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O EU DIVIDIDO

Estudo existencial da sanidade


e da loucura

por

R. D. Laing

Tradução de
Áurea Brito Weissenberg

Petrópolis
EDITORA VOZES LTDA.
1973
© R. D. Laing, 1960
Título do original inglês:
The Divided Self:
An Existential Study in Sanity and Madness

Publicado pela primeira vez por


Penguin Books Ltd,
Harmondsworth, Middlesex, Inglaterra

© da tradução brasileira, 1973


Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luis, 100 25.600
Petrópolis, RJ Brasil

Este livro não pode ser exportado


para Portugal ou seus territórios
Sumário

Prefácio ............................................................................................................................................................ 5
Agradecimentos............................................................................................................................................ 6
PARTE - I .......................................................................................................................................................... 7
1 - Fundamentos Existendais-Fenomenológicos para uma Ciência das Pessoas ...... 7
2 - Fundamentos Existenciais-Psicológicos para Compreensão da Psicose .............13
3 - Insegurança Ontológica...............................................................................................................21
PARTE – II .....................................................................................................................................................36
4 - O Self Encarnado e Desencarnado ..........................................................................................36
5 - O Self Interior na Condição Esquizóide................................................................................44
6 - O Sistema de Falso Self ...............................................................................................................54
7 - Auto consciência (Self-Consciousness ) ...............................................................................61
8 - O Caso de Peter ...............................................................................................................................70
PARTE – III ....................................................................................................................................................79
9 - Evolução Psicótica .........................................................................................................................79
10 - O Self e o Falso Self no Esquizofrênico ..............................................................................93
11 - O Fantasma do Jardim Abandonado: um Estudo de Esquizofrenia Crônica .. 104
Bibliografia ................................................................................................................................................ 123
Prefácio

É este o primeiro de uma série de estudos sobre psicologia existencial e psiquiatria, tendo
por finalidade apresentar contribuições originais de diversos autores neste terreno.
A presente obra é um estudo das pessoas esquizóides e esquizofrênicas e seu
propósito fundamental é esclarecer a loucura e o processo de enlouquecimento. O leitor
julgará à sua maneira do sucesso ou fracasso do empreendimento. Pediria, contudo, que o
livro fosse julgado somente em termos do que tenta realizar. Não houve qualquer esforço
especifico no sentido de apresentar uma teoria compreensiva da esquizofrenia, descrever
meu relacionamento com os pacientes, ou meu método terapêutico.
O segundo objetivo é apresentar em linguagem corrente, e em termos existenciais,
algumas formas de loucura. Creio ser esta a primeira tentativa neste sentido. A maioria dos
leitores encontrará termos usados de maneira estranha nos primeiros capítulos. Mas
dediquei minuciosa atenção ao seu emprego, utilizando-os somente quando o sentido do
texto a isso me obrigava.
Um ligeiro esclarecimento sobre o que não tentei fazer poderá evitar interpretações
errôneas. O leitor versado em literatura existencial e fenomenológica rapidamente verificará
que este estudo não é uma aplicação direta de qualquer filosofia existencial determinada, e
contém importantes pontos de divergência da obra de Kierkegaard, Jaspers, Heidegger,
Sartre, Binswanger e Tillich, por exemplo.
Discutir detalhadamente pontos de convergência e divergência me afastaria da tarefa
imediata. Tal debate não pertence à obra. É à tradição existencial, porém, que reconheço
minha maior dívida intelectual.
Desejo aqui manifestar minha gratidão para com os pacientes e seus pais a que me
refiro adiante. Todos aqueles sobre quem escrevi consentiram de boa vontade nesta
publicação. Nomes, lugares e todos os detalhes identificativos foram modificados, mas o
leitor pode estar certo de que não lerá ficção.
Desejo registrar ainda a minha gratidão ao Dr. Angus MacNiven e ao prof. T.
Ferguson Rodger por me proporcionarem a base clínica do estudo e me incentivarem.
O trabalho clínico em que se basearam os estudos foi realizado antes de 1956, isto
é, em data anterior àquela em que me tornei médico assistente da Clínica Tavistock, quando
o Dr. J. D. Sutherland generosamente proporcionou-me ajuda secretarial na preparação do
manuscrito definitivo. Terminado em 1957, o livro foi lido por muita gente de quem recebi
incentivo e crítica construtiva. Relacioná-los todos seria impossível. Gostaria de agradecer
particularmente ao Dr. Karl Abenheimer, a sra. Marion Milner, ao prof. T. Ferguson
Rodger, ao prof. J. Romano, aos drs. Charles Rycroft, J. Schorstein, J. D. Sutherland e D.
W. Winnicott por suas “reações” construtivas ao manuscrito.

R. D. Laing
Agradecimentos

Agradeço ao autor e a Grane & Stratton a permissão de citar


Meaning and Content of Sexual Perversions, de Medard Boss; a
George Allen & Unwin em relação a The Phenomenology of Mind,
de Hegel, tradução de J. B. Baillie; a Baillière, Tindall & Cassel,
com relação a Lectures on Clinical Psychiatry, de E. Kraepelin; a
The Hogarth Press e ao Instituto de Psicanálise, com respeito a
Beyond the Pleasure Principle, de Sigmund Freud, The Complete
Psychological Works of Sigmund Freud, vol. XVIII; a Rider & Co.,
Londres, com relação a The Analysis of Dreams, de Medard Boss,
e The Psychology of Imagination, de Jean-Paul Sartre; e a Martin
Seeker & Warburg, com respeito a The Opposing Self, de Lionel
Trilling.
O autor deseja agradecer aos drs. M. L. Hayward e J. E.
Taylor a amável permissão para citar extensivamente no capitulo X
seu estudo intitulado “Um Paciente Esquizofrênico Descreve a
Ação da Psicoterapia Intensiva”, publicado em Psychiatric
Quarterly, 30, 211-66.
PARTE - I

“Je donne une oeuvre subjective ici,


oeuvre cependant qui tend de toutes ses
forces vers l’objectivité”.
E. Minkowski

1 - Fundamentos Existendais-Fenomenológicos
para uma Ciência das Pessoas
O termo esquizóide refere-se ao indivíduo cuja totalidade de experiência divide-se em dois
principais sentidos: em primeiro lugar, uma ruptura em seu relacionamento com o mundo
e, em segundo, uma ruptura na relação consigo mesmo. Tal pessoa é incapaz de sentir-se
“junto com” os outros, ou “à vontade” no mundo. Pelo contrário, experimenta uma
desesperadora solidão e isolamento; além do mais, não se sente uma pessoa completa, e sim
“dividida” de diversas maneiras, talvez como uma mente ligada ao corpo por tênue fio,
como duas personalidades, etc.
Esta obra procura fazer uma apresentação existencial-fenomenológica de pessoas
esquizóides e esquizofrênicas. Contudo, antes de iniciar é preciso comparar este approach
com o da psiquiatria clínica formal e da psicopatologia.
A fenomenologia existencial procura caracterizar a natureza da experiência da
pessoa com o seu mundo e consigo mesma. É menos uma tentativa para descrever de-
terminados objetos dessa experiência do que colocar todas as experiências particulares no
contexto total do estar-no-seu-mundo. Tudo o que de louco for dito e feito pelo
esquizofrênico permanecerá essencialmente um livro fechado se não procurarmos
compreendê-lo no seu contexto existencial. Ao descrever um processo de enlouquecimento
tentarei demonstrar que existe uma compreensível transição entre a maneira esquizóide
sadia de estar-no-mundo e a maneira psicótica de estar-no-mundo. Conservando embora os
termos esquizóide e esquizofrênico para as posições sadia e psicótica respectivamente, não
os usarei, é claro, no costumeiro quadro de referências clínico-psiquiátrico, e sim
fenomenológica e existencialmente.
O enfoque clínico é reduzido, cobrindo apenas algumas maneiras de ser esquizóide,
ou de tornar-se esquizofrênico a partir de um ponto esquizóide. Contudo, a apresentação
das questões vividas pelos indivíduos estudados mais adiante destina-se a demonstrar que
tais questões não podem ser compreendidas através dos métodos da psiquiatria clínica e da
psicopatologia como se encontram hoje em dia e, pelo contrário, exigem o método
existencial-fenomenológico para demonstrar sua verdadeira relevância e sentido humanos.
Neste volume parti o mais direto possível para os próprios pacientes, reduzindo ao
mínimo o debate das questões históricas, teóricas e práticas, sobretudo em relação à
psiquiatria e à psicanálise. Esta forma particular de tragédia humana com que aqui nos
defrontamos nunca foi apresentada com bastante clareza e nitidez. Julguei, portanto, que a
tarefa puramente descritiva precisava passar à frente de quaisquer outras considerações.
Este capítulo destina-se, portanto, a expor da maneira mais rápida a orientação básica deste
livro, o que é necessário para evitar desastrosas confusões. Volta-se a obra em duas
direções; de um lado destina-se aos psiquiatras bastante familiarizados com o tipo de
“caso”, mas que talvez não estejam habituados a vê-lo qua pessoa, conforme aqui descrito;
por outro lado, dirige-se aos que estão familiarizados com, ou são simpáticos a tais pessoas,
mas não as enfrentaram como “material clínico”. Será inevitavelmente insatisfatório, em
parte, para ambos.

Como psiquiatra, encontrei de saída uma grande dificuldade: de que modo partir direto para
os pacientes se os termos psiquiátricos a minha disposição mantinham-no à distância?
Como demonstrar a relevância geral e o sentido humano da condição do paciente se os
vocábulos de que se dispõe destinam-se especificamente a isolar e circunscrever o sentido
da vida do doente e uma determinada entidade clínica? O descontentamento com os termos
psiquiátricos e psicanalíticos é bastante generalizado, mesmo entre aqueles que mais os
empregam. Julga-se de modo geral que a nomenclatura da psiquiatria e da psicanálise não
expressa o que “realmente se quer dizer”. Mas é uma forma de auto-ilusão supor que se
pode dizer uma coisa e pensar outra.
Será conveniente, portanto, examinar alguns dos termos em uso. O pensamento é a
linguagem, segundo Wittgenstein. O vocabulário técnico é apenas uma linguagem dentro
de outra. O estudo deste vocabulário técnico será ao mesmo tempo uma tentativa de
descobrir a realidade que as palavras revelam ou ocultam.
A mais séria objeção ao vocabulário técnico atualmente usado para descrever
pacientes da psiquiatria consiste em palavras que dividem o homem verbalmente de maneira
análoga às cisões existenciais aqui descritas. Mas não podemos fazer uma descrição
adequada dos splits existenciais se não começarmos do conceito de um todo unitário e tal
conceito não existe, nem pode ser expresso pelo atual sistema de linguagem da psiquiatria,
ou da psicanálise.
Os termos do atual vocabulário técnico referem-se ao homem isolado dos seus
semelhantes e do mundo, isto é, como uma entidade não essencialmente “relacionada com”
o outro e em um mundo, ou a aspectos falsamente substancializados dessa entidade isolada.
Tais palavras são: mente e corpo, psico e soma, psicológico e físico, personalidade, self,
organismo. Todos estes termos são abstratos. Em vez do elo original entre Eu e Você
tomamos um homem isoladamente e conceptualizamos seus diversos aspectos como “o
ego”, “o superego”, e “o id”. O mais torna-se objeto interno ou externo, ou uma fusão de
ambos. Como falar corretamente do relacionamento entre eu e você em termos da interação
de um mecanismo mental sobre o outro? Como dizer mesmo o que significa ocultar algo de
si mesmo, ou iludir-se em termos de barreiras entre uma parte e outro do mecanismo
mental? Com. esta dificuldade defronta-se não só a metapsicologia freudiana clássica, como
qualquer teoria que tenha como ponto de partida o homem, ou parte do homem abstraído
de seu relacionamento com o outro neste mundo. Sabemos todos, baseados em nossa
experiência pessoal, que só podemos ser nós próprios em e através do nosso mundo e que
em certo sentido “nosso” mundo morrerá conosco, embora o mundo continue sem nós.
Somente o pensamento existencial procurou combinar a experiência original de cada um
em relação aos outros no mundo de cada um, por meio de um termo que reflete corretamente
esta totalidade. Assim, existencialmente, o concreto é visto como a existência do homem, o
seu ser-no-mundo. A menos que iniciemos com o conceito do homem em relação a outros
homens e desde o começo “no” mundo, e a menos que compreendamos que o homem não
existe sem “seu” mundo, nem seu mundo existe sem ele estaremos condenados a em-
preender nosso estudo das pessoas esquizóides e esquizofrênicas com uma cisão verbal e
conceptual que se iguala à cisão da totalidade do esquizóide-no-mundo. Além do mais, a
tarefa verbal e conceituai secundária de reintegrar as diferentes partes será semelhante aos
desesperados esforços do esquizofrênico para reunir seu self e o mundo. Em suma, temos
um já despedaçado Humpty Dumpty que não pode ser reintegrado por nenhuma palavra
composta: psicofísico, psicossomático, psicobiológico, psicopatológico, psicossocial, etc.,
etc.
Sendo assim, é possível que um relance à teoria tão esquizóide seja altamente
relevante para a compreensão da experiência esquizóide. Usarei adiante um método
fenomenológico para tentar resolver a questão.

O ser humano (usarei subsequentemente a palavra “ser” para denotar simplesmente tudo o
que é o homem) pode ser visto de diferentes ângulos, enfocando-se para estudo este ou
aquele de seus aspectos. O homem pode ser visto, em especial, como uma pessoa ou como
uma coisa. A mesma coisa vista de diferentes ângulos resulta em descrições inteiramente
diversas, as descrições resultam em teorias inteiramente diferentes e as teorias em
totalmente diversos padrões de ação. A primeira visão que temos de uma coisa determina
toda a nossa subseqüente maneira de com ela lidar. Consideremos um desenho ambíguo:

Esta figura pode ser vista como um vaso ou como dois perfis voltados um para o
outro. Não há duas coisas no papel, apenas uma. Contudo, dependendo de nossa impressão,
podemos ver dois objetos diferentes. A relação das partes com o todo num objeto é
totalmente diversa nas duas figuras. Se quisermos descrever um dos perfis apontaremos de
cima para baixo uma testa, um nariz, uma boca, um queixo e um pescoço. Embora tenhamos
descrito a mesma linha que, se vista de modo diferente pode ser o contorno de um vaso, não
descrevemos esse contorno e sim um perfil.
Se você estiver sentado diante de mim posso vê-lo como alguém parecido a mim
mesmo; sem que você se modifique ou faça qualquer coisa posso vê-lo como um complexo
sistema físico, químico, talvez com suas próprias idiossincrasias, mas ainda assim químico:
visto deste ângulo você não é uma pessoa e sim um organismo. Expresso na linguagem da
fenomenologia existencial: o outro visto como pessoa, ou visto como organismo é objeto
de diferentes atos intencionais. Não existe dualismo no sentido de coexistência de duas
diferentes essências ou substâncias no objeto, psique e soma; há duas Gestalts
experimentais: pessoa e organismo.
O relacionamento com um organismo é diverso do relacionamento com uma pessoa.
A descrição do outro como organismo é diferente da descrição do outro como pessoa, assim
como a descrição do contorno do vaso é diversa da descrição do perfil de um rosto; do
mesmo modo a nossa teoria do outro como organismo é remota de qualquer teoria do outro
como pessoa. A maneira de agir em relação a um organismo é diversa da maneira de agir
em relação a uma pessoa. A ciência das pessoas é o estudo do ser humano que tem início
com o relacionamento com o outro como pessoa e passa a apresentar o outro ainda como
pessoa.
Quando se ouve alguém falar, por exemplo, pode-se estar (a) estudando o
comportamento verbal em termos de processos neurais e de todo o mecanismo da vocali-
zação, ou (b) estar tentando compreender o que diz a pessoa. No último caso, uma
explicação do comportamento verbal em termos do nexo geral das mudanças orgânicas que
devem estar necessariamente se processando como conditio sine qua non da verbalização
não contribui para uma possível compreensão do que está dizendo o indivíduo. Do mesmo
modo, a compreensão do que diz o indivíduo não contribui para o conhecimento de como
suas células cerebrais estão metabolizando o oxigênio. Isto é, a compreensão do que ele está
dizendo não substitui uma explicação dos processos orgânicos relevantes e vice-versa.
Repito, não se trata aqui, ou em qualquer parte, de um dualismo mente-corpo. As duas
questões, neste caso pessoal e orgânica, consideradas em relação à fala, ou a qualquer outra
atividade humana, constituem cada qual o resultado do ato intencional inicial; cada ato
intencional leva a sua própria direção e produz seus próprios resultados. Escolhe-se o ponto
de vista, ou ato intencional, dentro do contexto geral daquilo que se procura no outro. O
homem visto como um organismo, ou o homem visto como uma pessoa revela ao
pesquisador diferentes aspectos da realidade humana. São ambos metodologicamente
possíveis, mas deve-se estar alerta para a possibilidade de confusão.
O outro como pessoa é visto por mim como responsável, capaz de optar, em suma
um agente autônomo. Visto como um organismo, tudo aquilo que ocorre em tal organismo
pode ser conceitualizado em qualquer plano de complexidade — atômico, molecular,
celular, sistemático ou orgânico, enquanto que o comportamento considerado pessoal é
visto em termos da experiência e das intensões daquela pessoa, já que o comportamento
considerado organicamente só pode ser visto como a contração e o relaxamento de
determinados músculos, etc. Em vez da experiência de sequência, a pessoa preocupa-se com
a sequência dos processos. No homem visto como organismo, portanto, não há lugar para
desejos, temores, esperanças, ou desesperos como tais. O resultado final de nossas
explanações não são suas intenções em relação ao seu mundo, mas quanta de energia num
sistema energético.
Considerado como um organismo, o homem não pode ser mais que um complexo de
coisas, de its, e os processos que compreendem em última análise um organismo são
processos de its. Existe a ilusão generalizada de que se amplia a compreensão de uma pessoa
caso se possa traduzir esta compreensão pessoal nos termos impessoais de uma sequência,
ou sistema de processos de its. Mesmo na ausência de justificativas teóricas permanece uma
tendência a traduzir nossa experiência pessoal, do outro como pessoa num relato
despersonalizado. Nós o fazemos até certo ponto ao utilizarmos uma analogia mecânica ou
biológica em nossa “explanação”. Note-se que não estou objetando contra o uso de
analogias mecânicas ou biológicas como tais, e nem mesmo contra o ato intencional de
considerar o homem como uma máquina ou um animal. Minha tese limita-se à alegação de
que a teoria do homem como pessoa fica anulada se cair na descrição do homem como
máquina, ou do homem como um sistema orgânico de processos de its. O inverso é também
exato (ver Brierley, 1951).
Parece extraordinário que, enquanto as ciências física e biológica de processos de its
venceram de modo geral as tendências a personalizar o mundo das coisas, ou a ver intenções
humanas no mundo animal, uma autêntica ciência das pessoas mal se esboçou por motivo
da inveterada tendência a despersonalizar ou objetivar as pessoas.
Nós nos dedicaremos a seguir especificamente às pessoas que se sentem como
autômatos, robôs, peças de maquinaria, ou mesmo animais. Tais pessoas são com razão
consideradas loucas. Contudo, por que não consideramos igualmente louca a teoria que
procura transmudar pessoas em autômatos ou animais? Sentir a si mesmo e aos outros como
pessoa é uma experiência primária e autocomprovada. Existe anteriormente às dificuldades
científicas ou filosóficas relativas ao modo como é possível tal experiência, ou a maneira
de explicá-la.
Na verdade, é difícil explicar a persistência em nossa maneira de pensar dos
elementos daquilo que MacMurray chamou “analogia biológica”. “Era de se esperar”,
escreve MacMurray (1957), “que o surgimento de uma psicologia científica viesse paralelo
a uma transição do orgânico para o pessoal... na concepção de unidade” (p. 37), e que não
pudéssemos pensar no indivíduo, ou senti-lo, como coisa ou organismo e sim como pessoa,
e que tivéssemos um meio de expressar essa forma de unidade especificamente pessoal. A
tarefa das páginas seguintes é, portanto, de grande vulto, isto é, tentar apresentar uma forma
especificamente pessoal de despersonalização e desintegração numa época em que a
descoberta da “forma lógica através da qual a unidade pessoal pode ser coerentemente
concebida” (ibid.) permanece uma tarefa para o futuro.
Existem, é claro, inúmeros relatos de despersonalização e splitting em
psicopatologia. Contudo, nenhuma teoria psicopatológica é inteiramente capaz de
sobrepujar a distorção da pessoa imposta por suas premissas, embora procure negar essas
mesmas premissas. Uma psicopatologia digna deste nome deve pressupor uma “psique”
(mecanismo mental, ou estrutura endopsíquica). Deve pressupor que a objetivação, com ou
sem materialização imposta pelo pensamento em termos de uma “coisa” ou um sistema
fictício, é um correlato conceptual adequado do outro como pessoa agindo com os outros.
Além disso, deve pressupor que seu modelo conceitual tenha um modo de funcionar
análogo àquele em que funciona um organismo sadio e um meio de funcionar análogo ao
do organismo fisicamente doente. Por mais carregadas que estejam tais comparações de
analogias parciais, a psicopatologia, pela própria natureza do seu approach básico exclui a
possibilidade de se compreender a perturbação de um paciente como um fracasso em
alcançar uma forma especificamente pessoal de unidade. É como tentar fazer gelo com água
quente. A própria existência da psicopatologia perpetua o dualismo que a maioria dos
psicopatologistas deseja evitar e que é nitidamente falso. Contudo, este dualismo não pode
ser evitado no quadro de referências psicopatológicas, a menos que se caia num monismo
que é um simples espelho seu e, portanto, igualmente falso.
Pode-se reafirmar que é impossível ser científico sem manter a “objetividade”. Uma
ciência genuína da existência pessoal deve evitar o mais possível ser tendenciosa. A física
e outras ciências das coisas devem conceder à ciência da pessoa o direito de ser imparcial
modo que se coadune com o seu campo de estudo. Caso se afirme que para ser imparcial é
preciso ser “objetivo” no sentido de despersonalizar a pessoa que é “objeto” de nosso estudo
deve-se resistir vigorosamente a qualquer tentação de fazê-lo sob a impressão de que assim
se está sendo cientifico. A despersonalização numa teoria que pretende ser da pessoa é tão
falsa como a despersonalização esquizóide dos outros e é igualmente, em última análise,
um ato intencional. Embora realizada em nome da ciência, tal objetivação proporciona um
falso “conhecimento” e é uma falácia tão patética quanto a falsa personalização das coisas.
É lamentável que pessoal e subjetivo sejam termos usados com tanta frequência que
não mais contenham força para expressar qualquer maneira genuína de ver o outro como
pessoa (somos obrigados a reverter ao “objetivo”), sugerindo imediatamente que
imiscuímos os próprios sentimentos e atitudes ao estudo do outro, destorcendo a nossa
percepção da sua pessoa. Em contraste com “objetivo” e “científico”, termos respeitáveis,
temos os desacreditados “subjetivo”, “intuitivo”, ou, o que é pior, “místico”. É interessante,
por exemplo, que se encontre com frequência a palavra “meramente” antes de subjetivo,
embora seja quase inconcebível falar de alguém que seja “meramente objetivo”.
Freud foi o maior dos psicopatologistas. Freud foi um herói. Desceu aos
“Subterrâneos”, ali encontrou horrores sem disfarce e carregou consigo sua teoria como
uma cabeça de Medusa, transformando em pedra esses horrores. Nós, seus seguidores, nos
beneficiamos do conhecimento que trouxe consigo e nos transmitiu. Ele sobreviveu.
Precisamos ver se conseguimos também sobreviver utilizando uma teoria que é, de certo
modo, um instrumento de defesa.

O RELACIONAMENTO COM O PACIENTE


COMO PESSOA OU OBJETO

Em fenomenologia existencial, a existência em questão pode ser a nossa, ou a do outro.


Quando o outro é um paciente, a fenomenologia existencial torna-se uma tentativa de
reconstituir sua maneira de ver-se a si mesmo em seu mundo, embora no relacionamento
terapêutico o enfoque esteja na maneira de ser do paciente em relação a mim.
Os pacientes apresentam-se ao psiquiatra com queixas que podem situar-se entre a
dificuldade localizada mais aparente (“Sinto relutância em saltar de um avião”) até a mais
difusa (“Não sei na realidade porque vim. Acho que há alguma coisa em mim que não está
muito certa”). Contudo, por mais circunscrita ou difusa que seja a queixa inicial, sabe-se
que o paciente traz para o tratamento, de maneira intencional ou não, sua existência, todo o
seu ser-em-seu-mundo. Sabe-se também que cada aspecto seu relaciona-se de certo modo
com todos os outros aspectos, embora a maneira pela qual se articulem talvez não seja
absolutamente clara. É tarefa da fenomenologia existencial articular o que é o “mundo” do
outro e a sua maneira de nele se encontrar. Já de início, minha idéia do âmbito ou extensão
de uma pessoa talvez não coincida com a dele e nem mesmo com a de outros psiquiatras.
Eu, por exemplo, considero qualquer homem como um ser finito, que teve um começo e
terá um fim. Nasceu e vai morrer. Entretanto, possui um corpo que o prende a este tempo e
lugar. Creio que tais afirmativas se aplicam a cada homem em particular. Não espero
reexaminá-las cada vez que encontro uma pessoa. De fato, não podem ser provadas ou
falsificadas. Tive um paciente cuja noção dos limites do seu próprio ser estendiam-se para
além do nascimento e da morte: “de fato” e não apenas “em imaginação” ele afirmava não
estar essencialmente ligado a um tempo ou um lugar. Não o considerei psicótico, nem pude
provar que ele estava errado, ainda que quisesse. Contudo, é de considerável importância
prática saber perceber que o conceito e/ou experiência de um homem sobre o seu ser talvez
seja muito diferente do nosso conceito ou experiência dessa pessoa. Em tais casos é preciso
saber orientar-se como pessoa no esquema de coisas do outro em vez de vê-lo apenas como
um objeto em nosso próprio mundo, isto é, dentro do sistema total de nossa própria escala
de referências. É preciso saber efetuar esta reorientação sem pré-julgar quem está certo ou
errado. Este talento é óbvio e indispensável pré-requisito no trabalho com os psicóticos.
Há um outro aspecto do ser crucial em psicoterapia, embora não em outros
tratamentos: cada homem é ao mesmo tempo independente de seus semelhantes e com eles
relacionado. Tal separação e relacionamento são postulados mutuamente necessários. O
relacionamento pessoal só pode existir entre seres separados, mas não isolados. Não somos
isolados e não somos partes do mesmo corpo físico, eis o paradoxo potencialmente trágico:
nosso relacionamento com os outros é um aspecto essencial do nosso ser, assim como a
nossa separação, mas qualquer pessoa determinada não é parte necessária do nosso ser.
A psicoterapia é uma atividade na qual esse aspecto do ser do paciente, o
relacionamento com os outros, é utilizado para finalidades terapêuticas. O terapeuta age
segundo o princípio de que, já que o relacionamento existe em todos de modo potencial,
talvez não esteja perdendo o seu terço se ficar sentado durante horas com um catatônico que
não dá a menor mostra de reconhecer sua existência.

2 - Fundamentos Existenciais-Psicológicos
para Compreensão da Psicose
Outra característica do atual jargão psiquiátrico é falar da psicose como falha no ajuste
social ou biológico, inadaptação de determinada espécie particularmente radical, perda de
contacto com a realidade, falta de insight. Segundo Van den Berg (1955), esse jargão é um
verdadeiro “vocabulário de difamação”. A difamação não é moralista, pelo menos no
sentido do século dezenove; na verdade, a linguagem é, de diversos modos, o resultado de
esforços para evitar pensar em termos de liberdade, escolha, responsabilidade. Mas implica
num certo padrão de ser humano que o psicopata não pode alcançar. Na verdade não me
oponho a todas as implicações desse “vocabulário de difamação”. Sinto que deveríamos, de
fato, ser mais francos em relação aos juízos que fazemos implicitamente ao chamar alguém
de psicopata. Ao atestar que alguém é louco não ponho em dúvida que ele seja
desequilibrado, talvez perigoso para si mesmo e para os outros, e exija atenção e cuidados
num hospital para doentes mentais. Ao mesmo tempo, estou cônscio de que, em minha
opinião, existem outras pessoas consideradas sadias, cuja mente é radicalmente doentia,
podendo também constituir um perigo para si mesmas e para os outros, e a quem a sociedade
não considera psicopatas e destinadas a um hospício. Sei que o homem a quem se considera
alucinado pode estar, em sua ilusão, dizendo a verdade, não em sentido equívoco ou
metafórico, mas literalmente, e que a mente perturbada do esquizofrênico talvez receba
luzes que não penetrem a mente intacta de pessoas sadias, de mentalidade fechada. Ezequiel,
na opinião de Jaspers, era um esquizofrênico.
Devo confessar aqui uma certa dificuldade pessoal em ser psiquiatra. Esta
dificuldade se encontra por detrás de grande parte deste livro: Exceto nos casos de
esquizofrenia crônica acho difícil descobrir “sinais e sintomas” de psicose nas pessoas que
entrevisto. Julgava tratar-se de uma deficiência de minha parte: eu não era bastante hábil
para descobrir alucinações e ilusões. Ao comparar minhas experiências dos psicopatas com
as descrições de psicoses das obras-padrão descobria que os autores não descreviam a
maneira como essas pessoas se portavam comigo. Talvez estivessem com a razão e eu,
errado. Achei depois que talvez estivessem enganados. Mas isso era igualmente
insustentável. Eis o que parece fato:
Os textos-padrão convencionais contêm descrições do comportamento de pessoas
num campo behavioral que inclui o psiquiatra. O comportamento do paciente é, até certo
ponto, uma função do comportamento do psiquiatra no mesmo campo behavioral. O
paciente padrão da psiquiatria é uma função do psiquiatra padrão e do manicômio padrão.
O friso, por assim dizer, que sublinha toda a grande descrição da esquizofrenia feita por
Bleuler é a observação de que no final das contas os esquizofrênicos eram para ele mais
estranhos que os pássaros do seu jardim.
Bleuler, conforme sabemos, aproximava-se de seus pacientes como um clínico não
psiquiatra se aproximaria de um caso clínico — com respeito, cortesia, consideração e
curiosidade científica. O paciente, porém, é doente no sentido médico e é preciso
diagnosticar sua condição observando os sintomas da doença. Este approach é considerado
tão justificável por tantos psiquiatras que eles talvez achem difícil compreender a que me
refiro. Existem agora, naturalmente, várias outras escolas de pensamento, mas esta é ainda
a mais extensa no país. É certamente o approach considerado óbvio pelos não-médicos.
Refiro-me aqui todo o tempo a pacientes psicóticos (a maioria pensará imediatamente, não
você ou eu). Os psiquiatras a ele agarram-se ainda na prática, embora prestem assim tributo
a ideias, pontos de vista e maneiras incompatíveis. Este approach contém tanta coisa de
valor, e também tão segura, que qualquer um tem o direito de examinar bem de perto toda
opinião no sentido de que uma atitude profissional clínica desta espécie talvez não seja
absolutamente obrigatória e até mesmo imprópria em determinadas circunstâncias. A
dificuldade não consiste apenas em observar evidências dos sentimentos do paciente
revelados no seu comportamento. O bom médico clínico levará em conta o fato de que,
estando seu paciente ansioso, a pressão estará um pouco mais alta que de costume, o pulso
mais rápido que o normal, e assim por diante. O essencial na questão é que quando se
examina “o coração”, ou mesmo todo o homem como um organismo, não se está interessado
na natureza dos próprios sentimentos com respeito ao doente; sejam quais forem, tornam-
se irrelevantes, sem valor. Conserva-se uma visão e uma atitude mais ou menos de acordo
com os padrões profissionais.
Verifica-se que a atitude psiquiátrica clássica não se modificou em princípio desde
Kraepelin se a compararmos com a atitude similar encontrada em qualquer recente livro
didático sobre psiquiatria, escrito na Grã-Bretanha (por exemplo Mayer-Gross, Slater e
Roth).
Eis como Kraepelin apresentava aos seus alunos um paciente que revelava sinais de
excitação catatônica:
“O paciente que hoje apresento a vocês entra na sala quase carregado, pois caminha
como se estivesse montado, apoiado na parte externa dos pés. Ao entrar, atira longe
as chinelos, canta em voz alta um hino e depois grita duas vezes (em inglês) “Meu
pai, meu verdadeiro pai!” Tem dezoito anos, é aluno da Oberrealschule (escola
secundária moderna), alto, relativamente forte, mas de fisionomia pálida, onde
surge a intervalos um rápido rubor. O paciente senta-se de olhos fechados, sem
prestar a menor atenção ao ambiente onde se encontra. Não abre os olhos nem
quando se dirigem a ele, mas responde começando em voz baixa e depois
gradualmente aumentando o tom, até gritar bem alto. Quando lhe perguntam onde
se encontra, responde: “Também querem saber isso? Direi quem está sendo
observado, é observado e será observado. Sei tudo isso e poderia dizer, mas não
quero”. Quando perguntam seu nome grita: “Como se chama? O que é que ele
fecha? Fecha os olhos. Que é que ele ouve? Não compreende; não compreende.
Como? Quem? Onde? Quando? Que é que ele quer dizer? Quando lhe digo para
olhar, ele não olha direito. Você aí, olhe! Que foi? Que aconteceu? Preste atenção;
ele não presta. Que foi que houve, então? Por que não me responde? Está ficando
novamente atrevido? Como pode ser tão atrevido? Já vou! Eu lhe mostrarei! Você
não quer se prostituir para mim! Nem seja esperto também. Você é um sujeito
atrevido, sujo, tão atrevido e tão sujo como nunca vi. Já recomeçou? Você não
compreende nada absolutamente, nada absolutamente, nada absolutamente ele
compreende. Se seguir agora, ele não seguirá, não seguirá, não seguirá. Está ficando
cada vez mais atrevido. Como prestam atenção, eles prestam atenção”, etc. E no
final, ralha em sons quase inarticulados”.
Kraepelin aponta aqui, entre outras coisas, a “inacessibilidade” do paciente:
“Embora compreendesse, sem dúvida alguma, todas as perguntas, não forneceu um
só fragmento de informação útil. Sua fala era — apenas uma série de sentenças
desconexas, sem qualquer relação com a situação geral” (1905, pp. 79-80, grifo
meu).
Não há dvida de que o paciente demonstra “sinais” de excitação catatônica. A
interpretação que damos a este comportamento, contudo, dependerá do relacionamento que
estabelecermos com o paciente e somos devedores a Kraepelin pela vívida descrição, que o
coloca diante de nós, emergindo das páginas, após um período de cinquenta anos. Na
aparência, que faz o paciente? Está com certeza estabelecendo um diálogo entre sua versão
parodiada de Kraepelin e seu próprio self desafiador e rebelde. “Você também quer saber
isso? Já digo quem está sendo observado, e é observado e será observado. Sei tudo isso e
poderia dizer, mas não quero”. O sentido parece bem claro. Presume-se que ele se ressinta
profundamente daquela forma de interrogatório realizada diante de uma sala cheia de
estudantes. É provável que não compreenda o que aquilo tem a ver com as coisas que o
perturbam tão profundamente. Mas tais coisas não seriam “informação útil” para Kraepelin,
exceto como “sintomas” de uma “doença”.
Kraepelin indaga seu nome. O paciente responde com uma explosão exasperada, na
qual revela o que sente diante da atitude implícita de Kraepelin: Como se chama? Que é
que ele fecha? Fecha os olhos... Por que não me responde? Está ficando novamente
atrevido? Não quer se prostituir para mim? (isto é, ele sente que Kraepelin objeta ao fato de
ele não estar disposto a se prostituir diante de uma classe inteira de estudantes) ... tão atre-
vido, sem vergonha, miserável, e nojento como eu nunca vi... etc.
Parece claro que o comportamento do paciente pode ser visto ao menos de duas
diferentes maneiras, análogas aos modos de se ver um vaso, ou dois perfis. Pode-se
considerar seu comportamento como “sintoma” de uma “doença”; pode-se ver esse
comportamento como uma expressão de sua existência. A construção existencial-
fenomenológica é uma dedução da maneira como o outro está sentindo e agindo. Qual o
conhecimento que o rapaz tem de Kraepelin? Parece atormentado e desesperado. Por que
fala e age daquela maneira? Protesta contra ser observado e testado. Quer ser ouvido.

A INTERPRETAÇÃO COMO FUNÇÃO


DO RELACIONAMENTO COM O PACIENTE

O psiquiatra clínico, desejoso de ser mais “científico” ou “objetivo”, talvez proponha


confinar-se “objetivamente” ao comportamento observável do paciente. A mais simples
resposta a isso é que se trata de algo impossível. Ver “sintomas” de “doença” é não ver com
neutralidade. Não é sequer neutro ver um sorriso como contração dos músculos circumorais
(Merleau-Ponty, 1963). Impossível deixar de ver a pessoa de um modo ou de outro e situar
nossas elaborações ou interpretações sobre o seu comportamento tão logo entramos com ele
em relacionamento. Isto se dá mesmo no caso negativo de nos encontrarmos detidos ou
embaraçados por uma falta de reciprocidade da parte do paciente, quando sentimos que não
há ninguém ali para reagir à nossa aproximação. Isto se situa bem próximo ao âmago do
nosso problema.
As dificuldades com que aqui nos defrontamos são de certo modo análogas àquelas
que enfrenta o tradutor de hieróglifos, analogia que Freud gostava de invocar; são até mais
sérias. A teoria da interpretação ou decifração dos hieróglifos e outros textos antigos foi
ampliada e tornada mais explícita por Dilthey, no século passado, progredindo mais que a
teoria da interpretação da fala e das ações psicóticas “hieroglíficas”. Talvez ajude a
esclarecer nossa posição comparar o problema com o do historiador, segundo o apresentou
Dilthey.1 Em ambos os casos, a tarefa essencial é a da interpretação.
Antigos documentos podem ser submetidos a uma análise formal em termos de
estrutura e estilo, traços linguísticos e idiossincrasias características de sintaxe, etc. A
psiquiatria clínica tenta uma análise formal análoga da fala e do comportamento do paciente.
Além desta análise formal é possível lançar luz sobre o texto através do
conhecimento do nexo sócio-histórico das condições das quais emerge. De modo similar,
em geral desejamos ampliar o mais possível a análise formal e estática dos “sintomas”
clínicos isolados para compreender seu lugar na vida da pessoa. Isto inclui a introdução de
hipóteses dinâmico-genéticas. Contudo, a informação histórica, per se, de textos antigos ou
de pacientes, nos ajudará a compreendê-los melhor somente quando conseguimos invocar
o que é com frequência chamado simpatia, ou, de modo mais intenso, empatia. Quando
Dilthey, portanto, “caracteriza o relacionamento entre o autor e o intérprete como o fator
condicionante da possibilidade de compreensão do texto está, na verdade, revelando a
pressuposição de toda interpretação que tenha como base a compreensão (Bultmann, op.
cit.).

1
A fonte imediata das citações de Dilthey feitas nestas páginas é “The Problem of Hermeneutics” (Essays, pp. 234-61), de
Bultmann.
“Explicamos — escreve Dilthey — por meio de processos puramente intelectuais,
mas entendemos por meio da cooperação de todas as forças da mente na compreensão. Ao
entender partimos da conexão com o todo vivo, a fim de tornar o passado compreensível
nesses termos”.
Nossa visão do outro depende da boa vontade em convocar todas as forças de todos
os aspectos de nós mesmos no ato da compreensão. Parece também que precisamos
orientar-nos para essa pessoa de modo a nos deixar aberta a possibilidade de compreendê-
la. A arte de compreender no ser de um indivíduo, os aspectos a que observamos como
expressão de sua maneira de estar-no-mundo, exige que relacionemos suas ações com a sua
maneira de viver a situação em que se encontra conosco. De modo similar, é em termos do
seu presente que precisamos compreender o passado e não exclusivamente em sentido
inverso. Isto é exato mesmo nos casos negativos em que talvez transpareça do seu
comportamento que ele negue a existência de qualquer situação conosco, por exemplo,
quando nos sentimos tratados como se não existíssemos, ou existindo somente em termos
dos desejos e ansiedades do paciente. Não se trata aqui de fixar rigidamente significados
pré-determinados a este comportamento. Se considerarmos suas ações como “sinais” de
uma “doença” já estamos impondo nossas categorias de pensamento ao paciente, de maneira
análoga àquela em que talvez achemos que ele nos esteja tratando; e estaremos fazendo o
mesmo se imaginarmos que podemos “explicar” seu presente como resultado mecânico de
um “passado” imutável.
Se a pessoa adotar tal atitude em relação a um paciente, dificilmente compreenderá
ao mesmo tempo o que ele talvez esteja tentando comunicar-nos. Voltando a considerar o
caso de se ouvir alguém falar se eu estiver sentado à sua frente e falando com você, é
possível que você esteja (I) tentando calcular qualquer anormalidade da minha fala, (II)
explicando o que digo em termos de como você imagina que minhas células cerebrais
estejam metabolizando oxigênio, ou (III) tentando descobrir porque, em termos do meu
histórico sócio-econômico, eu estaria dizendo tais coisas naquele momento. Nenhuma das
respostas que você possa dar a estas questões proporcionará por si mesma a simples
compreensão daquilo que eu pretendo dizer.
É possível ter um completo conhecimento do que foi descoberto sobre a incidência
hereditária ou familial da psicose maníaco-depressiva ou esquizofrenia, ter facilidade em
reconhecer a “distorção do ego” esquizóide, os defeitos do ego esquizofrênico, além das
diferentes “perturbações” de raciocínio, memória, percepção, etc., na verdade conhecer tudo
o que é possível sobre a psicopatologia da esquizofrenia, ou da esquizofrenia como doença,
sem ser capaz de compreender um único esquizofrênico. Os dados são todos maneiras de
não compreendê-lo. Observar e ouvir um paciente em busca de “sinais” de esquizofrenia
(como “doença”) e observá-lo e escutá-lo como simples ser humano são vê-lo e ouvi-lo de
maneiras radicalmente diversas, como se distingue primeiro um vaso e depois dois perfis
no desenho ambíguo.
É claro que, conforme Dilthey, o intérprete de um texto tem o direito de presumir
que, apesar da passagem do tempo, e da ampla divergência de visão do mundo entre ele e o
antigo autor, os dois não se encontrem num contexto de experiência vital totalmente diverso.
O intérprete, como o outro, existe no mundo, como objeto permanente no tempo e no
espaço, junto de outros semelhantes. É exatamente esta pressuposição que não se pode fazer
com o psicopata. Neste sentido existe maior dificuldade de compreensão do psicopata, em
cuja presença nos encontramos, aqui e agora, do que na compreensão do autor de
hieroglifos, desaparecido há milhares de anos. Contudo, a distinção não é essencial. O
psicopata, afinal, como Harry Stack Sullivan afirmou, é antes de tudo “um simples ser
humano”. As personalidades do médico e do psicopata, assim como as do intérprete e do
autor, não são opostas uma à outra, como dois fatos externos que não se encontram e não
podem ser comparados. Como o intérprete, o terapeuta deve possuir versatilidade para
transportar-se a uma visão estranha e talvez alienada do mundo. Neste ato apela para suas
possibilidades psicóticas sem renunciar à própria sanidade. Somente assim pode chegar a
compreender a posição existencial do paciente.
Creio estar claro que por “compreender” não me refiro a um processo puramente
intelectual. Por compreender entenda-se amar. Contudo, não há palavra mais prostituída
que esta. O que é necessário, embora não baste, é a capacidade de saber como o paciente
sente a si mesmo e ao mundo, inclusive ao psiquiatra. Quem não o compreende dificilmente
estará em posição de começar a “amá-lo” de maneira eficaz. Recebemos o preceito de amar
aos nossos semelhantes. Não podemos, porém, amar àquele semelhante em particular por
si mesmo, ignorando quem seja. Só podemos amar a sua abstrata humanidade. Não se pode
amar um aglomerado de “sinais de esquizofrenia”. Ninguém sofre de esquizofrenia. A
pessoa é esquizofrênica. O esquizofrênico precisa ser conhecido sem ser destruído. E terá
que descobrir que isso é possível. Tanto o ódio como o amor do terapeuta são, portanto,
relevantes no mais alto grau. O que o esquizofrênico é para nós determina de maneira
considerável o que somos para ele e, portanto, as suas ações. Vários dos “sinais” de
esquizofrenia encontrados nos livros didáticos variam de hospital para hospital e parecem
depender em grande parte do tratamento. Alguns psiquiatras observam determinados
“sinais” muito menos que outros.2
Creio, portanto, que a seguinte declaração de Frieda Fromm-Reichmann seja
verdadeira, embora inquietante: “ . . . os psiquiatras podem agora aceitar sem contestações
o princípio de que é possível estabelecer um relacionamento prático entre médico e paciente.
Se e quando isto parecer impossível será devido a problemas de personalidade do médico,
não à psicopatologia do paciente” (1952, p. 9).
É claro que, como o rapaz catatônico de Kraepelin, o indivíduo reage e sente em
relação a si mesmo apenas parcialmente em termos da pessoa que se considera ser e
parcialmente em termos da fantasia que entretém a respeito de si mesmo. Procura-se fazer
com que o paciente veja que esta maneira de agir em relação ao médico implica numa
fantasia de um tipo ou de outro, o que ele não reconhecerá plenamente, é provável (pois
dela não tem consciência), mas que, no entanto, é um postulado necessário, caso se queira
tirar algum sentido da sua maneira de se conduzir.
Quando duas pessoas sadias se encontram espera-se que A reconheça que B seja mais
ou menos a pessoa que B julga ser e vice-versa. Isto é, espero que minha própria definição
de mim mesmo seja, de modo geral, endossada pela outra pessoa, assumindo-se que eu não
esteja deliberadamente impersonando outra pessoa, agindo de maneira hipócrita, mentindo,
etc.3 No contexto da sanidade mútua existe, porém, uma ampla margem para conflito, erro,

2
Existe agora extensa literatura apoiando tal ponto de vista. Consultar, por exemplo, “In the Mental Hospital” (artigos de The
Lancet, 1955-6).
3
Existe a história do paciente submetido ao detector de mentiras que ao ser perguntado se era Napoleão respondeu “Não”. A
máquina registrou que ele mentia.
interpretação errônea, em suma, para um desentendimento de qualquer espécie entre a
pessoa que se é aos próprios olhos (o ser-para-si-mesmo) e aquela que se é aos olhos do
outro (o ser-para-o-outro), e reciprocamente entre quem ou o que ele é para mim, e quem
ou o que ele é para si mesmo; finalmente, entre o que se imagina ser a sua (dele) imagem
de si mesmo e a sua (dele) atitude e intenções em relação a si próprio, e a imagem, atitude
e intenções que ele entretém na verdade em relação a si mesmo, e vice-versa.
O que vale dizer: quando duas pessoas sadias se encontram existe um
reconhecimento mútuo e recíproco da identidade uma da outra. Nesse reconhecimento
mútuo figuram os seguintes elementos básicos:
(a) Reconheço que o outro é a pessoa que ele se julga ser.
(b) Ele reconhece que eu sou a pessoa que julgo ser.
Cada qual possui seu próprio senso autônomo de identidade e sua própria definição
de quem ou o que é. Você espera ser capaz de me reconhecer, isto é, eu estou habituado a
esperar que a pessoa por quem você me toma, e a identidade que reconheço em mim mesmo
coincidam de modo geral — diremos simplesmente “de modo geral”, já que, é óbvio, haverá
margem para consideráveis discrepâncias.
Contudo, se restarem divergências de tipo bastante radical após tentativas para
vencê-las não existe alternativa senão concluir que um de nós dois é louco. Não tenho
dificuldades em considerar alguém psicótico se, por exemplo:
a pessoa afirma ser Napoleão, quando não é;
ou se ele afirma que eu sou Napoleão, quando digo que não sou;
ou se ele julga que quero seduzi-lo, enquanto eu penso que não lhe proporcionei, na
realidade, nenhum motivo para supor seja esta a minha intenção;
ou se ele pensa que eu temo que ele me assassine, quando não o temo, nem lhe dei
qualquer motivo para pensar assim.
Sugiro, portanto, que a sanidade ou a psicose seja testada pelo grau de conjunção ou
disjunção entre duas pessoas, das quais uma é sadia por consenso geral.
O teste crítico para estabelecer se o paciente é ou não psicopata é a falta de
congruidade, uma incongruidade, um choque entre ele e eu.
“Psicopata” é o nome que damos à outra pessoa num relacionamento disjuntivo de
determinada espécie. É somente por causa desta disjunção interpessoal que passamos a
examinar a sua urina, e procurar anomalias nos gráficos de atividade elétrica do cérebro.
Vale a pena, a esta altura, penetrar um pouco mais a natureza da barreira ou disjunção
entre o sadio e o psicopata.
Se, por exemplo, alguém nos diz ser “um homem irreal” e se ele não está mentindo,
nem brincando, nem iludindo de qualquer maneira sutil, não há dúvida de que será
considerado um iludido. Mas, existencialmente, que significa essa ilusão? Na verdade ele
não está gracejando, nem fingindo. Pelo contrário, passa a dizer que vem fingindo há anos
ser uma pessoa real, mas que não pode continuar com aquela fraude.
Toda a sua vida foi dividida entre o desejo de se revelar e o desejo de ocultar-se.
Todos partilhamos com ele desse problema, chegando a uma solução mais ou menos
satisfatória. Temos nosso segredo e nossa necessidade de confessar. Talvez recordemos
como, na infância, os adultos conseguiam ver através de nós e que proeza constituiu dizer,
temerosos e trêmulos, a nossa primeira mentira, fazendo assim por nós mesmos a descoberta
de que, em determinados sentidos, estamos irremediavelmente sozinhos e, passando a saber
que no nosso território interior somente nós podemos deixar pegadas. Há pessoas, porém,
que jamais compreendem de todo esta posição. Esta autêntica reserva é a base do genuíno
relacionamento; mas a pessoa a quem chamamos “esquizóide” sente-se mais exposta e
vulnerável que nós, além de mais isolada. Assim, um esquizofrênico talvez diga que é feito
de vidro, de tal transparência e fragilidade que um olhar muito direto poderá reduzi-lo a
estilhaços e penetrá-lo completamente. É de se supor que ele se sinta precisamente assim.
Vamos sugerir que seja nesta base de extraordinária vulnerabilidade que o homem
irreal se torne tão adepto de esconder-se. Aprendeu a chorar quando se divertia e a sorrir
quando estava triste. A franzir as sobrancelhas quando aprovava e a aplaudir quando estava
aborrecido. “Tudo isto que você vê sou eu”, diz a si mesmo. Mas somente em e através de
tudo o que vemos pode ele ser alguém, (na realidade.) Se tais ações não constituem seu
verdadeiro self ele é irreal; totalmente simbólico e equívoco; uma pessoa puramente virtual,
potencial, imaginária, um homem “mítico”, nada “real”. Se deixa de fingir ser o que não é,
e surge como a pessoa que passou a ser, ele emerge como Cristo, ou como um fantasma,
mas não como homem: existindo sem corpo, é ninguém.
Persiste uma “verdade” sobre sua “posição existencial”. O que é “existencialmente”
verdadeiro é vivido como “realmente” verdadeiro.
Indubitavelmente, a maioria das pessoas considera “realmente” verdade o que se
relaciona com a gramática e a natureza. Uma pessoa pode dizer que está morta embora
esteja viva. Mas sua “verdade” diz que ele está morto. Manifesta-o talvez da única maneira
em que o senso comum (isto é, comunal) o permite. Ele quer dizer que está “realmente” e
“literalmente” morto, e não apenas de maneira simbólica, ou “de certo modo”, “por assim
dizer”, e seriamente decidido a comunicar a sua verdade. O preço, porém, a pagar por
transvalidar a verdade comunal, porém, é “ser” louco, pois a única morte real que
reconhecemos é a biológica.
O esquizofrênico está desesperado, ou simplesmente sem esperanças. Jamais
conheci esquizofrênico que afirmasse ser amado, como homem, por Deus Pai, ou pela Mãe
de Deus, ou por quem quer que fosse. Ou ele é Deus, ou o Demônio, ou se encontra no
inferno, afastado de Deus. Quando alguém diz ser irreal, ou afirma estar morto, com toda a
seriedade, expressando em termos radicais a verdade nua de sua existência conforme ele a
sente, este alguém é insano.
Que se pede de nós? Que o compreendamos? O cerne da experiência esquizofrênica
de si mesmo permanecerá incompreensível para nós. Mas a compreensão na forma de
esforço para alcançá-lo e agarrá-lo, permanecendo embora dentro de nosso mundo,
julgando-o segundo nossas próprias categorias, diante das quais ele inevitavelmente
fracassa, não é o que o esquizofrênico deseja ou exige. Precisamos reconhecer todo o tempo
sua singularidade e diferenciação, sua separação, solidão e desespero.4

4
A esquizofrenia não pode ser compreendida sem que se compreenda o desespero. Consultar especialmente Kierkegaard, The
Sickness unto Death (1954); Binswanger, “The Case of Ellen West”, (1958); e Leslle Farber, “The Therapeutic Despair” (1958).
3 - Insegurança Ontológica
Podemos agora expor de modo mais preciso a natureza de nossa investigação clínica. Pode-
se ter o senso de sua presença no mundo como uma pessoa, viva, completa e, no sentido
temporal, contínua. Como tal o homem pode viver no mundo e encontrar seus semelhantes:
mundo e semelhantes considerados igualmente reais, vivos, completos e contínuos.
Uma pessoa assim basicamente segura do ponto de vista ontológico5 enfrentará todos
os riscos da vida — sociais, éticos, espirituais e biológicos — com um firme senso da
própria realidade e identidade, assim como a dos outros. É muitas vezes difícil para alguém
com este senso da própria personalidade integral e identidade pessoal, da permanência das
coisas, da confiança nos processos naturais, da substancialidade dos processos naturais e da
substancialidade dos outros transportar-se ao mundo de um indivíduo cujas experiências
podem ser totalmente carentes de qualquer certeza indiscutível e óbvia.
Este estudo refere-se às questões que surgem onde existe a ausência parcial ou quase
total das convicções derivadas de uma posição existencial daquilo que chamarei segurança
primária ontológica, com as ansiedades e perigos que, sugiro, emergem apenas em termos
de insegurança ontológica primária; e às consequentes tentativas de enfrentar tais
ansiedades e perigos.
O crítico literário Lionel Trilling (1955) aponta de modo claro o contraste que desejo
indicar entre uma posição básica existencial de segurança ontológica e outra de
insegurança ontológica, ao comparar o mundo de Shakespeare e Keats como de Kafka:
“ . . . para Keats, a percepção do mal existe simultaneamente com um forte senso
de identidade pessoal e por este motivo é menos aparente. A alguns leitores
contemporâneos poderá parecer, pelo mesmo motivo, menos intensa. Assim, talvez
também pareça a um leitor contemporâneo que se compararmos Shakespeare e
Kafka, deixando de lado o grau de genialidade de ambos e considerando-os somente
como intérpretes do sofrimento humano e da alienação cósmica, é Kafka quem faz
a exposição mais completa e intensa. Na verdade, o juízo pode ser correto
exatamente porque para Kafka o senso do mal não é contrariado pelo senso de
identidade pessoal. O mundo shakespeareano, assim como o kafkiano, é aquela
prisão de que fala Pascal e da qual diariamente os detentos saem ao morrer; tanto
Shakespeare como Kafka impõem-nos a cruel irracionalidade das condições da vida
humana, a história contada por um idiota, os deuses pueris que nos torturam, não
por castigo, mas por divertimento; e Shakespeare, não menos que Kafka, revolta-se
com o mau cheiro da prisão deste mundo. Nada é nele mais característico que as
imagens de nojo. Mas na cela de Shakespeare a companhia é muito melhor que na
de Kafka; os capitães e reis, amantes e palhaços são vivos e completos antes de
morrerem. Em Kafka, muito antes que se execute a sentença, antes mesmo que se
inicie o processo maligno, algo de terrível foi infligido ao acusado. Sabemos todos
de que se trata — foi despojado de tudo o que cabe a um homem, exceto a sua
humanidade abstrata que, como o esqueleto, nunca assenta muito bem num homem.
Não tem pais, lar, mulher, filho, compromissos ou apetites; não possui elos com o
poder, a beleza, o amor, o espírito, a coragem, a lealdade ou a fama e o orgulho que
de tudo isso poderia auferir. Assim, podemos dizer que em Kafka o conhecimento
do mal existe sem o conhecimento contraditório do self sadio e válido e que o

5
Apesar do emprego filosófico de “ontologia” (por Heidegger, Sartre, e Tillich principalmente) usei o termo no seu atual sentido
empírico, pois parece ser o melhor derivado adverbial ou adjetival de “ser”.
conhecimento do mal em Shakespeare coexiste com essa contradição em sua mais
ampla força” (pp. 38-9).
Descobrimos, conforme indica Trilling, que Shakespeare traça personagens que
evidentemente sentem-se reais, vivos e completos, por mais que estejam crivados de
dúvidas ou dilacerados por conflitos. Em Kafka, tal não ocorre. Na verdade, o esforço de
comunicar o que é estar vivo na ausência de tais garantias parece caracterizar o trabalho de
diversos escritores e artistas de nossa época. Viver sem se sentir vivo.
Com Samuel Beckett, por exemplo, penetra-se um mundo no qual não existe sentido
contraditório do self em sua “saúde e validez” para mitigar o desespero, o terror e o tédio
da existência. Assim, os dois vagabundos que esperam por Godot estão condenados a viver:
ESTRAGON : Sempre encontramos alguma coisa que nos dá a impressão de
vivermos, não é Didi?
VLADIMIR (impaciente): Sim, sim, somos mágicos. Mas perseveremos no que
decidimos, antes que esqueçamos.
Ao pintar, Francis Bacon, entre outros, parece lidar com questeõs similares. É
evidente, de modo geral, que o que discutimos clinicamente não passa de uma pequena
amostra de algo no qual a natureza humana está profundamente implicada e para a qual
contribuímos apenas com compreensão muito parcial.
Começando pelo princípio:
O nascimento biológico é um ato definitivo, onde o organismo infantil é precipitado
no mundo. Ali está o novo bebê, uma nova entidade biológica, já com seu próprio jeito,
viva e real, do nosso ponto de vista. Mas, e o ponto de vista do bebê? Em circunstâncias
normais o nascimento físico de um novo organismo vivo inaugura no mundo processos
rapidamente progressivos, por meio dos quais, dentro de um espaço de tempo surpreenden-
temente curto, a criança se sente real e viva, uma entidade, com continuidade no tempo e
localização no espaço. Em suma, o nascimento físico e a sensação de vida biológica são
seguidos do nascimento existencial do bebê como ser real e vivo. Em geral esta evolução é
aceita sem discussão e proporciona a certeza da qual dependem outras certezas, isto é, não
só os adultos vêem as crianças como entidades reais e biologicamente viáveis, como se
sentem pessoas completas, reais e vivas, sentindo conjuntamente outros seres humanos
como vivos e reais. Estes são os dados autocomprovantes da experiência.
O indivíduo pode sentir então seu próprio ser como real, vivo e completo;
diferenciado do resto do mundo em circunstâncias ordinárias de modo tão claro que sua
identidade e autonomia jamais entram em questão; como um continuum no tempo; como
possuidor de consistência interior, substancialidade, autenticidade e valor; espacialmente
co-extensivo com o corpo; e, em geral, tendo começado em, ou nas proximidades do
nascimento e capaz de extinção com a morte. Possui assim um firme âmago de segurança
ontológica.
Mas talvez não seja assim. O indivíduo nas circunstâncias ordinárias da vida poderá
sentir-se mais irreal que real; literalmente falando, mais morto que vivo; precariamente
diferenciado do restante do mundo, de modo que sua identidade e autonomia estejam
sempre postas em dúvida. Talvez lhe falte a experiência de sua própria continuidade
temporal. Talvez não possua um senso dominante de consistência ou coesão pessoal. Talvez
se sinta mais insubstancial que substancial e incapaz de aceitar que aquilo que o constitui
seja genuíno, bom, valioso. E talvez sinta seu eu parcialmente divorciado do corpo.
É inevitável, naturalmente, que um indivíduo cuja experiência de si próprio seja
desta ordem não possa viver num mundo “seguro”, já que é incapaz de sentir-se seguro “em
si mesmo”. Toda a “fisionomia” de seu mundo será diferente da do indivíduo cujo senso de
si mesmo está seguramente baseado na própria saúde e validez. O relacionamento com as
outras pessoas terá significado e função radicalmente diversas. Antecipando, podemos dizer
que no indivíduo cujo ser se apóia com segurança neste sentido primário experimental, o
relacionamento com os outros é potencialmente gratificante; enquanto que a pessoa
ontologicamente insegura preocupa-se em preservar, mais do que gratificar-se: as circuns-
tâncias comuns da vida ameaçam seu baixo limiar de segurança.6
Caso se tenha alcançado uma posição de segurança ontológica primária, as
circunstâncias comuns da vida não constituem ameaça constante à existência. Se esse
fundamento vital não foi alcançado, as circunstâncias da vida diária constituem uma
contínua e mortal ameaça.
Somente depois de se comprendê-lo é possível entender a evolução de certas
psicoses.
Se o indivíduo não pode aceitar sem questionar a identidade real, viva, autônoma de
si mesmo e dos outros, então terá que se absorver na busca de meios para tentar ser real, ou
manter a si mesmo e aos outros com vida, preservar com esforço a sua identidade, conforme
ele dirá com frequência, para impedir a perda do próprio self. O que para a maioria constitui
acontecimentos corriqueiros, nos quais mal se repara por não terem significado especial,
talvez se torne profundamente significativo se contribuir para a manutenção do ser do
indivíduo, ou ameaçá-lo de não existência. Esse indivíduo, para quem os elementos do
mundo começam a ter, ou passaram a ter, uma hierarquia de significados diversa da do
homem comum, começa, como dizemos, “a viver no seu mundo”, ou já passou a fazê-lo.
Não é correto dizer, porém, sem cuidadosa verificação, que está perdendo “contato com” a
realidade e retraindo-se dentro de si mesmo. Acontecimentos externos não mais o afetam
como afetam os outros: não que o afetem menos, pelo contrário, com frequência afetam-no
mais ainda. Não é sempre exato que ele se torne “indiferente” e “retraído”. É possível,
porém, que o mundo de sua experiência não mais venha a ser partilhado com os outros.
Mas antes de explorarmos tais ocorrências será vantajoso caracterizar três formas de
ansiedade enfrentadas pela pessoa ontologicamente insegura: absorção, implosão,
petrificação.

1. Absorção

Surgiu uma discussão entre dois pacientes no decurso de uma sessão de psicoterapia de
grupo. De repente, um dos protagonistas interrompeu-a para dizer: “Não posso continuar.
Você discute pelo prazer de me vencer. No melhor dos casos você vence a discussão. No
pior, perde. Eu discuto a fim de preservar minha existência!’.

6
Esta formulação é muito similar às de H. S. Sullivan, Hill, F. Fromm-Reichmann e Arieti em especial. Federn, embora
expressando-se de maneira muito diferente, parece ter adiantado um ponto de vista bastante aproximado.
O paciente era um rapaz a quem eu consideraria são, mas conforme declarou, sua
atividade na discussão, assim como no restante de sua vida, não se destinava a obter
gratificação e sim “preservar sua existência”. É possível dizer que se de fato imaginava que
a perda de uma discussão colocaria em perigo sua existência, neste caso estava “fortemente
desligado da realidade” e era virtualmente um psicopata. Mas isto seria encerrar a questão
sem fazer qualquer contribuição no sentido de compreender o paciente. Contudo, é
importante saber que, caso fosse submetido a determinado tipo de interrogatório
psiquiátrico, recomendado em numerosos livros pedagógicos, dentro de dez minutos seu
comportamento e fala revelariam “sinais” de psicose. É muito fácil evocar tais “sinais”
numa pessoa cujo nível de segurança básica seja baixo a ponto de praticamente qualquer
relacionamento com outra pessoa, por mais tênue ou aparentemente “inócuo”, ameaçar
dominá-lo.
É preciso um firme senso da própria identidade autônoma para haver relacionamento
de um ser humano para outro. Senão, toda e qualquer relação ameaça o indivíduo com a
perda da identidade. Uma das formas por isto assumida pode ser chamada absorção. Nela o
indivíduo teme o relacionamento como tal com qualquer pessoa ou qualquer coisa, e na
verdade até consigo mesmo, porque a incerteza relativa à estabilidade de sua autonomia
deixa-o vulnerável ao temor de que em qualquer relacionamento ele perderá a sua
autonomia e identidade. A absorção não é encarada simplesmente como algo que acontecerá
de qualquer maneira, apesar dos ativos esforços do indivíduo para evitá-lo. Ele se sente
como um homem que se salva do afogamento somente pela mais estrénua, constante e
desesperada atividade. A absorção é sentida como o risco de ser compreendido (e como tal
envolvido, incluído), de ser amado, ou mesmo simplesmente ser visto. Ser odiado poderá
constituir um risco por outras razões, mas odiado é às vezes menos perturbador do que ser
destruído, ao ver da pessoa, na absorção do amor.
A principal manobra usada para preservar a identidade sob pressão do temor da
absorção é o isolamento. Assim, em vez das polaridades de separação e relacionamento
baseadas na autonomia individual, existe a antítese entre a completa perda do ser pela
absorção na outra pessoa (engulfment) e a completa solidão (isolamento). Não existe uma
terceira possibilidade segura de relacionamento dialético entre duas pessoas, ambas certas
do próprio terreno e por isso mesmo capazes de “perder-se” uma na outra. Esta fusão de
seres pode ocorrer de modo “autêntico” somente quando os indivíduos estão segures de si
mesmos. Se alguém odeia a si próprio talvez queira perder-se no outro; então, ser absorvido
é uma forma de fuga. No caso atual é uma eterna possibilidade a ser temida.
Demonstraremos mais tarde que o que em determinado “momento” é mais temido e evitado
com esforço pode transformar-se naquilo que há de mais procurado.
Esta ansiedade explica uma forma da assim chamada “reação terapêutica negativa”
a uma interpretação aparentemente correta em psicoterapia. Ser compreendido corretamente
é ser absorvido, cerceado, devorado, mergulhado, comido, sufocado, abafado pelo que se
supõe seja a ampla compreensão de outra pessoa. Ser sempre mal interpretado é penoso e
causa sensação de isolamento, mas pelo menos deste ponto de vista existe uma certa
segurança no isolamento.
O amor do outro é, portanto, mais temido que seu ódio, ou antes, todo amor é sentido
como uma versão do ódio. Sendo amada, a pessoa coloca-se sob uma orientação não
solicitada. Em terapia, a última coisa que se deve fazer com uma pessoa assim é fingir mais
“amor” ou preocupação do que se sente. Tanto mais esperança haverá no horizonte quanto
mais convirjam para uma genuína preocupação os motivos obrigatoriamente muito
complexos do terapeuta para “ajudar” a alguém desse tipo, motivos inclinados a “deixá-lo
em paz” e não absorvê-lo de fato, ou tratá-lo com simples indiferença.
Existem diversas imagens para descrever maneiras relacionadas de ameaçar a
identidade e que talvez sejam aqui mencionadas em estreita ligação com o temor da
absorção, isto é, ser enterrado, afogado, mergulhado em areia movediça. A imagem do fogo
ocorre com frequência. O fogo pode representar as flutuações da vida interior do indivíduo.
Pode ser uma força estranha e destruidora que o aniquilará. Alguns psicopatas em fase
aguda dizem que estão em chamas, que seu corpo está sendo calcinado. Um paciente
descreve a si mesmo como alguém frio e seco, no entanto teme qualquer calor ou umidade,
pois será absorvido pelo fogo ou a água e, em ambos os casos, destruído.

2. Implosão

É a palavra mais forte que encontrei para a forma extrema daquilo que Winnicott chama a
invasão da realidade. Invasão não transmite, porém, todo o horror da experiência do mundo
capaz de intrometer-se e obliterar qualquer identidade, como o gás se precipita para encher
o vácuo. O indivíduo sente que, como o vácuo, está vazio. Mas esse vazio é ele próprio.
Embora de outros modos anseie para que o vazio seja preenchido, teme a possibilidade de
que isso aconteça porque passou a achar que a única coisa que ele pode ser é o medonho
nada desse mesmo vácuo. Qualquer “contato” com a realidade é sentido em si mesmo como
terrível ameaça, porque a realidade sentida naquela posição é necessariamente implosiva e
assim, do mesmo modo que o relacionamento na absorção, em si mesma uma ameaça àquilo
que a identidade do indivíduo supõe possuir.
A realidade como tal, ameaçando absorção ou implosão, é a perseguidora.
De fato, encontramo-nos todos a apenas dois ou três graus de distância de
experiências dessa ordem. Mesmo uma ligeira febre pode fazer com que o mundo inteiro
assuma aspecto ameaçador, persecutório.

3. Petrificação e despersonalização

Ao usar o termo “petrificação” pode-se explorar diversos significados inerentes à palavra:


1. Uma determinada forma de terror, pela qual a pessoa se torna petrificada, isto é,
transforma-se em pedra.
2. O temor de que isso aconteça, isto é, o temor da possibilidade de se transformar,
ou ser transformado, de pessoa viva em algo morto, numa pedra, num robô, num autômato,
sem autonomia pessoal de ação, um objeto sem subjetividade.
3. O ato “mágico” por meio do qual pode-se tentar transformar alguém em pedra,
“petrificando-o” e, por extensão, o ato pelo qual se nega a autonomia do outro, ignora-se
seus sentimentos, olha-se a pessoa como um objeto, mata-se sua vida. Neste sentido, talvez
seja melhor dizer que ela é despersonalizada, ou anulada, pois não é tratada como uma
pessoa, um livre agente, mas como um objeto.
Despersonalização é uma técnica universalmente utilizada como meio de lidar com
o outro quando ele se torna demasiado cansativo ou perturbador. A pessoa não se permite
reagir aos sentimentos do outro e talvez esteja disposta a considerá-lo e tratá-lo como se
não tivesse sentimentos. As pessoas aqui focalizadas inclinam-se a sentir-se mais ou menos
despersonalizadas e a despersonalizar os outros, além de constantemente temerem ser por
elas despersonalizadas. O ato de transformá-lo numa coisa é, para ela, petrificante. Sendo
tratada como “objeto”, sente que a sua subjetividade se esvai como o sangue foge do rosto.
Basicamente exige constante confirmação dos outros de que possui sua própria existência
como pessoa.
Uma despersonalização parcial dos outros é praticada em ampla escala na vida diária
e considerada normal, senão altamente desejável. A maioria dos relacionamentos baseia-se
numa tendência parcial à despersonalização na medida em que se trata o outro não em
termos da consciência de quem, ou o que, ele possa ser em si mesmo, mas virtualmente
como um andróide representando um papel ou engrenagem numa grande máquina, onde
talvez se esteja também representando outro papel.
É costumeiro cultivar, se não a realidade, pelo menos a ilusão de existir uma esfera
limitada de vida livre dessa desumanização. Contudo, é possível que exato nesta esfera
experimente-se um perigo maior e a pessoa ontologicamente insegura sinta o risco de forma
altamente exagerada.
O risco consiste no seguinte: se a pessoa sente a outra como um livre agente fica
aberta à possibilidade de sentir a si mesma como um objeto de sua experiência e, portanto,
de ver esvair-se a própria subjetividade. Fica-se ameaçado pela possibilidade de tornar-se
não mais que uma coisa no mundo do outro, sem qualquer vida própria, sem um ser pessoal.
Em termos de tal ansiedade, o próprio ato de sentir o outro como pessoa é considerado
virtualmente suicida. Sartre discute brilhantemente esta experiência na III parte de Being
and Nothingness.
Em princípio, a questão é honesta. Cada qual pode tornar-se mais vital, sentir o
próprio ser realçado pelo outro, ou pode sentir que ele nos mata e empobrece. A pessoa
talvez pressinta que qualquer possível relacionamento com o outro terá as últimas
conseqüências. Qualquer um torna-se então uma ameaça ao seu “self” (sua capacidade de
agir com autonomia), não por causa do que ele ou ela faça ou deixe de fazer
especificamente, mas em razão de sua própria existência.
Alguns dos pontos acima mencionados são ilustrados pela vida de James, químico
de vinte e oito anos de idade.
A primeira queixa que fez foi de não poder ser uma “pessoa”. Não possuía um “self”.
“Não passo de uma reação às outras pessoas, não tenho identidade própria”. (Teremos
ocasião de descrever com detalhes a sensação de não ser a sua verdadeira identidade, de
viver um falso self (Capítulos V, VI). Sentia que se estava tornando cada vez mais “uma
pessoa mítica”. Sentia-se sem peso, sem substância própria. “Sou apenas uma rolha
flutuando no oceano”.
Preocupava-se muito por não se ter tornado uma pessoa, censurando a mãe pelo
fracasso. “Eu não passava de um emblema para ela. Jamais reconheceu a minha identidade.
Em contraste com o seu amesquinhamento e incerteza a respeito de si mesmo estava sempre
a pique de ser dominado e esmagado pela formidável realidade contida em outras pessoas.
Contrastando com o seu pouco peso, incerteza e insubstancialidade, elas eram sólidas,
decididas, enfáticas e substanciais. Achava que em todas as questões importantes os outros
eram mais “amplos” que ele.
Simultaneamente, na prática não se deixava assustar com facilidade. Usava de duas
principais manobras para preservar a segurança. Uma delas era uma concordância aparente
com o outro (cap. VII). A segunda era uma cabeça de Medusa intelectual que ele voltava
contra o outro. Ambas as manobras reunidas salvaguardavam sua subjetividade, que nunca
precisava trair abertamente e que assim não encontrava direta e imediatamente expressão
de si mesma. Sendo secreta estava segura. Ambas as técnicas reunidas destinavam-se a
evitar os perigos de ser absorvido e despersonalizado.
Com esse comportamento exterior ele adiava o perigo a que estava perpetuamente
sujeito, isto é, o de tornar-se o objeto de alguém, fingindo não passar de uma rolha. (Afinal,
num oceano, seria possível estar mais seguro?). Ao mesmo tempo, contudo, transformava
a outra pessoa numa coisa aos próprios olhos, anulando assim por magia qualquer perigo
para si mesmo e secretamente desarmando de maneira total o inimigo. Destruindo, aos seus
próprios olhos, o outro como pessoa roubava-lhe o poder de aniquilá-lo. Esvaziando-o de
vida, isto é, vendo-o como uma peça de maquinaria em lugar de um ser humano, anulava o
risco de que essa vida o invadisse, mergulhando no seu vazio, ou o transformasse num
simples apêndice.
Esse homem era casado com uma mulher de grande vivacidade, espirituosa, de
personalidade dominadora e mentalidade própria e com ela mantinha um relacionamento
paradoxal em que, num sentido ficava totalmente só e isolado e, no outro, tornava-se quase
um parasita. Sonhava, por exemplo, que era um molusco preso ao corpo de sua mulher.
Exatamente por sonhar assim experimentava maior necessidade de mantê-la à
distância, vendo-a somente como uma máquina. Descrevia seu riso, sua ira, sua tristeza com
precisão “clínica”, chegando a ponto de referir-se a ela com “it” (pronome pessoal neutro,
em inglês), prática de efeito arrepiante. “Aquilo então começou a rir”. Ela era “aquilo”,
porque tudo o que fazia era previsível, era uma reação determinada. Por exemplo, ele
contava a ela (it) uma piada comum, engraçada, e quando ela (it) ria, isso indicava possuir
natureza inteiramente “condicionada”, mecânica, que ele via nos mesmos termos que certas
teorias psiquiátricas usam para interpretar todas as ações humanas.
Fiquei a princípio agradavelmente surpreendido com sua aparente capacidade para
rejeitar e recusar o que eu dizia, assim como para concordar comigo. Isto parecia indicar
que ele possuía mais mentalidade própria do que talvez soubesse e não se assustava em
exibir certa medida de autonomia. Contudo, tornou-se óbvio que essa aparente capacidade
para agir como pessoa autônoma diante de mim era devida à manobra secreta de considerar-
me não como um ser humano vivo, uma pessoa com os meus próprios direitos e minha
própria self hood, mas como uma espécie de robô-intérprete, em que ele introduzia
informações e, após uma rápida computação, apresentava-lhe uma mensagem verbal. Com
esta secreta visão de mim como uma coisa, ele podia surgir como uma “pessoa”. O que não
podia manter era um relacionamento de pessoa-para-pessoa, vivido como tal.
Sonhos nos quais se manifesta uma ou outra das formas de temor acima mencionadas
são comuns em tais pessoas. Esses sonhos não constituem variações do medo de ser
devorado que ocorre nos ontologicamente seguros. Ser devorado não significa
necessariamente perder a própria identidade. Jonas era bem ele próprio mesmo no interior
da baleia. Poucos pesadelos chegam ao ponto de despertar ansiedade em relação à perda de
identidade, em geral porque a maioria, mesmo em sonhos, enfrenta quaisquer perigos como
pessoas que talvez sejam atacadas ou mutiladas, mas cujo âmago existencial básico não está
ameaçado. No pesadelo clássico, o sonhador desperta aterrorizado. Mas esse terror não é o
medo de perder o “self”. Assim, um paciente pode sonhar um porco bem gordo, sentado
sobre seu peito, ameaçando sufocá-lo e desperta aterrorizado. No pior dos casos, neste
pesadelo é ameaçado de sufocação, mas não da dissolução do próprio ser.
O método defensivo de transformar a figura-materna-ameaçadora, ou figura-do-seio,
numa coisa ocorre nos sonhos de doentes. Um deles sonhava repetidamente com um
pequeno triângulo negro que, partindo de um ângulo do quarto, tornava-se cada vez maior,
até parecer absorvê-lo. Nesse ponto acordava profundamente aterrorizado.
Tratava-se de um rapaz psicopata, que viveu durante vários meses com minha
família e a quem pude conhecer muito bem. Existia uma única situação, segundo pude
julgar, à qual ele se entregava sem ansiedade de não poder recuperar-se novamente: ouvir
jazz.
O fato de que mesmo em sonho a figura-do-seio tenha que ser tão despersonalizada
dá a medida de seu perigo potencial para o self, presumivelmente com base em suas
assustadoras personalizações anteriores e na falha de um processo normal de
despersonalização.
Medard Boss (1957) aponta exemplos de diversos sonhos que anunciam a psicose.
Num deles o sonhador é rodeado de fogo:
“Uma mulher com menos de trinta anos, em época em que ainda se sentia
completamente sã, sonhou que se estava incendiando numa estrebaria. Rodeava-a
o fogo, formando uma camada cada vez mais espessa de lava. Metade fora, metade
dentro de seu próprio corpo via que as chamas estavam sendo lentamente abafadas
por essa camada. De repente viu-se totalmente fora do incêndio e, enlouquecida,
batia nas chamas com um bastão, a fim de quebrar a camada de lava e permitir que
entrasse um pouco de ar. Mas num instante cansou-se e lentamente ela (o fogo)
extinguiu-se. Quatro dias após este sonho manifestou-se a esquizofrenia aguda. Nos
detalhes do sonho, previra exatamente o curso de sua psicose. De fato, a princípio
tornou-se rígida, enquistada. Seis semanas mais tarde novamente defendeu-se com
todas as forças contra a extinção do fogo de sua vida, até finalmente apagar-se de
todo, espiritual e mentalmente. Daí em diante, há anos, é como uma cratera extinta
(p. 162).
No segundo exemplo, a petrificação dos outros ocorre antes da petrificação do
sonhador:
“... uma jovem de vinte e cinco anos sonhou que preparara o jantar para sua família
de cinco pessoas. Depois de servi-lo, passou a chamar os pais, irmãs e irmãos para
jantar. Ninguém respondeu. Sua voz voltou-lhe como o eco de uma profunda
caverna. Achando estranho o súbito vazio da casa correu ao primeiro andar para
procurar a família. No primeiro quarto encontrou as duas irmãs sentadas em duas
camas. Apesar de seus impacientes chamados permaneceram numa posição artifi-
cialmente rígida e nem sequer responderam. Súbito notou que eram estátuas de
pedra. Fugindo aterrorizada entrou no quarto da mãe. Também petrificada, esta se
encontrava inerte numa poltrona, olhando o vácuo, pupilas fixas. A moça fugiu para
o quarto do pai, que se encontrava no meio da peça. Desesperada, correu para ele,
em busca de proteção rodeando-lhe o pescoço com os braços. Mas também ele fora
transformado em pedra e para seu profundo terror desfez-se em areia quando ela o
abraçou. Despertou completamente aterrorizada e tão abalada pela experiência do
sonho que ficou imobilizada por alguns minutos. Esse mesmo sonho terrível
repetiu-se em quatro sucessivas ocasiões, no espaço de alguns dias. Na época, ela
era a própria imagem da saúde física e mental. Os pais costumavam chamá-la o raio
de sol da família. Dez dias após a quarta repetição do sonho, a paciente manifestou
esquizofrenia aguda, com sérios sintomas catatônicos. Caiu num estado
extremamente similar à petrificação física de sua família, que vira em sonho, e
passou a ser dominada, quando desperta, pelos padrões de comportamento que em
sonhos observara nas outras pessoas” (pp. 162-3).
Parece ser lei geral que em determinado ponto os perigos mais temidos podem ser
conjurados para adiar sua ocorrência na vida real. Assim, renunciar à própria autonomia
pode tornar-se o meio de secretamente salvaguardá-la; fingir ignorância, ou morte torna-se
um meio de preservar a própria vida (ver Oberndorf, 1950). Transformar-se em pedra torna-
se um meio de não ser petrificado por outra pessoa. “Sê rijo”, exorta Nietzsche. Num sentido
em que o próprio Nietzsche não atinou, creio, ser duro como pedra é adiar o perigo de ser
transformado em algo morto por outra pessoa. Compreender-se totalmente (absorver-se a si
mesmo) é uma defesa contra o risco de ser atraído para o redemoinho que constitui o modo
de ser visto por outra pessoa. Consumir-se em seu próprio amor impede a possibilidade de
ser consumido por outrem.
Parece também que o método preferido de ataque ao outro baseia-se no mesmo
princípio que o ataque sentido implicitamente no relacionamento do outro com a pessoa.
Assim, o homem apavorado com a ideia de ver sua própria subjetividade afogada, invadida
ou congelada pelo outro, com frequência tenta afogar, invadir ou matar a subjetividade de
outrem. O processo é um círculo vicioso. Quanto mais se tenta preservar a própria
autonomia e identidade anulando a individualidade especificamente humana do outro, tanto
mais se julga necessário continuar a fazê-lo porque a cada negativa do status ontológico do
outro, a própria segurança ontológica diminui, a ameaça ao self torna-se mais potente e,
portanto, precisa ser mais desesperadamente negada.
Nesta lesão no senso de autonomia pessoal existe um fracasso em manter o senso de
si mesmo como pessoa diante do outro, como também diante de si próprio. Fracasso em
manter o senso de seu próprio ser sem a presença do outro. É um fracasso estar sozinho,
um fracasso existir sozinho. Conforme disse James. “Os outros proporcionam a minha
existência”. Isto parece estar em completa contradição com o mencionado pavor de que
outras pessoas lhe roubem a existência. Mas, por mais contraditórias ou absurdas que
pareçam, estas duas atitudes nele coexistem e são na verdade inteiramente características
desse tipo de pessoa.
A capacidade de sentir-se autônomo significa que a pessoa compreende de fato ser
independente de todos os demais. Seja qual for o grau de alegria ou sofrimento que partilho
com alguém, ele não é eu, e eu não sou ele. Por mais triste ou solitário que se esteja pode-
se existir sozinho. O fato de outra pessoa, em sua própria realidade, não ser eu, é contraposto
ao fato igualmente real de que minha afeição por ela é parte de mim. Se ele morrer ou se
afastar, desaparece, mas persiste a minha amizade. Em última análise, não posso morrer por
outra pessoa, nem ela pode morrer a minha morte. Por isso, comenta Sartre neste
pensamento de Heidegger, ela não pode amar por mim, nem tomar as minhas decisões, e eu
não posso fazer o mesmo por ela. Em suma, ela não pode ser eu, e vice-versa.
Se o indivíduo não se sente autônomo, isto significa que não pode vivenciar à
maneira comum nem sua separação, nem seu relacionamento. A falta do senso de autonomia
sugere que a pessoa sente estar ligada ao outro, ou o outro ligado a ela, num sentido que
transgride as possibilidades atuais, dentro da estrutura do relacionamento humano. Significa
que o sentimento de encontrar-se numa posição de dependência ontológica do outro (isto é,
dependente do outro em relação à sua própria existência) é substituído pelo senso de
relacionamento e ligação a ele, baseado em genuína reciprocidade. Total desligamento e
isolamento são considerados a única alternativa a uma ligação vampiresca, na qual o próprio
sangue do outro é necessário à sobrevivência, sendo ao mesmo tempo uma ameaça a esta
sobrevivência. O indivíduo oscila perpétuamente entre os dois extremos, ambos igualmente
impraticáveis, e passa a viver como um daqueles brinquedos mecânicos que possuem um
tropismo positivo a impeli-los em direção a um estímulo, até alcançarem um ponto
específico, quando um tropismo negativo imbutido os orienta, até que o positivo reassume
o comando e a oscilação se repete ad infinitum.
Outras pessoas eram necessárias a sua existência, disse James. Outro paciente, com
o mesmo dilema básico, portou-se da seguinte maneira: isolou-se do mundo durante meses,
vivendo sozinho num quarto, mantendo-se frugalmente graças a algumas economias,
devaneando. Mas assim agindo começou a sentir que morria interiormente, tornava-se cada
vez mais vazio, observando “um progressivo empobrecimento de meu modo de viver”.
Grande parte de seu orgulho e auto-estima estavam empenhados em viver dependendo
apenas de si mesmo, mas com a evolução do seu estado de despersonalização, quis penetrar
na vida social por um rápido período, a fim de tomar “uma dose” de outras pessoas, “não
dose excessiva”. Era como um alcoólotra que se entrega a súbitas bebedeiras entre períodos
de abstinência, só que neste caso o vício, que o assustava e envergonhava como o de
qualquer alcoólatra ou viciado em drogas, relacionava-se com as outras pessoas. Dentro em
pouco principiou a sentir-se ameaçado de envolvimento ou prisão no círculo que penetrara
e quis recuar para o seu isolamento, numa confusão de medo, impotência, desconfiança e
vergonha.
Alguns dos pontos acima discutidos são ilustrados por dois casos:

CASO 1. Ansiedade por sentir-se sozinho

O problema da sra. R. era medo de estar na rua (agorafobia). Estudando-se mais de perto o
caso, tornou-se evidente que a ansiedade surgia quando se sentia sozinha na rua, ou em
qualquer outro lugar. Podia estar só, contanto que não se sentisse realmente sozinha.
Em resumo, sua história era a seguinte: fora filha única e criança solitária. Não
houvera negligência ou hostilidade declarada por parte da família. Sentia, porém, que seus
pais estavam sempre demasiado absorvidos um no outro para lhe prestarem verdadeira
atenção. Criou-se desejosa de preencher esse vácuo na sua vida, mas sem conseguir tornar-
se auto-suficiente, ou absorver-se em seu próprio mundo. Ansiava ser importante e rele-
vante para outra pessoa. Era preciso que houvesse sempre outra pessoa. Preferia ser amada
e admirada, mas, caso não fosse, ser odiada era muito preferível a ser ignorada. Queria ser
importante para alguém, fosse qual fosse a capacidade, em contraste com sua lembrança de
si mesma quando criança, isto é, a de alguém que não tinha muita importância para os pais,
que nem a amavam, nem odiavam, nem a admiravam, nem se envergonhavam muito dela.
Por conseguinte olhava-se ao espelho, mas não conseguia convencer-se de ser
alguém. E nunca conseguia vencer o medo quando não se via acompanhada.
Cresceu e tornou-se uma jovem atraente, casando aos dezessete anos com o primeiro
rapaz que reparou nos seus atrativos. Caracteristicamente sofreu a impressão de que os pais
não haviam notado qualquer alteração na filha, até que esta anunciou seu noivado. Viveu
triunfante e autoconfiante ao calor das atenções do marido, mas este era oficial do exército
e em breve foi enviado para o exterior. Ela não pode acompanhá-lo e caiu em severo pânico
por causa da separação. Observemos que sua reação à ausência do marido não foi depressão
ou tristeza, na qual definhasse ansiando por ele. Era pânico (sugiro eu) por causa da
dissolução de algo no seu íntimo, que devia a existência à presença do marido e as suas
contínuas atenções. Era uma flor que murchou na ausência de um dia de chuva. Contudo, o
socorro veio através de uma súbita doença da mãe. Recebeu do pai um urgente pedido de
ajuda nos cuidados à doente. No decorrer do ano em que a mãe esteve de cama foi como
nunca ela própria. Tornou-se o eixo ao redor do qual girava a casa. Não ocorreu o menor
traço de pânico até que a mãe morreu e sobreveio a perspectiva de deixar a casa, onde
finalmente passava a significar tanta coisa, para reunir-se ao marido. A experiência do ano
anterior fizera com que, pela primeira vez na vida, se sentisse filha de seus pais. Ao lado
disso, ser esposa tornara-se, de certo modo, supérfluo.
De novo observa-se a ausência de dor pela morte da mãe. Nessa época principiou a
considerar as chances de ficar sozinha no mundo. A mãe morrera; restava o pai e talvez o
marido: “Além disso — nada”. Isto não a deprimia, assustava.
Reuniu-se então ao marido no estrangeiro e levou uma vida divertida durante alguns
anos. Ansiava por qualquer atenção que ele pudesse dispensar-lhe, mas esta foi diminuindo
progressivamente. Sentia-se inquieta e insatisfeita. O casamento desfez-se e ela voltou a
morar em Londres, no apartamento do pai. Tornou-se então amante e modelo de um escultor
e assim viveu por vários anos. Encontrei-a pela primeira vez quando estava com vinte e oito
anos.
Referindo-se à rua dizia: “Na rua, as pessoas vêm e vão, ocupadas com seus
problemas. É raro encontrar alguém que nos reconheça. E quando o fazem, limitam-se a um
cumprimento de cabeça e continuam seu caminho. No máximo entretém alguns minutos de
conversa. Ninguém sabe quem você é. Cada qual está absorvido em si mesmo. Ninguém se
importa com você”. E deu exemplo de gente que desmaia e é olhada com indiferença pelos
demais. “Ninguém se importa”. Era neste quadro e com tais considerações em mente que
ela sentia ansiedade.
Esta ansiedade era resultado de sentir-se sozinha na rua, ou antes, sentir-se por conta
própria. Se saísse com alguém, ou encontrasse uma pessoa que a conhecesse de perto, não
experimentava qualquer ansiedade.
No apartamento do pai ficava com frequência sozinha, mas ali era diferente. Nunca
se sentia realmente por conta própria. Preparava o café da manhã para ele, arrumava as
camas, lavava a roupa, trabalho que prolongava o mais possível. O meio do dia arrastava-
se, porém ela não se importava muito. “Tudo me era familiar”. Lá estava a cadeira do pai,
ao lado do porta-cachimbos. Um retrato da mãe olhava para ela, lá do alto. Era como se
todos esses objetos familiares iluminassem, de certo modo, a casa com a presença das pes-
soas que os possuíam e utilizavam-se deles, ou de cuja vida faziam parte. Assim, embora
estivesse sozinha em casa, como que por magia tinha sempre alguém ao seu lado. Mas a
magia desaparecia no tumulto e no anonimato das ruas.
Uma aplicação carente de sensibilidade daquilo que com frequência se supõe ser a
clássica teoria psicanalítica da histeria tentaria demonstrar que a mulher tinha uma ligação
libidinosa inconsciente com o pai, e, por conseguinte, remorso e necessidade e/ou temor do
castigo, também inconscientes. Seu fracasso em manter relacionamento libidinoso
duradouro estando longe do pai poderia apoiar a primeira ideia, sobretudo unida a sua
decisão de viver com ele e assumir, por assim dizer, o lugar da mãe, e ao fato de passar a
maior parte do dia, mulher de vinte e oito anos, pensando nele. Sua dedicação à mãe no
decorrer da última doença seria em parte consequência da culpa inconsciente por sua
inconsciente ambivalência diante da mãe, e a ansiedade por causa da morte seria um desejo
inconsciente de que essa morte se concretizasse. E assim por diante.7
Contudo, a questão central ou axial da existência da paciente não será encontrada no
seu “inconsciente”; achava-se bem à vista, tanto para ela como para nós (embora isto não
queira dizer que a paciente não ignorasse muita coisa a respeito de si mesma).
O ponto axial de toda a sua vida era a falta de autonomia ontológica. Caso não se
encontrasse na presença de outra pessoa que a conhecesse, ou se não conseguisse evocar a
presença dessa pessoa em sua ausência, esvaía-se seu senso da própria identidade. Era como
Tinker Bell. Para existir precisava apenas de alguém que acreditasse em sua existência.
Como era necessário que seu amante fosse um escultor e que ela fosse seu modelo! Quão
inevitável, dadas as premissas básicas de sua vida, que quando sua existência não fosse
reconhecida ela ficasse penetrada de ansiedade. Para ela, esse era percipi; ser vista, mas não
como uma transeunte anônima, ou conhecida casual. Era exatamente essa forma de ver que
a petrificava. Caso fosse vista anonimamente, como alguém que não tivesse nenhuma
importância especial, ou como uma coisa, então passava a não ser ninguém em particular.
Tornava-se como era vista. Se não houvesse ninguém para vê-la naquele momento
precisava conjurar alguém (pai, mãe, marido, amante, em diferentes momentos de sua vida)
para quem tivesse importância, para quem fosse uma pessoa, e imaginar-se na presença dele
ou dela. Se a pessoa de quem dependia se afastasse ou morresse, o que sentia não era dor e
sim pânico.
Não se pode transpor seu problema central para “o inconsciente”. Mesmo que se
descubra que ela entretinha a fantasia inconsciente de ser prostituta, isso não explica sua
ansiedade ao caminhar na rua, ou a sua preocupação com mulheres que caem na via pública
e não são socorridas. A fantasia inconsciente deve, pelo contrário, ser explicada e
compreendida em termos da questão central que envolvia seu self, ser-para-ela-mesma. O
temor de estar sozinha não era uma “defesa” contra fantasias incestuosas, ou masturbação.
Ela tinha fantasias incestuosas. Tais fantasias eram uma defesa contra o temor de estar
sozinha, assim como toda a sua “fixação” no papel de filha. Era tudo um meio de vencer a
ansiedade por estar só. As fantasias inconscientes da paciente teriam significado totalmente
diverso caso sua posição existencial básica fosse de molde a proporcionar-lhe um ponto de
partida interior que pudesse ser abandonado, por assim dizer, na busca da gratificação.
Sendo o caso como era, sua vida sexual e fantasias eram esforços, não para obter
primordialmente gratificação, mas para buscar antes de mais nada a segurança ontológica.

7
Consultar Segal (1954) para contribuições extremamente valiosas à formação de sintomas aparentemente “histéricos”.
No ato do amor obtinha uma ilusão desta segurança, e baseada em tal ilusão a gratificação
tornava-se possível.
Seria um profundo erro chamar narcisista a esta mulher, em qualquer sentido
adequado do termo. Seria engano traduzir o problema em fases de evolução psicossexual,
oral, anal, genital. Agarrava-se à sexualidade como à tábua de salvação tão logo se tornara
“maior”. Não era frígida. O orgasmo poderia ser fisicamente gratificante se ela se sentisse
temporariamente segura no sentido ontológico. No ato sexual com alguém que a amasse
(era capaz de crer em ser amada por alguém) alcançava talvez seus melhores momentos.
Mas eram de curta duração. Não podia ficar sozinha, ou permitir que seu amante ficasse
sozinho com ela.
A necessidade de lhe prestarem atenção poderia facilitar a aplicação de um novo
clichê: ela era exibicionista. Repetimos: o termo só é válido quando entendido
existencialmente. Assim, e isto será discutido eventualmente com maiores detalhes, ela “se
exibia” embora nunca “se revelasse”. Isto é, exibia-se conservando-se fechada (inibida).
Estava, portanto, sempre sozinha e solitária, embora superficialmente não tivesse
dificuldades em estar com outras pessoas. Mas é claro que sua compreensão da existência
autônoma de outras pessoas era na verdade tão tênue quanto a fé em sua própria autonomia.
Se não estivessem presentes deixavam de existir para ela. O orgasmo era um meio de possuir
a si mesma, abraçando o homem que a possuía. Mas quando sozinha não podia ser ela
própria, de modo que nunca era verdadeiramente ela mesma.

Caso 2

Um curioso fenômeno da personalidade, que vem sendo observado há séculos, mas não foi
ainda plenamente explicado é aquele em que o indivíduo parece ser o veículo de uma
personalidade que não é a sua. A personalidade de outra pessoa parece “possuí-lo” e encon-
trar expressão através de suas palavras e ações, enquanto que a personalidade do próprio
indivíduo “perde-se”, ou “desaparece” temporariamente. Isto ocorre em diferentes graus de
malignidade. Parece haver toda uma escala do mesmo processo básico, que vai da simples
e benigna observação no sentido de que “fulano parece com o pai”, ou “ela tem o gênio da
mãe”, até a extrema aflição da pessoa que se vê sob a compulsão de assumir as
características de uma personalidade que talvez odeie e/ou sinta como totalmente estranha
à sua.
Este fenômeno é uma das mais importante causas de rompimento no senso de
identidade, quando ocorre sem ser desejado e compulsivamente. O temor de que isto ocorra
é um fato no medo da absorção e implosão. O indivíduo talvez tema gostar de alguém, pois
julga estar sob a compulsão de tornar-se como a pessoa de quem gosta. Conforme procurarei
demonstrar mais tarde, este é um dos motivos de retraimento esquizofrênico.
O modo pelo qual o self e a personalidade do indivíduo se modificam
profundamente, ao ponto de ameaçar com a perda de identidade e do senso da realidade
pela absorção nesta subidentidade alheia, é ilustrado pelo seguinte caso:
A sra. D., mulher de quarenta anos, apresentou como queixa inicial vago mas intenso
temor. Disse ter medo de tudo, “até do firmamento”. Queixou-se também de uma
permanente insatisfação, de acessos de ira sem motivo contra o marido e em particular de
“falta de senso de responsabilidade”. Seu temor era “como se alguém tentasse emergir de
dentro de mim”. Temia parecer-se com a mãe, a quem odiava. O que ela chamava
“irresponsabilidade” era a sensação de perplexidade e confusão ligada ao fato de que nada
que fizesse parecia agradar aos pais. Se fizesse alguma coisa e dissessem que estava errada,
faria outra só para descobrir que continuavam com a mesma opinião. Não conseguia des-
cobrir, conforme dizia, “o que queriam que eu fosse”. Censurava os pais acima de tudo por
não lhe terem dado um meio de saber quem ou o que ela era na verdade, ou o que deveria
tornar-se. Não conseguia ser boa, nem má “com certeza” porque os pais eram, ou ela julgava
que fossem, completamente imprevisíveis e indignos de confiança nas manifestações de
amor ou ódio, aprovação ou desaprovação. Em retrospecto concluiu que a odiavam, mas na
época, declarou, estava demasiado confusa e ansiosa em descobrir o que esperavam que ela
fosse para ser capaz de odiá-los e, pior ainda, amá-los. Disse então estar à procura de
“consolo”. Buscava em mim algo que lhe indicasse o caminho que deveria seguir. E achou
minha atitude não-diretiva particularmente difícil de tolerar, já que parecia ser uma nítida
repetição da atitude paterna: “Não faça perguntas e não ouvirá mentiras”. Durante certo
período esteve sujeita a um raciocínio compulsivo, no qual via-se obrigada a fazer perguntas
do tipo: “Para que serve isto?”, ou “Por quê?” e obter uma resposta. Interpretava-o como
um esforço para obter consolo de suas próprias idéias, já que não o obtinha de ninguém.
Começou a sentir-se intensamente deprimida e a fazer numerosas queixas relativas aos seus
sentimentos, dizendo que eram muito infantis. Dizia sempre que tinha muita pena de si
mesma.
Parece-me, contudo, que ela não tinha realmente pena de seu verdadeiro self. Parecia
muito mais uma mãe rabujenta queixando-se de um filho difícil. De fato, a mãe parecia estar
o tempo todo “manifestando-se” nela, queixando-se de sua infantilidade. Isto ocorria não
só em relação às queixas que “ela” fazia de si mesma, como também em outros sentidos.
Por exemplo: como a mãe, vivia gritando com o marido e o filho; como a mãe8 odiava a
todo mundo; e, como a mãe, estava sempre chorando. Na verdade, sua vida era insuportável
por nunca conseguir ser ela própria e sim a mãe. Sabia, porém, que quando se sentia
solitária, perdida, assustada e confusa era mais ela própria. Sabia também que se tornava
cúmplice da ira, do ódio, dos gritos, das lágrimas ou da truculência porque se procurasse
ser assim (isto é, ser sua mãe), deixava de sentir-se assustada (ao preço, é verdade, de não
ser mais ela própria). Contudo, o resultado da manobra era sentir-se opressa, terminada a
tempestade, por um senso de futilidade (por não ser ela mesma), pelo ódio da pessoa que
ela fora (sua mãe) e de si mesma, por sua duplicidade. Após tornar-se cônscia desta falsa
maneira de dominar a ansiedade ressentida ao ser ela mesma precisou, até certo ponto,
decidir se evitar a ansiedade evitando ser ela própria seria cura pior que a doença. A
frustração que sentia comigo e que provocava intenso ódio por mim não podia ser
totalmente explicada pela frustração de impulsos libidinosos ou agressivos na transferência;
mas era antes o que se poderia chamar frustração existencial, resultante do fato de que eu,
recusando-lhe o “consolo” que em mim buscava, recusando dizer-lhe o que ela deveria ser,
impunha-lhe a necessidade de tomar sua própria decisão com respeito à pessoa que se
tornaria. Sua sensação de lhe ter sido negado um direito de nascença porque os pais não
haviam assumido sua responsabilidade dando-lhe uma definição de si mesma que agiria

8
Isto é, como sua noção do que era a mãe. Nunca cheguei a conhecer sua mãe e não tenho a menor ideia se as fantasias em relação à figura
materna tinham ou não qualquer semelhança com a pessoa verdadeira.
como ponto de partida na sua vida, foi intensificada por minha recusa em oferecer-lhe “con-
solo”. Mas somente recusando-o seria possível proporcionar-lhe um clima em que ela
própria assumiria a responsabilidade.
Neste sentido, portanto, a tarefa da psicoterapia era fazer, na expressão de Jasper,
um apelo à liberdade da paciente. Em psicoterapia, grande parte do talento reside na
capacidade de assim agir com eficácia.
PARTE – II

4 - O Self Encarnado e Desencarnado


Procurei até então caracterizar algumas das ansiedades que constituem aspectos da
insegurança ontológica fundamental. Tais ansiedades emergem neste determinado quadro
existencial e são função desse quadro. Quando uma pessoa está segura de seu próprio ser,
tais ansiedades não surgem com a mesma força e persistência, já que não há ocasião para
que assim surjam e persistam.
Na ausência desta segurança básica a vida precisa, ainda assim, ser vivida. A questão
que se deve tentar resolver agora é que forma de relacionamento consigo mesmo vive a
pessoa ontologicamente insegura. Tentarei demonstrar como tais pessoas parecem não
possuir o senso daquela unidade básica que resiste através dos mais intensos conflitos
interiores, mas sentem-se a si mesmas primordialmente divididas em mente e corpo. Em
geral identificam-se mais com a “mente”.
É com certas consequências desta maneira básica do ser organizar-se dentro de si
mesmo que se ocupará sobretudo o restante desta obra. Este split será visto como uma
tentativa de lidar com a insegurança básica subjacente. Em alguns casos será um meio de
viver com ela de maneira eficaz, ou mesmo uma tentativa de transcendê-la; mas é também
passível de perpetuar as ansiedades contra as quais constitui de certo modo uma defesa,
podendo também proporcionar um ponto de partida para uma evolução que termine em
psicose. Esta última possibilidade está sempre presente se o indivíduo começa a identificar-
se demasiado exclusivamente com a parte que ele sente desencarnada. Neste capítulo farei,
em primeiro lugar, um esquema comparativo, bastante generalizado, do self encarnado e
desencarnado; nos capítulos subsequentes, abandonarei todas as possibilidades desta
posição que não levem pessoa alguma ao psiquiatra, passando com certa minúcia às
consequências que resultem em grave rompimento do ser como um todo, podendo conduzir,
portanto, à psicose.

O SELF ENCARNADO E DESENCARNADO

Todos, até a pessoa mais desencarnada, sentem-se inextrincavelmente ligados ao e em seu


corpo. Em circunstâncias comuns, a pessoa sente que o próprio corpo está vivo, é real,
substancial e sente-se a si mesma viva, real e substancial. A maioria das pessoas julga que
começa quando seu corpo nasce e que terminará quando o corpo morrer. Podemos dizer que
se sentem encarnadas.
Mas às vezes isso não ocorre. À parte as pessoas “comuns”, que em momentos de
tensão se dissociam parcialmente do próprio corpo, existem indivíduos que não passam a
vida absorvidos pelo corpo, mas sentem-se e sempre se sentiram dele em parte desligados.
De uma pessoa assim é possível dizer que nunca se tornou totalmente encarnada, ou talvez
ela própria refira-se a sua pessoa como alguém mais ou menos desencarnado.
Temos aqui uma diferença básica na posição do self em relação à vida. Se a
concretização ou ímaterialização fossem jamais completas num sentido ou no outro
teríamos duas diferentes maneiras de ser humano. A maioria das pessoas talvez considere o
primeiro normal e sadio e o segundo anormal e patológico. No decorrer deste estudo tal
avaliação é de todo irrelevante. De determinados pontos de vista pode-se considerar a encar-
nação como desejável. É possível sugerir, de outro ponto de vista, que o indivíduo tente
desembaraçar-se de seu corpo, alcançando, portanto, um desejável estado de espiritualidade
desencarnada.1
Temos então dois quadros existenciais básicos. A diferença de quadro não impede
que todos as questões básicas, boas e más, a vida e a morte, identidade, realidade e
irrealidade surjam tanto num contexto como no outro, mas os contextos radicalmente
diversos em que ocorrem determinam as maneiras básicas em que são vividas. Estas duas
possibilidades extremas precisam ser examinadas em termos da maneira pela qual o indi-
víduo, cuja posição se aproxima de uma ou outra dessas possibilidades, viveria seu
relacionamento com outras pessoas e o mundo.
A pessoa encarnada tem a sensação de ser corpo, sangue e ossos, biologicamente
viva e real: sabe que é substancial. Na medida em que se encontra totalmente “em” seu
corpo é provável que possua o senso de continuidade pessoal no tempo, que se sinta sujeita
aos perigos que ameaçam o corpo — ataque, mutilação, doença, decrepitude e morte. Está
envolvida em desejos físicos e nas gratificações e frustrações corpóreas. O indivíduo tem
assim como ponto de partida uma experiência de seu corpo, baseada na qual poderá ser uma
pessoa junto de outros seres humanos.
Contudo, embora seu ser não esteja dividido em si mesmo como “mente” e como
corpo, a pessoa poderá, ainda assim, estar dividida contra si mesma de diversas maneiras.
Em algumas, sua posição é mais precária que a do indivíduo de certo modo divorciado de
seu corpo, já que o primeiro indivíduo carece daquele sentido de imunidade aos danos
físicos sentido às vezes pela pessoa parcialmente encarnada.
Por exemplo: um homem que estivera num hospital para doentes mentais durante
dois prolongados períodos, vítima de breakdowns esquizofrênicos, contou-me de suas
reações ao ser atacado num beco, à noite, numa época em que estava totalmente são. Ao
penetrar no beco, dois homens aproximaram-se dele, vindos da direção oposta. Quando
emparelharam, súbito um deles agrediu-o com uma correia. O golpe não foi bem dirigido e
tonteou-o apenas momentaneamente. Ele oscilou, mas recuperou-se o bastante para voltar
e atacar seus assaltantes, embora ele próprio estivesse desarmado; após ligeira escaramuça,
os dois fugiram.
O interessante é a maneira como o homem sentiu o incidente. Ao ser golpeado, sua
primeira reação foi de surpresa; depois, enquanto estava parcialmente tonto, pensou na
inutilidade da agressão. Não levava dinheiro consigo. Daí nada obteriam. “Só podiam me
bater, mas não me fariam verdadeiro mal”. Isto é, qualquer agressão ao seu corpo não
poderia realmente magoá-lo. Há naturalmente um sentido em que tal atitude seria o ápice

1
Bultmann, por exemplo, em seu Primitive Christianity (1956) faz uma excelente descrição do ideal gnóstico de divórcio da alma
(o verdadeiro self) e corpo. A redenção foi concebida como separação total ou dissolução de alma e corpo. E cita o seguinte
texto gnóstico: “(o corpo é) a escura prisão, a morte em vida, o cadáver dotado de sentidos, a sepultura que carregas contigo,
que transportas de um lado para outro, o ladrão companheiro que te odeia ao amar-te e te inveja ao odiar-te...” (p. 169). Para
estudos do split mente-corpo, do ponto de vista psicopatológico, consultar Clifford Scott (1949) e Winnicott (1945, 1940).
da sabedoria, como, por exemplo, quando Sócrates sustenta que não se pode fazer mal
algum a um homem bom. Neste caso, “ele” e seu “corpo” estavam dissociados. Em tal
situação sentia muito menos medo que uma pessoa comum, porque nada tinha a perder que
essencialmente lhe pertencesse. Mas, por outro lado, sua vida estava cheia de ansiedades
que não ocorrem à pessoa comum. O indivíduo encarnado, plenamente envolvido nos
desejos, necessidades e atos de seu corpo, está sujeito ao remorso e à ansiedade resultantes
de tais desejos, necessidades e ações. Está sujeito às frustrações do corpo tanto como às
suas gratificações. Estar no próprio corpo não constitui proteção contra uma possível e
arrasadora autocondenação. Estar encarnado não é, em si, segurança contra sentimentos de
impotência e inutilidade. Além do corpo precisa conhecer quem ele é. Seu corpo pode vir a
ser sentido como algo decrépito, envenenado, moribundo. Em suma, o corpo-self não é uma
fortaleza inviolável contra a corrosão das dúvidas e incertezas ontológicas: não é em si
mesmo um baluarte contra a psicose. Inversamente, o split na experiência do ser em partes
encarnadas e desencarnadas não é um índice de psicose latente, assim como a encarnação
total não é garantia de sanidade.
Embora de modo algum se conclua que o indivíduo genuinamente fundamentado em
seu corpo seja em outros sentidos unido e inteiro, isto significa que ele possui um ponto de
partida integral pelo menos a este respeito. Este ponto de partida será pré-condição para
uma hierarquia de possibilidades diversa daquela facultada à pessoa que se sente em termos
de um dualismo self-corpo.

O SELF DESENCARNADO

Nesta posição, o indivíduo sente o próprio self mais ou menos divorciado ou desligado do
corpo. O corpo é sentido mais como um objeto entre outros objetos no mundo, do que como
cerne do ser do indivíduo. Em vez de ser o âmago do verdadeiro self, o corpo é sentido
como o âmago de um falso self, que um desligado, imaterializado, “interior” e “verdadeiro”
self considera com ternura, divertimento ou ódio, conforme o caso.
Esse divórcio de self e corpo priva o self desencarnado de participação direta em
qualquer aspecto da vida do mundo percebido exclusivamente através das percepções
corpóreas, os sentimentos e movimentos (expressões, gestos, palavras, ações, etc.). O self
desencarnado, contemplando tudo o que faz o corpo, em nada se envolve diretamente. Suas
funções vêm a ser observação, controle e crítica vis-a-vis ao que o corpo sente e faz e as
operações que são em geral chamadas puramente “mentais”.
O self desencarnado torna-se hiper-consciente.
Tenta situar seus próprios imagos.
Desenvolve um relacionamento consigo mesmo e com o Corpo, que pode tornar-se
bastante complexo.
Embora numerosos os estudos sobre a psicopatologia da pessoa encarnada,
relativamente pouco se escreveu sobre aquela cujo ser está radicalmente assim dividido.
Estados temporários de dissociação entre self e corpo foram estudados, é claro, mas em
geral tais dissociações são consideradas provenientes de uma posição original, onde o self
era a princípio encarnado, tornou-se temporariamente dissociado sob stress e voltou à
posição original encarnada depois de terminada a crise.
UM CASO “FRONTEIRIÇO” — DAVID

Apresentarei David com o mínimo de comentários porque desejo que o leitor saiba com
clareza que tais pessoas e tais problemas existem na realidade, não são invenção minha.
Este caso serve também de base à grande parte da discussão geral da parte subseqüente.
David tinha dezoito anos quando me consultou. Era filho único e perdera a mãe aos
dez anos, vivendo desde então com o pai. Do colégio passara à universidade para estudar
filosofia. O pai não via sentido no filho consultar um psiquiatra, pois na sua opinião não
havia motivos para uma consulta. O professor, porém, estava preocupado com o rapaz
porque este parecia alucinado e agia de maneira estranha em diversos sentidos. Por
exemplo: assistia às aulas envolto numa capa que lhe cobria os ombros e os braços; andava
com uma bengala e toda a sua atitude parecia totalmente artificial; sua fala consistia
sobretudo em citações.
O pai pouco tinha a dizer a seu respeito. Fora sempre perfeitamente normal e julgava
que as excentricidades do filho eram simples fase de adolescência. David fora sempre um
menino muito comportado, que fazia tudo o que lhe mandavam e não dava o menor trabalho.
A mãe fora muito dedicada a ele e os dois eram inseparáveis. O menino mostrara-se “muito
corajoso” quando ela morrera e tudo fizera para ajudar ao pai. Arrumava a casa, preparava
as refeições, fazia a maior parte das compras. Assumiu o lugar da mãe, ou “parecia-se” com
ela ao ponto de revelar inclinação para bordado, tapeçaria e decoração. Tudo isso o pai
incentivava e elogiava.
O rapaz tinha uma aparência fantástica — um Kierkegaard adolescente representado
por Danny Kaye. Cabelos compridos demais, colarinho demasiado grande, calças muito
curtas, sapatos muito compridos e, além disso, a capa teatral e a bengala! Não era
simplesmente excêntrico: não pude esquivar-me à impressão de que o rapaz representava o
papel de excêntrico. O efeito geral era estudado e artificial. Mas por que alguém havia de
querer obter tal efeito?2
Era na verdade um hábil ator, pois vinha representando diversos papéis desde a
morte da mãe. Referindo-se à época anterior à morte dizia: “Fui simplesmente o que ela
queria”. Quanto ao falecimento da mãe observou: “Que me lembre fiquei antes satisfeito.
Talvez sentisse um pouco de tristeza; pelo menos gostaria de pensar que sim”. Até então
fora simplesmente o que ela queria que ele fosse. Após, não se mostrou mais fácil ser ele
próprio. Criara-se aceitando sem discussões que o que chamava “self” e “personalidade”
eram duas coisas inteiramente independentes. Jamais imaginara a sério qualquer outra
possibilidade e aceitou também sem discussões que todas as demais pessoas eram constituí-
das em linhas similares. Sua visão da natureza humana em geral, baseada na experiência de
si mesmo, dizia de todos que eram atores. É importante compreender que se tratava de uma
convicção estabelecida sobre os seres humanos que dirigiam sua vida. Isto tornou muito
fácil para ele ser qualquer coisa que a mãe quisesse, porque todas as suas ações
simplesmente pertenciam a este ou àquele dos diferentes papéis que representava. Caso se
possa dizer que pertenciam ao seu self, faziam parte apenas de um “falso self”, que agia
segundo a vontade da mãe e não a dele.

2
Lembra “Tertian”, no brilhante cento de Lionel Trilling “Of This Time, Of That Place”.
Seu self nunca se revelava diretamente em e através de suas ações. Parecia ter saído
da primeira infância com o seu “próprio self” de um lado, e “o que a mãe queria que ele
fosse”, a “personalidade”, do outro; daí partira, constituindo seu objetivo e ideal tornar o
split entre seu próprio self (que somente ele conhecia), e o que os outros viam de sua pessoa,
o mais completo possível. Foi também impelido nesse rumo pelo fato de que a contragosto
sempre se sentira tímido, embaraçado e vulnerável. Representando constantemente um pa-
pel descobriu que podia até certo ponto dominar a timidez, o embaraçado e a
vulnerabilidade. Firmava-se na consideração de que, fizesse o que fizesse, não estava sendo
ele próprio. Assim, utilizou-se desta forma de defesa que já mencionamos: num esforço
para mitigar a ansiedade agravou as condições que a ocasionavam.
O importante é que sempre trazia em mente o fato de estar representando um papel.
Em geral representava outra pessoa, mas às vezes interpretava ele próprio (seu próprio self),
isto é, não era simples e espontaneamente ele mesmo, mas representava o seu papel. Nunca
se revele aos outros era o seu ideal. Por conseguinte praticava o mais tortuoso equívoco em
relação aos outros nos papéis que interpretava. Em relação a si mesmo, porém, seu ideal era
ser o mais franco e honesto possível.
Toda a constituição do seu ser repousava na disjunção do “self” interior com a
“personalidade” exterior. É extraordinário que este estado de coisas tenha persistido durante
anos sem que sua “personalidade”, isto é, sua maneira de portar-se com os outros, parecesse
fora do comum.
A aparência não podia revelar o fato de que sua “personalidade” não era uma
verdadeira expressão do self e sim, em grande parte, uma série de personificações. O papel
que julgava mais ter representado nos tempos de colégio era o de um aluno precoce, de
espírito agudo mas um tanto frio. Dizia, porém, ter compreendido aos quize anos que o
papel tornara-se impopular “por ter uma linguagem desagradável”. Decidiu portanto
modificá-lo, tornando-se um personagem mais simpático, e obtendo “bons resultados”.
Seus esforços para conservar assim organizado o seu ser eram ameaçados de duas
maneiras. A primeira não o perturbava seriamente: era o risco de ser espontâneo. Como ator
desejava sempre desligar-se do papel que representava. Sentia-se, portanto, senhor da
situação, em total controle consciente das expressões e ações, calculando com precisão seus
efeitos sobre os outros. Ser espontâneo era simplesmente estúpido. Era colocar-se à mercê
dos demais.
A segunda ameaça era mais real e algo com que não contava. Se tivesse um motivo
pessoal de queixa a me apresentar, ele seria baseado nesta ameaça que na verdade começava
a desfazer toda a sua técnica de vida.
Durante toda a sua infância fora muito amigo de representar diante do espelho. E
continuava a fazê-lo, mas neste caso em especial permitia-se ficar absorvido pelo papel que
representava (era espontâneo). Na sua opinião, isso seria a sua ruína. Os papéis que
representava diante do espelho eram sempre de mulher. Vestia as roupas da mãe, que
conservara, ensaiava os papéis femininos das grandes tragédias. Mas descobriu então que
não podia parar de fazer papel de mulher. Surpreendeu-se caminhando, falando e até vendo
e pensando compulsivamente como uma mulher veria e pensaria. Tal era sua presente
posição e explicação para a aparência fantástica. Segundo disse, descobriu ser compelido a
vestir-se e agir assim como a única maneira de obstar o papel feminino que ameaçava
dominar não só suas ações, como seu próprio self, roubando-lhe o muito cultivado controle
e domínio de seu ser. O motivo por que fora impelido a representar esse papel, que ele
odiava e sabia ser objeto de zombaria geral, era algo que não podia compreender. Mas esse
papel “esquizofrênico” era o único refúgio que conhecia para não ser inteiramente
absorvido pela mulher existente dentro dele e que parecia querer sempre emergir. Este é o
tipo de indivíduo que será estudado a seguir. É impossível evidentemente compreender o
gênero de pessoa de quem David era um exemplo “típico” sem estudar mais
minuciosamente este tipo de organização esquizóide. No caso de David, precisaremos
descrever com detalhes a natureza do seu “self” em relação a sua “personalidade”, a
importância para ele de ser “embaraçado” e “vulnerável”, o significado de suas
personificações deliberadas e o modo pelo qual uma “personalidade” estranha se intrometia
na sua “personalidade”, aparentemente de forma autônoma e livre de seu controle,
ameaçando a própria existência do seu self.
O split central ocorre entre o que David chamou seu próprio self e aquilo a que deu
o nome de “personalidade”. Esta dicotomia emerge repetidamente. O que o indivíduo
chama seu próprio self “interior”, “verdadeiro”, “real” é sentido em separado de toda
atividade observável por outro, o que David chamava de “personalidade”. É conveniente
chamar a essa “personalidade” de “falso-self”, ou “sistema de falso-self”. A razão pela qual
sugiro que se fale de um sistema de falso-self é que a “personalidade”, falso-self, máscara,
“aparência” ou personificação usada por tais indivíduos é um amálgama de diversas partes
do self, nenhuma das quais é plenamente desenvolvida a ponto de possuir uma per-
sonalidade compreensiva própria. Estreito conhecimento de uma pessoa desse tipo revela
que seu comportamento observável pode compreender personificações bastante deliberadas
ao lado de ações compulsivas de todos os tipos. Vemo-nos diante não de um único falso-
self, mas de diversos fragmentos parcialmente elaborados do que poderia constituir uma
personalidade, caso um único tivesse amplos poderes. Parece melhor, portanto, chamar ao
total de tais elementos um sistema de falso-self, ou sistema de falsos-self’s.
O “self” nesta organização esquizóide é em geral mais ou menos desencarnado,
sentido como uma entidade mental, e penetra na condição chamada por Kierkegaard de
“fechamento”. As ações do indivíduo não são consideradas expressões de seu self. Suas
ações, tudo aquilo a que David chamava “personalidade” e que sugeri chamarmos sistema
de falso-self, dissociou-se, tornando-se em parte autônomo. Ele não sentia que o self
participava das ações do falso-self ou self’s e considerava todas as suas ações
progressivamente fraudulentas e fúteis. Por outro lado, o self, fechado em si mesmo,
considera-se como o “verdadeiro” e a persona como falsa. O indivíduo queixa-se de
futilidade, falta de espontaneidade, mas talvez esteja cultivando essa falta e assim
agravando o senso de futilidade. Diz que não é real, que se encontra fora da realidade e não
vivo de todo. Existencialmente está muito certo. O self está extremamente cônscio de si
mesmo e observa o falso, em geral, de maneira muito crítica. É característico da organização
de um falso-self ou persona, por outro lado, que uma de suas maneiras de ser incompleto
esteja na sua muito imperfeita percepção reflexiva. Mas é possível que o self se sinta
ameaçado pela ampliação do sistema de falso self, ou de determinada parte dele (por
exemplo, o temor da personificação feminina em David).
O indivíduo em tal posição é invariavelmente “self-conscious” (ver Capítulo VII) no
sentido oposto àquele em que o termo é usado, isto é, da sensação de estar sendo observado
pelo outro.
Essas alterações no relacionamento entre os diferentes aspectos da relação da pessoa
consigo mesma são constantemente associados aos seus relacionamentos inter-pessoais.
São estes complexos e variam de pessoa para pessoa.
O auto-relacionamento do indivíduo torna-se pseudo-interpessoal e o self trata os
falsos self’s como se fossem outras pessoas a quem despersonaliza. David, por exemplo,
referindo-se a um papel que representou e que não lhe agradou, disse: “Ele tinha uma lingua-
gem desagradável”. Do interior, o self contempla as falsidades ditas e feitas e detesta quem
fala e age como se se tratasse de outra pessoa. Em tudo isto há uma tentativa de criar
relacionamentos com pessoas e coisas no interior do indivíduo sem recorrer ao mundo exte-
rior das pessoas e objetos. O indivíduo cria no seu íntimo um microcosmos; mas é claro que
esse “mundo” artístico, particular, intra-individual não é um substituto aceitável do único
mundo que realmente existe, aquele que é partilhado. Se o projeto fosse praticável não
haveria necessidade de psicose.
O indivíduo esquizóide tenta, em um sentido, ser onipotente, encerrando em seu
próprio ser, sem recorrer a um relacionamento criativo com outros, modalidades de
relacionamento que exijam a presença efetiva para ele de outras pessoas e do mundo
exterior. Pareceria a si mesmo, de modo irreal e impossível, todas as pessoas e coisas. As
vantagens imaginadas são segurança para o verdadeiro self, isolamento e, portanto,
liberdade em relação aos outros, auto-suficiência e controle.
As verdadeiras desvantagens que podem ser mencionadas a esta altura são, em
primeiro lugar, a impossibilidade do projeto, o fato de, como falsa esperança, conduzir a
um persistente desespero; segundo, uma sensação persistente, obsessiva de futilidade,
resultado igualmente inevitável, já que o self oculto e fechado, ao negar participação
(exceto, como no acaso de David, em que surge como outra persona) nas semi-autônomas
atividades dos sistemas de falso self, vive apenas “mentalmente”. Além do mais, este self
fechado, isolado, é incapaz de enriquecer-se com experiências exteriores, de modo que todo
o mundo interior torna-se cada vez mais empobrecido, até que o indivíduo passa a sentir-se
um simples vácuo. A sensação de poder fazer qualquer coisa e de tudo possuir existe lado
a lado com a sensação de impotência e vazio. O indivíduo que talvez tenha se sentido em
determinada ocasião predominantemente “fora” da vida, fingindo desprezá-la como mes-
quinha e vulgar comparada à riqueza interior, anseia penetrar novamente a vida e permitir
que ela o penetre, tão medonha é a sensação de morte interior.
O traço crucial do indivíduo esquizóide deste tipo e que precisamos compreender é
a natureza das ansiedades a que está sujeito. Esboçamos já algumas formas sob os termos
de absorção, implosão e temor de perder a autonomia interior, a liberdade, em suma, ser
transformado de homem subjetivo numa coisa, um mecanismo, uma pedra, um objeto-ser
petrificado.
Precisamos ainda estudar de que modo tais ansiedades são reforçadas pela evolução
da organização esquizóide.
Quando o self abandona parcialmente o corpo e seus atos, retirando-se para a
atividade mental, sente-se talvez como uma entidade localizada em alguma parte do corpo.
Sugerimos que esta retirada seja em parte um esforço para preservar a existência, já que o
relacionamento de qualquer espécie com os outros é considerado uma ameaça à identidade
do self. Sente-se este em segurança apenas quando escondido, isolado. Este self pode, é
claro, ser isolado em qualquer ocasião, estejam ou não outras pessoas presentes.
Mas isto não funciona.
Ninguém se sente mais “vulnerável”, mais capaz de ser exposto pelo olhar de outra
pessoa que o indivíduo esquizóide. Se ele não estiver nitidamente cônscio de ser visto por
outros, evita temporariamente a ansiedade tornando-se manifesto por meio de um de dois
métodos. Ou transforma a outra pessoa numa coisa, despersonalizando ou objetivando seus
sentimentos em relação a essa coisa, ou afeta indiferença. A despersonalização da pessoa
e/ou atitude de indiferença relacionam-se de perto, mas não são idênticas. A pessoa
despersonalizada pode ser usada, manipulada, manobrada. Conforme declaramos acima
(cap. 1), o traço essencial de uma coisa comparada a uma pessoa é que a coisa não possui
subjetividade própria e, portanto, não possui intenções recíprocas. Na atitude de indiferença,
a pessoa ou coisa é tratada com negligência, ou frieza, como se não tivesse importância e,
em última análise, como se não existisse. Uma pessoa carente de subjetividade pode ser
ainda importante. Uma coisa pode ser importante. A indiferença nega às pessoas e às coisas
o seu significado. A petrificação, conforme lembramos, era um dos métodos de Perseu para
matar seus inimigos. Utilizando os olhos da cabeça da Medusa transformava-os em pedras.
A petrificação é um meio de matar. Claro que sentir que alguém nos está tratando não como
uma pessoa, mas como uma coisa não precisa ser assustador, caso se esteja bastante seguro
da própria existência. Assim, ser algo aos olhos de alguém não representa para a pessoa
“normal” uma ameaça catastrófica, mas para o indivíduo esquizóide cada par de olhos
encontra-se numa cabeça de Medusa, que ele julga possuir verdadeiramente o poder de
matar ou amortecer algo de vital em sua pessoa. Procura, portanto, impedir sua petrificação
transformando em pedra os outros. Assim agindo julga ter alcançado uma certa medida de
segurança.
De modo geral, o indivíduo esquizóide não está erguendo defesas contra a perda de
uma parte do seu corpo. Todo o seu esforço é antes preservar o próprio self. Isto, conforme
observamos, tem bases precárias; ele está sujeito ao medo de sua própria dissolução no não-
ser, naquilo que William Blake descreveu como último recurso, como “caótica não-
entidade”. Sua autonomia é ameaçada de absorção. Precisa resguardar-se contra a perda de
sua subjetividade e sensação de estar vivo. Na medida em que se sente vazio, a realidade
viva, plena, substancial dos outros é uma invasão sempre passível de descontrolar-se e
tornar-se implosiva, ameaçando dominar e obliterar completamente seu self, como o gás
oblitera o vácuo, ou a água jorra, preenchendo inteiramente um reservatório vazio. O
esquizóide teme um relacionamento dialético vivo, com pessoas vivas, reais. Só consegue
relacionar-se com gente despersonalizada, fantasmas de suas fantasias (imagos), talvez
objetos, talvez animais.
Sugerimos, portanto, que o estado esquizóide que descrevemos seja compreendido
como uma tentativa de preservar um ser precariamente estruturado. Sugeriremos mais tarde
que a estruturalização inicial do ser em seus elementos básicos ocorre na primeira infância.
Em circunstâncias normais, ocorre de modo a encontrar-se firmada em moldes tão
conclusivo nos seus elementos básicos (por exemplo, a continuidade do tempo, a distinção
entre self e não-self, fantasia e realidade), que daí em diante é aceita sem discussões. Sobre
esta base estável, uma considerável dose de flexibilidade pode existir naquilo a que
chamamos o “caráter” da pessoa. Na estrutura do caráter esquizóide, por outro lado, existe
uma insegurança no estabelecimento das bases e uma rigidez compensatória na
superestrutura.
Se o indivíduo não pode defender todo o seu ser recua a linha de defesa até encerrar-
se no interior de uma cidadela central, disposto a anular tudo o que ele é, exceto seu “self”.
Mas, por um trágico paradoxo, quanto mais o self é assim defendido, tanto mais é destruído.
A aparente destruição e dissolução eventual do self em condições esquizofrênicas é
alcançada não por meio de ataques externos do inimigo (atual ou suposto) e sim pela
devastação causada pelas próprias manobras defensivas interiores.

5 - O Self Interior na Condição Esquizóide


“Você pode afastar-se dos sofri-mentos
do mundo, isto é algo que está livre para
fazer e de acordo com sua natureza, mas
este recuo talvez seja precisamente o
único sofri-mento capaz de evitar”.
Franz kafka

Na condição esquizóide aqui descrita existe uma cisão permanente entre self e corpo. O que
o indivíduo considera seu verdadeiro self é sentido como mais ou menos desencarnado e a
experiência física e as ações são, por sua vez, consideradas parte do sistema de falso-self.
É necessário agora considerar os dois elementos deste split com maiores detalhes,
assim como o relacionamento de um com o outro. Consideraremos primeiro o self mental
ou desencarnado.
É bem sabido que estados temporários de dissociação de self e corpo ocorrem em
pessoas normais. Pode-se em geral dizer que se trata de uma reação aparentemente facultada
à maioria das pessoas que se veem envolvidas numa experiência ameaçadora, da qual não
existe escapatória física. Prisioneiros em campos de concentração tentaram tal escapatória,
pois o campo não oferecia possibilidade de fuga, ou espacial, ou ao final de determinado
período. O único recurso era um retraimento psíquico “dentro” de si mesmo, ou “fora” do
corpo. Esta dissociação é caracteristicamente ligada a pensamentos como “Isto parece um
sonho”, “Não parece real”, “Não acredito que seja verdade”, “Nada parece tocar-me”, “Não
posso acreditar”, “Isto não está acontecendo comigo”, isto é, com sentimentos de alienação
e irrealidade. O corpo poderá continuar a agir externamente de maneira normal, mas
interiormente a pessoa sente que ele está agindo com independência, automaticamente.
Apesar da natureza onírica ou irrealidade da experiência, e o automatismo da ação,
o seíf está ao mesmo tempo longe de “sonolento”; na verdade está excessivamente alerta e
pode talvez observar e pensar com excepcional lucidez.
O afastamento temporário de self e corpo pode surgir em sonhos.
Uma jovem de dezenove anos, cujo casamento estava próximo, passara a temê-lo
por diversas razões. Sonhou que se encontrava no assento trazeiro de um carro que se dirigia
sozinho. A jovem não era uma pessoa basicamente esquizóide, mas reagia por meio de uma
defesa esquizóide à determinada situação.
R. teve um sonho pouco antes de começar um tratamento. Encontrava-se numa
plataforma de ônibus. Este não tinha motorista. Ele saltou e o ônibus prosseguiu,
despedaçando-se. Somos tentados a considerar o sonho que ele teve após quatro meses de
psicoterapia como medida de alteração numa direção desejável. “Estou correndo atrás de
um ônibus. De repente vejo-me na plataforma e ao mesmo tempo correndo atrás do veículo.
Tento reunir-me a mim mesmo no ônibus, mas não consigo alcançá-lo de todo e isso me
apavora”.
Seria possível multiplicar exemplos desta experiência comum de dissociação
temporária, que é às vezes intencionalmente induzida; com mais frequência ocorre sem o
controle do indivíduo. Mas nos pacientes aqui considerados a cisão não é uma simples
reação temporária a uma situação específica de grande perigo e que é reversível cessado
este. É, pelo contrário, uma orientação básica de vida e, caso traçado retroativamente parece
de fato emergir, segundo se observa, nos primeiros meses de infância, quando o split já está
em ação. O indivíduo “normal”, numa situação que qualquer um consideraria ameaçadora
para o seu ser, não oferecendo qualquer sensação de fuga, cai num estado esquizóide ao
tentar dela sair, senão fisicamente, pelo menos mentalmente: torna-se um observador
mental, que contempla, desligado e impassível, o que seu corpo faz e o que fazem ao seu
corpo. Se isto ocorre entre os “normais” pode-se supor pelo menos que o indivíduo, cujo
modo de ser-no-mundo está assim dividido, vive naquilo que para ele, embora não para nós,
é um mundo que o ameaça de todos os lados e no qual não há saída. De fato, é o que acontece
com tais pessoas. Para elas, o mundo é uma prisão sem grades, um campo de concentração
sem arame farpado.
O paranóico tem perseguidores específicos. Alguém está contra ele. Existe um
complô para roubar-lhe o cérebro. Há uma máquina oculta na parede do quarto emitindo
raios que lhe amolecem o cérebro, ou enviando choques elétricos através do seu corpo,
enquanto está adormecido. A pessoa que descrevo sente-se, nesta fase, perseguida pela
própria realidade. O mundo tal qual é e as outras pessoas tais como são representam
ameaças.
O self procura então, tornando-se imaterial, transcender o mundo e colocar-se em
segurança. Mas o self é passível de evoluir no sentido de sentir-se fora de toda experiência
e atividade. Torna-se um vácuo. Tudo está do lado de fora; nada no interior. Além disso o
temor constante de tudo o que se encontra no exterior, de ser dominado é reforçado, em vez
de mitigado, pela necessidade de manter o mundo à distância. Contudo, o self pode ao
mesmo tempo ansiar por uma participação no mundo. Assim, seu maior anseio é
considerado sua maior fraqueza e ceder a essa fraqueza é o maior temor, já que na
participação o indivíduo teme que seu vácuo seja obliterado, que ele seja absorvido, ou
perca de outro modo a identidade, que ele passou a equacionar com a manutenção da
transcendência do self, embora tal transcendência ocorra no vazio.
Este desligamento do self significa que ele nunca se revela diretamente pelas
expressões e ações do indivíduo, nem sente qualquer coisa de maneira espontânea ou
imediata. O relacionamento do self com o outro será sempre através de intermediário. As
transações diretas e imediatas entre o indivíduo, o outro e o mundo, mesmo em pontos
básicos como perceber e agir, tornam-se todas sem sentido, fúteis e falsas. Pode-se repre-
sentar esquematicamente um estado alternativo da seguinte maneira:
Objetos percebidos pelo self são considerados reais. Pensamentos e sentimentos dos
quais o self é agente são vivos e considerados significativos. As ações a que se entrega o
self são sentidas como genuínas.
Se o indivíduo delega todas as transações entre ele próprio e o outro a um sistema
no interior de seu ser e que não é “ele”, então o mundo é considerado irreal e tudo o que
pertence ao sistema é falso, fútil e sem sentido.
Todos são sujeitos, até certo ponto e em diferentes períodos, a tais disposições à
futilidade, ausência de sentido e de finalidade, mas no indivíduo esquizóide tais humores
são particularmente insistentes, e emergem do fato de que o limiar da percepção e/ou os
portões da ação não se encontram sob o comando do self, mas são vividos e operados por
um falso self. A irrealidade das percepções e a falsidade e ausência de sentido de toda
atividade são consequências obrigatórias da percepção e da atividade dominando um falso
self — sistema parcialmente dissociado do “verdadeiro” self, que está, portanto, excluído
de direta participação no relacionamento do indivíduo com os outros e com o mundo. Uma
pseudodualidade é assim vivida no ser do indivíduo. Em vez deste sair ao encontro do
mundo com o self-integral, renega parte de seu próprio ser junto com a renegação de
ligações imediatas a coisas e pessoas do mundo. Isto pode ser esquematicamente
representado da seguinte maneira:
Em vez de (self-corpo) <=> outro
A situação é self <=> (corpo-outro)
O self é, portanto, excluído de um relacionamento direto com coisas e pessoas reais.
Quando tal ocorre em pacientes, o médico é testemunha da luta do self para preservar seu
senso de realidade, vida e identidade. No primeiro esquema surge um círculo benigno. A
realidade do mundo e do self são mutuamente reforçadas pelo relacionamento direto entre
self e outro. Na Figura 2 surge um círculo vicioso. Todos os elementos do diagrama são
considerados mais ou menos irreais e mortos. O amor está excluído e o temor assume seu
lugar. O efeito geral é o de uma experiência onde tudo se imobilizou. Nada se move; nada
é vivo; tudo está morto, inclusive o self. O self, por seu desligamento, está excluído de uma
experiência total de realidade e vivacidade. O que se poderia chamar um relacionamento
criativo com o outro, no qual existe mútuo enriquecimento do self e do outro (círculo
benigno) é impossível e uma interação o substitui, operando com aparente eficácia e sem
impecilhos por algum tempo, mas carentes de “vida” (relacionamento estéril). Existe uma
semi-interação em vez de um relacionamento Eu-tu. Esta interação é um processo morto.
O self interior procura viver por meio de certas vantagens (aparentemente)
compensadoras. Este self acalenta certos ideais. Um deles muito nítido para o menino
David, era a sinceridade interior. Enquanto que todo o intercâmbio com o outro pode ser
embebido de fingimento, equívocos e hipocrisias, o indivíduo procura alcançar um
relacionamento consigo mesmo escrupulosamente sincero, honesto, franco. Qualquer coisa
pode ser oculta aos outros, mas nada a si mesmo. Neste ponto o self procura tornar-se “um
relacionamento que se relaciona consigo mesmo”,3 com exclusão de toda e qualquer outra
coisa. Temos aqui as sementes da cisão secundária dentro do self. Estando o ser do indivíduo
dividido entre “verdadeiro” e “falso” self, os dois perdem a sua realidade, conforme já
observamos, mas também dividem-se, por sua vez, em sub-sistemas dentro de si mesmos.
Assim, no relacionamento do self consigo mesmo encontra-se uma segunda dualidade, onde
o self interior se divide para formar um relacionamento sado-masoquista consigo mesmo.
Quando isto acontece, o self interior, que emergira primordialmente, conforme sugerimos,
como um meio de se agarrar a um precário senso de identidade, começa a perder até esta
identidade com que iniciou. (Nas ilustrações clínicas ver particularmente Rose, p. 166).
A substituição de uma interação pela outra resulta no indivíduo passar a viver num
mundo assustador, no qual o temor não é mitigado pelo amor. O indivíduo tem medo do
mundo, teme que qualquer invasão seja total, implosiva, penetrante, fragmentadora e
açambarcadora. Teme ceder qualquer coisa de si mesmo, sair de si mesmo, perder-se em
qualquer experiência, etc. porque está esvaziado, exaurido, despojado, roubado, sugado.
O isolamento do self é um corolário, portanto, da necessidade de estar no controle.
Prefere roubar a receber. Prefere dar a que lhe roubem qualquer coisa; isto é, precisa
controlar quem ou o que nele penetra e quem ou o que dele sai. Este sistema defensivo é
elaborado, sugerimos, para compensar a falta básica de segurança ontológica. O indivíduo
seguro de seu próprio ser não precisa adotar tais medidas. Contudo, o esforço para manter

3
Frase de Kierkegaard em The Sickness unto death (1954), mas aqui usada com diferentes conotações.
um self transcendente fora de perigo e em controle remoto de ação e experiência diretas,
traz consequências indesejáveis que podem sobrepujar quaisquer vantagens aparentes.
Já que o self, ao manter seu isolamento e distância, não se entrega a um
relacionamento criativo com o outro, preocupando-se com figuras da fantasia, pensamentos,
lembranças, etc. (imagos) que não podem ser diretamente observados ou expressos aos
outros, qualquer coisa (em certo sentido) é possível. Quaisquer que sejam os fracassos ou
êxitos ocorridos do sistema de falso self, o self consegue permanecer desligado e indefinido.
Na fantasia, o self pode ser qualquer pessoa, em qualquer lugar, tudo possuir. É assim
onipotente e completamente livre — mas somente na fantasia. Uma vez comprometido com
qualquer projeto real sofre agonias de humilhação — não obrigatoriamente por qualquer
fracasso, mas simplesmente porque precisa submeter-se à necessidade e à contingência. É
onipotente e livre somente na fantasia. Quanto mais esta fantástica onipotência e liberdade
são acalentadas, tanto mais fracas, impotentes e abaladas se tornam na realidade. A ilusão
de onipotência e liberdade pode ser sustentada somente dentro do círculo mágico de seu
próprio isolamento na fantasia. E para que esta atitude não seja dissipada pela mais leve
intrusão da realidade, fantasia e realidade têm que ser mantidas em separado.
Sartre expressa o split muito bem em Psycology of Imagination (1950, pp. 165-6):
“... podemos reconhecer em nós dois self’s distintos: o imaginário, com suas
tendências e desejos — e o self real. Existem sadistas e masoquistas imaginários,
pessoas de violenta imaginação. A cada momento nosso self imaginário se despe-
daça e desaparece ao contato com a realidade, cedendo lugar ao verdadeiro. Pois o
real e o imaginário não podem coexistir por sua própria natureza. É uma questão de
dois tipos de objetos, de sentimentos e ações completamente irredutíveis. Dai
pensarmos que os indivíduos devam ser classificados em duas grandes categorias,
segundo prefiram levar uma vida imaginária ou real. Mas devemos compreender o
que significa uma preferência pelo imaginário. Não se trata absolutamente de pre-
ferir um objeto a outro. Por exemplo, não deveríamos crer que o esquizofrênico e
os sonhadores mórbidos em geral tentem substituir por um conteúdo irreal mais
sedutor e brilhante o verdadeiro conteúdo de sua vida, e que procurem esquecer o
caráter irreal de suas imagens a elas reagindo como se fossem objetos reais,
presentes na realidade. Optar pelo imaginário não é só preferir uma riqueza, uma
beleza, um luxo imaginários à mediocridade vigente, apesar de sua natureza irreal.
É também adotar sentimentos e ações “imaginários” por causa de sua própria
natureza imaginária. Não é apenas esta ou aquela imagem que se escolhe, mas o
estado imaginário, com tudo o que isto implica; é não só uma fuga ao conteúdo do
real (pobreza, amor frustrado, fracasso num empreendimento, etc.), mas à forma da
própria realidade, ao seu caráter de presença, à espécie de reação que de nós exige,
à adaptação de nossas ações ao objeto, ao inexaurível da percepção, à sua indepen-
dência, à própria maneira de nossos sentimentos evoluírem”.
Esta cisão entre fantasia e realidade é central no conceito de autismo de Minkowski.
A pessoa que não age na realidade mas somente na fantasia torna-se, ela própria,
irreal. O “mundo” real torna-se diminuído e empobrecido. A “realidade” do mundo físico
e das outras pessoas deixa de ser usada como um pabulum para o exercício criativo da
imaginação, passando a ter cada vez menos sentido em si mesma. A fantasia, sem ser de
certo modo concretizada na realidade, ou enriquecida por injeções de “realidade” torna-se
cada vez mais vazia e volatizada. O “self”, cujo relacionamento com a realidade já é tênue,
torna-se cada vez menos um self-realidade e cada vez mais fantastizado, à medida que se
envolve em relacionamentos fantásticos com seus próprios fantasmas (imagos).
Sem um circuito aberto nos dois sentidos entre a fantasia e a realidade qualquer coisa
se torna possível à fantasia. O espírito destrutivo age na fantasia sem o desejo de fazer
reparação compensatória, pois o remorso que impele no sentido de preservar e pedir
desculpas perde a sua urgência. A destruição na fantasia pode assim agir sem freios, até
reduzir o mundo e o self, em fantasia, a pó e cinzas. No estado esquizofrênico, o mundo está
em ruínas e o self (aparentemente), morto. Nenhum grau de atividade frenética parece ter
forças para ressuscitá-lo.
Assim, o que se passa tem o efeito oposto ao desejado. Sapos verdadeiros invadem
jardins imaginários4 e fantasmas caminham em ruas de verdade. Assim, de maneira diversa,
a identidade do self é novamente prejudicada.
Não é inteiramente correto dizer que o self só se relaciona consigo mesmo. É preciso
especificá-lo num sentido e ampliá-lo em outro. Já qualificamos esta afirmativa
esclarecendo que nos referíamos a um relacionamento direto e imediato. É este tipo de
relacionamento com o outro, e mesmo com os aspectos do próprio ser exteriores ao encrave
do self, que se torna impossível.
Um paciente, por exemplo, que orientava sua vida segundo linhas relativamente
“normais” exteriormente, mas que possuía esse split interior queixava-se sobretudo do fato
de não poder jamais ter relações sexuais com a esposa, mas apenas com a imagem que dela
fazia. Isto é, seu corpo tinha relações físicas com o corpo dela, mas o self mental, durante o
ato, só podia observar o que o corpo estava fazendo e/ou imaginar-se tendo relações com
sua mulher como objeto de sua imaginação. E apresentou a sensação de culpa que ressentia
por assim agir como o motivo para buscar a orientação de um psiquiatra.5
Este é um exemplo daquilo a que me refiro ao dizer que fantasia e realidade são
mantidas em separado. O self evita relacionar-se diretamente com pessoas reais, mas
relaciona-se consigo mesmo e com os objetos que imagina. O self pode relacionar-se de
modo imediato com um objeto de sua imaginação ou memória, mas não com uma pessoa
real. Claro, isto nem sempre é aparente para o próprio indivíduo e menos ainda para os
demais. A esposa do paciente acima mencionado ignorava de todo que ele tinha a impressão
de jamais realizar diretamente com ela o ato sexual. Ele tinha relações somente com sua
imagem da mulher, que por acaso coincidia bastante com a realidade, pois ninguém, exceto
ele próprio, conhecia a diferença.
Um aspecto deste subterfúgio é que o self torna-se capaz de gozar de uma sensação
de liberdade que teme perder caso se abandone ao real. Isto se aplica tanto à percepção
como à ação. O paciente, por mais solitário que se sentisse nos momentos de maior
intimidade física, pelo menos estava seguro, pois sentia que a mente permanecia livre,
embora essa liberdade se tornasse algo a que estivesse condenado.
Algo equivalente surge com respeito à ação. As ações do indivíduo talvez pareçam,
do ponto de vista de outra pessoa, inequívocas e comprometidas, mas descobre-se que “ele”
faz gestos como se realizasse algo que sente não estar “realmente” fazendo. Assim, o

4
Marlanne Moore, Collected Poems.
5
As observações sobre a culpa sentida por Peter (Cap. 8) são relevantes para esta forma de sentimento de culpa esquizóide que,
segundo creio, não foi bastante reconhecida.
paciente acima disse que embora Kinsey pudesse registrar que ele tinha relações duas a
quatro vezes por semana no decorrer de dez anos, “ele” sabia que na realidade jamais tivera
relações. A transição deste tipo de afirmativa para a do psicopata milionário, que diz não
ter “realmente” dinheiro é decisiva mas sutil. Conforme veremos no capítulo 10, a transição
parece consistir na perda tão absoluta do senso da realidade do Relatório Kinsey que o
indivíduo expressa a verdade “existencial” a respeito de si mesmo com a naturalidade que
usamos em relação aos fatos corroborados por consenso geral, num mundo compartilhado.
Este paciente seria psicopata, por exemplo, se em vez de dizer que nunca tivera
“realmente” relações com a mulher, insistisse em que a mulher com quem tinha relações
não era sua verdadeira esposa. De certo modo isto seria perfeitamente verdadeiro: seria
existencialmente exato porque no sentido existencial sua “verdadeira” mulher era o objeto
de sua imaginação (um fantasma ou imago), em lugar do outro ser humano que estava na.
cama com ele.
O self encarnado do esquizóide não pode realmente casar-se com ninguém. Existe
em perpétuo isolamento. No entanto, é claro que este isolamento e não comprometimento
interior não constituam auto-ilusão.
Existe no ato algo de final e definitivo que este tipo de pessoa olha com desconfiança.
A ação é o término da possibilidade. Esclerosa a liberdade. Se não puder ser totalmente
evitada, então cada ato deve ser de natureza tão equívoca que o “self” jamais a ele se prenda.
Hegel (1949, pp. 349-50) diz o respeito do ato:
“O ato é algo simples, determinado, universal, a ser compreendido como um todo
abstrato, distintivo; é assassinato, roubo, benefício, gesto de bravura, etc., e o que é
pode ser dito a seu respeito. É isto ou aquilo, e ser não é apenas um símbolo, é o
fato em si mesmo. É isto, e o indivíduo humano é o que é o ato. No simples fato do
ato ser, o indivíduo é para os outros o que realmente é, e de certa natureza geral, e
deixa de ser simplesmente algo que “se pretende” ou “presume-se” seja isto ou
aquilo. Não há dúvida de que ele não foi ali colocado em forma de mente; mas
quando se trata de seu ser qua ser, e o duplo ser da forma corpórea e do ato são
colocados um contra o outro, cada qual afirmando ser sua verdadeira realidade,
somente o ato se afirma como seu ser genuíno — não sua figura ou forma, que
expressariam o que ele “quer dizer” com seus atos. Do mesmo modo, quando a
realização e a possibilidade interior, capacidade ou intenção são contraditórias, so-
mente a primeira deve ser considerada como sua verdadeira realidade, mesmo que
ele tenha se enganado a si mesmo e depois de se voltar da ação para si próprio
pretenda ser outra coisa em seu “mundo interior”, diversa do que é no ato. A indivi-
dualidade, que se compromete com o elemento objetivo, quando este passa ao feito
arrisca-se sem dúvida a alterar-se e perverter-se. Mas o que estabelece o caráter do
ato é apenas saber se o feito é algo real, que se sustenta, ou mera atuação pretensa
ou “suposta”, em si mesma nula, vazia e fadada a desaparecer. A objetivação não
altera o próprio ato; mostra simplesmente o que ele é, isto é, se é, ou se nada é”.
É fácil compreender porque o indivíduo esquizóide detesta tão intensamente a ação
definida por Hegel. O ato é “simples, determinado, universal...” Mas seu self deseja ser
complexo, indeterminado e único. O ato é “o que dele pode ser dito”. Mas não deve ser
jamais o que pode ser dito da pessoa. Esta deve permanecer intocável, impalpável,
transcendente. O ato é “isto e aquilo... e o ser humano individual é o que é o ato”. Mas não
deve de modo algum ser o que é o ato. Se fosse, estaria impotente, à mercê de qualquer
passante. “No simples fato do ato ser, o indivíduo é para os outros o que é na verdade”, mas
isto é precisamente o que ele mais teme e o que procura evitar pelo uso de um falso self, de
modo a nunca ser o que é realmente com os outros. “Ele” — seu “self” — é infinita possi-
bilidade, capacidade, intenção. O ato é sempre produto de um falso self. O ato ou o feito
não é jamais sua verdadeira realidade. Ele deseja permanecer perpetuamente
descompromissado “com o elemento objetivo” — daí que o feito é sempre (ou pelo menos
ele assim o acredita) uma pretensa e suposta interpretação, e ele poderá cultivar ativamente,
tanto quanto possível, aquela negação “interior” de tudo o que ele faz, num esforço para
declarar tudo aquilo “nulo e vazio”, de modo que no mundo, na realidade, no “elemento
objetivo”, nada que seja “dele” existirá e nenhuma pista do “self” será deixada.
Assim, o self retira-se do “elemento objetivo”, tanto com respeito à percepção como
à ação. Não pode haver ação espontânea, assim como não pode haver percepção espontânea.
E assim como o compromisso com a ação é evitado, a percepção é considerada um ato de
compromisso que ameaça a liberdade para nada ser, que o self detém.
O self, enquanto “não comprometido com o elemento objetivo”, é livre de sonhar e
imaginar qualquer coisa. Sem referência ao elemento objetivo pode ser todas as coisas para
si mesmo — possui liberdade ilimitada, poder, criatividade. Mas sua liberdade e onipotência
são exercidas num vácuo e sua criatividade é apenas a capacidade para produzir fantasmas.
A honestidade interior, liberdade, onipotência e criatividade que o self “interior” cultiva
como ideais são, portanto, cancelados por um simultâneo e torturado senso de
autoduplicidade, da falta de qualquer liberdade real, de total impotência e esterilidade.
Aqui preocupo-me em primeiro lugar, é claro, em acompanhar a posição esquizóide
que conduz à psicose e não em descrever as possibilidades inerentes que talvez conduzam
a outras direções, mas é preciso ter em mente que a deterioração e desintegração constituem
apenas o resultado da organização esquizóide inicial. É claro que autênticas versões de
liberdade, poder e criatividade podem ser alcançadas e vividas.
Diversos escritores e artistas esquizóides, relativamente isolados dos outros,
conseguiram estabelecer um relacionamento criativo com as coisas do mundo, que passam
a personificar as figuras de sua fantasia. Mas nossa história não é a deles. Neste estudo
focalizo uma só linha de evolução e as generalizações que faço destinam-se a cobrir apenas
esta área limitada.
Embora o self tenha uma atitude de liberdade e onipotência, sua recusa em
comprometer-se com o “elemento objetivo” torna-o impotente: não possui nenhuma li-
berdade na “realidade”. Além disso, mesmo no seu próprio encrave, está constantemente
sujeito, em seu desligamento, à (segundo sente) ameaça de uma “realidade” implosiva ou
açambarcadora, e embora se preocupe consigo mesmo e com seus objetos, é ainda assim
hipercônscio de si mesmo como objeto aos olhos dos outros. Assim, as dificuldades
paradoxais do esquizóide são agravadas pela natureza especial do sistema esquizóide de
defesas que descrevemos.
O indivíduo talvez detenha sempre a possibilidade de optar entre endossar sua
posição de desligamento, ou tentar participar da vida. A defesa esquizóide contra a
“realidade” tem, contudo, a grave desvantagem de tender a perpetuar e reforçar a
ameaçadora qualidade original da realidade. A participação do self na vida é possível, mas
somente face à intensa ansiedade. Franz Kafka sabia disso muito bem ao dizer que somente
através desta ansiedade ele poderia participar da vida e por isto sem ela não existiria. Para
o esquizóide, a participação direta “na” vida é considerada sob constante destruição pela
própria vida, pois o isolamento do self é, conforme dissemos, em esforço para preservar-se,
na ausência de um firme senso de autonomia e integridade.
O self do esquizóide precisa ser compreendido, portanto, como uma tentativa de
alcançar a segurança secundária a partir dos perigos primários com que se defronta na sua
insegurança ontológica original. Um aspecto desta insegurança não especificamente
relacionado com o “self’ é a precariedade do senso subjetivo de sua própria vida, e o senso
de que os outros ameaçam esse hesitante sentimento. O problema será considerado mais
amplamente no capítulo “Auto-consciência”.
Na ausência de um relacionamento espontâneo, natural, criativo com o mundo livre
de ansiedade, o “self interior” desenvolve um senso dominante de empobrecimento, que se
manifesta em queixas de vazio, entorpecimento, frieza, secura, impotência, desolação,
carência de valor da vida interior. Por exemplo, uma das queixas referia-se ao
empobrecimento da vida imaginativa e emocional. O paciente diz encarar tudo isso como
consequência de sua decisão de isolar-se da realidade. Como resultado, dizia, não obtinha
contribuições da realidade para enriquecer a imaginação.
Outro paciente oscilava entre momentos em que se sentia explodir de força, e
momentos em que se sentia vazio e sem vida. Contudo, mesmo nesta impressão “louca” de
si mesmo, ele era um recipiente cheio de ar sob tremenda pressão, nada além de ar quente
e a esta ideia seguia-se a sensação de deflação. O esquizóide fala com frequência de si
mesmo nesses termos, de modo que fenomenologicamente estamos justificados em falar na
sensação de vacuidade que acomete o self.
Se o paciente compara seu vazio, inutilidade, frieza, desolação, secura com a
abundância, valor, cordialidade e companheirismo que talvez ainda acredite encontrar-se
em outra parte (crença que muitas vezes se expande fantasticamente em proporções
idealizadas, não corrigidas por qualquer experiência direta) ocorre um redemoinho de
emoções conflitantes, que vão de um desesperado anseio pelo que os outros possuem e a
ele falta, até a inveja frenética e ódio de tudo o que pertence aos outros e não a ele, ou o
desejo de destruir tudo o que há de bom, ingênuo e rico no mundo. Tais sentimentos podem,
por sua vez, ser combatidos por contra-atitudes de desdém, desprezo, nojo ou indiferença.
Este vazio, este senso de falta de riqueza interior, substancialidade e valor, caso
ultrapasse sua ilusória onipotência, torna-se um poderoso impulso para fazer “contato” com
a realidade. A alma ou self assim desolado e árido anseia por refrescar-se e ser fertilizado,
mas deseja não apenas um relacionamento entre seres divisíveis, como também ser
completamente invadido e permeado pelo outro.
James (ver pp. 159ss) contou que quando caminhava sozinho no pargue, numa noite
de verão, vendo casais se amando, começou o sentir de repente uma tremenda ligação com
o mundo inteiro, com o firmamento, as árvores, as flores e a relva — e também com os
namorados. Correu para casa, em pânico, e mergulhou nos seus livros, dizendo a si mesmo
que não tinha direito a esta experiência. Mais que isso, estava aterrorizado pela ameaça da
perda de identidade contida naquela mistura e fusão de seu self com o mundo inteiro. Não
conhecia qualquer estágio intermediário entre o radical isolamento na auto-absorção, ou a
completa absorção em tudo o que existe. Temia ser absorvido, açambarcado pela Natureza,
com perda irremediável de seu self; contudo, o que mais temia era também o que mais
desejava. A beleza mortal, dizia Gerard Manley Hopkins, é perigosa. Se tais indivíduos
aceitassem o seu conselho, — ir ao seu encontro e depois deixá-la em paz, — as coisas
seriam mais fáceis. Mas é exatamente isto o que não conseguem fazer.
A abundância lá fora é cobiçada, fazendo contraste com o vazio aqui dentro;
contudo, a participação sem perda do ser é considerada impossível e também não basta, de
modo que o indivíduo precisa agarrar-se ao seu isolamento — sua separação sem
relacionamento espontâneo, direto — porque assim agarra-se a sua identidade. Anseia pela
completa união, mas esse mesmo anseio o aterroriza porque será o fim do seu self. Não
deseja um relacionamento de mútuo enriquecimento e intercâmbio, de dá-e-toma entre dois
seres “compatíveis” um com o outro. Não concebe um relacionamento dialético.6
Pode acontecer que a experiência da perda de sua própria individualidade isolada
seja tolerada, em determinadas situações limitadas, sem demasiada ansiedade. É possível
perder-se ouvindo música, ou em semimísticas experiências, quando o self sente-se
mergulhado num não-self que talvez seja chamado Deus, mas não obrigatoriamente.
Contudo, o anseio do self para escapar ao tédio de sua própria companhia encontra em geral
dois intransponíveis obstáculos na ansiedade e na culpa que tal anseio desperta. Já foi
mencionada em diferentes contextos a ansiedade que acompanha a perda de identidade pela
absorção. Uma das maneiras de se obter o que se deseja de alguém, conservando o controle
do processo de aquisição, é, naturalmente, roubo.
Fantasias esquizóides de roubar e ser roubado baseiam-se neste dilema. Se você
rouba o que deseja de outro está controlando a situação; não está à mercê do que é oferecido.
Mas toda intenção é imediatamente retribuída. O desejo de roubar alimenta fobias de ser
roubado. A fantasia de que tudo o que se obteve de valor foi roubado é acompanhada pela
contrafantasia de que o que os outros possuem de valor foi roubado de nós, (ver Rose, Cap.
9) e que qualquer coisa que se venha a possuir acabará por nos ser tomada, não só o que se
possui, como também o que se é, o próprio self. Donde a frequente queixa esquizóide de
que o self foi roubado, e as defesas contra este constante perigo.
O selo final no autofechamento do self é aplicado por seu próprio sentimento de
culpa. No indivíduo esquizóide, a culpa tem a mesma qualidade paradoxal encontrada na
sua onipotência e impotência, liberdade e escravidão, o self transformado em qualquer um
na fantasia e em nada na realidade. Aparentemente deveria haver diversas fontes de culpa
no ser do indivíduo. Num ser dividido em diferentes “self’s” é preciso saber qual deles se
sente culpado por isto ou aquilo. Noutras palavras, no indivíduo esquizóide não há, nem
pode haver, uma sensação de culpa unificada e não contraditória. De modo geral seria
possível supor que um sentimento de culpa teria origem no falso self, e outro no self interior.
Contudo, se chamarmos de falso qualquer sentimento de culpa que o sistema de falso self
entretenha, é preciso ter o cuidado de evitar considerar o self interior como fonte de
“genuína” ou verdadeira culpa.
Aqui desejo apenas preparar terreno para o debate mais extenso do problema,
baseado em material clínico (p. 143).
Se há algo em que o indivíduo esquizóide se incline a crer é na sua própria
destrutividade. É incapaz de crer que pode preencher seu vazio sem reduzir a nada o que

6
Platão postula que a amizade só pode existir entre seres “compatíveis”. Contudo, a discussão sobre a possibilidade da amizade
no Lisias para diante do dilema: se dois seres não estão precisando de nada, por que deverão eles querer algo um do outro? É
nesta questão central — é o homem auto-suficiente ou precisa de algo? — que a vida de uma pessoa, esquizóide está sujeita a
desmoronar.
existe. Considera seu próprio amor e o dos outros tão destruidores como o ódio. Ser amado
ameaça o self; mas seu amor é igualmente perigoso para os outros. Se procura isolar-se não
é só por causa, mas também por preocupação com os demais. Uma paciente esquizofrênica
não permitia que ninguém a tocasse, não porque lhe fariam mal, mas porque ela poderia
eletrocutar aos outros. Isto é apenas uma expressão psicótica daquilo que o indivíduo
esquizóide sente diariamente. “Não seria justo para a pessoa se eu amasse alguém”, diz. O
que talvez faça é destruir “na mente” a imagem de alguém ou alguma coisa a que esteja em
perigo de se afeiçoar, pelo desejo de salvaguardar a pessoa ou coisa de ser destruída na
realidade. Então, se não há nada a desejar, nada a invejar, talvez nada haja a amar, mas nada
existe a ser reduzido a nada por ele. Em último recurso resolve assassinar o próprio “self”,
o que não é tão fácil como cortar o pescoço. Mergulha num abismo de não-ser, a fim de
evitar ser, mas também para preservar de si mesmo o ser.

6 - O Sistema de Falso Self 7


O “self interior” ocupa-se com fantasias e observação. Observa os processos de percepção
e ação. A experiência não colide (ou pelo menos não tem intenção) diretamente com este
self e os atos do indivíduo não são auto-expressões. Relacionamentos diretos com o mundo
competem a um sistema de falso-self. São as características deste sistema que precisamos
agora estudar.
É preciso deixar claro que a descrição do sistema de falso-self acima apresentada
relaciona-se especificamente com o problema da modalidade esquizóide de ser-no-mundo
agora em debate. Todos se encontram pessoalmente envolvidos na questão de estar ou não,
e até que ponto, sendo “fiéis a sua verdadeira natureza”. Na clínica prática, o histérico e o
hipomaníaco, por exemplo, têm seus próprios meios de ser eles próprios. O sistema de falso
self aqui descrito existe como complemento de um “self” interior, que se ocupa em manter
sua identidade e liberdade, sendo transcendente, incorpóreo e assim incapaz de ser jamais
dominado, esmiuçado, preso, possuído. É seu objetivo ser puro sujeito, sem qualquer
existência objetiva. Assim, salvo em certos momentos de segurança o indivíduo procura
considerar toda a sua existência objetiva como a expressão de um falso self. É claro que,
conforme já observamos e demonstraremos mais minuciosamente adiante, se a pessoa não
for bi-dimensional, com identidade bidimensional estabelecida por uma conjunção de
identidade-para-os-outros e identidade-para-si-mesmo, se não existir tanto objetiva como
subjetivamente, possuindo apenas uma identidade subjetiva, uma identidade-para-si-
mesmo, não pode ser real.

7
O falso self é um modo de não ser a si mesmo. Citamos a seguir alguns dos mais importantes estudos na tradição existencialista, relevantes
para a compreensão do falso self como maneira de viver sem autenticidade: Kierkegaard, The Sickness unto death (1954); Heidegger,
Sein und Zeit (1953); O debate de Sartre sobre a “má fé” em Being and Nothingness (1956); Binswanger, Drei Formen missglückten
Daseins (1952) e “The Case of Ellen West” (1958); e Roland Kuhn, La Phénoménologie de la masque (1957). Dentro da tradição
psicanalítica, os estudos mais relevantes são: Deutsch, “Some forms of emotional disturbances and their relationship to schizophrenia”
(1942); Fairbairn, Psychoanalytic studies of the Personality (1952); Guntrip, “A study of Fairbairn's Theory of schizoid reactions”
(1952); Winnicott, Collected papers (1958); Wolberg, “The ‘borderline’ patient” (1952); e Wolf, em Schizophrenia in
psychoanalytical office practice (pp. 135-9, 1957).
“Um homem sem máscara” é na verdade muito raro. Duvida-se até da possibilidade
de sua existência. Cada qual usa, de certo modo, uma máscara e há muita coisa a que não
nos entregamos totalmente. Na vida “comum” parece quase impossível agir de outro modo.
O falso self do esquizóide difere, porém, em importantes aspectos da máscara usada
pela pessoa “normal” e também da falsa fachada característica do histérico. Evitará
confusões discriminar rapidamente entre estas três formas de falso self.
Na pessoa “normal”, um bom número de ações pode ser virtualmente mecânico. Tais
áreas de comportamento virtualmente mecânico não abrangem necessariamente, porém,
todos os aspectos do que ela faz, não excluem absolutamente o surgimento de expressões
espontâneas e não são completamente “contra a maré”, para que o indivíduo procure
repudiá-las ativamente como corpos estranhos introduzidos na sua constituição. Além do
mais, não assumem um modo autônomo compulsivo, de maneira que o indivíduo pense que
são “vivas”, ou antes, que o estão matando, em lugar de ele as viver. A questão não surge,
pelo menos, com tão penosa intensidade para que ele ataque e destrua esta realidade
estranha dentro de si mesmo, quase como se ela possuísse uma existência (pessoal)
separada. Em contraste, porém, tais características, ausentes na pessoa “normal”,
encontram-se muito presentes no sistema de falso self do esquizóide.
Caracteristicamente, o histérico se desassocia de grande parte daquilo que faz. A
melhor descrição desta técnica de evasão que conheço encontra-se em Sartre, no capítulo
sobre a “má fé” de Being and Nothingness, onde o autor faz um brilhante relato
fenomenológico das maneiras de fingir para si mesmo que a pessoa não se encontra
“naquilo” que está fazendo — forma de evasão à plena implicação pessoal nas próprias
ações, que o histérico elabora como todo um modo de vida. O conceito sartreano de “má-
fé” é, naturalmente, muito mais extenso.
O histérico procura gratificação através de suas ações, cujo significado nega. As
ações do histérico proporcionam-lhe “ganho” na gratificação de desejos libidinosos e/ou
agressivos em relação a outras pessoas e cujo significado ele não pode reconhecer diante de
si mesmo. Daí a belle indifférence, o desligamento despreocupado das implicações daquilo
que ele diz ou faz. Vê-se que situação é muito diversa do split do indivíduo esquizóide. O
falso self não serve como veículo para a realização ou gratificação do self. No indivíduo
esquizóide, o self pode permanecer esfaimado de maneira muito primitiva, enquanto o falso
self pode estar aparentemente adaptado no sentido genital. As ações do falso self, porém,
não “gratificam” o “self interior”.
O histérico finge que certas atividades altamente gratificantes são apenas aparência,
nada significam, nem têm implicações especiais, ou que ele está simplesmente assim agindo
porque é forçado, embora secretamente seus desejos estejam se realizando em e através
destas mesmas atividades. O falso self do esquizóide dobra-se compulsivamente à vontade
dos outros, é parte autônoma, porque descontrolado e sentido como um estranho; a falta de
realidade, sentido e propósito que permeiam suas percepções, pensamentos, sentimentos e
ações e seu entorpecimento geral não são simples resultado de defesas secundárias e sim
consequências diretas da estrutura dinâmica básica do indivíduo.
Por exemplo, um paciente lembrava-se de que no colégio gostava de matemática,.
mas desprezava a literatura. Organizaram uma representação de Twelfth Night e os alunos
tiveram que escrever um ensaio a respeito. Na época achou que odiara a peça, mas escreveu
um trabalho muito elogioso, imaginando o que os professores dele esperavam e a isso
servilmente se prendendo. O ensaio conquistou um prêmio. “Nem uma só palavra
expressava meus sentimentos. Dizia apenas o que julgava que eu sentisse”. Pelo menos foi
o que pensou na época. Na verdade, conforme confessou a si mesmo mais tarde, gostara
realmente da peça e sentira realmente o que escrevera no ensaio. Mas não ousara admitir
tal possibilidade a si mesmo porque isso teria precipitado um violento conflito com todos
os valores que lhe haviam sido incutidos, destroçando totalmente a ideia que tinha de si
mesmo. Contudo, trata-se de um incidente neurótico e não esquizóide. O paciente continuou
em outros sentidos a fazer o que secretamente desejava, embora persuadindo-se de que fazia
apenas o que os outros queriam que fizesse. O neurótico pode, portanto, fingir que tem um
sistema de falso self superficialmente semelhante ao do esquizóide, mas observando-se mais
de perto vemos que as circunstâncias são, na verdade, amplamente diversas.
O histérico com frequência principia fingindo não encontrar-se em suas ações,
embora na verdade realizando-se através delas. Se ele está ameaçando com este insight face
a um sentimento de culpa muito intenso, age de maneira inibida, isto é, torna-se acometido
de paralisia “histérica”, que impede a execução das ações gratificantes culposas.
Exemplos particularmente nítidos de falsos self’s esquizóides são encontrados nos
casos de James (p. 154), David (p. 74) e Peter (p. 132).
Em qualquer pessoa, o sistema de falso self é sempre muito complexo e contém
diversas contradições. Tentaremos neste capítulo fazer afirmativas aplicáveis de modo
geral, mas assim agindo precisamos armar o quadro considerado um componente de cada
vez, neste sistema de muitos componentes simultâneos.
James, lembramos bem, dizia não ser uma pessoa independente. E seu
comportamento consiste em tornar-se uma “coisa” para os outros. A mãe jamais
reconhecera sua existência, segundo pensava. Pode-se dizer, suponho, que se reconhece
perfeitamente a existência de outra pessoa em Woolworth, mas é óbvio que não era isso que
ele tinha em mente. Julgava que ela jamais reconhecera sua liberdade e direito a uma vida
subjetiva, de onde suas ações emergiriam como uma expressão do seu self autônomo e
integral. Pelo contrário, não passava de um fantoche — “Eu era apenas um símbolo de sua
realidade”. Acontece que ele desenvolveu interiormente a subjetividade sem ousar qualquer
expressão objetiva. Em seu caso, este não foi total, já que ele podia manifestar seu
“verdadeiro” self com muita clareza e força por meio de palavras. Ele o sabia, dizendo: “Só
sei fazer ruídos”. E pouco mais fazia além disso, pois todas as suas outras ações eram
governadas não pela vontade, mas por uma vontade estranha, que se formava no seu íntimo;
era o reflexo da vontade da realidade alienada de sua mãe, agindo a partir de uma fonte que
brotava no seu próprio ser. A outra, é claro, tinha que ser sempre a mãe, isto é, “a que faz
de mãe”. As ações desse falso self não são necessariamente imitações ou cópias das outras,
embora possam vir a ser em grande parte arremedos ou caricaturas de outras personalidades.
O componente que no momento desejamos isolar é a anuência inicial às intenções ou
expectativas do outro em relação à pessoa, ou o que se julga serem as intenções ou
expectativas. Em geral, isto resulta em mostrar-se excessivamente “bom”, jamais fazer o
que quer que seja senão o que foi mandado, jamais causar “problemas”, jamais afirmar, ou
mesmo trair qualquer contra-vontade própria. Mostrar-se bom, porém, não é resultado de
qualquer desejo positivo da parte do indivíduo no sentido de fazer as coisas que os outros
dizem que são boas; é antes uma conformidade negativa com um padrão alheio e não o
próprio, provocada pelo temor do que poderá acontecer se a pessoa fosse ela própria na
realidade. Tal concordância é em parte, portanto, uma negação de nossas verdadeiras
possibilidades, mas é também uma técnica para ocultar e preservar estas mesmas
possibilidades que, porém, arriscam-se a jamais serem traduzidas em realidades se
permanecerem inteiramente concentradas num self interior, para quem todas as coisas são
possíveis em imaginação, mas nada na realidade.
Dissemos que o falso self concorda com as intenções ou expectativas do outro, ou o
que imagina serem tais intenções ou expectativas. Isto não significa obrigatoriamente que
o falso self seja absurdamente bom. Pode ser absurdamente mau. O traço essencial do
componente de aquiescência no falso self manifesta-se na declaração de James, segundo a
qual ele era “uma resposta ao que os outros dizem que eu sou”. Isto consiste em agir segundo
a definição dos outros a respeito de si mesmo, em lugar de traduzir em ações a própria
definição de quem ou daquilo que se deseja ser. Consiste em tornar-se o que o outro deseja
ou espera que a pessoa se torne, sendo apenas a si mesmo na imaginação ou diante do
espelho. O falso self se torna aquilo que se imagina ou percebe ser aos olhos do outro.
Talvez seja um falso pecador, ou um falso santo. Na pessoa esquizóide, porém, nem todo o
ser se conforma e anui desta maneira. O split básico ocorre entre a anuência exterior e a
recusa interior à concordância.

Iago fingia ser o que não era e na verdade “Otelo” trata de modo geral do que significa
“parecer uma coisa e ser outra”. Mas não encontramos na peça, ou em qualquer outro escrito
de Shakespeare, o tratamento do dilema de parecer e ser vivido pelo tipo de pessoa que aqui
focalizamos. Os personagens de Shakespeare “parecem” capazes de realizar suas
finalidades. O indivíduo esquizóide “parece” porque teme não aparentar cumprir o que
imagina ser o propósito de alguém em relação a ele. Somente num sentido negativo cumpre
sua finalidade, na medida em que esta anuência externa é uma tentativa de preservar-se da
extinção total. Mas talvez “se vingue” atacando sua própria anuência (ver p. 110).
O comportamento exterior, que é a expressão do falso self, é com frequência
perfeitamente normal. Vemos uma criança modelo, um marido ideal, um empregado dedi-
cado. Esta fachada, porém, torna-se em geral cada vez mais estereotipada, e no estereotipo
surgem características bizarras. Novamente aqui há numerosas tendências, que só podem
ser acompanhadas uma de cada vez.
Um dos aspectos da concordância do falso self é o temor implícito na concordância.
O temor é evidente, pois por que outro motivo agiria alguém de acordo com as inteuções de
outra pessoa e não as próprias? O ódio encontra-se também obrigatoriamente presente, pois
que outra coisa seria objeto adequado de ódio senão aquilo que nos ameaça? Contudo, a
ansiedade à qual o self está sujeito exclui a possibilidade de uma direta revelação de seu
ódio, exceto, conforme veremos mais tarde, na psicose. Na verdade, o que se chama psicose
é às vezes simplesmente o súbito desvelar do falso self, que servira para manter uma
aparente normalidade de comportamento e que pode, há muito, ter deixado de ser um reflexo
do estado de coisas no self secreto. O self despeja então uma série de acusações de
perseguição às mãos da pessoa com quem o falso self esteve de acordo há anos.
O indivíduo declara então que aquela pessoa (mãe, pai, marido, esposa) vinha
tentando matá-lo, ou procurava roubar-lhe a “alma”, ou a mente. Que ele ou ela é um tirano,
um torturador, um assassino, etc. Para a presente finalidade é muito mais importante
reconhecer o sentido no qual tais “delusões” são verdadeiras, em lugar de considerá-las
absurdas.
O ódio, porém, é revelado de outra maneira bastante compatível, até certo ponto,
com a sanidade. O falso self tende a assumir cada vez mais as características da pessoa ou
pessoas em quem se baseia sua anuência. Tal suposição das características da outra pessoa
poderá chegar quase a uma total impersonação do outro. O ódio da impersonação torna-se
evidente quando esta começa a transformar-se numa caricatura.
A personificação do outro pelo falso self não é exatamente o mesmo que a anuência
à vontade, pois pode estar em direta oposição à vontade do outro. A personificação pode
ser deliberada, conforme alguns papéis representados por David. Mas pode ser também
compulsiva, como no caso de David. O indivíduo talvez não perceba até que ponto suas
ações constituem a personificação de alguém. Esta pode ser de natureza relativamente
constante e permanente, ou bastante transitória. Finalmente, a personalidade representada
pode ser mais uma figura da fantasia que de qualquer pessoa real, assim como a
concordância pode ser muito mais com uma figura da fantasia que com qualquer pessoa
real.
A personificação é uma forma de identificação pela qual uma parte do indivíduo
assume a identidade de uma personalidade que ele não é. Na personificação, não é
necessário que o personificado esteja inteiro. Em geral trata-se de uma identificação
subtotal, limitada a assumir as características do comportamento de outra pessoa — seus
gestos, maneirismos, expressões; em geral, sua aparência e ações. A personificação pode
ser um componente de identificação muito mais total com o outro, mas uma de suas funções
parece ser impedir uma identificação mais extensa (e daí uma perda mais completa da
identidade do indivíduo).
Voltando a David, suas ações parecem, desde o início de sua vida, estar em
concordância quase total e conformidade com os desejos e expectativas dos pais, isto é, ele
era uma criança modelo, que nunca criava casos. Considero o relato das primeiras origens
de comportamento particularmente sinistro quando os pais nada sentem de errado, pelo
contrário, o mencionam com evidente orgulho.
Depois que a mãe faleceu, quando ele tinha dez anos, David começou a manifestar
extrema identificação com ela; vestia suas roupas diante do espelho e cuidava da casa para
o pai, como a mãe fizera, ao ponto de cersir-lhe as meias, tricotar, coser, bordar, fazer
tapeçaria, escolher forros de poltronas e cortinas. Embora óbvio para um observador de
fora, nem o paciente, nem o pai perceberam até que ponto o primeiro se tornara parecido
com a mãe. É também claro que assim agindo o garoto obedecia a um desejo do pai, nunca
diretamente expresso e cuja existência ele próprio ignorava completamente. O falso self do
garoto já era um sistema muito complexo quando ele chegou aos quatorze anos. Não
percebia o âmbito da identificação com a mãe, mas estava intensamente cônscio de sua
tendência compulsiva a agir de modo feminino e de sua dificuldade em libertar-se do papel
de Lady Macbeth.
Para impedir-se de cair num papel feminino pôs-se deliberadamente a cultivar
outros. Embora tentasse com esforço sustentar a personificação de um escolar normal, de
quem todo mundo gostaria (que era o simples ideal do falso self aquiescente), seu falso self
tornou-se todo um sistema de personagens, alguns “possíveis” socialmente, outros não,
alguns compulsivos, outros deliberadamente desenvolvidos. Mas acima de tudo havia uma
persistente tendência para que a personificação fosse difícil de manter sem a intrusão de
algum elemento inquietante.
Em geral, surge na aparência original de perfeita normalidade e equilíbrio uma certa
esquisitice, um exagero compulsivo em direções inusitadas, que se transforma numa
caricatura e cria nos outros uma certa inquietação e embaraço, e até mesmo ódio.
Por exemplo, James “parecia”, em alguns aspectos, com o pai. Uma das
características irritantes do pai era perguntar as pessoas à mesa se estavam satisfeitas, com
tendência a insistir que comessem mais, mesmo depois de terem dito claramente que não
queriam. James “imitava-o” neste sentido: fazia sempre questão de interrogar
delicadamente os convidados à mesa. A princípio isso não parecia mais que uma generosa
preocupação para que os outros se servissem à vontade. Mas as solicitações tornaram-se
compulsivas, ultrapassando os limites do tolerável, de modo que ele se tornava
desagradável, e causava embaraço geral. Neste ponto imitava o que sentia serem as
implicações agressivas do pai e expunha tais implicações exagerando-as na sua adaptação,
para ridículo e ira gerais. Na verdade evocava nos outros os sentimentos que tinha para com
o pai, embora fosse incapaz de manifestá-los diretamente. Em vez, fazia o que vinha a ser
um comentário satírico, por intermédio de uma caricatura compulsiva.
Grande parte da excentricidade e esquisitice do comportamento esquizóide tem esta
base. O indivíduo começa por conformidade e anuência servis e termina, por meio desta
conformidade e anuência, expressando seu ódio e vontade negativa.
A concordância do sistema de falso self com a vontade dos outros alcança sua forma
mais extrema na obediência automática, ecopraxia, ecolalia e a flexibilitas cerea do
catatônico. Obediência, imitação, cópia são levadas a tal extremo que a grotesca paródia
torna-se uma indicação oculta do examinador e manipulador. O hebefrênico usa com
frequência a imitação das pessoas a quem odeia e teme como seu meio predileto e o único
de que dispõe para atacá-las. Isto talvez constitua um dos gracejos particulares do paciente.
Os aspectos mais odiados da pessoa que é objeto da identificação vêm à luz expostos
ao ridículo, ao desprezo, ou ao ódio por intermédio da personificação. A identificação de
David com a mãe tornou-se uma personificação compulsiva de uma rainha malvada.
O self secreto odeia as características do falso self, e teme-as também porque a
sugestão de uma identidade estranha é sempre sentida como uma ameaça. O self teme ser
açambarcado pela ampliação da identificação. Até certo ponto, o sistema de falso self parece
agir de maneira análoga ao sistema retículo-endotelial que isola e encerra corpos estranhos
perigosos, impedindo assim que os intrusos se espalhem pelo organismo. Mas se tal é a sua
função defensiva deve ser considerada um fracasso. O self interior não é mais verdadeiro
que o exterior. O self secreto de David tornou-se uma agência de controle, que utilizava seu
falso self como o fantoche que ele fora para sua mãe. Isto é, a sombra da mãe caíra tanto
sobre o self interior como sobre o exterior.
Uma versão instrutiva deste problema ocorreu com uma jovem de vinte anos, que se
queixava de ser tímida por ter rosto muito feio. Usava então pó muito branco e baton muito
vermelho dando-lhe, senão uma feia aparência, pelo menos uma expressão
surpreendentemente desagradável, de palhaço, de máscara, que decididamente não exibia
com vantagem seus traços fisionômicos. Em sua mente fazia tudo isso para encobrir o
quanto era feia sob a pintura. A um exame mais minucioso tornou-se evidente que a atitude
da moça em relação ao seu rosto continha de forma nuclear a questão central de sua vida:
seu relacionamento com a mãe.
Estava sempre examinando o rosto ao espelho e um dia ocorreu-lhe que tinha uma
aparência odiosa. Há anos trazia no fundo da mente a ideia de que tinha o rosto da mãe. A
palavra “odiosa” estava cheia de significados ambíguos. Odiava o rosto que via no espelho
(o da mãe). E viu também que era cheio de ódio por ela o rosto que a fitava; ela, que olhava
para o espelho, identificou-se com a mãe. Era a mãe vendo o ódio da filha, isto é, com os
olhos da mãe via seu ódio pela mãe no rosto do espelho e olhava com ódio o ódio de sua
mãe por ela mesma.
Seu relacionamento com a mãe era de superproteção do lado materno e
superdependência e concordância de sua parte. Não podia tolerar a possibilidade de odiar,
na realidade, a mãe, nem permitia a si mesma reconhecer na mãe a presença de ódio por si
mesma. Tudo o que não podia encontrar direta expressão e franco reconhecimento estava
condensado no sintoma presente. As implicações centrais pareciam ser as seguintes: via que
seu verdadeiro rosto era odioso (cheio de ódio). Odiava-o por ser tão parecido com o da
mãe. Temia o que via. Ao cobrir o rosto, tanto disfarçava o ódio como fazia um ataque por
substituição ao rosto da mãe. Um princípio similar esteve em ação pelo resto de sua vida.
Nela, a normal obediência da criança não só tornou-se passiva aquiescência a todos os
desejos da mãe, como total anulação própria, passando a tornar-se uma paródia de qualquer
coisa que a mãe poderia ter conscientemente desejado da filha. Transformou a aquiescência
num ataque e exibiu a quem quisesse ver o travesti de seu verdadeiro self, que era ao mesmo
tempo uma grotesca caricatura da mãe e uma zombeteira e “feia” versão de sua própria
obediência.
Assim, o ódio da outra pessoa focaliza-se nos traços daquele que o indivíduo
construiu em seu próprio ser e contudo, ao mesmo tempo, a adoção temporária ou pro-
longada da personalidade do outro é um meio aparentemente seguro de não ser a si mesmo.
Sob o manto de uma outra personalidade, a pessoa pode agir com muito mais competência,
tranquilidade, “responsabilidade” — para usar a expressão da sra. D., o indivíduo talvez
prefira pagar o preço de incorrer na sensação de futilidade, que é o acompanhamento
obrigatório de não ser ela própria, em vez de arriscar-se à franca experiência de impotência
assustada e perplexidade, que seria o inevitável começo de ser ela própria. O sistema de
falso self tende a tornar-se cada vez mais amortecido. Em algumas pessoas é como se elas
tivessem entregue a vida a um robô, e que (aparentemente) tornou-se indispensável.
Além da “personalidade” mais ou menos permanente exibida pelo sistema de falso
self, é possível que seja, conforme mencionamos, presa de inúmeras identificações
transitórias em pequena escala. O indivíduo descobre de repente ter adquirido um
maneirismo, um gesto, um jeito de falar, uma inflexão de voz que não é “dele”, pertence à
outra pessoa. Com frequência é um maneirismo que lhe desagrada particularmente. A
aquisição transitória de pequenos fragmentos do comportamento de outra pessoa não é
exclusivamente um problema esquizóide, mas tende a ocorrer com particular insistência e
compulsão nos fundamentos do sistema de falso self esquizóide. Todo o comportamento de
alguns esquizofrênicos pouco mais é que uma colcha de retalhos das peculiaridades dos
outros, que se tornam ainda mais peculiares pela incongruência do quadro em que estão
reproduzidas. O exemplo que damos a seguir é de uma pessoa inteiramente “normal”.
Uma estudante chamada Macallum entretinha sentimentos profundamente
ambivalentes em relação a um professor chamado Adams. Certa ocasião descobriu hor-
rorizada que havia assinado o nome como Macadams. “Seria capaz de cortar minha mão,
de tanto aborrecimento”.
Esses pequenos fragmentos dos outros parecem mergulhar no comportamento do
indivíduo como estilhaços de balas no corpo. Mantendo embora um relacionamento
aparentemente feliz e harmonioso com o mundo exterior, o indivíduo está sempre captando
esses fragmentos estranhos que (a seu ver) dele brotam inexplicavelmente. Esses
fragmentos behaviorais causam muitas vezes repulsa e horror, como no caso da estudante,
e são odiados e atacados. “Seria capaz de cortar minha mão”. Mas é claro que o impulso
destruidor dirige-se na verdade contra sua própria mão. Aquele pequeno fragmento de ação
“injetado” não pode ser atacado sem violência para o próprio indivíduo (Jean anulava seus
próprios traços atacando a mãe-no-seu-rosto).
Se todo o comportamento do indivíduo chega a alienar-se compulsivamente do self
secreto, de modo a ficar totalmente entregue à imitação compulsiva, personificação,
caricatura e também a corpos estranhos de comportamento transitório, é possível que ele
procure então despojar-se de todo o seu comportamento, o que é uma forma de desligamento
catatônico. É como se a pessoa tentasse curar uma infecção cutânea generalizada arrancando
toda a pele. Já que isto é impossível, o esquizofrênico talvez despedace, por assim dizer,
sua epiderme behavioral.

7 - Auto consciência (Self-Consciousness )


Constrangimento (self-consciousness, consciência de si mesmo) sugere, no sentido comum
do termo, duas coisas: a percepção de si mesmo e a percepção de si mesmo como objeto da
observação de outra pessoa.
Estas duas formas de percepção do self, como objeto aos próprios olhos e como
objeto aos olhos do outro, relacionam-se de perto uma coin a outra. No indivíduo
esquizóide, ambas são reforçadas e ambas assumem natureza meio compulsiva. O indivíduo
esquizóide é com frequência atormentado pela natureza compulsiva da percepção de seus
próprios processos e também pela igualmente compulsiva natureza do senso de seu corpo
como objeto no mundo dos outros. A sensação agravada de ser sempre visto, ou pelo menos
potencialmente visível, refere-se sobretudo ao corpo, mas a preocupação com ser visto pode
unir-se à ideia do self mental penetrável e vulnerável, isto é, o indivíduo sente que se pode
olhar através de sua “mente”, ou “alma”. Alude-se, em geral, a esta sensação de
“transparência” por metáforas ou comparações, mas nas condições psicóticas o olhar ou
escrutínio do outro pode ser sentido como uma verdadeira penetração no âmago do self
“interior”.
O agravamento ou intensificação da consciência do próprio ser, tanto como objeto
da própria percepção como da percepção dos outros, é associado à bem conhecida sequela
de timidez, enrubescimento e embaraço generalizado. Prontamente invoca-se uma versão
de “culpa” para responder pelo embaraço. Mas sugerir, digamos, que o indivíduo esteja
autoconsciente “porque” possui segredos culposos (por ex., masturbação) não nos leva
muito longe. A maioria dos adolescente se masturba e com frequência teme que isso se
reflita em seu rosto. Mas se a “culpa” é a chave do fenômeno, porque tem estas
consequências em particular e não outras, já que há várias maneiras de ser culpado e um
senso aprofundado de si mesmo como objeto de embaraço ou ridículo aos olhos dos outros
não é a única? A “culpa” em si mesma não nos presta aqui uma ajuda adequada. Muita gente
com profunda e arrasadora culpa não se sente autoconsciente de maneira excessiva. Além
disso é possível, por exemplo, dizer uma mentira e sentir-se culpado sem temer que a
mentira se estampe no rosto, ou se venha a ficar repentinamente cego. É na verdade um
importante feito para a criança assegurar-se de que os adultos não têm meios de saber o que
ela faz, caso não a estejam vendo; que só podem supor o que ela pensa dentro de si mesma
e não diz; que as ações que ninguém viu e os pensamentos que “guardou consigo mesma”
não são de modo algum acessíveis aos outros, a menos que ela própria as revele. A criança
que não consegue guardar um segredo, ou não pode dizer uma mentira por causa da
persistência desses temores mágicos primitivos, não firmou sua plena medida de autonomia
e identidade. É possível encontrar, sem dúvida, na maioria das circunstâncias, boas razões
para não dizer mentiras, mas a incapacidade de fazê-lo não é uma das melhores.
A pessoa autoconsciente julga ser objeto do interesse de outras mais do que na
verdade acontece. Ao caminhar pela rua e aproximar-se de uma fila de cinema precisa fazer
um esforço para ultrapassá-la, ou então prefere atravessar a rua. É um suplício entrar num
restaurante e sentar-se sozinha à mesa. Numa festa espera que dois ou três casais já estejam
dançando para se aventurar na pista, e assim por diante.
É curioso que as pessoas que sofrem de intensa ansiedade ao representar diante do
público não sejam obrigatoriamente, em geral, autoconscientes, e as pessoas que em geral
são extremamente autoconscientes talvez percam suas preocupações compulsivas com esta
questão quando se encontram diante dos outros — a mesma situação que, segundo se
suporia à primeira vista, seria para elas difícil de enfrentar.
Outras facetas dessa autoconsciência parecem novamente indicar a culpa como
chave da compreensão da dificuldade. O olhar que o indivíduo espera que os outros lhe
dirijam é de crítica desfavorável, segundo imagina quase sempre. Teme parecer um tolo, ou
que os outros pensem que ele quer exibir-se. Quando um paciente expressa tais fantasias é
fácil supor que ele tenha um desejo inconfessado de exibir-se, ser o centro de atenção, ser
superior, fazer com que os outros pareçam tolos ao seu lado, e que esse desejo é carregado
de culpa e ansiedade e, portanto, incapaz de ser sentido como tal. Situações que evoquem
fantasias de tais desejos, portanto, ao serem gratificadas perdem todo o prazer. O indivíduo
seria então um exibicionista oculto, cujo corpo estaria inconscientemente equacionado com
seu pênis. Toda vez que seu corpo está em exibição, portanto, a culpa neurótica associada
a esta via potencial da gratificação o expõe a uma forma de ansiedade de castração, que “se
apresenta” fenomenologicamente como “autoconsciência”.
A compreensão da questão em tais termos foge, acredito, ao ponto central com que
se defronta o indivíduo cuja posição existencial básica é de insegurança ontológica e cuja
natureza esquizóide é em parte uma direta expressão de, e uma ocasião para esta
insegurança ontológica, e em parte uma tentativa de dominá-la; ou, colocando a última
observação em termos um tanto diferentes, em parte uma tentativa de defender-se contra os
perigos que ameaçam o seu ser e que são consequência do fracasso em alcançar a segurança
de sua própria identidade.
A autoconsciência na pessoa ontologicamente insegura representa um duplo papel:
1. Estar cônscio de si mesmo e saber que outras pessoas estão dela conscios são um
meio de assegurar a si mesmo que existe e também que os outros existem. Kafka o
demonstra claramente no conto intitulado “Conversação com um Suplicante” — o
suplicante parte da posição existencial de insegurança ontológica, dizendo “Nunca houve
ocasião em que estivesse intimamente convencido de ser vivo”. A necessidade de estar
convicto da própria vida e da realidade das coisas é, portanto, a questão básica de sua
existência. Sua maneira de procurar adquirir esta convicção é sentir-se objeto do mundo
real; mas, já que seu mundo é irreal, ele deve ser objeto no mundo de outra pessoa, pois
objetos, para os outros, parecem reais e até tranquilos e belos. Pelo menos “... deve ser
assim, pois ouço com frequência gente referindo-se a eles nesse tom”. Daí a confissão “...
não se zangue se eu disser que é o objetivo de minha vida fazer com que as pessoas olhem
para mim” (o grifo é meu).
Outro fator é a descontinuidade do self temporal. Quando existe incerteza de
identidade no tempo há tendência a apoiar-se em meios espaciais de identificar a si mesmo.
Talvez isto explique em parte a frequência com que é importante que a pessoa seja vista.
Contudo, deposita-se às vezes maior confiança na percepção temporal de si mesmo. Isto
acontece em especial quando o tempo é vivido como uma sucessão de momentos. A perda
de uma secção na série temporal linear de momentos, por inadvertência ao próprio self
temporal, pode tornar-se uma catástrofe. Dooley (1941) dá vários exemplos desta
autoconsciência temporal, resultante em parte da “luta contra o medo da anulação” e a
tentativa de preservar a integridade “contra ameaças de dominação, destruição e perda... de
identidade...” Um de seus pacientes disse: “Esqueci a mim mesma no Carnaval no Gelo, a
noite passada. Estava tão absorta assistindo que esqueci as horas, quem era e onde me
encontrava. Quando senti de repente que não estivera pensando em mim mesma apavorei-
me. Sobreveio uma sensação de irrealidade. Não devo esquecer-me nem um só minuto.
Observo o relógio e me ocupo, senão não saberei quem sou” (p. 17).
2. Num mundo cheio de perigos, ser um objeto potencialmente visível é estar sempre
exposto ao perigo. A autoconsciência pode ser então a consciência apreensiva de si mesmo
como alguém potencialmente exposto ao perigo pelo simples fato de ser visível aos outros.
A defesa óbvia contra tal perigo é fazer-se invisível de um modo ou de outro.
No atual exemplo, a questão é sempre obrigatoriamente complexa. O suplicante de
Kafka torna o objetivo de sua vida fazer com que as pessoas olhem para ele, já que assim
mitiga seu estado de despersonalização, irrealidade e entorpecimento interior. Precisa que
outras pessoas o sintam como alguém real e vivo porque nunca se convenceu intimamente
de estar vivo. Contudo, isto implica em confiança na qualidade benigna da percepção do
outro e que nem sempre está presente. Uma vez que se torne cônscio de alguma coisa, esta
se torna irreal, embora “sempre sentisse que haviam sido reais e que agora estão se
desfazendo”. Não seria surpreendente descobrir que essa pessoa possui uma certa medida
de desconfiança da percepção dos outros em relação a ela própria. E se, afinal, os outros
dela tivessem a mesma “fugidia percepção” que ela tinha em relação aos outros? Poderia
confiar mais no consciente deles que no próprio para obter a convicção de estar vivo? De
fato, com frequência a balança se inclina de maneira decidida e então o indivíduo sente que
seu maior perigo é tornar-se objeto da percepção de alguém. O mito de Perseu e a cabeça
da Medusa, o “mau olhado”, ilusões de raios da morte, etc., são preferíveis, creio, a este
temor.
De fato, considerado biologicamente, o próprio fato de ser visível expõe o animal ao
risco de ataque de seus inimigos e animal algum deixa de tê-los. Ser visível é, portanto, um
risco biológico fundamental, ser invisível é uma defesa biológica fundamental. Todos nós
utilizamos um tipo de camuflagem. Citamos a seguir uma descrição feita por uma paciente
que utilizava uma forma de camuflagem mágica para ajudá-la a dominar a ansiedade quando
tinha doze anos.
“Estava com cerca de doze anos quando precisei ir à loja de meu pai, atravessando
um grande parque. Era uma longa e lúgubre caminhada. Suponho também que
estava meio assustada. Não me agradava a ideia, principalmente porque começava
a escurecer. Comecei então uma brincadeira para me ajudar a passar o tempo. Você
sabe como fazem as crianças — contam pedras, ou ficam de pé sobre as linhas
cruzadas da calçada. Bem, descobri um meio de passar o tempo. Pensei que se
olhasse por bastante tempo para o que me rodeava, eu me dissolveria no ambiente
e desapareceria como se o local estivesse vazio. É como a pessoa se sente quando
não sabe quem é e onde está. Mergulhar na paisagem, por assim dizer. Depois a
gente se assusta porque a sensação começa a vir sem incentivo. Eu caminhava
sentindo estar integrada na paisagem. Depois me assustava e repetia meu nome
várias vezes para voltar à vida, por assim dizer”.
É possível que aqui exista um equivalente biológico de diversas ansiedades relativas
a ser óbvio, fora do comum, distinguir-se, chamar atenção sobre si, onde as defesas
empregadas contra tais perigos consistem muitas vezes em tentativas de misturar-se com a
paisagem humana, dificultando o mais possível aos outros verificar de que modo se difere
dos demais. Oberndorf (1950), por exemplo, sugeriu que a despersonalização é uma defesa
análoga a “brincar de esconder”. Consideraremos tais defesas com maiores detalhes no caso
de Peter (Cap. 8).
Ser como os demais, ser alguém que não a si mesmo, representar um papel, estar
incógnito, não ser ninguém (psicoticamente, fingir que não se tem corpo) são defesas
erguidas com grande minúcia em certas condições esquizóides e esquizofrênicas.
A paciente acima assustou-se quando se misturou à paisagem. Depois, conforme ela
própria falou, “dizia meu nome repetidamente para voltar à vida, por assim dizer”. Isto abre
uma importante questão. Creio que seria conjeturar corretamente supor que essa forma par-
ticular de defesa contra a ansiedade só poderia ter emergido de uma base ontológica
instável. Um senso de identidade firmemente estabelecido não se perde com facilidade, não
com a rapidez com que esta menina de doze anos era capaz de perder o seu numa
brincadeira. É provável, portanto, que esta mesma insegurança ontológica ocasionasse em
parte sua ansiedade primeira e que então ela utilizasse esta fonte de fraqueza como válvula
de escape. Este princípio já foi visto em ação nos casos de James, David, sra. D. e outros.
Mergulhando na paisagem, ela perdia sua identidade autônoma, perdia na verdade seu self,
que era exatamente o que estava ameaçado quando se viu sozinha ao crepúsculo, num amplo
espaço vazio.
A expressão mais generalizada deste princípio é que quando o perigo é a perda do
ser, a defesa é cair num estado de não-ser, mantendo, porém, a reserva mental de que este
lapso não passa de uma brincadeira, de um simples fingimento.
Tillich (1952, p. 62) escreve: “A neurose é o modo de evitar não-ser evitando ser”.
O problema é que o indivíduo poderá descobrir que o fingimento esteve em fingir e que de
um modo mais real do que o esperado caíra na verdade naquele estado de não-ser que tanto
temera e no qual fora despojado de seu senso de autonomia, realidade, vida, identidade e
onde talvez não consiga recuperar fé na vida pela simples repetição de seu nome. Na
verdade, foi assim que a brincadeira da menina se descontrolou.
Quando a paciente fez por escrito a narrativa de sua vida, da qual foi retirada a
citação acima, já vinha seriamente despersonalizada há vários anos.
Neste terreno tudo é paradoxal. No capítulo 5 dissemos que o self anseia e teme ao
mesmo tempo ser realmente vivo. O self teme tornar-se vivo e real porque no processo o
risco de aniquilamento é potencialidade imediata. A “autoconsciência” está implícita no
paradoxo.
A meninazinha mergulhou na paisagem. A pessoa que com demasiada facilidade se
mistura aos outros (descrevemos maneiras em que isso ocorre no capítulo anterior), e tem
medo de por isso perder a identidade usa essa consciência do próprio self como meio de
permanecer distante e arredia. A autoconsciência passa a ajudar a suster a precária
segurança ontológica do indivíduo. Esta insistência na percepção, em especial a percepção
do self, ramifica-se em várias direções. Por exemplo — enquanto o histérico parece feliz
em esquecer e “reprimir” aspectos do seu ser, o esquizóide caracteristicamente procura
tornar a consciência de si mesmo tão intensa e ampla quanto possível.
Contudo, observou-se o quanto está carregada de hostilidade o auto-escrutínio a que
o esquizóide se submete. O indivíduo esquizóide (e isto se aplica mais ainda ao
esquizofrênico) não se aninha ao calor de um carinho por si mesmo. O auto-escrutínio é
impropriamente considerado como uma forma de narcisismo. Nem o esquizóide, nem o
esquizofrênico é narcisista neste sentido. Conforme se expressou um esquizofrênico (p.
226), sentia-se queimar sob o brilho de um sol negro. O esquizóide existe sob o sol negro,
o mau olhado de seu próprio escrutínio. O brilho de sua percepção mata a espontaneidade,
o frescor, destrói toda alegria. Tudo murcha sob aquele calor. Contudo, ele permanece, em-
bora profundamente não-nascisista, compulsivamente preocupado com a constante
observação de seus processos mentais e/ou físicos. Na linguagem de Federn, ele sonda com
fúria seu ego-como-objeto.
Algo similar foi dito em termos diferentes quando se mencionou que o indivíduo
esquizoide despersonaliza seu relacionamento consigo mesmo. Isto é, transforma a viva
espontaneidade de seu ser em algo morto e sem vida, de tanto inspecioná-lo. O mesmo faz
em relação aos outros, temendo também que o façam em relação a ele (petrificação).
Estamos agora em posição de sugerir que embora tema não estar morto — conforme
dissemos, ele teme a verdadeira vida — receia também não continuar a estar cônscio de si
mesmo. A percepção do self é ainda uma garantia, uma afirmação de sua existência, embora
tenha que viver uma morte-em-vida. A percepção de um objeto diminui seu perigo em
potencial. A mente é então uma espécie de radar, um mecanismo de busca. O objeto talvez
esteja sob controle. Como um raio da morte, a mente tem duas propriedades principais: o
poder de petrificar (transformar em pedra — transformar a si mesmo ou ao outro em
objetos); e o poder de penetrar. Assim, se é nestes termos que se sente o olhar dos outros,
existe o medo e o ressentimento constantes de ser transformado no'objeto de alguém, de ser
por ele penetrado, e de certo modo encontrar-se sob o poder e o controle de outra pessoa. A
liberdade consiste então em ser inacessível.
O indivíduo pode tentar proteger-se de tais perigos transformando o outro em pedra.
Infelizmente, como não se pode ser visto por uma pedra, a pessoa se torna, na medida em
que os outros foram reduzidos a coisas aos próprios olhos, a única pessoa que pode ver a si
mesma. O processo reverte-se então, culminando no anseio para libertar-se do
entorpecimento e intolerável autopercepção, de modo que a perspectiva de ser algo passivo,
penetrado e controlado pelo outro, pode tornar-se um alívio bem-vindo. Dentro de tal
oscilação não existe posição de tranquilidade, já que o indivíduo não tem escolha entre
alternativas praticáveis.
A preocupação compulsiva com o ser visto, ou simplesmente com ser visível, sugere
que estamos lidando com fantasias subjacentes de não ser visto, ou ser invisível. Se,
conforme verificamos, ser visível pode ser ao mesmo tempo persecutório e uma segurança
de que se está ainda vivo, então ser invisível terá igualmente sentidos ambíguos.
A pessoa “autoconsciente” encontra-se presa de um dilema. Talvez precise ser vista
e reconhecida, a fim de manter seu senso de realidade e identidade. Contudo, ao mesmo
tempo, o outro representa uma ameaça à sua identidade e realidade. Fazem-se esforços
extremamente sutis para resolver o dilema em termos do self secreto e dos sistemas de
comportamento do falso self acima descritos. James, por exemplo, julga que “as outras
pessoas me proporcionam a minha existência”. Só, sente-se vazio e ninguém. “Não me
posso sentir real, a menos que haja alguém presente...” Contudo, não pode sentir-se à
vontade com outra pessoa porque sente-se “em perigo” tanto com os outros como consigo
mesmo.
É impelido, portanto, compulsivamente, a procurar companhia, mas nunca permite-
se ser “ele próprio” na presença de alguém. Evita a ansiedade social não estando jamais na
realidade com os outros. Nunca diz exatamente o que quer dizer, ou pretende o que diz. O
papel que representa não é jamais ele próprio. Tem o cuidado de rir quando não acha a piada
engraçada e de parecer aborrecido quando se diverte. Faz amizade com pessoas de quem
não gosta realmente e mostra-se frio com aqueles com quem gostaria de travar amizade.
Ninguém, portanto, o conhece ou compreende verdadeiramente. Só pode ser ele próprio em
segurança quando isolado, embora acompanhado de uma sensação de vazio e irrealidade.
Com os outros joga um complicado jogo de fingimento e equívoco. Seu self social é falso e
fútil, ele o sente. Aquilo por que mais anseia é a possibilidade de “um momento de
reconhecimento”, mas sempre que isto ocorre por acaso, quando “se revela” por acidente,
fica dominado por confusão e pânico generalizados.
Quanto mais esconde seu “verdadeiro self”, tanto mais apresenta aos outros uma
falsa fachada e tanto mais compulsiva se torna essa falsa apresentação de si mesmo. Parece
ser extremamente narcisista e exibicionista. Na verdade odeia a si mesmo e tem medo de
revelar-se aos outros. Em vez, exibe compulsivamente o que considera meros elos
irrelevantes com os outros; veste-se com ostentação, fala alto e com insistência. Está cons-
tantemente chamando atenção sobre si e ao mesmo tempo desviando tal atenção. Seu
comportamento é compulsivo. Todos os seus pensamentos giram em torno de ser visto.
Anseia por ser conhecido. Mas é também isso o que mais teme.
Aqui, o “self” tornou-se uma entidade transcendente invisível, conhecida somente
de si mesma. O corpo em ação não é mais a expressão do self. O self não se realiza em e
por intermédio do corpo. É distinto e dissociado. O sentido implícito das ações da sra. R.
(p. 58) era o seguinte: “Sou apenas o que outras pessoas me consideram”. James jogava
com a possibilidade oposta. “Não sou o que os outros veem”. Seu aparente exibicionismo
era, portanto, um meio de evitar que as pessoas descobrissem o que, ou quem ele julgava
ser.
O adulto é incapaz de usar o fato de ser visto, ou ser invisível, como defesa contra o
outro, já que isto contém perigos, ao mesmo tempo que proporciona sua própria forma de
segurança. A que ponto podem ser complicadas tais questões será avaliado ao
considerarmos a complexidade até das mais primitivas e simples situações infantis.
É comum as crianças brincarem de ser invisíveis, ou de serem vistas. O jogo tem
diversas variações. Pode ser jogado sozinho, em frente de um espelho, ou com o conluio
dos adultos.
Em nota a sua famosa descrição (1920) da brincadeira do menino com o arco e a
corda, Freud descreve uma versão deste jogo. Vale a pena transcrever toda a passagem,
embora seja para a nota que desejo voltar particularmente a atenção.
“A criança não era absolutamente precoce no desenvolvimento intelectual. Com a
idade de ano e meio só conseguia dizer algumas palavras compreensíveis; sabia
também utilizar-se de vários sons que expressavam algo de inteligível para os que
viviam ao seu redor. Estava, porém, em bom entendimento com os pais e com a
única empregada e todos o elogiavam por ser “um bom menino”. Não perturbava
os pais à noite, obedecia conscienciosamente às ordens de não tocar determinadas
coisas, ou entrar em determinados quartos, e acima de tudo nunca chorava quando
a mãe o deixava por algumas horas. Ao mesmo tempo era muito ligado à mãe, que
não só lhe dava de comer pessoalmente, como cuidava dele sem ajuda de ninguém.
Esse bom meninozinho, porém, tinha o hábito perturbador de ocasionalmente pegar
pequenos objetos e atirá-los à um canto, debaixo da cama, etc., de modo que
procurar seus brinquedos e reuni-los era às vezes uma trabalhosa tarefa. E quando
assim agia emitia um alto e prolongado “o-o-o-o”, acompanhado de uma expressão
de interesse e satisfação. A mãe e o autor do presente relato estavam de acordo ao
julgar não se tratar de uma simples interjeição, e sim da palavra alemã "fort” (foi-
se). Percebi mais tarde tratar-se de um jogo e que o único uso que fazia de seus
brinquedos era atirá-los longe e gritar “foi-se”. Um dia fiz uma observação que
confirmava meu ponto de vista. A criança possuía uma roda de madeira com um
pedaço de barbante atado ao redor. Nunca lhe ocorrera arrastá-la pelo chão, por
exemplo, fingindo ser uma carruagem. O que fazia era segurar a roda pelo cordão
e com muita habilidade atirá-la por sobre a borda do berço encortinado, de maneira
a fazê-la desaparecer, emitindo ao mesmo tempo o seu expressivo “o-o-o-o". Em
seguida puxava novamente a roda para fora do berço, saudando seu reaparecimento
com um alegre “da” (lá). Este era o jogo completo: desaparecimento e regresso. Via
de regra só se testemunhava o primeiro ato, que era incansavelmente repetido como
uma brincadeira, embora não houvesse dúvida de que maior prazer era auferido
com o segundo”.
Freud acrescenta esta nota significativa à descrição do jogo:
“Novas observações confirmaram subsequentemente esta interpretação. Um dia, a
mãe da criança esteve ausente por diversas horas e ao voltar foi recebida com as
palavras “Baby o-o-o-o!”, a principio incompreensíveis. Breve revelou-se, porém,
que durante esse longo período de solidão a criança encontrara um método de fazer
com que ela própria desaparecesse (o grifo é meu). Havia descoberto seu reflexo
num espelho grande, mas que não chegava até ao chão, de modo que agachando-se
podia fazer “desaparecer” sua imagem ao espelho”.
Assim, o meninozinho não só brincava de fazer a mãe desaparecer, como também
de fazer a si mesmo desaparecer. Freud sugere que ambos os jogos devem ser
compreendidos como tentativas para dominar a ansiedade de uma situação perigosa
repetindo-a com frequência numa brincadeira.
Se é assim, o temor de ser invisível, desaparecer, está relacionado de perto com o
temor do desaparecimento da mãe. Parece que a perda da mãe, em certa idade, ameaça o
indivíduo com a perda de si mesmo. A mãe, porém, não é simplesmente uma coisa que a
criança vê, mas uma pessoa que vê a criança. Sugerimos, portanto, que um componente
necessário ao desenvolvimento do self é a experiência de si mesmo como pessoa sob o olhar
carinhoso da mãe. O comum das crianças vive quase incessantemente sob o olhar de adultos.
Mas ser visto é apenas um dentre inúmeros modos pelos quais a criança total recebe atenção.
Cuida-se dela observando-a, acariciando-a, embalando-a, abraçando-a, atirando-a para o
alto, banhando-a. Seu corpo é manejado de um modo como jamais voltará a ser. Certas
mães reconhecem e reagem aos processos “mentais” do filho, mas não sabem aceitar de
maneira sensível a sua realidade corpórea e vice-versa. É possível que uma falha de
sensibilidade por parte da mãe em relação a um ou outro aspecto do ser da criança venha a
ter importantes consequências.
Outras considerações sobre aquilo que o menino realizava com a brincadeira
sugerem que ele era capaz, segundo presumia Freud, de fazer-se desaparecer não vendo seu
reflexo no espelho; isto é, se ele não se podia ver ali, então é porque havia “desaparecido”;
assim, empregava a pressuposição esquizóide com a ajuda do espelho, de modo a haver dois
“eles”, um lá e outro aqui. Assim dominando ou tentando dominar a perda ou ausência do
outro real, a cujos olhos vivia, movimentava-se e possuía seu ser, tornava-se outra pessoa
para si mesmo, de que se podia olhar do espelho.
Embora a “pessoa” a quem ele via no espelho não fosse nem ele próprio, nem outra
pessoa, mas apenas um reflexo dele mesmo, quando não mais pode ver aquela outra imagem
refletida de si própria ao espelho, desapareceu, possivelmente da maneira que julgou ter
desaparecido quando não mais se sentiu sob observação, ou em presença da mãe. Emerja a
ameaça do outro real da contingência de que esse outro pode em qualquer ocasião afastar-
se, morrer, ou deixar de retribuir os nossos sentimentos, ou represente o outro mais
diretamente uma ameaça na forma de implosão ou penetração, a pessoa esquizóide
procurará à maneira do menino, ser um espelho para si mesma, transformando seu self, uma
semidualidade de unidade geral, em dois self’s, isto é, numa verdadeira dualidade. Nesse
meninozinho, dos “dois self’s”, o verdadeiro fora do espelho era aquele que, segundo se
imagina, deveria estar mais identificado com a mãe. Esta identificação do self com a
fantasia da pessoa por quem é visto pode contribuir de maneira decisiva para as
características do self que observa. Conforme ficou dito acima, este self que observa com
frequência mata e faz fenecer qualquer coisa que esteja sob seu escrutínio. O indivíduo
possui então um observador que o persegue no próprio âmago do seu ser. É possível que a
criança passe a ser dominada pela presença estranha e destruidora do observador que se
tornou mau em sua ausência, ocupando o lugar do self observador, do próprio menino do
lado de fora do espelho. Se isto acontecer, ele conserva a consciência de si mesmo como
objeto aos olhos alheios observando-se como o outro: empresta-lhe seus olhos para que
continue a ser visto, tornando-se então um objeto aos próprios olhos. Mas a parte de si
mesmo que olha para ele e o vê adquiriu os traços persecutórios que ele passou a atribuir à
pessoa real que lhe é externa.
O jogo do espelho pode ter variações peculiares. A doença de um homem tornou-se
manifesta quando ele olhou para o espelho e viu também outra pessoa (na verdade seu
próprio reflexo): “ele”. “Ele” seria seu perseguidor numa psicose paranóide. “Ele” era o
instigador de um plano para matá-lo (isto é, ao paciente) e ele (o paciente) estava decidido
a “atravessá-lo com uma bala” (seu self alienado).
No jogo desse meninozinho, ele, na posição da pessoa que o observava, isto é, sua
mãe, estava de certo modo matando a si mesmo por processo mágico: matava a própria
imagem refletida no espelho. Teremos ocasião de voltar mais tarde a este peculiar estado
de coisas ao estudar a esquizofrenia. Fazer-se desaparecer e depois voltar deve ter tido
significado similar ao do seu outro jogo, isto é, fazer com que a mãe (simbolicamente)
desaparecesse e reaparecesse. O jogo só tem sentido, porém, se acreditarmos que existe uma
situação perigosa para ele, não apenas em não ver a mãe, mas também em não se sentir visto
por ela. Nesse estágio, esse = percipi, não só no que se refere aos outros, como também em
relação ao self.
Aos dois anos e meio, uma de minhas filhas brincava de modo semelhante. Eu tinha
que cobrir os olhos com as mãos à ordem de “Não nos veja”. Depois, à ordem de “Veja-
me” eu tinha que afastar de repente as mãos e fingir surpresa e alegria por vê-la. Tinha
também que olhar para ela e fingir que não a via. Brinquei assim com outras crianças. Não
se trata de não vê-las fazer algo de errado. Toda a questão parece residir no fato de se
julgarem temporariamente invisíveis. Não se trata da criança não me ver. Observa-se
também que nenhuma separação física verdadeira ocorre no jogo. Nem o adulto, nem a
criança precisa esconder-se ou desaparecer na realidade. É uma versão mágica do jogo às
escondidas.
A criança que chora quando a mãe desaparece da sala é ameaçada pelo
desaparecimento de seu próprio ser, já que também para ela percipi = esse. Somente na
presença da mãe é capaz de viver, movimentar-se e possuir um ser de maneira plena. Por
que as crianças querem que se deixe a luz acesa à noite e pedem com frequência que os pais
fiquem ao seu lado até que a adormeçam? É possível que um aspecto dessa necessidade seja
a criança assustar-se caso não possa ver mais a si mesma, ou não se sinta vista por outra
pessoa; nem ouça outras pessoas, ou seja por elas ouvida. Adormecer consiste,
fenomenologicamente, na perda da percepção tanto do próprio ser como do mundo. Isto
pode ser em si mesmo assustador, de modo que a criança necessita sentir-se vista ou ouvida
por outra pessoa, enquanto está perdendo a percepção de si mesma no processo de
adormecer. No sono, apaga-se a luz “interior” que ilumina a pessoa. Deixar a luz acesa
proporciona não só a segurança de que se ela despertar não haverá terrores na escuridão,
como a segurança mágica de que durante o sono está sendo observada por presenças
benignas (pais, boas fadas, anjos). Pior ainda, talvez, que a possível presença de coisas más
no escuro é o terror de que nas sombras não exista nada e ninguém. Não estar cônscio de si
mesmo, portanto, pode ser equacionado com a não-entidade. O esquizóide assegura a si
mesmo que existe estando sempre cônscio de si próprio. Contudo, é perseguido por esse
mesmo insight e lucidez.
A necessidade de ser notado não é, naturalmente, mera questão visual. Estende-se à
necessidade geral de ter a própria presença endossada ou confirmada por outros, a
necessidade de que sua existência total seja reconhecida; a necessidade, de fato, de ser
amado. Assim, as pessoas que não podem sustentar dentro de si mesmas o senso da própria
identidade ou, como o suplicante de Kafka, não possuem uma convicção interior de estarem
vivas talvez julguem ser reais somente quando sentidas como tais por outrem, como no caso
da sra. R. (p. 58,) ameaçada de despersonalização quando não podia ser reconhecida, ou
imaginar-se reconhecida e correspondida por alguém que a conhecesse bastante para que o
reconhecimento e a reação a ela fossem significativos. A necessidade de ser vista baseava-
se na equação: “Sou a pessoa que as outras pessoas conhecem e reconhecem em mim”.
Precisava da confirmação tangível da presença de alguém que a conhecesse e diante de
quem suas incertezas relativas a si própria fossem temporariamente afastadas.

8 - O Caso de Peter
“Não gosto da palavra psicológico.
Psicológico não existe. Digamos que se
pode melhorar a biografia da pessoa”.
Jean-Paul Sartre

No caso a seguir, veremos bem concretizadas diversas das questões debatidas nos dois
últimos capítulos.
Peter era um rapaz alto de vinte e cinco anos e parecia a própria imagem da saúde.
Veio procurar-me queixando-se de que dele emanava constantemente um cheiro
desagradável. Sentia-o nitidamente, mas não tinha certeza se era o tipo de odor que os outros
sentiriam. Julgava emanar particularmente da parte inferior do corpo, da região genital. Ao
ar livre parecia cheiro de queimado, mas em geral era algo azedo, rançoso, velho, estragado.
Lembrava-lhe o cheiro de fuligem, sujeira e bafio de uma sala de espera de estrada de ferro;
ou o cheiro que emana das privadas dos bairros miseráveis em que se criara. Não conseguia
fugir a ele, embora tomasse vários banhos por dia.
A seguinte informação a respeito de sua vida foi-me adiantada por um irmão de seu
pai:
Os pais não eram pessoas felizes, mas mantinham-se unidos. Estavam casados há
dez anos quando o garoto nasceu. Eram inseparáveis. O bebê, filho único, não alterou-lhes
a vida. Dormia no mesmo quarto que os pais desde que nasceu até depois de sair da escola
primária. Os pais nunca se mostravam francamente desagradáveis para ele. O garoto estava
sempre em sua companhia, no entanto tratavam-no simplesmente como se não estivesse
presente.
A mãe, prosseguiu o tio, nunca soube dedicar-lhe afeição, uma vez que ela própria
nunca a havia recebido. Criado à custa de mamadeira ganhou bom peso, mas nunca era
acariciado, ninguém brincava com ele. Quando bebê estava sempre chorando. A mãe,
porém, não o rejeitou abertamente, nem o negligenciou. Era bem alimentado e vestido.
Passou a infância e adolescência sem quaisquer peculiaridades notáveis. A mãe, porém,
segundo o tio, mal o notava. Era uma bonita mulher, gostava de vestir-se bem e ser
admirada. O pai gostava de vê-la assim, comprava-lhe roupas quando podia e tinha muito
orgulho em ser visto ao lado de sua atraente esposa.
O tio achava que, embora o pai gostasse muito do garoto à sua maneira, algo parecia
impedi-lo de demonstrar afeição pelo filho. Inclinava-se a ser rabujento, a descobrir defeitos
e de vez em quando batia-lhe sem verdadeiro motivo, humilhando-o com observações do
tipo “Eustace inútil”, “Você não passa de um banana”. O tio lamentava tudo isso por que
quando o garoto se saiu bem na escola e mais tarde quando conseguiu emprego num
escritório, um grande passo à frente na escala social para aquela família muito pobre, sentiu-
se “terrivelmente orgulhoso do garoto”; foi “um terrível golpe” quando o filho mais tarde
não revelou qualquer espécie de ambição.
Foi um garoto solitário e era sempre muito bem comportado. Aos nove anos, uma
menina de sua idade que vivia na casa ao lado ficou cega durante um bombardeio aéreo no
qual seus pais morreram. Por vários anos passou com a menina a maior parte do tempo,
demonstrando inesgotável paciência e bondade, ensinou-lhe a andar pelo bairro, levava-a
ao cinema, sentava ao seu lado e contava-lhe o filme. A menina recuperou em parte a visão
e contou ao tio do menino que devia a vida ao seu sobrinho, porque ele fora a única pessoa
que tivera realmente tempo para ela quando estava cega, sem amigos, sem ninguém que
pudesse ou quisesse assumir o papel de seus pais falecidos.
Quando o garoto estava nos últimos anos da escola, o tio interessou-se especialmente
por ele e, graças ao seu incentivo e providências, ingressou no escritório de um advogado.
O garoto deixou o emprego após alguns meses, não por falta de interesse, mas porque,
novamente por intermédio do tio, conseguiu trabalho num escritório de armadores.
Permaneceu na firma até ser chamado para o serviço militar. No exército, por seu próprio
pedido, cuidava dos cães da patrulha e ao sair, após dois anos sem incidentes, “partiu o
coração do pai” literalmente “atirando-se aos cães”, isto é, obtendo emprego num canil e
numa pista de corridas de cães. Deixando ambos os empregos após um ano, passou cinco
meses executando diversas tarefas sem habilitação e, em seguida, sete meses sem fazer nada
absolutamente. Foi então que consultou um clínico queixando-se do mau cheiro. Como este
na verdade não existia, o médico orientou-o para um psiquiatra.
O paciente descreveu sua vida da seguinte maneira:
Com respeito ao seu nascimento, tinha a impressão de que não fora desejado nem
pelo pai, nem pela mãe e até que nunca lhe haviam perdoado por ter nascido. Sua mãe
ressentia-se de sua presença no mundo porque ele lhe alterara a silhueta e a magoara ao
nascer. Afirmava que ela lhe dissera isto com frequência durante a infância. O pai ressentia-
se pelo simples fato dele existir. “Ele nunca me deu um lugar no mundo...” Achava também
provável que o pai o odiasse pelo sofrimento que causara à mãe ao nascer, dispondo-a contra
as relações sexuais. A sua impressão é de que entrara na vida como um ladrão e um
criminoso.
Recordemos a declaração do tio no sentido de que os pais estavam muito envolvidos
um com o outro, tratando-o como se não estivesse presente. A relação entre ser ignorado e
a autoconsciência está bem expressa na seguinte transcrição de uma gravação feita no
decorrer de nossa segunda entrevista:
PETER: ... sempre me lembro de ter tido uma espécie de consciência de mim mesmo,
de autoconsciência. Eu era, de certo modo, óbvio, compreende?
Eu: Óbvio?
P.: Sim, óbvio. Estar simplesmente ali... era o mesmo que estar cônscio de mim
mesmo.
Eu: Estar ali?
P.: Ora, estar simplesmente, acho. Ele (o pai) costumava dizer que eu tenho sido um
motivo de irritação para ele desde que nasci.
Eu: Motivo de irritação?
P.: Sim, Eustace Inútil era o meu apelido, um grande “banana”.
Eu: Você se sentia culpado pelo simples fato de estar presente.
P.: Bem, sim, não sei bem... pelo simples fato de estar no mundo, creio.
Disse que em criança não se sentia solitário, embora estivesse sozinho quase todo o
tempo, mas “solitário não é o mesmo que estar sozinho”.
Possuía o que era provavelmente “memória visual”, desde os quatro ou cinco anos,
quando a mãe lhe dizia, ao surpreendê-lo brincando com o pênis, que ele não cresceria se
fizesse aquilo. Aos sete ou oito anos houve alguns episódios de natureza sexual com uma
menina de sua idade, mas só começou a masturbar-se com cerca de quatorze anos. Tudo
isso era de grande importância para ele e servia para intensificar sua autoconsciência. Todas
as primeiras recordações que relatou a mim referiam-se a incidentes sexuais, e eram
narradas sem o menor calor. Levou vários meses para mencionar, de modo casual, a menina
cega, Jean.
Na escola secundária, seus sentimentos com relação a si mesmo estavam
definitivamente cristalizando-se. Na medida em que é possível reconstituí-los, começava a
ressentir a crescente impressão de que todo mundo o estava colocando numa falsa posição.
Sentia-se sob a obrigação diante do professor e dos pais de ser alguém, destacar-se, embora
sentisse que de um lado isso era impossível e de outro, injusto. Achava que devia esgotar
todo o seu tempo e energia procurando ser algo de que o pai, a mãe, o tio e o professor se
orgulhassem. Contudo, estava convicto de não ser ninguém e nada valer e que todos esses
esforços para destacar-se eram um engano e uma fraude. O professor, por exemplo, queria
que “falasse corretamente” e usasse roupas “da classe média”. Mas isso era tentar fazer dele
o que não era. Mandavam-no, a ele que se masturbava secretamente, ler a Bíblia para os
outros alunos da escola, apontando-o como modelo. Quando alguém dizia que devia ser
ótimo ler a Bíblia tão corretamente, ele ria consigo mesmo, irônico. “Isso demonstra que eu
era um bom ator”. Contudo, além de sentir que não era a pessoa que fingia ser, não sabia o
que desejava tornar-se. Junto ao sentimento da própria indignidade havia a crescente
impressão de que era alguém de muito especial, enviado por Deus para cumprir uma missão,
mas quem, ou o que... ele não sabia dizer. Entretanto, ressentia-se profundamente contra o
que julgava serem esforços gerais para torná-lo um santo, e que eram “mais ou menos para
obter crédito para si mesmo”. Foi sem alegria, portanto, que trabalhou no emprego de
escritório. Passou a odiar cada vez mais, as mulheres em particular. Tinha consciência de
odiar os outros, mas não lhe ocorreu que os temia. Por que temeria “se não podiam impedir-
me de pensar o que quisesse?” Nisto, é claro, está implícito que “eles” tinham o poder de
coagi-lo a fazer o que queriam, mas enquanto se curvasse exteriormente aos seus desejos
evitaria sentir a ansiedade que, supomos, levou-o a dobrar-se diante dos outros e raramente
revelar-se a eles.
Foi no segundo escritório que sentiu pela primeira vez as crises de ansiedade. A essa
altura, a principal questão para ele critalizara-se em termos de ser sincero, ou ser hipócrita;
ser autêntico, ou representar um papel. Sabia que era um hipócrita, um mentiroso, uma
fraude, um fingimento e o importante era saber por quanto tempo conseguiria enganar aos
outros antes que o desmascarassem. Na escola julgava ter conseguido em grande parte.
Contudo, quanto mais simulasse o que considerava seus verdadeiros sentimentos e fizesse
e pensasse o que precisava ser mantido oculto de todos os outros, tanto mais passava a
observar o rosto das pessoas, a fim de descobrir o que imaginava que pensavam ou sabiam
a seu respeito. No escritório, o que considerava “seus verdadeiros sentimentos” eram em
grande parte fantasias sado-sexuais relativas as suas colegas do sexo feminino, em particular
uma mulher que, segundo julgava, parecia respeitável, mas era provavelmente uma
hipócrita como ele próprio. Costumava masturbar-se no banheiro do escritório evocando
tais fantasias e uma vez, conforme acontecera previamente com sua mãe logo depois de
assim agir, encontrou a mulher que estivera violentando mentalmente. Ela fitou-o do modo
direto, dando-lhe a impressão de penetrá-lo até o âmago do ser, vendo o que ele estivera
fazendo com ela. Sentiu-se dominado pelo pânico. Não conseguia mais acreditar que era
capaz de esconder suas ações e pensamentos dos outros. E em particular, conforme
declarou, não confiava mais em que seu rosto “não o traísse”. Ao mesmo tempo começou a
apavorar-se à idéia de que o cheiro do sêmen o desmascarasse.
Foi neste estado que ingressou no exército. Terminou o serviço militar, porém, sem
sinais exteriores da perturbação interna. De fato, parece ter adquirido uma aparência de
normalidade, Iibertando-o até certo ponto da ansiedade. Seu senso de ter realizado isto foi
muito interessante e importante. A aparente normalidade foi consequência de uma
deliberada intensificação do split entre o “verdadeiro” self e o “falso” self exterior,
executado de maneira bastante calculada. Isto manifestou-se num sonho que teve na época:
encontrava-se num carro à grande velocidade. Saltou, machucando-se, mas não gravemente,
enquanto o veículo prosseguia e se despedaçava. Tirou assim lógica mas desastrosa
conclusão para o jogo que vinha jogando consigo mesmo há algum tempo. Finalmente fez
uma opção tão completa quanto lhe era possível, dissociando-se tanto de si mesmo quanto
dos outros. O efeito imediato foi uma queda na ansiedade, que lhe possibilitou parecer
normal. Mas não foi só o que fez, nem foram estas as únicas conseqüências.
A sensação de inutilidade, carência de objetivo de futilidade tornou-se mais
acentuada, assim como a convicção de não ser pessoa alguma “na realidade”. Sentia ser
inútil continuar a fingir, foi o que disse a si mesmo nas seguintes palavras: “Não sou
ninguém, neste caso nada farei”. Estava decidido então não só a dissociar-se do seu falso
self, como a destruir tudo o que parecia ser. “Derivava uma certa satisfação irônica do fato
de ser menos ainda do que julgava ser, ou daquilo que me consideravam...”
Julgara sempre estar, em suas próprias palavras (que por acaso eram também as de
Heidegger), “nos limites do ser”, com um pé na vida e sem direito sequer a isso. Achava
não estar realmente vivo e de qualquer modo não ter o valor e dificilmente o direito à
pretensão de viver. Imaginou-se por fora de tudo, no entanto acalentou por algum tempo
uma fagulha de esperança. Talvez as mulheres ainda guardassem o segredo. Se conseguisse
ser amado por uma mulher, talvez pudesse dominar a sensação de indignidade. Mas esta via
foi bloqueada pela convicção de que qualquer mulher que com ele se envolvesse só poderia
ser tão vazia quanto ele próprio, e o que quer que dela obtivesse, tomada ou dada
voluntariamente, só poderia ser tão sem valor como o material de que ele era feito. Qualquer
uma que fosse menos fútil não quereria saber dele, sobretudo no âmbito sexual. Todo o seu
relacionamento sexual real com mulheres era inteiramente promíscuo e por intermédio delas
jamais conseguira romper seu “fechamento”. Com a única moça a quem considerava “pura”
manteve um relacionamento tênue e platônico durante alguns anos, mas foi incapaz de
traduzi-lo em algo mais profundo. Talvez concordasse com Kierkegaard se o houvesse lido,
o que não aconteceu, no sentido de que se tivesse fé casaria com a sua Regina.
É preciso indagar por que levou tanto tempo para me falar nesta amizade, que foi
sem dúvida uma das coisas mais significativas de sua vida e que talvez o tenha ajudado a
não se tornar francamente esquizofrênico na adolescência. Era muito característico de Peter
e desse tipo de pessoa ocultar aos outros exatamente isso, embora não tivesse inibições para
falar de incidentes sexuais promíscuos na infância, masturbação e fantasias sádicas de tipo
sexual na vida adulta.

ARGUMENTAÇÃO

Na medida em que pude verificar, Peter nunca se sentira “à vontade” em seu corpo ou no
mundo. Sentia-se desajeitado, embaraçado, óbvio. É bom recordar as palavras do tio em
relação à mãe narcisista que não o acariciava, nem brincava com ele. Mesmo sua presença
física no mundo mal era reconhecida. “Tratavam-no como se não estivesse presente”. Não
só se sentia embaraçado e óbvio, como culpado pela simples razão de “estar no mundo”.
Parece que a mãe só tinha olhos para ela própria. Era cega em relação a ele. O
menino não era visto, Não foi por simples acaso que se tornou tão bom companheiro, quase
mãe, da meninazinha cega, que não podia vê-lo. Houve diversas facetas nesta amizade, mas
um aspecto importante foi a segurança que sentia junto dela, já que podia vê-la e não ela a
ele. Além disso, a menina precisava dele desesperadamente; deu-lhe seus olhos e é claro
que podia dar-se ao luxo de ter pena dela, o que não acontecia em relação à mãe. A menina,
os cães patrulheiros e os do canil foram as únicas criaturas vivas a quem podia demonstrar
e de quem recebia afeição espontânea.
Com quase todos os demais principiou a agir pelo sistema de falso self, baseado em
concordância com os desejos e ambições dos outros em relação a ele. À medida que se
reduzia a idéia do que pertencia de direito ao seu “verdadeiro” self, este começou a sentir-
se cada vez mais vulnerável e eie mais e mais assustado à idéia de que os outros pudessem
penetrar sua falsa personalidade e mergulhar no santuário interior de suas fantasias e
pensamentos secretos.
Conseguiu utilizar-se com aparente normalidade de duas técnicas a que chamou
“desconexão” e “desligamento”. Desconexão, para ele, era a ampliação da distância
existencial entre o self e o mundo. Desligamento era a cisão entre qualquer relacionamento
de seu “verdadeiro” self e o falso self repudiado. Tais técnicas consistiam fundamentalmente
em evitar ser descoberto e apresentavam diversas variações. Por exemplo: quando estava
em casa e entre pessoas conhecidas sentia-se embaraçado e pouco à vontade até conseguir
colocar-se num papel que não era ele e que considerasse um bom disfarce. Em seguida,
dizia, conseguia “desligar” o “self das ações e agir tranquilamente, sem ansiedade. Não era,
porém, uma solução satisfatória de suas dificuldades, e por diversas razões. Caso fosse
consistentemente incapaz de colocar o self nas ações por um prolongado período de tempo
ressentia, com crescente intensidade, a falsidade de sua vida, a falta de vontade para fazer
o que quer que fosse, uma constante sensação de tédio. Além disso, a defesa não era perfeita,
pois de vez em quando era pegado desprevenido e sentia que um olhar ou uma observação
penetravam até o “âmago” do seu self. A sensação de estar “em perigo” diante do olhar dos
outros tornava-se cada vez mais persistente e difícil de ser afastada pelo truque de não
permitir que lhe vissem o “self”. Sentia às vezes, e tinha dificuldade em afastar a impressão,
que conseguiam ver através seu fingimento.
A preocupação com ser visto era, creio, uma tentativa de recuperar-se da sensação
subjacente de não ser ninguém (não tinha corpo). Havia uma inadequação primária na
realidade de sua vivência de si mesmo como ser personificado e era daí que surgia esta
preocupação com o seu corpo-para-os-outros, isto é, seu corpo era visível, audível, tocável
pelo outro. Por mais penosa que fosse esta autoconsciência, originava-se inevitavelmente
no fato de estarem suas experiências materiais tão desligadas de seu self que ele precisava
da consciência de si mesmo com objeto real para os outros a fim de assegurar-se,
indiretamente, de possuir uma existência tangível.
Além do mais, a ilusão relativa ao cheiro que dele emanava tornou-se mais difícil de
afastar.
Descobriu, porém, outra maneira de ajustar-se a essas ansiedades e que tinha as
vantagens opostas às desvantagens. Achava que poderia ser ele próprio com os outros se
estes nada soubessem a seu respeito. Contudo, isto era uma exigência demandando
realização minuciosa. Significava que ele precisaria ir para uma parte do país onde fosse
um “estranho”. Viajava de um lugar para outro, jamais permanecendo bastante tempo para
se tornar conhecido e usando cada vez um nome diferente. Em tais condições sentia-se
(quase) feliz por algum tempo. Estava “livre”, podia ser “espontâneo”. Era até capaz de ter
relações sexuais com qualquer jovem. Não era “autoconsciente” e não “fazia associações”.
As idéias não mais lhe ocorriam porque a separação interior de self e corpo tornara-se
desnecessária. Sendo incógnito, já podia encarnar-se. Caso se tornasse conhecido, porém,
precisava reverter à posição incorpórea.
A fantasia de ser anônimo, incógnito, ou estranho em terra estranha, que ele punha
em ação é bastante comum em pessoas com ideias de referência. Julgam que se pudessem
afastar-se dos colegas de trabalho, sair de sua cidade, começar tudo de novo, todos os
problemas se resolveriam. Em geral passam de um emprego a outro, de uma cidade à outra.
Esta defesa funciona por algum tempo, mas só dura enquanto durar o anonimato; é muito
difícil não ser “descoberto”; e tais pessoas tendem a tornar-se desconfiadas e cautelosas
como um espião em território inimigo, pensando que os outros estão tentando “surpreendê-
los”, para que “se revelem”.8
Peter, por exemplo, hesitava mesmo em cidade estranha ao entrar numa barbearia.
Sua ansiedade em relação ao barbeiro não era primordialmente uma expressão do temor da
castração, pelo menos não no sentido costumeiro do termo. Temia antes ser obrigado a res-
ponder a perguntas a respeito de si próprio, por mais inocentes que fossem, como por
exemplo: “Gosta de futebol?” “Que acha do sujeito que ganhou o grande prêmio na loteria?”
etc. Na cadeira do barbeiro estava acuado, era uma situação de pesadelo na qual, enquanto
lhe cortavam os cabelos, privavam-no também do anonimato, forçando-o a comprometer-
se, cristalizando-o por um momento em alguém definido. “Enquanto as pessoas gostam, em

8
Não estou sugerindo que todas as associações devam ser entendidas nestes termos.
geral, de dizer que vieram deste ou daquele lugar, trabalharam neste ou naquele emprego,
ou conheceram tais e tais pessoas, eu tento o mais possível não revelar de onde vim, o que
faço, ou quem conheço...”
Similarmente era incapaz de freqüentar uma biblioteca pública, ou possuir qualquer
cartão com seu nome. Em vez, pedia livros emprestados em diferentes bibliotecas de toda
a cidade, nas quais se registrava com nome e endereço falsos. Se achasse que o bibliotecário
passara a “reconhecê-lo” não voltava ao local.
Embora a defesa fosse difícil de manter, já que exigia, para ser bem sucedida, tanto
esforço, habilidade e vigilância como a de um espião em território inimigo, enquanto
sentisse que não fora “descoberto”, ou “reconhecido”, o método servia para libertá-lo da
necessidade de estar constantemente “separado” e “desligado”. Mas exigia um estado
constante de alerta ansioso, já que nunca se sentia fora de perigo. A esta altura, porém, a
situação, embora difícil, não era totalmente desesperada. Tornara-se crítica pelo modo com
que seu sistema de defesa esquizóide, que era todo o seu modus vivendi, sua tentativa de
descobrir um meio praticável de viver no mundo, tornou-se um projeto intencional de auto-
aniquilamento. Quando isto aconteceu, sua precária sanidade ultrapassou o ponto crítico e
tornou-se uma psicose.

VERDADEIRA E FALSA CULPA

Devemos considerar agora com maior minúcia o sentimento de culpa a que Peter estava
sujeito e suas conseqüências. Devemos lembrar que ele não só se sentia embaraçado e óbvio,
como culpado “simplesmente por encontrar-se no mundo”. Neste plano, a culpa não se
ligava a nada que tivesse pensado ou feito; julgava não ter direito de ocupar espaço. Não
apenas isso; tinha a profunda convicção de que a matéria de que era constituído estava
podre. As fantasias de relações anais e da geração de crianças feitas de fezes eram
expressões de tal convicção. Os detalhes dessas fantasias não nos interessam no momento,
senão na medida em que contribuíram para a sua apercepção de si mesmo como algo
constituído de muco e esterco. Se o pai dissera que ele não passava de “um banana”, ele foi
mais além. Convicto de ser um inútil monte de esterco, sentia-se culpado por parecer ter
valor aos olhos dos outros.
Sentia-se mal por masturbar-se. Contudo, o ponto crucial de seu sentimento de culpa
revelava-se, creio, na curiosa descoberta de que quando se entregava à masturbação
intensificava-se seu sentimento de inutilidade, e quando realmente decidia nada ser e nada
fazer, o cheiro que sentia em si mesmo tornava-se intolerável. Conforme disse mais tarde,
referindo-se a esse cheiro: “Era mais ou menos o que eu sentia por mim mesmo. Era na
verdade uma forma de autodesprezo”. Isto é, cheirava tão mal para si próprio que mal podia
se suportar.
Possuía, na verdade, duas fontes de culpa falsas e opostas; uma impelia-o no sentido
da vida, a outra, da morte. Uma era construtiva, a outra, destrutiva. Os sentimentos a que
induziam eram diferentes, mas ambos intensamente penosos. Se fazia algo que era uma
expressão de auto-afirmação, no sentido de ser uma pessoa de valor, real e viva, diziam-lhe
que “isto é falso, um fingimento. Você nada vale”. Contudo, se persistia, recusando-se a
endossar este falso juízo da consciência, sentia-se menos fútil, irreal, morto e não cheirava
tão mal. Por outro lado, se tentasse resolutamente nada ser, julgava ainda que tudo era
falsidade e engano, sofria de ansiedade e sentia-se compulsivàmente cônscio de seu corpo
como objeto da percepção de outras pessoas.
O pior efeito de todos os seus esforços para nada ser era um entorpecimento que se
abatia sobre toda a sua existência. Esse entorpecimento permeava sua experiência do “self
desligado”, a experiência de seu corpo e a percepção do mundo “desconectado”. Tudo co-
meçou a imobilizar-se. O mundo começou a perder qualquer realidade que para ele tivesse
e ele passou a sentir dificuldade em imaginar que possuía qualquer existência-para-os-
outros. E, o que era pior, começou a sentir-se “morto”. Graças a sua subseqüente descrição
desta sensação de estar “morto” foi possível verificar que ela incluía a perda do senso de
realidade e vida corpórea. O âmago desta sensação era a ausência da experiência de seu
corpo como objeto-real-para-os-outros. Passara a existir somente para si mesmo (de
maneira intolerável), deixando de sentir que possuía qualquer existência aos olhos do
mundo.
Parece provável que em tudo isso estivesse lutando com uma brecha primária na
experiência bi-dimensional de si mesmo, da qual o tratamento dos pais, ou antes a ausência
de atenção, o haviam privado. Sua preocupação compulsiva (que considerava extremamente
desagradável) com o fato de ser palpável, cheirável, etc. para os outros era uma desesperada
tentativa de considerar as dimensões de um corpo vivo, isto é, um ser-para-os-outros. Mas
precisava “fazer apelo” a um senso desta dimensão para o seu corpo de maneira secundária,
artificial e compulsiva. Era uma dimensão de sua experiência que não se firmara num
sentido primário na situação original infantil e a brecha não fora preenchida por um ulterior
sentimento de ser amado e respeitado como pessoa, e sim pela sensação de que praticamente
todo amor ocultava perseguição, já que tinha por objetivo transformá-lo em algo do outro
— uma pena no chapéu de professor, conforme dizia.
Embora o paciente houvesse encontrado dificuldades na escola e no trabalho e apesar
de sentir que era uma fraude uma simulação nos tempos de colegial e experimentasse pânico
no escritório, foi mais particularmente ao começar a cultivar os splits em seu ser que sua
condição assumiu um aspecto sinistro. Dizia tentar “desligar-se de tudo”, o que é verdade;
a isto acrescentava o método de “desconectar-se”. Tentava assim cortar as cadeias que
relacionavam diferentes aspectos do seu ser e em particular procurava não estar “em” suas
ações ou expressões — não se encontrar no que realizava. Vê-se que jogava com a posição
intermediária de atos físicos e expressão entre si mesmo e o mundo, tentando dizer “Tudo
o que em mim possa ser objeto-para-o-outro não sou eu”.
O corpo ocupa claramente uma ambígua posição intermediária entre “eu” e o mundo.
De um lado, é o âmago e centro do meu mundo e de outro é um objeto no mundo dos outros.
Peter tentou desligar-se de qualquer coisa que pudesse ser vista pelos demais. Além deste
esforço para repudiar toda a constelação de atitudes, ambições, ações, etc. que haviam se
desenvolvido de acordo com o mundo e que ele tentava então desligar de seu self interior,
procurava reduzir todo o seu ser ao não-ser; dispor-se, o mais sistematicamente que pôde,
a se tornar coisa alguma. Convicto de não ser ninguém nem coisa alguma, foi impelido por
um terrível sentimento de honestidade a nada ser verdadeiramente. Achava que, já que não
era ninguém, devia tornar-se ninguém. Ser anônimo era um modo de traduzir magicamente
tal convicção em fato. Quando desistiu de trabalhar passou a vaguear pelo país, eternamente
em trânsito. Não se fixava em lugar algum. Seguia de qualquer parte a qualquer parte, não
tinha passado, nem futuro. Não tinha posses, nem amigos. Nada sendo, não conhecendo
ninguém e não sendo de ninguém conhecido criava as condições em que se tornava mais
fácil crer que não era ninguém.
O pecado de Onan ao verter seu sêmen na terra foi assim desperdiçar sua
produtividade e criatividade. A culpa de Peter, segundo se expressou mais tarde, não era
simplesmente masturbar-se e ter fantasias sádicas, e sim não ter a coragem de fazer com os
outros o que imaginaya estar fazendo na fantasia; e ao tentar e, de certo modo conseguir
conter, senão recalcar, as fantasias, a culpa adveio não só do fato de as ter tido, mas também
de as estar recalcando. Quando se dispôs a não ser coisa alguma, sentia culpa não só por
não ter direito de fazer todas as coisas que uma pessoa comum pode fazer, mas por não ter
a coragem de fazer tudo isso passando por sobre, contra e apesar de sua consciência, que
procurava dizer-lhe que tudo o que realizava nesta vida entre outras pessoas era errado.
Sentia culpa em endossar por sua própria decisão o sentimento de não ter direito à vida e
negar a si mesmo acesso às possibilidades que essa vida lhe proporcionava.
Sentia-se culpado não tanto pelos desejos, tendências ou impulsos, mas porque não
tinham a coragem de tornar-se uma pessoa real, fazendo coisas reais com pessoas reais, na
realidade. Sentia-se culpado não apenas pelos desejos, mas por permanecerem apenas
desejos. Seu senso de futilidade emergia do fato dos desejos se realizarem apenas na fantasia
e não na realidade. A masturbação era uma atividade na qual havia substituído por
excelência o relacionamento estéril com os fantasmas da fantasia por um relacionamento
criativo com alguém real; em vez do possível sentimento de culpa que poderia emergir do
desejo real por uma pessoa real, sentia-se culpado por seus desejos serem apenas fantásticos.
A culpa é o chamado do Ser a si mesmo no silêncio, diz Heidegger. O que se poderia
chamar de culpa autêntica em Peter era o fato de ter capitulado diante de sua culpa
inautêntica, transformando em objetivo de sua vida não ser ele próprio.
Contudo, havia também neste paciente a divisão do self interior, já mencionada.
Desde a primeira infância fora perseguido pela sensação de não ser ninguém, inclinando-se
depois a estabelecer sombriamente as condições que confirmariam esta impressão.
Contudo, sentia-se ao mesmo tempo muito especial, depositário de uma missão e um
propósito particulares, enviado por Deus a esta terra. Esta vazia onipotência e sentido
missionário eram assustadores e ele os afastava como “uma espécie de louca sensação”.
Sentia que se desse vazão a este sentimento estaria voltado, na expressão de Empson, “na
direção do manicômio e tudo o mais”. Contudo, sofria uma severa penalidade por entregar-
se à alternativa. Já que tentara não ser ninguém, não vivendo em e por intermédio de seu
corpo, este corpo tornou-se, de certo modo, algo morto.
Quando abandonava qualquer fingimento, portanto, o corpo impunha-se a ele como
algo de bolorento, rançoso, estranho — na verdade, algo sem vida. Separara-se de seu corpo
por meio de um torniquete psíquico e tanto seu self incorpóreo como seu corpo “desligado”
foram acometidos por uma espécie de gangrena existencial.
Uma observação sua resume o âmago da questão:
“Estive como que morto. Isolei-me das outras pessoas e fechei-me em mim mesmo.
E verifico que quando se age assim morre-se, de certo modo. É preciso viver no mundo com
os outros. Senão, algo morre dentro de você. Parece uma tolice. Não compreendo realmente,
mas parece que algo assim acontece. É engraçado”.
PARTE – III

9 - Evolução Psicótica
“Tudo se desmorona, o centro não se
sustenta, mera anarquia espalha-se pelo
mundo".
W. B. YEATS

Já consideramos, especialmente nos casos de David e Peter, manifestações esquizóides que


se aproximam perigosamente da franca psicose. Neste capítulo estudaremos alguns modos
de atravessar a fronteira e penetrar na condição psicótica. Nem sempre será possível aqui,
naturalmente, fazer nítidas distinções entre a sanidade e a loucura, entre o indivíduo
esquizóide são e o psicopata. Às vezes o início da psicose é tão dramática e abrupta e suas
manifestações tão inequívocas que não pode haver dúvida quanto ao diagnóstico. Há casos,
porém, em que a mudança qualitativa aparente não é tão súbita, mas uma transição
prolonga-se através dos anos, sem que se possa determinar com clareza se algum ponto
crítico foi ultrapassado.
A fim de compreender a natureza da transição da sanidade para a loucura, quando o
ponto de partida é a forma particular de posição esquizóide existencial descrita
anteriormente, é necessário considerar as possibilidades psicóticas que emergem deste
contexto existencial. Em tal posição mencionamos que o self, a fim de desenvolver e manter
sua identidade e autonomia e proteger-se da persistente ameaça dos perigos do mundo,
isola-se do direto relacionamento com os outros e tenta tornar-se seu próprio objeto: na
verdade relacionar-se diretamente apenas consigo mesmo. Suas funções cardiais tornam-se
a fantasia e a observação.
Na medida em que o consegue, uma das conseqüências obrigatórias é o self ter
dificuldade em sustentar qualquer sentiment da réel pela própria razão de não estar “em
contato” com a realidade, jamais “encontrar” a realidade. Na expressão de Minkowski
(1933), existe perda de “contato vital” com o mundo. Em vez, o relacionamento com os
outros e o mundo é, conforme verificamos, delegado a um sistema de falso self, cujas
percepções, sentimentos, idéias, ações possuem um “coeficiente” relativamente baixo de
realidade.
Em tal posição, o indivíduo pode parecer relativamente normal, mas conserva esta
uma aparência de normalidade tornando-se cada vez mais anormal pelo uso de meios
desesperados. O self mergulha na fantasia, no “mundo” particular das coisas “mentais”, isto
é, de seus próprios objetos, e observa o falso self, que está vivendo sozinho no “mundo
partilhado”. Já que a comunicação direta com os outros neste mundo real partilhado foi
entregue ao sistema de falso self, é somente por este intermédio que o self pode comunicar-
se com o mundo exterior. Daí que o que foi destinado em primeira instância a ser guarda ou
barreira para proteger o self de uma invasão pode tornar-se as muralhas de uma prisão, da
qual ele não consiga escapar.
Assim, as defesas contra o mundo falham mesmo em suas funções primárias:
impedir a invasão persecutória (implosão) e manter vivo o self, evitando que seja dominado
e manipulado como uma coisa por outra pessoa. A ansiedade insinua-se com mais
intensidade que nunca. A irrealidade da percepção e a falsidade de propósitos do sistema de
falso self estendem-se à sensação de entorpecimento do mundo partilhado como um todo,
até ao corpo e, na verdade, a tudo o que é, e se infiltra até no “verdadeiro” self. Tudo se
torna permeado de nada. O self interior torna-se inteiramente irreal, ou “fantástico”,
separado e morto, incapaz de manter o precário senso da própria identidade que teve de
início. Isto é agravado pela utilização das possibilidades que são as mais tenebrosas como
defesas, isto é, evitar ser identificado para preservar a identidade (já que, conforme
apontamos acima, a identidade é alcançada e mantida bi-dimensionalmente, exige
reconhecimento pelos outros, além do simples reconhecimento que a pessoa concede a si
mesma); ou cultivar deliberadamente um estado de morte-em-vida como defesa contra a
dor de viver.
Esforços no sentido tanto de maior retraimento como de recuperação do self
combinam-se na mesma direção da psicose. De certo modo, o indivíduo esquizóide talvez
esteja tentando desesperadamente ser ele próprio para recuperar e preservar seu ser;
contudo, é muito difícil distinguir o desejo de ser do desejo de não ser, já que grande parte
do que faz a pessoa esquizóide é de natureza ambígua. Será possível dizer positivamente
que Peter procurava destruir-se ou preservar-se? A resposta é impossível se pensarmos em
termos de uma coisa ou outra, mutuamente exclusivas. As defesas de Peter contra a vida
eram, em grande parte, a criação de uma. espécie de morte em vida e que parecia
proporcionar uma certa medida de alívio da ansiedade, pelo menos temporariamente. Para
sobreviver, ele tinha que fingir de morto, até certo ponto. Peter podia “ser ele mesmo”
quando anônimo e incógnito, isto é, quando não era conhecido dos outros, ou dar-se a
conhecer se não fosse ele mesmo. Este equívoco não podia ser infinitamente sustentado, já
que o sentido de identidade exige a existência do outro por quem a pessoa é conhecida; e
uma conjugação de reconhecimento da outra pessoa com o próprio auto-reconhecimento. É
impossível viver infinitamente sadio tentando apartar-se de todos os outros e desligar-se de
grande parte de seu próprio ser.
Essa modalidade de estar-com-os-outros pressupõe capacidade para manter a própria
realidade por meio de uma identidade basicamente autista. Pressupõe a possibilidade, em
última análise, de ser humano sem um relacionamento dialético com os outros. Parece que
toda a finalidade desta manobra é preservar uma identidade “interior” da imaginária
destruição por forças exteriores, eliminando qualquer acesso direto ao self “interior”. Mas
se o self não for jamais qualificado pelo outro, comprometido com o elemento “objetivo” e
não viver um relacionamento dialético com os outros, será incapaz de conservar a identidade
e a vida precária que possa ter.
As alterações sofridas pelo self interior já foram em parte descritas e podem ser
relacionadas da seguinte maneira:
1. Torna-se “fantasiado” ou “volatizado”, perdendo então qualquer identidade
firmemente estabelecida.
2. Torna-se irreal.
3. Torna-se empobrecido, vazio, morto e dividido.
4. Torna-se cada vez mais carregado de ódio, medo e inveja.
Estes são quatro aspectos de um processo considerados de diferentes pontos de vista.
James levou o processo até aos limites da sanidade, talvez até mais além. Esse rapaz
de vinte e oito anos tinha, como acontece com freqüência, deliberadamente cultivado o split
entre o que considerava seu “verdadeiro self’ e o sistema de falso self.
Em sua mente quase não existia modo de considerar o que quer que fosse,
pensamento ou ação, que não falso e irreal. Ver, pensar, sentir, agir eram “mecânicos” e
“irreais” por serem simplesmente a maneira como “eles” viam as coisas, pensavam, sentiam
ou agiam. Ao tomar o trem pela manhã, caso encontrasse alguém conhecido, tinha que
acertar passo com a pessoa, falar, rir sobre as coisas de que todo mundo falava e ria. “Se
abro a porta do trem e permito que alguém entre antes de mim não é por consideração; é
um simples meio de agir o mais possível da mesma maneira que todos os demais”. Contudo,
o esforço de parecer como os outros era feito com tanto ressentimento pelos demais e
desprezo por si mesmo que seu comportamento era, na realidade, um produto bizarro de
conflito entre ocultar e revelar seus “verdadeiros” sentimentos.
Procurou então afirmar a identidade por meio da excentricidade de ideias. Era
pacifista, teosofista, astrólogo, espiritista, ocultista, vegetariano. Parece que o fato de poder
partilhar com os outros pelo menos ideias estranhas foi talvez o mais importante fator na
preservação de sua sanidade mental. Pois nessas áreas limitadas era capaz de estar às vezes
com os outros com quem compartia suas ideias e experiências peculiares. Tais ideias e
experiências tendem a isolar a pessoa de seus semelhantes na atual cultura ocidental e, a
menos que sirvam ao mesmo tempo para atraí-la a um pequeno grupo de “excêntricos”
similares, seu isolamento corre muito perigo de passar à alienação psicótica. Por exemplo,
seu “esquema corpóreo” estendia-se desde antes do nascimento até após a morte e anulava
as costumeiras limitações de tempo e espaço. Teve diversas experiências “místicas”, nas
quais sentiu-se unido ao Absoluto, à Realidade Una. As leis pelas quais “sabia” se-
cretamente ser o mundo governado eram inteiramente mágicas. Embora químico de
profissão, sua “verdadeira” fé não estava nas leis da química e da ciência, mas da alquimia,
da magia negra e branca e da astrologia. Seu “self”, sendo apenas parcialmente realizado
mesmo em e através do relacionamento com os outros que partilhavam suas ideias, tornou-
se cada vez mais envolvido em, e parte de, o mundo da magia. Os objetos da fantasia ou
imaginação obedecem às leis mágicas e têm relacionamento mágicos, irreais. Quando o
“self” se torna cada vez mais participante de relacionamentos da fantasia e cada vez menos
de relacionamentos reais perde no processo a sua própria realidade. Torna-se, com os
objetos com os quais se relaciona, um mágico fantasma. Isto implica em que toda e qualquer
coisa passa a ser possível, indistintamente, embora cada desejo seja mais cedo ou mais tarde
obrigatoriamente condicionado, delimitado pela realidade. Se não for assim, o “self” pode
ser qualquer pessoa, estar em qualquer parte e viver em qualquer época. Foi o que aconteceu
a James. “Na imaginação” crescia e acumulava-se a convicção de possuir poderes fantásti-
cos (ocultos, mágicos, místicos), caracteristicamente vagos e indefinidos, contribuindo
embora para a idéia de que ele não era simplesmente o James deste tempo e lugar, filho de
tal pai e tal mãe, e sim alguém muito especial, com uma missão extraordinária, talvez uma
reencarnação de Buda ou Cristo.
Isto é, o “verdadeiro” self, liberto do corpo mortal, torna-se “fantástico”, volatiza-se
num fantasma mutável, imaginado pelo próprio indivíduo. Do mesmo modo, estando o self
isolado como defesa contra os perigos exteriores, considerados uma ameaça à identidade,
perde a pouca que já possui. Além disso, o afastamento. da realidade resulta no
empobrecimento do “self”. Sua onipotência baseia-se na impotência. Sua liberdade opera
no vácuo. Sua atividade é sem vida. O self torna-se árido, morto.
No seu mundo de sonhos, James sentia-se ainda mais só numa região deserta do que
na vida real:
1. “Vi-me numa aldeia e compreendi que esta havia sido abandonada, estava em
ruínas, não tinha vida alguma...
2. “... Encontrava-me em meio a uma paisagem árida e absolutamente plana. Não se
via sinal de vida. A grama mal conseguia brotar. Meus pés mergulhavam na
lama...”
3. “... Encontrava-me num lugar solitário, feito de rochas e areia. Fugia de alguma
coisa e tentava voltar para qualquer lugar, mas não sabia que direção tomar...”
A trágica ironia é que se acaba por não evitar a ansiedade, enquanto esta e tudo o
mais torna-se cada vez mais atormentador pela infusão, em todas as experiências da vida
real e nos sonhos, de uma persistente sensação de nada e de morte.
O self só pode ser “real” em relação a pessoas e coisas reais. Mas teme ser
açambarcado, devorado em qualquer espécie de relacionamento. Se o “eu” só entra em ação
vis-a-vis objetos da fantasia, enquanto o falso self consegue entender-se com o mundo,
diversas e profundas alterações fenomenológicas ocorrem em todos os elementos da
experiência.
Assim, chegamos ao ponto em que o self, sendo transcendente, vazio, onipotente e
livre à sua maneira, passa a ser qualquer pessoa na fantasia e ninguém na realidade.
Este self relaciona-se com objetos de suas próprias fantasias. Sendo de tal modo um
self-na-fantasia volatiza-se eventualmente. No temor de enfrentar um compromisso com o
elemento objetivo procurava preservar sua identidade; mas, liberto do fato, do condicionado
e do definitivo, cai em perigo de perder o que acima de tudo procurava salvaguardar.
Perdendo o condicionamento, perde a identidade; perdendo a realidade, perde toda a
possibilidade de exercer uma liberdade de escolha eficaz no mundo. Fugindo ao perigo de
ser aniquilado, morre. O indivíduo talvez deixe de sentir o mundo como os outros o sentem,
embora talvez saiba como ele seja para os outros, não para ele. Mas o senso imediato da
realidade do mundo não pode ser mantido por um sistema de falso self. Além disso, este
sistema não pode pôr à prova a realidade, pois o teste da realidade exige mènte própria,
capaz de optar pela melhor alternativa, etc.; e é a falta desta mente própria que torna falso
o falso self...
Quando a experiência do mundo exterior é filtrada para o self interior, este self não
pode mais ressentir ou manifestar seus próprios desejos de maneira socialmente aceitável.
A aceitação social torna-se um simples truque, uma técnica. Sua visão das coisas, o
sentido que têm para ele, seus sentimentos e expressão tornam-se no mínimo estranhos,
excêntricos, senão bizarros e loucos. O self permanece cada vez mais encapsulado no seu
sistema, enquanto a adaptação e o ajuste a experiências mutáveis precisam ser conduzidos
pelo falso self. Este sistema de falso self parece ser flexível: opera com gente nova e adapta-
se ao ambiente. Os objetos de seus relacionamentos na fantasia permanecem as mesmas
figuras básicas, embora sofram uma modificação no sentido da idealização, por exemplo,
ou então tomam-se persecutórios. Não há idéias de verificar, testar, corrigir essas figuras
fantásticas (imagos) em termos de realidade. Na verdade não há ocasião para fazê-lo. O self
do indivíduo, à essa altura, não faz mais qualquer esforço para agir na realidade, efetuar
mudanças verdadeiras.
Enquanto o self e seus imagos sofrem esta modificação, o sistema de falso self passa
por alterações paralelas.
Recordemos a posição original, assim representada esquematicamente:

Self <=> (corpo-mundo)

O corpo está ao nível do sistema de falso self, mas este é concebido pelo indivíduo
para concretizar-se e ampliar-se unicamente além da atividade física. Consiste em grande
parte de todos os aspectos de seu “ser” que o “self’ interior repudia por não o expressarem.
Assim, como no caso de James, enquanto o self recua para relacionamentos cada vez mais
fantásticos e “desligados”, e observação não-participante das transações do falso self e dos
outros, o sistema de falso self torna-se cada vez mais dominador, mergulhando
progressivamente no ser do indivíduo, até abarcar praticamente tudo que é concebido.
Finalmente, James mal podia distinguir um objeto pela visão, audição e principalmente pelo
tato,1 ou fazer qualquer coisa sem sentir não se tratar “dele mesmo”. Já demos alguns
exemplos, que poderiam ser infinitamente multiplicados, uma vez que era deste modo que
ele sentia suas ações em casa, no trabalho, junto dos amigos. As conseqüências deste modo
de ser para a natureza do sistema de falso self podem ser assim resumidas:
1. O sistema de falso self torna-se cada vez mais amplo.
2. Torna-se cada vez mais autônomo.
3. Torna-se “importunado” por fragmentos de comportamento compulsivo.
4. Tudo o que a ele pertence torna-se cada vez mais morto, irreal, falso, mecânico.
A dissociação de self e corpo e o estreito elo entre o corpo e os outros presta-se à
posição psicótica onde o corpo é concebido não como agindo de acordo e apaziguando os
outros, mas como se estivesse deles possuído. O indivíduo começa a estar em posição de
sentir não só que suas percepções são falsas porque olha continuamente através dos olhos
dos outros, mas que estes o estão iludindo porque as pessoas olham para o mundo através
de seus (dele) olhos.
James encontrava-se quase neste ponto. Já sentia que as idéias do seu “cérebro”,
conforme dizia, não eram realmente dele. Grande parte de seu atividade intelectual era uma
tentativa de dominar seus pensamentos, de colocar idéias e sentimentos sob o seu controle.
Por exemplo, a mulher costumava dar-lhe um copo de leite à noite. Sem pensar, ele sorria
e dizia “Muito obrigado”. Imediatamente sentia repulsa por si mesmo. A mulher agira
mecanicamente e ele reagira em termos da mesma “mecânica social”. Queria mesmo o leite,
gostaria mesmo de sorrir, queria mesmo dizer “Obrigado”? Não. No entanto, fizera tudo
isso.
A situação com que se defronta o indivíduo na posição de James é crítica. Ele se
tornou em grande parte irreal, morto. A realidade e a vida talvez não sejam mais sentidas e

1
A relação entre os splits do ser e as várias modalidades dos sentidos não foi ainda bem compreendida. Em volume posterior o problema
será discutido mais extensamente em relação às diversas formas de alucinação.
vividas diretamente, embora o sentimento dessa possibilidade não esteja perdido. Outros
possuem realidade e vida. A realidade e a vida existem, talvez, na Natureza (mais
concretamente, dentro do corpo da Mãe Natureza), ou podem ser alcançadas em determi-
nados tipos de experiência — na reconquista da disciplina e do controle intelectual. O self
está, porém, carregado de ódio por invejar a existência rica, vivida, abundante que se
encontra sempre mais além; lá, jamais aqui. O self, conforme dissemos, está vazio e seco.
Pode-se chamá-lo self oral no sentido em que é vazio e anseia, ao mesmo tempo que teme,
ser preenchido. Mas sua oralidade é tal que nunca consegue saciar-se, seja qual for a
quantidade de bebida, comida e deglutição. É incapaz de incorporar seja o que for.
Permanece um poço sem fundo, uma goela aberta que jamais pode ser preenchida. Num
mundo pleno de umidade não consegue saciar a sede. A culpa, que poderia sobrevir caso
fosse possível pegá-la e destruir o mundo como se destrói alimento (em certo sentido) para
finalidades construtivas, não pode emergir. O self tenta destruir o mundo reduzindo-o a pó
e cinzas, sem assimilá-lo. Seu ódio reduz o objeto a nada, sem o digerir. Assim, embora o
self esteja desolado e inveje desesperadamente o bem (a vida, a realidade) que imagina
existir nos outros, deve antes destruí-lo que aceitá-lo. Torna-se uma questão de “agarrar” a
vida e a realidade de modo que não resulte em aniquilamento do self. Mas a destruição da
realidade e a sua sub-reptícia aquisição constituem, a essa altura, processos em grande parte
mágicos. Tais maneiras mágicas de obter sorrateiramente a realidade incluem:
1. Tato
2. Cópia, imitação
3. Fórmulas mágicas de roubá-la.
É possível que o indivíduo encontre certa medida de tranqüilidade se puder evocar
em si mesmo uma impressão imediata da realidade nos outros. (Estes métodos são ilustrados
no caso de Rose, p. 166).
Outra tentativa de viver sentimentos reais pode ser feita submetendo-se à intensa dor
ou terror. Assim, uma esquizofrênica que tinha o hábito de apagar o cigarro nas costas da
mão, comprimir fortemente os olhos com os polegares e arrancar vagorosamente os cabelos,
etc., explicava que assim agia para sentir algo “real”. É muito importante compreender que
esta mulher não buscava gratificação masoquista, nem era insensível. Suas sensações
tinham intensidade normal. Sentia tudo, exceto ser viva e real. Minkowski relata que uma
de suas pacientes ateou fogo às roupas por razões similares. Um esquizóide frio talvez
busque “emoções”, sensações extremadas, ou corra grandes riscos a fim de “por um pouco
de vida em si mesmo”, como disse um paciente. Hoelderlin2 escreveu: “O’ tu, filha do éter,
busca-me vinda dos jardins de teu pai e se não me puderes prometer felicidade mortal, então
assusta, ó assusta meu coração com qualquer outra coisa”. Contudo, tais tentativas não
resultam em nada. Conforme disse James, quase nas mesmas palavras do suplicante de
Kafka: “A realidade se afasta de mim. Tudo o que eu toco, tudo o que penso torna-se irreal
tão logo me aproximo...”
Na perda progressiva da presença real do outro, e daí perda do senso de você-e-eu-
reunidos, de nós, as mulheres podem tornar-se mais remotas e ameaçadoras que os homens.
A última esperança de um pouco de contato daquilo que Binswanger chama modalidade
dupla de estar-no-mundo pode ocorrer por intermédio de uma ligação homosexual, ou o

2
“Entreaty (to Hope)” — Apelo à Esperança — citado por Binswanger (1958, p. 311).
último elo amoroso pode ser uma criança ou animal. Boss (1949) descreve o papel que uma
forma de amor homossexual representou para um homem, cujo self e mundo estavam se
reduzindo e estreitando em seu isolamento:
“Este ser humano em quem até “o couro cabeludo e o músculo cardíaco” se
contraem é cada vez menos capaz de “buscar” uma ampliação e aprofundamento da
plenitude existencial de uma união amorosa macho-fêmea. Não mais consegue
alcançar o “celestial encantamento”, a “paixão e esclarecimento” que o amor pela
prima havia em tempos sido para ele. O primeiro passo no processo de crescente
aridez de sua existência foi a mulher perder sua transparência amorosa, tornando-
se completamente diferente, um pólo remoto e estranho de existência; tornou-se
“pálida”, uma “miragem”, depois passou a representar “alimento indigesto” e
finalmente desapareceu por completo da estrutura de seu mundo. Quando a
esquizofrenia progressiva “esvaziou sua masculinidade”, quando a maior parte de
seus sentimentos másculos “haviam-se esgotado”, subitamente e pela primeira vez
na vida sentiu-se impelido a “abrir-se” para uma forma de amor homossexual.
Descreveu vividamente de que modo neste sentimento homossexual conseguia
experimentar pelo menos metade da plenitude da existência. Não precisou “fazer
muito esforço” para alcançar esta semiplenitude, havia pouco perigo de “perder-se”
e “escapar” para o infinito nesta extensão e profundidade limitadas. Pelo contrário,
o amor homossexual podia “preencher” sua existência, “tornando-o um homem
inteiro”.
Boss declara, creio que com razão, que “esta observação lança uma nova luz sobre
uma importante declaração de Freud, no sentido de que as tendências homossexuais são
regularmente encontradas em todos os paranóicos. Freud acreditava que a
homossexualidade era a causa da evolução de idéias de perseguição. Mas nós nada vemos
em ambos os fenômenos, nesta espécie de homossexualidade e nas idéias de perseguição,
senão formas paralelas de expressão do mesmo retraimento esquizofrênico e destruição da
existência humana, isto é, duas diferentes tentativas de recuperar as partes perdidas da
personalidade”.
O indivíduo encontra-se num mundo em que, como um Midas de pesadelo, tudo
aquilo de que se aproxima, morre. Restam-lhe então, talvez, apenas duas possibilidades
mais, a essa altura:
1. Talvez decida “ser ele mesmo”, apesar de tudo ou,
2. Talvez tente matar o self.
Ambos os projetos, caso executados, resultarão provavelmente em psicose
manifesta. Nós os estudaremos separadamente.
O indivíduo cujo sistema de falso self permaneceu intacto, não tendo sido devastado
por ataques do self, ou pelo acúmulo de fragmentos transitórios de comportamento estranho,
pode ter aparência de completa normalidade. Contudo, por detrás desta fachada sadia, um
processo psicótico pode estar evoluindo secreta e silenciosamente.
O ajuste aparentemente normal e bem sucedido do indivíduo à vida comum é
concebido pelo seu “verdadeiro” self como um fingimento cada vez mais vergonhoso e/ou
ridículo. Ao mesmo tempo, o self, em seus relacionamentos de fantasia, torna-se mais e
mais volatizado, livre das contingências e necessidades que o atropelam como um objeto
entre outros no mundo, onde ele sabe que estaria comprometido a ser deste tempo e lugar,
sujeito à vida e à morte e mergulhado nesta carne e ossos. Se o self assim volatizado na
fantasia concebe então o desejo de escapar, acabar com o fingimento, ser franco, revelar-
se, declarar-se e dar-se a conhecer sem equívocos é possível que ocorra a psicose aguda.
Uma pessoa assim, embora sã exteriormente, interiormente vinha se tornando cada
vez mais insana. Casos desta espécie podem constituir problema a um exame superficial, já
que ao rever a história “objetiva” talvez não se encontre nenhum stress precipitador ou,
mesmo em retrospecto, indicações óbvias de que era iminente esse desfecho abrupto.
Somente quando se consegue colher do próprio indivíduo a história de seu self, e não o que
é em geral a história psiquiátrica nestas circunstâncias, a história do sistema de falso self,
é que a psicose se torna explicável.
Apresentamos a seguir dois exemplos bastante comuns do aparecimento “repentino”
da psicose de tipo familiar a qualquer psiquiatra e apresentados “do exterior”. Deste ponto
de vista mostram-se inexplicáveis.
Um rapaz de vinte e dois anos era considerado pelos pais e amigos inteiramente
“normal”. Durante férias na praia tomou um barco e saiu para o largo. Foi pego algumas
horas mais tarde, tendo se afastado muito da terra. Protestou contra o salvamento, dizendo
que perdera Deus e partira em sua busca no oceano. O incidente marcou o início de uma
psicose manifesta, que exigiu sua hospitalização por vários meses.
Um homem de cinqüenta anos, que jamais tivera qualquer perturbação “nervosa”,
pelo menos no conhecimento de sua mulher, e que lhe parecera, até manifestar-se a psicose
aguda, “o de sempre”, saiu com a mulher e os filhos para fazer um pique-nique à beira do
rio, numa quente tarde de verão. Após a refeição, despiu-se completamente, embora
houvesse outras pessoas à vista e entrou na água. Isso talvez não fosse muito extraordinário.
Mergulhando até à cintura, atirou água sobre si mesmo e recusou-se a sair do rio, dizendo
que estava se batizando por causa de seus pecados, que consistiam em não amar a mulher e
aos filhos. E afirmou que não sairia da água até estar purificado. Mais tarde teve que ser
retirado do rio pela polícia e internado num hospital para doentes mentais.
Em ambos os casos e nos outros descritos acima, a sanidade, isto é, a aparência
“normal”, maneira de vestir, comportamento motor e verbal (tudo o que havia de
observável) fora conservado por um sistema de falso self, enquanto o “self” mergulhara
cada vez mais não num mundo próprio, mas no mundo conforme era visto pelo self. Era
como se uma maçã de aparência normal estivesse completamente podre no interior da casca.
Tenho certeza de que um bom número de “curas” de psicopatas consiste no fato de
que o paciente decidiu, por qualquer razão, voltar a brincar de ser são.
Não raro pacientes despersonalizados, esquizofrênicos ou não, falam em ter
assassinado seu self, tê-lo perdido, ou dizem então que alguém o roubou.
Tais afirmativas são em geral chamadas delusões, mas caso o sejam, contêm uma
verdade existencial. Devem ser entendidas como literalmente verdadeiras nos termos de
referência do indivíduo que as faz.
O esquizofrênico que afirma ter-se suicidado pode estar bem certo de que não cortou
o pescoço, nem se atirou a um canal e esperar que isto seja igualmente claro para a pessoa
com quem fala, senão esta seria considerada uma tola. Na verdade, faz diversas declarações
deste teor, que podem ser expressamente destinadas a tornar-se armadilhas para aqueles a
quem considera idiotas e todo o bando dos que não compreendem. Para um paciente desse
tipo seria provavelmente um completo non sequitur tentar matar seu self cortando o pes-
coço, já que self e pescoço talvez tenham apenas um débil e remoto relacionamento um com
o outro, bastante distanciado para que o que aconteça a um tenha pouca importância para o
outro; isto é, seu self è virtualmente incorpóreo, considerado imortal, ou feito de substância
quase imperecível e imaterial. É possível que o chame de “substância vital”, ou “alma”, ou
até tenha um nome especial para ele, pensando que pode ser roubado. Esta foi uma das
idéias centrais na famosa psicose de Schreber (1955).
Podemos abordar este difícil material psicótico comparando o temor da perda do
“self” a uma ansiedade neurótica, mais familiar, que talvez se esconda por detrás de uma
queixa de impotência. Na impotência pode encontrar-se a seguinte fantasia latente: o
indivíduo tem medo de perder suas funções genitais, de modo que reserva seu uso (evita a
castração) parecendo ser castrado. Protege-se da ameaça de castração fingindo para si
mesmo que é castrado e agindo como se o fosse. O psicopata utiliza-se de uma defesa
baseada nos mesmos princípios, mas executada não com respeito às funções genitais, mas
em relação ao self. É a mais absurda e paradoxal das defesas, além da qual nem as defesas
mágicas podem avançar. E, seja qual for a sua forma, é fundamental na medida em que pude
observar, em todas as formas de psicose. Pode ser apresentada em sua forma mais
generalizada como a negação do ser como um meio de preservá-lo. O esquizofrênico julga
que matou seu self e isso lhe parece correto a fim de evitar ser morto. Morre para permanecer
vivo.
Uma variedade de fatores podem convergir no sentido de impelir o indivíduo a
livrar-se do self desta ou daquela maneira. Até os esforços do self para separar-se e não
identificar-se com o corpo, e praticamente todos os pensamentos, sentimentos, ações ou
percepção não conseguem livrá-lo de sentir mais tarde ansiedade; não lhe resta nenhuma
das possíveis vantagens do desligamento e fica sujeito a toda a ansiedade de que
anteriormente procurara fugir.
Os dois casos seguintes demonstram a grande angústia de um indivíduo envolvido
em questão desse tipo.
Conheci Rose quando ela estava com vinte e três anos de idade. Disse-me então estar
apavorada com a idéia de enlouquecer, o que era fato. Contou que lhe ocorriam horríveis
lembranças, às quais não podia esquecer, por mais que tentasse. Mas havia descoberto uma
solução: esquecê-las esquecendo de si mesma. Procurava fazê-lo olhando o tempo todo para
as outras pessoas e assim não reparando jamais nela própria. A princípio foi um alívio sentir
que se estava afundando cada vez mais e não quis lutar contra isso. Mas algo dentro dela
quis combater. Sentia-se deprimida e continuava tentando fazer isto e aquilo, o que exigia
um esforço cada vez maior, até que cada idéia ou movimento precisava ser iniciado por um
verdadeiro esforço de vontade. Mas começou então a sentir que não possuía mais força de
vontade — gastara-a toda. Além disso, tinha medo de fazer qualquer coisa por si mesma,
ou assumir responsabilidade pessoal pelo que quer que fosse. Dizia ao mesmo tempo estar
aflita à idéia de que sua vida não podia mais ser conduzida por ela mesma. “Meu ser está
nas mãos de todos, exceto nas minhas”. Não tinha vida própria, existia apenas. Não tinha
objetivos, nenhum impulso, nenhum sentido para si mesma. Sentia que recentemente
“afundara-se” e queria sair “dali” antes que fosse tarde demais. Contudo, achava que as
coisas tinham ido demasiado longe e que “não podia mais conter-se”, que “ela estava
escapando”. Se conseguisse gostar das pessoas se sentiria melhor.
Alguns dias mais tarde expressou-se da seguinte maneira: “As idéias continuam e eu
estou me afundando. Meu verdadeiro self mergulhou — costumava ficar no meu pescoço,
mas agora desceu mais para baixo. Estou me perdendo a mim mesma. Ele está mergulhando
cada vez mais. Quero falar-lhe, mas tenho medo. Minha cabeça está cheia de pensamentos,
temores, ódios, ciúmes. Não posso dominá-los todos. Não posso agarrar-me a eles. Estou
por detrás do meu nariz — isto é, meu consciente encontra-se ali. Estão rachando minha
cabeça ao meio — isso é esquizofrênico, não é? Não sabem se tenho ou não esses
pensamentos. Creio que eu os imaginei na última vez, a fim de ser tratada. Ah, se conse-
guisse gostar e amar novamente, em vez de odiar. Gostaria de gostar das pessoas, mas quero
odiá-las. Estou matando a mim mesma também”.
Continuou a falar nesse tom nas semanas subsequentes. A impressão de que estava
matando a si mesma traduziu-se pela convicção de que já tinha se matado. Afirmava quase
constantemente que se matara, ou às vezes que se perdera. Nas ocasiões em que não se
sentia inteiramente “perdida”, ou “morta”, sentia-se “estranha” a si mesma, e tanto ela como
os objetos deixavam de ter a mesma realidade. Estava dolorosamente cônscia da perda de
alguma capacidade para sentir as coisas de maneira real e ter pensamentos reais. Com igual
intensidade estava cônscia de que outras pessoas possuíam esta capacidade; e descreveu
várias técnicas que intencional ou inadvertidamente utilizava para “recapturar a realidade”.
Por exemplo — se alguém lhe dizia qualquer coisa que ela classificava de “real”, dizia a si
mesma “Pensarei nisso” e repetia a palavra ou frase uma porção de vezes, na esperança de
que parte da realidade da expressão nela penetrasse. Achava que os médicos eram reais, de
modo que tentava conservar em mente, todo o tempo, o nome de um médico. Procurava
provocar reações em outras pessoas, dizendo coisas que as embaraçasse. Achava muito fácil
agir assim, já que se sentia desligada dos sentimentos dos outros. Se ao olhar para o
interlocutor via sinais de embaraço, dizia a si mesma que devia ser real, uma vez que
produzia um efeito real numa pessoa real. Tão logo lhe ocorria alguém dizia a si mesma que
era aquela pessoa. Achava que, na medida em que era capaz de gostar de alguém, seria com
ela parecida. Seguia as pessoas, imitando-lhes o andar copiando sua maneira de falar e
arremedando-lhes os gestos. De um modo que com freqüência enfurecia as pessoas
concordava com tudo absolutamente que dissessem. Todo o tempo, porém, repetia que
estava se afastando cada vez mais de seu verdadeiro self. Queria “alcançar” os outros e
permitir que eles a alcançassem, mas isto tornava-se cada vez mais impossível. À medida
que se sentia mais desesperada, o pânico diminuía, mas continuava perseguida por um temor
insistente. Tornou-se incapaz de saber para que serviam as coisas. Via as pessoas fazendo
isto ou aquilo, mas dizia que “não conseguia compreendê-las. Era uma sensação em
branco”. Estava convicta de que todo mundo era mais inteligente que ela, pois faziam coisas
inteligentes e ela não conseguia realizar as mais simples que pretendia. Não tinha futuro. O
tempo imobilizara-se. Não podia olhar para o futuro e todas as suas lembranças eram densas
e sólidas, rodopiando em sua cabeça. Era claro que começava a perder todo senso de
diferenciação dos acontecimentos passados, presentes e futuros, ou do tempo “vivido”, no
sentido de Minkowski.
Foi muito significativo o fato de que quanto mais sentia não poder alcançar as
pessoas e as pessoas não poderem alcançá-la, e quanto mais se instalava num mundo próprio
— “Eles não podem entrar e eu não posso sair” — tanto mais esse seu mundo particular e
fechado era invadido pelos perigos psicóticos vindos do exterior, isto é, tanto mais
“público”, de certo modo, se tornava. Passou a desconfiar mais ainda dos outros e a escon-
der objetos no seu armário; achava que alguém vivia roubando as suas coisas. Verificava a
bolsa e seus pertences com freqüência para certificar-se de que nada faltava. Este paradoxo
de ser desligada e ao mesmo tempo vulnerável encontrou sua mais nítida expressão na
afirmativa de que por um lado estava assassinando a si mesma, e de outro que seu “self”
poderia perder-se ou ser roubado por alguém. Só tinha pensamentos dos outros e só podia
pensar o que os outros haviam dito.
Passou então a dizer que era duas pessoas. “Existem dois eus”. Ela é eu, e eu sou ela
todo o tempo. Ouvia uma voz que lhe dizia para assassinar a mãe e sabia que essa voz
pertencia a “uma de nós duas”. “Desde aqui, ela (e indicava as têmporas) é só algodão. Não
tenho pensamentos próprios; estou terrivelmente confusa, eu, eu, eu todo o tempo, e eu e
eu, eu e eu própria, quando digo eu própria sei que qualquer coisa está errada, algo está
acontecendo comigo e eu não sei o quê”.
Assim, apesar do temor de perder-se, todos os esforços para “recaptar a realidade”
envolviam não ser ela própria, e as tentativas para fugir ao seu self, ou matá-lo, continuavam
a ser usadas como defesas básicas. Na verdade, intensificaram-se.
O indivíduo é levado a “matar-se” não só sob pressão da ansiedade, como por
sentimento de culpa, que é nele de tipo particularmente radical e arrasador e parece não
deixar à pessoa espaço para manobrar.
Já vimos que, sob a pressão da culpa, Peter foi conduzido a nada ser, não ser
ninguém. Eis outro exemplo de uma paciente que seguia rumo similar e que felizmente foi
detida, seria mais correto dizer, deteve o processo antes de mergulhar num estado psicótico
do qual seria difícil regressar.
Marie, com vinte anos de idade, cursara um ano de faculdade sem passar em qualquer
dos exames. Apresentava-se para fazê-los ou vários dias antes, ou vários dias depois. Nunca
chegava a tempo, ou enquanto a prova estava em andamento, mais ou menos por acaso, ao
que parecia, e não queria dar-se ao trabalho de responder às perguntas. No segundo ano
deixou inteiramente de assistir às aulas e não fazia coisa alguma. Era extraordinariamente
difícil descobrir fatos concretos sobre a vida desta jovem. Procurou-me por sugestão de
alguém. Estabeleci um horário regular para ela, duas vezes por semana. Era impossível
prever quando chegaria. Dizer que era impontual seria dizer pouco. A hora marcada para a
entrevista era um ponto que só vagamente servia para orientá-la. Surgia num sábado de
manhã para um entrevista marcada na quinta-feira à tarde, ou telefonava às cinco da tarde
para dizer que acabara de acordar, de modo que não poderia comparecer à entrevista das
quatro horas, mas poderia aparecer daí a uma hora mais ou menos. Deixou de comparecer
a cinco entrevistas sucessivas sem dar a menor satisfação e chegou pontualmente na sexta
sem comentários, prosseguindo do ponto onde se interrompera na última sessão.
Era pálida, magra, tinha cabelos lisos e despenteados. Vestia-se de um modo vago e
estranho. Era extraordinariamente esquiva e dissimulada com respeito a ela mesma. Na
medida em que pude verificar, nem uma só pessoa entre as que com ela tiveram ligeiro
contato sabia de que modo vivia. Sua família morava fora de Londres, mas desde que
ingressara na universidade alugara um apartamento e mudava-se com frequência. Os pais
nunca sabiam onde ela morava; telefonava-lhes em horas desencontradas e quando os
visitava passava o dia como se fosse uma conhecida casual da família. Era filha única.
Caminhava rápida e silenciosamente, quase na ponta dos pés. Falava com voz suave e dis-
tinta, mas agitada, distante, parada e rígida, sem animação. Preferia não falar sobre si mesma
e sim de tópicos como economia e política. Tratava-me com aparente indiferença, deixando
bem claro em geral que não me considerava mais que um dos seus numerosos coT nhecidos
casuais, a quem visitava para bater papo. Disse-me certa vez, porém, que eu era uma pessoa
fascinante, mas que minha natureza era suja e viciosa. Não traiu desejo ou expectativa de
obter qualquer coisa de mim e nunca esclareceu muito o que achava de mim auferir. Sentia-
se tão indiferente a minha pessoa que não compreendia porque viajava uma considerável
distância para falar-me.
Era para julgar-se que as perspectivas no caso dessa jovem fossem desalentadoras,
pois apresentava um inequívoco quadro clínico-psiquiátrico da dementia praecox, ou
esquizofrenia simples.
Contudo, um dia foi pontual e chegou surpreendentemente transformada. Pela
primeira vez, que eu soubesse, vestira-se pelo menos com algum cuidado, não tendo aquela
estranha aparência nas roupas e nas maneiras tão características desse tipo de pessoa e tão
difícil de definir-se. Seus movimentos e expressão possuíam, sem dúvida alguma, vida.
Iniciou a sessão dizendo que compreendera estar se afastando de um verdadeiro relacio-
namento com as pessoas, que se assustara com o modo como estava vivendo, e que sabia
não ser aquela a maneira direita de se viver. Era óbvio que algo decisivo havia acontecido.
Segundo me disse e não vejo motivos para duvidar, resultara de um filme a que assistira.
Durante uma semana inteira fora ver La Strada, filme italiano sobre um homem vigoroso,
que viajava de cidade em cidade, representando um ato que consistia em arrebentar, pela
expansão do tórax, as cadeias com que o amarravam. Consegue com os pais de uma jovem
que ela seja sua assistente, revelando-se forte, cruel, sujo e vicioso, tratando-a como se fosse
a escória. Quando quer violenta-a, abandona-a, bate nela. Parece não ter consciência ou
remorsos. Não a reconhece como pessoa, não demonstra a menor gratidão quando tenta
agradar-lhe ou quando se mostra leal a ele. Deixa bem claro que ela não poderia fazer por
ele nada que outra pessoa não fizesse melhor. Ela não vê objetivo para sua vida, já que foi
entregue àquele homem e para ele é sem valor e inútil. Embora em sua tristeza e desolação
não haja amargura persistente, sente-se desesperada por não ter qualquer importância.
Travando amizade com um equilibrista de circo, lamenta-se com ele por sua insignificância.
Contudo, quando o acrobata a convida para acompanhá-lo, recusa dizendo que, se ela for
embora, o homem não terá ninguém que o suporte. O acrobata, tomando uma pedra, diz que
não pode crer que ela seja absolutamente inútil, já que deve valer ao menos tanto quanto a
pedra, e a pedra pelo menos existe. Além disso, observa que ela devia ser de alguma
utilidade, embora não o saiba, já que se considera a única pessoa a quem o homem não
afastaria de si. A maior parte do encanto do filme deriva-se da jovem, totalmente desprovida
de artifícios ou fingimentos. Todos os seus sentimentos revelam-se com simplicidade e de
imediato em suas ações. Quando o homem forte mata o acrobata diante de seus olhos e foge
à justiça para não confessar o crime, ela se torna silenciosa, limitando-se a choramingar: “O
tolo está doente, o tolo está doente”. Não faz coisa alguma, não se alimenta. Quando
aparentemente não melhora, o homem a abandona adormecida junto à estrada, em pleno
inverno, não lhe deixando qualquer chance de escapar.
A paciente identificou-se com a jovem e ao mesmo tempo viu-se em contraste com
ela. O homem forte, com sua maldade, indiferença e crueldade personificava sua fantasia
do pai e, até certo ponto, da minha pessoa. Mas o que mais a impressionou foi que, embora
desesperada e infeliz, não ocorreu à moça desligar-se de sua vida, por mais terrível que ela
fosse. Jamais se tornou agente de sua própria destruição. Nem tentou deturpar sua
simplicidade. A jovem não era especificamente religiosa, não tivera, assim como Marie, fé
num Ser a quem chamasse Deus; contudo, embora sua fé não tivesse nome, sua maneira de
viver era de certo modo uma afirmação de vida e não uma negação. Marie viu tudo isso em
contraste com a sua maneira de viver è horrorizou-se, pois achava que estivera negando a
si mesma acesso ao frescor e ao perdão da criação. Mesmo a jovem do filme ria dos palhaços
do circo, emocionava-se com o equilibrista, achava consolo numa canção, embora não
valesse mais que uma pedra.
Do ponto de vista “objetivo”, clínico-psiquiátrico dir-se-ia ter havido uma parada no
processo de esquizofrenia progressiva, provavelmente com bases orgânicas. Do ponto de
vista existencial pode-se dizer que ela deixara de tentar assassinar-se. Viu que sua vida
tornara-se uma tentativa sistemática de destruir a própria identidade e tornar-se ninguém.
Evitava tudo que a pudesse definir como uma pessoa real, empenhada em tarefas específicas
junto dos outros. Tentara agir de modo que seus atos não tivessem conseqüências reais e
assim não poderiam ser considerados atos reais. Em vez de utilizar-se da ação como
fazemos normalmente para alcançar finalidades reais e assim afirmando-se cada vez mais
em e através de nossos atos, como pessoas específicas que somos, tentava reduzir-se até
desaparecer, nunca fazendo nada de específico, aparentemente nunca estando em qualquer
lugar determinado em hora determinada, com qualquer pessoa em particular, ou fazendo
qualquer coisa em especial. Estava sempre, como estamos todos, em determinado lugar em
determinado momento, mas tentando evitar as implicações mostrando-se sempre distraída,
“como que ausente”. Agia como se fosse possível “não colocar-se” nos seus atos. O esforço
de desligar-se de suas ações compreendia tudo o que fazia, desde o trabalho, as amizades
que parecia entreter e todos os seus gestos e expressões. Por este meio esperava tornar-se
ninguém. Sua posição era, portanto, muito similar à de Peter. Ambos os pacientes
convenceram-se progressivamente de que era mero fingimento de sua parte ser alguém e
que a única atitude honesta seria tornar-se ninguém, já que era assim que se sentiam
“realmente”. Para o clínico que o observava, este processo de auto-aniquilamento nada mais
era senão o processo de enlouquecimento da esquizofrenia simples.
Como no caso de Peter e Marie, os pacientes no estágio agora descrito não sentem
tanta culpa no que se refere a pensamentos ou atos específicos que tenham ou não tido ou
realizado. Se sentem culpa neste sentido, ela é dominada por um sentimento muito mais
inclusivo de maldade ou indignidade, que ataca o próprio direito de ser em qualquer sentido.
O indivíduo sente-se culpado por ousar ser e duplamente culpado por não ser, por sentir-se
demasiado aterrorizado por ser e tenta assassinar-se, senão biologicamente, então
existencialmente. Sua culpa é um fator urgente para impedir a ativa participação na vida e
manter o “self” isolado, impelindo-o a niaior isolamento ainda. A culpa liga-se então à
própria manobra que foi originalmente por ela impulsionada.
James, por exemplo, teve o seguinte sonho:
“Dois átomos estavam viajando em direções paralelas e então voltaram-se,
retrocedendo em seu curso, repousando quase continuamente”. E indicou o curso com as
mãos. Despertou bruscamente em pânico e com uma terrível sensação de mau.
Interpretado, o sonho dizia que os dois átomos eram ele próprio: em vez de
prosseguirem em “seu curso natural”, “voltaram-se sobre si mesmos”. Ao fazê-lo, “vio-
laram a ordem natural das coisas”. Outras associações a este sonho revelaram que James
sentia profunda culpa por seu relacionamento “regressivo” consigo mesmo, já que era:
1. Uma forma de onanismo, isto é, desperdício das forças criativas e produtivas.
2. Um afastamento de relacionamentos heterossexuais reais, e o estabelecimento de
uma relação entre duas partes de seu próprio ser, no qual um era macho e outro,
fêmea.
3. O afastamento de relacionamentos com outros homens e o estabelecimento
interior de uma relação homossexual exclusiva consigo mesmo.
Isto ilumina o outro difícil problema, isto é, que nestas circunstâncias o
relacionamento do self consigo mesmo é culpado já que, conforme indicamos
anteriormente, volta-se sobre si mesmo, ou procura voltar-se, um modo de relacionamento
que “na ordem natural das coisas” só pode existir entre duas pessoas e não pode ser vivido
na realidade exclusivamente pelo self.
A cisão do self (os dois “eus” de Rose, o estado representado pelos dois átomos de
James) constitui a base de um tipo de alucinação. Um dos fragmentos do self parece em
geral reter o senso do “eu”. O outro “self” poderá então chamar-se “ela”. Mas esta “ela” é
ainda eu”. Rose diz: “Ela é eu, e eu sou ela todo o tempo”. Um esquizofrênico me disse:
“Ele é um eu que olha para mim”. (O self, nos estados esquizofrênicos crônicos, parece
fragmentar-se em diversos focos, cada qual com um certo senso de Eu, cada qual sentindo
os demais fragmentos como parcialmente não-eu). Um “pensamento” pertencente ao
“outro” self inclina-se a ter em parte a qualidade da percepção, já que não é recebido pelo
self que o sente como um produto da imaginação, ou a ele pertence. Isto é, o outro self é o
fundamento de uma alucinação. Uma alucinação é como que a percepção de um fragmento
do “outro” self desintegrado, produzida por um remanescente (self-foco) dotado do sentido
do eu; isto se torna mais óbvio nos pacientes manifestamente psicopatas. Além disso, a
relação self-self proporciona o quadro interior para os ataques violentos entre os fantasmas
em luta, possuidores de uma espécie de materialidade fantasmagórica (ver capítulo
seguinte). São estes ataques que compelem o indivíduo a dizer que foi assassinado, ou que
“ele” assassinou seu “self”. Em última instância, porém, mesmo falando em
“esquizofrenês”, é na verdade impossível matar o “self” fantasma, embora seja possível
cortar o próprio pescoço. Um fantasma não pode ser assassinado. O que pode acontecer é
que o local e a função do “self” fantasma sejam completamente tomados por agências
arquetipais, que parecem estar em completo controle e dominar todos os aspectos do ser do
indivíduo. Em terapia, a tarefa torna-se então fazer contato com o “self” original, o que
devemos crer seja ainda uma possibilidade, senão uma realidade, trazendo-o de volta a uma
vida praticável. Mas isto é uma história que só podemos iniciar e explicar depois de ter
estudado os processos e os fenômenos psicóticos com maiores minúcias. É a tarefa que
agora empreenderemos.
93 - O Self e o Falso Self no Esquizofrênico
Procuraremos agora consolidar nossa exposição com descrições selecionadas de
uma esquizofrenia feitas por uma paciente americana em fase de recuperação. O caso é
registrado por dois autores americanos, Hayward e Taylor (1956) e a paciente esteve em
tratamento psiquiátrico com um deles. Contam o seguinte:
“Joan é uma mulher branca de vinte e seis anos. Sua doença manifestou-se em
princípios de 1947, quando estava com dezessete anos. Nos dois anos subseqüentes
esteve internada em quatro hospitais particulares, sendo tratada por psicoterapia,
acompanhada de um total de trinta e quatro choques elétricos e sessenta de insulina.
Sofreu cinqüenta comas. Demonstrou “pouca, se alguma, melhora” e foi finalmente
levada a um dos autores (M. L. H.), já que parecia um caso desesperado.
No inicio do tratamento, Joan mostrou-se fria, distante, arredia, desconfiada. Sofria
de alucinações visuais e auditivas ativas. Não participava de nenhuma atividade do
hospital e com freqüência apresentava-se tão letárgica que era difícil dela obter
qualquer reação. Se insistissem com ela sobre a necessidade de tratamento tornava-
se sombria e contrariada, ou replicava zangada que queria ser deixada em paz. Fez
três tentativas de suicídio cortando-se com um caco de vidro, ou tomando dose
excessiva de sedativos. As vezes tornava-se violenta, de modo que precisava ser
internada na enfermaria dos agitados”.
Escolhi este material por diversas razões. A narrativa da psicose feita pela moça
parece proporcionar relevante confirmação das idéias aqui apresentadas. A confirmação é
reforçada pelo fato de que a presente obra foi escrita antes que a matéria americana fosse
publicada. Os autores americanos escrevem na clássica terminologia psicanalítica de ego,
superego, id, o que em minha opinião impõe desnecessárias limitações à compreensão do
material: a narrativa da própria paciente parece estar bem próxima a sua maneira de olhar a
si mesma e não ter sido imposta ou sugerida pelos autores. Neste caso evito, portanto,
possível falácia que ocorreria se apresentasse material de uma de minhas próprias pacientes.
Ela poderia estar repetindo como um papagaio minhas próprias teorias.
Finalmente, esta paciente apresentou uma narrativa clara e penetrante de si mesma,
em linguagem “comum”, a melhor entre todas em meu conhecimento. Espero demonstrar
assim que se olharmos o comportamento extraordinário do psicopata de seu próprio ponto
de vista grande parte dele se tornará compreensível.
Em primeiro lugar gostaria de resumir as idéias que até aqui apresentei:
O divórcio entre self e corpo é algo penoso de se suportar e o sofredor anseia
desesperadamente encontrar alguém que o ajude a curar-se; mas esse divórcio é também
utilizado como um meio fundamental de defesa. Isto define na verdade o dilema essencial.
O self deseja estar unido e imbuído do corpo, no entanto está sempre com medo de instalar-
se no corpo, já que ficaria sujeito a ataques e perigos a que não possa escapar. Contudo, o
self julga que embora esteja fora do corpo não pode conservar as vantagens que auferiria
desta posição. Já mencionamos o que acontece:
1. Sua orientação é oral primitiva, preocupada com o dilema de manter sua
vivacidade, embora aterrorizado à idéia de “receber” qualquer coisa, tornando-
se árido e desolado.
2. Torna-se carregado de ódio por tudo o que existe lá. A única maneira de destruir
e não destruir o que existe talvez seja destruir-se a si mesmo.
3. A tentativa de matar o self pode ser empreendida deliberadamente. É em parte
defensiva (“já que estou morto não me podem matar”); e em parte uma tentativa
para endossar o arrasador sentimento de culpa que oprime o indivíduo (não há o
sentimento do direito de viver).
4. O “self” interior divide-se e perde sua identidade e integridade.
5. Perde sua própria realidade e acesso direto à realidade exterior a ele.
6. (a) A segurança do self torna-se uma prisão. Seu pretenso abrigo torna-se um
inferno. (b) Deixa de ter sequer a segurança de uma cela solitária. Seu próprio
recinto torna-se uma câmara de torturas. O self é perseguido dentro desta câmara
por partes concretizadas de si mesmo, ou por seus próprios fantasmas, que se
tornaram incontroláveis.
Parte do que há de incompreensível nas palavras e nas ações do esquizofrênico torna-
se inteligível se recordarmos que existe um split básico em seu ser ocasionado pelo estado
esquizóide. O indivíduo está dividido em dois, produzindo um self desencarnado e um corpo
que é algo que o self olha de vez em quando como se fosse apenas uma coisa qualquer deste
mundo. O corpo todo e também vários processos “mentais” são separados do self, que pode
continuar a operar num âmbito muito restrito (fantasiando e observando), ou pode deixar
de funcionar completamente (isto é, morto, assassinado, roubado). Esta explanação é
naturalmente muito esquemática e possui as falhas de qualquer simplificação preliminar.
Já tivemos ocasião de esboçar alguns dos modos pelos quais este split pode deixar
de apoiar a sã experiência e tornar-se origem da psicose.
Em muitos esquizofrênicos, o split self-corpo permanece básico. Quando o “centro”
se desmorona, porém, nem o conhecimento do self, nem o do corpo podem conservar a
identidade, a integridade, a coesão e a vitalidade, e o indivíduo é precipitado numa condição
cujo resultado, a nosso ver, poderia ser descrito como estado de “caótica não-entidade”.3
Em sua forma terminal, uma desintegração tão completa é um estado hipotético sem
equivalentes verbais. Sentimo-nos justificados, porém, em postular esta condição
hipotética. Em sua forma mais extrema talvez não será compatível com a vida. O catatônico-
hebefrênico crônico totalmente destruído é provavelmente a pessoa em quem o processo
chega ao grau mais extremado, permanecendo embora biologicamente viável.
Um dos maiores obstáculos no conhecimento do esquizofrênico é a sua pura
incompreensibilidade: há esquisitice, bizarria, obscuridade em tudo o que dele percebemos.
As razões são várias. Mesmo quando o paciente está tentando nos dizer da maneira mais
clara e franca que conhece a natureza de suas ansiedades e experiências, estruturadas como
estão de maneira radicalmente diversa da nossa, o conteúdo das palavras é obrigatoriamente
difícil de ser compreendido. Além do mais, os elementos formais da fala são em si mesmos
dispostos de maneira estranha e estas peculiaridades formais parecem, pelo menos até certo

3
A melhor descrição desta condição que consegui encontrar na literatura acha-se nos Livros Proféticos de William Blake. Nas
descrições gregas do Inferno, e em Dante, as sombras ou fantasmas, embora separadas da vida, conservam sua coesão interior.
Em Blake tal não ocorre. As figuras de seus Livros, sofrem divisão em si mesmas. Esses Livros exigem prolongado estudo, não
para elucidar a psicopatologia de Blake, mas a fim de aprender-se dele o que, de certo modo, ele sabia de maneira bastante
intima, embora permanecendo são.
ponto, o reflexo verbal da sequência alternativa de sua experiência, com splits onde
julgamos haver coerência, e uma aglomeração (confusão) de elementos que consideramos
separadamente.
Contudo, estas dificuldades irredutíveis agravam-se pelo menos nos primeiros
encontros com o paciente, graças à sua utilização deliberada da obscuridade e complexidade
como cortina de fumaça atrás da qual se esconde. Isto cria uma situação irônica: o
esquizofrênico brinca com frequência de ser psicopata, ou finge sê-lo. Fingimento e
equívocos são muito usados pelas esquizofrênicos, já dissemos. As razões servem, em todos
os casos, a mais de uma finalidade simultaneamente. A mais óbvia é preservar o segredo, a
reserva do self contra a intrusão (açambarcamento, implosão). O self, conforme disse um
paciente, sente-se aniquilado e estraçalhado, mesmo numa simples conversação. Ansiando
embora ser amado pelo seu “self real”, o esquizofrênico sente-se aterrorizado pelo amor.
Qualquer forma de compreensão ameaça todo o seu sistema defensivo. Seu comportamento
exterior é um sistema defensivo análogo à inúmeras aberturas para passagens subterrâneas
que, conforme se imagina, conduziriam a uma cidadela interior, mas não levam a parte
alguma. O esquizofrênico não se revela a uma inspeção ou exame casual feito por qualquer
passante ocioso. Permanecendo desconhecido, o self está seguro. Está protegido de
observações penetrantes; protegido de afogamento ou açambarcamento pelo amor, assim
como de destruição pelo ódio. Permanecendo incógnito, o corpo do esquizofrênico pode ser
manipulado, acariciado, batido, receber injeções, ou seja o que for, mas “ele”, um
espectador, é inviolável.
Ao mesmo tempo, o self anseia por ser compreendido; na verdade, anseia por uma
pessoa inteira, que aceite seu ser total e ao fazê-lo “deixe-o em paz”. Mas é necessário
proceder com grande cautela e circunspecção. “Não tenta aproximar-se demais, demasiado
cedo”, diz Binswanger.

“Nós, esquizofrênicos, dizemos e fazemos muita coisa sem importância e depois


misturamos as coisas importantes com tudo isso, para ver se o médico está bastante
interessado para vê-las e senti-las”, falou Joan.
Uma variação desta técnica de misturar às coisas importantes “uma porção de coisas
sem importância” foi-me explicada por um esquizofrênico, que me deu um exemplo. No
decorrer do primeiro encontro com um psiquiatra concebeu intenso desprezo por ele, mas
ficou aterrorizado à ideia de revelar tal sentimento, pois poderiam submetê-lo a uma
leucotomia. No entanto, desejava desesperadamente manifestá-lo. No decorrer da entrevista
sentiu progressivamente tratar-se de uma mistificação e que o psiquiatra parecia levar
perfeitamente a sério aquela representação. E passou a convencer-se cada vez mais de que
o psiquiatra era um tolo. Quando este lhe perguntou se ouvia uma voz, o paciente pensou
“que pergunta ridícula”, uma vez que ouvia a voz do psiquiatra. Respondeu, portanto, que
sim e, à pergunta seguinte, que se tratava de uma voz masculina. “Que é que a voz diz a
você?” indagou a seguir. Ao que ele respondeu: “Você é um tolo”. Brincando de ser louco
dissera com impunidade exatamente o que pensava do psiquiatra.
Grande parte da esquizofrenia é simples tolice, despistamento, obstrução para afastar
pessoas perigosas da pista certa, criar tédio, sensação e inutilidade em outras. O
esquizofrênico faz-se de tolo, e também ao médico com freqüência. Brinca de ser louco
para evitar a todo custo a possibilidade de ser considerado responsável por uma só idéia ou
intenção coerente.
Joan dá outros exemplos:
“Os pacientes riem, fazem pose ao perceberem que o médico que afirmou ajudá-los
na verdade não pode ou não quer faze-lo. Fazer pose para uma jovem é algo sedutor,
mas é também um esforço para afastar a atenção do médico de suas funções
pélvicas. Os pacientes procuram distrai-lo e embaraçá-lo, agradando ao médico,
mas também confundindo-o de modo que não penetre em nada de importante. E
quando se encontra quem quer realmente ajudar não é preciso embaraçá-lo. Pode-
se agir de maneira normal. Sei dizer quando o médico não só quer, como pode
ajudar e ajudará”.
A afirmativa constitui uma impressionante confirmação da declaração de Jung no
sentido de que o esquizofrênico deixa de sê-lo ao encontrar alguém por quem se sinta
compreendido. Quando isso acontece, a maior parte das bizarrices consideradas “sinais” da
“doença” simplesmente evaporam-se.
“Encontrá-lo fez com que eu me sentisse como um viajante perdido num país onde
ninguém fala sua língua. O pior é que o viajante não sabe sequer para onde deveria
ir. Sente-se completamente impotente e solitário. Súbito, encontra um estranho que
sabe falar sua lingua. Mesmo que o estranho ignore o caminho, é muito melhor
poder partilhar o problema com alguém, saber que ele entende que você se sente
muito mal. Não estando sozinho você deixa de sentir-se desalentado, recupera a
vida e a vontade de lutar.
Ser louco é como um desses pesadelos em que você tenta gritar por socorro e
nenhum som sai de sua boca. Ou, se consegue chamar, ninguém ouve ou
compreende. Não se pode despertar do pesadelo, a menos que alguém escute e o
ajude a acordar”.
O principal agente na integração do paciente, no fazer com que as peças se reúnam
de modo coerente, é o amor do médico, um amor que lhe reconhece o ser total e o aceita
sem quaisquer limitações.
Isto, porém, é apenas o limiar e não o término do relacionamento com o médico. O
paciente permanece psicopata em termos dos persistentes splits de seu ser, embora os sinais
exteriores mais obstrusivos talvez se tornem menos evidentes.
Observamos que o self perdeu contato com a realidade e não pode sentir-se real ou
vivo.
Joan apresenta exemplos de maneiras pelas quais o esquizofrênico tenta conjurar
confirmações de sua realidade a partir da consciência de ser visto e, portanto, estar pelo
menos ali. O esquizofrênico não consegue manter tal convicção graças a forças interiores.
“Os pacientes distribuem pontapés, gritam e lutam quando não têm certeza de que
o médico possa vê-los. É uma sensação aterradora perceber que o médico não pode
vê-lo na realidade, compreender o que sente, seguindo apenas as próprias idéias, Eu
começava por sentir que estava invisível, ou talvez que não existia absolutamente e
precisava fazer uma barulhada para que o médico reagisse a mim, e não apenas às
suas idéias”.
No decorrer da narrativa, a paciente repetidamente compara seu self real com o falso
self conivente. O split entre o self real” e o corpo é vividamente manifesto na seguinte
passagem:
“Se você me tivesse possuído na realidade teria estragado tudo, pois isso me
convenceria de que estava apenas interessado no prazer obtido com meu corpo
animal e não se importava na verdade comigo como pessoa. Significaria que me
estava utilizando como mulher, quando eu na verdade não o era e precisava de muita
ajuda para vir a ser. Significaria que você só via o meu corpo e não o meu ser real,
que era ainda uma meninazinha. O eu real estaria no teto, observando-o manipular
o meu corpo. Você estaria contente em deixar morrer o eu real. Quando se alimenta
uma moça faz-se com que ela sinta que tanto o corpo como o self são desejados.
Isto ajuda a integrá-la. Quando você a possui, ela sente o corpo separado e morto.
Pode-se foder corpos mortos, mas nunca alimentá-los”.
O “self real” de Joan tinha que ser o ponto de partida para a evolução do status
genuíno e integral. Esse “self real”, porém, não era facilmente acessível por causa dos
perigos que o ameaçavam:
“As entrevistas eram o único lugar onde me sentia segura para ser eu própria,
manifestar todos os meus sentimentos e verificar o que eles eram de fato, sem o
temor de que você ficasse perturbado e me abandonasse. Eu precisava que você
fosse um grande rochedo que, embora empurrado repetidamente por mim, não
rolaria para longe. Era seguro ser insuportável diante de você. Com todos os demais
eu procurava modificar-me para agradar-lhes”.
... e também porque estava tão carregado de ódio e potencial destruidor que nada que o
penetrasse poderia sobreviver:
“O ódio tem que vir primeiro. O paciente odeia o médico por abrir a ferida e odeia
a si mesmo por permitir que o toquem novamente. Está convicto de que tudo
conduzirá a mais sofrimento. Quer estar morto e escondido num lugar onde nada o
toque e o arraste de volta.
O médico deve insistir com o paciente até que ele odeie, esta é a única maneira de
iniciar. Mas o paciente nunca deve sentir-se culpado por odiar. O médico precisa
estar convicto de ter o direito de penetrar na doença, assim como um pai tem o
direito de entrar no quarto de seu filho bebê, seja qual for o sentimento da criança
em relação a isso. O médico precisa saber que está agindo direito.
O paciente tem um medo terrível de seus próprios problemas, já que estes o
destruíram, de modo que se sente terrivelmente culpado por permitir que o médico
neles se imiscua. O paciente está convencido de que o médico também ficará
arrasado. Não é justo que peça permissão para entrar. Deve lutar para isso; assim o
paciente não precisa sentir-se culpado e pode achar que fez o máximo para proteger
o médico. Este deve dizer com sua atitude: “Vou entrar, não importa o que você
sinta a respeito”.
E mais:
“O problema com os esquizofrênicos é não conseguirem confiar em ninguém. Não
conseguem reunir todos os ovos numa cesta só. Em geral o médico terá que lutar
para entrar, por maior que seja a objeção do paciente. É maravilhoso ser espancado
ou morto porque ninguém faz isso com você a menos que realmente se importe e
esteja muito preocupado. A pessoa mata porque de fato deseja que o outro
ressuscite, não fique apenas morto.
Amar é impossível a princípio porque transforma o paciente numa criancinha. Ele só se
sentirá seguro para fazê-lo se estiver convicto de que o médico compreende o que é
necessário e providenciará”.
O temor de aceitar qualquer coisa ou alguém estende-se tanto ao bem quanto ao mal.
O mal destruirá o self, o self destruirá o bem.
O self está, portanto, simultaneamente vazio e esfaimado. Toda a sua orientação
encontra-se em termos de ânsia para comer, mas também destruir o alimento e ser por ele
destruído.
“Há quem passe a vida com vômito na boca. Sente-se sua terrível fome. porém
desafiam os outros a alimentá-los.
É infernal ver o peito oferecido de boa vontade ao amor, mas saber que ao
aproximar-se passará a odiá-lo como você odiou o seio de sua mãe. Isso faz com
que você se sinta horrivelmente culpado porque antes que se possa amar é preciso
ser também capaz de odiar. O médico precisa demonstrar que percebe o ódio, mas
que compreende e não fica magoado. É horrível demais quando o médico se magoa
com a doença.
É um inferno desejar de tal modo o leite, mas sentir-se dilacerado pela culpa de
odiar ao mesmo tempo o seio que o oferece. O esquizofrênico, portanto, precisa
fazer três coisas ao mesmo tempo: tentar chegar ao seio, mas também tentar morrer,
enquanto uma terceira parte dele procura não morrer”.
Voltaremos às questões relativas à última sentença. No momento continuaremos
com o esforço do self para evitar qualquer coisa que queira penetrá-lo, temendo que ele (o
self e/ou o objeto) seja destruído.
O self, conforme dissemos, tenta estar por fora de tudo. Tudo o que é está lá, nada
aqui.
Isto, finalmente, iguala-se à posição de que tudo o que o paciente é passa a ser
considerado “não-eu”. Ele rejeita tudo o que é como um simples espelho de uma realidade
alheia. Esta total rejeição do seu ser torna-“o”, ao seu “verdadeiro self, um simples ponto
em desaparecimento. “Ele” não pode ser real, substancial; não pode ter verdadeira
identidade ou personalidade. Tudo o que é vem por definição, portanto, sob a esfera do
sistema de falso self. Isto pode estender-se para além de ações e palavras, penetrando em
pensamentos, idéias e até memórias e fantasias. O sistema de falso self é a seara dos temores
paranóides, já que se segue facilmente que tendo-se espalhado em todas as direções e sendo
negado pelo self como simples espelho de uma realidade estranha (um objeto, uma coisa
mecânica, um robô, algo morto) pode ser considerado como presença ou pessoa estranha de
posse do indivíduo. O “self nega participação nisto, o sistema de falso self torna-se território
ocupado pelo inimigo, controlado e dirigido por um agente estranho, hostil, destruidor.
Quanto ao self, existe no vácuo. Mas esse vácuo torna-se encapsulado, embora a princípio
talvez de modo relativamente benigno e protetor.
“Sentia-me como se estivesse numa garrafa. Tudo estava do lado de fora e não podia
tocar-me”.
Mas isto se torna um pesadelo. As paredes da garrafa tornam-se uma prisão que
exclui o self de tudo, enquanto, pelo contrário, o self é perseguido como nunca nos próprios
limites de sua prisão. O resultado é pelo menos tão terrível como o estado contra o qual se
constituiu originalmente uma defesa. Assim:
“Não há gentileza, suavidade, calor
nesta profunda sepultura.
Minhas mãos apalpam as paredes de rocha
e em cada brecha encontram apenas um negro abismo.
Às vezes o ar se rarefaz.
Então arquejo em busca de novo alento,
embora respire todo o tempo
o mesmo ar desta caverna.
Não existe abertura, nem saída.
Estou prisioneiro.
Mas não sozinho.
Há tanta gente voltada contra mim.
Um estreito raio de luz infiltra-se na caverna,
vindo de uma brecha entre duas rochas.
É escuro aqui dentro.
É úmido e o ar é tão bafiento.
As pessoas são grandes, enormes.
Repetem-se umas às outras ao falar
E suas sombras projetadas nas paredes
seguem-nas quando se movem.
Não sei que aparência tenho,
nem o que parecem tais pessoas.
Elas pisam-me às vezes,
por simples descuido,
É o que creio e espero.
E são pesadas.
Está se tornando cada vez mais apertado aqui dentro
Estou apavorado.
Se sair talvez seja terrível
Mais gente assim estará do lado de fora.
Elas me aniquilarão de todo,
Pois são ainda mais pesadas que
estas daqui, é o que penso.
Breve a gente daqui me pisará
(por engano, creio) tantas vezes que
não restará muito de mim,
e eu me tornarei parte das paredes da caverna.
Então serei um eco e uma sombra,
junto com os outros, aqui,
que se tornaram ecos e sombras.
Deixei de ser forte.
Estou apavorado.
Nada existe para mim, fora daqui.
As pessoas são maiores e me empurrariam
de volta a esta caverna.
A gente lá de fora não me quer.
A gente daqui não me quer.
Não importa.
As paredes da caverna são ásperas e rijas.
Breve serei parte delas, rijo
E inamovível também. Tão rijo.
* * *
Estou dolorido por me pisotearem
aqui, mas não tencionam pisar-me,
é apenas por descuido,
Creio e espero.
Seria interessante ver com que me pareço
Mas não consigo chegar àquele raio de luz
que se insinua na caverna, porque a gente
me bloqueia o caminho, por engano, creio e espero.
Mas talvez seja terrível ver como me pareço
Porque então poderia ver que
sou como a gente daqui.
Não sou.
Espero.
* * *
Espero.
* * *
Dispa esta caverna!
Dispa-a de todas as suas cruéis arestas,
Que arranham e cortam meus membros.
Ilumine-a.
Limpe-a!
Retire ecos e sombras!
Afogue os murmúrios da gente!
Mande a caverna pelos ares! Com dinamitei
* * *
Não, não quero — não ainda.
Espere até que eu fique de pé neste canto.
Agora, já estou caminhando.
Ora, pisei em você,
e você, e você, e você!
Sente meu calcanhar?
Sofre com o pontapé?
Ah! Agora piso em você!
Está chorando?
Ótimo”.
A garrafa tornou-se uma caverna com agudas arestas que arranham e cortam os
membros, povoada de ecos e sombras que perseguem e a quem ela, por sua vez, persegue.
Contudo, sente-se ainda apavorada por renunciar à caverna, mesmo com seus
horrores, pois somente ali sente que poderá manter qualquer sentimento de identidade.
“Pronto! Não há caverna.
Desapareceu.
Mas quando parti?
Não consigo encontrar-me.
Onde estou?
Perdida.
Só sei que sinto frio
está mais frio que na caverna.
Faz tanto, tanto frio.
E as pessoas que me pisavam,
como se eu não estivesse ali,
entre elas por engano, creio e espero.
Sim, quero a caverna,
Lá sei onde estou.
Posso apalpar no escuro
e sentir as paredes.
E lá as pessoas sabem onde estou
e pisam em mim por engano
Creio e espero.
Mas lá fora...
Onde estou?”
Em última análise, talvez seja verdade dizer que o “self” esteve inteiramente perdido
ou destruído, mesmo no mais “dilacerado dos hebefrênicos” para usar a terrível mas
apropriada expressão de H. S. Sullivan. Existe ainda um “eu” que não pode encontrar um
“eu”. Um “eu” não deixou de existir, mas está sem substância, desencarnado, falta-lhe
realidade, não possui identidade, não tem um “eu” para acompanhá-lo. Pode parecer
contraditório dizer que falta ao “eu” identidade, mas parece ser assim. O esquizofrênico ou
não sabe quem e o que é, ou tornou-se algo ou alguém que não é ele próprio. De qualquer
modo, sem este último fragmento de self, o “eu”, seria impossível terapia de qualquer
espécie. Parece razão insuficiente crer que não exista esse último resquício num paciente
que fala, ou pelo menos executa alguns movimentos integrados.
Vemos também no caso de Joan que foi sua identidade o que mais desesperadamente
desejou preservar. Contudo, achava que não podia, não devia ou não ousava ser ela própria
como pessoa encarnada. Os problemas característicos de buscar um sentimento de culpa,
sua falta de integração, a natureza do seu sistema de falso self e a capacidade mal firmada
para diferenciar seu ser do dos demais estavam intimamente relacionados.
“Todos deveriam poder voltar à infância na memória e ter a certeza de que houvera
uma mãe para amá-lo, a todo ele, inclusive fezes e urina. Precisaria estar certo de
que a mãe o amara por ser ele mesmo, não pelo que poderia fazer. De Outro modo
a pessoa sente que não tem o direito de existir, que nunca deveria ter nascido.
Não importa o que aconteça na vida a essa pessoa, por mais que seja magoada
poderá sempre recordar tudo isso e sentir que é amável. Poderá amar a si mesma e
não será aniquilada. Se não puder voltar a isto, então será destruída.
Só se é destruído quando já se está despedaçado. Enquanto meu self infantil não foi
amado eu me encontrava despedaçada. Amando-me como a um bebê você me
tornou inteira”.
E ainda:
“Pedia repetidamente que me batesse porque tinha certeza de que você não poderia
gostar do meu traseiro, mas, caso lhe batesse, pelo menos o estaria aceitando, de
certo modo. Então eu podia também aceitar e torná-lo parte de mim. Não precisaria
lutar para amputá-lo.”
A loucura conferia uma espécie de distinção que não era de todo inaceitável:
“Foi terrivelmente difícil para mim deixar de ser esquizofrênica. Sabia que não
queria ser uma Smith (seu nome de família) porque então nada seria senão a neta
do velho Professor Smith. Não tinha certeza de poder sentir-me sua filha e não
estava certa de mim mesma. A única coisa de que tinha certeza era de ser
“catatônica, paranóide e esquizofrênica”. Vira tudo isso escrito na minha ficha. Pelo
menos isso possuía substância e me proporcionava, uma identidade e personalidade
(o que o levou a modificar?). Tive então a certeza de que você me permitiria sentir-
me como sua filha e que cuidaria de mim com carinho. Se você conseguia gostar
do meu verdadeiro eu, então eu também seria capaz. E poderia permitir-me ser
apenas eu, sem qualquer título.
Voltei ao hospital recentemente e por um instante perdi-me na sensação do passado.
Ali poderia ficar em paz. O mundo prosseguia para além dos muros, mas eu possuía
um mundo inteiro dentro de mim. Ninguém poderia alcançá-lo ou perturbá-lo. Por
um instante senti um tremendo impulso para voltar. Era tão tranquilo e seguro. Mas
compreendi então que posso amar e divertir-me no mundo real e comecei a odiar o
hospital. Odiei as quatro paredes e a sensação de encarceramento. Odiei a
lembrança de jamais sentir-me realmente satisfeita com minhas fantasias”.
Fora incapaz de suster com seus próprios recursos o direito auto-suficiente de ser ela
própria e autônoma.
Era incapaz de manter uma verdadeira autonomia porque tudo o que podia ser em
relação aos pais era algo aquiescente.
“Meus médicos acabam de tentar fazer com que eu seja “uma boa moça”, acertando
as coisas entre eu e meus pais. Tentaram fazer com que me ajuste a eles. Foi inútil.
Eles não viam que eu ansiava por novos pais e nova vida. Nenhum dos médicos
parecia levar-me a sério, ver o quanto eu estava doente e que precisava de uma
grande mudança na minha vida. Ninguém parecia compreender que se eu voltasse
para minha família seria reabsorvida e me perderia. Seria como a foto de um grande
grupo familiar tirada à distância. Vê-se uma porção de gente, mas não se tem certeza
de quem sejam. Eu estaria perdida no grupo”.
Contudo, a única maneira de desembaraçar-se seria uma vazia transcendência num
“mundo” de fantasmas. Mesmo quando começou a “ser ela mesma”, a princípio só ousava
fazê-lo refletindo completamente a realidade do médico. Disto era capaz, pois embora a
realidade dele (seus desejos em relação a ela) fosse a de um outro, não era estranha a ela:
os desejos eram congruentes com o seu desejo autêntico de ser ela mesma.
“Eu só existia porque você queria que eu existisse e eu só poderia ser o que você
queria que eu fosse. Só me sentia real por causa das reações que produzia em você.
Se eu o arranhasse e você não sentisse, então eu estaria realmente morta.
Eu só podia ser boa se você visse bondade em mim. Só quando olhava para mim
através dos seus olhos é que conseguia ver algo de bom. De outro modo, só me via
como uma garota esfaimada, aborrecida, a quem todos odiavam, e eu me odiava por
ser assim. E queria arrancar meu estômago por ser tão esfaimada”.
A essa altura não possuía genuína autonomia. Vê-se aqui com clareza de que modo
a culpa do esquizofrênico é um obstáculo a que ele seja ele próprio. O simples ato de
alcançar a autonomia e a separação é para ele arrogar-se algo que não lhe cabe exatamente:
um ato de hubris prometeana. Recordemos que o castigo de Prometeu era ver suas entranhas
devoradas por uma águia (“Eu queria arrancar meu estômago por ser tão esfaimado”), estan-
do ele preso a um rochedo. Na verdade, numa versão do mito, Prometeu perdeu
parcialmente sua identidade em separado, pois funde-se com o rochedo ao qual está preso.
Sem tentar uma interpretação equilibrada de todo o mito, parece que o rochedo e a águia
podem ser vistos como dois aspectos da mãe, a quem se está acorrentado (a rocha: “o peito
de granito do desespero”), e por quem se é devorado (a águia). A águia devoradora e as
entranhas, renovadas só para serem novamente devoradas, constituem uma inversão
apavorante do ciclo normal da amamentação.
Para o esquizofrênico, gostar de alguém é o mesmo que ser como aquela pessoa: ser
como uma pessoa está equacionado a ser o mesmo que ela e portanto perder a identidade.
Odiar e ser odiado podem ser considerados como menor ameaça à identidade que amar e
ser amado.
Postulamos que o split fundamental na personalidade esquizóide era uma cisão que
separava self e corpo:
Self / (corpo-mundo)
Tal cisão divide em dois o ser do indivíduo, de modo que o sentido do eu é
desencarnado e o corpo torna-se o centro de um sistema de falso self.
A totalidade da experiência foi diferenciada por uma linha de separação self-corpo
dentro do indivíduo.
Quando este é o split primário, ou quando ele co-existe com o split vertical
self/corpo/mundo, o corpo ocupa uma posição particularmente ambígua.
Os dois segmentos básicos da experiência podem ser considerados como
aqui lá
que são diferenciados de maneira normal em
dentro fora
(eu) (não-eu)
Esta separação esquizóide rompe o senso normal do self imaterializando o sentido
de “eu”. Está lançada a semente de uma persistente fusão, mistura ou confusão na junção
entre aqui e lá, dentro e fora, porque o corpo não é firmemente sentido como eu em contraste
com o não-eu.
Somente quando o corpo pode ser assim diferenciado dos outros é que todos os
problemas relativos ao relacionamento/separação, entre pessoas inteiras e separadas
começam a poder ser resolvidos à maneira habitual. O self não precisa tão desesperadamente
permanecer engarrafado em sua transcendência defensiva. A pessoa pode ser como alguém
sem ser aquela outra pessoa; sentimentos podem ser partilhados sem serem confundidos ou
misturados com os de outro. Essa partilha só pode começar através o estabelecimento de
uma nítida distinção entre eu-aqui, não-eu-lá. Neste estágio é de importância crucial para o
esquizofrênico testar as sutilezas e requintes que se encontram na junção entre dentro e fora,
e tudo o que se inclui na expressão e revelação do que verdadeiramente pertence ao self real.
É assim que o self se torna genuinamente encarnado.
“A primeira vez que chorei você cometeu um terrível engano: enxugou minhas
lágrimas com o lenço. Não fazia idéia de como eu desajava sentir aquelas lágrimas
rolando pelo meu rosto. Pelo menos possuía alguns sentimentos que se
exteriorizavam. Se pudesse lamber minhas lágrimas eu ficaria totalmente feliz.
Então você teria partilhado dos meus sentimentos.”
Joan refere-se diversas vezes a ter morrido e ao desejo de estar morta. O paciente,
diz, “deseja de fato estar morto e escondido num lugar onde nada poderá tocá-lo e arrastá-
lo de volta”.
Referimo-nos ao desejo de estar morto, ao desejo de não-ser como talvez o mais
perigoso de se buscar. No esquizofrênico, dois motivos principais constituem uma só força
operando no sentido de promover um estado de morte-em-vida. Existe a culpa primária de
não ter direito à vida, e daí a só ter direito, no máximo, a uma vida morta. Em segundo
lugar, é provavelmente a posição defensiva mais extremada que se possa adotar. Não mais
existe o temor de ser aniquilado, açambarcado, dominado pela realidade e a vida (advenham
de outras pessoas, de sentimentos “interiores” ou de emoções, etc.) já que se está morto.
Estando morto não se pode morrer e não se pode matar. As ansiedades que acompanham a
fantástica onipotência do esquizofrênico são solapadas pelo viver numa condição de
fantástica impotência.
Já que não conseguiu ser outra coisa além daquilo que os pais queriam que ela fosse,
e já que eles desejavam que ela fosse um menino, Joan só podia ser-nada.
“Eu precisava mostrar-me controlada e saber o que você queria que eu fosse. Então
teria certeza de que você me queria. Com meus pais eu não podia ser menino e eles
não deixaram claro que outra coisa desejariam que eu fosse, além disso. Então tentei
morrer tornando-me catatônica”.
E coloca toda a questão de maneira bastante sucinta na seguinte passagem:
“Quando estava catatônica tentei ficar morta, cinzenta, imóvel. Pensei que mamãe
gostaria disso. Assim me carregaria de um lado para outro, como se eu fosse boneca.
Sentia-me engarrafada, como se tudo estivesse lá fora e não me pudesse tocar.
Precisava morrer para impedir-me de morrer. Sei que parece loucura, mas um dia
um rapaz magoou-me tanto que eu quis saltar na frente de um trem subterrâneo. Em
vez, tornei-me um pouco catatônica, de modo a não sentir coisa alguma. (Creio que
é preciso morrer emocionalmente, senão os sentimentos podem matar a pessoa). É
exato. Acho que prefiro matar-me que fazer mal a alguém.”
Existem, naturalmente, outras maneiras de considerar o material a seguir e seus
diversos aspectos. Propositalmente focalizei em primeiro lugar a natureza da experiência de
Joan com o seu “verdadeiro” self, e “falso” self, esperando assim demonstrar que esta
maneira de considerar a questão parece não impor distorção do testemunho da paciente, ou
exigir a negação de aspectos que não se “encaixem”. No caso de Joan, o mínimo de
reconstituição é exigido de nossa parte, já que ela própria proporciona uma clara exposição
da fenomenologia de sua psicose, em linguagem direta e simples. Quando, porém, se está
lidando com um paciente ativamente psicopata é preciso correr o risco de traduzir a sua
linguagem para a nossa, caso não se queira fazer a narrativai em “esquizofrenês”. Este é o
nosso problema no caso a seguir.

11 - O Fantasma do Jardim Abandonado: um Estudo de


Esquizofrenia Crônica
“... pois a Verdade ultrapassa toda
comiseração”.
MAXIM GORKY
Julie, na época em que a conheci, era paciente de um manicômio desde a idade de dezessete
anos, isto é, há nove anos. Nesse período de tempo tornara-se “inacessível e retraída”, um
caso típico de esquizofrenia crônica. Sofria alucinações, era dada a fazer poses, a ações
estereotipadas, bizarras, incompreensíveis; estava quase sempre muda e quando falava
utilizava-se do mais deteriorado “esquizofrenês”. Ao ser internada recebera o diagnóstico
de hebefrênica e haviam-lhe ministrado uma série de insulina, sem melhoras e depois
nenhuma outra tentativa específica fora empreendida para trazê-la de volta à sanidade.
Deixada a si mesma, há poucas dúvidas de que se tornaria rápidamente uma ruína física,
mas a aparência externa era mantida pelas atenções quase diárias da mãe, junto ao trabalho
da enfermagem.
Por causa de diversas coisas estranhas e alarmantes que disse e fez na época, os pais
a haviam levado a um psiquiatra quando estava com dezessete anos. Durante a entrevista,
ele registrou que nada havia de particularmente estranho no seu comportamento não verbal,
mas que o que dizia bastava para estabelecer o diagnóstico de esquizofrenia. Na
terminologia clínica psiquiátrica, sofria de despersonalização, irrealização, autismo; ilusões
niilistas; mania de perseguição; onipotência; tinha idéias associativas e fantasias de fim-do-
mundo; alucinações auditivas; empobrecimento dos afetos, etc.
Dizia que seu problema era não ser uma pessoa real; estava tentando tornar-se uma
pessoa. Não havia felicidade na sua vida e ela tentava encontrar a felicidade. Sentia-se irreal
e havia uma barreira invisível entre ela e os outros. Era vazia e sem valor. Preocupava-a ser
demasiado destruidora e começava a achar que era melhor não tocar em nada para não
causar danos. Tinha muito a dizer a respeito da mãe. Esta a sufocava, não queria deixá-la
viver e jamais a desejara. Já que a mãe insistia em que tivesse mais amigos, fosse a festas,
vestisse roupas bonitas, etc. as acusações pareciam palpavelmente absurdas.
Contudo, sua declaração psicótica fundamental era que “uma criança foi
assassinada”. Mostrava-se vaga quanto a detalhes, mas dizia ter ouvido isso pela voz do
irmão (não tinha irmãos). Perguntava a si mesma, porém, se essa voz não seria dela própria.
A criança estava usando suas roupas quando fora assassinada. Poderia ser ela mesma. Fora
assassinada por sua mãe, ou por ela própria, não tinha certeza. E propôs falar à polícia.
Muito do que Julie disse aos dezessete anos tornou-se familiar para nós, após a
leitura das páginas anteriores. Vemos a verdade existencial de sua afirmativa no sentido de
não ser uma pessoa, ser irreal, compreendemos o que quer dizer quando declara estar
tentando tornar-se uma pessoa, e por que motivo se sente ao mesmo tempo tão vazia e tão
poderosamente destruidora. Mas além desse ponto suas comunicações tornam-se “parabó-
licas”. As acusações contra a mãe, segundo suspeitamos, relacionam-se com o seu fracasso
em tornar-se uma pessoa, mas parecem superficialmente absurdas e forçadas (cf. adiante).
Contudo, quando diz que “uma criança foi assassinada”, nosso bom senso sofre uma exigên-
cia maior e ela é deixada sozinha num mundo que ninguém quer partilhar.
Examinaremos agora a natureza da psicose, que paréce ter início aos dezessete anos.
Creio que a melhor maneira de abordá-la é considerar em primeiro lugar a sua vida até
então.
BIOGRAFIA CLÍNICA DE UM ESQUIZOFRÊNICO

Nunca é fácil obter um relato adequado da primeira infância de um esquizofrênico. Toda


investigação da vida de qualquer paciente esquizofrênico é uma laboriosa peça de pesquisa
original. Impossível insistir em demasia em que uma “rotina”, ou mesmo uma história dina-
micamente orientada, obtida no decurso de várias entrevistas, pouco proporciona da
informação crucial necessária a uma análise existencial. Neste caso em particular, vi a mãe
uma vez por semana pelo espaço de vários meses e entrevistei (em diversas ocasiões) o pai,
a irmã três anos mais velha, a tia (irmã do pai). Contudo, nenhuma reunião de fatos está
isenta de duplicidade. Searles (1958), por exemplo, está absolutamente correto, creio, ao
enfatizar a existência de sentimentos positivos entre o esquizofrênico e sua mãe, descoberta
que foi singularmente “ignorada” pela maioria dos observadores. Não tenho ilusões de que
o presente estudo esteja imune de duplicidades que eu não percebo.
Pai, mãe, irmã, tia eram o mundo efetivo pessoal onde cresceu a paciente. É a vida
da paciente no seu microcosmo interpessoal o cerne de qualquer biografia clínica
psiquiátrica. Tal biografia é, portanto, de âmbito limitado. Os fatores sócio-econômicos da
comunidade mais ampla de que a família da paciente era parte integrante não são
diretamente relevantes para a matéria que discutimos. Isto não quer dizer que tais fatores
não influenciem profundamente a natureza da família e portanto do paciente. Mas assim
como o citologista coloca, qua citologista, seu conhecimento de macroanatomia entre pa-
rêntesis na descrição de fenômenos celulares, estando ao mesmo tempo de posse desse
conhecimento, nós colocamos as questões sociológicas mais amplas entre parêntesis, por
não serem de relevância direta e imediata para a compreensão de como a jovem se tornou
psicopata. Assim, creio que a biografia clínica que apresentarei poderia ser a de uma moça
da classe operária de Zurique, uma jovem da classe média de Lincoln, ou a filha de um
milionário do Texas. Possibilidades humanas muito similares surgem no relacionamento
entre pessoas tão diversamente colocadas do ponto de vista social quanto estas. Contudo,
descrevo algo que ocorre no mundo ocidental, no século vinte, mas que talvez não ocorra
nos mesmos termos em qualquer outra parte. Ignoro quais sejam os traços essenciais deste
mundo que permite a emergência de tais possibilidades. Mas nós, clínicos, não devemos
esquecer que o que se passa para além do nosso horizonte autodeterminado talvez faça uma
grande diferença nos padrões que se estabeleçam dentro dos limites do nosso microcosmo
clínico interpessoal.
Julguei necessário fazer esta declaração de passagem, porque sinto que a psiquiatria
clínica no Ocidente inclina-se para o que um amigo meu esquizofrênico chamava
“gaucherie social”, enquanto que a psiquiatria soviética parece ser gauche na esfera
interpessoal. Embora uma biografia clínica deva, segundo creio, focalizar a esfera
interpessoal, deve fazê-lo de modo a não ser um sistema fechado, que exclua a relevância
em princípio daquilo que se coloca temporariamente entre parêntesis por uma questão de
conveniência.
Embora cada uma das diversas pessoas entrevistadas tenha seu próprio ponto de vista
sobre a vida de Julie, concordaram todas em vê-la em três estados ou fases básicas, isto é,
houve uma época em que
1. a paciente foi uma menina boa, normal, sadia; até que gradualmente começou
2. a ser má, ou a fazer e dizer coisas que causavam muita aflição e que de modo geral
podiam ser consideradas travessuras ou maldades, até que
3. isto ultrapassou todos os limites do tolerável, de modo que ela só podia ser
considerada como totalmente louca.
Quando os pais “souberam” que ela estava louca culparam-se por não o terem
percebido há mais tempo. A mãe dizia:
“Comecei a odiar as coisas horríveis que ela me dizia, mas percebi então que não
podia conter-se... era uma menina tão boazinha. Depois começou a dizer coisas
medonhas... se soubéssemos! Estávamos errados ao pensar que ela era responsável
pelo que dizia? Eu sabia que não podia realmente falar a sério as coisas horríveis
que me dizia. Culpo a mim mesma, porém de certo modo estou contente por se
tratar de doença. Mas se eu não tivesse esperado tanto tempo para levá-la ao
médico...”
O que significam exatamente bom, mau e louco ainda não sabemos. Mas
descobrimos muita coisa. Para começar, conforme recordam os pais agora, é claro, Julie
agia de modo a ser aos olhos dos pais tudo o que há de mais certo. Era boa, sadia, normal.
Então seu comportamento mudou e ela passou a agir em termos do que todas as pessoas de
relevância do seu mundo concordavam unanimemente em considerar “mau”, até que, dentro
de pouco tempo, ela ficou “louca”.
Isto nada nos diz sobre o que a criança fez para ser boa, má ou louca aos olhos dos
pais, mas nos fornece uma importante informação: o padrão original de suas ações estava
de conformidade total com o que os pais consideravam bom e digno de elogios. Depois foi
por algum tempo “má”, isto é, “manifestou” tudo o que os pais não queriam que ela fizesse,
dissesse, ou não queriam crer que existisse na filha. Não nos cabe dizer no momento porque
isso aconteceu. Mas que ela fosse capaz de dizer e fazer tais coisas era quase incrível aos
olhos dos pais. Tudo o que se manifestava era totalmente insuspeitado. Procuraram a
princípio desculpá-la, mas à medida que aumentava a agressão tentaram violentamente
repudiá-la. Foi um grande alívio quando, em vez de dizer que a mãe não a deixava viver,
passou a dizer que a mãe assassinara uma criança. Então tudo podia ser desculpado.
“Coitada de Julie, estava doente. Não era responsável. Como poderia acreditar por um só
instante que ela falava a sério quando se dirigia a mim? Procurei sempre ser uma boa mãe
para ela”. Teremos ocasião de voltar a esta última sentença.
Esses três estágios na evolução da idéia de psicose ocorrem com frequência entre os
membros da família. Boa-má-louca. É tão importante descobrir o modo como as pessoas no
mundo da paciente consideravam seu comportamento, como estabelecer a história do
próprio comportamento. Tentarei demonstrá-lo de forma conclusiva mais adiante, mas a
esta altura gostaria de observar algo importante sobre a história da menina, que me foi
contada pelos pais.
Estes não omitiram fatos, nem procuraram enganar. Estavam ambos ansiosos por
ajudar e de modo geral não retiveram propositadamente qualquer informação sobre fatos
reais. O que é significativo é o modo como os fatos foram considerados, ou antes, o modo
como deduções óbvias foram negadas. É provável que a melhor maneira de apresentar um
rápido relato da vida desta moça seja agrupar os acontecimentos dentro do quadro dos pais.
Minha narrativa é feita sobretudo nas palavras da mãe.
FASE 1: Criança boa e normal

Julie jamais foi uma criança exigente. Foi desmamada sem dificuldades. A mãe não teve
problemas com ela desde o dia em que lhe retirou completamente as fraldas, aos quinze
meses. Nunca se mostrou desobediente. Sempre fazia o que lhe mandavam.
Tais são as generalizações básicas da mãe, apoiando o ponto de vista de que Julie
sempre fora uma “boa” menina.
Esta é a descrição de uma criança que de certo modo jamais chegou a viver, pois um
bebê realmente vivo é exigente, cria casos e de modo algum faz sempre aquilo que lhe
mandam. É bem possível que o bebê nunca fosse tão “perfeito” quanto a mãe gostaria que
eu acreditasse, mas é altamente significativo que se trate dessa “bondade” o ideal da sra. X,
em relação a uma criança. Talvez essa criança não fosse assim tão perfeita; talvez ao afirmá-
lo a mãe agisse impelida pela apreensão de que eu a censurasse de certo modo. Para mim o
ponto crucial é que evidentemente a sra. X considerava os fatos que eu tomo como
expressão de torpor interior da criança, como expressões da maior bondade, saúde e nor-
malidade. O ponto significativo, portanto, já que estamos considerando a paciente não
abstraída de sua família, mas antes todo o sistema de relacionamento familial do qual Julie
fazia parte, é que pai, mãe e tia não descrevem uma criança existencialmente morta, e sim
que nenhum dos adultos de seu mundo conhece a diferença entre vida existencial e morte.
Pelo contrário, ser existencialmente morto deles obtém os maiores encómios.
Consideremos cada uma das declarações da mãe, acima apontadas:
1. Julie nunca foi um bebê exigente. Nunca chorava para mamar. Nunca mamava
com avidez. Nunca terminava uma mamadeira. Estava sempre “satisfeita”; não ganhou peso
muito rapidamente. “Nunca exigia nada, mas eu sentia que ela nunca estava satisfeita”.
Eis a descrição de uma criança cujo apetite oral e avidez jamais encontraram
expressão. Em vez de uma sadia e vigorosa expressão do instinto por meio de gritos
excitados, mamar enérgico, esvaziar da mamadeira, seguidos de um sono satisfeito de bebê
saciado, agitava-se continuamente, parecia ter fome, mas quando lhe apresentavam a
mamadeira, mamava sem entusiasmo e nunca se satisfazia. A pessoa é tentada a reconstituir
essas primeiras experiências do ponto de vista da criança, mas desejo restringir-me aqui
apenas a fatos observáveis, recordados pela mãe após mais de vinte anos e basear somente
nelas a nossa reconstituição.
Conforme declarei acima, creio ser este um ponto importante quando se consideram
fatores etiológicos; um dos aspectos mais relevantes da exposição é que não só obtemos o
quadro de uma criança que, embora fisicamente viva, não está nascendo existencialmente,
como também que a mãe não compreende a situação e continua a rejubilar-se com a
lembrança dos aspectos mais mortos do comportamento do bebê. Não se alarmava porque
ela não chorava exigindo a mamadeira, nem a esgotava. O fato de Julie assim agir não é por
ela considerado uma grave falha na expressão e realização dos instintos básicos orais, e sim
um sinal de “bom comportamento”.
A sra. X sublinhava repetidamente que Julie nunca fora um bebê “exigente”. Isto
não significava que ela não fosse uma pessoa generosa. De fato, “dera a vida” por Julie,
segundo dizia. Conforme veremos, a irmã de Julie fora um bebê exigente e ávido. A mãe
nunca nutrira muitas esperanças em relação a ela: “Deixei-a simplesmente seguir seu
caminho”. Contudo, era exatamente o fato de Julie desde o começo jamais ter sido exigente
que parecia ter encorajado a mãe a dar-lhe tanto, conforme fizera. Foi, portanto, terrível
para ela quando na adolescência Julie, em vez de demonstrar gratidão por tudo o que ela
fizera e lhe dera, começou a acusá-la de nunca a ter deixado em paz. Assim, embora me
pareça possível que, devido a algum fator genético o bebê tenha nascido com o organismo
constituído de forma que as necessidades instintivas e de gratificação não emergissem com
facilidade, falando-se da maneira mais generalizada, acrescente-se o fato de que todos os
que viviam em seu mundo consideravam esse traço como um sinal de bondade e davam sua
aprovação à ausência de ação pessoal. A combinação do fracasso quase total do bebê em
obter gratificação dos instintos, junto ao fracasso total da mãe em percebê-lo pode ser
apontado como um dos temas insistentes nos primórdios da relação esquizofrênica mãe-
filha. É preciso pesquisar além para estabelecer até que ponto é específica esta combinação.
2. Foi desmamada sem problemas. É na alimentação que o bebê começa a viver
ativamente com outra pessoa. À época do desmame, a criança normal já deve ter
desenvolvido algum sentido de si mesma como um ser com seus próprios direitos, tendo o
“seu jeito”, e algum sentido da permanência da mãe como o outro prototípico. Baseado
nestas realizações, o desmame ocorre sem muita dificuldade. Nesse estágio o bebê é dado
a brincadeiras nas quais deixa cair, por exemplo, um chocalho para que este lhe seja
devolvido; torna a deixá-lo cair, para que o devolvam e assim por diante, inter-
minavelmente. Parece brincar com um objeto que vai e volta, na verdade o ponto central do
desmame. Além disso, o jogo em geral será jogado à sua maneira, de modo que achamos
“natural” conspirar com ela para manter a impressão de que é o bebê quem está no controle.
No caso de Freud, o meninozinho conservava o novelo de barbante preso a si quando o
atirava fora, em contraste com o fato de não poder conservar a mãe sob seu controle
agarrando-se “à sua saia”. Se, conforme deduzimos, esta menina não alcançou nos primeiros
meses a autonomia que é o pré-requisito da capacidade de seguir seu caminho, ter opinião
própria, não é surpreendente que tenha sido desmamada sem dificuldade, embora
dificilmente se possa falar em desmame quando o bebê está entregando algo que jamais
possuiu. Na verdade, é difícil falar em desmame no caso de Julie. Tudo se passou com tanta
tranqüilidade na época, que a mãe mal conseguiu recordar qualquer incidente. Lembrava-
se, porém, de ter jogado com a paciente “um jogo de atirar”. A irmã mais velha de Julie
brincara na versão costumeira do jogo, exasperando com isso a sra. X. “Assegurei-me de
que ela (Julie) não jogasse comigo aquele jogo. Eu atirava coisas que ela trazia de volta para
mim”, tão logo começou a engatinhar.
É desnecessário comentar as implicações desta inversão de papéis no fracasso de
Julie em adquirir qualquer iniciativa verdadeira.
Foi considerada precoce no andar (logo depois de completar um ano) e gritava
quando não conseguia chegar bem rápido até à mãe, que se encontrava do outro lado da
sala. O mobiliário teve que ser arrumado de outra maneira porque “Julie ficava aterrorizada
se encontrasse cadeiras entre ela e eu”. A mãe interpretava isso como um sinal de que a
filha gostava muito dela. Até os três ou quatro anos “ficava quase louca” se a mãe saía de
sua vista por um só instante.
Isto parece confirmar a sugestão de que ela não fora jamais realmente desmamada
porque nunca alcançara o estágio em que o desmame poderia ocorrer em outros sentidos
além do físico. Já que nunca estabeleceu um self autônomo, não podia começar a enfrentar
as questões de presença e ausência da capacidade de estar sozinha consigo mesma, até a
descoberta de que a presença física de outra pessoa não era necessária a sua existência, por
mais que suas necessidades ou desejos tivessem sido frustrados. Se um indivíduo precisa
de outro a fim de ser ele próprio, isso pressupõe uma falha no alcance da autonomia, isto é,
ele ingressa na vida a partir de uma posição ontológica basicamente insegura. Julie não
podia ser ela própria nem na presença, nem na ausência da mãe. E, que a mãe recorde, a
filha nunca esteve fisicamente fora do seu alcance até completar três anos.
3. Ela foi limpinha desde o momento em que lhe tiraram as fraldas, aos quinze
meses. É bom observar a esta altura que não raro encontra-se entre os esquizofrênicos um
precoce desenvolvimento do controle das funções fisiológicas, embora não se saiba como
se comparam com os outros a este respeito. Pais de esquizofrênicos mostram-se com
freqüência orgulhosos porque os filhos gatinharam, andaram, controlaram as funções
fisiológicas, falaram, deixaram de chorar, etc., precocemente. Ao considerar a conjunção
entre o que o pai se mostra orgulhoso de contar e o que a criança realizou é preciso verificar,
porém, até que ponto o comportamento da criança é uma expressão de sua vontade. A
questão não é a medida de docilidade ou maldade da criança e sim saber se ela possui o
senso de ser a origem de suas próprias ações, de ser a fonte de onde brotam essas ações; ou
se acha que seus atos não são gerados dentro de si mesma e sim dentro da mãe, embora ela
possua toda a aparência de ser o agente de seus atos (como a pessoa hipnotizada a quem se
ordena fingir ser autônoma). Pode acontecer que o corpo aperfeiçoe suas habilidades,
realizando assim tudo o que dele se espera; contudo, uma ação autônoma genuína parece
nunca se estabelecer. Em vez, todas as ações estão de acordo e conformidade quase total
com diretivas externas. No caso de Julie, seus atos foram treinados pela mãe, mas a menina
não estava “neles”. Era isso o que ela queria dizer ao declarar que nunca se tornara uma
pessoa, reiterando constantemente na sua esquizofrenia crônica, que era “um sino tocado”.
Em outras palavras, era apenas aquilo que lhe mandavam ser.
4. Fazia sempre o que lhe mandavam. — Conforme observamos anteriormente com
relação a dizer a verdade e mentir, há boas razões para se ser obediente, mas ser incapaz de
mostrar-se desobediente não é a melhor delas. Até então, segundo o relato da sra. X., é
impossível verificar que a mãe tenha reconhecido em Julie quaisquer possibilidades além
daquelas que a própria Julie chamava “um sino tocado”. “Dera a vida” ao sino tocado, mas
negara-lhe totalmente, e continuava a negar-lhe, vinte e cinco anos mais tarde, a
possibilidade de que essa menina dócil, obediente, limpa, que tanto a amava e quase
enlouquecia quando se via dela separada por uma simples cadeira, estivesse petrificada
numa “coisa”, demasiado horrorizada para tornar-se uma pessoa.
5. Jamais causou “problemas?”. É claro agora que desde o tempo em que a paciente
ultrapassou os primeiros meses de vida já não tinha autonomia. Na medida em que se pode
julgar, baseado nas lembranças da mãe, nunca teve seu jeito próprio de agir. Necessidades
e gratificações instintivas jamais encontraram expressão através de atividade física.
A verdadeira satisfação resultante do desejo do seio real não ocorrera de princípio.
A mãe considerava as conseqüências com a mesma aprovação reservada para as suas
primeiras manifestações.
“Jamais aceitava além de uma fatia de bolo. Bastava dizer “Chega, Julie” e ela não
protestava”.
Observei anteriormente de que modo o ódio pode ser expresso apenas em e por
intermédio da aquiescência do sistema de falso self. A mãe elogiava sua obediência, mas
Julie começou a levar essa obediência a ponto de tornar-se “impossível”. Assim, lá pelos
dez anos houve um período em que precisavam dizer-lhe tudo o que ocorreria no decurso
do dia e o que ela deveria fazer. Todos os dias precisavam começar com este catálogo. Se a
mãe se recusasse ao ritual ela começava a choramingar. E nada a fazia parar senão uma boa
sova. À medida que foi crescendo não quis usar consigo mesma qualquer dinheiro que
ganhasse. Mesmo quando a encorajavam a dizer o que desejava, ou a comprar um vestido
para si mesma, ou a ter amigas como as outras meninas não manifestava seus desejos; fazia
com que a mãe comprasse suas roupas, não assumia a menor iniciativa para travar amizades
e nunca tomava decisão de qualquer espécie.
Além do choramingo acima mencionado, houve algumas outras vezes durante a
infância em que Julie preocupou a mãe. Entre os cinco e os sete anos roeu as unhas com
violência; desde que começou a falar mostrou tendência a dizer as palavras de trás para
frente. Súbito, aos oito anos, passou a comer com exagero, o que se prolongou por alguns
meses antes de voltar à sua apática maneira de alimentar-se.
A mãe, porém, atribuía tudo isso a fases transitórias. Nelas vislumbra-se, porém, um
mundo interior de violenta destrutividade, com rápidos e desesperados acessos de avidez
manifesta, logo dominados e submersos, porém.

Fase 2: A fase “má”

A partir dos quinze anos seu comportamento modificou-se: de “boa” menina passou a ser
“má”. Nesta ocasião também a atitude da mãe modificou-se em relação a ela. Enquanto
previamente julgara direito e correto que Julie ficasse com ela o mais possível, começou
então a insistir para que saísse mais, tivesse mais amigos, fosse ao cinema e até a festas,
tivesse namorados. Tudo isso a paciente recusou, “obstinada”. Em vez, ficava sentada
ociosa, ou vagueava pela rua, nunca dizendo à mãe quando voltaria. Seu quarto vivia
absurdamente desarrumado. Continuava a ter carinho por uma boneca que, segundo a mãe,
já deveria ter deixado de lado. Teremos ocasião de voltar a esta boneca. As diatribes de
Julie contra a mãe eram infindáveis e sempre com o mesmo tema: acusava-a de não a ter
desejado, de não a deixar ser uma pessoa, não permitir que ela respirasse, de tê-la sufocado.
Praguejava violentamente, mas para os outros sabia ser encantadora quando queria.

Até aqui consideramos apenas o relacionamento de Julie com a mãe. Mas agora, antes de
prosseguirmos, precisamos dizer uma palavra sobre constelação familial.
Nos últimos anos surgiu o conceito de mãe “esquizofrenogênica”. Felizmente
começa a desaparecer uma qualidade de “caça-às-bruxas” que se manifestou a princípio. O
conceito pode ser encarado de diferentes maneiras, e expresso nos seguintes termos: é
possível que haja meios de ser mãe que cerceiem em vez de facilitar ou “reforçar” qualquer
tendência inata geneticamente determinada que haja na criança no sentido de alcançar os
estágios evolutivos primários da segurança ontológica. Não só a mãe, como toda a situação
familial podem cercear em vez de facilitar a capacidade da criança para participar de um
mundo real e partilhado, como self-com-os-outros.
Constitui a tese deste estudo que a esquizofrenia é o possível resultado de uma
dificuldade acima do normal em ser uma pessoa total com o outro, e em partilhar da maneira
ditada pelo senso comum (isto é, o senso comunitário) de sentir a si mesmo no mundo. O
mundo da criança, assim como o do adulto, é “uma unidade do que é dado e construído”
(Hegel), uma unidade para a criança daquilo que lhe é transmitido pelos pais, a mãe em
primeiro lugar, e do modo como ela disso se utiliza. A mãe e o pai simplificam muito o
mundo da criança e à medida que sua capacidade evolui e passa a fazer sentido, começam
a impor um padrão ao caos, a captar distinções e conexões de complexidade cada vez maior,
ela é conduzida, segundo Buber, a um “mundo praticável”.
Mas o que acontece se o esquema de coisas da mãe ou da família não combina com
aquele em que a criança pode viver e respirar? A criança precisa então desenvolver sua
própria visão e tornar-se capaz de viver de acordo com ela — conforme William Blake
conseguiu fazer e Rimbaud expressar, mas não viver — ou então enlouquece. É nos
primeiros elos amorosos com a mãe que a criança desenvolve os primórdios de um ser-por-
si-mesma. É nestes elos e através deles que a mãe “transmite” o mundo à criança em
primeiro lugar. O mundo que ela recebe talvez seja de tipo em que ela consiga ser; talvez,
pelo contrário, o que lhe apresentem não seja viável para ela na época. Apesar da
importância do primeiro ano de vida, a natureza do ambiente em que a criança vive a
infância, a meninice e a adolescência pode ter ainda grande efeito num sentido ou no outro.
É nestes estágios subseqüentes que o pai, ou qualquer adulto relevante, pode representar
papel decisivo na vida da criança, direta ou indiretamente, através de influência sobre a
mãe.
Estas considerações sugerem que seria melhor falarmos em termos de famílias
esquizofrenogênicas, e não exclusivamente em mães esquizofrenogênicas. Pelo menos isso
incentivaria mais relatórios sobre a dinâmica da constelação familial como um todo, em vez
do estudo da mãe, ou do pai, ou dos irmãos sem bastante referência ao todo da dinâmica
familial.4
A irmã de Julie, três anos mais velha, era uma mulher casada, franca e decidida, mas
não desprovida de feminilidade e encanto. Segundo a mãe, fora uma criança “difícil” desde
o nascimento: exigente e sempre “um problema”. Em suma, parece ter sido uma criança
relativamente “normal”, a quem a mãe nunca aprovou de todo. Mas pareciam entender-se
razoavelmente bem. A irmã considerava a mãe uma pessoa dominadora, caso não se
resistisse a ela. Mas “fez tudo por Julie, e Julie foi sempre a sua predileta”. Era bem claro
que a irmã conseguira desde cedo um status autônomo integral. Caso se queira examinar
mais de perto a'sua personalidade encontram-se diversos elementos neuróticos, mas restam
poucas dúvidas de que pelo menos ela conseguiu o status ontológico primário que Julie
jamais atingiu. Quando criança tinha amigas de sua idade, uma pouco crescida para Julie e
esta aparentemente não se aproximou dela. Contudo, colocara no seu esquema de fantasmas
a irmã mais velha, que era uma das poucas figuras predominantemente boas de seu
“mundo”, uma “irmã de Caridade”.
O pai representou um papel mais significativo. Aos olhos da mãe era um “animal
sexual”. Aos seus próprios, a mãe era fria e não comunicativa. Só se falavam o abso-
lutamente necessário. Ele procurava satisfação sexual fora de casa. Contudo, apesar das
muitas acusações mútuas, nenhum dos dois nelas incluiu qualquer alegação de maus-tratos

4
Consultar particularmente Laing e Esterson (1964).
à filha. O pai, conforme disse, não tinha muito a me contar porque “afastara-se
emocionalmente” da família antes do nascimento de Julie.
A irmã da paciente contou-me dois incidentes que devem ter sido de grande
importância para Julie. O primeiro a mãe provavelmente ignorava; o segundo, não
conseguiu contar-me. Voltaremos mais tarde ao segundo incidente. O primeiro ocorreu
quando Julie estava com quatorze ou quinze anos. Apesar da relativa inacessibilidade do
pai, Julie parecia estimá-lo. De vez em quando ele a levava a passeio. Certa vez Julie voltou
em lágrimas para casa e nunca contou a mãe o que havia acontecido. A mãe mencionou o
incidente para dizer que tinha a certeza de que algo horrível ocorrera entre Julie e seu
marido, mas não descobrira o quê. Depois disso, Julie nunca mais quis saber do pai.
Contudo, confiou à irmã, nessa época, que o pai a levara a uma cabine telefônica e ela
escutara uma conversa “horrível” entre ele e sua amante.
A sra. X não hesitava em falar mal do marido diante das filhas e, acumulando
exemplos das diversas injustiças sofridas, procurava aliciá-las para o seu lado. Contudo, a
irmã mais velha situou-se entre um e outro, e Julie aparentemente jamais apoiou a mãe
contra o pai: após o incidente da cabine telefônica simplesmente isolou-se dele, mas não
quis fornecer a informação que acrescentaria munição à matéria materna. Mas o pai, con-
forme dissera, afastara-se da família. Não acusava a mulher diante das filhas, já que não
precisava de seu apoio contra ela. Considerando-a embora uma esposa inútil, “para ser justo
ela era uma boa mãe, isso tenho que reconhecer”. A irmã mais velha via erros em ambos os
lados, mas procurava, na medida do possível, ser razoável e equilibrada, e não pender mais
para um lado que para outro. Caso fosse necessário, tomava o partido da mãe contra o pai e
também contra Julie. No último caso era razoável que o fizesse. As acusações de Julie à
mãe eram, do ponto de vista prático e do senso comum, desde o princípio violentas e
fantásticas. Devem ter soado desde logo meio loucas. Reclamar que estava sendo sufocada,
que não lhe permitiam viver e ser uma pessoa, não fazia sentido absolutamente para aquela
família de simples bom senso. Dizia que a mãe jamais a desejara, no entanto era a sua
predileta; a mãe tudo fizera por ela, dando-lhe o que podia. Dizia que a mãe a estava
sufocando, quando pelo contrário insistia em que ela crescesse. Dizia que a mãe não queria
que ela se tornasse uma pessoa e não entanto a mãe insistia para que travasse amizades,
fosse a festinhas, etc.
É notável que, apesar do rompimento radical da relação marido e mulher, num
sentido pelo menos eles mantiveram-se coniventes: ambos aceitavam o falso self da
paciente como o bom, rejeitando como maus todos os seus outros aspectos. Mas na fase
“má”, houve um corolário talvez ainda mais importante. Não só rejeitaram como mau tudo
o que havia em Julie, afora a sombra dócil e sem vida que passava aos seus olhos como a
pessoa real, como recusaram-se totalmente a “levar a sério” quaisquer das censuras que
Julie lhes atirou.
Julie e a mãe eram ambas, nessa época, pessoas desesperadas. Em sua psicose Julie
chamava a si mesma $ra. Taylor. Que significa isso? Significa “Sou feita sob medida”
(taylor — alfaiate). Tais declarações são psicóticas, não porque talvez não sejam
“verdadeiras”, mas por serem enigmáticas. Com freqüência é impossível sondá-las sem que
o paciente as interprete. Contudo, mesmo como declarações psicóticas, parecem um ponto
de vista muito válido e proporcionar uma súmula das censuras que ela fazia à mãe quando
estava com quinze e dezesseis anos. Essa “reclamação” era a sua “maldade”. Segundo
penso, o fator mais esquizofrenogênico dessa época não foi simplesmente o ataque de Julie
à mãe, ou mesmo o contra-ataque desta, e sim a completa ausência de alguém no seu mundo
que pudesse ou quisesse ver algum sentido no seu ponto de vista, estivesse certo ou errado.
Por diversas razões, nem o pai, nem a irmã viam qualquer validade nos argumentos de Julie.
Como o nosso paciente de grupo (p. 46), ela não lutava para vencer uma discussão, mas
para preservar sua existência. De certo modo, Julie não estava simplesmente tentando
preservar, e sim conquistar a existência. Vemos então que aos quinze ou dezesseis anos,
dificilmente teria o que se poderia chamar “a capacidade do senso comum”. O bom senso
da família não lhe concedia uma existência. A mãe tinha que estar com a razão, totalmente
com a razão. Quando disse que ela era má, Julie sentiu-o com um assassinato. Era a negação
de qualquer ponto de vista autônomo de sua parte. A mãe estava preparada para aceitar um
self dócil, fácil, amar essa sombra e dar-lhe tudo. Tentou até ordenar a essa sombra que
agisse como uma pessoa. Mas nunca reconhecera no mundo a presença real e perturbadora
de uma filha com suas próprias possibilidades. A verdade existencial nas ilusões de Julie
consistia em que suas verdadeiras possibilidades estavam sendo sufocadas, estranguladas,
assassinadas. Para existir, para poder respirar, achava que a mãe precisava admitir seu erro
com respeito a certas coisas, e também que podia cometer erros, e que de certo modo o que
a filha dizia estava certo e tinha peso. Pode-se dizer que Julie precisava que lhe permitissem
projetar parte de seu self mau na mãe, dela retirando algum bem, em vez de apenas recebê-
lo todo o tempo. Mas para a família inteira Julie estava tentando provar que branco era
preto. A realidade não cedia. Começou então a converter a verdade existencial em fatos
físicos. Começou a iludir-se. Se começasse acusando a mãe de não a deixar viver no sentido
existencial, terminava falando e agindo como se a mãe houvesse, no sentido legal, realmente
assassinado uma criança verdadeira. Foi um alívio para a família quando puderam passar a
ter compaixão, em lugar de vingar-se condenando-a. Somente o pai, de modo curioso,
tratou-a como uma pessoa responsável. Nunca aceitou que ela fosse louca. Para ele era má.
Ele “não se deixou enganar” pelo jogo. Tudo aquilo não passava de despeito e
ingratidão. Considerava “puro fingimento” o que chamamos “negativismo catatônico”, e os
sintomas hebefrênicos como tolice vingativa. Foi o único da família que não sentiu
compaixão de Julie. Em algumas de suas raras visitas mostrou-se abalado, beliscou-a e
torceu-lhe o braço para que “parasse com aquilo”.

Fase 3: Louca

A acusação básica de Julie era que a mãe estava tentando matá-la. Quando estava com
dezessete anos ocorreu um incidente que deve ter constituído a causa eficaz da transição de
boa para má.
Foi a segunda circunstância revelada pela irmã. Até aos dezessete anos Julie tivera
uma boneca. Era uma boneca que vinha da primeira infância; vestia-a, brincava com ela no
quarto, ninguém sabia exatamente de que modo. Era um ponto secreto em sua vida.
Chamava-a de Julie Doll. A mãe começou a mostrar-se cada vez mais insistente no sentido
de que ela renunciasse à boneca, pois já era uma menina crescida. Um dia a boneca
desapareceu. Nunca se soube se Julie a jogou fora, ou se a mãe a havia escondido. Julie
acusou a mãe. A mãe negou ter pego na boneca, dizendo que ela devia tê-la perdido. Pouco
depois, uma voz disse a Julie que uma criança usando suas roupas fora espancada e reduzida
a uma massa informe pela mãe, e pretendeu ir à polícia para dar parte do crime.
Mencionei que ou Julie ou a mãe fizeram desaparecer a boneca, pois parece
altamente provável que a essa altura dos acontecimentos “mãe”, para Julie, já fosse mais
um arquétipo destruidor que sua verdadeira mãe na vida real. Quando Julie disse que a
“mãe” matara a boneca é bem possível que “ela” o tenha feito, isto é, a mãe interior. Seja
como for, na verdade a ação foi catastrófica, pois Julie evidentemente identificava-se de
perto com a boneca. Quando brincava, a boneca era ela própria e ela, a mãe. É possível que
no decurso das brincadeiras fosse se tornando cada vez mais a mãe malvada que terminou
por matar a filha. Veremos mais tarde que na sua psicose a mãe “malvada” agia e falava
com freqüência por seu intermédio. Se a boneca tivesse sido destruída pela mãe verdadeira
e esta o tivesse confessado talvez o acontecimento fosse menos catastrófico. Os fragmentos
de sanidade, nesse estágio, dependiam da possibilidade de conseguir encaixar algum mal
na mãe verdadeira. A impossibilidade de fazê-lo de maneira sadia foi um dos fatores que
contribuíram para uma psicose esquizofrênica.

O FANTASMA DO JARDIM ABANDONADO

“... a certa altura, uma máquina


previamente montada de maneira
sumária talvez tenha suas conexões
divididas em conjuntos parciais, com
maior ou menor grau de independência”.
The Human Use of Human Beings
NORBERT WIENER

As observações seguintes aplicam-se a Julie e a outros esquizofrênicos crônicos do tipo


hebefrênico-catatônico. Não pretendem abarcar todas as formas dos estados psicóticos
crônicos, em que o split de uma forma ou de outra é bastante evidente. Aplicam-se em
especial a psicoses paranoides, onde existe uma integração muito maior da personalidade
do que a encontrada em Julie e casos semelhantes.
O seif de Julie tornara-se tão fragmentado que ela poderia ser descrita como alguém
que vivesse uma existência morta-em-vida, num estado próximo à não-existência caótica.
No caso de Julie, o caos e a falta de uma identidade não eram completos. Mas ao
conviver com ela sentia-se por prolongados períodos aquela estranha “sensação de
praecox”5 descrita pelos clínicos alemães, e que consiste em estar na presença de outro ser
humano, mas ter a sensação de que ninguém ali se encontra. Mesmo quando se sentia que
o que fora dito era uma expressão de alguém, o fragmento do self por detrás das palavras
ou atos não era Julie. Talvez fosse alguém que se dirigia a nós, mas ao ouvir um

5
Do termo dementia praecox, usado antigamente para denominar o que agora chamamos em geral esquizofrenia manifestando-se
em pessoa jovem, e que se julgava passaria à psicose crônica. Esta “sensação de praecox” deveria ser, creio, a reação do público
a Ofélia, quando esta se tornou psicótica. Clinicamente ela vem a ser, sem dúvida alguma, esquizofrênica. Em sua loucura, não
existe ninguém. Ela nâo é uma pessoa. Não existe personalidade integral manifestando-se em seus atos e palavras. Diz frases
ociosas e incompreensíveis. Já está morta. Existe apenas um vácuo onde houve uma pessoa.
esquizofrênico é muito difícil saber “quem” está falando, assim como é difícil saber a
“quem” a pessoa está se dirigindo.
Ao ouvir Julie tinha-se com frequência a impressão de estar fazendo psicoterapia de
grupo com um só paciente. Defrontava-me com uma mistura de atitudes, sentimentos,
expressões impulsivas completamente desbaratadas. As entonações, gestos, maneirismos
da paciente modificavam de caráter de momento a momento. Talvez se começasse a
reconhecer fragmentos de frases ou de comportamento emergindo em diferentes ocasiões e
que pareciam encaixar-se por causa de similaridades de entonação, vocabulário, sintaxe,
preocupações de pronúncia, ou se mostrassem coerentes como comportamento em razão de
certos gestos ou maneirismos estereotipados. Tinha-se a impressão, portanto, de estar na
presença de diversos fragmentos, ou elementos incompletos, de diferentes “personalidades”
em ação simultaneamente. Sua “salada de palavras” parecia resultar de diversos sistemas
parciais semi-autônomos procurando expressar-se através da mesma boca e ao mesmo
tempo.
Tal impressão é reforçada, embora não se torne menos confusa, pelo fato de que
Julie parecia falar de si mesma na primeira, segunda, ou terceira pessoa. É necessário um
íntimo conhecimento do paciente em particular para que a pessoa se encontre em posição
de dizer sobre isto algo de significativo (isto é exato em relação a todos os outros aspectos
da atividade esquizofrênica).
Janet sofre de uma dissociação diferenciada, ou divisão em splits molar molecular.
A personalidade dividida do histérico é um split molar. A esquizofrenia consiste em
divisões moleculares. No caso de Julie parecia haver ambos. A unidade geral de seu ser fora
dividida em diversos “conjuntos parciais”, ou “sistemas parciais” (“complexos”, ou
“objetos interiores semi-autônomos), cada qual com sua própria “pequena personalidade”
autônoma e estereotipada (divisão molar). Além disso, qualquer seqüência de
comportamento fragmentava-se de maneira muito mais minuciosa (divisão molecular). Até
a integridade das palavras, por exemplo, era rompida.
Não é surpreendente, portanto, que falemos de “inacessibilidade” e “sentimento de
praecox” neste caso. Com Julie não era difícil entreter uma espécie de conversa, mas sem
qualquer unidade geral. Parecia antes uma constelação de semi-autônomos sistemas
parciais. Mas era difícil falar com “ela”. Contudo, não se deve pensar primordialmente em
termos de qualquer analogia mecânica, já que mesmo esse estado próximo à não-existência
caótica não era de modo algum irreversível e fixo em sua desintegração. Às vezes ela se
integrava maravilhosamente, revelando uma patética compreensão de sua sorte. Mas ficava
aterrorizada com esses momentos de integração, e por diversas razões, entre as quais a de
neles sofrer intensa ansiedade; e também porque o processo de desintegração era recordado
e temido como uma experiência tão medonha que o refúgio para ela era a desintegração, a
irrealidade e a morte.
O fato de Julie ser um caso de esquizofrenia crônica foi assim caracterizado pela
falta de unidade e pela divisão no que poderia ser diversamente chamado “conjuntos
parciais”, complexos, sistemas parciais, ou “objetos internos”. Cada um desses sistemas
parciais possuía traços característicos e maneiras distintivas próprias. Seguindo tais
postulados diversas facetas de seu comportamento tornavam-se explicáveis.
O fato de seu ser autônomo não estar integrado de maneira geral, e sim dividido em
diversos conjuntos ou sistemas parciais permite-nos compreender que várias funções que
pressupõem a conquista da unidade pessoal, ou pelo menos um alto grau de unidade pessoal,
não poderiam estar nela presentes, como de fato não estavam.
A unidade pessoal é um pré-requisito de percepção refletiva, isto é, a capacidade de
estar cônscio do próprio ser agindo com relativa inconsciência de si mesmo, ou com uma
simples percepção primária não refletiva. Em Julie, cada sistema parcial podia perceber
objetos, mas um sistema talvez não estivesse cônscio dos processos em ação no outro dele
separado. Por exemplo, se ao falar comigo, um sistema se manifestasse, parecia não haver
uma unidade geral interior pela qual “ela”, como pessoa integrada, pudesse ter consciência
daquilo que esse sistema estava dizendo ou fazendo.
Na medida em que a percepção refletiva estava ausente, a “memória”, da qual a
percepção refletiva seria um pré-requisito, mostrava-se muito fragmentária. Toda a sua vida
parecia ser contemporânea. A ausência de uma experiência total do seu ser como um todo
significava que lhe faltava a experiência unificada onde fundamentar uma idéia clara dos
“limites” de seu ser. Essa “fronteira” geral, porém, não lhe faltava de todo. Assim, o termo
de Federn, a fronteira do ego, não é satisfatório. É preciso um outro para o total, do qual o
ego é uma parte. Ou antes cada sistema parecia ter seu limite próprio, isto é, à percepção
que caracterizava um sistema, outro poderia parecer estar fora de si mesmo. Dentro da
unidade geral, um aspecto diverso de seu ser, caso suficientemente “distônico” do restante,
provocaria um doloroso conflito. Nela, porém, um conflito desta espécie não poderia
ocorrer. Era apenas “de fora” que se viam os diferentes sistemas conflitantes agindo
simultaneamente. Cada sistema parcial parecia conter seu próprio foco, ou centro de
percepção: possuía seu próprio e muito limitado esquema de memória e maneiras limitadas
de estruturar percepções; seus impulsos semi-autônomos, ou impulsos componentes; sua
própria tendência a preservar a autonomia e perigos particulares que ameaçassem essa
autonomia. Julie referia-se a esses diversos aspectos como “ele”, ou “ela”, ou “você”. Isto
é, em vez de possuir uma consciência refletiva de todos esses aspectos de si mesma, “ela”
percebia a ação de um sistema parcial como se não se tratasse “dela”, mas lhe fosse exterior.
Ficava alucinada.
Junto à tendência a perceber aspectos de seu ser como não-ela havia a falha na
discriminação entre o que “objetivamente” não era ela e o que era. Este é simplesmente o
outro aspecto da falta de um limite ontológico geral. Ela poderia pensar, por exemplo, que
a chuva eram lágrimas no seu rosto.
William Blake, em sua descrição dos estados do ser dividido, nos Livros Proféticos,
descreve uma tendência a tornar-se o que se percebe. Em Julie, toda a percepção parecia
ameaçar confusão com o objeto. Ela passava grande parte do seu tempo lutando com esta
dificuldade. “Isto é chuva. Poderia ser chuva”. “Aquela cadeira ... aquela parede. Poderia
ser aquela parede. É terrível para uma moça ser uma parede”.
Toda percepção parecia ameaçada de fundir-se e todo o senso de ser percebido por
outro constituía similarmente uma ameaça. Isto significava que ela vivia num mundo de
constante perseguição e se sentia como se fizesse aos outros o que temia que acontecesse a
ela. Quase todo ato de percepção parecia envolver uma confusão de self com não self. O
terreno estava preparado para esta confusão pelo fato de que, já que grandes aspectos de sua
pessoa encontravam-se parcialmente fora de seu “self”, era fácil confundir esses aspectos
divididos de seu ser com outras pessoas, isto é, a confusão de sua “consciência” com a mãe
e da mãe com a “consciência”.
Amar era, portanto, muito perigoso. Gostar = ser parecida = ser o mesmo que. Se ela
gosta de mim, é como eu, é eu. Assim, começou por dizer que era minha irmã, minha
mulher, era uma McBride. Eu era a vida. Ela era a Esposa da Vida. Passou a reproduzir
meus maneirismos. Dentro dela havia a Árvore da Vida, Ela era a Arvore da Vida. Ou então:
Ela está pensando os pensamentos a, b, c.
Eu manifesto idéias similares a1, b1, c1.
Portanto, eu roubei suas idéias.
A manifestação totalmente psicótica disto era acusar-me de guardar seu cérebro na
minha cabeça.
Inversamente, quando me copiava ou imitava, esperava que eu revidasse por se sair
com um pedaço de mim que ela julgava roubado. É claro que o grau de união flutuava de
um momento para outro. Roubar, por exemplo, pressupõe uma fronteira entre self e não-
self.
Ilustraremos e ampliaremos agora os pontos acima citados.
Um dos exemplos mais simples da operação de um split de Julie em dois
“agrupamentos” parciais pode ser observado quando deu a si mesma uma ordem e a
obedeceu. Agia assim constantemente, falando em voz baixa ou alta, ou por meio de
alucinações. Assim, dizia “Sente-se, levante” e “ela” sentava e levantava; ou com voz
alucinada, a voz de um sistema parcial, dava uma ordem e, agindo através outro sistema
parcial, obedecia.
Outro exemplo comum era dizer algo que “ela” recebia com uma risada zombeteira
(incongruidade de pensamento e afeto). Suponhamos que a afirmativa emanasse do sistema
A e o riso do sistema B. Então A me dizia “Ela é uma Rainha”, enquanto B ria, zombeteira.
Grande parte do que parecia ser algo semelhante à “interferência” ocorria. A dizia
algo relativamente coerente e depois se embaraçava e B começaria então a falar. A
interromperia para dizer: “Ela (B) roubou a minha língua.”
Os vários sistemas parciais podiam ser identificados, pelo menos até certo ponto,
depois de se conhecê-la, em razão da consistência do papel que cada qual representava no
que se poderia chamar “grupo” interpessoal a que pertencia.
Por exemplo — havia o mandão exigente, que vivia dando ordens. A mesma voz
peremptória fazia-me queixas infindáveis sobre “aquela criança”: “Esta criança é muito má.
Esta criança é um caso perdido. Esta criança não passa de uma vagabunda. Você nunca
conseguirá nada com esta criança...” O “você” poderia referir-se diretamente a mim, a um
dos seus sistemas, ou poderia personificar todo o sistema.
Era evidente que esse personagem mandão era “o chefe” quase todo o tempo. Não
gostava muito de Julie. Achava que Julie não ficaria boa, e que isso nem valia mesmo a
pena. Não ficava nem do lado dela, nem do meu. Seria apropriado chamar a esse sistema
parcial semi-autônomo de “mãe interior malvada”. Era fundamentalmente uma
perseguidora interior, que continha de forma concentrada todo o mal que Julie atribuía à
mãe.
Dois outros sistemas parciais podiam ser prontamente identificados. Um deles
representava o papel de advogado de Julie em relação a mim, e protetor, ou parachoque
contra a perseguição. “Ela” referia-se com freqüência a Julie como se fosse uma irmã
caçula. Fenomenologicamente, portanto, podemos atribuir este sistema à “sua boa irmã”.
O terceiro sistema parcial era uma meninazinha totalmente boa, dócil, cheia de boa
vontade. Parecia ser um derivado daquilo que nos anos anteriores fora um sistema muito
similar ao sistema de falso self que descrevi nos casos esquizóides. Quando este sistema se
manifestava, ela dizia: “Sou uma boa menina. Vou ao lavatório regularmente”.
Havia também derivações do que parecia ter sido um self “interior” e que se
volatizara quase completamente em pura possibilidade. Finalmente, conforme observei
antes, havia períodos de sanidade precária, nos quais falava num tom de voz apavorado,
patético, quase inaudível, mas que parecia “mais próximo de sua pessoa que qualquer
outra”.
Consideremos agora os vários sistemas operando conjuntamente. Os exemplos que
apresento são os mais coerentes.
“Nasci sob um sol negro. Não nasci, fui esmagada. Não é uma coisa de que a gente
se recupere com facilidade. Não fui cuidada, fui esmagada. Ela não era mãe. Sou exigente
no que respeita às mães. Pare com isso. Pare com isso. Ela está me matando. Está cortando
a minha língua. Sou podre, vil. Sou má. Sou um caso perdido...”
À luz do debate que virá a seguir apresento uma interpretação do que se passa.
Ela começa falando comigo como se fosse ela própria, a fim de fazer as mesmas
acusações à mãe em que insiste há anos, mas de maneira particularmente clara e lúcida. O
“sol negro” parece ser o símbolo da mãe destruidora e era uma imagem que ocorria com
freqüência. As seis primeiras sentenças são ditas de modo equilibrado. Súbito, parece sofrer
um terrível ataque, presume-se que dessa mãe malvada, e entra numa crise intrapessoal.
“Pare com isso, pare com isso”. Dirigindo-se rapidamente a mim, exclama: “Ela está me
matando”. Segue-se uma depreciação defensiva de si mesma, revestida dos mesmos termos
com que a mãe malvada a condena: “Sou podre, sou má. Sou um caso perdido”...
Acusações contra a mãe eram sempre capazes de precipitar uma reação catastrófica.
Em ocasião posterior fez suas costumeiras acusações à mãe, e a mãe malvada interrompeu-
a com suas costumeiras acusações contra “essa criança”: “Essa criança é má, essa criança é
malvada. Essa criança é um caso perdido”. Interrompi estas observações dizendo: “Julie
tem medo de ser assassinada por si mesma por dizer tais coisas”. A diatribe não prosseguiu,
mas “ela” disse baixinho: “Sim, é a minha consciência que me está matando. Tive pavor de
minha mãe a vida inteira e sempre terei. Acha que posso viver?” Estas palavras
relativamente integradas esclarecem a restante confusão de sua “consciência” com a mãe
verdadeira. O remorso era a mãe malvada que a perseguia. Conforme dito acima, pode ter
sido um dos elementos esquizofrenogênicos de sua vida o fato de não ter conseguido que a
mãe verdadeira aceitasse no verdadeiro sentido sua necessidade de projetar parte de seu
remorso sobre ela. Isto é, que a mãe realmente admitisse alguma validade nas acusações de
Julie e assim, permitindo-lhe ver algumas imperfeições, aliviasse parte da perseguição
interior de sua “consciência”.
“Esta criança não quer vir aqui, você percebe? Ela é minha irmãzinha. Esta criança
não sabe coisas que não deveria saber.”
Aqui fala a “irmã mais velha”, esclarecendo para mim que Julie é inocente e
ignorante e portanto sem culpa e irresponsável. O sistema da “irmã mais velha”, em con-
traste com o sistema da “irmazinha inocente e ignorante”, era uma “pessoa” muito sabida e
responsável, meio condescendente, embora bondosa e protetora. Contudo, “ela” não está do
lado de Julie, a irmãzinha que está crescendo. Fala sempre “pela” irmãzinha. Quer manter
o status quo.
“A mente desta criança está quebrada. A mente desta criança está fechada. Você
está tentando abrir a mente desta criança. Eu nunca lhe perdoarei por tentar abrir a
mente desta criança. Esta criança está morta e não está.”
Deduz-se da última sentença que, permanecendo morta num sentido, noutro não
pode estar morta, mas se assumir a responsabilidade por estar “realmente” viva, então talvez
seja “realmente” assassinada.
Contudo, esta “irmã” podia falar também da seguinte maneira:
“Você precisa querer esta criança. Precisa torná-la benvinda... você precisa tomar
cuidado com esta criança. Sou uma boa menina. Ela é minha irmãzinha. Você
precisa levá-la ao lavatório. Ela é minha irmãzinha. Não quer saber dessas coisas.
Não é uma criança impossível.”
Essa irmã mais velha tinha experiência, saber, responsabilidade, equilíbrio em
contraste com a inocência, ignorância, irresponsabilidade e instabilidade da irmã menor.
Vemos aqui também que a esquizofrenia de Julie consistia numa falta de integração geral,
não apenas na ausência de um locus na sua “sanidade”. Essa “irmã mais velha”, componente
de seu ser, podia falar de maneira racional, sadia e equilibrada, mas não era Julie quem
estava falando: a sanidade estava, se quiserem, dividida e encapsulada. Sua verdadeira
sanidade dependia não de ser capaz de falar de maneira equilibrada na pessoa de “uma irmã
mais velha”, mas de alcançar a integração de seu ser total. A esquizofrenia é traída pela
referência a si mesma na terceira pessoa e a súbita intrusão da irmãzinha enquanto a irmã
mais velha está falando (“Sou uma boa menina”).
Quando me apresentou palavras e atos como seus, este “self” apresentado era
totalmente psicótico. A maior parte das declarações enigmáticas condensadas parecia
pertencer aos remanascentes do seu sistema de self. Quando decifradas revelavam que o
sistema era provavelmente um derivado do self interior fantastizado que descrevemos nos
estados esquizóides sadios.
Já tentamos fazer um relato de como sucede que a experiência deste self envolva
simultaneamente paradoxos tão extremos de fantástica onipotência/impotência e outros. As
características fenomenológicas da experiência deste self parecem ser similares em
princípio, em Julie. Mas é preciso estar preparado para parafrasear sua esquizofrenia em
verbalização sadia antes de tentar uma reconstituição fenomenológica da experiência deste
“self”. Preciso esclarecer mais uma vez que ao usar o termo “self” neste contexto não quero
dizer com isso que fosse este o seu “verdadeiro” self. Contudo, este sistema parece incluir
um ponto ao redor do qual a integração poderia ocorrer. Quando a desintegração ocorria,
este parecia ser “o centro” que não se podia manter. Lembrava uma referência central para
tendências centripetais, ou centrífugas. Parecia o cerne realmente louco do seu ser, aquele
aspecto central que, ao que parecia, tinha que conservar-se caótico e morto para que ela não
fosse aniquilada.
Tentarei caracterizar a natureza deste “self” com afirmativas feitas não só por ele
diretamente, como também por outras que parecem originar-se em diferentes sistemas. Não
há muitas destas declarações, pelo menos feitas pelo “self” em pessoa, por assim dizer.
Durante os anos que passou no hospital, vários deles provavelmente confundiram-se,
resultando em curtas frases telegráficas, constantemente reiteradas e contendo uma grande
riqueza de implicações.
Conforme verificamos acima, ela disse que havia uma Árvore da Vida dentro dela.
As maçãs dessa árvore eram seus seios. Possuía dez mamilos (os dedos), e “os ossos de toda
uma brigada da Infantaria Ligeira de Highland”. Possuía tudo o que lhe ocorresse. O que
quer que quisesse possuía e imediatamente deixava de possuir. A realidade não lançava sua
sombra, ou sua luz sobre qualquer desejo ou temor. Todo desejo encontrava uma realização
fantasmagórica instantânea, e todo temor ocorria de maneira similar, instantânea e
fantasmagórica. Assim, ela podia ser qualquer pessoa, em qualquer lugar, a qualquer hora.
“Sou Rita Hayworth, sou Joan Blondell. Sou a rainha. Meu nome real é Julianne”. “Ela é
auto-suficiente”, disse-me. “Ela é controlada”. Mas esse controle era de dois gumes. Possuía
também seu lado sombrio. Era uma moça “possuída” pelo fantasma de seu próprio ser. Seu
self não tinha liberdade, autonomia, ou poder no mundo real. Sendo qualquer pessoa que
lhe ocorresse, não era ninguém. “Sou milhares. Sou um dividido por vocês todos. Sou
ninguém. Sou uma freira, um substantivo, nenhuma pessoa”.6 Ser uma freira tem vários
sentidos. Um deles é o oposto de ser uma noiva. Em geral considerava-me seu irmão e
chamava-se minha noiva, ou a noiva da “vida encantadora, leal, cheia de vida”. É claro que
já que a vida e eu éramos às vezes idênticas para ela, sentia pavor da Vida, ou de mim. A
Vida (eu) a reduziria a uma polpa, queimaria seu coração com ferro em brasa, cortaria suas
pernas, mãos, língua, seios. A vida era concebida nos termos mais violentos e destrutivos
que se possa imaginar. Não era qualquer qualidade minha, ou algo que eu possuísse (isto é,
um falo — ferro em brasa), e sim o que eu era. Era a vida. Apesar de possuir dentro de si a
Árvore da Vida, considerava-se em geral uma Destruidora da Vida. Era compreensível,
portanto, que tivesse pavor de que a vida a destruísse. A vida era em geral representada por
um símbolo masculino ou fálico, mas o que parecia desejar não era simplesmente um macho
para si mesma, e sim também um pesado equipamento sexual de ambos os sexos, todos os
ossos de uma brigada da Infantaria Ligeira dos Highlands, dez mamilos, etc.
“Ela nasceu sob um sol negro.
Ela é o sol ocidental”.
A imagem antiga e muito sinistra do sol negro surgiu com bastante independência
de qualquer leitura. Julie deixara o colégio aos quatorze anos, lera muito pouco e não era
particularmente inteligente. Era bastante improvável que tivesse encontrado qualquer
referência a ele, mas renunciaremos à discussão da origem do símbolo e nos restringiremos
a ver em sua linguagem uma expressão da maneira como se sentia-no-seu-mundo.
Insistiu sempre em que a mãe jamais a quisera, sufocando-a de maneira monstruosa,
em lugar de a trazer ao mundo normalmente. Sua mãe “quisera e não quisera” um filho. Ela
era “um sol ocidental”, isto é, um filho acidental, a quem a mãe, por ódio, transformara
numa menina. Os raios do sol negro a haviam calcinado e encolhido. Sob o sol negro ela
existia como algo morto. Assim,

6
(I'm a no un, i. e. a nun: a noun: no one single person).
“Sou a planície.
Ela é uma cidade em ruínas.”
A única coisa viva na planície eram os animais selvagens. Ratos infestavam a cidade
em ruínas. Sua existência era apresentada em imagens de completa desolação. Esta morte
existencial, esta morte-em-vida era a sua maneira dominante de estar-no-mundo.
“Ela é o fantasma do jardim abandonado.”
Nesta morte não havia esperança, futuro, possibilidades. Tudo já havia acontecido.
Não havia prazer, nenhuma possível ponte de gratificação ou satisfação, pois o mundo era
tão vazio e morto como ela própria.
“O cântaro está quebrado, o poço está seco.”
Era completamente sem sentido e sem valor. Não podia crer na possibilidade de
amor em parte alguma.
“Ela não passa de uma daquelas moças que vivem no mundo. Todo mundo finge
que a quer, mas não quer. Estou levando agora a vida de uma simples vagabunda.”
Mas, segundo vimos em citações anteriores, valorizava-se a si mesma, embora
apenas de modo fantasmagórico. Havia a crença (por mais psicótica que seja uma crença, é
ainda uma forma de fé em algo de grande valor em si própria) de existir qualquer coisa de
grande preço perdida ou sepultada no seu íntimo e que ainda não fora descoberta por ela
mesma, ou por qualquer pessoa. Se alguém conseguisse mergulhar nas profundezas da terra
escura descobriria “o ouro brilhante”, ou se pudesse abater fantasmas encontraria “a pérola
no fundo do mar”.
Bibliografia

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WYNNE, L. C., RYCKOFF, I. M., DAY, J., and HIRSCH, S. (1958). ‘Pseudo-mutuality in the family
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Este livro foi composto e impresso nas oficinas gráficas da


Editora Vozes Limitada Rua Frei Luís, 100 Petrópolis, Estado do Rio de Janeiro, Brasil.

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