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PUC-SP
MESTRADO EM FILOSOFIA
São Paulo
2020
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
MESTRADO EM FILOSOFIA
São Paulo
2020
BANCA EXAMINADORA
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___________________________________________
AGRADECIMENTOS
Aos meus irmãos, que são meus melhores amigos e aos meus melhores amigos, que
são meus irmãos.
Aos Profs. Drs. Márcio Alves da Fonseca e Peter Pál Pelbart, pelas importantes
contribuições e ensinamentos.
À Profª. Drª. Yolanda Glória Gamboa Muñoz, pelo excelente trabalho de pesquisa,
pelo exemplo genuíno de amor ao ensino, pelo apoio e paciência dedicados a mim e
ao meu projeto.
Preciso da solidão, quero dizer, da cura, do retorno a mim, do
sopro de uma brisa solta e que suavemente se agita... Todo o
meu Zaratustra é um ditirambo à solidão ou, se alguém me
compreendeu, à pureza... 1
1
NIETZSCHE, Friedrich. Por que sou tão sábio. In. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 38
RESUMO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................... 8
2 SOLIDÃO EM NIETZSCHE ................................................................... 12
2.1 Solidão e abandono ............................................................................. 18
2.2 Dioniso e a solidão .............................................................................. 22
3 SILÊNCIO EM NIETZSCHE .................................................................. 26
3.1 O silêncio que eleva ............................................................................ 28
3.2 Perder a fala, falar em demasia e o silêncio dos ressentidos ......... 31
3.3 O barulho e o grito ............................................................................... 34
4 ELEMENTOS DA LINGUAGEM EM NIETZSCHE ............................... 37
4.1 Metáforas: lugares e companheiros de solidão de Zaratustra ........ 40
4.1.1 O Sol ..................................................................................................... 40
4.1.2 A caverna de Zaratustra ...................................................................... 45
4.1.3 O mar .................................................................................................... 47
4.1.4 A árvore solitária e os animais de Zaratustra ................................... 50
4.1.5 A hora silenciosa ................................................................................. 52
5 ZARATUSTRA, NIETZSCHE E A IMAGEM DE SI ............................... 57
6 NIETZSCHE E ZARATUSTRA EM MOVIMENTO – AFASTAMENTO
65
E GREGARIEDADE ..............................................................................
7 CONCLUSÃO ........................................................................................ 84
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 90
APÊNDICE – CICLOS DE ZARATUSTRA ...................................................... 92
ANEXO – FOTOS ............................................................................................. 102
8
1 – INTRODUÇÃO
2
Fig.1 - anexo
3
Super-homem, sobre-homem, além-do-homem e supra-homem são algumas das traduções para
Übermensch, conceito central em Nietzsche, que apresentaria uma nova forma de configuração
humana, pois segundo ele o “homem deveria ser superado”. Como não há consenso sobre a melhor
tradução, o termo será mantido em seu original.
9
4
A moral judaico-cristã que nega os impulsos humanos, em detrimento de uma “má consciência”, de
um sentimento de culpa contra tudo que busca mudança. Por outro lado, para Nietzsche, viver é “formar
juízos de valor, preferir, ser injusto, limitado, querer ser diferente!” NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem
e do Mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 17
10
5
“A concepção fundamental da obra, o pensamento do eterno retorno, essa fórmula de afirmação que
é a mais alta que possa ser atingida, é de agosto de 1881: “A seis mil pés sobre o nível do homem e
do tempo”. Divagava, aquele dia, ao longo do lago de Silvaplana, em meio dos bosques: perto de um
rochedo imponente que se erguia em pirâmide não longe de Surlei, estaquei. Ali então tive essa ideia”.
NIETZSCHE, Friedrich.. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de Queiroz
Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 97
6
NIETZSCHE, Friedrich.. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de Queiroz
Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 32
11
2 – SOLIDÃO EM NIETZSCHE
7
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora, aforismo 491. Tradução de Antonio Carlos Braga. Editora Escala
8
A crítica se destina à comunicação que impõe determinados comportamentos de massa. Há, porém,
movimentos artísticos marginais que se expressam por meio do cinema e outros canais, que buscam
justamente o oposto: provocar uma discussão acerca da normalização e disciplina na cultura.
13
9
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. [Edição de bolso] § 268, p. 166.
14
que seguem. Tal forma de pensar e agir, guiada por “verdades inventadas”, está
presente entre os crentes, os sacerdotes, os utópicos, os idealistas e os moralistas:
para a afirmação de seus ideais, refutam tudo que lhes é apresentado fora de seus
dogmas. “Enquanto toda moral nobre brota de um triunfante Sim a si própria, a moral
do escravo diz, desde o princípio, Não ao que é “de fora”, um “outro”, um “não eu” – e
esse Não é o seu ato criativo”.10
Levada ao extremo, essa moral de rebanho que nega tudo que não é
semelhante a si pode levar grupos em direção ao fascismo ou nazismo, como ocorreu
na Europa, no início do século XX, por meio de movimentos nacionalistas que inflavam
as grandes massas a exaltarem a si próprias com base em uma suposta superioridade
racial. O nacionalismo alemão já era crescente nos tempos de Nietzsche e lhe
ocasionou diversos dissabores pessoais e profissionais. Nietzsche muito escreveu
contra esse sentimento, que considerava uma forma de décadance. Possivelmente,
um dos motivos que lhe afastaram de Wagner (uma das figuras mais influentes em
sua trajetória), foi o fato de o músico se colocar à disposição dos governantes
antissemitas para disseminar os ideais deles, em troca de prestígio e influência.
Nietzsche, como abordaremos mais detalhadamente adiante, era avesso
àquele orgulho germânico e preferia pensar a Europa como um todo, tanto que, a
partir de dado momento de sua vida, não tinha nenhuma nacionalidade, era apenas
europeu. Ele menciona algumas vezes em seus escritos não defender uma “unidade
europeia” em um sentido étnico, político ou econômico, mas sim, cultural. A Europa
como um espaço em que os grandes indivíduos pudessem imprimir seus
pensamentos e difundir seus efeitos, em termos artísticos e filosóficos.
Embora fosse contrário ao nacionalismo, Nietzsche era também um crítico da
ideia de igualdade irrestrita entre os homens, que era defendida como um ideal da
burguesia desde a revolução francesa. Criticava, ainda, a compaixão como valor em
si, pois esses ideais de igualdade e compaixão poderiam representar uma barreira ao
nascimento de pensamentos “nobres” e até resultar em um “nivelamento por baixo”.
10
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Attila Blacheyere – 1ª ed. Rio de Janeiro:
Edbolso, 2016, p. 30
15
Por isso, ele discorda da ideia de igualdade “perante Deus” ou “perante a lei”,
visto que, se os homens são plurais, não deveria haver uma imposição limitante ao
indivíduo, baseada em um ideal de igualdade. Para o autor, a desigualdade de direitos
é, na realidade “condição necessária para que os direitos existam. Um direito é
sempre um privilégio”.12
Tal pensamento seria rechaçado hoje em dia, antes mesmo de ser publicado
por seu autor. Porém, para entendermos essa crítica à igualdade, faz-se necessário
levar em conta a visão de mundo de Nietzsche, que considerava toda a existência
como uma constante luta entre forças inconciliáveis. Esses impulsos e forças que
fazem o universo e as coisas criarem-se, manterem-se, destruírem-se e recriarem-se,
estão em conflito, e seus antagonismos estão em tudo, inclusive na humanidade.
Desta feita, em um universo inteiramente constituído e impulsionado pelas
diferenças, uma ideia de igualdade, transmitida como uma “realidade”, é só mais uma
criação de uma mentira, um idealismo, uma construção política sujeita a ser
instrumentalizada para controle e negação da natureza humana.
Por conta desse pensamento, Nietzsche critica e separa seu pensamento do
de Schopenhauer que, segundo ele, adorna os valores do não-egoísmo e diviniza a
compaixão, a abnegação e o autossacrifício, pois ao tornar tais instintos em “valores
em si”, disse “não” à vida e a ele próprio, Schopenhauer.13
Assim, para Nietzsche, uma força ativa que quer aflorar não deve e não pode
se envergonhar de si e não terá lugar onde só existe igualdade. Para que seja possível
ao homem se destacar dos demais, seria necessário um distanciamento daqueles que
são incapazes de criar e que apenas existem em “rebanho”. A esse movimento de
distanciamento, será atribuída a ideia de “moral nobre”.
No aforismo “O derradeiro sentido da nobreza” de A Gaia Ciência, Nietzsche
propõe que “a consistência no egoísmo seja maior, precisamente nas pessoas
nobres”14. Não se trata, necessariamente, de um egoísmo condenado pela moral
11
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, p. 147, §212.
12
NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo, §57.
13
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Attila Blacheyere – 1ª ed. Rio de Janeiro:
Edbolso, 2016, p. 11
14
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001, § 55.
16
15
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001, § 294.
16
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Attila Blacheyere – 1ª ed. Rio de Janeiro:
Edbolso, 2016, p. 38.
17
17
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sábio. In. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p.
29.
18
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 468.
19
Ibidem, p. 490.
18
tudo aquilo que, até então, teria sido considerado como importante. Nietzsche
confidencia que o excesso de leitura lhe fazia mal, pois lhe atrapalhava a fruição dos
pensamentos próprios:
20
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de Queiroz
Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 47
21
Ibidem, p. 61.
19
Tenho paixão pela independência e sacrifico tudo por ela. (...) Estou
cedendo à minha inclinação à solidão, e não consigo agir de outra
forma. Embora “não tivesse necessidade disso” como dizem algumas
pessoas. Mas tenho necessidade disso. Estou desterrando a mim
mesmo.22
22
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 38.
20
conversas entre duas pessoas. O diálogo, porém, se dá entre ele e sua própria
sombra.
Sobre o assunto, Hannah Arendt, em As origens do totalitarismo, explora o
mecanismo interno que ocorre ao estarmos sós, em companhia de nós próprios,
sendo um “dois em um”. Afirma que “Solidão não é estar só. Quem está
desacompanhado está só, enquanto a solidão se manifesta mais nitidamente na
companhia de outras pessoas”.23
Após o Andarilho, mais personagens seriam produzidos para fazer o papel de
interlocutor de Nietzsche. Tratava-se, porém, de uma estrutura criada para “mascarar”
essa conversação interna do filósofo consigo próprio.
No texto Édipo – Discursos de um filósofo consigo mesmo, Nietzsche expressa:
Ninguém fala comigo, exceto eu mesmo e a minha voz vem até mim
como um moribundo! Contigo, amada voz, contigo, último sopro de
esperança de toda felicidade dos homens, deixa que contigo fique
mais uma hora, contigo engano a solidão e mentindo iludo a
multiplicidade e o amor, pois meu coração se recusa a crer que o amor
esteja morto, não suporta o abalo da mais solitária solidão e me força
a falar como se eu fosse dois.24
23
À parte algumas observações ocasionais [...] parece que foi Epicteto, o filósofo escravo-forro de
origem grega, o primeiro a distinguir entre solidão e ausência de companhia. De certa forma, a sua
descoberta foi acidental, uma vez que o seu principal interesse não era uma coisa nem outra, mas o
ser só (monos) no sentido de ser absolutamente independente. Na opinião de Epicteto (Dissertationes,
livro 3, capítulo 12), o homem solitário (éremos) vê-se rodeado por outros com os quais não pode
estabelecer contato e a cuja hostilidade está exposto. O homem só, ao contrário, está
desacompanhado e, portanto, ‘pode estar em companhia de si mesmo’, já que os homens têm a
capacidade de ‘falar consigo mesmos’. Em outras palavras, quando estou só, estou ‘comigo mesmo’,
em companhia do meu próprio eu, e sou, portanto, dois-em-um; enquanto, na solidão, sou realmente
apenas um, abandonado por todos os outros. A rigor, todo ato de pensar é feito quando se está a sós,
e constitui um diálogo entre eu e eu mesmo; mas esse diálogo dos dois-em-um não perde o contato
com o mundo dos meus semelhantes, pois que eles são representados no meu eu, com o qual
estabeleço o diálogo do pensamento [...]. Para a confirmação da minha identidade, dependo
inteiramente de outras pessoas; e o grande milagre salvador da companhia para os homens solitários
é que os ‘integra’ novamente, poupa-os do diálogo do pensamento no qual permanecem sempre
equívocos, e restabelece-lhes a identidade que lhes permite falar com a voz única da pessoa
impermutável”. ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. 9ª ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012, p.635.
24
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 403.
25
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ich und Mich sind immer zu eifrig im
Gespräche: wie wäre es auszuhalten, wenn es nicht einen Freund gäbe?
21
a suportá-la desde que tivesse os requisitos necessários para tanto. “O amigo deve
ser um mestre na adivinhação e no silêncio”.26
Em julho de 1877, Nietzsche se encontrava em um momento delicado, pois
havia recentemente se afastado de Wagner e de outras importantes amizades, além
de estar sofrendo de diversos males físicos. Na ocasião, buscou o isolamento que lhe
propiciou um “diálogo interno”, transvalorando em criação aquelas dificuldades todas.
Ao passar alguns meses em um retiro em Rosenlauibad, em busca de tranquilidade,
realizou longas caminhadas solitárias por trilhas afastadas, que faziam parte de “seu
trabalho”. Em carta à Overbeck27, no mês seguinte, escreveu:
Agora, meus pensamentos me impulsionam para frente, o ano tem
sido tão rico (em experiências interiores); parece-me que a velha
camada de musgo formada pela minha profissão filológica diária só
precisava ser levantada – e agora tudo se apresenta em todo o seu
frescor e vigor. Bastava possuir uma casinha em um lugar qualquer,
lá faria caminhadas de seis a oito horas e desenvolveria aquilo que
depois passaria rapidamente para o papel – assim o fiz em Sorrento,
assim o faço aqui, e assim consegui extrair muita coisa de um ano
desagradável e sombrio.
Para Janz, o resultado desse longo “diálogo consigo mesmo” levaram ao livro
de aforismos Humano, demasiado humano.28
Dessa forma, para Nietzsche, não haveria um abandono de si na solidão. Muito
pelo contrário, a partir do afastamento, é possível estar em “companhia de si mesmo”
e estabelecer diálogos internos, que podem levar a uma transvaloração de todos os
sentimentos ruins experimentados e direcioná-los a uma nova forma de pensar e de
existir. Possivelmente, tal processo de transformação que desemboca na criação
intelectual não seria possível em meio às massas. A solidão pode ser, nesse caso,
um antídoto, um caminho, para evitar o abandono de si.
26
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Im Erraten und Stillschweigen soll
der Freund Meister sein
27
Franz Overbeck (1837-1905) Teólogo alemão, conheceu Nietzsche em 1870, como professor na
Universidade de Basiléia
28
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 609.
22
29
VERNANT, Jean-Pierre. Figuras, Ídolos, Máscaras. Tradução de Telma Costa. Lisboa: Teorema,
1991, p. 144
23
Tal hino possui referências a uma religião dionisíaca e sua prática comum
dentre os gregos, que em cerimônias vestiam-se com coroas e tirsos, praticavam
orgias e por meio de danças báquicas, se purificavam em ritos místicos.
Nietzsche apresenta em boa parte de sua obra uma polaridade “apolíneo-
dionisíaca”, utilizando os deuses como símbolos, tal qual fizera anteriormente Jules
30
FORTUNA, Marlene. Dioniso e a Comunicação na Hélade: o mito, o rito e a ribalta. São Paulo:
Annablume, 2005, p.39.
31
EURÍPIDES. As Bacantes. Tradução de Eudoro de Sousa. São Paulo: Hedra, 2011, p.78
24
32
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis, Editora
Vozes, 2016 p. 345
33
KOFMAN, Sarah. Nietzsche and Metaphor. Tradução para o inglês de Duncan Large. Stanford
University Press, 1993, p. 8
34
MUÑOZ, Yolanda. Isócrates e Nietzsche, uma relação perigosa? 1ª ed. São Paulo. Paulus. 2019,
p.143
25
35
“Amor ao destino”, conceito usado por Nietzsche, que afirmava que o “necessário” não lhe feria e
que amor fati seria a sua natureza mais íntima.
26
3 – SILÊNCIO EM NIETZSCHE
36
BARROS, Manoel de. Memórias Inventadas. O apanhador de desperdícios. 1ª ed. Rio de Janeiro:
Alfaguara, 2018, p. 25
37
Johann Köselitz (1854-1918), pseudônimo Peter Gast, compositor alemão, foi aluno de Nietzsche na
Basiléia. Contribuiu revisando inúmeros escritos de Nietzsche e recebia apoio financeiro e emocional
do filósofo em sua carreira musical
27
O silêncio está nos entretempos das palavras, é o que quer dizer, mas não
precisa ser dito. Pode-se afirmar o mundo e abarcar a vida completa em uma pausa.
A palavra, ao contrário, esvazia de sentido as vivências para possibilitar a
comunicação. Por isso, a crítica de Nietzsche à modernidade passa pela linguagem,
que vulgariza quem fala:
Como apontou Deleuze, a fala, por sua própria natureza, já está apodrecida.
Por isso, Nietzsche buscava incessantemente por uma nova forma de comunicar.
Assim falava Zaratustra é quase uma filosofia musicada e o silêncio do filósofo
Nietzsche carregava uma grande saúde, uma forma de viver adensada pela coragem
grande de dizer sim.
Nesse aspecto, é muito interessante imaginar que o filósofo, que combateu tão
duramente a fala, tenha passado seus últimos onze anos de vida em completo
silêncio. O longo período de reclusão se deu por uma doença mental, mas se levarmos
38
NIETZSCHE, Friedrich. Incursões de um extemporâneo § 26, 1988, p. 86/87
39
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 2013, p.217
28
Silêncio,
por favor.
Enquanto esqueço um pouco a dor
do peito41
40
“O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só́ sentido, uma guerra e uma paz, um
rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de “espírito”,
meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua grande razão”. NIETZSCHE, Friedrich. Dos
desprezadores do corpo. Assim Falava Zaratustra, p. 45.
41
PAULINHO DA VIOLA. Para ver as meninas. 1969
42
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. (Prefácio) Tradução de Lourival
de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p. 19.
29
Por fim, indaga se aquele silêncio do mar e da tarde queriam ensinar ao homem
a deixar de ser homem, como se o falar fosse um aspecto demasiado humano. E
pergunta se o homem, tal qual a natureza, deveria emudecer e repousar em si mesmo,
elevando-se sobre si mesmo.
Esse elevar-se sobre si mesmo por meio do silêncio poderia ser um caminho
para o homem se superar, tornar-se uma melhor versão de si, em direção ao
Übermensch?
Müller-Lauter enxerga, no método genealógico em Nietzsche, uma tripartição
histórica do homem:
43
NIETZSCHE, F. Aurora, aforismo 424, Tradução de Antonio Carlos Braga. Editora Escala, p. 272
44
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche, sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. Tradução de Clademir Araldi. 1ª ed. São Paulo: Editora Unifesp, 2011, p.110.
30
seria um “umbral” de um novo período, que de modo negativo, poderia ser chamado
de “extramoral”.
Segundo essa visão, os fortes e sadios perderam o domínio na transição da
“pré-história” à “história”, por conta de uma mudança de ordem moral. Da mesma
maneira, os historiadores convencionaram que a mudança de uma fase à outra
ocorreu pelo estabelecimento do uso da escrita, como transmissão de regras e
valores. Portanto, a fala e a comunicação teriam definido não somente a história
humana, mas a história da moral. Com isso, se conectam intrinsicamente a moral e a
fala degenerantes. Um é fruto do outro, ao passo que a retomada de uma
predominância dos fortes e nobres por meio de uma transvaloração haveria de passar
pela não-fala, pelo silêncio.
Talvez venha a ser um traço do Übermensch, a desnecessidade de fala. Irônico
seria, para a espécie que se gaba de sua capacidade de comunicação, perceber que
sua superação passaria pela necessidade de fazer o caminho de volta. Aprender com
o silêncio da natureza, para ser menos “humano” e elevar-se.
Nietzsche utilizava-se do silêncio em seus relacionamentos para se distanciar
do ressentimento e se manter altivo. Durante o convívio com amigos e familiares, em
situações em que o filósofo se sentia desrespeitado ou contrariado, por vezes, calava-
se diante do interlocutor. Não como sinal de fraqueza, mas para dar ao tempo o
espaço suficiente para a transformação das mágoas em outros sentimentos mais
favoráveis, ou para não causar sofrimento diante do peso espiritual que ele
representava para aqueles ao seu redor. Certa vez, escreveu a Malwida von
Meysenburg:
Tenho tantas coisas em minha alma que pesam cem vezes mais do
que la bêtise humaine. É possível que eu me transforme em um fado,
no fado de todos os seres humanos vindouros – portanto é
absolutamente possível que algum dia me cale – por amor ao
próximo!!!45
Tal comportamento ocorreu com relação à sua irmã, por exemplo, com quem
Nietzsche teve uma relação especial durante toda a sua vida. Em alguns momentos,
porém, se fez necessário um distanciamento. Elizabeth se mostrava inconveniente em
relação à vida pessoal do filósofo e, a partir do casamento dela com Bernhardt Förster,
45
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 228.
31
46
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Aforismo 276. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
32
47
Parábola utilizada em Assim Falava Zaratustra. “O espírito se muda em camelo, e o camelo em leão
e o leão em criança.” Na primeira metamorfose, o camelo se sobrecarrega de todos os valores de
verdade. Ao chegar ao deserto solitário, torna-se leão, pois quer conquistar a liberdade. O leão luta
com o dragão “Tu deves”. O leão não pode ainda criar, mas pode falar “não”. Por fim, o leão se
transforma em criança, que é inocência e esquecimento, e diz, portanto, SIM para o jogo da criação.
48
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de Queiroz
Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p. 33.
33
49
Merktest du nicht, wie oft sie stumm wurden, wenn du zu ihnen tratest, und wie ihre Kraft von ihnen
ging wie der Rauch von einem erlöschenden Feuer?
50
MUÑOZ, Yolanda Gloria Gamboa. Nietzsche: a fábula ocidental e os cenários filosóficos. 1ª ed. São
Paulo: Paulus, 2014, p. 67.
34
51
Eu me aborreço ou tenho vergonha de todo escrito: escrever é para mim como fazer minhas
necessidades – sinto repugnância até em falar de forma simbólica (...) Não descobri outra forma de me
desembaraçar de meus pensamentos (...)mas sou forçado a isso. NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia
Ciência. Aforismo 93. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
35
52
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Aforismo 331.Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
53
NIETZCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 218.
36
estímulos externos, é um problema que se agrava cada vez mais. Desde a infância,
com diagnósticos de síndrome de déficit de atenção ou hiperatividade, as pessoas
são impactadas por um excesso de imagens e informações: vídeo games, tablets,
celulares e diversos aparelhos que tomam todos os sentidos do indivíduo a ponto de
não se escutar ou enxergar mais o mundo à sua volta. As redes sociais são como o
mercado de Zaratustra: não há mais comunicação, mas somente ruído, excesso de
fala, todos querem chamar atenção, mas ninguém escuta ninguém. A chamada “era
da interatividade” torna o sujeito dependente do barulho e aprende-se desde cedo a
apenas responder a estímulos, sem antes mesmo absorvê-los.
37
54
YEATS, William Butler. Poemas. Seleção, tradução e notas de Paulo Vizioli. São Paulo: Companhia
das Letras, 1992
55
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Von allem Geschriebenen liebe ich
nur das, was einer mit seinem Blute schreibt
38
56
“Nietzsche intentionally diversifies his styles in order to save the reader from misunderstanding a
single style as a style in itself: Good style in itself – a piece of pure folly, mere “idealism”, on a par of
with the beautiful in itself, the good in itself, the thing in itself” KOFMAN, Sarah. Nietzsche and Metaphor.
Tradução para o inglês de Duncan Large. Stanford University Press, 1993, p. 3.
57
“The concept is neither an a priori idea nor a model, as it claims to be. It is a lasting impression wich
became retained and solidified in the memory. It is compatible with very many appearences and is for
this reason very rough and inadequate to each particular appearance.” KOFMAN, Sarah. Nietzsche and
Metaphor. Tradução para o inglês de Duncan Large. Stanford University Press, 1993, p. 35.
39
outros significados mais precisos de acordo com seu pensamento, permite expressar
a “essência” do “seu mundo”.
A crítica de Nietzsche à linguagem é também uma crítica à metafísica. A
linguagem tem parte importante na constituição de conceitos de unidade, de causa-
efeito, razão, consciência, verdade, dentre outros. A palavra cria a ideia de coisas “em
si”, o que para Nietzsche é uma mentira. Nos fragmentos publicados sob o nome de
“Verdade e mentira no sentido extramoral”, Nietzsche estabelece um estudo filosófico
da linguagem, tanto no que se refere à apreensão do conhecimento, quanto no que
se refere ao problema interpretativo. Ataca palavras inventadas para representar
conceitos, como verdade e mentira ou honesto e desonesto, criadas para o fim de
possibilitar uma homogeneização dos pensamentos, facilitando a comunicação e o
convívio social. Tais “verdades” inventadas são transmitidas ao longo das gerações
até se tornarem absolutas, calcadas, porém, em conceitos vazios de sentido. No texto,
Nietzsche explica que ninguém é honesto ou desonesto em essência, a ideia de
honestidade é tão somente uma construção de imagens e de ações que se
convencionou chamar de honestidade, por aqueles que queriam impor um modo de
agir. Mas, para o filósofo, não existe a honestidade em si, assim como a verdade como
um valor em si, não passa de uma convenção social, não existe no mundo efetivo.
A maior parte da transmissão de conhecimento humana e quase toda
experiência de comunicação tem sido intermediada pela linguagem falada ou escrita,
de tal maneira que o pensamento do homem e seus valores passam a ser agenciados
por tal intermediário, que deixa de ser mero instrumento para ser conteúdo e fonte de
conhecimento. Um homem é também a sua língua e a cultura de um povo é também
a sua língua falada e escrita, tendo assim a linguagem um papel cada vez mais
abrangente na experiência humana. Sob esse aspecto, o indivíduo tem cada vez
menos espaço para criar novos valores, pois nasce e cresce em um mar de conceitos
pré-estabelecidos e verdades absolutas que o impedem de ter consciência de que as
palavras são apenas conceitos, metáforas de metáforas.
Assim, silêncio e afastamento tornam-se desejáveis, pois são espaços de alívio
de um mundo pautado pela linguagem gregária. Nesse espaço seguro, o pensamento
entorpecido pela forma de pensar das palavras, poderá dar lugar a outras experiências
estéticas com o mundo, apartado das amarras antes impostas.
40
4.1.1 – O Sol
58
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Neue Wege gehe ich, eine neue Rede
kommt mir; müde wurde ich, gleich allen Schaffenden, der alten Zungen. Nicht will mein Geist mehr auf
abgelaufnen Sohlen wandeln.
59
NIETZSCHE, Friederich. Genealogia da Moral. Tradução de Attila Blacheyere – 1a Edição. Rio de
Janeiro: Edbolso, 2016, p. 15.
60
PESSOA, Fernando. Mensagem. Barueri: Novo Século Editora, 2018, p. 17.
41
O povo que vivia nas trevas viu uma grande luz; sobre os que viviam
na terra da sombra da morte raiou uma luz. (Mateus 4:16)
porque fui feito por ela. Quem conhece a verdade conhece esta luz e
quem a conhece, conhece a eternidade.61
Podes, portanto, dizer que é o Sol, que eu considero filho do bem, que
o bem gerou à sua semelhança, o qual bem é, no mundo inteligível,
em relação à inteligência e ao inteligível, o mesmo que o Sol no mundo
visível em relação à vista e ao visível.63
Mas, quando se voltam para os que são iluminados pelo Sol, acho que
veem nitidamente e torna-se evidente que esses mesmos olhos têm
uma visão clara. (...) Portanto, relativamente à alma, reflete assim:
quando ela se fixa num objeto iluminado pela verdade e pelo Ser,
compreende-o, conhece-o e parece inteligente; porém, quando se fixa
num objeto ao qual se misturam as trevas, o que nasce e morre, só
sabe ter opiniões, vê̂ mal, alterando o seu parecer de alto a baixo, e
parece já não ter inteligência. (...) Reconhecerás que o Sol
proporciona às coisas visíveis, não só, segundo julgo, a faculdade de
serem vistas, mas também a sua gênese, crescimento e alimentação,
sem que seja ele mesmo a gênese. (...) Logo, para os objetos do
conhecimento, dirás que não só a possibilidade de serem conhecidos
lhes é proporcionada pelo bem, como também é por que o Ser e a
61
AGOSTINHO, Santo, Bispo de Hipona. Confissões. Tradução do latim de Lorenzo Mammi. 1a ed.
São Paulo: Penguim Classics / Companhia das Letras, 2017. VII, X, 16
62
CONTE (2016), p.130 A distinção parmenídea do que é “segundo a verdade” e do que é “segundo a
opinião” tem sem dúvida uma influência decisiva sobre Platão, que a reelabora em termos da oposição
entre realidade inteligível e aparência sensível, dualidade ontológica à base da distinção dos modos
cognitivos correspondentes, a “ciência” (epistêmê) e o “juízo” ou “opinião” (doxa). Esse, no Timeu,
caracteriza a região do sensível como daquilo que “sempre devém e nunca é”. É notório o paralelo de
sua descrição do inteligível como aquilo a que se aplica o termo “é” (e não o “foi” ou o “será”) com o
verso 20 do fr. 8 de Parmênides – “se veio a ser, não é, nem se é para ser no futuro” paralelo esse que
apenas é obscurecido pela chamada leitura existencial do verbo einai. Ora, da mesma maneira que,
em Platão, os objetos sensíveis nessa passagem do Timeu não se anulam como simplesmente
“inexistentes”, mas são definidos pela instabilidade de seu modo de “ser”, também o que difere de “o
que é”, em Parmênides, se permite determinar – em sua alternância e instabilidade – pelo arranjo dos
contrários em seu diakosmos (desde que lhe atribuamos um valor teórico positivo, como fazem os
antigos). Mas a semelhança entre Platão e Parmênides termina aí: este não discrimina uma região do
inteligível como o que “verdadeiramente é”) e — precisamente por isso — dá uma acepção muito mais
estrita ao termo “ser”, segundo os critérios exigentes veiculados no fr. 8.
63
PLATÃO, A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, 9ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Goulbenkian, 508d.
43
64
PLATÃO. A República. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira, 9a Edição. Lisboa: Fundação
Calouste Goulbenkian, 508d.
65
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. Tradução de Márcio Pugliesi. Curitiba: Hemus
Editora, 2001, p. 8.
66
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. p. 21
44
Aqui, portanto, a analogia da luz do sol que está disponível para todos, mas só
pode ser captada por alguns, é semelhante ao pensamento de Platão, porém, a
comparação é com a sabedoria que pretende Zaratustra transmitir aos seus
companheiros. Ou seja, sendo Zaratustra um homem, a sabedoria a ser transmitida
não é de uma ordem transcendente, mas presente na natureza, fruto do domínio
humano. Nesse ponto, serve a crítica também ao cristianismo, pois se a luz do Sol,
nos textos bíblicos, representa o próprio Deus criador e o bem que dele emana,
Zaratustra, homem, não se coloca abaixo dele e compara a luz “divina” com a dele
próprio. Não é apenas um instrumento, como o dizem ser os sacerdotes, mas o próprio
criador.
A luz também foi abordada por Nietzsche, no aforismo 125 de A Gaia Ciência,
em que um homem louco acende um candelabro em plena luz do dia e corre a um
mercado, gritando incessantemente a perguntar “onde estaria Deus”. Após ser
ridicularizado pelos presentes, anunciou que Deus estava morto e que havia sido
morto pelos homens. Após um grande silêncio, arremessou seu candelabro,
quebrando-o em inúmeras partes, concluindo que ele chegara cedo demais, e que
serem vistos e ouvidos. Esse ato (matar a Deus) ainda lhes é mais
distante que a mais longínqua constelação – e, no entanto, eles
cometeram!
Nesse aforismo, Nietzsche mais precisamente ataca os céticos que não mais
acreditam em Deus, mas que ainda vivem sobre uma determinada moral cristã. A
imagem do candelabro em plena luz do dia é muito interessante. Se a luz do dia é
representação platônica de um bem em si, o homem louco precisaria de um
candelabro, pois aquela luz não lhe serviria?
E quando assume que os ouvintes não têm capacidade de lhe compreender e
arremessa sua outra fonte de luz ao chão, rompendo-a em várias partes, estaria
sinalizando que nenhuma luz seria capaz de fazer aqueles homens céticos
enxergarem qualquer coisa. A soberba os impediria de ver a efetividade tal qual ela é.
Novamente, portanto, nesse aforismo é criticado o autor de República, já que
Nietzsche desconstrói, a partir do personagem louco, a iluminação, a ideia de verdade,
pois, entre os ateus do mercado, só havia certezas de uma estrutura de pensamento
fundamentada pela ideia de Deus e mantida ainda depois da “morte” dele.
se Zaratustra da sua pátria e do lago da sua pátria, e foi-se até a montanha. Durante
dez anos gozou por lá do seu espírito e da sua soledade sem se cansar.”67
Adiante, em conversa com o Sol, confidencia que já está tão enfastiado de sua
sabedoria, como a abelha que acumulou demasiado mel, que parte para a cidade em
busca dos homens para repartir seus conhecimentos. Por diversas vezes, Zaratustra
retorna à caverna, onde vive em companhia tão somente dos animais, em especial, a
águia e a serpente.
Diferentemente da caverna de Platão68, que era um local de sofrimento e
penumbra, onde a alegoria da escuridão remete à escassez de conhecimento
daqueles pobres prisioneiros, a caverna de Zaratustra era um lugar de luz, no alto das
montanhas. A caverna de Platão fica abaixo de onde os homens viviam, tanto que se
percebiam somente as sombras do que acontecia no mundo “real”. Por sua vez,
Zaratustra, em companhia de sua águia, podia ver todo o mundo de cima de seu
monte privilegiado. A águia, ave de rapina, com visão excepcional, poderia assinalar
também, ao nosso ver, a visão dos sábios que enxergam além do que o homem médio
pode ver, a fim de encontrar respostas para os mais profundos questionamentos.
Há ainda referências sobre as pedras dos montes, que traduzem a vida frugal
e sem conforto daqueles que vivem fora da civilização, mas que gozam do contato
intenso com si próprios e com a natureza. “Ó! Haja de dormir na pedra mais feia e
mais rija!”69
No poético trecho abaixo, novamente a alegoria geográfica do descer e subir,
que pode se aproximar da ação humana de buscar e alcançar por meio do esforço,
as altitudes mais elevadas da sabedoria, que se obtém no alto da solidão, e que desce
para montanha abaixo, para se compartilhar com os homens: “A minha selvagem
sabedoria emprenhou nos montes solitários; nas duras pedras pariu o mais novo dos
67
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Prólogo. Original: Als Zarathustra dreißig Jahre alt
war, verließ er seine Heimat und den See seiner Heimat und ging in das Gebirge. Hier genoß er seines
Geistes und seiner Einsamkeit und wurde dessen zehn Jahre nicht müde.
68
“Imagine, pois, homens que vivem em uma morada subterrânea em forma de caverna. A entrada se
abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância,
acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a
cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles,
ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe”. PLATÃO, A Alegoria da
caverna. In. A Republica, 514a-517c. Tradução de Lucy Magalhães. In: MARCONDES, Danilo. Textos
Básicos de Filosofia: dos Pré- socráticos a Wittgenstein. 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2000.
69
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Criança no Espelho. Original: Ach, daß es im
härtesten, häßlichsten Steine schlafen muß!
47
seus filhos. Agora corre louca pelo deserto árido e procura sem cessar o branco
céspede”.70
A caverna de Zaratustra era um local impróprio para os homens em geral: fria,
distante, íngreme e inacessível. Era, porém, onde o personagem encontrava a água
fresca, o ar puro, o alimento genuíno. A companhia de seus animais e da natureza.
4.1.3 – O Mar
Leva a bandeira,
carrega o pesadelo.
Terra firme só, não vale.
Porto seguro é não ter medo71
A metáfora do mar é muito utilizada por Nietzsche em seus escritos e pode ter
diversas significações, a depender do contexto do estado do mar, mas em geral,
apresenta um momento de solidão, em que o homem se vê diante da grandeza da
natureza. O caráter de constante movimento do mar, pelo infinito ir e vir das ondas,
guarda relação com o pensamento de Heráclito que considerava a constante
mudança, o elemento essencial de todas as coisas.
Os estudos do filósofo pré-socrático marcaram o percurso de Nietzsche, que
considerava Heráclito um “anti-platônico” por não conceber um dualismo no mundo,
mas um estado de imanência que compreende uma harmonia dentro dos
antagonismos: “o divergente (diapheromenon) consigo mesmo concorda
(sympheromenon); harmonia de tensões contrárias, como de arco e lira”.72
Nietzsche descreve Heráclito como alguém que escolheu a solidão e que
preferia brincar com as crianças a participar das obrigações na polis, para então
prosseguir uma investigação sobre si mesmo. A partir dessa investigação73 Heráclito
teria descoberto não haver uma “essência” dentro de si, mas um fluir.
70
Ilha da bem-aventurança. Original: Meine wilde Weisheit wurde trächtig auf einsamen Bergen; auf
rauhen Steinen gebar sie ihr Junges, Jüngstes.
71
BENJAMIN, KEEN, Bernaby.Terra Firme. Álbum 1986, 2017.
72
HERÁCLITO, fr. 51. Pré-Socráticos. Coleção: Os Pensadores. Tradução de José Cavalcante de
Souza. São Paulo: Nova Cultural..
73
Nessa perspectiva, a busca de Heráclito por si mesmo, ou por seu caráter próprio (o dáimon do fr.
119), mesmo a sua insistência pela obediência à lei (fr. 249), devem ser entendidas como concordância
com o Logos que faz e caracteriza o mundo e ao mesmo tempo faz e caracteriza o próprio humano
(mesmo a alma é descrita como feita de fogo e assim deve ser mantida. Essa relação de
48
Heráclito propôs a célebre metáfora do homem que não pode entrar no mesmo
rio duas vezes, porque a todo instante muda o homem e porque a todo instante muda
o rio. Essa mesma ideia de correr eterno da água está também nas ondas do mar,
como imagem de transitoriedade como princípio do universo.
Já em seus primeiros escritos, aos dezessete anos, Nietzsche escreve uma
redação sobre Höderlin75, a quem homenageava, afirmando que “no movimento
sonoro de sua prosa, na nobreza e beleza de suas figuras, causa em mim uma
impressão semelhante às ondas do mar agitado.”76 O interessante é que, naquela
ocasião, ele ainda não conhecia o mar, mas já o utilizava como metáfora.
O mar pode ser utilizado alegoricamente para expressar um espaço onde o
homem se lança ao desconhecido, aceita os desafios que lhe são impostos sem medo
e, corajosamente, diz sim aos movimentos sobre os quais não tem controle. No
aforismo “A grande saúde” de A Gaia Ciência, Nietzsche compara os “homens
nascidos cedo, de um futuro que ainda indemonstrado” (incluindo ele próprio), a
argonautas do ideal, lançados ao mar, que são, por vezes, náufragos danificados, mas
que sempre retornam “perigosamente sadios”.
A grande saúde que se prega, embora possa ter algo de saúde física, está mais
associada à saúde do espírito que se encontra na coragem de aprender a partir da
busca de terras inexploradas. Essa saúde não somente se tem, mas se conquista,
assim como faziam os grandes marinheiros que bravamente encaminhavam-se rumo
ao desconhecido em busca de terras desconhecidas. Estes “argonautas do ideal” têm
a consciência de que são senhores de sua embarcação, e têm coragem de se
aventurar em mares nunca dantes navegados, conquistando, diariamente sua grande
saúde. Em anotações por volta de 1880, Nietzsche escreve: “Não quero mais
77
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 38.
78
Pequena montanha sobre o mar, em alemão, “Vorgebirger”
79
A voluptuosidade, o desejo de dominação e o egoísmo: essas três coisas têm sido as mais caluniadas
até hoje.
50
80
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Os três grandes males. Original: still ist der Grund
meines Meeres: wer erriete wohl, daß er scherzhafte Ungeheuer birgt!
81
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falava Zaratustra. Os três grandes Males. Original: Aber der Wind,
den wir nicht sehen, der quält und biegt ihn, wohin er will. Wir werden am schlimmsten von unsichtbaren
Händen gebogen und gequält.
51
Ao nosso ver, esses animais podem ser considerados como metáforas para
instinto e razão do próprio Zaratustra. Ao final do preâmbulo, Zaratustra afirma para
si que deve ser mais cuidadoso, e tão astuto quanto sua serpente. Mas considerando
isso impossível, pede que sua altivez o acompanhe sempre com prudência, e se um
dia a prudência o abandonar, possa a sua altivez voar com sua loucura.
Ou seja, a serpente, sendo um animal astuto e observador, e presa à terra,
poderia se aproximar de uma imagem de razão, prudência. Por sua vez, a águia,
animal de caça, forte, e que voa na altura do sol, poderia ser o instinto, orgulho e a
altivez, vontades de mais potência, de busca de novos horizontes. Corroborando esse
pensamento, a águia é mencionada em Ecce Homo como “vizinha dos solitários, que
82
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 181 / 245.
52
tecerão seu ninho na árvore do futuro. E essas águias lhes trarão, no bico, o sustento
necessário”.83
Em todo caso, podemos constatar que, pouco antes desse pensamento,
Zaratustra avista a serpente enrolada ao pescoço da águia, como se ambas
pudessem e precisassem estar juntas para o equilíbrio de instinto e razão. Para
Zaratustra, acaso se separassem, preferiria voar apenas com a águia que, sem a
razão da serpente, importaria em um voo com a loucura.
Devo ser mais judicioso! Devo ser tão profundamente astuto como
minha serpente. Peço, porém, o impossível; rogo, portanto, à minha
altivez que me acompanhe sempre a prudência! E se um dia a
prudência me abandonar – Ai! Agrada-lhe tanto fugir! – possa sequer
a minha altivez voar com a minha loucura!84
83
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sábio. In. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016, p.
38.
84
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra, texto original: Möchte ich klüger sein! Möchte ich
klug von Grund aus sein, gleich meiner Schlange! Aber Unmögliches bitte ich da: so bitte ich denn
meinen Stolz, daß er immer mit meiner Klugheit gehe! Und wenn mich einst meine Klugheit verläßt –
ach, sie liebt es, davonzufliegen! – möge mein Stolz dann noch mit meiner Torheit fliegen!« –
85
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 185.
53
86
Tudo o que é uno só pode ser entendido enquanto múltiplo: se há uma permanência do princípio
(pyr) há, sobretudo uma mudança na sua constituição, fato que cria o múltiplo a partir das
diferenciações. Qualquer singularidade ou individuação só pode ser entendida como produto da
aparência (em Nietzsche, representada por Apolo) e não como derivação de algum princípio originário
essencial constituinte de cada um dos seres isoladamente. OLIVEIRA, José Robert. Nietzsche e o
Heráclito que ri. Veritas, Vol. 55, n. 3, set./dez. 2010, p. 217-235
54
87
NIETZSCHE, Friedrich. Nascimento da Tragédia no espírito da música, In. Obras Incompletas.
Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. 1a Edição. Editora 34. 2014. p.432
88
MACHADO, Roberto. Zaratustra e o pensamento trágico. In. Zaratustra, tragédia nietzschiana. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. p.62.
55
Mais adiante, Zaratustra faz referência ao leão, que fora mencionado no início
do livro, como uma das metamorfoses. O leão é a etapa intermediária entre camelo
(que carrega os pesados fardos morais) e a criança. É aquele que se revolta contra o
Dragão “Tu Deves” e afirma “eu quero”, em que o homem brada contra tudo o que é
estabelecido contra toda a moral posta, para posteriormente virar criança e criar novos
valores. O que diz, porém, é que ainda não tem a voz do leão para mandar, e recebe
a seguinte resposta de sua “dama”:
São as palavras mais silenciosas que trazem a tempestade. Os
pensamentos que vêm com pés de pombo são os que dirigem o
mundo. Zaratustra, precisas caminhar como uma sombra do que há
de vir: assim mandará, e mandando, irás para a frente. É preciso
tornares-te criança e desprezares a vergonha. Ainda tens o orgulho da
mocidade; fizeste-te moço muito tarde; mas o que se quer tornar
criança deve também vencer a sua mocidade. 90
89
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra; livro para toda a gente e para ninguém. Tradução
de José Mendes de Souza. Edição Especial. Nova Fronteira. 2016. p. 154
90
Ibidem, p. 156.
56
imagens, uma ação –, a dama silenciosa poderia ser um diálogo de Zaratustra com si
próprio (tal qual ocorrerá em um capítulo posterior, “O convalescente”).
A hesitação de Zaratustra em seguir o seu tortuoso caminho de solidão em
nome de sua obra e a triste constatação de que seriam poucos os seguidores de sua
doutrina se assemelham ao sofrimento de Nietzsche em encontrar seguidores de sua
filosofia. Enquanto Zaratustra não acha ouvintes, Nietzsche não acha leitores, pois
procura leitores filósofos alinhados com seus pensamentos, mas não os encontra.
Considerando que Assim falou Zaratustra foi publicado em partes, levando
alguns anos entre a divulgação da primeira e da última parte e que no decorrer das
publicações, por diversos motivos, foi pouco lido, é possível imaginar que o autor
tenha se dado conta de que o livro, embora estivesse acessível a todos, por muito
tempo seria compreendido por poucos, que sua filosofia possivelmente faria a sua
mudança de maneira silenciosa e só iria alcançar, ao longo do tempo, aqueles leitores
capazes de receber o conteúdo de seus ensinamentos.
A voz silenciosa que convenceu Zaratustra a, ainda que tristemente, retornar
ao isolamento por não estar suficientemente forte para ser criança, provavelmente é
a mesma que escuta Nietzsche ao se convencer de que o caminho fora do gregário
seria o único possível para que ele pudesse criar sentidos novos para sua vida e para
a humanidade. Um gênio solitário, fadado a escrever obras de grandioso valor e pouca
repercussão.
Embora tenha percebido a necessidade do isolamento para agregar as forças
criativas que lhe impulsionariam a ser um dos maiores pensadores de seu tempo,
sujeitou-se, tal qual Zaratustra, a ter de deixar seus iguais, vivendo uma vida de
privações do ponto de vista social.
O cântico triste e solitário que permeia o caminho de Zaratustra, segundo o
próprio Nietzsche, é uma homenagem à pureza, adjetivo que se aplica à criança, ao
criador de novos valores.
57
91
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou uma fatalidade. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p.
137
58
92
NIETZSCHE, Friedrich. As considerações intempestivas. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p.
85.
93
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sábio. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução
de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 29.
59
94
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sagaz. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução
de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 58.
95
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche, sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. Tradução de Claudemir Araldi. 1ª ed. São Paulo: Editora Unifesp, 2011, p. 32.
60
96
Nietzsche afirmava ter alguma ascendência polonesa, mas a maioria dos seus biógrafos descarta
essa possibilidade.
97
NIETZSCHE, Friedrich. Porque escrevo bons livros. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p.
67
98
NIETZSCHE, Friedrich. O caso Wagner. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de
Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 123
61
99
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sagaz. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução
de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 46.
100
Ibidem, p. 61.
101
Ibidem, p. 28.
62
102
NIETZSCHE, Friedrich. Porque sou tão sábio. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução
de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 32
103
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou.
Tradução de Lourival de Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 77
63
Zaratustra seria a criação de Nietzsche que levaria a sua doutrina para o futuro. Pela
boca de Zaratustra falam o pensador e o ser humano Nietzsche, em toda a sua
profundidade. Em Assim falava Zaratustra, percorre o caminho de um herói trágico,
sofrendo longos períodos de exílio, acometido por pesadelos e dificuldades para levar
ao conhecimento dos homens a boa-nova que trazia. Trajetória muito parecida com a
de Nietzsche que padecia da falta de interesse e compreensão de seus
contemporâneos e que, inclusive, se queixava a amigos, na época, da pouca
popularidade de suas grandes obras.104
Em suas cartas, Nietzsche fala repetidamente de seu “filho” Zaratustra. Pode-
se vislumbrar, a partir dessa afirmação, uma paródia à igreja e a relação de Deus com
Cristo. Na igreja católica, Jesus é filho de Deus e, portanto, uma entidade separada,
objeto, efeito do primeiro. Porém, para a igreja, Cristo também é Deus, em forma
humana. Seria ele, portanto, semelhante ou idêntico a Deus? A partir desse
pensamento, Janz105 provoca: “Zaratustra é o filho, a criatura espiritual de Nietzsche,
diante da qual ele, como seu pai e autor, assume certa distância – ou seria Zaratustra
o próprio Nietzsche?”
Nietzsche afirma que tudo estava às avessas antes do aparecimento de
Zaratustra e que somente com ele recomeçavam as esperanças, sendo ele um feliz
mensageiro e uma fatalidade.
Zaratustra é descrito como o primeiro “psicólogo dos bons” e, posteriormente,
Nietzsche declara que “antes de mim não havia psicologia de espécie alguma”. Afirma,
ainda, que à época em que estava escrevendo Ecce Homo não havia dito mais
nenhuma palavra que “já não tivesse proclamado pela boca de Zaratustra”.
Dessa feita, pode-se concluir que a imagem de si para Nietzsche, embora
transitória e inconstante, é formada por uma forte marca dos valores dionisíacos e
104
Nietzsche escreveu, em carta à Malwida von Meysenbug, em maio de 1884: “Tenho esperança que
por agora, minha mais querida amiga, as duas últimas partes de Zaratustra estejam em suas mãos.
(…) Quem sabe quantas gerações serão necessárias para produzir alguns homens plenamente
capazes de apreciar o que fiz! Eu estou apavorado com o pensamento de que tipos desqualificados e
completamente inadequados um dia irão recorrer à minha autoridade. Mas este é o tormento de todos
os grandes mestres da humanidade: eles sabem que é grande a chance de sua maldição se tornar sua
benção. Farei o que puder para evitar ao menos os enganos mais grosseiros. Agora que construí este
vestíbulo para minha filosofia, devo voltar ao trabalho e não descansar enquanto sua estrutura principal
não estiver finalizada, antes que eu mesmo esteja.(…) Mas esta solidão, desde a infância! Esta cautela,
nas relações pessoais mais íntimas! Mesmo o carinho não pode mais me alcançar.
105
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Vol. II. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis:
Editora Vozes, 2016, p. 195 / 245.
64
106
“Aqui sentava eu, à espera – à espera de nada, Além do bem e do mal, ora fruindo A luz, ora a
sombra, tudo apenas brincadeira, Tudo lago, tudo meio-dia e tempo sem meta. Subitamente, Amiga,
o um se tornou dois – E Zaratustra passou junto a mim...” ).
65
107
JASPERS, Karl. Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche. p. 109
108
Ibidem, p. 110
109
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis, Editora
Vozes, 2016, p. 467.
66
essas “fases” com trechos de Zaratustra com os quais encontramos alguma conexão.
Os ciclos de Zaratustra, em ordem cronológica de aparição no livro, estão nos anexos,
juntamente com algumas fotos dos locais de Nietzsche.
Os primeiros eventos trágicos na vida de Nietzsche se deram quando ele tinha
cinco anos. Primeiro, a morte de seu pai (pastor de uma pequena comunidade) e
depois a morte de seu irmão de dois anos, fizeram a família ser forçada a se mudar
da casa onde moravam110, (onde ficava também a igreja em que o pai pregava) para
uma casa em Naumberg111.
Em Naumberg, Nietzsche começa a frequentar Knaben-Bürgerschule (escola
pública). A mãe já o havia ensinado a ler e escrever, porém, seguindo o conselho da
avó, que acreditava “ser saudável reunir os filhos de famílias cultas com as de
estamentos inferiores durante os primeiros anos escolares, para assim lhes transmitir
uma sensibilidade social”112, entendeu que a vivência seria salutar ao garoto. A
experiência fracassou, pois embora o pequeno “Fritz” aprendesse facilmente tudo que
lhe era ensinado, não conseguia se integrar aos outros garotos. A sua “capacidade de
recitar versos bíblicos e espirituais com uma expressividade que chegava a provocar
lágrimas”113 se contrapunha ao fato de que era uma criança solitária e isso não
mudaria. Desde já, se envolvia com a áurea tão protetora quanto perigosa e dolorosa
da singularidade que, durante toda a vida, o isolaria do convívio social.”114Já existia,
portanto, um pathos do distanciamento em Nietzsche desde cedo, algo que,
aparentemente não tinha sido ensinado, pois sua mãe tentara fazer com que a criança
estivesse mais próxima às mais “simples”. Em carta para Overbeck em 12 de
novembro de 1887 Nietzsche escreveu: “já como criança era sozinho e continuo sendo
hoje, em meus 44 anos de vida”.
Ainda criança, Nietzsche acaba por se afeiçoar por dois outros garotos de
famílias “nobres” que também não conseguiam se enturmar na escola, Wilhelm Pinder
e Gustav Krug. Por esse motivo, os três foram transferidos para uma escola
preparatória para o ginásio da catedral (Domgymnasium), onde Nietzsche permanece
até 1854, aos dez anos. Com o convívio entre os familiares dos amigos, Nietzsche
110
Fig.2
111
Fig.3
112
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 49.
113
Ibidem
114
Ibidem
67
115
Ibidem, p. 55
116
ibidem, p. 75
117
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Als Zarathustra dreißig Jahre alt war,
verließ er seine Heimat und den See seiner Heimat und ging in das Gebirge. Hier genoß er seines
Geistes und seiner Einsamkeit und wurde dessen zehn Jahre nicht müde. p.4 (Todas as notas do texto
em versão original foram retiradas da versão bilíngue: “Also sprach Zarathustra / Thus Spake
Zarathustra, Bilingual Edition Translated by Thomas Common. Doppeltext”)
118
Super-homem, sobre-homem, além-do-homem e supra-homem são algumas das traduções para
Übermensch, conceito central em Nietzsche, que apresentaria uma nova forma de configuração
humana, pois segundo ele o “homem deveria ser superado”. Como não consideramos nenhuma das
traduções perfeitamente adequadas, o termo será mantido em seu original.
119
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: sie verstehen mich nicht, ich bin
nicht der Mund für diese Ohren. p.34
120
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: nun rede ich ihnen gleich den
Ziegenhirten. p.34
68
121
Paul Jakob Deussen (1845-1919). Professor de filosofia, fundador da Schopenhauer Society, iniciou
a amizade com Nietzsche por conta da admiração recíproca a Schopenhauer
122
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: wo man nicht mehr lieben kann, da
soll man – vorübergehn! p.518
123
Friedrich Wilhelm Ritschl (1806-1876) Professor de Teologia clássica da universidade de Leipzig
124
Erwin Rohe (1845-1898). Filólogo e professor, estudou com Nietzsche em Leipzig.
125
Os dióscuros são os gêmeos Castor e Polideuces (ou Pólux), filhos de Zeus e Leda, esposa do rei
de Esparta. Segundo a lenda, os gêmeos têm a mesma mãe, mas pais diferentes. Por isso, Polideuces
era imortal, enquanto Castor não era. Mesmo sendo filhos de pais diferentes, Castor e Pólux
69
desenvolvem a mais bela amizade e se tornam inseparáveis, daí serem chamados dióscuros (filhos de
Zeus).
126
JASPERS, Karl. Introdução à filosofia de Friedrich Nietzsche. Tradução de Marco Antonio Casanova.
1ª ed. São Paulo: Editora Forense Universitária, 2015, p. 110.
127
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Zu weit hinein flog ich in die Zukunft:
ein Grauen überfiel mich. Und als ich um mich sah, siehe! da war die Zeit mein einziger Zeitgenosse.
p. 341.
128
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: So liebe ich allein noch meiner
Kinder Land, das unentdeckte, im fernsten Meere: nach ihm heiße ich meine Segel suchen und suchen.
p. 348.
70
hierárquico. O nível intelectual de seus pares era bastante elevado e lá estava mais
próximo de um homem extraordinário que havia conhecido: Richard Wagner. Apesar
de estar rodeado de personalidades que lhe interessavam, Nietzsche volta a se sentir
deslocado. Em carta a sua mãe, em 1869, escreve:
Na mesma época escreve em carta ao amigo Gersdorff: “Nós dois sabemos o que
devemos pensar da vida. Mas precisamos viver, não para nós”.
Zaratustra, em certo momento, se isola e sai a correr com “pés quentes” pelo
129
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis, Editora
Vozes, 2016 p. 266
130
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: O wann komme ich wieder in meine
Heimat, wo ich mich nicht mehr bücken muß – nicht mehr bücken muß vor den Kleinen! p. 467
131
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 307.
71
Monte das Oliveiras que chama de seu132. Lá, afirma que a solidão, para alguns, é
fugir para a enfermidade. Para outros é fugir daqueles que estão doentes.133
Depois de diversas tentativas fracassadas de se transferir para uma cadeira de
professor de Filosofia, Nietzsche deixa a busca por ser um mestre em Filosofia, para
se tornar um filósofo. Em 1871, lança sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia,
sob a influência de Wagner, por quem Nietzsche, 30 anos mais jovem, nutria grande
admiração. Janz considera que foi com ele, para ele e, mais tarde, contra ele que
Nietzsche dialogou constantemente, desde seu primeiro livro, até o ataque em 1888
a um Wagner já morto.134
Há semelhanças de Wagner com o personagem “O Encantador” (der
Zauberer), que aparece na parte final de Zaratustra. Um homem mais velho, que
usava de sua arte para, supostamente, ser um redentor do espírito. Zaratustra o
chama de “pavão”, “oceano de vaidade”. O homem punha-se a falar sozinho,
reclamando a um Deus incógnito. Zaratustra, então, o agride e o faz assumir ser um
enganador. O homem assume sua condição e Zaratustra lhe oferece sua caverna
como abrigo.
No final de 1871, Nietzsche comunica-se por meio de diversas cartas para
externar seu contentamento por estar rodeado de amigos e por ter produzido uma
peça musical descontraída. No fim do ano, porém, comunica: “passarei o Natal desse
ano sozinho em Basiléia. Preciso de tempo e solidão para refletir sobre minhas seis
palestras e para me acalmar”.135 Em 1872 dá suas primeiras palestras em que se
apresenta como um crítico cultural e social, valendo-se de exemplos de sua juventude
e com expressão eloquente. Em sua primeira palestra assim expressa:
132
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Inzwischen laufe ich mit warmen
Füßen kreuz und quer auf meinem Ölberge. p. 501
133
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Des einen Einsamkeit ist die Flucht
des Kranken; des andern Einsamkeit die Flucht vor den Kranken. p. 507
134
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 354.
135
Ibidem, p. 340.
72
Tanto o tom do discurso de Nietzsche feito aos seus alunos, quanto o conteúdo,
são muito próximos dos discursos de Zaratustra. Destacamos aqui a fala que faz o
personagem em “O caminho do criador”, quando provoca aqueles que querem
encontrar o caminho para si mesmos, a provarem a sua força e seu direito para tanto:
Podes ser o teu próprio juiz e capataz da tua lei?137” Prevê que aqueles
que busquem tal caminho se verão solitários em determinado
momento. O caminho do criador é um discurso poderoso que instiga
àquele que quer romper a barreira do rebanho a negar o sentimento
de rebanho que há em todos que por muito tempo viveram em
comunidade. Aqui se pode retomar a parábola das três metamorfoses,
pois para o criador é necessário percorrer os caminhos do camelo, do
leão e da criança. É necessário se isolar e negar os valores postos, tal
qual o leão, antes de ter força para ser a criança criadora. Depois de
conseguir esse isolamento, então o solitário terá um novo desafio - o
de entender e buscar o porquê de sua liberdade. Não se trata de uma
fuga, mas sim de um movimento de busca com o fim de ser forte e de
criar. Por fim, como um ditirambo, aponta ao criador o difícil caminho:
“Vai-te para o isolamento, meu irmão, com teu amor e com tua criação,
e tarde será que a justiça te siga, claudicando. Vai-te para o
isolamento com minhas lágrimas meu irmão. Eu amo o que quer criar
qualquer coisa superior a si mesmo e dessa arte sucumbe.”138
136
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis, Editora
Vozes, 2016, p. 359.
137
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Kannst du dir selber Richter sein
und Rächer deines Gesetzes? p. 172
138
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Mit deiner Liebe gehe in deine
Vereinsamung und mit deinem Schaffen, mein Bruder; und spät erst wird die Gerechtigkeit dir
nachhinken. Mit meinen Tränen gehe in deine Vereinsamung, mein Bruder. Ich liebe den, der über sich
selber hinaus schaffen will und so zugrunde geht. p. 179
139
Fig.3
73
se de onde vêm as mais altas montanhas e responde a si mesmo que elas vêm do
mar. Desce, então, até às margens do mar e, por fim, sente-se cansado. Lembra de
seus companheiros e chora de cólera e ansiedade.
Após a publicação das primeiras “Considerações Extemporâneas”, Nietzsche
recebe, de parte dos acadêmicos, críticas negativas à sua obra: “desistiu da docência
e da ciência e se tornou profeta de uma religião não religiosa e de uma filosofia não
filosófica”, e vê parte da comunidade filológica, que antes o venerava, afastar-se dele.
Zaratustra também sofreu por trazer pensamentos que estavam a frente de seu
tempo. No aforismo das “Antigas e das novas tábuas” ele aguarda sentado, por entre
as antigas tábuas quebradas e as novas, meio escritas, a hora de poder voltar aos
homens, para espalhar a sua doutrina. Ali, decide fazer um grande discurso de si para
si mesmo e, após longa fala, aguarda pelo momento do “grande meio-dia”, em que
espera ser vitorioso.
Entre os anos de 1873 e 1876 Nietzsche luta para satisfazer a três exigências
e harmonizá-las: a profissão de professor de teologia, o chamado filosófico e a
lealdade a Wagner. Uma das consequências do acúmulo de atividades foi uma série
de problemas relacionados à visão, levando o filósofo a ser proibido de ler, tendo que
lecionar sem anotações.
No verão de 1874, enquanto produzia “Schopenhauer como educador” escreve
a Rohde:
140
Ibidem, 469
141
Malwida von Meysenburg (1816-1903) Escritora alemã que Nietzsche conhece a partir do ciclo de
Wagner e que, pela idade e maturidade exerce um papel protetor em relação a Nietzsche.
142
MARTON, Scarlett. Nietzsche. Editora Brasiliense, 1983. P. 59
74
143
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 499.
144
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Würdig wissen Wald und Fels mit
dir zu schweigen. Gleiche wieder dem Baume, den du liebst, dem breitästigen: still und aufhorchend
hängt er über dem Meere.Wo die Einsamkeit aufhört, da beginnt der Markt; und wo der Markt beginnt,
da beginnt auch der Lärm der großen Schauspieler und das Geschwirr der giftigen Fliegen.
75
conhece o assombro do espírito e que pode voar sobre abismos, ao contrário dos
sábios que fazem da sabedoria um “hospital de maus poetas” e que continuam a ser
povo – “povo de olhos fracos”.
Em 1879, por conta de um esgotamento físico e mental, Nietzsche pede
demissão da Universidade da Basiléia e decide dedicar-se integralmente à Filosofia,
assim buscando as melhores condições físicas para sua escrita. No mesmo ano, vai
pela primeira vez a Sils-Maria, cidade nos alpes suíços que fazia bem ao filósofo e
para onde voltaria pelos sete verões seguintes. Lá, faz caminhadas solitárias de até
dez horas e por vezes se perde “nessas alturas desoladas e, em outras, dormiu e teve
sonhos grandiosos ou terríveis que evocou em seus poemas e em sua música”.145 No
Natal do mesmo ano, Nietzsche tem uma de suas piores crises e relata a Paul Rée146
“ter escapado por pouco da morte, mas ter ficado a partir dali terrivelmente
atormentado.” Nos anos seguintes, Nietzsche passa por mudanças importantes em
seu estilo literário. Passa a escrever, a partir de “O andarilho e sua sombra”, por meio
de diálogos no estilo socrático. No caso do livro mencionado, os diálogos se davam
entre o poeta-filósofo e ele mesmo.
No discurso “Do amigo”, Zaratustra aborda as conversações consigo mesmo
que faz um sujeito solitário. “Eu e eu mesmo estamos sempre em conversações
incessantes.”147 Dessa maneira, o amigo é sempre um terceiro, que é uma “boia que
impede a conversação dos outros dois de se afundar em profundidade”.148 Um solitário
é profundo e por isso precisa de um amigo à altura. E indaga: “Serás tu para teu amigo
ar puro e soledade, pão e remédio?”149
Em 1881, Nietzsche entra em contato com a obra Carmen, de Georges Bizet.
A composição do francês encanta o filósofo, que passará a assistir as apresentações
dessa ópera sempre que possível. Em carta a Carl Fuchs150, escreve: “Você não deve
levar a sério o que digo sobre Bizet; assim como sou, esse Bizet não entra mil vezes
em cogitação para mim. Mas ele tem um efeito muito forte como antítese irônica a
145
LLOSA, Mario Vargas. Nietzsche em Sils Maria. Artigo publicado em El País em 26 de julho de 2015.
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/26/opinion/1437930177_592638.html
146
Paul Rée (1849-1901). Médico, filósofo e escritor alemão, conheceu Nietzsche na Universidade de
Basiléia em 1873.
147
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ich und Mich sind immer zu eifrig im
Gespräche: wie wäre es auszuhalten, wenn es nicht einen Freund gäbe? p.151
148
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: der Dritte ist der Kork, der verhindert,
daß das Gespräch der Zweie in die Tiefe sinkt. p. 151
149
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Bist du reine Luft und Einsamkeit
und Brot und Arznei deinem Freunde? p.153
150
Carl Fuchs (1838-1922). Compositor e crítico musical alemão.
76
Wagner.”151
Em 1882, conhece Lou Salomé152, dezesseis anos mais jovem, por quem
Nietzsche se apaixona e chega a propor casamento por meio do amigo em comum,
Paul Rée. Posteriormente, Nietzsche faz o gesto pessoalmente diante da estátua do
leão, em Lucerna.153 Nietzsche não sabia, porém, que Rée e Salomé já vinham se
encontrando secretamente, um dos motivos pelo qual Salomé nega-lhe o pedido e
propõe que sejam, os três, parceiros em uma comunidade de viagens e trabalho, com
o que Nietzsche consentiu. Durante os anos seguintes, Nietzsche será
constantemente ignorado em suas pretensões em relação a Lou, o que lhe trará
diversos sofrimentos.
Zaratustra é concebido em 1883 e, coincidentemente no dia em que Nietzsche
coloca o ponto final à primeira parte do livro (escrita em completa solidão em um
vilarejo da Riviera italiana), Wagner chega ao fim de sua vida.154 Em um primeiro
momento, Nietzsche sente-se inseguro em relação à obra, chamando Zaratustra de
“uma tolice” e pensa em uma fuga. Overbeck tenta demovê-lo da ideia, sugerindo que
Nietzsche volte a lecionar.155 A perda de Wagner, traria uma crescente melancolia a
Nietzsche, em especial nas datas que se comemorariam os aniversários do músico.
A insegurança de Nietzsche em relação a seu livro nos remete ao trecho em
que Zaratustra tem um sonho em que fala com uma dama chamada “hora mais
silenciosa”. Por conta do sonho, conclui que deveria se afastar de todos e voltar à
solidão, pois seus frutos “já estavam maduros, mas ele Zaratustra ainda não estava
maduro para seus frutos”156. Esse aforismo encerra a segunda parte do livro, com
Zaratustra retornando sozinho, chorando pela noite, para seu caminho solitário.
Após as primeiras críticas positivas a Zaratustra, Nietzsche se fortalece e passa
151
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petróplis, Editora
Vozes, 2016 p. 74 v.II
152
Lou Salomé (1861-1937) filósofa, poeta e psicanalista, nascida na Rússia Imperial, de família franco-
alemã
153
Fig.7
154
MARTON, Scarlett. Nietzsche. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983, p. 69.
155
(...)” ‘Tenho uma noção da imperfeição, dos erros e dos equívocos de todo o meu passado espiritual
que supera qualquer noção. Não há como consertar isso. Jamais farei algo bom. Para que ainda fazer
algo! – Isso me lembra da minha última tolice, estou falando do ‘Zaratustra’. Estou curioso para saber
se ele possui algum valor. – eu mesmo sou incapaz de fazer qualquer avaliação nesse inverno, e é
possível que eu tenha me enganado terrivelmente em relação ao seu valor’. Ressurgem então
pensamentos de uma fuga para a completa solidão em que ninguém o conhece, ninguém o procura”.
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 151.
156
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Und es sprach zum letzten Male zu
mir: »O Zarathustra, deine Früchte sind reif, aber du bist nicht reif für deine Früchte! P. 431
77
157
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 157.
158
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Menschen der großen Sehnsucht,
des großen Ekels, des großen Überdrusses und das, was ihr den Überrest Gottes nanntet. p. 840
159
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: lachende Löwen p. 845
78
160
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Meine wilde Weisheit wurde trächtig
auf einsamen Bergen; auf rauhen Steinen gebar sie ihr Junges, Jüngstes.Nun läuft sie närrisch durch
die harte Wüste und sucht und sucht nach sanftem Rasen – meine alte wilde Weisheit!Auf eurer Herzen
sanften Rasen, meine Freunde! – auf eure Liebe möchte sie ihr Liebstes betten! p. 233
161
MARTON, Scarlett. Nietzsche. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983, p. 74.
162
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petrópolis, Editora
Vozes, 2016, p. 313.
79
163
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: und daß du unter den Vielen
verlassener warst, du Einer, als je bei mir! p. 533
164
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ach, wo ist noch ein Meer, in dem
man ertrinken könnte. p. 389
165
Muitos intérpretes consideram os escritos relativos à quarta parte do livro de maneira afastada dos
demais, pois acreditam que essa parte tenha sido adicionada posteriormente, de maneira contrária a
intenção do autor.
80
passou anos isolado em sua caverna, a ponto de seus cabelos ficarem brancos. Após
conversar com seus animais, decide subir ao cume da montanha e, novamente,
aparece a alegoria do mel, tal qual o início do livro. Dessa vez, porém, em vez de
Zaratustra descer aos homens para partilhar do mel, o dissipou inteiramente, para
poder fabricar mel novo.
Nietzsche recebe também algumas críticas positivas sobre Além do bem e do
mal, como a de Widmann, que dizia que o texto “continha dinamite”, e de seu amigo
e ídolo, Burckhardt. Nietzsche, apesar de honrado com os elogios, reclama:
Zaratustra, faz uma incursão em uma ilha com uma montanha de fogo, onde
diziam haver um penhasco que desembocava no inferno. Lá, trava conversa intensa
com o temível “cão do fogo”. No diálogo, compara Estado e Igreja e o interlocutor
dissimulado termina a conversa fugindo assustado com os argumentos do
protagonista. Zaratustra retorna da ilha para contar seu feito aos seus discípulos, mas
ninguém o ouve, pois estão todos falando dos grandes feitos anteriores de Zaratustra.
Ele então, ao perceber que não estavam valorizando sua presença e nem sequer lhe
ouvindo, pergunta-se se havia virado um fantasma ou se teria se tornado uma sombra
de si próprio, como se a sua fama pudesse ter se tornado maior do que ele próprio.167
No verão de 1887, Nietzsche se refugia mais uma vez em Sils onde desenvolve
seu livro Genealogia da Moral. Recebe alguns amigos no período, em especial Paul
Deussen e esposa. Sobre a visita, Deussen relata que Nietzsche foi muito atencioso,
que lhes mostrou “sua caverna” (como chamava seu apartamento), e que seus olhos
“se encheram de lágrima quando voltou para a solidão”.168 No mesmo ano, após
receber diversas críticas negativas, escreve à mãe: “Conheço os homens o bastante
para saber que, em 50 anos, a opinião sobre mim terá se invertido. Então o nome de
166
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 380.
167
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: »Was soll ich davon denken!« sagte
Zarathustra. »Bin ich denn ein Gespenst?Aber es wird mein Schatten gewesen sein. Ihr hörtet wohl
schon einiges vom Wanderer und seinem Schatten? p.377
168
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petróplis, Editora
Vozes, 2016 p. 405.
81
seu filho será pronunciado com glória e respeito em virtude das mesmas coisas pelas
quais eu agora estou sendo castigado e caluniado.”169
O aforismo “O convalescente” narra uma manhã em que Zaratustra acorda aos
gritos e espanta todos os seus animais e, depois, desmaia e fica caído por sete dias.
Durante esse tempo, seus animais não o abandonam. Ao acordar, os animais dizem
a Zaratustra que ele deve sair de sua caverna, pois o mundo lhe aguarda. Travam
uma discussão sobre o eterno retorno das coisas, que fez com que Zaratustra fizesse
um grande silêncio – uma conversa com sua alma. Zaratustra, então, dialoga com sua
alma, com a vida e com a eternidade. A terceira parte do livro é encerrada com ele
optando pela dança em lugar do sofrimento e fazendo juras de amor à eternidade.
Em 1888, Nietzsche vai para Turim170, cidade que, segundo ele, reúne todas
as melhores qualidades para a sua fisiologia. Lá se permite alguns momentos de ócio
e tem uma pausa em suas constantes crises nervosas. Porém, reclama à amiga
Malwida: “Há dez anos não ouço nenhuma palavra que me alcance(...) Sou como um
animal que é constantemente ferido e a ferida é não ouvir qualquer resposta, qualquer
palavra, e ter que suportar sozinho o fardo eu gostaria de compartilhar.”171
No início do livro, após a morte de um equilibrista, personagem por quem
Zaratustra nutriu “amizade” (e chega até a carregar seu corpo), decide que não será
nem pastor nem coveiro e que precisa de companheiros vivos.172 Não falaria mais às
multidões. Essa conclusão vem a Zaratustra como um raio de luz, após ele ter dormido
muito tempo, ter estado em silêncio no bosque e ter olhado para si mesmo. Zaratustra
decide, então, que seus companheiros serão os criadores e os solitários.
Ainda em 1888, Nietzsche produz Ecce Homo – seu livro “autobiográfico” – e
planeja lança-lo simultaneamente em francês, inglês e alemão. Ao perceber que sua
“influência” começa a se espalhar pelo mundo e o sucesso que passam a fazer seus
livros, Nietzsche se preocupa com as consequências políticas e jurídicas de sua obra.
Em Ecce Homo, logo no prefácio, Nietzsche ordena a seus leitores que se percam
dele e que somente retornará quando todos lhe tiverem renegado.
Em “A virtude dadivosa”, último capítulo da primeira parte do livro, Zaratustra
169
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger, Petróplis, Editora
Vozes, 2016, p. 422.
170
Fig.8
171
Ibidem, p. 464.
172
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ein Licht ging mir auf: nicht zum
Volke rede Zarathustra, sondern zu Gefährten! Nicht soll Zarathustra einer Herde Hirt und Hund werden!
p.49
82
solicita aos seus discípulos que o deixem só, pois é um apreciador das caminhadas
solitárias. A seguir, anuncia que os solitários um dia formarão um só povo, o povo
eleito, do qual nascerá o além-do-homem.173 Posteriormente, expressa que irá seguir
sozinho e que os discípulos devem fazer o mesmo, e os aconselha a se perderem
dele para encontrarem a si próprios, e que somente retornaria a eles após todos lhe
houverem renegado.174
Em janeiro de 1889, Nietzsche tem um colapso nervoso e é visto na rua
abraçando um cavalo nas ruas de Turim. Depois envia cartas a amigos com conteúdo
totalmente desconexo. O amigo Overbeck corre em seu socorro e presencia os
desesperadores últimos momentos de “sanidade” de Nietzsche. Em Basiléia, é
diagnosticado com uma “paralisia progressiva” advinda provavelmente de um
problema de sífilis contraído na juventude.
Ao chegar da meia-noite Zaratustra faz um último discurso, sobre o
encadeamento de todos os acontecimentos, alegrias e sofrimentos, tudo como parte
do mesmo, que sempre retorna. No dia seguinte, acorda e conversa com o Sol,
proferindo a mesma frase do início do livro: “O que seria da tua felicidade, se não
tivesses a quem iluminar?”175. Desta vez, porém, percebia que aqueles homens que
dormiam não eram seus verdadeiros companheiros. A águia, por outro lado, o fez
lembrar de seus verdadeiros amigos - os animais - mas Zaratustra se queixou de lhe
faltar verdadeiros homens.
Depois do colapso, Nietzsche passa seus anos sob um estado de demência,
sob os cuidados de sua mãe, em Naumburg176, até a morte dela em 1897. Alguns de
seus melhores amigos, em especial Overbeck e Köselitz, seguem participando
ativamente dos cuidados com a obra de Nietzsche e com suas questões financeiras.
Após a morte da mãe, Nietzsche passa a ficar sob os cuidados da irmã, em
Weimar, no “Arquivo Nietzsche”177, até seu falecimento no ano de 1900. Após a
tentativa de sepultá-lo em Weimar ter sido negada pelas autoridades locais, a família
consegue autorização para enterrá-lo ao lado da capela em que seu pai foi pastor e
173
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ihr Einsamen von heute, ihr
Ausscheidenden, ihr sollt einst ein Volk sein: aus euch, die ihr euch selber auswähltet, soll ein
auserwähltes Volk erwachsen – und aus ihm der Übermensch. p. 220
174
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Nun heiße ich euch, mich verlieren
und euch finden; und erst, wenn ihr mich alle verleugnet habt, will ich euch wiederkehren. p. 223
175
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: was wäre all dein Glück, wenn du
nicht die hättest, welchen du leuchtest! p. 981
176
Fig.4
177
Fig.5
83
What was nietzschean in the service was the sunny stillness of this
natural solitude; The light playing through the plum trees of the church
walls and even in the bright grave. A large spider spinning her web
over the grave from branch to branch in a sun beam. Otherwise it was
a Christian affair: The bells rang, a choir sang spirituals, a silver cross
lay in the coffin. (…) Afterwards, everyone stepped forward to the coffin
and with a quote from Zarathustra, threw three handfuls of dirt into the
grave.180
178
Fig. 6
179
Herry Graf Kessler (1868-1937), diplomata e escritor alemão, patrono da arte moderna. Texto
extraído do material do museu de Röcken.
180
Material retirado do museu Nietzsche em Rockën.
84
7 – CONCLUSÃO
181
MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche, sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. Tradução de Claudemir Araldi. 1ª ed. São Paulo: Editora Unifesp, 2011, p. 125.
85
182
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger. Petrópolis: Editora
Vozes, 2016, p. 451.
183
Ibidem, p. 10.
86
veio a se tornar. O padecimento de Nietzsche foi, por longo tempo, um fator que
contribuiu para o aumento de produtividade e introspecção. Poderia ser considerado
uma doença, levando-se em consideração que os reflexos foram positivos?
Tomando essa ideia de conceito relacional de doença e trazendo-a para os
nossos tempos, cujos males que atingem grande parte da sociedade são a ansiedade
e depressão, podemos vislumbrar a doença, também como uma etapa prévia a uma
necessária transformação. A partir de uma fratura da “alma”, o corpo adoece e coage
“o sujeito” a repensar sua participação na vida gregária, levando-o a buscar novas
formas de viver. É a grande razão – o corpo – conclamando à pequena razão que
busque uma nova configuração de forças, mais favoráveis. A solução mais óbvia está
sempre disponível, mas é somente um paliativo: aqueles que optam pelo caminho dos
remédios irão apenas amortecer os sentidos, calar o corpo, em busca de uma suposta
paz.
O que a doença vem reclamar é uma reflexão que possa levar a uma mudança
de rotina. Um afastamento que possibilite um “respiro” e posteriormente, um
fortalecimento que permita o direito de não mais existir maquinalmente em função do
que lhe foi imposto. Um desvio, uma pausa no movimento mecânico instituído pelas
cidades.
Portanto, a doença pode ser mais do que um alerta, pode ser um convite
àqueles que estão dispostos a romper com tudo aquilo que contribuiu para lhes impor
essa condição de sofrimento, esse estado de niilismo, quase inevitável diante de uma
vida consumista sem sentido, em que o excesso de comunicação e gregariedade
sufocam impulsos ativos daqueles que almejam mais do que serem apenas
engrenagens, de uma máquina que mal funciona.
Ao lado do excesso de comunicação, que progressivamente tem contribuído
para a limitação da experiência humana, o “tarefismo” se apresenta como um grande
mal da modernidade, por ser visto por muitos, como único modo de viver. A suposta
busca por “evolução” das civilizações tem levado os indivíduos a um estado de
constante produtividade, desconectando-os, assim, da possibilidade de contemplação
e reflexão.
Byung-Chul Han sugere que o ser humano somente foi capaz de dançar porque
sentiu-se entediado de andar e passou a balançar em movimentos arabescos. O autor
classifica, ainda, a atividade filosófica como produto de uma atenção profunda e
contemplativa, argumentando ser o homem o único animal capaz de afundar-se
87
184
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins
Fontes, 2008, p. 369.
185
O homo oeconomicus vê-se, portanto, situado no que podemos chamar de duplo involuntário: O
involuntário dos acidentes que lhe sucedem e o involuntário do ganho que ele produz para os outros
sem que o tenha pretendido. Está atualmente situado num duplo indefinido porque, por um lado, os
acidentes de que depende seu interesse pertencem a um campo que não se pode percorrer nem
totalizar, por outro lado, o ganho que ele vai produzir para os outros produzindo o seu também é um
indefinido, um indefinido que não é totalizável. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica.
Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 378.
88
186
NIETZCSHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Um livro para espíritos livres. Tradução de
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 284.
89
187
NIETZCSHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Atilla Blacheyere. 1ª ed. Rio de Janeiro;
Edbolso, 2016, p. 329.
90
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Mil Platôs. Vol.5. Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa.
São Paulo: Editora 34, 2012.
JANZ, Curt Paul. Friedrich Nietzsche, uma biografia. Tradução de Marku Hediger,
Petróplis: Editora Vozes, 2016.
______. Isócrates e Nietzsche, uma relação perigosa? 1a ed. São Paulo: Paulus,
2019.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra: livro para toda a gente e para
ninguém. Tradução de José Mendes de Souza. Edição Especial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira. 2016.
_____ . Ecce Homo: como cheguei a ser quem sou. Tradução de Lourival de
Queiroz Henkel – Edição especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
_____ . A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das
Letras, 2001.
_____ . Obras Incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. 1ª ed. São
Paulo: Editora 34, 2014.
_____ . Além do Bem e do Mal, Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Cia. das Letras, 2005. [Edição de bolso]
OLIVEIRA, José Roberto. Nietzsche e o Heráclito que ri. Veritas, Vol. 55, n. 3,
set./dez. 2010, p. 217-235
1 O início do livro se dá sob a narração de que Zaratustra teria se afastado por dez
anos dos homens, na companhia apenas de seus animais.188 Zaratustra sente
necessidade de compartilhar a sabedoria que adquiriu durante o isolamento, por
isso desce da montanha a fim de falar aos homens sobre o Übermensch189. É
utilizada a metáfora do acúmulo do mel pela abelha, em comparação ao excesso
de conhecimento adquirido. Zaratustra sente que é preciso dividir o conhecimento
acumulado
188
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Als Zarathustra dreißig Jahre alt war,
verließ er seine Heimat und den See seiner Heimat und ging in das Gebirge. Hier genoß er seines
Geistes und seiner Einsamkeit und wurde dessen zehn Jahre nicht müde. p.4 (Todas as notas do texto
em versão original foram retiradas da versão bilíngue: “Also sprach Zarathustra / Thus Spake
Zarathustra, Bilingual Edition Translated by Thomas Common. Doppeltext”)
189
Super-homem, sobre-homem, além-do-homem e supra-homem são algumas das traduções para
übermensch, conceito central em Nietzsche, que apresentaria uma nova forma de configuração
humana, pois segundo ele o “homem deveria ser superado”. Como não consideramos nenhuma das
traduções perfeitamente adequadas, o termo será mantido em seu original.
190
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: sie verstehen mich nicht, ich bin
nicht der Mund für diese Ohren. p.34
191
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: nun rede ich ihnen gleich den
Ziegenhirten. p.34
192
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ein Licht ging mir auf: nicht zum
Volke rede Zarathustra, sondern zu Gefährten! Nicht soll Zarathustra einer Herde Hirt und Hund werden!
p.49
93
4 A seguir, Zaratustra profere uma série de discursos, dentre eles, “Das moscas na
praça pública” traz a forte imagem de contraposição entre a árvore silenciosa que
aponta para o mar e a praça pública com o ruído da moscas venenosas que são
aduladoras e castigam as virtudes193. Zaratustra incita o ouvinte a fugir para a
solidão, pois longe da praça pública estão os inventores de novos valores. Insiste
ainda que aqueles que têm virtudes têm sua energia sugada pelos pequenos, e
por isso devem fugir para onde o vento sopra forte.
193
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Würdig wissen Wald und Fels mit
dir zu schweigen. Gleiche wieder dem Baume, den du liebst, dem breitästigen: still und aufhorchend
hängt er über dem Meere.Wo die Einsamkeit aufhört, da beginnt der Markt; und wo der Markt beginnt,
da beginnt auch der Lärm der großen Schauspieler und das Geschwirr der giftigen Fliegen. p.55
194
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ich und Mich sind immer zu eifrig im
Gespräche: wie wäre es auszuhalten, wenn es nicht einen Freund gäbe? p.151
195
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: der Dritte ist der Kork, der verhindert,
daß das Gespräch der Zweie in die Tiefe sinkt. p. 151
196NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Bist du reine Luft und Einsamkeit
und Brot und Arznei deinem Freunde? p.153
197
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Kannst du dir selber Richter sein
und Rächer deines Gesetzes? p. 172
94
8 No início da segunda parte do livro, Zaratustra se aparta dos homens por meses
e anos, como um “semeador que aguarda a colheita”. Um sonho (“O menino no
espelho”), porém, lhe provoca a se preocupar com o mau uso que poderiam fazer
de sua doutrina. Tal qual ocorreu no início do livro, Zaratustra está cheio de
sabedoria201, e precisa compartilhá-la. Dessa vez, porém não descerá mais ao
vale ou às multidões, irá às Ilhas Bem-Aventuradas, onde se encontram seus
amigos e seus inimigos.
198
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Mit deiner Liebe gehe in deine
Vereinsamung und mit deinem Schaffen, mein Bruder; und spät erst wird die Gerechtigkeit dir
nachhinken.Mit meinen Tränen gehe in deine Vereinsamung, mein Bruder. Ich liebe den, der über sich
selber hinaus schaffen will und so zugrunde geht. p. 179
199
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ihr Einsamen von heute, ihr
Ausscheidenden, ihr sollt einst ein Volk sein: aus euch, die ihr euch selber auswähltet, soll ein
auserwähltes Volk erwachsen – und aus ihm der Übermensch. p. 220
200
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Nun heiße ich euch, mich verlieren
und euch finden; und erst, wenn ihr mich alle verleugnet habt, will ich euch wiederkehren. p. 223
201
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Meine wilde Weisheit wurde trächtig
auf einsamen Bergen; auf rauhen Steinen gebar sie ihr Junges, Jüngstes.Nun läuft sie närrisch durch
die harte Wüste und sucht und sucht nach sanftem Rasen – meine alte wilde Weisheit!Auf eurer Herzen
sanften Rasen, meine Freunde! – auf eure Liebe möchte sie ihr Liebstes betten! p. 233
95
10 Zaratustra narra ter voado ao futuro, o que o horrorizou por ter lá encontrado
apenas o tempo o único contemporâneo dele202. Ou seja, não haveria homens
no futuro, o que causou um desespero ao personagem, que retornou e passou a
ver com outros olhos os homens que e encontravam na “Terra da cultura”.
Zaratustra põe-se a rir, porém, do orgulho que tinham aqueles homens vazios de
não ter crenças e superstições, Zaratustra ri daqueles “homens atuais”, enquanto
aqueles se assombravam deles mesmos, e se pergunta: Aonde ainda teria que
“subir com seu desejo”, pois apesar de ver “terras natal” por todas as partes, não
encontrava lar em lugar algum. Decide, então, que a terra que ele ama é a terra
de seus filhos (e não a de seus pais) e que essa terra se encontra nos mares
mais remotos.203
11 Zaratustra, a seguir, faz uma incursão em uma ilha com uma montanha de fogo,
onde diziam haver um penhasco que desembocava no inferno. Lá, trava conversa
intensa com o temível “cão do fogo”. No diálogo compara Estado, Igreja e o
interlocutor, que termina a conversa fugindo assustado com os argumentos do
protagonista. Zaratustra retorna da ilha para contar seu feito aos seus discípulos,
mas ninguém o ouve, pois estão todos falando dos grandes feitos anteriores de
Zaratustra. Este então, ao perceber que não era ouvido novamente pergunta-se
se havia virado um fantasma, ou se teria se tornado uma sombra de si próprio,
como se a sua fama pudesse ter se tornado maior do que ele próprio.204
202
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Zu weit hinein flog ich in die Zukunft:
ein Grauen überfiel mich. Und als ich um mich sah, siehe! da war die Zeit mein einziger Zeitgenosse.
p. 341
203
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: So liebe ich allein noch meiner
Kinder Land, das unentdeckte, im fernsten Meere: nach ihm heiße ich meine Segel suchen und suchen.
p. 348
204
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: »Was soll ich davon denken!« sagte
Zarathustra. »Bin ich denn ein Gespenst?Aber es wird mein Schatten gewesen sein. Ihr hörtet wohl
schon einiges vom Wanderer und seinem Schatten? p.377
96
13 Em seguida, Zaratustra tem um sonho em que fala com uma dama chamada
“hora mais silenciosa”. Por conta do sonho, conclui que deveria se afastar de
todos e voltar à solidão, pois seus frutos “já estavam maduros, mas ele Zaratustra
ainda não estava maduro para seus frutos”206. Este aforismo encerra a segunda
parte do livro com Zaratustra retornando sozinho, chorando pela noite, para seu
caminho solitário.
205
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ach, wo ist noch ein Meer, in dem
man ertrinken könnte. p. 389
206
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Und es sprach zum letzten Male zu
mir: »O Zarathustra, deine Früchte sind reif, aber du bist nicht reif für deine Früchte! P. 431
97
17 Posteriormente, se isola a correr com “pés quentes” pelo Monte das Oliveiras que
chama de seu208. Lá, afirma que a solidão, para alguns, é fugir para a
enfermidade. Para outros é fugir daqueles que estão doentes.209
18 No caminho de volta para sua montanha, depara-se com um “tolo” que vivia em
frente à porta da grande cidade. O “tolo” bradava contra a cidade, reclamando
dos vícios e das almas deprimidas do local. Zaratustra tapa-lhe a boca e lhe
ensina que se alguém não é mais capaz de amar um lugar, então esse alguém
deve partir de lá.210 E assim o fez.
20 No aforismo das “Antigas e das novas tábuas” Zaratustra aguarda sentado, por
entre as antigas tábuas quebradas e as novas, meio escritas, a hora de poder
voltar aos homens, para espalhar a sua doutrina. Ali, decide fazer um grande
discurso de si para si mesmo e após longa fala, aguarda pelo momento do
“grande meio-dia”, em que espera ser vitorioso.
207
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: O wann komme ich wieder in meine
Heimat, wo ich mich nicht mehr bücken muß – nicht mehr bücken muß vor den Kleinen! p. 467
208
I NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: nzwischen laufe ich mit warmen
Füßen kreuz und quer auf meinem Ölberge. p. 501
209
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Des einen Einsamkeit ist die Flucht
des Kranken; des andern Einsamkeit die Flucht vor den Kranken. p. 507
210
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: wo man nicht mehr lieben kann, da
soll man – vorübergehn! p.518
211
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: und daß du unter den Vielen
verlassener warst, du Einer, als je bei mir! p. 533
98
animais dizem a Zaratustra que ele deve sair de sua caverna pois o mundo lhe
aguarda. Travam uma discussão sobre o eterno retorno das coisas, que fizeram
com que Zaratustra fizesse um grande silêncio - uma conversa com sua alma.
22 Zaratustra, então, dialoga com sua alma, com a vida e com a eternidade. A
terceira parte do livro é encerrada com ele optando pela dança em lugar do
sofrimento.
25 Continuando sua busca pelo homem superior, Zaratustra pisa sem querer um
homem ferido, que havia sido picado por uma sanguessuga. O homem se
apresenta como aquele é “espiritualmente consciencioso”.213 Zaratustra o
convida para ir mais tarde a sua caverna.
212
Muitos intérpretes consideram os escritos relativos à quarta parte do livro de maneira afastada dos
demais, pois acreditam que essa parte tenha sido adicionada posteriormente, de maneira contrária a
intenção do autor.
213
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Ich bin der Gewissenhafte des
Geistes p. 743
99
sua condição e Zaratustra lhe oferece sua caverna, tal qual fizera com os demais.
30 Encontrará Zaratustra ainda, com um homem que o perseguia por todos os lados
tal qual uma sombra. Este também recebeu convite para ir à sua caverna. Depois
disso Zaratustra recostou-se a uma árvore sozinho, em silêncio, ao meio-dia e
lembrou de que as coisas mais simples são as que mais trazem felicidade.
31 Ao retornar para sua caverna Zaratustra deparou-se com todos os homens que
havia encontrado. Percebeu que o grito de angústia era proveniente deles todos,
juntos. Concluiu, porém, que aqueles homens singulares não eram os homens
superiores que ele esperava. Que naqueles homens ainda havia muito de grande
ânsia, de grande tédio, de grande cansaço e das reminiscências de Deus sobre
214
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Keinen fand ich noch, der sich tiefer
verachtet hätte: auch das ist Höhe. Wehe, war der vielleicht der höhere Mensch, dessen Schrei ich
hörte? p. 795
100
a Terra,215 e que esperava ainda seus filhos, os leões risonhos.216 Ainda assim,
tiveram uma festiva ceia a qual todos beberam e participaram.
32 Zaratustra fez então um discurso sobre o homem superior, cujo lugar não é na
praça pública e que deve ser um dançarino acima de tudo. Depois, saiu da
caverna e enquanto lá esteve foi difamado pelo feiticeiro. Ao retornar percebeu
que aquele dia fora uma vitória, pois aqueles homens haviam aprendido a rir de
si próprios, e que tinham perdido o tédio, estavam excitados.
35 No dia seguinte, acorda e conversa com o Sol, proferindo a mesma frase do início
do livro: “O que seria da tua felicidade, se não tivesses a quem iluminar?”217.
Desta vez, porém, percebia que aqueles homens que dormiam não eram seus
verdadeiros companheiros. A águia, por outro lado, o fez lembrar de seus
verdadeiros amigos - os animais - mas Zaratustra se queixou de lhe faltar
verdadeiros homens.
36 Por fim, Zaratustra se viu rodeado de inúmeras aves e deparou-se com um leão
meigo que lhe sorria e lambia suas lágrimas. Era o sinal de que seus filhos
estavam a caminho. Zaratustra entendeu que seu grande erro foi sua compaixão
para com os homens, e que aspirava à sua obra e não à felicidade. Por fim o leão
215
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: Menschen der großen Sehnsucht,
des großen Ekels, des großen Überdrusses und das, was ihr den Überrest Gottes nanntet. p. 840
216
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: lachende Löwen p. 845
217
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Texto original: was wäre all dein Glück, wenn du
nicht die hättest, welchen du leuchtest! p. 981
101
ANEXO – FOTOS