenha um papel que não pode ser desprezado,
servindo para marcar, por um lado, uma contraposição com a figura de Odisseu, e,
por outro, nova associação com os também criminosos Egisto e Clitemnestra. O
termo fundamental em Homero para marcar essa esperteza indevida é o adjetivo
dolómetis. A junção de duas ideias ligadas à inteligência, dólos, “ardil”, e mêtis,
“astúcia” – frequentemente relacionadas a Odisseu –, confere curiosamente a
esse qualificativo uma noção negativa, e por isso podemos traduzi-lo por “ardi-
loso”. Ele aparece, na Odisseia, caracterizando apenas Egisto (cinco vezes: Od. 1,
300; 3, 198, 250 e 308; e 4, 525) e Clitemnestra (uma só vez: Od. 11, 422), que agem
por meio do dólos, “ardil” (Od. 3, 235; 4, 92; e 11, 439).192

191 S. Reece, The stranger’s welcome, p. 186.


192 No caso de Clitemnestra, o segundo elemento de composição de seu nome, -mestre
(Klutaimestre), derivaria da mesma raiz do verbo médomai, “planejar”. Ver M. Katz, Penelope’s
renown, p. 4.

130
Embora os termos não sejam aplicados aos pretendentes, vemos clara-
mente na narrativa da Odisseia como eles operam através de manhas e estra-
tégias, “maquinando atrevimentos/ultrajes” (mekhanóontai atásthala/aeikéa)193
– a emboscada contra Telêmaco talvez seja o melhor exemplo dessa disposição,
espelhando a armadilha montada contra Agamênon em sua volta.194 A síntese
disso aparece no já citado verso do Canto 17, dito pelo narrador em referência a
Eurímaco, que agia “coisas boas (esthlá) proferindo, e más (kaká) no fundo pen-
sando” (v. 65). A esse respeito, note-se a preocupação de Antínoo com a dissi-
mulação (os arrogantes pretendentes devem esconder sua arrogância) e a ação
às ocultas, silenciosa, diante da balbúrdia entre os pretendentes com a tocaia a
ser preparada para o filho de Odisseu (Od. 4, 774-777). Sobre esse mesmo Antí-
noo – agora já morto – Eurímaco dirá depois a Odisseu que cortejava Penélope
não por causa propriamente do casamento, mas “pensando outra coisa” (allá
phronéon, Od. 22, 51), ser rei em Ítaca. A frase resume, no contexto, o contraste
deliberado entre expressão fingida e real intenção.
É nos discursos dirigidos a Telêmaco e Penélope, porém, que
encontramos disseminada uma vontade explícita de manipular a palavra
em favor próprio, dizendo mentiras e escamoteando intenções. Antínoo e
Eurímaco, naturalmente, são as figuras de destaque, sendo caracterizados,
conforme deles disse Bernard Fenik, por “palavras adequadas e bajuladoras, de
um lado, e malévolas intenções, de outro”.195 O resultado disso, diante de seu
comportamento injusto, é uma hipocrisia bastante palpável, como notamos
já na primeira participação de Eurímaco no poema (Od. 1, 402-411). No Canto
2, temos as falsidades ditas por Antínoo, quando promete, “rindo” (gelásas,
v, 301), ajuda a Telêmaco para que faça sua viagem – a mesma viagem que os
pretendentes não acreditam que ele seja capaz de fazer, e que depois, furiosos,
quererão coroar com uma emboscada (v. 303-308). Esse fingimento ganha
talvez sua expressão mais acabada no Canto 16: diante do fracasso da primeira
emboscada, no mar, Antínoo propõe que eles surpreendam e matem Telêmaco

193 Essa formulação aparece na boca de Telêmaco (Od. 3, 207), Penélope (Od. 17, 588), de
Odisseu-mendigo (Od. 16, 93; 18, 143; e 20, 170), do vidente Teoclímeno (Od. 20, 370), e, final-
mente, na boca do próprio narrador (Od. 20, 394), como já vimos. Ela também vai servir para
as servas infiéis (Od. 22, 432).
194 Marylin Katz chama a atenção para os termos semelhantes em Od. 4, 530-531, em refe-
rência a Egisto, e Od. 4, 778, em referência a Antínoo. Ver M. Katz, Penelope’s renown, p. 46.
195 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 205.

131
em terra;196 Penélope, ao ficar sabendo dos planos (pelo arauto Médon),
protesta, mas é tranquilizada por Eurímaco, que usa palavras reconfortantes,
prometendo matar aquele que atentar contra a vida do jovem, enquanto na
realidade pensa no seu assassinato (v. 435-448). O discurso é todo ele construído
de modo a indicar virilidade, justiça, respeito e amizade, quando quem fala é
fraco, injusto e odioso. Mas, ao contrário do que acontece com Odisseu, essas
mentiras não são eficazes, e trazem consigo ironias involuntárias: abordando a
morte, elas têm um caráter ominoso e antecipam o fim do próprio Eurímaco,
que, cego e confiante nas falsidades que diz, ao planejar a morte alheia está
apenas plantando sua própria destruição.
Esse descontrole da palavra aparece ainda com Antínoo, na já citada pas-
sagem do Canto 21 em que rememora ter visto, menino, o grande Odisseu. O
discurso começa com uma crítica dirigida aos servos Eumeu e Filécio, por cho-
rarem ao verem o arco do seu senhor:

Tolos (népioi) agrestes, que só pensais no que o dia traz!


Ah, infelizes! Por que verter lágrima e agitar
no peito dessa mulher [Penélope] o ânimo? Eis que o dela em meio
já a outras dores jaz, pois perdeu o caro esposo.
Banqueteai-vos sentados em silêncio, ou ide então
porta afora pra chorar, o arco deixando aqui mesmo
aos pretendentes, ruinoso desafio (áethlon aáaton). Penso que não
é esticado tão facilmente esse bem-polido arco.
Pois não há varão algum, entre todos estes, tal
qual Odisseu costumava ser: eu próprio então o vi,
estou lembrado, era ainda uma criança pequena (páis népios).
(Od. 21, 85-95)

Como já se notou, Homero parece jogar aqui com a duplicidade semânti-


ca de népios: o sentido que Antínoo quer dar ao termo, ao aplicá-lo ao porquei-
ro e ao boiadeiro (“tolo”, “estulto”, “néscio”), acaba valendo para ele próprio
no final, quando pretende usar o mesmo adjetivo em outra acepção (“infantil”,
“pequeno”). Vale destacar ainda a tensão entre a certeza da morte de Odisseu

196 Essa é a segunda assembleia privada dos pretendentes (Od. 16, 344); as outras duas
ocorrem em Od. 4, 625; e 16, 358.

132
(“pois perdeu o caro esposo”) e a afirmação “eu próprio então o vi”, que pode
ser tomada como indicação – involuntária – da presença de Odisseu (sob o dis-
farce de mendigo) perante ele próprio, Antínoo, o mesmo Odisseu elogiado que
“facilmente” vai armar o arco (Od. 21, 407; e 24, 177).197 W. Stanford, em seu
comentário, lembra ainda que no grego é possível ler “aos pretendentes” (v. 91)
ou com “deixando” (sentido buscado por Antínoo, com o complemento de “rui-
noso” ficando em aberto), ou então com “ruinoso” (“aos pretendentes ruinoso”,
sentido apreendido também pelos ouvintes). Em português, teríamos que tra-
balhar com duas pontuações diferentes:

(...) o arco deixando aqui mesmo


aos pretendentes, ruinoso desafio (...)

(...) o arco deixando aqui mesmo,


aos pretendentes ruinoso desafio (...)198

Esse modo de descortinar o desconhecimento dos pretendentes, no


momento em que se julgam capazes de discursar com segurança, já vimos
também em relação a Liócrito, no Canto 2 (quando fala da hipótese de uma
volta fracassada de Odisseu), e em relação a Agelau, no Canto 20 (quando afirma
peremptoriamente que o rei não regressará).199 No conjunto da Odisseia, essas
falas pretensamente espertas contrastam abertamente com os dizeres sábios,
oportunos e efetivos de Telêmaco e Odisseu – esses sim capazes de ocultar,
disfarçar, mentir. Os que armavam uma emboscada acabam assim enredados
numa armadilha que nem suspeitavam;200 seus planos falham, são descobertos,
seus fingimentos não convencem, e no final aqueles que tentavam manipular são
alvos da manipulação da astúcia justa de Odisseu. O caráter negativo de seus ardis

197 Para de Jong, é possível ver ironia também quando Antínoo diz que está bem lembrado
de Odisseu, quando, de fato, está totalmente esquecido. Ver I. de Jong, A narratological
commentary on the Odyssey, p. 509.
198 Ver W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 360.
199 Deve-se mencionar ainda a identificação das palavras justas de Penélope em relação à
recepção do mendigo (Od. 21, 312-313) com as mesmas palavras empregadas, hipocritamen-
te, por Ctesipo antes de atirar o casco de boi em Odisseu (Od. 20, 294-295).
200 Para essa ideia, de que a matança dos pretendentes é uma forma de “contraemboscada”
de Odisseu, ver A. Edwards, Achilles in the Odyssey, p. 35-38.

133
– referido indiretamente através dos servos infiéis Melanto (Melanthó), “Escura”,
e Melanteu (Melantheús, chamado também de Melánthios), “Escuro”, ambos
filhos de Dólio, “Ardiloso” –201 pode se sustentar por um tempo, mas não triunfa.
Uma das passagens que apontam para a limitação em conjunto dos pre-
tendentes – que querem manipular e acabam, ironicamente, manipulados – é a da
agressão de Antínoo ao Odisseu-mendigo, no Canto 17, já citada aqui. Os demais
cortejadores, ao o repreenderem, afirmando que aquele não foi um belo ato – o
pedinte poderia ser talvez “um deus, do céu” (v. 484) –, acabam fazendo men-
ção, inadvertidamente, ao fato de que as divindades “se assemelham a estran-
geiros de outras terras” (v. 485), para observar “a soberba dos homens e o bom
governo” (v. 487). Eles tocam, assim, no tema fundamental do disfarce: Odisseu
não é um deus disfarçado, mas o tipo de transformação que sofre depende da
intervenção sobrenatural.202 O passo é interessante porque, além de mostrar a já
citada possibilidade de cisão entre esses jovens que pretendem Penélope, apon-
ta também para a insistência num comportamento violento mesmo diante das
próprias suspeitas de que ele seja alvo da vigilância divina. Não por acaso, diante
de nova agressão, no Canto 18, os mesmos pretendentes desejam que antes o
mendigo “tivesse morrido em suas errâncias” (v. 401), para que não perturbasse o
banquete.203 Mais eloquente ainda é a fala dos jovens que vem logo após a vitória
de Odisseu sobre o mendigo rival, Iro. Odisseu se compraz com o modo como os
insensatos pretendentes chamam para si a própria destruição, ao desejarem ao
vencedor do combate que tudo obtivesse de Zeus (Od. 18, 112-117). Como disse
Sheila Murnaghan, para ouvintes e leitores a questão entre Odisseu e os preten-
dentes torna-se a questão “de quem está no controle do sentido de suas próprias
palavras, de quem está no controle das ironias que permeiam os diálogos”.204

201 Melantheús aparece apenas em Od. 17, 212; 20, 255; 21, 176; e 22, 152 e 159. Como gera
menos confusão com “Melanto” do que “Melântio”, preferi adotar a forma “Melanteu”. Sobre
esse ponto, ver artigo de M. Nagler, “Penelope’s male hand: gender and violence in the Odys-
sey”, Colby quarterly 29/3 (1993): 241-257, p. 256-257. É possível também associar “Dólio” ao
termo doûlos, escravo; há um Dólio citado também nos Cantos 4 e 24, servo de Laertes, e que
combate, ele e seus seis filhos, junto com Odisseu contra os familiares dos pretendentes (Od.
24, 497), mas não fica claro se este Dólio é outro, ou o pai de Melanto e Melanteu.
202 O passo é discutido por S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 12.
203 Essa inconstância é comentada por S. Murnaghan, Disguise and recognition in the
Odyssey, p. 66.
204 Ver S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 83. Sobre a fala citada, ver p. 84 e 85.

134
Veja-se, a título de conclusão, a derradeira intervenção de Antínoo no
poema, em que mais uma vez o “falar grande” dos pretendentes – mega eipeîn,
conforme diz Filécio a Ctesipo no Canto 22 (v. 288) –205 vem carregado de ironia.
O pretenso saber vem expresso pelo emprego de um paradigma em que men-
ciona a punição sofrida pelo centauro Eurítion (e à qual estaria sujeito o pedinte
se insistisse em armar o arco): ao tentar, bêbado, violentar a noiva de Pirítoo,
teve orelhas e narinas cortadas (Od. 21, 288-310). A ausência de siso que, junto
com suas ruinosas consequências, Antínoo quer destacar para o mendigo, atra-
vés do exemplo do centauro, aplica-se claramente a ele próprio. O relevo que o
líder dos pretendentes dá à ideia de áte (“erro”, “ruína”, “perdição”) nesse passo
– empregando uma vez o próprio substantivo (v. 302), três vezes o verbo aáo (v.
296, 297 e 301) e ainda o adjetivo aesíphron (v. 302) –, imaginando que a vítima
é o seu interlocutor, tem o efeito de reforçar a cegueira de quem fala. Para dar
carga dramática ainda maior ao discurso, Homero faz com que Antínoo atribua
à bebedeira a insensatez do pedinte (como já o fizera Eurímaco em Od. 18, 391),
quando sabemos que Odisseu, exemplo de autocontrole, usou precisamente
o excesso de vinho para derrotar o Ciclope, e que o próprio Antínoo morrerá
levando uma taça de vinho à boca. Portanto, o descontrole etílico é marca da
loucura do pretendente – que seu discurso cego apena ratifica. O exemplo esco-
lhido por Antínoo fala de uma transgressão violenta às regras de hospitalidade,
exatamente o que ele pratica ao cortejar indevidamente Penélope. Como se não
bastasse, ele ainda descreve, como punição, uma mutilação que nos faz ime-
diatamente lembrar aquela de que será vítima o servo Melanteu (perdendo não
apenas orelhas e narinas, mas a genitália, os pés e as mãos; Od. 22, 474-477).206
É interessante notar que essa absoluta cegueira será assinalada pelo
narrador no momento da morte de Antínoo, no início do Canto 22. Primeiramente,
temos a fala de Odisseu, que, desfazendo-se dos andrajos e despejando as setas
à sua frente, afirma que o “desafio ruinoso” (áethlos aáatos, v. 5) chega ao seu
termo. Ele aqui está claramente retomando as palavras do pretendente no Canto
21, quando este dissera que a prova do arco seria um “desafio ruinoso” para os
pretendentes (v. 91). O sentido de aáatos é debatido pelos estudiosos; Stanford

205 Filécio, nessa passagem, devolve com a morte o “presente de hospitalidade” que
Ctesipo dirigira ao Odisseu-mendigo (um casco de boi, Od. 20, 296).
206 Para um quadro útil das inversões, ver M. Nagler, “Penelope’s male hand: gender and
violence in the Odyssey”, p. 244. Ver também P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 199-200.

135
resume bem as duas alternativas: “(...) deve-se presumir uma conexão com áte: o
primeiro a- pode ser privativo (nesse caso tendo o termo o sentido de ‘sem dano’)
ou intensivo (dando o sentido de ‘muito destrutivo’)”. Ele termina por seguir o es-
coliasta e Eustácio, favoráveis à segunda interpretação.207 No dicionário de Georg
Autenrieth, registra-se a mesma dúvida, e o pendor pelo valor intensivo: aáatos
poderia ser “inviolável” (no sentido de “certeiro” ou “decisivo”)208 ou, mais prova-
velmente, “danoso”. Sigo aqui a maioria, e também Irene de Jong, que traduz o
adjetivo por “prejudicial” (demaging). Mas o mais importante é notar, como faz
a helenista holandesa, que a mesma expressão, reutilizada por Odisseu, ganha
um sentido diferente daquele proposto por Antínoo: o pretendente via o desafio
como algo ruinoso apenas na medida em que poderia resultar em fracasso no mo-
mento de se armar o arco; Odisseu, no entanto, mostra – não sem uma boa dose
de sarcasmo – que ele é ruinoso porque representa a morte dos invasores de seu
palácio.209 Mais do que isso: depois do relato do centauro, no qual, como vimos,
a áte tinha papel central, nada mais natural de que fosse indiretamente referida,
por Odisseu, a áte de Antínoo – ele sim o consumidor de vinho, que justamente
morre levando uma taça à boca. Repare-se como sua cegueira – enquanto descui-
do – vem, logo em seguida, destacada pelo narrador, que chama atenção para o
fato de que o líder dos pretendentes morre sem minimamente suspeitar do que
estava para se passar (Od. 22, 11-14).
É uma conclusão adequada a uma arrogante vítima da áte, que, a bem
da verdade, estende-se para os demais cortejadores, que mal suspeitam o
que está por acontecer: quatro versos trazem logo depois a fala conjunta dos
demais pretendentes (v. 27-30), em que censuram o mendigo por ter matado
por acidente Antínoo e predizem sua destruição certa. Em seguida, no entanto,
temos mais uma intervenção enfática do narrador, sublinhando como eram
“tolos” (népioi) por “não perceberem” (ouk enóesan) que era a destruição deles
que estava selada (v. 31-33). O termo “destruição” (ólethros) aparece aí quatro
vezes num intervalo de dezesseis versos, ora na boca dos cortejadores (v. 28),
ora na de Odisseu (v. 41), ora na voz narrativa (v. 33 e 43), num momento em que,

207 Ver W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 360.


208 D. Monro, em seu comentário, prefere este sentido. Ver D. Monro, Homer’s Odyssey,
vol. 2, p. 203-204.
209 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 509 e 526, e W. Stanford,
The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 372.

136
segundo de Jong, ocorre “o clímax de uma série de interpretações equivocadas
por parte dos pretendentes das ações do ‘mendigo’”.
Até o último momento, portanto, Homero insiste em destacar a total au-
sência de percepção (ou uma percepção limitada e involuntária) por parte des-
ses convidados indesejados – pretensamente espertos e cheios de lábia –, de tal
modo que até o fim sentimos como justas as suas mortes, ainda que despertem
em nós comiseração. Em nenhum momento duvidamos de que eles devem mor-
rer, mas sua insensatez tem algo de muito humano, uma humanidade que não
serve aqui para desculpá-los, mas antes como alerta – com seu fim terrível – para
os excessos dos que querem se alçar além da sua condição. O riso e o prazer sem
pausa dos pretendentes rivalizavam, de certa maneira, com o universo divino.

137
4. A ARte de PenélOPe

Um estudioso norte-americano resumiu assim a participação de Penélope


na Odisseia:

Homero define Penélope para nós numa série de pares repetidamente enfati-
zados: suas principais qualidades são a beleza e a prudência. Seus mais profun-
dos e dominantes sentimentos são o desejo de que o esposo volte e a repulsa
por um segundo casamento. Suas principais atividades são chorar e dormir.210

A descrição não deixa de ser precisa, mas sabemos que ela é incapaz de dar
conta da caracterização da esposa de Odisseu no poema. Na realidade, de todos
os principais personagens homéricos – masculinos e femininos –, talvez nenhum
resista tanto a uma simples apresentação quanto Penélope, vista por muitos como
a mais enigmática criação da épica grega, ou, em termos mais restritos, “a mais
completa e a mais complexa encarnação do feminino na Odisseia”.211 Aflita com a
ausência sem fim do marido, de cujo retorno aparentemente descrê, assediada por
jovens e violentos pretendentes, que almejam seu leito e o trono, e às voltas com
um filho que ainda não se afirmou como homem, Penélope poderia ser apenas a
mulher frágil e fiel, que sofre e aguarda o desdobramento dos acontecimentos. Ho-
mero, no entanto, faz dela, ao mesmo tempo, esse modelo grego de comporta-
mento feminino e uma figura perspicaz e ativa, que contribui para o desfecho da
ação, chegando a rivalizar com o próprio esposo. É essa duplicidade, essa combi-
nação de passividade típica com uma atividade sinuosa e decisiva, que lhe confere
uma densidade talvez até mesmo superior à que encontramos na Clitemnestra de
Ésquilo ou na Medeia de Eurípides, tipos igualmente marcantes e profundos, mas
nos quais o traço propriamente feminino recua em favor de uma caracterização
mais homogênea. Penélope, por sua vez, parece alternar entre uma e outra posição,
ora débil, ora senhora de si, ora vítima, ora condutora do destino, de tal forma que
não conseguimos apreender, em definitivo, quem ela de fato é.

210 Frederick Combellack, “Three Odyssean problems”, California studies in Classical Antiq-
uity 6 (1973): 17-46, p. 32.
211 Suzanne Saïd, Homer and the Odyssey [1998, translated by Ruth Webb]. Oxford: Oxford
University Press, 2011, p. 276. O livro de Saïd traz uma abordagem extensa das mulheres – e
sobretudo de Penélope – no Capítulo 9 (p. 258-314).

138
Essa indecisão é um dos mais brilhantes efeitos criados pelo poema.
Não que a questão, aqui, seja a mesma do Dom Casmurro: no romance de Ma-
chado de Assis, Capitu também é uma figura dúbia, mas essa dubiedade se
atrela ao fato de não sabermos se ela traiu ou não o marido, Bentinho. Na
Odisseia, não há dúvida: Penélope não trai Odisseu. O segredo desse persona-
gem reside antes no modo hesitante pelo qual a vemos, em certos momentos,
como refém dos acontecimentos, e em outros como aquela que os domina
por completo. Esses dois comportamentos parecem incompatíveis entre si, e
no entanto o poema os combina de tal maneira que Penélope não surge, para
nós, como figura incongruente ou esquizofrênica, mas sim como uma mulher
complexa e rica.

» A mulher circunspecta

Quando ouvimos falar dela pela primeira vez, é como mãe que surge,
conforme diz Atena-Mentes a Telêmaco:

Os deuses não impuseram a ti linhagem anônima


no porvir, já que Penélope deste jeito te gerou!
(Od. 1, 222-223)

Numa cena seguinte, ela desce de seu quarto, e a ênfase agora é sobre a
esposa recatada, cercada por servas e com véu no rosto. Para quem sofre terri-
velmente com a ausência do marido, o canto que narra a volta dos guerreiros de
Troia é insuportável:

E do andar de cima ouviu seu canto divinal


a que era filha de Icário, a circunspecta Penélope,
e pela elevada escada desceu de seu aposento,
não sozinha, pois com ela iam também duas servas.
E depois de aos pretendentes chegar, diva das mulheres,
parou junto da pilastra do teto bem-construído,
segurando em frente ao rosto o seu luminoso véu
(e de cada lado seu se pôs, devota, uma serva).
E então, lágrimas vertendo, ao divino aedo disse:

139
“Fêmio, sabes muitas outras encantações de mortais,
feitos de homens e de deuses, que os aedos glorificam.
Canta-lhes, enquanto sentas, um desses, e que eles bebam
em silêncio o vinho. Para, porém, com esse cantar
odioso, que no meu peito ao caro coração sempre
corrói, já que atingiu mais a mim o luto ilatente.
Pois tal é essa cabeça que saudosa sempre lembro,
do homem cuja glória é vasta na Hélade e em meia Argos”.
(Od. 1, 328-344)

O adjetivo típico períphron – que aparece 50 vezes junto a seu nome no


poema e traduzimos por “circunspecta” – pode se associar em parte a essa ideia
de recato e reserva, mas também se associa, principalmente, ao plano da pru-
dência, e por si só já serve para nuançar uma percepção unívoca de Penélope.212
O elemento sexual, aparecendo na sequência – depois da reprimenda do filho
–, é fundamental para pintar com mais tensão esse quadro inicial; a mulher que
chora não apenas reflete, mas também atrai:

Chegando ao andar de cima com as mulheres suas servas,


pôs-se a chorar Odisseu, caro esposo, até que doce
sono lançou-lhe nas pálpebras a claros-olhos Atena.
E os pretendentes – ruidosos pelo palácio sombrio –
oraram todos então por se inclinar em seu leito.
(Od. 1, 362-366)

Na circunstância em que se encontra – com o marido ausente, um filho


ainda imaturo e uma centena de jovens a cobiçá-la –, a indecisão apresenta-
se, inicialmente, como o regime: Penélope vive na fronteira entre casamento,
viuvez e novas bodas, situação que perpetua com a esperança de que se resolva

212 No original, o perí- de períphron tem ao que tudo indica um sentido intensivo (“muito”).
“Circunspecta”, reproduzindo a ideia de “em volta” indicada primordialmente por perí em
grego, não deixa, no entanto, de destacar a noção de “conhecimento”. Richard Cunliffe (A
lexicon of the Homeric dialect. Norman: University of Oklahoma Press, 1926) propõe como
tradução para o termo “com grande bom senso”, “sábio”, “prudente”. O adjetivo qualifica
ainda na Odisseia Arete (Od. 11, 345) e Euricleia (Od. 19, 357). Ele aparece uma vez na Ilíada (Il.
5, 412), e no Escudo de Héracles, de Hesíodo, é aplicado a Hefesto (v. 297 e 313).

140
favoravelmente. Seu ânimo está dividido (díkha thumós, Od. 16, 73; e 19, 524) e
podemos falar, como Norman Austin, num “conflito mental”, de quem ora “está
convencida de que o marido morreu”, ora “recusa-se a aceitar essa conclusão”.213
Sendo assim, Telêmaco é capaz de afirmar – já vimos – que “ela nem nega o
odioso casamento nem consegue/ tomar decisão” (Od. 1, 249-250). Uma saída
imediata, segundo Atena-Mentes, seria voltar para a casa paterna, para que a
partir daí se procedesse a uma corte adequada:

(...) se acaso o ânimo a compele a se casar,


que retorne para o grande palácio do pai capaz,
pois casamento lhe vão preparar e arranjar dotes
inúmeros (...).
(Od. 1, 275-278)

Tanto Antínoo quanto Eurímaco pedem, efetivamente, para que o filho


mande a mãe para Icário, para que se providencie o casamento (Od. 2, 113-114
e 194-196) – a despeito de Telêmaco dizer que os pretendentes preferem não
trabalhar com essa possibilidade (Od. 2, 51-53). Essa resolução, no entanto,
deveria partir da própria Penélope, como dá a entender, no mesmo Canto 2, o
jovem (v. 130-137). Com a autonomia que a posição de senhora do lar (déspoina,
Od. 14, 127; 15, 374 e 377; 19, 83; e 23, 2) lhe confere, Penélope aposta a princípio
na espera, sem abrir mão completamente de um eventual novo casamento, so-
cialmente necessário e justificável no caso da morte de Odisseu – ainda que, em
havendo a escolha de um pretendente, ela possa ser alvo da censura popular.214
Vejam-se estas palavras ao Odisseu-mendigo no Canto 19:

213 N. Austin, Archery at the dark of the moon: poetic problems in Homer’s Odyssey. Berkeley:
University of California Press, 1975, p. 233-234.
214 Para uma discussão da situação de Penélope, com remissão ao procedimento padrão,
nesses casos, durante o Período Clássico, ver M. Katz, Penelope’s renown, p. 35-39. O fato de
Atena ter levantado, na conversa com Telêmaco, a possibilidade de ele mandar a mãe de vol-
ta para a casa do pai (Od. 1, 292) associa-se à sua eventual condição de filho maduro e eman-
cipado, e comprovadamente sem pai. Seu amadurecimento, efetivamente, vai representar
uma pressão a mais para Penélope: “Está claro que a presença continuada de Penélope na
casa é incompatível com o acesso completo de Telêmaco à idade adulta” (M. Katz, Penelope’s
renown, p. 35). Outro trabalho esclarecedor é o artigo de W. Lacey, “Homeric hédna and
Penelope’s kúrios”, The Journal of Hellenic studies 86 (1966): 55-68, especialmente p. 62-63.

141
ou fico junto do filho e firme tudo vigio
(minhas posses, as escravas e a grande e elevada casa,
em respeito à falação do povo e à cama do esposo),
ou já vou seguindo junto com quem – melhor dos acaios –
me corteja no palácio, dandos dotes incontáveis.
(Od. 19, 525-529)

Portanto, “adiar” as bodas (verbo diatríbo; Od. 2, 204) surge como a única
saída para que se mantenha aberta a possibilidade de retorno – sem descartar
a nova união –, apesar da tensão, do desgaste e do consumo dos bens. Nesse
sentido, trata-se de uma escolha deliberada que, paradoxalmente, baseia-se na
ausência de escolha.
A essa indecisão central para a ação do poema vem se juntar uma hesi-
tação entre esperança e desespero. Seu ato é de quem acredita ainda num des-
fecho positivo, mas de maneira geral a percebemos como uma mulher que não
crê mais no retorno do marido – como, aliás, acontece com Telêmaco e Eumeu
–, levando sua descrença às últimas consequências na parte final da narrativa
(e dando a ela um novo sentido), como veremos adiante. Repare-se no que diz
Telêmaco logo no Canto 1, chamando atenção para o movimento que a mãe faz
em busca de notícias de Odisseu:

Logo, a mensagens não ouço mais (de onde quer que elas venham)
nem ligo pra qualquer profecia que minha mãe
a um profeta pergunte, após chamá-lo ao palácio.
(Od. 1, 414-416)

Eumeu, no Canto 14, diz ao mendigo que Penélope, em relação aos via-
jantes que chegam a Ítaca, “amável recebe e questiona cada coisa” (v. 128), mais
uma vez na expectativa de conseguir informações sobre o paradeiro e a possível
volta do esposo. A passagem dos anos, combinada com as mentiras contadas
por esses forasteiros, que, necessitados de comida, falam o que a rainha quer
ouvir (v. 124-125), serve no entanto para tirar de Penélope a esperança, e por
isso a ouvimos falar que o marido está morto (Od. 4, 724 e 813). Ainda que no
Canto 17 sua esperança pareça aumentar, quando o filho lhe conta que o pai está
vivo (v. 108-149) e ela ouve as palavras do vidente Teoclímeno (152-165) – de

142
que Odisseu já está em sua pátria –, a rainha persiste em sua postura cautelosa
e desconfiada, podendo mesmo desejar, com a imaginada morte do esposo, a
própria morte (Od. 18, 201-205; e 20, 61-65).
Do mesmo modo como se chocam esperança e desesperança, também
o fato de Penélope ser a única responsável por decidir ou não por novas bodas
contrasta com uma passividade acentuada sua, que a deixa numa posição quase
marginal. Sabemos que Telêmaco esconde da mãe a viagem a Pilos e Espar-
ta, “pra que chorando ela não desfigure o belo rosto” (Od. 2, 376). No Canto 4,
percebemos o acerto da decisão: ao saber da partida do filho e do plano dos
pretendentes de emboscá-lo, Penélope fica a princípio sem voz (v. 704-705) e é
tomada por “dor espizinhadora” (ákhos thumophthóron, v. 716), sendo depois
criticada por Euricleia por querer incomodar o velho Laertes (v. 735-755).215 Sem
se alimentar (ásitos, v. 788), ela evidencia não ter conhecimento da transforma-
ção por que passa o filho (v. 816-817), ainda que, como ele, dependa também da
intervenção de Atena, que a reconforta através de um sonho no qual garante
que Telêmaco recebe a proteção dela mesma, Atena (v. 824-828). O interessan-
te é notar que, nessa aparição noturna, o fantasma de sua irmã Iftima nega-se
a dizer – diante do pedido da sofrida Penélope – se Odisseu está vivo ou morto
(v. 835-836), postura que, como a de Telêmaco, parece pôr a esposa à margem
do desenvolvimento central da ação, como se fosse mera espectadora, fadada
a chorar, dormir e pouco ou nada saber.
Quando ela reaparece no Canto 16, mostrando-se mais uma vez aos pre-
tendentes e dirigindo-lhes pela primeira vez a palavra (na censura a Antínoo),
é ainda em prantos que a vemos (409-451), de tal modo que mais à frente ela
pode dizer a Telêmaco que se deita num leito “de lamento” (stonóessa, Od. 17,
102). Odisseu já está em Ítaca, e essa informação – franqueada no Canto 15 ao
filho – é estrategicamente omitida por Telêmaco no momento em que, como
vimos, conta à mãe, apenas, que o pai vive. Penélope, assim, é reafirmada nessa
posição feminina, quase infantil, de quem é privada do que de fato se passa.
As referências a ela no Canto 11, feitas a Odisseu pela mãe do herói, Anti-
cleia, e por Agamênon, insistem no quadro de uma mulher chorosa (v. 181-183)
– mas resistente – e da qual se devem ocultar os planos. A fala do Atrida, no en-
tanto, complica o que poderia ser uma simples apresentação dessa passividade,

215 Sobre esse seu estado de desespero, ver S. Saïd, Homer and the Odyssey, p. 281-282.

143
porque se indica, por um lado, que Penélope deve permanecer à margem das
decisões, por outro também chama atenção para seu poder de discernimento,
de mulher circunspecta:

Por isso [o ardil de Clitemnestra] também tu nunca sejas – com mulher – gentil:
não lhe contes toda a história de que tens conhecimento,
mas fala uma parte e fique a outra ainda escondida...
Mas tua morte, Odisseu, não virá da tua mulher,
pois é bastante prudente (líen pinuté) e tem bons planos (médea) no espírito
aquela filha de Icário, a circunspecta Penélope.
(...)
Mas minha consorte nem mesmo deixou se fartarem
do filho os meus olhos: ela antes me matou, a mim!
Vou te dizer outra coisa e tu mete em teu espírito:
em segredo – e não às claras – para a cara terra pátria
leva a nau, pois não há mais confiança nas mulheres.
(Od. 11, 441-446 e 452-456)

Por essas palavras percebemos como a esposa de Odisseu é uma figura


ambígua.216 A oposição geral a Clitemnestra não impede que sintamos alguma
similaridade latente. Como apontou Marylin Katz, ao discutir o passo citado, “o
elogio de Penélope e as garantias de sua fidelidade vêm enquadrados por adver-
tências e inseridos num quadro geral de desconfiança e traição”.217 Esse “outro
lado” da história envolvendo Egisto e Orestes, ao fazer incidir – como vimos no
Capítulo 1 – luz negativa também sobre Clitemnestra, traz repercussões novas
para a história da Odisseia. Como diz ainda a mesma Marylin Katz (que chama
atenção para o uso de termos semelhantes para a caracterização tanto de Clite-
mnestra quanto de Penélope, em Od. 3, 266; e 24, 194):

216 Douglas Stewart sugere, de modo divertido, um possível “sentido obsceno” no verso
445, já que o termo que traduzimos por “planos” (médea) é idêntico, em grego, ao utilizado
para a genitália. Ver D. Stewart, The disguised guest: rank, role, and identity in the Odyssey.
Cranbury: Associated University Press, 1976, p. 60.
217 Ver M. Katz, Penelope’s renown, p. 52. Na mesma página, como costuma fazer ao lon-
go de todo o livro, Katz discute as suspeitas dos analistas em relação à lógica desses versos
homéricos.

144
O mito da casa de Atreu foi agora expandido para servir de paradigma para um
possível desfecho negativo da situação de Penélope, e a expansão é formulada
em termos que tornam possível acomodar Penélope dentro desses limites: ela,
assim como Clitemnestra, é uma mulher de “bom espírito” (agathaì phrénes);
ela está agora, como antes estava Clitemnestra, sem supervisão masculina.218

Portanto, ao mesmo tempo que a vemos sofrendo pela ausência do marido


e peripécias do filho, alheia aos planos masculinos e entregue ao choro e ao sono
– “de dia meu prazer é me lamentar, gemendo”, diz ela ao Odisseu-mendigo (Od.
19, 513) –, a vemos também como alguém capaz de empregar a inteligência para
dirigir as ações e reafirmar sua condição de senhora do lar, responsável por decidir
o próprio futuro. Na Odisseia, como se sabe, dois estratagemas pintam de manei-
ra inequívoca esse seu lado esperto, astuto e perigoso, lado que, combinado ao
comportamento feminino tradicional, faz dela uma figura ambivalente e enigmá-
tica. O primeiro estratagema é o da mortalha: ele é anterior à ação do poema, mas
vem rememorado três vezes na narrativa (Cantos 2, 19 e 24). O segundo, mais
problemático, é o desafio do arco, mencionado pela primeira vez no Canto 19 e
fundamental para decidir a vitória de Odisseu sobre os pretendentes. Juntos, eles
nos mostram que a perspicácia não é uma característica que Penélope adquire
apenas na parte final do poema, como se, à maneira do filho, ela se transformasse
e em certo sentido “amadurecesse” ao longo da narrativa.219 Na realidade, o que
podemos depreender dessas ações é que a medida estratégica faz parte do seu
comportamento diante da situação adversa, e que ela lança mão desse recurso
para, assim como o marido, tentar vencer os pretendentes pela astúcia.
A primeira astúcia consistia em propor aos pretendentes que esperassem
que concluísse a mortalha de Laertes, para aí sim tomar uma decisão: de dia ela
tecia a veste em seu tear, mas à noite secretamente a desfazia. O ardil estendeu-
-se por três anos e foi descoberto porque uma das escravas delatou a senhora,
que – pega em flagrante – se viu obrigada a terminar o trabalho “contra a vontade,
forçada”. Antes e depois de Antínoo relatar o acontecido, no Canto 2 (v. 94-110),

218 M. Katz, Penelope’s renown, p. 45 e 61. Ambas foram deixadas aos cuidados, respectiva-
mente, de Mêntor (Od. 2, 226-227) e um cantor (Od. 3, 267-268). Ver também Od. 15, 19-26,
quando Atena, para exortar Telêmaco, fala que a mãe pensa já em outro casamento.
219 Não concordo com a afirmação de Marylin Katz de que, até o reconhecimento entre
Telêmaco e Odisseu, a conduta de Penélope é “inteiramente unidimensional”, e que a ambi-
guidade só se estabelece a partir do Canto 18. Ver M. Katz, Penelope’s renown, p. 119.

145
ele põe em destaque a esperteza de Penélope: não apenas diz que se trata de um
“ardil” (dólos, v. 93) dela, que assim “frauda” (atémbei, v. 90) os seus cortejadores,
mas também chama atenção para a ligação da mulher de Odisseu com Atena, que
lhe concedeu ser versada em “tão belos trabalhos” (érga perikalléa), “bravo espíri-
to” (phrénas esthlás) e “ganhos” (kérdea), tal como nenhuma outra, o que lhe trará
“grande fama” (méga kléos, v. 125), ainda que seja – da perspectiva de Antínoo –
um comportamento ruinoso, indevido, não enaísimon (v. 116-122).
Quando é a vez de Penélope rememorar a história, para o Odisseu-men-
digo, no Canto 19 (v. 137-156), mais uma vez o ardil é associado à reflexão sobre
sua glória (kléos, v. 108 e 128), mas Atena não é referida: segundo Penélope, “um
nume inspirou” a ideia (enépneuse daímon, v. 138), e “tecer o manto” (phâros hu-
phaínein, v. 138-139) equivale a “tramar ardis” (dólous tolupeúo, v. 137). A conclu-
são seguinte nos prepara indiretamente para a proposição do desafio do arco,
ao mesmo tempo que indica o comportamento ardiloso característico, de quem
está sempre às voltas com uma saída inteligente para as dificuldades em que se
encontra: “E agora fugir não posso ao casamento, nem outra/ astúcia (mêtin, v.
158) mais encontrar”. O relato de Anfimedonte, um dos pretendentes mortos,
no Hades (Od. 24, 128-146),220 traz como informação nova a indicação de que a
chegada de Odisseu ocorreu logo depois de Penélope ter concluído a mortalha
(v. 147-149), dando assim mais precisão cronológica ao que aparentava ser um
fato vago do passado e reforçando a premência de uma solução esperta, que
contenha a ansiedade e violência dos pretendentes.221
O tear, nesse contexto, tem uma simbologia importante, que reafirma a
condição dúbia de Penélope: é o instrumento de trabalho por excelência da mulher
grega antiga, indicando assim o âmbito doméstico a que está confinada – lembre-
-se de Agamênon falando de Criseida já velha em sua casa, fiando, no Canto 1 da
Iíada (v. 31), de Arete no Canto 6 da Odisseia (v. 53 e 306) e da própria Penélope
em outras passagens (Od. 1, 356-358 = 21, 350-352; 15, 516-517; e 17, 96-97). Mas o
tear evoca ainda o poder da trama, da fabricação, do movimento astucioso, já que
em grego se usa, como vimos, a metáfora “tecer ardis”, não por acaso presente

220 Od. 2, 94-107 = 19, 139-152 = 24, 129-142. As três versões têm variações na abertura
e na conclusão. Para uma comparação, ver I. de Jong, A narratological commentary on the
Odyssey, p. 50-51.
221 Frederick Combellack insiste nessa questão cronológica, propondo que o intervalo entre
a fraude descoberta e a chegada de Odisseu tenha sido de aproximadamente um mês. Ver
seu “Three Odyssean problems”, p. 34.

146
também no Canto 13 da Odisseia, no encontro entre Odisseu e Atena, quando se
repete a expressão “urdir uma astúcia” (huphaínein mêtin, v. 303 e 386).222
Assim, com essa estratégia, Penélope simultaneamente apresenta – ao
menos por um tempo – para os pretendentes a visão da mulher passiva, sob
controle, e da mulher esperta, que age e premedita. Há, em outros termos, um
jogo aí entre aparência e essência, entre a expectativa que se cria e a real inten-
ção que se oculta – motivo central que atravessa todo o poema e, de diferentes
formas, seus personagens principais. Portanto, a trama da mortalha nos revela
que adiamento e indecisão, longe de indicarem falta de recursos, estão associa-
dos a um plano, e que a mulher aparentemente incapaz é dotada de uma esper-
teza afim à do marido. Repare-se como essa ideia vem sublinhada nos versos di-
tos por Antínoo imediatamente antes de discorrer sobre o truque de Penélope:

a todos dá esperança, e a cada um faz promessas


(enviando-lhes mensagens), mas sua intenção é outra (nóos dé hoi álla menoinâi).
(Od. 2, 91-92)

Essas linhas vêm depois repetidas por Atena, no seu diálogo com Odisseu
no Canto 13 (v. 379-381), e o hemistíquio final do verso 92 – “mas sua intenção
é outra” – é dito pelo narrador no Canto 18 (v. 283, agora com o verbo no pas-
sado), ao falar da alegria de Odisseu em ver a mulher arrancando presentes dos
pretendentes sem que eles suspeitassem de seus propósitos. É importante não
só notar o contraste entre o que ela faz e o que intenciona, mas a presença, no
original grego, das ideias de “mente” (nóos) e “furor” (ménos, contida no verbo
de mesma raiz menoináo, “ansiar”), que aproximam Penélope do universo mas-
culino de Odisseu e Telêmaco.223

222 Ver L. Slatkin, “Composition by theme and the mêtis of the Odyssey”, em Seth Schein
(ed.), Reading the Odyssey: selected interpretive essays. Princeton: Princeton University Press,
1996, p. 234-236.
223 Para alguns a frase indica uma operação menos mental e mais passional (algo como “a
mente deseja com intensidade”). Ver Calvin Byre, “Penelope and the suitors before Odys-
seus: Odyssey 18, 158-303”, The American journal of philology 109/2 (1988): 159-173, p. 166
e 171-172. É o que defende Uvo Hölscher, para quem não se pode ler aí nenhuma intenção
secreta; ver seu em “Penelope and the suitors” (translated by Simon Richter) em S. Schein
(ed.), Reading the Odyssey: selected interpretive essays, p. 135-136. No fim das contas a nuan-
ce não altera, me parece, o sentido geral; ver também o que diz M. Katz, Penelope’s renown,
p. 90. Roberto Nickel defende, de modo persuasivo, que as três passagens ajudam a manter

147
» O encontro com o mendigo

Antes de passarmos para a discussão do segundo estratagema – o desafio


do arco –, no qual o dado da intenção oculta é mais complexo, vejamos rapida-
mente a participação de Penélope entre os Cantos 16 e 19. Já notamos a conti-
nuidade do comportamento choroso e em geral desesperançado. Com a chegada
do Odisseu-mendigo, contudo, Homero passa a explorar uma espécie de ironia
positiva nas palavras de Penélope, de tal modo que ela pressente a realidade so-
bre a volta do marido e a destruição dos pretendentes. Mais uma vez, diante da
passividade e falta de conhecimento em relação ao sentido de algumas de suas
palavras, percebemos a mulher capacitada a iludir e falar com propriedade. Veja-
-se, a esse respeito, o que diz ao saber da agressão de Antínoo ao pedinte – “Ah,
que assim então te atinja Apolo do célebre arco” (Od. 17, 494) –, ou sua disposição
em interrogar o misterioso estrangeiro, que, segundo ela mesma diz, lhe parece
“muito viajado” (poluplágktoi, v. 511). A essa afirmação involuntariamente verda-
deira vem se juntar outra, de que o forasteiro não é “insensato” (áphron, v. 586),
num jogo que a contrapõe a Odisseu; este, com domínio total da situação, pede a
Eumeu que a entrevista com a senhora ocorra apenas ao pôr do sol (para evitar a
presença dos pretendentes), mas garante que falará sem erro: “pois sei bem sobre
ele [Odisseu]: a mesma aflição nós enfrentamos” (v. 563)!224
Essa situação não rebaixa Penélope, porque, como já se notou, sua
qualidade de “circunspecta” nos permite enxergar uma mulher sinuosa,
manipuladora como o marido. No Canto 18, a aproximação entre o casal vai
se tornando mais evidente, ainda que a primeira conversa de fato ocorra só
no Canto 19. Assim como acontece com Odisseu, é por uma deliberação de
Atena que ela decide se mostrar aos pretendentes para deles arrebanhar mais
dádivas (v. 158-162). E, assim como acontece com Odisseu, é por intervenção

a incerteza sobre Penélope (internamente e também para nós, leitores e ouvintes) e, que, no
caso de Atena, não se pode dizer que ela garante para Odisseu a lealdade da esposa; ver seu
“Athene, Penelope and the vengeance plot against the suitors”, Quaderni urbinati de cultura
classica 96/3 (2010): 29-54, especialmente p. 34-40. O fato, no entanto, de ele se alegrar com
a obtenção de dádivas por parte da esposa indica uma percepção positiva de Penélope e an-
tecipa a aversão que ela manifestará para o mendigo em relação às novas bodas.
224 William Stanford chama atenção para um possível jogo aí com o adjetivo homén, que
pode ser entendido, em grego, como “o mesmo”/“idêntico” ou “similar”. Ver W. Stanford,
Ambiguity in Greek literature, p. 107.

148
de Atena que ela sofre uma transformação física (v. 187-196); o resultado é um
aumento do desejo dos jovens cortejadores (v. 212-213), ainda que Penélope
reafirme seu recato (aidéomai, “tenho vergonha”, v. 184). Interessante, em toda
a passagem, é a menção a seu riso no momento em que comunica a Eurínome
o desejo de aparecer novamente perante os homens (v. 163). Embora de difícil
interpretação – ajudando assim a compor o caráter indecifrável de Penélope –,
sigo, nesse ponto, Daniel Levine: o riso “inútil” ou “sem propósito” (akhreîon),
longe de marcar incerteza ou perplexidade, parece manifestar confiança e
é uma reação apropriada diante da perspectiva de enganar, com sucesso, os
pretendentes.225 No conjunto maior dessa parte da narrativa, ele vem se juntar
ao riso de Penélope diante do espirro auspicioso de Telêmaco no Canto 17 (v.
542); ao sorriso “sardônico” (sardánion) de Odisseu no Canto 20 (v. 301-302), ao
evitar o casco de boi arremessado por Ctesipo; e ainda ao riso de Telêmaco no
Canto 21 (v. 105). Mais uma vez, temos o espelhamento em relação à ação dos
pretendentes – também espertos, também dissimulados, e também risonhos
–, mas em chave positiva: no caso de Telêmaco, Penélope e Odisseu, essas
estratégias ligam-se a um fim justo, sancionado pela justiça de Zeus.226
Por fim, a reforçar a sintonia de Penélope e Odisseu – ambos astutos e
pacientes –, temos, ainda no Canto 18, a referência ao diálogo que teve com

225 Ver Daniel Levine, “Penelope’s laugh: Odyssey 18, 163”, The American journal of philology
104/2 (1983): 172-178, p. 174, 176 e 178; para ele, esse riso reforça o “caráter duplo” de Penélope,
porque não deixa de indicar, de certo modo, também sua castidade. O riso de Zeus ao decidir
enviar Pandora aos homens parece se aproximar desse de Penélope (Trabalhos e dias, v. 59),
assim como a “toalete” de Hera para enganar Zeus, no Canto 14 da Ilíada, guarda semelhanças
com o embelezamento de Penélope neste Canto 18 para seduzir os pretendentes (ver, no artigo,
p. 174-175). Quanto a akhreîon, parece-me que Calvin Byre está correto ao dizer que o advérbio
tem o sentido evidente de “sem alvo”, como se vê pela outra única ocorrência sua em Homero,
quando Tersites, “com dor, olhando sem propósito (akhreîon idón), enxugou as lágrimas” (Il. 2,
269); mas discordo da sua visão de que, na passagem em questão, ele indica a incapacidade
de ação de Penélope; ver C. Byre, “Penelope and the suitors before Odysseus: Odyssey 18, 158-
303”, p. 162-163. A interpretação para o termo de Jenny Clay (que concorda com a leitura geral
de Levine) é interessante: akhrêion significaria “de modo não característico” e, portanto, tanto
Penélope quanto Tersites estariam com comportamentos que destoam do seu habitual. Ver J.
Clay, “Homeric akhreîon”, The American journal of philology 105/1 (1984): 73-76.
226 Daniel Levine mostra como o sorriso de Odisseu em Od. 20, 301-302 vem se juntar
a outros dois, tendo a função de indicar, nessa parte da narrativa, sua “superioridade
confiante”, de “aposta no sucesso”; ver “Odysseus’ smiles: Odyssey 20, 301, 22, 371 e 23,
111”, Transactions of the American philological association 114 (1984): 1-9. Sobre o sentido de
sardánion, ver, no mesmo artigo, p. 4-5 e notas 11-14.

149
o esposo vinte anos atrás, no momento em que ele partia para Troia: Odisseu,
descrente de seu retorno da guerra, dissera à esposa que, ao ver a barba do
filho despontar (paîda geneiésanta), deveria arranjar novo casamento e deixar a
casa (gémasth’... teòn katà dôma lipoûsa); Penélope, ao recordar a conversa para
Eurímaco, diz que as palavras de outrora se cumpriam, e que ela portanto deveria
aguardar a noite (nûx éstai) do funesto casamento (stugeròs gámos; v. 257-273).
O episódio é fundamental para percebermos não apenas que, dramaticamente,
o amadurecimento de Telêmaco funciona como motivação importante para
a posterior proposição do desafio do arco, mas também que essa decisão,
de certo modo, está de acordo com a vontade de Odisseu: mais uma vez, é o
entendimento entre marido e mulher que vem sublinhado.227 Por outro lado,
o fato de Penélope se considerar “funesta” (ouloménes, v. 273) e privada da
felicidade por Zeus, entendendo que agora tudo se cumpre segundo as piores
previsões, reaviva em nós a percepção da desesperança e da expectativa sua de
uma total separação do marido.
É essa tensão – entre a mulher que nada sabe da volta de Odisseu e do
que se passa, acreditando-se fadada a “odioso casamento”, e a mulher que,
inversamente, parece pressenti-la de um modo oculto, encaminhando-se para
o reencontro com o esposo – que está no centro da discussão sobre os Cantos
18 e 19 e, mais especificamente, a respeito da proposta do desafio do arco. O
problema consiste em determinar se há ou não o reconhecimento do marido
por parte de Penélope.228 Que ela será excluída de um reconhecimento imediato
fica dito pelo narrador no Canto 13, logo que Odisseu acorda em Ítaca:

(...) Pois vertera névoa em volta


vibrante Atena, menina de Zeus, para que tornasse
o próprio [Odisseu] irreconhecível e lhe relatasse tudo,
e não o reconhecessem mulher, cidadãos e amigos

227 Sigo Uvo Hölscher, que vai contra aqueles que, como U. Wilamowitz e K. Reinhardt, pro-
põem que o diálogo é uma invenção de Penélope. Não concordo, no entanto, com sua ten-
tativa de desconsiderar uma possível esperteza por parte da mulher de Odisseu, nem com a
abordagem mais genética, preocupada em apontar como teria se dado a transformação dos
elementos do “conto popular” em “épica”; ver seu “Penelope and the suitors”, em S. Schein
(ed.), Reading the Odyssey: selected interpretive essays, p. 134-135.
228 Para um panorama das leituras propostas, ver Capítulo 4 (“What does Penelope want?
Books 18, 19”), p. 77-113, do livro de M. Katz, Penelope’s renown.

150
– até pagarem por toda presunção os pretendentes.
(Od. 13, 189-193)

Mais adiante, ele diz para o filho, depois de se revelar, que ninguém
deverá saber que Odisseu está em casa, nem Laertes, nem o porqueiro, nem
qualquer um dos servos, nem Penélope (Od. 16, 300-303). Essa exclusão soa a
princípio ilógica, porque coloca Penélope no mesmo plano de ignorância dos
jovens que a cobiçam, além de resultar na perda daquela que seria uma aliada
importante para a execução da vingança. Como afirma Sheila Murnaghan,

precisamente a pessoa cuja cooperação é a mais essencial para o sucesso de


Odisseu – Penélope – não fica inteirada da trama até que ela esteja concluída.
Tal como os pretendentes, ela faz parte de uma trama de cujo conhecimento
fica excluída.229

A mesma Murnaghan, no entanto, busca as motivações dramáticas


para essa opção. Uma primeira explicação estaria na própria misoginia do po-
ema, que nada mais faz do que refletir um aspecto destacado da cultura grega
antiga. Sendo assim, a desconfiança em relação à mulher segue a norma (e,
portanto, o reconhecimento por parte de Euricleia só pode ser apresentado
como algo acidental):

Em geral não se deve confiar nas esposas, e a maioria dos homens, sendo in-
cauta demais, não tem isso em mente. O procedimento de Odisseu de ficar
oculto à mulher deve portanto ser entendido como uma expressão do caráter
traiçoeiro geral das esposas, que, contudo, não se reflete na figura de Penélo-
pe, cuja fidelidade não é posta em dúvida.230

Outro ponto importante, que nos ajuda a entender o porquê dessa opção,
é o quanto a narrativa ganha em interesse – como estamos vendo – com esse jogo
de ocultação entre Penélope e Odisseu, que Homero faz questão de estender ao
máximo. Ainda segundo Murnaghan, “o relato dos encontros do casal [anteriores

229 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 118.


230 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 121.

151
ao reconhecimento final] possibilita efeitos de ironia e um quadro atrativo de
crescente cumplicidade psicológica entre Penélope e o estrangeiro”.231
Uma terceira e última explicação possível diz respeito à própria caracterização
de Penélope: sem que Odisseu se revele a ela – e com o narrador nos dizendo que
a revelação deverá ocorrer apenas depois do massacre dos pretendentes –, pode-
mos imaginar que suas ações, nessas circunstâncias, vão reafirmando sua castidade
e fidelidade, ao mesmo tempo que as colocam em risco. É isso, no final das contas,
que o desafio do arco representa no poema: estratagema decisivo para o desfecho
favorável (com a fiel Penélope dele saindo intacta), mas também disputa capaz de dar
a ela um novo marido e o “casamento odioso”. Com a revelação prévia de Odisseu,
Penélope seria apenas mais uma cúmplice sua; com a não-revelação, ela ainda pare-
ce agir como uma cúmplice – ainda que às cegas –, mas há espaço para pensarmos
que suas intenções podem ser outras. Sua “duplicidade” sai assim reforçada, e isso só
é possível porque, no poema, o narrador onisciente não nos franqueia as intenções
reais da esposa de Odisseu. Apesar de informados de que a revelação entre marido e
mulher só acontecerá tardiamente, somos levados, pelas falas e ações de Penélope,
a imaginar que talvez ela já tenha descoberto a verdade; para esse efeito, contribui
decisivamente a atuação do narrador, mais discreto do que o habitual. Será que, assim
como fazem Odisseu e Telêmaco com ela, Penélope é capaz de ocultar do filho e do
marido suas intenções, deixando-os à margem? Podemos pensar que sim e que não.
Sobre esse seu comportamento ambíguo, diz Sheila Murnaghan:

Se ele for visto como algo que conduz ao acontecimento central da história –
seu reconhecimento por Odisseu –, ele é então consonante com uma ação que
a define como inabalavelmente leal, perspicaz e com o controle do seu destino
(...). Mas se suas ações forem vistas como refletindo o fato de que não sabe
para onde se encaminham os acontecimentos, elas não parecem mais revelar
essas mesmas características supostamente constantes.232

Com efeito, antes da proposta do desafio do arco, ela se mostra simulta-


neamente perdida e atenta na conversa com o Odisseu-mendigo. Veja-se como,
na cena, a princípio é ele quem tem o controle total da situação, disposto que

231 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 119.


232 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 128-129.

152
está a “provocar” (erethízo, v. 45) a esposa: depois de contar suas “mentiras”,
a mulher se desfaz em lágrimas, mas o marido se mantém firme. Penélope, no
entanto, faz a desconfiança e a esperteza contrastarem com essa fragilidade:

chorando o homem seu ali ao lado... Mas Odisseu


no ânimo se apiedava da mulher sua a gemer,
sem tremer porém os olhos (como se de chifre ou ferro)
nas pálpebras: com ardil ocultava suas lágrimas.
E ela, depois de saciada do multigemente choro,
novamente estas palavras como resposta lhe disse:
“Penso que agora, estrangeiro, irei sim te pôr à prova (peirésesthai),
pra ver se de fato lá no palácio recebeste
meu esposo com os quase-deuses amigos, qual dizes.
Fala quais eram as vestes que ele tinha sobre o corpo,
e como era, e dos amigos dele que seguiam junto”.
Como resposta lhe disse o multiastuto Odisseu:
“Mulher, é árduo – por tanto tempo estando separado –
falar: agora já é pra ele o vigésimo ano
desde que de lá partiu e se foi da minha pátria.
Mas vou te dizer, tal qual se me afigura por dentro”.
(Od. 19, 209-224)

Ela não sabe que tem diante de si o esposo pelo qual chora (repare-se
no destaque dados aos possessivos, raros em Homero: “o homem seu”, heòn
ándra/“a mulher sua”, heèn gunaîka, v. 209-210), mas o expediente que emprega
é característico de Odisseu. No Canto 13 Atena dissera que ele também queria
testar a mulher:

Outro homem, após vagar, ao chegar com saudações


teria ido ao palácio pra ver os filhos e a esposa:
mas ainda não te é caro saber nem interrogar,
até pôr à prova (peiréseai) tua esposa, que está na mesma
dentro do palácio teu; e sempre cheias de agruras
noites e dias consomem-se pra ela, que verte lágrimas.
(Od. 13, 333-338)

153
Se ela é como ele, a dissimulação pode fazer parte de suas ações – embora,
ao contrário do que faz com seu herói, Homero não sinalize isso abertamente para
nós. Sabemos que Penélope é esperta na mesma medida em que não sabemos se
há dissimulação de sua parte. Repare-se como, dentro da construção dessa sinto-
nia com o marido e dessa duplicidade (que ameaça a sintonia), no mesmo Canto
19 ela é capaz de se mostrar mais uma vez descrente da volta de Odisseu (“nem
virá mais para casa”, v. 313, “se um dia existiu”, v. 315) e, simultaneamente, deten-
tora de autoridade e inteligência, garantindo proteção ao mendigo e destacando
sua “mente” (nóon) e astúcia (mêtin), que a põem acima das demais mulheres (v.
325-326).233 Mais adiante, ela ainda pode se referir ao estrangeiro como “caro”
(phíle, v. 350, philíon, v. 351) e ressaltar seu caráter “ponderado” (pepnuménos, v.
351, pepnuména, v. 352), nos levando a evocar os laços familiares...234
Que um possível reconhecimento se insinua nesse ponto do poema suge-
rem não só os versos em que o poeta fala que ela reconhecera os sinais (as roupas)
indicados por Odisseu – o 250 é idêntico ao 206 do Canto 23, quando ela definiti-
vamente o reconhece –, mas também, no momento em que se dirige a sua serva,
as seguintes linhas (merece especial destaque o “suspense” criado na segunda):

Vamos, de pé agora tu, circunspecta Euricleia!


Lava do teu senhor... um de mesma idade: Odisseu
deve estar também assim já nos pés, assim nas mãos,
pois os mortais envelhecem bem depressa nas mazelas.
(Od. 19, 357-360)

Podemos ver aí apenas o efeito irônico característico desse encontro entre


Penélope e o Odisseu-mendigo, mas o fato de ela apontar uma semelhança física
entre o estrangeiro e seu marido desaparecido – para o qual usa um inesperado e
otimista tempo presente – parece forte demais para que não se crie em nós a suspeita
de que a verdade foi descoberta, sobretudo porque, poucos versos antes, o mendigo
falara a Penélope que Odisseu fora ao oráculo de Dodona para saber se regressaria

233 Não me parece, assim, fazer sentido a argumentação de S. Saïd (Homer and the Odyssey,
p. 278) de que mêtis aí não tem, pelo contexto, o sentido de “esperteza”, mas apenas de
“sabedoria”.
234 Ver D. Stewart, The disguised guest, p. 113-114.

154
a Ítaca “às claras ou escondido” (kruphedón, v. 299).235 De qualquer maneira, o que
temos, na sequência, é de fato um reconhecimento, não por parte de Penélope, mas
de Euricleia, que ao lavar os pés do forasteiro reconhece a cicatriz de Odisseu. Como
apontou Marylin Katz, é como se o processo de reencontro fosse interrompido – em
relação a Penélope –, ao mesmo tempo que se concretiza na figura da ama, que talvez
não por acaso recebe aqui pela única vez o epíteto de “circunspecta”.236
As sutilezas continuam. Vejam-se estes versos em que Homero faz a ser-
va criar uma “confusão” com a segunda pessoa do singular, primeiro usada em
referência ao Odisseu ausente e imediatamente depois em referência ao men-
digo à sua frente, no momento em que ela compara a situação dos dois e vê uma
possível identidade entre eles:

Ómoi, filho, pra ti [Odisseu] impotente estou! A ti Zeus


mais detestou entre os homens, tendo tu piedoso espírito...
Pois nunca nenhum mortal ao desfruta-raio Zeus
queimou gordurosos fêmures e escolhidas hecatombes
tanto quanto tu lhe deste, rogando por atingir
então a clara velhice e criar o filho ilustre.
E agora só de ti ele tirou o dia da volta!
Também daquele deviam troçar assim as mulheres
(entre estrangeiros de longe, chegando à casa de alguém)
tal como estão de ti [mendigo] estas cadelas – todas – troçando.
(...)
Muitos estrangeiros extenuados aqui chegaram,
mas digo ainda não ter visto um parecido assim
– como tu com Odisseu, em voz, porte e pés, pareces...
(Od. 19, 363-372)

235 Philip Harsh, em “Penelope and Odysseus in Odyssey XIX”, The American journal of philo-
logy 71/1 (1950): 1-21, p. 14, é quem chama a atenção para o detalhe, com o intuito de defen-
der a posição de que Penélope reconhece o marido já nesses encontros dos Cantos 18 e 19.
Para duas defesas bastante consistentes do não-reconhecimento prévio, ver Bruce Louden,
“Is there early recognition between Penelope and Odysseus: Book 19 in the larger context of
the Odyssey”, e Steve Reece, “Penelope’s ‘early recognition’ of Odysseus from a neoanalytic
and oral perspective”, ambos presentes num número dedicado ao tema da College literature,
38/2 (2011), respectivamente p. 76-100 e 101-117.
236 M. Katz, Penelope’s renown, p. 133-134.

155
A resposta de Odisseu não fica atrás:

Velha, assim dizem aqueles todos que viram a nós


dois com seus olhos: que somos muito semelhantes um
com o outro, como tu mesma, reparando, agora afirmas...
(Od. 19, 383-385)

É como se o herói, com Euricleia, quisesse nesse jogo levantar suspeitas sem
revelar sua identidade, reproduzindo assim a situação com Penélope. Sheila Murna-
ghan fala numa combinação de um nível superficial com outro, subterrâneo:

No nível superficial da trama, Odisseu não revela sua identidade a Penélope, e


ela não o reconhece antes de resolvido o problema com os pretendentes. Mas
em termos dos padrões que suas ações perfazem, Odisseu e Penélope parti-
cipam de uma série de encontros em que fazem os movimentos do reconhe-
cimento, com um aceitando o outro, o que antecipa e conduz ao reencontro
explícito no Canto 23. Esses encontros representam, em certo sentido, cenas
de reconhecimento subterrâneas: assemelham-se ao momento de reconheci-
mento explícito que antecipam, mas não compartilham da sua explicitude.237

» o sonho e o desafio do arco

Na retomada da conversa entre Penélope e o mendigo, é a vez de o relato


do sonho operar como mais um indicador da complexidade dessa figura femi-
nina, com suas motivações e intenções. A passagem é complexa porque a visão
noturna, embora traga uma perspectiva claramente favorável para Penélope –
a morte dos pretendentes –, vem desacreditada por ela. Mais do que isso: os
animais mortos no sonho, que são identificados com os jovens que a cortejam
no palácio, são queridos à senhora, que sofre com sua destruição. Retomemos
rapidamente o relato feito por Penélope ao mendigo nesse trecho (v. 535-569),
com o intuito de que ele fizesse sua interpretação (hupókrinai, v. 535): no sonho
(ocorrido num tempo não especificado), os vinte gansos que tem em casa são

237 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 52.

156
mortos por uma águia;238 ela chora, mas é tranquilizada pela águia, que lhe diz
que a visão se cumprirá: os gansos são os pretendentes e ela mesma, águia, é
o marido que voltará para se vingar; depois disso, Penélope acorda e percebe
que os gansos continuam vivos no palácio.239 O mendigo diz que o sonho é cla-
ro e trouxe consigo a própria interpretação: o destino dos pretendentes está
selado. Penélope, no entanto, retruca que os sonhos são “indiscerníveis” (akri-
tómuthoi, v. 560): eles podem passar pelo portão de chifres (keráon, v. 566), os
que se cumprem/“decifram coisas” (kraínousi, v. 567), ou pelo portão de marfim
(eléphantos, v. 564), os que iludem/“amarfanham” a verdade (elephaírontai, v.
565), e ela, desesperançada, imagina que o seu sonho não é verdadeiro.240
A descrença aqui pode, efetivamente, fazer parte do movimento geral
e maior de desesperança e desconfiança – mesmo diante dos sinais positivos
–, mas ainda assim permanecem alguns elementos que tornam a cena ambí-
gua. O principal decorre da identificação, no sonho, dos pretendentes com os
gansos domésticos, que Penélope diz “se acalorar só de os ver” (iaínomai eiso-
róosa, v. 537). O fato de ela chorar e lamentar sua morte (com o sonoro klaîon
kaì ekókuon, “fiquei chorando, aos gritos”, v. 541), tão intensamente de modo a
despertar piedade (oîktr’olophuroménen, “a lamuriar de dar dó”, v. 543), e depois

238 Vinte parece indicar aí apenas um número significativo, como em Od. 14, 98; 20, 158; e 22,
57, o que talvez sirva para explicar o fato de Helena afirmar, em Il. 24, 765, que já fora raptada
havia vinte anos (e não dez, como esperaríamos). Ver Alexandra Rozokoki, “Penelope’s dream
in Book 19 of the Odyssey”, The classical quarterly 51/1 (2001): 1-6, p. 2. Já Louise Pratt, em
seu artigo “Odyssey 19, 535-550: on the interpretation of dreams and signs in Homer”, Classical
philology 89/2 (1994): 147-152, propõe que o número vinte seja identificado, com base em Il. 2,
308-320, com os anos que Penélope passou sem Odisseu, e que a morte dos gansos, animais
símbolos da fidelidade, representaria a destruição do lar, o que justificaria, do ponto de vista
dela, uma acolhida negativa do sonho. A associação com o número de anos já havia sido feita
por von der Mühll, e rebatida por Philip Harsh, que entendia “vinte” apenas como uma quanti-
dade “indefinidamente grande”; ver seu “Penelope and Odysseus in Odyssey XIX”, p. 1, nota 2.
239 Também em Od. 15, 160-178, o voo de uma águia, segurando em suas garras um gan-
so, permite o mesmo paralelismo, na interpretação de Helena, Odisseu/águia-pretendentes/
ganso. A diferença fica por conta da presença de um só ganso no Canto 15, na verdade uma
“gansa” (no feminino), o que poderia indicar mais a licenciosidade estabelecida na ausência
de Odisseu do que os cortejadores de Penélope, conforme propõe A. Rozokoki, “Penelope’s
dream in Book 19 of the Odyssey”, p. 2, nota 5.
240 O jogo de palavras, difícil de reproduzir (“de chifre”/“decifram”, “de
marfim”/“amarfanham”), fica evidente no texto grego. A. Rozokoki tenta explicar a simbologia
– marfim = engano; chifre = verdade – apoiando-se na aparência mais atraente e sedutora do
marfim, em oposição à simplicidade do chifre sem brilho. Ver A. Rozokoki, “Penelope’s dream
in Book 19 of the Odyssey”, p. 5-6. Platão retoma a imagem dos portões em Cármides 173a.

157
parecer demonstrar alívio ao acordar e encontrá-los vivos (v. 552-553), ativa em
nós – mas, aparentemente, não em Odisseu – a inevitável sensação de que ela
se compraz com a presença dos jovens no palácio. Como afirma Joseph Russo:

A dor de Penélope foi tão enfaticamente apresentada (klaîon, ekókuon, olophu-


roménen), que podemos com acerto inferir que, inconscientemente, ela é con-
sideravelmente menos hostil aos pretendentes do que frequentemente afirma
em seu comportamento consciente. Num nível que nem ela mesmo pode per-
ceber, ela gosta (iáinomai) de ser cortejada.241

Mas não é preciso invocar Freud nem a moderna ideia de desejo incons-
ciente para afirmar o descompasso: ainda que culturalmente os sonhos tenham
na Grécia um valor profético (e seja esse o elemento em destaque, para Odisseu e
para nós), e que não sejam vistos como veículos de uma intimidade subterrânea,
a dubiedade é um efeito claro da construção do texto e vem se juntar a outros ele-
mentos já vistos da caracterização de Penélope. A imagem onírica dos inimigos
deriva daquilo que, no plano da realidade, é caro à senhora: essa contradição é
significativa. Junte-se a isso a insistência de que é confuso e “terrível” (ainón, v.
568) um sonho claro – o único sonho em Homero a se “autoexplicar” – e temos
novamente uma Penélope ambivalente, sintonizada com o marido (a quem con-
fia essa informação, e cujas palavras reconfortantes ouve em sonho, por meio da
águia, e acordada, por meio do mendigo), mas que resiste em acreditar num reen-
contro e, veladamente, pode ter prazer na corte dos pretendentes.242
É nesse ponto – não por acaso – que surge a proposta do desafio do arco.
Reunida, sem que saiba, com o marido, e com bons motivos para acreditar no seu
retorno, ela vem reafirmar a descrença numa possível volta e cogitar a união com
um dos pretendentes; com efeito, Penélope já se imagina deixando o palácio:

Vou te dizer outra coisa e tu mete em teu espírito:


já está vindo a maldita Aurora, que vai da casa

241 J. Russo, “Interview and aftermath: dream, phantasy, and intuiton in Odyssey 19 e 20”,
The American journal of philology 103/1 (1982): 4-18, p. 9. Ver também seu comentário em A.
Heubeck et alii (ed.), A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 3, p. 102.
242 Apesar de, na mentira de Odisseu-mendigo a Eumeu, “Odisseu” ter inventado um so-
nho (Od. 14, 490-498), não me parece fazer sentido imaginar que Penélope inventa o sonho
para Odisseu, como sugere, por exemplo, D. Stewart, The disguised guest, p. 118.

158
de Odisseu me arrancar. Vou pôr então um desafio,
o dos machados, os quais aquele no seu palácio
eretos enfileirava, como escoras, doze ao todo,
pra de pé de muito longe atirar flecha através.
Agora vou lançar esse desafio aos pretendentes:
quem muito fácil esticar o arco na palma da mão,
e disparar através dos doze machados todos,
esse eu seguiria, dando as costas a esta casa
legítima, muito bela, cheia de sustento dentro.
Dela penso que vou sempre me lembrar, mesmo que em sonho.
(Od. 19, 570-581)

Os estudiosos se perguntam se Penélope, ao cogitar essa prova, estaria


agindo de maneira astuta – seja porque reconhece Odisseu, seja porque está
certa de um desfecho favorável – ou se estaria de fato abrindo espaço para no-
vas bodas, totalmente desesperançada do retorno do marido.243 Para a italiana
Lidia Allione, assim como para Joseph Russo, Penélope “intui” que se aproxima
o dia decisivo e por isso propõe o concurso.244 Para Patricia Marquardt, trata-se
de uma astúcia, porque ela sabe que nenhum dos pretendentes será capaz de
esticar o arco “muito fácil” (rheítata, Od. 19, 577 = 21, 75), a não ser Odisseu (rhei-
díos, Od. 21, 328 e 407; e 24, 177).245 Frederick Combellack, por sua vez, conside-
ra que, no caso de se tratar de fato de um estratagema, o poema é falho nesse
ponto porque, ao não revelar as intenções de Penélope, apresenta sua conduta
como “ilógica” e “precipitada”.246 Já Marylin Katz chama atenção – como outros
já haviam feito – para a pressão que Penélope sofre diante do amadurecimento

243 Para John Winkler, “há bons motivos para se pensar que tudo que ela [Penélope] diz e
faz no Canto 19 é guiado pelo pensamento de que o mendigo pode ser – na realidade, tem
grande chance de ser – Odisseu”; ver seu “Penelope’s cunning and Homer’s” em The cons-
traints of desire: the anthropology of sex and gender in Ancient Greece. New York: Routledge,
1990, p. 142-143.
244 Citados por M. Katz, Penelope’s renown, p. 109. Joseph Russo destaca já no título de seu
artigo esse elemento, bem de acordo com a “força inconsciente” que quer sublinhar nesse
movimento de aproximação entre Odisseu e Penélope; ver “Interview and aftermath: dream,
phantasy, and intuiton in Odyssey 19 e 20”, p. 6 e 18.
245 Patricia Marquardt, “Penelope polútropos” in The American journal of philology 106
(1985): 32-48, p. 41.
246 F. Combellack, “Three Odyssean problems”, p. 39-40.

159
de Telêmaco, que, somado às palavras de Odisseu de quando de sua partida, a
conduziriam a escolher um novo marido.247 É importante destacar, ainda, que
culturalmente esse tipo de disputa representava o modo tradicional de seleção
do noivo – o mito de Hipodâmia talvez seja o melhor exemplo (inúmeros can-
didatos/decisão por disputa atlética/um só sobrevivente no final) – e, uma vez
Odisseu participando dela, ele desempenhará o papel do esposo que, aparecen-
do como um “pretendente” de fora, cortejará a própria mulher.248
Qualquer que seja a motivação principal, parece-me que a melhor manei-
ra de entender o movimento de Penélope é preservando sua duplicidade, elabo-
rada por Homero com uma “astúcia de mestre”, como diz Nancy Felson-Rubin,
e que resulta numa incontornável “inescrutabilidade”. Segundo essa estudiosa,
devemos sim trabalhar com a possibilidade de que ela esteja agindo de modo
perspicaz, embora o texto, num nível imediato, não nos diga isso:

Homero faz com que as intenções de Penélope permaneçam não apenas


complexas, mas enigmáticas, sugerindo ora que ela percebe a presença do
marido ou sua volta iminente, ora que ela perdeu toda a esperança. Sua au-
diência, portanto, não pode excluir a possibilidade de que Penélope propõe
o desafio do arco de boa fé, como uma forma de selecionar um novo marido,
e que ela de fato pretende se casar de novo. A seriedade de sua proposta fica
atestada pela prece dirigida a Ártemis, na qual solicita uma morte súbita (Od.
20, 61-83), e por suas lágrimas quando examina os armamentos do marido
(Od. 21, 5-60).249

247 M. Katz, Penelope’s renown, p. 121.


248 Ver W. Allen Jr., “The theme of the suitors in the Odyssey”, p. 106. Marylin Katz mostra
como esse tema do “estrangeiro como marido” vem anunciado já pelo encontro entre Nausí-
caa e Odisseu nos Cantos 6 e 7. Ver M. Katz, Penelope’s renown, p. 114-115. Repare-se como,
no Canto 23, depois da morte dos pretendentes, Odisseu determina que haja canto e dança,
para que de fora se tenha a impressão da celebração de bodas (v. 133-136); só depois do tão
aguardado reencontro com Penélope é que a celebração – entre falsa (ela não escolheu ne-
nhum dos pretendentes) e verdadeira (ela acolhe de volta o marido) – tem fim (v. 297-298).
249 Nancy Felson-Rubin, Regarding Penelope: from character to poetics. Princeton: Princeton
University Press, 1994, p. 18 e 25. Para J. Winkler, em sua leitura antropológica, as motivações
de Penélope nos são omitidas como parte de uma “estratégia deliberada: a história é contada
de uma perspective apenas – do ponto de vista da expectativa masculina”; ver “Penelope’s
cunning and Homer’s” em The constraints of desire: the anthropology of sex and gender in
Ancient Greece, p. 158-159.

160
Sheila Murnaghan, em seu livro, propõe leitura similar, dando mais ênfa-
se, porém, ao modo como a prova traz consigo, simultaneamente, uma ameaça
a Odisseu e uma possibilidade de êxito que exclui necessariamente os preten-
dentes. Em outras palavras, por um lado parece se tratar de um ardil, mas por
outro ele parece ser involuntário:

Ela estabelece como condição, para a escolha do novo marido, a realização de


um feito que apenas seu antigo marido é capaz de realizar. O aspecto do desa-
fio que o faz parecer muito ameaçador e desleal para com Odisseu – o modo
como é pensado para que se encontre alguém à sua altura – é na realidade o
que faz dele o recurso para se recuperar sua identidade única. O desafio, no fim
das contas, não resulta num tipo de diferenciação entre os pretendentes in-
compatível com o triunfo de Odisseu. É porque os pretendentes ficam cegos à
sua inferioridade em relação a Odisseu que eles caem na armadilha de aceitar,
para se casar com Penélope, a condição que automaticamente os desqualifica
e sela seu destino. No entanto, a própria Penélope não parece ciente da arma-
dilha preparada para os pretendentes.250

Outro ponto importante, destacado pela mesma Sheila Murnaghan, diz


respeito ao papel desempenhado pelo acaso. Não havendo em primeiro plano,
como vimos, um reconhecimento de fato, a proposta do desafio dos machados
– sendo ela uma armadilha deliberada ou não – precisa da coincidência (uma
túkhe que é, bem de acordo com sua raiz, o ato de “acertar o alvo”) para chegar
a bom termo:

O passo crucial na trama da Odisseia se dá (...) segundo uma feliz coincidência,


pela qual, no momento em que Penélope sente que não pode mais se con-
trapor aos pretendentes, Odisseu está lá para se aproveitar da saída que ela
divisara para substituí-lo. A solução para as dificuldades de ambos brota da
combinação fortuita do desespero dela e da improvisação dele.251

250 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 133.


251 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 134. Uvo Hölscher também
chama atenção para o fato de que Odisseu não se deixa abalar pelas decisões da mulher por-
que, estando já presente no plano, sabe que poderá impedir esse desfecho; ver seu “Penelope
and the suitors”, em S. Schein (ed.), Reading the Odyssey: selected interpretive essays, p. 136.

161
Mas será mesmo que Penélope propõe o desfio sem acreditar na volta do
marido, e temos apenas a feliz coincidência? Duas falas de Odisseu no Canto 19,
uma antes e a outra depois da proposta, parecem apontar para a possibilidade de
a esposa acreditar no seu retorno iminente e, portanto, agir com essa hipótese em
mente. Destaco em itálico os trechos que trazem uma precisão temporal para a vol-
ta do esposo (a primeira, já mencionada pelo mendigo a Eumeu no Canto 14):252

É desse jeito que está, a salvo, e logo virá


bem próximo de ti, não mais dos caros e da pátria
por muito tempo distante... Mas te farei juramento.
Testemunhem Zeus primeiro, mais alto e melhor dos deuses,
e a lareira do ilibado Odisseu, à qual eu chego:
com certeza tudo está se cumprindo como digo.
Nessa mesma lua nova (toûd’ autoû lukábantos) Odisseu virá aqui,
entre aquela que é minguante e aqueloutra que é crescente.
(Od. 19, 300-307)

Mulher muito respeitável do Larecida Odisseu:


não adies mais agora na casa esse desafio,
pois antes o multiastuto Odisseu virá aqui
– antes que eles, esse bem-polido arco manuseando,
estiquem sua corda e disparem através do ferro.
(Od. 19, 583-587)

Diante dessas falas – ambas a “enquadrar” a proposta do desafio – po-


deríamos ser levados a ver uma cumplicidade latente entre marido e mulher.
A favor dessa leitura, temos três elementos. Em primeiro lugar, há a confiança
e tranquilidade de Odisseu, que, pelo que Homero nos mostra, em momento
algum se sente ameaçado ou mesmo desconfia das reais intenções da mulher.
Como diz Marylin Katz,

Penélope parece consolidar seus planos de um novo casamento e (...) Odisseu


interpreta suas intenções da perspectiva dele (...). Odisseu nos garante, com a

252 Od. 14, 158-162 = 19, 303-307.

162
autoridade daquele cujos interesses são os que mais correm risco, que ‘não é
isso que Penélope quer dizer’.253

Em outras palavras, Odisseu, ao agir assim, reafirma aquela sintonia com


a esposa de que vínhamos falando e que, levada ao extremo, pode ser tomada
como um reconhecimento mútuo e tácito: da parte dele, em relação à fidelida-
de dela; da parte dela, em relação à identidade dele. Nesse sentido, as indica-
ções temporais fornecidas por Odisseu podem ser tomadas, por ambos, como
uma referência velada ao dia seguinte, quando a matança acontecerá.254
O segundo elemento diz respeito à participação de Penélope no Canto 21: ao
fazer a proposta do desafio diretamente aos pretendentes (v. 68-79), sabemos não
só que a decisão agora foi impulsionada por Atena (v. 1-4) – o que faz com que a as-
túcia fique sublinhada –, mas também que a própria Penélope intervém diretamente
(dirigindo-se primeiro a Antínoo e depois a Euríamco) para que seja dado ao mendigo
participar da prova. Não passam despercebidas as ironias em relação a ser absurdo
que o pedinte eventualmente fizesse dela sua esposa (fala a Antínoo; v. 312-319) e, ao
mesmo tempo, em relação a reconhecê-lo enquanto figura nobre e de valor, merece-
dora de recompensa em caso de vitória (fala a Eurímaco; v. 331-342).
O terceiro e último elemento é ainda mais contundente. Trata-se da per-
cepção que o pretendente Anfimedonte tem, já no Hades, de que a prova do
arco foi resultado de uma ação conjunta de marido e mulher:

Mandou ainda [Odisseu], com multiesperteza, a sua esposa


pôr para nós, pretendentes, arco e ferro acinzentado

253 M. Katz, Penelope’s renown, p. 118.


254 O sentido de lukábas, no entanto, não é claro no verso 306, toûd’ autoû lukábantos
eleúsetai enthád’ Odusseús, que traduzimos por “nessa mesma lua nova Odisseu virá aqui”.
Alguns entendem o termo como “mês, “ano” ou mesmo “dia”. Ver o que dizem D. Monro,
Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 27 (“dia”); V. Di Benedetto, Omero: Odissea. Milano: BUR, 2010, p.
990 (“mês”); P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 132 (“ano”); e W. Stanford, The Odyssey of Homer,
vol. 2, p. 222-223 (“fim do período lunar em que a lua ficava invisível”). Na linha deste último
vai Norman Austin, Archery at the dark of the moon: poetic problems in Homer’s Odyssey, p.
244-247, que destaca (desde o título do livro) a celebração no dia seguinte de Apolo “Numê-
nio” ou “da Lua Nova”, duas vezes referida no Canto 20, enquanto “festividade” (heorté, v.
156, subentendido o adjetivo noumenía) e reunião junto à gruta do deus (v. 276-278); lembre-
-se ainda da “noite negrilúnia” (nûx skotoménios), mencionada em Od. 14, 457. Nessa direção
vai J. Russo em A. Heubeck et alii (ed.), A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 3, p. 91-92.

163
– prêmio aos malaquinhoados, e princípio da matança.
(Od. 24, 167-169)

Se é verdade que essa afirmação equivocada serve para reforçar a igno-


rância desses jovens soberbos, não é menos verdade que ela serve também para
reavivar, em nós, a suspeita de um entendimento “subterrâneo” entre Penélope
e Odisseu, que Homero não explicita, mas apenas insinua. Ou seja: temos aí um
ponto de vista – de “dentro” da narrativa – que reforça uma percepção externa
ambígua: sabemos que Odisseu não agiu junto com a mulher (pelo contrário:
ele fez questão de não se mostrar a ela antes da matança), mas não ficamos
absolutamente certos de que Penélope não tomou a decisão que tomou agindo
em resposta à presença do marido no palácio.
Para concluir essa discussão, vale a pena ainda citar o trecho do Canto
20 em que, mais uma vez, separação e união entre marido e mulher parecem
se combinar de maneira inextrincável. Penélope, ainda chorosa, pede a Ártemis
que lhe tire a vida com uma seta ou que uma tempestade a arrebate, para assim
morrer “visualizando” (ossoméne) Odisseu, sem alegrar um homem inferior (v.
80-82). No entanto, logo em seguida, o texto de Homero sugere um reconheci-
mento, voltando ao tema do sonho. Primeiramente Penélope afirma, ainda na
mesma prece dirigida a Ártemis:

Mas até mim também maus Sonhos um nume incitou:


esta noite, junto a mim, deitou-se um [Sonho] igual a ele [Odisseu],
tal como era quando foi com o exército, e por dentro
me alegrei, pois não pensava ser sonho (ónar), mas realidade (húpar).
(Od. 20, 87-90)

Essa confusão entre sonho e realidade reaparece, de modo invertido, no


trecho narrativo que vem imediatamente depois:

Assim disse [Penélope], e logo sobreveio a Aurora de áureo trono.


E a voz dela, que chorava, ouviu divino Odisseu,
e ficou então em dúvida: ela parecia, a ele,
já reconhecendo-o pôr-se junto da sua cabeça (parestámenai kephalêphi).
(Od. 20, 91-94)

164
Penélope, ao dormir, sonha com Odisseu junto a ela, imaginando que
essa é a realidade; já o (semi?) desperto Odisseu, por sua vez, ao ouvir Penélope
chorando, pensa que sonhava com ela o reconhecendo (na visão personificada
grega, o Sonho, assumindo forma alheia, “punha-se junto à cabeça” de quem
estava dormindo). Os movimentos são complementares – ela confunde sonho
com fato, e ele fato com sonho – e mostram, acima de tudo, que ambos sentem
o reconhecimento mútuo como fantasia e realidade. Trata-se de um comple-
mento adequado para o que fora, no Canto 19, “um excitante duelo de sinuosi-
dade, sutil e brilhante em sua execução”.255

» A cama imóvel

Depois de receber o comando de Telêmaco, no Canto 21, para que


retornasse a seus aposentos, para onde efetivamente se dirige, chorando por
Odisseu e recebendo um sono suave de Atena (v. 343-358), Penélope só volta
a aparecer no Canto 23. É Euricleia quem lhe comunica a volta do marido –
que o mendigo na verdade era ele disfarçado – e a matança dos pretendentes
(v. 5-9, 26-31 e 40-57). Penélope, que, significativamente, nunca dormira tão
bem desde que Odisseu partira (v. 15-19), inicialmente descrê do que ouve (v.
11-24, 35-38 e 59-67), embora o narrador nos informe da sua alegria (ekháre,
v. 32). Euricleia menciona então a prova irrefutável, a cicatriz que ela mesma
vira ao lavar-lhe os pés (v. 70-79), mas Penélope continua reticente (v. 81-84),
com o “ânimo incrédulo” (thumòs ápistos, v. 72). O narrador, intervindo mais
extensamente no diálogo, nesse momento nos diz que ela “muito ponderava”
(pollà hórmaine) entre interrogar “o caro esposo” (phílon pósin) à distância ou
beijar sua cabeça e mãos (kúseie káre kaì kheîre; v. 85-87) – e aqui a chamada
“focalização embutida” parece apontar para o reconhecimento, que ela
apenas quer retardar, simulando dúvida.256 No entanto, logo em seguida o
mesmo narrador nos informa que ela “não sabia” (agnósaske) se era ele, por
causa dos farrapos que vestia (v. 95), o que nos leva a crer que, sob o disfarce
de mendigo, dificilmente Odisseu poderia ser reconhecido por ela (mas ainda
assim nos perguntamos: e a semelhança física notada antes por Penélope e

255 P. Harsh, “Penelope and Odysseus in Odyssey XIX”, p. 18.


256 Irene de Jong fala em “uso altamente refinado da focalização” em seu A narratological
commentary on the Odyssey, p. 500-501.

165
Euricleia, no Canto 19?).257 Repreendida por Telêmaco por se manter afastada
do marido “com ânimo resistente” (tetleóti thumôi, v. 100), ela responde
dizendo que está “aturdida” (téthepen), sem poder falar e encarar Odisseu;
e que, se for ele mesmo o marido, eles se “reconhecerão” (gnosómetha)
por meio de “sinais” (sémata) ocultos às demais pessoas (v. 105-110). Quem
retruca dessa vez não é Telêmaco, mas o próprio Odisseu, que, confiante, diz
ao filho que deixe a mãe “o pôr à prova” (peirázein eméthen; v. 113-114).
Como os comentadores da Odisseia já apontaram, teste e
reconhecimento aparecem aqui como elementos que marcam a identificação
entre Odisseu e Penélope – a homophrosúne, concordância ou sintonia que,
segundo ele mesmo falara para Nausícaa, deve existir entre marido e mu-
lher.258 A hesitação e o excesso de cautela correspondem a características
destacadas em Odisseu por Atena (Od. 13, 332-336); o “ânimo resistente” de
Penélope (Od. 23, 100 e 168) é o mesmo do esposo com o Ciclope (Od. 9, 435)
e com os pretendentes (Od. 18, 135; e 24, 163); o “coração de ferro” (Od. 23,
172) remete aos “olhos de ferro” do marido diante das lágrimas dela, Penélo-
pe (Od. 19, 211-212); e, finalmente, a vontade de pôr à prova mesmo quando
aparentemente isso não é mais necessário relaciona-se ao que fará o próprio
Odisseu com o pai (Od. 24, 220-240).259
O chamado “teste da cama” não é o primeiro a que Penélope submete
Odisseu: vimos que ela já fizera isso no Canto 19 (v. 215), perguntando ao mendigo
sobre informações precisas em relação às roupas do marido. Naquela provação,
porém, ela anunciava claramente sua intenção; aqui, embora Odisseu saiba que
será posto à prova através de sinais, ele acaba sendo pego de surpresa. Ou seja:
no momento em que é testado, ele não tem controle total da situação como

257 É Philip Harsh quem chama a atenção para esse detalhe no seu já citado artigo; sua pro-
posta, no entanto, é de que Penélope suspeitava sim da identidade do mendigo, apesar de
não haver nenhuma indicação concreta por parte de Homero. Na sua visão, essa verdade la-
tente seria descortinada depois por Anfimedonte em sua fala a respeito da ação conjunta de
marido e mulher (Od. 24, 167-168). Ver seu “Penelope and Odysseus in Odyssey XIX”, p. 19-21.
258 Ver também a identificação dos dois indicada por Atena em Od. 2, 274. Segundo Sarah
Bolmarcich, o termo só é usado para a relação de amizade entre homens (como acontece
com Telêmaco e Pisístrato, Od. 15, 195-198), e a aplicação extraordinária a um casal – num
poema com forte antagonismo homem/mulher – só reforça, antecipadamente, a ligação en-
tre Odisseu e Penélope, em contraste com casais como Agamênon-Clitemnestra e Helena-
-Menelau. Ver seu “Homophrosúne in the Odyssey”, Classical philology 96 (2001): 205-213.
259 M. Katz, Penelope’s renown, p. 164.

166
tinha antes, o que contribui para a inversão da balança da inteligência no jogo
entre marido e mulher. É importante lembrar que, quando finalmente chega a
cena do teste, Odisseu foi fisicamente transformado por Atena (v. 156-163). É
já de banho tomado e assemelhado pela deusa aos imortais que ele se senta
novamente diante de Penélope. O herói – chamando a esposa de “infortunada”
(damoníe) – critica seu “coração de ferro” (sidéreon êtor) e pede a Euricleia que
lhe “prepare o leito” (stóreson lékhos; v. 166-172). Sem se abalar e já “pondo à
prova o marido” (pósios peiroméne, como nos informa depois o narrador, v. 181),
Penélope diz – chamando Odisseu também de “infortunado” (daimónie) – não
ser orgulhosa e saber bem “como ele era” (hoîos éestha) ao partir; ato contínuo,
dá a mesma ordem à ama, que “prepare o leito” (stóreson lékhos), mas “fora
do quarto” (ektòs thalámou), com as servas “removendo” (ektheîsai) a cama
(v. 174-180). É nessa hora que Odisseu, “irritado” (okhthésas), diz ser “difícil”
(khalepón) ocorrer a transposição da cama, por haver nela um “grande sinal”
(méga sêma): ao longo de doze versos, o marido ofendido descreve como ele
mesmo, aproveitando um grosso tronco de oliveira que crescia na área cercada
do palácio, em torno da planta construíra o quarto e com a própria oliveira
fizera a cabeceira da cama; diante desse “sinal” (sêma), ele receia pelo leito – se
ainda estaria “firme” (émpedon) ou se o tronco fora cortado e “algum varão”
(tis andrôn) o pusera em outro lugar (v. 183-204). Penélope, “reconhecendo
os sinais” (sémat’anagnoúsei), finalmente cede e, aos prantos, pede perdão
por ter sido tão dura (v. 205-230). Também chorando, ele a abraça, e no símile
que agora destaca a alegria de Penélope ao ver Odisseu ela é comparada ao
náufrago que sobrevive à tempestade de Posêidon, numa inversão de papéis – é
ele, evidentemente, que chega nessa condição e se alegra ao ver a pátria – que
só vem reafirmar a identidade do casal.
Como aponta Sheila Murnaghan, o teste da cama, ao mesmo tempo que
trabalha com a ideia da imobilidade como símbolo da permanência do casa-
mento, traz consigo, no comando dado por Penélope a Euricleia – de que o leito
fosse removido –, o “risco da traição”, a “sugestão de infidelidade”, que tanto
encoleriza Odisseu. Mas é exatamente porque não compartilhou sua intimidade
com nenhum outro homem que Penélope pode apostar nesse sinal – a fixidez
da cama – como sinal do reconhecimento de Odisseu, o único a compartilhar do
segredo dessa construção singular:

167
É somente porque ela não permite que ninguém mais saiba sobre a imobilidade
da cama, podendo assim usar isso para testá-lo, que esse segredo representa
a identificação de Odisseu e a fidelidade de Penélope. É somente em função
do que Penélope tem em mente que aquilo que Odisseu descreve como sêma,
“marca”, da cama (Od. 23, 188 e 202), pode funcionar como sêma de outro tipo:
um sinal que a convence da identidade dele (Od. 23, 206).260

No fim, a reunião do casal depende desse leito imóvel, índice não só da


fidelidade feminina, mas também do patrocínio da deusa Atena, devido ao
fato de a cabeceira ter sido construída “com ciência” (eû epistaménos, v. 197),
pelo próprio marido, a partir de um “arbusto verdejante de oliveira” (thámnos
tanúphullos elaíes), depois reduzido a seu tronco (v. 190 e 195-196): essa oliveira
nos faz assim lembrar da “vara” ou “estaca” da mesma planta usada por Odisseu
em sua astúcia contra o Ciclope (Od. 9, 319-320, 378, 382 e 394).
A ideia de traição, insinuada por Penélope nessa cena – mas dela já an-
teriormente afastada, de certo modo, através da figura da serva Melanto, que
faz o que a senhora não faz e se deita com Eurímaco (Od. 18, 320-339; e 19, 65-
95) –,261 termina por ser associada a Helena, ela sim desavisada em relação ao
engano de um homem. Cito o trecho principal dessa fala em que Penélope pede
perdão e apresenta as razões para tanta desconfiança:

Comigo agora não fiques colérico ou indignado,


porque primeiro, ao te ver, eu não te saudei assim...
É que meu ânimo sempre dentro do querido peito
temia que um dos mortais com palavras me enganasse (apáphoito),
chegando aqui: pois são muitos que planejam vis proveitos!
Nem mesmo ela, a argiva Helena, a que é nascida de Zeus,
teria ao leito deitado com um homem de outras terras
se antes soubesse que os filhos belicosos dos acaios
iam trazê-la de novo pra casa, pra cara pátria.
Foi sim um deus que a incitou a ter ultrajante ação:
até então, não lançara no ânimo essa perdição (áten)

260 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 140-141.


261 Ver N. Felson-Rubin, Regarding Penelope: from character to poetics, p. 30, e também
Marylin Katz, Penelope’s renown, p. 130-132.

168
odiosa, da qual primeiro o pesar também nos veio.
(Od. 23, 213-224)

A menção à mulher de Menelau e ex-amante de Páris é considerada por


muitos sem sentido nesse passo, porque parece desculpar a figura por excelência
da mulher infiel, vítima da áte divina, quando o que se quer destacar é a fidelidade
a toda prova. Por que tratar com aparente simpatia uma traidora? Mas é preciso
ter atenção ao contexto e ao modo – nem sempre linear – com que Homero coor-
dena as ideias. O ponto central é este: a partir do verso 209, com o reconhecimen-
to já tendo ocorrido mediante o sinal da cama, Penélope quer se justificar pela
demora em abraçar o marido, ou, em outras palavras, por seu excesso de cautela,
como vimos. Desse verso 209 ao verso 230, a sequência do raciocínio dela pode
ser parafraseada da seguinte maneira: a Guerra de Troia os separou por longo
tempo e os fez sofrer; Penélope ficou sujeita aos enganos de outros homens, aos
quais respondia com desconfiança e resistência; Helena, ao contrário, cedeu a um
estrangeiro, sem saber que provocaria uma terrível guerra, a qual traria sofrimen-
to tanto para Odisseu quanto para sua esposa; mas agora ela, Penélope, estava
convencida da identidade dele, não precisando mais manter a incredulidade.262 A
estrutura é anelar (veja-se a ligação entre os dois termos para “dor”, no princípio
e no fim, oizún, v. 210, e pénthos, v. 224). A traição de Helena – cega – está no
princípio da guerra e dos sofrimentos em Ílion (que ela chama de “Horrílion”).263 A
não-traição de Penélope, por sua vez, corresponde a um comportamento astuto,
atento ao engano, de quem é capaz de aprender com esses acontecimentos do
passado. Vejam-se as palavras de Philip Harsh:

A defesa de Penélope centra-se nos enganos de deuses e homens, e nas con-


sequências monstruosas de um erro como o de Helena. Helena não conseguiu
antecipar o futuro – que sua união com Páris não era permanente e traria dor
para si mesma e para muitos outros (...). A comparação com Helena, latente ao
longo do poema (por exemplo, em Od. 11, 436-439), é aqui bastante adequada,
e a defesa de Penélope sai enfraquecida se omitirmos esses versos (tal como

262 Katz tem uma leitura que me parece adequada; ver seu Penelope’s renown, p. 185-187.
263 Em grego, Kakoílion (Od. 19, 260 e 597; e 23, 19), que nos faz lembrar do Dúsparis Páris
da Ilíada (Il. 3, 39; e 13, 769).

169
aconselham os críticos, tanto antigos como modernos).264

Nesse sentido, Helena não é propriamente desculpada: a áte, “perdição”


ou “ruína”, apenas a associa ao engano, sem implicar uma causalidade exclu-
sivamente divina. Helena, precipitada, foi vítima do “engano”, da apáte. Ela,
Penélope, exatamente para não incorrer no mesmo erro, teve que se mostrar
absolutamente atenta e desconfiada.265
Desde os alexandrinos Aristarco e Aristófanes, o “ritual do antigo leito”
de Odisseu e Penélope (léktroio palaioû thesmón, v. 296) representa o télos/
péras, o “fim”/“limite”, do poema – não o verso em que se encerra a Odisseia,
como querem alguns críticos modernos, mas o ponto para o qual a narrativa
toda se dirige, à semelhança do assassinato de Heitor no Canto 22 da Ilíada.
Mas outros elementos devem ser contemplados para que a história de fato
se conclua adequadamente.266 No caso de Penélope, é preciso ainda que o
mesmo Agamênon que no Hades condenara Clitemnestra, e as mulheres em
geral, volte agora à cena, retomando o paradigma de Egisto. A misoginia não
desaparece, mas agora temos a garantia da glória da esposa de Odisseu, já in-
sinuada em outras partes do poema, como vimos (Od. 2, 125; 18, 251; e 19, 124
e 107). Interessante é notar o emprego da metalinguagem: dentro da Odisseia,
o Atrida fala do canto em honra de Penélope – a própria Odisseia que lemos.
Vejam-se os versos; Agamênon, conversando com Anfimedonte, começa por
interpelar Odisseu:

Laercida afortunado, multiengenhoso Odisseu:


sim, adquiriste uma esposa com essa grande excelência (megálei aretêi)!

264 P. Harsh, “Penelope and Odysseus in Odyssey XIX”, p. 6. Veja-se também o que diz A.
Heubeck em A. Heubeck et alii (ed.), A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 3, p. 336-337.
265 Para uma visão um pouco diferente, de que Helena é sim desculpada, ver S. Saïd, Homer
and the Odyssey, p. 308.
266 Para Denys Page, sempre com seu raciocínio analista implacável, “a visão de Eustácio
(...) de que o significado é simplesmente de que a história da Odisseia atinge seu clímax nesse
ponto – de que os principais incidentes chegam aqui ao fim – sempre foi e sempre será sus-
tentada por uma pequeníssima minoria; para o resto do mundo ela parecerá um transparente
sofisma”; ver The Homeric Odyssey, p. 101 e nota 2 (na p. 130). Para uma discussão mais sen-
sata, que descarta a possibilidade de o poema terminar aqui, ver A. Heubeck em A. Heubeck
et alii (ed.), A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 3, p. 342-345. Ver ainda J. Marks, Zeus in
the Odyssey, p. 63-65.

170
Que boníssimo juízo tinha a ilibada Penélope,
filha de Icário! Quão bem se lembrava de Odisseu,
legítimo esposo: nunca se lhe perderá a glória (kléos)
da sua excelência (aretês) – vão fornecer os imortais,
aos sobre a terra, gracioso canto (aoidén) à contida Penélope.
Já essa filha de Tíndaro teve, ao invés, planos vis,
matando o esposo legítimo, e o canto (aoidé) dela odioso
será aos humanos: vai atribuir pesada fama (phêmin)
às femininas mulheres – mesmo à que for benfeitora.
(Od. 24, 192-202)

A Odisseia, como já se afirmou, parece surgir como uma Penelopeia, e as


glórias do marido e da mulher parecem se entrelaçar, interdependentes.267 No
próprio texto podemos encontrar essa ligação, uma vez que no grego as ideias
destacadas de excelência e glória (v. 193 e 196) podem ser entendidas não só
como aplicadas a Penélope, mas a Odisseu.268
Mais importante ainda é notar que, conforme diz Agamênon, o canto so-
bre Clitemnestra – “odioso” (stugeré, v. 200), e não “gracioso” (kharíessa, v. 198)
como o de Penélope – jamais deixará de lançar dúvidas sobre as mulheres, mes-
mo sobre a que for benfeitora (euergós, v. 202). Despedimo-nos da filha de Icário
sabendo que sua fama é, no final das contas, a de uma imperecível dubieda-
de. Assim como a Capitu de Dom Casmurro, a suspeição e a duplicidade são sua
marca. No caso do personagem de Machado de Assis, ficamos nos perguntando
se traiu ou não traiu Bentinho, se seu filho era ou não de Escobar, se ela amava
ou não o marido. No caso de Penélope, a traição está descartada, mas ainda as-
sim nos perguntamos: ela reconheceu ou não Odisseu por detrás do disfarce de
mendigo? Agiu dissimuladamente ou não? Estava disposta a se casar novamen-
te? Sua colaboração com o marido foi voluntária ou casual? Se em Machado o
efeito da dúvida é produzido pelo narrador não-confiável em primeira pessoa,
em Homero o sentimento que Penélope desperta em nós advém, em grande

267 M. Katz, Penelope’s renown, p. 21.


268 É o que defende Gregory Nagy em The best of the Achaeans: concepts of the hero in
archaic Greek poetry. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1979, p. 37-38. Ver tam-
bém o que diz, na mesma direção, A. Edwards, em Achilles in the Odyssey, p. 88, nota 36, e a
exposição do problema por S. Saïd, Homer and the Odyssey, p. 310-311.

171
parte, de uma narrativa abertamente silente e elíptica em relação a ela, e da
exploração magistral das ironias. Como diz Philip Harsh, Homero na Odisseia
“dá grande peso ao implícito e ao sutil”269 – e o personagem de Penélope talvez
seja o exemplo máximo da caracterização que pode resultar dessa ferramenta.

269 P. Harsh, “Penelope and Odysseus in Odyssey XIX”, p. 2.

172
5. OdISSeU ec(A)lIPSAdO

Uma das particularidades da Odisseia que mais chamam a atenção dos


estudiosos é a omissão do nome do herói na abertura do poema, em franca opo-
sição ao que vemos na Ilíada, onde Aquiles é mencionado já na primeira linha:

O varão me evoca, Musa, multiforme, que muitíssimo...

A fúria agora canta, deusa, do Pelida Aquiles...

De fato, apenas no verso 21 ouvimos Homero falar “Odisseu”. Não se tra-


ta, naturalmente, da criação de um suspense: todos que ouvimos e lemos essa
narrativa, mesmo que pela primeira vez, sabemos de quem se trata. O acrésci-
mo do adjetivo “multiforme” (polútropon), além do mais, especifica de maneira
inequívoca o herói cuja característica principal é a versatilidade. A omissão, no
entanto, tem uma função clara no contexto mais amplo do poema: anunciar
um motivo seu fundamental, que Irene de Jong chama de “supressão do nome”
e está ligado, na realidade, à questão da identidade.270 Em outras palavras, o
fato de Odisseu ser tardiamente nomeado – e, mais do que isso, virar o foco da
ação apenas no Canto 5 – parece ser um recurso para indicar os problemas de
identificação por que passa ao longo da história, desde seu desaparecimento
até a progressiva reconquista de sua posição em Ítaca. Nesse sentido, é inte-
ressante notar como o termo ándra, “varão”, que pode adquirir aí uma multipli-
cidade de significados – sendo empregado em grego em referência ao senhor
do lar, ao marido e ao homem adulto (além de poder ser usado como sinônimo
de ánthropos, “ser humano”) –, de certa maneira também antecipa os papéis
sociais que Odisseu terá de recuperar até o final da narrativa.
Visto em seus detalhes, esse motivo da supressão do nome – e, por ex-
tensão, do desaparecimento – desdobra-se em dois movimentos distintos: de
um lado, temos um Odisseu que fica sem nome (e sem renome) de modo invo-
luntário, à sua revelia; e, de outro, um herói que procura voluntariamente essa
omissão, que a emprega como estratégia fundamental exatamente para que
assim se afirme a sua identidade. Como vemos, nos dois casos estamos diante

270 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 7.

173
de uma relação estreita entre nomeação e existência – mas não uma relação
simples, em que uma leva necessariamente à outra. A ausência de nome pode
ser ora um risco, ora fonte de sucesso para Odisseu; o mesmo, deve-se dizer,
vale para a nomeação, algo a princípio fundamental nessa sociedade aristocrá-
tica, mas que a sinuosidade típica de Odisseu maneja de outra forma.
Grosso modo, pode-se dizer que num primeiro momento o herói é vítima
dessa ameaça a seu (re)nome, tornando-se depois o agente consciente dessa
supressão. Na estrutura complexa do poema, não é possível delimitar de modo
simples esses dois momentos, uma vez que, embora avance de modo progres-
sivo, a narrativa apresenta um trecho retrospectivo em primeira pessoa que
complica essa apresentação. Desde a partida de Troia até os sete anos na ilha de
Calipso (Cantos 9 a 12), acompanhamos essa progressiva ocultação de Odisseu,
contra a sua vontade, ao passo que desde sua chegada à terra dos feácios até
sua vitória sobre os pretendentes, notamos o movimento inverso, um anonima-
to deliberado cujo fim é exatamente a afirmação do astuto Odisseu (Cantos 5-8
e 13-24). Enquanto nexo fundamental entre esses dois movimentos – quando o
problema da nomeação ganha síntese máxima – está o episódio com o Ciclope,
no Canto 9, porque nele vemos Odisseu, em sequência, sendo não só exitosa-
mente “Ninguém”, mas também ruinosamente “Odisseu”; a primeira nomea-
ção aponta o caminho para sua existência gloriosa, mas é a segunda que traz as
consequências imediatas do seu desaparecimento. O curioso, no entanto, é que
todo esse episódio nos é apresentado – pelo próprio Odisseu – no momento em
que ele mesmo faz a transição entre anonimato e renome.
Vou deixar para o Capítulo 8 a análise do modo pelo qual Homero explo-
ra essa ocultação voluntária do nome: ainda que já possa ser identificada nas
viagens de Telêmaco (espelho do pai) e na estada de Odisseu junto aos feácios,
é somente a partir do Canto 13 que, associada aos motivos do disfarce e do re-
conhecimento adiado, ela ganha pleno destaque. Neste capítulo, quero abor-
dar a ameaça que Odisseu experimenta em relação a seu nome tal como nos é
apresentada pelo narrador nos cantos iniciais e, sobretudo, no Canto 5, quando
ainda está sob o poder da ninfa Calipso. Também quero mostrar nas páginas
seguintes a possível ligação entre esse desaparecimento e a cólera divina, não
só de Posêidon, mas também de Atena.
É importante dizer que essa questão do renome atravessa, paradoxalmente,
um poema que é, na visão dos próprios gregos, a afirmação inequívoca das suas

174
figuras centrais. Ou seja: o poema traz como um de seus temas a discussão sobre o
alcance da glória, mas esse debate interno contrasta com nossa apreensão externa
– de que a glória está garantida. Esse uso da metalinguagem não é estranho à Ilía-
da, onde a fama – essa transcendência da condição finita por meio da palavra que
relembra – também é almejada pelos heróis. Além do mais, lá também o herói prin-
cipal, Aquiles, nos é apresentado como cantor, tal como Odisseu na Odisseia – na
verdade, ainda mais, porque Odisseu é na Odisseia um “cantor” entre aspas (como
veremos), enquanto o Pelida de fato empunha a lira e entoa versos no canto da em-
baixada. No entanto, na Odisseia, como se sabe, as referências à atividade do canto
são muito mais recorrentes (sobretudo por causa dos dois personagens cantores,
Fêmio e Demódoco), e a relação com esse tópico se apresenta de um modo mui-
to mais complexo e irônico, na medida em que a figura central emprega a reme-
moração para reavaliar suas aventuras, exercendo sobre sua audiência um efeito
mesmerizante. De qualquer maneira, apesar dessas diferenças, a visão a respeito da
“glória” na Odisseia não parece ser diferente da apresentada na Ilíada.

» não-visto, não-dito

No diálogo entre o rei Alcínoo e Odisseu (ainda sem revelar sua identi-
dade) no Canto 8 da Odisseia, ouvimos essas palavras ditas pelo feácio, no mo-
mento em que interpela o forasteiro a respeito de sua identidade:

Fala o nome (ónoma) pelo qual pai e mãe lá te chamavam,


e os demais, os da cidade e os residentes à volta.
Pois ninguém é totalmente anônimo (anónimos) dentre os homens,
seja vil ou seja bravo, depois que primeiro nasce,
já que os pais, depois que geram, atribuem um a todos...
(Od. 8, 550-554)

O efeito da passagem é irônico, porque ela antecipa a narrativa sobre o


Ciclope, que será apresentada para o leitor/ouvinte apenas no Canto 9, embora
Odisseu, na cronologia de suas ações, já tenha sido “Ninguém” e tenha corrido
o risco de desaparecer do contato com homens. Ao mesmo tempo, ela surge,
no Canto 8, em meio a dois cantos de Demódoco em que figura, como agente
central, o próprio Odisseu, já devidamente renomado e sendo “alguém”.

175
Essa espécie de tensão vem indicada muita claramente no Canto 1, no di-
álogo entre Telêmaco e Atena-Mentes. De um lado, o filho evita usar o nome do
pai, enquanto a deusa, de outro, insiste em nomeá-lo (v. 196, 207, 212, 253, 260,
265), num jogo entre supressão e afirmação de glória, como já apontou Irene de
Jong.271 No final, o jovem acaba por falar em “Odisseu” (v. 354, 396, 398), ainda que
para ele, naquele momento, de uma perspectiva humana, o pai pareça ter tido o
destino de um total desaparecimento, bem pior que a morte. Como o próprio Te-
lêmaco diz, articulando as ideias de desaparecimento e ausência de renome:

Mas quiseram de outro modo – com astúcias más – os deuses,


que aquele fizeram ser não-visto (áiston) mais que os demais
homens: eu não sofreria tanto assim com sua morte
se ele houvesse com amigos caído em terra troiana,
ou entre os braços dos seus, depois que tramou a guerra;
para ele então teriam feito a tumba os panacaios,
e ao filho seu grande glória (kléos) no porvir também traria.
Porém agora as Harpias o arrebataram inglório (akleiôs):
foi-se, não-visto (áistos), não-dito (ápustos) – e para mim pranto e dor
deixou (...).
(Od. 1, 234-243)

A concatenação dos termos é reproduzida com dificuldade na tradu-


ção: no original, não só á-istos (“não-visto”) e á-pustos (“não-dito”) aparecem
justapostos (isto é, sem conectivo) e sonoramente muito semelhantes, numa
formulação duplamente enfática em grego, como dão continuidade à ideia de
privação contida no advérbio a-kleiôs (literalmente, “in-gloriamente”) do verso
anterior, como que o explicando. Em outras palavras, o que Telêmaco quer dizer
é que o sumiço de Odisseu – o fato de não ter sido visto e dele não se ter notí-
cia – está diretamente associado a um fim inglório, que ameaça seu renome e
compromete também o de seus familiares. A morte na Guerra de Troia teria per-
mitido que ele tivesse seu próprio túmulo, sinal concreto de seus feitos e de sua
existência na memória dos vindouros.272 Odisseu, no entanto, teria sido vítima

271 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 18.


272 Os versos 239-240 são repetidos, com pequenas modificações gramaticais, pela sombra
de Aquiles ao se dirigir a Agamênon no Canto 24 (v. 32-33), e a glória do próprio Aquiles, com

176
das Harpias (que aqui perecem representar os “espíritos da tempestade”),273 não
sendo assim mais alvo do olhar e das palavras alheias.
Repare-se como os qualificativos áistos e ápustos têm um sentido passivo,
algo que não é comum no caso do segundo: á-pustos (da mesma raiz do verbo
punthánomai, “informar-se”), além de se referir a alguém sobre quem não se
tem informação (como é o caso aqui), pode indicar o estado em que não se tem,
ativamente, informação sobre algo, como em Od. 4, 675 (Penélope) e Od. 5, 127
(Zeus), quando então equivale a um “sem saber”. O mais interessante, contudo,
é perceber que esses termos têm uma associação direta com a atividade do can-
to, como a própria palavra kléos em grego. Já vimos que kléos, conectando-se
ao verbo “ouvir”, klúo, pode ter o sentido mais corriqueiro do que é “falado”,
“veiculado”, e ainda – num plano metafísico – o valor de “glória”, “permanên-
cia do nome” através de sua menção/rememoração.274 Como na cultura grega
o veículo para essa glória é a palavra cantada e ritmada, também o próprio
canto (aoidé), os próprios poemas ou versos podem ser designados como kléa,
“glórias”.275 Numa fórmula, pode-se dizer que kléos é o “dito-ouvido”, a informa-
ção disseminada, e, simultaneamente, o “cantado-celebrado”, o poema. Assim
como ocorre com uma passagem já citada (Od. 24, 197-197), a fala de Telêmaco
a respeito de Orestes deixa muito clara essa identificação entre kléos e aoidé:

Aquele [Orestes] sim se vingou, e muito, e agora os acaios


para os vindouros irão levar vasta glória (kléos) e canto (aoidén).
(Od. 3, 203-204)

Ora, nessa mentalidade, não ser visto nem dito/ouvido pode significar,
igualmente, não ser alvo do canto. Na realidade, o que Telêmaco quer dizer, ao

sua tumba “visível ao longe”, é referida em seguida pelo Atrida (v. 80-94). A mesma ideia
reaparece no lamento de Odisseu no Canto 5, quando se julga fadado a uma destruição
ignóbil no mar (v. 306-312), e no Canto 7 da Ilíada (v. 82-91).
273 W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 26.
274 Na famosa formulação de Aquiles do Canto 9 da Ilíada, o kléos é áphthiton, “imperecível”
(v. 413). Na Odisseia, marcando a mesma associação com a imortalidade divina, Odisseu diz,
também no Canto 9, que seu kléos “atinge o céu” (v. 20). No Canto 8 da Ilíada, é a fama do
escudo de Nestor que “atinge o céu” (v. 192).
275 As ocorrências de kléa (plural de kléos) com o sentido de cantos, poemas, são as
seguintes: Il. 9, 189 e 524; e Od. 8, 73.

177
afirmar que Odisseu se foi áistos ápustos, é – como apontam Walter Merry e
James Riddell – que “ninguém sabia nada dele como testemunha ocular, e nin-
guém tinha ouvido nada a seu respeito de alguém que o tivesse visto”. Em apoio
a essa leitura, eles invocam o verso 40 do Canto 23 da Odisseia, quando Euricleia
diz a Penélope sobre a matança dos pretendentes, curiosamente empregando
também aqui um assíndeto: “Não vi (ouk ídon), não me informei (ou puthómen)”
– ela apenas ouvira os gemidos.276 O que esses comentadores do século XIX não
dizem é que o aedo igualmente, quando entoa seus cantos, é como se tivesse
visto aqueles acontecimentos e personagens ou se informado a respeito deles. A
passagem decisiva está no Canto 8; Odisseu diz ao cantor Demódoco:

pois é com extrema ordem que cantas a sina acaia


– quanto fizeram, e quanto aguentaram e sofreram –,
como se presenciaras (autòs pareón) ou escutaras de alguém (állou akoúsas)...
(Od. 8, 489-491)

Os verbos não são os mesmos, mas as ideias sim: da perspectiva pura-


mente humana, para que alguém ou algo seja falado, rememorado, é preciso
que tenha sido visto por quem rememora, ou que sua notícia tenha se espalha-
do. Demódoco, através do auxílio das Musas, pode ter acesso direto a acon-
tecimentos que nunca presenciou (e sua cegueira reforça esse poder) e sobre
os quais não se informou. Não é o que acontece, por exemplo, com Nestor e
Menelau, no momento em que Telêmaco pede informações do pai, repetindo
os mesmos versos:

Por isso eu agora alcanço teus joelhos, caso queiras


evocar (enispeîn) a destruição odiosa dele – se viste (ópopas)
com teus olhos, ou relato de um outro alguém tu ouviste (ákousas),
que vagava (...).
(Od. 3, 92-95 = 4, 322-325)

Lembre-se que o jovem havia recebido de Atena-Mentes o seguinte


comando no Canto 1:

276 W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 26-27.

178
e parte pra te informares (peusómenos) do teu pai já ido há muito,
a ver se algum dos mortais diz (eípeisi) algo, ou se ouves (akoúseis) Notícia (Óssan)
vinda de Zeus, a qual mais leva glória (kléos) para os homens.
(Od. 1, 281-283)

Portanto, diante dos dois heróis, a expectativa de Telêmaco é desfazer


exatamente o temor expresso no Canto 1 de que o pai permaneça “não-visto,
não-dito” – e essa própria possibilidade de ser “evocado” já é uma garantia de
glória. Nesse sentido, repare-se na posição de destaque dos verbos “ver” e “ou-
vir”, fechando, em ritmo idêntico, os versos em que aparecem nos Cantos 3 e 4,
e ainda no emprego de um verbo para o ato de narrar (enispeîn) que é o mesmo
com que a Musa é interpelada na abertura do poema (énnepe).
Com Nestor, no Canto 3, Telêmaco não tem sucesso: a visita reafirma o su-
miço do pai. Nos versos imediatamente anteriores aos citados acima, o filho de
Odisseu indica como a situação do pai é oposta à dos demais homens que lutaram
em Troia: sobre todos os outros há notícia (peuthómetha) de onde cada um en-
controu seu fim, mas a destruição dele é “sem-notícia” (apeuthéa), pois ninguém
pode dizer ao certo como morreu (v. 84-91). Em sua longa resposta, Nestor ter-
minará por dizer, sobre essa “destruição sem notícia” de Odisseu, que ela assim é,
pois ele mesmo chegou “sem notícia” (apeuthés, v. 184). Esse adjetivo apeuthés,
empregado em ambas as passagens (primeiro ativamente, depois passivamente),
é um equivalente do já visto ápustos, presente no Canto 1 para caracterizar Odis-
seu como aquele “sobre o qual não se tem notícias”. As formas assim se comple-
tam, aqui e lá, reafirmando o desaparecimento do herói, num sentido profundo.
Com Menelau, no Canto 4, a princípio tem-se a impressão de que o fracas-
so se repetirá, com nova falta de notícia/glória de Odisseu: sem que Telêmaco
tenha revelado sua identidade, o anfitrião lhe diz que tem “dor ilatente” (ákhos
álaston, v. 108) pelo amigo “ido há muito” (deròn apoíkhetai, v. 109). No entanto,
os breves relatos de Helena (sobre como Odisseu adentrou Troia disfarçado de
mendigo, v. 242-264) e de Menelau (sobre como impediu que o estratagema
do cavalo fracassasse, v. 271-289), ao darem conta da astúcia característica do
herói, já servem como afirmação de sua fama, no momento em que ela parece
estar sob risco.277 Telêmaco, já tendo então se identificado, esclarece o motivo

277 O verso que abre ambos os relatos é idêntico (v. 242 e 271): “Mas que coisa a que o po-
tente varão realizou e ousou” (all’ hoîon tód’ érexe kaì étle karteròs anér).

179
de sua viagem, num verso que antecede aqueles citados acima, ditos igualmen-
te a Nestor e Menelau (Od. 4, 322-325 = 3, 92-95); mais uma vez confere-se im-
portância capital à possibilidade de algo ser dito concretamente a respeito de
Odisseu, que o tire dessa condição de desaparecimento:

Vim pra ver se evocarias (eníspois) pra mim sinais (kleedóna) do meu pai.
(Od. 4, 317)

O verbo – já vimos – remete à atividade das Musas, enquanto o substan-


tivo kleedón provém da mesma raiz que indica o ato de “ouvir”/“celebrar” (klúo/
kleío).278 Mais uma vez, a resposta é extensa, e a informação fundamental para
Telêmaco vem apenas perto do fim, quando Menelau conta que Proteu “viu”
(ídon) Odisseu retido à força na ilha de Calipso, infeliz e sem naus para regressar
(Od. 4, 555-560).
Dentro dos termos analisados, devemos dizer que a informação de Menelau
não provém do fato de ter visto com os próprios olhos, mas de ter ouvido o relato de
alguém. Trata-se, portanto, de uma informação indireta, mas fundamental, porque
tira Odisseu do limbo: ele foi visto (por Proteu) e sobre ele há notícias (dadas por
Menelau, que ouviu o velho do mar dizer). Mais do que isso: sua ausência em Ítaca
é fruto de uma coerção e ele sofre com o afastamento. A viagem a Esparta, assim,
fazendo menção a Calipso, nos conduz naturalmente ao Canto 5, onde acompanha-
remos o modo pelo qual se dá a relação com a ninfa e como ela terá fim.
Não precisamos, é bom esclarecer, esperar pelo fim da “Telemaqueia”
para vermos a negação do desaparecimento de Odisseu e termos a certeza de
sua volta – como se o poema deixasse essa questão em suspenso. Sabemos des-
de o prólogo do poema, pelo narrador (“veio por fim o ano/ no qual os deuses
tramaram seu regresso para casa”, v. 16-17), e pelas bocas de Zeus (“que todos
nós aqui presentes pensemos/ na volta, em como virá”, v. 76-77) e Atena (“este
plano sem-erro/ – a volta do experiente Odisseu”, v. 86-87), que seu retorno está
garantido. Ainda de uma perspectiva superior, no Canto 2 ouvimos também a
predição de Haliterses de que Odisseu não vai ficar por muito tempo longe dos
seus (v. 164). Além do mais, como já apontamos, os próprios relatos de Nestor e,
principalmente, de Menelau e Helena sobre as façanhas do herói, nos Cantos 3 e

278 Veja-se a definição desse substantivo no dicionário de Richard Cunliffe (A lexicon of the
Homeric dialect).

180
4, reforçam, indiretamente, a condição gloriosa de Odisseu. Nesse contexto, no
entanto, esta afirmação de Penélope, aparentemente tão peremptória, parece
constituir uma exceção, porque estabelece com certeza aquilo que, do ponto de
vista de um mortal, ainda deveria ser duvidoso:

Pois tal é essa cabeça que saudosa sempre lembro,


do homem cuja glória (kléos) é vasta na Hélade e em meia Argos.279
(Od. 1, 343-344)

Mas a situação em que estas palavras são ditas ajuda a explicá-las: esses
versos encerram o pedido que a rainha faz a Fêmio para que deixe de cantar
o ruinoso regresso dos guerreiros de Troia. Ou seja: Penélope agarra-se a uma
permanente rememoração (“sempre lembro”, memneméne aieí) que garanta a
existência do herói, e para tanto precisa silenciar o canto que remete à sua des-
truição. A exceção parece, assim, confirmar a regra: a esposa insiste em falar em
“glória” precisamente porque sente que esta está em risco.
A “Telemaqueia”, portanto, com a omissão de Odisseu e o sentimento de
ameaça a sua glória, não nos quer deixar, em momento algum, com um sentimen-
to de dúvida em relação ao desfecho de suas aventuras. A perspectiva divina – do
narrador e dos personagens sobre-humanos – nos garante o retorno do herói e o
estabelecimento definitivo de seu renome. Além do mais, a informação franque-
ada a Telêmaco por Nestor – de que Odisseu está vivo na ilha de Calipso – permite
também que o jovem tenha, ao fim, um conhecimento maior sobre o pai, deixan-
do para trás a ideia de que morrera (como tinha dito publicamente no Canto 2, v.
46), ideia com que os pretendentes vão trabalhar até o momento da sua morte
(deles). Essa garantia da existência de Odisseu, contudo, ainda se liga a uma ine-
xistência, pelo seu contato com a ninfa que representa o próprio encobrimento
(como se verá adiante). A questão que se coloca, assim, não é propriamente se e
como o herói vai deixar essa condição, mas por que a ela chegou, por que viu sua
glória ameaçada, por que correu o risco de se tornar definitivamente “não-vis-
to”, “não-dito”, tendo, como disse George Dimock, “a obscuridade como maior
inimigo”.280 Em outras palavras, estamos, no início da narrativa, diante dos efeitos

279 “Hélade e meia Argos” parece indicar “toda a Grécia”; ver W. Merry & J. Riddell, Homer’s
Odyssey, vol. 1, p. 39.
280 G. Dimock, The unity of the Odyssey, p. 15.

181
de uma ação passada, efeitos prestes a serem revertidos pela intervenção divina
de Atena e Zeus, mas ficamos nos perguntando sobre suas causas. Sabemos que
elas serão apresentadas, em detalhes, pelo próprio Odisseu, em suas narrativas
entre os Cantos 9 e 12, mas é possível detectar entre os Cantos 1 a 4 alusões im-
portantes ao que teria motivado esse temporário desaparecimento.

» O retorno, os deuses e o “ódio seu”

A omissão do nome de Odisseu, com ele mesmo se autointitulando “Nin-


guém” num canto central do poema, vem se juntar a outro expediente funda-
mental da Odisseia: a associação em grego de Odusseús com o verbo odússo-
mai. Por meio de alguns jogos de palavra, Homero parece querer, com essa
etimologia fantasiosa mas eloquente, que vejamos em “Odisseu” um nome tão
transparente quanto o de outros personagens da narrativa. Por conta do senti-
do elástico do verbo – e em função da presença da voz média em grego (além
da ativa e passiva) –, os estudiosos não estão totalmente de acordo em relação
à ideia que se quer transmitir ao nome do herói. Jenny Clay, em seu livro sobre a
Odisseia, define assim o verbo odússomai:

significa ‘ter sentimentos hostis ou inimizade em relação a alguém’. O termo


abarca uma gama de sentidos, incluindo ‘sentir irritação’, ‘odiar alguém’, ‘cha-
tear’, ‘perturbar’, ‘ofender’.281

Clay mostra que na Ilíada o verbo aparece quatro vezes, tendo como su-
jeito Zeus ou os deuses (Il. 6, 138; 8, 37 = 468; e 18, 292), sempre designando a
cólera ou irritação divina. Na Odisseia, o uso é idêntico, sendo que o alvo da ira
dos deuses é sempre Odisseu.282 A única exceção é o debatido passo do Canto
19, quando temos a seguinte fala de Autólico, avô do herói:

Genro meu e filha minha, dai o nome que eu disser:


já que chego aqui com muitos me dirigindo o ódio seu (odussámenos)
(mulheres e homens, ao longo do chão multialimentante),

281 J. Clay, The wrath of Athena, p. 59-60. Nosso Dicionário Grego-Português dá os seguin-
tes sentidos: “zangar-se, irritar-se contra alguém”.
282 J. Clay, The wrath of Athena, p. 62-64.

182
Odisseu (Oduseús), por isso, seja o nome a chamá-lo (...).
(Od. 19, 406-409)

Por causa da voz média, o particípio odussámenos pode ser tomado como
“odiando”, “tendo ódio”, “irritando-se” – como acontece em todas as outras
ocorrências do verbo, quando devemos optar por uma forma ativa em portu-
guês –, ou ainda, se lido passivamente, como “sendo odiado”, “sendo alvo da
irritação”. O esclarecimento desse ponto gramatical é importante para decidir-
mos se “Odisseu” é tomado aí como “o que sente ódio/irritação” ou, ao contrá-
rio, “o que é alvo do ódio/da irritação”. Para a helenista norte-americana, deve-
-se preservar o delicado balanço entre esses dois sentidos, de modo a vermos
o herói, de modo geral, como o “homem da cólera”; nesse sentido, ela afirma:

O nome de Odisseu revela-se então como portador não de um, mas de dois
sentidos. Ele se refere tanto ao ativo e “autoliqueano” causador de proble-
mas quanto à vítima passiva da cólera divina. Enquanto “homem de cólera”,
Odisseu não só causa problemas como se vê em apuros pela hostilidade dos
deuses. Esses dois aspectos de Odisseu, enquanto vítima e vitimizador, coe-
xistem lado a lado e correspondem à mesma duplicidade que observamos no
epíteto que o identifica, polútropos. A duplicidade de Odisseu está em toda
parte na Odisseia.283

Essa posição, na realidade, não é nova: o comentário de Walter Merry e


James Riddell, do final do século XIX, já indicava essa ambivalência,284embora
ela não fosse corrente entre os comentadores mais antigos, que, segundo John
Peradotto, optavam por ver aí um sentido exclusivamente passivo (misetheís,
“detestado”, como propõe o escólio a Od. 19, 407), ainda que destoante do em-
prego mais comum do verbo.285 O próprio Peradotto, contudo, veio a se tornar
talvez o principal propositor da indeterminação, como mostra o título de seu

283 J. Clay, The wrath of Athena, p. 64; ver também p. 62, nota 17.
284 W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 8.
285 V. Di Benedetto (Omero: Odissea, p. 1019), explorando a terminação –eus, como em hie-
reús, “sacerdote”, entende que Autólico inverte no Canto 19 o uso mais comum no poema e
que o valor do verbo é ativo, “odiando”. D. Monro (Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 169) também
não admite sentido passivo.

183
importante livro, Homem na voz média: nome e narrativa na Odisseia, no qual faz
uma excelente discussão do problema.286
Para tornar a questão ainda mais intrincada, deve-se dizer que, para alguns,
a noção de “dor” também está implicada em odússomai, por conta de uma possível
associação etimológica com o substantivo odúne, “tristeza”, e com o verbo odúro-
mai, “lamentar-se”, o que faria com que pudéssemos entender o verbo como “se-
mear dor para alguém”. O principal defensor dessa leitura foi George Dimock, que
vê Odisseu como o herói que primeiro experimenta a dor para, depois, infligi-la a
seus inimigos. A conexão seria explorada pelo próprio herói, ao jogar com a forma
dativa odúneisin (Od. 17, 567) e a genitiva odunáon (Od. 19, 117) de odúne.287
Diante desses elementos, que posição adotar? Parece-me que no origi-
nal as ideias de “cólera”, “irritação” e “ódio” têm preponderância sobre as de
“dor”, “sofrimento” (a que inevitavelmente se associam), e que a interpretação
mais antiga – que fica com o valor passivo para a passagem do Canto 19 – deve
ser ainda mantida, fazendo com que tomemos “Odisseu” como “o odiado” ou
“o alvo da irritação”. Essa é a visão esposada, mais recentemente, por Irene de
Jong em seu comentário,288 e deve-se dizer que mesmo Clay e Peradotto, que
preferem manter a “abertura” semântica, propõem ambos traduções iniciais
em que Odisseu surge como “alvo do ódio”. No contexto, essa ideia aparente-
mente se ajusta melhor ao comportamento ladino de Autólico, que despertaria
reações desfavoráveis por superar a todos “em furtividade e jura” (kleptosúnei
th’hórkoi te, Od. 19, 396), e marcaria uma contraposição, pela carga negativa, ao
nome benévolo aparentemente sugerido por Euricleia, “Poliareto” (poluáretos),
literalmente, “Multirrogado” ou “Aquele por quem muito se orou” (Od. 19, 404).
Além disso, o entendimento de que “Odisseu” é “o detestado” vem confirmado

286 John Peradotto, Man in the middle voice: name and narration in the Odyssey. Princeton:
Princeton University Press, 1990, p. 129-142.
287 G. Dimock, The unity of the Odyssey, p. 4, 13 e 246-263. Ele mesmo, no entanto, dá mais
ênfase à ideia de ódio e hostilidade contida no verbo (ver, por exemplo, p. 73-74). W. Stanford
também trabalha com esse campo semântico em seu comentário, vendo Odisseu como o
“filho da dor”; ver The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 215, e vol. 2, p. 328 e 332-333, onde sublinha
conexão do verbo com odúne. Em um artigo anterior, no entanto, Stanford preferiu destacar
o valor passivo de odússesthai e ver o herói como aquele “fadado ao ódio”; ver seu “The Ho-
meric etymology of the name Odysseus”, Classical philology 47 (1952): 209-213. Ver também
o comentário de R. Rutherford, Homer: Odyssey – Books XIX and XX. Cambridge: Cambridge
University Press, 1992, p. 185-186.
288 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 477.

184
por um fragmento atribuído a Sófocles, em que o próprio herói justifica a ori-
gem de seu nome, possivelmente numa alusão à Odisseia:

Corretamente (orthôs) tenho pelos males o apelido de Odisseu:


pois recebi de muitos – hostis a mim – o ódio seu (odúsanto).
(Fr. 965 Pearson = 965 Radt)289

Os argumentos mais fortes, na realidade, vêm da própria Odisseia: em todas as


demais ocorrências do jogo entre Odusseús e odússomai, fica claro que o movimento
é no sentido de apresentar Odisseu como alvo da irritação ou do ódio divino, e não
como alguém que, inversamente, sente ódio. Primeiramente, é Atena quem faz o
trocadilho, ao se dirigir a Zeus (a mudança em português para a terceira pessoa do
singular, em lugar da segunda, como está no grego, foi feita com a intenção de se
recriar o jogo):

(...) Acaso Odisseu


junto às naus argivas não te agradou com sacrifícios,
na vasta Troia? Por que lhe vota Zeus o ódio seu (odúsao)?
(Od. 1, 60-62)

Depois é Ino, no Canto 5, que assim interpela o herói, destacando a cone-


xão entre irritação divina e sofrimento humano:

Malfadado, por que assim o treme-terra Posêidon


deu-te espantoso ódio seu (odúsato), muitos males semeando?
(Od. 5, 339-40)

Finalmente, temos duas ocorrências em que o próprio Odisseu explora


esse jogo verbal, num monólogo do mesmo Canto 5 e no momento em que
mistura verdades e mentiras para Penélope, no Canto 19:

289 A tradução foi adaptada para recriar em português o jogo original. Literalmente temos:
“Pois muitos me odiaram, hostis a mim”. O fragmento é citado por J. Clay, The wrath of Athe-
na, p. 60, nota 12. Lembre-se da conhecida explicação dada ao nome “Helena” (“arrebatado-
ra”) no Agamênon de Ésquilo (v. 681-698).

185
Sei como o ódio seu me dá (odódustai) o célebre Treme-terra.
(Od. 5, 423)

(...) pois lhe deram o ódio seu (odúsanto)


Zeus mais o Sol, cujas vacas seus companheiros mataram.
(Od. 19, 275-276)

Em todos esses passos odússomai tem, de fato, um sentido mais ativo para nós
– “odiar”, “irritar-se com” –, mas é o fato de Odisseu ser o alvo sempre dessa irritação
que parece permitir que, na formulação de Autólico do Canto 19, o verbo possa ser
lido passivamente, não como “irritando-se”, mas sim como “sendo alvo da irritação”.
Sendo assim, a nomeação do bebê Odisseu tem valor profético, antecipando a perse-
guição divina que sofrerá; na estrutura enviesada do poema, os trocadilhos com que
vamos nos deparando ao longo da narrativa, pelos quais “Odisseu” vai sendo equa-
cionado com o “ódio seu” (dos deuses), recebem sua explicação no derradeiro jogo, à
época de seu nascimento, quando já é denominado “o odiado”.
Se fica então sugerido que Odisseu é o odiado, se esse nome resume o
próprio homem e seu destino (nomen est omen, já dizia outro jogo), devemos
nos perguntar que ódio é esse, como Homero o apresenta e quais as consequ-
ências para a nossa compreensão do comportamento do herói. Vimos, nos tro-
cadilhos, as referências a Zeus, Posêidon e o Sol como portadores dessa cólera,
nos Cantos 1, 5 e 19, mas é preciso explorar ainda outras menções fundamen-
tais, principalmente na parte inicial do poema. A de Posêidon é certamente a
mais evidente, porque se apresenta como fator decisivo na volta retardada de
Odisseu; além do mais, ela já nos é apresentada no prólogo, pela boca do narra-
dor e de Zeus, respectivamente:

Mas, com o passar do tempo, quando veio por fim o ano


no qual os deuses tramaram seu regresso para casa,
pra Ítaca, nem então se livrou dos desafios,
mesmo entre os seus. Dele todos os deuses se apiedavam,
menos Posêidon, que contra o quase-deus Odisseu
sem parar se enfurecia (asperkhès menéainen), até atingir sua terra.
(Od. 1, 16-21)

186
Mas o terra-tem Posêidon sempre cólera insistente (askelès aieì kekhólotai)
tem por causa do Ciclope cujo olho ele cegou,
do quase-deus Polifemo, cujo poder é o maior
entre todos os Ciclopes: Toosa, a ninfa, o gerou
(a filha de Fórcis, que é o senhor do mar infértil)
em suas fundas cavernas, misturada com Posêidon.
Desde então o treme-terra Posêidon a Odisseu
não mata, mas faz vagar pra longe da terra pátria.
Mas vamos, que todos nós aqui presentes pensemos
na volta, em como virá! Posêidon vai pôr de lado
sua cólera (khólon), pois não conseguirá contra todos
os imortais lutar só, à revelia dos deuses”.
(Od. 1, 68-79)

Sabemos que, apesar de sua importância para a história, essa cólera só se


manifestará de fato uma única vez, no Canto 5, depois de Posêidon descobrir que
Odisseu deixou a ilha de Calipso (v. 282-450). Ao ver o herói navegando sobre o mar,
o deus se encoleriza (ekhósato, v. 284) e desencadeia uma tempestade que faz com
que subitamente “a noite surja do céu” (v. 294).290 Odisseu responsabiliza Zeus pela
tormenta (v. 303-304) mas, a partir da intervenção de Ino, que associa explicitamen-
te o sofrimento do herói ao “treme-terra Posêidon” (v. 339) – no já mencionado pas-
so do trocadilho, onde fala do deus como também alguém que “se enfurece” (me-
neaínon, v. 341) –, a partir daí também Odisseu passa a se referir especificamente a
essa divindade (v. 423 e 446), embora ainda pareça hesitante nos versos 356-357, em
que imagina o ardil de “um dos imortais” por detrás das palavras de Ino.
Essa perseguição aOdisseu por parte de uma divindade indeterminada é indicada
porTelêmaco no Canto 1, quando recorre ao mesmo campo semântico ao dizer a Atena-
Mentes que, ao invés de um destino glorioso para o pai, “quiseram de outro modo, com
astúcias más, os deuses (kaká metióontes theoí)” (Od.1, 234). Mas a afirmação mais
contundente da percepção de uma ira divina – sem um rosto específico – voltada contra
o herói vem no Canto 10, quando Éolo diz a Odisseu, ao vê-lo de volta, depois da ajuda
recebida (repare-se na repetição enfática, pleonástica, dos versos finais):

290 Como nota Jim Marks, Posêidon ironicamente favorece a chegada de Odisseu à terra
dos feácios e, portanto, sua volta a Ítaca com grande quantidade de presentes; ver Zeus in
the Odyssey, p. 44-47.

187
Vai-te depressa da ilha, mais infame dos viventes!
Pois para mim não é regra ajudar ou transportar
um varão que é detestado (apékhthetai) pelos deuses (theoîsin) venturosos.
Vai-te, já que detestado (apekhthómenos) pelos deuses (theoîsin) aqui chegas!
(Od. 10, 72-75)

Notamos nessas referências, conforme a perspectiva e o conhecimento de


quem fala, a atribuição dos sofrimentos de Odisseu ora ao descontentamento de
Posêidon (por causa do cegamente do Ciclope), ora de um deus não especificado
(por razões não explicitadas), ora do Sol (por causa da matança das vacas rea-
lizada pelos companheiros), ora ainda de Zeus (de quem depende, no final das
contas, toda e qualquer divindade, e a própria distribuição da justiça, em sentido
amplo). O conjunto dessas menções nos levaria, assim, a supor uma combinação
básica das iras de Posêidon e do Sol contra o herói – por conta de atos narrados
pelo próprio Odisseu nos Cantos 9 (cegamento do Ciclope) e 11 (morte do gado
sagrado do Sol) –, cóleras essas que seriam por sua vez subsumidas e avalizadas
pelo crivo superior de Zeus, sem o qual não poderiam ser de fato levadas a cabo.
Como os estudiosos já notaram, contudo, a dificuldade de Odisseu em
retornar para casa parece operar com outro elemento complicador, além dos já
citados: uma suposta cólera por parte de Atena, a deusa que, paradoxalmente,
se dispõe a ajudar na Odisseia o herói que é, no plano humano, a própria
corporificação da inteligência por ela representada. Lemos efetivamente no
Canto 1 que a “volta odiosa” dos guerreiros de Troia – por ação da deusa – já se
transformara em tema de canto:

Cantava o célebre aedo pra eles, que se sentavam


em silêncio, ouvindo: a volta (nóston) de acaios ele cantava,
odiosa (lugrón), que desde Troia lhes dera vibrante Atena.
(Od. 1, 325-327)

O sofrido retorno de Odisseu também teria origem num desfavor não es-
pecificado de Atena? Essa única alusão seria insuficiente para permitir que explo-
rássemos esse motivo, mas o fato é que ele reaparece, de modo perturbador, nos
Cantos 3 e 4, onde acompanhamos outras experiências de navegação de volta
para casa, após a guerra, e ainda no Canto 5. Na narrativa de retorno de Nestor,

188
somos informados da cisão do exército acaio, entre Menelau e Agamênon, no
momento da partida (v. 130-200): em seu relato, o conflito inicialmente é visto
como um plano de Zeus para que os argivos tivessem uma “volta odiosa” (lugròn
nóston), já que nem todos eram “sensatos e justos” (noémones oudè díkaioi) na
tropa (v. 132-134). Na sequência, a atribuição a Zeus permanece (“Zeus preparava
sofrimento”, v. 152, “Zeus ainda não queria a volta”, v. 160, e talvez em “o nume
planejava males”, v. 166), mas a ela vem se entrelaçar a notícia de que o mau des-
tino de muitos se devia à “fúria destrutiva” (ménios ex oloês, v. 135) de Atena, de
que havia uma “terrível cólera” (deinòn khólon, v. 145) da deusa que deveria ser
aplacada. Com a referência ainda ao Treme-terra, que deveria ser propiciado (v.
178-179), vemos que a deusa vem efetivamente se juntar, como elemento não
desprezível, ao esquema já visto de atribuição de um retorno desfavorável a Zeus/
divindade/Posêidon (este último visto através de seu domínio sobre o mar).
O relato de Menelau, bem mais extenso, reforça o motivo da cólera divi-
na em associação à volta da guerra, trazendo novamente Atena à baila. Antes,
ele mesmo já havia indicado que é Zeus quem concede o retorno (v. 172-173)
e que a presença de obstáculos deve ser vista – em relação especificamente
a Odisseu – como fruto de uma irritação divina (agássesthai theòs autós, v.
182-183). Na descrição propriamente dita de suas aventuras (v. 349-352), ele
menciona a sua retenção no Egito por falta de hecatombes (v. 351-360) e por
“ofender os imortais” (athanátous alitésthai, v. 376-378); o atraso pela ausên-
cia de sacrifícios a Zeus e outros deuses, apontado por Proteu (v. 472-474);
e a necessidade de se reverter a cólera divina (theôn khólon, v. 583). A essas
referências mais gerais, no entanto, vem se juntar um trecho decisivo, relativo
à morte do Ájax Oilida, alvo não só da ira de Posêidon – o que não nos surpre-
ende, em se tratando de uma travessia marítima –, mas também de Atena.
Quem assume a função de narrar é o onisciente Proteu, em fala reportada
em discurso direto por Menelau. Segundo o velho do mar, primeiro Posêidon
atirou Ájax contra rochedos marinhos, mas depois o salvou, embora detesta-
do (ekhthoménos) por Atena; o herói, no entanto, ao dizer palavra sobrancei-
ra (huperphíalon épos), grandemente se perdeu (még’aásthe): imaginava ter
conseguido escapar “contra a vontade dos deuses” (aéketi theôn). Ouvindo-o,
Posêidon fez com que se afogasse (Od. 4, 499-511).
Diante desses relatos, porém, que dado concreto teríamos a respeito de
uma cólera de Atena dirigida contra seu protegido Odisseu? Com base em quê

189
poderíamos integrá-la a esse esquema de perseguição que envolve Zeus, Posêidon
e o Sol? O paralelo com os outros retornos seria o bastante para suspeitar que
o mesmo vale para o herói da Odisseia? Uma passagem que ainda não citamos
parece ser decisiva; no momento em que Hermes chega à ilha de Calipso para
determinar a soltura de Odisseu, ele dirige à ninfa as seguintes palavras:

Diz ele [Zeus] que está contigo o mais triste dentre os outros
varões que em torno à cidade de Príamo combateram
por nove anos, e que após pilhá-la ao décimo foram
pra casa. Mas no retorno ofenderam (alítonto) a Atena,
a qual lhes mandou um vento ruim e mais altas ondas.
Pereceram então todos os seus bravos companheiros,
e para junto daqui o trouxeram onda e vento.
(Od. 5, 105-111)

Repare-se como ressurge aqui a mesma ideia empregada por Menelau, de que
o atraso no retorno se liga ao ato de “ofender” (alítasthai) os deuses, com a diferença
de que aqui está dito que a ofensa se dirige especificamente a Atena, e Odisseu está
claramente implicado. A partir disso, poderíamos considerar “a inescapável conclu-
são de que Odisseu está perdido porque não soube escapar da cólera de Atena”, tal
como coloca o problema George Dimock?291 O próprio Dimock resolve a dificuldade
propondo que Hermes estaria sugerindo uma versão tradicional do mito, mas que a
resposta seguinte de Calipso, em que diz que Zeus estilhaçou a nau do herói (v. 130-
134), nos mostraria que Homero não trabalha com essa versão na Odisseia.292 Para
esse estudioso, portanto, essa discussão não deve ser levada adiante.
Outra estudiosa, no entanto, atribuiu a esse tópico um papel central, a
ponto de figurar como título de seu livro sobre a Odisseia: trata-se do já citado A
cólera de Atena, de Jenny Clay, de 1983. Para ela, o tema da ira dessa divindade se
desenvolve progressivamente nos cantos iniciais, ganhando um destaque cada
vez maior. Além dos passos elencados acima, Clay explora a ausência da deusa
junto ao herói desde sua partida de Troia até o princípio do poema, ausência
sentida pelos leitores/ouvintes entre os Cantos 9 a 12 e referida por três vezes,

291 G. Dimock, The unity of the Odyssey, p. 40.


292 G. Dimock, The unity of the Odyssey, p. 38-40 e 65.

190
chegando à conclusão de que a razão para o sumiço é, exatamente, a cólera de
Atena.293 Veja-se, por exemplo, o que ela diz sobre a fala de Hermes, citada acima:

ao chegarmos a esse ponto, a rede de alusões à cólera de Atena envolveu Odis-


seu de modo ainda mais cerrado. Agora, por fim, essa passagem notável im-
plica definitivamente Atena nos problemas de Odisseu, desde sua partida de
Ílion, passando pela perda dos companheiros até sua chegada a Ogígia. A po-
sição desses versos – imediatamente antes da primeira aparição de Odisseu na
Odisseia – não poderia ser mais enfática ou significativa. A deusa que, a partir
de agora, vai proteger e apoiar o herói nem sempre se mostrou tão favorável.
Sua presente benevolência deve ser entendida como a transformação de uma
hostilidade anterior.294

Em seguida, a estudiosa se pergunta qual seria a causa de tal ira.295 A res-


posta vem bem à frente, só no Capítulo 4. Clay lembra aí que os poemas do Ciclo
Épico trabalhavam com esse motivo da cólera de Atena, e que vários episódios
poderiam ter sido evocados por Homero para comprometer Odisseu, como o
assassinato de Palamedes ou o roubo do Paládio. Ela propõe, contudo, que Ho-
mero não está interessado nas causas tradicionais e que devemos nos ater às
evidências internas.296 Analisando então o diálogo do Canto 13 entre Atena e
o herói, onde vê uma alusão à ira da deusa (quando ele fala a respeito de “um
deus vir dispersar os acaios”, v. 317),297 ela chega à conclusão de que Odisseu é
o vencedor dessa disputa verbal, e que essa vitória – que ele, em seu “último
triunfo”, estaria espertamente apresentando como “aparente derrota” –298 é a
chave para a compreensão do descontentamento divino:

É possível descobrir a causa da cólera de Atena dentro dos limites dessa cena.
Em certo sentido, ela reencena a ofensa que originalmente provocou a fúria.

293 As referências estão em Od. 13, 314-319 e 341-43; e 6, 324-331; ver J. Clay, The wrath of
Athena, p. 43-46.
294 J. Clay, The wrath of Athena, p. 46.
295 J. Clay, The wrath of Athena, p. 52.
296 J. Clay, The wrath of Athena, p. 187-188.
297 J. Clay, The wrath of Athena, p. 201.
298 J. Clay, The wrath of Athena, p. 208.

191
Para dizer de um modo simples, senão cru demais, Odisseu é esperto demais;
sua inteligência gera um questionamento da superioridade dos próprios deuses.
(...) A inteligência de Odisseu, sua mêtis, gera um questionamento da hierar-
quia fundamental entre deuses e homens e das fronteiras que os separam.
Buscar romper esses limites que dividem homens e deuses pode levar ao hero-
ísmo e sua recompensa, kléos áphthiton, “glória imperecível”, mas certamente
provoca a exposição a um grande perigo.299

Dessa maneira, Clay articula às cóleras mais explícitas do poema – de Po-


sêidon, do Sol e, como deus supremo, de Zeus – a uma cólera “subterrânea”
de Atena, que não precisa necessariamente se alinhar aos motivos tradicionais
da perseguição da deusa a outros heróis. Ao mesmo tempo, a estudiosa forne-
ce uma explicação para o fato de Atena não estar presente ao lado de Odisseu
em suas aventuras, fato reconhecido tanto por ele quanto por ela no poema, e
que intriga os estudiosos. Quanto à explicação para o fim da ira, Clay acredita
que ela se associa não a uma possível transformação do herói em face dos seus
sofrimentos, mas “à pressão dos acontecimentos em Ítaca” e à necessidade de
“trazê-lo para casa para endireitar a situação”.300
Essa leitura tem dois problemas principais. Em primeiro lugar, ela dá
destaque excessivo a uma suposta vitória de Odisseu no “embate” do Canto 13,
quando a passagem parece indicar, ao contrário, que a afinidade entre o herói
e a deusa está indelevelmente marcada pela superioridade desta em relação
àquele: afinal, é Atena quem controla a situação (como Penélope no Canto
23), e Odisseu – apesar dos ardis – não é capaz de reconhecê-la. Sendo assim,
não está indicada na cena nenhuma ameaça à soberania da deusa, como se o
herói pudesse se alçar à mesma condição e sua astúcia ser alvo de uma recusa
divina. Não há, em outros termos, nenhuma soberba humana assinalada, que
pudesse resultar no surgimento de uma cólera imortal, nem uma justificativa
para o abandono dessa mesma cólera que vá na direção apontada pela norte-
americana. É verdade que, como a própria Clay defende na abertura do livro,
com muita propriedade, não se deve simplesmente descartar uma leitura
porque ela não está dita ou indicada, com todas as letras, no texto. A tarefa

299 J. Clay, The wrath of Athena, p. 209, grifo original.


300 J. Clay, The wrath of Athena, p. 234.

192
do intérprete consiste em organizar, num todo coerente e significativo, não
só o que o poema diz, mas também (e sobretudo) o que ele deixa de dizer, o
que vai implícito e pode ser inferido nas entrelinhas; a interpretação, em suma,
é o resultado da soma entre o dito e o não-dito, soma sempre imprecisa e
pessoal, na qual o literal tem que necessariamente se articular a um subtexto
para ganhar sentido – tanto mais persuasivo quanto mais plausível parecer essa
articulação. Portanto, a princípio não podemos negar validade à leitura de Clay
simplesmente porque Homero não afirma em momento algum que a causa da
cólera de Atena consistia numa perigosa rivalidade de Odisseu.
Aqui, contudo, devemos levantar o segundo entrave à sua interpretação:
além de o poema não mostrar nem indicar nenhuma disputa do tipo como ori-
gem da ira e da ausência de Atena (a cena do Canto 13 é antes um momento
de afirmação da impossibilidade de disputa), temos o fato de que a Odisseia
indica, claramente, a fúria de Posêidon como motivo do desaparecimento da
deusa junto ao herói. Vejam-se estes trechos do diálogo entre Odisseu e Atena;
primeiramente, ele contrapõe a sua dificuldade em reconhecer a presença da
divindade a outro conhecimento, este inequívoco:

Mas isto eu mesmo bem sei: que antes me foste foste gentil (epíe),
enquanto em Troia lutávamos nós, os filhos dos acaios.
Porém, depois de pilhar pólis íngreme de Príamo,
embarcar nas naus e um deus (theós) vir dispersar os acaios,
depois não te vi, menina de Zeus, nem te percebi
pisando na minha nau, pra me tirar de uma dor.
(Od. 13, 314-319)

A explicação de Atena ocupa apenas três versos; repare-se no emprego


da partícula grega toi (“naturalmente”; “o fato é que”, na tradução), que tem
valor inferencial, isto é, sugere a anuência do interlocutor:

Mas o fato é que (toi) eu não quis contra Posêidon lutar,


contra um irmão de meu pai que guardou rancor (kóton) por ti
– colérico (khoómenos) por tu teres cegado o querido filho.
(Od. 13, 341-343)

193
Clay vê exatamente nessa explicação a “fraqueza” de Atena e a chave para o
entendimento da “vitória” de Odisseu: haveria aí uma grave inconsistência, uma vez
que “o álibi da deusa abrange apenas o período posterior ao cegamento do Ciclope”,
não dando conta do período precedente, da partida de Troia até o incidente com
Polifemo; ligada a essa inconsistência, além do mais, viria se juntar uma mentira:
a afirmação dela de que “sempre estou/ em todos os sofrimentos do teu lado, te
guardando” (Od. 13, 300-301) teria sido posta a nu pelo próprio Odisseu na fala cita-
da acima.301 A estudiosa, no entanto, recorre nesses momentos a um enfoque tipi-
camente analista – em busca da lógica férrea do texto –, o que compromete, a meu
ver, suas conclusões.302 Podemos afirmar, em resposta aos problemas colocados,
que a fala de Atena sobre o apoio constante ao herói é válida e verdadeira, porque
tem valor geral (não se chocando com o fato de a deusa ter ficado ausente por um
período), e que o intervalo de tempo entre a partida de Troia e o episódio com o Ci-
clope é insignificante, não afetando a justificativa de Atena para seu sumiço. Buscar
aqui uma cronologia exata e precisa parece ser contraproducente. 303
Se ficarmos, no entanto, com o texto, e aceitarmos que a falta de atuação
da deusa se liga a uma subordinação sua à cólera do tio – compreensível
dentro do esquema de respeito às prerrogativas e às áreas de atuação de cada
divindade –, não teremos esclarecido a presença de uma suposta cólera sua
contra Odisseu. Em outras palavras, teríamos a explicação para sua ausência,
mas nenhuma indicação de sua ira. O poema, efetivamente, não explicita em
momento algum um sentimento tal da deusa em relação ao herói, mas, ainda
assim, é possível afirmar que, diante do fato de ser Odisseu “o odiado” e de ser
Atena tradicional perseguidora dos guerreiros que retornam, indiretamente se
estabelece um descontentamento da deusa como pano de fundo para grande
parte das viagens do herói. Trata-se, assim, de uma ira latente, um desfavor

301 J. Clay, The wrath of Athena, p. 44 (grifo original) e 201-204.


302 Note-se como ela cita na p. 44, em tom de aprovação, o raciocínio infalível de W. Woo-
dhouse, autor de The composition of Homer’s Odyssey (Oxford: The Clarendon Press, 1930).
303 Para Paul Wathelet, que nos lembra também que Atena “está espantosamente ausente
durante todo o périplo do filho de Laertes”, tempo em que “Odisseu experimenta um nú-
mero considerável de perigos, diante dos quais a ajuda da deusa teria sido bastante útil”, a
desculpa dada aí é igualmente “pouco satisfatória”; para ele, a ausência se deve ao fato de
que, desde a chegada à terra dos lotófagos, Odisseu abandona o mundo real e esse domínio
que ele penetra repugna aos deuses. P. Wathelet, “Athéna chez Homère ou le triomphe de la
déesse”, Kernos 8 (1995): 167-195, p. 180.

194
silencioso, segundo o qual podemos deduzir que, não sendo a deusa “benévola”,
foi então “malévola”, juntando-se a Zeus, Posêidon e o Sol. Se não há na
Odisseia, da parte do herói, qualquer ofensa a Atena, há contudo a indicação
de um tradição em que a cólera desempenha papel central: portanto, mesmo
que Homero não jogue abertamente com ela, ficamos de todo modo com uma
espécie de “contaminação” em relação a Odisseu, como se o fato de a deusa se
submeter à cólera do tio representasse um apoio ou sanção a esse sentimento.
No que diz respeito especificamente à astúcia, há um outro ponto talvez
ainda mais importante, na medida em que a ausência da deusa (e seu implicado
desfavor) representa um enfoque negativo dessa qualidade do herói, um mau
funcionamento, diminuição ou quase anulação de sua esperteza, o que faz com
que as viagens do herói contrastem, de modo geral, com a segunda metade do
poema, quando a divindade de “claros olhos” tem atuação fundamental junto
ao protagonista. É verdade que ficamos muito próximos aqui de uma leitura ale-
górica, ao propormos que o sumiço de Atena equivale a um “sumiço” da astúcia
de Odisseu, mas isso talvez seja inevitável, uma vez que nosso modo de leitu-
ra deriva, no final das contas, do mesmo racionalismo. De qualquer maneira, o
ponto que quero destacar é bastante específico: parece-me que o “desapareci-
mento” indesejado a que fica sujeito Odisseu em suas aventuras – precisamente
quando a deusa se ausenta – está associado a uma incapacidade de conseguir,
por vontade própria, desaparecer. Ou seja: o movimento que é fundamental no
homem astuto – saber se ocultar sempre que assim desejar, como vemos na se-
gunda metade da narrativa – dá lugar a uma ocultação involuntária, sobre a qual
não tem controle, e que representa uma ameaça à existência e glória do herói
“multiastuto”. Odisseu é vítima de sua arma principal.
Esse Odisseu menos ou nada astuto, esquecido por Atena, odiado por
Posêidon com a anuência de Zeus, surge assim para nós como figura mais
complexa e menos plana, associada a um Menelau, que ofende os deuses, a um
Ájax Oilida, vítima de sua própria presunção, e aos acaios em geral, nem todos
sensatos e justos. Nesse sentido, Clay parece estar no caminho certo ao atribuir
certa soberba ao herói Odisseu, que explicaria sua perseguição por uma cólera
divina. Não estamos diante de um herói unívoco e modelar, como querem muitos
estudiosos: assim como os soberbos pretendentes, alvos da fúria dos deuses
(mênis theôn, Od. 2, 66), que com esses jovens se agastam (agassámenos, Od.
23, 64), e assim como seus “atrevidos” companheiros, também Odisseu parece

195
sofrer o que sofre por conta de uma transgressão moral ou atrevimento, ainda
que esta não seja jamais explicitada, ficando apenas sugerida – um efeito difuso
produzido pelo poema (significativamente reforçado pela rememoração em
primeira pessoa) que ajuda a tornar assim mais denso um personagem que, do
contrário, seria apenas exemplo de conduta.304
O problema moral, sabemos, se liga diretamente a Zeus e Posêidon, tra-
zendo ainda consigo a questão das prerrogativas divinas e da justiça. Vamos
abordá-lo em mais detalhes no Capítulo 8, mas talvez seja oportuno citar agora
as palavras de Karl Reinhardt sobre a “coincidência de vontades”:

Na cólera de Posêidon há um elemento negativo. Ele simplesmente quer seus


direitos de deus. Ele não se preocupa com nada mais que venha a acontecer.
Mas mesmo esse lado negativo se sujeita a um grande elemento positivo,
Zeus. Zeus permite que ele vá em frente, embora sua cólera afete o todo. (...)
O mistério dessa coincidência de vontades (...), na qual Zeus e Posêidon têm
o mesmo objetivo, ainda que cada um pense em algo diferente, aponta para a
presença, nessa poesia, de um pano de fundo teológico.305

O que estou propondo aqui é que a essas cóleras se conecta, sub-repticia-


mente, um descontentamento de Atena, que se manifesta, em termos práticos,
na falta de apoio ao herói em suas viagens, e equivale a um sumiço da astúcia
e a um risco de o próprio herói sumir, quando ele deveria controlar, inteligente-
mente, seu desaparecimento.
No que diz respeito à articulação nos cantos iniciais das ações de Po-
sêidon e Atena em relação a Odisseu, restam ainda algumas questões impor-
tantes. A primeira delas é: por que a deusa muda de postura, isto é, por que
ela agora deixa de se submeter à renitente cólera do tio e volta a ajudar o

304 Em seu livro, que combina crítica e comentário à Odisseia, A. Privitera fala em um “hero-
ísmo perfeito” de Odisseu, marcado pela pietas; ver Il ritorno del guerriero: lettura dell’ Odissea.
Torino: Einaudi, 2005, p. 31, 44 e 52-53. V. Di Benedetto (Omero: Odissea, p. 162), comentando
a fala de Zeus em Od. 1, 66-67 (“[Odisseu], que mais deu sacrifícios/ para os deuses imortais”),
afirma que esse Odisseu “pio” é uma “inovação extemporânea” de Atena no poema. Lembre-
-se que no Canto 24 da Ilíada Zeus também se refere a Heitor como atento aos deuses (v. 66-
70), o que não equivale, contudo, à ideia de um “heroísmo perfeito” seu na história.
305 K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey” [1948, translated by Harriet Flower], em
Seth Schein, Reading the Odyssey: selected interpretive essays, p. 87.

196
herói? A justificativa que dá a Zeus no Canto 1, de que sua “entranha se parte
pelo experiente Odisseu” (v. 48),306 talvez indique um receio de que a anula-
ção do herói, depois de tantos anos, representasse uma ameaça à própria
esfera de atuação da deusa, como se o fim dele a afetasse diretamente. Com
efeito, a afinidade entre Atena e Odisseu vem destacada não só no discurso
seguinte de Zeus – quando afirma que ele “em mente é mais que os mortais”
(v. 66) –, mas também, e principalmente, no diálogo do Canto 13, nestas duas
falas da deusa:

Mas vamos, não mais falemos dessas coisas – sendo os dois


espertos: és o melhor, de longe, entre os mortais todos,
em plano e discursos, e eu, com glória entre os deuses todos,
em astúcia e em espertezas (...).
(Od. 13, 296-299)

Sempre, pra ti, este tipo de pensamento no peito...


Por isso mesmo não posso deixar-te em teus dissabores,
porque és assim, muito atento, e perspicaz, e contido.
(Od. 13, 330-332)

Assim, a reação da deusa, que desencadeia a própria ação da Odisseia,


parece se associar à percepção de que o sumiço do herói (com o qual ela mes-
ma foi conivente, em respeito a Posêidon), se continuasse a se prolongar, in-
terferiria na prerrogativa da própria Atena. Numa fórmula simples, podería-
mos dizer que é o mesmo tópico da honra divina que, primeiro, faz Atena não
agir e depois reagir.
No momento em que põe seu plano em ação, sabemos que a cólera
de Posêidon, efetivamente, ainda não desapareceu, mas isso não leva a
um conflito entre as divindades do tipo que vemos na Ilíada: quando o deus
persegue Odisseu no Canto 5, Atena “aguarda sua vez” para ajudar o herói (v.
382-387, 436-440 e 491-493). Mesmo depois, na terra dos feácios, a deusa evita
aparecer abertamente para seu protegido, em atenção – conforme nos informa
o narrador – à cólera do Treme-terra (Od. 6, 324-331), o que não impede que o

306 Alguns veem aí um jogo – seria o segundo no seu discurso – entre daíphroni (“experien-
te”) e daíetai (“parte-se”). Ver W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 212.

197
herói seja capaz de perceber, posteriormente, que a partir desse ponto contava
novamente com o auxílio divino (Od. 13, 322-323).307
Sobre a ira de Posêidon, devem ser destacados, rapidamente, mais dois
aspectos: apesar de só se manifestar, concretamente, neste Canto 5 (como os
estudiosos não deixaram de notar), é possível dizer que a imobilidade de Odis-
seu na ilha de Calipso ao longo de sete anos e, consequentemente, a própria
ausência de uma travessia marítima são modos de se indicar a fúria do deus,
a qual se apresenta assim como algo estendido no tempo (lembre-se que Ate-
na fala em “rancor”, kótos, em Od. 13, 342).308 Já em relação ao fato de o herói
indagar Atena, no Canto 13, sobre o motivo de seu desaparecimento – quando
ele mesmo, no Canto 5, mostra conhecimento da cólera do Treme-terra –,
devemos supor que a ele escapa o modo como se articulam as diferentes
vontades divinas. Essa sua postura, vinda depois da longa rememoração entre
os Cantos 9 e 12 (em que, como veremos, o conhecimento de Odisseu parece vir
em primeiro plano), promove, assim, uma limitação heroica no contato com a
deusa superior.
Seja como for, temos que reconhecer que tanto para Odisseu quanto
para nós, leitores/ouvintes, a articulação entre os motivos divinos permanece
sempre complexa e sinuosa, resistente a um esclarecimento total. O que
tentamos ressaltar aqui, contudo, é que Odisseu, sendo “o odiado”, associa-se a
um motivo fundamental – da cólera divina –, e que esse motivo, sendo ativado
na narrativa por meio de outros retornos e de toda uma tradição que vai aludida,
não só implica a figura de Atena, mas também a abordagem da qualidade
principal desse herói e uma problematização do seu comportamento, do ponto
de vista ético. Se é fato que a narrativa não se posiciona abertamente a esse
respeito, ainda assim pode-se propor que essa estratégia tem o efeito de não
inocentar Odisseu ou livrá-lo de qualquer questionamento, mas antes de dar ao
herói um tratamento mais oblíquo e rico, que ressoa mesmo nos versos finais do
poema, quando Atena lhe diz:

307 Sobre essa ausência de conflito direto, ver S. Saïd, Homer and the Odyssey, p. 346-347.
308 Seth Schein afirma que “a hostilidade de Posêidon (...) parece (para o leitor, mas não
para Odisseu) sobretudo simbólica: uma expressão, no plano narrativo, do mar como uma
barreira natural”. Ver sua “Introdução” em S. Schein (ed.), Reading the Odyssey: selected in-
terpretive essays, p. 15.

198
Laercida divogênito, multiengenhoso Odisseu:
abstém-te, e cessa a disputa da guerra niveladora,
pra nunca o Cronida, Zeus amplividente, ter cólera (kekholósetai).
(Od. 24, 542-544)309

» Isolado com calipso

Se o motivo do ódio divino explica o desaparecimento de Odisseu e vem


destacado nos cantos iniciais, o desaparecimento, por sua vez, fica simboliza-
do por Calipso e a estadia em sua ilha, por sete anos (“aí fiquei sete anos”, diz
ele a Arete no Canto 7, v. 259). A princípio, pode parecer excessivo se dedicar a
um episódio que, se bem que temporalmente extenso na cronologia do poema,
narrativamente recebe pouca atenção: no Canto 5, desde a chegada de Hermes
até a partida de Odisseu, temos pouco mais de duzentos versos (v. 55-269) en-
volvendo Calipso, número que não pode ser comparado com o espaço ocupa-
do pelas demais aventuras, narradas pelo próprio herói entre os Cantos 9 e 12.
Além do mais, a longa estadia na ilha não faz parte dessas rememorações – algo
significativo, mas pouco explorado pelos estudiosos –, o que faz com que acom-
panhemos, de todo esse período, apenas os instantes que precedem a saída de
Odisseu de Ogígia. Ou seja: o acontecimento que mais marcou o herói, que foi
sua experiência mais duradoura em todo o tempo em que ficou ausente desde
o fim da Guerra de Troia, esse acontecimento não só é apresentado com muita
brevidade, mas também a partir do momento em que está prestes a ter fim.
Por que então dar destaque a Calipso, quando as outras peripécias nos
remetem também a morte, ocultação e esquecimento, como veremos adiante?
A resposta parece estar no fato de que a Odisseia explora de maneira muita evi-
dente a transparência de sentido do episódio, e de que na estrutura narrativa ele
serve de moldura para as viagens do herói. Os dois motivos estão interligados.
A ilha Ogígia emoldura a narrativa porque é daí que Odisseu sai no Canto 5 e é
para aí que Odisseu vai ao final do Canto 12: no Canto 5, é o narrador que nos
apresenta a partida, e o movimento é de abandono da “ocultação”, enquanto
no Canto 12 é Odisseu que narra a própria chegada, e o movimento é de um

309 Em Il. 16, 384-393, a cólera de Zeus é diretamente associada a um comportamento


injusto dos homens. Sobre esses versos finais da Odisseia, ver C. Segal, Singers, heroes, and
gods in the Odyssey, p. 226.

199
“mergulho” no desaparecimento. Como afirma, na mesma linha, Charles Segal,
trabalhando com as ideias de “morte” e “renascimento”:

A ilha de Calipso, Ogígia, é o ponto a partir do qual começam a se contar


os errores de Odisseu, e o ponto no qual o próprio herói conclui o relato,
na Esquéria. A longa série de vicissitudes e testes é assim emoldurada, de
ambos os lados, pela imobilidade da ilha de Calipso. (...) [Ela] então se torna
significativa como um ponto de suspensão, de uma remoção forçada, em que
as qualidades humanas do herói permaneceram inteiramente adormecidas. O
silêncio de Homero a respeito dos detalhes dos anos de Odisseu com Calipso
pode ser lido como um reflexo da irrecuperabilidade característica desse
estado de suspensão do qual ele está tentando retornar.310

Há, claro, uma inversão nessa moldura: lemos primeiro o que, numa crono-
logia linear, aconteceu depois, mas isso se explica não por uma vontade de Homero
de complicar os tempos narrativos – o narrador épico sempre progride em linha reta
–, mas pela inserção do longo discurso rememorativo do herói em primeira pessoa.
Com essa estratégia, o poeta parece querer, justamente, ressaltar o peso que tem
para a existência heroica de Odisseu uma experiência de “esquecimento” como foi o
convívio com Calipso: depois de sair da ilha, com o auxílio de Atena, e chegar à terra
dos feácios, começando assim a restabelecer sua glória, o herói faz em seu longo
relato o movimento inverso, que termina exatamente no ponto em que fica preso e
esquecido em Ogígia. Essas duas pontas são assim atadas de modo eloquente, ga-
nhando por esse expediente do emolduramento ares de advertência e conferindo
às viagens de Odisseu, como diz Jean-Pierre Vernant, “seu verdadeiro significado”.311
Em relação à transparência de significados, alguns pontos já conhecidos
podem ser mencionados, mas antes é preciso atentar para as primeiras referên-
cias a Calipso no poema, pelo narrador e por Atena, respectivamente:

retinha[-o] a senhora ninfa, Calipso, diva entre deusas,


em suas fundas cavernas, ansiando-o por esposo.
(Od. 1, 14-15)

310 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 15.


311 J.-P. Vernant, “The refusal of Odysseus” [1982, translated by Vicent Farenga] em S.
Schein (ed.), Reading the Odyssey: selected interpretive essays, p. 185.

200
Mas minha entranha se parte pelo experiente Odisseu,
malaquinhoado, o qual longe dos seus sofre dores
em ilha envolta por ondas, onde é o umbigo do mar,
ilha arborizada; nela uma deusa tem morada,
a filha de Atlas de espírito funesto, que as profundezas
conhece do mar inteiro e sustém sozinho as altas
colunas que mantêm sempre afastados Céu e Terra.
Sua filha é quem retém o infeliz a lamentar-se,
e sempre com suas moles e sedutoras palavras
o enfeitiça, para que esqueça Ítaca. Mas Odisseu,
empenhado em ver ao menos a fumaça se elevando
de sua terra, quer morrer (...).
(Od. 1, 48-59)

Retenção, caverna, ilha no centro do mar, esquecimento, morte: todas


essas ideias podem ser tomadas aí como glosas do nome da ninfa, Calipso: de-
rivado do verbo kalúpto, “encobrir”, Kalupsó tem em grego o sentido de “A que
encobre”, “A que oculta”. Na Ilíada, essa forma verbal, junto com outra, com o
prefixo amphí-, “em volta”, amphikalúptein, é usada repetidas vezes para indi-
car a ação da morte sobre o homem;312 vejam-se estas cinco ocorrências, só no
sangrento e sombrio Canto 16:

(...) a treva (skótos) encobriu-lhe (kálupse) os olhos.


(Il. 16, 316 e 325)

(...) a nuvem negra da morte (thanátou mélan néphos) o encobriu (amphekálupsen).


(Il. 16, 350)

(...) o termo da morte (télos thanátou) então [o] encobriu (kálupsen).


(Il. 16, 502 e 855)

312 Ver S. Schein, “Introduction” em S. Schein (ed.), Reading the Odyssey: selected interpre-
tive essays, p. 22-24. O sentido de “a encoberta” (ao invés de “a que encobre”) parece menos
adequado, embora ela mesma esteja “oculta” no meio do mar, como aponta Vernant (ver seu
“The refusal of Odysseus”, p. 186). Homero parece ter em mente o efeito do poder da divin-
dade sobre o mortal. O paralelo com peítho, “persuadir”, e Peithó, “a que persuade” (jamais
“a persuadida”), também deve ser lembrado.

201
É bem provável que a associação entre o nome da ninfa e o uso
poético do verbo kalúpto fosse sentida pelos ouvintes de Homero, os quais
consequentemente podiam ver, na “retenção” de que Odisseu era alvo,
a ação de uma “treva” (skótos), de uma “nuvem negra” (mélan néphos), do
próprio “termo” ou “fim” (télos) da vida. A poderosa imagem da escuridão é,
portanto, um correlato inevitável de Calipso, e por isso se pode dizer que, com
ela, Odisseu experimenta uma espécie de “morte simbólica”, como quer Seth
Schein, ou uma “existência parentética”, segundo Vernant.313 Ele corre o risco
de se esquecer de Ítaca (Od. 1, 57) e não ser lembrado pelos seus (Od. 2, 233
= 5, 11), num movimento mútuo de anulação.314 Nesse contexto, vale notar
a presença de um desconcertante paradoxo: essa “morte” pode representar
a imortalidade do herói, enquanto a opção pela condição de mortal (que ele
afinal esposa) é o caminho para a sobrevivência gloriosa. A possibilidade de
uma escolha vem indicada num conhecido diálogo entre a ninfa e o Laercida,
quando da partida deste (Od. 5, 203-224): Calipso diz que, se Odisseu
permanecesse, poderia ser imortal (athánatos t’eíes, v. 209), proposta que o
herói rechaça dizendo-se pronto para novas aflições, a despeito de saber que
a ninfa é “imortal e sem-velhice” (athánatos kaì agéros, v. 218).
É interessante notar que a opção é referida pela ninfa sempre de
passagem – ela já tinha sido mencionada a Hermes (Od. 5, 135-136) –, e que
Odisseu não explicita em momento algum que sua recusa à imortalidade se liga
a um desejo de glória entre os homens. Na realidade, a ênfase do diálogo recai
sobre a escolha que o herói pretende fazer, para sua esposa, entre uma deusa fi-
sicamente superior e livre da velhice, de um lado (Calipso), e uma mulher sem os
mesmos atributos de beleza e sujeita à finitude humana, de outro (Penélope).
Junto com isso, vem sublinhado o espírito paciente e resistente de Odisseu, dis-
posto a aguentar os sofrimentos que o aguardam. O verso 220, no entanto, pa-
rece ser fundamental aí: “ir para casa e ver finalmente o dia da volta (nóstimon
êmar)”, condensando a ideia do movimento de retorno, mostra que é no ato de

313 Ver ensaios em S. Schein (ed.), Reading the Odyssey: selected interpretive essays, p. 22 e 187.
314 Segundo Teógnis (v. 705), é Perséfone quem dá aos homens o esquecimento, léthe, o
que nos mostra como os atos de esquecer e ser esquecido têm conotações subterrâneas;
ver Douglas Frame, The myth of return in Early Greek epic. New Haven: Yale University Press,
1978, p. 36-38.

202
retornar que reside a existência do herói, como a própria Odisseia nos mostra.
Num jogo de palavras, pode-se dizer que ele precisa necessariamente sair da
imobilidade e experimentar sua “Odisseia”, porque essa “Odisseia” é a própria
razão de ser da Odisseia, a qual, por sua vez, é a afirmação incontestável da sua
glória. Portanto, indiretamente, é sim de seu renome imortal que a passagem
trata, ao apresentar Odisseu declinando da vida imortal. Essa “recusa” foi assim
esclarecida por Jean-Pierre Vernant no seu já citado artigo; para ele, Odisseu,
ficando na ilha,

teria de permitir que sua memória fosse apagada na mente humana e que
sua fama póstuma lhe fosse retirada; e, mesmo vivo, teria que permitir a si
mesmo mergulhar nas profundezas da obliteração. No fim, ele teria de acei-
tar uma imortalidade obscura, anônima – tão anônima quanto a morte da-
queles homens sem destino heroico, que formam no Hades a massa indistin-
ta de “anônimos”, nónimoi.315

Importa ressaltar que essa experiência da morte e de aceitação da mor-


talidade – em sua relação com a glória – já tinha sido vivenciada por Odisseu (de
novo: na cronologia da narrativa, mas não na ordem em que ela nos é apresen-
tada) em sua visita ao Hades, que acompanhamos no Canto 11, a qual permitira
que Circe o qualificasse, a ele e a seus companheiros, de “bifinitos” (disthanées):

Pertinazes, que baixastes vivos à morada do Hades


– bifinitos quando os outros homens uma só vez morrem.
(Od. 12, 21-22)316

Como apontou com clareza Charles Segal, a própria narrativa do Canto 5


já sinalizava – antes mesmo de ser mencionada a oportunidade de escolha – a
opção do herói pela morte, quando, entre os versos 194 e 199, Homero nos diz:

Chegaram então à côncava caverna, a deusa e o varão (theòs edè kaì anér).
Ele então se sentou lá no trono de onde se erguera

315 J.-P. Vernant, “The refusal of Odysseus”, p. 188.


316 Ver C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 15 e 40-41.

203
Hermes, e a ninfa foi pondo ao lado muito alimento (pâsan edodén),
de comer e de beber, do tipo que (hoîa) mortais comem.
E ela própria se sentou diante de Odisseu divino (theíoio),
e ao lado as servas puseram a ambrosia mais o néctar (ambrosíen kaì néktar).
(Od. 5, 194-199)

Os termos destacados são aqueles apontados pelo estudioso norte-ameri-


cano, que não deixou de sublinhar o possível “toque de ironia” no uso do epíteto
genérico theîos para Odisseu, a “reforçar a separação” entre deus e mortal descri-
ta na cena.317 Segal também chama atenção para o fato de que, em seguida, junto
aos feácios, a afirmação da condição finita de Odisseu ganhará novamente des-
taque, quando ele, afirmando-se refém do próprio estômago (gastér), rechaçará
para Alcínoo qualquer semelhança com os imortais (Od. 7, 208-225).318
Portanto, quem abraça aqui a condição finita é um herói que, em cer-
to sentido, já experimentava a sua primeira morte. A possibilidade de escolha,
contudo, contrasta com esse mergulho na escuridão não procurado pelo herói,
ao qual ele se entregava por uma determinação superior. Em outras palavras,
se essa morte – pelas experiências com Calipso – representava uma anulação
do retorno, a decisão consciente de ser finito sinaliza a esperança do regresso
e, consequentemente, uma volta à existência. Nesse sentido, a presença de Ino
em seu naufrágio é significativa: agora chamada Leucótea, essa filha de Cad-
mo que passara de humana a divina oferece a Odisseu um “véu imortal” para
que ele não se afogue. Temos aí imagens poderosas de elementos antitéticos,
o encobrimento e a escuridão (véu), e a salvação e a brancura (Leukothée é, li-
teralmente, a “Deusa Alva”), condensadas pela passagem da morte para vida
experimentada por essa figura feminina. Nesse momento, sua presença parece
sintetizar a experiência por que passa Odisseu.319
Nesse Canto 5, além da transparência do nome “Calipso”, que a associa
à morte, há outros aspectos que corroboram essa “morte” de Odisseu, que
poderia representar uma vida eterna para ele, mas da qual escapa para ter fama

317 Ver C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 38 e nota 4.
318 Ver C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 23.
319 Sobre Ino/Leucótea, ver W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 238-239, e o
fragmento 70M-W de Hesíodo, citado por A. Edwards, Achilles in the Odyssey, p. 77. No mito
tradicional, ela mesma morrera por afogamento.

204
imperecível. Poderíamos citar o já aludido motivo da supressão do nome, que
ocorre entre os versos 43-248, quando nem Hermes nem Calipso pronunciam
“Odisseu”,320 mas mais interessante é explorar as semelhanças entre Calipso e a
corrente infernal de Estige (descrita por Hesíodo na Teogonia, v. 775-806). Elas
foram apontadas por Douglas Frame no seu livro O mito do retorno na épica grega
arcaica; seguindo sua análise, podemos elencar ao menos quatro significativos
pontos de aproximação entre ambas:321

1. vivem apartadas e em cavernas;


2. Calipso é filha de Atlas “que sustém colunas” e Estige é cercada por colunas;
3. Calipso retém em isolamento Odisseu, e Estige, os perjuros; e
4. “Ogígia” é nome (ou epíteto) da ilha de Calipso e qualifica Estige.

Para uma audiência familiarizada com essas referências tradicionais, é bem


provável que a aproximação fosse imediatamente feita, conferindo novas camadas
de sentido à estada de Odisseu junto à ninfa. Vale ressaltar que a ação de Estige con-
tra os perjuros (que equivale inicialmente a um “coma” ou adormecimento, e depois
a um longo isolamento) estende-se por nove anos, com a libertação vindo apenas
no décimo, num esquema que tem eloquentes contatos com a Odisseia.
Para concluir a lista de alusões neste Canto 5, não custa lembrar que o
mensageiro Hermes é também o deus “psicopompo”, que conduz as almas ao
Hades (como o faz no Canto 24, com os pretendentes mortos), o que sugere
uma alusão “subterrânea” ao seu contato com Calipso no Canto 5. Gregory Crane
chamou atenção para isso em seu livro sobre Calipso,322 explorando em detalhes –
esta talvez a principal contribuição do trabalho – os paralelos que se estabelecem,
por conta das situações típicas, entre o Canto 5 da Odisseia e o Hino homérico a
Deméter.323 Em ambos os episódios, Hermes é o deus que desce com a missão de
determinar uma soltura, de Odisseu/Perséfone junto a Calipso/Hades. É verdade

320 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 127.


321 Ver D. Frame, The myth of return in Early Greek epic, p. 166-169, e também J.-P. Vernant,
“The refusal of Odysseus”, p. 186, nota 2.
322 G. Crane, Calypso: backgrounds and conventions of the Odyssey. Frankfurt am Main:
Athenäum, 1988, p. 34-40.
323 Od. 5, 29-213, e Hino homérico a Deméter, v. 334-374; ver G. Crane, Calypso: backgrounds
and conventions of the Odyssey, p. 18-21 e 167-173 (apêndice com comparação passo a passo).

205
que o trecho do hino é bem menos extenso (são em torno de quarenta versos,
contra duzentos) e que, em razão disso, falta uma correspondência mais exata em
certos pontos; de todo modo, as divergências não são suficientes para impugnar
apossibilidade de uma associação e a inferência de que Odisseu, de certa maneira,
encontra-se no domínio dos mortos.

206
6. os feácios e a transição

Talvez uma das maiores unanimidades entre os estudiosos de Homero seja


a visão a respeito do papel “transicional” desempenhado pelos feácios na Odis-
seia.324 Misturando elementos “reais” e “míticos” – como colocou Pierre Vidal-Na-
quet –,325 esse povo parece claramente estabelecer uma “ponte” entre as aven-
turas pregressas, fantasiosas, de Odisseu, e seu reingresso na dura realidade de
Ítaca. Mais do que isso, sua rápida estadia de três dias nessa terra desconhecida
oferece ao herói a oportunidade para que rememore as vicissitudes por que pas-
sou desde a partida de Troia, fazendo assim com que se estabeleça uma relação
narrador-audiência que nos ajuda a entender não apenas as qualidades do prota-
gonista do poema, mas também desses extraordinários anfitriões que o acolhem.
Vou deixar a discussão sobre esse ponto – sobre o canto e a rememo-
ração – para o Capítulo 7, e me deter agora no modo como Homero constrói a
caracterização dos feácios como um povo “intermediário”, que mescla elemen-
tos opostos de modo a mostrar a possibilidade de conexão e passagem de que
tanto necessita Odisseu, possibilidade esta concretamente representada pela
perícia desses homens em navegar. É nesses elementos (disseminados princi-
palmente entre os Cantos 5 e 8) que devemos nos concentrar. A via etimológica,
muitas vezes útil, aqui pouco esclarece, porque tanto o nome do lugar, Esquéria
(Skheríe), quanto o do povo, feácios (phaiékes),326 permanecem obscuros. Po-
deríamos trabalhar com a sugestiva ligação entre phaiékes e o adjetivo phaiós,
“cinza”, termo que em grego, como mostra o dicionário Liddell-Scott, indica
precisamente a mistura do branco e do preto;327 mas parecemos estar diante
apenas de uma associação sonora livre, que prescinde de uma base sólida capaz
de permitir a postulação da hipótese de que essa camada semântica era de fato
incorporada ao texto. O mesmo vale para a ligação entre Skheríe e o substantivo

324 Em 1930, W. Woodhouse já falava da “transição do puramente imaginário para o


possivelmente real”; ver The composition of Homer’s Odyssey, p. 41.
325 Pierre Vidal-Naquet, “Land and sacrifice in the Odyssey: a study of religious and mythical
meanings” [1970, transl. R.L. Gordon], em S. Schein (ed.), Reading the Odyssey: selected
interpretive essays, p. 47-53.
326 Ambos os nomes são mencionados pela primeira vez em Od. 5, 34-35.
327 O termo não aparece em Homero, mas está presente em Platão (Timeu, 68c, e República,
585a). Ver ainda A. Garvie, Homer: Odyssey – Books VI-VIII. Cambridge: Cambridge University
Press, 1994, p. 21.

207
skherós, citada por Bryan Hainsworth em seu comentário: seja aceitando a ideia
de “continuidade” para skherós, seja esposando a sugestão de Hesíquio em seu
léxico – de que o termo é sinônimo de akté e refere-se à “costa”, ao “promon-
tório”, à “beira” (numa possível contraposição com o local habitado antes pelos
feácios, Hupereíe, “terra alta”) –,328 ainda assim tais conexões são dúbias, por
mais tentador que seja imaginar que estariam espelhando, de diferentes mo-
dos, a função transicional desses homens.329
Mais interessante, e com suporte mais evidente no interior do poema, é a
indeterminação sobre ser ou não a Esquéria uma ilha. Ao contrário do que acontece
com Ogígia, claramente referida como nésos (três vezes só no Canto 1, v. 50, 85 e
198), a terra dos feácios nunca é assim definida (Homero usa apenas gaîa), embo-
ra certos elementos, como a fala de Nausícaa no Canto 6, “Vivemos apartados no
multiondulante mar” (v. 204), pareçam querer remeter a um isolamento do tipo.330 A
tradicional identificação com a ilha de Corcira (atual Corfu),331 junto com responder a
um desejo já antigo de mapear as andanças de Odisseu, nos mostra, curiosamente,
como o silêncio do texto não era empecilho para uma convicção de que a terra dos
feácios era insular. Enquanto ilha, a Esquéria surge como um elo perfeito entre a
ilha “mítica” de Calipso e a ilha “real” de Ítaca; por outro lado, enquanto terra conti-
nental, ela igualmente representa firmeza e solidez, uma mitigação do isolamento,
uma possibilidade maior de contato, que se ajusta igualmente ao momento de tran-
sição vivido pelo herói. A indecisão do texto, no entanto, parece ser a melhor solução
para que a ideia de passagem fique sublinhada, assinalando-se assim, em mais um
nível, as oposições de que traremos a seguir.
Neste capítulo, vou abordar primeiro essa condição “fronteiriça”,
de cruzamento entre dois mundos, encarnada pelos feácios, para depois,

328 Ver o que diz Bryan Hainsworth em A. Heubeck et alii (ed.), A commentary on Homer’s
Odyssey, vol. 1, p. 212-213.
329 É interessante notar um possível jogo sonoro, na fala de Zeus do Canto 5, entre skhedíes,
“jangada” (v. 33), e Skheríen (“Esquéria”, v. 34), sugerindo uma associação dessa localidade
com a ideia de movimento, como se fosse uma “terra móvel”.
330 Para B. Perrin, a fala de Nausícaa deixa evidente que se trata de uma terra insular; ver
seu Homer’s Odyssey: Books V-VIII. Boston: Ginn & Company, 1894, p. 5. Já para Walter Merry
e James Riddell (Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 270), a passagem “não é conclusiva para se decidir
que a Esquéria deve ser vista como uma ilha”. Vincenzo Di Benedetto fala em “península” em
seu comentário (Omero: Odissea, p. 404-405).
331 Ela já é mencionada por Tucídides, História da guerra do Peloponeso 1.25: ver A. Garvie,
Homer: Odyssey – Books VI-VIII, p. 19-20

208
restringindo-me ao polo positivo dessa condição, explorar os elementos de
“idealização” desse povo, que têm reflexos sobre a moral geral do poema.

» Fronteira náutica

Quem melhor explorou a “função transicional” dos feácios, que fazem a pon-
te entre dois mundos, foi Charles Segal, no ensaio “Os feácios e o retorno de Odis-
seu”, apresentado em duas partes no livro Cantores, heróis e deuses na Odisseia.332
O enfoque de Segal privilegia o aspecto psicológico e concentra-se na simbologia
do renascimento. Para o estudioso norte-americano, o fato de Odisseu chegar nu à
Esquéria indicaria sua “volta à vida depois de sua quase morte em Ogígia”, motivo
que seria retomado no Canto 22, quando ele se “desnuda dos andrajos” (gumnóthe
rhakéon, v. 1) para dar início ao ataque contra os pretendentes.333 De fato, no poema
a ideia de salvação da morte – ou de um novo acesso à vida – vem bem destacada na
despedida entre o herói e Nausícaa, a jovem que o vestiu em sua chegada:

(...) Nausícaa, tendo a beleza dos deuses,


parou junto da pilastra do teto bem-construído,
e espantou-se quando viu com seus olhos Odisseu.
E exclamando então lhe disse estas palavras aladas:
“Me despeço, hóspede! Mesmo que estejas na terra pátria,
lembra-te de mim, que a mim primeiro deves a vida (zoágria)”.
Como resposta lhe disse o multiastuto Odisseu:
“Nausícaa, tu que és filha do tão magnânimo Alcínoo:
que assim então Zeus permita, o troante esposo de Hera
– eu retornar para casa e ver o dia da volta!
E a ti então, mesmo lá, como a um deus eu clamaria,
todos os dias, e sempre, pois me deste a vida (m’ ebiósao), jovem!”.
(Od. 8, 457-468)

Além desse binômio morte/vida, Segal explora também os pares


secundários atividade/inatividade e sociabilidade/isolamento, no contraste

332 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p 12-64; a expressão aparece na p. 24.
333 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 19 e 36.

209
dos feácios com as duas figuras principais das aventuras de Odisseu, Calipso
e o Ciclope. Sobre a importância do que chama de “justaposição dos feácios e
Calipso” na narrativa, ele diz:

Os feácios, com sua existência ativa, ágil, de marinheiros, são o oposto da ina-
tividade forçada em Ogígia e da falta de meios de transporte que Calipso alega
para Hermes (Od. 5, 141-142). (...) A solidão e o isolamento de Ogígia também
contrastam com o gosto dos feácios pela vida coletiva, em sociedade (...). A
Esquéria representa assim um ponto essencial na passagem da completa sus-
pensão em Ogígia em direção ao completo envolvimento em Ítaca.334

Quanto à relação entre os feácios e os Ciclopes, ela é, como se sabe, aborda-


da pelo próprio narrador da Odisseia. No Canto 6, ficamos sabendo que o povo que é
a própria antítese da selvageria ciclópica outrora viveu perto dela, até que Nausítoo,
pai de Alcínoo, trouxe sua gente para a Esquéria (v. 2-12). De certa maneira, esse mo-
vimento de transposição – de um ambiente bruto em direção a um comedido – ex-
perimentado pelos feácios reproduz aquele agora vivido por Odisseu, habilitando-os
assim a se encarregarem da “reinserção” do herói no mundo civilizado (ainda que este
mundo esteja sujeito à mesma insolência, como se vê pelos pretendentes).
Do mesmo modo, o contato dos feácios tanto com o âmbito divino quan-
to com o mortal os coloca mais uma vez na borda entre dois mundos. Como
afirma Zeus a Hermes no Canto 5, eles “são próximos dos deuses” (agkhítheoi
gegáasin, v. 35 = Od. 19, 279) e, segundo Nausícaa, especialmente estimados
pelos imortais (Od. 6, 203). Ainda assim, não têm a condição divina de Circe ou
Calipso, e ficam sujeitos à cólera de Posêidon.335 O deus, não por acaso, é uma
divindade fundamental para entendermos o papel dos feácios. Segundo afirma
Atena no Canto 7, ele é avô de Alcínoo: Posêidon uniu-se à mortal Peribeia, filha
de Eurimedonte, que fora rei dos Gigantes; dessa união nasceu Nausítoo, pai,
por sua vez, de Rexenor e Alcínoo; Alcínoo, com a morte de Rexenor por Apolo,
casou-se com a própria sobrinha, Arete (Od. 7, 56-66). A passagem estabelece
de vez a conexão dos feácios com o âmbito divino, não só pela presença do an-
cestral Posêidon, mas também pela característica endogamia. Além do mais, a

334 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 16-17; sobre o Ciclope, ver p. 30-32.
335 A esse respeito, ver C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 18, 22-23 e 28-29.

210
ligação pelo lado da avó de Alcínoo, Peribeia, com os “orgulhosos” (huperthú-
moisin) Gigantes, e a morte de Rexenor pela ação de Apolo, reforçam o lado
excessivo – e mortal – do povo, já indicado pela antiga proximidade geográfica
com os Ciclopes, e de certa forma antecipam a ira de Posêidon de que serão
vítimas. Esse parentesco com os deuses, que inclui também uma relação com
os excessivos Gigantes e Ciclopes, é afirmado pelo próprio Alcínoo, quando se
indaga sobre quem seria o forasteiro recém-chegado (Od. 7, 199-206).
A maneira como Odisseu é recebido revela de maneira muito clara essa
tensão característica do povo. Por um lado, temos uma hospitalidade irretocável,
que Nausícaa, a primeira a ter contato com o herói, demonstra possuir de modo
inequívoco. Vejam-se estas duas falas do Canto 6, a primeira dirigida ao forasteiro
e a segunda às mulheres que a acompanham: em uma, a jovem reflete sobre o
destino que Zeus dá aos homens e garante auxílio ao suplicante (v. 187-193); na
outra, afirma que estrangeiros e mendigos vêm de Zeus, e merecem cuidados,
por menores que sejam (v. 206-210). Já no palácio de Alcínoo, é a vez de o ancião
Equeneu dar orientações ao rei Alcínoo sobre como acolher o forasteiro suplican-
te (Od. 7, 162-165), numa fala que indica justiça. Por outro lado, a aparente hesi-
tação de Alcínoo – que o leva a precisar de orientações sobre como agir naquela
situação – vem se juntar a uma falta de sociabilidade, a um isolamento (a cidade é
cercada por muralhas; Od. 6, 262-263), que parecem pôr em dúvida essa hospita-
lidade aparentemente irrestrita. Nesse sentido, sabemos, pelo que diz Nausícaa,
que os feácios vivem “apartados” e não têm “associação com outros povos” (Od.
6, 204-205). Mais do que isso, a jovem diz com todas as letras que há homens “ar-
rogantes” (huperphíaloi, Od. 6, 274) na Esquéria, numa qualificação que é idêntica
à empregada para o Ciclope (Od. 9, 106) e para os pretendentes (em Od. 1, 134 e
227, entre outras ocorrências). O passo não é isolado nem se liga simplesmente a
um possível “ciúme” dos jovens locais em relação ao forasteiro: Atena, disfarça-
da, também reafirma para o herói esse lado não-amistoso dos feácios, quando
comenta que não são muito receptivos com estrangeiros, não tratando bem nem
dando boas vindas a quem vem de outra terra (Od. 7, 31-33). Poderíamos supor
que temos aí apenas um movimento da deusa no intuito de aguçar a atenção e
a desconfiança já características do herói; mas o fato é que a sequência da narra-
tiva comprova que não se pode descartar o desrespeito da parte dos feácios. Na
passagem dos jogos, como se sabe, Euríalo trata de maneira indevida Odisseu ao
desconfiar de sua capacidade atlética (Od. 8, 158-185) e acaba sendo comparado

211
pelo herói a um “homem atrevido” (atastháloi andrí, v. 166). No final, o jovem bus-
ca a reconciliação (Od. 8, 396-416), sem contudo desfazer a impressão de que a
hospitalidade irrestrita guarda dentro de si um lado sombrio e perturbador.
Portanto, estamos diante do que Suzanne Saїd chamou de “terra de con-
trastes”, ilha e continente, com origem divina e destino mortal, hospitaleira e
com uma agressividade latente, isolada e dada à sociabilidade. A uma imagem
inicialmente unívoca vêm se juntar, marginalmente, “notas discordantes”, nos
dizeres novamente da helenista francesa. Para Saïd, na Esquéria

o aspecto selvagem vive lado a lado com a civilização em seu mais alto grau.
Essa dualidade fica aparente desde a chegada de Odisseu. A ilha é coberta por
um denso bosque e a princípio oferece apenas um abrigo natural (Od. 5, 478-
480), apropriado mais para um animal do que para um homem (não por acaso a
mesma fórmula é usada no Canto 19, v. 440-442, para descrever o esconderijo do
javali ferido pelo jovem Odisseu), e um simples leito de folhas. Mas ela também
tem, crescendo junto a uma oliveira selvagem, uma árvore enxertada e cultiva-
da, como aquelas que crescem em Ítaca, bem como “campos cultivados” e uma
cidade de fato, com “longas, altas paliçadas” (Od. 7, 44-45), e uma ágora (...).336

Esses contrastes, como dissemos, podem ser um recurso feliz no poema


para sintetizar a função transicional dos feácios: guardando elementos das duas
“pontas” da viagem de Odisseu, eles podem conectar à sua realidade o homem
oriundo da fantasia.
Concretamente, como também apontamos, é a capacidade náutica des-
se povo a chave para que essa passagem se dê. Como acontece com frequência
no poema, a transparência dos nomes é explorada aqui de modo eloquente. Al-
cínoo, Rexenor e Arete não têm denominações associadas à atividade marítima,
mas Nausícaa (Nausikáa) retoma o avô Nausítoo (Nausíthoos, “Nau-ligeira”), e já
vimos acima a intervenção do velho e sábio Equeneu (Ekhéneos, “Detém-nau”).
O passo fundamental, no entanto, é o catálogo do Canto 8 (v. 111-119), quando
somos apresentados a vários feácios. Na lista abaixo, as traduções apenas verna-
culizam os nomes gregos, tirando-lhes a transparência original, entre colchetes:337

336 S. Saïd, Homer and the Odyssey, p. 179-183. Ver também a excelente introdução de I. de
Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 149-151.
337 Em seu livro, Carol Dougherty mostra bem como a “devoção” dos feácios à navegação

212
Acroneu [Alta-nau]
Ocíalo [Rápido-mar]
Elatreu [Remo-pinheiro]
Nauteu [Navegador]
Primneu [Nau-popa]
Anquíalo [Junto-ao-mar]
Eretmeu [Remeiro]
Ponteu [Marítmo]
Proreu [Da proa]
Tôon [Ligeiro]
Anabesineu [Embarcante]
Anfíalo [Circunda-mar]
Polineu [Multinau]
Tectonida [Construtor].
Euríalo [Amplo-mar]
Náubolo [Lança-nau]
Hálio [Marítmo]
Clitoneu [Nau-célebre]

É curioso notar como essa perícia é revestida ora de um aspecto mágico,


ora realista, como se houvesse aí também uma junção de opostos. Quando
Nausícaa descreve a pólis feácia e o caráter navegador do povo (informação
que Odisseu certamente ouve com alegria), a ênfase recai sobre o trabalho com
as naus, que proporcionam o prazer da travessia (Od. 6, 263-272). Já no Canto
7, Atena diz a Odisseu que se trata de homens “confiantes nas ligeiras naus ve-
lozes”, as quais são rápidas “como asa ou pensamento” (v. 34-36), o que parece
conferir a ela um caráter sobrenatural, ainda que a mesma Atena sublinhe o co-
nhecimento prático, ao afirmar que os feácios são os mais “sabedores” (ídrues)
em navegar” (v. 108-109). Mais adiante, ainda no Canto 7, é a vez de Alcínoo
destacar a condição incomum do transporte marítimo praticado por seu povo,
numa passagem em que o afastamento da Esquéria do mundo conhecido fica
novamente indicado: ele afirma que no passado, ao transportarem Radamante

“está inscrita em seus próprios nomes”; ver The raft of Odysseus: the ethnographic imagina-
tion of Homer’s Odyssey. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 114. Para a recriação dos
nomes, ver C. Werner, Homero: Odisseia, p. 263.

213
para uma terra longínqua, o fizeram “sem esforço” (áter kamátoio) e “no mesmo
dia” (émati tôi autôi, v. 319-328). O trecho aponta para uma combinação – livre
de contradição – entre a ação dos marinheiros (que percutem o mar com re-
mos) e um movimento autômato. Ou seja: ao trabalho dos feácios com suas
naus vem se juntar uma facilidade típica do âmbito divino.338
Na sequência da narrativa, quando Alcínoo começa a tomar as medidas
práticas para a partida de Odisseu, o elemento mágico parece totalmente au-
sente. Primeiro temos esta fala do rei, no início do Canto 8:

Pede prestes um transporte, e suplica por certeza;


que nós, como antes também, aprestemos seu transporte,
pois nenhum outro, nenhum, que chega à minha morada,
sofrendo aqui se demora por causa do seu transporte.
Vamos, agora arrastemos negra nau ao mar divino,
estreante em navegar, e que se escolham cinquenta
e dois jovens pelo povo, que há muito são os melhores.
(Od. 8, 30-37)

Logo a seguir, ocorre a intervenção do narrador, com esta descrição dos


preparativos:

Uma vez selecionados, dirigiram-se os cinquenta


e dois jovens, obedientes, à praia do mar infértil.
Depois então de baixarem para a nau e para o mar,
trouxeram a negra nau para águas mais profundas,
e nela puseram mastro e vela, na negra nau,
ajustando cada remo à sua tira de couro
(tudo na devida ordem), e abriram a branca vela,
e no extremo da baía a ancoraram. Em seguida

338 Alexander Shewan, num artigo da primeira metade do século XX, já se perguntava
“como conciliar a enumeração bombástica de atributos maravilhosos com o relato subse-
quente da travessia e seus preparativos, que correspondem ao que o poeta nos fala de outras
viagens realizadas por naus puramente humanas?”. A resposta que deu então foi a de que se
trata de mentiras típicas dos marinheiros, e que “a extravagante descrição do rei [Alcínoo]
é mera bravata”; ver A. Shewan, “The Scheria of the Odyssey”, The classical quarterly 13/2
(1919): 57-67, p. 63.

214
se dirigiram à casa grande do experiente Alcínoo.
(Od. 8, 48-56)

A passagem mais explícita sobre o modo sobrenatural como operam as


naus fica reservada, no entanto, para o trecho final desse canto:

Fala pra mim tua terra, e teu povo, e tua pólis,


pra que até lá te transportem, autopensantes (tituskómenai phresí), as naus
(pois para os feácios não existem navegadores,
nem mesmo lemes existem, como as demais naus possuem);
conhecem (ísasi) por si a mente e o espírito dos varões;
conhecem (ísasi) ainda as pólis e os ricos campos de todos
os homens, e ligeiríssimas cruzam o golfo do mar,
por névoa e por nuvem encobertas (kekalumménai); e elas jamais
têm medo (déos) de ser nem danificadas, nem destruídas.
(Od. 8, 555-563)

Por aí vemos que, se por um lado as naus são objeto do empenho e da dedi-
cação dos feácios, os quais, quando no mar, atuam como seus remeiros, por outro
elas prescindem dos condutores e lemes típicos das embarcações “mortais”, atra-
vessando o mar por meio de uma espécie de “piloto automático”. Repare-se como
o aspecto divino delas fica destacado através da repetição da ideia de um saber
total (verbo ísasi, “conhecem”, nos v. 559 e 560); através da informação sobre o
“encobrimento”, que as separa, pela invisibilidade, do mundo comum, como se
existissem em outro plano (como as Musas “envoltas por muita névoa” na Teogo-
nia, ou o próprio Odisseu “enevoado” por Atena); e através da ausência de medo
e risco de dano. Em outras palavras, as naus ganham aí uma autonomia notável,
em que, junto com o ato esperado de cruzar ligeiras o mar, são inesperadamente
personificadas, sendo capazes de “saber” e “(não) ter medo”.
Assim se combinam, portanto, mesmo na atividade da passagem,
características contrastantes: o símbolo máximo do “cruzamento” – a atividade da
navegação – reúne em si elementos mesclados, o divino e o humano, a facilidade e o
trabalho. A tensão fica ainda mais forte se considerarmos que esses feácios, um pouco
“mágicos”, podiam ser associados aos fenícios pela audiência homérica, o que ajudaria
a contrabalançar irrealidade com realidade, imaginário livre e ancoragem no mundo

215
concreto. Quem explorou de modo interessante essa associação foi Carol Dougherty,
em seu livro A jangada de Odisseu, de 2001. Segundo essa estudiosa, os feácios
desempenham o papel de “porta de acesso à imaginação etnográfica do mundo da
Odisseia”, sendo apresentados numa chave positiva e idealizada que os opõe, dentro
de um mesmo universo de “troca”, aos gananciosos fenícios (trôktai, Od. 14, 289; e
15, 416).339 Em apoio a essa conexão, Dougherty invoca pelo menos quatro dados
alusivos do texto: a similaridade entre a topografia da Esquéria e da cidade fenícia de
Tiro, assinalada já pelos comentadores;340 o fato de Leucótea, filha do fenício Cadmo,
vir em auxílio de Odisseu no Canto 5 (v. 333 e 334); a menção feita pelo herói ao “broto
de palmeira” (phoínokos érnos) no momento em que saúda Nausícaa (Od. 6, 163), com
o termo para “palmeira” remetendo, pela sonoridade, a “fenício”; e, finalmente, o uso
de um mesmo epíteto,“célebres pelos remos”, nausíklitoi, tanto para fenícios quanto
para feácios – e apenas para eles – na Odisseia (aplicado aos primeiros em Od. 7, 39 e
aos segundos em Od. 15, 415). A partir disso, ela conclui:

o texto da Odisseia apresenta dois povos, os fenícios e os feácios, ambos afa-


mados por seus navios e por sua habilidade náutica, e então os situa em pólos
opostos do espectro da troca (...). Numa ponta está o modelo da contínua re-
ciprocidade, corporificada pelo sistema de troca de dádivas; no outro extremo,
roubo e pirataria representam a completa falta de troca em todos os sentidos.341

De acordo com Dougherty, é possível levar essa dualidade para a própria


figura de Odisseu:

como um mercador fenício, Odisseu viaja pelo mar, pratica o engano e traz
para casa uma grande quantidade de bens valiosos. Ao mesmo tempo, porém,
Odisseu tem muito em comum com os fictícios feácios e, como eles, claramen-
te conhece as regras de hospitalidade.342

339 C. Dougherty, The raft of Odysseus: the ethnographic imagination of Homer’s Odyssey, p.
103, 111 e 113-116.
340 C. Dougherty, The raft of Odysseus: the ethnographic imagination of Homer’s Odyssey, p.
107, que cita W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 275.
341 C. Dougherty, The raft of Odysseus: the ethnographic imagination of Homer’s Odyssey, p. 115.
342 C. Dougherty, The raft of Odysseus: the ethnographic imagination of Homer’s Odyssey, p. 117.

216
Qualquer que seja a interpretação adotada a respeito da ligação entre
feácios e fenícios, é certo que essa possível conexão traz mais um nível de
duplicidade aos transportadores de Odisseu, ao mesmo tempo ligando-os e
separando-os da realidade. É interessante notar, desenvolvendo essa conexão
de Odisseu com os feácios tanto pelo lado justo quanto pelo lado “fenício”,
como o povo da Esquéria, em sua condição fronteiriça e híbrida, acaba sendo
o alvo típico da cólera divina, por praticar “em excesso” sua habilidade. Em
certo sentido, a Odisseia nos mostra como sua hospitalidade pode ser peri-
gosa, caso extrapole os limites, o que não só retoma uma questão central no
comportamento do próprio Odisseu, como a apresenta num sentido inver-
tido: os feácios, ao transportarem Odisseu, contribuem para o fim da cólera
de Posêidon contra o herói, ao mesmo tempo que estabelecem a ira do deus
contra si próprios.
Com efeito, não podemos concluir a discussão sobre a capacidade feácia
de transporte náutico sem abordar esse motivo da cólera. Como já se viu, há um
parentesco entre esse povo e Posêidon – genealogia que em certo sentido expli-
ca o poder que eles têm da travessia. Em termos concretos, os feácios cultuam
o deus, recebendo em troca seu favor no mar. Essa relação de reciprocidade
vem indicada no poema no momento em que somos informados de que o tem-
plo dessa divindade se destaca na paisagem da cidade (Od. 6, v. 266) e de que
esses marinheiros só conseguem passar pelo mar graças ao Treme-terra (Od.
7, 35). É exatamente por conta dessa relação típica entre mortal e imortal que
paira sobre os feácios a ameaça de um eventual descontentamento divino; na
realidade, ele faz parte de uma predição antiga, relatada por Alcínoo a Odisseu
no Canto 8:

Isto, porém, uma vez eu ouvi meu pai contar,


Nausítoo, que afirmava que Posêidon se agastara (agásasthai)
conosco, ao sermos indenes transportadores de todos (pompoì apémones hapánton):
disse que um dia à nau bem-feita dos varões feácios,
após voltar de um transporte pelo mar enevoado,
destruiria, e com grande monte a pólis cobriria.
Assim proferia o velho. E isso o deus pode cumprir
ou deixar sem cumprimento – como lhe for caro ao ânimo.
(Od. 8, 564-571)

217
É possível afirmar, pelas palavras do rei, que o agastamento divino se explica
por um comportamento “imortal” dos feácios na função de transportadores: essa
condução não só é total, “de todos”, irrestrita e ilimitada, como também é “indene”,
sem dano, sem sofrimento, fazendo assim de certo modo pender a balança da
existência desse povo para o âmbito sobre-humano, como se eles não estivessem
sujeitos às vicissitudes da vida finita. É bom lembrar que esse trecho vem logo a
seguir ao comentário de Alcínoo (citado acima) sobre o caráter mágico e destemido
das suas naus: ele mesmo tem consciência, portanto, de que sobre essa “facilidade”
deve necessariamente se associar um descontentamento, para o qual a profecia
aponta. Há, naturalmente, uma piscadela no fato de que o dia indeterminado (poté,
“um dia”, v. 567) para o cumprimento da predição chegou – e de que a predição é
comunicada a quem é responsável por levá-la a cabo, Odisseu. Mais do que isso, no
entanto, importa destacar que esse esquema predição-cumprimento se liga a um
padrão no poema, figurando de diferentes maneiras ao longo da narrativa – na volta
de Odisseu e no seu destino pós-Odisseia; na morte de seus companheiros; no cega-
mento do Ciclope; na morte dos pretendentes – e que assim o “vidente” Nausítoo
vem se juntar a Haliterses, Têlemo, Tirésias e Teoclímeno. Como elemento comum,
temos a presença de uma inevitabilidade conjugada, paradoxalmente, à possibili-
dade de antecipação dos fatos, num desenho cujos efeitos trágicos, tão evidentes
na Ilíada, talvez se apliquem, na Odisseia, apenas aos pretendentes.
No caso específico dos feácios, podemos ver com clareza como opera a có-
lera divina no diálogo entre Zeus e Posêidon do Canto 13, quando o Treme-terra vê
que Odisseu fora transportado com sucesso até Ítaca. O deus imediatamente rea-
ge: o fato de o herói retornar para casa com mais dádivas do que teria obtido caso
tivesse vindo diretamente de Troia, incólume, faz Posêidon sentir-se desonrado
pelos que são da sua “linhagem” (genéthles), o que põe em risco sua própria honra
entre as divindades (v. 128-138). Zeus responde que não há risco de desonra para
quem é “o mais velho e melhor” (presbútaton kaì áriston), e que contra os homens
que agem com violência há sempre a possibilidade de vingança (tísis), conforme
ele, Posêidon, desejar (v. 140-145). O Treme-terra comunica então sua vontade:
estilhaçar a nau, para que os feácios desistam do transporte, e cobrir a cidade com
uma montanha (v. 147-152). Zeus concorda com a segunda medida, mas sugere
que a embarcação seja transformada em pedra, num prodígio à vista de todos (v.
154-158), solução mais inteligente, porque faz a agilidade e rapidez ser vingada
com o estabelecimento da condição inversa, a imobilidade.

218
Em toda a cena, vemos a combinação dos dois motivos fundamentais
para a vingança divina – excesso e honra –, os mesmos que reaparecem nas có-
leras de Posêidon contra Odisseu e do Sol contra seus companheiros. Diante das
similaridades, portanto, podemos afirmar, seguindo Charles Segal, que “Odis-
seu deixou sua marca – a inevitabilidade do sofrimento – com os feácios”, agora
forçados a compartilhar da “sofrida condição mortal”, e que a última visão que
temos deles, no mesmo verso em que Odisseu acorda em Ítaca (Od. 13, 187), é
de “incerteza”.343 De fato, o povo cujas naus navegavam sem receio (“jamais/
têm medo de ser nem danificadas nem destruídas”, Od. 8, 562-563) agora sente
medo e se apoia na esperança – ao que tudo indica, vã – de que a profecia (a
cidade ser rodeada por um monte) não se cumpra. Essa “marca”, por sua vez,
permite não apenas que entendamos os feácios à luz do contato com Odisseu,
mas também Odisseu à luz do contato com os feácios: ou seja, esse povo é “con-
taminado” pela presença do herói, mas o que se passa com este é igualmente
iluminado pelo destino dos habitantes da Esquéria. Ao mesmo tempo, a despei-
to de a ruína de que são vítimas ajudar a romper qualquer conexão que persistia
deles com “um âmbito fantasioso livre de problemas” (ainda segundo as pala-
vras de Segal) – por serem apresentados de modo muito humano na relação
com o divino, sendo alvos da cólera de Posêidon, a quem precisam propiciar –,
não me parece que essa conexão fique totalmente desfeita por esse desfecho.
Pelo contrário: o fato de Odisseu ser o último a ser transportado por esse povo
lança de vez os feácios num passado mágico e inacessível, com o qual ninguém
mais, dentre os mortais, terá contato.

» casamento, esporte, política

Se é certo que, vista em seus detalhes, a representação dos feácios está


caracterizada por uma natureza “transicional”, não é menos certo que a impressão
geral que fica desse povo é a de uma idealização: no fim das contas, é a pintura
positiva que sobressai. Nenhuma outra passagem indica isso melhor do que a
descrição, no Canto 7, do pomar de Alcínoo, cenário quase paradisíaco.344 Essa
descrição surge no momento em que Odisseu, envolto por uma névoa, adentra o

343 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 29.


344 S. Saïd, Homer and the Odyssey, p. 180.

219
palácio do rei: depois de se maravilhar com as paredes de bronze, as portas de ouro
e as colunas de prata, entre outras características sobre-humanas (v. 82-111), o herói
se depara com pereiras, romãzeiras, macieiras, figueiras e oliveiras, com seus frutos
crescendo e amadurecendo ininterruptamente, além de videiras e duas nascentes
de água (v. 112-133). Essa produção contínua (mál’aieí, v. 118), que se estende por
todo o ano (epetésios, v. 118, e epeetanón, v. 128), talvez explique o nome do lugar,
Skheríe (conforme uma das hipóteses citadas acima), e o uso excepcional num trecho
narrativo do tempo presente (v. 103-131) contribui para dar vivacidade à descrição,
como se víssemos tudo pelos olhos maravilhados de Odisseu.345 O trecho nos lembra a
descrição da Idade de Ouro, que encontramos nos Trabalhos e dias, de Hesíodo (v. 109-
119). A associação não é, entretanto, completa, porque em Hesíodo o homem dessa
idade está aparentemente livre do trabalho, verdadeiro sinal, em seu poema, de uma
“queda” do paraíso.346 Já nesse canto da Odisseia, apesar de estarmos diante de “dons
dos deuses”, de uma terra verdadeiramente pródiga, em que a perenidade é marca
de uma condição sobre-humana – os frutos são imperecíveis, não murcham –, ainda
assim há indicações de labuta, com as uvas sendo apanhadas e pisadas (v. 124-125). A
videira “em terreno plano” (v. 123), junto com a “canalização” das fontes (v. 129-131),
também ajuda a sugerir a ideia de um planejamento humano, que desfaz a impressão
de uma espontaneidade absoluta. É como se fosse retomado aqui o mesmo padrão
que encontramos em relação à atividade náutica: o elemento mágico não anula
a necessidade de aplicação e empenho. Mesmo assim, o quadro é de um lugar
ideal: o cultivo da uva e da oliveira nos mostra que estamos perante uma sociedade
tipicamente grega, mas levada a uma condição sublime, maravilhosa, utópica.
Três âmbitos “idílicos” dos feácios são particularmente importantes para
o plano geral da Odisseia: o casamento, a disputa atlética e a condução política.
Eles pintam uma situação de paz e prosperidade que de certo modo antecipa
o que Odisseu deverá estabelecer em Ítaca em sua volta, numa sociedade que
está perturbada pelo assédio indevido, pelo espírito belicoso e pela acefalia. O
tópico da união matrimonial é explorado na relação do herói com a jovem filha
do rei, Nausícaa, figura que Homero elabora com extrema delicadeza. Quando

345 A explicação de Irene de Jong – de que o uso do presente, num trecho “focalizado por
Odisseu”, revela “a intrusão do narrador” e ajuda a sugerir “a natureza divina do jardim e
do palácio” – não me parece satisfatória. Ver I. de Jong, A narratological commentary on the
Odyssey, p. 176.
346 No seu poema, como se sabe, o trabalho aparece relacionado ao surgimento de
Pandora, a primeira mulher (v. 59-105).

220
aparece pela primeira vez, no Canto 6, somos informados de que ela “se
igualava às deusas” (v. 16) e de que seu casamento estava próximo (v. 27): não
permaneceria virgem por muito tempo, já sendo cortejada por pretendentes
nobres (v. 33-34). O fato de a jovem surgir sonhando com os preparativos do
casamento – estratégia de Atena para que, ao ir lavar o enxoval, encontrasse
Odisseu – já nos transmite algo de um impulso erótico que perpassará, com
inigualável sutileza, todo o episódio. Ao mesmo tempo, a descrição que se
segue ao momento em que acorda traça indiretamente um contraponto entre
essa adolescente e Telêmaco, ambos prestes a ingressar no mundo adulto – mas
o dela, ao contrário do que acontece com o filho de Odisseu, livre de problemas:
em poucas linhas (v. 48-55) Homero é capaz de nos indicar como a mãe, Arete,
desempenha a atividade tipicamente feminina (fiar) em total paz – não sendo
obrigada, como Penélope, a usar a tecelagem como arma contra invasores de
seu palácio – e como Alcínoo, o pai, está envolvida com as funções políticas de
um líder num ambiente de ordem e harmonia. O que Nausícaa experimenta na
Esquéria é exatamente o inverso do que vive Telêmaco em Ítaca.
A relação Arete-Alcínoo, naturalmente, é um modelo para a relação a ser
restabelecida entre Penélope e Odisseu, mas o que está em mais evidência nesse
Canto 6 é o fato de Odisseu, enquanto possível candidato à mão de Nausícaa, se
contrapor aos pretendentes de Penélope e já se colocar como “pretendente” justo
da própria esposa. A possibilidade de união com Nausícaa vem sugerida no pri-
meiro discurso que Odisseu dirige à jovem. Acordado pelos gritos da princesa e de
suas servas, que jogavam bola depois de concluída a lavação das roupas, Odisseu
sai de seu arbusto totalmente nu (a não ser por um tapa-sexo) e com um aspecto
selvagem, sendo comparado no momento em que vai se “misturar” às meninas
a um leão entre vacas, ovelhas ou corças (v. 127-136). O erotismo é incontestável,
não só por conta da nudez desse homem que é como um animal faminto prestes
a atacar fêmeas indefesas, mas em razão ainda do fato de que elas, banhadas e
ungidas com azeite (v. 96), brincavam sem seus véus, de certa maneira também
estando “despidas” (v. 100). Como diz H. Shapiro:

o poeta parece admitir certa tensão sexual, inerente a uma história envolven-
do donzelas desacompanhadas, longe de casa, especialmente ao deixá-las
sem véu, o símbolo da modéstia feminina. (...) O possível risco que correm
Nausícaa e suas acompanhantes também ressoa na descrição que Homero

221
faz do jogo como uma espécie de dança (6, 101), conduzida pela princesa.347
Esse era um tópos conhecido do mito grego – o das jovens vistas como alvo
irresistível de estupradores ao dançarem com suas amigas.

Um detalhe da língua grega reforça essa percepção: a forma “misturar-


-se” (míxesthai, v. 136), utilizada para o contato do estranho com as jovens,
além de seu emprego corriqueiro pode, como se sabe, ser usada para indicar a
relação sexual em grego, fazendo assim com que postulemos, latentes, outras
intenções do herói.348 Nessas condições, Odisseu opta, inteligente e respeitosa-
mente, por uma súplica à distância. Notando a puberdade da jovem, ele elabora
uma fala “melíflua e proveitosa” (meilíkhion kaì kerdaléon, v. 148): primeiro com-
para a princesa a Ártemis, deusa pura, virginal, por conta de seu porte (v. 150-
152), assemelhado a dois elementos vegetais, um “caule” (v. 157) e um “broto de
palmeira” (v. 163), para depois relatar suas agruras no mar e pedir acolhida. Na
parte inicial, a beleza da jovem o faz proferir as seguintes palavras:

Mais venturoso de todos no coração será esse


que, pelos dotes vencendo, para casa te levar.
(Od. 6, 158-159)

Na parte final, por sua vez, Odisseu formula estes votos, no caso de ser
acolhido:

Que os deuses te deem tanto quanto no espírito anseias


– varão e casa –, e também confiram a concordância (homophrosúnen),
que é bela, pois não há nada superior e melhor que isto:
do que quando têm a casa concordes no pensamento
o varão e a mulher, grande dor para seus inimigos
e alegria para amigos; e os próprios têm glória máxima!
(Od. 6, 180-185)

347 H. Shapiro, “Coming of age in Phaiakia: the meeting of Odysseus and Nausikaa” in Beth
Cohen (ed.), The distaff side: representing the female in Homer’s Odyssey. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 1995, p. 160.
348 Ver, por exemplo, o uso no Canto 24 da Ilíada, quando Tétis aconselha Aquiles a “se mis-
turar” com uma mulher (mísgesthai, v. 131).

222
Na sequência, tendo já Odisseu se banhado no rio e recebido vestes com
que se cobrir, Atena o faz “mais alto e mais robusto à vista” (v. 230), derramando
“graça em seus ombros e cabeça” (v. 235). Admirada, Nausícaa diz então às ser-
vas que gostaria de tê-lo como marido (v. 239-246). O herói dotado de respeito
e amparo divino surge assim como o pretendente ideal, a ponto de despertar
com sua chegada o ciúme dos locais, como a própria Nausícaa prevê (v. 273-
288). Aqui mais uma vez a jovem age com pudor, determinando que os dois não
devem entrar juntos na cidade – o mesmo pudor, aliás, que já mostrara com o
pai ao pedir para lavar as roupas e não mencionar que o motivo era a iminência
de seu casamento, ainda que Alcínoo o intuísse (v. 56-70). Que o pai tem a mes-
ma percepção da filha fica claro mais adiante, quando diz ao forasteiro que este
poderia ficar com os feácios e desposar Nausícaa (Od. 7, 311-316).
Esse conjunto de elementos, portanto, trazendo à tona o motivo da corte
à mulher, tão central no poema, coloca numa perspectiva justa aquilo que é, em
Ítaca, violência e soberba, transgressão de normas e falta de decoro, antecipada-
mente justificando, por meio de um quadro ideal, a vingança de Odisseu – desde o
Canto 6 um “pretendente” modelar – contra os pretendentes de Penélope.
Uma idealização afim surge no âmbito esportivo, que afasta os feácios da
guerra e do conflito letal. Apesar de a Esquéria ter os traços típicos de uma cida-
de grega, o que inclui uma muralha construída por Nausítoo (Od. 6, 9), o enfren-
tamento bélico parece não fazer parte da realidade de seus habitantes, homens
avessos à agressão e que já tinham se afastado da violência dos Ciclopes (Od. 6,
5-6). Como diz Nausícaa a Odisseu, “aos feácios não interessam arco e aljava”
(Od. 6, 270), voltados que estão para a atividade náutica. A demonstração de ex-
celência desse povo fica restrita àquele outro âmbito, benéfico e inofensivo, da
disputa atlética, o mesmo que vemos no Canto 23 da Ilíada. De fato, no Canto 8
acompanhamos a disputa de cinco provas: corrida a pé, luta, salto, lançamento
de disco e pugilato. Primeiramente, os feácios são convocados por Alcínoo nos
seguintes termos, através dos quais o rei sublinha a superioridade de seu povo:

Escutai-me, condutores e guardiões dos feácios.


Nós com o justo banquete o ânimo já saciamos,
e com a lira, a qual é parceira do festim farto.
Vamos agora pra fora e passemos pelas provas
todas, para que o estrangeiro evoque então aos amigos,

223
ao voltar pra casa, o quanto superamos os demais
no pugilato, na luta, nos saltos e na corrida.
(Od. 8, 97-103)

Um pouco mais abaixo, num trecho narrativo curto, de apenas onze ver-
sos, os jogos são apresentados assim:

E eles por certo primeiro se mediram na corrida:


desde a marca a pista a eles se estendia, e todos juntos
foram voando ligeiro, erguendo o pó na planície.
Deles, de longe o melhor foi Clitoneu ilibado:
quanto um par de mulas percorre em terra descansada
– tanto os superando ao povo voltou, deixando-os pra trás.
E na dolorosa luta eles então se mediram;
nela foi a vez de Euríalo vencer todos os melhores.
Mas no salto foi Anfíalo mais destacado que todos;
já Elatreu foi a todos muito superior no disco,
e Laodamante nos punhos, o bravo filho de Alcínoo.
(Od. 8, 120-130)

O mais curioso, e que contribui para a idealização mesmo no já restrito


âmbito da disputa atlética, é ainda nesse Canto 8, depois de Odisseu ser arrogan-
temente desafiado (e de reagir com um lançamento de disco espetacular, que
supera as marcas anteriores de seus anfitriões, v. 131-234), Alcínoo afirmar que,
de todas as provas, os feácios se destacam na corrida, não privilegiando nem a
luta nem o pugilato, modalidades mais agressivas. Na verdade, notamos nesse
discurso – em que o tópico central é a “excelência”, areté – que a corrida vem coor-
denada, de modo significativo, às atividades da navegação, do canto e da dança:

Estrangeiro, já que não sem charme entre nós discursas,


mas desejas demonstrar a excelência (aretén) que te assiste,
irritado porque esse homem, postado no ajuntamento,
censurou tua excelência (aretén) tal qual ninguém o faria
(que soubesse em seu espírito o falar articulado),
vamos então, ouve agora meu dito, para que digas

224
também para outro herói, quando lá em teu palácio
festejares com a tua esposa e com os teus filhos,
relembrado da excelência (aretês) nossa, que façanhas Zeus
também a nós de contínuo impõe, desde os ancestrais.
Pois não somos ilibados na luta ou no pugilato,
mas com pés (posí) corremos rápido, e com as naus somos ótimos,
e sempre temos banquetes, e cara cítara, e danças,
além de roupas trocadas, e banhos quentes, e leitos.
Vamos, todos os melhores dançarinos dos feácios,
brincai, para que o estrangeiro evoque então aos amigos,
ao voltar pra casa, o quanto superamos os demais
na náutica, na corrida (possí), e também em canto e dança!
(Od. 8, 236-253)

Portanto, esse povo não só está livre da guerra, mas também parece
pouco propenso a qualquer atividade física que represente violência. Ainda que,
como vimos, os feácios pratiquem a luta e o pugilato, é nos âmbitos pacíficos da
corrida, da navegação e do banquete que eles se sobressaem, numa existência
voltada para a celebração, como o próprio Canto 8 nos mostra bem, com a com-
binação de cantos, danças e jogos. Podemos dizer, assim, que Homero elabora
aí mais uma vez a visão de uma existência ideal, não-beligerante e convival, que
de certa forma vem sintetizada pelo verbo “brincar” (paízo) empregado por Al-
cínoo no final de seu discurso (paísate, “brincai”, v. 251).
Finalmente, na representação desse povo está presente ainda uma “exce-
lência” política com cores claramente utópicas, como disse Suzanne Saїd.349 Logo
de saída, nos chama a atenção a figura da rainha Arete, com poderes que parecem
mais indicar uma estrutura matriarcal. Como se sabe, Nausícaa diz a Odisseu que
a acolhida dele depende da vontade da mãe, a quem o herói deve se dirigir primei-
ro ao chegar ao palácio (Od. 6, 308-315). No Canto 7 (v. 66-77) é a vez de Atena, dis-
farçada, chamar atenção para a honra extraordinária de Arete, repetindo nos três
versos finais as palavras de Nausícaa. Essa rainha, que “atravessa a cidade” e tem
poder de arbítrio entre os homens, não se ajusta à figura feminina tipicamente
grega, mas seria apressado concluirmos que há, aí, uma estrutura política diversa.

349 S. Saïd, Homer and the Odyssey, p. 182.

225
Se atentarmos para essa e outras passagens, e para o modo como Homero nos
apresenta a acolhida de Odisseu na Esquéria, veremos que o poder claramente
está nas mãos do rei, Alcínoo.350 Durante a recepção ao forasteiro, é ele que con-
duz as atividades, podendo inclusive se dirigir assim à mulher:

(...) Enviar [Odisseu] caberá aos homens


todos, e a mim sobretudo: é meu o poder no povo!
(Od. 11, 352-353)

Além do mais, já ouvimos anteriormente o narrador nos dizer que Nausí-


caa encontrou o pai a sair para a assembleia, onde se reuniria com os reis (Od. 6,
48-55). Esses reis – descobrimos depois – são doze, e na realidade parecem ser
apenas líderes locais, que devem se submeter ao poder maior de Alcínoo:

Uma vez que pelo povo doze reis muito distintos


exercem chefia, e eu mesmo sou o décimo terceiro...
(Od. 8, 390-391)

Essa conformação (com uma liderança ao mesmo tempo fracionada e


unificada sob o comando de uma figura principal) é, ao que tudo indica, a mes-
ma que encontramos em Ítaca, onde domina a mão masculina e o papel da mu-
lher é secundário.
Se assim for, como entender esse quadro em que a rainha Arete rece-
be honras superiores e transita publicamente, com autoridade? Uma resposta
possível estaria em justamente imaginar que Homero trabalha aqui, mais uma
vez, com a visão ideal, segundo a qual a esposa deve se equiparar ao rei, não por
vontade própria, mas porque o esposo “a honra como nenhuma outra é honrada
na terra” (Od. 7, 67). Em outras palavras, o que temos aqui é a “concordância”
ou “sintonia” (homophrosúne) de que Odisseu falou a Nausícaa no Canto 6 (Od.
6, 181-185), passagem mencionada há pouco: por essa harmonia, a consorte
acaba por ser uma espécie de reflexo da virtude política do homem351 – e não

350 É o que defende também S. Saïd, Homer and the Odyssey, p. 264-266.
351 Sobre o caráter público dessa sintonia, e como de certa forma Penélope se transforma
num aliado masculino de Odisseu, por conta de sua homophrosúne, ver S. Bolmarcich, “Ho-
mophrosúne in the Odyssey”, p. 206-207 e 213.

226
podemos ignorar o fato de que, em grego, o nome Aréte poderia remeter a audi-
ência à ideia de “excelência”, areté.352 Nesse sentido, é interessante notar como,
no Canto 19, o Odisseu-mendigo assemelhará a fama adquirida por Penélope
àquela de um rei justo (v. 107-114). Aí também Penélope é alçada a uma posi-
ção “masculina”, de destaque, igualando-se ao próprio esposo, Odisseu – não
por acaso, o herói usa a expressão “a glória alcança o vasto céu” (kléos ouranòn
eurùn hikánei, v. 108), a mesma que, com pequenas modificações, aplicara a si
próprio no Canto 9 (kléos ouranòn híkei, v. 20). E, no Canto 24, a ênfase dada por
Agamenon à excelência, areté, de Penélope (v. 193 e 197), fará dela uma rival
do próprio marido, o que pode ser entendido como mais um sinal positivo da
“sintonia” entre ambos.353
Portanto, a situação política especial dos feácios – com uma rainha equi-
parável ao rei e uma prodigalidade da natureza (vista no pomar de Alcínoo) a
refletir a condução justa da comunidade – parece ser a concretização daquilo
que, no âmbito “real”, corresponde a um ideal a ser constantemente buscado:
não um governo feminino, mas sim um governo masculino que, ao mostrar ex-
celência, cobre também de honras a rainha, possibilitando que demonstre sua
virtude e capacidade de pensamento. Também aqui os feácios contrastam com
os seus antigos vizinhos, os Ciclopes, e a idealização antecipa a ordem que deve
ser imposta em Ítaca.

352 Etimologicamente, a associação não é possível, porque o primeiro “e” de Aréte é longo,
e não breve, como em areté. O nome Arete seria da mesma raiz de aráomai e significaria “por
quem se fez rogo” ou “a quem se fez rogo” (em referência à súplica que lhe dirige Odisseu?).
Ver W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 199. W. Merry & J. Riddell (Homer’s Odyssey,
vol. 1, p. 55) lembram da forma masculina Areto (Od. 3, 414; 16, 395; e Il. 17, 517).
353 Sobre a visão de Arete como um “doblete” de Penélope, sendo ambas excepcionais e inte-
ligentes ouvintes femininas de Homero, ver Lillian Doherty, “Gender and internal audiences in
the Odyssey”, The American journal of philology 113/2 (1992): 161-177, especialmente p. 173-177.

227
7. O cAntO dentRO dO cAntO

O modo idealizado pela qual são pintados os feácios na Odisseia vem


sintetizado de maneira muito clara pela presença da festa e do canto como
elementos centrais dessa sociedade. Aqui, tal como em Ítaca, um cantor de-
sempenha papel importante – mas não sob coerção, conforme acontece com
Fêmio, nem no contexto de violência e soberba com que os pretendentes se
refestelam, mas sim de harmonia. Também ao contrário do que acontece no
palácio de Odisseu, em que Penélope é obrigada a ouvir um canto que lhe cau-
sa sofrimento, Antínoo está atento às reações de seu hóspede, para que assim
receba os devidos dons da hospitalidade. É por conta dessa preocupação que o
rei interrompe por duas vezes a apresentação de seu cantor, o que não deixa de
resultar numa curiosa contradição: a prazerosa música, parte desse ambiente
ideal em que Odisseu é acolhido, evoca para o herói sua realidade sofrida. A ce-
lebração que Alcínoo se empenha em proporcionar ao forasteiro tem um efeito
imprevisto, diametralmente oposto ao que buscava.
De toda maneira, o que temos é um contexto favorável ao canto, o que
fica bem assinalado pelo espaço superior dedicado a Demódoco em compara-
ção com Fêmio: não só o aedo da Esquéria é objeto de uma atenção maior por
parte do narrador e de outros personagens, como também somos informados
de que ele entoa, ao longo do Canto 8, três canções – sendo que uma delas nos é
apresentada na íntegra, num caso único de canto dentro do canto. Isso significa
dizer que o poder metalinguístico já entrevisto no Canto 1 ganha aqui uma di-
mensão sem paralelos no restante da poesia homérica, dando ensejo a uma re-
flexão profunda sobre o papel da poesia nesse universo heroico e aristocrático.
Na literatura, esse tipo de estratégia tem representantes tão ilustres e
variados quanto As mil e uma noites (em que o personagem central é a narradora
Sherazade), o Hamlet de Shakespeare (com a famosa peça montada pelo pro-
tagonista dentro da peça) e A ilustre casa de Ramires de Eça de Queiroz (onde
acompanhamos trechos do romance escrito por Gonçalo Mendes Ramires), para
ficarmos em apenas três exemplos de épocas e culturas diferentes. Sabemos do
poder de atração que esse recurso exerce sobre os estudiosos modernos, que
se extasiam com os espelhamentos bem elaborados. No caso de Homero, con-
tudo, é preciso cuidado para que se veja, na devida perspectiva, o que significa
essa representação do canto que se volta sobre si próprio.

228
Por um lado, deve-se dizer que essa “autorreflexividade” tem um com-
ponente natural: na representação dos valores e dos costumes de uma socie-
dade oral, nada mais esperado do que encontrarmos aí a referência ao canto
como atividade corriqueira, totalmente integrada à realidade. Mas, por outro
lado, não podemos descartar os efeitos decorrentes do uso tão enfático des-
se elemento, num poema com uma estrutura complexa como a Odisseia, em
que Odisseu fica responsável pela narrativa ao longo de quatro cantos (aproxi-
madamente um sexto do poema) e, mais do que isso, em que ouve, dentro da
história que narra suas aventuras, histórias que narram suas aventuras. Tam-
bém na Ilíada há referências importantes ao papel do canto, também lá temos
personagens cantores/narradores – e que têm a desconcertante consciência de
que serão (são) temas de cantos –, mas é no outro épico que isso ganha relevo
máximo, com um impacto direto sobre nossa apreensão do texto. Se na Ilía-
da vemos, por exemplo, Aquiles cantando “as glórias dos homens” e ouvimos o
“épico” de Meleagro narrado pela boca de Fênix – ambos as passagens surgindo
no Canto 9 –, ainda assim não existe lá a fusão tão poderosa entre herói e canto
que vemos na Odisseia, porque, como se disse, não só o Odisseu celebrado por
Homero é internamente celebrado por Demódoco, numa reprodução exata da
situação externa (com desdobramentos importantes), mas também é, de dife-
rentes maneiras, assimilado à figura do aedo, numa confusão que pode fornecer
pistas decisivas para a compreensão do seu comportamento no poema.
Não se trata, é bom deixar claro, de uma visão diferente: a Odisseia parece
apenas elevar a uma potência máxima aquilo que entrevemos na Ilíada, e esse grau
exponencial com que surge a atividade do canto pode estar associado ao fato de
que temos um protagonista que deve rever/rememorar/reavaliar sua trajetória pre-
gressa, revelando assim amplo conhecimento sobre suas ações. Sendo essa conju-
gação entre memória e saber eixo central da prática das Musas, nada mais natural
que a música/poesia/narrativa seja trazida ao primeiro plano num poema em que há
um passado a ser recuperado, como se o retrato do aedo profissional nos preparas-
se para entender devidamente a ação do “aedo amador” que é Odisseu.
Pretendo abordar aqui esses problemas em três etapas. Primeiramente,
quero discutir que estatuto de canto e cantor nos é mostrado nesse Canto 8 e como
os cantos aí apresentados, ou apenas indicados, podem ter relevância especular
para o contexto mais amplo do poema. Em seguida, pretendo me concentrar na
figura de Odisseu, ouvinte de Demódoco, herói tematizado pelo aedo da Esquéria

229
e ele próprio construtor de histórias passadas: essa sobreposição de papéis, ao
mesmo tempo que potencializa o efeito de espelhamento, cria uma situação
especial, já que o caráter tradicional e antigo do canto deve necessariamente ser
suspenso. É preciso entender exatamente como isso ocorre e também – numa
terceira e última etapa – de que modo Odisseu, ao suceder, enquanto “cantor”,
o cantor Demódoco, distancia-se da simples figura do personagem-narrador que
vemos em Nestor, e principalmente Menelau, na “Telemaqueia”.

» O cego demódoco

A figura do aedo Demódoco não nos surpreende quando surge no Canto


8 da Odisseia. A atuação de Fêmio no palácio de Odisseu (Od. 1, 153-155, 325-
327); a menção à presença de um cantor no palácio de Menelau (Od. 4, 17-18); o
fato de Agamênon, ao partir para Troia, ter deixado um aoidós como guardião
de Clitemnestra (Od. 3, 267-268)354 – todas essas passagens nos indicam com
clareza que esse profissional, chamado de “demiurgo” por Eumeu (demioergós,
Od. 17, 381-385),355 era presença certa nas rodas aristocráticas. Que na Ilíada
não encontremos nenhum aedo atuante – quer no acampamento acaio, quer
na corte troiana – representa a exceção que confirma a regra: o canto regular
faz parte de uma situação de paz e lazer, incompatível, portanto, com a guerra;
nesse contexto, a única performance profissional é a dos “cantores/ condutores
de lamentos”, que entoam um “canto gemente” pela morte de Heitor (Il. 24, 720-722).

354 Sobre a figura do aedo como um “rei substituto”, o que justificaria sua atuação aqui
como responsável por Clitemnestra, ver Stephen Scully, “The bard as the custodian of
Homeric society: Odyssey 3, 263-272”, Quaderni urbinati di cultura classica 8 (1981): 67-83,
especialmente p. 78-79.
355 Também são “demiurgos”, segundo nos diz Eumeu, o médico, o profeta e o carpinteiro.
O sentido literal é o de “trabalhadores do povo”. Não há no poema indicação de que Fêmio
e Demódoco não seriam “demiurgos”, por supostamente terem uma posição “fixa”, como
quer C. Segal; segundo ele, o cantor demiurgo (errante) corresponderia a uma realidade do
Período Arcaico, enquanto o cantor fixo num palácio a uma situação do Período Micênico,
e Homero estaria retratando, simultânea e diacronicamente, esses dois tempos diferentes
(Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 115, 146, 152-153 e 163). Para H. Fränkel, esse
cantor atrelado a uma corte, mais respeitável, seria uma projeção idealizada do cantor (er-
rante) da Odisseia (Early Greek poetry and philosophy, p. 11). S. Saïd (Homer and the Odyssey,
p. 126) lembra que a posição profissional de Fêmio e Demódoco não é clara em Homero, e
que o aedo da Esquéria precisa ser chamado para cantar (Od. 8, 47), o que talvez indique que
ele vive fora do palácio.

230
Se é fato que essas representações – não muito numerosas, mas suficien-
temente significativas – nos ajudam a entender, de modo geral, qual o estatuto
dessa atividade fundamental, de origem divina e responsável pela preservação
de uma memória coletiva,356 insistir se correspondem exatamente ao que se
dava com a recepção histórica da poesia homérica me parece um equívoco: a
épica grega, por seu alcance no tempo e no espaço, certamente comportava
audiências e situações de apresentação muito mais variadas do que vemos na
Odisseia, como festas públicas e encontros não aristocráticos, sem falar da pos-
sibilidade de as canções serem ora acompanhadas por instrumento musical (e
dança), ora entoadas à capela, ou de terem extensão modificável segundo as
circunstâncias. Por outro lado, porém, é preciso admitir que a visão sobre o can-
to deve ser essencialmente a mesma – interna e externamente –, para que assim
se dê o efeito de espelhamento e sobreposição. Como disse H. Fränkel, “o que
lemos no épico sobre a relação entre narrador e seu ouvinte podemos transferir
para o cantor épico e sua audiência”.357 Há, portanto, uma certa estilização, uma
redução do retrato a seus componentes fundamentais ou mais representativos,
o que contribui para lhe dar mais verdade, e não falseá-lo.
As primeiras informações sobre como o canto é visto internamente por
Homero vêm já no Canto 1, quando Fêmio, o aedo de Ítaca, canta “à força”
(anágkei) em meio aos pretendentes (v. 154). Sabemos que a performance
contrariada serve para mostrar a justiça do aedo e o abuso dos que cortejam
Penélope, mas o mais importante é destacar a pintura típica: Fêmio toca a
cítara (kítharin, v. 153), é um aedo “divino” e “exímio” (theîon, eríeron, v. 336
e 346)358 responsável pelo “canto divinal” (théspin aoidén, v. 328); ele sabe

356 “O narrador da Odisseia nunca se dirige diretamente à sua audiência implícita. No


entanto, com seu retrato de performances bárdicas, ele nos dá suficientes indicações sobre
a relação entre poeta e audiência”; ver L. Doherty, “Gender and internal audiences in the
Odyssey”, p. 172.
357 H. Fränkel, Early Greek poetry and philosophy, p. 12.
358 O sentido preciso de eríeros, embora se trate de um qualificativo elogioso, é alvo de
discussão. I. de Jong (A narratological commentary on the Odyssey, p.191) propõe “estimado”;
R. Cunliffe (A lexicon of the Homeric dialect, p. 157) fala em “digno”, “confiável”, “leal”, mesma
ideia proposta por W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 315. Veja-se ainda o que
dizem Stephanie West e Bryan Hainsworth em A. Heubeck et alii (ed.), A commentary on
Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 119 e 350, respectivamente, e A. Garvie, Homer: Odyssey – Books
VI-VIII, p. 250. O adjetivo qualifica também os companheiros de Odisseu, como em Od. 9,
100; 14, 249; e 19, 274. Preferi usar em português “exímio”, seguindo a tradução de V. Di
Benedetto para o italiano.

231
“muitas... encantações de mortais” (pollà... brotôn thelktéria oîdas, v. 337) e sua
atividade consiste em “glorificar” (verbo kleío, v. 338) e “deleitar” (verbo térpo,
v. 347).359 O tema de seus cantos são, de modo geral, os “feitos de homens e
de deuses” (érg’andrôn te theôn te, v. 338), ainda que nesse Canto 1 ele entoe
mais especificamente a “volta... odiosa” dos acaios (Akhaiôn nóston... lugrón, v.
326-327), “a triste sina dos dânaos” (Danaôn kakòn oîton, v. 350):360 contra sua
vontade, Fêmio deleita os violentos pretendentes e provoca, em Penélope, o
mesmo sofrimento que Odisseu experimenta na corte dos feácios.
Esses traços são mantidos e aprofundados na descrição de Demódoco,
epítome do cantor na Odisseia, e cuja participação restringe-se tão-somente
aos Cantos 8 e 13. Ele também recebe os epítetos tradicionais “divino” (theîon,
v. 43) e “exímio” (eríeron, v. 62), e toca igualmente um instrumento de corda, a
lira (phórmigga, v. 67 e 105, e phormízon, v. 266).361 A sua capacidade de cantar
é uma dádiva especial, vinda dos deuses, com o fim de “deleitar” (térpein),
como afirma Alcínoo (v. 43-45). Diferentemente de Fêmio, no entanto, esse
poder sobre-humano é sinalizado por um traço físico conspícuo, a cegueira,
conforme assinala o narrador:

O arauto chegou então, conduzindo o exímio aedo,


a quem mais amou a Musa e a quem dava o bem e o mal
– sim, da visão o privara, mas lhe dava o doce canto.
(Od. 8, 62-64)

A cegueira, por conta do retrato tradicional do Homero cego,362 é um


elemento fundamental aí para que se estabeleça com força o espelhamento,

359 No Canto 22 (v. 330), Fêmio recebe de modo enfático o patronímico Terpiádes, “Filho de
Terpes”, o que nos mostra que é, literalmente, “Filho do prazer”.
360 Esse tema restrito, de qualquer maneira, trata de “feitos de homens e de deuses”, ainda
que o enfoque aparentemente recaia sobre os mortais.
361 Vale lembrar que Fêmio, apresentado como tocador de cítara no Canto 1, surge com
uma lira – o mesmo instrumento de Demódoco – no Canto 22 (phórmigga, v. 332). Aparente-
mente, a variação não implica nenhuma diferenciação entre ambos e deve ser posta na conta
de exigências métricas (os termos têm quantidades inversas: phórmigga inicia-se com duas
sílabas longas, enquanto kítharin, com duas breves).
362 A referência mais antiga está no Hino homérico a Apolo, que fala do “homem cego”
(tuphlòs anér) de Quios (v. 172).

232
como se o poeta retratasse a si mesmo. Contribui para essa identificação o
fato curioso de Demódoco não ter falas no poema – quando ele se manifesta, é
cantando apenas, e na única vez em que esse canto nos é relatado (nos “Amores
de Ares e Afrodite”) sua voz poética torna-se absolutamente indistinta da voz
do narrador da Odisseia.363
Ainda assim, como se sabe, a ausência de visão é um traço característi-
co (na Ilíada temos a referência ao cegamento do cantor Tamíris, mesmo que
numa situação inversa; Il. 2, 591-600).364 A mutilação serve de “compensação”
por um dom que poria esse mortal excessivamente acima dos demais, estabe-
lecendo assim o equilíbrio necessário entre bens e males. Mas não precisamos
ficar restritos à explicação dada pelo texto; a privação física serve também para
indicar a presença de uma visão superior, de quem enxerga além daquilo que
os olhos veem – como se percebe através da figura do profeta Tirésias. Tanto o
cantor quanto o vidente dispensam o conhecimento in loco e a dependência de
notícias alheias; eles não precisam, em outras palavras, ser testemunhas ocu-
lares dos fatos nem ouvir relatos a respeito para deles ter conhecimento. Seu
aprendizado é imediato, fruto da inspiração divina, como afirma Fêmio:

Sou autodidata (autodídaktos), e em meu espírito um deus veredas (oímas)


variadas implantou (...).
(Od. 22, 347-348)

O autodidatismo não representa aí uma autonomia em relação à


divindade, mas justamente o contrário: o saber de origem divina é “automático”.
Não se trata, sob essa ótica, de sublinhar um esforço técnico, que complementa
a inspiração sobre-humana, mas sim de mostrar como o aedo, ao ser ensinado
pela Musa, vira um “autodidata”.365 Repara-se como Odisseu, ao elogiar

363 Fato notado por Deborah Beck em “Odysseus: narrator, storyteller, poet?”, Classical
philology 100/3 (2005): 213-227.
364 Ver o que diz A. Garvie, Homer: Odyssey – Books VI-VIII, p. 250-251. O cegamento de Ta-
míris é conhecido pela tradição, mas não é afirmado com todas as letras nessa passagem; ver
a discussão de Carlo Brillante, “Le Muse di Thamyris” em Il cantore e La Musa: poesia e modelli
culturali nella Grecia arcaica. Pisa: Edizioni ETS, 2009, p. 91-120.
365 Sigo aqui W. Thalmann (Conventions of form and thought in Early Greek epic poetry.
Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1984, p. 126-127), embora a maioria dos
estudiosos veja aí um exemplo de “dupla motivação”, segundo a qual a ênfase no aspecto

233
Demódoco no Canto 8, repete essa ideia de que as “veredas” do canto são única
e exclusivamente uma lição das deusas do canto:

Os aedos, entre os homens todos que vão sobre a terra,


têm seu quinhão de respeito e honra, porque a Musa a eles
ensinou (edídaxe) suas veredas (oímas), e o clã dos aedos ama.
(Od. 8, 479-481)

Portanto, o que fica destacado na caracterização de Demódoco é essa vi-


são do canto como atividade cuja fonte é divina e cujo saber é superior. Esse sa-
ber, por sua vez, permite que o aedo da Esquéria – como qualquer “aedo divino”
– tenha acesso às mais variadas “veredas”, formadas por “feitos de homens e de
deuses”. E é aqui que o efeito de espelhamento se dá de modo mais agudo, por-
que o cantor, entre os inúmeros relatos tradicionais à sua disposição, escolhe
justamente cantar episódios envolvendo Odisseu, o forasteiro recentemente
acolhido por Alcínoo e cuja identidade ainda não foi revelada. Assim, junto com
a cegueira de quem canta dentro do poema (a reproduzir a cegueira do poeta
da Odisseia, Homero, e possivelmente a cegueira de muitos rapsodos, atividade
a que ficavam restritos os sem visão nas sociedades predominantemente orais),
temos o fato de que o protagonista de ambos os cantos – o de Homero e o de
Demódoco – é o mesmo: Odisseu.
Vejamos mais detidamente quais são os três cantos apresentados por
Demódoco. Dois deles – o primeiro e o terceiro – falam diretamente de Odis-
seu, fazendo-o chorar, enquanto o segundo (por conta do tópico da infidelidade
conjugal) se liga apenas indiretamente ao herói, causando-lhe prazer. Os dois
primeiros cantos são escolhidos pelo próprio Demódoco, enquanto o terceiro é
entoado a pedido de Odisseu. Dos três, somente o segundo nos é apresentado
na íntegra, os outros dois sendo resumidos pelo narrador, e interrompidos por
Alcínoo ao perceber o sofrimento de seu hóspede. 366

humano e divino não os torna mutuamente excludentes; ver C. Segal, Singers, heroes, and
gods in the Odyssey, p. 138, nota 41. Para uma abordagem recente, ver Carol Dougherty,
“Phemius’ last stand: the impact of occasion on tradition in the Odyssey”, Oral tradition 6/1
(1991): 93-103, especialmente p. 93-98, e I. de Jong, Homer: Iliad – Book XXII. Cambridge:
Cambridge University Press, 2012, p. 21.
366 Essa diferenciação entre a recepção pela audiência interna e pela audiência externa foi
notada por Yoav Rinon, “Mise en abyme and tragic signification in the Odyssey: the three son-

234
Podemos apresentar essas características do seguinte modo:

Primeiro canto (v. 72-82)


Tema: “A disputa de Aquiles e Odisseu”
Escolhido por Demódoco/Musas
Ouvido internamente e apenas resumido para nós pelo narrador
Reação de Odisseu: choro
Interrompido por Alcínoo

Segundo canto (v. 266-366)


Tema: “Os amores de Ares e Afrodite”
Escolhido por Demódoco/Musas
Apresentado diretamente, com voz de Demódoco confundindo-se com a do
narrador
Reação de Odisseu: prazer
Sem interrupção

terceiro canto (v. 499-520)


Tema: “O arranjo do cavalo de madeira”
Escolhido por Odisseu
Ouvido internamente e apenas resumido para nós pelo narrador
Reação de Odisseu: choro
Interrompido por Alcínoo

Por que esses temas? Qual sua pertinência? As narrativas envolvendo


Odisseu recuperam eventos da Guerra de Troia e mostram como esses acon-
tecimentos – e esse herói – já fazem parte do repertório musical mesmo de um
povo isolado e distante como os feácios. Dramaticamente são histórias impor-
tantes, porque, estando o forasteiro implicado nelas, estimulam a reação que
vai conduzir à revelação de sua identidade (já insinuada como a de um guerreio
acaio em Troia, nos v. 219-220 e 492-495, e captada por Alcínoo nos v. 577-578) e
à apresentação de seu próprio “canto”.
O primeiro episódio, “A disputa de Aquiles e Odisseu”, tem intrigado os

gs of Demodocus”, Mnemosyne 59/2 (2006): 208-225, p. 210.

235
estudiosos, porque se trata de uma “vereda” que desconhecemos, ou seja, não
consta da informação mitológica de que dispomos:

Depois de expulso o desejo por comida e por bebida,


a Musa mandou o aedo cantar as glórias dos homens,
trecho cuja glória, então, alcançava o vasto céu
– a disputa (neîkos) do Pelida Aquiles com Odisseu:
como num farto banquete dos deuses os dois brigaram
com dizeres duros, e ele, senhor de homens Agamênon,
com a briga entre os melhores acaios se alegrou no íntimo;
pois assim lhe tinha profetizado o puro Apolo,
quando cruzou a marmórea soleira na sacra Pito
pra se consultar (então já se iniciava a desgraça
para dânaos e troianos – desígnios do grande Zeus).
(Od. 8, 72-82)

O tema do desentendimento (neîkos, v. 75) é típico e nos faz lembrar ime-


diatamente do conflito entre Agamênon e Aquiles, que desencadeia a ação da
Ilíada e ocupa, como se sabe, boa parte daquela narrativa. A ideia de que essa
alusão faz parte de um movimento maior da Odisseia, no sentido de contrapor
sua poética da astúcia e do retorno à poética da força e da morte na guerra da
Ilíada, quase como se houvesse duas concepções distintas de herói, parece-me
forçada demais, e de certa maneira representa a insistência num “separatismo”
sem fundamentação sólida.367 Como já se disse, a visão apresentada aqui pre-
fere trabalhar com uma unidade do universo épico, que se abre para diferentes
temas sem que isso represente conflito ou ruptura – muito pelo contrário: esse
olhar multifacetado ajudar a compor esse quadro coerente e coeso da ação aris-
tocrática, resultando numa mesma poética e concepção da figura heroica. Nela
há, evidentemente, entre as múltiplas narrativas, ecos e contrapontos ativados
pela “referencialidade tradicional” estudada por John Foley (cujo alcance não

367 Ver o conhecido ensaio de G. Nagy em The best of the Achaeans: concepts of the hero in
Archaic Greek poetry, p. 1-65, e o que diz, por exemplo, Seth Schein, sobre a possível existên-
cia de “diferentes subtradições dentro da mesma tradição poética principal” (“Introdução”
em S. Schein (ed.), Reading the Odyssey: selected interpretive essays, p. 7).

236
podemos captar completamente),368 mas isso não nos leva necessariamente a
visualizar uma rivalidade ou superação. Assim, esse canto de Demódoco consti-
tui, sem dúvida, uma referência inevitável à Ilíada, ainda que a audiência da Gré-
cia Antiga pudesse ter acesso a outros poemas que tratassem dessa contenda
entre Aquiles e Odisseu (e de outras contendas); o mais importante, contudo, é
notar como a situação de conflito evoca, para Odisseu, a “desgraça” própria da
guerra (pêma, v. 81-82) – mesma ideia que ficará em relevo na terceira (e última)
canção do aedo.
O segundo canto, o dos “Amores de Ares e Afrodite”, representa uma
temática diferente – exclusivamente divina –, mas tem reflexos diretos sobre
o contexto do Canto 8 e a situação maior da Odisseia. Como temos aí por volta
de cem versos, é possível explorar melhor os seus desdobramentos. Apesar das
críticas de amoralidade, que vêm desde o pré-socrático Xenófanes (provavel-
mente aludindo à passagem no fr. 11DK ao criticar a atribuição de adultério aos
deuses) e, como era de se esperar, de Platão (República 389a-390c), os estudos
recentes têm mostrado como o trecho está de acordo com a moral do poema;
Ateneu (séculos II-III d.C.), em seu Banquete dos sábios (5.192e), já dizia que a
história “sinalizava, para Odisseu, a matança dos pretendentes”, ao retratar a
vitória de Hefesto sobre Ares.
É certo que o trio Hefesto (traído)/Afrodite (traidora)/Ares (amante) remete
a Menelau/Helena/Páris e, principalmente, ao paradigma fundamental da Odisseia,
representado por Agamênon/Clitemnestra/Egisto, criando assim uma inevitável
“sinalização” a respeito do trio Odisseu/Penélope/pretendentes. Nesse conjunto, a
traição de Hefesto acaba por se inserir no lado negativo do espectro, porque não
será reproduzida por Odisseu e Penélope: a esposa será fiel e seu marido ficará livre
da vergonha. Duas questões centrais, no entanto, permanecem: a primeira é sobre
o efeito que Homero obtém ao falar de infidelidade nas relações divinas; a segunda
diz respeito à associação aparentemente problemática de Odisseu com a figura ul-
trajada de Hefesto, e ao prazer que o herói sente ao ouvir tal história.
Rick Newton explorou as similaridades entre Odisseu e Hefesto num
artigo de 1987, em que mostra como ambos combinam técnica (tékhne) e astúcia
(mêtis).369 O deus, na narrativa dos “Amores”, é ao mesmo tempo o conhecedor

368 Ver a exposição clara e sintética em “Oral tradition and its implications” em I. Morris &
B. Powell (ed.), A new companion to Homer. Leiden: Brill, 1997.
369 Rick Newton, “Odysseus and Hephaestus in the Odyssey”, The classical journal 83/1

237
da “forja” (khalkeôna, v. 273) que “martela laços inquebráveis” (desmoùs
arréktous, v. 274-275), “artificiosos” (tekhnéentes, v. 297), e o fabricador de um
“ardil” (dólon, v. 276, 281, 282), ser “multipensante” (polúphron, v. 297) capaz de
“fingir” (eísato, v. 283) uma falsa viagem para pegar os amantes na cama. Que
sua inteligência se associa à de Odisseu fica claro pelo fato de o mencionado
epíteto “multipensante” – que qualifica Hefesto mais uma vez nesse Canto 8 da
Odisseia (v. 327) e ainda na Ilíada (Il. 21, 367) – vir aplicado a Odisseu cinco vezes,370
e por ser o onipresente “multiastuto” (polúmetis), espécie de “sobrenome” do
herói em Homero, também usado uma vez para o deus (Il. 21, 355). Newton
chama atenção, além do mais, para a caracterização de Odisseu como herói
“construtor” e “metalúrgico” em três passos importantes da Odisseia: quando
fabrica sua jangada no Canto 5 “com ciência” (epistámenos, v. 245), como um
homem “que bem sabe de carpintaria” (eù eidòs tektosunáon, v. 250); quando
fura no Canto 9 o olho do Ciclope, a girar a estaca “qual varão tradeia madeiro
náutico/ com seu trado” (v. 384-385), produzindo um chiado semelhante ao do
momento em que um “varão bronzista em água gelada imerge/ grande machado
ou enxó” (v. 391-392); e quando finalmente se refere, no Canto 23, à construção
elaborada de seu leito nupcial, à qual se dedicou sozinho (v. 183-204).
A associação entre técnica e astúcia é típica porque a primeira é uma es-
pécie de desdobramento da segunda: a inteligência, para além de seu aspecto
mental e verbal, manifesta-se também como habilidade prática, manual, con-
forme se vê, por exemplo, no caso da própria Penélope, “circunspecta” e versa-
da na arte da tecelagem. De qualquer modo, em relação a Odisseu e Hefesto,
é possível afirmar que o deus metalúrgico, eminentemente ligado ao trabalho
físico, tem seu lado “astuto” realçado na narrativa de Demódoco, enquanto
Odisseu, o herói voltado para o raciocínio e a reflexão, tem seu lado “habilido-
so” realçado nas mencionadas passagens da Odisseia. É interessante notar ain-
da – como novamente apontou Newton – que há um aspecto físico a unir essas
figuras: se Hefesto é o deus manco, coxo, algo para que ele mesmo chama a
atenção (“sou manco”, v. 308; “debilitado nasci”, v. 311), Odisseu não deixa de
ser representado no Canto 8 como alguém sem força nas pernas (“meus mem-
bros estão frouxos”, diz ele no v. 233), característica que depois será explorada

(1987): 12-20. Ver também o que diz Ingrid Holmberg, “Hephaistos and spiders’ webs”, Phoe-
nix 57/1 (2003): 1-17, especialmente p. 7-8.
370 Od. 1, 83; 14, 424; 20, 239 e 329; e 21, 204.

238
ao adentrar sua própria cidade, disfarçado de mendigo, caminhando com difi-
culdade (Od. 17, 196, 203 e 338).
Essa debilidade física comum foi investigada por Bruce Braswell como
possível pista para uma relação direta entre a narrativa da traição de Hefesto
por Ares e o confronto entre Odisseu e o feácio Euríalo, episódio que no Canto
8 precede essa segunda história contada por Demódoco.371 Em ambos os casos
a figura fisicamente “inferior” acaba triunfando, pela esperteza, sobre a mais
bela e forte. De fato, a beleza e perfeição de Ares são referidas, pelo próprio
Hefesto, como características marcantes de seu oponente (v. 310); o narrador
da Odisseia, de sua parte, ao nos apresentar Euríalo, o qualifica, significativa-
mente, de “igual a Ares” (v. 116) e o melhor dos feácios “em aspecto e porte” (v.
116-117). Realmente decisiva, no entanto, é a analogia entre a moral de ambos
os episódios; na fala que os deuses dirigem uns aos outros ao verem a armadilha
bem montada por Hefesto, lemos o seguinte:

Não prosperam os malfeitos! O lerdo alcança o ligeiro,


como agora mesmo Hefesto, sendo lerdo, apanhou Ares,
sendo embora o mais ligeiro dos deuses que têm o Olimpo,
manco que é, por artifícios. Deve-lhe pelo adultério!
(Od. 8, 329-332)

Essa mesma ideia, de que pode no fim ser superior por sua habilidade
aquele que é menos capaz fisicamente, vinha destacada na lição de Odisseu a
Euríalo, depois de ser por este atacado. Aqui, é verdade, a ênfase recai sobre o
uso político da palavra – que se sobrepõe à mera formosura das feições –, mas
ainda assim vemos um eco evidente:

Não falaste bem, estranho. Atrevido é o que pareces!


Assim é que os deuses não conferem graças a todos
os homens juntos – no talhe, no espírito e na eloquência.
Pois de um lado existe aquele que no aspecto é inferior,
mas o deus lhe cobre os ditos de formosura, e sobre ele
o olhar se fixa, enlevado; e falando firmemente,

371 Bruce Braswell, “The song of Ares and Aphrodite: theme and relevance to Odyssey 8”,
Hermes 110/2 (1982): 129-137.

239
com uma doce modéstia, sobressai aos reunidos,
e tal qual um deus o olham quando vai pela cidade.
Mas, por outro, há o que no aspecto é rival dos imortais
– para ele porém graça alguma recobre os ditos,
como contigo: no aspecto tão distinto (não, melhor
nem um deus te deixaria!), mas tens a mente vazia...
(Od. 8, 166-177)

Para acentuar o contraste entre os heróis, e o paralelo com “Os amores


de Ares e Afrodite”, Braswell cita ainda o fato relevante de que os feácios são,
essencialmente (como já se viu), bons de corrida (v. 247 e 253), assemelhando-se
assim ao “mais ligeiro dos deuses”. É verdade que o vencedor dessa prova nas
disputas atléticas do Canto 8 é Clitoneu (v. 120-125), sendo Euríalo o campeão
na luta (v. 126-127), mas ainda assim permanece válida a conclusão geral de que

assim como Odisseu exemplifica, no nível humano, uma aparência não-cha-


mativa combinada com inteligência e habilidade, assim o faz Hefesto no nível
divino. Do mesmo modo, tal como Euríalo exemplifica beleza combinada com
falta de inteligência no nível humano, assim o fazem Ares e Afrodite no nível
divino. Portanto, assim como Hefesto, por suas habilidades, triunfa sobre Ares
e Afrodite, assim também Odisseu por sua habilidade triunfa sobre Euríalo na
discussão que têm.372

A canção de Demódoco, dessa maneira, serve de comentário direto


à ação imediata do poema, sublinhando além do mais aquele que é um tema
central de toda a Odisseia: a relação entre aparência e essência, entre o que se
aparenta ser e o que de fato se é. Nesse sentido, o confronto Hefesto/Ares, ao
apontar, por analogia, para a superioridade de Odisseu sobre Euríalo, antecipa
também a vitória em Ítaca do mendigo (aparentemente) incapaz sobre os jo-
vens pretendentes. Note-se como, na passagem em que Odisseu pede um pe-
daço de pão a Antínoo e acaba sendo acertado por um banco arremessado pelo
líder dos pretendentes, o diálogo com Euríalo é evocado; primeiro o mendigo
finge imaginar que as intenções do jovem se casam com suas feições:

372 B. Braswell, “The song of Ares and Aphrodite: theme and relevance to Odyssey 8”, p. 134.

240
Me dá, meu caro: o mais vil (kákistos) dos acaios não pareces
ser, mas antes o melhor (óristos), pois tens o aspecto de um rei (basilêi éoikas).
(Od. 17, 415-416)

Logo em seguida, no entanto, com a resposta violenta de Antínoo, que


chama seu interlocutor de “petulante e desavergonhado” (tharsaléos kaì anai-
dés, v. 449), Odisseu lhe diz o seguinte:

Opópoi, com teu aspecto (eídei) não condiz o teu espírito (phrénes)!
(Od. 17, 454)

O descompasso entre o que se vê e o que se é aplica-se a Antínoo ne-


gativamente (ele sim petulante e desavergonhado) e a Odisseu positivamente
(como nós, leitores, percebemos). A contraposição entre inteligência e justiça,
de um lado, e beleza e vacuidade, de outro, fica evidente, criando assim um fio
a unir Hefesto-Odisseu-mendigo e Ares-Euríalo-pretendentes. Aqui, contudo,
mais uma vez temos que lembrar que Hefesto não é um modelo perfeito para
Odisseu, porque a traição não faz parte da realidade do herói. Como diz Newton:

Dos muitos ecos entre o canto de Demódoco sobre ‘Os amores de Hefesto e
Afrodite’ e o canto de Homero sobre ‘Os amores de Odisseu e Penélope’ resul-
ta uma diferença essencial: a canção feácia termina em alienação e na separa-
ção de Hefesto e Afrodite, enquanto o episódio em Ítaca termina com a união
física e espiritual de marido e mulher.373

A partir do que foi dito, poderíamos ficar satisfeitos imaginando que esse
segundo canto de Demódoco é exemplo (pela vitória da astúcia e técnica) e con-
traexemplo (pela traição consumada) para Odisseu. Mas o fato é que a narrativa
traz outros detalhes importantes, que produzem uma analogia pouco imediata
ou clara com Odisseu. Um dos elementos principais é o riso dos deuses diante
da cena de traição. Por que eles reagem assim? Isso reforça ou enfraquece a
posição de Hefesto? Além do mais, devemos nos perguntar por que o deus coxo
insiste na reparação e qual o sentido da interferência de Posêidon – justamente

373 R. Newton, “Odysseus and Hephaestus in the Odyssey”, p. 18.

241
o deus que persegue Odisseu – a favor de Ares. Se em toda a cena a posição de
Hefesto acaba sendo rebaixada, isso não diminui sua inteligência e, por tabela,
não termina por afetar o próprio Odisseu?
Retomemos a passagem. Depois da primeira parte, em que a armadilha
contra os amantes é preparada e eles são enredados na cama (v. 266-302), te-
mos, na sequência: o discurso de indignação de Hefesto (v. 303-320); a reação
dos deuses (v. 321-343); a intervenção de Posêidon (v. 344-358); e a soltura dos
amantes (v. 359-366). O riso, equanto elemento central, liga claramente a fala
de Hefesto à reação das outras divindades. O deus coxo, encolerizado e aos gri-
tos (v. 304-305), abre o seu discurso assim:

Zeus pai e vós, demais deuses venturosos sempre vivos,


vinde, pra que vejais feitos risíveis (érga gelastá), e intoleráveis (ouk epieikéa).
(Od. 8, 306-307)

Diante do chamado, aproximam-se Posêidon, Hermes e Apolo, que res-


pondem à cena com um “riso interminável”:374

Assim disse, e se reuniram os deuses na casa brônzea.


Veio o terra-tem Posêidon, veio ainda o corredio
Hermes, e veio o senhor Apolo lida-longínquo
(femininas, por pudor ficaram em casa as deusas).
E na entrada se postaram, deuses doadores de bens,
e entre os venturosos deuses se ergueu riso interminável
ao olharem para as artes do multipensante Hefesto.
(Od. 8, 321-327)

Uma fala geral, em que se tece a já referida “moral da história” – “o lerdo alcança
o ligeiro” (v. 329) –, marca a transição para o diálogo entre Apolo e Hermes, e novos risos:

E a Hermes disse o senhor Apolo, filho de Zeus:


“Hermes, filho de Zeus, condutor doador de bens,
mesmo aprisionado em laços violentos, não quererias

374 Apesar de apenas esses três serem mencionados, devemos supor a presença de outras
divindades; ver P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 73.

242
te deitar num leito ao lado dela, da áurea Afrodite...?”
E respondeu-lhe em seguida o condutor Argicida:
“Ah, que isso ocorra, senhor Apolo lança-longínquo!
Que o triplo de laços venha me envolver, inextricáveis,
e vós deuses observar – e também todas as deusas –,
contanto que eu deite ao lado dela, da áurea Afrodite...”.
Assim disse, e o riso ergueu-se entre os deuses imortais.
(Od. 8, 334-343)

Alguns quiseram emendar o texto no verso 307, lendo érg’ageslastá (“fei-


tos não-risíveis”) em vez de érga gelastá (“feitos risíveis”, como traduzimos),
porque não poderia ser risível uma traição, sobretudo para o traído. Fico, con-
tudo, com a solução de Christopher Brown, que propõe que o riso aí é “sério”
– e precisamente a resposta desejada por Hefesto.375 Segundo esse estudioso, a
gargalhada endereçada aos adúlteros é uma forma de os expor – numa “cultura
da vergonha” – em paga por uma ofensa séria: o crime é apresentado à vista
de todos, com os deuses se postando “na entrada” (prothúroisi, v. 325), “espaço
em que se encontram o mundo público e o mundo interior do oîkos”.376 Nessa
leitura, a seriedade moral é mantida mesmo com a “piada suja” de Apolo/Her-
mes: se ela nos mostra, por um lado, que as consequências entre os deuses não
são contundentes, por outro ela não desfaz a ideia de que a sociedade divina
espelha a humana e, portanto, a honra deve ser restaurada através da exposição
vergonhosa perante todos.377

375 Christopher Brown, “Ares, Aphrodite, and the laughter of the gods”, Phoenix 43/4 (1989):
283-293. O estudioso imagina que a variante agelastá foi motivada por “escrúpulos morais” (p.
285), sem que se percebesse que o episódio “é altamente moral em seus próprios termos”. De-
fensores da forma agelastá são A. Garvie (Homer: Odyssey – Books VI-VIII, p. 301-302) e Maureen
Alden (“The resonances of the song of Ares and Aphrodite”, Mnemosyne 50/5 (1997): 513-529,
p. 517, nota 17); para os dois, a reação dos deuses não é a que Hefesto espera. Para um possível
gelastá irônico, ver W. Stanford (The Odyssey of Homer, vol. 1, p 349). Para Irene de Jong, como
no fluxo da performance oral a diferença entre as duas lições seria quase imperceptível, poderia
haver uma ambivalência intencional (A narratological commentary on the Odyssey, p. 208).
376 C. Brown, “Ares, Aphrodite, and the laughter of the gods”, p. 286. Ele lembra do frag-
mento 172W de Arquíloco, no qual se diz que Licambes é motivo de chacota entre cidadãos, e
a exposição de Ájax ao riso na peça homônima de Sófocles (p. 288-289).
377 C. Brown, “Ares, Aphrodite, and the laughter of the gods”, p. 290-291. Vale lembrar que
o trecho é omitido em certos manuscritos (ver R. Hunter & D. Russell (ed.), Plutarch: How to
study poetry. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p. 108). Ingrid Holmberg, num

243
A bem da verdade, se penetrarmos mais fundo no universo moral grego,
poderemos inclusive rever a posição de que Odisseu não foi traído. Maureen
Alden, ao analisar a noção de adultério (moikheía) na Grécia Antiga (o termo
inexiste em Homero),378 propôs que a entrada violenta dos pretendes no palácio
de Ítaca já representaria, de certo modo, um “ataque à castidade das mulheres”,
e que a relação sexual deles com algumas servas sob controle de Odisseu po-
deria ser tomada como uma traição ao rei379. Para ela, a narrativa dos “Amores
de Ares e Afrodite” encorajaria assim a audiência a antecipadamente “ver os
pretendentes como moikhoí” (p. 517), trazendo “indicações não apenas sobre o
modo como devem ser mortos, mas também a razão e a justificativa de terem
esse destino”.380 Na visão de Alden, no entanto, ainda que Odisseu seja “traí-
do”, como Hefesto, há uma diferença crucial: o herói, ao contrário do deus, “não
aceita fazer um acordo e se submeter ao ridículo”.381
A alusão aos pretendentes como “adúlteros” proposta por Alden é interes-
sante – e, de fato, a traição das servas não deixa de ser uma traição a Odisseu. É
problemática, no entanto, a afirmação de que Hefesto é exposto à chacota. Há,
evidentemente, algo de ridículo no deus, como se vê pelo fim do Canto 1 da Ilíada:

E ele então, pela direita, a todos os outros deuses


foi servindo, retirando da cratera o doce néctar;
e entre os venturosos deuses se ergueu riso interminável
ao verem pela morada Hefesto se atarefar.
(Il. 1, 597-600)

artigo de 2003, destacou a conexão entre a rede de Hefesto, que é “como sutis teias de ara-
nha” (eút’ arákhnia leptá, Od. 8, 280), e a pergunta de Telêmaco a Eumeu se a mãe já havia
traído Odisseu, deixando a cama com “terríveis teias de aranha” (kák’ arákhnia, Od. 16, 35);
segundo ela, em ambas as narrativas – a de Demódoco e a da Odisseia – o que temos é a
mesma ideologia, preocupada com a manutenção da autoridade patriarcal. Ver I. Holmberg,
“Hephaistos and spiders’ webs”, p. 11-12.
378 Ver o que diz Froma Zeitlin, “Figuring fidelity in Homer’s Odyssey”, em Beth Cohen (ed.),
The distaff side, p. 125. Moikhéia, “adultério”, está em Platão (República 443a), assim como
moikhós, “adúltero” (Banquete 191d). Na passagem do Canto 8, temos, no entanto, a forma
moikhágria, “reparação pelo adultério” (v. 332).
379 Maureen Alden, “The resonances of the song of Ares and Aphrodite”, p. 516 e 528.
380 M. Alden, “The resonances of the song of Ares and Aphrodite”, p. 516-517 (itálicos originais).
381 M. Alden, “The resonances of the song of Ares and Aphrodite”, p. 529.

244
Conforme já se assinalou, sua deficiência física e sua dedicação ao trabalho
metalúrgico – além do fato de ter sofrido duas quedas (Il. 1, 590-593; e 18, 395-398),
como se não pertencesse ao Olimpo – o fazem contrastar com as demais divindades,
figurando quase como um deus “humanizado”.382 A própria insistência na narrativa
para que haja reparação “relembra amargamente a audiência das permanentes
consequências da dor e vergonha que sofreu”, servindo “como emblema da situação
humana”.383 Veja-se ainda como, no final, ele deve, muito humanamente, ceder a um
poder maior, quase como Aquiles cede a Atena (Il. 1, 216-218):

Posêidon porém não ria, mas ficava suplicando


a Hefesto, célebre obreiro, para que Ares fosse solto;
e exclamando então lhe disse estas palavras aladas:
“Solta – e a ti prometo que ele irá, como tu ordenas,
pagar tudo que é devido entre os deuses imortais”.
E por sua vez lhe disse o muito célebre Coxo:
“A mim, terra-tem Posêidon, não ordenes essas coisas!
As garantias dos fracos são fracas de garantir...
E como eu te enlaçaria entre os deuses imortais
se Ares partisse, escapando do laço e da obrigação?”
E por sua vez lhe disse o treme-terra Posêidon:
“Hefesto, se um dia Ares, escapando à obrigação,
vier a partir em fuga, eu próprio te pagarei”.
E respondeu-lhe em seguida o muito célebre Coxo:
“Não é possível, nem cabe, recusar a tua palavra”.
Assim disse, e foi soltando com furor o laço Hefesto.
(Od. 8, 344-359)

Antes do acordo, porém, Hefesto se mostrara irredutível, pedindo a res-


tituição do “dote” por causa da jovem “cara de cão” (kunópidos, qualificativo
aplicado a Helena, Od. 4, 145, e a Clitemnestra, Od. 11, 424). O tom “terreno” da
fala é indiscutível:

382 Yoav Rinon, “Tragic Hephaestus: the humanized god in the Iliad and the Odyssey”,
Phoenix 60/1 (2006): 1-20, principalmente 1-8.
383 Y. Rinon, “Tragic Hephaestus: the humanized god in the Iliad and the Odyssey”, p. 18.

245
(...) a eles laço e ardil vão segurar,
até que seu pai devolva a mim, por inteiro, o dote
que eu lhe pus nas mãos, por causa da jovem cara de cão;
porque é bela sua filha, mas de si não tem controle!384
(Od. 8, 317-320)

O riso, de qualquer maneira, em nenhum momento é dirigido a Hefesto


(como acontece no Canto 1 da Ilíada), e o acordo, ao invés de rebaixá-lo,
representa uma satisfação adequada e respeitosa. Portanto, não é possível
afirmar que há uma clara ridicularização do deus. A sua figura, no entanto, parece
ter uma dupla função, embora paradoxal: sendo um pouco cômica, ela realça o
caráter inconsequente e “risonho” desse tipo de situação no plano divino (onde,
por natureza, está totalmente descartada a matança como forma de retaliação,
e onde o riso não representa insensatez, mas confiante superioridade); ao
mesmo tempo, sendo um pouco “humana”, ela acentua o espelhamento entre
a sociedade dos homens e a dos deuses, com suas exigências morais.
Nesse sentido, o Hefesto impotente diante do poderoso Posêidon (com
um Zeus presente, mas calado, e um Sol alcaguete) constitui uma referência
oblíqua ao modo como Odisseu tem de se haver com o deus que determina o
desfecho de seu retorno – e que é decisivo também para os feácios. De toda ma-
neira, convém não carregar nas tintas na busca por correspondências, para as
quais Odisseu, internamente, não está atento, uma vez que tem apenas prazer
com esse canto (v. 367-369). Que essa história serve, efetivamente, como leve
interlúdio para o herói fica claro pelo contexto em que é apresentada; ao con-
trário dos outros dois cantos de Demódoco, este – “perfeitamente adequado ao
(...) hedonismo dos feácios” – é entoado ao ar livre e acompanhado pela dança,
o que lhe confere um aspecto bem mais lúdico:385

384 Christopher Brown defende que ekhépron (que traduzo por “de si não tem controle”)
tem aí o sentido de “restraining/controlling passion” (“Ares, Aphrodite, and the laughter of
the gods”, p. 283, nota 2), contra Bruce Braswell, que fica com a ideia de “possessing reason”
(“The song of Ares and Aphrodite: theme and relevance to Odyssey 8”, p. 133, nota 12).
385 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 118. O canto com acompanhamen-
to da dança não parece algo incomum, sendo mencionado na passagem do “Escudo de Aqui-
les” (Il. 18, 567-572). Na Odisseia, ambas as atividades aparecem claramente combinadas no
palácio de Menelau no Canto 4 (v. 17-19) e não estão, ao que tudo indica, dissociadas nas
apresentações de Fêmio no Canto 1 (v. 152 e 421). Ver também Od. 17, 605; e 18, 304-305. C.
Segal, que chama atenção para esse modo de celebração conjunta, insiste que, no momento

246
E levantaram-se os nove fiscais escolhidos todos
no povo, que organizavam tudo nas competições,
e aplainaram uma pista e abriram a bela roda.
O arauto chegou então trazendo a límpida lira
pra Demódoco, que foi para o meio; em volta, jovens
na flor da idade se erguiam, conhecedores da dança,
e feriram com os pés divina pista (Odisseu
admirava o cintilar dos pés, espantado no ânimo).
(Od. 8, 258-265)

Dando continuidade ao clima de diversão, o próprio Odisseu solicita o tema


da terceira apresentação de Demódoco, escolha que terminará por romper com
o prazer que experimentara no canto anterior. Ao retomar as “veredas” troianas
da primeira performance do aedo – que já o tinham feito chorar –, o herói vai ao
encontro do próprio sofrimento. Esse canto, como o primeiro, também não nos é
mostrado por extenso, ainda que a sinopse seja menos parcimoniosa:

E impelido pelo deus começou, mostrando o canto


desde o ponto em que embarcaram sobre as naus de belos bancos
e navegaram pra longe (pondo fogo nas cabanas)
os argivos, com os outros junto ao célebre Odisseu
já na ágora troiana, escondidos no cavalo:
os próprios troianos tinham o arrastado para a acrópole...
Assim se postava, e muitas coisas confusas diziam
os que estavam junto dele; três ideias agradavam:
fender por inteiro o lenho oco, com bronze impiedoso;
dos rochedos atirá-lo, depois de arrastá-lo ao alto;
ou deixar a grande dádiva (agrado aos deuses) ficar
– exatamente o que iria na sequência se cumprir,
pois a sina era morrerem depois que a pólis cercasse
grande cavalo de pau, onde estavam os melhores
argivos, trazendo o fim e a matança até os troianos.

em que inicia o canto dos “Amores de Ares e Afrodite”, Demódoco deixa de ser acompanhado
pela dança, uma vez que a “narrativa épica” demandaria atenção total da plateia (ver Singers,
heroes, and gods in the Odyssey, p. 117-118).

247
E cantava como os filhos dos acaios a pilharam,
pulando lá do cavalo, deixando a oca armadilha;
cantava que cada um de um lado arrasou a pólis,
mas que Odisseu, por sua vez, para a casa de Deífobo
se foi, tal qual Ares, junto ao quase-deus Menelau;
e disse que lá, ousando o combate mais terrível,
obteve então a vitória, graças a Atena magnânima.
(Od. 8, 499-520)

Tudo nos levaria a supor o orgulho satisfeito do herói ao ouvir, glorifica-


das, suas ações decisivas na vitória sobre os troianos. Mas Homero explora o
efeito contrário ao recorrer a um símile inesperado, numa das passagens mais
pungentes do poema:

Assim como a mulher chora e cai junto ao caro esposo


que em frente da própria pólis e de seu povo caiu
para afastar o impiedoso dia da cidade e filhos
(no momento em que ela vê que está morrendo e expirando,
à sua volta se derrama e grita alto; e os detrás,
martelando com as lanças em suas costas e em seus ombros,
já a levam como escrava, para ter labuta e agrura,
e dela, com dor mais digna de pena, as faces consomem-se):
assim Odisseu vertia lágrimas dignas de pena.
(Od. 8, 523-531)

A reação de Odisseu – o vencedor – é equivalente à da mulher que chora


o marido morto em defesa de sua cidade e acaba sendo escravizada. A inversão
é brutal: o herói, ao ouvir o canto, incorpora a perspectiva não apenas de quem
foi derrotado (o que, por si só, já seria surpreendente), mas, de modo específico,
da figura frágil e indefesa da esposa viúva.386 Podemos afirmar, junto com
Yoav Rinon, que o que temos aí é a ideia trágica de que a vitória é uma ilusão,
estando o homem submetido a um poder superior.387 Seria possível acrescentar

386 Para uma análise dessa inversão recorrente no poema, ver Helen Foley, “’Reverse simi-
les’ and sex roles in the Odyssey”, Arethusa 11 (1978): 7-26.
387 Yoav Rinon, “Mise en abyme and tragic signification in the Odyssey: the three songs of

248
ainda, ligado isso, que fica implícito na comparação o ponto de vista humano de
Odisseu, segundo o qual o sucesso é parte de uma cadeia instável e imprevisível
de acontecimentos, na qual a desgraça fatalmente sucede à ventura. A cena em
certo sentido evoca Agamênon e a reviravolta por que passa depois da conquista
de Troia, o mesmo Agamênon que, no primeiro canto de Demódoco, “se alegrou
no íntimo” com o conflito entre Odisseu e Aquiles, ainda que houvesse “desgraça/
para dânaos e troianos” (v. 78-82). Temos assim, mais uma vez, um Odisseu a
contrastar com o paradigma do Atrida – um Odisseu que tem conhecimento dos
limites e excessos da ação humana, capaz de ter uma visão profunda (porque “de
dentro”) do canto, o que já nos prepara para a sua própria “performance”. Sendo
assim, contra a ideia de que o herói, ao solicitar esse canto especificamente,
leva a si mesmo imprevistamente às lágrimas,388 não é absurdo postular que
seu movimento é antes o de ir voluntariamente ao encontro da dor, como se
reconhecesse claramente que ela é índice maior da condição terrena. O símile
é a feliz saída encontrada por Homero para nos apresentar, obliquamente, a
perspectiva de Odisseu.389
A reação chorosa do herói, portanto, não pode ser explicada apenas pelo
fato de estar envolvido diretamente nas histórias contadas (em contraste com
seus anfitriões, que delas extraem prazer). Seu comportamento – que poderia
ser de mera exultação diante da própria glória – explica-se tanto mais porque
em suas lágrimas entrevemos, talvez, uma compreensão profunda das vicis-
situdes por que passaram tanto ele quanto seus companheiros (e, ainda, seus
adversários). Trata-se, assim, de uma cena que antecipa, muito sucinta e obli-
quamente, a “revisão do passado” do apólogo (Cantos 9 a 12).

Demodocus”, Mnemosyne 59/2 (2006): 208-225, p. 219. Não concordo, porém, com sua ideia
de que os feácios, obtendo apenas prazer com cantos, indicam o problema de se ver a poesia
apenas como diversão, e de que essa frivolidade anuncia já sua punição por Zeus (ver p. 221-
223 do artigo).
388 Y. Rinon, “Mise en abyme and tragic signification in the Odyssey: the three songs of
Demodocus”, p. 217
389 Charles Segal sugere, de modo interessante, que a inversão de papéis experimentada
por Odisseu espelha uma possível reação da plateia: além de sentir prazer (como os feácios),
ela pode também se envolver com os personagens, compartilhando com eles o mesmo sen-
timento, humano, de vulnerabilidade; ver seu Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p.
122-123.

249
» Autoridade e novidade

Como quer que seja, vale destacar que o envolvimento direto de Odisseu
no primeiro e no terceiro canto produz dois efeitos interligados, que merecem ser
discutidos aqui: 1. aquilo que é dito pode ser atestado por aquele que foi um dos
agentes principais das ações narradas; e 2. a tradicional distância entre a audiência e
os fatos passados, projetada dentro do poema, é perturbada por uma proximidade
que torna o canto “novo”. Trata-se de duas situações excepcionais, uma vez que,
em tese, a narrativa épica deve abordar eventos “antigos”, aos quais seus heróis – já
mortos – não poderiam ter acesso enquanto ouvintes, ou, dito de outro modo, cujos
ouvintes não poderiam ser jamais os próprios heróis. O tempo da épica, no entanto,
torna-se internamente recente, e o sofrimento de Odisseu (ouvinte de si mesmo)
é sinal claro dessa “anomalia”: se o que acontece via de regra é a plateia esquecer
“o desânimo e as aflições” no momento em que o aedo rememora “as glórias dos
homens passados” (kleîa protéron anthrópon, Teog., 98-103), aqui temos a situação
estranha do personagem ouvindo a própria história e sendo tocado por ela.
Como explicar esses efeitos na Odisseia? O primeiro ponto, referente à
acuidade, tem a função de realçar o poder da Musa – seu conhecimento ilimi-
tado e profundo – imediatamente antes de Odisseu agir, ele mesmo, como um
“aedo” inspirado e afirmar a própria glória. Demódoco, o cantor da Esquéria,
ao receber a chancela do herói (a quem sem saber glorifica), ratifica o poder da
palavra divina em transcender tempo e espaço, em seu saber total:

Demódoco, louvo a ti acima dos mortais todos!


Ou a Musa te ensinou, filha de Zeus, ou Apolo,
pois é com extrema ordem que cantas a sina acaia
– quanto fizeram, e quanto aguentaram e sofreram –,
como se presenciaras ou escutaras de alguém...
Mas vamos, passa pra outro: canta o arranjo do cavalo
de madeira, o qual Epeu com Atena construiu,
ardil conduzido à acrópole pelo divino Odisseu,
após deixá-lo repleto de homens, que saquearam Ílion.
Caso venhas a contar tais coisas com proporção,
de imediato eu mesmo vou dizer a todos os homens
como o deus, propenso a ti, deu-te canto divinal!
(Od. 8, 487-498)

250
Fica implícito, nessa fala de Odisseu, que o cego Demódoco nada pre-
senciou, nada escutou a respeito dos eventos narrados: basta o ensinamento
da Musa ou de Apolo para que ele cante “com extrema ordem” (líen katà kós-
mon, v. 489) a sina acaia, e também a história anterior, acontecida no Olimpo.
A fusão, porém, entre protagonista e ouvinte representa o dado anômalo – a
possibilidade de confirmação do que foi dito – numa situação de performance
que, tradicionalmente, não abre espaço para esse tipo de aferimento. E, ainda
que a narrativa de Odisseu não vá ter, naturalmente, o mesmo estatuto divino
da de Demódoco, é interessante notar que ela vai se apresentar como algo im-
possível de ser comprovado (por ser o herói o único sobrevivente), tal como o
canto comumente o é para sua audiência. Nesse sentido, pode-se afirmar que o
interesse em atestar a precisão das palavras do aedo feácio contamina o modo
como podemos apreender as palavras do próprio personagem-narrador, ainda
que a questão seja complexa e precisemos, mais adiante, determinar qual seria
essa “verdade”.
De qualquer forma, não me parece que na passagem do Canto 8 para o
9 Odisseu esteja afirmando sua autoridade – decorrente da experiência de fato
– sobre a autoridade da Musa (e de Demódoco), de tal forma que se descortina
um lado negativo do canto. Essa é a visão exposta por Zachary Biles num ensaio
provocador, em que busca justamente explorar a não-naturalidade de termos
o herói ouvindo a própria glória.390 Minha leitura é diametralmente oposta. A
força do canto não sai diminuída do encontro entre cantor e cantado – é o con-
trário que se dá: o encontro tem justamente o efeito de iluminar os liames entre
palavra falada, conhecimento e autoridade, de tal modo que a “performance”
de Odisseu possa ser encarada sob luz semelhante.
O segundo ponto, relativo à temporalidade, é bastante espinhoso,
porque representa a quebra do espelhamento de que se falou acima: se para a
audiência externa a épica está associada a um tempo antigo, dos homens de
outrora, o que vemos aqui na Odisseia, internamente, é a aproximação desse
passado, que faz com que as histórias se tornem “recentes”: Odisseu, para quem
ouve a Odisseia, pertence a uma idade longínqua; mas Odisseu, para quem
ouve Demódoco, ainda vive – está, na realidade, presente à própria recitação.

390 Z. Biles, “Perils of song in Homer’s Odyssey”, Phoenix 54/3 (2003): 191-208.

251
Essa escolha é tanto mais notável porque frequentemente encontramos,
mesmo dentro da poesia homérica, uma postura de distanciamento em relação
a um passado maior, mais glorioso.391 Os exemplos não são poucos; começo
citando, respectivamente, uma fala de Nestor e outra de Fênix, ambas tiradas
da Ilíada:

Com varões superiores (areíosin) até mesmo a vós outrora (poté)


eu convivi, e jamais eles me menosprezavam.
Pois nunca mais vi varões desse tipo – nem verei –,
tal qual Pirítoo, tal qual o pastor de tropas Drias,
tal qual Exádio, Ceneu e o quase-deus Polifemo,
tal qual o Egida Teseu, semelhante aos imortais:
cresceram como os mais fortes (kártistoi) dentre os homens sobre a terra,
e, sendo então os mais fortes, enfrentavam os mais fortes,
feras montesas a quem destruíram com assombro.
Com esses eu convivia então, após vir de Pilos,
de longe, terra remota (pois eles próprios chamaram),
e por mim mesmo lutava; e contra aqueles nenhum
dos mortais que agora estão sobre a terra lutaria.
(Il. 1, 260-272)

Isto dos de outrora (tôn prósthen) ouvíamos contar as glórias dos homens,
dos heróis, quando veemente cólera atingia um deles:
que eram sensíveis às dádivas, e mudáveis com palavras.
Eu me lembro deste feito antigo, nada recente (pálai, oú ti néon ge),
tal qual se deu; vou contá-lo a vós, que sois todos caros:
(Il. 9, 524-528)

391 Para uma abordagem diferente, relativa à manipulação das ações passadas feita pelos
próprios personagens, segundo os interesses e as necessidades do momento, ver Oivind An-
dersen, “The making of the past in the Iliad”, Harvard studies in classical philology 91 (1990):
25-45. Contra a ideia de um passado épico absoluto proposta por Mikhail Bakhtin – porque
atenuada pelo próprio efeito da performance –, ver a obra de C. Werner, Memórias da Guerra
de Troia: a performance do passado épico na Odisseia de Homero. Coimbra: Imprensa da Uni-
versidade de Coimbra/Annablume, 2018, especialmente o Capítulo 1, “Poesia épica e a per-
formance do passado”, p. 15-41.

252
Repare-se, no primeiro caso, na insistência a respeito da superioridade,
e no segundo no “feito antigo, nada recente”, feito esse que, correspondendo
às “glórias dos homens” (kléa andrôn), identifica-se com a própria narrativa
épica. Vemos claramente, no caso de Nestor, que o passado não é longínquo
o bastante para impedir um contato – o ancião conviveu com esses homens
superiores –, mas, ainda que possamos calcular as gerações e precisar um
maior ou menor afastamento, Homero não parece interessado numa crono-
logia exata, e sim na “mitificação” dos homens de antanho, como assinalou
Vincenzo Di Benedetto ao tratar de um passo do Canto 2 da Odisseia no qual
vemos, na fala de Antínoo sobre Penélope, a mesma consciência de um passa-
do remoto e maior, ainda que aqui ele pareça ser desafiado (o anacoluto está
no original):392

Mas se ainda provocar por muito tempo os acaios,


concentrando-se naquilo que lhe deu a mais Atena
– ser versada nos tão belos trabalhos, em bravo espírito
e ganhos, qual não ouvimos em nenhuma das antigas (palaiôn),
entre as que há muito (páros) viveram, bem-penteadas acaias,
tanto Tiro quanto Alcmena e a bem-coroada Micene;
entre essas, nenhuma planos semelhos aos de Penélope
sabia (...).
(Od. 2, 115-122)

Talvez a figura heroica que melhor sintetize isso seja Héracles, a respeito
de quem Odisseu pode afirmar aos feácios:

Dos demais, digo que sou de longe o mais destacado,


dos mortais que sobre a terra vão, comedores de pão.
Mas com os de outrora (protéroisin) não quererei rivalizar,
nem com Héracles e nem com Êurito lá da Ecália,
que também com imortais rivalizavam pelo arco.
(Od. 8, 221-225)

392 V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 212-213.

253
Sabemos que na Ilíada essa figura paira como uma espécie de Aquiles
“antigo” (Il. 5, 638-642; e 18, 117-212), e que quando na Odisseia surge no Hades
diante de Odisseu – assim como as mencionadas Tiro e Alcmena, aliás – é tam-
bém como um duplo desse herói, uma versão “passada” sua (obrigada a visitar
os mortos, vítima de inúmeros sofrimentos, auxiliada por Atena), ainda que seja
agora um Héracles apenas “espectro”, porque o verdadeiro fora imortalizado e
se banqueteava em meio aos deuses (Od. 11, 601-627).393
Na mesma linha, ainda que de modo mais oblíquo, estilisticamente os
famosos símiles homéricos constituem, em uma de suas modalidades, a assun-
ção desse fosso temporal, não no sentido de criar uma defasagem entre os per-
sonagens e seus antepassados, mas entre o mundo da audiência, ordinário, e
seus antepassados extraordinários. Veja-se, a título de ilustração, este exemplo,
escolhido ao acaso entre tantos:

E deles, tal como o estrondo que brota dos lenhadores


nas clareiras das montanhas (pode-se ouvi-lo de longe)
– assim deles o fragor brotou, do chão de amplas rotas,
e dos bronzes, e dos couros, e dos escudos bem-feitos,
ao se espetarem com gládios e com lanças de dois gumes.
(Il. 16, 633-637)

Ou seja, de diferentes modos, vemos nesses casos a criação de uma


“perspectiva temporal”, com um inevitável distanciamento, seja entre plateia e
poema, seja entre a ação do poema e seu passado. Como afirmou Jonas Greth-
lein, ao tratar do que chamou de “passado embutido” nos poemas homéricos,
e especificamente na Ilíada (que “fornece constantes insights sobre sua relação
com a história”):

A relação dos heróis com seu passado tem paralelo na relação do narrador
e da audiência com o passado heroico (...). A inferioridade dos heróis em

393 Ver o que diz, nessa direção, G. Dimock, The unity of the Odyssey, p. 160-161. É essa
caracterização tradicional de Héracles como “antigo” que nos chama a atenção quando, no
Canto 21, na digressão sobre o arco de Odisseu (v. 22-30), ele aparece, anacronicamente,
como um contemporâneo do protagonista da Odisseia. Sobre as consequências disso, e o
modo como aí Odisseu e Héracles se aproximam e contrastam entre si, ver Katherine Crissy,
“Herakles, Odysseus, and the bow: Odyssey 21.11-41”, The classical journal 93/1 (1997): 41-53.

254
comparação com seus ancestrais espelha sua superioridade sobre os homens
do presente.394

Um bom exemplo da relação passado-presente é fornecido por uma fala


de Heitor no Canto 7 da Ilíada, quando reflete sobre sua eventual vitória no due-
lo com Ájax. O troiano afirma que entregará o corpo aos acaios, para que erijam
uma tumba e ela seja no futuro sinal de sua glória (dele, Heitor):

Um dia (poté) alguém vai dizer dentre os homens do futuro (opsigónon anthrópon),
navegando na nau multibanco sobre o mar vinoso:
“Eis a tumba de um varão que no passado morreu (pálai katatethneôtos),
e a quem, excelente, certa vez (poté) matou o ilustre Heitor”.
Isso um dia (poté) dirá, minha glória (kléos) jamais perecendo.
(Il. 7, 87-91)

Essa fala, por sua vez, encontra eco na afirmação de Nestor a Antíloco
no Canto 23, de que a marca (sêma, v. 326) do ponto de virada na corrida de
carros é talvez a tumba (sêma) de um homem “que no passado morreu” (pálai
katatethneôtos, v. 331). O olhar prospectivo de Heitor converte-se em olhar
retrospectivo com Nestor, mas a abordagem é a mesma. Além do mais, os
dois passos, lidos conjuntamente, nos mostram como a tumba funciona como
a inscrição do passado dentro da narrativa, como um “marcador temporal”,
como vemos nas menções ao túmulo do “antigo” (palaiós) Ilo, avô de Príamo,
um ponto de referência na planície troiana (Il. 10, 414-416; 11, 166-168 e 369-
372; e 24, 349-351).395
Mas talvez a passagem que apresenta a perspectiva histórica de maneira
mais explícita na poesia homérica seja aquela do início do Canto 12 da Ilíada,
quando o narrador faz uma digressão a respeito da muralha construída pelos
acaios “contra a vontade dos imortais” e depois destruída por uma enchente;
vale a pena citar os versos na íntegra:

394 J. Grethlein, “From ‘imperishable glory to history: the Iliad and the Trojan War”, em Da-
vid Konstan & Kurt Raaflaub (ed.), Epic and history, p. 131-132.
395 Esse aspecto da “memória material” foi explorado por Jonas Grethlein no artigo “Memory
and material objects in the Iliad and the Odyssey”, Journal of Hellenic studies 128 (2008): 27-51.

255
(...) não por muito tempo (oú ti polùn khrónon) ela ficou de pé.
Enquanto Heitor ficou vivo, e enfurecia-se Aquiles,
e a pólis do soberano Príamo ia não-pilhada
– também a grande muralha acaia ficou de pé.
Porém depois que morreram os melhores dos troianos
e muitos argivos (uns por chacina, abandono outros),
e no décimo ano (dekátoi eniautôi) a pólis de Príamo foi pilhada
e os argivos embarcaram nas naus para a cara pátria,
nessa hora planejaram então Posêidon e Apolo
varrer a muralha conduzindo o furor dos rios
todos que, desde as montanhas do Ida, correm para o mar
– tanto o Reso quanto o Heptáporo, o Careso quanto o Ródio,
o Granico e ainda o Esepo, mais o divino Escamandro
e o Simoente, onde muitos elmos e escudos de boi
tombaram no pó, e a raça de varões semidivinos (hemithéon).
De todos fez convergir as bocas o puro Apolo,
em nove dias de fluxo contra o muro; Zeus chovia
contínuo, pra que depressa pusesse a muralha ao mar.
E o Treme-terra em pessoa com o tridente nas mãos
ia à frente, despachando para as ondas toda base
– trave, pedra – que os acaios com esforço tinham posto,
e a tudo liso deixou junto ao fluente Helesponto.
E com areia cobriu a grande orla já de volta,
após varrer a muralha. E mandou os rios tornarem
ao fluxo com o qual antes tinham bela correnteza.
Assim depois (ópisthe) deveriam ambos, Posêidon e Apolo,
dispor; mas então (tóte) a luta e a grita ardiam em torno
da bem-construída muralha (...).
(Il. 12, 9-36)

Trata-se aí da projeção do futuro desse passado (“depois”, “mas


então”), futuro imediato (“não por muito tempo”, “no décimo ano”), para o
qual a narrativa já vai se encaminhando – e, a bem da verdade, antecipando
em várias cenas. Mas percebemos no trecho, ao mesmo tempo, uma tentativa
de justificar a paisagem “contemporânea” da plateia (v. 30-32) – que não vê

256
muro algum –, o que já implica uma grande defasagem. Conforme Bryan
Hainsworth comenta, “o presente passo parece um recurso engenhoso para
explicar por que nenhuma muralha acaia, ou suas ruínas, permaneciam de pé
na época do poeta”.396
Nesse sentido, é decisivo o emprego no verso 23 do adjetivo “semidivinos”,
qualificação única em Homero, que nos faz lembrar a raça heroica – “anterior”
(protére) – descrita nos Trabalhos e dias (v. 160).397 Mais uma vez, a contagem es-
trita das gerações não nos ajuda: trata-se sim, como nos mostra Hesíodo, de um
passado recente, mas a ênfase é sempre sobre uma “substancial distância tem-
poral”, como se houvesse uma “lacuna” separando os heróis épicos do presen-
te.398 É justamente essa “descontinuidade”, pela qual o presente contrasta com
o passado, que dá origem à ideia de que os homens – na expressão “quais são os
mortais de agora” (hoîoi nûn brotoí eisi) – não poderiam ter a força extraordinária
que encontramos no guerreiro homérico: a fórmula aparece quatro vezes na Ilía-
da, sendo que duas das ocorrências estão, curiosamente, nesse mesmo Canto 12
(Il. 5, 304; 12, 383 e 449; e 20, 287; ver também 21, 403-406).399
Podemos propor, portanto, que nesses versos encontramos, em destaque,
um reconhecimento da passagem do tempo ou, dito de outra forma, um reco-
nhecimento de que esses heróis pertencem ao passado – única maneira de serem
glorificados. Nos termos de Bryan Hainsworth, ao assinalar precisamente que aí o
poeta “revela sua perspectiva histórica”, “a peculiaridade da presente passagem
reside no fato de que o poeta tece (...) seus comentários sobre os eventos a partir
do ponto de vista de uma época posterior”.400 Quem analisou de forma esclarece-
dora esse necessário distanciamento para a glorificação, implicado também na
história de um objeto como a tumba (como vimos), foi Sheila Murnaghan:

396 B. Hainsworth em G. Kirk (ed.), The Iliad: a commentary. 4 vols. Cambridge: Cambridge
University Press, 1985-1993, vol. 3, p. 317.
397 Ver o que diz sobre esse termo novamente B. Hainsworth em G. Kirk (ed.), The Iliad: a
commentary, vol. 3, p. 320, e também W. Thalmann, Conventions of form and thought in Early
Greek epic poetry, p. 103-105.
398 J. Grethlein, “From ‘imperishable glory to history: the Iliad and the Trojan War”, em
David Konstan & Kurt Raaflaub (ed.), Epic and history, p. 132-133. Ver também seu artigo
“Memory and material objects in the Iliad and the Odyssey”, p. 44.
399 B. Hainsworth em G. Kirk (ed.), The Iliad: a commentary, vol. 3, p. 40.
400 B. Hainsworth em G. Kirk (ed.), The Iliad: a commentary, vol. 3, p. 320, onde cita
comentário de M. West na mesma direção (Hesiod: Works and days. Oxford: The Clarendon
Press, 1978, p. 191).

257
Na maioria dos casos a canção heroica é como um túmulo glorioso que também
comemora o feito de um herói, um sinal de honra do qual ele mesmo não pode
desfrutar porque está morto, e cuja própria existência indica sua morte. A disjun-
ção que sempre existe entre a narrativa e seu tema torna-se, nesse mundo, um
indício de mortalidade. (...) Não apenas o contexto em que se dá a canção heroica
deve se distanciar daquele em que se passam os eventos, mas os seus cantores e
ouvintes também são marcados pelo distanciamento da vida e da ação heroica.401

O envolvimento de Odisseu com o canto, contudo, elimina o “intervalo que


normalmente existe entre as experiências do herói e os cantos em que são come-
moradas”, como apontou a mesma Sheila Murnaghan.402 Contrariamente a esse
modelo de distanciamento, o herói é, por assim dizer, um passado que ainda é
presente: além de conversar com o “antigo” Héracles, ele ouve, vivo, seu próprio
kléos, o que equivale a dizer que é como já tivesse morrido e se tornado, ele pró-
prio, “antigo”.403 Mas nessa construção é o canto que se volta, inesperadamente,
para o tempo “recente”. O fato, a bem da verdade, não é isolado na Odisseia, vin-
do já destacado no Canto 1, na conhecida fala de Telêmaco dirigida à mãe:404

Não há mal em que esse [Fêmio] cante a triste sina dos dânaos:
pois é este mesmo o canto que os homens mais glorificam,
o que novíssimo (neotáte) vem em volta de seus ouvidos.
(Od. 1, 350-352)

401 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 150.


402 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 152.
403 Sobre essa situação “não-natural” e a “ambiguidade” da posição do herói, ver ainda Z.
Biles, “Perils of song in Homer’s Odyssey”, p. 201.
404 Quem chama atenção para isso é Z. Biles, “Perils of song in Homer’s Odyssey”, p. 200.
R. Martin imagina que a novidade é uma alusão à “remodelação” que todo canto sofria numa
cultura oral a cada reperformance; ver seu “Telemachus and the last hero song”, p. 238-240;
na mesma direção foi, antes, H. Fränkel (Early Greek poetry and philosophy, p. 16-17), e, de-
pois, V. Di Benedetto (Omero: Odissea, p. 193). Ver também R. Scodel, que acredita que não
se trata propriamente de uma uma “nova história” (R. Scodel, Listening to Homer: tradition,
narrative, and audience. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 2002, p. 53-54), e J. L.
Brandão, que, na mesma linha, aposta num “elogio da variante”, em seu Antiga musa (arque-
ologia da ficção). Belo Horizonte: Relicário, 2015, p. 177. Já Carol Dougherty, “Phemius’ last
stand: the impact of occasion on tradition in the Odyssey” (p. 101), sugere que num ambiente
oral a “novidade” representa uma adequação à ocasião.

258
Se é certo que a visão aí exposta coincide com o que encontramos no Canto
8 – e, de certo modo, com a recusa de Odisseu em se repetir (Od. 12, 447-453) –,405
não é menos certo que, na mesma Odisseia, percebemos indícios da consciência
de uma necessária passagem de tempo e de um necessário distanciamento entre a
vida daqueles que são objeto do canto e o momento em que esse canto passa a exis-
tir. As palavras de Alcínoo dirigidas ao forasteiro no final do Canto 8 – justamente
nesse momento do poema em que o fosso temporal se desfaz – são significativas:

E fala por que lamentas e choras dentro do peito


quando tu ouves a sina dos argivos dânaos e Ílion.
Isso os deuses preparam, tramando a destruição
aos homens a fim de haver canto também para os pósteros (essoménoisin)...
Será que um aliado teu perante Ílion pereceu
sendo um bravo – genro ou sogro, aqueles que são os mais
dedicados em seguida aos de nosso sangue e raça?
Será talvez que um varão amigo, sábio em favores,
um bravo? Uma vez que não é em nada inferior
ao irmão quem, sendo amigo, seja sábio em ponderar”.
(Od. 8, 577-586)

Como se sabe, essa percepção de uma glória futura, que virá celebrada
na boca dos homens vindouros, não é inusitada, tendo surgido, mais uma vez, já
no Canto 1 da Odisseia, na fala de Atena-Mentes. O mesmo canto que sublinha
a novidade do canto traz também em seu bojo o motivo da sua antiguidade:

Tu também, amigo – muito belo e imponente te vejo –


sê valente, pra que algum dos pósteros (opsigónon) te bem-diga (eù eípei)!
(Od. 1, 301-302)

Temos na Ilíada, na mesma direção, as conhecidas falas de Helena (a Hei-


tor) e Pátroclo (a Aquiles):

Mas vamos, agora entra e senta nesta cadeira,

405 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 192.

259
cunhado, que a luta envolve muito mais a ti, por minha
causa – cadela – e por causa da perdição de Alexandre,
a quem Zeus impôs um mau quinhão, a fim de depois (opísso)
nos tornarmos, para os homens futuros (anthrópoisi essoménoisi), temas de cantos.
(Il. 6, 354-358)

Que não se aposse de mim essa cólera que guardas,


terrível! Quem mais de ti vai se beneficiar – póstero (opsígonos) –,
se dos argivos a ruína ultrajante não desvias?
(Il. 16, 30-32)

Nesses momentos, Homero dialoga com sua audiência, assinalando que o


presente da ação corresponde ao passado dos ouvintes, os “pósteros” que agora
usufruem do canto – ou da tumba, como vimos com Heitor. No citado passo do
Canto 8, porém, nós (mas não Alcínoo) sentimos a ironia: Odisseu é, simultanea-
mente, tema do canto e um dos “pósteros” que o escuta, de tal forma que a pas-
sagem do tempo implicada na afirmação do rei feácio fica perturbada. O canto
torna-se tão “novo” que pode até mesmo chegar “em volta dos ouvidos” do cele-
brado. Alcínoo, é verdade, admite a possibilidade de o forasteiro ter perdido um
aliado ou amigo, mas, ainda que haja aí uma aproximação temporal, ele só consi-
dera a hipótese de o herói ouvir as glórias de alguém já morto, “ido”, “passado”.406
Parece-me que uma explicação possível para essa condição única de
Odisseu – que faz com que a Odisseia produza, desde o Canto 1, uma fratura na
perspectiva temporal típica – está justamente na vontade de retratar o herói como
alguém que tem uma “intimidade” (na falta de termo melhor) com a atividade
do canto. Sendo capaz de ouvir sua glória e de depois “cantá-la”, em Odisseu
convergem, de maneira muito especial, papéis inconciliáveis, que potencializam
seu conhecimento e domínio da palavra. Vindo depois do aedo Demódoco, o herói
torna-se ao longo de quatro cantos ele mesmo “aedo”, como se “revezasse”, em
sua performance, com o cego da Esquéria. Ao mesmo tempo, e de modo inverso,
é como se Odisseu alcançasse um extraordinário distanciamento de si mesmo,
como se entre ele e seu canto se interpusesse um intervalo fundamental, que
lhe permite ter uma perspectiva posterior – e, devemos acrescentar, superior,

406 Ver C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 122-123.

260
exatamente porque retrospectiva – das próprias ações. Para que fique clara,
contudo, essa potencialização da atividade de Odisseu enquanto “cantor”, é
preciso que vejamos, a seguir, que indicações o texto nos dá de que o herói de fato
constrói seu próprio poema dentro da Odisseia, e que significado tem ele rever
suas experiências nesse ponto da narrativa.

» Odisseu “aedo”

Entre as questões mais debatidas da Odisseia está a representação de


Odisseu como cantor. O problema é muitas vezes colocado em termos simpli-
ficadores e mutuamente excludentes – ele age ou não como cantor? –, quando
uma abordagem mais ajuizada talvez nos obrigue a reconhecer que, se por um
lado o herói em momento algum atua de fato como aedo, por outro em inúmeras
passagens ele é assimilado a essa figura. Em outras palavras, o poema jamais
coloca a lira nas mãos de Odisseu e o faz inspirado pelas Musas, mas as reações
dos personagens ao modo como ele fala, sua própria postura e certos comen-
tários da parte do narrador nos levam, inevitavelmente, a sentir o herói como
alguém que, de certa maneira, compartilha das qualidades e habilidades de um
cantor, ainda que não seja um.
A sua posição de narrador aplicado, com direito à reprodução de discur-
sos diretos e outros recursos típicos do narrador principal, não basta, por si só,
para produzir essa assimilação. Na realidade, ela encontra paralelo nas falas
de outros personagens homéricos, como Glauco, Fênix e Nestor na Ilíada (Can-
tos 6, 9 e 11, respectivamente), e na Odisseia mais uma vez Nestor (Canto 3) e,
principalmente, Menelau (Canto 4).407 Trata-se da loquacidade que esperamos
encontrar num poema produzido oralmente, numa cultura em que a palavra
falada tinha proeminência sobre outras formas de comunicação. Em Homero,
além do mais, já foi largamente demonstrado que a ênfase nas muitas falas dos
heróis e deuses é ferramenta importante para a caracterização, porque permite
que acessemos as motivações e intenções dos personagens.
Odisseu, no entanto, difere desses exemplos por um dado imediato,
que salta aos olhos: sua narrativa estende-se por quatro cantos (do 9 ao 12) e
mais de dois mil versos, superando em muito qualquer outro discurso da poesia

407 Il. 6, 145-311; 9, 524-599; e 11, 67-761; Od. 3, 254-311; e 4, 347-586.

261
homérica, e sendo ainda responsável por fazer que a “imitação” (a presença do
discurso direto) predomine amplamente na Odisseia sobre a narração, ocupando
67% da história.408 Além do mais, há um efeito de “sobreposição” – de forma e
conteúdo – que é fundamental, assim descrito por Lillian Doherty:

A própria narrativa de Odisseu, por sua inserção dentro do tecido épico, de-
monstra cabalmente o potencial para uma sobreposição entre a performance
épica e as histórias contadas por “não-profissionais”. (...) Todos os discursos
relatados na Odisseia são necessariamente épicos na forma, isto é, pela dicção
e versificação, mas apenas alguns são recapitulações de temas épicos.409

De um lado temos o fato de que a fala de Odisseu, como a de outros heróis


homéricos, está voltada para a rememoração de feitos, empenhando-se assim, por
causa dessa vontade retrospectiva, em descortinar um passado – o que a aproxima
do movimento narrativo maior dos poemas épicos. De outra parte, cabe notar, junto
a isso, que a apresentação em versos dessa fala produz em nós, inevitavelmente,
uma percepção poética do seu discurso. Naturalmente, as falas de todos os
personagens em Homero são em forma de poesia, mas nem por isso imaginamos
que eles falam “poeticamente”, como se “cantassem”: Agamênon e Aquiles
trocam versos entre si no Canto 1 da Ilíada, mas, internamente, a comunicação
deles é “em prosa”. Estamos diante de um artifício – da poesia homérica e de
muitas outras poesias (narrativas e dramáticas) – tão corriqueiro e banal, de uma
convenção tácita assumida de forma tão automática entre leitor e obra, que nem
nos detemos nisso. Todavia, no caso de Odisseu, a extensão de sua fala narrativa,
somada às cores “performáticas” que assume (assinalada de diferentes modos),
deve nos deixar alertas para um olhar diverso. De certo modo, a possibilidade aí de
uma “fusão” entre o discurso corriqueiro e o discurso musical é ensejada pelo que
acontece pouco antes de o herói dar início à sua narrativa: conforme vimos, quando
Demódoco cantou os “Amores de Ares e Afrodite”, sua voz poética fundiu-se com a
voz do narrador principal. Sim, devemos evitar qualquer equívoco: para a audiência

408 I. de Jong afirma que os apólogos são “de longe a mais extensa história embutida de toda
a poesia homérica” (A narratological commentary on the Odyssey, p. 221). Ver ainda nota 7, no
Capítulo 1 acima. Excluída a fala de Odisseu, o porcentual de discursos diretos cairia para 47%,
próximo do que encontramos na Ilíada (M. Cantilena, “Sul discurso diretto in Omero”, p. 23).
409 L. Doherty, “Gender and internal audiences in the Odyssey”, p. 161.

262
interna (Odisseu e os feácios), Demódoco fala em versos, enquanto o herói, a partir
do Canto 9, fala “em prosa”. Porém, ao “assumir” a narrativa e ser equiparado a um
cantor, Odisseu certamente se transforma em um narrador bem menos “prosaico”
e, portanto, ficamos autorizados a ver mais poesia no seu apólogo – nesse contexto
– do que vemos nos longos discursos de outros personagens homéricos.
É verdade que a presença da primeira pessoa, em lugar da terceira, é
um dado distintivo evidente, que separa Odisseu de Demódoco. Irene de Jong
mostrou que esse olhar “pessoal” traz quatro “deficiências” à palavra do herói,
em comparação com a do aedo/Musa: uma restrição de espaço; uma restrição
de acesso (ao pensamento dos outros); uma restrição de compreensão (dos
fatos); e uma subjetividade de estilo.410 Deborah Beck investigou essa mesma
questão num artigo em que apresenta as diferenças, entre narrador principal e
personagens-narradores, no emprego de fórmulas.411 Esses dados são incontes-
táveis, mas ainda assim o que me parece decisivo na discussão é o fato de que
Odisseu produz sua narrativa dentro de um ambiente “musical”, sucedendo a
um aedo e dele tomando emprestado muitos dos recursos, extraindo assim da
sua audiência reações similares, senão idênticas. Some-se a isso sua caracte-
rização, na segunda parte do poema (Cantos 13-24), como hábil fabricador de
histórias, as quais novamente têm o poder de envolver a audiência (agora em
Ítaca), e a conclusão é de que o Odisseu-narrador claramente se destaca dos
demais personagens narradores da épica, sendo preciso, portanto, dar conta do
efeito produzido pela presença desse herói “aedo”.
Vejamos rapidamente quais são as indicações dadas pelo poema a respeito
dessa assimilação, começando pelo “proêmio” da narrativa, no início do Canto 9.
Interrompido o canto de Demódoco, o forasteiro é instado por Alcínoo a revelar
sua identidade; repare-se como Odisseu insiste no contraste entre a beleza do
banquete com acompanhamento musical (“belo”, “mais agradável”, “bem-estar”,
“mais belo”) e o caráter aflitivo de suas aventuras (“penosas aflições”, “pene”,
“lamentoso”, “muitas aflições”).412 A passagem funciona como um comentário

410 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 223-227.


411 D. Beck, “Odysseus: narrator, storyteller, poet?”, Classical philology 100/3 (2005): 213-227.
412 Para uma visão dessa introdução como construção retórica próxima do canto simpo-
sial, em que a ordem do banquete é um espelhamento da ordem social, ver Andrew Ford,
“Odysseus after dinner: Od. 9, 2-11 and the traditions of sympotic song” em John Kazazis &
Antonio Rengakos (ed.), Euphrosúne: studies in Ancient epic and its legacy in honor of Dimi-
tris N. Maronitis. Stuttgart: Frank Steiner Verlag, 1999, p. 109-123, especialmente p. 112-115.

263
sobre as diferentes reações ao canto – da parte de quem não está absolutamente
envolvido nele (os feácios) e de quem tomou parte nos acontecimentos (Odisseu).
Ao mesmo tempo, ela parece antecipar a ideia de que as dores passadas,
quando relatadas por quem as sofreu, trazem prazer – ideia que será afirmada
por Eumeu no Canto 15 (“com as aflições de cada um, penosas, deleitemo-nos,/
rememorando: depois, com dores o homem deleita-se,/ quem quer que tenha
muitíssimo sofrido e muito vagado”, v. 399-401). Há, portanto, certa ambiguidade
nestas palavras:

Como resposta lhe disse o multiastuto Odisseu:


“Reinante Alcínoo, entre todas as gentes muito eminente:
isso certamente é belo – escutar a um aedo
do tipo que este aqui é, rival dos deuses na voz!
Eu mesmo digo que não há meta mais agradável
do que quando o bem-estar se apossa de todo o povo
e os convivas vão na casa escutando a um aedo,
sentados em série; as mesas ao lado ficam repletas
de carne e pão, e o escanção, retirando da cratera
o vinho, o vai transportando e vertendo pelas taças.
Isso me parece ser o que de mais belo existe!
Mas teu ânimo te fez perguntar minhas penosas
aflições, para que eu pene, lamentoso, ainda mais.
O que devo então falar em primeiro, e o que por último?
A mim os deuses celestes deram muitas aflições...
Agora direi primeiro meu nome, pra vós também
saberdes – e eu, escapando ao impiedoso dia,
vir a ser vosso anfitrião, longínqua casa habitando.
Sou o Odisseu Laercida, com quem pelos ardis todos
os homens se preocupam: minha glória alcança o céu.
(Od. 9, 1-20)

Para as referências antigas a essa passagem – por Platão (República, 390a-b), pelo autor do
Certame de Hesíodo e Homero (90-94), por Heráclito, o Alegorista (Problemas homéricos, 79),
e por Plutarco (Sobre a vida e a obra de Homero, 150), entre outros, ver p. 109 e 114. Ver ainda
W. Slater, “Sympotic ethics in the Odyssey”, em O. Murray (ed.), Sympotica. Oxford: Oxford
University Press, 1990, p. 213-220.

264
A revelação do nome corresponde ao movimento padrão nesse tipo de
circunstância – o estrangeiro, depois de acolhido, deve finalmente se apresen-
tar –, mas constitui também a afirmação da glória, do (re)nome, típica do canto,
ainda que seja aqui anômala, porque na boca do próprio cantado.413 Da mes-
ma forma, a (falsa?) hesitação retórica entre o que deve ser narrado primeiro
e o que por último ou, dito de outra maneira, a respeito da maneira como se
deve organizar o material a ser apresentado, remete-nos à abertura da Odis-
seia (“Disso a partir de algo, deusa de Zeus, nos fala também”) e a uma fala do
narrador no Canto 16 da Ilíada (“mas então quem em primeiro, que por último
mataste,/ Pátroclo, quando pra morte os deuses já te chamaram?”, v. 692-693),
funcionando como mais uma sinalização para o papel que Odisseu assume.414
Mais à frente, deparamo-nos ainda com estes versos significativos, nos quais
figura o mesmo verbo do verso 1:

Vamos, que eu também evoque (eníspo) multiaflitivo retorno


que Zeus enviou a mim depois que parti de Troia!
(Od. 9, 37-38)

Como observou Irene de Jong, este “anúncio de Odisseu lembra um pro-


êmio épico: tema no acusativo, adjetivo, verbo de dizer, oração relativa com
informação adicional, e ponto de partida”, estrutura típica que ele voltará a ado-
tar no Canto 11, tal como notou, mais uma vez, a estudiosa holandesa:415

Mas se ainda tens vontade de escutar, eu é que não


me negaria a contar-te algo mais digno de pena
– aflições de companheiros meus, que depois pereceram,
esses que da lamentosa grita troiana escaparam,
mas morreram no retorno, por gosto de mulher má.
(Od. 11, 380-384)

413 Veja-se o que diz C. Segal (Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 87 e também p. 91)
sobre a construção anômala com o verbo mélo na primeira pessoa (“sou objeto de preocupa-
ção”, literalmente; na tradução, “se preocupam”), e não na usual terceira, o que só reforça o
caráter extraordinário dessa situação, em que o herói canta a si mesmo.
414 V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 498.
415 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 229 e 286.

265
Essa percepção de que ele se identifica com Demódoco, como se estivesse
se revezando com ele, vem reforçada não só por fazer uso de catálogos no Canto
11 (v. 235-332 e 568-600), os quais, por sua dificuldade e abrangência, ensejam
a mesma “queixa” (“não seria capaz de enumerar”, v. 328) que encontramos no
Canto 2 da Ilíada antes do “Catálogo das naus” (v. 488-492) e na Teogonia (v.
369-370) – essa percepção vem reforçada não só por essas listas, mas também,
e sobretudo, pelo trinômio “interrupção/retomada-a-pedidos/elogios”, tão
evidente na performance do cantor feácio (Od. 8, 90-92 e 487-491). De fato, no
único trecho dos Cantos 9 a 12 em que o narrador principal intervém (Od. 11,
333-384), Alcínoo se manifesta assim:

sobre ti a formosura do dito (morphè epéon), em ti bravo espírito!


Tua história como aedo – com ciência (epistaménos) – relataste:
horrendas aflições tuas e de todos os argivos.
Mas vamos, me fala isto e relata sem torcer:
se viste algum quase-deus amigo – dos que contigo
foram junto para Ílion, lá seguindo seu destino.
Esta noite é muito extensa, sem par: não é hora ainda
de dormirmos no palácio. Fala dos sublimes feitos (théskela érga):
eu aguentaria até vir divina Aurora, caso
suportasses, no palácio, tuas aflições contar (muthésasthai).
(Od. 11, 367-376)

A solicitação de um “tema” específico retoma o que o próprio forasteiro


fizera antes com Demódoco, reafirmando mais uma vez que “o modo como Odisseu
apresenta sua história lembra uma performance poética”, mas mais relevante
ainda é perceber que o elogio vem da parte de um povo acostumado, como vimos,
à arte do canto, da qual tem total domínio;416 além do mais, o interesse e prazer
nesse história ratificam a valorização do canto “novo”, de que falamos atrás.417
Por outro lado, Homero parece querer enfatizar, na interrupção deliberada do
herói, seu controle sobre os ouvintes. Robert Rabel, ao tratar do efeito especular
gerado pelas interrupções da Odisseia (as “demoras” que potencializam as cenas de

416 W. Thalmann, Conventions of form and thought in Early Greek epic poetry, p. 171.
417 Quem chama a atenção para isso é I. de Jong, A narratological commentary on the
Odyssey, p. 38 e 285.

266
reconhecimento) e pelas interrupções na Odisseia – efeito que serviria de estímulo
para a audiência externa observar de perto a técnica narrativa do poeta –, diz o
seguinte a esse respeito:

Ao interromper num ponto de sua escolha, Odisseu demonstra um nível de


influência sobre sua audiência não compartilhado por outros cantores profis-
sionais no poema, mas apenas com o próprio poeta da Odisseia (...). Embora
não chegue perto da monumentalidade da Odisseia – sua história se restringe
a quatro cantos dentro de um poema muito maior –, Odisseu proporciona uma
ilustração clara de um contador de histórias que busca um controle sobre seu
tema e audiência como o demonstrado pelo poeta.418

Avançando na narrativa, vemos que na segunda metade do poema pelo


menos três passagens sublinham, de diferentes perspectivas, essa associação
de Odisseu com o canto. Na primeira, que analiso em detalhe no Capítulo 8, é o
próprio herói, disfarçado de mendigo, que brinca junto a Euemeu com sua ca-
pacidade de “cantar” (aeîsai, Od. 14, 464). Mais adiante, é a vez de o porqueiro,
impressionado com o poder de sedução do seu hóspede, afirmar para Penélope:

Ah, rainha, se os acaios ficassem então calados!


Com o que conta, ele iria encantar (thélgoito) a tua entranha...
Pois por três noites o tive e por três dias retive
na cabana (a mim primeiro chegou fugido da nau),
mas não terminou ainda de dizer os males seus.
Como quando um varão encara o aedo (aoidón) que, por deuses
ensinado, canta (aeídei) versos (épea) sedutores aos mortais,
e continuamente anseiam ouvi-lo sempre que canta (aeídei):
assim ele me encantou (éthelge), sentado no meu palácio.
(Od. 17, 513-521)

A ideia de “encantar” (verbo thélgo), repetida dentro da estrutura em


anel, nos remete às “encantações” (thelktéria) de Fêmio no Canto 1 (v. 337), mas
não precisamos nos socorrer desse paralelo numa passagem em que a atuação

418 Robert Rabel, “Interruption in the Odyssey”, Colby quarterly 38/1 (2002): 77-93, p. 87.

267
de Odisseu é, explícita e enfaticamente, comparada à do aedo. Convém recor-
dar que no Canto 11 o narrador já nos havia dito, no momento em que o relato
havia sido interrompido, que os ouvintes foram tomados por um “feitiço” (kele-
thmôi éskhonto, v. 333-334), reação idêntica à descrita, mais uma vez, ao fim do
apólogo (Od. 13, 1-2 = 11, 333-334).
O mesmo vale para o momento em que o herói, prestes a chacinar os pre-
tendentes, arma seu arco como se estivesse manipulando um instrumento mu-
sical de corda. A perspectiva agora é a do narrador, que em certo sentido vem
coroar, com sua objetividade, a visão expressa anteriormente pelos personagens:

Falavam os pretendentes, e o multiastuto Odisseu,


logo após erguer o grande arco e vê-lo por inteiro,
tal como um varão que, tendo ciência da lira e do canto (phórmiggos kaì aoidês),
facilmente estica a corda em torno à cravelha nova,
nos dois lados presa a bem-torcida tripa de ovelha,
assim – sem esforço – o grande arco esticou Odisseu.
Com a mão direita então pegou o fio e testou-o:
cantou (áeise) bonito, com som semelhante ao da andorinha.
(Od. 21, 404-411)

Do ponto de vista da construção, é interessante perceber que o que se ini-


cia como uma comparação (“tal como... assim”) acaba se transformando numa
metáfora (“a corda [do arco]... cantou”): esse movimento do estilo parece fun-
cionar aí como súmula perfeita de Odisseu, que hesita entre ser como um aedo e
um aedo de fato, entre uma assimilação e uma quase total identificação. Como
diz Sheila Murnaghan, “o símile assinala o ápice de seu disfarce como poeta”.419
Além dessas referências, temos nessa parte da Odisseia as próprias his-
tórias contadas por Odisseu, algumas apresentadas diretamente, outras apenas
aludidas ou resumidas. Desse segundo grupo, o mais conhecido exemplo vem
do Canto 23, quando o herói relata suas aventuras para Penélope (v. 306-341),
que se deleita em ouvi-lo (etérpet’akoúousa, v. 308). 420 Podemos supor que te-

419 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 169.


420 S. Murnaghan (Disguise and recognition in the Odyssey, p. 149, nota 2) chama atenção
para a presença do verbo érxato (“começou”, v. 310), mais um ponto de assimilação com a
estrutura típica dos cantos.

268
mos aí a reapresentação do discurso feito aos feácios, e que Odisseu, contra
o que dissera no Canto 12, se repete? O fato é que a prática da “omissão” nos
lembra do que acontece com Demódoco no Canto 8, em seu primeiro e terceiro
canto – mais um ponto de contato com o cantor profissional.421 O mais curioso
é notar que não se trata de um caso isolado: dentro da narrativa do herói, ele
próprio faz alusão a um provável “relato épico” dirigido a Éolo (Od. 10, 14-16).
Até agora vimos como se opera no poema essa assimilação de Odisseu
à figura do aedo, segundo a maneira como o herói apresenta seus discursos e
eles são percebidos por seus interlocutores (não só o apólogo entre os Cantos
9 e 12, repetido depois para Penélope, mas também as “mentiras cretenses”
narradas em Ítaca). Vimos também que essa aproximação pode ter a função
de destacar o poder verbal e o saber de Odisseu, e que o “canto” de si mesmo
promove, concomitantemente, tanto uma perspectiva de “dentro” quanto um
afastamento salutar, pela oportunidade do olhar retrospectivo: vivo, ele se
apresenta como “antigo”. Falta ainda abordar, porém, duas questões: 1. por
que essa assimilação se dá quando ele está entre os feácios e qual o propósito
dramático geral do relato nesse ponto?, e 2. como resolver o espinhoso
problema da distinção, em suas histórias, entre verdade e mentira? Por ora, é
suficiente dizer que essa segunda questão está fortemente associada a essa
aproximação de Odisseu com o canto, conforme se vê no verso do Canto 19 dito
pelo narrador a respeito do herói, “tornava a muita mentira dita semelhante aos
fatos” (v. 203). Como se sabe, essa linha é praticamente idêntica ao verso dito
pelas Musas na Teogonia: “sabemos muita mentira dizer semelhante aos fatos”
(v. 27). O esposo de Penélope, em outras palavras, faz aí o que as deusas do canto
se gabam de fazer: confundir o falso e o verdadeiro. Junte-se a isso o fato de em
sua apresentação ele lançar suspeitas sobre si mesmo (“Sou o Odisseu Laercida,
com quem pelos ardis todos/ os homens se preocupam”, Od. 9, 1-20) e de Alcínoo
insistir no tópico da sinceridade de seu hóspede (Od. 8, 548-549; e 11, 363-366)
– sem falar do seu disfarce de mendigo em Ítaca, figura socialmente marcada
pelas mentiras oportunistas e interesseiras – e fica claro o quão entranhado
está esse motivo na Odisseia. Se Odisseu mente em seu palácio, podemos dizer
que mente também na Esquéria, ou diz a verdade apenas parcialmente? Se for
mantida a associação com Demódoco, em que sentido deve ser tomada a já

421 L. Doherty, “Gender and internal audiences in the Odyssey”, p.169-170.

269
vista “veracidade” ou “acuidade” atribuída pelo próprio herói ao aedo cego, e
como coaduná-la com o apólogo e as “mentiras cretenses”? Para abordar todos
esses pontos adequadamente, contudo, é preciso antes termos uma visão mais
clara do que ele efetivamente diz aos feácios e aos seus ouvintes em Ítaca.
Quanto à primeira questão – por que o apólogo se dá justamente na Es-
quéria? –, poderíamos a princípio trabalhar com a resposta fornecida por Glenn
Most num artigo de 1989.422 Segundo esse estudioso, a explicação dada por
Aristóteles no Livro III da Retórica (Capítulo 16, 1417a12-15) – de que o extenso
relato feito aos feácios visaria suscitar a piedade (oîktos) e a indignação (dei-
nósis) dos anfitriões – mostra-se insuficiente: isso poderia até valer para o epi-
sódio com o Ciclope, mas outras ações descritas por Odisseu não seriam tão
propensas assim a angariar simpatia.423 Ainda de acordo com Most, investiga-
ções detalhadas sobre a estrutura do apólogo, como a de J. D. Niles, embora
úteis, continuam a deixar em aberto o problema da função dramática do relato
a Alcínoo.424 Para o helenista, a resposta passa necessariamente pelo tema da
hospitalidade: precisando de acolhimento e transporte, Odisseu usa como con-
traponto – e advertência – a selvageria dos que antes o receberam. O relato de
suas aventuras teria, assim, o propósito de fornecer esse (contra)exemplo do
mau comportamento. Diz Most: “Quaisquer que sejam as outras funções a que
possam servir, os apólogoi de Odisseu são elaborados com o propósito de definir
os devidos deveres da hospitalidade – negativamente”, e isso seria necessário
porque Homero “repetidas vezes insinua que os feácios podem se mostrar anfi-
triões não amigáveis”.425
Não devemos abandonar essa sugestão, mas aqui quero explorar outra
possibilidade, aberta pelo sabido caráter “transicional” que os feácios assumem

422 G. Most, “The structure and function of Odysseus’ apólogoi”, Transactions of the
American philological society 119 (1989): 15-30, reproduzido em I. de Jong (ed.), Homer: critical
assessments, vol. 4, p. 486-503, a partir de onde cito.
423 G. Most, “The structure and function of Odysseus’ apólogoi”, em I. de Jong (ed.), Homer:
critical assessments, vol. 4, p. 489. Graciela Zecchin de Fasano, apoiando-se em Aristóteles,
chama atenção para apólogos (da mesma raiz de apología, o “discurso de defesa”) enquanto
“discurso defensivo” contra hipotéticos inimigos; ver seu Odisea: discurso y narrativa. La Pla-
ta: Edulp, 2004, p. 107 e 113-114.
424 J. D. Niles, “Patterning in the wanderings of Odysseus”, Ramus 7 (1978): 46-60. Sobre
esse trabalho de Niles, ver o que diz Most, p. 490-491.
425 G. Most, “The structure and function of Odysseus’ apólogoi”, em I. de Jong (ed.), Homer:
critical assessments, vol. 4, p. 492 e 494.

270
na viagem de volta de Odisseu. Conforme colocou Charles Segal, a resposta
para a escolha da Esquéria como “lugar para a revisão das aventuras de Odis-
seu” pede “um exame cuidadoso de todo o episódio feácio na Odisseia como
um todo”.426 Explorando as transformações psicológicas por que passa o herói
nesse estágio de suas peripécias (apontadas aqui em capítulo anterior), diz o
norte-americano:

É esse equilíbrio de envolvimento e distanciamento [com o âmbito mortal] que


torna possível que Odisseu reveja seu passado. Ele está retornando para sua
mortalidade, sem contudo estar completamente envolvido com ela, e portanto
pode refletir e rever suas experiências no mundo não-humano, “irreal”, antes
de reentrar na realidade de Ítaca.

O próprio ato de contar suas aventuras é um sinal de que Odisseu está pronto
para voltar. (...) Agora, sem o envolvimento imediato, ele atingiu um ponto que
lhe permite reentrar em sua humanidade. Em seu relato aos feácios, ele faz a
síntese final e poderosa, fixando o passado numa preparação para o futuro.
(...) Ele não apenas viveu isso no passado, mas pode revivê-lo internamente,
absorvendo-o e apreendendo-o também para o futuro.427

Sendo a terra dos feácios, portanto, um lugar de “reintegração” e “passa-


gem”, é também o ponto ideal para que o herói reveja o que passou e se prepare
para o que está por vir. Mais adiante, Segal pergunta-se, diante disso, se pode-
mos falar num “desenvolvimento” de Odisseu ao longo do poema ou, em outras
palavras, se essa revisão implica a consciência de uma transformação; e, ainda
que admita que as qualidades iniciais do herói, como adaptabilidade e esperte-
za, pareçam “partes fixas de sua natureza desde o princípio”, ele não descarta
o enfoque segundo o qual o protagonista “aprende com o passado” e, sendo o
último dos guerreiros a retornar de Troia, “pode se beneficiar das experiências
daqueles que o precederam”.428 Ou seja: nada mais oportuno do que ser esse
lugar de mudança do herói também o lugar para o confronto entre o que viveu

426 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 16.


427 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 18 e 19, respectivamente.
428 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 57-58.

271
e que vai agora viver e, mais do que isso, que esse confronto traga embutido em
si um olhar crítico, que implica a existência de um conhecimento que não tinha.
Por isso Segal pode afirmar que o Odisseu que chega a Ítaca no Canto 13, tendo
realizado o ato narrativo de rememorar seus muitos anos de viagem, “está mais
certo da ajuda divina, mais prudente e com mais autocontrole do que o Odisseu
que defendeu a própria vida e a de seus homens contra o Ciclope”.429 Na realida-
de, sabemos que no apólogo o herói, muito significativamente, não omite seus
erros dessa visada retrospectiva – relatando “momentos agressivos e brutais” e
“um retrato ambíguo da relação com os companheiros” (nos dizeres de Sheila
Murnaghan).430 E isso não só lhe confere um grau de conhecimento distinto – de
um herói “mudado” –, mas também o aproxima, mais uma vez, do cantor e da
inspiração divina, como notou com argúcia Segal:

O fato de que ele relata suas próprias falhas, particularmente com comentá-
rios editoriais como ‘teria sido melhor’ (Od. 9, 228), revela a presença de uma
perspectiva que é a do próprio narrador – de uma compreensão maior de seu
passado.431

É portanto a função “transicional” dos feácios apontada anteriormente


– entre selvageria e civilização, entre o inumano e o humano, entre anonimato
e renome – que pode explicar a justeza e adequação dramática de um relato
que traz, ele também, a consciência de uma transição “cognitiva”, ainda que
não se possa descartar a formulação inversa, de que a transição cognitiva de
Odisseu é mais um elemento a indicar o caráter transicional dos feácios. O local
de passagem abre espaço para o relato revisionista, mas o relato revisionista,
por sua vez, reafirma o local de passagem.
No que diz respeito a Odisseu, esse uso “esclarecedor” e inteligente
da palavra pode e deve ser visto como um desdobramento de sua conhecida
astúcia – ou mesmo como seu traço mais característico –,432 e disso decorre

429 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 198-199.


430 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 101.
431 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 220.
432 Segundo Norman Austin, seria a habilidade discursiva de Odisseu que estaria em des-
taque no seu recorrente epíteto polúmetis, “multiastuto”; ver seu Archery at the dark of the
moon, p. 39-40.

272
a possibilidade de percebermos que, ainda que a mêtis seja uma qualidade
constante do herói, ela pode sofrer mudanças: se ele passa a ter um
conhecimento superior, sua esperteza também passa por uma gradação. Sendo
agora “cantor”, Odisseu tem um domínio da palavra e um conhecimento que
não tinha, e sua astúcia assim se efetiva por completo.
A importância desse controle verbal é afirmada pelo próprio Odisseu no
Canto 8, num passo – o já citado confronto com Euríalo – que só vem confir-
mar que o herói nesse momento o detém e põe em prática (v. 167-173). Não por
acaso, a “formosura dos ditos” (morphèn épesin, v. 170) de que fala a Euríalo é
aquilo que Alcínoo elogia no herói no Canto 11 (morphè epéon, v. 367) quando
este age “como aedo”. O episódio da censura ao jovem feácio seria, portanto,
uma forma de Homero nos indicar que Odisseu, nesse estágio de transição, ad-
quire ele mesmo um poder de discernimento superior, que o prepara para sua
“performance”. O apólogo representaria, portanto, a culminância da retoma-
da dessa qualidade (o domínio inteligente da palavra, com implicações morais
e políticas), uma qualidade que não havia de todo desaparecido, mas que, no
confronto com o passado, ocorre agora numa chave mais positiva e justa, com
suporte divino e sem o “ódio seu”, desse modo preparando o herói para o en-
frentamento dos soberbos pretendentes. Em outras palavras, o relato, ao falar
do selvagem e do inumano, fala da superação desses aspectos, vistos não ape-
nas como elementos “externos” ao herói, mas constitutivos também, em certo
momento, de sua própria identidade.
Para apreendermos de fato essa transformação cognitiva e moral, é
preciso que analisemos com calma a narrativa do apólogo – o episódio central
com o Ciclope, no Canto 9, e suas demais aventuras, entre os Cantos 10 e 12.
Só assim conseguiremos mostrar como suas palavras trazem uma perspectiva
revisionista ou, dito de outro modo, como Odisseu enxerga a si de maneira
crítica. Depois disso, veremos como o uso de verdades/mentiras em Ítaca –
dando continuidade à caracterização do herói – faz parte de sua volta (re)velada
patrocinada por Atena, e de que maneira isso vem explorado na associação
com o mendigo (em que se retoma o tópico da hospitalidade), culminando no
restabelecimento da justiça. A conclusão será de que não estamos diante de
uma figura estática e simplesmente modelar: Odisseu nos é pintado na Odisseia
de modo dinâmico e, como seu filho Telêmaco, em certo sentido também
“amadurece”; tal qual os pretendentes, ele também pode ser marcado pelo

273
excesso e pela mesma necessidade de moderação e conhecimento, e essa
ambivalência pode o tornar, ainda que por outro ângulo, novamente afim
à esposa Penélope. Vistos assim, esses personagens centrais estabelecem
relações significativas entre si, e as reflexões propostas pelo poema podem
ganhar um novo alcance.

274
8. sendo e não sendo odisseu

Odisseu revela o próprio nome em dois momentos-chave do Canto 9:


no seu começo, ao anunciar finalmente sua identidade aos feácios (v. 19), de-
pois de cautelosamente retê-la ao longo dos Cantos 6 a 8, e no final, quando,
narrando o confronto ocorrido anos atrás com o Ciclope, conta como fez ques-
tão de dizer ao gigante que seu verdadeiro nome, ao contrário do que dissera,
não era “Ninguém” (v. 504). São dois pontos extremos no tempo, separados
por quase uma década, dois pontos que – identificados pelo ato da autonome-
ação – parecem ter a função nada casual de marcar o contraste entre um herói
que pode ser visto quase como dois, o que age oportuna e espertamente em
relação a sua identidade, e o que faz um mau uso do mecanismo de ocultação,
ferramenta fundamental para quem se vê diante de contínuas dificuldades e
precisa saber operar com um desaparecimento providencial. No plano maior,
temos então um Odisseu que agora diz ser quem é – não sem muitas delongas
– para anfitriões reconhecidamente hospitaleiros, e que rememora o Odisseu,
que igualmente disse quem era, mas para um anfitrião reconhecidamente sel-
vagem, que pôde produzir todo o penoso retardo que experimentou em sua
volta para casa.
Mais do que a identificação no início do canto ecoar (temporalmente) e
antecipar (segundo a ordem narrativa) em chave positiva a do final, num diálo-
go explícito entre as duas passagens, trata-se de uma espécie de autorreflexão,
nas entrelinhas, a respeito desses movimentos que têm a ver com a própria es-
sência de Odisseu – o de desaparecer e o de aparecer – e de qual dos dois faz
esse herói ser quem é. O fato de ele ter se mantido habilmente oculto em ambos
os casos – sonegando o quanto pôde seu nome aos feácios, para assim conhecê-
-los melhor, e autonomeando-se “Ninguém” para o Ciclope, para assim sobrevi-
ver e escapar com os companheiros – mostra-nos que o Odisseu mais caracte-
rístico, que o Odisseu que é essencialmente Odisseu, é o que tem a capacidade
de negar sua própria identidade, e que portanto sua glória depende, se não de
uma negação permanente (que mataria a própria possibilidade de renome), de
uma negação ao menos dominante e estendida, consciente e deliberada, por-
que apta a levar a bom termo seus planos e objetivos.
Não é por acaso, assim, que essa afirmação tão enfática sobre quem é, feita
aos feácios no início do Canto 9 (“Sou o Odisseu Laercida, com quem pelos ardis/

275
todos os homens se preocupam: minha glória alcança o céu”, v. 19-20), apresenta-
se num nível mais profundo, diante do olhar retrospectivo, como uma necessidade
de ele, na realidade, não ser explicitamente Odisseu, o que de fato ocorrerá logo
a seguir na narrativa, quando será transformado por Atena num velho mendigo,
no Canto 13. Sair do convívio com Calipso (“A que encobre”), portanto, não o
levou à busca de uma autoafirmação pura e simples, como se poderia suspeitar
em relação a um herói que se viu lançado no desparecimento. Na sequência da
narrativa, o que temos é efetivamente o herói retomando seu modo típico de ser
– não sendo abertamente quem é –, situação que, como sabemos, é largamente
predominante na Odisseia: o protagonista dessa história passa grande parte do
tempo oculto aos personagens com quem vai interagindo, e esse movimento
central serve como marca identitária de quem detém a mêtis, a inteligência que
cerca, antecipa e prepara o terreno para o lance oportuno.
No original, como se sabe, é fácil notar que ser astuto e ser ninguém são dois
movimentos coincidentes: o recorrente epíteto “multiastuto” (polúmetis) pode
ser igualmente entendido, sob a influência do Canto 9, como “multininguém”,
porque na língua grega mêtis (“astúcia”) e mé tis (“ninguém”) são, foneticamente,
a mesma coisa. Em outras palavras, a “astúcia” é concretamente “ser ninguém”,
conforme o jogo intraduzível que abordaremos a seguir. Mas a questão não se
esgota nessa relação entre esperteza e identidade oculta: há um aspecto moral
envolvido, relativo ao comportamento do herói. Tanto como “Ninguém” quanto
como mendigo, Odisseu executa uma vingança contra aqueles que agiram de
modo indevido. Ele desaparece, voluntariamente, para executar o revide. Ao
mesmo tempo, ele também é alvo de uma vingança da parte do Ciclope, que se
materializa no desaparecimento involuntário dele, herói, ao longo de sete anos
junto a Calipso. Trata-se, como se vê, do tópico da justiça divina, que abordei no
Capítulo 1 e também em parte do Capítulo 5, ao falar do possível “ódio” divino
dirigido a Odisseu. Quero voltar a este ponto central neste capítulo conclusivo,
não só para analisar detidamente o episódio do embate entre Odisseu e o
Ciclope, mas também a relação de Odisseu com seus companheiros e com os
eventos ocorridos no restante do seu apólogo, e ainda, finalmente, sua atuação
enquanto mendigo dentro do próprio palácio. Em todos esses momentos,
identificação e não-identificação, esperteza e tolice, justiça e excesso atuam
como binômios que se interpenetram e se organizam de modo eloquente,
dando à Odisseia um estofo tal que nos faz superar a percepção de que estamos

276
diante de um simples “romance de aventuras” e de um protagonista estático e
plano, desprovido de desenvolvimento e transformação.

» contra o ciclope

A chamada “Ciclopeia” não é só o episódio mais importante e extenso do


Canto 9, a ponto de poder lhe servir de título: é também o episódio em que os
motivos que constituem o eixo da Odisseia – astúcia, hospitalidade, nomeação,
reconhecimento, justiça – condensam-se de forma exemplar. O resultado é uma
narrativa empolgante, com um poder de sedução e envolvimento que talvez só a
fala em primeira pessoa, pela qual vem construída, seja capaz de produzir, além
do próprio fato de ser rica em reverberações para o restante das vicissitudes por
que passa Odisseu. Na sua base, como alguns estudiosos já mostraram, pode-se
identificar uma trama principal do conto popular encontrável em diversas cultu-
ras: a do herói que, acossado por um ogro antropófago de um olho só, cega-o e
consegue escapar recorrendo a suas ovelhas.433 A comparação com essas outras
versões coligidas (que passam de cem), feita muitas das vezes com o propósito
de descortinar as origens da Odisseia e suas possíveis “falhas” no processo de
aglutinação das fontes, pode antes nos indicar como Homero integra cada um
dos elementos, de forma significativa, à história que quer contar, de tal modo
que o aguardado “conto maravilhoso”, com seus atrativos típicos, transforma-
-se num relato bem mais “realista” e duro, com implicações profundas.
Os três episódios anteriores narrados no mesmo Canto 9 não deixam, de certa
forma, de assinalar essa passagem da realidade para a fantasia, sem que um elemento
desapareça totalmente diante do outro (como vimos no Capítulo 6, ao falar da
“transição” experimentada por Odisseu na terra dos feácios, em sentido contrário). Na
aventura primeira depois da saída de Troia, na terra real, nada fantasiosa, dos cícones
(v. 39-66), o ambiente é totalmente bélico e violento, uma continuação da experiência
de guerra anterior: a cidade é destruída, homens são mortos, mulheres e riquezas são

433 A publicação inaugural a respeito é a de Wilhelm Grimm, de 1857, já discutida em apên-


dice por W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 550-554. Ver também o Capítulo 1,
“Odysseus and Polyphemus”, do livro de Denys Page, The Homeric Odyssey, o artigo exaus-
tivo de Justin Glenn, “The Polyphemus folktale and Homer’s Kyklopeia”, Transactions of the
American philological association 102 (1971): 133-181, e A. Heubeck em A. Heubeck et alii (ed.),
A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 19-20.

277
amealhadas e repartidas.434 Os companheiros de Odisseu, no entanto, desrespeitam
sua ordem de fuga, permitindo que forças do interior se juntem aos sobreviventes
e imponham uma derrota eloquente: seis homens de cada uma das dozes naus são
mortos, num total de setenta e duas baixas.435 Odisseu foge com seus comandados
e, após sobrevir uma violenta tempestade (“de céu tinha desabado a noite!”) e de
permanecer duas noites em terra firme (terra esta que, significativamente, não é
nomeada), é desviado pela correnteza e pelo vento, no momento em que costeava
o Peloponeso, num último relance de uma geografia familiar (v. 67-81). O terceiro
episódio, breve como os anteriores, já é situado no país dos lotófagos (v. 82-104),
seres “que comem floral comida”, chamada “lótus”, cuja mastigação fazia “olvidar a
volta”.436 O ambiente geral, como se vê, já é totalmente fantasioso, mas, ao contrário
do que acontecerá em outras paradas, a violência não provém dos anfitriões, que são
benévolos, mas desse alimento que é emblema do perigo central por que passará
Odisseu: o abandono do retorno.437 Tal como aqui, nas ações subsequentes o herói
não morderá essa isca do esquecimento (ainda que quase o faça com Circe), mas o
fato de precisar arrastar os amigos chorosos, junto com a insubordinação calamitosa
ocorrida junto aos cícones, já antecipa as fissuras e dificuldades nessa relação de
liderança e comando.
É com essa preparação de certo modo ziguezagueante, em que Odisseu
faz o percurso esquemático conhecido (Ísmaro) –> desconhecido (terra não

434 Os cícones eram aliados dos troianos (ver Il. 2, 846).


435 Que são doze as naus, lemos em Od. 9, 159; e Il. 2, 637. O mesmo número de mortos para
cada nau, que incomodava já os comentadores antigos, corresponde, como outros números
em Homero, a um padrão. Ver A. Pierron, L’Odyssée d’Homère. Paris: Librairie Hachette, 1875,
vol. 1, p. 385, e W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 360. Lembre-se que os com-
panheiros de Odisseu também são devorados pelo Ciclope dois a dois, novamente com uma
distribuição regular e artificial.
436 Sobre o lótus, que poderia ser aqui a “papoula” ou a “jujuba” e, portanto, se referir a algo
diferente do que encontramos em outras passagens em que aparece o termo lotós (Od. 4,
602; Il. 2, 775; e 14, 348), ver W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 387, e R. Martin,
Homer: The Odyssey, p. 379.
437 Num ensaio esclarecedor, Teodoro Rennó Assunção mostra que “o efeito da comida ofe-
recida pelos lotófagos (o lótus) é como o de uma droga – comparável ao do haxixe e do ópio
(ou mesmo ao da mescalina) – que causa a perda da vontade (de dar notícias e de retornar) e
também o desejo de apenas a consumir, ali permanecendo com eles (o que destruiria tanto o
fundamento de atividade da ética heroica quanto a própria narrativa do retorno de Odisseu)”
(negritos originais); ver “Lotófagos (Odisseia IX, 82-104): comida floral fácil e risco de desis-
tência”, Classica 29/1 (2016): 273-294.

278
nomeada) –> conhecido (cabo Maleia) –> desconhecido (lotófagos), que
chegamos ao relato sobre o tempo passado na terra dos Ciclopes, que vai
ocupar todo o resto do Canto 9 (v. 105-566). De modo consistente, Odisseu logo
de saída – como fez com os lotófagos e fará depois com Éolo, os lestrígones
e Circe – fornece aos feácios e a nós uma caracterização detalhada, com base
no seu privilegiado olhar retrospectivo, dos Ciclopes, de seus costumes e de
seu entorno, com reflexos evidentes para sua própria caracterização enquanto
personagem central:438 seu poder de delimitar, num misto de olhar objetivo e
subjetivo, os elementos de suas experiências pregressas alça-o a um posição de
conhecimento abrangente e discriminador, que ao mesmo tempo o diferencia
(pelo modus operandi do viés pessoal) e o aproxima (pela certeza cognitiva, que
parece inclusive ultrapassar o razoável)439 do narrador da Odisseia. De fato, até
a ação envolvendo o Ciclope ter início, no verso 142, o herói nos brinda primeiro
com um relato etnográfico a respeito desses “arrogantes desregrados” (huper-
phiálon athemíston, v. 105-115), e depois, como um geógrafo, com um detalha-
mento a respeito da ilha intocada bem em frente, onde aportaram, repleta de
cabras (v. 116-141). Num dos trechos, destaca a desobrigação do trabalho com a
terra (o que situaria os Ciclopes, positivamente, numa espécie de Idade de Ouro)
mais a ausência de “ágoras” e “regras” (agoraí/thémistes), indícios de seu isola-
mento, e ainda a habitação em cavernas. Já no outro, mais longo, Odisseu como
que lamenta o não aproveitamento da ilha defronte, cujas potencialidades des-
creve da perspectiva do homem industrioso que é; o “sem semear e sem arar”
(ásparta kaì anérota, v. 109) da passagem anterior, relativo à terra ciclópica que
“tudo dá”, vem ecoado pelo “sem semear e sem arar” (áspartos kaì anérotos, v.
122) da ilha não explorada, o que conduz à afirmação de que entre os Ciclopes
não há naus nem navegação para a troca comercial (v. 125-129). Assim, o estado
selvagem positivo de um lugar acaba por servir de espelho para a selvageria
daqueles que moram do outro lado da faixa marinha, e a soma dos dois trechos
cria esse embate entre a inteligência antecipadora, ativa, e a condição brutal, de
aparente abandono aos caprichos da natureza.
Aqui podemos retomar os desenvolvimentos, de que falei acima,
que distinguem a versão homérica daquelas do conto popular com que é

438 Ver a esse respeito I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 223 e 225.
439 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 232.

279
confrontada: não se trata apenas de um herói que vence um gigante devorador
de carne humana para depois fugir. Trata-se de um herói que se distingue pela
sua poderosa astúcia e leitura da realidade, e que se vê envolvido em aventuras
nas quais a hospitalidade serve de baliza a separar o justo do injusto.440 Portanto,
há um verniz mental e moral que marca toda essa passagem, fazendo com se
integre ao restante da Odisseia. Em outros termos, o “conto” aqui não é mero
“conto”, não tem existência autônoma e não aprofundada: ele é parte de
um todo amplo e complexo. Mais ainda: o problema da identidade, também
central ao longo do poema, funciona significativamente como elo de ligação
entre esperteza e recepção: quando Odisseu se autonomeia “Ninguém”, ele
não apenas joga, de forma premeditada, com a tolice do Ciclope, naquele que
é seu lance mais célebre, mas também faz isso no interior do procedimento
da “troca de presentes” entre anfitrião e hóspede.441 Essa “permuta”, por sua
vez, é um dos reconhecidos elementos da hospitalidade pervertida do encontro
entre Odisseu e Polifemo: nada nesse contato se dá como deveria, e é preciso
entender quem ultrapassa primeiro os limites, como as perversões acontecem e
que avaliação pedem de nós, ouvintes/leitores.
Depois das descrições pormenorizadas feitas pelo narrador Odisseu – dos
Ciclopes e sua terra, e da “ilha das cabras” –, retornamos à ação:

Pra lá [a “ilha das cabras”] fomos navegando, e algum deus nos conduzia
pela noite enevoada (orphnaíen) – nada se mostrava à vista:
havia profunda bruma (aér) em torno das naus e a lua
no céu não iluminava, mas estava envolta em nuvens.
E aquela ilha ninguém (oú tis) então bem viu com os olhos (ophthalmoîsin),
nem tampouco as altas ondas que rolavam sobre a orla
vimos, até embicarmos nossas naus de belos bancos.
(Od. 9, 142-148)

A escuridão funciona aí com sinal ominoso, como uma espécie de


antecipação da caverna ciclópica e do cegamento, e talvez Odisseu/Homero

440 Como destaca Steven Reece, The stranger’s welcome, p. 126-127.


441 Ver S. Reece, The stranger’s welcome, p. 129, e A. J. Podlecki, “Guest-gifts and nobodies
in Odyssey 9”, Phoenix 15/3 (1961): 125-133; ele detecta aí um sinal de sofisticação; ver
especialmente p. 126 e 129.

280
estejam jogando com um significativo “ninguém viu com os olhos” (v. 146),
brincando com o nome alternativo do herói no episódio (Oûtis), como propõe
A. Podlecki. 442 Seja como for, no dia seguinte a abundante caça disponível é
repartida e consumida, não sem a indicação da presença do vinho tomado
aos cícones (155-170). Com o raiar de mais uma aurora, Odisseu finalmente
decide “pôr à prova” ou “testar” aquele povo (peirésomai, v. 174), depois de
ter observado a movimentação ao longe (“a fumaça e o som das cabras, das
ovelhas e dos próprios [Ciclopes]”, v. 167). O objetivo é saber quem são, “se por
acaso selvagens, soberbos e nada justos/ ou se são hospitaleiros cuja mente
é piedosa” (v. 175-176). Esses dois versos formulares, que já haviam aparecido
na boca de Alcínoo no Canto 8, com pequena variação (v. 575-576), têm aqui
um uso singular na boca de Odisseu, nesta passagem em que ele próprio abre
espaço para seu discurso direto: trazem um ar de curiosidade e animação que
desaparecerá nas outras ocorrências, no Canto 6 (v. 120-121), ao chegar à
Esquéria, e no Canto 13 (v. 201-202), ao chegar a Ítaca sem reconhecê-la. A fala
presente, diante dos feácios, diz respeito a um passado em que o herói não tinha
ainda se transformado; as outras duas, colocadas antes e depois desta (mas
ambas cronologicamente posteriores), dizem respeito a sua condição atual, de
cautela redobrada. Em outras palavras, o Odisseu que rememora sua confiança
ao especular sobre a natureza moral dos anfitriões desconhecidos é um outro
Odisseu, que pouco antes mostrara, e pouco depois mostrará, desânimo na
chegada ao desconhecido.443
É esse líder decidido que parte, com uma das naus apenas, em direção à
terra dos Ciclopes; da costa, eles avistam a caverna, e o herói-narrador volta a
explorar a visão retrospectiva, que lhe permite dizer mais do que via no momento:

(...) vimos caverna perto do mar,


elevada, recoberta por loureiros; dentro grande
rebanho – cabras e ovelhas – pernoitava, e em volta pátio
elevado fora feito, com as rochas enterradas,
com uns compridos pinheiros e carvalhos de alta copa.

442 A. J. Podlecki, “Guest-gifts and nobodies in Odyssey 9”, p. 126, nota 4.


443 Como bem viu Yoav Rinon em “The pivotal scene: narration, colonial focalization, and
transition in Odyssey 9”, The American journal of philology 128/3 (2007): 301-334, p. 327. Ver
ainda Irene de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 235.

281
Lá pernoitava varão colossal (anèr pelórios), que pastoreava
sempre apartado o rebanho, a sós; junto aos outros não
ia, e em sendo só de desregramentos (athemístia) entendia.
Era mesmo um espantoso colosso (thaûma pelórion) e não parecia
com homem que come pão, mas com frondosa corcova
de montanhas elevadas, que surge à parte do resto.
(Od. 9, 182-192)

A selvageria e o isolamento, já indicados na introdução do episódio – mas


coletivamente –, voltam a ser enfatizados em relação especificamente ao Ciclope
Polifemo (“apartado”, “a sós”, “sendo só”, “de desregramentos entendia”, “não
parecia/ com homem que come pão”), com o dado importante relativo ao tama-
nho: “varão colossal”, “espantoso colosso”.444 Odisseu fala então dos doze ho-
mens que selecionou, dentre o total presente na nau (não especificado), para irem
junto com ele ao antro; dá detalhes sobre o vinho encorpado que levava oportu-
namente consigo (a presença do vinho, como vimos, já tinha sido sublinhada, v.
162-165); e retoma sua perspectiva de momento, simultânea aos fatos:

Dele [do vinho] eu levava bem cheio grande odre e ainda alimentos
num saco, pois de imediato supôs (oísato) meu sobranceiro ânimo
vir até nós varão revestido de grande audácia,
selvagem (ágrion), nem em sentenças (díkas) nem em regras (thémistas) bem versado.
Rapidamente atingimos o antro, porém dentro não
o encontramos: pastoreava no pasto o gordo rebanho.
(Od. 9, 212-217)

Seu empenho em construir o caráter de líder presciente é claro – o pres-


sentimento que teve na hora, mesmo antes do encontro com o gigante, se
confirmaria depois –, mas essa nova ênfase na selvageria é rebatida, ao me-
nos no caso de Polifemo, pela descrição anterior do pátio por ele construído
(v. 184-186), e mais ainda agora pela organização e ordem encontradas dentro
dessa verdadeira “fábrica de laticínios” que era sua caverna (v. 218-223), e que
Odisseu e seus companheiros ficaram “admirando” (etheéumestha, v. 218). São

444 Para uma análise da figura “monstruosa” em Homero e Hesíodo, ver C. A. Zanon, Onde
vivem os monstros: criaturas prodigiosas em Homero e Hesíodo. São Paulo: Humanitas, 2018.

282
esses detalhes que ajudam a criar, logo de saída, um “monstro” menos mons-
truoso do que se poderia espera, porque minimamente civilizado e capaz assim
de, mais do que renegar brutalmente qualquer tipo de diálogo e hospitalidade,
entrar num jogo de perversão dos bons modos com Odisseu que representará a
própria salvação do herói. Em certo sentido, se Polifemo fosse totalmente sel-
vagem e inacessível, Odisseu não poderia preparar o terreno para sua vitória e
fuga; era preciso haver certo refinamento e urbanidade (se é que o termo cabe)
da parte do gigante para o herói pôr em movimento sua inteligência superior.445
Os desvios do padrão característico da cena de hospitalidade em Homero
já aparecem com o simples fato de o anfitrião não estar em casa quando da che-
gada do hóspede (“porém dentro não/ o encontramos”), algo único no poema.446
A proposta dos companheiros é que praticassem a rapina (arrebanhando queijos
e animais), ato que, diante da premonição de Odisseu, seria o mais sensato, como
ele mesmo admite agora, na sua primeira e contundente autocrítica: “Mas não
ouvi – sim, teria sido bem mais proveitoso” (polù kérdion, v. 228). A justificativa
é simples: “só para vê-lo [ao Ciclope], e se a mim daria as dádivas de hóspede”
(xeínia doíe, v. 229). São movimentos contraditórios: Odisseu abandona o provei-
to (kérdos é termo-chave no vocabulário associado à mêtis), mas o faz em nome
da curiosidade e da vontade de ganhar bens, traços presentes em outras aventu-
ras do “multiastuto”.447 A recusa ao roubo puro e simples proposto pelos amigos
parece ser algo positivo,448 mas a invasão da caverna e o consumo dos queijos
enquanto esperam parece violar as regras hospitaleiras.449 Se essa é uma relação

445 Sobre essa figura que oscila entre a “não-humanidade” (e o primitivismo da vida pas-
toral) e “um mínimo de humanidade”, e reúne em si “uma contradição algo inverossímil (ou
fantástica) entre a estupidez e a inteligência discursiva”, ver Teodoro Rennó Assunção, “A
quebra das ‘regras’ de hospitalidade no episódio do Ciclope na Odisseia”, em A. M. Pompeu et
alii (ed.), Identidade e alteridade no mundo antigo. Fortaleza: Núcleo de Cultura Clássica, 2013.
446 Fato notado por S. Reece. É ele que mostra bem como o encontro é marcado por “des-
vios e perversões”, numa construção “paródica”; ver seu The stranger’s welcome, p. 124, 126 e
131. Ver também I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 236-237.
447 O famoso par “inquisitiveness” e “acquisitiveness” mencionados por Stanford em seu
comentário, The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 356.
448 Ver o que diz A. J. Podlecki, “Guest-gifts and nobodies in Odyssey 9”, p. 128, numa leitura
mais favorável a Odisseu. É o que propõe também Rainer Friedrich: o “homem heroico” não
quer apenas provisões – que Odisseu já podia encontrar na “ilha das cabras” –, mas obter
bens por meio da relação de hospitalidade; ver seu “Heroic man and polúmetis: Odysseus in
the Cyclopeia”, Greek, Roman, & Byzantine Studies 28/2 (1987): 121-133, p. 123-125.
449 Esse aspecto negativo é destacado por Steve Reece, The stranger’s welcome, p. 142; por

283
de reciprocidade, não seria só Polifemo o transgressor. A leitura talvez mais ade-
quada, contudo, é a que entende que Odisseu age de forma anormal justamente
pelo fato de se ver num lugar atípico, a começar pela casa, que é uma furna; as
“transgressões”, nesse contexto, não são sentidas como transgressões de fato, e
o herói portanto pode funcionar como o defensor da justiça diante de um ser sel-
vagem e sem limites. Por outro lado, há uma certa tolice e presunção da parte do
líder (fato que ele mesmo reconhece, a posteriori), elementos que o aproximam
do próprio Polifemo: o “sobranceiro ânimo” (thumòs agénor, v. 213) do herói tem
certa contiguidade com o “varão revestido de grande audácia” (ándra...megálen
epieiménon alkén, v. 214), como veremos a seguir.
Odisseu espera passivamente a chegada do Ciclope, cujo tamanho é des-
tacado agora pela quantidade de madeira que traz e pela pedra que utiliza como
porta da gruta; sua “técnica” também é ressaltada, pela divisão operada entre
animais machos (fora) e fêmeas (dentro), e pela meticulosa ordenha, produção
de queijo e separação de leite para consumo próprio (v. 232-249): a figura mons-
truosa é, simultaneamente, um pastor ordinário em suas tarefas do dia a dia.
Polifemo então, ao acender o fogo, percebe os invasores. Dando sequência à
prática torta da hospitalidade, ele faz as seguintes perguntas:

Estrangeiros, que sois? De onde vindes pelas vias úmidas?


Em alguma transação ou à toa estais vagando,
qual piratas através do mar, os que sempre vagam
arriscando a vida, a outras terras carregando o mal?
(Od. 9, 252-255)

O questionário – mais neutro e protocolar do que pode parecer – é im-


próprio menos pelas palavras do que pela posição. Esses mesmos versos são
dirigidos por Nestor a Telêmaco e Atena-Mêntor no Canto 3 (v. 71-74), mas as
duas linhas ditas pelo ancião imediatamente antes mostram de forma clara que

Egbert Bakker, que compara Odisseu aos pretendentes (“Polyphemos”, Colby quarterly, 38/2
(2002): 135-150, p. 145); e por Yoav Rinon, “The pivotal scene: narration, colonial focalization,
and transition in Odyssey 9”, p. 313, nota 29. Outra leitura possível é a de V. Di Benedetto: do
começo ao fim da estadia, os companheiros de Odisseu atuariam como piratas, enquanto
Odisseu tentaria explorar a hospitalidade; ver seu Omero: Odissea, p. 515-516 e 536-537; o
tópico é central em sua edição, a ponto de defender que a Odisseia “documenta uma crise do
modelo da pirataria” (p. 15-29).

284
o melhor momento para esse tipo de abordagem é após a oferta de alimento,
feita a devida acolhida (v. 69-70). O Ciclope, no entanto, não só “pula” essa eta-
pa (ainda que o herói e seus homens já tenham se servido dos queijos; esse dado
é ignorado), como também faz a sua refeição da noite com a carne humana de
dois de seus “convidados”.450 Essa primeira violência acontece após a resposta
de Odisseu, a réplica de Polifemo – com outra pergunta, agora sobre a nau – e
nova resposta do herói. O diálogo, que não chega a cinquenta versos, já ins-
taura as coordenadas centrais da relação: violência e esperteza (de ambas as
partes, segundo modos e graus variados). Odisseu, diante da indagação inicial,
já “com medo da grave voz e dele próprio, um colosso” (v. 257), revela serem
acaios e terem lutado em Troia com Agamênon (259-266), e que buscam, como
suplicantes, a hospitalidade observada por Zeus (v. 266-271). A fala anterior do
Ciclope, que tinha sido introduzida por Odisseu de forma neutra (v. 251), agora
é substituída por uma de outro teor, dita – nos relata o herói – “com impiedoso
ânimo” (v. 272): ele confessa total desprezo por Zeus e aproveita para perguntar,
espertamente, onde está atracada a nau (v. 273-280). Odisseu muda igualmente
de posição. Ao perceber que é testado (peirázon, v. 281) – justamente ele que
queria testar/pôr à prova (v. 174) –, fala “ao contrário (ápsorron), com ardilosas
(dolíois) palavras” (v. 282), abandonando a neutralidade anterior (v. 258):

Minha nau, a estilhaçou o treme-terra Posêidon,


atirando-a contra as pedras, nas bordas de vossa terra,
aproximando-a da costa: do alto mar a trouxe o vento.
Mas eu, com estes aqui, fugi ao íngreme fim.
(Od. 9, v. 283-286)

São palavras inteligentes, que evitam que o Ciclope procure pela


embarcação e a destrua. Mas a mentira traz também uma verdade amarga,
incapaz de ser percebida pelo herói nesse momento (mas não por nós): essa
fantasia – a nau destruída por Posêidon – se tornará realidade a partir do
embate com Polifemo, filho do deus.451 Já há, portanto, um certo descontrole
muito humano nesse herói célebre por controlar a linguagem: o “ao contrário”

450 Ver S. Reece, The stranger’s welcome, p. 132.


451 Como notam E. Bakker, “Polyphemos”, p. 147, nota 26, e Y. Rinon, “The pivotal scene:
narration, colonial focalization, and transition in Odyssey 9”, p. 316.

285
não é tão ao contrário assim, e nos prepara para outra fala “ao contrário”,
claramente desastrosa, no verso 501.452 Mais ainda: em breve, seis de seus doze
companheiros não “fugirão ao íngreme fim” – a destruição é iminente. É o que
acontece logo que o herói para de falar: o gigante, sem nada dizer, já devora
dois de seus homens (v. 287-298), aos quais vão se juntar mais quatro no dia
seguinte, dois no dejejum (v. 307-310), dois na ceia (v. 336-344). À violência e
avidez antropofágica do monstro – que sai “assobiando alto” pela manhã
(pollêi rhoízei, v, 315), pincelada sutil de caracterização – Odisseu responde com
perspicácia: o impulso de matar o canibal se mostraria um ajuste de contas tolo,
porque, sem poderem tirar a pedra da entrada, todos morreriam (v. 299-306).
Melhor seria, com o Ciclope ausente da caverna durante o dia, a pastorear seus
animais, bolar um plano de vingança sob a inspiração de Atena (v. 312-318):
afiar o bastão de oliveira (a planta da deusa) do Ciclope,453 temperá-lo no fogo e
escondê-lo, para então “friccioná-lo em seu olho” (319-335).454
Chegamos aqui ao clímax da narrativa: com o retorno do Ciclope, tudo
está pronto para o jogo pervertido de hospitalidade, e de astúcia versus força.
Mas importa notar que os elementos centrais – o recurso ao vinho encorpado,
para embebedar o gigante, e o nome que Odisseu inventará para si, antecipan-
do-se ao grito de socorro que será dirigido aos demais Ciclopes – não são adian-
tados pelo herói no momento em que prepara a estaca com os companheiros.
Da perspectiva dos feácios, que ouvem a história pela primeira vez, esses ele-
mentos surgem como inesperados, reforçando o caráter esperto do narrador
da história: Odisseu, para além de simplesmente cegar Polifemo e esperar que
abrisse a “porta” da gruta, contava já com a interligação entre bebedeira e nome

452 Que ápsorron significa “ao contrário (da verdade)” é o que defendia já um escólio ao tex-
to, inexplicavelmente contestado, a meu ver, no comentário de Merry e Riddell, que veem aí
apenas um “de volta”; ver W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 378.
453 R. Martin (Homer: The Odyssey, p. 380) lembra da oliveira que protege o herói ao final
do Canto 5 (v. 477) e sua utilização na construção da cama de casal de Odisseu e Penélope,
destacada no Canto 23 (v. 190-198).
454 No verso 333 temos a indicação, de passagem e sutil, de que o Ciclope tinha um só olho
(ver também v. 383, 387, 394, 397 e 453). Zeus já falara no início do olho cegado (Od. 1, 69), no
singular, ficando implicada a perda total de visão. O próprio nome desses monstros já faria
referência a essa característica, como se lê na Teogonia (v. 143-145), ainda que as figuras apre-
sentadas por Homero tenham uma natureza diferente: são pastores, e não seres associados
aos fenômenos atmosféricos. Ver a esse respeito A. Heubeck em A. Heubeck et alii (ed.), A
commentary on Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 20-21. Logo no início da peça Ciclope de Eurípides,
os Ciclopes são chamados de monôpes (v. 1); ver também v. 78, 174 e 235.

286
falso para que a luta contra um monstro não virasse uma luta contra vários. A
significativa retenção desses dados, no poema, opera como sutil comentário à
esperteza odisseica, que prevê e se antecipa.
Vejamos o primeiro lance dessa célebre passagem: do retorno do gi-
gante à caverna até seu cegamento (v. 336-398). Logo de cara, Odisseu des-
taca a postura diferente do Ciclope em comparação à noite anterior: os machos
são guardados dentro, junto com as fêmeas, ou por ele “suspeitar de algo (ti oi-
sámenos), ou porque o deus assim mandara” (v. 339). No primeiro caso, chama-
-se atenção para uma possível astúcia do monstro: sabendo agora da presença
de estranhos na terra, parece temer o furto dos animais (algo, como vimos, co-
gitado pelos invasores). Essa esperteza, no entanto, será decisiva para a fuga
posterior do herói, e daí a possibilidade de tal escolha ser fruto de uma vontade
superior, divina. As duas vontades podem se complementar, mas a narrativa
não traz elementos para que as motivações fiquem claras. Polifemo dá sequên-
cia, então, ao seu modo metódico de agir: fecha a “porta”, ordenha as ovelhas
e devora mais dois homens de Odisseu.455 O herói vê aí o momento oportuno de
intervir, para substituir o leite geralmente usado pelo monstro na ceia (v. 249 e
297) pelo estratégico vinho.456 Junto com a oferta, vem a ênfase na irreligiosida-
de e no descontrole do anfitrião:

Vai, Ciclope, bebe o vinho após comer carne humana,


pra que saibas qual bebida é esta que nossa nau
escondia. Te trazia qual libação, pra apiedado
me enviares pra casa, e tu sem mais controle enlouqueces (maíneai...anektôs)!

455 “Tudo na devida ordem” (pánta katà moîran, v. 245, 309 e 342) é uma espécie de síntese
formular de seu modo de ser ordeiro, que só acentua sua violência (ou seu agir “sem propor-
ção”, ou katà moîran, destacado por Odisseu, v. 352); ver R. Martin, Homer: The Odyssey, p.
380, e V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 517. Repare-se como a sequência dos v. 340-344
é o reaproveitamento dos v. 240+244+245+250+311: a condensação indica que Odisseu não
precisa repetir os detalhes anteriores e não há mais “cerimônia” da parte do anfitrião.
456 Por que no verso 297 Odisseu aplicou ao leite o qualificativo mais adequado ao vinho, “sem
mescla” (ákreton)? Peter Jones fala em “humor” da parte de Odisseu (Homer’s Odyssey, p. 85) e
Irene de Jong em “brincadeira” (“joke”, A narratological commentary on the Odyssey, p. 241), mas,
como a expressão aparece no contexto terrível dos companheiros sendo devorados, acho mais
adequado entender que se trata de uma espécie de “piscadela” do texto para o papel que, na noite
seguinte, o vinho não diluído em água desempenhará, como substituto do leite: não por acaso
esse vinho encorpado já fora apresentado como “sem mescla” (akerásion, v. 205). É o que defende
A. Heubeck em A. Heubeck et alii (ed.), A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 30.

287
Pertinaz (skhétlie)! Como até ti depois viria algum outro
dos muitos homens, após agires sem proporção?
(Od. 9, 347-352)

Odisseu observa o prazer do Ciclope em beber a poderosa bebida pura


– bebida cuja taça em geral era diluída “em vinte medidas de água” (v. 209). O
monstro, conforme o herói já esperava, pede mais uma dose, e com esse pedido
fica instaurado – não sem sarcasmo – o jogo da troca de dádivas, em seu forma-
to pervertido (lembre-se que a solicitação de uma dádiva de hospitalidade fora
feita logo de início por Odisseu, “nos farias doação, o que é regra”, v. 268, e que
o vinho ismárico é ele próprio fruto de uma doação regular, v. 196-205). Agora,
no jogo que por fim se estabelece, o hóspede deve revelar seu nome, para rece-
ber em troca seu presente:

Dá pra mim (dós moi), propenso ainda, e fala agora teu nome (teòn oúnoma eipé),
depressa, pra que eu dê dádiva de hóspede (dô xeínion): te alegrarás.
Pois produz para os Ciclopes o solo doador de grãos
um vinho muito encorpado (e a chuva de Zeus ajuda),
mas este aqui de ambrosia e néctar é derivado!
(Od. 9, 355-359)

Odisseu, com seu tom queixoso anterior e sua tentativa aparentemen-


te patética de amolecer pelo vinho a inospitalidade alheia, pareceu ao Ciclope
uma presa fácil, que ele poderia manipular com a confiança típica dos tolos,
oferecendo um presente que jamais viria segundo as regras tradicionais. Mas,
com novas ingestões da bebida, é o herói que já está no controle da situação e
pode jogar o jogo proposto pelo anfitrião a seu favor, usando “doces palavras”
(épessi...meilikhíoisi, v. 363):

Ciclope, perguntas meu célebre nome (ónoma klutón), e eu direi


pra ti. Mas tu, me dá dádiva de hóspede (dós xeínion), qual prometeste!
Ninguém (Oûtis) é o nome que tenho. De Ninguém (Oûtin) me chamam sempre
pai e mãe e ainda todos os meus demais companheiros.
(Od. 9, 364-367)

288
O verdadeiro “presente” vem então à tona, mas a satisfação do Ciclope
em revelar sua crueldade não comunica nada além de estupidez, coroada pela
imagem eloquente de sua queda para trás, bêbado e tomado pelo sono:

‘Ninguém (Oûtin) comerei por último em meio a seus companheiros,


e os restantes, na frente: eis a minha hospitalidade (xeinéion)’.
Disse e inclinando de costas caiu; em seguida então
deitou virando de lado o grosso pescoço, e o sono
domador o foi vencendo. Da garganta expeliu vinho,
bocados de carne humana, e arrotava, embriagado.
(Od. 9, 369-374)

É o momento então em que as palavras dão lugar à ação frenética: a


estaca é posta em brasa, os amigos miram o olho do monstro caído de lado e o
bastão põe-se a girar, perfurando a órbita e despertando o Ciclope (v. 375-398),
que arranca aos gritos o pedaço de oliveira.457
Mas retomemos a cena da “troca de presentes”, quando, segundo Steve
Reece, a perversão da hospitalidade atinge seu “clímax”.458 Vimos que o gigante
dera sinais claro da sua inospitalidade: interrogara de imediato pela identidade
dos visitantes (“quem sois?”, v. 252) e não economizara palavras ao mostrar to-
tal desprezo pelas leis do convívio diplomático, o que se comprovou com o ato
brutal do canibalismo: os que deveriam receber alimento tornaram-se o próprio
alimento. Dentro do esquema pervertido, é não só Odisseu, o hóspede, que ofe-
rece agrado ao anfitrião, tomando a iniciativa e invertendo o protocolo, como
ainda o primeiro e único gesto hospitaleiro de quem recebe é levar sua violência
adiante, dando a Odisseu o “privilégio” de morrer por último. Nesse contexto, o
Ciclope pensa construir uma esperteza infalível: interessado no vinho e na carne
humana (para sair da dieta habitual), e rememorado da advertência anterior do
herói a respeito da hospitalidade, ele finge uma transformação para logo de-
pois, com dois versos apenas, deixar cair a máscara, dando provas de sua selva-
geria incorrigível, que o herói, naturalmente, não esperava corrigir.

457 O símile usado (“a girava qual varão tradeia madeira náutico”, v. 384), ao enfatizar a ati-
vidade técnica, ajuda a marcar essa contraposição entre civilização e barbárie/natureza, que
atravessa o episódio, como aponta Richard Martin, Homer: The Odyssey, p. 380-181.
458 S. Reece, The stranger’s welcome, p. 138-139.

289
Vemos assim que o nome em si – já sonegado antes pelo herói – não é algo
importante para Polifemo: opera apenas como “gancho” para a tirada final. Para
Odisseu, por outro lado, é parte essencial daquilo que virá logo adiante, numa situ-
ação relativamente previsível (o grito de socorro e a nomeação do agressor), mas
que apenas alguém “multiastuto” pode antecipar com total clareza; para a audiên-
cia interna dos feácios, podemos imaginar, esse “Ninguém” deve parecer à primeira
vista arbitrário e sem propósito. Para o herói, contudo, a construção com que ope-
ra tem um dado fundamental: do ponto de vista linguístico, “Ninguém” precisa ser
claramente entendido pelo gigante pelo que não é (nome próprio), e não pelo que
é (pronome). No original grego, há dois detalhes intraduzíveis que colaboram para
isso. Primeiro, no verso 365, ele “desrespeita” a concordância natural entre “nome”
(ónoma, neutro) e “ninguém”/“nenhum”, que aparece como oûtis (forma tanto para
o masculino quanto para o feminino) e não como oú ti, forma neutra correta caso se
seguisse a adequação ao substantivo: Oûtis emoí g’ónoma, “Ninguém é o nome que
tenho”. Depois, na continuação do mesmo verso, ele coloca oûtis como objeto dire-
to do verbo “chamar”, criando o acusativo oûtin, e não oú tina, que seria novamente
a forma correta para a construção “chamam ninguém/nenhum”: Oûtin dé me kiklé-
somai, “De Ninguém me chamam sempre”. Essa construção, ao ser retomada por
Polifemo – com o acusativo “errado” –, serve como comprovação de que “engoliu”
a existência desse nome sui generis: Oûtin egò púmaton édomai, “Ninguém comerei
por último” (v. 369).459 Note-se como em português permanece uma ambiguidade
inexistente em Homero: o grego, sendo declinado, não admite a leitura “não come-
rei ninguém por último”, mas talvez não seja descabido propor que a audiência an-
tiga nesse ponto “corrigisse” o Ciclope, sabendo que ele efetivamente no final das
contas não comeria mais ninguém. Vale ressaltar que todo o jogo serve de alerta,
em sua essência, para um dos problemas decorrentes do fato de lermos Homero:
o de nos deixarmos levar pelo aspecto visual, quando o que importa é a sonorida-
de. Na transliteração, grafamos “Ninguém” (nome próprio forjado) como Oûtis, e
“ninguém” (pronome) como oú tis, mas é bom lembrar que ambos eram ouvidos de
forma idêntica: um ditongo tônico (ou) seguido de um segundo elemento sem to-
nicidade própria (tis). A mesmíssima relação aplica-se ao jogo seguinte, entre mêtis
(“astúcia”, substantivo) e mé tis (forma alternativa para o pronome “ninguém”),
com a diferença de que, no lugar do ditongo, temos uma sílaba com vogal longa.

459 Detalhe para o qual chamam atenção W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 384.

290
Apoiados, porém, na diferenciação feita pelo registro gráfico – com o uso ora da
inicial maiúscula, ora minúscula, e a junção/separação dos elementos –, podemos
ser levados a ver como diferente o que era, do ponto de vista acústico e prosódico,
absolutamente igual.
Passemos agora ao segundo lance dessa “troca de hospitalidade”: dos gri-
tos de socorro dirigidos aos demais ciclopes até a fuga de Odisseu da caverna
(v. 399-463). É no início desse trecho que vemos a serventia daquele “Ninguém”,
com o expediente sendo levado, entretanto, a outro patamar, porque capaz de
explicitar, através de um jogo complementar, ainda mais sofisticado, a esperteza
que está na sua origem e que serviu de arma decisiva no combate à brutalidade.
Diante do ataque, o monstro convoca seus conterrâneos, de cuja existência
Odisseu já nos avisara no início da narrativa: vivem “em suas fundas cavernas” e
“cada um deles regula/ filhos e esposas, e não se importam uns com os outros” (114
e 115).460 A informação não só é suspeita (como Odisseu pôde saber disso?), como
parece ser contestada por esse chamado de socorro que é prontamente atendido
pelos outros Ciclopes: na prática, existe certo espírito comunitário, ao contrário do
quadro mais negativo pintado pelo herói (ainda que sua postulação de estruturas
familiares de algum modo já apontasse para isso).461 Seja como for, ao se aproxima-
rem da caverna, eles perguntam em conjunto – contribuindo, sem que percebam,
para a construção do jogo de que Odisseu vai depois se vangloriar:

Por que, Polifemo, assim tão alterado gritaste


através da imortal noite, nos deixando agora insones?
A astúcia de ninguém (ê mé tis) leva-te na marra os rebanhos, não?
A astúcia de ninguém (ê mé tis) mata-te por ardil ou força (dólon eè bíephin), não?
(Od. 9, 403-406)

As duas últimas perguntas iniciam-se da mesma forma: com a partícula ê,


que tem o sentido de “certamente”, “não é mesmo?”, e com a substituição da forma
oú tis, “ninguém”, pela alternativa mé tis, uma vez que é o advérbio de negação mé

460 O verso 167, “a fumaça e o som das cabras, das ovelhas e dos próprios”, é o primeiro a
indicar que Odisseu percebera que havia uma comunidade de Ciclopes naquela terra. Mas o
detalhe desaparece com a apresentação retrospectiva, logo de saída, da “terra dos Ciclopes”
(no plural, v. 105).
461 Mas é precisar destacar que vieram “cada um de um lado” e que reclamam de serem
acordados (v. 401 e 404); ver V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 526-527.

291
que é regularmente empregado quando se antecipa uma resposta negativa.462
Desse modo, o grego permite uma leitura dupla, “ninguém leva-te, não?”/ “ninguém
mata-te, não?” (sentido buscado conscientemente pelos Ciclopes), e “a astúcia
leva-te, não?”/ “a astúcia mata-te, não?” (sentido que eles involuntariamente
produzem para nós), duplicidade esta que tentei resolver pela sobreposição dos
elementos, “a astúcia de ninguém”. Há ainda um outro detalhe, que, salvo engano,
só mereceu destaque no comentário do século XIX de Walter Merry e James Riddell:
as alternativas “por ardil ou força” – enunciadas no verso final e que, não por acaso,
resumem os elementos em jogo no episódio – vão ser retomadas por Polifemo de
tal modo que possam significar duas coisas diferentes:463

Caros, Ninguém (Oûtis) mata a mim por ardil e à força não (dóloi oudè bíephin)!
(Od. 9, 408)

Está claro, pelo que vimos, que Oûtis é para o Ciclope o nome do seu
agressor, mas para os outros Ciclopes é simplesmente o pronome oú tis, que
soa idêntico: o estratagema de Odisseu está finalmente mostrando sua utili-
dade. Mas o que os comentadores ingleses notaram é que mais uma vez um
único enunciado permite duas leituras: enquanto os outros monstros ouvem
“ninguém mata a mim por ardil e à força, não!”, o que Polifemo quer dizer é
“Ninguém mata a mim por ardil, e à força não!”. Deixei o verso de propósito sem
pontuação interna, mas em português esses empregos diferenciados da vírgula
seriam uma forma de reproduzir o que vai no original, literalmente: “(nem) por
ardil nem por força” (entendimento dos Ciclopes), ou “por ardil, mas não por
força” (intenção do Ciclope). No grego, a chave está na versatilidade da forma
oudé, que pode ser lido como “nem” e como “mas/e não”.
O jogo não chegou ao fim. É preciso que os Ciclopes, em sua última
intervenção, confirmem a vitória da astúcia sobre a força, mais uma vez
involuntariamente:

462 O jogo é bem explicado por A.J. Podlecki, “Guest-gifts and nobodies in Odyssey 9”, p.
129-130. Note-se que no já citado Ciclope de Eurípides o jogo fica restrito a oú tis/Oûtis, v. 549
e 672-675.
463 W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 387. Ver também A. Heubeck em A.
Heubeck et alii (ed.), A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 35.

292
Mas se a astúcia de ninguém (mé tis) oprime a ti (se biázetai), que estás só,
doença vinda do grande Zeus não há como evitar!
Vamos, clama agora ao pai, ao soberano Posêidon!
(Od. 9, 410-413)

Note-se como na formulação dupla, “se ninguém oprime a ti” (o que in-
tencionavam dizer)/“se a astúcia oprime a ti” (leitura adicional nossa), emprega-
-se o verbo biázomai, da mesma raiz de bíe, “força”, “violência”, presente como
alternativa nos versos 406 e 408:464 se por um lado a esperteza é o oposto da
violência, por outro ela pode resultar em violência, como se viu na descrição
realista e cruel do cegamento do gigante.465 O coroamento do episódio, com a
afirmação de que a “astúcia” – igual a “ninguém” – iludira o gigante, se dá pela
boca do próprio Odisseu, aproveitando a “deixa” dos demais Ciclopes:

Assim disseram, partindo. Riu (egélasse) meu caro coração:


meu nome (ónoma...emòn) enganara, a astúcia ilibada de Ninguém (mêtis amúmon).
(Od. 9, 414-415)

Como marca da diferença sua em relação aos monstros, Odisseu é


capaz de apreender os dois significados implicados no verso final: “meu nome
enganara, a astúcia ilibada”/“meu nome enganara, o Ninguém ilibado”. A
consulta ao original nos fornece mais detalhes: hos ónom’exapátesen emòn
kaì mêtis amúmon quer dizer, literalmente, “(Meu coração riu) de que meu
nome enganara, e (kaì) a astúcia ilibada/ Ninguém ilibado”. O sujeito do verbo
é composto (ónoma + mêtis), mas a conjugação vem no singular (exapátesen),
fato recorrente em Homero e na língua grega. No entanto, é possível também
entender a conjunção kaí, que liga os dois membros do sujeito, em sua função
de determinação ou especificação, como uma espécie de “isto é”, de tal maneira
que “mêtis amúmon” seja tomado enquanto aposto de “nome”: “meu nome,

464 Como notou W. Stanford, a construção da condicional com indicativo e o advérbio mé


– e não ou, forma esperada – é excepcional; ver The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 361. Trata-se
assim de uma “licença poética” da parte dos Ciclopes extremamente conveniente para o rela-
to de Odisseu, como já fora a fala anterior deles. Seria o caso aqui de suspeitarmos da veraci-
dade de parte do relato? Até que ponto a verdade factual de detalhes como esse é relevante?
465 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 243.

293
isto é, Ninguém ilibado”.466 Assim, não apenas o substantivo “astúcia” mas o
nome próprio “Ninguém” (não na sua forma “original” Oûtis, mas em sua forma
alternativa) estão indicados aí – no que William Stanford chamou de o mais
brilhante uso da paronomásia e da ambiguidade em toda a literatura grega.467
Importa destacar que, no plano da língua, o jogo é possível a partir da en-
trada dos demais Ciclopes porque os termos em discussão aparecem todos, úni-
ca e exclusivamente, no caso nominativo, justamente aquele que não permite a
diferenciação: quando Polifemo diz que “Ninguém me mata”, a confusão entre
nome próprio e pronome é possível de um modo que não ocorreria caso tivesse
dito, por exemplo, “Sou morto por Ninguém”; neste último caso, entendendo
“Ninguém” como nome próprio, ele teria empregado uma forma que evitaria a
ambiguidade. Dá-se aqui, portanto, o contrário do que ocorreu no diálogo ime-
diatamente anterior: lá, como apontei, Odisseu precisava desfazer a ambigui-
dade e por isso o uso de “Ninguém” no acusativo foi providencial. Já aqui não
só Oú tis/Oûtis aparece apenas no nominativo (v. 408), tal qual Mé tis/Mêtis (v.
405, 406, 410 e 414), como nenhum dos dois vem acompanhado de substantivo
(por exemplo, “nenhum homem”, oú tis anér ou mé tis anér), construções que
igualmente destruiriam o efeito buscado; o amúmon (“ilibado”) do verso 414
não representa empecilho porque é um adjetivo biforme, podendo ser lido tan-
to no feminino, com “astúcia”, quanto no masculino, com “Ninguém”.
Para além dessa análise detalhada, que desdobramento adicional é possí-
vel extrair desse jogo, de caráter mais filosófico? Acredito que um caminho seria
retomar algo discutido no Capítulo 2, quando falei dos nomes Mentes/Mêntor.
Vimos lá o paralelismo possível entre essas duas denominações e mêtis, com o
trio operando com uma possível raiz comum e seus respectivos sufixos de ação,
-tes/-tor/-tis, o que os reuniria sob um campo semântico contíguo. Ora, se essa
força do sufixo de ação -tis puder ser sentida no jogo verbal com o Ciclope, po-
demos dizer então que Oûtis é uma espécie de um “não em ação”, uma “nega-
tividade” característica da identidade de Odisseu. A ação da sua mente (mêtis) é
uma ação negativa (mé tis), é uma substantivação de uma condição de não-ser.

466 Para esse uso, veja-se o item A.I.2 do verbete kaì no dicionário Liddell & Scott: “copula-
tivo, com o propósito de adicionar uma expressão definidora ou limitadora”.
467 W. Stanford, Ambiguity in Greek literature, p. 105. Podlecki vê uma possível retomada do
jogo por Odisseu em Od. 20, 20-21, quando o herói se lembra do confronto com o Ciclope e
diz para si: “a astúcia (‘ninguém?’)/ te tirou do antro” (se mêtis/ exágag’ ex ántroio); ver seu
“Guest-gifts and nobodies in Odyssey 9”, p. 130.

294
Talvez seja ir longe demais em relação aos sentidos imediatos produzidos pelo
texto, mas não deixa de ser uma leitura sedutora no plano mais amplo da com-
preensão da Odisseia, onde o herói, para ser ele próprio, deve primordialmente
pôr em prática a rasura de quem é.
Mas retomemos o fio narrativo e outros detalhes menos salientes da
passagem. O primeiro é a informação de que o pai de Polifemo é Posêidon: ela
será transmitida depois pelo gigante a Odisseu (v. 519), mas o herói já a ouve
aqui pela primeira vez, pela boca dos demais Ciclopes (v. 412). É algo que sabe-
mos desde o início do poema (Od. 1, 68-73), mas internamente – da perspectiva
imediata do desenrolar dos fatos – esse é o anúncio velado daquele que será o
perseguidor de Odisseu, e cujo nome, como vimos, Odisseu já tinha emprega-
do em sua irônica mentira (v. 283). Outro dado mais subterrâneo, igualmente
ligado a um reverso negativo da passagem, é a própria comemoração silenciosa
de que o “nome enganara” (v. 414): de alguma forma, ela antecipa a vanglória
seguinte, quando o herói se gaba de ter cegado o gigante e termina por revelar
seu nome (v. 502-505). O conhecimento prévio das duas passagens faz com que
uma seja lida à luz da outra. Se aqui o nome ilude o oponente e é estratégico,
depois iludirá àquele que o carrega e será ruinoso, o que não deixa de repre-
sentar uma assimilação entre Odisseu e Polifemo. Aliás “Polifemo”, o nome, é
outro elemento que desempenha na cena o mesmo papel discreto de outros já
vistos: apresentado pela primeira vez de forma casual, quando o Ciclope é assim
interpelado pelos seus pares (v. 403), só a partir daí passará a ser usado pelo nar-
rador Odisseu – mas apenas por duas vezes – como alternativa para “Ciclope” (v.
407 e 446).468 Mais do que objeto dessa mera quantificação, o nome em si e seu
uso parcimonioso têm afinidades com o herói central do poema, como mostrou
Egbert Bakker no seu artigo “Polyphemos”, de 2002: além de “Polifemo” ser
uma denominação tão “retida” quanto “Odisseu”, ela compartilha com o herói
o elemento presente em seus epítetos característicos, polú-, “multi-”, fazendo-
-nos pensar que “talvez Odisseu tenha mais em comum com o Ciclope do que
acredita ou quer que sua audiência acredite”.469 Na visão do estudioso holandês,
que explora as associações possíveis do segundo elemento de Polú-phemos com
phéme, “fala profética” (ativa), e phêmis, “falação” (passiva), Odisseu e o Ciclope

468 Vale notar, a título de curiosidade, que “Polifemo” é também o nome de um dos lápitas
mencionados por Nestor no Canto 1 da Ilíada (v. 264).
469 E. Bakker, “Polyphemos”, p. 136-137, e também p. 143.

295
inverteriam papéis no episódio: primeiro é o herói quem domina a palavra e faz
do gigante sua vítima, prevendo/predizendo sua desgraça, mas depois é este
que se apodera de uma fala profética, vitimando Odisseu com sua maldição.470
O nome do Ciclope, portanto, comportaria esses dois enfoques contrapostos,
associados, no desenvolvimento dramático, a um Odisseu que se relaciona com
a palavra de duas formas também opostas – e esse seria um elo de ligação signi-
ficativo entre os dois personagens.
Na mesma direção vai um outro detalhe, relativo ao trecho em que o
nome “Ninguém” aparece pela última vez no episódio. Ao narrar o estratage-
ma de recorrer aos animais para fugir da caverna (v. 415-445) – uma vez que
o agora cego Ciclope, removida a pedra, se sentara na entrada para apalpar e
pegar quem avançasse pela saída –, o herói relata a fala do gigante no momento
em que atravessava a porta debaixo do grande carneiro (v. 446-460); a conver-
sa humaniza mais uma vez Polifemo, por causa da relação de afeto com seu
maior animal, que estranha ver saindo por último – comportamento este que o
monstro justifica para si da seguinte maneira, reacendendo na mesma fala sua
selvageria característica:471

(...) Sentes falta,


sim, do olho do teu senhor, a quem vil varão (anèr kakós) cegou
com odiosos companheiros, domando com vinho a mente,
Ninguém (Oûtis), que afirmo não ter escapado ainda ao fim!
Ah, se igualmente pensasses e de voz fosses dotado,
para dizer por onde ele se esgueira do meu furor:
nesse caso os seus miolos, na caverna, aqui e ali
batendo eu esmagaria no chão, e o meu coração
descansaria dos males que me deu Ninguém de nada (outidanòs...Oûtis)!
(Od. 9, 452-460)

470 E. Bakker, “Polyphemos”, especialmente p. 144, onde está a conclusão da análise. En-
quanto adjetivo, polúphemos, “multifala”, aparece duas vezes na Odisseia, para qualificar a
assembleia, num trecho narrativo do Canto 2 (v. 150), e para qualificar o aedo, numa fala de
Odisseu do Canto 22 (v. 376). É interessante perceber que os três Ciclopes da Teogonia de He-
síodo têm nomes “transparentes”, Trovão, Relâmpago e Clarão (v. 140), o que faz pensar se
também em Homero o nome do monstro não teria um significado evidente para os ouvintes.
471 I. de Jong discorre sobre a “natureza ambivalente do gigante”; ver seu A narratological
commentary on the Odyssey, p. 245.

296
Salta aos olhos o fato de o Ciclope não ter se dado conta, mesmo depois de
passado o efeito do vinho (efeito a que ele mesmo se refere), de que o nome “Nin-
guém” fazia parte de um plano cuja eficácia ele mesmo testemunhara.472 Deve-
mos dar crédito a Odisseu e destacar a insensatez (v. 361) e a tolice (v. 442) de seu
oponente, passado de novo para trás no exato momento em que diz tais palavras,
mas não há como negar que sua estupidez é em parte refutada pelo eloquente e
afiado jogo linguístico final, que alça o monstro a uma capacidade afim à de seu
algoz.473 Irene de Jong fala de um trocadilho “amargamente” construído pelo Ci-
clope e chama atenção para o ressurgimento em sua boca, logo adiante, do mes-
mo “de nada” (outidanós, v. 515), já com conhecimento do verdadeiro nome do
herói.474 Mas seria o gigante assim tão incapaz a ponto de, no momento mesmo
em que reconhece o poder do vinho, manter-se alheio à construção verbal odis-
seica de que fora vítima? A cena permite, a meu ver, que contrariemos a leitura
tradicional e tomemos a menção ao nome falso de Odisseu como ao que de fato
é: um nome falso. O jogo com “de nada” (v. 460), aliado à referência ao “vil varão”
(v. 453), parece indicar que Polifemo tem consciência da impostura e que volta a
empregar “Ninguém” como forma de criticar e provocar o homem que o atacou
de forma sinuosa e encoberta. É como se o monstro estivesse dizendo, com seu
comentário final, num tom de deboche, que seu oponente não ter se revelado foi
uma forma de mostrar seu caráter kakós, “vil”, “covarde”, “baixo”. Parafraseando,
o sentido da fala seria em parte este: “Esse homem que se esconde, que inventa
para si o nome ‘Ninguém’ (que eu pude aceitar antes porque bêbado), não tem
valor algum”. Quem lança agora a isca, portanto, é o gigante, e é essa isca que
será mordida pelo herói no trecho final do canto (v. 464-566), ao partir em sua
nau: provocado, ele irá “provocar” (erethizémen, v. 494) de volta.
O duelo de violência e esperteza ainda não se concluiu.
Tomando certa distância da caverna, Odisseu se solta do carneiro e solta
seus companheiros. Os animais são tocados até a nau e embarcados, para zar-
parem de imediato. Seguro da vitória, o herói conta então como nesse momen-
to interpelou do mar o monstro, o qual podemos imaginar, a essa altura, ainda
sentado na entrada da caverna, posição que o tornava inofensivo. Trata-se de

472 Ver A.J. Podlecki, “Guest-gifts and nobodies in Odyssey 9”, p. 131.
473 Ver Y. Rinon, “The pivotal scene: narration, colonial focalization, and transition in
Odyssey 9”, p. 321 e 323, nota 60.
474 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 244.

297
um discurso breve, de cinco versos apenas, em que se destaca a esperada ação
da justiça divina diante do comportamento violento e não hospitaleiro:

Ciclope, os amigos não de um varão sem audácia (análkidos andrós) ias


comer (édmenai) na funda caverna, com violência, com força (kraterêphi bíephi)!
Sim, a ti mesmo é que os malfeitos (kakà érga) iam atingir,
pertinaz (skhétlie), pois em tua casa não te absténs de devorar (esthémenai)
os hóspedes (xeínous): Zeus por isso te puniu (se...tísato), e os outros deuses!
(Od. 9, 475-479)

Note-se a presença de ideias-chave, que resumem a ação do gigante no


episódio: “comer”, “devorar” (os dois verbos em posição de destaque no grego),
“com violência”, “com força”, “hóspedes”, e do par fundamental “malfeitos” e
“Zeus puniu”, que sintetiza a visão do vingador.475 Mas não podemos ignorar o
verso inicial, uma clara resposta ao “vil varão” (anèr kakós) do verso 453: ao afir-
mar que não é um “varão sem audácia” (análkidos andròs, v. 475), Odisseu está
como que dando uma satisfação ao monstro que o criticou – e já sentimos que
a revelação do seu verdadeiro nome não está distante. Há, na verdade, certa
ambivalência nessa “audácia” (alké): quando o Ciclope disser à frente que espe-
rava ter encontrado um varão “revestido de grande audácia” (megálen epieimé-
non alkén, v. 514), como que negando esse atributo que Odisseu vê aqui em si
mesmo, será bom lembrar que era justamente um varão “revestido de grande
audácia” (megálen epieiménon alkén, v. 214), no mau sentido da expressão, que
Odisseu esperava encontrar na caverna. O eco é irônico.476
Interessante é notar, indo por essa linha de leitura, que o herói-narrador
diz aos feácios que essa abordagem foi feita “de modo cortante” (kertomíoisi, v.
474). Na Odisseia, essa fórmula, “falei/falou de modo cortante”, aparece uma
única outra vez, para descrever as ofensivas palavras do cabreiro Melanteu di-
rigidas ao Odisseu-mendigo (Od. 20, 177). No mesmo canto, um pouco mais à
frente, Telêmaco dirá ao seu humilde hóspede que dele afastará as ofensas ou
injúrias (kertomías) dos pretendentes (v. 263). Ou seja, os termos pertencem ao

475 O par retoma em particular duas manifestações anteriores do herói, ao falar dos “atos
cruéis” do Ciclope (skhétlia érga, v. 295) e ao expressar sua vontade de revide, “ah, se me
vingasse” (eí pos tisaímen, v. 317).
476 Como bem viu A.J. Podlecki, “Guest-gifts and nobodies in Odyssey 9”, p. 127.

298
campo semântico da violência e agressão verbal, nem sempre com clara cono-
tação negativa: Odisseu pode usar “palavras cortantes” ao testar o pai (kerto-
míois epéessin, Od. 24, 240) e o maligno Melanteu depois de pego pode ser alvo
do discurso “cortante” de Eumeu (epikertoméon, Od. 22, 194).477 Odisseu, assim,
está justificado em seu “desabafo” violento, mas a própria forma do desaba-
fo vai contra sua natureza cautelosa e representa algum tipo de desmedida. O
breve discurso, portanto, tem um propósito duplo: apresentar Odisseu como
homem de valor e braço da justiça divina e, ao mesmo tempo, como figura já
um pouco destemperada e vingativa, capaz de se deixar levar por uma situação
que, até então, controlara magistralmente. O resultado disso, para resumir em
poucas palavras e já adiantar o que está por vir, é assemelhar-se ao gigante pela
fúria e pelo descontrole, por um lado, e ser superado por ele na utilização da
palavra como arma de destruição, por outro.
O herói nos conta que o Ciclope, ao ouvir tais palavras, “mais colérico ficou”
(kholósato...mâllon), logo arrancando e arremessando o pico de um monte con-
tra a nau: o projétil caiu pouco à frente da embarcação, o que a fez retornar para
a praia e exigiu esforços redobrados dos remadores (v. 480-490). Atingida uma
distância ainda maior, e com uma segunda chance de escaparem sem se impor-
tarem mais com o Ciclope, Odisseu, incapaz de se conter, revela sua vontade de
interpelar o gigante mais uma vez; tal como aconteceu no início do relato, no mo-
mento em que decidiu ficar à espera na caverna (v. 228), os companheiros tentam
dissuadi-lo, com a diferença de que agora lhes é atribuído um discurso conjunto
– incapaz, porém, de impedir a fala fatal do herói na sequência:

para o Ciclope eu então falei; em volta os amigos


me continham com palavras doces, cada um de um lado:
‘Pertinaz (skhétlie), por que desejas provocar varão violento (ágrion ándra)?
Há pouco, lançando dardo ao mar, devolveu a nau
pra terra firme, e ali mesmo já dizíamos ter fim.
Se escutasse agora alguém balbuciando ou falando,
destroçaria o madeiro náutico e nossas cabeças

477 Zeus também pode usar “palavras cortantes” (kertomíois epéessi) para “provocar”
(erethizémen) Hera no Canto 4 da Ilíada (v. 5-6), passo que revela não descontrole ou
violência, mas o contrário disso, como acontece também ao interpelar Prometeu na Teogonia
(kertoméon, v. 545).

299
após lançar pedregoso bloco, tão longe arremessa!’
Disseram, sem persuadir o meu magnânimo espírito (emòn megalétora thumón);
pois lhe falei ao contrário (ápsorron), com ânimo rancoroso (kekoteóti thumôi):
‘Ciclope, se por acaso alguém dentre os mortais homens
perguntar do cegamento ultrajante de teu olho,
fala que Odisseu arrasa-pólis o cegou de vez,
o que é filho de laertes e em Ítaca tem morada’.
(Od. 9, 492-505)

O “pertinaz” do verso 494 ecoa de forma eloquente o “pertinaz” que


Odisseu dirigira ao Ciclope, há pouco e ainda antes (v. 478 e 351), assim como o
herói com seu “ânimo rancoroso” (v. 501) evoca o gigante “colérico” (v. 480).478
Note-se também a presença das “doces palavras” agora na boca dos amigos
(meilikhíois epéessin, v. 493) e não mais na boca de Odisseu, conforme ocorrera
antes, ao enganar o Ciclope (épessi...meilikhíoisi, v. 363). Da mesma forma, o fa-
lar “ao contrário” (v. 501) – antes sinal de esperteza porque contra o verdadeiro
(v. 282) – agora se torna sinal de estupidez, porque contra o mais sensato. A
soma desses elementos tem o fito de pintar, nesse olhar retrospectivo com sua
“transparência lúcida” (como diz Álvaro de Campos), uma autocrítica: os amigos
estavam certos em querer persuadi-lo, e Odisseu estava errado em se deixar
levar por seu “magnânimo espírito” (v. 500). Provocar o selvagem é mostrar-se
selvagem também. O resultado é a revelação ruinosa e detalhada de seu nome
– o mesmo nome que, substituído anteriormente por outro e mantido sob con-
trole, permitira que saísse com vida da caverna.
Polifemo, uma vez informado, relembra a profecia outrora dita, reativan-
do um motivo que é importante no poema – o da predição que se cumpre.479 Um
adivinho dos Ciclopes o advertira de que seria cegado por Odisseu, e a história
serve para que o monstro volte a insultar com satisfação o oponente, carregan-
do na adjetivação relativa ao desprezo:

478 A fórmula “com ânimo rancoroso” (kekoteóti thumôi) aparece outras duas vezes na Odis-
seia: quando o Odisseu-mendigo qualifica a fala de Melanto, no Canto 19 (v. 71), e quando o
narrador fala do estado de espírito com que os homens supliciaram seu irmão Melanteu no
Canto 22 (v. 477).
479 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 248.

300
No entanto eu sempre esperei que algum homem grande e belo (mégan kaì kalón)
viesse até aqui, revestido de grande audácia:
porém eis que agora um que é mínimo, e de nada, e pífio (olígos te kaì outidanòs kaì ákikus),
do olho me cegou, a mim, me domando com o vinho.
Mas vem cá, Odisseu, que eu darei as dádivas de hóspede (xeínia),
pedindo que te dê transporte (pompén) o Treme-terra célebre:
pois sou filho dele e meu pai ele proclama ser.
Só o próprio, se quiser, vai me curar: nenhum outro
dentre os venturosos deuses e nem dentre os mortais homens.
(Od. 9, 513-521)

A curta fala seguinte de Odisseu, de que não há cura possível (v. 523-525),
inscreve-se aparentemente nesse quadro maior do seu descontrole verbal, com
o qual o Ciclope parece se comprazer. Foi o que permitiu que tivesse à mão um
trunfo valioso – o nome detalhado sobre o qual poderia lançar esta maldição:

Escuta-me agora, grenha-negra, terra-tem Posêidon:


se sou mesmo teu, e meu pai tu sim proclamas ser,
dá-me que Odisseu arrasa-pólis não chegue à sua casa,
o que é filho de laertes e em Ítaca tem morada.
Porém, se sua porção é ver os seus e chegar
à casa bem-construída e até sua terra pátria,
tarde e mal venha a chegar, perdendo os amigos todos,
em nau estrangeira, e venha a encontrar pesar em casa.
(Od. 9, 528-535)

Sim, é possível notar, ainda nessas últimas palavras trocadas entre monstro
e herói, o esquema da hospitalidade pervertida: a oferta de dádivas e de transporte
é uma farsa; ao invés de presentes, o Ciclope “dará” sim uma maldição, que será
em certo sentido o não-transporte; e ao nome perguntado fora de hora por Po-
lifemo, no começo do episódio, vem se juntar o nome dito também fora de hora
por Odisseu, na “despedida”, mais um ponto a uni-los.480 Mas há outros aspectos
que merecem análise. Se admitirmos, por exemplo, o descontrole do herói, como

480 S. Reece, The stranger’s welcome, p. 140-141.

301
estamos fazendo aqui, ainda assim poderíamos dizer que seu comportamento faz
parte de um “código de conduta heroica”, seja porque ele está preso a uma postura
mais “iliádica”, como querem os separatistas modernos, seja porque a vingança não
está completa sem uma “assinatura” adscrita ao feito, como queria já Aristóteles
no Livro II da Retórica (Capítulo 3, 1380b).481 Ao mesmo tempo, ao seguir esse im-
pulso aparentemente justificado e enunciar “Odisseu”, ele estaria permitindo que
o “significado mágico” do nome pudesse ser explorado – o que explica a repetição
literal dos termos de identificação pelo Ciclope (v. 530-531 = v. 504-505, em negrito
nas citações). No fim das contas, admitida essa “força supersticiosa da nomeação”
– que devemos admitir em alguma medida, porque está no centro do episódio –,
é o próprio herói que proporciona, com seu nome revelado, que a prece formal de
Polifemo seja enunciada e seu rol de sofrimentos sacramentado: chegada tardia e
sofrida, sem amigos e as próprias naus, com problemas em casa.482 Da perspectiva
privilegiada em que se encontra agora, Odisseu é categórico em sua rememoração:
“Assim [o Ciclope] disse, num clamor, e o ouviu o Grenha-negra” (v. 536). Ele próprio
ainda afirma que posteriormente, já na “ilha das cabras”, teve seu sacrifício recusa-
do por Zeus, porque este já tramava males (v. 551-555). Passados dez anos, o herói
pode entender o que não percebera então: a combinação das vontades divinas de
Posêidon e de Zeus, que atuam em conjunto.
A questão central, diante desses elementos, diz respeito à justiça, ou, em
outras palavras, aos liames entre ação (confronto com o Ciclope) e reação (a série
de desventuras de Odisseu): o herói de fato cometeu, em seu descontrole, algum
ato transgressor? Se sim, qual? O cegamento? A jactância? A autonomeação?
Seu comportamento é moralmente condenável, exigindo assim uma retribuição
divina, ou apenas um “erro tático”, como quer Bernard Fenik, cujo enfoque

481 I. de Jong afirma que Odisseu apenas adota o código de conduta próprio do herói (A narratolo-
gical commentary on the Odyssey, p. 242 e 246). E. Bakker diz que o herói defende seu kléos num po-
ema onde esse comportamento não é adequado (“Polyphemos”, p. 145-146 e 148-149). Na mesma
direção, para Christopher Brown, Odisseu trabalha com valores que não valem no contexto em que
está inserido, já que o eûkhos, “clamor”, é própria da Ilíada (ver seu “In the Cyclops’ cave: revenge and
justice in Odyssey 9”, Mnesmosyne 49/1 (1996): 1-29, p. 23-25 e 26). Rainer Friedrich vê uma dualida-
de a enformar o episódio, que faz Odisseu oscilar entre o “homem heroico” e o “homem da mêtis”
(ver seu “The húbris of Odysseus”, Journal of Hellenic studies 101 (1991): 16-28, p. 22-23).
482 Sobre o poder do nome, de fundo indo-europeu e ao alcance da audiência antiga, veja-
-se o artigo de Calvin Brown, “Odysseus and Polyphemus: the name and the curse”, Com-
parative literature 18/3 (1966): 193-202, especialmente p. 198-199 e 201; a esse respeito, ele
lembra, entre outros exemplos, a “Horrílion não nomeável” em Od. 19, 260 e 597.

302
abordamos no Capítulo 1?483 Qual sua responsabilidade de fato? A colaboração de
Zeus com Posêidon, com a recusa ao sacrifício, se justifica? Ou é desproporcional?
As respostas, lacunares, são variadas e acessam os problemas com alcances
desiguais. A.J. Podlecki defende que fornecer o nome não representa equívoco
algum da parte de Odisseu, mas é antes um modo de “fechar” o motivo da troca
de presentes, e Steven Reece, fazendo sua leitura a partir da mesma chave da
hospitalidade, entende inversamente não só que o nome “Odisseu” vem dito fora
de hora, segundo a inadequação geral da cena, mas ainda que o carneiro ofertado
pelo herói simboliza a violação aos protocolos que unem anfitrião-hóspede, e que
por isso é recusado por Zeus.484 Para Christopher Brown, a “conduta iliádica” de
Odisseu ao longo do episódio, trabalhando com valores que não se aplicam à terra
dos Ciclopes, representa um “modo incorreto de acessar a situação”, um “erro de
julgamento”, sem o valor de uma húbris de fato, e por isso Zeus rejeita a oferta,
sem no entanto se enfurecer com o herói.485 Já Calvin Brown propõe que, se
levarmos para a cena a questão do “poder do nome”, poderemos ver que Odisseu
cometeu sim húbris, não por violar a hospitalidade ou cegar seu “anfitrião”, mas
ao franquear sua identidade a Polifemo, e que seu comportamento se alinha com
o que vai dito por Zeus na abertura da Odisseia.486 Finalmente, para Peter Jones,
revelar o nome é “uma grande tolice” da parte do herói, mas o preço que paga por
essa “jactância infantil” parece alto, pois, enquanto figura norteada pela glória,
ele não poderia absolutamente se calar.487
Esse apanhado de posições, extremamente parcial, nos ajuda a ver que
as respostas para as questões que o episódio coloca devem ser buscadas num
nível mais profundo, que tem a ver com a moralidade homérica e o sentido da
Odisseia, segundo a perspectiva geral exposta no Capítulo 1. Karl Reinhardt,
num texto da década de 40, “As aventuras na Odisseia”, talvez tenha sido o
primeiro a discutir modernamente uma possível húbris do herói no confronto
com Polifemo, levando em consideração o fato fundamental de que as inúmeras

483 B. Fenik, Studies in the Odyssey, p. 210-211.


484 A.J. Podlecki, “Guest-gifts and nobodies in Odyssey 9”, p. 132, e S. Reece, The stranger’s
welcome, p. 140. e 143.
485 Christopher Brown, “In the Cyclops’ cave: revenge and justice in Odyssey 9”, especial-
mente p. 21-26 e 29.
486 Calvin Brown, “Odysseus and Polyphemus: the name and the curse”, p. 199-200 e 202.
487 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 88.

303
vicissitudes pelas quais passara o tinham transformado, em seu relato, de
alguém que “se delicia na aventura em alguém que sobrevive a ela e finalmente
vem a temer a própria aventura”.488 Para Reinhardt, Odisseu erra “em seu triunfo
e em seu júbilo com a vitória”, na sua “ilusão” de achar que realiza um feito
sancionado pelos deuses sem ter recebido orientações para tal: trata-se sim, na
visão do estudioso, do que poderíamos chamar de húbris, “soberba”, “mas sob
sua forma mais sutil, húbris enquanto superioridade moral”.489 Rainer Friedrich,
num artigo de 1991, retoma a discussão, acreditando, como seu antecessor,
que era preciso “encontrar uma motivação para a inimizade de Zeus em relação
a Odisseu que fosse além da simples solidariedade que um deus mostra para
com um colega seu”.490 Depois de inventariar as supostas “falhas” do herói
encontradas pelos estudiosos ao longo da “Ciclopeia”, Friedrich propõe, como
outros, que Odisseu vive essa tensão entre a jactância típica do herói homérico
(e não propriamente iliádico) e a discrição esperta que é seu traço distintivo, e
que o fato de ceder ao final a essa primeira faceta faz brotar nele um “elemento
ciclópico”, com “propensão para a húbris”.491 Mais do que isso, ele se comportaria
no encontro como um deus numa “teoxenia” – quando a divindade se mistura
aos homens, disfarçada, para testar sua acolhida – e arrogaria para si uma
missão sem autorização divina, “num misto de ambição heroica e pretensão
moral”; tal como queria Reinhardt antes, Friedrich entende que, ao se colocar
para o Ciclope como braço da justiça de Zeus, Odisseu se gaba de um modo que
é “atrevido, selvagem e ímpio – numa palavra, ‘ciclópico’”, dando assim ao deus
superior “um motivo que é consistente com seu discurso programático no Canto
1”: se Posêidon quer apenas a vingança, Zeus, no entanto, “pretende punir e
disciplinar o herói hibrístico”.492 A cólera alimentada pelo primeiro não exclui a
responsabilização clara exigida pelo segundo.

488 K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 80.


489 K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 83.
490 R. Friedrich, “The húbris of Odysseus”, p. 19.
491 R. Friedrich, “The húbris of Odysseus”, p. 22-25.
492 R. Friedrich, “The húbris of Odysseus”, p. 26.27. Num artigo de mesmo título, “The hú-
bris of Odysseus”, Edward Bradley, ao investigar o “sentido geral do sofrimento de Odisseu”
desde o encontro com o Ciclope até sua chega à Esquéria, já defendera também que Odisseu
pagava por ter “ido além das suas limitações”, mesmo advertido pelos companheiros, espe-
cialmente no seu clamor dos v. 523-525; ver “The húbris of Odysseus”, Soundings 51/1 (1968):
33-44, especialmente p. 38-43.

304
Charles Segal, num outro texto fundamental, de 1992, segue caminho
um pouco diferente. Para ele Odisseu, no momento em que revela seu verda-
deiro nome e se jacta, aproxima-se da “brutalidade primitiva” do Ciclope, mer-
gulhando “num nível semelhante de ódio descontrolado e vingatividade”, o que
é indicado pelo seu “ânimo rancoroso” (v. 501) em contraposição às “palavras
doces” ditas pelos amigos (v. 493).493 Sem querer se deter na questão espinho-
sa da classificação desse ato – isto é, se podemos chamá-lo ou não de húbris
–, Segal prefere se concentrar no fato de que o herói “nos deixa ver a percep-
ção retrospectiva de sua loucura”, uma vez que se trata de “um homem que
está contando sua história muitos anos depois e que, com esse distanciamen-
to, pode discernir um padrão de intervenção divina que não era capaz de ver
anteriormente”.494 Como afirma em outro ponto do mesmo estudo, parece que
o descontrole verbal de Odisseu no trecho final do Canto 9 se interliga a outros
acontecimentos em que se podia ver a justiça de Zeus em ação, especialmente
os mencionados no Canto 3 e 4, quando somos informados de que outros heróis
não haviam sido “prudentes nem justos” (noémones oudè díkaioi, Od. 3, 133), ou
de que o Ájax Oilida fora punido com a morte por uma “palavra arrogante” (hu-
perphíalon épos, Od. 4, 503). Segundo Segal, “esses exemplos de justiça divina,
ainda que apenas entrevistos rapidamente, prefiguram a percepção da justiça
de Zeus na linha principal da ação, à medida que acompanhamos o herói central
na maior crise de sua vida”, e assim a Odisseia, tal como a Ilíada, faz com que
a “crescente clarificação da vontade de Zeus por parte do narrador onisciente
acompanhe a gradual compreensão dessa vontade por parte do herói”.495
Ao ler o embate final com o Ciclope, quero explorar aqui justamente esse
entendimento retrospectivo e autocrítico de Odisseu (já indicado no Capítulo 7),
para tirar uma avaliação nossa do seu comportamento, e de como esse mesmo
comportamento se alinha à visão de uma justiça divina no interior da narrativa:
Odisseu é o símbolo desse “ódio seu”, da ira divina dirigida aos homens (conforme
abordado no Capítulo 5). Como vimos, a autocrítica está presente desde o
começo do relato, quando o herói reconhece que não deveria ter permanecido
na caverna à espera do gigante, mas é no final do encontro que seu modo de agir

493 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 213.


494 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 212-213.
495 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 198.

305
se assemelha ao do seu oponente, criando um espelhamento perturbador, que o
próprio herói-narrador se encarrega de apontar, discreta mas eloquentemente.
Assim, a constatação de que as vontades divinas puseram-se em movimento,
feita de modo sumário (v. 536 = “Posêidon ouviu” e 553 = “Zeus anuiu”), pode ser
ao final uma indicação de que Odisseu percebe claramente tanto a natureza da
sua ação quanto as resoluções justas e inexoráveis dela decorrentes: no quebra-
cabeça entre passado e presente, tudo se esclarece. Que palavra-chave poderia
descrever a natureza dessa ação?
Talvez Aristóteles nos dê indiretamente a resposta, no trecho já citado da
Retórica em que faz referência à revelação da identidade por Odisseu na Odis-
seia. Segundo o filósofo, o herói não poderia se sentir de fato vingado se o Ciclo-
pe não soubesse por quem, e por que motivo, sofrera o que sofrera. Mas o mais
importante é notarmos que a citação aparece no livro referente às “paixões” ou
“emoções” humanas, no momento em que ele analisa o par “cólera” (orgé) e “cal-
ma” (praótes), nos Capítulos 2 e 3. Sobre a cólera, vai dito que é “o desejo (órexis),
acompanhado de tristeza (metà lúpes), de vingar-se ostensivamente (timorías
phainoménes) de um manifesto desprezo (dià phainoménen oligorían) por algo
que diz respeito a determinada pessoa ou a algum dos seus, quando esse des-
prezo não é merecido”, acontecendo sempre “contra um indivíduo em particular”
(kath’ékaston) e produzindo “certo prazer (tina hedonén)”.496 No mesmo Capítulo
2, Aristóteles dá sequência à sua análise metódica e diz ainda que aqueles que iro-
nizam (verbo eironéuomai) os que falam de modo sério (verbo spoudázo) também
são alvo da ira, porque “a ironia é desdenhosa (kataphronetikòn gàr he eironeía)”.497
Finalmente, ao passar para a abordagem da “calma”, que define como “a inibição
e o apaziguamento da cólera”, no Capítulo 3, o filósofo afirma que somos calmos
“com os que não são insolentes (toîs mè hubristaîs), nem trocistas (khleuastaîs),
nem desdenhosos (oligórois) com pessoa alguma”498; a discussão o leva de volta
à cólera, que diz ter a ver, “por definição (ek toû orismoû)”, “com o indivíduo (pròs
tòn kath’ékaston)”. É nesse momento que afirma então que Homero se expres-
sou corretamente (orthôs) no verso “fala que Odisseu arrasa-pólis...” (Od. 9, 504),
“como se [Odisseu] não se sentisse vingado (tetimoreménos) se [o Ciclope] não

496 Retórica, 1378a30. Cito a partir da tradução de Ísis Borges da Fonseca (Aristóteles,
Retórica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2003).
497 Retórica, 1379b30.
498 Retórica, 1380a30.

306
soubesse por quem nem por que motivo ficara cego”499. O que Aristóteles quer
dizer aí, trocando em miúdos, é que a cólera vingativa precisa de verbalização.
Mais do que isso: precisa de nomeação, individualização. Nas entrelinhas, por-
tanto, está dito que Odisseu é uma figura tomada pela ira e que por isso quer se
vingar; a nomeação, por sua vez, é vista como etapa essencial, e se liga ao “osten-
sivamente” da definição inicial de cólera: “desejo de vingar-se ostensivamente de
um manifesto desprezo”.500 O revide só está completo com o nome enunciado.
Existe, porém, manifesto desprezo (ou desdém, ou ironia, ou insolência,
para retomar a terminologia aristotélica) da parte do Ciclope? No episódio, o
desprezo, se assim podemos chamá-lo, não corresponde à violência antropofágica
do monstro? A vingança, portanto, não é o próprio cegamento? Afinal, até onde
podemos aproveitar a reflexão contida na Retórica (que não tem, obviamente, o
propósito de interpretar Homero) para iluminar a leitura do Canto 9 da Odisseia? Os
elementos-chave, a meu ver, que devemos primeiro extrair do tratado do filósofo
são dois: a percepção de um Odisseu raivoso, por um lado, e a percepção de um
Polifemo provocativo e desdenhoso, por outro, conforme vínhamos apontando
anteriormente. São esses dois sentimentos que parecem em evidência a partir do
momento em que o herói foge da caverna. Esses dois estados de espírito inserem-
se, assim, num momento seguinte à vingança propriamente dita, constituindo
um desdobramento acessório, mas central, do episódio. Ao esquema violência
(comer hóspedes) / revide (o cegamento), marcado pelo descontrole do monstro
e pela frieza e anonimato do herói, vem se juntar outro esquema, desprezo (dizer
que seu agressor era alguém vil e “de nada”) / revide (rebater dizendo não ser varão
sem audácia/ser Odisseu), marcado agora pela manipulação da parte de Polifemo
e pela “megalegoria” do Laercida. É como se à vingança primeira, justa, viesse
se colar esse revide secundário e desnecessário, porque a serviço dos interesses
do Ciclope e ruinoso para o herói. Da perspectiva aberta por Aristóteles, não se
pode negar o acerto da leitura de que Odisseu é nesse ponto uma figura tomada
pela cólera: é o que ele próprio destaca. Vimos como esse sentimento pode estar
insinuado no “de modo cortante” (v. 474) com que ele mesmo abre uma de suas
falas, e como está efetivamente explicitado no “com ânimo rancoroso” (v. 501)
que introduz o discurso seguinte, o mais importante e decisivo dos dois; é a esse

499 Retórica, 1380b20-25. Os sujeitos dos verbos ficam ocultos no original.


500 No Ciclope de Eurípides, Odisseu afirma que “se vingou” (etimoresámen, v. 695) do
assassinato dos companheiros.

307
descontrole, visto em perspectiva, que se opõem as palavras dos companheiros,
qualificadas como “doces” (v. 493), porque vistas agora também em perspectiva,
conforme apontou Charles Segal. Uma eloquente oposição sensatez-descontrole
é construída, a posteriori, pelo herói-narrador.
A cólera, porém, não pode ser generalizada como dado constante da vin-
gança, em seu arco mais amplo. O revide de Odisseu – não custa insistir – não
implica necessariamente um sentimento seu de ira do começo ao fim. Pelo con-
trário: sendo quem é, ele deve banir de si qualquer emoção mais súbita e irra-
cional para ter sucesso. É assim, devemos concluir, para efeito de contraste, que
cega o Ciclope: mantendo a frieza para puni-lo. Ao sair da caverna, no entanto,
ele é enredado pelas palavras do monstro, de tal maneira que num segundo
momento transforma essa vingança – a princípio exitosa porque silente – numa
retaliação tola e descontrolada, fonte mesma da sua desgraça subsequente. É
precisamente no ponto em que dá voz a sua punição justa, ainda sem revelar o
próprio nome (v. 475-479), que o herói já se apresenta tomado pela necessidade
de negar as palavras insultantes de Polifemo. Se, como vimos na nossa leitura,
foi com espírito sarcástico e trocista que Polifemo retomara o “Ninguém” de
antes para chamar seu agressor de “de nada” e “vil varão” (espírito esse que será
mantido ao rememorar a profecia relativa ao cegamento), Odisseu por sua vez
parece ter mordido a isca ao afirmar que não era “varão sem audácia”. Ao ma-
nifesto desdém, nos termos de Aristóteles, Odisseu responderá ainda, a seguir,
com um manifesto ato de vingança, uma vingança secundária e dispensável no
conjunto maior da ação: a revelação prazerosa do própria nome, que equivale
à satisfação da autoria propagada. Nomear-se, portanto, é vingar-se uma se-
gunda vez, mas esta é uma vingança tola, em que o herói assume uma nature-
za em tudo oposta à que lhe é mais proveitosa. Odisseu se deixa envolver pelo
desprezo aparentemente calculado do Ciclope, e vingar-se desse menosprezo
é assumir que sua frieza característica foi substituída pela ira impensada – algo
que sublinha com justeza na passagem.
Como classificar esse comportamento ou essa ação do herói, em que
abandona a tradicional esperteza e age de maneira indevida? Poderíamos utilizar
o conceito de húbris, mas com a ressalva de que não assume aqui o sentido de
“presunção” ou “altivez”, como queria Reinhardt: Odisseu não parece equivocado
ou excessivo ao afirmar, especificamente, que o cegamento de Polifemo está de
acordo com a vontade divina. Dizer isso não é jactar-se ou presumir de forma

308
errônea o que não pode saber. Contrariamente a essa abordagem, prefiro me
alinhar à visão de Friedrich e de Segal, que enfatizam o comportamento geral final
mais “ciclópico” de Odisseu, marcado por uma “brutalidade primitiva”, que pode
se acomodar, se quisermos, sob a rubrica “húbris”. No quadro maior da Odisseia,
contudo, talvez seja mais proveitoso trabalharmos com um termo moral mais
relevante, atasthalíe, “atrevimento”, aquele enunciado por Zeus na abertura do
poema (v. 34) e que ecoa aquilo que vai dito logo na invocação (v. 7), aplicando-se
não só aos companheiros do herói que devoraram as vacas do Sol, mas também, e
principalmente, aos pretendentes de Penélope. Essa é a noção central do poema,
contígua a, e confundível com, as noções de húbris, “soberba”, “desmedida”,
“autoconfiança”, e áte, “perdição”, “cegueira”, “ruína”: trata-se daquela
ultrapassagem tola por parte dos homens que faz com que tenham dores “além
do quinhão”, pelas quais são inapelavelmente responsáveis. Com ela, podemos
entender a ação de Odisseu sob a mesma perspectiva moral enunciada por Zeus:
o deus faz pagar quem, por vontade própria, com atos insensatos, chama para
si uma cota excedente de desgraça. O “crime” do herói, no caso do desfecho do
embate com o Ciclope, é um crime de cunho verbal, à semelhança da já citada
“palavra arrogante” do Ájax Oilida no Canto 4 (huperphíalon épos, v. 503). Só
que lá essa figura menor havia claramente desprezado o poder das divindades e
sobrevalorizado o seu próprio, o que enquadrava seu ato na categoria “presunção”
– a húbris que Reinhardt queria ver na fala de Odisseu sobre ser o executor da
justiça de Zeus e dos demais deuses. No caso presente, porém, o problema está
não em afirmar a participação divina no cegamento ou a certeza dessa justiça
– reafirmada enfaticamente no Canto 23 (“pagou o preço”, apetísato poinén, v.
312) –, mas em se perder em excessos verbais que vão contra a moderação que
é característica do protagonista da história. O atrevimento de Odisseu não deve
ser medido na sua relação com os deuses, mas na sua relação consigo mesmo: é
isso que a rememoração traz à tona, obliquamente. Se é certo que na sociedade
aristocrática homérica o nome é algo incontornável, seu “título” e sua “afirmação
de status”, no caso de Odisseu “a capacidade para o disfarce, que o distingue,
assinala-o como herói de natureza diferente, um herói que não apenas suporta
mas abraça a obscuridade”, nos dizeres de Sheila Murnaghan.501 Assim, manter o
“disfarce” contra o Ciclope naquelas circunstâncias seria o movimento mais afim
ao seu modo de ser, enquanto revelar-se seria, opostamente, transgressão grave.

501 S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 8.

309
Só lateralmente, a meu ver, esse atrevimento implica uma afronta aos
deuses, na medida em que, querendo iluminar o que deveria ter permanecido
na penumbra (para o bem de todos e dele próprio), o herói pretende afirmar
certezas que não cabem bem em boca humana. Nesse sentido, Odisseu torna-
se “arrogante”, como o citado Ájax e os próprios Ciclopes, a quem chamou de
“arrogantes desregrados” (huperphiálon athemíston, v. 105-115). A conclusão do
episódio faz assim transparecer a afinidade entre o monstro “Multi-fala”, Polú-
phemos, e o herói polú-ainos, “multí-loquo”. Não é só o fato de que, como vimos, fala
descontrolada/fala controlada se contrapõem e alternam na cena toda (Polifemo/
Odisseu; Odisseu/Polifemo), mas de que há, nesses dois momentos diversos,
muita fala desnecessária e tola, quando a fala mais proveitosa corresponderia a seu
claro manejo e/ou omissão. Se polúainos é um epíteto especialmente raro junto
ao nome do herói, e de sentido discutido – passivo: “de muitos elogios”? ativo:
“de muitas histórias”?502 –, ainda assim não devemos descartar a possibilidade de
ecoar negativamente aqui: o sucesso na “Ciclopeia” está nas mãos do polúmetis,
entendido também como “multi-ninguém”, e não do polúainos, o homem
palavroso, se tomarmos o epíteto ativamente, como prefiro, traduzindo-o por
“multíloquo”. Esperteza aí é sinônimo de linguagem retida e encoberta. Sim, a
fala extensa é arma importante para o esperto Odisseu – e o longo relato em que a
“Ciclopeia” aparece o comprova, para não falar das elaboradas mentiras contadas
em Ítaca –, mas, mesmo quando extensa, o que vemos é arranjo, premeditação
e efeito procurado, qualidades opostas a esse desarranjo das tiradas finais contra
Polifemo, quando não é “contido” (ekhéphron), conforme Atena diz esperar dele
no Canto 13 (v. 332).503 É a esse desarranjo que quero chamar de atasthalíe, ciente
de que o poema mesmo o deixa sem nome, fazendo assim que repensemos
criticamente o passado de Odisseu como ele mesmo o faz.

502 Richard Cunliffe fica com o primeiro sentido em seu A lexicon of the Homeric dialect, mas
no Liddell & Scott nota-se a possível sinonímia com polúmuthos. I. de Jong admite os dois
sentidos, “a man about whom many tales are told” e “a man who tells many tales”; ver seu
A narratological commentary on the Odyssey, p. 303. Na Odisseia ele é aplicado a Odisseu so-
mente no Canto 12 (v. 184), pelas Sereias. Na Ilíada aparece três vezes: Canto 9 (v. 673), Canto
10 (v. 544) e Canto 11 (v. 430). Por esse motivo, entre outros, Pietro Pucci vê na interpelação
a Odisseu na Odisseia uma presença da “gramática da Ilíada”, como se as Sereias estivessem
convidando o herói a “mudar de poema”, num diálogo entre os épicos; ver seu “The song of
the Sirens” em S. Schein, Reading the Odyssey, p. 192-196.
503 C. Segal chama atenção para esse qualificativo (Singers, heroes, and gods in the Odyssey,
p. 219, nota 52).

310
Ao fim e ao cabo, tendo que pagar por essa “porção” que não soube respei-
tar, Odisseu é vítima também de uma “punição” ou “vingança” (tísis), tal como a
que infligiu ao Ciclope. Ela vem de duas frentes, como sabemos: de Posêidon, pai
de Polifemo, e de Zeus. A princípio, podemos sentir que só a retaliação isolada de
Zeus pelo atrevimento, nos termos próprios desse deus, seria de fato um estabe-
lecimento da justiça, enquanto a perseguição de Posêidon cheira a justiçamento
brutal e pessoal, avesso à própria ideia de ordem e equilíbrio. Em outras palavras:
até somos capazes de encontrar a culpabilidade de Odisseu e ajustá-la à ordem
exposta por Zeus, mas de todo modo ficamos com a presença incômoda de um
deus vingador no seio da execução dessa justiça. Zeus pune o herói pelo seu “tolo
atrevimento”, mas o faz respaldando a cólera de Posêidon, que aparentemente
dá as costas para qualquer outra coisa que não seja o próprio interesse. Uma or-
dem justa, dita superior, é também um aparente capricho localizado, que vem
rebaixá-la. Como articular a justiça de um com a sede de vingança do outro? Vi-
mos no Capítulo 1 as tentativas de encontrar aí a sobreposição de quadros morais
de temporalidades diferentes, bem ao gosto do olhar evolutivo, seja para afirmar
a inconsistência final do poema, ou sua tentativa de articular visões díspares. Lá
mesmo defendi a coerência e a homogeneidade na leitura, as quais, a despeito
das conjecturas genéticas, eram e são o resultado da transmissão e da recepção
dos poemas homéricos como conjuntos acabados, a dialogarem permanente-
mente entre si e com outras obras gregas, numa conversa sempre tensionada e
questionadora a respeito de valores, comportamentos e responsabilidades. Por-
que o painel moral homérico fazer sentido – é importante sublinhar – não implica
que ele seja, absolutamente, um painel simples ou livre de problemas.
Duas facetas da “Ciclopeia” mostram isso, na maneira como o tópico da
punição/vingança é abordado. De uma perspectiva primeira, o cegamento do
Ciclope é uma punição justa, mas que abre simultaneamente espaço para que o
herói seja punido pelo pai da vítima. É o já citado Charles Segal que sublinha aí a
presença desse movimento familiar de buscar o revide por um crime ou agressão,504
que pode desencadear o derramamento de sangue em série, como vemos na
“Oresteia” de Ésquilo, a trilogia que desenvolve o paradigma central exposto já
no Canto 1 da Odisseia. Assim, concretamente, punição e vingança acabam por
se sobrepor nesse esquema, ou a se implicar mutuamente, deixando ver que

504 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 218.

311
são duas faces de uma mesma moeda. Por isso a possibilidade de traduzirmos o
substantivo grego tísis como “punição” ou “vingança”, ora vendo-o pelo seu lado
justo, ora pelo justiceiro, como o feito de Orestes contra Egisto, que aceita as duas
transposições (Od. 1, 40). Em outras palavras, podemos dizer que essa justiça, que
é vista como a justiça de Zeus, comporta sempre um lado violento e brutal, e que
portanto é incapaz de estancar a fonte do crime, ou que na sua execução mesma
pode desencadear novos crimes. Por essa primeira perspectiva, já vemos que
estamos longe de uma proposição moral tranquila e palatável, sobretudo porque
a justiça, sendo vingativa, não pode, aos nossos olhos jurídicos (mas não em nossa
moral popular), ser justa. A segunda perspectiva diz respeito à combinação entre
a cólera de Posêidon e a anuência de Zeus, de que falei acima. Essa combinação
nos mostra – já antecipando – que a justiça de Zeus, além de trabalhar com
a inclusão de violência e brutalidade, que a tornam conflituosa (veja-se o
próprio desfecho da Odisseia), também opera com uma atenção constante aos
interesses particulares ou pessoais das mais variadas divindades. Esses interesses
inscrevem-se na lógica do mundo aristocrático em que os deuses vivem, lógica
segundo a qual todos detêm suas respectivas “honras”, sancionadas pelo deus
mais poderoso, Zeus. Dito assim, parece tudo ficar restrito a uma camaradagem
interna e familiar, mas sabemos que, sendo as figuras divinas gregas imanentes
ao mundo – isto é, sendo partes desse mundo –, a atenção de Zeus vai muito
além de um gesto de compadrio: agradar a cada deus é, em certo sentido, manter
em ordem e em funcionamento a parte que esse deus representa ou pela qual é
responsável. Há, assim, uma “justiça cósmica” implicada no movimento de Zeus:
quando atende a uma figura como Posêidon, com seu “rancor” (kótos, Od. 11, 102;
e 13, 342), é como se reafirmasse e reatualizasse a distribuição de honras original,
aquela que fez o mundo ser sob seu reinado o que é. Nessa ordem justa, esse
“rancor dos numes” (kótos daimónon; a expressão está no Agamêmnon de Ésquilo,
v. 635), apesar da aparência de capricho pessoal e de coisa “negativa”, faz parte de
uma configuração mais ampla cuja importância e manutenção Zeus apenas pode
positivamente compreender e efetuar.505

505 K. Reinhardt (“The adventures in the Odyssey”, p. 84) nota que, nessa cooperação de
desígnios, Zeus acaba por se sobrepor à cólera de Posêidon, sendo mencionado com uma
frequência maior no poema. Já Jim Marks, no Capítulo 2 de seu livro, mostra como os pla-
nos de Atena e principalmente de Posêidon para Odisseu, com suas “agendas limitadas”, são
sempre assimilados na Odisseia à vontade Zeus; ver seu Zeus in the Odyssey, p. 36-52.

312
Portanto, para resumir, é possível dizer que Odisseu, ao final de seu
relato da “Ciclopeia”, consegue perceber – com sua referência ao carneiro
recusado por Zeus – que essa justiça divina está/esteve em movimento, com
seu nexo entre punição e vingança, de um lado, e entre vontade localizada
de um deus e a vontade maior do deus que é soberano, de outro.506 Num
episódio em que claramente se mostrou “no seu melhor e no seu pior”,507
ele reconhece a combinação dessas vontades divinas desembocando numa
ação objetiva (sua volta retardada), situação que decorre, por sua vez, do seu
próprio comportamento inoportuno e loquaz. Se há esse reconhecimento
implícito, como estamos propondo, podemos falar então, para concluir, de uma
transformação do herói, que olha para trás e repensa suas experiências ao contá-
las, como sublinharam Karl Reinhardt e também Charles Segal. Quem defendeu
também esse ponto de vista, mas de um modo ainda mais agudo, foi R. B.
Rutherford num artigo de 1986, “A filosofia da Odisseia”, onde se preocupava
em investigar como se articulam “o tom moral dominante do poema e o status
moral de seu herói”, com base no princípio de que “o caráter de Odisseu se
transforma e se desenvolve”.508 Ao repassar as viagens de Odisseu contadas
pelo próprio, Rutherford faz questão de enfatizar que a narrativa, apesar de
algumas “bravatas” do herói, “não nos oferece uma fábula simples, em preto
e branco, na qual Odisseu está sempre certo e seus companheiros sempre
errados, ou são sempre malvados”, e que no conjunto do poema “ele adquire
maior severidade e autocontrole, e conquista um entendimento mais profundo
das emoções e das motivações humanas”.509 Há alguns exemplos centrais que
poderíamos fornecer desse homem transformado, desde que entra em ação
ao deixar a ilha de Calipso: a desconfiança e relutância em dar seu nome junto
aos feácios, permanecendo boa parte do tempo anônimo;510 a condenação da
soberba já sob o disfarce de mendigo, em Ítaca (húbrin, Od. 17, 487), fala que se

506 I. de Jong traz uma breve discussão sobre as formas de se ler o desfecho da “Ciclopeia”, seguindo
em linhas gerais a leitura que faço aqui; ver A narratological commentary on the Odyssey, p. 249.
507 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 231.
508 R. Rutherford, “The philosophy of the Odyssey”, p. 145, 147 e 150.
509 R. Rutherford, “The philosophy of the Odyssey”, p. 151, 153 e 160.
510 Y. Rinon diz que a “relutância em revelar seu nome reflete o aprendizado diante das con-
sequências da catastrófica revelação de seu nome no passado”; ver seu “The pivotal scene:
narration, colonial focalization, and transition in Odyssey 9”, p. 328.

313
liga àquela em que celebra a “boa justiça” (eudikías, Od. 19, 11); e, talvez a mais
eloquente passagem, a proibição de que Euricleia exultasse com a matança dos
pretendentes (Od. 22, 411-412), trecho onde diz que os pretendentes pagaram
por seus “atrevimentos” (atasthalíeisin, v. 416).511 Mas quero me deter em duas
outras ocorrências – ambas abordadas por Rutherford – que me parecem mais
reveladoras sobre esse herói mudado a partir do que viveu, e que por isso tem
capacidade de expor criticamente sua experiência decisiva com o Ciclope: a
primeira indicação vem no Canto 8, no modo como o herói reage à história do
cavalo de madeira contada por Demódoco, e a segunda surge numa longa fala, de
filosofia moral, que dirige a um dos pretendentes, ainda disfarçado de mendigo,
no Canto 18. Na cronologia interna, esses dois momentos estão separados por
cerca de cinco dias, mas no desenvolvimento narrativo intervêm nove cantos,
que abrem (os de 9 a 12) exatamente a perspectiva do passado, emoldurada
então por esse olhar do presente: o Odisseu de agora reage ao passado de uma
forma que nos mostra que o que vivenciou fez dele outro Odisseu.
Falei no Capítulo 7 sobre o símile – um dos mais pungentes de toda a
poesia épica – que acompanha o choro de Odisseu ao ouvir da boca do cantor
feácio o feito do cavalo de Troia: a junção desses dois elementos (um herói
que não vibra com a vitória mas antes a pranteia, e que vem comparado ao
lado que foi por ele derrotado) é talvez a mais sutil indicação em Homero do
sentimento de um personagem – no caso, a compreensão mais profunda do
que viveu, em decorrência não apenas da guerra, mas também, e sobretudo,
das suas viagens posteriores, com seus sofrimentos e a perda de todos os seus
homens: a “Odisseia” de Odisseu, podemos arriscar dizer a partir dessa cena
magnífica, é em certo sentido uma derrota para o herói, com suas reviravoltas
e perdas irrecuperáveis. Não há espaço aqui para qualquer comemoração ou
autoafirmação, como já houve. É essa compreensão que Rutherford destaca
na parte final de seu artigo, mostrando que “nenhum episódio dos cantos em
que Odisseu está com os feácios é tão comovente e sugestivo em mapear o
progresso do herói”.512 É esse mesmo Odisseu reflexivo que entra em ação em
Ítaca sob o disfarce de um velho mendigo, desde o Canto 14 e em especial no

511 Veja-se o que diz Calvin Brown, “Odysseus and Polyphemus: the name and the curse”, p.
200, R. Friedrich, “The húbris of Odysseus”, p. 27-28, e C. Segal, Singers, heroes, and gods in
the Odyssey, p. 220-221, que vê aí um Odisseu “ecoando” a fala de Zeus em Od. 1, 34.
512 R. Rutherford, “The philosophy of the Odyssey”, p. 155.

314
Canto 18; numa fala a Anfínomo (v. 125-150), o convidado indesejado faz-lhe
uma séria advertência – de que o rei está prestes a voltar, para punir com a morte
os crimes dos pretendentes. A parte central do discurso, entre a introdução
e a citada advertência final, vale por uma peça elegíaca, ao abordar o caráter
transitório e incerto da vida humana:513

A terra não alimenta nada mais débil que o homem,


de tudo quanto respira e rasteja sobre o solo:
pois pensa que no futuro nunca há de sofrer um mal,
enquanto os deuses lhe derem sucesso, e os joelhos moverem-se;
mas, ao cumprirem os deuses venturosos o odioso,
aguenta contrariado isso também, com resistente ânimo (tetleóti thumôi).
Tal é, com efeito, a mente de nós homens sobre a terra
– qual o dia que nos traz o pai de homens e de deuses.
Eu mesmo: era para eu ser afortunado entre os homens,
mas fiz muito atrevimento (pollà d’atásthala), cedendo à violência e à força,
confiante no meu pai e também nos meus irmãos.
Por isso, que ninguém (mé tis) nunca seja varão desregrado (athemístios),
mas silente (sigêi) aceite as dádivas (dôra) dos deuses, quaisquer que deem.
(Od. 18, 130-142)

Há uma primeira grande ironia nessa fala sob disfarce: Anfínomo e


os demais ouvintes imaginam que os sofrimentos mencionados decorrem,
compreensivelmente, da vida de penúria de quem fala, quando sabemos que
resultam de uma vida pregressa errática sim, mas não mendicante. A reflexão,
portanto, não sai da boca de um homem comum e acossado pela pobreza, mas
de uma figura de autoridade, aristocrática. Suas palavras, sendo ele quem é,
têm ressonâncias que podemos e devemos explorar a partir de sua experiência
anterior: mais do que sentenças gerais e abstratas, são dizeres que talvez
reflitam a transformação de que estamos falando. Segundo R. Rutherford,
temos aí, em relação ao herói, a “indicação de uma maior percepção sua, e
de uma incrementada capacidade de autocrítica”; a despeito da presença de
mentiras (como no verso “confiante no meu pai e também nos meus irmãos”),

513 Ver R. Martin, Homer: The Odyssey, p. 397.

315
“há elementos verdadeiros sobre suas viagens e seu passado (...) e verdades
morais e advertências que se apoiam no enquadramento ético básico da
Odisseia”.514 Charles Segal, ao falar do mesmo trecho, afirma que Odisseu
“revela uma consciência moral mais profunda do que a da maioria dos que
estão ao seu redor”.515 Vale a pena então, a título de conclusão, indicar como
essa consciência pode radicar no episódio do enfrentamento do Ciclope, que
estaria sendo sutilmente explorado na fala. Se a expressão “com resistente
ânimo” já é uma piscadela de Odisseu a respeito de sua verdadeira identidade,
mais eloquentes ainda são as informações seguintes, sobre a ação de Zeus/
deuses; sobre seus “atrevimentos” (atásthala); sobre a necessidade de ninguém
ser desregrado (mé tis e athemístios); e sobre a manutenção do silêncio (sigêi)
diante das dádivas concedidas (dôra). Para Calvin Brown, não seria descabido
vermos aí referência ao jogo com “ninguém” e à veiculação indevida do nome
no Canto 9.516 Eu iria ainda mais longe: a menção ao termo moral chave do
poema (atásthala, um adjetivo plural que equivale ao substantivo atasthalíe),
junto com o uso da ideia de ausência de “regra” (a-themístios, aplicada aos
Ciclopes no Canto 9, v. 106, 189 e 428), de alguma maneira constrói esse
quadro autocrítico. E não se trata só de revisão do passado: a esperteza casada
ao respeito aos limites e ao silêncio oportuno – com a astúcia de ser “ninguém”
– são as armas de que o Odisseu-mendigo constantemente deve se lembrar,
para levar seu plano a bom termo. O Odisseu que fala ainda é, como no relato
aos feácios, o Odisseu que reavalia – porque transformado – o encontro com o
gigante de um olho só, e que agora tem a chance de reencenar sua ocultação
sem incorrer no erro de outrora. Importa notar que mais à frente, no Canto
22, ao se desfazer dos andrajos e começar a atacar seus inimigos, o homem
que calará o clamor na boca de Euricleia será o mesmo homem que não dirá
seu nome para os pretendentes: no discurso de sete versos em que lista seus
crimes e anuncia a matança (v. 35-41), não há mais lugar para o ostensivo
“Laercida Odisseu”.

514 R. Rutherford, “The philosophy of the Odyssey”, p. 151, nota 37, e p. 156. Na mesma linha
vai Edward Bradley, que vê nesse passo do Canto 18, e também na fala a Euricleia no Canto
22, citada anteriormente, a confirmação da transformação de Odisseu; ver seu artigo “The
húbris of Odysseus”, p. 42.
515 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 200.
516 Calvin Brown, “Odysseus and Polyphemus: the name and the curse”, p. 200.

316
» Paragens e (ultra)passagens

O restante das aventuras de Odisseu, por ele narradas até o final do Can-
to 12, compõe um mosaico variado, com um leque de situações e seres mágicos
– ainda assim paradoxalmente apresentados em chave sempre mais “realista”,
como vimos com o Ciclope – que trazem à tona os mesmos problemas relativos
à hospitalidade, à violência e à transgressão. De modo geral, chama atenção, em
primeiro lugar, uma espécie de adormecimento da qualidade central do herói, a
astúcia, que vem largamente superada pela sua capacidade de suportar adversi-
dades: temos, em outras palavras, um herói problemático, em certo sentido “pas-
sivo” porque bem menos “condutor” e muito mais “conduzido”, um herói que ao
invés de tramar padece, que ao invés de estar desperto e atento dorme. Em se-
gundo lugar, chama atenção o fato de Odisseu passar, mais ainda do que antes,
por situações extraordinárias, únicas por representarem uma aproximação com a
morte que nenhum mortal está apto a vivenciar, pelo menos não a ponto de poder
depois falar sobre ela: os célebres encontros com as Sereias e com Cila-Caríbdis
são exemplos dessa experiência que podemos chamar de “sobre-humana”, mas
é seu contato com o mortos do Hades – que ocupa todo o Canto 11 e corresponde
a sua mais longa aventura – que a explicita de forma acabada. Vou abordar aqui
de início seu comportamento geral na relação com os companheiros ao longo dos
Cantos 10 a 12, com o intuito de apontar sua “passividade” e “falhas” de lideran-
ça, detectáveis mesmo diante do contraste com os “criminosos” amigos que ao
fim devoram as vacas do Sol, e em seguida passarei a falar, num ponto que não
se desliga inteiramente do primeiro, do caráter ambiguamente “transgressivo”
de Odisseu no episódio (mas não só nele) da “Evocação dos mortos”, que ativa o
tópico do conhecimento e articula-se ao motivo da profecia.
Desde a aventura inicial, com os cícones, o narrador Odisseu permite que
entrevejamos as dificuldades em sua missão de liderar centenas de homens, dis-
tribuídos por doze naus. Se nessa primeira parada foi ele quem quis partir depois
da pilhagem, sendo no entanto rebatido pelos homens, que preferiram se esten-
der no gozo da conquista, na terceira – a caverna do Ciclope – foi ele quem quis
adotar a tática da permanência, sem que os companheiros, de opinião contrária,
pudessem demovê-lo. Os resultados são igualmente desastrosos, ainda que a
contabilidade seja diferente: setenta e dois morrem junto aos cícones, enquanto
apenas seis são devorados pelo gigante. De todo modo, instala-se no relato essa

317
relação tensa entre líder e liderados, que vai ganhar contornos mais definidos nos
cantos seguintes, primeiro com a redução das doze embarcações a uma só, e de-
pois com a destruição final desta última e dos homens que ainda restavam. Ao
longo desses cantos, um companheiro apenas será de fato caracterizado, com a
função de assinalar uma contraposição em relação a Odisseu, Euríloco (a partir de
Od. 10, 205); um outro surgirá para realçar positivamente a figura do rei, Elpenor
(a partir de Od. 10, 552); e mais dois serão marginalmente nomeados, Polites (Od.
10, 224) e Perimedes (Od. 11, 23; e 12, 195), sem ação relevante.517 No mais, os
companheiros se manifestarão da mesma forma como fizeram ao final da “Ciclo-
peia”: com discursos que lhes são atribuídos coletivamente, outro expediente que
une o narrador do apólogo ao narrador da Odisseia.518
O efeito final é de uma relação bastante artificial e seletiva: seja nas
aventuras com as doze naus (cícones, lotófagos, Ciclope, Éolo e lestrígones), seja
naquelas com uma apenas, após a destruição das outras onze e de seus tripulantes
(Circe, Hades, Sereias, Cila-Caríbdis e na Trinácia), a visão que temos é nebulosa,
porque Odisseu lida basicamente da mesma maneira com seus homens, como
se formassem sempre – enquanto centenas ou dezenas – uma massa quase
indistinta, fazendo pouca ou nenhuma diferença o fato de ter de comandar uma
esquadra ou uma única nau. Se com o Ciclope (Canto 9) a narrativa cuidou de
apontar que a missão saída da “ilha das cabras” se restringia a uma embarcação,
ficando as demais na retaguarda, com Éolo (Canto 10), no entanto, a focalização
recai automaticamente, de modo imperceptível para o leitor, sobre uma única – a
do próprio herói (v. 28-53) –, com o conjunto reaparecendo logo em seguida (v. 53-
57), sem que isso represente problema para uma narração que não tem propósito
realista.519 O comando de Odisseu, para resumir, não se apoia num detalhamento
concreto (de homens, naus, logística etc.), mas é antes apresentado por meio
de uma visão geral, de contraste entre ele, rei, e seus homens, contraste este
bem afeito à ideologia aristocrática do poema, em que a perspectiva que conta
é a do “bom”/“ótimo” (agathós/áristos) – em sentido não apenas moral, mas
sobretudo social, de classe. Se um personagem desafiador como Euríloco ganha

517 W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 371. Sobre Euríloco, ver também I. de Jong,
A narratological commentary on the Odyssey, p. 255-256.
518 Além das referências indiretas, quatro discursos diretos “coletivos” são reportados, to-
dos eles no Canto 10. Euríloco, por sua vez, terá três falas no Canto 10 e duas no Canto 12.
519 A esse respeito, veja-se o comentário de K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 70.

318
vida própria, ou mesmo o comovente Elpenor, que morre por um descuido tolo,
isso se dá não pelo interesse da história nos companheiros em si, mas sim pelas
possibilidades que representam de variação narrativa e delineamento do líder. O
que mais interessa, aqui, é perceber como essa relação, em geral favorável a quem
comanda – e que é também quem relata o ocorrido –, traz possíveis fissuras, com
o chefe associando-se negativamente aos comandados ou mesmo recebendo
“comandos” deles, como se viu na “Ciclopeia”. Com Éolo, lestrígones e Circe,
numa primeira etapa (Canto 10), e novamente com Circe, Cila-Caríbdis e as vacas
do Sol na Trinácia, numa segunda (Canto 12), Odisseu não é o líder irrepreensível
apenas, tal como não foi com Polifemo, e vale a pena sublinhar, para entendermos
melhor sua caracterização, esses momentos no interior da extensa narrativa.520
Na hospitaleira e isolada ilha do rei Éolo,521 feito por Zeus “intendente
dos ventos” (tamíen anémon, v. 21) e cujo nome é transparente em grego,
indicando muito a propósito rapidez e mutabilidade,522 já vemos uma grave
insubordinação coletiva: o saco dos ventos contrários, dado na partida como
presente protetor (v. 19-24), é aberto pelos companheiros, e com isso as naus
são levadas de volta à Eólia. No geral, a culpa deles é incontestável, e o discurso
que Odisseu lhes atribui no momento em que tramam o feito, quando expressam
a inveja de que só o líder teria recebido prata e ouro (v. 38-45), tem o propósito
de deixar isso claro (é uma “má resolução”, boulè kaké, v. 46, porque baseada
numa mentira).523 No entanto, no momento em que o herói anuncia o desastre,
antecipando-se à própria narrativa dos fatos, ele o faz, significativamente, na
primeira pessoa do plural: “pois por nossas próprias loucuras perdemo-nos”
(autôn gàr apolómeth’aphradíeisin, v. 27). Poderia se tratar de uma simples
formulação retórica do chefe condescendente, mas sabemos que há um dado

520 Veja-se o que diz P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 90.


521 A endogamia, com as irmãs casando-se com os irmãos (v. 5-7), pode ser entendida como
sinal da falta de contato com outros povos; ver W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1,
p. 399. A hospitalidade, por sua vez, parece semelhante à dos feácios, com o dado adicional
de Odisseu ter lá ficado por um mês e ter feito sua primeira narrativa; mas tudo isso vem re-
latado em três versos apenas (v. 14-16). Sua terceira narrativa virá referida no Canto 23; ver I.
de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 251.
522 Aíolos remete a aiólos, “ligeiro”, “variado”; ver W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 366.
523 Mas como ele sabe o que disseram os companheiros, se estava dormindo? Ver I. de Jong,
A narratological commentary on the Odyssey, p. 252. V. Di Benedetto vê semelhanças entre
essa fala dos amigos e o discurso de Tersites no Canto 2 da Ilíada, onde acaba sendo repreen-
dido e espancado por Odisseu; ver comentário em Omero: Odissea, p. 548.

319
que desempenha papel central no episódio: o sono de Odisseu. O herói dorme
depois de comandar a nau por nove dias (v. 28-33), e é esse sono que abre espaço
para o fracasso da volta; sim, o cansaço pode servir para exculpá-lo, mas ainda
assim ele se liga de maneira negativa a outro adormecimento ruinoso, no Canto
12, como veremos adiante. Novamente na presença de Éolo, Odisseu menciona
justamente esse “sono pertinaz” (húpnos skhétlios) como responsável, junto
com os “maus companheiros” (hétaroi kakoí), por sua desgraça (“perderam-me”,
áasán me, v. 68-69).524 Mais eloquente ainda, porém, é a reação do senhor dos
ventos, da esposa e de seus filhos: veem Odisseu como alguém dominado por
um “mau nume” (kakòs daímon, v. 64), razão pelo qual o rei pede que Odisseu
se retire, chamando-o de “mais infame dos viventes” (elégkhiste zoónton, v. 72)
e assinalando, de modo bastante enfático, sua condição de homem detestado
pelos deuses (v. 74-75), que contrasta com aquela do anfitrião, apresentado de
início como “caro aos deuses imortais” (v. 2).525 Este tópico do “Odisseu odiado”,
como vimos no Capítulo 5, é explorado mais de uma vez na Odisseia, no plano
linguístico da paronomásia, ajudando a construir a figura desse herói. No
contexto em questão, podemos supor, como disse Karl Reinhardt, que Odisseu
sabe agora pela boca de Éolo o que não sabia ao sacrificar o carneiro a Zeus,
no final da aventura contra o Ciclope: que a prece do gigante fora ouvida, e a
sua não.526 O problema da causalidade divina e de suas vontades divergentes
está colocado aqui de forma sinuosa: por trás dos ventos controlados e da
tempestade subentende-se a figura de Zeus, a qual, mesmo sendo a essa altura
contra Odisseu porque favorável a Posêidon, pode abrir espaço para a volta
do herói ao “subscrever” a ação do rei da Eólia;527 na percepção final deste rei,
no entanto, parece infiltrar-se novamente uma recusa do pai dos deuses e dos
homens, que reativa a memória do embate final com o Ciclope. Vemos aí como
a justiça de Zeus abre espaço para movimentos contraditórios, e como eles
nunca anulam a intervenção e a responsabilização humanas, sem que essas no

524 A esse respeito, vejam-se os comentários de V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 546-


547 e 685, e I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 250.
525 K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 88.
526 K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 89.
527 Para a percepção de Odisseu de que Zeus é o responsável pelos ventos e tempestades
(como em Od. 12, 405-428), mesmo quando não é (como no Canto 5, quando atribui a Zeus a
ação de Posêidon; v. 291-305), ver V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 545. O “reúne-nuvem”
Zeus realiza a ação de diretamente “erguer o vento” em Od. 9, 67; e 12, 313.

320
entanto possam se afirmar como completamente autônomas. A liberdade é a
antístrofe da necessidade.
Um dos pontos que chamam atenção na aventura com o senhor dos ventos
é a impotência de Odisseu, evidente sobretudo no momento em que, ao acordar
e ver a ventania em ação, pensa se deveria se jogar ao mar e morrer afogado ou
aguentar a adversidade, alternativa que obviamente foi a que prevaleceu (v. 49-54).
Onde está, afinal, a engenhosidade do herói que não aceitava o domínio da falta
de recurso (amekhaníe) e lançava-se à reflexão, como vimos no Canto 9 (v. 295)?528
Peter Jones, em seu comentário, se questiona aqui a respeito dessa “estranha falta
de mêtis”, ressalvando, no entanto, que simplesmente suportar pode ser uma
manifestação da astúcia. Mas ele próprio assinala que o fato de as “moles palavras”
(malakoîsi epéesin, v. 70) endereçadas depois a Éolo fracassarem aponta para uma
deficiência discursiva em geral estranha ao herói, seja na Feácia, seja em Ítaca.529
Note-se que com os lestrígones, povo mais civilizado que os Ciclopes porque
habitantes de uma cidade/fortaleza com palácio e rei (v. 81, 104, 108, 110-112), mas
igualmente colossais (v. 106, 113 e 119-120) e devoradores de carne humana (v. 116
e 124), novamente temos um comportamento incomum: só Odisseu deixa sua nau
fora do porto, sem que forneça um motivo para isso (v. 87-96). Do ponto de vista
estritamente narrativo, sabemos que essa separação é bastante oportuna, de modo
a permitir que os gigantes esmaguem as embarcações na baía e o herói dali continue
com uma só nau e número já bem reduzido de comandados. Mas, para além desse
dado frio, há o impacto sobre a nossa percepção do chefe: se a medida foi tomada
por cautela, esse seria mais um exemplo da sua inteligência, mas o silêncio nos
deixa no escuro e impede que a mêtis ganhe o primeiro plano.530 Para piorar, quando
acontece o ataque dos lestrígones, Odisseu conta que cortou as amarras e deu
ordens aos homens para que remassem e “fugissem” ao mal (phúgoimen); a fuga
da nau sobrevivente é então saudada (aspasíos phúge), em frontal contraste com a
destruição das demais (ólonto, v. 125-132).

528 Se “Éolo” em grego se liga a aiólos, como vimos, e este adjetivo entra na formação de um epí-
teto de Prometeu na Teogonia, aiolómetis (v. 511), por causa da associação entre astúcia e rapidez/
variedade, podemos afirmar que aqui Odisseu, como sua imobilidade, é quase um “anti-Éolo”.
529 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 92. Odisseu usa “moles” palavras com seus companheiros
no próprio Canto 10 (v. 422), e são “moles” palavras que ele aconselha Telêmaco a usar com
os pretendentes (Od. 19, 5).
530 V. Di Benedetto comenta que a ideia de Odisseu “não é apresentada como expressão da
sua astúcia”; ver Omero: Odissea, p. 555.

321
Toda essa cena nos faz pensar num herói estranhamente covarde, sem
a capacidade bélica e mental de Atena, e surge como confirmação do que Éolo
notara – de que Odisseu era realmente detestado pelos deuses.531 Curiosamen-
te, nas duas falas suas aos companheiros que reporta a seguir, ditas já na ilha
Eeia, mas antes de qualquer contato com Circe (v. 174-177 e 189-197), vislumbra-
mos certa inferiorização do herói, rebaixado em seu poder verbal e estratégico.
Na primeira, depois de lhes oferecer como alimento o cervo que capturara, e
com o intuito de acalmá-los, diz aos amigos que “ainda não desceriam à mora-
da do Hades” (ou gár po katadusómeth’.../ eis Aídao dómous); no entanto, como
sabemos que a descida de Odisseu acontecerá antes que efetivamente morra
(logo a seguir, no Canto 11), é possível ver nessa manifestação um recurso que
enfraquece o herói esperto. Sim, não há como ele prever isso e há certa empatia
por essa limitação muito humana, mas a ironia involuntária não é algo que se
case bem com sua figura aqui: trata-se de um herói entregue às circunstâncias.
Na segunda fala, a instalação de um sentimento de dúvida sobre sua postura
talvez seja ainda mais intensa: confessando não ter a mínima ideia de onde es-
tão, o líder sugere que todos se ponham rapidamente a pensar, “pra ver se uma
astúcia ainda haverá; penso que não existe” (eí tis ét’éstai mêtis, egò d’ouk oíomai
eînai, v. 193). Podemos tomar o verso como uma “confissão” de que ele próprio
não tem nenhuma estratégia à mão,532 mas mais interessante é ver como se dá
a construção no grego: eí tis, “pra ver se uma”, seguido de mêtis, “astúcia”, pro-
duzindo um /tis/ dobrado, faz lembrar o jogo do Canto 9 com mé tis, “ninguém”,
que também se valia do pronome tis grego, como vimos.533 De algum modo,
é como se Odisseu estivesse propondo cripticamente (eí tis ét’éstai mêtis) que
recuperassem a esperteza anterior, que ainda houvesse aquele “Ninguém” que
salvou a ele e aos seus. Mas sua posição a respeito é pessimista e muito elo-
quente: “penso que não existe” (egò d’ouk oíomai eînai). “Ser ninguém” nesse
momento – o que equivaleria a pôr em prática sua astúcia no mais alto grau –
parece uma hipótese distante: o “não ser” (ouk...eînai) da possibilidade aventa-

531 Sobre o primeiro ponto, ver P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 93; sobre o segundo, I. de Jong,
A narratological commentary on the Odyssey, p. 253.
532 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 93. Ver ainda o que diz C. Segal (Singers, heroes, and gods in
the Odyssey, p. 97-98) sobre a “ausência de mêtis”.
533 Note-se como um jogo afim pode estar presente na fala de Nestor no Canto 3, sobre “ninguém”
(oú tis) rivalizar com Odisseu em “astúcia” (mêtin); ver C. Werner, Memórias da Guerra deTroia, p. 139.

322
da ecoa amargamente aquela “negação de ser” (oûtis) tão brilhante e proveito-
sa. O plano sonoro igualmente corrobora isso: a primeira metade do verso, com
suas assonâncias em /e/ e /i/ e aliterações em /t/ e /s/, acaba por contrastar com
a segunda parte, fonicamente pálida, como a memória estimulante daquele
episódio contrasta com a realidade desanimadora deste. Se ainda resta alguma
engenhosidade verbal, ela é melancólica.
É com essa nota negativa geral que o episódio com Circe de fato tem
início. É um episódio que traz, por um lado, similaridades com a estada em
Ogígia junto a Calipso, por conta do isolamento, do ambiente de sedução
erótica e de ameaça ao retorno, e por outro certos elementos recorrentes da
quebra da hospitalidade, notáveis junto ao Ciclope e aos lestrígones.534 Do ponto
de vista da liderança, é onde se instala o mencionado contraste com Euríloco –
primeiro companheiro a ser nomeado no decurso do apólogo. É esse Euríloco
que vai liderar vinte e dois homens até o palácio de Circe, a turma escolhida
por sorteio em detrimento da outra, a de Odisseu (v. 203-209), o idealizador
da divisão. Por que não é Odisseu que vai com seu grupo? O sorteio soa, na
verdade, artificial: com os sinais de fumaça que avistara (kapnós, v. 149, 152 e
197), Odisseu conta que já planejava mandar alguns homens para investigar
(v. 155), como fizera com os lestrígones, aliás (v. 100). Portanto, ainda que
planejando antecipadamente, ele é mais uma vez o herói da retaguarda. E, com
esse arranjo cindido, Euríloco pode figurar como o “líder alternativo” que será
até o fim – não parece mecânica a presença dos epítetos “deiforme” (theoeidés,
v. 205) e “magnânimo” (megalétoros, v. 207) no momento da sua apresentação.
É nele, diante de uma nova incursão em terra estranha, que de certa forma vão
se concentrar os sentimentos de preocupação e receio externados logo de saída
pelos homens ao saberem da decisão de Odisseu, lembrados que estavam da
selvageria do lestrígone Antífates e do Ciclope Polifemo (mnesaménois, v. 199-

534 Sobre o desvirtuamento da hospitalidade, ver I. de Jong, A narratological commentary on


the Odyssey, p. 258-259. A etimologia do nome “Circe” é incerta; o nome da ilha, Aiaíe, pode
se relacionar a “terra”, aîa, ou evocar uma interjeição de dor; ver W. Stanford, The Odyssey
of Homer, vol. 1, p. 369, W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 410, e R. Martin,
Homer: The Odyssey, p. 382. Vale lembrar que ao final da Teogonia (v. 1111-1118), na seção re-
ferente às relações sexuais entre deusas e homens, Hesíodo apresenta a união não só de Circe
com Odisseu (três filhos: Ágrio, Latino e Telégono), mas também de Calipso com o herói (dois
filhos: Nausítoo e Nausínoo), respeitando, em relação à versão apresentada pela Odisseia,
apenas a sequência em que essas uniões aconteceram; em Homero, como sabemos, elas não
resultam na geração de filhos.

323
200). Se na sequência Polites, o mais querido de Odisseu (v. 225), é quem chama
por Circe ao ouvi-la cantar melodiosamente e cede ao convite da anfitriã para
que entrassem, “insciente” do mal como os demais também (aïdreíeisin, v. 231),
Euríloco, por sua vez, é quem para trás “ficou pressentindo que era um ardil”
(hupémeinen oisámenos dólon eînai, v. 232, repetido por ele no verso 258). De
modo significativo, o homem mais próximo do herói representa a tolice e a falta
de perspicácia, enquanto o “líder segundo” Euríloco incorpora as qualidades que
são – ou foram, não muito tempo atrás – as de Odisseu, que afirmara também
ter “pressentido” o desastre com o Ciclope no Canto 9 (oísato, v. 213).
Com os amigos presos e transformados em porcos, Euríloco volta
para relatar tudo a Odisseu, que pede então para ser conduzido ao palácio.
A recusa anterior dos homens em realizar qualquer exploração ganha voz
individual agora: Euríloco, não sem razão, suplica para não ir e para que fujam
imediatamente (v. 266-269), mas Odisseu fala em uma “poderosa necessidade”
(kraterè anágke, v. 273) – talvez “resultado direto de uma certa percepção de
que falhou ao perder seus homens entre os lestrígones”, como sugere Peter
Jones.535 O herói parte sozinho, mas ao retornar pouco mais de cem versos
depois para levar o restante ao palácio – após a ajuda de Hermes e da conciliação
com Circe – tem que enfrentar a resistência máxima daquele seu homem, já
convertida em aberta insubordinação. O excesso de cautela deste, pode-se
dizer, é compreensível e tem ligação com um tipo de comportamento muito
associado a Odisseu no poema. Há sim o fato de todos os outros acatarem o
comando do herói principal para irem até Circe (v. 428), mas isso não significa
que não compartilhassem nas entrelinhas das opiniões de Euríloco, a quem
ouvirão duas vezes no Canto 12, como sabemos. Euríloco, em outras palavras,
incorpora aqui claramente uma posição de liderança paralela, razoável e ao
mesmo tempo desafiadora, como voltará a acontecer à frente. Nesse sentido,
não se dirige mais a Odisseu, mas sim ao grupo, “Infelizes, para onde vamos?”
(Â deiloí, pos’ímen?), jogando-os contra o chefe e recuperando o episódio com o
Ciclope, de memória tão viva para todos: alguns companheiros, diz ele, porque
seguiram com o “audaz” (thrasús) Odisseu para a caverna do monstro, “pelos
atrevimentos dele morreram” (toútou...atasthalíeisin ólonto, v. 431-437). O
movimento aberto de responsabilização do comandante pelas mortes – diante

535 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 95.

324
do que restou da tropa – evoca para nós o momento em que os companheiros
em conjunto o chamaram de “pertinaz” (skhétlie) ao provocar Polifemo (Od. 9,
494), e traz ainda à tona o termo moral em torno do qual toda a narrativa se
constrói, atasthalíe. Vimos que essa noção pode ser aplicada ao descontrole do
herói naquele passo decisivo (menos nas mortes dos homens que no desfecho
do embate, quando sua “audácia” tornou-se reativa e duvidosa), e portanto não
podemos descartar certa verdade nas palavras de Euríloco, por contiguidade.536
Escancarada a insubordinação, Odisseu é contido em seu furor pela “doces
palavras” (meilikhíois epéessin, v. 442) dos demais companheiros – aquelas que
não haviam funcionado para detê-lo com o Ciclope – e o próprio Euríloco acaba
finalmente por ceder, porque, segundo o narrador em primeira pessoa, “temeu
minha assombrosa censura” (édeisen gàr emèn ekpaglòn enipén, v. 448).
O episódio, em suma, traz elementos adicionais à leitura que enfatiza essa
posição problemática do chefe, desafiado por um de seus homens exatamente
por este assumir certas características suas, como a liderança, a precaução e a
preocupação com seus liderados. Há, em outras palavras, para explorar um pe-
queno detalhe da cena – o dado adicional de que havia um laço de parentesco
entre Odisseu e Euríloco (v. 441) –, alguma ligação entre esses dois homens: se
a morte final dos demais amigos por culpa de Euríloco, no Canto 12, termina por
construir inevitável e retrospectivamente esse quadro de contraposição entre a
verdadeira e a falsa liderança, ainda assim não se pode omitir seu papel no sentido
de, ao longo dessas aventuras, de alguma maneira desafiar e colocar em ques-
tão – para nós também – o exercício da liderança por Odisseu. Que depois de um
ano ao lado de Circe (v. 467) o grande herói tenha de ser repreendido pelos com-
panheiros, “lembra-te da terra pátria” (mimnéskeo patrídos aíes, v. 472), como se
tivesse ingerido as drogas dadas antes por Circe aos homens para que “esqueces-
sem da terra pátria” (lathoíato patrídos aíes, v. 236) – as mesmas drogas, por sinal,
que Euríloco soube evitar –, é indicação eloquente de uma “inversão de papéis” no
episódio,537 e portanto de uma liderança que não pode ser lida em chave unívoca.
Tomada a decisão de partir, Odisseu é avisado por Circe da necessidade
de antes consultar Tirésias no Hades (v. 490-495). Aqui e na volta ao palácio

536 É o que diz R. Rutherford, “The philosophy of the Odyssey”, p. 151, e também E. Bradley,
“The húbris of Odysseus”, p. 39. I. de Jong (A narratological commentary on the Odyssey, p.
265) vê apenas exagero nas palavras de Euríloco.
537 Como notou R. Martin, Homer: The Odyssey, p. 382.

325
dela, vemos que o herói receberá instruções detalhadas, não só sobre a visita
à morada dos mortos (Od. 10, 504-540), mas também sobre os desafios
subsequentes, até a Trinácia (Od. 12, 37-110 e 116-141). Destaca-se, nessas
passagens, o caráter profético da “deusa que emite voz” (theòs audéessa), filha
do Sol e neta de Oceano, que prepara o terreno para o herói tal como acontece
com a intervenção de Hermes no Canto 10 (v. 275-309).538 Pela primeira vez nas
suas aventuras, Odisseu sabe o que o espera, o que o deixa menos inventivo
e mais sofredor;539 é como se a figura literalmente de “pés e mãos atadas”
do encontro com as Sereias do Canto 12 (v. 178-179) ilustrasse essa face
mais “imóvel” do herói. Nesse mesmo Canto 12, somada a essa passividade,
há ainda pelo menos três momentos em que o líder tem comportamento
duvidoso. O primeiro acontece depois de Circe dizer que é preferível
aproximar-se de Cila (monstro de doze pernas e seis cabeças) e perder alguns
homens, a ir na direção de Caríbdis (um vórtice marinho) e perder todos
(v. 108-110);540 Odisseu pergunta então se seria possível fugir de uma e de
outra (v. 112-113), recebendo da anfitriã a qualificação de homem “pertinaz”
(skhétlie), preocupado só com “feitos de guerra” (poleméia érga), sem ceder
aos deuses (oudè theoîsin hupeíxeai athanátoisin, v. 116-117). É como se, diante
dessa geografia proverbial do dilema humano – “pois de um lado estava Cila,
do outro a divina Caríbdis” (v. 235) –, Odisseu buscasse o impossível para
sua condição: atravessar incólume, livre de ambos os males, sem qualquer
recuo. O segundo momento problemático corresponde ao próprio desafio:
esquecendo-se da recomendação anterior de Circe (lanthanómen, v. 226-227;
cf. v. 121-123), o herói arma-se e não menciona o perigo aos companheiros (v.
223-224), mantendo um silêncio talvez desnecessário, como acontecera em

538 O epíteto aparece em Od. 10, 136; 11, 8; e 12, 150. Também é aplicado a Calipso em Od.
12, 449. Sobre sua relação com a profecia, ver R. Martin, Homer: The Odyssey, p. 383, e Mi-
chael Nagler, “Dread goddess revisited” em S. Schein, Reading the Odyssey, p. 142-145 e 148.
Sobre a importância do parentesco com o Sol e Oceano, ver I. de Jong, A narratological com-
mentary on the Odyssey, p. 256.
539 Veja-se o que diz K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 100, e I. de Jong, A
narratological commentary on the Odyssey, p. 297.
540 No grego, há um jogo com o nome dos monstros: Skúlle (v. 85) emite o som “de um cão
recém-nascido” (skúlakos, v. 86), e Khárubdis “sorve”, anarroibdeî, a água (v. 104). Ver o que
diz W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 409-410.

326
relação ao saco dos ventos;541 além disso, ignora a ordem de chamar Crateis,
a mãe de Cila, expediente que Circe reputara útil (v. 124-126). Se é verdade
que mostrar-se excessivo diante do comando de Circe e depois esquecido de
sua recomendação (como se não tivesse digerido a censura anterior sobre
sua audácia bélica) não comprometem o resultado da aventura com os dois
obstáculos, tais comportamentos não deixam, no entanto, de representar
novos elos de uma articulação que nos prepara para o terceiro e mais decisivo
momento seu de atuação duvidosa: o adormecimento na Trinácia (v. 338
e 366-373). É por causa desse sono, como aconteceu com o presente dado
por Éolo, que os companheiros podem agir por conta própria e sacrificar as
vacas sagradas do Sol, selando sua própria destruição. Pelo próprio nome, a
ilha Trinácia (Thrinakíe nêsos) teria uma ominosa associação com o “tridente”
(thrînax) de Posêidon,542 e essa colaboração involuntária de Odisseu – para
que justamente aí parte da maldição enunciada por Polifemo no Canto 9
se cumprisse (“perdendo os amigos todos”, v. 534) – reativa o tópico da
responsabilização e da relação do rei com a comunidade que dele depende.
A despeito, contudo, dessa série de indicações relativas a um Odisseu
menos capaz porque menos previdente e esperto (ou mais impotente), é pre-
ciso sublinhar que ao longo desses obstáculos o herói não deixa também de ser
louvado – ou se autolouvar – como “líder solícito”, um motivo no interior da
narrativa que merece destaque no comentário narratológico de Irene de Jong.543
Trata-se, basicamente, da construção do chefe preocupado com os seus e de-
dicado a fazer tudo por eles, como vem dito já nas primeiras linhas do poema:

almejando (arnúmenos) sua vida e a volta dos companheiros.


Mas nem assim os salvou, apesar de se empenhar (hiémenós per),
pois pereceram por causa dos próprios atrevimentos (autôn sphetéreisin atasthalíeisin).
(Od. 1, v. 5-7).

541 O encontro com as Sereias Odisseu decide mencionar aos amigos, pela necessidade que
tinha da intervenção deles (v. 154-164); mas as palavras iniciais parecem esconder uma ten-
tativa de se desculpar por não ter falado sobre o saco dos ventos No momento em que deve
falar de Cila, porém, ele é evasivo (208-221) e emprega “doces” (meilikhíois) palavras (v. 207).
542 Ver W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 410. As referências à “ilha Trinácia”
acontecem em Od. 11, 107; 12, 127 e 135; e 19, 275. As referências em Homero ao “tridente”
(tríaina) de Posêidon estão em Il. 12, 27; Od. 4, 506; e 5, 292.
543 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 259, 263, 269, 274 e 300.

327
É esse forte contraste posto no início da Odisseia que se delineia no
apólogo, se bem que não completamente, nem com a mesma clareza do
proêmio, em função das fissuras apontadas. O fato é que, como líder que se liga
a seus homens, Odisseu os interpela como “caros”, “amigos” (ô phíloi, Od. 10,
174 e 190; e 12, 154 e 208), ainda que nas duas últimas ocorrências – ressalve-
se – o chamamento pareça guardar segundas intenções. E, como líder ciente
das dificuldades enfrentadas, emprega ainda uma fórmula que destaca seus
muitos sofrimentos (kaká per páskhontes hetaîroi, Od. 10, 189; e 12, 271) – mas
novamente devemos lembrar que a mesma fórmula aparece pela última vez na
boca de Euríloco (Od. 12, 340), produzindo aquela assimilação nada favorável
entre essas figuras, o líder efetivo e o líder alternativo.544 Temos alguns outros
exemplos dessa boa chefia: quando se preocupa com a alimentação de seus
comandados, no Canto 10, e pode pôr em prática sua astúcia mais “técnica”
ao confeccionar ataduras para as patas do cervo que matara (v. 166-184);545
o esforço que coloca na libertação do grupo, depois de pegos por Circe, no
mesmo canto (v. 10, 383-387); a afetividade da tropa no momento em que o
chefe retorna para apanhá-los, expressa por um símile que compara os homens
a vitelas e Odisseu às vacas suas mães, numa cena carregada de ironia;546 o
cuidado dispensado à alma do tolo Elpenor no Canto 11 (v. 51-83), que cobra
funerais e teria uma “esperança” ou “espera” (elpís) transparente no nome;547
e, para encerrar a breve lista, o sofrimento com o espetáculo da morte dos
companheiros pegos por Cila, no Canto 12 (v. 256-259), o que mais digno de
pena (oíktiston) diz ter visto de tudo quanto passou. Junte-se a isso, por fim,
o inegável favor dos deuses representado pela feliz intervenção de Hermes no
Canto 10 (v. 275-309), quando dá ao herói a planta móli (môlu, v. 305), a droga
(phármakon, v. 287) que servirá de antídoto aos feitiços de Circe: a proteção,
reduplicando a visita do mesmo deus no Canto 5 (quando foi à ilha de Calipso),
colabora para elevar a condição do herói, mesmo que ele precise ser guiado e

544 Sobre Euríloco tomar aí o lugar de Odisseu, ver V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 682.
545 Sobre sua técnica e a associação dessa passagem com outros momentos de perícia do
herói, como a construção da jangada no Canto 5, a preparação da estaca no Canto 9 e a con-
fecção da própria cama no Canto 23, ver V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 560.
546 Ver V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 578, e K. Reinhardt, “The adventures in the
Odyssey”, p. 92.
547 Para K. Reinhardt, ele é um representante de todas as figuras anônimas; ver seu “The
adventures in the Odyssey”, p. 114-115.

328
não consiga se virar por conta própria, engenhosidade que não lhe faltou no
antro do Ciclope.548
É desse episódio, aliás, que Odisseu se lembra antes de ter de passar
por Cila e Caríbdis, já no Canto 12. Se a situação terrível fora rememorada
como advertência no Canto 10 – pelo grupo e depois por Euríloco, para que
evitassem novas audácias e se apontasse o responsável pelas mortes –, aqui
o herói dela se recorda exatamente para sublinhar seu papel de grande líder,
no momento em que precisa despertar a coragem nos homens. Segundo suas
palavras, a fuga da caverna foi possível por sua “virtude” (aretêi), sua “von-
tade e mente” (boulêi te nóoi te), e o feito será sempre memorável (v. 211-
212). A visão por esse ângulo positivo pode até ser oportuna na construção do
rei “empenhado”, que tudo fez e fará para proteger os seus; porém, na ação
imediata, mais do que simplesmente construir o louvor, essa lembrança pode
ser também uma preparação para seu segundo adormecimento inoportuno,
que ocorrerá mais à frente e de que falei acima. Pois, tal como apontou Karl
Reinhard, aquela que “à primeira vista parece a mais brilhante das suas aven-
turas” – contra Polifemo – é na verdade “a mais soturna de todas e projeta sua
sombra sobre a sequência restante”.549 Temos sim o brilho do feito, mas seu
lado negativo não desaparece: falar de um é falar do outro. Assim, se por um
lado não é possível negar que com o episódio final na Trinácia, depois de supe-
rados os escolhos, Odisseu deve emergir do Canto 12 como figura resistente
e não criminosa – ao contrário de seus “tolos” comandados (ver Od. 9, 44),
a quem tentou orientar e conter sem sucesso (ordenando que não parassem
na ilha das vacas do Sol, por conta das profecias dadas por Tirésias e Circe; v.
266-276) –, por outro, ao ser superado pelo “líder alternativo” Euríloco, que
com um longo discurso acaba por convencer os demais a atracarem (v. 279-
294), temos também a reativação dos sinais de um comandante problemá-
tico, passivo, pouco versátil e até mesmo pouco humano em sua resistência.

548 Se Hermes apareceu disfarçado de jovem e no final não se revelou, como Odisseu ficou
sabendo que era ele? O poema não dá uma resposta clara a essa pergunta, mas o simples
encontro fortuito e auspicioso pode ter sido um sinal claro; ver I. de Jong, A narratological
commentary on the Odyssey, p. 260. A planta dada seria uma espécie de alho; ver W. Merry &
J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 423, e W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 373-
374. Sobre o favor de um deus, já anunciado antes no Canto 10 (v. 141 e 157), ver K. Reinhardt,
“The adventures in the Odyssey”, p. 94.
549 K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 83.

329
Os dois versos que abrem a fala de Euríloco, revoltado com a ordem para que
não parassem na ilha, são importantes para a percepção dessa ambiguidade:

És pertinaz (skhétlios), Odisseu! Com furor (ménos) além, nos membros


não cansas: sim, com certeza, tudo é feito em ti de ferro (sidérea)!
(Od. 12, 279-280)

Vimos que a “pertinácia” fora usada pelos companheiros para atacar


Odisseu no Canto 9 (v. 494), e que no mesmo episódio o próprio herói identificara
esse atributo no Ciclope (v. 351 e 478), o que permitia uma assimilação, ainda
que fugaz, entre essas figuras cruelmente teimosas. Neste mesmo Canto 12,
antes de Euríloco se manifestar, o herói já fora dito “pertinaz” duas vezes por
Circe: por ter empreendido junto com os amigos a espantosa viagem ao Hades
(v. 21) e por ter proposto se armar para evitar as mortes com Cila e Caríbdis (v.
116), conforme apontei. Mais notável ainda é o fato de que Odisseu fora assim
visto por Aquiles no Canto 11 (v. 474), e de que o será novamente por Atena, no
Canto 13 (v. 293). À exceção do uso no Canto 9, nas demais passagens pode-se
afirmar que a aplicação do adjetivo ao herói traz um misto de admiração e leve
censura em relação à sua audácia e persistência diante de situações adversas.
Aqui, no entanto, ao ser chamado por Euríloco de skhétlios, o líder é encarado
como portador de uma insensibilidade exclusivamente negativa, como alguém
desumanizado por sua constituição “férrea”.550 Importa lembrar que a ligação
entre o qualificativo skhétlios e a ideia de inclemência vem aplicada de forma
contundente a Aquiles na Ilíada, tanto no Canto 9 (v. 630-632) quanto no Canto
16 (203-204), de forma que se estabelece, ironicamente, um ponto de contato
entre os protagonistas homéricos em geral tomados como antitéticos: existe
uma obstinação meio “aquileica” em Odisseu. Portanto, o que Euríloco faz –
como os homens na interpelação ao comandante no Canto 9 – é trazer à tona
esse lado mais negativo da figura tenaz, polútlas, que por não ter limites no seu
poder de resistência não enxerga os limites dos que comanda. É como se a rígida
tenacidade se instalasse como a característica principal do herói e com isso
anulasse sua versatilidade e sua inteligência, que se afiguram, indiretamente,

550 Quando Atena chama Odisseu de “pertinaz” no Canto 20 (v. 45), o tom é também de
censura. Zeus também pode ser visto como “pertinaz” (Il. 2, 112 = 9, 19), ou os deuses em
conjunto (Il. 24, 33; e Od. 5, 118).

330
como seus avessos. Seja como for, ao ouvir as palavras duras de Euríloco,
Odisseu relata ter percebido que um “nume” estava em ação (daímon, v. 295) –
tal como Éolo notara um “mau nume” em relação a ele, em sua volta à Eólia (Od.
10, 64). Ainda assim, declarando-se “forçado” (biázete), cobra um juramento
(hórkon) dos homens: de que ninguém (mé poú tis; outro eco?) com atrevimentos
(atasthalíeisi) mataria qualquer animal (v. 297-303). É esse juramento, junto com
novo aviso (v. 320-323), que ajuda a livrar ainda mais Odisseu – que dorme à
distância – da responsabilização, e a incriminar seus amigos: estes, como Egisto
e os pretendentes de Penélope (ainda que, diferentemente deles, não possam
ser vistos enquanto “vilões”), foram claramente advertidos; mas, ao contrário
do líder que soube se segurar, não foram capazes de se conter. A atasthalíe,
mesmo que aplicável em alguma medida ao rei, é imputável sem dúvida aos
seus homens, conforme está dito no proêmio (v. 7).551 Culpar apenas a “maldade”
dos deuses, conforme aponta Zeus ainda no Canto 1 (v. 32-34), não é possível.552
A despeito então do sono e da pertinácia com tons negativos, Odisseu sai
moralmente engrandecido – e mais sofrido – da catástrofe: é claramente supe-
rior aos homens que comandava, por sua resistência e piedade.553 Não devemos,
contudo, nos esquecer de que, na engrenagem das determinações, essa morte
coletiva foi estabelecida lá atrás, quando o líder não soube ouvir esses mesmos
companheiros no momento da provocação dirigida ao Ciclope, terminando por
revelar o nome que selou o infortúnio dele e dos seus. Temos assim, em linhas
gerais, um homem superior que parece ter se diminuído em sua capacidade de
construir espertamente o próprio curso de ação, em decorrência de uma ação
levada a cabo de um modo contrário ao usual: foi quando não deveria ter sido,
e só não sendo seria quem era. É justamente essa fronteira entre ser e não-ser,
com suas implicações relativas às ideias de conhecimento e ultrapassagem, que
vem explorada na aventura mais longa sua, a “Evocação dos mortos”, que ocupa

551 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 307-308; P. Jones, Homer’s
Odyssey, p. 113, e K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 102.
552 Ponto sobre o qual insiste R. Friedrich, “Thrinakia and Zeus’ ways to men in the Odyssey”
(especialmente p. 389, 391, 393 e 396-397), contra a possibilidade de se buscar “atenuantes”
para o comportamento dos companheiros.
553 Note-se sua comparação com o rei-juiz no momento em que enfrenta, sozinho, Caríbdis,
e depois a referência a Zeus como “pai de deuses e homens” (v. 439-446), passo que se inter-
liga, por conta dessa fórmula, à sua fala moralizante do Canto 18 (v. 137).

331
todo o Canto 11.554 Antes de passar a ela, porém, vejamos algumas situações –
nos cantos que emolduram a chamada Nékuia – que destacam essa condição
marcadamente extraordinária e fronteiriça do herói.
Comecemos por sua famosa ressalva acerca do diálogo que reporta entre
Zeus e o Sol no Olimpo, no episódio do Canto 12, depois de as vacas terem sido
mortas: Odisseu avisa aos feácios que o ouvem – e a nós – que a informação fora
obtida junto a Calipso, que por sua vez a ouvira de Hermes (v. 389-390). No conjun-
to do apólogo, os versos nos pegam de surpresa e soam estranhos: poderíamos
talvez passar sem eles no fluxo narrativo. Seu efeito acaba sendo não o de apontar
para a limitação do saber heroico (conforme a intenção inicial), mas o contrário: o
que se destaca é sua posição limite, de alguém que tem um conhecimento que vai
“bem além da experiência humana”.555 Na verdade, trata-se da explicitação de um
problema que ronda todo o apólogo e diz respeito ao fato de termos um narrador,
a princípio não onisciente, que em vários momentos se trai e revela uma abran-
gência cognitiva que não se casa bem com sua natureza – ainda que, na prática,
a sedução verbal que produz apague qualquer desconfiança de quem ouve.556 A
passagem remete, assim, à associação entre Odisseu e a figura do cantor, de que
falei no Capítulo 7. O herói tem de se justificar por aquilo que um cantor não pre-
cisaria se justificar (por ser um “servidor” da Musas e dela tirar seu conhecimento
total), mas na prática seu domínio da narrativa e dos recursos típicos se identifi-
cam, e a justificativa só reforça a associação.557 Odisseu age sim como um “cantor”
subjetivo em primeira pessoa (e não como o tradicional objetivo em terceira), mas
atinge aqui um ponto de rompimento dessa fronteira de estilo que o obriga quase
que a se “retratar” pelo excesso, e no entanto quando o faz só consegue produzir

554 Veja-se a esse respeito o paralelo com o épico de Gilgámesh, cujo herói “de todo o saber,
tudo aprendeu,/ o que é secreto ele viu, e o coberto descobriu” (v. 6-8); J. L. Brandão, Ele
que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh. Tradução do acádio, introdução e comentários. Belo
Horizonte: Autêntica, 2017.
555 É o que diz K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 101.
556 Sobre o “intermezzo” do Canto 11 (v. 333-384), quando Odisseu interrompe momenta-
neamente seu relato e parece manipular a audiência feácia, ver R. Martin, Homer: The Odys-
sey, p. 385, e I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 284-286.
557 Deborah Beck chama atenção para o fato de que, ao introduzir a fala de Zeus no verso
384, Odisseu só aqui usa uma fórmula com a combinação nome-epíteto que é muito comum
no repertório do “narrador primário”; ela aponta para o paradoxo presente no fato de o herói
“duplicar” a linguagem do narrador da Odisseia e “imediatamente reconhecer que fez algo
estranho”; ver seu “Odysseus: narrator, storyteller, poet?”, p. 223 e também p. 221.

332
uma retratação que soa como contrafação. De certa maneira, o “Catálogo das
mulheres” por ele apresentado anteriormente no Canto 11 (v. 235-327) – típica ver-
tente do canto em que o profissional podia revelar sua perícia, em função do de-
safio representado pelo acúmulo de informação – já poderia ter sido tomado em
seu conjunto como uma admissão tácita desse alcance cognitivo extraordinário,
que ele precisa, no entanto, negar (mas que negando afirma) quando se vê diante
da necessidade de explicar como, além de ter baixado ao Hades, parece ter subido
também ao Olimpo, numa apoteose como a de Héracles.
A própria descida, como sabemos, é o feito que coroa uma série de ul-
trapassagens que ninguém antes ousara – e que reiteradamente põem o herói
numa posição liminar. No Canto 12, chama a atenção o qualificativo que Circe
atribui a ele e aos seus homens, “bifinitos”, por poderem experimentar a morte
duas vezes (dusthanées, v. 21-22). Ainda nesse canto, na sua longa advertência
ao herói sobre os perigos à frente (v. 62-107), a mesma Circe vai empregar lar-
gamente a técnica da “descrição por negação”, enfatizando que jamais alguém
antes conseguira sobrepassar tamanhos obstáculos.558 As próprias Sereias re-
petirão essa mesma ideia (v. 186), sem imaginar que Odisseu seria o primeiro a
ouvi-las e a sobreviver. Finalmente, temos o momento no Canto 10, em que é
avisado da missão infernal, a que o herói reponde dizendo justamente que “ao
Hades ninguém ainda (oú pós tis) chegou numa nau escura” (v. 502; outro jogo
com “Ninguém”?). Trata-se aqui dele mesmo, e não de outra figura, tomando
consciência da singularidade do desafio que o espera.
No Canto 11, vemos que três personagens fundamentais reagem à
presença de Odisseu entre os mortos na mesma linha, com espanto: Tirésias
pergunta “por quê?” (típte, “por que vieste?”, v. 91-93), e Anticleia e Aquiles
“como?” (pôs, “como desceste?”, v. 155-159, “como tu ousaste?”, v. 473-476).
No contexto narrativo, essa pungente experiência vai bem além, como se
sabe, da anunciada necessidade de consulta a Tirésias, representando antes
um confronto para o herói entre passado e futuro.559 É possível afirmar que,
tal como as Sereias no Canto 12, que têm um conhecimento sobre-humano
do antes e do depois, Odisseu com sua descida se eleva também acima da

558 O mecanismo é destacado por I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 299.
559 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 271-172.

333
humanidade ordinária.560 Com seu tom predominantemente elegíaco (de
lamento e reflexão), a visita aos mortos significa “sobreviver ao impossível”,
numa situação extrema em que “a vida mede-se com a morte e a morte com a
vida”, com “uma não podendo apanhar a outra, física ou espiritualmente, o que
só as faz mais fortemente atraídas entre si”.561 Geograficamente, essa aventura
é talvez não por acaso marcada, simultaneamente, por um distanciamento e
uma penetração que há muito incomodam os estudiosos (mas talvez não os
ouvintes e leitores). O que a princípio deveria ser uma consulta aos mortos,
que viriam ao encontro do herói, transforma-se numa caminhada pelo interior
da mansão subterrânea: a “necromancia” desliza imperceptivelmente para a
“catábase”.562 Essa transição, que a narrativa não se encarrega de explicitar,
talvez tenha a ver exatamente com o movimento progressivo do herói rumo a
uma percepção única da condição finita do homem: porque se aproxima cada
vez mais da morte, Odisseu entra no Hades; porque entra no Hades, Odisseu
se aproxima cada vez mais da compreensão do que é a morte. A “descida” já
vem de certa forma indicada logo no começo do Canto 11, quando ele pergunta
a Elpenor como “desceu” ao Hades (êlthes hupó, v. 57), mesma pergunta feita
pela mãe ao filho (êlthes hupó, v. 155) e à qual o herói responde empregando o
verbo katágo, “baixar” (“uma necessidade fez com que eu baixasse”, katégagen,
v. 164). Um verbo com o prefixo kata- é também usado por Aquiles ao ver o
antigo companheiro (katelthémen, v. 475).563 Ainda assim, é possível dizer que
a mudança radical de perspectiva – as almas não “vêm” mais a Odisseu, mas
é ele que agora entra no Hades e vai até elas – ocorre quando o herói, depois
de encerrada a conversa com Aquiles, afirma que este “com passo largo partiu
pelo asfodélico prado” (v. 539), o mesmo prado que será mencionado a seguir
(v. 573).564 Sem aviso prévio, Homero parece já ter levado o herói para além do
buraco onde sacrificara.

560 Ver W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 506, e P. Jones, Homer’s Odyssey, p.
100. Ver também M. del P. Fernández Deaugustini, El espacio épico em el Canto 11 de Odisea.
La Plata: Edulp, 2010, p. 14-15 e 36-38.
561 Ver K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 104 e 109, e também p. 117.
562 Para uma discussão desse e de outros problemas tradicionalmente associados ao canto,
ver Odysseus Tsagarakis, Studies in Odyssey 11. Michigan: F. Steiner, 2000.
563 No Canto 23 Odisseu diz a Penélope que “desceu” à morada do Hades (katében, v. 252).
Ver comentário de V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 597.
564 Como defende I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 293.

334
Podemos, no entanto, contra as especulações analíticas em torno do
episódio, falar simplesmente numa “nitidez” geral progressiva por parte do
herói,565 que tem a possibilidade extraordinária de entender melhor a morte
sem vivenciá-la concretamente, e pode recusar posteriormente a imortalidade
ofertada por Calipso no Canto 5 (v. 215-224), como vimos no Capítulo 5.566 Vale
mencionar, nesse sentido, um trecho do diálogo com o companheiro Elpenor,
recém-falecido, quando se dá conta de que a passagem para tal condição é
instantânea (“Vindo a pé te antecipaste a mim, com a negra nau”, v. 58); ou
a lição que recebe da mãe sobre “o normal” (díke, v. 218) dos mortais quando
alguém morre – serem inapreensíveis; ou ainda a percepção que tem da
fragilidade do morto Agamênon no Hades, “não havia mais, no entanto, força
nele nem impulso/ como costumava haver antes nos flexíveis membros” (v. 393-
394). Mas nenhum trecho se iguala, a esse respeito, à já mencionada conversa
com Aquiles. Lida mais recentemente como se representasse uma relação
“agônica” entre a Ilíada e a Odisseia, com seus protagonistas e seus temas
(glória/retorno) contrapostos, ainda que de forma invertida (Odisseu, optando
pelo retorno, valorizaria no entanto o destino de Aquiles, e Aquiles, optando
pela glória, o de Odisseu),567 a cena antes se concentra, de uma forma bem mais
singela e profunda, na apresentação contundente da visão que tem da morte o
herói já morto, contra o olhar do herói ainda vivo:

‘um varão mais venturoso (makártatos) não houve nem haverá:


pois a ti, vivo, nós antes (prín) honrávamos como aos deuses
– os argivos – e entre os mortos tens agora (nûn aûte) grande mando,
aqui, Aquiles, estando. Não sofras por estar morto!’.

565 Ver Michael Clarke, Flesh and spirit in the Songs of Homer: a study of words and myths.
Oxford: The Clarendon Press, 1999, p. 215-218, especialmente p. 220 e 221.
566 Ver o que diz nesse sentido Scott Richardson, “The devious narrator of the Odyssey”, The
classical journal 101/4 (2006): 337-359, p. 343.
567 A melhor discussão é a de Anthony Edwards, no Capítulo 2 de seu Achilles in the Odyssey,
p. 43-69, onde aborda a leitura feita primeiramente por Karl Rüter (especialmente p. 50-51)
para mostrar suas limitações principais: Odisseu não faz uma escolha propriamente e seu
retorno não implica a ausência de glória; Aquiles, por sua vez, valoriza a vida não só na Odis-
seia, como também na famosa passagem do Canto 9 Ilíada (v. 406-409), e sua “escolha” por
morrer é trágica porque em parte “forçada”. Ver ainda G. Nagy, The best of the Achaeans, p.
35, e Teodoro Rennó Assunção, “Ulisses e Aquiles repensando a morte (Odisseia 11, 478-491)”,
Kriterion 107 (2003): 100-109.

335
Assim falei, e ele logo como resposta me disse:
‘Não me fales a favor da morte, ilustre Odisseu:
preferia ser um sobre-o-solo, servindo a outrem
(a varão sem-terra, cujo sustento não fosse muito),
a reinar em meio a todos os mortos que já findaram’.
(Od. 11, 483-491)

Odisseu imaginava, iludido e sempre diplomático, que a “bela morte”


que norteara a vida de Aquiles o consolaria no mundo subterrâneo, e que have-
ria assim uma continuidade de seu poder, entre o “antes” (prín) e o “agora” (nûn
aûte). Mas só quem morreu pode ensinar a quem vive – com a impaciência e a
falta de diplomacia típicas do Pelida –568 que não há consolo possível na mor-
te: mesmo o norte metafísico da glória imperecível (kléos áphthiton, Il. 9, 413)
esboroa-se. A satisfação só existe para os vivos – ou para os sempre vivos, o que
confere uma ironia amarga à assimilação que Odisseu faz, nesse contexto, entre
Aquiles e as divindades (“venturoso”/“como aos deuses”). Como dizem os três
versos do fragmento 133W de Arquíloco,

Ninguém respeitável e afamado entre os cidadãos – já morto –


vem a ser; o favor (khárin) sim de quem vive perseguimos nós,
os vivos, e o pior (kákista), sempre, para os mortos vem a ser.

A exclusão da vida não pode ser comemorada, por mais gloriosamente


que essa vida tenha chegado ao fim: uma vez assumida a condição de morto,
tem-se saudade da vida, de qualquer condição de vida, mesmo da mais árdua
e impotente. Por essa razão, o mesmo Aquiles não rejeita o elogio que lhe é
feito por Agamênon em nova cena no Hades, no Canto 24 (que traz o relato
dos funerais do grande herói: v. 15-98): a consolação aí funciona bem mais
que esta de Odisseu precisamente porque o Atrida se concentra na glória que
permanece entre os vivos, e não entre os mortos: “por entre todos os homens,
terás brava glória, Aquiles” (v. 94).569 Aqui no Canto 11, podemos entender então
esse ensinamento sobre a “futilidade da morte” – na boca de quem mais soube

568 Como destaca A. Edwards, Achilles in the Odyssey, p. 49-50 e 52.


569 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 220.

336
encarar, vivo, a finitude, e ao cabo buscou-a de modo trágico –570 como parte
integrante desse movimento maior de compreensão de Odisseu no episódio,
enquanto “vivente” que tem acesso à “escuridão nevoenta”, para usar as
palavras ditas por Anticleia (v. 155-156).
Mas é através da longa fala deTirésias (v. 100-137), objetivo central da aventura,
que Odisseu alcança um conhecimento de fato abrangente, do seu passado mais
recente até sua morte ainda distante, ainda que os diálogos com a mãe, Agamênon
e Aquiles sejam também informativos, às vezes de modo oblíquo.571 O comando de
Circe no Canto 10 para que o herói “cumprisse outra jornada” (állen hodón telésai, v.
490), por meio da qual o adivinho lhe indicaria “o caminho” (hodón), as “medidas do
percurso” (métra keléuthou) e o “retorno” (nóston, v. 539-540), concretiza-se numa
cena, no Canto 11, em que praticamente não há diálogo: da aparição de Tirésias
no verso 90 à sua despedida no verso 151, ficamos com três falas do adivinho e
uma única do herói. Mais do que isso: informado de modo excepcional a respeito
do seu destino, Odisseu revela quase desinteresse em sua resposta protocolar
(“Tirésias, isso decerto os deuses por si fiaram”, v. 139), mais preocupado que está
em descobrir junto ao tebano como fazer para falar com a mãe, que já avistara, e
com as demais almas (v. 140-149). Com isso, o encontro tem o efeito de transmitir
aquela autoridade inerente à fala profética, em relação à qual não há o que dizer
como resposta, literalmente. Note-se como, logo de saída, Odisseu é informado de
algo que, conforme apontou Karl Reinhardt, “já deveria ter adivinhado”:572

Buscas, ilustre Odisseu, o melífico retorno,


mas o deus o fará duro para ti. Penso que não vais
escapar ao Treme-terra, que guardou rancor por ti,
colérico por tu teres cegado o querido filho.
(Od. 11, 100-104)

Os dois últimos versos (“...que guardou rancor por ti,/ colérico...”) se li-
gam ao que dissera Zeus no Canto 1 em outros termos (v. 68-69), apontando

570 K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 119. A. Edwards também (Achilles in
the Odyssey, p. 52) insiste na continuidade entre o Aquiles que vemos na Odisseia e na Ilíada.
571 Veja-se a esse respeito A. Edwards, Achilles in the Odyssey, p. 45-47, e sua análise do
diálogo com Aquiles, p. 53-67.
572 K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 111.

337
para o abandono da cólera de Posêidon, e ao que dirá Atena em termos idênti-
cos no Canto 13 (v. 342-343), quando o rancor do deus terá chegado de fato ao
fim. Do episódio deflagrador com Polifemo, pouco depois da partida de Troia,
passando pela viagem ao Hades até chegar, num salto de sete anos, ao tempo
presente da narrativa, a ira do deus se apresenta como elemento central no des-
tino do herói – e, como veremos, não o abandonará mesmo com a vitória sobre
os pretendentes. A essa cólera central, no entanto, pode (e vai) se articular uma
outra secundária, do deus Sol:

Mas mesmo assim, padecendo males, podereis chegar (ke...híkoisthe),


se quiseres (k’ethéleis) refrear teu ânimo e dos amigos,
quando primeiro fizeres a nau bem-feita encostar (ke...peláseis)
na ilha Trinácia, em fuga do mar violeta-azul,
e encontrardes (heúrete) a pastar vacas, robustas ovelhas
do Sol, o qual tudo sobrevê e tudo sobre-escuta.
Se intactas tu as deixares (ke...eáais), te ocupando do retorno,
a Ítaca, padecendo males, podereis chegar (ken...híkoisthe);
mas se as tocares (ke síneai), então já te indico destruição,
para a nau e os companheiros. Mesmo que tu próprio escapes,
tarde e mal retornarás, perdendo os amigos todos,
em nau estrangeira, e vais encontrar pesar em casa,
(Od. 11, 104-115)

Chamam a atenção no trecho a alternância entre a segunda pessoa do


singular e a segunda do plural (sublinhadas acima) e o recurso à formulação
hipotética, com a conjunção condicional três vezes presente (v. 105, 110 e
122): a combinação dessas características dá uma dimensão moral particular à
situação, segundo a qual Odisseu (o “tu”) ganha uma responsabilização maior
na comparação com o que realmente ocorrerá durante a narração da aventura –
“se quiseres refrear”, “quando fizeres encostar”, “se as deixares”, “se as tocares”
–, e com o “vós”, por outro lado, restrito a duas frases, “podereis chegar” e
“quando encontrardes”.573 Essa percepção é reforçada pelos dois versos finais
(em negrito), uma significativa repetição da maldição lançada pelo Ciclope

573 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 276-278

338
contra o herói no Canto 9 (v. 534-535). Ao contrário, porém, do que acontece lá,
o “pesar” (pémata), surgindo aqui na boca de um vidente, pode ser especificado:

varões que são arrogantes e devoram teu sustento,


cortejando a quase-deusa esposa e lhe dando dotes.
Mas chegando vais punir sim a violência deles!
(Od. 11, 116-118)

Com isso, opera-se uma conexão ampla – envolvendo equívoco, aviso e


punição – entre o episódio com o Ciclope, a parada na Trinácia e a matança dos
pretendentes:574 é Odisseu quem deflagra a cólera de Posêidon, que deve produzir
um retorno tardio, sofrido, solitário, sem nau e com a casa perturbada; mas a essa
motivação vem se sobrepor o crime dos companheiros e a cólera do Sol, que devem
produzir para o herói os mesmos efeitos já antes previstos, com a especificação agora
da presença violenta dos pretendentes. Em outras palavras, é possível dizer que
Odisseu – e sua casa – sofrem as consequências de uma ação dos seus comandados,
mas que essa ação já fora de certo modo pré-determinada pelo próprio herói. Uma
cólera divina reduplica a outra.575 É isso, ao menos, o que nos faz pensar a já citada
repetição dos versos proféticos finais: quando na boca do Ciclope, ligavam-se ao
cegamento do gigante e a seus desdobramentos; quando na boca de Tirésias,
passam a se ligar à matança das vacas. Talvez pudéssemos dizer que assim o vidente
“apaga”, em certa medida, a responsabilização anterior de Odisseu, como se este
sofresse em consequência apenas dos amigos. Mas não parece ser o caso: não só
a ira do Sol, capaz de incriminar os companheiros, fica sem destaque neste Canto
11, como a própria ação do herói na Trinácia vem moralmente enquadrada, como
vimos, de um modo enviesado, com as condicionais na segunda pessoa do singular
como que insistindo em jogar a atenção, para o bem e para o mal, sobre o líder.
Vale lembrar, contudo, que no Canto 2 outro vidente, Haliterses, já havia lembrado
diante da assembleia reunida que, vinte anos atrás, previra que o rei voltaria “após
sofrer muitos males, perdendo os amigos todos” (v. 174). A determinação localizada

574 K. Reinhardt, “The adventures in the Odyssey”, p. 86 e 112.


575 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 306. A fala de Circe no
Canto 12 (v. 137-141) também “reduplicará” esta fala de Tirésias, repetindo os mesmos versos
110-114, mas terminando, em sua previsão, com “perdendo os amigos todos”, item que no
passo em questão merecerá destaque central.

339
no tempo assim se abre para uma outra (sobre)determinação anterior, como se
tudo estivesse já fixado, “pré-destinado”, e fosse ao mesmo tempo móvel e sujeito
a novos arbítrios, num modo cumulativo.
Se Tirésias começara seu discurso com Posêidon, termina-o igualmente
por ele, indicando ao herói a forma de apaziguá-lo (v. 119-134): a orientação para
que, findos os trabalhos, fixasse o remo numa terra em que o instrumento náutico
fosse confundido com uma ceifeira – sinal claro de que chegara junto a homens que
desconhecem o mar – parece se associar a uma expansão do culto da divindade
marinha que ofendera, embora esse dado, e o próprio apaziguamento, não venham
explicitados; Tirésias restringe-se tão-somente à ordem “perfaz belos sacrifícios
ao soberano Posêidon” (v. 130).576 Na profecia final sobre a morte do herói, que
nos faz lembrar do acontecido com Menelau (Od. 4, 561-569), o mar continua a
desempenhar papel preponderante, mas de forma dúbia: o fim da vida para o herói
“sairá do mar” (ex halòs...eleúsetai, v. 134-135) porque acontecerá a partir/por causa
do mar ou fora/distante do mar? A formulação é vaga, e o original permite as duas
leituras – que a tradução tenta reproduzir –, talvez intencionalmente: Odisseu pode
voltar a experimentar, no instante final, o drama das conhecidas agruras dos seus
anos de peregrinação marítima, ou a morte pode se dar na paz da solidez terrestre,
simbolizada pelo remo fixado continente adentro. A ordem imediatamente anterior
sobre o remo, junto com a afirmação de que sua morte será “bastante branda”
(ablekhròs mála, v. 135), “sob opulenta velhice” e com “as gentes afortunadas” (gérai
liparôi/laoì ólbioi, v. 135-136), favorece a opção por “fora/distante do mar”, seguida
em geral pelos comentadores e tradutores.577 De qualquer forma, há de se notar
a promessa de tranquilidade e prosperidade nessa morte de Odisseu em idade
avançada – algo nada desprezível num canto em que ele entra em contato com
almas que experimentaram fins sofridos, prematuros e/ou violentos, como está
indicado, genericamente, logo no início:

(...) Aglomeraram-se,
saídas do Êrebo, as almas dos mortos que já baixaram:

576 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 102, e I. de Jong, A narratological commentary on the Odys-
sey, p. 278. Ver também o que diz C. Segal no capítulo “Tiresias in the Yukon: on folktale and
epic” de Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 187-194.
577 Em inglês, a escolha seria entre “out of/from the sea” e “(far) away from the sea”. Ver W.
Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 387, e W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol.
1, p. 455.

340
moças, não-casados, multipadecidos anciãos,
tenras virgens que têm luto ainda recente no ânimo,
muitos feridos por lanças arrematadas com bronze,
varões mortos em combate, com armas ensanguentadas.
(Od. 11, 36-40)

Importa dizer que há nessa predição de Tirésias uma importante associa-


ção do herói com a ideia de justiça, já presente na certeza de que iria “vingar”
(apotíseai, v. 118) a violência dos pretendentes e propiciar o deus Posêidon, a
quem encolerizara. Essa questão da justiça, por sua vez, é central nas mortes de
Agamênon (v. 386-465) e Ájax (v. 543-566), e talvez não por acaso responda pelo
clima final do Canto 11, com a visão de Minos “dando normas” (themisteúonta,
v. 569) entre os mortos, seguida da observação dos transgressores Oríon, Títio,
Tântalo e Sísifo (v. 572-600), mais alimento para a reflexão do herói. A aparição
final do espectro de Héracles (v. 601-627) – com a ressalva de que não se tratava
do herói em si, já que este ascendera ao céu e convivia com os deuses imortais
– traz ainda essa curiosa bifurcação entre catábase a apoteose: a figura tradicio-
nalmente “civilizadora” (por seu combate aos mais variados “monstros”),578 e que
se identificava com Odisseu pelos “duros desafios” (khalepoùs aéthlous, v. 622;
cf. Od. 1, 18, aéthlon) e pelo auxílio de Hermes e Atena (v. 626), pôde ao mesmo
tempo baixar ao convívio dos mortos – ainda em vida, como Odisseu, conforme
rememora (v. 623-625) – e subir ao convívio com as divindades. Trata-se de um ser
irreconciliavelmente dividido, que assim ajuda a jogar luz sobre o protagonista da
Odisseia em sua situação “fronteiriça”, e sobre sua capacidade de conhecimento.
Héracles nos ajuda também a refletir, sobretudo, a respeito do papel
da Nékuia numa possível transformação de Odisseu tematizada no poema,
conforme estamos propondo desde o começo. Sabemos que, tal como aconteceu
com o filho de Alcmena, também com o herói da Odisseia desenvolveu-se uma
forte tradição de leituras alegóricas e estoicas segundo as quais os dois seriam
os representantes maiores, com suas famosas aventuras, das vicissitudes por que
passa a alma humana em sua viagem de purificação, conhecimento e afirmação
da virtude.579 Esse “crescimento espiritual” diante das “tentações” seria então

578 No Escudo de Héracles, de Hesíodo, o herói é chamado de “defensor contra praga” (arês
alktér, v. 29).
579 R. Rutherford, que defende o desenvolvimento de Odisseu no poema, chama atenção

341
o que ao final teríamos, depois das aventuras narradas pelo herói no apólogo?
Peter Jones, em seu comentário, chama atenção para esse tipo de enfoque com
o intuito de negar qualquer transformação do herói: “É difícil identificar qualquer
crescimento ou desenvolvimento de Odisseu durante essas aventuras: parece não
haver a percepção de um ‘antes-e-depois’ implícito nelas”.580 A meu ver, porém,
esses são dois pontos que devem ser abordados separadamente (algo que Jones
não faz), o da transformação e o da mudança espiritual: o segundo implica o
primeiro, mas o primeiro não implica o segundo. Pela minha leitura, o próprio ato
da rememoração narrativa traz consigo um aporte cognitivo: Odisseu repassa o
que experimentou exatamente porque aprendeu com essas experiências. Nesse
sentido, elas são o índice maior da sua transformação: o herói do “depois” (do
“presente” que acompanhamos na Odisseia do Canto 5 ao 24) dialoga com o herói
do “antes” (do “passado” que acompanhamos no apólogo, entre os Cantos 9 e
12), e um só existe na perspectiva do outro. Algo bastante diferente é explorar a
leitura corrente na antiguidade e entender que esse herói transformado é mais
“espiritualizado” ou “purificado” pela série de “tentações” por que passou. Essa
terminologia é estranha à essência do poema e à sua ação: ao enfrentar “desafios”,
ao ser “posto à prova”, Odisseu não é tentado (no sentido cristão da palavra); não
há redenção ou salvação da alma, não há uma virtude a ser exaltada.581 Na visão
grega, o herói apenas acumula com suas experiências um penoso conhecimento,
que o preparará, com sorte, para a mediania e uma vida mais livre de dissabores
e contratempos. Mas isso não o eleva acima da condição humana – talvez, ao
contrário, o conecte mais fortemente a ela.
É justamente esse Odisseu transformado, “de volta a si” e no seu melhor,
não mais submetido às circunstâncias, mas afiado e senhor do curso do seu destino
– como se mostrara anteriormente no momento culminante em que enganou o
Ciclope ao ser “Ninguém” –, que surge ao longo da segunda metade do poema. Se
por um lado já o vimos em ação na Feácia, pela cautela amplamente demonstrada,
por outro parece ser apenas depois do apólogo que ele ganha substância e

para o paralelo com Héracles no conjunto das leituras antigas. Apesar de reconhecer a limi-
tação dessas mesmas leituras, ele lamenta que tal “insight” tenha se perdido; ver seu “The
philosophy of the Odyssey”, p. 145 e 146, e notas 5 e 8.
580 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 113-114.
581 Para uma visão negativa sobre o tema, ver James Hogan, “The temptation of Odysseus”,
Transactions of the American philological association 106 (1976): 187-210.

342
perspectiva enquanto herói amadurecido, pronto para o desafio contra mais de
uma centena de pretendentes, desafio no qual terá que ressuscitar sua melhor
arma enquanto “multiastuto”/“multininguém”: ocultando a si mesmo, assemelhar-
se a outrem – para retomar o que diz Helena sobre sua incursão como mendigo
em Troia (Od. 4, 247).582 Tendo já analisado anteriormente as figuras de Telêmaco
(Capítulo 2), dos pretendentes (Capítulo 3) e Penélope (Capítulo 4), minha ênfase
no trecho em questão (Cantos 13-24) vai recair sobre como Odisseu se comporta no
papel de alguém que age, internamente, de modo incógnito e irreconhecível, de tal
forma que assim nós, leitores/ouvintes, possamos reconhecê-lo como quem é. Vou
me concentrar principalmente nos Cantos 13, 14, 19 e 24, para investigar, primeiro,
a relação com Atena nessa retomada da sua essência enquanto herói clarividente;
depois, a manipulação verbal apresentada na construção das “mentiras cretenses”
com Eumeu e Penélope; e, finalmente, a retomada da ocultação como movimento
típico, mesmo quando já dispensável, no encontro com o pai no fecho da narrativa.

» A volta (re)velada

Depois de dormir no episódio do saco dos ventos e das vacas do Sol, ve-
mos que é também dormindo que Odisseu é deixado pelos feácios em Ítaca, no
Canto 13 (v. 116-124). Trata-se agora, contudo, de um sono (húpnos) positivo e
livre de riscos – dito “suave”, “indespertável”, “dulcíssimo” (nédumos, négertos,
hédistos, v. 79-80) –, sono que de certo modo coroa a hospitalidade exemplar
desse povo que acolhera e transportara o herói, além de assinalar essa passagem
para o “mundo real” da qual não se pode dar conta.583 Quando o esquecimento
da volta não representa mais uma ameaça, o protagonista pode finalmente des-
cansar “sem tremor”, “sem lembrar” do que sofrera (atrémas, lelasménos, v. 92).
Antes, porém, no trecho que marca a despedida (v. 1-77), com nova
participação do aedo Demódoco (sem a especificação do que canta, v. 27-28)
e com um discurso de Odisseu endereçado a Alcínoo e outro a Arete (v. 37-45 e

582 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 128.


583 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 316. A rima interna em
“-os” parece sugerir no plano formal o encanto desse sono benéfico. O aspecto mágico do
transporte vem indicado no verso 113, em que se diz que os marinheiros feácios conduziram
a nau até Ítaca “de antemão cientes” (prìn eidótes), passagem que remete ao que foi dito por
Alcínoo no Canto 8 (v. 556-563). Ver A. Pierron, L’Odyssée d’Homère, vol. 2, p. 9, e I. de Jong, A
narratological commentary on the Odyssey, p. 318.

343
59-62), dois elementos relacionados a essa viagem tranquila para casa merecem
destaque: a aparentemente obscura afirmação do rei feácio de que Odisseu não
haveria de, vagando, “voltar para trás” (àps aponostésein, v. 6), e a menção às
vestes com que Odisseu fora presenteado. No primeiro caso, o homerista italiano
Vincenzo Di Benedetto parece ter sido o único a dar uma explicação satisfatória
para a fala de Alcínoo: ele estaria aludindo à estadia de Odisseu junto a Éolo,
marcada por um retorno nefasto – em vez de voltar para Ítaca, como desejava, o
herói retornou à ilha do seu benéfico anfitrião, que achou por bem então expulsá-
lo.584 Lembre-se que lá Odisseu também fizera, antes de partir, uma narrativa de
suas aventuras pregressas (não detalhada para nós), e é justamente essa diferença
entre o que se deu no passado e o transporte de agora que Alcínoo, ainda sob o
“feitiço” do apólogo (kelethmôi, v. 2), quer ressaltar: voltar já não é uma ilusão, e
por isso Odisseu poderá dormir em paz. Quanto às “vestes”, elas são mencionadas
pelo feácio no verso 10 (heímata) e especificadas no verso 67 (“manto”/“túnica”,
phâros/khitôna), ao serem transportadas para a nau, recuperando assim a
referência à doação feita pelos anfitriões no Canto 8 (phâros/khitôna, v. 425 e
441), e antes ainda por Nausícaa, mencionada nos Cantos 6 (v. 214) e 7 (v. 234).
Sua importância reside no fato de que, entre as dádivas recebidas, são elas que
simbolizam mais que todas os laços de hospitalidade, sendo por isso exploradas,
de diferentes maneiras, nos encontros do Odisseu-mendigo com Eumeu e com
Penélope, com o par “manto”/“túnica” sendo substituído por “capa”/“túnica”, ou,
situação mais frequente ainda, com a capa – khlaîna, com função idêntica à do
“manto”, funcionar como “agasalho” posto sobre a túnica, só que mais simples
– figurando como peça central.585 Essas vestes recebidas dos feácios, como
se sabe, não aparecerão mais na narrativa, pois serão escondidas no antro das
Ninfas (v. 362-370); simbolizando, porém, o sucesso dessa amizade “aquisitiva”
aristocrática, elas servem como contraponto para a situação que viverá o herói
disfarçado de mendigo, falsamente necessitado dos bens que já possui. Pedir por
roupas equivalerá a testar aqueles que o acolhem e a chancelar a efetividade do
disfarce.

584 V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 695. A. Hoekstra levanta essa possibilidade, mas a
descarta, em A. Heubeck et alii (ed.), A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 162.
585 É o que propõe Richard Cunliffe, A lexicon of the Homeric dialect, p. 420. Ver também o
que diz A. Hoekstra, em A. Heubeck et alii (ed.), A commentary on Homer’s Odyssey, vol. 2, p.
168, 201 e 228.

344
Para além desses dois elementos, que apontam para o que já passou e
anunciam a segunda parte da ação, há ainda nessa abertura do Canto 13 o que
Irene de Jong chama de “retomada deliberada do proêmio”, quando o narrador
diz que a nau estava “levando varão que tinha planos afins aos dos deuses,/ que
antes muitíssimas dores em seu ânimo sofrera” (v. 89-90);586 em grego, a se-
gunda linha ecoa o verso 4 da Odisseia, “e muitas dores no mar em seu ânimo
sofreu”. Mais do que a correlação estrutural única – sempre capaz de produzir
reverberações significativas em Homero –, chama a atenção o fato de que nos
dois casos há uma conexão entre os sofrimentos do herói e o crime dos seus
companheiros na Trinácia: no proêmio, está dito que Odisseu sofrera em seu
empenho de salvar a própria vida e a de seus tolos homens, e temos lá (v. 6-9)
a referência ao episódio central com o qual Odisseu encerrará o apólogo, no
Canto 12 (v. 260-414), antes da chegada à ilha de Calipso. Aqui, embora não haja
referência à matança das vacas do Sol, a construção singular que faz lembrar o
proêmio vem imediatamente após essa narrativa que fechara o Canto 12. Isso
talvez indique que o Canto 13, ao recuperar a abertura do poema com um ver-
so de estrutura final idêntica, pode na verdade estar anunciando o novo movi-
mento da história: os errores chegaram ao fim. Do ponto de vista da cronologia
dramática, naturalmente, boa parte dos errores já terminaram no próprio início
do poema: faltava ao herói apenas deixar a ilha de Calipso e passar pelos feácios
antes de chegar a Ítaca. No entanto, por causa da estrutura enviesada que é
característica da Odisseia, temos a sensação de que Odisseu está vagando até
o fim da apresentação do episódio na Esquéria e sua chegada a Ogígia (eventos
acontecidos, na realidade, havia mais de sete anos). Em outras palavras: estan-
do o episódio das vacas do Sol presente no proêmio, de certa forma um círculo
se fecha quando ele é mencionado ao fim do Canto 12, e com esse verso “ecoan-
te” presente no início do Canto 13 temos talvez a sinalização de uma nova etapa,
que traz a “fixidez” agora de Odisseu em Ítaca (ainda que uma outra “fixidez” já
viesse dos anos de estadia com Calipso).587

586 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 317, e também W. Stanford,
The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 201.
587 Egbert Bakker, explorando a mesma relação entre o proêmio e este passo do Canto 13, afirma
que “o poema volta efetivamente a começar de novo”, mas propõe a leitura de que “é como se
Homero estivesse reocupando o lugar que tinha cedido para um competidor, que está finalmente
calado”; ver seu “Homer, Odysseus, and the narratology of performance” em J. Grethlein & A.
Rengakos, Narratology and interpretation. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 2009, p. 130-131.

345
Vale ainda sublinhar que, nessa nova etapa, de volta à pátria, talvez
sejam significativas as referências ao “porto de Fórcis” e à “folheada oliveira”
localizada em sua cabeceira (v. 96 e 102): sendo esse “velho do mar” avô de
Posêidon, como lemos no Canto 1 (v. 72), e estando essa planta associada
a Atena, tais indicações geográficas de Ítaca parecem promover no plano
figurativo a conciliação que se instaura definitivamente, a partir desse ponto,
entre essas duas divindades, a contrária e a favorável a Odisseu.588 Nesse
sentido, o acesso que temos na sequência à conversa entre Posêidon e Zeus
(v. 125-187) – um parêntese a serviço de nos explicar a reação do Treme-terra à
volta de Odisseu e o seu intento de punir os feácios – é valioso porque repõe em
cena a questão do funcionamento da justiça divina nesse caso, como vimos no
Capítulo 6. A transição é abrupta, como no Canto 24 (v. 472), a mostrar não só
que os deuses a tudo observam e podem interferir a qualquer momento, mas
também que sua participação na Odisseia, diferentemente do que acontece na
Ilíada, é apenas “parentética”, não merecendo a atenção demorada que tem
no épico maior.589 A retomada da profecia enunciada ao final do Canto 8, com
a transformação da nau feácia em pedra e um possível “emparedamento” da
pólis – tudo com o suporte de Zeus –, parece constituir flagrante injustiça: se
esse povo, seguindo a determinação do próprio Zeus, praticou a hospitalidade,
como pode merecer uma punição? O desconforto é reforçado pela reação de
Odisseu ao acordar na praia: julgando-se novamente em terra estrangeira, e
portanto fraudado pelos seus transportadores, ele cobra de Zeus que faça os
feácios pagarem pela transgressão (v. 209-214) – algo que, como acabamos de
acompanhar, efetivamente aconteceu com a embarcação petrificada, mas não
porque foram transgressores ou enganaram o herói, muito pelo contrário. A
ironia é patente.590 Alguns estudiosos tentam salvar a situação mostrando que

588 Sobre Fórcis, ver W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 202; sobre a importância
da oliveira, ver A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV. Cambridge: Cambridge Univer-
sity Press, 2013, p. 115, onde lembra da presença da planta não só nos conhecidos passos da
estaca no Canto 9 (v. 320) e da cama no Canto 23 (v. 190-198), como também de sua presença,
no Canto 5, no cabo do machado que usa para construir a jangada (v. 236) e enquanto arbusto
protetor (v. 475-477).
589 Vale notar que as transições no meio do verso (v. 125 e 187), algo incomum em Homero,
como que reproduzem formalmente esse ponto; Ver A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII
and XIV, p. 119 e 128. Ver ainda a relação de Zeus e Posêidon na Ilíada, nos Cantos 7 (v. 445-
463), 13 (v. 355) e 15 (v. 157-219).
590 Ver A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p. 124-126 e 131.

346
a punição foi extremamente leve – a perda de uma única nau –, e que Zeus na
verdade não apoiara cobrir a pólis com um monte.591 Prefiro, no entanto, seguir
os que entendem que Zeus apoiou a proposta do irmão (prevista na profecia) e
que o destino dos feácios fica em aberto: não sabemos o que ocorreu.592 O mais
importante, a meu ver, é notar como novamente a justiça divina máxima deve
acomodar, em sua lógica, não apenas o plano das ações humanas, mas também
o tópico das honras divinas. Nesse sentido, os feácios foram ao mesmo tempo
justos no tratamento hospitaleiro dado a Odisseu e injustos na “provocação”
a Posêidon que esse transporte representou. O diálogo do Treme-terra com o
“pai” Zeus (v. 127) explicita para nós a acomodação dessas vontades díspares, e
assim dá consistência ao que, da perspectiva puramente humana, pode parecer
sem cabimento, ou claramente injusto. A cena, portanto, reforça a noção de
justiça que, como temos apontado, perpassa toda a Odisseia, uma justiça
concentrada na figura máxima de Zeus, encarregada de habilmente coadunar
interesses vários no seio de sua vontade maior – e por isso mesmo procedente.
Com os feácios deixados para trás, chegamos a uma das cenas mais
saborosas e memoráveis da literatura grega antiga, o encontro do homem
astuto com sua deusa “madrinha”, verdadeiro momento de virada na narrativa,
com Odisseu passando de perseguido por uma divindade a ajudado por uma, de
alguém que suportara passivamente seu destino ao agora capaz de ativamente
impor um destino aos outros. O herói está pronto para “ensaiar” de modo leve,
com a melhor instrutora possível, as situações por que passará nos encontros
futuros.593 A passividade, com efeito, não desaparecerá, mas será calculada, com
propósito definido, fruto de uma construção resultante dessa intimidade que
não é sexual, como acontece com muitos pares imortal/mortal (Atena é deusa
virgem), mas exclusivamente mental.594 Não por acaso, o não-reconhecimento,

591 É o que diz Rainer Friedrich, “Thrinakia and Zeus’ ways to men in the Odyssey”, p. 398-
399 e nota 54. Ele segue a leitura de Aristófanes de Bizâncio no verso 158 (mas cf. v. 152, 177
e 183), o qual, em vez de “e então com grande (méga dé) monte a pólis deles cobre”, propôs
“mas não com monte (mè dé) a pólis dele cobre”. Ver ainda discussão em Jim Marks, Zeus in
the Odyssey, p. 52-61.
592 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 319-321. Lembre-se o que Alcínoo
dissera no Canto 8: “e isso o deus pode cumprir ou deixar sem cumprimento” (v. 570-571).
593 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 313.
594 R. Martin, Homer: The Odyssey, p. 389. Segundo Ájax diz no Canto 23 da Ilíada, Atena
atua junto a Odisseu “como uma mãe” (méter hós, v. 783).

347
ou o encobrimento, dado que já fora central na aparição de Atena a Telêmaco no
Canto 1, será o ponto de partida desse encontro:

(...) Mas o divino Odisseu


acordou na terra pátria e não a reconheceu (oudé min égno),
já por tanto tempo ausente. Pois vertera névoa em volta
vibrante Atena, menina de Zeus, para que tornasse
o próprio irreconhecível (ágnoston) e lhe relatasse tudo,
e não o reconhecessem (gnoíe) mulher, cidadãos e amigos,
até pagarem por toda presunção os pretendentes.
Por isso, tudo surgiu com outro aspecto (alloeidéa) ao senhor.
(Od. 13, 187-194)

A terra irreconhecível/disfarçada já vem antecipar para nós o Odisseu


irreconhecível, disfarçado de velho mendigo, ao final do encontro (ágnoston,
v. 191 e 397): Ítaca não pode ser imediatamente reconhecida a fim de que haja
tempo para que o herói possa ocultar sua identidade e tornar-se ele mesmo
invisível para os que o conhecem, segundo o plano de vingança traçado. A
dolorosa ironia – o homem que havia uma década tentava regressar ao lar, ao
fazê-lo, não se dá conta de que está em sua terra – é imediatamente explorada
(olhando para a pátria, nos diz o narrador, ele se lamenta e pergunta a que lugar
chegou, v. 197 e 200),595 e ajuda adicionalmente a construir a figura de um Odisseu
que, de início, ocupa nesse contato com a deusa a posição que outros ocuparão
futuramente em relação a ele: a de alvo da manipulação alheia (já patente no
seu engano em relação à atuação dos feácios). Ele não é aqui o não-reconhecido,
o invisível no controle da situação, mas sim aquele que não reconhece, que não
vê e é controlado. A situação, como mostrou Emily Kearns, faz parte do “teste”
a que precisa ser submetido pela deusa, para que possa então assumir seu
papel quase divino, como um deus numa “teoxenia” – quando a figura imortal
vem sob disfarce à terra para observar e punir os transgressores.596 A ligação
entre ocultamento e esse propósito moral fica bem sublinhada no momento
em que o narrador afirma que ninguém deveria reconhecer o senhor “até que

595 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 322-323.


596 E. Kearns, “The return of Odysseus: a Homeric theoxeny”, The classical quarterly 32/1
(1982): 2-8, p. 7-8. Ver ainda I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 332.

348
pagassem por toda presunção os pretendentes” (pâsan huperbasíen apotîsai, v.
193). No Canto 17, como pudemos ver no Capítulo 3, os próprios pretendentes
vão mostrar receio de que o mendigo seja na verdade um deus, já que estes
costumam assumir “feitios de todo tipo” (pantoîoi) e ir pelas cidades para
observar a “soberba” e o “bom governo” (v. 484-487) dos humanos – suspeita já
levantada antes por Telêmaco no Canto 16 (v. 181-185). Em outras palavras, para
ser o executor oculto da justiça, como uma divindade punitiva que baixa à terra
sob aparência diversa, era preciso que Odisseu fosse submetido à dificuldade de
um não-reconhecimento seu da realidade ao redor, e sua inteligência, pega de
surpresa, assim se mostrasse (novamente) competente, isto é, apta para uma
missão em que a chave principal seria o não-reconhecimento da sua identidade
pelos outros. Para dizer de um modo bastante esquemático: ele deveria
conseguir, de modo convincente, não ser Odisseu internamente, para dessa
forma sê-lo de modo cabal para nós, leitores/ouvintes.
Até a dispersão da névoa que cercava Ítaca (v. 352), acompanhamos esse
jogo preparatório, de inteligência, entre o herói e Atena: ela se aproxima como
jovem pastor (v. 221-225); Odisseu pergunta em que lugar está (v. 226-235);
a deusa revela que está em Ítaca (v. 236-249); o herói, sem esboçar qualquer
reação, oculta sua real identidade e cria a primeira “história cretense” (v. 250-
286); Atena, transformada agora em mulher, alegra-se com a esperteza dele
e fala da afinidade existente entre ambos, revelando quem é e afirmando
que ele deve se preparar para novas aflições (v. 287-310); Odisseu admite a
dificuldade em reconhecer uma imortal, queixa-se da ausência da deusa ao seu
lado depois de Troia e mantém a desconfiança em relação a estar em Ítaca (v.
311-328); Atena volta a elogiar sua cautela, alude ao rancor de Posêidon como
justificativa para seu distanciamento e resolve mostrar Ítaca para que, vendo-a,
o herói se convença (v. 329-351). São, ao todo, três discursos de cada lado,
com destaque, como era de se esperar, para o vocabulário e os procedimentos
relativos à astúcia. Na primeira fala de Odisseu, em tom amigável, a marcar uma
proximidade de que não suspeita (“caro”, ô phíle, v. 228), transparecem não só
essa ironia como outras também: o pedido para que o pastor não agisse com
“má intenção” (kakôi nóoi, v. 229); para que o “salvasse” (sáo, v. 230) e recebesse
seu clamor como se dirigido a um deus (hós te theôi, v. 231); e para que falasse
a verdade (etétumos, v. 232). Curioso é notar que Atena – menos amigável, mas
não menos irônica, ao chamar Odisseu de “estrangeiro” (ou “estranho”, xeîne,

349
v. 237 e 248) – responde com um verso violento, “És sim um tolo, estrangeiro,
ou de longe chegas tu”, que antes aparecera unicamente na boca do Ciclope
(v. 237 = Od. 9, 273), numa espécie de atuação que parece prenunciar o contato
com os pretendentes à espera do herói; explorando ainda um motivo recorrente
no poema, ela retém o nome “Ítaca” até a penúltima linha (v. 248), dizendo por
fim a verdade de que fora cobrada. O mais esperto aqui, cabe notar, não é o
mentiroso: Atena não precisa entrar no jogo para mostrar superioridade.
É esse jogo, de quem “retém o discurso” (pálin lázeto mûthon, v. 254) e
maneja “multiesperta intenção” (nóon polukerdéa, v. 255),597 que Odisseu explora
a seguir com sua “mentira cretense” ou “história falsa”, que inaugura uma
sequência de cinco relatos inventados por ele – todos, à exceção do último no
Canto 24, a situá-lo originalmente em Creta, de forma explícita (Cantos 13, 14
e 19) ou implícita (Canto 17).598 Ainda que não funcione desta primeira vez com
a deusa, que tem plena consciência da identidade do interlocutor, a história
forjada tem justamente o mérito de mostrar para Atena que o herói, diante da tão
aguardada notícia (estava em Ítaca), revela a capacidade de reagir – mesmo após
vinte anos – com absoluta cautela, evitando se deixar levar pela emoção e por
palavras quaisquer, na ausência de sinais concretos e visíveis.599 Embora nem aqui,
nem nas ficções subsequentes, o narrador nos franqueia acesso ao modo como
Odisseu cria essas construções discursivas, podemos imaginar que com Atena ele
age “de improviso”, sem preparação prévia, e portanto que aquilo que “a princípio
é reação instintiva virará depois estratégia consciente”, como afirmou Irene de
Jong.600 Note-se como a escolha da identidade cretense permanece igualmente
sem explicação por parte do narrador. Creta era a localidade grega remota por
excelência (“distante sobre o mar”, teloû hupèr póntou, v. 257) – duplamente
insular, por assim dizer – e, portanto, bastante conveniente para garantir que uma

597 Como mostrou A. Pierron (L’Odyssée d’Homère, vol. 2, p. 18-19), a mesma expressão
“reter o discurso” pode indicar não esperteza ou falseamento, como aqui, mas retratação:
veja-se o uso em Il. 4, 357.
598 Para uma lista completa ver A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p. 139-140,
e I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p.326, com um útil quadro compa-
rativo ao final, p. 596-597. Ver ainda a discussão em R. Rutherford, Homer: Odyssey – Books
XIX and XX, p. 69-73.
599 E. Kearns, “The return of Odysseus: a Homeric theoxeny”, p. 2-3.
600 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 327, e também Chris Emlyn-
-Jones, “True and lying tales in the Odyssey”, Greece & Rome 33/1 (1986): 1-10, p. 3.

350
história fosse desconhecida ou inverificável? A reputação de mentirosos já estava
assente e fazia com que os cretenses se apresentassem como escolha natural
quando o objetivo era se passar por outra pessoa? Nesse caso, não haveria uma
“piada interna”?601 A parcimônia homérica faz com que perguntas desse tipo se
multipliquem. De qualquer forma, o fato de Odisseu produzir mentiras explorando
a remota ilha ao sul do Egeu estabelece certa conexão com o que Alcínoo havia
dito ao herói ao interromper seu apólogo no Canto 11, conforme sugeriu Chris
Emlyn-Jones num artigo de 1986.602 Naquele passo, o rei feácio afirmara:

Odisseu, jamais pensamos isto de ti ao te ver:


ser furtivo e trapaceiro, do jeito que a terra negra
está sempre produzindo multissemeados homens
que mentiras articulam, de onde não se pode ver (hóthen ké tis oudè ídoito).
(Od. 11, 363-366)

O sentido da segunda metade do verso final não é imediatamente claro.


William Stanford propõe a seguinte glosa: “a partir de fontes que ninguém poderia
ver (isto é, confirmar) por si mesmo”.603 Na mesma linha vão os comentários de
Walter Merry e James Riddell, “a partir de coisas que ninguém pode submeter à
prova do olhar”, e de Alexis Pierron, “com base nas quais ninguém poderia ver (se
são verdadeiras)”.604 Prefiro, no entanto, tomar hóthen na sua acepção primeira
aqui, de “(lugar) a partir do qual”, como em outras duas passagens homéricas (Od.
3, 319; e Il. 2, 307). Lida assim essa afirmação, podemos propor que Alcínoo está
fazendo referência a mentirosos contumazes que exploram justamente a origem
remota – em sentido concreto – de suas histórias. Mais do que pensarmos então
apenas em fontes vagas e não verificáveis, podemos trabalhar com a ideia de que
as mentiras remetem a localidades distantes, difíceis de acessar – localidades,
portanto, em relação às quais não existe a possibilidade de uma verificação da

601 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 327 e também W. Stan-
ford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 209. Note-se que no Hino homérico a Deméter, a deusa,
ao criar uma falsa identidade, também diz vir de Creta (v. 123).
602 C. Emlyn-Jones, “True and lying tales in the Odyssey”, p. 2.
603 W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 1, p. 395.
604 W. Merry & J. Riddell, Homer’s Odyssey, vol. 1, p. 345, e A. Pierron, L’Odyssée d’Homère,
vol. 1, p. 492.

351
verdade. Há aí claramente uma ironia (ao que tudo indica involuntária) da parte
do rei dos feácios: os locais mencionados por Odisseu em seu relato são em sua
imensa maioria longínquos e maravilhosos, inalcançáveis para os vivos (como o
Hades), “fora do mapa” – incluindo a própria Esquéria. Mas o que importa aqui é
mostrar que esse hábito, de se mentir recorrendo a regiões afastadas justamente
pela impossibilidade da comprovação, parece estar implicado na cena com Atena
no Canto 13, e também nas outras mentiras em que Creta desempenha papel
importante na caracterização. Se assim for, podemos dizer que Odisseu vai querer
depois, nos Cantos 14 e 19, espertamente retomar essa identidade cretense
justamente por perceber nela o potencial para criar a figura de um velho mendigo
interesseiro e fabricador de histórias improváveis.
O que há de esperteza nessa primeira criação, além da presença da
identidade cretense? A participação na Guerra de Troia e o apreço pelos hono-
ráveis bens (para explicar os que traz consigo, v. 262-263); a prática da tocaia
e do ocultamento (“sem ser visto”, láthon, v. 270) contra o “inimigo” Orsílo-
co (em cujo nome há o mesmo elemento lókhos, “emboscada”, presente em
“Euríloco”); as dores sofridas no ânimo “ao atravessar as guerras de homens
e doídas ondas” (v. 263-264 ~ v. 90-91) e a chegada dormindo a Ítaca: esses
dados principais, e outros mais, mostram o empenho do herói em construir
verossimilhança não só pelo recurso ao detalhamento (sempre capaz de
convencer),605 mas sobretudo pela mistura de fato e ficção, trabalhando com
“alomorfos” das suas aventuras.606 Nos dizeres de Charles Segal, essas men-
tiras, aqui e nos outros cantos em que aparecem, “falam uma forma de ver-
dade” e são uma “versão reformatada das suas experiências de fato”.607 Para
convencer no “personagem” e para sua “verdade” não ser desacreditada pela
plateia, Odisseu, como todo bom ator, busca alimento na própria vida: nós,
que estamos do lado de fora da narrativa, podemos (e devemos) localizar o
homem sob o disfarce, e poderíamos até dizer que – além de Atena, que o faz
sem que isso seja dito – o mesmo conseguiriam seus interlocutores dentro da
história, se depois de descoberta a identidade repassassem os relatos.608 O

605 Como aponta A. Pierron, L’Odyssée d’Homère, vol. 2, p. 21.


606 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 327.
607 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 177.
608 Note-se, por exemplo, que Eumeu fala no Canto 16 que o mendigo viu “cidades” ao vagar
(ástea, v. 63-64), estabelecendo assim o contato com as “cidades” vistas por Odisseu segundo o

352
interessante é perceber que, após o herói criar sua história, a deusa se asse-
melha “a mulher bela e elevada, versada em nobres trabalhos” (v. 279), como
se estivesse fazendo um movimento em direção a sua real essência e assim
mostrasse, como no caso de Odisseu, que entre a máscara e a cara verdadeira
há sempre uma ligação que merece ser explorada.609
Na primeira parte de sua resposta (v. 291-299), Atena recorre ao léxico
que marca sua identidade com Odisseu (“esperto”, kerdaléos, ecoando o
“multiesperto”, polukerdéa, do v. 255; “furtivo”, epíklopos; “ardis”, dóloisi,
dólon; “astúcia vária”, poikilomêta; “enganos”, apatáon; “plano”, boulêi),
identidade ressaltada aqui pelo uso de “ambos” (ámpho, v. 296) e pela estrutura
relativamente simétrica na apresentação de suas capacidades (v. 297-298),
ponto que por sua vez será depois retomado pelo emprego do dual em “ambos
sentando/ pensavam” (tò dè kathezoméno/ phrazésthen, v. 373-373).610 A despeito
disso, na sequência ela se compraz em dizer que, apesar da afinidade, Odisseu
não a reconheceu (oudè sú g’égnos, v. 299; como não reconhecera Ítaca, oudé
min égno, v. 188), e que ela esteve sempre ao seu lado, inclusive junto aos feácios
(“te fiz caro”, v. 302, e “bens a ti deram por minha intenção e plano”, v. 304-
305).611 Por fim, a deusa afirma enfaticamente que a sina do herói é continuar
sendo “multitenaz” (“suportar”, anaskhésthai; “aguenta”, tetlámenai; “sofre”,
páskhein; “aturando”, hupodégmenos: v. 307 e 310), dando destaque, nos versos
intermediários, para um comportamento que nos lembra a cena final com o
Ciclope, em contraste com o que Odisseu acabou de fazer ao inventar mentiras:
não falar abertamente e permanecer em silêncio (medé toi ekphásthai/siopêi, v.
308-309). A ordem, bem entendido, não é para que seja sempre mudo – está
claro que a manipulação pela palavra pode ser fundamental –, mas para que
não fale a verdade e permaneça em silêncio em relação a sua real identidade,
para que controle suas emoções diante das dificuldades por vir, algo que

proêmio (ástea, v. 4); ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 391.
609 Sobre a segunda forma estar mais próxima da identidade verdadeira da deusa, ver I. de Jong,
A narratological commentary on the Odyssey, p. 324. Essa troca de disfarce no meio da cena é única
em Homero, como aponta A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p. 145 e 149.
610 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p.335, e V. Di Benedetto, Omero:
Odissea, p. 722.
611 O narrador já havia chamado atenção para a atuação de Atena no sentido de angariar
dádivas para Odisseu, no v. 121, “graças a Atena magnânima”; ver I. de Jong, A narratological
commentary on the Odyssey, p. 319.

353
efetivamente fará, por exemplo, com Eumeu no Canto 14 (“quieto”, akéon, v.
110) e com os pretendentes nos Cantos 17 (akéon, v. 465) e 20 (“não falou”, oú ti
proséphe, v. 183).612
Ao responder, Odisseu coloca-se no seu devido lugar, notando como é
árduo para um humano o reconhecimento quando a deusa pode se assemelhar a
toda e qualquer pessoa – aparentemente um comentário sobre a transformação
dela de pastor em mulher, recém-ocorrida (v. 312-313). Em seguida, reconhece
o auxílio divino em Troia, mas lamenta o desaparecimento de Atena até sua
chegada à terra dos feácios (v. 314-323), para concluir dizendo (talvez em tom
de provocação) não acreditar que está em Ítaca – devia se tratar de uma trapaça
da deusa (verbo eperopeúo; v. 324-328). A tirada vai estimular novos elogios
da parte de Atena (“és assim, muito atento, e perspicaz, e contido”, v. 332),
com os adjetivos a indicar prudência e autocontrole,613 junto com a explicação
relativa ao rancor do Treme-terra (“não quis contra Posêidon lutar”, v. 341) e a
apresentação, por fim, da ilha livre de qualquer neblina (v. 344-351). Há, porém,
uma dificuldade notada pelos comentadores nos versos 322-323: “até que por
fim na rica terra dos varões feácios/ me encorajaste e pra pólis me conduziste,
tu mesma”. Como o herói pode afirmar isso se no Canto 7, quando Atena o
introduziu na cidade feácia sob o disfarce de uma jovem (v. 14-81), não houve
nenhuma indicação de que ocorreu um reconhecimento? A ausência lá de
qualquer comentário nesse sentido, pelos personagens e o narrador, é ainda
mais estranha por se tratar de uma passagem em que esse tópico é claramente
assinalado: os feácios não puderam reconhecer Odisseu porque Atena derramara
uma névoa sobre o herói. Sendo os elementos no geral semelhantes ao deste
Canto 13, não esperaríamos que, em tendo havido um reconhecimento mútuo
entre deusa e herói, o fato tivesse ficado registrado?614 Ou, na verdade, Odisseu
não a teria reconhecido então e só agora, retrospectivamente, infere uma
motivação divina, como propõe Irene de Jong?615 É importante lembrar que,
embora aqui a deusa fale vagamente em ter ajudado na obtenção de presentes
e em ter tornado o herói querido a seus anfitriões, a colaboração direta de Atena

612 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 347-348.


613 V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 727.
614 Scott Richardson coloca esse possível reconhecimento no Canto 7 na lista das informações
“escondidas” pelo narrador da Odisseia; ver seu “The devious narrator of the Odyssey”, p. 356.
615 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 331.

354
envolveu não só tirá-lo de dificuldades no mar, no Canto 5 (v. 382-7 e 426-437),
mas também, já na Esquéria (Canto 8), em embelezá-lo (v. 17-21) e, disfarçada
de homem, incentivá-lo na prova do disco (v. 193-199). Vale destacar ainda que
ao final do Canto 6, logo após o herói se queixar de uma falta de auxílio da sua
protetora (algo que não era verdadeiro), o narrador interveio para dizer que
a deusa o escutava, mas que não podia aparecer frente a frente por causa da
cólera de Posêidon (v. 324-331).616
Diante desses elementos, a meu ver deve-se dizer que não houve reconhe-
cimento de fato no Canto 7, conforme propõe de Jong. No entanto, mais do que
simplesmente trabalhar com uma inferência retrospectiva, o que Odisseu parece
querer fazer aqui é, dentro do jogo de esperteza, se “autopromover” admitindo
um reconhecimento contemporâneo aos fatos que não houve – justamente por-
que, como a citada cena do Canto 6 e esta do Canto 13 nos mostram, seu conheci-
mento, em relação ao da deusa, é limitado. Nesse sentido, o “tu mesma” do verso
323, enfático em sua posição final (“me conduziste tu mesma”, égages auté), pode
ser lido como um exagero que trai essa farsa odisseica. Parafraseando Fernando
Pessoa, o que temos aqui é um “te reconheci outrora agora”: o herói, diante do
fracasso do não-reconhecimento na cena presente, tenta espertamente safar-se
com a indicação de um reconhecimento no passado do qual só tardiamente – e
por interferência das palavras de Atena – se dá conta.617 Trata-se então de uma
resposta ao “não me reconheceste” de Atena que só reafirma sua distância em
relação ao divino, mas que simultaneamente o aproxima – pela argúcia e sagaci-
dade – da natureza de sua interlocutora, que por isso o felicita.
Os acertos finais, depois de o herói dirigir um clamor às ninfas, marcam
precisamente essa dependência de Odisseu (v. 361-438) – na ocultação dos
presentes dos feácios, na construção do plano contra os pretendentes (com a
ordem de que fosse primeiro à cabana do porqueiro Eumeu) e sobretudo na
mágica transformação física, ao ser tocado pela “vara” de Atena (rhábdoi, v.
429). A condição dependente, a ecoar a situação do filho na “Telemaqueia”,
fica resumida no momento em que ele pede diretamente à deusa que lhe injete
“furor multicorajoso” (ménos polutharsés, v. 387) e “urda uma astúcia” (mêtin
húphenon, v. 386, retomando o verso 303, mêtin huphéno, dito por ela), depois

616 Para a discussão do problema, ver A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p. 147
e 149-150.
617 É nessa linha de leitura que vai o comentário de V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 725.

355
de admitir de modo singelo que, sem tal ajuda divina, teria tido o mesmo destino
que Agamênon tivera. O disfarce – ocupando todo o trecho final do Canto 13 –
sobressai como a esperteza principal, dando um sentido a mais ao polútropos
(“multiforme”) que qualifica o herói no verso de abertura da Odisseia, além de
figurar como retorno a um papel a que Odisseu já estava acostumado, segundo
o relato de Helena sobre sua incursão ao interior das muralhas de Troia enquanto
mendigo (Od. 4, 244-250).618 Aqui, no entanto, trata-se do rei indo não a um
lugar estranho, mas voltando ao seu próprio palácio na condição social mais
baixa, o que representa um desafio extra de ocultação. Por outro lado, no uso de
ágnostos (v. 397: “agora irreconhecível te faço”), pode haver adicionalmente a
ideia de “ignorado”, “ignoto”, isto é, de uma “invisibilidade” social que favorece
a atuação do herói. O homem “desfigurado” (aeikélios, v. 402), vestido com um
“trapo que detestaria um homem de ver vestido” (v. 400), é no final das contas
um homem sem a estima coletiva, como o idoso pintado por Mimnermo, átimos
e ágnostos, sem honra e sem reconhecimento (fragmento 5W):

mas é como um sonho – de duração pouca –


a estimada (timéesa) juventude: pois a penosa e disforme
velhice (gêras) depressa à cabeça pende,
odiosa e sem-estima (átimon); ela deixa o homem ignoto (ágnoston)
e, vertida em volta, trava a mente e os olhos.

A mutação física operada pela velhice torna o ser humano


simultaneamente irreconhecível ao olhar físico e ignorado ao olhar público,
segundo nos diz o poeta elegíaco. Não por acaso, é num idoso que Odisseu é
primeiro transformado, e só depois em pedinte, ficando assim duplamente
invisível, pela decrepitude e pela condição social:

Assim falou, e então nele tocou com a vara Atena.


E já ressecou a bela carne dos flexíveis membros,
destruiu o loiro cabelo da cabeça, em volta pôs
dos membros todos a pele de um ancião bem idoso (palaioû gérontos)
e embaciou depois os dois olhos antes tão bonitos.

618 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 338-339, que destaca as peque-
nas diferenças entre o anúncio da transformação por Atena e o modo como efetivamente se dá.

356
E em volta dele, trocando-o, jogou vil andrajo e túnica.
(Od. 13, 429-434)

Embora nada seja dito por Atena ou por Homero no momento da trans-
formação, sabemos que, num poema em que a hospitalidade é tópico cen-
tral, a figura do velho mendigo que busca ser recebido e alimentado é muito
oportuna não apenas por conta da invisibilidade geral (que facilita a atuação
do “juiz-vingador”), mas também para poder se testar, num grau máximo, a
justiça de quem hospeda tal convidado: como pode o aristocrata tratar bem
quem preferiria não acolher em casa, por sua posição social baixa? A existência
mortal transitória, contudo, indica que se trata de um estado, como outros,
capaz de atingir qualquer um de nós, e essa consciência profunda deve levar
o anfitrião justo ao respeito. Com isso, o disfarce, e as mentiras cheias de revi-
ravoltas que vêm com ele, servem para que Odisseu explore também o tema
relevante da variabilidade da vida humana, ajudando assim a mimetizar em
parte o que passou desde que saiu de Troia, e o que poderia ser agora a sua
situação real.619 Peter Jones diz acertadamente em seu comentário que, a par-
tir do Canto 14 e até a matança dos pretendentes no Canto 22, Odisseu “não
deve apenas se parecer com um mendigo: deve agir como um”.620 Dominando
como domina a linguagem sedutora (tal qual um cantor) e tendo a experiência
que tem dos errores, é possível dizer que o herói já traz em certa medida esse
mendigo dentro de si, e de novo sua “atuação”, como aconteceu com Atena,
será contígua à sua própria realidade.
Talvez nenhuma outra passagem explore tão bem esses elementos quan-
to a da conversa do senhor disfarçado com seu servo, na qual os papéis se inver-
tem e um ocupa temporariamente a posição do outro: é o porqueiro que está
em situação superior à do dono. O encontro ocupa dois cantos, o 14 e parte do
15, em geral negligenciados por conta da falta de ação;621 é preciso, no entanto,

619 Ver S. Murnaghan, Disguise and recognition in the Odyssey, p. 15 e 18.


620 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 127 e 128. Em pelo menos mais quatro ocasiões a imagem
de velho mendigo, que precisa se apoiar num centro, volta a ser explicitada: no Canto 16 (v.
273), no Canto 17 (v. 202-203 e 337-338) e no Canto 24 (v. 157-158), com a repetição das mes-
mas fórmulas. O cetro, aliás, que Odisseu recebe de Atena no Canto 13 (skêptron, v. 437), é
reforçado, enquanto instrumento de apoio, pela solicitação que no Canto 17 o pedinte faz a
Eumeu de um “bastão” (rhópalon, v. 195-196) para caminhar até o palácio.
621 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 164.

357
prestar atenção àquilo que os torna absolutamente indispensáveis ao desenvol-
vimento da Odisseia, sobretudo o Canto 14. Quero destacar aqui três pontos: o
tema da justiça presente na crítica contundente de Eumeu aos pretendentes (já
vista em parte no Capítulo 3); a reafirmação enfática do status quo, através do
comportamento do escravo em relação aos bens pelos quais zela e de seus elo-
gios ao rei ausente;622 e a sofisticada construção do éthos do mendigo por parte
de Odisseu, que corresponde a um resgate definitivo da sua natureza esperta.
Antes, vale notar que a figura digna do porqueiro e a presença do senhor que
age como mendigo produzem, no ambiente da cabana em que se passa a cena,
um cruzamento curioso entre o baixo e o elevado, com o uso de fórmulas em
contexto aparentemente deslocado, o que lhes daria um ar paródico, segundo
alguns estudiosos.623 Prefiro, porém, tomar isso que parece fora de lugar como
um elemento que vem dignificar os humildes interlocutores – humildes pelas
circunstâncias, mas não pela natureza (Eumeu é de origem nobre, como nos
conta no Canto 15). Note-se ainda, no plano formal, como dado que merece re-
gistro, a presença do narrador “avaro”, que nos barra o contato com as motiva-
ções dos personagens (sobretudo de Odisseu), junto com um largo predomínio
do diálogo, bem dentro do espírito teatral que vemos, por exemplo, no Canto
1 da Ilíada.624 O resultado é uma conversa dinâmica, em que o rei e Eumeu vão
interagindo num crescendo, com seu andamento sendo basicamente determi-
nado pela manipulação inteligente feita por Odisseu dos elementos em jogo.
Vejamos primeiramente como atua a figura de Eumeu, mencionado pela
primeira vez, de passagem (“o porqueiro”), no Canto 4 (v. 640).625 Sua faixa etária
não nos é revelada, mas o fato de ele se referir a Odisseu como “irmão mais
velho” (ethêion, v. 147), tendo sido criado junto com a irmã menor do herói, a de
resto desconhecida Ctímene (Od. 15, 363-5),626 nos faz pensar que teria de nove a

622 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 167.


623 W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 216 e D. Monro, Homer’s Odyssey, vol. 2, p.20.
624 A. Bowie fala em 76,6% de diálogo: são 17 discursos, que ocupam 409 dos 533 versos;
ver seu Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p.170. Ver também I. de Jong, A narratological
commentary on the Odyssey, p. 342 e 349.
625 Notado por R. Scodel, Listening to Homer, p. 155.
626 O termo etheîon serve para se referir a uma figura masculina de afeto e autoridade, po-
dendo ser usado para um “irmão mais velho”, como no caso de Páris falando com Heitor (Il.
6, 518) ou Menelau com Agamênon (Il. 10, 37), ou para um “tio”, no caso de Iolau falando com
Héracles no Escudo de Héracles, de Hesíodo (v. 103); ver A. Bowie, Homer: Odyssey – Books

358
dez anos quando da partida do rei para Troia, estando agora por volta dos trinta
anos de idade.627 Assim podemos entender que era ainda um “menino”, com
uma espécie de “babá”, quando foi transformado em escravo (Od. 15, 450), e
pode no presente se comportar como figura paterna em relação a um Telêmaco
que está deixando a adolescência (Od. 16, 11-35). Seja como for, a relação dele
com Odisseu era ao mesmo tempo de inferioridade e intimidade familiar, e o
sentimento que revela para o Odisseu-mendigo é, ironicamente, de saudade
(póthos, v. 144) – mais forte que a própria falta que sentia dos pais, tão gentil era
seu senhor (épion ánakta, v. 139-143), que o “amava” e por ele “se afligia” (ephílei
kaì kédeto, v. 146). A simpatia que o narrador sente pelo personagem do porqueiro
– indicada pela figura da apóstrofe, aplicada só a ele em toda a Odisseia628 –
anda de braços dados com esse apreço reiterado do servo em relação ao senhor,
reforçando a percepção de que seu papel é ficar “aflito com o sustento” do herói
(biótoio kédeto, v. 3-4) e criticar duramente os pretendentes, que o consomem
(v. 92-108). De todo o poema, talvez seja aqui, pela boca de Eumeu, que mais
cabalmente se constrói a ideologia aristocrática tipicamente homérica, segundo
a qual o “melhor” (áristos) deve deter as riquezas e a manutenção da ordem.
Duas passagens fundamentais já haviam destacado em Ítaca, em contraste com
a situação presente, a realeza benigna de Odisseu, no Canto 2 (v. 230-234, fala
de Mêntor, repetida depois por Atena no Canto 5, v. 8-12) e no Canto 4 (v. 687-
695, fala de Penélope), mas o que temos aqui é um quadro terrível, pintado com
vivacidade pelo servo, em decorrência da ausência prolongada do líder. Por isso,
os termos do vocabulário jurídico-moral ressaltam em duas falas em sequência
do porqueiro (v. 56-71 e 81-108), como thémis (“regra”, v. 56), díke (a “justiça”
ou “o normal”, v. 59, 84 e 90), ópis (“observância”, v. 82 e 88) e o enfático
hupérbion (“com soberba excessiva”, “hiperviolento”, v. 92 e 95), além de três
menções à figura de Zeus (v. 57, 86 e 93).629 Esse escravo saudoso do rei, além
de se mostrar hospitaleiro e justo para com o mendigo, reafirma a descrença

XIII and XIV, p. 187. O fato de Odisseu ter uma irmã não entra em contradição com a fala de
Telêmaco no Canto 16 (v. 118-120), quando chama atenção para a linhagem de filhos únicos,
Arcísio-Laertes-Odisseu-Telêmaco: fica subentendido que o importante aí é destacar os fi-
lhos únicos do sexo masculino.
627 É o que sugere V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 777.
628 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 345.
629 Ver a esse respeito W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 219, e P. Jones, Homer’s
Odyssey, p. 131.

359
geral dos familiares em relação ao retorno de Odisseu, ironicamente duvidando
do que é verdade (a volta, já acontecida diante de seus olhos) e crendo no
que é mentira (a “história cretense”): antes mesmo da ficção construída pelo
mendigo, quando este insiste em trazer notícias animadoras sobre a volta
do rei, Eumeu já mostra não estar aberto às enganações habituais dos que
vagam (v. 122-138), e logo depois de ouvir o relato faz questão de reafirmar sua
incredulidade (v. 361-368 e 386-389).630 Apesar, no entanto, dessa posição firme,
é possível perceber certa progressão nos seus modos com o estranho, a quem
interpela primeiro como “velho”/“estrangeiro” (géron, geraié/xeîne, v. 37, 56, 80,
122, 131, 166, 185), termos que efetivamente continua a empregar depois (v. 402
e 508), mas que dão espaço também, ao tomar conhecimento do que o hóspede
sofreu, a “estrangeiro infeliz” (deilè xeínon, v. 361), “velho multilutuoso” (géron
polupenthés, v. 386) e “desafortunado estrangeiro” (daimónie xeínon, v. 443).631
Mas a compaixão, que humaniza ainda mais essa figura, não altera sua postura
final: é ainda sólido em sua descrença – tal como Odisseu, na realidade, queria
– que ao final do canto ele sai para cuidar dos porcos, mostrando a mesma
preocupação com o sustento do senhor (biótou, v. 527) que apresentara no início
da passagem (biótoio, v. 3), o que é motivo de alegria para o Odisseu, que a tudo
observa. Porqueiro e porcos são do começo ao fim da cena o índice da posição
do herói enquanto senhor de escravos e detentor de riquezas, posição que ele
está prestes a retomar por direito, com o aval divino.
Se Eumeu é essa figura lhana e reticente ao longo de toda a cena, é-o tam-
bém em certa medida por conta da atuação magistral de Odisseu, que, conhe-
cendo de antemão as vicissitudes por que passara seu escravo, explora para sua
persona de mendigo uma história de sofrimento e errores com a qual o porqueiro
se identificaria, uma vez que este, como dirá no Canto 15, também muito penara
e vagara (v. 401).632 Esse aspecto serve, como vimos, para “amolecer” o anfitrião
(que não descrê das turbulências vividas pelo hóspede), ao mesmo tempo que
contribui para evitar uma irritação excessiva com o lado cúpido e mentiroso do

630 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 344 e 356, e C. Emlyn-
-Jones, “True and lying tales in the Odyssey”, p. 2.
631 Notado por I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 341.
632 Como afirma C. Segal, a mentira de Odisseu é um “correlato adulto” da de Eumeu: am-
bas, com seus enredos “protonovelísticos”, apontam para a “precariedade da identidade e do
status”; ver C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p.173-175, e também, C. Traham
“Odysseus’ lies (Odyssey, Books 13-19)”, Phoenix 6/2 (1952): 31-43, p. 37.

360
mendigo, que Odisseu deve igualmente explorar para “convencer” no papel de
pedinte carente. Parecer mendaz (sobretudo ao anunciar a volta do rei desapa-
recido) é parte essencial do disfarce; dizendo a verdade sobre aquilo em que o
interlocutor menos crê, o herói se esconde ainda mais de Eumeu, pois age como
o porqueiro espera que um mendigo o faça. Para que isso não produza, contudo,
uma aversão total, Odisseu tem de elaborar uma história que seja envolvente e
tocante para o seu anfitrião: este pode então se mostrar justo e de bom grado
o acolher, sem no entanto esconder o descontentamento com a repetição do
padrão – contar qualquer inverdade sobre a volta do rei ausente para conquistar
um benefício a mais. Odisseu, portanto, a despeito do trecho que induz Eumeu
a tomar como falso, ainda assim faz o servo detectar uma beleza de forma e de
conteúdo nessa sua história da passagem da nobreza à mendicância, e é essa im-
pressão que o porqueiro externará a Penélope mais à frente, no Canto 17 (v. 513-
527), ao destacar o feitiço – próprio de um aedo – presente nas palavras que ouviu,
numa reiteração da harmonia que também Alcínoo detectara no Canto 11 (v. 367-
368). Em face disso podemos dizer que, ao fim e ao cabo, importa menos para
Eumeu que aquilo que mendigo lhe diz (e, para nós, também aquilo que Odisseu
diz no apólogo) seja no geral estritamente verdade: os acontecimentos são ple-
nos de significado e, se há uma “multiesperta intenção” da parte de quem conta,
como diz o narrador no Canto 13 (v. 255), ela não é nociva, mas a serviço de uma
apresentação “com ciência” (epistaménos, Od. 11, 368), de quem é “por deuses/
ensinado” (theôn èx/ dedaós, Od. 17, 518-519). A falsidade, mesmo que existindo,
apresenta-se propositada e pelo lado direito, de tal maneira que, vista por esse
ângulo, é em certo sentido sempre “verdadeira”.633
Mas, se com os feácios mesmo o que era possivelmente fantasia devia
soar como verdade, com Eumeu o que é efetivamente verdade deve soar como
fantasia. Ciente disso, e no pleno domínio de sua “esperteza” – sublinhada já
no v. 31 (kerdosúnei), quando chegando à cabana finge medo dos cães e adota
postura submissa –,634 Odisseu, em sua primeira fala mais extensa (v. 115-

633 Ver Hugh Parry, “The apólogos of Odysseus: lies, all lies?”, Phoenix 48/1 (1994): 1-20, p.
15 e 18.
634 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 344, e W. Stanford, The
Odyssey of Homer, vol. 2, p. 217. Lembre-se do cão como “símbolo do declínio da casa” no en-
contro com Argo, no Canto 17 (v. 62-64); a esse respeito, ver Ruth Scodel, “Odysseus’ dog and
the productive household”, Hermes 133/4 (2005): 401-408, p. 402-403 e 406-407, e R. Martin,
Homer: The Odyssey, p. 396 e também p. 394.

361
120; a anterior fora apenas uma saudação, v. 53-54), chama Eumeu de “caro”
(phíle) e já lhe pergunta o nome do rei de Ítaca, para ver se poderia “dar dele
informe” (eí ké min aggeílaimi). A intimidade e a afobação forjadas, para parecer
o “interesseiro” que todo mendigo era, depois de ter já se alimentado “com
voracidade” (harpaléos, v. 110),635 provocam a já citada fala de Eumeu, em
que sublinha a descrença em “varões que vagam necessitados de amparo”
(komidês kekhreménoi ándres alêtai) e “não querem nem vagas verdades dizer”
(oud’ethélousin alethéa muthésasthai, v. 124-125).636 O porqueiro introduz ainda,
na sequência, o motivo da roupa como presente-símbolo da hospitalidade,
dizendo que o velho mendigo logo fabricaria um “épico” (épos) para receber em
troca “capa e túnica” (khlaînán te khitôná te, v. 131-132):637 ele percebe estar,
portanto, diante do típico pedinte, figura que, como vai dito nos Trabalhos e dias
de Hesíodo, incomoda dizendo “muitas coisas vãs” e “inútil pasto de palavras”
(etósia pollá/akhreîos epéon nomós, v. 399-403). Note-se que nessa mesma fala
a palavra “Odisseu” é retida pelo servo quase até o fim (v. 144), trazendo à
tona mais uma vez o motivo da supressão do nome – só que aqui é o próprio
personagem quem explicita a dificuldade da nomeação (v. 145-146), que tinha
evitado nos três discursos anteriores.638 O motivo da dificuldade não fica claro:
é possível pensar em um medo em relação ao poder do nome, numa conexão
nada casual com o passo central envolvendo o Ciclope, que se apoderara do
“Odisseu” enunciado pelo herói para amaldiçoá-lo. No contexto presente, ele
poderia ser usado indevidamente por estranhos oportunistas, dispostos a falar

635 Detalhe da “imitação” de um mendigo notado por A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII
and XIV, p. 181, e I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 347.
636 O jogo, que tento reproduzir introduzindo o adjetivo “vagas” junto a “verdades”, no ori-
ginal é simplesmente entre o substantivo alétes, “vagabundo”, “errante”, em sua forma plural
alêtai (v. 124), e o adjetivo neutro plural alethéa, “coisas verdadeiras” (v. 125), com o apoio ainda
do verbo aleteúo (aleteúon, v. 126). Note-se que assim fica destacada a semelhança de Eumeu
com Odisseu não só pela justiça, como também pela habilidade verbal, que ele já demonstrara
em outro jogo (v. 69), ainda que no verso 372, ao se definir como apótropos, “nada versátil”, ele
pareça marcar involuntariamente sua diferença em relação ao polútropos senhor.
637 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p.350. As roupas têm aqui
um significado extra, porque no contexto mais humilde elas podem ser “questão de vida ou
morte”, como aponta C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 168. Ver ainda W.
Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 222.
638 Como aponta I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 342.

362
qualquer coisa sobre o paradeiro do senhor local.639 Parece-me que essa é a
melhor explicação, porque efetivamente é o que Odisseu – para se “incriminar”
– fará logo a seguir, já explorando seu próprio nome (outra ironia) para pedir as
vestimentas que Eumeu apontara como meta dos mentirosos:

Caro, por negares tudo inteiramente e dizeres


que aquele não mais virá, tens o ânimo sempre incrédulo.
Mas eu não direi de um jeito qualquer, mas com juramento,
que Odisseu está voltando. Quero um ‘prêmio por informe’ (euaggélion)
assim que aquele, chegando, atingir a sua casa:
veste-me com capa e túnica, essas belas vestimentas.
Mas nada posso aceitar, por mais necessitado, antes!
Pois a mim é odioso como os portões do Hades esse
que, sucumbindo à penúria, fala só enganações (apatélia).
(Od. 14, 149-157)

O par “capa e túnica”, bem como o nome “Odisseu”, apareceram pou-


quíssimos versos antes na boca precavida do servo, e o oportunismo do hóspe-
de, que insiste no “caro” (phíle), é patente. A obsessão pelo convencimento, a
menção ao juramento e a recusa em aceitar de imediato o “prêmio” (euaggé-
lion) pela valiosa informação do retorno do senhor – são todos empregados
como lugares-comuns da fala ladina e interesseira, aqui coroados ainda por dois
versos que cabem bem na boca do franco Aquiles (“Pois a mim é odioso...”, v.
156-157 ~ Il. 9, 312-313), mas não na do astuto Odisseu, precisamente a figura
censurada na Ilíada pelas “enganações” que está condenando aqui (apatélia, v.
157, retomando o mesmo termo usado por Eumeu, v. 127). Ou melhor, cabem:
é como se Odisseu tivesse aqui de fingir que é um sincero Aquiles, só para ficar
evidente para nós como é mais do que nunca Odisseu (é da sua natureza ser ou-
tro), e para ficar mais evidente do que nunca para Eumeu que adotar a pose da
sinceridade é a estratégia-mor do mentiroso. A grande ironia, claro, reside no
fato de que o que deve parecer mentira (a volta) é verdade, e portanto Odisseu
está sendo verdadeiro como Aquiles costuma ser. No segundo momento dessa
fala (v. 158-164), o herói já vai pronunciando o juramento prometido e indicando

639 Uma das sugestões dadas por A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p. 186-187,
e também W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 221.

363
um retorno iminente – outro dado apto a reforçar a incredulidade do interlocu-
tor. A informação precisa sobre a volta do senhor, “nessa mesma lua nova” (o
problemático lukábantos, v. 161, que analisamos no Capítulo 4 em relação a seu
emprego para Penélope no Canto 19), ao que tudo indica só piora o quadro. O
hóspede, antes mais contido, vai aos poucos se soltando e controlando a con-
versa, o que nos mostra como Odisseu executa à perfeição seu papel: a falação
vai descortinando a ganância e o interesse.640 Conforme ele bem sabe, o com-
portamento despudorado é o que mais convém: “a vergonha (aidós) não é boa
companheira do indigente”, dirá Telêmaco (Od. 17, 347), e Penélope, que “Um
errante com vergonha (aidoîos) é ruim” (Od. 17, 578). A reação de Eumeu, que
imagina ter diante de si o tal pedinte desavergonhado, é negar qualquer prêmio
por informação (v. 166-169) e desviar a conversa para outro tópico, solicitando
ao mendigo que contasse sua história (v. 185-190).
A segunda “mentira cretense” (v. 192-359), a mais elaborada da Odisseia,
novamente trabalha com “alomorfos” da experiência real do herói,641 com o deta-
lhe adicional de que aqui traz uma piscadela dirigida a nós; veja-se esta afirmação
do mendigo a Eumeu, ao se lembrar do seu antigo “valor” (aretês, v. 212): “Mas
penso que tu, ainda assim, olhando o restolho/ reconheces...” (all’émpes kalámen
gé s’oíomai eisoróonta/ gignóskein, v. 214-215). Pelas sobras da colheita poder-se-
-iam perceber os grãos produzidos: a metáfora tem o propósito de sugerir o gran-
de homem do passado que a velhice deixaria entrever,642 mas para nós, cientes
do disfarce e do motivo do reconhecimento, trata-se também de um jogo com
a identidade real que poderia ser intuída. Na longa e atribulada história, as infor-
mações sobre Odisseu vêm quase no fim (v. 321-335): conta ter visto junto aos
tesprotos as riquezas que o herói acumulara, e que tudo estava pronto para sua
partida assim que voltasse do oráculo de Dodona. Ao contrário do que fará nos
Cantos 19 e 24, o estranho não diz ter visto pessoalmente Odisseu – algo com um
apelo emocional maior junto a Penélope e Laertes, e que talvez soasse excessiva-
mente falso aos ouvidos do já incrédulo Eumeu.643 Vemos que o mendigo alcança
seu objetivo quando o porqueiro emite, no começo e no final de sua fala seguinte,

640 Ver comentários de A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p. 187 e 218.
641 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 353-354, para detalhes.
642 Ver A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p. 197.
643 C. Traham “Odysseus’ lies (Odyssey, Books 13-19)”, p. 39.

364
novas censuras às mentiras e enganações (v. 365 e 387). Mais importante ainda:
nessa mesma fala ficamos sabendo de um “etólio” que outrora iludiu Eumeu, di-
zendo ter visto Odisseu junto aos cretenses e anunciando sua volta próxima, com
riquezas, em momento igualmente preciso, “no verão ou na colheita” (v. 378-385).
O trecho, ecoando o que o mendigo acabara de dizer, parece ser a confirmação de
que Odisseu – apresentando-se como cretense – molda muito conscientemente
seu relato com base numa tradição de invencionices que remete sempre à ilha de
Creta, para assim tornar-se mais suspeito.644 O pedinte, no entanto, como bom
pedinte, não pode ceder aos apelos do anfitrião para que não mentisse: ele volta à
carga propondo agora um “trato” (rhétren), segundo o qual, se Odisseu viesse de
volta, Eumeu o vestiria – a ele, mendigo (mas a ressalva sintática, naturalmente,
é desnecessária...) – com “capa e túnica” (khlaînán te khitôná te) e, além do mais,
o transportaria a Dulíquio; caso estivesse mentindo, aceitaria ser arremessado do
alto de uma rocha (v. 393-400). O “veste-me com capa e túnica” do verso 396 re-
toma a mesma fórmula do pedido feito já no verso 154, sublinhando assim a ideia
fixa do hóspede, que tem ainda a ousadia de incluir o transporte no novo acordo.
Ao porqueiro também não deve ter passado despercebida a presença oportuna
dessas mesmas roupas na história cretense que acabara de ouvir – o antes nobre
mendigo recebera “capa e túnica” do rei dos tesprotos (v. 320), e depois ficara sem
elas (substituídas pelos andrajos atuais) no momento em que caiu na servidão (v.
341). Numa resposta curta, em que é possível detectar certo sarcasmo e impaci-
ência, o porqueiro recusa-se mais uma vez a cair na lábia do velho a quem acolhe,
e o chama para a ceia, encerrando a conversa (v. 402-408).
Um detalhe: por que um pouco mais adiante Odisseu chama o porqueiro
de “Eumeu” (v. 440), se não perguntou seu nome? Trata-se de um cochilo de
Homero ou de uma escorregadela do herói, que por um momento deixa esca-
par quem é e o que sabe? Vincenzo Di Benedetto diz que, com a presença dos
demais porqueiros (a partir do v. 410), a menção ao nome fica subentendida e
Odisseu pode então empregá-lo.645 Mas mais relevante talvez seja notar que
esse nome dito inesperadamente chama nossa atenção para o que não é dito:
Odisseu, apesar da solicitação feita por seu anfitrião (v. 187), não apresenta

644 Ver A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p. 212, e I de Jong, A narratological
commentary on the Odyssey, p. 356.
645 V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 776. Ver também A. Bowie, Homer: Odyssey – Books
XIII and XIV, p. 221.

365
aqui um nome falso, como fará com a esposa no Canto 19 (“Éton”, v. 183) e com
o pai no Canto 24 (“Epérito”, v. 396). Ao ocultar o principal (como bem notou
Jacyntho Brandão),646 pode-se dizer que o herói colabora oportunamente para
o sentimento de desconfiança de quem o recebe – como, aliás, na mencionada
experiência com o etólio, igualmente anônimo.
Finalmente, depois do banquete/sacrifício (v. 410-456) e com a chegada
da noite chuvosa (v. 457-458), Odisseu decide então “testar” o porqueiro (verbo
peiretízo, v. 459), para verificar se lhe daria, nessa circunstância crítica, a capa
(khlaînan, v. 460) antes recusada. A estratégia é contar uma história em que o
propósito interesseiro fique escancarado, para que assim o herói possa ver se o
servo é, tal como dissera (v. 389), temente a Zeus hospitaleiro – especialmente
num caso em que o hóspede se mostra excessivo em seu descaramento. Diante
de uma plateia de porqueiros, Odisseu abre seu discurso vestindo agora a más-
cara do bêbado inconveniente:

Escutai, Eumeu e vós todos, demais companheiros:


com clamor direi um épico (euxámenós ti épos eréo), pois é o vinho que ordena,
louco, o qual conduz (ephéeke) ao canto (aeîsai) mesmo alguém multipensante,
e também ao riso mole (gelásai), e também induz à dança (orkhésasthai anêke),
e um épico produz (ti épos proéeken); sim, melhor se fosse não dito.
Mas já que logo de início piei (anékragon), não ocultarei.
(Od. 14, 462-467)

Odisseu explora de início a grandiloquência que o “louco” (eleós) vinho


estimula (“com clamor direi”), intensificada pela formulação em crescendo
(“canto”, “riso”, “dança”, “épico”, v. 464-466) e pelo polissíndeto (kaí, “e”,
empregado três vezes, v. 465-466), e rematada pela antecipação do sentimento
de vergonha e arrependimento, “melhor se fosse não dito” (v. 466). O verso
final (v. 467), contudo, reafirma o (fingido) descontrole presente, que de modo
verossímil – apesar da lucidez mínima – não pode ser domado por melhor juízo.
Ressalte-se o jogo divertido, próprio do comportamento do ébrio, com o verbo
híemi, utilizado com três prevérbios diferentes – ephíemi, “conduzir”, aníemi,
“induzir”, e proíemi, “produzir” –, verdadeiro “jingle” nos dizeres de William

646 J. L. Brandão, Antiga musa (arqueologia da ficção), p. 156-157.

366
Stanford, que em seu comentário destaca o coloquialismo da passagem,
reforçado pelo uso único em Homero do verbo anakrázo, traduzido aqui por
“piar”.647 O humor cresce com o manifesto propósito de se apresentar “um
épico” (ti épos, em 463 e 466), o mesmo “épico” que Eumeu já previra que o
velho mendigo “fabricaria” para obter uma capa (épos paratekténaio, v. 131-132).
O termo também entrará nas expectativas de Penélope sobre o que vai ouvir do
pedinte no Canto 19 (eípei épos, v. 98). Épos costuma ser traduzido basicamente
por “palavra” ou “dito”, sendo admitidos, no entanto, diversos matizes
semânticos segundo o contexto; nas passagens aqui citadas – dos Cantos 14 e
19 –, a opção mais corrente é por “conto”, “narrativa” ou “história”. Parece-me,
porém, que a associação aí com a figura do mendigo-cantor, com sua postura
bombástica e bêbada, permitiria uma versão mais ousada e esclarecedora, a
explorar justamente o sentido latente do substantivo, mesmo em Homero, de
“canto”, “versos épicos” (no plural, épea: Od. 8, 91; e 17, 519; e Il. 20, 204).648
Em seu “entusiasmo báquico”, o mendigo estaria assim revelando, mais do que
seu lado “narrador” (já apresentado), sua faceta cômica de “cantor épico”: sua
história será sobre a emboscada de que participou, em Troia, junto com Odisseu
e Menelau.649 A relação mendigo-cantor não é nada casual, servindo para
mostrar o quanto poderia haver, retrospectivamente, de mendigo trapaceiro no
Odisseu quase-cantor do apólogo, e o que há de quase-cantor nesse Odisseu
mendigo do encontro com Eumeu. A aproximação entre essas duas “profissões”,
como sabemos, é evidenciada fora da Odisseia pelo verso que as emparelha nos
Trabalhos e dias de Hesíodo (“mendigo tem de mendigo inveja, e aedo de aedo”,
v. 26), e mesmo pela figura imaginária de um Homero itinerante.650

647 Ver A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p. 225, W. Stanford, The Odyssey of
Homer, vol. 2, p. 235, e P. Jones, Homer’s Odyssey, p.136. Para uma visão do contexto como
o de uma “performance simposial”, ver C. Werner, Memórias da Guerra de Troia, p. 216-225.
648 Andrew Ford, por exemplo, traduz épos por “tale” em Od. 14, 131 e épea por “tales” em Il.
20, 2044; ver seu Homer: the poetry of the past. Ithaca: Cornell University Press, 1992, p. 35 e 65.
649 A. Bowie defende o sentido de “song” nas duas ocorrências do Canto 14; ver seu Homer:
Odyssey – Books XIII and XIV, p. 185, onde fala em “piada autorreferencial”, chamando aten-
ção para o fato de que o épos de Odisseu ao final do canto mostra que Eumeu estava certo no
v. 131. Para épos com o sentido de “poetic word” e também de “epic utterance”, ver G. Nagy,
The best of the Achaeans, p. 271-272. C. Werner (Memórias da Guerra de Troia, p. 220-221) tam-
bém fala em uso “autorreferencial”. Note-se que, ao falar do etólio que o enganou, Eumeu
emprega o termo mûthos, v. 379.
650 Ver C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 149, 155 e 162.

367
Essa passagem, em especial, com sua ênfase no descontrole verbal, nos
faz ainda pensar no epíteto polúainos, “multíloquo”, pouco aplicado ao herói
em Homero. Como vimos anteriormente, em seu sentido ativo o adjetivo faria
referência às “muitas histórias” ditas por Odisseu – seu lado loquaz, de quem faz
uso privilegiado da linguagem, algo sorrateiramente indicado por ele mesmo a
Eumeu neste Canto 14, quando diz que “por um ano inteiro falaria” (v. 196-197).
Com o Ciclope, conforme apontei, de alguma forma essa habilidade mostrou-se
no final deficiente, porque o herói insistiu em falar quando deveria ter se calado.
De modo geral, no entanto, Odisseu é visto como alguém que emite “palavras
como flocos de neve” (épea niphádessin eoikóta), como está dito no Canto 3 da
Ilíada (v. 222), e sua atuação no apólogo e nas “mentiras cretenses” da segunda
metade da Odisseia é uma demonstração dessa característica tão conspícua – a
fala abundante, clara e suave.651 Pois é esse lado positivo seu, de herói “loquaz”,
que aqui deve ser apresentado internamente de modo negativo, enquanto men-
digo “palavroso”, para que para nós se confirme a conhecida habilidade verbal.
Nesse sentido, há um dado a mais na passagem que não deve ser desprezado:
depois de apresentada a pequena história, Eumeu, retomando o termo usado
pelo hóspede, refere-se a ela não apenas como “épico” – “Não disseste, não,
um épico sem proporção e sem proveito!” (oudé tí po parà moîran épos nekerdès
éeipes, v. 509) –, mas também como “fábula” (aînos, v. 508), justamente o subs-
tantivo que entra na formação de polú-ainos. Que o sentido de aînos parece ser,
no contexto, esse de “fábula”, indica-o a constatação de que todo o “épico”,
como vemos, é forjado com uma lição ou “moral” evidente: deve-se agasalhar
o hóspede necessitado, tal como na história Odisseu acabou por conseguir a
capa de que precisava.652 O relato, portanto, não foi construído “sem proveito”
(nekerdés) – e esse qualificativo aponta não só para a natureza interesseira do
mendigo, mas, de forma irônica, sem que o porqueiro disso minimamente sus-
peite, para a natureza do herói que o forjou: é a mesma pessoa que recebe a
capa na ficção e na vida real.653 Trata-se assim, internamente, de um falso elogio

651 Ver C. Traham “Odysseus’ lies (Odyssey, Books 13-19)”, p. 38.


652 R. Scodel (Listening to Homer, p. 125) refere-se à história de Meleagro no Canto 9 da Ilí-
ada como possível aînos (ainda que o termo não apareça lá), mas é preciso notar que, apesar
de narrada com o propósito claro de servir de paralelo moral, ela não é tomada internamente
como construção fictícia, tal qual acontece no Canto 14 da Odisseia.
653 Ver C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 179-181. Note-se como o “multi-
pensante” (polúphrona, v. 464) na boca do Odisseu-mendigo ecoa a referência feita ao herói

368
de Eumeu ao elogio de Odisseu a si mesmo (se quisermos abordar o sentido
alternativo de aînos em Homero),654 mas que é ao mesmo tempo, pelo contexto,
um elogio de fato, da perspectiva de quem lê/ouve o poema.
Os comentadores estão em geral de acordo quanto ao fato de que, ao
usar o termo aînos, Eumeu nada mais faz senão indicar que percebeu que se
tratava de uma “fábula”, ou seja, uma história inventada com um fim muito prá-
tico e específico.655 A destacar esse propósito, Odisseu não por acaso insere em
sua narrativa cinco vezes a palavra khlaîna, “capa” (v. 478, 480, 488, 500 e 504),
podendo assim reforçar o que já não era novidade para o porqueiro: seu modo
sempre cúpido de se manifestar. Há quase um consenso, no entanto, quanto à
inadequação dos versos que fecham o “pequeno épico”:

Fosse eu moço assim agora, e em mim fosse firme a força,


um dos porqueiros iria dar-me uma capa no estábulo,
por dupla causa: amizade e respeito a homem bravo.
Mas agora me desonram por ter vestes vis no corpo.
(Od. 14, 503-506)

Se na história contada (v. 468-502) já ficara claro que, com o estratagema


de Odisseu em Troia, ele, mendigo, obtivera a capa de que tanto necessitava
para não morrer de frio, por que o falso hóspede precisaria incluir os versos
citados acima? A “moral” da história já não estava implícita? Por que enunciá-
la de forma grosseira?656 Em Hesíodo, na fábula do falcão e do rouxinol, não
vemos precisamente uma fábula sem moral explícita (Trab., v. 202-214), apenas
elucidada pelo desenvolvimento do poema? Não tendo essa modalidade
narrativa uma existência autônoma em sua origem (como vemos aqui no Canto
14 e no poema sapiencial hesiódico), o própria contexto não deve se encarregar
de explicitar seu significado? As indagações são pertinentes, mas, em vez

pelo narrador poucos versos antes (Odusêa polúphrona, v. 424).


654 A acepção de “louvor”, “elogio”, aparece em Il. 23, 652 e 795; e Od. 21, 110.
655 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 360, W. Stanford, The
Odyssey of Homer, vol. 2, p. 233-234, R. Martin, Homer: The Odyssey, p. 392, e C. Werner, Me-
mórias da Guerra de Troia, p. 216.
656 Vemos a condenação em A. Pierron, L’Odyssée d’Homère, vol. 2, p. 71, A. Bowie, Homer:
Odyssey – Books XIII and XIV, p. 229-230, e W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 236-237.

369
de aceitar a proposta de interpolação e de condenação dos versos, prefiro
entender que essa inadequação ou grosseria final está a serviço, justamente,
da caracterização de um mendigo bêbado e inconveniente, que não apenas
constrói, de forma descarada, a história que pode lhe trazer o proveito
desejado, como ainda explicita o seu descaramento na conclusão. A. Bowie,
em seu comentário, toma como efeito indesejado aquele que, a meu ver, era o
efeito desejado: o estudioso diz que os versos estragam o modo indireto como
Odisseu fizera o pedido da capa, anulando a sutileza anterior e estabelecendo
uma petulância desnecessária, quando, na realidade, o objetivo do herói
parece ser justamente o de investir, desde a abertura da sua fala fingidamente
ébria, em grosseria e descaramento.657 Para Bowie, trata-se de uma espécie
de deslize do Odisseu-mendigo, que “não se casa bem com sua caracterização
geral no canto”, mas essa leitura só se sustenta caso não se veja petulância e
descaramento desde o diálogo anterior entre o rei e Eumeu. E, no entanto, essa
abordagem “sem vergonha”, como se tentou mostrar, já era parte integrante
da construção do éthos do mendigo, não representando assim uma novidade
incongruente no trecho final, e sim um coroamento de uma postura prévia. A
paródia dessa passagem feita por Aristófanes nas Aves (v. 924-951) – relação
apontada por Andrew Ford – confirma essa interpretação: o personagem do
“poeta”, para obter uma túnica (khíton, v. 933), ameaça contar um épos (v.
939) e, mesmo com sua intenção estando clara, faz questão de reforçar o
próposito da sua história grandiloquente (v. 945); a reação de Pisétero, que
quer logo se livrar do “pedinte” que o importuna, é de impaciência (v. 931,
940 e 948).658 Nesse sentido, os citados versos iniciais da resposta de Eumeu,
“Velho, mas é ilibada a fábula que contaste!/ Não disseste, não, um épico sem
proporção e proveito!” (v. 508-509), repetem o que vimos antes: não parecem
corresponder a um elogio de fato da parte do porqueiro, como propõe Bowie,
mas ao que tudo indica são ditos com certo sarcasmo e complacência diante
do comportamento típico de um mendigo, comportamento este que, ao não
escapar ao servo, acaba por cumprir as expectativas do seu senhor disfarçado.

657 A. Bowie, Homer: Odyssey – Books XIII and XIV, p. 229-230.


658 A. Ford, The origins of criticism: literary culture and poetic theory in Classical Greece. Prin-
ceton: Princeton University Press, 2002, p. 75, nota 32. Ford, no entanto, afirma que ao contar
seu aînos Odisseu tinha de ser “cuidadoso”, segundo o modo tradicional de um suplicante
abordar seu anfitrião (p. 76). Pela leitura que estamos propondo, Odisseu buscou ser o con-
trário: descuidado como todo mendigo interesseiro.

370
O esperto Eumeu é assim superado pelo esperto Odisseu, que se alegra ao ver
no final do canto o que já víramos no início: um porqueiro justo e preocupado
com os haveres do rei há muito desaparecido, ao lado de quem irá em breve
lutar, um porqueiro que, ao contrário de Antínoo, que tem muito e não é capaz
de compartilhar (Od. 17, 456-457), de bom grado dá ao seu hóspede do pouco
que tem.
Na sequência, nas duas vezes em que vier a se referir à história do men-
digo – primeiro para Telêmaco (Od. 16, 62-67) e depois para Penélope (Od.
17, 522-527) –, Eumeu será bastante conciso, destacando que o estrangeiro
errante é de Creta e sua última parada foi junto aos tesprotos, concisão que
parecerá confirmar sua postura incrédula;659 para a senhora, no entanto, ele
acrescentará, em resposta à solicitação dela, que o pedinte era antigo amigo
de Odisseu, e tem notícias de que está vivo e retornando com um grande te-
souro. De todo modo, antes disso, convém destacar que Odisseu introduzirá
um elemento novo na sua caracterização de mendigo, ao submeter o porquei-
ro a novo “teste” no Canto 15 (peiretízon, v. 303-306).660 Dizendo não querer
“dar despesa” aos porqueiros (verbo katatrúkho), o mendigo se oferece para
desempenhar algum tipo de atividade doméstica (drestosúne) junto aos pre-
tendentes no palácio (v. 307-324), recebendo do anfitrião uma veemente ne-
gativa (v. 326-339). A resposta é, naturalmente, aquela esperada pelo senhor,
que vê reafirmada a justiça de Eumeu: este não quer submeter o hóspede à
violência alheia e tampouco o considera um incômodo, mesmo na escassez.
Com essa estratégia, porém, o herói, além de ter mais certeza do caráter de
seu servo, pode começar a construir sua partida para o palácio e se apresen-
tar como mendigo disposto a trabalhar. Embora um comentador como Peter
Jones veja nessa oferta simplesmente o recurso a mais um lugar-comum da
figura do mendicante,661 parece-me que a intenção de Odisseu aqui é diferen-
ciar-se do mendigo habitual: sim, dizer que quer transmitir suas informações
a Penélope (v. 314) é em parte retomar a caracterização suspeita do mentiroso
interesseiro, mas a crítica aos pretendentes (v. 315), somada à preocupação
em não consumir mais os bens do porqueiro (v. 309) e à disposição em servir

659 R. Martin, Homer: The Odyssey, p. 394.


660 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 375-376.
661 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 143.

371
aos “bons”, com exemplos de atividades possíveis (v. 319-324), só pode soar
positivamente aos ouvidos de um serviçal.
No início do Canto 17, tendo já se revelado para Telêmaco, Odisseu
retomará na cabana, diante de Eumeu, esse motivo do trabalho: numa espécie
de “teatro” armado com o filho, ele afirma que tem que abandonar o campo
porque é idoso demais para a lida rural (v. 17-25). Ou seja: mostra-se novamente
disposto a realizar algum tipo de tarefa, mas uma que seja condizente com sua
idade. Essa transformação na sua postura, adaptável ao novo contexto, será
importante para que o servo não mais o perceba – como Penélope depois não o
perceberá – simplesmente como pedinte interesseiro e bom de lábia: sua origem
nobre vai assim se mostrando cada vez mais verdadeira. A caminho e já dentro
de seu próprio palácio, é esse motivo da preguiça e do trabalho que o poema vai
explorar consistentemente a partir do Canto 17, com o mendigo sendo agora
tomado – pelos pretendentes e pelos servos fiéis a eles – por um parasita, figura
preguiçosa e disposta apenas a saciar o “estômago impreenchível” (gastéra
ánalton): é o que afirma o servo vil Melanteu (Od. 17, 226-228), é o que explicitam
Eurímaco (Od. 18, 362-364) e um pretendente anônimo (Od. 20, 376-379).662 A
presença de um pedinte rival no Canto 18, ao mesmo tempo, serve para reforçar
a caracterização habitual e indiferenciada: ainda que mensageiro ocasional,
Iro se destacava pelo “louco estômago” (gastéri márgei), comendo e bebendo
de forma incessante (v. 1-3). O Odisseu-mendigo, no entanto, a despeito
de admitir a ditadura do gastér, para não “sair do papel” (v. 52-57 e também
Od. 17, 286), não só mostra força superior à do jovem Iro, mas reage à fala de
Eurímaco dizendo que tem capacidade de arar o campo e combater (v. 366-
380), de certa forma desmentindo o que dissera anteriormente na cabana.663
No mesmo Canto 18, na cena do confronto com a serva Melanto (v. 307-345),
ele ainda realiza o trabalho que indicara a Eumeu no Canto 15 (v. 322): tomando
o lugar das servas, cuida da iluminação da sala, dando ordens que quase traem
sua verdadeira identidade.664 Esses elementos todos, se passam despercebidos
aos que são desrespeitosos no palácio, são no entanto fundamentais para que
Odisseu mostre-se, mesmo constrangido pelos males da mendicância, com um

662 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 416-418 e 455.


663 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 170.
664 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 452.

372
comportamento superior àquele habitual, e afim à sua origem nobre. Note-se
como, no início do Canto 19, no episódio da remoção das armas, é novamente
esse motivo do trabalho que vem à tona, quando Telêmaco diz a Euricleia que
precisa da ajuda do pedinte para que este não se comporte como um “inútil”
(aergón): a construção da figura do mendigo prestativo de fato mostra-se mais
uma vez fundamental, servindo aqui para manter Odisseu dentro de sua casa
após a partida dos demais (v. 14-30).665
Deixando de lado esse ponto específico, devemos agora investigar em
linhas gerais como o herói explora seu disfarce no encontro com o filho e com
os pretendentes, até o momento do diálogo com Penélope. No Canto 16, no
breve contato com Telêmaco anterior à revelação ordenada por Atena, o
mendigo condena de modo veemente os pretendentes por seus “atrevimentos”
e “ultrajes” (atásthala; aeikéa/aeikelíos; v. 91-111), expressando seu desejo de
massacrá-los caso fosse “o filho do ilibado Odisseu, ou ele próprio.../ voltasse”
(è paîs ex Odusêos amúmonos eè kaì autós/ élthoi, v. 100-101).666 Mais à frente,
quando retoma sua “mentira cretense” diante dos pretendentes, no Canto 17
(v. 415-444), o mendigo já reduz o relato, adequando de um modo oportuno
o conteúdo ao interlocutor (o que não deve ter passado despercebido ao
porqueiro, que estava presente): omite a princípio qualquer informação sobre
a volta de Odisseu – o que lhe dá novamente credibilidade, por se opor assim
aos que cobiçam Penélope –, junto também com a origem cretense, que parece
ficar implicada. Mantida basicamente a aventura no Egito já narrada no Canto
14 (Od. 17, 427-441 = 14, 258-272), ele conclui a narrativa breve dizendo desta
vez ter vindo de Chipre, alteração que talvez se justifique pelo fato de que a
menção aos tesprotos o conduziria a falar das notícias sobre o herói, como na
versão dos Cantos 14 e 19. De modo geral, o que vai enfatizado é a transição de
uma vida antes abastada rumo à mendicância presente, o que confere sabedoria
à figura do velho. Mas a “moral” construída aqui (os desdobramentos da postura
violenta) é ignorada pelos invasores do palácio.667

665 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 460-462, e R. Rutherford, Ho-


mer: Odyssey – Books XIX and XX, p. 134.
666 Pela construção, trata-se de uma quase revelação de Odisseu antes de se revelar (em
seguida ele fala sugestivamente em “meu palácio”, en emoîsi megároisi, v. 106); ver D. Monro,
Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 76, W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 267, e I. de Jong,
A narratological commentary on the Odyssey, p. 392.
667 Chris Emlyn-Jones, “True and lying tales in the Odyssey”, p. 7-8, e C. Traham “Odysseus’

373
Curiosamente, a resposta violenta de Antínoo – chamando o pedinte
de “atrevido e impudente” (tharsaléos kaì anaidés, v. 449) – destaca aquelas
qualidades que Odisseu explorara, como vimos, na cabana do porqueiro, mas
que agora deve necessariamente readequar, por causa da proximidade com
Eumeu e Penélope (cuja confiança deve ganhar) e da contraposição aos jovens
soberbos: é como se Odisseu, já tendo se exercitado no disfarce de mendigo
desavergonhado que mente (mas ele dizia a verdade), agora devesse atenuar
esse aspecto típico do papel que desempenha, ou, melhor dizendo, devesse
explorar mais a vivência própria de quem caiu nessa condição, como fará na
já citada fala a Anfínomo do Canto 18 (v. 125-150), quando a transitoriedade
humana servirá de base à censura aberta aos pretendentes, e a volta iminente
do herói – omitida aqui no Canto 17 – será anunciada. O antes sabichão mendigo
vai, no novo contexto, ficando efetivamente sábio e ganhando uma severidade
condizente com o andamento do poema e o desfecho sangrento que anuncia.
Por isso Eumeu já pode vê-lo como figura superior e com autoridade (“não és
insensato”, oudè... ess’anóemon, Od. 17, 273), numa cena recheada de ironia, com
Odisseu “reconhecendo” seu palácio com facilidade, ou na conversa posterior
com Penélope, quando o servo afirma que o mendigo fala “com proporção”
(katà moîran, v. 580) e ouve da senhora a resposta de que o estrangeiro não era
“imprudente” (ouk áphron ho xeînos, v. 586).668
Finalmente, no diálogo do mendigo com a mulher, anunciado desde o Can-
to 17 (v. 507-590) mas que surge apenas no 19, Odisseu – sem discrepar do que
dissera a Eumeu – concentra-se menos na sua história de vida e mais nos dados
sobre o rei ausente, aquelas informações por que tanto ansiava a esposa;669 lem-
bre-se que no Canto 17 ela soube por Telêmaco que Odisseu estava preso na ilha
de Calipso (v. 142-143), que Teoclímeno lhe dissera que ele já estava na pátria (v.
157-159), e que, como vimos, o próprio porqueiro registrara que o mendigo anun-
ciava a volta do rei (v. 525-527). A narrativa aqui vai ser entrecortada, dividindo-
-se em três etapas (v. 165-202, 221-248 e 262-307), com todas a orbitar em torno
do esposo desaparecido. Antes da conversa, porém, temos o preâmbulo, com a

lies (Odyssey, Books 13-19)”, p. 40-41. Ver também I. de Jong, A narratological commentary on
the Odyssey, p. 427-428.
668 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 260.
669 C. Traham “Odysseus’ lies (Odyssey, Books 13-19)”, p. 41-42, e P. Jones, Homer’s Odys-
sey, p. 172 e 176. Ver ainda I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 459-460.

374
já mencionada remoção das armas da sala e novo confronto entre o mendigo e
a serva má, Melanto (v. 1-102). A acusação por parte da escrava de que o velho
ficou na casa para “espiar as mulheres” (opipeúseis gunaîkas, v. 66-69) faz desta
vez Odisseu, ao contrário do que acontecera ao receber dela o primeiro insulto,
no Canto 18 (v. 338-339), explorar um discurso mais extenso e menos violento,
em que destaca de novo o tópico da transitoriedade humana: quem dá hoje ao
indigente pode ser o necessitado de amanhã, reviravolta a que ela mesma está su-
jeita, sobretudo por seu “atrevimento” (atasthállousa, v. 71-88). Como Penélope
está presente e é quem intervém na sequência, repreendendo Melanto, podemos
imaginar que a fala de Odisseu está a serviço da construção do seu éthos junto à
senhora: de um velho respeitoso que está longe de se lançar ao assédio – postura
talvez esperada num mendigo, mas que foi trazida à baila naquele contexto preci-
samente por quem dormia com um dos pretendentes, Eurímaco, como sabemos
pela boca do narrador no Canto 18 (v. 320-325).670
Que Penélope age com desconfiança em relação ao mendigo fica claro
no momento em que ordena a Eurínome que prepare um banco para o pedinte
dizer seu “épico” (eípei épos, v. 98, ecoando os usos em Od. 14, 131, 463 e 509), e
quando manifesta seu desejo de o “questionar” (ethélo dé mim exeréesthai, v. 99);
mais à frente, ela vai explicitar essa sua suspeita (ou desinteresse) em relação
a estrangeiros, algo que, no entanto, a própria conversa interessada que está
tendo vem contradizer, o que revela um misto de fé e descrença (v. 134-135). Em
tais circunstâncias, segundo o esquema de progressão do disfarce que estamos
propondo, Odisseu não deve se comportar como fez com Eumeu no Canto 14. Se
lá ele explorou a figura do pedinte desavergonhado – falastrão e interesseiro –,
aqui ele se apresenta como alguém mais respeitoso e evasivo: primeiro compara
Penélope a um rei justo, tocando assim no tema central do poema (v. 107-115), e
em seguida revela vergonha de choramingar em casa alheia, sujeito à acusação de
ser um bêbado a “navegar em lágrimas” (dakruplóein, um aparente neologismo,
v. 115-122). As ironias se fazem sentir, seja ao chamá-la de “mulher” (ô gúnai, v.
107), substantivo que tem em grego, como em português, também o sentido

670 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 465, V. Di Benedetto,


Omero: Odissea, p. 982-983, e R. Rutherford, Homer: Odyssey – Books XIX and XX, p. 140. Veja-
se como o detalhe do “banco” ou “escabelo” de Penélope (thrênun, v. 57) contrasta com seu
uso impróprio – enquanto arma de ataque – nos Cantos 17 (v. 462) e 18 (v. 394), conforme
apontou V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 980.

375
de “esposa”, como ficará claro nas interpelações subsequentes de verso inteiro,
“Mulher muito respeitável do Laercida Odisseu” (ô gúnai aidoíe Laertiádeo Odusêos,
v. 165, 262, 336 e 583); seja no uso do adjetivo “multissofrido” (polústonos, v. 118),
que pela construção típica dos epítetos do herói alude à sua identidade real; seja
ainda pela referência à sua estada em casa estranha (oíkoi em allotríoi, v. 119).671
Mas o fundamental é notar como a suspeita de bebedeira que ele levanta contra si
mesmo tem função apologética precisa na passagem: sendo acusação tipicamente
dirigida contra os pedintes, como vemos explicitamente com Melanto (Od. 18, 331) e
com Antínoo (Od. 21, 292-294), e um estereótipo que o próprio herói soube explorar
bem ao fingir embriaguez na “fábula” final do Canto 14 (como se viu acima), trazida
à tona aqui ela opera, inversamente, como chancela da figura respeitosa de velho
mendigo, o mesmo velho que rebatera havia pouco a acusação de assédio contra
as mulheres e que é capaz de falar com propriedade sobre as intempéries da vida.672
Após a longa resposta de Penélope, em que rememora o estratagema da
mortalha, temos enfim a primeira daquelas três etapas da narrativa de Odisseu:
fingindo contrariedade, mas resignação (v. 165-171), o mendigo põe-se a revelar
sua origem cretense e sua identidade (v. 172-184). Agora ele é uma figura mais
nítida, porque irmão de Idomeneu e com nome próprio, Éton, “Faiscante”.673 Para
nossa surpresa, a menção a Odisseu surge sem demora: o mendigo o viu muito
tempo atrás, porque o acolhera por doze dias no seu caminho rumo a Troia (v.
185-202; ele mesmo, Éton, não participara da guerra, ao contrário do que tinha
dito na versão para Eumeu). A referência faz Penélope chorar “o homem seu ali
ao lado” (héon ándra parémenon, v. 209; note-se como a ironia é apontada pelo
próprio narrador)674 e o relato é interrompido; Odisseu, na primeira conversa com
a esposa em vinte anos, controla-se para não chorar também, e a rainha cobra
sinais comprobatórios (v. 203-219). Tal como na primeira, nesta segunda etapa
da sua narrativa Odisseu continua a “tornar a muita mentira dita semelhante
aos fatos” (íske pseúdea pollà légon etúmoisin homoîa) – para recuperarmos o
comentário do narrador no verso 203, cuja construção pleonástica no original

671 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 467, e R. Rutherford, Homer:


Odyssey – Books XIX and XX, p. 146.
672 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 177.
673 É esse o nome de um dos cavalos de Heitor no Canto 8 da Ilíada (v. 185); ver R. Ruther-
ford, Homer: Odyssey – Books XIX and XX, p. 161.
674 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 470.

376
parece só reforçar a habilidade ilusionista do herói.675 Veja-se como nestas
palavras iniciais, antes de descrever a capa e a túnica que ele mesmo vestia, a
fusão entre fato e ficção é nítida:

Mulher, é árduo, por tanto tempo estando separado (amphìs eónta),


falar: agora pra ele já é o vigésimo ano
desde que de lá partiu e se foi da minha pátria,
mas vou te dizer, tal qual se me afigura por dentro.
(Od. 19, 221-224)

A alegada dificuldade em relembrar é em parte dissimulada, porque se


trata das próprias vestes, mas é ao mesmo tempo real, por causa do intervalo de
tempo; a separação é igualmente uma impostura, se tomada como separação
entre o mendigo e Odisseu (tal como Penélope entende), mas é também
verdadeira, se lida enquanto separação ele que experimentou em relação a sua
esposa/casa (como nós podemos entender, adicionalmente).676 Na continuação,
ao expor as primeiras provas de que efetivamente conheceu o herói – a capa
com broche e a túnica que então vestia (khlaînan, v. 225-231, e khitôna, v. 232-
235) –, o herói carrega nos seus detalhes maravilhosos, fazendo assim um elogio
simultâneo de si mesmo e da esposa, que ele bem sabia ter sido a responsável
pela confecção das peças, como ela própria confessará depois, comovida (v. 255-
257). Para reforçar o disfarce, porém, ele simula dúvida – o herói teria trazido as
vestes de casa ou talvez ganhado depois de presente, por causa das amizades
que tinha (v. 236-240)?677 Pois foi justamente isso que o próprio mendigo fizera
com seu hóspede no passado – dera-lhe uma espada e uma túnica (v. 241-243).
O motivo da roupa dada como símbolo da hospitalidade ressurge mais uma
vez, e o mendigo que antes cobrava uma vestimenta de Eumeu quer agora
mostrar como já desempenhou corretamente o papel de anfitrião. A prova final
oferecida a Penélope – a descrição do arauto Euríbates (v. 244-248) – fecha a
segunda parte da narrativa mentirosa de Odisseu, satisfazendo a curiosidade

675 Ver R. Rutherford, Homer: Odyssey – Books XIX and XX, p. 165, e A. Pierron, L’Odyssée
d’Homère, vol. 2, p. 264.
676 D. Monro, Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 159, e W. Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 325.
677 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 471, e R. Rutherford, Homer:
Odyssey – Books XIX and XX, p. 171.

377
da rainha. Esta, no entanto, ainda que contente com a aparente sinceridade,
reafirma a descrença na volta do marido (v. 253-260).
A terceira etapa do relato é a mais longa e aquela em que o motivo da
mentira que é verdadeira é sentido de modo mais agudo: aqui Odisseu parece
ser o “cretense verídico” que mencionara anteriormente (Eteókretes, v. 176) – a
referência era a princípio aos cretenses “de fato” da ilha, mas como não ver aí um
jogo desconcertante com a fama de embusteiros que vai implícita no disfarce que
assume? Não por acaso, depois de consolar Penélope em seu lamento pela perda
do marido (ainda mais agudo, diz, quando esse marido é alguém como Odisseu!,
v. 262-267), o mendigo destaca o acerto do que vai dizer sobre a volta do herói:

Mas deixa de choro e presta atenção à minha fala,


pois eu vou te relatar sem erro (nemertéos) e sem esconder
como eu mesmo já ouvi (ákousa) sobre a volta de Odisseu,
bem próxima, lá na rica terra dos varões tesprotos
vivo, a carregar um belo e numeroso tesouro.
(Od. 19, 268-272)

A referência aos tesprotos (de que o herói lá tinha um tesouro acumulado


e estava pronto para partir) recupera o que tinha sido dito a Eumeu no Canto 14.
Antes, porém, de repetir os versos já utilizados, Odisseu introduz, muito signi-
ficativamente, duas informações que não tinham aparecido até aqui nas menti-
ras: a morte dos companheiros ao deixarem a ilha Trinácia, depois de devorarem
as vacas do Sol (v. 273-277), e a subsequente acolhida junto aos feácios (v. 278-
284; a estada por sete anos com Calipso é omitida).678 Note-se como no verso
275 ele joga com o próprio nome – uma piscadela para Penélope? –, dizendo que
Zeus e o Sol deram a Odisseu “o ódio seu” (odúsanto gàr autôi), o que representa
uma inesperada tomada de consciência retrospectiva acerca dessa perseguição
divina anterior, e como ao mesmo tempo essa afirmação entra em choque com
os versos 285 e 285, quando justifica o atraso do herói em retornar por sua von-

678 A referência à “quilha da nau” no verso 278 (epì trópios neós) retoma um elemento impor-
tante da sua chegada à ilha de Calipso (Od. 5, 130; 7, 252; e 12, 421-438), mas a referência no
verso seguinte à Esquéria mostra claramente que Odisseu quer fundir esses dois momentos
em um só. Lembre-se que Telêmaco já havia dito à mãe que o pai estava vivo na ilha da ninfa,
no Canto 17 (v. 142-143), e que no Canto 23, ao fazer seu relato para Penélope, o herói não
omitirá essa informação (v. 333-337).

378
tade de angariar bens: “Assim muitas espertezas, acima dos mortais homens,/
sabe Odisseu e ninguém mais com ele rivaliza”. O retorno sofrido, marcado pela
cólera dos deuses, é atenuado no fim por uma tranquilidade aquisitiva que fal-
seia a ansiedade do herói em voltar para sua terra pátria.
Tudo isso (diz o mendigo) ele soube pelo relato de Fídon, rei dos tesprotos (v.
287 ~ 14, 316). Esse mesmo rei: (a) jurou que o transporte de Odisseu era iminente
(v. 288-290), e (b) despachou o mendigo para Dulíquio (v. 291-292), não sem antes
(c) mostrar a riqueza que Odisseu reunira (v. 293-295) e (d) dizer que o herói partira
para Dodona, para saber se voltaria às claras ou escondido (v. 296-299). A sequência
reorganiza o que no Canto 14 seguia uma ordem mais natural: (c) mostra a riqueza
que Odisseu reunira (v. 323-326, com um verso a mais), (d) diz que o herói partiu
para Dodona (v. 327-330), (a) jura que seu transporte é iminente (v. 331-333), e (b)
despacha o mendigo para Dulíquio (v. 334-335). Mas, mais importante do que notar
esse rearranjo formular, é perceber como Odisseu trabalha para ser mais digno de
fé aqui do que foi lá. Ele não só omite os dados referentes a sua transformação em
mendigo e a chegada a Ítaca, destacados na conclusão do relato no Canto 14 (v. 336-
359),679 mas ainda, para ganhar gradualmente a confiança da rainha, anuncia a volta
de Odisseu no fim do discurso, e não no início. Com o porqueiro, os mesmo cinco
versos do juramento (Od. 19, 303-307 = 14, 158-162), surgidos fora de hora, estavam
a serviço da precipitação fingida do mendigo interesseiro, ávido por ganhar uma
capa antes mesmo de contar sua história, enquanto aqui eles aparecem como
coroamento de um relato embasado por sinais, vindos do próprio pedinte e de
outros. Se por um lado isso não desfaz o desânimo da mulher, por outro não deixa
de ser um detalhe sutil do processo de caracterização do Odisseu-mendigo: como
acontece em Homero, versos idênticos, ditos em contextos diversos, podem sugerir
nova percepção, tanto do que é dito quanto de quem diz.
Lembre-se que o juramento no Canto 14 vinha atrelado à solicitação de “capa
e túnica” (v. 154) – que culminou no empréstimo feito por Eumeu ao fim do episódio,
e na promessa de vestes novas, a serem dadas por Telêmaco (segundo o porqueiro,
Od. 14, 515-516; e 15, 337-338, e o próprio Telêmaco, Od. 16, 79) ou por Penélope
(Od. 17, 550). Mas aqui capa e túnica, tendo atuado como sinais confirmatórios da
identidade de Odisseu, estão a serviço do estabelecimento gradual de uma relação

679 Segundo P. Jones, a obsessão de Penélope por notícias do marido faz com que ela tam-
bém não pergunte a respeito; ver Homer’s Odyssey, p. 178.

379
de confiança, e não desconfiança.680 O mendigo não só não solicita nenhuma peça
nova de roupa para passar a noite, como recusa a oferta feita na sequência por Pe-
nélope, de “capas e mais brilhantes lençóis” (khlaínas kaì rhégea sigalóenta, v. 318),
alegando que para ele “se tornaram, capas e mais brilhantes lençóis,/ odiosos” (v.
337-338). O contraste em relação à cena anterior com Eumeu é claro, e tem a ver não
só com essa postura nova, de mendigo respeitoso e contido, mas também (pode-
mos especular) com o receio de que esse novo “guarda-roupa”, não sendo mais de
origem humilde, pudesse trair a verdadeira identidade do hóspede. Quanto à oferta
de que uma serva lavasse seus pés (v. 317) – que acompanha o outro gesto de hospi-
talidade –, sabemos que a recusa se liga à condenação anterior do comportamento
de Melanto: ao requerer uma velha (v. 343-348) ao invés de uma provável figura jo-
vem, que seria o natural, o mendigo reforça sua postura respeitosa, de quem não
quer assediar, como confirmam as palavras seguintes da senhora, que o chama de
“ponderado” (pepnuménos, v. 350-352).681
A cena seguinte de reconhecimento da cicatriz por Euricleia, funcionan-
do como um grande interlúdio (v. 386-507) – e mostrando que mesmo o mais
esperto herói não era infalível, tendo sido aliás reconhecido outrora por Helena,
quando também se disfarçara de mendigo (Od. 4, 249-251) –, a cena toda reali-
za uma espécie de cesura na conversa de Odisseu com a esposa: se na primeira
parte ela buscava informação de um modo mais passivo, a seguir será a vez de
tomar a iniciativa e encaminhar a história para a sua conclusão, com a proposta
final da prova do arco.682 Nesse sentido, é importante perceber como, no mes-
mo discurso em que faz as ofertas hospitaleiras mencionadas acima, Penélope
justifica a insistência na boa acolhida com esta reflexão gnômica que se conecta
à comparação feita um pouco antes pelo mendigo entre a rainha e o rei “ilibado”
(basilêos amúmonos, v. 107-115):

680 Ver R. Rutherford, Homer: Odyssey – Books XIX and XX, p. 173.
681 Ver comentários de R. Rutherford, Homer: Odyssey – Books XIX and XX, p. 176-178, A.
Pierron, L’Odyssée d’Homère, vol. 2, p. 273-274, D. Monro, Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 166, e P.
Jones, Homer’s Odyssey, p. 180. Por que Odisseu usa o pronome possesivo da primeira pessoa
do plural no verso 344, “mulher não há de tocar nosso pé” (oudè gunè podòs hápsetai heme-
téroio)? Monro (Homer’s Odyssey, vol. 2, p.165) diz que não se trata de simples variação do
singular, e que é como se Odisseu “falasse por outros além de si mesmo”. Já V. Di Benedetto
(Omero: Odissea, p.1012) fala em “solidariedade”. De alguma forma, esse detalhe aponta para
a verdadeira identidade do herói e sua reunião com Penélope. Veja-se ainda o “nosso pai” que
o herói usa no Canto 24 (v. 216).
682 R. Rutherford, Homer: Odyssey – Books XIX and XX, p. 179.

380
(...) Os homens (ánthropoi), diminuta a vida, findam.
Quem é, por si, intratável (apenés), com ideias intratáveis (apenéa eidêi),
pra esse todos invocam dores no porvir enquanto
vivo, e quando então já morto fazem troça dele, todos;
mas quem, por si, ilibado (amúmon), com ideias ilibadas (amúmona eidêi),
desse a vasta glória (kléos eurú) difundem os amigos hóspedes (xeînoi)
por entre todos os homens, e muitos de bravo (esthlón) o chamam.
(Od. 19, 328-334)

O restante do diálogo com a esposa, bem como os desdobramentos da


prova do arco e o reconhecimento entre marido e mulher, foram abordados no
Capítulo 4. Aqui, dentro do percurso da volta (re)velada do herói, falta analisar a
cena do encontro – sob disfarce – com o pai, no Canto 24. Ela se insere num mo-
vimento final da Odisseia, de retomada dos acontecimentos anteriores e de an-
tecipação de eventos futuros, ou, na terminologia narratológica, de “analepses”
e “prolepses”. No Canto 23, Odisseu repisa o relato de suas aventuras para Pené-
lope (v. 310-341), na mais longa passagem em discurso indireto de toda a poesia
homérica,683 mas igualmente anuncia a ela o programa da viagem futura que Tiré-
sias lhe dera como missão (v. 267-284).684 Na primeira parte do Canto 24, com as
almas dos pretendentes no Hades, há nova analepse por parte de Anfimedonte: é
essa figura menor, nomeada apenas no Canto 22 (v. 242) e logo depois morta por
Telêmaco (v. 284), que rememora para Agamênon os acontecimentos no palácio
de Odisseu (v. 121-185).685 A conversa, como se sabe, vem logo após outro diálogo,
entre Aquiles e o Atrida (v. 15-98), sobre a bela morte e o sepultamento majestoso
do filho de Tétis, com sua “brava glória” (kléos esthlón, v. 94) entrando em choque
com o “odioso fim” (lugròn ólethron, v. 96) daquele que morreu assassinado pela
esposa e seu amante. Trata-se da retomada do paradigma moral que temos visto
desde o começo, aqui a serviço da condenação dos vis pretendentes presentes à

683 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 562-563; a estudiosa holan-


desa chama atenção para o fato de que a ordenação cronológica apresentada aí faz com que
admiremos a forma complexa com que o poema organizou esses acontecimentos.
684 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 565.
685 Ver I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 571, e V. Di Benedetto,
Omero: Odissea, p. 1216.

381
cena, cujos funerais contrastam com os do grande herói.686 Mas a retomada com-
porta também uma antecipação, ou previsão, da parte de Agamênon – tanto da
futura “glória” e “gracioso canto” relativos a Penélope (kléos/aoidèn kharíessan,
v. 196-198), quanto do “canto odioso” relativo a Clitemnestra (stugerè aoidé, v.
200), este último responsável por atribuir “pesada fama” a toda e qualquer mu-
lher, mesmo no caso daquela cuja conduta seja correta. O poema, ao apontar para
si, reforça a ideologia misógina.687
O tom geral, como se vê, é de fechamento, com a recolha de temas e histó-
rias que foram centrais ao longo de toda a narrativa, e com a sugestão de efeitos
esperados e de novos desdobramentos, numa formulação quase cíclica. Nesse
sentido, a figura de Laertes, o pai de Odisseu, serve para que o herói retome seu
passado longínquo e o ligue à promessa de futuro representada pelo filho amadu-
recido: como sabemos, os três combaterão junto contra os familiares dos preten-
dentes, nos instantes finais do poema. O velho, a princípio, representa a imagem
do abandono a que foi entregue a casa de Odisseu, tal como o cão Argo na cena
comovente do Canto 17.688 Essa triste figura nos é introduzida por Atena, disfarça-
da de Mentes, no Canto 1 (v. 189-193), quando a deusa afirma que “distante lá no
sítio sofre dores” (apáneuthen ep’agroû pémata páskhein, v. 190) e que “o cansaço
se apodera de seus membros” (kámatos katà guia lábeisin, v. 192). Mais à frente,
no Canto 11 – quando voltamos no tempo –, Odisseu fica sabendo pela boca de
Anticleia que Laertes “não tem capas e mais brilhantes lençóis” (khlaînai kaì rhé-
gea sigalóenta, v. 189), mas usa “vestes vis” (kakà heímata, v. 191), “jaz em dor no
espírito cultivando grande luto” (keît’akhéon méga dè phresì pénthos aéxei, v. 195)
e “dura velhice o atinge” (khalepòn d’epì gêras hikánei, v. 196). No Canto 15, passa-
dos vários anos desde o encontro com a mãe no Hades, o herói ouve novo relato
sobre o pai, agora vindo de Eumeu: o porqueiro diz que o velho chora pela esposa
morta e pelo filho desaparecido, e que experimenta uma velhice “crua” (en omôi
gérai; v. 353-357). Esse quadro geral – estendido no tempo – de idoso desampara-
do, vindo se somar às referências tanto às capas quanto às vestes vis, conectam

686 Ver P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 217 e 219, e também I. de Jong, A narratological com-
mentary on the Odyssey, p. 569 e 582. Note-se como Agamênon, após o relato de Anfime-
donte, e apesar dos laços de hospitalidade existentes entre eles, ignora-o e faz o elogio de
Odisseu e Penélope; ver A. Pierron, L’Odyssée d’Homère, vol. 2, p. 428.
687 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 574.
688 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 574.

382
Laertes claramente à figura do mendigo (repare-se como kakà... heímata, em Od.
11, 191, é usada para o filho pedinte em Od. 14, 506; 19, 72; 23, 115; e 24, 156). Isso
faz não só com que ele se identifique com o disfarce de Odisseu, mas também
que em certo sentido seja estrangeiro na sua própria terra, como apontou Peter
Jones.689 Quando Odisseu o avista no campo, depois de ter se ausentado por vinte
anos, é essa figura lastimável que encontra, numa das descrições mais pungentes
de toda a poesia homérica, que trabalha aqui também com a relação pai-filho que
vemos destacada no último canto da Ilíada, nas figuras de Aquiles-Peleu e Heitor-
-Príamo. A mesma túnica “imunda” que o herói passara a usar ao final do Canto 13
(rhupóonta, v. 435) – voluntariamente, segundo o plano de vingança estabelecido
pela deusa –, Laertes usa aqui (rhupóonta, v. 227) como sinal de sua falta de recur-
so, em função da ausência prolongada do filho:

Encontrou seu pai apenas na vinha bem-construída,


enxadeando uma planta: vestia túnica imunda,
ultrajante, remendada, e nas canelas prendera
remendadas caneleiras de couro, contra arranhões,
e luvas nas mãos, por causa dos espinhos; tinha um gorro
de pele de cabra no alto da cabeça, ampliando o luto.
Assim então que o notou multitenaz Odisseu
– corroído pela idade, com grande luto no espírito –,
parou sob uma pereira alta e lágrimas verteu.
E ponderou, na sequência, isto no ânimo e no espírito:
beijar e abraçar o seu pai, e a ele cada coisa
contar de como chegara e atingira a terra pátria,
ou primeiro perguntar cada coisa e o pôr à prova.
E em seu espírito assim pareceu mais proveitoso:
em primeiro com cortantes palavras o pôr à prova (peirethênai).
(Od. 24, 226-240)

A aproximação, já sem o disfarce de mendigo e com os pretendentes


todos mortos, dispensaria qualquer tipo de cautela ou preocupação, o que faz
com que esse novo “teste” – de certa forma antecipado para Penélope no Canto

689 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 222.

383
23 (v. 359-360) e dado como certo instantes antes de o herói ponderar consi-
go sobre como agir (v. 216 e 221) – seja a princípio condenado por nós. Mas o
desconfiado Odisseu precisa saber se Laertes o esqueceu e se lamenta de fato
sua ausência; ao mesmo tempo, o ato de pôr à prova tem uma função identitá-
ria tão relevante quanto a própria cicatriz impressa na pele: assim o pai saberá
que tem diante de si o multiastuto filho, sempre de olho no que é “mais provei-
toso” (kérdion).690 Em outras palavras, a identidade de Odisseu parece implicar
que, para ser reconhecido, precise começar por mentir; ele permanece verda-
deiro nas suas mentiras porque, mentido, diz a verdade sobre si mesmo. Vale
notar que Laertes “baixava a cabeça” (katékhon kephalén, v. 242) no começo
da conversa, o que explicaria, de modo pragmático, o não-reconhecimento do
filho, mas não devemos insistir demais no realismo, porque mesmo depois da
revelação o velho exigirá um sinal de confirmação. Vale notar também que, na
sequência, o pai não se queixará em momento nenhum do fato de ter sido sub-
metido a um teste: esse silêncio homérico não é irrelevante.
Retomemos o encontro: Odisseu começa por elogiar o cuidado com
o pomar, mas critica a condição física e as “vestes ultrajantes” do velho, não
condizentes com sua aparência de rei (aeikéa, v. 244-255). Em seguida, pede
informações sobre sua identidade, se a ilha onde ancorou é mesmo Ítaca e se está
vivo ou morto o filho de Laertes, a quem acolhera no passado como hóspede (v.
256-279). O ancião, já em lágrimas (despertadas pela calculada referência ao filho),
primeiro responde que sim, que a terra é Ítaca, mas que não há possibilidade de
a hospitalidade ser reciprocada por causa dos jovens que agora controlam a pólis
(v. 281-286), e depois solicita mais dados sobre o encontro com o convidado –
que era seu filho – e a origem do estrangeiro (v. 287-301). O herói conclui então
a sua última história mentirosa, a mais breve de todas: a origem cretense é
abandonada, e agora ele se chama Epérito e vem de Alibante; uma divindade o
fez vagar até Ítaca contra a sua vontade (!); faz cinco anos que viu Odisseu, e os
sinais à sua partida eram favoráveis (v. 303-314).691 Repare-se que o “estrangeiro”
– não estando mais no papel anterior de mendigo – não anuncia a volta do herói

690 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 578, e R. Martin, Homer: The
Odyssey, p. 407.
691 “Epérito” liga-se a éris, “discórdia”, assim como Odisseu ao verbo odússomai? Para
esse nome e os demais forjados na cena, ver D. Monro, Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 275, e W.
Stanford, The Odyssey of Homer, vol. 2, p. 423.

384
para Laertes, e também como aqui reaparece o tradicional motivo da supressão
do nome, pela menção tardia a “Odisseu”, presente no diálogo apenas no verso
309. A dor profunda do velho faz com que Odisseu não se contenha, revelando
sua identidade e a matança dos pretendentes (v. 315-326). O pai pede um sinal e
o herói mostra prontamente a cicatriz, além de indicar no pomar as árvores que
Laertes lhe dera quando menino; os dois se abraçam e a conversa prepara a ação
seguinte (v. 327-361). Essa cobrança de indícios comprobatórios aproxima um do
outro, ambos igualmente desconfiados e precavidos, tal como acontecera com
Penélope no Canto 23; as plantas, por sua vez, enquanto sinal do convívio íntimo
de pai e filho, também retomam um elemento importante na cena anterior com
a esposa.692 No geral, ressalta a necessidade recorrente que tem Odisseu de fazer
o papel do outro, mesmo quando não está fisicamente transformado, como se
a manipulação retórica e a mudança de identidade constituíssem uma segunda
pele sua, sempre a serviço do esclarecimento de uma realidade adversa ou
ameaçadora, que precisa passar por uma comprovação antes de ser encarada de
frente, desprovida de subterfúgios.
Concluído o encontro – com Laertes passando, sob a ação de Atena,
por uma transformação física não por acaso idêntica à vivida duas vezes por
Odisseu (v. 369 = Od. 8, 20; e 18, 195) –, seguido de uma confraternização dos
dois com Telêmaco e os servos fiéis (v. 362-412), do verso 413 até o fim a ação
se acelera com uma rapidez incomum em Homero, com mudanças bruscas.693 O
tópico central é o da vingança exigida pelos parentes dos pretendentes mortos,
algo previsível com a “falação” sobre a chacina a se espalhar pela cidade,
conforme já assinalara Odisseu para Penélope no Canto 23 (phátis; v. 361-363)
– o termo que aparece aqui no Canto 24, no entanto, é “Notícia” (Óssa, v. 413).
Sabemos que esse ponto vem anunciado desde o Canto 1, quando Telêmaco
solicitara aos deuses a morte dos pretendentes sem possibilidade de vingança
posterior (népoinoi, v. 380 = Od. 2, 145): é esse princípio de vendeta que precisa
ser abortado, esquema segundo o qual Odisseu seria levado a fugir (conforme
as alusões em Od. 20, 41-43; 23, 117-122; e 24, 430-437).694 A assembleia agora
formada sob a liderança de Eupites, pai de Antínoo, na qual é rebatido por

692 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 581.


693 D. Monro, Homer’s Odyssey, vol. 2, p. 282.
694 Para uma excelente discussão a respeito, ver Jim Marks, Zeus in the Odyssey, p. 65-82.

385
Médon (v. 443-449) e por Haliterses (v. 454-462), nos remete claramente ao
encontro público do início do Canto 2: Médon chama a atenção de todos para a
presença da própria Atena, disfarçada de Mêntor, na cena da matança, enquanto
Haliterses alude à advertência que ele e Mêntor haviam feito no início do poema
(Od. 2, 157-176 e 224-241). A fala de Eupites, porém, que “era o líder das tolices”
(hegésato nepiéeisi, v. 469) – como o narrador faz questão de sublinhar –, é a que
agrada à maioria, com um argumento nada desprezível: o herói não só perdeu
todas as naus e bravos homens locais na sua expedição a Troia, como também
matou os restantes na volta (v. 426-429). Curiosamente, o nome “Odisseu”, a
quem Eupites quer criticar de modo veemente, não é dito por ele, sendo depois
enfaticamente sublinhado por Médon (v. 443, 445 e 447).695 O que vemos aqui
– dado não desprezível – é o pai de Antínoo fazer um movimento inverso ao do
narrador, que desde o proêmio se esforça por livrar Odisseu de qualquer culpa;696
note-se, nesse sentido, como no Hades a conhecida dificuldade de arregimentar
Odisseu para a guerra – algo que poderia contribuir para problematizar ainda
mais a figura heroica do protagonista – é referida de modo muito passageiro
por Agamênon neste mesmo Canto 24 (“com esforço convencendo Odisseu”,
spoudêi parpepithóntes, v. 115-119).697
Uma brusca mudança de cena nos leva para o Olimpo (v. 471-486), onde
Atena pergunta a Zeus se aceitará a guerra ou se imporá uma “amizade” às
duas partes (philóteta, v. 476). O mesmo par divino do início, responsável pela
deflagração mesma da Odisseia, nos Cantos 1 e 5, reaparece na sua conclusão,
e dois versos da fala de Zeus são idênticos (Od. 5, 23-24 = 24, 479-480). Assim
como fez com Posêidon no diálogo do Canto 13, o deus diz que ela deve agir
como achar melhor, mas acrescenta o que considera mais conveniente: que a
matança seja esquecida e haja “paz” (eiréne, v. 486). A deusa imediatamente
baixa do céu para a terra, onde o choque é iminente entre o exército dos parentes
e aquele formado por Odisseu, Telêmaco, Eumeu, Filécio, Laertes, Dólio e mais
seis filhos seus (v. 487-501). Atena, novamente disfarçada de Mêntor, junta-se
ao grupo, sendo reconhecida por Odisseu, que dialoga com o filho (v. 502-515).
A deusa depois insufla Laertes (que a reconhece?) e o ancião acaba por matar

695 V. Di Benedetto, Omero: Odissea, p. 1243.


696 P. Jones, Homer’s Odyssey, p. 223.
697 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 570.

386
Eupites (v. 516-525). É nesse momento então – depois de franquear ao velho
um breve momento de glória – que a deusa põe em prática o que acordara
com Zeus: com dois comandos, um dirigido primeiro aos itacenses em geral (v.
531-532) e o outro a Odisseu (v. 542-544), ela ordena que se ponha fim à guerra
(“abstende-vos”, ískhesthe, v. 531, e “abstém-te”, ískheo, v. 543). Pelo “pavor”
que se apossa de todos (déos, v. 533), podemos imaginar que ela age aqui sem
disfarce algum, mas Homero novamente não deixa isso claro.698 O mais notável
no desenrolar da ação é perceber que, mesmo depois da primeira ordem dirigida
a todos, Odisseu não está disposto a parar:

Emitiu um grito horrível multitenaz Odisseu


e agachando-se lançou-se tal qual águia altivolante.
Mas o Cronida soltou então fumegante raio,
que caiu diante da Claros-olhos do potente pai.
(Od. 24, 537-540)

A reação pode a princípio se conformar a uma postura heroica repleta de furor,


tipicamente guerreira, mas o já citado comando, dirigido pela deusa diretamente ao
herói com a justificativa de não enfurecer Zeus, reativa o motivo da cólera divina – da-
quele Odisseu que é, conforme vimos, vítima do “ódio seu” (isto é, dos deuses):

Para Odisseu então disse a claros-olhos Atena:


“Laercida divogênito, multiengenhoso Odisseu,
abstém-te e cessa a disputa da guerra niveladora,
pra nunca o Cronida, Zeus amplividente, ter cólera (kekholósetai)”.
(Od. 24, 541-544)

É como se o poema nos dissesse que a justiça imposta por Odisseu


aos pretendentes na verdade trai uma vingança descontrolada e quase sem
limites, o que confere ao fecho da narrativa uma dimensão perturbadora.699
O bom rei, caracterizado na abertura como empenhado em salvar a vida dos

698 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 585.


699 Como nota R. Martin, Homer: The Odyssey, p. 403-404.

387
companheiros, parece disposto a matar toda a sua gente.700 É preciso então que
ocorra uma intervenção divina contundente – protótipo dos finais com deus ex-
machina da tragédia –701 para que o herói se contenha e celebre os juramentos
impostos por Atena, a qual não por acaso age aqui mais uma vez disfarçada
de Mêntor (como não concordar que esse elemento essencial do poema deva
ser sua nota derradeira?). Permanece, no entanto, essa fissura na construção
de uma narrativa moralmente ordenada, segundo a qual o herói acabaria
recompensado por seguir a justiça divina. Podemos, assim, acolher a visão de
Charles Segal, de que a justiça de Zeus emerge “não como uma certeza clara,
mas frequentemente como uma meta distante e precária”, e de que a Odisseia
“apresenta, tal como a Ilíada, um realismo profundo em sua investigação a
respeito do fato de a miséria, a violência e o sofrimento continuarem a definir a
condição humana”.702

700 I. de Jong, A narratological commentary on the Odyssey, p. 586.


701 R. Martin, Homer: The Odyssey, p. 408.
702 C. Segal, Singers, heroes, and gods in the Odyssey, p. 226-227.
PARTE II
CANTOS TRADUZIDOS
Disseram: “É azul teu violão,
não tocas as coisas tais como são”.
E o homem disse: “As coisas tais como são
se modificam sobre o violão”.

Wallace Stevens,
“the man with the blue guitar”
(trad. Paulo henriques Britto)

Zeus
da juventude à velhice
nos deu desenovelarmos
penosas guerras, até
cada um de nós morrer.

Odisseu na Ilíada
(canto 14, v. 85-87)
cAntO 1.
Assembleia dos deuses
e exortação de Atena a telêmaco

Invocação à Musa (1-10). Na ausência de Posêidon, os deuses se reúnem


em assembleia e, a pedido de Atena, decidem pelo regresso de Odisseu (11-95).
Atena vai a Ítaca disfarçada na figura de Mentes, antigo amigo da casa (96-112).
Recebida por Telêmaco, infunde-lhe furor e coragem e o aconselha a se dirigir a
Nestor, em Pilos, e a Menelau, em Esparta, para obter notícias do pai (113-323).
Telêmaco, reconfortado, ordena à mãe, Penélope, que descera para ouvir o aedo
Fêmio, que volte ao seu aposento (324-364). Em seguida, convoca os pretendentes
a uma reunião na ágora no dia seguinte, para lhes comunicar sua resolução de
que devem deixar o palácio; eles se espantam com seu linguajar; diálogo do jovem
com Antínoo e Eurímaco (365-423). Ao anoitecer, todos se retiram para descansar
e Telêmaco se deita pensando nas orientações de Atena (424-444).

O varão me evoca, Musa, § multiforme, que muitíssimo


vagou depois de pilhar § a sacra pólis de Troia,
e de muitos homens viu § cidades e soube a mente,
e muitas dores no mar § em seu ânimo sofreu,
almejando sua vida § e a volta dos companheiros. 5
Mas nem assim os salvou, § apesar de se empenhar,
pois pereceram por causa § dos próprios atrevimentos,
os tolos, que devoraram § vacas do sobrepassante
Sol – que deles então re- § tirou o dia da volta!
Disso a partir de algo, deusa § de Zeus, nos fala também. 10

Todos os outros que tinham § fugido ao íngreme fim


estavam em casa, a salvo § da guerra e também do mar.
A ele apenas – carente § da mulher e do retorno –
retinha a senhora ninfa, § Calipso, diva entre deusas,
em suas fundas cavernas, § ansiando-o por esposo. 15
Mas, com o passar do tempo, § quando veio por fim o ano
no qual os deuses tramaram § seu regresso para casa,
pra Ítaca, nem então § se livrou dos desafios,

393
mesmo entre os seus. Dele todos § os deuses se apiedavam,
menos Posêidon, que contra § o quase-deus Odisseu 20
sem parar se enfurecia, § até atingir sua terra.
Mas este fora ao encontro § dos apartados Etíopes
(Etíopes que se repartem, § homens extremos, em dois,
aqueles do Sol poente § e aqueles do Sol nascente),
pra receber hecatombe § de touros e de carneiros, 25
e se aprazia presente § ao banquete, enquanto os outros
no interior do palácio § de Zeus Olímpio reuniam-se.
E entre eles falou primeiro § o pai de homens e de deuses,
pois se lembrava em seu ânimo § então do ilibado Egisto,
por Orestes telecélebre § morto, o filho de Agamênon. 30
Dele lembrado falou § entre imortais tais palavras:
“Opópoi, como os mortais § de fato culpam os deuses!
Pois de nós, dizem, os males § lhes vêm, mas são eles mesmos
que por seus atrevimentos § além do quinhão têm dores,
tal como também Egisto § além do quinhão casou-se 35
com a cortejada esposa § do Atrida e à volta o matou,
ciente do íngreme fim, § já que antes nós lhe dissemos,
enviando até ele Hermes, § o vigilante Argicida,
para não matá-lo e não § lhe cortejar a mulher,
‘pois de Orestes partirá § a vingança pelo Atrida 40
assim que se tornar moço § e ansiar por sua terra’.
Assim disse Hermes, mas não § pôde persuadir o espírito
de Egisto (pensando o bem), § que pagou por tudo junto”.
E respondeu-lhe em seguida § deusa Atena claros-olhos:
“Nosso pai Cronida, mais § elevado dos reinantes, 45
com certeza aquele jaz § em devida destruição:
morra também qualquer outro § que tais coisas perpetrar!
Mas minha entranha se parte § pelo experiente Odisseu,
malaquinhoado, o qual § longe dos seus sofre dores
em ilha envolta por ondas, § onde é o umbigo do mar, 50
ilha arborizada. Nela § uma deusa tem morada,
a filha de Atlas de espírito § funesto, que as profundezas
conhece do mar inteiro § e sustém sozinho as altas

394
colunas que mantêm sempre § afastados Céu e Terra.
Sua filha é quem retém § o infeliz a lamentar-se, 55
e sempre com suas moles § e sedutoras palavras
o enfeitiça, pra que esqueça § Ítaca. Mas Odisseu,
empenhado em ver ao menos § a fumaça se elevando
de sua terra, quer morrer, § e teu caro coração
para isso não se volta, § Olímpio? Acaso Odisseu 60
junto às naus argivas não § te agradou com sacrifícios,
na vasta Troia? Por que § lhe vota Zeus o ódio seu?”.
Como resposta lhe disse § o reúne-nuvem Zeus:
“Minha filha, que palavra § fugiu-te ao cerco dos dentes?
Como então me esqueceria § eu do divino Odisseu, 65
que em mente é mais que os mortais, § e que mais deu sacrifícios
para os deuses imortais § que habitam o vasto céu?
Mas o terra-tem Posêidon § sempre cólera insistente
tem por causa do Ciclope, § cujo olho aquele cegou,
do quase-deus Polifemo, § cujo poder é o maior 70
entre todos os Ciclopes: § Toosa, a ninfa, o gerou
(a filha de Fórcis, que é § o senhor do mar infértil),
em suas fundas cavernas § misturada com Posêidon.
Desde então o treme-terra § Posêidon a Odisseu
não mata, mas faz vagar § pra longe da terra pátria. 75
Mas vamos, que todos nós § aqui presentes pensemos
na volta, em como virá! § Posêidon vai pôr de lado
sua cólera, pois não § conseguirá contra todos
os imortais lutar só, § à revelia dos deuses”.
E respondeu-lhe em seguida § deusa Atena claros-olhos: 80
“Nosso pai Cronida, mais § elevado dos reinantes,
se isso agora de fato é § caro aos deuses venturosos
– que pra sua casa o multi- § pensante Odisseu retorne –,
que nós então incitemos § o condutor Argicida
Hermes a ir rumo à ilha § Ogígia, pra que depressa 85
fale para a bem-trançada § ninfa este plano sem-erro,
a volta do paciente § Odisseu, pra que ele parta.
Enquanto isso eu mesma irei § a Ítaca, a fim de mais

395
incitar seu filho e em seu § espírito pôr furor
para que convoque à ágora § os cabeludos acaios 90
e a todos os pretendentes § se dirija, que sem pausa
degolam sempre as ovelhas § e curvos bois bamboleantes.
E vou transportá-lo a Esparta § e para a arenosa Pilos,
a se informar sobre a volta § do caro pai (se algo escuta),
e para que brava glória § entre os homens o mantenha”. 95
Assim disse e logo atou § sob os pés belas sandálias,
áureas, imortais, as quais § a levavam sobre as águas
e por sobre a terra infinda, § com as rajadas do vento.
E pegou a lança audaz, § afiada, com bronze agudo,
pesada, grande, robusta, § com a qual doma fileiras 100
de heróis por quem tem rancor § ela, a do potente pai.
E lá dos cimos do Olimpo § rapidamente baixou,
parando em Ítaca à entrada § do palácio de Odisseu,
junto à soleira do pátio. § Na mão ia a brônzea lança
e tinha o aspecto de um hóspede, § Mentes, condutor dos táfios. 105
Encontrou os sobranceiros § pretendentes, que em sequência
com os dados deleitavam § o ânimo, diante das portas,
sentando em couros de bois § que os próprios tinham matado.
E dentre os arautos seus § e atuantes servidores
uns misturavam o vinho § com a água nas crateras, 110
outros com multiporosas § esponjas iam lavando
e iam pondo as mesas, e outros § ainda partiam carnes.
E bem antes que os demais § a viu deiforme Telêmaco,
sentado entre os pretendentes, § aflito na cara entranha,
visualizando no espírito § o caro pai – ah, se viesse 115
de repente e no palácio § dispersasse os pretendentes,
obtendo ele próprio honra § e sobre as posses reinando...
Nisso pensando, sentado § entre aqueles, viu Atena;
foi direto para a entrada § e indignava-se em seu ânimo
que esperasse tanto à porta § o hóspede. Pondo-se perto, 120
segurou-lhe a mão direita § e apanhou sua brônzea lança.
E exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
“Salve, hóspede! Junto a nós § serás caro! Só depois

396
de provares o repasto § dirás do que tu precisas”.
Assim disse, e a conduziu, § e o seguiu vibrante Atena. 125
E quando já se encontravam § dentro da casa elevada,
levando a lança ele a pôs § de pé na coluna alta,
dentro de um lanceiro bem- § polido, lá onde muitas
outras lanças do paciente § Odisseu estavam postas,
e conduzindo-a a sentou § num trono com linho em cima, 130
belo, trabalhado; embaixo § para os pés havia um banco.
Ao lado, pôs para si § cadeira multicor, longe
dos pretendentes, para o hóspede, § vexado com o barulho,
não se enfadar do repasto § na presença de arrogantes,
e para lhe perguntar § sobre seu pai que se fora. 135
A serva, trazendo a água, § despejou-a com um jarro
(um belo e de ouro) por cima § de um tacho todo de prata,
pra se lavarem, e ao lado § estendeu polida mesa.
A intendente respeitável, § trazendo o pão, o dispôs
e acrescentou muitos víveres, § oferecendo o que havia. 140
Já o trinchador ergueu § e dispôs tábuas de carnes
de todo tipo e deixou § junto a eles taças de ouro.
Um arauto andava sempre § à volta, vertendo vinho.
E entraram os sobranceiros § pretendentes, que em sequência
com ordem foram sentando § nas cadeiras e nos tronos. 145
Para eles os arautos § verteram água nas mãos,
as escravas empilharam § o pão nas cestas ao lado
e então rapazes encheram § as crateras de bebida;
e às iguarias, já prontas § à frente, lançaram mãos.
Depois de expulso o desejo § por comida e por bebida 150
dos pretendentes, no espírito § se ocuparam de outras coisas,
de celebração e dança, § coroamento do banquete.
Um arauto pôs a cítara § muito bela sobre as mãos
de Fêmio, que à força em meio § aos pretendentes cantava;
e vibrando as cordas pre- § ludiou belo cantar. 155
Então Telêmaco disse § à claros-olhos Atena,
pondo a cabeça mais perto § para os outros não ouvirem:
“Caro hóspede, vais comigo § te indignar pelo que digo?

397
Esses se ocupam agora § com isso, cítara e canto,
tranquilos, já que devoram § impunes sustento alheio, 160
do homem cujos brancos ossos § talvez à chuva apodreçam,
deitados em terra firme, § ou ondas no mar revolvam.
Se eles entretanto o vissem § já voltando para Ítaca,
todos então rezariam § por ser mais ágeis nos pés
do que ser mais opulentos § em ouro ou em vestimenta. 165
Porém, por morte má, morto § agora está, e nós sem
consolo, mesmo se alguém § dentre os homens sobre a terra
disser que ele há de chegar: § morreu seu dia da volta!
Mas vamos, me fala isto § e relata sem torcer:
dos homens quem és, e de onde? § Onde estão teus pais e pólis? 170
Chegaste aqui em que tipo § de nau? Como os marinheiros
te trouxeram até Ítaca? § Quem eles proclamam ser?
Pois penso que certamente § não vieste a pé pra cá.
E me conta com verdade § tal coisa pra que eu bem saiba,
se és um novo visitante § ou se és antes de meu pai 175
hóspede, uma vez que à nossa § morada vieram muitos
outros, pelo fato de ele § ser viajado entre os homens”.
E por sua vez lhe disse § deusa Atena claros-olhos:
“Pois eu te relatarei § isso sem nada torcer.
Mentes, o filho de Anquíalo § experiente, proclamo 180
ser, e agora sobre os táfios § amantes de remos reino.
Assim cheguei por aqui, § com a nau e os companheiros,
navegando o mar vinoso § até homens de outras línguas,
a Têmese, atrás de bronze § – levo reluzente ferro.
Minha nau está na parte § agreste, longe da pólis, 185
posta no porto de Rítron, § ao pé do frondoso Neio.
Proclamamos pelos nossos § pais ser hóspedes um do outro
desde o princípio, se acaso § fores perguntar ao velho
herói Laertes, que dizem § que não se dirige mais
à pólis, mas que distante § lá no sítio sofre dores, 190
com a velha serva, a qual § dispõe comida e bebida
pra ele quando o cansaço § se apodera de seus membros,
ao rastejar pela encosta § do terreno com a vinha.

398
E agora vim, pois diziam § que ele estava com seu povo,
teu pai – e entretanto os deuses § prejudicam seu percurso. 195
Pois não está morto ainda, § no chão, divino Odisseu,
mas certamente é retido § vivo pelo vasto mar,
em ilha envolta por onda, § e ásperos homens o prendem,
selvagens, os quais decerto § o retêm contra a vontade.
Mas agora vou pra ti § profetizar, tal qual mandam 200
os imortais em meu ânimo § e qual penso que será,
mesmo sem ser adivinho § e de aves sem saber claro.
Não por muito tempo longe § de sua cara terra pátria
ficará, nem se o prenderem § por meio de amarras férreas:
pensará em como vir, § porque ele é multiengenhoso. 205
Mas vamos, me fala isto § e relata sem torcer,
se com tal tamanho és mesmo § filho dele, de Odisseu.
A cabeça e os belos olhos § parecem terrivelmente
com os dele, pois nós dois § nos encontrávamos sempre
antes de embarcar pra Troia, § para onde também outros 210
dos argivos, os melhores, § partiram nas fundas naus.
E desde então eu não vejo § Odisseu nem ele a mim”.
E disse a ela de volta o ponderado Telêmaco:
“Pois então, hóspede, eu vou § falar sem nada torcer.
A minha mãe diz que dele § nasci, porém eu, eu mesmo, 215
não o sei: pois ninguém sabe § por si só da sua origem.
Como eu queria ter sido § venturoso filho de um
homem a quem a velhice § alcançasse com suas posses!
Mas o que foi dos mortais § homens o mais desditoso,
desse dizem que nasci, § uma vez que me perguntas”. 220
E por sua vez lhe disse § deusa Atena claros-olhos:
“Os deuses não impuseram § a ti linhagem anônima
no porvir, já que Penélope § deste jeito te gerou!
Mas vamos, me fala isto § e relata sem torcer:
mas que banquete, que encontro § é este? Precisas dele? 225
Recepção ou casamento? § Pois não é festa conjunta.
De que maneira soberba § e arrogante me parecem
festejar pela morada! § Ficaria indignado o homem

399
que visse tantas vergonhas § – o que sensato chegasse”.
E disse a ela de volta § o ponderado Telêmaco: 230
“Hóspede, já que essas coisas § me questionas e interrogas,
devia esta nossa casa § ser opulenta e ilibada
outrora, enquanto aquele homem § com seu povo ainda estava.
Mas quiseram de outro modo, § com astúcias más, os deuses,
que aquele fizeram ser § não-visto mais que os demais 235
homens: eu não sofreria § tanto assim com sua morte
se ele houvesse com amigos § caído em terra troiana,
ou entre os braços dos seus, § depois que tramou a guerra;
para ele então teriam § feito a tumba os panacaios
e, ao filho seu, grande glória § no porvir também traria. 240
Porém agora as Harpias § o arrebataram inglório:
foi-se, não-visto, não-dito, § e para mim pranto e dor
deixou; e nem vou gemendo § e lamentando por ele
apenas, que os deuses outras § aflições me reservaram:
porque todos os melhores § que têm poder sobre as ilhas 245
(sobre a frondosa Zacinto § e sobre Dulíquio e Same),
e todos também que são § chefes na rochosa Ítaca,
todos cortejam a minha § mãe e consomem a casa.
E ela nem nega o odioso § casamento nem consegue
tomar decisão, e aqueles § devoradores a casa 250
fazem definhar. Depressa § destruirão a mim também!”.
Muito exaltada com ele § lhe disse vibrante Atena:
“Opópoi, sim, de Odisseu § que se foi tu sentes muita
falta, o qual nos pretendentes § sem respeito as mãos poria!
Ah, se ele chegasse agora § e à porta externa da casa 255
se postasse com seu elmo § mais o escudo e as duas lanças
deste modo – conforme eu § da primeira vez o vi
lá em nossa casa enquanto § bebia e se divertia,
vindo de Éfira, de junto § de Ilo, esse filho de Mérmero
(pois Odisseu tinha ido § para lá na nau ligeira 260
à procura de mortífera § droga, para que pudesse
untar os dardos de brônzea § ponta, mas aquele não
lhe deu, porque já temia § os deuses que sempre são;

400
mas meu pai lhe deu, pois dele § gostava terrivelmente);
se desse modo Odisseu § encontrasse os pretendentes, 265
teriam todos ligeira § morte e amargo casamento!
Isso, no entanto, decerto § jaz nos joelhos dos deuses:
se depois de voltar vai, § ou se não vai, se vingar
dentro do palácio seu. § A ti, ordeno que penses
em como vais expulsar § do palácio os pretendentes. 270
Mas vamos, agora escuta § e aos meus dizeres atenta:
amanhã convoca à ágora § os outros heróis acaios,
profere um discurso a todos § e que os deuses testemunhem.
Aos pretendentes, ordena § que se dispersem às casas;
já sua mãe, se acaso o ânimo § a compele a se casar, 275
que retorne para o grande § palácio do pai capaz,
pois casamento lhe vão § preparar e arranjar dotes
inúmeros, quantos devem § seguir com a cara filha.
Já a ti darei conselho § cerrado, caso obedeças:
apronta uma nau com vinte § remadores, a melhor, 280
e parte pra te informares § do teu pai já ido há muito,
a ver se algum dos mortais § diz algo ou se ouves Notícia
vinda de Zeus, a qual mais § leva glória para os homens.
Vai primeiramente a Pilos § questionar Nestor divino
e de lá então a Esparta, § junto ao loiro Menelau, 285
pois é quem chegou por último § dos acaios vestes-brônzeas.
Se tu por acaso ouvires § que vive e volta o teu pai,
mesmo desgastado, ainda § mais um ano aguentarias.
Mas se ouvires que está morto § e que já não vive mais,
volta logo na sequência § para a cara terra pátria, 290
erige uma tumba a ele § e lhe presta as honras fúnebres,
inúmeras (quantas devem § ser), e dê a mãe a homem.
E depois que já tiveres § feito e concluído tudo,
pensa logo na sequência § nisso no ânimo e no espírito,
em como no teu palácio § aos pretendentes então 295
vais matar, se por ardil § ou às claras. Tu não deves
levar a infância adiante, § porque não tens mais idade!
Ou tu não ouves que glória § obteve o divino Orestes

401
por entre todos os homens, § ao matar o algoz do pai,
o ardiloso Egisto, o qual § matara o célebre pai? 300
Tu também, amigo – muito § belo e imponente te vejo –,
sê valente, pra que algum § dos pósteros te bem-diga!
Mas agora eu mesmo já § irei rumo à nau ligeira
e aos companheiros, que muito § se cansam de me esperar...
Quanto a ti, toma cuidado § e aos meus dizeres atenta”. 305
E disse a ela de volta § o ponderado Telêmaco:
“Hóspede, proferes tais § palavras com mente amiga,
tal qual um pai a seu filho, § e nunca esquecerei delas.
Vamos, fica agora, mesmo § ansioso por partir,
pra só depois de banhado, § e o coração deleitado, 310
andares à nau, com o ânimo § alegre, levando dádiva
valiosa, bastante bela, § que será o meu tesouro
pra ti, do tipo que caros § amigos a amigos dão”.
E respondeu-lhe em seguida § deusa Atena claros-olhos:
“Não me retenhas mais, tão § desejoso por partir. 315
A dádiva que tua cara § entranha te manda dar,
dá quando eu vier de volta, § para a levar para casa:
pega uma bastante bela! § Merecerás uma em troca”.
Depois de falar assim, § foi-se Atena claros-olhos
e tal qual ave voou § ao alto. Mas em seu ânimo 320
já pôs furor e coragem § e o fez lembrar de seu pai
ainda mais que antes. E ele, § percebendo em seu espírito,
no ânimo então se espantou, § pois pressentiu que era um deus.
E depressa aos pretendentes § se juntou, herói deiforme.
Cantava o célebre aedo § pra eles, que se sentavam 325
em silêncio, ouvindo: a volta § de acaios ele cantava,
odiosa, que desde Troia § lhes dera vibrante Atena.
E do andar de cima ouviu § o seu canto divinal
a que era filha de Icário, § a circunspecta Penélope,
e pela elevada escada § desceu de seu aposento, 330
não sozinha, pois com ela § iam também duas servas.
E depois de aos pretendentes § chegar, diva das mulheres,
parou junto da pilastra § do teto bem-construído,

402
segurando em frente ao rosto § o seu luminoso véu,
e de cada lado seu § se pôs, devota, uma serva. 335
E então, lágrimas vertendo, § ao divino aedo disse:
“Fêmio, sabes muitas outras § encantações de mortais,
feitos de homens e de deuses, § que os aedos glorificam.
Canta-lhes, enquanto sentas, § um desses, e que eles bebam
em silêncio o vinho. Para § porém com esse cantar 340
odioso, que no meu peito § ao caro coração sempre
corrói, já que atingiu mais § a mim o luto ilatente.
Pois tal é essa cabeça § que saudosa sempre lembro,
do homem cuja glória é vasta § na Hélade e em meia Argos”.
E disse a ela de volta § o ponderado Telêmaco: 345
“Minha mãe, por que razão § impedes o exímio aedo
de deleitar como a mente § lhe manda? Não são aedos
os culpados, mas Zeus deve § ser culpado, ele que dá
aos laboriosos homens, § a cada um, como quer...
Não há mal em que esse cante § a triste sina dos dânaos: 350
pois é este mesmo o canto § que os homens mais glorificam,
o que novíssimo vem § em volta de seus ouvidos.
Quanto a ti, que coração § e ânimo ousem escutar!
Pois não somente Odisseu § perdeu o dia da volta
em Troia: inúmeros outros § heróis também pereceram. 355
Agora, indo ao aposento, § cuida dos trabalhos teus,
do teu tear, da tua roca, § e ordena também às servas
que se lancem ao trabalho. § Falar caberá aos homens
todos, e a mim sobretudo: § é meu o poder na casa!”.
E ela, espantada, foi já § de volta para o aposento, 360
pois a fala ponderada § do filho entrara em seu ânimo.
Chegando ao andar de cima § com as mulheres suas servas,
pôs-se a chorar Odisseu, § caro esposo, até que doce
sono lançou-lhe nas pálpebras § a claros-olhos Atena.
E os pretendentes, ruidosos § pelo palácio sombrio, 365
oraram todos então § por se inclinar em seu leito.
E entre eles falou primeiro § o ponderado Telêmaco:
“Da minha mãe pretendentes § de soberba hiperviolenta:

403
desfrutemos do banquete § agora, mas que não haja
algazarra, que isto é belo § – escutar a um aedo 370
do tipo que este aqui é, § rival dos deuses na voz.
Mas na Aurora, rumo à ágora § andemos e lá sentemos
todos, a fim de que eu diga § sem reservas meu discurso:
que abandoneis o palácio! § Preparai outros banquetes,
consumindo vossos bens, § revezando-vos nas casas. 375
Contudo, se vos parece § que isto é sim mais proveitoso
e melhor – a perda impune § do sustento de um só homem –,
destruí! Eu vou bradar § aos deuses que sempre são,
para ver se Zeus concede § que sobrevenha o revide.
Que sem quem vos vingue então § findeis dentro do palácio!” 380
Assim disse, e todos eles, § enfiando os dentes nos lábios,
se espantaram com Telêmaco, § pois com coragem falara.
E por sua vez lhe disse § Antínoo, filho de Eupites:
“Telêmaco, são os deuses § certamente que te ensinam
a ser sublime orador § e com coragem falar... 385
Que na marítima Ítaca § o Cronida não te faça
rei, o que por nascimento § é tua herança paterna”.
E disse a ele de volta § o ponderado Telêmaco:
“Antínoo, tu vais comigo § te indignar pelo que digo?
Também isso eu gostaria § de obter, se dado por Zeus. 390
Ou afirmas que entre os homens § isso é o que há de pior?
Pois não é ruim ser rei: § rapidamente a morada
vai se tornando opulenta, § e ele mesmo muito honrado.
Entretanto, entre os acaios § inúmeros outros reis
há na marítima Ítaca, § tanto novos quanto antigos; 395
um deles terá o posto, § morto o divino Odisseu.
Eu próprio, porém, serei § o senhor da nossa casa
e de escravos que pra mim § pilhou divino Odisseu”.
E por sua vez Eurímaco § lhe disse, filho de Pólibo:
“Telêmaco, isso decerto § jaz nos joelhos dos deuses, 400
quem na marítima Ítaca § reinará sobre os acaios.
As posses, que tu as tenhas § e em tua morada mandes,
e que não venha varão § que à tua revelia, à força,

404
as posses te arranque, estando § Ítaca ainda habitada.
Mas desejo, nobilíssimo, § te perguntar sobre o hóspede: 405
de que parte esse homem vem, § de que terra ele proclama
ser e onde se encontram sua § família e seu solo pátrio.
Traz ele alguma mensagem § sobre a vinda de teu pai
ou aqui chega movido § por motivo pessoal?
Quão de imediato, de um salto, § se foi e não ficou mais 410
pra ser conhecido! Mau § não parece pelo rosto”.
E disse a ele de volta § o ponderado Telêmaco:
“Eurímaco, sim, morreu § o retorno do meu pai!
Logo, a mensagens não ouço § mais, de onde quer que elas venham,
nem ligo pra qualquer pro- § fecia que minha mãe 415
a um profeta pergunte, § após chamá-lo ao palácio.
Aquele, porém, é hóspede § de meu pai vindo de Tafos.
Mentes, o filho de Anquíalo § experiente, proclama
ser, e agora sobre os táfios § amantes de remos reina”.
Disse assim, reconhecendo § no espírito a imortal deusa. 420
E eles, para a dança e o canto § desejoso se voltando,
deleitavam-se, esperando § sobrevir o anoitecer;
negro, a eles em deleite § sobreveio o anoitecer,
e já foram se deitar § cada um na sua casa.
Mas Telêmaco, na parte § do belo pátio onde o quarto 425
elevado fora feito, § local visível em volta,
lá foi para o leito, muito § cogitando em seu espírito.
Para ele, cuidadosa, § portava tochas ardentes
Euricleia, que era filha § do Pisenorida Ops.
Laertes outrora a tinha § comprado com suas posses 430
na primeira mocidade § – dera vinte bois por ela;
e, qual à devota esposa, § no palácio ele a honrava,
sem deitar no leito, atento § à cólera da mulher.
Era ela quem portava § tochas ardentes, quem mais
o amava dentre as escravas § e pequenino o nutrira. 435
Ele abriu então as portas § do quarto bem-construído
e foi se sentar na cama, § tirando a macia túnica,
que depositou nas mãos § da bem-pensante anciã.

405
E ela, depois de dobrar § e alisar a sua túnica,
num gancho a deixou suspensa, § junto ao seu trançado leito, 440
e o quarto deixou; puxou § a porta por uma argola
de prata, e com a correia § fez correr dentro o ferrolho.
Lá então, a noite toda, § coberto em pele de ovelha,
ele planejou no espírito § senda que Atena indicara.

406
cAntO 2.
Assembleia dos itacenses
e partida de telêmaco

Telêmaco convoca a assembleia e expõe suas queixas contra os pretenden-


tes (1-81). Resposta de Antínoo, que rememora o estratagema da mortalha de
Penélope, e réplica de Telêmaco (82-145). Um presságio enviado por Zeus é inter-
pretado por Haliterses como anúncio da volta de Odisseu e da morte dos preten-
dentes, mas é tratado com desprezo por Eurímaco (146-207). Os pretendentes re-
jeitam a solicitação de Telêmaco, que pedira nau e tripulação para sair em viagem;
Mêntor, amigo de Odisseu, intervém para criticar a inação do povo (208-256). Fim
da assembleia; Telêmaco invoca Atena, que lhe aparece disfarçada de Mêntor e
promete ajuda na viagem (257-297). O jovem retorna ao palácio, onde já se encon-
tram os cortejadores de Penélope, e repele o convite sarcástico de Antínoo para
participar do banquete; deboche dos pretendentes (298-336). Telêmaco ordena a
Euricleia que cuide dos preparativos para a viagem (337-381). Atena, sob o aspecto
de Telêmaco, vai pela cidade e providencia nau e tripulação; à noite, o jovem em-
barca na companhia da deusa, disfarçada novamente de Mêntor (382-434).

cAntO 3.
em Pilos

Atena e Telêmaco chegam a Pilos, onde são acolhidos (1-66). Telêmaco res-
ponde a Nestor acerca do objetivo da viagem e pede notícias do pai; o ancião con-
ta as provações sofridas em Troia e a volta dos acaios, mas diz nada saber sobre
Odisseu (67-200). Conversa sobre os pretendentes, as probabilidades de vingança
e o regresso de Odisseu; Nestor, a pedido de Telêmaco, explica como Agamênon
foi assassinado por Egisto e depois vingado pelo filho (201-328). Após o sacrifício
aos deuses, Nestor convida os hóspedes a passarem a noite em seu palácio, mas
Atena-Mêntor declina o convite; ao partir, ela é reconhecida por Nestor, que lhe
promete uma oferenda (329-403). Na manhã seguinte, sacrifício em honra à deu-
sa; após a refeição, Telêmaco, em companhia de Pisístrato, filho de Nestor, dirige-
-se por terra a Esparta (404-497).

407
cAntO 4.
em esparta

Chegada a Esparta e recepção por parte de Menelau, que promove a festa


de casamento do filho e da filha (1-67). A admiração de Telêmaco pela magnificên-
cia do palácio induz o rei a contar como acumulou tantas riquezas; ele declara que,
de todos os companheiros, Odisseu é aquele de quem tem mais saudade (68-112).
Telêmaco chora e é reconhecido por Menelau e Helena; Pisístrato expõe os motivos
da viagem e põe fim às lágrimas (113-218). Helena e Menelau relembram feitos de
Odisseu e todos vão se deitar (219-305). No dia seguinte, Menelau começa a expor
o quanto sabe acerca do herói ausente: o ardil de Idótea permitiu-lhe interrogar
Proteu, o qual lhe narrou o naufrágio de Ájax, filho de Oileu, e o assassinato de
Agamênon por Egisto; Odisseu continua vivo, mas a ninfa Calipso o retém em sua
ilha (306-592). Telêmaco reluta em prolongar sua estadia e recebe de Menelau os
presentes de hospitalidade (593-624). Nesse meio tempo, os pretendentes são in-
formados da partida do jovem e combinam de armar uma cilada em seu regresso
(625-674). Aflição de Penélope, depois de informada pelo arauto Médon do plano
dos pretendentes; ela ora a Atena e pede proteção ao filho (675-767). Os preten-
dentes partem numa nau para atocaiar Telêmaco; Atena envia a Penélope um es-
pectro com a aparência da irmã, Iftima, para reconfortá-la em sonho (768-847).

cAntO 5.
A jangada de Odisseu

Em nova assembleia dos deuses, Atena cobra de Zeus o regresso de Odisseu


e Hermes é encarregado de comunicar a decisão a Calipso (1-42). O deus mensagei-
ro transmite a Calipso a ordem de Zeus (43-148). A ninfa diz a Odisseu que ele deve
construir uma jangada e o exorta, em vão, a permanecer com ela em troca da imor-
talidade (149-227). Odisseu termina a jangada em quatro dias e parte no quinto;
no décimo oitavo, avista a terra dos feácios (228-281). Posêidon, ao vê-lo, provoca
uma tormenta e o herói quase perde a vida; destruída a jangada, Odisseu, graças
ao véu de Leucótea e à proteção de Atena, alcança a nado a Esquéria (282-440). A
custo, chega à foz de um rio, esconde-se sob dois arbustos e adormece (441-493).

408
cAntO 6.
chegada de Odisseu
à cidade dos feácios

Atena aparece em sonho para Nausícaa, filha de Alcínoo, o rei dos feácios,
e a orienta a ir lavar as roupas para seu casamento (1-47). A jovem consegue que
o pai lhe dê uma parelha de mulas e parte, acompanhada pelas servas (48-84).
Lavadas as roupas, as moças tomam banho; em seguida, jogam bola e seus gritos
acordam Odisseu (85-126). Súplica de Odisseu a Nausícaa (127-185). Por determi-
nação da jovem, as criadas dão a Odisseu roupas e alimento (186-250). Nausícaa
diz ao estrangeiro que vai guiá-lo até as proximidades da cidade (251-315). Ele a se-
gue e, obedecendo às suas instruções, antes de ir ao palácio espera por um tempo
no bosque consagrado a Atena, onde dirige uma prece à deusa (316-331).

cAntO 7.
entrada de Odisseu
no palácio de Alcínoo

Depois de Nausícaa entrar no palácio, Atena envolve Odisseu em uma bru-


ma e, aparecendo sob a forma de uma menina, leva-o à casa de Alcínoo (1-81).
Odisseu admira o palácio e os jardins (81-133). O herói encontra os feácios reunidos
e dirige uma súplica à rainha Arete; a convite do ancião Equeneu, Alcínoo lhe dá as
boas-vindas e promete transportá-lo à terra natal (134-227). Após a saída de todos,
a rainha Arete pede a Odisseu que se explique sobre as roupas que está vestindo;
Odisseu responde à rainha e conta as atribulações sofridas desde sua partida da
ilha de Calipso (228-297). Terminada a narrativa, Alcínoo de novo lhe assegura que
os feácios o conduzirão à pátria (298-347).

409
cAntO 8.
Apresentação de
Odisseu aos feácios

Na assembleia reunida pela manhã, Alcínoo dá instruções para que seu hós-
pede seja conduzido à pátria (1-56). Enquanto a nau é preparada, um banquete é
servido no palácio; o aedo Demódoco canta um episódio da Guerra de Troia e Odis-
seu se comove (57-92). O rei percebe e convida todos a irem até a ágora, a fim de
presenciarem os jogos; Odisseu é instado a tomar parte nas disputas e se decide a
participar diante da zombaria de Euríalo (93-185). O herói vence no lançamento de
disco e desafia os feácios para outras provas; Alcínoo acalma os ânimos e manda
chamar de volta o aedo (186-265). Demódoco canta os amores de Ares e Afrodite
(266-369). As danças produzem a admiração de Odisseu; Alcínoo exorta os rei a
oferecerem presentes ao hóspede e obtém a reconciliação deste com Euríalo (370-
448). Ao cair da noite, todos voltam ao palácio; Nausícaa vem saudar Odisseu pela
última vez (449-468). A pedido do herói, Demódoco canta o episódio do cavalo de
madeira; ao ver o hóspede esconder o rosto e chorar, Alcínoo finalmente lhe per-
gunta quem é e qual o motivo de suas lágrimas (469-586).

Quando raiou matutina § a róseos-dedos Aurora,


ergueu-se do leito Alcínoo § com seu sagrado furor,
e se ergueu o divogênito § Odisseu arrasa-pólis.
E o foi conduzindo Alcínoo § com seu sagrado furor
rumo à ágora feácia, § construída junto às naus. 5
Lá chegando, nas polidas § pedras eles se sentaram
próximos. Pela cidade § corria vibrante Atena,
com o arauto do experiente § Alcínoo se parecendo,
a planejar o retorno § do magnânimo Odisseu.
E a cada homem, parando § ao seu lado, disse assim: 10
“Ora vamos, condutores § e guardiões dos feácios!
Ide à ágora informar-vos § acerca desse estrangeiro,
que à morada do experiente § Alcínoo há pouco chegou
após vagar pelo mar, § igual no porte a imortais”.
Assim disse, e incitou o ânimo § e o furor de cada um. 15
Logo as praças e os assentos § lotaram com os mortais

410
aglomerados. E muitos § admiraram-se de ver
o experiente Laercida: § pois sobre ele então Atena
vertera sublime graça, § em seus ombros e cabeça,
e maior que antes e mais § robusto o deixara à vista, 20
para que pudesse ser § caro a todos os feácios
– terrível e respeitável – § e realizar as muitas
provas com as quais seria § testado pelos feácios.
Depois que eles se juntaram § e ficaram reunidos,
entre eles todos Alcínoo § então proferiu e disse: 25
“Escutai-me, condutores § e guardiões dos feácios,
pra que eu diga aquilo que o ânimo § dentro do peito me ordena.
Este estrangeiro – quem é § não sei – chega errante a mim,
vindo de junto dos homens § do oriente ou do ocidente.
Pede prestes um transporte § e suplica por certeza; 30
que nós, como antes também, § aprestemos seu transporte,
pois nenhum outro, nenhum, § que chega à minha morada,
sofrendo aqui se demora § por causa do seu transporte.
Vamos, agora arrastemos § negra nau ao mar divino,
estreante em navegar, § e que se escolham cinquenta 35
e dois jovens pelo povo, § que há muito são os melhores.
Depois de prenderdes bem § os remos sobre os toletes,
desembarcai, e em seguida § cuidai logo do banquete,
vindo ao nosso encontro: eu vou § prover o bastante a todos.
Aos jovens então tais coisas § ordeno; quanto aos demais, 40
reis portadores de cetro, § à minha bela morada
dirigi-vos, pra acolhermos § no palácio esse estrangeiro,
e que ninguém se recuse! § E chamai divino aedo,
Demódoco, pois o deus § lhe deu de especial o canto,
para deleitar por onde § o ânimo o mandar cantar”. 45
Assim exclamou, e à frente § foi, e os porta-cetro junto
seguiram; o arauto foi § atrás do divino aedo.
Uma vez selecionados, § dirigiram-se os cinquenta
e dois jovens, obedientes, § à praia do mar infértil.
Depois então de baixarem § para a nau e para o mar, 50
trouxeram a negra nau § para águas mais profundas

411
e nela puseram mastro § e vela, na negra nau,
ajustando cada remo § à sua tira de couro,
tudo na devida ordem, § e abriram a branca vela
e no extremo da baía § a ancoraram. Em seguida 55
se dirigiram à casa § grande do experiente Alcínoo.
Encheram-se então o pórtico, § o cercado e a casa de homens
aglomerados, de muitos, § não só jovens como velhos.
E para eles Alcínoo § sacrificou doze ovelhas,
oito suínos de alvas presas § e dois bois bamboleantes, 60
que esfolando prepararam, § dando banquete aprazível.
O arauto então se acercou § conduzindo o exímio aedo,
a quem mais amou a Musa § e a quem dava o bem e o mal
– sim, da visão o privara, § mas lhe dava o doce canto.
Pra ele Pontônoo pôs § trono enfeitado com prata, 65
encostando-o em uma alta § coluna, em meio aos convivas;
num gancho deixou suspensa § então a límpida lira,
ali, sobre sua cabeça, § e mostrou como alcançá-la
o arauto; ao lado foi pondo § uma cesta e bela mesa
e ao lado ainda o seu vinho, § pra beber quando quisesse. 70
E às iguarias, já prontas § à frente, lançaram mãos.
Depois de expulso o desejo § por comida e por bebida,
a Musa mandou o aedo § cantar as glórias dos homens,
trecho cuja glória, então, § alcançava o vasto céu,
a disputa do Pelida § Aquiles com Odisseu: 75
como num farto banquete § dos deuses os dois brigaram
com dizeres duros, e ele, § senhor de homens Agamênon,
se alegrava por brigarem § os melhores dos acaios;
pois assim lhe tinha pro- § fetizado o puro Apolo,
quando cruzou a marmórea § soleira na sacra Pito 80
pra se consultar (então § já se iniciava a desgraça
para dânaos e troianos § – vontade do grande Zeus).
Isso então cantava o célebre § aedo. Mas Odisseu,
com robustas mãos pegando § seu grande manto purpúreo,
sobre a cabeça o puxou § pra cobrir o belo rosto, 85
com vergonha por estar § chorando em frente aos feácios.

412
Na verdade, se parava § seu canto o divino aedo,
retirava da cabeça § o manto, enxugando as lágrimas,
e com cálice de dupla § face ele libava aos deuses.
Mas de novo começava § (os melhores dos feácios 90
o incitavam a cantar, § pois tinham prazer nos versos),
e novamente Odisseu, § cobrindo a face, chorava.
E escondeu então de todos § aqueles outros o choro;
Alcínoo apenas prestou § atenção e percebeu,
pois sentado perto dele § ouviu seus fundos gemidos. 95
E de imediato aos feácios § amantes de remos disse:
“Escutai-me, condutores § e guardiões dos feácios!
Nós com o justo banquete § o ânimo já saciamos,
e com a lira, a qual é § parceira do festim farto.
Vamos agora pra fora § e passemos pelas provas 100
todas, para que o estrangeiro § evoque então aos amigos,
ao voltar pra casa, o quanto § superamos os demais
no pugilato, na luta, § nos saltos e na corrida”.
Assim exclamou, e à frente § foi, e eles seguiram junto.
Num gancho deixou suspensa § então a límpida lira, 105
pegou pela mão Demódoco § e do palácio o guiou
o arauto, e seguiu com ele § a mesma via que os outros,
os melhores dos feácios, § para admirarem as provas.
Foram pra ágora e junto § seguiu grande multidão,
aos milhares, e já muitos § e bravos jovens se erguiam. 110
Acroneu se levantou, § mais Ocíalo e Elatreu,
e mais Nauteu e Primneu, § mais Anquíalo e Eretmeu,
e mais Ponteu e Proreu, § Tôon e Anabesineu,
e mais Anfíalo, filho § do Polineu Tectonida.
E se ergueu também Euríalo, § igual a Ares ruinoso, 115
filho de Náubolo, e que era § o melhor em porte e aspecto
dentre os feácios após § o ilibado Laodamante.
E ergueram-se ainda os três § filhos do ilibado Alcínoo,
Laodamante, mais Hálio § e o quase-deus Clitoneu.
E eles por certo primeiro § se mediram na corrida: 120
desde a marca, a pista a eles § se estendia, e todos juntos

413
foram voando ligeiro, § erguendo o pó na planície.
Deles de longe o melhor § foi Clitoneu ilibado:
quanto um par de mulas per- § corre em terra descansada
– tanto os superando ao povo § voltou, deixando-os pra trás. 125
E na dolorosa luta § eles então se mediram;
nela foi a vez de Euríalo § vencer todos os melhores.
Mas no salto foi Anfíalo § mais destacado que todos;
já Elatreu foi a todos § muito superior no disco,
e Laodamante nos punhos, § o bravo filho de Alcínoo. 130
Mas depois que deleitaram § o espírito com as provas,
então Laodamante entre eles § falou, o filho de Alcínoo:
“Caros, vamos, perguntemos § ao estrangeiro se sabe
ou domina alguma prova: § no talhe é que não é mau,
nas coxas e nas canelas, § nos dois braços mais acima, 135
no pescoço grosso e grande § vigor. Também não lhe falta
juventude; porém foi § moído por muitos males.
Eu mesmo digo que não § há nada pior que o mar
para atormentar um homem, § por mais forte que ele seja”.
E Euríalo, por sua vez, § exclamando respondeu: 140
“Laodamante, isso tudo § disseste com proporção.
Vai agora desafiá-lo § e profere teu discurso”.
Depois então de ouvir isso, § o bravo filho de Alcínoo
foi se pôr de pé no meio § e para Odisseu falou:
“Vamos lá, também tu, pai § estrangeiro, tenta as provas, 145
já que alguma tu dominas: § parece que as sabes bem.
Pois para um homem não há § maior glória enquanto vive
do que aquilo que realiza § com seus próprios pés e mãos!
Mas vamos, tenta, e desvia § as aflições de teu ânimo.
Não será mais retardada § tua trilha, mas pra ti 150
já está lançada a nau § e a postos os companheiros”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Laodamante, por que § me incitais em tom cortante?
Aflições, bem mais que provas, § preocupam o meu espírito:
no passado muitas coisas § sofri e muito penei. 155
Mas agora, precisando § do retorno, em vossa ágora

414
me demoro, suplicando § ao rei e a todo o seu povo”.
E Euríalo, por sua vez, § censurando-o respondeu:
“Não, estrangeiro, em ti não § vejo varão com domínio
das provas, tais quais existem § inúmeras entre os homens, 160
mas alguém que trafegando § com a nau de muitos bancos
– o chefe de marinheiros § que são negociadores –
da carga esteja lembrado, § e bastante atento às vendas
e aos seus ganhos escorchantes. § Mas atleta não pareces!”.
E olhando-o torto lhe disse § o multiastuto Odisseu: 165
“Não falaste bem, estranho. § Atrevido é o que pareces!
Assim é que os deuses não § conferem graças a todos
os homens juntos, no talhe, § no espírito e na eloquência.
Pois de um lado existe aquele § que no aspecto é inferior,
mas o deus lhe cobre os ditos § de formosura e sobre ele 170
o olhar se fixa, enlevado; § e falando firmemente
com o melífluo respeito § sobressai aos reunidos
e tal qual um deus o observam § quando vai pela cidade.
Mas, por outro, há o que no aspecto § é rival dos imortais;
para ele, porém, graça § alguma recobre os ditos, 175
como contigo: no aspecto § tão distinto (não, melhor
nem um deus te deixaria!), § mas tens a mente vazia...
Tu insuflaste meu ânimo § dentro do peito querido
ao falares com desordem! § Não sou novato nas provas,
como tu afirmas: penso § ter estado entre os primeiros 180
enquanto com minhas mãos § e juventude contei.
Mas tenho agora tormentos, § dores, pois muito aguentei
ao atravessar as guerras § de homens e doídas ondas.
Mesmo assim, tendo sofrido § muito, tentarei as provas:
a tua fala espicaça § e ao falar me provocaste”. 185
Disse, e com o manto mesmo § saltando apanhou o disco,
mais largo, grosso e pesado § (e não era só um pouco)
que aquele com que os feácios § competiam entre si.
E dando voltas com ele § da robusta mão lançou-o
e a pedra então ribombou: § agacharam-se no chão 190
os feácios longirremes, § célebres por suas naus,

415
sob o avanço do disco, e ele § voou mais que as marcas todas,
correndo veloz da mão. § Marcou a distância Atena,
tomando o porte de um homem, § e nomeando-o lhe disse:
“Estrangeiro, até um cego § distinguiria, apalpando, 195
esta marca, já que não § se mistura com a massa,
mas vem bem na frente. Tu, § com esta prova te anima:
nenhum dos feácios vai § te alcançar ou superar!”.
Assim disse, e se alegrou § multitenaz Odisseu,
contente por ver amável § amigo no ajuntamento; 200
e estando então bem mais leve § exclamou entre os feácios:
“Chegai perto disso, jovens! § Acho que em breve um segundo
vou arremessar, tão longe § quanto ou ainda mais longe.
Vamos, qualquer outro a quem § impelem coração e ânimo,
que se ponha aqui à prova § – vós me irritastes demais – 205
no pugilato, na luta § ou mesmo nos pés, não ligo,
outro que não Laodamante § dentre todos os feácios;
pois este é meu anfitrião: § quem luta com quem o acolhe?
Sim, insensato varão § e sem valor é aquele
que ao seu hospedeiro pro- § põe a disputa de provas, 210
em terra alheia: de si § poda todo o seu proveito!
Porém qualquer outro não § renego nem menosprezo,
antes quero conhecer § e ser testado de frente.
Em nada sou mau, em quantas § são as provas entre os homens.
Sei mesmo manusear § muito bem o arco polido: 215
acertaria em primeiro § o alvo, atirando na turba
de homens inimigos, mesmo § que inúmeros companheiros
se postassem muito perto § e disparassem também!
Era apenas Filoctetes § quem me superava no arco
em terra troiana, quando § nós acaios alvejávamos. 220
Dos demais, digo que sou § de longe o mais destacado
dos mortais que sobre a terra § vão, comedores de pão.
Mas com os de outrora não § quererei rivalizar,
nem com Héracles e nem § com Êurito lá da Ecália,
que também com imortais § rivalizavam pelo arco; 225
logo também o grande Êurito § morreu (não lhe sobreveio

416
a velhice no palácio): § encolerizado, Apolo
o assassinou, porque tinha § o desafiado no arco.
Já a lança lanço mais § longe do que flecha alheia.
Na corrida apenas temo § que algum dos feácios me ultra- 230
passe, pois de modo muito § ultrajante fui domado
em meio a inúmeras ondas, § já que na nau não havia
amplo cuidado; por isso § meus caros membros se afrouxam”.
Assim disse, e todos eles § quedaram quietos, calados;
e foi Alcínoo somente § que em resposta lhe falou: 235
“Estrangeiro, já que não § sem charme entre nós discursas,
mas desejas demonstrar § a excelência que te assiste,
irritado porque esse homem, § postado no ajuntamento,
censurou tua excelência § tal qual ninguém o faria
(que soubesse em seu espírito § o falar articulado), 240
vamos então, ouve agora § meu dito, para que digas
também para um outro herói § quando lá em teu palácio
festejares com a tua § esposa e com os teus filhos,
relembrado da excelência § nossa, que façanhas Zeus
também a nós de contínuo § impõe desde os ancestrais. 245
Pois não somos ilibados § na luta ou no pugilato,
mas com pés corremos rápido § e com as naus somos ótimos,
e sempre temos banquetes § e cara cítara e danças,
além de roupas trocadas § e banhos quentes e leitos.
Vamos, todos os melhores § dançarinos dos feácios, 250
brincai, para que o estrangeiro § evoque então aos amigos,
ao voltar pra casa, o quanto § superamos os demais
na náutica, na corrida § e também em canto e dança!
Que pra Demódoco alguém § depressa a límpida lira
apanhe, que deve estar § dentro da nossa morada”. 255
Assim disse Alcínoo dei- § forme, e ergueu-se o seu arauto
pra ir apanhar a côncava § lira na casa do rei.
E levantaram-se os nove § fiscais escolhidos todos
no povo, que organizavam § tudo nas competições,
e aplainaram uma pista § e abriram a bela roda. 260
O arauto chegou então § trazendo a límpida lira

417
pra Demódoco, que foi § para o meio; em volta jovens
na flor da idade se erguiam, § conhecedores da dança,
e feriram com os pés § divina pista (Odisseu
admirava o cintilar § dos pés, espantado no ânimo). 265
E vibrando as cordas ele § preludiou belo cantar
sobre os amores entre Ares § e a coroada Afrodite
– como primeiro deitaram § juntos na casa de Hefesto,
furtivos, e ele deu dádivas § a ela e afrontou o leito
do senhor Hefesto. E a esse § veio avisar de imediato 270
o Sol, de que vira os dois § misturando-se em amor.
Hefesto, depois de ouvir § o doloroso relato,
dirigiu-se para a forja, § males meditando fundo,
e pôs no suporte a grande § bigorna e martelou laços
inquebráveis, insolúveis, § pra que dali não saíssem. 275
E depois que fabricou § o ardil, irado com Ares,
dirigiu-se para o quarto § onde a cara cama estava
e espalhou em toda parte § laços no dossel, em círculos,
e muitos também na viga § do teto espalhou, em cima,
como delicadas teias § que jamais alguém veria, 280
nem dos venturosos deuses, § pois com muito ardil forjara.
E depois que ele espalhou § o ardil todo pela cama
fingiu que ia para Lemnos, § a bem-habitada pólis,
que é dentre todas as terras § de longe a mais cara a ele.
E não vigiava em vão § ele, Ares das rédeas de ouro, 285
porque viu Hefesto, célebre § artífice, indo pra longe.
E dirigiu-se à morada § do muito célebre Hefesto,
ávido pelos amores § da coroada Citereia;
ela, que estivera havia § pouco com o pai potente,
o Cronida, se sentava, § e ele, indo morada adentro, 290
lhe apertou então a mão, § e nomeando-a lhe disse:
“Aqui, querida! Deitemos § no leito e nos deleitemos...
Hefesto não está mais § entre a gente; deve ter
ido a Lemnos, ao encontro § dos síntios de voz selvagem”.
Disse assim, e ela saudou § a ideia de se deitarem. 295
Mas depois de irem pra cama § dormiram, e em volta os laços

418
caíram, artificiosos, § do multipensante Hefesto:
nenhum dos membros podiam § movimentar nem erguer,
e eles então perceberam § que não tinham mais saída.
E pra junto deles veio § o muito célebre Coxo, 300
retornando antes de ter § chegado à terra de Lemnos,
pois pra ele o Sol fazia § a vigilância e lhe disse.
E dirigiu-se à morada § aflito na cara entranha,
e na entrada se postou, § tomado por feroz cólera;
emitiu um grito horrível § e bradou aos deuses todos: 305
“Zeus pai e vós, demais deuses § venturosos sempre vivos,
vinde, pra que vejais feitos § risíveis e intoleráveis:
como Afrodite, a menina § de Zeus, a mim, que sou manco,
sempre me desonra, e adora § desaparecedor Ares,
porque é belo e articulado § nos pés, enquanto eu, eu mesmo, 310
debilitado nasci. § Mas ninguém mais é culpado
senão meus dois pais, que não § deviam ter me gerado!
Vamos, olhai onde os dois § se deitavam em amores
depois de irem para a minha § cama; a mim me dói olhar.
Mas calculo que não fiquem § assim nem mais um minuto, 315
por mais amantes que sejam; § juntos já não vão querer
dormir, e entretanto a eles § laço e ardil vão segurar
até que seu pai devolva § a mim, por inteiro, o dote
que eu lhe pus nas mãos por causa § da jovem cara de cão;
porque é bela sua filha, § mas de si não tem controle!” 320
Assim disse, e se reuniram § os deuses na casa brônzea.
Veio o terra-tem Posêidon, § veio ainda o corredio
Hermes e veio o senhor § Apolo lida-longínquo;
femininas, por pudor § ficaram em casa as deusas.
E na entrada se postaram, § deuses doadores de bens, 325
e entre os venturosos deuses § se ergueu riso interminável
ao olharem para as artes § do multipensante Hefesto.
Assim um deles falava § olhando para o outro ao lado:
“Não prosperam os malfeitos! § O lerdo alcança o ligeiro,
como agora mesmo Hefesto, § lerdo que é, apanhou Ares, 330
(sendo embora o mais ligeiro § dos deuses que têm o Olimpo),

419
manco que é, por artifícios. § Deve-lhe pelo adultério”.
Tais coisas eles assim § proferiam entre si.
E a Hermes disse o senhor § Apolo, filho de Zeus:
“Hermes, filho de Zeus, con- § dutor doador de bens, 335
mesmo aprisionado em laços § violentos não quererias
te deitar num leito ao lado § dela, da áurea Afrodite?”
E respondeu-lhe em seguida § o condutor Argicida:
“Ah, que isso ocorra, senhor § Apolo lança-longínquo!
Que o triplo de laços venham § me envolver, inextricáveis, 340
e vós deuses observar, § e também todas as deusas,
contanto que eu deite ao lado § dela, da áurea Afrodite!”
Assim disse, e o riso ergueu-se § entre os deuses imortais.
Posêidon porém não ria, § mas ficava suplicando
a Hefesto, célebre obreiro, § para que Ares fosse solto; 345
e exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
“Solta, e a ti prometo que ele § irá, como tu ordenas,
pagar tudo que é devido § entre os deuses imortais”.
E por sua vez lhe disse § o muito célebre Coxo:
“A mim, terra-tem Posêidon, § não ordenes essas coisas! 350
As garantias dos fracos § são fracas de garantir.
E como eu te enlaçaria § entre os deuses imortais
se Ares partisse, escapando § do laço e da obrigação?”
E por sua vez lhe disse § o treme-terra Posêidon:
“Hefesto, se Ares um dia, § escapando à obrigação, 355
vier a partir em fuga, § eu próprio te pagarei”.
E respondeu-lhe em seguida § o muito célebre Coxo:
“Não é possível nem cabe § recusar a tua palavra”.
Assim disse e foi soltando § com furor o laço Hefesto.
Os dois, após se livrarem § dos laços, que eram violentos, 360
de um salto logo partiram: § ele foi até a Trácia
e ela chegou até Chipre, § ama-sorriso Afrodite,
a Pafos, onde ela tinha § recinto e altar com incenso.
Tendo as Graças a banhado § e com azeite a esfregado
(imortal, que se acumula § sobre os deuses sempre vivos), 365
vestiram nela adoráveis § vestes, espanto de ver!

420
Isso então cantava o célebre § aedo. Mas Odisseu
se comprazia no espírito § de ouvir e os outros também,
os feácios longirremes, § célebres por suas naus.
E Alcínoo ordenou então § a Hálio e Laodamante 370
que a sós dançassem – ninguém § com eles rivalizava.
E depois de terem pego § a bela esfera nas mãos,
purpúrea, que o experiente § Pólibo lhes tinha feito,
um deles a arremessava § rumo às nuvens sombreantes,
curvado pra trás, e o outro § se erguendo acima do solo 375
facilmente a pegava, antes § de dar com os pés no chão.
Mas depois que com a bola § ao alto se exercitaram,
se puseram a dançar § sobre a terra nutridora,
trocando sempre os lugares; § os demais batiam palmas
de pé pela roda e grande § alvoroço se alastrava. 380
E para Alcínoo exclamou § então divino Odisseu:
“Reinante Alcínoo, entre todas § as gentes muito eminente:
tu prometeste que teus § dançarinos eram ótimos
e eis que está feito – contemplo § tomado de reverência!”.
Disse, e se alegrou Alcínoo § com seu sagrado furor; 385
e de imediato aos feácios § amantes de remos disse:
“Escutai-me, condutores § e guardiões dos feácios!
Este hóspede me parece § ser bastante ponderado;
vamos dar a ele então § dádivas, como convém.
Uma vez que pelo povo § doze reis muito distintos 390
exercem chefia e eu mesmo § sou o décimo terceiro,
trazei cada um de vós § aqui um manto bem limpo
mais uma túnica, e ainda § do valioso ouro um talento.
Que tragamos logo tudo § de uma vez, para que o hóspede
colocando as mãos com ânimo § alegre vá para a ceia. 395
E que Euríalo o compense, § a ele, com as palavras
e uma dádiva, pois não § lhe falou com proporção”.
Assim disse, e todos eles § louvando-o assim ordenavam.
Cada um então mandou § o arauto trazer as dádivas,
e Euríalo, por sua vez, § exclamando respondeu: 400
“Reinante Alcínoo, entre todas § as gentes muito eminente!

421
O hóspede compensarei § então, como tu ordenas:
darei a ele este sabre § todo brônzeo, cujo cabo
é de prata e ao qual bainha § de marfim recém-serrado
circunvolve; para ele § será de grande valia”. 405
Assim disse e em mãos lhe pôs § gládio enfeitado com prata;
e exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
“Salve tu, pai estrangeiro! § Se acaso se disse um dito
terrível, que os ventos vindo § agarrá-lo logo o levem!
E que a ti rever a esposa § e chegar à pátria os deuses 410
deem, pois há muito tempo § longe dos teus sofres dores”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Salve tu, caro! E que os deuses § te deem boa fortuna!
E que pra ti depois não § venha a saudade do gládio,
deste que agora me deste, § compensando com palavras”. 415
Disse e sobre os ombros pôs § gládio enfeitado com prata.
O Sol se pôs e ao seu lado § já tinha as célebres dádivas
que para a casa de Alcínoo § nobres arautos levaram.
E após os filhos de Alcínoo § ilibado as receberem,
junto à respeitável mãe § puseram tão belas dádivas. 420
E os foi conduzindo Alcínoo § com seu sagrado furor.
Lá chegando, nos seus tronos § elevados se sentaram
e para Arete falou § então com furor Alcínoo:
“Traz aqui, mulher, distinto § baú, o melhor que houver,
e nele tu mesma põe § túnica e manto bem limpo; 425
vós, aquecei a caldeira § no fogo e esquentai a água,
pra que ele, após se banhar § e ver bem dispostas todas
as dádivas que os feácios § ilibados cá trouxeram,
se compraza no banquete § e em ouvir o fio do canto.
E eu farei seguir com ele § esta minha bela taça 430
de ouro, para que de mim § lembrado todos os dias
libe em seu palácio a Zeus § e também aos outros deuses”.
Assim disse, e Arete então § falou com suas escravas
pra porem no fogo a grande § trípode, com rapidez.
E para o banho puseram § a trípode em fogo ardente, 435
despejando a água dentro, § e acendendo embaixo a lenha:

422
tocava o ventre da trípode § o fogo e esquentava a água.
Enquanto isso Arete trouxe § até o hóspede, do quarto,
um lindo baú e pôs § dentro belíssimas dádivas,
as vestimentas mais o ouro § que os feácios tinham dado. 440
E nele ela mesma pôs § um manto e uma bela túnica;
e exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
“Olha agora o tampo, e lança § logo um laço em cima dele
pra que ninguém no caminho § te roube, quando vieres
a dormir o doce sono § viajando em negra nau”. 445
Depois então de ouvir isso § multitenaz Odisseu,
ajustando o tampo, logo § lançou laço em cima dele,
intricado, que lhe tinha § mostrado a senhora Circe.
E no ato a serva intendente § mandou que ele se banhasse
indo até a banheira, e ele § com ânimo alegre viu 450
o banho quente, pois não § costumava ser cuidado
desde que deixara a casa § da bem-penteada Calipso
(até então recebia, § qual deus, contínuos cuidados).
Tendo as servas o banhado § e com azeite o esfregado,
e em volta dele jogado § túnica mais bela capa, 455
saiu do banho e ao encontro § dos vinífagos varões
foi indo. Porém Nausícaa, § tendo a beleza dos deuses,
parou junto da pilastra § do teto bem-construído
e espantou-se quando viu § com seus olhos Odisseu.
E exclamando então lhe disse § estas palavras aladas: 460
“Me despeço, hóspede! Mesmo § que estejas na terra pátria,
lembra-te de mim, que a mim § primeiro deves a vida”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Nausícaa, tu que és a filha § do tão magnânimo Alcínoo:
que assim então Zeus permita, § o troante esposo de Hera, 465
eu retornar para casa § e ver o dia da volta!
E mesmo lá eu a ti § como a um deus clamaria
todos os dias, e sempre, § pois me deste a vida, jovem!”.
Disse e se sentou no trono, § ao lado do rei Alcínoo;
já repartiam porções § e misturavam o vinho. 470
O arauto então se acercou § conduzindo o exímio aedo,

423
Demódoco, pelas gentes § honrado, e o fez se sentar,
encostando-o em uma alta § coluna em meio aos convivas.
E para o arauto então disse § o multiastuto Odisseu,
após fatiar o lombo § (e restava ainda muito) 475
de um suíno de alvas presas, § com banha abundante em volta:
“Toma, arauto, vai passar § esta carne pra Demódoco,
pra que coma: também faço-lhe § afago, apesar da dor.
Os aedos, entre os homens § todos que vão sobre a terra,
têm seu quinhão de respeito § e honra, porque a Musa a eles 480
ensinou suas veredas § e ao clã dos aedos ama”.
Ele assim falou; o arauto § a levou e pôs nas mãos
do herói Demódoco, o qual § se alegrou ao recebê-la.
E às iguarias, já prontas § à frente, lançaram mãos.
Depois de expulso o desejo § por comida e por bebida, 485
pra Demódoco então disse § o multiastuto Odisseu:
“Demódoco, louvo a ti § acima dos mortais todos!
Ou a Musa te ensinou, § filha de Zeus, ou Apolo,
pois é com extrema ordem § que cantas a sina acaia
– quanto fizeram e quanto § aguentaram e sofreram –, 490
como se presenciaras § ou escutaras de alguém.
Mas vamos, passa pra outro: § canta o arranjo do cavalo
de madeira, o qual § Epeu com Atena construiu,
ardil conduzido à acrópole § pelo divino Odisseu
após deixá-lo repleto § de homens, que saquearam Ílion. 495
Caso venhas a contar § tais coisas com proporção,
de imediato eu mesmo vou § dizer a todos os homens
como o deus, propenso a ti, § deu-te canto divinal!”.
E impelido pelo deus § começou, mostrando o canto
desde o ponto em que embarcaram § sobre as naus de belos bancos 500
e navegaram pra longe, § pondo fogo nas cabanas,
os argivos, com os outros § junto ao célebre Odisseu
já na ágora troiana, § escondidos no cavalo:
os próprios troianos tinham § o arrastado para a acrópole.
Assim se postava e muitas § coisas confusas diziam 505
os que estavam junto dele. § Três ideias agradavam:

424
fender por inteiro o lenho § oco, com bronze impiedoso;
dos rochedos atirá-lo § depois de arrastá-lo ao alto;
ou deixar a grande dádiva § (agrado aos deuses) ficar,
exatamente o que iria § na sequência se cumprir, 510
pois a sina era morrerem § depois que à pólis cercasse
grande cavalo em madeira, § onde estavam os melhores
argivos, trazendo o fim § e a matança até os troianos.
E cantava como os filhos § dos acaios a pilharam
pulando lá do cavalo, § deixando a oca armadilha; 515
cantava que cada um § de um lado arrasou a pólis,
mas que Odisseu, por sua vez, § para a casa de Deífobo
se foi, tal qual Ares, junto § ao quase-deus Menelau;
e disse que lá ousando § o combate mais terrível
obteve então a vitória, § graças a Atena magnânima. 520
Isso então cantava o célebre § aedo. Mas Odisseu
se desmanchava e molhava § de lágrimas suas faces.
Assim como a mulher chora § e cai junto ao caro esposo
que em frente da própria pólis § e de seu povo caiu
para afastar o impiedoso § dia da cidade e filhos 525
(no momento em que ela vê § que está morrendo e expirando,
à sua volta se derrama § e grita alto; e os detrás,
martelando com as lanças § em suas costas e em seus ombros,
já a levam como escrava, § para ter labuta e agrura,
e dela com dor mais digna § de pena as faces consomem-se): 530
assim Odisseu vertia § lágrimas dignas de pena.
E escondeu então de todos § aqueles outros o choro;
Alcínoo apenas prestou § atenção e percebeu,
pois sentado perto dele § ouviu seus fundos gemidos.
E de imediato aos feácios § amantes de remos disse: 535
“Escutai-me, condutores § e guardiões dos feácios,
e que Demódoco já § detenha a límpida lira,
pois de forma alguma a todos § agrada ao cantar tais coisas.
Desde que estamos ceando § e ergueu-se o divino aedo,
desde então ainda não § cessou penoso lamento 540
este hóspede: muita dor § decerto envolve seu peito...

425
Mas vamos, que se detenha, § pra todos igual gozarmos,
os hospedeiros mais o hóspede, § que assim é muito melhor!
Por causa do respeitável § hóspede tais coisas surgem,
transporte e queridas dádivas, § que acolhedores lhe damos. 545
É qual um irmão que o hóspede § e o suplicante já surgem
para o homem que mesmo pouco § alcança com seu saber.
Portanto, agora tu não § ocultes com mente esperta
aquilo que eu perguntar; § pra ti dizer é melhor.
Fala o nome pelo qual § pai e mãe lá te chamavam, 550
e os demais, os da cidade § e os residentes à volta.
Pois ninguém é totalmente § anônimo dentre os homens,
seja vil ou seja bravo, § depois que primeiro nasce,
já que os pais, depois que geram, § atribuem um a todos.
Fala pra mim tua terra, § e teu povo, e tua pólis, 555
pra que até lá te transportem, § autopensantes, as naus,
pois para os feácios não § existem navegadores,
nem mesmo lemes existem, § como as demais naus possuem:
conhecem por si a mente § e o espírito dos varões;
conhecem ainda as pólis § e os ricos campos de todos 560
os homens e ligeiríssimas § cruzam o golfo do mar,
por névoa e por nuvem en- § cobertas, e elas jamais
têm medo de ser nem dani- § ficadas nem destruídas.
Isto, porém, uma vez § eu ouvi meu pai contar,
Nausítoo, ele que afirmava § que Posêidon se agastara 565
conosco ao sermos indenes § transportadores de todos:
disse que um dia à nau bem- § feita dos varões feácios,
após voltar de um transporte § pelo mar enevoado,
destruiria e com grande § monte a pólis cobriria.
Assim proferia o velho. § E isso o deus pode cumprir 570
ou deixar sem cumprimento, § como lhe for caro ao ânimo.
Mas vamos, me fala isto § e relata sem torcer,
por onde vagaste e a quais § localidades chegaste
dos homens; e deles mesmos § e suas pólis bem-povoadas,
tanto dos que são selvagens, § ásperos e nada justos 575
quanto dos hospitaleiros § cuja mente é piedosa.

426
E fala por que lamentas § e choras dentro do peito
quando tu ouves a sina § de argivos dânaos e de Ílion.
Isso os deuses prepararam, § tramando a destruição
aos homens, a fim de haver § canto também para os pósteros. 580
Será que um aliado teu § perante Ílion pereceu
sendo um bravo – genro ou sogro, § aqueles que são os mais
dedicados em seguida § aos de nosso sangue e raça?
Será talvez que um varão § amigo, sábio em favores,
um bravo? Uma vez que não § é em nada inferior 585
ao irmão quem, sendo amigo, § seja sábio em ponderar”.

427
cAntO 9.
Relato a Alcínoo
– ciclopeia

Odisseu louva o canto do aedo e diz quem é (1-38). Em seguida, dá início à


narração de suas aventuras: partindo de Troia, chega com suas doze naus à cos-
ta da Trácia e saqueia a cidade de Ísmaro, mas é obrigado a reembarcar devido
à contra-ofensiva dos cícones, que resulta na morte de inúmeros companheiros
(39-61). Depois de uma tempestade, ao dobrar o cabo Maleia, ventos contrários
o forçam a aportar na região dos lotófagos, comedores da planta que faz quem
a ingere se esquecer do regresso; o herói consegue à força fazer os companheiros
embarcarem (62-104). Chega em seguida a uma ilha situada em frente à terra dos
selvagens Ciclopes, onde deixa a maioria da tripulação (105-169). Odisseu segue
em sua nau e, após desembarcar com doze companheiros, penetram na caverna de
Polifemo e ficam à sua espera (170-233). O Ciclope, no espaço de dois dias, devora
seis companheiros de Odisseu, que planeja vingança (233-335). O herói embriaga
Polifemo, diz que se chama Ninguém e fura seu olho (336-412). Na manhã seguin-
te, depois de fugir com os sobreviventes, Odisseu dirige insultos ao gigante e revela
seu verdadeiro nome (413-525). O Ciclope pede ao pai, Posêidon, que o retorno do
herói a Ítaca seja tardio e desafortunado; Odisseu dirige sacrifício a Zeus e segue
viagem (526-566).

Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:


“Reinante Alcínoo, entre todas § as gentes muito eminente:
isto certamente é belo § – escutar a um aedo
do tipo que este aqui é, § rival dos deuses na voz!
Eu mesmo digo que não § há meta mais agradável 5
do que quando o bem-estar § se apossa de todo o povo
e os convivas vão na casa § escutando a um aedo,
sentados em série; as mesas § ao lado ficam repletas
de carne e pão e o escanção, § retirando da cratera
o vinho, o vai transportando § e vertendo pelas taças. 10
Isso me parece ser § o que de mais belo existe!
Mas teu ânimo te fez § perguntar minhas penosas
aflições, para que eu pene § lamentoso ainda mais.

428
O que devo então falar § em primeiro e o que por último?
A mim os deuses celestes § deram muitas aflições. 15
Agora direi primeiro § meu nome, pra vós também
saberdes, e eu, escapando § ao impiedoso dia,
vir a ser vosso anfitrião, § longínqua casa habitando.
Sou o Odisseu Laercida, § com quem pelos ardis todos
os homens se preocupam: § minha glória alcança o céu. 20
Resido na bem-visível § Ítaca; nela há um monte,
o Nérito farfalhante, § eminente, e em volta existem
muitas ilhotas, bastante § próximas umas das outras,
mais a frondosa Zacinto, § e ainda Dulíquio e Same.
Ela mesma, baixa, jaz § no mar toda desgarrada, 25
voltada às trevas (e as outras § para a Aurora e para o Sol),
áspera mas nutriz apta § de rapazes; eu ao menos
não sou capaz de ver nada § mais doce que a própria pátria.
É certo que me retinha § Calipso, diva entre deusas,
em suas fundas cavernas, § ansiando-me por esposo, 30
e do mesmo modo Circe § me retinha no palácio,
a ardilosa lá de Eeia, § ansiando-me por esposo:
mas jamais persuadiram § dentro do peito o meu ânimo.
Assim é que nada mais § doce do que a pátria e os pais
existe, ainda que alguém § ao longe opulenta casa 35
habite em terra estrangeira, § apartado de seus pais.
Vamos, que eu também evoque § multiaflitivo retorno
que Zeus enviou a mim § depois que parti de Troia!

Carregando-me de Ílion, § um vento me trouxe aos cícones,


a Ísmaro, e aí a pólis § pilhei e os mesmos matei. 40
E após tomá-las à pólis, § mulheres e muitas posses
repartimos, pra ninguém § sair lesado no justo.
Eu nesse instante ordenei, § sim, que nós com ágeis pés
fugíssemos, porém eles, § grandes tolos, não ouviram.
E já então se bebia § muito vinho, e muita ovelha 45
abatiam pela praia § e curvos bois bamboleantes.
Os cícones, enquanto isso, § foram gritar por mais cícones,

429
os que eram vizinhos, mais § numerosos e melhores,
habitantes do interior, § preparados pra lutar
com varões do alto dos carros § e, quando preciso, a pé. 50
Vieram logo, incontáveis, § qual folha e flor na estação,
pela manhã, e então sina § má de Zeus se apresentou
a nós, malaquinhoados, § pra sofrermos muitas dores.
Posicionados, travavam § luta junto às naus ligeiras
e alvejavam uns aos outros § com lanças de brônzea ponta. 55
Enquanto foi de manhã, § e o sagrado dia enchia-se,
resistindo os repelíamos, § embora mais numerosos.
Mas quando o Sol já chegava § ao desatrelar dos bois,
os cícones acossando-os § subjugaram os acaios.
E seis amigos de belas § caneleiras pereceram 60
em cada nau – mas nós outros § fugimos à morte e ao fim.
De lá então navegamos § adiante, aflitos por dentro,
aliviados da morte, § privados de amigos caros.
E minhas naus ambicurvas § não seguiram adiante
até chamarmos três vezes § por esses pobres amigos 65
que morreram na planície § trucidados pelos cícones.
Mas nos trouxe o vento Bóreas § o reúne-nuvem Zeus,
em sublime tempestade, § e com nuvens encobriu
terra e mar juntos; do céu § tinha desabado a noite!
As naus foram arrastadas § de viés e às suas velas 70
rasgou em três e rasgou § em quatro o vigor do vento.
Essas então nós baixamos, § temendo a destruição,
e com rapidez remamos § rumo à terra firme adiante.
Aí de contínuo duas § noites e dois dias sempre
ficamos, consumindo o ânimo § com fadigas e com dores. 75
Mas quando trouxe o terceiro § dia a bem-trançada Aurora,
nós já erguemos os mastros, § içamos as brancas velas
e sentamos: nos guiavam § o vento mais os pilotos.
Eu teria então chegado § incólume à terra pátria,
mas a correnteza e as ondas § (quando dobrava o Maleia) 80
e o Bóreas me desviaram; § vaguei pra lá de Citera.
Daí fui levado nove § dias por funestos ventos

430
por sobre o piscoso mar; § mas no décimo pisamos
sobre a terra dos lotófagos, § que comem floral comida.
Aí pisamos em terra § firme e recolhemos água, 85
e logo se alimentaram § os amigos junto às naus.
Mas depois que já haviam § provado o pão e a bebida,
eu mandei que os companheiros § fossem então se informar
que homens sobre a terra havia § lá, comedores de pão;
selecionei dois e fiz § um terceiro ir como arauto. 90
Logo partiram e aos homens § lotófagos misturaram-se:
não pensavam, os lotófagos, § na destruição dos nossos
companheiros, mas lhes deram § o lótus para provar.
Quem deles comia o lótus, § fruto doce como o mel,
não queria mais levar § a mensagem nem voltar, 95
mas desejavam ali § mesmo com homens lotófagos
permanecer, mastigando § lótus, e olvidar a volta.
Pras naus, porém, eu os fui § levando à força, chorosos,
nas fundas naus sob os bancos § amarrando-os, arrastados.
Quanto aos demais ordenei, § meus exímios companheiros, 100
que eles se apressassem a em- § barcar nas velozes naus,
para que ninguém comesse § lótus e olvidasse a volta.
E foram logo embarcando, § sentando junto aos toletes,
e bem assentes feriram § com remos o mar cinzento.
De lá então navegamos § adiante, aflitos por dentro, 105
e na terra dos ciclopes, § arrogantes desregrados,
fomos dar, eles que, con- § fiando nos imortais deuses,
com as suas próprias mãos § planta não plantam nem aram,
mas isso tudo dá sem § semear e sem arar,
o trigo, a cevada e ainda § as videiras, que produzem 110
um vinho muito encorpado § (e a chuva de Zeus ajuda).
E nem deliberativas § ágoras nem regras têm:
eles habitam os cumes § das elevadas montanhas
em suas fundas cavernas; § cada um deles regula
filhos e esposas, e não § se importam uns com os outros. 115
Logo em frente, larga ilha § se estende, fora do porto
(nem próxima nem distante dessa terra dos Ciclopes),

431
frondosa. Em seu interior § vivem incontáveis cabras
selvagens, pois a passagem § dos homens não as estorva
e caçadores lá não § entram (esses que na mata, 120
ao percorrerem os picos § das montanhas, sofrem dores).
Não é dominada nem § por pastagens nem aradas,
mas todos os dias sem § semear e sem arar
vive viúva de varões § e engorda baalantes cabras.
Pois não há para os Ciclopes § naus de face avermelhada 125
nem entre eles homens cons- § trutores, que poderiam
fazer naus de belos bancos § que tudo realizariam,
chegando até as cidades § dos homens (tal como muitos
varões com naus atravessam § o mar, indo uns até os outros).
E poderiam fazer § dela ilha bem-habitada, 130
pois não é nada má – tudo § na estação produziria:
nela existem junto à encosta § do mar cinzento campinas
úmidas, macias (muita § videira haveria, infinda);
nela a terra é plana (muita § lavoura plena eles sempre
colheriam na estação, § por ser seivoso o subsolo); 135
e nela o porto é benévolo: § não é preciso atracagem,
nem lançar âncoras nem § atar os cabos de popa,
só embicar e ficar § durante um tempo, até o ânimo
dos marinheiros dar ordem § e a favor soprar o vento.
Na cabeceira do porto § escorre água cristalina, 140
nascente ao pé de uma gruta, § e em volta vicejam álamos.
Pra lá fomos navegando, § e algum deus nos conduzia
pela noite enevoada § – nada se mostrava à vista:
havia profunda bruma § em torno das naus, e a lua
no céu não iluminava, § mas estava envolta em nuvens. 145
E aquela ilha ninguém § então bem viu com os olhos,
nem tampouco as altas ondas § que rolavam sobre a orla
vimos, até embicarmos § nossas naus de belos bancos.
Já embicadas as naus, § baixamos todas as velas
e pra fora andamos nós, § na rebentação do mar; 150
e aí dormindo esperamos § já vir a divina Aurora.
Quando raiou matutina § a róseos-dedos Aurora,

432
admirados com a ilha § rodamos de cima a baixo
e as ninfas fizeram vir § – filhas de Zeus porta-égide –
cabras montesas, pra terem § refeição os companheiros. 155
Depressa recurvos arcos § e azagaias de haste longa
fomos apanhar nas naus, § e ordenados em três grupos
disparávamos, e o deus § logo deu bastante caça.
Doze naus iam comigo § e pra cada sortearam
nove cabras; para mim § somente escolheram dez. 160
Assim então pelo dia todo, § até o Sol se pôr,
sentados nós repartimos § muita carne e doce vinho;
pois nas naus não se esgotara § todo o vinho avermelhado,
mas ainda havia: cada § um de nós pegara muito
nas ânforas ao tomarmos § a sacra pólis dos cícones. 165
E observávamos a terra § dos Ciclopes, que eram próximos,
a fumaça e o som das cabras, § das ovelhas e dos próprios.
Porém quando o Sol se pôs § e as trevas sobrevieram,
fomos então nos deitar, § na rebentação do mar.
Quando raiou matutina § a róseos-dedos Aurora, 170
eu então, instituindo § ágora, entre todos disse:
‘Ficai agora vós outros, § meus exímios companheiros,
enquanto eu com minha nau § e com os meus companheiros
vou pôr à prova os varões § daqui, para ver quem são,
se por acaso selvagens, § soberbos e nada justos 175
ou se são hospitaleiros § cuja mente é piedosa’.
Assim disse e entrei na nau, § e mandei entrar também
os companheiros e des- § atar os cabos de popa.
E foram logo embarcando, § sentando junto aos toletes,
e bem assentes feriram § com remos o mar cinzento. 180
Mas quando nós alcançamos § o tal lugar, que era próximo,
lá, na extremidade, vimos § caverna perto do mar,
elevada, recoberta § por loureiros; dentro grande
rebanho – cabras e ovelhas – § pernoitava, e em volta pátio
elevado fora feito, § com as rochas enterradas, 185
com uns compridos pinheiros § e carvalhos de alta copa.
Lá pernoitava varão § colossal, que pastoreava

433
sempre apartado o rebanho, § a sós; junto aos outros não
ia, e em sendo só de des- § regramentos entendia.
Era mesmo um espantoso § colosso e não parecia 190
com homem que come pão, § mas com frondosa corcova
de montanhas elevadas, § que surge à parte do resto.
Então aos demais mandei, § meus exímios companheiros,
que ali mesmo junto à nau § ficassem e a nau guardassem,
enquanto eu próprio escolhendo § os doze melhores deles 195
parti; levava caprino § odre com o negro vinho,
doce, que me havia dado § Máron (filho de Evanteu),
um sacerdote de Apolo, § que a Ísmaro bem protege,
porque a ele, com o filho § e a mulher, nós resguardamos,
reverentes: pois morava § num arborizado bosque 200
do puro Apolo. E pra mim § me deu esplêndidas dádivas:
sete talentos me deu § do ouro tão bem-trabalhado,
e me deu cratera toda § de prata e em seguida então
o vinho, depois de em ânforas, § doze ao todo, despejá-lo,
doce, sem mescla, divina § bebida. Dela nenhuma 205
das escravas nem das servas § dentro de casa sabia,
só o próprio, a cara esposa § e uma única intendente.
Sempre que o bebiam, vinho § melífico avermelhado,
uma só taça ele enchia § e em vinte medidas de água
a virava, e doce odor § da cratera desprendia-se, 210
sublime: e aí ficar abs- § têmio não seria grato.
Dele eu levava bem cheio § grande odre e ainda alimentos
num saco, pois de imediato § supôs meu sobranceiro ânimo
vir até nós varão re- § vestido de grande audácia,
selvagem, nem em sentenças § nem em regras bem versado. 215
Rapidamente atingimos § o antro, porém dentro não
o encontramos: pastoreava § no pasto o gordo rebanho.
E entrados no antro nós fomos § admirando cada coisa:
cestos lotados de queijos § e currais abarrotados
de cabritos e cordeiros § – cada cria em separado 220
fora presa: os primogênitos § de um lado; os do meio, de outro;
de outro ainda os filhotinhos. § O soro escorria em todas

434
as tinas (baldes e tarros) § forjadas, em que ordenhava.
E a mim, antes de mais nada, § os amigos suplicaram
pegarmos queijos e andarmos § de volta, e em seguida então, 225
rapidamente tocando § dos currais à nau ligeira
os cabritos e cordeiros, § singrarmos salgada água.
Mas não ouvi – sim, teria § sido bem mais proveitoso –,
só para vê-lo, e se a mim § daria as dádivas de hóspede;
ora, ao surgir, não iria § ser amável aos amigos. 230
E aceso o fogo então sacri- § ficamos, e também nós,
pegando queijos, comemos, § e ficamos dentro à espera,
sentados, até que veio, § tangendo; trazia carga
descomunal de madeira § seca para usar na ceia,
e atirando-a para dentro § do antro provocou estrondo! 235
Tomados de medo, nós § corremos ao fundo do antro,
e ele pra vasta caverna § tocou o gordo rebanho,
todos que sempre ordenhava, § deixando na porta os machos
(os carneiros mais os bodes), § dentro do espaçoso pátio.
E em seguida então a grande § “porta” pôs, erguendo ao alto, 240
descomunal: vinte e dois § carros não conseguiriam,
ótimos, de quatro rodas, § sequer movê-la do chão,
de tão volumosa que era § a rocha que pôs na porta.
E sentando-se ordenhou § ovelhas, baalantes cabras,
tudo na devida ordem, § e sob cada trouxe a cria. 245
E de imediato coalhou § metade do branco leite,
e recolhendo-a em trançados § recipientes guardou-a,
enquanto a outra metade § pôs em tinas, pra poder
dela beber, apanhando-a, § e pra ele usar na ceia.
E depois que se apressara § a executar tais tarefas, 250
acendendo então o fogo § viu a nós e perguntou:
‘Estrangeiros, quem sois? De onde § vindes pelas vias úmidas?
Em alguma transação § ou à toa estais vagando,
qual piratas através § do mar, os que sempre vagam
arriscando a vida, a outras § terras carregando o mal?’ 255
Assim disse, e em nós se des- § pedaçou a cara entranha,
com medo da grave voz § e dele próprio, um colosso!

435
Ainda assim, em resposta, § tais palavras lhe falei:
‘Na verdade nós – acaios § vindos de Troia, atirados
por todo tipo de vento § no grande golfo do mar –, 260
no empenho de ir para casa, § outro caminho, outras vias
percorremos. Zeus talvez § quisesse astuciar assim.
Mas nós proclamamos ser § gente do Atrida Agamênon,
cuja glória sob o céu § é de fato agora máxima!
Pois tamanha pólis ele § pilhou e inúmeras tropas 265
matou. Nós mesmos, porém, § para tocar teus joelhos
viemos, a ver se darias § hospitalidade ou mesmo
nos farias doação, § o que é regra para os hóspedes.
Nobilíssimo, respeita § os deuses! Somos teus súplices,
e Zeus – valorizador § de hóspedes e suplicantes, 270
o hospitaleiro, que segue § junto aos respeitáveis hóspedes’.
Assim falei, e ele logo disse com impiedoso ânimo:
‘És sim um tolo, estrangeiro, ou de longe chegas tu,
que aos deuses me estás mandando § recear ou evitar.
Pois os Ciclopes não cuidam § do porta-égide Zeus 275
nem dos venturosos deuses: § somos muito superiores!
Eu próprio não pouparia, § pra evitar o ódio de Zeus,
nem a ti nem aos teus – só § se meu ânimo mandasse.
Mas me fala onde, ao chegar, § atracaste a nau bem-feita
– na extremidade talvez § ou mais perto? –, pra que eu saiba’. 280
Disse assim, testando, e a mim, § que bem sei, não escapou,
mas lhe falei ao contrário, § com ardilosas palavras:
‘Minha nau, a estilhaçou § o treme-terra Posêidon,
atirando-a contra as pedras, § nas bordas de vossa terra,
aproximando-a da costa: § do alto mar a trouxe o vento. 285
Mas eu, com estes aqui, § fugi ao íngreme fim’.
Assim falei, e ele nada § disse com impiedoso ânimo;
Antes, de um salto, lançou § as mãos sobre os companheiros
e agarrou dois de uma vez, § como cãezinhos socando-os
contra o chão; e os miolos es- § corriam, molhando o solo! 290
E após fatiá-los, membro § por membro, a ceia serviu;
comia como um leão § da montanha, sem deixar

436
nada: os miúdos, as carnes § e os ossos com o tutano!
Nós, de nossa parte, erguíamos § aos prantos as mãos a Zeus,
por ver atos cruéis, e a im- § potência nos dominava. 295
Depois que o Ciclope tinha § enchido a grande barriga,
devorando carne humana, § bebendo leite sem mescla,
foi se deitar estirado § dentro do antro, entre o rebanho.
A ele então planejei § no meu magnânimo espírito,
chegando perto e puxando § o gládio afiado da coxa, 300
ferir no peito, onde o fígado § é envolto pelo diafragma,
apalpando com a mão, § mas me deteve outro impulso,
pois ali encontraríamos § nós também o íngreme fim:
não seríamos capazes § de remover com as mãos
da elevada porta a pedra § descomunal que pusera. 305
E assim gemendo esperamos § já vir a divina Aurora.
Quando raiou matutina § a róseos-dedos Aurora,
acendendo então o fogo § ordenhou rebanho célebre,
tudo na devida ordem, § e sob cada trouxe a cria.
E depois que se apressara § a executar tais tarefas 310
agarrou de uma vez outros § dois, e a refeição serviu.
Já farto, pra fora do antro § tocou o gordo rebanho,
facilmente a grande “porta” § tirando, e em seguida então
a pôs de volta tal qual § pusesse na aljava a tampa;
e assobiando alto levou § ao monte o gordo rebanho 315
o Ciclope. E eu lá fiquei, § males meditando fundo
– ah, se me vigasse e Atena § me concedesse um clamor!
E ao meu ânimo este plano § me pareceu o melhor:
grande bastão do Ciclope § jazia junto ao curral,
verde ainda, de oliveira; § ele o cortara pra, seco, 320
carregá-lo. Porém nós § o comparamos, ao vê-lo,
a grande mastro de nau § negra com seus vinte remos
(transportadora, mais larga, § que atravessa o grande golfo),
tão grande na altura, tão § na espessura de se ver!
Dele, o tanto de uma braça § eu cortei, chegando perto, 325
e entreguei aos companheiros, § ordenando que o raspassem;
e o deixaram liso e eu mesmo § afiei, chegando perto,

437
sua ponta, e já segurando-o § o levei ao fogo ardente.
E depois o guardei bem § escondido sob o estrume,
pela caverna amontoado § à larga, em grande abundância. 330
Então ordenei aos outros § que eles tirassem na sorte
quem teria a ousadia § de erguendo comigo a estaca
friccioná-la em seu olho, § quando viesse o doce sono.
E sortearam os que eu mesmo § também teria escolhido,
quatro, e eu próprio em meio a eles § como quinto me elegi. 335
Com o rebanho de bela § lã à tardinha ele veio,
logo pra vasta caverna § tocando-o, o gordo rebanho,
todos: não deixou nenhum § dentro do espaçoso pátio,
ou por suspeitar de algo, ou § porque o deus assim mandara.
E em seguida então a grande § “porta” pôs, erguendo ao alto, 340
e sentando-se ordenhou § ovelhas, baalantes cabras,
tudo na devida ordem, § e sob cada trouxe a cria.
E depois que se apressara § a executar tais tarefas
agarrou de uma vez outros § dois mais, e a ceia serviu.
E para o Ciclope então § falei, chegando bem perto, 345
nas minhas mãos carregando § gamela com negro vinho:
‘Vai, Ciclope, bebe o vinho § após comer carne humana,
pra que saibas qual bebida § é esta que nossa nau
escondia. Te trazia § qual libação, pra apiedado
me enviares pra casa, e tu § sem mais controle enlouqueces! 350
Pertinaz! Como até ti § depois viria algum outro
dos muitos homens, após § agires sem proporção?’
Assim falei, e aceitando § bebeu tudo, e em beber doce
bebida teve terrível § prazer, e pediu mais uma:
‘Dá pra mim, propenso ainda, § e fala agora teu nome, 355
depressa, pra que eu dê dádiva § de hóspede: te alegrarás...
Pois produz para os Ciclopes § o solo doador de grãos
um vinho muito encorpado § (e a chuva de Zeus ajuda),
mas este aqui de ambrosia § e néctar é derivado!’
Disse assim, e novamente § lhe passei o ardente vinho; 360
três vezes levei-lhe e as três § bebeu, na insensatez, tudo.
E após o vinho envolver § o espírito do Ciclope

438
para ele então falei § com estas doces palavras:
‘Ciclope, perguntas meu § célebre nome, e eu direi
pra ti. Mas tu, me dá dádiva § de hóspede, qual prometeste! 365
Ninguém é o nome que tenho. § De Ninguém me chamam sempre
pai e mãe e ainda todos § os meus demais companheiros’.
Assim falei, e ele logo § disse com impiedoso ânimo:
‘Ninguém comerei por último § em meio a seus companheiros,
e os restantes, na frente: eis § a minha hospitalidade!’ 370
Disse, e inclinando de costas § caiu; em seguida então
deitou virando de lado § o grosso pescoço, e o sono
domador o foi vencendo. § Da garganta expeliu vinho,
bocados de carne humana, § e arrotava, embriagado.
Eu então sob muita brasa § coloquei aquela estaca, 375
até que esquentasse, e a todos § os amigos com palavras
encorajei, que ninguém § recuasse apavorado!
Quando, sem demora, a estaca § de oliveira estava a ponto
(mesmo verde) de pegar § fogo e chispava terrível,
eu então a fui trazendo § do fogo, e os amigos, pondo-se 380
em volta; e grande coragem § um nume inspirou em nós!
Eles, apanhando a estaca § de oliveira, pontiaguda,
a fixaram em seu olho, § enquanto eu, fixo por cima,
a girava qual varão § tradeia madeiro náutico
com seu trado, e embaixo os outros § o impelem com a correia, 385
segura de ambos os lados § (e ele de contínuo corre);
assim no olho dele a estaca § incandescente agarrando
girávamos, e fluía § à sua volta quente o sangue.
Com a órbita a queimar, § o calor tostou inteiras
sua pálpebra e sobrancelha, § e o fundo estalava ao fogo! 390
Tal como varão bronzista § em água gelada imerge
grande machado ou enxó, § que grandemente ressoam
(para “curá-los”, pois nisso § reside a força do ferro),
assim chiava o olho dele § com a estaca de oliveira!
Soltou grande grito, horrível, § e a rocha ressoou toda. 395
Tomados de medo, nós § corremos, e ele arrancou
a estaca de dentro do olho, § ensopada em muito sangue,

439
e em seguida a lançou longe § de si, agitando os braços.
E então bradou grandemente § aos Ciclopes, que à sua volta
habitavam em cavernas, § em ventiladas alturas. 400
Ouvindo o grito, eles foram § vindo, cada um de um lado,
e rodeando a caverna § perguntaram sua aflição:
‘Por que, Polifemo, assim § tão alterado gritaste
através da imortal noite, § nos deixando agora insones?
A astúcia de ninguém leva-te § na marra os rebanhos, não? 405
A astúcia de ninguém mata-te § por ardil ou força, não?’
E de dentro do antro disse § violento Polifemo:
‘Caros, Ninguém mata a mim § por ardil e à força não!’
E em resposta proferiram § estas palavras aladas:
‘Mas se a astúcia de ninguém § oprime a ti, que estás só, 410
doença vinda do grande § Zeus não há como evitar!
Vamos, clama agora ao pai, § ao soberano Posêidon!’
Assim disseram, partindo. § Riu meu caro coração:
meu nome enganara, a astúcia § ilibada de Ninguém.
O Ciclope, padecendo § e gemendo com pontadas, 415
tateando com as mãos § tirou a pedra da porta
e ele próprio se sentou § na porta, esticando as mãos
para entre ovelhas pegar § quem pela porta avançasse:
pois decerto tolo assim § ele esperava que eu fosse!
Mas eu planejava o modo § que seria bem melhor 420
para achar para mim mesmo § e os amigos a saída
da morte, e já fui urdindo § todos os ardis e astúcias,
visando a vida, pois grande § mal se acercava de nós.
E ao meu ânimo este plano § me pareceu o melhor:
havia lá machos bem- § nutridos, de velo espesso, 425
grandes, bonitos, que tinham § pelo violeta-escuro.
Em silêncio os prendi juntos § com os retorcidos vimes
em que o Ciclope dormia, § o colosso desregrado,
de três em três: o do meio § levava sempre um varão,
e os outros, de cada lado, § iam salvando os amigos. 430
A cada homem levavam § três animais. Quanto a mim,
havia um carneiro bem § melhor que o rebanho todo;

440
no dorso dele agarrando, § me enrodilhei ventre abaixo
e fiquei: dependurado, § com minhas mãos segurava
sem vacilar o sublime § velo, com resistente ânimo. 435
E assim gemendo esperamos § já vir a divina Aurora.
Quando raiou matutina § a róseos-dedos Aurora,
para o pasto então os machos § do rebanho se lançaram,
e as fêmeas, não-ordenhaadas, § baaliam pelos currais,
com as tetas estourando. § Seu senhor, dilacerado 440
por pontadas, apalpava § o dorso de cada ovelha,
posicionadas em pé, § e isto o tolo não notou:
que eles estavam atados § sob os seus peitos lanudos.
Por último, meu carneiro § foi pela porta avançando,
com lã carregado – e co- § migo, de mente cerrada. 445
E apalpando-o a ele disse § violento Polifemo:
‘Caro carneiro, por que § da caverna assim te lanças,
por último? Não ficavas § antes pra trás das ovelhas!
Pois bem em primeiro pastas § as tenras flores da relva,
com passo largo, e em primeiro § atinges os rios correntes, 450
e em primeiro para o estábulo § tens vontade de voltar,
à tardinha; e desta vez § por último! Sentes falta,
sim, do olho do teu senhor, § a quem vil varão cegou
com odiosos companheiros, § domando com vinho a mente,
Ninguém, que afirmo não ter § escapado ainda ao fim! 455
Ah, se igualmente pensasses § e de voz fosses dotado,
para dizer por onde ele § se esgueira do meu furor:
nesse caso os seus miolos, § na caverna, aqui e ali
batendo eu esmagaria § no chão, e o meu coração
descansaria dos males § que me deu Ninguém de nada!’ 460
Assim falou e mandou o carneiro pela porta.
E estando um pouco afastado § já da caverna e do pátio
dele me soltei primeiro, § e soltei os companheiros.
Rapidamente o longípede § rebanho, rico em gordura,
fomos tocando, pra trás § sempre olhando, até chegarmos 465
à nau. E fomos saudados, § ao surgir, pelos amigos,
nós que escapamos à morte; § pelos outros só gemiam!

441
Mas não deixei, num sinal § com a sobrancelha a cada,
que chorassem, e ordenei § – rebanho de bela lã
trazido rápido à nau – § singrarmos salgada água. 470
E foram logo embarcando, § sentando junto aos toletes,
e bem assentes feriram § com remos o mar cinzento.
Quando me afastara tanto § quanto com grito se alcança,
para o Ciclope eu então § falei de modo cortante:
‘Ciclope, os amigos não § de um varão sem audácia ias 475
comer na funda caverna, § com violência, com força!
Sim, a ti mesmo é que os mal- § feitos iam atingir,
pertinaz, pois em tua casa § não te absténs de devorar
os hóspedes: Zeus por isso § te puniu, e os outros deuses!’
Assim falei, e ele então § mais colérico ficou: 480
arrancou e arremessou § o pico de um grande monte,
que foi cair logo à frente, § junto à nau de negra proa;
faltou pouco pra atingir § a extremidade do leme.
O mar ficou encrespado § com a rocha arremessada
e pra terra firme já § nos levava onda contrária 485
(fluxo vindo de alto mar), § nos forçando até a orla.
Eu, entretanto, pegando § com as mãos comprido pau
a empurrei longe e aos amigos § ordenei, estimulando-os
num sinal com a cabeça, § que se lançassem aos remos
pra escaparmos à desgraça, § e inclinando-se remaram. 490
Quando já nos afastáramos, § franqueando o mar, o dobro,
para o Ciclope eu então § falei; em volta os amigos
me continham com palavras § doces, cada um de um lado:
‘Pertinaz, por que desejas § provocar varão violento?
Há pouco, lançando dardo § ao mar, devolveu a nau 495
pra terra firme, e ali mesmo § já dizíamos ter fim.
Se escutasse agora alguém § balbuciando ou falando,
destroçaria o madeiro § náutico e nossas cabeças
após lançar pedregoso § bloco, tão longe arremessa!’
Disseram, sem persuadir § o meu magnânimo espírito; 500
pois lhe falei ao contrário, § com ânimo rancoroso:
‘Ciclope, se por acaso § alguém dentre os mortais homens

442
perguntar do cegamento § ultrajante do teu olho,
fala que Odisseu arrasa- § pólis o cegou de vez,
o que é filho de Laertes § e em Ítaca tem morada’. 505
Assim falei, e gemendo § ele assim me respondeu:
‘Opópoi, já chega a mim § profecia outrora dita!
Havia um certo adivinho § aqui, varão nobre e grande,
Têlemo, filho de Eurimo, § superior no adivinhar,
que adivinhando foi en- § velhecendo entre os Ciclopes; 510
e me disse que isso tudo § no porvir se cumpriria,
pelas mãos de Odisseu eu § me tornar falho da vista.
No entanto eu sempre esperei § que algum homem grande e belo
viesse até aqui, re- § vestido de grande audácia:
porém eis que agora um que é § mínimo, e de nada, e pífio, 515
do olho me cegou, a mim, § me domando com o vinho.
Mas vem cá, Odisseu, que eu § darei as dádivas de hóspede,
pedindo que te dê trans- § porte o Treme-terra célebre:
pois sou filho dele e meu § pai ele proclama ser.
Só o próprio, se quiser, § vai me curar: nenhum outro 520
dentre os venturosos deuses § e nem dentre os mortais homens’.
Assim disse; porém eu § em resposta lhe falei:
‘Ah, se eu, te fazendo agora § vazio de vida e existência,
pudesse te transportar § de vez pra morada do Hades,
tal como não vai teu olho § curar nem o Treme-terra...’ 525
Assim falei, e em seguida § ao soberano Posêidon
clamou, estendendo as mãos § até o céu estrelado:
‘Escuta-me agora, grenha- § negra, terra-tem Posêidon:
se sou mesmo teu, e meu § pai tu sim proclamas ser,
dá-me que Odisseu arrasa- § pólis não chegue à sua casa, 530
o que é filho de Laertes § e em Ítaca tem morada.
Porém, se sua porção § é ver os seus e chegar
à casa bem-construída § e até sua terra pátria,
tarde e mal venha a chegar, § perdendo os amigos todos,
em nau estrangeira, e venha § a encontrar pesar em casa’. 535
Assim disse, num clamor, § e o ouviu o Grenha-negra.
E ele mesmo, novamente, § pedra bem maior erguendo

443
com um giro arremessou, § infundindo força extrema;
e foi cair logo atrás, § junto à nau de negra proa;
faltou pouco pra atingir § a extremidade do leme. 540
O mar ficou encrespado § com a rocha arremessada
e a onda adiante levou-nos, § nos forçando até a orla.
Mas quando nós alcançamos § a tal ilha, onde as demais
naus de belos bancos eram § juntas e em volta os amigos
se lamentavam sentados, § sempre esperando por nós, 545
quando lá chegamos, em- § bicamos a nau na areia
e pra fora andamos nós, § na rebentação do mar.
E, da funda nau tirando § o rebanho do Ciclope,
repartimos pra ninguém § sair lesado no justo;
o carneiro a mim apenas § deram a mais na partilha 550
os companheiros de belas § caneleiras. E na praia,
ao Cronida, ao nuvem-negra § Zeus, que sobre todos reina,
sacrifiquei-o, seus fêmures § queimando, mas não os quis:
ele então já meditava § como eu perderia todas
essas naus de belos bancos § e os exímios companheiros. 555
Assim então pelo dia § todo, até o Sol se pôr,
sentados nós repartimos § muita carne e doce vinho.
Porém quando o Sol se pôs § e as trevas sobrevieram,
fomos então nos deitar, § na rebentação do mar.
Quando raiou matutina § a róseos-dedos Aurora, 560
fazendo-os se levantar, § mandei então embarcar
os companheiros e des- § atar os cabos de popa.
E foram logo embarcando, § sentando junto aos toletes,
e bem assentes feriram § com remos o mar cinzento.
De lá então navegamos § adiante, aflitos por dentro, 565
aliviados da morte, § privados de amigos caros.

444
cAntO 10.
Relato a Alcínoo
– éolo, lestrígones, circe

Odisseu e seus companheiros, tendo chegado à ilha de Éolo, aí ficam hos-


pedados por um mês; ao partir, recebem um saco contendo os ventos contrários
(1-27). A curiosidade da tripulação, que abre o saco enquanto Odisseu dorme, de-
sencadeia uma tempestade e as naus voltam à ilha de Éolo, que agora se nega a
ajudá-los (28-76). Em seguida, chegam à terra dos lestrígones, povo antropófago, e
o herói perde onze das suas doze naus (77-132). A nau de Odisseu chega à ilha Eeia,
de Circe; na madrugada do quarto dia, ele manda que alguns de seus homens, sob
o comando de Euríloco, obtenham informações, mas Circe os metamorfoseia em
porcos, à exceção do próprio Euríloco, que vai contar a Odisseu o sucedido (133-
260). Graças à droga benigna dada por Hermes, a móli, que torna inúteis os sorti-
légios da deusa, o herói obtém que os companheiros recuperem a forma humana e
consegue que Circe se enamore dele (261-406). Desavença de Odisseu e Euríloco e
acolhida de toda a tripulação por Circe (407-466). Após um ano de permanência na
ilha, os companheiros de Odisseu cobram dele o regresso; Circe avisa o herói de que
primeiro terá de se dirigir à morada do Hades, para consultar o adivinho Tirésias, e
lhe indica a maneira de evocar os mortos (467-540). Na manhã seguinte, Odisseu
prepara a partida e descobre que seu companheiro Elpenor havia morrido ao cair
do telhado do palácio (541-574).

445
cAntO 11.
Relato a Alcínoo
– evocação dos mortos

Odisseu, depois de chegar à terra dos cimérios, na entrada do mundo sub-


terrâneo, degola as vítimas e recolhe o sangue numa cova (1-50). A primeira alma a
surgir é a de Elpenor, que reclama sepultura (51-83). Afastando-se da alma de sua
mãe, o herói ouve as predições de Tirésias relativas às dificuldades que o aguardam
(84-151). A seguir, sua mãe dá notícias de Ítaca (152-225). Odisseu faz a relação
das heroínas vistas por ele no Hades (225-327). O relato é interrompido: diálogo de
Odisseu com Arete, Equeneu e Alcínoo, que pede ao estrangeiro que retome a nar-
rativa (328-384). Odisseu conta as conversas que teve com Agamênon (385-466) e
Aquiles (467-540), e o silêncio de Ájax, ressentido contra ele (541-567). Descrição
dos Infernos, de Minos, Oríon, Títio, Tântalo e Sísifo (568-600). Odisseu vê, por úl-
timo, Héracles; assombrado pela afluência dos mortos, volta à sua nau e navega
pelo rio Oceano (601-640).

Depois então de baixarmos § para a nau e para o mar,


a nau, antes de mais nada, § ao divino mar puxamos
e nela pusemos mastro § e vela, na negra nau,
e nela as ovelhas pegas § embarcamos, e nós mesmos
embarcamos pesarosos, § grossas lágrimas vertendo. 5
E para nós na traseira § dessa nau de proa negra
mandava ágil brisa (enfuna- § vela e boa companheira)
bem-trançada Circe, deusa § terrível que emite voz.
Nós, feita a labuta em cada § equipamento da nau,
nos sentamos: a guiavam § o vento mais o piloto. 10
Por todo o dia estendia-se § a vela dela a singrar,
e o Sol se pôs, e os caminhos § todos já se ensombreciam.
E ela atingiu os limites § do flui-profundo Oceano;
lá é que estão tanto o povo § quanto a pólis dos cimérios,
por névoa e por nuvem en- § cobertos. Neles jamais 15
o resplandecente Sol § com seus raios fixa o olhar,
nem quando ele vai marchando § rumo ao estrelado céu,
nem quando de novo volta § lá do céu até a terra:

446
destrutiva noite estende-se § sobre os míseros mortais.
Quando lá chegamos, em- § bicamos a nau, tiramos 20
as ovelhas e nós mesmos § pelo fluxo do Oceano
andamos, até o local § que nos indicara Circe.
Aí então Perimedes § e Euríloco seguraram
as vítimas, e eu, puxando § o gládio afiado da coxa,
abri buraco de um côvado § de extensão, pra lá e pra cá, 25
e em torno dele verti § derrame a todos os mortos,
primeiro com mel mais leite, § depois com o doce vinho,
e em terceiro, enfim, com água. § Salpiquei branca cevada
e às cabeças dos exangues § mortos, muito suplicando,
prometi, de volta a Ítaca, § sacrificar no palácio 30
vaca estéril, a melhor, § encher de bens uma pira
e isolar para Tirésias § – e a ele imolar – carneiro
todo preto, que entre as nossas § ovelhas se sobressai.
Depois de às tribos dos mortos § com súplicas e clamores
ter suplicado, pegando § as ovelhas degolei-as 35
no buraco, e o negro sangue § escorreu. Aglomeraram-se,
saídas do Êrebo, as almas § dos mortos que já baixaram:
moças, não-casados, multi- § padecidos anciãos,
tenras virgens que têm luto § ainda recente no ânimo,
muitos feridos por lanças § arrematadas com bronze, 40
varões mortos em combate, § com armas ensanguentadas;
esses muitos no buraco § andavam, de todo lado,
com grito sublime, e o pálido § pavor se apossou de mim.
Mas em seguida aos amigos § ordenei, estimulando-os,
que às ovelhas que jaziam § mortas por bronze impiedoso 45
esfolassem e queimassem, § e então clamassem aos deuses,
ao valoroso Hades mais § à tão terrível Perséfone,
enquanto eu mesmo, puxando § o gládio afiado da coxa,
me sentei, sem permitir § que as cabeças dos exangues
mortos viessem até o sangue § antes de ouvir a Tirésias. 50
E em primeiro veio a alma § de elpenor, meu companheiro.
Não fora enterrado ainda § sob a terra de amplas vias:
nós no palácio de Circe § tínhamos deixado o corpo

447
não-chorado e não-sepulto, § pois outra lida premia.
Mas eu, quando o vi, chorei § e me apiedei em meu ânimo, 55
e exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
‘Elpenor, como desceste § à escuridão nevoenta?
Vindo a pé te antecipaste § a mim, com a negra nau’.
Assim falei, e ele então § respondeu, se lamentando:
‘Laercida divogênito, § multiengenhoso Odisseu: 60
foi minha ruína a má sina § de um nume, e excessivo vinho.
Deitado lá no palácio § de Circe, não atinei
de retornar e descer § indo rumo à ampla escada:
antes tombei do outro lado § do telhado, e meu pescoço
das vértebras desprendeu-se § e a alma baixou ao Hades. 65
Agora, pelos detrás § de nós, ausentes, suplico-te
– por tua esposa e teu pai, § que te criou quando pequeno,
e por Telêmaco, a quem § no palácio só deixaste –,
pois sei que assim que saíres § daqui da morada do Hades
tu farás a nau bem-feita § atingir a ilha Eeia; 70
aí então, soberano, § peço que de mim te lembres:
não me deixes não-chorado, § não-sepulto, pra trás, dando
as costas – não vá ser eu § causa da fúria dos deuses.
Queima-me antes a mim, junto § com as armas (as que tenho),
e ergue pra mim uma tumba § na praia do mar cinzento, 75
a de um homem infeliz, § pra que os vindouros se informem.
Isso pra mim então cumpre, § e na tumba fixa o remo
com o qual ainda vivo § remava com os amigos’.
Assim falou, e eu então § como resposta lhe disse:
‘Isso pra ti, infeliz, § vou cumprir e vou fazer’. 80
E nós dois assim, sentados, § alternávamos palavras
odiosas, eu de um lado § tendo a espada sobre o sangue,
e do outro o espectro do meu § mui falante companheiro.
Sobreveio então a alma § da minha mãe que baixara,
ela, a filha do magnânimo § Autólico, ela, Anticleia, 85
a quem eu deixara viva § ao ir até Ílion sacra.
Mas eu, quando a vi, chorei § e me apiedei em meu ânimo.
E nem assim, com cerrado § pesar, permiti que à frente

448
ela viesse, até o sangue, § antes de ouvir a Tirésias.
Sobreveio então a alma § de tirésias, o tebano, 90
com o cetro de ouro, e a mim § reconheceu e falou:
‘Laercida divogênito, § mutiengenhoso Odisseu,
por que será, infeliz, § que deixando a luz do Sol
vieste aqui ver os mortos § e a região sem-prazer?
Vamos, do buraco afasta-te § e guarda a espada afiada, 95
para que eu beba do sangue § e sem erro fale a ti’.
Assim falou, e eu já re- § colhendo o gládio de prata
na bainha o pus. E então, § após beber negro sangue,
para mim estas palavras § disse, adivinho ilibado:
‘Buscas, ilustre Odisseu, § o melífico retorno, 100
mas o deus o fará duro § pra ti. Penso que não vais
escapar ao Treme-terra, § que guardou rancor por ti,
colérico por tu teres § cegado o querido filho.
Mas mesmo assim, padecendo § males, podereis chegar,
se quiseres refrear § teu ânimo e dos amigos, 105
quando primeiro fizeres § a nau bem-feita encostar
na ilha Trinácia, em fuga § do mar violeta-azul,
e encontrardes a pastar § vacas, robustas ovelhas
do Sol, o qual tudo sobre- § vê e tudo sobre-escuta.
Se intactas tu as deixares, § te ocupando do retorno, 110
a Ítaca, padecendo § males, podereis chegar;
mas se as tocares, então § já te indico destruição,
para a nau e os companheiros. § Mesmo que tu próprio escapes,
tarde e mal retornarás, § perdendo os amigos todos,
em nau estrangeira, e vais § encontrar pesar em casa, 115
varões que são arrogantes § e devoram teu sustento,
cortejando a quase-deusa § esposa e lhe dando dotes.
Mas chegando vais punir § sim a violência deles!
E depois de em teu palácio § aos pretendentes então
matares, ou por ardil § ou às claras, com o bronze, 120
parte em seguida pegando § um bem-ajustado remo,
até tu chegares junto § aos homens que não conhecem
o mar, esses que comida § misturada ao sal não comem

449
e de fato não conhecem § naus de escurecidas faces
nem remos bem-ajustados, § que são as asas das naus. 125
Vou te dar sinal bastante § claro, não te escapará:
quando um outro viajante, § encontrando-se contigo,
disser que estás carregando § no ilustre ombro uma ceifeira,
fixa já na terra então § o bem-ajustado remo,
perfaz belos sacrifícios § ao soberano Posêidon, 130
com carneiro, touro e ainda § javali que cobre fêmeas,
e volta pra casa e dis- § põe sagradas hecatombes
para os deuses imortais § que habitam o vasto céu,
para todos, em sequência. § Sairá do mar, pra ti,
uma morte assim, bastante § branda, pra te arrebatar 135
sob opulenta velhice; § e em volta as gentes serão
afortunadas: é isso § que sem erro digo a ti’.
Assim falou, e eu então § como resposta lhe disse:
‘Tirésias, isso decerto § os deuses por si fiaram.
Mas vamos, me fala isto § e relata sem torcer: 140
esta alma vejo aqui, § da minha mãe que baixou;
ela senta quieta ao lado § do sangue e não ousa olhar
seu próprio filho de frente, § nem se dirigir a ele.
Fala, senhor, como pode § reconhecer que eu sou ele?’
Assim falei, e ele logo § como resposta me disse: 145
‘Fácil é isso que vou § te dizer e pôr no espírito:
aquele que permitires, § dos mortos que já baixaram,
que venha até o sangue, esse § sem erro a ti falará,
e o que recusares, esse § irá de volta pra trás’.
Assim falando, a morada § do Hades adentrou a alma 150
do soberano Tirésias, § após dizer profecias.
Mas eu fiquei firme ali, § até que minha mãe sobre-
veio e bebeu negro sangue. § Logo me reconheceu
e gemendo então me disse § estas palavras aladas:
‘Meu filho, como desceste § à escuridão nevoenta 155
vivendo? Para os viventes § é difícil ver tais coisas.
Pois há de permeio grandes § rios, terríveis corredeiras,
a do Oceano em primeiro, § que não se pode cruzar

450
estando-se a pé, apenas § possuindo nau bem-feita.
Será que agora aqui chegas § lá de Troia, após vagar 160
com a nau e os companheiros § muito tempo? Ainda não
foste a Ítaca nem viste § tua esposa no palácio?’.
Assim falou, e eu então § como resposta lhe disse:
‘Mãe, uma necessidade § fez com que eu baixasse ao Hades:
consultar-me com a alma § de Tirésias, o tebano. 165
Pois ainda não cheguei § junto da Acaia e na minha
terra ainda não pisei, § sempre a vagar com agruras
desde que primeiramente § segui divino Agamênon
a Ílion de belos potros, § pra lutar contra os troianos.
Mas vamos, me fala isto § e relata sem torcer: 170
que destino então da morte § dolorosa te domou?
Foi doença prolongada? § Foi a verte-setas Ártemis
que, com seus suaves dardos § chegando, te arrebatou?
Fala para mim do pai § e do filho que deixei,
se meu prêmio ainda está § junto a eles ou se um outro 175
homem já o tem e dizem § que não vou mais retornar.
Fala para mim da esposa § cortejada, plano e mente,
se fica junto do filho § e firme tudo vigia
ou se já a desposou § o melhor dentre os acaios’.
Assim falei, e ela logo § respondeu, senhora mãe: 180
‘Sim, com certeza, com ânimo § resistente aquela fica
dentro do palácio teu, § e sempre cheias de agruras
noites e dias consomem-se § pra ela, que verte lágrimas.
Teu belo prêmio ninguém § tem ainda e imperturbado
Telêmaco as terras re- § tém, e de justos banquetes 185
participa, os que ao varão- § juiz cabe preparar,
porque todos o convocam. § Teu pai permanece lá
no sítio e nem desce mais § para a pólis. Não tem leito
com estrado, não tem capas § e mais brilhantes lençóis,
e durante o inverno deita § na casa onde escravos dormem, 190
nas cinzas perto do fogo, § e põe vestes vis no corpo.
Mas quando vêm o verão § mais o vicejante outono,
por toda parte, na encosta § do terreno com a vinha,

451
leitos de folhas caídas § são lançados junto ao chão;
aí jaz em dor, no espírito § cultivando grande luto 195
e ansiando por teu retorno, § e dura velhice o atinge.
Eu também assim morri § e segui o meu destino:
no palácio, a mim, não foi § vigilante Verte-setas
que com seus suaves dardos § chegando me arrebatou,
nem sobreveio doença, § essa que, principalmente, 200
com detestável desgaste § retira o ânimo dos membros.
Foi a falta tua, teus § planos, ilustre Odisseu,
tua lhaneza, que de mim § roubou o melífico ânimo’.
Assim falou, e eu então § em meu querer cogitava
como tocaria a alma § da minha mãe que baixara. 205
Três vezes avancei – “toca”, § o meu ânimo ordenava –,
três vezes das minhas mãos, § como sombra ou como sonho,
voou, e em meu coração § mais aguda ia sendo a dor.
E exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
‘Mãe, mas por que não esperas § por mim, que anseio tocar-te, 210
pra que mesmo dentro do Hades § lancemos as caras mãos
e desfrutemos nós dois § desse gélido lamento?
Será este algum espectro § que a mim a augusta Perséfone
incitou, para que eu pene, § lamentoso, ainda mais?’.
Assim falei, e ela logo § respondeu, senhora mãe: 215
‘Ómoi, meu filho, mais des- § afortunado de todos!
Não é Perséfone, a filha § de Zeus, que está te enganando.
Esse é antes o normal § dos mortais quando alguém morre:
os tendões não mais seguram § juntos as carnes e os ossos;
a esses sim o furor § violento do fogo aceso 220
consome, logo que o ânimo § abandona os brancos ossos,
e a alma, semelha ao sonho, § esvoaçante se evola.
Mas move-te rumo à luz, § rápido, essas coisas todas
sabendo, pra que depois § contes à tua mulher’.
Assim nós dois alternávamos § palavras. Mas as mulheres 225
foram chegando, incitadas § por ela, a augusta Perséfone,
tantas quantas eram filhas § e mulheres dos melhores.
Essas em torno do negro § sangue em bando aglomeraram-se,

452
enquanto eu deliberava § como conversar com cada.
E ao meu ânimo este plano § me pareceu o melhor: 230
puxando o comprido gládio § de junto da grossa coxa
não permitia que todas § bebessem o negro sangue,
e elas vinham esperando § sua vez, e cada uma
expunha seu nascimento, e eu interrogava a todas.
Então em primeiro a tiro § eu vi, de bela ascendência, 235
que afirmava ser nascida § do ilibado Salmoneu
e dizia ser mulher § de Creteu, filho de Éolo,
ela que se apaixonara § por Enipeu, rio divino,
o qual é de longe o mais § belo rio a fluir na terra,
e ia frequentando as belas § corredeiras de Enipeu. 240
Mas a este assemelhou-se § Treme-terra Terra-tem
e ao lado deitou na foz § do turbilhonante rio.
E purpúrea onda então § os envolveu como um morro,
arqueando-se, e escondeu § o deus e a mortal mulher.
E soltou o virginal § cinto e verteu nela o sono. 245
E depois que o deus perfez § os trabalhos amorosos,
lhe apertou então a mão § e nomeando-a lhe disse:
‘Sim, saúda o nosso amor, § mulher, pois passado um tempo
gerarás ilustres filhos § – infrutíferos não são
leitos de imortais. E tu § deles cuida e a eles cria. 250
Anda agora à tua morada, § te contém e nada fala.
Sou eu mesmo aqui pra ti: § Posêidon, o treme-terra’.
Assim disse, e penetrou § por fim no ondulante mar.
E ela, tendo engravidado, § gerou Pélias e Neleu,
que viraram servidores § potentes do grande Zeus, 255
ambos os dois. E então Pélias § na Iolco de amplos espaços
foi morar, rico em carneiros; § o outro, na arenosa Pilos.
E estes pra Creteu gerou § a rainha entre as mulheres:
Éson, e Feres, e ainda § o adora-carro Amitáon.
E depois então a Antíope § eu vi, a filha de Asopo, 260
a qual nos braços de Zeus § proclamava ter dormido;
e gerou então dois filhos, § tanto Anfíon quanto Zeto,
os primeiros a assentar § a Tebas de sete portas

453
e a murá-la, já que não § conseguiam sem muralhas
habitar na Tebas de amplos § espaços, por mais potentes. 265
E depois então a Alcmena § eu vi, mulher de Anfitrião,
que a Héracles coração- § de-leão, audacioso,
gerou, unida em amor § nos braços do grande Zeus;
e a Mégara, que era filha § do magnânimo Creonte:
o filho de Anfitrião § a teve, intenso em furor. 270
E ainda à mãe dele, de Édipo, § eu vi, a bela epicasta,
que perpetrou grande feito § na ignorância da sua mente
ao desposar o seu filho; § este após matar seu pai
a desposou – logo os deuses § deram ciência disso aos homens.
Mas ele, sofrendo dores, § foi na multiamável Tebas 275
reinando sobre os cadmeus, § por vontades más dos deuses;
e ela baixou rumo ao Hades, § o potente ajusta-portas,
depois de se atar a íngreme § corda de elevada viga,
tomada em seu sofrimento. § Mas pra ele deixou dores,
muitíssimas, quantas per- § fazem Erínias da mãe. 280
E a clóris eu vi tão bela, § a quem outrora Neleu
desposou por sua beleza, § depois de dar dez mil dotes,
juveníssima menina § de Anfíon, o filho de Íaso,
que outrora reinou com força § na Orcômeno dos Mínias.
Ela foi rainha em Pilos § e gerou filhos ilustres, 285
tanto Nestor quanto Crômio § e Periclímeno altivo.
Gerou mais: a valorosa Pero, § espanto entre os mortais,
a quem todos os vizinhos § cortejavam; mas Neleu
não a dava, só àquele § que os curvos bois de amplas frontes
do forte Íficles pudesse § tocar pra fora de Fílace, 290
resistentes. Ocupou-se § só o ilibado adivinho
de tocá-los, mas a dura § Porção do deus o prendeu,
as resistentes correntes § e os agrestes boiadeiros.
Mas quando então transcorreram § tanto os meses quanto os dias
e com o giro de um ano § as estações retonaram, 295
nesse momento por fim § o forte Íficles soltou-o,
dito o oráculo todo, e era § feita a vontade de Zeus.
E depois a leda eu vi, § aquela esposa de Tíndaro,

454
que sob este gerou dois § filhos de potente espírito,
o doma-cavalo Cástor § e mais Pólux bom de punho, 300
aos quais, vivos os dois, cobre § a terra vivificante.
E eles, mesmo sob a terra, § honra recebem de Zeus,
ora vivendo (alternando § os dias), ora outra vez
estando mortos, e assim § têm honra igual à dos deuses.
Depois em ifimedeia, § essa esposa de Aloeu, 305
pus os olhos, que dizia § a Posêidon ter se unido,
e dois filhos gerou, e ambos § tiveram destino breve,
o quase-deus Oto e ainda § Efialtes célebre ao longe,
aos quais criou como os mais altos § o solo doador de grãos,
e ainda como os mais belos, § depois do célebre Oríon. 310
Pois com nove anos de idade § eles tinham nove cúbitos
de largura, e já de altura § possuíam nove braças.
E até contra os imortais § no Olimpo eles ameaçavam
fazer erguer o tumulto § da guerra multi-impetuosa,
ansiando pôr sobre o Olimpo § o Ossa, e depois por sobre o Ossa 315
o Pélion de folhas trêmulas, § pra que o céu fosse escalável.
E o fariam, se atingido § o metro da juventude:
o filho de Zeus, a quem § gerou bem-trançada Leto,
matou-os antes que neles § já florescessem os pelos
nas têmporas, e no queixo § ficasse cerrada a barba. 320
E a Fedra e a Prócris eu vi, § e ainda à bela Ariadne
(filha de Minos de espírito § destrutivo), a quem Teseu
desde Creta pra colina § da sacra Atenas tentou
levar, sem tirar proveito: § Ártemis a matou antes,
na Dia envolta por ondas, § por denúncia de Dioniso. 325
E a Mera e a clímene eu vi, § e ainda à odiosa erífile,
que recebeu ouro em paga § do seu querido marido.

Mas não poderei agora § dizer nem nomear todas


aquelas que eu vi, esposas § e também filhas de heróis:
antes findaria a noite § imortal. E já é hora 330
de dormir, seja na nau § ligeira, junto aos amigos,
seja aqui: o meu transporte § caberá a vós e aos deuses”.

455
Assim disse, e todos eles § quedaram quietos, calados,
possuídos de um feitiço § pelo palácio sombrio.
E entre eles falou primeiro § a brancos-braços Arete: 335
“Feácios, como se mostra § a vós este homem aqui,
com seu aspecto, estatura § e, por dentro, justo espírito?
Agora é hóspede meu, § e em tal honra tendes parte:
sem pressionar despachai-o, § e a ele, carente assim
de dádivas, não negueis § nada, pois pra vós inúmeros 340
bens nos palácios estão § postos, por gosto dos deuses”.
E entre eles então falou § o velho herói Equeneu,
que dentre os varões feácios § era o nascido há mais tempo:
“Caros, nada aquém de nosso § escopo e nossa opinião
fala agora a circunspecta § rainha. Vamos, ouvi! 345
Mas deste Alcínoo dependem § tanto o feito quanto o dito”.
E Alcínoo, por sua vez, § exclamando respondeu:
“Pois assim será o dito § dela, caso eu mesmo, ainda
vivendo, entre estes feácios § amantes de remos reine.
Mas que o hóspede suporte, § por mais que queira o retorno, 350
mesmo assim, até amanhã § ficar – até que eu conclua
toda a dotação. Seu trans- § porte caberá aos homens
todos, e a mim sobretudo: § é meu o poder no povo”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Reinante Alcínoo, entre todas § as gentes muito eminente: 355
se a mim mandasses até § por um ano aqui ficar
e incitasses meu transporte § me dando esplêndidas dádivas,
até isso eu quereria, § sendo bem mais proveitoso
retornar com mão mais cheia § para a cara terra pátria;
e mais caro e respeitável § eu seria para os homens 360
todos que viessem me ver § retornando para Ítaca”.
E Alcínoo, por sua vez, § exclamando respondeu:
“Odisseu, jamais pensamos § isto de ti ao te ver:
ser furtivo e trapaceiro, § do jeito que a terra negra
está sempre produzindo § multissemeados homens 365
que mentiras articulam, § de onde não se pode ver;
sobre ti a formosura § do dito, e em ti bravo espírito!

456
Tua história, como aedo, § com ciência relataste:
horrendas aflições tuas § e de todos os argivos.
Mas vamos, me fala isto § e relata sem torcer: 370
se viste algum quase-deus § amigo, dos que contigo
foram junto para Ílion, § lá seguindo seu destino.
Esta noite é muito extensa, § sem par: não é hora ainda
de dormirmos no palácio. § Fala dos sublimes feitos:
eu aguentaria até § vir divina Aurora, caso 375
suportasses, no palácio, § tuas aflições contar”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Reinante Alcínoo, entre todas § as gentes muito eminente:
hora há das muitas falas § e hora há também do sono.
Mas se ainda tens vontade § de escutar, eu é que não 380
me negaria a contar-te § algo mais digno de pena,
aflições de companheiros § meus, que depois pereceram,
esses que da lamentosa § grita troiana escaparam,
mas morreram no retorno, § por gosto de mulher má.

E depois de ter às almas § das femininas mulheres 385


já pra lá e pra cá dis- § persado a casta Perséfone,
sobreveio então a alma § dele, do Atrida Agamênon,
pesarosa. Aglomeravam-se § em volta outras que com ele
pereceram junto a Egisto § e seguiram seu destino.
Logo me reconheceu, § após beber negro sangue; 390
chorava de um jeito límpido, § grossas lágrimas vertendo,
esticando as mãos pra mim, § desejando me alcançar.
Não havia mais, no entanto, § força nele, nem impulso,
como costumava haver § antes nos flexíveis membros.
Mas eu, quando o vi, chorei § e me apiedei em meu ânimo, 395
e exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
‘Atrida assinaladíssimo, § senhor de homens Agamênon:
que destino então da morte § dolorosa te domou?
Foi por acaso Posêidon § que nas naus domou a ti,
suscitando indesejada § rajada de adversos ventos? 400
Ou varões desajustados § que em terra te maltrataram,

457
quando lhes roubavas vacas, § belos rebanhos de ovelhas,
ou quando estavas lutando § pela pólis e as mulheres?”.
Assim falei, e ele logo § como resposta me disse:
‘Laercida divogênito, § multiengenhoso Odisseu: 405
nem foi acaso Posêidon § que nas naus domou a mim,
suscitando indesejada § rajada de adversos ventos,
nem varões desajustados § que em terra me maltrataram,
mas foi Egisto que minha § morte e lote preparando
matou-me com a funesta § esposa, à casa chamando-me, 410
ao banquete, como alguém § mata um boi na manjedoura.
Assim morri morte digna § de pena. E outros companheiros
sem repouso foram mortos, § como suínos de alvas presas,
os da casa de abastado § varão bastante capaz,
em casamento ou conjunta § festa ou farta recepção. 415
Antes já presenciaste § a morte de muitos homens,
num duelo assassinados § ou na potente refrega,
mas vendo aquilo em teu ânimo § muito te lamentarias
– como em torno da cratera § e das mesas tão repletas
jazíamos no palácio, § cheio o chão todo de sangue. 420
E ouvi, mais digna de pena, § a voz da filha de Príamo,
Cassandra, a quem lá matou § ardilosa Clitemnestra
junto a mim, enquanto eu mesmo § batia as mãos contra o chão,
erguendo-as, em torno à espada § morrendo. E aquela cadela
deu-me as costas: nem ousou § a mim, que baixava ao Hades, 425
com as mãos fechar-me os olhos § ou mesmo cerrar-me a boca!
Não há nada mais terrível, § ou mais “cão”, que uma mulher,
qualquer uma que no espírito § lance feitos desse tipo,
tal como também aquela § tramou ultrajante feito,
preparando para o esposo § a morte. E eu que imaginara 430
que seria sim saudado § pelos meus filhos e escravos
ao ir pra casa; mas ela, § bem ciente do que é odioso,
sobre si verteu vergonha § e sobre as que estão por vir,
as femininas mulheres, § mesmo a que for benfeitora’.
Assim falou, e eu então § como resposta lhe disse: 435
‘Opópoi, o amplividente § Zeus à semente de Atreu

458
com assombro detestou § por vontades mulheris,
desde o princípio: por causa § de Helena muitos morremos,
e um ardil pra ti, distante, § Clitemnestra articulou’.
Assim falei, e ele logo § como resposta me disse: 440
‘Por isso tu também nunca § sejas com mulher gentil:
não lhe contes toda a história § de que tens conhecimento,
mas fala uma parte e fique § a outra ainda escondida.
Mas tua morte, Odisseu, § não virá da tua mulher,
pois é bastante prudente § e tem bons planos no espírito 445
aquela filha de Icário, § a circunspecta Penélope.
Sim, como noiva recém- § casada nós a deixamos
ao partirmos para a guerra: § tinha um filho sobre o peito,
criancinha que decerto § conta agora entre os varões,
afortunado: verá § sim o caro pai voltar, 450
e ele então abraçará § o seu pai – essa é a norma.
Mas minha consorte nem § mesmo deixou se fartarem
do filho os meus olhos: ela § antes me matou, a mim!
Vou te dizer outra coisa § e tu mete em teu espírito:
em segredo, e não às claras, § para a cara terra pátria 455
leva a nau, pois não há mais § confiança nas mulheres.
Mas vamos, me fala isto § e relata sem torcer:
se talvez vós escutais § que ainda vive o meu filho,
quem sabe lá em Orcômeno § ou lá na arenosa Pilos,
quem sabe com Menelau § lá em Esparta espaçosa. 460
Pois não está morto ainda, § no chão, o divino Orestes’.
Assim falou, e eu então § como resposta lhe disse:
‘Atrida, por que perguntas § tais coisas a mim? Nem sei
se está vivo ou se está morto. § É ruim falar ao vento’.
E nós dois assim, de pé, § alternávamos palavras 465
odiosas, pesarosos, § grossas lágrimas vertendo.
Sobreveio então a alma § dele, do Pelida Aquiles,
e de Pátroclo também, § e mais do ilibado Antíloco,
e de Ájax, que era o melhor § pelo aspecto e pelo porte
– em seguida ao ilibado § Pelida – dos demais dânaos. 470
E reconheceu-me a alma § do pés-rápidos Eácida

459
e gemendo então me disse § estas palavras aladas:
‘Laercida divogênito, § multiengenhoso Odisseu:
pertinaz, que feito vais § planejar maior ainda?
Como tu ousaste ao Hades § baixar, onde os mortos moram 475
desentendidos, espectros § de mortais que já penaram?’.
Assim falou, e eu então § como resposta lhe disse:
‘Filho de Peleu, Aquiles, § em muito o mais nobre acaio:
por precisão de Tirésias § vim, pra ver se algum conselho
daria de como irei § até Ítaca rochosa, 480
pois ainda não cheguei § junto da Acaia e na minha
terra ainda não pisei, § sempre a sofrer. Mas, Aquiles,
um varão mais venturoso § não houve nem haverá:
pois a ti, vivo, nós antes § honrávamos como aos deuses
– os argivos – e entre os mortos § tens agora grande mando, 485
aqui, Aquiles, estando. § Não sofras por estar morto!’.
Assim falei, e ele logo § como resposta me disse:
‘Não me fales a favor § da morte, ilustre Odisseu:
preferia ser um sobre- § o-solo, servindo a outrem
(a varão sem-terra, cujo § sustento não fosse muito), 490
a reinar em meio a todos § os mortos que já findaram.
Mas vamos, evoca a história § pra mim do meu bravo filho,
se para a guerra seguiu § para ser líder, ou não.
Fala pra mim do ilibado § Peleu, se tu sabes de algo,
se honra ele ainda detém § em meio aos muitos mirmídones 495
ou se estão o desonrando § em toda a Hélade e Ftia,
visto que agora a velhice § lhe doma as mãos mais os pés.
Pois seu salvador eu não § sou sob os raios do Sol,
tal como me comportei § outrora na vasta Troia
ao matar ótima tropa § em defesa dos argivos. 500
Se eu desse jeito um minuto § só fosse à casa do pai,
tornaria detestáveis § furor e invencíveis mãos
daqueles que a ele fazem § violência e a honra lhe afastam’.
Assim falou, e eu então § como resposta lhe disse:
‘O fato é que do ilibado § Peleu eu não sei de nada, 505
mas para ti, sobre teu § filho querido, Neoptólemo,

460
relatarei a verdade toda, § tal como tu mandas.
Pois eu mesmo o conduzi, § nas côncavas naus iguais,
rumo aos acaios de belas § caneleiras, desde Ciros.
E o fato é que, ao decidirmos § em torno à pólis de Troia, 510
sempre falava primeiro, § e sem falhar nas palavras;
apenas o quase-deus § Nestor e eu o superávamos.
E ao lutarmos nós com bronze § na planície dos troianos
jamais ficava na turba § ou na concentração de homens:
ia muito à frente, em seu § furor cedendo a ninguém, 515
e matou a numerosos § varões na terrível liça.
Mas não poderei agora § dizer nem nomear todos,
quantos da tropa matou § em defesa dos argivos
(alguém como o Telefida § assassinou com o bronze,
o herói Eurípilo, e muitos § companheiros ao redor 520
foram mortos – os ceteus – § por dádivas mulheris;
esse o mais belo que vi § depois do divino Mêmnon).
E ao baixarmos nós cavalo § adentro (que Epeu forjara),
os melhores dos argivos, § sendo meu todo o comando,
seja de abrir a cerrada § armadilha ou de fechá-la, 525
outros dânaos por então, § condutores e guardiões,
secavam o choro, e os membros § de cada embaixo tremiam,
mas com meus olhos jamais § vi, de modo algum, aquele
nem deixar a bela pele § pálida nem de sua face
secar o choro: antes sim § muitíssimo suplicava 530
por se lançar do cavalo, § pegando o cabo da espada
e a lança pesada em bronze, § males ansiando aos troianos.
E ao pilharmos nós por fim § pólis íngreme de Príamo,
levando porção e belo § prêmio na nau embarcou,
incólume, sem ter sido § alvo do afiado bronze 535
e sem ter sido ferido § de perto, coisa que muito
acontece numa guerra: § confuso, Ares enlouquece’.
Assim falei, e eis que a alma § do pés-rápidos Eácida
com passo largo partiu § pelo asfodélico prado,
contente porque eu dissera § ser tão distinto o seu filho. 540
Ficaram as outras almas § dos mortos que já baixaram

461
de pé, sofridas, e cada § uma aflições demandava.
E então apenas a alma § dele, de Ájax Telamônio,
ficava distante, à parte, § com a vitória colérico
que sobre ele eu conquistara § no juízo, junto às naus, 545
em torno às armas de Aquiles § (a senhora mãe fixara-o
e vibrante Atena e os filhos § dos troianos foram juízes).
Ah, antes eu não tivesse § conquistado um prêmio assim:
por causa delas a terra § cobriu uma tal cabeça,
Ájax, que em aspecto pôs-se § acima e em feitos acima 550
– em seguida ao ilibado § Pelida – dos demais dânaos.
Pra ele eu mesmo falei § com estas doces palavras:
‘Ájax, filho do ilibado § Têlamon, tu não irias
nem morto esquecer a cólera § por mim, por causa das armas
funestas? Os deuses delas § fizeram dor aos argivos, 555
pois tu morreste, uma tal § torre! Por ti nós acaios,
tal como pela cabeça § dele, do Pelida Aquiles,
sofremos, quando findaste, § sem cessar. Mas nenhum outro
é responsável, apenas § Zeus, que ao exército dânao
com assombro detestou § e a ti impôs tal porção. 560
Vamos, vem aqui, senhor, § pra que ouças palavra e história
nossa. Agora doma teu § furor, teu sobranceiro ânimo!’.
Assim falei, e ele nada § respondeu; foi ter com outras
almas lá no interior do Êrebo, § de mortos que já baixaram.
Mesmo em cólera, teria § falado a mim, e eu a ele; 565
o meu ânimo, porém, § dentro do querido peito
desejava ver as almas § dos outros que já baixaram.
E então a Minos eu vi, § o bravo filho de Zeus,
portando seu cetro de ouro, § dando normas entre os mortos,
sentado, e em torno ao senhor § lhe demandavam sentenças, 570
sentados, e em pé também, § lá no Hades de amplos portões.
Mas em seguida em Oríon § colossal fixei a mente,
que tocava as feras juntas § pelo asfodélico prado,
as que ele próprio matara § nas montanhas solitárias,
com bastão todo de bronze § nas mãos, inquebrável sempre. 575
E a títio também vi, filho § da Terra assinaladíssima,

462
deitado no chão: por nove § jeiras ele se estendia,
e dois abutres, de um lado § e outro, rasgavam-lhe o fígado,
penetrando na membrana § sem que suas mãos os tirassem;
pois tinha arrastado Leto, § digna consorte de Zeus, 580
quando, indo a Pito, cruzou § Pânope de belos coros.
E em tântalo, sim, os olhos § pus, que tinha duras dores,
de pé na lagoa; próxima § ela estava do seu queixo,
mas não podia, varado § de sede, pegar, beber:
quantas vezes se curvava § o ancião, ansiando beber, 585
tantas vezes se acabava, § sugada, a água, e a seus pés
ressurgia a terra negra § – já um nume a ressecava.
E altas árvores faziam § pender frutas de suas copas:
pereiras e romãzeiras, § macieiras de ilustres frutos,
mais figueiras muito doces § e oliveiras vicejantes; 590
sempre que o ancião tentava § alcançá-las com as mãos,
vinha o vento desviá-las § rumo às nuvens sombreantes.
E em Sísifo, sim, os olhos § pus, que tinha duras dores,
com as duas mãos içando § uma pedra colossal:
de fato, aplicando-se ele § com os pés e com as mãos, 595
empurrava a pedra ao alto, § para a crista, e quando estava
pra atingir o cume então § retrocedia pesada,
e de volta para o plano § rolava a pedra impudente.
Mas de novo ele a empurrava, § com esforço, e pelos membros
o suor escorria, e o pó § pela cabeça se erguia. 600
Mas em seguida fixei § a mente na força de héracles
– no espectro, porque ele mesmo § com os deuses imortais
diverte-se, e a Juventude § de lindos pés tem pra sim,
a filha do grande Zeus § e de Hera de áureas sandálias.
Em torno dele houve estrépito § de mortos, tal qual de pássaros 605
pra todo lado atiçados. § E, tal qual o breu da noite,
ia portando o arco des- § nudo e a flecha sobre a corda,
o olhar inquieto e terrível, § qual quem vai sempre atirar.
Horrível ao seu redor, § no peito, era aquela tira,
o cinturão de ouro, onde obras § sublimes foram criadas, 610
ursos e selvagens suínos, § mais leões de olhar faiscante,

463
mais conflitos e combates, § matanças e assassinatos.
Não, que outra coisa assim não § forje aquele que o forjou,
quem àquele cinturão § com sua arte forjou!
Logo me reconheceu § quando me viu com os olhos 615
e gemendo então me disse § estas palavras aladas:
‘Laercida divogênito, § multiengenhoso Odisseu:
ah, infeliz, também tu § arrastas um mau quinhão,
o que eu próprio sob os raios § do Sol sempre carregava.
De Zeus Cronida era filho § e no entanto sofrimento 620
imenso eu tinha: por homem § muito, muito inferior
era dominado, e a mim § lançou duros desafios.
Um dia aqui me enviou § pra levar o cão (pois outro
desafio mais duro que esse § disse não haver pra mim),
e pra cima o conduzi § e o levei pra fora do Hades 625
– foi Hermes quem me guiou, § e a claros-olhos Atena’.
Assim dizendo adentrou § de novo a morada do Hades.
Mas eu fiquei firme ali, § caso ainda viesse algum
dos varões heróis, aqueles § que no passado morreram.
E teria visto antigos varões § que eu muito queria, 630
Teseu e Pirítoo, filhos § assinalados dos deuses.
Mas antes disso as mil tribos § dos mortos se aglomeraram
com grito sublime, e o gélido § pavor se apossou de mim,
de que a cabeça de Górgona, § esse terrível colosso,
ao meu encontro enviasse, § do Hades, a augusta Perséfone. 635
E indo depressa pra nau § já mandei entrar também
os companheiros e des- § atar os cabos de popa.
E foram logo embarcando, § sentando junto aos toletes.
E pelo rio Oceano § levou-a fluxo ondeante,
primeiro com a remada, § mas depois a bela brisa. 640

464
cAntO 12.
Relato a Alcínoo
– Sereias, cila e caríbdis, vacas do Sol

Odisseu, voltando à ilha Eeia, presta honras fúnebres a Elpenor (1-15). Circe pre-
diz os perigos que ele terá de enfrentar durante a viagem de regresso: as Sereias, Cila e
Caríbdis, e o interdito em relação às vacas do Sol, na ilha Trinácia (16-141). Chegando à
região das Sereias, Odisseu, depois de se fazer atar ao mastro da nau e tapar os ouvidos
dos companheiros, sobrevive ao canto sedutor (142-200). Chegando ao estreito, Odisseu,
a conselho de Circe, mantém-se mais próximo de Cila, para evitar Caríbdis; consegue sa-
far-se incólume, sem evitar, contudo, que Cila lhe arrebate seis companheiros (201-259).
Chegam à Trinácia; Odisseu alerta os companheiros sobre a profecia de Tirésias e Circe e
obtém deles um juramento de que não tocariam nos animais; ventos contrários impedem
durante um mês que a nau parta e os mantimentos se esgotam; Odisseu dorme e seus
companheiros, instigados por Euríloco, matam as vacas do Sol (260-373). Cólera do Sol,
que cobra de Zeus uma punição; depois de os companheiros se banquetearem por seis
dias, eles embarcam e a nau é atingida por tempestade e raio (374-419). Odisseu é o único
que se salva; ele volta a Caríbdis e Cila, transpõe o estreito, vaga à deriva durante nove
dias e chega à ilha de Calipso (420-453).

465
cAntO 13.
chegada a Ítaca

Os feácios ficam maravilhados com a narrativa de Odisseu e Alcínoo os con-


vida a dar ao estrangeiro novos presentes de hospitalidade (1-17). Na tarde do dia
seguinte Odisseu se despede e é transportado, enquanto dorme, para Ítaca (18-
92). Ao chegar à ilha, a tripulação o deixa junto ao porto de Fórcis (93-125). Irri-
tado, Posêidon reclama com Zeus, que o orienta a transformar a nau feácia em
pedra, à vista de todos (125-158). Posêidon segue a sugestão de Zeus e Alcínoo vê
cumprida a profecia do pai (159-187). Odisseu, ao acordar, não reconhece a terra
natal, por causa da névoa criada por Atena, e imagina ter sido enganado pelos
feácios (187-221). A deusa aparece para ele na figura de um pastor e Odisseu, des-
confiado, tenta se fazer passar por um cretense fugitivo (221-286). Satisfeita com
a esperteza do seu protegido, Atena revela sua identidade e os dois falam sobre
sua relação; a deusa dispersa a névoa e Odisseu saúda a terra pátria (287-360).
Os dois escondem os presentes dados pelos feácios e Atena urde o plano contra os
pretendentes: o herói deve assumir a figura de um mendigo e procurar primeiro o
porqueiro Eumeu (361-428). Atena toca nele com a vara e o transforma num velho
maltrapilho; depois parte para Esparta em busca de Telêmaco (429-440).

Assim disse, e todos eles § quedaram quietos, calados,


possuídos de um feitiço § pelo palácio sombrio.
E Alcínoo, por sua vez, § exclamando respondeu:
“Odisseu, já que chegaste § até minha casa brônzea,
de teto alto, penso então § que não haverás, vagando, 5
de voltar pra trás, por mais § que tu já tenhas sofrido.
E isto digo, encarregando § a cada um dentre vós
todos (que o anciano e ardente § vinho dentro do palácio
meu estais sempre a beber, § escutando a um aedo):
sim, para o hóspede já vestes § no bem-polido baú 10
repousam, e trabalhado § ouro, e todas as demais
dádivas que os conselheiros § dos feácios cá trouxeram.
Mas vamos lhe dar também § um tacho e uma grande trípode,
varão por varão! E nós § depois, reunindo entre o povo,
faremos o acerto: é duro § dar um só assim de graça”. 15

466
Assim disse Alcínoo, e a fala § era do agrado daqueles;
e eles foram se deitar § cada um na sua casa.
Quando raiou matutina § a róseos-dedos Aurora,
se apressaram para a nau, § levando o varonil bronze.
E bem dispôs tudo Alcínoo § com seu sagrado furor 20
(pela nau indo ele mesmo), § sob as juntas, pra nenhum
dos que a guiavam se estorvar, § ao se esforçarem nos remos.
E à casa de Alcínoo foram, § e o banquete prepararam;
e um boi imolou Alcínoo § com seu sagrado furor
ao Cronida, ao nuvem-negra § Zeus, que sobre todos reina. 25
Tiveram, queimando os fêmures, § assinalado banquete,
com deleite, e celebrava § entre eles divino aedo,
Demódoco, pelas gentes § honrado. Mas Odisseu
voltava sempre a cabeça § para o Sol todo-luzente,
querendo que se pusesse: § pois ansiava por voltar. 30
Tal como quando deseja § a ceia o homem cuja junta
de vinosos bois arou § terra inculta o dia todo,
e então o pôr do Sol é § ao fim saudado por ele,
por poder já ir pra casa § (e ao ir doem seus joelhos):
assim o pôr do Sol foi § saudado por Odisseu. 35
E de imediato aos feácios § amantes de remos disse,
e sobretudo pra Alcínoo § declarou e assim falou:
“Reinante Alcínoo, entre todas § as gentes muito eminente:
transportai-me, após libardes, § sem dano: de vós despeço-me!
Pois está cumprido aquilo § que meu ânimo queria: 40
o transporte e as caras dádivas. § Que a mim os deuses celestes
as tornem afortunadas. § Que ilibada, em casa, encontre
minha esposa ao voltar, junto § com familiares saudáveis.
E que vós, permanecendo § aqui, alegreis legítimas
mulheres e vossos filhos. § Que os deuses deem sucesso 45
de todo tipo, e que mal § nenhum meta-se entre o povo”.
Assim disse, e todos eles § louvando-o assim ordenavam
– transportar tal estrangeiro –, § por falar com proporção.
E para o arauto falou § então com furor Alcínoo:
“Pontônoo, faz a mistura § na cratera e serve o vinho 50

467
a todos pelo palácio, § pra que clamando a Zeus pai
transportemos o estrangeiro § até sua terra pátria”.
Disse assim, e então Pontônoo § misturou vinho melífico
e serviu a todos, um § a um. E foram libando
para os deuses venturosos § que habitam o vasto céu, 55
de lá mesmo, dos assentos. § Mas o divino Odisseu,
de pé, pôs nas mãos de Arete § cálice de dupla face
e exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
“Rainha, de ti despeço-me § pra sempre, até que a velhice
sobrevenha, mais a morte § – aquilo que ronda os homens. 60
Quanto a mim, parto! Mas tu, § desfruta aqui nesta casa
dos teus filhos, da tua gente § e também do rei Alcínoo”.
Assim disse e pelo umbral § foi o divino Odisseu,
e um arauto despachou, § junto, com furor Alcínoo,
para o conduzir à nau § ligeira e à beira do mar. 65
E Arete então enviou § junto mulheres escravas,
uma portando um recém- § lavado manto e uma túnica;
uma outra fez seguir § com o cerrado baú;
e outra ainda carregou § pão e vinho avermelhado.
Depois então de baixarem § para a nau e para o mar, 70
os nobres transportadores, § pegando, guardaram logo
isso na côncava nau § – toda a comida e a bebida.
E para Odisseu então § linho e lençol estenderam,
sobre o convés da nau côncava, § pra sem acordar dormir
lá na popa. E ele também § embarcou e se deitou 75
em silêncio. E eles sentaram § sobre os bancos, um por um,
sempre em ordem, e soltaram § da pedra furada a amarra.
E quando já reclinados § feriram o mar com pás,
nele então suave sono § sobre as pálpebras caiu,
indespertável, dulcíssimo, § muito semelhante à morte. 80
E a nau, tal qual na planície § os garanhões da quadriga,
impelidos todos eles § pelos golpes do chicote,
saltando pra cima per- § correm ligeiro o caminho,
assim também dela a proa § saltava, e atrás grandemente
espumava a onda púrpura § do mar multimarulhante. 85

468
E ela muito firme e estável § corria: nem circulante
falcão a acompanharia, § o mais leve dos alados.
Assim, correndo ligeira, § cortava as ondas do mar,
levando varão que tinha § planos afins aos dos deuses,
que antes muitíssimas dores § em seu ânimo sofrera, 90
ao atravessar as guerras § de homens e doídas ondas;
sem tremor dormia agora, § sem lembrar do que sofrera.
E quando a estrela ascendeu, § a mais brilhante, a que mais
vem anunciar a luz § dela, a matutina Aurora,
foi então se aproximando § da ilha a singrante nau. 95
Há um certo porto dito § “de Fórcis”, velho do mar,
nesse povoado de Ítaca, § e nele dois salientes
promontórios verticais, § desabando junto ao porto,
que mantêm a grande onda ad- § vinda de ventos violentos
do lado de fora; dentro § ficam naus de belos bancos 100
sem amarras, quando atingem § a medida da ancoragem.
Na cabeceira do porto § há folheada oliveira
e bem perto dela um antro § adorável, enevoado,
consagrado às ninfas, essas § que são chamadas de Náiades.
No seu interior, tanto ânforas § quanto crateras estão, 105
rochosas, onde também § estocam mel as abelhas.
No seu interior, teares § longos de pedra, onde as ninfas
tecem mantos com tintura § do mar, espanto de ver!
No seu interior, há águas § fluentes e duas portas:
a virada para o Bóreas § é acessível aos homens, 110
e a virada para o Noto § é dos deuses: não por essa
humanos adentram – antes § é caminho de imortais.
Aí a levaram, de ante- § mão cientes. E ela em seguida
embicou em terra firme, § só até sua metade,
ligeira, tal era o impulso § com as mãos dos remadores. 115
E da nau de belos bancos § em terra desembarcando
primeiramente Odisseu § da côncava nau tiraram,
como estava, com o linho § e com o lençol brilhante,
sobre a areia o depuseram, § dominado pelo sono,
e retiraram as posses § que a ele os nobres feácios 120

469
deram ao partir pra casa, § graças a Atena magnânima.
E as puseram, todas elas, § junto ao pé da oliveira,
fora do caminho, não § fosse um caminhante humano,
sem que Odisseu acordasse, § sobrevir e as destruir.
E pra casa retornaram. §
Mas o Treme-terra não 125
se esqueceu das ameaças § que ao quase-deus Odisseu
primeiro fez, e a vontade § de Zeus pôs-se a questionar:
“Zeus pai, sim, eu, eu não mais § entre os deuses imortais
serei honrado, se agora § os mortais nada me estimam
– os feácios, que pertencem, § é certo, à minha linhagem! 130
Eu já disse que Odisseu, § após sofrer muitos males,
iria pra casa: nunca § dele roubei o retorno
de todo, pois tu primeiro § o prometeste e anuíste.
Mas a dormir o levaram § sobre o mar em nau ligeira
e o depuseram em Ítaca, § dando-lhe indizíveis dádivas, 135
tanto bronze em abundância § quanto ouro, e vestes tecidas,
um tanto que Odisseu nunca § teria alcançado em Troia
se vindo de lá indene, § com sua parte do butim”.
Como resposta lhe disse § o reúne-nuvem Zeus:
“Opópoi, Treme-terra ampli- § potente, que coisa dizes! 140
Os deuses nada te des- § onram. Pois seria duro
sobre o mais velho e melhor § eles lançarem desonras.
Se a ti algum dentre os homens, § cedendo à violência e à força,
nada estima, sempre existe § pra ti no porvir vingar-se.
Age conforme desejas § e agora é caro ao teu ânimo”. 145
E respondeu-lhe em seguida § o treme-terra Posêidon:
“Depressa eu mesmo agiria, § Nuvem-negra, como dizes,
mas tua animosidade § é o que sempre observo e evito.
Agora desejo sim § à tão bela nau feácia,
após voltar de um transporte § pelo mar enevoado, 150
destruir, pra que se refreiem § e desistam do transporte
dos homens, e então com grande § monte a pólis lhes cobrir”.
Como resposta lhe disse § o reúne-nuvem Zeus:
“Meu caro, assim ao meu ânimo § me parece ser melhor:

470
quando, da cidade, as gentes § todas adiante a virem 155
sendo conduzida, perto § da costa a transforma em pedra
semelhante a nau ligeira, § para que se espantem todos
os homens, e então com grande § monte a pólis deles cobre”.
Depois então de ouvir isso, § o treme-terra Posêidon
foi em direção à Esquéria, § onde vivem os feácios, 160
e lá esperou. E ela veio § bem perto, a singrante nau,
seguindo ligeira. E perto § dela veio o Treme-terra
e em rocha a transformou, e em- § baixo a enraizou, acertando-a
com sua mão espalmada. § E dando as costas partiu.
Mas entre si proferiam § muitas palavras aladas 165
os feácios longirremes, § célebres por suas naus;
assim um deles falava, § olhando para o outro ao lado:
“Ómoi, quem prendeu a nau § ligeira dentro do mar,
ao ser conduzida ao lar? § Ficou toda à vista adiante!”.
Assim falava; mas não § sabiam como se dera. 170
Alcínoo então entre todos § eles proferiu e disse:
“Opópoi, já chega a mim § profecia outrora dita,
a de meu pai, que afirmava § que Posêidon se agastara
conosco, ao sermos indenes § transportadores de todos:
disse que um dia à nau tão § bela dos varões feácios, 175
após voltar de um transporte § pelo mar enevoado,
destruiria e com grande § monte a pólis cobriria.
Assim proferia o velho. § E isso tudo já se cumpre.
Mas vamos, como eu disser, § obedeçamos nós todos:
parai já com o transporte § dos mortais, sempre que alguém 180
chegue até nossa cidade. § E para Posêidon doze
touros escolhidos vamos § imolar, a ver se apieda-se,
e para que com extenso § monte a pólis não nos cubra!”.
Assim falou, e temeram, § e prepararam os touros.
Desse modo eles clamavam § ao soberano Posêidon, 185
condutores e guardiões § lá do povo dos feácios,
parados junto ao altar. §
Mas o divino Odisseu
acordou na terra pátria § e não a reconheceu,

471
já por tanto tempo ausente. § Pois vertera névoa em volta
vibrante Atena, menina § de Zeus, para que tornasse 190
o próprio irreconhecível § e lhe relatasse tudo,
e não o reconhecessem § mulher, cidadãos e amigos,
até pagarem por toda § presunção os pretendentes.
Por isso, tudo surgiu § com outro aspecto ao senhor,
os passadiços contínuos § e os seus portos atracáveis, 195
os rochedos volumosos § e as árvores verdejantes.
E pôs-se de pé, num salto, § e olhou para a terra pátria.
Em seguida lamentou-se, § batendo em ambas as coxas
com sua mão espalmada, § e lamuriando-se disse:
“Ómoi, chego eu desta vez § à terra de que mortais? 200
São por acaso selvagens, § soberbos e nada justos
ou são sim hospitaleiros § cuja mente é piedosa?
Pra onde levo estes muitos § bens? Por onde ainda eu mesmo
vago? Ah, deveriam ter § ficado junto aos feácios,
por lá, e eu alcançaria § outro dentre os ardorosos 205
reis, o qual me acolheria § e me daria transporte.
Mas agora nem sei onde § os pôr, e nem por aí
os vou deixar, pra que não § virem espólio pra outros.
Opópoi, então em tudo § nem conscienciosos nem justos
me foram os condutores § e guardiões dos feácios, 210
que me trouxeram pra outra § terra – e disseram que iriam
me levar à bem-visível § Ítaca, mas não cumpriram!
Que Zeus os faça pagar § – o suplicante –, que a outros
homens vê de cima e pune § quem comete transgressão.
Mas vamos então, que tais § bens agora eu veja e conte; 215
vai que partiram levando § algum em sua funda nau”.
Assim disse, e foi às tão § belas trípodes e aos tachos
contando, e ao ouro, e também § às belas roupas tecidas,
sem dar falta. E pela terra § pátria ele se lamentava,
ao rastejar pela praia § do mar multimarulhante, 220
com muita lamúria. E então § perto dele veio Atena,
parecida pelo porte § com jovem pastor de ovelhas,
todo gentil (como são § os filhos dos soberanos),

472
tendo sobre os ombros xale § bem-feito, de dobra dupla,
sandálias sob os brilhantes § pés e uma lança nas mãos. 225
Ao vê-la Odisseu ficou § feliz. Veio ao seu encontro
e exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
“Caro, uma vez que primeiro § chego a ti neste lugar,
te saúdo! Que com má § intenção tu não me encontres,
mas salva estas coisas, salva § a mim. Pois a ti eu mesmo 230
como a um deus clamo e chego § a teus queridos joelhos.
E me conta com verdade § tal coisa pra que eu bem saiba:
é que terra aqui, que povo? § Que homens vivem por aqui?
Será talvez ilha bem- § visível, ou promontório
de terra firme tão fértil § que se inclina sobre o mar?” 235
E por sua vez lhe disse § deusa Atena claros-olhos:
“És sim um tolo, estrangeiro, § ou de longe chegas tu,
se estás mesmo perguntando § desta terra. Não, em nada
ela é assim anônima: § muitíssimos a conhecem,
todos que vivem voltados § para a Aurora e para o Sol, 240
e todos que atrás, voltados § à escuridão nevoenta.
Áspera com certeza ela § é, e não é carroçável;
não é muito miserável, § mas ampla também não é.
Pois dentro dela indizível § pão e vinho dentro dela
se produz, e sempre tem § chuva e orvalho vicejante. 245
É bom pasto para bois § e cabras, e possui árvores
de todo tipo e também § bebedouros o ano todo.
Por isso, estrangeiro, o nome § de Ítaca chega até Troia,
essa, sim, que dizem ser § distante da terra acaia”.
Assim disse, e se alegrou § multitenaz Odisseu, 250
contente com sua terra § pátria, segundo dissera
vibrante Atena, menina § do porta-égide Zeus.
E exclamando então lhe disse § estas palavras aladas
(mas não falou a verdade; § antes reteve o discurso,
sempre manejando multi- § esperta intenção por dentro): 255
“Já ouvi falar sim de Ítaca, § mesmo lá na vasta Creta,
distante sobre o mar. Chego § agora, porém, eu mesmo
com tais bens: tendo este tanto § deixado para meus filhos,

473
fugi após matar filho § querido de Idomeneu,
o pés-rápidos Orsíloco, § esse que na vasta Creta 260
vencia nos pés ligeiros § os homens que comem pão.
Pois queria me privar § de todo esse meu butim
de Troia, pelo qual eu § sofri dores em meu ânimo
ao atravessar as guerras § de homens e doídas ondas,
por eu não aceitar ser § de seu pai o servidor 265
lá na terra dos troianos, § mas comandar outros homens.
E a ele acertei com lança § de bronze quando voltava
do campo, com um amigo § atocaiado na estrada:
noite bem turva tomou § o céu, e nenhum dos homens
nos notou, e assim, sem ser § visto, eu lhe roubei a vida. 270
Mas depois então de o ter § matado com bronze afiado,
imediatamente fui § pra nau e aos nobres fenícios
supliquei, e a eles dei § um butim animador:
mandei que eles me deixassem § e me assentassem em Pilos,
ou ainda na divina § Élis, onde os epeus mandam. 275
Mas os afastou de lá, § é fato, o vigor do vento,
muito a contragosto deles § – não queriam me enganar.
E de lá vagando nós § chegamos aqui, de noite.
E remamos rumo ao porto § com pressa – nenhum de nós
da ceia estava lembrado, § por mais que necessitados, 280
mas, desembarcando, desse § jeito deitamos, nós todos.
Aí doce sono sobre- § veio a mim, já desgastado,
e eles, após retirarem § meus bens da côncava nau,
depuseram-nos bem onde § sobre a areia me deitava.
E então embarcando rumo § à bem-habitada Sídon 285
partiram, e eu, eu fiquei, § com pesar no coração”.
Assim falou, e sorriu § deusa Atena claros-olhos.
Com a mão fez-lhe um carinho; § no porte se assemelhara
a mulher bela e elevada, § versada em nobres trabalhos.
E exclamando então lhe disse § estas palavras aladas: 290
“Esperto, sim, e furtivo § seria quem te passasse
em ardis (em meio a todos), § mesmo se um deus te encontrasse!
Pertinaz, de astúcia vária, § insaciável de ardis!

474
Então nem em tua terra § irias deixar de enganos
e dos furtivos discursos, § que no fundo te são caros. 295
Mas vamos, não mais falemos § dessas coisas, sendo os dois
espertos: és o melhor § de longe, entre os mortais todos,
em plano e discursos, e eu § com glória entre os deuses todos
em astúcia e em espertezas. § Mas não me reconheceste,
vibrante Atena, menina § de Zeus, eu que sempre estou, 300
em todos os sofrimentos, § do teu lado te guardando,
e que ainda te fiz caro § para todos os feácios.
Mas agora chego aqui § para urdir contigo astúcia
e ocultar todos os bens § que a ti os nobres feácios
deram ao partir pra casa § (por minha intenção e plano), 305
e dizer ainda todas § essas aflições que é sina
tua suportar em casa. § Tu, forçosamente aguenta,
e não fales a nenhum § dos homens e das mulheres
todas que, tendo vagado, § chegaste, mas em silêncio
essas muitas dores sofre, § violências aturando”. 310
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Árduo é te reconhecer, § deusa, ao mortal que te encontra,
por mais que tenha ciência: § a qualquer um te assemelhas!
Mas isto eu mesmo bem sei: § que antes me foste gentil,
enquanto em Troia lutávamos § nós, os filhos dos acaios. 315
Porém, depois de pilhar § pólis íngreme de Príamo,
embarcar nas naus e um deus § vir dispersar os acaios,
depois não te vi, menina § de Zeus, nem te percebi
pisando na minha nau, § pra me tirar de uma dor.
Mas com o coração di- § lacerado em mim eu sempre 320
vaguei, até que do mal § os deuses me libertaram:
até que por fim na rica § terra dos varões feácios
me encorajaste e pra pólis § me conduziste, tu mesma.
Mas agora por teu pai § te suplico, pois não penso
ter chegado à bem-visível § Ítaca, mas numa outra 325
terra eu estou volteando. § Tu, assim cortante, penso
que isso dizes pra com meu § espírito trapacear;
me fala se de verdade § chego à cara terra pátria”.

475
E respondeu-lhe em seguida § deusa Atena claros-olhos:
“Sempre, pra ti, este tipo § de pensamento no peito... 330
Por isso mesmo não posso § deixar-te em teus dissabores,
porque és assim, muito atento, § e perspicaz, e contido.
Outro homem, após vagar, § ao chegar com saudações
teria ido ao palácio § pra ver os filhos e a esposa:
mas ainda não te é caro § saber nem interrogar, 335
até pôr à prova a tua § esposa, que está na mesma
dentro do palácio teu; § e sempre cheias de agruras
noites e dias consomem-se § pra ela, que verte lágrimas.
Porém eu mesma jamais § duvidei disso, mas no ânimo
sabia: que voltarias § perdendo os amigos todos. 340
Mas o fato é que eu não quis § contra Posêidon lutar,
contra um irmão de meu pai § que guardou rancor por ti,
colérico por tu teres § cegado o querido filho.
Mas vamos, que eu te mostre Ítaca, § pra que fiques convencido:
este é sim o porto dito § “de Fórcis”, velho do mar, 345
e esta, na sua cabeceira, § a folheada oliveira;
e aqui bem perto dela o antro § adorável, enevoado,
consagrado às ninfas, essas § que são chamadas de Náiades.
Esta aqui é a caverna § tua, elevada, onde às ninfas
tu sacrificavas muitas § e perfeitas hecatombes. 350
E este aqui é o monte Nérito, § revestido por floresta”.
Assim disse e dispersou § a névoa, e assomou a terra.
E então logo se alegrou § multitenaz Odisseu,
e assim contente beijou § o solo doador de grãos.
E ele de imediato orou § às ninfas, erguendo as mãos: 355
“Ninfas Náiades, meninas § de Zeus, eu jamais pensei
que haveria de vos ver. § E agora, em suaves clamores:
salve! Ainda vamos dar § dádivas também, como antes,
se, propensa, a espoliadora § filha de Zeus me deixar,
a mim, viver, e fizer § adulto meu caro filho”. 360
E por sua vez lhe disse § deusa Atena claros-olhos:
“Coragem! E que essas coisas § não preocupem teu espírito.
Coloquemos no recesso § desse antro sublime os bens,

476
imediatamente, onde eles § fiquem a salvo pra ti,
e pensemos como tudo § vai se dar do melhor modo”. 365
Assim falou e adentrou § a caverna enevoada,
em busca de esconderijos § no interior. Mas Odisseu
trazia tudo pra perto, § o ouro, o bronze sem desgaste
e ainda as vestes bem-feitas § que os feácios tinham dado;
e bem dispôs tudo, e então § uma pedra pôs na porta 370
vibrante Atena, menina § do porta-égide Zeus.
E junto ao pé da sagrada § oliveira ambos sentando
pensavam na destruição § de arrogantes pretendentes.
E entre eles falou primeiro § deusa Atena claros-olhos:
“Laercida divogênito, § multiengenhoso Odisseu: 375
vê como nos pretendentes § sem respeito as mãos porás,
que vêm governando ao longo § de três anos teu palácio,
cortejando a quase-deusa § esposa e lhe dando dotes.
Ela, em seu ânimo sempre § lamentando teu retorno,
a todos dá esperança § e a cada um faz promessas, 380
enviando-lhes mensagens, § mas sua intenção é outra”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Opópoi, aquele fim § dele, do Atrida Agamênon,
terrível, eu deveria § sim ter tido no palácio,
se a mim tudo, deusa, não § falasses com proporção. 385
Mas vamos, urde uma astúcia, § de modo a me vingar deles.
Fica ao meu lado, injetando § furor multicorajoso,
como quando dissolvíamos § os diademas de Troia.
Se assim disposta ficasses § ao meu lado, Claros-olhos,
contra até mesmo trezentos § eu próprio combateria 390
contigo, senhora deusa, § se a mim propensa ajudasses”.
E respondeu-lhe em seguida § deusa Atena claros-olhos:
“Eu com certeza ao teu lado § estarei, sem te esquecer,
quando então nos ocuparmos § com isso. Penso que alguns
com seu sangue e miolos vão § molhar o indizível chão, 395
dentre os varões pretendentes § que devoram teu sustento.
Agora, irreconhecível § te faço a todo mortal:
pois vou ressecar a bela § carne dos flexíveis membros,

477
destruir o loiro cabelo § da cabeça, em volta pôr
trapo que detestaria § um homem de ver vestido 400
e te embaciar os dois § olhos antes tão bonitos,
pra surgir desfigurado § a todos os pretendentes,
e à tua mulher e ao teu filho, § que no palácio deixaste.
Já tu mesmo, vai primeiro § ao encontro do porqueiro,
que é guardador de teus porcos, § gentil por igual contigo, 405
e também ama o teu filho § mais a contida Penélope.
Vais encontrá-lo sentado § junto às porcas: elas pastam
perto da rocha do Corvo, § pela fonte de Aretusa,
comendo as animadoras § castanhas, e a água escura
bebendo, coisas que criam § banha abundante nos suínos. 410
Fica lá, sentado ao lado, § e pergunta sobre tudo,
enquanto eu mesma devo ir § pra Esparta de belas moças,
para convocar Telêmaco, § teu caro filho, Odisseu,
ele que com Menelau § na larga Lacedemônia
foi ter, atrás da tua glória, § se ainda existente algures”. 415
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Mas por que não lhe falaste, § ciente de tudo no espírito?
Foi para que ele também § vagando sofresse dores
no mar infértil, enquanto outros § devoram o seu sustento?”
E respondeu-lhe em seguida § deusa Atena claros-olhos: 420
“Que aquele não cause muita § preocupação em teu ânimo:
eu mesma estava o guiando, § para alcançar brava glória
ao ir pra lá. E nenhuma § agrura tem, mas tranquilo
está na casa do Atrida, § e indizíveis bens ao lado.
É fato que jovens armam § tocaia com negra nau, 425
desejando o matar antes § de chegar à terra pátria;
mas não creio – a terra antes § vai cobrir ainda alguns
dentre os varões pretendentes, § que devoram teu sustento”.
Assim falou, e então nele § tocou com a vara Atena.
E já ressecou a bela § carne dos flexíveis membros, 430
destruiu o loiro cabelo § da cabeça, em volta pôs
dos membros todos a pele § de um ancião bem idoso
e embaciou depois os dois § olhos antes tão bonitos.

478
E em volta dele, trocando-o, § jogou vil andrajo e túnica,
esfarrapados, imundos, § manchados por vil fumaça. 435
E em volta o vestiu com grande § pele de cervo ligeiro,
sem pelo, e lhe deu um cetro § mais uma ultrajante bolsa,
cerradamente rasgada, § cuja alça era uma corda.
Depois de assim planejarem, § se afastaram, e ela então
pra Lacedemônia, atrás § do filho de Odisseu, foi. 440

479
cAntO 14.
conversa de
Odisseu com eumeu

Descrição da cabana de Eumeu e chegada de Odisseu (1-36). O porqueiro


serve uma refeição ao estrangeiro, queixa-se dos pretendentes e fala com saudade
do rei ausente (37-110). O mendigo deseja saber quem é o senhor do porqueiro,
para ver se pode dar alguma informação, mas o servo diz não acreditar mais na
volta de Odisseu nem nos relatos sobre seu paradeiro (111-147). O hóspede afirma,
sob juramento, que Odisseu está voltando, mas Eumeu reage com incredulidade
e pede que o mendigo conte sua história (148-190). O velho diz ser de Creta e ter
lutado em Troia; conta dos sete anos passados no Egito, da estadia de um ano na
Fenícia e da chegada à terra dos tesprotos, onde ouviu que Odisseu ainda estava
vivo (191-359). Eumeu reage de novo com incredulidade e o hóspede reafirma sua
confiança (360-409). Os outros porqueiros retornam do campo e Eumeu prepara
uma refeição para o hóspede, que louva sua hospitalidade (410-456). Odisseu in-
venta um relato para testar o porqueiro e ver se obtém uma capa contra o frio (457-
506). Eumeu reconhece o propósito da fábula, dá uma capa ao mendigo e sai para
se deitar junto aos porcos (507-533).

Já ele do porto foi § áspero caminho acima,


por região frondosa e alta, § onde lhe indicara Atena
divino porqueiro, o mais § aflito com o sustento
seu dos serviçais comprados § pelo divino Odisseu.
Foi encontrá-lo sentado § na entrada, lá onde o pátio 5
elevado fora feito, § local visível em volta,
belo e grande, aberto em volta, § o qual o próprio porqueiro
tinha feito para os porcos § do senhor já ido há muito,
às escondidas do velho § Laertes e da senhora,
com as pedras arrastadas, § arrematando com sarça. 10
Por fora, puxou estacas § sem pausa, de lá pra cá,
cerradas e em série, o preto § rachando em torno ao carvalho.
Por dentro do pátio foi § fazendo doze chiqueiros
bem próximos uns dos outros, § camas pra porcos: em cada,
cinquenta porcos ficavam § confinados pelo chão, 15

480
as fêmeas reprodutoras; § os machos dormiam fora,
já cada vez mais escassos, § dizimados, devorados
pelos pretendentes quase- § deuses, aos quais o porqueiro
lançava sempre o melhor § de todos os engordados;
e eles agora chegavam § a trezentos e sessenta. 20
Ao lado cães semelhantes § a feras sempre dormiam,
os quatro que tinha criado § o porqueiro, líder de homens.
Ele próprio sob os pés § as sandálias ajustava,
cortando pele de boi § de linda cor. Os demais,
com porcos aglomerados, § foram um pra cada lado 25
– três deles: pois quanto ao quarto § despachara para a pólis
forçado, levando um porco § pra arrogantes pretendentes,
pra que imolando-o com carnes § satisfizessem seu ânimo.
De repente os cães, rosnando, § avistaram Odisseu;
pra cima dele correram § latindo, mas Odisseu 30
se sentou com esperteza, § e o cetro caiu da mão;
e teria em seu estábulo § sofrido ultrajante dor.
Mas o porqueiro, depressa, § com ágeis pés foi atrás,
passando pelo portão, § e o couro caiu da mão.
E chamando os cães os fez § passar um pra cada lado 35
(com as pedradas cerradas) § e falou para o senhor:
“Velho, sim, por pouco os cães § não te machucaram todo,
de repente; e sobre mim § censuras despejarias.
Mas os deuses já me deram § outras dores e pesares:
pelo quase-deus senhor § me lamentando e sofrendo 40
sento, e vou criando porcos § engordados para outros
comerem, enquanto aquele, § querendo talvez comida,
vaga por povo e por pólis § de homens de língua estrangeira,
se é que ele ainda está vivo § e contempla a luz do Sol.
Mas vem comigo à cabana, § velho, para que tu próprio, 45
saciando-te de pão § e de vinho no teu ânimo,
digas de onde vens e quantas § aflições tu suportaste”.
Assim falou e à cabana § foi o divino porqueiro,
e o fez entrar e sentar, § dispôs gravetos espessos
e estendeu por cima pele § de cabra agreste e peluda 50

481
– sua cama –, grande e espessa. § E se alegrou Odisseu
porque assim o recebia, § e nomeando-o lhe disse:
“Que Zeus, estrangeiro, e os outros § deuses imortais te deem
o que mais queres, pois pro- § penso tu me recebeste”.
Como resposta disseste § tu então, porqueiro Eumeu: 55
“Estrangeiro, não é regra § – nem vindo alguém pior que tu –
desonrar um estrangeiro, § pois todos provêm de Zeus,
estrangeiros e mendigos. § Mas dádiva parca, e cara,
vem a ser a nossa: esse é § o normal para os escravos,
atemorizados sempre § quando governam senhores 60
jovens: pois, sim, eis que os deuses § o retorno dele ataram,
que teria muito atento § me amado e me dado posses,
uma casa, um lote e ainda § multicortejada esposa,
as que um senhor de bom ânimo § confere ao seu serviçal
que por ele muito pena, § cuja obra um deus aumenta, 65
tal como esta obra minha § aumenta, à qual me dedico.
Muito me teria dado, § tendo envelhecido aqui.
Mas morreu; devia ter § morrido a tribo de Helena,
de joelhos, depois de os joelhos § afrouxar de muitos homens!
Pois aquele foi também, § pela honra de Agamênon, 70
a Ílion de belos potros, § pra lutar contra os troianos”.
Assim falou e depressa § cingindo com cinto a túnica
foi aos chiqueiros, onde eram § confinados os leitões.
De lá pegando, já trouxe § dois e a ambos imolou,
e os tostou e fatiou, § e perfurou com espetos. 75
Assadas as carnes todas, § trouxe e as pôs para Odisseu,
quentes, nos próprios espetos. § Salpicou branca cevada
e numa gamela então § misturou vinho melífico.
E ele próprio se sentou § à frente e incitando disse:
“Agora come, estrangeiro, § a carne que há para escravos, 80
de leitões; a de engordados § os pretendentes devoram,
não tendo no espírito ob- § servância nem compaixão.
Mas os venturosos deuses § não gostam de atos cruéis:
antes honram a justiça § e atos de homens bem-fadados.
Mesmo os que são hostis, des- § ajustados, e que em terra 85

482
estrangeira põem os pés § (Zeus lhes concede um butim,
e enchendo então suas naus § vão de volta para casa),
mesmo neles bate forte, § dentro, o medo da observância.
Estes aqui sabem sim § de algo, ouviram voz de um deus
(o odioso fim daquele), § pois não querem com justiça 90
cortejar nem retornar § às suas coisas, mas tranquilos
destroçam, hiperviolentos, § as riquezas, sem poupá-las.
Pois quantos são esses dias § e noites vindos de Zeus,
jamais sacrificam uma § vítima, tampouco duas,
e acabam, hiperviolentos, § com o vinho, dissipando-o! 95
Sua vida era indizível: § esse tanto ninguém tinha
em meio aos varões heróis, § nem no negro continente
nem dentro da própria Ítaca; § nem vinte homens juntos tinham
esse tanto de fortuna! § Eu mesmo pra ti relato:
manadas no continente § são doze! E tantas de ovelhas 100
e tantas varas de porcos § e extensos fatos de cabras
estrangeiros pastoreiam § junto com pastores dele.
Já aqui, todos os onze § extensos fatos de cabras
pastam nas extremidades, § e homens bravos os vigiam.
Cada um desses lhes leva § sempre um animal por dia, 105
dentre os bodes engordados § o que se mostra o melhor.
E, quanto a mim, estes porcos § aqui eu guardo e protejo
e pra eles, discernindo § bem, eu despacho o melhor”.
Assim disse, e muito atento § ele ingeriu carne e vinho,
voraz, quieto, semeando § males para os pretendentes. 110
Depois então de cear § e fartar de comida o ânimo,
para ele encheu e deu § a caneca em que bebia,
repleta de vinho, e o outro, § recebendo-a, se alegrou;
e exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
“Caro, afinal quem é esse § que te comprou com seus bens, 115
assim com tanta fortuna § e poder, conforme contas?
Dizes que ele pereceu § pela honra de Agamênon.
Me fala, pra ver se re- § conheço alguém desse tipo.
Zeus decerto sabe, e os outros § deuses imortais também,
se posso, de o ver, dar dele § informe: eu muito vaguei”. 120

483
E respondeu-lhe em seguida § o porqueiro, líder de homens:
“Velho, após vagar, ninguém § que viesse dele dar
informe persuadiria § a mulher e o caro filho.
Por nada, varões que vagam § – necessitados de amparo –
mentem e não querem nem § vagas verdades dizer. 125
Todo aquele que, vagando, § chega ao povoado de Ítaca,
indo até minha senhora § fala só enganações.
Ela amável o recebe § e questiona cada coisa,
e enquanto lamenta lágrimas § lhe vão pulando das pálpebras,
o que é regra entre as mulheres, § se o lugar do esposo é vago. 130
Tu também, velho, depressa § fabricarias um épico
se alguém, como vestimenta, § te desse uma capa e túnica...
Porém dele os cães e as aves § ligeiras já devem ter
rasgado a carne dos ossos § e sua alma já se foi.
Ou peixes o devoraram § pelo mar e os ossos dele 135
jazem sobre a terra firme, § envoltos em muita areia.
Assim, por aí, morreu, § dando aflições aos amigos
todos no porvir e a mim § principalmente: pois outro
senhor assim gentil não § vou achar aonde eu vá,
nem mesmo se eu para a casa § de meu pai e minha mãe 140
for de novo, onde primeiro § nasci e eles me criaram.
Nem por eles já lamento § tanto, mesmo desejoso
de com meus olhos os ver § lá na minha terra pátria:
a saudade de Odisseu, § que se foi, é que me toma!
O nome dele, estrangeiro, § mesmo ausente me envergonho 145
de dizer: muito me amava § e comigo se afligia.
Antes o chamo de ‘irmão § mais velho’, mesmo distante”.
E por sua vez lhe disse § multitenaz Odisseu:
“Caro, por negares tudo § inteiramente e dizeres
que aquele não mais virá, § tens o ânimo sempre incrédulo. 150
Mas eu não direi de um jeito § qualquer, mas com juramento,
que Odisseu está voltando. § Quero um ‘prêmio por informe’
assim que aquele, chegando, § atingir a sua casa:
veste-me com capa e túnica, § essas belas vestimentas.
Mas nada posso aceitar, § por mais necessitado, antes! 155

484
Pois a mim é odioso § como os portões do Hades esse
que, sucumbindo à penúria, § fala só enganações.
Testemunhem Zeus, primeiro § dos deuses, a mesa amiga
e a lareira do ilibado § Odisseu, à qual eu chego:
com certeza tudo está § se cumprindo como digo. 160
Nessa mesma lua nova § Odisseu virá aqui.
Entre aquela que é minguante § e aqueloutra que é crescente
para casa vai voltar, § e fazer pagar quem dele
aqui desonra a mulher § e também o filho ilustre”.
Como resposta disseste § tu então, porqueiro Eumeu: 165
“Velho, nem vou te pagar § esse ‘prêmio por informe’
nem Odisseu virá mais § para casa. Mas tranquilo
bebe e vamos nos lembrar § de outras coisas; só não dessas
me lembres, pois em mim, sim, § o ânimo dentro do peito
sofre sempre que alguém lembra § o dedicado senhor. 170
Mas deixemos já de lado § o juramento, e Odisseu,
que venha, conforme eu mesmo § desejo e também Penélope,
e ainda o velho Laertes § e Telêmaco deiforme.
Pelo filho que Odisseu § teve é intenso meu lamento,
Telêmaco: a ele os deuses, § depois de criarem qual broto, 175
e eu dizer que em meio aos homens § não seria nada pior
do que seu querido pai, § em porte e aspecto admirável,
a ele um dos imortais § perturbou-lhe dentro o senso,
ou um dos humanos: foi § atrás de oitiva do pai
na sacra Pilos. E a ele § esses nobres pretendentes 180
atocaiam no retorno, § para que desapareça
de Ítaca, anônima, a tribo § dele, o quase-deus Arcísio.
Mas deixemos já de lado § aquele, quer seja pego,
quer escape e para ele § estenda as mãos o Cronida.
Vamos, velho, tu, agora § tuas aflições evoca, 185
e me conta com verdade § tal coisa pra que eu bem saiba:
dos homens quem és, e de onde? § Onde estão teus pais e pólis?
Sobre que tipo de nau § chegaste? E como esses nautas
te trouxeram até Ítaca? § Quem eles proclamam ser?
Pois penso que certamente § não vieste a pé pra cá”. 190

485
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Pois eu te relatarei § isso sem nada torcer.
Ah, se houvesse por um tempo § pra nós dois não só comida,
mas também doce vinho (ambos § estando nesta cabana),
pra banquetearmos com calma, § e outros seguissem pra lida. 195
Muito facilmente então, § por um ano inteiro até,
sem findar eu falaria § as minhas aflições do ânimo,
todas que sim, em conjunto, § penei por gosto dos deuses.
Eis que lá da vasta Creta, § por raça, proclamo ser,
o filho de um abastado § varão. Também muitos outros 200
dentro do palácio foram § criados e gerados, filhos
legítimos de uma esposa, § mas mãe comprada me teve,
uma amante; igual, porém, § aos tais o Hilacida Cástor
me honrava, esse de quem eu, § por raça, proclamo vir,
que entre os cretenses qual deus § era honrado pelo povo 205
por sua fortuna, riqueza § e os assinalados filhos.
Mas as sortes sim da morte, § levando-o, o fizeram ir
pra morada do Hades. E eles § dividiram sua vida,
os seus magnânimos filhos, § e sobre os lotes lançaram-se.
Mas a mim me deram muito § pouco, e um lar me conferiram. 210
E tomei pra mim mulher § de homens multiloteados,
por causa do meu valor, § já que eu não era um inútil
e nem um refuga-guerra. § Tudo agora já se foi.
Mas penso que tu, ainda § assim, olhando o restolho,
reconheces... É que imensa § miséria me toma, insana. 215
Sim, coragem com certeza § Ares e Atena me deram,
e ser rompe-tropa: sempre § que escolhia pra emboscada
ótimos homens, semeando § males para os adversários,
nunca meu sobranceiro ânimo § tinha olhos para a morte,
mas saltando em primeiríssimo § com minha lança pegava 220
aquele dos adversários § que, nos pés, pra mim perdia.
Tal na guerra eu era. A lida, § no entanto, não me era cara
e nem o aumento da casa, § que cria filhos brilhantes.
Ao contrário: pra mim sempre § naus com remos eram caras,
e guerras e bem-polidas § lanças, e flechas também, 225

486
coisas odiosas, que são § regelantes para os outros;
porém caro me era isso, § que um deus pôs decerto em mim.
Cada tipo de homem tem § prazer num tipo de lida.
Antes de pisar em Troia § esses filhos dos acaios,
nove vezes liderei § varões e ligeiras naus 230
contra os homens de outras terras, § e muitíssimo me vinha.
Disso, escolhia o ajustado § ao furor, e depois muito
por sorteio obtinha; logo § a casa aumentava, e então
terrível e respeitável § me tornei entre os cretenses.
Mas quando por fim Zeus ampli- § vidente indicou a senda 235
detestável, que os joelhos § afrouxou de muitos homens,
então a mim ordenavam, § e ao célebre Idomeneu,
sermos líderes com naus § contra Ílion. Nenhum meio
havia de enjeitar: era § dura a falação do povo.
Aí nove anos lutamos § nós, os filhos dos acaios, 240
e ao décimo, após pilharmos § pólis de Príamo, fomos
pra casa nas naus, e um deus § já dispersou os acaios.
Pra mim, mísero, pensou § males o astucioso Zeus:
permaneci, por um mês § só, desfrutando da prole
e da legítima esposa § e posses. Depois então 245
meu ânimo me ordenava § navegar rumo ao Egito,
aprontando naus com meus § quase-deuses companheiros.
Aprontadas nove naus, § rápido reuniu-se a tropa.
Por nove dias então § meus exímios companheiros
se banquetearam: eu mesmo § ofereci muitas vítimas, 250
que aos deuses sacrificassem § e dessem banquete a si.
E no sétimo, embarcando, § pra longe da vasta Creta
navegamos com o belo § vento Bóreas bem lá no alto,
fácil, como se num fluxo. § E assim nem uma das minhas
naus sofreu uma avaria, § mas sem dano e sem doença 255
nos sentamos, e as guiavam § o vento mais os pilotos.
No quinto dia atingimos § o bem-refluente Egito,
e no rio Egito as minhas § naus recurvas ancorei.
Aí eu próprio mandei § meus exímios companheiros
ali mesmo junto às naus § ficarem e as naus guardarem, 260

487
e ordenei que olheiros fossem § à procura de mirantes.
Mas, à soberba cedendo, § levados por seu furor,
de imediato os belos campos § dos egípcios à larga eles
devastaram, e às mulheres § levaram e aos seus filhinhos,
matando os demais. Depressa § a grita chegou à pólis, 265
e esses, escutando os gritos, § com a Aurora que raiava
vieram: encheu-se a planície § toda de peões e carros
e o relâmpago do bronze. § E o desfruta-raio Zeus
lançou em meus companheiros § fuga vil; nenhum ousou
ficar, anteposto: em toda § parte o mal estava em torno. 270
Aí mataram a muitos § de nós com o bronze afiado
e a outros levaram vivos, § pra trabalharem à força.
Já dentro de mim o próprio § Zeus um pensamento assim
pôs (devia ter morrido § e seguido o meu destino
lá no Egito, pois ainda § me aguardava mais desgraça!): 275
de imediato retirei § da cabeça o elmo bem-feito,
dos ombros o escudo, e a lança § joguei pra longe da mão,
e já fui eu mesmo até § defronte o carro do rei;
peguei e beijei seus joelhos, § e apiedado protegeu-me.
Sentado ao carro, pra casa § levou-me a derramar lágrimas; 280
sim, contra mim eram muitos § que se lançavam com lanças,
desejando me matar, § coléricos em excesso,
mas ele os afastava, ob- § servando a fúria de Zeus,
o hospitaleiro, que muito § se indigna com os malfeitos.
Aí por sete anos fui § ficando, e reuni muitos 285
bens entre os varões egípcios: § todos faziam doações.
Mas quando então, volteando, § veio pra mim o oitavo ano,
veio um varão da Fenícia, § sabedor de enganações,
abocanhador, que muito § mal praticou entre os homens;
com persuasivo espírito § me levou, até chegarmos 290
à Fenícia, onde ficavam § sua casa e suas posses.
Aí fiquei, junto a ele, § até um ano completo.
Mas quando então transcorreram § tanto os meses quanto os dias,
e com o giro de um ano § as estações retornaram,
ele me pôs em singrante § nau em direção à Líbia, 295

488
com falsas resoluções § – de levar pra ele a carga,
mas lá me vender e preço § indizível alcançar.
Segui com ele na nau § (suspeitando já) à força.
E ela correu com o belo § vento Bóreas bem lá no alto,
no aberto, pra além de Creta. § Mas Zeus tramou destruição: 300
quando deixamos pra trás § Creta, e já nenhuma outra
das terras estava à vista, § mas somente céu e mar,
o Cronida então armou § uma enegrecida nuvem
por sobre a côncava nau, § e enevoou-se embaixo o mar.
E junto Zeus trovejou § e lançou raio na nau, 305
que foi toda sacudida, § pega por raio de Zeus,
cheia de um cheiro de enxofre; § e da nau tombaram todos.
E eles, como os cormorões, § em torno da negra nau
foram indo com as ondas, § e um deus negou-lhes a volta.
Já o próprio Zeus pra mim, § que no ânimo tinha dores, 310
o incomensurável mastro § dessa nau de proa negra
me pôs nas mãos, pra mais uma § vez eu fugir da desgraça.
Abraçado a ele fui § indo com ventos funestos,
fui indo por nove dias; § na décima noite negra,
grande onda a rolar me trouxe § para a terra dos tesprotos. 315
Aí o rei dos tesprotos § então me recebeu, Fídon,
o herói, sem pedir resgate. § Pois seu caro filho, vindo,
me levou – a mim, domado § pela friagem e o desgaste –
pra morada de seu pai, § pela mão me levantando;
e em volta com capa e túnica, § as vestimentas, vestiu-me. 320
Aí de Odisseu obtive § informe: aquele dizia
tê-lo acolhido como hóspede § ao ir para a terra pátria,
e me mostrou a riqueza § que reunira Odisseu,
bronze e também ouro e ainda § o multiforjado ferro;
poderia até a décima § geração alimentar, 325
tamanho era o seu tesouro § lá no palácio do rei.
Disse que ele tinha ido § a Dodona para ouvir,
do carvalho de alta copa, § divino, o plano de Zeus
– de que modo voltaria § para a rica terra de Ítaca,
já por tanto tempo ausente: § se às claras ou se escondido. 330

489
E jurou para mim mesmo, § libando dentro da casa,
já estar lançada a nau § e a postos os companheiros,
esses que o transportariam § para a cara terra pátria.
Mas ele me despachou § antes: calhou de uma nau
dos tesprotos estar indo § pra multitrigo Dulíquio. 335
Aí mandou que me trans- § portassem, ao rei Acasto,
com atenção. Mas, no espírito, § plano vil lhes agradava
contra mim, pra que eu tivesse § toda mísera desgraça.
Depois de se afastar muito § da terra a singrante nau,
logo tramaram pra mim § o dia da servidão. 340
Já tiraram capa e túnica, § as vestimentas, de mim,
e em volta de mim, trocando-me, § foram vil andrajo e túnica,
esfarrapados, que tu § próprio com teus olhos vês.
E os campos da bem-visível § Ítaca à tarde atingiram.
Aí eles me amarraram § bem, na nau de belos bancos, 345
duramente, com cordame § torcido, e desembarcando
com pressa então pela praia § tomaram a sua ceia.
Quanto a mim, os próprios deuses § relaxaram-me a amarra,
fácil; e encobrindo então minha § cabeça com este andrajo
desci a polida prancha, § e aproximando do mar 350
o meu peito eu em seguida § com os dois braços remei,
nadando, e estar fora e livre § deles não demorou nada.
E aí subindo – onde a moita § com galhos multifloridos –,
fiquei agachado. Aqueles, § com grandes lamentos, iam
de lá pra cá, mas por não § lhes parecer proveitoso 355
seguir adiante na busca § partiram então de volta
pra côncava nau. Os próprios § deuses é que me esconderam,
fácil, e foram me levando § até chegar ao estábulo
de homem com ciência. Pois minha § sina é estar vivo ainda”.
Como resposta disseste § tu então, porqueiro Eumeu: 360
“Ah, estrangeiro infeliz! § Moveste sim o meu ânimo,
dizendo em detalhe o quanto § sofreste e o quanto vagaste.
Mas o resto, não com ordem, § penso. Tu não me convences
ao falar sobre Odisseu. § Por que deves, sendo assim,
mentir à toa? A respeito § da volta do meu senhor 365

490
sou eu que bem sei: que aos deuses § todos tornou-se odioso
de todo, pois não o sub- § jugaram entre os troianos,
ou entre os braços dos seus, § depois que tramou a guerra.
Para ele então teriam § feito a tumba os panacaios
e, ao filho seu, grande glória § no porvir também traria. 370
Porém agora as Harpias § o arrebataram inglório.
E eu aqui, nada versátil, § com os porcos: para a pólis
não vou, a não ser se acaso § a circunspecta Penélope
me ordena ir, quando vem § informe de algum lugar;
e todos, sentando ao lado, § perguntam cada detalhe, 375
seja aqueles que se afligem § pelo senhor ido há muito,
seja os que alegres devoram, § impunes, o seu sustento.
A mim, porém, não me é caro § perguntar e interrogar,
desde que o varão etólio § me iludiu com uma história:
esse que, matando alguém, § vagando por muita terra 380
veio até minha morada; § e fui eu quem o ajudou.
Disse que em meio aos cretenses § o viu, junto a Idomeneu,
consertando as naus que foram § destroçadas pelos ventos,
e disse que voltaria § no verão ou na colheita,
trazendo muitas riquezas, § junto com os companheiros. 385
Tu, velho multilutuoso, § porque um nume aqui te trouxe,
com mentiras nem te engraces § junto a mim nem me enfeitices.
Eu não vou te respeitar § e acolher por causa disso,
mas antes por temer Zeus, § o hospitaleiro, e ter pena”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu: 390
“Sim, tu tens dentro do peito § ânimo bastante incrédulo,
de um jeito que até jurando § não te atraio nem convenço.
Mas vamos, façamos já § um trato. Depois então
sejam pra nós testemunhas § os deuses que têm o Olimpo:
se teu senhor retornar § aqui pra esta morada, 395
veste-me com capa e túnica, § vestimentas, e transporta-me
em direção a Dulíquio, § local que me é caro ao ânimo;
se, no entanto, o teu senhor § não vier tal como afirmo,
apressa os servos e do alto § de grande rocha me joga,
pra também outro mendigo § evitar trapacear”. 400

491
Como resposta exclamou § então divino porqueiro:
“Estrangeiro, assim, de fato, § bela glória mais sucesso
me viriam entre os homens, § de imediato e na sequência,
se eu, que te trouxe à cabana § e dei as dádivas de hóspede,
fosse agora te matar § e roubar-te a cara vida! 405
Sim, propenso então a Zeus § Cronida eu suplicaria!
Agora é hora da ceia. § Que os companheiros adentrem
logo, pra preparar ceia § saborosa na cabana”.
Tais coisas eles assim § proferiam entre si.
E aproximaram-se os porcos § mais os porqueiros varões. 410
As fêmeas, as encerraram § para dormir onde de hábito,
e houve estrépito indizível § das porcas postas no pátio.
E ele então aos companheiros § chamou, divino porqueiro:
“Trazei o melhor dos suínos, § pra que imole ao estrangeiro
de longínqua terra; e ganho § haja ainda a nós, que agrura 415
temos há muito, sofrendo § pelos suínos de alvas presas;
e são outros que devoram § impunes o nosso esforço”.
Assim exclamou e a lenha § rachou com bronze impiedoso,
e os outros trouxeram porco § muito gordo, de cinco anos.
Sobre a lareira o puseram § então, e o porqueiro não 420
se esqueceu dos imortais, § pois detinha bom juízo.
Como primícias, ao fogo § jogou cerdas da cabeça
do suíno de alvas presas, § e clamou aos deuses todos
que pra sua casa o multi- § pensante Odisseu voltasse.
E o golpeou com a lenha § do carvalho, antes deixada, 425
e a vida o deixou. Os outros § degolaram e esfolaram
e depressa o esquartejaram. § A carne crua o porqueiro
(com primícia em todo membro) § pôs por cima da gordura,
e ao fogo a jogou, com grãos § de cevada polvilhando.
Então fatiaram o resto § e furaram com espetos, 430
e assaram com atenção, § até que tiraram tudo
e foram jogando em pratos, § de monte. Em pé o porqueiro
ficou pra distribuir, § pois sabia bem do certo.
E partindo dividiu § então o total em sete:
uma parte para as Ninfas § e a Hermes, filho de Maia, 435

492
pôs, clamando, e distribuiu § as demais a cada um.
E premiou Odisseu § com continuados lombos
do suíno de alvas presas, § assinalando o senhor.
E exclamando então lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Eumeu, que tu sejas caro § a Zeus pai do mesmo modo 440
que és a mim, a quem premias § – sendo assim – com coisas boas”.
Como resposta disseste § tu então, porqueiro Eumeu:
“Come, desafortunado § estrangeiro, e goza disso
que aí está: o deus ora § dará, ora parará,
o que quer que queira em seu § ânimo, pois tudo pode”. 445
Disse e queimou as primícias § aos deuses sempre existentes,
e libando o ardente vinho § o depositou nas mãos
de Odisseu arrasa-pólis, § e sentou com sua parte.
O pão repartiu Mesáulio, § a quem o próprio porqueiro
tinha adquirido sozinho § (seu senhor já ido há muito) 450
às escondidas do velho § Laertes e da senhora:
junto aos trácios o comprara § com as suas próprias posses.
E às iguarias, já prontas § à frente, lançaram mãos.
Depois de expulso o desejo § por comida e por bebida,
o pão retirou Mesáulio § e eles foram se apressando 455
rumo ao descanso, saciados § de pão e também de carnes.
Sobreveio noite má, § negrilúnia, e Zeus choveu
a noite toda, o sempre úmido § Zéfiro soprando, grande.
E Odisseu entre eles disse § pra pôr à prova o porqueiro
(se iria tirar a capa § pra lhe dar, ou incitar 460
um companheiro, uma vez § que dele muito cuidava):
“Escutai, Eumeu e vós § todos, demais companheiros:
com clamor direi um épico, § pois é o vinho que ordena,
louco, o qual conduz ao canto § mesmo alguém multipensante,
e também ao riso mole, § e também induz à dança, 465
e um épico produz; sim, § melhor se fosse não-dito.
Mas já que logo de início § piei, não ocultarei.
Ah, se eu fosse moço assim § e em mim fosse firme a força,
como quando contra Troia § nós armamos emboscada!
Lideravam Odisseu § mais o Atrida Menelau, 470

493
e eu com eles em terceiro, § pois os próprios ordenaram.
Mas quando então junto à pólis § e ao muro íngreme chegamos,
nós em torno da cidade § – por umas cerradas moitas,
em meio a juncos e um charco –, § encolhidos sob as armas
ficamos. E sobreveio § noite má, baixando o Bóreas, 475
gelada. Depois a neve § caiu do alto, qual geada,
fria, e em volta dos escudos § surgiram cristais de gelo.
Aí todos os demais, § tendo suas capas e túnicas,
dormiram tranquilos, o ombro § recoberto pelo escudo.
Já eu deixara, ao ir, minha § capa com os companheiros, 480
na minha insensatez: nem § pensei que ia passar frio,
mas segui com meu escudo § só, e o cinturão brilhante.
Mas já na terceira parte § da noite, avançando os astros,
eu então para Odisseu, § que estava perto, falei,
cutucando com o meu § cotovelo, e pronto ouviu: 485
‘Laercida divogênito, § multiengenhoso Odisseu,
não mais ficarei, é certo, § entre os vivos: a friagem
me domina, pois não tenho § capa. Um nume me iludiu
a ter só túnica, e agora § não há mais escapatória’.
Assim falei, e ele então § teve consigo esta ideia 490
(tal era o jeito daquele pra planejar e lutar)
e, sussurrando, com voz § pouca, assim falou pra mim:
‘Calado agora, pra não § te ouvir nenhum outro acaio’.
Falou e, erguendo a cabeça § cotovelo acima, disse:
‘Ouvi, amigos: o Sonho § divino à noite me veio. 495
Viemos sim pra bem longe § das naus. Mas que surja alguém
que com o Atrida Agamênon, § o pastor de tropas, fale,
para ver se manda vir, § das naus, número maior’.
Assim disse, e já se ergueu § Toas, o filho de Andrêmon,
ligeiro, e deixou pra trás § sua avermelhada capa 500
e foi correndo às naus, e eu § então, saudando, fiquei
com a roupa dele, e a áureo- § trono Aurora apareceu.
Fosse eu moço assim agora, § e em mim fosse firme a força,
um dos porqueiros iria § dar-me uma capa no estábulo,
por dupla causa: amizade § e respeito a homem bravo. 505

494
Mas agora me desonram § por ter vestes vis no corpo”.
Como resposta disseste § tu então, porqueiro Eumeu:
“Velho, mas é ilibada § a fábula que contaste!
Não disseste, não, um épico § sem proporção e proveito!
Por isso sem roupa não § ficarás, nem outra coisa 510
que convém ao maltratado § suplicante que se encontra
– agora; porém na Aurora § sacudirás teus andrajos,
pois muitas capas não há, § nem há túnicas trocáveis
para vestir aqui, só § uma para cada homem.
Mas depois então que o caro § filho de Odisseu chegar, 515
ele próprio capa e túnica, § vestimentas, te dará
e transportará pra onde § te impelem coração e ânimo”.
Assim disse e deu um salto, § e pôs a cama pra ele
perto do fogo, e jogou § peles de cabras e ovelhas.
Aí Odisseu deitou. § E sobre ele jogou capa 520
grande e cerrada, essa troca § de roupa que separava
pra vestir sempre que houvesse § assombrosa tempestade.
Assim Odisseu aí § dormiu, e os outros ao lado
dormiram, varões ainda § jovens. Mas não ao porqueiro
agradava esse descanso § ali, distante dos porcos, 525
e se aprontou pra sair. § E se alegrou Odisseu
que cuidasse do sustento § seu enquanto estava longe.
Primeiro jogou nos ombros § robustos espada afiada
e em volta vestiu a capa § bem cerrada, espanta-vento;
e de grande e bem-criada § cabra o pelego depois 530
pegou, e afiada lança, § contra cães e contra homens.
E foi então se deitar § onde os suínos de alvas presas
dormiam, sob uma côncava § rocha, ao abrigo do Bóreas.

495
cAntO 15.
chegada de telêmaco
à cabana de eumeu

Em Esparta, Atena aparece para Telêmaco e o exorta a voltar para Ítaca,


alertando-o para a tocaia dos pretendentes e orientando-o a ir à cabana de Eu-
meu (1-55). O jovem recebe os presentes de hospitalidade de Menelau e Helena;
um presságio é interpretado favoravelmente por Helena (56-181). Telêmaco e Pi-
sístrato partem e se separam em Pilos (182-221). O adivinho Teoclímeno, fugitivo
de Argos, é acolhido na nau de Telêmaco (222-300). Ao anoitecer do segundo dia,
ainda na cabana de Eumeu, Odisseu interroga-o sobre a possibilidade de ir men-
digar no palácio e sobre a situação dos pais do rei de Ítaca (301-379). A pedido
do mendigo, Eumeu conta sua história: apesar de nascido em família nobre, fora
raptado e depois vendido em Ítaca (380-494). Telêmaco chega a Ítaca; Teoclímeno
interpreta favoravelmente um presságio e Telêmaco vai sozinho para a cabana de
Eumeu (495-557).

cAntO 16.
Reconhecimento de
Odisseu por telêmaco

Ao raiar da aurora, Telêmaco chega à cabana de Eumeu e conversa com


o estrangeiro; o jovem envia Eumeu à cidade para comunicar a Penélope o feliz
regresso do filho (1-155). Odisseu, por intervenção de Atena, recupera sua forma
original e revela sua identidade ao filho (155-219). Os dois deliberam acerca da
morte dos pretendentes; Telêmaco indica quantos são os inimigos e dissuade o pai
de se apresentar em sua verdadeira figura (220-321). Penélope recebe as novas
sobre o filho; a notícia da volta de Telêmaco faz os pretendentes se reunirem em as-
sembleia e pensarem em um novo plano para matar o jovem (322-408). Penélope
aparece para os pretendentes e censura Antínoo por instigar a conspiração contra
o filho (409-451). Eumeu volta à sua cabana; Odisseu retoma o aspecto de velho
mendigo (452-481).

496
cAntO 17.
chegada de
Odisseu ao palácio

Na manhã seguinte, Telêmaco vai ao palácio e pede a Eumeu para conduza


o mendigo à cidade (1-27). Ao entrar em casa, o filho é saudado pela mãe (28-60).
Telêmaco sai ao encontro de Teoclímeno e o traz ao palácio (61-98). Penélope pede
ao filho que fale da generosa hospitalidade dispensada por Menelau e Helena (99-
150). Teoclímeno diz a Penélope que Odisseu já está na pátria e prepara a vingan-
ça contra os pretendentes; estes irrompem na sala para se banquetear (151-182).
Odisseu e Eumeu encaminham-se ao palácio; o mendigo é maltratado pelo cabrei-
ro Melanteu (182-290). Odisseu chega ao palácio e é reconhecido pelo seu velho
cão Argo, que na sequência morre (291-327). A entrada do falso mendigo cria uma
disputa entre Antínoo e Eumeu, na qual intervém Telêmaco; Odisseu é ridiculariza-
do por Antínoo, que lhe atira um banco (328-491). Penélope acorre e toma a defesa
do estrangeiro; diz querer interrogá-lo, mas Odisseu adia a conversa para a noite
(492-590). Eumeu volta sozinho para o campo (591-606).

cAntO 18.
Pugilato de
Odisseu e Iro

Aparece no palácio outro mendigo, apelidado de Iro; movido pela inveja,


ele deseja expulsar Odisseu (1-33). Os convivas se divertem em fomentar a rixa;
trava-se uma cena de pugilato, na qual Iro leva a pior: Odisseu o arrasta por um pé
para fora do palácio (34-109). Odisseu prediz a Anfínomo, um dos pretendentes, o
regresso próximo do herói ausente, mas a advertência é inútil (110-157). Penélope
vem à sala, fala com Telêmaco e pede que todos respeitem o mendigo (158-243).
Conversa de Penélope e Eurímaco; ela consegue mais presentes dos pretendentes
(244-303). Odisseu é ultrajado pela serva Melanto, irmã de Melanteu, e por Eu-
rímaco, que lhe atira um banco, sem o acertar (304-404). Telêmaco e Anfínomo
acalmam os ânimos e os pretendentes se retiram para dormir (405-428).

497
cAntO 19.
conversa de
Odisseu e Penélope

Depois de os pretendentes deixarem o palácio, Odisseu manda que Telêma-


co esconda as armas (1-30). Atena guia pai e filho, empunhando uma lâmpada, e
Telêmaco vai se deitar (31-50). Melanto ataca novamente o mendigo e Penélope
repreende a escrava (51-95). Ela interroga o estrangeiro e relembra o estratagema
da mortalha (96-163). O mendigo conta sua história e afirma ter acolhido Odisseu
em Creta (164-202). Penélope se emociona e, desconfiada, pede que o velho recor-
de quais eram as vestes de Odisseu; o mendigo dá sinais certeiros e anuncia a volta
próxima do herói (203-307). Ela se mostra descrente e ordena a Euricleia que lave
os pés do hóspede, cuja semelhança com Odisseu é notada pelas duas (308-385).
A serva reconhece Odisseu pela cicatriz que tem na coxa e o episódio do ferimento
é recordado (386-466). Odisseu intima Euricleia a guardar silêncio (467-507). Pe-
nélope relata ao mendigo o sonho que teve, no qual seus gansos eram mortos por
uma águia, e o hóspede vê nele um sinal auspicioso (508-558). Ainda descrente, ela
afirma que vai propor aos pretendentes o desafio do arco, para que o vencedor a
tome como esposa; o mendigo aprova a ideia e eles vão se deitar (559-604).

Mas para trás no palácio § ficou divino Odisseu,


meditando com Atena § a morte dos pretendentes.
De pronto disse a Telêmaco § estas palavras aladas:
“Telêmaco, deves pôr § para dentro as armas de Ares,
todas elas! E com moles § palavras aos pretendentes 5
depois fala, quando, ao darem § falta, eles te questionarem:
‘Longe da fumaça as pus, § pois não mais se pareciam
com as que Odisseu outrora § deixou ao partir pra Troia:
estão ultrajadas, tanto § lhes chega o calor do fogo.
Além disso, algo mais grave § um nume me pôs no espírito: 10
que talvez, cheios de vinho, § erguendo a discórdia em vós
vos machuqueis uns aos outros, § e maculeis o banquete
e a corte. O ferro, por si § só, arrasta a isso um homem’.”
Assim disse, e ao caro pai § Telêmaco obedeceu.
E, após chamá-la, à nutriz § Euricleia ele falou: 15

498
“Mãezinha, vamos, me fecha § as mulheres no palácio,
até que eu ponha no quarto § os armamentos do pai,
belos, que a fumaça estraga, § sem cuidados, pela casa,
desde que meu pai se foi; § e eu era ainda criança.
Agora as quero pôr onde § não chegue o calor do fogo”. 20
E por sua vez lhe disse § cara nutriz Euricleia:
“Filho, tomara que tu § adotes sim pensamentos
de cuidado com a casa § e de proteção dos bens!
Mas vamos: qual, indo atrás, § vai portar luz para ti?
Não deixas vir fora as servas, § que iriam iluminar”. 25
E disse a ela de volta § o ponderado Telêmaco:
“Este estrangeiro! Não vou § aturar que, inútil, meus
mantimentos ele apanhe, § mesmo chegado de longe!”.
Assim exclamou; e sem § asa foi a fala dela,
que já do bem-habitado § palácio trancou as portas. 30
Saltaram então os dois, § Odisseu e o filho ilustre,
carregando para dentro § elmos, escudos com bossa
e também afiadas lanças. § À frente, vibrante Atena
levava lâmpada de ouro, § produzindo linda luz.
E Telêmaco exclamou § de pronto para seu pai: 35
“Pai, grande e espantoso é isso § que estou vendo com meus olhos!
Não é que agora as paredes § do palácio, os belos forros
e mais as vigas de abeto § e as colunas alteadas
brilham ao meu olhar, tal § como se por fogo aceso?
Sim, está dentro um dos deuses § que habitam o vasto céu!”. 40
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Fica calado, contém § tua mente e não perguntes:
na verdade, esse é o normal § dos deuses que têm o Olimpo.
Tu, agora, vai deitar, § e eu ficarei por aqui
para provocar ainda § as servas e tua mãe: 45
lamentando-se, vai tudo § questionar, em separado”.
Assim falou, e Telêmaco § foi através do palácio
pra descansar em seu quarto, § sob as tochas lampejantes,
lá onde sempre deitava § quando vinha o doce sono:
lá deitou também então, § e esperou divina Aurora. 50

499
Mas para trás no palácio § ficou divino Odisseu,
meditando com Atena § a morte dos pretendentes.
E do seu quarto saiu § a circunspecta Penélope,
parecendo-se com Ártemis § ou com a áurea Afrodite.
E puseram-lhe a poltrona § junto ao fogo (onde sentava), 55
espiralada com prata § e marfim, que outrora Icmálio,
o artesão, criara; embaixo § para os pés fizera um banco
pegado a ela, onde então § jogara grande tosão.
Lá sentou-se na sequência § a circunspecta Penélope.
E vieram do palácio § suas servas brancos-braços. 60
Elas foram recolhendo § muito pão, e ainda as mesas
mais as taças onde tinham § bebido homens ardorosos.
E jogando ao chão o fogo § dos braseiros, neles muitas
outras lenhas empilharam, § pra iluminar e aquecer.
E ralhou com Odisseu § Melanto a segunda vez: 65
“Estrangeiro, ainda vais § perturbar aqui de noite,
circulando pela casa, § e vais espiar as mulheres?
Sai porta afora, infeliz, § e te agrada do banquete!
Ou logo irás porta afora § atingido por tição”.
E olhando torto lhe disse § o multiastuto Odisseu: 70
“Por que em mim, infortunada, § montas assim com rancor?
Sim, porque estou sujo e agora § tenho vestes vis no corpo
e mendigo pelo povo? § A necessidade acossa.
São desse jeito os varões § mendigos e vagabundos.
Eu mesmo outrora entre os homens § habitava, afortunado, 75
rica morada, e por muitas § vezes dei a quem vagava,
quem quer que fosse e do que § viesse necessitado.
Eram milhares as servas, § e também as demais coisas,
essas pelas quais se vive § bem e se é chamado rico.
Mas Zeus Cronida as pilhou: § decerto era o que queria. 80
Por isso, não vás um dia § tu também, mulher, perder
todo o brilho com que agora § entre as servas te destacas:
vai que contigo a senhora, § rancorosa, se exaspere,
ou Odisseu venha – mesmo § a esperança ainda existe.
Mas se ele está assim, morto, § e não há mais seu retorno, 85

500
já tem contudo tal filho, § pela vontade de Apolo,
Telêmaco. Não lhe escapa § no palácio o atrevimento
de nenhuma das mulheres: § não é mais alguém pequeno”.
Assim disse, e o escutou § a circunspecta Penélope.
E ralhou com sua escrava, § e nomeando-a lhe disse: 90
“Não mesmo, ousada cadela § sem vergonha! Não me escapa
esse grande feito teu, § que expiarás com a vida!
Pois sabias bem de tudo, § já que ouviste de mim mesma
que eu queria em meu palácio § questionar esse estrangeiro
acerca do meu esposo, § já que tenho densa dor”. 95
Disse, e a Eurínome então, § a intendente, assim falou:
“Eurínome, traz um banco § e um tosão por cima dele,
pra que se sentando diga § um épico e escute um dito
meu agora esse estrangeiro. § Quero sim o questionar”.
Assim disse, e com presteza § ela trouxe e colocou 100
bem-polido banco, e em cima § dele jogou um tosão.
Lá sentou-se na sequência § multitenaz Odisseu.
E entre eles falou primeiro § a circunspecta Penélope:
“Estrangeiro, isto em primeiro § te perguntarei eu mesma:
dos homens quem és, e de onde? § Onde estão teus pais e pólis?” 105
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Mulher, nenhum dos mortais § sobre a terra infinda pode
te censurar: pois a tua § glória alcança o vasto céu,
como a de um rei, por exemplo, § ilibado, o qual reinando
piedoso sobre vários § e valorosos varões 110
mantém a boa justiça; § e a terra negra produz
trigo e cevada, e repletas § de frutas ficam as árvores
e os rebanhos sem parar § procriam, e o mar traz peixe,
com sua benfeitoria: § sob ele as gentes excelem.
Por isso, questiona agora § sobre o resto, em tua casa. 115
Apenas não me perguntes § minha raça e terra pátria,
pra que meu ânimo não § se encha ainda mais de dores
ao me recordar: sou sim § multissofrido e não devo,
numa casa que é alheia, § gemendo e choramingando
me sentar, já que é ruim § ter, confuso, sempre o luto. 120

501
Vai que uma serva comigo § fique indignada, ou tu mesma,
dizendo que – a mente bêbada § de vinho – ‘navego em lágrimas’”.
E respondeu-lhe em seguida § a circunspecta Penélope:
“Pois estrangeiro, a excelência § minha, no aspecto e no porte,
os imortais destruíram, § quando embarcaram pra Ílion 125
os argivos, e com eles § foi meu esposo, Odisseu.
Se aquele, ao menos, chegando § cuidasse da minha vida,
tão maior a minha glória § seria, e tão mais bonita....
Sofro agora, tantos males § um nume até mim lançou!
Porque todos os melhores § que têm poder sobre as ilhas, 130
sobre a frondosa Zacinto § e sobre Dulíquio e Same,
e esses que na própria Ítaca § bem-visível já residem
a mim cortejam sem que eu § queira, e consomem a casa.
Por isso nem pra estrangeiros § nem pra suplicantes ligo,
e nem mesmo para arautos § (eles que são demiurgos). 135
Saudosa de Odisseu, des- § mancho o caro coração.
Mas eles vão me apressando § a casar, e eu tramo ardis:
um nume inspirou primeiro § meu espírito a tecer
(montando grande tear § dentro do palácio) manto
extralargo e delicado; § e de pronto entre eles disse: 140
‘Jovens pretendentes meus: § morreu divino Odisseu.
Esperai, pois, mesmo ansiosos § por casar, até que eu finde
esse manto (e não se perca § minha tecelagem em vão!)
fúnebre, do herói Laertes, § para quando enfim funesta
a Porção da dolorosa § morte sobre ele baixar. 145
Vai que uma acaia do povo § fique indignada comigo,
se sem mortalha jazer § quem teve muitas riquezas’.
Assim disse, e convenceu-se § neles o sobranceiro ânimo.
De dia então junto ao grande § tear eu ia tecendo
e de noite desfazendo, § já que dispunha de tochas. 150
Assim escapei três anos § e persuadi os acaios.
Mas quando o quarto ano veio § e as estações retornaram,
as luas tendo minguado, § muitos dias transcorrido,
então, por causa das servas § – cadelas despreocupadas –
vindo até mim me apanharam, § falando comigo aos brados. 155

502
Foi assim que o concluí, § contra a vontade, forçada.
E agora fugir não posso § ao casamento, nem outra
astúcia mais encontrar. § E meus pais muito me incitam
a casar, e ao filho cansa § o sustento devorado,
a ele, que reconhece: § já é varão bastante apto 160
a cuidar da casa, à qual § Zeus atribui um sinal.
Mas, ainda assim, me fala § tua raça, de onde vens,
pois não provéns de carvalho § antigo, nem de rochedo”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Mulher muito respeitável § do Laercida Odisseu: 165
ainda não vais parar § de perguntar minha origem?
Pois bem, eu te direi: vais § sim me entregar a pesares
além dos que já me tomam. § Esse é o normal quando um homem
se ausenta da pátria sua § tanto quanto eu mesmo agora,
vagando em muitas cidades § dos mortais, sofrendo dores. 170
Ainda assim direi isso § que perguntas e questionas.
Creta é essa terra lá § no meio do mar vinoso,
bela e rica, circulada § pela água. Lá há homens
numerosos, incontáveis, § e também noventa pólis,
uma língua misturando-se § à outra: lá há acaios, 175
lá há cretenses verídicos, § magnânimos, e há cidônios,
e dórios tridivididos, § e mais pelasgos divinos.
Mas entre elas está Cnosso, § megalópole onde Minos
aos nove anos já reinava, § em conversa com Zeus grande.
Foi ele o pai do meu pai, § magnânimo Deucalião. 180
Deucalião gerou a mim § e a Idomeneu soberano.
Este, porém, nas curvadas § naus em direção a Ílion
com os Atridas partiu. § Meu célebre nome é Éton;
sou mais novo em nascimento, § e ele, anterior e melhor.
Lá a Odisseu eu vi § e dei as dádivas de hóspede. 185
Pois foi o vigor do vento § que o conduziu até Creta
ao querer ir até Troia, § desviando-o no Maleia.
Ancorou lá em Amniso, § onde há a gruta de Ilítia,
em áspero porto, e a custo § esquivou-se à tempestade.
E indo à cidade de pronto § perguntou de Idomeneu, 190

503
pois dizia ser seu hóspede § respeitável e querido.
Mas era a décima ou décima § primeira Aurora da sua
partida com as curvadas § naus em direção a Ílion.
E eu mesmo à casa o levei § e lhe dei boa acolhida,
com o muito que a morada § tinha, atento, encarecendo-o. 195
E aos seus demais companheiros, § que seguiam junto a ele,
dei, recolhendo do povo, § cevada mais vinho ardente
e bois, pra sacrificarem § e satisfazerem o ânimo.
Lá os divinos acaios § ficaram por doze dias.
Pois o vento Bóreas, grande, § os prendia, e sobre a terra 200
não os deixava de pé: § duro nume o suscitara.
Mas no décimo terceiro § tombou, e por fim zarparam”.
Tornava a muita mentira § dita semelhante aos fatos,
e nela, que ouvia, as lágrimas § corriam, e desmanchava-se.
Tal como a neve desmancha-se § toda nas altas montanhas 205
(essa que o Euro desmancha, § e o Zéfiro despejara),
e com ela a desmanchar-se § enchem-se os rios fluentes:
assim nela as belas faces, § em lágrimas, desmanchavam-se,
chorando o homem seu ali § ao lado. Mas Odisseu
no ânimo se apiedava § da mulher sua a gemer, 210
sem tremer porém os olhos § (como se de chifre ou ferro)
nas pálpebras: com ardil § ocultava suas lágrimas.
E ela, depois de saciada § do multigemente choro,
novamente estas palavras § como resposta lhe disse:
“Penso que agora, estrangeiro, § irei sim te pôr à prova, 215
pra ver se de fato lá § no palácio recebeste
meu esposo com os quase- § deuses amigos, qual dizes:
fala quais eram as vestes § que ele tinha sobre o corpo
e como era, e dos amigos § dele que seguiam junto”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu: 220
“Mulher, é árduo, por tanto § tempo estando separado,
falar: agora pra ele § já é o vigésimo ano
desde que de lá partiu § e se foi da minha pátria.
Mas vou te dizer, tal qual § se me afigura por dentro:
espessa capa purpúrea § tinha o divino Odisseu, 225

504
de dobra dupla. Sobre ela § se fizera broche de ouro,
com dois fechos, e na frente § era todo trabalhado:
um cão, nas patas dianteiras, § retinha um veado malhado
que se debatia ao ser § pego. E todos se espantavam
– como, sendo de ouro os dois, § um pegava e estrangulava, 230
e o outro, ansioso em fugir, § com as patas debatia-se.
E notei aquela túnica § sobre seu corpo, brilhante,
tal como é em cima a casca § da cebola ressecada;
macia assim ela era, § e luzente como o Sol.
Sim, inúmeras mulheres § contemplavam admiradas! 235
Vou te dizer outra coisa § e tu mete em teu espírito:
não sei se as vestia em casa § sobre seu corpo Odisseu,
ou se um companheiro deu-lhe § ao subir na nau ligeira,
ou se mesmo um estrangeiro, § pois de muitos Odisseu
era amigo (e iguais a ele § eram poucos os acaios). 240
Eu mesmo também lhe dei § espada de bronze, e túnica
bonita, de dobra dupla, § purpúrea e cheia de franjas,
e o despachei com respeito § sobre a nau de belos bancos.
Com ele ainda um arauto, § pouco mais velho em idade,
seguia junto; pois vou § te contar também como era: 245
redondo nos ombros, pele § escura, cabelo crespo
e tendo por nome Euríbates. § Odisseu o honrava acima
dos seus demais companheiros, § porque se entendiam bem”.
Assim disse, e cresceu nela § o desejo de chorar,
reconhecendo os sinais § firmes que dera Odisseu. 250
E ela, depois de saciada § do multigemente choro,
nesse momento esta fala § como resposta lhe disse:
“Sim, tu, estrangeiro, a mim § antes digno de piedade,
agora no meu palácio § serás caro e respeitável,
pois eu mesma lhe dei tais § vestimentas de que falas, 255
trazendo-as dobradas lá § do quarto, e pus broche fúlgido
para lhe servir de enfeite! § Mas não o receberei
retornando para casa, § para a cara terra pátria.
Foi por uma sina má § que sobre a côncava nau
Odisseu partiu pra ver § ‘HorrÍlion’ não nomeável!” 260

505
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Mulher muito respeitável § do Laercida Odisseu:
não macules mais agora § a bela tez nem desmanches
o ânimo chorando o esposo. § Sim, não é pra se indignar,
pois qualquer uma lamenta § a perda de outro marido 265
legítimo (pra quem deu § filhos unida em amor)
– outro pior que Odisseu, § que é dito rival dos deuses!
Mas deixa de choro e presta § atenção à minha fala,
pois eu vou te relatar § sem erro e sem esconder
como eu mesmo já ouvi § sobre a volta de Odisseu, 270
bem próxima, lá na rica § terra dos varões tesprotos
vivo, a carregar um belo § e numeroso tesouro,
demandando pelo povo. § Mas perdeu no mar vinoso
a nau côncava e também § os exímios companheiros,
ai ir da ilha Trinácia, § pois lhe deram o ódio seu 275
Zeus mais o Sol, cujas vacas § seus companheiros mataram.
Eles todos pereceram § no multiondulante mar,
mas uma onda o atirou, § na quilha da nau, pra orla,
contra a terra dos feácios, § que são próximos dos deuses.
E eles, em seu coração, § o honraram como a um deus, 280
lhe deram muito e quiseram § eles mesmos transportá-lo
para casa, indene. E há muito § já estaria Odisseu
aqui, mas isto ao seu ânimo § pareceu mais proveitoso:
ir angariando bens, § andando por muita terra.
Assim muitas espertezas, § acima dos mortais homens, 285
sabe Odisseu e ninguém § mais com ele rivaliza.
Assim o rei dos tesprotos § então me relatou, Fídon.
E jurou para mim mesmo, § libando dentro da casa,
já estar lançada a nau § e a postos os companheiros,
esses que o transportariam § para a cara terra pátria. 290
Mas ele me despachou § antes: calhou de uma nau
dos tesprotos estar indo § pra multitrigo Dulíquio.
E me mostrou a riqueza § que reunira Odisseu:
poderia até a décima § geração alimentar,
tamanho era o seu tesouro § lá no palácio do rei. 295

506
Disse que ele tinho ido § a Dodona para ouvir,
do carvalho de alta copa, § divino, o plano de Zeus
– de que modo voltaria § para a rica terra de Ítaca,
já por tanto tempo ausente: § se às claras ou se escondido.
É desse jeito que está, § a salvo, e logo virá 300
bem próximo de ti, não § mais dos caros e da pátria
por muito tempo distante. § Mas te farei juramento.
Testemunhem Zeus primeiro, § mais alto e melhor dos deuses,
e a lareira do ilibado § Odisseu, à qual eu chego:
com certeza tudo está § se cumprindo como digo. 305
Nessa mesma lua nova § Odisseu virá aqui,
entre aquela que é minguante § e aqueloutra que é crescente”.
E por sua vez lhe disse § a circunspecta Penélope:
“Ah, se essa palavra tua, § estrangeiro, se cumprisse,
logo então conhecerias § a amizade e as muitas dádivas 310
minhas – alguém te diria § venturoso, ao dar de cara.
Mas em meu ânimo assim § pressinto, tal qual será:
nem Odisseu virá mais § pra casa nem tu terás
transporte, uma vez que em casa § não há sinaleiros tais
como Odisseu entre os homens § era (se um dia existiu), 315
pra despachar respeitáveis § hóspedes e os receber.
Mas vamos, escravas, vinde § o lavar e pôr-lhe um leito
com estrado, e ainda capas § e mais brilhantes lençóis,
pra que ele, se consolando, § chegue à áureo-trono Aurora.
E na Aurora então, bem cedo, § vinde o banhar e esfregar, 320
pra que dentro, com Telêmaco, § se ocupe da refeição
assentado no palácio. § Pior pra quem dentre aqueles
o molestar, espezinha- § dor: não há de praticar
feito algum aqui, por mais § terrível que seja a cólera.
Pois como, estrangeiro, vais § saber tu de mim – se acima 325
estou das outras mulheres § na mente e astúcia contida –
no caso de estropiado, § malvestido, no palácio
te banqueteares? Os homens, § diminuta a vida, findam.
Quem é, por si, intratável, § com ideias intratáveis,
pra esse todos invocam § dores no porvir enquanto 330

507
vivo, e quando então já morto § fazem troça dele, todos;
mas quem, por si, ilibado, § com ideias ilibadas,
desse a vasta glória di- § fundem os amigos hóspedes
por entre todos os homens, § e muitos de bravo o chamam”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu: 335
“Mulher muito respeitável § do Laercida Odisseu:
a mim se tornaram, capas § e mais brilhantes lençóis,
odiosos, quando aos nevados § montes de Creta primeiro
dei as costas, ao partir § sobre a longierreme nau.
Vou me deitar tal como antes § passei noites sem dormir: 340
pois foram muitas as noites § que numa cama ultrajante
passei, à espera da Aurora § divina de belo trono.
E uma lavagem dos pés § não me agrada nada ao ânimo
que aconteça: mulher não § há de tocar nosso pé,
dentre essas que pela tua § morada são atuantes, 345
a não ser que haja uma velha, § das antigas, cuidadosa,
que tenha aguentado tanto § quanto eu mesmo em seu espírito:
essa eu não recusaria § que tocasse nos meus pés”.
E por sua vez lhe disse § a circunspecta Penélope:
“Caro estrangeiro, pois homem § ponderado assim nenhum, 350
dos estrangeiros de longe, § mais caro chegou-me à casa,
tal como tu, bem pensando, § falas tudo ponderado:
tenho uma velha que tem § cerrados planos no espírito,
essa que àquele infeliz § bem nutria e bem criava,
tendo o pegado nos braços § quando sua mãe o pariu. 355
Ela vai lavar-te os pés, § pouco expedita que esteja.
Mas vamos, de pé agora § tu, circunspecta Euricleia!
Lava do teu senhor... um § da mesma idade: Odisseu
deve estar também assim § já nos pés e assim nas mãos,
pois os mortais envelhecem § bem depressa nas mazelas”. 360
Assim ela disse, e a velha § então pôs as mãos no rosto,
quentes lágrimas vertendo, § e lamuriosa falou:
“Ómoi, filho, pra ti im- § potente estou! A ti Zeus
mais detestou dentre os homens, § tendo tu piedoso espírito.
Pois nunca nenhum mortal § ao desfruta-raio Zeus 365

508
queimou gordurosos fêmures § e escolhidas hecatombes
tanto quanto tu lhe deste, § rogando por atingir
então a clara velhice § e criar o filho ilustre.
E agora só de ti re- § tirou o dia da volta!
Também daquele deviam § troçar assim as mulheres 370
(entre estrangeiros de longe, § chegado à casa de alguém),
tal como estão, de ti, estas § cadelas todas troçando.
E evitando a afronta delas § e as muitas vergonhas não
deixas que lavem. Mas eu § de bom grado aceito a ordem
daquela filha de Icário, § a circunspecta Penélope. 375
Vou lavar-te então os pés, § por ela, a própria Penélope,
e por ti também, que o ânimo § por dentro se agita em mim
com aflições. Mas agora § presta atenção ao que digo:
muitos estrangeiros ex- § tenuados aqui chegaram,
mas digo ainda não ter § visto um parecido assim, 380
como tu com Odisseu § em voz, porte e pés pareces”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Velha, assim dizem aqueles § todos que viram a nós
dois com seus olhos, que somos § muito semelhantes um
com o outro, como tu mesma, § reparando, agora afirmas”. 385
Assim ele disse, e a velha § pegou o brilhante tacho
com o qual lavava os pés, § verteu nele muita água
fria, e em seguida, por cima, § a quente. Mas Odisseu
foi sentar junto à lareira § e voltou-se logo ao breu,
pois de imediato em seu ânimo § pressentiu que ela, ao tocá-lo, 390
notaria a cicatriz, § ficando os fatos às claras.
E ao lavar seu senhor, perto, § reconheceu de imediato
a cicatriz feita outrora § por suíno de alvas presas,
quando foi para o Parnaso, § até Autólico e os filhos,
o bravo pai de sua mãe, § o qual superava os homens 395
em furtividade e jura; § isso um deus mesmo lhe dera,
Hermes: pois pra ele tinha § queimado agradáveis fêmures
de cabritos e cordeiros, § e então propenso o assistia.
Quando este Autólico foi § para a rica terra de Ítaca,
encontrou filho recém- § nascido de sua filha; 400

509
e Euricleia então o pôs § sobre os seus caros joelhos,
quando ele findava a ceia, § e nomeando-o lhe disse:
“Autólico, encontra agora § tu mesmo um nome pra dar
ao caro filho da filha. § Ele é sim multirrogado”.
E Autólico, por sua vez, § exclamando respondeu: 405
“Genro meu e filha minha, § dai o nome que eu disser:
já que chego aqui com muitos § me dirigindo o ódio seu
(mulheres e homens ao longo § do chão multialimentante),
Odisseu, por isso, seja § o nome a chamá-lo. E eu mesmo
– quando, estando já moço, ele § à grande casa materna 410
se dirigir no Parnaso, § onde estão as minhas posses –
parte delas vou lhe dar § e o farei voltar feliz”.
Por isso é que Odisseu foi § – pelas esplêndidas dádivas.
E a ele então tanto Autólico § bem como os filhos de Autólico
com as mãos foram saudando, § e com melífluas palavras. 415
Mas a mãe da mãe, Anfítea, § abraçada a Odisseu,
beijou-lhe a cabeça e a luz § de seus dois bonitos olhos.
E Autólico conclamou § os assinalados filhos
a preparar o repasto, § e ao comando eles ouviram.
E de imediato trouxeram § um boi macho, de cinco anos, 420
que esfolando prepararam, § e esquartejaram inteiro.
E o fatiaram com ciência, § e furaram com espetos,
e assaram com atenção, § e as porções distribuíram.
Assim então pelo dia § todo, até o Sol se pôr,
banquetearam-se, e ninguém § ficou sem justo banquete. 425
Porém quando o Sol se pôs § e as trevas sobrevieram,
foram se deitar, e a dádiva § do sono pra si tomaram.
Quando raiou matutina § a róseos-dedos Aurora,
saíram então pra caça § os cães e também os próprios
filhos de Autólico; e junto § deles divino Odisseu 430
ia. E foram por esse íngreme § monte coberto de mata,
o Parnaso, vindo rápido § às suas dobras ventiladas.
O Sol então começava § a se lançar sobre os campos,
saído do corre-calmo § e flui-profundo Oceano,
e os batedores chegaram § à clareira: à sua frente 435

510
iam cães a farejar § rastros, enquanto atrás esses
filhos de Autólico; e junto § deles divino Odisseu
ia, bem perto dos cães, § vibrando a sombreira lança.
Aí repousava um grande § suíno em cerrada moita;
nela o furor não soprava § dos ventos que ventam úmidos, 440
e nem o resplandecente § Sol batia com seus raios,
e nem a chuva contínua § adentrava, tão cerrada
era, tendo dentro largo § leito de folhas caídas.
Chegou-lhe então o tropel § dos pés de varões e cães,
sobrevindo pra lançar-se § sobre; e, fora da toca, ante- 445
pôs-se, eriçando bem sua § crista, o olhar fixo de fogo,
próximo deles. E então § Odisseu foi o primeiro
a mover-se, erguendo a lança § longa com a grossa mão
pra feri-lo, mas o suíno, § se antecipando, o atingiu
sobre o joelho, e com a presa § rasgou um tanto de carne, 450
num salto oblíquo; mas não § alcançou o osso do herói.
E a ele Odisseu, mirando, § feriu na espádua direita,
e a ponta da reluzente § lança foi de lado a lado.
Guinchando, tombou no pó, § e a vida dele voou.
Desse então os caros filhos § de Autólico se ocuparam, 455
e a ferida do ilibado § e quase-deus Odisseu
amarraram com ciência, § o negro sangue estancando
com um encanto, e pra casa § do caro pai logo foram.
E a ele então tanto Autólico § bem como os filhos de Autólico,
depois de o terem curado § e dado esplêndidas dádivas, 460
rapidamente fizeram, § felizes, voltar feliz
pra Ítaca. E a ele sim § o pai e a senhora mãe
felicitaram na volta, § perguntando cada coisa
da cicatriz que sofrera. § E ele bem lhes relatou
como, ao caçar, o atingiu § um suíno de alvas presas, 465
quando foi para o Parnaso, § com esses filhos de Autólico.
Essa cicatriz, a velha, § ao tocá-lo com as palmas,
reconheceu, apalpando, § e deixou o pé cair.
A canela tombou dentro § do tacho e o bronze ressoou;
para o outro lado virou, § entornando água no chão. 470

511
Dela alegria e dor, juntos, § se apossaram: os dois olhos
ficaram cheios de lágrimas, § e a volumosa voz, presa.
Tocando-lhe então o queixo, § para Odisseu ela disse:
“És sim Odisseu, querido § filho! E a ti eu mesma antes
não reconheci, até § manusear meu senhor todo”. 475
Disse, e em seguida em Penélope § ela fixou seu olhar,
querendo indicar que o caro § esposo estava ali dentro;
mas essa não conseguiu, § de frente, olhar nem notar,
pois Atena desviara § sua mente. Mas Odisseu,
com a direita apalpando, § pegou-a pela garganta, 480
com a outra mão puxou-a § para mais perto, e exclamou:
“Queres me destruir, mãezinha? § Tu mesma me alimentaste
no peito teu! Eis que agora, § após sofrer muitas dores,
chego, no vigésimo ano, § até minha terra pátria.
Mas já que te deste conta, § e um deus pôs isso em teu ânimo, 485
cala-te, pra ninguém mais § vir a saber no palácio.
Pois vou te dizer assim, § e isso vai acontecer:
se um deus submeter a mim § os augustos pretendentes,
não vou poupar nem a ti, § que és nutriz, quando às demais
servas mulheres vier § a matar no meu palácio!”. 490
E por sua vez lhe disse § a circunspecta Euricleia:
“Mas meu filho, que palavra § fugiu-te ao cerco dos dentes?
Sabes como o meu furor § é firme, e não um que cede.
Irei sim me controlar, § como dura pedra ou ferro.
Vou te dizer outra coisa § e tu mete em teu espírito: 495
se um deus submeter a ti § os augustos pretendentes,
vou te dar a relação § das mulheres no palácio,
das que estão te desonrando § e das que são sem ofensa”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Mãezinha, vais falar delas § pra quê? De modo algum deves. 500
Sozinho bem vou me dar § conta e saberei de cada.
Mas vamos, fica calada, § e deixa a incumbência aos deuses”.
Assim ele disse, e a velha § atravessou o palácio
atrás de água para os pés: § toda a anterior entornara.
Depois então que o lavou § e untou com bastante azeite, 505

512
voltou a puxar pra perto § do fogo o banco Odisseu,
pra se esquentar, e ocultou § a cicatriz sob o andrajo.
E entre eles falou primeiro § a circunspecta Penélope:
“Estrangeiro, isto somente § te perguntarei primeiro,
pois muito em breve será § hora do doce descanso 510
pra aquele de quem o sono § se apossa, apesar de aflito.
Mas pra mim um nume deu § incomensurável luto,
pois de dia meu prazer § é me lamentar, gemendo
enquanto olho meus trabalhos § e os das escravas na casa;
quando então a noite vem, § e o descanso toma a todos, 515
deito em meu leito, e cerradas § em meu coração sem pausa
agudas preocupações § perturbam-me, lamentosa.
Tal como a sabiá castanha, § a filha de Pandareu,
assobia belamente § ao vir nova primavera,
pousada em meio às cerradas § folhagens dos arvoredos 520
(amiúde modulando-a, § verte voz multiecoante,
a lamuriar caro filho, § Ítilo, a quem com o bronze
matou por desatenção, § o filho do senhor Zeto):
assim se agita o meu ânimo, § de lá pra cá, dividido
– ou fico junto do filho § e firme tudo vigio, 525
minhas posses, as escravas § e a grande e elevada casa,
em respeito à falação § do povo e à cama do esposo,
ou já vou seguindo junto § com quem, melhor dos acaios,
me corteja no palácio, § dando dotes incontáveis.
Meu filho, enquanto era ainda § criança e solto de espírito, 530
casar não me permitia, § deixando a casa do esposo;
agora, que é grande e atinge § o metro da juventude,
roga até para que eu saia § do palácio e vá de volta,
chateado com as posses § que os acaios lhe devoram.
Mas vamos, agora escuta § e interpreta este meu sonho. 535
Tenho pela casa vinte § gansos meus, que comem trigo
ao sair d’água; com eles § me acaloro só de os ver.
Mas eis que, vindo de um monte, § grande águia de bico curvo
quebrou os pescoços deles § todos e os matou: ficaram
amontoados no palácio, § e ela para o azul zuniu. 540

513
Eu própria fiquei chorando, § aos gritos, mesmo que em sonho,
e as bem-trançadas acaias § reuniram-se junto a mim
– a lamuriar, de dar dó, § que a águia matara os gansos.
Mas, voltando, ela pousou § sobre uma viga saliente
e, com a voz de um mortal, § controlando-me exclamou: 545
‘Coragem, filha de Icário § célebre a grande distância!
Não é sonho, mas visão § boa, que se cumprirá.
Os gansos – os pretendentes, § enquanto eu, a águia (um pássaro
antes pra ti), desta vez § chego como teu esposo.
A todos os pretendentes § lançarei fim ultrajante!’. 550
Assim disse, e o sono doce § como mel me abandonou;
notei, com olhar inquieto, § os gansos no meu palácio,
a bicar trigo no coche, § lá no mesmo lugar de antes”.
Como reposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Mulher, maneira nenhuma § há de interpretar o sonho 555
dando-lhe outra inclinação, § não, já que o próprio Odisseu
indicou seu cumprimento: § o fim chega aos pretendentes,
a todos, e nenhum vai § evitar má sorte e morte!”.
E por sua vez lhe disse § a circunspecta Penélope:
“Estrangeiro, os sonhos, in- § tratáveis, indiscerníveis, 560
sim, é o que são! Nem se cumprem § totalmente para os homens.
Pois existem dois portões § dos esmaecidos sonhos,
um deles feito de chifres, § enquanto o outro de marfim.
Dos sonhos, os que atravessam § o de serrado marfim
amarfanham a verdade, § com ditos sem eficácia; 565
mas aqueles que atravessam § polida porta de chifre
decifram coisas de fato, § quando um dos mortais os vê.
Mas não foi por aí, penso, § que então meu terrível sonho
atravessou – sim, teríamos § o saudado, eu e meu filho.
Vou te dizer outra coisa § e tu mete em teu espírito: 570
já está vindo a maldita § Aurora que vai da casa
de Odisseu me arrancar. Vou § pôr então um desafio,
o dos machados, os quais § aquele no seu palácio
eretos enfileirava, § como escoras, doze ao todo,
pra de pé de muito longe § atirar flecha através. 575

514
Agora vou lançar esse § desafio aos pretendentes:
quem muito fácil esticar § o arco na palma da mão
e disparar através § dos doze machados todos,
esse eu seguiria, dando § as costas a esta casa
legítima, muito bela, § cheia de sustento dentro. 580
Dela penso que vou sempre § me lembrar, mesmo que em sonho”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Mulher muito respeitável § do Laercida Odisseu:
não adies mais agora § na casa esse desafio,
pois antes o multiastuto § Odisseu virá aqui 585
– antes que eles, esse bem- § polido arco manuseando,
estiquem sua corda e dis- § parem através do ferro”.
E por sua vez lhe disse § a circunspecta Penélope:
“Se quisesses, estrangeiro, § ao meu lado no palácio
me deleitar, nunca o sono § cairia em minhas pálpebras. 590
Porém, maneira nenhuma § há de os homens serem sempre
insones, pois impuseram § um quinhão de cada coisa
aos mortais os imortais, § no solo doador de grãos.
Entretanto agora eu mesma, § indo para o andar de cima,
vou deitar-me em minha cama, § ela que chorosa fez-se, 595
com estas lágrimas minhas § sempre umedecida, desde
que Odisseu partiu pra ver § ‘HorrÍlion’ não nomeável.
Lá eu posso me deitar. § Já tu, deita nesta casa
te estendendo pelo chão; § ou que te ponham o estrado”.
Assim disse, e foi então § ao brilhante andar de cima, 600
não sozinha, pois com ela § iam também outras servas.
Chegando ao andar de cima § com as mulheres suas servas,
pôs-se a chorar Odisseu, § caro esposo, até que doce
sono lançou-lhe nas pálpebras § a claros-olhos Atena.

515
cAntO 20.
antes do desafio do arco
e da matança dos pretendentes

Odisseu não consegue dormir, mas Atena o reconforta e o faz adormecer (1-
55). Penélope acorda e lamenta sua desgraça (56-94). Odisseu pede a Zeus que lhe
envie dois presságios e sua prece é atendida (95-121). Eumeu e Filécio, o boiadeiro,
chegam ao palácio trazendo as vítimas sacrificiais para a festa em honra a Apolo,
e Melanteu quer expulsar o mendigo da casa; Filécio interessa-se pelo estrangeiro
e fala de Odisseu em termos comoventes (122-240). Um sinistro presságio inquieta
os cortejadores de Penélope, que desistem de matar Telêmaco; Ctesipo, um dos
pretendentes, atira um casco de boi contra o mendigo, que consegue se desviar;
censura de Telêmaco, que fala como dono da casa (241-320). Agelau, outro preten-
dente, aconselha Telêmaco a apressar o casamento da mãe (321-344). Predição de
Teoclímeno e riso dos pretendentes (345-394).

cAntO 21.
o desafio do arco

Penélope vai buscar o arco de Odisseu e convida os pretendentes para o de-


safio (1-79). Chorando, Eumeu e Filécio dispõem os machados e são criticados por
Antínoo (80-100). Telêmaco se esforça por retesar o arco; quase consegue, mas a
um sinal de Odisseu desiste (101-139). Os pretendentes fazem igual tentativa, sem
sucesso (140-187). Odisseu abandona a sala com Eumeu e Filécio, revela-lhes sua
identidade e dá instruções (188-244). Eurímaco tenta vergar o arco mas não conse-
gue; Antínoo propõe que o desafio seja adiado para o dia seguinte (245-272). Odis-
seu pede que o deixem tentar, mas Antínoo protesta; intervenção de Penélope; Te-
lêmaco declara que cabe a ele decidir (273-358). Eumeu entrega o arco a Odisseu,
apesar da gritaria dos pretendentes, e ordena a Euricleia que fecha as portas (359-
393). Odisseu estica o arco e sua flecha atravessa os machados (393-434).

516
cAntO 22.
A matança dos
pretendentes

Odisseu se livra dos andrajos e acerta uma flecha mortal em Antínoo; os


pretendentes o ameaçam e ele revela sua identidade (1-41). Eurímaco pede per-
dão, alegando que Odisseu receberá indenização, mas também é morto; Telêmaco
mata Anfínomo (42-98). O jovem vai buscar armas, mas deixa aberta a porta do
depósito e Melanteu traz de lá armas para os pretendentes (99-162). Melanteu é
atacado e amarrado por Eumeu e Filécio (162-204). Atena aparece sob a figura de
Mêntor e instiga Odisseu; metamorfoseada depois em andorinha, assiste ao com-
bate; mostra finalmente sua égide e os pretendentes entram em pânico (205-309).
Liodes, um dos cortejadores de Penélope, pede em vão que Odisseu lhe poupe a
vida (310-329). São poupados apenas o arauto Médon e o aedo Fêmio (330-380).
As doze servas culpadas de ajudar os pretendentes são enforcadas, e Melanteu
é supliciado (381-477). Purificação do palácio; Odisseu é abraçado pelas demais
servas (478-501).

cAntO 23.
Reconhecimento de
Odisseu por Penélope

A serva Euricleia dá a Penélope a notícia da volta de Odisseu e da morte dos


pretendentes, mas ela não acredita no que ouve (1-84). Ao encontrar o esposo, ora
pensa reconhecê-lo, ora duvida de que seja ele; Telêmaco a censura por sua incre-
dulidade (85-110). Pai e filho combinam entre si a maneira de reprimir uma possível
revolta dos itacenses (111-152). Atena devolve a Odisseu seu aspecto original (153-
163). Penélope testa Odisseu e, diante da descrição exata que faz do leito conjugal,
não tem mais dúvidas; ela justifica sua desconfiança e menciona a figura de Hele-
na (164-240). Odisseu conta a Penélope as predições feitas por Tirésias (241-288).
Odisseu e Penélope narram um ao outro os males sofridos (289-343). Na manhã do
dia seguinte, Odisseu sai para ver o pai, Laertes (344-372).

517
cAntO 24.
As pazes

Hermes conduz à morada do Hades as almas dos pretendentes, que en-


contram Agamênon e Aquiles conversando entre si (1-98). Anfimedonte, um dos
pretendentes, é interrogado por Agamênon e conta como foi a matança em Ítaca;
Agamênon louva Penélope e condena Clitemnestra (99-204). Odisseu vai ao sítio
do pai, Laertes, e inventa nova história mentirosa, até que por fim revela sua iden-
tidade (205-361). Os dois se juntam a Telêmaco, Filécio e Eumeu; chega o servo
Dólio com seus filhos, que reconhecem Odisseu (362-412). A notícia da matança se
espalha e Eupites, pai de Antínoo, exorta os parentes a marcharem contra Odisseu;
é contestado, sem sucesso, por Médon e Haliterses (413-471). Atena consulta Zeus,
que determina o estabelecimento da paz (472-488). Os dois lados se enfrentam e
Eupites é morto por Laertes; Atena intervém sob o aspecto de Mêntor e estabelece
o fim da discórdia (489-548).

E Hermes, o cilênio, foi § chamando pra fora então


as almas dos pretendentes: § tinha a vara em suas mãos,
bela, de ouro, com a qual § encanta os olhos dos homens
que quer e com que desperta, § por outro lado, os que dormem.
Com ela as movimentava, § e elas guinchando o seguiam. 5
Tal qual morcegos no fundo § de uma sublime caverna
guinchando põem-se a voar, § quando algum deles despenca
do apinhamento na rocha § onde agarram-se uns aos outros:
assim elas, a guinchar, § iam junto, e os conduzia
desmaldoso Hermes, baixando § por caminhos pantanosos. 10
Iam pelas correntezas § do Oceano e a rocha Lêucade;
e pelos portões do Sol § e o povoado dos Sonhos
iam, e chegaram rápido § ao asfodélico prado,
onde as almas têm morada, § espectros que já penaram.
E eis que encontraram a alma § dele, do Pelida Aquiles, 15
e de Pátroclo também, § e mais do ilibado Antíloco,
e de Ájax, que era o melhor pelo aspecto e pelo porte
– em seguida ao ilibado § Pelida – dos demais dânaos.
Assim em volta daquele § se juntavam; e pra perto

518
se achegou então a alma § dele, do Atrida Agamênon, 20
pesarosa. Aglomeravam-se § em volta outras que com ele
pereceram junto a Egisto § e seguiram seu destino.
E primeiro lhe exclamou § a alma dele, Pelida:
“Atrida, nós afirmávamos § que ao desfruta-raio Zeus
tu eras o mais querido § dos heróis, todos os dias, 25
por reinares sobre vários § e valorosos varões
lá na terra dos troianos, § onde nós sofremos dores.
Porém, para ti também § cedo deveria vir
a funesta Porção, essa § que ninguém que nasce evita.
Antes tivesses, da honra § de ser rei usufruindo, 30
lá na terra dos troianos § seguido o destino e a morte!
Para ti então teriam § feito a tumba os panacaios
e, ao filho teu, grande glória § no porvir também trarias.
Mas ter a morte mais digna § de pena foi o teu lote”.
E por sua vez lhe exclamou § a alma dele, do Atrida: 35
“Afortunado Pelida, § Aquiles símil aos deuses,
que morreste em Troia, longe § de Argos: ao teu redor outros
ótimos filhos de acaios § e troianos foram mortos,
ao lutarem por teu corpo. § E no rodopio do pó
jazias, grandiosamente § grande, esquecido dos carros. 40
Nós fomos lutando o dia § todo, e com a guerra não
pararíamos, se Zeus § com tufão não nos parasse.
Depois então que da guerra § te tiramos para as naus,
num leito nós te pusemos, § te purificando a pele,
bela, com tépida água § e unguento. Ao teu redor muitas 45
quentes lágrimas os dânaos § verteram, cortando os cachos.
E tua mãe veio do mar § com as imortais marinhas
assim que foi avisada: § pelo mar ergueu-se grito
sublime, e um tremor, por baixo, § tomou os acaios todos.
E teriam, saltando, em- § barcado nas fundas naus, 50
se não os segurasse homem § sábio em muita coisa antiga,
Nestor, cujo conselho antes § já se mostrara o melhor.
E, pensando bem, entre eles § então proferiu e disse:
‘Vós, argivos, controlai-vos! § Sem fugir, jovens acaios!

519
É sua mãe que do mar § com as imortais marinhas 55
agora vem, ao encontro § do filho que já morreu’.
Assim disse, e não fugiram § os magnânimos acaios.
E elas, de pé à tua volta, § filhas do velho do mar,
a lamuriar de dar dó § com veste imortal vestiram-te.
As Musas, todas as nove, § com bela voz revezando-se 60
entoavam um treno, e lá § não notarias sem lágrima
nenhum argivo, tal dor § suscitou a Musa límpida.
E ao longo de dezessete § dias e igualmente noites
fomos te chorando, deuses § imortais e homens mortais,
e ao décimo oitavo à pira § te demos: ao teu redor 65
muitas ovelhas matamos, § bem gordas, e curvos bois.
Foste cremado com veste § de deuses, e com unguento
abundante e doce mel. § E muitos heróis acaios
dançavam correndo, em armas, § pela pira enquanto ardias,
tanto a pé como a cavalo: § um grande estrondo se ergueu. 70
Mas depois então que a chama § de Hefesto te consumiu,
na aurora nós recolhemos § teus brancos ossos, Aquiles,
em unguento e vinho sem- § mistura: tua mãe tinha
dado uma ânfora de ouro; § dádiva de Dioniso
dizia ser, e trabalho § do muito célebre Hefesto. 75
Os teus brancos ossos jazem § dentro dela, ilustre Aquiles,
misturados aos de Pátroclo, § o Menecida já morto,
mas à parte dos de Antíloco, § a quem, dentre todos, mais
honravas dos companheiros § após a morte de Pátroclo.
Em torno deles, depois, § um grande e ilibado túmulo 80
erguemos nós, o sagrado § exército dos argivos,
num promontório saliente, § por sobre o largo Helesponto,
pra poder ser visto ao longe, § de lá do mar, pelos homens,
tanto os que vivem agora § quanto os que depois virão.
Tua mãe, solicitando § tão belos prêmios aos deuses, 85
os pôs no meio da roda § para os melhores acaios.
Antes já presenciaste § funerais de muitos homens,
de heróis, quando no momento § em que chega ao fim um rei
jovens cingem a cintura, § preparados para os prêmios;

520
mas, vendo aquilo, em teu ânimo § tu terias te admirado 90
– como a deusa, em tua honra, § tão belos prêmios propôs,
Tétis pés-de-prata: tu § eras muito caro aos deuses!
Assim, mesmo morto, o re- § nome não perdeste: sempre,
por entre todos os homens, § terás brava glória, Aquiles.
Quanto a mim, que prazer tenho, § depois que tramei a guerra? 95
Pois em meu retorno Zeus § planejou odioso fim
para mim, nas mãos de Egisto § e minha funesta esposa”.
Tais coisas eles assim § proferiam entre si.
E deles se aproximaram § o condutor Argicida
e as almas dos pretendentes, § por Odisseu subjugadas. 100
E os dois, espantados, foram § direto a elas ao vê-las.
E reconheceu a alma § dele, do Atrida Agamênon,
ao filho de Melaneu, § o célebre Anfimedonte,
pois, tendo sua casa em Ítaca, § fora seu anfitrião.
E primeiro lhe exclamou § a alma dele, do Atrida: 105
“Mas o que houve, Anfimedonte, § pra à terra escura baixardes,
todos seletos de mesma § idade? Não se faria
pela pólis seleção § outra dos melhores homens.
Foi por acaso Posêidon § que nas naus domou a vós,
suscitando adversos ventos § e também enormes ondas? 110
Ou varões desajustados § que em terra vos maltrataram,
quando lhes roubáveis vacas, § belos rebanhos de ovelhas,
ou quando estáveis lutando § pela pólis e as mulheres?
Fala pra mim, que pergunto: § proclamo ser o teu hóspede.
Ou não te lembras de quando § lá andei, em vossa casa, 115
para incitar, com o quase- § deus Menelau, Odisseu
a seguir junto até Ílion, § sobre as naus de belos bancos?
Num mês inteiro cruzamos § então todo o vasto mar,
com esforço convencendo § Odisseu arrasa-pólis”.
E por sua vez lhe exclamou § a alma de Anfimedonte: 120
“Atrida assinaladíssimo, § senhor de homens Agamênon:
bem me lembro disso tudo, § divogênito, qual dizes.
A ti eu relatarei § mesmo tudo e sem torcer
– esse nosso horrível termo § da morte, tal qual se deu.

521
Cortejávamos a esposa § de Odisseu (já ido há muito), 125
que nem negava o odioso § casamento ou decidia,
planejando para nós § negra sorte mais a morte.
Esta outra coisa no espírito § já cogitara, um ardil
(montando grande tear § dentro do palácio) urdir,
extralargo e delicado. § E de pronto então nos disse: 130
‘Jovens pretendentes meus: § morreu divino Odisseu.
Esperai, pois, mesmo ansiosos § por casar, até que eu finde
esse manto (e não se perca § minha tecelagem em vão!)
fúnebre, do herói Laertes, § para quando enfim funesta
a Porção da dolorosa § morte sobre ele baixar. 135
Vai que uma acaia do povo § fique indignada comigo,
se sem mortalha jazer § quem teve muitas riquezas’.
Assim disse, e convenceu-se § em nós o sobranceiro ânimo.
De dia então junto ao grande § tear ela ia tecendo
e de noite desfazendo, § já que dispunha de tochas. 140
Assim, por ardil, três anos § persuadiu os acaios.
Mas quando o quarto ano veio § e as estações retornaram,
as luas tendo minguado, § muitos dias transcorrido,
então uma das mulheres § nos contou – que via claro –
e a pegamos junto ao nobre § tear desfazendo o manto. 145
Foi assim que o concluiu, § contra a vontade, forçada.
Quando enfim mostrou o manto § que ao grande tear tecera,
depois de desencardido, § semelhante a sol ou lua,
então um mau nume trouxe, § de algum lugar, Odisseu
para a extremidade agreste, § onde morava o porqueiro. 150
E para lá foi o filho § seu (do divino Odisseu),
após deixar a arenosa § Pilos com sua negra nau.
E os dois, para os pretendentes § morte má articulando,
foram até a cidade § muito célebre – Odisseu
depois, enquanto Telêmaco § veio primeiro, na frente. 155
Foi o porqueiro que o trouxe, § tendo vestes vis no corpo,
semelhante a miserável § mendigo e a velho ancião,
num cetro apoiado: odiosas § vestes vestia em seu corpo.
Nenhum de nós conseguiu § reconhecer que era ele

522
de repente aparecendo, § nem os que eram mais antigos; 160
antes com palavras más § e projéteis o atacamos.
Ele aguentou, por um tempo, § dentro do palácio seu
ser alvejado e atacado, § com ânimo resistente.
Mas quando o atiçou a mente § do porta-égide Zeus,
soerguendo as armas muito § belas junto com Telêmaco 165
no quarto as depositou, § e com travas o trancou.
Mandou ainda, com multi- § esperteza, a sua esposa
pôr para nós, pretendentes, § o arco e o ferro acinzentado,
prêmio aos malaquinhoados, § e princípio da matança.
Nenhum de nós conseguiu § então esticar a corda 170
daquele arco poderoso § – ficamos sim muito aquém!
E quando o grande arco enfim § chegou às mãos de Odisseu,
nesse momento nós todos, § aos brados, fomos dizendo
pra que não lhe fosse dado § o arco, por mais que falasse.
Mas Telêmaco, sozinho, § insistindo lhe ordenou. 175
Em sua mão o recebeu § multitenaz Odisseu
e facilmente o esticou, § lançando através do ferro;
de pé então na soleira § despejou as flechas rápidas,
o olhar inquieto e terrível, § e acertou o rei Antínoo.
Em seguida, sobre os outros § disparou setas de dor, 180
fazendo a mira de frente, § e estes tombavam aos montes.
Reconhecia-se que um § deus era o instigador deles,
pois de pronto pela casa, § levados por seu furor,
matavam pra todo lado; § e ultrajantes ais erguiam-se
das cabeças atingidas, § cheio o chão todo de sangue. 185
Assim, Agamênon, nós § morremos, e agora nossos
corpos jazem sem cuidados § no palácio de Odisseu:
não sabem de nada ainda, § em cada casa, as famílias,
que podem, lavando o negro § sangue das nossas feridas,
ao lamento nos expor, § esse que é o prêmio dos mortos”. 190
E por sua vez lhe exclamou § a alma dele, do Atrida:
“Laercida afortunado, § multiengenhoso Odisseu:
sim, adquiriste uma esposa § com essa grande excelência!
Que boníssimo juízo § tinha a ilibada Penélope,

523
filha de Icário! Quão bem § se lembrava de Odisseu, 195
legítimo esposo: nunca § se lhe perderá a glória
da sua excelência – vão § fornecer os imortais
aos sobre a terra gracioso § canto à contida Penélope!
Já essa filha de Tíndaro § teve, ao invés, planos vis,
matando o esposo legítimo, § e o canto dela odioso 200
será aos humanos: vai § atribuir pesada fama
às femininas mulheres, § mesmo à que for benfeitora”.
Tais coisas eles assim § proferiam entre si,
de pé os dois na morada § do Hades, no oculto da terra.
Já eles, após baixarem § da pólis, logo atingiram 205
o belo, bem-feito sítio § de Laertes, que ele próprio
outrora tinha adquirido, § depois de muito penar.
Lá ficava a sua casa, § e em todo o entorno estendia-se
a cabana onde comiam, § descansavam e dormiam
os escravos não-libertos, § que a vontade lhe faziam. 210
E lá havia anciã § da Sicília que do velho
atentamente cuidava, § no sítio longe da pólis.
E então Odisseu ao filho § e aos servos assim falou:
“Adentrai agora vós § a bem-construída morada
e imolai logo o melhor § suíno, pra refeição. 215
Enquanto isso eu mesmo vou § pôr à prova nosso pai,
pra ver se me reconhece § e dá sinais com os olhos,
ou se desconhece a mim, § ausente por tanto tempo”.
Assim falou, e entregou § aos servos as armas de Ares.
E eles foram pra morada, § às pressas; mas Odisseu 220
chegou à multifrutífera § vinha, para o pôr à prova.
E não encontrou nem Dólio, § baixando ao grande pomar,
nem nenhum de seus escravos § e filhos (tinham saído
com a intenção de colher § pedras pra servir de cerca
da vinha, e o velho indicava § para eles o caminho). 225
Encontrou seu pai apenas § na vinha bem-construída,
enxadeando uma planta: § vestia túnica imunda,
ultrajante, remendada, § e nas canelas prendera
remendadas caneleiras § de couro, contra arranhões,

524
e luvas nas mãos, por causa § dos espinhos; tinha um gorro 230
de pele de cabra no alto § da cabeça, ampliando o luto.
Assim então que o notou § multitenaz Odisseu
– corroído pela idade, § com grande luto no espírito –,
parou sob uma pereira § alta e lágrimas verteu.
E ponderou, na sequência, § isto no ânimo e no espírito: 235
beijar e abraçar o seu § pai, e a ele cada coisa
contar de como chegara § e atingira a terra pátria,
ou primeiro perguntar § cada coisa e o pôr à prova.
E em seu espírito assim § pareceu mais proveitoso:
em primeiro com cortantes § palavras o pôr à prova. 240
Com isso em mente até ele § andou divino Odisseu;
o outro baixava a cabeça, § cavando em volta da planta.
E postando-se ao seu lado § lhe exclamou o filho ilustre:
“Velho, não há nessa tua § dedicação ao pomar
inabilidade, e sim § belo cuidado: não há 245
planta, não, figueira, não, § parreira e oliveira, não,
pereira e hortaliça, não, § sem cuidado no terreno.
Vou te dizer outra coisa; § não ponhas cólera no ânimo:
é contigo que não há § bom cuidado, e sim velhice
odiosa, e esqualidez § vil, e vestes ultrajantes. 250
Não é por tua inação § que o senhor de ti não cuida;
e nenhum traço servil § sobressai, ao se observar,
em teu aspecto e estatura: § te pareces com um rei!
Te pareces com alguém § que, após banhar-se e comer,
molemente vai deitar § – o normal dos anciãos. 255
Mas vamos, me fala isto § e relata sem torcer:
te dedicas ao pomar § de quem? És servo de que homem?
E me conta com verdade § tal coisa pra que eu bem saiba,
se de fato a esta Ítaca § chegamos, como me disse
esse homem com quem cruzei § agora, vindo pra cá. 260
Não era muito entendido, § pois não ousou me dizer
coisa por coisa e também § dar ouvidos ao meu dito,
quando perguntei do meu § hóspede, se vive e existe,
ou se acaso já está morto § e lá na morada do Hades.

525
Pois vou te falar, e tu § presta atenção e me escuta: 265
certa vez dei acolhida § lá na cara terra pátria
a varão que veio a nós, § e jamais outro mortal,
dos estrangeiros de longe, § mais caro chegou-me à casa.
Proclamava ser, por raça, § oriundo de Ítaca, e ainda
dizia que era seu pai § Laertes, filho de Arcísio. 270
E eu mesmo à casa o levei § e lhe dei boa acolhida,
com o muito que a morada § tinha, atento, encarecendo-o,
e dei as dádivas de hóspede, § as que eram apropriadas:
sete talentos lhe dei § do ouro tão bem-trabalhado,
e lhe dei cratera toda § de prata, ornada com flores, 275
e doze cobertas, mais § outras tantas capas simples
e outros tantos mantos alvos, § e mais outras tantas túnicas,
fora mulheres versadas § em ilibados trabalhos,
quatro, formosas, aquelas § que o próprio quis escolher”.
E respondeu-lhe em seguida § o pai, lágrimas vertendo: 280
“Estrangeiro, sim, atinges § a terra de que perguntas,
mas são varões atrevidos § e soberbos que a controlam.
Com dádivas vãs – ao dar-lhe § milhares – o agraciaste:
pois se o tivesses achado § vivo no povoado de Ítaca,
teria te despachado § retribuindo com dádivas 285
e boa hospitalidade § – regra pra quem a teve antes.
Mas vamos, me fala isto § e relata sem torcer:
quantos anos já passaram § desde que acolheste aquele
teu hóspede infeliz, meu § filho (se um dia existiu)
malaquinhoado; longe § dos seus e da terra pátria 290
os peixes o devoraram § no mar, ou em terra firme
virou presa para feras § e pássaros. Nem a mãe
o vestiu todo e o pranteou, § nem o pai, nós que o geramos;
nem a esposa multidádiva, § ela, a contida Penélope,
chorou aos gritos no leito § seu esposo, qual convém, 295
depois de cerrar-lhe os olhos, § pois esse é o prêmio dos mortos.
E me conta com verdade § tal coisa pra que eu bem saiba:
dos homens quem és, e de onde? § Onde estão teus pais e pólis?
Onde está parada a nau § que te trouxe até aqui

526
e teus companheiros quase- § deuses? Eras passageiro 300
em nau estrangeira, e aqueles, § pondo-te fora, se foram?”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Pois eu te relatarei § tudo sem nada torcer.
Sou oriundo de Alibante, § onde célebre morada
tenho, filho de Afidante § (rei filho de Polipêmon), 305
e Epérito é sim meu nome. § Porém um nume me fez
vir vagando, contrariado, § da Sicânia para cá;
minha nau está na parte § agreste, longe da pólis.
E quanto a Odisseu, sim, § este já é o quinto ano
desde que de lá partiu § e se foi da minha pátria, 310
malaquinhoado. Os pássaros § lhe foram bons ao partir,
à direita: me alegrando § com eles o despachei,
e alegre ele partiu. Tínhamos § ainda, os dois, esperança
de mútua hospitalidade § e mais esplêndidas dádivas”.
Assim disse, e negra nuvem § de dor encobriu o pai: 315
com ambas as mãos § pegando o fuliginoso pó,
despejou-o pela branca § cabeça, gemendo fundo.
No outro se agitou então § o ânimo, e pelas narinas
correu furor lancinante § ao olhar para o seu pai.
E dando um salto o abraçou § e beijou, e a ele disse: 320
“Mas sou eu aqui, aquele § sobre o qual perguntas, pai,
retornando no vigésimo § ano à minha terra pátria.
Mas contém agora o choro § e o lamento lacrimoso.
Pois vou te dizer, devendo § embora ter muita pressa:
trucidei os pretendentes § dentro da nossa morada, 325
punindo assim sua afronta § dolorosa e seus malfeitos”.
E Laertes, por sua vez, § exclamando respondeu:
“Se tu chegas aqui sendo § mesmo meu filho Odisseu,
me fala um sinal que seja § claro, pra que eu me convença”.
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu: 330
“Olha então atentamente § esta cicatriz primeiro,
feita no Parnaso em mim § por suíno de alvas presas
quando lá estive: tu § me enviaste, e a senhora mãe,
até Autólico, caro § pai dela, pra que eu pegasse

527
as dádivas que, aqui vindo, § prometera e anuíra em dar. 335
Vamos, que também as árvores § na vinha bem-construída
eu diga, as que me deste; eu § te pedia cada uma
quando menino, seguindo-te § pelo terreno: por elas
íamos e tu falavas § e nomeavas cada uma.
Pereiras me deste treze § e ainda dez macieiras 340
e mais quarenta figueiras. § E cinquenta parreirais
nomeaste, assim, pra me dar, § maturando cada um
em seu tempo (neles, no alto, § há bagos de todo tipo),
quando as estações de Zeus § os forçavam para baixo”.
Assim disse; se afrouxaram § no pai coração e joelhos, 345
reconhecendo os sinais § firmes que dera Odisseu:
lançou os braços em torno § do caro filho. E pra si
o trouxe, ao desfalecer, § multitenaz Odisseu.
Após recobrar o fôlego, § voltando o ânimo ao espírito,
novamente estas palavras § como resposta ele disse: 350
“Zeus pai, sim, de fato, ainda § sois vós deuses no alto Olimpo,
se pagaram por soberba § atrevida os pretendentes!
Mas temo agora, terrivel- § mente, que depressa todos
os itacenses aqui § ataquem, por toda parte
despachando mensageiros § às pólis dos cefalênios”. 355
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Coragem, e que essas coisas § não preocupem teu espírito!
Mas vamos até a casa, § que está perto do pomar.
Pra lá enviei Telêmaco § mais o boiadeiro e mais
o porqueiro, a prepararem § a refeição bem depressa”. 360
Assim exclamando, os dois § foram à bela morada.
E quando enfim atingiram § a casa bem-habitada,
lá encontraram Telêmaco § mais o boiadeiro e mais
o porqueiro, a cortar carnes § e a misturar vinho ardente.
No meio tempo, a Laertes § magnânimo em sua casa 365
a siciliana banhou § e com azeite esfregou,
e em volta dele jogou § bela capa. E então Atena,
vindo perto, os membros a- § largou do pastor de tropas,
e maior que antes, e mais § robusto, o deixou à vista.

528
Saiu do banho, e o querido § filho ficou espantado 370
assim que viu que fazia § frente aos deuses imortais.
E exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
“Pai, com certeza foi um § dos deuses sempre existentes
que, em aspecto e em estatura, § melhor te deixou à vista!”
E disse a ele de volta § o ponderado Laertes: 375
“Ah, Zeus pai, e Atena, e Apolo! § Se do mesmo modo como
quando conquistei Nerico, § a bem-construída pólis
na ponta do continente, § mandando nos cefalênios
– se, sendo desse modo, ontem § dentro da nossa morada
com armas no ombro eu tivesse § enfrentado e repelido 380
os pretendentes: teria § afrouxado no palácio
os joelhos de muitos deles, § e tu, te alegrado dentro”.
Tais coisas eles assim § proferiam entre si.
Terminado então o esforço § e preparado o banquete,
com ordem foram sentando § nas cadeiras e nos tronos, 385
e à refeição se lançaram § todos, até que pra junto
deles veio o velho Dólio, § e com ele os filhos seus,
esgotados dos trabalhos, § pois tinha ido os chamar
velha mãe siciliana, § que os nutria, e que do velho
atentamente cuidava, § pois a velhice o tomara. 390
Quando viram Odisseu, § e no ânimo refletiram,
pararam estupefatos § no palácio. E eis que Odisseu,
com estas doces palavras § abordando-os, lhes falou:
“Velho, senta pra comer, § e vós, esquecei o espanto.
Pois por longo tempo, ansiosos § por nos lançarmos ao pão, 395
resistimos no palácio, § sempre esperando por vós”.
Assim disse, e Dólio foi § direto a ele, abrindo ambos
os braços. Pegando a mão § de Odisseu, beijou-lhe o pulso
e exclamando então lhe disse § estas palavras aladas:
“Caro, já que retornaste § a nós, que muito queríamos 400
mas não mais acreditávamos, § e os próprios deuses trouxeram-te,
salve, bem-vindo, e que os deuses § te deem boa fortuna!
E me conta com verdade § tal coisa pra que eu bem saiba
– se já sabe agora claro § ela, a contida Penélope,

529
que retornaste pra cá, § ou mandamos mensageiros”. 405
Como resposta lhe disse § o multiastuto Odisseu:
“Velho, já sabe. Por que § deves tu te ocupar disso?”
Assim disse, e o outro de novo § sentou no polido assento.
E assim os filhos de Dólio § junto ao célebre Odisseu
o saudavam com palavras, § e apertavam suas mãos, 410
com ordem sentando então § ao lado de Dólio, o pai.
Assim eles se ocupavam § da refeição no palácio.
E a Notícia, mensageira, § logo ia por toda a pólis
a evocar odiosa morte § e sorte dos pretendentes.
Todos, por igual ouvindo-a, § foram cada um de um lado 415
com murmúrio e dor à porta § da morada de Odisseu.
E um por um, da casa, os corpos § retiravam e enterravam,
e enviavam os de outras pólis § um por um a suas casas,
indo com os marinheiros, § postos sobre as naus ligeiras.
E eles próprios foram todos § pra ágora, pesarosos. 420
Depois que eles se juntaram § e ficaram reunidos,
entre eles se levantou § então Eupites e disse
(jazia luto ilatente § pelo filho em seu espírito,
por Antínoo, a quem primeiro § matou divino Odisseu);
por ele vertendo lágrimas § então proferiu e disse: 425
“Caros, grande feito este homem § planejou contra os acaios:
levando uns em suas naus, § não só muitos como bravos,
perdeu as côncavas naus § e perdeu também as tropas;
e a outros matou na volta, § os melhores cefalênios!
Mas vamos, antes que vá § bem depressa para Pilos 430
ou ainda pra divina § Élis, onde os epeus mandam,
partamos! Ou depois sempre § ficaremos cabisbaixos:
isso é afronta que mesmo § os vindouros ouvirão,
a menos que o assassinato § dos nossos filhos e irmãos
nós vinguemos! Do contrário, § pra mim não seria doce 435
viver: melhor morrer logo § e ficar entre os finados!
Mas partamos, pra que não § se antecipem e o mar cruzem!”
Disse assim, vertendo lágrimas, § e todos tiveram pena.
Mas vieram até eles § Médon e o divino aedo

530
do palácio de Odisseu, § depois que o sono os deixou, 440
parando no meio deles: § todos ficaram atônitos.
E entre eles então falou § Médon, sábio em ponderar:
“Escutai agora a mim, § itacenses! Odisseu
tais feitos não planejou § à revelia dos deuses.
Eu vi por mim mesmo um deus § imortal que se postava 445
muito perto de Odisseu, § parecido em tudo a Mêntor.
E, como deus imortal, § ora diante de Odisseu
se mostrava, o encorajando, § ora atrás dos pretendentes
corria pelo palácio, § e estes tombavam aos montes”.
Assim disse, e então o pálido § pavor se apossou de todos. 450
E entre eles então falou § o velho herói Haliterses,
filho de Mástor; só ele § via o antes e o depois.
E, pensando bem, entre eles § então proferiu e disse:
“Escutai agora a mim, § itacenses, o que digo!
Por vileza vossa, caros, § estes feitos ocorreram. 455
Não escutastes a mim § e a Mêntor pastor de tropas
para pordes um fim à in- § sensatez dos vossos filhos,
que com vis atrevimentos § grande feito perpetraram,
dilapidando as riquezas § e desonrando a consorte
do melhor varão, o qual § pensavam não mais voltar. 460
Pois que agora fique assim. § Me escutai, conforme digo:
não partamos, pra ninguém § dar com mal autoinfligido”.
Disse assim. Mas eles deram § um salto, com grande grito,
bem mais que a metade (os outros § ficaram juntos ali),
porque não lhes agradara § a fala, e sim os palpites 465
de Eupites. E de imediato § se apressaram rumo às armas.
Depois então que vestiram § no corpo o fulgente bronze,
reuniram-se todos diante § da cidade de amplo espaço.
À frentes deles, Eupites § era o líder das tolices:
pensava vingar a morte § do filho, mas não iria 470
mais voltar pra trás, e sim § seguir ali seu destino.
Atena, no entanto, a Zeus, § filho de Crono, falou:
“Nosso pai Cronida, mais § elevado dos reinantes,
fala pra mim, que pergunto: § o que tua mente oculta?

531
Levarás a guerra má § e esse terrível conflito 475
adiante, ou imporás § a amizade às duas partes?”
Como resposta lhe disse § o reúne-nuvem Zeus:
“Minha filha, por que agora § me questionas e interrogas?
Pois não foste então tu mesma § que tiveste em mente isto,
que Odisseu, ao retornar, § se vingasse desses homens? 480
Age conforme desejas. § Eu direi o que convém:
uma vez que aos pretendentes § puniu divino Odisseu,
feitos juramentos dignos § de fé, que ele reine sempre,
e que nós o assassinato § daqueles filhos e irmãos
ponhamos no esquecimento; § e eles então uns aos outros 485
se gostem como antes, e haja § bastante riqueza e paz”.
Assim disse, e incitou, já § muito antes ansiosa, Atena,
que lá dos cimos do Olimpo § rapidamente baixou.
E após expulso o desejo, § naqueles, do pão melífico,
entre eles falou primeiro § multitenaz Odisseu: 490
“Que alguém vá lá fora e veja § se estão já se aproximando”.
Assim disse, e foi o filho § de Dólio, seguindo a ordem.
Pôs-se de pé na soleira § e, vendo-os todos bem próximos,
de pronto a Odisseu disse § estas palavras aladas:
“Sim, estão já aqui perto! § Vamos nos armar, depressa!” 495
Assim disse, e eles se ergueram § e entraram em suas armas.
Com Odisseu eram quatro, § mais os seis filhos de Dólio.
Entre eles, Dólio e Laertes § também entravam nas armas,
ainda que encanecidos, § combatentes obrigados.
Depois então que vestiram § no corpo o fulgente bronze, 500
abrindo as portas saíram, § andando à frente Odisseu.
E pra perto deles veio § Atena, filha de Zeus,
parecendo-se com Mêntor § no porte e também na voz.
Ao vê-la ficou feliz § multitenaz Odisseu
e a Telêmaco exclamou § de pronto, ao querido filho: 505
“Telêmaco, aprenderás § isto indo agora tu mesmo
aonde, dentre os que lutam, § se distinguem os melhores:
não envergonhar a raça § dos ancestrais, que já antes
nos destacamos em força § e valor por toda a terra”.

532
E disse a ele de volta § o ponderado Telêmaco: 510
“Me verás, querido pai, § se quiseres, com este ânimo
não envergonhar a raça § tua, seguindo o que dizes”.
Assim disse, e então Laertes § se alegrou e assim falou:
“Mas que dia é esse, caros § deuses! Sim, muito me alegro:
meu filho e seu filho têm § contenda pela excelência!” 515
E vindo ao lado lhe disse § a claros-olhos Atena:
“Filho de Arcísio, o mais caro § de longe dos companheiros:
com um clamor à menina § claros-olhos e a Zeus pai
atira logo, vibrando § a tua sombreira lança”.
Disse assim vibrante Atena, § a inspirar grande furor. 520
E ele, num clamor a ela, § filha do grandioso Zeus,
atirou logo, vibrando § a sua sombreira lança
e acertou Eupites, tres- § passando o seu elmo brônzeo;
ele não conteve a lança, § e o bronze foi de través,
e retumbante tombou, § ressoando nele as armas. 525
Sobre os da frente caíram § Odisseu e o filho ilustre,
e batiam com espadas § e com lanças de dois gumes.
Teriam matado a todos § e os deixado sem retorno,
caso Atena não (menina § do porta-égide Zeus)
tivesse vozeado alto § e contido toda a tropa: 530
“Abstende-vos, itacenses, § do guerrear doloroso,
a fim de serdes, sem sangue, § rapidamente apartados!”
Assim disse Atena, e o pálido § pavor deles se apossou.
Apavorados que estavam, § as armas das mãos voaram,
todas sobre o chão caindo, § com a deusa a vozear; 535
e voltaram-se pra pólis, § ansiando pela vida.
Emitiu um grito horrível § multitenaz Odisseu
e agachando-se lançou-se § tal qual águia altivolante.
Mas o Cronida soltou § então fumegante raio,
que caiu diante da Claros- § olhos do potente pai. 540
Para Odisseu então disse § a claros-olhos Atena:
“Laercida divogênito, § multiengenhoso Odisseu,
abstém-te e cessa a disputa § da guerra niveladora,
pra nunca o Cronida, Zeus § amplividente, ter cólera”.

533
Assim disse Atena, e foi-lhe § obediente, e se alegrou. 545
E juramentos impôs § no porvir às duas partes
vibrante Atena, menina § do porta-égide Zeus,
parecendo-se com Mêntor § no porte e também na voz.

534
glossário

ACAIOS (ou aqueus) – nome genérico dado aos gregos, juntamente com argivos e
dânaos; o termo Acaia designava a Grécia continental.
AFROdIte – deusa da sedução e do desejo, filha de Zeus e Dione, mãe de Eneias e
protetora de Helena e Páris.
AGAMÊNON – rei de Micenas, na Argólida (nordeste do Peloponeso), filho de Atreu,
esposo de Clitemnestra e líder das tropas acaias.
AGELAU – um dos pretendentes de Penélope
ÁJAX Oilida – filho de Oileu, guerreiro acaio líder dos locrenses.
ÁJAX Telamônio – filho de Têlamon, maior guerreiro acaio depois de Aquiles, meio-
irmão de Teucro e líder dos salamínios.
ALCÍNOO – rei dos feácios, esposo de Arete e pai de Nausícaa.
ALEXANDRE – outro nome para o troiano Páris, irmão de Heitor e filho de Príamo.
ANDRÔMACA – mulher de Heitor, filha de Eécion.
ANFIMEDONTE – um dos pretendentes de Penélope.
ANFÍNOMO – um dos pretendentes de Penélope.
ANFÍTEA – mãe de Anticleia e esposa de Autólico.
ANTICLEIA – mãe de Odisseu e esposa de Laertes.
ANTÍFATES – rei dos lestrígones.
ANTÍLOCO – filho de Nestor, irmão de Trasimedes e amigo de Aquiles.
ANTÍNOO – líder dos pretendentes de Penélope, junto com Eurímaco.
APOlO – filho de Leto e Zeus, irmão gêmeo de Ártemis, deus do afastamento, da
purificação, da vidência e da música.
AQUILES – o maior guerreiro da tropa acaia, por sua força física e agilidade, filho
da deusa Tétis e de Peleu, e natural da região da Ftia, na Tessália (norte da Grécia).
ARCÍSIO – pai de Laertes.
AReS – deus da guerra e da matança, filho de Zeus e Hera.
ARETE – esposa de Alcínoo e rainha dos feácios.
ARGIVOS – nome genérico dado aos gregos juntamente com acaios e dânaos; Ar-
gos designa em Homero ora toda a Grécia continental, ora o Peloponeso ou uma re-
gião sua, a Argólida, onde há a cidade de Argos (a chamada Argos Acaia), ora ainda
a Grécia setentrional (reino de Aquiles, a chamada Argos Pelásgica).
ARGO – cão de Odisseu em Ítaca.
ÁRteMIS – filha de Leto e Zeus, irmã gêmea de Apolo, deusa do afastamento, do
âmbito selvagem e da caça.

535
AtenA – deusa da técnica e da versatilidade, da inteligência prática e guerreira,
filha de Astúcia e Zeus.
AtlAS – deus que sustenta as colunas que separam céu e terra, pai de Calipso.
ATRIDA – patronímico dos irmãos Menelau e Agamênon, filhos de Atreu.
AUTÓLICO – pai de Anticleia e esposo de Anfítea.

BóReAS – deus do vento do norte, frio.


BRIAREU – monstro de cem mãos e cinquenta cabeças, filho de Céu e Terra.
BRISEIDA – escrava de guerra de Aquiles, filha de Briseu.

CALCAS – adivinho das tropas acaias, filho de Testor.


cAlIPSO – ninfa filha de Atlas, habitante da ilha Ogígia.
carÍBdis – monstro que sorve e expele água.
CASSANDRA – filha de Príamo e Hécuba, e irmã de Heitor e Páris.
cIclOPe – gigante de um olho só.
CÍCONES – povo da Trácia aliado dos troianos.
cIlA – monstro com seis cabeças e doze pernas, filha de Crateis.
CIMÉRIOS – povo que habita os confins da terra, numa região sem sol.
cIRce – divindade com poderes mágicos, filha do Sol e habitante da ilha Eeia.
CLITEMNESTRA – esposa de Agamênon, filha de Tíndaro e Leda, meia-irmã de Helena.
cRAteIS – mãe de Cila.
CRISEIDA – escrava de guerra de Agamênon, filha de Crises.
CRISES – sacerdote de Apolo, pai de Criseida, habitante de Crisa.
cROnO – filho de Terra e Céu, um dos Titãs e pai de Zeus, por quem foi destronado.
CTESIPO – um dos pretendentes de Penélope.
CTÍMENE – irmã de Odisseu, filha de Anticleia e Laertes.

DÂNAOS – nome genérico dado aos gregos, juntamente com acaios e argivos; Dâ-
nao foi um rei lendário da cidade de Argos.
DARDANIDA – patronímico de Príamo, descendente de Dárdano, fundador de Tróia.
deMéteR – deusa do trigo e da terra cultivada.
DEMÓDOCO – cantor cego na Esquéria, a terra dos feácios.
DIOMEDES – filho de Tideu, guerreiro acaio rei de Argos e companheiro de Estênelo.
DÓLIO – servo de Odisseu em Ítaca.
EÁCIDA – patronímico de Aquiles, neto de Éaco.
ÉACO – pai de Peleu.

536
EEIA – ilha onde vive Circe.
EGÍPCIO – velho sábio de Ítaca.
EGISTO – amante de Clitemnestra.
ELPENOR – companheiro de Odisseu.
ENEIAS – maior herói troiano depois de Heitor, filho de Anquises e da deusa Afrodi-
te e líder dos dardânios.
ÉOLO – senhor dos ventos, vive na Eólia.
EPÉRITO – nome que Odisseu cria para si junto ao pai.
EQUENEU – velho sábio da Esquéria.
erÍnia(s) – deusa(s) que persegue(m) as transgressões, sobretudo relacionadas
aos crimes de sangue entre familiares.
ESQUÉRIA – ilha (?) onde vivem os feácios.
ÉTON – nome que Odisseu cria para si junto a Penélope.
EUMEU – porqueiro servo de Odisseu.
EUPITES – pai de Antínoo.
EURÍALO – jovem feácio filho de Náubolo.
EURÍBATES – arauto, ora de Agamênon, ora de Odisseu.
EURICLEIA – serva principal no palácio de Odisseu.
EURÍLOCO – companheiro de Odisseu.
EURÍMACO – líder dos pretendentes de Penélope, junto com Antínoo.
EURÍNOME – serva secundária no palácio de Odisseu.
EURÍPILO – guerreiro ferido por Páris em Troia; guerreiro ferido por Neoptólemo em Troia.
eURO – deus do vento do leste.

FEÁCIOS – povo que vive na Esquéria.


FÊMIO – cantor do palácio de Odisseu, em Ítaca.
FENÍCIOS – povo navegador e comerciante.
FÊNIX – velho responsável pela criação de Aquiles, de quem é conselheiro.
FILÉCIO – boiadeiro servo de Odisseu.
FILOCTETES – guerreiro tessálio campeão no arco e flecha, participou da tomada de Troia.

hAdeS – filho de Crono e Reia, irmão de Zeus, Hera, Posêidon e Deméter, deus
subterrâneo que reina sobre os mortos.
HALITERSES – adivinho em Ítaca.
hARPIAS – divindades aladas com corpo de ave e cabeça de mulher, associadas à
tempestade.

537
HÉCUBA – mulher de Príamo, rei troiano, e mãe de Heitor.
heFeStO – deus coxo, do fogo e da metalurgia, filho de Zeus e Hera.
HEITOR – principal guerreiro troiano, filho de Príamo e Hécuba, marido de Andrômaca.
HELENA – filha de Zeus e Leda, mulher de Menelau e amante de Páris, que a levou
de Esparta, desencadeando a guerra.
HELESPONTO – “o mar de Hele”, entre a Trôade e a Trácia, hoje estreito de Dardanelos.
heRA – deusa do matrimônio, irmã e esposa de Zeus, e filha de Crono e Reia.
HÉRACLES (ou Hércules) – herói argivo, filho de Zeus e Alcmena, realizador dos tra-
balhos de Euristeu e divinizado após sua morte.
heRMeS – filho de Zeus e Maia, deus dos caminhos, do contato e da troca.

ICÁRIO – pai de Penélope.


IDOMENEU – guerreiro acaio filho de Deucalião e comandante dos cretenses.
IdóteA – divindade filha de Proteu.
IFTIMA – irmã de Penélope.
ÍLION – nome alternativo para Tróia, derivado de Ilo, avô de Príamo.
INO – filha de Cadmo, transformada em deusa marinha e chamada de Leucótea.
ÍRIS – deusa mensageira de Zeus.
IRO – apelido de Arneu, mendigo mensageiro em Ítaca.
ÍTACA – ilha natal de Odisseu.

LAERCIDA – patronímico de Odisseu, filho de Laertes.


LAERTES – pai de Odisseu e esposo de Anticleia.
lAMPécIA – filha do Sol, guardadora de seu gado na ilha Trinácia.
LAODAMANTE – filho de Alcínoo.
LESTRÍGONES – povo formado por gigantes que devoram carne humana.
letO – deusa mãe de Apolo e Ártemis.
leUcóteA – nome de Ino depois de transformada em deusa marinha.
LIÓCRITO – um dos pretendentes de Penélope.
LIODES – um dos pretendentes de Penélope.
LOTÓFAGOS – povo que se alimenta do lótus.
MÉDON – arauto do palácio de Odisseu, em Ítaca.
MELANTEU (ou Melântio) – cabreiro servo de Odisseu, filho de Dólio.
MELANTO – serva no palácio de Odisseu, irmã de Melanteu.
MELEAGRO – filho de Eneu e Alteia, líder dos etólios em Cálidon.
MENECIDA – patronímico de Pátroclo, filho de Menécio.

538
MENELAU – rei de Esparta, irmão de Agamênon e marido de Helena.
MENTES – líder dos táfios, identidade assumida por Atena em Ítaca.
MÊNTOR – amigo do palácio de Odisseu, em Ítaca, e identidade assumida por Atena.
MESÁULIO – servo de Eumeu em Ítaca.
MICENAS – cidade de Agamênon, na Argólida (Peloponeso).
MIRMÍDONES – habitantes da região da Ftia (norte da Grécia), comandados de
Aquiles.
MUSA(S) – deusa(s) do canto, da dança e do poder da palavra, filha(s) de Zeus e
Rememoração.

NAUSÍCAA – filha de Alcínoo e Arete.


NAUSÍTOO – pai de Alcínoo e filho de Posêidon.
NELIDA – patronímico de Nestor, filho de Neleu.
NEOPTÓLEMO – filho de Aquiles.
NESTOR – ancião rei de Pilos, pai de Antíloco e Trasimedes, principal orador e con-
selheiro das tropas acaias.
NÔEMON – itacense filho de Frônio.
nOtO – deus do vento do sul, quente.

OceAnO – deus-rio que circunda a terra, estabelecendo seus limites.


ODISSEU (ou Ulisses) – herói acaio natural da ilha de Ítaca, pai de Telêmaco e mari-
do de Penélope, célebre pela sua astúcia.
OGÍGIA – ilha onde vive Calipso.
OILIDA – patronímico de um dos dois Ájax, o menor, filho de Oileu.
OLIMPO – montanha na Tessália (norte da Grécia), morada dos deuses.
ORESTES – filho de Agamênon e Clitemnestra.

PÁRIS – filho de Príamo e Hécuba, também chamado de Alexandre, irmão de Heitor


e responsável pelo rapto de Helena.
PÁTROCLO – melhor amigo de Aquiles, com quem foi criado, e filho de Menécio.
PELEU – pai de Aquiles.
PELIDA – patronímico de Aquiles, filho de Peleu.
PENÉLOPE – filha de Icário, esposa de Odisseu e mãe de Telêmaco.
PeRSéFOne – deusa do mundo inferior, esposa do Hades e filha de Zeus e Deméter.
PILOS – cidade natal de Nestor, no sudoeste do Peloponeso.
PISÍSTRATO – filho de Nestor e companheiro de Telêmaco.

539
PITO – nome antigo para Delfos, na Fócida, onde havia o santuário de Apolo.
POlIFeMO – Ciclope filho de Posêidon e Toosa.
porção(Ões) – deusa(s) do destino, da parte que cabe a cada um, filha(s) de Zeus
e Regra, ou ainda da Noite.
POSêIdOn – filho de Crono e Reia, irmão de Zeus e Hera, deus dos mares e dos
abalos sísmicos.
PRIAMIDA – patronímico de Heitor, filho de Príamo.
PRÍAMO – rei troiano, marido de Hécuba, pai de Heitor e Páris, filho de Laomedon-
te, neto de Ilo, bisneto de Trós e descendente de Dárdano.
PROteU – divindade marinha com o dom da metamorfose.

REXÊNOR – irmão de Alcínoo e pai de Arete.

SeReIAS – dupla monstruosa com corpo de pássaro e cabeça de mulher.

TELAMÔNIO – patronímico de um dos dois Ájax, o maior, filho de Têlamon.


TÊLEMO – adivinho na terra dos Ciclopes.
TEOCLÍMENO – adivinho acolhido por Telêmaco em Ítaca.
TESPROTOS – povo que acolhe Odisseu nas histórias inventadas pelo herói.
tétIS – deusa marinha, filha de Nereu e mãe de Aquiles.
TIRÉSIAS – adivinho tebano, cego.
TRINÁCIA – ilha onde pasta o gado do Sol.
TROIANOS – habitantes da região de Tróia, assim denominados a partir de Trós,
neto de Dárdano e pai de Ilo; de modo geral, designa os troianos e seus aliados.

ZéFIRO – deus do vento do oeste.


ZeUS – deus máximo, pai dos deuses e dos homens, filho de Crono e Reia, chamado
de “astucioso” e associado aos fenômenos celestes, à ordem e ao poder real.

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Resultado de sete anos de pesquisa, este livro combina um
apanhado geral dos principais temas e personagens do mais
famoso épico de Homero com uma interpretação original,
centrada na famosa cena do confronto entre Odisseu e o
Ciclope (o gigante de um olho só) no Canto 9. O objetivo é
apresentar as questões fundamentais do poema e propor
uma visão moral mais complexa do herói astuto, que para se
vingar se disfarça e vira “ninguém”, ligando-se em sua ação
aos tópicos da identidade e da justiça.

Na segunda parte, a obra traz uma versão poética, em


redondilhas, de oito cantos da Odisseia – 1, 8, 9, 11, 13, 14, 19
e 24, tomados aqui como os mais relevantes da narrativa –, e
fornece ainda um glossário e o resumo de todos os episódios.

Este trabalho corresponde ao volume final de uma “Tetralogia


Homérica” do autor, cujos três outros títulos são: 1. A
selvagem perdição: erro e ruína na Ilíada (Odysseus, 2006); 2.
Homero múltiplo: ensaios sobre a épica grega (Edusp, 2012);
e 3. A Musa difusa: visões da oralidade nos poemas homéricos
(Annablume, 2015).

André Malta é professor de língua e literatura grega na USP desde 2001.


Além de Homero, traduziu Platão (Íon e Hípias menor, L&PM, 2007; e
Êutifron, Apologia de Sócrates e Críton, L&PM, 2008) e Esopo (Fábulas,
Editora 34, 2017). É autor do livro de poemas Homem cão (Impressões de
Minas - Selo Leme, 2017).

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