Você está na página 1de 12

ICIAÇÃO À FILOSOFIA

Ante o que pensam alguns de nossos contemporâneos,


pode-se dizer que o que preocupa o filósofo não fica alheio
à vida vivida de todos os dias, ainda
que tenha o seu olhar
fixado no firmamento, para empregar uma metáfora
comum; ou seja, os seus pés se encontram bem ancorados
no mais firme do solo onde pisa. Além disso, ele busca
que o
seu próprio caminhar terreno e de todos aqueles que com
ele se relacionam, possam encontrar um referencial
oportuno
na
estrela guia porele vistumbrada, A FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE
Como diria Kierkegaard, em seu momento, o
logo
devemos matizar, “o que no fundo me falta é ver que claro em
mim mesmo, saber “que devo fazer' (Atos. 9, 6) e não
(somente) que devo conhecer, salvo na medida em
conhecimento deva preceder à ação. Trata-se de que o
compreen-
der o meu destino, de descobrir aquilo que Deus no fundo
reclama de mim, de achar uma verdade 'para mim', de
encontrar 'a idéia pela qual possa viver e morrer”, E 1. Filosofia espontânea
acrescenta, "Certamente, não quero negar que eu admito
ainda um “imperativo do conhecimento' e
que através de a) Aproximação preliminar
poderia influenciar os homens; mas 'é precisa que eu o
absorva vitalmente', e isto' é agora para mim o essencial, “Seria certo afirmar que a filosofia goza, no momento
Minha alma sofre sua sede como os desertos africanos sofrem atual, de uma saúde debilitada?”, Dir-se-já que sim - muitas
a sede de água (...). Sentia a carência da possibilidade 'de
uma vida plenamente humana' e não limitada tão somente pessoas, entre os intelectuais e entre o público comum,
consideram os filósofos como uma espécie de extraterrestres,
ao "conhecimento", que me permitisse fundar o meu
que se consagram a incompreensíveis elucubrações mentais
pensamento sobre alguma coisa... Oh, sim, sobre algo que são carentes de fundamento, as quais nem ao menos
objetivo, algo que, apesar de não ser coisa minha, nasça das estão arralgadas nas questões e nas realidades que são a
profundas raízes de minha vida, que me arraigue,
por assim
dizer, ao divino e que me sustente ainda que o mundo inteiro preocupação da gente comum da rua. No entanto, muitos
dos que assim opinam, sem perceber, são filósofos em
sucumba! Isto 'me falta' e a isso 'aspiro”. E,
por essa razão, exercício; não de profissão, mas sim naquilo que comumente
Sinto tanto prazer e tão íntimo consolo em contemplar
os se chama uma filosofia implícita ou espontânea, dotada, às
Brandes homens, os que, havendo encontrado uma pérola
semelhante, dão por ela todo o demais (Mat. 13, 42), até a vezes, de tanto ou mais valor que a própria filosofia
acadêmica.
própria vida”? E é assim que, tomando-a ainda num significado
genérico, a filosofia constitui substancialmente um tipo de
Saber, com o qual se tenta dar resposta às questões mais relevantes
da vída. Há as absolutamente típicas, do “quem sou
“de onde venho ?" ou “para onde me encaminho?”, bem
eu ?”,

3. KiFRKEGAARD, Soren, Diário, 1 À 75, 1835, como


as também bastante incitantes, tais como, por exemplo,
sobre o sentido da dor, do sofrimento do inocente, da na-
8 INICIAÇÃO À FILOSOFIA A FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE )
tureza e limites da liberdade, da missão e alcance do amor, Pois, com efeito e a partir de uma perspectiva amplia-
da distinção entre o bem e o mal, do que «se pode» (tecnica- a
da, a filosofia pretende dar resposta mais definitiva possível a
mente) fazer e o que “é lícito” ou ético levar a cabo, do final qualquer questão que se lhe proponha no âmbito natural c, antes
de máximo alcance.
do caminhar terreno, que se quebra pela irrupção da morte, ou simultaneamente, estabelecer perguntas
da existência ou não de um além depois desta vida, de um Então, os requerimentos e suas soluções são mais ou menos
Ser supremo justo, onipotente, remunerador... além de filosóficos, na medida em que se apresentam como mais
Confor.
muitas outras questões do mesmo estilo. profundos e globais, mais incisivos e esclarecedores.
me afirma um pensador italiano, Giuseppe Savagnone, “a
Deste ponto de vista, qualquer pessoa "filosofa” en-
quanto, antes ou depois, busca na vida algo mais que o mero
e maçante cotidiano - todos, os jovens de um modo muito
verdade que a
filosofia busca não é somente a que deriva
simples constatação dos fatos. O filósofo (...] coloca a ques-
da

tão do sentido que neles se esconde e que os torna inteligí-


o
especial, buscam conhecer sentido de sua passagem pela
terra, condição inevitável para alcançar a felicidade. Há veis" !. Por sua vez, Reinhard Lauth aponta que "À pergunta
momentos em que não bastam, para ninguém, as respostas filosófica não é somente, portanto, a pergunta pela essência
valor e
habituais; são estas as circunstâncias em que emerge o e o ser do todo da realidade, senão também por seu
talante metafísico do ser humano. E ainda me atreveria a sentido"?,
pressagiar que, para muitos dos que se defrontam com estas Quanto mais exija uma pergunta e quanto mais explique
linhas, são insuficientes as respostas mais convencionais da
uma resposta, com maior propriedade elas podem ser qualificadas
civilização atual. como filosóficas.
Esses presumidos leitores, “conformam-se com a fun-
ção que, às vezes, atribui-se ao trabalho, como mera e sim- Assim, pode-se referir à interpelação corrente sobre o
banal, na linha
ples contrapartida de um benefício monetário, carente de que é o sexo, a que se pode dar uma solução
significado pessoal para quem o realiza?”. “Compartilham
do que culturalmente se está impondo ao falar de amor,
mais ou menos materialista e sensualista da “química” e da
fisiologia, dos mecanismos de prazer, da satisfação instinti-
matrimônio, família, mulher ou sexo?”. "Estão de acordo va ou inclusive sentimental etc. Porém, cabe uma proposta
com alguns dos meios estabelecidos para o próprio rigorosa que, não sem esforço, dirigi-se ao fundo da ques-
aperfeiçoamento individualista e egoísta, buscando a equi- tão a sexualidade humana é, na sua essência, uma parti-
vocadamente chamada 'auto-realização”?". “Aprovam o cipação no Amor e no Poder criador de Deus; assim, é um
tipo de relações despersonalizadas que fregientemente im- meio excelente, talvez o mais específico, ainda que não o
peram no mundo do trabalho, social e político?”. “Estão
convencidos dos critérios, predominantemente econômicos,
maior, de manifestar e consolidar o amor entre
homem
mulher considerados enquanto tais. E, ante a questão sobre a
e
com que se pretende medir até os problemas mais pessoais liberdade da qual desfrutamos, pode alguém manifestar se
e humanos?”, "Aceitam essa idéia de liberdade, em virtude no sentido de “fazer em cada caso o que me apeteça”, o que
da qual um conjunto de comportamentos aberrantes busca esconderia, no fundo, uma definitiva escravidão quanto às
obter a legitimidade de cidadania junto à atuação tremen- tendências inferiores - apetites, paixões, sentimentos, inte-
damente humana e correta de outro grande grupo de cida-
dãos?”, E assim, com numerosos assuntos. Em quase todos
Brescia: La Scuola,
eles, exercitando um sadio espírito crítico, tentam ir mais 1.

Savacnoe, Giuseppe, Theorla. Alla ricerca della filosofia.

além das expectativas que reinam no ambiente. E nessa 1991.


2.
68.
áerá, Reinhard. Concepto, fundamentos e fustificació de la fiosoffa. Madi:
mesma proporção se comportam como filósofos. Rialp, 1975, p. 60.
20 INICIAÇÃO À FILOSOFIA |A FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE a
resses, expectativas...; contrariamente, pode-se advertir que universo e entre as demais pessoas etc. Ou sej: , está fazen-
é a grande prerrogativa que se concedeu ao homem, de ser do metafísica.
seu próprio modelador, ou seja, de que, “querendo e
Ihendo” aquilo que deverá fazer, encaminhe-se à sua pleni
esco- Existem, por outro lado, circunstâncias em que a nos-
sa condição de filósofos se mostra de maneira quase inevi-
tude
e possa alcançar, através do amor, que é o sentido úl-
timo da liberdade, o objetivo supremo de sua existência,
tável. Por exemplo, após um acidente ou outro trauma qual-
quer que nos tenha feito perder a consciência. Quando,
passado certo tempo, nós despertamos na clínica ou no hos-
b) Naturalmente filósofos pital, não se imagina que as nossas primeiras perguntas se
refiram à decoração do quarto, à qualidade das cânulas que

tão?”,
“Modos complementares e simples de ilustrar a ques-
Entre outros, pode-se citar a conhecida história do
transportamo soro, às cores dos travesseiros ou à orienta-
ção do prédio quanto ao sol.Normalmente, essas indaga-
viajante que, faz já muitos séculos, passeava próximo a uma ções serão de tipo global, sendo penetrantes, de "sentido”
pedreira. Passado um certo tempo, nosso protagonista per- “onde estou?”, “o que aconteceu?”, ou, em casos mais gra-
guntou a um dos trabalhadores o que estava fazendo e este
The respondeu de má vontade - “picando pedras”. Passados
ves, “quem sou eu?”. São solicitações com
de
as
dados
quais não
mais ou
pretendemos interiorizar um conjunto
alguns minutos, fez a mesma pergunta a outro, de onde a menos relevantes, que são sempre fragmentários e descone-
resposta, já mais convencida, teria sido - “polindo um st- xos, senão buscamos esclarecer o significado definitivo e de
lhar”, Por fim, dirigiu-se a um terceiro, que replicou ufano conjunto da circunstância em que nos achamos.
- "construindo uma catedral”. É óbvio que, sendo verdade Quanto a isto que acabo de apresentar como uma
o que os três afirmavam, o alcance e à resolução - o sentido tuação concreta, poderia ser elevado a categorias universais.
— daquilo
que proferiu o último era muitíssimo maior que o Remontando até quase o início da filosofia no Ocidente,
proposto pelos dois anteriores, logo, era mais capaz de dar sustentam Pieper e Zubiri que a admiração que dá origem à
cumprimento às ânsias de progresso intelectual e vital que reflexão filosófica sobrevém quando o mais cotidiano, que
todo homem alimenta... e de fazê-lo feliz. Por aí caminha a acreditávamos entender perfeitamente, seja pelo motivo que
filosofia, pelas vias que permitem descobrir um significado for; torna-se incompreensível, cheio de mistérios e nos su-
de grande calibre para até a menor de nossas ações, pera.
É o
que, adiante, no capítulo II, qualificaremos como
Outros momentos próprios da filosofia espontânea, “admiração” ou “assombro”, Aparecem normalmente ante
0 falecimento de uma pessoa querida, ante um revés finan-
que havíamos analisado, são os que, em terminologia mais ceiro que põe por terra o normal desenvolvimento de uma
ou menos filosófica, qualificam-se como sendo crises existen-
família construída com carinho e esforço, ante um desen-
ciais, entre quais se destaca a que chamamos, em lin-
guagem agora teológica, de vocação. Nesses instantes e com gano amoroso profundo, ou, pelo contrário, no momento de
uma incidência na própria vida que não admite réplica, a enamorar-se e "seguir enamorado”, ao advertir a generosi-
dade de um filho que nem sequer imaginávamos entrever a
pessoa questiona sobre o significado de sua existência, o
faz julgar pelos seus anos e por sua presumida imaturidade, na
se

neste mundo ou para que foi chamada quando en-


presença do amanhecer ou de um pôr-do-sol que arrebata,
que
trou nele. E, o
estando ela já decidida a acolher seu destino,
cada vez que dá voltas à sua resposta vital e se pergunta ao contemplar uma expressão artística particularmente
“mas que faço eu aqui se não me esforço de verdade por. cançada e em outras mil circunstâncias do mesmo estilo e
que, com frequência, são aparentemente vulgares. Nelas, a
e
ela está recolocando para si mesma, de maneira concreta e
vida, que parecia dominada transcorrendo sem maiores
comprometida, o significado de seu exist , a sua missão no
2 INICIAÇÃO À FILOSOFIA AA FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE z
sobressaltos, apresent(l diante de nós a sua face inconcebí- de encontrar a verdade, Assim, João Paulo II expressa-o de
vel e, junto com o desconcerto, desperta a interpelação so- maneira muito sugestiva - “Deve-se ter em conta - escreve
bre o sentido perdido e a tentativa de encontrá-lo de novo... - que um dos elementos mais importantes de nossa condi-
Pois bem, de maneira ainda genérica mas cabal, tudo ção atual é a 'crise do sentido”. um pouco mais
É adiante -
isso é filosofia ou a inclui. E se insisti na colocação de situações “muitos se perguntam se ainda tem sentido colocar ques- a
filosóficas um tanto inesperadas, para que se entenda
é
tão do sentido”,
melhor o alcance da afirmação que já defenderam, entre
outros, Aristóteles e Kant - a saber, que “todo homem é por
Com efeito, um certo relativismo cético é a base sobre
a qual pretendem fundar-se hoje as principais conquistas
natureza filósofo" (ou inclusive metafísico, segundo o culturais. E, assim, uma má caricatura de democracia já
pensador de Kônigsberg). Qualquer ser humano, em algum assentada em boa parte dos países desenvolvidos, repudia
momento, ou ao longo da sua vida, confecciona um tipo de qualquer vislumbre de verdades concludentes, que restrin-
“filosofia espontânea”, com a qual, às vezes sem uma plena giram - assim dizem - a plena liberdade dos cidadãos. As-
consciência, orienta o conjunto do seu existir. pira-se somente a uma espécie de consenso sobre os temas
Reafirma e matiza Savagnone, acrescentando suges- controversos. Em consequência, se alguém pretende formular
tões cujo desenvolvimento logo apontaremos: “Não se pode com certeza um juízo sobre a função da família na socieda-
deixar de ser, de certo modo, filósofos: deve-se escolher, de ou busca valorar eticamente o aborto, o divórcio ou as
então, entre sê-lo deixando-se dominar pelas “filosofias' im- relações homossexuais, no momento em que venha a tentar
plícitas nas mensagens dos mass-media e nas modas cultu- estabelecer certos princípios básicos estáveis, os quais ilumi-
Tais da sociedade em que vivemos, ou elaborando uma pes-
soal e responsável visão da realidade e da própria filosofia”?
nariam
a ação social e política, a entidade das sociedades
intermediárias, a superação do economicismo simples e pros-
tituível será tachado de dogmático ou de interferir de for-
2. Por que a filosofia? ma abusiva nas presumíveis mensagens reveladas no pro-
gresso da razão humana autônoma. Isso porque, para esta
a) A rejeição incial! última, não existem verdades, mas somente opiniões e, já
neste campo, por que a tua deveria valer mais que a minha?
Entretanto, “que acontece neste início de século XXI Na filosofia, por sua comumente os temas maí
vez,

com a filosofia e com a


metafísica?” Em boa medida, o que
está ocorrendo seria determinado pela situação da cultura
candentes e próprios da metafísica são abandonados, ain-
da que se dedique uma particular atenção às questões
e dos estudos filosóficos que dominam o
momento atual. Isso fragmentárias, as quais são dotadas, sem dúvida, de inte-
se dá na proporção em que estes, junto com algumas visões Tesse mas não sendo definitivas. Por exemplo, tem-se uma
do estado da ciência que são um pouco míticas e que hoje truncada fenomenologia ou uma hermenêutica de textos
estão superadas, chegam ao grande público. E semelhante que não alcançam sempre a manifestação sobre o profundo
panorama poderia ser definido como uma desconfiança pro- da realidade, os estudos críticos sobre a análise da lingua-
Tunciada, no que se refere às possibilidades do entendimento gem como um fim em si mesmo, que tampouco são decis
Vos, a valoração das conquistas das ciências experimentais
etc. Também nestes domínios são excluídas as “verdades”,

3. SavacoNE, Giuseppe. Theoria. Alla ricerca della fiosofia, cit. p. 38.


4.
Multas das sugestões desta seção, e das duas que se seguem, devo-as
180 excelente livro de SavaGNONE citado nas notas precedentes. 5 João Pauto 1l. Fides et ratio. n. 81
a INICIAÇÃO À FILOSOFIA AA FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE 25

na sua acepção mais comprometida, pois tudo fica geralmen- semelhante destumbre seja logo superado. Tratando-se de
te na superfície ou, no máximo, numa imediata região sub- um “especialista”, demonstra com grande abundância de
cutânea, ainda que, isso sim, esteja muito tecnicamente or- meios que o proposto pelo filósofo é mero palavreado,
questrado. autênticas noções sem sentido que são desprovidas de um
1sso explica por que, ante a presença de um legítimo alcance real, ilusões ou imaginações, um ilícito encobrimento
filósofo, o “especialista em filosofias” e o homem comum de seus próprios medos e inquietudes, enganos produzidos
adotam uma atitude similar à que suscitava Sócrates quan- por uma falta de domínio de linguagem etc. Sendo o nosso
do exercia o seu trabalho entre sábios e menos sábios da interlocutor um homem comum, resolverá a situação com
Atenas de seu tempo. Isso é muito bem descrito pelas pala- um certo gosto de condescendência, indicando para si
vras que Platão coloca na boca de Ménon, em diálogo ho-
mônimo, uma vez que este foi crivado pelas difíceis pergun-
mesmo que os filósofos, no fundo, não são nem maus nem
inquietantes nem perigosos, mas, simplesmente, estão um
tas do mestre - “Ah... Sócrates Eu havia escutado, ainda
|
pouco perturbados, fabricam um mundo à sua medida e não
antes de encontrar-me contigo, que não fazes outra coisa sabem pôr os pés na realidade que os circunda e na qual se
senão problematizar-te e problematizar os demais. E agora, colocam diariamente os demais humanos.
segundo me parece, estás enfeitiçando-me, dominando-me
e até encantando-me por completo, a ponto de teres redu- O curioso é que,
ao superar sua própria turbação me-
Zido-me a uma madeixa de confusões. E se permitires fazer diante tal escapatória, nossos concidadãos não parecem
uma pequena brincadeira, diria que és parecido, pela tua estar de todo errados - Platão, ao menos, deu-lhes razão.
Com efeito, em outro conhecido diálogo, o Teeteto, observa
figura como pelo demais, a esse aplanado peixe marinho, o
torpedos. Também ele, com efeito, entorpece ao que se lhe
aproxima e o toca, e me parece que tu agora produziste em
que acontece com
conta em Tales.
o filósofo algo muito similar ao “que se
que, quando estudava os astros, caiu num
mim um resultado semelhante, Pois, na verdade, estou en- poço ao olhar para cima, sendo que se diz que uma servente
torpecido de alma e de boca, e não sei o que te responder”*, engenhosa e simpática fazia troça dele porque queria saber
De uma forma semelhante, o homem hoje, que é de as coisas do céu mas esquecia as que estavam sob seus pé:
atarefado, dinâmico e muito prático, fica desconcertado ante .A
mesma troça - continua Platão - poderia fazer-se de todos
o bombardeio interrogador de um genuíno filósofo, que o põe
perante questões que, por acaso, jamais havia considerado.
a
os que dedicam sua vida à filosofia. Na verdade, para uma
pessoa assim, passam despercebidos os seus próximos e
E, em certas ocasiões, a infeliz presa inclusive contempla, vizinhos, de onde não somente desconhece o que fazem,
com certa admiração, esse indivíduo que parece ver, no senão ainda o fato mesmo de que sejam homens ou qualquer
mundo e nas pessoas, certos aspectos e profundidades que outra criatura, Contudo, quando se trata de saber o que é,
ele não chega a perceber, Infelizmente, o mais comum que
é e
na verdade, o homem o que lhe corresponde fazer ou sofrer,
segundo a natureza que tem, que é por certo diferente dos
demais entes, deve colocar todo o seu esforço em investigá-
Ainda que o sentido da frase fe
lo e examiná-lo com atenção (...). De modo que, querido
6,
nente perita ter uma noção da
natureza deste ar mal, quiçá resulte esclarecedor reproduzir o que o Dicionário amigo, quando uma pessoa, assim, em suas relações
Jem língua espanhola] de María Moliné recolhe sob
lat.
o
termo "torpedo" “/Do
"torpedo, -Inis', de "torpere', estar imobilizado; aplicado ao peixe pelo efeito
particulares ou públicas com os demais, vê-se obrigada a
(que causa seu contato] [...]. Peixe marinho setácio batóideo, aplanado, de falar, no tribunal ou em qualquer outra parte, das coisas que
forma orbicular, carnívoro, que vive n
fundos
e a
arenosos tem
de produzir uma pequena descarga elétrica quando é tocado por outro animal”,
propriedad: tem a seus pés e diante dos olhos, faz rir não somente ao
vento, mas também ao resto do povo. Cairá em poços e em
PratÃo. Ménon, 19 e
7. - 80 b.
e.
.s.
ne
OP
não
A FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE
INICIAÇÃO À FILOSOFIA
26

todo tipo de dificuldades devido a sua inexperiência


e sua a
Neste caso, para exercer tarefa filosófica não é m
ao nosso redor, muito pelo
mas,
néscio”*, esquecer-se de tudo quanto temos
contrário, devemos fazer repousar o olhar
terrível torpeza lhe fará parecer um intelectual sobre nos-
Às ex-
Este retrato não me parece muito afortunado. so entorno até “penetrar” no mais profundo de cada um
dos en-
plicações de Platão concordam muito
bem com o conjunto ainda que alguns tomis-
clichê mais difundi- tes que o compõem. Por conseguinte,
de sua filosofia ou, pelo menos, com o do pensador ab:
sentido das tas tenham alimentado também a figura
do dela. Quando nosso filósofo tenta descobrir o mundo, o
traído e esquecidiço, alheio às solicitações deste filósofo
dirige o seu
coisas e pessoas que encontra em seu entorno, "mundo das São Tomás a imagem
é do
que impõe a mente de de seus semelhantes até
olhar para o alto, para o que denominou-se coordenadas atento às ocupações e preocupações
Idéias”. Estas, situadas muito longe de nossas nos menores detalhes, perfeitamente
enraizado no tempo em
diariamente
cotidianas, compõem a “explicação” do que que lhe toca viver e hábil para
desenvolver-se nele - nos tri-
efeito, para entender a
temos em mãos. De modo que, com

fundo este mundo, importa desocupar-se


dele fixar a atenção
recolhe o
e
Teeteto é, pois,
Dunais, bancos
e
redes de Internet -, como qualquer outro
de seus concidadãos e, se é permitido dizer,
inclusive me-
nas alturas. À figura do filósofo que lhor que eles.
a do genuíno “platônico” de turbação
Rafael nos Mas, então, “onde vai parar o sentimento
No conhecido afresco da Escola de Atenas, ante o filósofo?”. "Este
sentido de que à pessoa comum experimenta
indicou que Aristóteles modifica o panorama, no Tão atende já ao mesmo mundo que o resto
dos mortais?”.
das realidades que compõem
que o que dá razão a cada uma 'nrelas, isto é, a sua forma Sim e não. Ou, melhor dizendo, o amante da
sabedoria con-
encontra conci-
o universo é algo que se Sidera os mesmos acontecimentos que afetam os seus
substancial. Mas isso até certo ponto, pois, para compreen- mais
dadãos, mas faz isso com maior profundidade, penetraSitua-
der de todo essa forma, importa considerá-la na perspecti-a em cada um deles e em suas relações com o conjunto.
dos singulares que
va universal prescindindo em parte se, por assim dizer, de algum
modo em outro nível de com-
encarnam. descobre na realidade di-
Mas Tomás de Aquino dá um giro ainda mais
drásti- preensão. Como consequência, os seus conter
atende a sua mensões mais profundas, diversas das que
co, porquanto o ponto de referência ao que inter- porâneos estão acostumados a perceber. E como tais mag-
metafísica já não é forma alguma, nem externa nem nitudes são as que lhe ocupam, como ainda
habitualmente
somente se assenta
na, senão o ato de ser; ademais, este se move nessas coordenadas mais íntimas e universais, o
das
a
no mais íntimo de cada criaturas, senão que é tam- daquele que
se
uma “distinto”
refere aparenta ser
bém o que radicalmente singulariza nelas. De modo que, de
sem Tnundo que
sensação de
fazer violência nem ao espírito nem letra, a à
metafísica
Tomás poderia ser considerada, sem perder paradoxalmente
captam os demais e segue despertando
estupor que Sócrates suscitava nos seus
neles a
interlocutores.
Certamente, ante o filósofo desenhado por Platão,
"metafí- tor-
a universalidade que lhe corresponde, como uma
cotidianos, o expert em
sica do concreto”* ou do singular. pe e sem manha para os assuntos o inicial
negócios ou em política acabava portransformar
8. PLATÃO, Teeteto, 174 a - 6.
serta impro-
Como seria óbvio, no ponto em que agora nos encontramos
do que acabo de expor, Per torná-lo o mais universal possível elevam-se quase até
À:

cedente qualquer tentativa de justificação crítica Metafísica de lo concreto. Madrid:


“versa! e, por isso,
Seja, até ver somente um branco
horizonte... justamente
para

fatto-me vemitir, portanto, a MELENDO, Tomás, 1997. Também podem resultar de in” Srs atobfera, ou
alto” [KieKEGAARD, Saren. Diário
1 À

Borque seu ponto de


Ediciones Internacionales Universitarias. vista é demasiado
de ver o part:
“não-demonsirativa”, as seguintes palavras.
POLO que em definitivo importa ao especular a capacidade
é
Teresso, como pura comprovação
de Kierkegaard: “Existem alguns críticos que, privados por completo da visão iar no todo" [fhídem. 1 A 113
Individual, tentam considerar tudo a partir de um ponto de vista uni
Para o
(p.
27:
28 INICIAÇÃO À FILOSOFIA
A FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE 29

assombro admirativo em sorriso mais ou menos irônico. E massa e defrontar-se consigo mesmo!?. E Horkheimer, des-
suas relações possíveis com a filosofia ficavam “justifica- de a sua militância atéia e marxista, diagnostica a situação
damente" removidas. Hoje não deveria ser assim, Contudo, comgrande vigor - quando suprime a dimensão teológi-
não é fácil que o indivíduo corrente, o das enormes transa- ca de nossa cultura, diria o autor, desaparecerá do univer-
ções e o dos pequenos investimentos mensais, o das gran- so o que chamamos de “sentido”; sem dúvida, multiplica-
des viagens e o do trabalho ou estudo que são estressantes e
se a atividade, mas no fundo será como ir e vir sem direção
rotineiros, aceite defrontar-se com a filosofia. Por quê? nem significado, acabando por subsumir o homem num
profundo tédio; até que, um dia, a autêntica filosofia será
b) Di-versão e tédio
considerada também uma prática pueril... e terminará por
Durante a história do pensamento ocidental, propu- desaparecer",
seram-se distintas explicações deste fato. Para Heráclito, por Contudo, estando consciente da parcialidade do diag-
exemplo, a pessoa que não faz reflexão, na verdade, está nóstico, vou expor inicialmente a explicação oferecida por
dormindo; ademais, estando atarefada e absorta nos vaivens Pascal, lá pelo séc. XVII, que, em essência, corresponde às
de seus interesses privados, não quer abandonar os seus so- que apresentam os
autores antes citados e muitos dos experts
nhos
e
participar da ordem comum dos poucos que, estan-
do acordados, ao filosofar, conhecem as coisas tal como
atuais.
Como estamos ainda no começo de nosso escrito, peço
são". Também no caso de Platão, o filósofo, que descobriu que seja concedido contextualizar o assunto apelando
me
a autêntica realidade e tenta mostrá-la aos que vivem na ilu- para um acontecimento típico do momento em que vivemos:
são das meras imagens, é rejeitado por estes, que podem à movimentação noturna itinerante conhecida como “agi-
inclusive chegar a tirar-lhe a vida, como aconteceu com to”; trata-se de um fenômeno juvenil. Mas que talvez cons-
Sócrates!!. Por sua vez, Kierkegaard consegue expor as di- titua a tradução de situações semelhantes que afligem os
ficuldades que se oferecem ao indivíduo que está imerso no adultos. Com características próprias, aparêntemente rebel-
mundo, quando busca passar do superficial estágio estético des e mais manifestas, mas com motivos de fundo muito si-
aos compromissos que levam consigo ético e o religioso 2, o milares aos de seus país. Deles, quiçá, hajam aprendido. Em
Heidegger, já nos nossos dias, sublinha a resistência que o concreto, como pressagiara Horkheimer, sob as manifesta-
homem do
“se”, diluído no anonimato, opõe para sair da ções externas desse “agito” topamos com uma das pragas
mais devastadoras do nosso século: o tédio, nas suas dimen-
sões mais íntimas, conhecido também como vazio existen-
cial, ausência de projeto vital ou falta de sentido... e causa
1,
núm.
10.
Madrid 1981, tomo.
HegácurTO, 22 B 89; Los filósofos presocráticos, Gredos,
«Para os acordados há um mundo único e comum, enquanto que
652:
imediata e inevitável de infelicidade,
cada um dos que dormem volta-se para seu [mundo] particutar»
11. Trata-se aqui do impropriam nado «Mito da cavernas, talvez
à mais conhecido de Sócrates encarna com a sua própria morte, tel
Pode encontrar-se um estudo sobre este tema em Seín und Zeit, Primeira
como
12,
semostra nos últimos passos da Apologia de Sócrates.
À célebre doutrina dos «três estágios» não ocupa, todavia, um lugar
13.

parte, especiatimente no parágrafo


IV. «O cotidiano “ser si mesmo” e o “uno”
central nos escritos de Kierkegaard, Aparece exclusivamente em breves
». Cf, também
14,
as páginas posteriores desta Introdução à filosofia crista.
Horkheimer trata deste assunto com relativa frequência, sobretudo em
passagens do Postcriptum, de Estágios no caminho da vida e em pouquíssimos Zur Kritik der instrumentelien Vernunfe, Frankfurt a. M, 1967. Neta lé-se, por
textos do Diário. De todos modos, expressa bem o ascenso do ser humano desde «É presunção querer salvar um sentido Incondictonado prescindindo
uma visão superfícial da existência, passando pelo compromisso (o exemplo de Deus» (p, 227); «a teoria crítica contém ao menos uma referência expressa
típico seria o do matrimônio) sté à radicalidade do encontro com Deus, onde
10 tenlógico. a Outro» 90). CI. sobre o tema, Umberto GaizazZ,, La teoria
sua vida adquire autêntico peso. Cf., por exemplo, Rafael LARRANETA,
Kierkegaard, Ediciones del Orto, Madrid 1997. pp. 42 s5.
crítica della Scuola di Francofórte, Edizioni Scientifiche ftaliane, Roma 2000, pp.
187 ss.
A FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE a
À FILOSOFIA
E INICIAÇÃO

é mais que o corolário existencial do egocentrismo ("eu-eu-e ).


Sobre esse fastio, escreveu páginas inesquecíveis, já no A diagnose é pouco menos que
definitiva: quando alguém
século XIX, Seren Kierkegaard. Para ele, considerando-o num “eu” deserto mas
Viktor gira somente em torno de si mesmo,
como a principal frustração moderna, consagrou Sbsessivo, realidade perde consistência, torna-se irrelevan-
a
Frank] o Capítulo VI do busca
Em de sentido. Já em outro de gratificar-nos, não sendo
"O problema te. não atrai nem resulta capaz
contexto, o fundador da logoterapia resume: digna de atenção. E, então, são
buscadas distintas compen-
de nosso tempo é que as pessoas estão presas por um senti: Ssacões, mais ou menos bárbaras,
mas aptas a fazer vibrar
mento de falta de sentido, (...) acompanhado por uma sen- de maneira imediata o nosso “eu”:
comida, bebida, telev
sação de vazio (..). Nossa sociedade industrial está prepa- são, viagens. sexo, álcool, droga, êxito,
celebridade...
rada para satisfazer todas as nossas necessidades e nossa Diversão e tédio, portanto, mas profundos
e sérios.
sociedade de consumo inclusive cria necessidades para sa- entre pais e filhos, quando
tisfazê-las depois. Mas a mais humana de todas as necessi- quase cômicos. Nas barganhas de voltar para casa
dstes começam a cogitar a necessidade da madrugada, se
dades, necessidade de ver o sentido da vida de cada um,
a
com o amanhecer ou a altíssimas
horas
permanece insatisfeita. As pessoas podem
ter muito com que porquê de semelhante exi igên-
nada têm pelo que os pais se atrevem a inquirir o
viver, mas, com uma frequência maior, causa do dobrar-se
cia. o filho ou a filha, aborrecidos por mecânica:
viver" 5, sobre si mesmos, responderão de maneira quase à mãe não
Por sua vez, Albert Camus, em A queda, deixa uma diversão. E ao pal ou
porque “tenho direito” à
mostra do que dá de si uma existência epidérmica que Testa qualquer oposição, porque quiçá também eles const
somente pretende fugir do tédio: “Não posso suportar o derem como um dos seus direitos básicos, quando
não a meta
aborrecer-me e não aprecio na vida mais que as diversões de sua vida. o divertir-se.
(.). Vivia, pois, sem outra continuidade que aquela, dia da Estamos, segundo anunciava, ante uma daslatim “de
categori-
dia, do eu-eu-eu... Deslizava-me assim pela superfície “di-versão”'(do
existência, em certo sentido sobre as palavras, mas nunca as fundamentais de Pascal - a
lado”). É
Vertere”, “orlentar a própria atenção para outro
na realidade. Todos esses livros apenas lidos, esses amigos existencial que o aborreci
visitadas! Fazia o que termo da mesma profundidade
apenas queridos, essas cidades apenas '. mento a que se opõe, com que o gênio
francês não queri:
fazia ou por aborrecimento ou por distração” distrações que to-
Na essência, o diagnóstico de Camus se concentra na tanto indicar os momentos de repouso e o homem se
lingúística do "eu-eu-eu”. Transcende, dos necessitamos, mas qualquer ocupação na que
curiosa construção submerge para não se defrontar com o
com
seu vazio interior nem
portanto, as explicações que pretendem derivar o
fastio con- De semelhante pers.
o problema inquietante de sua
existência.

temporâneo do desenvolvimento da técnica, da criação de a política, os negóci-


pectiva, também a tarefa profissional,
novos
e
sempre crescentes
Nada disso existia nos tempos
e mais
de
sutis espaços
Kierkegaard
de
com
ócio etc.
as pro- os, tudo o que fazemos pode ser
vivido como uma “di-ver-

porções que hoje adquiriu; ademais, ninguém como soube


ele são tradução
acerto, não “Porisso - escreveu Pascal, e deixo ao leitor a
captar o núcleo do assunto: o tédio, sustenta com de suas idéias a termos atuais -, o jogo e a
conversação das
tão solict
mulheres, a guerra, os grandes empregos, estão
tados. Não porque aí se encontre a
felicidade, nem porque
correr atrás
alguém imagine que a verdadeira sorte
15. Frans, Viktor. The meaning of love”, IX Congresso fnternacto seja (...)
da Família, set 1986, impresso em Ninth fosse oferecida
de uma lebre que a rejeitaríamos, caso nos
1a Fariília, Organização Mundial
“he of tove. Paris: Fayard, 1987,
Congress foc the Family fereilioy
nos deixa
Tntermatonal
55 6
no mercado. Não é este uso suave e agradável que
Albert. La chute. Parls: Galltmard, 1989, 64,
16, Camus, p.
se INICIAÇÃO À FILOSOFIA A FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE
E
pensar em nossa condição, o que se busca, (...) senão o televisor. Inclusive no carro tem medo de ficar muito sozinho
cansaço que nos impede de
refletir e nos di-vertir. Razão
pela qual se ama mais a caça que a presa. Daí vem que os
e, apressando-se, liga o rádio ou põe a mão no celular. E
quanto mais veemente o vazio, maior a quantidade de
homens apreciem tanto o ruído e o tumulto; daí que a prisão ocupações nas que se refugia para não ter tempo de pensar.
seja um suplício tão horrível, daí que o prazer da solidão seja À disjuntiva entre trabalho e diversão (que é somente
algo incompreensível (...). Isso é tudo o que os homens uma possibilidade, que não é imprescindível, do necessário
podiam inventar para serem felizes; e os que, fazendo isto descanso) é tremendamente reveladora dos problemas de
como filósofos, acreditam
que o mundo é muito pouco fundo que afetam a nossa época. “Um dos grandes perigos
razoável ao passar-se todo o dia correndo atrás de uma lebre de hoje - expõe Alice von Hildebrand com categorias
que não aceitariam como presente, pouco conhecem à nossa facilmente assimiláveis às que venho utilizando - é colocar-
natureza, Pois a dita lebre não nos protegerá da morte e das se uma falsa disjuntiva: ou trabalho ou diversão. Muita
misérias que nos rodeiam, mas a caça”, ao divertirmo-nos, gente volta para casa tão esgotada que somente tem um
“sim nos protege delas” "7, desejo; estirar as pernas e descansar (o que significa ver a
Desolação de Pascal: é tudo o que os homens
“Isso
po- televisão normalmente). Mas alternativa - trabalho ou
diam inventar para serem felizes!”. Um grande
e
esta

trágico jogo diversão - deixa fora o mais importante: a nossa relação com
para entreter-se ilusoriamente dia após dia e não olhar para as pessoas”, o único que nos poderia levar a transcender o
dentro. Um grandioso e complicado passatempo com um vulgar e o tédio. "Que triste e empobrecida fica uma vida
preço muito alto - a fuga de mesmos. Fazendo da di-versão
si

na qual escravizar-se e descansar são os únicos pólos da


um ofício, o homem se desembaraça de seu destino, abdica
existência”!
da própria grandeza e se dilui nas situações e nas realidades Além disso,
exteriores. “À única coisa que nos consola nas nossas como manifestações que são da única
atitude de fundo da “di-versão", trabalho e descanso
misérias adverte Pascal com sua difícil, um pouco amarga
e certeira lucidez: é a 'di-versão', que, entretanto, é a maior
tendem
a assumir formas cada vez mais semelhantes.
frenético movimento, que há no escritório ou nas aulas,
O
de todas as nossas misérias. Porque é ela que, principalmente, bibliotecas e cafés massificados na Universidade, não é muito
impede-nos de pensar em nós mesmos" 8, possuirmo-nos, distinto do "formigueiro" de uma praia ou uma piscina
E comenta Savagnone: não é mister
um esforço exces- repleta de banhistas ou de uma praça pública tomada pela
sivo para trasladar para hoje a atitude aqui descrita. Quer
Juventude nas horas tardias do fim de semana, Traslada-se
se trate de trabalho ou do tempo livre, o que algum de nossos
o tráfego caótico dos dias de trabalho para os dias festivos,
contemporâneos teme, acima de tudo, é o momento em que para as estradas que conduzem para as praias e demais
Se apaga, ao seu redor, o rumor ensurdecedor
que o guardou lugares de recreio, E assim tudo o mais, Sempre a mesma
durante a jornada... ficando sozinho com silêncio.
Por isso, quando sai da fábrica ou da Faculdade ou do o ânsia, uma idêntica pressa, igual tensão
pessoas e as coisas.
na relação com as
serviço, não busca senão algo que "fazer": afunda-se na Mal nos descuidamos, aparecemos imersos numa
gritaria de um bar superpovoado ou de uma discoteca e, um porção de humanidade que se agita, angustia-se, exalta-se
Pouco mais tarde, ao chegar em casa, sente-se chamado pelo numa corrida para metas que, uma vez alcançadas, deixam

17. Pascar se, Pensée. ed. Léon Brun sehvig, Paris: 1914, n. 139 [tradução
do autor]
18, Ibidem. n. 171
19. Von HitoesraND, Alice. Cartas a una recién casada. Madld: Patabra, 1997,
p. 115 fo itálico do autor].
u INICIAÇÃO À FILOSOFIA AA
FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE

insatisfeitos e desiludidos, novamente inquietos, desejosos de mesmo. É o reino do “-se”, da forma impessoal. Alguém não
alcançar outros objetivos. Como o caçador a que não lhe se atreve a dizer “eu”, mas se mimetiza dentro da massa sem
apetece a lebre e que, depois de tanto esforço por rastreá-la rosto que lhe dá segurança. “Nós nos divertimos como o
e matá-la, joga-a sem dissimulação para buscar outra dis-
tinta?
pessoal se diverte; lemos, vemos e julgamos
arte como se vê e se julga a
literatura e a
consideramos 'escandaloso' o
que se considera escandaloso”,
(...),

o) A existência anônima Com fregúência, podemos verificar a verdade desta


denúncia: modos homogêneos de di-vertimento, de enfocar
Talvez um último aprofundamento em nosso tema Os problemas que afetam um país ou uma região e as relações
poderia realizar-se à luz do que veio a chamar-se de exis- entre as pessoas e entre os ambos sexos, de ater-se à opinião
tência anônima. O principal inspirador deste tipo de exame estabelecida... E o curioso é que não somente testemunham o

é, sem dúvida, Saren Kierkegaard. Ele, como sabemos, fez os que antigamente chamávamos de “conformistas” e hoje
da contraposição entre “singular” e massa a chave de todo “retrógrados”, “conservadores” ou “puristas”, mas também
o seu pensamento e de sua completa existência e função na o estilo dos outros, dos “anticonformistas”, "rebeldes" ou
vida; sendo arrastado por sua incontida paixão religiosa, “progressistas”: dos que parecem não estar de acordo nem
deixou escrito: ““O singular”: com esta categoria, mantém- mínimo conhecimento transmitido pelos seus
sequer com o
se em pé ou ca! a causa do cristianismo (..). À cada homem antepassados. mais, justamente entre estes últimos o do-
E
que possa situar sob a categoria de 'singular”, comprometo- mínio das modas, das categóricas frases feitas, dos reiterados
me a convertê-lo em cristão; ou melhor, posto que não posso comportamentos rituais, é o que se manifesta em geral e com
fazer isto em lugar de outro, garanto-lhe que o será” *, maior ênfase. E isso impressiona sobremaneira,
Contudo e com um ar de injustiça, pois Heidegger rara- porquanto
vai acompanhado da ingênua certeza de estar desafiando
mente reconhece a dívida conscientemente contraída com uma sociedade que, de fato, sem que eles o Saibam, submete-
o Sócrates dinamarquês, acudiremos às reflexões deste os às suas leis (definitivamente e simplificando um pouco,
pensador alemão contemporâneo, limitado gravemente em às regras do consumo, aos jogos de poder, ao status quo
outros pontos, mas lúcido no que agora nos interessa. O estabelecido).
questionamento que lhe colocaremos é o que nos está Desta maneira, prossegue Martin Heidegger, escapa
servindo de fio condutor há algum tempo: por que os das mãos o autêntico problema, o de saber assumir a res-
homens, mais concretamente os da última centúria, têm ponsabilidade de nossa condição de seres livres. À incapa-
medo
da
A
filosofia?
não fica
cidade de escolher é uma nota constante dos homens do “se”.
resposta muito longe daquela de Pascal, A verdade é que, na escolha, como exercício da liberdade
ainda que as categorias que Heidegger emprega resultem considerada seriamente, jogamos tudo, no tempo e fora dele.
diversas e por isso mais cortantes. No dizer do filósofo de Segundo explicara Kierkegaard, decisão arranca o ho-
Freiburg, a maior parte dos homens vive uma vida anônima, mem do temporal e o insere no eterno, já que sua escolha o
ordenada, na qual falta o valor para suportar o risco de ser ele
acompanha sempre. A liberdade cria definitividade e, por

20. Cfr. SavacNoNE, 1seppe. Theoria. Alla ricerca deila filosofia. cit. pp. 19 22. HeiDEGGFR, Martin. Ser y tiempo. 13a reimpr. México: Fondo de Cultura
esc.21. Económica, 1980, p. 143 (nesta, como nas restantes citações de Ser e tempo, o
KieRKEGAARD, Soren. Diário, VIII 1 À 482,
autor retoca levemente a traduçãe
“O
as INICIAÇÃO À FILOSOFIA FILOSOFIA NO
AA
MUNDO DE HOJ E
isso, eternidade, Seremos eternamente o que Coisa si, a realidade, deixa de
agora decidi- em ter relevância e não serve como
mos ser", vrgumento.
Como isto deforma e, inclusive, Quanto à “curiosidade”, quase ninguém “toma o cui-
aterra, então o indiví-
duo se mete comodamente no terreno do impessoal. O “se” dado de ver para compreender o que mas somente

caminha para adiante, deixando-se conduzir pelo fluxo


(..),

se preocupa com o ver. Busca o novo exclusivamente como


mutável do que todos os demais fazem, pensam, dizem, um trampolim
descarregando neles a responsabilidade do que nós mesmos
para outra coisa nova (...). Por isso, a curio-
sidade se caracteriza por uma típica incapacidade para
somos - se pode responder, com rapidez, sobre qual-
(..)
leter-se naquilo que se apresenta. Foge da contemplação
quer coisa, porque não há 'ninguém' que possa ser chama- serena, dominada como está pelo nervosismo e pela excita-
do a prestar contas (...). Cada um é 'os demais', ninguém
ele mesmo”?, é ção que a empurram para a novidade e a mudança”?, O
pping, o flipping e o grazzing seriam talvez o paradigma
No homem da
existência anônima, dominada pelo
se”, esfuma-se sem remédio o pensamento. Conseqtientemente,
mais certeiro desse afã difícil de sofrer quanto às novidades
à que, não sem certa amargura, já apelava São Paulo
no
a palavra degenera em “charlatanice”, “palavreado” ou Areópago de Atenas.
“frivolidade”, o interesse pelo mundo que nos rodeia em efeito, num mundo em que os homens se vêem
Com
“curiosidade”, a sossegada compreensão das coisas em bombardeados por todo tipo de estímulos sensoriais, a
“equívoco”. atenção passa freneticamente de um a outro, sem que se
No “palavreado”, como podemos Saiba deter para tentar penetrar no sentido de algum deles.
comprovar amiúde
através, por exemplo, das notícias e debates que nos Assim, artigos ilustres de periódicos e revistas, imagens
propi-
ciam os
meios de comunicação, “o que conta é
que prossiga televisivas, peças publicitárias, efígies de Internet, tudo é
o discurso”. As palavras, que deveriam servir para expres- “percorrido” por um olhar tanto mais ávido quanto menos
Sar
a
realidade, convertem-se no seu substituto: “as coisas capaz, no fundo, de acolher verdadeiramente a realidade.
são assim porque assim
se
diz"?5, Desta sorte, a exposição
de um tema não é já o modo de aproximar-se verdadeira-
Deste modo, nasce o “equívoco”: “parece que se com-
preendeu perfeitamente tudo, que se o agarrou e expressou,
mente dele, mas se converte num encerrar-se para aquilo mas na realidade não é assim"?*, Durante anos se vive numa
mesmo do que se falava, uma maneira de banaálizá-lo e de concreta situação, com certas pessoas, seguros de que esse é
esvaziá-lo de sua riqueza. Quando, O nosso lugar,
que as nossas amizades efetivamente o são,
por exemplo, consegue- de

se que durante certas épocas “se fale" do aborto ou da ho- estando satisfeitos pelo que arrancamos à existência. Depois,
mossexualidade ou da igualdade da mulher ou das raças ou talvez por causa de um incidente banal, esta ilusão “de uma
das distintas religiões, a natureza real destes vida verdadeiramente 'vivida'"?8 se esvaece a golpe, reve-
problemas passa
para um segundo plano e se começa a dissertar exclusiva- lando-se na sua autêntica face - precisamente um “equívo-
mente sobre as opiniões que são dominantes e domestica-
das, enquadradas comumente como de "esquerda"
co" -, uma mentira na qual as pessoas se refugiam para
vrarem-se da verdade, O caso mais tristemente esclarecedor
li-
ou de
“direita”, como “progressistas” ou “conservadoras”. Mas a 6 o dos matrimônios que acabam
de um dia para outro; até
o momento do desastre, e no próprio dizer dos protagon:

23 Em CoLouER, Eusebi. E!
pensamíento de Kant a Heidegger. vol. UN,
Barcelona: Herder, 1900, pp. 54-55.
24. HeipecorR, Martin. Ser tiempo, cit. p. 144. 27, Ibidem. 193.
25. Ibidem. 188
y 28. Tidem.
p.

192.
p. p.
39
A FILOSOFIA NO MUNDO DE HOJE
INICIAÇÃO À FILOSOFIA
38
de
lar - justamente por- sistiria em fazer boas as coisas - a maravilhosa perfeição
tas, tudo “andava perfeitamente" “ono nossos artefatos com exceção de si mesmo (...). Progredi-
fazia que se deve fazer”, se- ao mesmo tem-
-,

que cada um dos cônjuges a vida a dois seja


mos, é certo, em nossa civilização externa,
gundo a opinião estabelecida, para que po em que retrocedemos em nossa
vida interior pessoal”,
um detalhe de mf” sobre a "di
próspera. Mas de imediato, às vezes por existência Deste modo, partindo das observações
Pima importância, o que antes era uma
Celestial (“tinha de ser assim!": preciso
“é imaginar
quase
Sísifo versão” realizadas por Pascal, conseguimos chegar com- a
mediante a análise de Heidegger sobre a existên-
inferno. preender,
feliz”, escreveu Camus), transforma-se num cia anônima e com os comentários que o acompanharam,
di-versão, imersão
Palavreado, curiosidade, equívoco, de uma forma um pouco melhor, a rejeição da filosofia por
frenética no mutável, com a finalidade
consigo mesmo. Convém não esquecer que
de evitar o encontro
a análise de tudo parte do homemde muitas épocas,
a do homem contempo-
temática,
o homem de tâneo em particular, Por outro lado, já na seção semelhan-
isso responde a uma pergunta chave: "por que Llano nos acrescentaremos alguns motivos esclarecedores de
filosófico?". Carlos
hoje repudia o pensamento aprofun- te repulsa.
oferece um conjunto de sugestões que resumem, bem
dam e ampliam o anteriormente
podiam servir para encerrar esta
tratado,
Apresentação.
as que
No
muito
*fenôme-
- explica -, dá-se um claro predo-
no da sociedade impessoal
mmínio do facere sobre o agere, termos para
os quais não há
Assim, há uma
uma tradução fácil nem na língua espanhola. desde estradas até
preponderância do fazer coisas exteriores, até sistemas polí
Drdenamentos Jurídicos, desde represas
interior - o agere -
Cos, com o abandono dessa outra ação
me marca individual.
que me configura como pessoa, quea respeito de toda a re-
Thente, destacando a mim somente,
ação massiva e despersonalizanteEssa que a sociedade Impes-
soal poderia exercer sobre mim. ação interna, que me
mundo, como
Converte em algo que é único e não-repetido no
de uma voca-
Tesponsável que sou de um destino próprio,
ção pessoal à qual nenhum outro
ser humano pode respor
não posso transferir
der por mim e que, por isso mesmo, eu
a nenhum outro, tem
o seu ponto
Tnento de minha consciência pessoal,
de partida no fortaleci
sendo que é por isso
perfil próprio e genuíno que
que a minha vida adquire um
os demais não puderam imitar”.
do facere sobre
Segue dizendo que «A preponderância
realizações objetivas
o agere, a inclinação para as grandes
foi anunciada por Santo
com demérito de minha vida
interior
não encontrem melhor
Agostinho, com palavras que talvez
impessoal: tal p:
contexto que a nossa presente sociedade do
o bem homem con-
Tece - dizia o bispo de Hipona - que

Você também pode gostar