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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

PUC-SP

Rodrigo Augusto Falcão Vaz

NIETZSCHE E ZARATUSTRA ENTRE SILÊNCIO E SOLIDÃO

MESTRADO EM FILOSOFIA

São Paulo
2020
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP

Rodrigo Augusto Falcão Vaz

NIETZSCHE E ZARATUSTRA ENTRE SILÊNCIO E SOLIDÃO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia


Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial
para obtenção do título de Mestre em Filosofia, sob a orientação
da Profª. Drª. Yolanda Glória Gamboa Muñoz.

MESTRADO EM FILOSOFIA

São Paulo
2020
BANCA EXAMINADORA

___________________________________________

___________________________________________

___________________________________________
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, a quem devo tudo.

À minha Juliana, pelas mãos dadas em todos os momentos.

Aos meus irmãos, que são meus melhores amigos e aos meus melhores amigos, que
são meus irmãos.

A Amaury Ferreira, que me trouxe o primeiro olhar aprofundado para a filosofia.

Aos Profs. Drs. Márcio Alves da Fonseca e Peter Pál Pelbart, pelas importantes
contribuições e ensinamentos.

À Profª. Drª. Yolanda Glória Gamboa Muñoz, pelo excelente trabalho de pesquisa,
pelo exemplo genuíno de amor ao ensino, pelo apoio e paciência dedicados a mim e
ao meu projeto.
Preciso da solidão, quero dizer, da cura, do retorno a mim, do
sopro de uma brisa solta e que suavemente se agita... Todo o
meu Zaratustra é um ditirambo à solidão ou, se alguém me
compreendeu, à pureza... 1

1
NIETZSCHE, Friedrich. Por que sou tão sábio. In. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 38
RESUMO

Esta dissertação propõe um estudo sobre os temas do silêncio e da solidão nos


escritos de Nietzsche, em especial a partir da leitura de Assim Falava Zaratustra. O
trabalho relaciona determinados elementos biográficos do filósofo e o seu
personagem Zaratustra, propondo um paralelo em relação à trajetória de ambos no
que se refere ao gregário e ao isolamento. Essa dicotomia será abordada, assim como
um breve estudo sobre imagem de si em Nietzsche. Será apresentada uma análise
sobre elementos de linguagem em Nietzsche, com foco no papel da metáfora em seus
escritos e analisadas algumas das principais metáforas utilizadas pelo autor ao redor
do tema do silêncio e da solidão. Por fim, perguntaremos, com Nietzsche, quais os
caminhos para o criador, hoje.

Palavras-chave: Silêncio. Solidão. Gregário. Afastamento. Rebanho. Linguagem.


ABSTRACT

This dissertation proposes a study on the themes of silence and loneliness in


Nietzsche, especially in Thus Space Zarathustra. The work presents a relation
between biographical elements and the character Zarathustra, proposing a parallel
between the author and the character regarding gregariousness and isolation. In that
matter, it is made an analysis of language elements in Nietzsche focusing on the role
of metaphor in his works. Thus, we ask, with Nietzsche, what are the paths for a creator
nowadays.

Keywords: Silence. Loneliness. Gregarious. Remoteness. Language.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................... 8
2 SOLIDÃO EM NIETZSCHE ................................................................... 12
2.1 Solidão e abandono ............................................................................. 18
2.2 Dioniso e a solidão .............................................................................. 22
3 SILÊNCIO EM NIETZSCHE .................................................................. 26
3.1 O silêncio que eleva ............................................................................ 28
3.2 Perder a fala, falar em demasia e o silêncio dos ressentidos ......... 31
3.3 O barulho e o grito ............................................................................... 34
4 ELEMENTOS DA LINGUAGEM EM NIETZSCHE ............................... 37
4.1 Metáforas: lugares e companheiros de solidão de Zaratustra ........ 40
4.1.1 O Sol ..................................................................................................... 40
4.1.2 A caverna de Zaratustra ...................................................................... 45
4.1.3 O mar .................................................................................................... 47
4.1.4 A árvore solitária e os animais de Zaratustra ................................... 50
4.1.5 A hora silenciosa ................................................................................. 52
5 ZARATUSTRA, NIETZSCHE E A IMAGEM DE SI ............................... 57
6 NIETZSCHE E ZARATUSTRA EM MOVIMENTO – AFASTAMENTO
65
E GREGARIEDADE ..............................................................................
7 CONCLUSÃO ........................................................................................ 84
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 90
APÊNDICE – CICLOS DE ZARATUSTRA ...................................................... 92
ANEXO – FOTOS ............................................................................................. 102
8

1 – INTRODUÇÃO

Nietzsche, de sobretudo e chapéu na mão, entrelaça seu braço ao de sua mãe.


Está prestando reverência a si mesmo, em seu próprio funeral, em frente a um túmulo
com o seu nome. Ao redor da sepultura, em lados opostos, outras duas figuras do
filósofo acompanham a cerimônia. Ambas estão nuas. Uma de óculos escuros e outra
com olhar alucinado.
Avistei, ao longe, aquelas figuras humanas paralisadas. Era cedo, fazia frio e
ninguém, além de mim, presenciava aquele momento fúnebre e ao mesmo tempo
descontraído, de um silêncio sublime, que só era interrompido pelos pássaros e pelo
vento forte que soprava na manhã de inverno, em Röcken. Não me recordo ter tido
experiência semelhante, de profunda contemplação, de um prazer em estar só,
totalmente presente, no lugar certo, na hora certa.
A cena, que representa um sonho relatado por Nietzsche em 1889, em carta a
um amigo, foi materializada em esculturas2 de tamanho real pelo artista Klaus
Messerschimidt, no aniversário de cem anos da morte de Nietzsche. A obra pode ser
vista no pequeno museu onde se localiza a casa em que o filósofo nasceu. No mesmo
terreno, ficam a igreja onde ele foi batizado e os jazigos onde estão os restos mortais
dele, de sua mãe e de sua irmã.
Para escrever este trabalho, me propus a estudar os escritos de Nietzsche e
suas biografias, visitar os locais onde ele viveu e, principalmente, tentar colocar em
prática alguns dos preceitos que são encontrados em sua filosofia. Tive a
oportunidade de estar em Weimar, Leipzig, Naumberg, Beyreuth, Nice, Turim,
Lucerna, dentre outros, mas o último e mais especial local, foi Röcken, o ponto inicial
e final da vida daquele que foi, na minha opinião, o ser humano que mais se aproximou
do Übermensch3. A jornada transformadora para a realização deste trabalho não
poderia terminar de melhor maneira: em um jardim – silêncio e solidão – “com”
Nietzsche.
O final da dissertação é, contudo, o início de uma tarefa mais complexa: viver
como propôs Nietzsche – buscar reavaliar todos os valores, amar os imprevisíveis

2
Fig.1 - anexo
3
Super-homem, sobre-homem, além-do-homem e supra-homem são algumas das traduções para
Übermensch, conceito central em Nietzsche, que apresentaria uma nova forma de configuração
humana, pois segundo ele o “homem deveria ser superado”. Como não há consenso sobre a melhor
tradução, o termo será mantido em seu original.
9

males e prazeres da existência e extrair o que de melhor há no silêncio e na solidão.


É essa aspiração o que trago de mais importante desses tempos de estudos, que me
colocaram em direção oposta à confortável manutenção de valores familiares e
sociais4 sob os quais estive exposto em minha formação, que provocam-me a seguir
rompendo com a moral vigente, pelo menos naquilo que impacta diretamente a minha
vida.
Mas como buscar ser, hoje em dia, um “espírito livre”, sem se deixar contaminar
pelo consumismo que impregna praticamente todas as estruturas da sociedade?
Como não se intimidar com a ameaça constante de retorno a um obscurantismo, que
nega movimentos culturais ligados à criação de novos valores e imprime vigilância
vigorosa àqueles que detêm predominância daquilo que Deleuze chamou de forças
ativas?
As pessoas estão cada vez mais “alienadas” do mundo efetivo, pois são
compelidas a estar o tempo todo ligadas a um mundo “virtual” onde se satisfazem das
mais diversas necessidades, de tal maneira que é cada vez mais impossível
desconectar-se. Haverá espaço para alguma arte, alguma sensibilidade, nessa
geração que usa todo o seu tempo livre conectada a uma rede de computadores e
que não tem tempo para ouvir os seus próprios pensamentos?
Nesse cenário caótico, algumas filosofias podem ser arma importante para
combater a alienação imposta pelos detentores dos poderes político e de
comunicação. Os escritos de alguns filósofos parecem vaticínios dos tempos atuais e
apontam caminhos luminosos para aqueles que estão perdidos em tempos sombrios.
Nietzsche produziu seus textos na segunda metade do século XIX, mas já
apontava os ruídos das grandes cidades, a manipulação das multidões e a dificuldade
de comunicação como grandes problemas a serem resolvidos. O filósofo indicava
caminhos alternativos aos que desejassem buscar uma condição física e mental mais
favorável, dentre eles o silêncio e a solidão. O modo de viver proposto passava pela
ideia de que subtrair-se dos estímulos exteriores era tão importante quanto os
cuidados fisiológicos com o clima e a alimentação, remédios esboçados contra o

4
A moral judaico-cristã que nega os impulsos humanos, em detrimento de uma “má consciência”, de
um sentimento de culpa contra tudo que busca mudança. Por outro lado, para Nietzsche, viver é “formar
juízos de valor, preferir, ser injusto, limitado, querer ser diferente!” NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem
e do Mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 17
10

grande mal do ressentimento. Seus textos são sobremaneira atuais no sentido de


provocar o leitor a ser criador de novas formas de existência, descoladas do rebanho.
E para isso, seria necessário cultivar a distância e o afastamento.
No capítulo de Ecce Homo que trata de Assim Falava Zaratustra, Nietzsche
atribui a uma caminhada pelos bosques próximos a um lago e à contemplação de um
bloco de pedra, a concepção do “eterno retorno” (doutrina que considerava “a mais
elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar”)5. Não fossem os
momentos de silêncio e solidão, provavelmente o autor não teria concebido muitas
das imagens que ressoariam dentre tantos pensadores posteriores.
Além do livro “autobiográfico” em que Nietzsche confidenciava seu processo
criativo, são inúmeras as passagens de Assim Falava Zaratustra que fazem menção
ao interessante lugar que ocupam o silêncio e a necessidade de solidão. A solidão
acolhedora, que recebe Zaratustra de volta à caverna, a solidão poderosa que
denuncia e traz a tempestade, a solidão contemplativa e restauradora, que devolve o
homem a si próprio.
Se estar em meio aos homens é, por vezes, estar abandonado de si mesmo,
a busca pelo isolamento e pelo silêncio é um caminho para encontrar-se e conhecer
mais sobre si em relação ao mundo, mesmo que isso traga um sofrimento imediato:
É só a partir do “delicado sentido das distâncias” que se pode ter o privilégio de se
“suportar uma grave culpa” e “cauterizar feridas”.6
O objetivo deste trabalho é investigar os temas do silêncio e da solidão a partir
dos escritos de Nietzsche, propondo ainda uma discussão acerca de qual seria o
intuito do autor ao abordar tais elementos. Seriam silêncio e solidão metáforas para
indicação de um pathos da nobreza e da distância? Ou Nietzsche propunha a prática
de buscar locais e momentos de isolamento e quietude como espaços propícios para
uma configuração de forças ativas necessárias ao homem que quer ser um criador de
valores?

5
“A concepção fundamental da obra, o pensamento do eterno retorno, essa fórmula de afirmação que
é a mais alta que possa ser atingida, é de agosto de 1881: “A seis mil pés sobre o nível do homem e
do tempo”. Divagava, aquele dia, ao longo do lago de Silvaplana, em meio dos bosques: perto de um
rochedo imponente que se erguia em pirâmide não longe de Surlei, estaquei. Ali então tive essa ideia”.
NIETZSCHE, Friedrich.. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de Queiroz
Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 97
6
NIETZSCHE, Friedrich.. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de Queiroz
Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 32
11

Propomos também um estudo sobre a imagem que Nietzsche faz de si a partir


de seu personagem Zaratustra e as relações entre os movimentos de afastamento e
gregariedade pelos quais passaram o autor e seu personagem.
A obra de Nietzsche é, muitas vezes, dividida em fases, por conta das
importantes mudanças, tanto no conteúdo quanto na forma, de seus textos ao longo
do tempo, utilizando-se de aforismos e analogias, motivos pelos quais é impossível
analisar sua obra como um todo coerente e estático. Por isso, abordaremos
transversalmente seu trabalho e sua biografia, com atenção a aspectos da linguagem,
em especial, o papel das metáforas que remetem aos temas tratados neste trabalho.
Nossa perspectiva destaca o grande sim que propõe Zaratustra à vida humana,
em detrimento dos ideais ascéticos pregados pela religião, pela ciência e pelo
platonismo. Para Nietzsche, essa afirmação seria encontrada mais facilmente com o
cuidado da fisiologia e a transvaloração de todos os estímulos exteriores e
experiências em forças predominantemente ativas. Nietzsche convida o seleto leitor
de seus escritos a contemplar a vida, a buscar experiências desafiadoras e corajosas
e a ter um espírito livre por meio de sua filosofia de arte do viver.
Este trabalho traz algumas reflexões que me atravessaram ao tentar aplicar
Nietzsche aos dias atuais. Pensamentos que podem auxiliar a destruir tábuas antigas,
para escrever novos valores e a dar espaço às distâncias que fazem brotar novas
possibilidades de vida.
12

2 – SOLIDÃO EM NIETZSCHE

No meio da multidão, vivo como a multidão e não penso como penso;


depois de certo tempo, tenho sempre a impressão de que querem me
exilar de mim mesmo e roubar-me a alma — passo a me tornar mau
para todos e a temer a todos. Tenho então necessidade do deserto
para voltar a ser bom.”7

Como leitor de Nietzsche, insiro minha avaliação sobre o indivíduo ocidental da


atualidade, que tem verdadeira repulsa ao estar só, como se fosse sinal de sucesso
estar rodeado de pessoas e tarefas, conectado a todo o tempo com os outros. Esse
estereótipo, de pessoa bem relacionada, que é capaz de realizar várias tarefas ao
mesmo tempo, é representado por diversas personalidades famosas dos séculos XX
e XXI e representa um modo de viver normalmente acompanhado por consumismo e
narcisismo exagerados, sendo repetido pela maioria dos jovens, em busca de
afirmação. Nesse mesmo contexto, o homem que é recluso ou introspectivo é tido
como impopular e excêntrico, muitas vezes considerado um fraco, pois, aos olhos dos
demais, não é capaz de repetir o “ideal” imposto pelos meios de comunicação.
Para Nietzsche, ocorre o inverso: o homem forte é aquele que se permite estar
só para superar a necessidade confortável de pertencer a um rebanho. Por outro lado,
aqueles que são incapazes de se distanciar dos demais, não têm força suficiente para
romper com os valores postos e, por isso, são fracos, pois apenas reproduzem os
ideais normalizadores daquela sociedade.
Atualmente, quem impõe esse “ideal” de comportamento são o cinema, a
televisão, os veículos de imprensa e as mídias sociais, enfim, os meios modernos de
comunicação em massa8. Nietzsche, ao analisar a inversão de valores que levou à
classificação de determinados conjuntos de comportamento como bons ou maus,
remontará ao início da organização humana em sociedades, para apontar que a
comunicação já estava na raiz da moral, desde o princípio.
Nietzsche apresenta, em Além do Bem e do Mal, uma crítica à modernidade,
em especial à moral do rebanho, a qual se constitui e fortalece a partir do uso da
comunicação gregária. O aspecto da linguagem será melhor abordado em capítulo

7
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora, aforismo 491. Tradução de Antonio Carlos Braga. Editora Escala
8
A crítica se destina à comunicação que impõe determinados comportamentos de massa. Há, porém,
movimentos artísticos marginais que se expressam por meio do cinema e outros canais, que buscam
justamente o oposto: provocar uma discussão acerca da normalização e disciplina na cultura.
13

próprio, mas cumpre aqui firmar a necessidade de comunicação, como um dos


fundamentos primeiros das civilizações. Um mesmo povo é aquele que compartilha
necessidades semelhantes e, portanto, “se entende”, fala a mesma língua. Assim, o
uso das mesmas palavras para expressar coisas semelhantes (não iguais) contribui
para homogeneizar os componentes do grupo, dando uma unidade à forma de viver,
a fim de possibilitar a troca de informações. Por outro lado, esse “igualar” dos dizeres,
reduz o espaço para o pensamento próprio e vulgariza as vivências de cada um:

[...] Supondo, então, que desde sempre a necessidade aproximou


apenas aqueles que podiam, com sinais semelhantes, indicar
vivências [e] necessidades semelhantes, daí resulta que em geral,
entre todas as forças que até agora dispuseram do ser humano, a mais
poderosa deve ter sido a fácil comunicabilidade da necessidade, que
é, em última instância, o experimentar vivências apenas medianas e
vulgares.9

Assim, no mesmo momento em que o ser humano passou a se organizar em


comunidades, como forma de autopreservação, seus componentes precisaram
estabelecer acordos para viabilizar a vida em conjunto. O uso da comunicação passa
a ser ferramenta para a sobrevivência, seja para alertar sobre os riscos naturais e
rivais, para organizar colheitas, ou até mesmo para falar das vidas uns dos outros.
Embora seja fundamental à vida gregária, a fala tem como “efeito colateral” uma
limitação das experiências individuais (que são únicas), pois a partir de seu
estabelecimento como ferramenta de comunicação, todas as vivências passariam por
uma catalogação racional que reduziria infinitos sentimentos e objetos a um número
limitado de palavras e conceitos.
Com o tempo, essas organizações sociais inventariam “verdades”, crenças e
religiões que tornariam o homem cada vez mais dependente da comunidade,
distanciando-se de seus instintos e se tornando eminentemente um animal de
rebanho, seguidor de um conjunto de regras, para poder fazer parte daquele grupo.
Esse grupo, normalmente conduzido por algum tipo de líder, torna-se cada vez
menos crítico e mais submisso a um código de conduta: A moral do rebanho, ou do
escravo, que impõe aos indivíduos um viés conservador diante da vida, levando-os a
agir de maneira dócil e sem abrir caminho ao que Deleuze chamaria de “forças ativas
de mudança”, por medo de perderem o sentido moral que lhes propusera a doutrina

9
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. [Edição de bolso] § 268, p. 166.
14

que seguem. Tal forma de pensar e agir, guiada por “verdades inventadas”, está
presente entre os crentes, os sacerdotes, os utópicos, os idealistas e os moralistas:
para a afirmação de seus ideais, refutam tudo que lhes é apresentado fora de seus
dogmas. “Enquanto toda moral nobre brota de um triunfante Sim a si própria, a moral
do escravo diz, desde o princípio, Não ao que é “de fora”, um “outro”, um “não eu” – e
esse Não é o seu ato criativo”.10
Levada ao extremo, essa moral de rebanho que nega tudo que não é
semelhante a si pode levar grupos em direção ao fascismo ou nazismo, como ocorreu
na Europa, no início do século XX, por meio de movimentos nacionalistas que inflavam
as grandes massas a exaltarem a si próprias com base em uma suposta superioridade
racial. O nacionalismo alemão já era crescente nos tempos de Nietzsche e lhe
ocasionou diversos dissabores pessoais e profissionais. Nietzsche muito escreveu
contra esse sentimento, que considerava uma forma de décadance. Possivelmente,
um dos motivos que lhe afastaram de Wagner (uma das figuras mais influentes em
sua trajetória), foi o fato de o músico se colocar à disposição dos governantes
antissemitas para disseminar os ideais deles, em troca de prestígio e influência.
Nietzsche, como abordaremos mais detalhadamente adiante, era avesso
àquele orgulho germânico e preferia pensar a Europa como um todo, tanto que, a
partir de dado momento de sua vida, não tinha nenhuma nacionalidade, era apenas
europeu. Ele menciona algumas vezes em seus escritos não defender uma “unidade
europeia” em um sentido étnico, político ou econômico, mas sim, cultural. A Europa
como um espaço em que os grandes indivíduos pudessem imprimir seus
pensamentos e difundir seus efeitos, em termos artísticos e filosóficos.
Embora fosse contrário ao nacionalismo, Nietzsche era também um crítico da
ideia de igualdade irrestrita entre os homens, que era defendida como um ideal da
burguesia desde a revolução francesa. Criticava, ainda, a compaixão como valor em
si, pois esses ideais de igualdade e compaixão poderiam representar uma barreira ao
nascimento de pensamentos “nobres” e até resultar em um “nivelamento por baixo”.

A “igualdade dos direitos” poderia muito bem converter-se em


“igualdade de não-direitos” (...) quero dizer, em guerra geral a tudo o
que é raro, insólito, privilegiado. Ao homem superior, à alma superior,

10
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Attila Blacheyere – 1ª ed. Rio de Janeiro:
Edbolso, 2016, p. 30
15

ao dever superior, à responsabilidade superior, ao sentimento de


potência e ao domínio dos criadores 11

Por isso, ele discorda da ideia de igualdade “perante Deus” ou “perante a lei”,
visto que, se os homens são plurais, não deveria haver uma imposição limitante ao
indivíduo, baseada em um ideal de igualdade. Para o autor, a desigualdade de direitos
é, na realidade “condição necessária para que os direitos existam. Um direito é
sempre um privilégio”.12
Tal pensamento seria rechaçado hoje em dia, antes mesmo de ser publicado
por seu autor. Porém, para entendermos essa crítica à igualdade, faz-se necessário
levar em conta a visão de mundo de Nietzsche, que considerava toda a existência
como uma constante luta entre forças inconciliáveis. Esses impulsos e forças que
fazem o universo e as coisas criarem-se, manterem-se, destruírem-se e recriarem-se,
estão em conflito, e seus antagonismos estão em tudo, inclusive na humanidade.
Desta feita, em um universo inteiramente constituído e impulsionado pelas
diferenças, uma ideia de igualdade, transmitida como uma “realidade”, é só mais uma
criação de uma mentira, um idealismo, uma construção política sujeita a ser
instrumentalizada para controle e negação da natureza humana.
Por conta desse pensamento, Nietzsche critica e separa seu pensamento do
de Schopenhauer que, segundo ele, adorna os valores do não-egoísmo e diviniza a
compaixão, a abnegação e o autossacrifício, pois ao tornar tais instintos em “valores
em si”, disse “não” à vida e a ele próprio, Schopenhauer.13
Assim, para Nietzsche, uma força ativa que quer aflorar não deve e não pode
se envergonhar de si e não terá lugar onde só existe igualdade. Para que seja possível
ao homem se destacar dos demais, seria necessário um distanciamento daqueles que
são incapazes de criar e que apenas existem em “rebanho”. A esse movimento de
distanciamento, será atribuída a ideia de “moral nobre”.
No aforismo “O derradeiro sentido da nobreza” de A Gaia Ciência, Nietzsche
propõe que “a consistência no egoísmo seja maior, precisamente nas pessoas
nobres”14. Não se trata, necessariamente, de um egoísmo condenado pela moral

11
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, p. 147, §212.
12
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, §57.
13
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Attila Blacheyere – 1ª ed. Rio de Janeiro:
Edbolso, 2016, p. 11
14
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001, § 55.
16

cristã, contrário à compaixão, mas um egoísmo que se manifeste como uma


satisfação consigo mesmo. O egoísmo presente em uma alma nobre é o amor do eu
pelo eu. Considerando-se pertencente ao grupo de nobres (e normalmente a quem se
dirige), Nietzsche aponta, como marca fundamental dessa distinção, a confiança em
si: “não temer a si próprio, nada esperar de vergonhoso de si próprio, não hesitar em
voar para onde somos impelidos”.15
O rebanho, por sua vez, é composto por animais fracos e inseguros, que
precisam estar em grupos para se sentirem protegidos, por um reflexo de
autopreservação. Porém, a consequência para esses indivíduos que abdicam de suas
singularidades é a perda da liberdade, pois não há possibilidade de um indivíduo
seguir um caminho próprio com base em seu instinto ou vontade, já que o grupo é
sempre a prioridade. Assim, contra todo impulso que busca uma fuga do ideal seguido
pelo rebanho, será incutido um sentido de culpa, de vergonha.
Essa dinâmica entre forte e fraco que pressupõe um egoísmo no sentido de
não se culpar, por parte do forte, é ilustrado nesse exemplo:

Que os cordeiros detestem as grandes aves de rapina não é de se


estranhar, mas não há qualquer fundamento para censurar tais aves
por capturarem pequenos cordeiros. Se os cordeiros disserem entre
si, “essas aves de rapina são más; e quem for o menos parecido
possível com uma ave de rapina, sendo oposta a ela, um cordeiro –
não deverá este ser bom?”. Nada há de se contestar nessa construção
de ideal, exceto que as aves de rapina olharão para isso um pouco
ironicamente, talvez dizendo a si próprias: “Nós não temos qualquer
coisa contra esses bons cordeiros, na verdade os amamos: nada é
mais saboroso que um delicado cordeiro.”- Exigir da força que não se
exprima como força, que não seja desejo de dominação, de se tornar
mestre, alimentar sede por inimigos, oposição e triunfos, é tão absurdo
quanto exigir que uma fraqueza se manifeste como força.16

Desta feita, o afastamento do homem “forte” dos demais, não só é importante


para criar espaços para que um novo pensamento possa se tornar “consciente”, mas
também para não deixar que os ressentimentos ocasionados pelo “ser diferente” se
transformem em um sentimento de culpa – culpa essa, que será incutida e explorada
pelo sacerdote ascético (seja ele quem for), como instrumento de poder.

15
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001, § 294.
16
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Attila Blacheyere – 1ª ed. Rio de Janeiro:
Edbolso, 2016, p. 38.
17

Assim, ao temer ser ele próprio o líder de um rebanho de seguidores, Nietzsche


ordena a seus discípulos, no prefácio de Ecce Homo, que sigam sozinhos: “ide para
longe de mim e defendei-vos de Zaratustra!”17, e conclui prometendo que retornará a
seus discípulos somente quando todos eles o tiverem renegado.
O autor entendia que, na vida de um verdadeiro filósofo, importam mais seus
atos do que seus livros e reconhecia nessa existência de filósofo um perigo triplo: o
isolamento, o desespero diante da verdade e o endurecimento na ética ou no
intelectualismo. Nietzsche enfrentou todos esses sofrimentos, mas não sucumbiu,
pois afirmava que “viver significa estar em perigo”.18 Para ele, o isolamento não seria
uma fuga confortável, mas sim um lançar-se ao desconhecido, a uma vida nômade,
reavaliando-se todos os valores postos. O afastamento e a solidão não seriam
sinônimos de abandono de si, mas um caminho inevitável para o artista e para o
filósofo, ofícios que são tratados de maneira quase equivalente por Nietzsche.
Em outro capítulo abordaremos mais detidamente outros aspectos da biografia
de Nietzsche, em que se pode verificar seu constante retorno ao isolamento como um
elemento purificador, curador. Em carta a Mawilda von Meyesenburg, em 1875, por
exemplo, Nietzsche confidencia:

Voltei a fazer esforços, tentando encontrar um contexto coerente para


minha vida – não há nada que eu goste mais, basta que eu esteja
sozinho. É um barômetro perfeito para a minha saúde. Pessoas de
nosso tipo (...) jamais sofrem apenas fisicamente, tudo se entrelaça
profundamente com crises espirituais, de forma que não vejo como
poderei me curar apenas com os recursos da farmácia ou da cozinha.
(...) Nosso segredo de qualquer cura é adquirir uma pele grossa, uma
virtude da grande sensibilidade e do sofrimento interior.19

Portanto, além do isolamento como pathos da nobreza, há uma questão


fisiológica que reclama a Nietzsche tal cuidado, fazendo-o, quase que
sistematicamente, buscar um regresso à solidão. Em Ecce Homo, Nietzsche narra de
maneira pormenorizada os seus hábitos a fim de ressaltar a importância do cuidado
da fisiologia e pelo que chamava de “coisinhas” como nutrição, lugar, clima, devaneios
e casuística total do egoísmo como questões infinitamente mais importantes do que

17
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sábio. In. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p.
29.
18
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 468.
19
Ibidem, p. 490.
18

tudo aquilo que, até então, teria sido considerado como importante. Nietzsche
confidencia que o excesso de leitura lhe fazia mal, pois lhe atrapalhava a fruição dos
pensamentos próprios:

Escolhida a nutrição, escolhido o clima e o lugar, a terceira escolha


em que é necessário ter precaução para não cometer algum erro é a
do gênero do repouso adaptável. (...) É necessário subtrair-se, na
medida do possível, aos fatos, aos estímulos que provenham do
exterior; uma espécie de autoemparedamento é um dos primeiros
preceitos instintivos da prudência em qualquer gravidez intelectual.20

Assim, o isolamento assume um papel de cuidado fisiológico, dar espaço ao


corpo para criar suas distâncias e estabelecer seus territórios. Distância essa que não
é somente física, mas que também se refere a uma abstenção das influências
externas, para que, aquele que padece de uma “gravidez intelectual”, possa aliviar-se
ao parir um pensamento original.
Abordaremos, no decorrer do trabalho, como Nietzsche e seu personagem
Zaratustra, percorreram caminhos tortuosos para se tornarem criadores de novos
valores. Sofreram durante as idas e vindas entre a solidão e o gregário. Nesse
percurso, flertaram com o niilismo e o grande cansaço. Povoaram o deserto de sentido
e buscaram novos valores dentro de suas singularidades, rompendo com a moral
imposta.
Os momentos de solidão, porém, não são de abandono. São momentos de
reflexão. Zaratustra por vezes conversa com seres inanimados como o Sol, com seus
animais, ou com seres criados por sua imaginação. O processo de diálogo com si que
Nietzsche realiza para a elaboração de seus escritos, sob minha perspectiva, toma a
forma de um diálogo com diversos personagens em Zaratustra e outros escritos.

2.1 – Solidão e abandono

Também, ressentir-se da solidão é um pensamento desfavorável: eu,


por mim, sofri sempre da “multidão”... Desde uma idade
absurdamente jovem, aos sete anos, eu sabia que nenhuma palavra
humana seria passível de tocar-me; alguém já me viu triste por uma
palavra humana?21

20
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de Queiroz
Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 47
21
Ibidem, p. 61.
19

Zaratustra, entre os homens, sentia-se abandonado de si mesmo. Já na solidão,


sentia-se bem, pois lá é como se a vida quisesse aprender a falar, a se expressar de
maneira singular. Fora do gregário, aprende-se a falar em nome próprio, não há
acanhamento ou culpa em atribuir novos significados aos conceitos e criar valores
novos.
No aforismo “O Regresso”, Zaratustra instala um diálogo com a solidão, a quem
chama de “pátria minha”. Ele se sentia mais desamparado na multidão do que nas
ocasiões em que estava só, pois na solidão ninguém se envergonha, na solidão
Zaratustra era ouvido. Por outro lado, entre os homens, todos falam e ninguém ouve.
Ele reclama até do mau hálito dos homens, os quais somente são capazes de falar
aquilo que é superficial, tal como águas rasas.
A solidão, então, carinhosamente recebe Zaratustra e lhe relembra que ali, com
ela, ele estava em boa companhia, mas que antes, esteve abandonado, quando
perdido no bosque, e percebeu que corria mais perigo entre os homens do que entre
animais. Esteve abandonado quando, na “Ilha da Boa Aventurança”, deu de beber
vinho aos que tinham sede e que, por fim, ficou ele com mais sede do que os bêbados.
Ou seja, era necessário um cuidado no lidar com os homens, era necessário perceber
o momento de retornar à sua pátria – a solidão.
Nietzsche, da mesma maneira, expressava sua necessidade de afastamento,
como um respeito a si mesmo. Em anotações pessoais escreveu:

Tenho paixão pela independência e sacrifico tudo por ela. (...) Estou
cedendo à minha inclinação à solidão, e não consigo agir de outra
forma. Embora “não tivesse necessidade disso” como dizem algumas
pessoas. Mas tenho necessidade disso. Estou desterrando a mim
mesmo.22

Este movimento de voltar-se para si mesmo propiciava um espaço para que


Nietzsche pudesse elaborar interessantes diálogos com as profundezas de seus
pensamentos. As conversações internas de Nietzsche como forma de expressão se
exteriorizaram a partir de “O Andarilho e sua Sombra”, de 1879. Na ocasião, cada vez
mais isolado de influências externas e com dificuldades de compartilhar ideias com
seus contemporâneos, o poeta-filósofo passa a escrever sob um estilo platônico, de

22
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 38.
20

conversas entre duas pessoas. O diálogo, porém, se dá entre ele e sua própria
sombra.
Sobre o assunto, Hannah Arendt, em As origens do totalitarismo, explora o
mecanismo interno que ocorre ao estarmos sós, em companhia de nós próprios,
sendo um “dois em um”. Afirma que “Solidão não é estar só. Quem está
desacompanhado está só, enquanto a solidão se manifesta mais nitidamente na
companhia de outras pessoas”.23
Após o Andarilho, mais personagens seriam produzidos para fazer o papel de
interlocutor de Nietzsche. Tratava-se, porém, de uma estrutura criada para “mascarar”
essa conversação interna do filósofo consigo próprio.
No texto Édipo – Discursos de um filósofo consigo mesmo, Nietzsche expressa:

Ninguém fala comigo, exceto eu mesmo e a minha voz vem até mim
como um moribundo! Contigo, amada voz, contigo, último sopro de
esperança de toda felicidade dos homens, deixa que contigo fique
mais uma hora, contigo engano a solidão e mentindo iludo a
multiplicidade e o amor, pois meu coração se recusa a crer que o amor
esteja morto, não suporta o abalo da mais solitária solidão e me força
a falar como se eu fosse dois.24

Por isso talvez, Zaratustra considera necessário um amigo, ou um terceiro na


conversa incessante que há entre o “eu” e “mim”.25 Considerando que essa conversa
profunda que ocorre internamente pode se dar de maneira abismal, o terceiro ajudaria

23
À parte algumas observações ocasionais [...] parece que foi Epicteto, o filósofo escravo-forro de
origem grega, o primeiro a distinguir entre solidão e ausência de companhia. De certa forma, a sua
descoberta foi acidental, uma vez que o seu principal interesse não era uma coisa nem outra, mas o
ser só (monos) no sentido de ser absolutamente independente. Na opinião de Epicteto (Dissertationes,
livro 3, capítulo 12), o homem solitário (éremos) vê-se rodeado por outros com os quais não pode
estabelecer contato e a cuja hostilidade está exposto. O homem só, ao contrário, está
desacompanhado e, portanto, ‘pode estar em companhia de si mesmo’, já que os homens têm a
capacidade de ‘falar consigo mesmos’. Em outras palavras, quando estou só, estou ‘comigo mesmo’,
em companhia do meu próprio eu, e sou, portanto, dois-em-um; enquanto, na solidão, sou realmente
apenas um, abandonado por todos os outros. A rigor, todo ato de pensar é feito quando se está a sós,
e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não perde o contato
com o mundo dos meus semelhantes, pois que eles são representados no meu eu, com o qual
estabeleço o diálogo do pensamento [...]. Para a confirmação da minha identidade, dependo
inteiramente de outras pessoas; e o grande milagre salvador da companhia para os homens solitários
é que os ‘integra’ novamente, poupa-os do diálogo do pensamento no qual permanecem sempre
equívocos, e restabelece-lhes a identidade que lhes permite falar com a voz única da pessoa
impermutável”. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. 9ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.635.
24
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 403.
25
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ich und Mich sind immer zu eifrig im
Gespräche: wie wäre es auszuhalten, wenn es nicht einen Freund gäbe?
21

a suportá-la desde que tivesse os requisitos necessários para tanto. “O amigo deve
ser um mestre na adivinhação e no silêncio”.26
Em julho de 1877, Nietzsche se encontrava em um momento delicado, pois
havia recentemente se afastado de Wagner e de outras importantes amizades, além
de estar sofrendo de diversos males físicos. Na ocasião, buscou o isolamento que lhe
propiciou um “diálogo interno”, transvalorando em criação aquelas dificuldades todas.
Ao passar alguns meses em um retiro em Rosenlauibad, em busca de tranquilidade,
realizou longas caminhadas solitárias por trilhas afastadas, que faziam parte de “seu
trabalho”. Em carta à Overbeck27, no mês seguinte, escreveu:
Agora, meus pensamentos me impulsionam para frente, o ano tem
sido tão rico (em experiências interiores); parece-me que a velha
camada de musgo formada pela minha profissão filológica diária só
precisava ser levantada – e agora tudo se apresenta em todo o seu
frescor e vigor. Bastava possuir uma casinha em um lugar qualquer,
lá faria caminhadas de seis a oito horas e desenvolveria aquilo que
depois passaria rapidamente para o papel – assim o fiz em Sorrento,
assim o faço aqui, e assim consegui extrair muita coisa de um ano
desagradável e sombrio.
Para Janz, o resultado desse longo “diálogo consigo mesmo” levaram ao livro
de aforismos Humano, demasiado humano.28
Dessa forma, para Nietzsche, não haveria um abandono de si na solidão. Muito
pelo contrário, a partir do afastamento, é possível estar em “companhia de si mesmo”
e estabelecer diálogos internos, que podem levar a uma transvaloração de todos os
sentimentos ruins experimentados e direcioná-los a uma nova forma de pensar e de
existir. Possivelmente, tal processo de transformação que desemboca na criação
intelectual não seria possível em meio às massas. A solidão pode ser, nesse caso,
um antídoto, um caminho, para evitar o abandono de si.

26
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Im Erraten und Stillschweigen soll
der Freund Meister sein
27
Franz Overbeck (1837-1905) Teólogo alemão, conheceu Nietzsche em 1870, como professor na
Universidade de Basiléia
28
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 609.
22

2.2 – Dioniso e a solidão

A um só tempo, vagabundo e sedentário, ele representa, entre os


deuses gregos, segundo a fórmula de Louis Gernet, a figura do outro,
do que é diferente, desnorteante, desconcertante, anômico. É
também, como escreveu Marcel Detienne, um deus epidêmico. Como
uma doença contagiosa, quando ele aparece em algum lugar onde é
desconhecido, mal chega e se impõe, e seu culto se espalha como
uma onda29

Nietzsche se considerava um discípulo de Dioniso, o deus fragmentado, uma


espécie de outsider dentre os deuses da mitologia. O filósofo afirmava que todos
aqueles que criam são rudes, sendo isso um “verdadeiro sinal característico duma
natureza Dionisíaca”, e tal qual aquele deus, preferia ser “um sátiro a um santo”. Assim
como Zaratustra e o próprio Nietzsche intercalavam momentos entre os homens com
momentos de reclusão, o mito de Dioniso é de um estrangeiro e está em constante
movimento, de tal maneira que o afastamento sempre lhe traz descobertas e
fortalecimento.
A proximidade de Nietzsche com a figura de Dioniso passa pelo caráter trágico
da existência, que acompanha ambos desde muito cedo (no caso de Dioniso, sua mãe
Sêmele é morta antes mesmo de seu nascimento e Nietzsche perde pai e irmão, aos
cinco anos), e esse caráter trágico se desenvolve no caminhar de ambos a partir de
um sentimento de não pertencimento, tema comum na vida do filósofo e na trajetória
do deus grego que, por ser fruto de um relacionamento extraconjugal, vive sendo
perseguido e se refugiando.
Nietzsche, embora nascido na Alemanha, era um grande crítico dos costumes
dos compatriotas de seu tempo. Ainda jovem, deixou de ser alemão para ser somente
europeu e depois de algum tempo, passou a viver como um estrangeiro, vagando por
diversos locais, os quais nunca lhes traziam um sentimento de pertencimento, o que
lhe fazia mudar de cidade a cada mudança de estação.

Dioniso é considerado estrangeiro pelos gregos porque cresceu em


outras terras e foi levando seu culto a outras paragens longe da
Hélade, sempre passando por elas e permanecendo pouco nelas:
chegando e rapidamente partindo. Daí́ afirmar-se ser Dioniso o deus

29
VERNANT, Jean-Pierre. Figuras, Ídolos, Máscaras. Tradução de Telma Costa. Lisboa: Teorema,
1991, p. 144
23

que nunca conseguiu um lugar fixo, um altar eterno, um templo, um


centro, um omphalós. Era o vadio, o vagante, o bêbado errante, de
pouco valor para uma Atenas aristocrática, racional e implacável.30

Se seguirmos os desenvolvimentos mitológicos, Dioniso, quando ainda jovem,


refugiou-se no Monte Nise junto a sátiros e ninfas, em uma profunda gruta, para que
não fosse encontrado por sua madrasta Hera, que queria matá-lo. Nesse período de
isolamento, Dioniso vagava solitário pelos campos e, em um desses passeios sem
direção, teria, por acaso, espremido um cacho de uvas e dado origem ao vinho. Ou
seja, a partir do momento de isolamento brota uma força criativa e as decepções e
sentimentos de abandono têm uma mudança de sentido, a partir da criação.
Em momento posterior de sua juventude, Dioniso é ameaçado de morte por
Licurgo e decide por se refugiar sob as ondas do mar salgado. Tremendo de medo,
no fundo do oceano, foi acolhido no seio de Tétis, que o fez novamente forte para
retornar e se vingar, assumindo o seu posto de deus filho de Zeus.
Nos momentos de maior sofrimento, no distanciamento imposto e não
escolhido, o deus trágico encontra o mais perfeito abrigo, cria a mais saborosa bebida,
transforma a mágoa e a revolta em elevação.
Lembremos ainda que, em As Bacantes, de Euripedes, há um hino de culto a
Dioniso, em que se clama a ele que desça das frígidas montanhas para a cidade, onde
é bom dançar– tal qual o movimento de Zaratustra– do isolamento das montanhas,
para o encontro com os homens.

Ó feliz, bem-aventurado aquele que conhecendo os mistérios divinos,


sua vida santifica, sua alma efervesce, pelos montes dançando com
Baco, purificado com os ritos místicos, e de Cibele, Mãe Suprema, as
orgias celebra e a Dioniso serve coroado de hera, empolgando o tirso.
Ide Bacantes! Ide Bacantes! Trazei a Brômio, deus de deus filho
Dioniso. Trazei-o das montanhas frigias para as amplas da Hélade,
onde é bom dançar, Trazei-o, trazei a Brômio31

Tal hino possui referências a uma religião dionisíaca e sua prática comum
dentre os gregos, que em cerimônias vestiam-se com coroas e tirsos, praticavam
orgias e por meio de danças báquicas, se purificavam em ritos místicos.
Nietzsche apresenta em boa parte de sua obra uma polaridade “apolíneo-
dionisíaca”, utilizando os deuses como símbolos, tal qual fizera anteriormente Jules

30
FORTUNA, Marlene. Dioniso e a Comunicação na Hélade: o mito, o rito e a ribalta. São Paulo:
Annablume, 2005, p.39.
31
EURÍPIDES. As Bacantes. Tradução de Eudoro de Sousa. São Paulo: Hedra, 2011, p.78
24

Michelet no livro La Bible de l’humanité32, publicado em 1864. Para Nietzsche, o


apolíneo, e o seu oposto, o dionisíaco, se mostravam como poderes artísticos. O que
lhe aproximava de Dioniso era o caráter trágico da existência, o peso de uma profunda
dor. Mesmo diante do sofrimento, Dioniso canta e dança a música, que tanto
Nietzsche quanto Schopenhauer consideram uma representação imediata da própria
vontade, sendo que o mundo poderia ser chamado de “música encarnada”, “vontade
encarnada”.
Essa predileção pelo instinto à razão, pelo sentimento à imagem, pela conexão
direta do corpo com a música, sem passar pelo pensamento e que faz a dança,
compõem a afinidade de Nietzsche com a divindade dionisíaca.

Por vezes, o estilo literário desenvolvido por Nietzsche já é uma reverência a


Dioniso. Sarah Kofman define a linguagem poética do filósofo como “uma metáfora
apolínea para uma música Dionisíaca.”33 O texto de Ecce Homo, por exemplo, tem
forma e conteúdo próximos a discursos epidícticos gregos, nos quais os oradores
prestavam homenagens e elogios às cidades ou a outras pessoas. No “discurso” de
Ecce Homo, porém, não há elogios a terceiros, mas sim, uma prática de autoelogio
de Nietzsche, em tom bastante orgulhoso, com capítulos como “por que sou tão sábio”
ou “por que escrevo tão bons livros”. Uma leitura que nos parece interessante é a de
que aqueles elogios exagerados não teriam apenas a intenção de exaltação a si
próprio, mas seriam, também, um exercício epidíctico de um discípulo de Dioniso e,
portanto, uma homenagem de Nietzsche ao seu mestre, o deus do vinho e da dança.

Parece-nos não ser um simples acaso que em Nietzsche,


precisamente no Ecce Homo, apareça previamente o homem
orgulhoso, bem constituído (den stolzen und wohlgeratenen) como
dirá finalmente no aforismo 8 de “Por que sou um destino?”; homem
orgulhoso e bem constituído que diz sim, seguro e garantido o futuro
(o chamado até agora o malvado – der Böse – contra [gegen] o homem
bom [guten Menschen]?). Isso uma vez que um homem bem logrado
é trespassado pelas forças dionisíacas? Trata-se talvez de um
autoelogio, porém o autoelogio constitui um exercício epidíctico de um
discípulo de Dioniso, que precisa mostrar previamente a auctoritase o
ethos do orador. Era esse o convite ao elogio de um mestre: Dioniso,
o que não se podia descobrir primeiro?34

32
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis, Editora
Vozes, 2016 p. 345
33
KOFMAN, Sarah. Nietzsche and Metaphor. Tradução para o inglês de Duncan Large. Stanford
University Press, 1993, p. 8
34
MUÑOZ, Yolanda. Isócrates e Nietzsche, uma relação perigosa? 1ª ed. São Paulo. Paulus. 2019,
p.143
25

Além do aspecto linguístico e do afastamento de Dioniso que fazem dele um


personagem central nas incursões que Nietzsche faz pela mitologia grega, há ainda a
imagem de Dioniso como alguém que emprega amor fati35 a cada necessidade dura
que lhe impõe a existência, por isso também admirado por Nietzsche, que buscava
em sua filosofia poética, fazer a arte criadora a partir da superabundância,
transvalorando todo o sofrimento em mais potência.

35
“Amor ao destino”, conceito usado por Nietzsche, que afirmava que o “necessário” não lhe feria e
que amor fati seria a sua natureza mais íntima.
26

3 – SILÊNCIO EM NIETZSCHE

Uso a palavra para compor meus silêncios.


Não gosto das palavras
Fatigadas de informar.
(...)
Queria que minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
Eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.36

O sentido auditivo era fundamental na vida de Nietzsche. A música foi um


importante ponto de conexão entre ele e seus principais amigos, assunto presente em
diversas cartas. Além de ser um crítico musical e acompanhar os movimentos
artísticos de sua época, “influenciou” e “foi influenciado” por Richard Wagner, chegou
a financiar a carreira de um amigo músico e até lhe criar o nome artístico de Peter
Gast37. Nietzsche, principalmente durante a juventude, compunha harmonias e hinos.
Uma de suas grandes frustrações era o não reconhecimento de seus dotes musicais.
Considerado seu “presente para a humanidade”, Assim falava Zaratustra tem
uma constituição parecida com a de uma sinfonia clássica: quatro movimentos
principais e uma introdução. O ritmo segue uma ordem crescente, tal qual as principais
óperas de seu tempo. Com relação ao conteúdo, também se aproxima de uma
sinfonia, pois os capítulos compõem uma unidade e é mantida a mesma tensão
criativa, mesmo o livro tendo sido escrito em um período de dois anos. Tanto é que,
em 1886, Richard Strauss compôs a famosa ópera homônima inspirada no livro de
Nietzsche.
Para o filósofo, portanto, a audição era o sentido mais relevante, tendo o
silêncio um papel profilático, poético, de elevação do homem. Assim, não se trata
apenas de uma pausa na comunicação entre indivíduos, mas, principalmente, de
como, a partir da contemplação, o sujeito se relaciona com a natureza e consigo
próprio.

36
BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas. O apanhador de desperdícios. 1ª ed. Rio de Janeiro:
Alfaguara, 2018, p. 25
37
Johann Köselitz (1854-1918), pseudônimo Peter Gast, compositor alemão, foi aluno de Nietzsche na
Basiléia. Contribuiu revisando inúmeros escritos de Nietzsche e recebia apoio financeiro e emocional
do filósofo em sua carreira musical
27

O silêncio está nos entretempos das palavras, é o que quer dizer, mas não
precisa ser dito. Pode-se afirmar o mundo e abarcar a vida completa em uma pausa.
A palavra, ao contrário, esvazia de sentido as vivências para possibilitar a
comunicação. Por isso, a crítica de Nietzsche à modernidade passa pela linguagem,
que vulgariza quem fala:

Já́ não nos apreciamos suficientemente quando nos comunicamos. As


nossas experiências genuínas de nenhum modo são loquazes. Não
poderiam, ainda que quisessem, comunicar-se, porque lhes falta a
palavra. Daquilo para que temos palavras encontramo-nos já́ também
fora. Em todo o falar há um grão de desprezo. A linguagem, parece,
inventou-se só́ para o medíocre, o comum comunicável. Pela
linguagem vulgariza-se já́ quem fala. 38

Desta feita, o antídoto para a palavra, expressão da decadénce, seria o calar.


Na esteira de Nietzsche, Deleuze também sublinha um retorno ao silêncio para que o
homem possa voltar a “recuperar o mundo” e marca o “fato” de a comunicação estar
totalmente penetrada pelo dinheiro:

Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão


inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por
natureza. É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta
de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-
comunicação, interruptores, para escapar ao controle. (…) Acreditar
no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o
mundo, nos desapossaram dele. Acreditar no mundo significa
principalmente suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que
escapem ao controle, ou engendrar novos espaços-tempos, mesmo
de superfície ou volume reduzidos.39

Como apontou Deleuze, a fala, por sua própria natureza, já está apodrecida.
Por isso, Nietzsche buscava incessantemente por uma nova forma de comunicar.
Assim falava Zaratustra é quase uma filosofia musicada e o silêncio do filósofo
Nietzsche carregava uma grande saúde, uma forma de viver adensada pela coragem
grande de dizer sim.
Nesse aspecto, é muito interessante imaginar que o filósofo, que combateu tão
duramente a fala, tenha passado seus últimos onze anos de vida em completo
silêncio. O longo período de reclusão se deu por uma doença mental, mas se levarmos

38
NIETZSCHE, Friedrich. Incursões de um extemporâneo § 26, 1988, p. 86/87
39
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013, p.217
28

em conta a concepção de Nietzsche de corpo como “grande razão”40, o adoecimento


físico que lhe tolheu o pensamento e a fala, tornam seu fim de vida menos melancólico
do que poético. Teria seu corpo, sua grande razão, acrescentado um último capítulo
trágico à sua obra, por meio da instituição compulsória de um calar?
Caberiam inúmeras elucubrações acerca do que se pode considerar loucura e
sobre os últimos anos de Nietzsche. Neste trabalho, porém, nos resta estudar o
silêncio e a palavra, abordados por Nietzsche em seu período lúcido, quando de seu
uso propositalmente inconstante das palavras, com mudanças de significados e
contextos. O filósofo-poeta compõe uma espécie de quebra-cabeças semânticos, por
meio de metáforas e aforismos em que mesmo o silêncio pode mudar de significado,
dependendo do contexto em que está inserido. Iremos analisar algumas abordagens
distintas do tema

3.1 – O silêncio que eleva

Silêncio,
por favor.
Enquanto esqueço um pouco a dor
do peito41

Quando Zaratustra busca o caminho das montanhas para se afastar dos


homens, o silêncio o acompanha e permite que seus melhores pensamentos venham
à consciência. Quanto mais alto se vai, mais enxerga e mais se distancia dos homens.
“Quem souber respirar o ar que circula em meus escritos saberá qual será a atmosfera
das grandes alturas, onde o ar é mais puro e mais arrebatador. (...) O gelo circunda-
o; grande é a solidão.”42
Nietzsche procurava os lugares de contemplação da natureza, de clima ameno
para pensar e dar forma aos seus escritos e a partir do silêncio era “intuído” de seus
mais engenhosos aforismos. Sabia que a elevação por meio do silêncio, era uma
tarefa árdua em um mundo marcado pelo excesso de comunicação. Por isso,

40
“O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só́ sentido, uma guerra e uma paz, um
rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de “espírito”,
meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão”. NIETZSCHE, Friedrich. Dos
desprezadores do corpo. Assim Falava Zaratustra, p. 45.
41
PAULINHO DA VIOLA. Para ver as meninas. 1969
42
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. (Prefácio) Tradução de Lourival
de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p. 19.
29

Nietzsche ataca a fala e a linguagem gregária, fios-condutores de uma moral


degenerante.
No aforismo “O grande silêncio”, de Aurora, Nietzsche trava um diálogo com a
natureza e constata nela uma “malícia”, pois tanto o céu, quanto os mares e os corais,
apesar de tão belos, não podem falar, assim como o seu coração também não pode:

Ai! O silêncio aumenta mais ainda e meu coração se dilata de novo:


espanta-se com uma nova verdade, ele também não pode falar, se
põe de acordo com a natureza desafiar, quando a boca quer lançar
palavras no meio dessa beleza, ele próprio goza da doce malícia do
silêncio. A palavra, o próprio pensamento, se tornam odiosos para
mim: não será que ouço, por trás de cada palavra, rir e não escuto o
erro, a imaginação e o espírito de ilusão?43

Por fim, indaga se aquele silêncio do mar e da tarde queriam ensinar ao homem
a deixar de ser homem, como se o falar fosse um aspecto demasiado humano. E
pergunta se o homem, tal qual a natureza, deveria emudecer e repousar em si mesmo,
elevando-se sobre si mesmo.

Ó mar! Ó tarde! Vocês são mestres maliciosos! Ensinam o homem a


deixar de ser homem! Ele deve se abandonar a vocês? Deve tornar-
se como você são agora, pálidos, cintilantes, mudos, imensos,
repousando em si mesmos? Deve elevar-se acima de si mesmo?

Esse elevar-se sobre si mesmo por meio do silêncio poderia ser um caminho
para o homem se superar, tornar-se uma melhor versão de si, em direção ao
Übermensch?
Müller-Lauter enxerga, no método genealógico em Nietzsche, uma tripartição
histórica do homem:

no início, na primeira fase, os homens mais fortes e sadios dominam;


na segunda fase, os fracos e doentes dominam. Estaríamos em uma
transição para uma terceira fase, em que a supremacia dos fortes deve
retornar. Para tanto, necessita-se de uma nova transvaloração dos
valores condutores. Com ela, os fortes deverão atingir novamente a
potência.44

Para ele, o primeiro período seria chamado de “pré-moral” e corresponderia à


pré-história. O período “moral” seriam os últimos dez mil anos. E o momento atual,

43
NIETZSCHE, F. Aurora, aforismo 424, Tradução de Antonio Carlos Braga. Editora Escala, p. 272
44
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche, sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. Tradução de Clademir Araldi. 1ª ed. São Paulo: Editora Unifesp, 2011, p.110.
30

seria um “umbral” de um novo período, que de modo negativo, poderia ser chamado
de “extramoral”.
Segundo essa visão, os fortes e sadios perderam o domínio na transição da
“pré-história” à “história”, por conta de uma mudança de ordem moral. Da mesma
maneira, os historiadores convencionaram que a mudança de uma fase à outra
ocorreu pelo estabelecimento do uso da escrita, como transmissão de regras e
valores. Portanto, a fala e a comunicação teriam definido não somente a história
humana, mas a história da moral. Com isso, se conectam intrinsicamente a moral e a
fala degenerantes. Um é fruto do outro, ao passo que a retomada de uma
predominância dos fortes e nobres por meio de uma transvaloração haveria de passar
pela não-fala, pelo silêncio.
Talvez venha a ser um traço do Übermensch, a desnecessidade de fala. Irônico
seria, para a espécie que se gaba de sua capacidade de comunicação, perceber que
sua superação passaria pela necessidade de fazer o caminho de volta. Aprender com
o silêncio da natureza, para ser menos “humano” e elevar-se.
Nietzsche utilizava-se do silêncio em seus relacionamentos para se distanciar
do ressentimento e se manter altivo. Durante o convívio com amigos e familiares, em
situações em que o filósofo se sentia desrespeitado ou contrariado, por vezes, calava-
se diante do interlocutor. Não como sinal de fraqueza, mas para dar ao tempo o
espaço suficiente para a transformação das mágoas em outros sentimentos mais
favoráveis, ou para não causar sofrimento diante do peso espiritual que ele
representava para aqueles ao seu redor. Certa vez, escreveu a Malwida von
Meysenburg:

Tenho tantas coisas em minha alma que pesam cem vezes mais do
que la bêtise humaine. É possível que eu me transforme em um fado,
no fado de todos os seres humanos vindouros – portanto é
absolutamente possível que algum dia me cale – por amor ao
próximo!!!45

Tal comportamento ocorreu com relação à sua irmã, por exemplo, com quem
Nietzsche teve uma relação especial durante toda a sua vida. Em alguns momentos,
porém, se fez necessário um distanciamento. Elizabeth se mostrava inconveniente em
relação à vida pessoal do filósofo e, a partir do casamento dela com Bernhardt Förster,

45
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 228.
31

um entusiasta do nacionalismo e do antissemitismo, Nietzsche preferiu o silêncio ao


conflito direto. Há nessa postura, também, um escapar ao que não vale a pena
discutir. Um desviar o olhar: “Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os
acusadores, que minha negação seja desviar o olhar! E tudo somado e em Sim: quero
ser, algum dia, apenas alguém que diz sim!”46
O mesmo se deu em relação às pessoas às quais Nietzsche mais valorizava,
como os Wagner e Lou Salomé. Mesmo quando magoado, evitava o confronto direto.
Pelo menos num primeiro momento, calava, para que pudesse entender e digerir os
motivos de seu desânimo com pessoas tão queridas. O sofrer em silêncio não só
transparece amor-próprio, mas também pode ser uma forma de reelaborar
sentimentos, de fortalecimento a partir da dor.
Povoar de pensamentos próprios, o grande deserto niilista, será o caminho
daquele que quer criar novos valores, e para isso tem de escapar do barulho da
gregariedade. Assim acontece, sucessivamente, com Zaratustra, em suas idas e
vindas às montanhas, e o mesmo sucede com Nietzsche: ora rompendo com a
academia, ora rompendo com seus amigos e familiares. Nessas ocasiões, o filósofo
preferia o silêncio.

3.2 – Perder a fala, falar em demasia, e o silêncio do ressentido

Se o silêncio “deliberado” pode ser demonstração de nobreza intelectual e as


palavras “ditas” de maneira silenciosa são poderosas, perder a fala, por outro lado,
costuma ser atrelado à demonstração de fraqueza física e psíquica. No aforismo “O
adivinho”, Zaratustra perde a fala depois de três dias de jejum e delírios relacionados
a um pesadelo terrível. Antes de sofrer com o pesadelo, esteve envolto com as
premonições de um adivinho pessimista que propagava o nada querer. O adivinho
tentava convencer a todos de que a vida não tinha qualquer sentido, e clamava que
lhe apontassem onde encontrar um mar em que pudessem se afogar! Nessa ocasião,
um discípulo precisa falar em nome daquele Zaratustra emudecido e tenta interpretar
o sonho dele, tamanha a fraqueza do personagem principal.
Algum tempo depois, porém, Zaratustra se recupera e ao retomar o fluxo da
fala, recobra o controle sobre os presentes e sobre si. A perda da fala, embora

46
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Aforismo 276. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
32

consequência de um enfraquecimento momentâneo, pode ter sido importante para


que ele atingisse a introspecção necessária para uma espécie de epifania. Após o
silêncio, Zaratustra entendera o porquê teria perdido a energia, e coloca-se
novamente em posição de mestre.
Chegou ao mais profundo silêncio depois de experimentar a mais densa falta
de sentido, para poder irromper através de uma nova forma de existência. Assim
ocorre também na parábola das três metamorfoses47, em que o camelo, por fim, se
vê no mais solitário deserto para poder dar lugar ao leão que irá capturar a liberdade
e ser senhor em seu próprio deserto.
No aforismo “A virtude dadivosa”, Zaratustra emudece por duas vezes, e
posteriormente tem sua voz transformada ao falar aos seus discípulos. Isso, ao que
parece, relaciona-se ao caráter profético dos anúncios que fará, que são, ao mesmo
tempo, duros e libertadores. Zaratustra traz a boa-nova aos solitários e promete a eles
que serão, um dia, o povo escolhido que dará origem ao Übermensch. O mandamento
seguinte é o de que se afastem dele, Zaratustra, e até mesmo de que duvidem dele.
O emudecimento e a mudança subsequente da voz denotam uma alteração de
postura de Zaratustra em relação a seus ouvintes: se antes buscava aqueles que lhes
fossem seguidores, agora já não os quer mais, pois não quer ser ele, um sacerdote
para crentes, discípulos que não almejam ser mestres.
A esses emudecimentos de Zaratustra podemos atribuir uma autoridade do
corpo sobre a mente. O corpo simplesmente corta o fluxo verbal, pois há uma
transformação por vir, e essa espécie de epifania, de mudança de sentido, deverá
ocorrer fora do gregário. Assim, depois de Zaratustra recompor seus pensamentos de
acordo com o novo caminho a seguir, o corpo lhe devolve a razão e a fala.
Por outro lado, Nietzsche trata de maneira totalmente diferente a perda da fala
por conta de uma fraqueza: “Quem cala, falha sempre em finura e gentileza de ânimo;
o calar é um pretexto; guardar consigo a injúria é formar necessariamente um péssimo
caráter, arruinando de vez o estômago. Todos aqueles que silenciam, sofrem do
estômago.”48

47
Parábola utilizada em Assim Falava Zaratustra. “O espírito se muda em camelo, e o camelo em leão
e o leão em criança.” Na primeira metamorfose, o camelo se sobrecarrega de todos os valores de
verdade. Ao chegar ao deserto solitário, torna-se leão, pois quer conquistar a liberdade. O leão luta
com o dragão “Tu deves”. O leão não pode ainda criar, mas pode falar “não”. Por fim, o leão se
transforma em criança, que é inocência e esquecimento, e diz, portanto, SIM para o jogo da criação.
48
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de Queiroz
Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p. 33.
33

O emudecer dos ressentidos aparece em Assim falava Zaratustra quando os


homens moralmente fracos, de rebanho, se deparam com um espírito livre49. Eles
emudecem e veem sua força desaparecer, necessitando sugar o sangue do homem
criador de valores, tal qual fossem moscas na praça pública.
Assim, o silêncio imposto pelo medo de falar, levará a um adoecimento do
corpo e da alma. A má consciência será formada pela internalização de instintos, os
quais os homens não se deixaram expressar por respeito a uma moral castradora.
A necessidade de comunicação, como abordamos anteriormente, tem a ver
com um instinto gregário de autopreservação. Não obstante esse mecanismo que está
na origem da fala, há também uma espécie de aversão ao silêncio, pois esse espaço
pode levar o homem a uma escuta do que se passa em seu “interior”, em sua
“consciência”. Dependendo de quanto seus instintos e valores estiverem
interiorizados por conta de ressentimento, imposto pela moral de seu tempo, pode ser
que a essa “voz interior” seja, ela própria, um barulho ensurdecedor, por isso são
poucos os que buscam o silêncio, para praticar suas conversações internas.

Para Nietzsche, essa “consciência” que reclama ao homem os “pecados”


cometidos, é fruto de um acúmulo de supressões de vontades que se internalizaram,
para evitar feriras regras morais impostas. Esta internalização causa um recalque, um
ressentimento, nas palavras de Nietzsche, uma má consciência.

Para Nietzsche, a consciência moral não é a voz de Deus em


nós, como em Kant; ao contrário, o tribunal interior da
consciência moral é, para Nietzsche, a crueldade internalizada
do ressentimento sublimada na forma de corte judiciária, que
julga, condena e castiga incessantemente o triunfo de uma
perspectiva da interpretação que coloca o universo – e nele a
existência humana na história – sob a égide do débito
(desobediência à lei moral) e do crédito (obediência
incondicional a ela), da recompensa (a bem aventurança como
prêmio para a renúncia de si) e do castigo (a condenação pelo
desejo egoísta), da culpa (pecado) e da expiação (castigo)”50

Para o homem ressentido, portanto, é natural que não se permita a busca de


momentos de silêncio ou de isolamento, pois a partir do silêncio entrará em contato
com suas culpas. Além disso, poderá se sentir como um desobediente moral ao

49
Merktest du nicht, wie oft sie stumm wurden, wenn du zu ihnen tratest, und wie ihre Kraft von ihnen
ging wie der Rauch von einem erlöschenden Feuer?
50
MUÑOZ, Yolanda Gloria Gamboa. Nietzsche: a fábula ocidental e os cenários filosóficos. 1ª ed. São
Paulo: Paulus, 2014, p. 67.
34

buscar dar vazão a um sentimento considerado egoísta. Assim, silencia a si mesmo:


cala-se diante de seus instintos, internalizando mágoas e sofrimentos.
Assim como o silêncio de quem guarda consigo uma mágoa é prejudicial, o
falar demais pode ser também um vício, ou um sinal de descontrole. Por vezes,
Zaratustra põe-se a falar em demasia de maneira desgovernada, pois está ávido por
transmitir seu conhecimento. Ocorre, porém que, na maioria das vezes, os homens
não estão preparados para recebê-lo e a experiência é, de tal maneira frustrante, que
o personagem sofre, carregado de um excesso de conhecimento.
No aforismo “Mas tu, por que é que escreves” de A Gaia Ciência, Nietzsche
ironiza o ato de escrever em demasia, como uma inexorável necessidade, e concluiu
que o faz tão somente porque não encontrou outra maneira de se desembaraçar de
seus pensamentos, e que escrever não é um ato de vontade, mas algo a que se sentia
forçado a fazer.51
Nesse sentido, ao utilizar da metáfora do excesso de mel que produz a abelha,
Zaratustra passa pelo aprendizado de que, às vezes, é melhor dissipar o excesso de
conhecimento, lançando-o à natureza, do que simplesmente compartilhar com
aqueles que não têm capacidade para absorvê-lo.

3.3 – O grito e o barulho

No aforismo que nos referimos anteriormente, “O adivinho”, Zaratustra acorda


de um sonho com um grito de pavor, que o faz voltar a si e sentir-se fortalecido. Na
ocasião, Zaratustra ficara prostrado após ouvir de um adivinho toda a sorte de
reclamações “niilistas”, que tiraram sua força vital. Depois disso, alguns de seus
seguidores tentaram o reanimar, sem sucesso. O rompante do grito se deu como um
ato de se acordar a si próprio, em um lugar em que ninguém poderia lhe acordar, pois
estavam todos anestesiados pelo pessimismo. Zaratustra finalmente se reconectou
com a efetividade e pediu que lhe trouxessem boa comida.
Nietzsche define o grito, em o Nascimento da tragédia, como uma hipertrofia
dos sentimentos. É como se o sentimento fosse algo tão poderoso que transbordaria

51
Eu me aborreço ou tenho vergonha de todo escrito: escrever é para mim como fazer minhas
necessidades – sinto repugnância até em falar de forma simbólica (...) Não descobri outra forma de me
desembaraçar de meus pensamentos (...)mas sou forçado a isso. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia
Ciência. Aforismo 93. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
35

o corpo em forma de som, rompendo ao exterior do indivíduo violentamente.


Considerando o caráter limitado da linguagem quanto expressão de sentimento, o
grito pode ser um potente comunicador de desespero, de raiva e de ódio, tão mais
efetivo do que as palavras. O grito vem das entranhas e, portanto, comunica a “grande
razão”.
Por outro lado, o barulho costuma ser lugar de caos, onde pouco se comunica,
mas muito se fala. Zaratustra, no início de sua jornada de regresso ao convívio dos
homens, desce de sua caverna disposto a dividir sua sabedoria. Um dos primeiros
locais onde encontra pessoas é uma feira, onde as pessoas estão observando um
equilibrista. Todos estão agitados, aos berros, e ninguém consegue prestar atenção
ao que fala o protagonista. Zaratustra fica desapontado com a impossibilidade de
comunicação e com a constatação de que as pessoas não são capazes de tomar suas
palavras com o devido respeito por não terem ouvidos para elas.
Essa agitação do mercado pode servir de analogia com um mundo onde a
propaganda vale mais do que o produto em si e quem grita mais tem mais
possibilidade de vender. Nesse mundo, o pensador tem se fingir de surdo em meio ao
barulho, para poder ter algum sossego.

Antes as pessoas desejavam conseguir um nome: agora isso já́ não


basta, pois o mercado cresceu muito – é preciso gritá-lo em altas
vozes. Em consequência, também as boas gargantas exageram, e as
melhores mercadorias são oferecidas por vozes roucas; sem gritaria
de mercado e sem rouquidão não há mais gênio. – Este é, sem dúvida,
um tempo ruim para o pensador: ele tem de aprender a encontrar seu
sossego entre dois barulhos, e fazer-se de surdo até́ realmente ficar
assim. Enquanto ele não aprender isso, corre naturalmente o perigo
de perecer de impaciência e dores de cabeça.52

Em Humano Demasiado Humano, Nietzsche afirma que o ouvido humano está


cada vez mais acostumado com um volume de som cada vez maior, mais “barulho” e
que tal condição levou ao embotamento dos sentidos, pois o ouvido humano busca
mais “o que significa” do que “o que é”. Conclui que, por esse motivo, nossos ouvidos
ficaram mais grosseiros: “Quanto mais capazes de pensar se tornam o olho e o ouvido,
tanto mais se aproximam da fronteira em que se tornam insensíveis”.53
Esse embotamento de sentidos, por excesso de exposição aos mais diversos

52
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Aforismo 331.Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
53
NIETZCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 218.
36

estímulos externos, é um problema que se agrava cada vez mais. Desde a infância,
com diagnósticos de síndrome de déficit de atenção ou hiperatividade, as pessoas
são impactadas por um excesso de imagens e informações: vídeo games, tablets,
celulares e diversos aparelhos que tomam todos os sentidos do indivíduo a ponto de
não se escutar ou enxergar mais o mundo à sua volta. As redes sociais são como o
mercado de Zaratustra: não há mais comunicação, mas somente ruído, excesso de
fala, todos querem chamar atenção, mas ninguém escuta ninguém. A chamada “era
da interatividade” torna o sujeito dependente do barulho e aprende-se desde cedo a
apenas responder a estímulos, sem antes mesmo absorvê-los.
37

4 – ELEMENTOS DA LINGUAGEM PARA NIETZSCHE

Da briga do homem com os outros surge a retórica; da briga do homem


consigo mesmo nasce a poesia.54

Durante algum período, Nietzsche era considerado mais um poeta do que um


filósofo, dado o uso peculiar das palavras e a forma da escrita adotada em alguns de
seus livros. Um assunto recorrente em seus escritos é a crítica que faz à linguagem
como instrumento de expressão de pensamentos.
A escrita de Nietzsche, por meio de metáforas, não é construída apenas por
uma preocupação estética, mas também constitui uma forma de desconstruir os
significados das palavras, que são imprecisas e limitadas. Assim, criticar palavras
como “eu” ou “sujeito” é também criticar o próprio conceito de verdade que se
pressupõe a partir dos termos. Desconstruir a linguagem para desconstruir formas
cristalizadas de pensar. No capítulo “Dos que desprezam o corpo”, Zaratustra provoca
aqueles que dizem “Eu” e se orgulham da palavra, sem notar que a linguagem é
apenas um pequeno instrumento da grande razão – que não diz eu – mas procede,
“faz eu”. Assim, se a “pequena razão” (que seria a razão lógica, racional) tem como
instrumento a fala e a escrita, a “grande razão” se expressaria por meio do corpo e
dos sentimentos físicos. Por isso, Nietzsche tende a dar mais valor à expressão dessa
“grande razão”, como, por exemplo, quando afirma acerca de Zaratustra que somente
ama “aquilo que é escrito com o próprio sangue”.55
Como já expusemos em capítulo anterior, Nietzsche coloca na origem da
linguagem a necessidade de comunicação como instinto de sobrevivência. No
aforismo 354, de A Gaia Ciência, Nietzsche sustenta que o homem passou a
comunicar-se por meio da linguagem por conta de

uma terrível obrigação, que por longuíssimo tempo governou o ser


humano: ele precisava, sendo o animal mais ameaçado, de ajuda, de
proteção, precisava de seus iguais, tinha de exprimir seu apuro e
fazer-se compreensível – e para isso tudo ele necessitava antes de
consciência.

54
YEATS, William Butler. Poemas. Seleção, tradução e notas de Paulo Vizioli. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992
55
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Von allem Geschriebenen liebe ich
nur das, was einer mit seinem Blute schreibt
38

Foi, portanto, por essa necessidade de consciência que houve uma


sobreposição da racionalidade em desfavor do corpo, que passou a ser desprezado.
E desse movimento nasceu o ascetismo e os ideais ascéticos que subjugaram o corpo
para afirmação de um espírito. A atividade humana, que até então era a de observar
a natureza e experimentar de forma singular as possibilidades e formas de viver, foi
reduzida a palavras e conceitos, como se não houvesse mais nada a observar, pois
todo o conhecimento não estaria mais no mundo, mas no espirito, no pensamento.
Nietzsche dispara contra o ascetismo e linguagem, a partir de uma escrita
revolucionária que lhe permite ao mesmo tempo sugerir uma nova forma de interpretar
o mundo, bem como criticar a fala, expressando-se de forma similar à de um artista.
Em estudo sobre as metáforas em Nietzsche, Sarah Kofman afirma que, para
o autor, a Filosofia não é nem ciência e nem poesia e que as mudanças de estilo eram
intencionais e serviriam para “salvar o leitor de um entendimento errado sobre
existência de um estilo em si.”56 Segundo a filósofa, a escrita por meio de metáforas,
em vez da escrita por meio de conceitos, é uma espécie de jogo de escrita de
Nietzsche, que permite uma nova arte de interpretar o mundo, a comunicação de uma
nova perspectiva.
A autora prossegue explicitando a predileção de Nietzsche pela música, como
a expressão artística mais privilegiada para expressar a “verdade do mundo”. Aborda,
ainda, a crítica do autor à escrita conceitual, que, além de não ser capaz de reproduzir
gestos e tons de voz, petrifica a “música do mundo”. O “conceito” que, em si, é produto
da atividade metafórica (pois a atividade metafórica está na origem de todo o
conhecimento e atividade, já que lida com imagens registradas em nossas mentes),
não é nem uma ideia a priori, nem um modelo. O conceito57 é fruto de um acúmulo de
impressões similares, às quais são atribuídas uma falsa unidade, com um caráter
genérico.
Nietzsche, por outro lado, constrói novos conceitos e, portanto, é um criador de
metáforas da metáfora. Ao refutar o sentido comum de algumas palavras e dar-lhes

56
“Nietzsche intentionally diversifies his styles in order to save the reader from misunderstanding a
single style as a style in itself: Good style in itself – a piece of pure folly, mere “idealism”, on a par of
with the beautiful in itself, the good in itself, the thing in itself” KOFMAN, Sarah. Nietzsche and Metaphor.
Tradução para o inglês de Duncan Large. Stanford University Press, 1993, p. 3.
57
“The concept is neither an a priori idea nor a model, as it claims to be. It is a lasting impression wich
became retained and solidified in the memory. It is compatible with very many appearences and is for
this reason very rough and inadequate to each particular appearance.” KOFMAN, Sarah. Nietzsche and
Metaphor. Tradução para o inglês de Duncan Large. Stanford University Press, 1993, p. 35.
39

outros significados mais precisos de acordo com seu pensamento, permite expressar
a “essência” do “seu mundo”.
A crítica de Nietzsche à linguagem é também uma crítica à metafísica. A
linguagem tem parte importante na constituição de conceitos de unidade, de causa-
efeito, razão, consciência, verdade, dentre outros. A palavra cria a ideia de coisas “em
si”, o que para Nietzsche é uma mentira. Nos fragmentos publicados sob o nome de
“Verdade e mentira no sentido extramoral”, Nietzsche estabelece um estudo filosófico
da linguagem, tanto no que se refere à apreensão do conhecimento, quanto no que
se refere ao problema interpretativo. Ataca palavras inventadas para representar
conceitos, como verdade e mentira ou honesto e desonesto, criadas para o fim de
possibilitar uma homogeneização dos pensamentos, facilitando a comunicação e o
convívio social. Tais “verdades” inventadas são transmitidas ao longo das gerações
até se tornarem absolutas, calcadas, porém, em conceitos vazios de sentido. No texto,
Nietzsche explica que ninguém é honesto ou desonesto em essência, a ideia de
honestidade é tão somente uma construção de imagens e de ações que se
convencionou chamar de honestidade, por aqueles que queriam impor um modo de
agir. Mas, para o filósofo, não existe a honestidade em si, assim como a verdade como
um valor em si, não passa de uma convenção social, não existe no mundo efetivo.
A maior parte da transmissão de conhecimento humana e quase toda
experiência de comunicação tem sido intermediada pela linguagem falada ou escrita,
de tal maneira que o pensamento do homem e seus valores passam a ser agenciados
por tal intermediário, que deixa de ser mero instrumento para ser conteúdo e fonte de
conhecimento. Um homem é também a sua língua e a cultura de um povo é também
a sua língua falada e escrita, tendo assim a linguagem um papel cada vez mais
abrangente na experiência humana. Sob esse aspecto, o indivíduo tem cada vez
menos espaço para criar novos valores, pois nasce e cresce em um mar de conceitos
pré-estabelecidos e verdades absolutas que o impedem de ter consciência de que as
palavras são apenas conceitos, metáforas de metáforas.
Assim, silêncio e afastamento tornam-se desejáveis, pois são espaços de alívio
de um mundo pautado pela linguagem gregária. Nesse espaço seguro, o pensamento
entorpecido pela forma de pensar das palavras, poderá dar lugar a outras experiências
estéticas com o mundo, apartado das amarras antes impostas.
40

4.1 – Metáforas: os lugares e companheiros de solidão de Zaratustra

Eu sigo novas sendas e encontro uma linguagem nova; à semelhança


de todos os criadores, cansei-me das línguas antigas. O meu espírito
já não quer correr com solas gastas.58

O traço metafórico e poético que prevalece em parte dos textos de Nietzsche


abre possibilidade para o estudo do autor a partir das imagens criadas e dos lugares
retratados por ele. Esses lugares e a forma com que são descritos têm importância
não só estética, mas também filosófica. Zaratustra, em sua solidão, travava conversas
com o sol, com o mar. Sua caverna elevada é impregnada de significados.
Para além da crítica à linguagem, Nietzsche também busca, com a escrita por
aforismos, impor uma certa dificuldade ao leitor, principalmente àqueles ávidos por
encontrar sentidos óbvios em todas as coisas. A profundidade dos escritos de
Nietzsche merece reflexão, um “ruminar”:

Um aforismo, se bem cunhado e moldado, não foi ainda “decifrado” pelo


fato de ser lido; ao contrário, esse é o início de sua interpretação e, para
tanto, é requerida uma arte de interpretação. (...) É certo que, para
exercitar a arte da leitura, há algo que se torna necessário, que hoje em
dia foi bem esquecido – e ainda necessitará de tempo até que minhas
obras sejam “legíveis” – é necessário ser quase uma vaca para isso, ou
pelo menos, não ser um “homem moderno”: é um ruminar...59

A seguir serão analisados alguns espaços e “companheiros” de solidão em


Zaratustra, bem como o uso metafórico do silêncio, especulando-se sobre possíveis
significações no contexto do livro e dentro da doutrina de Zaratustra.

4.1.1 – O Sol

O mito é o nada que é tudo.


O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo-
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo”60

58
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Neue Wege gehe ich, eine neue Rede
kommt mir; müde wurde ich, gleich allen Schaffenden, der alten Zungen. Nicht will mein Geist mehr auf
abgelaufnen Sohlen wandeln.
59
NIETZSCHE, Friederich. Genealogia da Moral. Tradução de Attila Blacheyere – 1a Edição. Rio de
Janeiro: Edbolso, 2016, p. 15.
60
PESSOA, Fernando. Mensagem. Barueri: Novo Século Editora, 2018, p. 17.
41

Início e fim de “Assim falava Zaratustra” se dão a partir de falas do protagonista


dirigidas ao Sol, nas quais ele trata da relação da luz com aqueles que são iluminados.
Zaratustra utiliza das marcações “meio-dia” e “meia noite” como metáforas para os
ciclos que há na existência.
A comparação entre luz e verdade é uma das mais utilizadas analogias no
campo da filosofia e está presente desde os pré-socráticos até os autores
contemporâneos sendo a ideia de iluminação utilizada para ilustrar uma conexão com
um saber, em geral, de ordem metafísica, divina. Platão lança mão de analogias
relacionadas à luz e ao Sol nos célebres diálogos de “República” para abordar as
relações existentes entre sujeito, sentidos, mundo sensível e inteligível, ideia de bem,
verdade e outros. A relação luz e verdade, com sentido metafísico também é presente
nos textos bíblicos, como referência a Deus, ou à verdade:

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era


Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas
por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito se fez. Nele
estava a vida, e esta era a luz dos homens. A luz brilha nas trevas, e
as trevas não a derrotaram. Surgiu um homem enviado por Deus,
chamado João. Ele veio como testemunha, para testificar acerca da
luz, a fim de que por meio dele todos os homens crescem. Ele próprio
não era a luz, mas veio como testemunha da luz. Estava chegando ao
mundo a verdadeira luz, que ilumina todos os homens. E o Verbo se
fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a
sua glória, como do unigênito do Pai. (João 1:1-9 e 14)

O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; sobre os que viviam
na terra da sombra da morte raiou uma luz. (Mateus 4:16)

Agostinho descreve a iluminação divina como uma luz imutável, existente na


alma intelectiva, e que representa a verdade divina, existente no interior dos homens,
mas somente alcançada pela busca da justiça e da verdade.

(...) Instigado por esses escritos a retornar a mim mesmo, entrei no


íntimo de meu coração sob tua guia e o consegui, porque tu te fizeste
em meu auxílio. Entrei, e com os olhos da alma, acima destes meus
olhos e acima da minha própria inteligência, vi uma luz imutável. Não
era essa luz vulgar e evidente a todos com os olhos da carne, ou uma
luz mais forte do mesmo gênero. Era como se brilhasse muito mais
clara e tudo abrangesse com sua grandeza. [...]Também não estava
acima de minha mente como o óleo sobre a água nem como o céu
sobre a terra, mas acima de mim porque ela me fez, e eu abaixo
42

porque fui feito por ela. Quem conhece a verdade conhece esta luz e
quem a conhece, conhece a eternidade.61

Antes de Platão, Parmênides trataria da analogia sob o aspecto de alternância


e instabilidade pelo arranjo dos contrários, utilizando-se de luz e escuridão como
analogias à realidade inteligível e aparência sensível, imagem que influenciaria Platão
a uma posterior reelaboração de tais termos.62 Platão irá tratar o Sol por “filho do bem”
e desenvolverá o pensamento metafísico a partir de imagens.

Podes, portanto, dizer que é o Sol, que eu considero filho do bem, que
o bem gerou à sua semelhança, o qual bem é, no mundo inteligível,
em relação à inteligência e ao inteligível, o mesmo que o Sol no mundo
visível em relação à vista e ao visível.63

Podemos então estabelecer as seguintes analogias em Platão: o sol seria


aquele que possibilita conhecer o bem; os objetos visíveis, objetos de conhecimento;
e a capacidade de ver, a capacidade de conhecer.

Mas, quando se voltam para os que são iluminados pelo Sol, acho que
veem nitidamente e torna-se evidente que esses mesmos olhos têm
uma visão clara. (...) Portanto, relativamente à alma, reflete assim:
quando ela se fixa num objeto iluminado pela verdade e pelo Ser,
compreende-o, conhece-o e parece inteligente; porém, quando se fixa
num objeto ao qual se misturam as trevas, o que nasce e morre, só
sabe ter opiniões, vê̂ mal, alterando o seu parecer de alto a baixo, e
parece já não ter inteligência. (...) Reconhecerás que o Sol
proporciona às coisas visíveis, não só, segundo julgo, a faculdade de
serem vistas, mas também a sua gênese, crescimento e alimentação,
sem que seja ele mesmo a gênese. (...) Logo, para os objetos do
conhecimento, dirás que não só a possibilidade de serem conhecidos
lhes é proporcionada pelo bem, como também é por que o Ser e a

61
AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. Tradução do latim de Lorenzo Mammi. 1a ed.
São Paulo: Penguim Classics / Companhia das Letras, 2017. VII, X, 16
62
CONTE (2016), p.130 A distinção parmenídea do que é “segundo a verdade” e do que é “segundo a
opinião” tem sem dúvida uma influência decisiva sobre Platão, que a reelabora em termos da oposição
entre realidade inteligível e aparência sensível, dualidade ontológica à base da distinção dos modos
cognitivos correspondentes, a “ciência” (epistêmê) e o “juízo” ou “opinião” (doxa). Esse, no Timeu,
caracteriza a região do sensível como daquilo que “sempre devém e nunca é”. É notório o paralelo de
sua descrição do inteligível como aquilo a que se aplica o termo “é” (e não o “foi” ou o “será”) com o
verso 20 do fr. 8 de Parmênides – “se veio a ser, não é, nem se é para ser no futuro” paralelo esse que
apenas é obscurecido pela chamada leitura existencial do verbo einai. Ora, da mesma maneira que,
em Platão, os objetos sensíveis nessa passagem do Timeu não se anulam como simplesmente
“inexistentes”, mas são definidos pela instabilidade de seu modo de “ser”, também o que difere de “o
que é”, em Parmênides, se permite determinar – em sua alternância e instabilidade – pelo arranjo dos
contrários em seu diakosmos (desde que lhe atribuamos um valor teórico positivo, como fazem os
antigos). Mas a semelhança entre Platão e Parmênides termina aí: este não discrimina uma região do
inteligível como o que “verdadeiramente é”) e — precisamente por isso — dá uma acepção muito mais
estrita ao termo “ser”, segundo os critérios exigentes veiculados no fr. 8.
63
PLATÃO, A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, 9ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Goulbenkian, 508d.
43

essência lhes são adicionados, apesar de o bem não ser uma


essência, mas estar acima e para além da essência, pela sua
dignidade e poder. 64

Nietzsche seria um crítico de Platão e do platonismo, em especial da ideia de


verdade e dos ideais ascéticos decorrentes dos ensinamentos do filósofo grego, pois
ao colocar a ideia de bem e de conhecimento, fora do mundo sensível, Platão funda
a metafísica, criando uma ordem de valor em que a existência de um mundo das
ideias, apartado da efetividade, é superior ao mundo material. Nietzsche irá atacar
esse pensamento com o fim de afirmar a existência e a vida próximas da imanência.
A crítica de Nietzsche versaria, ainda, sobre o dogmatismo presente no
platonismo, que cria ideais de bem em si ou verdade em si que, segundo ele, eram
inexistentes na natureza. “(...) o pior, mais duradouro e perigoso de todos os erros até
aqui foi um erro de dogmáticos, ou seja, a invenção por Platão de um espírito puro e
de um bem em si”65
O uso da metáfora da luz, por Nietzsche, apresentará inversões do sentido
utilizado por Platão. Enquanto o Sol de Platão é intangível, o Sol é tratado pelo
Zaratustra de Nietzsche “de igual para igual” e até, por vezes, criticado por sua
“altivez”.

Grande Astro! Que seria da sua felicidade se te faltassem aqueles a


quem iluminas? Faz dez anos que se abeiras da minha caverna, e,
sem mim, sem minha águia e minha serpente, haver-te-ias cansado
da tua luz e deste caminho. (...) Nós, porém, esperávamos-te todas as
manhãs, tomávamos o supérfluo e bendizíamos-te66

Aqui, Zaratustra reconhece a grandeza e importância do astro, porém, ao


indagar qual seria a felicidade dele, Sol, sem aqueles a quem ilumina, Nietzsche
inverte o sentido proposto por Platão, em que o objeto é iluminado pela luz, mas sim,
que a luz deve ser grata por ter a quem iluminar.
Parece-nos uma crítica à metafísica, pois que desta maneira, o sol será parte
da natureza e da efetividade, tudo isso acessível e integrado ao homem, que pode até
falar com ele e a ele se equiparar.

64
PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, 9a Edição. Lisboa: Fundação
Calouste Goulbenkian, 508d.
65
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Tradução de Márcio Pugliesi. Curitiba: Hemus
Editora, 2001, p. 8.
66
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. p. 21
44

Ao desmontar o conceito de bem em si e de verdade absoluta, trazendo o Sol


para o mesmo nível do homem, Nietzsche não descarta o Sol como analogia de
elevação e conhecimento, tanto que é do alto da montanha que o astro é encontrado
sempre. É, porém uma iluminação alcançável, tangível.
Ao fim do livro, Zaratustra tem novamente com o astro, e se lamenta por
estarem somente ele e seus animais dispostos a aproveitar a luz solar, enquanto todos
dormem.

Grande astro - disse como numa outra ocasião -, olho profundo de


felicidade, que seria desta se faltassem aqueles a quem iluminas? E
se eles permanecessem em seus aposentos quando tu já estás de
desperto e vens dar e repetir, como se te feriria o pudor! Pois bem!
Estes homens superiores dormem enquanto eu estou acordado, não
são meus verdadeiros companheiros! Não é a eles que espero aqui
em minhas montanhas. Quero principiar o meu labor, o meu dia, mas
eles não compreendem quais os sinais da minha alvorada; os meus
passos não são para eles uma voz despertadora. Dormem ainda na
minha caverna, ainda o seu sono saboreia meus cantos de
embriaguez. Aos meus membros falta ouvido que me escute, ouvido
obediente.

Aqui, portanto, a analogia da luz do sol que está disponível para todos, mas só
pode ser captada por alguns, é semelhante ao pensamento de Platão, porém, a
comparação é com a sabedoria que pretende Zaratustra transmitir aos seus
companheiros. Ou seja, sendo Zaratustra um homem, a sabedoria a ser transmitida
não é de uma ordem transcendente, mas presente na natureza, fruto do domínio
humano. Nesse ponto, serve a crítica também ao cristianismo, pois se a luz do Sol,
nos textos bíblicos, representa o próprio Deus criador e o bem que dele emana,
Zaratustra, homem, não se coloca abaixo dele e compara a luz “divina” com a dele
próprio. Não é apenas um instrumento, como o dizem ser os sacerdotes, mas o próprio
criador.
A luz também foi abordada por Nietzsche, no aforismo 125 de A Gaia Ciência,
em que um homem louco acende um candelabro em plena luz do dia e corre a um
mercado, gritando incessantemente a perguntar “onde estaria Deus”. Após ser
ridicularizado pelos presentes, anunciou que Deus estava morto e que havia sido
morto pelos homens. Após um grande silêncio, arremessou seu candelabro,
quebrando-o em inúmeras partes, concluindo que ele chegara cedo demais, e que

O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de


tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para
45

serem vistos e ouvidos. Esse ato (matar a Deus) ainda lhes é mais
distante que a mais longínqua constelação – e, no entanto, eles
cometeram!

Nesse aforismo, Nietzsche mais precisamente ataca os céticos que não mais
acreditam em Deus, mas que ainda vivem sobre uma determinada moral cristã. A
imagem do candelabro em plena luz do dia é muito interessante. Se a luz do dia é
representação platônica de um bem em si, o homem louco precisaria de um
candelabro, pois aquela luz não lhe serviria?
E quando assume que os ouvintes não têm capacidade de lhe compreender e
arremessa sua outra fonte de luz ao chão, rompendo-a em várias partes, estaria
sinalizando que nenhuma luz seria capaz de fazer aqueles homens céticos
enxergarem qualquer coisa. A soberba os impediria de ver a efetividade tal qual ela é.
Novamente, portanto, nesse aforismo é criticado o autor de República, já que
Nietzsche desconstrói, a partir do personagem louco, a iluminação, a ideia de verdade,
pois, entre os ateus do mercado, só havia certezas de uma estrutura de pensamento
fundamentada pela ideia de Deus e mantida ainda depois da “morte” dele.

4.1.2 – A caverna de Zaratustra

A jornada de Zaratustra se passa sempre entre altos e baixos geográficos, mas


que são possíveis de assimilar como metáforas de interações de ordem mais ou
menos elevadas. Geralmente, quando sobe as montanhas ou até a sua caverna se
distancia dos homens e busca elevação espiritual e sabedoria. Nos momentos em que
desce das montanhas, procura os homens para lhes trazer os ensinamentos
adquiridos durante os momentos de reflexão. Tal qual os ciclos de aurora e crepúsculo
que perpassam todo o livro, as subidas e descidas dão um senso de movimento
constante.
Tamanha era a importância dos lugares em Assim falava Zaratustra, ao ponto
de o livro ter seu início com o protagonista fazendo o trajeto de descida para o convívio
dos humanos, após passar dez anos isolado do mundo, e ter seu encerramento, com
seu retorno à mesma caverna, após inúmeras idas-e-vindas: “Aos trinta anos apartou-
46

se Zaratustra da sua pátria e do lago da sua pátria, e foi-se até a montanha. Durante
dez anos gozou por lá do seu espírito e da sua soledade sem se cansar.”67
Adiante, em conversa com o Sol, confidencia que já está tão enfastiado de sua
sabedoria, como a abelha que acumulou demasiado mel, que parte para a cidade em
busca dos homens para repartir seus conhecimentos. Por diversas vezes, Zaratustra
retorna à caverna, onde vive em companhia tão somente dos animais, em especial, a
águia e a serpente.
Diferentemente da caverna de Platão68, que era um local de sofrimento e
penumbra, onde a alegoria da escuridão remete à escassez de conhecimento
daqueles pobres prisioneiros, a caverna de Zaratustra era um lugar de luz, no alto das
montanhas. A caverna de Platão fica abaixo de onde os homens viviam, tanto que se
percebiam somente as sombras do que acontecia no mundo “real”. Por sua vez,
Zaratustra, em companhia de sua águia, podia ver todo o mundo de cima de seu
monte privilegiado. A águia, ave de rapina, com visão excepcional, poderia assinalar
também, ao nosso ver, a visão dos sábios que enxergam além do que o homem médio
pode ver, a fim de encontrar respostas para os mais profundos questionamentos.
Há ainda referências sobre as pedras dos montes, que traduzem a vida frugal
e sem conforto daqueles que vivem fora da civilização, mas que gozam do contato
intenso com si próprios e com a natureza. “Ó! Haja de dormir na pedra mais feia e
mais rija!”69
No poético trecho abaixo, novamente a alegoria geográfica do descer e subir,
que pode se aproximar da ação humana de buscar e alcançar por meio do esforço,
as altitudes mais elevadas da sabedoria, que se obtém no alto da solidão, e que desce
para montanha abaixo, para se compartilhar com os homens: “A minha selvagem
sabedoria emprenhou nos montes solitários; nas duras pedras pariu o mais novo dos

67
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Prólogo. Original: Als Zarathustra dreißig Jahre alt
war, verließ er seine Heimat und den See seiner Heimat und ging in das Gebirge. Hier genoß er seines
Geistes und seiner Einsamkeit und wurde dessen zehn Jahre nicht müde.
68
“Imagine, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea em forma de caverna. A entrada se
abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância,
acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a
cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles,
ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe”. PLATÃO, A Alegoria da
caverna. In. A Republica, 514a-517c. Tradução de Lucy Magalhães. In: MARCONDES, Danilo. Textos
Básicos de Filosofia: dos Pré- socráticos a Wittgenstein. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2000.
69
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Criança no Espelho. Original: Ach, daß es im
härtesten, häßlichsten Steine schlafen muß!
47

seus filhos. Agora corre louca pelo deserto árido e procura sem cessar o branco
céspede”.70
A caverna de Zaratustra era um local impróprio para os homens em geral: fria,
distante, íngreme e inacessível. Era, porém, onde o personagem encontrava a água
fresca, o ar puro, o alimento genuíno. A companhia de seus animais e da natureza.

4.1.3 – O Mar

Leva a bandeira,
carrega o pesadelo.
Terra firme só, não vale.
Porto seguro é não ter medo71

A metáfora do mar é muito utilizada por Nietzsche em seus escritos e pode ter
diversas significações, a depender do contexto do estado do mar, mas em geral,
apresenta um momento de solidão, em que o homem se vê diante da grandeza da
natureza. O caráter de constante movimento do mar, pelo infinito ir e vir das ondas,
guarda relação com o pensamento de Heráclito que considerava a constante
mudança, o elemento essencial de todas as coisas.
Os estudos do filósofo pré-socrático marcaram o percurso de Nietzsche, que
considerava Heráclito um “anti-platônico” por não conceber um dualismo no mundo,
mas um estado de imanência que compreende uma harmonia dentro dos
antagonismos: “o divergente (diapheromenon) consigo mesmo concorda
(sympheromenon); harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira”.72
Nietzsche descreve Heráclito como alguém que escolheu a solidão e que
preferia brincar com as crianças a participar das obrigações na polis, para então
prosseguir uma investigação sobre si mesmo. A partir dessa investigação73 Heráclito
teria descoberto não haver uma “essência” dentro de si, mas um fluir.

70
Ilha da bem-aventurança. Original: Meine wilde Weisheit wurde trächtig auf einsamen Bergen; auf
rauhen Steinen gebar sie ihr Junges, Jüngstes.
71
BENJAMIN, KEEN, Bernaby.Terra Firme. Álbum 1986, 2017.
72
HERÁCLITO, fr. 51. Pré-Socráticos. Coleção: Os Pensadores. Tradução de José Cavalcante de
Souza. São Paulo: Nova Cultural..
73
Nessa perspectiva, a busca de Heráclito por si mesmo, ou por seu caráter próprio (o dáimon do fr.
119), mesmo a sua insistência pela obediência à lei (fr. 249), devem ser entendidas como concordância
com o Logos que faz e caracteriza o mundo e ao mesmo tempo faz e caracteriza o próprio humano
(mesmo a alma é descrita como feita de fogo e assim deve ser mantida. Essa relação de
48

Um “eu interno” desvelado como devir, apresenta-se como máscara


(superfície e aparência) e procede do desvelamento do mundo
segundo a mesma constituição, negando a existência do ser em geral
e afirmando unicamente o devir de todas as coisas.74

Heráclito propôs a célebre metáfora do homem que não pode entrar no mesmo
rio duas vezes, porque a todo instante muda o homem e porque a todo instante muda
o rio. Essa mesma ideia de correr eterno da água está também nas ondas do mar,
como imagem de transitoriedade como princípio do universo.
Já em seus primeiros escritos, aos dezessete anos, Nietzsche escreve uma
redação sobre Höderlin75, a quem homenageava, afirmando que “no movimento
sonoro de sua prosa, na nobreza e beleza de suas figuras, causa em mim uma
impressão semelhante às ondas do mar agitado.”76 O interessante é que, naquela
ocasião, ele ainda não conhecia o mar, mas já o utilizava como metáfora.
O mar pode ser utilizado alegoricamente para expressar um espaço onde o
homem se lança ao desconhecido, aceita os desafios que lhe são impostos sem medo
e, corajosamente, diz sim aos movimentos sobre os quais não tem controle. No
aforismo “A grande saúde” de A Gaia Ciência, Nietzsche compara os “homens
nascidos cedo, de um futuro que ainda indemonstrado” (incluindo ele próprio), a
argonautas do ideal, lançados ao mar, que são, por vezes, náufragos danificados, mas
que sempre retornam “perigosamente sadios”.
A grande saúde que se prega, embora possa ter algo de saúde física, está mais
associada à saúde do espírito que se encontra na coragem de aprender a partir da
busca de terras inexploradas. Essa saúde não somente se tem, mas se conquista,
assim como faziam os grandes marinheiros que bravamente encaminhavam-se rumo
ao desconhecido em busca de terras desconhecidas. Estes “argonautas do ideal” têm
a consciência de que são senhores de sua embarcação, e têm coragem de se
aventurar em mares nunca dantes navegados, conquistando, diariamente sua grande
saúde. Em anotações por volta de 1880, Nietzsche escreve: “Não quero mais

interdependência e interconexão entre o humano e o mundo é a base da concepção ética de Heráclito


e pode ser apontada como o principal eco heraclítico na filosofia nietzscheana. OLIVEIRA, José Robert.
Nietzsche e o Heráclito que ri. Veritas, Vol. 55, n. 3, set./dez, 2010, p. 218
74
OLIVEIRA, José Robert. Nietzsche e o Heráclito que ri, Veritas, v. 55, n. 3, set./dez. 2010, p. 226
75
Friedrich Hoderlin (1770-1843). Poeta e romancista alemão.
76
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 72.
49

conhecimento sem perigo: o mar insidioso e as montanhas devem circundar o


pesquisador.”77
Já em A Gaia Ciência, no aforismo “O que é romantismo?”, o mar tranquilo é
tratado como o desejo solitário daqueles que sofrem por escassez de vida. Nesse
aforismo, se dividem os sofredores em duas categorias: por um lado, aqueles que
sofrem por abundância de vida e que, portanto, direcionam o sofrimento para
destruição dos valores postos, em busca de seus intentos, transvalorando, assim, o
sofrimento em ação; e de outro lado, os sofredores, que sofrem por escassez de vida.
São estes que estariam em busca de um mar calmo e solitário, incluídos nessa
categoria os românticos e decadentes como Schopenhauer e Wagner. Naquele
contexto, o silêncio e o mar tranquilo teriam significados diferentes do que na maior
parte da obra do autor. Simbolizariam a arte e o conhecimento de um pessimismo
romântico, feito para aqueles que sofrem de falta de energia vital.
Dessa forma, o mar, em seu caráter transitório, pode estar calmo ou ondeante.
Sendo calmo, está mais afeito aos estagnados e fracos, pois não apresenta mudanças
nem tampouco riscos. Por outro lado, o mar bravio, com ondas e tempestades seria o
local adequado para os espíritos fortes e aventureiros que se arriscam em busca de
novos horizontes.
No capítulo “Dos três males”, Zaratustra tem um sonho em que está isolado em
um promontório78, local em que o sonho (descrito como um navegante silencioso) lhe
oferece o mundo, para que Zaratustra possa reavaliar humanamente bem, com uma
balança, os três males que nele existem. Zaratustra decide sustentar a balança sobre
o mar ondeante, a quem se refere como um “cão velho e fiel, monstro de cem cabeças
a quem estimo”. Aqui, Zaratustra afirma o caráter duplo do mar, que pode ser tão
calmo e acolhedor quanto um cão velho, como pode ser avassalador e arriscado como
um monstro de sete cabeças. Não à toa ele decide fazer ali, a reavaliação dos valores
tomados por males. Na ocasião, Zaratustra inverte o sentido das palavras que
representam, segundo ele, os três grandes males da humanidade79, e o faz sobre o
mar ondeante. Diferentemente da terra firme onde os valores estão enterrados e

77
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 38.
78
Pequena montanha sobre o mar, em alemão, “Vorgebirger”
79
A voluptuosidade, o desejo de dominação e o egoísmo: essas três coisas têm sido as mais caluniadas
até hoje.
50

fixados há muito tempo pelos homens, o mar é expressão da imprevisibilidade da


natureza e pode dar ao pesar, ao avaliar uma nova configuração.
Há ainda menções à profundidade do mar: Zaratustra diz que tranquilo é o
fundo de seu mar. Quem imaginaria que nele se escondem monstros tão divertidos!80
Esta profundidade remete a algo da personalidade do protagonista, que não está na
superfície. Tanto Zaratustra quanto Nietzsche, apesar de uma primeira imagem séria
e do tom professoral, por vezes utilizavam de ironia e bom humor, principalmente
perante os que lhe conheciam melhor.

4.1.4 – A árvore solitária e os animais de Zaratustra

No já mencionado aforismo “Os três grandes males”, ao avaliar o mundo sobre


o mar, Zaratustra escolhe a árvore solitária para ser sua testemunha. A árvore, de
aroma peculiar, situava-se tal qual um eremita solitário em um monte de frente para o
mar. A exaltação da qualidade de solitária, àquela que seria sua testemunha, também
ocorre no aforismo “Das moscas na praça pública”, em que Zaratustra indica aos
homens de grandes virtudes que fujam da companhia dos pequenos aduladores, para
ficarem junto do sopro do vento e da árvore solitária.
A árvore também é usada como parábola para a condição humana diante da
vida, pois tal qual as árvores devem se dobrar em relação ao vento, os homens devem
se dobrar àquilo que não controlam81. Outra imagem da árvore utilizada para tratar do
humano é a de que tanto mais alto se queira alcançar, em busca da luz, mais é
necessário aprofundar-se à terra em direção à escuridão. A árvore, para crescer,
precisa antes fincar suas raízes nos mais fundos solos. Assim, há uma afirmação do
efetivo, dos antagonismos que são regra e não exceção em um mundo que esteve
viciado pela ideia de verdade e de lógica.
A árvore é símbolo de isolamento como busca de um lugar mais elevado. A
árvore que quiser crescer em busca da luz, quanto maior altura alcançar, mais solitária
será, pois estará distante dos homens e dos animais.

80
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Os três grandes males. Original: still ist der Grund
meines Meeres: wer erriete wohl, daß er scherzhafte Ungeheuer birgt!
81
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Os três grandes Males. Original: Aber der Wind,
den wir nicht sehen, der quält und biegt ihn, wohin er will. Wir werden am schlimmsten von unsichtbaren
Händen gebogen und gequält.
51

Os animais de Zaratustra – a águia e a serpente, que fazem companhia em seu


retorno à caverna – são animais solitários, não são animais de rebanho: “O animal
mais arrogante que o sol cobre e o animal mais astuto que o sol cobre”. Para
Heidegger, a essência da águia e da serpente é uma imagem da própria essência de
Zaratustra, ou seja, de sua tarefa, de ser o mestre do eterno retorno do mesmo.
Deleuze também aponta a relação dos animais com a doutrina do Eterno Retorno, a
águia pelo voo circular e a serpente pelo enrolar de seu corpo.
Para Janz, Nietzsche mantinha um pathos da distância em relação à natureza
desprovida de espírito. Seus animais, a águia e a serpente simbólicas, não são
amáveis nem vivos. Não são autênticos, mas sim seres humanos mascarados. Nesse
sentido, Nietzsche jamais teve acesso à natureza que invoca. Mais adiante, sugere
que os animais poderiam ter sido inspirados pela leitura de “Prometeu”, de Spitteler,
cujo herói é acompanhado, também, por dois animas: um leão e um cão. A diferença,
porém, seria que Nietzsche

reveste seus objetos filosóficos de formas poéticas, mas seus


personagens apresentam todos a mesma face - a de seu criador. (...)
Essas figuras não são seres vivos, mas conceitos sem corpo, aos
quais foi conferida a aparência de personalidades. O livro de Spitteler,
é ilustrativo e concreto(...) Nietzsche é poeta aparente, Spitteler é
poeta verdadeiro.82

Ao nosso ver, esses animais podem ser considerados como metáforas para
instinto e razão do próprio Zaratustra. Ao final do preâmbulo, Zaratustra afirma para
si que deve ser mais cuidadoso, e tão astuto quanto sua serpente. Mas considerando
isso impossível, pede que sua altivez o acompanhe sempre com prudência, e se um
dia a prudência o abandonar, possa a sua altivez voar com sua loucura.
Ou seja, a serpente, sendo um animal astuto e observador, e presa à terra,
poderia se aproximar de uma imagem de razão, prudência. Por sua vez, a águia,
animal de caça, forte, e que voa na altura do sol, poderia ser o instinto, orgulho e a
altivez, vontades de mais potência, de busca de novos horizontes. Corroborando esse
pensamento, a águia é mencionada em Ecce Homo como “vizinha dos solitários, que

82
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 181 / 245.
52

tecerão seu ninho na árvore do futuro. E essas águias lhes trarão, no bico, o sustento
necessário”.83
Em todo caso, podemos constatar que, pouco antes desse pensamento,
Zaratustra avista a serpente enrolada ao pescoço da águia, como se ambas
pudessem e precisassem estar juntas para o equilíbrio de instinto e razão. Para
Zaratustra, acaso se separassem, preferiria voar apenas com a águia que, sem a
razão da serpente, importaria em um voo com a loucura.

Devo ser mais judicioso! Devo ser tão profundamente astuto como
minha serpente. Peço, porém, o impossível; rogo, portanto, à minha
altivez que me acompanhe sempre a prudência! E se um dia a
prudência me abandonar – Ai! Agrada-lhe tanto fugir! – possa sequer
a minha altivez voar com a minha loucura!84

Zaratustra, de Nietzsche, tem o mesmo nome do profeta de Deus, também


conhecido como Zoroastro, que tinha o objetivo de

ser “mediador” entre Ormuz, o princípio do bem vivenciado pela luz do


sol, cujo animal símbolo é a águia real, e Arimã, princípio do mal
vivenciado na escuridão, cujo animal símbolo é a serpente. Zaratustra
(de Nietzsche) conseguiu realizar a tarefa da religião persa de
reconciliar os princípios conflitantes; ele se encontra além do bem e
do mal.85

4.1.5 – A hora silenciosa

Ontem, à hora mais silenciosa, faltou-me o sono, principiava o sonho.


Avançaram os ponteiros; o relógio da minha vida respirava... Nunca ouvi tal
silêncio à minha roda; o meu coração estremecia assombrado.
Nisso disseram-me sem voz: ‘Tu sabe-o Zaratustra!’
E eu gritava de terror ao ouvir aqueles murmúrios, e o sangue fugia-me da
face; mas calei-me.
Então tornaram a dizer-me sem voz:
‘Tu sabe-o, Zaratustra, mas não o dizes!’
(...)”

83
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sábio. In. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p.
38.
84
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra, texto original: Möchte ich klüger sein! Möchte ich
klug von Grund aus sein, gleich meiner Schlange! Aber Unmögliches bitte ich da: so bitte ich denn
meinen Stolz, daß er immer mit meiner Klugheit gehe! Und wenn mich einst meine Klugheit verläßt –
ach, sie liebt es, davonzufliegen! – möge mein Stolz dann noch mit meiner Torheit fliegen!« –
85
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 185.
53

No aforismo “A hora mais silenciosa”, último capítulo da segunda parte de


Assim Falava Zaratustra, é narrado um pesadelo de Zaratustra. Durante o livro, o
personagem confidencia também outros sonhos, os quais são recebidos por ele como
sinais e, portanto, levam Zaratustra a uma alteração em seu caminho, por conta da
impressão causada pelo sonho.
Ao nosso ver, os sonhos e os pesadelos em Zaratustra podem ser entendidos
como elementos de conteúdo dionisíaco que se apresentam por meio de imagens
apolíneas. Lembramos que Apolo é um deus das aparências, da beleza, que encarna
o princípio da individuação. Dioniso, por outro lado, é o deus trágico, dilacerado, da
dança e do vinho, a quem Nietzsche sempre prestou reverência e do qual se diz
discípulo.
Assim, todas aquelas forças que estão impactando o indivíduo mas que não
podem ser assimiladas por ele, seja por conta de um embrutecimento dos sentido sou
pela crença na existência de uma consciência individual, necessitam de uma
“máscara”86 imagética de aparências oníricas para poder fazer acessar as intuições
mais “inconscientes” e profundas e fazê-lo lidar com os absurdos da existência, o que
não se permitiria fazer em estado de vigília.
Considerando as críticas de Nietzsche à razão e à verdade socrática, que
subvertem o instinto em detrimento da “consciência”, podemos entender, ainda, o
papel central dos sonhos, das imagens e sons oníricos em Zaratustra como uma
crítica à “racionalidade da razão”, propondo uma resistência à imposição da
consciência e da vida de vigília como superiores aos impulsos e os sonhos.

Enquanto em todos os homens produtivos o instinto é precisamente a


força criadora-afirmativa e a consciência se porta como crítica

86
Tudo o que é uno só pode ser entendido enquanto múltiplo: se há uma permanência do princípio
(pyr) há, sobretudo uma mudança na sua constituição, fato que cria o múltiplo a partir das
diferenciações. Qualquer singularidade ou individuação só pode ser entendida como produto da
aparência (em Nietzsche, representada por Apolo) e não como derivação de algum princípio originário
essencial constituinte de cada um dos seres isoladamente. OLIVEIRA, José Robert. Nietzsche e o
Heráclito que ri. Veritas, Vol. 55, n. 3, set./dez. 2010, p. 217-235
54

dissuasiva, em Sócrates, é o instinto que o torna crítico e a


consciência, criadora. Um verdadeira monstruosidade.87

Ou seja, ao contrário daqueles que buscam, a partir da razão, julgar ou


interpretar as cenas que ocorrem dentro de sonhos, Nietzsche acredita que o
movimento deveria ser o inverso. Se os sonhos são manifestações do “inconsciente”
e, portanto, mais ligados ao instinto do que à razão, eles deveriam ter mais espaço
como fonte de criatividade, de reflexão e de buscas por mudanças.
Em “A hora mais silenciosa”, Zaratustra toma decisões difíceis, com base em
um sonho. O sonho lhe provoca a entrar em contato com algo que ele tentava negar:
Zaratustra comunica a seus discípulos que terá de regressar à solidão, e
diferentemente de outras vezes, aparenta ter um grande pesar em fazê-lo: “mas agora
o urso regressa sem alegria ao seu antro”. O personagem principal descreve o
pesadelo, no qual é compelido a privar-se da convivência de seus discípulos para ter
com sua solidão, pois era necessário estar só, para estar fortalecido e poder ter a “voz
do leão” – que manda. Nesse pesadelo, além de ser demonstrado o tortuoso processo
a que Zaratustra deve se submeter para poder alcançar a maturidade e segurança
necessários para proclamar a ideia do Eterno Retorno, será retomado o aforismo das
três metamorfoses.
Falando aos seus, Zaratustra diz que quem lhe obrigou a deixar os homens foi
“sua dama”, chamada de “a hora mais silenciosa”, e que o trata de forma autoritária.
Para Roberto Machado88, a conversa é de Zaratustra com “sua própria solidão”, e o
retorno para exílio faria parte da trajetória do herói trágico.
O personagem conta sobre o sonho tratando por terror o ato de adormecer e
principiar a sonhar. No pesadelo, Zaratustra trava um diálogo em que ele grita e chora,
mas quem lhe fala, o faz em silêncio. A voz tenta convencer Zaratustra a espalhar a
sua palavra aos homens. A palavra que a “dama” espera que Zaratustra venha a trazer
é a doutrina do eterno retorno, que aparecerá na parte seguinte do livro. Zaratustra,
porém, sente-se inseguro para fazê-lo, pois avalia que os homens não sejam ainda
capazes de entender suas palavras:

87
NIETZSCHE, Friedrich. Nascimento da Tragédia no espírito da música, In. Obras Incompletas.
Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. 1a Edição. Editora 34. 2014. p.432
88
MACHADO, Roberto. Zaratustra e o pensamento trágico. In. Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.62.
55

A minha palavra ainda não transpôs montanhas, e o que eu tenho dito


não tem chegado até os homens. É verdade que tenho andado por
entre os homens, mas ainda os não alcancei. Que é que sabes a esse
respeito? O rocio cai sobre a erva no momento mais silencioso da
noite.(...)Zombaram de mim quando descobri e segui a minha própria
vida e, na verdade, tremeram-me então os pés.89

Mais adiante, Zaratustra faz referência ao leão, que fora mencionado no início
do livro, como uma das metamorfoses. O leão é a etapa intermediária entre camelo
(que carrega os pesados fardos morais) e a criança. É aquele que se revolta contra o
Dragão “Tu Deves” e afirma “eu quero”, em que o homem brada contra tudo o que é
estabelecido contra toda a moral posta, para posteriormente virar criança e criar novos
valores. O que diz, porém, é que ainda não tem a voz do leão para mandar, e recebe
a seguinte resposta de sua “dama”:
São as palavras mais silenciosas que trazem a tempestade. Os
pensamentos que vêm com pés de pombo são os que dirigem o
mundo. Zaratustra, precisas caminhar como uma sombra do que há
de vir: assim mandará, e mandando, irás para a frente. É preciso
tornares-te criança e desprezares a vergonha. Ainda tens o orgulho da
mocidade; fizeste-te moço muito tarde; mas o que se quer tornar
criança deve também vencer a sua mocidade. 90

Nesse ponto do diálogo, Zaratustra expõe sua vergonha e a sua interlocutora


dá mais pistas sobre o conceito por trás da alegoria das três metamorfoses. Depois
de ser leão e negar todos os valores postos, faz-se necessário desprezar a vergonha
e o orgulho. Para criar novos valores não se deve incomodar com o que pensarão os
outros. Mesmo assim, porém, Zaratustra responde que não quer desprezar sua
vergonha e vencer seu orgulho e eis que recebe a resposta: “Zaratustra, os teus frutos
estão maduros, mas tu é que não estás maduro para os teus frutos! Precisas voltar
para a solidão”.
Ao final do pesadelo, Zaratustra acorda do sono em um “duplo silêncio” e ao
contar aos seus amigos que deverá deixá-los, põe-se a chorar e caminhar para seu
caminho solitário.
A estranha conversa de Zaratustra com sua dama é passível de diversas
interpretações. Ao levarmos em consideração a possibilidade de que os sonhos do
personagem possam ser um ambiente em que ele entra em contato com seus instintos
e medos – os quais trazem uma reflexão e, por consequência da força dessas

89
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra; livro para toda a gente e para ninguém. Tradução
de José Mendes de Souza. Edição Especial. Nova Fronteira. 2016. p. 154
90
Ibidem, p. 156.
56

imagens, uma ação –, a dama silenciosa poderia ser um diálogo de Zaratustra com si
próprio (tal qual ocorrerá em um capítulo posterior, “O convalescente”).
A hesitação de Zaratustra em seguir o seu tortuoso caminho de solidão em
nome de sua obra e a triste constatação de que seriam poucos os seguidores de sua
doutrina se assemelham ao sofrimento de Nietzsche em encontrar seguidores de sua
filosofia. Enquanto Zaratustra não acha ouvintes, Nietzsche não acha leitores, pois
procura leitores filósofos alinhados com seus pensamentos, mas não os encontra.
Considerando que Assim falou Zaratustra foi publicado em partes, levando
alguns anos entre a divulgação da primeira e da última parte e que no decorrer das
publicações, por diversos motivos, foi pouco lido, é possível imaginar que o autor
tenha se dado conta de que o livro, embora estivesse acessível a todos, por muito
tempo seria compreendido por poucos, que sua filosofia possivelmente faria a sua
mudança de maneira silenciosa e só iria alcançar, ao longo do tempo, aqueles leitores
capazes de receber o conteúdo de seus ensinamentos.
A voz silenciosa que convenceu Zaratustra a, ainda que tristemente, retornar
ao isolamento por não estar suficientemente forte para ser criança, provavelmente é
a mesma que escuta Nietzsche ao se convencer de que o caminho fora do gregário
seria o único possível para que ele pudesse criar sentidos novos para sua vida e para
a humanidade. Um gênio solitário, fadado a escrever obras de grandioso valor e pouca
repercussão.
Embora tenha percebido a necessidade do isolamento para agregar as forças
criativas que lhe impulsionariam a ser um dos maiores pensadores de seu tempo,
sujeitou-se, tal qual Zaratustra, a ter de deixar seus iguais, vivendo uma vida de
privações do ponto de vista social.
O cântico triste e solitário que permeia o caminho de Zaratustra, segundo o
próprio Nietzsche, é uma homenagem à pureza, adjetivo que se aplica à criança, ao
criador de novos valores.
57

5 – ZARATUSTRA, NIETZSCHE E IMAGEM DE SI

Zaratustra, chamado carinhosamente ao longo de todo Ecce Homo por “meu


Zaratustra”, é qualificado pelo autor como um criador de verdades que, apesar de
levar consigo todo o peso do mais grave destino, era um dançarino, lépido e
longínquo, sendo afirmação de todas as coisas.
Qual seria a relação de Nietzsche com o “seu Zaratustra”? Seria apenas um
personagem ou um porta-voz? Seria a missão do herói Zaratustra uma metáfora para
a missão de Nietzsche como filósofo? Para responder tais perguntas, é fundamental
procurar a imagem que Nietzsche fazia de si em alguns dos seus textos e como ele
se relacionava com o mundo a partir de seus escritos.
Nietzsche coloca-se diante da imagem da vida como um todo, para poder
interpretá-la como um todo, tal qual fizera Schopenhauer. Assim, se propõe à meta de
reavaliar a todos os valores e, por meio de “máscaras” e personagens, vai construindo,
de maneira inconstante, uma imagem de filósofo-poeta, às vezes de um profeta
destruidor dos valores, com fins a uma renovação do pensamento ao seu redor. O
retrato de si que o filósofo descreveu, ao final de sua vida lúcida, vinha com uma
pergunta: “Fui porventura compreendido? – Dioniso contra o crucificado…”91 A frase
finaliza Ecce Homo, uma das suas últimas produções, concebida no final de 1888. O
livro foi escrito pouco tempo antes de o filósofo ser acometido, de maneira irreversível,
por uma doença mental que o acompanhou até seu falecimento em 1900.
O crucifixo, um símbolo cristão e da sociedade da época, com toda a sua moral
decadente, da virtude e da santidade, contra a qual Nietzsche se posicionava
veementemente. Dioniso, como o contraponto: o herói trágico, com quem se
identifica–altivo, de um instinto poderoso e avassalador– e que poderia ser tido por
um mau exemplo, um perigo para os costumes da época.
Ecce Homo pode ser utilizado como uma leitura auxiliar para o entendimento
de outros escritos do autor, visto que no livro são dedicados aforismos específicos a
elucidar pontos controvertidos de sua obra, interpretações e revisões de suas opiniões
anteriores, apontando as contradições e mudanças dele próprio, no decorrer de sua
vida, e que foram sendo incorporadas à sua obra. Por isso, o livro não só é um valioso

91
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou uma fatalidade. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p.
137
58

compêndio que ajuda a interpretar os escritos do filósofo, mas é também a mais


importante fonte autobiográfica para estudo acerca da imagem que Nietzsche
construiu para si, no decorrer de sua existência. Durante a narrativa de fatos vividos
e das motivações de seus livros no decorrer dos anos, Nietzsche deixa claro que não
era um problema mudar as opiniões e incorporar novos pensamentos, às vezes até
de maneira paradoxal: “A minha sapiência foi a de ser muitas coisas e em locais
diversos para poder tornar-me ‘Uno’, para poder atingir uma coisa. Durante algum
tempo fui forçado a ser um douto”.92
Portanto, não há uma imagem que o filósofo fazia de si, mas há diversas
personas e conceitos com as quais o filósofo ora se identifica e ora repele, propiciando
um entendimento amplo sobre a imagem que o autor poderia ter de si. Mesmo dentro
das supostas contradições, há um sentido nos movimentos de mudança. Com relação
a Wagner, por exemplo, Nietzsche por vezes é crítico ferrenho, classificando-o como
um repugnante exemplar da cultura alemã, e por outras vezes assume ter se referido
a Wagner como uma espécie de máscara para falar de si próprio. Algo semelhante
ocorre com relação à decadénce. Em determinados momentos ele se assume um
decadente e até se comporta como tal, porém, na maioria do tempo, ataca os
decadentes e os utiliza como exemplo contrário de tudo o que “representa” a sua
doutrina.

Pois bem; eu sou o oposto de um decadente, porque descrevi a mim


mesmo. (...) Esta dupla série de experiências, esta possibilidade de
avizinhar-se a mundos aparentemente diversos, repete-se na minha
natureza sob qualquer aspecto: ... eu sou um sósia; possuo também a
segunda vista em contar a primeira. E talvez também a terceira...93
Tais contradições podem ser vistas como sinal de que o autor considera
importante, para a experiência humana, o trânsito por diversos caminhos que serão
aglutinados para a formação de um ser livre e desprendido das amarras da moral.
Assim, o autor se auto intitula o primeiro imoralista e, nesse caso, não é estranho - é
até natural - que seja permitido acumular opiniões controversas e paradoxais,
dependendo da situação, com o fim último de atacar as convenções.

92
NIETZSCHE, Friedrich. As considerações intempestivas. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p.
85.
93
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sábio. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução
de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 29.
59

Para conseguir-se uma transmutação de todos os valores, é


necessário talvez mais faculdades de quantas foram até agora
possíveis num só indivíduo; sobretudo, seriam necessárias
contradições entre essas faculdades sem que, todavia, por isso se
destruíssem ou se espezinhassem entre si. (...) Não confundir nada,
não conciliar nada; uma infinita multiplicidade que todavia é o contrário
do caos.94

Em trabalho dedicado inteiramente aos antagonismos da filosofia de Nietzsche,


Müller-Lauter afirma que as contradições de Nietzsche não são pessoais, mas sim
expressão do “caráter contraditório do mundo moderno”95 e, portanto, o dilaceramento
de Nietzsche é nosso dilaceramento.
Feitas essas ressalvas, podemos dividir os conceitos e personas-chave para a
compreensão da imagem de si de Nietzsche em dois principais grupos. O primeiro
grupo composto por características das quais Nietzsche tenta afastar da constituição
de seu “eu”, e outro por características das quais ele se aproxima.
O grupo de conceitos de que Nietzsche se afasta e condena é compreendido,
principalmente, pelo idealismo, em suas mais diversas formas; pelo sentimento
nacionalista germânico e seu conjunto de valores; e pelo decadentismo.
Por outro lado, dentre as personas das quais o filósofo se aproxima estão
principalmente Zaratustra e Dioniso, dos quais trataremos mais adiante. Nietzsche
também reverencia alguns homens importantes, mas não os toma como exemplo para
si, não se considera um discípulo deles. Há, ainda, outros personagens criados por
Nietzsche em que ele assume ter evitado a palavra eu, por uma “astúcia instintiva,
para irradiar uma glória que se tornaria histórica”.
Por se considerar um “destruidor por excelência e homem mais terrível que
poderia ter existido”, é mais frequente encontrarmos referências ao que Nietzsche
abomina e ataca, do que elementos que lhe agradam, formando assim, uma espécie
de imagem “negativa de si”.
Apesar de afirmar ser “mais alemão” do que os germânicos de sua época,
Nietzsche faz questão de se afastar de tudo o que representa “ser um alemão” de seu
tempo. Por vezes, prefere se associar a seus ancestrais que chama de “nobres

94
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sagaz. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução
de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 58.
95
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche, sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. Tradução de Claudemir Araldi. 1ª ed. São Paulo: Editora Unifesp, 2011, p. 32.
60

poloneses”96, e por outras, elogia os franceses, como sendo o povo verdadeiramente


nobre da Europa. Tudo para deixar claro sua ojeriza aos valores de seus
conterrâneos.

Em todos os lugares eu possuo leitores que são verdadeiras


inteligências “escolhidas”. (...) Em toda parte estou descoberto: não o
estou somente no país mais ordinário da Europa- a Alemanha...
Pensar germanicamente, sentir germanicamente! De tudo eu sou
capaz, porém isto está bem acima das minhas forças...97
Wagner é tomado como um exemplo da cultura alemã e sua arte é descrita, em
Ecce Homo, como um narcótico que adormece a sensação de vazio. O maestro é
criticado por ter se disposto a se “ornar de virtudes alemãs”.
Embora tenha tido um relacionamento de amizade e admiração com Wagner
em determinado período da vida – classificando-o como um dos poucos alemães com
quem tinha prazer de conversar – Nietzsche passa a difamar o efeito que o artista
provoca em seus conterrâneos que passam a se orgulhar ainda mais de suas
características germânicas, contribuindo para um crescente ufanismo que era
veementemente atacado por Nietzsche.

A minha desconfiança com o caráter alemão exprimi-a aos 26 anos,


para mim os alemães têm algo de impossível. Quando pretendo
imaginar um homem que repugne todos os meus sentidos, surge-me
logo à mente um alemão. (..) O alemão emparelha a si os outros (..)
Nunca passei uma hora aprazível com os alemães. (...) Não têm graça
nos pés, não sabendo nem sequer caminhar... No fundo os alemães
não têm pés; possuem somente pernas. Falta aos alemães a
convicção da própria vulgaridade.98
Por idealismo, podemos considerar todas as formas de pensamento que
acreditem em um mundo ou uma verdade ideal, a partir da negação do mundo efetivo.
Nesse aspecto, estão sob a égide de um idealismo as religiões judaico-cristãs, a
metafísica e o conjunto de comportamentos que buscam “sentimentos nobres”, uma
afetação comum aos moralistas. Considera o idealismo uma das características que
compuseram a baixeza da cultura alemã e que, por conseguinte, marcou sua
juventude:

96
Nietzsche afirmava ter alguma ascendência polonesa, mas a maioria dos seus biógrafos descarta
essa possibilidade.
97
NIETZSCHE, Friedrich. Porque escrevo bons livros. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p.
67
98
NIETZSCHE, Friedrich. O caso Wagner. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de
Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 123
61

O maldito “ idealismo” é a verdadeira fatalidade da minha vida, o que


nela há de supérfluo e estúpido, donde não surgiu nada de bom. (...)
Como consequência deste idealismo, eu me explico todos os erros,
todas as grandes aberrações do instinto e as modéstias que me
arrastaram bem longe do escopo prefixado à minha vida.99
Nietzsche critica os idealismos que servem de instrumento de poder ao passo
que determinam os valores morais que deverão pautar determinados grupos. A partir
dos ideais, nega-se a efetividade, em nome de uma busca por um ideal de “perfeição”.
Dessa maneira, é possível incutir um sentimento de culpa e ressentimento ao
rebanho, por meio de um sacerdote. Não se aceita aquilo que foi vivido que não se
enquadrou no ideal imposto. Nega-se, portanto, a própria natureza, os instintos e tudo
o mais que seja espontâneo.
A fórmula de “amor fati” teria a ver justamente com a contraposição ao
idealismo. Se o idealismo nega a vida tal como ela é, em função de um ideal ascético,
“amor fati” seria a prática de se reconciliar com tudo aquilo que foi vivido e não apenas
aceitar os caminhos incontroláveis da existência, mas verdadeiramente amar o
inescapável “destino”. “A minha fórmula para a grandeza do homem é “amor fati”: (...)
não basta suportar a necessidade e muito menos menoscabá-la – todo idealismo é
uma mentira diante da necessidade – deve-se amá-la...”100
O próprio Nietzsche põe em prática a sua fórmula de grandeza, transvalorando
uma fonte de ressentimento, quando afirma que, não fosse sua enfermidade que o
“reconduziu à razão”, permaneceria sob a irracionalidade do idealismo, que quase o
fez chegar ao fim. Aqui a razão deve ser tomada como uma grande razão, que envolve
corpo e instintos, que nasce com a individuação que só foi possível ao escritor quando
se viu apartado forçosamente das imposições do trabalho e das expectativas da
sociedade.
A decadência é tratada como uma negação da vida efetiva, que esconde o que
há de enigmático na existência e julga saber quais valores são bons. A moral cristã é
apontada como moral decadente, daqueles que se consideram superiores por serem
benévolos. “Não sou eu tão somente um decadente; sou também o contrário dum
decadente.”101

99
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sagaz. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução
de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 46.
100
Ibidem, p. 61.
101
Ibidem, p. 28.
62

Nietzsche classifica como decadentes, Sócrates, Platão e Schopenhauer.


Chama de instinto degenerante o idealismo proposto por esses autores, que funciona
como um espírito de vingança contra a vida. Propõe, como antítese, uma afirmação
suprema, nascida da abundância, da superabundância, uma afirmação irrestrita
acerca da dor. Portanto, a negação dos instintos humanos, do aspecto trágico da
existência, é o que leva uma sociedade a ser decadente.

A compaixão tem nome de virtude somente entre os decadentes. (...)


as mãos piedosas podem ter efeitos desastrosos sobre um grande
destino, sobre feridas não cauterizadas, sobre o privilégio de se
suportar uma grave culpa.102

A decadência, para Nietzsche, é incompatível com uma vida que se eleva e


afirma, pois na afirmação é necessário negar e destruir. O decadente, porém, prefere
viver de mentiras cômodas a romper com os valores postos, conservando uma visão
idealizada do mundo. Por isso que, para o autor, o otimista é tão decadente quanto o
pessimista e até mais nocivo do que ele.
A construção da imagem do filósofo se faz por meio da destruição de conceitos
como “verdade” e “unidade”. Por isso, o deus fragmentado seria aquele que carregaria
até Nietzsche todo o peso trágico da história humana, para lhe ajudar a desferir os
golpes necessários para desconstruir os valores postos. O filósofo se considerava um
seguidor da doutrina de Dioniso e dizia preferir ser um sátiro a um santo. A constante
homenagem ao deus é condizente com aquele que se considera dinamite, afirmando
a dor e a tragédia da vida.

(...) tenho o direito de me considerar o primeiro filósofo trágico, isto é,


a perfeita antítese de um filósofo pessimista. Antes de mim, esta
passagem da emoção dionisíaca à emoção filosófica não existia:
faltava a sapiência trágica.103

Em diversas outras passagens de suas obras, Nietzsche rende suas


homenagens ao criador do vinho que, segundo a mitologia, também teve de passar
por momentos de isolamento para alcançar o lugar de plenitude no Olimpo.
Se o mito Dioniso tem o papel de representar toda a história trágica humana
pregressa, fazendo com que Nietzsche venha a se denominar seu discípulo,

102
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sábio. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução
de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 32
103
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 77
63

Zaratustra seria a criação de Nietzsche que levaria a sua doutrina para o futuro. Pela
boca de Zaratustra falam o pensador e o ser humano Nietzsche, em toda a sua
profundidade. Em Assim falava Zaratustra, percorre o caminho de um herói trágico,
sofrendo longos períodos de exílio, acometido por pesadelos e dificuldades para levar
ao conhecimento dos homens a boa-nova que trazia. Trajetória muito parecida com a
de Nietzsche que padecia da falta de interesse e compreensão de seus
contemporâneos e que, inclusive, se queixava a amigos, na época, da pouca
popularidade de suas grandes obras.104
Em suas cartas, Nietzsche fala repetidamente de seu “filho” Zaratustra. Pode-
se vislumbrar, a partir dessa afirmação, uma paródia à igreja e a relação de Deus com
Cristo. Na igreja católica, Jesus é filho de Deus e, portanto, uma entidade separada,
objeto, efeito do primeiro. Porém, para a igreja, Cristo também é Deus, em forma
humana. Seria ele, portanto, semelhante ou idêntico a Deus? A partir desse
pensamento, Janz105 provoca: “Zaratustra é o filho, a criatura espiritual de Nietzsche,
diante da qual ele, como seu pai e autor, assume certa distância – ou seria Zaratustra
o próprio Nietzsche?”
Nietzsche afirma que tudo estava às avessas antes do aparecimento de
Zaratustra e que somente com ele recomeçavam as esperanças, sendo ele um feliz
mensageiro e uma fatalidade.
Zaratustra é descrito como o primeiro “psicólogo dos bons” e, posteriormente,
Nietzsche declara que “antes de mim não havia psicologia de espécie alguma”. Afirma,
ainda, que à época em que estava escrevendo Ecce Homo não havia dito mais
nenhuma palavra que “já não tivesse proclamado pela boca de Zaratustra”.
Dessa feita, pode-se concluir que a imagem de si para Nietzsche, embora
transitória e inconstante, é formada por uma forte marca dos valores dionisíacos e

104
Nietzsche escreveu, em carta à Malwida von Meysenbug, em maio de 1884: “Tenho esperança que
por agora, minha mais querida amiga, as duas últimas partes de Zaratustra estejam em suas mãos.
(…) Quem sabe quantas gerações serão necessárias para produzir alguns homens plenamente
capazes de apreciar o que fiz! Eu estou apavorado com o pensamento de que tipos desqualificados e
completamente inadequados um dia irão recorrer à minha autoridade. Mas este é o tormento de todos
os grandes mestres da humanidade: eles sabem que é grande a chance de sua maldição se tornar sua
benção. Farei o que puder para evitar ao menos os enganos mais grosseiros. Agora que construí este
vestíbulo para minha filosofia, devo voltar ao trabalho e não descansar enquanto sua estrutura principal
não estiver finalizada, antes que eu mesmo esteja.(…) Mas esta solidão, desde a infância! Esta cautela,
nas relações pessoais mais íntimas! Mesmo o carinho não pode mais me alcançar.
105
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 195 / 245.
64

condensa toda a sua doutrina e imagem de si em seu personagem Zaratustra, que


teria a incumbência de levar sua palavra adiante. Por outro lado, Nietzsche buscava
dissociar de sua imagem todo o tipo de idealismo, decadentismo e cultura germânica
de seu tempo.
Apesar de Zaratustra ter sido tratado pelo próprio Nietzsche como alguém que
apenas passa por ele – uma inspiração – e, portanto, um algo que não se deve
confundir com ele próprio106, nos parece que Zaratustra é o que mais se aproxima da
imagem que teria Nietzsche de si. Por meio dele, foram falados os pensamentos do
seu autor e, inclusive, as dores e o caráter profético e trágico do personagem eram
demasiado similares ao do filósofo.
Portanto, cabe uma reflexão, que se fará adiante, acerca dos movimentos de
Nietzsche, contrapostos com os de Zaratustra, ambos em batalha constante em
relação ao estar só e ao gregário. Não seriam os ciclos de afastamento e de
aproximação de Zaratustra semelhantes às descobertas de Nietzsche de si mesmo,
a partir do contato com os outros? De sua relação de repulsa e atração com seus
amigos, inimigos, leitores, críticos, e demais contemporâneos?

106
“Aqui sentava eu, à espera – à espera de nada, Além do bem e do mal, ora fruindo A luz, ora a
sombra, tudo apenas brincadeira, Tudo lago, tudo meio-dia e tempo sem meta. Subitamente, Amiga,
o um se tornou dois – E Zaratustra passou junto a mim...” ).
65

6 – NIETZSCHE E ZARATUSTRA – AFASTAMENTO E GREGARIEDADE

Nietzsche alternava-se entre isolamento e convivência. Segundo a


interpretação de Karl Jaspers, por meio, principalmente, das inúmeras cartas trocadas
por Nietzsche e seus amigos, percebem-se o sofrimento e as mudanças do autor no
curso de toda a sua vida adulta. Nietzsche sentia necessidade de partilhar, porém,
causava-lhe dor o fato de que ninguém podia fazer o suficiente para ele. Nem ele
próprio107.
Para o referido intérprete, “Nietzsche suporta o sacrifício que precisa realizar,
mas sofre sob o peso de uma resistência violenta. (...) Assim, atravessa a vida de
Nietzsche uma contradição necessária entre aquilo que ele quer como homem e
aquilo que ele quer como sustentador de uma tarefa”.108 Além desse conflito, a
necessidade de comunicar-se para divulgar sua “doutrina” encontra barreiras na falta
de leitores “à sua altura”.
O estudo dos ciclos de Nietzsche nos auxilia no entendimento de sua filosofia,
pois ele viveu como espírito livre, de acordo com as doutrinas que propunha, pagando
por vezes o preço caro da solidão e do sofrimento. Para Janz, a partir do momento
em que Nietzsche escreve Schopenhauer como educador, passa ele mesmo a se
comportar como um “educador em sentido amplo”. Assim, não basta, do ponto de vista
de Nietzsche, que um filósofo adote e aprimore uma teoria filosófica se não levar uma
vida heroica, menosprezando a felicidade material, cargos de honra e carreira. É
necessário voltar o olhar e pensamento à pergunta de sentido. Assim, escreveu no
esboço daquele texto: “Primeiro acreditamos em um filósofo. Depois dizemos: ele
pode até estar equivocado na forma como demonstra suas sentenças, mas as
sentenças são verdadeiras. Por fim, porém: Não importa o que dizem as sentenças,
a natureza do homem nos vale mais do que cem sistemas.”109
É fascinante buscar similaridades nos movimentos de Nietzsche e nos de
Zaratustra. Como uma dança poética, ambos alternam entre sofrimentos e alegrias,
solidão e gregariedade e, pela boca de Zaratustra, podemos ouvir a voz de Nietzsche.
Adiante seguimos, em ordem cronológica, algumas das “fases” de Nietzsche relatadas
em “biografias” que descrevem seus ciclos de isolamento e convívio. Intercalamos

107
JASPERS, Karl. Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche. p. 109
108
Ibidem, p. 110
109
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis, Editora
Vozes, 2016, p. 467.
66

essas “fases” com trechos de Zaratustra com os quais encontramos alguma conexão.
Os ciclos de Zaratustra, em ordem cronológica de aparição no livro, estão nos anexos,
juntamente com algumas fotos dos locais de Nietzsche.
Os primeiros eventos trágicos na vida de Nietzsche se deram quando ele tinha
cinco anos. Primeiro, a morte de seu pai (pastor de uma pequena comunidade) e
depois a morte de seu irmão de dois anos, fizeram a família ser forçada a se mudar
da casa onde moravam110, (onde ficava também a igreja em que o pai pregava) para
uma casa em Naumberg111.
Em Naumberg, Nietzsche começa a frequentar Knaben-Bürgerschule (escola
pública). A mãe já o havia ensinado a ler e escrever, porém, seguindo o conselho da
avó, que acreditava “ser saudável reunir os filhos de famílias cultas com as de
estamentos inferiores durante os primeiros anos escolares, para assim lhes transmitir
uma sensibilidade social”112, entendeu que a vivência seria salutar ao garoto. A
experiência fracassou, pois embora o pequeno “Fritz” aprendesse facilmente tudo que
lhe era ensinado, não conseguia se integrar aos outros garotos. A sua “capacidade de
recitar versos bíblicos e espirituais com uma expressividade que chegava a provocar
lágrimas”113 se contrapunha ao fato de que era uma criança solitária e isso não
mudaria. Desde já, se envolvia com a áurea tão protetora quanto perigosa e dolorosa
da singularidade que, durante toda a vida, o isolaria do convívio social.”114Já existia,
portanto, um pathos do distanciamento em Nietzsche desde cedo, algo que,
aparentemente não tinha sido ensinado, pois sua mãe tentara fazer com que a criança
estivesse mais próxima às mais “simples”. Em carta para Overbeck em 12 de
novembro de 1887 Nietzsche escreveu: “já como criança era sozinho e continuo sendo
hoje, em meus 44 anos de vida”.
Ainda criança, Nietzsche acaba por se afeiçoar por dois outros garotos de
famílias “nobres” que também não conseguiam se enturmar na escola, Wilhelm Pinder
e Gustav Krug. Por esse motivo, os três foram transferidos para uma escola
preparatória para o ginásio da catedral (Domgymnasium), onde Nietzsche permanece
até 1854, aos dez anos. Com o convívio entre os familiares dos amigos, Nietzsche

110
Fig.2
111
Fig.3
112
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 49.
113
Ibidem
114
Ibidem
67

entra em contato com a música e a poesia. Sua amizade é

em prol de determinados ideais, uma amizade educacional


(Bildugsfreundschaft). Por mais sólida que seja, falta-lhe qualquer
aspecto elementar e espontâneo. Já aos catorze anos de idade,
Nietzsche, a despeito do vínculo que mantém com os amigos, os
avalia e representa friamente.115

Em 1859, Nietzsche é admitido na escola superior de Pforta, instituição com regras


rigorosas em que os estudantes eram disciplinados a estudar e praticar esportes.
Novamente, não se enturmou facilmente e, durante uma excursão, enquanto seus
amigos se divertiam em uma taverna, isolou-se e escreveu os seguintes versos:
“Entregue a mim mesmo, / enquanto bebem nos átrios / até caírem de suas cadeiras,
/ exerço meu ofício de regente”.116
Com relação a Zaratustra, não há elementos sobre sua educação. O início do
livro se dá sob a narração de que ele teria se afastado por dez anos dos homens, na
companhia apenas de seus animais.117 Zaratustra sente necessidade, quando
completa quarenta anos, de compartilhar a sabedoria que adquiriu durante o
isolamento, por isso desce da montanha a fim de falar aos homens sobre o
Übermensch118. É utilizada a metáfora do acúmulo do mel pela abelha, em
comparação ao excesso de conhecimento adquirido. Zaratustra sente que é preciso
dividir o conhecimento acumulado e desce até um mercado público para tanto.
Percebe, porém, que em meio ao barulho os homens não são capazes de
compreender o que lhes está sendo ensinado e que sua boca não é para aqueles
ouvidos.119 Zaratustra sente que estava pregando feito um pastor.120
Entre 1860 e 1863, Nietzsche e seus amigos Krug e Pinder passam a escrever
textos e críticas literárias, fundando um grupo que chamaram de “Germânia”. O grupo

115
Ibidem, p. 55
116
ibidem, p. 75
117
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Als Zarathustra dreißig Jahre alt war,
verließ er seine Heimat und den See seiner Heimat und ging in das Gebirge. Hier genoß er seines
Geistes und seiner Einsamkeit und wurde dessen zehn Jahre nicht müde. p.4 (Todas as notas do texto
em versão original foram retiradas da versão bilíngue: “Also sprach Zarathustra / Thus Spake
Zarathustra, Bilingual Edition Translated by Thomas Common. Doppeltext”)
118
Super-homem, sobre-homem, além-do-homem e supra-homem são algumas das traduções para
Übermensch, conceito central em Nietzsche, que apresentaria uma nova forma de configuração
humana, pois segundo ele o “homem deveria ser superado”. Como não consideramos nenhuma das
traduções perfeitamente adequadas, o termo será mantido em seu original.
119
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: sie verstehen mich nicht, ich bin
nicht der Mund für diese Ohren. p.34
120
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: nun rede ich ihnen gleich den
Ziegenhirten. p.34
68

se desfaz pelo fato de Nietzsche se tornar extremamente crítico e de uma ironia


ofensiva direcionada à produção dos colegas, o que acaba afetando também os
vínculos de amizade.
Em 1864, termina os estudos em Pforta e viaja para Bonn com um amigo, Paul
Deussen121, para aproveitar alguma liberdade após seis anos de rígidos estudos.
Decide se associar a uma corporação estudantil chamada “Confraria Franconia”.
Pensava que ali encontraria quem pudesse compartilhar pensamentos sobre literatura
e música, mas logo se aborreceu ao perceber que os confrades passavam mais tempo
em bebedeiras e aventuras eróticas. Preferia caminhar sozinho durante as noites e
visitar os túmulos de grandes artistas como os de Schumann e Schlegel, ou tomar chá
lendo tragédias gregas. Acaba por abandonar a confraria em 1865, saindo sem se
despedir e sem devolver as insígnias. Depois, envia uma carta que é recebida com
indignação, pelo tom arrogante e professoral.
Zaratustra, no aforismo “De passagem”, no caminho de volta para sua
montanha, depara-se com um “tolo” que vivia em frente à porta da grande cidade. O
“tolo” bradava contra a cidade, reclamando dos vícios e das almas deprimidas do local.
Zaratustra tapa-lhe a boca e lhe ensina que se alguém não é mais capaz de amar um
lugar, então esse alguém deve partir de lá.122 E assim o fez.
Entre 1865 e 1869, Nietzsche dedica-se ao estudo da filologia em Leipzig,
tendo predileção pelas aulas de seu professor Ritschl123, que promovia o
desenvolvimento de um senso crítico nos alunos. Nessa época, Nietzsche escreve:
“pretendo me tornar um professor verdadeiramente prático e despertar sobretudo a
sobriedade e a autorreflexão necessária nos jovens alunos, que os capacitarão a
manter em vista o “por que?”, o “que?” e o “como?” de sua ciência.” Nesse mesmo
período, a partir da leitura de Schopenhauer, Nietzsche passa a se interessar mais
por Filosofia, adquirindo uma distância fria ao cristianismo e assimilando o caráter
trágico da existência. Durante os estudos na universidade tem uma grande amizade
com Erwin Rohde124. Eram chamados de “os dióscuros”. 125
Compartilhavam das

121
Paul Jakob Deussen (1845-1919). Professor de filosofia, fundador da Schopenhauer Society, iniciou
a amizade com Nietzsche por conta da admiração recíproca a Schopenhauer
122
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: wo man nicht mehr lieben kann, da
soll man – vorübergehn! p.518
123
Friedrich Wilhelm Ritschl (1806-1876) Professor de Teologia clássica da universidade de Leipzig
124
Erwin Rohe (1845-1898). Filólogo e professor, estudou com Nietzsche em Leipzig.
125
Os dióscuros são os gêmeos Castor e Polideuces (ou Pólux), filhos de Zeus e Leda, esposa do rei
de Esparta. Segundo a lenda, os gêmeos têm a mesma mãe, mas pais diferentes. Por isso, Polideuces
era imortal, enquanto Castor não era. Mesmo sendo filhos de pais diferentes, Castor e Pólux
69

mesmas ideologias, incluindo uma admiração por Wagner e Schopenhauer. Rohde


tinha grande sensibilidade artística e dominava diversas línguas. Nietzsche não tinha
uma relação de altivez com ele. Para Jaspers, o fato de aquela amizade não ter sido
constante era, para Nietzsche, um símbolo de que, sob a pretensão absoluta de sua
veracidade existencial, não poderia ele “viver no mundo burguês, mesmo lá onde seus
sustentadores faziam parte da aristocracia humana.”126
No ano de 1869, por indicação de seu professor Ritschl, é convidado à cátedra
na Basiléia. Além de ser uma posição de destaque rara para um jovem de apenas 24
anos, o salário era atrativo e o filósofo decide ir. Para tanto, Nietzsche deveria abdicar
de sua cidadania prussiana. Como também não permaneceu tempo suficiente na
Suíça para adquirir cidadania, Nietzsche deixa de ser alemão, para ser tão somente
europeu, o que vinha de encontro ao seu incômodo com o crescente nacionalismo
alemão, que sustentava uma pretensa superioridade da cultura germânica em
detrimento das demais (movimento que, como sabemos, resultou em um dos capítulos
mais horrendos da história da humanidade).
Da mesma maneira que Nietzsche se incomodava com toda aquela exaltação
dos homens a si próprios, Zaratustra narra ter voado ao futuro e que se horrorizou por
ter lá encontrado apenas “o tempo” como único contemporâneo dele127. Ou seja, não
haveria homens no futuro, o que lhe causou um desespero. Ao retornar, passou a ver
com outros olhos os homens que se encontravam na “Terra da cultura”. Zaratustra
põe-se a rir daqueles homens vazios, que se orgulhavam pelo fato de acreditarem não
ter crenças e superstições. Zaratustra zomba daqueles “homens atuais”, que se
assombravam deles mesmos, e se pergunta para onde ainda teria que “subir com seu
desejo”, pois apesar de ver “terras natal” por todas as partes, não encontrava lar em
lugar algum. Decide, então, que a terra que ele ama é a terra de seus filhos (e não a
de seus pais) e que essa terra se encontraria nos mares mais remotos.128
Na Basiléia, pela primeira vez, Nietzsche não estava sob o julgo de um líder

desenvolvem a mais bela amizade e se tornam inseparáveis, daí serem chamados dióscuros (filhos de
Zeus).
126
JASPERS, Karl. Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche. Tradução de Marco Antonio Casanova.
1ª ed. São Paulo: Editora Forense Universitária, 2015, p. 110.
127
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Zu weit hinein flog ich in die Zukunft:
ein Grauen überfiel mich. Und als ich um mich sah, siehe! da war die Zeit mein einziger Zeitgenosse.
p. 341.
128
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: So liebe ich allein noch meiner
Kinder Land, das unentdeckte, im fernsten Meere: nach ihm heiße ich meine Segel suchen und suchen.
p. 348.
70

hierárquico. O nível intelectual de seus pares era bastante elevado e lá estava mais
próximo de um homem extraordinário que havia conhecido: Richard Wagner. Apesar
de estar rodeado de personalidades que lhe interessavam, Nietzsche volta a se sentir
deslocado. Em carta a sua mãe, em 1869, escreve:

Percebo nitidamente como a atividade desejada, quando se torna


oficial e profissional, se transforma em amarra, que por vezes tento
irromper impacientemente. Em momentos assim invejo meu amigo
Rohde, que viaja pela Campanha e Etrúria, livre como um animal do
deserto. O que mais me aborrece é a massa abominável de colegas
venerados que me convidam noite após noite, cumprindo assim sua
obrigação: de forma que já me tornei bastante engenhoso em rejeitar
convites.”129

Na terceira parte do livro, Zaratustra entra em uma embarcação e queda-se


silente e surdo por dois dias. Depois, porém, desata a falar muito. Restando quatro
dias para chegar às Ilhas Bem-Aventuradas, sentiu-se feliz e dominou a dor, pois
percebeu que estaria, em breve, novamente só e encontraria à tarde com seus
amigos. Ao chegar em terra firme, antes de se dirigir à sua montanha e à sua caverna,
deu muitas voltas e percebeu que os lugares que habitavam os homens tinham ficado
muito pequenos. E então se pergunta: “Quando chegarei à minha pátria, onde não
precisarei me curvar ante os pequenos?”130
Em 1870, Nietzsche se apresenta ao exército alemão para servir como
enfermeiro na Guerra Franco-Prussiana. Retorna pouco tempo depois com difteria e
disenteria, tendo testemunhado imagens apavorantes do campo de batalha. Escreve,
em carta de outubro de 1870:

Procurei refugiar-me na ciência de todas a imagens terríveis que a


viagem me mostrou. (...) Meu desejo de retornar ao campo de batalha
não se cumpriu; minha saúde estava abalada demais, e ainda agora
sofro com agitação nervosa e fraqueza súbita, condições estas que
me obrigam a manter uma rotina e muita tranquilidade.131

Na mesma época escreve em carta ao amigo Gersdorff: “Nós dois sabemos o que
devemos pensar da vida. Mas precisamos viver, não para nós”.
Zaratustra, em certo momento, se isola e sai a correr com “pés quentes” pelo

129
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis, Editora
Vozes, 2016 p. 266
130
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: O wann komme ich wieder in meine
Heimat, wo ich mich nicht mehr bücken muß – nicht mehr bücken muß vor den Kleinen! p. 467
131
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 307.
71

Monte das Oliveiras que chama de seu132. Lá, afirma que a solidão, para alguns, é
fugir para a enfermidade. Para outros é fugir daqueles que estão doentes.133
Depois de diversas tentativas fracassadas de se transferir para uma cadeira de
professor de Filosofia, Nietzsche deixa a busca por ser um mestre em Filosofia, para
se tornar um filósofo. Em 1871, lança sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia,
sob a influência de Wagner, por quem Nietzsche, 30 anos mais jovem, nutria grande
admiração. Janz considera que foi com ele, para ele e, mais tarde, contra ele que
Nietzsche dialogou constantemente, desde seu primeiro livro, até o ataque em 1888
a um Wagner já morto.134
Há semelhanças de Wagner com o personagem “O Encantador” (der
Zauberer), que aparece na parte final de Zaratustra. Um homem mais velho, que
usava de sua arte para, supostamente, ser um redentor do espírito. Zaratustra o
chama de “pavão”, “oceano de vaidade”. O homem punha-se a falar sozinho,
reclamando a um Deus incógnito. Zaratustra, então, o agride e o faz assumir ser um
enganador. O homem assume sua condição e Zaratustra lhe oferece sua caverna
como abrigo.
No final de 1871, Nietzsche comunica-se por meio de diversas cartas para
externar seu contentamento por estar rodeado de amigos e por ter produzido uma
peça musical descontraída. No fim do ano, porém, comunica: “passarei o Natal desse
ano sozinho em Basiléia. Preciso de tempo e solidão para refletir sobre minhas seis
palestras e para me acalmar”.135 Em 1872 dá suas primeiras palestras em que se
apresenta como um crítico cultural e social, valendo-se de exemplos de sua juventude
e com expressão eloquente. Em sua primeira palestra assim expressa:

Falas com menosprezo da tarefa de um professor? E queres então,


numa separação hostil daquela massa, levar uma vida solitária? (...)
Acreditas alcançar num salto, imediatamente aquilo que eu, após
longa e persistente luta para poder viver como filósofo, consegui por
fim conquistar? E não temes que a solidão se vingará? Tenta ser um
ermitão da educação – é preciso ter um excesso de riqueza para poder
viver para todos! –Discípulos estranhos! Acreditam ter sempre que
imitar sempre e justamente o mais difícil e mais sublime que só o

132
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Inzwischen laufe ich mit warmen
Füßen kreuz und quer auf meinem Ölberge. p. 501
133
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Des einen Einsamkeit ist die Flucht
des Kranken; des andern Einsamkeit die Flucht vor den Kranken. p. 507
134
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 354.
135
Ibidem, p. 340.
72

mestre pôde alcançar; quando justamente eles deveriam saber o quão


difícil e perigoso isso é e quantos talentos formidáveis ainda ruirão
diante deste desafio!”136

Tanto o tom do discurso de Nietzsche feito aos seus alunos, quanto o conteúdo,
são muito próximos dos discursos de Zaratustra. Destacamos aqui a fala que faz o
personagem em “O caminho do criador”, quando provoca aqueles que querem
encontrar o caminho para si mesmos, a provarem a sua força e seu direito para tanto:

Podes ser o teu próprio juiz e capataz da tua lei?137” Prevê que aqueles
que busquem tal caminho se verão solitários em determinado
momento. O caminho do criador é um discurso poderoso que instiga
àquele que quer romper a barreira do rebanho a negar o sentimento
de rebanho que há em todos que por muito tempo viveram em
comunidade. Aqui se pode retomar a parábola das três metamorfoses,
pois para o criador é necessário percorrer os caminhos do camelo, do
leão e da criança. É necessário se isolar e negar os valores postos, tal
qual o leão, antes de ter força para ser a criança criadora. Depois de
conseguir esse isolamento, então o solitário terá um novo desafio - o
de entender e buscar o porquê de sua liberdade. Não se trata de uma
fuga, mas sim de um movimento de busca com o fim de ser forte e de
criar. Por fim, como um ditirambo, aponta ao criador o difícil caminho:
“Vai-te para o isolamento, meu irmão, com teu amor e com tua criação,
e tarde será que a justiça te siga, claudicando. Vai-te para o
isolamento com minhas lágrimas meu irmão. Eu amo o que quer criar
qualquer coisa superior a si mesmo e dessa arte sucumbe.”138

Ainda no ano de 1872, Nietzsche faz a última visita a Tribschen, local de


residência de Wagner, e que visitou por 25 vezes em 3 anos. O local idílico era um
refúgio para Nietzsche, onde ele encontrava aqueles com quem conseguia partilhar
de seus pensamentos e onde lhe eram apresentadas pessoas interessantes. É
possível encontrar paralelos entre Tribschen, que ficava à beira do Lago Lucerna e
“As Ilhas da Boa Aventurança” de Zaratustra. Na ocasião da última vista de Nietzsche
a Tribschen, Wagner estava se transferindo para Bayreuth139 e Nietzsche se despede
melancolicamente de um lugar que havia sido fundamental para sua formação
intelectual e artística. No início de Zaratustra “III”, Zaratustra escala uma montanha à
meia noite. Ao chegar ao cume da montanha, avista o mar e se vê solitário. Pergunta-

136
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis, Editora
Vozes, 2016, p. 359.
137
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Kannst du dir selber Richter sein
und Rächer deines Gesetzes? p. 172
138
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Mit deiner Liebe gehe in deine
Vereinsamung und mit deinem Schaffen, mein Bruder; und spät erst wird die Gerechtigkeit dir
nachhinken. Mit meinen Tränen gehe in deine Vereinsamung, mein Bruder. Ich liebe den, der über sich
selber hinaus schaffen will und so zugrunde geht. p. 179
139
Fig.3
73

se de onde vêm as mais altas montanhas e responde a si mesmo que elas vêm do
mar. Desce, então, até às margens do mar e, por fim, sente-se cansado. Lembra de
seus companheiros e chora de cólera e ansiedade.
Após a publicação das primeiras “Considerações Extemporâneas”, Nietzsche
recebe, de parte dos acadêmicos, críticas negativas à sua obra: “desistiu da docência
e da ciência e se tornou profeta de uma religião não religiosa e de uma filosofia não
filosófica”, e vê parte da comunidade filológica, que antes o venerava, afastar-se dele.
Zaratustra também sofreu por trazer pensamentos que estavam a frente de seu
tempo. No aforismo das “Antigas e das novas tábuas” ele aguarda sentado, por entre
as antigas tábuas quebradas e as novas, meio escritas, a hora de poder voltar aos
homens, para espalhar a sua doutrina. Ali, decide fazer um grande discurso de si para
si mesmo e, após longa fala, aguarda pelo momento do “grande meio-dia”, em que
espera ser vitorioso.
Entre os anos de 1873 e 1876 Nietzsche luta para satisfazer a três exigências
e harmonizá-las: a profissão de professor de teologia, o chamado filosófico e a
lealdade a Wagner. Uma das consequências do acúmulo de atividades foi uma série
de problemas relacionados à visão, levando o filósofo a ser proibido de ler, tendo que
lecionar sem anotações.
No verão de 1874, enquanto produzia “Schopenhauer como educador” escreve
a Rohde:

Voltei a fazer grandes planos com a finalidade de me tornar


completamente independente e me desvincular de todas as relações
oficiais com o Estado e a universidade, para refugiar-me na mais
atrevida existência singular, miserável e simples, mas digna.
Entrementes, escolhi Rothemburg ob der Tauber como meu castelo
particular e eremitagem. (...) Lá domina ainda o antigo espírito alemão;
e desdenho as cidades mistas sem caráter, que nada são por
inteiro140.

Curiosamente, apesar da intenção de ser livre, Nietzsche ainda tem aspirações


burguesas, como o casamento. No mesmo ano de 1874, escreve à amiga Malwida141
que tem “amigos melhores e mais numerosos do que merece, mas que desejava uma
boa mulher.”142

140
Ibidem, 469
141
Malwida von Meysenburg (1816-1903) Escritora alemã que Nietzsche conhece a partir do ciclo de
Wagner e que, pela idade e maturidade exerce um papel protetor em relação a Nietzsche.
142
MARTON, Scarlett. Nietzsche. Editora Brasiliense, 1983. P. 59
74

Em abril de 1876, Nietzsche tem a primeira recusa a um pedido de casamento.


Após enviar a proposta em uma carta a Mathilde Trampedach, uma letona nove anos
mais nova que ele, recebe a resposta negativa com alguma naturalidade e mansidão,
apenas se recolhendo novamente à sua solidão. Para Janz, Nietzsche havia visto na
jovem a possibilidade de se libertar de sua timidez no convívio com outras pessoas143,
visto que ela tinha um espírito leve e um juízo livre. No mesmo período, Overbeck,
com quem morava havia mais de 5 anos, se casa e deixa o convívio diário com
Nietzsche. Em seguida, casou-se seu outro melhor amigo, Rohde.
Em 1876 ocorre, ainda, o desânimo irrevogável em relação a Wagner.
Nietzsche se decepciona com a suscetibilidade de Wagner perante seus aduladores
e ao nacionalismo alemão para viabilizar o projeto de Bayreuth.
No início de sua jornada, Zaratustra profere uma série de discursos, dentre
eles, “Das moscas na praça pública” que parece ser inteiramente dedicado à
decepção com Wagner, que deixou-se levar pela vaidade e pela fama, colocando sua
música em favor do nacionalismo. O discurso traz a imagem de contraposição entre
a árvore silenciosa que aponta para o mar e a praça pública com ruído de moscas
venenosas, que são aduladoras e castigam as virtudes144. Zaratustra incita o ouvinte
a fugir para a solidão, pois longe da praça pública estão os inventores de novos
valores. Insiste, ainda, que aqueles que têm virtudes têm sua energia sugada pelos
pequenos e, por isso, devem fugir para onde o vento sopra forte.
Em 1878, publica Humano, demasiadamente humano e é criticado por Wagner
e por Rohde. O círculo intelectual ao qual pertencia, em boa parte, se incomoda com
a produção de Nietzsche, isolando-o. O afastamento de grandes amigos é para
Nietzsche um sofrimento, mas o abismo que separa a visão de mundo de Nietzsche
da de seus antigos companheiros, torna impossível qualquer tipo de troca.
No aforismo “dos sábios celebres” Zaratustra se contrapõe aos “sábios
célebres”, que “servem ao povo” e a seu “desejo de verdade”. Zaratustra se diz mais
autêntico, pois vai com sua vontade-leão aos desertos de Deus, diferentemente dos
sábios, que se abrigam nas cidades, onde são “bem alimentados”. Se diz águia, que

143
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 499.
144
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Würdig wissen Wald und Fels mit
dir zu schweigen. Gleiche wieder dem Baume, den du liebst, dem breitästigen: still und aufhorchend
hängt er über dem Meere.Wo die Einsamkeit aufhört, da beginnt der Markt; und wo der Markt beginnt,
da beginnt auch der Lärm der großen Schauspieler und das Geschwirr der giftigen Fliegen.
75

conhece o assombro do espírito e que pode voar sobre abismos, ao contrário dos
sábios que fazem da sabedoria um “hospital de maus poetas” e que continuam a ser
povo – “povo de olhos fracos”.
Em 1879, por conta de um esgotamento físico e mental, Nietzsche pede
demissão da Universidade da Basiléia e decide dedicar-se integralmente à Filosofia,
assim buscando as melhores condições físicas para sua escrita. No mesmo ano, vai
pela primeira vez a Sils-Maria, cidade nos alpes suíços que fazia bem ao filósofo e
para onde voltaria pelos sete verões seguintes. Lá, faz caminhadas solitárias de até
dez horas e por vezes se perde “nessas alturas desoladas e, em outras, dormiu e teve
sonhos grandiosos ou terríveis que evocou em seus poemas e em sua música”.145 No
Natal do mesmo ano, Nietzsche tem uma de suas piores crises e relata a Paul Rée146
“ter escapado por pouco da morte, mas ter ficado a partir dali terrivelmente
atormentado.” Nos anos seguintes, Nietzsche passa por mudanças importantes em
seu estilo literário. Passa a escrever, a partir de “O andarilho e sua sombra”, por meio
de diálogos no estilo socrático. No caso do livro mencionado, os diálogos se davam
entre o poeta-filósofo e ele mesmo.
No discurso “Do amigo”, Zaratustra aborda as conversações consigo mesmo
que faz um sujeito solitário. “Eu e eu mesmo estamos sempre em conversações
incessantes.”147 Dessa maneira, o amigo é sempre um terceiro, que é uma “boia que
impede a conversação dos outros dois de se afundar em profundidade”.148 Um solitário
é profundo e por isso precisa de um amigo à altura. E indaga: “Serás tu para teu amigo
ar puro e soledade, pão e remédio?”149
Em 1881, Nietzsche entra em contato com a obra Carmen, de Georges Bizet.
A composição do francês encanta o filósofo, que passará a assistir as apresentações
dessa ópera sempre que possível. Em carta a Carl Fuchs150, escreve: “Você não deve
levar a sério o que digo sobre Bizet; assim como sou, esse Bizet não entra mil vezes
em cogitação para mim. Mas ele tem um efeito muito forte como antítese irônica a

145
LLOSA, Mario Vargas. Nietzsche em Sils Maria. Artigo publicado em El País em 26 de julho de 2015.
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/26/opinion/1437930177_592638.html
146
Paul Rée (1849-1901). Médico, filósofo e escritor alemão, conheceu Nietzsche na Universidade de
Basiléia em 1873.
147
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ich und Mich sind immer zu eifrig im
Gespräche: wie wäre es auszuhalten, wenn es nicht einen Freund gäbe? p.151
148
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: der Dritte ist der Kork, der verhindert,
daß das Gespräch der Zweie in die Tiefe sinkt. p. 151
149
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Bist du reine Luft und Einsamkeit
und Brot und Arznei deinem Freunde? p.153
150
Carl Fuchs (1838-1922). Compositor e crítico musical alemão.
76

Wagner.”151
Em 1882, conhece Lou Salomé152, dezesseis anos mais jovem, por quem
Nietzsche se apaixona e chega a propor casamento por meio do amigo em comum,
Paul Rée. Posteriormente, Nietzsche faz o gesto pessoalmente diante da estátua do
leão, em Lucerna.153 Nietzsche não sabia, porém, que Rée e Salomé já vinham se
encontrando secretamente, um dos motivos pelo qual Salomé nega-lhe o pedido e
propõe que sejam, os três, parceiros em uma comunidade de viagens e trabalho, com
o que Nietzsche consentiu. Durante os anos seguintes, Nietzsche será
constantemente ignorado em suas pretensões em relação a Lou, o que lhe trará
diversos sofrimentos.
Zaratustra é concebido em 1883 e, coincidentemente no dia em que Nietzsche
coloca o ponto final à primeira parte do livro (escrita em completa solidão em um
vilarejo da Riviera italiana), Wagner chega ao fim de sua vida.154 Em um primeiro
momento, Nietzsche sente-se inseguro em relação à obra, chamando Zaratustra de
“uma tolice” e pensa em uma fuga. Overbeck tenta demovê-lo da ideia, sugerindo que
Nietzsche volte a lecionar.155 A perda de Wagner, traria uma crescente melancolia a
Nietzsche, em especial nas datas que se comemorariam os aniversários do músico.
A insegurança de Nietzsche em relação a seu livro nos remete ao trecho em
que Zaratustra tem um sonho em que fala com uma dama chamada “hora mais
silenciosa”. Por conta do sonho, conclui que deveria se afastar de todos e voltar à
solidão, pois seus frutos “já estavam maduros, mas ele Zaratustra ainda não estava
maduro para seus frutos”156. Esse aforismo encerra a segunda parte do livro, com
Zaratustra retornando sozinho, chorando pela noite, para seu caminho solitário.
Após as primeiras críticas positivas a Zaratustra, Nietzsche se fortalece e passa

151
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petróplis, Editora
Vozes, 2016 p. 74 v.II
152
Lou Salomé (1861-1937) filósofa, poeta e psicanalista, nascida na Rússia Imperial, de família franco-
alemã
153
Fig.7
154
MARTON, Scarlett. Nietzsche. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983, p. 69.
155
(...)” ‘Tenho uma noção da imperfeição, dos erros e dos equívocos de todo o meu passado espiritual
que supera qualquer noção. Não há como consertar isso. Jamais farei algo bom. Para que ainda fazer
algo! – Isso me lembra da minha última tolice, estou falando do ‘Zaratustra’. Estou curioso para saber
se ele possui algum valor. – eu mesmo sou incapaz de fazer qualquer avaliação nesse inverno, e é
possível que eu tenha me enganado terrivelmente em relação ao seu valor’. Ressurgem então
pensamentos de uma fuga para a completa solidão em que ninguém o conhece, ninguém o procura”.
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 151.
156
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Und es sprach zum letzten Male zu
mir: »O Zarathustra, deine Früchte sind reif, aber du bist nicht reif für deine Früchte! P. 431
77

a assumir uma “convicção missionária”, tal qual todos os homens extraordinários da


história. Em maio de 1883, retoma a ideia de criar um monastério para espíritos livres,
buscando desaparecer do barulho da cidade e se distanciar do âmbito de seu tempo.
Escreve a Overbeck: “Tenho um projeto para o verão: encher o castelo bem equipado
na floresta, instalado pelos beneditinos para o descanso, com pessoas amigas.
Pretendo agora também procurar novos amigos. Permaneço, porém, fiel ao principal,
acredito que me espera uma solidão mais profunda e rigorosa do que nunca.”157 O
projeto do monastério, porém, não se concretiza, por falta de pessoas disponíveis que
poderiam preencher os requisitos para participar do empreendimento, causando
decepção a Nietzsche diante das negativas aos seus convites.
Em “Zaratustra IV”, ao retornar para sua caverna, Zaratustra deparou-se com
todos os homens “superiores” que havia encontrado. Percebeu que ouvia um grito de
angústia que era proveniente deles todos, juntos. Concluiu que aqueles homens
singulares não eram os homens superiores que ele esperava, que naqueles homens
ainda havia muito de grande ânsia, de grande tédio, de grande cansaço e das
reminiscências de Deus sobre a Terra,158 e que esperava ainda seus filhos, os leões
risonhos.159
Nos meses seguintes, vive entre Nice e Sils-Maria e se relaciona com mulheres
interessantes, introduzidas por Malwida Von Meysenbug. Resa Von Schinhofer tem
uma relação de admiração com Nietzsche e passa algumas semanas com ele em
Nice, sendo introduzida a diversas leituras e conhecimentos pelo filósofo. Meses
depois, conhece Meta Von Salis, primeira mulher a se tornar doutora em Zurique, com
apenas 32 anos. Também há um encantamento dela pela personalidade fascinante
de Nietzsche. Nenhum dos dois relacionamentos, porém, se tornam mais do que
amizades com contatos esporádicos. Apesar de Nietzsche ser gentil com as mulheres,
há um distanciamento provocado por seus problemas de saúde e comportamentos
inconstantes que fazem ele mesmo se afastar dos relacionamentos para manter sua
independência eremítica.
Movimento parecido ocorre em Zaratustra II: depois de discursos e andanças
com seus discípulos, Zaratustra se aproxima de um baile e dança e canta com as

157
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 157.
158
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Menschen der großen Sehnsucht,
des großen Ekels, des großen Überdrusses und das, was ihr den Überrest Gottes nanntet. p. 840
159
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: lachende Löwen p. 845
78

donzelas, bendizendo a vida e se relacionando com as pessoas com alegria. Ao final


do baile, as donzelas se afastam e Zaratustra fica triste.
Entre 1884 e 1885, Nietzsche escreve a quarta e última parte de Zaratustra. No
período, está descontente com seu editor, que além de passar por problemas
financeiros e atrasar as tiragens dos livros, está envolto com publicações de textos
antissemitas e, por isso, tem poucos leitores para seus livros.
A preocupação com uma má intepretação de seus ensinamentos também é
uma realidade de Zaratustra que, no início da segunda parte do livro, se aparta dos
homens por meses e anos, como um “semeador que aguarda a colheita”. Um sonho
(“O menino no espelho”), porém, lhe provoca a se preocupar com o mau uso que
poderiam fazer de sua doutrina. Tal qual ocorreu no início do livro, Zaratustra está
cheio de sabedoria160 e precisa compartilhá-la. Dessa vez, porém não descerá mais
ao vale ou às multidões. Irá às Ilhas Bem-Aventuradas, onde se encontram seus
amigos e seus inimigos.
Em 1885, Nietzsche tem uma nova decepção: Henrich Von Stein, jovem filósofo
que recebeu em Sils-Maria e quem via como um amigo, não se esforçou para voltar a
encontrá-lo em outras oportunidades. Nietzsche lhe envia uma carta comovente e
sensível e recebe uma resposta fora de tom com um convite para participar de uma
comunidade wagneriana. Nietzsche tenta voltar aos seus hábitos; trabalha, caminha,
medita e viaja por diversas cidades: Naumburgo, Liepzig, Munique, Florença Genova,
Nice. Percebe que, nas bibliotecas e livrarias, não há nenhum livro seu e se chateia
com a consequência da fama de “ateu, anticristão declarado”161. Ao retornar para
Naumburg para um tempo com a mãe, escreve a Overbeck:

Me concedo o direito de reconhecer o sentido da vida no


conhecimento. Disso faz parte a alienação, o distanciamento, talvez
também o esfriamento. Você deve ter percebido como os “sentimentos
gélidos” se tornaram a minha especialidade: isso é o resultado de uma
vida “nas alturas”, na montanha ou no ar. Tornei-me sensível ao mais
leve toque de calor e torno-me cada vez mais sensível – ah, agradeço
cada vez mais pela amizade.”162

160
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Meine wilde Weisheit wurde trächtig
auf einsamen Bergen; auf rauhen Steinen gebar sie ihr Junges, Jüngstes.Nun läuft sie närrisch durch
die harte Wüste und sucht und sucht nach sanftem Rasen – meine alte wilde Weisheit!Auf eurer Herzen
sanften Rasen, meine Freunde! – auf eure Liebe möchte sie ihr Liebstes betten! p. 233
161
MARTON, Scarlett. Nietzsche. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983, p. 74.
162
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis, Editora
Vozes, 2016, p. 313.
79

No aforismo “O regresso”, Zaratustra trava um diálogo com a solidão,


emocionado por ter voltado à sua pátria (a solidão), que lhe diz que estava ele mais
abandonado entre a multidão do que jamais esteve com ela.163 A solidão, de forma
afetuosa, discursa a Zaratustra acerca da diferença entre solidão e abandono.
Zaratustra reconhece que, entre os homens, aprendeu, por compaixão, a comer ou a
trocar palavras, a se deixar picar pelas moscas venenosas, mas que nos montes da
solidão, pode novamente respirar os ares da liberdade.
No final de 1885, Nietzsche escreve à mãe: “Sete anos de solidão chegam
agora ao fim, no fundo, não sou feito para a solidão e agora, como não vejo como me
livrar dela, sinto todas as semanas tamanho e repentino cansaço da vida, que isso me
deixa doente”.
Por vezes, a falta de companheiros faz Nietzsche hesitar sobre a importância
de sua tarefa, duvidando de si e de seu valor. No aforismo “O adivinho”, Zaratustra foi
acometido por uma grande tristeza ao ouvir da boca de um adivinho, um vaticínio de
que todo o trabalho havia sido inútil e de que todas as fontes iriam se secar de tal
maneira que era necessário ir em busca de um mar em que seria possível se afogar164.
Zaratustra passa três dias calado, em uma espécie de transe, e depois que retorna do
sonho, divide com todos um pesadelo que tivera. Depois disso, ainda sem reconhecer
ninguém, se levanta e tem uma espécie de epifania, recuperando sua boa saúde.
Pede boa comida e bebida e pronuncia, ironicamente, uma convocação ao adivinho
para que lhe acompanhe para mostrar um mar para que possa ele, adivinho, se
afogar.
Em 1886, Nietzsche passa um período de isolamento em Veneza, no
apartamento de seu amigo Koselitz. Nesse período, escreve “Além do bem e do Mal”.
Com a proposta de revalorizar todos os valores e contestar a própria ideia de
“verdade”, Nietzsche não só rompe com a tradição filosófica antiga e com o
cristianismo, mas com a base da filosofia moderna, sofrendo, novamente, diversas
críticas de amigos e colegas.
O início da quarta parte do livro165 se dá com a narrativa de que Zaratustra

163
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: und daß du unter den Vielen
verlassener warst, du Einer, als je bei mir! p. 533
164
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ach, wo ist noch ein Meer, in dem
man ertrinken könnte. p. 389
165
Muitos intérpretes consideram os escritos relativos à quarta parte do livro de maneira afastada dos
demais, pois acreditam que essa parte tenha sido adicionada posteriormente, de maneira contrária a
intenção do autor.
80

passou anos isolado em sua caverna, a ponto de seus cabelos ficarem brancos. Após
conversar com seus animais, decide subir ao cume da montanha e, novamente,
aparece a alegoria do mel, tal qual o início do livro. Dessa vez, porém, em vez de
Zaratustra descer aos homens para partilhar do mel, o dissipou inteiramente, para
poder fabricar mel novo.
Nietzsche recebe também algumas críticas positivas sobre Além do bem e do
mal, como a de Widmann, que dizia que o texto “continha dinamite”, e de seu amigo
e ídolo, Burckhardt. Nietzsche, apesar de honrado com os elogios, reclama:

A carta de Burckhardt me entristeceu, apesar de falar nos mais altos


tons sobre mim. Mas o que me vale isso agora! Eu desejaria ouvir:
“Este é meu sofrimento! Foi isso que me calou!” Apenas nesse sentido,
meu velho amigo Overbeck, sofro com a minha ‘solidão’. Pessoas me
fazem falta, apenas aquelas com as quais tenho em comum as minhas
preocupações, minhas preocupações! ”166

Zaratustra, faz uma incursão em uma ilha com uma montanha de fogo, onde
diziam haver um penhasco que desembocava no inferno. Lá, trava conversa intensa
com o temível “cão do fogo”. No diálogo, compara Estado e Igreja e o interlocutor
dissimulado termina a conversa fugindo assustado com os argumentos do
protagonista. Zaratustra retorna da ilha para contar seu feito aos seus discípulos, mas
ninguém o ouve, pois estão todos falando dos grandes feitos anteriores de Zaratustra.
Ele então, ao perceber que não estavam valorizando sua presença e nem sequer lhe
ouvindo, pergunta-se se havia virado um fantasma ou se teria se tornado uma sombra
de si próprio, como se a sua fama pudesse ter se tornado maior do que ele próprio.167
No verão de 1887, Nietzsche se refugia mais uma vez em Sils onde desenvolve
seu livro Genealogia da Moral. Recebe alguns amigos no período, em especial Paul
Deussen e esposa. Sobre a visita, Deussen relata que Nietzsche foi muito atencioso,
que lhes mostrou “sua caverna” (como chamava seu apartamento), e que seus olhos
“se encheram de lágrima quando voltou para a solidão”.168 No mesmo ano, após
receber diversas críticas negativas, escreve à mãe: “Conheço os homens o bastante
para saber que, em 50 anos, a opinião sobre mim terá se invertido. Então o nome de

166
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 380.
167
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: »Was soll ich davon denken!« sagte
Zarathustra. »Bin ich denn ein Gespenst?Aber es wird mein Schatten gewesen sein. Ihr hörtet wohl
schon einiges vom Wanderer und seinem Schatten? p.377
168
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petróplis, Editora
Vozes, 2016 p. 405.
81

seu filho será pronunciado com glória e respeito em virtude das mesmas coisas pelas
quais eu agora estou sendo castigado e caluniado.”169
O aforismo “O convalescente” narra uma manhã em que Zaratustra acorda aos
gritos e espanta todos os seus animais e, depois, desmaia e fica caído por sete dias.
Durante esse tempo, seus animais não o abandonam. Ao acordar, os animais dizem
a Zaratustra que ele deve sair de sua caverna, pois o mundo lhe aguarda. Travam
uma discussão sobre o eterno retorno das coisas, que fez com que Zaratustra fizesse
um grande silêncio – uma conversa com sua alma. Zaratustra, então, dialoga com sua
alma, com a vida e com a eternidade. A terceira parte do livro é encerrada com ele
optando pela dança em lugar do sofrimento e fazendo juras de amor à eternidade.
Em 1888, Nietzsche vai para Turim170, cidade que, segundo ele, reúne todas
as melhores qualidades para a sua fisiologia. Lá se permite alguns momentos de ócio
e tem uma pausa em suas constantes crises nervosas. Porém, reclama à amiga
Malwida: “Há dez anos não ouço nenhuma palavra que me alcance(...) Sou como um
animal que é constantemente ferido e a ferida é não ouvir qualquer resposta, qualquer
palavra, e ter que suportar sozinho o fardo eu gostaria de compartilhar.”171
No início do livro, após a morte de um equilibrista, personagem por quem
Zaratustra nutriu “amizade” (e chega até a carregar seu corpo), decide que não será
nem pastor nem coveiro e que precisa de companheiros vivos.172 Não falaria mais às
multidões. Essa conclusão vem a Zaratustra como um raio de luz, após ele ter dormido
muito tempo, ter estado em silêncio no bosque e ter olhado para si mesmo. Zaratustra
decide, então, que seus companheiros serão os criadores e os solitários.
Ainda em 1888, Nietzsche produz Ecce Homo – seu livro “autobiográfico” – e
planeja lança-lo simultaneamente em francês, inglês e alemão. Ao perceber que sua
“influência” começa a se espalhar pelo mundo e o sucesso que passam a fazer seus
livros, Nietzsche se preocupa com as consequências políticas e jurídicas de sua obra.
Em Ecce Homo, logo no prefácio, Nietzsche ordena a seus leitores que se percam
dele e que somente retornará quando todos lhe tiverem renegado.
Em “A virtude dadivosa”, último capítulo da primeira parte do livro, Zaratustra

169
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petróplis, Editora
Vozes, 2016, p. 422.
170
Fig.8
171
Ibidem, p. 464.
172
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ein Licht ging mir auf: nicht zum
Volke rede Zarathustra, sondern zu Gefährten! Nicht soll Zarathustra einer Herde Hirt und Hund werden!
p.49
82

solicita aos seus discípulos que o deixem só, pois é um apreciador das caminhadas
solitárias. A seguir, anuncia que os solitários um dia formarão um só povo, o povo
eleito, do qual nascerá o além-do-homem.173 Posteriormente, expressa que irá seguir
sozinho e que os discípulos devem fazer o mesmo, e os aconselha a se perderem
dele para encontrarem a si próprios, e que somente retornaria a eles após todos lhe
houverem renegado.174
Em janeiro de 1889, Nietzsche tem um colapso nervoso e é visto na rua
abraçando um cavalo nas ruas de Turim. Depois envia cartas a amigos com conteúdo
totalmente desconexo. O amigo Overbeck corre em seu socorro e presencia os
desesperadores últimos momentos de “sanidade” de Nietzsche. Em Basiléia, é
diagnosticado com uma “paralisia progressiva” advinda provavelmente de um
problema de sífilis contraído na juventude.
Ao chegar da meia-noite Zaratustra faz um último discurso, sobre o
encadeamento de todos os acontecimentos, alegrias e sofrimentos, tudo como parte
do mesmo, que sempre retorna. No dia seguinte, acorda e conversa com o Sol,
proferindo a mesma frase do início do livro: “O que seria da tua felicidade, se não
tivesses a quem iluminar?”175. Desta vez, porém, percebia que aqueles homens que
dormiam não eram seus verdadeiros companheiros. A águia, por outro lado, o fez
lembrar de seus verdadeiros amigos - os animais - mas Zaratustra se queixou de lhe
faltar verdadeiros homens.
Depois do colapso, Nietzsche passa seus anos sob um estado de demência,
sob os cuidados de sua mãe, em Naumburg176, até a morte dela em 1897. Alguns de
seus melhores amigos, em especial Overbeck e Köselitz, seguem participando
ativamente dos cuidados com a obra de Nietzsche e com suas questões financeiras.
Após a morte da mãe, Nietzsche passa a ficar sob os cuidados da irmã, em
Weimar, no “Arquivo Nietzsche”177, até seu falecimento no ano de 1900. Após a
tentativa de sepultá-lo em Weimar ter sido negada pelas autoridades locais, a família
consegue autorização para enterrá-lo ao lado da capela em que seu pai foi pastor e

173
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ihr Einsamen von heute, ihr
Ausscheidenden, ihr sollt einst ein Volk sein: aus euch, die ihr euch selber auswähltet, soll ein
auserwähltes Volk erwachsen – und aus ihm der Übermensch. p. 220
174
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Nun heiße ich euch, mich verlieren
und euch finden; und erst, wenn ihr mich alle verleugnet habt, will ich euch wiederkehren. p. 223
175
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: was wäre all dein Glück, wenn du
nicht die hättest, welchen du leuchtest! p. 981
176
Fig.4
177
Fig.5
83

onde Nietzsche nasceu, em Rocken178. Houve resistência da comunidade local,


devido ao posicionamento de Nietzsche perante o cristianismo. Somente foi possível
seu sepultamento no local após um acordo para doação de um valor em dinheiro para
a igreja e livros para a escola.
Sobre a cerimônia, Herry Kessler179 escreveu:

What was nietzschean in the service was the sunny stillness of this
natural solitude; The light playing through the plum trees of the church
walls and even in the bright grave. A large spider spinning her web
over the grave from branch to branch in a sun beam. Otherwise it was
a Christian affair: The bells rang, a choir sang spirituals, a silver cross
lay in the coffin. (…) Afterwards, everyone stepped forward to the coffin
and with a quote from Zarathustra, threw three handfuls of dirt into the
grave.180

Ao fim da quarta parte do livro, Zaratustra se viu rodeado de inúmeras aves e


deparou-se com um leão meigo que lhe sorria e lambia suas lágrimas. Era o sinal de
que seus filhos estavam a caminho. Zaratustra entendeu que seu grande erro foi sua
compaixão para com os homens, e que aspirava à sua obra e não à felicidade. Por
fim o leão afugentou os “homens superiores” e então Zaratustra afastou-se da caverna
à espera do “Grande meio-dia”.

178
Fig. 6
179
Herry Graf Kessler (1868-1937), diplomata e escritor alemão, patrono da arte moderna. Texto
extraído do material do museu de Röcken.
180
Material retirado do museu Nietzsche em Rockën.
84

7 – CONCLUSÃO

Durante sua vivência, de enormes sofrimentos e extraordinária inspiração,


Nietzsche teve a coragem de colocar em prática tudo o quanto sua filosofia propôs,
indicando formas de agir e de ver o mundo que são revolucionárias, ainda nos dias de
hoje. Seu Zaratustra que é, ao nosso ver, o seu porta-voz pela eternidade, buscou
incessantemente com quem pudesse compartilhar sua sabedoria, mas chegou ao fim
de sua jornada considerando ter sido, o seu maior erro, a compaixão. Da mesma
maneira, Nietzsche aspirava mais à sua obra do que à felicidade e essa escolha
pressupunha um forte senso de propósito e coragem para abdicar do conforto em
busca da criação. O silêncio imposto pela doença em seus derradeiros anos faz honra
a um herói trágico, que ensinava a virtude da solidão.
Seu modo de viver não é para todos, nem tampouco sua filosofia. Seus escritos
se dirigem a um grupo de solitários, os quais teriam essa propensão para ser
criadores, característica que, por ser rara, é nobre.
Existiriam, hoje, ouvidos para o chamado de Zaratustra? Se sim, como
poderiam combater os efeitos da moral judaico-cristã, que permanecem sufocando os
criadores de novos valores e tolhendo a possibilidade devida fora do rebanho? Como
poderiam, dentro dessa sociedade atual, atordoada pelo excesso de informação e
pelo barulho, criar desvios da fala e encontrar espaços de silêncio e de solidão?
Para Nietzsche, o “movimento niilista” é uma expressão da “décadance
fisiológica”181. A depressão e a ansiedade, como males de nosso tempo, são
manifestações de um “nada querer” ou de um “nada querer no agora” que refletem no
corpo. Portanto, contra esses sintomas, podemos nos valer dos escritos de Nietzsche,
que buscam lidar com o niilismo, e aprender com a história do filósofo para lutar contra
essas aflições.
Nietzsche passou boa parte de sua existência adoentado e, sempre que podia,
elogiava a porção mais proveitosa de seus incontroláveis males físicos. Era grato pela
possibilidade (que a doença lhe deu) de escapar às sufocantes obrigações
profissionais que lhe pesavam, assim como exaltava a esperança que as

181
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche, sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. Tradução de Claudemir Araldi. 1ª ed. São Paulo: Editora Unifesp, 2011, p. 125.
85

enfermidades podem trazer, ao nos distraírem de outras questões da “alma” – essas


insolúveis:

Existe um estado de sofrimento físico que pode parecer benéfico; pois


ele nos faz esquecer nossos outros sofrimentos, ou nos faz acreditar
que existe ajuda para nós, assim como o corpo pode obter ajuda. Essa
é minha filosofia da doença: ela dá esperança à alma. E não seria um
sortilégio ainda ter esperança?182

O histórico de males físicos se iniciou quando do serviço militar, em que um


acidente lhe libertaria de sua função como artilheiro. Em junho de 1870, um tornozelo
torcido lhe livraria de uma carga excessiva na escola. Durante a guerra, a doença
novamente “salvou” Nietzsche, fazendo-lhe retornar antes do previsto. A doença
passa, a partir de seu adensamento, em 1871, a adotar um elemento essencial no
caráter de Nietzsche, tornando-se fundamental para importantes escolhas e
renúncias.
Em 1876, um período de aflição devido ao excesso de preocupações em
conciliar as inúmeras atividades acadêmicas de professor de filologia, a intensa
dedicação à filosofia e a atenção necessária a Wagner, fazem com que Nietzsche
tenha diversos problemas de visão, tendo até de parar de ler. Depois disso, Nietzsche
passa a se dedicar inteiramente à filosofia
Seria a doença um mecanismo “inconsciente” de Nietzsche para conseguir se
afastar de responsabilidades burocráticas às quais ele precisava se desincumbir para
poder dar vazão aos seus melhores dons de filósofo? Um clamor por atenção de um
corpo que percebe não estar no lugar certo?
Para Janz183, a doença é um conceito relacional de valor, ou “desvalor”, em
que, de maneira ampla, se apresentam os fatores biológicos desfavoráveis. No caso
de Nietzsche a “doença”, apesar de lhe causar males físicos, lhe propiciou um
caminho de autodisciplina que beirou a ascese, trazendo uma vivência ética que lhe
permitiu desenvolver a relativização de valores como “saúde” e “doença”. Daí a divisão
proposta por Nietzsche, de grande saúde e pequena saúde. Assim, podemos
compreender os males físicos de Nietzsche como um caminho trágico necessário para
que ele alcançasse um modo de viver adequado para o desenvolvimento e
constituição de saberes e sentimentos que aperfeiçoaram o grande filósofo que ele

182
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 451.
183
Ibidem, p. 10.
86

veio a se tornar. O padecimento de Nietzsche foi, por longo tempo, um fator que
contribuiu para o aumento de produtividade e introspecção. Poderia ser considerado
uma doença, levando-se em consideração que os reflexos foram positivos?
Tomando essa ideia de conceito relacional de doença e trazendo-a para os
nossos tempos, cujos males que atingem grande parte da sociedade são a ansiedade
e depressão, podemos vislumbrar a doença, também como uma etapa prévia a uma
necessária transformação. A partir de uma fratura da “alma”, o corpo adoece e coage
“o sujeito” a repensar sua participação na vida gregária, levando-o a buscar novas
formas de viver. É a grande razão – o corpo – conclamando à pequena razão que
busque uma nova configuração de forças, mais favoráveis. A solução mais óbvia está
sempre disponível, mas é somente um paliativo: aqueles que optam pelo caminho dos
remédios irão apenas amortecer os sentidos, calar o corpo, em busca de uma suposta
paz.
O que a doença vem reclamar é uma reflexão que possa levar a uma mudança
de rotina. Um afastamento que possibilite um “respiro” e posteriormente, um
fortalecimento que permita o direito de não mais existir maquinalmente em função do
que lhe foi imposto. Um desvio, uma pausa no movimento mecânico instituído pelas
cidades.
Portanto, a doença pode ser mais do que um alerta, pode ser um convite
àqueles que estão dispostos a romper com tudo aquilo que contribuiu para lhes impor
essa condição de sofrimento, esse estado de niilismo, quase inevitável diante de uma
vida consumista sem sentido, em que o excesso de comunicação e gregariedade
sufocam impulsos ativos daqueles que almejam mais do que serem apenas
engrenagens, de uma máquina que mal funciona.
Ao lado do excesso de comunicação, que progressivamente tem contribuído
para a limitação da experiência humana, o “tarefismo” se apresenta como um grande
mal da modernidade, por ser visto por muitos, como único modo de viver. A suposta
busca por “evolução” das civilizações tem levado os indivíduos a um estado de
constante produtividade, desconectando-os, assim, da possibilidade de contemplação
e reflexão.
Byung-Chul Han sugere que o ser humano somente foi capaz de dançar porque
sentiu-se entediado de andar e passou a balançar em movimentos arabescos. O autor
classifica, ainda, a atividade filosófica como produto de uma atenção profunda e
contemplativa, argumentando ser o homem o único animal capaz de afundar-se
87

contemplativamente no tédio e no outro, visto que os demais estão sempre


preocupados com diversas tarefas, como alimentação, reprodução e segurança.
O indivíduo que está sempre preocupado em produzir, não pode se entediar,
não pode fazer coisas “inúteis”, como arte, dança ou filosofia. A escolha entre uma
vida com predominância da contemplação e da criação em vez da dedicação maquinal
às atividades laborais, foi abordada por Nietzsche em alguns de seus escritos, e por
diversos filósofos, desde os gregos. Podemos nos perguntar se, sem o tédio, poderia
existir processo criativo. O ócio, que é descrito por Walter Benjamin como “a ave do
sonho que choca o ovo da experiência”, é visto hoje como um verdadeiro “pecado”.
Percebe-se, hoje, uma crescente identificação dos governantes com modelos
liberais que sobrepujam o aspecto econômico e invadem as demais áreas humanas,
em especial a social, limitando os indivíduos ao que Foucault definiu por homo
oeconomicus. Na década de 1970, o autor já criticava o modelo proposto pela Escola
Austríaca, que pregava um liberalismo que aplica às diversas condutas racionais (e
até mesmo às não racionais) um necessário princípio econômico sistematizador.
Assim, o homo oeconomicus estaria sempre pautando suas escolhas com base
em um interesse produzido, sendo um indivíduo que, nas palavras de Foucault, “aceita
a realidade” e é, portanto, “eminentemente governável”,184mas que paradoxalmente
tem a falsa sensação de ser livre, pois situa-se no que Foucault chama de “duplo
involuntário”185, sem controlar a causa ou origem de seus interesses, nem tampouco
a quem servirá o que produz. Para esse indivíduo, todas as ações devem ter como
pano de fundo um interesse individualista com um fim eminentemente econômico,
com isso, reduzindo-se cada vez mais o espaço para um pensamento livre. Esse
homem da modernidade não mais avalia nada, tudo passa pelo crivo objetivo do valor
econômico das coisas, até o tempo.
Em A Genealogia da Moral, Nietzsche denuncia a atividade maquinal, imposta
pelo “sacerdote” como “medicação” ao homem de rebanho. O labor que é apresentado

184
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2008, p. 369.
185
O homo oeconomicus vê-se, portanto, situado no que podemos chamar de duplo involuntário: O
involuntário dos acidentes que lhe sucedem e o involuntário do ganho que ele produz para os outros
sem que o tenha pretendido. Está atualmente situado num duplo indefinido porque, por um lado, os
acidentes de que depende seu interesse pertencem a um campo que não se pode percorrer nem
totalizar, por outro lado, o ganho que ele vai produzir para os outros produzindo o seu também é um
indefinido, um indefinido que não é totalizável. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica.
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 378.
88

como única forma de ocupação da consciência e combate à depressão – essa ideia


de que “só o trabalho enobrece o homem” pode até funcionar para alguns, porém,
para outros, o efeito pode ser o inverso.
Nietzsche considerava que o “tarefismo” seria uma característica marcante do
“último homem” (aquele que precisa ser superado); o homem superior, por outro lado,
buscaria se ocupar com atividades e pensamentos além daquelas que a sociedade
taxaria de atividade “útil” e assim criaria novos valores. O ouro, símbolo do que é mais
precioso no mundo, segundo o autor, somente é de grande valia por ser inútil. Assim
também é – o que de mais valioso é criado pelo homem – a arte. Dessa forma,
Nietzsche critica os intelectuais da modernidade, aqueles que deveriam ter um olhar
contemplativo do mundo, por não mais se permitirem ao ócio e por passarem a
competir com os homens ativos, envergonhando-se do lazer:

Como sinal de que decaiu a valorização da vida contemplativa, os


eruditos de agora competem com os homens ativos numa espécie de
fruição precipitada, de modo que parecem valorizar mais esse modo
de fruir do que aquele que realmente lhes convém e que de fato é um
prazer bem maior. Os eruditos se envergonham do otium [ócio]. Mas
há algo de nobre no ócio e no lazer. – Se o ócio é realmente o começo
de todos os vícios, então ao menos está bem próximo de todas as
virtudes; o ocioso é sempre um homem melhor do que o ativo. – Mas
não pensem que, ao falar de ócio e lazer, estou me referindo a vocês,
preguiçosos.186

Portanto, além do distanciamento, que é um traço marcante de uma moral


nobre, o ócio e a contemplação oferecem condições favoráveis para espíritos livres,
que não se envergonham dessa prática, eminentemente humana, de entediar-se para
deixar florescer uma dança, uma poesia. O autor é claro em diferenciar a atividade do
ócio e do lazer com fins à criação, ao simples nada fazer dos fracos e preguiçosos, os
quais seriam apenas aproveitadores, que roubam a energia dos homens fortes.
Nietzsche ataca, portanto, a ideia de que é melhor fazer alguma coisa do que
fazer nada, ideia central do modo de viver do homo oeconomicus de Foucault. Para
esses adeptos do “tarefismo”, inquietos e barulhentos, dados a tarefas maquinais, os
sentidos ficaram embrutecidos e não há espaço para a cultura, pois não são capazes
de apreciar mais nada à sua volta. Têm pressa e não há mais energia para a
contemplação, para as cerimônias ou para o lazer.

186
NIETZCSHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 284.
89

“Melhor fazer qualquer coisa do que nada” – este princípio é também


uma corda, boa para liquidar toda cultura e gosto superior. Assim
como todas as formas sucumbem visivelmente à pressa dos que
trabalham, o próprio sentimento da forma, o ouvido e o olho para a
melodia dos movimentos também sucumbem. A prova disso está na
rude clareza agora exigida em todas as situações em que as pessoas
querem ser honestas umas com as outras, no trato com os amigos,
mulheres, parentes, crianças, professores, alunos, líderes e príncipes
– elas não têm mais tempo e energia para as cerimônias, para os
rodeios da cortesia, para o “espirit” na conversa e para qualquer
“otium”, afinal.187

O enfrentamento, portanto, de toda a moral que impele o indivíduo a exercer


incessantemente uma tarefa, passa pelo silêncio e pela indiferença. Não se trata,
porém, de uma cruzada contra o capitalismo ou contra o liberalismo. Trata-se de
apresentar novos “modos de vida”. O caminho para a obtenção de uma configuração
mais favorável das forças de criação, passa por encontrar lugares de isolamento.
Existem cavernas de Zaratustra no “mundo real”, basta ao indivíduo reconhecê-
las. O silêncio, como respeito à grande razão, como retorno à natureza, um elevar-se
a si mesmo é uma escolha difícil, mas possível. Para tanto, a “pequena razão” que
somente vê sentido nas escolhas pautadas por valores econômicos e que hoje reina
soberana, tem de dar lugar à arte, à dança fluida de um Dioniso.
O homo oeconomicus – o homem fraco de nosso tempo – destituído da
capacidade de sentir e de afirmar novos valores com base na percepção de intuições
que somente irrompem a partir da vida contemplativa, não deve ser aniquilado, mas
deve ser ignorado. O caminho proposto por Zaratustra, requer um distanciamento
sublime para um novo curso. Refutar as velhas regras, esquecer desgostos, afirmar o
corpo e reaprender a caminhar, a se expressar, como faz uma criança.
A volta à solidão, que conduza o sujeito a conversações internas; a volta ao
silêncio, que permita ao corpo deixar em si brotar um novo pensamento, são
fundamentais para que uma moral nobre possa despontar diante da apatia. São as
palavras mais silenciosas que trazem a tempestade. Zaratustra apontou um caminho
e há um campo aberto àqueles que queiram fazer das suas vidas, uma verdadeira
obra de arte.

187
NIETZCSHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Atilla Blacheyere. 1ª ed. Rio de Janeiro;
Edbolso, 2016, p. 329.
90

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NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra: livro para toda a gente e para
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Translated by Thomas Common. Doppeltext

_____ . Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de
Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

_____. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. Tradução


de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

_____ . A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das
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Lisboa: Teorema, 1991.
92

APÊNDICE – CICLOS DE ZARATUSTRA

Adiante, um breve resumo dos ciclos de solidão e convivência de Zaratustra no


decorrer da narrativa, bem como as reflexões e discursos do personagem acerca do
convívio com o outro e a necessidade de afastamento:

1 O início do livro se dá sob a narração de que Zaratustra teria se afastado por dez
anos dos homens, na companhia apenas de seus animais.188 Zaratustra sente
necessidade de compartilhar a sabedoria que adquiriu durante o isolamento, por
isso desce da montanha a fim de falar aos homens sobre o Übermensch189. É
utilizada a metáfora do acúmulo do mel pela abelha, em comparação ao excesso
de conhecimento adquirido. Zaratustra sente que é preciso dividir o conhecimento
acumulado

2 Zaratustra desce até um mercado público e percebe, em meio a barulho, que os


homens não são capazes de compreender o que lhes está sendo ensinado, e
que sua boca não é para aqueles ouvidos.190 Zaratustra sente que estava
pregando feito um pastor.191

3 Após a morte de um equilibrista, personagem por quem Zaratustra nutriu


“amizade”, (e chega até a carregar seu corpo) decide que não será nem pastor
nem coveiro, e que precisa de companheiros vivos.192 Não falaria mais às
multidões. Esta conclusão, vem a Zaratustra como um raio de luz, após ele ter
dormido muito tempo, ter estado em silêncio no bosque e ter olhado para si

188
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Als Zarathustra dreißig Jahre alt war,
verließ er seine Heimat und den See seiner Heimat und ging in das Gebirge. Hier genoß er seines
Geistes und seiner Einsamkeit und wurde dessen zehn Jahre nicht müde. p.4 (Todas as notas do texto
em versão original foram retiradas da versão bilíngue: “Also sprach Zarathustra / Thus Spake
Zarathustra, Bilingual Edition Translated by Thomas Common. Doppeltext”)
189
Super-homem, sobre-homem, além-do-homem e supra-homem são algumas das traduções para
übermensch, conceito central em Nietzsche, que apresentaria uma nova forma de configuração
humana, pois segundo ele o “homem deveria ser superado”. Como não consideramos nenhuma das
traduções perfeitamente adequadas, o termo será mantido em seu original.
190
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: sie verstehen mich nicht, ich bin
nicht der Mund für diese Ohren. p.34
191
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: nun rede ich ihnen gleich den
Ziegenhirten. p.34
192
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ein Licht ging mir auf: nicht zum
Volke rede Zarathustra, sondern zu Gefährten! Nicht soll Zarathustra einer Herde Hirt und Hund werden!
p.49
93

mesmo. Zaratustra decide então que seus companheiros serão os criadores e os


solitários.

4 A seguir, Zaratustra profere uma série de discursos, dentre eles, “Das moscas na
praça pública” traz a forte imagem de contraposição entre a árvore silenciosa que
aponta para o mar e a praça pública com o ruído da moscas venenosas que são
aduladoras e castigam as virtudes193. Zaratustra incita o ouvinte a fugir para a
solidão, pois longe da praça pública estão os inventores de novos valores. Insiste
ainda que aqueles que têm virtudes têm sua energia sugada pelos pequenos, e
por isso devem fugir para onde o vento sopra forte.

5 No discurso “Do amigo” Zaratustra aborda as conversações consigo mesmo que


faz um sujeito solitário. “Eu e eu mesmo estamos sempre em conversações
incessantes.”194 Dessa maneira, o amigo é sempre um terceiro, que é uma “boia
que impede a conversação dos outros dois se afundarem em profundidade”.195
Um solitário é profundo e por isso precisa de um amigo à altura. E indaga: “Serás
tu para teu amigo ar puro e soledade, pão e remédio?”196

6 Em “O caminho do criador” Zaratustra provoca aqueles que querem encontrar o


caminho para si mesmos, a provarem a sua força e seu direito para tanto. “Podes
ser o teu próprio juiz e capataz da tua lei?197” Prevê que aqueles que busquem
tal caminho se verão solitários em determinado momento. O caminho do criador
é um discurso poderoso que instiga àquele que quer romper a barreira do
rebanho a negar o sentimento de rebanho que há em todos que por muito tempo
viveram em comunidade. Aqui se pode retomar a parábola das três
metamorfoses, pois para o criador é necessário percorrer os caminhos do

193
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Würdig wissen Wald und Fels mit
dir zu schweigen. Gleiche wieder dem Baume, den du liebst, dem breitästigen: still und aufhorchend
hängt er über dem Meere.Wo die Einsamkeit aufhört, da beginnt der Markt; und wo der Markt beginnt,
da beginnt auch der Lärm der großen Schauspieler und das Geschwirr der giftigen Fliegen. p.55
194
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ich und Mich sind immer zu eifrig im
Gespräche: wie wäre es auszuhalten, wenn es nicht einen Freund gäbe? p.151
195
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: der Dritte ist der Kork, der verhindert,
daß das Gespräch der Zweie in die Tiefe sinkt. p. 151
196NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Bist du reine Luft und Einsamkeit
und Brot und Arznei deinem Freunde? p.153
197
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Kannst du dir selber Richter sein
und Rächer deines Gesetzes? p. 172
94

camelo, do leão e da criança. É necessário se isolar e negar os valores postos,


tal qual o leão, antes de ter força para ser a criança criadora. Depois de conseguir
esse isolamento, então o solitário terá um novo desafio - o de entender e buscar
o porquê de sua liberdade. Não se trata de uma fuga, mas sim de um movimento
de busca com o fim de ser forte e de criar. Por fim, como um ditirambo, aponta
ao criador o difícil caminho: “Vai-te para o isolamento, meu irmão, com teu amor
e com tua criação, e tarde será que a justiça te siga, claudicando. Vai-te para o
isolamento com minhas lágrimas meu irmão. Eu amo o que quer criar qualquer
coisa superior a si mesmo e dessa arte sucumbe.”198

7 Em “A virtude dadivosa”, último capítulo da primeira parte do livro, Zaratustra


solicita aos seus discípulos que o deixem só, pois é um apreciador das
caminhadas solitárias. A seguir, anuncia que os solitários um dia formarão um só
povo, o povo eleito, do qual nascerá o além-do-homem.199 Posteriormente,
expressa que irá seguir sozinho e que os discípulos devem fazer o mesmo, e os
aconselha a se perderem dele para encontrarem a si próprios, e que somente
retornaria a eles após todos lhe houverem renegado.200

8 No início da segunda parte do livro, Zaratustra se aparta dos homens por meses
e anos, como um “semeador que aguarda a colheita”. Um sonho (“O menino no
espelho”), porém, lhe provoca a se preocupar com o mau uso que poderiam fazer
de sua doutrina. Tal qual ocorreu no início do livro, Zaratustra está cheio de
sabedoria201, e precisa compartilhá-la. Dessa vez, porém não descerá mais ao
vale ou às multidões, irá às Ilhas Bem-Aventuradas, onde se encontram seus
amigos e seus inimigos.

198
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Mit deiner Liebe gehe in deine
Vereinsamung und mit deinem Schaffen, mein Bruder; und spät erst wird die Gerechtigkeit dir
nachhinken.Mit meinen Tränen gehe in deine Vereinsamung, mein Bruder. Ich liebe den, der über sich
selber hinaus schaffen will und so zugrunde geht. p. 179
199
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ihr Einsamen von heute, ihr
Ausscheidenden, ihr sollt einst ein Volk sein: aus euch, die ihr euch selber auswähltet, soll ein
auserwähltes Volk erwachsen – und aus ihm der Übermensch. p. 220
200
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Nun heiße ich euch, mich verlieren
und euch finden; und erst, wenn ihr mich alle verleugnet habt, will ich euch wiederkehren. p. 223
201
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Meine wilde Weisheit wurde trächtig
auf einsamen Bergen; auf rauhen Steinen gebar sie ihr Junges, Jüngstes.Nun läuft sie närrisch durch
die harte Wüste und sucht und sucht nach sanftem Rasen – meine alte wilde Weisheit!Auf eurer Herzen
sanften Rasen, meine Freunde! – auf eure Liebe möchte sie ihr Liebstes betten! p. 233
95

9 Depois de discursos e andanças com seus discípulos, Zaratustra se aproxima de


um baile e dança e canta com as donzelas, bendizendo a vida e se relacionando
com as pessoas com alegria. Ao final do baile, as donzelas se afastam, e
Zaratustra fica triste.

10 Zaratustra narra ter voado ao futuro, o que o horrorizou por ter lá encontrado
apenas o tempo o único contemporâneo dele202. Ou seja, não haveria homens
no futuro, o que causou um desespero ao personagem, que retornou e passou a
ver com outros olhos os homens que e encontravam na “Terra da cultura”.
Zaratustra põe-se a rir, porém, do orgulho que tinham aqueles homens vazios de
não ter crenças e superstições, Zaratustra ri daqueles “homens atuais”, enquanto
aqueles se assombravam deles mesmos, e se pergunta: Aonde ainda teria que
“subir com seu desejo”, pois apesar de ver “terras natal” por todas as partes, não
encontrava lar em lugar algum. Decide, então, que a terra que ele ama é a terra
de seus filhos (e não a de seus pais) e que essa terra se encontra nos mares
mais remotos.203

11 Zaratustra, a seguir, faz uma incursão em uma ilha com uma montanha de fogo,
onde diziam haver um penhasco que desembocava no inferno. Lá, trava conversa
intensa com o temível “cão do fogo”. No diálogo compara Estado, Igreja e o
interlocutor, que termina a conversa fugindo assustado com os argumentos do
protagonista. Zaratustra retorna da ilha para contar seu feito aos seus discípulos,
mas ninguém o ouve, pois estão todos falando dos grandes feitos anteriores de
Zaratustra. Este então, ao perceber que não era ouvido novamente pergunta-se
se havia virado um fantasma, ou se teria se tornado uma sombra de si próprio,
como se a sua fama pudesse ter se tornado maior do que ele próprio.204

202
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Zu weit hinein flog ich in die Zukunft:
ein Grauen überfiel mich. Und als ich um mich sah, siehe! da war die Zeit mein einziger Zeitgenosse.
p. 341
203
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: So liebe ich allein noch meiner
Kinder Land, das unentdeckte, im fernsten Meere: nach ihm heiße ich meine Segel suchen und suchen.
p. 348
204
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: »Was soll ich davon denken!« sagte
Zarathustra. »Bin ich denn ein Gespenst?Aber es wird mein Schatten gewesen sein. Ihr hörtet wohl
schon einiges vom Wanderer und seinem Schatten? p.377
96

12 No aforismo “O adivinho”, Zaratustra foi acometido por uma grande tristeza ao


ouvir da boca de um adivinho, um vaticínio de que todo o trabalho havia sido inútil
e de que todas as fontes iriam se secar de tal maneira que era necessário ir em
busca de um mar em que seria possível se afogar205. Zaratustra passa três dias
calado, em uma espécie de transe, e depois que retorna do sonho, divide com
todos um pesadelo que tivera. Depois disso, ainda sem reconhecer ninguém, se
levanta e tem uma espécie de epifania, recuperando sua boa saúde. Pede boa
comida e bebida e pronuncia ironicamente uma convocação ao adivinho para que
lhe acompanhe para mostrar um mar para que possa ele se afogar.

13 Em seguida, Zaratustra tem um sonho em que fala com uma dama chamada
“hora mais silenciosa”. Por conta do sonho, conclui que deveria se afastar de
todos e voltar à solidão, pois seus frutos “já estavam maduros, mas ele Zaratustra
ainda não estava maduro para seus frutos”206. Este aforismo encerra a segunda
parte do livro com Zaratustra retornando sozinho, chorando pela noite, para seu
caminho solitário.

14 Na sequência, Zaratustra escala uma montanha à meia noite. Ao chegar ao cume


da montanha, avista o mar e se vê solitário. Pergunta-se de onde vêm as mais
altas montanhas, e responde-se a si mesmo que elas vêm do mar. Desce então
até às margens do mar e, por fim, sente-se cansado. Lembra de seus
companheiros e chora de cólera e ansiedade.

15 Posteriormente, entra em uma embarcação e queda-se silente e surdo por dois


dias. Depois, porém desata a falar muito. Restando quatro dias para chegar às
Ilhas Bem-Aventuradas, sentiu-se feliz e dominou a dor, pois percebeu que
estaria em breve novamente só, encontraria à tarde com seus amigos.

16 Ao chegar em terra firme, antes de se dirigir à sua montanha e à sua caverna,


deu muitas voltas e percebeu que os lugares que habitavam os homens tinham

205
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ach, wo ist noch ein Meer, in dem
man ertrinken könnte. p. 389
206
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Und es sprach zum letzten Male zu
mir: »O Zarathustra, deine Früchte sind reif, aber du bist nicht reif für deine Früchte! P. 431
97

ficado muito pequenos. E então se pergunta: Quando chegarei à minha pátria,


onde não precisarei me curvar ante os pequenos?”207

17 Posteriormente, se isola a correr com “pés quentes” pelo Monte das Oliveiras que
chama de seu208. Lá, afirma que a solidão, para alguns, é fugir para a
enfermidade. Para outros é fugir daqueles que estão doentes.209

18 No caminho de volta para sua montanha, depara-se com um “tolo” que vivia em
frente à porta da grande cidade. O “tolo” bradava contra a cidade, reclamando
dos vícios e das almas deprimidas do local. Zaratustra tapa-lhe a boca e lhe
ensina que se alguém não é mais capaz de amar um lugar, então esse alguém
deve partir de lá.210 E assim o fez.

19 No aforismo “O regresso” Zaratustra trava um diálogo com a solidão, emocionado


por ter voltado à sua pátria (a solidão), que lhe diz que estava ele mais
abandonado entre a multidão do que jamais esteve com ela.211 A solidão de forma
afetuosa discursa a Zaratustra acerca da diferença entre solidão e abandono.

20 No aforismo das “Antigas e das novas tábuas” Zaratustra aguarda sentado, por
entre as antigas tábuas quebradas e as novas, meio escritas, a hora de poder
voltar aos homens, para espalhar a sua doutrina. Ali, decide fazer um grande
discurso de si para si mesmo e após longa fala, aguarda pelo momento do
“grande meio-dia”, em que espera ser vitorioso.

21 O aforismo “O convalescente” narra uma manhã em que Zaratustra acorda aos


gritos e espanta todos os seus animais, e depois desmaia e fica caído por sete
dias. Durante esse tempo, seus animais não o abandonam. Ao acordar, os

207
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: O wann komme ich wieder in meine
Heimat, wo ich mich nicht mehr bücken muß – nicht mehr bücken muß vor den Kleinen! p. 467
208
I NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: nzwischen laufe ich mit warmen
Füßen kreuz und quer auf meinem Ölberge. p. 501
209
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Des einen Einsamkeit ist die Flucht
des Kranken; des andern Einsamkeit die Flucht vor den Kranken. p. 507
210
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: wo man nicht mehr lieben kann, da
soll man – vorübergehn! p.518
211
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: und daß du unter den Vielen
verlassener warst, du Einer, als je bei mir! p. 533
98

animais dizem a Zaratustra que ele deve sair de sua caverna pois o mundo lhe
aguarda. Travam uma discussão sobre o eterno retorno das coisas, que fizeram
com que Zaratustra fizesse um grande silêncio - uma conversa com sua alma.

22 Zaratustra, então, dialoga com sua alma, com a vida e com a eternidade. A
terceira parte do livro é encerrada com ele optando pela dança em lugar do
sofrimento.

23 O início da quarta parte do livro212 se dá com a narrativa de que Zaratustra passou


anos isolado em sua caverna, a ponto de seus cabelos ficarem brancos. Após
conversar com seus animais, decide subir ao cume da montanha, e novamente
aparece a alegoria do mel, tal qual o início do livro. Dessa vez, porém, em vez de
Zaratustra descer aos homens para partilhar do mel, o dissipou inteiramente, para
poder fabricar mel novo.

24 A seguir, Zaratustra recebe a inesperada visita do Adivinho, que novamente lhe


traz palavras de pessimismo, e traz a atenção para um grito do homem superior,
que estaria em perigo nos bosques próximos aos domínios de Zaratustra. Ele
decide sair em busca do homem, pois temia por sua vida. Lá encontra-se com
dois reis, que traziam consigo um asno, e os convida para o encontrarem mais
tarde.

25 Continuando sua busca pelo homem superior, Zaratustra pisa sem querer um
homem ferido, que havia sido picado por uma sanguessuga. O homem se
apresenta como aquele é “espiritualmente consciencioso”.213 Zaratustra o
convida para ir mais tarde a sua caverna.

26 Posteriormente Zaratustra encontra-se com o Encantador (der Zauberer), um


homem velho que se punha a falar sozinho, reclamando a um Deus incógnito.
Zaratustra, então o agride e o faz assumir ser um enganador. O homem assume

212
Muitos intérpretes consideram os escritos relativos à quarta parte do livro de maneira afastada dos
demais, pois acreditam que essa parte tenha sido adicionada posteriormente, de maneira contrária a
intenção do autor.
213
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ich bin der Gewissenhafte des
Geistes p. 743
99

sua condição e Zaratustra lhe oferece sua caverna, tal qual fizera com os demais.

27 O próximo personagem que cruza o caminho de Zaratustra é um antigo Papa. O


Papa é sabedor de que o Deus “antigo” estava morto, e pediu a Zaratustra para
que pudesse se hospedar em sua caverna ao menos por uma noite, com o que
Zaratustra aquiesceu.

28 A seguir, Zaratustra se perde pelo reino da Morte e lá encontra com “o homem


mais feio” (der häßlichste Mensch). Zaratustra aconselha ao homem que vá a sua
caverna e se aconselhe com seus animais. Nunca tinha conhecido alguém que
se desprezasse tanto e concluiu que isso poderia ser uma forma de elevação.
Chega até a pensar que poderia ser aquele o homem superior cujo grito ouvia.214

29 Após a conversa com o homem mais feio, Zaratustra se depara um homem de


olhar bondoso que parecia falar com as vacas. O homem explica que é
necessário aprender a ruminar. Este homem era um “mendigo voluntário” (der
freiwillige Bettler) que havia aberto mão de sua riqueza para dar a abundância de
seu coração aos pobres, mas não o aceitaram. Zaratustra o convida também para
ir a sua caverna. A conversa, porém, termina mal, pois o mendigo elogia
Zaratustra, que o expulsa chamando-o de vil adulador.

30 Encontrará Zaratustra ainda, com um homem que o perseguia por todos os lados
tal qual uma sombra. Este também recebeu convite para ir à sua caverna. Depois
disso Zaratustra recostou-se a uma árvore sozinho, em silêncio, ao meio-dia e
lembrou de que as coisas mais simples são as que mais trazem felicidade.

31 Ao retornar para sua caverna Zaratustra deparou-se com todos os homens que
havia encontrado. Percebeu que o grito de angústia era proveniente deles todos,
juntos. Concluiu, porém, que aqueles homens singulares não eram os homens
superiores que ele esperava. Que naqueles homens ainda havia muito de grande
ânsia, de grande tédio, de grande cansaço e das reminiscências de Deus sobre

214
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Keinen fand ich noch, der sich tiefer
verachtet hätte: auch das ist Höhe. Wehe, war der vielleicht der höhere Mensch, dessen Schrei ich
hörte? p. 795
100

a Terra,215 e que esperava ainda seus filhos, os leões risonhos.216 Ainda assim,
tiveram uma festiva ceia a qual todos beberam e participaram.

32 Zaratustra fez então um discurso sobre o homem superior, cujo lugar não é na
praça pública e que deve ser um dançarino acima de tudo. Depois, saiu da
caverna e enquanto lá esteve foi difamado pelo feiticeiro. Ao retornar percebeu
que aquele dia fora uma vitória, pois aqueles homens haviam aprendido a rir de
si próprios, e que tinham perdido o tédio, estavam excitados.

33 Percebe no retorno, porém, que os homens estão rezando e venerando o asno.


Rezavam uma espécie de ladainha em que exaltavam as qualidades do burro. E
por meio de sofismas, justificavam sua fé com base nos ensinamentos de
Zaratustra. Ainda assim, Zaratustra seguiu festejando, pois os homens estavam
alegres e afirmavam a vida.

34 Ao chegar da meia-noite Zaratustra faz um último discurso, sobre o


encadeamento de todos os acontecimentos, alegrias e sofrimentos, tudo como
parte do mesmo, que sempre retorna.

35 No dia seguinte, acorda e conversa com o Sol, proferindo a mesma frase do início
do livro: “O que seria da tua felicidade, se não tivesses a quem iluminar?”217.
Desta vez, porém, percebia que aqueles homens que dormiam não eram seus
verdadeiros companheiros. A águia, por outro lado, o fez lembrar de seus
verdadeiros amigos - os animais - mas Zaratustra se queixou de lhe faltar
verdadeiros homens.

36 Por fim, Zaratustra se viu rodeado de inúmeras aves e deparou-se com um leão
meigo que lhe sorria e lambia suas lágrimas. Era o sinal de que seus filhos
estavam a caminho. Zaratustra entendeu que seu grande erro foi sua compaixão
para com os homens, e que aspirava à sua obra e não à felicidade. Por fim o leão

215
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Menschen der großen Sehnsucht,
des großen Ekels, des großen Überdrusses und das, was ihr den Überrest Gottes nanntet. p. 840
216
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: lachende Löwen p. 845
217
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: was wäre all dein Glück, wenn du
nicht die hättest, welchen du leuchtest! p. 981
101

afugentou os “homens superiores” e então Zaratustra afastou-se da caverna à


espera do “Grande meio-dia”.
102

ANEXO – FOTOS

Obs.: Todas as fotos nossas, registradas em 2019.

Fig. 1: Instalação de 2000, de Klaus Messerschimidt,


Röcken, Alemanha
103

Fig. 2: Entrada para o terreno onde ficava a casa da família


Nietzsche, quando de seu nascimento, e a Igreja de Röcken

Fig. 3: O complexo onde ainda funciona o teatro


de Bayreuth, idealizado por Richard Wagner.
104

Fig.4: A casa em Naumburg, onde Nietzsche passou sua


infância, e parte de seus anos doente, entre 1880 e 1887.

Fig. 5: Nietzsche Archiv, em Weimar. Local onde Nietzsche


passou os seus últimos anos até o falecimento em 1900.
105

Fig. 6: Túmulo de Nietzsche, em Röcken


106

Fig.7. Estátua em Lucerna diante da qual Nietzsche


formalizou pedido de casamento a Lou Salomé
107

Fig. 8. Galerias de Turim elogiadas por


Nietzsche, por sua arquitetura.

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