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Biografia

Dom Dinis Mutuque, pseudônimo de Dinis Osias Mutuque,


nasceu a 3 de Outubro de 1997, na Vila Eduardo Mondlane,
ANTOLOGIA DE CRÔNICAS

AS MELODIAS DO
SILÊNCIO

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FICHA TÉCNICA

Título: As Melodias do Silêncio

Coordenação: Nunes Cristóvão

Edição: Ntxuva

Revisão: Serafim João Muacua; Vicente Mavuie e


Mário Bungueia

Capa: Lucílio Maúndze

Diagramação e Layout: Ntxuva

ISBN: 978-65-00-24997-2

Colaboração:

Osvaldo dos Anjos

Télio Mbeve

Helton Carlos Ubisse

Dom Dinís Mutuque

Nunes Cristóvão

Pedro Júlio Miranda

Fayed Camilo Zavale

Valdimiro José Paque

Propriedade e Direitos do Autor: Ntxuva

Copyright© Todos Os Direitos Reservados

Maputo, Junho de 2021

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Sobre Nós

Ntxuva é uma editora visionária em Moçambique, na


publicação de e-books, rumo à publicação de obras físicas.
A editora foi criada por jovens moçambicanos que acreditam
nesta geração, com objectivo de colmatar o défice de
produção e divulgação de obras literárias desde os veteranos
aos iniciantes, com dificuldades para tornar seus sonhos
uma realidade.

Tem como missão acompanhar todo o processo de produção


e publicação de livros (Capa, revisão e diagramação, ficha
catalográfica, Registro ISBN) através de projectos pessoais e
antologias diversas, do domínio literário, científico,
económico, autoajuda e outros, com qualidade aceitável de
escritores.

Caríssimo leitor, nós valorizamos a sua opinião sobre os


nossos livros e os nossos autores. Por esta razão pedimos
que nos siga e dê um feedback em nossas páginas nas redes
sociais.
Por sermos uma editora criadora de oportunidades para
escritores e instituições, para possibilitar o envio do seu
original para a publicação em nossa editora servimo-nos das
seguintes plataformas:

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Índice
Dedicatória ......................................................... 5
Prefácio ............................................................... 6
O Poeta Exilado ................................................. 13
1.QUEM PECOU? ................................................... 14
Télio Mbeve ...................................................... 18
2.MARTA, A ESPOSA DO MARIDO DA NOITE ........ 19
3.DECEPÇÃO, MÃE VENDIDA ............................... 30
Helton Carlos Ubisse ......................................... 34
4.A DESVENTURA DA ILHA DE UMUMI ................ 35
Dom Dinís Mutuque........................................... 42
5.A VIGÍLIA INESPERADA ...................................... 43
Nunes Cristóvão ................................................ 53
6.ETERNAS SAUDADES, MEU AMOR .................... 54
Pedro Júlio Miranda .......................................... 66
7.DESGOSTOS DO PATRÃO .................................. 66
Fayed Camilo Zavale ......................................... 79
8.A JUVENTUDE DA PÉROLA ................................ 79
9.CASA AMADA...................................................... 87
Valdimiro José Paque ........................................ 94
10.A CIDADE PARA QUAL FUI EDUCADO ............. 95
RECOMENDAÇÃO PARA LEITURA… ................. 104
PRÓXIMOS LANÇAMENTOS ............................. 105
PARCERIAS ..................................................... 106

4
Dedicatória
Dedicamos

a toda a humanidade: homens e mulheres que


lutam por uma sociedade de virtudes, onde os
novos talentos são acolhidos e promovidos, sem
exclusão.

De Moçambique para o mundo

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Prefácio
Nas mãos do caro leitor, hic et nunc (aqui e agora),
jazem as Melodias do Silêncio. É isso mesmo, se a
melodia é unicamente possível na combinação de
diversos sons e vozes, então, nesta obra, o silêncio
canta e encanta. Aqui, o silêncio afirma-se até às
profundezas da sua essência, e,
concomitantemente, dá impressão de que
catapulta os limites da sua compreensão e acção.
Tradicional e naturalmente, o sossego, a quietude,
a calma, e a meditação são sinonímicos ao
silêncio.

Mas, nem por isso, o silêncio deve ser conotado


como estado de estagnação, inércia, torpor,
neutralidade ou insensibilidade. Antes pelo
contrário, o silêncio comporta uma acção bem
elaborada, uma contemplação, ou seja, uma visão
conjunta entre o teórico e o prático, uma
‘acçionação’ do pensamento. É caso para afirmar
que, a calma é necessária para propiciar o
ambiente do silêncio, mas, uma vez criadas as

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condições, o silêncio nunca mais vai ser igual a si
mesmo por que, no lugar da quietude vai nascer a
inquietude e em vez da paz interior brotará a
indignação. Desta forma, o silêncio aparece como
um nexum entre a visão da mente (o que os gregos
chamavam por ‘teoria’) e a visão da realidade
circundante (cosmovisão): a palavra e a acção são
presos no silêncio. Então, por mais paradoxal que
pareça, o silencio não sossega. Com efeito, ele
deve abrir a visão conjunta do mundo e da mente:
sim, o silêncio não só cega. Por isso, não adianta
recolher-se, fechar os olhos aos males e belezas do
mundo e meditar no escuro fantasmagórico: isso,
os cegos o fazem por natureza!

Nestes termos, chega-se à conclusão de que, o


silêncio é o útero da vida. Pois, apenas nas horas
de recolhimento da alma é que nasce a poesia, a
filosofia e a arte. Diga-se, pois, indubitavelmente,
que o silêncio é o berço da felicidade, do belo, do
bem-estar e de toda uma gama de aspirações
humanas. Sem o silêncio artístico, poético-

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literário, filosófico e académico (tradicional e
moderno), a humanidade auto condena-se ao
ativismo inconsciente: uma autêntica tragédia!

Entretanto, nesta “Antologia de Crónicas”, o


silêncio tem um carácter ímpar: produz melodia.
Numa mão, esta sinfonia dá-se, obviamente
porque nesta obra cruzam-se vozes de diferentes
temas e autores. Os quais, são um tanto
fascinantes quando, o leitor coloca-se na posição
de ‘espectador’ duma orquestra sinfónica em que,
o som hipnotizante do piano adicionado ao
envolvente violino, ao sopro da flauta, à
guitarrada, às batucadas, entre outros
instrumentos, a alma esvai-se até às moradas lá
do alto. E, o mais importante é não perder de vista
que esta harmonia de vozes, este concerto literário
dá-se em silêncio. Por isso, na segunda mão, dizer
‘Melodias do Silêncio’ é dizer melodias no silêncio.
O que pressupõe que nem todo o ambiente calmo
guarda de facto o silêncio, tido como, a
tranquilidade e o recolhimento no sentido

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rigoroso. Pois, há muita resistência,
manifestação, engenharia, enfim, muito barrulho
em silêncio. Para concordar com isso, basta ler
esta obra: um conjunto de lindas melodias que
mesmo não sendo ouvidas geralmente pelo
público académico continuam, com tal ousadia, a
consonar no silêncio as suas inquietações.

Evidentemente, estas “Melodias do Silêncio” são


coletâneas de impressões de jovens, filhos desta
‘Pérola do Índico’, que desejam irromper no
silêncio da sua audácia juvenil para tratar de
assuntos candentes sob ponto de vista
sociopolítico, cultural, religioso. Estes temas são
debatidos tendo como foco Moçambique, África e
o mundo em geral. Sendo que, cruzam-se
inquietações ligadas à pandemia do coronavírus,
aos sonhos da juventude, à guerra, à paz.
Tratando-se duma obra literária artística, o que
significa que não se acha aqui uma narração
histórico-jornalística dos acontecimentos, os
autores não se limitam a tirar a fotografia do dia,

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mas levados pela intrepidez juvenil e académica,
oferecem as suas hipóteses para que os problemas
por eles mencionados sejam colmatados: o tal
nexum feito no silêncio entre a cosmovisão e a
teoria. O que leva à conclusão de que, depois do
silêncio, o desafio a seguir consiste em colocar na
prática o que foi matutado.

Só para terminar, encorajo o leitor a percorrer


estas páginas que são profundamente cativantes
e surpreendentes. Os textos são soltos, o que dá
possibilidade para serem lidos
independentemente. Porém, dado que cada texto
é um texto, a leitura de um clama pela leitura do
outro porque são diferentes. Enfim, não se trata
de um só texto, mas de textos gêmeos: não seria
uma boa opção não saborear todos eles. Embora
seja “Antologia de Crónicas” todos os textos
tiveram uma e única maternidade: “Melodias do
Silêncio”. Bom usufruto das melodias cronicadas
em silêncio!
Jeremias Francisco Piloto

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POLIFONIA ANACÚSTICA

Fonemas anacústicos ecoam desde antes de Adão


Rasgando o caos primordial
Conjurando um espectro espácio-temporal
Em busca do cosmo, harmonia e duração

São sons líquidos de sangue jorrando gota a gota


Pelos rios, montes e mares
Irrigando essa terra já árida e sedenta
Que há tempos de lágrimas apenas, se alimenta
E mais espinhos que rosas dela brotam

São sons ensurdecedores de mais uma bala


Que na noite sombria vagueia a anos-luz
Ávida por mais uma alma
Para que nunca mais veja a luz

São passos de jovens perambulando


Em eternos apuros
Com sonhos enterrados
E destinos selados

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Almejando por algum porto seguro

Calos de joelhos prostrados há séculos


De bolsos vazios no limiar de um cenáculo
De fé sem crentes e ovelhas sem pastores
Proclamando aquele monótono espectáculo

São sons dos invisíveis e inaudíveis nas


encruzilhadas da cidade
Clamando pelo renascer da humanidade
Pela justiça, paz e liberdade
Por uma gravidez que paira a tranquilidade

São notas de embalar o demónio


De emudecer as armas
De serenar as almas
Melodias do silêncio
Helton Ubisse e Osvaldo dos Anjos

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AUTOR I

O Poeta Exilado

E xilado e/ou O poeta Exilado é pseudónimo de Osvaldo


dos Anjos. Nascido aos 02 de Julho de 1998, em
algures da Província de Maputo. Formou-se como docente
N4 em 2018 no IFP (Instituto de Formação de Professores)
de Chibututuíne. E exerce as suas funções na Província de
Gaza, em Massangena.

Talvez escrever já estivesse no seu ADN (herança paterna),


mas só descobriu depois de conhecer a literatura de Mia
Couto (muitas vezes sua fonte de inspiração). Foi redactor na
revista cultural Xigubo. Publicou no ano da sua graduação o
e-book “O Ultimo mudo” (sua primeira obra oficial).
Participou em vários grupos de escrita e promoção da poesia
local. É Caneta de aluguer. Escreve fluentemente sobre o
amor. Actualmente (2021) está a trabalhar na publicação da
sua obra de poesias intitulada “Problemas no paraíso”.

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1. QUEM PECOU?

Depois que concluíra o ensino primário, a


conversa mais frequente entre mim e meus
amigos era o futuro. Creio que todos
experimentaram essas previsões. Discutíamos
sobre as profissões, sua relevância e
remuneração, principalmente. Os que tinham
algum familiar endinheirado e/ou com uma
viatura, juravam com os pés juntos que seriam
como eles (mesma profissão, cargo, bens e
salário/dinheiro).

Eu, que tinha uma família modesta, a minha fonte


de inspiração era um conjunto de personagens
dos filmes americanos e actores de telenovelas
brasileiras e mexicanas. E em cada dia eu
transitava de sonho. De advogado para
engenheiro informático; de agente da CIA para
engenheiro químico; de piloto para repórter; e
tantos outros cobiçados em assistências. Certa
vez achei ser mais lucrativo me fazer um traficante
mexicano.

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Meus amigos tinham sonhos mais possíveis,
muitos deles almejavam a engenharia de
construção Civil, agronómica e electrónica. Um e
outro, a arquitectura e medicina. Todas estas
utopias desvaneceram, e hoje uns se tornaram
professores, outros enfermeiros e outros ainda e
em menor número, funcionários dos caixas
nesses estabelecimentos comerciais.

Eu após a conclusão da 10ᵃ classe me tornei


professor em 1 ano. Não porque quis, foi “o sonho
que não sonhei”. Influenciaram o bolso dos cotas
e a duração da formação. O meu primo, Gabriel,
fez-se médico após a 12ᵃ classe, em 7 anos.
Sempre que nos encontramos ele me questiona
triste: “por que não quiseste ser médico? Não
consigo cuidar sozinho da famíliaˮ. É que quando
perdemos 2 familiares por negligência médica
jurámos um ao outro que seríamos especialistas
da medicina para nos vingarmos da vida. E a
morte só voltava a espreitar nossa casa por
desígnio divino e não por mãos humanas. Com o

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tempo ele entendeu a razão da minha decisão e se
foi conformando.

E não era mais a santidade da família que o


inquietava. Nos próximos encontros os lamentos
foram mais concretos: “o MINEDH não paga meu
irmão, você vai morrer não por escassez de saúde,
mas por inalar tanto pó de giz sem digna
remuneração para uma AMM (Assistência Medica
e Medicamentosa) digna”. Eu entendia sua
preocupação e tristeza, talvez não fosse só
dinheiro que o preocupava.

Mas, numa dessas vezes inevitavelmente não


deixei barato e retalhei: e você cara? Que nem um
cabrito conseguia esfolar, que cirurgia ou operação
realizará? Sempre te faltou coragem, cara! Devias
ser Modelo. E os teus chiliques? Pacientes são
nojentos, suportarás? E assim eram as nossas
conversas, sempre terminavam com um de nós
ferido e, daquela vez, fora ele o lesado.

No mesmo dia, já na sala de aulas reflecti: aqui em


casa há uma enorme desvalorização da educação.

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Forma-se um educador em 1 ano? Gabriel formou-
se em 7, talvez digam que é porque a saúde é
sensível. E a educação? Não o é? Entrem vocês
numa sala de aulas e digam, por exemplo que:
1+1=2; Portugal foi colonizado por Brasil; acolá é
um pronome demonstrativo…e vejam no que vai
dar.

Um outro pensamento me invadiu sem licença:


forma um médico, o professor, com recurso à
pedagogia. Se despachamos a formação deste, não
só teremos profissionais de saúde incompetentes,
como também será o País inteiro que caminhará ao
precipício. Mas isso nem tem nada a ver, é só um
pensamento intrometido. Mas talvez tenha sido por
causa disso que eu e Gabriel perdemos Laura e
Nando.

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AUTOR II

Télio Mbeve

T élio Mbeve é natural de Manhiça, Província de


Maputo. Nasceu aos 17 de Fevereiro de 1998, numa
família de professores, razão que proporcionou a sua
prematura paixão pela leitura e ensino. Fez o ensino Primário
em Chibututuíne; o ensino secundário em Cambeve -
Manhiça; concluiu o nível Básico e Médio no Seminário
Propedêutico- Cristo Rei- Matola e, ensino superior em
Filosofia no Seminário Filosófico Interdiocesano “Santo
Agostinho”- Matola. A sua paixão literária começa a se notar
em 2014, influenciado pelos romances de Mia Couto, Paulina
Chiziane e alguns poemas de Noémia de Sousa. Desde 2017
tem escrito e publicado restritamente alguns textos de
reflexão e poesias. Em 2020 lançou através do projecto
APEIMOZ, seu primeiro e-book, intitulado “Nossos
Ferimentos” e, actualmente encontra-se a trabalhar na
promoção de poesias e artigos moçambicanos no projecto
APEIMOZ.

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2. MARTA, A ESPOSA DO MARIDO DA NOITE

Conto-vos esta história como forma de partilhar


convosco o meu obscuro mundo; não é uma
invenção; é sim, um desabafo real.

O que vos conto aqui são tristes realidades;


daquelas que o mundo finge não ver. Eu sou
africana de pele, culturalmente machangana,
aquela etnia que habita o centro do Sul de
Moçambique e a minha religião é cristã. Marta é
apenas um atributo do baptismo. O meu real
nome é “Hakelo”, nome masculino para uma
menina? Mas eu não disse que os meus pais
estudaram! Além disso, aqui na minha região
ainda não chegou aquele poder de prever o sexo
do filho ainda no ventre materno, sei lá como
chamam aquele sistema! Hakelo significa
“pagamento”. O meu nascimento foi pagamento de
uma dívida. Fui casada antes de nascer.
Projectada para devolver a respiração aos meus
pais.

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Os meus pais nasceram numa aldeia divinamente
tradicional, tudo era feito na base de tradição. O
meu pai era um dos grandes reis, daqueles que se
vestiam de peles de leão, assim se dizia quando o
saudassem “vida longa ao rei bravo, orgulho dos
antepassados” (é interessante o que se vive aqui,
faz-se tudo só para agradar aos mortos – nossas
estrelas) e, ele se sentia mais importante, mais
próximo dos deuses. A nossa sociedade é só
formada de homens. Mulheres são tidas como
“fumo”: nasceu, desapareceu. Nem são contadas
nas famílias. A minha mãe, segunda esposa do
meu pai, foi oferecida em troca de uma lata de
milho, para o consumo familiar, quando ela tinha
10 anos de idade.

Casamento prematuro? Não. Pois naquela época


casamento nem havia. O que havia era a venda
prematura de crianças proibidas de sonhar. Na
verdade, sonho era tabu, éramos interditas de tê-
lo. Até vale a pena agora, pelo menos casamos,
embora com maridos não escolhidos por nós. E o
meu caso é grave ainda. Casei-me com um morto,

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isso mesmo. Não sou viúva, não. Eu sou mulher
casada, mas com um morto. Um fantasma para
melhor dizer-vos. Um espírito é que é o meu
marido, meu marido da noite. Vocês não
imaginam o peso que carrego nas costas, as
“gozações” que sofro na sociedade. Vocês pensam
que não rezo? Que preciso de orações? Explico-
vos: eu sou crente, cristã-católica, por um tempo,
quase virei moradora do templo. Ficava lá, todo o
santo dia, de joelhos, rezando, pedindo a Deus
que me livrasse desse matrimónio obscuro. Sim,
eu queria divórcio do fantasma, mas parece que
Deus não apoia divórcios. Recebi todos os
sacramentos de iniciação cristã, até o matrimónio
que só durou 3 semanas. Pois, os maridos
escolhidos por mim, morrem misteriosamente.
Por exemplo, o último dos 4 que tive morreu por
falta de ar quando estávamos juntos na cama; de
repente sentiu-se sufocado e sem ar, e assim se
foi, é como se alguém lhe apertasse o pescoço e ele
gritava: por favor deixe-me respirar, deixe-me ir.
(lágrimas). Parece filme, mas é real.

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Já fui conversar muitas vezes com o padre Jaime.
Lembro-me de todos os seus conselhos: “reze
minha filha, reze! Tenha fé, confie em Deus” -
como se eu já não tivesse fé, e como se eu não
confiasse em Deus. Eu sempre acreditei em Deus,
até hoje acredito com todas as minhas forças e
reservas de esperança. Mas o meu problema não
é crise espiritual, é sim, real, concreto. Vocês não
imaginam o que é dormir sozinha e acordar
molhada, suada, e muito… (lágrimas), desculpa
por estar a chorar, é que, minha vida é um castigo.
Não há dúvidas que nasci entre as grades,
tristemente.

Os homens que tive por tão pouco tempo, me


tratavam do mesmo jeito. No princípio era tudo
mar de rosas, mas depois de umas semanas as
rosas transformavam-se em espinhos, e eu virava
um monstro cheio de defeitos. Começavam a me
olhar com desprezo, com nojo; em mim não viam
mais aquela mulher linda, de beleza inigualável.
Já não saíam comigo, sentiam-se livres longe de
mim. E não demorava até eles fugirem de mim,

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uns por simples desaparecimento e outros pela
morte misteriosa, sei que tudo é por minha culpa.
O espírito pelo qual me baptizaram, logo ao nascer
não me quis ver com nenhum homem. É isso, sou
esposa do marido da noite.

Eu quero saber como desfazer essa relação. Quero


desmontar esse casamento realizado contra todas
as minhas vontades. A oração até que me ajuda.
É uma boa atenuante. Sempre que rezo, me sinto
leve, livre do sofrimento, sinto minhas costas bem
leves, mas pena que tem sido por curto tempo,
esse é o problema de atenuante. Não cura, só
acalma. Acho que quando rezo, o meu marido da
noite fica adormecido, perde potência de me
agredir, fica totalmente inconsciente, mas
passado um tempo, volta e mais raivoso.

Dizem que a família é, por natureza, a fonte


principal da humanidade e o centro dos valores
que garantem a vida e a liberdade das pessoas,
mas na minha família e no meu caso, nada disso
pode aproximar-se à verdade. E os meus pais

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conhecem a principal raiz deste suplício, por isso
não dizem nada. Vivem como se tudo estivesse
bem. Aliás, no mundo deles, até que está tudo
bem, pois conseguiram liquidar a dívida que lhes
podia custar tantas almas. Assim, eles me vêem
como salvadora, a minha única alma serviu de
oblação para tantas outras que podiam sucumbir
por causa deste calote. Mas que dívida é essa?
Também não sei, ninguém me quer contar, é por
isso que sofro tanto! Pensais que se eu conhecesse
a fonte do problema, o nó da corda, não
procuraria formas de me aliviar?

Aos curandeiros? Já fui. (riso irónico). Não vos


posso esconder, eu já percorri lares e lares de
grandes espiritualistas deste mundo e todos
culminaram em dizer: Tu és pagamento de uma
dívida, está tudo selado, vai falar com os teus pais.
Pais? Haaa…sim, quis dizer progenitores, percebi.
Às vezes, a gente não sabe diferenciar esses
termos. Alguns ainda pensam que para ser pai,
basta ter um rosto com decoração de barba e,
peitos visíveis, para ser uma mãe. Puro engano! E

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eu tenho uma certeza: aqueles a quem os devia
chamar de pais, são apenas progenitores, fui
gerada com fins de negócio e aqui estou, sofrendo
por algo que nem entendo e existem várias outras
mulheres no mundo, sofrendo como eu. Sim,
existimos e, somos várias, (lágrimas…).

Um dia acordei muito chateada depois de uma


noite turbulenta. Bem decidida, fui ao encontro da
minha progenitora que se encontrava no campo a
colher alguma coisa para suportar o dia e garantir
um riso ao estômago. Logo que cheguei, falei: mãe,
não me sinto bem. A noite passada foi um
pesadelo! Eu já imaginava a resposta dela, foi a de
sempre: filha, paciência! Tu sabes que o teu
problema, nem um médico formado em Cuba pode
resolver; imagine eu, uma simples camponesa.
Nem eu sei a razão desses tormentos, mas é uma
fase, vai passar, também passei por isso. Ela
mentiu. Pois sabe o que se passa comigo e ela
nunca passou por isso.

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Arrependi-me de ter ido ao seu encontro para
desabafar. Certamente que existiam palavras
mais confortantes que aquelas por ela
pronunciadas. A minha progenitora, no fundo do
fundo, é uma boa senhora, o problema está na
nossa cultura machista. Onde a mulher é
simplesmente nada, uma serva fiel e obediente ao
marido. As mulheres são o que os maridos
querem, fazem o que os maridos dizem, e nada
mais. O meu progenitor a proibiu totalmente de
comentar comigo (nem em sonho) sobre este
calvário. Ela quer me contar, mas não deve e nem
pode. Agora dizei-me: a minha existência é um
fracasso ou eu é que sou um fracasso para esta
existência incerta e falsamente minha? Não é fácil.
Até digo, mais vale a minha progenitora que
partilha o seu homem, ao menos o conhece e o
sente de dia. Quanto a mim, nem sei o que dizer.
Estou condenada. Certamente que para mim não
pode existir um outro inferno mais agressivo que
este. Fui julgada e condenada bem antes de
nascer. Mas assim fico um pouco curiosa: assim

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que fui condenada ao nascer, serei libertada ao
morrer? Que a morte chegue logo, caso não, vou
ter que buscar um corta-mato. Já deveis saber,
nem todos os que se suicidam são psicopatas,
muitos deles estão a busca de paz e tranquilidade.
Este mundo já é difícil por si. Agora, imaginai com
o marido que só me visita de noite e mexe comigo
contra as minhas vontades.

Aqui em casa sou a única filha com um quarto


particular e uma cama casal. Uma bondade
exagerada da parte dos meus progenitores. No
início eu andava tão cega que nem cheguei a
desconfiar de nada, mas também, desconfiar dos
meus pais, é algo saudável? Eu julguei que aquilo
era amor e mimos especiais. Afinal de contas,
sabiam que o quarto era o palácio e a cama o
“altar”, onde o demónio me viria devorar todas as
noites. Gente, eu estou acabada, destruída.
Filhos, se os tenho? Talvez só espirituais, aos
cuidados desse fantasma, meu marido, dado pelos
progenitores. Mais uma razão de me querer

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atormentar, recusando-se a me ver com um
homem de carne e ossos.

Estais mesmo interessados desta história? Devíeis


estar. Como disse no início, há realidades que
existem na sociedade e que alguns fingem não ver.
Escondendo de baixo de tabus, muito sofrimento.
Uma vez um jovem apresentou-me uma proposta:
a de dormir de dia e, fazer vigílias de noite, assim
o marido da noite me encontrava sempre acordada
e nada faria contra mim; coitado, o intento dele era
mesmo ajudar, era mais um “Messias” encarnado,
com tendências de salvar-me, mas em mim
fracassou, não posso acolher essa nova forma de
castigo, viver como se não pertencesse a este
mundo. Ou eu pertenço a este mundo ou não. São
coisas sérias, não podemos meter “faz de contas”.
Eu já nem sei se a minha cabeça funciona
devidamente. Dormir com um ser doutro mundo
e continuar normal? Talvez, mas não arrisco
muita fé nisso.

28
Amigos, eu tenho 38 anos de sofrimento. Diria 38
anos de vida, mas não vos posso enganar, eu
nunca tive vida. Faz bom tempo que me dedico a
esta guerra, sozinha. Vós entendeis? Eu disse:
sozinha. Família nem se mete, amigas, todas
fugiram, pois não querem azar. Não querem ser
transmitidas esta má sorte. Não querem ser
cobiçadas por meu homem nocturno. Vejo o
mundo se desfazendo a meu redor. Alguns até
sentem pena, mas isso não me conforta. Eu queria
muito fazer parte deste mundo, dar o melhor de
mim, ser boa filha, boa irmã, virtuosa mãe e
esposa. Mas como vede, não tenho espaço para
nada disso.

Sei que me vades criticar por esta decisão. Mas


saibais, foi uma decisão pensada e muito
aprofundada. Não tendo espaço neste mundo,
prefiro ir unir-me, uma vez por todas, ao marido
escolhido pelos meus progenitores. Quem sabe lá
posso ter uma vida normal, aquela que sempre
sonhei. Posso casar, ter filhos e meu lar próprio.
Não tive escolhas e não estou a incentivar nada,

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sou apenas uma mulher que lutou e achou
caminhos próprios para ser feliz e nada mais. E,
se achardes o meu corpo, por favor, o enterrai e
queimai a corda, a minha alma, com certeza, já
estará ao lado do genro dos meus progenitores.

Não tive escolhas, nasci para sofrer e morri para


sobreviver…

(Rezemos por todas as mulheres que sofrem sem


culpa)

3. DECEPÇÃO, MÃE VENDIDA

O meu nome é qualquer coisa que rima com


“negra”, filha de uns tais povos neutralizados
mentalmente pelos complexos de uma outra raça
dos aléns. Quanto a minha idade, nem eu conheço
ao certo. Talvez eu tenha mesmo nascido antes de
“deus” pensar em criar o mundo. Se fui seu
ajudante? É provável, pois essa existência está tão
cheia de mistérios. Talvez me lembrasse de tudo,
se tivesse ainda memórias em minha consciência.

30
Mas “infeliz-lágrimas”, me foi tudo roubado, até o
corpo que me protege a alma, hoje é vendido à
gente estranha, para o consumo e benefícios de
alguns, uns tantos e poucos egoístas (que se
dizem meus filhos), traidores de suas raízes.

Hoje sou uma mãe ofendida pelos próprios


descendentes. A mais pisada e abusada pelos
filhos de outras mães, “terras” supervalorizadas.
O meu erro é produzir imensas e incontáveis
riquezas para o sustento dos meus filhos? O meu
erro foi educar os meus primeiros filhos nas
escolas de simpatias e hospitalidades? Pouco
sabia eu que, nessas escolas se leccionavam
também disciplinas como: ambição, egoísmo,
indiferença diante do teu sangue e, a mais
dominante dos nossos dias, a intolerância. E esta
última, é a mais perigosa e penosa de todas. É a
razão da guerra e destruição do bem-estar do lar
africano. Mas porquê? Por que tanta intolerância
entre os filhos do mesmo ventre? Uma vez afirmou
o destacado filósofo e ilustre cidadão
moçambicano, Severino Ngoenha: “Em condições

31
normais, todos os conceitos têm um antónimo; a
tolerância é um dos poucos conceitos com dois
antónimos, a intolerância e a indiferença. Nós
não somos tolerantes só quando deixamos os
outros fazerem o que desejam fazer; mas sim,
somos perfeitamente tolerantes quando não somos
indiferentes ao que os outros fazem ou deixam de
fazer” não basta dizer, “façam o que quiserem
como quiserem”, é necessário que haja uma
preocupação com o (in)sucesso dos actos do
outro.

Mas os meus filhos não são assim. Os meus


descendentes são intolerantes, mesmo quando
um dos irmãos pretende trabalhar para que eu,
“terra mãe”, prospere. Os meus filhos fogem de
mim, constroem seus ninhos, buscam suas
sombras em outras nações, lugares que se fazem
meus rivais. Fazem de mim uma pobre coitada,
mas ao final do dia, precisam do meu leite para
edificar suas cidades e robustecer suas
economias. Mas a culpa é dos meus filhos, pois
tiram tudo de mim e vendem aos seus amigos

32
espertos e deixam os irmãos com um estômago
vazio, um corpo desnutrido, um lar que, de lar só
o tem nome, pois o dicionário dá o significado de
ponte. Meus filhos são falsos. Digo isso na
qualidade de uma mãe rica, mas humilhada pelas
atitudes dos filhos. Já não choro lágrimas, pois
essas se esgotaram em cada dor sentida ao ver o
futuro dos meus filhinhos sendo trocado por 1
dólar americano, introduzido em bolsos sujos.

Meus filhos são estúpidos, são tolos. São capazes


de vender o meu leite materno para amamentar
filhos de outras mães, enquanto os meus filhinhos
mais novos passam fome, sede, vivendo como
animais! Onde eu errei? FUI VENDIDA.

33
AUTOR III

Helton Carlos Ubisse

H elton Carlos Ubisse, natural de Zimbene, distrito de


Bilene, província de Gaza. Frequentou o ensino
primário na Escola Primaria do 1º e 2º graus de
Chizimbanine; e, o secundário, nas escolas Secundária de
Macia e Secundária de Chongoene. Estudou Filosofia no
Seminário Filosófico Interdiocesano Santo Agostinho –
Matola. Tem uma obra lançada “O Abecedário do meu
tempo” e tem publicados vários textos nas suas páginas nas
redes sociais, brevemente (Outubro, 2021) irá publicar a sua
segunda obra intitulada “Ecos de Resiliência”.

34
4. A DESVENTURA DA ILHA DE UMUMI

“Um ambicioso é capaz de tudo; pode vender a


pátria só por causa dos seus interesses individuais
e da sua ambição” (Samora Machel).

Umumi era uma abastada, mas pacífica e


acolhedora ilha ao norte do arquipélago de
Palakela. Perfumado pelas pétalas, rosas e
orquídeas, o ar da ilha apresentava-se sempre
fresco; decorada, a cada milímetro, com pedras
preciosas, a terra era um encanto. Se o ambiente
da ilha era invejável, nada era, quando comparado
com os seus habitantes: humildes, do mais alto
grau da corte ao mais simples do povo; eram
alegres, cultos e dedicados. Sempre que eu
passeasse, saudavam-me com maternal sorriso as
simpáticas senhoras do bazar, as donas Pérola,
Esmeralda e Margarida. Na rua, não me deixava
passar sem que fizesse uma vénia, a Rubi minha
colega de infância, sempre tímida.

Um dia chegou na ilha um estrangeiro. O estranho


era alto, pele pálida como soja, nariz lembrando

35
uma tromba mal desenvolvida, e falava uma
língua desconhecida pelos Ilhéus, por isso
precisou de um tradutor, tarefa que foi incumbida
à Safira, menina que tinha frequentado a Escola
dos Padres. Acolhido com o característico afecto
dos “umumitas”, apesar da desconfiança por ser
estranho, ele foi conduzido até mim, que era o
Jovem Rei, sucedendo o meu recém falecido pai.

Cumpridas as cerimónias de recepçao na Corte,


foi-me apresentado o visitante para saudação.
Reuniu-se toda a Assembleia na habitual sala de
reuniões do Palácio; os conselheiros é que fizeram
as honras. O homem falava cheio de importância
e com um ar de superioridade. Chamava-se a si
mesmo de negociante, filho de antigos patrões do
meu povo. Vinha propor um negócio: na nossa
terra havia um tesouro oculto e inexplorado, um
jazigo valioso que traria mudanças à ilha. O que
eu tinha de fazer, era assinar os papeis que ele
trazia e, ele e os seus, começariam o trabalho. O
acordo traria também emprego aos habitantes da
ilha, que precisassem.

36
Dados a palavra para reagirem, os conselheiros
resistiram ferrenhamente ao acordo, para eles
traria uma maldição dos antepassados negociar a
terra pela qual tinham dado vida. Ouvindo isso, o
estranho não se deu por vencido, abriu a pasta e
tirou uma quantia enorme de dinheiro e afirmou
que, só por assinar, ficaríamos com a primeira
parte. Quando percebi a renitência dos
conselheiros, mandei que se retirassem. Usando o
juízo do bolso, cedi à tentação. Assinei os papéis
que trazia e fechámos o negócio.

Nos dias que seguiram, mais gente estranha


chegou à ilha trazida pelo homem. Traziam
também, máquinas enormes e abriam fendas em
toda a superfície. Contudo, o dinheiro entrava. No
princípio, era usado para responder às
necessidades básicas da ilha, e como geralmente
não faltava muito, porque a população
colaborava, sempre restava alguma quantia e era
distribuída equitativamente. Mas, de quando em
quando, o homem vinha ter comigo, mostrava-me
mais dinheiro e tentava me convencer que eu

37
estava sendo retardado, era pacato ainda
continuar gastando com aquela população
enquanto podia usar tudo sozinho.

Fiquei muito tempo reflectindo na proposta do


homem. «Meu pai e os pais deles tinham sido reis,
antes de mim. No seu tempo tinham dado tudo pela
ilha, chegando a dar a própria vida, pela ilha e pela
população. Eu devia continuar o legado.» A minha
consciência acusava. «Mas, se eles se tinham
sacrificado, eu não devia nada àquele povo. Era
chegado o tempo de fazer diferença, eu devia fazer
diferença. Começar a me importar comigo mesmo e
pela minha família» sussurrava-me uma voz que
não sei de onde vinha. Foi aí que comecei a focar-
me apenas na minha família.

Passado algum tempo, eu já era diferente: os


estrangeiros davam-me mais e mais dinheiro e
tudo ia para o meu bolso. Era bom. Começaram
até a alargar-me o horizonte, mostraram-me
novos mundos. Eu que tinha passado toda a vida
na pequena ilha, o mundo além foi como um Big-

38
Bang. Passei a frequentar cidades novas, ganhei
novos interesses e fiz negócios privados. Tive a
oportunidade de instalar palácios noutras cidades
e várias fontes de rendimentos, no estrangeiro.
Ainda que, na ilha, fizessem uma greve e me
depusessem eu já tinha um futuro garantido até
à milésima geração.

O ambiente da ilha já me era chato e monótono.


Aquela população sempre suja, rústica e queixosa
me criava pavor. Comecei a faltar às minhas
responsabilidades, frequentando pouco o Palácio
Real e não mais participando dos encontros
ordinários da Corte. Por isso, nem hesitei quando
os estrangeiros me propuseram o Negócio Capital:
vender-lhes a ilha para melhor explorarem. Eu já
tinha muito, mas queria mais. Aquela nova vida a
que me tinha sujeitado não se satisfazia. E, como
tinha os meus palácios fora da ilha e gozava de
uma boa vida, aceitei a proposta e fiz o maior
negócio da minha vida.

39
O Ómega do meu reinado foi o Alfa da nova era na
história dos ilhéus. Dias sombrios sobrevieram
àquela população que já estava à mercê da sorte.
Primeiro, desastres naturais, uma catástrofe atrás
da outra: tremores da terra, cheias, ciclones; de
seguida, os estrangeiros, ávidos pela riqueza,
contrataram carrascos para dizimarem a restante
população que sobrara da fúria da Natureza.
Notando a ineficácia do plano, que lhes gastava
algum dinheiro, aproveitaram-se, como sempre,
da fraqueza e pobreza do povo, aliciaram os jovens
e aquilo ficou um inferno.

Desesperados, os Umunitas, como uma selva sem


leão, refugiaram-se às ilhas vizinhas. Os que
tiveram sorte, nem chegaram às margens, Zuzu, o
espírito do mar, levou-lhes à sua companhia
eterna no sagado repouso. Os outros continuam
vagando sem destino, a procura de um porto
seguro.

Eu assistia a tudo isso da cidade aonde me tinha


exilado. Vivi no bom e no melhor nos primeiros

40
dias. Todavia, a minha opulência durou pouco.
Muito cedo perdi a minha família e todos os meus
bens. Não consegui me adaptar àquela vida de
aparências. Agora estava num estado deplorável e
a minha consciência me torturava diariamente:
«os teus antepassados foram heróis, colocaram o
povo como a sua prioridade e não o seu ego, e tu
como chamas a ti mesmo? Vilão ou herói»?

41
AUTOR IV

Dom Dinis Mutuque

D om Dinis Mutuque, pseudônimo de Dinis Osias


Mutuque, nasceu a 3 de Outubro de 1997, na Vila
Eduardo Mondlane, Distrito de Chicualacuala. Em 2010
concluiu os estudos primários na Escola Primária Completa
Eduardo Mondlane. Dando seguimento aos seus estudos,
concluiu o nível médio na Escola Secundária de Mapai. No
ano de 2013, formou-se em Democracia, Cidadania e
Direitos Humanos na formação organizada pelo Jornal Olho
do Cidadão. Em 2020, formou-se em Recursos humanos e
Marketing e Vendas na CPS School, instituição onde,
actualmente trabalha. Dinis é, actualmente, nas áreas de
história social; património histórico; democracia; história das
religiões e associativismo agrícola. Igualmente, é
empreendedor e formando em história e geografia pela
Universidade Pedagógica da Maxixe.

42
5. A VIGÍLIA INESPERADA

Mais um ano lectivo se foi, não atingi as metas,


mas valeu a pena. Estou neste comboio rumo a
Malvérnia onde passo as minhas santas férias. O
dia não promete, as carruagens estão vazias,
apenas os funcionários do comboio, cobradores,
revisores, maquinistas e seguranças. Isso me
assusta e me faz caminhar até à primeira
carruagem depois da máquina que tanto provoca
barrulho fazendo esforço para puxar as
carruagens e vagões cheios de mercadorias.

A solidão foge, tiro meus auriculares e saúdo a


moça que apenas acena sorrindo que também
estava a curtir a solidão ao lado dum velho que
aparenta ser simpático, barbudo que, com um
sorriso me acolhe e cede espaço para guardar a
minha mala e dispõe-se a assegurar a minha
pasta que tem o meu computador.

O velho atrevido é um pastor. Pergunta-me aonde


vou e o que vou fazer e ainda me conta sobre moça
ao lado que continua obcecada com a tela do seu

43
celular. Longe de pensar ele começa com as suas
maravilhosas historietas sobre a Malvérnia que é
o destino dos três. Diz ele que desde os
primórdios da sua existência, a Igreja tem
exercido a sua missão primordial, que é anunciar
a Boa Nova de modo a dar luz aos que se
encontram na escuridão; alegria e paz aos
oprimidos; saúde aos doentes.

Com essa introdução imagino a viagem até ao


destino consumindo doutrinas chatas e penso que
a moça ao lado usava auriculares e se focava no
seu celular para evitar se entediar com estas
coisas. Sem lhe dar mais tempo, pedi que me
contasse apenas histórias sobre Malvérnia. Que
histórias que nada, ele é um homem religioso,
apenas histórias sobre igreja.

Ele começa por me fazer entender que a igreja


também tem a parte social que está para
responder os problemas que afectam o ser
humano na sociedade onde vive como, fome,
doenças e não só, mas na Malvérnia várias igrejas

44
têm se distanciado do exercício do seu papel
social, o que se torna preocupante para uma
sociedade onde o homem tem necessitado da sua
acção.

Por mais que a maioria das igrejas estivessem à


margem do exercício do seu papel social, algumas
igrejas se tornaram bastante notórias, fornecendo
roupas às diversas faixas etárias daquele pedaço
do mundo, sobretudo, às crianças. Por mais que
essas acções não fossem abrangentes,
demonstravam a preocupação destas Igrejas em
ajudar a sociedade, que é também, um dos
mandamentos do cristianismo. Contudo, nos
últimos anos, a mesma tem se tornado quase
inexistente, o seu papel social parece ‟doenteˮ, o
que é bastante preocupante.

Eu queria histórias, mas as histórias carregam


caridade e amor, feitos das igrejas. Pelo menos
não está a me encher de doutrinas sobre o paraíso
e o inferno, nem sobre o pecado e sexo antes do
casamento, porque isso vai contra os meus

45
princípios, underground que sou. Me aconchego,
peço a pasta que estava instalada nas mãos do
velho para pagar bilhete que o cobrador exigia. É
um cobrador muito pálido com cara de quem está
sem paz. Ele recebe e me dá o bilhete lamentando
a situação em que o comboio viaja sem
passageiros por conta da pandemia.

O velho manda-me esquecer sobre economia e


retoma as suas historietas, sobre algumas igrejas
que se destacam naquele cantinho do mundo
desde os primeiros anos da sua existência, no
desempenho do seu papel social. Imbuída da sua
doutrina social, estas, têm assistido os doentes no
Centro de Saúde e Estabelecimento Penitenciário
de Malvérnia oferecendo, aos doentes e reclusos,
alimentos para o seu sustento e medicamentos.
Há evidências de que as mesmas tiveram, por
algum momento, uma escolinha na qual
frequentavam várias crianças da vila, sem
distinção da raça e religião. Contudo, essa
escolinha foi fechada, porque alguns pais

46
julgavam que os seus filhos, mesmo que não
fossem daquelas igrejas, pudessem vir a ser.

A conversa é interessante só que o meu estômago


reclama a fome, já estamos numa zona em que só
vejo árvores desfilando, nada que indica a
presença humana e pergunto ao velho se tinha
algo para comer. Ele me enrola e no fim de tudo
diz que não leva marmita durante a viagem,
porque valoriza mais interação com as pessoas,
comer lhe roubaria tempo, mesmo assim me
aconselha a perguntar a moça que quase me
esquecia da sua presença. Tímido lhe cutuco e me
esbarra com a mão enquanto tirava auriculares
para escutar o que eu queria lhe falar. Fico
nervoso, mas a timidez desaparece quando um
doente crónico de gastrite precisa de algo para
enganar o bichinho.

Com muita delicadeza peço alguma coisa para


enganar estômago. Ela nem se quer responde,
apenas abre na sua sacola e tira uma tigela cheia

47
de batatas com ovo e um sumo que não consigo
notar o sabor.

Como ás pressas e pergunto se deixo para ela.


Com cara de assustada só me pergunta se quero
lhe transmitir coronavírus, não sabe que não se
partilham objectos?

Fico com vergonha, mas no fundo estou feliz


porque estava com fome de leão, o velho apenas
se pôs a rir. Se aproveitando da situação da moça
sobre coronavírus o velho continua com as suas
cantigas dizendo que hoje em dia as acções de
caris social que antes eram efectivadas por essas
Igrejas não são notáveis. Embora Malvérnia esteja
sofrendo impactos significativos desta pandemia
do Covid-19 tem ficado indiferente. As Igrejas são
convidadas a exercer o seu papel social. Uma
Igreja com um elevado número de crentes, tanto a
nível nacional, quanto internacional, torna-se
injustificável a sua indiferença no exercício do seu
papel social.

48
Volvido um ano em que a pandemia tem assolado
todo o mundo, paralisando a economia e os
demais sectores sociais, nenhuma das igrejas
existentes naquela vila exerceu uma acção de
modo a ajudar os vendedores ambulantes e
proprietários de pequenas barracas, que viram
desde a chegada desta pandemia, a sua renda
mensal baixar. Outrossim, nenhuma delas tem
ajudado neste momento de dor e restrições, aos
pobres e incapacitados, o que se torna bastante
preocupante para o velho.

O velho continua como se estivesse pregando, com


certeza fala de coisas que lhes afligem, a Igreja é
uma mãe na sociedade, e uma boa mãe sacrifica-
se para conseguir o bem-estar dos seus filhos,
contudo, as igrejas de lá onde vamos são
comparadas às mães tolas, ou seja, àquelas que
carregam o filho durante os 9 meses, mas depois
de darem à luz, deitam-no nas caixas de lixo.

As árvores continuam desfilando, a noite chega, a


calada da noite não se faz sentir, porque a

49
máquina faz um barulho tremendo que me admiro
como a moça ao lado consegue dormir. Espreito
pela janela e vejo uma placa com nome Chaves,
pergunto ao velho o porquê desses nomes
estranhos desde que começamos a escalar essas
matas desabitadas.

O velho bebe água e, animado como quem diz


«agora me provocou escuta essa», me explica. Na
zona norte desta província, os nomes são quase a
réplica da zona norte de Portugal, assim queriam
os portugueses durante a colonização.

Era algo interessante! Enquanto pego meu bloco


de notas, o velho pastor desvia a conversa para a
segregação religiosa que se vive na Malvérnia.
Pelos vistos é obcecado por aquela vila que eu só
vou por causa da liberdade que tenho nas férias.

Ele cruza os braços e continua falando sobre as


igrejas. Tem se apregoado mensagens que fazem
com que os crentes julguem as demais igrejas,
apócrifas. Muitos crentes, por não estarem
espiritualmente maduros, acolhem essas

50
mensagens como bíblicas e não necessariamente
doutrinárias.

A maior parte dos fieis a Cristo crêem, não n’Este,


mas nas igrejas e no Cristo pregado em tais
igrejas. Assume-se como igrejas nesse contexto,
não necessariamente as pessoas regeneradas pelo
amor de Cristo, mas os templos (na sua dimensão
material) onde estes se reúnem para adorarem e
glorificarem a Deus.

A tolerância religiosa é um sentimento de


coexistência com o outro, mesmo que este pense
diferente de si. Tal coexistência significa respeitar
as crenças dos seus próximos, mas deles não se
deixar influenciar. Essa tolerância só é possível
com uma fé sólida, o que muitos não têm nessa
vila. Em muitos casos, muitos crentes, por não
estarem firmes na fé, a renunciam e voltam à vida
mundana, o que tem sido preocupante.

Não há um segredo mágico para que se tenha fé,


a não ser a preocupação em fazer sempre a
vontade de Deus em primeiro lugar, mesmo que

51
estejamos na penúria, enfrentando doenças ou os
demais problemas. Todo o fiel que se orientar
nessa linha, será, na vida espiritual, muito bem-
sucedido. Não se está afirmando aqui, que seja
fácil viver para Deus e com Deus, mas é um
desafio digno.

Finalmente o Sol começa a raiar, e felizmente


chegámos ao nosso destino. Foi uma vigília
inesperada, mas valeu a pena uma aula
sapiencial. Despeço-me do velho e da moça que
nem tenho coragem de perguntar o nome e pedir
o número do celular.

52
AUTOR V

Nunes Cristóvão

N unes Cristóvão, é natural de Chicualacuala. Estudou


Filosofia no Seminário Filosófico Interdiocesano
Santo Agostinho – Matola.

É Designer Gráfico & Editor de e-books. Foi produtor &


Locutor na Rádio Comunitária de Chicualacuala. Tem pouca
experiência na arena literária, mas já tem um livrinho
publicado em forma de e-book intitulado Efeitos da
Quarentena.

É apaixonado pela tecnologia, que a tornou seu hobbie


favorito.

Encontra-se trabalhando na sua segunda obra de crónicas,


completamente romântica que se chamará “Cartas de Amor
Perdidas” É um cara normal.

53
6. ETERNAS SAUDADES, MEU AMOR

Maldito o dia em que decidi visitar esta Terra


insana, em que as alegrias duram pouco e o
sofrimento é eterno. Ultimamente os meus dias
têm sido de uma rotina cíclica que nem consigo
mais diferenciar os dias de semana, pois se
resumem nas idas à machamba, trabalhos da
cozinha e quarto. Ficar em casa é o meu pão de
cada dia. As noites são longas como as noites
polares em Dikson porque os dias são também
para dormir.

Mais um dia começa. É o décimo segundo da


quarentena. O galo cantarola, em seguida
desperto, é como um dia qualquer, igual aos
outros, com o corpo dolorido de tanto dormir, sem
sono, nem vontade de continuar vivo, porque a
vida perdeu o seu rumo, não tenho mais planos
nem metas. Sigo a bala da incerteza.

Falta-me a vontade de levantar da cama, fico


rebolando de um lado a outro. Tive uma noite
longa. É madrugada, hora em que as pessoas

54
batalhadoras da aldeia começam a mexer o
esqueleto nos seus afazeres, mas o dia de hoje me
confunde, pois, a casa tornou-se mais frágil, os
meus dias de vida parecem poucos; os
passarinhos não chilreiam; o vovó Chivambo não
lhe vejo passar para a caça, como de costume;
nem a vovó Nwajani com seu netinho hoje vão
para machamba.

Ouço vozes de jovens que discutem entre si,


alguns sobre uma doença que não lhes deixa
tomar ukanyi em paz, e outros sobre vendavais.
Estou perdido nos meus pensamentos. Ontem
recebi muita informação que, relacionando-a com
o que ultimamente tenho vivido, fico mais confuso
e desesperado.

Alguma coisa tenho de fazer. Deu-me uma


vontade de colocar num papel tudo o que se faz
sentir no sangue que circula nas minhas veias. É
uma fusão de um frio no estômago e uma
palpitação fora do sério. Sinto dor no peito, um
pouco de tontura que me desgasta, seguro-me à

55
parede e a sigo até perto da cadeira que logo me
serve de encosto até ganhar uma estabilidade e,
finalmente sento-me à mesa, puxo a primeira
esferográfica mais próxima, e por sinal, esta não
teve a sorte de escrever um teste sequer ou exame
numa sala de aulas, apenas limitou-se a conhecer
a Universidade e a servir de mais um acessório no
meu kit escolar. Tiro uma folha da resma que
ganhei da mana Clotilde e rabisco para a pessoa
que mais amo neste mundo. A minha alma está
perturbada como quem está a descer ao abismo
dos mortos, ligo o meu aparelho de áudio, o vulgo
G-box, que tem sido a minha melhor companhia,
e começo então a escrever:

- Meu Amor se estiveres lendo esta carta


significa que estou morto. Não mais nos
veremos nesta vida, felizmente vou te esperar
noutra; foi o que sempre jurámos um ao outro.

Baby, escrevo-te esta carta com o coração


tremendo, escutando aquela música que só nós
os dois sabemos em que momento escutámos
juntos pela primeira vez.

56
Estou com saudades de nós. Ainda me lembro
do nosso último abraço, de rostos volvidos
numa máscara; teria te dado o beijo ómega,
mas não foi possível, mesmo assim estou feliz,
porque o abraço da pessoa certa cura as
feridas da alma, é o que dizem e eu assino por
baixo.

Estou com um nó na garganta. Isto me faz


acreditar que o que sinto supera as saudades,
porque estas passam. O que sinto, contudo,
permanece, sempre. Cada vez que escuto as
músicas da nossa playlist, cada instante que
revejo as mensagens do nosso chat cheio de
confissões e declarações de amor, declarações
suficientes para curar o mundo enfermo pelo
egoísmo, pela ganância, pela corrupção. Onde
os ricos tendem a ser mais ricos enquanto os
pobres, mais pobres ainda. Em fim, o que
acontece é que o que eu sinto é tua falta, e não
sei como superar isso. Era suposto que
estivesses aqui, porém, o distanciamento físico
não deixa, e eu me encontro em quarentena.
Isso me traz insegurança quanto à minha
recuperação.

57
Escrevo-te esta carta, não só porque o meu
teste deu resultado positivo a COVID-19, mas
também porque depois que as telefonias
móveis fizeram um comunicado informando
aos seus clientes e a comunidade em geral, que
foram forçados a encerrar os seus serviços
devido aos ciclones: Idai, Keneth, Danilo,
Chalane, Eloise, Joshua e Guambe, tornou-se
difícil a comunicação telefónica. Então este é
o único meio possível para falar contigo, aliás,
falar para ti.

São situações que causaram limitações no


acesso aos seus serviços, o que é de menos. Sei
que polarizaram a linguagem. A verdade é
que tudo parou, meu amor, se sobreviver às
coronas, à fome, ao Guambe já que a casita é
de pau-a-pique, não terei como te ligar.

Meu amor, vendi muito carvão durante a


quadra festiva para comprar cimento e
fortificar a casita, mas a subida do cimento
me encurtou a onda. Estou de novo na estaca
zero.

As autoridades apelam-nos ao maior rigor na


observância das medidas de precaução
determinadas pelas Unidades Sanitárias e

58
pelo MISAU; e estes vendavais não dão
esperança de que o amanhã será melhor. Eu,
porém, acredito que um dia as coisas ficarão
bem para alguns, mas a minha situação é
lastimável. Já agora, como vou reforçar as
portas, as janelas e o tecto, se a casa é de pau-
a-pique com tecto de capim!?!?

Diz-me, meu Amor, como posso manter os


produtos de higiene, bens alimentares e água
próximos, se a comida compramos em dois
quilos diariamente e a água buscamos no rio.
Foi nas andanças diárias em busca de comida
e água que apanhei o coronavírus.

Os efeitos do ciclone Joshua deixaram dores e


sofrimento nas famílias moçambicanas, que
estavam ainda em recuperação; as doações
acabaram pelo caminho antes mesmo de
chegarem aos seus destinatários primários. As
que por algumas razões chegaram, uma parte
foi distribuída entre eles e o resto apodreceu
nos armazéns.

Baby, havias prometido me visitar mesmo


correndo o risco de seres infectada, mas como
será possível a concretização de tal intento, se
foi interrompido o trânsito rodoviário na

59
ponte sobre o rio Save? Não sabemos até
quando a situação vai-se estender, talvez até
lá eu já não esteja aqui.

Ontem o filho do senhor Maboxa – que vive na


cidade de Maputo por causa dos estudos –
explicava ao papá que sofremos esses ciclones,
não porque seja o seu percurso normal e
natural, mas devido à circulação do ar nas
zonas de baixa pressão atmosférica. Ele
explicava assim: o ar quente e húmido eleva-
se para as camadas mais altas da atmosfera,
enquanto o ar frio, mais seco e mais
denso, desce para a superfície, provocando a
redução da pressão atmosférica.

O pai não entendia nada e nem eu, até que o


jovem retomou o discurso dizendo que são
originadas pelas mudanças climáticas, estas,
por sua vez, ligadas às intervenções humanas.
Estamos a pagar pelo carvão e a madeira que
os outros usam para fortificar as suas cidades.

Baby, desta vez há choros em todo o canto,


ainda ontem tio Mapedjani veio da aldeia de
Mubotchua de bicicleta, disse que há muitos
choros de viúvas e órfãos. Houve muita
partilha de ndzeko (cabaça) enquanto

60
tomavam ukanyi e a doença lhes dizimou
como se fossem galinhas no pináculo de New
Castle.

Meu amor, agora só vivemos a incerteza, por


conta disso prefiro parar de choramingar e
falar sobre nós. Torço para que a vacina
chegue antes que me sigas.

Baby, eu te levo comigo. Juraste com os pés


juntos que eras amor da minha vida e ainda
asseguraste que seria para sempre, pois
estavas ciente dos impedimentos e ainda
tinhas certeza que não era só uma paixão.
Pedi um tempo antes que desse o meu sim.

Tive de abandonar algumas das minhas


amizades para estar contigo. E hoje me
pergunto o que ganhei em troca. Claro que
ganhei a felicidade enquanto pisava esta
terra.

Tu tiraste-me da solidão. Não conseguia mais


estar sozinho, não conseguia ter paz comigo
mesmo. Precisava de ti para complementar a
minha felicidade.

Tudo que vivemos trata-se de uma história de


amor jamais vista na história da

61
humanidade. Agora entendes por que não
cedia abrir a minha vidinha solitária para
ficar contigo? É te ter e a vida nos separar.

Contudo, não me arrependo, porque em vida


vivemos na base de tanta lealdade, fidelidade
e cumplicidade contruímos um castelo que
não é de areia como o que contruíra com a
pessoa que me fez desistir do amor.

Tu foste a pessoa que mais me conheceu neste


mundo. De facto, conheces uma boa parte de
mim. O tempo que estivemos juntos tentei o
máximo mostrar a minha parte sofrida,
gloriosa e feliz e tu mostraste-te estares
preparada para construir um castelo com
pedras preciosas comigo. Quando mais
precisava do teu apoio estiveste bem aqui.

Meu Amor, eu me orgulho por teres sido o


Amor da minha vida, tu me apoiaste num
momento em que ninguém mais me queria por
perto, em que eu tinha desistido do amor por
isso não me arrependo de ter te conhecido.

Não sei como estás hoje, todavia quero


acreditar que estás bem arrasada pela minha
ida para casa do Pai. É pena porque não posso

62
estar aí para me contares as histórias mais
triste da tua vida e eu te enxugando as
lágrimas, te falando aquelas palavras doces
que te trariam um sorrisinho no rosto, ou
ainda estaria aqui lendo o Sétimo Juramento
da Paulina Chiziane enquanto tu te deitas.
Talvez ainda estaria a te contar as lindas
histórias da minha infância, ainda
estaríamos juntos rindo da nossa vidinha.

Uma vez tu me disseste «Baby, coisas


imediatas são raras hoje em dia. Se o que tu
queres é ter uma namorada realizada, tens de
aguentar um pouco remando comigo contra a
maré até a tempestade passar e a bonança
reinar.» Foi no dia que decidi crescer contigo
e aprendi a valorizar as nossas pequenas
conquistas.

Hoje estás só, mas não completamente, porque


eu estou cá doutro lado torcendo por ti. Vou
continuar a te ajudar a ser o homem que
sempre quis ser.

Tu és uma das mentes mais inteligentes que


conheço. Usa isso a teu favor e faz valer o que
acreditas. Transforma teus sonhos em tua
vida. Eu estarei por aqui e conta comigo, a

63
final de contas tu mereces muito. Tua história
me impressiona e é possível terminar de
escrevê-la da melhor forma.

Eu te quero bem e feliz nesta vida. Só te peço


uma coisa, por favor apenas uma, nunca
tenta ser o que não és, nem desiste de viver só
porque eu parti.

Faz mais amigos, porque a relação que existe


numa amizade é misteriosa não dá para
estragá-la. Na linha de amigos procura
alguém que vai te apoiar em todos os
momentos. Obviamente não vai me substituir,
porque cada qual tem o seu próprio livro por
escrever e o meu já está escrito e assinado,
mas vai fazer o que eu não poderei fazer por
ti enquanto estivermos em mundos
completamente diferentes.

Adeus Natália, meu amor. À propósito agora


já canto melhor «You are the reason» do nosso
amigo Callum Scott. Se no mundo dos anjos
pode se pagar as dividas terrenas aceito outro
convite para karaoke só não seja como Dr.
Morphy. Cuida-te.

Por teu Amor eterno Ricardo das Dores

64
Termino a minha missiva com as lágrimas
passeando nos meus olhos caindo sobre o papel.
E puxo a latinha que servia de cofre que usamos
para jogar as moedas todas as vezes que um de
nós cometia uma gafe ao falar ou usasse um
palavrão ou ainda se falasse calão.

Missão cumprida, me deito em paz na cama e


desço para onde é meu lugar. Enfim sou um corpo
sem vida, nada em mim pode ainda crescer além
dos cabelos e unhas, o resto que dance à música
da decomposição.

65
AUTOR VI

Pedro Júlio Miranda

P edro Júlio Miranda, natural de Magude, nascido aos


07 de junho de 1997, é formado em filosofia pelo
Seminário Filosófico Interdiocesano Santo Agostinho-
Matola. Esperançoso no potencial criador, capaz de germinar
novo mundo, tem escrito prosas e poemas reflectindo sobre
vários assuntos hodiernos.

7. DESGOSTOS DO PATRÃO

“Eu não sou digno de nenhuma violência.


Nenhuma violência pode ser suficientemente
violenta para ser digna de mim”.
EduardoWhaite
O desfolhar das madrugadas e das tardes na urbe
lembra-me a ternura que haverias de oferecer-me
e, doutro modo, azedam-te as quiméricas

66
promessas que me emocionaram a sujar o dedo
por ti. Só se fascina, na verdade, quem se demite
da memória: para ti, promessa deixou de ser
dívida para ser suporte de ascensão ao império.
No fundo, trata-se de ser promessa de ti e nunca
ter promessas contigo. O que não sabes é que já
faz tempo que carrego a vida embrulhada em
andrajos, suporto agruras que se tornaram tão
familiares que o próprio conforto. Por isso, não
tenho medo de quais sejam elas, apenas uma dor
se faz sentir, uma espécie de navalha a trinchar-
me as veias quando vejo que essa nossa agrura é
pela miséria que se traduz no que falta nas
paragens da urbe.

Com certeza, nisto tens razão: não se ensina o


fruto a ficar maduro. Tu és fruto e amadureceste
o suficiente para seres leccionado acerca da
mobilidade na nossa urbe. Mas há quem diga: os
melhores conhecedores da ciência são os que
estão no campo da experiência. O mesmo se diz
de uma empresa: só os empregados sabem da real
situação dos produtos (a quantidade e a

67
qualidade) e, o patrão, só sabe que existem os
produtos sem se importar com os detalhes. Agora
me pergunto sobre a veracidade daquela
afirmação: 'vós sois o meu patrão'. Será que não é
o inverso? Parece que somos mais empregados
que patrões.

Bastar-te-ia pouco mais de dois dias para viver


esta indignidade, a própria agonia de Cristo no
Getsêmani. Aí serias verdadeiramente o
empregado da empresa. Não me venhas dizer que
a desconheces, não me venhas dizer que não é
bem assim ou que estão a fazer o que é possível
para melhorar a quantidade, nem falo das vias
que perderam a validade da qualidade. Tem um
pouco de vergonha. Se INAE fizesse uma
inspecção à nossa empresa não te saberias
justificar. Se calhar iriam mandar parar a nossa
empresa. Não imaginas as multas que teríamos de
pagar. Devia ser um alerta. Os produtos vendidos
fora do prazo por Ematum e ProIndicus
suspenderam o funcionamento normal da
empresa.

68
A empresa possui mercadorias, não em poucas
estatísticas, que estão caducadas; por um lado
são as procissões de veículos cansados e abatidos
rumo aos bairros e sem esperança de chegarem
com mais vida. Lançam-se aos becos das estradas
receosos e pensado se não lhes será a última vez
antes de serem mandados ao cemitério. Quantos
cemitérios há por aí, onde jazem veículos que
ainda poderiam ganhar a ressurreição no terceiro
dia? Entre os que ali passam, uns os olham com
piedade comentando ao relento sobre a
manutenção que poderiam receber para uma
salvação; outros, porém, têm olhos de subtracção
à posse individual. Por outro lado, são as gigantes
bocas que nascem por onde aqueles fazem
procissão. E da forma como nascem parece-me
estarem convictos de embelezarem as estradas. Se
não for o caso, alguém está convicto por eles de
tal maneira que lhes assegura uma vida longa.

A situação é pior quando se trata daquela parte,


onde parece que a empresa saiu a perder. As
gigantes bocas não têm misericórdia dos produtos

69
do TPM e dos teus patrões, lhes impõem a uma
dança ao som repulsante com um único acorde e
letra sem sentido. Quando a chuva saúda aquela
zona os amadores das redes sociais
desnacionalizaram os patrões de Nkobe. Ainda
por cima lhes consideram atrasados da civilização
das vias de acesso. Até pensaram em instalar
fábricas de construção de estradas, quem sabe em
poucos dias evoluiriam como os outros patrões.

Na verdade, a vida dos patrões começa a azedar


nos terminais. Ali precisariam de um arquitecto e
um engenheiro para traçar e endireitar a longa fila
desdobrada por voltas sem fim a espera da
mercadoria do TPM. Esta não só esgota a
paciência dos patrões, mas lhes faz chegarem
tarde aos seus leitos e sem a oportunidade de
mimar os seus filhinhos, que já dormem quando
chegam. Às vezes, não poucas, chega lotado. Por
dentro pode-se ver os patrões espremidos de todas
as formas até ao último suco. E logo lhes vem a
fadiga emocional: “entro e passo a ser o próximo
espremido”. Antes, porém, que entrem para serem

70
espremidos, reverenciam os ouvidos ao grito de
ordens do cobrador, que convida os patrões aflitos
a uma furiosa disputa de quem entra primeiro:

-Dinheiro trocado e/ou mais para trás.

Os pobres patrões-empregados nas pressas de


estarem, o mais rápido possível, nos seus leitos
familiares se sujeitam a viajar como sardinhas,
esbarrados, comprimidos, sofrendo toda a sorte
de incómodos. São homens e mulheres, a maioria
de idade adulta, resignados a algo impensável:
“tem de ser, não há carros; temos de ter paciência
e não refilar que é pior”, murmuram os patrões
quando lhes apetece. Como é que pode a gente
fugir à aglomeração, se não há saída diferente? O
mais estranho é o porquê não demitem esses
empregados que não trabalham conforme,
enquanto no fim do mês recebem um gordo
salário? O meu simulacro diz que devia ser um
dos empregados. Mas como posso sê-lo se nunca
gostei da cor vermelha, por ser a cor de sangue?

71
A mercadoria passa então a transportar as almas
dos patrões de uma ponta a outra da cidade, como
se não bastasse a essas pobres almas o horror de
serem engolidas pelos veículos. A agonia ainda era
maior dentro deles. Misturados entre almas dos
patrões havia os enxotadores demónios que se
aproveitavam da superlotação para abusar das
patroas, era ocasião de satisfazer os anseios
carnais psicologicamente; outros formados em
subtracção dos bens alheios não desperdiçavam a
ocasião para executar os seus serviços. Ainda por
contrapeso a dança dos coocupantes de lá pra cá
e vice-versa, pisando e empurrando a torto e a
direito.

O bom das mercadorias carregava uma boa parte


das almas dos patrões em diversos pontos da
cidade, sempre mais cansados do que quando
entraram. De uma ou de outra maneira, continua
o desserviço aos patrões. Ah, tanta sorte vossa!
Agora percebo o porquê de haver grande
concorrência em se trabalhar nessa empresa. Só
me espanta a cegueira consciente dos patrões. Um

72
CV, que contém habilidades impossíveis ou que
contratado não mostra em prática, não devia ser
contratado nem sequer permitido renovar o
contrato. Ora, é especialista em construção de
estradas, hospitais, escolas; ora tem dez anos de
experiência no fornecimento dos meios de
mobilidade. Mas, nem dois anos têm de trabalho.

Num passado muito recente, em meio ao escuro,


reverberaram-se acesos, das tuas mãos, enormes
subsídios que ajudariam os fornecedores
privados. Festejaram-se esses acordos e aqueles
senhores começaram a trazer carros de belezas
jamais vistas. Ninguém podia resistir às suas
cores, seus sons e confortos. Nem aquilo parecia
coisa deste verídico mapa. Fosse por desdenho
dos grandes que apontavam como desperdício de
dinheiro ou por glória dos patrões; a verdade é que
os carros foram virando assunto das urbes. Suas
presenças foram enchendo alívios nos peitos de
muitos. Além disso, aquela era uma notícia que
confirmava por um momento o teu CV. Embora
haja quem diga: era só para que se nos

73
acalmassem os alarmes e calassem as apreensões
dos murmúrios da futura mudança dos
empresários.

Todavia, dias sucumbiram e expiraram anos, se


instalou novamente o triste consolo: o subsídio
para os transpores não era mais que oferta de
dinheiro. De repente, a fartura dos autocarros não
era mais que um sopro de miragem esquecida.
Começaram a desaparecer um a um até que
ficaram alguns contáveis e a sua reprodução foi
abortada. A razão dada foi de que começaram a
ficar doentes e sofriam de uma doença que
acarretava muitos custos para o tratamento, pelo
que, os médicos decidiram desligar as máquinas e
os mandar à morgue e, em seguida, ao cemitério.
Uma falha que podia ser evitada, se tivessem
optado por projectos transparentes e que
envolvessem empregados dedicados.

Não só os autocarros morreram, mas também a


euforia que haviam plantado nos patrões. Mais
uma vez, sentiram-se decepcionados e vieram as

74
lágrimas aos olhos, num misto de raiva e
impotência. Como é possível? Mas quem podia
explicar aquele sofrimento, doce sabor de
amargas expectativas? Os patrões se inquietavam
com aquela desobediência da sorte, o mais
abominável abandono. Traiçoeira esta, quando
segurada com as duas mãos escapa entre os
interstícios dos dedos. É uma comoção tão ruim,
tão triste que mata lentamente. Tudo isto é tão
profundo, tão verdadeiro que nenhuma mentira o
poderia esquivar.

Alguns se dirigiam aos empresários,


encomendando-lhes as culpas. É verdade, esses
investimentos são capazes de grandes tristezas
quando feitos nos berços de familiarismo,
partidarismo, etc., requisitos parciais para ser um
accionista da empresa nos últimos tempos. Não
interessa a correspondência da produção e
produtividade. Soma-se o sofrimento dos
empregados pela ineficiência dos mecanismos dos
subsídios, com fracos ou inexistentes direitos e
deveres: revestindo-se de omnipresença para o

75
controlo do andamento dos mesmos. É quase uma
miragem falar do supervisionamento. Nunca
controlar alguém da “elite endinheirada”, pois
sempre faz tudo bem arrumadinho, só deita o que
não se encaixa na ordem da sua conta.

De tudo, ficou a conformidade à amargura. Só


que, desta vez, ela não só trazia um só e exclusivo
problema de escassez dos veículos. A ambição
desmedida pariu casos de desvios de lucros, que
roçam os subsídios para o alívio. Os que se
beneficiam dos subsídios, não se sabe se
colocavam as suas viaturas à disposição dos
patrões, o que torna a receita insuficiente para
cobrir os custos de manutenção. É a doença de
vários projectos: dá-se subsídios sem incentivos
para a prestação de contas, o que torna difícil
saber se são eficientes e trazem benefícios directos
para as populações.

Pesa-me tal constatação, desde que me conheço


patrão e, de certo modo, também o fascínio,
embora camuflado, que nutro por tais propósitos.

76
Gosto de assumir esse facto e de reconhecer que
lhes admiro o cultivo de penas pela sua gente. Mas
é preciso que deixemos de traçar destinos
risonhos que nos esperam cheios de lendas de
sofrimento. Não é exacto dizer que os subsídios
traem a empresa. Os subsídios são coerentes,
seguem a lógica implacável de seus interesses. Se
traição houve, deve ser atribuída aos mentores
que os expropriaram o seu gosto e despejaram os
restos. Como podemos falar das melhores vias e
transportes suficientes quando os matamos nos
desvios? Ou não são os desvios que justificam as
vias esburacadas e a disputa de ser transportado?

Não basta mudar o curso dos acontecimentos


inglórios da vida dos patrões. Há que mudar a vida
dos subsídios, sem transferir o
supervisionamento adequado, as avaliações
periódicas ao vento para aferir, se está sendo
alcançado o objectivo. Às vezes, importa ser
incrédulo. Não se deve acreditar em impostores.
Teríamos grandes avanços se nos
apresentássemos incrédulos aos mistificadores da

77
empresa. É urgente desabafar a carência dos
transportes e vias de acesso que estão a ser
degolados pelos desvios cruéis que dominam a
empresa.

Na verdade, sou um dos vários patrões cansados


e roídos por inúmeras carências e canseiras.
Poderás perceber pelos olhos em sangue, pelas
olheiras caindo, pelas borbulhas no rosto. Falta-
me qualquer coisa à beleza, qualquer modo que a
torne mais dócil, mais perfumada, mais
cristalizada. No entanto, deixai-me segredar-vos o
que a percepção visível e a consciência dos
acontecimentos despertaram que, por dentro,
então, possamos reaver a empresa: seu chão sujo,
sua cor triste, seu cheiro desperfumado e
nauseabundo, seu sotaque lastimoso, suas
mercadorias com validade esgotada.

78
AUTOR VII

Fayed Camilo Zavale

F ayed Camilo Zavale, 22 anos de idade, formado em


Filosofia pelo Seminário Filosófico Interdiocesano
Santo Agostinho-Matola.

No ano 2020 frequentou o 1º ano de Sociologia na


Universidade Eduardo Mondlane.

8. A JUVENTUDE DA PÉROLA

Busco a resposta a uma questão que, talvez seria


muito simples de responder, se eu não tivesse
nascido nestas bandas do continente africano, na
Pérola do Índico. Sou um jovem como qualquer
outro, caminho como jovem, tenho gostos de
jovens e faço cenas de jovens, o que me confere o

79
nome de jovem entre os membros da sociedade na
qual me encontro inserido. A juventude,
diferentemente de outras fases, convida-nos a
fazer um caminho de pura aventura na qual o
Homem jovem tem como objectivo, a descoberta
de si mesmo. Este processo de autodescoberta,
pode ser influenciado por vários factores, de entre
os quais: económicos, sociopolíticos e culturais.

A razão pela qual vos falo é pelo facto de ter sido


interpelado por um homem aparentemente culto,
numa das barracas da Cidade de Maputo,
localizada perto da maior Universidade do país,
onde eu me encontrava com um grupo de amigos
a tomar uma cerveja. Pela cor do cabelo e rugas
que formavam uma esteira em sua testa, o tipo
aparentava ter uns 50 e poucos anos de idade; na
sua mão direita, trazia consigo uma carteira bem
gorda e um molho de chaves que tilintavam. Pelo
facto de a barraca estar nos arredores da
Universidade que eu e os meus colegas
frequentávamos, precipitámo-nos a atribui-lo

80
uma cátedra naquela Universidade que, por sinal,
é a maior do país.

Ao entrar na barraca o homem saudou-nos


desejando-nos uma feliz sexta-feira e sentou-se
bem ao lado da nossa mesa. Enquanto
conversávamos, ele reparava-nos como quem
estivesse a estudar o comportamento. Depois de
tanto desenvolvimento de olhares, ele levantou-se
de sua mesa e pediu para juntar-se a nós; a
conversa que, antes tinha como tema mulheres,
docentes, carros e álcool, tomou outro rumo com
a presença daquele homem.

O futebol, os estudos e a cena dos ataques a norte


do País, tomaram o lugar da antiga conversa.
Buscávamos organizar o país àquela mesa e cada
um dava o seu parecer sobre os vários assuntos
abordados. Como todos os bons mais velhos, ele
não deixou de criticar a juventude hodierna,
dizendo: A juventude de hoje está perdida; já não
se faz jovens como antigamente; esses jovens de
hoje são malcriados. Foi dizendo estas e tantas

81
outras acusações que fazem pensar que a
juventude do preto e branco era bem-educada e
que os desmandos habitavam no não existir.

Quando o dinheiro da vaquinha terminou, o nosso


mais novo amigo despôs-se a pagar mais uma
rodada, pois dizia ele que éramos “putos
porreiros”. As gargalhadas denunciavam a
paulada trazida pelo álcool, mas o cenário mudou
quando o senhor com pinta de janota fez-nos a
seguinte pergunta: - o que esperar dos jovens?

Ficámos todos com um ar sério, pois percebemos


a profundidade daquela questão. José, que era o
mais charlatão do grupo e o mais formal, tomou a
palavra como quem já esperava por aquela
pergunta há muito tempo e disse: geralmente nós
jovens buscamos o nosso lugar no mundo e, sobre
nossos ombros pesam fardos em forma de
questões, tais como esta que o senhor acabou de
colocar. Tomou um gole do seu copo e continuou.

Nas vésperas das eleições sejam elas autárquicas


ou presidenciais, são organizados comícios e

82
showmícios com o único objectivo de conquistar a
simpatia da população, maioritariamente jovem; é
a única época em que os senhores políticos
aproximam-se de nós; é tempo de festa, panfletos
coloridos de variados tamanhos e qualidades
beijam muros e postes sem discriminação trazem
alegria; corpos que só farrapos lambiam passam
a conhecer vestes novas, capulanas, camisetas e
bonés tudo novinho apesar de terem lá
estampadas, cabeças de variados tamanhos…,
enfim parece festa de carnaval daquelas que só se
vêm na televisão. São ouvidos discursos afiados,
penetrantes como uma flecha… estes senhores
que prefiro tratá-los de senhores fazedores de
promessa ou fazedores de sonhos, têm uma lábia
que faz ir a mais bela das cidades do mundo
àqueles que os dão ouvidos, parecem dominar o
hipnotismo, pena que os sonhos acabam logo que
despertamos, neste caso acabam logo que o povo
deposita o voto na urna e os resultados das
eleições são divulgados.

83
Depois disso só resta contar os sonhos e, esse
papel cabe aos jovens, pois as crianças ocupam-
se das brincadeiras e os mais crescidos estão
calejados pela mesmice e buscam ocupação no
senta baixo ou num biscate… Os jovens dizem: -
Sonhamos com uma educação de qualidade,
escolas apetrechadas, mais Universidades e
professores bem formados, pois esses itens
constituem o ponto zero para a formação de
jovens íntegros, justos e responsáveis, pois a
educação é o caminho mais seguro para alcançar
um status que permite a qualquer um viver
dignamente. Ao investir-se na educação dar-se-ia
um grande passo rumo ao desenvolvimento
colectivo.

Ouvimos ainda discursos como: -Prometo


construir mais centros de saúde e contratar mais
profissionais para fazer face a demanda da
população… os medicamentos estarão disponíveis
mahala, ou seja, gratuitamente. Mas findo o
momento de caça ao voto somos acordados pela
realidade e vemos que foi mais um sonho bom

84
que, morreu no papel usado para imprimir o
discurso.

Os famosos postos de emprego e os


financiamentos dos projectos dos jovens são os
tiros mais certeiros de entre as promessas, pois
encontram terreno fértil nas mentes dos jovens,
assaltados pelo desespero de não fazer nada para
ganhar o pão de cada dia, restando-lhes apenas,
antecipar a aposentadoria nos xivotxonguas das
esquinas (bebidas com um alto teor de álcool);
este cenário da falta de emprego é um pesadelo
que não escolhe cor, religião e já nem respeita o
nível académico, mas lá vêm os corajosos que
prometem 5000 novos postos de emprego. Enfim,
mais um sonho. A única realidade que se observa
é que os valores monetários, mesmo sem pernas,
caminham para os bolsos dos senhores dos
sonhos que, por ironia do destino, são tomados
por uma amnésia retrógrada que os faz esquecer
as promessas que fizeram aos jovens aquando da
caça ao voto, de tal forma que passam 4 ou 5 anos
fazendo valer a expressão que diz “o cabrito come

85
onde está amarrado” e parece que só se lembram
das promessas feitas outrora quando o mandato
já está a minguar.

José dava a impressão de ainda pretender


continuar o seu discurso, quando foi interrompido
por um dos colegas acusando-o de querer acabar
com todas as palavras do universo, pois tendo
começado nunca mais parava. O senhor
agradeceu-nos pela acolhida em nossa mesa e
despediu-se com a promessa de voltar para àquela
esquina para um dedo de conversa, pois a sua
questão não estava ainda respondida na íntegra e
que precisava de estar connosco por mais tempo.
O senhor pagou a nossa conta como havia
prometido e foi-se embora. Como a hora já ia
adiantada, nós também nos despedimos uns dos
outros sem dar nenhuma resposta definitiva à
questão colocada pelo janota. Aquela situação foi
a prova viva de que a questão sobre o que esperar
dos jovens ainda merece muita atenção e precisa
de ser pensada por todos os jovens tendo em conta
as condições que a pérola do índico oferece, não

86
como um impasse para justificar a preguiça, mas
sim com o desejo de melhorar as condições
actuais desta nossa pérola.

9. CASA AMADA

Diz-se que canção tem o poder de amansar feras


e que tem um efeito poderoso sobre nós humanos.
E que a canção acompanha o Homem desde os
primórdios, servindo-se dela nos momentos
difíceis da vida e também nos de alegria, sem
esquecer dos momentos de glória prática que
ainda se fazem sentir. Temos como exemplo os
nossos pais, que lutaram pela libertação do nosso
país, que muitas vezes se serviram do poder da
canção para expressar a sua indignação diante do
sistema colonial que os oprimia privando-os da
sua liberdade. A cancão foi muitas vezes usada
como estímulo em combate para encorajar os
moçambicanos a lutar pela libertação do País. E
até aos nossos dias, a canção vem fazendo aquele
que é o seu papel na sociedade. Muito se pode

87
dizer ainda sobre a cancão, mas não me sinto
digno de falar dela com bastante autoridade,
deixando que os historiadores o façam,
discorrendo os degraus do tempo, indo à busca do
papel da canção na luta de libertação nacional.

Hoje quero falar-vos de uma canção muito linda


que fez e, continua a fazer, parte da vida de muitos
moçambicanos. Uma canção não muito velha e,
nem por isso, muito nova, mas que todos a
conhecemos ou deveríamos conhecer, por ser a
canção que identifica a todos os moçambicanos.

A canção a que me refiro foi composta por um


grupo de 9 pessoas e, em 2002, a Assembleia da
República de Moçambique, chamou a cancão
“Pátria Amada” como o Hino Nacional. Mas em
2013 a Assembleia da República reconheceu a
Salomão J. Manhiça como o autor do atual Hino.
É um Hino bastante rico, pois evoca e elogia o
esforço dos nossos heróis para o alcance da paz.
É o símbolo de exaltação da nossa pátria. Mas o
esforço destes homens e mulheres que está

88
patente no Hino nacional, nos últimos tempos
vem sendo reduzido a nada, fazendo das
significâncias da canção do Hino, um grão de
açúcar que se mistura a areia da praia, pois vários
são os acontecimentos que vêm manchando a
nossa exaltada pátria amada, que vem sendo
manchada por casos de mortes sem explicação,
raptos; o terrorismo como o prato do dia; a
corrupção como sobremesa, entre outros
acontecimentos que vêm obrigar-nos a fazer «um
antes e depois» da nossa pátria amada.

Ontem gritávamos com o peito cheio de orgulho


da “Pátria Amada” dizendo:

Na memória de África e do mundo


Pátria bela dos que ousaram lutar
Moçambique o teu nome é liberdade
O sol de junho para sempre brilhará.
Mas hoje, fica patente na memória de África e do
mundo que aquela pátria tida como bela, vai
perdendo o seu encanto, vai perdendo a sua
coragem e se acobarda. Antes o nome deste país

89
era liberdade, mas aos poucos somos
aprisionados pelo medo. O medo de falar e
denunciar as injustiças que nos aprisionam, por
isso vamos perdendo a força de gritar e pedimos
que nos seja restituída a liberdade sem que
ninguém seja privado do direito a vida.

O Sol que dissemos que para sempre brilharia, vai


perdendo seu brio assaltado pelo luto das famílias
que choram seus entes queridos que perderam a
vida em várias frentes de combate travado no dia-
a-dia dos moçambicanos, contra a fome, o
desemprego e falta de assistência médica e
medicamentosa; contra a falta de uma educação
abrangente, de uma casa condigna e alguns
morrem simplesmente por falarem o que pensam.

O coro que antes fazia-nos gritar mais forte,


Moçambique nossa terra gloriosa, pedra a pedra
construindo o novo dia, milhões de braços, uma só
força, ó pátria amada vamos vencer foi ganhando
nova letra e melodia trazidas pelos choros e gritos
dos que sofrem, num país constitucionalmente

90
democrático, em que o povo tem o poder de decidir
o seu próprio futuro, mas esta capacidade de
decisão é arrancada do povo e, caso algum
espertinho ou um grupo de espertinhos tente
mudar a trajectória dos acontecimentos é logo
silenciado. Em lugar da glória, vem a infâmia que
dia após dia vai ganhando seu lugar na pátria
amada.

As pedras que serviriam para construir o nosso


dia, servem de sepulcro para os nossos irmãos
nas minas de cabo Delgado, que tentam ganhar a
vida na exploração de minérios que enriquecem a
um punhado de gente. Os milhões de braços que
antes formavam uma só força são,
constantemente, cortados pelo desgosto de lutar
por uma pátria amada que vai se tornando dos
Homens dos olhos puxados. A incerteza de vencer
nesta pátria amada é cada vez mais certa. A
segunda estrofe chama a minha atenção de
maneira especial:

Povo unido do Rovuma ao Maputo

91
Colhe os frutos do combate pela paz
Cresce o sonho ondulando na Bandeira
E vai lavrando na certeza do amanhã.
Infiltrou-se um inimigo no meio de nós pior que o
colono. Ele vai dividindo Moçambique e aos
poucos vai ganhando espaço. É o problema do
tribalismo que trás consigo o egoísmo e separação
e faz de nós Homens desunidos, onde a falta de
partilha vai fazendo de uns, muito ricos e de
outros, muito pobres. Os frutos do combate pela
paz aos poucos vão sendo substituídos por balas
e tanques de guerra que, a pouco e poucos, estão
tomando posso do que é comum na província
nortenha de Cabo Delgado, onde diariamente
várias famílias são obrigadas a se deslocarem de
suas zonas de origem e de conforto para um lugar
incerto e sujeitos a fazerem dos bichos do mato,
seus travesseiros. Os sonhos tornam-se escassos,
pois a cada dia, a incerteza do amanhã nos rouba
o sono que nos faz sonhar.

Flores brotando no chão do teu suor

92
Pelos montes, pelos rios pelo mar

Nós juramos por ti, ó Moçambique.


Nenhum tirano nos irá escravizar.
A terra da pátria amada vai virando inóspita, já
não brotam flores. As águas dos mares e rios vão
ficando encarnadas pelo sangue dos jovens
militares que perdem suas vidas no combate em
defesa da pátria. Jurámos que nenhum tirano nos
iria escravizar pensando que o tirano teria cor e
etnia diferentes das nossas, e nos preocupámos
em olhar somente para o lado de fora da nossa
pátria achando que o maior inimigo seria o
estrangeiro, mas da cartola saiu um preto igual.

Apesar dos acontecimentos que vêm manchando


o pano branco da nossa pátria amada, tenho a
esperança de entoar o nosso Hino e jurar
novamente por um Moçambique revitalizado, que
acolha a todos os seus filhos sem discriminação.
Onde todos daremos o nosso melhor rumo a
edificação de uma pátria amada que nos ame de
igual forma. Por uma casa que nos ame.

93
AUTOR VII

Valdemiro José Paque

V aldemiro José Paque nasceu aos 30 de Janeiro de


1995 em Inhambane,
Localidade de Mapinhane.
Distrito de Vilankulo,

De 2001 - 2008 fez os estudos primários na Escola primária


Completa de Mapinhane. De 2009 - 2013, fez o ensino
secundário, na Escola Secundária Pe. Gerardo Gumiero de
Mapinhane. Em de 2014, ingressou no Seminário Diocesano
de «S. Lucas» - Mapinhane, uma instituição vocacionada
para preparação dos jovens ao ministério sacerdotal; no ano
seguinte (2015) prosseguiu os estudos no Seminário
Filosófico Interdiocesano «Santo Agostinho» - Matola. E no
ano 2018 ingressou no Seminário Teológico Interdiocesano
«São Pio X» - Maputo, onde permaneceu durante dois anos.

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Nos anos 2016 e 2017 foi, respectivamente, Vice e Director
Executivo da ACAFIL (Academia Filosófica), uma
agremiação e revista de promoção académica, que se ocupa
no debate e reflexão de situações que inquietam a sociedade.
No Seminário Teológico fez parte do Nureteo [Núcleo de
reflexão teológica], onde integrou a equipe de redacção, que
prepara revistas frutos das palestras promovidas pela
agremiação.

10. A CIDADE PARA QUAL FUI EDUCADO

De que serve a uma leoa ensinar ao filhote a


alegria de correr na selva se ele tiver de passar a
vida fechado num jardim Zoológico? O pai
enganou-se! E ao enganar-se enganou-me a mim
também. Tal como a leoa referida por A. Abelaira
em "As boas intenções", o pai educou-me para
outro mundo. Ele educou-me para um mundo
errado; um mundo que você, provavelmente,
viverá cinquenta anos depois.

O pai foi rápido. Foi muito rápido em trazer-me ao


mundo. Tornou-me rápido de mais. Por causa dele

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estou sempre na dianteira. Estou a viver mais de
cinquenta anos adiantados, depois de ti. O que
vivo, como vivo, o lugar onde vivo viverás tu
cinquenta anos depois. Estou lá graças aos meus
parentes, os meus antepassados. A ti sinto muito,
pois só saberás do que sei cinquenta anos mais
tarde. Não obstante, tens sorte e a possibilidade
de saber através do meu informe. Ainda é sorte
tua pois tudo quanto vivo, cá neste mundo dos
cinquenta, saberás antes de aqui chegares, o bom
e o errado para viveres a teu critério.

No mundo onde vivo, o mundo dos cinquenta anos


depois, ninguém escapa. Ao cantarolar de galos
todos os citadinos começam a dar passos. De
lugar ao outro procuram algo especial. Enquanto
procuro ser feliz. Allá diz procurar o bem maior; o
Voskós, Deus; Patéras diz que procura o que
garante a vida na família. O que vivemos
cinquenta anos depois da tua vida actual é a
demanda. É interessante que entre nós, cá na
cidade dos cinquenta, o dia começa com a
demanda. Isso é natural e é o nosso normal. Cada

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um com os seus meios, o que nos une é a
demanda. Enquanto uns têm como o meio a
ciência religiosa, outros usam a ciência política e
outros ainda, pelos jogos da sorte [Internet - que
só existe na nossa cidade], há ainda outros que os
se utilizam da economia; na verdade tudo o que
procuramos é de valor.

A felicidade me satisfaz! Deus não é menos


importante para Voskós! Nem para Allá, falo do
garante da família como algo desprezível. Nesta
cidade cuja vida saberás cinquenta anos depois,
não mais se fala da sobrevivência do mais forte;
fala-se do mais inteligente; melhor dizendo: ser
inteligente significa ter, com facilidade possível, o
que se demanda. Aos mais inteligentes tudo o que
se faz é investimento à ciência. Isso significa:
trazer mais perspectivas éticas para confundir a
nobre moral do seu tempo; a evolução da
medicina conta também com a criação de novas
patologias; fazer política é esclarecer-se das
teorias do governo para melhor (in)governar os

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povos. Esse é o nosso ser aqui na cidade dos
cinquenta.

Na cidade dos cinquenta anos depois da tua


cidade a demanda é multifacetada. Enquanto os
informáticos criam mais senhas de segurança
quebram outras; os Dikigóroi enquanto defendem
uns, mais sufocam os outros; por outro lado, os
Kyvernítes da nossa cidade vendem os nossos
Cabos Delgados. Na cidade dos cinquentaa a
Astynomía arma em vez de combater os
criminosos; outrossim, cá entre nós, é moda que
os juízes condenem os inocentes. Tudo isso
justifica-se pela demanda.

De tudo quanto posso admirar é que na minha


cidade há mais olhos (humanos e científicos), mas
nada vemos. A minha cidade é uma capital,
embora sem capital. Não sei se na cidade já houve
uma cidade igual, uma cidade com mais
advogados para defender criminosos; mais
médicos com número considerável de morte para
registar; cidade com mais éticos, embora ela não

98
tenha outra regra que a demanda; esta é a cidade
santa, mas cheia de infiéis; Não te preocupes, é o
que eu vivo não tu! Quiçá vivas nela lá para
cinquenta anos depois da tua cidade.

A cidade dos cinquenta anos depois é a cidade da


demanda; é a cidade do capital em falta para
todos; é a cidade em restruturação para nova
forma de estar; aliás, o estar é sempre estar em
demanda; este é neoliberalismo (Castiano – in ‟A
liberdade do neoliberalismoˮ).

Posso admirar e espantar-me pela minha cidade;


aqui a vida é das melhores: o trabalho é pelas
monetizações e apostas; somos académicos pelas
páginas na net. Tudo é agora um bem, quer dizer
um mal-habituado, atenuado e já padrão da
nossa vida na cidade dos cinquenta anos.

Aqui a vida é pela ciência. Esta que prega a


evolução e a revolução. De facto, A. Abelaira o
nosso sábio da cidade diz: pelo desenvolvimento
da ciência nós vivemos mais do que vocês
(atrasados a 50 anos); comemos, bebemos e

99
dormimos melhor. Quero dizer: alguns de nós,
pois alguns da pequena localidade chamada
Diagráfike pouco sabem de viver bem; eles
continuam a morrer novos por falta de médico;
continuam a padecer da mesma fome de ontem.

De tudo quanto os sábios da Cidade dos


cinquenta anos depois estão cientes, só uma
questão não sabem responder: ‟não é dever nosso
procurar que o progresso se estenda a todosˮ?

A cidade dos trinta é daquelas mais bem


organizadas. Saberás cinquenta anos depois, se lá
não transformares em outro caos. O que
caracteriza os seus cidadãos é a demanda. Todos
estão na demanda; essa demanda leva-os a uma
luta; ora para encontrarem a felicidade; ora para
serem livres; ora para encontrarem a Deus. Pouco
lhes interessa ser governado pelo Rei que promete
fazer vias de acesso para ele próprio andar de
carro; hospitais, bons hospitais para só ele ser
atendido; escolas para só estudar com seus
familiares; muito menos ser governado por um

100
presidente que construa vias de acesso e cobre
caro pelo uso, sem mantê-las; escolas que tornem
ignorantes os filhos dos cidadãos.

A questão não é a democracia, a monarquia, etc.,


o difícil é acreditar num democrata que jurou
morrer totalitarista. A questão é não saber o
porquê da razão de se usar o ódio, invés da Paz,
como arma política. A maior preocupação é saber,
não entender, a razão que faz como que a
demanda seja a nossa união ao mesmo tempo que
é discórdia. Será que esquecemos que cada
sucesso da nossa demanda poder ser que
estejamos a roubar pais de certos filhos, maridos
de outras mulheres? Ou quando não, semear
fome para outras famílias? Tudo pelo simples
facto de querer o nosso bem-estar e de levar a vida
que apostamos.

Na cidade dos cinquenta, quero dizer cinquenta


anos depois da tua cidade, os cidadãos são unidos
pelo mesmo propósito: a demanda, para o possível
bem-estar. Os governantes sufocam para que o

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Voskós pregue a felicidade. Aliás, nos termos do
sábio da Cidade dos cinquenta soa o seguinte:
‟pedem aos cidadãos para que morram primeiro e
serem felizes depois; ou melhor promete-se um
futuro melhor para adiar a felicidade. Esses
cidadãos nunca são felizes! Embora no paraíso a
vida seja feliz, seja das melhores, na cidade dos
cinquenta, parece que saímos cedo; vamos mais
depressa. para lá da vida no futuro. Eu nem
gostaria de chegar lá primeiro, pior se for por
conta dos outros.

A cidade dos cinquenta anos é a cidade que o meu


Pai me deixou. Penso que Ele falhou. Educou-me
mal. O meu pai devia ter-me ensinado a ser
violento; devia ter-me instruído a desprezar os
outros; devia ter-me educado a acreditar
estupidamente num credo qualquer. Pelo
contrário, como a leoa, o meu pai ensinou-me a
correr, afinal, para um mundo em que é proibido
correr. Ele ensinou-me o amor, a paz, a
honestidade, o respeito na demanda do que
suportar a vida, mas no mundo dos cinquenta só

102
encontrei ódio, guerra e desrespeito como meios
para a demanda. O meu pai mandou-me para
uma comunidade religiosa para aprender a
caridade como forma de estar no mundo, mas no
mundo dos cinquenta só encontrei misantropia
como regra de vida.

A cidade dos cinquenta não é a cidade para a qual


fui educado. O meu pai enganou-se. Tal como
Aristóteles que escreveu um tratado ético ao seu
filho, eu também preparei um tratado conforme o
mundo onde os meus filhos viverão. O tratado
denomina-se: ‟O Logosérgonˮ. Eu já o deixei no
nosso mundo, a net…, de lá podes adquiri-lo para
transmitir aos meus filhos. Se faz favor.

103
RECOMENDAÇÃO PARA LEITURA…

O ser quântico como


Nossos Ferimentos a consciência divina
Rivaldo Manejo
Télio Mbeve

O Último mudo
Osvaldo dos Anjos

Efeitos da Quarentena
O abecedário do 104
Nunes Cristóvão
meu tempo
Osvaldo dos Anjos
PRÓXIMOS LANÇAMENTOS

Logosérgon: O triunfo da moral


ironivícica
Valdimiro J. Paque

Ecos de Resiliência Cartas de Amor Perdidas


Helton Ubisse Nunes Cristóvão
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PARCERIAS

Para a materialização deste projecto de Antologia


houve parceria da Editora Nxtuva com:

APEIM, uma associação fundada em Abril de 2020,


por jovens de Maputo (Província capital de
Moçambique), com objectivo de reflectir e expandir de
forma lírica, as realidades vivenciadas em África, de
modo particular, em Moçambique.
Não se trata de um grupo “bombástico” (com intenção
de divulgar as maldades da Nação), pois cá nestas
terras há também coisas maravilhosas, culturas
interessantes, sonhos imortais, e uma vida
profundamente inimaginável. Trata-se de um grupo
Moçambicano, mas, com uma inclinação à literatura
africana.
Há muita coisa que corre nas veias dessa associação.
Há muitos desabafos a serem feitos, e há muita
maravilha a ser demonstrada ao mundo inteiro.
Hora Acadêmica, um canal de promoção acadêmica,
com objectivo de disseminar a cultura geral, partilhar
informação acadêmica; Reflectir sobre problemas
sociais, bem como propor possíveis soluções.

LuciOdesigner Jr Prod., uma pequena empresa de


Artes &Serviços especializada em: Produção de vídeos
e fotografias em matrimónios, lobolos, aniversários,
publicidades, graduações, etc.

No campo de Design Gráfico: panfletos, convites,


certificados, Cds, Cartoons, Logotipos, capas, etc.

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