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Luiz Carlos Montans Braga

DEMOCRACIA NECESSÁRIA
Ontologia, direito e liberdade em Espinosa

Dissertação de Mestrado
Orientadora: Professora Doutora Lídia Reis de Almeida Prado
Área de Concentração: Filosofia e Teoria Geral do Direito

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE DIREITO

São Paulo – SP
2004
Resumo: Trata-se de articular os conceitos de ontologia, direito e liberdade na obra de
Espinosa. O intuito é o de esclarecer a concepção espinosana de democracia. A ontologia
(ou metafísica) espinosana, que concebe a realidade como uma e apenas uma substância
(Deus), permite entender o indivíduo como modificação da e na substância infinita. O
indivíduo, conseqüentemente, é entendido como modo finito da substância. Cada ser
humano é a expressão de dois dos infinitos atributos divinos: o pensamento e a extensão.
Sendo a substância potência infinita, cada modificação da substância é potência finita. Isto
caracteriza o indivíduo como conatus, isto é, pulsão de vida. O direito natural se identifica
ao conatus: é potência. A liberdade consiste no exercício desta potência na substância. Para
que o direito natural (conatus, potentia) seja efetivo, é fundado o corpo político. É apenas
na cidade que o indivíduo exerce plenamente o direito natural por intermédio do direito
civil. Por fim, trata-se de verificar em que medida o regime democrático é aquele que mais
satisfaz a natureza humana.

Abstract: The objective is to articulate the concepts of ontology, right and freedom in
Spinoza's work. The aim is to clarify the Spinoza's democracy conception. Spinoza's
ontology (or metaphysics) conceives the reality as one and just one substance (God). It
allows the understanding of the individual as a modification of the infinite substance. The
individual, consequently, is understood as a finite mode of the substance. Each human
being is the expression of two infinite attributes of God: thought and extension. As the
substance is the infinite power, each modification of the substance is a finite power. That's
why the individual is described as conatus, that is, life power. The natural right is
identified with the conatus. Freedom consists in the practice of this power in the substance.
The political body needs to be founded for the natural right to be effective. It's only in the
city that the individual fully practices the natural right by the civil right. Finally, the aim is
to verify in what sense democratic regime is the most satisfactory form of political
organization to human nature.

2
Agradecimentos

À Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pelo apoio institucional.


À Lídia Reis de Almeida Prado, pela orientação e pelos afetos alegres.
Aos professores do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de
Direito, bem como aos professores do Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sem os quais não
existiriam nem o interesse pelo tema, nem o repertório teórico para desenvolvê-lo.
A André Mamoru Tanno, pelo auxílio na formatação do texto.
Aos meus pais.
A todos que mediata e imediatamente contribuíram para o desenvolvimento desta
dissertação, meu agradecimento sincero.

3
“À luz do presente”

“Simplesmente estar e degustar


A calma transparente da imanência
- Presente eterno.

é certo que, lá no fundo,


No abismo original, no I – Mundo,
O Caos borbulha.

Mas hoje é dia de serenidade


E longe está a tentação do êxtase, do mergulho
No delírio dionisíaco da Substância.

Basta-me hoje ser e coincidir


Com um modo finito da Substância.
Por algum tempo
O próprio Tempo está suspenso.”

Bento Prado Jr. 1

1
Bento Prado Jr. . Caderno Mais! São Paulo, Folha de São Paulo, 18/05/03, p. 20.

4
Índice

1.Introdução .......................................................................................................................... 6

a) Por que ler e escrever sobre Espinosa? ........................................................................... 6


b) De místico a inconsistente ............................................................................................. 11

2.Esboço biográfico ............................................................................................................. 18

3.O more geometrico: prescindível? ................................................................................... 24

4.O Deus Espinosano: a substância absolutamente infinita; a liberdade necessária .... 33

a) Uma nota: a metafísica no XVII.................................................................................... 35


a.1) Newton, Descartes, Hume, Kant ............................................................................. 35
b) Deus: a substância ......................................................................................................... 43
c) A questão da liberdade necessária em Espinosa ........................................................... 50

5.O Direito em Espinosa: o conatus ................................................................................... 66

a) Breve introdução: o direito como direito positivo......................................................... 68


b) O contradiscurso jurídico de Espinosa: o direito como poder ...................................... 78
c) Direito civil: a expressão da potentia coletiva .............................................................. 88

6.Afetos e sociabilidade: a instituição do corpo político em Espinosa ........................... 94

7. Democracia necessária ................................................................................................. 109

a)Busca de uma definição ................................................................................................ 110


b)O problema da democracia formal ............................................................................... 115
c)Democracia, potência, liberdade, política: à revelia da tradição .................................. 121
d)Os regimes políticos e a concentração da potentia ...................................................... 131
8. Considerações finais.....................................................................................................137
9.Referência bibliográfica pesquisada ............................................................................ 141

5
1.Introdução

a) Por que ler e escrever sobre Espinosa?

“Nostalgia, arqueologia e
“philosophia perenis” parecem
incapazes de responder a uma questão
sempre recolocada toda vez que
deparamos com um clássico: por que,
ainda hoje, alguém se daria ao
trabalho de ler Espinosa e escrever
sobre ele? No entanto, desde que
consideremos que clássico é aquele
que, ao pensar, nos dá a pensar, talvez
possamos enfrentar o perigo da
questão.”

Marilena Chaui2

É no mínimo causa de estranhamento ao senso comum – e, no


máximo, um disparate - que se estude um autor do século XVII visando, com isto, a uma
tentativa de esclarecimento de questões próprias da contemporaneidade.
Afinal, por herança de um renitente positivismo3, ainda se pensa que
o contemporâneo é o lugar mesmo do máximo progresso humano em todos os sentidos
possíveis. Não se leva em conta, neste raciocínio, que a contemporaneidade traz em seu
bojo uma série de atrasos que, cada vez mais, se explicitam4 aos olhos do observador mais
atento.

2
Marilena Chaui. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol. I: Imanência. São Paulo, ed.
Cia. das Letras, 1999, p.40.
3
Positivismo no sentido de Augusto Comte, não no sentido jurídico-kelseniano.
4
Que o leitor se reporte a um instigante artigo de Olgária Matos, intitulado Formas modernas do atraso,
publicado na Revista Praga, nº 7, São Paulo, ed. Hucitec, 1999, p.65. Neste artigo, a autora procura
explicitar, numa referência aos seus estudos da escola de Frankfurt, os regressos embutidos no momento de
maior desenvolvimento da técnica na história da humanidade. Para exemplificar este ponto, basta lembrar
que a autora faz referência às carroças puxadas por homens nas ruas das grandes metrópoles, bem como
chama a atenção para a volta do escambo nas escolas de São Paulo em função da diminuição da renda de
algumas famílias, que antes podiam pagar em dinheiro escolas privadas para seus filhos.

6
O tema que será tratado na presente dissertação, qual seja, o
conceito de democracia em Espinosa e sua relação com a maneira pela qual Espinosa
concebe a ontologia, o direito e a liberdade, vem ao encontro desse propósito de tentar
esclarecer questões contemporâneas por meio do estudo de clássicos do pensamento. Se o
clássico não é o inútil que apenas diz o que já não faz sentido no tempo presente, o que já
não faz sentido para as ações contemporâneas, ele tem alguma valia em alguma medida.
A valia de um filósofo do porte de Espinosa consiste em - como diz
Marilena Chaui na epígrafe desta nota inicial -, por ter pensado, dar a pensar.
Com efeito, o pensamento da modernidade - que a história da
filosofia estabelece como aquele produzido no final do século XVI, no XVII e até certo
ponto do século XVIII – pode ser entendido como um dos instantes da filosofia que foram
definidores do que se pode chamar de pensamento contemporâneo – e de mundo
contemporâneo. Se a racionalidade ocidental, isto é, um certa maneira racional de encarar
os problemas que o mundo coloca ao humano, ganhou força com Sócrates e já se esboçava
sem nenhuma ingenuidade nos chamados pensadores pré-socráticos5, é apenas a partir da
filosofia moderna que se pode dizer que esta racionalidade foi elevada à décima potência,
para usar uma metáfora matemática. Ainda que se diga que o mundo contemporâneo é pós-
moderno6, não se pode negar que ele é tributário do projeto filosófico moderno. Talvez a
mais significativa diferença entre o moderno e o contemporâneo seja precisamente a perda
da crença absoluta na capacidade de a razão dar conta dos problemas a que se propõe
resolver. Mas a negação da razão ou da racionalidade como fundamento último de
qualquer verdade não retira a questão do fundamento. Ainda mais: não retira de cena o fato
de que ainda hoje se busca na filosofia moderna uma das gêneses do que o mundo
contemporâneo é. O mal-estar contemporâneo – e certamente este mal-estar é sobretudo

5
A razão pela qual a história da filosofia estabelece Sócrates como um ponto de inflexão na história do
pensamento é ao mesmo tempo simples e significativa. Simples: Sócrates – ao menos na versão dos diálogos
de Platão, em contraposição ao Sócrates de Aristófanes, que está mais próximo de um sofista do que de um
filósofo (como aquele que busca a verdade e não a persuasão) – foi o primeiro pensador que estabeleceu
como objeto do pensamento o homem e suas ações. Daí que é apenas a partir de Sócrates que se pode falar
em filosofia política e em ética. Com os pensadores pré-socráticos não havia, ainda, uma reflexão sobre o
homem e suas ações. Apenas a physis, isto é, a natureza, era objeto da filosofia. Significativa: é apenas a
partir de Sócrates que se estabelece todo um novo campo de investigação filosófica, isto é, apenas a partir de
Sócrates o homem se toma como objeto de pensamento. Questões sobre a melhor forma de governo, bem
como questões sobre a virtude e a ação virtuosa, entre muitas outras, são, pela primeira vez, colocadas como
autêntico objeto de investigação filosófica. Surge, assim, a filosofia política e a ética como campos
filosóficos do saber. Forma-se, a partir daí, uma tradição de pensamento.
6
Pós-moderno no sentido de uma quebra na crença colocada na razão como instância última de certeza . Em
uma palavra: um certo relativismo quanto a ser a razão ou a racionalidade o lugar da verdade é o que
caracteriza o chamado pós-modernismo.

7
epistemológico, isto é, referente às bases de qualquer saber – talvez possa ter um bom
local de profilaxia ou de indicativo de solução no pensamento moderno. Em uma palavra:
alguns autores do século XVII estabelecem reflexões sobre temas e problemas que
permanecem nos tempos contemporâneos. O estudo desses autores pode elucidar aspectos
do mal-estar contemporâneo. Quanto às questões políticas, também há a necessidade dessa
volta ao século do grande racionalismo (como diz Merleau-Ponty7).
Espinosa é um autor interessante nesse sentido. Como as bases de
seu pensamento configuram um ponto do qual derivam todas as suas reflexões (é da noção
de substância absolutamente infinita que Espinosa deriva sua noção de direito, de liberdade
e, também, de política e de melhor regime político – a democracia), pode-se dizer que
reflexões políticas em Espinosa não são desvinculadas de sua ontologia, isto é, de suas
reflexões sobre o ser (sobre as origens do que é o real, bem como de sua constituição).
Dificilmente um autor contemporâneo estabelece o estudo do que é (do ser) relacionado ao
estudo político-jurídico. Não seria, então, o caso de uma volta ao dezessete8 –
principalmente a Espinosa – para um melhor entendimento de questões que não mais se
colocam? Ou seja, não seria fecundo desvendar um pensador do século dezessete para ligar
ontologia, direito e liberdade com o intuito de esclarecer, por um lado, a noção de realidade
como imanência na e da substância (Deus) e, por outro, desvendar como a ontologia tem,
para este século do grande racionalismo, e para Espinosa particularmente, uma ligação com
a política e com o direito?
Eis, então, o valor de um estudo de história da filosofia que busca o
esclarecimento de conceitos de um autor que escreveu no século XVII. Se o tempo
presente ainda é tributário do tempo moderno, principalmente no que se refere às maneiras
de pensar, esclarecer um pensador moderno é lançar luz no tempo presente. Quanto mais o
tempo presente é compreendido à luz do tempo moderno, maior o valor do pensador
considerado.

Portanto, a medida desta valia é o quanto isto que se pensa com o


que o clássico já pensou ilumina questões contemporâneas. Nem tanto para lhes dar a

7
Merleau-Ponty. Patout et nulle part. In.: Éloge de la philosophie et autres essais, Paris, 1960, p. 218 a 226
(segundo citação da nota 61 da Introdução de: Marilena Chaui. A Nervura do Real. São Paulo, ed. Cia. das
Letras, 1999).
8
Entenda-se pela expressão “dezessete” o mesmo que “século XVII”.

8
resposta ou as respostas, mas para que se tenha, usando uma referência benjaminiana9,
alguma lucidez no que se refere a certo mal-estar que o mundo contemporâneo lança aos
que nele vivem.
No que se refere às questões políticas particularmente, o mundo
contemporâneo é fértil em problemas que podem ser objeto de análise à luz de conceitos
espinosanos.
Assim, apenas para instigar a reflexão sobre a democracia
contemporânea, podem ser formuladas as seguintes indagações: como se pode falar em
democracia no momento em que grande parte dos cidadãos se vê excluída do corpo
político? Ainda se pode falar em corpo político quando os ditos cidadãos são sujeitos
apolíticos10, isto é, têm apenas uma prática cidadã formal? Uma democracia apenas formal
– na qual a participação política consiste em que se vote de tempos em tempos – pode ser
chamada de democracia? Uma democracia representativa seria mesmo uma democracia?
Não seria, em vez disso, uma oligarquia, isto é, uma aristocracia que se transformou em
oligarquia porque houve transferência da potência do corpo político para as mãos de
poucos? Faz sentido que se pense a democracia em uma sociedade dominada pelos
interesses das empresas transnacionais11, e, ainda, no caso dos países em desenvolvimento,
por políticas econômicas de organismos internacionais? Qual o verdadeiro campo de ação
política das democracias de países em desenvolvimento? O estreitamento do campo de
ação política não representaria a anulação da democracia representativa? Uma democracia
pode suportar altos graus de exclusão social e baixos níveis de participação política sem se

9
Walter Benjamin, membro da escola de Frankfurt, foi um pensador que, refutando a necessidade do método
tal qual estabelecido por vários autores do XVII (entre eles Espinosa, sendo o mais influente deles
Descartes), faz uma série de estudos cujo objetivo é a fundação do método como desvio em vez do more
geometrico. Este ponto, isto é, o more geometrico – em Espinosa -, bem como a ordem das razões – em
Descartes - será retomado em capítulo específico.
10
Quanto à crise ética gerada por uma cultura narcísica e apolítica, que o leitor se reporte ao autor Jurandir
Freire Costa em seu livro A ética e o espelho da cultura, Rio de Janeiro, ed. Rocco, 2000, principalmente à
Introdução.
11
Usa-se o termo transnacional para designar uma certa maneira de organização das corporações
empresariais no plano internacional. O termo multinacional já não dá mais conta do fenômeno. De fato,
pode-se entender por multinacional uma empresa que se estabelece em múltiplos Estados. Por exemplo, sua
manufatura se estabelece em países cuja mão-de-obra é mais barata, enquanto seus diretores se estabelecem
em países que dão formação intelectual mais sólida a seus cidadãos, e assim sucessivamente.
O que ocorre com a empresa transnacional é algo mais dinâmico. A mudança de localidade de seus vários
setores se dá de tal modo que , a rigor, é mais preciso que sua natureza seja designada como transnacional,
isto é, o empreendimento se torna de tal modo dinâmico que as várias seções da empresa mudam de acordo
com variáveis cada vez mais complexas e em maior número. Por exemplo, a seção de manufatura de uma
empresa transnacional pode ir de país a país em busca, sempre, da mão-de-obra mais barata para que seu
produto seja mais competitivo na economia globalizada. Em uma palavra: o termo transnacional talvez
explicite uma dinâmica mais próxima da realidade das empresas internacionais que o termo multinacional, o
qual representa uma idéia mais estática.

9
degenerar em tirania travestida de democracia? Qual a conseqüência política de ações
humanas que se dão, em larga medida, no campo estrito do privado? Um regime
democrático pode suportar altos graus de violência imediata e mediata12?
Talvez à luz das lentes espinosanas, isto é, de seus conceitos, se
possa ter nova visão sobre essas questões. Não se trata, diga-se desde já, de procurar na
obra de Espinosa a panacéia para o problema do conceito de democracia, bem como de seu
exercício. O objetivo é bem mais modesto: entender como se articulam os conceitos de
ontologia, direito, liberdade e democracia para que este último tenha o seu sentido
explicitado a partir da obra espinosana. Eis o objetivo deste estudo. Mas, se com este
esclarecimento, e com o esclarecimento de questões subjacentes à tese espinosana segundo
a qual a democracia é o mais natural dos regimes políticos – na medida, como se verá, em
que é neste regime que o ser humano se satisfaz ontologicamente -, for possível ver um
conceito de democracia mais rigoroso e substancial, talvez este estudo, apenas teórico,
tenha, como objetivo apenas indireto, entender em que medida as democracias que se
apresentam nos países contemporâneos estão bastante distantes do conceito que Espinosa
dá a este regime político.

12
Pode-se entender por violência imediata o conjunto das práticas coibidas pelos institutos de direito penal,
como roubo, furto, latrocínio, etc. . Pode-se entender por violência estrutural ou mediata condições históricas
e muitas vezes institucionalizadas que impossibilitam uma prática cidadã. Por exemplo, a impossibilidade, a
todos os cidadãos, de um mínimo cultural crítico para o exercício da ação ética, bem como um mínimo
material, para a manutenção da dignidade.

10
b) De místico a inconsistente

“O bem supremo da alma (mente) é o


conhecimento de Deus, e a suprema
virtude da alma (mente) é conhecer a
Deus”.

Espinosa13

Espinosa foi considerado, por sua fortuna crítica, desde místico até
fatalista, passando por ateu de sistema, inconsistente e insensato14.
Ressalte-se desde já que estas posturas interpretativas não serão
abordadas nem adotadas na presente dissertação. Há leituras contemporâneas que,
recorrendo exclusivamente aos textos espinosanos em seu todo, entendem de outra maneira
os conceitos do autor. Isto significa a reformulação da interpretação da obra, bem como
dos conceitos atribuídos ao autor como sendo seus, mas que, na verdade, vêm de outros
sistemas filosóficos. Um exemplo significativo é o referente ao conceito de liberdade na
obra do autor, como será analisado em capítulo específico.
Como não seria místico um autor que identifica o homem a uma
parte da natureza que, por meio de uma intuição intelectual de Deus, pode conhecê-lo15?

13
Espinosa. Ética. Parte IV. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho. Coleção Os Pensadores. São Paulo,
Abril Cultural, 1973, p. 248, proposição XXVIII. O termo “mente”, entre parênteses, não foi adotado pelo
tradutor. Este termo, em vez da expressão “alma”, dá maior precisão à proposição, conforme assinalou
Marilena Chaui em curso proferido no 1º semestre de 2003, na FFLCH, na disciplina Filosofia Moderna III,
cujo tema foi a análise dos conceitos de servidão e liberdade na Parte IV da Ética de Espinosa. O termo
latino, segundo a autora, para alma, é anima. Espinosa utiliza, entretanto, o termo mens, isto é, em uma
tradução mais precisa, mente.
14
Marilena Chaui. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol. I: imanência. São Paulo, ed.
Cia. das Letras, 1999, principalmente a Introdução, na qual a autora procura dar cor às várias correntes
interpretativas da obra do filósofo.
15
Espinosa. Ética. Parte IV. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho. Coleção Os Pensadores. São Paulo,
Abril Cultural, 1973, p. 248, proposição XXVIII, em que o autor diz, como assinalado na epígrafe deste
subcapítulo: “O bem supremo da alma (mente) é o conhecimento de Deus, e a suprema virtude da alma
(mente) é conhecer a Deus”.
Ainda sobre o tema Espinosa místico, que o leitor se reporte a Ética, Parte V. Tradução de Antônio Simões.
Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 293 e 294, especialmente às Proposições XV e
XVI, em que o autor diz, respectivamente: “Aquele que se compreende a si mesmo e às suas afecções
distintamente, ama a Deus, e tanto mais quanto mais compreende a si e às suas afecções; Este amor para
com Deus deve ocupar a alma acima de tudo”.
O ponto que importa assinalar nesta introdução é o seguinte: a “religião” espinosana explicitada nestas
proposições não significa que Espinosa seja um místico. Na verdade, o conceito de substância – que é o
conceito de Deus em Espinosa – está muito longe de ser algo místico no sentido comum do termo. Na
verdade, não há nenhuma semelhança entre o conceito de Deus em Espinosa e aquele que vem à mente do

11
Como não seria fatalista16 – no sentido de um sistema filosófico
que impossibilita a liberdade humana como livre-arbítrio – um autor que concebe o homem
como modo finito da substância absolutamente infinita – ou seja, Deus – cuja existência se
dá pela potência mesma de Deus e se dá em Deus? Não seria cada humano apenas uma
gota no oceano da substância, algo que não possui nenhuma singularidade, nenhuma
realidade? Não estaria Espinosa próximo de Leibniz, em cujo sistema filosófico tudo o que
ocorre já estava previsto na mente de Deus, por um princípio de razão suficiente, que faz
deste mundo o melhor dos mundos possíveis17?
Como não seria ateu de sistema um filósofo em cuja obra Deus não
é entendido como um Deus (numeral cardinal) transcendente à criação que, por sua
vontade infinita, escolhe criar o mundo e todas as coisas, mas, em vez disso, se identifica a
uma substância em que tudo se dá por meio da causa eficiente imanente18 de sua potência?
Ou seja, para a tradição judaico-cristã, conceber Deus como imanente e não como
transcendente, por meio de um método geométrico – como é o caso da Ética –, é conceber
um sistema filosófico por princípio ateísta. De fato, Deus, na tradição, pode ser entendido
como um ser com características humanas exponenciadas. Um Ser infinitamente bom e
poderoso que, por sua vontade livre, cria, do nada, o mundo e tudo o que existe.

leitor judaico-cristão. Este assunto será retomado e aprofundado no Capítulo referente ao conceito de Deus
em Espinosa.
16
A idéia de um fatalismo em Espinosa vem da afirmação segundo a qual tudo o que há – isto é, o real –
existe apenas e tão-somente por uma necessidade imanente da substância. Assim, a questão relevante é: como
se dá a liberdade humana? Diz Espinosa na Ética, Parte IV. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho.
Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 233: “mostramos, no apêndice da Parte I, que a
natureza não age em vista de um fim. É que, aquele Ente eterno ou infinito a que chamamos Deus ou
Natureza age em virtude da mesma necessidade pela qual existe”.
Que o leitor se reporte, também, à carta 21, de Espinosa a Blyenbergh (Espinosa, Correspondência, Tradução
de Marilena Chaui, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, p. 387, 388), em que o autor diz:
“Por exemplo, se a natureza de Deus é conhecida por nós, afirmar que Deus existe decorre necessariamente
de nossa natureza, como decorre da natureza do triângulo que seus ângulos sejam iguais a dois retos. E
assim nunca somos tão ou mais livres do que quando afirmamos tais coisas dessa maneira. Como essa
necessidade nada mais é do que o decreto de Deus (...), podemos, pois, compreender desse modo como
agimos livremente e como somos causa de uma coisa, não obstante agirmos necessariamente segundo o
decreto de Deus”.
Há muitas outras passagens em que se coloca em xeque a noção de liberdade como livre-arbítrio, isto é,
como a afirmação de uma vontade imperiosa e absoluta que decide entre possíveis pelo seu poder de escolha.
A questão que se coloca ao leitor é: se não há liberdade como livre-arbítrio, em que consiste a noção de
liberdade para o autor? Ver-se-á no momento oportuno que esta noção não implica fatalismo.
17
Aliás, o Cândido, de Voltaire, tem como alvo explícito o sistema leibniziano. O otimismo de Cândido,
mesmo depois dos reveses que sofre, é a crítica ferina de Voltaire à idéia de que o mundo, pelo princípio de
razão suficiente, é o melhor dos mundos possíveis.
18
Este conceito será retomado e seu sentido será explicitado.

12
Como não seria inconsistente um autor que, por um lado, escreve
uma Ética more geometrico em que a necessidade de tudo o que existe é demonstrada19, e,
ao mesmo tempo, concebe uma obra política como o Tratado Teológico-Político? A razão
da inconsistência seria a seguinte: como pensar o necessário (como aquilo que não pode ser
de outro modo, isto é, o que é conseqüência das leis necessárias da natureza imanente de
Deus) no campo da política? Não seria isto a anulação da possibilidade da ação e,
conseqüentemente, a anulação da política? Como explicar a singularidade dos corpos
políticos formados no decorrer da história se não há senão necessidade advinda dos
decretos da substância? Espinosa não deixa de considerar a história como algo que existe
pelo resultado da ação humana, conforme se entende de uma leitura de suas obras políticas
(Tratado Teológico-Político, Tratado-Político, bem como, segundo alguns
comentadores20, a Ética). As rédeas da ação política não seriam, assim, senão o
aparecimento do que já estava previsto na mente de Deus, isto é, a realização do destino,
como no caso dos deuses que já haviam desenhado o destino de todos os cidadãos nas
Pólis gregas?
No Tratado Teológico-político o autor propõe, entre outras teses
exóticas, que o conhecimento filosófico não tem nenhuma relação com o conhecimento das
escrituras – este se deu por revelação e, portanto, por imagens -, enquanto o conhecimento

19
A expressão “demonstrada”, aqui, é de crucial importância. De fato, demonstrar significa explicitar o
objeto sob investigação de modo indubitável, no sentido matemático do termo, explicitando sua causa. Com
efeito, conhecer é conhecer pela causa. A causa, neste caso, é a causa eficiente que gera o efeito. No exemplo
do círculo, o que se tem é que a causa do círculo é um segmento de reta que gira ao entorno de um ponto e
gera o círculo. A inconsistência que se quer explicitar neste ponto é a seguinte: como articular a necessidade
do more geometrico da Ética com a natureza de tratado de uma das obras políticas, como é o caso do Tratado
Teológico-político? ( O Tratado Político, como se constatará em momento oportuno, é uma obra em que o
autor procura demonstrar a gênese do corpo político da mesma maneira que demonstram os matemáticos que
os ângulos internos de um triângulo retângulo equivalem a dois retos. Porém, não com base em devaneios –
sátiras e utopias- , mas a partir da experiência). De fato, o tratado é uma obra que versa sobre a experiência.
Se tudo é necessário, no sentido da Ética, como é possível a política como lugar de transformação por meio
da ação humana com vistas a projetos coletivos? Se tudo é necessário, porque se dá na imanência de Deus, de
que liberdade se trata ao se falar de ética e de política? Espinosa, é claro, trabalha com um conceito de
liberdade que difere do conceito da tradição. A leitura da obra de Espinosa com as lentes da tradição, isto é,
com os conceitos da tradição, é, sempre, uma leitura equivocada. Quanto a este ponto, é interessante e
esclarecedora a seguinte consideração de Marilena Chaui (Marilena Chaui. Entrevista. In D.O. Leitura,
Publicação cultural da Imprensa Oficial do Estado. São Paulo, ano 19, nº 2, fevereiro de 2001, p.48) : “Via de
regra (...), Espinosa costume ser lido como certos antropólogos costumavam ver os índios: pela falta. Ou
seja, assim como os índios eram os que não tinham Estado, não tinham mercado, não tinham escrita, assim,
também, em Espinosa, não havia liberdade, não havia seres individuais reais, não havia modernidade, não
havia coerência, etc. . Vários antropólogos, porém, mostraram que a ausência de mercado, Estado, escrita
não é algo “faltando” nas sociedades indígenas e sim exprimem a decisão positiva dessas sociedades de
impedir que tais instituições existam; não lhes falta nada, elas são contra a que tais instituições existam.
Procurei ler Espinosa dessa maneira também.”
20
A referência é, principalmente, a quatro comentadores: Marilena Chaui, Fernando Dias Andrade, Gilles
Deleuze e Etienne Balibar.

13
filosófico é racional, se dá pela luz natural. Do mesmo modo, como não seria
inconsistente, por um lado, a Ética more geometrico e, por outro, o Tratado Político, obra
em que o autor, entre outras teses, concebe o direito natural não como algo dado pela razão
– como em Locke21 - ou pelos deuses – como na Antígona22, na peça clássica de Sófocles ,
mas como a capacidade dos modos da substância – entre eles o homem, como conatus
corpo-mente – para perseverarem na existência? Como não seria inconsistente um autor em
cujo pensamento se diz que, estabelecida a sociedade civil, não se extingue o direito
natural dos cidadãos, e, ainda, afirma que a sociedade civil apenas justifica sua existência
se for um mal menor em relação ao estado de natureza no que tange ao critério do
perseverar no ser, por parte dos cidadãos23? Como não seria inconsistente um autor que
tem, por um lado, uma obra ética cujo primeiro livro trata de Deus e tem, por outro lado,
uma obra política que parece contradizer o "fatalismo" empregado em sua Ética? Isto, na
medida mesma em que estabelece conceitos como os de corpo político, história dos
homens, etc.. Ou, de modo mais claro: como compatibilizar o necessário – como aquilo
que não pode ser de outra maneira, como as conseqüências da causalidade imanente da
Substância – com as ações humanas – que se dão, segundo a tradição filosófica, no campo
do possível, do contingente? Ver-se-á que a recusa, por Espinosa, da noção de liberdade
como império da vontade sobre uma natureza que se distancia do sujeito não representa um
fatalismo, mas uma reformulação do conceito de liberdade segundo parâmetros diversos
dos presentes na tradição filosófica.
Finalmente, como não seria insensato um autor que, à revelia de
Hobbes – que tinha preferência explícita pela monarquia -, estabelece a democracia como o
mais natural dos regimes políticos? Pelas palavras do autor: “Se preferi falar dele [do
Estado Democrático] em vez de falar dos outros, é porque me pareceu o mais natural e o
que mais se aproxima da liberdade que a natureza reconhece a cada um. Em democracia,
com efeito, ninguém transfere o seu direito natural para outrem a ponto de este nunca
mais precisar de o consultar; transfere-o, sim, para a maioria do todo social, de que ele

21
John Locke. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Tradução de Julio Fischer, São Paulo, ed. Martins
Fontes, 1998, p. 381 a 394.
22
Sófocles. Antígona. Tradução de Donaldo Schüler. São Paulo. Ed. L&PM, 1999.
23
Espinosa, Correspondência, Tradução de Marilena Chaui, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril
Cultural, p.398, especialmente a carta 50, de Espinosa a Jarig Jelles, de 02 de junho de 1674, em que o autor
diz: “Tu me perguntas qual é a diferença entre a concepção política de Hobbes e a minha. Respondo-te: a
diferença consiste em que mantenho sempre o direito natural e que considero que o magistrado supremo, em
qualquer cidade, só tem direito sobre os súditos na medida em que seu poder for superior ao deles; coisa que
sempre ocorre no estado natural”.

14
próprio faz parte e, nessa medida, todos continuam iguais , tal como acontecia
anteriormente no estado de natureza.”24
Portanto, trata-se de entender Espinosa como um autor do século
XVII que apresenta um contradiscurso cujo alvo é a tradição – a de seu tempo, bem como a
antiga. Um dos pontos centrais desse contradiscurso, que será o tema de partida e de
chegada desta dissertação, é o conceito de democracia na obra do autor. Para isso, em
função da ontologia ou da metafísica de Espinosa e de sua relação com seu pensamento
político – na leitura pela qual se optou na presente dissertação -, será, muitas vezes,
importante que se faça incursões nessas áreas para que o corpo da obra do autor não pareça
mutilado, bem como esta dissertação não reste incoerente. Em função de ser o tema central
da dissertação – no sentido de fio condutor – o conceito de democracia, dever-se-á tocar
não tangencialmente, mas verticalmente, nos conceitos de direito natural, direito civil e de
liberdade na obra de Espinosa. São esses temas – o conceito de direito natural, direito civil,
bem como o conceito de liberdade – fundamentais para que se tenha claro o conceito de
democracia no autor. Democracia e direito são conceitos sobrepostos. Direito civil e direito
natural também o são. Por fim, liberdade como necessidade da natureza do indivíduo, ou
melhor, como realização plena da natureza do indivíduo e conatus como direito se ligam
umbilicalmente.
Em uma palavra: para se entender a democracia e o direito em
Espinosa, deve-se entender o direito natural como potência do sujeito para perseverar no
ser, bem como o direito civil como potência coletiva do indivíduo coletivo – expressão da
multitudo. E esta potência coletiva apenas se realiza plenamente na democracia.
Em poucas palavras, como é de bom tom a uma introdução, a
identificação entre direito e potência ocorre exatamente pela razão de ser a natureza
humana uma modificação de Deus. Ou seja, como se verá, cada homem de carne e osso é
um modo finito da substância absolutamente infinita, isto é, é uma modificação de Deus.
Cada indivíduo é um modo finito que exprime25 dois atributos divinos, quais sejam, o

24
Espinosa. Tratado Teológico-político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. Lisboa, ed. Imprensa Nacional –
casa da moeda, 1988, p. 315.
25
A palavra exprime é, aqui, fundamental. Com efeito, sendo Deus a substância única, na qual tudo se dá por
causalidade imanente, sem nenhum finalismo nem transcendência – Espinosa dirá que o finalismo é produto
de conhecimento imaginativo - , não se pode falar no ser humano como parte de Deus. Parte implica divisão,
o que não é o caso em se tratando da substância. Se o homem fosse parte da substância (em contraposição a
parte na substância), ele seria também substância, como quer Descartes, o que para Espinosa é absurdo.
Absurdo porque a existência de duas substâncias implicaria que uma põe limites à outra, o que é,
logicamente, uma quimera quanto ao conceito de infinitude ontológica do ser. Em Descartes, o homem é a

15
pensamento e a extensão. De fato, cada homem pensa e tem consciência de sua
corporeidade, de sua extensão. Sendo Deus a potência que cria sua essência e existência e
sendo cada homem um modo dessa substância, isto é, uma modificação de Deus e em
Deus, o direito não é senão essa potência humana para perseverar no ser.
A democracia, por sua vez, é a forma política em que o humano se
realiza de maneira mais efetiva. De fato, apenas na democracia cada modo humano finito
da substância exerce sua natureza de potência para perseverar no ser de modo total, isto é,
abrangente. De fato, todos fazem a lei civil, todos governam e são governados, isto é,
elaboram a lei (governam) que será o limite do poder coletivo (são governados). Há, neste
momento, o conatus coletivo ou multitudo. Por esta razão a democracia é o mais natural
dos regimes políticos: ela permite a máxima realização do indivíduo na medida mesma que
permite a realização do desejo de governar e de não ser governado, que é, para Espinosa, o
mais natural dos desejos. Democracia e realização da natureza humana de maneira
completa são idéias que se ligam essencialmente uma à outra.
Assim, com o esclarecimento desses conceitos, sob o fio condutor da
democracia em Espinosa, buscar-se-á explicitar, em alguma medida, a proposta
revolucionária do autor tanto para o seu tempo quanto para o hiper-presente sem
consciência histórica da contemporaneidade26. Para a leitura da obra de Espinosa,
principalmente sua vertente política – já que o fio condutor será o conceito de democracia -
, procurar-se-á ler o autor não “pela falta”27, mas pelo que sua obra apresenta de positivo,
entendendo-se por positivo os conceitos reformulados pelo autor, fundamentais para que a
leitura da obra não seja desigual ou deformada. Nessa medida, o Espinosa estudado não
será o panteísta, nem mesmo o inconsistente, bem como não será o ateu de sistema e o
fatalista.

união de duas substâncias – a coisa extensa e a coisa pensante -, de tal modo que se deve, então, explicar
como coisas distintas influenciam uma à outra. Para Descartes, a união substancial se daria na glândula
pineal. Em Espinosa, não há que se falar em mais de uma substância, bem como não há que se falar em partes
da substância. O que há, rigorosamente , é a expressão da substância em modos infinitos e finitos. O ser
humano é, portanto, a expressão de dois dos infinitos atributos divinos, quais sejam, o pensamento e a
extensão. Esta diferença entre ser parte e expressar algo é de fundamental importância para que se tenha claro
o conceito de imanência em Espinosa. Por fim, resta esclarecer que expressar algo quer dizer o mesmo que
“ser parte em”, em contraposição a “ser parte de”.
26
A referência é ao historiador Eric Hobsbawm, que, em entrevista a uma revista nacional, disse ser o tempo
histórico contemporâneo um hiper-presente. Daí a perda da historicidade, ou seja, da consciência de ser-na-
história por parte do sujeito contemporâneo.
27
Para um aprofundamento deste ponto, conferir nota n º 19.

16
Será, em vez disso, o autor que reformula conceitos da tradição de
tal sorte que apenas tendo em mãos os conceitos reformulados é possível entender a obra, o
que implica certa distância de algumas interpretações feitas por sua fortuna crítica.
Espinosa, como se sabe por sua biografia, foi polidor de lentes.
Grandes pensadores utilizaram suas lentes para tarefas cotidianas, entre eles Leibniz. A
metáfora de uma obra que é lente para entender o real se articula com a vida de um autor
que, para sobreviver, poliu lentes. É interessante pensar que as lentes concretas, polidas por
Espinosa, talvez tenham se perdido pela ação do tempo e que, não obstante esta perda,
reste a lente que foi polida na solidão dos pequenos quartos pelos quais Espinosa passou na
Holanda do dezessete: sua obra. Foi a partir do estudo desta lente para o espírito – a obra
de Espinosa - que Bergson, filósofo que viveu no século XX, disse a propósito da história
das idéias que somente haveria duas filosofias: a dele (Bergson) e a de Espinosa.

17
28
2.Esboço biográfico

“Spinoza´s God was everywhere,


could not be spoken to, did not
respond if prayed to, was very much
in every particle of the universe,
without beginning and without end.
Buried and unburied, Jewish and not,
Portuguese but not really, Dutch but
not quite, Spinoza belonged nowhere
and everywhere”

Antonio Damasio29

Baruch Espinosa30 nasceu em Amsterdã, Holanda, em 1632, no dia


24 de novembro. Filho de uma família de comerciantes ricos, cuja origem mais remota é
espanhola (e portuguesa, menos remotamente), nasceu em um bairro judeu da cidade de
Amsterdã.
O lugar em que Espinosa e sua família viveram era um bairro de ex-
marranos – ou ex-cristãos-novos -, isto é, judeus que praticavam o cristianismo em
Portugal e Espanha apenas como forma de não serem perseguidos pelos adeptos do
cristianismo. Às escuras, cultivavam a religião judaica.
28
Para esta breve biografia, foram utilizadas sobretudo três obras: 1) Marilena Chaui. Espinosa: uma
filosofia da liberdade. São Paulo, ed. Moderna, 1995; 2) Gilles Deleuze. Espinosa: filosofia prática.
Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo, ed. Escuta, 2002. Há uma edição portuguesa, mais
antiga, com menos capítulos, desta mesma obra de Deleuze cujo título é Espinosa e os signos. Tradução de
Abílio Ferreira, ed. Rés, Porto, Portugal, sem data; 3) Antonio Damasio. Looking for Spinoza: joy, sorrow
and the feeling brain. Harcourt, Inc. . Orlando, Austin, New York, San Diego, Toronto, London, 2003.
29
Antonio Damasio. Looking for Spinoza: joy, sorrow and the feeling brain. Harcourt, Inc. . Orlando,
Austin, New York, San Diego, Toronto, London, 2003, p.22. Uma possível tradução para a epígrafe é a
seguinte: “O Deus espinosano estava em todo lugar, com ele não se podia falar, não respondia caso a ele
orassem, estava em cada parte do universo, sem começo nem fim. Enterrado e desenterrado, judeu e não-
judeu, português, mas não realmente, holandês, mas não precisamente, Espinosa pertenceu a lugar nenhum e
a todo lugar”.
30
Quanto à correta grafia do nome de Espinosa, vale o seguinte comentário: Segundo Marilena Chaui, na
obra citada em nota anterior, o nome de Espinosa sempre foi grafado de diversas maneiras em vários
documentos oficiais da comunidade judaica durante o século XVII. Assim, o nome aparece ora como
“Espinoza”, ora como “Espinosa”, bem como “Spinoza”. O autor, em suas obras escritas em latim, utilizava a
grafia “Benedictus de Spinoza”. Segundo Chaui, a convenção para o nome do autor na língua portuguesa é
“Espinosa”. Não obstante, na tradução de A Anomalia Selvagem, cujo autor é Antônio Negri (ed. 34), optou-
se por Spinoza. Nesta dissertação optou-se pela grafia “Espinosa”.

18
Na verdade, a peregrinação da família de Espinosa se dá em um
duplo movimento. Os judeus que viviam na Espanha - entre eles a família de Espinosa -,
no final do século XV, são obrigados a escolher entre a conversão forçada às práticas e
crenças cristãs ou ter todos os bens confiscados para a coroa espanhola. A família de
Espinosa foge para Portugal. Porém, este mesmo acontecimento manifesta-se em Portugal,
alguns anos depois. Da mesma maneira que na Espanha, os judeus que fugiram para
Portugal foram obrigados a escolher a conversão forçada ou o confisco de bens para a
coroa portuguesa.
Como afirma Marilena Chaui31, sobre a situação dos judeus
convertidos ao cristianismo de maneira forçada, “um fato ocorre em Portugal, diverso do
que se passara na Espanha: D. Manuel o Venturoso faz com que todos os judeus sejam
batizados antes mesmo que houvessem escolhido entre a expulsão ou a conversão. Numa
só noite, nas praias portuguesas, onde aguardavam barcos que os levariam para longe,
milhares de judeus foram “convertidos”. Tornaram-se cristãos-novos, na língua
portuguesa, e marranos, na língua castelhana. Forçados à nova fé, muitos, porém,
guardaram em segredo a antiga, sendo por isso perseguidos ininterruptamente em toda a
Península Ibérica.”
Apenas no século XVII a família de Espinosa migra para a Holanda.
A razão para esta ação é o fato de que, neste período, se intensificam as perseguições aos
cristãos-novos no intuito de lhes confiscar bens no território português. A Holanda se
apresenta, assim, como um local de novas perspectivas econômicas e como sendo uma
nação adepta de uma certa tolerância religiosa.
De fato, o século XVII holandês foi o chamado século de ouro. Nas
proximidades do último quartel do século XVI, com a união de Utrecht, nascem as Sete
Províncias do Norte. Trata-se de uma oligarquia republicana que constitui uma federação
de cidades e regiões, organizadas em Estados ou parlamentos provinciais, que, por sua vez,
são ajustados ao parlamento central, os chamados Estados Gerais. Neste órgão, há
membros de todas as províncias que são presididos pelo Grande Pensionário, um membro
eleito por todas as províncias.
As Sete Províncias viveram um período de apogeu econômico no
século XVII. A burguesia mercantil fundou, neste período, a Companhia das Índias
Orientais, bem como a Companhia das Índias Ocidentais. Inicia-se o avanço do império

31
Marilena Chaui. Espinosa: uma filosofia da liberdade, 2º ed. . São Paulo, ed. Moderna, 1995, p. 14.

19
Holandês de ultramar. Basta que se pense na presença da Holanda nos Estados Unidos da
América do Norte, na antiga Nova Amsterdã – hoje Nova York -, ou na presença
Holandesa no Brasil, em Pernambuco, bem como o fato de que as Sete Províncias do Norte
tiveram sua influência até mesmo no Japão, onde estabeleceram alguns postos comerciais.
Trata-se, em suma, de um século em que houve grande avanço nas
artes – vide a pintura de Rembrandt -, bem como de significativos avanços científicos –
vide as descobertas científicas dos irmãos Huygens na mecânica e na ótica, a invenção do
microscópio – por Leuweenhek, etc..

A infância de Espinosa na abastada família de comerciantes na qual


nasceu é pouco conhecida. Sabe-se, entretanto, que foi na infância que Espinosa teve
contato com os primeiros pensadores racionalistas que contestavam a visão judaico-cristã,
entre eles Abrhão Ibn Ezra, Maimônides e Leão Hebreu . Pode-se dizer, com Marilena
Chaui32, que este contato com um pensamento para além dos ensinamentos da sinagoga foi
decisivo para a radicalidade filosófica - e racional - do futuro Espinosa.

***

Espinosa se distancia tanto da família e dos negócios quanto da


religião judaica e de sua prática na Sinagoga. Na realidade, em função de suas idéias, foi
excomungado em 1656. Pode-se dizer que a Apologia que escrevera para justificar sua
saída foi o primeiro documento político produzido por Espinosa. Hoje este documento está
perdido. Sabe-se, entretanto, que houve, no documento, uma defesa da liberdade de
pensamento e de livre manifestação do pensamento. Aliás, este é o título do último capítulo
do Tratado Teológico-Político33: Onde se demonstra que num Estado livre é lícito a cada
um pensar o que quiser e dizer aquilo que pensa.
Espinosa muda-se de Amsterdã para Rijnsburg com o intuito de
encontrar um ambiente mais receptivo ao pensamento livre. É nesta cidade que escreve o
Breve Tratado e logo após – 1661 – o Tratado sobre a reforma do entendimento34,
inacabado. Esta obra se insere na tradição do século XVII de busca de um método para o

32
Ibid. p. 15.
33
Espinosa. Tratado Teológico-político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. Ed. Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, Portugal, 1988.
34
Sobre este título, conferir a nota 35.

20
conhecimento verdadeiro e certo. Basta que se verifique que o pensador mais influente do
XVII, René Descartes, desenvolveu não apenas suas Regras para direção do espírito –
espírito entendido como pensamento -, como também elaborou um Discurso do Método,
cujo objetivo era o de direcionar o mais corretamente possível o pensamento para o
conhecimento certo, indubitável, ou, para usar um termo caro a Descartes, para o
conhecimento claro e distinto. A razão para se buscar um método que orientasse de
maneira segura o pensamento se dá na medida em que, dadas as descobertas científico-
filosóficas segundo as quais a terra não mais era o centro do universo, seria necessário que
o lugar seguro para o pensamento fosse elaborado segundo a razão. O que ocorre neste
período é o que Hegel diz ser um dos pontos fundantes do pensamento moderno, a saber, a
destruição da idéia de cosmos. Não havendo mais o “lugar das coisas”, sendo o espaço
infinito, a questão que se coloca para os pensadores modernos consiste precisamente em
estabelecer o lugar seguro para o conhecimento. Portanto, não é por mero acaso que os
pensadores da filosofia moderna tenham como preocupação central em suas obras, no que
se refere à teoria do conhecimento, o estabelecimento de um método para conhecer que
estabelecesse 1) o primeiro ponto a partir do qual se pode conhecer e 2) as regras para que
o encadeamento do conhecimento se faça de maneira clara e distinta. É neste contexto
histórico que surge a necessidade do método mais adequado para conhecer. Espinosa,
como se sabe, a este respeito, escreveu o Tratado da correção do intelecto35 , na mesma
linha das Regras para direção do espírito, de Descartes.
Em 1663, Espinosa escreve os Princípios da filosofia de Descartes,
junto com os Pensamentos Metafísicos. Retira-se de Rijnsburg e instala-se em Voorsburg,
localizada nas proximidades de Haia. Após, instala-se em Haia, local em que inicia a
redação da Ética. Em 1665, interrompe a redação da Ética. Passa a tratar de modo direto de
questões políticas. Inicia a redação do Tratado Teológico-político, em que são levantadas
as seguintes questões: porque o povo é irracional? Por que se felicita com a escravidão, isto
é, por que deseja a escravidão em vez de desejar a liberdade? E, ainda mais: por que o
povo busca a escravidão pensando estar buscando a liberdade? Esta obra se insere em uma
tradição aberta por Etienne de La Boétie, com seu Discurso da Servidão Voluntária36. A

35
Espinosa. Tratado da correção do intelecto. Tradução e notas de Carlos Lopes de Mattos. São Paulo, Abril
Cultural, 1973. Alguns tradutores usam a expressam “emenda”, em vez de “correção”. A expressão
“emenda” tem um sentido próprio à medicina da época e significa cura. Portanto, é como se o intelecto
estivesse sob uma doença – que impediria o conhecimento certo – e que, por esta razão, devesse ser curado.
36
La Boétie. Discurso da Servidão Voluntária.4ª edição. Tradução de Laymert Garcia dos Santos. São
Paulo, ed. Brasiliense, 1999.

21
questão que La Boétie coloca é a seguinte: como pode haver tantos seres humanos em
regime de servidão a um tirano, se, naturalmente, o homem nasce livre e, do ponto de vista
quantitativo, está em maior número que o tirano e seu exército? A partir daí o autor
desenvolve o conceito de servidão voluntária, isto é, por uma série de causas, o homem é
culturalmente compelido a servir não porque o tirano o domine, mas porque ele quer,
voluntariamente, alienar sua liberdade.
A situação política da Holanda é delicada nas décadas de sessenta e
setenta do século dezessete. Dois partidos lutam pelo poder na ocasião. Por um lado, há o
Partido Orangista (monárquico), que busca um Estado centralizado. Por outro lado, há o
Partido Republicano (Partido dos Regentes), o qual busca uma economia liberal e uma
política menos centralizadora e de paz.
São as relações de Espinosa com o Partido Republicano, segundo
Deleuze37, que o deixam menos inquieto diante da delicada situação política. Quando os
irmão De Witt, em 1672, foram assassinados, e o partido Orangista tomou o poder,
Espinosa já não pode mais pensar em publicar a Ética. Houve, segundo Deleuze, uma
tentativa de publicação em Amsterdã – em 1675 – que o desencorajou da empreitada.
Em fevereiro de 1677, Espinosa morre. Uma de suas obras políticas
mais importantes, o Tratado Político, não foi completada. Significativamente, não o foi no
momento em que Espinosa trataria do regime político mais natural, segundo seu
entendimento: a democracia.
Para ele, a democracia seria o mais natural dos regimes políticos,
pois apenas na democracia a natureza humana - como modo finito da substância - poderia
se exercer de maneira completa: todos governam e são, ao mesmo tempo, governados. De
fato, apenas na democracia o ser humano - entendido como potência para perseverar no ser
- poderia realizar de maneira completa sua liberdade. E a liberdade, para Espinosa, não é
senão a realização máxima da natureza da coisa. No caso do humano, a realização do
desejo-direito-potência para perseverar na existência.
Com a morte precoce de Espinosa, aos 44 anos, os leitores foram
impossibilitados de compreender o ponto alto da filosofia política do autor com todos os
seus conceitos e desdobramentos. Mas isto não impede que possa ser elaborado um
conceito de democracia pela análise dos argumentos presentes em toda a obra.

37
Deleuze, Gilles. Espinosa e os signos. Tradução de Abílio Ferreira, ed. Rés, Porto, Portugal, sem data, p.
19.

22
Pode-se dizer que a vida de Espinosa foi dedicada à filosofia, à
liberdade de pensamento e à liberdade de expressão do pensamento. Assim, sua vida, isto
é, as ações praticadas durante sua existência, vão ao encontro do regime político por ele
entendido como o que mais realiza a natureza humana: a democracia.

23
3.O more geometrico: prescindível?

“Sei que tenho conhecimento da


verdadeira [filosofia]. Vós me
perguntais como eu o sei. Eu
responderei: da mesma maneira que
vós sabeis que os três ângulos
[internos] de um triângulo são iguais a
dois retos, e ninguém dirá que isto não
basta, por pouco que seu cérebro seja
são e que ele não sonhe com espíritos
impuros inspirando-nos idéias falsas
semelhantes às verdadeiras; pois o
verdadeiro é sua própria marca
[critério] e também aquela do falso.

Baruch Espinosa38

Um ponto que certamente assusta o leitor de Espinosa é o fato de


que algumas de suas obras foram escritas more geometrico demonstrata, isto é,
demonstradas à maneira dos geômetras. A Ética é o grande exemplo, escrita por meio de
axiomas, definições, proposições, demonstrações, escólios. Os Princípios da filosofia
cartesiana também foram escritos more geometrico. O Tratado Teológico-político, por ter
por alvo leitores diversos e por ter por objeto algo também diverso da Ética – entre outros
motivos -, não foi escrito ao modo dos geômetras. O Tratado-Político foi escrito por meio
de capítulos e parágrafos com o objetivo de demonstrar como se dão os regimes políticos e
em que medida a democracia se coloca como o mais natural dos regimes políticos. O

38
Carta 76 de Espinosa a Albert Burgh. Retirado de Marcos André Gleizer. Verdade e certeza em Espinosa.
Cadernos Espinosanos (III). Seção resumo de Teses. Tese de doutorado – Nouveau regime; orient. Jean –
Marie Beyssade. Université de Paris IV – Sorbonne, 19 de março de 1992, p. 79. A expressão “internos” ,
entre colchetes, é minha. Pode haver ambigüidade no que se refere a que ângulos do triângulo se está
referindo, isto é, se aos ângulos internos ou se aos ângulos externos. Outra tradução possível para este excerto
é a seguinte: “Queres raciocinar e, entretanto, me perguntas como sei que minha filosofia é a melhor dentre
todas as que foram, são, e serão ensinadas no mundo – o que, na verdade, com muito mais direito, posso eu
te perguntar. Com efeito, não pretendo ter encontrado a melhor filosofia, mas sei que conheço a verdadeira.
Se me perguntares como sei, responder-te-ei: do mesmo modo que sabes que os três ângulos de um triângulo
são iguais a dois retos, e ninguém dirá não ser isso suficiente, a menos que não tenha o espírito são, ou que
sonhe com espíritos imundos, que nos inspirariam idéias falsas similares às verdadeiras, pois o verdadeiro é
índice de si mesmo e do falso.” (Na contracapa dos Cadernos Espinosanos).

24
Tratado Teológico-político, por sua vez, tem objetivo diverso e não visa a demostrar algo,
mas mostrar o que ocorre no plano da experiência.
A questão relevante, neste ponto, é a seguinte: o more geometrico é
imprescindível para que os conceitos espinosanos sejam entendidos, para que se
sustentem? Ou, por outra: o método geométrico é apenas forma literária ou, ao invés, é da
necessidade intrínseca da própria substância, isto é, Deus39?
Alguns autores40 pensam que a escolha do método geométrico para
algumas obras se dá em função um motivo principal: o seu valor didático-pedagógico.
Trata-se de entender que o modo geométrico de demonstração, para o leitor do XVII, tinha
uma função importante: convencer qualquer leitor dotado de razão dos argumentos
expostos ao modo dos geômetras. Assim, “Há, portanto, um forte motivo filosófico para a
adoção do método axiomático. O método permanece uma forma de apresentação no
sentido em que as conclusões de Espinosa poderiam ter sido apresentadas de inúmeras
outras maneiras. Mas, para mostrar que um conjunto de conclusões é implicado por
premissas que são amplamente aceitas, embora isto não requeira um método axiomático,
requer argumento dedutivo. (...) E se se quer extrair conclusões de um conjunto de
premissas, o método axiomático seguramente se recomenda como uma das formas mais
perspícuas e concisas.”41
Para outro autor42, a forma geométrica é apenas uma entre outras
formas literárias possíveis para a escrita de Espinosa, principalmente na Ética. Os
argumentos são os seguintes: primeiro, Espinosa escreve os Princípios da Filosofia
Cartesiana ao modo dos geômetras, não obstante discordar de seu conteúdo43. Segundo, o
Breve Tratado, obra em que há alguns elementos da Ética, não foi escrito more
geometrico. Por fim, há outras obras de Espinosa – como as obras estritamente políticas –

39
Quanto ao conceito de Deus em Espinosa, fundamental para que se entenda com precisão seus conceitos
políticos, ver o capítulo subseqüente, intitulado O Deus espinosano: a substância absolutamente infinita; a
liberdade necessária.
40
Luiz Roberto Takayama. Problemas concernentes à ordem geométrica da Ética. Cadernos Espinosanos
(III). São Paulo, 1998, p. 31-47.
41
Ibid. , ao citar Carson Mark, p. 43.
42
Ibid. Início do artigo.
43
Apenas para que o leitor tenha uma idéia do hiato existente entre Descartes e Espinosa, para Descartes, há
duas substâncias: a res cogitans – puro pensamento – e a res extensa – pura extensão. Daí a questão que deve
ser resolvida por Descartes, qual seja, como conceber que o pensamento humano estabeleça o movimento do
corpo humano, visto que são substâncias completamente diferentes? Para Descartes, haveria um locus em que
isto ocorreria: a glândula pineal. Para Espinosa, em vez de duas substâncias, há apenas uma – Deus – em que
tudo se dá. Sendo a substância ontologicamente infinita, não poderia haver duas substâncias, porque absurdo.
Ou seja, a infinidade de um ser – por isso o termo ontologicamente – implica a existência apenas e tão-
somente desse ser. Daí que para Espinosa apenas haja uma – numeral cardinal – substância.

25
que são escritas de outra maneira que não a geométrica – com exceção da obra intitulada
Tratado-político, que é uma demonstração de como a política se dá na prática dos homens.
Porém, sobre este ponto, Guéroult44 pensa de modo diverso. Para
este autor, a definição das coisas está essencialmente ligada à definição nominal. Se as
definições são verdadeiras – as definições de palavras - , elas, para Guéroult, são, no
momento mesmo em que são verdadeiras, definições das coisas. Ou seja: o modo
geométrico é o modo de escrita que, ao definir nominalmente, define o em-si das coisas.
Há uma relação entre as meras definições e as coisas de tal sorte que o modo geométrico é
o vínculo. Sendo o intelecto humano um modo finito que é expressão do atributo divino
pensamento (o modo é, também, uma extensão finita que é expressão do atributo divino
extensão), as coisas que este pensamento conhece refletem, por assim dizer, as coisas
mesmas. Nessa medida o modo geométrico é aquele que traz à luz o vínculo entre
definição ao modo dos geômetras e a coisa.
Fernando Dias Andrade45 desenvolve um interessante argumento
para mostrar que o more geometrico é fundamental para a escrita espinosana. Trata-se de
uma interpretação que passa pela consideração das maneiras de conhecimento segundo
Espinosa. Para Espinosa, o conhecimento pode ser de três gêneros. Há o conhecimento
imaginativo, que consiste no conjunto de imagens formadas pela afecção – ou afeto, em
outra tradução possível - que os corpos produzem na mente. Há o conhecimento
discursivo, que é aquele que se dá pela racionalidade, isto é, pelo uso da luz natural.
Finalmente, há o conhecimento por intuição, próprio do sábio – o amor intelectual de
Deus, felicidade suprema alcançada por poucos, segundo Espinosa. Um exemplo pode
aclarar este ponto, ou seja, a diferença entre o conhecimento do segundo gênero e o
conhecimento intuitivo. A proporção 1 está para 2 assim como 3 está para um número X
pode ser objeto de um saber intuitivo. Por intuição a mente racionalmente preparada – isto
é, a que utiliza a luz natural – sabe que o valor de X nesta proporção é 6. Pode-se chegar a
este resultado pelo segundo modo de conhecimento, qual seja, o discursivo-racional.
Multiplicando 1 por X e igualando esta parte da equação à multiplicação de 2 por 3 obter-
se-á o resultado de X, isto é, 6. Porém, neste exemplo, Espinosa quer ressaltar que a

44
Maurício C. Keinert. A ordem geométrica e a ordem do mundo. Cadernos Espinosanos (III). São Paulo,
Discurso editorial, 1998, p. 49-57. Trata-se de um ponto do artigo em que Guéroult é movimentado para a
tese segundo a qual a ordem geométrica é a ordem mesma do mundo.
45
Fernando Dias Andrade. Em que sentido se pode afirmar que a geometria da Ética é apropriada, adequada
e necessária ao seu conteúdo? Cadernos Espinosanos (III). São Paulo, Discurso editorial, 1998,
principalmente p. 15.

26
intuição intelectual que a mente apresenta no momento em que, sem discurso algum,
entende ou intui que o valor de X é 6 na proporção é o conhecimento do terceiro gênero,
isto é, o conhecimento intelectual. Este exemplo, segundo o autor, explicita de que maneira
a mente pode conhecer a realidade toda de maneira adequada: de modo intuitivo ou
discursivo-racional.
Pois bem, feito este esclarecimento, trata-se de entender por onde
passa o argumento de Andrade.
Ora, dado o fato de que o conhecimento imaginativo é inadequado e
que os dois outros – racional e intuitivo – são adequados, e considerando-se que o
conhecimento do homem que utiliza a luz natural se dá pelo discurso – é o conhecimento
discursivo-racional -, tem-se que se todos se utilizassem do conhecimento intuitivo,
bastariam as definições e os axiomas para a plena compreensão do descrito more
geometrico. Com efeito, não seriam necessárias as demonstrações das proposições que se
dão com base nas definições e axiomas. Por estar, em geral, no gênero discursivo –
conhecimento pela razão -, é necessário, principalmente para o leitor da Ética, que tudo se
dê more geometrico para que, por intermédio do conhecimento discursivo, o homem
chegue ao conhecimento indubitável das coisas por meio do conhecimento da gênese
dessas coisas. Caso cada homem fosse sábio, como se disse, seria preciso apenas o
conhecimento intuitivo, daí tão-somente as definições e os axiomas bastariam. Porém,
como nem todos são sábios – não conhecem por intuição, não têm intuição intelectual de
Deus -, é preciso que, para ter acesso à realidade das coisas, sejam utilizadas
demonstrações e escólios que dêem o caráter discursivo às proposições, as quais, por sua
vez, se dão a partir dos axiomas e das definições.
Há outro autor46 que tem posição parecida no que se refere a este
ponto, isto é, à necessidade do modo geométrico para a exposição das idéias verdadeiras.
Diz o autor que Espinosa recusa o realismo epistemológico. O realismo epistemológico
defende a tese segundo a qual há uma realidade que é indubitável para aquele que conhece.
Trata-se de uma tese diametralmente oposta àquela segundo a qual não há nenhuma certeza
a respeito do mundo exterior na medida mesma em que tudo se dá na imanência da
consciência do sujeito que conhece. Dada esta distância entre um eu que conhece e o
mundo, não se pode dar por certa a “realidade” - assim, entre aspas – porque esta é sempre

46
Marcos André Gleizer. Verdade e certeza em Espinosa. Cadernos Espinosanos (III). Seção resumo de
Teses. Tese de doutorado – Nouveau regime; orient. Jean –Marie Beyssade. Université de Paris IV –
Sorbonne, 19 de março de 1992.

27
um para-si. Em uma palavra: o sujeito que conhece não teria acesso à “realidade”, ou,
mais precisamente, não faz sentido que se fale em realidade, mas apenas em “realidade”,
isto é, em para-si.
Espinosa, por sua vez, não é nem realista (não partilha da tese
segundo a qual há uma realidade das coisas), nem idealista (não partilha da tese segundo a
qual apenas o que está na idéia, na consciência do sujeito que conhece tem, por assim
dizer, realidade).
Espinosa seria um racionalista. Isto significa que o autor nega a tese
do realismo epistemológico e partilha da tese segundo a qual a realidade não é o critério de
verdade de nossas idéias. A definição perfeita, para Espinosa, é genética. Ou seja, ela
explicita a gênese do definido – sua causa – ao fornecer sua regra de construção. A partir
da regra de construção da coisa pode-se deduzir, segundo esta interpretação, todas as suas
propriedades. Ou, como diz Gleizer, “A verdade de uma idéia matemática está
inteiramente compreendida na coerência da operação racional pela qual construímos o
conceito do objeto, construção que coincide, neste caso, com aquela do objeto do
conceito.”47
Ou, para argumentar com Espinosa, “Sei que tenho conhecimento da
verdadeira [filosofia]. Vós me perguntais como eu o sei. Eu responderei: da mesma
maneira que vós sabeis que os três ângulos [internos] de um triângulo são iguais a dois
retos, e ninguém dirá que isto não basta, por pouco que seu cérebro seja são e que ele não
sonhe com espíritos impuros inspirando-nos idéias falsas semelhantes às verdadeiras; pois
o verdadeiro é sua própria marca [critério] e também aquela do falso.”48
Em outras palavras, o verdadeiro não tem seu critério como função
da realidade, isto é, não é a realidade que é critério da idéia verdadeira, mas é a idéia
verdadeira que é critério dela mesma e do falso. Simultaneamente, a idéia verdadeira é
critério da verdade da coisa da qual ela é idéia, seja esta coisa uma virtualidade – como as
idéias lógico-matemáticas -, seja esta coisa algo material, real no sentido de concreto – por
exemplo, a idéia da cadeira ou de outra pessoa que o sujeito que conhece tem em sua
mente.
A idéia geométrica tem a capacidade de revelar ao intelecto
(constituinte do modo finito da substância, expressão finita do atributo pensamento da

47
Ibid. p. 73.
48
Ibid. p. 79, ao citar a resposta de Espinosa a Albert Burgh em uma de suas cartas.

28
substância ou Deus) a força que o constitui. Sendo o intelecto algo que é expressão do
atributo pensamento, de Deus, ao pensar, o intelecto não é uma substância separada do que
pensa. Muito ao invés, “é, simultaneamente, o ato de ideação e o ideado, isto é,
reflexão”.49 O intelecto é, portanto, o atributo pensamento, enquanto modo, sofrendo uma
afecção do atributo extensão. Ou, ainda, o intelecto é um modo finito do atributo
pensamento sofrendo a afecção de outro modo – de outra extensão que não ele mesmo.
Ou, de maneira mais vertical: para Espinosa, o homem é modo da
substância por ser expressão de dois atributos – entre os infinitos em seu gênero de que se
compõe a substância. Tais atributos são a extensão e o pensamento. O pensamento, no
modo – em um indivíduo humano -, é idéia da idéia, isto é, reflexão. A extensão, no modo,
é a afecção, feita pela idéia, de seu corpo, ou seja, de sua parte extensa. Portanto, o homem,
como modo, tem idéia de sua extensão por uma afecção desta na idéia (pensamento) e tem
consciência da consciência ao ser idéia da idéia, isto é, ao ser a consciência que se toma
como objeto – daí re-flexão, flexão sobre si mesmo.
Sendo cada ser humano um modo finito da substância, isto é, uma
modificação da substância, o entendimento de alguma coisa por meio do intelecto finito é a
manifestação do modo infinito da substância – o entendimento infinito ou razão – no modo
finito. Este modo infinito, isto é, o entendimento infinito, por sua vez, é a expressão do
atributo pensamento, constituinte de Deus.
No momento em que o intelecto finito tem uma idéia adequada, ele a
tem porque é a expressão do modo infinito entendimento da substância. Este modo infinito,
por sua vez, é a expressão, ao mesmo tempo, do atributo pensamento da substância.
Ao pensar adequadamente, cada ser humano, como expressão da
substância, pensa como Deus e em Deus. E, vale lembrar, apenas se pensa adequadamente
por meio do conhecimento racional e por meio do conhecimento intuitivo, segundo
Espinosa. Este ponto será essencial para que se entenda, em capítulo à parte, a ação
virtuosa em Espinosa e sua relação como os afetos. Há, neste ponto também, um
rompimento em relação à tradição.
Vale citar a análise de Marilena Chaui sobre o tema da ordem
geométrica em Espinosa: “ “Ordine geometrico demonstrata” é uma ordem discursiva
adequada ao seu objeto e requerida necessariamente por ele. Ordem adequada não só

49
Thereza Christina Holl Cury. Bene Agere et Laetari: ontologia e antropologia na “Ética” de Espinosa.
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia da PUC-SP como exigência parcial para obtenção do título de
mestre. Orientador: Professor Dr. Oswaldo Giacoia Jr.. São Paulo, 1992, ao citar Marilena Chaui, p. 16.

29
porque é a forma exemplar de exposição da autonomia do intelecto como força inata
para o verdadeiro, mas também porque exprime sem lacuna a idéia adequada da própria
adequação, isto é, de “causa sive ratio”: a substância absolutamente infinita é causa de si
e não carece do conceito de outra coisa para ser concebida; é causa adequada em sentido
pleno, infinitude atual ou eterna, auto-suficiente e autodeterminada que põe sua própria
inteligibilidade porque é “ratio” de si mesma quanto à essência, à potência e à existência.
A substância absolutamente infinita é “philosophice” o que a quantidade infinita é
“mathematice”. Ordem necessária não só porque oferece a gênese necessária de seu
objeto e porque a ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e conexão das
coisas, mas também porque afirma a “ratio” entre o infinito e o finito, a passagem
contínua do primeiro ao segundo e deste àquele, descrevendo a produção real da
realidade e assegurando que o nosso intelecto conhece o mesmo e da mesma maneira que
o intelecto infinito de Deus. Por isso é ordem livre: instituindo seus conceitos, é
exatamente como seu objeto, ou seja, como ele, ela também não é determinada por nada
que lhe seja extrínseco, mas apenas pela necessidade imanente que gera, ordena, conecta
e comunica todas as suas idéias. Em suma, ordem imanente. (...) “Cohaerentia,
accomodare, consentire certa ratione”: estrutura absolutamente infinita, a substância é a
potência infinita cuja ação é a coerência de seres co-presentes que consentem uns aos
outros em relações auto-reguladas que são sua própria existência. A substância é “ratio
essendi e ratio cognoscendi” de seus modos, unidade do ser e da idéia e nexo contínuo
infinito de causas. Ordem inteligível de co-presença, a Natureza é ação necessária, e o
todo da Natureza, coerência e consentimento regulado de essências e existências
singulares que são ações. Somos reenviados, assim, à afirmação do “Tratado da emenda
do intelecto” de que a mente se dirige melhor quanto mais conhece a ordem da Natureza
inteira e que por isso mesmo deve “chegar o mais breve possível ao conhecimento desse
Ser.””50
É importante fixar, por fim, os significados do more geometrico.
Para alguns comentadores, mera literatura de caráter retórico para
convencer o leitor do XVII, ao mesmo tempo conhecedor da importância da matemática 51
e, por outro lado, influenciado pela retórica da igreja.

50
Marilena Chauí. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol. I: imanência. São Paulo, ed.
Cia. das Letras, 1999, p. 733, 734.
51
É bastante conhecido o espanto de Hobbes, já homem de meia idade, ao se deparar com o more geometrico
dos Elementos de Geometria, de Euclides. Diz-se que este acontecimento teve crucial importância para o

30
Para outros, em função exatamente da metafísica espinosana, que
deriva o homem (enquanto modo) de Deus, e identifica este à substância absolutamente
infinita, causa imanente eficiente de todas as coisas -, enfim, para esses comentadores, a
maneira geométrica de expressão não é uma maneira qualquer. Muito ao invés, trata-se da
maneira de conhecer que permite à mente humana – enquanto expressão da mente de Deus
– conhecer adequadamente, isto é, conhecer pela causa, conhecer pela gênese da coisa,
pela gênese do ideado.
Uma hipótese possível, no que se refere ao tema do more geometrico
em Espinosa, é a que segue: em função da ontologia espinosana, pode-se dizer que a
substância ou Deus é o princípio em seus três sentidos. Os sentidos são o epistemológico, o
ontológico e o lógico. Do ponto de vista lógico, Deus é a causa primeira e a causa de si. Do
ponto de vista epistemológico, Deus é o princípio porque Ele é o conhecimento. Aliás, o
conhecimento é expressão de um de seus atributos, qual seja, o pensamento. Daí que
conhecer é conhecer em Deus. O homem não é senão uma modificação finita de Deus. Do
ponto de vista ontológico, Deus é o real em sua infinitude. É causa de si porque qualquer
causa externa a Ele seria um limitador de sua infinitude ontológica, o que é impossível. Daí
que Ele somente possa ser, ontologicamente, causa de si.
Ora, sendo Deus o princípio nesses três sentidos – lógico, ontológico
e epistemológico -, e, ainda, sendo o homem em Deus, como modificação da substância, o
conhecimento adequado é imprescindível para que se conheça Deus. E este conhecimento
adequado se dá segundo duas estruturas cognitivas. Ou se dá pelo conhecimento racional-
discursivo, ou pelo conhecimento intuitivo. Assim, o conhecimento nunca é um
conhecimento qualquer, mas tem uma ordem que é a manifestação finita do atributo
pensamento de Deus. Para que se conheça adequadamente, é preciso que a ordem seja
adequada. Daí que, talvez, o more geometrico não seja mera forma retórica. É claro que os
escólios têm a forma retórica. Mas a Ética se estruturaria mesmo sem os escólios. Estes, de
fato, têm uma função retórica, isto é, de convencimento, de persuasão do leitor menos
afeiçoado à aridez do conceito e do método geométrico.
Pode-se inclusive dizer que a Ética tem um texto e um subtexto. O
texto é formado pela rigorosa articulação entre definições, axiomas, proposições, lemas,

desenvolvimento de certa parte da obra do autor, principalmente um livro que é homenagem a Euclides,
Elements of Law. Para tal, conferir o ensaio de Renato Janine Ribeiro, cujo título é O poder das palavras:
Hobbes sobre a liberdade. In: Novaes, Adauto (org.). O Avesso da Liberdade. São Paulo, Cia. das Letras,
2002, p. 139.

31
demonstrações. O subtexto, de caráter eminentemente retórico, cuja função é,
precisamente, a de persuadir, está nos escólios52.
Não cabe aqui – mesmo porque este não é o tema mesmo da
dissertação, trata-se antes do tangenciamento de uma questão de relevância - o deslinde da
questão, mas, em vez disso, cabe o lançamento de vários feixes de luz que iluminem a
questão do caráter prescindível, ou não, do more geometrico, na obra do filósofo. Tudo
indica, sem dúvida, que Espinosa dá importância fundante ao método geométrico como
instrumento por excelência para o conhecimento adequado. Isto já é índice do seu lugar no
sistema espinosano e expressão da razão pela qual foi escolhido para a confecção da
grande obra de Espinosa: a sua Ética.

52
Gilles Deleuze. Espinosa: filosofia prática. Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo, ed.
Escuta, 2002.

32
53
4.O Deus Espinosano: a substância absolutamente infinita ; a liberdade
necessária

“Lori passara da religião de sua


infância para uma não-religião e agora
passara para algo mais amplo:
chegara ao ponto de acreditar num
Deus tão vasto que ele era o mundo
com suas galáxias: isso ela vira no dia
anterior ao entrar no mar deserto
sozinha. E por causa da vastidão
impessoal era um Deus para o qual não
se podia implorar: podia-se era
agregar-se a ele e ser grande também”

Clarice Lispector54

53
Merleau-Ponty esclarece a expressão “infinitamente infinita” ( que tem, aqui, o mesmo sentido da
expressão absolutamente infinita) : “O século XVII é esse momento privilegiado em que o conhecimento da
Natureza e da metafísica acreditam encontrar um fundamento comum (...). Esse acordo extraordinário do
exterior e do interior só é possível pela mediação de um “infinito positivo” ou infinitamente infinito (visto
que toda restrição a um certo gênero de infinidade seria um germe de negação)”. Ou seja, Deus é a
substância infinitamente infinita para que se tenha um caráter de infinito positivo, ou melhor, para que se
entenda o conceito de infinito não como o que carece de fim, como um conceito negativo, mas como um
conceito que exprima infinitude positiva. Com efeito, a palavra “infinito” é geralmente entendida como
aquilo que não tem fim. Pois o que Espinosa quer dizer com este conceito é exatamente algo positivo. Daí o
uso, por Merleau-Ponty, da expressão infinito positivo e por Marilena Chaui da expressão “absolutamente
infinito”. Ambas as expressões querem dizer o mesmo que infinitamente infinito. Para Espinosa, são três as
maneiras de se entender o conceito de infinito. Há o infinito do ponto de vista ontológico, isto é, aquilo que
não pode ter causa externa na medida em que isto implicaria algo que limita a infinitude ontológica deste ser
assim considerado. É o caso da substância, na medida em que se houvesse uma causa exterior à substância
isto seria um fator limitador de sua infinitude. Daí que a substância possa ser apenas e tão-somente única e,
ao mesmo tempo, causa de si. Há, também, para Espinosa, o infinito como aquilo que não pode ser expresso
por um número preciso. Por exemplo, o número de círculos que são possíveis entre dois círculos de raios
diversos e que não sejam concêntricos. Com efeito, o espaço entre dois círculos não concêntricos é finito. No
entanto, o número de círculos que podem ser compreendidos neste espaço não pode ser medido por um
número, daí seu caráter infinito. Espinosa prefere a expressão indeterminado em vez de infinito, na medida
que esta expressão é mais precisa para qualificar este conceito de infinito. Há, também, uma outra
possibilidade para que se entenda o conceito de infinito, segundo Espinosa. São as coisas que são infinitas
pela força da causa que lhes é inerente mas que, ao serem concebidas abstratamente, podem ser consideradas
como sendo divididas em partes e, deste modo, serem consideradas finitas. É o caso do tempo, que é infinito
pela força de sua causa – a substância -, mas que, ao ser medido, pode ser dividido em partes. Para uma
análise deste ponto, qual seja, os conceitos de infinito em Espinosa, basta que se leia a carta 12 da
Correspondência (há tradução para o português feita por Marilena Chaui, na Coleção Os Pensadores, já
citada). A primeira citação se encontra em Merleau-Ponty. Partout et nulle part. Élogie de la philosophie et
autres essais, Paris, 1960. Retirado da nota 61 da introdução de Marilena Chaui. A Nervura do Real:
imanência e liberdade em Espinosa. Vol. 1: imanência. São Paulo, ed. Cia. das Letras, 1999, p. 12 do livro de
notas.
54
Clarice Lispector. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro, ed. Rocco, 1998, p. 81.

33
“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte sendo o todo.

Em todo o sacramento está Deus todo,


E todo assiste inteiro em qualquer
parte,
E feito em partes todo em toda parte,
Em qualquer parte sempre fica todo.”
(...)

Gregório de Matos55

55
Gregório de Matos. Ao braço do mesmo Menino Jesus quando appareceo. Poesias Selecionadas. São
Paulo, ed. FTD, 1993.

34
a) Uma nota: a metafísica no XVII

“O mundo Ético não é um mundo de


natureza especial, mas um estágio da
natureza única.
A unidade da Substância Universal se
manifesta em todas as cousas. Todas as
cousas pertencem a um só todo, a Um
todo harmônico e ordenado.
As estrelas, as micropartículas e o
homem são participantes da mesma
Sociedade Cósmica.”

Goffredo Telles Jr.56

a.1) Newton, Descartes, Hume, Kant

Não se pode entender um autor do XVII, como é o caso de Espinosa,


sem uma referência a questões metafísicas, tão presentes e estudadas neste período do
pensamento. É claro que há autores do dezessete, já dentro do espírito próprio à filosofia
das luzes (século XVIII), que recusam a possibilidade de tratar questões que estão além da
física, isto é, que não podem ser tratadas sem o recurso último à experiência, ao mundo
sensível. É o caso de Locke em seus estudos sobre o entendimento humano, bem como é o
caso de Hobbes, para quem apenas a explicação mecânica dos eventos é possível. Sabe-se
que com Hume e Kant – já na filosofia das luzes, isto é, no século XVIII -, a metafísica foi
colocada de lado no que se refere à possibilidade de conhecer verdadeiramente os seus
objetos. Hume foi o responsável pela colocação das questões metafísicas para fora do
campo de atuação das possibilidades da razão humana de conhecer. Isto o levou, ao final

56
Goffredo Telles Jr. .O Direito Quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica. 6ª ed. . São Paulo,
ed. Max Limonad, 1985. Como já salientaram Nietzsche e Weber, vive-se contemporaneamente em um
mundo desencantado. É interessante notar que Goffredo Telles Jr. não apenas é um homem de seu tempo –
vide sua luta pela democracia neste país, cujo fato mais explícito foi a corajosa Carta aos brasileiros- , mas é
um homem de seu tempo que não tem medo de falar metafisicamente em um tempo desencantado .

35
de sua obra clássica57, à consideração do hábito como a instância capaz de fazer com que
a fragmentação da experiência sensível tivesse algum sentido. Hume é tentado a um
ceticismo epistemológico quase absoluto, na medida em que o conhecer sensível não tem
outra instância para a síntese dos fragmentos que vêm ao conhecimento senão aquela do
hábito ou da experiência passada acumulada. No caso de Kant, principalmente na parte da
crítica que trata das possibilidades de conhecimento pela razão – Crítica da Razão Pura58 -
, ocorre uma interpretação diversa em relação à concepção humeana do conhecimento.
Também Kant coloca em xeque a possibilidade da metafísica como ciência na medida em
que se trata de um objeto de conhecimento que não se refere a nenhum dado sensível. Ora,
para Kant, o conhecimento necessita de duas instâncias que atuam conjuntamente para
formar o que se chama conhecimento: de um lado, o dado sensível bruto, isto é, a
experiência que vem aos sentidos. De outro, as condições de possibilidade para que estes
dados brutos que vêm à mente possam ser transformados em conhecimento. Isto é o que
Kant denomina categorias do conhecimento puro, que são a possibilidade mesma de se ter
acesso ao fenômeno. Com efeito, se não fossem as categorias já existentes no
entendimento puro como condição de possibilidade do próprio conhecimento, o que
haveria seria apenas a fragmentação infinita da experiência sensível, e não o objeto do
conhecimento como fenômeno, isto é, aquilo que aparece. É da articulação entre o dado
bruto da experiência e as categorias que sintetizam estes dados que se tem o fenômeno, isto
é, aquilo que se vê como cadeira, mesa, ou qualquer objeto que apareça ao sujeito do
conhecimento. O objeto do conhecimento apenas é objeto de conhecimento na medida em
que é o resultado do dado bruto do sensível acoplado ou sintetizado pelas categorias do
entendimento.
Ora, a metafísica não satisfaz a um requisito do conhecer, qual seja,
o dado bruto. Ela não tem um objeto como dado bruto a ser sintetizado pelas categorias do
conhecimento. Daí que ela seja a pura elaboração da razão, sem qualquer objeto. Daí que,
para Kant, não tenha havido qualquer avanço nesta ciência, isto é, na metafísica, bem como
não haja qualquer acordo entre aqueles que dela se ocuparam. Descartes tem sua
elaboração metafísica, que não se coaduna com aquela elaborada por Espinosa, que por sua
vez é diversa da elaboração de Leibniz. Kant recorre à metáfora da pomba para explicar o
que quer significar com o fato segundo o qual a metafísica carece de objeto e disto vem a

57
David Hume. A treatise of human nature. Penguin Books, 1969.
58
Kant. Crítica da Razão Pura. Tradução de Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburguer. Coleção Os
Pensadores. São Paulo, ed. Nova Cultural, 2000.

36
discordância completa quanto ao que se elabora, filosoficamente, sobre ela. A pomba,
para voar, necessita do ar. É graças á existência do ar que ela pode alçar vôo. No entanto, o
ar é um impedimento para que a pomba voe mais rapidamente. O ar oferece resistência, é
fonte de atrito. Para Kant, os metafísicos atuam como a pomba que, ao tomar consciência
de que o ar oferece resistência, se propõe a voar sem o ar. Ora, isto seria impossível, pois o
ar é a própria condição do vôo da pomba. Do mesmo modo, diz Kant, o mundo sensível é a
própria condição do conhecimento. Sem o dado bruto, não é possível conhecer. Vale
lembrar que, para Kant, a matemática não é um conhecimento apenas de razão, mas tem o
seu objeto na geometria – as figuras que se dão em uma das categorias, qual seja, o espaço
-, bem como a aritmética tem seu objeto, qual seja, os números que se dão na categoria
tempo.
Porém, a questão da possibilidade de conhecer o que está além da
experiência sensível é bastante presente em vários autores do dezessete. Aliás, em vários
significativos autores deste século.
Merleau-Ponty59 escreve a respeito da importância da metafísica no
dezessete que “O século XVII é esse momento privilegiado em que o conhecimento da
Natureza e da metafísica acreditaram encontrar um fundamento comum (...). Esse acordo
extraordinário do exterior e do interior só é possível pela mediação de um infinito positivo
ou infinitamente infinito (visto que toda restrição a um certo gênero de infinidade seria um
germe de negação) . É nele que se comunicam e se soldam uma à outra a existência efetiva
das coisas partes extra partes e a extensão pensada por nós, que, ao contrário, é contínua
e infinita (...). A idéia de infinito positivo é, pois, o segredo do grande racionalismo e ele
não durará senão enquanto ela permanecer em vigor (...) E, no entanto, ele permanece
grande para nós (...), levou ao ponto mais alto a consciência do problema ontológico.
Nisso ele não é passado(...) e se a passagem ao infinitamente infinito não nos parece ser a
solução, é apenas porque retomamos mais radicalmente a tarefa que esse século intrépido
havia acreditado haver cumprido para sempre.”
Ou seja, conhecer a physis – ou natureza - é conhecer os
fundamentos da physis e conhecer os fundamentos da physis é conhecer a physis. O ponto
comum entre conhecimento da natureza e conhecimento ontológico ou metafísico é o fato
que passa ao largo da ciência contemporânea, qual seja, o da busca do fundamento do real.

59
Merleau-Ponty. Partout et nulle part. In.: Élogie de la philosophie et autres essais, Paris, 1960, p. 218 a
226 (segundo citação da nota 61 da Introdução de A Nervura do Real, de Marilena Chaui).

37
De fato, se há uma regularidade observável na natureza, regularidade esta que é
apreendida pelo homem por meio do princípio de inferência – de uma série de observações
do fenômeno idêntico se retira, por inferência, uma lei geral -, a questão que pode ser
colocada é a seguinte: quem ou o quê decretou esta regularidade da natureza de tal sorte
que se pode, por inferência, ter acesso às suas leis universais e necessárias? Assim,
encontram-se ciência ou filosofia natural e metafísica num mesmo ponto de ligação. Ou,
mais explicitamente: se Newton verifica que os corpos se atraem – a maçã cai; os planetas
giram em órbitas elípticas -, cabe a seguinte questão: que características os corpos têm que
faz com que haja atração entre eles? Ou, por outra, que características ocultas os corpos
têm que se atraem? Não por mero acaso Newton foi, além de físico, alquimista, bem como
se dedicou a especulações teológicas. Com efeito, constatar certa regularidade na natureza
ou nas leis com as quais a natureza opera não significa resolver a questão de fundo: o que
faz que haja tal regularidade? Essa é a questão metafísica que foi, por exemplo, recusada
por David Hume como impenetrável pelo espírito humano. Para Hume, apenas a realidade
empírica e as operações da mente por associação de idéias e por elaboração de idéias a
partir de impressões seriam questões possíveis para a mente humana, para a consciência.
Questões metafísicas, muito presentes no XVII, são colocadas como impenetráveis e
impossíveis de investigação por não terem uma base segura, isto é, empírica. Mas Hume
apenas mostra, aqui, o contraponto ao grande racionalismo do XVII que busca, em
verdade, resolver essas questões de fundo por meio de especulações que se dão para além
da física, que buscam o fundamento último do real. Com Hume, no século XVIII, a
questão do fundamento último não se resolve. Ela apenas é colocada de lado, por uma
decisão epistemológica ou de teoria do conhecimento, na medida em que não teria
nenhuma base empírica para sua confirmação. Seria, enfim, especulação metafísica sem
nenhuma importância para o conhecimento humano. Estaria, em uma palavra, para além do
conhecimento possível ao homem. O mesmo se dá, como se viu, em Kant, que em sua
Crítica da Razão Pura busca mostrar precisamente os limites do conhecimento racional.
Este é o sentido da expressão crítica, isto é, trata-se de um exame do objeto cujo objetivo é
descobrir os limites, as características, as potencialidades.
Em Espinosa, por outro lado, pode-se dizer que as questões
metafísicas se colocam. Entretanto, a contrapelo da tradição em que ele se insere. Para este
filósofo, como se verá de maneira mais vertical no subcapítulo dedicado ao conceito de
Deus, a necessidade do real se dá porque tudo o que há, existe na imanência da substância

38
absolutamente infinita, que opera por uma causalidade eficiente imanente – sem qualquer
finalismo, isto é, sem qualquer modelo a ser alcançado. Cada atributo da substância, que,
por ser expressão da substância única, é em si e por si, e não em outro e por outro – como
no caso dos modos -, é uma ordem de realidade que expressa a substância de uma maneira.
As modificações infinitas e finitas60 da substância, por serem na substância, apenas podem
operar por necessidade da substância. São, na verdade, expressões dos atributos divinos.
Isso não significa, porém, que não haja seres singulares e realidades singulares no mundo,
como se explicitará no momento em que a ética e a política, bem como o direito, aflorarem
como realidades na substância e não, portanto, como ilusões dos modos finitos.
Que se analise outro ponto, por outro autor do XVII, para se ter a
precisa noção da necessidade de uma metafísica que seja a possibilidade mesma da ciência
ou filosofia natural, e, para Espinosa especificamente, para todo o saber, inclusive o de
natureza ética e política.
Descartes, na Meditação Segunda61, estabelece como primeira
verdade, após a dúvida hiperbólica a que o sujeito investigativo havia chegado na
Meditação Primeira, o “penso, logo sou”. Ou seja, a primeira verdade, na ordem das
razões, após a dúvida a respeito da veracidade dos sentidos – argumento da cera -, bem
como após a dúvida a respeito da veracidade das realidades lógico-matemáticas - tais como
dois e dois são quatro - e, ainda, após a dúvida a respeito da própria existência corporal –
argumento do sonho – é a verdade do sujeito que pensa enquanto pensa, isto é, a verdade
do mero eu pensante.
Ora, como é possível, então, do ponto de vista da teoria do
conhecimento, que as realidades matemáticas sejam verdadeiras, bem como haja
adequação entre o pensamento a respeito de algo e o algo considerado, isto é, como é
possível a relação idéia – mera representação na mente – e ideado – a coisa da qual o
sujeito do conhecimento tem a representação?
Esta relação apenas é possível, em Descartes, por meio de um Deus
que garante a veracidade do pensamento, seja ele a respeito dos entes meramente
matemáticos, seja ele a representação de algo que vem aos sentidos. Com efeito, a
Meditação Terceira tem como subtítulo De Deus; Que Ele Existe. Na Meditação Quinta,

60
Este ponto, isto é, a diferença entre a modificação finita e a modificação infinita da substância será
analisado em outro movimento do texto.
61
Descartes. Meditações . Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. Coleção Os Pensadores. São
Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 269.

39
também, o assunto é retomado e Deus é estabelecido como uma espécie de teologia ad
hoc que garante as verdades do sistema cartesiano. Que se refine este argumento.
Se há uma distância entre o sujeito reflexivo – o eu pensante – e o
mundo, apenas uma teologia ad hoc, um Deus como garantidor de verdades, possibilita que
se fale em verdade. De fato, nada garante a verdade da idéia em relação ao ideado – dada a
distância entre sujeito do conhecimento e objeto – a não ser um Deus que permite a
verdade das idéias claras e distintas, sejam elas em relação a objetos do mundo – as coisas
-, sejam elas em relação às virtualidades lógico-matemáticas.
Isto – os exemplos de Newton e Descartes – apenas servem para
ilustrar a importância da metafísica no século XVII. Descartes concebia, para o
entendimento de seu projeto filosófico, a metáfora da árvore. Segundo esta metáfora, a raiz
da árvore representaria a metafísica. Esta raiz sustentaria a física – o tronco da árvore,
cujas demais ramificações viriam ancoradas na metafísica e na física. Descartes
considerava, inclusive, importante que apresentasse aos doutores que apreciariam as
Meditações primeiro sua metafísica – explícita nas Meditações –como condição para, após,
apresentar com sucesso sua Física. Em uma palavra, a Física de Descartes tinha o seu
lastro teórico em sua metafísica62.
A análise das causas últimas, por Descartes, seria a condição de todo
o saber vindouro, a condição de validade de tudo o que existe e se conhece. É na tradição
de um racionalismo que busca as causas últimas que se deve investigar um autor do XVII,
mesmo que este autor, sem recusar a metafísica, a reformula completamente, como é o
caso de Espinosa.
Nesta medida, não se pode desligar o pensamento espinosano desta
tradição de pensamento para a qual fazer metafísica, isto é, entender o fundamento último
de tudo o que há, é o primeiro ponto para que se possa entender as questões próprias do
XVII. Não é por acaso ou por delírio de uma mente filosófica que o primeiro livro da Ética
seja o De Deo, isto é, tenha como tema Deus ou a substância. Aliás, é na imanência da
substância, segundo Espinosa, que tudo o que há se dá. A substância, em Espinosa, é o ser

62
Uma diferença fundamental entre Espinosa e Descartes no que se refere às fundamentações metafísicas de
seus pensamentos se dá no seguinte ponto: para Descartes, a primeira verdade é o “eu que pensa” enquanto
pensa, isto é, o cogito ergo sum, estabelecido nas duas primeiras meditações após o mergulho na dúvida
hiperbólica. Para Espinosa, em razão de, por definição, não haver transcendência alguma, a primeira verdade
é aquela manifesta pela existência da substância absolutamente infinita, em que tudo existe de maneira
imanente. A dedução espinosana tem como princípio não o eu que pensa enquanto pensa, mas a substância
absolutamente infinita em que tudo o que existe se expressa. Em uma palavra: tudo o que existe apenas existe
na imanência da substância única.

40
absolutamente infinito, isto é, aquilo que é em si e por si (em uma palavra: substância
como o que cria sua essência e existência, dentro da qual os modos infinitos e finitos têm
suas existências como expressão da substância única). Trata-se, aqui, de entender o
conceito de infinito como infinito segundo a natureza da coisa. A substância, como se verá
em capítulo específico, é o infinito segundo a natureza da coisa porque é aquilo em que
tudo o que há se manifesta.
Em Espinosa especificamente, as questões políticas não podem ser
deslocadas das questões metafísicas, ou melhor, de sua ontologia do necessário. Em
Espinosa, como se verá ao ser abordado especificamente o tema democracia, falar do
universo humano, histórico – em que se dá a democracia - não implica separação entre
metafísica e política: “No universo humano, histórico (...) não será um pensar
metafisicamente abstrato, pois a ontologia de Espinosa não se produz em um mundo
transcendente e superior ao nosso, mas aqui, em nossa existência atual e concreta.”63
Ou seja, falar de política em Espinosa significa reconhecer, por um
lado, a importância de uma tradição de pensamento que aqui se chamou metafísica ou
ontologia. Significa reconhecer, por outro lado que, em se tratando da obra de Espinosa, a
ontologia deve ser minimamente entendida para que se tenha sua obra como um todo, não
como duas partes que se contradizem.
Em uma palavra: não há ruptura entre a política espinosana e sua
ontologia. Este ponto ficará claro quando for elaborada a parte teórica de seu pensamento
político. Por um lado, o conceito de direito como expressão da potência da substância nos
modos finitos e, mais especificamente, por outro lado, a democracia como o regime mais
adequado para a expressão dos indivíduos como modos finitos da substância. Ou seja,
esses conceitos – direito e democracia - decorrem da ontologia espinosana. Não
representam ruptura em seu pensamento. Não há um pensamento sobre a ontologia, por um
lado, e um pensamento político e ético, contrário a este, por outro. Haveria, assim, um
Espinosa que concebe as partes I e II de sua Ética e uma ruptura deste pensamento em
relação às partes III, IV e V da mesma obra, bem como ruptura com suas obras
estritamente políticas, isto é, o Tratado Teológico-político, bem como o Tratado Político.
Isto não ocorre, como ficará mais claro no momento em que a política e a ética forem
colocadas a partir da ontologia espinosana: na imanência da substância.

63
Thereza Christina Holl Cury. Bene Agere et Laetari: ontologia e antropologia na “Ética” de Espinosa.
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia da PUC-SP como exigência parcial para obtenção do título de
mestre. Orientador: Professor Dr. Oswaldo Giacoia Jr.. São Paulo, 1992, p10.

41
A metafísica, entendida como estudo do fundamento de tudo o que
há, bem como estudo do que está para além do sensório, do empírico, é tema importante no
XVII. Há dois sentidos principais para tal importância. Primeiro: para que se entenda a
gênese de boa parte dos pensadores do dezessete, isto é, o fundamento de seu pensamento.
São três grandes exemplos Descartes, Espinosa e Leibniz. São contra-exemplos, não mais
no XVII, mas no XVIII, David Hume e Kant. Mesmo no dezessete, são exemplos de
autores que não trabalham com a metafísica Hobbes e Locke. Segundo: para que, em
Espinosa particularmente, se entenda a ligação entre ontologia – o estudo da substância
única e sua expressão por meio dos atributos e modos – e política, bem como entre
ontologia e direito-potência.

42
b) Deus: a substância

“Deus, ou, por outras palavras, a


substância que consta de infinitos
atributos, cada um dos quais exprime
uma essência eterna e infinita, existe
necessariamente.”

Espinosa64

Na definição VI da primeira parte da Ética65, Espinosa estabelece o


conceito de Deus, rompendo com uma tradição segundo a qual Deus é um ente com
características humanas exponenciadas, bem como transcendente à criação.
A tradição judaico-cristã estabelece Deus como um ser
transcendente à criação que, por um ato de infinita bondade – manifestação de sua vontade
infinita -, cria o homem e todas as coisas. Esse Deus é bom e justo, tendo em si a bondade
e a justiça em infinito grau. Não apenas. Por esta tradição, Deus transcende sua criação e a
realiza por mera vontade – exercício de seu livre-arbítrio-, não sendo de sua necessidade
criar o mundo. O mundo poderia existir ou não, e apenas existe pela expressão da vontade
divina como livre-arbítrio.
Como pano de fundo para o entendimento de Deus como um Ente –
ou melhor, o Ente – com características humanas exponenciadas que cria o mundo a partir
de Sua vontade livre, há uma questão amplamente discutida pela tradição filosófica66.
A questão que se coloca é a seguinte: Deus pode tudo (é onipotente)
e cria apenas algumas coisas que deseja criar ou, em vez disso, quer tudo o que pode criar?
Ou, por outra, aquilo que Deus criou como ato de Sua vontade advém de uma liberdade
necessária – com regras necessárias e com a utilização de tudo o que estava em Seu poder
como sendo expresso no mundo criado – ou, em vez disso, tudo o que Deus criou advém
de uma liberdade contingente, em que apenas parte de Sua vontade se expressa de uma
maneira que, na verdade, poderia ter sido outra?

64
Espinosa. Ética. Parte I. Coleção Os Pensadores. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho.. São Paulo,
Abril Cultural, 1973, p. 84, definição VI.
65
Ibid. .
66
Para a reflexão que se explicitará, foram utilizadas as notas das aulas proferidas por Marilena Chaui no
primeiro semestre de 2003 no departamento de filosofia da FFLCH-USP, na disciplina Filosofia Moderna III.
O tema do curso foi o seguinte: os conceitos de liberdade e servidão na parte IV da Ética de Espinosa.

43
Em suma: o que está no poder de Deus? Como age Sua vontade?
De maneira livre-contingente ou livre-necessária? O efeito do que se produz é tudo que
Deus poderia ter produzido segundo Sua vontade livre ou Sua vontade tem como objeto de
atuação o puro contingente?
Ora, se Deus pode mais do que criou efetivamente, aquilo que não
foi criado se estabelece como possível, isto é, como tudo aquilo que não foi criado pela
vontade divina e que, por Sua vontade, sendo possível, pode ser criado a qualquer
momento. Assim, dentro do campo do possível, se estabelece, entre outras coisas, o
conceito de milagre67, isto é, aquilo que é extraordinário, que extrapola o necessário, que
vai além da ordem das leis necessárias expressas na natureza, as quais não são senão a
manifestação do poder necessário de Deus. O milagre só é possível se Deus pode mais do
que criou, podendo intervir na criação para mudar as leis naturais.
Portanto, aqui, o campo do possível se apresenta como mais amplo
que o campo do real. Deus teria o poder de fazer mais do que quis porque não quis criar
tudo que poderia ter criado segundo Seu poder.
Assim, o atributo vontade, em Deus – como uma faculdade -, seria
infinito, o que daria a este Ser o poder de tudo criar segundo Sua vontade.
Resta saber em que consiste esta vontade, ou seja, se ela é necessária
- como não podendo ser de outra maneira - ou se, em vez disso, ela é absolutamente
contingente, isto é, poderia se manifestar de qualquer maneira, em uma variação infinita.
Com efeito, a liberdade da vontade de Deus poderia ser necessária, isto é, produz um só e
mesmo efeito, ou, em vez disso, seria contingente, isto é, produz múltiplos efeitos,
escolhidos entre alternativas possíveis.
Por isso, para alguns filósofos medievais – como é o caso de Scotus
– Deus seria uma vontade infinita que se manifestaria de maneira livre-contingente, e não
livre-necessária. Assim, o efeito de sua vontade não seria um e apenas um efeito – as leis

67
Entende-se por milagre aquilo que viola a ordem natural das coisas, isto é, aquilo que viola os decretos
divinos que estabelecem os comportamentos dos seres. Isto apenas é possível se Deus, por vontade absoluta,
intervém na ordem de mundo que ele mesmo criou. Este é o campo do possível para a vontade absoluta de
Deus, segundo a tradição filosófica. Espinosa, no Capítulo VI do Tratado Teológico-político ( Teologico-
Polítical Treatise . Translated by R.H.M. Elwes. Dover Publications, Inc. New York, 1951 (first edition),
bem como tradução já citada de Diogo Pires Aurélio, ed. Casa da Moeda, Portugal), faz uma análise da
impossibilidade do milagre na medida em que o milagre, ao contrário do que diz a tradição, não poderia ser
prova da existência de Deus, mas uma contradição em relação à Sua existência na medida em que a
possibilidade da ocorrência de milagres atenta contra a necessidade dos decretos divinos.

44
naturais necessárias e imutáveis -, mas o efeito seria múltiplo e variável entre infinitas
alternativas possíveis segundo Sua vontade atuando de forma contingente.
Decorrente da distinção entre vontade livre e vontade necessária,
pode-se falar em uma distinção entre a essência presente na mente de Deus como algo
apenas inteligível, por um lado, e a existência – realidade - das coisas como advindas da
manifestação da vontade de Deus, por outro lado. Ou seja, havendo a diferença entre a
essência na mente de Deus, por um lado, e a existência de tudo o que há, fora de Deus, por
outro lado, o que há, o real, seria a expressão da vontade de Deus que faz de entes
essenciais coisas materiais na criação.
Por exemplo, da essência de homem, presente na mente de Deus,
teria advindo este homem Pedro ou este homem Paulo. E, ainda, isto ocorreria por uma
vontade de Deus, que deu existência a um ente de razão presente em sua mente.
Portanto, outra conclusão pode ser extraída desta tradição: há uma
distância entre o Ente perfeitíssimo que é puro espírito, isto é, Deus, e as demais coisas
criadas que apenas existem porque o Ente perfeitíssimo, por Sua Vontade, materializou na
criação: esta pedra, esta árvore, este homem Paulo, este homem Pedro, etc. .

***

Espinosa estabelece, em seu contradiscurso, cujo alvo é exatamente


esta tradição, o que segue:
“ Por Deus entendo o ente absolutamente infinito, isto é, uma
substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência
eterna e infinita.”68
“Deus, ou, por outras palavras, a substância que consta de infinitos
atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita, existe
necessariamente.”69

68
Espinosa. Ética. Parte I, cujo título é De Deus. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho. Coleção Os
Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 84.
69
Espinosa. Ética. Parte I, cujo título é De Deus. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho. Coleção Os
Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 93. Por necessidade Espinosa entende aquilo cuja causa gera
apenas e tão somente determinado efeito, isto é, as leis necessárias da natureza. Portanto, é necessário, pela
natureza de Deus, que Ele seja causa sui no que se refere à sua essência e existência. É necessário que Ele
exista e que tudo o que existe exista Nele, isto é, seja uma expressão Dele e Nele.

45
Na proposição XV da Parte I da Ética, por sua vez, o autor
estabelece Deus como sendo a substância em que tudo se dá, não havendo, portanto,
qualquer transcendência possível.
“Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir
nem ser concebido.”70
Ora, na definição III da Parte I, Espinosa afirmara o que entende por
substância. Diz o autor:
“Por substância entendo o que existe em si e por si é concebido, isto
é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do qual deve ser formado.”71
No axioma I, Espinosa estabelece uma verdade eterna ou uma
evidência – esta é a razão do estabelecimento do axioma, isto é, mostrar algo que é
evidente:
“Tudo o que existe, existe em si ou noutra coisa.”72
Ora, sendo Deus a substância absolutamente infinita, que existe em
si e por si – Deus é causa sui - , tudo se dá em Deus, e nada pode se dar fora da imanência
da substância absolutamente infinita, causa de sua essência e existência, causa da essência
e existência de tudo, inclusive dos seres humanos, que são modos finitos (modificações) da
substância absolutamente infinita.
Cada humano, porém, enquanto modo da substância (ou
modificação, isto é, uma certa e determinada – singular - expressão finita da substância)
pelo axioma III, acima citado, é algo que existe em outra coisa, isto é, na imanência da
substância. É natureza naturada em vez de natureza naturante.
O que existe em si é Deus, que é, como dito, causa de sua essência e
de sua existência. Deus sive natura, isto é, Deus, ou seja, a Natureza. O que existe em
outro é modificação de Deus.
Para aclarar este ponto, que se esboce um exemplo: do atributo
extensão, de Deus, há a manifestação – ou expressão – que pode se dar finita e
infinitamente. Ou, por outra: há o modo infinito e o modo finito da substância por meio de
sua manifestação via atributo extensão. O modo infinito do atributo infinito extensão é o
movimento, próprio da extensão. Tudo que é extenso se comporta por leis de movimento e
de repouso. Um dos modos finitos da extensão é o homem, que, além de ser um modo

70
Ibid. p. 97.
71
Ibid. p. 84.
72
Ibid. p. 85.

46
finito do atributo extensão, é também um modo finito do atributo pensamento. O atributo
pensamento de Deus se expressa de maneira infinita e finita. Pode-se dizer, por exemplo,
que o modo infinito do pensamento é a razão como “movimento de compreensão”. Ou,
como diz Marilena Chaui73, pode-se entender como modo infinito do atributo pensamento
de Deus toda a produção cultural de todas as sociedades que existiram e que existem. O
modo finito do atributo pensamento de Deus seria uma mente humana exercendo a sua
potência mental – realizando sua natureza de mente - , isto é, uma mente pensando,
concebendo idéias. No momento em que cada subjetividade exerce sua “faculdade” de
pensar, diz Espinosa, na realidade, esta subjetividade expressa Deus, isto é, expressa
finitamente o modo infinito do atributo infinito de Deus, qual seja, o pensamento. Por esta
razão, ao pensar corretamente, diz Espinosa, um ser humano expressa Deus, pois utiliza ou
expressa, finitamente, um de Seus infinitos atributos infinitos, qual seja, o pensamento.
Quando um homem pensa, Deus pensa. Quando os homens produzem cultura como
manifestação do pensamento, produzem coletivamente a expressão do atributo pensamento
de Deus. E, pela noção de imanência – tudo o que há, há na substância -, o pensar
individual é o pensar em Deus. É expressão finita do atributo pensamento de Deus. Quando
um ser humano pensa em uma proporção matemática, ele o faz assim como Deus faz.
Ainda mais: o faz em Deus. Quando um ser humano pensa, segundo Espinosa, por meio da
razão, o faz como expressão finita da substância.
A idéia de um Deus que é causa sui e do qual tudo depende para
existir levou a tradição crítica do autor a uma série de interpretações - diversas da adotada
nesta dissertação - no que se refere à obra de Espinosa. Essa tradição interpretativa da obra
do autor estabelece a irrealidade dos seres finitos – isto é, dos modos da substância, entre
esses modos os seres humanos – na medida mesma em que interpretam Espinosa tal qual
os panteísmos orientais74. Ou seja, não haveria, por esta interpretação, seres singulares na
obra de Espinosa75.

73
Aulas proferidas por Marilena Chaui no primeiro semestre de 2003 no departamento de filosofia da
FFLCH-USP, na disciplina Filosofia Moderna III. O tema do curso consistiu em analisar os conceitos de
liberdade e servidão na parte IV da Ética de Espinosa.
74
Marilena Chaui. A idéia de parte da natureza em Espinosa. Revista Discurso 24. São Paulo, 1994, p. 57-
127.
75
Sobre a existência de seres singulares, segundo a obra de Espinosa, que o leitor se reporte ao seguinte
texto: Marilena Chaui. Espinosa e a essência singular. Cadernos Espinosanos VIII. São Paulo, publicação do
Departamento de Filosofia da USP, 2002. Vale ressaltar algo que será trabalhado no capítulo dedicado à
democracia, bem como no capítulo dedicado ao conceito de direito em Espinosa: não apenas um ser humano
é considerado por Espinosa uma essência singular que expressa dois atributos divinos – a extensão e o
pensamento. Na verdade, o corpo político – multitudo - também é uma essência singular, isto é, um conatus

47
Há, com efeito, uma tradição interpretativa da obra de Espinosa que
o considera “ateu de sistema”. No dicionário de Bayle – químico do XVII, contemporâneo
de Espinosa - , a posição espinosista76 seria um modo refinado de ateísmo na medida em
que não se estaria mais numa dispersão de opiniões, mas no reino do more geometrico. De
difícil refutação, a argumentação de Espinosa, para Bayle, seria uma “ “máquina infernal”
do mos geometricum”, e aqueles que tentaram refutar a obra em seus pontos vulneráveis
acabaram incapazes de tal empreitada, ou, o que é pior, sucumbiram a ela77.
Diz o autor78 sobre Espinosa: “A mais monstruosa hipótese que se
possa imaginar, a mais absurda e a mais diametralmente oposta às noções mais evidentes
de nosso espírito...Supõe que há apenas uma substância na Natureza e que esta substância
única é dotada de uma infinidade de atributos e, entre outros, a extensão e o pensamento.
Na seqüência disto, assegura que todos os corpos que se encontram no universo são
modificações desta substância enquanto pensamento. De sorte que Deus, o ser necessário
e infinitamente perfeito, é bem a causa de todas as coisas que existem, mas não difere
delas. Não há senão um ser e uma natureza e esta natureza produz nela mesma e por uma
ação imanente tudo o que ele chama de criaturas. Deus é, conjuntamente, agente e
paciente, causa eficiente e sujeito e nada produz que não seja Sua modificação. Eis aí uma
hipótese que ultrapassa toda extravagância que se possa proferir. O que os poetas pagãos
ousaram cantar de mais infame, contra Júpiter e contra Vênus, não chega perto da idéia
horrível que Espinosa nos dá de Deus, pois os poetas, pelo menos, não atribuíam aos
deuses todos os crimes que se cometem nem todas as fraquezas do mundo mas, segundo

coletivo que faz sua lei civil para que cada ser humano melhor realize sua natureza de ser, isto é,
singularidade que busca perseverar no ser, que deseja perseverar no ser. Aliás, na Proposição VII da Parte III
da Ética, Espinosa afirma que a essência atual – em ato – de um ser não é senão o desejo de perseverar no ser
que tem esta coisa em ato. Em uma palavra: não há, em Espinosa, essências como universais. Claro: se não
há transcendência, se Deus não é um ser que está para além da criação, mas a criação “é Nele” e é “Ele”, a
essência não é um universal abstrato, mas a expressão, em ato, do desejo de realização da natureza da coisa.
Este ponto será desdobrado no Capítulo referente ao direito como potência em Espinosa.
76
Utilizar-se-á, tendo como base a conceituação estabelecida na obra de Marilena Chaui – principalmente
n´A Nervura do Real, Volume I, cujo tema é a noção de imanência na obra do autor -, a distinção por ela
proposta no que se refere ao uso dos termos “espinosista” e “espinosano”. Por “espinosista” se entende a
tradição interpretativa da obra de Espinosa que o considera ora panteísta, ora ateu. Pela visão panteísta, Deus
está em tudo e tudo está em Deus de tal sorte que não há que se falar em liberdade. Haveria, por assim dizer,
um fatalismo no que se refere à ação dos modos finitos da substância, entre eles os homens. Pela visão do
Espinosa ateu, o que ocorreria é exatamente a negação, por Espinosa, de um Deus aos moldes da tradição, de
tal sorte que sua concepção de Deus – a substância infinitamente infinita – seria uma forma refinada de
ateísmo. Por fim, pela expressão “espinosano” considerar-se-á a fortuna crítica do autor que não o considera
nem panteísta nem ateu, mas um reformulador de conceitos como liberdade, direito natural, democracia, etc.,
como se verá no decorrer do presente trabalho.
77
Marilena Chaui. A idéia de parte da natureza em Espinosa. Revista Discurso 24. São Paulo, 1994, p. 79.
78
Bayle. Dictionaire Historique et Critique. Roterdã, Leers, 1697, p. 618.

48
Espinosa, não há outro agente nem outro paciente senão Deus com relação a tudo o que
chamamos de mal de pena e mal de culpa, mal físico e mal moral.”
Mas não apenas Bayle constrói esta imagem de Espinosa. A doutrina
Hindu, a doutrina Foe Kiao, bem como o taoísmo79 o concebem como ateu de sistema.
Mas, em que consiste, para essas doutrinas religiosas antigas, ser
ateu de sistema?
Nada menos misterioso. Um autor que concebe Deus como a
substância em que estão todos – e tudo – diluídos, não pode falar em realidade individual.
Afinal, como pensar em um modo da substância – como o homem – como tendo realidade
individual, na medida mesma em que este modo está diluído, tal qual uma gota d’água no
oceano, na infinitude da substância?
Da mesma maneira, como não ser ateu aquele que não crê em um
Deus que transcenda a criação, um Deus que, por um ato de vontade – seu livre-arbítrio –
cria as coisas individuais ou substâncias finitas individualizadas?80 Certamente um filósofo
que subverte desta sorte a tradição que o antecede, isto é, a tradição segundo a qual Deus
somente pode ser um ente perfeitíssimo, que transcende sua criação, puro ato, como queria
Tomás de Aquino, não poderia ter uma fortuna crítica favorável. Muito ao invés, somente
poderia ser alvo da incompreensão de seus contemporâneos. Esta tradição interpretativa
chegou até mesmo ao Brasil nos primeiros estudos sobre a obra do autor.
Raimundo de Farias Britto81 é um exemplo da interpretação
espinosista no Brasil. Já pelo título de sua obra, fica clara a posição adotada pelo autor no
que se refere à obra de Espinosa. De fato, Britto utiliza em seu ensaio a expressão “ponto
culminante da philosophia dogmática”. Utiliza, ainda, o termo “monismo de Spinoza”.
O que se quer ressaltar com esses termos? Que se dê a palavra ao
autor: “Neste sentido Deus não é livre; pelo contrario reina em sua natureza a mais
absoluta necessidade. Esta necessidade exclúe a livre escolha”82. Ainda, diz o autor, no

79
Marilena Chaui. A idéia de parte da natureza em Espinosa. Revista Discurso 24. São Paulo, 1994, p. 79.
Diz a autora: “Dessas duas doutrinas antigas, como das cinzas, nasce o espinosismo. Unidade substancial,
irrealidade individual, imanência de deus ao mundo, ausência de imortalidade individual e animismo
universal constituem o ateísmo espinosano, uma vez que ateu não é aquele que não crê em Deus, mas quem
não crê no nosso Deus, transcendente, pessoal, dotado de intelecto e vontade, providencial, separado das
criaturas ou substâncias finitas individualizadas (...)”.
80
Marilena Chaui. A idéia de parte da natureza em Espinosa. Revista Discurso 24. São Paulo, 1994, p. 79.
81
Raimundo de Farias Britto. O ponto culminante da philosofia dogmática: monismo de Spinoza. Cadernos
Espinosanos (VII). São Paulo, Discurso editorial, 2001, p. 9-82. Foi mantida a redação original da obra, que é
de 1899.
82
Ibid. p. 15.

49
subcapítulo IV, cujo título é “Exclusão da liberdade também como conseqüência do
método”: “Se na natureza todos os factos resultam de causas dadas, do mesmo modo e
nas mesmas condições que em mathematica, todos os princípios são sempre a
conseqüência de leis dadas, é evidente que não há absolutamente no mundo de Spinoza,
logar para a liberdade.”83. Interessa sobretudo, aqui, assinalar o seguinte ponto: nas
interpretações espinosistas, fica clara a posição adotada pelos autores segundo a qual o fato
de haver um Deus que é causa sui e de tudo que existe implica um fatalismo. Não há
fatalismo em Espinosa, entretanto. Há, em vez disso, uma redefinição do conceito de
liberdade que não tem mais relação com o conceito de liberdade da tradição. O problema
das interpretações espinosistas – tanto em sua vertente panteísta como em sua vertente que
estabelece o autor como ateu de sistema – é que prevalece uma leitura da obra que a
interpreta não a partir dela mesma, mas a partir de conceitos contra os quais a obra foi
escrita. O conceito de liberdade da tradição, bem como o conceito de Deus elaborado por
esta mesma tradição não podem ser utilizados para entender a obra espinosana.
Quanto à leitura de Espinosa com as lentes da tradição, isto é, com
os conceitos próprios da tradição filosófica contra a qual ele escreve, vale a pena tocar na
questão da liberdade em Espinosa.

c) A questão da liberdade necessária em Espinosa

“Nature herself is the power of Gog


under another name, and our
ignorance of the power of Gog is co-
extensive with our ignorance of Nature.
It is absolute folly, therefore, to ascribe
no event to the power of God , when we
Know not its natural cause, which is
the power of God.”

Espinosa84

83
Ibid. p. 25.
84
Spinoza. A Theologico-Political Treatise. Translated by R. H. M. Elwes. Dover Publications, Inc. New
York, 1951 (first edition). É interessante verificar que a questão da liberdade se apresenta também no Tratado
Teológico–político, o que seria inconcebível, pelo conceito de liberdade da tradição, já que, se tudo é
necessário, qual seria o campo da ação política? Uma possível tradução para este excerto é a seguinte: “A
Natureza ela mesma é o poder de Deus sob outro nome, e a nossa ignorância sobre o poder de Deus é a

50
Trata-se, aqui, da análise do conceito de liberdade concebido pela
tradição, bem como sua recusa por Espinosa. A relação entre liberdade como exercício da
natureza da coisa e o conhecimento verdadeiro, bem como sua relação com a ação virtuosa
– isto é, com a ação ética – serão tratados de modo vertical em capítulo próprio. Na
verdade, a questão que liga liberdade como exercício da necessidade da natureza da coisa,
conhecimento verdadeiro do bom e do mau, bem como as noções de afetos passivos, ativos
e a criação da sociabilidade e do campo político serão tópicos de uma reflexão mais
vertical ao se tratar do direito, da sociabilidade, da política e da relação desses conceitos
com a ontologia em Espinosa. Trata-se, neste primeiro movimento do texto, apenas de
esboçar o conceito espinosano de liberdade necessária e sua relação com a noção de
substância – Deus -, a qual é causa de si quanto a Sua essência e existência como resultado
da necessidade de Sua natureza.
A tradição filosófica define a liberdade como escolha do sujeito
livre – por meio do exercício da faculdade do livre-arbítrio – entre vários possíveis que se
apresentam no campo da ação. Ou seja, dado um conjunto de opções no mundo da práxis,
trata-se, para os sujeitos dotados de liberdade, de escolher uma alternativa entre as
possíveis. Portanto, fala-se, na concepção da tradição, em livre-arbítrio como escolha entre
possíveis por intermédio da vontade. A vontade, por sua vez, seria um império num
império, isto é, seria um querer absoluto sobre as coisas, expresso pelo homem como um
querer e um poder. Assim, a vontade determinaria a escolha do sujeito no que se refere a
qualquer ação – mesmo a mais banal, como escolher entre o objeto X e o objeto Y. Por um
querer absoluto – a vontade -, o sujeito escolheria sair na rua em vez de ficar em casa, X
em lugar de Y. Estabelecido um telos, isto é, uma finalidade para a ação, bastaria a atuação
da vontade para efetivar este querer. Bastaria o exercício do livre-arbítrio para que a
finalidade da ação fosse perseguida e alcançada. Haveria um modelo a ser atingido,
colocado fora do sujeito, e alcançável pelo uso da vontade como exercício do livre-arbítrio.
Espinosa subverte esta tradição ao estabelecer uma realidade
imanente. Sendo Deus causa imanente85 eficiente de tudo, não há que se falar em

mesma em relação ao poder da Natureza. É loucura absoluta, conseqüentemente, não designar os eventos
como decorrentes do poder de Deus, quando não sabemos sua causa natural, que é o poder de Deus.”
85
Imanente significa o exato oposto de transcendente. Ou seja, ao negar um Deus aos moldes judaico-
cristãos – um Deus que transcende a criação - , Espinosa, como já visto, estabelece o conceito de Deus como
idêntico ao conceito de substância absolutamente infinita. Deus, ou seja, a substância. O uso do artigo
definido “a” é, aqui, de suma importância. Com efeito, há apenas uma – numeral cardinal – substância, com

51
contingência no sentido da tradição, isto é, contingência como contraponto ao necessário.
Trata-se de entender o contingente como a ignorância do sujeito no que se refere à
necessidade imanente de Deus, às leis necessárias que operam na natureza como sistema
complexo de causas. Portanto, não se fala em liberdade como escolha entre possíveis por
meio de uma vontade derivada do livre-arbítrio, em Espinosa. Da mesma maneira, não se
fala em contingente como o oposto ao necessário no sistema espinosano, isto é, como
aquilo que pode ser ora de uma maneira, ora de outra, e assim ao infinito. Ou seja, o
contingente, segundo a tradição filosófica, ocuparia o pólo oposto ao do necessário, isto é,
seria o campo em que as coisas poderiam variar ao infinito em sua maneira de ser. Apenas
para ilustrar este ponto: que se pense no necessário como as leis da natureza, apreendidas
pela ciência pelo método indutivo. De um conjunto de acontecimentos no mundo da
natureza, constata-se uma regularidade que se transforma em lei universal. Assim,
aquecido o metal, ele se dilata. Aquecida a água nas condições normais de temperatura e
pressão, ela entra em ebulição ao atingir determinada temperatura, que não sofre variação.
O campo do contingente seria aquele em que não há leis naturais, isto é, o que ocorre
poderia ser de uma infinidade de maneiras. Por exemplo, ao soltar um corpo pesado sobre
a terra, em vez de haver a ação da força gravitacional sobre ele, ocorreria o seu
deslocamento para o lado, ou mesmo para o alto, ou, ainda, o corpo desapareceria. Este
seria, de modo ilustrativo e no limite, o campo do contingente. Ou, ainda, para estabelecer
um exemplo no campo da ação ética, segundo a tradição, o contingente seria o campo em
que o indivíduo pode atuar sem ser coagido pela necessidade. Isto é, dá-se no campo do
contingente, segundo esta tradição, tudo aquilo que pode ser escolhido entre diversos
possíveis: o que não é determinado, o que não obedece às leis naturais, é parte do campo

infinitos atributos, cada um dos quais eterno em seu gênero. A substância – ou Deus – é causa imanente
eficiente – e não causa transcendente – de todas as coisas. Para esclarecer a noção de causa eficiente, vale
lembrar a doutrina aristotélica das quatro causas. Para o pensador grego, haveria quatro causas no cosmos (é
importante lembrar que, para os gregos, ainda não existia a noção galileana segundo a qual não há um
cosmos, isto é, uma ordem fechada) : causa material, causa formal, causa eficiente e causa final. Um exemplo
pode aclarar este ponto. Pense-se em uma cadeira feita com madeira. A causa material da cadeira é a
madeira, isto é, a árvore que, pela ação humana, passa a ser a não-árvore. A causa formal, a forma que dá à
madeira a característica de cadeira, isto é, a forma cadeira. A causa eficiente é o carpinteiro que, tendo a
forma cadeira em sua mente, deu origem à cadeira por meio de um exercício de causa e efeito que fez da
madeira – matéria bruta – algo com a forma cadeira. A causa final, por fim, seria o telos da cadeira, isto é,
sua função na ordem do mundo.
Pois bem, Espinosa recusa a noção de finalidade, dando lugar à noção de causa eficiente, isto é, ao
desdobramento de causas e efeitos imanentes à natureza necessária de Deus. Por isso Deus, para Espinosa, é
causa imanente eficiente de todas as coisas. Trata-se da única substância em que tudo se dá pela causa
eficiente imanente de Sua potência. Este ponto – o da potência divina – será retomado no momento em se
tratará do contradiscurso espinosano no que se refere ao conceito de direito natural.

52
em que a vontade, por meio do livre-arbítrio, age imperiosamente, ditando os caminhos a
serem seguidos.
Em Espinosa, o conceito de contingente adquire outro sentido. Fala-
se, a rigor, em contingente como a ignorância quanto à causa necessária86. Isto é, a
ignorância quanto à causa necessária não é senão o que Maquiavel chama de atuação da
fortuna, aquilo sobre o que não se tem controle. Mas isto não significa que aquilo que está
sob a ação da fortuna não tenha causa E, também, fala-se em necessário como aquilo que
vem da causa eficiente imanente de tudo, isto é, de Deus ou da substância.
Portanto, para Espinosa, não se pode falar em necessário como
sendo a regularidade da physis em contraposição ao contigente como aquilo que pode
variar sua maneira de ser ao infinito. Muito ao invés, em Espinosa, por tudo se dar segundo
a causa eficiente imanente da substância – sem nenhum finalismo, sem que se fale em
causa final -, não há o contingente como aquilo que pode variar ao infinito em sua maneira
de ser. O contingente ou a fortuna é a ignorância do modo finito da substância – no caso, o
modo humano – no que se refere às muitas causas necessárias que operam no real. Por não
haver, para o ser humano , o conhecimento da rede de causalidades que forma o real,
forma-se o conhecimento imaginativo segundo o qual há coisas que se dão de maneira
contingente, para além da necessidade das lei da natureza da substância.
Eis que a superstição – ou, para usar um termo anacrônico, a
"ideologia" – entra em ação estabelecendo causas imaginativas para os eventos do mundo.
Daí toda sorte de rituais nas diversas seitas e manifestações religiosas para tentar entender,
inadequadamente, a mente de Deus e Sua vontade imperiosa. Daí a procura da estabilidade
nas mais diversas manifestações do pensamento imaginativo atuando na criação das
superstições como explicações sobre o que não se conhece.

86
Lia Levy, em sua obra intitulada O autômato espiritual: a subjetividade moderna segundo a Ética de
Espinosa. Porto Alegre, ed. L&PM, 1998, p.104, diz a respeito do conceito de contingente em Espinosa – ou
melhor, de recusa desse conceito por Espinosa - que o fato de os indivíduos ignorarem a rede causal
necessária da substância não implica o contingente. Tudo tem causa, pelo conceito de Deus elaborado no
sistema espinosano. As causas são necessárias porque se dão, sempre, na imanência da substância. É porque
os seres humanos são modos finitos da substância que eles não conhecem toda a rede causal que se manifesta
na imanência. Portanto, as coisas que os humanos chamam de contingentes não são senão a ignorância do
modo finito da substância - em função de sua finitude - da rede causal necessária que opera no real.
Diz a autora: “os homens têm consciência de suas ações, volições e de seu apetite, ignorando, porém, que
são determinados por certas causas a agir, a querer e a apetecer. A questão anteriormente colocada deve
ser agora reformulada da seguinte maneira: por que o simples fato de ter consciência de que eu quero uma
coisa ignorando o fato de que há causas que me determinam a querê-la, conduz-me a afirmar que minha
vontade é a única causa desse meu querer?” (p.14).

53
Não por mero acaso, no prefácio do Tratado Teológico-político87 ,
Espinosa escreve: “Se os homens pudessem, em todas as circunstâncias, decidir pelo
seguro, ou se a fortuna se lhes mostrasse sempre favorável, jamais seriam vítimas da
superstição. Mas, como se encontram freqüentemente perante tais dificuldades que não
sabem que decisão hão de tomar, e como os incertos benefícios da fortuna que
desenfreadamente cobiçam ou fazem oscilar, a maioria das vezes, entre a esperança e o
medo, estão sempre prontos a acreditar seja o que for: se têm dúvidas, deixam-se levar
com a maior das facilidades para aqui ou para ali; se hesitam, sobressaltados pela
esperança e pelo medo em simultâneo, ainda é pior; porém, se estão confiantes, ficam logo
inchados de orgulho e presunção. (...) A que ponto o medo ensandece os homens? O
medo88 é a causa que origina, conserva e alimenta a superstição.”
Ou seja, a condição de modo finito da substância, que é condição
dos homens, ao ser a condição daquele que é levado pela força das paixões – como o medo
e a esperança -, faz com que a ignorância do conhecimento imaginativo seja o guia das
ações para perseverar no ser. Ainda mais. Ao não buscar o conhecimento verdadeiro do
bom e do mau – mas se deixar levar pelo conhecimento imaginativo, próprio da
superstição, faz com que a ignorância da verdadeira rede de causalidades necessárias, em
que a ação humana é apenas uma causa entre inúmeras outras causas eficientes, seja
colocada como o que não tem regra, o contingente, o que poderia variar ao infinito em sua
maneira de ser.
Sobre a relação entre Deus como causa eficiente imanente de todas
as coisas – Natura naturans – e a noção de liberdade para os humanos, enquanto modos da
substância, como uma liberdade necessária – os humanos são parte da Natura naturata -,
esclarece Marilena Chaui89 : “Nada há de contingente na Natureza, explica Espinosa no
Breve Tratado e nos Pensamentos metafísicos, e o demonstra na Ética. Assim como a

87
Espinosa. Tratado Teológico-político. Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio. Lisboa,
Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1988, p. 111 e 112.
88
Para reforçar a tese segundo a qual não há ruptura no pensamento de Espinosa, principalmente entre sua
Ética e sua obra política – como é o caso do Tratado Teológico- político, basta que se pense que a passagem
ora citada tem correspondente na parte III da Ética, como se depreende do escólio da proposição L : “as
coisas que são acidentalmente causas de esperança ou de medo vêm designadas por presságios bons ou
maus. (...) Nós estamos por natureza dispostos a acreditar facilmente naquilo que esperamos e dificilmente
naquilo que tememos (...). É essa a origem das superstições que provocam em toda parte a guerra entre os
homens. Aliás, não creio que valha a pena mostrar aqui as flutuações da alma que nascem da esperança e
do temor, visto que pela simples definição desses sentimentos nós vemos que não há esperança sem temor
nem temor sem esperança”(...).
89
Marilena Chaui. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol. I: imanência. São Paulo, ed.
Cia. das Letras, 1999, p. 77.

54
essência e a potência necessárias da substância a fazem causa de si livre porque
necessária, isto é, espontaneidade infinita que é sua própria natureza, assim também a
necessidade se transmite a todas as suas modificações. Os modos finitos são duplamente
determinados: sua essência é determinada pela essência e potência dos atributos
substanciais, e sua existência é determinada por séries causais que regem a Natureza
Naturada. Simultaneamente, um modo finito existente é uma essência singular e uma
potência de existir e agir, tornando-se uma causa eficiente também. Para os humanos,
liberdade e servidão não se definem como efeitos de uma vontade livre para escolher entre
várias possibilidades, mas no interior da causalidade necessária que produz as essências e
existências singulares. Essa causalidade pode efetuar-se como causa eficiente inadequada,
na servidão, e se realiza como causa adequada, na liberdade. Somente quando se desfaz o
vínculo secular entre liberdade e contingência uma nova idéia da necessidade e da
liberdade poderá articulá-las internamente.”
Na carta 58, de Espinosa a Schuller90, Espinosa afirma que aquilo
que é livre assim o é e assim age pela necessidade de sua natureza. Por outro lado, não
livre - ou constrangido – é aquilo que é determinado por outro a existir e operar. Diz o
autor: “como vês, portanto, não ponho a liberdade num livre decreto, mas numa livre
necessidade. Quanto às coisas criadas, são determinadas a existir e operar de maneira
certa e determinada. Para que me entendas, dou-te um exemplo simples. Uma pedra que
recebe de uma causa externa uma certa quantidade de movimento prosseguirá no
movimento até que o impulso externo cesse. Sua permanência no movimento é um
constrangimento externo, não porque seja necessária, mas por definir-se pelo impulso de
causas externas; e o que é dito da pedra deve ser dito de toda coisa singular, seja qual for
sua complexidade e sua aptidão para uma pluralidade de coisas: toda coisa singular, com
efeito, é necessariamente determinada por uma causa externa a existir e a agir de maneira
certa e determinada . Concebe agora, se quiseres, que a pedra, enquanto continua a
mover-se, saiba e pense que se esforça tanto quanto pode para continuar a mover-se.
Seguramente essa pedra, visto que não é consciente senão de seu esforço, e não é
indiferente, acreditará ser livre e que persevera no movimento apenas porque quer. É esta

90
Ibid. Nota 136 da Introdução. Ou, ainda, na edição de R.H.M. Elwes ( Spinoza. Correspondence.
Translated from the latin by R.H.M. Elwes. Dover publications, New York, 1955 – first edition, p. 390), diz
Espinosa: “I, therefore, pass on to the definition of liberty, which he says is my own; but I know not were he
has taken it. I say that a thing is free, which exists and acts solely by the necessity of its own nature. Thus
also God understands Himself and all things freely, because it follows solely from the necessity of His nature,
that He should understand all things. You see I do not place freedom in free decision, but in free necessity.”

55
a tal liberdade humana que todos se jactam de possuir e que consiste apenas em que os
homens são conscientes de seus apetites, mas ignorantes das causas que os determinam. É
assim que uma criança crê desejar livremente o leite, um menino, querer vingar-se, se
irritado, mas fugir, se amedrontado. Um ébrio crê dizer por uma livre decisão aquilo que,
sóbrio, desejaria ter calado. Da mesma maneira, um delirante, um tagarela e muitos
outros de mesma farinha acreditam agir por uma livre decisão de sua mente e não levados
por impulsos. E porque esse preconceito é inato em todos os humanos, dele não se livram
facilmente.”
Está delineado, nessas palavras do autor, um contradiscurso cuja
idéia paradoxal do que seja a liberdade humana coloca muitas interrogações no leitor.
Mas não deve haver espanto algum. Afinal, esta noção de liberdade
se dá como conseqüência da ontologia espinosana – ou, por outra, de sua metafísica. De
fato, pela ontologia espinosana, em função de o humano, bem como todas as coisas
singulares, não serem senão modos – no sentido de modificações, ou expressões de dois
dos infinitos atributos divinos, quais sejam, o pensamento e a extensão – de Deus, a noção
de liberdade somente poderia ser algo cujo alvo fosse o pensamento imaginativo 91 da
tradição contra a qual Espinosa escreve.

91
Espinosa concebe o conhecimento como sendo de três gêneros, como já se disse em capítulo anterior. Há o
conhecimento imaginativo, isto é, aquele que se dá por meras formações de imagens na mente do homem.
Há, também, o conhecimento racional, que, na concepção de Espinosa, é aquele capaz de compreender
corretamente a realidade das coisas, aquele que é genético, isto é, que vai à gênese do objeto sob análise. Há,
por fim, o conhecimento intuitivo, que prescinde do discurso e tem acesso à realidade de tudo. Este terceiro
gênero de conhecimento é próprio de Deus enquanto Natureza Naturante, e, ainda, próprio do sábio,
enquanto Natureza Naturada.
O importante, aqui, é ressaltar dois pontos cruciais para entender o ataque de Espinosa à tradição. Em
primeiro lugar, deve-se entender Espinosa como um autor que pensa o real como podendo ser compreendido
pela mente humana enquanto esta é uma modificação do atributo pensamento em Deus. Sendo o homem um
modo da substância, ele o é enquanto é expressão de dois dos infinitos atributos divinos, quais sejam, a
extensão e o pensamento. O pensamento humano pode alcançar a realidade se entende o real de modo
adequado, isto é, racional. A correspondência entre a idéia e o ideado – entre a consciência da coisa e a coisa-
em-si, para usar um anacronismo kantiano – se faz, em Espinosa, entendendo-se que a verdade é critério dela
mesma. Não é a realidade da coisa que confirma a veracidade do pensamento sobre ela, mas é a veracidade
do pensamento, por meio de sua coerência interna, que é critério de si mesmo e do real. A somatória dos
ângulos internos do triângulo é sempre igual a dois retos. A demonstração dessa idéia se dá por critérios
demonstrativos que obedecem a um rigor que é critério de si mesmo. Espinosa entende que isto pode ocorrer
também em relação ao conhecimento das coisas para além das idealidades matemáticas.
Em segundo lugar, é importante entender que, para Espinosa, a idéia de liberdade como livre-arbítrio não é
senão uma idéia imaginativa. Por isso, não se trata de conhecimento verdadeiro tal qual o concebe Espinosa.
Quanto às maneiras de conhecer em Espinosa, ou, mais precisamente, quanto às três estruturas de
conhecimento de que são capazes os seres humanos, que o leitor se reporte à seguinte obra: Lívio Teixeira. A
doutrina dos modos de percepção e o conceito de abstração na filosofia de Espinosa. São Paulo, ed. Unesp,
2001.

56
A separação entre necessidade como aquilo que não pode ser de
outra maneira – ou, por uma definição positiva, as leis da natureza – e a liberdade como
possibilidade de escolha entre possíveis por meio da vontade imperiosa não tem lugar no
sistema espinosano. Espinosa elabora uma articulação tal entre modo da substância, como
natureza naturada, e substância, como natureza naturante, que os modos são – e somente
podem ser - a expressão da necessidade de Deus. Nessa medida há apenas liberdade
necessária, ou seja, expressão da natureza da coisa como sendo a liberdade verdadeira, não
a idéia imaginativa de um livre-arbítrio.
Mas, poder-se-ia perguntar, em que consiste, ainda mais
detalhadamente, esta liberdade necessária que não mais é uma escolha livre de um sujeito
livre entre uma série de possíveis que se apresenta mas é, na verdade, uma liberdade que se
expressa na potência do modo ao exercer as leis necessárias de sua natureza?
Ora, a expressão “livre pela necessidade de sua natureza” significa
recusar a existência da noção de vontade como livre escolha e afirmar a noção de liberdade
como o exercício das determinações que são próprias da natureza do sujeito que age
livremente. O sujeito que age livremente é um modo da substância. Não há, em Espinosa,
como ocorre com a tradição que remonta a Aristóteles na Ética a Nicômaco e passa por
Agostinho em seu O Livre-arbítrio, a dicotomia “por natureza”, de uma lado, e “por
vontade”, de outro92 . Esta tradição entende a expressão “por natureza” como aquilo que
ocorre como não podendo ser de outro modo. Aquecido o metal, necessariamente ele se
dilata. Da mesma maneira, a expressão “por vontade” é o contraponto à expressão “por
necessidade” e significa o exercício do livre-arbítrio como escolha. O menino que,
amedrontado, foge, teria escolhido tomar tal atitude. Em Espinosa, em contraposição a isto,
“é livre o que age por necessidade de sua natureza e não por causalidade da vontade.” 93
Portanto, em função de não haver transcendência alguma, mas
apenas imanência de tudo o que existe na substância, que é causa de tudo o que há porque
é causa de si, não cabe falar em livre-arbítrio como faculdade do ser criado. Se tudo se dá
por imanência - por causa eficiente imanente -, o conceito de liberdade muda de sentido,
isto é, é reformulado. Não se trata mais de escolha entre possíveis por meio de uma
vontade imperiosa, mas de exercício da natureza da coisa na imanência.

92
Marilena Chaui. A Nervura do Real: imanência e liberdade em Espinosa. Vol. I: imanência. São Paulo, ed.
Cia. das Letras, 1999, p. 78.
93
Ibid. p. 81.

57
Assim, sendo o ser humano desejo de perseverar no ser94 – sendo
sua essência atual o desejo de continuar existindo, pois é potência para ser, pois sua
natureza é em Deus de maneira finita - , a liberdade consistirá no exercício dessa natureza
de perseverar no ser, no exercício da potência de perseverar na existência. Para isso, será
importante que se entenda a noção de conhecimento verdadeiro do bom e do mau, bem
como dever-se-á entender em que medida a força das paixões deve ser compreendida para
o efetivo exercício da liberdade-necessária. A relação entre liberdade-necessária, virtude,
conhecimento do bom e do mau, direito e paixões será tema de capítulo específico. Apenas
para refinar ainda mais esta virada espinosana no que se refere ao conceito de liberdade, é
interessante explicitar o que diz uma conceituada comentadora da obra de Espinosa.
Diz Lia Levy95: “É fundamental precisar que não se trata, nesse
caso, de abandonar a noção de vontade, mas apenas uma determinada compreensão dessa
noção, a saber, aquela que a define como um poder infinito (ou indefinido) absolutamente
indeterminado de afirmar ou de negar, de fazer ou de não fazer. Da mesma forma, não
será a noção de liberdade que será considerada como uma ilusão, mas a compreensão da
liberdade como livre-arbítrio, na medida em que tal compreensão constitui, de acordo com
Espinosa, um obstáculo à conquista da verdadeira liberdade.”
Ora, por que a noção de liberdade como um império num império
constituiria um obstáculo à verdadeira liberdade? Precisamente na medida em que isto
seria negar, a priori, o que Espinosa constata como sendo constitutivo do real, a saber, a
rede causal da qual a causa humana, enquanto modo finito da substância, é apenas e tão-
somente uma das causas. Daí que Espinosa faça a comparação, na Carta 58, entre a pedra
que tem consciência do movimento e a noção de liberdade como livre-arbítrio: a pedra que
tivesse consciência do movimento pensaria que seu movimento se dá por uma vontade sua
de se movimentar, enquanto, na realidade, ela fora movimentada por outrem. Da mesma
maneira, o homem amedrontado que pensa fugir por vontade própria ignora a verdadeira
causa de sua fuga: um afeto triste, qual seja, o medo. Apenas quando sabe corretamente,
segundo as estruturas de conhecimento que dão acesso à verdade como critério de si
mesma, o homem pode ser ativo. E ser ativo é ser causa adequada. Ser causa adequada é
ser causa total do efeito. Isto somente pode ser realizado quando a mente é ativa, produz,

94
Espinosa. Ética. Parte III, Proposição VII. Tradução de Joaquim Ferreira Gomes. São Paulo, Abril
Cultural, 1973, p. 189.
95
Lia Levy. O autômato espiritual: a subjetividade moderna segundo a Ética de Espinosa. Porto Alegre, ed.
L&PM, 1998, p.105.

58
segundo suas operações, o efeito. Mas isto não significa liberdade absoluta. Esta é própria
da substância que cria a si mesma e todos os seu efeitos enquanto natureza naturante. O
homem, enquanto natureza naturada, por estar submetido a indefinidas causas, apenas é
livre ao exercer sua natureza de potência para perseverar segundo sua natureza de parte em
Deus. Ser causa, no mundo cotidiano, é ser uma causa de uma rede causal. Ser causa
adequada implica, portanto, saber que 1) se é uma entre indefinidas causas e 2) ser causa
interna do efeito, isto é, conhecer verdadeiramente o bom e o mau – segundo o critério do
aumento do conatus – para realizar a natureza de modo finito própria a todos os humanos:
perseverar no ser.

***

Entender os conceitos de liberdade, de direito natural e direito civil,


de melhor forma de regime político, bem como entender a Ética espinosana demanda
entender que tudo está em Deus, isto é, tudo está na substância. Isto, como ficou
explicitado acima, não significa um fatalismo ou um misticismo, na medida em que
Espinosa não conceitua liberdade segundo a tradição, mas reformula o conceito de
liberdade em função de sua ontologia.
A razão para refutar aqueles que pensam Espinosa como fatalista ou
místico como sendo razão impossibilitadora de suas concepções políticas e éticas é
simples: como entender que um autor que é considerado místico ou fatalista pode conceber
uma obra política, como é o caso do Tratado Político e do Tratado Teológico-político? Ou,
mais precisamente, se tudo está em Deus e o modo finito da substância depende de Deus
para ser, e, ainda, se este modo finito apenas age pela natureza necessária de Deus, qual
seria o espaço para a ação política, bem como para a ação ética?
Ou seja, ou há uma ruptura entre a metafísica espinosana e seu
pensamento político96, ou não há tal ruptura e a política se dá no interior mesmo da
metafísica espinosana, no interior da imanência da substância e como expressão da causa
eficiente imanente da substância.

96
Esta é a posição de Antônio Negri. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza. Tradução de
Raquel Ramalhete. Rio de Janeiro, ed. 34, 1993. Outro comentador que diverge de Negri é Maria Luísa
Ribeiro Ferreira. A dinâmica da razão na filosofia de Espinosa. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,
1997, p. 490.

59
Isto é, a política se dá em Deus ou na substância por meio da ação
dos modos finitos humanos: os indivíduos de carne e osso ao conceberem o campo político
para perseverarem em seu ser e exercerem sua natureza humana com maior eficácia –
perseverarem no ser como exercício de sua essência atual97.
Apenas para que se tenha um contraponto àquilo que vem se
desenvolvendo até o presente movimento da dissertação, há um importante autor
contemporâneo que estuda a obra de Espinosa – Antônio Negri - que defende a tese de que
há, no interior do sistema espinosano, uma ruptura entre a metafísica e a política –
incluindo, nesta seara, parte do pensamento ético espinosano. Mais precisamente, haveria
uma ruptura entre, de um lado, as partes I , II da Ética e sua continuidade, isto é, as partes
III, IV e V. Haveria, do mesmo modo e no mesmo sentido, uma ruptura entre a ontologia
da Ética – suas partes I e II - e as obras políticas de Espinosa (Tratado Teológico-político e
Tratado Político).
Na verdade, Negri98 diz, a respeito da ruptura no interior do sistema
espinosano, o seguinte: “Existem então dois Espinosas? É bem possível. Ao ritmo da
anomalia holandesa, determina-se efetivamente um potencial teórico que, sem deixar de se
enraizar no conjunto complexo desenvolvimento capitalista e no âmago de seu invólucro
cultural, evoluiu então numa dimensão futura, numa determinação que ultrapassa os
limites do tempo histórico. A crise da utopia da gênese burguesa, a crise do mito
originário do mercado – esse momento essencial da história da filosofia moderna -, não
significa em Espinosa recolhimento, mas salto, avanço, projeção no futuro. A base se
decompõe e libera o sentido da produtividade humana, a materialidade de sua esperança.
A crise destrói a utopia em sua determinidade histórica de utopia burguesa, dissolve sua
superficialidade contingente e abre-a, em compensação, para a determinação da

97
Espinosa. Ética. Parte III, proposição VII. Tradução de Joaquim Ferreira Gomes. São Paulo, Abril
Cultural, 1973, p. 189: “O esforço pelo qual toda coisa tende a perseverar no seu ser não é senão a essência
atual dessa coisa”. Na Proposição VI, invocada, entre outras proposições, na demonstração da proposição
VII, Espinosa diz: “Toda coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser”. Por essência
Espinosa não entende um universal que está na mente de Deus e que, por Sua vontade, passa a fazer parte da
criação. Por exemplo: da essência universal de homem, Deus, por Sua vontade, cria este homem Paulo ou
este homem Pedro. A essência, para Espinosa, em função da imanência de tudo, não é um universal na mente
de Deus – isto não faria sentido -, mas é sempre, como diz a proposição VII da parte III da Ética, uma
essência atual. Pedro tem, em determinado momento, uma essência em ato. O mesmo ocorre com qualquer
modo finito da substância, isto é, o homem, o cão, a árvore, etc. .
98
Antônio Negri. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio
de Janeiro, ed. 34, 1993, p.35.

60
produtividade humana, coletiva: a filosofia crítica instaura esse destino. Os dois Spinoza
serão naturalmente dois momentos internos de seu pensamento.”
Negri99 continua seu argumento cuja tese é a da ruptura do sistema
espinosano, em outro momento de seu texto, da seguinte maneira: “Esta certo, então, dizer
que o político é um elemento fundamental do sistema de Espinosa: mas só tendo em mente
que o próprio político é metafísico. (...) O político (...) é a metafísica da condição humana
do real, do mundo. (...) o ser (...) é atividade, potência, não há somente Natureza, há uma
Segunda natureza, natureza da causa próxima, ser construído: essas afirmações, que os
comentadores têm bastante dificuldade de enquadrar na imagem estática do spinozismo,
na figura imóvel da analogia cósmica, encontram, ao contrário, um lugar adequado nessa
nova abertura de sua filosofia. A atividade imaginativa conquista um estatuto ontológico.
Certamente não para confirmar a verdade da profecia, mas para consolidar a do mundo, e
a positividade, a produtividade, a socialidade da ação humana. É ela que representa o
absoluto. Nisso consiste a cesura corte, quebra, ruptura do sistema, mas nisto consiste a
enorme modernidade desse pensamento.”
A interpretação de Negri realiza a operação oposta àquela efetuada
pelos autores que vêem em Espinosa apenas um fatalista na medida mesma da imanência e
da existência de uma e apenas uma substância que opera por necessidade de sua natureza.
De fato, se há apenas uma substância que opera por causalidade
imanente e necessária, como pensar a ação livre? Como já visto, a ação livre apenas é
possível na substância como exercício da natureza do modo finito, não como projeção de
um telos a ser alcançado por uma vontade que é fruto do livre-arbítrio. Uma vontade que
seria, como visto, um império num império, um poder absoluto do querer, que, em
verdade, ignora a incalculável teia de causalidades que governa, de maneira necessária, o
real, e, conseqüentemente, cada um dos modos finitos que existem em Deus, na imanência
da substância.
O que Negri propõe é a prevalência do mundo em relação à
substância, do dinâmico em relação ao estático, do poder de plasmar o mundo em relação
ao cosmos. Se os que pensam Espinosa como fatalista o pensam em função da prevalência
do Um ontológico em que tudo se dissolveria, havendo apenas lugar para o necessário,
Negri dá lugar ao mundo ético-político, ao campo das ações humanas como sendo um
para-além-da-substância – como coisa estática - e, ademais, este seria o ponto que deveria

99
Ibid. p. 143.

61
ser considerado inovador no pensamento de Espinosa. Se o ser singular é real e é
potência, eis a força do ser para moldar o mundo exercendo sua natureza de potência
contra o que impede o seu desejo de perseverar. Eis a “enorme modernidade desse
pensamento”, isto é, a maneira como Espinosa concebe o direito, a ética e a política para
além do bem e do mal, para além do modelo normativo que deve ser seguido para que a
ação seja virtuosa. Sendo o campo do real algo em que a essência singular exerce sua
natureza de potência – seja essa essência o indivíduo, seja ela o corpo coletivo na ação
política -, o fato é que esse desvencilhamento mesmo do pensamento de uma
normatividade modelar seria a inovação máxima trazida por Espinosa.
O que Negri nega é, portanto, exatamente, duas coisas.
Primeiro: o que as interpretações fatalistas e panteístas fazem de
Espinosa – focando em demasia sua ontologia em detrimento de sua ética e de sua política,
ou, mais precisamente, dizendo que não há seres singulares reais, mas ilusões de
existências finitas no real, as quais não são senão epifenômenos da substância100.
Segundo: que a política e a ética de Espinosa possam se dar no
interior mesmo da substância. Haveria, isto sim, uma prevalência da metafísica do mundo
como inovação espinosana, mas sem possibilidade teórica de resolver a questão do político
e do ético na imanência. Em outra palavras: para Negri, é mais interessante do ponto de
vista teórico focar o Espinosa inovador na política, no direito como potência e na ética que
dar atenção aos problemas ontológicos que se chocam teoricamente com a parte política do
pensamento. A cesura do sistema não implica, diz Negri, que se retire a atenção do que
interessa sobremaneira no pensamento de Espinosa: sua inovação ético-político-jurídica,
seu contradiscurso nesta área.
Em uma palavra: vale em Espinosa sua inovação ética
estabelecendo a ação humana – seja ela ética, seja ela jurídica, seja ela política -, para além
dos conceitos normativos e teleológicos de bom e mau como instâncias absolutas e
indicadoras do valor da ação. Por não haver nenhuma espécie de finalismo no pensamento
do autor, a ação humana não se divide entre ação e ação virtuosa. Esta, tendo como telos
um fim considerado bom, aquela tendo como telos um fim qualquer que não o virtuoso.
Não há modelo normativo - ou de ação - algum a ser seguido para estabelecer o lugar do
bom e do mau. O bom e o mau, como se verá de maneira vertical em outro capítulo, não

100
Sobre a existência de seres singulares reais segundo a concepção espinosana, mesmo com a noção
ontológica de uma e apenas uma substância, verificar o ensaio de Marilena Chaui (Espinosa e a essência
singular. Cadernos Espinosanos (VIII). São Paulo, Discurso editorial, 2002).

62
são senão aquilo que aumenta ou diminui a potência do ser para exercer sua natureza de
modo finito, isto é, o que aumenta ou diminui o conatus. Portanto, são conceitos relativos
ao conatus, seja ele individual, seja ele coletivo.
Na política isto também tem amplas repercussões. Com efeito, sendo
o campo político a instituição de um regime de governo pelo próprio corpo político, o bom
e o mau também serão entendidos como funções do aumento ou da diminuição da potência
da multitudo – ou corpo coletivo – para exercer sua natureza de potência. Isto é, um corpo
coletivo será tão mais coeso quanto mais a potência deste corpo for distribuída pelos seus
membros no momento de conceber o direito civil. Na monarquia, esta proporção tende a
zero na medida em que todo o poder do corpo coletivo se encontra concentrado nas mão de
um. Daí o perigo da tirania, isto é, que esta concentração de poder se reverta não para
interesses do corpo coletivo, mas para interesses de poucos. Daí, também, o interesse, para
Espinosa, pelo regime democrático: nele, a proporção da potência do corpo coletivo tende
ao máximo, porque a distribuição da potência tende á concentração zero: ela está diluída
no corpo político como um todo. De fato, a potência para a feitura do direito civil está nas
mãos de todos. Todos governam, isto é, fazem as leis civis, e são governados por estas
mesmas leis civis. É na democracia que o direito natural – potência, como se verá – se
exerce de maneira mais plena.
Mas este ponto será analisado de maneira mais vertical ao se tratar
da política e do melhor regime político dada a ontologia espinosana. Apenas mais um
ponto sobre a conseqüência política da ontologia espinosana e de seus conceitos
reformulados frente à tradição: em vez de tratar da questão do melhor regime à luz da mera
divisão entre monarquia como governo de um, aristocracia como governo dos melhores e,
finalmente, democracia, como o governo de todos, Espinosa inova ao propor algo diverso.
O melhor regime, dado que o corpo político não é senão potência coletiva, se dá pela
análise da proporção da participação da potência da multitudo na formulação das normas
que são dadas ao corpo político. Mas que se deixe este ponto para capítulo específico, em
que ficará clara a ligação entre potência individual, potência coletiva, direito e regime
político mais apropriado à natureza humana, entendendo-se esta, como já ficou claro em
outros capítulos, como modo finito da substância.
Porém, voltando à questão da cesura do sistema espinosano na
interpretação de Negri, o que Espinosa diz é exatamente que a imanência da substância

63
única não implica nem fatalismo, por um lado, nem ruptura em relação ao seu pensamento
ético e político, por outro .
Com efeito, como pensar que Espinosa sempre teve uma
participação política ativa, tendo sido excomungado da sinagoga e das práticas da religião
judaica exatamente por pensar que estas práticas eram contra a liberdade de pensamento e
de expressão? A práxis de Espinosa, para usar um termo anacrônico, bem como sua obra
política e o fato de sua Ética unir ação e ontologia, são expressões que evidenciam a
unidade de sua obra. Evidenciam, também, a reelaboração de conceitos tão caros à sua
época e que foram, de algum modo, formadores da maneira de ser da contemporaneidade.
Ainda: como pensar que Espinosa dedica uma série de capítulos de
seu Tratado Teológico-político à história de um povo singular, qual seja, o povo hebreu?
Isto é, se há análise da história como lugar feito pela ação humana, como dizer que há
fatalismo em Espinosa?
Ler Espinosa implica entender sua obra por ela mesma. Significa,
sobretudo, entendê-la não pelo que ela tem de falta101 em relação aos conceitos da tradição
com a qual ele dialoga – e contra a qual ele escreve -, mas compreendê-la pelo que ela traz
de novo nela mesma para o seu tempo. É por essa leitura que se optou nesta dissertação.
Quanto aos temas da liberdade necessária como manifestação da
causa eficiente imanente da substância e sua relação com o conceito de direito como
potência e com a maneira como Espinosa concebe a criação do corpo político, eles serão
analisados de maneira mais vertical nos capítulos subseqüentes. A questão política do
melhor regime será tratada à luz das inovações espinosanas, bem como à luz do conceito
de liberdade necessária que se depreende da noção de substância como causa de si no que
tange a sua essência e existência.
Coube a este capítulo apenas a questão da substância como sendo a
instância em que o real opera segundo a estrita ordem do necessário, que é ao mesmo
tempo a ordem de um Deus que se expressa segundo a imanência, sem qualquer
transcendência. A metafísica de Espinosa é, portanto, uma metafísica da imanência. Tudo o
que é, é em Deus. A ética e a política não escapam a esta necessidade e afloram na
imanência do real como resultado da atuação dos seres singulares finitos, isto é, da ação
dos seres humanos na natureza naturada – como modos finitos da substância -, expressão

101
Conferir nota 19.

64
da natureza naturante – os dois atributos divinos que se expressam na natureza naturada
de maneira infinita e finita, quais sejam, o pensamento e a extensão.
Em uma palavra: é na imanência do real, com suas operações
necessárias, que surgirá o pensamento ético-político de Espinosa. Isso não é
impossibilitado pela existência de uma e apenas uma substância, pois, como visto,
liberdade necessária não implica fatalismo, bem como isso não implica, como se depreende
da interpretação de Negri, uma prevalência da potência das coisas singulares sobre a
ontologia, significando uma cesura no sistema. Em vez disso, é na ontologia do necessário
que o ético e o político são instituídos pelo exercício humano - como coisa singular - que
expressa a potência da substância em sua modificação finita. Surge, assim, o direito como
potência, para além da norma como pura formalidade – modelo - que institui um dever-ser,
bem como para além da ética como ação com vistas a um telos bom, critério mesmo da
ação virtuosa.
O conhecimento verdadeiro do bom e do mau, o direito como
exercício da potência dos seres singulares na substância, a ação virtuosa como sendo a que
fortalece o conatus: tais inovações estabelecem o pensamento ético-político-jurídico de
Espinosa para além do bem e do mal como entes exteriores ao sujeito, bem como
instâncias absolutas, imutáveis e estáticas, a serem perseguidas.
Eis a medida e a potência filosófica do contradiscurso de Espinosa.

65
5.O Direito em Espinosa: o conatus

“Sendo a norma jurídica para [Luís


Recaséns] Siches um pedaço de vida
humana objetivada, a lógica a ser
empregada na interpretação do
Direito, deve estar, necessariamente,
condicionada pela realidade
concreta.”

Lídia Reis de Almeida Prado102

(...)“o direito da natureza estende-se


até onde se estende a sua potência, pois
a potência da natureza é a própria
potência de Deus, o qual tem pleno
direito a tudo. (...) o direito de cada um
[na natureza] estende-se até onde se
estende sua exacta potência. E, uma
vez que é lei suprema da natureza que
cada coisa se esforce, tanto quanto
esteja em si , por perseverar no seu
estado, sem ter em conta qualquer
outra coisa a não ser ela mesma,
resulta que cada indivíduo tem pleno
direito a fazê-lo, ou seja (conforme já
disse), a existir e agir conforme está
naturalmente determinado.” (...)

102
Lídia Reis de Almeida Prado. Alguns aspectos sobre a lógica do razoável na interpretação do direito. In:
Di Giorgi, Beatriz & Campilongo, Celso Fernandes (coordenadores). Direito, Cidadania e Justiça. São
Paulo, ed. RT, 1995. A expressão entre colchetes é minha.
É interessante notar uma certa semelhança, neste ponto, entre Siches e Espinosa. Talvez não seja exagero
dizer que o direito como algo que se produz pela potência coletiva – o direito civil em Espinosa – não seja
muito diferente de uma concepção de direito que não se explicite como mera abstração, mas seja algo
estritamente vinculado à realidade concreta, sob pena de haver um distanciamento cada vez maior entre
direito como abstração normativa – inclusive no que se refere às regras para sua interpretação – e a realidade
concreta.

66
O direito natural de cada homem
determina-se, portanto, não pela recta
razão, mas pelo desejo e a potência.”

Espinosa103

“Toda coisa se esforça, enquanto está


em si, por perseverar no seu ser”

“O esforço pelo qual toda coisa tende a


perseverar no seu ser não é senão a
essência atual dessa coisa.”

Espinosa104

103
Espinosa. Tratado Teológico-político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. Lisboa, ed. Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 1988, p. 308, 309. A expressão “na natureza”, entre colchetes, é minha. Deus é a potência
infinitamente infinita que é causa sui no que se refere à sua essência e existência. Deus é a natureza
naturante. Os homens, enquanto modos da substância infinitamente infinita, participam – ou, mais
precisamente, são em Deus - dessa potência, isto é, são, cada qual, potência para perseverar no ser. Os
homens estão na natureza naturada enquanto modos finitos – conatus corpo-mente - da substância infinita.
104
Espinosa. Ética. Parte III, proposições VI e VII. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho. Coleção Os
Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 188, 189.

67
a) Breve introdução: o direito como direito positivo

“Há mais de duas décadas que


empreendi desenvolver uma teoria
jurídica pura, isto é, purificada de toda
ideologia política e de todos os
elementos de ciência natural, uma
teoria jurídica consciente da sua
especificidade porque consciente da
legalidade específica do seu objeto.”

Hans Kelsen105

Na segunda metade do século XX, o direito, entendido como direito


positivo, isto é, como conjunto de leis emanadas do Estado segundo normas para produção
de normas – constituindo, assim, o ordenamento jurídico -, sofreu uma série de tentativas
de revisão de seus postulados e métodos.
O estudo do direito como ciência da norma positivada chegou ao seu
grande momento teórico com Kelsen (sobretudo em sua Teoria Pura do Direito). Kelsen
teve como objetivo principal, em sua obra, o de fazer com que o princípio de pureza fosse
aplicado ao direito como condição para sua cientificidade. A autonomia do jurídico frente
às demais ciências deveria ser alcançada para que o direito não se tornasse o local em que
todas as ciências têm participação, tornando a análise do fenômeno jurídico algo confuso,
não objetivo, pouco científico. A conseqüência dessa relação muito próxima entre direito
como norma positivada e psicologia, sociologia, moral, história, entre outras disciplinas,
seria a perda de exatidão e objetividade. Não se teria, nesses moldes, uma ciência rigorosa.
Dessa maneira, nada mais significativo para o campo jurídico do que
encontrar o seu próprio objeto de estudo, para além das ciências naturais – visto que o
direito não é uma ciência cujo objeto é o mundo do ser, mas tem a peculiaridade de ter
como objeto de estudo o dever-ser, isto é, a conduta positivada – e, simultaneamente, para
além de qualquer conceito metafísico de direito natural, de qualquer valoração ético-
política, próxima de um conceito de justiça.

105
Kelsen. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo, Ed. Martins Fontes,
1998, p. XI do prefácio à primeira edição.

68
Daí a necessidade do corte epistemológico como método para se
chegar à pureza do direito. Isto é, trata-se do estabelecimento, a partir de uma teoria do
conhecimento referente ao mundo jurídico, do objeto desta ciência peculiar como o dever-
ser. O dever-ser, objeto da ciência jurídica, não seria senão a norma posta pelo Estado
instituído, a objetivação da vontade do legislador . Eis tudo o que o jurídico, segundo a
Teoria Pura, deveria estabelecer como matéria bruta que a ciência do direito teria por
papel lapidar, dando à matéria-prima a sistematicidade própria a toda ciência . Além de o
estudo do direito, pela necessidade científica imposta pelo princípio de pureza, se
distanciar do fato social – próprio das ciências sociais, como sociologia e história -,
deveria, ao mesmo tempo, tomar distância de qualquer noção de valor, noções estas
próprias da uma ciência filosófica, qual seja, a ética. Kelsen explicita, em sua Teoria Pura
do Direito, que este não detém a exclusividade no mundo do dever-ser, pois a moral
também faz parte do mundo do mandamento, da conduta. Ocorre que, para a moral, que
também é formada por um conjunto de padrões de comportamento, não há uma instância
responsável pela aplicação da sanção que, no limite, pode utilizar a força física. No caso do
direito, o Estado é a instância responsável pela aplicação da sanção caso haja infração da
norma, isto é, caso haja o comportamento indesejado, inclusive com o uso da força física,
se necessário. Assim, diz Kelsen, o objeto da ciência do direito é a norma positivada pelo
Estado, o seu material bruto, por assim dizer, é a vontade do legislador objetivada. A
moral, também um aglomerado de padrões de conduta, muitas vezes advindos da tradição,
não se confunde com a ética. Esta, para Kelsen, é a ciência cujo objeto de análise – sua
matéria-prima – é a moral. Portanto, assim como a ciência do direito tem como objeto a
vontade do legislador objetivada, a ciência ética, para Kelsen, tem por objeto a moral.
O preço pago pela busca da exatidão no direito apenas se explicitou
com as lições da história ocidental do século XX. Por meio do direito como direito
positivo, regimes totalitários foram implantados sob a legalidade. Kelsen, na segunda
edição da Teoria Pura do Direito106, ainda dentro dos seus postulados e métodos, faz o
seguinte comentário a respeito da legalidade dos regimes totalitários: “Segundo o Direito
dos Estados totalitários, o governo tem poder para encerrar em campos de concentração,
forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça

106
Kelsen. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo, ed. Martins Fontes,
1998, p. 44.

69
indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não
podemos é considerá-las como situando-se fora da ordem jurídica desses Estados.”
Dada a possibilidade, para o direito, de ser uma ciência avessa a
qualquer ordem valorativa, bem como podendo, no limite, passar ao largo de questões
relativas à vida de milhares de pessoas, e ainda assim ser considerado direito, houve a
necessidade de revisão de postulados e métodos cujo refinamento teórico ocorrera com
Kelsen.
Pode-se conceber dois momentos explicativos para a necessidade
desse fenômeno de revisão de métodos e postulados do direito como ciência da norma.
Um primeiro momento é o da mudança da significativa confiança
nas instituições do início do século. Esta confiança sofre um abalo por razões históricas.
Ou seja, a confiança no Estado constitucional, na força das instituições jurídicas, na
consistência dos ordenamentos jurídicos e, por fim, confiança na concepção economicista
da política. Há um século, não havia qualquer desconfiança no que se refere às nações
organizadas sob o regime de governo da democracia constitucional, bem como no Estado
de direito, tendo em vista o fato de que estas instituições satisfaziam às aspirações das
nações e dos Estados. Porém – e este é o segundo momento explicativo -, sob essa
convicção, se constituíram, sob a forma da mais estrita legalidade – no sentido do direito
entendido apenas como direito posto pelo Estado institucionalizado -, catástrofes, como a
forma institucional do nazismo e do fascismo na Europa da primeira metade do século
XX107.
A identificação do direito ao direito posto e a confiança nas
instituições foi abalada pelo surgimento, no limite, de regimes totalitários absolutamente
legais, que retiravam sua legitimidade dos ordenamentos jurídicos positivados. O que,
aliás, não é negado por Kelsen como sendo direito, isto é, os ordenamentos jurídicos dos
Estados totalitários são direito. Kelsen, não se pode negar, é absolutamente coerente com
seus postulados e métodos. Com efeito, se a teoria do conhecimento referente ao mundo
jurídico estabelece como objeto do direto apenas e tão-somente a norma positivada pelo
Estado instituído, é simples verificar que é perfeitamente possível, a partir deste postulado
de que o direito é o ordenamento jurídico, um regime totalitário absolutamente legal.

107
Fernando Dias Andrade. Pax spinozana: direito natural e direito justo em Espinosa. Tese apresentada ao
Departamento de Filosofia da FFLCH-USP para obtenção do título de Doutor em filosofia. Orientador:
Professora Doutora Marilena de Souza Chaui. São Paulo, 2001, especialmente p. 14 a 18.

70
O ponto para o qual se deve atentar é: interessa, após os
acontecimentos históricos do século passado, insistir nos mesmos postulados e métodos
que permitem, no limite, ao direito, se dar mesmo em um regime totalitário e como molde
formal para sua atuação?
Paradoxalmente, como assinala Dalmo Dallari108, não obstante estes
acontecimentos históricos, o ensino do direito na América Latina se manifesta de forma
acrítica e desvinculada da realidade social. Basta que se atente, segundo o autor, para o fato
segundo o qual o ensino jurídico oscila entre dois pólos. De um lado, há uma infinidade de
doutrinas, que se dão no plano das abstrações. Portanto, totalmente coerentes com os
métodos kelsenianos, isto é, estudo de normas com vistas à sistematização do
ordenamento. De outro, há as aulas que consistem em meras informações sobre artigos de
lei. Nestas, o professor se limita à leitura do texto normativo, leitura que é seguida por
comentários, no mais das vezes superficiais, que nada acrescem ao sentido já explícito na
leitura do artigo de lei.

***

Ora, o que pode ser concebido como jurídico, tendo como horizonte
a sociedade e o Estado, para Espinosa, depende exclusivamente da qualidade das
instituições sociais produzidas pelos cidadãos. A medida da qualidade das instituições
sociais, no pensamento de Espinosa, é o fato de elas serem não obstáculo, mas instrumento
para a constituição da paz pública. Se os homens são levados a obedecer às instituições
civis, é por um impulso de sua própria natureza – seja por medo, seja para zelarem pela
segurança, etc.. Apenas na democracia é possível que a qualidade das instituições com
vistas à paz pública seja instituída – constantemente – pelo corpo coletivo, isto é, como
exercício da potência do corpo coletivo. Assim, há a satisfação de um impulso natural
segundo o qual ninguém quer ser governado e todos querem governar. Este ponto será
retomado ao se analisar o conceito de democracia, de modo mais vertical, na obra de
Espinosa. Por ora basta a constatação de que Espinosa concebe a segurança e o interesse do
Estado como a segurança e o interesse dos cidadãos. Isto significa dizer que não há

108
Dalmo Dallari. O poder dos juízes. São Paulo, ed. Saraiva, 1996, p.28.

71
separação, para Espinosa, entre Estado e sociedade109, ou entre Estado e conjunto dos
cidadãos. Ao invés, o Estado apenas é garantidor da paz pública caso seja a expressão de
uma constante criação das instituições sociais garantidoras da paz pública110. Por esta
razão, espinosanamente falando, a democracia será a realização de uma paixão alegre
coletiva111.
Entretanto, esse abalo na confiança da identificação entre direito
posto pelo Estado como sendo o direito, em função dos regimes totalitários que tiveram
como apoio a estrita legalidade, não formou um caldo cultural forte o bastante para
derrubar a ideologia do positivismo jurídico como ciência do dever- ser.
Em sua Introdução ao Estudo do Direito112, Tércio Sampaio Ferraz
Jr. faz uma interessante reflexão sobre o direito contemporâneo e o preço que se paga em
função da maneira como este direito se estrutura.
Em primeiro lugar, trata-se da identificação do estudo do direito,
contemporaneamente, com uma técnica com vistas a atender aos profissionais do direito,
tais como juízes, promotores, advogados, etc. nas suas profissões. Há, segundo Tércio,
uma explicação para esta redução do escopo do que seja o direito em seu ensino e,
conseqüentemente, em sua prática, contemporaneamente.
Diz o autor que o estudo do direito como dogma está ligado a uma
dupla abstração. Primeira: a abstração da norma enquanto dogma a partir do qual se pensa
o direito. Segunda: as regras de interpretação das normas enquanto dogmas que
estabelecem como devem ser entendidas as normas. Conseqüência: o objeto do

109
É significativo, a respeito dessa separação entre Estado, por um lado, e sociedade, por outro, a seguinte
propaganda da prefeitura de São Paulo, que foi estampada nos ônibus responsáveis pelo transporte coletivo
da cidade: “Transporte coletivo: direito do cidadão, dever do Estado”. Ou seja, cidadão não é o constituidor e
ao mesmo tempo razão de existência do Estado, mas, em vez disso, é o tutelado pelo Estado. Também,
ressalta-se, assim, a distância entre o cidadão e o Estado. O cidadão não constitui o Estado e não é a razão de
existência do Estado, mas é separado do Estado. É claro que, como se sabe, isto se dá por imperativo
constitucional, isto é, a Constituição estabelece que o poder, que emana do povo, pode ser exercido direta e
indiretamente. Diretamente: por voto direto, por exemplo, em cada eleição para dois dos três poderes
(legislativo e executivo). Indiretamente: pelos representantes eleitos. Mas o ponto a ser ressaltado aqui é de
outra significação. Não apenas no imaginário do povo, mas talvez de fato – na sociedade – o que ocorra é o
distanciamento entre Estado e cidadão de tal maneira que a dicotomia estampada nos ônibus entre cidadão e
Estado seja uma explicitação de um distanciamento fático. Isto, tanto na sociedade, quanto no imaginário
(psicologicamente) do povo.
110
Fernando Dias Andrade. Pax spinozana: direito natural e direito justo em Espinosa. Tese apresentada ao
Departamento de Filosofia da FFLCH-USP para obtenção do título de Doutor em filosofia. Orientador:
professora doutora Marilena de Souza Chaui. São Paulo, 2001, especialmente p. 22.
111
Espinosa. Tratado Político. Tradução de Manuel de Castro. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril
Cultural, 1973, especialmente Cap. III, parágrafo 3º. Este ponto ficará claro ao se analisar a relação entre
paixão, ação, direito e melhor regime político em Espinosa.
112
Tércio Sampaio Ferraz Jr. . Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed.. São
Paulo, ed. Atlas, 1994, p. 49.

72
conhecimento jurídico não é senão essa dupla abstração. Daí, segundo o autor, o caro
preço pago pelo direito contemporâneo: a sua distância, cada vez mais significativa, da
realidade social.
Na concepção espinosana, não se entende o direito como mera
abstração. Muito ao invés, o direito é entendido como potência do sujeito para perseverar
no ser. O direito é o desejo do conatus para perseverar no ser113.
Ora, para Espinosa, no estado de natureza - mera hipótese teórica,
visto que os seres humanos sempre estão em sociedade -, o direito se identifica ao mero
poder de exercício desse direito. Ou seja, o direito natural, no estado de natureza, é apenas
e tão-somente o poder de cada indivíduo para perseverar em seu ser. Assim, na verdade, o
poder de cada indivíduo isoladamente de efetivamente perseverar no seu ser é bastante
limitado.
Em que sentido se dá este limite?
No exato limite do bruto exercício da potência. Se cada um dos
indivíduos pode tudo, nenhum deles pode nada. E, no limite, a intenção natural de cada
conatus, que é a de perseverar no ser, fica bastante prejudicada. Afinal, como pensar em
efetiva paz, em efetiva segurança, em efetivo exercício da natureza humana de perseverar
no ser se há, na realidade, uma infinidade de potências que se anulam a todo momento,
impossibilitando, neste momento mesmo, a realização da natureza humana, isto é, a
liberdade como aumento do conatus, da potência?
A solução para esse impasse é a seguinte: em vez de continuarem
nesse precário estado em que, efetivamente, não se exerce a “natureza humana” em sua
plenitude, na medida em que o perseverar no ser é sempre precário, isto é, as potências

113
Conferir as seguintes passagens da obra de Espinosa: Ética. Parte III, proposições VI e VII. Tradução e
notas de Joaquim de Carvalho. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 188, 189.
Espinosa diz: (E, III, proposição VI)“Toda coisa se esforça, enquanto está em si, por perseverar no seu ser”.
Tratado Teológico-político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
Portugal, 1988, p. 308, 309. O autor diz: “o direito da natureza estende-se até onde se estende a sua
potência, pois a potência da natureza é a própria potência de Deus, o qual tem pleno direito a tudo. (...) o
direito de cada um (na natureza) estende-se até onde se estende a sua exacta potência. E, uma vez que é lei
suprema na natureza que cada coisa se esforce, tanto quanto esteja em si, por perseverar no seu estado, sem
ter em conta qualquer outra coisa a não ser ela mesma, resulta que cada indivíduo tem pleno direito a fazê-
lo, ou seja (conforme já disse), a existir e agir conforme está naturalmente determinado”. Tratado Político.
Tradução de Manuel de Castro, Coleção Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 315 (Capítulo II,
parágrafo 4º). Espinosa diz: “Por direito natural, portanto, entendo as próprias leis ou regras da Natureza
segundo as quais tudo acontece, isto é, o próprio poder da Natureza. Por conseguinte, o direito natural da
natureza inteira, e conseqüentemente de cada indivíduo, estende-se até aonde vai a sua capacidade, e
portanto tudo o que faz um homem, seguindo as leis da própria natureza, fá-lo em virtude de um direito
natural soberano, e tem sobre a natureza tanto direito quanto poder”. O indivíduo coletivo é o corpo
coletivo. Este também tem tanto direito quanto poder, isto é, tem tanto direito quanto potentia.

73
estão sempre se anulando reciprocamente, os seres humanos instituem a sociedade e
escolhem uma forma de governo.
Diferentemente de Hobbes, como se verá de maneira mais vertical
em outro ponto, Espinosa não diz que a saída do estado de natureza se dá por um juízo
racional, por um contrato. A instituição do campo político se dá por uma busca da natureza
humana enquanto desejante – sendo esta, como se viu, a essência atual do modo finito
humano -, não por uma abstração. Portanto, a instituição do campo político se dá por um
desejo de perseverar no ser de modo efetivo, não precário. O estado civil em Espinosa é,
por conseguinte, a realização do direito natural de maneira efetiva: é apenas nele que há,
em alguma medida, paz e concórdia entre os humanos.
Outra significativa diferença entre Espinosa e Hobbes no que se
refere a este ponto é que para Hobbes os homens devem obedecer ao soberano por medo. É
o medo que garante a paz social. Por isso a predileção de Hobbes pela monarquia. Podendo
apenas o Um – o monarca - dizer o que é lei e o que não o é, fica facilitado não perder o
controle que, desfeito, redundaria em guerra civil, em guerra de todos contra todos. A
segurança social é o resultado do medo coletivo. Mas isso não é garantir a liberdade
humana. De fato, se a liberdade, em Espinosa, por força de sua ontologia, não é senão a
realização da natureza humana – modo finito da substância, potência na natureza naturada -
, e, ademais, sendo o medo uma paixão triste, que diminui o desejo de perseverar no ser,
Espinosa nunca poderia entender como bom um regime que institui o medo como
garantidor da paz social e da liberdade humana.
De fato, a liberdade é a realização da natureza da coisa. A natureza
humana é modo finito da substância que busca persistir na existência. O desejo de
perseverar no ser, sob uma paixão triste, apenas diminui. Portanto, um regime que se
institui sob a égide do medo não pode garantir a liberdade humana. Ao invés, ao diminuir o
conatus, diminui a liberdade humana, pois impede – na medida em que diminui o desejo –
que o ser humano realize a sua natureza de potência, de desejo de perseverar.
Em Espinosa, um ponto instigante e que demanda atenção se refere
ao seguinte raciocínio: não basta que haja a garantia da paz social pela instituição do
Estado. Caso fosse assim, seu pensamento ético-político não seria diferente daquele
elaborado por Hobbes. No entanto, para Espinosa, não basta a garantia da paz social, que,
por sua vez, é garantia do exercício efetivo do direito natural como exercício efetivo da
potência de cada indivíduo. Com efeito, a paz social garantida pelo medo não possibilita,

74
no limite, o exercício da potentia. Mas o motivo para tal é ontológico, isto é, o medo é,
como será analisado de maneira mais vertical logo adiante, uma paixão triste. Ora, sendo
uma paixão triste, se a paz social é garantida sob a égide do medo, esta paz social não
possibilita o exercício da potentia em sua magnitude porque o medo é uma paixão que
diminui o conatus.
O desafio espinosano consiste em dar conta de dois problemas que
não devem ser excludentes um do outro, ou melhor, deve resolver a questão da paz social
sem que isto implique anulação da potentia dos indivíduos sob a égide do medo. Portanto,
o desafio espinosano é duplo: em primeiro lugar, o Estado deve garantir a paz social. É
apenas na paz social que o direito natural pode ser exercido efetivamente. Em segundo
lugar, esta paz social não pode se dar pelo império do medo, uma vez que o medo é uma
paixão triste que levaria, no limite, ao não exercício do direito natural como exercício da
potência do indivíduo. Ora, o Estado, portanto, tem como condição necessária, mas não
suficiente, a instituição da paz pública. É preciso, para além da mera paz pública, que ela
venha orientada, no mais das vezes, por paixões alegres, uma vez que estas paixões são as
que aumentam o grau do conatus e, portanto, permitem o exercício do direito natural como
exercício da potentia, efetivamente.
O regime mais adequado à natureza humana deve respeitar esta
natureza e se instituir como garantidor da liberdade como realização da natureza humana:
daí que a democracia assuma papel fundamental. É apenas neste regime, fundado
passionalmente, isto é, como possibilitador da alegria do conatus coletivo, que a natureza
humana se realizará plenamente: realização de uma paixão alegre coletiva.
Em suma: para Espinosa, diferentemente de Hobbes, o Estado deve
existir não para estimular uma paixão triste – o medo - , que diminui a potência do conatus.
O Estado deve ser o instrumento para a liberdade, e deve ser estabelecido ou
instrumentalizado de tal sorte que possibilite a efetiva participação, nas decisões políticas,
de cada indivíduo, de acordo com sua natureza de indivíduo passional. Ou seja, sendo o
indivíduo um desejo de perseverar no ser, submetido à força das paixões114, a instauração

114
Como será analisado em seguida de maneira mais vertical, Espinosa concebe a paixão como o afeto de um
modo finito em outro modo finito da substância. Sendo, como visto, o ser humano um modo finito da
substância que é expressão de dois atributos de Deus, quais sejam, o pensamento e a extensão, e, ainda, sendo
a extensão, para cada modo finito, a idéia da extensão – uma vez que é pelo pensamento que se tem
consciência do que se passa em si e no mundo -, e sendo o pensamento idéia da idéia – reflexão -, a maneira
como Espinosa concebe o contato de cada homem com cada homem é a maneira como cada um afeta cada
um. Assim, a idéia que um modo finito tem de outro modo finito pode causar no primeiro uma tristeza. Isto
acarreta a diminuição do conatus desse indivíduo. Pode, entretanto, causar uma alegria, o que aumenta o

75
do campo político deve, no limite, garantir que todos participem do poder, que todos
governem, pois ninguém, por ter sua natureza desejante, deseja ser governado. Todos
querem governar. Daí a pertinência da democracia, que permite que as leis da Cidade
sejam o produto da vontade de todos, do desejo de todos, e não apenas de um – monarquia
- , nem mesmo de poucos – aristocracia.
Deve ficar claro o seguinte ponto: o direito como abstração
normativa ou como técnica com vistas a decisões que garantam a ordem social está
afastado do conceito de direito elaborado por Espinosa. Para ele, com efeito, o direito é um
constante instituir (o direito civil, do Estado). Ou seja, é um trabalho da potência coletiva –
do corpo político, isto é, da multitudo – de, a todo momento, instituir as leis da Cidade cujo
horizonte é sempre a satisfação do desejo de cada humano para perseverar no ser. Ao se
realizar coletivamente, este desejo é satisfeito de maneira mais plena. Quando se governa
democraticamente, isto é, com a participação de todos nos desígnios da Cidade, tem-se a
mais natural forma de organização do Estado, por ser a que melhor atende às exigências de
cada humano de governar e não ser governado. É apenas na democracia que o corpo
coletivo faz as leis que ele mesmo obedecerá com o fim de se conservar o quanto mais.
Não há abstração alguma no direito espinosano, portanto. Isto
significa que o discurso espinosano referente ao direito é um contradiscurso cujo alvo é o
direito como abstração, como descolado da realidade concreta. Há direito na medida exata
da potência do corpo coletivo para perseverar em seu ser-coletivo, ou, em vez disso, em
estado de natureza bruta, cada qual tem tanto direito quanto tem poder para exercê-lo –
realidade apenas teórica visto que os humanos sempre estão em algum grau de socialidade.
O direito em Espinosa não é o direito positivo como mera abstração,
ou mesmo como dupla abstração – conforme assinala Tércio115 referindo-se ao ensino do

conatus do modo finito. Os sentimentos originários – alegria e tristeza - , dos quais todos os outros derivam
numa escala de infinitas possibilidades – inveja, amor, ressentimento, etc.- são a medida do aumento ou da
diminuição do conatus. Sendo o medo uma paixão triste, que diminui o desejo de existir, nada mais
inadequado para uma sociedade que ter o medo como paixão que a sustenta. Isto seria fundar a paz social em
um instrumento que não garante a liberdade como exercício da natureza humana: perseverar no ser, aumentar
o seu desejo de perseverar no ser com a instituição da alegria coletiva na democracia.
115
Tércio Sampaio Ferraz Jr. . Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 2ª ed.. São
Paulo, ed. Atlas, 1994, p. 49. Apenas recapitulando: dupla abstração na medida que o direito é identificado às
normas postas pelo Estado – primeiro grau de abstração – e às regras para interpretação destas normas –
segundo grau de abstração. A conseqüência desta dupla abstração é a distância, cada vez maior, entre direito
e realidade social. No que se refere à distância entre realidade social e direito, muito abrangentes e
instigantes, bem como esclarecedoras são as análises de José Eduardo Faria em suas obras. Que o leitor se
remeta às seguintes obras do autor: O Direito na economia globalizada – São Paulo, Malheiros, 1999 -; Qual
o futuro dos direitos? – São Paulo, Max Limonad, 2002, esta última em co-autoria. O primeiro capítulo foi

76
direito contemporâneo - , mas se identifica à potentia, seja ela do corpo político – na
Cidade, na sociedade civil - , seja ela em seu estado bruto – no estado de natureza.

escrito por Rolf Nelson Kuntz, professor do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, e o segundo capítulo
foi desenvolvido por José Eduardo Faria, professor da FADUSP.

77
b) O contradiscurso jurídico de Espinosa: o direito como poder

“Em outras palavras: o que vemos na


conversão do tênis em núcleo desejante
dos conflitos sociais, vai na direção
contrária de um movimento muito
freqüente que é a substituição do
desejo pela idéia de direito, mais
moral, mais decente. Entendemos
bastante bem reivindicações que
passam pelo direito. Essa idéia, por
sua vez, é larga tributária da idéia de
necessidade. Temos direito ao que é
necessário para a vida, e mesmo para a
vida decente. Daí o destaque conferido
à moradia, à alimentação, à saúde. Há,
porém, na vida, elementos que são os
que lhe dão valor, os que a fazem
pulsar. Esses temperos estão do lado
do excesso, do a-mais, do supérfluo, do
suplementar. Daí que, ao conferirmos
demasiado peso à idéia de direito, e de
menos à de desejo, tenhamos
dificuldade em compreender o que
efetivamente acontece em nossa
sociedade.”

Renato Janine Ribeiro116

116
Renato Janine Ribeiro. O poder das palavras: Hobbes sobre a liberdade. In: Novaes, Adauto (Org.). O
Avesso da Liberdade. São Paulo, Cia. das Letras, 2002, p. 146. A razão de ser dessa epígrafe, como se verá
de maneira desdobrada neste capítulo, é a seguinte: Espinosa não separa direito e desejo. Em vez disso,
identifica o direito ao desejo. Isto é, tem direito quem tem poder. E o direito não é senão a potência do sujeito
para perseverar em seu ser, o desejo do indivíduo para perseverar em seu ser. Ora, perguntaria o leitor de
Espinosa: como se dá, então, a vida política? Com efeito, se direito se identifica ao poder, quem tem poder,
na Cidade, tem direito, o que equivaleria a dizer que o direito da cidade não é o direito civil, mas o poder de
quem tem o poder-para-o-direito. A dúvida se desfaz na medida em que, para Espinosa, estabelecido o corpo
político, o direito se identifica ao direito coletivo. O direito é o poder do corpo coletivo para se dar o direito.
Na democracia, sendo o corpo coletivo formado por todos, há direito civil na medida mesma do poder do
corpo coletivo. Tem direito quem tem poder, isto é, tem direito o corpo coletivo, que na democracia é quem
tem o poder de dizer o que é o direito que governa a Cidade. Na epígrafe, sem se referir a Espinosa, Renato
Janine diz que há certa dificuldade de compreensão do que ocorre na sociedade porque se dá demasiada
importância à idéia de direito e menor importância à idéia de desejo. Ora, talvez Espinosa seja uma boa luz
para esta questão na medida em que, para ele, há identificação entre direito e poder (ou desejo), como visto

78
Qual a razão de se falar sobre a maneira como o direito é concebido
contemporaneamente nas escolas de direito (estudo duplamente abstrato na medida em que
é estudo da norma e de regras para entendimento de normas)?
E, ainda, qual o sentido de se fazer um breve comentário a respeito
da confiança no direito como direito positivo, num primeiro momento do século XX, e a
queda do grau desta confiança, na medida mesma dos acontecimentos catastróficos do
século XX – fascismo e nazismo, concebidos sob a estrita legalidade?
A razão é simples. Espinosa propõe uma maneira completamente
diversa de entender o direito. Essa maneira completamente diversa de entender o direito
tem como pressuposto a maneira como Espinosa entende o homem em sua metafísica. Daí,
como já se explicitou em outro capítulo, a relação entre a metafísica espinosana e seu
pensamento político. Daí, também, uma nova possibilidade de entendimento do fenômeno
jurídico para além do positivismo jurídico.
Que é o homem para Espinosa?
É um modo finito da substância absolutamente infinita, ou, mais
precisamente, é a expressão de dois atributos divinos – entre os infinitos atributos divinos,
visto que a negação da infinidade de atributos que constituem Deus seria um germe de
negação de Sua infinitude - , quais sejam, o pensamento e a extensão. O pensamento é
idéia da idéia – ou, mais precisamente, re-flexão, a consciência que se toma como objeto. É
a idéia que se toma como objeto, é a consciência da consciência. A extensão é idéia do
corpo, afecção do corpo, ou seja, é a maneira como o pensamento toma conhecimento do
próprio corpo. Afinal, para que o homem saiba que tem corpo, que é extenso, deve haver
uma afecção do corpo na mente, deve haver um afeto na mente – idéia do corpo – que faz
que o homem tenha conhecimento de sua corporeidade. O homem é, para Espinosa,
conatus mente-corpo – ou, simplesmente, conatus. E o conatus é a força do indivíduo, ou
melhor, o indivíduo enquanto potência para perseverar no ser de acordo com sua
natureza117.

acima, em linhas gerais. Outro ponto: o desejo do tênis significa precisamente o desejo de consumo de
artefatos de marca por parte, principalmente, da juventude contemporânea. Trata-se de um trocadilho com a
expressão “inveja do pênis”, de Freud.
117
Espinosa. Ética, Parte III, Proposições VI e VII. Tradução de Joaquim Ferreira Gomes. São Paulo, Ed.
Abril Cultural, 1973, p. 188 e 189. O autor diz, respectivamente: “Toda coisa se esforça, enquanto está em
si, por perseverar em seu ser”; e “O esforço pelo qual toda coisa tende a perseverar no seu ser não é senão
a essência atual dessa coisa.” Este desejo é o conatus, ou, simplesmente, a natureza humana. Natureza
humana, desejo, direito e potência são sinônimos.

79
Ou, de maneira mais refinada: como se viu, Deus é a potência
absolutamente livre que é causa de si no que se refere à Sua essência e à Sua existência.
Ele se expressa como causa imanente eficiente de todo o real. Ele se expressa por infinitas
ordens de realidade – os seus atributos118 infinitos. Os seres humanos são a expressão de
dois desses infinitos atributos. Com efeito, os seres humanos são uma expressão finita da
extensão e uma expressão finita do pensamento. Há, como já visto, o modo infinito da
extensão e do pensamento. O modo infinito da extensão é o movimento. Com efeito, tudo o
que é extenso está ou em movimento ou em repouso. O modo infinito do pensamento é a
razão, ou, para usar um anacronismo, a cultura como produção do espírito humano. Para
Espinosa, o ser humano individual é a expressão finita de dois atributos infinitos de Deus,
e, ao mesmo tempo, é expressão finita de dois modos infinitos dos atributos infinitos de
Deus: o pensamento e a extensão. Enfim, é pelo pensamento, como “faculdade” de
entendimento, que os seres humanos têm consciência de que são corpo e mente, sendo que
o conhecimento do corpo – o próprio corpo – se dá pela afecção que o corpo provoca na
mente. Daí que, para Espinosa, o corpo seja, para a mente, idéia do corpo. E a mente, por
sua vez, seja idéia dela mesma, consciência de si.
Assim, se cada humano é expressão da substância, sua natureza é
desejo-potência, sua essência atual – como diz a proposição VII, bem como a VIII, da
Parte III da Ética – é conservar corporalmente e mentalmente seu estado de potência. A
mente é desejo de conhecimento, o corpo é desejo de conservação de seu equilíbrio,
formado pelo movimento e pelo repouso de milhares de pequenos corpos que o constituem
como essência atual singular119.
Portanto, cada ser humano é desejo-potência-direito porque cada
qual é expressão da potência divina, porém de maneira singular.
Ora, para Espinosa, todo modo da substância, entre eles o homem,
tem como algo natural - isto é, faz parte da essência em ato da coisa, é necessário que

118
Espinosa. Ética. Parte I. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho. Coleção Os Pensadores. São Paulo,
ed. Abril Cultural, 1973, p. 84, definições IV e VI. Diz o autor: “Por atributo entendo o que o intelecto
percebe da substância como constituindo a essência dela.”; “Por Deus entendo o Ser absolutamente infinito,
isto é, uma substância que consta de infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e
infinita.”
119
Sempre lembrando que, para Espinosa, em função da imanência do real em Deus, não há essência como
ente intelectual de um ser transcendente que, por vontade, escolhe criar. Por exemplo, da essência de homem,
o Ser supremo escolhe, pelo uso de seu livre-arbítrio, criar Paulo ou Pedro, isto é, este homem Paulo ou este
homem Pedro. A essência é sempre uma essência atual, isto é, cada modo finito tem uma essência em ato.

80
assim seja - o esforço para perseverar no ser, como estabelecido na Ética, parte III,
proposições VI e VII120 .
Espinosa identifica o direito natural a essa potência do modo para
perseverar em seu ser, para existir. Direito natural e conatus são uma e mesma coisa.121
O conatus pode ser individual ou coletivo. Este existirá na sociedade
civil, que dá a si suas leis. O conatus individual, por sua vez, no estado de natureza, em
que não há leis instituídas, e cada qual luta para perseverar em seu ser sem ajuda mútua.
Também em Espinosa, o estado de natureza é uma consideração teórica, uma elaboração
que explica algo que não necessariamente ocorreu no mundo histórico, em um determinado
momento do tempo. Apenas significa a ausência do estado civil como coisa singular

120
Conferir as duas últimas epígrafes deste capítulo, que são a reprodução das referidas proposições.
121
Espinosa. Ética. Parte IV, proposições XXXVII, Escólio II. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho.
Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 255-256.
O referido Escólio II da Proposição XXXVII da Ética estabelece o conceito espinosano de direito natural
como força para perseverar no ser, seja esta força a do indivíduo, seja esta força a do corpo coletivo, além de
definir o justo e o injusto. Diz o autor: “Cada um existe em virtude do direito supremo da Natureza e,
conseqüentemente, é em virtude do supremo direito da Natureza que cada um faz o que se segue da
necessidade da sua natureza; e, por conseguinte, é em virtude do supremo direito da Natureza que cada um
julga o que lhe é bom e o que lhe é mau e atende à sua utilidade, como lhe convém (...), e se vinga (...), e se
esforça por conservar o que ama e destruir aquilo a que tem ódio. Se os homens vivessem sob a direção da
Razão, cada um usufruiria (...) deste direito sem dano algum para outrem. Mas, como eles estão sujeito às
afecções (...) que ultrapassam de longe a potência, ou seja, a virtude humana (...), e por isso são muitas
vezes arrastados em sentidos contrários (...) e são contrários uns aos outros (...), quando têm necessidade de
mútuo auxílio (...). Portanto, para que os homens possam viver de acordo e ajudar-se uns aos outros, é
necessário que renunciem ao seu direito natural e assegurem uns aos outros que nada farão que possa
redundar em dano de outrem. De que maneira possa isso suceder, quer dizer, que os homens, que estão
necessariamente sujeitos às afecções (...) e são inconstantes e mutáveis (...), possam dar uns aos outros esta
segurança mútua e ter confiança mútua, vê-se pela proposição 7 desta parte e pela proposição 39 da parte
III, isto é, pelo fato de nenhuma afecção poder ser entravada, a não ser por uma afecção mais forte e
contrária à afecção a entravar, e pelo fato de cada um se abster de causar dano pelo temor de um dano
maior. Portanto, é sobre esta lei que a sociedade poderá fundar-se, com a condição de ela reivindicar para
si o direito que cada um tem de se vingar e de julgar do bem e do mal. Conseqüentemente, ela deverá ser o
poder se prescrever uma regra comum de vida, de fazer leis e de as apoiar não na Razão, que não pode
entravar as afecções (...), mas em ameaças. Tal sociedade, firmada em leis e no poder de se conservar a si
mesma, chama-se cidade, e os que são defendidos pelo direito dela, cidadãos. Pelo que precede, facilmente
compreendemos que não existe nada no estado natural que seja bom ou mau por consenso de todos; é que
qualquer um que se encontre no estado natural atende só à sua utilidade e distingue como lhe convém, e só
enquanto tem em conta sua utilidade, o que é bem e o que é mal e não está obrigado por nenhuma lei a
obedecer a ninguém, senão a si. Por conseguinte, no estado natural não se pode conceber o pecado; mas sim
no estado civil, em que se distingue pelo consenso comum o que é bom e o que é mau e cada um é obrigado a
obedecer à cidade. Assim, o pecado não é outra coisa que a desobediência que, por esta razão, é punida só
em virtude do direito da cidade; e, ao contrário, a obediência é contatada ao cidadão como mérito, porque,
por esta mesma razão, é julgado digno de gozar das vantagens da cidade. Além disso, no estado natural,
ninguém é senhor de uma coisa por consentimento comum, nem existe nada na Natureza que possa dizer-se
que é deste homem e não daquele, mas tudo é de todos; e, por conseguinte, no estado natural não pode
conceber-se nenhuma vontade de dar a cada um aquilo que é seu, ou de tirar do outro o que é seu, isto é, no
estado natural nada sucede que possa dizer-se justo ou injusto, mas, sim, no estado civil, em que se discerne,
por consenso comum, ou que é deste, ou que é daquele. Por aqui se vê que justo e injusto, pecado e mérito
são noções extrínsecas, não atributos que expliquem a natureza da alma”.

81
coletiva, como potência não mais de um conatus individual, mas da multitudo, isto é, o
corpo político em seu estado civil.
A identificação entre direito e potência para perseverar no ser tem
conseqüências significativas no pensamento de Espinosa. Conseqüências políticas de
primeira grandeza, ao mesmo tempo que diametralmente opostas às conclusões políticas de
seus contemporâneos, como, por exemplo, Hobbes, ou mesmo Locke. Uma dessas
conseqüências é o estabelecimento – à revelia de seu tempo – da democracia como o mais
natural122 (sempre no sentido espinosano) dos regimes políticos. Esse ponto será retomado
e analisado com a profundidade requerida em outra parte (no capítulo intitulado
“Democracia necessária”) , isto é, o conceito de democracia e sua derivação da metafísica
espinosana.
Por agora, é importante entender, de modo mais vertical, a
identificação entre conatus como força ou potência para perseverar no ser e direito natural.
Após, é importante que se entenda o conceito de direito civil em Espinosa. Do mesmo
modo, depois desses esclarecimentos conceituais, é importante que se estabeleça uma
distinção fundamental entre Espinosa e seu contemporâneo – Hobbes - no que se refere à
prevalência do direito natural em plena sociedade civil (para Espinosa) . A partir deste
ponto se delineia uma distância entre esses dois pensadores.
Mas o que significa, mais precisamente, identificar o direito natural
à potência do indivíduo para perseverar no ser e, ainda, o que significa a tese subjacente a
esta, segundo a qual não haveria um rompimento entre a metafísica espinosana e sua
política?
Primeiro, trata-se de analisar o ponto um, isto é, a relação conatus –
direito natural.

122
Causa espanto ao leitor contemporâneo o uso da expressão “mais natural dos regimes políticos”. Afinal, a
diferença básica – que vem dos estudos antropológicos - entre natureza e cultura não seria exatamente
identificar o natural àquilo que não sofre influência humana, àquilo que é concebido sem a produção do
homem, enquanto o cultural seria aquilo que tem a mão humana, aquilo que é resultado do trabalho humano?
Se assim é, como dizer que a democracia – uma maneira de os homens se organizarem politicamente com
vistas ao exercício da política – é natural? O espanto se desfaz na medida em que o leitor se habitua à
metafísica espinosana e à necessidade de uma metafísica no XVII, ou, mais precisamente, à presença de
questões metafísicas no XVII. A filosofia política espinosana é deduzida de sua ontologia. Ainda, a diferença
entre natureza e cultura não faz sentido no sistema espinosano.

82
Pelas proposições VI, VII e VIII da Ética123 , fica estabelecida a
natureza dos modos humanos da substância – os indivíduos – sendo cada um desses modos
potência para perseverar no ser.
No mesmo sentido, no Tratado Político124, Espinosa concebe sua
definição de direito natural: “Por direito natural, portanto, entendo as próprias leis ou
regras da Natureza segundo as quais tudo acontece, isto é, o próprio poder da Natureza.
Por conseguinte, o direito natural da Natureza inteira, e conseqüentemente de cada
indivíduo, estende-se até aonde vai a sua capacidade, e portanto tudo o que faz um
homem, seguindo as leis da própria natureza, fá-lo em virtude de um direito natural
soberano, e tem sobre a Natureza tanto direito quanto poder.”
No Tratado Teológico-político125, o autor se refere ao direito
natural: “o direito de cada um [na Natureza] estende-se até onde se estende sua exacta
potência. E, uma vez que é lei suprema da natureza que cada coisa se esforce, tanto
quanto esteja em si, por perseverar no seu estado, sem ter em conta qualquer outra coisa a
não ser ela mesma, resulta que cada indivíduo tem pleno direito a fazê-lo, ou seja
(conforme já disse), a existir e agir conforme está naturalmente determinado.”(...) “O
direito natural de cada homem determina-se, portanto, não pela recta razão, mas pelo
desejo e a potência.”
Ou seja, em uma palavra, tanto na Ética quanto em sua obra
estritamente política, Espinosa elabora um conceito de direito natural que : 1) entende o
indivíduo como parte da Natureza que busca perseverar em seu ser segundo sua natureza

123
Espinosa. Ética. Parte III, proposições VI, VII e VIII. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho. Coleção
Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 188, 189. Diz Espinosa, respectivamente: “Toda coisa se
esforça, enquanto está em si, por perseverar em seu ser”; “O esforço pelo qual toda coisa tende a
perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa coisa.”; finalmente: “O esforço pelo qual cada
coisa tende a perseverar no seu ser não envolve tempo finito, mas um tempo indefinido”. Quanto à
proposição VIII, retro citada, trata-se do seguinte: sendo o esforço de perseverar no ser algo sempre positivo,
não há, dentro do ser, algo que busque sua destruição. Porém, como as incalculáveis causas externas são
sempre mais fortes que um modo finito da substância, é pelas causas externas que se finda o modo. Mas, por
essência, ele tende, indefinidamente, a perseverar. É interessante pensar, já que o modo finito é potência
positiva para perseverar, a noção de suicídio em Espinosa. Não pode ser algo que vem de dentro do conatus,
já que este é pura potência positiva. No escólio da Proposição XX da Parte IV, Espinosa analisa o suicídio.
Este ponto será analisado de modo vertical em outro local. Verificar, também, na Ética, parte IV, no Escólio
II da Proposição XXXVII, o conceito espinosano de direito natural, bem como de direito civil – a
conceituação do justo e do injusto.
124
Espinosa. Tratado Político. Tradução de Manuel de Castro. Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril
Cultural, 1973, capítulo II, parágrafo 4º, p. 315.
125
Espinosa. Tratado Teológico-político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. Lisboa, ed. Imprensa Nacional –
Casa da Moeda, 1988, Capítulo XVI, p. 308 e 309.

83
de modo finito da substância; 2) o direito natural se identifica à potência do sujeito para
perseverar em seu ser, isto é, tem tanto direito quanto poder para existir.
Ou seja, o direito se identifica ao conatus mente-corpo que, por sua
vez, é a expressão em ato da lei natural em cada indivíduo, qual seja, perseverar na
existência. Nessa medida, o direito natural não é dado pela razão, como concebe Locke em
seu Segundo tratado sobre o governo civil126, muito menos se identifica a algo dado pelos
deuses, como se depreende de um conceito de direito natural clássico, como na
Antígona127, de Sófocles.
Diferentemente da tradição – e, acima, estão apenas dois exemplos
disso que aqui se chamou de tradição - , Espinosa associa o direito natural ao desejo, e este
se associa à potência do conatus. O conatus, por sua vez, depende da metafísica espinosana
na medida em que é entendido a partir da noção de substância. O conatus é o modo finito
da substância que não é senão, em linhas gerais, desejo, potência para perseverar na
existência. É, em uma palavra, expressão finita da substância absolutamente infinita: pura
potência para existir e agir.
Assim, o conceito de direito natural em Espinosa se constrói como
um contradiscurso, como um conceito cujo alvo é a noção racional de direito natural.
Direito natural não é algo dado pela razão natural – uma certa capacidade para entender o
direito de outrem à vida, à propriedade, etc., muito menos um conceito metafísico no
sentido antigo, isto é, algo dado pelos deuses. Em vez de racional, o direito natural, em
Espinosa, é puro desejo, é pura busca de perseverar no ser, é a expressão da natureza
humana como parte finita da substância absolutamente infinita: é potentia.
Sobre a potência como idêntica ao direito natural em cada modo da
substância, é ilustrativo lembrar um curioso fato sobre a vida de Espinosa: ele apreciava a
luta entre aranhas. Ele apanhava aranhas e as colocava em luta, ou mesmo colocava
moscas nas teias das aranhas para vê-las sucumbir ante a potência de um modo finito frente
a outro: a aranha e sua potência para perseverar no ser e a mosca e sua potência para
perseverar no ser. Para Deleuze128, isto não expressa senão o fato de que a morte sempre é
resultado de causas externas mais fortes que anulam a potência do modo finito. Com efeito,
cada modo finito, estando no mundo, é sempre submetido a uma incalculável rede causal
126
John Locke. Segundo Tratado sobre o Governo Civil. Tradução de Julio Fischer, São Paulo, ed. Martins
Fontes, 1998, p. 381 a 394.
127
Sófocles. Antígona. Tradução de Donaldo Schüler. São Paulo. Ed. L&PM, 1999.
128
Gilles Deleuze. Espinosa: filosofia prática. Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo, ed.
Escuta, 2002, p. 18.

84
sempre mais potente que o próprio modo considerado de maneira isolada. A morte é, pois,
sempre exterior129.
O direito natural, isto é, o desejo de perseverar no ser, apenas se
efetiva verdadeiramente no momento em que os modos da substância – os indivíduos – se
organizam em sociedade civil. Daí, a lei comum, elaborada pela Cidade para a Cidade,
pelos cidadãos, será a expressão do justo e a maneira mais efetiva de exercício do desejo
de perseverar no ser, isto é, exercício coletivo da potentia de existir enquanto corpo
coletivo130.
Que seja analisado, então, o segundo ponto, isto é, a relação entre
política e metafísica, ou entre direito e metafísica. Ou seja, não há ruptura entre o
pensamento da Ética e das obras estritamente políticas. Em vez disso, constituem um todo
coerente, com elaborações conceituais que se complementam.
Outro ponto que se explicita, aqui, é, como já se disse, o fato de ser
imprescindível entender a ontologia do necessário – isto é, a metafísica espinosana – para
que se chegue, sem deformação do pensamento do autor, à noção de direito natural.
Não por acaso foram escolhidas as definições de direito natural em
três obras de Espinosa: na Ética, no Tratado Teológico-político e no Tratado Político131.
De fato, se o autor mantém a mesma definição nas três obras, tudo indica que dizer que
Espinosa é um místico, ou mesmo dizer que é fatalista, ou, ainda, como dizem alguns
autores, estabelecer sua obra política como uma ruptura em relação à Ética talvez não seja
a melhor leitura possível do pensamento do autor. Parece que, em vez de ruptura – como se
vê pela mesma definição de direito natural como conatus, derivado este, por sua vez, da
noção de substância, nas três obras - , há, na verdade, coerência.

129
Este ponto interessa para que seja entendida a maneira pela qual Espinosa concebe o suicídio. O problema
que Espinosa deve enfrentar – e o faz na parte IV da Ética - é o que segue: como pode haver o suicídio se o
modo finito é pulsão de vida, potência para perseverar no ser que luta contra as causas externas para
continuar em seu estado de ser vivo? Como pode vir de dentro da pulsão de vida uma pulsão de morte? Na
verdade, para Espinosa, a expressão “pulsão de morte” não faz nenhum sentido. Sobre o suicídio em
Espinosa, consultar o instigante ensaio de José Tavares Correia de Lira, intitulado Suicídio e preservação de
si: em torno de um grau zero de conatus, in Cadernos Espinosanos I (2). São Paulo, Discurso editorial, p.
113-134, 1996.
130
Ver nota 121, que é a citação do escólio II da proposição XXXVII da parte IV da Ética. Gilles Deleuze.
Espinosa: filosofia prática. Tradução de Daniel Lins e Fabien Pascal Lins. São Paulo, ed. Escuta, 2002, p.
18.
131
Verificar citações acima.

85
Diz Marilena Chaui132, a respeito da ligação entre política e
metafísica na obra de Espinosa: “Se a vida política há de ser, como lemos no TP (Tratado
Político), o espaço onde os homens levem uma existência “propriamente humana”, isto é,
em paz, em segurança, em relativa concórdia e onde se realize o desejo de cada um, de
“governar e não ser governado”, então, mesmo que essa existência seja passional e não
definida pelas exigências da razão, é preciso que os homens saibam, pelo menos, os
motivos passionais que os levam à obediência e cabe diferenciar a obediência produzida
pela teologia e aquela nascida das leis da Cidade. Nessa perspectiva, compreendemos
uma das mais espantosas inovações do discurso político trazidas pela filosofia de
Espinosa, qual seja, que o texto político mais importante de Espinosa seja também seu
texto ontológico mais importante, o Livro I da Ética, De Deo.
O De Deo não é, explicitamente, um texto político. Todavia, porque
nele acompanhamos a mais incisiva demolição do imaginário teológico, nele encontramos
a demolição dos alicerces do poder teológico-político e, por conseguinte, as condições
para determinação do campo político sem as balizas da teologia.”
Por que demolição do imaginário teológico?
Ora, porque Espinosa concebe, como visto em outro capítulo, Deus
como a substância absolutamente infinita em que tudo se dá. Ou seja, Deus não é um ente
transcendente que, por livre-arbítrio, cria o mundo e as coisas. Muito menos é um ser que
se revela aos profetas. Ao invés, ele é a substância infinita que se cria – cria sua existência
e essência – e tudo está em Deus. Tudo se dá pela causa eficiente imanente da potência
divina. Conceber Deus como transcendente, como um ser que pune a eventual infração do
mandamento, etc. é conceber Deus imaginativamente, isto é, segundo uma forma de
entender que não é adequada: o conhecimento imaginativo.
Por que a ontologia ali estabelecida faz do livro I da Ética,
indiretamente, o mais importante livro político?
Ora, exatamente porque nele Espinosa concebe a noção de
substância – ou Deus – à revelia da teologia e, simultaneamente, estabelece o campo em
que se dará o político: na substância absolutamente infinita. Como isto se dá? Por meio da
instituição, por parte dos conatus mente-corpo, da Cidade ou do corpo político. É pelo
desejo de preservação do ser – e não por um juízo racional – que os vários conatus, isto é,

132
Marilena Chaui. A instituição do campo político em Espinosa. Analítica, 11. Lisboa, 1989, especialmente
p. 95 e 96.

86
os vários indivíduos, estabelecem a sociedade civil como forma em que a perseverança no
ser se dá de modo mais efetivo. Enfim, apenas com a instituição do campo político é que
os homens podem, verdadeiramente, exercer sua natureza de perseverar no ser. E, em uma
palavra, isto se dá apenas e tão-somente em função da natureza dos indivíduos enquanto
modos da substância absolutamente infinita que, ao contrário da concepção imaginativa
dos teólogos, não é um Deus que transcende e pune, mas é um Deus – ou substância – que
é imanente e no qual os indivíduos tomam parte e graças ao qual os indivíduos são
potência da mente e potência do corpo.
Além disso, ou, mais precisamente, como conseqüência de tal
concepção do homem, não se pode dizer, numa interpretação panteísta-fatalista, que não há
seres reais, homens de carne e osso, modos da substância que têm potentia para a ação.
Muito ao invés, porque são expressões finitas da substância infinita – que é potentia,
natura naturans – os indivíduos, como partes dessa potentia, são, por sua natureza,
potentia para a ação, desejo de perseverar no ser. Portanto, os indivíduos são entes reais
que expressam, de modo finito – enquanto natura naturata – a potência divina.
Não são diluídos em Deus no sentido de que não são reais e não têm
potência. São potentia porque são partes de Deus. Deus é causa da realidade dos modos
finitos. Estes são expressão da potência divina. Não há fatalismo, pois a liberdade é a
realização da natureza do modo finito. Não há panteísmo no sentido de diluição dos
homens reais em Deus, mas os homens são reais porque são expressão de Deus como causa
eficiente imanente de tudo. Os homens são potentia para perseverar no ser e potência real,
coisa singular dotada de realidade na imanência da substância, e não apenas epifenômenos
do Um ontológico.
Portanto, pode-se dizer que o direito em Espinosa se identifica ao
poder na medida mesma da ontologia do necessário, isto é, de sua concepção 1) de Deus
como potência – causa eficiente imanente do real – e 2) os seres humanos como expressão
dessa potência enquanto natureza naturada, isto é, como modos finitos da e na substância.
Ontologia e potência dão o tom e o grau do contradiscurso de
Espinosa, pois não há abstração alguma em sua concepção de direito natural. E, como se
verá a seguir, também o direito civil é a lei da Cidade que não é senão resultado da
potência coletiva. Também para que se conceba o direito civil em Espinosa, é
imprescindível que se entenda sua ontologia: potentia de Deus, potentia da Pólis na
imanência da substância.

87
c) Direito civil: a expressão da potentia coletiva

Como delineado no subcapítulo anterior, Espinosa deriva o conceito


de direito de sua ontologia. Isto significa que, por serem os humanos expressões da
potência da imanência da substância, é de sua natureza expressar, enquanto modificações
finitas dessa potência máxima, sua potência. Esta potência, em relação à da substância, é
apenas em menor grau, visto que o indivíduo é expressão finita da e na substância. Em uma
palavra: direito é poder, isto é, é desejo de perseverar no ser, exercício da natureza
humana, a qual é derivada da Natureza ou substância.
Da mesma maneira que o direito natural de cada conatus individual
é o exercício da natureza desse conatus na Natureza segundo as leis necessárias de
operação da substância, o direito civil é uma manifestação da potência não de um conatus
individual, mas de um conatus coletivo: a multitudo ou corpo político.
Portanto, o direito civil, que instituirá o conceito de justo e de
injusto com base neste mesmo direito civil estabelecido pela Cidade para si mesma, é, na
verdade, a expressão coletiva de uma potência. A cidade é um coisa singular na substância
assim como o modo finito da substância que é cada homem é coisa singular dotada de
realidade na substância.
Trata-se de uma coisa singular na medida em que é exercício da
potência como multitudo com o objetivo de fazer com que o precário estado natural dos
conatus individuais anule a possibilidade mesma de exercício da busca pela preservação: a
luta entre indivíduos enfraquece a todos, pois é luta cega de potências.
Assim, que seja dada a palavra a Espinosa.
No escólio II da Proposição XXXVII da Parte IV da Ética133,
Espinosa estabelece as seguintes considerações obre o direito natural, o direito civil, bem
como os conceitos de justo e de injusto ( a citação é longa, porém fundamental – e, desta
feita, deve ser realizada no corpo do texto principal, diferentemente dos capítulos
anteriores, em que a passagem foi citada em nota de rodapé -, nesta parte do trabalho, para
que se tenha claro o que se entende por direito civil em Espinosa em contraponto ao direito
natural. Mais precisamente, para que se tenha claro que o direito civil é a expressão da

133
Espinosa. Ética. Tradução Antônio Simões. São Paulo, ed. Abril, 1973, p. 256 e 257.

88
potência coletiva, o efetivo exercício do direito natural): “ No apêndice da Parte I134,
prometi explicar o que é o louvor e o vitupério, o mérito e o pecado, o justo e o
injusto.(...)Cada um existe em virtude do direito supremo da Natureza e,
conseqüentemente, é em virtude do supremo direito da Natureza que cada um faz o que se
segue da necessidade da sua natureza; e, por conseguinte, é em virtude do supremo direito
da Natureza que cada um julga o que lhe é bom e o que lhe é mau e atende à sua utilidade,
como lhe convém (...), e se vinga (...), e se esforça por conservar o que ama e destruir
aquilo a que tem ódio(...).Se os homens vivessem sob a direção da Razão, cada um
usufruiria (...) desse direito sem dano algum para outrem. Mas, como eles estão sujeitos às
afecções (...) , que ultrapassam de longe a potência, ou seja, a virtude humana (...), e por
isso são muitas vezes arrastados em sentidos contrários (...) e são contrários uns aos
outros (...), quando têm necessidade de mútuo auxílio (...). Portanto, para que os homens
possam viver de acordo e ajudar-se uns aos outros, é necessário que renunciem ao seu
direito natural e assegurem uns aos outros que nada farão que possa redundar em dano de
outrem. De que maneira possa isso suceder, quer dizer, que os homens, que estão
necessariamente sujeitos às afecções (...) e são inconstantes e mutáveis (...), possam dar
uns aos outros essa segurança mútua e ter confiança mútua, vê-se pela Proposição VII
desta parte e pela Proposição XXXIX da parte III, isto é, pelo fato de nenhuma afecção
poder ser entravada, a não ser por uma afecção mais forte e contrária à afecção a
entravar, e pelo fato de cada um se abster de causar dano pelo temor de um dano maior.
Portanto, é sobre esta lei que a sociedade poderá fundar-se, com a condição de ela
reivindicar para si o direito que cada um tem de se vingar e de julgar do bem e do mal.
Conseqüentemente, ela deverá ter o poder de prescrever uma regra comum de vida, de
fazer leis e de as apoiar não na Razão, que não pode entravar as afecções (...), mas em
ameaças. Tal sociedade, firmada em leis e no poder de se conservar a si mesma , chama-
se cidade, e os que são defendidos pelos direitos dela, cidadãos. Pelo que precede,
facilmente compreendemos que não existe nada no estado natural que seja bom ou mau
por consenso de todos; é que qualquer um que se encontre no estado natural atende só à
sua utilidade e distingue como lhe convém, e só enquanto tem em conta sua utilidade, o
que é bom e o que é mau no texto, bem e mal e não está obrigado por nenhuma lei a

134
Mais um argumento para dizer que não há ruptura entre a parte ontológica da Ética de Espinosa – suas
partes I e II em relação seja às partes III, IV e V da mesma obra, seja em relação às obras políticas, quais
sejam, o Tratado Político e o Tratado Teológico-político. Basta ver que Espinosa remete o leitor ao apêndice
da parte I da Ética.

89
obedecer a ninguém , senão a si. Por conseguinte, no estado natural não se pode
conceber o pecado; mas sim, no estado civil, em que se distingue pelo consenso comum o
que é bom e o que é mau e cada um é obrigado a obedecer à cidade. Assim, o pecado não
é outra coisa que a desobediência que, por esta razão, é punida só em virtude do direito
da cidade; e, ao contrário, a obediência é contada ao cidadão como mérito, porque, por
esta mesma razão, é julgado digno de gozar das vantagens da cidade. Além disso, no
estado natural, ninguém é senhor de uma coisa por consentimento comum, mas tudo é de
todos; e, por conseguinte, no estado natural não pode conceber-se nenhuma vontade de
dar a cada um o que é seu, ou de tirar do outro o que é seu, isto é, no estado natural nada
sucede que possa dizer-se justo ou injusto , mas, sim, no estado civil, em que se discerne,
por consenso comum, o que é deste ou o que é daquele. Por aqui se vê que justo e injusto,
pecado e mérito são noções extrínsecas, não atributos que expliquem a natureza da mente
no texto, alma. Porém, a expressão em latim é mens, portanto, a melhor tradução é
mente”.
Num primeiro momento, pode parecer que a concepção hobbesiana
de direito natural em comparação à concepção espinosana do mesmo conceito sejam
idênticas. Com efeito, Espinosa diz que o direito civil surge no momento em que cada
modo finito da substância – cada ser humano de carne e osso – cede seu direito natural ao
soberano, o qual governa com base nesta transferência de direito. Assim, o direito civil
seria possível por meio de um contrato social em que os seres humanos, pela cessão de seu
direito natural a tudo – e, portanto, se todos têm tudo, cada ser humano não tem nada
determinado -, instaurariam a sociedade civil para haver um mínimo de concórdia e de paz
social. O medo da morte violenta e a busca da paz seriam os catalisadores da entrada na
vida social por transferência do direito a tudo – que implica o direito de cada um, de fato, a
quase nada, na medida em estão todos contra todos na busca da efetivação deste direito
natural – para o poder soberano.
Porém, não se trata, em Espinosa, de dizer que o direito natural, uma
vez fundado o corpo político, cessa de existir. Em uma palavra, a cessão do direito natural
não implica o seu fim na sociedade política, no corpo político já instaurado. Isto é,
concebida a vida civil para haver um mínimo de paz social, faz-se necessário haver,
segundo Espinosa, no seio do corpo político, o exercício, de fato, do direito natural como
expressão da potência coletiva que concebe, para si, o direito civil, as leis da Cidade.

90
Para que este ponto fique bastante claro, e para que se explicite que
o direito natural apenas se realiza no estado civil, na medida em que é apenas no estado
civil que o ser humano realiza, efetivamente, sua potência de perseverar no ser, que seja
dada a palavra a Espinosa, em uma passagem da carta 50135 a Jarig Jelles: “Caro amigo, tu
me perguntas qual a diferença entre a concepção política de Hobbes e a minha. Respondo-
te: a diferença consiste em que mantenho sempre o direito natural e que considero que o
magistrado supremo, em qualquer cidade, só tem direito sobre os súditos na medida em
que seu poder seja superior ao deles, coisa que sempre ocorre no estado natural”.
Portanto, para o autor, não há fim do direito natural instituído o
direito civil. O direito natural, fundado o corpo político, continua a existir.
Ainda mais. Para Espinosa, não apenas o estado civil é o exercício
da potência da multitudo para se dar o direito, sendo, portanto, o direito civil a expressão
da potência do corpo político, como é apenas e tão-somente no estado civil que se pode
falar em justo e injusto.
De fato, o justo é a lei que o corpo coletivo se dá para melhor
perseverar no ser. O injusto, por conseguinte, é a infração da lei feita pela Cidade, que
redunda em diminuição da potência da Cidade, e, por esta razão, tal infração deve ser
punida.
Note-se que o direito positivo – chamado por Espinosa de direito
civil – não é mera abstração normativa que deve ser objeto do direito como ciência pura
com vistas à objetividade e à coerência interna via sistematização do ordenamento pelo uso
de regras lógicas.
Em vez disso, o direito civil é a expressão da potência coletiva da
Cidade que faz o seu direito para se preservar como Cidade. Isto é, é apenas na cidade que
a essência singular – o corpo político – garante a existência não precária das essências
singulares individuais – cada um dos conatus individuais.
Mas, em que medida o exercício do direito natural apenas se dá com
o mínimo de concórdia advinda da instituição do corpo político e, ainda, em que medida o
direito civil é a expressão do “direito natural coletivo”, ou, em vez disso, em que medida,
instituído o corpo político, o direito natural nele permanece?

135
Espinosa. Correspondência. Tradução de Marilena Chaui. Coleção Os Pensadores. São Paulo, ed. Abril,
1973, p. 398.

91
Espinosa estabelece, sobre a natureza dos seres humanos – bem
como dos demais modos finitos da substância -, o que segue: “Toda coisa se esforça,
enquanto está em si, por perseverar em seu ser.”; “O esforço pelo qual toda coisa tende a
perseverar no ser não é senão a essência atual dessa coisa.” E, finalmente, “ O esforço
pelo qual cada coisa tende a perseverar no ser não envolve tempo finito, mas um tempo
indefinido.”136
Essas proposições já foram citadas em outro momento do texto para
serem confrontadas com os textos das obras políticas de Espinosa. O objetivo não era
senão o de mostrar que em Espinosa, como se viu, direito, desejo e potência se identificam,
são uma e a mesma coisa, bem como, por outro lado, explicitar que os conceitos
espinosanos não variaram de sua ontologia mais refinadamente elaborada – partes I e II da
Ética – em relação à suas obras estritamente políticas – O Tratado Político, bem como o
Tratado Teológico-político.
O que diferencia o direito natural do direito civil em Espinosa
consiste apenas no seguinte: o direito do indivíduo em estado de natureza – hipotético,
abstrato – é a potência deste indivíduo. O direito do corpo político, já instaurado o direito
civil, é a potência do corpo coletivo – ou multitudo – que se expressa como direito civil
para este corpo coletivo. Assim, o direito civil não é senão o direito natural em sua
realidade efetiva, em sua existência como manifestação do corpo coletivo que se dá o
direito com o exercício de sua potência.
Aliás, o direito natural apenas existe verdadeiramente no estado
civil, visto que as potências individuais se anulam reciprocamente no estado de natureza,
impossibilitando, de fato, o exercício da liberdade humana como exercício de sua natureza
de potentia para se manter no ser.
Diz Marilena Chaui sobre este ponto: “No estado de Natureza, a
situação das partes , que são todas iguais na fraqueza da potência e na força da violência,
faz com que tudo seja comum a todos e, por isso mesmo, que tudo seja cobiçado e invejado
igualmente por todos. Assim, a igualdade abstrata produz a desigualdade absoluta, de
sorte que a instauração da Cidade corresponderá ao momento em que a determinação da
singularidade de cada uma das partes poderá ser reconhecida por todas as outras
justamente porque a fundação social e política define o que lhes é verdadeiramente

136
Espinosa. Ética. Parte III, Proposições VI, VII, e VIII, respectivamente. Tradução de Joaquim Ferreira
Gomes. Coleção Os Pensadores, São Paulo, ed. Abril, 1973, p188, 189.

92
comum e que permanecia ignorado na indeterminação natural. Em outras palavras,
somente quando a lógica dos afetos permite a percepção do útil comum (experimentada
como amizade, generosidade, misericórdia, eqüidade) e a utilidade da cooperação e da
concórdia, o direito natural se torna concreto e, como direito comum, é direito civil. O
direito civil, reconhecimento social da potência individual, é concreto e positivo na exata
medida em que o direito natural é abstrato e negativo. Eis por que, afinal, a lei funda o
próprio direito natural ao fundar o direito civil, pois só por intermédio deste último o
primeiro pode concretizar-se.”137
Em uma palavra: o direito civil em Espinosa não é mera abstração,
nem mesmo é mero exercício da violência. É, na realidade, o que há de comum por meio
dos afetos produzidos pelas potências individuais entre si que fazem, em alguma medida,
que o comum seja expresso como direito civil. Mas isto não significa abstração. Muito ao
invés, é expressão de um coisa singular coletiva – da Cidade - que preserva cada coisa
singular individual de maneira efetiva.
No mesmo sentido, vale citar as seguintes considerações de
Fernando Dias Andrade a respeito do estado civil e do direito civil em Espinosa: “O estado
civil espinosano é a articulação política das potências naturais individuais em conjunto:
como o desejo natural de toda potência individual é a sua própria preservação e isso vale
igualmente para a política, o estado civil mais desejável é aquele em que as potências
individuais estejam todas preservadas e em atividade; por definição, democracia,
deduzida de uma compreensão racionalista da política e do direito que não considera
racional a imagem do poder soberano porque autoridade soberana que não deve consultar
seus próprios súditos.”138
Quanto ao ponto da instituição afetiva, isto é, passional, do corpo
político, será tratado no capítulo seguinte. No que se refere ao regime político que definirá
a maneira pela qual a potência da cidade se realizará – monarquia, aristocracia, democracia
-, será objeto das reflexões subseqüentes.

137
Marilena Chaui. Política em Espinosa. São Paulo, ed. Cia. das Letras, 2003, p. 250.
138
Fernando Dias Andrade. Pax Spinozana: Direito natural e direito justo em Espinosa. Tese apresentada ao
Departamento de Filosofia da FFLCH-USP para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientação de
Marilena Chaui. São Paulo, 2001, p. 111-112.

93
6. Afetos e sociabilidade: a instituição do corpo político em Espinosa

“O vínculo social conhece as mesmas


dinâmicas, as mesmas rupturas e
alternativas da existência individual:
ele é apenas mais potente.”

Antônio Negri139

Pode-se dizer que Espinosa entende por ser humano (conatus), pela
análise das Proposições VI, VII e VIII da parte III da Ética140, o que segue: 1) um modo
finito da substância absolutamente infinita, constituído por um modo da extensão e um
modo do pensamento. Portanto, união de um corpo e de uma mente ; 2)uma coisa singular,
portanto, uma unidade causal capaz de produzir efeitos; 3)uma parte determinada da
potência infinita da substância e, portanto, um conatus ; 4) um esforço para perseverar no
ser; 5)esse esforço se identifica à essência atual desse ser – visto que não há essência como
universal, mas a essência de cada ser (este Paulo, este Pedro )-, sempre pertence ao ser de
maneira atual; 6) este esforço é uma positividade, uma pulsão de vida, não tendo em si
nada que o destrua. Ainda mais, isto deriva, como visto, da condição de cada ser humano:
ser uma modificação finita da substância, portanto, também potência, porém em menor
grau, na medida em que há um número incalculável de outras potências mais fortes que a
de cada ser humano.
Em uma de suas obras políticas , o Tratado Político, Espinosa define
o ser humano da mesma maneira que o fez na Parte III da Ética. No Tratado Político141,
assinala que o ser humano, como parte da Natureza, é também potência para perseverar.
Diz o autor: “Por direito natural, portanto, entendo as próprias leis ou regras da Natureza
segundo as quais tudo acontece, isto é, o próprio poder da Natureza. Por conseguinte, o

139
Antônio Negri. A Anomalia Selvagem: poder e potência em Spinoza. Tradução de Raquel Ramalhete. Rio
de Janeiro, ed. 34, 1993, p. 298.
140
Espinosa. Ética. Parte III, proposições VI, VII e VIII. Tradução e notas de Joaquim de Carvalho. Coleção
Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 188, 189. Diz Espinosa, respectivamente: “Toda coisa se
esforça, enquanto está em si, por perseverar em seu ser”; “O esforço pelo qual toda coisa tende a
perseverar no seu ser não é senão a essência atual dessa coisa.”; finalmente: “O esforço pelo qual cada
coisa tende a perseverar no seu ser não envolve tempo finito, mas um tempo indefinido”.
141
Espinosa. Tratado Político. Tradução de Manuel de Castro, São Paulo, Abril Cultural, 1973, Capítulo II,
parágrafo 4º, p. 315. (grifo meu).

94
direito natural da Natureza inteira , e conseqüentemente de cada indivíduo, estende-se
até aonde vai a sua capacidade, e portanto tudo o que faz um homem, seguindo as leis da
própria Natureza, fá-lo em virtude de um direito natural soberano, e tem sobre a Natureza
tanto direito quanto poder.”
Isto é, o homem, também no Tratado Político, é entendido como
potência para perseverar no ser na medida em que é expressão singular na natureza,
também potência. E, como já visto, o seu direito existe na medida da sua potência frente às
demais potências presentes na natureza.
No Tratado Teológico-político142, Espinosa estabelece o mesmo
entendimento segundo o qual o direito natural é a potência, e esta, por sua vez, é o desejo
de perseverar no ser, a própria essência atual do homem enquanto parte da Natureza. Diz o
autor: “Whatsoever an individual does by the laws of its nature it has a sovereign right to
do, inasmuch as it acts as it was conditioned by nature, and cannot act otherwise. (...) That
is, as the wise man has sovereign right to do all that reason dictates, or to live according
to the laws of reason, so also the ignorant and foolish man has sovereign right to do all
that desire dictates, or to live according to the laws of desire. (...) The natural right of the
individual man is thus determined, not by sound reason, but by desire and power.”
Portanto, sem cesura alguma entre a parte ontológica da obra ética e
as obras políticas, Espinosa estabelece o que entende por ser singular humano, conatus,
potência singular, direito. A partir desses conceitos, derivados da ontologia espinosana,
será elaborado o campo político não por meio de um contrato – afinal, como se verá, os
humanos são naturalmente afetivos -, mas pelas paixões no sentido espinosano do termo:
como os seres humanos se afetam entre si e como isto implica aumento ou diminuição da
potência que é constituinte do ser humano. Em uma palavra: é a partir da natureza afetiva
do humano – das leis necessárias das afecções - que Espinosa instituirá a vida social, o
corpo civil e o melhor regime para a permanência do corpo político.
A questão que se coloca para além desta definição de homem como
potência para existir, mera pulsão de vida que não traz em seu interior nenhuma derrota,

142
Spinoza. A Theologico Political Treatise. Translated by R.H.M. Elwes. Dover Publications, Inc. New
York, 1951 (first edition), p. 201. Uma possível tradução para este excerto é a seguinte: “O que quer que um
indivíduo faça pelas leis de sua natureza, ele tem um direito soberano para tal, porquanto ele o faz
condicionado por natureza, e não pode agir de outra maneira. (...) Isto é, assim como o homem sábio tem o
direito soberano de fazer tudo que a razão dita, ou viver de acordo com as leis da razão, assim também o
ignorante e o louco têm o direito soberano para fazer tudo que o desejo dita, ou viver de acordo com as leis
do desejo. (...) O direito natural do indivíduo é assim determinado, não pela razão, mas pelo desejo e pelo
poder.”

95
nenhuma anulação de si, é a questão referente à maneira como esta potência para existir
que é o homem aumenta ou diminui. Ou seja, a questão que se coloca é referente à
natureza afetiva dos seres humanos. Os humanos estão sempre em relação com outros
humanos e com outros modos finitos da substância. É dessa relação complexa entre
singularidades que se funda a sociabilidade por uma maneira peculiar de se entender a
natureza afetiva dos seres humanos. É pela maneira como os seres humanos se afetam
reciprocamente que Espinosa define o aumento ou a diminuição da potência de existir de
cada ser singular e, portanto, do aumento ou diminuição dos graus do direito de cada modo
finito como potência na substância. A constituição passional do corpo político, pelas leis
necessárias referentes aos afetos humanos, fará com que o corpo político seja também uma
potência. Mas tratar-se-á de uma potência formada por vários seres em relativo acordo,
culminando em uma coisa singular coletiva, em um corpo político ou multitudo.
Ora, cada modo finito da substância afeta outros modos finitos da
substância e é afetado pelos outros modos finitos da substância. Essas afecções entre
modos finitos são captadas pelos modos como idéia, ou, para usar uma linguagem
contemporânea, como percepção – o que Espinosa denomina conhecimento por imagens.
A idéia de um modo finito – a imagem de Pedro - que se apresenta em outro modo finito –
Paulo – faz que Paulo tenha uma paixão. Ou, por outra, a paixão é o resultado que uma
causa externa provoca em um modo, é um afeto. Um afeto é a maneira pela qual um modo
finito tem acesso, imaginativamente, às causalidades externas, isto é, como o mundo para
além do modo individual como idéia de si e dos outros aparece para o modo. Em suma:
uma paixão é um afeto, provocado por causas externas, em um modo finito.
Portanto, paixão, para Espinosa, é sempre o resultado, em um modo
finito, de uma ou mais causas externas. Este resultado da afecção 143 como afeto no modo
finito se manifesta de três maneiras originárias, as quais, combinadas, derivam para as
infindáveis maneiras pelas quais os seres humanos são afetados. As três maneiras
principais, ou melhor, os três afetos originários são: desejo, alegria e tristeza.
O desejo é a própria essência atual do ser, sua natureza de potência
para perseverar no ser, seu direito, sua potentia: conatus. Como o ser humano é, na
natureza naturada, expressão de dois atributos divinos – o pensamento e a extensão -, é
importante que seja ressaltado o seguinte ponto: tanto a extensão finita no conatus, quanto

143
Pode-se dizer que, a rigor, há diferença entre afecção e afeto. Afecção é a causa externa “em-si”, para
usar um termo anacrônico, porque kantiano. Afeto é como a afecção se dá no modo finito. Ou, por outra, o
afeto é a idéia da afecção no modo finito.

96
o pensamento finito no conatus, são potências. A extensão é potência para manter sua
condição de pequenos corpos, que se encontram em situação de movimento e repouso,
culminando em equilíbrio corporal. O pensamento, por sua vez, é potência para o
conhecimento. É, em uma palavra, idéia do corpo – o próprio corpo -, dos demais modos
finitos, bem como idéia de si quando tem consciência de si. O conatus, portanto, é conatus
mente-corpo. O corpo, para a mente, é idéia do corpo. O corpo, por sua vez, atua em
simultaneidade em relação à idéia. Apenas um exemplo, sem muitas considerações
filosóficas, sobre como operam a mente e o corpo para Espinosa. Quando alguém fala, ao
mesmo tempo movimenta o seu corpo e, se se volta para o corpo, tem consciência do
movimento do corpo. Há, portanto, simultaneidade nas relações entre pensamento e
extensão no modo finito da substância.
Na definição dos afetos144, Espinosa diz: “O desejo (Cupiditas) é a
própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada a fazer algo por
uma afecção qualquer nela verificada.” No mesmo sentido, Espinosa dissera, no escólio
da proposição IX da Parte III145 : “o desejo é o apetite de que se tem consciência.”
Portanto, apetite e desejo são a mesma coisa, com a diferença de que
o desejo é o apetite de que se tem consciência, e o apetite é o mero “desejo” de perseverar
no ser, mesmo que não se tenha consciência deste apetite - o que faria desse apetite um
desejo.
A alegria é todo afeto que causa um aumento do desejo de
perseverar no ser, que faz do conatus algo mais potente. Espinosa, na definição II dos
afetos146, diz sobre a alegria: “A alegria é a passagem do homem de uma perfeição menor
a uma perfeição maior.” Isto é, a alegria é precisamente o aumento do conatus. A alegria
consiste na passagem de um estado de menor potência para existir para um estado de maior
potência para existir. Portanto, alegria e aumento do conatus – aumento da perfeição – se
identificam.
A tristeza é todo afeto que diminui a potência, o desejo, o conatus. O
afeto triste é aquele que faz a vontade de perseverar no ser diminuir. Assim, a tristeza é
uma diminuição da liberdade humana, na medida mesma em que diminui a natureza

144
Espinosa. Ética. Parte III, definição I. Tradução de Joaquim Ferreira Gomes. Coleção Os Pensadores. São
Paulo, ed. Abril, 1973, p. 219.
145
Espinosa. Ética. Parte III. Tradução de Joaquim Ferreira Gomes. Coleção Os Pensadores. São Paulo, ed.
Abril, 1973, p. 190.
146
Ibid. p. 220.

97
humana de querer persistir na existência. Na definição III da Parte III da Ética147,
Espinosa diz: “A tristeza é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma
perfeição menor.” Portanto, a tristeza não é senão a diminuição da potência do ser no que
se refere ao exercício de sua natureza de potência para persevera no ser.
O desejo como consciência do apetite, a alegria como tudo que
aumenta o desejo e a tristeza como tudo que diminui o desejo são os três afetos originários,
isto é, as três maneiras básicas pelas quais o ser humano é afetado por outros seres
humanos e por outras coisas (outros modos finitos da substância).
Se um modo finito humano causa em outro um afeto que diminui a
potência do outro, este modo finito é ruim para o outro: é causa de tristeza na medida em
que o afeta levando à diminuição da potência. Se, por outro lado, um modo finito humano
causa em outro um afeto que aumenta o desejo desse outro, este modo finito é bom para o
afetado por ele: é causa de alegria na medida em que aumenta o desejo de existir do modo
finito afetado.
Tudo o que afeta o modo finito humano resultando, para este, em
diminuição do desejo de existir, é triste e deve ser contrariado, pois implica cesura, quebra,
exclusão. Tudo o que afeta o modo finito humano resultando, para este, em aumento do
desejo de existir, deve somar-se ao conatus, pois aumenta a potência de existir, aumenta a
liberdade humana na medida mesma em que possibilita a realização mais plena da natureza
humana: persistir no ser, querer existir.
Pode-se dizer, portanto, que Espinosa concebe o bom e o mau não
como exteriores ao ser, como finalidades a serem perseguidas pelo ser humano – a causa
final foi abolida do sistema, há apenas causas eficientes imanentes operando na substância.
Deus não age com vistas a nenhum fim, como diz Espinosa em diversas passagens de sua
obra. Segundo esta concepção ética finalista e que se dá com base em modelos de ação –
que é a concepção da tradição -, considera-se algo como sendo, exteriormente, bom, e
busca-se este algo bom. O alcance desse telos seria o critério da boa ação. O alcance de
uma finalidade ruim seria o critério da ação má. Portanto, a vontade como exercício da
faculdade do livre-arbítrio buscaria o bom exterior ao ser humano. Alcançada esta
finalidade, estaria delineada a ação ética, isto é, a boa ação. Porém, Espinosa recusa o
livre-arbítrio como império da vontade, bem como recusa a liberdade como exercício da
vontade como livre-arbítrio.

147
Ibid. p. 220.

98
Para Espinosa, pela definição de homem e dos afetos, não é porque
algo é bom que se lhe busca e assim se define a ação virtuosa, isto é, como alcance da boa
finalidade. Na verdade, é porque se deseja algo que este algo é bom. A causa do bom e do
mau não são exteriores ao ser, mas interiores. O desejo de algo que causa alegria – e
portanto aumenta o conatus – é bom. O desejo de algo que causa tristeza – diminui o
conatus – é ruim.
É pela intrincada rede de afetos que Espinosa define o que é bom e o
que é mau como critérios imanentes ao modo da substância e como os demais modos
afetam o modo finito. O bom e o mau deixam de ser modelos que devem ser perseguidos e
deixam de ser critérios da ação boa e da ação má. Não há, para Espinosa, nada que seja
absolutamente bom e absolutamente mau de tal sorte que, se alcançados, estabelecem a
ação como boa ou como má. As noções de bom e mau são tão diversas quanto são as
maneiras do modo finito humano ser afetado pelos demais modos finitos humanos e não
humanos.
Há uma relatividade afetiva – os seres se afetam de maneiras
diversas entre si– que é critério do bom e do mau em função do aumento ou da diminuição
da potência do modo finito para realizar o que é de sua natureza: perseverar no ser.
Vale aprofundar o ponto segundo o qual o que existe é uma rede
afetiva – de paixões – entre os modos finitos humanos a partir dos três afetos originários,
quais sejam, o desejo, a alegria e a tristeza. Este aprofundamento pode ser alcançado
fazendo-se a análise de alguns afetos derivados dos afetos originários.
Que é o amor para Espinosa?
Em primeiro lugar, é uma variação de um afeto alegre. Com efeito,
faz com que o conatus passe de uma perfeição menor a uma perfeição maior, isto é,
aumenta sua liberdade na medida em que aumenta sua potência de exercer sua natureza de
modo finito que não visa senão a perseverar na existência. Na definição VI da Parte III da
Ética148, Espinosa diz sobre o amor: “O amor é a alegria acompanhada da idéia de uma
causa exterior.” Na explicação da definição, Espinosa diz que esta definição explica de
maneira clara a essência do amor para além da definição clássica segundo a qual o amor
seria a vontade do amante de se unir à coisa amada. De fato, para Espinosa, isto seria
apenas uma propriedade do amor, assim como é uma propriedade do círculo ter todos os

148
Espinosa. Ética. Parte III. Tradução de Joaquim Ferreira Gomes. Coleção Os Pensadores. São Paulo, ed.
Abril, 1973, p. 221.

99
seus pontos eqüidistantes do seu centro. A definição de círculo – aquela que vai à causa
do círculo , na medida em que conhecer é conhecer pela causa -, para o autor, é aquela que
diz ser o círculo o resultado do giro de um segmento de reta em torno de um ponto fixo.
Esta seria a causa genética do círculo, isto é, sua causa eficiente geradora. Se conhecer é
conhecer pela causa, e causa é sempre a causa eficiente, conhecer é estabelecer o que gerou
a coisa, e não estabelecer uma propriedade da coisa. Da mesma maneira, conhecer o amor
não é fazer um inventário de suas propriedades, mas estabelecer sua causa eficiente
geradora. Diz Espinosa que, por ter rompido com a idéia de vontade livre, não poderia
conceber o amor como a vontade do amante em relação à sua união com o amado. Em vez
disso, o amor é definido como “o contentamento íntimo que se produz no amante por
causa da presença da coisa amada, contentamento pelo qual a alegria do amante é
fortificada ou ao menos alimentada.”149
Assim, fica definido o amor em função da maneira pela qual o
amante é afetado pela coisa amada. A imagem da coisa amada – idéia do amado -, que o
amante tem em sua mente faz com que seu desejo de perseverar na existência aumente. Por
esta razão, o amor é uma expressão de um afeto originário: a alegria.
Outro exemplo interessante é o que se refere aos seguintes afetos: o
medo e a esperança. Espinosa define o medo como “uma tristeza instável nascida da idéia
de uma coisa futura ou passada, do resultado da qual duvidamos numa certa medida.”150
Curiosamente, Espinosa define a esperança com as mesmas palavras151, dizendo,
entretanto, que ela é uma alegria instável, em vez de uma tristeza.
No escólio II da proposição XVIII da Parte III da Ética152, Espinosa
estabelece que a esperança é uma alegria instável, nascida da imagem – um afeto – de uma
coisa futura ou passada, de cujo resultado se duvida, bem como diz ser o medo uma tristeza
instável, nascida da imagem de uma coisa futura ou passada da qual se duvida. Cessada a
dúvida, a esperança se transforma em segurança e o medo, cessada a dúvida, se transforma
em desespero.
De fato, se a esperança é um afeto alegre na medida em que aumenta
o grau do conatus, a segurança é um afeto alegre que aumenta em maior grau o conatus.

149
Espinosa. Ética. Parte III. Tradução de Joaquim Ferreira Gomes. Coleção Os Pensadores. São Paulo, ed.
Abril, 1973, p. 221
150
Espinosa. Ética. Parte III. Tradução de Joaquim Ferreira Gomes. Coleção Os Pensadores. São Paulo, ed.
Abril, 1973, p. 222.
151
Ibid., p.222.
152
Ibid. , p. 195.

100
Com efeito, a dúvida cessa, e se tem a certeza daquilo que ocorreria. Do mesmo modo, o
medo é um afeto de tristeza em menor grau em relação ao afeto de desespero. O que
diferencia o grau desses afetos é a dúvida que paira num e a certeza que existe do outro. O
medo certo é desespero. O medo como dúvida sobre uma imagem do passado ou do futuro
é tristeza em menor grau: carece da confirmação.
Assim Espinosa define uma série de afetos, como o ciúme, a inveja,
o favor, o contentamento, etc., de tal maneira que não os recusa, mas os considera naturais,
isto é, fazem parte da condição do homem de modo finito da substância que afeta e é
afetado por uma rede, por um sistema afetivo e causal que é próprio da imanência de Deus
e de Sua atuação como causa eficiente imanente do real. Os afetos, isto é, a maneira como
os modos finitos da substância se relacionam, variam, segundo Espinosa, de maneira
indeterminada, isto é, infinita. De fato, uma coisa pode afetar alegremente um conatus em
um momento e pode, momentos depois, afetar tristemente o mesmo conatus. Mais: uma
coisa pode afetar ao mesmo tempo um conatus de maneira triste e alegre. Dá-se, neste
caso, o que Espinosa chama de flutuação da alma (ou flutuação da mente).
Pode-se concluir, dessa maneira, que a vida humana na
intersubjetividade, bem como a vida humana na relação com os demais modos finitos não
humanos é sempre afetiva e implica uma rede de afecções complexa. Esta rede complexa
de afecções tem uma ligação com o conceito de aumento ou diminuição do grau do
conatus. Também, pode-se dizer que esta complexa rede de afecções é derivada de três
afetos básicos ou originários, que por sua vez, em suas combinações, fazem derivar os
demais afetos. Os três afetos originários – a alegria, a tristeza e o desejo como consciência
do querer perseverar no ser – é que possibilitam, no princípio e no limite, a instituição do
corpo político.

***

Um ponto que deve ser analisado é o que segue: Espinosa diferencia


afetos ativos de afetos passivos. Os afetos ativos são aqueles que resultam em uma ação,
que implicam soma e que, por esta razão, fortalecem o conatus. Afetos passivos são
aqueles que implicam servidão, isto é, passividade, e, por esta razão, têm como resultado a
diminuição do conatus.

101
Para que se possa entender, de maneira vertical, o conceito de
passividade e de atividade, é importante que se faça uma incursão na teoria do
conhecimento de Espinosa. Ela dará, com mais detalhes, o instrumental do qual os
indivíduos são dotados para entenderem o motivo pelo qual se afetam e, nessa medida,
aumentam ou diminuem seu desejo de perseverar.
Como já foi analisado em outro ponto da presente dissertação,
Espinosa concebe três estruturas de conhecimento da qual são dotados os indivíduos.
Em primeiro lugar, trata-se de constatar a existência de uma
estrutura de conhecimento que dota os indivíduos de conhecimento imaginativo, isto é,
conhecimento por meio de imagens. Quando um ser humano vê que o sol é menor do que a
terra – com os olhos, isto é, com os órgãos da visão -, o que ocorre é um conhecimento
imaginativo. Há uma imagem do sol que, por estar a longa distância da terra, aparece como
diminuto em relação a esta. Este é um exemplo de conhecimento imaginativo. Há, por
parte da mente, uma passividade em relação ao sol distante que se apresenta à visão e à
mente do sujeito.
Em segundo lugar, há o conhecimento racional-discursivo, que
permite à mente ter acesso, após um discurso da razão, à verdade sobre o objeto
considerado. É com os “olhos do espírito” ou com os “olhos da mente” que o indivíduo
constata que o sol, não obstante aparecer menor que a terra, na realidade é maior que esta.
Este conhecimento permite, por meio de uma outra estrutura cognitiva, que não se tenha
por saber a mera imagem produzida na mente. Veja-se que, por esta estrutura, houve a
produção, por meio da potência da mente, de um saber que não se deu segundo uma
passividade que redunda na imagem do sol pequeno, menor que a terra. Foi por uma
atividade do intelecto, segundo sua potência para conhecer, que o sol se apresentou maior
que a terra.
Note-se que não se trata de dizer que o conhecimento imaginativo é
menor em valor que o conhecimento racional-discursivo, nem mesmo que ele se dá em
uma escala de ascensão, como se verifica em uma concepção platônica ou aristotélica de
conhecimento. Há apenas estruturas de conhecimento distintas. Uma opera por imagens,
que também são conhecimento, outra opera pela potência da mente enquanto modificação
do atributo pensamento de Deus. Aquela produz conhecimento inadequado – passividade -,
enquanto esta produz conhecimento adequado – atividade, ação.

102
Finalmente, há uma terceira maneira de conhecer ou uma terceira
estrutura de conhecimento, que Espinosa chama de conhecimento intuitivo. Trata-se de um
modo de conhecer que prescinde do discurso e tem acesso ao real por meio de intuições
intelectuais. Esta estrutura de conhecimento também produz conhecimento adequado, e,
portanto, é causa de ação, não representa passividade, mas atividade da mente como
expressão do atributo pensamento em Deus.
Ora, a pergunta que pode vir neste momento é a seguinte: qual a
relação entre as estruturas de conhecimento presentes no sistema espinosano, por um lado,
e a ação que leva à instituição do campo político, que possibilita a vida política, por outro
lado?
Nada mais instigante, e, o mesmo tempo, coerente.
O conhecimento adequado possibilita a ação adequada, enquanto o
conhecimento imaginativo gera passividade. Portanto, o conhecimento imaginativo não
gera ação, ainda que possa gerar aumento do conatus por meio de paixões alegres.
Assim, “a razão propicia o conhecimento das relações e da
conveniência entre a parte ( que a imaginação tende na maioria das vezes a conhecer
separadamente do todo) e o todo. Ela é o conhecimento das relações necessárias entre o
todo e cada uma das partes, o que permite dizer que cada uma das partes é uma parte
desse todo e não um indivíduo isolado como nos faz crer a imaginação. A noção comum
oferece o conhecimento daquilo que há em comum entre um todo e suas partes e entre
essas últimas ; ela nos dá a estrutura universal de relações necessárias entre as partes
singulares da Natureza. (...) reside, portanto, no seguinte, a positividade da imaginação:
ela propicia, através das paixões alegres (...), a formação da noção comum e, em
conseqüência, a passagem ao segundo gênero de conhecimento, pois embora a
imaginação seja passividade, os corpos externos que agem sobre o corpo passivo podem
aumentar sua potencialidade (no caso das paixões alegres) e fazê-lo descobrir como tendo
relações de concordância com outros, permitindo que a razão possa operar chegando às
noções comuns. E sendo pois as paixões, como vimos, independentes de nossa vontade,
começaremos nosso caminho em direção à liberdade, isto é, nos reconheceremos como
uma singularidade que faz parte de um todo infinito que é Deus, não através da negação

103
das paixões, mas partindo do confronto entre elas mesmas, deixando-nos vencer apenas
pelas paixões positivas.” 153
Resta entender a relação entre as estruturas do conhecimento, o
conceito de noções comuns e, também, a maneira como isto tem a haver com a instituição
do campo político em Espinosa.
Uma primeira conseqüência do afeto alegre para a política é o
seguinte: da alegria nasce a sociabilidade. Porém, da tristeza – por exemplo, o medo -, não
é possível que nasça a sociabilidade. Neste ponto o pensamento de Espinosa está distante
do pensamento hobbesiano, na medida, como se viu, em que para este o medo da morte
violenta é um dos fatores que leva à instituição do corpo político, do Leviatã. E, mesmo
dentro do corpo político, o medo tem um papel fundamental: é pelo medo da sanção que o
indivíduo não viola a norma. O que Espinosa diz é radicalmente diverso: do medo não se
pode conceber sociabilidade – porque é uma paixão que implica cisão, quebra. Apenas da
alegria é que se pode pensar em fundar a sociabilidade. Daí sua importância política.
As idéias verdadeiras que os indivíduos têm, isto é, que eles são
capazes de estabelecer pela potência do intelecto, não decorrem de coisas externas. Elas
vêm da espontaneidade do intelecto. Quando o intelecto opera, idéias são produzidas. O
mesmo não ocorre com as imagens. Estas dependem, exclusivamente, da afecção que
corpos externos produzem na mente. O que, portanto, neste caso, não é uma atividade da
mente que gera uma idéia-ação, mas uma passividade do intelecto que gera apenas
passividade, imagem.
Daí que os indivíduos sejam ativos quando produzem, pela potência
do intelecto, idéias verdadeiras, por meio das estruturas de conhecimento que são a
racional-discursiva e aquela que gera a intuição intelectual. Daí que, por outro lado, os
indivíduos sejam passivos quando têm idéias imaginativas. Com efeito, esta estrutura de
conhecimento apenas é capaz de conceber imagens na mente na medida em que estas são
geradas não por uma atividade do intelecto – ação -, mas pela mera passividade do
intelecto frente às imagens que a ele se apresentam.
As noções comuns não são o estabelecimento de um consenso. Não
se trata de uma decisão concebida por uma assembléia de cidadãos ou de indivíduos. Na
realidade, trata-se de um conceito ligado à ontologia espinosana e à idéia de que o

153
Sandro Kobol Fornazari. Da Perversidade à Impotência. Cadernos Espinosanos I (2). São Paulo, Discurso
editorial, p. 162 e 163, 1996.

104
indivíduo, isto é, o conatus mente-corpo é uma potência da mente para o conhecimento e
do corpo para o equilíbrio vital. Quando os indivíduos agem para conservar as
propriedades de sua natureza, concordam uns com os outros. Veja-se que as noções
comuns são derivadas da ontologia espinosana na exata medida em que esta define o
indivíduo como desejo de perseverar – por ser parte da potência absoluta da substância. É
claro que a razão, ao verificar que na Cidade o indivíduo realiza a sua natureza de maneira
eficaz, concebe a idéia segundo a qual procurar o bem comum é bom para todos, isto é,
aumenta o grau dos conatus individuais e, principalmente, por criar o conatus coletivo,
institui o corpo político. Porém, é importante ressaltar que o primeiro passo para a
instituição do corpo político não é dado pela razão, nem, portanto, pelas noções comuns. O
primeiro passo é exclusivamente passional. Ou seja, imaginativamente os seres humanos
percebem, em graus ainda menores de sociabilidade, que o outro pode causar aumento do
grau do conatus quando este outro causa, em um determinado indivíduo, uma paixão
alegre. Eis o passo fundante da idéia segundo a qual um ser humano pode ser útil ao outro:
ele pode aumentar o grau de força para perseverar no ser em outro. Mas deve-se atentar
para o seguinte ponto: este grau aumentado por uma paixão alegre é ocasionado por um
afeto passivo, por uma paixão, isto é, o indivíduo que está no campo do conhecimento
imaginativo, ainda que sinta um aumento do grau do seu conatus, o faz passionalmente,
não por uma ação de sua mente. Este é, entretanto, o passo inicial da fundação do corpo
político: as paixões que os seres humanos produzem entre si e a verificação de que a
paixão alegre provoca soma, ação, enquanto a paixão triste provoca ruptura, servidão.
Assim, as noções comuns são importantes para a instituição do
corpo político porque elas são o conhecimento do segundo gênero, qual seja, o racional-
discursivo, catalisado pelas imagens alegres (paixões alegres) – conhecimento do primeiro
gênero -, que aumentam o grau do conatus. As noções comuns são impulsionadas,
primeiramente, pelas imagens que geram paixões alegres. Por exemplo, a imagem de um
corpo que, em vez de causar cisão, causa soma, e, por esta razão, aumenta o conatus. Daí à
verificação de que o homem, em vez de prejudicial ao homem, seja concebido como útil na
medida em que aumenta o conatus é um passo. Quando o indivíduo verifica que nada é
mais útil ao homem do que o homem, por meio de um conhecimento adequado dessa
utilidade, isto é, por meio do uso da razão como instância que opera segundo sua própria
potência, fica claro que este conhecimento é adequado. Fica claro, ao mesmo tempo, que a
medida desta utilidade é o fato segundo o qual a relação entre os homens pode gerar um

105
aumento da força para perseverar no ser para todos os que convivem. Há saída da barbárie
do baixo grau de socialidade ou do estado de natureza – como hipótese teórica – para a
possibilidade de uma vida com certa concordância e certa paz social.
É importante verificar que esta descoberta da utilidade do homem
para o homem se inicia de maneira passional e, após um trabalho da mente segundo sua
potência para conhecer, gera uma ação.
De maneira mais refinada, por que se inicia de maneira passional?
Ora, porque os homens descobrem que a maneira como eles se afetam entre si, isto é, a
maneira como um produz imagens no outro, pode gerar paixões alegres que, por sua vez,
aumentam a força para existir de todos aqueles que se afetam alegremente. Isto em relação
a todas as espécies de afetos alegres. É apenas quando este conhecimento inadequado,
porque imaginativo, se transforma em um conhecimento adequado, porque racional, isto é,
produzido pela potência da mente por ela mesma, é que se pode dizer que há a passagem
do campo da passividade para o campo da atividade.
Por esta razão há uma identificação entre conhecimento adequado e
ação e conhecimento inadequado e paixão, ainda que este conhecimento inadequado tenha
um papel importante para a instituição do corpo político como instância que permite a
efetiva realização do direito natural como potência. Ou seja, quando o conhecimento
imaginativo gera paixões alegres, não obstante haver aí mera passividade do intelecto, há
aumento do conatus. Quando a mente, por uma operação interna, constata, por meio de sua
potência para pensar, que o homem é útil ao homem e que, nesta medida, a sociedade é
fundamental para que não haja o estado bruto anterior à instituição do corpo político , aí
há, verdadeiramente, uma ação. Em que medida? Ora, na medida em que o grau do conatus
não aumentou por uma ação externa, mas o fez por uma ação interna, da própria mente em
sua operação, por um conhecimento adequado, porque racional, do que é a utilidade para
os homens: viver sob um corpo político que garante o exercício do desejo de perseverar no
ser, isto é, possibilita, realmente, o exercício do direito natural.
O conhecimento adequado e verdadeiro do bom e do mal é, para o
indivíduo, o critério da ação virtuosa. E o conhecimento apenas pode ser adequado se ele
for gerado, como se disse, única e exclusivamente pela potência interna da mente. Ser
virtuoso, portanto, é ser causa adequada das idéias e das ações. Agir em conformidade com
o que é útil para o agente: eis o conhecimento verdadeiro do bom e do mau.

106
Assim, duas conclusões podem ser extraídas daquilo que acima foi
desenvolvido.
Primeira: o campo das paixões é natural aos seres humanos, isto é,
os seres humanos afetam e são afetados por outros seres humanos e por outros modos da
substância. Por isso, é inútil, segundo Espinosa, como queriam os estóicos, que se procure
controlar as paixões por meio da razão. Uma paixão triste apenas pode ser anulada por uma
paixão alegre e mais forte. E, claro, a razão, por poder conhecer verdadeiramente o bom e
o mau – o que aumenta e o que diminui o grau do conatus -, gera ao mesmo tempo ação,
conhecimento e alegria na medida em que aumenta desejo de perseverar. O campo
passional, natural aos seres humanos, é importante para que sejam formadas as noções
comuns, isto é, as noções que têm como catalisador a instância imaginativa, segundo a qual
a alegria causada reciprocamente é causa de soma, e, portanto, de aumento do conatus. O
conhecimento adequado do bom e do mau é, por excelência, causador de ações. Por ser um
conhecimento advindo não de uma causa externa – passividade -, mas de uma causa
interna, isto é, a própria potência da mente para conhecer, ele gera, necessariamente, ações.
Por isto, o conhecimento adequado não é passivo, mas ativo. Daí que conhecimento
adequado do bom e do mau sejam correlatos de ações: eis seu caráter virtuoso, pois geram
aumento do conatus. Não há, assim, à revelia de toda uma tradição filosófica, a ação
virtuosa sendo definida pelo alcance de um telos bom e exterior ao agente. Ao invés, a
ação é tão mais virtuosa quanto mais ela aumente o grau do conatus. O critério, portanto,
deixa de ser extrínseco para ser interior ao indivíduo. Isto não significa um bruto
individualismo, porque a razão é capaz de saber, pelo conhecimento do bom e do mau, que
outro ser humano é o que há de mais útil ao ser humano.
Segunda: a descoberta de que a instituição do corpo político é útil
aos homens se dá menos pela razão e mais pela paixão. Com as noções comuns, catalisadas
pela paixão alegre como instância que aumenta o conatus, tem-se um primeiro acesso à
importância do homem para o homem para a saída do estado bruto da falta da instituição
do corpo político. Portanto, é apenas quando o ser humano verifica que a imagem de um
outro ser humano que causa alegria gera, ao mesmo tempo, aumento do grau do conatus, é
que se verifica, ainda que de forma parcial, porque imaginativa, o interesse de se viver em
sociedade. Sabe-se, ainda que de maneira parcial, que no estado de natureza, ou com graus
de socialidade ainda precários, a possibilidade de o indivíduo exercer sua natureza é muito
prejudicado. É um estado de violência na medida em que, efetivamente, a vida é precária,

107
bruta, curta. É na medida em que graus de socialidade se instituem, culminando no corpo
político, que se tem a possibilidade de uma vida com menos violência e com maiores
condições de realização efetiva da natureza humana: perseverar no ser. Assim, apenas com
o corpo político instituído, o homem verifica, ainda que por meios primeiramente
imaginativos, e, eventualmente, após, por meios racionais segundo noções comuns, que é
muito mais útil ao homem este estado do que o estado bruto da falta de instituições. Com
efeito, apenas no Estado instituído – na Cidade, como diz Espinosa no escólio II da
Proposição XXXVII da parte IV da Ética -, o direito natural pode ser exercido por meio do
direito civil instituído pela Cidade. O direito civil de uma Cidade é o direito natural que se
efetivou. E o fato de haver uma Cidade que dá a si mesma um direito civil que possibilita o
exercício efetivo dos direitos naturais – como potências – dos seus cidadãos significa que o
corpo político está instituído. É antes pelas paixões, como afetos passivos, e eventualmente
pela razão, como afeto ativo, que o corpo político se funda. É menos por um contrato – que
exigiria a manifestação da vontade como faculdade advinda do exercício do livre-arbítrio,
conceito este abolido por Espinosa, bem como a utilização exclusiva da razão -, e mais
pelas paixões como afetos passivos e pela razão, em um segundo momento, como afeto
ativo, que o corpo político surge.

108
7. Democracia necessária

“a democracia é o único regime político


no qual os conflitos são considerados o
princípio mesmo do seu funcionamento.
(...) Em vez de falar em crise e desordem,
que são os temas preferido da classe
dominante brasileira na sua tradição
autoritária, é hora de comemorarmos o
fato de que finalmente este país está
conhecendo uma experiência
democrática. Democracia não é, como
querem os liberais, o regime da lei e da
ordem.”

Marilena Chaui154

“Não se espere que a democracia resolva


conflitos, ela os cultiva.”

Donaldo Schüler155

154
Marilena Chaui. Entrevista concedida à Folha de São Paulo em 03 de agosto de 2003, p. A10.
155
Donaldo Schüler. Origens do discurso democrático. Porto Alegre, ed. L&PM, 2002, p. 13.

109
a)Busca de uma definição

“The history of theocratic states


shows how the monopoly of
knowledge turns into a monopoly of
ignorance (and we could say the
same of the technocratic states in
which we live today).”

Etienne Balibar156

Talvez seja interessante, do ponto de vista didático, iniciar o


Capítulo em que o tema da democracia será tratado diretamente – na medida em que foi
tangenciado, em alguma medida, nos capítulos anteriores – propondo uma definição de
democracia com base nos conceitos já trabalhados nesta dissertação. Portanto, antes de
levantar problemas concernentes ao tema, talvez seja o caso de definir, segundo os
conceitos de Espinosa, a democracia.
No Tratado Teológico-político, a democracia é definida como a
mais natural forma de governo que pode ser concebida. Isto porque é nela que se realiza,
de maneira a mais completa, a natureza humana. Ou seja, é nela que se realiza a
necessidade de participação de todos os cidadãos no poder. Ao mesmo tempo, é na
democracia que não se aliena o direito natural a um poder soberano que transcende o
próprio corpo político. A soberania é constituída pela atividade de todos os cidadãos no
estado civil, e de maneira igual.
No Tratado Político, por sua vez, a democracia é definida de uma
maneira diversa daquela utilizada pela tradição, porém no mesmo sentido dado ao tema no
Teológico-político. De fato, a tradição define a democracia como o regime político em que
todos ou muitos dos cidadãos detêm o poder. Nesta obra, em que o Capítulo sobre a
democracia não foi terminado – pois Espinosa faleceu antes de concluí-lo -, o autor diz que

156
Etienne Balibar. Spinoza and Politics. Translated by Peter Snowdown. London, New York, ed. Verso,
1998, p. 123. Uma possível tradução para este excerto é a seguinte: “A história dos Estados teocráticos
mostra como o monopólio do conhecimento se transforma em um monopólio da ignorância (e nós
poderíamos dizer o mesmo a respeito dos Estados tecnocráticos nos quais vivemos atualmente).”

110
na democracia todos os cidadãos têm o direito de voto e, simultaneamente, têm o direito
de tomar parte nas funções públicas por serem cidadãos. Como diz Espinosa no parágrafo
3º do Capítulo XI do Tratado Político157 , o regime democrático é aquele em que “todos os
que são governados unicamente pelas leis do país não estão de forma alguma sob a
dominação de um outro, e vivem honrosamente, possuem direito de sufrágio na assembléia
suprema e têm acesso aos cargos públicos.”
Após este movimento do texto, Espinosa concebe uma idéia muito
polêmica que depois será tratada de maneira mais vertical, idéia segundo a qual estão
excluídos desta participação política os estrangeiros, as crianças, os pupilos, as mulheres e
os servidores, bem como os infames.
Resta dizer que a democracia é o mais natural dos regimes políticos
principalmente, como já se disse em outro capítulo, por uma razão ontológica. Sendo o
homem uma parte da potência da substância absolutamente infinita – Deus -, é apenas num
regime em que as potências individuais podem se expressar é que estas potências podem,
de fato, se efetivar ao manifestar este desejo de perseverar tomando as rédeas da ação
pública, em uma Cidade democrática, no corpo coletivo em que a potência está distribuída.
Ao se analisar a democracia representativa contemporânea – que,
para Espinosa, não seria senão uma aristocracia -, um problema, à luz do conceito
espinosano de democracia – e de aristocracia -, pode ser levantado. O ponto é: a prática
política atual, nos ditos países democráticos, possibilita a noção de uma violência imanente
ao regime que se diz democrático. E não se trata de uma violência exterior ao Estado, mas
que se dá pela via de suas instituições. O problema gira em torno da questão de se poder
conceituar como democrático um Estado apenas e tão-somente porque as instituições
garantem a liberdade de expressão ao mesmo tempo que possibilitam o voto direto
periódico para a eleição de representantes. Ora, seria isto suficiente para dizer que se trata
de um Estado democrático se, por meio de suas instituições, há compatibilidade entre as
práticas políticas ditas democráticas e a exclusão social? Em uma palavra: não obstante o
voto direto de tempos em tempos, bem como a liberdade de expressão em alguma medida,
pode-se dizer que um regime dito democrático pode ter a exclusão como sendo algo
compatível com sua existência? Democracia e exclusão podem se conciliar? Mesmo uma
aristocracia – como sendo, na concepção espinosana, o que hoje se chama democracia

157
Espinosa. Tratado Político. Tradução de Manuel de Castro. São Paulo, ed. Abril Cultural, 1973, p. 371.

111
representativa -, pode tolerar altos graus de exclusão, isto é, pode ter uma boa parte dos
cidadãos excluída do regime político?
Talvez seja pertinente explicitar o que Espinosa diz sobre este ponto:
“Conhece-se facilmente qual é a condição de qualquer Estado considerando o fim em
vista do qual um estado civil se funda: este fim não é senão a paz e a segurança da vida.
Por conseguinte, o melhor governo é aquele sob o qual os homens passam a sua vida em
concórdia e aquele cujas leis são observadas sem violação. É certo, com efeito, que as
sedições, as guerras e a violação ou o desprezo pelas leis são imputáveis, não tanto à
malícia dos súditos, quanto a um vício do regime instituído. Os homens, com efeito, não
nascem cidadãos, mas formam-se como tais. As paixões naturais que se debatem são, além
disso, as mesmas em todos os países; se, portanto, reina uma maior malícia numa cidade e
se aí se cometam pecados em maior número, isso provém de que ela não promoveu
suficientemente a concórdia, que as suas instituições não são suficientemente prudentes e
que, consequentemente, não estabeleceu efetivamente um direito civil. Com efeito, um
estado civil que não suprimiu as causas de sedição e onde a guerra é constantemente de
recear, onde as leis são freqüentemente violadas, não difere muito do estado natural, em
que cada um, com maior perigo para sua vida, age segundo a própria compleição.”158
O critério para um regime efetivamente democrático não deveria ser,
então, não apenas as garantias formais, mas, para além disso, um algo mais? Que seria este
algo mais? Ora, este algo mais consiste precisamente, pela concepção espinosana de
democracia, em uma forma política que realiza ao mesmo tempo a necessidade jurídica de
universalidade de direitos e liberdades, mas também a necessidade ontológica – e eis a
inovação espinosana em relação a toda a tradição – de preservação do potência do corpo
coletivo singular e de cada indivíduo singular dentro do corpo político.159
Portanto, neste primeiro movimento do texto, pode-se dizer que a
democracia é o mais natural dos regimes políticos, na concepção espinosana, pelo fato de
que ele é o regime que realiza ontologicamente a natureza humana. Todos governam ao

158
Espinosa. Tratado Político. Tradução de Manuel de Castro. São Paulo, ed. Abril Cultural, 1973, p. 328,
capítulo V, parágrafo 2º. Marilena Chaui, em seu ensaio intitulado Direito Natural e Direito Civil em Hobbes
e Espinosa, in NAVES, Márcio B. e outro. Crítica do Direito, São Paulo, Livraria Editora Ciências
Humanas, 1980, p. 83-106, faz as seguintes considerações a respeito desse tema: “Espinosa demonstra, por
seu turno, que tanto as virtudes quanto os vícios dos cidadãos não podem ser imputados a eles, mas à
própria cidade.” (p.88).
159
Fernando Dias Andrade. Pax Spinozana: Direito natural e direito justo em Espinosa. Tese apresentada ao
Departamento de Filosofia da FFLCH-USP para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientação de
Marilena Chaui. São Paulo, 2001, p. 197.

112
votar e participar das instituições. Todos são governados porque estas instituições da
Cidade é que dão o conteúdo do direito civil para ela mesma, isto é, para todos.
E não basta que haja uma mera forma, na medida em que a formação
para a cidadania é fundamental para que as instituições possam dar à Cidade um direito
civil que não seja mera máscara de um estado de natureza.
No Tratado Teológico-político160, em seu Capítulo XX, Espinosa
conclui a respeito do Estado e do melhor regime político: “Dos fundamentos do Estado, já
aqui expostos, resulta com toda evidência que o seu fim último não é dominar nem
subjugar os homens pelo medo e submetê-los a um direito alheio; é, pelo contrário,
libertar o indivíduo do medo a fim de que ele viva, tanto quanto possível, em segurança,
isto é, a fim de que mantenha, da melhor maneira, sem prejuízo para si ou para os outros,
o seu direito natural a existir e a agir.(...) O verdadeiro fim do Estado é, portanto, a
liberdade.”
Na mesma obra, em seu Capítulo XVI161, Espinosa dá a seguinte
definição para a democracia: “A condição para que uma sociedade se possa constituir sem
nenhuma contradição com o direito natural e para que um pacto possa ser fielmente
observado é, pois, a seguinte: cada indivíduo deve transferir para a sociedade toda a sua
própria potência, de forma a que só aquela detenha, sobre tudo e todos, o supremo direito
de natureza, isto é, a soberania suprema, à qual todos terão de obedecer, ou livremente ou
por receio da pena capital. O direito de uma sociedade assim chama-se Democracia, a
qual, por isso mesmo, se define como a união de um conjunto de homens que detêm
colegialmente o pleno direito a tudo que estiver em seu poder. Donde se conclui que o
poder supremo não está sujeito a nenhuma lei e que todos lhe devem obediência em tudo;
foi isso o que acordaram todos, tácita ou expressamente, quando transferiram para ela
todo o poder de se defenderem, ou seja, todo o seu direito.”
Espinosa diz que esta “submissão” poderia parecer, à primeira vista,
uma perda da liberdade. Porém, há perda da liberdade apenas e tão-somente se o homem se
encontra em estado de natureza ou em um estado instituído que não garante o exercício da
potência. O Estado comum é instituído para garantir um mínimo de paz e para que o
conatus individual possa perseverar na existência em melhores condições que aquelas
existentes em estado de natureza. Não constitui perda de liberdade a instituição de leis que

160
Espinosa. Tratado Teológico-político. Tradução de Diogo Pires Aurélio. Lisboa, ed. Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 1998, p. 367.
161
Ibid. , p. 312-313.

113
são comuns e que possibilitam a liberdade como realização da natureza do indivíduo, isto
é, perseverar no ser de maneira efetiva. Ora, o que ocorre no Estado instituído comumente
(democracia) é a possibilidade mesma de o conatus exercer plenamente a necessidade de
sua natureza: perseverar em seu ser sem a brutalidade, a violência e a precariedade do
estado de natureza ou dos baixos graus de socialidade.
Portanto, o melhor regime político para o exercício desta liberdade
como expressão da potência é o regime democrático162.

162
Em seu ensaio sobre a relação entre política e as idéias imaginantes, Fernando Cesar Teixeira França (A
política ou Da força criadora das idéias imaginantes. Cadernos Espinosanos II (1), São Paulo, Discurso
editorial, 1997, p.22) diz a respeito da democracia: “Em suma, o discurso de Espinosa se perfaz como
contradiscurso ao desvendar a heteronomia na moral, na política e no saber; para tanto, é preciso
compreender os elementos presentes no modo de operar da imaginação para que se possa diferenciar o que
é força corporal e o que é fraqueza espiritual. Esta reavaliação das operações do imaginário não aponta
para sua negação, nem para seu aprisionamento nas celas do intelecto, mas para uma nova forma de
instituição social que garanta a expressão livre das opiniões e pensamentos sem comprometer a paz social,
nem apelar para um fundamento transcendente da fé, do saber e da lei. Para Espinosa, esta instituição é a
democracia.”

114
b)O problema da democracia formal

“Thus, at a time when the conceptual


foundations of liberalism were in the
process of being stablished, Spinoza
has already denounced the
“constitutional illusions” (to borrow
Lenin´s frase) of formal democracy
in which powerless individuals
“possessed” rights that “thousands
of obstacles” prevented them from
ever exercising.”

Warren Montag163

Os leitores juristas contemporâneos, bem como alguns filósofos do


direito contemporâneos – uma referência forte e explícita, no que se refere aos filósofos do
direito contemporâneos, é Bobbio, que vê Espinosa como parte da mesma seara teórica de
Hobbes164 - não vêem em Espinosa, principalmente em sua formulação do conceito de
democracia como derivado de sua ontologia, senão uma idéia sem fins práticos, uma falta
de base para um modelo de Estado e uma prática política efetiva. Mas essa é uma leitura
parcial dos textos e da força dos conceitos presentes na obra de Espinosa. Pois,
curiosamente, foi Espinosa que, no Tratado Político165, escreveu as seguintes palavras a
respeito das teorias políticas até então vigentes em contraposição àquela que seria
desenvolvida em sua obra: “Os filósofos concebem as emoções que se combatem entre si,

163
Warren Montag. Prefácio ao livro de Etiene Balibar. Spinoza and Politcs. Translated by Peter Snowdown.
London, New York. Ed. Verso. 1998, p. X. Uma possível tradução para este excerto é a que segue: “Assim,
em um tempo em que as fundações conceituais do liberalismo estavam em vias de serem estabelecidas,
Espinosa já havia denunciado as “ilusões constitucionais” (para usar a frase de Lênin) de uma democracia
formal em que indivíduos sem poder “possuem” direitos que “centenas de obstáculos” os previnem de
exercer.”
164
Norberto Bobbio e Michelangelo Bovero. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna. Tradução
de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo, ed. Brasiliense, 1994, p. 53, em que os autores estabelecem Espinosa
como, em larga medida, seguidor de Hobbes. O modelo de Espinosa seria muito menos interessante para a
teoria do direito que o modelo hobbesiano. Para Bobbio, Hobbes foi um dos precursores do positivismo
jurídico, ou, mais precisamente, um de seus formuladores iniciais. A concepção de Estado em Espinosa seria
a de um Estado governado pela razão. Porém, Espinosa, no escólio II da Proposição XXXVII da Ética, diz
algo diverso sobre a Cidade. Sua instituição é passional e ela se rege pelas paixões, em larga medida, do
conatus coletivo.
165
Espinosa. Tratado Político. Tradução de Manuel de Castro. Coleção Os Pensadores. São Paulo, ed. Abril
Cultural, 1973, p. 313, Capítulo I, parágrafo I.

115
em nós, como vícios em que os homens caem por erro próprio; é por isso que se habituam
a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los ou, quando querem parecer mais morais,
detestá-los. Julgam assim agir divinamente e elevar-se ao pedestal da sabedoria,
prodigalizando toda espécie de louvores a uma natureza humana que em parte alguma
existe, e atacando através dos seus discursos a que realmente existe. Concebem os
homens, efetivamente, não tais como são, mas como eles próprios gostariam que fossem.
Daí, por conseqüência, que quase todos, em vez de uma ética, hajam escrito uma sátira, e
não tinham sobre política vistas que possam ser postas em prática, devendo a política, tal
como a concebem, ser tomada por quimera, ou como respeitando ao domínio da utopia ou
da idade de ouro, isto é, a um tempo em que nenhuma instituição era necessária. Portanto,
entre todas as ciências que têm uma aplicação, é a política o campo em que a teoria passa
por divergir mais da prática, e não há homens que se pensem menos próprios para
governar o Estado do que os teóricos, quer dizer, os filósofos.”
Ao menos um alvo é muito preciso no movimento da artilharia
espinosana: a concepção da Cidade ideal, tal como a teorizou Platão em A República. De
fato, o ponto para o qual Espinosa chama a atenção do leitor, logo no início do Tratado
Político, é precisamente aquilo para o que Maquiavel já havia atentado, o que seja, que não
se pode pensar a política desligando-a da prática política e das paixões humanas. Portanto,
a “sofocracia”, isto é, o governo dos sábios, proposto por Platão n´A República, segundo a
filosofia de Espinosa, não é senão uma utopia, isto é, um não-lugar.
Mas o ponto para o qual se quer chamara atenção é também outro, a
saber, a idéia de que aquilo que se diz ser a teoria política espinosana, principalmente por
seus leitores juristas contemporâneos bem como filósofos do direito contemporâneos, é
precisamente aquilo que ela não é. Ou seja, Espinosa propõe exatamente um estudo da
política que seja um estudo da prática política, a partir da definição dos seres humanos
como passionais e do campo da política como o campo do conflito entre paixões. Diz
Espinosa que quem faz uma leitura da política sem levar em conta a efetiva natureza
passional dos humanos, ou mesmo quem despreza o caráter passional como vicioso e
deplorável, não faz estudo da política, mas utopia ou sátira. Ora, como dizer então que a
filosofia política de Espinosa não tem nenhuma ligação com a prática política, se o próprio
autor, no início de uma de suas obras políticas, diz que seu procedimento não será
descolado da prática humana, bem como da definição passional da natureza humana?

116
Curiosa constatação esta segundo a qual a filosofia política de
Espinosa não tem nenhuma ligação com a realidade da prática política. Mas, como diz um
estudioso da obra de Espinosa166, “nem poderiam a doutrina contemporânea do
positivismo se coadunar ou se aproximar da teoria político-jurídica de Espinosa , porque
essa concepção contemporânea do Estado e do direito é realmente inversa à de Espinosa,
havendo dos dois lados motivos plausíveis para a elaboração de concepções que entre si
são opostas: a contemporaneidade é marcada pela novidade do desenvolvimento de
doutrinas jurídicas que descrevem a operatividade das instituições do Estado e concebem
que a soberania significa poder de coerção e estabelecimento de obrigações e faculdades
para os cidadãos, ao passo que para Espinosa, assim como o jus, conceito fundamental
para o pensamento político, é potentia, a lex em sentido absoluto também tem seu sentido
derivado na ontologia e, quando for o caso de concebê-la no campo das instituições (como
direito positivo, portanto), ela não poderá deixar de lado o aspecto absoluto da lei nem ser
contrária à necessidade, também, do direito; e, no que disser respeito à projeção da
política, à concepção da democracia e à teorização do Estado, de forma alguma será
racional substituir a racionalidade da necessidade natural da liberdade pelo
irracionalismo da justificação do poder pela força. O imperium da lei, quando concebido
como força física sobre os cidadãos ou como unidade moral de uma coletividade,
pressupõe a negligência das necessidades individuais e, por isso, deixa novamente aberto
o caminho à violência. Esta, no estado de natureza, é concebida comumente como uma
conseqüência da ausência de regras morais, jurídicas, racionais; se, em pleno estado civil,
ou em pleno Estado, a exclusão se torna ela mesma a regra – como se sente a teoria
jurídica contemporânea quando confrontada com o conceito espinosano de democracia -,
temos para resolver uma questão ontológica da política que a prática jurídica
contemporânea, por não saber resolvê-la com base apenas na dogmática jurídica, prefere
ignorar ou deixar em aberto. Daí, justamente, ser tão necessária para a defesa da
dogmática jurídica, ( e da correspondente ideologia contemporânea do poder do Estado) a
negação da validade da filosofia do direito.”
O ponto é: as concepções de democracia, de direito e de Estado,
contemporaneamente, são diametralmente opostas às concepções espinosanas dos mesmos
conceitos. Enquanto Espinosa diz que o Estado tem o papel de garantir a liberdade do
166
Fernando Dias Andrade. Pax Spinozana: Direito natural e direito justo em Espinosa. Tese apresentada ao
Departamento de Filosofia da FFLCH-USP para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientação de
Marilena Chaui. São Paulo, 2001, p. 111-112.

117
cidadão como possibilidade de este exercer sua potência, as concepções do Estado como
poder coercitivo toleram altos níveis de exclusão da liberdade e da participação na riqueza
produzida no momento mesmo em que se dizem democráticos. Ora, com a concepção
espinosana de democracia, um Estado assim instituído não é um Estado democrático. Ele
apenas tende à democracia caso seja uma instância em que as potências excluídas do
operar social possam participar e tomar parte no poder. Para Espinosa, ser cidadão implica
gozar das vantagens proporcionadas pela Cidade. E esta não é senão o direito civil, no que
se refere ao seu conteúdo, que permite a instituição mesma da Cidade.
Portanto, ser cidadão não é o mesmo que ser súdito, segundo os
conceitos espinosanos. Ser súdito implica a obrigação de obedecer às leis civis. Ser
cidadão significa gozar da liberdade proporcionada pelo corpo coletivo. A liberdade
política não significa poder para fazer algo segundo aquilo que o Estado autoriza – não é,
como diz Fernando Dias Andrade, na obra já citada, direito do súdito. Em vez disso, ser
cidadão significa atividade do indivíduo na vida coletiva “segundo o que continua
necessário por sua natureza, apesar do direito civil ou graças a ele (a liberdade é
necessidade do cidadão)”.167
Por isso faz todo o sentido a frase de Marilena Chaui explícita como
epígrafe deste Capítulo. Com efeito, no caso brasileiro, que será aqui apenas tangenciado,
visto que não é tema da dissertação uma análise da democracia brasileira à luz de conceitos
espinosanos, diz-se democrático um Estado que é coercitivo e que tolera altos graus de
exclusão social. Espinosanamente falando, não é possível que se conceba uma democracia
- nem mesmo uma aristocracia como democracia representativa - que violenta o seu
cidadão no que tange aos seus direitos básicos, como o direito à mínima dignidade
material, explicitamente negada a boa parte dos ditos cidadãos brasileiros. Quando
Marilena Chaui diz que o Brasil, pela primeira vez, pode viver uma experiência
democrática, o que está por trás de seu raciocínio é a idéia de que grupos excluídos podem
produzir pressões frente ao Estado para que direitos sejam efetivados. O que há, é, então, a
potência do movimento social como instrumento para substancialização daquilo que existe
em forma, um mero dever-ser que, enquanto apenas dever-ser, não é potência que se
efetiva e, conseqüentemente, não é direito. É apenas pelo movimento da potência dos
excluídos do todo social que haverá tendência à participação de todos nas instituições.
Nesse sentido a experiência democrática se apresenta: não é negada à parte excluída do

167
Ibid. p. 157.

118
corpo social a possibilidade de exercer seu conatus coletivo, enquanto movimento, com
vistas à participação efetiva nas decisões e na substancialização do dever-ser com vistas à
sua transformação em direito. A lei e a ordem, concebidas, no caso do Brasil, menos para a
mudança social e mais para a manutenção do status quo, seriam aquilo que Fernando Dias
Andrade diz, na citação acima, a violência institucionalizada pelo Estado como
instrumento de repressão dos cidadãos.168
Democracia, assim, é conflito entre as várias forças para a sua
própria efetivação. Isto é, quando o que dela restou não é senão a ideologia da lei e da
ordem no momento mesmo em que boa parte dos cidadãos está excluída do corpo social e
político, o que resta de democrático é precisamente a abertura que possibilita o exercício
das potências reprimidas pelo regime da lei e da ordem.
Ou, como diz Warat169, uma sociedade apenas pode ser considerada
“equilibrada” quando se apresentar incompleta, imperfeita. Ou melhor, quando estiver em
mutação. Além disso, é importante que na sociedade existam mecanismos que possibilitem
a aceitação do diferente, isto é, instrumentos que sejam condição da existência do
diferente.
Uma questão que pode ser colocada, à luz dos conceitos espinosanos
aplicados na análise do mundo contemporâneo é a seguinte: pode haver democracia efetiva
em um tempo histórico dominado pela força mundializada do capital, bem como em um
período de privatização absoluta dos valores e prevalência da tecnociência como instância
considerada acima das decisões e da força das decisões políticas? Isto porque, em uma
concepção de democracia, a educação do cidadão com vistas à prática democrática é
fundamental para que a idéia de república seja parte de sua formação e atuação na Cidade.
Como pensar em coisa pública no tempo da atomização e privatização das vidas, de
esvaziamento de uma consciência republicana de existência, do direito como mera técnica
para resolução de conflitos?
“Se a teoria jurídica tem por costume a justificação da potestas
isto é, do poder do Estado como lei e ordem, para além da garantia das potências coletivas
no interior do Estado, bem como para além da garantia da liberdade do conatus individual 

168
Sobre este ponto, é interessante a constatação de Marilena Chaui (Direito Natural e Direito Civil em
Hobbes e Espinosa, in NAVES, Márcio B. e outro. Crítica do Direito, São Paulo, Livraria Editora Ciências
Humanas, 1980, p. 83-106) : “A igualdade não é formal, pois decorre de um poder natural, nem a liberdade
é legal, pois decorre da participação efetiva nas decisões coletivas.” (p.106).
169
Luis A. Warat. O amor tomado pelo amor. São Paulo, ed. Acadêmica, 1990, p. 60. Citação retirada de
Lídia Reis de Almeida Prado. O juiz e a emoção. 2a ed. São Paulo, ed. Millennium, 2003, p. 95.

119
por meio da negligência do conatus, não é à toa que o resultado histórico e ontológico
disso é a violência, e a forma institucional dessa dominação injustificável é o
despotismo.”170

170
Fernando Dias Andrade. Pax Spinozana: Direito natural e direito justo em Espinosa. Tese apresentada ao
Departamento de Filosofia da FFLCH-USP para obtenção do título de Doutor em Filosofia. Orientação de
Marilena Chaui. São Paulo, 2001, p. 162.

120
c)Democracia, potência, liberdade, política: à revelia da tradição

“Spinoza does not identify the


“eternal will of God” with grace, in
oposition to human nature; in a
striking and decisive move, he
identifies it with nature itself, in its
totality and its necessity.”

171
Etienne Balibar

No século XVII, período em que Espinosa concebe sua obra, havia


uma série de teorias vigentes que tinham por objetivo a explicação da origem da sociedade
e da política. Talvez seja interessante, apenas como contraponto à posição espinosana
sobre a instituição do político e da sociedade, fazer uma incursão sobre as teorias
explicativas do surgimento da sociedade e do político no dezessete. Em larga medida,
Espinosa tem que dar conta de refutar estas posições para, a partir daí, estabelecer o regime
democrático como aquele que possibilita o melhor vínculo social – pois é o regime que
mais realiza, ontologicamente, a natureza humana -, bem como o estabelecer como o
regime político excelente, isto é, aquele em que todos governam e, ao mesmo tempo, são
governados.
Assim, fazendo um apanhado das diversas concepções teóricas de
instituição da socialidade, e da instituição do político, para estabelecer, na visão
espinosana, a democracia como o regime excelente, pode-se ter uma idéia mais precisa da
medida revolucionária da concepção espinosana de democracia. Simultaneamente, por esta
incursão nas explicações vigentes no dezessete contra as quais Espinosa escreve, será
possível mostrar a ligação entre os conceitos de ontologia, direito civil, direito natural,
estado de natureza, estado civil e democracia como regime político que mais realiza a
natureza humana172.

171
Etiene Balibar. Spinoza and Politics. Translated by Peter Snowdown. London, New York. Ed. Verso.
1998, p.12. Um possível tradução para este excerto é a seguinte: “Espinosa não identifica o “eterno poder de
Deus” com a graça, em oposição à natureza humana; em um avassalador e decisivo movimento, ele identifica
isso (o eterno poder de Deus) com a natureza ela mesma, em sua totalidade e necessidade.”
172
Para a confecção destas considerações acerca da democracia, foram utilizados, além dos fichamentos
referidos na bibliografia, as aulas proferidas por Marilena Chaui no curso de Filosofia Moderna III, cujo

121
Há, no dezessete, algumas teorias bastante influentes que tratam da
origem da sociedade e da política.
Uma tem viés tomista, isto é, se refere ao pensamento de Tomás de
Aquino. Esta concepção diverge da concepção agostiniana - aquela referente ao
pensamento de Agostinho.
Para Agostinho, o poder é dado aos homens por meio da graça
divina. Entende-se divino, neste caso, não como um Ser imanente, mas como um Ser
transcendente, que cria do nada, por sua vontade livre, o mundo. Deus teria concedido a
alguns homens o poder e estes, por sua vez, teriam delegado o poder a outros, e assim
sucessivamente. Ou seja, a idéia que subjaz a este raciocínio é aquela segundo a qual o
poder se dá segundo uma verticalidade. A unicidade do poder se constituiria em Deus,
fonte máxima e única da delegação do poder aos homens. Portanto, a origem da vida
política seria, no limite, divina. Como diz Agostinho173, no que se refere à questão da lei
eterna, dada por Deus, em relação à lei temporal, derivada daquela, e ao fato de que o
governo deve vir da lei eterna: “Agostinho: Reconhecerás também, espero, que na lei
temporal dos homens nada existe de justo e legítimo que não tenha sido tirado da lei
eterna. (...) direi que ela é aquela em virtude da qual é justo que todas as coisas estejam
perfeitamente ordenadas. (...) E como tal lei superior é a única sobre a qual todas as leis
temporais regulam as mudanças a serem introduzidas no governo dos homens, poderá ela,
por causa disso, variar em si mesma de algum modo? Evódio: compreendo que não o
possa de modo algum.”
A posição tomista se apresenta como um contraponto a esta visão
sobre o poder. Com efeito, nesta concepção, que tem a influência de Aristóteles, o homem
seria um animal social por natureza. Por ser, além de social, um ser racional, isto é, dotado
da faculdade de pensar, por meio da operação desta faculdade o homem teria acesso ao
sentimento correto do justo e do injusto, isto é, a uma concepção de direito natural. Por que
natural? Ora, precisamente porque a razão, dada por Deus aos homens, teria a capacidade
de acesso ao conceito imutável – necessário e universal – de justo. Daí a possibilidade de
se fundar a comunidade em torno do bem comum, idéia acessível à razão de cada uma das
criaturas.

tema consistiu na análise da Parte IV da Ética de Espinosa. O objetivo do curso foi definir e aclarar os
conceitos de servidão e liberdade na obra do autor.
173
Agostinho. O Livre-arbítrio. Tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo, ed. Paulus, 1995, p. 41-42.

122
No século XVI surge um poderoso adversário a estas concepções
sobre a origem do poder. Trata-se de Maquiavel, filósofo político que institui a filosofia
política como uma filosofia da prática política174. Com Maquiavel, a concepção do poder
se laiciza e o poder político nasce da dicotomia povo versus detentores do poder. Daí surge
o poder político, isto é, a arte de fazer com que a massa não se revolte ou seja passiva,
garantindo a manutenção do poder e um mínimo de paz social.
O contraponto que representa Maquiavel em relação às concepções
tomista e agostiniana é nítido: o poder não provém, de um lado, segundo a concepção
agostiniana, de Deus, nem tem sua fonte, por outro lado, em uma natureza humana social e
racional. O ser humano para Maquiavel, assim como para Espinosa, é, naturalmente,
passional.
Outro forte adversário das concepções escolásticas é Hobbes. Com
efeito, para Hobbes, o homem não é um animal naturalmente sociável e racional. Na
filosofia política hobbesiana, muito ao invés, o homem, em estado de natureza, é
concebido como um ser que está em luta constante com o outro. Se todos, em estado
natural, têm direito a tudo, em verdade, neste estado, ninguém tem direito a nada e o que
há é uma existência curta e precária. Para sair do medo da morte violenta e alcançarem a
paz social para as práticas da vida civil, os homens pactuam: transferem a um poder
soberano todo o poder que têm. Este pacto é assegurado pelo exercício da força e significa
a transferência de todo direito que cada um dos indivíduos tem em estado de natureza – o
seu direito natural – para o poder soberano. Há, portanto, um contrato social, mas não um
contrato político, que possibilita a paz social com, no limite, o uso da força. Ora, se apenas
entre iguais se contrata, por decisão voluntária, é por meio desta decisão que o direito
natural é transferido ao soberano. O soberano tem todos os direitos sobre os súditos, que

174
É importante notar que, na leitura de O Príncipe, verifica-se um curioso e fundamental fato para que se
possa entender a filosofia política de Maquiavel: o autor, ao elaborar suas reflexões, não o faz a partir de um
modelo ideal de Cidade – como é o caso, por exemplo, de Platão, n´A República. Em vez disso, Maquiavel
faz uma leitura filosófica a partir dos exemplos históricos que, de fato, ocorreram na história para, a partir
deste ponto, refletir sobre a política ou sobre a prática política. Ainda em uma chave renascentista, Maquiavel
explora bastante os exemplos de ações políticas para conceber as reflexões teóricas de sua obra. Daí que se
utilize a expressão filosofia política da prática política, isto é, trata-se de um contraponto às concepções
idealistas de Cidade. Espinosa, em alguma medida, mas em outra chave, faz alusão à perspicácia do
“agudíssimo florentino” na medida em que para Maquiavel, assim como para Espinosa, as paixões humanas
não devem ser desprezadas como vícios, mas devem ser entendidas para que se compreenda a socialidade, a
política, a Cidade e o poder. Sobre a semelhança entre Maquiavel e Espinosa, no que se refere às concepções
políticas de ambos os autores, consultar Diogo Pires Aurélio. A política na correspondência de Espinosa.
Revista Discurso nº 31. São Paulo, Discurso editorial, 2000, p. 243. Diz o autor que são duas as principais
semelhanças com Maquiavel: 1) os homens se guiam mais pelo desejo que pela razão; 2) a filosofia política
deve se fundar na experiência empírica (do passado e do presente), e não no que o homem deve ser.

123
transferiram a ele seu direito natural. O súdito possui apenas a liberdade de fazer aquilo
que a lei não proíbe. Além disso – e este é o único resquício de direito natural que existe no
estado civil estipulado pela teoria hobbesiana -, o súdito pode se defender, seja de que
maneira for, caso sua vida esteja em jogo175.
Eis um esboço das tentativas teóricas de definir a origem da
sociedade e a origem do poder, teorias estas que disputavam na arena acadêmica a
primazia explicativa da origem da socialidade e da política.
Portanto, pelo que se viu no capítulo precedente, pode-se dizer que
Espinosa rompe com todas estas tendências teóricas exatamente porque seu pensamento
político, derivado de sua ontologia, seria incompatível com estas diversas concepções de
origem da socialidade e do poder. Com efeito, como visto, o que funda a Civitas (Cidade)
em Espinosa é a utilidade máxima dos homens aos outros homens na medida em que esta
utilidade consiste na idéia de soma de forças que fortalecem o conatus. Mesmo que esta
soma venha de paixões alegres, isto é, de afetos passivos alegres – e este é o caso na
Cidade, no mais das vezes, pois nem sempre os homens são movidos pela razão -, ela é útil
para o homem na medida do aumento do grau da potência para existir.
Assim, a concepção espinosana se diferencia daquela de Maquiavel
porque para este o poder vem de uma divisão já instituída na Cidade, qual seja, a divisão
entre os detentores do poder e dos que são dominados. Ademais, Maquiavel, ainda em uma
chave renascentista dos exempla para a teoria, não elabora uma noção metafísica na qual a
política se realiza, como é o caso em Espinosa.
Do mesmo modo, a concepção espinosana se diferencia da
concepção agostiniana pelo fato de que, para este, o poder se institui, no limite, em um
Deus transcendente que dá a alguns homens, por transferência, a possibilidade de exercer o
poder. Ora, como Espinosa poderia aceitar esta concepção se, em sua ontologia, não se
pensa Deus de maneira transcendente à criação, mas de maneira imanente?
No mesmo sentido, a filosofia política espinosana não se coaduna
com a concepção tomista de origem do poder. A concepção tomista pressupõe que os

175
Diogo Pires Aurélio, em sua obra A política na correspondência de Espinosa, Revista Discurso nº 31, São
Paulo, Discurso editorial, 2000, p. 247, diz a respeito da relação entre Hobbes e Espinosa: “na realidade,
nem o texto de Hobbes se confunde com a imagem vulgar de um manifesto em defesa de um poder ditatorial
e sem limites, nem Espinosa alguma vez professa a limitação dos poderes do soberano pelos direitos dos
súditos. “A diferença entre os dois pensadores”, conforme assinala Den Uyl e Warner “não se situa no nível
das teorias acerca da soberania, mas no nível mais fundamental da natureza do poder e das razões para a
formação do Estado” (...). É que o poder, segundo Espinosa, exprime a natureza; segundo Hobbes, ele foi
criado para reprimir."

124
homens são naturalmente justos, porque dotados de razão, e que são naturalmente
propensos à socialidade porque são animais sociais. Ora, para Espinosa, é inaceitável que
se diga que os seres humanos são naturalmente justos. Com efeito, isto seria contradizer as
paixões, naturais a todo ser humano, como a inveja, o ódio, o ciúme, etc.. Da mesma
maneira, Espinosa pensa que os conceitos de justo e injusto, bem como o de pecado apenas
fazem sentido após a instituição da Cidade, não se podendo falar nestes termos antes da
instituição de um corpo político que dá a si mesmo o direito civil, critério do justo e do
injusto, da ação pecaminosa e da ação não pecaminosa. Ou, para falar com Luís Machado
de Abreu176, “estamos aqui muito longe da concepção estóica e da concepção cristã de
direito natural. Para estas tradições de pensamento, a lei natural compreende o conjunto
das regras que a recta razão prescreve ao homem em ordem à sua conservação e que são
uma espécie de mandamentos divinos inscritos na natureza humana.”
Assim, a concepção que mais se aproximaria daquele elaborada por
Espinosa seria a hobbesiana. De fato, como visto, para Hobbes, o Leviatã é condição para
uma existência com um mínimo de paz e possibilidade da saída de um estado de violência
exponenciada.
Porém, como já visto, na carta 50 da Correspondência, Espinosa já
recusara a aproximação de sua elaboração teórica a respeito da política e da sociedade
daquele concebida por Hobbes. Vale a pena citar, novamente, o trecho da carta 50, de
Espinosa a Jarig Jelles177, em que este tema é trabalhado: “Tu me perguntas qual a
diferença entre a concepção política de Hobbes e a minha. Respondo-te: a diferença
consiste em que mantenho sempre o direito natural e que considero que o magistrado
supremo, em qualquer cidade, só tem direitos sobre os súditos na medida em que seu
poder seja superior ao deles, coisa que sempre ocorre no estado natural.” 178

176
Luís Machado de Abreu. Spinoza – a utopia da razão. Lisboa, ed. Vega, 1993, p.274.
177
Espinosa. Correspondência. Tradução de Marilena Chaui. Coleção Os Pensadores. São Paulo, ed. Abril,
1973, p.398.
178
Há uma nota de rodapé, ao final deste trecho, em que Marilena Chaui faz os seguintes e elucidativos
comentários: “Uma tese muito difundida afirma que para Espinosa o estado natural é irracional e violento e
que o estado civil é racional e pacífico. Como se vê claramente pelo texto, o estado civil é uma continuação
do estado natural. Isto significa que para Espinosa ambos são violentos, pois se definem por relações de
força. Não se pode dizer que um deles seja irracional e o outro racional, pois isto contraria a tese
espinosana da racionalidade universal. A confusão dos intérpretes vem do fato de que identificam razão e
bom, irrazão e mau, e como o estado natural dificulta a sobrevivência, é considerado mau, donde irracional.
Ora, para Espinosa, racional significa necessário, isto é, determinado por certas leis que podem e devem ser
conhecidas. Os estados natural e civil são racionais no sentido de que são conseqüências necessárias das
leis que governam as paixões humanas. Poderiam ser chamados de irracionais apenas no sentido de que não
é neles que a essência singular de cada homem se realiza em sua plenitude, exceção feita para a democracia.
A única diferença entre os dois estados é que no de natureza cada homem sente medos e tem esperanças

125
Espinosa oferece os fundamento da Cidade ao explicitar a
manifestação humana passional – discórdia – e racional – concórdia. É porque os homens
são as duas coisas – razão e paixão – que estão dados ao fundamento da vida política.
Portanto, a condição natural dos homens é racional e passional, como explícito no Tratado
Político, a virtude consiste na força de viver sob a direção da razão, a impotência ou
servidão se dá no momento em que as regras de conduta são dadas de maneira exterior,
heterônoma, isto é, no momento em que o indivíduo é determinado a agir segundo causas
externas a ele. Sob a direção da razão, ao invés, há causa adequada, porque as regras de
conduta são estabelecidas segundo o conhecimento verdadeiro do bom e do mau. Há,
portanto, autonomia do agente.
Para Espinosa, numa concepção absolutamente laicizante do
conceito de pecado, estabelecem-se as noções de pecado e de justo e injusto apenas após a
fundação da Cidade. No estado natural, não há pecado, justo ou injusto, mas bom e mau
segundo o cálculo individual do aumento ou diminuição do conatus. Portanto, pode-se
concluir algo espantoso e inovador referente ao conceito de estado natural: não há vício
algum neste estado, mas apenas luta de potências. A noção de justiça deve ser dada pelo
corpo político para si mesmo após o advento do direito civil179.
Para que o auxílio mútuo se efetive, os homens devem passar ao
estado civil. Para que a potência se efetive, é necessária a vida social no estado civil.
Pode-se concluir, assim, que o estado civil cria o instrumental para
realizar o direito natural. Não há, pois, a rigor, passagem do direito natural para o direito

diferentes dos dos outros homens e há uma guerra total; no estado civil os homens têm o mesmos medos e as
mesmas esperanças e canalizam a violência para pontos bem determinados da vida coletiva.”
179
Recapitulando algo que já foi motivo de análise no momento em que o direito foi tema, o conceito de
direito natural em Espinosa é um discurso que se dá à revelia de toda a tradição que o precede. De fato,
segundo a concepção grega, na sua versão conceitual e literária – a referência é a Antígona -, o direito natural
se identifica à Diké, isto é, tem origem divina. Trata-se de algo que está além do humano, que transcende o
mundo dos homens e que deve ser parâmetro para a justiça do direito positivo. Em Locke, já representante da
versão moderna do jusnaturalismo, o direito natural (ou lei natural) é aquele dado por uma faculdade humana
após a elaboração de um raciocínio. Esta faculdade é a razão, capaz, em estado de natureza, de conceber a
noção de liberdade, propriedade, vida, saúde e igualdade. A concepção espinosana, como visto, é diversa.
Para Espinosa, o direito natural se identifica ao poder, isto é, à pulsão de vida. Esta, por seu turno, é derivada
da ontologia espinosana, que identifica o homem a uma modificação de Deus. Deus é a potência infinita e o
homem é expressão finita desta potência. Assim, o estado de natureza é aquele em que o direito natural não
se exerce. Este estado é o da luta entre potências. O direito natural, neste estado, é precário, não se efetiva. A
inovação espinosana consiste em estabelecer a verdadeira possibilidade de exercício do direito natural apenas
no estado civil, em que são estabelecidas as instituições que possibilitam uma vida para além da precariedade
do estado de natureza. Como visto, esta concepção também se distancia da de Hobbes, segundo quem em
estado civil o direito natural estaria alienado ao soberano, com exceção do direito à vida.

126
civil – como em Hobbes, por exemplo, por meio do contrato social -, mas passagem do
estado natural, ou dos baixos graus de socialidade, para o estado civil.
O que há de mais inovador na concepção espinosana, como visto, é
que a passagem dos graus baixos de socialidade – ou do estado de natureza, no limite
teórico – para o estado civil não se dá pela razão, mas no interior das paixões. Portanto,
imagens do que é mais útil são o catalisador desta passagem. Por isto a lei que funda a
sociedade é a lógica das paixões.
Assim, como visto, mas agora de maneira mais vertical, a sociedade
nasce quando a sociedade ela mesma, e não o indivíduo, tem o poder para definir o bom e
o mau, o justo e o injusto e realizar a vingança em nome da sociedade.
Veja-se que o conflito não cessa no estado civil, mas se mantém em
graus diminutos, que permitem a paz social.
A Cidade é definida, por Espinosa, como sociedade fundada em leis
que têm o poder de assegurar a auto-conservação dos seus membros. Direito civil é, assim,
o mesmo que direito natural coletivo, isto é, da Cidade para ela mesma. O cidadão, nesta
concepção, é aquele que é defendido de todos os danos pelo direito civil instituído. Pecado,
justiça e injustiça são conceitos possíveis como função do que se estabelece pelo direito
civil da Cidade.
Outro ponto que deve ser ressaltado é o contradiscurso espinosano
no campo teológico: veja-se que Espinosa retira do campo religioso, no escólio II da
Proposição XXXVII da Parte IV da Ética, já citada em capítulos precedentes, a noção de
pecado. É pecado tudo aquilo que contraria a lei civil, bem como é digno de mérito tudo o
que se dá de acordo com a lei civil.
O estado de natureza, assim, é um estado para além do bem e do
mal, e o estado civil, por sua vez, estabelece as noções de bem e mal. Mas a leitura ainda
demanda um esclarecimento, já presente nos capítulos anteriores. Bem e mal, como já
salientado, não são modelos extrínsecos à Cidade, mas são a norma civil que a Cidade dá a
si mesma para o seu fortalecimento enquanto corpo coletivo. Não há, assim como para
cada indivíduo em graus baixos de socialidade, um modelo de bom a ser seguido que, em
sendo concretizado, é o critério da boa ação. E, ao não ser concretizado, é o critério da
ação má. É bom o direito civil que fortalece a Cidade como conatus coletivo.
Portanto, dois são os alvos mais importantes da noção espinosana da
passagem do estado de natureza ao estado civil. Primeiro: a noção de que esta passagem se

127
dá pelo uso da razão. Isto fica claro no escólio II da Proposição XXXVII da Parte IV da
Ética. A passagem do estado de natureza ou dos baixos graus de socialidade para a
instituição do corpo político, como já foi salientado, é passional. Segundo: não há, por
conseqüência da não existência da vontade como livre-arbítrio, contrato social, isto é, não é
por um acordo de vontades iguais que se institui a Cidade por transferência do direito
natural ao soberano – como é o caso em Hobbes.
Uma questão pode ser, finalmente, colocada: o Estado é algo
natural, isto é, é conseqüência da natureza humana? Ou, em vez disso, é uma construção, é
produto da criação humana como cultura?
Outra inovação da filosofia política espinosana pode ser entendida
neste ponto: a instituição do Estado é, simultaneamente, natural e cultural. Por que natural?
Porque a emergência do direito civil se dá segundo algo que é ontológico, o que seja, os
afetos passivos, as paixões. Por que cultural? Porque a emergência do conteúdo deste
direito é algo dado por cada uma das Cidades a si mesma segundo sua causa geratriz, isto
é, segundo sua instituição e sua peculiaridade.
Surge então a idéia de que a vida política não é uma conseqüência a
ser deduzida da razão humana, mas é o efeito de uma causa muito precisa: a fragilidade do
direito natural em estado de natureza. De fato, o que existe do direito natural em estado de
natureza não é senão sua precariedade. Os indivíduos não conseguem, de fato, exercê-lo.
As potências se anulam, pela violência, a todo tempo. Eis a medida da fragilidade do
direito natural em estado de natureza.
Por outro lado, o direito natural em estado civil é muito mais efetivo.
Com o direito que a Cidade dá a si mesma, o que ocorre é a possibilidade de existência do
direito natural como sendo garantido ou efetivado pelo direito civil. O direito natural
produz uma mediação – o direito civil – para realizar-se. A política é a operação que
concretiza o direito natural como potência natural que ele é.
Um ponto deve ser, aqui, aclarado. Como já foi analisado em outra
parte, o estado de natureza é, para Espinosa, uma abstração, isto é, não existe e nem
existirá de fato. Há, isto sim, graus baixos de socialidade que se aproximam de um estado
de natureza, como é o caso dos Hebreus antes da tábua das leis dada por Moisés. O período
em que os judeus vagam após a saída do Egito é um exemplo de baixo grau de socialidade.
O estado civil é um grau mais alto em relação à mera socialidade.

128
Outro ponto deve ser, também, aclarado. Não há, em Espinosa, o
direito civil como passagem do ser ao dever-ser. Há, isto sim, direito natural, expresso pelo
direito civil, como direito coletivo, que dá conteúdo a si próprio.
A mediação que o direito civil é para a expressão do direito natural
se apresenta como, em verdade, uma mediação que se destrói no momento em que o direito
civil expressa o direito natural como exercício efetivo da potência de perseverar no ser,
como garantia do exercício da potência. O estado civil expressa o direito natural. O
conteúdo do direito civil de cada Cidade não é senão a estratégia de sobrevivência do
conatus por meio das leis e instituições.
Daí que a educação tenha um papel fundamental na Cidade: deve
existir o aprendizado de uma vida em comum sob a lei, bem como deve haver um
aprendizado da necessidade do conflito, isto é, devem ser criados canais para o conflito que
não destruam o estado civil.
Portanto, a lei não é instrumento externo de domínio, mas algo que é
instituído para a possibilidade real do conatus exercer sua natureza de potência.
O grande inimigo da Cidade é aquele que privatiza a lei, isto é,
estabelece como sendo público o interesse de um pequeno grupo. Neste momento, a
instituição que deveria ser a expressão do conatus coletivo tem um germe de tirania, seja
qual for o regime político adotado.
Sobre o fato de o grande inimigo do corpo político ser antes interno
que externo, pode-se dizer, com Marilena Chaui180, o que segue: “Em geral, os homens
desconhecem a quem cabe verdadeiramente a soberania, tendendo a confundir o ocupante
do poder com o próprio poder. Por esta razão, os inimigos mais perigosos do corpo
político são internos e não externos: trata-se daqueles particulares (...) que, sob pretexto
de defender as leis, procuram tomar o poder, identificar-se com ele e transformar seu
interesse particular em interesse comum soberano.”
Daí que a democracia seja um regime muito exigente para o
cidadão: a ação política deve ser constante, o espírito público deve ser construído pela
educação. A vigilância das instituições não cabe a um poder exterior ao corpo político, mas
aos cidadãos mesmos, isto é, àqueles que constituem e instituem, a todo momento, a
soberania como distribuição do poder entre todos os membros do corpo coletivo.

180
Marilena Chaui. Direito Natural e Direito Civil em Hobbes e Espinosa, in.: NAVES, Márcio B. e outro.
Crítica do Direito, São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1980, p. 83-106.

129
130
d)Os regimes políticos e a concentração da potentia

“In fact, what Spinoza wants to prove


is a much stronger thesis (and a
much riskier one too): that the
sovereignty of the State and
individual freedom do not need to be
separeted, nor indeed conciliated,
because they are not in
contradiction.”

Etienne Balibar181

Pela argumentação desenvolvida até o momento, principalmente


aquela referente à necessidade da substância e de seus decretos, ficou estabelecido um
conceito espinosano para significar a expressão necessário. De fato, como visto, Espinosa
define o necessário como aquilo que é o resultado da rede causal presente na imanência da
substância. Portanto, não se pode falar em contingência no sistema espinosano, uma vez
que tudo o que ocorre assim se dá segundo a causalidade imanente da substância. O
conceito de possível é substituído pelo conceito de fortuna, no sentido empregado
primeiramente por Maquiavel, e este significa a ignorância do modo finito humano no que
se refere às causas da ação ou dos eventos. A expressão necessário é, assim, definida de
maneira muito precisa no sistema espinosano e implica a ligação de todos os conceitos de
sua filosofia, mesmo de sua filosofia política, à sua ontologia, a qual define a substância
como sendo a causa de si no que se refere à sua essência e à sua existência. Como todo o
real se dá na imanência da substância, a rede causal do real é necessária.
Porém, deve-se fazer uma ressalva ao sentido desta expressão tanto
no título desta dissertação, quanto no título deste capítulo. O ponto que se quer sublinhar é:
a expressão necessário tem, por um lado, um sentido no sistema espinosano e tem, por
outro lado, um sentido empregado na linguagem cotidiana, segundo o senso comum. Esta
expressão, no sentido comum, significa aquilo que deve ser buscado ou almejado, não o

181
Etiene Balibar. Spinoza and Politics. Translated by Peter Snowdown. London, New York. Ed. Verso.
1998, p.27. Uma possível tradução para este excerto é a seguinte: “Na verdade, o que Espinosa quer provar é
uma tese muito mais forte (e mais arriscada também): que a soberania do Estado e a liberdade individual não
precisam ser separadas, nem mesmo conciliadas, porque elas não estão em contradição.”

131
que é segundo uma rede causal dada pelos decretos da substância em que tudo o que
existe se dá. O necessário, para o senso comum, é aquilo que está por ser construído.
Ora, a questão que pode vir à mente é a seguinte: em que sentido se
pode dizer que a democracia, como regime político, é necessária? Não se trata de dizer que
os seres humanos estão, por destino, fadados a este regime como um decreto divino da
substância que estabelece que em determinado momento histórico este regime ocorrerá
para determinados povos. Viu-se que a necessidade em Espinosa não implica um fatalismo.
Por quê? Precisamente porque não há uma substância anterior à criação que tem toda uma
rede de ocorrências que se efetivarão em um mundo criado por sua vontade. No momento
em que cada um dos humanos manifesta sua potência finita, aqui e agora, é a rede causal
da substância que se manifesta de maneira finita. Portanto, a democracia é uma criação
humana na história. Ela é um regime culturalmente instituído. A sua instituição satisfaz, de
maneira a mais plena, a natureza humana. Isto, na medida em que é neste regime político
que cada modo humano pode exercer sua potência para governar e, ao mesmo tempo, ser
governado pela potência do todo coletivo. Este todo coletivo é formado por cada um dos
indivíduos não como soma de cada um dos indivíduos – soma de partes -, mas como um
todo que expressa um conatus coletivo sob um regime em que o grau da potência do corpo
político não se concentra nas mãos de um ou de poucos, mas se dilui pelo corpo coletivo
como um todo.
Em outras palavras, a maneira como Espinosa concebe a
distribuição do poder não se dá por uma análise numérica, simplesmente, daqueles que
detêm o poder e daqueles que não o detêm. Do mesmo modo, não há em Espinosa a idéia,
presente em Aristóteles, segundo a qual a forma de governo, seja qual for, deve ter um
telos, qual seja, o interesse comum. Com efeito, como foi visto, não há causa final a ser
perseguida segundo a concepção espinosana. Ainda mais: se Espinosa concebesse o regime
político segundo o número dos que governam, haveria uma concepção da instituição do
regime político próxima daquele feita por Aristóteles no Livro III d´A Política182, o que
significaria a entrada, no sistema espinosano, de um conceito que fora retirado: a idéia de
uma causa final, exterior ao sujeito, que seria o critério do bom regime. Aristóteles
estabelece, neste momento de sua obra sobre a política, a classificação das formas de
governo quando ao número – quantas são? – e quanto à matéria – o que são? . Segundo
Aristóteles, o poder pode estar nas mãos de um – monarquia -, bem como pode estar nas

182
Aristotle. The Politics. Edited by Stephen Everson. Cambridge University Press, 1994, Book III.

132
mãos de poucos – aristocracia -, e, ainda, pode estar nas mãos de muitos – governo
constitucional. Independentemente da forma de governo, o objetivo do governo deve ser a
busca de uma finalidade exterior ao corpo político: o interesse comum. Em não havendo a
busca do interesse comum, o que há é perversão da forma de governo. A monarquia se
degeneraria em tirania, a aristocracia em oligarquia – em vez de governo dos aristói
(melhores), haveria governo dos poucos, segundo seus interesses -, e, por fim, haveria o
governo constitucional se pervertendo em democracia183.
Em Espinosa, porque o direito civil foi definido como a expressão
do direito natural, isto é, o conteúdo do direito civil de cada Cidade é a expressão do
conatus coletivo como potência coletiva, que por sua vez possibilita o exercício efetivo do
direito-potência de cada indivíduo, o regime político não pode ser identificado
simplesmente pelo número dos que governam.
Sendo o direito, mesmo o direito civil, potência, o que se deve
analisar para se ter claro a maneira como Espinosa conceitua os regimes políticos é a
distribuição da potência no corpo coletivo.
Quando a distribuição da potência se concentra nas mãos de um, o
que existe é uma monarquia. Todo o direito-desejo-potência é dado pelo Um. O risco de a
potência expressa pelo Um não ser a potência do conatus coletivo é grande. Daí o risco de
a monarquia, pela desigual distribuição da concentração da potência, ser um regime que
pode se transformar em governo do desejo do Um ou mesmo em governo do desejo dos
poucos: tirania. Isto é, no momento em que o Um deixa de expressar o conatus coletivo, e
passa a expressar o desejo do Um ou dos poucos a ele ligados, há estado de natureza com a
máscara do direito civil.
Quando a distribuição da potência se concentra nas mãos de alguns,
o que há é uma oligarquia. Alguns membros do corpo coletivo são escolhidos para darem
ao conatus coletivo o seu direito civil, isto é, para expressarem em forma de leis civis o
direito natural de cada indivíduo.
Por fim, quando a distribuição da potência tende à concentração
zero, tem-se o regime democrático. Neste caso, a potência do corpo coletivo se distribui
por cada um dos membros da Cidade, que, por sua vez, não apenas governa, mas é
governado pela lei elaborada por todos para a Cidade.

183
Ibid. p. 61 ( 1279 a – 25 até 1279 b-10).

133
Neste regime político, o que ocorre é a diluição da potência por
todo o corpo coletivo. Por isto a democracia é o “mais natural dos regimes políticos”, isto
é, ela melhor satisfaz a natureza humana no sentido de que esta é ontologicamente definida
como potência finita na substância.
Em uma palavra: o regime político é definido menos pelo número
dos que governam e mais em função da concentração da potência pelos membros do corpo
coletivo. Quanto mais diluída pelos membros do corpo coletivo está a potência, mais
tendente à democracia é o regime. Quanto mais concentrada está a potência pelo corpo
coletivo, mais tendente à monarquia é o regime de governo.

Resta dar conta de uma questão polêmica já apontada no início deste


Capítulo, no momento em que se procurou explicitar um conceito de democracia pela via
espinosana.
O problema que deve ser resolvido no sistema espinosano é o
seguinte: logo após definir o regime político democrático, no Tratado Político, como sendo
aquele em que todos participam, pelo sufrágio, para eleger os governantes, bem como
todos podem participar das instituições da Cidade, Espinosa faz uma ressalva quanto
àqueles que podem tomar parte no poder da Cidade.
Diz o texto do Tratado Político184 : “o meu desígnio não é falar de
todos  os tipos de regime democráticos que podem ser concebidos , mas de me cindir ao
regime em que todos os que são governados unicamente pelas leis do país não estão de
forma alguma sob dominação de um outro, e vivem honrosamente, possuem direito de
sufrágio na assembléia suprema e têm acesso aos cargos públicos. Digo expressamente
que são regidos pelas leis do país para excluir os estrangeiros, súditos de outro Estado.
Acrescentei a estas palavras que não estão sob a dominação de um outro para excluir as
mulheres e os servidores, que estão sob a autoridade dos maridos e dos senhores, as
crianças e os pupilos, que estão sob a autoridade dos pais e dos tutores. Disse, enfim, que
têm uma vida honrosa, para excluir os marcados pela infâmia por causa de um crime, ou
de um gênero de vida desonroso.”
Espinosa exclui da participação nas instituições da Cidade as
mulheres e os servidores, isto é, aqueles que trabalham subordinadamente, seja segundo os
desígnios de outrem – os servidores -, seja aqueles que estão subordinados aos maridos –

184
Espinosa. Tratado Político. Tradução de Manuel de Castro. São Paulo, ed. Abril Cultural, 1973, p. 371.

134
as mulheres. Também o faz em relação às crianças e aos pupilos pelo mesmo motivo: a
subordinação a outrem.
O raciocínio que Espinosa emprega para excluir de participação
política as mulheres, os servidores, as crianças e os pupilos é o fato de que estes estão
submetidos aos desígnios de outro e isto implicaria uma impossibilidade de ter a liberdade
requerida para o exercício da democracia. Ou seja, estar sob outrem é estar sob o direito-
poder de outrem, o que faz deste sujeito um sujeito heterônomo, e não um ser autônomo.
Estar alter juris implica subordinação, e eis a razão da exclusão. Quanto ao servidor, que
pode ser um assalariado, pode-se entender a concepção espinosana: depender, do ponto de
vista do sustento material, da vontade de outrem é não poder, por instituição, ser
autônomo.
Porém, causa espanto que as mulheres sejam excluídas da
participação política em um regime democrático, bem como causa ainda mais espanto o
fato de que Espinosa, no último parágrafo do não terminado Capítulo XI do Tratado
Político, diga que as mulheres estão por natureza, e não por instituição, sob o domínio dos
homens.
Ocorre que, do ponto de vista da obra como um todo, esta passagem
é um enigma na escrita de Espinosa. Com efeito, na Ética, bem como no Tratado
Teológico-político e nas demais obras, não há qualquer passagem que estabeleça uma
hierarquia ontológica entre o seres por meio do gênero, bem como não há nenhuma
restrição explícita às mulheres. Pode-se dizer, mesmo, que a ontologia não permite que
sejam estabelecidas hierarquias entre os seres, mas diferenças de potência.
Como Espinosa não terminou o Capítulo sobre a democracia, não se
pode saber em que medida estas considerações iniciais poderiam ser matizadas ou
nuançadas. O ponto que lança dúvidas no leitor de toda a obra de Espinosa é precisamente
o fato de que, seja na Ética, seja no Tratado Teológico-político, seja nas demais obras, não
há qualquer referência a uma diferença de natureza entre homens e mulheres, mesmo
porque ambos são modos finitos da substância, isto é, potência, e têm tanto direito quanto
podem exercer sua potência. O que justificaria, portanto, a mudança da natureza da mulher
como modo finito da substância – e, dessa maneira, como potência -, para um ser
naturalmente inferior ao homem a tal ponto que é excluído da possibilidade dos atos civis
na democracia? Talvez esta passagem seja realmente controvertida em relação ao restante

135
da obra de Espinosa. O seu esclarecimento demandaria algo que não ocorreu: o término
do capítulo sobre a democracia.

136
8. Considerações finais

Democracia necessária, portanto, não significa, nesta dissertação,


qualquer forma de fatalismo. Não estava prevista na mente de um Deus transcendente a
realização deste regime em determinado tempo histórico e em determinado lugar.
Em que medida isto ocorre?
Como já visto, a necessidade do real na imanência implica uma
reformulação do conceito de liberdade. Liberdade, espinosanamente falando, significa a
realização da natureza da coisa na realidade imanente da substância. Isto é, cada indivíduo,
porque modificação de Deus e em Deus, é expressão da necessidade da substância.
Realiza-se ao realizar sua potência para ser, para perseverar na existência.
Portanto, a reformulação do conceito de liberdade obedece aos
seguintes movimentos de raciocínio: 1) a tradição define a liberdade humana como a
realização da vontade no momento em que, por meio da faculdade do livre-arbítrio, o
indivíduo escolhe entre diversos possíveis. Nada mais próximo do conhecimento
imaginativo, diria Espinosa. Na medida em que a vontade como um “império num
império” não é senão ilusão, visto que a vontade é uma entre infinitas causas dos eventos,
não se pode conceber a liberdade como uma escolha da vontade entre diversos possíveis.
2) Não sendo a liberdade uma escolha entre possíveis por meio do exercício absoluto da
vontade, há que se definir a liberdade de outro modo. Daí que, para Espinosa, por uma
razão ontológica – a imanência do real e a identidade entre Deus e Natureza -, a liberdade
seja o exercício da necessidade. Isto é, o ser humano será tão mais livre quanto mais se
relacionar com outros modos finitos de Deus que aumentem seu desejo de existir, que
aumentem sua potência. E esse relacionamento é necessário na medida em que os seres
humanos estão condenados a fazer parte da rede causal afetiva na qual estão inseridos.
Como já salientado, os indivíduos afetam e são afetados, a todo momento, por outros
indivíduos, bem como por outros modos finitos da substância (minerais, vegetais, animais,
etc.). Quanto mais afetos alegres – ativos e passivos -, tanto mais realização e tanto mais
liberdade. Nessa medida a liberdade sofre uma reformulação radical: deixa de ser a
realização do que não é proibido, no campo do contingente, e passa a ser a realização do
necessário, isto é, o homem como potência finita da e na substância que aumenta ou
diminui aquilo que o define ontologicamente (sua pulsão de vida, seu conatus) em função
da maneira como ele se relaciona com os outros e com os demais existentes. Quando a

137
razão trabalha autonomamente, gerando conhecimento por si mesma, há afeto alegre
ativo, pois resultado da potência autônoma da mente. O afeto alegre passivo ocorre no
momento em que alguém ou algo afeta o indivíduo causando aumento de sua perfeição,
isto é, de sua potência.
Assim, em uma palavra, é pela ontologia do necessário que se
entende o conceito de liberdade em Espinosa.
O conceito de direito, como visto, também sofre modificações
radicais na obra de Espinosa. Com efeito, o direito não é, na concepção espinosana, apenas
um dever-ser, um mandamento que, se violado, demanda sanção. Direito é potência, e não
pode ser entendido apenas como abstração normativa. Definir o direito como potência
implica sua ligação com a ontologia espinosana. Os indivíduos, assim como cada um dos
modos finitos da substância, não são senão sua potência para existir e agir. Tem tanto mais
direito o indivíduo que exerce esta potência. Viu-se que esta reformulação do conceito de
direito não implica, como poderia parecer à primeira vista, um bruto individualismo. De
fato, poder-se-ia pensar que o exercício desta potência que é o indivíduo colocaria a luta
entre potências como um imperativo. E de fato é assim. Porém, apenas até o momento em
que o homem percebe que a luta cega entre potências anula as potências ao ponto de não se
poder, efetivamente, exercer a pulsão de vida. Passa-se, pois, à surpreendente constatação
de que o homem é o que há de mais útil ao homem. Portanto, o exercício do direito – da
potência, do desejo – apenas se dá efetivamente quando se institui a cidade como local de
realização plena do direito-potência-desejo que caracteriza cada ser humano como
modificação da potência absolutamente infinita. Isto é, é na cidade que o direito civil
possibilita o exercício do direito natural. No estado de natureza, o direito natural é precário
na medida em que há luta bruta e violenta entre potências. É com as instituições que se
possibilita a realização ontológica do ser humano: persistir no ser, exercer sua pulsão de
vida.
Eis a significativa inovação espinosana, a saber, o direito natural
apenas se exerce no estado civil, e é apenas abstração no estado de natureza. Ainda mais: o
direito natural é diretamente derivado da ontologia espinosana, do fato de que cada modo
finito da substância é um grau finito da potência absolutamente infinita: a substância ou
Deus.

138
Assim, a liberdade consiste no exercício do direito porque o direito
é desejo (poder), e este é a própria essência atual de cada ser humano, por razões
ontológicas.
Resta explicar a articulação entre liberdade e direito – como
conceitos interligados e derivados da ontologia espinosana – com o conceito de
democracia.
Como visto, Espinosa concebe os regimes políticos não pelo número
dos que tomam o poder, mas pela distribuição da potência pelo corpo coletivo. O regime
político é tanto mais próximo da monarquia quanto mais a potência se concentra, ou seja,
está nas mãos do Um, do monarca. Por outro lado, o regime político se aproxima mais da
democracia quanto mais a potência se dilui no corpo coletivo, quanto mais a concentração
da potência tende a zero.
Ora, a conclusão que se pode ter deste raciocínio é a que segue: o
regime político que mais realiza a natureza humana enquanto se entende esta como
potência, como pulsão de vida, é a democracia.
Neste regime os indivíduos se realizam ontologicamente, pois
perseveram no ser – na medida em que há instituições que garantem a vida e a existência
com uma certa paz. Ao mesmo tempo, não estão sob o direito civil da cidade por medo,
que é uma paixão que diminui a pulsão de vida. Em vez disso, estão sob as leis da cidade
porque entendem que esta é a melhor maneira de a existência não se realizar
precariamente. A cidade permite, assim, a realização de uma paixão alegre coletiva. Isto
não implica dizer que há falta de conflito na democracia. Ao invés, a democracia permite e
cultiva os conflitos. Trata-se de um regime que os canaliza de tal maneira que a potência
de vida, que caracteriza os indivíduos ontologicamente, fica permitida: realiza-se o direito
natural com a instituição desse regime no corpo político.
É importante ter em mente, como já ressaltado em outro momento
do texto de maneira mais vertical, que o estado de natureza não existe e não existiu de fato.
Ele é um conceito usado para que se possa entender como seria, no limite, a luta bruta
entre potências. Os seres humanos, segundo Espinosa, estão sempre em algum grau de
sociabilidade. O desafio consiste precisamente em transformar estes baixos graus de
sociabilidade em instituições que garantam, o quanto mais, o direito natural.
Isto permite dizer que há uma relação indissolúvel entre ontologia,
direito e liberdade em Espinosa. Permite, simultaneamente, uma constatação interessante:

139
o regime democrático, ao mesmo tempo em que realiza os indivíduos ontologicamente,
exige desses uma consciência de res publica muito distante daquela que os cidadãos
contemporâneos experimentam seja em sua educação, seja em sua prática democrática
meramente formal. A democracia, no sentido espinosano, demandaria, entre outras coisas,
uma educação substantiva para a formação de consciências republicanas. Algo muito
distante das práticas atomizantes e individualistas dos países democráticos
contemporâneos. Ainda, demandaria uma efetiva prevalência da esfera política sobre a
esfera econômica, o que não tem ocorrido em larga escala nos países democráticos do
período atual da história.

140
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