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tão?”,
“Modos complementares e simples de ilustrar a ques-
Entre outros, pode-se citar a conhecida história do
transportamo soro, às cores dos travesseiros ou à orienta-
ção do prédio quanto ao sol.Normalmente, essas indaga-
viajante que, faz já muitos séculos, passeava próximo a uma ções serão de tipo global, sendo penetrantes, de "sentido”
pedreira. Passado um certo tempo, nosso protagonista per- “onde estou?”, “o que aconteceu?”, ou, em casos mais gra-
guntou a um dos trabalhadores o que estava fazendo e este
The respondeu de má vontade - “picando pedras”. Passados
ves, “quem sou eu?”. São solicitações com
de
as
dados
quais não
mais ou
pretendemos interiorizar um conjunto
alguns minutos, fez a mesma pergunta a outro, de onde a menos relevantes, que são sempre fragmentários e descone-
resposta, já mais convencida, teria sido - “polindo um st- xos, senão buscamos esclarecer o significado definitivo e de
lhar”, Por fim, dirigiu-se a um terceiro, que replicou ufano conjunto da circunstância em que nos achamos.
- "construindo uma catedral”. É óbvio que, sendo verdade Quanto a isto que acabo de apresentar como uma
o que os três afirmavam, o alcance e à resolução - o sentido tuação concreta, poderia ser elevado a categorias universais.
— daquilo
que proferiu o último era muitíssimo maior que o Remontando até quase o início da filosofia no Ocidente,
proposto pelos dois anteriores, logo, era mais capaz de dar sustentam Pieper e Zubiri que a admiração que dá origem à
cumprimento às ânsias de progresso intelectual e vital que reflexão filosófica sobrevém quando o mais cotidiano, que
todo homem alimenta... e de fazê-lo feliz. Por aí caminha a acreditávamos entender perfeitamente, seja pelo motivo que
filosofia, pelas vias que permitem descobrir um significado for; torna-se incompreensível, cheio de mistérios e nos su-
de grande calibre para até a menor de nossas ações, pera.
É o
que, adiante, no capítulo II, qualificaremos como
Outros momentos próprios da filosofia espontânea, “admiração” ou “assombro”, Aparecem normalmente ante
0 falecimento de uma pessoa querida, ante um revés finan-
que havíamos analisado, são os que, em terminologia mais ceiro que põe por terra o normal desenvolvimento de uma
ou menos filosófica, qualificam-se como sendo crises existen-
família construída com carinho e esforço, ante um desen-
ciais, entre quais se destaca a que chamamos, em lin-
guagem agora teológica, de vocação. Nesses instantes e com gano amoroso profundo, ou, pelo contrário, no momento de
uma incidência na própria vida que não admite réplica, a enamorar-se e "seguir enamorado”, ao advertir a generosi-
dade de um filho que nem sequer imaginávamos entrever a
pessoa questiona sobre o significado de sua existência, o
faz julgar pelos seus anos e por sua presumida imaturidade, na
se
na sua acepção mais comprometida, pois tudo fica geralmen- semelhante destumbre seja logo superado. Tratando-se de
te na superfície ou, no máximo, numa imediata região sub- um “especialista”, demonstra com grande abundância de
cutânea, ainda que, isso sim, esteja muito tecnicamente or- meios que o proposto pelo filósofo é mero palavreado,
questrado. autênticas noções sem sentido que são desprovidas de um
1sso explica por que, ante a presença de um legítimo alcance real, ilusões ou imaginações, um ilícito encobrimento
filósofo, o “especialista em filosofias” e o homem comum de seus próprios medos e inquietudes, enganos produzidos
adotam uma atitude similar à que suscitava Sócrates quan- por uma falta de domínio de linguagem etc. Sendo o nosso
do exercia o seu trabalho entre sábios e menos sábios da interlocutor um homem comum, resolverá a situação com
Atenas de seu tempo. Isso é muito bem descrito pelas pala- um certo gosto de condescendência, indicando para si
vras que Platão coloca na boca de Ménon, em diálogo ho-
mônimo, uma vez que este foi crivado pelas difíceis pergun-
mesmo que os filósofos, no fundo, não são nem maus nem
inquietantes nem perigosos, mas, simplesmente, estão um
tas do mestre - “Ah... Sócrates Eu havia escutado, ainda
|
pouco perturbados, fabricam um mundo à sua medida e não
antes de encontrar-me contigo, que não fazes outra coisa sabem pôr os pés na realidade que os circunda e na qual se
senão problematizar-te e problematizar os demais. E agora, colocam diariamente os demais humanos.
segundo me parece, estás enfeitiçando-me, dominando-me
e até encantando-me por completo, a ponto de teres redu- O curioso é que,
ao superar sua própria turbação me-
Zido-me a uma madeixa de confusões. E se permitires fazer diante tal escapatória, nossos concidadãos não parecem
uma pequena brincadeira, diria que és parecido, pela tua estar de todo errados - Platão, ao menos, deu-lhes razão.
Com efeito, em outro conhecido diálogo, o Teeteto, observa
figura como pelo demais, a esse aplanado peixe marinho, o
torpedos. Também ele, com efeito, entorpece ao que se lhe
aproxima e o toca, e me parece que tu agora produziste em
que acontece com
conta em Tales.
o filósofo algo muito similar ao “que se
que, quando estudava os astros, caiu num
mim um resultado semelhante, Pois, na verdade, estou en- poço ao olhar para cima, sendo que se diz que uma servente
torpecido de alma e de boca, e não sei o que te responder”*, engenhosa e simpática fazia troça dele porque queria saber
De uma forma semelhante, o homem hoje, que é de as coisas do céu mas esquecia as que estavam sob seus pé:
atarefado, dinâmico e muito prático, fica desconcertado ante .A
mesma troça - continua Platão - poderia fazer-se de todos
o bombardeio interrogador de um genuíno filósofo, que o põe
perante questões que, por acaso, jamais havia considerado.
a
os que dedicam sua vida à filosofia. Na verdade, para uma
pessoa assim, passam despercebidos os seus próximos e
E, em certas ocasiões, a infeliz presa inclusive contempla, vizinhos, de onde não somente desconhece o que fazem,
com certa admiração, esse indivíduo que parece ver, no senão ainda o fato mesmo de que sejam homens ou qualquer
mundo e nas pessoas, certos aspectos e profundidades que outra criatura, Contudo, quando se trata de saber o que é,
ele não chega a perceber, Infelizmente, o mais comum que
é e
na verdade, o homem o que lhe corresponde fazer ou sofrer,
segundo a natureza que tem, que é por certo diferente dos
demais entes, deve colocar todo o seu esforço em investigá-
Ainda que o sentido da frase fe
lo e examiná-lo com atenção (...). De modo que, querido
6,
nente perita ter uma noção da
natureza deste ar mal, quiçá resulte esclarecedor reproduzir o que o Dicionário amigo, quando uma pessoa, assim, em suas relações
Jem língua espanhola] de María Moliné recolhe sob
lat.
o
termo "torpedo" “/Do
"torpedo, -Inis', de "torpere', estar imobilizado; aplicado ao peixe pelo efeito
particulares ou públicas com os demais, vê-se obrigada a
(que causa seu contato] [...]. Peixe marinho setácio batóideo, aplanado, de falar, no tribunal ou em qualquer outra parte, das coisas que
forma orbicular, carnívoro, que vive n
fundos
e a
arenosos tem
de produzir uma pequena descarga elétrica quando é tocado por outro animal”,
propriedad: tem a seus pés e diante dos olhos, faz rir não somente ao
vento, mas também ao resto do povo. Cairá em poços e em
PratÃo. Ménon, 19 e
7. - 80 b.
e.
.s.
ne
OP
não
A FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE
INICIAÇÃO À FILOSOFIA
26
fatto-me vemitir, portanto, a MELENDO, Tomás, 1997. Também podem resultar de in” Srs atobfera, ou
alto” [KieKEGAARD, Saren. Diário
1 À
assombro admirativo em sorriso mais ou menos irônico. E massa e defrontar-se consigo mesmo!?. E Horkheimer, des-
suas relações possíveis com a filosofia ficavam “justifica- de a sua militância atéia e marxista, diagnostica a situação
damente" removidas. Hoje não deveria ser assim, Contudo, comgrande vigor - quando suprime a dimensão teológi-
não é fácil que o indivíduo corrente, o das enormes transa- ca de nossa cultura, diria o autor, desaparecerá do univer-
ções e o dos pequenos investimentos mensais, o das gran- so o que chamamos de “sentido”; sem dúvida, multiplica-
des viagens e o do trabalho ou estudo que são estressantes e
se a atividade, mas no fundo será como ir e vir sem direção
rotineiros, aceite defrontar-se com a filosofia. Por quê? nem significado, acabando por subsumir o homem num
profundo tédio; até que, um dia, a autêntica filosofia será
b) Di-versão e tédio
considerada também uma prática pueril... e terminará por
Durante a história do pensamento ocidental, propu- desaparecer",
seram-se distintas explicações deste fato. Para Heráclito, por Contudo, estando consciente da parcialidade do diag-
exemplo, a pessoa que não faz reflexão, na verdade, está nóstico, vou expor inicialmente a explicação oferecida por
dormindo; ademais, estando atarefada e absorta nos vaivens Pascal, lá pelo séc. XVII, que, em essência, corresponde às
de seus interesses privados, não quer abandonar os seus so- que apresentam os
autores antes citados e muitos dos experts
nhos
e
participar da ordem comum dos poucos que, estan-
do acordados, ao filosofar, conhecem as coisas tal como
atuais.
Como estamos ainda no começo de nosso escrito, peço
são". Também no caso de Platão, o filósofo, que descobriu que seja concedido contextualizar o assunto apelando
me
a autêntica realidade e tenta mostrá-la aos que vivem na ilu- para um acontecimento típico do momento em que vivemos:
são das meras imagens, é rejeitado por estes, que podem à movimentação noturna itinerante conhecida como “agi-
inclusive chegar a tirar-lhe a vida, como aconteceu com to”; trata-se de um fenômeno juvenil. Mas que talvez cons-
Sócrates!!. Por sua vez, Kierkegaard consegue expor as di- titua a tradução de situações semelhantes que afligem os
ficuldades que se oferecem ao indivíduo que está imerso no adultos. Com características próprias, aparêntemente rebel-
mundo, quando busca passar do superficial estágio estético des e mais manifestas, mas com motivos de fundo muito si-
aos compromissos que levam consigo ético e o religioso 2, o milares aos de seus país. Deles, quiçá, hajam aprendido. Em
Heidegger, já nos nossos dias, sublinha a resistência que o concreto, como pressagiara Horkheimer, sob as manifesta-
homem do
“se”, diluído no anonimato, opõe para sair da ções externas desse “agito” topamos com uma das pragas
mais devastadoras do nosso século: o tédio, nas suas dimen-
sões mais íntimas, conhecido também como vazio existen-
cial, ausência de projeto vital ou falta de sentido... e causa
1,
núm.
10.
Madrid 1981, tomo.
HegácurTO, 22 B 89; Los filósofos presocráticos, Gredos,
«Para os acordados há um mundo único e comum, enquanto que
652:
imediata e inevitável de infelicidade,
cada um dos que dormem volta-se para seu [mundo] particutar»
11. Trata-se aqui do impropriam nado «Mito da cavernas, talvez
à mais conhecido de Sócrates encarna com a sua própria morte, tel
Pode encontrar-se um estudo sobre este tema em Seín und Zeit, Primeira
como
12,
semostra nos últimos passos da Apologia de Sócrates.
À célebre doutrina dos «três estágios» não ocupa, todavia, um lugar
13.
trágico jogo diversão - deixa fora o mais importante: a nossa relação com
para entreter-se ilusoriamente dia após dia e não olhar para as pessoas”, o único que nos poderia levar a transcender o
dentro. Um grandioso e complicado passatempo com um vulgar e o tédio. "Que triste e empobrecida fica uma vida
preço muito alto - a fuga de mesmos. Fazendo da di-versão
si
17. Pascar se, Pensée. ed. Léon Brun sehvig, Paris: 1914, n. 139 [tradução
do autor]
18, Ibidem. n. 171
19. Von HitoesraND, Alice. Cartas a una recién casada. Madld: Patabra, 1997,
p. 115 fo itálico do autor].
u INICIAÇÃO À FILOSOFIA AA
FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE
insatisfeitos e desiludidos, novamente inquietos, desejosos de mesmo. É o reino do “-se”, da forma impessoal. Alguém não
alcançar outros objetivos. Como o caçador a que não lhe se atreve a dizer “eu”, mas se mimetiza dentro da massa sem
apetece a lebre e que, depois de tanto esforço por rastreá-la rosto que lhe dá segurança. “Nós nos divertimos como o
e matá-la, joga-a sem dissimulação para buscar outra dis-
tinta?
pessoal se diverte; lemos, vemos e julgamos
arte como se vê e se julga a
literatura e a
consideramos 'escandaloso' o
que se considera escandaloso”,
(...),
é, sem dúvida, Saren Kierkegaard. Ele, como sabemos, fez os que antigamente chamávamos de “conformistas” e hoje
da contraposição entre “singular” e massa a chave de todo “retrógrados”, “conservadores” ou “puristas”, mas também
o seu pensamento e de sua completa existência e função na o estilo dos outros, dos “anticonformistas”, "rebeldes" ou
vida; sendo arrastado por sua incontida paixão religiosa, “progressistas”: dos que parecem não estar de acordo nem
deixou escrito: ““O singular”: com esta categoria, mantém- mínimo conhecimento transmitido pelos seus
sequer com o
se em pé ou ca! a causa do cristianismo (..). À cada homem antepassados. mais, justamente entre estes últimos o do-
E
que possa situar sob a categoria de 'singular”, comprometo- mínio das modas, das categóricas frases feitas, dos reiterados
me a convertê-lo em cristão; ou melhor, posto que não posso comportamentos rituais, é o que se manifesta em geral e com
fazer isto em lugar de outro, garanto-lhe que o será” *, maior ênfase. E isso impressiona sobremaneira,
Contudo e com um ar de injustiça, pois Heidegger rara- porquanto
vai acompanhado da ingênua certeza de estar desafiando
mente reconhece a dívida conscientemente contraída com uma sociedade que, de fato, sem que eles o Saibam, submete-
o Sócrates dinamarquês, acudiremos às reflexões deste os às suas leis (definitivamente e simplificando um pouco,
pensador alemão contemporâneo, limitado gravemente em às regras do consumo, aos jogos de poder, ao status quo
outros pontos, mas lúcido no que agora nos interessa. O estabelecido).
questionamento que lhe colocaremos é o que nos está Desta maneira, prossegue Martin Heidegger, escapa
servindo de fio condutor há algum tempo: por que os das mãos o autêntico problema, o de saber assumir a res-
homens, mais concretamente os da última centúria, têm ponsabilidade de nossa condição de seres livres. À incapa-
medo
da
A
filosofia?
não fica
cidade de escolher é uma nota constante dos homens do “se”.
resposta muito longe daquela de Pascal, A verdade é que, na escolha, como exercício da liberdade
ainda que as categorias que Heidegger emprega resultem considerada seriamente, jogamos tudo, no tempo e fora dele.
diversas e por isso mais cortantes. No dizer do filósofo de Segundo explicara Kierkegaard, decisão arranca o ho-
Freiburg, a maior parte dos homens vive uma vida anônima, mem do temporal e o insere no eterno, já que sua escolha o
ordenada, na qual falta o valor para suportar o risco de ser ele
acompanha sempre. A liberdade cria definitividade e, por
20. Cfr. SavacNoNE, 1seppe. Theoria. Alla ricerca deila filosofia. cit. pp. 19 22. HeiDEGGFR, Martin. Ser y tiempo. 13a reimpr. México: Fondo de Cultura
esc.21. Económica, 1980, p. 143 (nesta, como nas restantes citações de Ser e tempo, o
KieRKEGAARD, Soren. Diário, VIII 1 À 482,
autor retoca levemente a traduçãe
“O
as INICIAÇÃO À FILOSOFIA FILOSOFIA NO
AA
MUNDO DE HOJ E
isso, eternidade, Seremos eternamente o que Coisa si, a realidade, deixa de
agora decidi- em ter relevância e não serve como
mos ser", vrgumento.
Como isto deforma e, inclusive, Quanto à “curiosidade”, quase ninguém “toma o cui-
aterra, então o indiví-
duo se mete comodamente no terreno do impessoal. O “se” dado de ver para compreender o que mas somente
vê
se que durante certas épocas “se fale" do aborto ou da ho- estando satisfeitos pelo que arrancamos à existência. Depois,
mossexualidade ou da igualdade da mulher ou das raças ou talvez por causa de um incidente banal, esta ilusão “de uma
das distintas religiões, a natureza real destes vida verdadeiramente 'vivida'"?8 se esvaece a golpe, reve-
problemas passa
para um segundo plano e se começa a dissertar exclusiva- lando-se na sua autêntica face - precisamente um “equívo-
mente sobre as opiniões que são dominantes e domestica-
das, enquadradas comumente como de "esquerda"
co" -, uma mentira na qual as pessoas se refugiam para
vrarem-se da verdade, O caso mais tristemente esclarecedor
li-
ou de
“direita”, como “progressistas” ou “conservadoras”. Mas a 6 o dos matrimônios que acabam
de um dia para outro; até
o momento do desastre, e no próprio dizer dos protagon:
23 Em CoLouER, Eusebi. E!
pensamíento de Kant a Heidegger. vol. UN,
Barcelona: Herder, 1900, pp. 54-55.
24. HeipecorR, Martin. Ser tiempo, cit. p. 144. 27, Ibidem. 193.
25. Ibidem. 188
y 28. Tidem.
p.
192.
p. p.
39
A FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE
INICIAÇÃO À FILOSOFIA
38
de
lar - justamente por- sistiria em fazer boas as coisas - a maravilhosa perfeição
tas, tudo “andava perfeitamente" “ono nossos artefatos com exceção de si mesmo (...). Progredi-
fazia que se deve fazer”, se- ao mesmo tem-
-,