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ROBERTO HARARI

Tradução
Marta M. Okamoto
Luiz Gonzaga . B. Filho

UMA
INTRODlJÇÃO AOS
4 CONCEITOS
FONDAMENTAIS
DE LACAN
Título original em espanhol: Los cuatro conceptos fundamentales dei psico­
análisis, de Lacan: una introducción
© Ediciones Nueva Visi6n, 1987
Tradução: Marta M. Okamoto e
Luiz Gongaza B. Filho ",.
Capa: Francis Rodrigues
Equipe Editorial
Coordenação: Beatriz Marchesini
Copidesque: Rosana Monteiro
Revisão: Eliane Cornacchia
Regina Maria Seco ·
Vera Luciana Morandim
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Harari, Roberto.
Uma introdução aos quatro conceitos fundamentais de Lacan
/ Roberto Harari : tradução Marta M. Okamoto, Luiz Gonzaga
B. Filho. - Campinas, SP : Papirus, 1990.
1. Lacan, Jacques, 1901-1981 2. Psicanálise I. Título
9�0505 CDD-1S0.195

lndices para catálogo sistemático:


1. Lacan, Jacques : Teoria psicanalítica 150.195
2. Psicanálise : Teorias : Psicologia 150. 195
3. Teorias psicanalíticas : Psicologia 150. 195

ISBN 85-308-0094-X

DIREITOS RESERVADOS PARA A UNGUA PORTUGUESA:


© M. R. Cornacchia & Cia. Ltda.

■ popru.1 EDITORA
Fone: (0192) 32-7268 - Cx. Postal 736
13.001 - �mpinas • SP • Brasil

proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão, em forma


idêntica, resumida ou modificada, em língua portuguesa ou qualquer outro idioma.
A Jacques Lacan, psicanalista a-típico, mestre de leitura
SUMARIO

Prólogo do autor para a ediçãq brasileira 9

Prólogo ............__....
_ . �-...................
_ 11

Capítulo I,
Hélice e quadrângulo: A psicanálise e seus - conceito�
fundamentais .........- ..... _... . . . . . ..... ... . . 15

Capítulo II
A ling!'agem, o inconsciente - - A causa, a pulsação
temporal- ............_ ..............
_ ;- ._ � .._ ..... 41

Capítulo m
Nassa e Tiquê 69

Çapítulo · IV
· Trauma ou estágios? - Repetição e escopicidade 97

Capítulo V
Nódoa e engodo - A transferência I ............. 121
Capítulo VI
Engano, saber, ideal - A transferência II .. . . . . . .. 143

Capítulo VII
Erastés, Eromenós - Quatro limites, cinco destinos
pulsionais ..................., . .. . ... . .. . . . ... 165

Capítulo Vlll
Parcialidade, borda, traçado: a deriva em circuito . . . 189

Capítulo IX
Sexualidade ou mântica? - O "vel" da alienação. . . . 219

Capítulo X
Separação, metáfora, interpretação ............... 241
PRôLOGQ DO AUTOR PARA A EDIÇÃO
BRASILEIRA

Estou em condições de afirmar que, hoje em dia, o Brasil cons­


titui uma das "potências emergentes" no mapa internacional do mo­
vimento lacaniano. Que me autoriza a afirmá-lo? O fato de ter minis­
trado de modo regular aulas pertinentes nas cidades de Porto Alegre
e Florianópolis, convidado sempre por colegas locais que desejavam
instituir uma formação psicanalítica para a qual me honraram com·
sua escolha como analista e como professor.' Assim, desde 1976, e
quando "Lacan" não implicava senão a menção de um nome carregado
de mistério e de legítima inquietude epistemofílica, fomos traçando
nessas referidas cidades, e de modo sucessivo, os pontos fundamentais
da trajetória do mestre francês, depois do necessário percurso pela
obra de Freud, lida lacanianamente.
Durante esses 14 anos, um verdadeiro boom institucional e edito­
rial registrou o aumento de interesse a que me referi ao princípio, a
tal ponto que - verbi. gratia - alguns títulos franceses começaram
a ser editados antes no Brasil que na Argentina que é, desde há muito,
um dos quatro países do mundo de maior implantação psicanalítica
e, especialmep.te, lacaniana.
Além do mais, devemos considerar que o referido desenvolvi�
mento institucional ocorreu - tal como sucede em outros centros do
Brasil - de modo marginal, isto é, por fora das . entidades que res-

9
pondero à IPA (Associação Psicanalítka �ntêtnacional, cujas hostis
relações com Lacan são discutidas neste livro). Menciono isto não
.só. porque tais eqtidades desqualificassem os analistas quê não per.
tenciam a elas mas. também pelo peso excessivo da eficácia de suas
leis que eram obedecidas à distância mesmo por quem, de boa.fé, s�·
opunha a eles. Por exemplo -'- avalie•se o valor da piada -"- o autori•
zar-se o uso do divã foi vivido, por muitos colegas, como um tipo de
ataque aos direitos legitimamente adquiridos pelos· membros da IPA°,
os que haviam se apropriado - qual feudo exclusivo - da experiên-
cia �a clínica psicanalítica.
Retomando, esse quiasma institucional-editorial deu pé a que
a generosid'ade da Editora Papirus tenha respaldado a edição brasi­
leira do livro introdutório que você, leitor, tei.n nas mãos. Curioso
destino o do livro, esta é a opinião do a�tor que, no geral, sempre
1

se equivoca: riunca sabe muito bem o valor de seu produto. Assim,


as oscilações maníaco-depressivas - isto é, avaliar como grande obra
o que de imediato é visto com destino de dejeto - vão de mãos dadas
com a comparação de um texto com outros do mesmo autor, de onde
resultam filhos queridos e filhos ,defeituosos.
Pois bem, nesta · última condição se encontrava este livro, pa­
ra mim, antes de ser editado na Argentina, até que, com o passar do
· tempo, meu juízo imaginário foi· recusado de longe: foi minha obra
de maior aceitaç.ão} difusão e reconhecimento.
Um mero fato numérico, ant�s de mais nada? Considerá-lo assim
implicaria uma subestimação infundada de meus leitores que são,
em definitivo, aqueles que outorgam sua licença simbólica como
Outro. Desde já espero do público brasileiro - que recebeu com ter�
oura.meu Discorrer a psicanálise (Artes Médicas, P. ·Alegre, 1987) -
uma grata resposta também a este livro, a qual aprofundará ainda
mais o afeto, gratidão e respeito intelectual que sinto por este país
·
·
entranhavelniente lacanoamericano.
Buenos Aires, janeiro de 1990
R. H.

10
PROLOGO

"Coisa miserável é pensar _ s:r mestre aquele que nunca


foi discípulo".
F. de Rojas, La ·Celestina

Embora os propósitos, alcances e escolhas temáticas deste livro


estejam explicitados no texto - e isso não poucas vezes, o que indica­
ria a pertinência de sua audição reiterada por parte do próprio· emis­
sor - não é de todo inútil a pormenorização das circunstâncias, das
conjunturas, que o tomaram factível.
Como se observará, a obra segue, em seu estilo e em seu linea­
mento ::-- o caráter oral próprio de sua origem: a saber, dez aulas
proferidas - entre abril e· agosto de 1986 - no Centro de Extensão
Psicanalítica do Centro Cultural General San Martin, dependente da
Prefeitura da Cidade de Buenos Aires. A esse respeito, cabe· destacar
o caráter localmente - ou mundialmente? - inédito que assinala
tanto o nascimento como o decurso do C.E.P.: de fato, amparados no
surgimento da democracia na Argentina, e contando com o entusias­
ta e incondicional respaldo do então brilhante Secretário _ da Cultura
Municipal, Dr. Mario O'Donnell, um conjunto heteróclito de psica•
nalistas convergiu, no início de 1984, na tarefa de trabalhar - gratui­
tamente_._ no "San Martin". Na realidade, este trabalho foi o resul­
tante de uma oferta de Pacho O'Donnell · ante um • projeto que se
denominou Maiêutica-lnstituição Psicanalítica para colaborar orga­
nicamente çortl a gestão da Secretaria por ele orientada. A proposi­
ção implicava, nessa ordem, um múltiplo desafio: para começar, e em
estando óbvio ._tratar-se de um empreendimento cabalmente pluralista,
o Centro - coordenado por mim - convocou, com vistas a sua inte-

11
gração, qualificados colegas que até então não haviam realizado a ex­
periência de compartilhar um espaço de trabalho comum. Mas não
era só isso o que trazia em si um fator de incerteza: com efeito, a
isso havia que acrescentar-se o fato de que esse espaço deveria ser
construído sobre bases extremamente não convencionais, na medida em
que propunha não os clássicos, previsíveis percursos dos - nos -
cânones das instituições analíticas, mas a realização em ato da liga­
ção entre psicanálise e cultura, por um lado, e a consideração espe­
cial para com a diversidade do público, por outro, dado que, supos­
tamente, o Centro Cultural abre gratuitamente suas portas a todos
os interessados em suas atividades, sem exigências prévias de pro­
fissão ou nível de informação e escolaridade. No San Martin, en­
contramos o apoio franco e generoso de Javier Torre, quem, como é
de conhecimento notório, imprimiu em · sua gestão à frente do orga­
nismo uma força e criatividade que tomaram seu amplo poder de
convocação num dos mais notáveis internacionalmente.

O profundo agradecimento que estes dois amigos merecem, em


nada diminui o dirigido aos meus companheiros da Comissão Orga­
nizadora do C.E.P ., e aquele referido . aos numerosos convidados que
foram prestigiando seu percurso. E, cabe ainda um lugar diferenciado
aos que assistem às nossas propostas: sem estímulo de certificado al­
gum, sem programa predefinido, sem a promessa de fomiação, ocupam
cotidiananiente cadeiras, chão e corredores de acesso com uma cons­
tância, uma atenção e um interesse verdadeiramente destacáveis. Eles
são, sem dúvida, os instigadores necessários - e os primt,;�ros desti­
natários - das páginas que seguem, já que não têm parado de me
estimular - até . de insistir com cordialidade - para que dê forma
publicável às aulas proferidas no contexto mencionado.

Ainda, se finalmente a empresa pôde ser realizada, isso se deve


à inestimável colaboração que me dedicaram Andrea Gómez, na trans­
crição, e Alejandra Cowes, na ajuda para a determinação do texto
a partir do registro oral. A ambas, também, minha sincera gratidão.

Quero mencionar, ainda, que o "resíduo" do original é mínimo,


tendo em vista o objeto de preservar as condições originais de sua
enunciação; os títulos dos capítulqs, por seu lado, foram incorpora­
dos para esta edição, de acordo com o que foi desenvolvido em cada
aula. O mesmo acontece, obviamente, com as notas e referências
bibliográficas.

12
Um voto, para finalizar: que o leitor aprecie esta Introdução
como uma tentativa válida no sentido de assentar, com o máximo de
rigor possível no reino das luzes - que não é o do Iluminismo -
a incomparável riqueza da l�itura pós-moderna de Freud processada
por Lacan. O que certamente é sustentável no que diz respeito a
cada conceito da psicanálise, põe-se à prova radicalmente quando se
trata - como se verifica aqui - dos seus próprios fundamentos.

Buenos Aires, junho de 1987

13
1
HÉLICE E QUADRÂNGULO : A PSICANÁLISE E
SEUS CONCEITOS FUNDAMENTAIS

Quero agradecer-lhes muito sinceramente, porque não esperava


que fossem tantos; de minha parte, este fato me compromete a traba­
lhar arduamente para justificar que vocês continuem ,vindo. Creio
que não é, desde já, um reconhecime,nto pessoal exclusivo, ma!! que
o mesmo, decisivamente, está dirigido ao ensino de Lacan. - Vai-me
ocupar, durante dez reuniões, o desenvolvimento introdutório de al­
guns temas de seu Seminário' 1 1 , Os quatro conceitos_ fundamentais da
psicanálise 1 •

Peço desculpas por começar por um lugar-comum, mas às vezes,


as redundâncias não são demais. Certamente, a visão que posso dar­
lhes do Seminário 1 1 é obviamente parcial, considerando que tal
Seminário, por um lado , é impossível de ser abarcado em dez reu-

1 . Assim denominado no momento de seu aparecimento em forma escrita, cm


1 973, já que seu título original foi Os fundamentos da psicanálise. A res­
peito, J. Allouch opina que se encontra "longe de ser aceito que o conceito
constitui, para Lacan, fundamento" (in "Lacan censurado", Littoral; idem,
La torre abolida, Córdoba, 1986, . p. 1 1 ) . De maneira farta e menos mani­
queísta, M. Marini sustenta que "Lacan ora fala �e conceitos, ora se
pergunta se os psicanalistas não vivem 'na impostura' e receia as relações
entre psicanálise, religião e ciência" (Jacques Lacan, Belfond, Paris, 1986,
p. 201 ) . Pela via do nosso desenvolvimento, poderá "fundamentar-se" - es­
peramos - o _ porquê da opção a11ui abraçada.

15
moes programadas e, por outro, é inevitável que se trate da apro­
ximação de quem lhes fala.
O que se segue é um princípio próprio da leitura que faremos:
acontece que não há uma leitura pontual nem literal, mas há temas
que me parecem cruciais e ante os quais um outro poderá dizer:
" Como é que apenas tocou tal ponto, ou que desconsiderou outro? "
Terá razão . . . também. Em todo caso, é um princípio destinado a
advertir-lhes acerca de como será o desenvolvimento a que me pro­
ponho realizar diante de vocês.
Podemos localizar - brevemente - o momento em que Lacan
profere este Seminário, não somente quanto à cronologia, mas também
quanto ao decurso do seu ensino. Isto requer uma consideração sobre
a política da psicanálise; especialmente quanto ao lugar de Lacan
nessa política. Um lugar efetivamente revulsivo, rechaçante, para a
entidade oficial, a IP A. Assim, começa mencionando a "excomunhão"
de que foi objeto por parte desta. Não é por acaso que já utilize este
termo, por intermédio do qual remete imediatamente à questão reli­
giosa. Veremos depois como - desde o princípio - centrará a psica­
nálise em suas relações com a religião e com a ciência, tratando de
deslindar - se isso é possível - e demarcar as respectivas fronteiras
epistemológicas, para dizê-lo com Bachelard.
Em todo caso está em jogo se à psicanálise tem a ver com a
ordem da ciência, ou não. Sendo assim, o que é que deve ter a ver, de
modo imperativo. �ntes disso, volto à questão política. Lacan é efeti­
vamente expulso da Associação Psicanalitica Internacional; nesse mo­
mento, além disso, pelos bons ofícios daqueles que patrocinam sua
expulsão, se consegue que não possa prosseguir seu Seminário no Hos­
pital de Sainte-Anne.
Consegue, então, ser recebido pela Ecole Normale Supérieure,
uma entidade universitária. Ali tinha bons amigos; por exemplo, Lévi­
Strauss e Althusser, que nesse momento estava muito interessado no
ensino de Lacan, a ponto de tornar categorias da psicanálise para pro­
cessar sua revisão do marxismo. Vocês podem ver em - agora que
seus livros voltaram a circular entre nós - Para ler o Capital ou Revo­
lução teórica de Marx, como Althusser instrumenta noções como so­
bredeterminação, deslocamento, condensação, que toma diretamente

16
dos ensinamentos de Freud e de Lacan. Introduz, dessa forma, todo
este andaime em sua releitura de Marx; basicamente na de O Capital.
Estes bons amigos - e outros - conseguem que Lacan possa
voltar a ter um auditório numeroso, ante o qual lhe parece então cru­
cial desenvolver nem mai� nem menos que uma temática referida aos
fundamentos. O que implica, então, colocar-se a questão nodular -
como assinala - desta prática, desta práxis - termo que é, também,
de extração marxista -: O que é que fundamenta nossa práxis? O
que faz com que não seja finalmente uma espécie de taumaturgia, de
magia, ou de algo que funciona mas do qual não se pode dar as ra­
zões do porquê acontece? Porque muitas coisas funcionam . A questão.
é se o que as faz funcionar conhece as causas do funcionamento e,
produzido o efeito, sabe porque se produziu . Assim poderá estabelecer
uma certa lógica, um certo rigor, diferente ao de um efeito baseado
- diríamos nós - na transferência, efeito que, de uma maneira ou
outra - e pelo lugar que ocupamos - podemos produzir com duvi­
dosa " eficácia " .
Reparem que aqui aparecem - atentemos à questão d o nú­
mero - " Os quatro " . Este número é um operador constante, e de­
finidor, no ensino lacaniano. Alguns acreditam que é o três, mas
nós pensamos que não é a empírica " triangularidade edípica" a que
dá basicamente o sustento a muitas concepções de Lacan ; mas que
o número quatro possui a primazia. Não quero passar à -assinalar
os respectivos motivos argumentados, porém percorrendo o seu en­
sino se poderá ver, em diversos momentos e em diferentes lugares,
como esta maneira de dispor os dados e conceitos de experiência
analítica em quatro produz um feito muito particular, obtendo uma
logicização - se me permitem o neologismo - peculiar do campo
analítico 2 •

Dizer " quatro conceitos " implica concebê-los em um certo ní­


vel de homogeneização . Parece que isso, claro, não se coaduna com
o afã positivista de definir uma ciência por meio de um único obje­
to formal e abstrato. Por exemplo : O que estuda a psicanálise?
Costuma-se dizer : "o inconsciente, ou aquilo que é inconsciente " ,

2 . Contudo, não seria banal recordar esta citação de Lacan : "Uma estrutura
quatripartida é a partir do inconsciente sempre exigível na construção de
uma ordenação subjetiva" ( "Kant con Sade", Escritos II, Siglo XXI, Mé;:ko,
1 975, p. 3 46 ) .

17
sem mais . Então a pertinência de uma · ciência, ao modo positivista,
sempre se caracterizará por um objeto singular teórico - ao mes­
mo . tempo situado na práxis - que lhe permite tomar sua especi-
. ficidade. Lacan diz - no entanto -:- quatro conceitos, como, nos
bailes; quatro conceitos, quatro; são quatro e não só um. Além disso,
articulados entre si de tal maneira que com eles possam ser colo­
cados os fundamentos - o fundamental - do que se sustem o cam­
po operativo da psicanálise.
Vou escrever de um modo particular estes quatro conceitos,
propondo-lhes um esquema que, didaticamente talvez seja inconve­
niente colocá-lo no começo, ainda que queira fazê-lo sobretudo para
causar-lhe a intriga de ver se a proposta, no transcurso das dez aulas,
poderá ser cumprida ou não. Trata-se de um quadro que procura
ampliar a questão dos quatro conceitos, indicando um relacionamento
entre eles que me parece importante. As razões disso lhes apontarei
paulatinamente. '-._
Os quatro conceitos, dispostos deste modo particular, são :

Inconsciente Repetição

Transferência Pulsão

Lacan dirá, nas primeiras pagmas do Seminário, que um dos


requisitos que uma_ ciência deve preencher é o de poder colocar em
fórmulas aquilo abarcado por seu específico campo de conhecimento.
Supostamente podem haver fórmulas de qualquer coisa ; e isso rião
implica, absolutamente, que a disciplina em questão seja científica .
Não importa: aos que nos reconhecemos devedores do ensino d e La­
can " sai assim ", efetivamente, quando se trata de elevar conceitos
- fundamentais ou não .- à categoria de elementos articuláveis em
termos do que se denomina algoritmo. O que é um algoritmo? Este
vocábulo, tomado da matemática pela psicanálise, outorga a possibi­
lidade de poder trabalhar com algumas letras, fazendo entre elas
algum tipo de deslizamento regrado, e . obtendo, p�r estas fórmulas,
efeitos produtivos de conhecimentos .
Faremos, então, seriamente, um desses .jogos :

18
Articulamos inconscientemente· com pulsão, e repetição com trans;
ferência, o que não implica - de modo algum - que seja a única
relação possível . Deve-se reconhecer, nestes traçados, aos que supo­
mos simétricos - mas que deixam um· lugar vacante __; · um buraco re­
presentado por um . " simbolozinho " bastante usado e útil no ensino de .
Lacan. Vejamos como é utilizado em uma fórmula; neste caso a do
fantasma: ($. <> a) . O rombo, que se lê " corte de " ou " desejo de" ,
indica uma série de operações vinculantes entre o s dois termos pos­
tos em relação. Por exemplo, desfazendo-o de acordo com um eixo
horizontal, na parte inferior fica o seguinte : 'V_'. Em lógicà é o sím­
bolo de disjunção (ou . . . ou . . . ; ou . . . ) . Retomando o anteriormente
assin alado, escrevemos : _j ou objeto a, no sentido de um ou outro .
Mais adiante, veremos mais detidamente as figuras diferenciais da
disjunção segundo o modo com que as coloca Lacan 3 • Agora tente­
mos entender o que é que se deriva do rombo a que chama punção
- literalmente poinçon - e ainda que às · vezes apareça, devido à
figura, como losange. Parece que essa literalidade, pelo visto, não con­
venceu os tradutores. Claro, o desenho parece um rombo, mas o pun­
ção, o instrumento, se liga a uma marca particular usada pelos pra­
teiros que informa a singularidade iiesses artesãos . Através do pun­
ção se estampa uma espécie de firma, por cujo intermédio, inclusive,
pode-se saber o lugar e o ano em que a peça de prata foi cunhada.
De tal modo que o punção tem uma colocação espaço-temporal e uma

3 . Cf. cap IX.

19
ordem de singularidade bastante evidentes. Creio que nos quer trans­
mitir, quando diz punção, justamente isso, e não simplesmente um
rombozinho figurativo. O rombo é uma descrição fenomenológica, en­
quanto que aqui o que interessa é resgatar esse valot de singulari­
dade que se obtém através do punção. Então, reitero: no nosso es­
quema ficou um punção na articulação dos quatro conceitos. Obtive­
mos, ao dividi-lo, o aspecto 'V', que chamamos disjunção. Se agora
superpusermos a parte superior, ' A ', tem-se a operação lógica com­
plementar, chamada conjunção.
Num romance, quanto à lógica, o que foi dito seria uma aporia,
ou seja, uma enunciação não taxativa que admite inclusive o seu
contrário; todavia, não liquida - trivializando-o - o sistema. Se em
lógica alguém diz "A não é B " e " A é igual a B ", não diz nada;
isto - assinalam os lógicos - trivializa todo o conjunto. Não há
possibilidade de fazer a menor discriminação. Contudo, os estu­
diosos puderam chegar a uma espécie de compromisso, no sentido
de aceitar que tanto há negações fortes, onde a disjunção é absolu­
ta, como há outras - com negações débeis - onde se suportam
as aporias, tal como acontece nessa colocação. Há disjunção, e nem
por isso deixa de haver conjunção. De outro modo há o $· ou o a,
mas também o, I 7 o a. A prova disso é que alguém poderia dizer,
'
em funçã<� de tomar a operação graficamente superior incluída no
punção : o' sujeito é seu objeto a (S A a) na escritura do fantasma
(% <) a) .
Por meio dessa escritura se pode captar que não é que o sujeito
esteja defrontado a um objeto - como se diz _ em filosofia, habi­
tualmente - mas que permite compreender de que modo o objeto
é o lugar-tenente do próprio sujeito; é o próprio sujeito, como parte
amputada de si. Ele não está defrontado - como se fosse uma di­
mensão referida a um outro distante e' distinto - senão que o su­
jeito chega a ser esse objeto a, do qual posteriormente veremos mais
detidamente de que se trata. Saibamos, por ora, que é aquilo esti­
mado por Lacan como o seu "único invento" em psicanálise o que,
como se pode ver, é um enunciado forte, para ser tomado em séria
consideração.
Neste princípio de destrinchamento do punção, já temos mar­
cadas duas operações. Mas podemos fazer um corte vertical, e o que

20
' < '.
fica se lê, matematicamente, assim : maior que, ' > ', menor que,
Levados a uma categorização não quantitativa, os símbolos querem
dizer : se é maior, que implica e se é menor, que se desimplica. Ou
seja, dá conta das dimensões de implicaç�o e desimplicação entre
termos. O maior implica 410 menor; o menor está desimplicado com
respeito ao maior.

Todas as relações consideradas se estabelecem somente pelo fa­


to · de colocar o punção entre os quatro conceitos; Isto não pertence
ao texto, já que é somente o meu modo pessoal de tentar uma orga­
nização das colocações lacanianas. Por outro lado, entendo que é
possível usar outra notação habitual nesses desenvolvimentos, e lo•
calizá-la, no punção :

Esta escritura - S V() - quer dizer : significante da falta no


Outro. O Outro, lugar do significante; do simbólico para Lacan, é
o A. Mas a inconsistência do Outro, a falta, faz com que a hélice
" funcione". Se não houvesse aqui algo que indicasse a incompletude
- e é por isso que se diz o significante da falta - do Outro, nenhum
destes conceitos teria possibilidade de existir.

Estabelecido o anterior, podemos pensar em outras relações, as


que tentarei fundamentar no decorrer de nossas aulas. Então, além
das articulações prévias, situamos - por traslado - outro modo com
que Lacan costuma nos pôr a trabalhar diversas noções da psicanálise�

21
Inconsciente Repetição

Transferência Pulsão

Segundo este esquema, obtemos, como resultante, um quadrângulo.


Veremos o porquê da direcionalidade destas flechas, que respaldam a
postulação de que são quatro - e não unicamente o do inconsciente
- os conceitos fundamentais e definidores do campo de nossa práxis.
Se é que funciona, e são fundamentais , deveremos recordar que qual­
quer fundamento dá lugar a que se comece, a seguir, uma construção.
Colocando as pedras fundamentais poderemos , conseqüentemente, des­
prender daqui ôutros conceitos, já não fundamentais, mas nem por
isso menos implicados em nosso campo operativo.

Tomemos por exemplo a transferência da qual este Seminário


dirá : "E. a realidade do inconsciente posta em ato " . Se traçarmos uma
flecha a partir do inconsciente até a transferência, encontraremos o
analista:

I ncon s c i e n te Tiquf! Repe tição

Pulsão

O analista é aquele que oferece seu ser como suporte para o


fenômeno da transferênda. A realidade do inconsciente posta em ato,
isto é a transferência, eis aí o analista. Por outro lado_ também, esta
realidade é, decisivamente, a realidade sexual . Encontramos como a

22
pulsão se inscreve enquanto parcial - toda pulsão é parcial por defi­
nição, e não há totalização da mesma - no inconsciente. A realidade
do inconsciente é antes de mais nada sexual; eis aqui, então, a libido
enquanto pulsão inscrita no inconsciente. Dirigida a partir da pulsão
ao inconsciente, encontramos uma das coordenadas fundamentais da
psicanálise - o sexo :

Não esqueçamos a outra variável : a morte. Não quero propor


nada pansexualista; a esse respeito, cabe esclarecer que desde Freud,
indubitavelmente, pode-se dizer que tudo é sexualizável. Isto não im­
plica, obviamente, que tudo seja sexual, como algum crítico contumaz
pretende que ele tenha dito. Mas prossigamos : ágora, tracemos uma
linha a partir da repetição até o inconsciente. Isto dará conta de algo .
que ,trabalharemos mais adiante : aquilo que Laean chama - tomando
um termo grego - a Tiquê. Esta denota a ação da causalidade não
automática - que contrapõe ao Automaton - regida pelo acaso. De
outra maneira: é o acaso como causa, o que através de certa repetição
se inscreve, via esta Tiquê, no inconsciente (já que este, como veremos,
não se esgota na remissão significante) :

I nconsciente

-�"ii!!
e
til

Transferência

23
Este é um quadro para ir desenvolvendo e servir como referente
em todas as nossas reuniões; hoje, quero somente apresentá-lo, para
que depois possam se referir a ele uma vez ou outra. Prosseguindo,
enco11tramos outra flecha a partir da pulsão até a repetição. Da pulsão,
este Seminário nos falará, entre outros itens, de seu circuito: é o título
de um de seus capítulos. Tal circuito segue os roteiros, os meandros
da repetição, já que se trata de um recorrente dar voltas ao redor �
.com limites não franqueáveis - do objeto a, uma de cujas leituras é
a de objeto da pulsão. Aqui, na articulação pulsão-repetição, se im­
brica ou sobrepõe o objeto a. (Para precisar: outra das leituras- do a
é á de objeto-causa do desejo) :

Repetição

Pulsão

Temos ainda outra flecha: a que vai da repetição à transferência.


Esta sim merece que nos detenhamos, porque aqui aparece um dos
desvios mais tradicionais da prática clínica psicanalítica. Produz-se
pela redução, pelo achatamento da transferência feitos em nome de
uma repetição concebida mais precisamente como uma reprodução do
idêntico. Este desvio é uma manobra do analista e consiste nodalmente
em interpretar pela questão do idêntico: aqui, agora e comigo, tal
como lá, então, com aquele.
A maior parte dos membros que integram a IPA "comungam"
com o seguinte: que a transferência é repetição. Produzir um conceito
tão difícil quanto o de repetição com diferença, ou dizer que não haja
repetição que não seja justamente com diferença, é o que procurará
demonstrar este Seminário, tomando, entre outras, noções de Kierke­
gaard. Ao contrário, o viés da reprodução do idêntico implica tão so­
mente a transferência que, com Lacan, chamamos imaginária : ou seja,
aquela forjada em função da problemática do estágio do espelho:

24
Tiquê
Inconsciente ,------------=- Repetição
� �.s'f'..t-� \CO
\'ô.e��
'ê:ae: ��º
_"Ej �


a

Transferência Pulsão

Agora, devido à particular leitura que Lacan faz do texto de Freud


Inibição, sintoma e angústia - basicamente, no Seminário sobre A
angústia, de 1962/63 - e à forma com que re,trabalha o conceito
freudiano de inibição, podemos posicionar este termo - a inibição -
na articulação da pulsão com a transferência :

Tiquê Repetição

Transferência
Inibição
A pulsão enquanto inibida em seu fim, segundo nos ensina Freud,
é aquela que não alcança a consumação enquanto esta envolva o gozo
corporal. Se detém no referente a seu fim, ainda que sustente seu
objeto. Esta maneira de atender a inibição a diferencia da pulsão que
alcança seu fim, por um lado, e da sublimação - que lhe é corre­
lata - por outro. Situada a inibição, concluímos o quadro que - con­
cebi tempos atrás e que, até hoje, me convence. Acredito, reitero, que
pode dar conta da articul�ção que vai aparecendo dos desenvolvi­
mentos dos " quatro conceitos " no Seminário 1 1.
Há outro ponto importante nesta introdução que estamos reali­
zando: o de conceito fundamental. Lanientavelmente o novo tradutor
de Freud ao castelhano, José Luis Etcheverry, fez com que essa idéia
se perdesse - ao traduzir Pulsões e destinos das pulsões - ao escre-

2S
· ver· .conceitos básicos 4 • Para Lacan as palavras têm seu sentido, já
que elas não são meras "maneiras de dizer " ; então, para ele;: não é
igual " conceito básico" e " conceito fundamental " . No Seminário 20
escandirá o termo dizendo funda-mc;:ntal, com o que aludirá a uma
espécie de véu que recobriria o mental; nias, já no 1 1 , existe . uma
.
aguda referência à origem cabalística - no sentido da Cab o/a en­
quanto dimensão da mística hebraica - quando diz: " . . . fundamento
tem mais de um sentido, e eu não precisar�i de modo algum evocar
a cabala para lembrar que nela se determina um . dos modos da mani­
festação divina que é propriamente, nesse registro, identificado ao
pudendum " 11

O termo pudendum denota as partes pudendas - ou, como diz o


dicionário, vergonhosas - conhecidas como " as da geração " . Então,
o termo fundamento articula algo da união 'para que nesta procura
de relação sexual possam se apoiar os quatro conceitos. Resgata, assim,
o termo freudiano · Grundbegriff (Lacan, sabe-se, trabalha com rigor
as categorias freudianas) .
Agora, passo a ler-lhes, devido a seu rigor epistemológico, o
início da Metapsicologia de Freud, que é aberta com uma notável ma­
nifes'tação acerca de como · se vão construindo os citados conceitos .
fundamentais. Ali se encontram respondidas uma infinidade de ques­
.
tões que continuam preocup ando os psicanalistas e alguns epistemó­
logos que se autorizam a opinar ·sobre a psicanálise. Tenho comigo a
· vers�o de Laplanche e Pontalis, tradutores ao francês da Metapsico-

4 . S; Freud, Obras Completas, Amorrortu, Buenos Aires, 1979, t. XIV, p. 1 1 3 ..


No original alemão, Triebe und Triebséhickale, 1915. Ao português fÓi
vertido O instinto e, suas vicissitudes em tradução, portanto indireta, da
Standard Edition of the Complete Psychological Works of Sigmund Freud. ·
A !;!lelhor tradução para o termo aiemão ,trieb já está, entretanto, suficien­
e
temente estabelecida como pulsão, não instinto. J. Laplanche e J.-B. Pon­
talis, (Vocabúlário eia Psicanálise, São Paulo, Martins Fontes, 1983, p: 506 ) , .
. ao que optamos pela solução adotada. (N.T. )
- 5 . I. Lacan, Los. 'cuatro conceptos. fundamen:alés dei · psicoanálisis, Barcelona, ·
.• Barral, 1 977, p. 17 (cuja tradução corrigimos parcialmente) . Existindo a
versão brasileira Os quatro conéeitos fundamentais da psicanálise, Rio de
Janeiro, Zahar, 1985, e em �stando esta, quanto a sua terminologia, plena­
mente estabelecida entre nós, é a ela que nos referiremos quando dos trechos
citados do Seininário 1 1 . Na versão brasileira, portanto, o trecho a que se
· refere a nota está na p. 1 3 . (N.T. )

26
logia. Interessa-nos em particular, como dissemos, Pulsões e destinos
das pulsões, onde, eles sim, tomaram Grundbegriff, literalmente, como
conceito fundamental . Assim se entende que o título do Seminário
publicado de Lacan seja devedor - ainda que ele não o diga, apesar
de mencionar Grundbegriff - do trabalho freudiano.

Afirma o texto, entã�, o seguinte : " Freqüentemente nós temos


escutado que se nos formulassem a exigência seguinte . . . " Isto é
importante, já que marca um tipo de laço singular entre o analista e
aquele que lhe exige que dê razões. Não há uma relação simétrica,
senão que alguém, a partir de um lugar de Amo, imponha ao analista
- posicionado como temeroso escravo - que dê · suas razões. :8 ça­
racterístico do tribunal da ciência, efetivamente, formular a seguinte
exigência : " . . . uma ciência, deve estar construída sobre conceitos fun­
damentalmente claros e nitidamente definidos" . No meu entender tal
desígnio remete à concepção racionalista de Descartes acerca das idéias
claras e distintas. Algo bastante diferente do conjunto de relações
implicadas no punção, as quais, sem dúvida, são em si bastante con­
flitivas, até mesmo aporéticas. São relações que devem suportar a
ambigüidade e, precisamente, as categorias com as quais temos qÜe
pensar a psicanálise são desse tipo, sem cair - evidentemente - no
extremo oposto : a falta de rigor discriminante.

As idéfas "claras e distiritas", em psicanálise, não funcionam. En­


tre outras coisas porque a psicanálise - que é uma prática - está
construída por palavras e, sendo assim, se encontra - nos . termos
de Freud - predestinada à multivocidade 6 • Montaigne dizia: a pala­
vra é metade de quem a diz e metade de quem a escuta. Aquele que
acredita que há um sentido congelado, em todo o caso, confundirá
o sentido . lexical - o do dicionário - ou as palavras eventualmente
fixadas, com aquilo que passa em e pela dimensão interlocutiva, evo­
cativa, que pouco ou nada tem a ver com o que diz o dicion�rio.
Uma coisa é a comunicação baseada no léxico, e outra o fenômeno
da fala. Assim destaquei um ano atrás, aqui mesmo, quando refleti­
mos sobre Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise.
(A esse respeito é pertinente traduzir como " fala n a parole de Lacan.
Portanto, é Função e campo da fala. Assim foi traduzido o termo
quando apareceu no Curso de lingüística geral de Ferdinand de Saus-

6 . S. Freud, La interpretaci6n de los sueiios, o.e., cit., t. V, p. 346.

27
sure 7 • Fala, porque não se trata de uma palavra isolada e, eventual­
mente, " primordial " , mas do fenômeno encadeante da interlocução) .

A pretensão do claro, do definido, do distinto, produz uma or­


dem que quer, talvez de maneira vergonhosa, constituir uma es•
pécie de metalinguagem para dar conta . da fala. Uma supralinguagem,
uma linguagem da linguagem onde a condição do. equívoco, do po­
lissêmico, dos vários significados que dá, inclusive o dicionário, a tal
ponto que às vezes, como o próprio Freud havia detectado, uma pa­
lavra pode ter um sentido e ao mesmo tempo o se� oposto . - do alu­
dido, dizia, fica irremediavelmente perdida ; Freud o detecta em O
sentido antitético das palavras primitivas 8 , nias o fato· é que não se
limita tão somente às vozes primitivas . Pênsem simplesmente na pa­
lavra 'réplica'. Alguém formulou uma réplica, portanto contradisse
aquilo que escutou. Este é um sentido � Outro, em contrapartida, fez
uma réplica, o que pode querer dizer que copiou pontualmente um
modelo, tendo , então, um sentido exatamente inverso : não ser aquilo
que se opõe, mas aquilo que - se procura copiar. A opção dependerá
dos contextos e do modo com que se utilize o vocábulo, mas vale pa­
ra demonstrar que não é um estágio primitivo da linguagem, já que
ocorre diariamente no português (como exemplo generalizável) . Deve­
se levar isso em conta para comprovar que a pretensão metalingüística
é bastante difícil de se sustentar. Por isso às vezes o ensino de Lacan
se · torna - complicado, porque não nos oferece definições, às quais
sempre procura se agarrar aquele que busca aprender. Donde se vê
que não é um problema de algum leitor em particular, mas de algo
emergente como . efeito de estrutura de sua concepção .

Às vezes aparecem alguns dicionários de psicanálise que pro­


curam restringir os sentidos possíveis que possam ter uma · série de
conceitos. A respeito diz esse Seminário : São acaso iguais, por exem­
plo, o · objeto da física atual do daquela que data do século XVI I ,
o u seja, quando nasce? Se não são, s ó este fato indica que o termo
'física' não conota o mesmo sentido em diferentes épocas. Esta pre­
tensã9 da · ciência seria - segundo a psicanálise - para apresentar-se
novamente diante da própria ciência.

7 . F. de Saussure, Curso de lingülstica general, Buenos Aires, Losada, 1 967,


pp. S1 e ss,
8 . S. Freud, O.C., cit., t. XI, pp. 143-53 .

28
Podemos validamente, então, colocar a seguinte questão : Que
ciência é aquela que fica agora, como sedimento, depois do impacto
da psicanálise? Como é que aquele que faz ciência aceita o desafio
que implica a postulação do inconsciente freudiano? O mesmo para
a filosofia, a partir de agora, porque, o que é uma filosofia que se
baseia somente nos dados da consciência, sem considerar a divisão
.do sujeito? Convém então seguir a linha que deu o próprio Lacan
quando alguns estudantes bastante revoltados , tratando-o desdenho­
samente de " burguê,s ", intimavam-no a dizer o que a psicanálise po­
dia fazer pela revolução . Então, respondeu-lhes : " Digam-me vocês
o que pode fazer a revolução pela psicanálise " . Maneira inteligente,
psicanalítica, de responder, por meio da qual - obviamente - não
satisfez a demanda, mas situou os interlocutores em seu justo con­
texto . Porque sempre se pede à psicanálise que seja isto, que seja
aquilo, que possa dar respostas para aquilo e aquilo outro, sempre
acusando-a, em suma , de que lhe falta tal ou qual coisa; o que é abso­
lutamente certo - porque é disso que se trata, substantivamente.
Falamos do significante da falta no Outro; então, à psicanálise tam­
bém lhe falta . Porque trata da falta, o que, seguramente, não se
" resolve " com complen;ientos ao modo do biológico, do social 9 e de
tantos outros aspectos que supostamente deveria ter e de cuja au­
sência é acusada. Por fim se esquece, nesta espécie de crença no
unitário , que o modo com que se concebe algo é possível porque se
deixa outra coisa de lado , a qual, por sua parte, resultará, assim, re­
definida. Se não se fizesse essa tarefa de diferenciação epistemoló­
:e
gica, o resultante seria um soberano caos . o que se obtém, finalmente,
c.om as propostas " integradoras " , de onde aparecem os conceitos do
· " todismo " e do unitário. Fascinação do imaginário, certamente .
Como vocês podem ver - voltando ao texto de Pulsões e des­
tinos das pulsões - para Freud a questão do claro e nitidamente
definido é uma exigência exógena. Escreve ele : " . . . na realidade ne,
nhuma ciência, inclusive a mais exata, começa por tais definições . O
verdadeiro começo de toda a atividade científica consiste, mais exata­
mente, na descrição de fenômenos . . . " Primeiro ponto, então : não
começar, de modo algum, por uma definição mas, contrariamente a
isso, constituir uma agrupamento · dos fenômenos . Alguém poderá " re-

9 . "O social", é a sacralizada multiplicação de índivíduos, ou a detecção da


determinação que recebemos do campo do Outro?

29
plicar " que, de toda forma, esta descrição dos fenômenos respeita um
ordenamento - além de . encontrar-se aqueles inseridos em relações -
e que isso se faz de acordo com certo critério , Verdade : é inevitável.
Critério que precipitadamente se pode imputar de pré-científico, ou de
ideológico, no melhor dos casos. Freud tem presente o seguinte: "já
na descrição não se pode evitar aplicar ao material certas idéias abs­
tratas que de um modo ou de outro evidentemente não foram toma­
das de forma exclusiva - ou única - da experiência atual " . São
tomadas de outro lugar; vale dizer que, para fundar um determinado
campo nocional, é para que este sustente uma práxis e possa dar
conta · dela, tem que se valer de uma importação teórica. Ou seja:
tem que tomar algo de outro lugar e, em função disso, construir um
novo campo, seu próprio campo.

Concretamente, existe um sistema de referências teóricas de Freud


que tem a missão de Lacan atualizar, contemporizar. Se para Freud
a importação se produziu a partir da física e da biologia, para Lacan
se deu mim primeiro momento a partir da lingüística - e, parale­
lamente, da lógica - para realizá-la, finalmente, a partir da topologia.
O que não quer dizer que fosse logicista, lingüisticista, topologista
etc. Implica somente seguir o princípio de que nada nasce do nada .
Inclusive, assim formulado, é errado: se digo " nasce " ; estou dando
por estabelecido que o antecedente é do mesmo gênero que o conse­
qüente. Nasce-se do. mesmo gênero que os pais . Dizer que uma ciência
nasce é um erro; deveria dizer-se " começa" . Nesse sentido Althusser
assinalava que Freud é um desses filhos sem pai, porque não se lhe
reconhece precursor 10 • Quando Lacan começa a revisar o conceito
fundamental do inconsciente, também dirá: há vários antecessores,
mas não há o inconsciente antes de Freud. A palavra havia sido uti­
lizada em muitos contextos -e por numerosos autores, mas de todo modo
não constitui nenhuma antecipação que permita dizer: " j á estava tudo,
ou parte, em . . . " ,

A importação teórica é fundante de um campo. Isto é o que


Freud nos está dizendo: que há idéias abstratas que !!e podem tomar
daqui e ou dali, e que não partem da experiência atual. O que é
muito importante para refutar todo empirismo, toda crença de que a
prática, por si mesma, contém uma espécie de sabedoria própria. Esta

1 0 . L. Althusser, "Freud y Lacan", in Vários, Estructural:smo y psicoanálisis,


Buenos Aires, Nueva Visi6n, 1970, p. 58.

30
presunção é uma aberração absoluta, porque, qual é a sabedoria de
uma prática em si mesma? � ela que suscita idéias ou são estas que
fazem a prática " falar " ? Creio ser fiel ao que nos transmite Freud
quando alude a " estas idéias " ; df;:vemos precisar, então, quais são es­
tas idéias " abstratas e trazidas de outro lugar que desvendam os
conceitos fundamentais da ciência, (e) se encontram de maneira ainda
mais indispensável na elaboração ulterior dos materiais " . A seguir,
prossegue assim : " Comportam de início, necessariamente, um certo
grau de indeterminaç�o" . Esta indeterminação, acrescento, é justa­
mente o que as faz indefiníveis de maneira clara e distinta. O Semi­
nário avalisa, por sµa parte, o conceito de aproximacionismo. Efeti­
vamente, sustenta uma aproximação - a "realidade por captar" -
por via da construção e do trabalho do conceito, mas fazendo a res­
salva de que este conceito nunca aca�a de se conformar. Não -'há um
conceito terminado de uma vez- e . pa�11 sempre. Ao fixá-lo, mata-se o
conceito. _ Isto é justamente o que Lacan denuncia com tanto rigor,
vigor e lucidez, vale dizer, _o que tem sido o destino do ensino de
Freud nas · mãos dos pós-freudianos. S que se toma necessário pôr
as coisas em seu devido lugâr: se a psicanálise se baseia constan­
tem�nte na repetição gargaréjica, ecolálica, dos conceitos pontuais de
Freud·, eles passam a não servir para nada. Trata-se, então, qe renovar
a aposta da psicanálise, mas não unicamente a citação de Freud, pois,
dessa forma, esta passa a ser uma nioeda . tão cori;ente que - tomando
outra alegoria de Lacan - ao circular tanto de mão em mão, chega
ao ponto de ver apagar-se seu valor como acontece com as notas em
período de inflação. Algo assim pode ser o destino da psicanálise,
se não se instaurar uma vigilância epistemológica; isto é, como diz Ba­
chelard, de quem é também a idéia do aproximacionismo. Lacan se
alinha, assitn, � melhor linha da epistemologia francesa: a do citado
Gàstón Bachelard, a de Alexandre Koyré, a de Georges Canguilhem,
a: que, enfim, chega a Mic�el Foucault e ao já citado Althusser. A lei­
tura de todos eles dará certas pautas acerca das coordenadas mais de-
/-
cisivas em que se movia o vasto corpu; teórico de Lacan.

Freud necessita, então, uma indeterminação que faz com que não
possa ficar preso estritamente ao conteúdo do conceitualismo. Aqui
se verifica como todo aquele que impute a Freud biologismo, fisica­
lismo etc demonstra não haver captado sua postulação, sua cabal
ruptura com o universo de noções herdadas. Por exemplo, quando in-

31
troduz conceitos como o dos tipos de energia para descrever o psiquis­
mo, é óbvio que, simplesmente, se trata de uma convenção .
Limitar-se a usar convenções implica advertir que se deve en­
tender tal coisa . mas sem crer que o dito tem caráter ontológico, que
as coisas " são" literalmente assim. Acreditá-lo desta forma significaria
sustentar que uma disciplina deve copiar pontualmente uma presumí­
vel realidade. Quem sustenta algo assim? O empirismo, que encoraja
este tipo de considerações . Em contrapartida, os " segredos " da teoria
analítica, relançados por Lacan, talvez nos permitam tomar contato
com uma psicanálise que não pretende copiar nada da experiência
psicológica. Isto é, que não se mantenha ao nível das convicções
egóicas aceitas por todos, mas que possa sustentar o efeito revulsivo
da descoberta freudiana, para além das "verdades " - falsidades -
do sentido comum que habitualmente se atribui à psicanálise.
O que Freud nos diz é que as relações que " se acredita ter
adivinhado antes de poder ter conhecimento e trazer a prova " , na
realidade preexistiam a seu hipotético descobrimento . Vale dizer que
o trabalho teórico tem uma pertinência tal que permite justamente
descobrir os fenômenos . Por causa de uma - má - educação em­
pirista, se afirma que a experiência nos transmite uma espécie de
sabedoria; o que Freud nos diz é, precisamente, o contrário. A res­
peito, muitas vezes se acusa Lacan, e quase com indignação, " per­
guntando-lhe " : Onde estão os pacientes? Isto é psicanálise? De que
está falando este homem, com um estilo tão intricado? É que se está
transmitindo algo de uma ordem não psicológica, arrojando como de­
feito o de poder conservar o campo que Freud nos levou. Daí que
pareça um estilo tão pouco científico - dito com ironia no que se
refere à ciência, a qual se atribui como transparente em seu dis­
curso, pretendendo não dar lugar a equívocos. Quando Lacan marca
estilísticamente, com seu punção - seu estilo - traça uma senda
radicalmente heteróclita em relação a uma psicanálise que ambiciona,
em todo caso, adequar-se aos desígnios da ciência positivista. E isso,
é bom dizê-lo desde já, sem esquecer o rigor com que, através de seu
" materna " , pretende nos oferecer uma transmissão " integral " .
Ante este intróito, também vocês podem dizer: Vamos falar de
psicanálise, ou vamos ficar nos fundamentos doutrinais? É que não
há outra maneira de falar de psicanálise se não nos apoiarmos nestes

32
últimos. Para encarar o primeiro conceito fundamental, entendo que
uma introdução como . esta é inexorável. Lacan dirá do inconsciente
alguma coisa mais e outra coisa, do que todos repetimos infatigavel­
mente: " . . . essa parte do psiquismo que não reconhece negação, nem
lógica, que é regida pelo deslocamento, condensação etc ." Assim,
datá conta não somente da · clássica fórmula: " O inconsciente é estru­
turado como uma linguagem" (proponho que se enuncie assim, mais
adiante veremos por que) , senão que ainda introduzirá - em sua
concepção de inconsciente -- o caráter do que denominará " pulsa­
ção temporal" . Este é um conceito novo, segundo menciona no infor­
me que apresenta à Escola Normal Superior como conteúdo de suas
lições correspondentes a esse ano de 1964.

A pulsação temporal .....:. cuja explicitação veremos proximamente,


nos permite entender melhor as formulações que postulam que o in­
consciente não é um segundo sentido que autorizaria o analista · a
uma espérie de " pingue-pongue" terapêutico. Sé se supõe que o in­
consciente é rima mente de fundo duplo, o que está em jogo, já não
é a análise do discurso sujeito à pulsação temporal; assim, então, fica
o conceito do inconsciente enquanto fundamental. Neste caso, o que
se diz é que o analista está como aquele hermeneuta que v� sempre
encontrar um segundo sentido das coisas, Claro, isso não é psica­
nálise : nem o é o " pingue-pongue " , nem o . é a hermenêutica.

Questões

P. :

R. : Perguntam-me pelo objeto a. Sem chegar a me estender, tra7


tarei, pelo menos, de pontualizar dois ou três traços para que ó con­
ceito não fique difuso, para nos " aproximarmos" dele. Este objeto,
para começar, é algo diferente do que uma certa psicanálise - sobre­
tudo a anglo-saxônica - entende como recoberto por aquilo que
denomina " relações de objeto". Aquelas que, geralmente, aludem ao
modo de compreender um vínculo de condutas entre duas pessoas
praticamente co-presentes . Assim, segundo o modo como um se rela­
ciona com o outro, costuma-se dizer que se tratam de relações predo­
minantemente orais, anais etc. ·

33
O caso de O homem dos lobos localiza um conceito: o do pe­
queno separável do corpo 11 • Freud coloca o conceito e constrói uma
equação: pênis-fezes-filho. Depois acrescentará, inclusive, dinheiro e
presentes 12 , como termos que no inconsciente se equivalem, pela par­
ticular característica de ser " o pequeno separável do corpo ,,._ Enten­
de-se "naturalmen�e" o do filho, pelo fato do nascimento, separando­
se biologicamente de sua inãe. O das fezes também. Mas, o que se
passa com o pênis? Não há uma castração efetiva e processada. Con­
seqüenteme�te, só por essa circunstância já se rompe a inteligibilidade
que até aqui acreditávamos ostentar: aparece algo separável, mas que
na verdade não se separa. Aqui se percebe, claramente, que se refere
a uma ordem de pedra definida a partir do Simbólico, e não a uma
perda efetiva, onde um pedaço seria amputado do corpo . Alude, então,
a algo que pode ser caído, perdido ; que pode ter, como sustentáculo,
uma perda realista ou tião, mas que se encontra colocado enquanto
caído no registro do Real, segundo uma primeira aproximação. (Re­
tomaremos estas pontuações ao tratar da questão do olhar e do objeto
da pulsão).
A voz e o olhar são objetos a que Lacan acrescenta à lista de
"pedaços " restantes do Outro. Ou seja, que o que resta da relação
com o . Outro - relação na qual nos constituímos - se transforma,
com o tempo, em relação com as variâncias do objeto a. É algo que
não tem, nada a ver com um vínculo inter-humano . Que se dá com
algo que não está, talvez, manifesto patentemente, presente. Por exem­
plo o olhar, localizado nesse quadro, que está olhando a mim. O
olhar, portanto, não e_stá no olho ; dissociará, conseqüentemente, o
olho do olhar, dizendo que este último é um objeto a que, encon­
trando-se " fora", me determina enquanto sujeito desejante.
Lacan, como dissemos, ratifica Q objeto a como o se� " invento" ,
seu aporte decisivo à psicanálise. Quanto a mim, creio que é dema­
siada modéstia destacar somente isso. Haveria muito mais para expor
acerca do objeto a, mas o já dito é ao menos indicativo : trata-se de
unia perda e da tentativa de reencontro com esse algo per.dido, através
desse objeto a, o que quer dizer, finalmente, que a suposta relação
não é uma relação com algo novo, mas que se realiza sempre sobre

1 1 . S. Freud, De la historia de una neurosis infantil, O.C., cit., t. XVII, p. 78.


12 . ---'--; "Sobre las transpo:iciones de la pulsión, en particular dei
erotismo anal'', O.C., cit,, t. XVII, pp. 1 1 3-23 .

34 ·
a marca ou traço de um objeto constituído como perdido: A lista de
objetos a se encontra tematizada neste Seminário; assim, nomeio o
seio, o excremento, o olhar e a voz. Pode-se encontrar uma lista
relativamente distinta em Subversão do sujeito e dialética do desejo
no inconsciente freudiano, nos Escritos I 13 • O que disse é muito " tele­
gráfico" ; de todo modo, teremos ocasião de aprofundar, mais adiante,
este item.
P.: A respeito da relação de Lacan com a ciência, no que . se
refere a não relação · desta com um determinado objeto, para a partir
daí ser definida, minha pergunta seria se realmente é assim, já que
se poderia chegar a confundir objeto com conceito. Uma coisa seria
propor que . os quatro· conceitos fundamentais tivessem a ver com
quatro objetos ; mas não se trata disso, há diferenças. De uma certa
maneira, isso seria uma leitura positivista. Então, me pergunto o se­
guinte : Quando Lacan se diferencia da ciência, o faz a partir de
identificá-la com esta leitura positivista, ou reconhece também outros
tipos de leituras epistemológicas, que propõem, a partir da ciência
que esta constrói seus objetos a partir. de seus conceitos, ou seja,
diferenciando? t o caso de Kuhn, aplicado à física, à química etc.
Ele estabelece justamente que cada paradigma científico constrói seu
próprio mundo. O que Galileu via não foi visto por Newton; seus
objetos mudaram a partir da mudança de seus marcos conceituais. A
partir disso se estabelecem diferentes critérios · de -verdade e haveria
que se verificar se a polêmica · que se coloca entre a ciência e a psi­
canálise não passa, fundamentalmente, porque se · identifica a ciência
ao positivismo, e não a outras correntes. Não sei como é esta questão
para Lacan.
R.: Muito boa a pergunta. Seria necessário muito tempo para
respondê-la, mas posso dar, pelo menos, algumas apreciações. Freud
começa Construções em análise com essa maneira aparentemente in­
gênua que lhe é própria - e que tem uma notável profundidade -
assinalando. que uma crítica habitual que se formula à psicanálise é
mais ou menos aquela de "vamos jogar cara-ou-coroa; se sair cara,
ganho eu; se sair coroa� você perde ". Costuma-se dizer que o ana-

1 3 . No Seminário 1 0, A angústia (inédito ) , incluía o objeto fálico (faltante ) ,


como uma quinta forma .,- ou "estágio" - n a constituição d o obj.etci a
(aula de 1 /6/63 ) .

35
lista procede dessa maneira quando considera que, se o analisando
aceita a interpretação ela é verdadeira; se diz que não, resiste jus­
tamente porque é verdadeira. O que Freud quer colocar é se o nosso
critério de verdade - adotando os paradigmas kuhnianos - tem
que ser efetivamente local, isto é, referido a nossa disciplina. Então,
tomando como base a questão da interpretação o resultado é que há
"sins" por uma série de motivos, e " nãos" por outra equivalente. A
tal ponto . que, se• há um efeito de verdade · na interpretação, Freud
vai desvendá-lo pela associação ulterior no analisando, e não pelo
sim ou pelo não pontuais. Pois. se alguém, na transferência, situa o
analista no lugar do ideal, a tudo o que este diga o analisando dirá
sim. Este sim não faz · mais que abonar um lugar certo de estanca­
mento na transferência. Se o analista não se previne disto, acreditará
que tudo funciona e vai a bom termo. Na realidade o analisando,
nesse caso, se encontra em uma estagnação idealizadora. Se, pelo
contrário, está tomado pelo negativismo, ou seja, dizendo não a tudo
- o que, em algum momento pode acontecer por causa da paixão do
ódio - em um desfalecimento do seu desejo o analista .Pode chegar
a pensar que seu procedimento está errado do começo ao fim. O nosso
proceder é uma práxis, já que não se refere meramente à consistência
teórica. Mas ainda tem mais, pois Lacan diz: "A verdade tem estru­
tura de ficção " 1�, e é assim porque o ser falante, pelo fato de sê-lo,
ficcionaliza. Isto, claro, se articula com o campo da ficção literária.
Alguém ·poderia dizer de uma novela se é ou não verdadeira? Não
parece, em todo o caso, que ali se gera uma outra dimensão? Claro,
mas vocês podem dizer que esta é uma resposta lateral, já que através
dela chegaríamos a afirmar que a psicanálise, finalmente, é algo da
ordem da literatura : uma prática artística, em suma. No entanto, a
interpretação não é em si verdadeira ou não. Lacan diz: '.' efeitos de
verdade" . Isso significa que o importante é que a interpretação possa
provocar que a verdade, que está no analisando, emerja. E ainda, para
piorar, a verdade - este é .outro aforismo - se semidiz. Ou seja,
que é somente uma ilusão do discurso jurídico pedir ao paciente:
" Jura dizer a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade"?
Justamente, a verdade é não-toda. Vai ser apenas semidita; e isso, deci­
sivamente, devido . à ação da repressão primária. Não é uma questão
de boa ou má vontade que alguém não diga tudo, ou diga não-tudo.

14 . J. Lacan, "El psicoanálisis y su eilsenãnza", Escritos II, cit., p. 174.

36
Como vocês podem ver há uma série de variáveis que podem
ou não entrar na questão da racionalidade regional - postura que
também, em dado momento, mantinha Althusser, e creio que neste
ponto, pelo menos, coincidisse com a questão dos paradigmas de
Thomas Kuhn. O " último " Lacan, por exemplo - o das confe­
rências e entrevistas de 1·975 - afirmou no Massachussets Institute,
frente à questão acerca de se a psicanálise é uma ciência, que, na
realidade, " é uma prática" 15 • Em um texto que trabalhei em meu
livro Dei corpus freudo-lacaniano, de 1 98 1 , procurei refletir sobre o
sentido desta postura. _Porque disse uma prática, · e não uma ciência?
O que poderia parecer um practicismo caótico, carente de regulação,
não era assim.
Como Lacan não usava as palavras de formá aleatória, recorri
ao . dicionário etimológico; prática provém · do grego praktik6s, que
quer dizer, em primeiro lugar, 'obrar', e a seguir, 'conversar'. O que
em português fica bem mais c�aro, pois a palavra prática indica, ao
mesmo tempo, estes dois sentidos. E ainda nos diz mais : é esse lugar
da 'prática' onde, talvez, aconteça a única diferença crucial com um
traço do discurso _ científico e que . deste se generaliza a outros dizeres.
Sim, porque é o único lugar onde se pede a alguém que seja capaz
de suportar-se dizendo bobagens . Uma das referências mais usuais do
analisando é esta: " - Eu venho aqui para falar coisas estúpidas,
mas repare nas coisas que te falo! Isto não é um problema; real­
mente, falar de semelhantes coisas com os problemas que tenho! "
Parece que há uma obrigação de só falar do que é " sério " e "impor­
tante" de acordo com a análise do conteúdo, quando Lacan sustenta
que, na realidade, na psicanálise se trata de uma prática de bavar­
dage 16, ou seja, da tagarelice, da bêtise 1 7, da bobagem. Aí está jus­
tamente o desafio de Freud, o notável do campo operacional fundado
por ele. Nem mais nem menos que dizer: " venha, tagarele e fale bo­
bagens. que assim chegaremos ao núcleo do seu ser". Aqui se capta
como a questão não é nos transformarmos em metafísicos, falar · de
coisas profundas e muito sérias, para chegar a descobrir, efetivamen­
te, o que ocorre na singularidade de uma . existência. Quando Lacan
retoma o inconsciente freudiano, insiste muito nesta dimensão do tro-

IS . ----,, "Conférences et entretiens dans des universités nord-américai­


·nes", . Scilicet, 617, Paris, Seuil, 1 976, p. 53.
1 6 . No Seminário 2S, aula de 1 5/ 1 1 /77 (inédito) .
17 . No Seminário 20, Encore, Paris, Seuil, 197S, pp. 16-8.
peço, da falha, da fenda que se forma· no discurso homogêneo mani­
festo por esta irrupção ''. boba " do inconsciente.
Existe outra referência em relação a esta pergunta: podemos
localizá-la no inédito Seminário 1 7 , O avesso da psicanálise, de
1 969/70. Neste, introduz a questão dos quatro discursos : o do Amo,
o do Histérico, o da Universidade e o do Analista. Situa a ciência do
lado do discurso do . Histérico, com o que · quer dizer que incita ao
saber; assim, a psicanálise resulta da relação do desejo da histérica
com o desejo de Freud, segundo o expressa em Os quatro conceitos . . .
A histérica é quem - inclusive com a refinada intriga que ostenta
em sua maneira habitual de proceder, onde costuma se manifestar o
clássico traço da sedução __: incita a querer saber a partir do seu
lugar de não-saber. Nesse sentido creio que esta. formulação é inte­
ressante, porque mais do que dizer que .a ciência tem resposta, diz
que quanto mais cumpre seu objetivo, mais estimula a querer · saber
o ainda não-sabido. · ·
Outra associação livre sobre a questão : no Seminário 25, Mo­
mento de concluir - o antepenúltimo -'- enuncia: "Disse em outros

tempos 'eu não procuro, acho' " . Com esta frase tomada de Picasso
- colocada quase no começo do Seminário 1 1 - se opõe a que lhe
imputem a condição de investigador. Porque não é que se vá buscar
alguma coisa, mas que, pela Tiqui, se produz em virtude de um en�
contro ao •. acaso. Não é que alguém foi buscar, mas que apareceu in­
tempestivamente. Assim se passa - acredito que todos saibamos -
com o amor. Quando menos se espera, aparece ao dobrar a esqtiina.
Eu não procuro, acho. Mas em Momento de concluir Lacan retifica :
" Atualmente eu não acho, procuro " . Frase pronunciada quando esta­
va procurando, como o fio da meada, - agora diante do. auditório
da Faculdade de Direito da Sorbonne - uma maneira de modelar seu
ensino em termos dos nós borromeanos. Pareceria, então, ter outra
atitude : a de quem está querendo _investígar a conexão coin um novo
campo, ainda que em função de um estatuto muito singular designa­
do nó borromeano. Sim, na medida em que dizia que isto não era
modelo - analogia ou representação - mas que era a estrutura, o
Real. Por aí pode-se ir vendo, me parece, a situação problemática
que provoca uma afirmação deste calibre.
Entendo que uma maneira pela qual · a ciência aceite o desafio
da subversão freudiana, é se questionando sobre conio poderia se
constituir uma determmaoa c1encia levando em conta que existe " de­
sejo do . . . 1' (como dirá Lacan) ; surge, então, com referência à ques­
tão do sujeito, que não é a subjetividade. Bem : há por conseguinte,
desejo do analista . E ó que ocorre, por exemplo, com o desejo do fí­
sico? O problema é que a ciência, seja qual for - não importa se
positivista ou não - é, a · princípio, assubjetiva. Procura minimizar,
ou até mesmo anular o fator sujeito (o· que implica sua divisão) .
Lacan diz ironicamente, no Semjnário 1 7 , que a ciência é uma ideo­
logia da supressão do sujeito. Isto é um tiro de misericórdia na supos­
ta antinomia ciência/ideologia. Aqui também assinala que o crucial
da ciência - liquidar o sujeito - é urna ideologia que a psicanálise
se propõe como reintrodução d!l dimensão sujeitá que a ciência tenta
ainda pôr de lado .

P . : Isso é muito complexo, polissêmico até, porque por um lado


é assim mesmo, e por outro é o contrário. De alguma maneira Lacan
trata também de eliminar a subjetividade, como a çiência o faz; o
que ·ocorre é que ambos se diferenciam quanto ao que se passa com
o sujeito . Para Lacan o sujeito não tem a ver com a subjetividade, e
para a ciência a subjetividade seria o que se diferencia da objetivi­
dade. Ainda que, também dentro da ciência a objetividade esteja
deixando de ser considerada como o que está do lado do objeto; está
sendo pensada, por exemplo, como o inter-subjetivo.
R . : De acordo . Más há outro ponto também, e é o de como se
produz o analista . Este se produz na didática, .na própria análise. La­
can, em dado momento, chega a escrever " Psicanálise, didática " , com
o que quer dizer que toda psicanáiise produz, de fato, um psicana­
list.a . O que não implica que todos farão da psicanálise a sua pro­
fissão, seu modo de vida, mas sim que quem atravessou a análise
cumpriu com o 'requisito' que lhe permite modificar a sua posição
subjetiva. Poderia então, no caso de desejá-lo, oferecer seu ser como
suporte dos fenômenos da transferência, pois mudou suas condições
de escuta. Indubitavelmente, isso não é igual ao .modo pelo qual se
constitui um cientista . Daí que Lacan também insista em que a psi­
canálise, acima de tudo, se transmite de um a um, donde o que se
privilegia é a análise do analista . Destacamos assim um ponto dife­
renciàl na produção dos analistas, com respeito ao que é a produção
de um cientista, onde seu ser não está posto em questão, como sine
qua non constitutivo .

39
Finalmente, sem querer encerrar a questão, faço outra obser­
vação. Queira-se ou não, a psicanálise tem um caráter marginal, uma
condição de estar dentro-fora, aceito-rechaçado sistematicamente. Ain­
da que a amável consideração de vocês não o confirme, creio que a
resistência à psicanálise se dirige · hoje -especialmente contra Lacan.
De algum modo Freud está mais ou menos aceito, porque foi lavado
e enxaguado. Pois bem, como refutação do caráter exclusivamente
marginal, é preciso destacar que a psicanálise tem, do ideal das ciên­
cias, o intento de rigor lógico, o que é algo que a estrutura da dou­
trina psicanalítica compartilha com a ciência; mas, pelo exposto,
parece não estar inserida dentro do campo do que podemos chamar
ciência, seja esta positivista ou não. Vale dizer que tal afirmação
inclui também outras vertentes como a ciência na versão de Kuhn
ou na da epistemologia francesa produtivista-histórica. Para finalizar:
servir-se do mesmo estatuto de uma certa ordem - neste caso, a
científica - não implica submeter-se a essa ordem.

40
n
A LINGUAGEM, . O INCONSCIENTE -
· A CAUSA,
A PULSAÇÃO TEMPORAL

Na reunião anterior fizemos uma introdução geral ao Seminá­


rio 1 1 de Lacan, propondo algumas relações · possíveis entre os -
na sua opinião - quatro conceitos fundamentais da psicanálise.
Antes de começar a desenvolver com certa extensão o primeiro
destes conceitos fundamentais, o do inconsciente, gostaria de retomar
uma questão que ficou pendente a partir d� discussão tão interes­
sante suscitada na aula passada. Um debate realmente produtivo pela
participação de vocês, em torno da relação da psicanálise com à ciên·
eia. Pontuamos como Lacan indicava que a ordem da ciência tenta,
em . síntese, produzir o mesmo que a psicanálise, no seguinte aspj:Cto:
como o Real pode ser influenciado - além de induzido - pelo
Simbólico. Trata-se, claro, de uma leitura " tendenciosa " no melhor
sentido da palavra, porque procura dar conta da primazia da ordem
do Simbólico . sobre o Real . O que é discutível porque, enunciado as- •
sim, pode sugerir . uma redução do Real ao Simbólico, dado que é,
obviamente, falso. Entretanto, enquanto objetivo do que implica o
proceder da analista, o problema consiste em como se defrontar com
o Real pela via do Simbólico; dessa maneira se funda nossa práxis
e se legitima seu campo de operação.

Existe outro conceito importante, através do qual daríamos por


concluída esta rápida incursão pela articulação entre ciência e psi�a­
nálise : o do desejo do analista. De maneira alguma encontramos esta

41
idéia em Freud; pertence exclusivamente à produção de Lacan, que
lhe dará tanta relevância a ponto de postulá-la pivô da psicanálise.
Ou seja: que designa, centralmente, aquilo que autoriza a sustentação
de uma cura . Alguns pretendem - incorrendo com isso em um erro
crasso --, que este conceito responde , em Lacan, ao que outros auto­
res - a partir de Freud - denorninaram contratran'sferência. E , to­
davia, é preciso advertir que onde termina a conceitualização da contra­
transferência - no original : Gegenübertragung: transferência recípro­
ca 1 - aparece o desejo dó analista. O conceito de Freud assinala algo
do mesmo calibre, recíproco, imaginário. Onde termina a transferência
recíproca, então, começa a conceitualização de Lacan acerca do de­
sejo do analista. Graficamente, pode-se estabelecer um limite ideal:

contratransferência / desejo do analista

A contratransferência é aquilo que responde a partir do analista


fazendo obstáculo a sua escuta do analisando. Em troca, o desejo
do analista permite que a análise se desenvolva, se sustente, saia de
seus impasses : que possa - em resumo - circular. O desejo do ana­
lista combate, pois, a colitratransferência.

Não �e deve confundir o desejo do analista com o desejo de ser


analista;'nem . com o desejo de um analista em particular, com nome
e sobrenome. E, diz Lacah, uma f unção objetivável. Em todo caso se
poderia esclarecer que é o desejei dos analistas o de . ocupar esse lu­
gar tão singular · como é o de ser suporte das transferências dos ana­
lisandos.

No Seminário 8, intitulado A transferência 2 , nos assinala onde


se estabelece esse deseio do analista. Diz : "é um desejo mais forte,
é um desejo da morte ". Em forma um tanto crítica, significa que exis­
te uma dimensão desiderativa do analista - onde nos deparamos
com a sua específica sublimação - presente no fato de se propor a
tolerar um lugar semelhante . Há, em jogo, algo mais importante que
atender o desejo do Outro. Poder-se-ia dizer: Interessa ao analista,

1 . R. Harari, Tertura y abordaje del inconsciente, Buenos Aires, Trieb, 1977,


pp. 2 1 1-2.
2 . Ou, para sermos mais precisos : La transferencia en su disparidad subjetiva,
su pretendida siiuación, sus ercursiones técnicas ( inédito) ; a citação é �
aula de 8/3 /61.

42
antes de mais nada, responder ao desejo do ánalisi)ndo? Dado que o
desejo é o desejo do Outro, poderia se argumentar que é um desejo
como qualquer outro e, por isso mesmo, obsequioso. Mas a habili­
dade na direção da cura consistirá, pelo contrário, em não responder
a esse desejo, por esse desejo, do Outro, conquistando então a pos­
sibilidade de se articular · para sustentar o lugar de analista. Como
costumo dizer, quando se é psicanalista, se o é às vezes . J! que se
trata de um lugar - enquanto prática do Real - impossível. Não
se pode sustentá-lo todo o tempo, e é justamente pelos desfalecimentos
e pelo retomo a esse lugar, que o mesmo pode existir. Expresso de
outro modo : se o analista acredita todo o tempo que o é, poderia
afirmar que está apegado a uma crença de tipo paran6ide, devido à
questão megalômana em qu� se pode reconhecê-lo, e à correspondente
certeza na identidade com relàção a si mesmo. Se, por outro lado,
admite que a contratransferência faz obstáculo ao desejo do analista,
poderá voltar a se apegar a esse · desejo. Claro, como condição neces­
sária, ainda que não suficiente. ·

Os quatro discursos - sem nos determos no tema - também


permitem entender como o analista inevitavelmente ocupa --' além
do seu próprio - o lugar do discurso do Amo, o do Histérico e o
da Universidade . ó analista deseja paracer aquilo que não é, o que
não implica a subjetividade, nem aos afetos, e nem sequer a situar-se
como primeira pessoa que se encarrega do enunciado ""'."'"" quando se
" interpreta" a partir da contratransferência e se produzem somente
confissões que pouco ou riada têm a fazer na direção da cura ana­
lítica. · Porque, se o usamos como exceção, é devido a uma manobra
tática incluída numa estratégia.

O desejo do analista pressupõe uma estrutura da interpretação


na qual o analista se " submerge " ; assim, rtão mantém relação al­
guma com uma inefável, inobjetivável contratransferência afetiva. Esse
desejo é contrário à crença de que o analista deve instrumentar, deve
operar com os afetos, que só podem ter a ver com remanescentes · não
processados de sua própria análise, de sua didática, o que leva a pen­
sar, sem dúvida, que <l:idática não está " completa " ; em suma, os
contratransferencialistas fazem do de(eito, virtude. E isto, deonto­
logicamente . . .

Finalmente, para dar por provisoriamente terminada a questão


da ciência, podemos recordar que Lacan destacou que há algo deci-

43
sivo envolvendo a criação da psicanálise: o desejo de Freud. Eviden­
temente, articulado ao desejo da histérica . A esse respeito, vocês
devem ter notado que com referência a outro item da histeria, disse
- · segundo a grafia lacaniana: discours de l'Hystérique - discurso
do Histérico; isto, para evitar a equação simplista histeria-mulher. Esta
relação está ligada às origens da psicanálise, mas não com um sexo
biológico, longe disso. Para escrever a característica prioritária do
discurso do Histérico, recorremos ao seguinte materna (do Seminário
17, em diante) :

� _,,. S1
-a�S2
impotência

" O " histérico - como agente - se dirige a S1, um significante


Amo; para lhe perguntar ou indagar por um saber (S2) acerca do
objeto a. O sujeito barrado (S) corresponde não a . uma histérica,
mas a qualquer sujeito desejante que pergunta ao Amo por um su­
posto saber acerca do objeto . Este pequeno materna nos mostra porque
Lacan dirá discurso do Histérico, e não do obsessivo, do fóbico, ou
do tipo clínico que se nos ocorra . Não é uma questão nosográfica,
sobre perfis de patologias, mas uma atitude a respeito do laço dis­
cursivo em . jogo. Não importa, para tal fim, que " seja", por exemplo,
histérico · ou obsessivo; o que importa é que o dispositivo analítico
funcionê.''se funciona, deve histerizar o analisando, sem que se tra­
te de nenhum tipo de manobra em particular. Em virtude do desejo
do analista como suporte, com suas quedas, desfalecimentos etc, se
produz a histerificação do analisando, para além de sua patologia
singular. Assim, colocar-se-á na posição do questionador, do deman­
dante, o que · fica indicado pelo fato de ele ser, no materna, atra­
vessado por uma barra. Lacan manifesta que a origem da psicanálise
tenha sido o encontro do desejo de Freud e o deseio de suas histé-
, ricas, ainda que não se trate de Isabel de R. ou de Emrny de N. -
dessas histéricas em particular, mas da condição do Histérico que se
estrutura a partir de interrogar e questionar o Amo por seu saber.
Às vezes, inclusive, o ' Histérico procura desnudar a própria castra­
ção . do Amo com argumentos como: "- o que você diz não me
serve. Não é assim; você vem sempre · com o ·mesmo " : Esses tipos

44
de comentários têm pôr objetivo destituir o entronado saber que pr�
tende ter o Amo. Por isso têm ajudado, e ajudam grandemente à
história e ao progresso da psicanálise. Daí, então, que seja tão crucial ·
o homólogo desejo insatisfeito do Histérico - e, do ponto de vista
n
cronológico, das histéricas - para sustentar a inabitual " origem
de nossa disciplina.

Uma vez esclarecida - dentro dos limites do curso, é claro -


a questão da relaçãq entre ciência e psicanálise, começaremos pelo
primeiro conceito fundamental - o do inconsciente · - seguindo de
início a mesma ordem proposta por Lacan. Este é o conceito fun­
damental clássico da psicanálise, e lhes assinalei na vez passada que
não deveria ser adotado como único, já que p<;>r algum motivo, con­
testatoriamente, o Seminário com o qual nos · ocupamos postula qua­
tro. Vocês devem se lembrar como havíamos estipulado certos laços
entre eles, em termos tanto dessa espécie de hélice tipo ADN, como
de um quadrângulo com flechas. ·

Pois bem, até 1964 era bastante ousado falar do inconsciente


procurando dizer algo novo depois de Freud; ou seja, sustentar um
projeto que não consistisse em um procedimento meramente ecolá­
lico, reprodutivo, ingênuo . No encontro anterior apontei que todos
podemos enunciar facilmente características do inconsciente; segu­
ramente, as repetimos, acríticamente, em forma descritiva. Certa ver­
são wlgarizada do inconsciente já passou a sér hoje patrimônio do
homem medianamente culto . A questão consiste, então, em que co­
laboração original e produtiva · trouxe Lacan sobre esse conceito.

Em primeiro lugar podemos adiantar uma negativa: o incons- •


ciente não é algo primitivo, nem primordial. Tampouco é igual ao
subconsciente. Um exemplo desta última acepção pode ser encontrado
em um livro conhecido por muitos de nós : A Argentina do século
XXI, de Rodolfo Terragno, onde utiliza o termo subconsciente 8 •
Parece que o autor não ignora que se trata do inconsciente; portanto,
seria um lapso derivado da postura iluminista que tinge o livro todo.
Essa ótica tenta supor a existência de um subconsciente, que significa
uma consciência . apagadà e diminuída, empalidecida, à qual se pod�
ria superpor, ou dar como alternativa, a consciência. Por outro lado,
o termo conota que não se trata de uma instância ativa e eficaz,

3 . R. Terragno, op. cit., Buenos Aires, Sudamericana-Planeta, 1 98S, pp. 1 8-9.

45
mas de uma pouco poderosa. O que, sem dúvida, não condiz com a
idéia mais trágica e desgarrada do sujeito que cria a psicanálise, que
não é um pessimista, como dizem alguns, somente considera que o
sujeito não é dono de suas motivações. Tampouco abona a crença
de que vamos sempre em direção a um futuro promissor, embora
às vezes isso ocorra transitoriamente. Nesse sentido, Lacan era bas­
tante cético. Uma prova? Quando afirmou, em 1975, que um dos
efeitos de seu ensino era a demonstração de que não há progresso,
na medida que o que se ganha por um lado, se perde por outro •.
Mais uma maneira, finalmente, de levar em conta - lucidamente -
a castração.
A descoberta freudiana implica se notar a determinação cru­
cial, a força efetiva, que tem o que chamaremos inconsciente 5 • Con­
vém explicar o porquê de, aqui, suprimirmos o artigo o. Pode pa­
recer detalhista, mas devemos ter presente o lema de Freud: "Co­
meça-se por ceder nas palavras e . nunca se sabe onde se pode ter­
minar" . Opto, então, por inconsciente, em lugar de o inconsciente.
Parece-me - é também o critério de Etcheverry - que Das Un­
bewusste 6 , vertido precedido do artigo o, outorga um sentido bas­
tante diferente daquele que tem na versão sem este artigo. O qu.ê
da questão está na substantivação, na reificação que se produz quan­
do se diz o · inconsciente. Ao optar pela supressão do artigo, indico
que se poc!,e estar tomando certos aspectos, certas arestas, certos pon­
tos de vista, de um objeto, sem esgotar todas as· características do
mesmo. O inconsciente, por outro lado, evoca usualmente o fundo
de um saco onde jazem elementos, instintos, afetos. Muitos analis­
tas têm essas concepções estranhas, fundadas em uma idéia de algo
receptivo a sempre mais elementos que aumentam essa espécie de
depósito. O que é que Lacan destacará como traço fundamental do
inconsciente, para evitar essa . idéia desviada de · "mochila" ? O que
destaca já está em Freud, de modo qu� o que fez não foi mais que
pontuar com sagacidade e inteligência seüs textos. O conceito freu-

4 . J . . Lacan, "Conférences . . . ", cit., p. 37.


S . O autor opta, aqui, pela utilização do artigo neutro ( lo inconscien.te. em
lugar de el inconsciente ) , que não possuímos no português. À mera supres­
são do artigo, se passa, por um lado, a idéia que pretende o autor quanto
a não substantivação do inconsciente, mas traz, por outro, alguns proble­
mas como se verá no trecho da nota (7 ) . (N.T. )
6 . S. Freud, "Lo inconsciente", O.C., cit., t. XIV, pp. 153 e ss.

46
diano acerca da modalidade de existência do inco11-sciente é Gedanken:
pensamentos� Trata-se, portanto, de pensamentos inconscientes.
Se se diz subconsciente, infraconsêÍentê, e similares, é fácil pos­
tular, por sua vez, uma relação de hetérogeneidade entre o que essa
denominação denota, e a ,consciência. Por exemplo: os pensamentos
conscientes por um lado, os instintos brutais - "sub", "infra" -·
pelo outro. O que Lacan ressalta é que Freud sustentava uma relação
de homogeneidade entre essas ordens; assim, o que . é inconsciente não
é heteróclito com relação ao que é consciente. Existem regras ate­
nuadamente distintivas, mas não uma diferença de substância. · Esta
pontuação decisiva começa a pôr o acento num conceito que se abrirá
paralelamente ao desenvolvimento lacaniano: o de significante.
Assim, o capítulo do Seminário intitulado O inconsciente freu­
diano e o nosso, praticamente se inaugura com o clássico aforismo:
" O inconsciente está estruturado como uma linguagem". Proporei
al gumas mudanças neste enunciado. Em primeiro lugar suprimiremos
o artigo da expressão o inconsciente. Além do que, nosso idioma tem
um . matiz nada desprezível pelo qual lhe devemos agradecer, e do
qual carece o francês: a diferença entre ser e estar. E é o caso de
usá-la. Podemos, portanto, asseverar que é estruturado como uma
linguagem. Então, em vez de:_
" O inconsciente está estruturado como uma linguagem", dize•
mos que:
'' O que é inconsciente é �sfruturado como uma linguagem" 7

Pois bem, vamos ver como se forma aí um paradoxo; de fato,


a diferença habitual entre ser e est�r consiste . em que a transitorie­
dade é patrimônio do estar. A permanência, pelo contrário, patrimônio
do ser. Eis aqui o paradoxo: se transcrevo "está . . . ", isso sugere algo
terminado, que "já está ". Se em troca digo "é estruturado ", conota-se
a idéia de uma dinâmica, de um processamento. Ou seja, que ser e
estar invertem suas acepções típicas. E o mínimo que se deve reco•

7 . No original está : "Lo inconsciente e! estruturado como un lenguaje". A


solução adotada ( "O que é inconsciente . . . ") introduz, também ila primeira
parte da f6rmula, a problemática do ser e do estar que será discutida pelo
autor. Acreditamos, no entanto, que · a discussão quanto a essa problemá­
tica, referida à segunda parte da fórmula, fará . também por elucidar a
primeira. (N.T. )

47
lher como nota distintiva, elementar e fundamental acerca daquilo
que é inconsciente é essa referência à produtividade. Se traduzimos
" o que é inconsciente é estruturado como uma linguagem ", não se
trata de algo que, antes de o dizermos, já terminou. Resgato assim,
sobretudo, um elemento definidor que Lacan não deixa de destacar:
a sincronia do que é inconsciente. Sincronia como oposto a diacro­
nia, e não comei excludente. Sincronia quer dizer simultaneidade.
Sem chrónos, sem tempo. Do que foi _ dito se infere que a condução
da cura não se limita unicamente ao que já está estruturado enquanto
proveniente do pa,ssado remoto, diacrônico - ou seja, da ordem
do sucessivo. Ao sustentar que o que é inconsciente é estruturado, as­
sentamos a idéia de processamento no cerne das cadeias de significan­
tes, em lugar da idéia de um depósito concluído onde só nos resta,
como _práxis, extrair elementos do " fundo" . O " é '' ., neste caso, traz
consigo a postulação do espaço do presente como novidade possível .
Ao abordar o conceito de inconsciente, Lacan apontará - era
seu critério . nesse momento - que se há uma ciência piloto da qual
podemos adotar noções e métodos com vistas à construção de nossa
disciplina, essa é a lingüística . O que não implica , claro, que a psica­
nálise " seja " uma lingüística, eventualmente aplicada. Na reunião
anterior aludimos a este tema ao mencionar os empréstimos que o
próprio Freud destacava no começo de Pulsões e destinos das pulsões.
J! necessário tomá-los de outros campos para fundar uma ordem de
saber recém-começada. Lacan, inicialmente, apostou sua tentativa de
formalização pelo lado da lingüística, ao dizer " estruturado como
uma linguagem" . Não argumenta que o que é inconsciente é lingua­
gem, como querem lhe imputar. Mais precisamente destaca a relação
de " como uma" , onde há_ regras estruturais comuns ao inconsciente e
à linguagem ; uma homologia por meio da qual se podem inteligir os
mecanismos do inconsciente. A partir daí, tem sentido pensar na
dimensão estrutural do inconsciente, que, não é - repito - lingüística.
Cabe destacar, agora, uma objeção que escutei - e não pela
primeira vez - quando Lacan expôs esta temática em Caracas, em
1 980 . Um psicanalista venezuelano lhe replicava que, segundo Freud,
o que é inconsciente consiste em representações-coisa e o que é pré­
consciente em representações-palavra. Recriminava Lacan por ignorar
essa referência freudiana, reduzindo tudo estritamente à condição da
palavra. Parecia existir, de fato, uma diferença radical entre as duas
concepções (o que foi postulado por Freud se encontra no capítulo
VII de O inconsciente) . A réplica se apresentava como altamente coe­
rente, mas o problema é que esse psicanalista confundia significante
e palavra, e ninguém disse que são a mesma coisa.
O significante pode ser palavra, mas também tem - entre outras
alternativas - uma enca�ação corporal, como demonstra o sintoma.
Não é um significante - e uma cadeia significante - o que se en-carna
(se faz carne) ? 1!. o que se verifica quando Freud interpreta a dor no
peito de sua analisanda baseado em uma frase que dizia que certa
afronta fora vivida pbr ela como uma punhalada no coração. Outro
exemplo similar da mesma paciente - Cecilia M. - relata como uma
frase que ela suportou · foi como receber uma bofetada, o que lhe
provocou uma suposta "nevralgia do trigêmio" 8 • Pode-se arrolar uma
larguíssima lista possível destes significantes, os quais uma vez chamei
" sintagmas cristalizados" 9 • Cristalizam-se vários termos - de referên­
cia corporal - que guardam entre si uma relação solidária, e se encar­
nam. O mecanismo da conversão histérica circula desta maneira. Esse
significante, portanto, não é palavra nem no sentido de algo audível,
nem na ordem da interlocução. Pelo contrário, é uma maneira silen­
ciosa e censurada na qual algo busca dizer-se, mantendo todavia o
disfarce da conversão corporal. Mais precisamente, Freud diz que o
que é inconsciente - disto dá conta a esquizofrenia - se ocupa de
tratar a palavra como coisa. Trata-se, deste modo, a palavra em seu
estrito aspecto significante. A confusão surge, . na realidade, quando
se sustenta que o inconsciente está estruturado por imagens. Uma
concepção exclusivamente fantasmática daquilo que é inconsciente,
como é, por exemplo, a kleiniana. A partir desta perspectiva, estes
psicanalistas fazem uma crítica muito freqüente a Lacari, devido a uma
intelecção não muito bem processada a respeito do que implica a
diferenciação entre o conceito de significante e suas variadas mani­
festações fenomênicas . Insistirão, por isso, em que o que é inconsciente
são imagens, e o que é pré-consciente são palavras. Em troca Freud
màrca, como dizíamos, o que não é heteróclito: Assim, no capítulo V
de O inconsciente, escreverá que o próprio de tal instância é o proces­
so primário, o qual consiste em duas operações - deslocamento e
condensação - que se encontram também no funcionamento do que
8 . S. Freud, Estudios sobre la histeria, O.C., cit., t. II, pp. 1 8 8-94.
9 . R. Harari, El objeto de la operación dei psicólogo, 2. a edição, Buenos
Aires, Nueva Visión, 1976, pp, S3-62.
10 . S. Freud, O.C. cit., t. XIV, pp. 18S-86.

49
é pré-consciente, ainda que atenuadas 10 : Em nenhum momento disse
que essas operações se cancelam, ou que exista outro tipo de legali­
dade, que seja completamente outra. Se expressasse - como um mero
fenomenólogo - que se trata da imagem num caso e da palavra no
outro, se lhe apresentariam uma. série de dificuldades, pois é sabido
- os semiólogos a têm estudado bastante bem - que a imagem
apresenta alguns problemas insolúveis 11• Por exemplo: Por onde cortar
uma imagem? Qual é o caráter discreto, descontínuo, separável da
imagem? :8 que a imagem possui outra legalidade diferente da da
palavra, pela condição de indiscernível em seus próprios termos. Na
intuição imediata parece facilmente articulável : se divide, se cinde,
e se crê reconhecer os elementos últimos que a compõem . Estes, não
obstante, não têm nada a ver com os fonemas, que são objetiváveis,
que não dependem - como no caso da imagem - da perspectiva de
cada um. Então, como estruturar o indiscernível?

No inconsciente tampouco se· trata · de uma relação de mera homo­


fonia, vale dizer, entre palavras de sonoridade parecida. Muitos dos
exemplos · que se lê em Freud, e com os quais trabalhamos cotidiana­
mente em nossa clínica, são homofônicos . Outros não o são. Diante
disso se poderia cair na armadilha do significado ou, pelo contrário,
estabelecer ali outro tipo de conexão significante. Tomemos parci�l­
mente · o capítulo clássico, inicial - ao qual Lacan voltou tantas
vezes - de Psicopatologia da vida cotidiana. :8 aquele onde Freud
relata seu esquecimento no nome do pintor dos afrescos da catedral
de Orvieto; Luca Signorelli, recordando-se substitutivamente, em troca,
de Botticelli e de Boltraffio, sabendo de seu duplo equí'\'oco. Entre
Signorelli e Botticelli existe, evidentemente, homofonia, e isso contribui
para facilitar o aparecimento de um termo em lugar do outro. · Pois
bem, Botticelli também surge - na associação - por meio de um
lugar chamado B6snia (na realidade, Bósnia-Herzegovina). Herzegovi­
na e Botticelli não estão em relação de \homofonia, mas apesar disso
há conexão significante;

@gtticell i

�nia -------- Herzegovina

1 1 . Vários, Análisis de las imágenes, Buenos Aires, Tiempo Cont!mporáneo,


1973.

50
E mesmo que não haja conexão no estritamente homofônico, deve­
mos considerar a Bósnia-Herzegovina como um significante.

�ticelli

( �aia-Herzegovina ) : um significante

Existe aqui um . encadeamento pelo lado da contigüidade, o que


a partir da retórica - e nosso comentado a retoma - se denomina
metonímia. Este processo, este operador - afirma - é o mesmo que
Freud chamou de deslocamento.
Como se pode ver através destas poucas pontuações, o problema
do significane é bastante mais complexo que o contemplado a seu
respeito por Ferdinand De Saussure - quem começou com a ques­
tão - quando, em seu Curso de lingüística geral, assinalava que o
significante é a imagem acústica de uma palavra (ou signo) 12 • Esta
colocação traz consigo, do nosso ponto de vista, o problema do acústico
unido ao da imagem. Lacan, por sua parte, fará outra definição do
significante, bem mais estranha. Dirá: " S o que representa um sujeito
para outro significante".
Em nosso encontro anterior recordamos com, apesar de que este­
jamos acostumados às definições, Lacan é implacável em relação a
elas, demolindo-as com sentenças herméticas e, além de tudo - como
veremos - circulares e paradoxais.
Adverte-nos, nesse sentido, que não é que o sujeito possua signi­
ficantes situados naquele cul de sac a que antes nos referimos. Faz
notar, pelo contrário, que o suieito é efeito do significante. Para clareá­
lo, realiza um rodeio, fazendo alusão a O pensamento selvagem, de
Claude Lévi-Strauss. Vale a pena formular aqui uma pequena digres­
são. A obra citada por antropólogo se relaciona - no estilo conectivo
de Bósnia-Herzegovina - �m outro texto do mesmo autor: O tote­
mismo na atualidade 1 3 • Ambas as obras são, no meu entender, de
leitura imprescindível para todo · psicanalista. Alguns mais apressados
to�aram de O totemismo . . . somente a crítica que Lévi-Str�uss for-
12 . F. De Saussure, op. cit., pp. 129 e ss.
1 3 . C. Lévi-Strauss, op. cit., México, Fondo de Cultura Económica, 1964 e
1965, respectivamente.

St
mula a Totem e Tabu de Freud, onde consigna que o ali exposto é
errôneo, já que é algo sem referente verificável no antropológico.
Eis-nos aqui, não obstante, com o fato de que se pode pensar - e
Lacan nos ajuda a isso - que o exposto em Totem e Tabu não é
senão um mito primordial . Trata-se de clínica, não de antropologia e,
por isso, é um dado que retorna sistematicamente em nossa prática
cotidiana.

Voltando ao item que aqui nos interessa, digamos que Lévi­


Strauss demonstra, em O totemismo . . . , que é viável tomar elementos
da natureza - animais ou plantas - elevando-os à categoria de signi­
ficantes com a finalidade de organizar conjuntos. Por exemplo, se se
leva esse procedimento às estruturas de parentesco, se eu nasço de
tal pai e mãe, serei urso-branco. Se sou urso-branco, isso me outorga
um certo lugar em relação aos ursos-brancos e àqueles que não o são.
Quiçá me dê a possibilidade de, ou me force a, buscar uma mulher
dentro do próprio clã. Ou, ao contrário: se existe uma proibição em
tal sentido, me lance à exogamia. Portanto, existe um sistema de rela­
ções que preexiste ao nascimento do sujeito, colocando-o em um lugar
sem possibilidade de escapatória, porque são essas relações que o
constituem, modelando as suas próprias.

Há uma ordem significante logicamente anterior ao sujeito, que


"é admiti�a " nesse sistema; não é que o sujeito a incorpore, como
sustenta a problemática da aquisição da linguagem. Esta última temá­
tica pertence à psicologia evolutiva; não tem nada a ver com o que
implica a fundação de um sujeito pelo significante. Porque não dando
conta do sujeito como efeito do significante, se limita a assinalar
" inobjetavelmente" - como ele "aprende a falar " . O sujeito, então,
é o que representa um significante para outro significante - fórmula,
como se percebe, muito parecida à anterior . Conseqüentemente, sur­
gem definições relacionadas : a· do sujeito e a do significante. Não
poderia ser de outra maneira, pois o que se procura marcar é que
ambos se referem a uma ordem homogênea. Com a concepção. que
indicamos, se supera definitivamente o pensamento que se tem dentro
de si imagens, palavras, ou o que for, já que esta é uma referência
imaginária de quem se reconhece como um eu. Por outro lado, o
sujeito não é senão efeito do significante, uma vez que Outro - que
lhe pré-existe e, inapelavelmente, o chama - está tomado por essa
ordem. Para dizê-lo com Heidegger : não é que eu falo, mas que sou

52
falado. Creio que falo, mas quando o faço não tenho outro remédio . .
senão apelar a todas as convenções de uma linguagem que não criei
nem determinei. Se as modifico globalmente qu�to ao semântico e
ao sintático, muito provavelmente seja ao preço da esquizofrenia. Mas,
ledo engano! - também a esquizofrenia segue os lineamentos das
regras da linguagem ao criár, por exemplo, neologismos.
Existe um exemplo bastante gráfico do que Lacan quer demons­
trar quando marca � cisão entre o contar-se como alguém que está
integrando certo conjunto, está sendo por outro lado -- e ao mesmo
tempo - quem se reconhece dizendo isso. t o caso da criança que
afirma: "tenho três irmãos: Pablo, Ernesto e �u" . Ao nomear os três
irmãos pode-se sustentar qu� . se trata de um discurso de Outro.
Impõe-se aqui a discriminação a ser feita entre uma ordem do enun­
ciado e uma da enunciação, que entram de algum modo em colisão,
sem anular seu efeito de verdade : se contam os três, e há um que
conta. Vejamos outro exemplo de incorporações à linguagem; aquele
do " o nenê - dito por ele me�mo - . quer" tal coisa. Quando a
criança diz isso pode ser que esteja reproduzindo, pontualmente, algo
dito pela mãe ou pelo pai. Detecta-se, então, algo muito parecido com
o que muitas vezes se adverte na formação delirante da esquizofrenia,
quando aparecem coisas como " me leêm os pensamentos" ou "me
roubam os pensamentos". Efetivamente � assim, já que primordial­
mente são do Outro. Nesses casos o desmoronamento produziu a
perda da mesmidade, da identidade imaginária; portanto, é como se
os pensamentos " voltassem" a seu lugar de origem, ao campo do
Outro.
Em relação ao conceito de inconsciente há um ponto entre _todos
mais chamativo e subversivo - trata da subversão do sujeito - 14
que serve a _ Lacan como ponto de partida: ·o da causa. Aqui deve�se
seguir as intelecções ao pé da letra, trecho por trecho, e deter-se· muito
especialmente na discussão filosófica acerca da noção de causa por­
que, no meu entender, existem a respeito uma série de subentendidos
obstaculizadores. Farei duas referências acerca deste tema. (Tomando
um dicionário de filosofia; e lendo os verbetes sobre causa e causa­
lidade, terão um primeiro pan_orama mais detalhado dessa questão).

14 . J. Lacan, "Subversión del sujeto y dialéctica del deseo en el (lo) incons­


ciente freudiano", Escritos I, México, Siglo XXI, 1976, pp. 305-39.

53
O Seminário discrimina, em primeiro lugar, causa e lei . Destaca
que a respeito da lei não há maior inconveniente em afirmá-la. Quan­
do se coloca a idéia de causa, pelo contrário, sempre há algo que, no
meio, não funciona. Existe uma espécie dé elo perdido - o termo é
meu - que indica uma falha na inteligibilidade da causa. Aporta o
seguinte exemplo : o movimento, as fases da lua, incidem sobre as
.marés; são as causas destas . :e
algo sabido, que se pode reconhecer e
afirmar; todavia, pode aparecer alguém como Hume, que põe em abso­
luta dúvida a existência da causa. Ele dirá que existe uma conexão
entre dois fatos - um ocorre antes e o outro depois - mas daí a
assegurar que um engendra o outro implicaria cair em uma armadilha,
ratificada pela introdução do termo causa. Somente - conclui Hume
- há simples sucessividade.

A etiologia da histeria é um texto realmente notável para advertir


como Freud pensava a questão da causa. Em certas observações feitas
ao correr da pena, realizadas com aparente ingenuidade - na verda­
de, com um rigor considerável - ensina que os analisandos são
quase sempre vítimas de um raciocínio do estilo post hoc, ergo propter
hoc (depois de, portanto a causa de) , que é justamente ao que Hume
apontava. Costuma-se crer que porque houve um acontecimento b
depois de um a, então o a engendrou b . Nos analisandos se detecta isso
muito claramente, sobretudo q uando se trata de relações causais da­
quelas que não entram no código imaginário-simbólico da rei11idade .
Freud adianta, inclusive, que a susceptibilidade, a hiperirritabilidade
histérica, se produzem por uma defasagem entre _ causa e efeito.

Há três textos de Freud ' situados entre 1 895 e 1898 : o já citado,


A sexualidade na etiologia das neuroses e A herança e a etiologia das
neuroses 15 • Neles se pode comprovar como de modo simples e_ até às
vezes "médico " , Freud vai desfiando o que muitos anos depois Lacan
teorizará de maneira - admirável. Analisa,, a esse respeito, se há causas
acidentais, específicas, predisponentes, enfim, toda uma miríade de
causas possíveis . Mas o que mais interessa, a meti ver, é a passagem
em que Freud assegura que se deve conceber a causalidade como uma
árvore genealógica. Em símiles como esse, sem dúvida, se inscreve a
marca · do gênio. Uma árvore onde inclusive - vejam o que pensa -
se casam .entre si os membros de uma mesma família. Nesse esquema

1 5 . Em o.e., cit., t. III, pp. 141-56, 1 85-2 1 8 e 251-276.

54
prevê os enlaçamentos que podem haver entre os elementos. Foi diver­
tido para mim reencontrar isso depois de tantos anos, quando já havia
freqüentado a obra de . Lacan, porque o proposto por Freud é da ordem
do que ele primeiro trabalhou em, ou desde, a teoria de grafos 16 •
Fica assentado então, por trás do suposto candor freudiano, o caráter
determinante do sexual e, ' além disso, com um exemplo que admite
nada menos que a eventualidade do incesto. O texto é anterior a
qualquer alusão sobre o J!dipo, que se produz por volta de outubro
de 1 897. Freud estava elucidando a maneira em que joga a determi­
nação sexual, se bem que sua orientação era, à época, mais empirista
(a sedução da paciente quando pequena, o conseguinte montante de
excitação etc) ; em troca essa sexualidade, que inclui a possibilidade
que se casem entre si os membros de uma mesma família, é outra coisa,
sem dúvida, que a iniciai teoria da sedução;
O exposto são antecedentes que dizem muito mais - a meu
mo�o de ver - que as famosas séries complementares no que se
refere à maneira com que Freud inteligia a questão da causalidade.
No ensino universitário - salvo merit6rias exceções - se tende a
ler os capítulos respectivos das Lições introdut6rias à · psicanálise para
ilustrar a concepção freudiana de causalidade 17 • Entretanto, essa ma­
neira de pensar a causalidade através da árvore genealógica, já . p<>ssui
o que Lacan tematizará sustentando que não há causa senão daquilo
que manca. Ou seja, do que não anda bem, do .que não caminha; em
francês: ça ne marche pas. Emerge aí a dimensão da causa, junto com
uma 'pergunta: Que é o qU:e não caminha bem? Vamos matematizá-lo
desta maneira: A, notação por cujo intermédio Lacàn escreve o que
é inconsciente 1 8 •
Além de postular a dimensão da causa, a pergunta implica que o
que é inconsciente deve colocar-se em · relação à dimensão de hiancia.
Este é um neologismo criado por Tomás Segovia, o tradutor dos Escritos
de Lacan ao espanhol, para verter béance. O que existe e menciona
o dicionário é o termo hiato: - abertura, fenda. E do mesmo campo
semântico : há versos biantes,. onde se reconhecem cortes, hiàt_o s.
Relacionar causa e hiância comporta sustentar que o que é inconsciente

16 . R. Wilson, lntroducción a · la. teoria de grafos, Madrid, Alianza, 1 983,


pp. 64-82.
17 . S. Freud, op. cit., t. XVI, pp. 3 1 6-3 3 .
1 8 . J . Lacan, Seminário 10, L a angustia, cit., aula d e 1 3 / 1 /63 .

55
se situa na ordem do corte, da fenda e de seu conseqüente fecha­
�mento.
O fato é que uma das supostas ingenuidades de Freud - verda-
1d�iramente geniàis - argúi que a psicanálise tem por finalidade tapar
tacunas mnêmicas. :8 possível começar a expressar graficamente essa
#JJ.lma.ção do seguinte modo :

--------- -- - - - - - - -- - -------------
Em uma descontinuidade do tipo terra-lacuna-terra, a psicanálise
defenderia o estabelecimento de uma ordem contínua:

O tapar lacunas mnem1cas postula, como primeiró movimento


- tratando a palavra lacuna como signüicante literal, não metafóri­
co - a localização de determinados cortes; estamos aqui, então, ante
a hiância:

---------1 . ----- - � - -� - --- -1--------


Nestes lugares de corte se observa uma abertura, por onde se
filtra a ordem do desejo :

---1 --
d

A dimensão da causa aparece enquanto pergunta sobre o que


irrompe de forma surpreendente. Cabe recordar que se o que é incons­
ciente alude a um regime que resiste, seu aparecimento, portanto, não
é simples nem " direto " . Geralmente, surge provocando um efeito
de surpresa - como certa vez, recorda Lacan, destacou Theodor Reik

56
------------- -----------
Pulsação temporal

- o aniquilamento. () momento de abertura - onde a lacuna. o


corte, se produziram - se regula de acordo com uma pulsação tempo­
ral; com efeito, à abertura se sucede, de imediato, um fechamento:
A do que é inconsciente é uma presença fugaz. Por isso. de
· modo algwn pode ser concebida como uma espécie de segundo sen­
tido estendido, tal que autorize a condução da cura ao modo de um
pingue-pongue. Segundo esta concepção - comentada na aula an­
terior - o que é inconsciente está sempre oculto " debaixo " de toda
conduta, onde se encontra alojada a correspondente fantasia incons­
ciente; tipicame11te, é a abordagem kleiniana. Donde se conchd, por
hipótese, que tudo é interpretável.
Com mais pertinência e rigor, Lacan indica certos momentos de
cintilação, assinaláveis por meio de uma intervenção escandida, por
exemplo . Escansão é outro termo tomado da poética e da lingüística.
Consiste, por exemplo, na seguinte operação :

re-corte

Recorte é precisamente uma palavra que indica o que é escansão,


um .voltar a cortar. Uma escansão significa que o que é inconsciente
não é um co-sentido, nem um sentido co-extensivo, . p'resente todo o
tempo; não é outro sentido das palavras que ·serve ao analista para
jogar cóm elas, já que se relaciona com o fato de que, em primeiro
lugar, o sujeito fica como . que " atropelado " pelo significitnte. O sµjeito
não as tem todas consigo quando o campo do Outro faz sua aparição
sob a forma em que Lacan · chama aquilo que é inconsciente : . o
discurso do Outro. As vezes encontramos um erro bastante habitual : se
diz que o Outro é aquilo que é inconsciente. Não é assim, trata-se do

57
discurso do Outro. O Outro, em sua acepção estrita, ·,é o lugar do
tesouro dos significantes. A metáfora deve ser tomada ao pé da letra :
cabe pensar em uma grande caixa virtual onde " estão " os significan­
tes, ainda que - obviamente - não denote nenhuma parte empírica,
nenhuma res extensa, como diria Descartes.
Voltando à pulsação temporal, devemos insistir que é um mo­
mento de emergência onde se dá lugar ao que não marcha. "Não era
isso que eu queria dizer - dirá o analisando - porque me saiu
isso? Deve ser porque . . . " Logo, surgem as referências a todas as
causalidades que · possam lhe ocorrer; · as mesmas, de fato, que , têm
classificado de forma sistemática os filósofos. A colocação de Lacan
se apóia continuamente em Freud, asseverando que não é o que é
inconsciente que determina a neurose. Poder-se-ia dizer que a deter­
minam problemas de humor, ou algo relacionado com a biologia?
Não, pois o alcance da afirmação freudiana assinala que o .que faz o
que é inconsciente é mostrar a hiância
·· por onde a neurose se . coneêta
com algo da ordem do Real:

pulsação temporal
� - - ---------
d - Real

Então, o real do desejo. Tese que pode parecer herética, porque


em geral se enlaça o desejo_ ao significante, o qual não pertence ao
registro do Real, claro, mas ao do Simbólico. Todavia, é preciso
poder dar conta do porquê Freud disse, que o desejo é indestrutível
- uma caracterização escrita, · como que de passagem, em A interpre­
tação dos sonhos 1 9 • Se o desejo é indestrutível - Real como irredu­
tível - quer dizer que sobrevive ao . sujeito. Não é que esse sujeito
tenha seu desejo; o desejo é que o tem. Ainda que ele morra, o desejo
segue. Faz-se presente e continua em outros sujeitos, fato que, reme­
tendo-se à ordem . do ti-ansindividual, não . deve confundir-se com a

19 . O.C., cit., t. V, pp. 545-6.

58
reencarnação, a metempsicose, ou algo semelhante. Trata-se comente
de pensar o desejo enquanto desejo do Outro . De modo tal que quando
Lacan - em Função e campo da fala . . . - o que é inconsciente como
transindividual 20 , está afirmando precisamente que se interpõe aos
sujeitos, concebendo uma ordem não localizada nem localizável dentro
de cabeça alguma. Como rem�rca ironicamente em algum lugar : não
é como um pequeno homenzinho, um homúnculo, na cabeça . Dado
que implica uma- dimensão perdurável, o desejo possui as caracterís­
ticas de uma duração outra que as da biológica - de um indivíduo
particular.

Acerca da duração, Lacan posicionará também outro ponto: o


dos termos que constituem o que denomina o tempo lógico, contrário
ao da duração · (cronológica)·.
\
O -tempo lógico abarca:

1 . I nstante de ver
[2 . Tem.po p�ra compreen der
3 . Momento de concluir

Desta forma os expõe em O tempo lógico e a asserção de certeza


antecipada, texto incluído nos Escritcs 2 1 • Esse desenvolvimento é reto•
mado no Seminário 1 1 e em. muitas outras ocasiões . Para o Seminário,
a duração funda uma determinada coisa, já que uma coisa é aquilo
que permanece idêntico a si mesmo no curso de um certo tempo;
isto, claro, segundo uma definição muito elementar. Requer-se em
troca, um operador que dê .conta da pulsação, do latejar ou pestanejar,
do aparecimento desvanecedor do que é inconsciente, de uma maneira
que permita posicioná-la em uma dimensão temporal _ não coisista. Em
realidade, se a refletimos em termos da hiância causal, não se apre­
sentam maiores problemas para considerá-lo assim: é o trânsito entre
o instante de ver - a irrupção do acontecimento , dá formação que
aniquila - e o momento terminal, e do fechamento imediato, que
conhecemos como momento de concluir. A seguir virá o tempo para
compreender :

20 . Escritos 1, cit., p. 79.


21 . J. Lacan, op. cit., Escritos 1, pp. 21-36.

59
1 . Instante de ver
( : ! ��po de compreender
;

mento .de concluir


v

Aindã que aparentemente seja algo obtuso, esta concepção possui


conseqüências inestimáveis para à clínica; assim, por exemplo, sucede
no tocante à conceitualização da Durcharbeitung freudiana (elabora­
ção ou perlaboração) para além do famoso insight anglo-saxão. O
insight pode conotar o instante de ver - "visão interior" - mas,
como noção, chega a se utilizar enquanto fundamento de fatos tais
como a larga duração das sessões, posto que - dizem - assim o
analisando compreenderá aquilo · que · emergiu, que viu internamente.
Pelo contrário, Lacan ensina que um momento de concluir pode
precipitar o tempo para compreender. Ou seja: um corte da sessão,
por exemplo, pode favorecer, estimular e propiciar o tempo para
compreender, fora da sessão. De outro modo: a sessão não termina
com o corte da mesma; se sustentássemos o contrário, atenderíamos
somente ao tempo cronológico. A sessão segue e Freud o disse com
todas as letras : quando uma pessoa está em análise, é toda a sua
vida qúe está em relação com esta situação. Não se limita ao que se
passa nos clássicos cinqüenta minutos que, por outro lado, não res­
peitam o tempo do inconsciente. Quando a IPA recriminava Làcan
por fazer sessões curtas assinalando que não se devia fazer o que ele
fazia, respondeu: . "Façam como eu, não me imitem" . Como se observa,
uma aporia digna de sua perspicácia clínica para confrontar-se com
a demanda.
Costuma-se criticar as sessões curtas alegando que o que é incons­
ciente necessita tempo pâra espraiar-se. Cabe perguntar a respeito:
De que tempo se trata, do lógico ou do cronológico? Nesta diferença
se sustenta a importância do corte enquanto precipita a possibilidade
do · tempo para compreender. A outra . psicanálise funciona ao modo
de " como vamos terminar a sessão se o analisando ainda não com­
preendeu", o que transmite uma idéia obsessiva, simétrica, domesti­
cadora: a de que tudo, na ai,.álise, deve ser compreendido. Esta manei-

60
ra de pensar é tributária do discurso da Universidade. O que sucede
nessa ideologia é que a uma interpretação comovedora da posição
subjetiva do analisando, o tempo posterior - que, segundo dizem,
. permitiria a elaboração - consegue diretamente neutralizá-la ou este­
rilizá-la. :8 viável caracterizar o tempo que se quer dar à interpretação
para sua assimilação em função do que muito sagazmente Lacan cha­
mou o "horror do ato " , do ato do analista. :8 como se se pedissem
desculpas pelo dito, ainda que - ou porque - haja verbalizado algo ·
com efeito de verdade. Ocorre, então, um fenômeno de atenuação, de
sedação do efeito, beneficamente subversivo, determinado pela fala do
analista. A ênfase na elaboração assim entendida traz como conse­
qüência uma espécie de recordação pontual do analisando que, na
sessão seguinte, terá . presente, rememorará, fará todo um exercício que
tem tanto ou mais de aprendizagem de novos sentidos imaginários,
que de uma verdadeira análise. Nesta · situação, o analisando mani­
festará algo de um teor como o seguinte : "- Já sei tudo isso sobre
mim, mas veja como continua acontecendo igual " . Recordemos o que
nos ensinou Freud com o caso do pequeno Hans : uma boa análise
não se recorda. Se, pelo contrário, !!e crê que o objetivo consiste em
dar cada vez mais sentidos ao analisando - sentidos sobre sentidos -
a falida análise se reduz a permanecer na mesma dimensão neurótica
pela qual ele nos consulta. Na realidade, o problema se centra no
fato de que não é que lhe faltem sentidos, mas em que quer se con­
frontar com a possibilidade do sem-sentido, e é nesse esforço que
devemos aj1Jdá-lo. O tema da duração das sessões - do corte - vai
mais além das colocações sobre o montante de tempo; assim, se en­
contram praticantes defendendo que certas coisas não se interpretam
ao final da sessão porque, senão, o analisando se vai angustiado. :8
certo que se deve saber graduar a angústia : não é um exercício de
sadismo o que se tenta levar a cabo como psicanalista. Mas transfor­
mar . essa colocação numa lei universal reduz a psicanálise a um mero
. hábito tendente a guardar boas normas de urbanidade.
Se não se abala o estatuto do analisando, se instala uma pseudo­
análise, onde podem seguir-se anos e anos sem que nada se passe, exêe­
to o fato de ir recebendo mais e mais significados imaginários. Essa
tarefa terá um panorama - poder-se-ia dizer - um mapa · psicológico
excelente, mas é fala vazia, como assinala Lacan no Discurso de Roma12 •

22 . Denominação em gíria para "Función y campo de . . . ", cit.

61
Fala vazia, onde o analisando não está minimamente implicado nem
questionado em seu ser.

Questões

P.: . . .
R. : Perguntam-me se o que acabo de referir se articula unicamente
com o corte das sessões . Já antecipo que não. O problema consiste em
chegar a encontrar as razões, o porquê do corte enquanto recurso eficaz
do analista. Porque se deve aclarar em que o psicanalista funda sua
práxis - é, sem dúvida, o que Lacan coloca no Seminário - ques­
tionando cada um dos elementos que a compõe.
Há outros aspectos a atender. Um deles é o da matemagem, o
qual se encontra relacionado com a concepção do analista como conti­
nente : ou seja, aquele que está - como na relação estabelecida entre
mãe e filho - acolhendo, oferecendo uma espécie de cobertura a
quem se analisa. Por exemplo : uma analisanda considerava que " tinha
a semana completa " porque vinha à sessão às segundas, quartas e sextas­
feiras. Uma maneira em que procurei romper essa imaginarização con­
sistiu em cortar a periodicidade· - suspeitosamente " equilibrada" -
que avalia esse tipo de presunções 23 • A função do analista não é a
de ser continente mas, como dizia Lacan, a de ser semblante do objeto­
causa do desejo. Busca-se que o analisando possa articular-se a seu
desejo, · e não a novos sentidos . � por isso que, muitas vezes, procura­
mos - por que não - gerar o vazio próprio do objeto-causa do
desejo por meio do silêncio . Tende-se, em relação a um psicanalista
kleiniano, · a valorizar mais O· silêncio e, portanto, também a palavra ;
quando se fala é somente porque há algo a dizer. Um continente, por
outro lado, trata todo o tempo de pre,star contas do que disse o
analisando. Esta atitude não pertence somente aos kleinianos, mas
também às versões modernas da "psicologia do self" (por exemplo,
Heinz Kohut, tal como se depreende de seus livros Análise do self e
A restauração do si mesmo) . O kohutianismo, junto com a corrente
inspirada por Anna Freud, insiste em criar uma condição favorável,

23 . R. Harari, "El desengano . . . o el desamor", Discurrir el psicoanálisis,


Buenos Aires, Nueva Visión, 1986, pp. 182-90.

62
prévia à instalação do dispositivo analítico. A meu modo de ver, essa
linha se entronca com a temática dos cuidados matemos e da saúde
mental . Não se pode, não se deve esquecer a condição anglo-saxônica
de Margaret Ribble, de John Bowlby e de todos aqueles que trabalha­
ram no sentido de destacar a importância da mãe no que se refere ao
equilíbrio emocional do filho. Então, talvez seja uma linha válida
de elucidação da questão do laço possível a se estabelecer entre a
tendência empirista - sempre dominante "na ilha " e seus derivados
- e a maternageni chamada - quase ironicamente - "continente ".
Há aqueles em nosso país que também seguem esse caminho, no
sentido de atender a essa hipotética função materna de apanhar, cobrir
e proteger . Se logram desempenhar essa função conseguem, ao mesmo
tempo, a segura infantilização do analisando.

Quando se conduz uma cura e se aposta, ao modo lacaniano,


no tempo para compreender - e não na compreensão ao modo espe-
culativo - há uma ética em jogo. Ela Jnteligirá de outra maneira o
que podem ser os esquecimentos das sessões, dos "temas " - como
se costuma dizer - das mesmas . Porque a elaboração não passa,
ingenuamente, pelo fato de voltar e voltar a um determinado ponto.
Portanto, se houve elaboração, ou não, se saberá - como nos ensinou
a conceber Lacan - aprés-coup, a posteriori. Um dado · bastante essen­
cial sobre isso surge no discurso do analisando quando se dissipa, de
modo inesperado, uma problemática até então dramaticamente insis­
tente. Por exemplo quando comenta : "- Quanto tempo vim aqui
falar de . . . ! Era um grande problema para mim. Um bom dia, desa­
pareceu . Busco o que passou, o que você me disse, o que disse eu . . .
e, realmente, não sei . " Aí está o efeito analítico. Não é assim, em
troca, quando diz : " - Entendi que aquela vez, quando meu pai me
pegou, veio minha mãe, e . . . etc " . Demonstro isso in extremis para
que se capte que uma "elaboração " assim não tem outro destino que
o de servir para construir formosos castelos no ar.

P .: Poderia explicar o termo elaboração tal como aparece em


Freud, e o que diz Lacan a respeito?

R . : Convém ler Recordação, repetição e perlaboração 24 , de


Freud. Sobre o termo elaboração - traduzido, como já disse, de
. Durcharbeitung - cabe demarcar que se deve diferenciar do deno-

24 . S. Freud, op. cit., t. XII, pp. 145-57.

63
minado, na velha versão castelhana de Freud, " elaboração onírica '',
a qual se encontra como proposta de tradução de Traumarbeit (lite­
ralmente : trabalho do sonho). Não obstante, elaboração-perlaboração
também é um assunto de trabalho, claro que de outras conseqüên­
cias que as derivadas do mero fato de sonhar. Em definitivo, o dispo­
sitivo analítico consiste em pôr o analisando a trabalhar marcando-lhe
a regra da livre associação, sabendo de antemão que será transgredida.
Se centramos a pergunta no texto freudiano, são ressaltados três ele­
mentos: aqueles do título. Assim acontece também em Inibição, sin­
toma e angústia. O que implicam esses ligamentos? Lacan nos ensinou
a não processar esses conceitos separadamente, mas a · atender à trian­
gularização proposta.

Durcharbeitung, working-through, na versão inglesa; Lacan chega


a nomeá-la, por seu lado, como trabalho de transferência 25 • Se se
trata da triangulação relacional, não haveria que temer, na análise,
a possibilidade de substituição da recordação por esse modo de .repe­
tição em ato que se chama acting-out. O analisando repete e não
recorda, diz Freud; repete, inclusive, para não recordar. A respeito do
caráter de variância ou invariância, é mister destacar que um acting­
out abala o estatuto subjetivo muito mais que um sintoma. De modo,
se saberá sempre a posteriori, quando o analisando assinala: " - Como
fiz uma coisa assim? Não posso acreditar. Enquanto fazia, sabia qtie
não podi� parar. Era como se fosse outra pessoa" . Queira-se ou não
o sintoma vem ornado, investido, de toda uma série de sentidos e
relações causais imaginárias. Um modo de entender o trabalho de
transferência é ter em conta que pode haver transferência sem análise
- precisamente uma definição do acting-out, segundo Lacan. A res­
peito, a questão consiste em não trabalhar ao modo da outra psica­
nálise, que sanciona e penaliza o ac,ting-out, tanto na interpretação
como pondo limites ao que denomina ataque ao enquadre. Neste caso
há um uso, ou um abuso, da repressão, mas não precisamente da
conceitualização pela psicanálise.

A elaboração, em resumo, não é somente um problema de traba­


lho mental, já que, assim isolada, tem muito da ruminação obsessiva,
a partir de um ponto de vista cognitivo de busca de recordações. O

25 . J. Lacan, "La dirección de la cura y los princip:os de su poder", Escritos I,


· cit., p. 26 1 .

64
trabalho de transferência é o que permite triadizar a inevitável relação :
recordação, repetição e elaboração.
Por último, devemos ter em conta que o Outro é histórico; ao
mudar, tem gerado freqüentemente, de forma precipitada, uma vulgata
psicanalítica. Conseqüentemente, o problema pode se formular assim :
Como abalar o estatuto de · um sujeito sem cair na vulgata onde o
Outro já está basicamente neutralizado? Portanto, tendo presente o
fato de que não podemos definir a física de hoje com conceitos de
Newton - já que houve Einsten - pode--se fazer um paralelo, ao
apontar: depois do ensino de Lacan, não se pode seguir afirmando
que a prática analítica se mantém inalterável. O desejo de freud
abriu a problemática, mas hoje não podemos sustentar os termos da
mesma forma que quando ele surpreendia terrivelmente com uma
interpretação acerca do incesto . Através dos anos esses temas já pas­
saram a fazer parte até da divulgação periodística. A idéia é que retor­
ne algo de singularidade, e não da generalização desse Outro histó­
rico; então, bem pode retomar através de uma repetição em ato. :8
preciso situar de outro modo os termos, já que na versão usual a
recordação aparece como boa e a repetição em ato como má, patoló­
gica. Quando se leva isso à clínica implica, por conseguinte, uma
censura do acting-out. Este, eni suma, é esperável em toda a análise,
para além das dificuldades que cria. Finalmente, deve-se destacar a
passagem ao ato, como outra variante da ação, pormenorizada por
Lacan.
P . : Em relação ao que foi escrito por Freud acerca de pensar a
causalidade como uma árvore genealógica, e ao dito por Lacan de
que não há causa senão daquilo que não caminha bem . . . quando
um e outro aludem ao tema: A que tipo de caus�lidade se referem?

R.: No discurso manifesto de Freud pareceria que se trata de


entender, como um clínico, o que se passa com os pacientes, e porque
adoecem. Em Lacan, mais precisamente, a formulação se realiza em
torno do desejo daquele que se pergunta pela causa. Todavia é também
o desejo freudiano o que o faz interrogar-se para além desse post hoc,
ergo propter hoc, dessa mera sucessivida�e humeana dos aconteci­
mentos que os analisandos consideram relação causal . A partir dos
instrumentos que nos oferece Lacan, é possível concluir que ambos
se perguntam pelo mesmo, ou seja, pelo desejo daquele que se inter­
roga pela causa. Assim, veríamos consolidarem-se seus campos.
O tema da causa é crucial. Observem que se se considerasse que
o problema das neuroses é causado pela falta de certo hormônio, a
solução seria ministrá-lo aos pacientes. A causa define a terapêutica
em jogo. Se, pelo contrário, susteQto que haja uma dimensão causal
interlocutiva responsável pelo silenciamento de certos sintagmas crista­
lizados, então, para se obter efeitos curativos, falemos.
De acordo com o modo que se entende a causalidade, se estrutu­
rará um tipo determinado de assistência. Em Freud, a pergunta pela
causa coincide com a época em que intJ;"oduz o termo psicanálise,
dando conta já de uma prática diferente das consagradas pela medi­
cina. Sua busca se orientaya em como sustentar o . · desejo do analista
para além das causalidades médicas habituais, dos impasses consabi­
dos com os quais ·se defrontava a medicina ao pretender dar conta da
etiologia das perturbações chamadas "mentais" .
P. : Qual é a diferença entre passagem ao ato e acting-out?
R . : A questão é extensa. Vamos dar uma pequena volta. O Semi­
nário 10, A angústia, é um dos lugares onde se processa essa diferen­
ciação. Ali consta que a passagem ao ato consiste em uma queda com
abandono da cena. Por exemplo, no caso Dora, a bofetada que ela
dá no senhor K., sua fuga repentina e imediata é um abandono de
cena 26 • Este "cair" impede que a dimensão interlocutiva continue
em jogo. Uma típica passagem ao ato é o suicídio. No mesmo se pode
reconhecer, em momentos, . um atravessamento físico no abandono de
cena; assim, é muito usual a modalidade de suicida que participa da
dimensão conhecida como defenestração. Em sentido literal, implica o
jogar-se pela janela (a finestra) . ·Esse atravessamento do espaço com
aban4ono de cena, onde . ó sujeito se encontra identificado absoluta­
mente com o objeto a, é uma das maneiras pontuais de cair. Um
exemplo clássico de defenestração - não alcançada - é o da jovem
homossexual - mal sucedida paciente .' de Freud - que tenta suici-
dar-se quando se identifica . com o objeto a ante a censura do olhar
paterno 27• De todo modo deve-se precisar que neste caso há, certa­
mente, abandono de cena, mas também sucede que o pai da jovem
decide levá-la ante Freud para sua análise. Houve passagem ao ato,

26 . S. Freud, Fragmento de análisis de un caso de histeria, o.e., cit., t. VII ,


p. 87.
27 . S. Freud , Sobre la psicogénesis de un caso de . homosexualidad femenina,
o.e., cit., t. xvm, pp. 142 e 154-55.
66
mas também, aporeticamente, foi um acting-out 28 • Através do outro,
houve um modo de induzir a criação de uma situação analítica, com
a conseguinte pergunta.
Se o acting-out está relacionado com a motilidade, o está também
c.om certo desafio provoc�tivo, com uma inocultável dimensão agres­
siva. Não podemos deixar de pensá-lo, todavia, como um desfale­
cimento do desejo do analista, que deixa de operar de maneira corre­
ta. S como se o analisando dissesse: ":-- Isto que você não é capaz
de escutar, vou esfregar no seu nariz de tal modo que terá que se
interar; se não, não haverá forma com que possa sustentar seu lugar
de analista". Consiste ein uma demonstração provocativa, mas com
conservação da cena. Se é um acting-out ou uma passagem ao ato, o
analista sempre saberá depois, nunca por meio de uma descrição
fenomenológica. Definitivamente, é sempre uma dimensão de repeti-.
ção a que selará uma ou outra coisa, ou uma e outra coisa.
Finalmente, deveríamos articular certas notas do ato, tendo em
conta que Freud insistiu que o ato crucial é o ato falho. O ato falho
é, na realidade, o alcançado. S aquele por cujo intermédio se semi-diz
a verdade de um sujeito; é por ali que se coloca, se infiltra, a migalha
de verdade. Lacan chegará a nos dizer que o único ato não falho, no
sentido estrito, é a passagem ao ato do suicida, porque é · sem retomo
e sem polissemia. Fica ao "Sr. Juiz" , a carta final . Para além disso
é o ato perfeito, já que não tem outra alternativa e consegue encobrir
um significante em jogo que · representava o próprio sujeito, agora
identificado com o objeto a.
Haveria muito mais que falar sobre essa família conceituai, pas­
sando, por exemplo, pelos distintos históricos clínicos freudianos. São
conceitos novos, ein particular pelo resgate do aspecto positivizado do
acting-out. :e esse item que o confunde por completo a maneira de
entendê-lo a partir da perspectiva da análise e do ataque ao enquadre,
o que é destacado, decisivamente, pela psicanálise oficial.

28 . R . . Harari, "Caída de un querer", Discurrir . . . , cit., pp. 191-205.

67
Ill
NASSA E TIQm

Hoje começaremos com · uma pequena relocalização das questões


colocadas anteriormente, propondo um diagrama elementar, não topo­
lógico. Est.e esquema não é um · recorte, ao modo dos que Lacan
apresenta em seus últimos Seminários; é, simplesmente, um recurso
didático. Serve para limitar os campos abertos a partir da conceitua­
lização daquilo que é inconsciente e do segundo conceito fundamental
proposto no Seminário 1 1: o de repetição.
Repetiremos um gráfico, mas a repetição �. já podemos adiantar
um conceito de Lacan - não é reprodução do idêntico, mas uma
repetição com diferença. Na aula passada efetuamos um esquema refe­
rido à concepção de Freud acerca de que a psicanálise procura preen­
cher lacunas mnêmicas. O diagrama representava de perfil uma super­
fície de terra, um corte onde estaria a lacuna e a seguir, novamente,
un;ta superfície de terra:

-------· - - - -- - - - - - -- - -------
O esquema, aparentemente muito pueril, é no entanto suficiente­
mente preciso. De início marca que, em se tratando de pensar a · estru­
tura da prática analítica, são necessários, ao menos, três elementos:

69
-------
2
---------
3

Não se observa uma oscilação da presença de 1 e sua ausência,


através de 2 . O que se evidencia é o retomo de 1 em 3 . Como se ·
pode ver, não é um retorno pontual. Existe aqui a apresentação de
uma ordem descontínua; é o primeiro ponto a tomar em consideração.
A descontinuidade está marcada pelo aparecimento da lacuna - to­
mando literalmente o símil freudiano. Há, nisso, certa maneira de
introduzir o conceito de repetição; todavia, não me deterei nisso
agora. Aproveitarei, por outro lado, esta circunstânci� lacunar para
instrumentar o esquema que aparecerá mais adiante; aquele que Lacan
denomina de · nassa.
A nassa é um artifício de pesca, cuja estrutura pode se fechar e
se abrir. Consiste de uma espécie de funil e uma tampa móvel na par­
:e
te inferior. diferente � comenta Lacan - pensar na nassa como um
alforje. Se adotamos essa última, caímos em algo pelo que Lacan criti­
ca Freud : conceber o aparato psíquico como um sistema fechado, como
um saco de onde se vão tirando elementos, conteúdos, sentimentos,
instintos e/ou, enfim, objetos. Não existe esse saco. Làcan é preciso:
" . . . a ini11gem pode lhes prover da nassa que se entreabre, em cujo
fundo vai se realizar a pesca do peixe. Enquanto que, segundo a ima­
gem do alforje, o inconsciente é algo reservado, fechado no interior,
onde te,mos que penetrar, nós, a partir de fora " 1 • A nassa, portanto,
está em disjunção com a geometria do saco, própria do alforje :

Nassa V Alforje

A nassa conta com um dado crucial : 'o fato de abrir-se e fechar-se,


colocando�se como uma estrutura de bordas mutativas, onde se privi­
legia o furo. Procura representar, assim, um ponto que tratamos na
reunião passada: a pulsação temporal daquilo que é inconsciente.
Desse modo, esse conceito abarca todo o esquema, ao que poderíamos
denominar da nassa na lacuna :

1 . Los cuatro conceptos . . . , cit., p. 1 50.

70
2 3

pulsação temporal

O conceito de pulsação remete ao exemplo mais simples, o de


ritmo : presença de um impulso, ausência de impulso, presença de outro
impulso. A ausência não é infinita, pois o terceiro momento limita,
põe uma borda ao segundo. Pois bem, dizer pulsação temporal, em
certo sentido, é uma · espécie de redundância. Se a pulsação não se
desenvolvesse no tempo, não seria possível. Assim se pode entender
o modo pelo qual Lacan considerará o inconsciente: como um mo­
mento de abertura sucedido imediatamente por outro de fechamento :

abertura 1 :..__, hiância 2 3

pulsação .temporal

71
A lacuna mnêmica freudiana vai-se transformando nesse inter­
valo - assinalado pela nassa - que chamamos hiância. Cabe recordar
que esse era um termo, um neologismo, relacionado com o hiante, com
o verso dividido por hiatos. A hiância implica outra estrutura tripar�
tida, ligada com o vazio gerado relativamente à ação da causa. Lacan
assinalava que a causa é aquilo que sempre deixa algo sem poder ser
explicado, produzindo um intervalo. Entre a causa e seu efeito aparece
algo indeterminado, indefinido, um intervalo vazio. A isso denomina­
mos hiâncià. Já dissemos que é aqui on(fe Lacan coloca uma de suas
propostas mais originais, um de seus aportes inéditos sóbre o que é
inconsciente: o conceito de hiância. O efeito de corte, de intervalo e
abertura marcado pela hiância a assemelha ao · que é inconsciente
- por um lado - e à causa - pelo outro :

Inconsciente Causa
\ /
abertura . l -, hiância 2 r-- fechamento 3

Vacilação

pulsação temporal

A hiância é corte e também vacilação, porque o estatuto do su­


jeito se abala no momento em que se abre a nassa do inconsciente.
Fica em estado de vacilação : como dissemos, " atropelado " pela ordem
significante.:edessa forma que cai o estatuto de certeza do sujeito, o
1 ,
" eu sou o que sou 1 " eu sei como sou 11 , " eu digo somente o que

72
quero dizer " , " eu sei o que me passa " ; " quem melhor do que eu para
saber de mim mesmo " etc. Tudo isso se desmorona quando o aniqui­
lamento que provoca o aparecimento daquilo que é inconsciente barra
o sujeito quanto a sua certeza.
Já tenninada a últimá aula, foi importante para mim que um de
vocês, informalmente, me fizesse uma dessas perguntas que parecem
as mais simples e que são as . mais düíceis de responder : O que é in­
consciente? Este questionamento me permite mostrar que a hiância
é a via pela qual Lac�n transita, ante a pergunta sobre o · que é incons­
ciente, para afirmar um caráter do ser.

O que é? A pergunta alude ao que em filosofia se denomina


ontologia, ou seja, o capítulo que se refere ao ser. Então, o Seminário
colocará o que é inconsciente em um estatuto que não é nem do ser
nem do não ser. Dirá que é da ordem do não realizado . De outra
forma : o que é inconsciente nem é, nem não é, mas que - aprovei­
tando outra vez nossa língua - está em estado de realização. Por
isso o que é inconsciente é .estruturado como uma linguagem : traz
consigo uma afirmação referente ao ser, que se diz pelo ser com valor
de estar. Como temos indicado, há um paradoxo, uma inversão entre
o ser e o estar, ao se dizer de um modo ou de outro. A formulação
de que o que é inconsciente é estruturado como uma linguagem avalia
este estatuto daquilo que não é realizado, do sendo. Esta idéia é um
dos pontos que definem esse Seminário, o qual aclara, com relação
ao mencionado estatuto, que nada tem a ver com o irreal, o desreal,
ou algo que se lhe pareça. Ao significar aquilo que está em estado de
realização, denota que não conclui, nem concluirá. De tal modo esta
abertura - que reconhece, que convqca um fechamento - indica
que o que é inconsciente não é um ente concluso. A enorme implica­
ção clínica dessa concepção é óbvia: a psicanálise não consiste, então,
em uma análise da infância, ou daquilo que alguma vez ficou som­
brio. Ao contrário : se valoriza o caráter sincrônico da estrutura daqui­
lo que é inconsciente. Ao mesmo tempo isso responderá a uma per­
gunta surgida no Seminário acerca · de qual é a ontologia daquilo que
é inconsciente: não há ontologia, pois o que sustentamos é da ordem
da pré-ontologia. O estatuto daquilo que é inconsciente, portanto, é
pré-ontológico :

73
Inconsciente Causa
\ /
abertura 1 --, hiância 2 r fechamento 3

Pré-ontologia

Vacilação

pulsação temporal
Uma astúcia notável, própria da grandê cultura de Lacan, é · a
revelada por essa resposta. De algum modo, toma partido pcir o que
se tem denominado ontologia negativa, a qual é uma espécie de ho­
mólogo da teologia negativa . Para um teólogo negativo adjudicar a
Deus qualquer característica já é, por si, limitá-lo. Ainda que diga
que é onipotente ou onisciente, só o fato de predicar a Deus um traço
. distintivo é herético. Conseqüentemente, de acordo com essa vertente
da teologia,, Deus não é senão . inefável. · Como se pode deduzir, o
" negativa " hão comporta uma valoração hierárquica. A respeito · da
ontologia própria da hiância causal daquilo que é inconsciente, tra­
ta-se de apelar a um procedimento similar. O que é inconsciente não
são os instintos, nem tampouco determinados sentimentos. Não obs­
tante, existe uma definição particular que tomará com estrita orto­
doxia, respeitando o espírito freudiano : Kern unseres Wesens, ou seja,
" o núcleo do nosso ser", que "consiste em noções de desejos incons­
cientes ", segundo ensina a Interpretação dqs sonhos 2 •
Na definição de Freud aparece a questão do ser, sob uma enga­
nosa ontologia positiva, já qUé adjudica ao ser uma característica
positiva. Mas se apresenta um novo paradoxo_: a adjudicação deter­
mina um ser em falta. Se há desejo, é de algo que não está e que
não se tem. Desejo significa falta. Se isto é assim, se infere que através
dessa falta a pré-ontologia nos conduz a precisar que o que emerge

2 . 0.C., cit., t. V, p. S93 .

74
na hiância é o desejo. Em suma: o desejo consiste em uma estrutura
de falta, ou melhor - de acordo com outro conceito usual nos Escri­
tos - na " falta em ser " :

Inconsciente Causa
. \
abertura 1 -, hiância 2 , fechamento 3

P ré-ontologia
Desejo

Vacilação

pulsação temporal

O daquilo que é inconsciente não é um ser positivizado, é um


ser faltante. Esta circunstância temos que articulá-la com o fato de
que o ser . falante é um ser que, desde o começo - como já o des­
tacara Freud no Projeto de uma psicologia para neurólogos - se
enfrenta com o desvalimento, o qual não se refere simplesmente a
uma questão biológica. Há uma frase crucial inserida no Projeto,
onde consta que esse estado de desvalimento, de desamparo psíquico
e motriz, " é a fonte primordial de todos os motivos morais " 3 • Como
podem ver é·. uma definição forte, de enorme peso, a que elabora
acerca dessa condição inicial e de suas conseqüências ulteriores. Pelo
desamparo ficamos inevitavelmente ligados ao fato de nos atermos
a uma moral, sob pena - ao não obedecer a tais imperativos - de
retomar ao desamparo. O nascer em falta condiciona que a estrutura
faltante permaneça sistematicamente nessa condição, todo o tempo ;
por exemplo, o que lhe falta ao eu atual para alcançar o ideal deve
perdurar, para não sucumbir à mania . Podemos compreender que uma
visão dessas não seja tão puerilmente otimista quanto .outras que se
possa encontrar, mas acontece que somente a psicanálise leva em conta

3 . O.C., cit., t. I, p. 363, destacado no originai.

75
a limitação do ser falante que, devido a este desamparo, fala, pede
auxílio, depende. E ao falar, faz cultura. No esquema deve incluir-se,
de tal forma, a estrutura de falta :

Inconsciente

abertura 1 1
" hiância 2
/
Causa

rfechamento 3

Pré-ontologia
Desejo
Falta

Vacilação

pulsação tempqral

Acerca dessa irrupção da falta, dessa estrutui:a, Lacan recorrerá,


para aclarar a noção, a um jogo de palavras. Vocês recordarão o
Grundbegriff, o conceito fundamental, tal como o desenvolvemos na
primeira aula. Lacan, fazendo uma espécie de produtivo chiste teó­
rico, fará referência a um Unbegriff - literalmente, um não-conceito.
Explicará, seguidamente, que o de que se trata na hiância causal,
neste intervalo próprio daquilo que é inconsciente, não é tanto do
não-conceito, da falta de conceito, mas do conceito de falta, do fal­
tante, do que não está. O Unbegriff, portanto, é o que dá conta -
mediante este chiste também translingüístico, já que Un soa em fran­
cês com " um" - do conceito de falta, ou seja, aquilo que permite
colocar a condição pré-ontológica daquilo que é inconsciente. J!, então,
"Begriff do Um original, a saber, o corte" 4 •
Com o exposto fica demonstrada novamente a tarefa de depura­
ção epistêmica à qual Lacan destinou uma parte desse Seminário. Vai
desembaraçando o caminho de situações aparentemente subentendidas,
como as que costumam abrir-se frente a perguntas do tipo: O que é
inconsciente? Muito sagazmente, nesse caso, evita uma resposta que

4 . J. Lacan, Los cuatro conceptos . . . , cit., p. 54, destacado no original.

76
recorra à ontologia positiva, ao afirmar que o núcleo desse ser em
falta é o desejar. ComQ o desejo, por sua vez, comporta um ato -
posto que não é uma instância amordaçável - não há nada subcons­
ciente, mas uma ação eficaz; a daquilo que irrompe no momento do
:intervalo. O desejo, por out,ro lado, comporta um descobrimento :

Inconsciente Causa
abertura � ' hiância 2 � fechamento 3
--:,

· Pré-ontologia
Desejo
Falta

Vacilação

pulsação temporal
Este é ou tro conceito verdadeiramente freudiano . Localizamo-lo
no terceiro dos Três ensaios sobre a teoria sexual - Metamorfose da
puberdade - com o título : O Descobrimento do Objeto 1\ Ali se enun�
eia que todo encontro de objeto não é senão reencontro de algo que
se dá, ou não) perdido, e que . se crê recuperar no momento de seu
descobrimento. Do mesmo modo, o desejo descoberto passa imedia­
tamente a habitar a perda, devido ao fechamento daquilo que é in­
consciente. O que aqui está em jogo, homolpgicamente, é a recuperação
de alguma verdade do sujeito, nesse momento prévio ao fechamento .
Lacan sustentou sempre que sua divisa, sua tarefa e empenho,
era a de provocar o despertar dos seres falantes. Pois bem , é claro
que o que antecede ao despertar é o estado de dormir - obviamente,
do dormir de todos nós quando estamos despertos, vivendo um estado
fronteiriço com o sonho ·coletivo, onde as verdades próprias a cada
um ficam aletargadas. Poder-se-ia dizer que no momento da hiância
se encontra a meta lacaniana · do despertar? E que aqui, no momento

5 . S. Freud, o.e.. cit., t. VII; pp. 202-10.

77
do fechamento, se desvanece o despertar para dar lugar a um novo
dormir?
I nconsciente Causa
dormir \ /
abertura 1 --; hiância 2 1 fechamento 3
Pré-ontologia desvanece
Desejo
Falta
Descobrimento

1
Despertar

1Vacilação

pulsação temporal
Quando alguém dorme fisiologicamente, tem mais acesso ao real
do desejo que quando está desperto. Recordemos, a respeito, aquilo
dos sonhos como via régia de acesso ao que é inconsciente.
Há ainda duas notas mais para agregar à hiância. Uma delas já
foi destacada em outra oportunidade: consiste no inesperado, no sur- ·
preendente da irrupção. A outra se refere ao caráter evasivo do esta­
tuto daquilo que é inconsciente :
Inconsciente Causa
dormir
abertura 1
\ /
hiância .2 fechamento l
· Pré-ontologia
desvanece
Desejo
Falta
Descobrimento
. Despertar
Surpresa
Evasiva

Vacilação
pulsação temporal
78
Não se fala neste caso, claro, de um sujeito evasivo no sentido
fóbico. A estrutura daquilo que é inconsciente é em si mesma evasiva.
Nesse estado de pulsação - devemos atentar a esses deslizamentos
lacanianos : pulsação, vibração palpebral, síncope, já que todos aludem
a uma condição rítmica - brota o que é inconsciente, requerendo
pelo menos três tempos para poder marcar sua procedência e perti­
nência.

Para dar um corolário a algo tão crucial como o pré-ontológico,


nos surpreende com · um aforismo : o " estatuto daquilo que é incons­
ciente é ético, e não ôntico " 8 • Ao explicar tal afirmação, começa
assinalando que se poderia crer que ela aponta à sede de verdade que
animava a trajetória freudiana: Ao fato, portanto, de prosseguir suas
investigações e publicar suas descobertas para· além de convenciona­
lismos e tabus médicos e/ou sociais . 8 uma alternativa para entender
a dimensão ética, mas não o que interessava a Lacan. Porque se trata­
va, sobretudo, de indagar o aspecto não tanto da verdade, mas da
certeza.

A temática da verdade é crucial em todo o decurso do ensino laca­


niano. Em A coisa freudiana figura urna prosopopéia já célebre que
diz : " Eu, a verdade, falo" 7 • Em princípio, claro, a verdade não pode
ser 'capaz de falar por si mesma. Os rnaledicentes acreditaram, então,
que mediante esse recurso o autor . se auto-arrogava ser o que falava
em nome da verdade. Não era · assim realmente ; ele desejava dar a
entender que tudo o que a verdade po_de fazer é falar, que o que dela
se alcança, se obtém por meio da fala, em cujo leito se desliza.

A verdade se diz, rrias não se diz toda. Este foi um ponto que
destaquei nà aula passada, parcialmente. Agora convém nos deter­
mos um pouco mais . Para que algo possa chegar a ser dito, outra
coisa, por sua vez; tem que permanecer inevitavelmente não dita. 8
aqui onde aparece o registro do Real. A verdade é real, porque é
impossível de ser dita toda. Como assinalava Lacan - e muito habi­
tualmente se repete - o Real é o impossível . Aç, aparecer essa última
categoria, cabe perguntar-se em cada caso : Impossível de quê? Por
exemplo, de ser dito todo. Na reunião passada trouxemos a exame a
conhecida argúcia jurídica do: " Jura dizer toda a verdade?" . Quem
sustenta que sim, ainda que o faça com a melh_or boa fé, aposta no

6 . J. Lacan, ,Los cuatro conceptos . . . , cit., p. 45.

79
desconhecimento da verdade possível. Por que somente se pode semi­
dizer a verdade, dizer-se parcialmente, sem outra alternativa? Freud
esclarece essa temática como repressão primária: o impossível de
tornar alguma vez consciente. Porque é uma impossibilidade que ra­
dica não numa deficiência da psicanálise ou do psicanalista, mas
naquilo que garante a possibilidade de existência do aparato psíquico,
que permite a separação de seus sistemas. A repressão primária é,
em Freud, o requisito sine qua non da constituição do aparato psíquico.
Voltando a Lacan: é no que poderíamos chamar a verdade na
certeza manifestada como dúvida, onde se estabelece essa particular
ética daquilo que é inconsciente.
Em A interpretação dos sonhos - comenta - Freud introduz
o caráter substantivo da dúvida, ao consignar que a mesma consiste
no melhor indicador para captar uma certeza do sujeito. Quando
alguém duvida, algo resistencial começa a fazer ali um caminho. Por­
tanto, a dúvida não indica o pouco afirmado, o rejeitado . Pelo con­
trário, deve ser prestigiada. Lacan dirá: é como se Freud tivesse posto
a subscrição da dúvida. Esta referência nos remete ao capítulo VII
da Interpretação dos sonhos, na seção O esquecimento dos sonhos 8 ,
onde expõe o modo pelo qual se procura captar a certeza do sujeito.
Cabe reiterar que as certezas são aquelas onde quem sonha, preci- .
sarnente, d1,1vida, ou onde modifica traços do sonho num segundo re­
lato do mesmo. O empreendimento freudiano, desse modo, se revela
como de busca da certeza onde habita a verdade do sujeito, dita de
modo dúbio.
O estatuto daquilo que é inconsciente não é do ser, nem de UDla
ontologia positiva, nem tampouco de conteúdos predeterminados cain­
do ao fundo de um suposto alforje. Trata-se, pois, do atinente à ar­
deiµ da verdade, ordem reguladora, se e�as existem, da prática psica­
nalítica.
Entre o que é inconsciente e a causa - na medida em que con­
vergem na hiância - irá surgindo algo que assinalamos, de passagem,
em várias ocasiões: o objeto a.

7 . J. Lacan, "La cosa freudiana o sentido del retorno a Freud en psicoaná­


lisis", Escritos 1, cit., pp. 152 e ss.
8 . S. Freud, O.C., cit., t. V, pp. S07-26.

80
Todas estas questões requereriam uma exposição muito mais ex­
tensa que a proporcionada em só dez reuniões; no momento · limito-me
a apresentá-Ias de modo introdutório. Talvez possa operar, assim, co­
mo causa de desejo, conduzindo-os aos textos, aos quais não me pro­
ponho substituir. Conseqüentemente, concluiremos aqui, de forma pro­
visória, a conceitualização claquilo que é inconsciente.
Passaremos agora a um desenvolvimento apaixonante, sobretudo .
pelo caráter de concC?ito fundamental a que o elevou Lacan: o da re­
petição. Em uma primeira abordagem pode parecer surpreendente ni­
velar o conceito de repetição junto a outros inequivocamente maiores
- inconsciente, pulsão e transferência .

. Lacan realiza a introdução a esta problemática procurando dis­


criminar repetição de transferência. Um erro habitual do que temos
denominado aqui " a outra psicanálise " , é reduzir a transferência à
repetição. Frente a isso, adota um atalho diferente mediante uma es­
tratégia discursiva bastante clássica e congruente : começa fazendo
uma crítica epistemológica desta concepção tradicional.
O trajeto começa se apoiando em dois textos fundamentais de
Freud: o já citado Recordação, repetição e elaboração (perlaboração)
e Mais além do princípio do prazer 9 • Quanto ao primeiro, cabe rei­
terar que traduzirá Durcharbeitung (elaboração, perlaboração) como
trabalho de transferência. Segundo temos visto, é aquilo que sucede
na análise, onde se trata não somente do instante de ver - do insight
- mas também do tempo para compreender, advindo, muitas vezes,
a posteriori do momento de concluir. O trabalho de transferência per­
mitirá que o que surja na análise não fique como · "um mero instante
de abertura e fechamento daquilo que é inconsciente, mas como um
empurrão tendente a modificar a posição subjetiva do analisando. Ar­
ticulará o texto citado com Mais além do princípio do prazer, trabalho
no qual é introduzida a pulsão de morte junto à compulsão de repe­
tição. De minha parte, agrego a essa lista O sinistro (vertido erronea­
mente como O azarado, na nova versão castelhana) 10, onde se pode
entrever, em Freud, de que tipo de repetição daria conta Lacan anos
mais tarde.

9. o.e., cit., t. XVIII, pp. 3-62.


10. o.e., cit., t. XVII, p. 2 1 s .

81
A aproximação lacaniana a Mais além . . . centra-se especialmen­
te no capítulo V do texto. Para completar o desenvolvimento, deve-se
processar, a meu juízo, o conceito de compulsão de destino, que apa­
rece ao final do capítulo I I I ; essas são passagens definidoras para
apreender a proposta de Lacan acerca da repetição. Em primeiro lu­
gar, então, marca uma discriminação entre retorno e rep.etição.

Retorno Repetição

Recorramos à tradição freudiana. Onde encontramos em Freud o


termo retomo? A resposta é óbvia : no retorno do reprimido. Se ape­
lamos ao mesmo recurso a respeito da repetição, ela se nos apresenta
como · compulsão de repetição :

Retomo Repetição

(do reprimido) (compulsão de)

Aqui se deduz a diferença determinante que se quer estabelecer.


No retomo trata-se - nos diz Lacan - . do caráter aberto ou fechado
dos circuito.s. Ao recorrer a esta explicação, parece tomar, de forma
implícita, elementos da teoria de grafos, a qual procura plasmar em
um diagrama certos processos . Para ilustrá-lo, desenharemos uma sim­
ples união de três vértices, mediante duas arestas, e indicando uma

_,
direção :

Aqui há uma trajetória, um sentido. Os vértices se unem de


determinada maneira e não de óutra determinando as arestas res­
pectivas enquanto dadas em certa ordem. l! um circuito aberto, já
que não se estabelece o retorno que define o caráter fechado de um
circuito. Um circuito no sentido estrito é o que fecha. Por exemplo,

82
acontece assim se ao gráfico anterior acrescento um vértice instigador
do retorno:

D
....,_____...

A partir desse exemplo se poderia delinear a repetição como


uma estrutura de retomo, no sentido em que ficaria evidenciada, por­
tanto, uma espécie de reprodução. Este é, precisamente, o ponto onde
se localiza o erro da outra psicanálise, que concebe a repetição como
reprodução. Assim, quando a transferência é interpretada como a exa­
ta reprodução de um_ passado que se verte sobre o presente, se tema­
tiza a idéia de um circuito fechado. O retomo tem um ·caráter repro­
dutivo, o que faz pensar a clínica psicanalítica, fundamentalmente,
em termos de uma rememoração :

Retorno Repetição
(do reprimido) ( compulsão de)
Reprodutivo
Rememoração

Esta interpretação pareceria congruente com o título de Freud:


Recordação, repetição e trabalho de transferência. A ênfase na reme­
moração nos evoca as épocas pioneiras da psicanálise, · aquelas que
Hollywood · tem explorado de maneira tão frutífera. Aparece a recor­
dação, se produz a catarse, e a cura advém. Oxalá fosse assim, mas
isso somente acontece nci cinema. Ainda que a vida tenda a se parecer
à arte, há alguns limites; dificilmente a psicanálise possa consistir-se
em algo tão simples como essas rememorações com descarga afetiva,
prantos etc. Na realidade não é senão uma maneh-a imaginária de
pretender dar conta da clínica analítica; fundada no descobrimento

83
de alguma recordação que - presumivelmente - permita restituir
a continuidade mnêmica de um sujeito. Ao nos referirmos ao mnêmi­
co, queira-se ou não, nos remetemos à dimensão do passado. A pró­
pria repetição conota uma refência ao passado, já que pareceria repe­
tir-se algo que aconteceu em algum momento e lugar. Daí só existe
um passo para chegar a pensar que o empreendimento analítico con­
duziria a tempos pretéritos. Lacan surpreenderá ao assentar uma
diferença entre rememoração e repetição, recorrendo a intelecções de
Kierkegaard :

Retorno Repetição ➔ Kierkegaard


( do reprimido) (Compulsão de)
Reprodutivo
Rememoração

Existe um livro de Sõren Kierkegaard intitulado La repetición,


publicado em espanhol pela editorial Guadarrama. E. um texto bem
pouco acadêmico , posto que não se trata de uma árida exposição fi­
losófica, mas de um discurso dialogal, epistolar . Esse trabalho de
Kierkegaard, Lacan toma como pretexto para colocar o filósofo di­
namarquês çomo precursor conceituai - do tema da repetição. Quando
Freud estabelece, por sua vez, esta questão, não faria mais que pôr
em ato os lineamentos discursivos d!) " mais agudo dos investigadores
da alma humana antes dele " 1 1 •
Se a repetição fosse mera rememoração, como é possível que
Freud advertisse que nada pode ser conjurado in absentia ou in ef­
figie 12 (em ausência ou de modo estatuário) ? Não é a efígie o que
pode oferecer testemunho do que acontece na repetição ; e sim na
rememoração, na qual não interessa a 'relação transferencial com
o analista. Ali o decisivo é o · descobrimento de uma recordação
que parece estar in absentia; não se situa em uma repetição em
ato . Nesse sentido, a advertência freudiana alude, nem mais nem
menos, à dinâmica da transferência. Ao mesmo tempo, dá conta
de que esta é o marco primordial por onde circula a psicanálise. Re-

1 1 . J. Lacan, Los cuatro conceptos . . . , cit., p. 70.


1 2 . S. Freud, "La dinámica de la transferencia", O.C., cit., t. XII, p. 10S.

84
cordemos que Lacan - em uma de suas raras definições - se
referirá à transferência como " a realidade daquilo que é incons­
ciente posta em ato " . Realidade que, ademais, é sexual, segundo
estabelecemos na primeira aula.

De modo algum se pode prescindir, em nossa prática, da rea­


lidade daquilo que é inconsciente, posta em ato na relação psica­
nalítica. Por que? Porque entra em jogo uma dimensão relacionada
à ética do psicanalista.

Assim, dependendo da conceitualização que um analista faça


da transferência, será o modo em que dirigirá a cura. Mas, por outro
lado, de acordo com esta condução se forjará um determinado con­
ceito de transferência. Finalmente, defenderá tal ou qual conceito,
já que é o que parece surgir constantemente - na direção da cura de
seus analisandos. Aqui se pode ver .:_ para além do empirismo e do
nominalismo - como a questão gravita ao redor do desejo do ana­
lista. Porque a transferência não consiste no que ocorre quando duas
pessoas se dispõem a falar de algo ausente - in absentia - ou
tentam efetuar uma reprodução - in ejfigie - ou uma cópia de
algo originário e passado. No texto de Freud está claro : é uma
repetição em ato a que tem lugar quando está obstaculizada a re­
cordaçãc,. A Lacan importa precisamente o termo ato. Sobre isso,
dirá algo terminante : se há ato, é que existe, no mínimo, um roçar
de uma ponta do Real, por via significante. Isso significa que o
sujeito, ao interpor-se a um ato, não sai dali tal como entrou. O
ato consiste em uma experiência de mutação em sua posição subje­
tiva, como costuma acontecer em momentos de estancamento onde
" não passa nada" . Em algum nível, efetivamente, não "passa " o
que logo depois - eventualmente __: pode passar . Já assinalamos
que uma . análise não dá testemunho de um progresso contínuo, mas
que abarca movimentos de ida e volta, completamente inevitáveis.
Quando está para cair um bastião, um baluarte importante - dizia
Freud - do analisando, nessa precisa ocasiãb aumenta a . resistência.
Podemos dizer · que a neurose resiste atrayés da manutenção do sin­
toma, já que este é cumprimento, •ainda que parcial, de desejos; daí
que tenda a incentivar a resistência. Se fôssemos médicos, diríamos _
talvez de uni modo banalmente clínico : este paciente está cada vez
pior. Mas não é isso o nodal para nós, claro.

85
Assim como Lacan faz uma referência a Kierkegaard, também
cita um filósofo cuja obra leu muito detida e proveitosamente: Aris­
tóteles :

Retorno Repetição � Kierkegaard


( do reprimido) (compulsão de)

Reprodutivo �ristóteles
Rememoração

Ante esses recursos, alguém poderá se perguntar de novo onde


está a clínica, já que parece tratar-se de uma psicanálise filosófica.
Citações e idéias de filósofos: O que é que têm a ver com a psica­
nálise? A quem tiver essa impressão, deveríamos convidá-lo a ler
os textos de Freud para advertir - como o tem destacado Paul Lau­
rent Assoun em seu livro Freud, a filosofia e os filósofos 1 3 - que
quando o pai da psicanálise lança alguma concepção magna, quando
"retorce " a teoria e a reacomoda repentinamente, sempre tenta fun­
dar ·o dito em um Vorgiinger: um precursor, um antecessor. :t como
se nos dissesse : isso não ocorre em mim, mas me antecede, respal­
dando-me, certo grande personagem. Em geral, estes são filósofos.
Se alguém- acreditasse que o filósofo é um sujeito que só está sentado
em um escritório elocubrando teorias estranhas, se diria que este de­
sígnio está divorciado totalmente da clínica analítica. Lacan, em
troca, aborda a respeito uma concepção bastante interessante: afir­
ma que essa investida não se firma em buscar a influência da filsofia
ou dos filósofos, mas em resgatar desse campo aquilo que à psicaná­
lise lhe pertence. Isso não consiste em, psicanalisar essas concepções:
trata-se de transpô-las à psicanálise para que fecundem nossa disci­
plina. Este procedimento implica retransformar a problemática filosó­
fica como tal, convertendo-a em uma interrogação congruente acerca
do estatuto do sujeito.
A circulação de Lacan pelas noções de incontáveis filósofos -
realmente era estonteante sua cultura - tem um sentido de apro­
veitamento e de uma fértil utilização. Não se reduz simplesmente a

13 . P.L. Assoun, Freud: A filosofia e os filósofos, Rio de Janeiro, Francisco


Alves, 1978, pp. 1 3 0 e ss.

86
recolher, de modo justapositivo, certas concepções. Por exemplo -
nisso estávamos - quando fala da repetição, recorre também a Aris­
tóteles . Toma os capítulos 3, 4, 5 e 6 do livro II da Física 1 4 - repa­
remos no insólito da escolha do texto - onde se encontra a noção
que fará as vezes de articulador entre inconsciente e repetição: a
causa, uma vez mais:

CAUSA

INCONSCIENTE
✓ "-...REPETIÇÃO

Como já destacamos, a considel'.ação lacaniana sobre a causa per­


tence, em princípio, a uma estrutura significante. Ao recorrer aos
capítulos citados da Física, nos deparamos com a problemática das
causas, no plural . Em resumo, a crítica dessas passagens figura em
qualquer manual de filosofia, onde se costuma consignar a classifica­
ção das causas em: eficiente, formal, material e final. Não me deterei
em sua consideração: somente remarcarei o que aponta Lacan: alude
a outras duas causas usualmente não consideradas no mesmo nível
que as citadas. São elas, precisamente, as que titulam o capítulo V
do Seminário 1 1. A primeira, recordem, é a Tiquê (em castelhano
Tujé), que vem do grego TP.X'/ e também tramditerada como Tyche.
Tiquê era a deusa da fortuna, ó correlato grego do fatum latino,
o destino. 1!, nem mais nem menos , uma representação do acaso com
o qual se confronta o "já escrito" de nossas vidas. Mas de um acaso
peculiar, posto que, psicanaliticamente, se coloca no lugar da causa.
De fato o Seminário, quando menciona a Tiquê, se refere à existência
de uma ordem acidental que serve de causa para o ser falante. E seu
autor se pergunta, congruentemente, como encontrá-la. Trata-se justa­
mente disso: a Tiquê se refere a um encontro, mas um encontro falho.
O que não quer dizer mau, fracassado, já que por ele próprio é semi­
dita a verdade do sujeito, homologamente ao ensinado sobre o ato
falho: que é, na realidade, um ato alcançado. Este desencontro -
encontro falho com o Real, dirá Lacan - é o que marca a ação da
Tiquê. Ela denota, então, o recurso conceituai para dar conta da re­
petição.

14 . Aristóteles, Física, Obras, Madrid, Aguilar, 1973, pp. 589-95.

87
Para exemplificar o exposto, podemos recorrer ao conceito de
compulsão de destino, tal como - segundo lhes antecipei - se inclui
no capítulo III de Mais além . ; . Como conceber o caso da pobre mu­
lher que viu adoecerem seus três maridos, tendo que assisti-los até a
morte? Porque é aceitável, está claro, pensar a repetição enquanto
fundada, baseada em determinada característica pessoal, que se supõe
como causadora do que se repete. Mas neste caso: 1! viável arriscar
que essa mulher buscou, na escolha de seus três maridos, um destino
de sofrida enfermeira e viúva? Ante nossa incredulidade, Freud nos
ratifica que se trata de repetição também neste caso. Repetiu . três
vezes ll mesma circunstância; aí há uma · repetição, produzida como
que ao acaso, o que está muito longe de ser a reiteração de uma de-
terminada conduta. · ·

Há outro exemplo de repetição inesperada em O sinistro, a qual


teve como sujeito o próprio Freud. Refere-se a algo que lhe ocorreu
estando . em uma pequena cidade da Itália - que até então lhe era
desconhecida - enquanto andava sem rumo fixo. Encontrou-se, de
repente, em uma ruela onde aguardavam, postadas às janelas, damas
de duvidosa reputação. Tentou distanciar-se do lugar dobrando a pri­
meira esquina e, quando acreditou que havia se distanciado o suficien­
te, foi dar no mesmo lugar. Alarmado por essa circunstância, se afastou
pelo lado oposto. Depois de umas tantas voltas e rodeios, somente
conseguiu .voltar ao mesmo lugar 15 • Repetiu como ao acaso.
Um exemplo cotidiano, que pode acontecer a qualquer de nós,
é o seguinte: tomo um coletivo, olho a passagem e termina em sete.
1! um número como tantos outros. Mas ao subir em outro coletivo
recebo outra passagem terminada em sete; o fato já é sugestivo. Se ·em
um terceiro coletivo - no mesmo dia - volta a ocorrer o mesmo,
já se poderia supor alguma força estranha que determina a repetição.
O que houve aqui senão puramente o acaso como causa? Mas cabe
se perguntar: Como causa de quê? Não 'foi, certamente, o acaso en­
quanto deusa da fortuna o que originou as três aparições praticamente
consecutivas do número sete. Tampouco foi o acaso a causa de minha
consternação. De que acaso se trata, então?
Vejamos outro exemplo: os pais de uma mulher morreram em
um �cidentê na estrada. Dez anos depois tem um noivo que pega a

I S . S. Freud, O.C., cit., pp. 236-7.

88
estrada, e morre em outro acidente. Aparece outra vez a
Tique, a deusa da fortuna - da má fortuna, neste caso,
voca a morte de seus pais e de seu noivo em acidentes de
Acaso como causa é a Tiquê; não obstante,- não é o que fez, po:.
oculto desígnio, que morressem os pais e o noivo. Tampouco . "'"e
algum desejo onipotente da . mulher. A causa corresponde a que, nesse
momento da repetição do acidente, ela é " tomada" por essa circuns­
tância. Sua pergunta é: Por que me passa isso? Seguramente fatos co­
mo os relatados origi.naram a criação de uma deusa · como a Tiquê,
ou como Nêmesis - deusa da vingança, ou às vezes, da justiça.
A articulação inteligente, sagaz, que faz Lacan acerca da repe­
tição como ao acaso, indica que não consiste em uma reprodução
de traços estáveis, de signos da conduta, de maneiras de pensar ou
ver o mundo; mais precisamente, são circunstâncias surpreendentes,
desconcertantes, ameaçadoras, as que entram em jogo. Estes fatos têm
o caráter, sem dúvida, de atropelar o sujeito; ainda que, nesta ocasião,
o que acometa não seja uma constelação significante que retoma do
reprimido, mas um encontro. Há algo que . retorna do Real, que volta
sempre ao mesmo lugar em termos de um encontro falho, abalando o
estatuto subjetivo e abrindo a hiância por onde irrompe a interroga•
ção: por que justamente comigo passa essa fatalidade? Em uma refe­
rência assim, de índole paranóica, pode-se ver, então, a "presença " da
Tique, dimensão onde se encontra um núcleo dó Real.

Para circunscrever a conceitualização da Tiquê, devemos men­


cionar paralelamente, o Autômaton. Este recobre a ação da Tiquê a
partir do âmbito do automatismo, em termos de uma espécie de
cálculo probabilístico sobre a possibilidade reprodutiva-não reprodu­
tiva. Portanto, existe uma margem de indeterminação própria daquilo
que faz essa ordem. O Autômaton contribui na estipulação do " dor­
mir " imaginário-simbólico, o qual, repentinamente, sofre uma violen­
ta comoção por obra do núcleo do Real operante na repetição (em
ato) . E. a repetição com seu impacto, com o encontro falho que ela
comporta, o que defronta decisivamente o sujeito com a experiência
do Real. Experiência de que trata definidoramente a psicanálise, en­
tendida como prática do ·. Real.

Em -geral se considera nossa tarefa conio se fosse unicamente uma


prática do Simbólico, uma modalidade de tradução do que diz o ana­
lisando, sem levar em conta que consta decisivamente de particulares,

89
de incontornáveis encontros com o Real. O conceito de encontro nos
remete novamente a Lacan, que enfatizava a qualidade subvertente
do mesmo, e sua conseguinte utilização para a direção da cura ana­
lítica.
Houve quem entendesse a repetição de outras maneiras . Por
exemplo, Daniel Lagache considerava que existe uma repetição da
nec�ssidade - circunstância biologicamente óbvia - e, fazendo um
jogo de palavras, apontava: há, correlativamente, uma necessidade da
repetição 16 • O problema consiste aqui na introdução do termo neces­
sidade. Ao falar da hiância causal nos apoiamos no desejo, não na
necessidade. O desejo é errante, não está vinculado a um objeto espe­
cífico. A necessidade, pelo contrário, só se realiza fixada a seu objeto.
Por exemplo, a necessidade alimentar. Há variação de alimentos, mas
deve-se comer algo que alimente, porque nem tudo é comestível. Mas,
qualquer coisa pode ser desejável. O hiato entre necessidade e desejo
é suficientemente marcado para advertir que não se trata da mesma
ordem. Falar de uma necessidade de repetição não pode ir além da
necessidade de manter um jogo de palavras. Em nosso nível de análise,
considerar a possibilidade de que haja uma repetição da necessidade
conota uma concepção reducionista, biologizante. O retorno se efetua,
mas - aqui se produz a diferença decisiva com a repetição como
acaso - a volta se regula segundo um ciclo. Ou seja, que é previ­
sível . O distintivo desse acaso, em troca, é a condição da imprevisi­
bilidade, da suposta arbitrariedade que assinala o decurso do repetido.
Lacan vai mostrando, com os diferentes exemplos oferecidos no
decorrer de seu ensino, que a repetição demanda o novo, o qual pa­
rece uma afirmação paradoxal; ainda que não seja, se atentarmos que
não há repetição que não seja com diferença. t muito importante este
dado porque o exemplo do próprio F�ud, que desenhamos anterior­
mente, indica a tendenciosa parcialidade de certa leitura - eu diria:
certa ideologia - centrada em um hipotético " medo à mudança" co­
mo causa da repetição. O exemplo, como vemos, enfatiza que a úni­
ca coisa que a repetição não quer é conservar uma situação estatica­
mente consolidada, sem escapatória. Cabe assinalar, no exemplo do
O sinistro, busca pela mudança, pela diferença. . Ali a situação era
quase claustrofobígena, um encerramento do qual não podia sair, por

1 6 . D. Lagache, La teoria de la transferencia, Buenos Aires, Nueva Visión,


1 975, pp. 121 e. ss.

90
mais que tentasse. Esse encerramento era o angustiante; de modo que
devemos ser bastante cautelosos com a exaltação do medo à mudança
como presumivelmente o mais . terrível para o ser falante.

Questões
P . : A respeito do tema da verdade que só pode ser semidita, isso
não me fica bem claro, remetendo-me a A instância da letra, onde
. Lacan fala do sujeito que acredita poder dizer a verdade nas entre­
linhas apesar da censura. Nesse texto coloca no lugar da verdade o
significado a que nunca se chega, já que é separado do significante
por uma barra intransponível. A partir daí diz, por um lado, que não
se pode dizer a verdade; pareceria que o fato de semidizer consistiria
em uma espécie de crença. Se vemos as diferenciações entre sujeito
do enunciado e da enunciação, ou sujeito daquilo que é inconsciente
e da certeza, não fica claro como se articula isso com esse suposto
semidizer da verdade.
R. : Em primeiro lugar não é que alguém se proponha a semi­
dizer a verdade; estamos falando de uma emergência não-volitiva. A
emergência da verdade se produz através de uma hiância causal. Em
segundo lugar, a aparente "verdade" do significado é outra; pois a
que nos convoca é a do sujeito daquilo que é inconsciente. E esta últi­
ma é detectada em, e por, a subscrição da dúvida,
P.: Mas quando Lacan assinala acreditar poder dizer a verdade
nas entrelinhas, parece que nessa cren'ça há uma certa pretensão, su­
posição de que está produzindo a verdade.
R.: Vou tratar de lhe responder fazendo um breve rodeio. Para
isso, partirei da utilização do nó borromeano para processar certos
conceitos de Lacan. Bém, sem dúvida existe uma série de desenvolvi­
mentos perfeitamente fecháveis em seu ensino. Todavia, não sou evo­
lucionista, j á · que não é demonstrável que tenha havido um forçoso
progresso em sua teoria, devido ao· qual, enquanto ia incubando algu­
mas concepções, abandonava outras, dando-as por caducas. Insisto
nisso porque atualmente certa tendência facilista considera vencidos
alguns textos de Lacan, " superados" por desenvolvimentos posteriores.
Para concretizar: A instância da letra 11, além de sua data ( 1 957) ,

1 7 . J. Lacan, "La instancia de la letra en el Oo) inconsciente o la razón desde


Freud", Escritos 1, cit., pp. ]79-2 1 3 ,

91
nada tem de obsolet9. Presentemente, estou convencido de que os nós
que propõe ao final do seu ensino · permitem, estruturalmente, esclare­
cer certas questões de textos -:"". algumas conceitualizações que pa­
recem, a princípio, contraditórias ou confusas.

:8 certo que se refere com diferentes termos à relação da cadeia


significante com suas produções, seus efeitos. Falará do significado,
por um lado. Junto a esse também fará referência à significância. Mas,
além disso, dará conta de efeitos de sentido. Em algumas passagens,
recomenda romper ao efeito de sentido. Em outra circunstância as­
sinalará que o que interessa é a significância, ou seja, a singularização
fundada no desejo de · um sujeito, a diferenciar da s�gnificação le�
xical, a do dicionário.
Aberto sincronicamente o campo da problemática - .o qual se
aplica também, certamente, à obrà de Freud - não existem opiniões
caducas que deixam lugar a concepções modernas. Se · somos con­
gruentes com a afirmação de que não há progr�sso, poderia se situar
o significado cotidiano, o sentido, na região do nó borromeano que
liga o Imaginário e o Simbólico. Qu�nto ao efeito de sentido, que vai

92
além do dito lexical - quando, por exemplo, uma interpretação pro­
voca a emergência de um Real impensado - pode-se situá-lo entre
o Imaginário e o Real. Por último, na singularidade de que dá conta
a significância consiste o motivo para colocá-la na zona que articula
.o Simbólico com o Real :

Sobre a significância, é necessário aclarar que se trata de um


termo postulado para que o de sentido ou significado possa contar
com uma alternativa, na medida em que este último é aquele que
pertence a uma classe (em sentido lógico) .

Por outro lado, já que nos temos outorgado a possibilidade de


usar o nó, podemos aplicá-lo à intelecção de outro trabalho, tam­
bém aludido, onde se provoca a junção de recordação, repetição
e trabalho de transferência. Como tentamos demonstrar, são termos
aparentados, que por algo se encontram situados em uma seqüên�
eia, segundo um modo de relação articulante. As posições no nó se­
riam as seguintes:

93
Trabalho ) ·

"'
de
transferênçia

Bem, todo este rodeio nos leva novamente ao ponto de partida


da pergunta: a verdade que não pode ser senão semidita. Haveria
que pensar de que maneira se poderia articular em um nó, já que me­
todologicamente é uma alternativa sumamente útil. Permite não des­
perdiçar · conceitos, ao considerá-los apressadamente contraditórios ou,
pior ainda, antigos. Há muitas dessas contradições supostamente anti­
gas · que são na realidade verazes e fecundas. Ao mesmo tempo, até
permitem suportar as contradições que, em muitas ocasiões parecem
se apresentar na obra de Lacan . O que se consegue é superar con­
fusões entre cliferentes registros. O nó borromeano é - nos recorda
Lacan -. escriturariamente real. Convém pensar a partir do, e no,
nó borromeano, a problemática psicanalítica, o que permite eludir
juízos terminantes e desqualificatórios ao ir levando as questões atra­
vés de ligações diversas e válidas.
Se Lacan afirma em certo texto : não há metalinguagem, e em
outra passagem pode-se ler que em alguns casos há metalinguagem,
pqde-se pensar que estamos frente a uma contradição ou de uma

94
mudança de idéia. Mas também cabe outra possibilidade. A partir de
onde não há metalinguagem? Onde não há esta linguagem especial
que falará · com um Outro do Outro, acerca da língua comum? Lacan
sustentará esta última afirmação enquanto enunciado que diz do Real .
Aí. não há metalinguagem. Todavia; no registro Imaginário, sim, é pos­
sível metalinguagem. ·

Os diferentes registros devem atender-se em todo momento, pa­


ra advertir que não se trata de enunciados contraditórios nem supe­
radores um do outro·. A questão consiste em situá-los em relação a
cada registro em particular. Por exemplo, há um plano onde se con­
fundem transferência e repetição : o do Imaginário. l! por isso, jus­
tamente, que existe uma transferência simbólica que é imprescindível
discriminar da transferência imaginária. Se não se transcende a dimen­
são imaginária, se dão-se êomo sinônimos ambos os conceitos, se
caracteriza a transferência como repetição, entendi4a esta última como
reprodução do idêntico.

A atenção aos registros mediante o uso dos nós não é uma pos­
tulação retorcida; é uma possibilidade de superar, de atravessar o re­
gistro do Imaginário, no qual a vivência clínica, muitas vezes, dá
motivo para que nos enganemos. A apresentação dos nós é um convite
a que certos conceitos sejam trabalhados de acordo com eles. Creio
que muitas das supostas incompatibilidades, forjadas à luz da expe­
riência clíníca, possam ser elucidadas utilizando. estas concepções.

9S
IV
TRAUMA OU ESTÁGIOS? - REPETIÇÃO
E ESCOPICIDADE

Hoje continuaremos com a função da repetição, que começamos


a desembaraçar na aula anterior. Faremos um pequeno racconto para
ressituar a problemática que vínhamos trabalhando.
Em primeiro lugar é válido recordar que a questão se colocava
em termos de um conceito novo introduzido por Lacan : o de encontro.
Cabe esclarecer que se trata de um encontro não planificado, não ao
modo de uma entrevista na qual aqueles que participam programam
ver-se frente a frente; não é pautado, não é previsto. O encontro do
qual nos fala se dá ao acaso; consiste, em última instância, no encon­
tro com o real.

Na reunião passada trabalhamos alguns exemplos provenientes de


Freud, e certas experiências cotidianas que podiam se situar neste
particular a respeito dei encontro não deliberado, imprevisível. O fun­
damental, então, dá conta do acaso como causa. Parece-me imprescin­
dível destacar - fora de todo idealismo - que este acaso nos diz
respeito como causa de psiquismo, e não como causa eficaz de ocor­
rência de acontecimentos determinados da ordem das coisas, do mundo
ou dos objetos. J! causa ,na medida em que faz uma particular deter­
minação do psíquico. Bem, temos discriminado uma série de conceitos
relativamente afins à repetição, que hoje seguiremos recordando. Utili­
zo propositadamente esta ordem da recordação, já que é um dos temas
que rondam nossa conceitualizàção. Aludimos, também, à função do
retorno. Situamos esta em uma relação de disjunção - que combina­
mos escrever do seguinte modo : V' - a respeito da repetição. O
retorno, assinalamos, é basicamente do reprimido, o qual nos interessa
clinicamente sobremaneira, porque se manifesta de acordo com uma
forma que denominamos sintoma:

Retorno V Repetição
( do reprimido)
Sintoma

O retorno indica uma dimensão de semelhança em jogo; é por


isso que se pode suscitar facilmente uma confusão entre o retomo e
a repetição. Pareceria que este reino da semelhança, da analogia, unifi­
ca ambos os terrenos. Quanto a isso Lacan ensina que quando falamos
de repetição não estamos fazendo referência a uma reminiscência pla­
tônica. Modalidade típica sua: surpreender repentinamente com uma
interpolação filosófica. Como já pormenorizamos, estas citações não
correspondem unicamente ao patrimônio da filosofia, mas incluem no­
ções do campo psi que também são devedoras do mesmo tipo de
concepção. Por exemplo, pode-se dizer que quando falamos das remi­
niscências platônicas aludimos a uma série de protótipos ideais existen­
tes em todo sujeito, para além das experiências acidentais - subli­
nhemos este termo - participantes de sua vida e de sua história. Desse
modo, cada experiência ou vivência remete a um arquétipo definido.
Portanto, existiria um universo - em Platão será o célebre topos
uranos, o mundo das idéias - do qual o que ocorre em nossa vida
cotidiana configura uma espécie de reflexo diminuído, ou de sombra.
O verdadeiro, o que efetivamente é determinante, se encontra nesse
outro mundo, evidentemente privilgiado. Se cada ocorrência, cada
acontecer meu, é remetido a essa transcendência, estamos ante uma
concepção não somente platônica, mas ' platônico-junguiana. Segundo
Carl Jung, efetivamente, há determinados arquétipos nos quais cada
uma de nossas experiências fica resolvida, e aos quais acaba reduzida.
Em resumo: estamos em presença de uma das concepções totalmente
discordantes da investida freudiana.
Outro dos pontos de divergência é a junguiana dessexualização
da libido. Algo estranhíssimo, porque a libido é sexual por definição.
É um dos fatores que o fez cindir com a psicanálise, batizando sua

98
doutrina, então, com o nome de Psicologia Analítica ou Complexa.
Ao procurar " resolver " - por assim dizer - a problemática de um
sujeito por meio das reminiscências, o enfoque junguiano perde a ca­
racterística da singularidade, na medida em que se verte a mesma em
um molde pré-constituído e generalizador. Este ideário está longe de
um conceito como o de repetição, que pede pela diferença, que é repe­
tição do diferente. Destaquemos, pois, tanto o comum, que unificava
- exclusivamente - retorno e repetição em outras concepções, · como
o diferente, segundo a proposta lacaniana :

comum

Retorno V Repetição
(do reprimido) (do diferente)
Sintoma

O traço comum acaba subvertido pela afirmação de que a repeti­


ção trabalha em prol do diferente. Devemos ter presente que o afir­
mado no Seminário reconhece como antecedente a A repetição de Sõren
Kierkegaard, onde esta se opunha à operatória da recordação :

comum

Retorno V Repetição
(do r.e primido) (do diferente)

Sintoma

Record ação
Reme moração

A recordação é o centro da investida da análise, se a direção da


cura se dirige a resgatá-la de alguma exclusiva vivência traumática.
Poder-se-ia dizer que tal recordação dá lugar a uma prática analítica
baseada na rememoração. Propondo uma ordem opositiva, devemos
assinalar que repetição não é retorno, já que este último denota um

99
regresso " a partir de dentro" . Na realidade está mal expressado desse
modo - talvez isso se deva a um excessivo afã didático - mas o faço
para que se possa situar diferencialmente no que se refere à ordem do
· sintoma, aquilo que uma vez Freud denominou " terra estrangeira
interior" 1 • O sintoma é estrangeiro porque o sujeito, em sua maneira
de dar conta do mesmo, o revela como algo que não lhe pertence,
porque não se formou por sua vontade. E todavia, de quem é, senão
dele? Este fato revela a ação do que Lacan chama o discurso do
Outro, o lugar dos significantes que atropela, via sintoma, o sujeito.
O sintoma " é" dele, interior, mas não lhe pertence. Suportemos a
ambigüidade, já que é o único modo de poder tomá-lo inteligível.

No sintoma não há, indubitavelmente, uma remissão a algo que


ocorreu como repetição ao acaso localizável, em ato, a partir do real.
Nos deparamos, aqui, com uma característica crucial para discriminar
retomo e repetição. O retorno dá lugar a uma criação " nova", o sin­
toma, onde - homogeneamerite - se diz o reprimido de um modo
.
disfarçado. De outro lado, está a repetição que, como pudemos captar
no · exemplo dos bilhetes do coletivo, retorna - heterogeneamente -
a partir do Real, de outro lugar, distinto ao da interioridade afirma­
da-negada pelo sintoma.

O fato de tocar no Real também se patenteia, se faz presente,


naqueles praticantes vítimas da confusão de repetição com rememo­
ração, confusão que tem enormes implicações clínicas. Assim, alguém
pode se propor com um analisando o trabalho de rememoração ; em
princípio, não haveria nenhum inconveniente em tentá-lo, mas cedo
ou tarde aparece um obstáculo a esse trabalho, dado pelo registro do
Real. Deter-nos-emos brevemente para dar algumas notas sobre esta
dimensão, a qual nos referimos anteriormente, destacando a espécie
de chiste implicado no empenho de chamar Real a uma circunstância
que é, mais precisamente, patrimônio dq que convencionalmente, lexi-
calmente, se reconh� como irreal .

Qualquer um poderia entender o Real se se tratasse de algo seme­


lhante ao princípio de realidade freudiano. Lacan desconcerta, em
troca, ao insistir que o Real é o modo de subverter a realidade. Esta

1 . S. Freud, "3 1 .• conferência. La descomposici6n de la personalidad psiquica",


Nuevas conferencias de introducción a1 psicoanálisis, O.e., cit., t. XXll,
p. 53.

100
última tem um código coletivo compartilhado, pelo qual se pode afir­
mar que é, em grande medida, previsível. fossui uma ordem de rotina
reiterada, onde os acontecimentos se podem prever, em função de
certo manejo dos códigos vigentes, os quais, inclusive, pautam as
margens de mudança, de deslizamento, passíveis de tolerância. Irrup­
ções como a da repetiçãe em ato rompem esta cobertura que é para
nós a realidade, criam uma · hiância. :8 aí onde o sujeito entra em
contato· com o Real, o qual ostenta caracteres , dos habitualmente outor­
gados ao irreal· 2 , na medida em que faz " desvanecer " o sujeito, o
aniquila, o faz vacilar; em suma: o desequilibra. Nessas experiências
circunscritas aparece uma pulsação homóloga à da hiância do que é
ihcon.sciente. O Real irrompe, contacta e, repentinamente, se produz
um fechamento, motorizado pela estruturação da realidade. Não . se
vive no Real, . mas só se tem experiências pontuais desse registro.
Vive-se na realidade, mas o Real é disjunto dela. A realidade se estru­
tura com o plano da semelhança, · próprio do Imaginário, e com códi­
gos próprios do Simbólico. A psicanálise busca a referência privile­
giada do contato do sujeito com o Real, procurando dirigir a cura
também para esse fiin. Como se pode ver, tal meta tem outra preten­
são que a mera rememoração. Não se trata de reconstituir a história
pessoal e acrescentar novos símbolos para conformar um panorama
claro da própria vida. Se fosse assim, ficaríamos prisioneiros no Sim­
bólico e no Imaginário. Não haveria lugar, então, pará estas experiên­
cia comovedoras do estatuto do sujeito, em termos da subversão que
elas implicam.
Já temos, nos aproximado desses encontros - dos quais trata a
repetição - com a categoria aristotélica de Tiquê:

comum

Retorno V Repetição
(do reprimido) (do diferente)

Sintoma
Recordaçãd
Rememoração Tiquê


2 . O cap. IX incluirá a acepção, oferecida por Lacan, do "irreal".

101
A respeito, não mencionamos na aula anterior que existe uma
citação freudiana onde também se introduz o termo Tiquê; se localiza
no texto intitulado A dinâmica da transferência, ao qual já fizemos
referência. Em uma nota de pé de página 3 , Freud reflete sobre a
questão das causas, estabelecendo uma divisão entre causas próprias
da ordem do constitucional e herdado, e Óutras que chama acidentais.
Nessa passagem sustenta que tanto se tem escrito sobre o herdado, o
constitutivo biológico, que se a psicanálise deseja proporcionar algo
novo, deve fazê-lo sobre esse outro plano do suceder : o do acidental.
Assinala, por outro lado, que as duas séries de determinações - o
constitucional e o acidental - vão-se condicionando mutuamente, de
modo diferencial, em cada um dos sujeitos. Em alguns predominará
uma série, em outros a restante. É aí, então, que cita - os precursores
- dois termos gregos, Daimon e Tiquê, enquanto correspondentes,
respectivamente, a cada uma das séries . Em recente tradução essas
palavras são traduzidas como disposição e acaso. No meu entender
não é correta a escolha de " disposição" como o equivalente a Daimon.
Se bem que tenha diferentes acepções, que se podem ir rastreando
nos desenvolvimentos do pensamento grego, devemos resgatar - como
entendemos que Freud faz - o caráter de Daimon como " demônio "
próprio de cada um . Na Grécia, de Sócrates em diante, o Daimon
será o demônio encarregado de preservar o equilíbrio do sujeito, pre­
venindo-o acerca de perigos e impulsos . Concepções prévias haviam
considerado o Daimon ao modo da irrupção daquilo que é inconscien­
te, ou seja, aquilo que surpreendentemente aparece a partir do interior
como incontrolável e ingovernável, determinando comportamentos irra­
cionais. O Daimon socrático parece, por outro lado, colocar-se do lado
da razão.

Enquanto singular, o Daimon não fala da constituição heredi­


tária, nem do inerente à espécie; daí, ó desacordo com o fato de ver­
tê-lo como disposição. Porque esta, não, nos traz novamente à luz a
doutrina da reminiscência? Daimon e Tiquê, em sua, já foram con­
siderados por Freud, se bem que em uma nota de pé de página. A
referência ao texto citado indica, de passagem, de que modo Lacan
leu a obra do criador da psicanálise para poder dar conta das impli­
cações desta pequena alusão. Sua tarefa foi ali desvelar o sentido da­
quilo expressado por Freud. Cabe recordar a sentença lacaniana : " Li-

3 . S. Freud, "La dinámica . . . ", cit., p. 97 .

1 02
vra-os de compreender" . A rapidez da compreensão nos deixa fasci­
nados na realidade, sem questionar, na leitura, o que está ali " pronto"
para ser processado. E isto, ainda que na ocasião Lacan não nos re­
metesse, explicitamente, ao parágrafo freudiano considerado. (Há
outro antecedente referido à Tiquê: figura em Análise te.,minável e in­
terminável, onde se recorela que o pré-socrático Empédocles se ocupou
da ação da Tiquê, o acaso, na vida cotidiana) 4 •
Para completar essa breve recapitulação - com algum avanço,
é certo - diremos · que a Tiquê indica um encontro com o real, cir­
cunstância oculta em, e por, essa ordem denominada Autômaton, a
qual se refere à rede dos significantes :

comum

Retorno V Repetição
(do reprimido) (do diferente)
Sintoma
Recordação Tiqué'
Rememoração
A utômato,i Encontro com o real
(rede dos significantes)

Rede dos significantes convoca uma ordem onde cabe a previsão


aproximada, o automatismo. Do significante, nos interessa particular­
mente essa característica reticular, ao modo de uma determinada
distribuição em um tecido. Lacan chegará a dizer que "para além "
desta rede se acha o Real. Declaração audaciosa, arriscada, já que
convida a pensar em um núcleo oculto ao redor do qual se desenvolve
algo que o circunda. Mas além disso, em um sentido ontológico, a
alusão a um "para além " se deve à convicção de remontar as apa­
rências, cie procurar apartá-las. Os próximos desenvolvimentos que
efetuaremos sobre o olhar - acompanhando o Seminário - estão
muito ligados a esse profeta - o de transcender as aparências -
o qual, P9r aturo lado, é um tema tradicional no campo da filosofía.

4 . S. Freud, "Análisis terminable e interniinable", o.e., cit., t. XXIII, p. 247 .

103
O risco consiste em que possa chegar a deslizar-se até a concepção
da coisa em si, ao modo kantiano.
Immanuel Kant sustentava· que atrás dos fenômenos há uma
coisa em si, inapreensível, que não se pode tomar nem conhecer.
Esta maneira de pensar o ser e a aparência não é precisamente o ca­
minho adotado por Lacan, que leva em conta outro ponto: processa
um resgate muito agudo dessa castigada categoria psicanalítica conhe­
cida como trauma.
O termo " trauma " passou, há já algum tempo, à ordem - de­
gradada e consagrada - de ver-se transformado em uma palavreira
de uso diário; desse lugar, o Seminário a desvia. incluindo-a no pla­
no da repetição :

comum

Retorno V Repetição
(do reprimido) (do diferente)
Sintoma
Recordação Tiquê
Rememoração Encontro com o real

A utômaton Trauma
(rede dos significantes)

Todos temos uma idéia aproximada do trauma, enquanto cir- ­


cunstância que golpeou o equilíbrio de um sujeito, que apareceu re­
pentinamente, como algo fraturante, c,omovedor e descompensatório.
Segundo pode-�e perceber, uma caracterização assim se aproxima da
id�ia do Real. No estado em que fica o1 sujeito - isto é o especial­
mente chamativo - não somente não pode assimilar o trauma, mas
que permanece repetindo o mesmo; por exemplo, no plano onírico.
Sonha de vez em quando com a situação traumática ou, inclusive a
relata incontrolavelmente, em qualquer · oportunidade. Um exemplo
muito elementar deste fato · pode-se dar no caso de um choque auto­
mobilístico, do qual se sai mais ou menos ileso. Sobrevêm, de ime­
diato, uma compulsão a .contar . o acontecido, do qual se poderia
dizer, mais corretamente, que se trata de algo pouco agradável de

104
presentificar. Todavia, pelo contrário, se o relata a torto e a direito
e, para culminar -:- já que não é uma questão de mero estado de
vigília - ao dormir se sonha com o choque, repetido aproximada­
mente tal como foi.
Hoje �rago outro e:x;e'mplo extraído da vida cotidiana: o da in­
triga. O discurso que se organiza em tomo a: " - te contarei, mas
não o conte a ninguém " . Depois dessa advertência advém, ante a
intriga em si, um: "- não pode ser ! " , proferido pelo interlocutor.
Como o "não o contes ", segundo Freud nos ensinou - mediante
a negação - é um "conte-o", o receptor reproduz o relato ante ou­
tro. Aqui estamos em presença de uma micro-situação traumática, in­
dicada por todos esses " não pode ser 1 " e " não me diga 1 ", essas rea­
ções de surpresa, de descompensação do equilíbrio egóico, onde o
relato imediato por parte do interlocutor comporta um modo de es­
tabelecer uma cadeia significante, apaziguadora do trauma 11 •
Não devemos ficar na leitura quase médica do trauma, ao modo
da traumatologia, segundo o próprio termo convida. No sentido freu­
diano, o trauma também consiste em uma eventual fratura; neste
caso, o equilíbrio de um sujeito. O evidentemente não comum ao
conceito méâico é que o trauma concebido psicanaliticamente requer
..,.... como já o assinalava Freud no . Projeto de uma psicologia para
neur6logos 6 - pelo menos duas cenas relacionadas entre 1d . Não res­
ponde à incidência de uma cena única, pontual, de acordo com a
causalidade linear. De modo inverso: se estrutura na articulação de
uma cena primeira com outra segunda, que determina a eficácia da
anterior. Se somente acontecesse a primeira, 11ão haveria conseqüên­
cias; com a segunda cena, a primeira pode desencadear um efeito.
Podemos escrever esse processo com um clássico materna de Lacan:

S1 . S2

Este materna admite múltiplas leituras ; neste caso, representa um


.S2 que retoma sobre S1, o qual, por sua vez, remete a ele. Segunda

S . Isto, está claro, recortando a variável que queremos destacar, sem deixar
de destacar a complexidade causal deliberadamente omitida.
6 . o.e., cit., t. I, pp. 400-4.

tos
sobre primeira cena; ali se produz - e só ali - a circunstância des­
compensante. :8 comum, ante este materna, o escutar sua leitura em
termos de que a segunda cena "ressignifica " a primeira. Na realidade,
não há ressignüicação alguma, já que qualquer sentido só se . precipita,
decanta, na segunda oportunidade. Se afirmarmos o contrário, cairía­
mos numa confusão parecida à que se produz na acepção que uns dão
ao termo conotação, segundo a qual esta é um sentido segundo, agre­
gado, sobreposto ao original. De acordo com a demonstração freudiana,
a etiologia somente é eficaz no momento da ligação de, e com, a se­
gunda cena traumática. Não é que a segunda ressignifique a primeira,
mas que entre ambas decanta um efeito - para usar um termo mais
preciso - de significância. Este conceito - como já explicitamos -
alude à singularidade. Significado, em troca, é uma noção de fácil e
tentador deslizamento do sentido do dicionário. Na significância res­
gatamos o caminho do unário, do vigente para um sujeito, o qual se
evidencia, entre outros aspectos, na leitura processada de - sobre -
os sintomas . Se não atendemos a isso, estaremos gerando abstrações
distantes anos-luz do analisando específico. Podemos saber que "isso
estava virtualmente ali ", em suma, unicamente diante do efeito pro­
duzido. Como comentamos em reuniões passadas, à psicanálise com­
porta uma epistemologia do efeito. Só uma vez produzido o efeito,
está dada a possibilidade de remontar a condição produtiva, a causa.
Outro procedimento que escamoteia este dado, levando em conta hipo­
téticas cenas únicas, se aproxima à .Pura produção de imagem, à ficção
científica fora de contexto e ocasião. Por exemplo, se a mãe de deter­
minado �Ralisando não tivesse morrido quando este tinha cinco anos,
o que sé passaria? Talvez hoje fosse uma pessoa diferente, ou não?
Mas trata-se de especulações. Esta ordem de previsão, como se pode
perceber, não é o que se requer para , a episteme - como dizia Fou­
cault - psicanalítica, a qual requer efeitos ocorridos.
'
O requisito epistemológico dos efeitos também opera quando nos
ocupamos da repressão. :8 comum mencionar repressões de êxito, mas,
como podemos saber delas? Se, da qual se pode dizer algo é daquela
que retorna o reprimido; a que produz efeito, então, é a repressão
falha. Se não levamos isso em conta podemos incorrer em uma con­
cepção substancialista q�e pressupõe alguma essência interna de algo
que pode - ou não - gerar efeitos . :8 uma armadilha clínica real­
mente perigosa.

106
Anos atrás, certa vertente do freudo-marxismo supôs que existia
no sujeito uma dimensão que denominou "o social". Esta corrente
possuía uma definição bastante peculiar desta dimensão, já que confi­
gurava, como assunção dela, algum grau de compromisso político que
tampouco era qualquer compromisso, mas um orientado em determi­
nada linha: a mencionada: Pois bem, como os analisandos muitas vezes
não evidenciam tal plano, a estratégia dessa corrente era apelar, teori­
camente, ao recurso de uma repressão tão avassaladora e eficaz que
não houvesse deixado marca · alguma na superfície. 1! lícito supor que
a conseguinte investida do analista nestes casos consiste numa tarefa
de sugestão. Se se afirma que algo está tão bem reprimido - ao ponto
de não manifestar-se nem minimamente - não se pode deixar de fazer
uma indução sugestionant� sobre o analisando, disfarçada de terapia
"máxima". Concepções deste tipo têm feito estrago na psicanálise.
Isto, por parte de quem, em nome de uma insólita "psicanálise de
esquerda" (sic), tem gerado legiões de escravos seus mandatos "des­
repressores" 7•
Então, a repressão da qual se pode dizer algo - porque "fala" -
é unicamente a fracassada, a que dá lugar a um rebento - em termos
de Freud. Neste rebento há algo que se quer dizer, algo que incomoda,
que pede por interpretações.
Quanto ao trauma cabe agregar algo m�is. A cultura popular
desgastou em parte o conceito teórico; até se diria que o corrompeu,
tomando-o em uma dimensão unilinear, aquela em função da qual se
assinala que alguém "ficou traumatizado", em · tal ou qual oportuni­
dade. Para a psicanálise, como dissemos, não há trauma viável sem
a intervenção de pelo menos duas cenas; a partir disso, é possível
articulá-lo com a repetição. As cenas traumáticas podem ser tão
simples como nos casos dos bilhetes de coletivo. Assim, inocente como
parece, a repetição da mesma terminação nos bilhetes precipita uma
situação traumática, porque pode constituír-se em algo inassimilável.
Daí cabe extrair um parâmetro crucial: este inassimilável é um Real
que, como tal, por mais significantes dispostos para capturá-lo, não
pode ser integrado à cadeia. Freud expunha esse fato em termos ener­
géticos: por mais que procure ligar esse excesso energético que acar-

7; R. Harari, "Psicoanálisis, ,!ciencia o ideologia?", in Vários, Psicoanálisis,


tadaptación o cambio?, Buenos Aires, Rodolfo Alonso, 1972, pp. 85-133.

107
retou o trauma 8, não há maneira de poder uni-lo ao sistema. A
energia permanece, portanto, em estado não ligado. Se transladamos
ao campo lacaniano estas referências, podemos postular - reiteremos
- que neste encontro do Real, esta repetição dada como que por
acaso, marcou um trauma inassimilável enquanto impossível de ser
pego pelos significantes, os quais não podem dar conta de sua condi­
ção. Assim, um resto real permanece resistente, indomesticável a toda
assimilação, a toda significação.

Existe uma interessante discussão ligada a esse ponto entre Jac­


ques Lacan e Françoise Dolto. A mesma surgiu ante a necessidade
de colocar um critério frente a uma questão, um ramo bastante caro
às investigações psicológicas: a da psicologia evolutiva. Todo conceito
de estágio - queira-se ou não - remete, de um modo ou outro, à
problemática da herança; a algo que se reitera sempre que nos arrisca­
mos a pôr de lado o acidente. Aí pode-se perceber que, se - como
recomenda Freud - devemos enfatizar a Tiquê antes que o Daimon,
os estágios - da inteligência, da evolução, da libido, e todos os que
pululam - não se conciliem com o propósito psicanalítico de desta­
car aquilo que se repete de modo acidental. Portanto, o poder pensar.
uma psicologia evolutiva psicanalítica, implica um cabal impasse
já que ambas as investidas não vão precisamente aliadas quanto à
determinação de seus respectivos objetivos. Enquanto que uma pre­
tende fazer cortes A_x_olutivos, outra se interessará pelo valor da singu­
laridade, ou seja,' por aquilo que não é comum nas crianças de de- -
terminada idade. O corte, o dadà e a maneira de abordagem são
definitivamente outros, quanto à distintividade dos sujeitos. Ante essa
diferença, Françoise Dolto advertia que lhe era certamente difícil
apreender o. que ocorre desse modo não geral nas crianças, no tocante
à inteligência e ao que se joga na fantasmática da castração. Lacan,
com sua episteme eminentemente freudiana, lhe respondia que se deve
observar a particular articulação produzida quando a psicanálise se
refere aos estágios "formadores da libido" 9, fora de qualquer pseudo­
maturação natural. Pensemos, por exemplo, na clássica divisão entre
um estágio oral, outro anal e um, terceiro - sugestivamente denomi­
nado fálico - onde predomina a angústia de castração, assentando,

8. Lacan asseverará· que a intelecção do trauma como ref�rido ao "dP.masiado"


é aceitável para a obsessão; em troca, cabe afirmar o "demasiado pouco"
coino traço característico da histeria (Los cuatro concep'.os .. . , cit., p. 80).
9 . J. Lacan, Los cuatro conceptos . .. , cit., p. 7 4.

108
com o Seminário, o fato de que ela perfura, atravessa, todos os está­
gios. Quer dizer que meramente retroatua, ou que em realidade deter­
mina os assim chamados estágios? Podemos nos colocar em uma posi­
ção empirista e pensar que na etapa oral existe um problema com o
momento do desmame; a criança fica marcada por este fato onde há
uma perda que equivale 'à castração. Quanto ao anal, uma determi­
nação similar se produz por uma ação cotidiana como o é a defecação.
Mas, o que dizer sobre a castração? Onde está o acontecimento suce­
dido como um dado corporal, da ordem da experiência do corte e
da perda?
A castração em sentido psicanalítico não alude à um corte do
pênis, a uma emasculação. Faz referência a uma circunstância simbó­
lica. De forma repentina, . parece que o que mantinha um critério
homogêneo nas etapas oral e anal, ao chegar à fálica, já não satisfaz
sua condição. Não existe uma continuidade, linear e límpida, entre
os supostos estágios maturativos. Encontramo-nos frente a algo que
questiona uma ordem constante e progressiva. Há uma castração sim­
bólica que não está dada no terreno preciso indicado por algo do
corpo perdido ou separado, mas no de um órgão que "cai", que
sofre a detumescência. Só este fato já faz pensar que os estágios em
psicanálise são bastante diferentes a como se os quer chegar a conce­
ber a partir da óptica da psicologia evolutiva porque, na realidade, se
organizam ao redor de maus encontros singularizados. Creio que se
deve destacar isso de vez em quando - como o fazemos - para
circunscrever pontos de convergência e de divergência.
O anterior veio a calhar, ao comentar o capítulo V do Seminá­
rio 11, onde incide, centralmente, a questão do "des", do mau encon­
tro: a distíquia, o encontro falho regido pela Tiquê, que imporá sua
marca, · enfatizará toda sua importância na temática à qual se aboca­
nha imediatamente. Porque no capítulo VI do Seminário, com efeito,
nos encontramos com o começo de uma das tramas do ensino · 1aca­
niano pela qual - devo confessar ,- tenho uma particular debilidade
e predileção. Com um brilhantismo e originalidade notáveis, Lacan
articulará nele a repetição intitulando A esquize do olho e do olhar.
Esquize é entendida como divisão, como corte do sujeito, introduzido
previamente a qualquer menção ao olho ou ao olhar. Divisão - entre
outras -:- que se manifesta através da citada dimensão da distíquia, do
encontro falho do sujeito com o Real, onde. fica - · segundo vimos

109
destacando - abobalhado, perplexo, aniquilado; ou seja, em estado
de esquize. Não se trata, bem o sabemos, de uma descompensação
absoluta e permanente, mas são apreciáveis os efeitos desse "golpe"
- repetido - pelo qual o Imaginário e o Simbólico têm sido momen­
taneamente feridos pelo encontro do Real. Esta esquize do sujeito fica
escrita a partir do instante em que Lacan apresenta esta notação: $.
Entre outras coisas, nesta escritura se lê a esquize do sujeito;
o sujeito, como dividido. A barra incluída não é uma censura; a assi­
nalo devido a comum alusão a um "sujeito censurado". O sujeito se
diz dividido ou, em todo o caso, barrado. Por quê? Porque a barra
não é mais que a colocação em oblíquo - ou em vertical - da mesma
que, nos princípios de seu ensino, Lacan havia traçado de forma
horizontal, ao escrever significante sobre significado, separados, pre­
cisamente, por uma barra resistente à significação 10:

s
s

Aplicada ao sujeito, a barra 11 denota uma divisão que; entre


outras referências, alude ao sujeito do que é inconsciente, cindido,
enquanto· efeito do significante, entre o que se diz e o que se sabe.
Em troca, aquilo de que se ocupa A esquize do olho e do olhar é da
ação da Tiquê jogada no campo particular denominado escópico. A
propósito, me permitirei uma breve digressão acerca de tantas pala­
vras novas. Nelas, por elas, se verifica a construção de uma teoria:
se observa uma produção. Uma vez introduzido, cada termo requer
seu tempo, sua ocasião para explicá-lo. Esta circunstância faz notar
que não estamos no âmbito de tanta psicanálise pós-freudiana, que
em uma cega ecolalia se ocupa meramente da reprodução, sem qµe

10. J. Lacan, "La instancia de ... ", cit., pp. 199-200.


11 . A impropriedade do "censurado" se vê reforçada quando o Seminário 10
(cit.) destaca a pertinência de delimitar uma experiência da barra (aula
de 14/11/62), e - para reforçar - quando escreve em La dirección de
la cura o seguinte: "(O que está simbolizado pela barra oblíqua de nobre
bastardia com a qual afetamos o S do sujeito para assinalá-lo como sendo
esse sujeito - aí: S)" (Escritos I, p. 266, cuja tradução corrigimos par­
cialmente).

110
apareça a repetição, para utilizar os termos lacanianos. Se alguém
deseja produzir, deverá repetir e não permanecer no terreno da reme­
moração, da reminiscência. Grande parte do pós-freudismo se dilui
insignificantemente, na simples citação rememoradora do texto de
Freud. Se processamos um pequeno arrolamento, essas correntes ras­
gam as vestes diante da ·comissão de supostas heresias. Com Lacan,
por outro lado, se devem explicitar, vez por outra, passo a passo,
os termos novos, próprios de sua ousadia criativa, repetidora. Escópico
(de skopos: ver), todavia, não é uma novidade para a psicanálise: o
próprio Freud havia trabalhado o par voyeurismo-exibicionismo em
Pulsões e destinos das pulsões, mas a definição de escópico correspon­
de à safra de Lacan; será, assim, um dos itens do quarteto pulsional
que desenvolveremos a seguir.
Havendo postulado que a pulsão é um dos quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, o capítulo VI do Seminário submete este
conceito a um arrolamento onde o escópico conforma um de seus
elementos integrativos. Freud havia tratado da pulsão oral e da anal,
o que já é suficientemente conhecido; é um tema praticamente de
cultura geral:

Pulsão
- oral
- anal

Lacan, em seu trajeto, contemplará outras duas:

Pulsão
- oral
- anal
- escópica
- invocante

Cada uma dessas pulsões reconhece um objeto específico, que


temos denominado, desde o começo desse curso, objeto a. Agregare­
mos a isso oportunamente só duas notas a respeito desse objeto.
Trata-se de um objeto privilegiado do qual o sujeito, em uma auto­
mutilação, se separa para constituir-se, deixando de lado algo de si.

111
Segundo expusemos antes, o pôr de lado o empmsmo visual, indi­
cativo, permite-nos incluir o eixo falo-castração nessa caracterização.
A automutilação comporta que uma parte do corpo caia, se desprenda,
se separe. Nesta queda - perda - se evoca uma falta. Imediata­
mente, o objeto a - enquanto objeto da pulsão - deve cumprir,
investir e encarnar esta condição.

Na-etapa oral, não sucede o que se postula na corrente kleiniana,


a qual a explica pela presença ou ausência do leite (do alimento).
Na realidade, trata-se do seio, que joga como objeto a:

Pulsão a
- oral - seio
- anal
- escópica
- invocante

1! válido perguntar-se, ante a proposta lacaniana, onde ficam si­


tuados o seio bom e o seio mal aos quais aludia Melanie Klein. Pode
demonstrar-se que, nos conceitos kleinianos, se produz uma metoní­
mia, por cujo intermédio se nomeia o continente, mas se pensa em
termos de conteúdo 12• O que em verdade importa ao kleinismo é o
alimento· que pode ou não h,aver. A situação se define não pela rela­
ção com o seio, mas em termos biologizantes, ou seja, pela periodici­
dade do apetite e sua possibilidade de ser saciado.

A respeito da pulsão anal, o objeto a se nos apresenta come


recortadamente preciso; algo do corpo do qual o sujeito se separa ao
constituir-se. Trata-se, obviamente, das fezes:

Pulsão a
- oràl - fezes
- anal - seio
- escópica
- invocante

12. M. Fabio Quintiliano, Instituciones oratorias, Madrid, Hernando, 1942,


t. II, pp. 78 e ss.

112
No caso da pulsão escópica - concebida de acordo com a dimen­
são que o Seminário abraça - as coisas não serão tão claras. E isto
é assim devido ao fato do específico objeto a ser aquele que mais e
melhor consegue ocultar sua condição a respeito da castração, da
falta central do desejo. :e aquele que aparece mais opacado, menos
transparente; é, desde já; o olhar:

Pulsão a
- oral - seio
- anal - fezes
- esc6pica - olhar
- invocante

Ao olhar, se lhe aplicamos os dois conceitos que vimos traba­


lhando, também devemos considerá-lo como algo que se separou do
corpo e ficou perdido, desprendido. Não é o olhar no sentido de
ver com o olho; ao postulá-lo como desprendimento, nos vemos força­
dos a uma conclusão insólita : o olhar como objeto a está fora. O
olhar é outra coisa que o simples ver; assim é como se ]?Ode aprec�ar
.o sentido do título: A esquize do olho e do olhar. Este olhar não. é
função do olho, posto · que está no mundo, o qual é - cit liter,1-
mente Lacan - "omnivoyeur " 13 • Olho a partir de um ponto, mas de
todos os lados estão me olhando.
Quanto à pulsão invocante, é considerada pela dimensão vocálica,
fônica, em jogo. Aqui, o objeto a será a voz:

Pulsão a
- oral - seio
- anal - fezes
- escópica - olhar
- invocante . - voz

1 3 . A transcrição do original diz aqui "omnivoyanf' (omnividente) , o que


lhe confere - nos parece - o caráter perverso que transporta, no léxico
psicanalítico, o vocábulo "voyeur".

1 13
Para representar a falta central a que se refere este objeto, há
que ter presente que não é o fato de falar o que define como objeto
a. A voz consiste, de pronto, em um traço que deve marcar a ausência
significante e, em tal sentido, tem uma referência privilegiada no
caso do grito. Este implica um exemplo valioso enquanto voz sem
significante; ou seja, que não produz significação alguma de forma
" direta" . O grito testemunha o peso " completista" do objeto a. Em
um texto que lhes mencionei elipticamente em nossa segunda aula,
trabalhei outro caso exemplar de pulsão invocante, desencadeada no
momento de uma torção da transferência de uma analisanda 1 4 • Estava
articulado com o aparecimento de uma mudez nas sessões, a qual
denominei a-fonia. O prefixo a, pelo objeto a; a-fonia, obviamente,
pela falta de voz. Literalmente, a analisanda havia " perdido a voz " ,
a qual s e havia desprendido, dando conta, assim, d o vazio d e objeto.
Conforma, então, a contraface equivalente do " completismo" do grito;
a falta de voz " fala" - com mudez - da voz como falta.
Cada pulsão, além de seu objeto a, ostenta sua respectiva zona
erógena. Geradora de Eros, pois. Alguns psicanalistas como Serge
Leclaire - antigo lacaniano, hoje " ex " - conceberam que toda a
pele do lactante operava como campo susceptível de ser marcado pelo
desejo materno. O dedo da mãe - metaforizava Leclaire - escreve
e sela neste tegumento aberto e oferecido. Em princípio, o argumento
convence , ao menos poeticamente. Mas Lacan oferecerá uma concei­
tualizaçãO brilhante acerca do porquê há zonas de privilégio, em
lugar de toda a superfície epidérmica, com qualidades erógenas . Insis­
te nelas - nos dirá - a estrutura da hiância. A abertura e o fecha­
mento marcam a presença prevalente de certos orifícios, onde a expe­
riência do que é inconsciente e a zona erógena têm em comum esta
condição biante.
Trata-se de estruturas de bordas que se abrem e se fecham. Esta
capacidade pulsátil a tem, por exemplo, a boca, se nos referimos à
pulsão oral . O mesmo se pode dizer da pulsão anal, na qual o es­
fíncter correspondente também evoca a hiância. Quanto à pulsão
escópica, será o olho a correlativa zona erógena, porquanto também
pode abrir-se ou fechar-se. No caso da pulsão invocante ocorre uma
exceção - como que para pensá-la em termos similares e como fize­
mos com a castração, porquanto produz um efeito de significância

14 . R. Harari, "El desengano . . . ", cit., id.

1 14
com respeito a toda a série - já que sua zona erógena sempre per­
manece aberta: o ouvido. Não pode fechar-se no corporal; de toda
forma, a hiância se faz presente, pois não se necessita do preciso
obturar anatômico para fechar-se, quando alguém - pelo caminho
simbólico - não quer ouvir. O quadro resultante das pulsões, com
seus objetos a e suas respectivas zonas erógenas, é o seguinte:

Pulsão a Zona erógena


-:-- oral . - - . seio - boca
- anal - fezes - ânus
- escópica - olhar - olho
- invocante - voz - ouvido

Quando fizermos referência ao circuito pulsional 1 5 trabalharemos


com mais detalhe a diferenciação entre pulsão e instinto; qual é - se
se quer - seu objetivo, e em que sentido se trata de um conceito
fundamental da psicanálise. Agora interessa nos determos no seguinte:

Pulsão a Zona erógena


- oral seio -- boca
- arial - fezes - ânus
- escópica - olhar - olho
- invocante - voz - ouvido

Situamos a pulsão escópica como aquela que se instala na esquize


entre o olho e o olhar, onde este último aparece como objeto a.
Assim como temos pensado, com a ajudà de Lévi-Strauss, uma
ordem pre existente ao sujeito em relação com o totemismo - também
na aula I I - podemos advertir aqui, homologamente, que o olhar
preexiste à inserção do sujeito no mundo. :8 olhado antes de ver. Esta
situação até pode ter uin correlato empírico, e é assim em termos do
imaginário cotidiano: s6 vejo a partir de um ponto, mas sou olhado
de todas as partes; o mundo aparece em sua qualidade de omnivoyeur.

1 S . Cf. cap. VIII.

1 15
Prosseguindo com suas referências - neste caso a ensaística - Lacan
cita Diderot. Não o Diderot da Enciclopédia, mas o transformado no
redator satirista de Carta sobre os cegos para uso dos que vêem 16 •
Texto que lhes recomendo, posto que durante sua leitura poderão
desfrutar de uma sagacíssima, uma alta mordacidade, tanto como
apreciar a densidade da referência lacaniana. A alusão a Diderot serve
para demonstrar que a . assinalação do espaço está, efetivamente, ao
alcance dos cegos. As indicações para se moverem - como se efeti­
vamente pudessem ver - são perfeitamente possíveis. O Seminário
se pergunta, então: Se os cegos podem organizar um espaço como o
faz um vidente, qual é a dife�ença crucial a destacar?
A divergência não passará · pela captação da perspectiva geome­
tral, apreensível, construível, tanto por parte dos cegos como dos que
vêem. A investigação se inicia, então, por outro ponto, a que Lacan
volta em várias oportunidades: a anamorfose. A recorrência a esta
questão óptica marca que o ponto de interesse é o estatuto do sujeito
e suas condições. Levando em conta tal marco, assinalará a visão
como aquilo que faz possível ao sujeito "ver-se ver-se" . Este ver-se
ver-se é, nem mais nem menos, a armadilha onde sucumbe um imenso
ramo da psicologia: a consc�encialista; isto é, a que adota por método
a introspecção. Em psicanálise não se trata de fazer introspecção; ela
constitui, na verdade, um sério obstáculo. Ver-se ver-se, quanto à vi­
são, é determinante de que todo sujeito esteja condenado à presunção
de idealização. A expressão é intrincada, mas se trata de algo relati­
vamente simples. Consiste em que qualquer sujeito, como efeito de
estrutura, é vítima da tentação do bispo de Berkeley, quem uma vez
afirmou, com sua sistemática do idealismo subjetivo, que se não via
algo, isso não existia. Na original sentença latina: Esse est percipii,
ser é ser percebido. Fecho os olhos e., o mundo desaparece; e, corr�­
lativamente, minha visão é a que gera a existência das coisas do mun­
do. Portanto, será através da visão o 'modo, o· caminho, pelo qual
Lacan tentará dar conta do estatuto da consciência. A visão fará com
que um sujeito, vendo-:se ver-se, possa crer-se não somente consciente,
mas sobretudo existente no sentido cartesiano: " Penso, logo existo " .
A única certeza que posso ter, de acordo com o arrazoamento carte­
siano, · será do fato de estar pensando. E. a única certeza indubitável

1 6 . Diderot, Carta sobre los . ciegos para uso de los que ven, Madrid, La Pi­
queta, 1978.

1 16
do sujeito; o restante, ocorre a partir desse pensamento. Presunção
de idealização será a expressão lacaliiana que alude não meramente
a uma tendência filosófica ou a uma ocorrência de Berkeley; esta
presunção está presente em todas e em cada um.

A investida freu9iana se orienta no sentido de deixar de lado a


dimensão fundada no veMe ver-se - que o Seminário chamará sujeito
da representação - para ordenar assim sua problemática específica.
Pois bem, isto não çonfigura uma crítica global ao postulado pôr Des­
cartes; Lacan chegará a recordar que, se não houvesse antes um
Descartes, Freud não . haveria sido possível . Por quê? / Porque Freud
1

faz da dúvida o apoio, o suporte de sua certeza, mas, está claro, da


dúvida inserida no relato do sonho. Se há dúvida, . há algo a preservar:
um pensamento inconsciehte. E daí, divergem novamente ambas as
concepções.

Agora vamos organizar alguns destes conceitos, assinalando os


abarcáveis segundo um .denominador comum :

Ver-se ver-se

Sujeito da
representação ·

Idealismo

O Seminário nos adverte muito especialmente sobre o risco de


confundir a psicanálise com um idealismo; não se trata de que a vida
é sonho, não é nada disso. Muito pelo contrário: o que está em jogo
é a mais privilegiada - e mutativa - experiência de contato com o
Real jamais conseguida pelo ser falante antes do surgimento da psica- .
nálise. O que só é viável situando-se no extremo oposto de uma tessi­
tura idealista que pretenda conectar-se com algum suposto mundo in­
terior. Este tipo de metáforas é altamente perigoso; convém agregar
aqui algumas referências clínicas, para contrapor certa tendência asser­
tiva que elas implicam.

Uma ampla gama de conceitos ditos como que de passagem:


mundo interno, objeto interno etc; ou, então, expressões que aparecem
nas interpretações, como: debaixo de, por dentrô- de, por detrás de,
no fundo, e assim por diante, transmitem - conscientemente ou não

117
- a idéia de que o sujeito na análise se conecta com o mais fundo
de si mesmo. Todavia, Lacan definirá insistentemente, congruente­
mente, a psicanálise como prática do Real, não de algo que se conecte
com algum homúnculo interior. O próprio Freud havia advertido que,
para que um fenômeno se faça consciente, deve ser apreendido en­
quanto proveniente de fora. Deve passar pelo terreno da percepção 1 1 •
Inclusive acontece que quando alguém fala, se escuta, e o dito tem o
valor de uma percepção que chega do exterior. F. o caso do analisando
que declara: "- isso eu sempre tive em mente, mas agora que o digo
a você, mudou tudo" . O fato de ter sido dito provocou o ter sido
escutado, sem recorrer a esse deletério mundo interno, que traz con­
sigo a dimensão do refúgio narcísico implicado na presunção ideali­
zante do ver-se ver-se. Na ordem "interiorizante" apontada surge a
postulação, · então, de um espaço homogêneo, intuitivamente "eviden­
te" até para um cego, na medida em que, ao não privilegiar um ponto ·
determinado, supõe uma correspondência biunívoca entre os pontos do
interno e os do externo:

Ver-se ver-se
Sujeito da
representação
Idealismo
Espaço Homogêneo

O Seminário reco"rrerá à experiência da anamorfose para procurar


cavar a ilusão de um espaço homogêneo; A respeito, numa das edições
do Seminário 1 1 figura na capa um clássico quadro de Hans Holbein:
Os embaixadores. Essa pintura representa dois personagens armados
de todas as vanitas - como assinala Lacan seguindo Baltrusaitis 18 -
de sua época. Diante deles aparece em primeiro plano, suspendido, um
estranho objeto deformado que lhe evoca o pão de duas libras que
Dali se comprazia em colocar sobre a cabeça de uma velha, em sua
pintura. Na realidade, o procedente é deslocar-se para fora da habita­
ção, a partir de se encontrar frente ao quadro. Em um dado momento,

17 . S. Freud, EI yo y el ello (eso), o.e., cit., t. XIX, pp. 2 1-5.


1 8 . J. Baltrusaitis, Anamorphoses, Paris, Flàmmarion, 1984, pp. 90- 1 12.

1 18
olhando a partir da esquerda, pode-se apreciar, neste suposto pão, a
forma de uma caveira. A que vem este pequeno jogo óptico? Ainda
que pareça insólito, nos séculos XV - no seu final - XVI e XVII,
foi um recurso levado muito a sério. É que as pintúras anamorfóticas,
ao requererem ser vistas a partir de determinada posição - inclusive,
em alguns casos, a partit de certo orifício na parede - permitiam
armar outro quadro do mundo, diferente do tão homogêneo, cotidiano
e realista que pretende o sujeito da representação. Lacan chama a
atenção para o abalo, o perfilamento do estatuto • do sujeito, implica­
dos no aporte que delimita a anamorfose, a qual, em síntese, consiste
em uma especial técnica de deformação da perspectiva baseada no uso
invertido do habitual.
Os postulados de Descartes --'-- incluída sua dióptrica - coloca­
ram em certo lugar o sujeito; em troca, as experiências anamorfóticas
apresentam em primeiro plano algo que não está ao alcance do cego,
como o está, essa sim, a dialética clássica em torno da percepção. Já ·
então se estava concebendo a dimensão de um espaço outro, dife­
rente da sinalização cotidiana, a partir da qual alguém, simplesmente,
obtém sua orientação. Aparece, conseqüentemente, outra instância par- ·
ticular do sujeito, diferente da marcada pela óptica geometral. Situa­
mos nessa ordem a anamorfose, em disjunção com o espaço homogê­
neo que previamente citamos. Ao idealisrµ.o podemos entendê-lo em
contraposição com a experiência do Rea�, em, função - como antes
assinalamos - da ligação daquele com o ver-se ver-se. Quanto a este,
colocaremos com disjunto o olhar do mundo como omnivoyeur e, final­
mente, oporemos ao sujeito da representação uma particular referên­
cia, que é aquela na qual o sujeito se desenvolve enquanto função­
quadro. Iremos esclarecendo progressivamente todos esses termos. Nas
duas ordens em disjunção mencionadas, é possível escrever ---' enca­
beçando cada série - a visão, no primeiro caso, e o olhar, no segundo:

Visão Olhar
Ver-se ver-se Omnivoyeur
Sujeito da Quadro
representação
Idealismo A experiência do Real
Espaço homogêneo Anamorfose

1 19
O que procuramos resumir brevemente demarca uma das manei­
ras prioritárias com que Lacan . ·detectou o abalo tendente ao descon­
gelamento do estatuto do sujeito; ou seja, como este estatuto resultava
subvertido, com a existência de certas investigações e práticas visuais
aparentemente inocentes ou somente curiosas . Fenômenos como o da
pintura an�morfótica foram historicamente contextualizados, não es­
quecendo que estavam ligados a certa experiência coletiva que clama­
va por ir · para além do céu - em sentido metafórico. O céu é aquilo
que permite sinalizar o espaço; se o relacionamos com uma experiên­
cia psíquica em forma de óptica geometral, nada parece escapar desse
càmpo de réplicas pontuais. Todavia, circunstâncias como a anamor­
fosé permitem pensar, segundo dissemos, em um espaço outro. Levan­
do isto à prática ·psicanaUtica : se alguém sustenta que nossa tarefa é
adaptar o paciente à realidade corrigindo as deformações, e orienta
nesse sentido a direção da cura, evidentemente todo o capítulo do Se­
minário 1 1 sobre a anamorfose resultará ridículo, uma sofisticação
erudita absolutamente prescindível. Pelo contrário, se se procura resga­
tar · o caráter deformante - não do subjetivismo perspectivista - e
buscar não tanto o espaço do céu mas o campo do sujeito, captaremos
aonde aponta esta particular referência. · ·

Lacan se preocupou em aclarar que no quadro de l;lolbein, isso


que ele via como um pão pintado por Dali, outro o veria como um
elemento diferente; estava, assim, assinalando . os limites da enfatua9ão
que aproveitam, por exemplo, os testes projetivos. Em troca, outra
coisa é o lugar " viável" que a anamorfose prescreve, sem alternativa
" fantasiosa" . A investigação realizada no Seminário 1 1 sobre o escó­
pico foi estimulada pelo recente aparecimento, nesse meio tempo, de
um livro póstumo de Merleau-Ponty, O visível e o invisível.

Tal foi, então; a súbita declaração de que Lacan dedicasse bas­


ta,nte tempo a repensar estes temas . Talvez, se não mediasse a obra
de Merleau-Ponty; não existissem os desenvolvimentos que hoje volta-
mos a trabalhar.

120
V
NôDOA E ENGODO -· A TRANSFERÊNCIA l

Logo após a reunião passada tomei consciência de que os ensina­


mentos expostos foram, dessa vez, comparativamente _ _mais difíceis.
Em - parte se deve à temática, a qµal, se não me escapa, pode ser um
modo cômodo de dizer-lhes que fui alheio a esta dificuldade. A outra
razão consiste em ter apresentado um assunto e uma abordagem evi­
dentemente novos; com efeito, a problemática . do esc6pico em Lacan
aparece provida de uma originalidade destacáv�l. De toda maneira, é
bastante possível que se tenham perguntado, com a melhor boa fé e
afã de entendimento : Para onde apontam essas questões?
Em primeiro lugar devemos recordar� então., _ que os citados desen­
volvimentos remetem a temáticas · clássicas do campo da filosofia, no
sentido que temos tentado esboçar e demarcar. Não da filosofia en­
quanto disciplina específica, mas enquanto território produtor de ques­
tões que a psicanálise encontra aptas para poder importar a seu próprio
perímetro conceituai. Por- exemplo : é óbvio que a psicanálise se de­
fronta coni o problema do ser e da aparência . De outro modo: existe
uma discriminação básica que todo psicanalista encara, porquanto
a psicanálise a ensina, . desde o começo, com um sentido didático;
áludo à discriminação entre conteúdos manifesto .e latente. Isto indica,
de pronto, o seguinte; o sujeito não é o que aparenta ser, e o que ele
vê · - sublinhemos ·esse termo - tampouco é aquilo que é. Pode-se
reformular o último postulado por meio. de uma das frases aforísticas

121
cunhadas por Lacan e inseridas em seu Seminário 1 1 : " Nunca. me
olha de onde te vejo " . E ademais, a inversa, "o que olho nunca é o
que quero ver " . De uma forma ou de outra se estabelece uma relação
de assincronia, isto é, de desajuste, de não reciprocidade. Produz-se
um efeito de insatisJação, de não completude, onde não se obtém
o pretendido; desta circunstância, o escópico não configura um exem­
plo - existe aqui um ponto importante a destacar - mas o próprio
embasamento.
Recapitulemos parte do desenvolvido na reunião passada. Trata­
va-se de dar conta da função da consciência fundada no escópico, a
qual surge a partir da condição denominada de ver-se ver-se. Uma
reflexão sobre si mesmo, em suma, onde o escópico autoriza a desen­
volver um clássico sujeito da representação (clássico na indagação
filosófica, no sentido de que o filósofo trabalha com suas represen­
tações) : Não esqueçamos um hem crucial : representar significa, tradi­
cionalmente, fundar-se em uma semelhança. Se pensa-se em repre­
sentação, coloca-se em jogo algum tipo de similitude, o que implica
a vigência, incontrastável, do registro do Imaginário.
O que opor a este sujeito da representação que, como é de se
esperar, crê possuir uma réplica acabada, pontual, das coisas do mun­
do? Se transladamos isso ao terreno da pintura, a esta atitude se coa­
dunará a crença de que tal atividade consiste em copiar as coisas do
espaço; Ou seja, assumindo uma postura pretendidamente realista. Ali
se entende porque Lacan recupera certo artifício pictórico muito valo­
rizado séculos atrás, como é o da anamorfose. Em última instância
esse recurso óptico é uma inversão da . perspectiva habitual . Descon­
certa qualquer tipo de evidência, de vivência, de realismo ingênuo.
A anamorfose, portanto, dá uma idéia sobre. o sujeito bem distinta
daquela outra, própria do sujeito da representação . Através dela se
restitui, então, o faltante no campo escópico. Para dizê-lo mais exata­
mente : em Os embaixadores, Holbein põe eni jogo o sujeito " nadifi­
cado" em conformidade com a falta central do desejo denominada
castração ! e escrita da seguinte maneira: ( - p )
A anamorfose faz presente, brinda imageticamente a possibilidade
de que a castração possa pôr-se em ato no terreno do visual ; da cas­
tração, recordemos, se evade o sujeito da representação. Este encontro
e essa evasão são concebidos mediane uma argumentação assombrosa:
a da óptica dos cegos . Como vocês seguramente têm presente, propu-

122
nha a questão se apoiando no texto de Diderot, Carta sobre os cegos
para uso dos que vêem, precisando que se os cegos podem orientar-se
no espaço é porque o diagrama segundo o - virtual - estender de
um fio entre pontos determinados e correspondentes. Procede-se me­
diante representações unitivas :

O cego é em realidade uma metáfora. Na verdade, trata-se de


qualquer um que se oriente no espaço através de uma reprodução
pontual - de um ponto a outro - em termos do que se pode deno­
minar também, de forma mais refinada, correspondência biunívoca.
Nesta relação o ponto designado e o representado se · inter-remetem.
Lacan argúi que se poderia estabelecer fios que fossem unindo um a um
todos os pontos do espaço no universo dos cegos, de maneira tal que
se organizasse uma completa sinalização do mesmo :

e assim sucessivamente.

Esta consideração, que já se encontrava em Diderot, Lacan a


elucida como própria da óptica geometral. A esta óptica se oporá a
tessitura da anamorfose. Por seu lado a geometral nos põe em presen­
ça de um sujeito tomado pela presunção de idealização; isto é, a posi­
ção de quem diz : "- o mundo se constrói exclusivamente por meu
intermédio" . Segundo a presunção de idealização tudo se cria a partir
da percepção, concepção própria - em forma paradigmática - do
idealismo subjetivo. Resta, não. obstante, considerar outro aspecto
quanto a esta óptica geometral construída em função de linhas retas.
Estas retas, em termos do que interessa em uma conceitualização
óptica, indicam o que se chama, na física mais e lementar, reflexão.
Este fenômeno alude à propagação do feixe luminoso em linha reta,
de forma pontual e sob correspondência biunívoca, de modo dife-

123
rente ao que ocorre na refração. Se levamos em conta esta última, o
panorama é distinto, já que devemos atender não . a uma correspon­
dência linear, mas a centelhas e disseminações a partir de um ponto
luminoso, o qual se poderia representar assim :


feixe vai se espargindo e obtém-se certo tipo de efeitos. Pois
bem, o · ponto inicial, o ponto de disseminação, denomina-se ponto
luminoso :

Ponto �
luminoso

O plano para onde se dirigem os feixes do ponto luminoso é o da


função· que assinalamos na reunião passada, aquela do sujeito como
quadro. Veremos mais adiante porque adota este símil e quanto tem ·
a ver com a pintura. Por hora assinalaremos o ponto luminoso como
aqqele que pinta o quadro na retina do sujeito enquanto quadrQ.
Quadro que, de tal forma, fica fora: No diagrama figura, de uin lado,
o sujeito, enquanto função de quadro. De outro lado, estando " fora"
também, se localiza o ponto luminoso : i

Ponto Sujeito
luminoso como quadro

124
Podemos desenhar outro esquema que aclarará este desenvolvi­
mento, incluído nos respectivos trechos do Seminário 1 1 . Lacan re­
corre a dois triângulos. Um dará conta do ideário próprio da óptica
geometral. O outro resumirá a óptica correspondente à luz refratada,
implicando o olhar e fatos como a anamorfose. Os dois esquemas
formam uma dicotomia convergente, geradora das diferenças que lhe
interessa destacar:

O _primeiro triângulo corresponde ao " ponto de vista " - ponto


geometral - do sujeito da representação :

Ponto geometral

O diagrama superior representa, então, a posição da óptica geo­


metral: uma armação do espaço constituída a partir da sinalização do
mesmo. Este é o método próprio da filosofia e também o da psicologia
introspectiva, isto é, aquela que, ao modo do filósofo, outorga a um
sujeito suas representações conscientes . Não é demais reiterar: a psica­
nálise não se dedica à introspecção; só pede ao analisando que fale.
Não lhe ordena que conte seus estados interiores, seus estados de
ânimo etc; centra-se, estritamente, ·na instrumentação de uma dimen­
são interlocutiva fundante e oper�nte.

125
O sujeito da representação, enquanto ponto geometral, apreende
o objeto por intermédio de uma imagem :

Objeto �
� Ponto geometral

<:J
Até aqui se pode entender muito bem essas idéias porque coinci­
dem aproximadamente com o imaginário ou com a imaginação habi­
tual. Dizer que o sujeito possui de alguma forma uma imagem do
objeto não é nenhuma novidade. Qualquer um o entende e tem a
vivência espontânea - fenomenológica - de que disso se trata quan­
do, a cada vez, se defronta com a questão do ser e da aparência.
Lacan se desvia, não obstante, para outra demonstração - nada óbvia
- onde considera o repetitivo - o Tíquico - em jogo no campo da
função escópica. Coloca as circunstâncias de outra maneira a partir
de uma inversão da perspectiva, desenvolvendo o segundo diagrama a
partir do ponto luminoso :

Ponto
luminoso

A refração, por sua parte, fica indicada com origem nesse próprio
vértice do triângulo:

126
Pois bem, a meu entender o sujeito da representação está estrei­
tamente relacionado com uma concepção teológica. � a partir do ponto
geometral denominado Deus que começa a se desenvolver o mundo
dos seres. E, se se inverte simetricamente o postulado - ou seja, quan­
do se diz que o homem criou Deus a sua imagem e semelhança -
trata-se, outra vez, de vanitas, do sujeito da óptica geometral. Na óptica
não "realista" - própria da anamorfose - o ponto luminoso se
situará no lado oposto ao do sujeito enquanto função de quadro. No
lugar intermediário, . onde situamos a imagem no . esquema anterior,
aparecerá neste caso uma tela:

Ponto Quadro
luminoso

A tela opaca a possibilidade do contato biunívoco. No diagrama


do sujeito da representação a imagem e o objeto podem estar em
discordância, o que constitui um problema tradicional que também
configura uma episteme, um embasamento próprio da psicologia. Cabe
citar, por exemplo, os conhecidos experimentos do New Look: as
deformações perceptivas sucedidas em função da peremptoriedade exi­
gida por diversas necessidades, demonstra - dizem - como se percebe
de forma diferencial. A meu ver, estas experiências são uma tautolo­
gia, já que " demonstram" o sabido pelo imaginário coletivo, por todos,
desde o começo, ainda que o exponha de um modo mais afetado.
Voltando a Lacan: assinala, inclusive, a existência de uma dis­
cordância entre a imagem e o objeto, mas em outro sentido. O ponto
luminoso pinta no sujeito um quadro; se bem que o faça através
de uma tela, essa não o ajuda. � um elemento que perturba, opaca e
disfarça a possibilidade de concordância. De tal modo, não há uma
relação biunívoca, ainda que advirta que, apesar de ambas as concep­
ções consideradas parecerem · próximas a esse respeito, são, todavia,
muito distintas .

1 27
A inclusão da tela permite estimar a crucial importância que
possui a função do engodo na vida dos seres falantes. Trata-se de um
fato examinado em muitos e bem diversos textos, mas se referirá espe­
cialmente a um : Medusa e companhia, de Roger Caillois 1 . Neste livro,
o ensaísta menciona três pontos ligados a - uma função do engodo, tal
como se apresenta, em particular, nos animais . Caillois analisa essa
função destacada especialmente nos insetos , onde ela opera de um
modo que o Seminário postulará como equivalente à função· que a
pintura cumpre no falante. O tema em questão é o do mimetismo,
isto é, a tendência de uma série de animais a confundir-se com o
meio ambiente, com seu habitat respectivo. Usualmente se crê que isso
se produz no estrito sentido de um mecanismo adaptativo, ligado ·à
sobrevivência. Não obstante , se alguém se afasta dessa idéia precon­
cebida, aparece outra vertente . 1! interessante considerar aqui o pre­
juízo da correspondência biunívoca em seu ramo finalista, teleológico,
o qual considera que o animal se mimetiza com determinado objetivo .
Lacan assinala que o conseguido pelo animal mediante o exercício da
função mimética consiste em situar-se em seu ambiente tal qual o faz
o sujeito, o ser falante, no quadro. Instala-se num lugar matizado e
se pinta como parte do que é denominado mancha no quadro.

A mancha será situada no lugar da tela, ou seja, daquele realiza­


dor de discordância que mostra como o quadro não possui uma con­
dição homogênea, pois dali surge algo diferencial. As dimensões prin•
cipais do mimetismo expostas por Caillois são :

· 1 . Travesti
Mimetismo (2 . Camouflage
� . Intimidação

Assim, então, aparecem . nomeada� estas três variedades em Medu­


sa e companhia. Em particular, podemos privilegiar uma que tem
- no caso do falante - clara conotação sexual : a do travesti .

Todos sabemos a que corresponde a denominação travesti : a su­


jeitos que se vestem com roupas do sexo oposto -ao próprio. Uma forma
de parecer o que não são. Como se notará, estão em jogo aqui, impli-

1 . R. Caillois, Méduse et Cie, Paris, Gallimard, 1960, pp. 71-1 66.

128
citamente, as idéias do ser e da aparência. Ainda que não se . refira
estritamente ao tema, devemos recordar a diferença entre travesti e
transexual. Este último é quem deseja mudar de sexo e demanda
cirurgicamente - habitualmente - uma ablação ou transformação
de seus genitais. Quer ser operado e, às vezes, o consegue, mudando
de sexo no sentido do corpo biológico. O travesti, por outro lado,
de nenhum modo quer mudar de sexo, mas deseja - tomando basi­
camente o caso do homem - encarnar a mulher com pênis. Quer
"mostrar", quer sugerir que por debaixo dessa aparência existe um
ser diferente do que se dá a ver. Remete a uma imagem de completu­
de, sem implicar um propósito cirúrgico. t talvez o exemplo mais
prototípico de uma função de máscara, de engodo, adorno ou disfarce.
São recursos para afirmar visivelmente que alguém tem ou é outra
coisa que a que mostra; capta-se, então, o lugar capital do engodo
para a captura do desejo. Esta circunstância é crucial para Lacan. Ele
empreendeu boa parte da revisão da questão da sexualidade feminina
fundado na concepção resumida por um termo introduzido pela psica­
nalista kleiniana Joan Riviere, que escreveu um texto clássico: A femi­
nilidade como mdscara 2 • Daí ficou instaurado um conceito (não fun­
damental, seguramente, mas em todo o caso um conceito): o de
mascarada.
Não é mera coincidência, está claro, o fato de que habitualmente
se designem certos procedimentos cosméticos femininos como másca­
ras faciais; na mesma ordem, resulta uma experiência bastante comum
aquela em que entre duas aparições da mesma mulher - separadas
por certo tempo - na segunda, por uma mutação na mascarada,
possa não se reconhecer, de imediato, a imagem da primeira. Dificil­
mente isso acontece com um homem. Pareceria que a mulher tem a
possibilidade de mimetizar aquilo que "lhe falta" através de uma
variabilidade constante 3 • Pelo contrário, o homem tem - ao que
parece - mais a perder; então, não é tão propenso a essa ordem tão
eminentemente feminina, como é a da moda.
Não acreditamos que a moda é a simples obra de alguns ideólogos
malignos, dedicados a perturbar todo mundo com o propósito de ven-

2. J. Riviere, op. cit., in Vários. id., Barcelona, Tusquets, 1979, pp. 11-24.
3 . i>or aquilo de "é sem tê-lo" (ao Falo) (J. Lacan, "EI deseo y su interpre­
tacción", in Las form�ciones del inconsciente, Buenos Aires, Nueva Visión,
1970, p. 173 ) .

1 29
der produtos da sociedade de consumo. Se bem que esse possa ser
um nível de análise - cuja pertinência haveria que demonstrar -
corre-se o risco de cair em um reducionismo perigoso; essa argumen­
tação esquece que a moda, para reciclar-se, deve articular-se com o
desejo de cada um. Se não fosse assim, não haveria possibilidade de
conceber tal proliferação de objetos prontamente caducos . A moda
patenteia, em última instância, uma condição travesti entendida num
sentido lato. Travesti quer dizer a condição de mostrar ou de se pôr
outra coisa, ocultando o portador. Porque essa outra coisa pode chegar
a excitar? Não será simplesmente por aquilo que está mostrando, mas
porque evoca uma ordem ausente, mais além. Nessa espécie de inda­
gação sobre um mais além é que se gera essa condição excitativa.

Voltemos aos dois últimos diagramas sobre o escópico. O próximo


passo de Lacan consiste em superpor os triângulos apresentados, dando
conta de todas as implicações expostas nessa ordem. Vale a pena
reiterar que esse campo é aquele onde menos parece poder se perce­
ber a condição da fala fundante do desejo, isto é, a castração. O
objeto a designado como olhar, então, é o que melhor elude a condi­
ção da castração.

No último diagrama aparece, de repente, uma questão importante:


O conceito inicial, · neste caso, é o ponto luminoso, ou . o olhar? A
respeito, o Seminário nos aclarará que o olhar constitui o modo pelo
qual alguém se acerca da luz ; o olhar, em sentido amplo, simboliza
o ponto luminoso (ou a luz). Em um texto meu, escrito há algum
tempo atrás, intitulado O fetichismo da torpeza 4 , tentei refletir sobre
outros sujeitos que também · dão conta, a seu modo, da condição tra­
vesti: os fetichistas. Perguntei-me por que buscavam, como fetiches,
elementos capazes de brilhar; por exemplo, costuma-se tratar de
sapatos, impermeáveis etc. A lista pode seguir, nutrida de elementos
que têm em comum, entre outras quS,idades, o fato de poder refletir
luz. Não é o emitir uma luz própria o que importa no fetiche, mas
o poder refleti-la. Aí está justamente, entendo, a questão do olhar.
Na realidade, o objeto-fetiche me olha. Ao afirmá-lo assim, isso não
tem nada a ver com nenhuma relação interpessoal, de olho a olho.
Se há um corte crucial para efetuar nesse ponto, deve fazer-se sobre
a crença de que estamos trabalhando sobre a dupla voyeurismo-exibi-

4 . R. Harari, Dei corpus . . . cit., pp. 7 1-8 1.

130
cionismo. Aqui este par não é possível, porque requer a copresença
de dois sujeitos em certa situação (por exemplo, um olhando o efeito
provocado pela nudez de seu pênis no olhar do outro : olha como é
olhado) . Estamos numa relação de paridade, na reciprocidade, na inter­
subjetividade. Pelo contrário, a intelecção do fetichismo requer postu­
lar uma mediação. Neste i;:aso o mediador é um elemento onde se re­
flete uma - a - luz que, sem lhe ser própria, provoca uma captura
do olhar, em meio a momentos - segundo surge de muito relatos
de analisandos - d� franca fascinação. Lacan assinala, como anteci­
pamos ·na reunião anterior, que o sujeito se acha em uma função seme­
lhante à do quadro, o qual, nos. diz, domestica o olhar. Ante o quadro,
o que contempla deve depor o próprio olhar, como se fosse uma arma.
No quadro - insistirá - se faz presente o olhar do pintor. Este fato
não envolve, obviamente, ·somente a execução de retratos. Atender
somente a esse caso seria cair na armadilha de uma concepção es­
pecular : tudo se reduziria a olhar os olhos do retratado; Uma natureza
morta, ou inclusive a pintura não figurativa, propõem, aí "fora",
esse olhar que encarna a luz.
Se o sujeito pode localizar-se nessa função de quadro é porque
aquele é pintado pelo ponto luminoso. Não se demonstra isso somente
pela estratégia discursiva de Lacan quanto ao escópico, mas também
por algo congruente, homólogo, com a primazia da ordem significante
sobre o sujeito, à qual fizemos referência nas primeiras reuniões.
Episteme compartida, então, na diferença: a ordem significante pre­
existe ao ingresso do sujeito nela, e, previamente a que alguém veja,
existe o mundo como omnivoyeur, sustentando a ordem do olhar.
Superpondo, dizíamos, os dois esquemas triangulares se produz
- jogando com o que ocorre com o nervo óptico - um quiasma :

131
Este entrecruzamento permitirá representar a anunciada integri­
dade do tocante à problemática escópica. Os termos do esquema ficam
situados na seguinte disposição :

(Ponto geometral)
(Ponto luminoso) Sujeito da
Olhar representação
(Objeto) (Quadro)

(As legendas sem parênteses reproduzem o esquema do Seminá­


rio; a elas agregamos as que o completam) .
O recurso de que se vale na ocasião demonstra - no meu enten­
der - verdadeira sabedoria por parte de Lacan. O raciocínio seguido,
quanto a sua episteme é muito similar ao que adota quando assinala
que não se trata de afirmar a carência de comunicação pela via da
linguagem, enquanto a tarefa consiste em situar estas problemáticas em
seus termos justos. Desde já: a linguagem, como código, serve aos
efeitos da comunicação, com todas as características que têm elocubra­
do a seu respeito os lingüistas. O nodal, todavia, será para nós a fun­
ção do significante, que não está a serviço da comunicação. Essa outra
função é a que aparece no mal-entendido; nos lapsos, _ na balbúcie,
na polissemia etc. Com esse diagrama do escópico ocorre algo do
mesmo teor: não há aqui uma concepção lacaniana que anulará a
outra, porque aquela - me refiro à do sujeito da representação -
não está necessariamente equivocada. :e. somente a que qualquer um,
enquanto ser falante, continuará tendo, porque constitui a maneira
usual em que se vive. A tese apresentada pelo Seminário é aquela a
qual se pode aceder ao pensar de outra maneira o estatuto do sujeito,
abalando-o com a psicanálise. No primeiro ideário reside o espontâ­
neo da vivência, a maneira de ver que parece conatural e constitutiva;
acompanha todo sujeito e sustenta a mesma tessitura que · afirma a
linguagem enquanto comunicação . Quanto a este esquema do escópi­
co, uma questão será, conseqüentemente, a visão e - confrontada a
ela - outra o olhar; assim, damos conta da esquize do olho e do
olhar.

132
Em resumo, creio que na idéia do engodo como aquilo que, sem
exibicionismo dá a ver e todavia sugere o não visto, se instala uma
homologia com a esquize do sujeito. A esquize implica o antes expli­
cado a respeito daquilo que é inconsciente : a hiância. _ Esta serve de
suporte homológico - pelo caminho topológico - à esquize especí­
fica dos termos . do escópico.
A questão do ser e da aparência conformou um dos equívocos
habituais onde tem naufragado grande parte da psicanálise pós-f.reu­
diana, . até Lacan. No Seminário 1 1 , tal questão - novamente. ;_ é
a que abre diretamente o campo para a eh1cidação do terceiro con­
ceito fundamental : o de transferência. O tema do ser e da aparência
entra em . jogo, está claro na transferência. Desse fenômeno particular
começaremos - acompanhando o Seminário - dando uma das defi­
nições habituais, não nos importando sua condição ingênua, ou banal.
Pode-se dizer, por exemplo, que a transferência alude à estrutura
global das relações do analisando com o analista. :8 uma definição
possível, mas devemos fazer a imediata ressalva de que nessa relação
deve-se ter extremo cuidado em considerar demasiado literalmente os
afetos, pensamentos, em suma, os ditos do analisando referidos ao
analista. A questão do ser e da aparência se faz presente: não se deve
crer que o dito pelo analisando se relaciona com a situação à qual
parece remeter, porquanto se desenvolveu em outro lugar. O problema
é que se considero que provém de outro lado, surge aí a armadilha
habitual que já destacamos ao trabalhar o conceito de repetição.
Qual é? A que consiste em pensar que o analisando repete com seu
analista aquilo proveniente de uma situação passada. Assim, se subsume
e achata a transferência por meio da repetição. Se são praticamente o
mesmo, conviria, por economia, liquidar algum dos dois supostos con­
ceitos fundamentais. Todavia, o que complica a questão é que se trata
o analista, efetivamente, como se fosse outro. Fundada no seu trata­
mento, se colocou a clássica discriminação entre transferência positiva
e negativa. A primeira seria a favorecedora do trabalho analítico,
oferecendo a possibilidade de que tudo se desenvolva sem maiores
contratempos. A negativa , obviamente, seria a que faz obstácµlo ao
avanço da tarefa analisante. Essa divisão costuma ser deslocada em
seus termos : a transferência positiva é amorosa, e a negativa se baseia
não no ódio - porque isso não se diz, comenta Lacan com humor -
mas na ambivalência. A respeito, esboça outra caracterização mais
ajustada: a transferência positiva acontece quando o analista " fica

133
simpático" e a negativa - uma observação- clínica muito sagaz - é
quando o analisando não tira os olhos 5 de cima do analista, não lhe
perde os passos. Produz-se, neste último caso, o que a escola kleiniana
conhece - em termos fenomenológicos - como controle do objeto.
Há muitos modos de exemplificar essa atitude, mas de pronto a loca­
lizamos na desconfiança, em certa coloração paranóica · na relação,
onde qualquer dado "faltante " pode comportar uma segura ameaça
potencial. O não perder os passos do analista, o ter-lhe ojeriza, é como
querer "espremê-lo" para que todo traço seu de singularização em
seu dizer caduque, caia. Em termos comuns e cotidianos: o analisando
não deixa o analista viver tranqüilo. Está constantemente alerta, estado
do qual dá conta o modo de exigir permanentemente esclarecimentos
ou efetuar questionamentos acerca do que foi dito. Não acreditamos
que na transferência negativa não se façam também demandas de
amor; não se deve limitar a captação deste fato - seria algo ingê­
nuo- a uma mera reivindicação no sentido litigioso do termo.
Para além de descrições fenomenológicas não acabadamente con­
vincentes, o objetivo consiste em introduzir o conceito fundamental
de transferência no plano teórico. Na realidade, a nenhum de nós
poderia nos convencer mais completamente a apresentação da trans­
ferência como relação global analisando-analista. na qual há que se
desacreditar dos ditos do primeiro, ou conformar-nos com qualificá-la
como po_sitiva ou negativa. Há outro ponto a destacar, já que estamos
nos prolegômenos desse conceito fundamental. Alguns psicanalistas co­
mo Ida Macalpine 6 considerarão a transferência como criada, gerada,
pela situação analítica. A isto responde Lacan com o que julgo é a
experiência do menos avisado dos mortais: existem efeitos de trans­
ferência em incontáveis relações sem o pré-requisito, para ii:;so, da
situação analítica. Está claro: a análise tenta trabalhar sobre os efeitos
da transferência, o que marca uma distinção crucial com as psicote­
rapias em geral, inclusive as reclamadas como de corte analítico -
ainda que não se saiba nunca por onde cortam. Por quê? Porque se
defrontam sempre com um dilema insolúvel: o que analisar da trans-

5 . O original e a transcrição francesas trazem aqui "on l'a à l'oeir'. Vale a


pena destacar, então, como o olho (oeil ) se desvia da intelecção do escópico,
até a transferência; daí sua preservação no referente à opção assumida para
a tradução da expressão composta, e o sentido clínico lido nela.
6 . I. Macalpine, "La evolución de la transferencia", in Trabalho dei ps:coaná­
lisis, vol. 1, n. 0 3, 1982, pp. 329-50 e vol. 2, n. 0 4, 1982, pp. 93-106.

134
ferência e o que não. É algo muito similar ao que acontece nas
terapias organizadas em função de certo objetivo declarado. Em ambos
os casos se pauta um acordo comum com o paciente, onde se com­
prometerão a tratar terapeuticamente determinados pontos e não
outros.
Vocês se perguntarão porque sou especialmente crítico quando
falo destes temas, mas, como se pode dizer "de corte analítico" quando
o próprio Freud apontou 7 , já faz muitos anos, que esse desígnio equi­
vale a dizer a alguém : "Eu te embaraço para que possas parir um
braço" ? Se iniciou-se o processo, não se pode dizer que o procurado
será certo fragmento do corpo, e. não um organismo. Não é para de­
preciar o apólogo do embaraço: daí alguma coisa surgirá, mas o fará
de uma maneira que não se possa prever nem planificar: só se sabe
como começa e como termina, já que tem suas próprias leis. Quanto
à transferência, ocorre um fenômeno parecido. O que é analisar a
transferência? O que é o analisável? Aqui, como vêem, estamos em
presença de questões sumamente candentes; em particular, interessa
conhecer a margem de concessõs possíveis de outorgar quando alguém
pretende articular-se ao lugar de analista. Trata-se de pontualizar até
onde há itens negociáveis aos efeitos de que uma prática possa recla­
mar-se de psicanálise; assim, muitas vezes, não é difícil determinar
que este tenha sido lançado alegremente pela borda. Estimo, neste
aspecto, que o nomeado constitui um dos po:q.tos nodulares na consi­
deração da transferência. Esta traz consigo, então, certos elementos,
certas circunstâncias imprescindíveis. Entre outras coisas, a ação do
que temos chamado - e ainda não definido - transferência pode
provocar curas espetaculares, especialmente no início de uma análise:
as chamadas curas transferenciais . Nestes casos, à diferença de quem
diz: " - disto não · me ocupo ", o analista se pergunta: "- como me
tenho ocupado disso sem ocupar-me? " Essa é a reflexão que se impõe
se houve uma remissão sintomática, por exemplo, sem análise parti­
cular, pormenorizada, desse sintoqia. Ali sucedeu um fenômeno ligado
com a estrutura do que é · inconsciente. Esta estrutura reticular, dis­
posta como uma linguagem, faz com que a pretensão planificadora
das psicoterapias não funcione. Sim, porque se pode estar tomando
um caminho particular, estar em aparência trabalhando um elemento,

7 . S. Freud, "Sobre Ia iniciación del tratamiento (Nuevos consejos sobre Ia


técnica dei psicoanálisis, I ) ", o.e., cit., t. XII, pp. 1 3 1 -2.

135
e em realidade se está - ao mesmo tempo - incidindo impercepti­
velmente sobre outra questão. Pensar a transferência como o fazem
estas psicoterapias se relaciona com a salomônica idéia do filho con­
cebido em pedaços a escolha e/ou em cotas. Porque nossa experiên­
cia nos indica que devemos pensar em concebê-lo como dissemos, ao
modo de um organismo estruturado. Estas curas transferenciais devem
ser renietidas à estrutura do que é inconsciente, e não simplesmente
à ação de um influxo sugestivo mais ou menos velado. Não se trata
de que alguém vá a seU analista com a fé de curar-se, e só este fato
provoca resultados - fator que não é desconsiderável, se bem não
seja o aqui referido. Falo daquele outro que tem lugar quando se
instala a análise e podem aproveitar-se os efeitos da transferência.
Usualmente se diz - com bastante bom critério - que não se deve
interpretar até a instauração da transferência. Regra suficientemente

:e
sensata, mas difícil de cumprir, sobretudo se se trabalha com entre­
vistas preliminares. dificultosa sua instrumentação, por exemplo,
quando se procura comprovar a permeabilidade à metáfora, própria
do analisando. Para isso é necessário formular interpretações, já que
estas são, cabalmente, de uma estrutura alusiva; se não, serão expli­
cativas, pedagógicas, universitarizantes, no sentido de que nada dizem
do sujeito, mas que se limitam a generalidades.
As coisas não se correspondem com a concepção de Ida Macal­
pine e ,seus adeptos que pensam a transferência como produto da
análise. O que acontece sim é que nossa prática tem a virtude elogiável
de contar com a transferência em seu campo. Foi mérito do gênio de
Freud tê-la descoberto e gerar as condições para torná-la operante.
Aqui começam, pois, todas as questões que estamos apresentando
acerca deste conceito fundamental. Pois bem , com a transferência en­
quanto integrante de nosso campo operacional, contamos a favor, ou
contra? Ajuda a análise ou, pelo contrário, a perturba? Aí penetra­
mos efetivamente na intimidade do qu� se passa na clínica psicanalíti­
ca, para além de discriminações meramente fenomenológicas.
O caminho que, a respeito, tomará Lacan no Seminário 1 1 é
apresentado pelo próprio título do capítulo : Presença do analista.
Este título comenta ironicamente - sem menção do autor - as idéias
de Sacha Nacht, um dos responsáveis pelo Instituto Psicanalítico de
Paris nos tempos da cisão de. 1 953. Nacht - que em 1 966, publicá

8 . S. Nacht, La presencia del psicoanalista, Buenos Aires, Proteo, 1967.

136
um livro com aquele mesmo título 8 - subscreveu um plano para a
formação de analistas sobre o qual Lacan fez ácidos comentários crí­
ticos incluídos no Discurso de Roma 9 • Tal plano propunha que a
ciência que compreendesse os estudos do psicanalista se chamasse
- atenção a isso - "neurobiologia humana". Não é demais destacar
a medicalização em jogo; ou a maneira com que se omitia violenta­
mente tudo aquilo atinente às disciplinas conexas com a consideração
dos efeitos do significante. Era um plano de formação para médicos,
de acordo com esse ·equívoco anti-freudiano que consiste em supor que
a psicanálise é um ramo da medicina. Para esclarecer dúvidas deve­
mos afirmar o seguinte : tampouco a psicologia inclui a psicanálise en­
quanto disciplina do significante. Em uma carta dirigida a Pfister, em
1928, Freud recordava qµe havia escrito dois textos, recentes para
esse .então. O primeiro era a Análise profana ou Podem os leigos exer­
cer a análise?, de 1 926. Um ano depois havia publicado O porvir de
uma ilusão. Através deles tentava demonstrar que tanto médicos como
sacerdotes conformam um conjunto privilegiado entre aqueles de quem
deve proteger-se a psicanálise. Em todo caso, haveria que pensar
- diz - em outro grupo profissional cuja possível denominação
seria a de "pastores de almas profanos" 10 • Desse modo, Freud adverte
o corte epistêmico implicado no surgimento do campo da psicanálise.
É que se deve - nisso faço um pouco de autobiografia - desapren­
der o aprendido, venha da medicina . ou da psicologia. Em lugar disso
deve-se tratar de adquirir um pensamento de ordem psicanalítica.
Se o médico objetiviza os órgãos, o psicólogo objetiviza o eu. O citado
é um tema crucial, já que consiste no obstáculo decisivo, no s.usten­
táculo da psicanálise pós-freudiana contra o qual Lacan trava sua
batalha. A psícologia do ego - especificamente a americana - pos­
sui, em relação com a transferência, uma concepção bastante difundi­
da. Afirma que nela se trata de estabelecer uma aliança terapêutica
com a parte sã do ego do paciente para que, em coalescência com
esse são por excelência encarnado pelo analista, possam enfrentar
juntos a loucura dessa outra parte do paciente. O Seminário aponta
uma demarcação muito correta. É aqui - afirma - onde pode se
reconhecer, de pronto, ,a esquize do sujeito em uma de suas manifes-

9 . J. Lacan, "Función y campo . . . ", cit., pp. 59-63.


10 . S. Freud, "Carta a O. Pfister de 25/ 1 1 /28", in S. Freud - O. Pfister,
Correspondencia 1909-1 939, México, Pondo de Cultura Económica, 1966,
pp. 120-21.

137
tações. Aquele com o qual os psicólogos do ego querem se aliar, isso
que estimam com a parte sã do analisando, é justamente oi:ide deve­
riam reconhecer a enfermidade. A suposta parte sã não conforma
senão aquilo que o. "analista" pretende do analisando: que seja igual ao
analista. :e, em última instância, o que faz obstáculo pela dimensão de
especularidade nesse estancamento fascinante entre duas supostas par­
tes sãs e iguais. As vezes Lacan comenta ironizando acerca desse
proceder baseado em uma presunção. Poderíamos colocar essa atitude
- sustenta - sob a afirmação: onde estava o isso do analisando, que
esteja o eu do analista. Vale dizer, que o sujeito seja "prendido" até
os limites de sua nadificação. Por quê? · Porque um efeito da transfe­
rência é, entre outras coisas - e, sobretudo, no início da análise -
que o analista está no lugar da idealização .
Eritre diversas manifestações, esta idealização costuma ser figu­
rada em termos da saúde, da múltipla potência, do acesso à felicidade
mais ou menos beatificada que supostamente tem o analista. :e claro
que tudo isso está ligado a uma dimensão amorosa. Este é . o ponto
determinante para entrar, por outro plano, na questão da transferên­
cia. Previamente a isso, Lacan efetua a pontuação precisa da pro­
posta de Nacht. Este desenvolvimento - assinala - toma a transfe­
rência em um sentido que poderia se considerar quase - _no meu
entender - cristão. Trata-se, na presença nachtiana do analista, de
que a· "1;1parência" deste durante a análise vá remitindo, vá reduzin­
do-se, para que o analisando - sobretudo até o final do processo -
possa acercar�se �o analista como presença e apreciá-lo como "real­
mente" é. Isto 'implica, está claro, esquecer por completo aquilo de
"nunca me olha de onde te vejo ª e "o que olho nunca é o que quero
ver". Vale dizer, implica desestimar a dimensão do encontro falho.
Nesta espécie de bom matrimônio estabelecido no fim da análise
- segundo supõe Nacht - emerge ,a função-presença do analista.
Lacan resgata como faz muitas outras vezes - o termo, mas só para
melhor subvertê-lo. Se perguntará: O que é presença do analista? E
dará uma resposta: é aquilo capaz de permitir que o que é incons­
ciente possa despregar seus efeitos. Recordemos que no texto intitu­
lado Televisão 11 - e em Posi_ção do inconsciente 12 - Lacan afirma

1 1 . J. Lacan, Télévision, Paris, Seuil, 1974, p. 26.


12 . J. Lacan, "Posición de (de lo) inconsciente", Escritos li, cit., p. 371>.

1 38
que o analista forma parte do conceito do aquilo que é inconsciente.
Creio que é uma maneira admirável de tratar o analista como pre­
sença; é a presença do analista a que forma parte do . conceito de
insconsciente, pois é a quem esse se dirige. Portanto, convenhamos·
que o conceito não é simplesmente uma notícia teórica, uma abstra­
ção, mas que um conceito " toma corpo ", se corporiza. Assim, o que é
inconsciente tem eficácia operativa e efetuação, se existe o analista.
Este é um exemplo de como não somente se podem, mas que se devem
articular os conceitos fundamentais segundo distintas vertentes. ó que
fazemos agora é relacionar os tei:mos ligados à transferência, fundan­
do-nos nessa, a meu juízó, subversiva definição de conceito, tal que
o torna certamente aconceitual. O conceito, conseqüentemente, não é
algo vigente meramente QOS papéis, ou efetivo como recitado, mas
que envolve, necessariamente, a dimensão interlocutiva em jogo. Cabe
falar daquilo que é inconsciente como um conceito, mas também como
um campo sobre o qual é viável operar; sobre isso dá conta nossa
· prática cotidiana, disso nos ocupamos todos os dias. Não é o que é
inconsciente, portanto, - já para culminar com essa exposição -
um conceito fundamental do qual se possa predicar fora da presença
do analista.

Questões .

l>.: O senhor assinalou que a psicanálise não faz introspecção,


mas a transferência não se relaciona de alguma maneira com a dimen­
são do introspectivo?
R.: Não vejo porque seria assim. Tomemos por exemplo o exposto
por Freud em Para além do princípio do prazer - texto que traba­
lharemos mais detidamente na próxima reunião. O analisando não
recorda ter sido uma criança desordeira, opositor sistemático de seu
pai, mas que agora apresenta essa conduta; repete em ato seu fracasso,
com o analista. Esta observação requer uma interpretação analítica.
Não é própria do sujeito da representação, aquele do ver-se ver-se.
Quando Lacan define o que é inconsciente como discurso do Outro,
alude que esse retorna de fora, mediante o dito do analista. Como
poderá apreciar, se está assim cada vez mais longe do introspectivo.
P . : Poderia fazer uma distinção entre o uso dos termos " trans­
ferência" e "efeito de transferência " ?

1 39
R. : De acordo: cabe-nos perguntar porque devemos fazer uma
diferença entre transferência e efeito. Talvez se trate, para ser rigo­
roso, de que definitivamente a transferência é aquilo passível de
analisar-se na psicanálise. Efeitos de transferência poderiam se dar
em numerosas situações da vida, mas estes não são processados nos
termos anteriores nem são aptos para serem remetidos, referidos, de
- e a - um modo metafórico, mas que são vividos imaginariamente.
Por outro lado, é preciso reparar na insistência de Lacan em
dizer "efeito de". J! que se não há efeito, não existe a menor possi­
bilidade de trabalhar acerca de nenhuma questão. Este procedimento
implica insistir em que não se trata, na análise, de uma dimensão inte­
rior, introspectiva, de mundo e objetos internos, todas as teorias de
episteme consciencialista, ainda que reclamem do contrário. A recor­
rência a "efeito de " traz múltiplas conseqüências, porquanto se refere
a estas últimas.
P. : Não seria mais exato, quanto à questão do ser e da aparência,
nos referir à distinção entre ser e ente? O ente é o que se mostra,
enquanto devemos desvelar, mediante o conhecimento, o ser que se
oculta atrás dele.
R.: O ponto ,.q.ue nos interessa destacar, sobretudo a partir das
questões ligadas ao engodo, não all.¼de a uma dimensão cognoscitiva,
mas sim à ordem pulsional. . Ou seja, à específica combinação da
pulsão cie vida com a pulsão de morte. O substantivo não é o afã de
conhecer ou a impossibilidade de conhecimento, mas, por exemplo,
como pode ser que o véu excite, ou como esse parecer ser mais do
que é, intimide. Nossa intenção consiste em tentar dar conta das raízes
pulsionais daquilo que usualmente se · coloca no campo da filosofia
em - termos estritamente cognoscitiv�s.
.P. : O diagrama do olhar que Lacan apresenta nesse Seminário,
tem algo a ver com a experjência do' vaso invertido e com a forma­
ção da imagem virtual?
R.: O modelo óptico dos Escritos atende, em particular, à di- ·
mensão dos ideais, que nestes diagramas não é · levada em conta.
Naquela oportunidade, Lacan se centrou na conformação e _na eluci­
dação da dupla eu ideal-ideal do eu 13 • Aqui se trata de outra coisa,
1 3 . J. Lacan, "Observación sobre el informe de Daniel Lagacbe: 'Psicoanálisis
y estructura de la personalidad' ", Escritos II, cit., pp. 289-30S.

140
muito demarcada, porque lhe importa destacar a crucialidade do modo
com que se elude a c.astração através desse objeto a chamado olhar.
O diagrama do Seminário 1 1 é um suporte muitç, elementar - geome­
tral, inclusive - o bidimensional. Dispõe-se aos fins de poder pensar
certas questões e poder colocar um segmento de análise estrutural;
não é casual que os dois triângulos - o da visão e do olhar - sejam
opositivos. Depois se apresenta o quiasma, enquanto símil de um en­
trecruzamento de fibras. Neste ponto, digamos que é do efeito de sínte­
se do qual Lacan, pela primeira vez efetuou uma análise. Tenta assim
processar como estamos incessantemente "tomados" pelo escópico; em
especial, pelo enfatuado sujeito da representação. Ao mesmo tempo,
não deixa de advertir as ocasiões onde este c;,bjeto a-olhar pode ser
detectado.

141
VI
ENGANO, SABER, IDEAL - A TRANSFEMNCIA II

Hoje quero comentar-lhes certa circunstância ocorrida quando


me dispus a ler no jornal o anúncio desta nossa reunião. Percebi que
havia me transformado em um senhor chamado Hareptos. Como po­
derão dar-se conta, tal vocábulo começa com as primeiras letras de
meu sobrenome e continua com as últimas de " conceptos'.':

HAR � CONC ·

ARI l'EPTOS

O vocábulo conceptos, sem dúvida, foi recuperado a partir do


título deste curso. Quando li, a princípio não entendia, até que surgiu,
clara, a condensação. � um exemplo interessante para observar como
joga a função do nome próprio. Apresento aqui o sucedido sem poder
dar· pormenores, obviamente, acerca do modo em que se chegou a
configurar esta formação do que é inconsciente. Houve aqui um pro­
cesso de corrimento metonímico que derivou depois em uma conden­
sação, segundo Freud, ou em uma metáfora, diria Lacan. A metáfora 1
alude essencial, crucialmente, à condição fundante do sujeito, que
o é em função da paternidade; desta, advém o nome próprio. Refiro-

1 . Cf. cap. X.

143
me à paternidade pelo caminho, estritamente, do sobrenome. Diante
da leitura deste aviso, devo aclarar que por agora sigo carregando o
meu, e não o atribuído pelo jornal.
:É interessante o lapso porque me fez evocar quando na escola,
ante a insistência no erro sobre a escrita de meu sobrenome, ao deno­
minar-me " Harari com 'h' e tudo junto" . Ao me perguntarem como
me chamava, respondia assim para que ficasse nítido, presente, o fato
de portar essa marca, essa inscrição. São reações habituais que acon­
tecem quando alguém encontra-se repentinamente " injuriado" com seu
nome próprio. Porque um equívoco a esse respeito não equivale a
qualquer outro lapso. Em que pese o já mencionado, desta vez sinto­
me lisonjeado pelo fato de que tenho me ligado tão estreitamente aos
conceitos da psicanálise. Não deixo de reconhecer que algo se cumpriu
por parte do processamento inconsciente cuja conclusão é este novo
sobrenome.
Vamos então aos conceitos . Na aula passada começamos com o
terceiro deles : o da transferência, sobre o qual havíamos brindado
algumas poucas notas praticamente indicativas, fenomenológicas. Se­
guindo com esse desenvolvimento, Lacan dispõe a seguinte estratégia
expositiva no Seminário 1 1 : começa com o terceiro conceito funda­
mental, para imediatamente dar início ao quarto - a pulsão. Fundado
em um motivo didático - se aceitam tal justificativa - é que pro­
cessarei · outro percurso. Faço-o porque há momentos posteriores no
transcurso do Seminário, nos quais é retomado o conceito de transfe­
rência. Parece-me mais oportuno, dadas as características deste breve
curso, apreender esparsamente, segundo vai aparecendo, a temática
da transferência. Assim, reservaremos as últimas reuniões - hoje
· começamos a segunda metade destes encontros - à questão funda­
mental da pulsão, tema que nos permitirá incluir a decisiva proble­
mática lacaniana a respeito da co�stituição do sujeito, ou melhor
ainda : as operações de causação do sujeito. Por agora só as enuncia­
rei; mas adiante voltaremos a isto. São estas : a alienação e a separa­
ção. Nosso decurso imediato tentará uma leitura introdutória do capí­
tulo XII do Seminário, intitulado : A sexualidade nos desfiles do
significante. Em seguida recorreremos a certas partes do capítulo
XVIII : Do sujeito suposto saber, da primeira díade, e do bem, e do
XIX, que tem por título : Da interpretação à transferência. Sobre estes
capítulos girará nossa . conceitualização seguinte acerca da transfe­
rência.

144
Na primeira aula, pontualizamos uma definição da transferência.
A incluímos novamente: a realidade daquilo que é inconsciente posta
em ato. Reparemos, está claro, na menção à realidade, e não ao Real.
Esta é uma discriminação, como sabemos, crucial para a teorização
Iacaniana, na qual se adotam critérios muito precisos. Por que fincar
pé nesta questão da realidade? Para responder a esta qttestão, reali­
zemos um breve rodeio, que fará as vezes de racconto. Vocês recor­
darão quando trabalhamos, na aula . anterior, a temática do escópico
a partir do desenvolvimento do olhar. Assinalamos que no· escópico
havia, como característica especial, certa idéia do engodo e da más­
cara : uma aparência encobridora, sugerindo algo além. Não tratamos
de essências, pois não é nosso propósito o de substancializar os con­
ceitos. Concordamos entãq que esta idéia permitia desembaraçar as
relações entre a aparência e esse algo além para derivar, a partir daí,
a transferência, a qual se refere a algo distinto do que parece ser.
Podemos sustentar isso, sendo conscientes de que implica uma abor- ·
dagem pouco menos que banal e até tautológica. Nesse registro fize­
mos menção à divisão entre transferência negativa e positiva, e tam­
bém incluímos o recurso de não levar muito a sério o que diz o
analisando sobre o analista, como se isso fosse uma realidade. Ali
recém começava a questão. Destas considerações surgiu uma linha
tradicional do pós-freudismo cujo objetivo curativo consiste em tentar
localizar o analisando no marco de uma realidade, apartando a defor­
mação comportada pela transferência. Estas correntes supõem que a
transferência engana. A função do analista, portanto, seria conseguir
remontar esse engano por meio de intervenções do seguinte tipo:
"- isso que você acredita não é assim na realidade; é de tal outra
maneira". Núcleo de verdade: a idéia do engano fica ligada - até
nestas concepções -- decisivamente à transferência. :É possível, então,
estabelecer uma pontuação muito elementar para começar: a transfe­
rência ,=;;stá firmemente relacionada com a dimensão do engano:

Transferência ➔ engano

Existem reflexões muito agudas de Lacan a respeito do engano;


sobretudo, de algo bastante usual : de uma manobra errônea na análi­
se, que ocorre quando o engano se interpreta de · modo reflexivo (isto
é, enganar-se). Em que sentido consideramos que denunciar o " auto-

145
engano" do analisando consiste em uma manobra fora de lugar? No
que lhe fala a tão famosa "parte sã", assinalada no encontro passado.
Apela-se ao bom juízo, ao bom senso desta parte, convocando-a para
combater a parte enferma. Esta ação se produz fundada em um argu­
mento pelo menos tão antigo quanto Sócrates. Consiste em postular
uma espécie de poder irresistível que o bem exerce sobre o sujeito.
Se o sujeito conhece o bem, sabe do bem, se inclinará por ele; isto,
se sustenta como um subentendido. Se faz o mal - obviamente - é
somente porque ignora. De acordo com esta peculiar moral, em suma,
bastaria conhecer o bem para inclinar-se a ele de forma espontânea.
Enganar-se significaria, em última instância, não conhecer, o que
determinaria estar incurso em uma moral malévola. Fundando-se nestes
argumentos apela-se assim ao bom senso, à informação e ao saber do
analisando, os quais o levariam a transitar pelo bom· caminho. O uni­
verso "psi", como sabemos, oferece para os cidadãos em geral produ­
tos dessa natureza. Conhecer os pormenores "psi", supõe-se, fará com
que a população proceda "bem " . Não faz muito tempo tive oportu­
nidade de encarar este ponto criticamente em um breye trabalho de
natureza periodística. Ali recordava o expressado por Freud a uma
senhora que exigia conselhos acerca da criação adequada de seu
filho - de acordo com os cânones psicanalíticos - a fim de prevenir
qualquer alteração psíquica. Freud respondeu-lhe que não se preo­
cupasse; fizesse o que fizesse, o faria mal. Isto se devia a um ceticismo
por parte do pai da psicanálise? Ou talvez se dirigia a assinalar que
todos somos - e seremos - irremediavelmente neuróticos? Naquele
trabalho argumentei o seguinte: a resposta não fez notar que fizesse
o que fizesse lhe faria mal; só disse que o faria mal. Diferença radi­
cal, no meu entender. A questão não consiste no prejuízo ou eventual
neurotização do garoto, mas sim no fato de que a senhora se impu­
sesse a cumprir determinadas normas tal investida não seria possível,
porque na verdade faria o que seu de�ejo lhe ditasse, enquanto a nor­
ma abstrata e geral tem por .função - velada - a indução do gozo
" mass-mediático " . Faz-se de superego parasita, induzindo mal-estar no
sujeito ao comprovar o inexorável não cumprimento do mandato "sa­
lutar". Neste caso, por não implementar - com respeito a seu filho
ou a quem fosse - uma criação como a psicanálise manda. Escutemos
bem: tais procedimentos fazem equivaler a psicanálise ao esperado
de Deus . Neste tipo de propostas, efetivamente, transforma-se a psica­
nálise em religião; assim, se lhe pede, se lhe exige, que provoque uma

146
reforma moral da sociedade, tal que está possa chegar a encontrar-se
constituída por " indivíduos sãos " . Tudo isto derivamos da função do
engano contida na falácia da moral socrática - não é exagerado quali­
ficá-la assim - que segue sendo vigente até hoje, mediante um engo­
do . Quantas vezes os analisandos, frente a uma certa descoberta nas
:sessões, costumam apelar ao pedido de " inocência " , colocando o ana­
lista como dimensão superegóica ! A conseguinte " resposta " às irrup�
.ções daquilo que é inconsciente é então " - Ah ! mas eu não sabia
que isso era assim." Aludir à ignorância manifesta é um modo de
,escamotear o registro do desejo 2 • Lacail assinalará, então, que a di­
mensão do engano é absolutamente constituinte da transferência. O
engano aludido é, não obstante, bastante distinto da presunção de que
se trata de uma deformação da realidade consensual . Incluamos agora,
no gráfico desenhado antes, a definição da transferência e a relação
opositiva realidade-engano :

I.
A daquilo que é inconsciente posta em ato

Transfecncia ------• gano

Na relação realidade-engano : Existe o engano a respeito da rea­


lidade? Indubitavelmente que sim. Mas isto não acontece, contudo,
devido a uma espécie de ignorância moral, por desconhecimento dos
parâmetros do bem e do mal, mas sim devido a outra causa . Algo
bastante pueril, comum e cotidiano, que tem determinado a produção
incessante de tantas e tantas alegrias e sofrimentos dos seres falantes .
Refiro-me, nem mais nem menos, ao amor. Se na transferência há
engano, é precisamente porque ali está em jogo o
amor:

J
A' aquilo que é inconsciente posto em ato

,
....------------
Transferência
.-
· · engano(amor)

O que quer dizer que há engano no amor? Pode-se acreditar que


esta afirmação remeta à distinção entre um amor enganoso e outro

2 . Sem apartar a questão de que a ignorância é uma paixão do ser, e que


nada abona a pretensão de postular uma pulsão epistemofílica.

147
que não o é. Acaso não existe o amor verdadeiro? Bem, não se trata
aqui de fingir amor onde ele não existe, mas sim de afirmar o engano
como constitutivo do amor. Sucede que quando alguém diz amar, o
que quer é ser amado. Esta, a descoberta crucial de Freud 3 : é este
o engano constitutivo do amor. Voltando a nosso conceito fundamen­
tal, o caso é que a transferência constitui-se em função do amor.
Recorramos ao texto clássico de Freud: O bservações sobre o amor de
transferência. Podemos nos perguntar porque se inquietou, porque
escreveu de forma exclusiva acerca do amor de transferência, e não
de qualquer outra manifestação do fenômeno. � que foi à medula, ao
nódulo mesmo do que significa a transferência. Não considerou, por­
tanto, que a amorosa é a positiva e a do ódio é a negativa; não,
porque a transferência amorosa é aquela que possibilita o trabalho
analítico e ao mesmo tempo o obtura.
Na transferência há a abertura daquilo que é inconsciente, já que
aí se articula o analisando à análise sob a figura do analista - depois
discriminaremos melhor este ponto. Ao mesmo tempo, paradoxalmen­
te, a transferência é fecham�nto daquilo que é · inconsciente - cabe
aqui , recordar a nassa, visto que o analisando - como · bem descre­
ve Freud - esquiva a remissão de uma situação a outra, atribuindo­
lhe absoluta veracidade e legitimidade ao que ocorre aqui e agora.
Se lermos com atenção o texto mencionado, podemos advertir que de
nenhum. modo o amor de transferência é considerado falso. Muito
usualmente a manobra, a condução analítica da transferência amoro­
sa, se reduz a emitir · considerações como a seguinte: " - o que você
sente, na realidade não sente comigo mas sim com outro. Você s�
engana : eu sou somente seu analista " . Isto costuma referir-se a algum
personagem passado; então se produz a já aludida confusão da trans­
ferência com a repetição. O analisando repete com o analista o que se
refere a outro. Aqui, agora e comigo transfo rma-se no que estava
distante, antes e com outro. . O que diz Lacan é - ainda que não
esteja dito exatamente com este jogo de palavras - que não se pode
pensar a transferência fora do amor, mas tampouco se pode pensar o
amor fora da transferência. O amor, efetivamente, · · implica transfe­
rência. Na aula passada me perguntaram pela discriminação entre

3 . S. Freud, lntroducción dei narcisismo (narcismo), O.e., cit., t. XIV, pp. 84


e ss. ; e Psicología de las masas y análisis dei yo, O.e., cit., volume XIX,
pp. 105- 10

148
transferência e efeitos de transferência. Reitero : não faz falta, de
modo algum, a situação analítica -para que se desencadeiem os efeitos
da transferência. Eles sobrevêm juntamente com um fator que não
tem porque requerer, estritamente, o perímetro de nossa práxis. Só se
precisa da aparição de alguém que encarne - devemos tomar isto no
sentido literal do termo : em-carne, dê uma carne, alguém que deve pôr
o corpo - alguém que encarne, dizia, o enquadre decisivo para a
transferência: le sujet supposé savoir. Cito assim para oferecer-lhes
minha tradução desta locução lacaniana que no meu entender foi,
freqüentemente, mal traduzida. Vale a pena destacá- lo : é o sujeito
suposto saber, que também pode ser apresentado como um triplÕ " s ",
com o intermediário em minúscula: S.s.S. Às vezes se tem traduzido
como suposto sujeito do saber, definição que sugere, francamente, a
imaginação acerca de alguém como possuidor de uin saber determi-·
nado. Esse alguém, certamente, é um sujeito. Segundo tal proposta
de tradução, postula-se, novamente, uma dimensão · relacionada com o
enganar-se : assim, se crê que tal pessoa é depositária de um determi­
nado saber e, daí, suposto sujeito do saber. Se eu dissesse saber suposto
ao sujeito, ou sujeito que se supõe. saber 4, estaríamos diante do mesmo
problema. Dizer, pelo contrário, sujeito suposto saber - como pro­
ponho - implica fazer anteceder o saber ao sujeito; :e
ter em conta,
congruentemente, que há uma estrutura preexistente; à qual o sujeito
oferece seu ser. Claro que esJe desenvolvimento se refere a um saber
não no sentido de um conhecimento - o digo propositalmente de
modo redundante - cognoscitivamente concebido. 1!, ao contrário, uin
saber acerca da dimensão do desejo que conforma o sujeito : o que é
inconsciente como um saber articulado, que não se· sabe. Mas o lugar
do Outro sabe sobre mim , pode dar respostas às. interrogações de
minha existência. Portanto, é sobre a psicanálise onde se realiza, em
última instância, a transferência; o· sujeito com nome e sobrenome,
exigido como analista, se colocará nesse lugar. Ele será a encarnação
parcial do saber faltante ; então, o antecede um saber, assim como
dizíamos que o Simbólico antecede ao sujeito. Se é parcial, a . mano­
bra consiste no mais alto grau em supor, como efeito resultante, um
saber ao sujeito; não em subscrever a identidade, a equivalência re­
cobridora.

4 . Esta última é a opção proposta pela · nova versão do Seminário (Buenos


· Aires.� Paid6s, 1 986; pp. 238 e ss. ) , a qual, por outro lado, se reclama
como " l.ª edição castelhana" (sic, p. 6 ) .

149
Afirmar-se a um certo sujeito como de saber efetivo - a não
supô-lo como tal - corre o risco certo destacado por Lacan em De
uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose: o sinis­
tro encontro psicotizante com o que denomina Um-pai 5 • Este é um
personagem particular que em um momento dado da vida de um
sujeito opera como Um-pai real, desencadeando a psicose. Não a de­
termina, mas aparece como um detonador ante o chamado do sujeito,
induzido, em maior grau, a um campo .de agressão eretizado. Este
Um-pai, a meu ver, pode chegar a ser o Saber, já não suposto, mas
afirmado sem inconsistência, sem castração. Resulta interessante adver­
tir, a respeito, como Lacan pensava que havia, no campo da psicaná­
lise, alguém que sabia. Esse que sabia - não enquanto suposto saber
- era Freud 6 • Contudo, seu saber não versava sobre teoria ou con­
ceitos; Freud sabia acerca do desejo definidor do psicamdista como tal.
Ser psicanalista é enfrentar-se com a ordem constituinte do dese­
jo. Por isso, colocamos como pivô central da análise aquilo que traba­
lhamos, basicamente, em nosso segundo encontro: o desejo do analista.
Como antes assinalamos, existe uma moral socrática, falaz, da
qual o analista seria seu lugar-tenente contemporâneo. Como? Pois
supondo que o psicanalista é quem quer o bem do outro, já que seu
trabalho está orientado a levar esse outro para a irresistível união com
aquilo que lhe faz bem. Mas o Seminário adverte que quando se
apela, seguindo esta moral socrática, à parte sã do analisando e o
convida a guiar-se por esse bem, o analista não leva em conta - não
analisa - uma dimensão nodular do desejo: aquela caracterizável
como um aparente não-desejo, como um não querer desejar. Deve-se
_recordar que esta é uma modalida,de típica do psiconeurótico? Na
qual se capta que não querer desejar é querer não desejar. �. precisa­
mente! uma fase defensiva por cujo 'intermédio se ratifica um traço
decisivo no pensamento freudiano, batizado como desidero. Isto é só
uma maneira -' apelando ao latim - de expressar que a articulação
do sujeito com o desejo tem caráter de fundamento. O desejo é o
sedimento último da ação do significante sobre o sujeito a que dá
lugar.

5 . J. Lacan, Escritos II, cit., pp. 262-68.


6 . J. Lacan, Los cuatro conceptos . . . , cit., p. 237.

1 50
Rememoremos que o sujeito pode ser constituído justamente por
ser aquilo que é inconsciente estruturado como uma linguagem. Pois
esta constituição. determina que tal desidero seja aquele último - ou
primeiro - onde se pode encontrar o modo no qual o sujeito regula
sua vida. Convém enfatizar este ponto já exposto : desejo do análista
não é desejo de ser analista, nem tampouco é o desejo de cada ana­
lista . Este último, em particular, coloca-se na rançosa ordem da subje­
tividade própria do introspeccionismo - malicioso como orientação
epistemológica - fundando-se precariamente no : " eu sinto que",
ou no " eu penso que " . A apelação, em lugar do desidero, a uma
cognição " sentida" , como parâmetro de verdade e testemunho irrecusá­
vel, culmina no inefável . O "eu sinto " , sem dúvida, alude a um
mundo interior, mas comQ transmiti-lo? Sobre isso, ·o que se pode
processar? Que alguém sinta, pertencê à ordem do sujeito da repre­
sentação, quem encontra no afeto racionalizado um bastião máximo
e intransferível . O desejo do analista, em troca, leva a colocar o saber
no lugar da verdade; é uma função à qual o sujeito oferece seu ser.
O sujeito deve procurar instalar-se no desejo do analista, que pode­
ríamos, talvez, definir como desejo dos analistas . Provisoriamente,
creio que é Ull).a formulação viável, porque permite destacar, do
conceito, o denominador comum implicado no fato de propor-se como
solicitante da transferênda . O desejo do analista - nos diz Lacan -
é aquilo sobre o qual se funda o campo de nossa prática. Isto é
importante, porque implica considerar que não é só o desejo do anali­
sando o fundante. Quem vem como analisando chega, e faz sua trans­
ferência. O novo é este acento lacaniano : não que o desejo do analista
tenha seu próprio estatuto, mas o circunscrevê-lo como o próprio pivô
da análise. Isto comporta uma torção bastante brusca impressa à eluci­
dação global de nossa práxis . Então, se o pivô desfalece, pode chegar
a " cair" a própria análise, ou ver-se interrompida abruptamente re­
cordemos aqui o acting out e a passagem ao ato 7 • Esta consideração
faz Lacan recomendar ao analista que ponha as suas barbas de molho.
Que se pergunte - não como uma bela alma · - o seguinte: " Que
parte me toca na sustentação da desordem que denuncio? " 8 • Aborda
esta questão de um modo aparentemente persecutório e possivelmente
antipático para os colegas : com efeito, se deve pôr o analista no banco

7 . Cf. cap. II.


8 . J. Lacan, "lntervención sobre la transferencia", Escritos 1, cit., p. 4 1 .

151
dos réus. Que dê suas razões; do contrário, todo efeito transferencial
violento fica limitado, em sua "intelecção", ao fato de ter s�a origem
em alguma hipotética patologia intratável do analisando.
Ao fincar pé no desejo do' analista, também está enfatizando que
o desidero do analista deve enfrentar-se, certamente, com a sexuali­
dade. Deve fazê-lo a partir do momento em que fica marcado o começo
da psicanálise. Refiro-me ao momento fundante em que a paciente por
antonoJ:Dásia - todo mundo já o conhece · - permite o início de nossa
disciplina. Aquela Anna O. libera paradoxalmente a análise mediante
a articulação com o desfalecimento da condição de seu terapeuta,
Breuer. Ali podemos localizar de que maneira joga a sexualidade no
desejo do analista. Se lemos o histórico de Anna O., não encontramos
praticamente referência alguma à sexualidade. Não havia nada mani­
festo, até que aparece o imprevisto na forma mais insólita : a de uma
pseudociese, uma gravidez histérica. Este efeito surgiu de forma sur­
preendente, desconcertando Breuer. A reação do terapeuta é célebre:
abandonou sua paciente e se foi com sua mulher para Veneza, para
passar ali uma segunda lua de mel. Segundo Ernest J ones - e Lacan
o · seguia nestes dados· - nesse período o casal Breuer concebeu uma
filha que terminou seus dias suicidando-se, nos Estados Unidos, devi­
do, com segurança, às condições em que foi concebida. O subscrito
data de . 1 964; hoje, os testemunhos têm mudado este quadro.
Tenho aqui um livro de Lucy Freeman, publicado em 1 97 1 . Seu
título é A história de Anna O. Contudo não está editado em caste­
lhano, o que talvez obedeça ao fato de não ser visto como um texto
capaz de circular de maneira lucrativa. 1! uma pena, porque a leitura
de algumas passagens desta obra resulta muito valiosa para esclarecer
as assim chamadas origens da psicanálise. Para elucidar o sucedido ·
com Breuer conta também uma carta cl,e Freud dirigida a Stefan Zweig
- numerada como 265 em sua Correspóndência - onde revela por­
menores da emergência da transferência de " Anna" de maneira tão
peculiar, como inesperada sexualidade, através da pseudociese. Nesse
momento - nos juntamos a Lacan - aconteceu de forma repentina
um desfalecimento dp desejo do analista, em prol do desejo de um
analista em particular, Josef Breuer, à aparente busca de um novo
filho. Filho . verbalizado por "Anna ", em meio a suas contrações abdo­
minais. desta forma: - " Chega o menino do doutor Breuerl "

1 52
Na carta citada, escrevia Freud : " Naquele momento ele (Breuer)
teve nas mãos a chave que houvera ' aberto as portas às mães', mas a
deixou cair " i. (Aí há uma referência literária, tomada da parte I I
do Fausto de � oethe) . Evidentemente a situação não pôde ser supor­
tada por Breuer, que preso - acrescenta a carta - de " um grande
horror convencional " , deu-�e à fuga. Não obstante, hoje contamos. com
outros dados de tipo histórico, que lhes leio : " O doutor George H ..
Pollock, diretor do Instituto de Psicanálise de Chicago, fêz também
o
investigações sobre caso de Anna O . Descobriu o erro cometido por
J ones ao afirmar que uma filha havia sido concebida logo depois que
Breuer havia terminado precipitadamente o tratamento . . . " Aqui con­
tinua o que já lhes relatei : a viagem a Veneza etc. Prossegue o . texto :
" O doutor Pollock obteve de membros da família de Breuer provas
tomadas dos arquivos da cidade de Viena, demonstrando que esta
menina - Dora, a menor dos filhos de Breuer - nasceu a 1 1 de
março de 1 882. O tratamento de Berta Pappenheim (o verdadeiro
nome de Anna O .) terminou em 7 de junho do mesmo ano . Portanto,
esta filha havia sido concebida no ano precedente. " Aqui há, então,
um primeiro erro . Pollock descobriu além disso que Dora não se sui­
cidou nos Estados Unidos, como expunha Jones, mas sim o fêz em
Viena quando os nazistas bateram a sua porta para transportá-la para
um campo de concentração, o que foi co:i:ifirmado através de reiteradas
entrevistas de seus familiares 1 0 • Estes são erros que valem a pena
corrigir em honra da verdade, segundo aconteceram os fatos, mas não
modificam, em absoluto, a referência decisiva a uma brusca e inespe­
rada irrupção da sexualidade. Foi esta que provocou a fuga atemori­
zada de Breuer ante este pequeno fardo . Evidentemente, ele sabia que
não se tratava de um filho seu; então qual era a questão? O que
faríamos em seu lugar? Dizer que o suposto filho era uma demanda
dirigida a outro, ou dar conta da dimensão do engano que constitui
a transferência?
Lacan, com sua habitual agudeza, captou o que sucede com as
vicissitudes do amor já . desde o início da análise.

9 . S. Freud, "Carta a S, Zweig del 2/6/32", ipistolario (1873-1 939), Madrid,


Biblioteca Nueva, 1963, p. 457.
10 . L. Freeman, L'histoire d'Anna O., Paris, Presses Universitaires de France,
1977, pp. 248-9.

153
Quando se instala o amor de transferência o analisando quer
transformar-se em amável, não no sentido de gentil, mas sim de alguém
possível de ser amado . Consegue propor-se 1,1esse lugar colocando o
analista no lugar do amador. O amador e o amável conformam uma
dupla que tem sido reconhecida pela outra psicanálise, a qual lhe pôs
o nome ---:- talvez tomando-o da história de Breuer - de " lua de
mel " . Moniento crucia!, enquanto instala o engano como constitutivo
da relação . Parece-me necessário destacar . que se - como acontece -
existe algo passível de desencadear uma situação não criada pela aná­
lise, mas por ela aproveitada, esse " algo " é nada. menos que a regra
psicanalítica fundamental : a livre associação . Como recordarão, esta
não consiste em nenhuma introspecção dirigida, nem em nenhuma re­
contagem de estados afetivos . Esta ordem de fazer falar, de dizer o
que quer que seja; é válida porque implicitamente estou habilitado,
enquanto analista - como encarnação do sujeito suposto saber -'­
para poder interpretar acerca de seu desejo. A sustentação sistemá­
tica da livre associação posiciona - como efeito de estrutura - o
analista no lugar de ideal do eu . Esta posição exige um pólo comple­
mentar no outro extremo : o eu ideal, o amável :

Ideal do eu -------- Eu ideal

{amador) {amável)

Freud assinalava . sobre este eu ideal que consistia em voltar a


ser como na infância, o eu seu próprio ideal. . Esta circunstância se
consegue, paradigmaticamente, no momento inicial da cura analítica,
ainda que não se reduza a ele . O analisando se dispõe a voltar a ser
como na infância seu próprio ideal, mas só na medida em que existe
1
o analista . Por . que a escuta de um dizer sem nexo e confuso, não
indica um amador? 1 1 •
Vamos agora até quase o final do Seminário 1 1 . Lacan se cen­
trará ali no aclaramento de dois capítulos imprescindíveis para todo
analista, devidos à pena d� Freud.

11 . Mas escuta não cegamente incondicional, pois o corte da sessão também


conforma uma sanção simbólica ante a fala vazia.

1 54
Refiro-me aos capítulos VII e VIII da Psicologia dos grupos e
análise do ego, intitulados respectivamente: A identificação e Enamo­
ramento e hipnose. O começo da análise é um momento lógico acerca
do qual pode-se postular - alegoricamente - a existência de uma
hipnose. Isto significa que tanto na análise como na hipnose - como
Freud chega a detectar -'-' há uma perda do juízo crítico e uma en�
trega a uma instância do ideal por parte do analisando. Isto não ocorre
por submetimento ou por ingênua dependência mas sim porque parti­
mos do engano do amor. Esta é a maneira em que amando, se consti­
tui este engano, isolado em sua atualidade, na transferência; vale
dizer, o que· sustenta que amando, me faço amar. Pensemos então
quanto tem esta situação transferencial em comum com a dimensão
do enamoramento.
A concepção da psicanálise com respeito ao amor é, em geral,
bastante decepcionante. Algo em aparência tão elevado, tão sublime
como o amor, fica relegado, por exemplo, à afirmação de que se ama
no outro aquilo que não se possui para poder alcançar o próprio ideal.
O amor não passa a ser senão uma pequena volta do eu para exaltar­
se como ideal. Se idealiza-se finalmente o objeto de amor, será somen­
te para declarar: " se um objeto tão maravilhoso me ama, quão ll!agní­
fico devo ser eu". J! nesse elementaríssimo raciocínio onde toma seu
apoio, sua explicação, a instauração - a níveis �ssombrosos, não pou­
cas vezes - da carência de crítica, da perda da mais mínima objetivida­
de. Ingressamos, assim, na estrita dimensão da idealização. Então, são
duas formações de ideal com as quais estamos trabalhando: ideal do
eu, eu ideal. Trata-se de dois planos que, de uma forma ou de outra,
giram em torno do amor, se bem que excedam esta apreensão.
. No capítulo VII da Psicologia dos grµpos e análise do ego Freud
distinguia · três tipos de identificação. Metodologicamene, não nos in­
teressa, no momento, o modo como as encadeia, mas sim a maneira
em que essa discriminação é lucidamente explorada por Lacan para a
intelecção da cura. Porque, efetivamente, oferece um calilinho privi­
legiado parâ penetrar, · suH!mente, no suceder da cura analítica. Para
além dela é a gênese ou o modo como Freud teoriza, ocorre naquela
uma identificação pertinentemente chamada como narcísica e que se
relaciona, de maneira muito clara, com o amor. Em termos lacanianos
pod�rrios denominá-la imaginária ou especular:

155
Ideal do eu --------- Eu ideal
(amador) (amável)
Identificação
narcísica
(imaginária,
especular).

Podemos situar neste esquema uma letra para indicar uma das
localizações funcionais em jogo. Será um I , por cujo intermédio nos
aproximamos da idéia do lugar do analista equanto ideal do eu:

Ideal do eu --------• Eu ideal


(amador) (amável)
I
Identificação
ilarcísica
(imaginária,
especular).

No Seminário, o I significa a idealização da identificação. Não


devi;mós confundir esta notação com o que escreve Lacan corno l (A) ,
que significa ideal do eu 12 • O I não é exatamente igual ao ideal do
eu, porque é idealização da identificação. O interessante é o assina­
lamento no sentido de que justamente esse é o lugar "encarnado" pelo
analista de acordo com a solicitação do analisando. O analista, então,
é chamado pela analisando a ocupar · o lugar do I, enquanto sustenta­
ção simbólica da especularidade.
Devemos tomar este I na anális�, enquanto efeito de demandá.
Introduzimos aqui este temia que tem uma considerável pertinência
conceituai em Lacan . Desde já, demanda não · é igual a desejo. Há
que discriminar este par. Comecemos pela crítica de como se tem
usualmente utilizado a demanda. Em primeiro lugar ela não denota,
estritamente, só o sentido claro, nítido, de pedido explícito. Não,
porque também devemos atender ao elem.ento litigioso que o vocábulo ·

· 12 . J. Lacan, "Subversión dei . . . ", cit., pp. 3 18 e ss.

156
demanda carrega. Tampouco devemos deixar de escutar, ao realizar a
escansão do termo repetição, ali surge uma re-petição, quer dizer, um
voltar a pedir; portanto, também entra em jogo o fator de demanda
tomado na vertente repetitiva - falha - do voltar a pedir. A deman­
da não é conteúdo manifesto, enquanto que o desejo é conteúdo laten­
te, se bem que cabe dizer · que pelos caminhos da demanda rasteja o
desejo. Mas também há demanda inconsciente, pelo que esta discri­
minação não tem validade. Resta dizer que a demanda é demanda de
amor. Peça o que se .peça, finalmente é amor o demandado; creio que
esta é uma captação muito fina do que sucede, obviamente, em tantos
pedidos dos analisandos. O desejo, em troca, não se pode senão cercá­
lo para ir circunscrevendo-o, mas não há, nesta ordem, uma possibili­
dade de nomeação como ac,ontece com respeito à demanda.
Para formalizar a função da demanda na análise, a qual é deman­
da de amor - sempre em termos da primeira identificação, a' amoro­
sa -, o Seminário introduz um recurso topológico muito simples:
o oito interior:

Devemos considerar este diagrama como representando uma su­


perfície contínua com um lóbulo de retorno que se introduz por
detrás, do que dá conta o pontilhado. O desenho faz pensar em uma
dimensão de profundidade em jogo. No lóbulo oculto se situa algo
que tenta romper todo o sentido " natural" da figura. O assinalamos
com uma letra d, que representa o �esejo. Com este esquema Lacan
demonstra como a transferência T é aquilo que permite conduzir a
demanda D à identificação, representada no gráfico como a linha de
intersecção I, já aludida. :e muito simples; o analisando verifica que

157
seu analista é alguém maravilhoso, e quer ser como ele. Essa é sua
demanda. Por isso o analista é chamado a encarnar, por via da deman­
da, o ideal com vistas a uma identificação. Se se idealiza, o modo em
que tal idealização posteriormente se fixa, determina que, daquele de
quem se diz estar enamorado, se termine procurando a identificação.
Por isso dizemos - com Freud - que existe uma oscilação captu­
rante entre o enamoramento e a identificação. A demanda é conduzida
pela transferência até a identificação, mas detrás - no lóbulo oculto
- permanece a d; na cura : desejo do analista. Este é_ o que trata,
precisamente, de impedir a efetuação de tal trânsito; procura, então,
que a transferência não conduza à identificação, advogando pelo res­
tabelecimento da demanda. Devemos destacar que isto mesmo que
acontece em toda análise - e prospera naquelas teorizadas inapro­
priadamente - em certas escolas analíticas tem sido louvado - ape­
sar do paradoxo - como o fim mesmo da análise. A identificação
com o analista é ali buscada, estimulada, o qual se por um lado cons­
titui um disfarçado afago narcísico, por outro aliena hipnoticamente
o analisando atrás da pessoa (no sentido etimológico grego de máscara)
do analista.
Esta identificação, na realidade é um momento de detenção da
análise. Pode dar lugar, obviamente, à símile, onde parece que há
psicanálise quando o que ocorre algumas vezes é que se oferece - a
palavra é demasiado brutal, mas ilustrativa - satisfação de uma de•
manda. 'A bem da verdade, tal satisfação é absolutamente impossível,
mas o que se produz é um incentivo narcísico altamente efetivo, de
maneira que a demanda possa conduzir à identificação. Devemos acla­
rar, neste ponto, que a identificação não é meramente um processo
&lobalizador, totalizador. Freud postula um segundo tipo de identifi­
cação, denominada por traço, por linha. Não é necessário que, ao
identificar-se, isto suceda no sentido de ser " imitada" alguma tota­
lidade. Basta um único traço ou linha, nos adverte : um einziger Zug.
Lacan pontua e privilegia este termo; ' indubitavelmente, tem sido seu
mérito tê-lo destacado em Freud, tal como o fêz com tantos outros
conceitos . Então, basta um único traço ou linha para que a identifi­
cação do segundo tipo aconteça: o einziger Zug, em conseqüência, é
vertido como traço unitário. Esta identificação pode dar lugar, por
exemplo, à formação de muitos sintomas. Pode ter-se o mesmo sintoma
de alguém a quem se ama. Eventualmente também pode-se sofrer o
sintoma de alguém a quem se odeia. No primeiro caso trata de possuir,

1 58
em si mesmo, o objeto amado . No segundo, o sintoma aparece como
possível castigo frente ao ódio. Os exemplos são múltiplos e há um
elemento crucial para levar em conta. Entendemos que esta formação
ideal, este ideal do eu, possui em seu núcleo um traço unitário. Todo
ideal do eu começa, efetivamente., através de uma identificação por
traço, por linha, a qual permite, a partir de um núcleo, a gestação
do ideal. Esta segunda identificação pode às vezes detectar-se nos
diversos analisandos de um mesmo analista. Tal traço reinterativo faz
com que se reconheçam e que eles apareçam, de certo modo, como
sendo de " uma mesma família " , porque tem " um ar " em comum. O
qual bem pode obedecer aos limites da análise desse anal ista em
particular, cujo caso dará testemunho de um desfalecimento do _desejo
do analista. Em contrapartida, esse elemento comum não é produto,
necessariamente, de uma inferência ou de uma presunção vaga, mas
sim que se pode notar com clareza em traços ligados à fala e/ou em
manifestações de conduta surpreendentes . Analista e analisando cos­
tumam não ter a mínima idéia desta identificação, já que possuem
uma condição - para dizê-lo em termos escópicos - de escotoma,
de ponto cego. Em suma, esta é apenas outra das muitas questões liga­
das à particular maneira em que pensamos esta fase de estancamento
da cura. A respeito disso; uma vez mais a proposta consiste em con­
vidar o analista a despossuir-se do falso brilho que lhe outorga o
poder de ocupar o lugar a que é proposto continuamente pelo anali­
sando, como efeito da própria estrutura da psiconeurose, coligada com
o dispositivo analítico . Ao invés desta vaidade, desta ostentação, o
que Lacan propõe é ocupar um lugar mais modesto; aquele que lhe
permite erigir-se em suporte do objeto a, causa do desejo do analisan­
do. Agora, se isto ocorre, o problema consistirá em poder distanciar­
se de I, para poder isolar-se como objeto a:

Ideal do eu ---------.... Eu ideal


(amador) (amável)

l
I Identificação
narcísica
(imaginária,
espec;ular)

159
Se alguém consegue colocar neste lugar do objeto0causa do desejo
- "semblanteá-lo" - o que consegue é, ao invés de fixar-se ao ana­
lisando enquanto amável, produzir o que o Seminário 8 denomina
a metáfora do amor. Esta traz consigo , denota, o fenômeno da inver­
são dos lugares. Como conseqüência, do antes amável emergirá . agora
um sujeito barrado, que promove uma mudança decisiva no plano da ·
identificação :

Ideal do eu ---------- Eu ideal


(amador) (amável)

l
I Identificação
narcísica
(imaginária,
especular)

a s
Este deslocamento implica que já não devemos compreender o
que sucede nos exclusivos termos do engano do amor, uma vez que
instaurou-se o sujeito do desejo. Ao escrevê-lo como sujeito barrado .
deve�os pensar em outra dimensão convocada; do amor, passamos
ao desejo. A questão será poder apontar o desejo do analisando e
" liberá-lo " , precisamente pela destituição do analista deste lugar do
ideal. :e um processo de despossessão, passível de ser realizado me­
diante diversas manobras que se solicitam do desejo do analista. Vale
a pena mencionar uma destas manobras, por cujo intermédio Lacan
entende que o analista pode despo�suir-se, destituir-se.
O corrimento do analista a partir de I não se define de um mo­
mento para o outro . Não . basta propor-se voluntariamente não ser
mais I . Trata-se de um processo árduo, porque, sobretudo, nos depa­
ramos com o obstáculo fundamental do engano narcísico de "um"
analista, que o convida a consolidar-se em I . No texto Subversão do
sujeito . . . , por exemplo, nos encontramos com uma pequena referên­
cia que merece tomar-se em toda a sua qualidade e precisão técnica
- implica uma Tekné, por isso o termo. Lê-se ali : " . . . uma vacila­
ção calculada da 'neutralidade' do analista, pode valer para uma his-

1 60
térica mais que todas as interpretações, sob o risco de um enlouque­
cimento - transferencial - que pode resultar disso " 1 3 •
O conceito de uma vacilação calculada da "neutralidade " do ana­
lista poderia desmontar-se da seguinte maneira, levando em conta cada
um dos termos. Vacilação calculada significa algo não surgido como
um acting intempestivo do · analista, mas sim como produto do cálculo
dos efeitos de tal vacilação. O analista não vacilará exatamente de I ,
mas sim do modo de despossuir-se do lugar do ideal. O conceito de
vacilação calculada da "neutralidade" postula o não ser neutro; inver­
samente, aponta a uma particular tomada de partido, em um dado.
momento. "Recomendação" cautelosa, sem dúvida, de todos os câno­
nes reprodutivos acerca da conduta esperável do analista, isto é,
aqueles que opinam que um analista não · aconselha, não indica, não
sugere, não opina etc. Além disso, e a manobra vale, para medir seu
efeito, mais que um sem fim de interpretações. E se refere-se ao caso
da histérica, considero esta "indicação " como absolutamente fecunda
para a direção da cura em geral. A vacilação calculada pode valer,
então, mais do que inumeráveis interpretações. l! um tipo de inter­
venção que provoca um impactante efeito de interpretação, um ato
analítico; supostamente: significante.
Congruentemente, o texto se estende, na seqüência, sugerindo ao
anaiista a pertinência ocasional de "transmitir a dimensão imaginária
de seu não domínio, de sua necessária imperfeição" . Aqui está em
jogo, entendo, a questão da identidade, e do que o analisando espera,
a todo momento, será o proceder do analista, O modo, muitas vezes,
de provocar um efeito analítico, é justamente fazer calculadamente o
que não se espera do analista. Ofereço-lhes um exemplo muito simples.
Um analisando chega à sessão meia hora mais tarde do combinado.
Ao chegar, assinala que só veio para "avisar", e que já se vai porque
terminou a "sua" hora. Neste caso, fazê-lo entrar seria uma interven­
ção deste tipo. Não interessa se na seqüência viesse outro paciente.
Pareceria ser, nesse caso, que a sessão aconteceu quando o analista
quis, ou que cedeu à demanda, que não frustrou a mesma etc. Se pen­
samos, pelo contrário, na proposta convocadora da singularidade e
não da geração de normas .:_ como se fossem receitas - a situacão
muda. O analisando chegou tarde à sessão dando por subentendido
que ia encontrar o analista em certa posição. O fazer que não o en-

13 . J. Lacan, "Subversión del . . . ", cit., p. 336.

161
contre no lugar que o esperava é da ordem da vacilação calculada da
neutralidade; aponta, pois, a um encontro falho. Este movimento faz
parte de uma série de manobras da transferência. É uma intervenção
em ato, um ato analítico, porque dali emerge, se toca de leve, um
efeito de verdade - semidita - no qual não está ausente a dimensão
da interpretação . Recordo disto porque já há algum tempo existe um
certo livro originado em um setor do âmbito local reclamado como
lacaniano, intitulado Ato e interpretação; sim, como se fossem dois
termos disjuntos. No meu entender, isto não tem nada a ver com o que
Lacan ensina em seu Seminário . 1 5 : O ato analítico. Ali ele transmite
que tal ato está ligado à ordem significante. Postura, por outro lado,
que jamais mudou .
Voltando à recomendação " técnica " : ela nos serve, também, para
levar em conta de que maneira devemos respeitar o princípio de que
o analista deve envolver-se na cura inclusive com sua pessoa, como
bem o assinala em A direção da cura 14 • Isto não comporta jogar
diversos papéis no transcurso do tratamento psicanalítico ao modo
psicodramático, o que não seria tão comprometedor por parte do ana­
lista. Há algo muito mais difícil na proposta lacaniana de que para
ser analista se precisa não sê-lo. Não sê-lo de acordo com os cânones
nos quais aparentemente fica tudo regulamentado, porquanto se sabe,
exatamente, o que pode esperar-se do analista. Lacan disse muito clara­
mente: do analista só deveria esperar-se simplesmente uma cura ana­
lítica. Pelo visto, este enunciado se encontra muito distante de ser uma
grosseira tautologia.
Para finalizar por hoje vale a pena resgatar algumas notas adicio­
na is sobre o termo saber, ambíguo em si mesmo e facilmente com­
preensível - isso é o lamentável. O saber ao qual fizemos referên­
cia neste encontro não trata, reitero, do cognoscitivo ou epistêmico.
Aponta, em todo caso, ao que tematiza no texto Variantes da cura­
tipo 15 : o que o analista deve saber é ignorar o que sabe, isto é,
poder encarar cada análise · como efetivamente uma novidade. O ana­
lista não deve embarcar atrás de reencontrar o mesmo senão que ne­
cessita suspender seu saber de acordo com uma atitude de douta
ignorância. Isto não é uma negação do saber, mas sim Sllil.
forma mais
elaborada. E, o pedido por uma escuta - como desideratürn - virgi-

1 4 . J. Lacan, Escritos 1, cit., p. 219.


1 5 . J. Lacan, "Variantes de la cura-tipo", Escritos II, pp. 1 17-29.

1 62
nal, e não uma ratificação do já conhecido. Esta é uma das prerro­
gativas, a meu ver, que definiria como característica substantiva da
função desejo do analista.

Questões

P.: Com respeito à vacilação calculada, queria perguntar se esta


sempre tem a ver com a demanda. Quer dizer, se se deve vacilar ali
onde o paciente demanda ao - analista.

R . : Assim é, se não tomamos a demanda como um reclamo for­


mulado pontualmente em um pedido determinado. Também pode ser
demanda aquela da instalação de um certo confort na análise, no
· sentido de deixar que tudo transcorra de maneira previsível, onde
mais ou menos as coisas estão aplacadas e não aparecem esses mo­
mentos de Real que levam a uma terceira instância lógica na análise.
Este terceiro movimento no transcurso da análise, necessariamente,
ficará em aberto até o próximo encontro. Trata-se daquele no qual se
produz o desprendimento do objeto a, circunstância que provoca certo
estado singular do analisando. Já em seu Seminário 1 , Os escritos
técnicos de Freud, Lacan trabalhou este estado momentâneo, instan­
tâneo - mas beneficamente recorrente - do analisando, juntamente
com a despersonalização 16 • Tal momento - indica que as certezas últi­
mas sobre o ser começam a cambalear. Esse estado não o percebemos,
por exemplo, nos casos levados à análise de controle porque neles " não
passa nada" . Ali deve introduzir-se um terceiro movimento também
de tipo empírico - o controle - para que possa começar a circular
novamente uma análise. Nestes casos estáticos, de qualquer maneira,
também há demanda, ainda que instalada em termos de quietismo:
A explicação de Freud a estas situações me parece bastante conside­
rável . Na análise, como na vida, duvidosamente o sujeito abandona
uma posição libidinal a qual tenha cedido. Produz-se então um estado
em que finalmente costuma-se se conformar com pouco , de acordo
com o célebre adágio : "Mais vale um pássaro na mão . . . " E contudo,
nessa pertinência somos _ convocados a operar.

16. J. Lacan, Les écrits techniques de Freud. Le Séminaire, livre I, Pal'is,


Seuil, 1975, p. 258 .

163
VII
ERASTÉS, EROMENôS - QUATRO LIMITES,
CINCO DESTINOS PULSIONAIS

Quero destinar a primeira parte da reunião de hoje para fazel'


um retrospecto e uma síntese . dos pontos mais importantes tratados
na aula passada acerca · da transferência, o terceiro dos quatro con­
ceitos fundamentais que dão título ao nosso curso. Faremos também,
nesta oportunidade,. alguns avanços sobre o conceito . Vou me limitar
. então, de füício, a . enfatizar alguns itens, para que esta introdução
ac, terceiro conceito fundamental se encaminhe para sua conclusão,
ou, dito em termos coloquiais, fique "arred6ndada".
O arredondado é uma figura muito grata ao pensamento Iaca­
nia1:io. t que dá idéia de esfera, e esta implica uma dimensão que
não nos ajuda a formalizar a estrutura da problemática analítica . Por
quê? Porque nossa superfície respectiva é tórica, torizada 1 . Esta
qualidade responde a um objeto topológico particular : o toro . Làcan
insiste em reiteradas oportunidades em recorrer a este para propô-lo
- entre outros contextos - como alte.rnativa válida à esfera, sobre
a qual apresenta a vantagem decisiva de contemplar a função do bu­
raco. Não pretendo deter-me nestas, quest�es ; simplesmente, as enun­
cio para advertir que, na fala cotidiana, imperceptivelmente, recupe­
ramos . certo tipo de . considerações pré-psicanalíticas, tal como a
intenção de "arredondar" algumas posições . Vale, então , a ·observa-

1 . J. Lacan, Seminario 24, L'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre,


Ornicar?, 12-13, Paris, Lyse, s/f, p. 12.

1 65
ção : a esfera constitui uma "boa forma' ' de representar graficamente
a factibilidade do encontro hipnótico, situado na antítese da análise .

O primei,;o ponto a destacar é o motivo pelo qual no Seminá­


rio 1 1 apenas se encara o conceito de transferência, pa·ssando imedia­
tamente ao de pulsão. Na medida em que definimos a transferência
como "a realidade daquilo que é inconsciente posta em ato" predica­
mos a esta realidade enquanto sexual a mesmíssima aparição do sexual
- portanto, pulsional - remetemos forçosamente ao desvio pelo ca­
minho da pulsão para trabalhar conceitualmente a transferência. Vocês
recordarão que havíamos recorrido a uma pequena licença e pula­
mos as referências à pulsão, para tomar dois capítulos tardios do Se­
_ minário e poder voltar, mais tarde, ao tratamento daquela como quar­
to conceito fundamental. Talvez não sigamos assim estritamente a
ordem de ·razões expostas no texto. Nosso recurso se fundou em uma
pretensão didática; um fim discutível, por certo, ainda que também
possamos questionar porque é imprescindível seguir a obra unicamen­
te _em função de sua ordem de razões elegada. Estabelecemos, pois,
que o peso decisório da transferência consiste em sua realidade se­
xual. Agora, havíamos tratado a questão da realidade sexual não
somente pelo aspecto relativo ao desejo sexual que produz o anali­
sando, mas sim, crucialmente, por sua articulação com uma inovação,
com um "invento" lacanino. Tal pontuação refere ao deseio do ana­
lista; assim, este suplemento conduz à intelecção realizada não em
função do desejo do analisando nem tampouco daquele do analista,
mas sini precisamente tomando apoio na ligação, no enlaçamento, en-
tre ambos os desejos.

Do desejo do analista já fizemos algumas notas , pode-se dizer,


empíricas. Mencionemos· que, se em um momento relativamente re­
cente foi engendrado como conceito psicanalítico, a posição subje­
tiva que o embasa não é um dado i�édito na história do pensamento
ocidental. Podemos encontrar, pelo m.enos , um antecedente ilustre em
O banquete ou O convite de amor de Platão. Em uma determinada
passagem do diálogo, Sócrates aparece interpretando ..:.... renunciando
- de acordo com um símil do modo analítico : "- . . . isso que tu
crês dizer a mim, Alcibíades, na realidade o disses a Agatón" , lhe
manifesta apro:,dmadamente . A declaração surprende como uma ca­
bal intervenção psicanalítica. :8 como se colocasse as coisas em seu lu­
gar, tentando desarticular a dimensão transf erencial a partir da qual
Alcibíades eleva sua inflamada lóuvação a Sócrates . Este desejo do
analista - que não é a contratransferência nem são os sentimentos -

1 66
não consiste em impor ao analisando um determinado modelo ou pa­
drão de conduta, uma espécie de esquema de valores determinado, de
vitalidade salutífera, usufruindo para isso dos poderes conferidos pelo
engano amoroso. Estes aspectos aludem precisamente a alguns dos ris­
cos aos quais o psicanalista se · expõe ao desfalecer de seu lugar. Ao
incorrer neles, claro, se .deixa de ser analista, não importa o título
nem a antigüidade na dedicação a nossa prática. O analista pode
"cair" de seu lugar se começa, por exemplo, a fazer um sermão im­
plícito onde tenta conformar o analisando · a sua imagem e semelhan­
ça. De fato a transferência implica, em um sentido lacaniano - por
freudiano � a possibilidade de poder renunciar ao poder com que
nos investe o lugar de analista. Do contrário, fazendo uso - abuso -
de tal poder, é como nos deslizamos para a antípoda da psicanálise:
a sugestão. Devemos recordar - processando uma escansão com este
termo - que, quanto ao proceder do analista, sugestão não deve
transformar-se em sugestão. Aquela deve permitir centralizar a trans­
ferência, e não constituir-se em uma incidência a partir da qual o
enunciado pelo analista se converta em um ditame sentenciado a par­
tir de uma particular intimação. Sempre se fala da transferência, se
a reconhece e se a interpreta, ou não; isto, desde já não é igual à
chamada análise da transferência. Não basta unicamente ter presente
este ponto, já que há outro vetor muito importante a considerar. Com
suma sagacidade o Seminário o enunciará da seguinte maneira: não se
trata só do que o analista quer fazer de seu paciente, mas - também
do que o analista quer que seu paciente faça dele. Esta afirmação
sustenta, então, que se pode "reconhecer" o desejo de determinados
analistas. Em tais casos já não estaremos frente ao desejo do analista,
mas sim por exemplo ante o de Abraham, ou de Ferenczi ou o de
Nunberg, evidenciáveis em suas teorias particulares, em suas dire­
ções da cura e no que esperam como fim da análise. Todos estes
elementos, entre muitos outros, encontram-se impregnados pelo dese­
jo desses analistas. Então, pode comprovar-se como Abraham preten­
de ser uma espécie de mãe completa. Pode-se pensar, com estrita
lógica, que tal pretensão alcança · seu zênite no desejo do kleinismo.
Para esta concepção, com efeito, o analista deve chegar a ser, ao
mesmo. tempo, um objeto bom e mau. Começando pela dissociação
enj:re um objeto persecutório, e outro idealizado - como o expressa
Melanie Klein 2 -se consegue finalmente a integração objetal e a

2 . M. Klein, "Algunas conclusiones teóricas sobre la vida emocional dei be­


bé", in Vários, Desarrollos en psicoanálisis, Buenos Aires, Hormé, 1967,
pp. 177-207.

167
síntese egóica. Ser uma mãe completa é aquilo que demanda o ana­
lista a seu paciente que este faça dele. Em outra conceitualização,
como a de Nunberg, decanta uma ideologia de aspiração divina, con­
gruente com certas postulações arbitrárias sobre a vida e a morte,
tal como podem ser apreciadas nas teorias deste - não obstante -
brilhante psicanalista, redator de uma valiosa Teoria geral da neuro­
se ª · (Segundo me informaram, uma editora está para reimprimir em
castelhano · este livro escrito enquanto Freud ainda vivia e prologado
por ele mesmo. Tal texto está há anos-luz, em relação · a sua quali­
dade, da famosa obra de O . Fenichel sobre o mesmo tema: Teoria
psicanalitica das neuroses).
Coni os capitais instrumentos oferecidos pelo ensinamento la­
caniano podemos repensar, em torno da transferência, uma série de
concepções onde o analista se situa não renunciando ao · 1ugar que na
reunião passada assinalamos com um I , sem mais acréscimos. O I
denota o idealizante da identificação e, como seguramente recordarão,
discriminamos este I de outro conhecido materna, aquele escrito co­
mo l(A) .
O segundo materna se lê, rigorosamente, como ideal do eu. O I
é outra instância aparentada, obviamente, com a anterior. Contudo
a notação diferencial implica o propósito de marcar uma diferença
conceituai. Aquilo · que o analista quer que seu paciente faça dele
indica - no meio de suas variantes - como demanda de seu ana­
li�ando uma idealização como veículo capturantemente identificatório.
Vale ressaltar que não o desapropria do lugar idealizante da iden­
tificação. O que propunha Lacan como alternativa, como aquilo que
deveria remover a função deste l? Nem mais nem menos que o
objeto' a:

Objeto causa do desejo, objeto da pulsão, mais-gozar: maneiras


distintas - e não são todas - de ler este objeto a. Destituir-se do
lugar idealizante da identificação para "semblantear" o lugar de obje-

3 . N. Nunberg, Teoria general de las neurosis basada en el psicoanálisis, Bar­


celona, Pubul, 1950.

168
to a é o deslocamento que cabe ao analista realizar. Poderíamos re­
formular, baseados neste desenvolvimento, o falado sobre o desejo
do analista- não o de Abrahan, o de Ferenczi, o de Ntmberg ou
qualquer outro. Se o analista não pode desocupar esse lugar narcí­
sico no qual o coloca seu desejo não é possível a assunção do desejo
do analista, o que implica posicionar-se no lugar de resto, de resíduo
enquanto objeto. O lugar rio analista não é esse âmbito unitário, in­
teiro, esférico, pleno e completo - próprio da dimensão narcísica ..-:
mas, pelo contrário, um lugar como o do resto de uma operação
aritmética de divisão. Este · resto é precisamente o que permite ao
·
analista erigir-se da seguinte forma:

O sujeito barrado é o sujeito desejante, com o qual se cumpre


U1na primeira torção ou inflexão do que ocorre na análise. Para pre­
cisar melhor como entendemos este processo em termos lacanianos,
podemos afirmar qtie, em primeiro lugar, devido à regra da livre
associação, o analisando se vê como amável. Não no sentido, reitero,
de quem tem uma atitude gentil e bons modos, mas daquele pas­
sível de ser amado a partir de I . :e
a regra fundamental da psicaná­
lise o elemento decisivo que localiza o início da análise a par de um
posicionamento narcísico. A esta instalação de analisando · no lugar
do amável corresponde o respectivo posicionamento do analista co­
mo amador :

Analista Analisando
I Eu ideal
Amador Amável

O amador se relaciona a partir de I como complemento neces­


sário do amável. Segundo destacamos, a rigor isto não corresponde
ao Seminário 1 1 , mas ao 8. Ao trabalhar ali detidamente O Banquete,
Lacan retoma as características denominadas pelos antigos gregos co­
. mo erastés e eromen6s 4, que correspondem, respectivamente, às ·cate­
gorias de amador e de amável :

4 . J. Lacan, Seminario 8, cit., aula de 7/12/60.

1 69
Analista · Analisando

I Eu ideal
Amador Amável
(erastés) (eromenós)

A partir daí, o movimento seguinte da análise procura, então ,


produzir o que chamamos a metáfora do amor. O conceito de metá�
fora, sem adentrarmos demasiado no problema, alude a uma dimen­
são de substituição significante. Aqui trata-se não só de uma substi­
tuição, mas de uma substituição inversiva. Para aclarar este processo ,
vamos dizê-la de outra maneira: consiste na operação . de trocar os
· lugares:

A n alista A n a l isando

Eu ideal
Amador Amável
(erasté,) (eromenó,)

Como podem constatar, é uma passagem recíproca. Este erome­


nós metaforizado agora sim, efetivamente, corresponde à passagem do
I à a, sempre e quando o analista consiga suportar o lugar de resto .
O que CJ"habilita a isto? Segundo nos referimos na nossa segunda
reunião, é um desejo muito particular, um desejo da morte. Seme­
lhante afirmação, por sua conotação sombria incita a questionar-se a
respeito do que leva um analista a converter-se em tal.

Tal interrogação, tal perplexidade, encontram-se altamente atenua­


das, todavia, quando nos encontramós com o desejo de alguém como
Melanie Klein; por exemplo, a concepção traduzida em Inveja e Gra­
tidão, muito representativa de sua postura 11 • Parece que a autora des­
te texto lamentá-se chorosamente de não ser suficientemente , amada,
no estilo de uma idische mame. Queixa-se sistematicamentcf d� que
não a agradecem o suficiente. Insiste a todo momento em estabelecer
que o analisando está em dívida, pois lhe deve algo . Pode pensar-se
exatamente de que dimensão fáfü:a e de que desejo insatisfeito fala

S . M. Klein, op. cit., in Vários, Las emociones básicas del hombre, Buenos
Aires, Nova, 1960, pp. l0S-94.

170
Melanie l(lein quando reitera, várias vezes, que a inveja impede a
gratidão, postulando esta última como vetor crucial para a cura "re­
paradora" do objeto. A proposição lacaniana, com o seu tom castra­
dor, afirma incomodamente com rigor que, como analistas, não de,
vemos esperar sermos "reparados" por nossos analisandos. O dispo­
sitivo analítico não é uma oficina de reparações realizadas sobre o
imaginário envolvente do analista. E o ponto não é que este seja um
amargo pessimista nem que não saiba escutar gratificações ou grati­
dões. :8 que estes enunciados podem ser produzidos por motivos não
manifestos, assim como em outras tantas ocasiões muitos analisandos
não podem · dar conta de sua ligação libidinal com o analista e culti­
vam, com muita freqüência, um enfrentamento hostil nas sessões.
Seria não transcender o manifesto manter�se nesse plàno de contínua
rivalidade "invejosa" um especial perigo na análise dos obsessivos .·
- insistindo na questão da agressividade - alcançando portanto, so­
mente reduplicá-la - em lugar de poder envolver o fator libidinal
que é impossível de evitar.
O desejo do analista, desejo da morte, consiste então em sem­
blantear o objeto que causa o desejo, sem injúrias, claro, acerca do
ódio por ocupar tal ·destino. Uma forma de escrevê-lo em nosso es­
quema é situando os termos finais, resultantes da relação inversiva
recém destacada:
Analista A nalisando
I Eu ideal
Amador A m ável
(erastés) º )

a � "'t'
Referir-se a uma causa do desejo conforma . um recurso inteli­
gente, enquanto é capaz de eludir qualquer idealismo convocado pelo
sujeito da representação. O desejo, assim, não emana do interior
para buscar adiante, um objeto com o qual satisfazer-se. Pelo_ con­
trário, é um objeto situado "por detrás" que se faz de engodo cau­
sal. Devemos recordar, além disso. que o desejo não se acopJa de
um . modo harmônico com seu objeto correspondente. :8 a brusca pre­
sença inesperada - · aquela ligada à Tiquê, a repetição ocorrida como
ao ao.aso - a que conta, pois ela recicla, no sujeito, seu barramento.
Barramento que também cabe considerar enquanto esquize - como
aquela detectada entre o olho e o · olhar .

-17 1
Todavia há outro movimento na análise, uma vez que não ter­
mina aqui o que podemos expor sobre este engano crucial impli­
cado na transferência. Engano consisiente - reiteramos - não no
fato de ver mal a alguém ou em ter alterada a percepção da realidade,
mas na característica local, e atual, do amor; esta car.acterística -
como muito perspicazmente Lacan a lê em Freud - é, em si, enga­
nosa. Por isso mesmo é tão importante pôr em evidência como o
analisando - sem má fé, apenas levado pelo movimento de desdo­
bramento de sua patologia na análise - tenta enganar o analista
- leia-se: amar o analista, vale dizer, querer fazer-se amar - tra­
tando de convencê-lo de que o que importa é a cura pelo amor · 6 •
Este é um conceito de Freud sumamente valioso para poder com­
preender a substância do acontecer analítico. Mas cura por amor não
unicamente no sentido óbvio apontado (aquele segundo o qual o
analisando buscará ser amado pelo analista) . Não, porque tão ou
mais importante que essa circunstância é a questão de certos obje­
tos providenciais surgidos com freqüência no curso da análise, e aos
quais o sujeito praticamente confia sua vida, e, desde já, sua feli­
cidade . Freud valoriza tais casos muito sabiamente . A princípio, claro ,
não haveria nada de mau neles ; o analisando disse ser feliz , pois
conseguiu à pessoa adequada, o amor de sua vida. Não haveria
maior problema, a não ser pelo traço de forçadíssima, de oprimente
dependência do sujeito em relação a tal objeto providencial. Esse
dado indica o estabelecimento de um laço bastante precário que , em
qualquer momento, pode pôr em perigo o aduzido, reclamado equi­
líbrio do sujeito. Por outro lado, o que se fez - acrescenta Freud -
da "incapacidade para amar" própria do analisando? Muito usual­
mente fica "resolvida" - de fato, agravada - mediante uma alter­
nativa de escolha estabelecida entre o objeto providencial e o ana,
lista. Esta ;g�posição "ou . . . ou . . . " localiza-se em i.Im contexto
onde começa a ceder o interesse p�la análise, onde a aparência as­
sinala uma franca (pseudo) ' melhoria sintomatológica.

Por outro lado, a escolha desta' pessoa pode chegar a ser ex­
tremamente precisa, a ponto de tratar-se de alguém cegamente adver­
so à psicanálise. Há mais casos assim do que se imagina. Portanto,
em alguns momentos pode estabelecer-se uma opção onde se capta
claramente a posição do analisando enquanto amável, o que indica
a crucialidade e a complexidade da problemática englobada na cura
por amor. Não ocorre este fato somente no caso óbvio do paciente

6 . S. Freud, Introducci6n dei . .. . , cit., pp. 97-98.

1 72
que, curado por amor, deixa impulsivamente sua análise em uma
acabada passagem ao ato. Pode-se dizer que esse é o caso mais des­
caradamente patognomônico; ainda que, parecido com ele, existem
muitas outras sutilezas - concritualizáveis - em jogo, dentl'.O desse
engano chamado amor de - na - transferência.
Por exemplo, ocupa · um lugar na transferência outro elemento
que Lacan trabalha muito perspicazmente desde o seu primeiro Se­
minário: trata-se do medo do analisando em relação ao engano, mas
em um sentido distinto do anterior. Assim, náo · é que tenha medo
de ser enganado pelo analista; teme, melhor dizendo, a possibilidade
de poder enganar o analista. Neste Seminário em questão Lacan re­
fere o caso de um paciente que havia visitado uma série de ana­
listas. O fato é citado por Michel Balint, analista · cujas concepções
Lacan criticou minuciosamente, sem que por isto deixassem de ser
amigos ínti_mos- a crítica lacaniana, por outro lado, dirigia-se a sua
teorização, não a sua notória sagacidade clínica. Relatava então que
certo dia, um senhor vem à consulta, e começa a contar-lhe uma
história estranhíssima, magnífica, longa, que é escutada atentamente
por Balint. Assim se sucederam várias entrevistas, até que finalmente
esta pessoa - veterana em ser entrevistada por analistas - recla­
mou se iam ou não começar a análise. Balint respondeu que não era
possível - porque algumas coisas não estavam claras - ainda que
fossem interessantes - e ele não· conseguia compreender essa con­
fusa história. Diante disto, o entrevistado, satisfeito, confessou que
Balint era o primeiro homem sincero que encontrava, porque tudo
o que ele havia dito eram mentiras, e os analistas visitados antes
acreditaram de pés juntos em seu relato, o que indicava que, ao po­
derem ser enganados, eram charlatães e mentirosos 7 • Portanto, a di­
mensão do ""'"posso lhe enganar" marca os limites da escuta atenta
e aberta, frente àquilo que possui simplesmente o vetor de prova.
Aqui é importante marcar, de qualquer maneira, que verdade e meh�
tira não são parâmetros válidos para a análise; na enunciação não
há mentira possível. O exemplo é importante, não obsante, para dar
conta que freqüentemente o analista, do lugar de I, costuma esboçar
queixas sobre porque o analisando não lhe proporcionou no devido
tempo um dado eventualmente essencial. Ante· esta reclamação, res­
ponderá Lacan: porque·- o analisando tem medo que o analista inter­
prete tudo em função de tal informação. Suponhamos, por exemplo,
que o analisando demorou para contar o fato de haver tido sífilis.

·7 . J. Lacan, Les écrits techniques . . • , cit., p. 253 .

173
Dirá: "- não queria que você acreditasse que tudo se devia a um
problema orgânico, e me interpretasse sempre nesse sentido. Não ve­
nho aqui para isso". Aqui aparece claramente esta dimensão do me­
do, não de ser enganado pelo analista, mas este como vítima fácil
do engano. Em outras palavras, tem-se que a dimensão do amor traia
o trabalho , analítico.

Há alguns momentos mencionei tangencialmente algo sobre o


analisando obsessivo. Dele mesmo, parece-me, podemos pontuar umas
breves notas clínicas para fundamentar que a questão do amor no
dispositivo analítico não circula unicamente pelo ingênuo fato de que
o analisando nos declare seu amor. Por outro lado, a vertente clí­
nica - ou.tro mérito do ensino lacaniano - também aparece mais
convincente na exposição, ainda que nosso objetivo se atenha a cons­
truir uma ordem de razões e relações. A esse respeito, é possível
abalizar um tripé deduzível não só a partir do Seminário 1 1 , mas
mediante um percurso pelos pedaços mais decisivos do ensino que
nos ocupa. Poderíamos defini-lo nos seguintes termos : em primeiro
lugar, o amor no obsessivo aparece especialmente pela demanda de
ser reconhecido no lugar de escravo, isto é, o de uma obediência a
quem se situa em I ; aqui : lugar do Amo. Este fato provoca uma
conseqüência lógica esperável: o escravo não faz outra coisa senão
aguardar, de algum modo, a morte do Amo; ou seja, surge a con­
tínua tensão agressiva própria do ne:urótico obsessivo . A espera go­
zosa desta morte nos permite descobrir, contudo, uma pequena ar­
madilha. Não é a espera do que acontecerá no futuro, uma vez que
a conseqüência psíquica desta situ ação é que, esperando a . morte do
Amo, o escravo já está morto, pelo simples fato de haver-se resigna­
do ao lugar da escravidão, todavia identificado com a morte ante­
cipada do Amo 8 • Diante disto, o escravo adota uma atitude - se­
gunda - na qual aparece continuamente uma demanda, uma soli­
citação de permissão. Em alguns momentos da análise este recurso
pode revelar-se de modo bastante evi4ente; são esses casos onde po­
pularmente comenta-se: "- Se o analista não lhe dá permissão, não
faz nada". :e
precisamente isto o que o analisando --'-- entre outras
coisas - pretende conseguir. Muito usualmente, bem o sabemos, nos
fazemos dizer o que queremos escutar, para poder assinalar depois :
"- ele me disse isso". Caberia · aqui perguntar ao analisando qual
parte lhe toca no modo em que seu analista marca os efeitos de fa­
zê-lo dizer o que quis escutar. :e
um questionamento elementar : o

8 . J. Lacan, "Funci6n y campo . . . ", cit., pp. 13 1-2.

1 74
a-bê-cê da pergunta analítica. Mas o certo é que um analisando de
traço obsessivo reclamará a sua condição de escravo, sempre à es­
pera de uma palavra santa do analista. E , decisivamente, a obten­
ção da fustigada permissividade: indagando, diante de cada circuns­
tância, se ela se enquadra, ou não, em certo tipo de norma, enten­
dida em sentido amplo. Dada essa situação, os atos da vida do ana­
lisando estão marcados, inevitavelmente, pelo caráter de proezas ou
feitos heróicos, acerca dos quais nos vemos inclinados . a perguntar:
Tanto alvoroço por _isso? Como pode este ·analisando supor que tem
realizado algo titânico, um gesto fora do alcance de outros seres·
humanos? Não há nestas perguntas, está claro, interpretação algu­
ma; mas consistem em uma reação psicol6gicà imediata, afetiva e
consensual, se cabem os termos . Tal dimensão de proeza - a ter­
ceira em consideração - surge porque, com semelhantes cadeias, o
fato de que enquanto escravo que pede permissão e encontra-se . iner­
me e desvalido, tenha realizado certas coisas, inevitavelmente suscita
um tom de façanha. A questão está sumamente relacionada com as
notas próprias do fantasma 9 , tema a respeito do qual não poderemos
fazer, no decorrer do nosso curso, além de algumas menções. En­
tão, no obsessivo, esta característica da façanha, de travessia do Ru­
bicão, da condição, pode-se dizer, até épica com a qual pretende
coroar seus atos e desenvolver sua vida, tem uma insistência real­
mente proverbial. Não se trata de uma manobra intencional de cho­
car; seu objetivo é bastante mais elementar, pois atende . à ordem
da constituição do sujeito. l!, nem mais nem menos, o modo de ten­
tar acomodar seu lugar no campo do Outro, de poder responder a
esse interrogante decisivo circunscrito pelo ensino de Lacan que diz :
Che voui?, o que quer? ou, melhor ainda : O que quer . de mim?
(segundo a ma1;1eira em que a pergunta do desejo aparece em Subver­
são do suieito 10 , extraída do relato fantástico de Cazotte : O diabo
enamorado). Esta pergunta permite levar em conta, então, o seguinte
enigma: O que o analista quer de mim?

Não devemos esquecer o seguinte : I é, nestes desenvolvimentos,


o lugar a que somos levados - ou que somos levados a encarnar -
pela demanda do analisando.

O sujeito pede, exije um I , ainda que ninguém lhe proponha,


e sem recorrer, por outro lado, a nenhum tipo de artifício especial.
_

9 , J, Lacan, "La dirección de . . . ", cit., p. 269.


1 0 . J. Làcan, "Subversión dei . . . ", cit., p. 326.

1 75
A manobra, ao contrário, será efetuada pelo analista para destituir-se
de tal lugar, no qual havia sido instalado por um movimento próprio
da estruturação da situação analítica. Deste fato dá conta o traçado
do oito interior, que é uma superfície com propriedades topológicas
mencionadas em nossa última reunião. A maneira na qual circula a
demanda consiste em levar a transferência a esse momento de estan­
camento da análise chamado identificação. Momento este inevitável
e que muitos analistas têm concebido como o non plus ultra - não
mais aléin, não vai mais - da psicanálise . Não obstante, uma vez
em presença da identificação com o analista - um "êxito" de de­
manda, enquanto é demanda de ser como o analista - deve-se abrir
caminho para isto . Certa vez intitulei ironicamente um trabalho desta
forma: "Ser (o) analista : fim da análise? 11 • Obviamente que não é
assim, se procedemos a uma primeira operação, a uma primeira in­
flexão : de I a a. Todavia deve haver outro momento na análise. Estou
falando, obviamente, de momentos lógicos, não dos pertencentes a uma
sucessão cronológica. O que coloco de forma diacrônica deve . ser
apreendido em sentido sincrônico, vale dizer, no sem-chronós, no Ou­
trochronós. Se fazemos um corte, podemos notar que inclusive até
em uma mesma sessão analítica pode ocorrer esta passagem : que o
analista se erija em I para logo passar a a, segundo o seguinte es­
quema linear (m�s não é métrico) :

I a

Logo veremos porque o terceiro segmento permanece não casual­


mente em branco. De sua parte, o analisando começa colocando-se
no lugar do eu ideal, para logo aparecer como sujeito com esquize
- enquanto é "partido" pelo a. Mas depois tem lugar outra inflexão
na análise, aquela caracterizada pelo Seminário I como "uma expe­
riência no limite da despersonalizaçãb" . Calcado em um esquema ho­
mólogo ao anterior - com suas mesmas considerações - obtemos
este desenho :

1 eu ideal despersonalização

Indubitavelmente, o lugar da despersonalização soa muito duro,


porque faz a análise parecer um exercício de carnificina iatrogênica .

- 1 L R. Harari, Discurrir . . . , cit., pp. 1 06-60.

1 76
Trata-se de um conceito . extraído diretamente do campo da esquizo­
frenia; contudo, não há porque temer a concepção denotada pelo ter­
mo, da forma como é retomado por Lacan.
Vendo por partes, encontramos que o enunciado "no limite" não
significa, não aponta, a uma estrita despersonalização. Não obstante,
ela existe em aproximação, porque o sujeito perde, nesta circunstân­
cia, os baluartes narcísicos que o sustentam como um eu . A perda,
claro, não é definitiva; tampouco se trata de uma possível psicotização.
Se alguém é neurótico, não o convertemos por esta inflexão em um
psicótico; tal presunção, na verdade, não é mais que outra das ilu­
sões sobre os pretensos poderes ilimitados da análise. :e possível -
sem dúvida - que, talvez por pressa, talvez por uma má captação
do que acontece nas entrevistas preliminares, talvez por ambos os
motivos, uma análise' possa desencadear - não determinar - uma
psicose em um sujeito� pré-psicótico. Aí se argumentará, com certeza,
que a psicanálise teve a culpa. Em certo . sentido lhe cabe a respon­
sabilidade, enquanto foi a prática por cujo intermédio desencadeou-se
a psicose . Mas ali não se desenvolveu, não se produziu ex nihilo -
do nada - senão que conformou, reitero, o fator desencadeante.
A despersonalização a qual aludimos implica dimensões momen­
tâneas, instantâneas, onde repentinamente ocorre uma queda do sen­
tido enquanto a sua plenitude obturadora. Tal queda prolonga-se só
por um instante, pois prontamente se recobrirá com outro sentido.
· creio que é neste ponto que Lacan insiste -- no último capítulo do
Seminário, intitulado: Em ti mais que a ti - quando afirma que se
trata, no fim da análise, de atravessar o fantasma, dar uma volta com­
pleta - aludindo ao suporte do oito interior. Este momento - lógico
e vivencial - deve produziMe várias vezes, pois o fim da análise
não quer dizer exatamente o término da mesma. Não alude à cir­
cunstância do fato de cessar os encontros entre analista e analisando,
mas sim a uma experiência que deve atravessar-se várias vezes no
curso de uma análise. A despersonalização, então, é possível porque
o a deixa de operar como causa, desprendendo-se de sua localização
no analista. Por este desprendimento do objeto a, o sujeito "perde" -
pontualmente - o barramento que o singulariza no tocante a seu
analista. Não esqueçamos, a esse respeito, que o sujeito cindido só
pode sê-lo, só pode pôr-se em ato, na medida em que esta partição é
sustentada pelo objeto a. Por isso, o branco no segmento do esquema
anterior - o do analisando. Por isso, também, o desprendimento de
a comporta mais do que a perda das sustentações euóicas : implica
tocar o real da pulsão. Em termos de Lacan : "A experiência do su-

177
jeito é assim conduzida ao plano onde pode presentificar-se, da reali­
dade daquilo que é inconsciente, a pulsão " 1 2 •
Ponto que corresponde, portanto, ao ingresso em nosso quarto
conceito fundamental : a pulsão. Conseqüentemente, mudaremos agora
nossa atenção para o caminho com o qual se aborda a sexualidade.
Chamaremos a atenção pela forma como esta está pensada, no Se­
minário 1 1 , por sua relação com o amor . Definimos a transferência
como a realidade daquilo que é inconsciente posta em ato, realidade
que é antes de tudo sexual. Imediatamente nossa exposição passou
do sexo ao amor. Cabe aqui a pergunta mais elementar: Isto é assim
mesmo? I?. viável tal passagem?
. Que a sexualidade não é alheia ao amor é um dado detectável não
só na experiência clínica. Recorramos aos textos, sobretudo ao traba•
lho psicanalítico crucial sobre o conceito fundamental que agora nos
propomos a abordar. Como já terão inferido corretamente, o texto
em questão é o nosso . conhecido Pulsões e destinos das puls�es. No
primeiro encontro nos servimos justamente da abertura epistemológica
de tal · artigo para apresentar a problemática do conceito fundamental
(o Grundbegri/f). Voltaremos, agora, aos. desenvolvimentos específi­
cos ali explicitados.
Se efetuamos uma leitura atenta de Freud, perguntando-nos · se
sexualidade e amor são homogêneos, poderemos ver sua situação : en­
contram-�e eminentemente discriminados. Aparece uma primeira parte
acerca dà pulsão e de seus destinos, para logo dar lugar a uma im­
portante referência ao amor, colocado quase em uma função de borda
com respeito à sexualidade. I?. abordado, mas ao mesmo tempo se
destaca que não está exatamente compreendido no sexual . No amor
ressalta uma dimensão onde predomina a unidade, a totalidade ; em
síntese: a síntese, a estrutura narcísica. Em compensação, não acon­
tece assim com a pulsão. Dele poderemos reconhecer, efetivamente,
diferentes elementos ou componentes ou termos, os quais não são sepa­
ráveis no amor. Em função d� outras hriáveis o mesmo poderia· ser
considerado sobre o desejo, conceito no qual não se pode separar
limites e destinos. Ao nos defrontarmos com a pulsão, em contrapar­
tida, aparece de forma imediata uma diversificação pontuável.
Quando trabalhamos, já há vários encontros 13 , a questão do es­
cópico, desenhamos um esquema com quatro tipos de pulsões, tal

1 2 . J. Lacan, Los cuatro conceptos . . . , cit., p. 277 ( tradução modificada ).


1 3 . Cf. cap. IV.

178
como se apresentam na conceitualização lacaniana: oral, anal, escó­
pica e invocante. A esta altura, retomaremos tal classificção para ana­
lisar como se compõe cada pulsão, em primeiro lugar, e qual é seu
respectivo destino . Existem, no que nos interessa agora, três pontos
distintos a respeito da pulsão, nos quais surge insistentemente o nú­
mero quatro. Assim se pode observar nas três colunas - não cor­
respo�dentes - que podemos dispor no seguinte quadro, em cuja
primeira coluna situamos as pulsões recém mencionadas:

Pulsões Limites Destinos

- oral
- anal
- escópica
- invocante

Na segunda coluna corresponde colocar os quatro " limites" -


é o vocábulo freudiàno: Termini 14 - isoláveis nas pulsões. Podemos
acompanhar brevemente, neste ponto, as definições incluídas no cita­
do trabalho. A fonte toma lugar em uma dimensão de falta, impe­
lindo a sua satisfação, a sua distensão. O objeto é aquele no, ou pelo
qual, a pulsão pode alcançar seu fim. :t! possível contar, à parte, com
um plano que leve em consideração uma força cujo impacto seja
constante - para dizê-lo com as palavras de Freud. Estou me refe­
rindo, agora, ao caráter denotado pelo termo pressão. Por último,
devemos pensar em um ponto no qual a pulsão alcança o seu fim
motorizado em seu funcionamento, ainda que seja de maneira mo­
mentânea: trata-se da satisfação, passível de ser obtida se o estado de
excitação da fonte é suprimido. Portanto :

Pulsões Limjtes Destinos

- fonte - oral
- objeto - anal
- pressão - escópica
- fim - invocante

14 . De modo coincidente, Lacan denomina "termos" ( termes) aos quatro


componentes ou ocupantes dos quatro lugares dos quatro discursos men­
cionados no cap. I (cf. J. Lacan, "Radiophonie", Scilicet, 2/3, Paris, Seuil,
1 970, p. 99).

179
Os destinos pulsionais também são quatro, de modo que os in­
cluiremos nesta matriz. São: transformação no contrário, volta contra
a própria pessoa, repressão, sublimação.

Pulsões Limites Destinos


- oral ..:_ fonte - transformação no contrário
- anal - objeto - volta contra a própria pessoa
- esc6pica - pressão - repressão
- invocante - fim - sublimação

Assim, as segunda e terceira colunas resumem a colocação pro­


posta em Pulsões e destinos das pulsões. Contudo, há um pequeno ele­
mento que rompe esta perfeita . harmonia "todista" - como me agra­
da designá-la 1 11 • Trata-se do descobrimento de um texto inédito de
Freud encontrado recentemente - segundo se diz - entre os papéis
de Ferenczi. Intitulado Síntese das neuroses de transferência. Consiste
em uma espécie de rascunho onde há algumas frases prontas para
publicar e outras como indicações como as que um autor faz para si
mesmo para desenvolver depois, de maneira que elas admitem - ou
requerem - diversas interpretações, pelo sentido multívoco que têm.
Pois bem, esse texto rompe toda harmonia na ordem pulsional, por­
que Freud postula ali, como inequívoco quinto destino, a regressão.
1! de ta,l importância este destino, que merece um lugar à parte na
coluna eorrespondente:

Pulsões Limites Destinos


- oral - fonte - transformação no contrário
- anal - objeto - volta contra si mesmo
- escópica - pressão - repressão
- invocante - fim -" sublimacão
- i:egressão

A regressão, então, separa-se deste texto pertecente à Metapsico­


logia que J ones - outrá vez erroneamente - dava como destruído 16 •

1 5 . Em função da qual - e do número quatro - o Seminário diz : "é curioso


que haja quatro vicissitudes tal como há quatro elementos da 'pulsão" (J.
Lacan, Los cuatro . . . , cit., pp. 1 7 1 -2, grifos do autor ) .
1 6 . E. fones, Vida y obra de Sigmund Freud, Buenos Aires, Nova, 1 960, t. II,
pp. 200- 1 .

1 80
Por outro lado, levamos em cont� que, apoiado na superfície unila­
teral conhecida como bando de Mõebius, Lacan demarca que, na rea­
lidade, pulsão de vida e pulsão de morte não são senão dois aspectos
da pulsão situados na mesma face. Se recorremos ao trajeto de um:a
pulsão - na banda -mõebiana - concebida como pulsão de vida, a
veremos transformar-se de · pronto - na "outra" face, que é a mes­
ma - em pulsão de morte, para logo inverter-se, nóvamente, reto­
mando a primeira. Não se trata, assim, de montantes maiores ou me­
nores de uma ou outra pulsão, nem tampouco de s�ltos . metafísicos de
um tipo ao outro, nem da idéia tosca que faz . alusão a um entre­
cruzamento. Freud, sem dúvida, delimitou o conceito de pulsão, mas
sua formalização advém com Lacan. Nos Escritos, reflete acerca da tra­
dução do termo Trieb, propondo, entre outras altern�tivas, por "de­
riva" 1'1. Talvez pareça estranho, a esta altura, referir-µos à deriva
de vida e deriva de morte. O termo é válido e ajustado, não obstan­
te, porque conota o caráter de trajeto, de deslizamento, próprio da
pulsão. Ademais, sobretudo, deriva leva em conta muito melhor o
instável, o variável, do objeto da pulsão.

Banda de Moebius 1 8

17 . J. Lacan, Subversión . . . , cit., . p. 3 1 S,


1 8 . J. Grarion-Lafont, La topologia básica de Jacques Lacan, Buenos Aires,
Nueva Visi6n, 1987, pp. 3 1 -46.

181'
A classificação recém colocada requer ao menos situar a defini­
ção que Freud expõe em seu texto. O trabalho assinala : " . . . nos apa­
rece como um conceito-limite entre o psíquico e o somático". Aqui já
devemos apontar, porque estamos trabalhando a questão dos concei­
tos fundamentais, alguma consideração sobre "cop.ceito-limite" . Freud
não disse que ô conceito está apoiado entre o psíquico e o somático;
o conceito de "limite'' implica que ele deve poder ser trabalhado como
um nó no qual participam o psíquico e o somático. Por outro lado, o
texto tampouco alude a que a pulsão cônte com um forçado referente
empírico. ·Em todo caso, podemos outorgar-lhe o estatuto de ficção
,no sentido proposto por Jeremy Bentham, o utilitarista inglês. A fic­
ção �ão é o oposto da verdade; não é uma falsidade. Melhor dizendo,
"ficção" - tal como vimos em nossa primeira aula - é o que per­
mitirá a Lacan definir a verdade mesma. "A verdade tem estrutura
de ficção", chegará a expressar. Assim, não devemos "superar" a fic­
ção· para chegar logo à verdade. Pelo contrário, enquanto a verdade
se diz - e não vai dizer de todo - não há outra alternativa que
suportá-la como ficcional. A ficção - como a narrativa o demonstra
- não é catalogável segundo Ós cânones formais, tradicionais, da
divisão verdadeiro-falso.

Não há na conceitualização freudiana, um · empirismo ingênuo


que tente encontrar a pulsão palpável, quantificável. Ao · colocá-la
como um conceito limite entre o . psíquico e o somático, fica claro
como Freud menciona um . Begrifl. A definição continua desta forma :
" . . . como o representante psíquico das excitações vindas do interior
do corpo e que chegam ao psiquismo". Deve esclarecer-se a esse res­
peito que a procedência da pulsão estabelece uma diferença interes­
sante com tudo aquilo implicado na problemática do instinto, enquan­
to este último é absolutamente a-subjetivo, porquanto liquida a ordem
signüicante. Na pulsão trata-se - em uma de suas leituras - de uma
inscrição psíquica, representada pára outra. No · instinto, ao contrário,
estas inscrições não se contemplam, p�is aquela tem a condição ine­
rente à cegueira, vale dizer, daquilo corcernente à ordem do inatamen­
te programado. Todo instinto está concebido como um mecanismo
adaptativo, . eficiµ; aos efeitos de que certo espécime consiga perpe­
tuar-se em seu ser, atendendo a suas funções vitais. No terreno da
pulsão nos encontramos, em troca, com " . . . um representante psíqui­
co das excitações, vindas do interior do corpo e que chegam ao psiquis­
mo, como uma medida da exigência de trabalho que é imposta ao
psíquico como conseqüência de sua ligação com o corporal". Fala-se
de trabalho, t�mbém de modificação. Isto traz como conseqüência

182
- entre outras - a impossibilidade de subscrever conceitualizações
como as kleinianas. Hanna Segai define a fantasia inconsciente - ao
apresen.tar com solvência as idéias de Melanie Klein - como "a
expressão mental dos instintos" 19 • Não há ali trabalho algum. Não
se toma uma matéria-prima inicial, se a articula com um instrumento
determinado de aplicação- é se obtém como resultado algo distinto da
matéria originária, Se há trabalho deve haver mutação, mudança,
transformação. Pensemos no processo que vai desde cortar uma árvore
até convertê-la em unt banco de madeira. Efetivame�te este processo
pode dar lugar a todo tipo de investigações filosófica.s : oµ metafísicas.
Mas não é nisso que nos deteremos, mas sim em reparar como Freud
privilegia a dimensão do trabâlho. Esta exigência do corpo, que se
arremata em uma ordem psíquica, em nada se atém ao âmbito do
instinto. "Arremata", enquánto não se trata de postular um coroado
decalque epifenomênico, como acredito acontece em Melanie Klein,
onde se concebe o psíquico como um mero correlato subordinado e
mecânico. Em tal corrente, através do uso do termo instinto se acaba
por sustentar que o universo fantasioso - inconsciente ..:..... está pré­
constituído no funcionalismo J:,iológico. A partir destas idéias - e
incluo isso para demonstrar que elas não são questões ocultas· ·a res­
peito das quais se polemiza tolamente - tem sido viável pensar
coisas tais como que a inveja está detern1inada pelo funcionamento
hepático, responsável pela "fabricação" das fantasias específicas. A
esta conclusão se chega atendendo à função cumprida pelo fígado,
decisivamente catabólica, "destrutiva". Por certo' que esta função faz a
digestão; como tal, é necessária e imperativa. Um autor disse, então,
que este processo possui uma expressão mental : a inveja. Para ele, o
invejoso será quem tenta romper e destruir aquilo supostamente va­
lioso possuído pelo outro. Com Lacan, em troca, temos aprendido
- neste Seminário - que a inveja está ligada com o olhar, com o
mal olhado, que pouco ou nada se relaciona - enquanto valor in­
trínseco - com o que tem o outro. Simplesmente, se trata de que · o
outro aparece unido ao que tem, oferecendo "a imagem de uma
completude que se basta''. 20 • Inveja-se a imagem de completude ofe­
recida pelo outro com tal Qbjeto, com o que foi, e, não com aquele
que "dá vontade ". À luz destas afirmações podemos entender melhor
alguns dos problemas surgidos neste campo, · aludidos por essa fi­
gura - clinicamente tão valiosa - denominada por Freud como nar-
1 9 . H. Segal, lntroducción a la obra de Melanie Klein, Buenos Aires, Paidós,
1 965, p. 20.
20 . J. Lacan, Los cuatro . . . , cit., p. 125.

1 83
c1s1smo das pequenas diferenças 2 1 • Pequenas diferenças, claro, mo­
tores muitas vezes das disputas mais ferozes. Mais do que o distante,
inveja-se o próximo. Essa dimensão contempla uma intelecção ati·
nada, racional, da rivalidade concorrencial - esta, que se denomina
inveja -:- por como o outro tem o a. Se não, levado pelo raciocínio
kleiniano, pode conceber-se - como já se tem feito - que assim
como há uma fantasia hepático-invejosa, há outra cardíaca, outra pul­
monar etc. Em suma: se calca, baseado no funcionamento orgânico,
uma -fantasia · presunçosamente psíquica que cumpre a mesma função
etn se� terreno que um órgão com relação ao funcionamento global
qo organismo biológico.
Devemos levar em conta, marcadamente, o demonstrado por La­
can : Trieb é um conceito inédito que vem revolucionar a teoria.
Quem traduz Trieb por instinto põe a perder o edifício freudiano.
Não é uma questão de meros vocábulos ; não, porque ao dizer ins­
tinto já se começa a ter uma direção da cura e se orienta a operar
segundo o desejo de um analista, não do analista.
Por outro lado, Freud circunscreveu, com rigor, os alcances do
termo " instinto" . Pode-.se situar cinco passagens onde escreve Ins­
tinkt para aludir estritamente ao instinto biológico, à dotação zooló­
gica. Quando nomeia o quarto conceito fundamental, a pulsão ou a
deriva, escreve Trieb, o que indica que tinha as idéias bem çlaras .
Mais uma prova disto? O que escreve em Os leigos podem exercer a
análise?, · da seguinte forma: "Triebe, um termo que muitas línguas
nos invejam 22 •

Questões

P.: .. . .
R . : Perguntam-se se poderia me estender
' sobre a inveja; se im-
porta mais a imagem ou a idéia do outro completo, que o presumido
valor ostentado por esse outro. Para Lacan lhe parece um lugar
princeps para o tratamento desta questão uma referência de Santo
Agostinho, onde descreve - a citação não é textual, mas esta é a
idéia - como teve a ocasião de ver uma criança que, pálida e enve­
nenada de inveja, contemplava sua mãe dando de mamar ao irmão

21 . S. Freud, "El tabú de la virginidad", o.e. cit., _ t. XI, p. 195.


?2 . S. Freud, o.e., cit., p. 187, grifo nosso.

184
menor 23 • Trata-se por acaso de que esta criança necessitava, lhe era
útil, o leite? Era isto o valioso? Ou - usando o modelo kleiniano -
era o seio bom o que ela queria e que seu irmão menor lhe tirava?
Esta não está, na realidade, dependurado no a separado, satisfazen­
do-se disto ? Por outro lado, não era esta a imagem da mãe com
a criança dependurada nela o que tentava render inveja? O insupor­
tável é esta mãe-filho dependurado - não esqueçamos o valor fá­
lico do filho coino tentativa de tampão da nassa, segundo o que já
desenvolvemos - onde não importa a satisfação orgânica como a
junção tão especial, a completude amboceptora produzida nessa ama­
mentação . Aí aparece a inveja, remarca Lacan, seguramente lem­
brando Freud, que em O sinistro havia discorrido acerca do " mal
olhado " em sua ligação com a inveja 24 • Trata-se de uma ordem o_nde
está em jogo o escópico . Para onde aponta o mal olhado? Na res­
posta a esta questão trabalharemos mais adiante, dando conta do
contexto - mais abarcante - onde se insere. Por agora, digamos
que aparece ali a dimensão separadora do olho, no sentido de que
tenta separar, por exemplo, a mãe do filho que mima e este de pen­
dência de a. Porque não é - reitero .:._ que esteja invejando o irmãó ·
menor amamentando, senão que é a fascinação desta imagem em si
mesma a captara. Tal situação pode dar lugar, ao se cristalizar de
maneira significante, a uma particular condição - requisito ...... para
a erotização . Tal fascinação pode erigir-se - articulada, está claro,
com outros fatores que omitiremos - em uma condição de e�cita­
ção impossível de evitar em relação ao gozo .

P . : O que devemos entender por pré-psicótico?


R. : t uma dessas classificações que, na verdade, eu não gosto.
O problema é que não é fácil dizê-lo de outra forma. Aqui aparece
uma vertente conflitiva para a psicanálise : o de fazer uma espécie
de previsão . Na primeira reunião colocamos que uma de nossas di­
ferenças em relação ao discurso da ciência era determinada pela Ti­
quê: o da psicanálise é uma prática do acaso, diferente da ciência,
que trata de manter as variáveis previstas , que trabalha com afã para
fazer previsões . Pré-visão, quer dizer, ver antes o que vai acontecer .
A ciência reivindica a consideração deste · plano causal no predito .
A c9locação da análise tenta procurar para si um estatuto distinto .

23 . J. Lacan, "La agrcssividad en psicoanálisis", Escritos .II, cit., p. 78.


24 . S. Freud, "Lo ominoso (siniestro) ", pp. 239-40.
O prefixo " pré " , então, alude a adiantar-se a algo que inexoravel­
mente acontecerá mais tarde. Isto .se relaciona com a questão do
diagnóstico, problema escorregadio considerado por Freud em uma
de suas Novas conferências introdutórias à psicanálise, intitulada : Es­
clarecimentos, aplicações, orientações. Ali Freud recorre a um relato
cuja redação atribui a Victor Hugo - ainda que o dado pareça haver
sido produto de uma paramnésia - para esboçar uma analogia do
problema gerado pela eventual realização de diagnósticos em psica­
nálise. A fábula conta de um rei que dizia saber se uma mulher era
ou não bruxa. Segundo este personagem, devia-se · simplesmente to­
mar a mulher em questão e introduzi�la em um caldeirão de água
fervendo. Após terminado o cozimento, ao provar o caldo resultante,
o sabor permitiria comprovar se a mulher era bruxa ou não. Freud
comentava em sua conferência que na análise acontece algo pare­
cido. Podemos fazer um diagnóstico do modo relatado nesta, entre
engraçada e trágica, referência literária : sempre a posteriori 25 • Por­
que pode parecer uma verdade já sabida, mas não é igual estar na
situação analítica e não estar nela. Há fenômenos recém instalados
na situação analítica, e não antes . O delicado se firmará no "pré " ,
o u seja, nas entrevistas preliminares. Diria que além d e assinalar do
modo médico-psiquiátrico se apareceIIl tais sintomas ou signos, o sin­
toma nos implica enquanto analistas na medida em que é uma ar­
ticulação significante, e enquanto possibilidade, por parte do anali­
sando, de deslocar o a para o lugar que nos constitui na prática 2 8 •
Necessitamos nesse primeiro momento comprovar a emergência
e a tolerância do sujeito à metáfora. Observar se há possibilidade de
substituição, ou se qualquer eventualidade de metáfora é obturada
por alguma névoa onde se adota tenazmente - por exemplo - seja
um caminho de discussão obsessiva, seja um de persecução paranóica.
Uma fronteira possível para dar uma indicação de certo modo
" técnica" é exercitar a possibilidade ,de metáfora nas entrevistas pre­
liminares, já que seu exercício implica a operância do significante
Nome-do-Pai. Em última instância: se há metáfora, é porque há metá­
fora paterna. Se se pode falar de modo alusivo, ou o analisando pode
tolerar que se ele diz uma coisa, o analista pode escutar outra, aí
sim pode começar a prática da análise. Inversamente: se não há me­
táfora, nosso entendimento aponta para a estrutura psicótica, pois a

2S . S. Freud, O.e. cit., t. XXII, pp. 1 43 -4.


26 . O "caldo' de então, não é o que "caiu" das mulheres sacrificadas? � um
diagnóstico proposto em função da localização - a posteriori - do a?

186
certeza recusa a metáfora 27 • Mas o problema é, evidentemente, " pe­
rigoso". Muitas vezes, é importante reconhecer, a questão passa pelo
plano ligado à experiência. Lacan mesmo chega a . aludir ao "saber
que a experiência deposita em cada um". Esta captação, definitíva­
mente, relaciona-se com o training do analista e é dificilmente con­
ceitualizável. Só podemos , apontar alguns dados fragmentados. Em
suma, o que é toda a técnica da psicanálise? Qualquer escolar pode
entendê-la plenamente e reproduzi-la, mas daí a que possa desenvol­
ver-se em função da mesma há uma grande distância. Ou será que,
como tal, diretamente não existe?
Um estado pré-psicótico pode chamar a atenção - além de to­
da . conceitualização - pela carência de metaforização e por certos
efeitos desencadeados por uma interpretação. Aí corre-se riscos de
que se detone o que haveria de detonar igualmente em outro âmbito.
De qualquer forma, é responsabilidade ética do analista não desen­
cadeá-lo por sua ·conta e risco particular. E possível pensar este pro­
blema em função de estruturas ou operações constituintes, ou melhor
- como prefiro - pela dimensão de especificidade dos desejos. O
ponto crítico é a maneira particular de entender a estrutura no geral,
e no singular. O crucial, em última instância, para a decisão · de um
analista em conduzir ou não uma análise, não dependerá tanto do
rótulo como de considerar se a análise ajudará ou não ao possível
analisando. Devemos resgatar muitas vezes . estes conceitos - e de
modo não vergonhoso - porque, senão, corremos o sério risco de
nos perder em abstrações sem atender a elementos concretos cuja ava­
liação impõ-se caso por caso.
O que significa considerar se a análise. vai ajudar ou não? A
partir de uma perspectiva ligada ao pessoal, diríamos que a análise
deve ser propensa à obtenção da satisfação do analisando. Pois bem,
a satisfação é · aquilo relacionado com o fim. Se o fün da pulsão é
obter a satisfação, a análise demonstra que esta se consegue de nu­
merosas maneiras. O analisando refere estar insatisfeito consigo mes­
mo; por isso procura a análise. O analista descobrirá, quando delatar
essa insatisfação, quão satisfeito demonstra eatar. Então, ó que justi­
fica nossa intervenção? Com muita pertinência, Lacan insiste que os
analisandos, para obter esta peculiar satisfação englobada na neuro-

27 . Segundo se deduz, esta pontuação da, metáfora não finca o pé - delibera­


damente - na consideração da estabilização psicótica como "metáfora
delirante" (cf. J. Lacan, "De una cuestión ; . . ", cit., p. 262) .

187
se, sofrem demasiado, se esforçam demasiado . Nós, os analistas; par­
timos da base de que, seguramente, as coisas poderiam ser conse­
guidas por vias mais curtas, retificando a modalidade da satisfação.
Há análises porque esse a mais de trabalho captura a vida do
psiconeur6tico. Por isso se . surprende sobremaneira quando a cura
determina nela maior vitalidade, quando aparece mais vivo, criativo
ou encantador. O que é possível porque algo do libidinal compro­
metido nele sustenta-se da ordem dos sintomas, encontrando-se agora
coin possibilidades de ser aplicado a outros âmbitos e interesses da
vida. Poderíamos repetir aqui a clássica afirmação freudiana a res­
peito do objetivo da cura : " amar e trabalhar " . A análise pode ajudar,
efetivamente, nestes âmbitos; usualm�nte afetados no sujeito que nos
consulta. Em defitivo, o processo ,consiste em mudar as condições
do gozo ; em poder responder de um modo diverso à demanda do
futuro; em poder conquistar,_ por fim, um lugar diante do Outro que
não seja o do escravo (isto é, aquele lugar da inquietude mortífera
incessante onde se tenta de�er um desfalecimento contínuo do " Nome-
do-Pai) .

188
VIII
PARCIAL�DADE, BORDA, TRAÇADO :
A DERIVA EM CIRCUITO

Hoje, para começar, desejo comentar-lhes a ocasião de um en­


contro . Grato, ainda que inesperado - quando não ! - me confron­
tou com a defasagem de uma assincronia. Por quê? Porque queria
que esse encontro tivesse acontecido antes de nossa primeira reunião .
E, de fato, ocorreu pouco antes da oitava aula : hoje. Com efeito, há
poucos dias tive a oportunidade de me defrontar com algo próprio
dessa ordem que temos tratado de esclarecer aulas atrás : a da Tiquê.
Esses encontros com a repetição dada como ao acaso. Neste caso a
repetição produziu-se baseada na publicação de um texto de Martin
Heidegger - aparecido recentemente na França - que compila parte
de seus cursos inéditos em vida. Pertencem a um. ciclo proferido em
1 94 1 ; a publicação original data de 1 98 1 . A tradução para o fran­
cês realizou-se no ano passado. O que nos interessa é que tal texto
intitula-se - tal como o curso - Conceitos fundamentais. Obvia­
mente que este não é um nome posto ao acaso, ainda que aqui o
acaso não é alheio ao sentido da repetição, do encontro distíquico.
As reflexões heideggerianas merecem alguns assinalamentos, uma
vez que são interessantes ,para tentar delinear melhor o Grundbegriff.
Trata-se do mesmo termo que Freud utilizou em Pulsões e destinos
das pulsões e sobre o qual Lacan insiste quando começa a sua revi­
são do quarto conceito fundamental da psicanálise . Como se recor­
darão, o fundamento está vinculado com o pundendum, ou seja, que é

189
algo que tem relação com a dimensão genital, ou melhor, com a
sexualidade pulsional. Enquanto não psicanalista, Heidegger outorga
outro sentido ao Grundbegrifl. Contudo, há uma intenção comparti­
lhada : a de pensar justamente neste preciso termo. Parece-nos pos­
sível estabelecer, então, uma certa linha desde Freud passando por
Heidegger, até Lacan . Não nos interessa especificamente que o Lacan
do Seminário 1 1 tivesse conhecido ou não as aulas de Heidegger. O
dado é irrelevante para um critério como o que sustentamos, no qual
não importa tanto o conhecimento pontual, no tocante às influências,
mas sim o compartilhar um determinado clima cultural . Se alguns
pensamentos "impregnam " o ambiente, não é necessário postular even­
tuais influências diretas; não é este o único modo como um precur­
sor 1 ·incide. Com esta pontualização não pretendo . afirmar que o tí­
tulo publicado do Seminário 1 1 , Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, foi tomado de Heidegger. Simplesmente se trata de que
Lacan sempre ressaltou o seu respeito pelas idéias do filósofo alemão
-:- de quem, por outro lado, era amigo -; por isso, vale a pena
mencioná-las em nosso curso. O caso é que não invocamos qualquer
idéia ao acaso : o Seminário nos tem ensinado como o acaso sempre
·implica uma estruturação limitada da situação. Não se trata de pôr
em relação uma coisa com outra por mero capricho. Existe uma li­
gação possível e . outra que entra na categoria do impossível, isto é ,
d o Real. O propósito similar nos distintos autores - n o que nos
diz respeito - articula-se com o modo • em que são pensados os con­
ceitos fundamentais.

Em suas aulas de 1 94 1 , Martin Heidegger asseverava : " Chama­


se 'conceitos' a representações nas quaii; pomos a nossa frente um
objeto ou domínios inteiros de objetos em sua generalidade. Os 'con­
ceitos-de-fundo' são então representações inteiramente gerais de do­
inínios tão amplos quanto seja possíyel " 2 • Este é, no meu entender,
um sentido plenamente compartilhado pela andadura lacaniana. For­
mula ainda outra explicação talvez màis aperfeiçoada. Em um resu­
mo realizado em uma certa "pássagem da introdução, se lê : " Por 'con­
ceitos fundamentais' entende-se habitualmente as representações que
delimitam para nós um domínio de objetos inteiramente ou segundo
perspectivas particulares, porém diretrizes" 3 • Estas últimas palavras

1 . Cf. cap. III.


2. M. Heidegger, Concep ts fondamentaur, Paris, Gallimard, 198S, p. 14.
3 . M. Heidegger, op . cit., p. 25.

1 90
indicam um elemento ligado a um termo caro ao ensino que nos con­
voca: o de direção, o que evocará em vocês, com segurança, a direção
da cura. À parte do sentido usual deste vocábulo, podemos relacioná­
lo com uma das possíveis traduções de outra noção heideggeriana :
Sorge, traduzível como cuidado ou cura. Esta é um pano de fundo
significativo, a ter em conta. Quando aludimos à direção da cura
tratamos em um campo regulamentado por conceitos-de-fundo e con­
cernente ao ser-aí, para denominá-lo com as próprias palavras do filó­
sofo . Para finalizar, leremos um último parágrafo como testemunho
de meu encontro : " 'Conceitos-de-fundo' quer dizer: conceber o fundo
de tudo, ou seja, chegar a relacionar-se com o 'fundamento' de tudo.
Isso que aqui significa 'fundamento' deve classificar-se paulatinamen­
te. Então também deve-se clarificar em ,que consiste a relação com
o fundamento, em que medida esta relação implica, se se refere a um
saber e em que medida esta relação é em si mesma um saber 4 •

Se substituíssemos um tanto temerariamente tal " fundamento "


pela dimensão daquilo que é inconsciente, poderíamos observar, me­
diante essa mudança, como Lacan argumenta e demonstra a condição
de saber articulado daquilo que é inconsciente. Este ir ao · fundo não
é senão outro modo de levar em çonta as conseqüências que advêm
da etimologia do termo Grundbegriff. Até aqui o que queria comen­
tar-lhes a respeito do encontro inesperado com estes desenvolvimentos
heideggerianos, no estrito alcance de nosso cursp.

Na reunião anterior mencionei de pasagem que havia cinco lu­


gares na obra de Freud onde se explicitava o termo lnstinkt. Termi­
nado o encontro, atinadamente me inquiriram sobre estes textos, que
marcam uma clara · discriminação entre a ordem do instinto e essa
outra absolutamente nova implicada no termo Trieb. Os lugares que
Freud exerce esta marcação evidente são : Totem e tabu, O inconscien­
te, o histórico de O homem dos lobos, Psicologia das massas e and­
lise do ego e Inibição, sintoma e angústia 5 • Ali encontrarão uma dis­
criminação categórica, indubitavelmente precisa, uma vez que lnstinkt
se inscreve em relação à condição de um ciclo " reprodutivo " conduti-

4 . M. Heidegger, op. cit., p. 34.


S . s. Freud, o.e., t. XIII, pp. 124-6; t. XIV, pp. 191-92; t. XVII, p. 109;
t. XVIII, pp. 1 1 2- 1 3 e t. XX, p. 1 57; respectivamente. Cabe destacar a
seguinte circunstância : a maior parte destas remissões não se encontram
nos índices analíticos das o.e.

191
vo, que liga ou alude ao reino animal. O termo "reprodução" impli­
ca - aproveitando a ambigüidade do vocábulo - que no instinto
está presente um pacote hereditário veiculizador de - como diria
Heidegger - uma sabedoria, de um saber. Do que sabe o instinto?
Pois de algo bastante singular : sabe acerca da conservação. Possui
um tipo de programação da qual dispõe cada espécie para poder so­
breviver enquanto tal, e em virtude da qual cada indivíduo de tal
espécie pode perdurar, além de fazer perdurar a espécie através da
descendência. Muitas vezes Lacan, ironizando - porque é no sen­
tido freudiano do chiste que o formula e não por erro -, refere-se
a um instinto de morte. Assim o faz justamente pelo valor parado­
xal do conceito, porque quer dar conta de uma idéia inédita. Com
efeito, se o instinto animal aponta para um prolongamento, para a
conservação da vida, o que será um instinto de morte? Em retórica
isto se chama oxímoro. Dizer instinto de morte produz um efeito si­
milar ao de referir-se, por exemplo, a uma luminosa obscuridade. Pen­
sando bem sobre o que significa instinto é possível comprovar como a
proposta freudiana - não a lacaniana, mas sim a do próprio Freud
- é indiscutivelmente revulsiva a respeito de qualquer caracteriza­
ção convencional de instinto. Por isso a insistência em destacar que
o conceito de Trieb é um conceito novo. Em compensação, toda esta
ampliação se perde - como acontece na edição inglesa das obras de
Freud, a clássica Standard Edition dirigida por James Strachey - se
traduz indiscriminadamente como instinto, tanto Trieb como lnstinkt.

Felizmente contamos já há algum tempo com a versão em cas­


telhano de Etcheverry onde Trieb consta como pulsão. Mas sobre este
tema nos vemos obrigados a fincar pé em outro problema de tradu­
ção. Quando nos referimos aos termos da pulsão nos deparamos com
uma proposta que é, no meu entender, desacertada no que se refere
a um dos termos. Veremos de qual se trata, e espero que possam com­
partilhar as razões que aqui exponho.
'
Lacan afirma com muito bom senso que na direção · da cura a
pulsão é um conceito decisivo. O que se quer dar a entender por isto ,
deixando de lado especulações e fazendo referência à clínica? O que
conota e o que denota o conceito de pulsão? Poderia dizer-se, em
primeiro lugar, o seguinte : denot� esse tipo de circunstância onde o
emergente do interior do corpo se faz presente com tal força que é
impossível detê-lo . Não há coerção válida, eficaz, quando existe a
irrupção do que chamamos pulsão. Então, se com este conceito damos

192
conta de uma instância incoercível, ingovernável, a afirmação que fa­
zemos é que ela tem que passar logicamente às vias da ação; vale
ressaltar: implica, de algum modo, a motilidade. Aqui é onde de­
vemos começar a ser cuidadosos, porque o problema se torna mais
complexo. Se só se tratasse da definição anterior, a pulsão consisti­
ria simplesmente em uma •espécie de descarga motriz. Recordemos,
a esse respeito, o esquema muito básico do arco reflexo:

O diagrama representa a entrada de um.a excitação, o trajeto


de um certo caminho e a posterior . saída motora. Há aqui um neu­
rônio · denominado aferente(A), outro que se cónsidera central(C) e
um neurônio final rotulado como eferente(E) . Pensemos, por exemplo,
no reflexo pàtelar. Aplicando uma estimulação externa, por meio
de um trajeto prescrito, determinado, em um circuito neuronial, se
produz a reação patelar espontânea. O arco reflexo é justamente o
ponto de partida para distinguir do que se trata no Trieb freudiano.
Dito de outra forma: podemos partir deste esquema para saber o que
não é Trieb.
Freud começa dizendo que, indubitavelmente, há excitações, quer
dizei', estímulos aplicados do exterior para o organismo. O que con­
tudo nos interessa - assinala - é outro capítulo: o da estimulação
endógena. Por isso alude a algo que emana, que brota do interior,
devendo traduzir-se rapidamente para a ação, a sua representação mo­
triz; :e importante discriminar, então, entre uma eferência exógena e
outra que - para presentificá-la de alguma maneira -- consideramos
como surgida do interior (ou endógena) :

193
A

e
E

O esquema do arco reflexo é certamente precoce na teorização


freudiana. Já o encontramos em A interpretação dos sonhos 6 • Ali, tan­
to como em Pulsões e destinos das pulsões, é surpreendente a estraté­
gia expositiva detectável. O procedimento consiste, em ambos os ca­
sos, em partir de certos desenvolvimentos aceitos pela convenção cien­
tífica vigente. Quando conseguimos fazer uma idéia aproximada do
proposto, declara que não se trata disso, mas sim de outra coisa. Em
A Interpretação . . . começa, efetivamente, tomando o modelo do arco
reflexo para construir um desenho do aparato psíquico. Um instante
depois de culminá-lo advertia que tal modelo não era viável, portanto
não é capaz de dar conta de uma situação anômala para as possibi­
dades que contempla. Qual situação? O fato de que a excitação pu­
desse seguir também este trajeto:

e
E

6 . S. Freud, op. cit., t. V, pp. 530 e ss.

1 94
O circuito resultante não tem nenhuma razão de ser enquanto
um apoio biológico. :8 o que Freud tenta pensar, mediante uma ficção 7
teórico-biológica, uma problemática estranha ao âmbito da biologia.
Diante destas pontuações, alguns apressados ou mal-intencionados o
têm tachado de biologista. A esta acusação deveríamos replicar que
Freud trabalha com os modelos aportados pelas disciplinas de sua
época. Esse constitµi o seu sistema de referências, mas precisamen­
te o subverte para poder processar sua própria experiência, não para
copiá-la da disciplina da qual adota suas ficções teóricas. Não há
aqui nada de biologi'sta; com tal critério qualquer um poderia acusar
Lacan - como se tem feito - de lingüisticista, topologista, atropolo­
gista etc, quando na verdade seu procedimento consistiu na impor­
tação de outros sistemas de referência - contemporâneos, atuais -
para relançar, para renovar a psicanálise. SI.ia jntenção claríssima foi
evitar o efeito enfraquecedor da reprodução ao infinito da citação
freudiana, o que condenaria nossa disciplina a uma morte por inanição.
Voltando a Freud, o recurso de partir do arco reflexo em Pulsões
e destinos das pulsões não tem por objetivocentrar-se na questão que
em A interpretação dos sonhos denominara direção regrediente (�),
mas sim na problemática caracterizável como do estímulo endógeno :

Est imulo endógeno C

E
Aqui surge um problema: utilizamos a . mesma palavra para a
estimulação endógena e a exógena, mas ocorre que as duas são su­
ficientemente diferentes entre si. Não se esvazia a questão nomeando
uma como interior e outra como exterior. A isto se refere, precisa­
mente, a problemática da pulsão.

7. Fiktion, que é um termo - vale a pena destacá-lo - inserido também em


A interpretação . . . (cit., p. 592) .
Por conseguinte, a assidua referência
lacaniana a Bentham reconhece, implicitamente, esta de Freud.

195
Para tentar elucidar com mais rigor a singularidade do estímulo
endógeno, o Seminário retoma aquilo que na reunião passada havía­
mos disposto como os quatro termos da pulsão, segundo um cuidadoso
acompanhamento de Freud, aliado ao desdobramento de certas preci­
sões e aportes para distinguir. Como recordarão, os termos são os
seguintes :

- Fonte
Limites · - Objeto
da �
- Pressão
Pulsão
- Fim
,-

fonte, objeto, _pressão - aqui é onde se situa o problema de tradução


que abordaremos em seguida - e fim ou finalidade . São estes os
termos da pulsão.
Os termos apresentam-se em relação de disjunção. Cada um é se­
parável dos outros, o que significa sua implicação como elementos
de uma combinatória que admite muitas combinações entre eles . Pa­
ra esclarecer melhor esta idéia, podemos trazer como comparação um
exemplo de combinatória e combinação: o de números telefônicos .
A combinatória está constituída por todds o s números presentes no
disco ou na tecla; ou melhor: são só dez elementos . Contudo, as
milhares de combinações em séries de cinco, seis ou sete números
indicam ·,uma singularidade irrepetível para cada um. Senão, um nú­
mero de ' telefone poderia pertencer a dois ou mais assinantes, mas
sabemos que cada um deles possui uma série de dígitos singular :
seu número de telefone.
O disjunto nos termos da pulsão comporta que não sejam soli­
dários entre si, enquanto se colocam no plano de uma combinatória.
· Sem dúvida, quando se pensa em qualquer pulsão deve-se ter em
consideração os quatro termos, mas i�to não determina que ao pos­
tular um, esse carregue - _cõmo por "arraste" - os outros. Tal
advertência permite assentar, no respectivd capítulo, que a pulsão,
se se parece a algo, é a uma montagem cujos elementos de nenhuma
maneira levam em si mesmos um determinado modo previsto de en­
caixe, uma legalidade conformativa. Mas <levemos aclarar outro ponto
que tive oportunidade de conversar fora de aula em um encontro
anterior. Perguntaram-me pela relação possível entre as postulações
de Lacan e o surrealismo. Aqui trata-se justamente disso: se a pulsão
é uma montagem, deve-se entender isto como próprio de uma collage

1 96
surrealista. Parece-me importante a semelhança porque um dos pri­
meiríssimos pontos desta collage é que consiste em uma coisa distinta
da cópia reprodutiva de um mundo representacional, óbvio para to­
dos. Nada mais distante da reprodução. Outro ponto a destacar: os
elementos conjugados na collage são, além disso, heteróclitos entre
si. Não têm, por exemplo, a característica homogeneidade implícita
nas distintas cores, formas; linhas, texturas, da clássica pintura sobre
tela. Pode possuí-la, mas também participa na collagé - por exem­
plo - um recorte de jornal, um pedaço de pano, uma colher, uma
bombinha elétrica ou a bobina de arame de um televisor. Elementos
que, dada a sua condição convencional de disjuntós, realmente sur­
preendem quando se encaixam. Mediante este efeito de surpresa, de
descolocação, o sujeito é "tomadó" por essa experiência tão valiósa
do sem-sentido: denominada pelo Seminário como non-sensical. Sem­
sentido onde se alojam experiências de índole diversa. Este ponto -
antes de sua "recuperaçãó" por parte da psicanálise - tem sido
trabalhado - de modo predominante - pela vertentes literárias e
lógicas. Em uma possível lista figura; em lugar destacado, Lewis
Carrol. Claro, não só o de Alice no país das maravilhas e Através do
espelho, mas o redator de lógica recriativa, onde apresenta aqueles
paradoxos frente aos quais o sujeito, repentinamente, fica paralisado
diante do sein�s.entido 8 • De minha parte poderia agregar Edward
Lear, antecessor de Carrol, e autor de um livro intitulado em caste•
lhano Disparatario 9 • Ali podem ser encontradós muitos destes jogos
lógicos - e zombarias, porque não - onde não podemos advertir
que a linguagem seja cópia de nada ou que represente algo particular­
mente reconhecível como · externo a ele.
Devemos destacar outra questão relacionada com o tema da com­
binatória e da combinação: o salto do geral ao singular. O ins­
tinto tem a característica do geral. � universal, abarca todos os in­
divíduos da espécie. A pulsão, pelo contrário, dá conta de uma espé­
cie de fórmula - se é possível dizer assim - singular. Respeita o
valor da singularidade, ao invés de postular - segundo quer o instinto
- o indivíduo enquanto mero membro da espécie.
Como se observa, este estranho eleme11to, a pulsão, vai-se fa­
zendo cada vez mais irreconhecível a partir das notas próprias do
instinto. Assinalamos há pouco como inerente ao Trieb a condição
8 . L. Carroll, Matemática demente, Barcelon� Tusquets, 1983, e El juego de
la l6gica, Madri, Alianza, 1976.
9 . E. Lear, op. cit., Barcelona·;--Tusquets, 1 984.

197
de ingovernável, de incoercível, de algo que passa à ação. Todas es­
tas características incitam a colocar em primeiro lugar o termo pres­
são, com o qual, muitas vezes, confunde-se pontualmente o conceito
em sua totalidade. O original freudiano é Drang; Lacan traduzirá
para o francês como poussée, conservando este matiz que o relaciona
com a ordem de uma sobrecarga quase explosiva. Na nova tradução
da obra de Freud para o castelhano, Drang se traduz como esforço.
O termo provoca sérios mal-entendidos já que dá lugar, entre outras
coisas, à · traduzir conceitos como o de · repressão secundária - ou
propriamente dita - de um modo errôneo - no meu entender -
já que acaba transformado em "esforço de dar caça". A isto conduz
a necessidade de prosseguir com o mesmo tipo de família semântica.
Nós temos optado, como se nota, por pressão. Por outro lado, na
tradução do Seminário 1 1 publicada por Seix Barrai também figura
como pressão 10•
Este Drang possui outras conexões, se tratamos, está claro, de
assumir os efeitos do ensino das reflexões sobre a linguagem para ar­
ticulá-las neste tratamento que realizamos dos conceitos-de-fundo ou
fundamentais. Então, o Drang está relacionado - para situar-nos no
âmbito que especificamente nos compete - com a Verdrangung, pa­
lavra que se traduz COIIlcO . repressão. Discordo aqui da nova versão
castelhana de Freud, que propõe neste caso "esforço de abandono e
suplantação". Por quê? Porque Drang, como partícula, está presente
no vocábulo Verdrangung. Homologicamente podemos - devemos
- articular a pressão e a repressão, porque dão conta · do seguinte :
se fazemos uma simples escansão, como as que tantas vezes realiza­
mos nas sessões ao "cortar" da segunda palavra seu prefixo, obte­
remos re-pressão. Parece-me uma sensata maneira de entender o con­
ceito tal, que o situa a máxima distância da alusão a qualquer ati­
tude pseudo-volitiva como é, por exemplo, essa do " esforço de dar
caça", com sua inevitável conotação do homúnculo intencional. Quan­
do há repressão, recordemos, não é qu� um significante desapareceu
ou caiu no esquecimento, carente de po'tência ou eficácia. Re-pressão
é 6 que volta a pressionar. O reprimido é esse que retorna pressionan­
do, não o desaparecido. Como dissemos, o inconsciente freudiano é
eficaz; não é um subconsciente diluído, pálido ou privado de força.
Este circunstância se sustenta solidamente se entendemos que se trata,

10 . Em troca a mais recente, da Paidós (cit. ) , escreve 'empuje' (pp. 169 e


ss. ). Valem também, para esta alternativa, as considerações que exporemos
mais a frente.

198
então, da condição impelente, coercitiva, da pulsão. Estes dados são
suficientes, ao meu entender, para afirmar a necessidade de tradu­
zir Drang como pressão. E importante aclarar estes pontos, porque
se recorrermos à : nova tradução de Freud· nos encontraremos cons­
tantemente com " esforço". Se elegemos outros vocábulos, pelo me­
nos devemos fundamentar esta escolha. A nossa é uma opção fundada
de dentro mesmo da psicanálise, e não só das vertentes lingüísticas
(etimológica ou semântica); assim, se deduzirá com rigor que repres­
são não indica a ação de nada que desaparece, mas justamente o
contrário. Poderá cáptar-se, também, o laço existente entre um limite
e · um destino pulsional.
Para resumir, qual é a ação da repressão? Provocar o retorno
do significante suprimido, retorno que se verifica de modo deslo­
cado ou substitutivo. A pressão - como temos assinalado - . pode
dar lugar a supor que define, por si mesma, a pulsão. Se dizemos:
a pulsão é o inéoercível, e marcamos seguidamente este elemento
como traço crucial do Drang, se produz, quase espontaneamente, um
silogismo grosseiro; o definidor da pulsão pareceria ser, precisamente,
a pressão, enquanto mandato irresistível. Tal confusão tem provocado
numerosos desvios dos pós-freudianos, que se por um lado susten­
taram - sem reconhecê-lo assim - um campo que nós aprendemos
a chamar de significante, por outro lado afirmaram também um "mais
além" , que escapa à condição regida pelo significante. Esse mais
além seria algo elementar, primitivo, onde o símbolo não tem pos­
sibilidade alguma de acesso; Se esta concepção ressoa em nossos ou­
vidos de um modo teológico, acredito viável dar-lhe tal crédito; com
efeito, por algum motivo estamos falando de " mais além" . Por outro
lado a pulsão não é uma emanação interior, indescritível, inefável,
que - uma vez aparecida - só sabe pôr-lhe - no melhor dos casos
- certo freio. A pulsão se gera, especificamente, no campo do Ou­
tro. Não é própri� da espécie, como o instinto, mas sim que se desen­
volve justamente em uma estrutura crucial, aquela das ligações re­
conhecíveis em psicanálise como pertencentes ao campo do Edipo,
que compreende relações muito mais complexas que as contempla­
das pelo clássico relato por todos conhecido. Pensemos orientativa­
mente, com Freud 1 1, em todas as relações detectáveis nos fantasmas,
que não é nosso propósito analisar neste curso; só assinalaremos seu
desenho em forma de uma rede muito mais rica e intrincada que a
típica redução à dialética do incesto e do parricídio.

1 1 . S. Freud, "Sobre la sexualidad femenina", o.e., cit., t. X, p. 228.

199
Se consideramos a pulsão também como um efeito das opera­
ções de constituição do sujeito, se desenvolve uma alternativa com­
pletamente diferente à proposta do instinto, que já está dado com
indivíduo da espécie. Portanto, a confusão que considera Drang como
equivalente da pulsão, parte também de outro mal-entendido. Lacan
se pergunta: Pode tratar-se por acaso da pressão própria do indi­
víduo urgido por certa necessidade? Por exemplo o que ocorre com
alguém desesperado de fome, é igual ou distinto ao que Freud es­
creve sobre a pressão? Desde já, a resposta é que se tratá de algo
distinto, e isto se fundamenta no seguinte : a tensão da necessidade,
esse mal-estar que também conduz à ação, carrega uma implicação
de todo o organismo. De sua parte a pressão, o Drang, incumbe uni­
camente o sistema nervoso, o eu real. Limita-se somente a uma di­
mensão parcial. Esta última palavra - parcial - é decisiva em todo
o nosso desenvolvimento. Aqui desejo deter-me um momento por­
que a elucidação deste termo nos permite também compreender o
problema do objeto. Na teorização dos analistas kleinianos, divide-se
o objeto em parcial e total. Então, já que falamos do traço " parcial" ,
é ·conveniente fazer algumas breves observações sobre este ponto. A
citada corrente supõe a existência de uma evolução pré-formada, o
que se apresenta intimamente ligado a toda a ideologia do instinto.
Os kleinianos postulam um tipo de protótipo da espécie que recorre,
no melhor dos casos - e, eventualmente, ajudado pelo meio -
determinado caminho em cada indivíduo. O processo começa no meio
de uma · experiência difusa, caótica e desintegrada. Logo tem lugar
uma colocação precisa, onde se chega a captar as coisas - perceptiva
e afetivamente - como globalidade. Esta argumentação se entende
facilmente; parece possuir uma lógica esmagadora. Efetivamente é as­
sim porque está provida da lógica do Imaginário, que, sempre con­
tundente, capta-se de imediato de forma intuitiva. Esta pseudoteoria
é altamente persuasiva. Se, não obstai;ite, aludimos que a questão não
é tão felizmente integradora, nos aproximamos muito mais do pro­
posto pelo caminho da verdade. Porque o objeto cotn o qual tratamos
a partir da perspectiva da pu1são é inalteradamente parcial . Quando
ô objeto se diz total, estamos em presença de outra dimensão : a do
objeto do amor. E, isto o sabemos, uma coisa são as pulsões e seus
destinos, e outra bem distinta é o amor. Em Freud está terminante­
mente escrito desse modo. de forma quase literal. Quem não pode ver
assim é porque simplesmente não deseja vê-lo. Devemos discriminar
de forma precisa estes dois objetos. Como se lembrarão, quando tra­
balhamos o conceito de transferência sublinhamos que o objeto de

200
amor se produz justamente no terreno narcísico. Assim, o sujeito se
sente amador, erastés, quando na realidade o que busca é ser amá­
vel, eromenós.
Aí é onde acontece a totalização do objeto, porque estamos no
eixo narcísico, o qual, �o ensino lacaniano, é ' apreendido sob a se-,
paração dó estágio do espelho 12 , situando o registro imaginári_o. Nesse
âmbito, tein sentido o objeto total, segundo a notação " i(a) " 1 3 • Não
há nenhuma pertinência evolutiva, nem um encaixado reencontro da
totalidade, como pretendem os kleinianos. Eles pensam, em síntese, que
no princípio há uma unidade, logo ela se dissocia e mais tarde se
reintegra. De minha parte, há anos entendi esse hipotético périplo
como uma metáfora laica da queda e · da redenção. A salvação advém,
justamente, pela reparaçãp capaz de redimir a culpa derivada do pe­
cado sádico original. As notas exemplificadas nos textos kleinianos
como de busca de " reparação " se sucedem através de condutas ma­
nifestas gratas dos pais empíricos . :e possível encontrar com facili­
dade, nessa teorização, um núcleo protestante, presente como verda­
deiro conceito-de-fundo. Definitivamente, no kleiniailismo a pulsão não
aparece'; só fica · bem claro o plano do instinto . O buscado é, pois, a
totalização do objeto. Este dado indica em que nível pode · transitar
uma análise sustentada em tais premissas ; se mantém no registro do
imaginário . E quem disse que o Imaginário não tem sua eficácia?
Os resultados podem ser espetaculares . Tenhamos presente, uma vez
mais, a hipnose . Quando o analista se sustenia no lugar que designa­
mos como I, possivelmente chegue a resultados "eficazes". Seria pre­
cisá definir, claro, em que consiste a ética deste analista - a do
desejo do analista - e o que se propõe, conseqüentemente, na direção
da cura. Com segurança se propõe - sob uma aparência de análise
- manter uma dimensão hipnótica, ainda que não pratique ostensi­
vamente tal dispositivo . Igualmente pode tentar sustentar uma rela­
ção psicoterapêutica, em vez de " numa hipnose ao contrário, encar­
nar, ele·, o hipnotizado " 1 4 • Por isso, insisto, é importante estabelecer
uma eficácia imaginária, parafraseando a eficácia simbólica sobre a
qual escreveu Lévi-Strauss 111 • Em tais casos se observa em q1.1e medi-

12 . J. Lacan, "El estadio del espejo como formador de la funci6n del yo tal
como se nos revelá en la experiencia psicoaQalíticà", Escritos 1, cit.,
pp. 1 1-8.
1 3 . J. Lacan, "Observaci6n sobre el informe . . . ", cit., p. 302.
14 . J. Lacan, Los cuatro conceptos . . . , cit., p. 276.
15 . C. Levi-Strauss, Antropología estructural, Buenos . Aires, Eudeba, 1968,
pp. 1 68-85. .

201
da esta discriminação a respeito de um objeto parcial ou total não
é só um mero jogo de palavras ou uma simples opção teórica sem
maiores conseqüências. A diferença tem uma incidência clínica real­
mente maiúscula. Se a proposta consiste em entregar-se alegremente
ao amor, recusando a divisão que nos constitui - posto que o amor
totaliza - estamos diante de uma alienação imaginária que obriga ·
o sujeito a. incorrer em uma figura possível de ser denominada cura
por amor . . . ao analista.
O objeto concebido como parcial possui aliás outra característica
definida a respeito da discriminação instinto-pulsão. Para nossa sur­
presa, Freud aponta que o objeto da pulsão é um objeto indiferente.
No instinto, de modo algum pode ser indiferente, acontece justamente
o contrário. Deve conectar-se com um objeto definido, recortado e
intransferível. Isto indica uma flexibilidade pertencente à pulsão, é
a antítese da rigidez própria do instinto. O instinto é, inclusive, não
inteligente, porque não tem adequação possível a circunstâncias mu­
táveis. Repete cegamente um mecanismo de sucessividade que, se é
interrompido em um dado momento, quando se reinstala, o animal
guiado pelo instinto não completa o circuito no trecho restante, mas
começa novamente pelo primeiro passo. O objeto e o modo de con­
duta para alcançá-lo são fixos, rígidos, estáticos. O objeto da pulsão.
segundo a observação freudiana, é indiferente. Não é uma vulgar
coincidência que em um texto crucial de Freud como é o Três en­
saios de teoria sexual, se situem expositivamente, em primeiro lugar.
as aberrações sexu,ais.. ie. Não há ali uma intenção do autor no sentido
de inscrever-se na categoria de po�nográfico ou de ostentar alguma
mórbida curiosidade psicopatológica. Este começo se deve a uma es­
tratégia discursiva; é o melhor modo de apresentar o que está em jogo
no campo da pulsão. Sua estratégia d.e argumentação prossegue em
seguida com a sexualidade infantil. Aí apresenta claramente desenvol­
vimentos desencadeantes de uma ruptura epistemológica - tomando
o conceito bachelardiano - com os p�conceitos vigentes acerca · do
sexo. Repassemos brevemente - o que propunham estes preconceitos.
A sexualidade era uma função biológica, total, cuja missão consistia
na reprodução da espécie, o que se verificava por um ato específico:
o coito heterossexual. Fato possível após o desenvolvimento da pu­
berdade. Contra tudo isto Freud· formulou sua crítica e erigiu sua
postulação. Em tal concepção - e quase nem precisaria assinalar -
o objeto aparece como fixo e predeterminado. Ao começar expondo

16. s. Freud, o.e., cit., pp. 123-S6.

202
as aberrações, é possível demonstrar como elas oferecem o modelo
para determinar que o objeto não é fixo de modo nenhum. As pa­
tologias configuram precisamente esta demonstração, e para isto, de­
ve-se deixar de entendê-las como desvios hereditários.
Certa psicanálise incorre em uma concepção pré-psicanalítica da
sexualidade quando propugna a ideologia do genitalismo . Supõe " o
genital" comõ o estágio a que normalmente s e chega n a análise; o ge­
nitalismo, então, é homólogo à posição depressiva kleiniana: portas
de entrada a uma ptêssuposta saúde mental. Neste caso se está exer­
cendo uma concepção tributária não só da totalização do objeto, mas
também da totalização da pulsão.
Como é possível observar, a partir do parcial do Drang come­
çamos a girar em tomo de duas noções que em alguma medida são
próximas : pulsão parcial-objeto parcial . O curioso é que são duas.
parcialidades que não conduzem a nenhuma totalidade. Não são par­
ciais no sentido de que, em algum momento, chegarão em algo supe­
rior ou maior. Sobre este ponto, anotemos que a pulsão é parcial
porque representa parcialmente a finalidade biológica :-- totalista -
implicada D_ll sexualidade. A sexualidade assim concebida possui in­
tegrantes que não confluíram - " se tudo vai bem" - em um feixe
dirigente ou com centralização diretiva, mas, ao contrário, permane­
ceram disjuntos, da mesma forma que ocorre com os termos compo­
nentes de cada pulsão. :8 1,1m primeiro ponto a se prestar a atenção .
O segundo é algo j á mencionado quando fizemos referência ao con­
ceito de repetição . Como se lembram, abordamos interessantes colo­
cações sobre a questão da psicologia evolutiva e as etapas do desen­
volvimento. Lacan observava, segundo comentamos, que a partir da
psicanálise esta concepção evolutiva - que até ostenta um grau não
desprezível de platonismo - é impensável. A psicanálise, frente a ela,
insiste nos acidentes ou traumas - utilizando o vocábulo freudiano.
Importa-nos o inesperado, como vetor de mudança da posição do su�
jeito. O mesmo postulará o Seminário a respeito de como vão se su­
cedendo as pulsões e de que modo vão se sucedendo seus objetos.
Não há nenhum lugar onde esteja pontificado que como uma espécie
de trânsito maturativo natural deva haver uma passagem evolutiva
do oral para o anal, daí para o fálico, depois um período de latência,
e por último a genitalidade, seguindo certas leis preestabelecidas da
migração libidinal. Se é que alguém pode prever certa ,Passagem, isto
se torna possível mediante a consideração da demanda do Outro.
Mas, em que consiste este Outro? Vamos exemplificá-lo.

203
Existe um momento em. que, pot sua inserção na ordem simbó­
licà, a mãe reconhece ter chegado o · momento de solicitar - como
Freud nos ensinou - os excrementos de seu filho em um lugar e
tempo determinados. Aqui se vê claramente; há uma demanda do
Outro exigindo a atenção para um lugar preciso para as deposições,
um saber pedir, e um levar em conta que, se se outorga este regalo,
se obterá algo em troca. Isto funda a dimensão do dom, como aponta
o Seminário. Inaugura-se assim uma dialética da troca simbólica; por
isso, enfatiza o quanto está relacionado o doinínio da troca - e
inclusive, do sacrifício - com a analidade. Se imaginássemos um
enunciado da demanda do Outro, diríamos: " te demando que me
dê isso ". Ainda que esta não seja uma fórmula muito perfeita, ela
pode dar provisoriamente a idéia acerca do que foi exposto : que psi­
canalisticamente não há uma evolução prescrita, nada morfogenético
nem evolutivo, visto que o acontecer dependerá de requerimentos
simbólicos. Não há, necessariamente, uma explicitação ;, te peço uma
parte · de teu corpo" ou nielhor um " faça-o por mim ". Trata-se de
um pedido com valor de troca. Não é um valor em si mesmo, uma
vez que é outorgado pelo Outro. " Se me der isso, em troca te darei
este outro" ; aí entramos em um plano obviamente interlocutivo 17 •

Vamos realizar agora um retorno sobre o esquema inicial desta


reunião; o do endógeno e o exógeno. Vale a pena insistir nesta ques­
tão porque vamos abordar outro aspecto delicado: a alusão à mo­
tilidade, a todo o ingovernável que aparentemente ocorre em tal pla­
no, de desvio e controle presumivelmente inviáveis. Este ponto faz
decisivamente com que o endógeno tenha uml! condição descontínua.
A pulsão, em troca, nos diz Freud, é uma força constante. Não re­
conhece um momento de de�línio '. De alguma maneira esta outra
diferença substantiva com o instinto está relacionada com o seguinte
item : o fim de um instinto ftv--tambétp. a satisfação. Após ser satis­
feito amaina, atenua sua tensão de necessidade. /\ função biológica
reconhece ' um ritmo : após comer bem se está' satisfeito; não se tem
mais fome. Este exemplo muito particular e elementar não me agra­
da muito, quaiie que estou me criticando, ainda que valha como um
andaime - a ser retirado - para pontuar o que aqui nos interessa.

1 7 . Excluímos de propósito a clássica demanda introduzida por Lacan no


Seminárfo 1 9 , . . . ou pire, que diz : ''Te demando recusar o que te ofereço,
porque não é isso" ( aula de 9 /2/72, inédita) . Ela, está claro, recoloca
nossa "imaginarização"; em particular, permite assentar com rigor o cará­
ter não explícito da demanda, ponto que temos advertido no cap. VI.

204
:e claro : não podemos considerar o registro da fome como fenômeno
biológico exclusjvamente, uma vez que também é tomado pela ordem
significante; assim, a ingestão não está excluída do pulsional, não
pertence só a uma necessidade alimentícia. Temos para prová-lo os
casos de bulimia e anorexia. Ambos dão conta de que não se trata
de uma satisfação- alimentícia inscrita unicamente na ordem do qui­
mismo. Reiteremos : o objeto a não é o alimento, como acredita Me­
lanie Klein, ainda que o chame de seio . ou peito. :e
efetivamente o
peito, mas não no IP0Jllento da amamentação, mas sim quando o perde.
Para representá-lo de algum- modo, seria o seio constituído no
momento · 4ôdesmame. :e
ali onde, e quando, constitui-se este objeto.
Logo depois de perdê-lo começa a ser objeto, uma vez que a sua
condição consiste em uma. espécie de automutilação, eni um órgão
corporal perdido, que cai e convoca a falta. Porque o peito não " é "
d a mãe, nem sequer a representa parcialmente. Tampouco é viável,
então, essa oscilação kleiniana entre satisfação instintual-peito bom
porque dá leite, frustração instintual-peito mau porque não dá leite.
O ritmo de presença-ausência, essa rígida rítmicidade do instinto, se
situa em m;na ordem de satisfação muito distinta da que propõe uma
pulsão.
Voltemos ao que lhes referia ao final de nosso encontro ante­
rior: era a observação cotidiana a respeito de nossos analisandos, no
sentido de · como e quanto alegam não estarem , satisfeitos com o que
sãb. Que não estão contentes, não vivem bem, estão angustiados, não
conseguem o desejado etc. Nosso problema consiste precisamente, nos
diz Lacan, em tratar de demonstrar-lhes que, através de seus sinto­
mas - em virtude dos quais não estão satisfeitos - contudo, se
satisfazem. A questão será esclarecer o que denota esta impersona­
lidade do " se " . Assim, produziremos um caminho muito importante
para· compreender certas questões, pois, sem dúvida, a algo dão sa­
tisfação . O Seminário afirma a pulsão como aquilo que basicamente
atenta contra o reinado do princípio do prazer. Assim sendo, a pulsão
é responsável por estabelecer, determinar e impor outra coisa que o
mero princípio do prazer.
Prossigamos mediante esta citação de Freud, mediante esta ques­
tão de Freud: " Como uma satisfação pulsional teria por resultado
um desprazer?" 18 Esta problemática, obviamente, se liga com tal

1 8 . S. Freud, lnhibición, sintoma y angustia, cit., p. 87.

205
questão; mas Lacan, em lugar do desprazer - expresso-o de maneira
orientativa somente para introduzir o conceito - inclui algo além do
prazer, isto é, o gozo. Tal gozo tem certamente muito pouco de pra­
zeroso, muito pouco de prazer decorrente do acúmulo excitativo. Dis­
semos gozo e isto provoca um efeito de sentido. Mas como conceito,
trata-se do contrário que é sugerido pelo vocábulo. O que quer indicar­
nos com isso, além de uma armadilha léxica montada? No meu en­
tender, demonstrar, uma vez mais, o caráter arbitrário do signifi­
cante. De algum modo acontece sempre o assinalado por Humpty
Dumpty de Alice no pais das maravilhas: uma palavra quer dizer,
finalmente, o que o Amo determina que queira dizer. Entre outras
coisas, isto marca a relação de um significante ao poder, mas ao mes­
mo tempo afirma a flutuação que admite a qualquer significante, en­
quanto não carrega, de nenhuma maneira, seu " próprio " significado.
Comprovamos já, por outro lado, como a respeito do conceito do
Real, Lacan procede de um modo similar, modo talvez caracterizável
- para efeito de ensino - como chistoso e irônico.

Quando propõe sua especial abordagem do gozo, pontualiza que


não se deve confundir com prazer. Pelo contrário, designa o gozo
como aquele através do qual a pulsão subverte o reinado abrangente
do princípio do prazer.

Assim, a satisfação do sintoma acarreta muitas complicações. Em


primeiro lugar, não é uma satisfação que salta ingenuamente à vista,
pois se oculta atrás de uma genuína máscara de sofrimento. Há aqui
um paradoxo : o de dizer que nesse sofrimento há também uma satis­
fação, à qual não cabe adicionar - precipitadamente - o adjetivo
" masoquista" . Mas não só o sintoma coloca problemas a respeito da
satisfação da pulsão; há um destino ' responsável por tornar ainda
mais complexa a questão. Trata-se, é c{aro, da sublimação.

O destino pulsional conhecido como sublimação se relaciona, so­


lidamente, com essa categoria difícil de apreender que foi finamente
trabalhada por Freud em Psicologia das massas e análise do ego: a
pulsão inibida com relação ao seu fim. Por definição, esta seria
aquela pulsão à qual está proibido alcançar o objetivo da satisfação.
Mas devemos também destacar que, ao aludir à sublimação, existe
uma relação disjuntiva muito elementar postulável entre aquela e o
sintoma:

206
sintoma V sublimação

Para colocar em um grande mapa conceituai estes dois termos,


poderia dizer-se: o sintoma funda a repressão. E� troca, a sublimação
se produz sem repressão e, não obstante, comporta um destino pul­
sional no qual se obtém a satisfação, por uma via substitutiva. A pul�
são inibida em seu fim, como desvio da meta, indica -:-- diz Freud -
" um começo de sublimação ".
Em Psicologia das massas e análise do ego amplia sua idéia acer­
ca da relação amistosa, realizando algumas anotações insólitas. Intro­
duziremos a principal delas através de um provérbio portenho que
diz: " as mulheres passam, mas os amigos ficam" . Em . outros termos,
a psicanálise ensina algo próximo : que, ao existir uma inibição com
relação ao fim, é possível sustentar-se uma ligação com estabilidade.
Entre amigos do mesmo sexo, a libido homossexual está presente, ain­
da que não haja manifestação sexual explícita, corporal. Enquanto
este componente pulsional não alcança seu fim, conserva o objeto,
alimentando uma esperança que o próprio sujeito - em uníssono · -
se ocupará de desvirtuar, de desnaturalizar. A satisfação corporal
propende à declinação da instância libidinal. • Assim, então, pode-se
explicar a sustentação de um laço amistoso no curso dos anos, tanto
quanto o esgotamento de uma relação heterossexual 19 • Certamente,
é mister matizar estes pólos mediante as incontáveis combinações pos­
síveis, para retirar de tal concepção um falso maniqueísmo. Pontue­
mos, em resumo, que estes dados dão conta desse fim tão especial
implicado na sublimação, e na pulsão inibida em seu fim; compro­
vamos, portanto, como a pulsão não pode ser reduzida a um hipo­
tético ato motor ingovernável. Se definimos a pulsão unicamente por
esta circunstância nos equivocamos, porque acreditaríamos que se
trata quase pontualmente do esquema do arco reflexo, mas funcio­
nando com uma estimulação endógena. Não inclui, então, o aspecto .
mais bestial do homem, o mais intratável, aquilo que se costuma
chamar popularmente de instinto. Não é assim, de pronto, porque
existem a sublimação como destino, e a inibição enquanto um fim
pulsional. Esta peculiar satisfação constitui um fator a mais para
marcar a distinção rigorosa a ser feita entre instinto e pulsão.

1 9 . S. Freud, o.e. cit., pp. 1 3 1 -2.

207
De alguma forma, para entender de que satisfação se trata na
sublimação, e como se obtém a mesma, devemos levar em conta o
quarto - e último - limite pulsional: a fonte. Tal fonte é o que
Freud denomina zona erógena. Seria muito simples entender isto
se instintivizássemos a pulsão. Tudo começa com uma fonte, da qual
surge a pressão que impele à busca do objeto. Quando o alcança,
obtém seu fim que consiste - usualmente - na assimilação, na in­
corporação do objeto:

Este último ponto bastante definidor da questão do instinto "mol­


dado" de acordo .com a fome, por outro lado. :I! claro que às vezes
trata-se de uma função oposta: o caso da excreção, onde o corpo se
despossui de algum elemento biologicamente descartável. O proble­
ma, como se deduz, é que o fim da pulsão não se situa na apro­
priação do objeto. Observem, além disso, que resulta difícil expor o
limite fc;>nte, sem mencionar, por conseqüência, o limite fim. Então,
quando ·pensamos em uma zona erógena como a boca, ocorre que
ela não determina o alimento como objeto. Lacan recordará, com
extrema sagacidade, que talvez onde se possa vislumbrar de uma ma­
neira mais contundente, mais clara, o que corresponde à pulsão
oral, é naquele exemplo do auto-erotismo, proporcionado por Freud,
que consiste na intenção de beijar os. próprios lábios 20•
1

O convocado nesse ato de fechamento é precisamente um va-


zio. No beijar os próprios lábios não\ é somente a elementar estimu­
lação sensorial dos lábios o que está em jogo, mas - decisivamente
- o vazio de objeto gerado para sustentar a pulsão. Aqui encon�
tr�mos outra distinção mais categórica entre pulsão e instinto. O
objeto da pulsão, pelo contrário, não é procurado nos efeitos de
sua incorporação senão que, por seu intermédio, se tenta sustentar
um buraco, um vazio. Esta é uma característica que em nosso âm-

20. S. Freud Tres ensayos .. .., cit., p. 165.

208
bito - pelos dados fidedignos de que dispomos - é dificilmente
entendida. Geralmente se parte da premissa de que o sujeito quer
instalar-se no reino da plenitude imaginária; coerentemente, o obje­
tivo consiste ern incorporar cada vez mais coisas: brevemente, to­
talizar-se. Esta premissa costuma determinar interpretações estereo­
tipadas e falsas; por exemplo, que o sujeito não suporta "a falta" ou
"a ausência", que "quer a completude fálica" etc. Pensar exclusiva­
mente desta maneira é um bom índice revelador de uma cosmovisão
filosófica onde tudo se explica em função de uma monotemática re­
negação ou forclusão de uma suposta falta intolerável. A falta é,
assim, uma maldição da qual todos tentamos fugir; outra vez, a idéia
do pecado original. Pois bem, o que Lacan vem assinalar é algo
absolutamente oposto a estas noções, que não são mais do que ou­
tra forma de achatamento dos três registros sobre o Imaginário 21•

:8 certo que o sujeito - ou melhor, o eu - tenta sustentar


uma condição de virtualidade completa. Mas _no caso da pulsãq, in­
sistimos, não se trata de incorporar objeto algum para obturar a
falta, visto que entra em jogo uma zona de borda na estrutura, o
que pontua um dado decisivo para considerar a zona erógena:

------.: na erógena-borda
��
/

Se no diagrama a elipse é a zona er6gena, traçamos nela um


arco que denominaremos o retorno em circuito da pulsão, marcando
a diferença com o ciclo, com o. ritmo, do instinto. O título do ·capí­
tulo XIV do Seminário é A pulsão parcial e seu circuito; muito bem,
o circuito de referência se produz ao redor do objeto, que é situado
neste ponto:

i 1 . Também, está claro, caberia posicionar neste parágrafo a função d.o a


como obturador. De qualquer maneira, em função do objetivo que guarda
a exposição, segue sendo conducente a leitura assim proposta.

209
/�::;n• er6gena-borda

O percurso do circuito consiste em vagar ao redor do objeto;


fazer seu tour, dirá Lacan, enfatizando a conotação do duplo sentido
do vocábulo francês, que se esclarece a partir do inglês. Por um
lado é turn e por outro trick, ou seja: limite ao redor do qual se
dá a volta, mas ao mesmo tempo um giro ilusório, uma armadilha,
inclusive prestidigitação (tour d'escamotage) 22• Não deixá-lo à vista,
o que evoca aquilo de "nunca me olhas de onde eu te vejo" e "o que
olho nunca é o que quero ver". Essa ordem de ocultamento sub­
reptício - relacionado. claramente, com o que tentamos desenvol­
ver sobre o olhar, enquanto exemplo - ocorre com qualquer obje­
to da pulsão. Não se trata, conseqüentemente, de uma ação dirigida
para o ,objeto, segundo poderia representar-se em nosso diagrama
inserido verticalmente nele o que desenhamos para representar como
o instinto opera:

Zona erógena-borda
',./�
I 'v
22. A segunda versão castelhana opta aqui, insolitamente, por "juego de _ma­
nos". Será por aquilo de "juego de manos, juego de ... ? (cit., p. 176).

210
Assim, o instintual procederia deste modo: da fonte, a pressão
impulsionaria o instinto para a obtenção de seu objeto. Encontra-o,
incorpora-o de alguma forma e consegue finalmente a sua satisfaçãQ.
No circuito pulsional, as coisas não são assim, o que acontece é
um retorno efetuado sob�e a mesma zona erógena, sem a famosa
incorporação. O objeto não é o fim da pulsão; é aquilo mediante
o qual a pulsão consegue sua satisfação na zona erógena. A satis­
fação tem lugar na fonte; a obtenção da satisfação consiste precisa­
mente na suspensão ·da estimulação local da zona erógena. O que se
produz aqui, portanto, é um caminho de ida e volta, um "fazer-se":
chupar, defecar, olhar, ouvir. Movimento que condensa, sincronica­
mente, a conjuração pulsional: voz ativa, voz passiva, voz reflexiva 23•
Convém recordar neste ponto que o objeto da pulsão possui a
condição de ser indiferente (enquanto realização, . uma vez que não
como estrutura). Por outro lado, a pressão, em termos desta magni­
tude da exigência de trabalho imposta ao psíquico como conseqüên­
cia de sua ligação com o corporal - um corpo que é antes de tudo,
um registro disjunto de zonas erógenas - ostenta já muito pouco
·da ordem relativa ao corpo biológico ou ao trajeto prefixado do arco
reflexo. Pode-se situar o Drang freudiano nessa tessitura, que dá
conta da perfuração a que se submete a zona erógena, para f ruti­
ficar no cultivo dos "contornos" do objeto:

Pressão

23. S. Freud, "Pulsions et destins des pulsions", Métapsychologie, Paris, Galli­


mard, 1972, p. 28; O.C., cit., t. XIV, p. 123.

211
Questões

P.: Poderia precisar mais as diferenças entre· pulsão e desejo?


R.: Agradeço esta pergunta, por ser uma das clássicas. Safouan
também a formulou para Lacan, neste Seminário, com referência par­
ticular aos respectivos objetos. E. possível começar por uma discri­
minação bastante óbvia. O desejo não reconhece limites; portanto,
parece possuir uma atitude distinta diante da eventualidade de ser
cindido em elementos de uma combinatória. Por outro lado, o que
caracteriza e define o desejo está ligado à metonímia enquanto um
deslizamento confuso com relação a seu objeto. No caso da pulsão,
a indiferença de seu objeto não solapa o traço estrutural da esta­
bilidade. E. este plano que a diferencia, decisivamente, do desejo. A
este se dirige a interpretação, uma vez que ambos possuem uma es­
trutura homóloga. O desejo e a interpretação ligam-se igualmente à
metonímia, uma certa temporeidade que contempla a faculdade de
deslocar-se. Esta homologia provoca a remissão da ordem da interpre­
tação, à do desejo. Daí,, Lacan assevera que o desejo é sua interpre­
tação. O analista interpreta, e parece fundar neste ato o desejo. Há
muito mais para dizer; todos estes esclarecimentos servem somente
como primeira colocação.
Existe outra questão que não se pode deixar de lado: a sexua­
lidade, por cuja via temos passado da transferência até a pulsão.
Quando pensamos po desejo não temos a presença de um par mõe­
bianamente contraposto, como o foi em Freud a dupla sexualidade e
morte. Em troca, a circunstância específica em que Lacan alude ao
desejo da morte, é com referência ao desejo do analista. Todavia, na
articulação significante onde circula o desejo - isto é, a cadeia me­
tonímica - não há inscrição da morte, a não ser como um retorno
da castração. Acredito que esta é uma discriminação importante; não
há inscrição inconsciente da morte no âmbito daquilo que é incons­
cientemente desiderativo. Tampouco da vagina. Acreditar no con­
trário. seria separar-se imperdoavelmente das premissas freudianas.
O esclarecimento vale porque trata-se de duas falácias nas quais in­
corre, por exemplo, a corrente kleiniana.
P.: Em certa passagem de sua exposição você assinalou que
a passagem de uma etapa a outra no desenvolvimento sexual depen­
dia da demanda do Outro. Isso é assim em todas as etapas?

212
R.: Sou consciente de que na exposição surgem às vezes exem­
plos que, por didáticos, chegam a parecer empirista_s. Assim, o caso
da pulsão anal; nela, o seu objeto particular engana pelo patente.
Evidentemente é muito mais fácil citar um exemplo deste tipo do que
outro referente ao olhar, porque neste último já não é tão intuitivo,
tão contundente, o objeto · desprendido; caído. E evidente: a defeca­
ção constitui um claro ato de desprendimento de algo do corpo, que
inclusive ilumina todo o circuito do dom e da troca simbólica. - De
qualquer maneira, no_ tempo subseqüente à analidade, surge a ques­
tão que Lacan designa, escreve, do seguinte modo: (: 'P). Isto é o
contrário da imagem fálica: (-'/l), a qual se poderia homologar par­
cialmente com a instância conhecida desde Freud como eu ideal 24•
Como é possível ver-se, esta questão relaciona-se com o registro do
Imaginário. A negativização da imagem fálica se produz pela cas­
tração. Alude a um par que não pode ser concebido na ausência _de
qualquer um de seus limites, tal como Freud pontualizou em A or­
ganização genital infantil 25, ensaio de 1923 escrito como comple­
mento de Três ensaios de uma teoria sexual, onde aparece inaugu­
ralmente a eficácia determinante - apres-coup - da fase fálica. Ve­
rificamos aí uma franca ruptura com qualquer naturalismo das fun­
ções biológicas. Em primeiro lugar, aparece o que acabou de ser
mencionado: não há inscrição da vagina, o que indica que não há
nenhum tipo de função vital em jogo. Assim, Freud disse fálica, e
e não genital. Isso significa que nessa ordem intervém uma nítida
dimensão simbólica onde a queda se produz em torno de uma fun­
ção, e já não à separação de um· fragmento do corpo. :E uma queda
diante da ausência do Falo monumental, perene, que em algumas
ocasiões, clinicamente, coloca-se como inibição funcional. P.ara es­
clarecer isto, recorreremos ao capítulo III de O ego e o id. "Como
eu - o pai ---:- não hás de ser", é o ditame superegóico. Podemos ex­
pressá-lo de maneira imaginária: "não poderás ter a esta mulher co­
mo mulher, já que para ti não é mulhe_r: é mãe". :E a instância pai
quem diz que o sujeito não será como ele. Paralelamente ·a isto, che­
gá o reverso do mandato: "deves ser como eu" 26• Há uma incitação
à identificação no sentido de ordenar certos atributos, de outorgar
os dons para procurar uma mulher no dia de amanhã. Na etapa fá-

24. Outra sustentação lacaniana desta instância, postulada por Freud, é cons­
tituída por uni par - alimentado na reciprocidade - que se escreve
assim: m Cc) i (a).
25. S. Freud, o.e., cit., t. XIX, pp. 141-9.
26. S. Freud, op. cit., p. 36 e ss. ·

213
lica não se corta nem se perde nada corporal, ainda que seu trânsito
implique uma dimensão funcional . Em termos empíricos esta condi­
ção funcional está provida de certas alternativas nas quais podem
caber numerosas disfunções, que indicam, de algum modo, uma não
atenção, uma revolta contra este mandato que ordena: "como eu não
hás de ser ".
Trata-se de que a mulher eleita se relaciona de maneira pouco
metafórica com a série materna, com ela " não se pode " . Assim, se
obedece funcionalmente ao " como eu não hás de ser" ; obedece-se,
também, ao "sou como você", desobedecendo-se, finalmente - ou
em primeiro lugar - através do "tenho a 'mesma' mulher". Aí se
produz um nó difícil de desfazer, que como fator de uma conste­
lação, pode dar lugar a impotências, ejaculações · precoces etc. Toda
a questão procede, como acredito pode-se observar, da demanda do
Outro, seja patente, seja implícita, seja invertida - como demanda
ao Outro -, seja inclusive, a nível do desejo, de acordo com as
mesmas alternativas. Mas a questão se complica ainda mais por cer­
tos efeitos de estrutura . que podemos precisar por meio de referentes
clínicos. Lacan aludia a que o homem demasiadamente enamorado
de sua mulher, por exemplo, pode dificultar em seu filho a operação
do Nome-do-Pai, porque a mulher é quem marca a Lei. Não se trata
de uma localização imaginária de uma mulher fálica e de um homem
débil. Acontece neste caso que o homem entregue à idealização fun­
dante do amor se coloca em um lugar a partir do qual tudo o que
provém do' objeto - amado merece um sim. Promoção do não, então?
Com efeito: se o não à díade materno-filial não é uma oposição gros­
seira, sistemática, veicula a função paterna ao ditar à mãe: não rein­
tegrarás teu produto. Não reincorporarás a teu filho 27 • Ao enfantizar
este momento estrutural da castração, se desimaginarizam os exem­
plos das etapas.
J

Tenho escolhido, então, o exemplo da analidade por ser mais


claro num primeiro momento; inclusive ' até a oralidade, em termos
pontuais do desmame, pode ter seu referente empírico. A castração,
como diziamos, consegue que se nos comece a " escapar " a referência
intuitiva fálica, mas se ganha em entendimento ao precisar que denota
o lugar que - a mãe outorga ao pai para que a instância Nome-do-Pai
proceda com a sua eficácia de duplo mandato. A castração também
_ convoca o dom da sexualidade, entendida nestes termos. Freud até

27 . J. Lacan, Las formaciones . . . , cit., pp. 84-90.

214
o final de sua vida - no incompleto Compêndio de psicanálise -
chega a reiterar, como Goethe : " o que tenha herdado de tens p�is,
deves adquiri-lo para que seja teu" 28• Esta sentença parece-me uma
inteligente evitação a todo tipo de rotulação da ordem do inato e do
adquirido, por meio de uma resolução inédita. Nem sequer o herdado
é possível possuir se não se' faz uma operação capaz de outorgar a
possibilidade de adquiri-lo, de recebê-lo. Se entendemos esta propo­
sição em função do dom - por exemplo, para o menino, o dom pe­
niano - será : não acr�dites que, por possuir o órgão, este funciona­
rá, pois isto ocorrerá, ou não, de acordo com as vicissitudes da di­
mensão desejante, ou seja, de acordo a como adquirirás essa herança.
A " possessão " do corpo não diz nada. Aí se percebe uma enorme
diferença com o instinto da espécie. Não diz nada precisamente por­
que falta o dizer, o cair no campo interlocutivo, em virtude do qu�l
o corpo resulta imerso no Simbólico. Por certo, o aforismo de Goethe
é muito valioso pela quantidade de antinomias que resolve ou que,
minimamente, fazem repensar, pois há todo um " programa" implica­
do nesta formulação.

P. : Que relação haveria entre pulsão, compulsão e impulsão?

R. : A compulsão é da ordem do obsessivo. O termo obsessivo­


compulsivo relaciona-se especialmente com os rituais ; a compulsão,
além disso, integra-se no plano da compulsão de repetição, própria
da pulsão de morte. Clinicamente é possível assinalar a
compulsão
enquanto um mandato por realizar-se; algo que, ' a princípio, não se
• propõe como prazeroso, mas que, ao não realizar-se,. incrementaria o
desprazer. Um exemplo banal : o típico lavar as mãos "compulsivamen­
te " , muitas vezes por dia. Em um certo momento passa a constituir
um equivalente masturbatório, mas a princípio trata-se de algo de que
q sujeito quer se livrar e não consegue.

Na impulsão o modo de posicionamento do sujeito frente à pul­


são compreende uma localização onde não se detecta uma esquize
(tal como aparece na compulsão). N� impulsão mediante uma sinto­
nia acabada, chega-se em um acting-out ou uma passagem ao ato ·vi­
venciados como prazerosos. Assim, por estrutura - não por feno­
menologia - a impulsão coloca . a dimens.ionalidade perversa.

A pergunta me parece muito interessante, já que a relação · entre


pulsão, compulsão e impulsão está compreendida no mesmo tipo de

28 . S. Freud, Esquema dei psicoanálisis, O.e., cit., t. XXIII, pp. 208-9.

215
raciocínio que temos feito a partir de pressão e repressao . Não sao
só " palavras " ; devemos lembrar que é com elas, através delas, que
podemos entender, ou não, toda uma série de fenômenos .

P. : A compulsão não seria um fenômeno exógeno, produzido por


alguém de fora?

R.: Não plenamente de fora. Em todo caso, se o pensamos topo­


logicamente, seria uma exterioridade interna. A dimensão do discurse
do Outro implica uma instância " trabalhada " a partir do campo de
Outro, mas que no sujeito é sentido como outra instância nele mes­
mo, a qual, contudo, seu ego é alheio.

P.: A respeito da questão da sublimação, recordava como Lacan


caracteriza este particular destino pulsional quando fala de elevar o
objeto à dignidade Coisa. Pergunto então o que implicaria este pro-
cesso próprio da sublimação?

R. : Em Freud, quando a Coisa aparece como das Ding, tem a


ver com um caminho do Outro primordial. Lacan a traduz - decisi­
vamen.te, a partir do Seminário 7 29 - para dar conta de que a su­
blimação não consiste meramente em uma ingênua adaptação feliz
elograda à sociedade e/ou em um mecanismo de defesa adaptativo
e exitoso. :e
que a sublimação costuma transformar-se em um fenô­
meno em nada confundível com uma espécie de domesticação pul­
sional. Q�ando mais devorador, mais próximo da categria de das Ding.
Curioso: pode adquirir um caráter compulsivo. :e
interessante o que
Lacan . demonstra, porque não aponta que esta seja a patologia da
sublimação, mas sim praticamente o seu acontecer ; assim, consegue
salvar o conceito do plano sociológico no qual muitas vezes se di­
lui. Além ·da boa adaptação ou o êxito social, esse desenvolvimento
convocado ·pensa em um processo no qual o sujeito se incorpora mais
e mais. Como pólo de atração, das Ding comporta um certo traço
sinistro. Poderia interpretar-se o que gera enquanto fascinação, ainda
que seja em um sentido mortffero. Nãb é a fascinação imaginária,
aquela ligada à ordem da beleza, da harmonia.

P.: Mas então, já não seria assimilável a um sintoma?

R.: O sintoma tem a condição de ser vivido como efetivamente


molesto mas, devemos conceber assim a enganação sublimatória? Se

29 . J. Lacan, L'éthique de la psychanalyse. Le Séminaire, livre VII, Paris,


Seuil, 1986, pp. SS- 194.

216
alguém, por exemplo, declara que vai escrever e chega a considerar
que deve dedicar-se a fazê-lo porque lhe é impossível pensar em outra
.:oisa, fazer qualquer outra coisa até finalizar seu · escrito, é muito
difícil atribuir a isso - do modo psiquiátrico . - a característica de
sintoma. Por outro lado, circunscreve-se na sublimação - e isto é
bastante crucial - uma capacidade de intercâmbio simbóli�o diferen­
te da privacidade do sintoma. Enquanto está presente a dimensão do
Outro - enquanto demanda a ele dirigida - se estabelece uma ·cir-'
culação, e não fica o produzido como mera manifestação catártica.
Além disso, do sintomá - em princípio - o sujeito costuma querer
curar-se; deste tipo de circunstâncias, não. Depois de tudo, o sinto­
ma, psicanaliticamente, é próprio de quem diz padecê-lo. Quem não
diz, não o tem. A atribuição não � produz de fora, mas sua denún;
eia depende do interessado.

21 7
IX
SEXUALIDADE OU MANTICA? -
O "VEL" DA ALIENAÇÃO

Esta é nossa penúltima reunião, o que implica um especial com­


promisso. Na primeira aula adverti que desenvolveríamos algumas
questões expostas no Seminário 1 1 de Lacan segundo minhas escolhas,
talvez tão arbitrárias quanto a de qualquer outro. Tratamos de funda­
mentar as deste curso de todas as formas, com regular insistência.
Em nossas aulas não pretendemos dar conta de uma impossível leitu­
ra global; em todo caso, trata-se de um convitç para ler Lacan . Tal
proposta implica que o que foi trabalhado aqui não pode ser substi­
tuto da leitura; não a substitui sob nenhum ponto de vista. Em todo
caso, o afirmado é pensar em termos um tanto mais simples certos
desenvolvimentos evidentemente complexos.
Nossa intenção é expor uma série de conceitos sem adulterá-los
nem degradá-los ; preservando sua ordem · de complexidade diz�ndo-os
de um modo que possam resultar em um estímulo para a leitura. J;:
este o modesto propósito de nossos encontros.
E é óbvio, ficam pendentes muitas questões. Como assinalei na
primeira reunião, não me resta outra alternativa senão insistir em uma
setorização, com vistas a que alguns pontos, pelo menos, fiquem colo­
cados e argumentados segundo a doutrina lacaniana. Parece-me inte­
ressante poder captar, dela, os meandros de seu caminho, seus cursos
e recursos ; a que conduz, por fim, esta determinada maneira de tra­
balhar a experiência dialética implicada na prática analítica.

219
Hoje prosseguiremos com o desdobramento da pulsão para -
após algumas observações mais sobre o tema - levar em considera­
ção as operações de causação do sujeito. Sem dúvida, este é um
problema transcendente, o que já fica demonstrado pela sua denomi­
nação levemente empolada. Trata-se, efetivamente, de como se produz
um sujeito, partindo do rechaço da clássica · idéia segundo a qual
aquele é - permitam-me a expressão latina - causa sui, ou seja,
causa de si mesmo. Para nós, o sujeito não se autoengendra, uma vez
que reconhece uma origem, uma gênese, no que temos denominado
o campo do Outro. E. ali onde reconheceremos a operância de duas
funções decisivas. A primeira é designada com um vocábulo já tradi­
cional� muito conhecido e divulgado, do qual o Seminário produzirá
uma leitura sumamente diversa, original : trata-se da alienação. O
outro vocábulo em jogo, a outra operação de causação do sujeito se
nomeia - por agora nos limitaremos a mencioná-la - como sepa­
ração. Ao .esclarecimento de ambas chegaremos de um modo gradual;
com efeito, há alguns pontos que quero colocar antes sobre a sexuali­
dade, no desenvolvimento ligado à pulsão.
E. necessário aqui nos referirmos à sexualidade; recordemos como
foi esta, a partir da transferência, a que nos conduziu à pulsão; Pôr
em ato a realidade daquilo que é inconsciente, qual é sexual : esta­
mos, assim, diante da transferência. Agora, sabemos que em Freud
trata-se, desde o começo, de uma dicotomia pulsional, , vertida final­
mente como pulsão de vida e pulsão de morte. No Seminário 1 1 se
oferecerá uma fórmula muito atinada acerca desta bipartição, ao fazer
constar à pulsão enquanto voltada para dois aspectos : o da vida e o
da morte. Esta conceitualização indica, obviamente, uma concepção
muito distinta daquela dos respectivos montantes de dQas essências
dissimilares. O que o ensino lacanianq assevera é que há uma pulsão
com dua11 faces ''mõebianamente" unilaterais. Se a recorremos por
uma face terá certas características; se à seguimos por outra elas serão
diferentes. E sempre tendo eni conta que se trata da " mesma" face.
Assim, pulsão de vida e pulsão de morte se imbricam: veremos de
que modo o fazem.
Existe outro ponto importante a ressaltar, que mostra como é
precisamente por intermédio dâ sexualidade que a psicanálise conse­
gue excluir-se das práticas usualmente conhecidas como mânticas. A
relação se dá em termos de conceber a psicanálise versus a mântica.

220
O que é uma mântica? A palavra encontra-se, por exemplo, como
sufixo em quiromancia, oniromancia etc; todos estes vocábulos fazem
referência à adivinhação através de um recurso particular. Em um
sentido estrito se chama mântica a um sistema particular de adivi­
nhações, entendo, especialmente, a antecipar o futuro. Embora date
das convicções religiosas da antiga Grécia, hoje existem com uma
índole muito distinta; inclusive muitos analistas da outra psicanálise
têm incorrido em uma delas, ao conformar sistemas de símbolos fixos,
universais e imagé.licos, Há numerosos dicionários . de símbolos· cir­
culando, além das versões mais vulgares oferecidas nas bancas de
jornais e revistas. Existe, por exemplo, um livro intitulado Psicanálise
dos sonhos, de Angel Garma 1 , onde na última seção se organiza um
dicionário - " índice" - como uma mântica. Diante destas confu­
sões devemos, então, descrever um modo preciso de circunscrever a
prática analítica. Para tal efeito, um elemento crucial para esta distin­
ção é o reprimido primariamente :

Vs. mântica

Repressão primária
(ou odg�ria) .

Reiterêmo�lo: denota aquilo que caiu pela ação da repressão, e


que de nenhuma maneira poderá fazer-se consciente. Por isso a deno­
minação de repressão primária ou originária. Articulada à modalidade
secundária . da repressão, este elemento - deliberadamente sem carac­
terizar - dará lugar sincronicamente ao que conhecemos como sin­
toma:

Vs. mântica
Sintoma.
Repres�ão primária
(ou originária) .

t possível entender a repressão primária e o sintoma como per­


tencentes a uma ordem homogênea, já que ambos estão organizados
segundo a cadeia dos significantes :

1 . Buenos Aires, Pajd6s, 1963, pp. •95-202.

22 1
Significantes

Vs. mântica
Repressão primá­
S ignifican tes � i a o u originária )
Sintoma .
Um sintoma em última instância não implica - em determinada
leitura - senão uma particular articulação de significantes. Na teori­
zação lacariiana isto é um pólo da experiência analítica, na qual encon­
tramos - como recordarão - uma ordem de hiância onde aparece
um intervalo temporal. Devemos ter presente este dado, e incluí-lo em
nosso diagrama. Além disso nos encontramos, no outro extremo da
série mencionada, com a interpretação:
Vs. mântica

epressão primá-
Sign ifica ntes � a ou o rigin ária) .
i ntom a .

Nosso passo seguinte consistirá em atravessar o intervalo. entre os


pólos, na seguinte direção:
Vs. mântica

epressão primá­
S ignifican tes �a ou origin ári a) .
intonià .

Desse modo, sem mais prec1soes, nos encontraríamos em pleno


território da mântica, contradizendo o propósito contemplado pelo

222
"Vs . " do esquema. A " interpretação " , com efeito, dando um salto
violento para uma experiência armada estritamente por meio de signi­
ficantes, daria lugar a uma mântica, por um lado. Além disso - e não
devemos deixar de reparar nisto - originaria, segundo o caso, uma
concepção espiritualista, intelectualista e especulativa do " analítico " .
Vocês sabem que esta última é uma das freqüentes refutações que
por ingenuidade ou má fé - quando não por mera ignorância - se
formula a Lacan. Tacha'-se a sua teoria de sistema intelectualista. O
seria, naturalmente, se. não situasse - coisa que realiza - nesta
hiância onde se dá o salto, a sexualidade :

Vs . mântica

Significantes
LlRepressão primá­
·ia ou originária) .
Sexualid ade .
r n terpre t a ç ã o .
Sintoma .

A sexualidade, e m virtude d e haver coincidido com o mesmo tipo


de estrutura com que encaramos o Grundbegriff daquilo que é incons­
ciente, se relaciona com uma pulsação temporal :

Vs. mântica

epressã o primá­
Signif ican tes �ia ou origi nári a ) .
Pulsação
S i n toma . temporal 2 •

2 . A "pequena diferença" com o diagrama do cap. 111 a respeito do âmbito


onde assinalamos a pulsação temporal consiste em como a ênfase está
posta, agora, no intervalo, antes qµe no conjunto da operação, segundo ali
ocorria. Engano _de todo andaime imaginário, enfim, do qual, contudo,
descontando a intervenção, podemos aprender a famosa estrutura.

223
Frente à interpretação, e recorrendo as nossas já conhecidas refe­
rências cronológicas, situa�se uma relação de sincronia :

Vs . mântica

epressão primá­

Significantes 1a ou originária) . Pulsação
interna . temporal .
Sincron i a .

O sincrônico denota uma ação em uníssono. Recordemos o que


foi dito na reunião passada : se há repressão é porque há re-pressão,
algo que volta a pressionar. Esta volta a pressionar está, a rigor, ligada
com a formação de um sintoma. O sintoma não se produz em um
momento posterior, senão que é o testemunho da ação da repressão.
O trabalho da repressão é precisamente gerar sintomas, no sentido
lato de vocábulo. Ali se patenteia, de maneira clara, esse caráter sin­
crônico, enquanto denotação de fenômenos produzidos em forma
coincidente.

A pulsação temporal se relaciona, pelo contrário, com a estrutura


de abertura e fechamento daquilo que é inconsciente. Assim o desen­
volvemos em nossa segunda reunião. Nesse movimento onde um " al­
çapão" se abre e se fecha é onde se mostra aquilo que é inconsciente.­
Esta característica será importante para levar em conta que as zonas
erógenas da pulsão, os orifícios enquanto zonas erógenas, não são na
realidade meramente buracos escavaâos . Habitualmente se conside­
ram estas zonas erógenas como lugare� de contato com o mundo, no
sentido de um intercâmbio. Pareceriam regiões de limites que se liber­
tam, ora para a zona interna, ora para a externa. Devemos desconfiar
quando se passa rapidamente aos exemplos descritivos. Parece de
extrema facilidade compreendê-las genericamente citando o caso da
boca : a boca se abre e ingressa o alimento, Outro exemplo simples:
se produz a abertura do esfíncter anal, e se eliminam as fezes. Isto é
muito claro; entra ou sai algo do corpo. O orifício pode ser pensado
assim como zona de intercâmbio e conexão. Na realidade, esta argu"

224
mentação é somente uma pequena sofisticação pseudopsicológica da
experiência imaginária cotidiana; em outras palavras, pura eficácia
imaginária. Lacan trata, pelo contrário, de oferecer uma formalização
mais séria sobre este ponto . Assim é como remarca que os citados ori­
fícios são passíveis de serem zonas erógenas por possuírem uma comu­
nidade topológica com aquilo que é inconsciente. Há algo em comum
quanto a sua estrutura - não pelo lado, claro, do empirismo -: à
condição de ser susceptível de abertura e fechamento . Estes são, então,
orifícios sexuais, sexualizados, pulsionalizados, nos quais opera , justa­
mente, a pulsão, acomodando-se à ·condição de abertura e fechamento
daquilo que é inconsciente. Observa enigmaticamente que só um
destes orifícios carece desta qualidade de abertura e fechamento, e
agrega : isto traz conseqüências . No Seminário 1 1 tal circunstância
não se desenvolve, não se elucida quais são as conseqüências que tra­
zem consigo a indefectível abertura do ouvido. Não obstante, por
agora só reparemos em que o resto das zonas erógenas possui a con­
dição assinalada . Desde já, se pensamos no desenvolvimento efetuado
reuniões atrás sobre o olhar, devemos convir que o olho reúne essa
qualidade de abertura e fechamento . Por outro lado, este órgão pode
ser muito estimulante - no sentido imaginário - para considerá-lo
como zona de intercâmbio com o mundo, ou coisa similar. Essa seria
a degradação psicológica do conceito de zona erógena. O verdadei­
ramente importante é o movimento de abertura e fechamento indica­
dos pela pulsação temporal . Baseada nela uma zona determinada passa
a ser erógena, graças a uma homologia topológica com aquilo que é
inconsciente . Aqui se explica, entre outras coisas, porque aparece a
pulsão parcial como presentificação da sexualidade naquilo que é in­
consciente.
Se existisse uma pulsão total - especulemos por um momento
com essa idéia - não haveria zonas erógenas abrindo-se e fechando­
se. � a comunidade topológica com aquilo que é inconsciente que atrai
à pulsão e faz que ela, através de sua específica zona erógena, se rela­
cione com aquele. Desse modb. é como se articulam dois conceitos
fundamentais : aquele que é incons.ciente, e a pulsão, segundo postu­
lamos em nossa primeira reunião . A sexualidade faz-se de articuladora,
de ligação, de lugar de intersecção, para permitir que a pulsão possua
sua inserção naquilo que é inconsciente.
Toda pulsão é parcial - não é supérfluo reiterá-lo . Quando fa­
zemos referência ao total j á estamos incursionando em outra dimensão

22S
da qual dará conta o título de um capítulo do Seminário 1 1 - ainda
que com os termos invertidos -: Do amor à libido. Aqui, marcamos
a passagem da libido ao amor ; neste último, podemos apreender a
questão do total, isso que de imediato induz reciprocidade, a qual é
uma caracerística definidora do amor. A partir deste ponto Lacan
oferece uma concepção global, ao assinalar - em diversos trechos de.
sua produção - que os sentimentos são recíprocos . Sob a aparência
de uma simples fórmula esta afirmação possui uma importância clínica
transcendental . Se ci assumimos ao pé da letra, captaremos então como
a contratransferência está falando - concordando que pretende dar
conta do sentimento do analisando - está falando, dizia, do senti­
mento do analista. Portanto indica, como operação do analista - se
podemos chamar assim - uma confissão acerca do que sente a res­
peito de seu analisando. E isto é assim inclusive quando o analista só
pretende revelar o propósito "fracassado " do analisando com relação
a provocar-lhe tais ou quais sentimentos ; sim, porque o mero fato de
verbalizar que quer lhe induzir essas emoções, assinala como já as
está sentindo. Se expressa : "- você faz isso para que eu me irrite,
fazendo o possível para que eu chegue a sentir-me irritado", direta­
mente já está tudo confessado. Presenciamos, então, uma maneira
imaginária, dual, especular, de " dirigir " a cura.
Detenhamo-nos novamente na pulsão, seguindo a leitura de Pul­
sões e destinos das pulsões. Recordarão como assentamos, nesse texto,
a clara divisão realizada por Freu d entre as pulsões e seus destinos,
por um lado, e o amor, por outro. Isto se liga, como reflexão ou exten­
são teórica, ao problema da pulsação, do porquê à sexualidade sua
própria pulsação lhe permite estabelecer uma imbricação com aquilo
que é inconsciente. Para entender melhor esta circunstância, devemos
marcar que a interpretação se desdobra em uma ordem de metonímia :

Vs." mântica

epressão primá­
Significantes �a ou originária) . Pulsação
intoma. temporal .
Sincronia.

226
Em primeiro lugar, e no plano mais empmco, devemos recordar a
aparente tautologia : a interpretação se diz. Talvez não seja excessivo
repeti-lo, porque existe uma certa tendência - autodenominada " la­
caniana " (sic) - que acredita que a interpretação pode não ter a ver
com a fala. Não é nenhuma novidade assinalar que toda interpretação
está construída com palavras, mas o fato de dizê-la tem suas conse­
qüências. Entre outras coisas, fenomenologicamente, implica ser exten­
siva no tempo; portanto, passível de deslizamento. E é neste desliza­
mento onde encontramos, precisamente, a metonímia.
Ao ligar interpretação e metonímia, se descobre a presença de
outra estrutura comum. Se há metonímia, que ordem é convocada
imediatamente no ensino lacaniano? Aparece, desde já, o dese_j o:
Vs. mântica

epressão primá­ Sexualidade.


Interpretação .
Significantes �a ou originária) . Pulsação
Metonímia .
intoma. temporal .
Desejo.
Sincronia .

Esta relação é possível porque o objeto do desejo é metonímico ,


vale dizer, aquele objeto inapreensível que se desliza incessantemente.
A estrutura do desejo é, pois, metonímica. Liga-se, assim, à falta fun­
dante do sujeito. Lacan se perguntará: O que é o ser falante? E se
responderá : é uma falta, ou melhor ainda, fará referência a uma falta­
em-ser. O desejo será concebido; então, como uma busca cifrada na
falta, que reconhece o· objeto como aquele responsável por sua causa­
ção, e o fantasma como sua sustentação.
A fórmula, algo mais complicado, aludirá ao desejo como meto­
nímia da falta-em-ser. Acredito que os esclarecimentos anteriores a
tornam aceitavelmente inteligível.
Quando o analista interpreta, o desejo se faz presente. Recorde­
mos que é o que conduz à cura; assim, quando trabalhamos o conceito
fundamental de transferência, afirmamos que o pivô da análise é o
desejo do analista. Não obstante, nos encontramos com outra "volta
do parafuso", que dará lugar ao título de um dos Seminários de Lacan,

227
já citado: O desejo e sua interpretação. Temos na mesma ordem os
dois conceitos: interpretação e desejo. Podemos pressupor que o ana­
lista interprete o desejo que " está" no analisando, de acordo com a
nossa maneira mais vulgar de entender as coisas. Agora, o simples fato
de levar em consideração que o desejo é desejo do Outro, já complica
bastante tal maneira imaginária de elucidação. Se o desejo é o desejo
do Outro - repito - a questão consiste em que o desejo é sua inter­
pretação. Não que a interpretação seja aquela de um desejo situado
dentro da cabeça do analisando. Alguém poderá · objetar que segundo
a forma como estamos expondo este problema, o analista estaria con­
duzindo de um modo quase sugestivo, quase hipnótico, o analisando.
O tema é, sem dúvida, diferente; na interpretação se põe em ato,
precisamente, uma dimensão à mercê da qual o sujeito é constituído.
Por acaso este não se constitui a partir do Outro? Assim sendo, não
é justamente a interpretação um voltar a pôr em ato uma operação
de constituição do sujeito?
Não é certo que sujeito se tenha constituído em um certo mo­
mento histórico e de uma vez para sempre. O fato de que o analista
faie ao analisando dentro da situação analítica, indica de que modo
se põe em ato, novamente, certa operação de causação do sujeito (que
exporemos mais à frente). Atendendo a estes pontos, podemos precisar
porque o desejo é interpretação. Não há, assim, um desejo "preexis­
tente" ao discurso do Analista, visto que consiste naquilo instaurado
pela operação analítica chamada interpretação.
Agora, na medida em que aparece este intervalo aberto pela se­
xualidade em forma de uma pulsação temporal, cabe inserir em nosso
diagrama, nomeando-o, um conceito que trabalhamos no começo deste
curso: trata-se de uma estrutura de hiância:

Vs . ;mântica

epressão primá­ Pulsação Interpretação .


Signi ficante s. [a ou originá ria) . temporal . Metonímia.
ntoma. Hiâncias . Desejo.
Sincronia .

228
No meu entender, hiância é uma tradução aceitável do francês
béance, porque permite inteligir a determinação em jogo em termos de
significantes . Recordemos como se relacionava a hiânéia com aquilo
conhecido em poesia conio verso biante, com esse corte, essa censura
condicionante do corte da e na frase.

Voltemos agora a uma questão anterior. Temos assinalado várias


vezes que libido e amor são domínios contrapostos. Para elucidar este
ponto, Lacan segue minuciosamente o complexo desenvolvimento de
Freud na segunda parte de Pulsões e destinos das pulsões. Ali fica
suficientemente claro como assinala que é o eu total o que participa
do amor. Aquele constitui a condição possível para pensar uma relação
de reciprocidade . Esta mesma noção da reciprocidade é a que nos
permite, por exemplo, advertir de que modo se equivocam os que são
vítimas do erro denominado por Lacan como piagético.

O termo piagético alude, obviamente, às concepções de Jean


Piaget. Porque o fato é que o investidor suíço parte, no momento
mais decisivo de sua investigação, de suas demonstrações, da loca­
lização inicial de um estágio do sujeito ao qual chama egocêntrico.
Segundo ele esta etapa logo vai se superando ao aceitar, de algum
modo, a aparição do outro. Assinala Piaget q�e deste estágio egocên­
trico há provas quando se verifica - entre outros fenômenos - um
solilóquio compartilhado. Ainda que estejam juptas, as crianças mo­
nologam ; nenhuma atende a outra, cada uma · fala consigo mesma,
está em seu próprio mundo. Daí se depreenderia o presumido -
convincente - fundamento do egocêntrico. A evolução, por conse­
qüência, conduziria do egocentrismo - esse estar fechado em seu
próprio mundo - ao abrir-se ao outro de modo recíproco. Por certo
este ponto de partida teórico não é nada inocente ; de alguma maneira
pode caracterizar-se como totalmente contraposto à concepção laca­
niana, segundo a qual o processo começa no campo do Outro, e se
operacionaliza por meio do significante .

1!. a ação do significante · a responsável pelo aparecimento de um


sujeito onde só havia um mera vivente. Onde somente estava prome­
tido que podia haver um sujeito, o significante determina, efetiva­
mente, o surgimento do mesmo. A prioridade, não cabe dúvida alguma,
está situada n� campo do Outro. O erro piagético consiste em tomar,
como único parâmetro válido, a reciprocidade . Desta teoria podemos
extrair, em seu deslizamento à reciprocidade, a ação da dimensão

229
totalizadora do amor. O que é a reciprocidade? :e a relação eu-tu. Eu
te falo, tu me escutas. Imediatamente se trocam os papéis: tu me falas,
eu te escuto. :e um ponto de partida equivocado. Especificamente sobre
o solilóquio, o Seminário advertirá que o pontuável - antes do pre­
sumido egocentrismo - consiste em levar em conta a presença dos
outros. Os outros são a condição de possibilidade, de existência, para
que o pretendido discurso egocêntrico inicial apareça. Portanto, o ego­
centrismo - a rigor - não é esse, senão que as crianças ali presentes�
dedicadas a seus jogos, são aquelas que provocam seu falar� um falar
- ver o chiste, emitido nas traduções - "à la cantonade ", vale dizer,
o "falar ao pano", · próprio dos recursos teatrais ª. Pensar esta situação
de tal modo deriva de levar em conta a gestação do sujeito enquanto
não causa sui. Sustentar o contrário é tropeçar novamente com con­
cepções próprias do sujeito da representação.
O egocentrismo, longe de ser inicial, está concebido segundo as
envaidecidas determinações do sujeito da representação. Pelo fato de
ter representações, chego a acreditar-me criador do ·mundo. Se quero,
me abro a tal mundo; se não, me fecho. :e uma postura soberba, pró­
pria de todo ser falante; como tal, resulta uma condição de estrutu­
ração ligada ao posicionamento narcísico. Como já assinalamos em
outro momento, tudo parece reduzir-se a um exercício da vontade:
o outro existirá segundo eu o queira ou não. 1! esta tendência que em ·
filosofia se denomina idealismo. Muitos expoentes da outra psicaná­
lise passam esta convicção: o neurótico é uma espécie de egoísta
fechado em si mesmo, que se cura quando consegue abrir-se ijO mundo.
Se nós o vemos, conforme a experiência cotidiana, constrangido e
praticamente entregue à demanda do Outro, a imagem - paradoxal -
que possuem estas correntes é quase de um auto-suficiente, que se
pode apartar e prescindir do mundo a seu gosto e vontade. Como é
possível observar-se, o perigo clínico desta concepção é máximo. Por­
que não é precisamente um elemento decisivo, opinável, a partir do

3 . A primeira edição, mais afinada.mente, optou por "falam . . . entre bastido­


res" (cit., p. 214) ; a recente, por "em alta voz mas a ninguém em parti­
cular" (cit., p. 2 1 6 ) . A perda da referência cênica não é sem conseqüências,
se estamos concordes na incidência de "a Outra cena", e do discurso do
Outro nã'.o como solilóquio autônomo. 'Falar ao pano' : "Em linguagem
teatral, atrás de um telão ou bastidor, ou deixar entrever a qualquer dos
interstícios ou vãos da decoração. Diz-se do ator que assim colocado observa
ou fala na representação . cênica" (Real Academia Espanhola, Diccionario
de la lengua espanola, Madri, Espasa-Calpe, 1970, p. 97 1 ) .

2.30
sujeito egocêntrico ou do Outro. O fato de conceber o neurótico como
um renunciante soberbo implica uma cabal falta ética e deontológica,
uma vez que determina uma colocação - quanto à direção da cura -
no sentido implícito do reforço do eu. Toda análise fica reduzida,
assim, a uma terapia de reforço. Ainda que acreditemos fazer psica­
nálise, como efeito não pas.sará de uma terapia de apoio - exercida
indiretamente. O induzido nesses casos é, finalmente, insuflar no
analisando a convicção de poder ingressar e sair desse mundo imagi­
nário a piacere. Que melhor terapia egóica que aquela que consiste
em niaquiar o fantasrÍia da realidade do analisando, para outorgar-lhe
a "patente de corso " que diga : " Titereiro " ?

Pouco a pouco o tema vai nos levando a o campo d o Outro. Pre­


viamente a incursionar nele levareinos em consideração algumas afir­
mações aqui surgidas que devemos vincular muito diretamente ao
texto de Lacan intitulado : Posição do inconsciente, ao qual já fizemos
menção. Há muitos pontos eni comum entre partes do Seminário 1 1 e
outras desse trabalho. Assim como também, claro, há aspectos dife­
renciais . Tanto em um como em outro texto aparecem referências a
um conceito chave, clássico na psicanálise · desde a sua introdução
por Freud : o de libido. Se estamos falando da pulsão, a libido é urna
pedra de toque inevitável.
Na pulsão já reconhecemos seus quatro limites, tal como se de­
tectam em situação de disjunção . Enquanto a libido, aclarará · que não
é uma espécie de força produzida - transformada - por um dína­
mo , que se acumula aqui e se desagrega por ali, algo passível de
tolerar subidas e quedas de tensão . Não, pois constrói uma definição
realmente chamativa, excluindo o recurso ao modelo energético : asse­
vera que a libido é um órgão.

O termo órgão evoca, ao menos, dois sentidos. Por um lado, o


de parte de um organismo; por outro, um instrumento . Como devemos
entender isto? Trata-se de um conceito, ou, talvez, de uma repre­
sentação auxiliar? Que estatuto tem no ensino lacaniano? Ou melhor,
cabe colocar-se outra interrogação : A iibido é real, simbólica ou ima­
ginária? A resposta é de destacar, porque não resolve a questão optan­
do por um dos três registros : enuncia que a libido é irreal . O que
não significa, de modo nenhum, imaginário. Então, como dar conta
desse estranho elemento denominado libido, considerado como um
órgão irreal? A surpresa se incrementa ainda mais quando se lhe

231
atribui um estatuto especial, através do recurso à conformação de um
mito . O mito de outrora tem a eficácia de estar articulado àquele
famoso mito do andrógino, relatado por Platão - que o põe na boca
de . Aristófanes - em O Banquete ou O convite de amor 4 • Como re­
cordarão, essa narração refere que, em tempos primordiais existia uma
espécie de ser completo - homem e mulher ao mesmo tempo - o
qual, após diversas vicissitudes, foi cindido - como castigo - pelos
deuses. Aí se criar8Ill os sexos como diferenciais; todo esforço poste­
rior destes seres buscaria reconstituir esse andrógino original, voltar
a ser uma unidade. Lacan proporá outra saída mítica, renovando de
maneira audaz o estatuto válido do mito para a psicanálise . . Que
alguém considere analisável um mito e lhe atribua validade teórica
já é dificilmente assimilável para a ideologia positivista. Mas que se
postule um novo mito, lhe resulta diretamente inaceitável. Nas antí­
podas: se tomarmos os textos de Freud, poderemos encontrar ali todo
tido de insólitas, de criativas maneira de "compor " documentalmente
a psicanálise. Como afirma Ricardo Piglia, A interpretação dos sonhos
é, entre outras coisas, "um estranho tipo de ficção autobiográfica ",
situável no gênero das Confissões de Rousseau 5 • :8 uma proposta
muito aguda, parece-me, o convite para tomar esta obra como um relato
autobiográfico, onde se ficcionaliza - creio que podemos coincidir
nisto - o momento fundacional da psicanálise.

Desde o começo de nossa disciplina, os mitos não têm estado


excluídos ' de maneira alguma; ao contrário, uma vez que dos pilares
basais, articuladores dela, chamam-se Narciso e J!dipo. Freud pôde ser
fundador respaldado no mito edípico através da tragédia de Sófocles :
Edipo Rei, De forma que Lacan bem pode propor um novo mito;
seu aporte consistirá nesse tão particular que denominará da' homme­
lette. O termo alude, de modo homofônico, à conhecida comida. Obser­
va-se aqui, contudo, um jogo de palavras :

4 . Platão, "Simpósio (Banquete ) ou de la erótica", D iálogos, México, Porrúa,


1969, pp. 362-5.
5 . R. Piglia, "Crítica y ficción", ·cuadernos de ertensi6n universitaria, n. 0 9,
Série ensayos, Santa Fé, Universidade Nacional do Litoral, 1986, p. 8.

232
Esta palavra é, em francês , um neologismo . Refere-se, em pri­
meiro lugar, a homem (homme) . Na condensação excluindo - como
se aprecia - um h e um m, aparece a popular omelete de ovos,
coisa que não é de todo alheia porque aqui também se trata de fazer
algo a partir de quebrar ovos. O qual poderia traduzir-se ao caste­
lhano - ao menos por este vocábulo se optou, creio que com bom
tino - como lamininha . Uma pequena lâmina, concebida como ele­
mento extraplano - praticamente , sem espessura - passível de des­
locar-se, de passar pqr qualquer lugar. De preferência, a lamininha
costuma situar-se nas bordas das zonas erógenas, em virtude de sua
condição amebóide . Mas é lícito perguntar-se o que explicaria este mito,
se supomos válida sua incorporação ao corpus psicanalítico . Tal recur­
so, precisamente, dá conta de que algo decisivo acontece na passagem
da reprodução por cissiparidade dos organismos unicelulares à reprodu­
ção sexual . Uma coisa é que um microorganismo se divida em duas
células iguais - como assinala Lacan, mas antes também Freud 8 -
e seja, então, imortal. De algum modo, neste caso o indivíduo não
desapareceu, uma vez que se converteu em dois; aqui não há morte
do indivíduo, da espécie . A questão é distinta, em troca , quando
aparece a reprodução sexuada : _de modo inevitável, se produz ali uma
perda. Especificamente trata-se da perda do indivíduo , que requer en­
tão a necessariedade do pareamento para obter, a partir do mesmo a
produção de um novo ser . Se este surge é ao preço de que o ser da
geração anterior, mais distante ou mais próxima, desapareça : De tal
maneira, podemos observar as implicações da aparição da sexualidade
neste escalão, dir-se-ia, primitivo da zoologia . A instauração da se­
xualidade conduz, portanto, à instauração da morte .
Nessa ligação entre sexo e morte encontramos duas coordenadas
cruciais - iniciais , permanentes - da teorização freudiana : sexo e
morte, um levando à outra . Não se esgota esta conexão na observação
de que um espécime vive, cresce, se reproduz e logo morre : essa seria
uma banal descrição fenomenológica. O caso é que ao não existir j á a
exclusividade da reprodução por cissiparidade - onde, além disso,
sustenta-se o idêntico - a reprodução sexuada introduz o não idên­
tico , a radical diversidade existente entre os indivíduos . Aludindo a
sua hommelette, Lacan assinalará que a libido representa aquilo per­
dido pelo vivente sexuado em sua condição de tal, a partir - mitica-

6 . S. Freud, Más allá del . . . , cit., pp. 43 e ss.

233
mente - de seu nascimento. Com a sexualidade, algo se perde, algo
fica no caminho.
A condição de perda marca o ser vivo; esta é, precisamente, a
maneira de entender - a meu juízo - a situação que a religião enga­
na como própria do pecado original. O sujeito emerge impregnado
das conseqüências dessa ação que o compele a deixar algo em seu
próprio ponto de partida. Por tal perda inicial está condenado, irre­
missivelmente, a desaparecer. Esta operação será considerada como
mortífera, e tal fator letal se verá, justamente, redobrado pela própria
ação do significante, pela relação coni o Outro.
Certamente, a libido também é representada - como figura -
por aquele objeto ao qual fizemos referência quando trabalhamos os
limites da pulsão: o objeto a. Característica definidora desse objeto
é o tratar-se de algo automutilado que o sujeito perde. Segundo assi­
nalamos; em determinados exemplos, como o das fezes, estas circuns­
tâncias eram muito claras. Em outros casos, como o do olhar, as notas
definidoras eram mais difíceis de observar. De todas as maneiras, o
objeto a sempre refere a certo elemento automutilado que fica perdido
no caminho da constituição do sujeito. Convoca mediante essa mesma
automutilação, inevitavelmente, a ordem da falta, do buraco central
expresso na castração ( - <p) .
� muito fácil, e de todos os dias, pensar que mediante o libidi­
nal o sujeito busca seu harmônico complemento, já que isto responde­
ria a uma presumida ordem de estrutura. O Seminário aportará, a esse
respeito, a demonstração da psicanálise : na realidade, busca-se essa
parte de si mesmo que se perdeu, procurando seu reencontro. Mas
esse reencontro é impossível pois o perdido o é de modo definitivo.
Obviamente, esta afirmação é muito menos lírica que aquele enfoque
romântico, preconizador de um encon�ro perfeito e acabado; aqui, os
desenvolvimentos lacanianos já avançam para o que autoriza a leitura
"ampliada" do quase clássico aforismo '1 Não há relação sexual" .
Que não haja relação sexual significa: não existe nenhum pro­
nunciamento no psiquismo capaz de determinar que alguém, possua
o corpo que possua, esteja programado previamente para situar-se como
homem ou mulher, com o intuito de obter - em conseqüência, como
o andrógino - seu "adequado " complemento. O processo terá a ver,
melhor, com as transformações articuladas no campo do Outro. E,
a partir deste, a lei do não encaixe será decisiva, inevitável.

234
Como já observamos, vamos lentamente chegando a esta domi­
nância do campo do Outro. Assim é como Lacan se vê finalmente
conduzido a incluir, no Seminário, uma temática notoriamente deci­
siva: a que dá conta das operações de causação do sujeito. A partir da
pulsão e de como a mesma reconhece sua gênese no campo do Outro,
colocar-se-ão duas operaçõ(is essenciais, cuja articulação procuraremos
depois. Além disso surgirá daí, entre outros itens, uma maneira defi­
nida de entender a teoria de interpretação.
As duas operações, já aludidas, são a alienação e a separação. A
primeira operação é denominada por meio de um vocábulo que não
deixa de causar-me - se me permitem a confissão pública - certo
incômodo. Provoca uma inquietação a manipulação a qual esta palavra
tem sido e segue sendo submetida. Já passou ao vocabulário comum,
a esse repertório onde figuram, por exemplo, "ter um trauma", " ter um
complexo" etc. Assim, é possível escutar freqüentemente que alguém
" está muito alienado ". Nesse sentido é quase como um convite desa•
fiante de Lacan o recorrer ao rótulo de " alienação" . A palavra é boa
se alguém trata de limpá-la de toda a escória aderida pelo abuso. Sim,
porque já a partir de sua própria etimologia, alienação · faz referência
ao Outro. Na versão castelhana de Posição do inconsciente traduziu-se
como enajenaci6n 1 , ainda que não fique claro o motivo desta escolha,
reiterada na edição corrigida e aumentada dos Escritos, de 1 984.
Devemos realizar, em primeiro lugar, uma ,discriminação. Parece
que esta condição do alienado está relacionada não só com o es­
tranho senão com um modo de estranho, mais precisamente, perse­
cutório, sinistro. Seguramente recordai-ão o filme Alien, de Ridley
Scott, com os efeitos realmente sinistros que provoca seu horripilante
"protagonista" . Poderíamos pensar que na imaginária modelada por
seu realizador, o " oitavo passageiro" ocupa um lugar homólogo ao de
das Ding na concepção lacaniana. Já que falamos de cinema, outro
filme similar onde se expõe bastante terminantemente esta concepção
de das . Ding é o conhecido em nosso âmbito como O enigma de outro
mundo, de John Carpenter. Esta obra perdeu muito quando a titu•
laram desse modo para a distribuição local.
O título original em' inglês era sumamente sugestivo: The Thing,
a Coisa. Se o virem, poderão verificar, de modo impactante, o que
7 . J. Lacan, "Posici6n . . . " cit., pp. 375 e ss. (Ajeno : alheio, estranho, de
diferente natureza). (N.T.)

235
conota o termo das Ding - a Coisa - no sentido de uma experiência
devoradora e horripilante . , Então, se tentamos preservar em sua deno­
minação o caráter ameaçador portanto pelo alheio, bem podemos
fazer referência à alienação. Devemos descartar absolutamente a con­
cepção vulgar de alienação ; para esta, o vocábulo denota a perda
desnecessária, mas reversível, de certa essência valiosa do humano.
Nesses ·casos, estar alienado significa haver sacrificado algo interior
em prol de alguma atividade ou pessoa; a meta conseguinte, ante esta
situação, seria - como dizem - desalienar-se. O que é muito pare­
cido com pensar que alguém adoece por uma identificação projetiva
massiva e se curá mediante a reintrojeção do projetado. Melanie Klein
- cuja teoria comentamos - na realidade considera que alguém adoe­
ce por tirar demasiado de si : numa espécie de ideologia cercada por
um espaço intuitivo elementar, os conteúdos que têm sido retirados
de si mesmo podem, devem, ser reincorporados ao "mundo interno" .
O kleinismo modela tal teoria com o ideário - implícito - de uma
inversão financeira. O ponto de partida de Lacan - . reitero mais uma
vez - é que o sujeito é efeito do significante, e se constitui no, e a
partir do, campo do Outro. De tal modo, não há nenhuma essência
mais ou menos extemalizada na alienação, segundo a qual esta consis­
�iria em um nocivo ir tirando para fora uma presumida essência do
humano. Daí que a postura lacaniana não seja de modo algum . essen­
dalista, o que tampouco indica que, de acordo com a clássica dicoto­
mia, seja existencialista. Não se trata aqui de colocar a existência pre­
cedendo a essência, segundo apontaria um Sartre 8 • Trata-se de um .
sujeito concebido a partir do campo do Outro, mas isto não implica
que este último seja uma espécie de vazio, conforme o coloca, no meu
entender, a reflexão sartreana - libertária - da existência.

Terão presente, sem dúvida, que ao começo deste curso propuse­


mos um punção : é o seguinte: ◊ · Desta notação tira · partido Lacan
para dar conta de várias noções psicanal(ticas. Entre elas figura a dó
fantasma, escrita como: ($ Óa).Por outro lado, o punção será também
utilizado para escrever a pulsão desta maneira: (.S O
D). (O ' D' signi­
fica demanda, diferente de 'd', que é desejo) .

Sigamos trabalhando cotn este punção, dando-lhe agora uma veto­


rialização possível, após cindi-lo por um eixo horizontal. O procedi-

8 . J. P. Sartre, El eri.stenciali.smo e.s un humanismo, in J.-P. Sartre-M. Hei­


degger, Sobre el humanismo, Buenos Aires, Sur, 1960, pp. 14 e ss.

236
mento nos oferece o suporte para pensar, precisamente duas opera­
ções, inclusive no pequeno algoritmo de referencia:

/\
V
A fim de discernir estas operações, devemos situar à direita o su­
jeito e, correlativamente com este, o Outro, enquanto lugar dos signi­
ficantes (à esquerda) :

A AS

Pode pensar-se, então, em uml:!, operação de ida e volta em


sentido inverso ao dos ponteiros do relógio. A ação do Outro é a que
faz com que apareça o sujeito, ainda que não se ache barrado, já que só
está prometido a ser, neste momento lógico prévio ao barramento,
· efeito do significante. A esta ação do Outro sobre o vivente, deno-
minamos alienação:

Alienação

tuma operação circular, mas não recíproca· - incluí-la em uma


ordem de · reciprocidade equivaleria a concebê-la de forma totalizadora,
não torcionante - uma vez que, no caminho de volta, o que se
produz é a separação, própria do sujeito barrado:

237
Alienação
Por agora, s6 situaremos este segundo vetor em sua relação; vere­
mos, mais à frente, em que consiste . . Antes, sigamos tratando de
caracterizar a alienação. Nos diz Lacan que pela relação com o Outro
é que pode surgir um sujeito. Isto parece simples, mas a história da
produção de um sujeito é certamente complicada; o prévio apenas
equivale a uma indicação programática.
Como já marcamos, todo sujeito se constitui deixando algo de si
no caminho. Não pode aparecer, então, senão como sujeito tomado
em um conflito. Se aparece como sujeito, o que efetivamente acontece
em um movimento da operação, é à mercê que, no campo do Outro,
se reconhece como sentido. O primeiro que acontece ao sujeito "vir­
tual" é seu embate com uma chuva de significantes que, se bem
permitem seu surgimento, o petrificam. O tema é realmente complexo;
o sujeito nasce na · cultura por meio da ação do significante, que lhe
outorga a única vida possível para o falante e, ao mesmo tempo, lhe
presentifica - enquanto fator letal - a morte. l! que, em última ins­
tância, o sujeito aparece ao preço de uma desaparição. Para os pres­
tígios do e.u é duro escutar afirmações como esta. Não é nada agradá­
vel porque obriga a pensar que o sujeito não está alienado por haver
extraído algo de si, senão que esse é o preço para formar parte do
rebanho. É nessa ordem que se pode considerá-lo petrificado ou até
imbecilizado; colocado, em suma, em uma condição quase hipnótica,
vale dizer, aquela que pode categorizarile como a dimensão do se:
a impersonalidade, o coletivizante. Em definitivo, esta ação do signi­
ficante verifica-se cabalmente - no meu entender - no fenômeno
trabalhado por Freud próximo a 1 920, de maneira tão certeira: · a
formação da massa (ou, aggiornada,nente, de grupo) . Em Função e
campo da fala . . . , já é possível auscultar indicações convergentes:
com efeito, estamos fartos de palavras por todos os lados. Palavras
armazenadas, recolhidas, escutadas, escritas etc. Tudo isto, que indica
em aparência uma grandíssima riqueza de elementos, ao mesmo tempo

238
constrói um cerco: é o " muro da linguagem" 9 • Nesta construção o
sujeito se petrifica, fica como aniquilado - palavra precisa, pol'.que
denota ficar como um nada, desaparecido. Tal condição será deno­
minada afanise:

1) Alienação - afanise
'2) Separação

O vocábulo é tomado de Emest Jones, que foi quem chamou


afanise a um suposto temor do sujeito a não ter desejos, à desapa­
rição do desiderativo. Lacap. resgata a palavra mas toma distância
do significado atribuído por Jones . Não se trata de desvanecimento
do desejo, mas sim do desaparecimento da éondição de sujeito, em
virtude e em função daquilo que o constitui como tal. Aqui devemos
tratar, outra vez, de entender como processa continuamente a expe­
riência da análise em termos de aporias, de proposições contraditórias
que, contudo, não chegam a anular�se por isto. Esta afanise, desapa­
rição, movimento letal, pode ser também denominada - introduzindo
outra palavra nova - como fading:

1 ) Alienação-afanise-/ading
�) Separação

O fading do sujeito é precisamente a famosa condição de eclipse,


de queda, de desvanecimento. Não alude a uma descrição fenomeno­
lógica; ninguém desaparece, senão que o desvanecido é a possibilida­
de de erigir-se - sempre em termos da alienação - enquanto suj_eito,
como sendo outra coisa que o produto, o efeito, da divisão signi­
ficante.

Frente a esta operação de eclipsamento do sujeito capturado pelo


significante; fica - como condição - a operação restante : a separa­
ção. :e a reação ante o ficar afanizado, e o aparecer como sentido.
Para aclarar este ponto, optarei por desenhar a zona de parcial super­
posição entre dois círculos, deixando, por um momento de lado -
ainda que não totalmente - o pµnção. Na verdade, a zona aludida,
no seguinte diagrama, deriva - a meu juízo - de uma deformação
do punção, estendendo-o de maneira curva até formar uma lúnula:

9 . J. Lacan, "Funci6n y campo . . , ", cit., p. 1 0 1 .

ng
Aqui voltamos a colocar os mesmos termos : o sujeito e o Outro,
invertendo seus lugares. O que é o que o sujeito - após a alienação -
"obterá" do Outro? Precisamente a possibilidade de ser sujeito. Se
obtém o ser, o será enquanto sujeito barrado :

$
se r

Por sua vez, o que encontramos no campo do Outro será o


sentido:

$
ser sentido

Devemos atentar, neste ponto, o seguinte: o Outro opera como


produtor de sentidos que, como tais, são incompletos, inconclusos.
Agora, na intersecção das duas circunferências há uma lúnula comum,

240
um lugar de intervalo entre os dois campos onde - dizíamos - é
possível evocar a figura algorítmica do punção. Então, nesta zona de
relação entre o sujeito e o Outro, que aparece como zona de pulsa­
ção, inscreve-se o que já não será denominado sentido, mas sem­
sentido.

A
sentido

sem- sentido

Quando de algum modo · o sentido se realiza em um sujeito em


virtude da ação do Outro, deixa caído no caminho uma região de
sem-sentido. Essa região é, justamente, a daquilo que é inconsciente.
Desse modo, aquilo que é inconsciente é um resto da operação da
constituição do sujeito no campo do Outro.
Esta teorização das operações de causação do sujeito terá impor­
tante incidência na maneira de conceber a interpretação psicanalítica,
segundo apreciaremos adiante. Uma vez exposto este diagrama, Lacan
efetua uma manobra teórica · muito aguda, baseada nos preceitos de
uma simples lógica de classes. Os dois círculos, como todos sabemos,
permitem em sua zona de intersecção processar a operação que na
mais elementar teoria de conjuntos se conhece como reunião. O Se­
minário assinala, então, que se deve caracterizar a alienação como
reunião. E discrimina: uma coisa é somar dois conjuntos, e outra é
reuni-lo. A formulação aparece muito apurada, mas alude a algo muito
simples.
Se no conjunto /, possuo, por exemplo, cinco elementos e no A
tenho outros cinco, ao somá-los obterei um total de dez elementos.
Agora, se os conjuntos S e A possuem dois elementos comuns, desse
total devemos subtrair dois elementos ao realizar a operação da reu­
nião, para não contar duas vezes aqueles comuns. O total será, assim,
de oito elementos:

241
$ A

Este diagrama é uma reumao. O colocado conduz a descobrir,


na alienação, a efetuação de um vel particular. Vel significa 'ou' em
latim, vale ressaltar, é uma disjunção. Classicamente, as disjunções se
dividem em dois tipos :

1 ) Exclusiva
2) Inclusiva

Um exemplo muito compreensível de uma disjunção exclusiva é:


" ou vou aí, ou vou lá" 10 • Deve-se escolher, estritamente, entre duas
opções excludentes entre si. Uma disjunção inclusiva é, em troca :
"vou ao cinema ou ao teatro " . Ou seja, que nesta última não é neces­
sário . escolher entre opções que se excluem entre si; não está em
jogo uma completa discriminação dos termos considerados, mas sim um
" pra mim dá no mesmo". Agora, Lacan nos propõe um terceiro vel:
o da alienação. Por conseqüência, os vel são :

1 ) Exclusivo
2) Inclusivo
3) Da alienação,

Como estamds vendo, este novo vel fica exposto na operação da


reunião. Não coloca em disj�nção dois termos estritamente em oposi-

10 . Lacan adota o caminho assinalado por uma tendência atual na lógica, se­
gundo a qual o vel engloba também a disjunção exclusiva. Tradicional­
mente, em troca, o vel ("ou" ) , só denotava a inclusiva, reconhecendo-se

a
a restante como "aut . . . aut . . . " (ou . . . ou • . . ") . Congruentemente, dife­
rem as notações : 'V' para a inclusiva, '#' para exclusiva.

242
ção. Tampouco refere a uma disjunção onde dá no mesmo um termo
ou outro. Este vel indica uma relação eletiva bastante paradoxal : traz
como conseqüência um " nem um, nem outro", seja qual for a opção
abraçada:

Vel '
1 ) Exclusivo (ou . . . ou . . . )
2) Inclusivo (ou)
3) Da alienação (nem um nem outro)

O vel da alienação é de valor incalculável - na minha experiên­


cia - na clínica do neurótico obsessivo. Na dúvida obsessiva se colo­
cam usualmente as opções em termos deste vel. Se alguém escuta
analiticamente, advertirá que não se trata de dúvidas a respeito de
fazer uma ou outra coisa. por exemplo: " - se faço isto não posso
fazer aquilo . . . o que me convém mais?" São conflitos típicos da
problemática obssessiva. Ainda que Lacan coloque estes conceitos em
um alto grau de abstração, eles são de uma utilidade clínica imediata.

As dúvidas obsessivas correspondem, em última instância, à ques­


tão de nem um nem outro. Nessas ruminações e apreensões perma­
nentes pode comprovar-se claramente a ação do . vel da alien�ção. O
Seminário oferece um exemplo geral: o de " o dinheiro ou à vida ".
Nem um nem outro. Se elejo o dinheiro fico sem os dois. Se elejo
a vida, esta não será a mesma após perder o dinheiro. Ainda que
pareça uma opção, na realidade a relação é que não há escolha possí­
vel nem por uma nem por outra .

Outra presumida escolha, postulável conforme o vel da alienação,


é : " a liberdade ou a vida". Por intermédio destes exemplos pode-se ,
chegar a ver facilmente de que maneira se coloca a efetuação do vel
proposto. Este recurso à reunião s.egundo a teoria de conjuntos per­
mite captar, portanto, muitos dos pseudoconflitos próprios da clínica
dos obsessivos. De igual modo testemunha - convenhamos que não
estamos falando de autoenganos nem de má fé - de que modo o
obsessivo está atrelado pela cadeia significante, petrificado no meio
desse "nem um nem outro", tentando precisamente · pôr em ato a
operação de separação. Para tbanter o suspense, deixemos este ponto
para nossa última reunião.

243
Questões

P . : Na reunião de elementos segundo a teoria de conjuntos, por


que no exemplo citado há dois que se anulam?
R. : Lacan assinala bem no Seminário que é uma das bobagens
da lógica. O declara como um chiste, obviamente. Simplesmente, são
operações possíveis de realizar com determinados elementos. Quanto
ao uso lacaniano, convém aclarar, uma vez mais, que estes recursos
são suportes, apoios do pensamento. O da lógica é só um andaime
para pensar uma questão clínica - a antes teórica - como a impli­
cada pelo vel da alienação. O que certamente importa, me parece, é
que nem sempre trata-se das duas disjunções clássicas.
Quanto a uma das repercussões clínicas - a mencionada -
deste desenvolvimento : o inteligível como patologia do pensamento
- no obsessivo - está indicando que ela não é senão uma hipertrofia,
e uma estagnação, atinentes a uma função própria de todo sujeito,
enquanto operação constitutiva. � que, como analistas, sabemos que
a patologia não inventa nada; em todo caso, aprofunda determina­
das linhas prefixadas.
P . : Ao fazer referência às operações de causação, fica-me claro
o tema das ··aporias, como movimento. O que parece que não entendo
bem é a alusão à contradições que não chegam a anular-se, por exem­
plo, no caso do significante que dá vida e também morte ao sujeito.
Qual seria o horizonte disto'! Creio haver interpretado que haveria
uma espécie de "um" a quem se lhe dá vida e morte. Apesar do movi­
mento. dialético, isto não proviria do �rro piagetiano? A que se dá
vida e a que se dá morte?
R. : O vel da alienação promove a' divisão do sujeito; não de
" um" mas do sujeito enquanto dividido pela ação própria do signifi­
cante: sentido/afanise. Neste contexto, Lacan arriscará um termo duro:
ó da liberdade. Não o faz no sentido ingênuo, porquanto o está pen­
sando, psicanaliticamente, em termos da falta que funda o sujeito
enquanto dividido. Refere à liberdade de operar com sua própria falta,
e assim tratar de perceber a falta no Outro. Operar tornando-se em
falta o próprio sujeito, o que se poderia condensar na frase " poderias

244
perder-me", ou " poderia faltar-te" . A manobra de separação por exce­
lência - como vêem, é um avanço da próxima - é o suicídio 11•
Se o suicídio é o clímax da separação, tal liberdade aparece aqui
como liberdade de, e para, morrer. Esta colocação remete, está claro,
a um encadeamento ao Outro que não é, obviamente, o do sujeito da
liberdade sartreana, aquela do projeto, determinado a partir do para-si.
Não há, então, liberdade abrangente de forma alguma. Trata-se, em
síntese, da liberdade do sujeito de trabalhar com sua própria falta.
O significm1;te, a partir do campo do Outro, dá desse modo vida
e morte a um vivente sexuado, prometido a sujeito dividido, em todo
caso, mas que ainda não o é. Antes - tempo lógieo - do significante
e seu impactai só contamos com uma cria do sapiens; essa que Lacan
chama infans, o mu�. aquele que não fala.

1 1 . R. Harari, "Caída de• un querer", Discurrir . . . , cit., pp. 191-20S.

24S
X
SEPARAÇÃO, METÁFORA; INTERPRETAÇÃO

Como todos sabem, este é nosso último encontro. Por ser assim,
vei:n acompanhado de certo inevitável afã de pretender oferecer tudo
o que falta. Não obstante, se nos fazemos seguidores dos ensinamentos
de · Lacan com respeito a este ponto da falta, devemos convir que
sempre faltará algo. E bom, não está mal que, ao concluir, a falta
perdure.

Precisamente falta era o tema decisivo sobre o qual queria hoje


articular algumas questões que implicam retomar problemas coloca­
dos na aula passada. Vocês recordarão que ali tratamos de elucidar
duas funções denominadas como operações de causação do sujeito,
relacionadas, ambas, com a incidência e a eficácia do campo do
Outro, em seu enlaçamento com o sujeito. Estas duas operações, como
tivemos ocasião de apontar, chamam-se alienação e separação.

=I Disporemos deste modo as duas operações para distribuir, con­


tinuando, quatro colunas que iremos preenchendo. Desde já, farei um
esclarecimento: muitos dos itens de tais colunas são passíveis de serem
superpostos: não estamos pensando em termos de disjunções exclusi­
vas. Haverá neste quadro certo grau de implicações inevitáveis, mas

247
acredito que, de todas as formas, será útil tentar esta série de discri­
minações. Antes desse desenvolvimento, contudo, seria interessante re­
passar brevemente o problema da alienação e desdobrar o da separa­
ção, o qual ficou suscintamente exposto na resposta à última questão
que me formularam na vez anterior.
A alienação - como tentamos demonstrar - liga-se à constitui­
ção do sujeito no campo do Outro enquanto operação que determina
a captura do sujeito pelo significante. Este lhe dá a oportunidade de
viver enquanto ser falante. Ao mesmo tempo, e inversamente, o signi­
ficante induz um efeito letal, mortífero - em sentido metafórico.
Este significante não mata, de nenhuma maneira, mas sim inaugura
um função: aquela denominada como afanise (Ó termo é tomado de
Ernest Jones) e que constitui um desvanecimento, um desaparecimell­
to, uma petrificação. O efeito do significante é introduzir uma espécie
de knock-out, onde o sujeito fica - tal qual ocorre usualmente em
lutas de boxe - desvanecido. Nesta operação, indubitavelmente, a
primazia corresponde ao campo do Outro. A partir daí se produz esta
condição divisória de vivificação e letalização. Dispõe-se assim o
acesso ao nível do sujeito do que não era mais que uma promessa de
sê-lo. Sujeito, portanto, falador? :e. redundante referir-se a um sujeito
que fala. Na doutrina lacaniana, aludir a um "sujeito falador " , impli­
ca uma tautologia; por isso, é preciso referir-nos a um · ser falante 1 •
Sujeito implica efetivamente o fato de haver sido dividido pela ação
do significante. Este é, então, o caminho conceituai a privilegiar na
alienação: encontrar-se cindido.
As divisões do sujeito podem encarar-se segundo vertentes di­
versas. No Seminário 1 1 desenvolve-se uma em particular, a que
havíamos representado na reunião anterior; trata-se de que elegendo
qualquer das alternativas, entre o sujeito e o Outro sempre a opção
se vê diminuída de - por - esse lug�r intermediário denominado o
sem-sentido. Se a opção procura constituir-se buscando o sentido, de­
para-se com o sem-sentido. Não há sentido plano em nenhum ser
falante, porquanto inevitavelmente ocorre uma perda que o constitui,
a qual, na realização do sujeito, é aquilo que é inconsciente. Não há
opção entre uma e outra condição; acreditando que se elege e ganha,

1 . Ou, segundo proposta do próprio Lacan, e baseado em uma condensação :


"parlêtre" (de 'parler', falar, e 'étre', ser) . Daí : "falaser", no sentido de
ser em virtude da fala.

248
sempre se perde algo do eleito, que já não será como antes . da eleição
(recordemos somente o exemplo do dinheiro ou a vida) . Na realidade
trata-se de um falsa opção, uma presunção de eleição, que não é
assim. Lacan batizará isto como vel da alienação. Mas tal vel ('ou',
em latim) não assinala disjunção alguma, mas sim a crença de que se
elege quando não há tal • eleição. O que indica, então, é uma falta:
nem um, nem outro. Esta é a ação do campo do Outro na constituição
do sujeito em seu primeiro movimento, mas ainda nos resta a outra
operação : a separação.
Em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise o problema
da separação se expõe e desenvolve com extrema sagacidade. Insta­
lada a falta no sujeito - diz Lacan - este procede a colocá-la com
relação ao Outro : isto é, a buscá-la; inclusive, a induzi-la. Há quem
considere - não sei se por má fé ou por pura ignorância - que o
Outro lacaniano é Deus filtrado de contrabando. Grosseiro : não se
pôde ou não se quis captar, como o Outro não é uma entidade, uma
enteléquia como habitual recurso a sua falta; assinalam-no assim, ou
com algum adjetivo acompanhando-o. Por exemplo, é o caso do Outro
primordial - ao que bem poderíamos referir-nos como a mãe. Por
que não chamá-la assim, então? O que acontece é que a mãe tem sido
e é tão criticada na teoria - e nos conselhos " psi " - que convém
mencionar um Outro primordial, porquanto dá conta de um lugar da
mãe, onde ela desempenha - habitualmente - uma ação .mediadora
em função da ordem simbólica. Isto não dependerá de seu instinto
matemo nem de seus sentimentos, mas sim do seu lugar como presen­
tificação do Outro. A isso se deve o Outro primordial; não obedece
simplesmente a uma tentativa de complicar a questão ou de propor
sem necessidade palavras alternativas . Em tal vocábulo, portanto, há
uma concepção em jogo : a dos registros da experiência, e as conse­
qüências derivadas deles. Em suma: invocar a mãe não é igual - o
que dá lugar a todas essas teorias da puericultura ou " dos cuidados
para não neurotizar os filhos " etc - a dar conta de um Outro
primordial.
Quando o Outro primordial é interpelado, por exemplo, através
dos célebres " porquês " infantis, encontramos um dado interessante.
Estes " porquês " são com freqüência difíceis de tolerar, porque con­
frontam com a impossibilidade de uma resposta, com a impossibilida­
de de responder a tudo; em definitivo, colocam o interrogado frente a

249
um real inefável. Não se trata - comenta o Seminário - de um afã
de saber. Aqui há um ponto onde se diferenciá de Freud, que aludia
a uma Wissentrieb, uma pulsão de saber. A criança não pergunta para
saber, senão que questiona: " Por que me dizes isto?". Não é somente
um porquê embativo, mas um porquê que pergunta pelo desejo do
Outro.

Mais acabadamente, poderíamos formulá-lo em um " - me dizes


isto, mas na realidade, o que é que queres me dizer, o que é que
queres?". Em tais perguntas se está buscando, localizando, algo da
o:rdem da falta. Não há uma resposta unívoca a isto ; portanto, esta­
mos mergulhando no desejo do Outro - desejo é pensar na falta -
e, em conseqüência, em um enigma. Mas, deste desejo do Outro, o
que se responde? Qual é a primeira resposta que surge? Não é algo
vago, onde não há nada a dizer. O primeiro objeto que se prooõe a
esta dilética dos "porquês" é precisamente a própria falta, mas loca­
lizada no Outro. É muito sutil o caminho com que o apresenta o Se­
minário : um dos modos habituais de aportar a própria falta como
pertencente ao campo do Outro é possível formulá-lo em um : " - Po­
des perder-me?". Aí se inclui a fantasmática que habitualmente possui
uma criança a respeito de ser passada a melhor vida de seus pais,
o que é simplesmente um fantasma relacionado com a separação 2 • De
modo que os "porquês" não são uma interrogação intelectual. Enten­
der isto permite limpar uma perturbação que temos aprendido a tra­
balhar eficazmente devido à precisão formulada por Lacan : trata-se
da anorexia mental, aquela consistente em que o sujeito procede a
"consumir-se " procurando ficar como nada.

Este " poderias perder-me " - agora afirmativamente - dirigido


ao Outro, pode ser traduzido como um " te faço falta ", escutado polis­
semicamente. Nada melhor para isto que_ fechar-se, precaver-se, pre­
_tendendo, assim, não dar lugar ao Outro. Nesta separação aparece,
invocadamente, a " função da liberdade ". Liberdade fantasmática, que
denota o intento de desembaraçar-se do efeito afanísico. Por um lado
a alienação, a qual possui a qualidade de capturar o sujeito, de subor­
diná-lo; fazê-lo ser, mas ao preço da falta em ser. A função da libe­
ração de tal captura, da liberdade, se joga na separação. Trataremos
de formalizar isto um pouco mais circunscritamente, · para que não

2 . Alguns que validam o fantasma pontualmente como teoria, engendram aqui


um filicídio incapaz de dar conta da estrutura.

250
fique uma mera convenção lingüística. De todas as maneiras, pode
comprovar-se - ao situar a separação em direta relação com um
quadro inédito, difícil e expandido como o da anorexia mental -
como esta segunda operação não constitui, simplesmente, uma nova
filosofia éspeculativa da constituição do sujeito : a remissão clínica é
imediata, e fecunda.
Imediatamente depois, nos deparamos com uma série de associa­
ções, de supressões, a partir da palavra separa�ão. Neste jogo de pala­
vras - o que não quer dizer, está claro, um divertimento - recorre
ao latim separare, a que separada - escandida - dá se parare: em
francês, se parer, é tanto vestir-se como pôr-se em guarda.- Logo após,
e novamente a partir do latim, expõe outro equívoco por derivação
de separare: é o surgido de se parere, o que remete a parir-se, a
engedrar-se - coisa que não devemos confundir com autoengen­
dramento:, com a pretensão do sujeito enquanto causa sui. Apesar de
que a determinação se situa no campo do Outro, é possível um " en­
gendrar-se" relativamente à separação. Alguns dos elementos que
vimos expondo já podemos incluí-los nas colunas, para proceder um
ordenamento do correspondente a estas duas operações · conforme um
certo grau de abstração. Existindo várias linhas que se vão conjugan­
do, é possível pontuar - em uma primeira aproximação - quatro
colunas, dispostas da seguinte forma :

Relação com
a cadeia
significante, Operação Modalidade
Efeito no
com o campo lógica . da falta.
$. do Outro.

1 1
Alienação

Separação

Na primeira colocaremos o efeito produzido no sujeito, o ql.lal


escrevemos como $. Na segunda coluna · estabeleceremos a relação
com a cadeia significante, com o campo do Outro. Na terceira coluna
veremos a operação lógica em jogo. A quarta e última nos servirá
para registrar a modalidade da falta resultante em cada operação.

25 1
Este quadro pode ajudar, ao menos provisoriamente, como um
conjunto de andaimes que permita pensar certas questões. Como com
todo andaime acontece, uma vez finalizada a construção, deve ser
desmontado.
Quanto ao efeito no sujeito mencionamos duas possibilidades
conjuntas. A alienação provoca um efeito divisório : quando se escolhe
o sentido, é inevitável o non-sensical: acha-se o sentido ao preço de
sua forçosa articulação com aquilo que é inconsciente, que é sem­
sentido. Este efeito divisório envolve, por outro lado, a nomeada
afanise, o que dá lugar a esse movimento que Lacan chama fading do
sujeito, enquanto reali.zação - amputada - de seu ser:

�-
Relação com
a cadeia
Efeito no significante, Operação Modalidad e
com o campo lógica . da falta.
do Outro.
divisório :
Alienação afanise sentido
(fadin;,) 1 (sem)
Separação

Essa queda, essa vacilação ou desvanecimento, esse efeito final­


mente "letal '! é fading, dissolução. Entretanto se a alienação provoca
- como dizíamos - um knock-out do sujeito, na separação localiza­
mos um engendrar-se. Este se parere, como aparecimento do sujeito, é
uma função da liberdade:
Re lação com
a cadeia
Efeito no significante, Operação Modalidade
com o campq lógica.
$. do .Outro.
da falta.

divisório:
Alienação afanise sentido
1
(fading) (sem)
engendrar-se
Separação (se parere)
função da
" liberdade "

252
As aspas servem para levar em conta que esta liberdade, como es­
clarecemos em nosso último encontro, nada tem a ver com a liber­
dade absoluta, abrangente - ao modo sartreano, derivada da existên­
cia como precedendo a essência. Provoca tantas reflexões, tantos escla­
recimentos, como para que, ao menos, a circunscrevamos mediante o
entre aspas. A função da liberdade é limitada, restringida, trabalhando
a partir da falta. Não é aquela que serve para ditar, para desenvolver
um "projeto", no estilo existencialista.
Vamos à segunda coluna. Quanto à relação com a cadeia signi­
ficante nos esclarecerá muito o uso de um pequeno diagrama que
representa a mínima parelha de articulação significante. Os anota­
remos como: S1 , S2, Assinalamos que o efeito em relação com a cadeia
significante é que, em função de ao menos dois significantes, se pro­
duz, como resultante, tima incógnita 'x': a do sujeito, falador e petri­
ficado conforme o mesmo movimento :
Relação com
a cadeia
Efeito no significan te, O p eração Mod alidade
$. com o campo lógi ca. da falta .
do Outro.
divi sório : S1-- S2
Alienação afanise J sentido
(/ading) (sem) X �

engendrar-se
Separação (se parere)
função da
"liberdade "
Aqui pode-se ver claramente como no momento em que acontece
a articulação S1 - S2, o sujeito cai como um efeito dela. Portanto,
este é produzido na alienação pela bateria significante mínima, um
par. A fórmula é outro modo de dizer que não há um significante,
mas sim pelo menos dois. A definição deste significante deve envolver
necessariamente um significante a mais e ainda outro elemento : o su­
j eito. :8 por isso que os desenvolvimentos lacaniànos jamais · poderiam
chegar a ser confundidos com uma lingüística "objetiva", porquanto
neles está constantemente intercalada de maneira decisiva, a função
do sujeito. Ao acontecido na alienação, podemos denominá-lo como
captura:

253
Relação com
a cadeia
significante,
Efeito no Operação Modalidade
com O c ampo da falta.
$. lógica.
do Outro .
divisório :
afanise _ sentido S
1--'S2
Alienação 1
,
(fading) (sem) captura x $
engendrar-se
(se parere)
Separação
função da
" liberdade "
Devemos _ recordar que Lacan utiliza também, em outro contexto,
o termo captura: quando alude à captura imaginária chamada amor.
Aqui se trata, em troca, de uma captura significante, pertencente ao
registro simbólico.
No caso da separação o diagrama correspondente representará
uma diferença crucial com respeito ao item anterior. O retomo cir­
cular ainda que dissimétrico, implic ará o seguinte:
Relação com
a cadeia
significante, _
Efeito no 0 peraçao Modalidade
com o c ampo
$. l ógica . da falta.
d o o u t ro.

divisório : S 1-- S2
Alienação afanise 1 sentido 1
(fading) (sem) captura x i
engendrar-se s 1+ s2
Separação
(se parere)
função da !
: X
1
J\
" liberdade"
O pontilhado introduzido entre os dois significantes representa
que, no intervalo entre S1 e S2,· tem lugar um ataque à cadeia. Este é
o lugar do · sujeito, quem deve irromper na cadeia_ simific ante p�ra
conseguir ali · a separação, a qual não implica · ficar fora da cádeia,
senão fazer um lugar nela. Entende-se que aqui não há nenhuma di­
mensão fora (de) discurso o que é próprio da psicose. O estar fora
da cadeia é algo relativo, algo dependente daquele significante que

254
denominamos Nome-do-Pai; assim, na psicose, seu não compareci­
mento condiciona tal "fora". Aqui a questão é outra; consiste em se
fazer um lugar. Não implica, contudo, uma devastação, uma espécie
de postura anárquica nem nada parecido. Veremos, com respeito à
interpretação do anali�ta, como funciona nela também este ataque · ao
par significánte no ponto débil do intervalo, onde, por outro lado,
"jaz " o · desejo - por localizar - do Outro. Tal ponto pode .ser
qualquer um, ainda que convencionalmente o representamos aproxi-
madamente até a metáde do trajeto:
Relação com
a cadeia
significante,
Efeito no com o campo O peração Modalidade
$. do Outro. lógica . da falta.

divisório :
Alienação afanise j
sentido
S 1-- S2

!
(fading) ( sem) captura x
engendrar-se s1-+ s2
Separação
(se parere)
função da
1
1 1
ataque : x '$
· ' liberdade"
1

A função da liberdade adquire, como pode ver-se, em se fazer


esse lugar na cadeia. Pode-se pensar, à luz desta operação, algo colo­
cado em meu livro Discorrer a psicanálise :1, a partir de uma menção
deste Seminário. Para todo aquele que reclama dos ensinamentos de
Freud e Lacan há, surge, uma espécie de roteiro, de afã ou desidera­
tum: assim, após estar alienado nos significantes de Freud e Lacan,
advém a tentativa de separar-se. De tal forma, abrem-se os caminhos
para essas febres de ecletismo que costumam invadir nossa urbe,
conforme a qual - dizem - toma-se uma parte de cada autor ou
corrente. O que não se conhece bem é em que se funda a possibili­
dade de avaliar aquilo " bom" de cada um. A partir de que lugar de
Outro do Outro se situa quem coloca estas propostas que, na realida­
de, implicam mais uma crença em nada? Observa-se um problema
neste ponto segundo o Seminário: aqueles que querem seguir-me, diz
Lacan, devem alienar-se em meus significantes, não opor-se a eles. O

3 . R. Harari, "El constructo del discurso del Analista", Discurrir . . . , cit.,


pp. 23-6.

255
que se procura fazer habitualmente - como no caso de André Green,
a quem já se situa disputando com o expositor - é buscar a pequena
diferença, como se ela garantisse a separação. Desse modo se cons­
trói - como esc1:eveu uma vez Laplanche - a pequena metapsico­
logia portátil, própria de cada analista. Aí está a diferença relativa
à qual parece tomar-se uma benéfica, criativa distância dos signi­
ficantes que transportam a doutrina dos mestres. Contudo, parece-me
que a posição correta consiste · em tratar de fazer jogar estes signifi­
cantes, com estes significantes, para que produzam novos efeitos; uti­
lizando-os e alienando-se neles, mas de um modo que lhes permita
render efeitos inesperados, em função de es-tendê-los e en-tendê-los .
Assim, poderão insertar-se outros, mas sempre no mesmo campo.
De não ser assim, acontece muito freqüentemente - e este é um
dos riscos que se corre com um ensino tão elaborado, rico e ainda
proporcionalmente pouco trabalhado - que se chegue a incorrer no
que chamei ecolalia gargarística . Como é gargarejo, muito não se
éngole; como na escolalia, só se reproduz. Aí não existe senão aliena­
ção. Se isto é assim, passará com Lacan como antes ocorria com Freud :
há um perigo, certo, de " morte " . Se se insiste em uma marcada repro­
dução do idêntico, não em uma repetíção - já que esta inclui dife­
rença - encontramos a pura alienação. Naturalmente, é um desafio,
já que se_ trata de algo indubitavelmente árduo, complicado. Melhor
seria, talvez, ·optar por autoengendrar-se, segundo apregoa o sujeito
da representação, 2 • muito atrativo o tentar construir uma teoria
própria a partir do zero. Há um trabalho de um colega meu deste
Centro de Extensão, Carlos Pérez, que demonstra pelo absurdo, pelo
irrisório, o ponto de referência. Em tal texto 4 narra - ficcional­
mente - · o achado de cartas e manuscritos de um tal Amaretto di
Saronno (nome, claro, do conhecido li_cot). A partir deste descobri­
mento reconstrói todo um movimento; e _ que maneira começa di
Saronno suas impenetráveis teorias, Jazendo complexas elaborações que
logo são retificadas, até chegar a um sistema a mercê do qual conver­
te-se em célebre pensador. Com grande perspicácia e mordaz senso
-de humor, Carlos Pérez " mostra " correspondência e textos vários
como testemunho do processo mencionado. O problema é que qual-

4. C. Pérez, "EI esquema a de Amaretto di Saronno", Dei goce creador al


malestar en la cultura. Buenos Aires, Paid6s, 1_9 87, pp. 23 1 e ss. (publicado
anteriormente em 1986).

256
quer um pode preferir comparar-se com este imaginário Amaretto di
Saronno, antes que suportar alienar-se· nos significantes dos mestres.
Sempre é grande a tentação de acreditar que somos filhos de nós
mesmos. Por que não, se dirá? 8 imoral? Trata-se acaso de apregoar
uma submissão, uma obediência? Nada disso: é esquecer que se se
tende "escapar" da alienação desse modo, o fato é que se incorre
em uma muito mais eficaz, . por inconsciente. Sem dúvida, aqui esta­
mos falando da dívid� com o pai: das possibiiidades de reconhecer
a dívida ou, pelo contrário, dar-se por nascido a si mesmo. Em síntese,
parece difícil de conceber - não só em termos biológicos, senão pelo
lugar verídico ostentado pelo campo do Outro - uma espécie de
iluminação a partir do zero; vale mais advertir que o próprio discurso
encontra sua origem no campo do Outro. E que a criação é possível
pela função da dívida, e não pelo oposicionismo a ela. Como criar­
repetindo, ou repetir-criando?
A questão da separação possui conseqüências muito importantes
para a ética do analista. Ou, para ser mais preciso: suportar a aliena­
ção e, dentro do movimento de retorno torcional, ir para a separação.
Aprofundaremos este ponto um pouco mais à frente, ao encarar nova­
mente, como anunciamos, o tema da interpretação. Antes, atendere­
mos às operações lógicas no quadro que estamos desenvolvendo. Na
alienação, segundo assinalamos em nosso encontro anterior, achamos
o que na teoria de conjuntos se designa como reunião:
Relação com
a cadeia
significante,
Efeito no com o campo Operação Modalidade
$. do Outro. lógica. da falta.

.
t
· divisório : S 1--S 2 Reunião
Alienação afanise ' sentido
(fading) (sem) captura x
engendrar-se S 1�S2
Separação (se
I I
l
parere)
função da ataque x �
" liberdade "
O de reumao era aquele procedimento que representamos me­
diante os seguintes círculos de Euler:

257
Se há x elementos em cada conjunto, no caso de haver elementos
comuns, esses contam uma vez só. · Isto é precisamente o que ocorre
na falha eleição de " nem um nem outro", segundo o vel da alienação :
sempre algo se subtrai. Em troca, a operação · de causação do sujeito
denominada separação está relacionada com a intersecção ou produto.
Em matemática moderna a intersecção designa ' 1tos incluídos como
elementos comuns e ambos conjuntos, na mesma lúnula apontada ante-
·
riormente:
.---- .----

Enquanto na reunião os elementos comuns se eliminavam como


duplicação, aqui o que imporfa são justamente estes elementos. Esta­
mos aqui diante de uma operação torcionalmente de retorno da an­
terior:
Relação com
a cadeia
significante,
Efeito no com o campo Operação Modalidade
$. do Outro. lógica. da falta.

divisório: S 1-- S2

I 1
afani_se sentido Reunião
Alienação
(fading) (sem) captu ra x $

engendrar-se S t --4- S2
Separação (se parere)
função da 1 1 Intersecção
ou produto
" liberdade " ataque ! x $

258
Fitl,almente, quanto à modalidade da falta encontraremos - como
vimos nâ= · a,ula passada - no caso (!a. alienação, o vel correspondente.
ConJO já assinalamos, não há eleição; se eleja o que se eleia, have­
rá perda:
Relação con't
a cadeia
significante,
Efeito no com o campo Operação Modalidade
· $. do Outro. lógica. da falta.
divisório:
Alienação afanise
(fading)
I
sentido
(sem)
S 1-- S2
1
captura x $
Reunião Vel (não
há eleição,
perde)
engendrar-se S 1 --+S2 Intersecção
Sep aração (se parere) 1
1 ou produto
I t
1
função da ataque x
" liberdade "
·--

Na separação, por sua parte, o que conta é o enigma ant� o de­


sejo do Outro, o que referµnos com o caso dos "porquês" infantis. O
escreveremos com a notação lacaniana d (A) : desejo do Outro. Enigma
ante o desejo do Outro, traduzido como resposta interrogativa em um
"- pode perder-me? " :
Relação com
a cadeia
Efeito no significante,
com O campo Operaçã o Modalidade
$. do Outro. lógica . da falta.
divisório: S1--S2 Vel (não
Alienação afanise 1 sentido Reunião há eleição,
(fading) (sem) captura x � · perde)
engendrar-se S t -f- S2 Enigma do
(se pal'ere)
. Separação função da
" liberdade " !
Intersecção d (A) :
ataque ! x ou produto "pode per-
der-me? "

Desse modo o sujeito trabalha com a sua própria falta ameaçan­


do, intimando, intimidando o Outro, tratando de provocar nele esta
mesma falta. Justamente neste " recobrimento" das faltas, marcamos o
comum, o intersectado na lúnula.

259
Completamos, assim, este diagrama, que pode ser útil - assim
espero - para orientar basicamente na leitura de um trecho tão deci­
sivo - e não simples - do Seminário como é o dedicado às opera­
ções de causação do sujeito .
Nos capítulos 1 7 e 1 9 de Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise desenvolvem-se alguns pontos que é necessário pormeno­
rizar ; ao menos, dois deles . O primeiro será novamente a problemá­
tica por significante S1 e S2, a qual , como vemos, se encontra na
segunda coluna de nosso diagrama. Lacan estipulará que o S1 - ao
qual chama significante unário - está articulado como " questão de
vida e morte " 5 ao S2, ou significante binário .
Este S2 é precisamente aquele que aparece em Freud sob o termo
Vorstellungsreprãsentanz, cuja tradução proposta é representante da
representação, e não representante representativo 6 • Questão de mera
terminologia? De maneira nenhuma : não são simples vocábulos os
que estão em jogo, senão que existe uma diferença crucial .
Vo rstellung é a representação psicológica tradicional , é a idéia,
a percepção que alguém possui das coisas do mundo : a subjetividade,
em suma, com a qual se entronca a gnosiolog'ia. Em uma palavra : é
a significação. Isto determina que Vorstellung deva ser entendido por
um lado e Reprãsentanz por outro :

Vorstellung: Significação
Repriisentanz:

Este ponto é muito importante, porque conceber Vorstellung como


o lugar ond� se joga a significação implica um passo firme para inte­
ligir onde se exerce a repressão . Certa vulgata psicanalítica, recorde­
mos , nos assegura que o que · se reprime ' são os afetos . Há angústia,
ódio, amor reprimidos . Uma leitura elementar de Freud convenceria
que jamais escreveu algo parecido.· O terceiro ponto do já mencionado
texto O inconsciente 7 se intitula Sentimentos inconscientes. Para co­
mentar, para denotar o título, deveríamos torná-lo um interrogante :

S , J. Lacan, Los cuatro . . . , cit., p. 224.


6 . Tal a opção que adotam J. Laplanche e J . -B. Pontalis em seu Vocabulair,,
de la psychanalyse (Paris, P.U.F., 1 9 67, pp. 4 1 2-4 ) , que por sua parte
questionam a proposta de Lacan.
7 . S. Freud, op. cit., pp. 173-6.

260
Sentimentos inconscientes? Pois eles não existem : o sentimento se
sente . Não há possibilidade de repressão alguma. O afeto - como o
explica Freud - na medida em que se liga a uma representação, indu­
bitavelmente sofre os efeitos do deslocamento. Também pode trans­
formar-se em angústia, sofrei: a transformação no contrário, ver-se " su­
primido " , mas nada disto implica a ação da repressão, porquanto ela
se executa sobre o Vorstellungsreprasentanz, representante da repre­
sentação. Se Vorstellung se lê pelo caminho da significação, o Repra­
sentanz - como os embaixadores - é alguém que não fala em nome
próprio : não é senão um representante, um significante das cambian­
tes, das móveis significações que porta :

Vorstellung: Significação
Reprasentanz: Significante

Assim como o significante não se significa a si mesmo porque


· responde do lugar do Outro , com o embaixador ocorre o mesmo ; está
ali respondendo a interesses que não são os seus pessoais , já que não
vem ao caso sua significação própria : ela deve intervir . Está dizendo :
" Eu sou esse que representa a . . . " , muito além de se é, ou não, um
homem simpático . Representante da representação, então, está indican­
do .. como um sujeito se constitui no momento em que esse significante
S2, · cai; assim, funda o sujeito mediante sua divisão, sua afariise. Já
o ensinava Freud : é a repressão primária a que dá lugar à divisão do
sujeito, inscrevendo-se o S2 como um ponto de atração para o reprimido
secundariamente . Aproveito aqui pata permitir-me fazer uma pequena
observação a Lacan : ele pontualiza que o texto de Freud sobre a
Verdrangung - A repressão - segue na Metapsicologia o texto sobre
O inconsciente 6 • Se recorrermos ao volume respectivo, veremos que
A repressão antecede a O inconsciente. Aqui se trata simplesmente
da seguinte questão : Como vai " armando " Freud os trabalhos da
Metapsicologia'? Seu trajeto 9 é o seguinte (no tocante aos três primei­
ros artigos) :

Pulsão ➔ Repressão ➔ Inconsciente

8 . J. Lacan, Los cuatro . . . ., cit. , p. 223 . A nova edição, cit. , p. 225, tampouco
assinala o lapso.
9 . S. Freud, n.c., cit. , t. XIV, pp. 10S, 1 3 S e 1 53 .

261
Em troca, como procede o desenvolvimento deste Seminário, pelo
;que temos podido acompanhar? Este é o itinerário:

Inconsciente ➔ Pulsão ➔ Repressão

Em conseqüência, a estratégia discursiva de Lacan, com respeito


à freudiana consistiu em situar, em primeiro lugar, aquilo que é
incon�ciente:
Estratégia lacaniana

➔ Repressão I nconsciente
Estratégi a freudiana
Dado que é este o caminho lacaniano ern estado prático, conforme
a ordem lógica deste Seminário, é razoável que o mesmo tenha dado
pé a um lapso: o de haver trocado o lugar seqüencial de um texto .
O qual de nenhuma maneira é imputável a uma suposta ignorância
sobre Freud; ao contrário : conhecendo como freqüentava e dominava
a obra do pai da psicanálise, este fato se faz duplamente chamativo.
De pronto, parece indicar uma forte inclinação em situar em primeiro
lugar os desenvolvimentos sobre aquilo que é inconsciente. Assim,
ao dar conta daquilo que é inconsciente estruturado como uma lin­
guagem lhe permite - dado que aquilo que é inconsciente não é
causa sui - .não partir da pulsão como se fosse um instinto. Não é
esta uma ordem de preferência, não implica uma hierarquia, senão
que é uma ordem lógica de razões. Que transmite, no lapso, a linha
de um programa. ·
Nestas passagens quase conclusivas do Seminário, se ressalta uma
discussão com Jean Laplanche; assim, oufro marco da polêmica vai
penetrar na questão relacional metáfora-repressão. Trata-se, em suma,
da instauração da metáfora paterna. Esta, naiuralmente, segue os linea­
mentos de qualquer metáfora; daí que seja Únportante, decisivo, poder
estipular se tem tido lugar, em um sujeito, a substituição do Desejo
da Mãe pelo Nome-do-Pai - o que configura a metáfora paterna.
Para isto, é preciso possuir uma intelecção ajustada desta circunstân­
cia estruturante:
Nestes trechos do Seminário, Lacan refere-se com bastante raiva
a certo aficionado que tomou · uma cátedra universitária. Já sabemos
de quem se trata. Comenta, entre outras coisas, como este catedrático

262
tentou fazer uma redução da fórmula - por ele produzida - de me­
táfora, procedimento este que, ao ser seguido, leva a um perigoso
impasse de especial importância para circunscrever a questão da inter-
pretação.
Em A instância da letra 10 vemos escrito o seguinte:

Isto se lê: a função do significante consiste em poder situar


substitutivamente um significante - tachado, como prima - sobre
outro significane. Assim simples; esta é a primeira proposição, a
primeira parte da fórmula da metáfora, a que se apresenta como uma
congruência ( âã!! ) do anterior com um segundo termo:

s (+) s

O qual implica que o significante aceita um atravessamento, uma


transposição, na geração da significação. O signo indicativo da relação
não implica uma soma senão o atravessamento da barra resistente à
significação. A fórmula completa da metáfora ser� escrita desta forma:

F � :') S ao S ( + ) s

Se há metáfora, como constitui uma faísca de poesia ou de cria­


ção, a substituição deve ser o suficientemente feliz como para que se
possa captar aquilo substituído por parte do substituto. Não sendo
assim, a metáfora . é falha. Portanto, se não existe um dar-se conta
de que se está falando atràvés deste recurso, desta figura, a metáfora
resulta um fracasso. A transposição da barra implica que algo da
constituição, da emergência da significação, se lê no significante subs­
tituto (ou significância) ; é "no esconderijo" onde, efetivamente, pode­
mos apreender, por meio do significante substituto, o substituído.
Esta consideração geral implica - para ir ao nosso caso específico -
1 0 . J. Lacan, "La instancia , . . ", cit., p. 200.

263
que a função da metáfora paterna consiste em poder situar, substitu­
tivamente, o Nome-do-Pai sobre o Desejo da Mãe. E o que de maneira
mais empírica - ou mais imaginária - Freud assenta quando explica
a passagem da mãe ao pai no caso da sexualidade feminina 1 1 • Na
tentativa de formalização lacaniana, trata-se de dar conta de que esse
trânsito não só se produz na mulher, porquanto, como operação de
pas��gem, é próprio de todo sapiens. Agora, pode apelar-se - com
reservas - ao recurso das frações aritméticas para formalizar o item
aludido. Portanto, o que acontece neste exemplo - como em toda
metáfora - pode ser vertido, de maneira muito simples, em uma
fórmula como esta :

A ...L
B D

l! uma simples proporção, colocada pelo lado da multiplicação. Se


substituímos as letras pelos elementos conducentes na constituição dn
sujeito, obteremos a seguinte disposição :

Nome-do-Pai Desejo da Mãe


Desejo da Mãe significado ao sujeito

O que se coloca aqui é nem mais nem menos que um produto . A


aparição do mesmo termo nos meios da proporção determina sua re­
dução, ou seja, sua eliminação :

Nome-do-Pai
significado ao sujeito

A fórmula fica limitada, então, a ;stabdecer o seguinte : é o


Nome-do-Pai o que outorga significado ao \sujeito , o que será fálico .
Contudo, Laplanche complicou os · termos da metáfora ; com efeito , a
concebeu como uma operação de quatro extratos e, evidentemente,
optou por postular uma justaposição não muito clara de dois signi­
ficantes naquilo que é inconsciente . Sua proposta escreve-se assim 12 :

1 1 . S. Freud, "Sobre la sexualidad femenina", cit .. pp. 223 e ss.


1 2 . J . Laolanche-S. Leclaire, "EI inconsciente : un estudio psicoanalítico" in
H. Ey (comp. ) , El inconsciente (Colóquio de Bonneval) , México, Siglo
XXI, 1970, p. 122.

264
A

e
Fica assim A sobre D, que por sua vez sobre B sobre C. O ponto,
indicativo do produto, substitui-se por uma barra de divisão; assim,
é sabido, se reconstitui a relação do produto.
Se a fórmula de Laplanche dá conta da estrutura daquilo que é
inconsciente, a barra larga separa o manifesto do latente, entendido
como (pré)-consciente sobre inconsciente. Entende-se, então, esta divi­
são como representando uma ar1iculação qualquer, uma prisão de
dois significantes (aqui, B e C) naquilo que é inconsciente. Assim, com
isso se está dizendo, finalmente, que o significante se significa a si
mesmo, ao invés de marcar - lacanianamente - uma substituição dis­
tanciadora, "expulsante " . Levando em conta suas considerações como
certas, Laplanche chega a apresentar, como dedução valiosa a partir
delas, que a interpretação está aberta a todos os sentidos. Então, na
medida em que a ligação entre significantes é absolutamente arbitrá­
ria, diga o analista o que diga, "tocará" a cadeia daquilo que é incons­
ciente, de modo tal que a interpretação pertinente pode consistir em
dizer qualquer coisa. Obviamente, isto fomenta que qualquer adven­
tício diga a seu paciente o que lhe ocorra, na convicção de estar
produzindo um efeito psicanalítico. :e que, indubitavelmente, podem-se
provocar efeitos : há suficientes formas de eficácia imaginária - se­
gundo o que desenvolvemos antes - e muitos são os casos nos quais
não se sabe porque passam certas coisas nas análises. E conste que não
falamos somente das conseqüências nocivas senão inclusive das favo­
ráveis ao fim da · análise.
Na fórmula lacaniana o adotado é a convenção, a ficção, de uma
proporção contínua; isto é, aquela que possui os mesmos termos nos
meios. :e, somente, um modo particular dá proporção; por outro lado,
o modelo da fração não dá conta, com propriedade, da relação signi­
ficante-significado - cujo algoritmo ..!.. parece, de fato, uma fração -,

265
porque não contempla a produção de efeito de sentido. Então, uma
coisa é interpretar o significante se se pensa, com um inínimo de
rigor, que nos regemos segundo às leis da metáfora e metonímia, e
outra coisa é supor que se interpreta o significante de acordo com
uma brincadeira insensata com as palavras, o qual em nada corres­
ponde · ao ensino que nos convoca.
Quando Lacan procede ligando separare com se parare e se pa­
rere, por exemplo, não está recorrendo a uma espécie de delírio ma­
níaco onde por rápida fuga de idéias as palavras se articulam alegre­
mente entre si. As vezes pareceria que se o tem entendido nesse
sentido, sobretudo por parte de alguns analistas sempre dispostos a
brincar com o significante em uma associação transloucada. Em suma,
a proposta de Laplanche falha de seu ponto de partida .até suas conse­
qüências últimas. Repito: não é só questão de fórmulas matemáticas,
mas sim das implicações clínicas, às vezes imprevisíveis.
Quanto ao que sucede com as fórmulas - plano da notação
algébrica - resulta que no desenvolvimento lacaniano importa espe­
cialmente o acontecer pontuado na, e pela lógica implícita, antes do
que somente o resultado empírico. Se o resultado eventual obtido em
sua fórmula da metáfora chegasse a ser casualmente .idêntico ao pro­
duzido pela proposta de Laplanche, isso não indicaria que ambas
portulações são igualmente corretas. Estamos aqui pensando de que
forma articulam-se os elementos; por isso, o mesmo resultado não
garante sempre a legitimidade das respectivas operações. Acreditar no
contrário seria não distinguir o fato de haver chegado a uma inter­
pretação exitosa porque constitui uma significação relacionada com
o analisando, do haver "encontrado" uma resolução do sintoma por
meio de uma interpretação improcedente (digo no singular, para sim­
plificar). Neste último caso deveremos dizer que mais precisamente
houve um influxo transferencial, a_ntes do que uma ocupação signifi­
cante. Este influxo provocará, indubitavelmente, efeitos. A remissão
momentânea poderá produzir-se, inclusive, em ambos os casos ; con­
tudo, as possibilidades de uma recaída são inexoráveis em ocasião da
suspensão do efeito "hipnótico " .
Portanto, ' um ponto importante a recordar é que a interpretação
não está aberta a todos os sentidos. Pode ser relativamente falha, mas,
em qualquer caso, deve fundamentar-se nos, e pelos, significantes for-

266
necidos pelo analisando. Não se pode então - e aqui há uma impli­
cação ética, atinente ao desejo do analista - supor que por uma espé­
cie de reação em cadeia, digamos o que digamos, encararemos respon­
savelmente a problemática do paciente.

Na formulação lacaniana há uma ética da interpretação; voltare­


mos sobre o ponto - o segundo recém enunciado - antes de con­
cluir. Mas sigamos por um momento refletindo sobre o uso das fór­
mulas matemáticas. Nos exemplos que vimos hoje, os símbolos são
utilizados em um sentido muito peculiar. Assim como Lacan utiliza a
lingüística ou a topologia, o mesmo acontece com a aritmética. Sua
manipulação se assemelha, reiteremos, à de um bricoleur que toma o ·
que lhe convém, acudindo a um "me sirvo porque me serve". A res­
peito da colocação da metáfora, sua procura especificadora consistiu
em elaborar uma fórmula capaz de explicar o eclipse, a queda do
Desejo da Mãe em virtude de sua substituição pelo Nome-do-Pai. Em
troca, lendo a parte firmada por Laplanche em O inconsciente, um
estudo psicanalítico, podemos advertir como o que pretende é uma
implementação da fórmula da metáfora tal que ·aceite sua invenção
de um inconsciente em estado primordial, ao que - estima como "con­
dição da linguagem" 13 • No ponto de partida pode notaMe já a incon­
ciliável antinomia entre as concepções de Lacan e Laplanche. O
primeiro considera que a linguagem é condição daquilo que é i_ncons­
ciente; o segundo, que aquilo que é inconsciente é condição da lingua­
gem. Faz falta esclarecer que na segunda proposição já está perdido
o ensino lacaniano? A partir desta espécie de inconsciente primordial,
deste axioma, Laplanche começa a desenhar um modelo de constru­
ção da linguagem . Uma problemática praticamente pertencente ao âm­
bito da psicologia evolutiva. E não é que esta disciplina trate de algo
errôneo; o que acontece é que todo o construído nesse campo é alheio
ao nosso interesse específico, porquanto sua episteme é psicanalítica­
mente impensável 1 4 • Seu reino ah-arca a aquisição da linguagem como
instrumento, a evolução da capacidade para dominar um vocabulário,
ou para desenhar corretamente as frases etc. A partir da psicanálise,
este é o desafio lançado ao ignorar a metáfora paterna : a concepção
da linguagem como um repertório a adquirir, como uma atitude basea­
da em uma enteléquia preexistente.

13 . J. Laplanche, op. cit., pp. 1 1 8 e ss.


14 . J. Lacan, "De una cuestión preliminar . . . ", cit., p. 240.

267
Questões

P . : Em A metáfora do sujeito 15 , Lacan escreve que a metáfora


é uma operação de quatro termos : A sobre B, por D sobre C. Após
isso oferece uma definição de Perelman. Este desenvolvimento sempre
me pareceu muito estranho ao confrontá-lo com o de três termos que
aparece no caso da metáfora paterna. Todavia continuo sem entender.
R. : :8 certo. Lacan toma os quatro termos da formulação de
Perelman, mas, se repararmos na continuação do texto, é possível
advertir como assevera que os quatro termos não são homogêneos :
três são significantes, e um significado . Isso está marcando que não
existe uma relação no mesmo plano . Se lhes interessa, há um trabalho
que publiquei no ano passado na revista Imago n .º 1 2 , Lacan, dez
anos depois. Seu título é Metáfora: tema e fora? e se refere precisa­
mente à metáfora do sujeito. Meu escrito trata de ser um rastreamento
dos lugares princeps onde Lacan fala da metáfora e, em particular, a
indago em relação ao livro de Perelman 16 , que é uma obra de difíciJ
obtenção em nosso âmbito. Além disso já que você fez referência a
esse texto, cabe perguntar-se : O que quer dizer ali o genitivo, aplicado
à metáfora do sujeito? Partindo da alienação e da separação, então :
a metáfora do sujeito é a que o sujeito processa, ou se trata do su­
jeito como efeito de metáfora? Se o que conta é o segundo, estamos
antes de tudo pensando na metáfora paterna, não em um inconsciente
em estado primordial reduzido, individualista em última instância.
Porque - retomando - postular aquilo que é inconsciente como
condição de linguagem é outra vez transladar-nos ao indivíduo causa
sui, que constrói uma linguagem conforme cresce e progride. Caímos
assim na problemática da psicologia do 'indivíduo, aquela própria do
sujeito da representação, centro da psicologia introspeccionista, con­
dutista ou a que for. A teorização lacaniana tenta subverter, desde
já, esta episteme. ·
P . : Quais são os pontos principais de discordância entre Lacan
e a fórmula de Perelman?

1 5 . J. Lacan. Escritos 11. México. Siglo XXI. 1984, pp. 867-70.


16. Ch. Perelman-L. Olbrechts Tyteca, Traité de l'argumentation. La nouvelle
rhétorique, Editions de l'Université de Bruxelles, 1976, pp. 499�549.

268
R. : Um dos pontos nodulares da crítica lacaniana consiste em
que, para Perelman, a metáfora inscreve-se como uma das formas da
analogia. Para o psicanalista, a analogia se situa no registro do Imagi­
nário, enquanto a metáfora no do Simbólico 17• Toda a tentativa de
Perelman - ainda que Laçan reafirme que se trata de páginas " admi­
ráveis" - se enquadra na questão das proporções integradas por
termos homogêneos, porque entende que é assim como se constituem
as analogias. A esse respeito, o " salto" é bem marcado; A metáfora
do su;eito rende homenagem ao retórico mas ao mesmo tempo marca
distâncias infranqueáveis . Uma das discordâncias básicas situa-se na
função do sujeito. Esse é o ponto crucial, inclusive, .pelo qual - se­
gundo expusemos - não há "lingüística aplicada " na psicanálise: a
introdução da função sujeito .
Por último, despejadas algumas questões sobre a metáfora, desejo
colocar um item importante, antes de dar por concluída nossa leitura
do Seminário. Encontramos neste uma formalização muito simples da
interpretação por meio da escrita invertida do já célebre algoritmo
saussuriano. Partamos, uma vez mais, da relação de significação:

Significante s
significado s
A respeito da interpretação, a proposta consiste em sua inversão.
O resultado será então:

significado J s
Significante s
Na edição em castelhano do Seminário 1 1 há dois diagramas {nas
páginas 242 e 255 da primeira edição, e 245 e 258 da segunda) , que
merecem bastante mais tempo do que dispomos agora para sua análise.
O enibasamento de ambos, seu pilar radical, é esta inversão.
Esta postulação indica que a interpretação, em primeiro lugar, é
uma significação. Esta determinada significação propõe-se isolar um
significante reprimido sob a barra, para que possa transpô-la. Se toma-

· 17 . J. Lacan, "Función y campo . . . ", cit., p. 83.

26º
mos o Seminário 20, Encore, traduzido erroneamente para o castelhano
como Aun (Até) - mais pertinente em seu título na versão portuguesa:
Mais, ainda - comprovaremos como considerava, enquanto fim da
análise, a possibilidade de extração do S 1 1 8 • Isto é interessante porque
marca, segundo vimos, outro ponto decisivo de diferença em relação
. a posições como a kleiniana. Um psicanalista kleiniano tentará levar
a análise à introjeção do objeto bom, à reintroj�ção de tudo aquilo que .
pela identificação projetiva massiva tem empobrecido - diz - o
sujeito . Tarefa de incorporeção que, se advertirmos como a ironiza
Lacan em A direção da cura 19 , conviremos que se trata finalmente
de oferecer-se como alimento para o analisando, por parte do analista.
Não como um semblante, senão como um alimento que se tomará
como degradado, degradante e, inclusive, fétido. Assim, no texto ci­
tado chega-se a comparar ao analista nesta "função", com o alimento
para porcos, Essa suposta incorporação (" come de meu corpo, bebe
de meu sangue", chegará a parodiar) ligaMe-á a um fim de análise
entendido como identificação com o analista. Momento que para nós
é só de detenção da análise, de estancamento, que deve ser - como
designo - franqueado pelo analista. Para Lacan, em lugar da identi­
ficação introjetiva, o objetivo será poder extrair esse significante S1 ,
ao qual também denomina sem-sentido. A interpretação tem signifi­
cação, é uma significação. Não consiste em uma conduta psicodrama­
ticamente caótica à qual costuma-se chamar ato e que alguns, em nosso
meio, e em ·.nome de Lacan, têm concebido como ótima intervenção
analítica. Uma espécie de encenação insensata e reativa, que surpreen­
de inutilmente o analisando, que não vê nisso sentido algum. Segundo
dizem, isto faz interrogar-se sobre o desejo do Outro, e outorga cer­
teza (?) acerca do objeto a. De forma diferencial, Lacan propugna
uma significação que busca isolar um significante irredutível, sem­
sentido, e a esta denomina interpretação, p.ierarquizando sua utilização
por parte do analista.
No artigo - já citado - O inconsciente, uni estudo psicanalítico,
aparece um exemplo clássico no âmbito lacaniano. Ainda que o texto
seja assinado por Laplanche e S . Leclaire, é este último quem expõe
a vertente clínica. Ali se apresenta o caso em questão, que constitui
uma referência habitual nos textos ou cursos de orientação lacaniana.
Leclaire, como verão lendo-o, tem honrado seu nome: com efeito, com
18 . J. Lacan, Encore, cit. , pp: 129-33.
19 . J. Lacan, "La dirección . . . ", cit., pp. 270 e ss.

270
" clareza" consegue isolar, no analisando, esse Kern, esse núcleo de
sem-sentido que não tem nenhuma possibilidade de tradução lexical.
O significante em jogo aí - dito a partir do Outro, está claro - é
Poordjeli '20. O desenvolvimento de Leclaire é suficientemente me­
ticuloso como para que se possa advertir em que consiste o· ir da inter­
pretação significativa para ó sem-sentido significante.
Os dois esquemas mencionados têm dado lugar a dúvidas, a
várias versões, devido a sua dificultosa inteligibilidade, mas devere­
mos deixar sua consideração para outra ocasião 21 • Agora, só nos resta
prosseguir com as perguntas finais .
P . : Em uma reunião passada eu perguntei sobre a operação que
estava implicada na sublimação, já que ali não atuava a repressão.
Que incidência têm as . operações de alienação e separação na subli­
mação?
R.: O primeiro ponto a considerar é que não devemos outorgar
uma condição adaptativa à sublimação, lembrando a definição lacl!•
niana de elevar o objeto à dignidade da Coisa. Como já expusemos,
das Ding possui uma dimensão devoradora, envolvente. Pela sublima­
ção se recusa, se renuncia, se retira do amor e do sexo. Algo muito
distante da simples imagem da inserção exitosa no social. A sublimação
possui um lado devorador, distinto da adaptação à cultura. Agora,
se a sublimação está relacionada com a possibfüdade de que possa
aparecer a metáfora como criadora de sentido, ali há que encontrar
justamente a operação de separação.
A separação trabalha com os dados providos pelo muro da lin­
guagem, para fazer nele uma fenda. Romper algo nessa parede que se
levanta diante do sujeito e produz o efeito afanísico. Desse módo, todo
ato criador ligado à metáfora e, portanto, à separação, deve possuir,
como condição necessária, a capacidade de subversão, de ataque à
cadeia significante, logo, logicamente, de haver-se alienado em, e
por, ela.

20 . S. Leclaire, op. cit., pp. 108-1 8 e 126-34.


2 1 . Isto não impede, contudo, destacar que o papel cardinal atribuído por
Lacan à interpretação se mantenha até o final de sua produção. Assim,
em 1977 insiste em que aquela, se é "justa", consegue apagar um sintoma,
demonstrando que "a verdade se especifica enquanto poética". (J. Lacan,
"La varité du symptome", Ornicar? : 1 7 / 8, Paris, Lyse, 1979, p. 16, que
faz parte do Seminário 24, cit. ) .

27 1
P. : Qual relação haveria aí, então, entre pulsão e separação?
Porque parece que a separação trabalha na cadeia significante e a
pulsão se situa em um plano não significante.
R. : Nisso há um engano. Não devemos considerar que a pulsão
fique por fora da ordem significante. ½_embre-se como criticamos a
concepção a qual a pulsão seria algo irreprimível, presumivelmente de
caráter energético. Não é assim porque está tomada pela ordem signi­
ficante e além disso, pelo limite da zona erógena, tem homologia topo­
lógica com a estrutura daquilo que é inconsciente. Por essa função
de corte, de hiância, presente em ambos, a pulsão possui pulsação
temporal. Não é o que irrompe bestialmente, mas sim uma construção
circuitada onde se envolvem significantes e, portanto, desejos. O pro­
blema é que Lacan propõe duas operações de constituição do sujeito
dispostas pela ação significante. Às vezes, colocar isto em estrita corre­
lação com os instrumentos conceituais freudianos é difícil. O campo é
comum, mas há toda uma tarefa de articulação por fazer (a esse
respeito, destaquemos como Freud postulava as· inflexões pulsionais
enquanto dados da conjugação verbal, do " verbo ") 22 •
De todas as formas, a sublimação encontra-se mais ligada à sepa­
ração que à integração aos hábitos sociais. Esta última, na realidade,
me parece estar relacionada éom a alienação. Mas isto não deve ser
entendido, contudo, no sentido hegeliano ou o de Marx jovem, como
processo no qual alguém aliena algo de si mesmo. Na alienação laca­
niana não se perdeu uma essência, mas sim que o sujeito aparece
''domesticado" pela cadeia significante.
P.: Seria um ataque à demanda do Outro?
R. : Com efeito : pelo caminho da separação, a sublimação con­
siste em uma não resposta à demanda do Outro. Já que associativa­
mente me é dada a oportunidade, lhes comento algo sobre outro pon­
to: o pensar na interpretação como o lugar onde o analista põe em­
ato a operação de separação. Em outras palavras : de que maneira
podemos encolitrar, na sublimação do analista, a ação da separação.
Quando por exemplo dizemos re-petição, realizamos uma escan­
são. Ao escandir o termo, como é sabido, cria-se um efeito de sentido.
Aqui surge a seguinte questão : Onde estava antes tal sentido? Até

22 . S. Freud, "Pulsiones . . . ", cit., pp. 122-8.

272
não realizar-se a operação, não existia. Essa é, efetivamente, a tarefa
do analista: quando escande, separa. " Ataca" e ressalta um intervalo
hiante na parelha significante (neste caso: " re-petição ").
Em Posição do inconsciente 23 é possível · advertir que a separação
não se realiza de uma vez para sempre, porquanto estruturalmente es­
tamos tomados em, e por, esta dialética de alienação-separação. De
modo que não fazemos referência, de modo algum, a fenômenos pro­
duzidos em certo mo'1).ento evolutivo. Esta operação de separação é,
por outro lado, reiterada de modo freqüente na intervenção analítica;
por exemplo, na passagem de I para a. Também se produz, indubi­
tavelmente, no momento de corte da sessão, onde não é que haja
separação porque dois corpos se despedem até a próxima senão porque
ali se pontua um corte significante. Trabalhar com sessões estrita­
mente terminadas nos 50 minutos, implicaria permanecer no plano da
alienação. O notável é que, como talvez vocês saibam, o motivo pelo
qual duram esse tempo é porque assim o fazia empiricamente Freud,
que nem considerava tal norma como incondicionalmente obrigató­
ria 24 • Assim, isto não implica uma crítica a Freud, mas. sim aos que
em prol de uma inaudita crença na ortodoxia sustentam que essa rigi­
dez é inexorável como requisito para reclamar-se como freudianos.
Já dissemos: " façam como eu, não me imitem" - assinalou uma
vez Lacan. Nessa brilhante aporia há muito que pensar a respeito das
implicações da alienação e da separação. Trabalhar estas operações
resulta altamente frutífero, já que podem dar conta, efetivamente, de
numerosos conceitos da psicanálise.
Chegamos, assim, ao final de nosso percurso. Por tê-lo tornado
possível, lhes agradeço muitíssimo, a todos vocês, por sua assistência,
escuta e participação. Muito obrigado.

23 . J. Lacan, "Posición . . . ", cit., pp. 375-80.


24 . S; Freud, "Sobre la iniciación . . . ", cit., p. 125.

273

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