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Sentida música

Claudio Sousa Pereira

Sentida música

1ª edição - Bahia / 2022


Nenhum trabalho pode ser medido pelo tamanho da empresa que
o executa, mas pela coragem e confiança no que faz. É assim que,
inspirados pela máxima pessoana, “põe quanto és no mínimo que fazes”,
trabalhamos cotidianamente oferecendo ao leitor livros de qualidade e
respeitando o autor naquilo que ele tem de mais sagrado: os seus sonhos.

www.editoramondrongo.com.br

2022, Sentida música


Gênero: Poesia
Copyright © Claudio Sousa Pereira
Copyright © Mondrongo
Revisão: Wladimir Saldanha, João Filho
e Elpidio Mário Dantas Fonseca
Editoração eletrônica e Capa: Ulisses Góes
Editor: Gustavo Felicíssimo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP

P436s Pereira, Claudio Sousa.


Sentida música / Claudio Sousa Pereira. – Itabuna, BA: Mondrongo, 2022.
138 p. ; 13 x 20 cm.

ISBN 978-65-80066-99-5

1. Literatura brasileira. 2. Poesias. I. Título.

CDU: 869.0(81)-1
CDD: 869.917

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Para meus Pais
e meus irmãos
Qualquer coisa de agora, mas de eterno
Dante Milano
Sumário
A TRADIÇÃO VIVIDA
Por João Filho............................................. 11

I – POEMAS GREGOS

De Nausícaa a Odisseu............................. 19
Demódoco a Odisseu................................ 20
Argos, vinte anos depois.......................... 21
Eteócles, do outro lado............................. 22
O lamento de Polinices............................. 23
De Ismene a Antígona.............................. 24
Creonte em si............................................. 25
De Antígona a Creonte............................. 26
De Hemon após a morte de Antígona.... 27
Eurídice diante de Hemon morto........... 28
O lamento final de Circe........................... 29
Do pastor de Citerão a Édipo.................. 30
Édipo em Colono....................................... 31
Corifeu depois de tudo............................. 32
Telêmaco..................................................... 33
A undécima hora....................................... 34
Epifania de Penélope................................ 35
Polifemo...................................................... 36
A travessia.................................................. 38
O objeto....................................................... 40

II – ITINERÁRIOS

O recomeço................................................. 45
O quadro..................................................... 46
A volta......................................................... 47
O foco.......................................................... 48
[E o despertador acorda...]............................ 49
Reminiscências da casa antiga................. 50
Saturnos...................................................... 51
Anoitecer em ti........................................... 52
Soneto do encontro.................................... 53
Soneto do retorno...................................... 54
Retranca...................................................... 55
Soneto urbano............................................ 56
Estrada do Coqueiro Grande................... 57
Presságios................................................... 58
Retalhos...................................................... 59
[Para que sorrisos se a vida é pouca]............ 60
Itinerário..................................................... 61
Flor Pretérita.............................................. 63
Paisagem interior....................................... 65
O martírio de Santo Estevão:
1 –................................................................. 66
2 – ................................................................ 67

III – EPIFANIAS

Epifanias
1 –................................................................. 71
2 –................................................................. 72
3 –................................................................. 73
4 –................................................................. 74
5 –................................................................. 75
6 –................................................................. 76
7 – Elegia...................................................... 77
8 –................................................................. 78
9 –................................................................. 79
10 – Soneto a Bruno Tolentino.................... 80

IV – DAS CONTEMPLAÇÕES

Sentir não basta.......................................... 83


Razão do Poema........................................ 84
Das melodias.............................................. 85
Sentida música........................................... 87
A lida........................................................... 89
Horas do mundo....................................... 91
Presença das coisas................................... 93
Azul solar................................................... 94
Música invisível......................................... 95
Terzinas....................................................... 96

V – O CAMINHANTE

A decisão.................................................... 99
O sobrevivente......................................... 101
O caminhante........................................... 104

ALGUMA CRÍTICA
SOBRE SENTIDA MÚSICA

A MÚSICA SENTIDA,
DE CLAUDIO SOUSA PEREIRA
Por Jessé de Almeida Primo.................. 113

UM OLHAR ATENTO A CANTAR...


Por Elpídio Mário Dantas Fonseca....... 120
A TRADIÇÃO VIVIDA

por João Filho*

O diálogo com a tradição literária, efetuado


por Claudio Sousa Pereira, neste Sentida música, realiza
de forma rara o que o filósofo austríaco Martin Buber
chamava de ação mútua, a relação de reciprocidade, em
que dois sujeitos — homem e Ser — são atuando atua-
dos; entabulam um colóquio sem que o outro se torne
objeto, mas, antes, reciprocidade viva na presença. O
outro não é tratado como coisa inerte, não é experien-
ciado no sentido que lhe dá Martin Buber, ou seja, o ou-
tro, o “tu” — pessoa, obra, mundo, Ser — não se torna
uma coisa, não se coisifica.
Da nossa perspectiva moderna, na quase to-
talidade de vozes que se direcionam ao passado, não
dialogamos com ele, na acepção indicada por Martin
Buber, de troca substancial e necessária. Ao contrário,
nós o manipulamos ao nosso bel prazer, tornando-o
um objeto que pode ser mexido e remexido como coi-
sa inanimada. Lançamos sobre toda a história humana
antecedente nossa subjetividade travestida de ideolo-
gias as mais nefastas. Essa postura tem como conse-
quência uma arrogância monstruosa, qual seja: nós
achamos que conhecemos o passado melhor do que
ele se conhecia! É a completa desconsideração pela

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vida, história e obra dos que vieram antes de nós. É
uma postura arrogante e covarde. Porque nós julga-
mos sem jamais sermos julgados. Escondemos-nos
como acusadores.
Por isso mencionei a raridade da postura de
Claudio Sousa Pereira neste livro de estreia longamente
amadurecido. Na primeira seção — “Poemas gregos” —,
ele se dirige às origens da poesia no mundo Ocidental
– Homero e os tragediógrafos gregos — numa relação
dialógica, estabelecendo uma reciprocidade mútua na
presença. Claudio S. Pereira lança a palavra-princípio
fundadora dessa relação — tu. E, assim, a tradição se
realiza dialogada porque o olhar do poeta no presen-
te se deixa iluminar pela voz dos mortos. Ele escuta e
aprende com o passado considerando-o em si mesmo.
Os personagens da Odisseia — Ulisses, Nau-
sícaa, Demódoco etc. — se presentificam nos nossos
dramas cotidianos. Ao ouvir o poeta cego Demódo-
co cantar as desventuras de Odisseu, nós leitores, nos
identificamos nesses “resquícios do real” da nossa pró-
pria vida. A mesma leitura pode-se fazer com os heróis
de Ésquilo — Etéocles, Polinices, Antígona, Creonte,
Hemon etc. Quantos de nós podemos dizer que não
somos como Creonte? Porque “A velhice em mim não
ensinou/a prudência.” É a mesma perspectiva que ve-
mos nos belos sonetos que têm Édipo como centro e a
sequência de poemas dedicados a Ulisses: “Telêmaco”,
“A undécima hora”, “Epifania de Penélope”, “Polifemo”
etc. Claudio Sousa Pereira relê os clássicos gregos sem
impor-lhes uma cega subjetividade contemporânea,

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longe disso; o seu lirismo é iluminado pela lâmpada
dos clássicos. Estes ajudam o poeta Claudio — e a nós,
seus leitores — a enxergarmos o mundo e as “inquie-
tações do ser” nas quais “a alma discorre/em dizer o
que é lei” sob a experiência vivenciada dessa grande
maioria hoje quase esquecida — os mortos.
As seções de Sentida música foram orga-
nicamente muito bem estruturadas. Não por acaso, o
diálogo com as origens da nossa tradição poética da
primeira parte se relaciona de forma intrínseca com a
segunda seção — “Itinerários”. Nesta, nos poemas ini-
ciais, a perspectiva lírica aos poucos se expande de um
ponto mais conceitual — “na confiança do porvir” e
“entre a abóbada rósea/e a escuridão” — para o entorno
da concretude da cidade de Salvador — “Visualizo as
torres elétricas” — porque é “lá onde o céu termina/e
a imaginação começa” —, e sua geografia doméstica —
“no chão antigo desta casa antiga,/de telhas pousadas
sob o silêncio” — até a uma sensualidade comparando
os seios da mulher amada a anjos e pássaros em “Sa-
turnos”. Assim, o vínculo entre a tradição e a vida pes-
soal do poeta se interioriza ainda mais numa angular
que aproxima o mais longínquo espaço-temporalmente
considerado até o aqui-agora vivido pelo eu-lírico.
Nessa relação dialógica com a tradição,
Claudio S. Pereira faz uso das formas fixas e metros
antigos e novos — sonetos, terza rimas, a consciência
rítmica do verso livre etc. Na retranca, forma criada
e consagrada pelo pernambucano Alberto da Cunha
Melo, brilha para nossa meditação este dístico: “E que

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se faça esta manhã/em mim perfaz uma ânsia vã.” No
verso livre, os elementos da Criação — brisa, treva e o
cricrilar dos grilos — se integram sem susto ao cloro
de um reservatório de água onde o poeta trabalhou:

Noite.
Integro-me à brisa
leve
na canção das folhas,
ao laço de treva e luzes do horizonte,
ao bafejo do cloro e sons de grilos.

O eu-lírico logra a integração quase inconci-


liável entre seu próprio ser, os elementos contraditó-
rios da cidade noturna e o produto químico. Em “Flor
pretérita”, o verso livre alcança magistralmente a inte-
ração entre conteúdo e fatura final. O tema é daqueles
fáceis de descambar para o panfleto não importando a
perspectiva ideológica ser contra ou a favor — o abor-
to. O poema inteiro é o que aquele feto, encontrado
numa caixa de sapatos, no lixo, poderia ter sido e de-
finitivamente não foi. Há uma emoção dolorosa que
vibra nesses versos imaginando a concretude de uma
vida destruída ainda em formação. É esse reconstruir
a mulher inconcreta, flor pretérita “refeita em verbo”,
que faz sua ausência pulsar ao leitor sensibilizado.
Contou-me o poeta que esse fato foi vivenciado na sua
adolescência. Assim, a vítima anônima ganha existên-
cia com profissão, filhos, alegrias e tristezas, enfim,
tudo o que compõe uma verdadeira vida humana. É
no poema que aquela inocência sem nome, pelo olhar

14
de caridade do poeta, pode viver.
Nas duas próximas seções — “Epifanias” e
“Das contemplações” —, Claudio S. Pereira continua
sua peregrinação dialogada com temas difíceis, mas
vitais para nosso tempo afogado em horizontalidades
mesquinhas. Como os subtítulos indicam, não apenas
nessa parte, mas em todo o livro, o eu-lírico abre-se às
dimensões do “susto que ilumina”, isto é, ao que a vida
humana possui de transcendente. Por isso ele contempla
essa “montanha do real”, e é nela que “Um horizonte vas-
to se revela/além dos muros físicos do mundo”. O coti-
diano, por mais diversificado que seja, jamais poderá en-
contrar em si mesmo o seu próprio sentido. É necessário
contemplar o Ser para que ele nos revele sua “experiência
total” — a epifania. Porque, como sentencia o poeta “an-
tes do verbo a luz”. Nesse sentido a luz fundante, a luz
fenomênica, não só a única luz natural, o sol, mas tudo
que entra no tempo: de uma pedra nas profundezas do
oceano a uma criança, a uma nuvem no céu.
Em termos seculares, epifania é quando o uni-
verso se ilumina para nós. No entanto, “sentir não bas-
ta/a quem intui a luz”, ela deve ser respondida com nova
postura diante do mundo e das pessoas. Essa “revela-
ção” dever ser seguida de mudança interior do sujeito
que a sofre, porque essa Beleza não pode ser desasso-
ciada de sua unidade primordial — o Bem e a Verdade.
É o que nos confirma Claudio S. Pereira: “Neste mundo
ressoa o invisível/[...]transposto em concretude.”
Na última parte de Sentida música — “O
caminhante” —, retorna o diálogo inicial com Odis-

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seu. Em outras palavras, com a tradição de origem,
a poesia grega. Assim é nos poemas “A decisão” e “O
sobrevivente” na fluência da terza rima. Se, enquanto
jornada, o livro se encerra, a peregrinação do eu-lí-
rico, contudo, prossegue sua viagem existencial com
“O caminhante”. Claudio Sousa Pereira sabe que to-
dos nós somos romeiros à procura de algo que, muitas
vezes, não distinguimos com clareza. Não é de modo
gratuito que “o sol se esquiva, escuro” e “o caminhan-
te/de joelhos cai entre a poeira imensa.” Nesse poema
a epifania se efetiva abertamente na imagem do Ar-
canjo. As referências bíblicas deste livro são visíveis
não somente na figura de Santo Estêvão, mas também
na abordagem dos seus temas; e todos, de um modo
ou de outro, confluindo para o diálogo final que de-
sejamos – Deus. E é na dimensão do sagrado que o
caminhante segue “com aura de esperança e espinho.”

* Poeta, escritor e ensaísta. Publicou, dentre outros, A Dimensão


Necessária (Mondrongo, 2014) – Prêmio Biblioteca Nacional em
2015, Auto da Romaria (Mondrongo, 2017) e Um Sol de Bolso
(Mondrongo, 2020).
I - Poemas gregos

I - Poemas gregos
O deiforme Odisseu, té que à pátria não fosse chegado

Homero, Odisseia.
Trad. Carlos Alberto Nunes

Nascido assim, não quero


Ser outro que não eu
— E saber quem sou!

Sófocles, Édipo Rei.


Trad. Geir Campos

Para Állex Leilla e João Filho


DE NAUSÍCAA A ODISSEU

“— Pode até estar como se encontra,


mas teu encontro não é casual.
Algo me diz e insiste,
e serei feito a ponte
a completar a tua estrada.
Sabe que o céu de agora,
o renque de folhas em ti, o mar
são os esteios da tua história,
do teu caminho que seguir.”

19
DEMÓDOCO E ODISSEU

Cada melodia dedilhada pelo cego


condensa a síntese da vida, tão brevemente
pelas lágrimas do guerreiro.
Armaduras e afagos, lesões e consolos
projetam-se no ar em imagens
como resquícios do real, mesmo no presente,
e anunciam, ainda que distante,
a reconstituição do passado no futuro.

20
ARGOS, VINTE ANOS DEPOIS

Agora, o ar não parece


ser a fragrância etérea de sempre...
Ressuma algo de tempos idos.
Um aroma amoroso
já tão ausente e hoje presente
mas que nem os sete mil dias apagaram.
O corpo pouco responde, ele não pode mais,
porém transcende a vontade da alma,
através do cheiro que vivifica a vida...

21
ETÉOCLES, DO OUTRO LADO

“— Minha vontade foi cega em si mesma


feito fogo que se autoqueima.

Somente se percebe tal força


de ser assim depois que o destino
revela a luz dos fatos.

O poder não vale nada


quando se atravessa o Aqueronte.”

22
O LAMENTO DE POLINICES

“— Mais do que tanger os Argivos contra Tebas,


seja no sangue da paz ou da guerra,
seja cumprir a justiça do meu direito,
fiz inteiramente a vontade
dos desagravos do Destino,
consciente da minha inconsciência
de matar morrendo para viver o predito,
porque cumpri meus desígnios,
estava escrito.”

23
DE ISMENE A ANTÍGONA

“— Minha alma não tem a plena justeza


de encarar a cruzada
de mergulhar na ferida
de lutar por justiça.
Minha alma tem apenas a total certeza
de soluçar pela perda
de contemplar o fogo
do coração em tua lida”.

24
CREONTE EM SI

“— Vale mais cumprir os desígnios da ordem


ou ver o risco oculto revelar-se?
O que adianta agora cumprir a palavra
se o imponderável mostra a tua chama?
O que adianta agora o rigor do poder
se vejo sangue e a ausência
pela desgraça duplicada?
A velhice em mim não ensinou
a prudência.”

25
DE ANTÍGONA A CREONTE

“— Que a ordem não me iluda feito a bruma


a ocultar logo a certa segurança
mas também seja a chama que se lança
à expressão dita e decidida, em suma.

Jamais mostre em sentido que ressuma


na mera decisão, mas por lembrança
da justiça indo além dessa cobrança
e sem esquiva de maneira alguma.

Sepultarei meu sangue profanado,


refaço e guardo o que foi devastado.
Mesmo que, em breve, meu dia anoiteça,

prossigo para a reclusão sem fim,


e aos sensatos louvei, para que enfim
a honra por esta vida se ofereça.”

26
DE HEMON APÓS A
MORTE DE ANTÍGONA

“— O que é a vida sem a chama de mantê-la?


E a morte com o sentido em desejá-la?
Se é este o caminho onde se encontra,
que seja o meu passaporte, meu caminho.
A vida é o desejo, a morte é o meio,
onde me realizo, não me arrependo.
Eu vou contigo.”

27
EURÍDICE DIANTE DE HEMON MORTO

“— O amor é razão que não se entende,


simplesmente se realiza, e basta.

Loucura maior é acompanhar a loucura


feito coluna jônica que se dobra.

Diante do meu mundo, agora vazio,


onde não há sentido entre os sentidos,

aceito o Hades, forma obscura de vida,


para não morrer o amor, meu filho.”

28
O LAMENTO FINAL DE CIRCE

“— Enfrentar o oceano é a realidade


da vida em uma persistente prova,
é preciso ganhá-lo de verdade
porque um grande desejo se renova;

assim sendo, Odisseu, pela amizade,


pois não estimo o Hades, tua alcova,
apressa-te e te lança ao mar, que há de
ser, por tão breve, a moradia nova.”

— disse. E no anseio, ela não inflete


da promessa: desde já, enfim, reflete
no grupo recomposto à razão plena.

A frota, após javardos e escarninhos,


mesmo colhendo o pranto dos caminhos,
prossegue adentro na bruma serena.

29
DO PASTOR DE CITERÃO A ÉDIPO

“— Nesta senda de Laio, onde estou, hei


de dizer todo o testemunho. Tive
os olhos pelos campos, e revive
e brilha o sol da verdade, que sei:

manhã no tempo já arcaico, louvei


o menino enfaixado que ainda vive,
e ora o avisto por aqui, logo convive
com todos, e de Tebas é o Rei.

Inquietações do ser, a alma discorre


em dizer o que é lei: sempre socorre
a tudo sem que seja descabido.

Perdoe-me pelo dito tão isento,


mesmo ardendo em chama de tormento,
fui a chave do senso e do sentido.”

30
ÉDIPO EM COLONO

Aquele — tão idoso — segue ao vento


sombrio, nas cercanias de Colono,
não se aventura só, mas o abandono
vem na alma sem contentamento.

Os teus desígnios vagam pelo alento,


na tristeza e no ermo a perecer sem dono.
Preso e vencido no destino atento,
vão os despojos encerrar teu sono.

As mãos arquejam, pois a alma em treva,


ao pressentir a luz logo abreviada,
diz: “— Que afinal chegou a suprema hora”.

Cumpre-se o Fado quando o velho entrega


seu corpo à nova terra consagrada,
e a história para os céus se eleva agora...

31
CORIFEU, DEPOIS DE TUDO

“— Por que não puseste


logo a mão de ferro?

Nosso tino: ter algo


sem saber usar,
o livre pensarmos,
mas tudo no fim
jaz em enorme Babel,
chave de braço
que aplicamos
sempre em nós mesmos.

E então, por que não usaste
logo a mão de ferro?
Pois somente sabemos
em nos perdermos
através do nosso próprio
labirinto?”

32
TÊLEMACO

Ulisses,
vou pela estrada do mar aberto
na proa do destino.
A claridade do sol em fluxo
é tão belo quanto é vero,
descortinando a bruma
em que vives no imponderável:
— Sim, tu estás!

Esperança...
da Ítaca que te aguarda,
razão de ser, consciência do existir,
o retorno é tão longo quanto a luta,
mas, após o presságio, a certeza:
— Sim, tu estás!

Estás...
júbilo transborda a verdade,
a continuidade do teu sangue
te procura — mesmo no clamor
de luas transcorridas,
de saudades entrecortadas,
desta busca tecida no querer:
— Sim, tu voltarás!

33
A UNDÉCIMA HORA

Eis a Undécima Hora. No quase


extremo doura o dia de hoje.
Com raios em cruz na retina,
o sol se estende numa bênção.

Dia este que é feito a vida:


um ramo de flores colhido.
E mesmo quando se prolonga,
mais a ela ainda se deseja.

E eis chegada a hora do labor


no retorno a esta travessia,
em si, o espírito está pronto,
mas o corpo é só cansaço;

na lassidão e sonolência,
Ulisses então vai seguindo,
para, de pronto e novamente,
atravessar imenso oceano.

E de um extremo rumo ao outro,


ele ajunta, na mente em fluxo,
os sons, desejos e lembranças
num caleidoscópio de tudo.

34
EPIFANIA DE PENÉLOPE

“—Submersa aos sofrimentos desta lida,


achei estranho e inquietante rever
este que, na ilusão da minha vida,
voltou para findar o meu sofrer.

Mas reparando já, desinibida


me mostrei no contemplo do teu ser,
jubilosa emoção jamais vencida,
muito esperei, sempre sem morrer.

Hoje, assim, mergulhada neste absinto


dos teus gestos e olhares, logo sinto
nossa mitologia restaurada

agora, no real desta presença,


e me faz ser (entre todas) a mais intensa
e radiosa, feliz e mais amada...”

35
POLIFEMO

Para Márcio Gomez Benito

Gritos! Treme a terra,


o estampido ecoa
no horizonte em torno
— a vingança voa

no clamor vivido —,
sobrepõe astuta
a perda dos sócios,
Ninguém o executa.

Providente vinho,
de Zeus ilibado,
depois do sinistro,
ao Ciclope é dado,

e a lança afinada
em brasa fincou-se
no centro da vista
o golpe tão doce;

logo quando a Aurora,


em dedos de rosa,
surgiu matutina,
alçando formosa

36
— qual lume de sonho —,
o passo se estuga,
a nave é precisa
na lúcida fuga.

Põe-se ao mar, estrada


rumo à liberdade,
depois de anunciada
ao monstro a verdade:

“— Eu sou Odisseu,
de Laertes sou filho,
potente eversor,
para Ítaca eu trilho,

razão de que lembres


através do estado
que é tão vergonhoso
teu olho vazado”.

Salva-se da rocha
de enorme montanha,
chove água salgada...
quase a nave apanha.

Ao oceano onduloso
o pranto verteu,
misturou-se em susto,
quase ao Hades desceu.

Destino alcançado
para onde navegue,
pois, quando os eternos
o querem — conseguem.

37
A TRAVESSIA

Um corpo no mar se contorce...


será demência, será prazer,
será loucura?
— E geme e grita e se exaspera
orgasmo canoro
impregnando
na alma...
Quanto mais o homem se contorce
mais é amarrado ao mastro.

Apertam-se mais os remos n’água,


o êxito se busca na travessia.

Mas o alarido
tão suave, tão mortal
o chama, o chama...
num eflúvio de prazeres,
da beleza inconsútil,
vozes que são beijos leves e sensuais.
Com os dedos no movimento em arco
o convidam:
“— Venha, Odisseu, venha!
Siga o canto mais forte
e mais intenso
que qualquer gozo humano

38
pode experimentar...”
E com os olhos ele pede para ser solto
encarecidamente,
já vencido, porém preso
àquela maneira de como entoavam
tão mulheres, tão deusas,
tão belíssimas...

39
O OBJETO

Mas que objeto é esse, envolvente,


de uma oculta ação provedora

nas simples coisas tão presente-


mente visto, em força construtora?

— Cresce nos coentros e galinhas


na roça de meu pai, nas leiras

de couve, alface ou cebolinhas,


seja em Troia ou em Cajazeiras.

Será essência sem essência


— tão invisível quanto o ar —

laço integrante de presença


através da intuição do olhar?

Forma sem forma que, de longe,


os elementos organiza,

mas que se furta e logo foge


na apreensão justa e precisa.

Por que tamanho ilusionismo


— já que a visão é verdadeira —

40
a suplantar o simbolismo,
figurado em causa primeira?

Por que o limite do concreto


nega a expressão conjuntural

que há na completude do objeto


uma tamanha ordem do real?

41
II - ITINERÁRIOS

II - Itinerários
Que fique só da minha vida
um monumento de palavras
Mas não de prata Nem de cinza
Antes de lava Antes de nada.

David Mourão-Ferreira
Testamento
O RECOMEÇO

Para Elpídio Mário Dantas Fonseca

E depois de marejados
os olhos
respirar
respirar profundamente
expandindo o peito
desarqueando os ombros
e lentamente
erguer o cenho
— na confiança do porvir —
desajoelhar
levantar
e seguir.

45
O QUADRO

É bem verdade
que vejo toda a gente
na volta após o labor.
Mas
no fundo da moldura
— feito um milagre —
o ouro do horizonte
incandesce
ali, no seio do asfalto,
entre a abóboda rósea
e a escuridão.

46
A VOLTA

Retornar
mera e simplesmente?
— não, não quero.

Mas a dimensão
de algo perdido
insistentemente
clama, clama.

Um cadeado aberto
ou ferrolho pendido
retine nos olhos
e nos ouvidos
do pensamento.

Bater, fechar,
não sei, não sei,
mas tudo que marca
sempre estima a volta.

47
O FOCO

De tanto enxergar o foco


escorrem os detalhes.
É assim, feito o leito fundo
e caudaloso,
mas sem margens
para se salvar.

48
[E o despertador acorda...]

E o despertador acorda...
o milagre do dia
já está consumado.

O perpassar dos autos,


e o ônibus levando a rotina
e a espera pessoal da volta;
as últimas manobras
vão conduzindo a água
ao seu destino.

Aproveito para ver o céu:


cambiante
é o algodão das nuvens
entre o celeste e o rubro.
Visualizo as torres elétricas,
lá onde o céu termina
e a imaginação começa.
Ligo o rádio, bebo o café;
e na dimensão absoluta
divago, entre
o pó esvoaçante do solo,
a linha do horizonte
e a verticalidade.

49
REMINISCÊNCIAS DA CASA ANTIGA

Nesta manhã recordo onde estou,


aqui, no rosado das paredes,
no chão antigo desta casa antiga,
de telhas pousadas sob o silêncio.
A manhã calidamente avança,
fixando auras que retornam:
da avó atravessando a sala,
do avô cosendo na máquina,
o papagaio lá fora, o cão amarelo,
a varanda ensolarada e florescente.
Mas hoje, não é mais.
Restam somente estes quartos vazios,
onde eles
um por um
ascenderam
deixando estes olhos vazios
e a mente carregada
de tanta alvorada em poesia
— enquanto pousa o tempo —
de assim recordar.

50
SATURNOS

São dois Saturnos a orbitarem o teu sol


que é justamente o teu ser.
São dois mares profundos,
onde sempre me afogarei.
São dois pássaros em voo,
que meus olhos seguem tão só.
São dois Anjos Tutelares,
quando, no teu colo, me sepulto.

51
ANOITECER EM TI

Quando o dia escorre


pelo teu corpo estendido,

o mar logo se refrata


no fulgor dos teus olhos,

o céu torna-se rosáceo


na tez limpa do teu rosto,

e o sol se põe e se dissolve


na noite em flor dos teus cabelos.

52
SONETO DO ENCONTRO

Para este encontro trazes o esplendor


e o meu desejo que em ti desperta,
em afagos, toques, se constrói o amor
e o instinto final para a descoberta

do teu corpo nu, onde esta florada,


que ofereço no extremo do teu ventre,
é como se fosse a última chamada
da vida e a explicação de tudo, e entre

nós, em frente ao espelho no que teces,


te amo em êxtase ao que sonho e senti,
assim, quando de jeito me ofereces,

e te domino e te penetro a fundo


porque — quando estou dentro de ti —
estou em transe, no centro do mundo.

53
SONETO DO RETORNO

Para Renã Leite Corrêa Pontes, poeta

E o pulso agora vibra mais atento


com o instinto filial logo apurado,
tal como o sol sem nuvens erguido
neste dia de céu tão azulado.

Ela espreita da porta o movimento


e se achega do rosto afeiçoado,
mirando os olhos do rapaz que, vindo
distante ainda, era tão esperado.

Rotina longa esta que nunca enlaça,


a angústia de horas, pela noite ou dia,
longínquo pelo ofício o atravessou:

o pai bendiz, a mãe então o abraça,


enfim, fez-se em suspiro de alegria
porque o filho esperado retornou!

54
RETRANCA

A minha história escrita a cal


que marca os trilhos do presente:
um livro em letras na cor do ar
revela meu ser suavemente.

Transparecido assim eu rogo


pois ao Destino me interrogo,

quando, em tempos de mudança,


é o porvir, medo traduzido,
mesmo que baste em esperança.

E que se faça esta manhã:


em mim perfaz uma ânsia vã.

55
SONETO URBANO

Pelos meandros da avenida, corre


o coletivo infenso aos arredores.
Na Garibaldi-Orla, em suas cores,
o esverdeado do arvoredo escorre.

A custo, dobra a Adhemar, e concorre


com os autos, relógio e esplendores
das mulheres que emanam amores,
e logo esta angústia imediata morre.

O todo é flux, momento que resume


em passos rápidos, vão surdamente
entre faróis, sons, tudo de costume.

O dia é já um vórtice premente...


e com o suor e sol na testa — ao lume —
pouso meus pés nos campi, novamente.

56
ESTRADA DO COQUEIRO GRANDE

Quando o reservatório enche,


medito em prece o diálogo das incertezas.
Recorro, contrito, à completude,
e, logo, eis o farol
que se esclarece.

Asserenou a alma.
Noite.
Integro-me à brisa
leve
na canção das folhas,
ao laço de treva e luzes do horizonte,
ao bafejo do cloro e sons de grilos.

Tudo se inspira num único sentido.


No lento esvair das horas,
silente,
repousa a Estrada do Coqueiro Grande...
Revejo a torre,
entre brumas,
enquanto a cidade adormece,
a noite sem tempo
que outros tantos viram.

57
PRESSÁGIOS

“— Pelo espaço eu sinto algo


como se houvesse incrustado
um luto, chama inaudível
a se dissolver no espaço.

Segue adentro, a nuvem tinge


o ser em torpor fincado,
num perfume embriagante
no ludismo de ouro falso.

Leve fuligem, que impregna,


pousa em íntimo presságio:
pelo espaço ainda sinto
algo no ar, tão deslocado.”

58
RETALHOS

Uma árvore frondosa, além notória,


um avô, uma casa, um sonho, um cão,
um céu azul a constituir a história
e sempre altissonante em emoção;

mesmo que seja nos momentos falhos,


em tudo estabelece um sentimento
que costuramos a todo o momento
a vida, grande colcha de retalhos;

retalhos que se vão dos tempos idos


perdendo um por um. E inda me esqueci dos
tantos, e desfizeram-se tais a esmo...

Árvore morta. Jazem sonhos mortos.


O que me sobra são resquícios tortos
de ser sobrevivente de mim mesmo.

59
[Para quê sorrisos, se a vida é pouca...]

Para que sorrisos se a vida é pouca,


e esta beleza que de longe alteia?
É aliciadora a constranger a mente,
mas na falência logo se afigura?

Para quê contentos se a vida é louca,


encanto que perece e se corrompe?
O tempo (inflação dura e implacável)
nos cobra o impagável dia a dia.

Leva-nos tudo e nada deixa em troca,


ou talvez o ser, quando assim se pode,
sem ter vivido, quando assim devia,

ou mesmo reste um pouco de memória,


ainda que a emudeça sob o solo,
além do pó de ossos que a terra anula.

60
ITINERÁRIO

Conversa finda, amigos


idos, bom alimento,

agora é aula, observa


tudo, intuindo atento.

Mas algo ali não casa:
o dito e o feito, ao olhar,

desconfia a aparência
de contradição no ar...

Por que a fala é tão mansa


e seus gestos são duros?

Por que o discurso diáfano


se os golpes são impuros?

Ressoa em voz humilde


doce ideal sem dores,

fingem-se de oprimidos
mas são os opressores.

Eis a contínua dose


na plateia vencida,

61
quase ninguém percebe
esta chama homicida

que em espiral descende


a longa névoa exata,

lhe carboniza o espírito


na cegueira que mata.

62
FLOR PRETÉRITA

Hoje te presumiria talvez como uma


fisioterapeuta ou mesmo psicóloga,
recém-formada para a vida.
Mas, ao mesmo tempo,
te contemplaria também num emprego,
nas labutas para pagar
as tuas contas de consumo.

Visualizar-te-ia num namoro firme,


quase noiva, sentindo-te amada,
a alma em desejos,
pensaria nos teus futuros filhos,
assim vistos pelo semblante.

Exibiria as tuas alegrias,


emolduradas de branco ao fim do ano,
falando dos teus vinte e quatro anos,
idade na qual a vida esplende.
Regozijaria sobre a tua vida,
do que, apesar dos apertos,
de uma existência modesta,
compensava tudo – e compensaria sempre
toda a aventura de viver.

63
Contudo, o teu viver, mulher inconcreta,
refeita em verbo
foi declinado sem ver a luz do dia,
sem testemunhar a luz da vida,
encerrado numa caixa de sapatos
ocultamente em meio a sacos de lixo.
Caule desprendido,
flor pretérita rumo ao nada.

64
PAISAGEM INTERIOR

Hoje se veem apenas os pés do muro.


Mas o imaginemos erguido ainda,
minhas mãos pousam nele
feito um arquétipo posto no ar.

Olhemos esta escada:


nos meus, permanecem inteiriças
e agora há sol onde só havia sombra
em boa parte dela.
Vejamos este portão:
nos meus, este não se fechou em tijolos.
Eu ainda passo por ele.

Voltemos para a balaustrada:


ontem observava ao longe, no horizonte,
paisagens de partida,
automóveis, ônibus e caminhões.
Hoje, diante dos meus olhos,
ergueu-se um imóvel,
contudo, é como se não existisse.

Então, desta feita, repararemos assim,


o todo visto sempre
através do íntimo do olhar
será permanência e continuidade,
um início circular de tudo que é final.

65
O MARTÍRIO DE SANTO ESTEVÃO

1–

(Em sonho). Poeira crescente,


vejo a multidão concentrada,
que num movimento executa
o homem que fazia prodígios.

Aproximo-me. E o alarido aumenta.


Agora, em braços levantados,
aquele em cuja única fala
resumiu por completo a história;

da sua face escorre sangue,


e dos seus olhos apiedados
se distende do chão para o alto
neste que foi o último esforço.

Embora, ao meio das pedradas,


entre os sujeitos furiosos,
eu sinta teu espírito intacto
e escute o que tua voz clama:

“—Senhor Jesus, guarda minh’alma,


que sejas piedoso com eles,
Senhor, não os leves em conta,
e perdoa-lhes este pecado.”

66
2–

Em meio às pedras viu-se a Glória,


e a crença e chama da certeza,
quando fitou os céus abertos
através da imensa clareza.

Um homem, assim refletido,


prostrou-se ao crime cometido:

“—Nós somos o que não queremos,


mas fazemos o que nós somos,
e a isto feito, não mais tememos.

Eis aí — a virtude plena —


de nossa miséria terrena.”

67
III - EPIFANIAS

III - Epifanias
De tempo somos feitos, e acabamos
quando escassa clepsidra seca em nós.

Abgar Renault
EPIFANIAS

­­­­
Que é isto? O susto que ilumina a vida,
a perfeita expressão sutil de tudo,
caminho e direção repõem, contudo
é mais de uma virtude incandescida.

Que é isto? A busca sôfrega e constante


da essência de sentido e entendimento,
funda contemplação do movimento
e visto além do espanto entrecortante.

É um domínio interior o que se sente?


Num lampejo do corpo toma conta,
súbita percepção vem todo à mente

na dimensão concedida em viver
que a natureza da existência aponta:
a consciência, a causa, a ordem, o ser.

71
2

Refrações de azul. Jogo incandescente


na palheta de cores do horizonte,
quadro volúvel da ilusão errante
na percepção do tempo evanescente...

A sugestão de sonho inconsequente


repara o tempo na manhã defronte,
leve fruição de sangue flamejante
em desvelada chama confluente,

fluxo de cinza e sol. Visão mais pura,


no entrecruzado fosco-brilho, altera,
e em cântico de luz é transfundida

entre a aurora. Translúcida figura,


num sopro a plenitude reverbera,
que, gerada, é gratuita e oferecida.

72
3
Na irmandade da imagem em Florisvaldo Mattos:

Enquanto desce a tarde, fico olhando


o passar das pessoas na janela,
pela estrada os autos seguem, quando
esmaece o pensamento, sob aquela

penumbra lenta vai se concentrando.


Com o cheiro de jasmim que se constela
pelo céu de setembro, no ar pairando,
levita-se o horizonte em aquarela.

E a brisa leva essa fragrância afora,


enquanto sigo a respirar o tempo,
tão circunstancialmente perfumado,

e o fundo feito uma moldura, agora,


o celeste em algemas, no momento
do eterno cerco ao sol enclausurado.

73
4

Quando o intangível horizonte laça


o rubro limiar da grande sina,
o ângelus clama na suprema graça
na busca do fulgor da luz divina.

Astro morrente, o céu mudo transpassa


uma espera tensa que a noite afina.
Alteia-se a inquietude na alma lassa
através da penumbra que confina.

O espírito, em silêncio nos espaços


do inefável sonhar desses meus passos,
em voo eleva-se para o essencial,

à procura da luz que não se apruma,


no despontar dessa amplidão de bruma,
ao recobro da paz transcendental.

74
5

Uma força, no além da concretude,


projeta-se nos seres da existência,
que é suprema e invisível na atitude,
mas a transpassa em lógica evidência.

Toda fase do mundo em longitude


revela a pura marca de imanência,
é onipresente, existe e não ilude,
e que transcende as provas da ciência.

Força motriz aflui além dos céus,


paralisa a enlaçar os olhos meus.
Para onde vai, ou mesmo de onde veio,

não sei, mas desse ser que é inconteste,


numa profunda luz de que se veste,
eu—em prantos—, me espanto, sigo e creio.

75
6
Para Silvério Duque, poeta e clarinetista

É visível que a música apresente


a virtude de todo pensamento,
e a ideia iluminada não se ausente,
harmonizando o gesto tão isento.

É possível que o cântico presente


revele a busca da fonte e alimento,
sintetizando em melodia ardente
a precisa assunção do encantamento.

É preciso que o verbo seja leve


e no horizonte imenso possa ter
a ressonância azul que sobreleve

ao múltiplo sentido, em dizer


sobre a presença e claridade breve,
a música completa-se no ser.

76
7
ELEGIA

A existência cinzenta se avizinha


em sombra-ausência frágil do querer,
e abrevia esta fonte do viver,
que há tão pouco, tão pouco se mantinha.

Reparação da vida tão mesquinha


que refaz o imperfeito do não ter,
mas o recobro em Deus faz merecer,
que a tua imagem lúcida continha.

Quando anoiteceu a aura preciosa,


no declínio de brumas para o inverno,
sofri mudo a tua ida silenciosa.

A volta será, em breve, permanência,


pois, na memória transcrita do Eterno,
dissipará esta música da ausência.

77
8

Nosso querer — montanha do real —


centra-se na visão de inútil luta,
de cujo cimo é a busca irresoluta
para uma aspiração lenta do mal.

Deleitai-vos então neste jogral


em que dulcificado se disputa,
para a noção da certeza absoluta,
de que é inócua a essência do Ideal.

Humanos ideais que o pendor realça,


longa vontade da ilusão descalça,
se o quer, um tanto vê, bastante o cega;

mas, se o consegue, outro ideal se forma,


natureza eternal de que sois norma,
um anseio a que ao fim jamais se chega.

78
9

O silêncio madruga nos ponteiros.


Sinto a força dos astros repartida
em nosso ser à proporção da forma
e fundo permutados nos sentidos;

o retiro emergido neste espaço


é o equilíbrio de exata proporção.
Um horizonte vasto se revela
além dos muros físicos do mundo.

E o pensamento logo se emotiva,


ao contemplar a sensação da vida
em completude plena de existência,

que adensa o instante desta solitude.


Mas vem o sono, imensa paz, enquanto
a noite decompõe-se lentamente.

79
10
SONETO A BRUNO TOLENTINO
Para Jessé de Almeida Primo

Era a noite profunda e, como um dia,
surge o astro, sol maior. Iluminava
a sombra no caminho que formava,
pela ausência, a lacuna que doía.

Da voz de Katharina anunciava


a busca do porvir, palavra guia,
verbo pleno de luz logo o amparava
para a essência do eterno que fulgia.

Morrestes. Revivestes em todos nós,


pelo verso fremente aflui, em vós-
sa música, a Presença dada, terna-

mente pela amplidão do resoluto.


Vosso ser é certeza do absoluto
de que não morrerá a verdade eterna.

80
IV - Das contemplações
¡Tú, ventana a lo diáfano:
desenlace de aurora,
modelación del día:
mediodía en su rosa,

tranquilidad de lumbre [...]

Jorge Guillén
Cántico
SENTIR NÃO BASTA
SENTIR NÃO BASTA

Sentir não basta


a quem intui a luz:
lúmen extremo no alto
propaga a visão do enigma,
fóton que cega
amedronta, fascina, seduz.

Reparte-se no todo e em tudo a flux...


Lúcida luz de uma essência,
ávido susto
de tão desejado,
na paz da inconsciência.

Momento profundo,
concebido
através do fulgor mais inspirado
na imagem clara do sonho fruído.

83
RAZÃO DO POEMA

Mas, antes do verbo, a luz


—luz total que cega em susto,
de um arrepio, golpe a custo
de enigma que nos conduz.

Apura-se a luz na imagem.


Outro susto, novo mundo
além deste e mais profundo
o transparece na mensagem.

Lúcido espectro descreve


a sensação multivária,
na busca tão necessária
da metáfora alva e leve;

depois busca o que nomeia


—verbo-materialidade —
a coleta em unidade
da palavra que semeia.

O ritmo-fluxo se afina,
que na mente em absoluto,
no sentido resoluto
— o espírito se ilumina...

84
DAS MELODIAS

Experiência total:
— o verbo é suficiente
ao contato final
da sensação premente?

O nomeio do exato,
— novo susto pulsante —
em que transpassa ao tato
o redito fundante;

linguagem impossível
se traduzida a termo:
exuberante a nível
no recôndito do ermo;

da mediação se altera
tão sensível a fundo,
que o objeto reverbera
na música do mundo,

mas é posto contá-la


a presença afetiva
pela intenção da fala
de consciência cativa?

85
No transpor ao concreto
— emana a melodia —
sutilmente secreto,
o verbo propicia

à projeção da ideia
que ativa a consciência,
cingindo em logopeia
o labor da existência.

O verbo é rastro guia


da ascendência ofertada,
vestígio-epifania
de manhã iluminada.

86
SENTIDA MÚSICA

Intuída na mente,
escapa ligeira,
tão pouco se sente
música faceira,

momento epifânico,
um susto de leve,
é menos que pânico,
melodia breve.

Faz-se contemplativa
de sabor empírico,
figura cativa
ao guiar o espírito.

Flui no pensamento
envolvente ao fundo
que, tão puro e isento,
movimenta o mundo;

és força animada,
instintiva vida,
sutil forma alçada
apenas sentida;

87
mas pouco se explica,
na epiderme toca,
nos sentidos fica,
e sugere e evoca.

Ó canção extrema,
que contemplo o mínimo,
de todo sistema
só conheço o ínfimo.

Quanto mais conheço


tal fator divino
mais eu desconheço
sobre meu destino.

88
A LIDA

Quando o Universo derrama


sua penumbra diária,
o espírito então conclama
uma urgência necessária:

caminha, homem, caminha


porque o relógio palpita,
a consciência espezinha
pelo labor que, infinita,

te reconduz no trajeto.
Justo nova ordem se traça,
após um turno completo
não irás hoje pra casa.

Roga em silêncio o pedido


a Deus pela integridade,
segue o trajeto exaurido
da ponta a outra da cidade

em custosa travessia.
Refaze-te logo disposto
na jornada que se inicia
naquele velho posto;

89
pensa na família, e os pais
longe, tais que, depois de vinte
e tantas horas ou mais,
verás na manhã seguinte.

90
HORAS DO MUNDO

Em cada fato do mundo


possua o seu tempo certo:
resposta certa, profundo
momento, um fio encoberto

do sol, que na fímbria nasce,


e ao extremo, depois se põe.
Luz e penumbra na face
a todo espaço se impõe.

Do amadurecer do fruto
sua função, seu intento,
no destino resoluto,
transmuta ao seu momento.

Do nascer de uma criança,


em graça e vigor que há de
renascer em esperança
uma nova humanidade;

tudo possui o equilíbrio


que repousa sobre o imerso,
mas que de certeza vibre-o
fora e dentro do universo

91
feito na diversa lista
de imagens em dimensões,
tudo na perfeição vista
por nossas imperfeições.

Os dias claros, formosos,


o espectro em celeste tez
ou os firmamentos brumosos
em plácida escuridez;

Horas do Mundo... não a hora


do homem ao seu próprio passo:
é a Hora do Ser, que vigora
ao seu momento no espaço.

92
PRESENÇA DAS COISAS

elementos em equilíbrio
no todo
em tudo
viste
explicados são
na materialização
de um ser que
existe
intangíveis formas
mas destituídas do molde
transpassam o barro-corpo
revestem-nos
além além da imanência
aparente
— invisíveis exibições —
funções perfeitas
incompreensíveis e caras
para nós
talvez
mas tão simples para quem
arregimenta
da onisciente e suprema
presença

93
AZUL SOLAR

Finalmente,
de mim mesmo, percorro
um cálido caminho que se forma,
visualmente posto
para além dos olhos, junto à alma.

Se há chuva lá fora...
neste lado, porém,
é azul solar,
a face externa não difere,
por outro,
é regido na demanda dos delírios
e diáfanos contentos,
assim como em angústias laceradas.

Neste mundo ressoa o invisível


através do íntimo
transposto em concretude:
sustento assim,
com verbo e mente,
a palavra prata no silêncio puro.

94
MÚSICA INVISÍVEL

Teias sensíveis
ligam os fluxos da cidade,
organizam cada elemento móvel
orbitam o concreto-estável
fixado nas coisas.
Através do Sol
dourando a manhã
cada ponto
doa ao outro
sua dose de proporção.

Assim, os átomos suspensos,


sem caos e ordenadamente,
se amoldam em cada ente necessário
— ora em júbilo, ora pousado —
música invisível que seguir.

95
TERZINAS

O verde-gris do arvoredo
neste chão que, agora, vejo,
se fez manhã logo cedo

no paterno lugarejo.
E o verde visto pela ânsia
justifica-se num beijo

ao imenso verde da infância.


Neste sítio em que o sentido
desde já é ressonância...

no juízo se faz querido


aos olhos da Natureza:
é como se um incontido

bafejo sem aspereza


me dissesse algo secreto
a nossa inteira clareza.

Esta comunhão de afeto


— aqui no sítio do mato —
me reconduz em repleto

àquela gênese do ato,


com extremosa candura
se estabelece o contato

em dadivosa mistura.

96
V - O CAMINHANTE

V - O caminhante
E como eu palmilhasse vagamente
Pela estrada de Minas, pedregosa [...]

Carlos Drummond de Andrade


A Máquina do Mundo
A DECISÃO
A DECISÃO

Entre brumas esplende a ilha


da esperança: após a triste
compreensão que fervilha,

então, para que se insiste?


É da busca do destino
da vida que não desiste.

Por isso, Odisseu, no atino,


não desmorona do intento,
e após tanto desatino

rebusca o concreto isento,


pois a ideia esmaga o real
e neste é jamais contento.

Quer a volta visceral.


Eis a vontade, um aroma
que se une a tudo, afinal

um ciclo completo assoma:


é hora de seguir caminho,
a necessidade toma

o rumo cingido ao espinho,


deste retorno feito a ida
— promessa de antigo ninho —

99
na palavra do homem sentida,
jurada a fiel consorte,
dada por toda uma vida.

Hora de aceitar a sorte...


E o que se passa em seu fado
é o mundo-matéria e forte,

ao preferir, obstinado,
o vero à sublimação,
não feito o ébrio alucinado

que se quer passar por são.

100
O SOBREVIVENTE

Reverso mar. O que era a calmaria,


toma de assalto as nuvens e espaneja,
e em susto o alça veloz na maresia,

outra vez mais o nauta na peleja,


contra esse fero ímpeto da morte,
logo ele, tão somente ele que almeja

sem velas pandas, mas com algum norte,


triste em morrer ali, longe da amada,
e tendo a tempestade por consorte.

“Verdade então será a anunciada


pena sem remissão, a permanente,
contra Calipso, tão bem-aventurada?”

— clama. Sacode o mar violentamente


e em Odisseu a consciência aferra,
na súplica à memória transparente

para que se interceda assim na terra,


um monossílabo que é Zeus, que há de
falar a Poseidon, Nereu...“Encerra!”.

Porém estoura, cresce a tempestade,


o mastro range, o leme quebra, o medo
se agiganta no seio da impiedade,

101
o guerreiro a afundar-se muito cedo
no retorno em vontade decidida,
que então será entregue no penedo

toda aquela saudade entristecida,


justo ele, tão junto ao seguro porto,
justo ele, tão junto à segura vida.

“— Estou muito infeliz no lance absorto.


Porque não quis a lança do Destino
que nos golpes dos Teucros fosse morto

por mil vezes melhor a este confino,


quase inumado na desonra escura
e não menos aflito agora inclino

a fim de me salvar da pedra dura.”


No entanto, num relance harmonioso,
Ino vê Odisseu e lhe afigura

em forma de gaivota ao tenebroso


momento, ali, na proa da jangada
diz-lhe palavras de labor piedoso;

entrega um véu na barca arruinada


e prontamente o navegante o veste.
Porém a fúria de Prono é alçada

na grossa voz, que diz, sério e inconteste:


“— Assim és, mortal, feito do momento,
e faze-te queixoso pelo teste

para nunca esquecer esse tormento


e jamais trair tua vil memória,
que a dor é a base do contentamento

102
e a lágrima é irmã gêmea da glória”.
Mas a divina Atena abranda o oceano,
a chuva finda, a superfície flórea

das águas cessa seu ímpeto insano,


mesmo que extenuada fosse a face
na aflição do vivente em desengano.

E, próximo à enseada, de novo o impasse:


Odisseu está aflito novamente,
quase no fim da jornada outro enlace,

é porque a correnteza não consente


no instinto do viver consolidado,
no fastio de calcar a terra ardente.

A piedade deste triste fado


não se ausenta ao amparo desta hora,
mesmo após tanto sofrimento e enfado

estende-se o desígnio do céu, aflora


o retorno daquela diva empresa
em que o antigo sonho revigora

na volta à pátria mais íntima e acesa.

103
O CAMINHANTE

De olhos tensos palmilhando a estrada,


tendo as nuvens fulgindo no horizonte,
com o pó alçado a sugerir o nada,

de passo em arco segue o caminhante,


quando aguda e translúcida paisagem
levanta o cenho em que franzia a mente:

“— Será razão insciente de miragem


para nova ilusão do desatino?
e por que me angustia esta mensagem

na linguagem transposta ao vil destino?


Talvez empresa inútil no momento,
mas a palavra contundente eu afino

na inconsútil visão do meu lamento,


tal que o espírito débil faz-se ouvido,
o que provém da Providência isento

me apraz na tessitura do alarido,


e logo se faz real o imaginado
de um fulgor de luz bem definido.”

Doce voz brandamente deste enviado


entoou no alto o rito verdadeiro
a essa mísera poeira, e entressonhado

104
no absoluto então disse por inteiro:
“— Por que, rude ser, ao ser tão pequeno
a espera não soube ao passo primeiro

no saber tanger teu fado, teu feno?


Logo esqueceu o tanto que quiseste
o teu desejo, o prometido aceno

na cruz da escolha assim muito que reste,


preferiste o caminho mais rugoso,
logo porque o acesso é somente este.

Feito em sentido-fluxo, pedregoso


se abre, o ar pesa e fere, os pés em lama,
a carne no substrato mais poroso

segue da vil promessa a sua fama,


sujeitado à lascívia do corpóreo,
gozo inútil da mística profana.

O fictício equilíbrio provisório
de que se sujeitou é passo em falso
na filosofia abjeta do ilusório;

intuiu que fosse fácil, e descalço
da fé, clamou em vão pela Presença,
mas, sujando-se aos porcos, então realço

que perdeste a paz da consciência”.


O sol se esquiva, escuro. O caminhante
de joelhos cai entre a poeira imensa,

a luz fulge no suor agonizante


do rosto inerte desta triste cena,
mas a Esperança surge altissonante

105
entre o caos do momento em que, serena
e calma, se faz a alma do andarilho
que, contrito, sussurra: “— Tende pena,

Senhor, do vosso arrependido filho.


Fiz-me depois de consumada aliança
o gesto extremo para o amargo trilho;

seduzido pela imanência da cobrança


provei a taça da fraqueza, Pai!,
é uma cega vereda que destrança

sem retorno e jaz como quem vai


ao imutável caminho da desgraça;
piedade por mim, Senhor, perdoai!”

É noite; o andante arfa na areia esparsa,


e absorto prostra-se ao consumado dito,
entretanto, do espectro a luz transpassa,

que, serenando o espírito em conflito,
restitui ao equilíbrio o pensamento
no transcender que avança no restrito;

é justo quando o Arcanjo, no momento,


diz: “— Caminhante, ergue-te, levanta
e ouve-me o alívio para o desalento

e tua extrema angústia que aquebranta.


Porque primeiro preferiu a messe,
o surgido em escolha sacrossanta,

isto é, resolveu ser, ora pudesse


nem haver sequer vida que se alenta.
O dom total foi dado, então coubesse

106
por igual, mas o andante em si aparenta
aos seus desejos do mais largo travo,
em queda nos reveses de tormenta,

ao seu deus de si próprio sendo escravo.
O humano ser, moeda em claro-escuro,
junto-cindidos no íntimo mais cavo.

Busca, portanto, no andamento obscuro


de ti, a suprema aceitação da Graça,
ao reiterado aprumo alteia o apuro

de uma candeia, o fluxo em luz enlaça,


mesmo assim seguirás errante e errando,
pisando em cardos no grotão que passas.

Mas da montanha catedral semeando


o gesto oração mais se achega e inclina
para além do alçado e do perpetrando,

cálido verbo em direção refina,


no passo alado ao anseio da verdade,
no traço em rastro da fruição divina,

intangível no real, que te persuade


e transfigura... Se a pele no agora
dói e o corpo encobre, é porque há de

ser no espírito o avanço para fora


desse éter invisível, que é o fascínio
ao qual jamais engana e não ignora.

E contempla nas coisas o domínio


dos sentidos em todo seu espaço,
intuição do equilíbrio que define o

107
ser na textura audível desse traço.
Fixa o que se revela em completude
do desvelado enigma a cada passo,

na guarda da memória a infinitude


transcrita na grande arte da beleza,
que somente o absoluto em plenitude

oferece gratuito a tua acesa


compreensão”. Assim tudo foi dito,
feito ária mansa em súbita clareza

e o espectro fez-se bruma no irrestrito.


A estrada, logo tão clara e vistosa,
voltou a exercer seu destino estrito.

E o caminhante a noite silenciosa


seguiu, com aura de esperança e espinho,
atravessando a areia pedregosa

em direção à luz de seu caminho...

108
_____________________
Notas:

Os poemas De Hemon após a morte de Antígona, O recome-


ço e Creonte em si integram a Edição — Livro 4 da Revista
Organismo (Funceb/Fundo de Cultura/Governo do Estado da
Bahia), Salvador-BA, 2018.

O poema Retranca e o poema 2 de O Martírio de Santo Estê-


vão integram o livro Estranha Beleza: antologia brasileira da
retranca — Claudia Cordeiro da Cunha Melo e Gustavo Feli-
císsimo (Organizadores). Itabuna: Mondrongo, 2018.

O poema Presença das coisas (e sua respectiva tradução para o


francês) integra o livro de Wladimir Saldanha Poésie Brésilien-
ne à Contre-Courant – retour esthétique du XXIe siècle (Poe-
sia Brasileira em Contracorrente: o retorno estético do século
XXI). Itabuna: Mondrongo, 2018.

Os poemas O recomeço, Retalhos, Retranca e o Martírio de


Santo Estêvão (1 e 2) participaram do projeto Palavras Passa-
geiras, Poesia no Ônibus, da Editora Domínio Público, 2013.

109
Állex Leilla
Elpídio Mário Dantas Fonseca
Jessé de Almeida Primo
João Filho
Luís Carlos Bragança de Pina
Renã Corrêa Pontes
e
Wladimir Saldanha

Meus sinceros agradecimentos


Alguma Exegese
sobre Sentida música
A MÚSICA SENTIDA, DE
CLAUDIO SOUSA PEREIRA

Jessé de Almeida Primo

Mário de Andrade escreveu: “Se Jorge de


Lima tivesse vivido alguns séculos atrás teria sido por
certo um desses grandes plagiários, à feição de Shakes-
peare ou de Camões. Não creio que com a mesma for-
ça de genialidade (...), mas da mesma qualidade que
eles.”1 Dessa forma, podemos ver numa obra como A
túnica inconsútil, de que Mário estava falando, e In-
venção de Orfeu, não apenas séculos de literatura, mas
obras de diversos autores.
Claudio Sousa Pereira, em Sentida música, as-
sim como Jorge de Lima, escreve a partir de referências
diretas a obras literárias específicas, claramente identifi-
cáveis, principalmente na primeira parte. Jorge de Lima,
por meio de aproveitamento de versos e temas alheios,
torna-os em uma das várias partes que compõem o cor-
po de um poema, conforme Mário de Andrade sugere
ao dizer dele lhe faltar invenção sem que lhe falte ima-
ginação, o que o aproxima de T. S. Eliot de “The was-
te land”. Claudio Sousa Pereira, por sua vez, dá voz às
grandes personagens ou da épica ou da tragédia grega
ou, ainda, como vemos na segunda parte, a uma per-
sonalidade dos evangelhos, no “Martírio de Santo Es-

1 “Nota preliminar”. In: Jorge de Lima – Obra completa. Rio de Janeiro:


Nova Aguilar, 1959, v. 1, p.419.

113
tevão”, cuja voz se divide com a do narrador que tudo
testemunha num sonho. Ou reelabora, dramaticamen-
te, em diversas líricas diversos episódios.
Assim como Lima, Pereira é também um
autor de feição virgiliana e também camoniana, se le-
varmos em conta a maneira de Camões lidar com o
grande latino na épica. E é justamente nessa feição que
se afastam de Eliot, embora seja este, a seu modo, um
virgiliano também. Eliot, no que respeita às famosas
notas ao poema, em que pese a qualidade incontes-
tável do que escreveu e sua consequente importância,
tem contra si, mas sem que estas coisas comprometam
a integridade do resultado final, ou a vaidade erudita
ou a preocupação exagerada de quem supõe que o lei-
tor não vai entender o que escreveu ou continuará sem
saber qual a fonte de tantas referências. Nisso, o pro-
cedimento do grande anglo-americano, procedimento
esse tão defensivo, não se distingue apenas do proce-
dimento de Lima e de Sousa Pereira como também o
afasta de Virgílio e de Camões.
Virgílio, a saber, usou o mesmo hexâmetro
homérico e como que deu continuidade à narrativa da
Ilíada que termina antes da destruição de Tróia e por
vezes reproduz os mesmo episódios; e Camões, por sua
vez, usa a estrutura da Eneida, também reproduzindo
alguns de seus episódios, mas para contar a história de
Portugal, sem fazer indicação – fora um ou outro mo-
mento no corpo do poema – de suas fontes de maneira,
diria, externa, sem, por exemplo, estampar em folha de
rosto que esta obra parte da Eneida, de Virgílio. Afinal,
tanto Camões como Virgílio já partem do princípio de
que essas fontes são bastante conhecidas e contam jus-
tamente com isso por que o leitor perceba de imediato

114
a origem do que escreveram. Fazia parte da boa reputa-
ção literária a arte da imitação, nos termos de Mário de
Andrade, plagiar de “forma sempre criadora”. E é jus-
tamente por isso que me soa exagerada a reputação de
plagiário de Gregório de Matos, no pior sentido que se
possa atribuir isso a um escritor, armadilha em que até
Manuel Bandeira, de vastíssima cultura literária, caiu
na sua Apresentação da literatura brasileira. Afinal, se
considerarmos que a língua espanhola, incluída a sua
literatura, era patrimônio comum tanto de Espanha
como de Portugal, como acreditar que o grande poeta
baiano não queria que descobrissem que “Um soneto
começo em vosso gabo” tem como origem “Un soneto
me manda hacer Violante”? Levando a arte da imitação
ao extremo, o poeta português João Franco Barreto, no
século XVII, traduziu a Eneida em oitavas camonianas,
não apenas isso, recontou toda a história do poema vir-
giliano reproduzindo nessas oitavas a musicalidade de
cada oitava dos Lusíadas.
Colagens, à maneira eliotiana e até certo
ponto, liminiana, não parecem predominar na poesia
de Sousa Pereira, salvo um ou outro momento, como
“...quando a Aurora/ em dedos de rosa/ surgiu matu-
tina”, que são da Ilíada, na tradução de Carlos Alberto
Nunes, mas sim algo como um desenvolvimento de
outros poemas, como se esses lhe servissem de mote
para a composição dos seus, ou seja, usa os motivos
que os grandes poemas lhe fornecem e, levando em
conta que Claudio Sousa Pereira é também tradutor2,

2 Leiam Águas lombardas e outros poemas, do poeta italiano do


período Crepuscolari Sergio Corazzini, que Claudio Sousa Pereira
traduziu e publicou pela Mondrongo, em 2021.

115
é de se esperar que no processo de tradução, sendo ele
um poeta autoral que também traduz, amplie as pos-
sibilidades de sua linguagem pessoal a partir do estilo
de autores de outras línguas.
Claudio Sousa Pereira escreve o que se tor-
nou conhecido como poesia da cultura, não com a
intenção de exibir essa cultura como se exibe uma
medalha, mas justamente porque as várias referên-
cias de que se vale é que lhe dão a voz e os elementos
de que necessita para expressar o que se passa no
próprio espírito, procedimento equivalente ao que
Jorge Luis Borges, ao falar sobre os diálogos platô-
nicos, disse que Platão usava para responder às suas
perguntas pessoais. Quando tinha alguma dúvida
acerca de algum assunto, esforçava-se por imaginar
o que Sócrates diria a esse respeito. Essas referên-
cias não se limitam às mais pretéritas, àquelas cujas
qualidades o tempo encarregou-se de atestar. In-
cluem-se nesses diálogos autores contemporâneos,
como Bruno Tolentino:
É visível que a música apresente
a virtude de todo pensamento,
e a ideia iluminada não se ausente,
harmonizando o gesto tão isento.

É possível que o cântico presente


revele a busca da fonte e alimento,
sintetizando em melodia ardente
a precisa assunção do encantamento.

É preciso que o verbo seja leve


e no horizonte imenso possa ter
a ressonância azul que sobreleve

116
ao múltiplo sentido, em dizer
sobre a presença e claridade breve,
a música completa-se no ser.

Esse é o sexto soneto da série “Epifanias”, cujas


estâncias reproduzem a sonoridade de “Nihil Obs-
tat”, de Tolentino, mais precisamente, do primeiro
quarteto ao primeiro terceto vemos, por meio de
reiterações igualmente rítmicas (“É preciso/ É vi-
sível/ É preciso), a reprodução sonora do primeiro
quarteto do poema de Tolentino:

É preciso que a música aparente


no vaso harmonizado pelo oleiro
seja perfeitamente consistente
com o gesto interior, seu companheiro
e fazedor. (...)

“É visível”, com o verbo ser na forma indicati-


va que se completa com um adjetivo paroxítono, retoma
o “É preciso”. Em seguida, ele mantém a locução, “que
a música”, do poema que lhe serviu de modelo, ao qual
acrescenta o verbo “apresente” com terminação “ente”,
que o relaciona com o “aparente” do verso de Tolentino,
estabelecendo assim uma comunicação melopaica entre
os dois poemas. Ou ainda Drummond, na última parte
do livro intitulada não por acaso “O caminhante”, que se
articula em três terças-rimas com os que compõem “A
máquina do mundo”, do poeta itabirano, nos quais se
destaca a figura de Odisseu, cujo senso de dever, de mis-
são, e que pôs como objetivo, suportando a determinação
dos deuses, em meio a tentações pessoais e manifestações
da natureza, voltar para sua Ítaca — “a volta visceral” que

117
está num dos versos de “Decisão”, que abre a série – em
oposição à figura vacilante e, por fim, demissionária da-
quele que “palmilha” a estrada de Minas, pedregosa”. E
marcando a diferença entre a determinação de Odisseu
que, por vezes, se mistura aos valores cristãos, e a abdi-
cação espiritual de que fala Drummond, lemos um dos
mais belos, delicados e alentadores finais:

A estrada, logo tão clara e vistosa,


voltou a exercer seu destino estrito.

E o caminhante a noite silenciosa


seguiu, com aura de esperança e espinho,
atravessando a areia pedregosa

em direção à luz de seu caminho...

Essa luz que se encontra no caminho, tão


querida, entre “esperança e espinho”, é já anunciada no
poema de abertura de “Itinerários” — “desajoelhar/ le-
vantar/ e seguir.” —, que é a segunda parte desta obra,

E depois de marejados
os olhos
respirar
respirar profundamente
expandindo o peito
desarqueando os ombros
e lentamente
erguer o cenho
— na confiança do porvir —
desajoelhar
levantar
e seguir.

em que todo o universo dos mitos se concentram no

118
microcosmo do nosso cotidiano urbano, algo próxi-
mo ao universo de Ulisses, de Joyce, no qual o escritor
Irlandês reproduz num passeio pelas ruas da Irlanda
todo o universo da Odisseia. Nesse pequeno poema se
percebe todo o percurso de Odisseu, dos longos anos
que durou a guerra, dos quase intransponíveis obstá-
culos que lhe atrasaram em mais de duas décadas o
retorno, mais as lutas na própria terra por que pudes-
se enfim, “depois de marejados/ os olhos”, desfrutar a
paz com a sua família. Dentro da mesma sessão, há
variações, como em “Quadros”, em que um nosso con-
temporâneo, após tudo, após o labor, vê “no fundo da
moldura/ — feito um milagre — o ouro do horizonte”
ou que percebe “ tudo que marca/ sempre estima a
volta.” Tudo aponta para o retorno à Ítaca. Ou, enfim,
o mesmo Odisseu, que retirando os véus do triunfalis-
mo pagão, se eleva a Santo Estevão, cuja Ítaca se trans-
figura em Glória, quiçá, no corpo de Cristo:

Em meio às pedras viu-se a Glória,


e a crença e chama da certeza,
quando fitou os céus abertos
através da imensa clareza.

119
UM OLHAR ATENTO A CANTAR...
Elpídio Mário Dantas Fonseca

Conheci Claudio Sousa Pereira, assistindo


a duas participações dele no programa Oratório Vir-
tual que meu amigo, o talentosíssimo poeta João Fi-
lho, apresenta aos domingos, às 17:50 horas, à época
acompanhado do Padre Gilson Magno.
O que imediatamente me chamou a atenção foi
o preparo intelectual de Claudio, respondendo às pergun-
tas com naturalidade, firmeza e conhecimento de causa,
dignos dos maiores estudiosos: apontava a corrente a que
pertencia tal poeta, citava-lhe versos de cor, designava as
datas das edições, até mesmo da primeira, e tudo, com
uma didática que faz de seus alunos em Seabra, BA, -
pensei com meus botões - verdadeiros privilegiados em
contar no seu corpo docente com alguém tão talhado
para o ofício de ensinar literatura como Cláudio.
Tempos depois, eis que recebo, entre surpre-
so e alegre, as Águas Lombardas e outros poemas (Anto-
logia Poética de Sergio Corazzini, com seleção, ensaio,
notas e tradução de Claudio Sousa Pereira, publicado
pelo querido Gustavo Felicíssimo, poeta que publica
poetas e incansável na divulgação, por sua editora, a
Mondrongo, do melhor da poesia brasileira atual e do
passado. Àquelas qualidades de Claudio, já menciona-
das acima, pude verificar, da leitura de alguns poemas,
que mais duas outras a elas se reuniam, imprescindíveis

120
a qualquer tradutor: a fidelidade ao original e a expres-
são corrente em português. Mostra ainda Claudio nesse
livro uma parte de seus imensos conhecimentos de li-
teratura brasileira, esclarecendo e apontando interliga-
ções entre autores, como as entre Corazzini e Manuel
Bandeira (que este reconhecera, de passagem, em seu
Itinerário de Pasárgada) e Cecília Meireles, Augusto
Frederico Schmidt, Vinicius de Morais, Ribeiro Couto,
Eduardo Guimarães e Raul de Leoni, situando-os, não
só no quadro desta literatura como no da literatura ita-
liana até o autor em tela, cujos aspectos centrais da poé-
tica Claudio apresenta, passando, em seguida, para a in-
fluência de Corazzini em vida e após a morte, influência
que, como dito, chegou ao Brasil. Verdadeiro trabalho
de explorador consciente e generoso em revelar a um
público mais amplo os tesouros que encontrou.
Tendo-lhe conhecido as vertentes de ensaísta
da poesia brasileira e exímio tradutor do italiano, eis
agora Claudio S. Pereira me deu a honra de fazer o pos-
fácio a esta sua tão bela “Sentida Música”, obra inaugural
de poeta, e, não sendo eu crítico literário, mas um mero
leitor que gosta de poesia, direi das impressões que me
causou tão precioso lançamento, como, de regra, costu-
ma acontecer com as publicações da Mondrongo.
Começando pelo título, Sentida Música, que
já cumpre o que, em sua A Criação Literária, poesia e
prosa3, disse Massaud Moisés da poesia, chamando-a de
“expressão do “eu” por meio de palavras polivalentes,
ou metáforas”: Música triste. Música que se sentiu. O
que o poeta percebeu (senti) da música. Sem ti, dá mú-

3 Moisés, Massaud, A Criação Literária, poesia e prosa, edição revista


e atualizada, Editora Cultrix, São Paulo, 2012, p. 71.

121
sica, e assim por diante num conjunto de polivalências
e metáforas que se espalham pelas cinco partes do livro:
Poemas gregos; Itinerários; Epifanias; Das contempla-
ções; O caminhante.
Em Poemas gregos, vemos um entretecer dos
destinos de Odisseu, Édipo e dos parentes deste último,
a demonstrar que Claudio sabe exatamente onde come-
ça o seu ofício e onde ele, autor, se situa, apoiando-se
nas epopeias e tragédias gregas, mostrando-nos sempre
um monólogo apropriado de cada uma das persona-
gens, como entre outros a Epifania de Penélope:

“—Submersa aos sofrimentos desta lida,


achei estranho e inquietante rever
este que, na ilusão da minha vida,
voltou para findar o meu sofrer.

Mas reparando já, desinibida


me mostrei no contemplo do teu ser,
jubilosa emoção jamais vencida,
muito esperei, sempre sem morrer.

Hoje, assim, mergulhada neste absinto


dos teus gestos e olhares, logo sinto
nossa mitologia restaurada

agora, no real desta presença,


e me faz ser (entre todas) a mais intensa
e radiosa, feliz e mais amada...”

Em Itinerários, apresentam-se os caminhos que


alguém pode seguir após O recomeço (a mim dedicado),
poema em que vejo a descrição perfeita do ato de absol-
vição dos pecados confessados. É sublime, qual uma pre-
ce, que decerto poderia ser declamada logo após a saída

122
do fiel, absolvido, do sacramento da confissão:
E depois de marejados
os olhos
respirar
respirar profundamente
expandindo o peito
desarqueando os ombros
e lentamente
erguer o cenho
— na confiança do porvir —
desajoelhar
levantar
e seguir.

Em Epifanias mostram-se as belezas do coti-
diano, tão frequentemente alheias à atenção do comum
das pessoas e que dão ensejo ao autor para considerações
metafísicas, como, entre outras, na Epifania 5, o soneto:

Uma força, no além da concretude,


projeta-se nos seres da existência,
que é suprema e invisível na atitude,
mas a transpassa em lógica evidência.

Toda fase do mundo em longitude


revela a pura marca de imanência,
é onipresente, existe e não ilude,
e que transcende as provas da ciência.

Força motriz aflui além dos céus,


paralisa a enlaçar os olhos meus.
Para onde vai, ou mesmo de onde veio,

não sei, mas desse ser que é inconteste,


numa profunda luz de que se veste,
eu — em prantos —, me espanto, sigo e creio.

123
Em Das contemplações, eis a música apre-
sentando-se para o poeta que a sente, com ela se
une, e no-la transmite em suas várias melodias
como em Música Invisível:
Teias sensíveis
ligam os fluxos da cidade,
organizam cada elemento móvel
orbitam o concreto-estável
fixado nas coisas.
Através do Sol
dourando a manhã
cada ponto
doa ao outro
sua dose de proporção.

Assim, os átomos suspensos,


sem caos e ordenadamente,
se amoldam em cada ente necessário
— ora em júbilo, ora pousado—
música invisível que seguir.

Em O caminhante, o tema da Máquina do


Mundo, de que se ocuparam Camões e Drummond,
retoma-o Claudio, impondo a si mesmo um caminho
próprio, depois de ter assimilado as formas poéticas
todas que o antecederam, acrescentando um verso a
mais ao terceto final que conclui o seu último poema:
E o caminhante a noite silenciosa
seguiu, com aura de esperança e espinho,
atravessando a areia pedregosa
em direção à luz de seu caminho...

Convém enfatizar que todos esses temas


se entrecruzam, não estando estanques em cada

124
uma das partes: o tema da partida de Odisseu e de
seu retorno segue como o fio condutor dos poemas
bem como o olhar do poeta a ver belezas e horro-
res inesperados nas coisas cotidianas. As belezas
do Soneto do encontro e Anoitecer em ti:

Para este encontro trazes o esplendor


e o meu desejo que em ti desperta,
em afagos, toques, se constrói o amor
e o instinto final para a descoberta

do teu corpo nu, onde esta florada,


que ofereço no extremo do teu ventre,
é como se fosse a última chamada
da vida e a explicação de tudo, e entre

nós, em frente ao espelho no que teces,


te amo em êxtase ao que sonho e senti,
assim, quando de jeito me ofereces,

e te domino e te penetro a fundo


porque — quando estou dentro de ti —
estou em transe, no centro do mundo.

***

Quando o dia escorre


pelo teu corpo estendido,

o mar logo se refrata


no fulgor dos teus olhos,

o céu torna-se rosáceo


na tez limpa do teu rosto,

e o sol se põe e se dissolve


na noite em flor dos teus cabelos.

125
E o horror, nos versos finais de Flor Pretérita:

Contudo, o teu viver, mulher inconcreta,


refeita em verbo
foi declinado sem ver a luz do dia,
sem testemunhar a luz da vida,
encerrado numa caixa de sapatos
ocultamente em meio a sacos de lixo.
Caule desprendido,
flor pretérita rumo ao nada.

Demais disso, podemos perceber em Música sen-


tida, valendo-nos das palavras de Junito de Souza Brandão,
em seu Dicionário Mítico-Etimológico da Mitologia Grega4, a
presença de um novo rapsodo em Claudio, o qual, louvando
as musas, filhas de Zeus e Mnemósina, que se prende ao verbo
mimneskein, “lembrar-se de” (donde Mnemósina ser a perso-
nificação da memória), faz ressoar os versos de diversos poetas:

Olavo Bilac:

Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua, [de A um poeta]5

Claudio S. Pereira:

E geme e grita e se exaspera, [de A travessia]

Camões:

4 Brandão, Junito de Souza, Dicionário Mítico-Etimológico da


Mitologia Grega, Volume II, J-A, Editora Vozes, Petrópolis, 1992,
vocábulo Musas, pp. 150-151.
5 Agradeço de público a meu amigo, o poeta João Filho, que
diligentemente me localizou esses versos, que eu havia transcrito para
ele como “Suspira, e chora, e geme, e sofre, e sua”, de minha memória
falha. [Nota do posfaciador]

126
Onde a terra se acaba e o mar começa, [de Os Lusía-
das., Canto III, 20]

Claudio S. Pereira:

lá onde o céu termina


e a imaginação começa. [de E o despertador acorda]
Manuel Bandeira:

Vão demolir esta casa.


Mas meu quarto vai ficar.
Não como forma imperfeita
Neste mundo de aparências:
Vai ficar na eternidade,
Com seus livros, com seus quadros,
Intacto, suspenso no ar! [De Última Canção do Beco]

Claudio S. Pereira:

Hoje se veem apenas os pés do muro.


Mas o imaginemos erguido ainda,
minhas mãos pousam nele
feito um arquétipo posto no ar.

Olhemos esta escada:


nos meus, permanecem inteiriças
e agora há sol onde só havia sombra
em boa parte dela.
Vejamos este portão:
nos meus, este não se fechou em tijolos.
Eu ainda passo por ele. [de Paisagem Interior]

Dante Alighieri:

No meio do caminho em nossa vida,


eu me encontrei por uma selva escura

127
porque a direita via era perdida.
Ah, só dizer o que era é coisa dura
Esta selva selvagem, aspra e forte,

Que de temor renova à mente a agrura! [ter-


cetos iniciais do Canto I, Inferno, na tradução de Vas-
co Graça Moura]

Claudio S. Pereira:

O verde-gris do arvoredo
neste chão que, agora, vejo,
se fez manhã logo cedo

no paterno lugarejo.
E o verde visto pela ânsia
justifica-se num beijo

Outro ponto essencial de Sentida Música é


a consciência de Claudio S. Pereira, ao perceber que
seu ofício, a despeito de tratar de coisas do agora, se
reporta ao eterno, apresentando neste livro de poesia
a mesma iluminação que Eric Voegelin teve, em 1978,
num ensaio filosófico, Estruturas de Consciência, ao
comparar as atividades do poeta e do filósofo (III. Es-
trutura Histórica e IV. Presença Indelével): a de que, em
essência, poetas e filósofos estão fazendo o mesmo, em
diferentes níveis — aqueles, no da compactação, na
classificação de Voegelin, ou no do discurso poético,
na classificação de Olavo de Carvalho, na teoria dos
quatro discursos6; e estes, no da diferenciação, na clas-

6 “Possibilidade, verossimilhança, probabilidade razoável e certeza


apodíctica são, pois, os conceitos-chave sobre os quais se erguem
as quatro ciências respectivas: a Poética estuda os meios pelos

128
sificação de Voegelin, ou no do discurso analítico, na
classificação de Olavo de Carvalho, na teoria dos qua-
tro discursos, em plena harmonia com a classificação
voegeliniana e a ela complementar.7 Confiram:

quais o discurso poético abre à imaginação o reino do possível; a


Retórica, os meios pelos quais o discurso retórico induz a vontade
do ouvinte a admitir uma crença; a Dialética, aqueles pelos quais o
discurso dialético averigua a razoabilidade das crenças admitidas, e,
finalmente, a Lógica ou Analítica estuda os meios da demonstração
apodíctica, ou certeza científica.
Ora, aí os quatro conceitos básicos são relativos uns aos
outros: não se concebe o verossímil fora do possível, nem este sem
confronto com o razoável, e assim por diante. A consequência disto
é tão óbvia que chega a ser espantoso que quase ninguém a tenha
percebido: as quatro ciências são inseparáveis; tomadas isoladamente,
não fazem nenhum sentido. O que as define e diferencia não são
quatro conjuntos isoláveis de caracteres formais, porém quatro
possíveis atitudes humanas ante o discurso, quatro motivos humanos
para falar e ouvir: o homem discursa para abrir a imaginação à
imensidade do possível, para tomar alguma resolução prática, para
examinar criticamente a base das crenças que fundamentam suas
resoluções, ou para explorar as consequências e prolongamentos de
juízos já admitidos como absolutamente verdadeiros, construindo
com eles o edifício do saber científico.
Um discurso é lógico ou dialético, poético ou retórico, não em
si mesmo e por sua mera estrutura interna, mas pelo objetivo a que tende
em seu conjunto, pelo propósito humano que visa a realizar. Daí que os
quatro discursos sejam distinguíveis, mas não isoláveis: cada um deles
só é o que é quando considerado no contexto da cultura, como expressão
de intuitos humanos. A ideia moderna de delimitar uma linguagem
“poética em si” ou “lógica em si” pareceria aos olhos de Aristóteles uma
substancialização absurda, pior ainda: uma coisificação alienante. Ele
ainda não estava contaminado pela esquizofrenia que hoje se tornou
o estado normal da cultura.” Carvalho, Olavo de, Aristóteles em Nova
Perspectiva. Introdução à Teoria dos Quatro Discursos, 2.ª edição,
Campinas, Vide Editorial, 2013, pp.31-32.
7 Frederick Wagner (Eric Voegelin Society), autor em Voegelin View,
discípulo de Voegelin, em carta escrita a Olavo de Carvalho acerca
de sua “Teoria dos quatro discursos”: “Se Voegelin tivesse lido isso
[Aristóteles em Nova Perspectiva], “teria incorporado o pensamento
do senhor ao dele mesmo, para explicar como passamos da percepção
à ciência.” [Nota do posfaciador]

129
“Aristóteles, na Metafísica (no Livro A), reflete
acerca do problema que o que ele está fazendo em
filosofia - aquela abertura para o conhecimento da
relação noética para o fundamento que é ao mes-
mo tempo uma iluminação — [...] não é diferente
em sua estrutura, em princípio, e na busca (na in-
vestigação em que se envolve), [de], por exemplo,
[o que é feito pelos] poetas de mito cosmogônico
como Hesíodo. Quando eles falam da origem [na
linguagem platônica, a aition) do mundo, no céu
e na terra, e de [lá] constroem então a inteireza
da história da realidade na forma de um mito cos-
mogônico ou um mito teogônico, eles fazem exata-
mente o mesmo [que] ele faz. Eles estão à procura
da relação com o fundamento e tentam encontrar
a fórmula para esse fundamento. Só que, no caso
filosófico, essa estrutura de consciência se tornou
mais diferenciada, mais claramente articulada do
que era nas especulações teogônicas ou cosmogô-
nicas. Agora, não temos nenhum termo para essa
relação; e chamei-a a equivalência de símbolos sob
várias condições de consciência. Então podemos
ter a mesma investigação, que se expressa filoso-
ficamente ou (estou enfatizando o elemento ilu-
minador) na revelação, também na simbolização
mítica das especulações míticas como nas espe-
culações teogônica, antropogônica, [e] cosmogô-
nica. Elas são equivalentes na escala que parte da
compactação até a diferenciação.

[IV. Presença indelével]

Como reconhecemos, entretanto, que ela é


sempre a mesma? Aqui aparece um conceito muito
importante, que tomei de Platão. É a mesma por-
que há um elemento estrutural em todas [367] es-
sas experiências e expressões linguísticas de cons-

130
ciência: Todas elas têm que ver com a presença do
divino como o fator movente. Esta presença do
divino como o fator movente na alma e no mun-
do em geral é chamado por Platão a parousia: na
República, por exemplo, quando ele desenvolve
o conceito de epekeina. Esta presença identifica
os vários acontecimentos que são equivalentes e
os faz reconhecíveis entre si. Compreendemos a
simbolização compacta, comparativamente pri-
mitiva, porque reconhecemos nela a investigação
da mesma presença (na experiência da presença
divina) que [nós] encontramos nas experiências
mais diferenciadas. Não se pode, portanto, dizer
que acontecimentos passados de consciência e
experiência pertencem ao passado, ou que acon-
tecimentos futuros pertencerão exclusivamente ao
futuro, porque o que os faz acontecimentos como
acontecimentos de consciência é o que eu chama-
ria a “presença indelével” do divino, que identifica
a tensão na relação entre o homem e o fundamento
divino. Então, todos os acontecimentos passados
estão presentes no sentido da presença indelével
e, portanto, pertencem ao mesmo problema estru-
tural e à mesma realidade no processo histórico
de compactação e diferenciação. E por isso temos
uma história — e, vedes, uma história que é inteli-
gível. O que torna a história inteligível é a parousia
em todos os casos.
E vedes agora [...] o que significaria descartar
esses descobrimentos nas estruturas da consciência.
Porque então perdeis, não o passado, que pode ser
jogado ao mar, mas perdeis o vosso presente, porque
o vosso presente não tem nenhum significado a não
ser que se relacione com os acontecimentos mais
compactos do passado, que estão também presentes.
Não podeis sair do presente indelével na história; e
se tentardes fazer isso, tornais-vos um selvagem do

131
momento sem nenhumas relações com vossa própria
realidade e as estruturas de vossa consciência.” 8

De fato, a epígrafe geral “Qualquer coisa de


agora, mas de eterno”, de Dante Milano, associada, en-
tre outros a Demódoco e Odisseu:

Cada melodia dedilhada pelo cego


condensa a síntese da vida, tão brevemente
pelas lágrimas do guerreiro.
Armaduras e afagos, lesões e consolos
projetam-se no ar em imagens
como resquícios do real, mesmo no presente,
e anunciam, ainda que distante,
a reconstituição do passado no futuro.

E a O Objeto
Mas que objeto é esse, envolvente,
de uma oculta ação provedora

nas simples coisas tão presente-


mente visto, em força construtora?

— Cresce nos coentros e galinhas


na roça de meu pai, nas leiras

de couve, alface ou cebolinhas,


seja em Troia ou em Cajazeiras.

E a Razão do Poema

8 Voegelin, Eric, The Drama of Humanity and Other Miscellaneous


Papers, 1939-1985, copyright 2004, The Curators of the University
of Missouri, [O Drama da Humanidade e outros Ensaios Diversos,
1939-1985, p. 366-367, em curso de tradução por Elpídio Mário
Dantas Fonseca].

132
Mas, antes do verbo, a luz
—luz total que cega em susto,
de um arrepio, golpe a custo
de enigma que nos conduz.

Apura-se a luz na imagem.


Outro susto, novo mundo
além deste e mais profundo
o transparece na mensagem.

bem poderiam demonstrá-lo.

Atravessa todo o livro de Claudio o tema do


nóstos, semente para a criação de uma possível filo-
sofia pensada por Gabriel Liiceanu, conforme este o
explica neste excerto:

“E num belo dia, num seminário de Letras Clás-


sicas com Mihai Nasta, no primeiro dos cantos da
Odisséia, fico cara a cara com o nóstos! Em duas linhas
aparecia o sintagma nóstim émar, “o dia do retorno”,
ligado aos heróis aqueus que, depois de passarem
dez anos sob os muros de Tróia, tinham conseguido
encontrar o caminho de retorno à casa. No caso de
Odisseu, este caminho durará outros dez anos. Le-
vando as coisas para um plano especulativo, eu ligara
o extravio odisseico, guiado permanentemente pela
obsessão do “dia do retorno”, a minhas leituras he-
gelianas recentes. Por acaso não se resumia toda a
filosofia de Hegel ao retorno glorioso do Espírito a
si mesmo, mas numa configuração final modificada
pela soma das experiências acrescidas de um enorme
percurso? Assim como Odisseu, o que voltou no final
a Ítaca era o homem enriquecido pela história de suas
próprias aventuras? Mas a vida de cada um de nós
não era, talvez, pelo entrecruzamento das nostalgias

133
de cada idade, uma recapitulação permanente dela e
uma sucessão de retorno? Mas a cultura da Europa
mesma não era também ela um sonho perpétuo de
retorno a todos os paraísos imaginados e perdidos no
percurso da história da civilização?
Eu estava, sem dúvida, a ponto de fundar
uma “metafísica dos retornos”! Estava, quiçá, no ca-
minho de fazer nascer um pequeno ducado no impé-
rio da filosofia e, em consequência, receber o título
de “cavaleiro da ideia”. E, como qualquer ciência ou
metafísica nova devia, para aprofundar de maneira
decente e convincente no mundo, ser apresentada em
trajes helenos, decidi que, partindo da palavra nóstos,
“retorno”, minha ideia e metafísica em que ela passa-
va a encarnar-se teria o nome de nostologia!”9

Pode-se ver esse tema, entre outros poemas,


em A Volta:

Retornar
mera e simplesmente?
— não, não quero.

Mas a dimensão
de algo perdido
insistentemente
clama, clama.

Um cadeado aberto
ou ferrolho pendido
retine nos olhos

e nos ouvidos
do pensamento.

9 Liiceanu, Gabriel, Dragul meu turnător, Humanitas, Bucureşti, 2013,


p 261. [Meu caro alcagüete, tradução inédita de Elpídio Mário Dantas
Fonseca, conferência com o texto romeno de Cristina Nicoleta Mănescu].

134
Bater, fechar,
não sei, não sei,
mas tudo que marca
sempre estima a volta.

E o pulso agora vibra mais atento


com o instinto filial logo apurado,
tal como o sol sem nuvens erguido
neste dia de céu tão azulado.

Ela espreita da porta o movimento


e se achega do rosto afeiçoado,
mirando os olhos do rapaz que, vindo
distante ainda, era tão esperado.

Rotina longa esta que nunca enlaça,


a angústia de horas, pela noite ou dia,
longínquo pelo ofício o atravessou:

o pai bendiz, a mãe então o abraça,


enfim, fez-se em suspiro de alegria
porque o filho esperado retornou!

Da Ilha dos Amores à Máquina do Mundo,


com uma parada na condição do Filho Pródigo, para
chegar à ilha da Esperança de Cláudio, perpassando
sempre o nóstos e retomada de Odisseu, caminhamos
com o poeta em A decisão:

Entre brumas esplende a ilha


da esperança: após a triste
compreensão que fervilha,

então, para que se insiste?


É da busca do destino
da vida que não desiste.

135
E em O Sobrevivente

Reverso mar. O que era a calmaria,


toma de assalto as nuvens e espaneja,
e em susto o alça veloz na maresia,

outra vez mais o nauta na peleja,


contra esse fero ímpeto da morte,
logo ele, tão somente ele que almeja

sem velas pandas, mas com algum norte,


triste em morrer ali, longe da amada,
e tendo a tempestade por consorte.

para chegarmos ao último verso de Sentida


Música, e falarmos como Hesíodo:

“Feliz, então, aquele a quem as Musas//pre-
zam; a esse corre-lhes dos lábios uma voz doce”10,

ao lermos esta verdadeira profissão de fé de Clau-


dio S. Pereira, que, caminhante, seguiu a noite silenciosa, com
aura de esperança e espinho, atravessando a areia pedregosa

em direção à luz de seu caminho...

São Paulo, no Domingo da


Septuagésima, no ano da Graça
de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2022.

10 Teogonia, de Hesíodo, tradução de Ana Elias Pinheiro, in


Teogonia, Trabalhos e Dias, Hesíodo, prefácio de Maria Helena da
Rocha Pereira, Introdução, tradução e notas de Ana Elias Pinheiro e
de José Ribeiro Ferreira. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lisboa,
2005, p. 43, vs. 95-96.

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Impresso para a Editora Mondrongo em julho de 2022


no formato 13 x 20, em papel Pólen Bold 90 gr no miolo e Cartão
Supremo na capa. As fontes tipográficas usadas foram a Arial,
Minio Pro e Times New Roman nos títulos e conteúdo.

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