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Sentida música
www.editoramondrongo.com.br
ISBN 978-65-80066-99-5
CDU: 869.0(81)-1
CDD: 869.917
MONDRONGO
Rua Pernambuco, 334, Apto 102,
Centro | Itabuna (BA) | CEP: 45.605-510
I – POEMAS GREGOS
De Nausícaa a Odisseu............................. 19
Demódoco a Odisseu................................ 20
Argos, vinte anos depois.......................... 21
Eteócles, do outro lado............................. 22
O lamento de Polinices............................. 23
De Ismene a Antígona.............................. 24
Creonte em si............................................. 25
De Antígona a Creonte............................. 26
De Hemon após a morte de Antígona.... 27
Eurídice diante de Hemon morto........... 28
O lamento final de Circe........................... 29
Do pastor de Citerão a Édipo.................. 30
Édipo em Colono....................................... 31
Corifeu depois de tudo............................. 32
Telêmaco..................................................... 33
A undécima hora....................................... 34
Epifania de Penélope................................ 35
Polifemo...................................................... 36
A travessia.................................................. 38
O objeto....................................................... 40
II – ITINERÁRIOS
O recomeço................................................. 45
O quadro..................................................... 46
A volta......................................................... 47
O foco.......................................................... 48
[E o despertador acorda...]............................ 49
Reminiscências da casa antiga................. 50
Saturnos...................................................... 51
Anoitecer em ti........................................... 52
Soneto do encontro.................................... 53
Soneto do retorno...................................... 54
Retranca...................................................... 55
Soneto urbano............................................ 56
Estrada do Coqueiro Grande................... 57
Presságios................................................... 58
Retalhos...................................................... 59
[Para que sorrisos se a vida é pouca]............ 60
Itinerário..................................................... 61
Flor Pretérita.............................................. 63
Paisagem interior....................................... 65
O martírio de Santo Estevão:
1 –................................................................. 66
2 – ................................................................ 67
III – EPIFANIAS
Epifanias
1 –................................................................. 71
2 –................................................................. 72
3 –................................................................. 73
4 –................................................................. 74
5 –................................................................. 75
6 –................................................................. 76
7 – Elegia...................................................... 77
8 –................................................................. 78
9 –................................................................. 79
10 – Soneto a Bruno Tolentino.................... 80
IV – DAS CONTEMPLAÇÕES
V – O CAMINHANTE
A decisão.................................................... 99
O sobrevivente......................................... 101
O caminhante........................................... 104
ALGUMA CRÍTICA
SOBRE SENTIDA MÚSICA
A MÚSICA SENTIDA,
DE CLAUDIO SOUSA PEREIRA
Por Jessé de Almeida Primo.................. 113
11
vida, história e obra dos que vieram antes de nós. É
uma postura arrogante e covarde. Porque nós julga-
mos sem jamais sermos julgados. Escondemos-nos
como acusadores.
Por isso mencionei a raridade da postura de
Claudio Sousa Pereira neste livro de estreia longamente
amadurecido. Na primeira seção — “Poemas gregos” —,
ele se dirige às origens da poesia no mundo Ocidental
– Homero e os tragediógrafos gregos — numa relação
dialógica, estabelecendo uma reciprocidade mútua na
presença. Claudio S. Pereira lança a palavra-princípio
fundadora dessa relação — tu. E, assim, a tradição se
realiza dialogada porque o olhar do poeta no presen-
te se deixa iluminar pela voz dos mortos. Ele escuta e
aprende com o passado considerando-o em si mesmo.
Os personagens da Odisseia — Ulisses, Nau-
sícaa, Demódoco etc. — se presentificam nos nossos
dramas cotidianos. Ao ouvir o poeta cego Demódo-
co cantar as desventuras de Odisseu, nós leitores, nos
identificamos nesses “resquícios do real” da nossa pró-
pria vida. A mesma leitura pode-se fazer com os heróis
de Ésquilo — Etéocles, Polinices, Antígona, Creonte,
Hemon etc. Quantos de nós podemos dizer que não
somos como Creonte? Porque “A velhice em mim não
ensinou/a prudência.” É a mesma perspectiva que ve-
mos nos belos sonetos que têm Édipo como centro e a
sequência de poemas dedicados a Ulisses: “Telêmaco”,
“A undécima hora”, “Epifania de Penélope”, “Polifemo”
etc. Claudio Sousa Pereira relê os clássicos gregos sem
impor-lhes uma cega subjetividade contemporânea,
12
longe disso; o seu lirismo é iluminado pela lâmpada
dos clássicos. Estes ajudam o poeta Claudio — e a nós,
seus leitores — a enxergarmos o mundo e as “inquie-
tações do ser” nas quais “a alma discorre/em dizer o
que é lei” sob a experiência vivenciada dessa grande
maioria hoje quase esquecida — os mortos.
As seções de Sentida música foram orga-
nicamente muito bem estruturadas. Não por acaso, o
diálogo com as origens da nossa tradição poética da
primeira parte se relaciona de forma intrínseca com a
segunda seção — “Itinerários”. Nesta, nos poemas ini-
ciais, a perspectiva lírica aos poucos se expande de um
ponto mais conceitual — “na confiança do porvir” e
“entre a abóbada rósea/e a escuridão” — para o entorno
da concretude da cidade de Salvador — “Visualizo as
torres elétricas” — porque é “lá onde o céu termina/e
a imaginação começa” —, e sua geografia doméstica —
“no chão antigo desta casa antiga,/de telhas pousadas
sob o silêncio” — até a uma sensualidade comparando
os seios da mulher amada a anjos e pássaros em “Sa-
turnos”. Assim, o vínculo entre a tradição e a vida pes-
soal do poeta se interioriza ainda mais numa angular
que aproxima o mais longínquo espaço-temporalmente
considerado até o aqui-agora vivido pelo eu-lírico.
Nessa relação dialógica com a tradição,
Claudio S. Pereira faz uso das formas fixas e metros
antigos e novos — sonetos, terza rimas, a consciência
rítmica do verso livre etc. Na retranca, forma criada
e consagrada pelo pernambucano Alberto da Cunha
Melo, brilha para nossa meditação este dístico: “E que
13
se faça esta manhã/em mim perfaz uma ânsia vã.” No
verso livre, os elementos da Criação — brisa, treva e o
cricrilar dos grilos — se integram sem susto ao cloro
de um reservatório de água onde o poeta trabalhou:
Noite.
Integro-me à brisa
leve
na canção das folhas,
ao laço de treva e luzes do horizonte,
ao bafejo do cloro e sons de grilos.
14
de caridade do poeta, pode viver.
Nas duas próximas seções — “Epifanias” e
“Das contemplações” —, Claudio S. Pereira continua
sua peregrinação dialogada com temas difíceis, mas
vitais para nosso tempo afogado em horizontalidades
mesquinhas. Como os subtítulos indicam, não apenas
nessa parte, mas em todo o livro, o eu-lírico abre-se às
dimensões do “susto que ilumina”, isto é, ao que a vida
humana possui de transcendente. Por isso ele contempla
essa “montanha do real”, e é nela que “Um horizonte vas-
to se revela/além dos muros físicos do mundo”. O coti-
diano, por mais diversificado que seja, jamais poderá en-
contrar em si mesmo o seu próprio sentido. É necessário
contemplar o Ser para que ele nos revele sua “experiência
total” — a epifania. Porque, como sentencia o poeta “an-
tes do verbo a luz”. Nesse sentido a luz fundante, a luz
fenomênica, não só a única luz natural, o sol, mas tudo
que entra no tempo: de uma pedra nas profundezas do
oceano a uma criança, a uma nuvem no céu.
Em termos seculares, epifania é quando o uni-
verso se ilumina para nós. No entanto, “sentir não bas-
ta/a quem intui a luz”, ela deve ser respondida com nova
postura diante do mundo e das pessoas. Essa “revela-
ção” dever ser seguida de mudança interior do sujeito
que a sofre, porque essa Beleza não pode ser desasso-
ciada de sua unidade primordial — o Bem e a Verdade.
É o que nos confirma Claudio S. Pereira: “Neste mundo
ressoa o invisível/[...]transposto em concretude.”
Na última parte de Sentida música — “O
caminhante” —, retorna o diálogo inicial com Odis-
15
seu. Em outras palavras, com a tradição de origem,
a poesia grega. Assim é nos poemas “A decisão” e “O
sobrevivente” na fluência da terza rima. Se, enquanto
jornada, o livro se encerra, a peregrinação do eu-lí-
rico, contudo, prossegue sua viagem existencial com
“O caminhante”. Claudio Sousa Pereira sabe que to-
dos nós somos romeiros à procura de algo que, muitas
vezes, não distinguimos com clareza. Não é de modo
gratuito que “o sol se esquiva, escuro” e “o caminhan-
te/de joelhos cai entre a poeira imensa.” Nesse poema
a epifania se efetiva abertamente na imagem do Ar-
canjo. As referências bíblicas deste livro são visíveis
não somente na figura de Santo Estêvão, mas também
na abordagem dos seus temas; e todos, de um modo
ou de outro, confluindo para o diálogo final que de-
sejamos – Deus. E é na dimensão do sagrado que o
caminhante segue “com aura de esperança e espinho.”
I - Poemas gregos
O deiforme Odisseu, té que à pátria não fosse chegado
Homero, Odisseia.
Trad. Carlos Alberto Nunes
19
DEMÓDOCO E ODISSEU
20
ARGOS, VINTE ANOS DEPOIS
21
ETÉOCLES, DO OUTRO LADO
22
O LAMENTO DE POLINICES
23
DE ISMENE A ANTÍGONA
24
CREONTE EM SI
25
DE ANTÍGONA A CREONTE
26
DE HEMON APÓS A
MORTE DE ANTÍGONA
27
EURÍDICE DIANTE DE HEMON MORTO
28
O LAMENTO FINAL DE CIRCE
29
DO PASTOR DE CITERÃO A ÉDIPO
30
ÉDIPO EM COLONO
31
CORIFEU, DEPOIS DE TUDO
32
TÊLEMACO
Ulisses,
vou pela estrada do mar aberto
na proa do destino.
A claridade do sol em fluxo
é tão belo quanto é vero,
descortinando a bruma
em que vives no imponderável:
— Sim, tu estás!
Esperança...
da Ítaca que te aguarda,
razão de ser, consciência do existir,
o retorno é tão longo quanto a luta,
mas, após o presságio, a certeza:
— Sim, tu estás!
Estás...
júbilo transborda a verdade,
a continuidade do teu sangue
te procura — mesmo no clamor
de luas transcorridas,
de saudades entrecortadas,
desta busca tecida no querer:
— Sim, tu voltarás!
33
A UNDÉCIMA HORA
na lassidão e sonolência,
Ulisses então vai seguindo,
para, de pronto e novamente,
atravessar imenso oceano.
34
EPIFANIA DE PENÉLOPE
35
POLIFEMO
no clamor vivido —,
sobrepõe astuta
a perda dos sócios,
Ninguém o executa.
Providente vinho,
de Zeus ilibado,
depois do sinistro,
ao Ciclope é dado,
e a lança afinada
em brasa fincou-se
no centro da vista
o golpe tão doce;
36
— qual lume de sonho —,
o passo se estuga,
a nave é precisa
na lúcida fuga.
“— Eu sou Odisseu,
de Laertes sou filho,
potente eversor,
para Ítaca eu trilho,
Salva-se da rocha
de enorme montanha,
chove água salgada...
quase a nave apanha.
Ao oceano onduloso
o pranto verteu,
misturou-se em susto,
quase ao Hades desceu.
Destino alcançado
para onde navegue,
pois, quando os eternos
o querem — conseguem.
37
A TRAVESSIA
Mas o alarido
tão suave, tão mortal
o chama, o chama...
num eflúvio de prazeres,
da beleza inconsútil,
vozes que são beijos leves e sensuais.
Com os dedos no movimento em arco
o convidam:
“— Venha, Odisseu, venha!
Siga o canto mais forte
e mais intenso
que qualquer gozo humano
38
pode experimentar...”
E com os olhos ele pede para ser solto
encarecidamente,
já vencido, porém preso
àquela maneira de como entoavam
tão mulheres, tão deusas,
tão belíssimas...
39
O OBJETO
40
a suplantar o simbolismo,
figurado em causa primeira?
41
II - ITINERÁRIOS
II - Itinerários
Que fique só da minha vida
um monumento de palavras
Mas não de prata Nem de cinza
Antes de lava Antes de nada.
David Mourão-Ferreira
Testamento
O RECOMEÇO
E depois de marejados
os olhos
respirar
respirar profundamente
expandindo o peito
desarqueando os ombros
e lentamente
erguer o cenho
— na confiança do porvir —
desajoelhar
levantar
e seguir.
45
O QUADRO
É bem verdade
que vejo toda a gente
na volta após o labor.
Mas
no fundo da moldura
— feito um milagre —
o ouro do horizonte
incandesce
ali, no seio do asfalto,
entre a abóboda rósea
e a escuridão.
46
A VOLTA
Retornar
mera e simplesmente?
— não, não quero.
Mas a dimensão
de algo perdido
insistentemente
clama, clama.
Um cadeado aberto
ou ferrolho pendido
retine nos olhos
e nos ouvidos
do pensamento.
Bater, fechar,
não sei, não sei,
mas tudo que marca
sempre estima a volta.
47
O FOCO
48
[E o despertador acorda...]
E o despertador acorda...
o milagre do dia
já está consumado.
49
REMINISCÊNCIAS DA CASA ANTIGA
50
SATURNOS
51
ANOITECER EM TI
52
SONETO DO ENCONTRO
53
SONETO DO RETORNO
54
RETRANCA
55
SONETO URBANO
56
ESTRADA DO COQUEIRO GRANDE
Asserenou a alma.
Noite.
Integro-me à brisa
leve
na canção das folhas,
ao laço de treva e luzes do horizonte,
ao bafejo do cloro e sons de grilos.
57
PRESSÁGIOS
58
RETALHOS
59
[Para quê sorrisos, se a vida é pouca...]
60
ITINERÁRIO
desconfia a aparência
de contradição no ar...
fingem-se de oprimidos
mas são os opressores.
61
quase ninguém percebe
esta chama homicida
62
FLOR PRETÉRITA
63
Contudo, o teu viver, mulher inconcreta,
refeita em verbo
foi declinado sem ver a luz do dia,
sem testemunhar a luz da vida,
encerrado numa caixa de sapatos
ocultamente em meio a sacos de lixo.
Caule desprendido,
flor pretérita rumo ao nada.
64
PAISAGEM INTERIOR
65
O MARTÍRIO DE SANTO ESTEVÃO
1–
66
2–
67
III - EPIFANIAS
III - Epifanias
De tempo somos feitos, e acabamos
quando escassa clepsidra seca em nós.
Abgar Renault
EPIFANIAS
Que é isto? O susto que ilumina a vida,
a perfeita expressão sutil de tudo,
caminho e direção repõem, contudo
é mais de uma virtude incandescida.
71
2
72
3
Na irmandade da imagem em Florisvaldo Mattos:
73
4
74
5
75
6
Para Silvério Duque, poeta e clarinetista
76
7
ELEGIA
77
8
78
9
79
10
SONETO A BRUNO TOLENTINO
Para Jessé de Almeida Primo
Era a noite profunda e, como um dia,
surge o astro, sol maior. Iluminava
a sombra no caminho que formava,
pela ausência, a lacuna que doía.
80
IV - Das contemplações
¡Tú, ventana a lo diáfano:
desenlace de aurora,
modelación del día:
mediodía en su rosa,
tranquilidad de lumbre [...]
Jorge Guillén
Cántico
SENTIR NÃO BASTA
SENTIR NÃO BASTA
Momento profundo,
concebido
através do fulgor mais inspirado
na imagem clara do sonho fruído.
83
RAZÃO DO POEMA
O ritmo-fluxo se afina,
que na mente em absoluto,
no sentido resoluto
— o espírito se ilumina...
84
DAS MELODIAS
Experiência total:
— o verbo é suficiente
ao contato final
da sensação premente?
O nomeio do exato,
— novo susto pulsante —
em que transpassa ao tato
o redito fundante;
linguagem impossível
se traduzida a termo:
exuberante a nível
no recôndito do ermo;
da mediação se altera
tão sensível a fundo,
que o objeto reverbera
na música do mundo,
85
No transpor ao concreto
— emana a melodia —
sutilmente secreto,
o verbo propicia
à projeção da ideia
que ativa a consciência,
cingindo em logopeia
o labor da existência.
86
SENTIDA MÚSICA
Intuída na mente,
escapa ligeira,
tão pouco se sente
música faceira,
momento epifânico,
um susto de leve,
é menos que pânico,
melodia breve.
Faz-se contemplativa
de sabor empírico,
figura cativa
ao guiar o espírito.
Flui no pensamento
envolvente ao fundo
que, tão puro e isento,
movimenta o mundo;
és força animada,
instintiva vida,
sutil forma alçada
apenas sentida;
87
mas pouco se explica,
na epiderme toca,
nos sentidos fica,
e sugere e evoca.
Ó canção extrema,
que contemplo o mínimo,
de todo sistema
só conheço o ínfimo.
88
A LIDA
te reconduz no trajeto.
Justo nova ordem se traça,
após um turno completo
não irás hoje pra casa.
em custosa travessia.
Refaze-te logo disposto
na jornada que se inicia
naquele velho posto;
89
pensa na família, e os pais
longe, tais que, depois de vinte
e tantas horas ou mais,
verás na manhã seguinte.
90
HORAS DO MUNDO
Do amadurecer do fruto
sua função, seu intento,
no destino resoluto,
transmuta ao seu momento.
91
feito na diversa lista
de imagens em dimensões,
tudo na perfeição vista
por nossas imperfeições.
92
PRESENÇA DAS COISAS
elementos em equilíbrio
no todo
em tudo
viste
explicados são
na materialização
de um ser que
existe
intangíveis formas
mas destituídas do molde
transpassam o barro-corpo
revestem-nos
além além da imanência
aparente
— invisíveis exibições —
funções perfeitas
incompreensíveis e caras
para nós
talvez
mas tão simples para quem
arregimenta
da onisciente e suprema
presença
93
AZUL SOLAR
Finalmente,
de mim mesmo, percorro
um cálido caminho que se forma,
visualmente posto
para além dos olhos, junto à alma.
Se há chuva lá fora...
neste lado, porém,
é azul solar,
a face externa não difere,
por outro,
é regido na demanda dos delírios
e diáfanos contentos,
assim como em angústias laceradas.
94
MÚSICA INVISÍVEL
Teias sensíveis
ligam os fluxos da cidade,
organizam cada elemento móvel
orbitam o concreto-estável
fixado nas coisas.
Através do Sol
dourando a manhã
cada ponto
doa ao outro
sua dose de proporção.
95
TERZINAS
O verde-gris do arvoredo
neste chão que, agora, vejo,
se fez manhã logo cedo
no paterno lugarejo.
E o verde visto pela ânsia
justifica-se num beijo
em dadivosa mistura.
96
V - O CAMINHANTE
V - O caminhante
E como eu palmilhasse vagamente
Pela estrada de Minas, pedregosa [...]
99
na palavra do homem sentida,
jurada a fiel consorte,
dada por toda uma vida.
ao preferir, obstinado,
o vero à sublimação,
não feito o ébrio alucinado
100
O SOBREVIVENTE
101
o guerreiro a afundar-se muito cedo
no retorno em vontade decidida,
que então será entregue no penedo
102
e a lágrima é irmã gêmea da glória”.
Mas a divina Atena abranda o oceano,
a chuva finda, a superfície flórea
103
O CAMINHANTE
104
no absoluto então disse por inteiro:
“— Por que, rude ser, ao ser tão pequeno
a espera não soube ao passo primeiro
105
entre o caos do momento em que, serena
e calma, se faz a alma do andarilho
que, contrito, sussurra: “— Tende pena,
106
por igual, mas o andante em si aparenta
aos seus desejos do mais largo travo,
em queda nos reveses de tormenta,
ao seu deus de si próprio sendo escravo.
O humano ser, moeda em claro-escuro,
junto-cindidos no íntimo mais cavo.
107
ser na textura audível desse traço.
Fixa o que se revela em completude
do desvelado enigma a cada passo,
108
_____________________
Notas:
109
Állex Leilla
Elpídio Mário Dantas Fonseca
Jessé de Almeida Primo
João Filho
Luís Carlos Bragança de Pina
Renã Corrêa Pontes
e
Wladimir Saldanha
113
tevão”, cuja voz se divide com a do narrador que tudo
testemunha num sonho. Ou reelabora, dramaticamen-
te, em diversas líricas diversos episódios.
Assim como Lima, Pereira é também um
autor de feição virgiliana e também camoniana, se le-
varmos em conta a maneira de Camões lidar com o
grande latino na épica. E é justamente nessa feição que
se afastam de Eliot, embora seja este, a seu modo, um
virgiliano também. Eliot, no que respeita às famosas
notas ao poema, em que pese a qualidade incontes-
tável do que escreveu e sua consequente importância,
tem contra si, mas sem que estas coisas comprometam
a integridade do resultado final, ou a vaidade erudita
ou a preocupação exagerada de quem supõe que o lei-
tor não vai entender o que escreveu ou continuará sem
saber qual a fonte de tantas referências. Nisso, o pro-
cedimento do grande anglo-americano, procedimento
esse tão defensivo, não se distingue apenas do proce-
dimento de Lima e de Sousa Pereira como também o
afasta de Virgílio e de Camões.
Virgílio, a saber, usou o mesmo hexâmetro
homérico e como que deu continuidade à narrativa da
Ilíada que termina antes da destruição de Tróia e por
vezes reproduz os mesmo episódios; e Camões, por sua
vez, usa a estrutura da Eneida, também reproduzindo
alguns de seus episódios, mas para contar a história de
Portugal, sem fazer indicação – fora um ou outro mo-
mento no corpo do poema – de suas fontes de maneira,
diria, externa, sem, por exemplo, estampar em folha de
rosto que esta obra parte da Eneida, de Virgílio. Afinal,
tanto Camões como Virgílio já partem do princípio de
que essas fontes são bastante conhecidas e contam jus-
tamente com isso por que o leitor perceba de imediato
114
a origem do que escreveram. Fazia parte da boa reputa-
ção literária a arte da imitação, nos termos de Mário de
Andrade, plagiar de “forma sempre criadora”. E é jus-
tamente por isso que me soa exagerada a reputação de
plagiário de Gregório de Matos, no pior sentido que se
possa atribuir isso a um escritor, armadilha em que até
Manuel Bandeira, de vastíssima cultura literária, caiu
na sua Apresentação da literatura brasileira. Afinal, se
considerarmos que a língua espanhola, incluída a sua
literatura, era patrimônio comum tanto de Espanha
como de Portugal, como acreditar que o grande poeta
baiano não queria que descobrissem que “Um soneto
começo em vosso gabo” tem como origem “Un soneto
me manda hacer Violante”? Levando a arte da imitação
ao extremo, o poeta português João Franco Barreto, no
século XVII, traduziu a Eneida em oitavas camonianas,
não apenas isso, recontou toda a história do poema vir-
giliano reproduzindo nessas oitavas a musicalidade de
cada oitava dos Lusíadas.
Colagens, à maneira eliotiana e até certo
ponto, liminiana, não parecem predominar na poesia
de Sousa Pereira, salvo um ou outro momento, como
“...quando a Aurora/ em dedos de rosa/ surgiu matu-
tina”, que são da Ilíada, na tradução de Carlos Alberto
Nunes, mas sim algo como um desenvolvimento de
outros poemas, como se esses lhe servissem de mote
para a composição dos seus, ou seja, usa os motivos
que os grandes poemas lhe fornecem e, levando em
conta que Claudio Sousa Pereira é também tradutor2,
115
é de se esperar que no processo de tradução, sendo ele
um poeta autoral que também traduz, amplie as pos-
sibilidades de sua linguagem pessoal a partir do estilo
de autores de outras línguas.
Claudio Sousa Pereira escreve o que se tor-
nou conhecido como poesia da cultura, não com a
intenção de exibir essa cultura como se exibe uma
medalha, mas justamente porque as várias referên-
cias de que se vale é que lhe dão a voz e os elementos
de que necessita para expressar o que se passa no
próprio espírito, procedimento equivalente ao que
Jorge Luis Borges, ao falar sobre os diálogos platô-
nicos, disse que Platão usava para responder às suas
perguntas pessoais. Quando tinha alguma dúvida
acerca de algum assunto, esforçava-se por imaginar
o que Sócrates diria a esse respeito. Essas referên-
cias não se limitam às mais pretéritas, àquelas cujas
qualidades o tempo encarregou-se de atestar. In-
cluem-se nesses diálogos autores contemporâneos,
como Bruno Tolentino:
É visível que a música apresente
a virtude de todo pensamento,
e a ideia iluminada não se ausente,
harmonizando o gesto tão isento.
116
ao múltiplo sentido, em dizer
sobre a presença e claridade breve,
a música completa-se no ser.
117
está num dos versos de “Decisão”, que abre a série – em
oposição à figura vacilante e, por fim, demissionária da-
quele que “palmilha” a estrada de Minas, pedregosa”. E
marcando a diferença entre a determinação de Odisseu
que, por vezes, se mistura aos valores cristãos, e a abdi-
cação espiritual de que fala Drummond, lemos um dos
mais belos, delicados e alentadores finais:
E depois de marejados
os olhos
respirar
respirar profundamente
expandindo o peito
desarqueando os ombros
e lentamente
erguer o cenho
— na confiança do porvir —
desajoelhar
levantar
e seguir.
118
microcosmo do nosso cotidiano urbano, algo próxi-
mo ao universo de Ulisses, de Joyce, no qual o escritor
Irlandês reproduz num passeio pelas ruas da Irlanda
todo o universo da Odisseia. Nesse pequeno poema se
percebe todo o percurso de Odisseu, dos longos anos
que durou a guerra, dos quase intransponíveis obstá-
culos que lhe atrasaram em mais de duas décadas o
retorno, mais as lutas na própria terra por que pudes-
se enfim, “depois de marejados/ os olhos”, desfrutar a
paz com a sua família. Dentro da mesma sessão, há
variações, como em “Quadros”, em que um nosso con-
temporâneo, após tudo, após o labor, vê “no fundo da
moldura/ — feito um milagre — o ouro do horizonte”
ou que percebe “ tudo que marca/ sempre estima a
volta.” Tudo aponta para o retorno à Ítaca. Ou, enfim,
o mesmo Odisseu, que retirando os véus do triunfalis-
mo pagão, se eleva a Santo Estevão, cuja Ítaca se trans-
figura em Glória, quiçá, no corpo de Cristo:
119
UM OLHAR ATENTO A CANTAR...
Elpídio Mário Dantas Fonseca
120
a qualquer tradutor: a fidelidade ao original e a expres-
são corrente em português. Mostra ainda Claudio nesse
livro uma parte de seus imensos conhecimentos de li-
teratura brasileira, esclarecendo e apontando interliga-
ções entre autores, como as entre Corazzini e Manuel
Bandeira (que este reconhecera, de passagem, em seu
Itinerário de Pasárgada) e Cecília Meireles, Augusto
Frederico Schmidt, Vinicius de Morais, Ribeiro Couto,
Eduardo Guimarães e Raul de Leoni, situando-os, não
só no quadro desta literatura como no da literatura ita-
liana até o autor em tela, cujos aspectos centrais da poé-
tica Claudio apresenta, passando, em seguida, para a in-
fluência de Corazzini em vida e após a morte, influência
que, como dito, chegou ao Brasil. Verdadeiro trabalho
de explorador consciente e generoso em revelar a um
público mais amplo os tesouros que encontrou.
Tendo-lhe conhecido as vertentes de ensaísta
da poesia brasileira e exímio tradutor do italiano, eis
agora Claudio S. Pereira me deu a honra de fazer o pos-
fácio a esta sua tão bela “Sentida Música”, obra inaugural
de poeta, e, não sendo eu crítico literário, mas um mero
leitor que gosta de poesia, direi das impressões que me
causou tão precioso lançamento, como, de regra, costu-
ma acontecer com as publicações da Mondrongo.
Começando pelo título, Sentida Música, que
já cumpre o que, em sua A Criação Literária, poesia e
prosa3, disse Massaud Moisés da poesia, chamando-a de
“expressão do “eu” por meio de palavras polivalentes,
ou metáforas”: Música triste. Música que se sentiu. O
que o poeta percebeu (senti) da música. Sem ti, dá mú-
121
sica, e assim por diante num conjunto de polivalências
e metáforas que se espalham pelas cinco partes do livro:
Poemas gregos; Itinerários; Epifanias; Das contempla-
ções; O caminhante.
Em Poemas gregos, vemos um entretecer dos
destinos de Odisseu, Édipo e dos parentes deste último,
a demonstrar que Claudio sabe exatamente onde come-
ça o seu ofício e onde ele, autor, se situa, apoiando-se
nas epopeias e tragédias gregas, mostrando-nos sempre
um monólogo apropriado de cada uma das persona-
gens, como entre outros a Epifania de Penélope:
122
do fiel, absolvido, do sacramento da confissão:
E depois de marejados
os olhos
respirar
respirar profundamente
expandindo o peito
desarqueando os ombros
e lentamente
erguer o cenho
— na confiança do porvir —
desajoelhar
levantar
e seguir.
Em Epifanias mostram-se as belezas do coti-
diano, tão frequentemente alheias à atenção do comum
das pessoas e que dão ensejo ao autor para considerações
metafísicas, como, entre outras, na Epifania 5, o soneto:
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Em Das contemplações, eis a música apre-
sentando-se para o poeta que a sente, com ela se
une, e no-la transmite em suas várias melodias
como em Música Invisível:
Teias sensíveis
ligam os fluxos da cidade,
organizam cada elemento móvel
orbitam o concreto-estável
fixado nas coisas.
Através do Sol
dourando a manhã
cada ponto
doa ao outro
sua dose de proporção.
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uma das partes: o tema da partida de Odisseu e de
seu retorno segue como o fio condutor dos poemas
bem como o olhar do poeta a ver belezas e horro-
res inesperados nas coisas cotidianas. As belezas
do Soneto do encontro e Anoitecer em ti:
***
125
E o horror, nos versos finais de Flor Pretérita:
Olavo Bilac:
Claudio S. Pereira:
Camões:
126
Onde a terra se acaba e o mar começa, [de Os Lusía-
das., Canto III, 20]
Claudio S. Pereira:
Claudio S. Pereira:
Dante Alighieri:
127
porque a direita via era perdida.
Ah, só dizer o que era é coisa dura
Esta selva selvagem, aspra e forte,
Claudio S. Pereira:
O verde-gris do arvoredo
neste chão que, agora, vejo,
se fez manhã logo cedo
no paterno lugarejo.
E o verde visto pela ânsia
justifica-se num beijo
128
sificação de Voegelin, ou no do discurso analítico, na
classificação de Olavo de Carvalho, na teoria dos qua-
tro discursos, em plena harmonia com a classificação
voegeliniana e a ela complementar.7 Confiram:
129
“Aristóteles, na Metafísica (no Livro A), reflete
acerca do problema que o que ele está fazendo em
filosofia - aquela abertura para o conhecimento da
relação noética para o fundamento que é ao mes-
mo tempo uma iluminação — [...] não é diferente
em sua estrutura, em princípio, e na busca (na in-
vestigação em que se envolve), [de], por exemplo,
[o que é feito pelos] poetas de mito cosmogônico
como Hesíodo. Quando eles falam da origem [na
linguagem platônica, a aition) do mundo, no céu
e na terra, e de [lá] constroem então a inteireza
da história da realidade na forma de um mito cos-
mogônico ou um mito teogônico, eles fazem exata-
mente o mesmo [que] ele faz. Eles estão à procura
da relação com o fundamento e tentam encontrar
a fórmula para esse fundamento. Só que, no caso
filosófico, essa estrutura de consciência se tornou
mais diferenciada, mais claramente articulada do
que era nas especulações teogônicas ou cosmogô-
nicas. Agora, não temos nenhum termo para essa
relação; e chamei-a a equivalência de símbolos sob
várias condições de consciência. Então podemos
ter a mesma investigação, que se expressa filoso-
ficamente ou (estou enfatizando o elemento ilu-
minador) na revelação, também na simbolização
mítica das especulações míticas como nas espe-
culações teogônica, antropogônica, [e] cosmogô-
nica. Elas são equivalentes na escala que parte da
compactação até a diferenciação.
130
ciência: Todas elas têm que ver com a presença do
divino como o fator movente. Esta presença do
divino como o fator movente na alma e no mun-
do em geral é chamado por Platão a parousia: na
República, por exemplo, quando ele desenvolve
o conceito de epekeina. Esta presença identifica
os vários acontecimentos que são equivalentes e
os faz reconhecíveis entre si. Compreendemos a
simbolização compacta, comparativamente pri-
mitiva, porque reconhecemos nela a investigação
da mesma presença (na experiência da presença
divina) que [nós] encontramos nas experiências
mais diferenciadas. Não se pode, portanto, dizer
que acontecimentos passados de consciência e
experiência pertencem ao passado, ou que acon-
tecimentos futuros pertencerão exclusivamente ao
futuro, porque o que os faz acontecimentos como
acontecimentos de consciência é o que eu chama-
ria a “presença indelével” do divino, que identifica
a tensão na relação entre o homem e o fundamento
divino. Então, todos os acontecimentos passados
estão presentes no sentido da presença indelével
e, portanto, pertencem ao mesmo problema estru-
tural e à mesma realidade no processo histórico
de compactação e diferenciação. E por isso temos
uma história — e, vedes, uma história que é inteli-
gível. O que torna a história inteligível é a parousia
em todos os casos.
E vedes agora [...] o que significaria descartar
esses descobrimentos nas estruturas da consciência.
Porque então perdeis, não o passado, que pode ser
jogado ao mar, mas perdeis o vosso presente, porque
o vosso presente não tem nenhum significado a não
ser que se relacione com os acontecimentos mais
compactos do passado, que estão também presentes.
Não podeis sair do presente indelével na história; e
se tentardes fazer isso, tornais-vos um selvagem do
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momento sem nenhumas relações com vossa própria
realidade e as estruturas de vossa consciência.” 8
E a O Objeto
Mas que objeto é esse, envolvente,
de uma oculta ação provedora
E a Razão do Poema
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Mas, antes do verbo, a luz
—luz total que cega em susto,
de um arrepio, golpe a custo
de enigma que nos conduz.
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de cada idade, uma recapitulação permanente dela e
uma sucessão de retorno? Mas a cultura da Europa
mesma não era também ela um sonho perpétuo de
retorno a todos os paraísos imaginados e perdidos no
percurso da história da civilização?
Eu estava, sem dúvida, a ponto de fundar
uma “metafísica dos retornos”! Estava, quiçá, no ca-
minho de fazer nascer um pequeno ducado no impé-
rio da filosofia e, em consequência, receber o título
de “cavaleiro da ideia”. E, como qualquer ciência ou
metafísica nova devia, para aprofundar de maneira
decente e convincente no mundo, ser apresentada em
trajes helenos, decidi que, partindo da palavra nóstos,
“retorno”, minha ideia e metafísica em que ela passa-
va a encarnar-se teria o nome de nostologia!”9
Retornar
mera e simplesmente?
— não, não quero.
Mas a dimensão
de algo perdido
insistentemente
clama, clama.
Um cadeado aberto
ou ferrolho pendido
retine nos olhos
e nos ouvidos
do pensamento.
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Bater, fechar,
não sei, não sei,
mas tudo que marca
sempre estima a volta.
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E em O Sobrevivente
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literatura brasileira de excelência
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