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Tradução
Marta M. Okamoto
Luiz Gonzaga . B. Filho
UMA
INTRODlJÇÃO AOS
4 CONCEITOS
FONDAMENTAIS
DE LACAN
Título original em espanhol: Los cuatro conceptos fundamentales dei psico
análisis, de Lacan: una introducción
© Ediciones Nueva Visi6n, 1987
Tradução: Marta M. Okamoto e
Luiz Gongaza B. Filho ",.
Capa: Francis Rodrigues
Equipe Editorial
Coordenação: Beatriz Marchesini
Copidesque: Rosana Monteiro
Revisão: Eliane Cornacchia
Regina Maria Seco ·
Vera Luciana Morandim
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Harari, Roberto.
Uma introdução aos quatro conceitos fundamentais de Lacan
/ Roberto Harari : tradução Marta M. Okamoto, Luiz Gonzaga
B. Filho. - Campinas, SP : Papirus, 1990.
1. Lacan, Jacques, 1901-1981 2. Psicanálise I. Título
9�0505 CDD-1S0.195
ISBN 85-308-0094-X
■ popru.1 EDITORA
Fone: (0192) 32-7268 - Cx. Postal 736
13.001 - �mpinas • SP • Brasil
Prólogo ............__....
_ . �-...................
_ 11
Capítulo I,
Hélice e quadrângulo: A psicanálise e seus - conceito�
fundamentais .........- ..... _... . . . . . ..... ... . . 15
Capítulo II
A ling!'agem, o inconsciente - - A causa, a pulsação
temporal- ............_ ..............
_ ;- ._ � .._ ..... 41
Capítulo m
Nassa e Tiquê 69
Çapítulo · IV
· Trauma ou estágios? - Repetição e escopicidade 97
Capítulo V
Nódoa e engodo - A transferência I ............. 121
Capítulo VI
Engano, saber, ideal - A transferência II .. . . . . . .. 143
Capítulo VII
Erastés, Eromenós - Quatro limites, cinco destinos
pulsionais ..................., . .. . ... . .. . . . ... 165
Capítulo Vlll
Parcialidade, borda, traçado: a deriva em circuito . . . 189
Capítulo IX
Sexualidade ou mântica? - O "vel" da alienação. . . . 219
Capítulo X
Separação, metáfora, interpretação ............... 241
PRôLOGQ DO AUTOR PARA A EDIÇÃO
BRASILEIRA
9
pondero à IPA (Associação Psicanalítka �ntêtnacional, cujas hostis
relações com Lacan são discutidas neste livro). Menciono isto não
.só. porque tais eqtidades desqualificassem os analistas quê não per.
tenciam a elas mas. também pelo peso excessivo da eficácia de suas
leis que eram obedecidas à distância mesmo por quem, de boa.fé, s�·
opunha a eles. Por exemplo -'- avalie•se o valor da piada -"- o autori•
zar-se o uso do divã foi vivido, por muitos colegas, como um tipo de
ataque aos direitos legitimamente adquiridos pelos· membros da IPA°,
os que haviam se apropriado - qual feudo exclusivo - da experiên-
cia �a clínica psicanalítica.
Retomando, esse quiasma institucional-editorial deu pé a que
a generosid'ade da Editora Papirus tenha respaldado a edição brasi
leira do livro introdutório que você, leitor, tei.n nas mãos. Curioso
destino o do livro, esta é a opinião do a�tor que, no geral, sempre
1
10
PROLOGO
11
gração, qualificados colegas que até então não haviam realizado a ex
periência de compartilhar um espaço de trabalho comum. Mas não
era só isso o que trazia em si um fator de incerteza: com efeito, a
isso havia que acrescentar-se o fato de que esse espaço deveria ser
construído sobre bases extremamente não convencionais, na medida em
que propunha não os clássicos, previsíveis percursos dos - nos -
cânones das instituições analíticas, mas a realização em ato da liga
ção entre psicanálise e cultura, por um lado, e a consideração espe
cial para com a diversidade do público, por outro, dado que, supos
tamente, o Centro Cultural abre gratuitamente suas portas a todos
os interessados em suas atividades, sem exigências prévias de pro
fissão ou nível de informação e escolaridade. No San Martin, en
contramos o apoio franco e generoso de Javier Torre, quem, como é
de conhecimento notório, imprimiu em · sua gestão à frente do orga
nismo uma força e criatividade que tomaram seu amplo poder de
convocação num dos mais notáveis internacionalmente.
12
Um voto, para finalizar: que o leitor aprecie esta Introdução
como uma tentativa válida no sentido de assentar, com o máximo de
rigor possível no reino das luzes - que não é o do Iluminismo -
a incomparável riqueza da l�itura pós-moderna de Freud processada
por Lacan. O que certamente é sustentável no que diz respeito a
cada conceito da psicanálise, põe-se à prova radicalmente quando se
trata - como se verifica aqui - dos seus próprios fundamentos.
13
1
HÉLICE E QUADRÂNGULO : A PSICANÁLISE E
SEUS CONCEITOS FUNDAMENTAIS
15
moes programadas e, por outro, é inevitável que se trate da apro
ximação de quem lhes fala.
O que se segue é um princípio próprio da leitura que faremos:
acontece que não há uma leitura pontual nem literal, mas há temas
que me parecem cruciais e ante os quais um outro poderá dizer:
" Como é que apenas tocou tal ponto, ou que desconsiderou outro? "
Terá razão . . . também. Em todo caso, é um princípio destinado a
advertir-lhes acerca de como será o desenvolvimento a que me pro
ponho realizar diante de vocês.
Podemos localizar - brevemente - o momento em que Lacan
profere este Seminário, não somente quanto à cronologia, mas também
quanto ao decurso do seu ensino. Isto requer uma consideração sobre
a política da psicanálise; especialmente quanto ao lugar de Lacan
nessa política. Um lugar efetivamente revulsivo, rechaçante, para a
entidade oficial, a IP A. Assim, começa mencionando a "excomunhão"
de que foi objeto por parte desta. Não é por acaso que já utilize este
termo, por intermédio do qual remete imediatamente à questão reli
giosa. Veremos depois como - desde o princípio - centrará a psica
nálise em suas relações com a religião e com a ciência, tratando de
deslindar - se isso é possível - e demarcar as respectivas fronteiras
epistemológicas, para dizê-lo com Bachelard.
Em todo caso está em jogo se à psicanálise tem a ver com a
ordem da ciência, ou não. Sendo assim, o que é que deve ter a ver, de
modo imperativo. �ntes disso, volto à questão política. Lacan é efeti
vamente expulso da Associação Psicanalitica Internacional; nesse mo
mento, além disso, pelos bons ofícios daqueles que patrocinam sua
expulsão, se consegue que não possa prosseguir seu Seminário no Hos
pital de Sainte-Anne.
Consegue, então, ser recebido pela Ecole Normale Supérieure,
uma entidade universitária. Ali tinha bons amigos; por exemplo, Lévi
Strauss e Althusser, que nesse momento estava muito interessado no
ensino de Lacan, a ponto de tornar categorias da psicanálise para pro
cessar sua revisão do marxismo. Vocês podem ver em - agora que
seus livros voltaram a circular entre nós - Para ler o Capital ou Revo
lução teórica de Marx, como Althusser instrumenta noções como so
bredeterminação, deslocamento, condensação, que toma diretamente
16
dos ensinamentos de Freud e de Lacan. Introduz, dessa forma, todo
este andaime em sua releitura de Marx; basicamente na de O Capital.
Estes bons amigos - e outros - conseguem que Lacan possa
voltar a ter um auditório numeroso, ante o qual lhe parece então cru
cial desenvolver nem mai� nem menos que uma temática referida aos
fundamentos. O que implica, então, colocar-se a questão nodular -
como assinala - desta prática, desta práxis - termo que é, também,
de extração marxista -: O que é que fundamenta nossa práxis? O
que faz com que não seja finalmente uma espécie de taumaturgia, de
magia, ou de algo que funciona mas do qual não se pode dar as ra
zões do porquê acontece? Porque muitas coisas funcionam . A questão.
é se o que as faz funcionar conhece as causas do funcionamento e,
produzido o efeito, sabe porque se produziu . Assim poderá estabelecer
uma certa lógica, um certo rigor, diferente ao de um efeito baseado
- diríamos nós - na transferência, efeito que, de uma maneira ou
outra - e pelo lugar que ocupamos - podemos produzir com duvi
dosa " eficácia " .
Reparem que aqui aparecem - atentemos à questão d o nú
mero - " Os quatro " . Este número é um operador constante, e de
finidor, no ensino lacaniano. Alguns acreditam que é o três, mas
nós pensamos que não é a empírica " triangularidade edípica" a que
dá basicamente o sustento a muitas concepções de Lacan ; mas que
o número quatro possui a primazia. Não quero passar à -assinalar
os respectivos motivos argumentados, porém percorrendo o seu en
sino se poderá ver, em diversos momentos e em diferentes lugares,
como esta maneira de dispor os dados e conceitos de experiência
analítica em quatro produz um feito muito particular, obtendo uma
logicização - se me permitem o neologismo - peculiar do campo
analítico 2 •
2 . Contudo, não seria banal recordar esta citação de Lacan : "Uma estrutura
quatripartida é a partir do inconsciente sempre exigível na construção de
uma ordenação subjetiva" ( "Kant con Sade", Escritos II, Siglo XXI, Mé;:ko,
1 975, p. 3 46 ) .
17
sem mais . Então a pertinência de uma · ciência, ao modo positivista,
sempre se caracterizará por um objeto singular teórico - ao mes
mo . tempo situado na práxis - que lhe permite tomar sua especi-
. ficidade. Lacan diz - no entanto -:- quatro conceitos, como, nos
bailes; quatro conceitos, quatro; são quatro e não só um. Além disso,
articulados entre si de tal maneira que com eles possam ser colo
cados os fundamentos - o fundamental - do que se sustem o cam
po operativo da psicanálise.
Vou escrever de um modo particular estes quatro conceitos,
propondo-lhes um esquema que, didaticamente talvez seja inconve
niente colocá-lo no começo, ainda que queira fazê-lo sobretudo para
causar-lhe a intriga de ver se a proposta, no transcurso das dez aulas,
poderá ser cumprida ou não. Trata-se de um quadro que procura
ampliar a questão dos quatro conceitos, indicando um relacionamento
entre eles que me parece importante. As razões disso lhes apontarei
paulatinamente. '-._
Os quatro conceitos, dispostos deste modo particular, são :
Inconsciente Repetição
Transferência Pulsão
18
Articulamos inconscientemente· com pulsão, e repetição com trans;
ferência, o que não implica - de modo algum - que seja a única
relação possível . Deve-se reconhecer, nestes traçados, aos que supo
mos simétricos - mas que deixam um· lugar vacante __; · um buraco re
presentado por um . " simbolozinho " bastante usado e útil no ensino de .
Lacan. Vejamos como é utilizado em uma fórmula; neste caso a do
fantasma: ($. <> a) . O rombo, que se lê " corte de " ou " desejo de" ,
indica uma série de operações vinculantes entre o s dois termos pos
tos em relação. Por exemplo, desfazendo-o de acordo com um eixo
horizontal, na parte inferior fica o seguinte : 'V_'. Em lógicà é o sím
bolo de disjunção (ou . . . ou . . . ; ou . . . ) . Retomando o anteriormente
assin alado, escrevemos : _j ou objeto a, no sentido de um ou outro .
Mais adiante, veremos mais detidamente as figuras diferenciais da
disjunção segundo o modo com que as coloca Lacan 3 • Agora tente
mos entender o que é que se deriva do rombo a que chama punção
- literalmente poinçon - e ainda que às · vezes apareça, devido à
figura, como losange. Parece que essa literalidade, pelo visto, não con
venceu os tradutores. Claro, o desenho parece um rombo, mas o pun
ção, o instrumento, se liga a uma marca particular usada pelos pra
teiros que informa a singularidade iiesses artesãos . Através do pun
ção se estampa uma espécie de firma, por cujo intermédio, inclusive,
pode-se saber o lugar e o ano em que a peça de prata foi cunhada.
De tal modo que o punção tem uma colocação espaço-temporal e uma
19
ordem de singularidade bastante evidentes. Creio que nos quer trans
mitir, quando diz punção, justamente isso, e não simplesmente um
rombozinho figurativo. O rombo é uma descrição fenomenológica, en
quanto que aqui o que interessa é resgatar esse valot de singulari
dade que se obtém através do punção. Então, reitero: no nosso es
quema ficou um punção na articulação dos quatro conceitos. Obtive
mos, ao dividi-lo, o aspecto 'V', que chamamos disjunção. Se agora
superpusermos a parte superior, ' A ', tem-se a operação lógica com
plementar, chamada conjunção.
Num romance, quanto à lógica, o que foi dito seria uma aporia,
ou seja, uma enunciação não taxativa que admite inclusive o seu
contrário; todavia, não liquida - trivializando-o - o sistema. Se em
lógica alguém diz "A não é B " e " A é igual a B ", não diz nada;
isto - assinalam os lógicos - trivializa todo o conjunto. Não há
possibilidade de fazer a menor discriminação. Contudo, os estu
diosos puderam chegar a uma espécie de compromisso, no sentido
de aceitar que tanto há negações fortes, onde a disjunção é absolu
ta, como há outras - com negações débeis - onde se suportam
as aporias, tal como acontece nessa colocação. Há disjunção, e nem
por isso deixa de haver conjunção. De outro modo há o $· ou o a,
mas também o, I 7 o a. A prova disso é que alguém poderia dizer,
'
em funçã<� de tomar a operação graficamente superior incluída no
punção : o' sujeito é seu objeto a (S A a) na escritura do fantasma
(% <) a) .
Por meio dessa escritura se pode captar que não é que o sujeito
esteja defrontado a um objeto - como se diz _ em filosofia, habi
tualmente - mas que permite compreender de que modo o objeto
é o lugar-tenente do próprio sujeito; é o próprio sujeito, como parte
amputada de si. Ele não está defrontado - como se fosse uma di
mensão referida a um outro distante e' distinto - senão que o su
jeito chega a ser esse objeto a, do qual posteriormente veremos mais
detidamente de que se trata. Saibamos, por ora, que é aquilo esti
mado por Lacan como o seu "único invento" em psicanálise o que,
como se pode ver, é um enunciado forte, para ser tomado em séria
consideração.
Neste princípio de destrinchamento do punção, já temos mar
cadas duas operações. Mas podemos fazer um corte vertical, e o que
20
' < '.
fica se lê, matematicamente, assim : maior que, ' > ', menor que,
Levados a uma categorização não quantitativa, os símbolos querem
dizer : se é maior, que implica e se é menor, que se desimplica. Ou
seja, dá conta das dimensões de implicaç�o e desimplicação entre
termos. O maior implica 410 menor; o menor está desimplicado com
respeito ao maior.
21
Inconsciente Repetição
Transferência Pulsão
Pulsão
22
pulsão se inscreve enquanto parcial - toda pulsão é parcial por defi
nição, e não há totalização da mesma - no inconsciente. A realidade
do inconsciente é antes de mais nada sexual; eis aqui, então, a libido
enquanto pulsão inscrita no inconsciente. Dirigida a partir da pulsão
ao inconsciente, encontramos uma das coordenadas fundamentais da
psicanálise - o sexo :
I nconsciente
-�"ii!!
e
til
Transferência
23
Este é um quadro para ir desenvolvendo e servir como referente
em todas as nossas reuniões; hoje, quero somente apresentá-lo, para
que depois possam se referir a ele uma vez ou outra. Prosseguindo,
enco11tramos outra flecha a partir da pulsão até a repetição. Da pulsão,
este Seminário nos falará, entre outros itens, de seu circuito: é o título
de um de seus capítulos. Tal circuito segue os roteiros, os meandros
da repetição, já que se trata de um recorrente dar voltas ao redor �
.com limites não franqueáveis - do objeto a, uma de cujas leituras é
a de objeto da pulsão. Aqui, na articulação pulsão-repetição, se im
brica ou sobrepõe o objeto a. (Para precisar: outra das leituras- do a
é á de objeto-causa do desejo) :
Repetição
Pulsão
24
Tiquê
Inconsciente ,------------=- Repetição
� �.s'f'..t-� \CO
\'ô.e��
'ê:ae: ��º
_"Ej �
�
a
Transferência Pulsão
Tiquê Repetição
Transferência
Inibição
A pulsão enquanto inibida em seu fim, segundo nos ensina Freud,
é aquela que não alcança a consumação enquanto esta envolva o gozo
corporal. Se detém no referente a seu fim, ainda que sustente seu
objeto. Esta maneira de atender a inibição a diferencia da pulsão que
alcança seu fim, por um lado, e da sublimação - que lhe é corre
lata - por outro. Situada a inibição, concluímos o quadro que - con
cebi tempos atrás e que, até hoje, me convence. Acredito, reitero, que
pode dar conta da articul�ção que vai aparecendo dos desenvolvi
mentos dos " quatro conceitos " no Seminário 1 1.
Há outro ponto importante nesta introdução que estamos reali
zando: o de conceito fundamental. Lanientavelmente o novo tradutor
de Freud ao castelhano, José Luis Etcheverry, fez com que essa idéia
se perdesse - ao traduzir Pulsões e destinos das pulsões - ao escre-
2S
· ver· .conceitos básicos 4 • Para Lacan as palavras têm seu sentido, já
que elas não são meras "maneiras de dizer " ; então, para ele;: não é
igual " conceito básico" e " conceito fundamental " . No Seminário 20
escandirá o termo dizendo funda-mc;:ntal, com o que aludirá a uma
espécie de véu que recobriria o mental; nias, já no 1 1 , existe . uma
.
aguda referência à origem cabalística - no sentido da Cab o/a en
quanto dimensão da mística hebraica - quando diz: " . . . fundamento
tem mais de um sentido, e eu não precisar�i de modo algum evocar
a cabala para lembrar que nela se determina um . dos modos da mani
festação divina que é propriamente, nesse registro, identificado ao
pudendum " 11
•
26
logia. Interessa-nos em particular, como dissemos, Pulsões e destinos
das pulsões, onde, eles sim, tomaram Grundbegriff, literalmente, como
conceito fundamental . Assim se entende que o título do Seminário
publicado de Lacan seja devedor - ainda que ele não o diga, apesar
de mencionar Grundbegriff - do trabalho freudiano.
27
sure 7 • Fala, porque não se trata de uma palavra isolada e, eventual
mente, " primordial " , mas do fenômeno encadeante da interlocução) .
28
Podemos validamente, então, colocar a seguinte questão : Que
ciência é aquela que fica agora, como sedimento, depois do impacto
da psicanálise? Como é que aquele que faz ciência aceita o desafio
que implica a postulação do inconsciente freudiano? O mesmo para
a filosofia, a partir de agora, porque, o que é uma filosofia que se
baseia somente nos dados da consciência, sem considerar a divisão
.do sujeito? Convém então seguir a linha que deu o próprio Lacan
quando alguns estudantes bastante revoltados , tratando-o desdenho
samente de " burguê,s ", intimavam-no a dizer o que a psicanálise po
dia fazer pela revolução . Então, respondeu-lhes : " Digam-me vocês
o que pode fazer a revolução pela psicanálise " . Maneira inteligente,
psicanalítica, de responder, por meio da qual - obviamente - não
satisfez a demanda, mas situou os interlocutores em seu justo con
texto . Porque sempre se pede à psicanálise que seja isto, que seja
aquilo, que possa dar respostas para aquilo e aquilo outro, sempre
acusando-a, em suma , de que lhe falta tal ou qual coisa; o que é abso
lutamente certo - porque é disso que se trata, substantivamente.
Falamos do significante da falta no Outro; então, à psicanálise tam
bém lhe falta . Porque trata da falta, o que, seguramente, não se
" resolve " com complen;ientos ao modo do biológico, do social 9 e de
tantos outros aspectos que supostamente deveria ter e de cuja au
sência é acusada. Por fim se esquece, nesta espécie de crença no
unitário , que o modo com que se concebe algo é possível porque se
deixa outra coisa de lado , a qual, por sua parte, resultará, assim, re
definida. Se não se fizesse essa tarefa de diferenciação epistemoló
:e
gica, o resultante seria um soberano caos . o que se obtém, finalmente,
c.om as propostas " integradoras " , de onde aparecem os conceitos do
· " todismo " e do unitário. Fascinação do imaginário, certamente .
Como vocês podem ver - voltando ao texto de Pulsões e des
tinos das pulsões - para Freud a questão do claro e nitidamente
definido é uma exigência exógena. Escreve ele : " . . . na realidade ne,
nhuma ciência, inclusive a mais exata, começa por tais definições . O
verdadeiro começo de toda a atividade científica consiste, mais exata
mente, na descrição de fenômenos . . . " Primeiro ponto, então : não
começar, de modo algum, por uma definição mas, contrariamente a
isso, constituir uma agrupamento · dos fenômenos . Alguém poderá " re-
29
plicar " que, de toda forma, esta descrição dos fenômenos respeita um
ordenamento - além de . encontrar-se aqueles inseridos em relações -
e que isso se faz de acordo com certo critério , Verdade : é inevitável.
Critério que precipitadamente se pode imputar de pré-científico, ou de
ideológico, no melhor dos casos. Freud tem presente o seguinte: "já
na descrição não se pode evitar aplicar ao material certas idéias abs
tratas que de um modo ou de outro evidentemente não foram toma
das de forma exclusiva - ou única - da experiência atual " . São
tomadas de outro lugar; vale dizer que, para fundar um determinado
campo nocional, é para que este sustente uma práxis e possa dar
conta · dela, tem que se valer de uma importação teórica. Ou seja:
tem que tomar algo de outro lugar e, em função disso, construir um
novo campo, seu próprio campo.
30
presunção é uma aberração absoluta, porque, qual é a sabedoria de
uma prática em si mesma? � ela que suscita idéias ou são estas que
fazem a prática " falar " ? Creio ser fiel ao que nos transmite Freud
quando alude a " estas idéias " ; df;:vemos precisar, então, quais são es
tas idéias " abstratas e trazidas de outro lugar que desvendam os
conceitos fundamentais da ciência, (e) se encontram de maneira ainda
mais indispensável na elaboração ulterior dos materiais " . A seguir,
prossegue assim : " Comportam de início, necessariamente, um certo
grau de indeterminaç�o" . Esta indeterminação, acrescento, é justa
mente o que as faz indefiníveis de maneira clara e distinta. O Semi
nário avalisa, por sµa parte, o conceito de aproximacionismo. Efeti
vamente, sustenta uma aproximação - a "realidade por captar" -
por via da construção e do trabalho do conceito, mas fazendo a res
salva de que este conceito nunca aca�a de se conformar. Não -'há um
conceito terminado de uma vez- e . pa�11 sempre. Ao fixá-lo, mata-se o
conceito. _ Isto é justamente o que Lacan denuncia com tanto rigor,
vigor e lucidez, vale dizer, _o que tem sido o destino do ensino de
Freud nas · mãos dos pós-freudianos. S que se toma necessário pôr
as coisas em seu devido lugâr: se a psicanálise se baseia constan
tem�nte na repetição gargaréjica, ecolálica, dos conceitos pontuais de
Freud·, eles passam a não servir para nada. Trata-se, então, qe renovar
a aposta da psicanálise, mas não unicamente a citação de Freud, pois,
dessa forma, esta passa a ser uma nioeda . tão cori;ente que - tomando
outra alegoria de Lacan - ao circular tanto de mão em mão, chega
ao ponto de ver apagar-se seu valor como acontece com as notas em
período de inflação. Algo assim pode ser o destino da psicanálise,
se não se instaurar uma vigilância epistemológica; isto é, como diz Ba
chelard, de quem é também a idéia do aproximacionismo. Lacan se
alinha, assitn, � melhor linha da epistemologia francesa: a do citado
Gàstón Bachelard, a de Alexandre Koyré, a de Georges Canguilhem,
a: que, enfim, chega a Mic�el Foucault e ao já citado Althusser. A lei
tura de todos eles dará certas pautas acerca das coordenadas mais de-
/-
cisivas em que se movia o vasto corpu; teórico de Lacan.
Freud necessita, então, uma indeterminação que faz com que não
possa ficar preso estritamente ao conteúdo do conceitualismo. Aqui
se verifica como todo aquele que impute a Freud biologismo, fisica
lismo etc demonstra não haver captado sua postulação, sua cabal
ruptura com o universo de noções herdadas. Por exemplo, quando in-
31
troduz conceitos como o dos tipos de energia para descrever o psiquis
mo, é óbvio que, simplesmente, se trata de uma convenção .
Limitar-se a usar convenções implica advertir que se deve en
tender tal coisa . mas sem crer que o dito tem caráter ontológico, que
as coisas " são" literalmente assim. Acreditá-lo desta forma significaria
sustentar que uma disciplina deve copiar pontualmente uma presumí
vel realidade. Quem sustenta algo assim? O empirismo, que encoraja
este tipo de considerações . Em contrapartida, os " segredos " da teoria
analítica, relançados por Lacan, talvez nos permitam tomar contato
com uma psicanálise que não pretende copiar nada da experiência
psicológica. Isto é, que não se mantenha ao nível das convicções
egóicas aceitas por todos, mas que possa sustentar o efeito revulsivo
da descoberta freudiana, para além das "verdades " - falsidades -
do sentido comum que habitualmente se atribui à psicanálise.
O que Freud nos diz é que as relações que " se acredita ter
adivinhado antes de poder ter conhecimento e trazer a prova " , na
realidade preexistiam a seu hipotético descobrimento . Vale dizer que
o trabalho teórico tem uma pertinência tal que permite justamente
descobrir os fenômenos . Por causa de uma - má - educação em
pirista, se afirma que a experiência nos transmite uma espécie de
sabedoria; o que Freud nos diz é, precisamente, o contrário. A res
peito, muitas vezes se acusa Lacan, e quase com indignação, " per
guntando-lhe " : Onde estão os pacientes? Isto é psicanálise? De que
está falando este homem, com um estilo tão intricado? É que se está
transmitindo algo de uma ordem não psicológica, arrojando como de
feito o de poder conservar o campo que Freud nos levou. Daí que
pareça um estilo tão pouco científico - dito com ironia no que se
refere à ciência, a qual se atribui como transparente em seu dis
curso, pretendendo não dar lugar a equívocos. Quando Lacan marca
estilísticamente, com seu punção - seu estilo - traça uma senda
radicalmente heteróclita em relação a uma psicanálise que ambiciona,
em todo caso, adequar-se aos desígnios da ciência positivista. E isso,
é bom dizê-lo desde já, sem esquecer o rigor com que, através de seu
" materna " , pretende nos oferecer uma transmissão " integral " .
Ante este intróito, também vocês podem dizer: Vamos falar de
psicanálise, ou vamos ficar nos fundamentos doutrinais? É que não
há outra maneira de falar de psicanálise se não nos apoiarmos nestes
32
últimos. Para encarar o primeiro conceito fundamental, entendo que
uma introdução como . esta é inexorável. Lacan dirá do inconsciente
alguma coisa mais e outra coisa, do que todos repetimos infatigavel
mente: " . . . essa parte do psiquismo que não reconhece negação, nem
lógica, que é regida pelo deslocamento, condensação etc ." Assim,
datá conta não somente da · clássica fórmula: " O inconsciente é estru
turado como uma linguagem" (proponho que se enuncie assim, mais
adiante veremos por que) , senão que ainda introduzirá - em sua
concepção de inconsciente -- o caráter do que denominará " pulsa
ção temporal" . Este é um conceito novo, segundo menciona no infor
me que apresenta à Escola Normal Superior como conteúdo de suas
lições correspondentes a esse ano de 1964.
Questões
P. :
33
O caso de O homem dos lobos localiza um conceito: o do pe
queno separável do corpo 11 • Freud coloca o conceito e constrói uma
equação: pênis-fezes-filho. Depois acrescentará, inclusive, dinheiro e
presentes 12 , como termos que no inconsciente se equivalem, pela par
ticular característica de ser " o pequeno separável do corpo ,,._ Enten
de-se "naturalmen�e" o do filho, pelo fato do nascimento, separando
se biologicamente de sua inãe. O das fezes também. Mas, o que se
passa com o pênis? Não há uma castração efetiva e processada. Con
seqüenteme�te, só por essa circunstância já se rompe a inteligibilidade
que até aqui acreditávamos ostentar: aparece algo separável, mas que
na verdade não se separa. Aqui se percebe, claramente, que se refere
a uma ordem de pedra definida a partir do Simbólico, e não a uma
perda efetiva, onde um pedaço seria amputado do corpo . Alude, então,
a algo que pode ser caído, perdido ; que pode ter, como sustentáculo,
uma perda realista ou tião, mas que se encontra colocado enquanto
caído no registro do Real, segundo uma primeira aproximação. (Re
tomaremos estas pontuações ao tratar da questão do olhar e do objeto
da pulsão).
A voz e o olhar são objetos a que Lacan acrescenta à lista de
"pedaços " restantes do Outro. Ou seja, que o que resta da relação
com o . Outro - relação na qual nos constituímos - se transforma,
com o tempo, em relação com as variâncias do objeto a. É algo que
não tem, nada a ver com um vínculo inter-humano . Que se dá com
algo que não está, talvez, manifesto patentemente, presente. Por exem
plo o olhar, localizado nesse quadro, que está olhando a mim. O
olhar, portanto, não e_stá no olho ; dissociará, conseqüentemente, o
olho do olhar, dizendo que este último é um objeto a que, encon
trando-se " fora", me determina enquanto sujeito desejante.
Lacan, como dissemos, ratifica Q objeto a como o se� " invento" ,
seu aporte decisivo à psicanálise. Quanto a mim, creio que é dema
siada modéstia destacar somente isso. Haveria muito mais para expor
acerca do objeto a, mas o já dito é ao menos indicativo : trata-se de
unia perda e da tentativa de reencontro com esse algo per.dido, através
desse objeto a, o que quer dizer, finalmente, que a suposta relação
não é uma relação com algo novo, mas que se realiza sempre sobre
34 ·
a marca ou traço de um objeto constituído como perdido: A lista de
objetos a se encontra tematizada neste Seminário; assim, nomeio o
seio, o excremento, o olhar e a voz. Pode-se encontrar uma lista
relativamente distinta em Subversão do sujeito e dialética do desejo
no inconsciente freudiano, nos Escritos I 13 • O que disse é muito " tele
gráfico" ; de todo modo, teremos ocasião de aprofundar, mais adiante,
este item.
P.: A respeito da relação de Lacan com a ciência, no que . se
refere a não relação · desta com um determinado objeto, para a partir
daí ser definida, minha pergunta seria se realmente é assim, já que
se poderia chegar a confundir objeto com conceito. Uma coisa seria
propor que . os quatro· conceitos fundamentais tivessem a ver com
quatro objetos ; mas não se trata disso, há diferenças. De uma certa
maneira, isso seria uma leitura positivista. Então, me pergunto o se
guinte : Quando Lacan se diferencia da ciência, o faz a partir de
identificá-la com esta leitura positivista, ou reconhece também outros
tipos de leituras epistemológicas, que propõem, a partir da ciência
que esta constrói seus objetos a partir. de seus conceitos, ou seja,
diferenciando? t o caso de Kuhn, aplicado à física, à química etc.
Ele estabelece justamente que cada paradigma científico constrói seu
próprio mundo. O que Galileu via não foi visto por Newton; seus
objetos mudaram a partir da mudança de seus marcos conceituais. A
partir disso se estabelecem diferentes critérios · de -verdade e haveria
que se verificar se a polêmica · que se coloca entre a ciência e a psi
canálise não passa, fundamentalmente, porque se · identifica a ciência
ao positivismo, e não a outras correntes. Não sei como é esta questão
para Lacan.
R.: Muito boa a pergunta. Seria necessário muito tempo para
respondê-la, mas posso dar, pelo menos, algumas apreciações. Freud
começa Construções em análise com essa maneira aparentemente in
gênua que lhe é própria - e que tem uma notável profundidade -
assinalando. que uma crítica habitual que se formula à psicanálise é
mais ou menos aquela de "vamos jogar cara-ou-coroa; se sair cara,
ganho eu; se sair coroa� você perde ". Costuma-se dizer que o ana-
35
lista procede dessa maneira quando considera que, se o analisando
aceita a interpretação ela é verdadeira; se diz que não, resiste jus
tamente porque é verdadeira. O que Freud quer colocar é se o nosso
critério de verdade - adotando os paradigmas kuhnianos - tem
que ser efetivamente local, isto é, referido a nossa disciplina. Então,
tomando como base a questão da interpretação o resultado é que há
"sins" por uma série de motivos, e " nãos" por outra equivalente. A
tal ponto . que, se• há um efeito de verdade · na interpretação, Freud
vai desvendá-lo pela associação ulterior no analisando, e não pelo
sim ou pelo não pontuais. Pois. se alguém, na transferência, situa o
analista no lugar do ideal, a tudo o que este diga o analisando dirá
sim. Este sim não faz · mais que abonar um lugar certo de estanca
mento na transferência. Se o analista não se previne disto, acreditará
que tudo funciona e vai a bom termo. Na realidade o analisando,
nesse caso, se encontra em uma estagnação idealizadora. Se, pelo
contrário, está tomado pelo negativismo, ou seja, dizendo não a tudo
- o que, em algum momento pode acontecer por causa da paixão do
ódio - em um desfalecimento do seu desejo o analista .Pode chegar
a pensar que seu procedimento está errado do começo ao fim. O nosso
proceder é uma práxis, já que não se refere meramente à consistência
teórica. Mas ainda tem mais, pois Lacan diz: "A verdade tem estru
tura de ficção " 1�, e é assim porque o ser falante, pelo fato de sê-lo,
ficcionaliza. Isto, claro, se articula com o campo da ficção literária.
Alguém ·poderia dizer de uma novela se é ou não verdadeira? Não
parece, em todo o caso, que ali se gera uma outra dimensão? Claro,
mas vocês podem dizer que esta é uma resposta lateral, já que através
dela chegaríamos a afirmar que a psicanálise, finalmente, é algo da
ordem da literatura : uma prática artística, em suma. No entanto, a
interpretação não é em si verdadeira ou não. Lacan diz: '.' efeitos de
verdade" . Isso significa que o importante é que a interpretação possa
provocar que a verdade, que está no analisando, emerja. E ainda, para
piorar, a verdade - este é .outro aforismo - se semidiz. Ou seja,
que é somente uma ilusão do discurso jurídico pedir ao paciente:
" Jura dizer a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade"?
Justamente, a verdade é não-toda. Vai ser apenas semidita; e isso, deci
sivamente, devido . à ação da repressão primária. Não é uma questão
de boa ou má vontade que alguém não diga tudo, ou diga não-tudo.
36
Como vocês podem ver há uma série de variáveis que podem
ou não entrar na questão da racionalidade regional - postura que
também, em dado momento, mantinha Althusser, e creio que neste
ponto, pelo menos, coincidisse com a questão dos paradigmas de
Thomas Kuhn. O " último " Lacan, por exemplo - o das confe
rências e entrevistas de 1·975 - afirmou no Massachussets Institute,
frente à questão acerca de se a psicanálise é uma ciência, que, na
realidade, " é uma prática" 15 • Em um texto que trabalhei em meu
livro Dei corpus freudo-lacaniano, de 1 98 1 , procurei refletir sobre o
sentido desta postura. _Porque disse uma prática, · e não uma ciência?
O que poderia parecer um practicismo caótico, carente de regulação,
não era assim.
Como Lacan não usava as palavras de formá aleatória, recorri
ao . dicionário etimológico; prática provém · do grego praktik6s, que
quer dizer, em primeiro lugar, 'obrar', e a seguir, 'conversar'. O que
em português fica bem mais c�aro, pois a palavra prática indica, ao
mesmo tempo, estes dois sentidos. E ainda nos diz mais : é esse lugar
da 'prática' onde, talvez, aconteça a única diferença crucial com um
traço do discurso _ científico e que . deste se generaliza a outros dizeres.
Sim, porque é o único lugar onde se pede a alguém que seja capaz
de suportar-se dizendo bobagens . Uma das referências mais usuais do
analisando é esta: " - Eu venho aqui para falar coisas estúpidas,
mas repare nas coisas que te falo! Isto não é um problema; real
mente, falar de semelhantes coisas com os problemas que tenho! "
Parece que há uma obrigação de só falar do que é " sério " e "impor
tante" de acordo com a análise do conteúdo, quando Lacan sustenta
que, na realidade, na psicanálise se trata de uma prática de bavar
dage 16, ou seja, da tagarelice, da bêtise 1 7, da bobagem. Aí está jus
tamente o desafio de Freud, o notável do campo operacional fundado
por ele. Nem mais nem menos que dizer: " venha, tagarele e fale bo
bagens. que assim chegaremos ao núcleo do seu ser". Aqui se capta
como a questão não é nos transformarmos em metafísicos, falar · de
coisas profundas e muito sérias, para chegar a descobrir, efetivamen
te, o que ocorre na singularidade de uma . existência. Quando Lacan
retoma o inconsciente freudiano, insiste muito nesta dimensão do tro-
tempos 'eu não procuro, acho' " . Com esta frase tomada de Picasso
- colocada quase no começo do Seminário 1 1 - se opõe a que lhe
imputem a condição de investigador. Porque não é que se vá buscar
alguma coisa, mas que, pela Tiqui, se produz em virtude de um en�
contro ao •. acaso. Não é que alguém foi buscar, mas que apareceu in
tempestivamente. Assim se passa - acredito que todos saibamos -
com o amor. Quando menos se espera, aparece ao dobrar a esqtiina.
Eu não procuro, acho. Mas em Momento de concluir Lacan retifica :
" Atualmente eu não acho, procuro " . Frase pronunciada quando esta
va procurando, como o fio da meada, - agora diante do. auditório
da Faculdade de Direito da Sorbonne - uma maneira de modelar seu
ensino em termos dos nós borromeanos. Pareceria, então, ter outra
atitude : a de quem está querendo _investígar a conexão coin um novo
campo, ainda que em função de um estatuto muito singular designa
do nó borromeano. Sim, na medida em que dizia que isto não era
modelo - analogia ou representação - mas que era a estrutura, o
Real. Por aí pode-se ir vendo, me parece, a situação problemática
que provoca uma afirmação deste calibre.
Entendo que uma maneira pela qual · a ciência aceite o desafio
da subversão freudiana, é se questionando sobre conio poderia se
constituir uma determmaoa c1encia levando em conta que existe " de
sejo do . . . 1' (como dirá Lacan) ; surge, então, com referência à ques
tão do sujeito, que não é a subjetividade. Bem : há por conseguinte,
desejo do analista . E ó que ocorre, por exemplo, com o desejo do fí
sico? O problema é que a ciência, seja qual for - não importa se
positivista ou não - é, a · princípio, assubjetiva. Procura minimizar,
ou até mesmo anular o fator sujeito (o· que implica sua divisão) .
Lacan diz ironicamente, no Semjnário 1 7 , que a ciência é uma ideo
logia da supressão do sujeito. Isto é um tiro de misericórdia na supos
ta antinomia ciência/ideologia. Aqui também assinala que o crucial
da ciência - liquidar o sujeito - é urna ideologia que a psicanálise
se propõe como reintrodução d!l dimensão sujeitá que a ciência tenta
ainda pôr de lado .
39
Finalmente, sem querer encerrar a questão, faço outra obser
vação. Queira-se ou não, a psicanálise tem um caráter marginal, uma
condição de estar dentro-fora, aceito-rechaçado sistematicamente. Ain
da que a amável consideração de vocês não o confirme, creio que a
resistência à psicanálise se dirige · hoje -especialmente contra Lacan.
De algum modo Freud está mais ou menos aceito, porque foi lavado
e enxaguado. Pois bem, como refutação do caráter exclusivamente
marginal, é preciso destacar que a psicanálise tem, do ideal das ciên
cias, o intento de rigor lógico, o que é algo que a estrutura da dou
trina psicanalítica compartilha com a ciência; mas, pelo exposto,
parece não estar inserida dentro do campo do que podemos chamar
ciência, seja esta positivista ou não. Vale dizer que tal afirmação
inclui também outras vertentes como a ciência na versão de Kuhn
ou na da epistemologia francesa produtivista-histórica. Para finalizar:
servir-se do mesmo estatuto de uma certa ordem - neste caso, a
científica - não implica submeter-se a essa ordem.
40
n
A LINGUAGEM, . O INCONSCIENTE -
· A CAUSA,
A PULSAÇÃO TEMPORAL
41
idéia em Freud; pertence exclusivamente à produção de Lacan, que
lhe dará tanta relevância a ponto de postulá-la pivô da psicanálise.
Ou seja: que designa, centralmente, aquilo que autoriza a sustentação
de uma cura . Alguns pretendem - incorrendo com isso em um erro
crasso --, que este conceito responde , em Lacan, ao que outros auto
res - a partir de Freud - denorninaram contratran'sferência. E , to
davia, é preciso advertir que onde termina a conceitualização da contra
transferência - no original : Gegenübertragung: transferência recípro
ca 1 - aparece o desejo dó analista. O conceito de Freud assinala algo
do mesmo calibre, recíproco, imaginário. Onde termina a transferência
recíproca, então, começa a conceitualização de Lacan acerca do de
sejo do analista. Graficamente, pode-se estabelecer um limite ideal:
42
antes de mais nada, responder ao desejo do ánalisi)ndo? Dado que o
desejo é o desejo do Outro, poderia se argumentar que é um desejo
como qualquer outro e, por isso mesmo, obsequioso. Mas a habili
dade na direção da cura consistirá, pelo contrário, em não responder
a esse desejo, por esse desejo, do Outro, conquistando então a pos
sibilidade de se articular · para sustentar o lugar de analista. Como
costumo dizer, quando se é psicanalista, se o é às vezes . J! que se
trata de um lugar - enquanto prática do Real - impossível. Não
se pode sustentá-lo todo o tempo, e é justamente pelos desfalecimentos
e pelo retomo a esse lugar, que o mesmo pode existir. Expresso de
outro modo : se o analista acredita todo o tempo que o é, poderia
afirmar que está apegado a uma crença de tipo paran6ide, devido à
questão megalômana em qu� se pode reconhecê-lo, e à correspondente
certeza na identidade com relàção a si mesmo. Se, por outro lado,
admite que a contratransferência faz obstáculo ao desejo do analista,
poderá voltar a se apegar a esse · desejo. Claro, como condição neces
sária, ainda que não suficiente. ·
43
sivo envolvendo a criação da psicanálise: o desejo de Freud. Eviden
temente, articulado ao desejo da histérica . A esse respeito, vocês
devem ter notado que com referência a outro item da histeria, disse
- · segundo a grafia lacaniana: discours de l'Hystérique - discurso
do Histérico; isto, para evitar a equação simplista histeria-mulher. Esta
relação está ligada às origens da psicanálise, mas não com um sexo
biológico, longe disso. Para escrever a característica prioritária do
discurso do Histérico, recorremos ao seguinte materna (do Seminário
17, em diante) :
� _,,. S1
-a�S2
impotência
44
de comentários têm pôr objetivo destituir o entronado saber que pr�
tende ter o Amo. Por isso têm ajudado, e ajudam grandemente à
história e ao progresso da psicanálise. Daí, então, que seja tão crucial ·
o homólogo desejo insatisfeito do Histérico - e, do ponto de vista
n
cronológico, das histéricas - para sustentar a inabitual " origem
de nossa disciplina.
45
mas de uma pouco poderosa. O que, sem dúvida, não condiz com a
idéia mais trágica e desgarrada do sujeito que cria a psicanálise, que
não é um pessimista, como dizem alguns, somente considera que o
sujeito não é dono de suas motivações. Tampouco abona a crença
de que vamos sempre em direção a um futuro promissor, embora
às vezes isso ocorra transitoriamente. Nesse sentido, Lacan era bas
tante cético. Uma prova? Quando afirmou, em 1975, que um dos
efeitos de seu ensino era a demonstração de que não há progresso,
na medida que o que se ganha por um lado, se perde por outro •.
Mais uma maneira, finalmente, de levar em conta - lucidamente -
a castração.
A descoberta freudiana implica se notar a determinação cru
cial, a força efetiva, que tem o que chamaremos inconsciente 5 • Con
vém explicar o porquê de, aqui, suprimirmos o artigo o. Pode pa
recer detalhista, mas devemos ter presente o lema de Freud: "Co
meça-se por ceder nas palavras e . nunca se sabe onde se pode ter
minar" . Opto, então, por inconsciente, em lugar de o inconsciente.
Parece-me - é também o critério de Etcheverry - que Das Un
bewusste 6 , vertido precedido do artigo o, outorga um sentido bas
tante diferente daquele que tem na versão sem este artigo. O qu.ê
da questão está na substantivação, na reificação que se produz quan
do se diz o · inconsciente. Ao optar pela supressão do artigo, indico
que se poc!,e estar tomando certos aspectos, certas arestas, certos pon
tos de vista, de um objeto, sem esgotar todas as· características do
mesmo. O inconsciente, por outro lado, evoca usualmente o fundo
de um saco onde jazem elementos, instintos, afetos. Muitos analis
tas têm essas concepções estranhas, fundadas em uma idéia de algo
receptivo a sempre mais elementos que aumentam essa espécie de
depósito. O que é que Lacan destacará como traço fundamental do
inconsciente, para evitar essa . idéia desviada de · "mochila" ? O que
destaca já está em Freud, de modo qu� o que fez não foi mais que
pontuar com sagacidade e inteligência seüs textos. O conceito freu-
46
diano acerca da modalidade de existência do inco11-sciente é Gedanken:
pensamentos� Trata-se, portanto, de pensamentos inconscientes.
Se se diz subconsciente, infraconsêÍentê, e similares, é fácil pos
tular, por sua vez, uma relação de hetérogeneidade entre o que essa
denominação denota, e a ,consciência. Por exemplo: os pensamentos
conscientes por um lado, os instintos brutais - "sub", "infra" -·
pelo outro. O que Lacan ressalta é que Freud sustentava uma relação
de homogeneidade entre essas ordens; assim, o que . é inconsciente não
é heteróclito com relação ao que é consciente. Existem regras ate
nuadamente distintivas, mas não uma diferença de substância. · Esta
pontuação decisiva começa a pôr o acento num conceito que se abrirá
paralelamente ao desenvolvimento lacaniano: o de significante.
Assim, o capítulo do Seminário intitulado O inconsciente freu
diano e o nosso, praticamente se inaugura com o clássico aforismo:
" O inconsciente está estruturado como uma linguagem". Proporei
al gumas mudanças neste enunciado. Em primeiro lugar suprimiremos
o artigo da expressão o inconsciente. Além do que, nosso idioma tem
um . matiz nada desprezível pelo qual lhe devemos agradecer, e do
qual carece o francês: a diferença entre ser e estar. E é o caso de
usá-la. Podemos, portanto, asseverar que é estruturado como uma
linguagem. Então, em vez de:_
" O inconsciente está estruturado como uma linguagem", dize•
mos que:
'' O que é inconsciente é �sfruturado como uma linguagem" 7
•
47
lher como nota distintiva, elementar e fundamental acerca daquilo
que é inconsciente é essa referência à produtividade. Se traduzimos
" o que é inconsciente é estruturado como uma linguagem ", não se
trata de algo que, antes de o dizermos, já terminou. Resgato assim,
sobretudo, um elemento definidor que Lacan não deixa de destacar:
a sincronia do que é inconsciente. Sincronia como oposto a diacro
nia, e não comei excludente. Sincronia quer dizer simultaneidade.
Sem chrónos, sem tempo. Do que foi _ dito se infere que a condução
da cura não se limita unicamente ao que já está estruturado enquanto
proveniente do pa,ssado remoto, diacrônico - ou seja, da ordem
do sucessivo. Ao sustentar que o que é inconsciente é estruturado, as
sentamos a idéia de processamento no cerne das cadeias de significan
tes, em lugar da idéia de um depósito concluído onde só nos resta,
como _práxis, extrair elementos do " fundo" . O " é '' ., neste caso, traz
consigo a postulação do espaço do presente como novidade possível .
Ao abordar o conceito de inconsciente, Lacan apontará - era
seu critério . nesse momento - que se há uma ciência piloto da qual
podemos adotar noções e métodos com vistas à construção de nossa
disciplina, essa é a lingüística . O que não implica , claro, que a psica
nálise " seja " uma lingüística, eventualmente aplicada. Na reunião
anterior aludimos a este tema ao mencionar os empréstimos que o
próprio Freud destacava no começo de Pulsões e destinos das pulsões.
J! necessário tomá-los de outros campos para fundar uma ordem de
saber recém-começada. Lacan, inicialmente, apostou sua tentativa de
formalização pelo lado da lingüística, ao dizer " estruturado como
uma linguagem" . Não argumenta que o que é inconsciente é lingua
gem, como querem lhe imputar. Mais precisamente destaca a relação
de " como uma" , onde há_ regras estruturais comuns ao inconsciente e
à linguagem ; uma homologia por meio da qual se podem inteligir os
mecanismos do inconsciente. A partir daí, tem sentido pensar na
dimensão estrutural do inconsciente, que, não é - repito - lingüística.
Cabe destacar, agora, uma objeção que escutei - e não pela
primeira vez - quando Lacan expôs esta temática em Caracas, em
1 980 . Um psicanalista venezuelano lhe replicava que, segundo Freud,
o que é inconsciente consiste em representações-coisa e o que é pré
consciente em representações-palavra. Recriminava Lacan por ignorar
essa referência freudiana, reduzindo tudo estritamente à condição da
palavra. Parecia existir, de fato, uma diferença radical entre as duas
concepções (o que foi postulado por Freud se encontra no capítulo
VII de O inconsciente) . A réplica se apresentava como altamente coe
rente, mas o problema é que esse psicanalista confundia significante
e palavra, e ninguém disse que são a mesma coisa.
O significante pode ser palavra, mas também tem - entre outras
alternativas - uma enca�ação corporal, como demonstra o sintoma.
Não é um significante - e uma cadeia significante - o que se en-carna
(se faz carne) ? 1!. o que se verifica quando Freud interpreta a dor no
peito de sua analisanda baseado em uma frase que dizia que certa
afronta fora vivida pbr ela como uma punhalada no coração. Outro
exemplo similar da mesma paciente - Cecilia M. - relata como uma
frase que ela suportou · foi como receber uma bofetada, o que lhe
provocou uma suposta "nevralgia do trigêmio" 8 • Pode-se arrolar uma
larguíssima lista possível destes significantes, os quais uma vez chamei
" sintagmas cristalizados" 9 • Cristalizam-se vários termos - de referên
cia corporal - que guardam entre si uma relação solidária, e se encar
nam. O mecanismo da conversão histérica circula desta maneira. Esse
significante, portanto, não é palavra nem no sentido de algo audível,
nem na ordem da interlocução. Pelo contrário, é uma maneira silen
ciosa e censurada na qual algo busca dizer-se, mantendo todavia o
disfarce da conversão corporal. Mais precisamente, Freud diz que o
que é inconsciente - disto dá conta a esquizofrenia - se ocupa de
tratar a palavra como coisa. Trata-se, deste modo, a palavra em seu
estrito aspecto significante. A confusão surge, . na realidade, quando
se sustenta que o inconsciente está estruturado por imagens. Uma
concepção exclusivamente fantasmática daquilo que é inconsciente,
como é, por exemplo, a kleiniana. A partir desta perspectiva, estes
psicanalistas fazem uma crítica muito freqüente a Lacari, devido a uma
intelecção não muito bem processada a respeito do que implica a
diferenciação entre o conceito de significante e suas variadas mani
festações fenomênicas . Insistirão, por isso, em que o que é inconsciente
são imagens, e o que é pré-consciente são palavras. Em troca Freud
màrca, como dizíamos, o que não é heteróclito: Assim, no capítulo V
de O inconsciente, escreverá que o próprio de tal instância é o proces
so primário, o qual consiste em duas operações - deslocamento e
condensação - que se encontram também no funcionamento do que
8 . S. Freud, Estudios sobre la histeria, O.C., cit., t. II, pp. 1 8 8-94.
9 . R. Harari, El objeto de la operación dei psicólogo, 2. a edição, Buenos
Aires, Nueva Visión, 1976, pp, S3-62.
10 . S. Freud, O.C. cit., t. XIV, pp. 18S-86.
49
é pré-consciente, ainda que atenuadas 10 : Em nenhum momento disse
que essas operações se cancelam, ou que exista outro tipo de legali
dade, que seja completamente outra. Se expressasse - como um mero
fenomenólogo - que se trata da imagem num caso e da palavra no
outro, se lhe apresentariam uma. série de dificuldades, pois é sabido
- os semiólogos a têm estudado bastante bem - que a imagem
apresenta alguns problemas insolúveis 11• Por exemplo: Por onde cortar
uma imagem? Qual é o caráter discreto, descontínuo, separável da
imagem? :8 que a imagem possui outra legalidade diferente da da
palavra, pela condição de indiscernível em seus próprios termos. Na
intuição imediata parece facilmente articulável : se divide, se cinde,
e se crê reconhecer os elementos últimos que a compõem . Estes, não
obstante, não têm nada a ver com os fonemas, que são objetiváveis,
que não dependem - como no caso da imagem - da perspectiva de
cada um. Então, como estruturar o indiscernível?
@gtticell i
50
E mesmo que não haja conexão no estritamente homofônico, deve
mos considerar a Bósnia-Herzegovina como um significante.
�ticelli
♦
( �aia-Herzegovina ) : um significante
St
mula a Totem e Tabu de Freud, onde consigna que o ali exposto é
errôneo, já que é algo sem referente verificável no antropológico.
Eis-nos aqui, não obstante, com o fato de que se pode pensar - e
Lacan nos ajuda a isso - que o exposto em Totem e Tabu não é
senão um mito primordial . Trata-se de clínica, não de antropologia e,
por isso, é um dado que retorna sistematicamente em nossa prática
cotidiana.
52
falado. Creio que falo, mas quando o faço não tenho outro remédio . .
senão apelar a todas as convenções de uma linguagem que não criei
nem determinei. Se as modifico globalmente qu�to ao semântico e
ao sintático, muito provavelmente seja ao preço da esquizofrenia. Mas,
ledo engano! - também a esquizofrenia segue os lineamentos das
regras da linguagem ao criár, por exemplo, neologismos.
Existe um exemplo bastante gráfico do que Lacan quer demons
trar quando marca � cisão entre o contar-se como alguém que está
integrando certo conjunto, está sendo por outro lado -- e ao mesmo
tempo - quem se reconhece dizendo isso. t o caso da criança que
afirma: "tenho três irmãos: Pablo, Ernesto e �u" . Ao nomear os três
irmãos pode-se sustentar qu� . se trata de um discurso de Outro.
Impõe-se aqui a discriminação a ser feita entre uma ordem do enun
ciado e uma da enunciação, que entram de algum modo em colisão,
sem anular seu efeito de verdade : se contam os três, e há um que
conta. Vejamos outro exemplo de incorporações à linguagem; aquele
do " o nenê - dito por ele me�mo - . quer" tal coisa. Quando a
criança diz isso pode ser que esteja reproduzindo, pontualmente, algo
dito pela mãe ou pelo pai. Detecta-se, então, algo muito parecido com
o que muitas vezes se adverte na formação delirante da esquizofrenia,
quando aparecem coisas como " me leêm os pensamentos" ou "me
roubam os pensamentos". Efetivamente � assim, já que primordial
mente são do Outro. Nesses casos o desmoronamento produziu a
perda da mesmidade, da identidade imaginária; portanto, é como se
os pensamentos " voltassem" a seu lugar de origem, ao campo do
Outro.
Em relação ao conceito de inconsciente há um ponto entre _todos
mais chamativo e subversivo - trata da subversão do sujeito - 14
que serve a _ Lacan como ponto de partida: ·o da causa. Aqui deve�se
seguir as intelecções ao pé da letra, trecho por trecho, e deter-se· muito
especialmente na discussão filosófica acerca da noção de causa por
que, no meu entender, existem a respeito uma série de subentendidos
obstaculizadores. Farei duas referências acerca deste tema. (Tomando
um dicionário de filosofia; e lendo os verbetes sobre causa e causa
lidade, terão um primeiro pan_orama mais detalhado dessa questão).
53
O Seminário discrimina, em primeiro lugar, causa e lei . Destaca
que a respeito da lei não há maior inconveniente em afirmá-la. Quan
do se coloca a idéia de causa, pelo contrário, sempre há algo que, no
meio, não funciona. Existe uma espécie dé elo perdido - o termo é
meu - que indica uma falha na inteligibilidade da causa. Aporta o
seguinte exemplo : o movimento, as fases da lua, incidem sobre as
.marés; são as causas destas . :e
algo sabido, que se pode reconhecer e
afirmar; todavia, pode aparecer alguém como Hume, que põe em abso
luta dúvida a existência da causa. Ele dirá que existe uma conexão
entre dois fatos - um ocorre antes e o outro depois - mas daí a
assegurar que um engendra o outro implicaria cair em uma armadilha,
ratificada pela introdução do termo causa. Somente - conclui Hume
- há simples sucessividade.
54
prevê os enlaçamentos que podem haver entre os elementos. Foi diver
tido para mim reencontrar isso depois de tantos anos, quando já havia
freqüentado a obra de . Lacan, porque o proposto por Freud é da ordem
do que ele primeiro trabalhou em, ou desde, a teoria de grafos 16 •
Fica assentado então, por trás do suposto candor freudiano, o caráter
determinante do sexual e, ' além disso, com um exemplo que admite
nada menos que a eventualidade do incesto. O texto é anterior a
qualquer alusão sobre o J!dipo, que se produz por volta de outubro
de 1 897. Freud estava elucidando a maneira em que joga a determi
nação sexual, se bem que sua orientação era, à época, mais empirista
(a sedução da paciente quando pequena, o conseguinte montante de
excitação etc) ; em troca essa sexualidade, que inclui a possibilidade
que se casem entre si os membros de uma mesma família, é outra coisa,
sem dúvida, que a iniciai teoria da sedução;
O exposto são antecedentes que dizem muito mais - a meu
mo�o de ver - que as famosas séries complementares no que se
refere à maneira com que Freud inteligia a questão da causalidade.
No ensino universitário - salvo merit6rias exceções - se tende a
ler os capítulos respectivos das Lições introdut6rias à · psicanálise para
ilustrar a concepção freudiana de causalidade 17 • Entretanto, essa ma
neira de pensar a causalidade através da árvore genealógica, já . p<>ssui
o que Lacan tematizará sustentando que não há causa senão daquilo
que manca. Ou seja, do que não anda bem, do .que não caminha; em
francês: ça ne marche pas. Emerge aí a dimensão da causa, junto com
uma 'pergunta: Que é o qU:e não caminha bem? Vamos matematizá-lo
desta maneira: A, notação por cujo intermédio Lacàn escreve o que
é inconsciente 1 8 •
Além de postular a dimensão da causa, a pergunta implica que o
que é inconsciente deve colocar-se em · relação à dimensão de hiancia.
Este é um neologismo criado por Tomás Segovia, o tradutor dos Escritos
de Lacan ao espanhol, para verter béance. O que existe e menciona
o dicionário é o termo hiato: - abertura, fenda. E do mesmo campo
semântico : há versos biantes,. onde se reconhecem cortes, hiàt_o s.
Relacionar causa e hiância comporta sustentar que o que é inconsciente
55
se situa na ordem do corte, da fenda e de seu conseqüente fecha
�mento.
O fato é que uma das supostas ingenuidades de Freud - verda-
1d�iramente geniàis - argúi que a psicanálise tem por finalidade tapar
tacunas mnêmicas. :8 possível começar a expressar graficamente essa
#JJ.lma.ção do seguinte modo :
--------- -- - - - - - - -- - -------------
Em uma descontinuidade do tipo terra-lacuna-terra, a psicanálise
defenderia o estabelecimento de uma ordem contínua:
---1 --
d
56
------------- -----------
Pulsação temporal
re-corte
57
discurso do Outro. O Outro, em sua acepção estrita, ·,é o lugar do
tesouro dos significantes. A metáfora deve ser tomada ao pé da letra :
cabe pensar em uma grande caixa virtual onde " estão " os significan
tes, ainda que - obviamente - não denote nenhuma parte empírica,
nenhuma res extensa, como diria Descartes.
Voltando à pulsação temporal, devemos insistir que é um mo
mento de emergência onde se dá lugar ao que não marcha. "Não era
isso que eu queria dizer - dirá o analisando - porque me saiu
isso? Deve ser porque . . . " Logo, surgem as referências a todas as
causalidades que · possam lhe ocorrer; · as mesmas, de fato, que , têm
classificado de forma sistemática os filósofos. A colocação de Lacan
se apóia continuamente em Freud, asseverando que não é o que é
inconsciente que determina a neurose. Poder-se-ia dizer que a deter
minam problemas de humor, ou algo relacionado com a biologia?
Não, pois o alcance da afirmação freudiana assinala que o .que faz o
que é inconsciente é mostrar a hiância
·· por onde a neurose se . coneêta
com algo da ordem do Real:
pulsação temporal
� - - ---------
d - Real
58
reencarnação, a metempsicose, ou algo semelhante. Trata-se comente
de pensar o desejo enquanto desejo do Outro . De modo tal que quando
Lacan - em Função e campo da fala . . . - o que é inconsciente como
transindividual 20 , está afirmando precisamente que se interpõe aos
sujeitos, concebendo uma ordem não localizada nem localizável dentro
de cabeça alguma. Como rem�rca ironicamente em algum lugar : não
é como um pequeno homenzinho, um homúnculo, na cabeça . Dado
que implica uma- dimensão perdurável, o desejo possui as caracterís
ticas de uma duração outra que as da biológica - de um indivíduo
particular.
1 . I nstante de ver
[2 . Tem.po p�ra compreen der
3 . Momento de concluir
59
1 . Instante de ver
( : ! ��po de compreender
;
60
ra de pensar é tributária do discurso da Universidade. O que sucede
nessa ideologia é que a uma interpretação comovedora da posição
subjetiva do analisando, o tempo posterior - que, segundo dizem,
. permitiria a elaboração - consegue diretamente neutralizá-la ou este
rilizá-la. :8 viável caracterizar o tempo que se quer dar à interpretação
para sua assimilação em função do que muito sagazmente Lacan cha
mou o "horror do ato " , do ato do analista. :8 como se se pedissem
desculpas pelo dito, ainda que - ou porque - haja verbalizado algo ·
com efeito de verdade. Ocorre, então, um fenômeno de atenuação, de
sedação do efeito, beneficamente subversivo, determinado pela fala do
analista. A ênfase na elaboração assim entendida traz como conse
qüência uma espécie de recordação pontual do analisando que, na
sessão seguinte, terá . presente, rememorará, fará todo um exercício que
tem tanto ou mais de aprendizagem de novos sentidos imaginários,
que de uma verdadeira análise. Nesta · situação, o analisando mani
festará algo de um teor como o seguinte : "- Já sei tudo isso sobre
mim, mas veja como continua acontecendo igual " . Recordemos o que
nos ensinou Freud com o caso do pequeno Hans : uma boa análise
não se recorda. Se, pelo contrário, !!e crê que o objetivo consiste em
dar cada vez mais sentidos ao analisando - sentidos sobre sentidos -
a falida análise se reduz a permanecer na mesma dimensão neurótica
pela qual ele nos consulta. Na realidade, o problema se centra no
fato de que não é que lhe faltem sentidos, mas em que quer se con
frontar com a possibilidade do sem-sentido, e é nesse esforço que
devemos aj1Jdá-lo. O tema da duração das sessões - do corte - vai
mais além das colocações sobre o montante de tempo; assim, se en
contram praticantes defendendo que certas coisas não se interpretam
ao final da sessão porque, senão, o analisando se vai angustiado. :8
certo que se deve saber graduar a angústia : não é um exercício de
sadismo o que se tenta levar a cabo como psicanalista. Mas transfor
mar . essa colocação numa lei universal reduz a psicanálise a um mero
. hábito tendente a guardar boas normas de urbanidade.
Se não se abala o estatuto do analisando, se instala uma pseudo
análise, onde podem seguir-se anos e anos sem que nada se passe, exêe
to o fato de ir recebendo mais e mais significados imaginários. Essa
tarefa terá um panorama - poder-se-ia dizer - um mapa · psicológico
excelente, mas é fala vazia, como assinala Lacan no Discurso de Roma12 •
61
Fala vazia, onde o analisando não está minimamente implicado nem
questionado em seu ser.
Questões
P.: . . .
R. : Perguntam-me se o que acabo de referir se articula unicamente
com o corte das sessões . Já antecipo que não. O problema consiste em
chegar a encontrar as razões, o porquê do corte enquanto recurso eficaz
do analista. Porque se deve aclarar em que o psicanalista funda sua
práxis - é, sem dúvida, o que Lacan coloca no Seminário - ques
tionando cada um dos elementos que a compõe.
Há outros aspectos a atender. Um deles é o da matemagem, o
qual se encontra relacionado com a concepção do analista como conti
nente : ou seja, aquele que está - como na relação estabelecida entre
mãe e filho - acolhendo, oferecendo uma espécie de cobertura a
quem se analisa. Por exemplo : uma analisanda considerava que " tinha
a semana completa " porque vinha à sessão às segundas, quartas e sextas
feiras. Uma maneira em que procurei romper essa imaginarização con
sistiu em cortar a periodicidade· - suspeitosamente " equilibrada" -
que avalia esse tipo de presunções 23 • A função do analista não é a
de ser continente mas, como dizia Lacan, a de ser semblante do objeto
causa do desejo. Busca-se que o analisando possa articular-se a seu
desejo, · e não a novos sentidos . � por isso que, muitas vezes, procura
mos - por que não - gerar o vazio próprio do objeto-causa do
desejo por meio do silêncio . Tende-se, em relação a um psicanalista
kleiniano, · a valorizar mais O· silêncio e, portanto, também a palavra ;
quando se fala é somente porque há algo a dizer. Um continente, por
outro lado, trata todo o tempo de pre,star contas do que disse o
analisando. Esta atitude não pertence somente aos kleinianos, mas
também às versões modernas da "psicologia do self" (por exemplo,
Heinz Kohut, tal como se depreende de seus livros Análise do self e
A restauração do si mesmo) . O kohutianismo, junto com a corrente
inspirada por Anna Freud, insiste em criar uma condição favorável,
62
prévia à instalação do dispositivo analítico. A meu modo de ver, essa
linha se entronca com a temática dos cuidados matemos e da saúde
mental . Não se pode, não se deve esquecer a condição anglo-saxônica
de Margaret Ribble, de John Bowlby e de todos aqueles que trabalha
ram no sentido de destacar a importância da mãe no que se refere ao
equilíbrio emocional do filho. Então, talvez seja uma linha válida
de elucidação da questão do laço possível a se estabelecer entre a
tendência empirista - sempre dominante "na ilha " e seus derivados
- e a maternageni chamada - quase ironicamente - "continente ".
Há aqueles em nosso país que também seguem esse caminho, no
sentido de atender a essa hipotética função materna de apanhar, cobrir
e proteger . Se logram desempenhar essa função conseguem, ao mesmo
tempo, a segura infantilização do analisando.
63
minado, na velha versão castelhana de Freud, " elaboração onírica '',
a qual se encontra como proposta de tradução de Traumarbeit (lite
ralmente : trabalho do sonho). Não obstante, elaboração-perlaboração
também é um assunto de trabalho, claro que de outras conseqüên
cias que as derivadas do mero fato de sonhar. Em definitivo, o dispo
sitivo analítico consiste em pôr o analisando a trabalhar marcando-lhe
a regra da livre associação, sabendo de antemão que será transgredida.
Se centramos a pergunta no texto freudiano, são ressaltados três ele
mentos: aqueles do título. Assim acontece também em Inibição, sin
toma e angústia. O que implicam esses ligamentos? Lacan nos ensinou
a não processar esses conceitos separadamente, mas a · atender à trian
gularização proposta.
64
trabalho de transferência é o que permite triadizar a inevitável relação :
recordação, repetição e elaboração.
Por último, devemos ter em conta que o Outro é histórico; ao
mudar, tem gerado freqüentemente, de forma precipitada, uma vulgata
psicanalítica. Conseqüentemente, o problema pode se formular assim :
Como abalar o estatuto de · um sujeito sem cair na vulgata onde o
Outro já está basicamente neutralizado? Portanto, tendo presente o
fato de que não podemos definir a física de hoje com conceitos de
Newton - já que houve Einsten - pode--se fazer um paralelo, ao
apontar: depois do ensino de Lacan, não se pode seguir afirmando
que a prática analítica se mantém inalterável. O desejo de freud
abriu a problemática, mas hoje não podemos sustentar os termos da
mesma forma que quando ele surpreendia terrivelmente com uma
interpretação acerca do incesto . Através dos anos esses temas já pas
saram a fazer parte até da divulgação periodística. A idéia é que retor
ne algo de singularidade, e não da generalização desse Outro histó
rico; então, bem pode retomar através de uma repetição em ato. :8
preciso situar de outro modo os termos, já que na versão usual a
recordação aparece como boa e a repetição em ato como má, patoló
gica. Quando se leva isso à clínica implica, por conseguinte, uma
censura do acting-out. Este, eni suma, é esperável em toda a análise,
para além das dificuldades que cria. Finalmente, deve-se destacar a
passagem ao ato, como outra variante da ação, pormenorizada por
Lacan.
P . : Em relação ao que foi escrito por Freud acerca de pensar a
causalidade como uma árvore genealógica, e ao dito por Lacan de
que não há causa senão daquilo que não caminha bem . . . quando
um e outro aludem ao tema: A que tipo de caus�lidade se referem?
67
Ill
NASSA E TIQm
-------· - - - -- - - - - - -- - -------
O esquema, aparentemente muito pueril, é no entanto suficiente
mente preciso. De início marca que, em se tratando de pensar a · estru
tura da prática analítica, são necessários, ao menos, três elementos:
69
-------
2
---------
3
Nassa V Alforje
70
2 3
pulsação temporal
pulsação .temporal
71
A lacuna mnêmica freudiana vai-se transformando nesse inter
valo - assinalado pela nassa - que chamamos hiância. Cabe recordar
que esse era um termo, um neologismo, relacionado com o hiante, com
o verso dividido por hiatos. A hiância implica outra estrutura tripar�
tida, ligada com o vazio gerado relativamente à ação da causa. Lacan
assinalava que a causa é aquilo que sempre deixa algo sem poder ser
explicado, produzindo um intervalo. Entre a causa e seu efeito aparece
algo indeterminado, indefinido, um intervalo vazio. A isso denomina
mos hiâncià. Já dissemos que é aqui on(fe Lacan coloca uma de suas
propostas mais originais, um de seus aportes inéditos sóbre o que é
inconsciente: o conceito de hiância. O efeito de corte, de intervalo e
abertura marcado pela hiância a assemelha ao · que é inconsciente
- por um lado - e à causa - pelo outro :
Inconsciente Causa
\ /
abertura . l -, hiância 2 r-- fechamento 3
Vacilação
pulsação temporal
72
quero dizer " , " eu sei o que me passa " ; " quem melhor do que eu para
saber de mim mesmo " etc. Tudo isso se desmorona quando o aniqui
lamento que provoca o aparecimento daquilo que é inconsciente barra
o sujeito quanto a sua certeza.
Já tenninada a últimá aula, foi importante para mim que um de
vocês, informalmente, me fizesse uma dessas perguntas que parecem
as mais simples e que são as . mais düíceis de responder : O que é in
consciente? Este questionamento me permite mostrar que a hiância
é a via pela qual Lac�n transita, ante a pergunta sobre o · que é incons
ciente, para afirmar um caráter do ser.
73
Inconsciente Causa
\ /
abertura 1 --, hiância 2 r fechamento 3
Pré-ontologia
Vacilação
pulsação temporal
Uma astúcia notável, própria da grandê cultura de Lacan, é · a
revelada por essa resposta. De algum modo, toma partido pcir o que
se tem denominado ontologia negativa, a qual é uma espécie de ho
mólogo da teologia negativa . Para um teólogo negativo adjudicar a
Deus qualquer característica já é, por si, limitá-lo. Ainda que diga
que é onipotente ou onisciente, só o fato de predicar a Deus um traço
. distintivo é herético. Conseqüentemente, de acordo com essa vertente
da teologia,, Deus não é senão . inefável. · Como se pode deduzir, o
" negativa " hão comporta uma valoração hierárquica. A respeito · da
ontologia própria da hiância causal daquilo que é inconsciente, tra
ta-se de apelar a um procedimento similar. O que é inconsciente não
são os instintos, nem tampouco determinados sentimentos. Não obs
tante, existe uma definição particular que tomará com estrita orto
doxia, respeitando o espírito freudiano : Kern unseres Wesens, ou seja,
" o núcleo do nosso ser", que "consiste em noções de desejos incons
cientes ", segundo ensina a Interpretação dqs sonhos 2 •
Na definição de Freud aparece a questão do ser, sob uma enga
nosa ontologia positiva, já qUé adjudica ao ser uma característica
positiva. Mas se apresenta um novo paradoxo_: a adjudicação deter
mina um ser em falta. Se há desejo, é de algo que não está e que
não se tem. Desejo significa falta. Se isto é assim, se infere que através
dessa falta a pré-ontologia nos conduz a precisar que o que emerge
74
na hiância é o desejo. Em suma: o desejo consiste em uma estrutura
de falta, ou melhor - de acordo com outro conceito usual nos Escri
tos - na " falta em ser " :
Inconsciente Causa
. \
abertura 1 -, hiância 2 , fechamento 3
P ré-ontologia
Desejo
Vacilação
pulsação temporal
75
a limitação do ser falante que, devido a este desamparo, fala, pede
auxílio, depende. E ao falar, faz cultura. No esquema deve incluir-se,
de tal forma, a estrutura de falta :
Inconsciente
abertura 1 1
" hiância 2
/
Causa
rfechamento 3
Pré-ontologia
Desejo
Falta
Vacilação
pulsação tempqral
76
recorra à ontologia positiva, ao afirmar que o núcleo desse ser em
falta é o desejar. ComQ o desejo, por sua vez, comporta um ato -
posto que não é uma instância amordaçável - não há nada subcons
ciente, mas uma ação eficaz; a daquilo que irrompe no momento do
:intervalo. O desejo, por out,ro lado, comporta um descobrimento :
Inconsciente Causa
abertura � ' hiância 2 � fechamento 3
--:,
· Pré-ontologia
Desejo
Falta
Vacilação
pulsação temporal
Este é ou tro conceito verdadeiramente freudiano . Localizamo-lo
no terceiro dos Três ensaios sobre a teoria sexual - Metamorfose da
puberdade - com o título : O Descobrimento do Objeto 1\ Ali se enun�
eia que todo encontro de objeto não é senão reencontro de algo que
se dá, ou não) perdido, e que . se crê recuperar no momento de seu
descobrimento. Do mesmo modo, o desejo descoberto passa imedia
tamente a habitar a perda, devido ao fechamento daquilo que é in
consciente. O que aqui está em jogo, homolpgicamente, é a recuperação
de alguma verdade do sujeito, nesse momento prévio ao fechamento .
Lacan sustentou sempre que sua divisa, sua tarefa e empenho,
era a de provocar o despertar dos seres falantes. Pois bem , é claro
que o que antecede ao despertar é o estado de dormir - obviamente,
do dormir de todos nós quando estamos despertos, vivendo um estado
fronteiriço com o sonho ·coletivo, onde as verdades próprias a cada
um ficam aletargadas. Poder-se-ia dizer que no momento da hiância
se encontra a meta lacaniana · do despertar? E que aqui, no momento
77
do fechamento, se desvanece o despertar para dar lugar a um novo
dormir?
I nconsciente Causa
dormir \ /
abertura 1 --; hiância 2 1 fechamento 3
Pré-ontologia desvanece
Desejo
Falta
Descobrimento
1
Despertar
1Vacilação
►
pulsação temporal
Quando alguém dorme fisiologicamente, tem mais acesso ao real
do desejo que quando está desperto. Recordemos, a respeito, aquilo
dos sonhos como via régia de acesso ao que é inconsciente.
Há ainda duas notas mais para agregar à hiância. Uma delas já
foi destacada em outra oportunidade: consiste no inesperado, no sur- ·
preendente da irrupção. A outra se refere ao caráter evasivo do esta
tuto daquilo que é inconsciente :
Inconsciente Causa
dormir
abertura 1
\ /
hiância .2 fechamento l
· Pré-ontologia
desvanece
Desejo
Falta
Descobrimento
. Despertar
Surpresa
Evasiva
Vacilação
pulsação temporal
78
Não se fala neste caso, claro, de um sujeito evasivo no sentido
fóbico. A estrutura daquilo que é inconsciente é em si mesma evasiva.
Nesse estado de pulsação - devemos atentar a esses deslizamentos
lacanianos : pulsação, vibração palpebral, síncope, já que todos aludem
a uma condição rítmica - brota o que é inconsciente, requerendo
pelo menos três tempos para poder marcar sua procedência e perti
nência.
A verdade se diz, rrias não se diz toda. Este foi um ponto que
destaquei nà aula passada, parcialmente. Agora convém nos deter
mos um pouco mais . Para que algo possa chegar a ser dito, outra
coisa, por sua vez; tem que permanecer inevitavelmente não dita. 8
aqui onde aparece o registro do Real. A verdade é real, porque é
impossível de ser dita toda. Como assinalava Lacan - e muito habi
tualmente se repete - o Real é o impossível . Aç, aparecer essa última
categoria, cabe perguntar-se em cada caso : Impossível de quê? Por
exemplo, de ser dito todo. Na reunião passada trouxemos a exame a
conhecida argúcia jurídica do: " Jura dizer toda a verdade?" . Quem
sustenta que sim, ainda que o faça com a melh_or boa fé, aposta no
79
desconhecimento da verdade possível. Por que somente se pode semi
dizer a verdade, dizer-se parcialmente, sem outra alternativa? Freud
esclarece essa temática como repressão primária: o impossível de
tornar alguma vez consciente. Porque é uma impossibilidade que ra
dica não numa deficiência da psicanálise ou do psicanalista, mas
naquilo que garante a possibilidade de existência do aparato psíquico,
que permite a separação de seus sistemas. A repressão primária é,
em Freud, o requisito sine qua non da constituição do aparato psíquico.
Voltando a Lacan: é no que poderíamos chamar a verdade na
certeza manifestada como dúvida, onde se estabelece essa particular
ética daquilo que é inconsciente.
Em A interpretação dos sonhos - comenta - Freud introduz
o caráter substantivo da dúvida, ao consignar que a mesma consiste
no melhor indicador para captar uma certeza do sujeito. Quando
alguém duvida, algo resistencial começa a fazer ali um caminho. Por
tanto, a dúvida não indica o pouco afirmado, o rejeitado . Pelo con
trário, deve ser prestigiada. Lacan dirá: é como se Freud tivesse posto
a subscrição da dúvida. Esta referência nos remete ao capítulo VII
da Interpretação dos sonhos, na seção O esquecimento dos sonhos 8 ,
onde expõe o modo pelo qual se procura captar a certeza do sujeito.
Cabe reiterar que as certezas são aquelas onde quem sonha, preci- .
sarnente, d1,1vida, ou onde modifica traços do sonho num segundo re
lato do mesmo. O empreendimento freudiano, desse modo, se revela
como de busca da certeza onde habita a verdade do sujeito, dita de
modo dúbio.
O estatuto daquilo que é inconsciente não é do ser, nem de UDla
ontologia positiva, nem tampouco de conteúdos predeterminados cain
do ao fundo de um suposto alforje. Trata-se, pois, do atinente à ar
deiµ da verdade, ordem reguladora, se e�as existem, da prática psica
nalítica.
Entre o que é inconsciente e a causa - na medida em que con
vergem na hiância - irá surgindo algo que assinalamos, de passagem,
em várias ocasiões: o objeto a.
80
Todas estas questões requereriam uma exposição muito mais ex
tensa que a proporcionada em só dez reuniões; no momento · limito-me
a apresentá-Ias de modo introdutório. Talvez possa operar, assim, co
mo causa de desejo, conduzindo-os aos textos, aos quais não me pro
ponho substituir. Conseqüentemente, concluiremos aqui, de forma pro
visória, a conceitualização claquilo que é inconsciente.
Passaremos agora a um desenvolvimento apaixonante, sobretudo .
pelo caráter de concC?ito fundamental a que o elevou Lacan: o da re
petição. Em uma primeira abordagem pode parecer surpreendente ni
velar o conceito de repetição junto a outros inequivocamente maiores
- inconsciente, pulsão e transferência .
81
A aproximação lacaniana a Mais além . . . centra-se especialmen
te no capítulo V do texto. Para completar o desenvolvimento, deve-se
processar, a meu juízo, o conceito de compulsão de destino, que apa
rece ao final do capítulo I I I ; essas são passagens definidoras para
apreender a proposta de Lacan acerca da repetição. Em primeiro lu
gar, então, marca uma discriminação entre retorno e rep.etição.
Retorno Repetição
Retomo Repetição
_,
direção :
82
acontece assim se ao gráfico anterior acrescento um vértice instigador
do retorno:
D
....,_____...
Retorno Repetição
(do reprimido) ( compulsão de)
Reprodutivo
Rememoração
83
de alguma recordação que - presumivelmente - permita restituir
a continuidade mnêmica de um sujeito. Ao nos referirmos ao mnêmi
co, queira-se ou não, nos remetemos à dimensão do passado. A pró
pria repetição conota uma refência ao passado, já que pareceria repe
tir-se algo que aconteceu em algum momento e lugar. Daí só existe
um passo para chegar a pensar que o empreendimento analítico con
duziria a tempos pretéritos. Lacan surpreenderá ao assentar uma
diferença entre rememoração e repetição, recorrendo a intelecções de
Kierkegaard :
84
cordemos que Lacan - em uma de suas raras definições - se
referirá à transferência como " a realidade daquilo que é incons
ciente posta em ato " . Realidade que, ademais, é sexual, segundo
estabelecemos na primeira aula.
85
Assim como Lacan faz uma referência a Kierkegaard, também
cita um filósofo cuja obra leu muito detida e proveitosamente: Aris
tóteles :
86
recolher, de modo justapositivo, certas concepções. Por exemplo -
nisso estávamos - quando fala da repetição, recorre também a Aris
tóteles . Toma os capítulos 3, 4, 5 e 6 do livro II da Física 1 4 - repa
remos no insólito da escolha do texto - onde se encontra a noção
que fará as vezes de articulador entre inconsciente e repetição: a
causa, uma vez mais:
CAUSA
INCONSCIENTE
✓ "-...REPETIÇÃO
87
Para exemplificar o exposto, podemos recorrer ao conceito de
compulsão de destino, tal como - segundo lhes antecipei - se inclui
no capítulo III de Mais além . ; . Como conceber o caso da pobre mu
lher que viu adoecerem seus três maridos, tendo que assisti-los até a
morte? Porque é aceitável, está claro, pensar a repetição enquanto
fundada, baseada em determinada característica pessoal, que se supõe
como causadora do que se repete. Mas neste caso: 1! viável arriscar
que essa mulher buscou, na escolha de seus três maridos, um destino
de sofrida enfermeira e viúva? Ante nossa incredulidade, Freud nos
ratifica que se trata de repetição também neste caso. Repetiu . três
vezes ll mesma circunstância; aí há uma · repetição, produzida como
que ao acaso, o que está muito longe de ser a reiteração de uma de-
terminada conduta. · ·
88
estrada, e morre em outro acidente. Aparece outra vez a
Tique, a deusa da fortuna - da má fortuna, neste caso,
voca a morte de seus pais e de seu noivo em acidentes de
Acaso como causa é a Tiquê; não obstante,- não é o que fez, po:.
oculto desígnio, que morressem os pais e o noivo. Tampouco . "'"e
algum desejo onipotente da . mulher. A causa corresponde a que, nesse
momento da repetição do acidente, ela é " tomada" por essa circuns
tância. Sua pergunta é: Por que me passa isso? Seguramente fatos co
mo os relatados origi.naram a criação de uma deusa · como a Tiquê,
ou como Nêmesis - deusa da vingança, ou às vezes, da justiça.
A articulação inteligente, sagaz, que faz Lacan acerca da repe
tição como ao acaso, indica que não consiste em uma reprodução
de traços estáveis, de signos da conduta, de maneiras de pensar ou
ver o mundo; mais precisamente, são circunstâncias surpreendentes,
desconcertantes, ameaçadoras, as que entram em jogo. Estes fatos têm
o caráter, sem dúvida, de atropelar o sujeito; ainda que, nesta ocasião,
o que acometa não seja uma constelação significante que retoma do
reprimido, mas um encontro. Há algo que . retorna do Real, que volta
sempre ao mesmo lugar em termos de um encontro falho, abalando o
estatuto subjetivo e abrindo a hiância por onde irrompe a interroga•
ção: por que justamente comigo passa essa fatalidade? Em uma refe
rência assim, de índole paranóica, pode-se ver, então, a "presença " da
Tique, dimensão onde se encontra um núcleo dó Real.
89
de incontornáveis encontros com o Real. O conceito de encontro nos
remete novamente a Lacan, que enfatizava a qualidade subvertente
do mesmo, e sua conseguinte utilização para a direção da cura ana
lítica.
Houve quem entendesse a repetição de outras maneiras . Por
exemplo, Daniel Lagache considerava que existe uma repetição da
nec�ssidade - circunstância biologicamente óbvia - e, fazendo um
jogo de palavras, apontava: há, correlativamente, uma necessidade da
repetição 16 • O problema consiste aqui na introdução do termo neces
sidade. Ao falar da hiância causal nos apoiamos no desejo, não na
necessidade. O desejo é errante, não está vinculado a um objeto espe
cífico. A necessidade, pelo contrário, só se realiza fixada a seu objeto.
Por exemplo, a necessidade alimentar. Há variação de alimentos, mas
deve-se comer algo que alimente, porque nem tudo é comestível. Mas,
qualquer coisa pode ser desejável. O hiato entre necessidade e desejo
é suficientemente marcado para advertir que não se trata da mesma
ordem. Falar de uma necessidade de repetição não pode ir além da
necessidade de manter um jogo de palavras. Em nosso nível de análise,
considerar a possibilidade de que haja uma repetição da necessidade
conota uma concepção reducionista, biologizante. O retorno se efetua,
mas - aqui se produz a diferença decisiva com a repetição como
acaso - a volta se regula segundo um ciclo. Ou seja, que é previ
sível . O distintivo desse acaso, em troca, é a condição da imprevisi
bilidade, da suposta arbitrariedade que assinala o decurso do repetido.
Lacan vai mostrando, com os diferentes exemplos oferecidos no
decorrer de seu ensino, que a repetição demanda o novo, o qual pa
rece uma afirmação paradoxal; ainda que não seja, se atentarmos que
não há repetição que não seja com diferença. t muito importante este
dado porque o exemplo do próprio F�ud, que desenhamos anterior
mente, indica a tendenciosa parcialidade de certa leitura - eu diria:
certa ideologia - centrada em um hipotético " medo à mudança" co
mo causa da repetição. O exemplo, como vemos, enfatiza que a úni
ca coisa que a repetição não quer é conservar uma situação estatica
mente consolidada, sem escapatória. Cabe assinalar, no exemplo do
O sinistro, busca pela mudança, pela diferença. . Ali a situação era
quase claustrofobígena, um encerramento do qual não podia sair, por
90
mais que tentasse. Esse encerramento era o angustiante; de modo que
devemos ser bastante cautelosos com a exaltação do medo à mudança
como presumivelmente o mais . terrível para o ser falante.
Questões
P . : A respeito do tema da verdade que só pode ser semidita, isso
não me fica bem claro, remetendo-me a A instância da letra, onde
. Lacan fala do sujeito que acredita poder dizer a verdade nas entre
linhas apesar da censura. Nesse texto coloca no lugar da verdade o
significado a que nunca se chega, já que é separado do significante
por uma barra intransponível. A partir daí diz, por um lado, que não
se pode dizer a verdade; pareceria que o fato de semidizer consistiria
em uma espécie de crença. Se vemos as diferenciações entre sujeito
do enunciado e da enunciação, ou sujeito daquilo que é inconsciente
e da certeza, não fica claro como se articula isso com esse suposto
semidizer da verdade.
R. : Em primeiro lugar não é que alguém se proponha a semi
dizer a verdade; estamos falando de uma emergência não-volitiva. A
emergência da verdade se produz através de uma hiância causal. Em
segundo lugar, a aparente "verdade" do significado é outra; pois a
que nos convoca é a do sujeito daquilo que é inconsciente. E esta últi
ma é detectada em, e por, a subscrição da dúvida,
P.: Mas quando Lacan assinala acreditar poder dizer a verdade
nas entrelinhas, parece que nessa cren'ça há uma certa pretensão, su
posição de que está produzindo a verdade.
R.: Vou tratar de lhe responder fazendo um breve rodeio. Para
isso, partirei da utilização do nó borromeano para processar certos
conceitos de Lacan. Bém, sem dúvida existe uma série de desenvolvi
mentos perfeitamente fecháveis em seu ensino. Todavia, não sou evo
lucionista, j á · que não é demonstrável que tenha havido um forçoso
progresso em sua teoria, devido ao· qual, enquanto ia incubando algu
mas concepções, abandonava outras, dando-as por caducas. Insisto
nisso porque atualmente certa tendência facilista considera vencidos
alguns textos de Lacan, " superados" por desenvolvimentos posteriores.
Para concretizar: A instância da letra 11, além de sua data ( 1 957) ,
91
nada tem de obsolet9. Presentemente, estou convencido de que os nós
que propõe ao final do seu ensino · permitem, estruturalmente, esclare
cer certas questões de textos -:"". algumas conceitualizações que pa
recem, a princípio, contraditórias ou confusas.
92
além do dito lexical - quando, por exemplo, uma interpretação pro
voca a emergência de um Real impensado - pode-se situá-lo entre
o Imaginário e o Real. Por último, na singularidade de que dá conta
a significância consiste o motivo para colocá-la na zona que articula
.o Simbólico com o Real :
93
Trabalho ) ·
"'
de
transferênçia
94
mudança de idéia. Mas também cabe outra possibilidade. A partir de
onde não há metalinguagem? Onde não há esta linguagem especial
que falará · com um Outro do Outro, acerca da língua comum? Lacan
sustentará esta última afirmação enquanto enunciado que diz do Real .
Aí. não há metalinguagem. Todavia; no registro Imaginário, sim, é pos
sível metalinguagem. ·
A atenção aos registros mediante o uso dos nós não é uma pos
tulação retorcida; é uma possibilidade de superar, de atravessar o re
gistro do Imaginário, no qual a vivência clínica, muitas vezes, dá
motivo para que nos enganemos. A apresentação dos nós é um convite
a que certos conceitos sejam trabalhados de acordo com eles. Creio
que muitas das supostas incompatibilidades, forjadas à luz da expe
riência clíníca, possam ser elucidadas utilizando. estas concepções.
9S
IV
TRAUMA OU ESTÁGIOS? - REPETIÇÃO
E ESCOPICIDADE
Retorno V Repetição
( do reprimido)
Sintoma
98
doutrina, então, com o nome de Psicologia Analítica ou Complexa.
Ao procurar " resolver " - por assim dizer - a problemática de um
sujeito por meio das reminiscências, o enfoque junguiano perde a ca
racterística da singularidade, na medida em que se verte a mesma em
um molde pré-constituído e generalizador. Este ideário está longe de
um conceito como o de repetição, que pede pela diferença, que é repe
tição do diferente. Destaquemos, pois, tanto o comum, que unificava
- exclusivamente - retorno e repetição em outras concepções, · como
o diferente, segundo a proposta lacaniana :
comum
Retorno V Repetição
(do reprimido) (do diferente)
Sintoma
comum
Retorno V Repetição
(do r.e primido) (do diferente)
Sintoma
Record ação
Reme moração
99
regresso " a partir de dentro" . Na realidade está mal expressado desse
modo - talvez isso se deva a um excessivo afã didático - mas o faço
para que se possa situar diferencialmente no que se refere à ordem do
· sintoma, aquilo que uma vez Freud denominou " terra estrangeira
interior" 1 • O sintoma é estrangeiro porque o sujeito, em sua maneira
de dar conta do mesmo, o revela como algo que não lhe pertence,
porque não se formou por sua vontade. E todavia, de quem é, senão
dele? Este fato revela a ação do que Lacan chama o discurso do
Outro, o lugar dos significantes que atropela, via sintoma, o sujeito.
O sintoma " é" dele, interior, mas não lhe pertence. Suportemos a
ambigüidade, já que é o único modo de poder tomá-lo inteligível.
100
última tem um código coletivo compartilhado, pelo qual se pode afir
mar que é, em grande medida, previsível. fossui uma ordem de rotina
reiterada, onde os acontecimentos se podem prever, em função de
certo manejo dos códigos vigentes, os quais, inclusive, pautam as
margens de mudança, de deslizamento, passíveis de tolerância. Irrup
ções como a da repetiçãe em ato rompem esta cobertura que é para
nós a realidade, criam uma · hiância. :8 aí onde o sujeito entra em
contato· com o Real, o qual ostenta caracteres , dos habitualmente outor
gados ao irreal· 2 , na medida em que faz " desvanecer " o sujeito, o
aniquila, o faz vacilar; em suma: o desequilibra. Nessas experiências
circunscritas aparece uma pulsação homóloga à da hiância do que é
ihcon.sciente. O Real irrompe, contacta e, repentinamente, se produz
um fechamento, motorizado pela estruturação da realidade. Não . se
vive no Real, . mas só se tem experiências pontuais desse registro.
Vive-se na realidade, mas o Real é disjunto dela. A realidade se estru
tura com o plano da semelhança, · próprio do Imaginário, e com códi
gos próprios do Simbólico. A psicanálise busca a referência privile
giada do contato do sujeito com o Real, procurando dirigir a cura
também para esse fiin. Como se pode ver, tal meta tem outra preten
são que a mera rememoração. Não se trata de reconstituir a história
pessoal e acrescentar novos símbolos para conformar um panorama
claro da própria vida. Se fosse assim, ficaríamos prisioneiros no Sim
bólico e no Imaginário. Não haveria lugar, então, pará estas experiên
cia comovedoras do estatuto do sujeito, em termos da subversão que
elas implicam.
Já temos, nos aproximado desses encontros - dos quais trata a
repetição - com a categoria aristotélica de Tiquê:
comum
Retorno V Repetição
(do reprimido) (do diferente)
Sintoma
Recordaçãd
Rememoração Tiquê
•
2 . O cap. IX incluirá a acepção, oferecida por Lacan, do "irreal".
101
A respeito, não mencionamos na aula anterior que existe uma
citação freudiana onde também se introduz o termo Tiquê; se localiza
no texto intitulado A dinâmica da transferência, ao qual já fizemos
referência. Em uma nota de pé de página 3 , Freud reflete sobre a
questão das causas, estabelecendo uma divisão entre causas próprias
da ordem do constitucional e herdado, e Óutras que chama acidentais.
Nessa passagem sustenta que tanto se tem escrito sobre o herdado, o
constitutivo biológico, que se a psicanálise deseja proporcionar algo
novo, deve fazê-lo sobre esse outro plano do suceder : o do acidental.
Assinala, por outro lado, que as duas séries de determinações - o
constitucional e o acidental - vão-se condicionando mutuamente, de
modo diferencial, em cada um dos sujeitos. Em alguns predominará
uma série, em outros a restante. É aí, então, que cita - os precursores
- dois termos gregos, Daimon e Tiquê, enquanto correspondentes,
respectivamente, a cada uma das séries . Em recente tradução essas
palavras são traduzidas como disposição e acaso. No meu entender
não é correta a escolha de " disposição" como o equivalente a Daimon.
Se bem que tenha diferentes acepções, que se podem ir rastreando
nos desenvolvimentos do pensamento grego, devemos resgatar - como
entendemos que Freud faz - o caráter de Daimon como " demônio "
próprio de cada um . Na Grécia, de Sócrates em diante, o Daimon
será o demônio encarregado de preservar o equilíbrio do sujeito, pre
venindo-o acerca de perigos e impulsos . Concepções prévias haviam
considerado o Daimon ao modo da irrupção daquilo que é inconscien
te, ou seja, aquilo que surpreendentemente aparece a partir do interior
como incontrolável e ingovernável, determinando comportamentos irra
cionais. O Daimon socrático parece, por outro lado, colocar-se do lado
da razão.
1 02
vra-os de compreender" . A rapidez da compreensão nos deixa fasci
nados na realidade, sem questionar, na leitura, o que está ali " pronto"
para ser processado. E isto, ainda que na ocasião Lacan não nos re
metesse, explicitamente, ao parágrafo freudiano considerado. (Há
outro antecedente referido à Tiquê: figura em Análise te.,minável e in
terminável, onde se recorela que o pré-socrático Empédocles se ocupou
da ação da Tiquê, o acaso, na vida cotidiana) 4 •
Para completar essa breve recapitulação - com algum avanço,
é certo - diremos · que a Tiquê indica um encontro com o real, cir
cunstância oculta em, e por, essa ordem denominada Autômaton, a
qual se refere à rede dos significantes :
comum
Retorno V Repetição
(do reprimido) (do diferente)
Sintoma
Recordação Tiqué'
Rememoração
A utômato,i Encontro com o real
(rede dos significantes)
103
O risco consiste em que possa chegar a deslizar-se até a concepção
da coisa em si, ao modo kantiano.
Immanuel Kant sustentava· que atrás dos fenômenos há uma
coisa em si, inapreensível, que não se pode tomar nem conhecer.
Esta maneira de pensar o ser e a aparência não é precisamente o ca
minho adotado por Lacan, que leva em conta outro ponto: processa
um resgate muito agudo dessa castigada categoria psicanalítica conhe
cida como trauma.
O termo " trauma " passou, há já algum tempo, à ordem - de
gradada e consagrada - de ver-se transformado em uma palavreira
de uso diário; desse lugar, o Seminário a desvia. incluindo-a no pla
no da repetição :
comum
Retorno V Repetição
(do reprimido) (do diferente)
Sintoma
Recordação Tiquê
Rememoração Encontro com o real
A utômaton Trauma
(rede dos significantes)
104
presentificar. Todavia, pelo contrário, se o relata a torto e a direito
e, para culminar -:- já que não é uma questão de mero estado de
vigília - ao dormir se sonha com o choque, repetido aproximada
mente tal como foi.
Hoje �rago outro e:x;e'mplo extraído da vida cotidiana: o da in
triga. O discurso que se organiza em tomo a: " - te contarei, mas
não o conte a ninguém " . Depois dessa advertência advém, ante a
intriga em si, um: "- não pode ser ! " , proferido pelo interlocutor.
Como o "não o contes ", segundo Freud nos ensinou - mediante
a negação - é um "conte-o", o receptor reproduz o relato ante ou
tro. Aqui estamos em presença de uma micro-situação traumática, in
dicada por todos esses " não pode ser 1 " e " não me diga 1 ", essas rea
ções de surpresa, de descompensação do equilíbrio egóico, onde o
relato imediato por parte do interlocutor comporta um modo de es
tabelecer uma cadeia significante, apaziguadora do trauma 11 •
Não devemos ficar na leitura quase médica do trauma, ao modo
da traumatologia, segundo o próprio termo convida. No sentido freu
diano, o trauma também consiste em uma eventual fratura; neste
caso, o equilíbrio de um sujeito. O evidentemente não comum ao
conceito méâico é que o trauma concebido psicanaliticamente requer
..,.... como já o assinalava Freud no . Projeto de uma psicologia para
neur6logos 6 - pelo menos duas cenas relacionadas entre 1d . Não res
ponde à incidência de uma cena única, pontual, de acordo com a
causalidade linear. De modo inverso: se estrutura na articulação de
uma cena primeira com outra segunda, que determina a eficácia da
anterior. Se somente acontecesse a primeira, 11ão haveria conseqüên
cias; com a segunda cena, a primeira pode desencadear um efeito.
Podemos escrever esse processo com um clássico materna de Lacan:
S1 . S2
S . Isto, está claro, recortando a variável que queremos destacar, sem deixar
de destacar a complexidade causal deliberadamente omitida.
6 . o.e., cit., t. I, pp. 400-4.
tos
sobre primeira cena; ali se produz - e só ali - a circunstância des
compensante. :8 comum, ante este materna, o escutar sua leitura em
termos de que a segunda cena "ressignifica " a primeira. Na realidade,
não há ressignüicação alguma, já que qualquer sentido só se . precipita,
decanta, na segunda oportunidade. Se afirmarmos o contrário, cairía
mos numa confusão parecida à que se produz na acepção que uns dão
ao termo conotação, segundo a qual esta é um sentido segundo, agre
gado, sobreposto ao original. De acordo com a demonstração freudiana,
a etiologia somente é eficaz no momento da ligação de, e com, a se
gunda cena traumática. Não é que a segunda ressignifique a primeira,
mas que entre ambas decanta um efeito - para usar um termo mais
preciso - de significância. Este conceito - como já explicitamos -
alude à singularidade. Significado, em troca, é uma noção de fácil e
tentador deslizamento do sentido do dicionário. Na significância res
gatamos o caminho do unário, do vigente para um sujeito, o qual se
evidencia, entre outros aspectos, na leitura processada de - sobre -
os sintomas . Se não atendemos a isso, estaremos gerando abstrações
distantes anos-luz do analisando específico. Podemos saber que "isso
estava virtualmente ali ", em suma, unicamente diante do efeito pro
duzido. Como comentamos em reuniões passadas, à psicanálise com
porta uma epistemologia do efeito. Só uma vez produzido o efeito,
está dada a possibilidade de remontar a condição produtiva, a causa.
Outro procedimento que escamoteia este dado, levando em conta hipo
téticas cenas únicas, se aproxima à .Pura produção de imagem, à ficção
científica fora de contexto e ocasião. Por exemplo, se a mãe de deter
minado �Ralisando não tivesse morrido quando este tinha cinco anos,
o que sé passaria? Talvez hoje fosse uma pessoa diferente, ou não?
Mas trata-se de especulações. Esta ordem de previsão, como se pode
perceber, não é o que se requer para , a episteme - como dizia Fou
cault - psicanalítica, a qual requer efeitos ocorridos.
'
O requisito epistemológico dos efeitos também opera quando nos
ocupamos da repressão. :8 comum mencionar repressões de êxito, mas,
como podemos saber delas? Se, da qual se pode dizer algo é daquela
que retorna o reprimido; a que produz efeito, então, é a repressão
falha. Se não levamos isso em conta podemos incorrer em uma con
cepção substancialista q�e pressupõe alguma essência interna de algo
que pode - ou não - gerar efeitos . :8 uma armadilha clínica real
mente perigosa.
106
Anos atrás, certa vertente do freudo-marxismo supôs que existia
no sujeito uma dimensão que denominou "o social". Esta corrente
possuía uma definição bastante peculiar desta dimensão, já que confi
gurava, como assunção dela, algum grau de compromisso político que
tampouco era qualquer compromisso, mas um orientado em determi
nada linha: a mencionada: Pois bem, como os analisandos muitas vezes
não evidenciam tal plano, a estratégia dessa corrente era apelar, teori
camente, ao recurso de uma repressão tão avassaladora e eficaz que
não houvesse deixado marca · alguma na superfície. 1! lícito supor que
a conseguinte investida do analista nestes casos consiste numa tarefa
de sugestão. Se se afirma que algo está tão bem reprimido - ao ponto
de não manifestar-se nem minimamente - não se pode deixar de fazer
uma indução sugestionant� sobre o analisando, disfarçada de terapia
"máxima". Concepções deste tipo têm feito estrago na psicanálise.
Isto, por parte de quem, em nome de uma insólita "psicanálise de
esquerda" (sic), tem gerado legiões de escravos seus mandatos "des
repressores" 7•
Então, a repressão da qual se pode dizer algo - porque "fala" -
é unicamente a fracassada, a que dá lugar a um rebento - em termos
de Freud. Neste rebento há algo que se quer dizer, algo que incomoda,
que pede por interpretações.
Quanto ao trauma cabe agregar algo m�is. A cultura popular
desgastou em parte o conceito teórico; até se diria que o corrompeu,
tomando-o em uma dimensão unilinear, aquela em função da qual se
assinala que alguém "ficou traumatizado", em · tal ou qual oportuni
dade. Para a psicanálise, como dissemos, não há trauma viável sem
a intervenção de pelo menos duas cenas; a partir disso, é possível
articulá-lo com a repetição. As cenas traumáticas podem ser tão
simples como nos casos dos bilhetes de coletivo. Assim, inocente como
parece, a repetição da mesma terminação nos bilhetes precipita uma
situação traumática, porque pode constituír-se em algo inassimilável.
Daí cabe extrair um parâmetro crucial: este inassimilável é um Real
que, como tal, por mais significantes dispostos para capturá-lo, não
pode ser integrado à cadeia. Freud expunha esse fato em termos ener
géticos: por mais que procure ligar esse excesso energético que acar-
107
retou o trauma 8, não há maneira de poder uni-lo ao sistema. A
energia permanece, portanto, em estado não ligado. Se transladamos
ao campo lacaniano estas referências, podemos postular - reiteremos
- que neste encontro do Real, esta repetição dada como que por
acaso, marcou um trauma inassimilável enquanto impossível de ser
pego pelos significantes, os quais não podem dar conta de sua condi
ção. Assim, um resto real permanece resistente, indomesticável a toda
assimilação, a toda significação.
108
com o Seminário, o fato de que ela perfura, atravessa, todos os está
gios. Quer dizer que meramente retroatua, ou que em realidade deter
mina os assim chamados estágios? Podemos nos colocar em uma posi
ção empirista e pensar que na etapa oral existe um problema com o
momento do desmame; a criança fica marcada por este fato onde há
uma perda que equivale 'à castração. Quanto ao anal, uma determi
nação similar se produz por uma ação cotidiana como o é a defecação.
Mas, o que dizer sobre a castração? Onde está o acontecimento suce
dido como um dado corporal, da ordem da experiência do corte e
da perda?
A castração em sentido psicanalítico não alude à um corte do
pênis, a uma emasculação. Faz referência a uma circunstância simbó
lica. De forma repentina, . parece que o que mantinha um critério
homogêneo nas etapas oral e anal, ao chegar à fálica, já não satisfaz
sua condição. Não existe uma continuidade, linear e límpida, entre
os supostos estágios maturativos. Encontramo-nos frente a algo que
questiona uma ordem constante e progressiva. Há uma castração sim
bólica que não está dada no terreno preciso indicado por algo do
corpo perdido ou separado, mas no de um órgão que "cai", que
sofre a detumescência. Só este fato já faz pensar que os estágios em
psicanálise são bastante diferentes a como se os quer chegar a conce
ber a partir da óptica da psicologia evolutiva porque, na realidade, se
organizam ao redor de maus encontros singularizados. Creio que se
deve destacar isso de vez em quando - como o fazemos - para
circunscrever pontos de convergência e de divergência.
O anterior veio a calhar, ao comentar o capítulo V do Seminá
rio 11, onde incide, centralmente, a questão do "des", do mau encon
tro: a distíquia, o encontro falho regido pela Tiquê, que imporá sua
marca, · enfatizará toda sua importância na temática à qual se aboca
nha imediatamente. Porque no capítulo VI do Seminário, com efeito,
nos encontramos com o começo de uma das tramas do ensino · 1aca
niano pela qual - devo confessar ,- tenho uma particular debilidade
e predileção. Com um brilhantismo e originalidade notáveis, Lacan
articulará nele a repetição intitulando A esquize do olho e do olhar.
Esquize é entendida como divisão, como corte do sujeito, introduzido
previamente a qualquer menção ao olho ou ao olhar. Divisão - entre
outras -:- que se manifesta através da citada dimensão da distíquia, do
encontro falho do sujeito com o Real, onde. fica - · segundo vimos
109
destacando - abobalhado, perplexo, aniquilado; ou seja, em estado
de esquize. Não se trata, bem o sabemos, de uma descompensação
absoluta e permanente, mas são apreciáveis os efeitos desse "golpe"
- repetido - pelo qual o Imaginário e o Simbólico têm sido momen
taneamente feridos pelo encontro do Real. Esta esquize do sujeito fica
escrita a partir do instante em que Lacan apresenta esta notação: $.
Entre outras coisas, nesta escritura se lê a esquize do sujeito;
o sujeito, como dividido. A barra incluída não é uma censura; a assi
nalo devido a comum alusão a um "sujeito censurado". O sujeito se
diz dividido ou, em todo o caso, barrado. Por quê? Porque a barra
não é mais que a colocação em oblíquo - ou em vertical - da mesma
que, nos princípios de seu ensino, Lacan havia traçado de forma
horizontal, ao escrever significante sobre significado, separados, pre
cisamente, por uma barra resistente à significação 10:
s
s
110
apareça a repetição, para utilizar os termos lacanianos. Se alguém
deseja produzir, deverá repetir e não permanecer no terreno da reme
moração, da reminiscência. Grande parte do pós-freudismo se dilui
insignificantemente, na simples citação rememoradora do texto de
Freud. Se processamos um pequeno arrolamento, essas correntes ras
gam as vestes diante da ·comissão de supostas heresias. Com Lacan,
por outro lado, se devem explicitar, vez por outra, passo a passo,
os termos novos, próprios de sua ousadia criativa, repetidora. Escópico
(de skopos: ver), todavia, não é uma novidade para a psicanálise: o
próprio Freud havia trabalhado o par voyeurismo-exibicionismo em
Pulsões e destinos das pulsões, mas a definição de escópico correspon
de à safra de Lacan; será, assim, um dos itens do quarteto pulsional
que desenvolveremos a seguir.
Havendo postulado que a pulsão é um dos quatro conceitos
fundamentais da psicanálise, o capítulo VI do Seminário submete este
conceito a um arrolamento onde o escópico conforma um de seus
elementos integrativos. Freud havia tratado da pulsão oral e da anal,
o que já é suficientemente conhecido; é um tema praticamente de
cultura geral:
Pulsão
- oral
- anal
Pulsão
- oral
- anal
- escópica
- invocante
111
Segundo expusemos antes, o pôr de lado o empmsmo visual, indi
cativo, permite-nos incluir o eixo falo-castração nessa caracterização.
A automutilação comporta que uma parte do corpo caia, se desprenda,
se separe. Nesta queda - perda - se evoca uma falta. Imediata
mente, o objeto a - enquanto objeto da pulsão - deve cumprir,
investir e encarnar esta condição.
Pulsão a
- oral - seio
- anal
- escópica
- invocante
Pulsão a
- oràl - fezes
- anal - seio
- escópica
- invocante
112
No caso da pulsão escópica - concebida de acordo com a dimen
são que o Seminário abraça - as coisas não serão tão claras. E isto
é assim devido ao fato do específico objeto a ser aquele que mais e
melhor consegue ocultar sua condição a respeito da castração, da
falta central do desejo. :e aquele que aparece mais opacado, menos
transparente; é, desde já; o olhar:
Pulsão a
- oral - seio
- anal - fezes
- esc6pica - olhar
- invocante
Pulsão a
- oral - seio
- anal - fezes
- escópica - olhar
- invocante . - voz
1 13
Para representar a falta central a que se refere este objeto, há
que ter presente que não é o fato de falar o que define como objeto
a. A voz consiste, de pronto, em um traço que deve marcar a ausência
significante e, em tal sentido, tem uma referência privilegiada no
caso do grito. Este implica um exemplo valioso enquanto voz sem
significante; ou seja, que não produz significação alguma de forma
" direta" . O grito testemunha o peso " completista" do objeto a. Em
um texto que lhes mencionei elipticamente em nossa segunda aula,
trabalhei outro caso exemplar de pulsão invocante, desencadeada no
momento de uma torção da transferência de uma analisanda 1 4 • Estava
articulado com o aparecimento de uma mudez nas sessões, a qual
denominei a-fonia. O prefixo a, pelo objeto a; a-fonia, obviamente,
pela falta de voz. Literalmente, a analisanda havia " perdido a voz " ,
a qual s e havia desprendido, dando conta, assim, d o vazio d e objeto.
Conforma, então, a contraface equivalente do " completismo" do grito;
a falta de voz " fala" - com mudez - da voz como falta.
Cada pulsão, além de seu objeto a, ostenta sua respectiva zona
erógena. Geradora de Eros, pois. Alguns psicanalistas como Serge
Leclaire - antigo lacaniano, hoje " ex " - conceberam que toda a
pele do lactante operava como campo susceptível de ser marcado pelo
desejo materno. O dedo da mãe - metaforizava Leclaire - escreve
e sela neste tegumento aberto e oferecido. Em princípio, o argumento
convence , ao menos poeticamente. Mas Lacan oferecerá uma concei
tualizaçãO brilhante acerca do porquê há zonas de privilégio, em
lugar de toda a superfície epidérmica, com qualidades erógenas . Insis
te nelas - nos dirá - a estrutura da hiância. A abertura e o fecha
mento marcam a presença prevalente de certos orifícios, onde a expe
riência do que é inconsciente e a zona erógena têm em comum esta
condição biante.
Trata-se de estruturas de bordas que se abrem e se fecham. Esta
capacidade pulsátil a tem, por exemplo, a boca, se nos referimos à
pulsão oral . O mesmo se pode dizer da pulsão anal, na qual o es
fíncter correspondente também evoca a hiância. Quanto à pulsão
escópica, será o olho a correlativa zona erógena, porquanto também
pode abrir-se ou fechar-se. No caso da pulsão invocante ocorre uma
exceção - como que para pensá-la em termos similares e como fize
mos com a castração, porquanto produz um efeito de significância
1 14
com respeito a toda a série - já que sua zona erógena sempre per
manece aberta: o ouvido. Não pode fechar-se no corporal; de toda
forma, a hiância se faz presente, pois não se necessita do preciso
obturar anatômico para fechar-se, quando alguém - pelo caminho
simbólico - não quer ouvir. O quadro resultante das pulsões, com
seus objetos a e suas respectivas zonas erógenas, é o seguinte:
1 15
Prosseguindo com suas referências - neste caso a ensaística - Lacan
cita Diderot. Não o Diderot da Enciclopédia, mas o transformado no
redator satirista de Carta sobre os cegos para uso dos que vêem 16 •
Texto que lhes recomendo, posto que durante sua leitura poderão
desfrutar de uma sagacíssima, uma alta mordacidade, tanto como
apreciar a densidade da referência lacaniana. A alusão a Diderot serve
para demonstrar que a . assinalação do espaço está, efetivamente, ao
alcance dos cegos. As indicações para se moverem - como se efeti
vamente pudessem ver - são perfeitamente possíveis. O Seminário
se pergunta, então: Se os cegos podem organizar um espaço como o
faz um vidente, qual é a dife�ença crucial a destacar?
A divergência não passará · pela captação da perspectiva geome
tral, apreensível, construível, tanto por parte dos cegos como dos que
vêem. A investigação se inicia, então, por outro ponto, a que Lacan
volta em várias oportunidades: a anamorfose. A recorrência a esta
questão óptica marca que o ponto de interesse é o estatuto do sujeito
e suas condições. Levando em conta tal marco, assinalará a visão
como aquilo que faz possível ao sujeito "ver-se ver-se" . Este ver-se
ver-se é, nem mais nem menos, a armadilha onde sucumbe um imenso
ramo da psicologia: a consc�encialista; isto é, a que adota por método
a introspecção. Em psicanálise não se trata de fazer introspecção; ela
constitui, na verdade, um sério obstáculo. Ver-se ver-se, quanto à vi
são, é determinante de que todo sujeito esteja condenado à presunção
de idealização. A expressão é intrincada, mas se trata de algo relati
vamente simples. Consiste em que qualquer sujeito, como efeito de
estrutura, é vítima da tentação do bispo de Berkeley, quem uma vez
afirmou, com sua sistemática do idealismo subjetivo, que se não via
algo, isso não existia. Na original sentença latina: Esse est percipii,
ser é ser percebido. Fecho os olhos e., o mundo desaparece; e, corr�
lativamente, minha visão é a que gera a existência das coisas do mun
do. Portanto, será através da visão o 'modo, o· caminho, pelo qual
Lacan tentará dar conta do estatuto da consciência. A visão fará com
que um sujeito, vendo-:se ver-se, possa crer-se não somente consciente,
mas sobretudo existente no sentido cartesiano: " Penso, logo existo " .
A única certeza que posso ter, de acordo com o arrazoamento carte
siano, · será do fato de estar pensando. E. a única certeza indubitável
1 6 . Diderot, Carta sobre los . ciegos para uso de los que ven, Madrid, La Pi
queta, 1978.
1 16
do sujeito; o restante, ocorre a partir desse pensamento. Presunção
de idealização será a expressão lacaliiana que alude não meramente
a uma tendência filosófica ou a uma ocorrência de Berkeley; esta
presunção está presente em todas e em cada um.
Ver-se ver-se
Sujeito da
representação ·
Idealismo
117
- a idéia de que o sujeito na análise se conecta com o mais fundo
de si mesmo. Todavia, Lacan definirá insistentemente, congruente
mente, a psicanálise como prática do Real, não de algo que se conecte
com algum homúnculo interior. O próprio Freud havia advertido que,
para que um fenômeno se faça consciente, deve ser apreendido en
quanto proveniente de fora. Deve passar pelo terreno da percepção 1 1 •
Inclusive acontece que quando alguém fala, se escuta, e o dito tem o
valor de uma percepção que chega do exterior. F. o caso do analisando
que declara: "- isso eu sempre tive em mente, mas agora que o digo
a você, mudou tudo" . O fato de ter sido dito provocou o ter sido
escutado, sem recorrer a esse deletério mundo interno, que traz con
sigo a dimensão do refúgio narcísico implicado na presunção ideali
zante do ver-se ver-se. Na ordem "interiorizante" apontada surge a
postulação, · então, de um espaço homogêneo, intuitivamente "eviden
te" até para um cego, na medida em que, ao não privilegiar um ponto ·
determinado, supõe uma correspondência biunívoca entre os pontos do
interno e os do externo:
Ver-se ver-se
Sujeito da
representação
Idealismo
Espaço Homogêneo
1 18
olhando a partir da esquerda, pode-se apreciar, neste suposto pão, a
forma de uma caveira. A que vem este pequeno jogo óptico? Ainda
que pareça insólito, nos séculos XV - no seu final - XVI e XVII,
foi um recurso levado muito a sério. É que as pintúras anamorfóticas,
ao requererem ser vistas a partir de determinada posição - inclusive,
em alguns casos, a partit de certo orifício na parede - permitiam
armar outro quadro do mundo, diferente do tão homogêneo, cotidiano
e realista que pretende o sujeito da representação. Lacan chama a
atenção para o abalo, o perfilamento do estatuto • do sujeito, implica
dos no aporte que delimita a anamorfose, a qual, em síntese, consiste
em uma especial técnica de deformação da perspectiva baseada no uso
invertido do habitual.
Os postulados de Descartes --'-- incluída sua dióptrica - coloca
ram em certo lugar o sujeito; em troca, as experiências anamorfóticas
apresentam em primeiro plano algo que não está ao alcance do cego,
como o está, essa sim, a dialética clássica em torno da percepção. Já ·
então se estava concebendo a dimensão de um espaço outro, dife
rente da sinalização cotidiana, a partir da qual alguém, simplesmente,
obtém sua orientação. Aparece, conseqüentemente, outra instância par- ·
ticular do sujeito, diferente da marcada pela óptica geometral. Situa
mos nessa ordem a anamorfose, em disjunção com o espaço homogê
neo que previamente citamos. Ao idealisrµ.o podemos entendê-lo em
contraposição com a experiência do Rea�, em, função - como antes
assinalamos - da ligação daquele com o ver-se ver-se. Quanto a este,
colocaremos com disjunto o olhar do mundo como omnivoyeur e, final
mente, oporemos ao sujeito da representação uma particular referên
cia, que é aquela na qual o sujeito se desenvolve enquanto função
quadro. Iremos esclarecendo progressivamente todos esses termos. Nas
duas ordens em disjunção mencionadas, é possível escrever ---' enca
beçando cada série - a visão, no primeiro caso, e o olhar, no segundo:
Visão Olhar
Ver-se ver-se Omnivoyeur
Sujeito da Quadro
representação
Idealismo A experiência do Real
Espaço homogêneo Anamorfose
1 19
O que procuramos resumir brevemente demarca uma das manei
ras prioritárias com que Lacan . ·detectou o abalo tendente ao descon
gelamento do estatuto do sujeito; ou seja, como este estatuto resultava
subvertido, com a existência de certas investigações e práticas visuais
aparentemente inocentes ou somente curiosas . Fenômenos como o da
pintura an�morfótica foram historicamente contextualizados, não es
quecendo que estavam ligados a certa experiência coletiva que clama
va por ir · para além do céu - em sentido metafórico. O céu é aquilo
que permite sinalizar o espaço; se o relacionamos com uma experiên
cia psíquica em forma de óptica geometral, nada parece escapar desse
càmpo de réplicas pontuais. Todavia, circunstâncias como a anamor
fosé permitem pensar, segundo dissemos, em um espaço outro. Levan
do isto à prática ·psicanaUtica : se alguém sustenta que nossa tarefa é
adaptar o paciente à realidade corrigindo as deformações, e orienta
nesse sentido a direção da cura, evidentemente todo o capítulo do Se
minário 1 1 sobre a anamorfose resultará ridículo, uma sofisticação
erudita absolutamente prescindível. Pelo contrário, se se procura resga
tar · o caráter deformante - não do subjetivismo perspectivista - e
buscar não tanto o espaço do céu mas o campo do sujeito, captaremos
aonde aponta esta particular referência. · ·
120
V
NôDOA E ENGODO -· A TRANSFERÊNCIA l
121
cunhadas por Lacan e inseridas em seu Seminário 1 1 : " Nunca. me
olha de onde te vejo " . E ademais, a inversa, "o que olho nunca é o
que quero ver " . De uma forma ou de outra se estabelece uma relação
de assincronia, isto é, de desajuste, de não reciprocidade. Produz-se
um efeito de insatisJação, de não completude, onde não se obtém
o pretendido; desta circunstância, o escópico não configura um exem
plo - existe aqui um ponto importante a destacar - mas o próprio
embasamento.
Recapitulemos parte do desenvolvido na reunião passada. Trata
va-se de dar conta da função da consciência fundada no escópico, a
qual surge a partir da condição denominada de ver-se ver-se. Uma
reflexão sobre si mesmo, em suma, onde o escópico autoriza a desen
volver um clássico sujeito da representação (clássico na indagação
filosófica, no sentido de que o filósofo trabalha com suas represen
tações) : Não esqueçamos um hem crucial : representar significa, tradi
cionalmente, fundar-se em uma semelhança. Se pensa-se em repre
sentação, coloca-se em jogo algum tipo de similitude, o que implica
a vigência, incontrastável, do registro do Imaginário.
O que opor a este sujeito da representação que, como é de se
esperar, crê possuir uma réplica acabada, pontual, das coisas do mun
do? Se transladamos isso ao terreno da pintura, a esta atitude se coa
dunará a crença de que tal atividade consiste em copiar as coisas do
espaço; Ou seja, assumindo uma postura pretendidamente realista. Ali
se entende porque Lacan recupera certo artifício pictórico muito valo
rizado séculos atrás, como é o da anamorfose. Em última instância
esse recurso óptico é uma inversão da . perspectiva habitual . Descon
certa qualquer tipo de evidência, de vivência, de realismo ingênuo.
A anamorfose, portanto, dá uma idéia sobre. o sujeito bem distinta
daquela outra, própria do sujeito da representação . Através dela se
restitui, então, o faltante no campo escópico. Para dizê-lo mais exata
mente : em Os embaixadores, Holbein põe eni jogo o sujeito " nadifi
cado" em conformidade com a falta central do desejo denominada
castração ! e escrita da seguinte maneira: ( - p )
A anamorfose faz presente, brinda imageticamente a possibilidade
de que a castração possa pôr-se em ato no terreno do visual ; da cas
tração, recordemos, se evade o sujeito da representação. Este encontro
e essa evasão são concebidos mediane uma argumentação assombrosa:
a da óptica dos cegos . Como vocês seguramente têm presente, propu-
122
nha a questão se apoiando no texto de Diderot, Carta sobre os cegos
para uso dos que vêem, precisando que se os cegos podem orientar-se
no espaço é porque o diagrama segundo o - virtual - estender de
um fio entre pontos determinados e correspondentes. Procede-se me
diante representações unitivas :
e assim sucessivamente.
123
rente ao que ocorre na refração. Se levamos em conta esta última, o
panorama é distinto, já que devemos atender não . a uma correspon
dência linear, mas a centelhas e disseminações a partir de um ponto
luminoso, o qual se poderia representar assim :
o·
feixe vai se espargindo e obtém-se certo tipo de efeitos. Pois
bem, o · ponto inicial, o ponto de disseminação, denomina-se ponto
luminoso :
Ponto �
luminoso
�
Ponto Sujeito
luminoso como quadro
124
Podemos desenhar outro esquema que aclarará este desenvolvi
mento, incluído nos respectivos trechos do Seminário 1 1 . Lacan re
corre a dois triângulos. Um dará conta do ideário próprio da óptica
geometral. O outro resumirá a óptica correspondente à luz refratada,
implicando o olhar e fatos como a anamorfose. Os dois esquemas
formam uma dicotomia convergente, geradora das diferenças que lhe
interessa destacar:
Ponto geometral
125
O sujeito da representação, enquanto ponto geometral, apreende
o objeto por intermédio de uma imagem :
Objeto �
� Ponto geometral
<:J
Até aqui se pode entender muito bem essas idéias porque coinci
dem aproximadamente com o imaginário ou com a imaginação habi
tual. Dizer que o sujeito possui de alguma forma uma imagem do
objeto não é nenhuma novidade. Qualquer um o entende e tem a
vivência espontânea - fenomenológica - de que disso se trata quan
do, a cada vez, se defronta com a questão do ser e da aparência.
Lacan se desvia, não obstante, para outra demonstração - nada óbvia
- onde considera o repetitivo - o Tíquico - em jogo no campo da
função escópica. Coloca as circunstâncias de outra maneira a partir
de uma inversão da perspectiva, desenvolvendo o segundo diagrama a
partir do ponto luminoso :
Ponto
luminoso
A refração, por sua parte, fica indicada com origem nesse próprio
vértice do triângulo:
126
Pois bem, a meu entender o sujeito da representação está estrei
tamente relacionado com uma concepção teológica. � a partir do ponto
geometral denominado Deus que começa a se desenvolver o mundo
dos seres. E, se se inverte simetricamente o postulado - ou seja, quan
do se diz que o homem criou Deus a sua imagem e semelhança -
trata-se, outra vez, de vanitas, do sujeito da óptica geometral. Na óptica
não "realista" - própria da anamorfose - o ponto luminoso se
situará no lado oposto ao do sujeito enquanto função de quadro. No
lugar intermediário, . onde situamos a imagem no . esquema anterior,
aparecerá neste caso uma tela:
Ponto Quadro
luminoso
1 27
A inclusão da tela permite estimar a crucial importância que
possui a função do engodo na vida dos seres falantes. Trata-se de um
fato examinado em muitos e bem diversos textos, mas se referirá espe
cialmente a um : Medusa e companhia, de Roger Caillois 1 . Neste livro,
o ensaísta menciona três pontos ligados a - uma função do engodo, tal
como se apresenta, em particular, nos animais . Caillois analisa essa
função destacada especialmente nos insetos , onde ela opera de um
modo que o Seminário postulará como equivalente à função· que a
pintura cumpre no falante. O tema em questão é o do mimetismo,
isto é, a tendência de uma série de animais a confundir-se com o
meio ambiente, com seu habitat respectivo. Usualmente se crê que isso
se produz no estrito sentido de um mecanismo adaptativo, ligado ·à
sobrevivência. Não obstante , se alguém se afasta dessa idéia precon
cebida, aparece outra vertente . 1! interessante considerar aqui o pre
juízo da correspondência biunívoca em seu ramo finalista, teleológico,
o qual considera que o animal se mimetiza com determinado objetivo .
Lacan assinala que o conseguido pelo animal mediante o exercício da
função mimética consiste em situar-se em seu ambiente tal qual o faz
o sujeito, o ser falante, no quadro. Instala-se num lugar matizado e
se pinta como parte do que é denominado mancha no quadro.
· 1 . Travesti
Mimetismo (2 . Camouflage
� . Intimidação
128
citamente, as idéias do ser e da aparência. Ainda que não se . refira
estritamente ao tema, devemos recordar a diferença entre travesti e
transexual. Este último é quem deseja mudar de sexo e demanda
cirurgicamente - habitualmente - uma ablação ou transformação
de seus genitais. Quer ser operado e, às vezes, o consegue, mudando
de sexo no sentido do corpo biológico. O travesti, por outro lado,
de nenhum modo quer mudar de sexo, mas deseja - tomando basi
camente o caso do homem - encarnar a mulher com pênis. Quer
"mostrar", quer sugerir que por debaixo dessa aparência existe um
ser diferente do que se dá a ver. Remete a uma imagem de completu
de, sem implicar um propósito cirúrgico. t talvez o exemplo mais
prototípico de uma função de máscara, de engodo, adorno ou disfarce.
São recursos para afirmar visivelmente que alguém tem ou é outra
coisa que a que mostra; capta-se, então, o lugar capital do engodo
para a captura do desejo. Esta circunstância é crucial para Lacan. Ele
empreendeu boa parte da revisão da questão da sexualidade feminina
fundado na concepção resumida por um termo introduzido pela psica
nalista kleiniana Joan Riviere, que escreveu um texto clássico: A femi
nilidade como mdscara 2 • Daí ficou instaurado um conceito (não fun
damental, seguramente, mas em todo o caso um conceito): o de
mascarada.
Não é mera coincidência, está claro, o fato de que habitualmente
se designem certos procedimentos cosméticos femininos como másca
ras faciais; na mesma ordem, resulta uma experiência bastante comum
aquela em que entre duas aparições da mesma mulher - separadas
por certo tempo - na segunda, por uma mutação na mascarada,
possa não se reconhecer, de imediato, a imagem da primeira. Dificil
mente isso acontece com um homem. Pareceria que a mulher tem a
possibilidade de mimetizar aquilo que "lhe falta" através de uma
variabilidade constante 3 • Pelo contrário, o homem tem - ao que
parece - mais a perder; então, não é tão propenso a essa ordem tão
eminentemente feminina, como é a da moda.
Não acreditamos que a moda é a simples obra de alguns ideólogos
malignos, dedicados a perturbar todo mundo com o propósito de ven-
2. J. Riviere, op. cit., in Vários. id., Barcelona, Tusquets, 1979, pp. 11-24.
3 . i>or aquilo de "é sem tê-lo" (ao Falo) (J. Lacan, "EI deseo y su interpre
tacción", in Las form�ciones del inconsciente, Buenos Aires, Nueva Visión,
1970, p. 173 ) .
1 29
der produtos da sociedade de consumo. Se bem que esse possa ser
um nível de análise - cuja pertinência haveria que demonstrar -
corre-se o risco de cair em um reducionismo perigoso; essa argumen
tação esquece que a moda, para reciclar-se, deve articular-se com o
desejo de cada um. Se não fosse assim, não haveria possibilidade de
conceber tal proliferação de objetos prontamente caducos . A moda
patenteia, em última instância, uma condição travesti entendida num
sentido lato. Travesti quer dizer a condição de mostrar ou de se pôr
outra coisa, ocultando o portador. Porque essa outra coisa pode chegar
a excitar? Não será simplesmente por aquilo que está mostrando, mas
porque evoca uma ordem ausente, mais além. Nessa espécie de inda
gação sobre um mais além é que se gera essa condição excitativa.
130
cionismo. Aqui este par não é possível, porque requer a copresença
de dois sujeitos em certa situação (por exemplo, um olhando o efeito
provocado pela nudez de seu pênis no olhar do outro : olha como é
olhado) . Estamos numa relação de paridade, na reciprocidade, na inter
subjetividade. Pelo contrário, a intelecção do fetichismo requer postu
lar uma mediação. Neste i;:aso o mediador é um elemento onde se re
flete uma - a - luz que, sem lhe ser própria, provoca uma captura
do olhar, em meio a momentos - segundo surge de muito relatos
de analisandos - d� franca fascinação. Lacan assinala, como anteci
pamos ·na reunião anterior, que o sujeito se acha em uma função seme
lhante à do quadro, o qual, nos. diz, domestica o olhar. Ante o quadro,
o que contempla deve depor o próprio olhar, como se fosse uma arma.
No quadro - insistirá - se faz presente o olhar do pintor. Este fato
não envolve, obviamente, ·somente a execução de retratos. Atender
somente a esse caso seria cair na armadilha de uma concepção es
pecular : tudo se reduziria a olhar os olhos do retratado; Uma natureza
morta, ou inclusive a pintura não figurativa, propõem, aí "fora",
esse olhar que encarna a luz.
Se o sujeito pode localizar-se nessa função de quadro é porque
aquele é pintado pelo ponto luminoso. Não se demonstra isso somente
pela estratégia discursiva de Lacan quanto ao escópico, mas também
por algo congruente, homólogo, com a primazia da ordem significante
sobre o sujeito, à qual fizemos referência nas primeiras reuniões.
Episteme compartida, então, na diferença: a ordem significante pre
existe ao ingresso do sujeito nela, e, previamente a que alguém veja,
existe o mundo como omnivoyeur, sustentando a ordem do olhar.
Superpondo, dizíamos, os dois esquemas triangulares se produz
- jogando com o que ocorre com o nervo óptico - um quiasma :
131
Este entrecruzamento permitirá representar a anunciada integri
dade do tocante à problemática escópica. Os termos do esquema ficam
situados na seguinte disposição :
(Ponto geometral)
(Ponto luminoso) Sujeito da
Olhar representação
(Objeto) (Quadro)
132
Em resumo, creio que na idéia do engodo como aquilo que, sem
exibicionismo dá a ver e todavia sugere o não visto, se instala uma
homologia com a esquize do sujeito. A esquize implica o antes expli
cado a respeito daquilo que é inconsciente : a hiância. _ Esta serve de
suporte homológico - pelo caminho topológico - à esquize especí
fica dos termos . do escópico.
A questão do ser e da aparência conformou um dos equívocos
habituais onde tem naufragado grande parte da psicanálise pós-f.reu
diana, . até Lacan. No Seminário 1 1 , tal questão - novamente. ;_ é
a que abre diretamente o campo para a eh1cidação do terceiro con
ceito fundamental : o de transferência. O tema do ser e da aparência
entra em . jogo, está claro na transferência. Desse fenômeno particular
começaremos - acompanhando o Seminário - dando uma das defi
nições habituais, não nos importando sua condição ingênua, ou banal.
Pode-se dizer, por exemplo, que a transferência alude à estrutura
global das relações do analisando com o analista. :8 uma definição
possível, mas devemos fazer a imediata ressalva de que nessa relação
deve-se ter extremo cuidado em considerar demasiado literalmente os
afetos, pensamentos, em suma, os ditos do analisando referidos ao
analista. A questão do ser e da aparência se faz presente: não se deve
crer que o dito pelo analisando se relaciona com a situação à qual
parece remeter, porquanto se desenvolveu em outro lugar. O problema
é que se considero que provém de outro lado, surge aí a armadilha
habitual que já destacamos ao trabalhar o conceito de repetição.
Qual é? A que consiste em pensar que o analisando repete com seu
analista aquilo proveniente de uma situação passada. Assim, se subsume
e achata a transferência por meio da repetição. Se são praticamente o
mesmo, conviria, por economia, liquidar algum dos dois supostos con
ceitos fundamentais. Todavia, o que complica a questão é que se trata
o analista, efetivamente, como se fosse outro. Fundada no seu trata
mento, se colocou a clássica discriminação entre transferência positiva
e negativa. A primeira seria a favorecedora do trabalho analítico,
oferecendo a possibilidade de que tudo se desenvolva sem maiores
contratempos. A negativa , obviamente, seria a que faz obstácµlo ao
avanço da tarefa analisante. Essa divisão costuma ser deslocada em
seus termos : a transferência positiva é amorosa, e a negativa se baseia
não no ódio - porque isso não se diz, comenta Lacan com humor -
mas na ambivalência. A respeito, esboça outra caracterização mais
ajustada: a transferência positiva acontece quando o analista " fica
133
simpático" e a negativa - uma observação- clínica muito sagaz - é
quando o analisando não tira os olhos 5 de cima do analista, não lhe
perde os passos. Produz-se, neste último caso, o que a escola kleiniana
conhece - em termos fenomenológicos - como controle do objeto.
Há muitos modos de exemplificar essa atitude, mas de pronto a loca
lizamos na desconfiança, em certa coloração paranóica · na relação,
onde qualquer dado "faltante " pode comportar uma segura ameaça
potencial. O não perder os passos do analista, o ter-lhe ojeriza, é como
querer "espremê-lo" para que todo traço seu de singularização em
seu dizer caduque, caia. Em termos comuns e cotidianos: o analisando
não deixa o analista viver tranqüilo. Está constantemente alerta, estado
do qual dá conta o modo de exigir permanentemente esclarecimentos
ou efetuar questionamentos acerca do que foi dito. Não acreditamos
que na transferência negativa não se façam também demandas de
amor; não se deve limitar a captação deste fato - seria algo ingê
nuo- a uma mera reivindicação no sentido litigioso do termo.
Para além de descrições fenomenológicas não acabadamente con
vincentes, o objetivo consiste em introduzir o conceito fundamental
de transferência no plano teórico. Na realidade, a nenhum de nós
poderia nos convencer mais completamente a apresentação da trans
ferência como relação global analisando-analista. na qual há que se
desacreditar dos ditos do primeiro, ou conformar-nos com qualificá-la
como po_sitiva ou negativa. Há outro ponto a destacar, já que estamos
nos prolegômenos desse conceito fundamental. Alguns psicanalistas co
mo Ida Macalpine 6 considerarão a transferência como criada, gerada,
pela situação analítica. A isto responde Lacan com o que julgo é a
experiência do menos avisado dos mortais: existem efeitos de trans
ferência em incontáveis relações sem o pré-requisito, para ii:;so, da
situação analítica. Está claro: a análise tenta trabalhar sobre os efeitos
da transferência, o que marca uma distinção crucial com as psicote
rapias em geral, inclusive as reclamadas como de corte analítico -
ainda que não se saiba nunca por onde cortam. Por quê? Porque se
defrontam sempre com um dilema insolúvel: o que analisar da trans-
134
ferência e o que não. É algo muito similar ao que acontece nas
terapias organizadas em função de certo objetivo declarado. Em ambos
os casos se pauta um acordo comum com o paciente, onde se com
prometerão a tratar terapeuticamente determinados pontos e não
outros.
Vocês se perguntarão porque sou especialmente crítico quando
falo destes temas, mas, como se pode dizer "de corte analítico" quando
o próprio Freud apontou 7 , já faz muitos anos, que esse desígnio equi
vale a dizer a alguém : "Eu te embaraço para que possas parir um
braço" ? Se iniciou-se o processo, não se pode dizer que o procurado
será certo fragmento do corpo, e. não um organismo. Não é para de
preciar o apólogo do embaraço: daí alguma coisa surgirá, mas o fará
de uma maneira que não se possa prever nem planificar: só se sabe
como começa e como termina, já que tem suas próprias leis. Quanto
à transferência, ocorre um fenômeno parecido. O que é analisar a
transferência? O que é o analisável? Aqui, como vêem, estamos em
presença de questões sumamente candentes; em particular, interessa
conhecer a margem de concessõs possíveis de outorgar quando alguém
pretende articular-se ao lugar de analista. Trata-se de pontualizar até
onde há itens negociáveis aos efeitos de que uma prática possa recla
mar-se de psicanálise; assim, muitas vezes, não é difícil determinar
que este tenha sido lançado alegremente pela borda. Estimo, neste
aspecto, que o nomeado constitui um dos po:q.tos nodulares na consi
deração da transferência. Esta traz consigo, então, certos elementos,
certas circunstâncias imprescindíveis. Entre outras coisas, a ação do
que temos chamado - e ainda não definido - transferência pode
provocar curas espetaculares, especialmente no início de uma análise:
as chamadas curas transferenciais . Nestes casos, à diferença de quem
diz: " - disto não · me ocupo ", o analista se pergunta: "- como me
tenho ocupado disso sem ocupar-me? " Essa é a reflexão que se impõe
se houve uma remissão sintomática, por exemplo, sem análise parti
cular, pormenorizada, desse sintoqia. Ali sucedeu um fenômeno ligado
com a estrutura do que é · inconsciente. Esta estrutura reticular, dis
posta como uma linguagem, faz com que a pretensão planificadora
das psicoterapias não funcione. Sim, porque se pode estar tomando
um caminho particular, estar em aparência trabalhando um elemento,
135
e em realidade se está - ao mesmo tempo - incidindo impercepti
velmente sobre outra questão. Pensar a transferência como o fazem
estas psicoterapias se relaciona com a salomônica idéia do filho con
cebido em pedaços a escolha e/ou em cotas. Porque nossa experiên
cia nos indica que devemos pensar em concebê-lo como dissemos, ao
modo de um organismo estruturado. Estas curas transferenciais devem
ser renietidas à estrutura do que é inconsciente, e não simplesmente
à ação de um influxo sugestivo mais ou menos velado. Não se trata
de que alguém vá a seU analista com a fé de curar-se, e só este fato
provoca resultados - fator que não é desconsiderável, se bem não
seja o aqui referido. Falo daquele outro que tem lugar quando se
instala a análise e podem aproveitar-se os efeitos da transferência.
Usualmente se diz - com bastante bom critério - que não se deve
interpretar até a instauração da transferência. Regra suficientemente
:e
sensata, mas difícil de cumprir, sobretudo se se trabalha com entre
vistas preliminares. dificultosa sua instrumentação, por exemplo,
quando se procura comprovar a permeabilidade à metáfora, própria
do analisando. Para isso é necessário formular interpretações, já que
estas são, cabalmente, de uma estrutura alusiva; se não, serão expli
cativas, pedagógicas, universitarizantes, no sentido de que nada dizem
do sujeito, mas que se limitam a generalidades.
As coisas não se correspondem com a concepção de Ida Macal
pine e ,seus adeptos que pensam a transferência como produto da
análise. O que acontece sim é que nossa prática tem a virtude elogiável
de contar com a transferência em seu campo. Foi mérito do gênio de
Freud tê-la descoberto e gerar as condições para torná-la operante.
Aqui começam, pois, todas as questões que estamos apresentando
acerca deste conceito fundamental. Pois bem , com a transferência en
quanto integrante de nosso campo operacional, contamos a favor, ou
contra? Ajuda a análise ou, pelo contrário, a perturba? Aí penetra
mos efetivamente na intimidade do qu� se passa na clínica psicanalíti
ca, para além de discriminações meramente fenomenológicas.
O caminho que, a respeito, tomará Lacan no Seminário 1 1 é
apresentado pelo próprio título do capítulo : Presença do analista.
Este título comenta ironicamente - sem menção do autor - as idéias
de Sacha Nacht, um dos responsáveis pelo Instituto Psicanalítico de
Paris nos tempos da cisão de. 1 953. Nacht - que em 1 966, publicá
136
um livro com aquele mesmo título 8 - subscreveu um plano para a
formação de analistas sobre o qual Lacan fez ácidos comentários crí
ticos incluídos no Discurso de Roma 9 • Tal plano propunha que a
ciência que compreendesse os estudos do psicanalista se chamasse
- atenção a isso - "neurobiologia humana". Não é demais destacar
a medicalização em jogo; ou a maneira com que se omitia violenta
mente tudo aquilo atinente às disciplinas conexas com a consideração
dos efeitos do significante. Era um plano de formação para médicos,
de acordo com esse ·equívoco anti-freudiano que consiste em supor que
a psicanálise é um ramo da medicina. Para esclarecer dúvidas deve
mos afirmar o seguinte : tampouco a psicologia inclui a psicanálise en
quanto disciplina do significante. Em uma carta dirigida a Pfister, em
1928, Freud recordava qµe havia escrito dois textos, recentes para
esse .então. O primeiro era a Análise profana ou Podem os leigos exer
cer a análise?, de 1 926. Um ano depois havia publicado O porvir de
uma ilusão. Através deles tentava demonstrar que tanto médicos como
sacerdotes conformam um conjunto privilegiado entre aqueles de quem
deve proteger-se a psicanálise. Em todo caso, haveria que pensar
- diz - em outro grupo profissional cuja possível denominação
seria a de "pastores de almas profanos" 10 • Desse modo, Freud adverte
o corte epistêmico implicado no surgimento do campo da psicanálise.
É que se deve - nisso faço um pouco de autobiografia - desapren
der o aprendido, venha da medicina . ou da psicologia. Em lugar disso
deve-se tratar de adquirir um pensamento de ordem psicanalítica.
Se o médico objetiviza os órgãos, o psicólogo objetiviza o eu. O citado
é um tema crucial, já que consiste no obstáculo decisivo, no s.usten
táculo da psicanálise pós-freudiana contra o qual Lacan trava sua
batalha. A psícologia do ego - especificamente a americana - pos
sui, em relação com a transferência, uma concepção bastante difundi
da. Afirma que nela se trata de estabelecer uma aliança terapêutica
com a parte sã do ego do paciente para que, em coalescência com
esse são por excelência encarnado pelo analista, possam enfrentar
juntos a loucura dessa outra parte do paciente. O Seminário aponta
uma demarcação muito correta. É aqui - afirma - onde pode se
reconhecer, de pronto, ,a esquize do sujeito em uma de suas manifes-
137
tações. Aquele com o qual os psicólogos do ego querem se aliar, isso
que estimam com a parte sã do analisando, é justamente oi:ide deve
riam reconhecer a enfermidade. A suposta parte sã não conforma
senão aquilo que o. "analista" pretende do analisando: que seja igual ao
analista. :e, em última instância, o que faz obstáculo pela dimensão de
especularidade nesse estancamento fascinante entre duas supostas par
tes sãs e iguais. As vezes Lacan comenta ironizando acerca desse
proceder baseado em uma presunção. Poderíamos colocar essa atitude
- sustenta - sob a afirmação: onde estava o isso do analisando, que
esteja o eu do analista. Vale dizer, que o sujeito seja "prendido" até
os limites de sua nadificação. Por quê? · Porque um efeito da transfe
rência é, entre outras coisas - e, sobretudo, no início da análise -
que o analista está no lugar da idealização .
Eritre diversas manifestações, esta idealização costuma ser figu
rada em termos da saúde, da múltipla potência, do acesso à felicidade
mais ou menos beatificada que supostamente tem o analista. :e claro
que tudo isso está ligado a uma dimensão amorosa. Este é . o ponto
determinante para entrar, por outro plano, na questão da transferên
cia. Previamente a isso, Lacan efetua a pontuação precisa da pro
posta de Nacht. Este desenvolvimento - assinala - toma a transfe
rência em um sentido que poderia se considerar quase - _no meu
entender - cristão. Trata-se, na presença nachtiana do analista, de
que a· "1;1parência" deste durante a análise vá remitindo, vá reduzin
do-se, para que o analisando - sobretudo até o final do processo -
possa acercar�se �o analista como presença e apreciá-lo como "real
mente" é. Isto 'implica, está claro, esquecer por completo aquilo de
"nunca me olha de onde te vejo ª e "o que olho nunca é o que quero
ver". Vale dizer, implica desestimar a dimensão do encontro falho.
Nesta espécie de bom matrimônio estabelecido no fim da análise
- segundo supõe Nacht - emerge ,a função-presença do analista.
Lacan resgata como faz muitas outras vezes - o termo, mas só para
melhor subvertê-lo. Se perguntará: O que é presença do analista? E
dará uma resposta: é aquilo capaz de permitir que o que é incons
ciente possa despregar seus efeitos. Recordemos que no texto intitu
lado Televisão 11 - e em Posi_ção do inconsciente 12 - Lacan afirma
1 38
que o analista forma parte do conceito do aquilo que é inconsciente.
Creio que é uma maneira admirável de tratar o analista como pre
sença; é a presença do analista a que forma parte do . conceito de
insconsciente, pois é a quem esse se dirige. Portanto, convenhamos·
que o conceito não é simplesmente uma notícia teórica, uma abstra
ção, mas que um conceito " toma corpo ", se corporiza. Assim, o que é
inconsciente tem eficácia operativa e efetuação, se existe o analista.
Este é um exemplo de como não somente se podem, mas que se devem
articular os conceitos fundamentais segundo distintas vertentes. ó que
fazemos agora é relacionar os tei:mos ligados à transferência, fundan
do-nos nessa, a meu juízó, subversiva definição de conceito, tal que
o torna certamente aconceitual. O conceito, conseqüentemente, não é
algo vigente meramente QOS papéis, ou efetivo como recitado, mas
que envolve, necessariamente, a dimensão interlocutiva em jogo. Cabe
falar daquilo que é inconsciente como um conceito, mas também como
um campo sobre o qual é viável operar; sobre isso dá conta nossa
· prática cotidiana, disso nos ocupamos todos os dias. Não é o que é
inconsciente, portanto, - já para culminar com essa exposição -
um conceito fundamental do qual se possa predicar fora da presença
do analista.
Questões .
1 39
R. : De acordo: cabe-nos perguntar porque devemos fazer uma
diferença entre transferência e efeito. Talvez se trate, para ser rigo
roso, de que definitivamente a transferência é aquilo passível de
analisar-se na psicanálise. Efeitos de transferência poderiam se dar
em numerosas situações da vida, mas estes não são processados nos
termos anteriores nem são aptos para serem remetidos, referidos, de
- e a - um modo metafórico, mas que são vividos imaginariamente.
Por outro lado, é preciso reparar na insistência de Lacan em
dizer "efeito de". J! que se não há efeito, não existe a menor possi
bilidade de trabalhar acerca de nenhuma questão. Este procedimento
implica insistir em que não se trata, na análise, de uma dimensão inte
rior, introspectiva, de mundo e objetos internos, todas as teorias de
episteme consciencialista, ainda que reclamem do contrário. A recor
rência a "efeito de " traz múltiplas conseqüências, porquanto se refere
a estas últimas.
P. : Não seria mais exato, quanto à questão do ser e da aparência,
nos referir à distinção entre ser e ente? O ente é o que se mostra,
enquanto devemos desvelar, mediante o conhecimento, o ser que se
oculta atrás dele.
R.: O ponto ,.q.ue nos interessa destacar, sobretudo a partir das
questões ligadas ao engodo, não all.¼de a uma dimensão cognoscitiva,
mas sim à ordem pulsional. . Ou seja, à específica combinação da
pulsão cie vida com a pulsão de morte. O substantivo não é o afã de
conhecer ou a impossibilidade de conhecimento, mas, por exemplo,
como pode ser que o véu excite, ou como esse parecer ser mais do
que é, intimide. Nossa intenção consiste em tentar dar conta das raízes
pulsionais daquilo que usualmente se · coloca no campo da filosofia
em - termos estritamente cognoscitiv�s.
.P. : O diagrama do olhar que Lacan apresenta nesse Seminário,
tem algo a ver com a experjência do' vaso invertido e com a forma
ção da imagem virtual?
R.: O modelo óptico dos Escritos atende, em particular, à di- ·
mensão dos ideais, que nestes diagramas não é · levada em conta.
Naquela oportunidade, Lacan se centrou na conformação e _na eluci
dação da dupla eu ideal-ideal do eu 13 • Aqui se trata de outra coisa,
1 3 . J. Lacan, "Observación sobre el informe de Daniel Lagacbe: 'Psicoanálisis
y estructura de la personalidad' ", Escritos II, cit., pp. 289-30S.
140
muito demarcada, porque lhe importa destacar a crucialidade do modo
com que se elude a c.astração através desse objeto a chamado olhar.
O diagrama do Seminário 1 1 é um suporte muitç, elementar - geome
tral, inclusive - o bidimensional. Dispõe-se aos fins de poder pensar
certas questões e poder colocar um segmento de análise estrutural;
não é casual que os dois triângulos - o da visão e do olhar - sejam
opositivos. Depois se apresenta o quiasma, enquanto símil de um en
trecruzamento de fibras. Neste ponto, digamos que é do efeito de sínte
se do qual Lacan, pela primeira vez efetuou uma análise. Tenta assim
processar como estamos incessantemente "tomados" pelo escópico; em
especial, pelo enfatuado sujeito da representação. Ao mesmo tempo,
não deixa de advertir as ocasiões onde este c;,bjeto a-olhar pode ser
detectado.
141
VI
ENGANO, SABER, IDEAL - A TRANSFEMNCIA II
HAR � CONC ·
ARI l'EPTOS
1 . Cf. cap. X.
143
me à paternidade pelo caminho, estritamente, do sobrenome. Diante
da leitura deste aviso, devo aclarar que por agora sigo carregando o
meu, e não o atribuído pelo jornal.
:É interessante o lapso porque me fez evocar quando na escola,
ante a insistência no erro sobre a escrita de meu sobrenome, ao deno
minar-me " Harari com 'h' e tudo junto" . Ao me perguntarem como
me chamava, respondia assim para que ficasse nítido, presente, o fato
de portar essa marca, essa inscrição. São reações habituais que acon
tecem quando alguém encontra-se repentinamente " injuriado" com seu
nome próprio. Porque um equívoco a esse respeito não equivale a
qualquer outro lapso. Em que pese o já mencionado, desta vez sinto
me lisonjeado pelo fato de que tenho me ligado tão estreitamente aos
conceitos da psicanálise. Não deixo de reconhecer que algo se cumpriu
por parte do processamento inconsciente cuja conclusão é este novo
sobrenome.
Vamos então aos conceitos . Na aula passada começamos com o
terceiro deles : o da transferência, sobre o qual havíamos brindado
algumas poucas notas praticamente indicativas, fenomenológicas. Se
guindo com esse desenvolvimento, Lacan dispõe a seguinte estratégia
expositiva no Seminário 1 1 : começa com o terceiro conceito funda
mental, para imediatamente dar início ao quarto - a pulsão. Fundado
em um motivo didático - se aceitam tal justificativa - é que pro
cessarei · outro percurso. Faço-o porque há momentos posteriores no
transcurso do Seminário, nos quais é retomado o conceito de transfe
rência. Parece-me mais oportuno, dadas as características deste breve
curso, apreender esparsamente, segundo vai aparecendo, a temática
da transferência. Assim, reservaremos as últimas reuniões - hoje
· começamos a segunda metade destes encontros - à questão funda
mental da pulsão, tema que nos permitirá incluir a decisiva proble
mática lacaniana a respeito da co�stituição do sujeito, ou melhor
ainda : as operações de causação do sujeito. Por agora só as enuncia
rei; mas adiante voltaremos a isto. São estas : a alienação e a separa
ção. Nosso decurso imediato tentará uma leitura introdutória do capí
tulo XII do Seminário, intitulado : A sexualidade nos desfiles do
significante. Em seguida recorreremos a certas partes do capítulo
XVIII : Do sujeito suposto saber, da primeira díade, e do bem, e do
XIX, que tem por título : Da interpretação à transferência. Sobre estes
capítulos girará nossa . conceitualização seguinte acerca da transfe
rência.
144
Na primeira aula, pontualizamos uma definição da transferência.
A incluímos novamente: a realidade daquilo que é inconsciente posta
em ato. Reparemos, está claro, na menção à realidade, e não ao Real.
Esta é uma discriminação, como sabemos, crucial para a teorização
Iacaniana, na qual se adotam critérios muito precisos. Por que fincar
pé nesta questão da realidade? Para responder a esta qttestão, reali
zemos um breve rodeio, que fará as vezes de racconto. Vocês recor
darão quando trabalhamos, na aula . anterior, a temática do escópico
a partir do desenvolvimento do olhar. Assinalamos que no· escópico
havia, como característica especial, certa idéia do engodo e da más
cara : uma aparência encobridora, sugerindo algo além. Não tratamos
de essências, pois não é nosso propósito o de substancializar os con
ceitos. Concordamos entãq que esta idéia permitia desembaraçar as
relações entre a aparência e esse algo além para derivar, a partir daí,
a transferência, a qual se refere a algo distinto do que parece ser.
Podemos sustentar isso, sendo conscientes de que implica uma abor- ·
dagem pouco menos que banal e até tautológica. Nesse registro fize
mos menção à divisão entre transferência negativa e positiva, e tam
bém incluímos o recurso de não levar muito a sério o que diz o
analisando sobre o analista, como se isso fosse uma realidade. Ali
recém começava a questão. Destas considerações surgiu uma linha
tradicional do pós-freudismo cujo objetivo curativo consiste em tentar
localizar o analisando no marco de uma realidade, apartando a defor
mação comportada pela transferência. Estas correntes supõem que a
transferência engana. A função do analista, portanto, seria conseguir
remontar esse engano por meio de intervenções do seguinte tipo:
"- isso que você acredita não é assim na realidade; é de tal outra
maneira". Núcleo de verdade: a idéia do engano fica ligada - até
nestas concepções -- decisivamente à transferência. :É possível, então,
estabelecer uma pontuação muito elementar para começar: a transfe
rência ,=;;stá firmemente relacionada com a dimensão do engano:
Transferência ➔ engano
145
engano" do analisando consiste em uma manobra fora de lugar? No
que lhe fala a tão famosa "parte sã", assinalada no encontro passado.
Apela-se ao bom juízo, ao bom senso desta parte, convocando-a para
combater a parte enferma. Esta ação se produz fundada em um argu
mento pelo menos tão antigo quanto Sócrates. Consiste em postular
uma espécie de poder irresistível que o bem exerce sobre o sujeito.
Se o sujeito conhece o bem, sabe do bem, se inclinará por ele; isto,
se sustenta como um subentendido. Se faz o mal - obviamente - é
somente porque ignora. De acordo com esta peculiar moral, em suma,
bastaria conhecer o bem para inclinar-se a ele de forma espontânea.
Enganar-se significaria, em última instância, não conhecer, o que
determinaria estar incurso em uma moral malévola. Fundando-se nestes
argumentos apela-se assim ao bom senso, à informação e ao saber do
analisando, os quais o levariam a transitar pelo bom· caminho. O uni
verso "psi", como sabemos, oferece para os cidadãos em geral produ
tos dessa natureza. Conhecer os pormenores "psi", supõe-se, fará com
que a população proceda "bem " . Não faz muito tempo tive oportu
nidade de encarar este ponto criticamente em um breye trabalho de
natureza periodística. Ali recordava o expressado por Freud a uma
senhora que exigia conselhos acerca da criação adequada de seu
filho - de acordo com os cânones psicanalíticos - a fim de prevenir
qualquer alteração psíquica. Freud respondeu-lhe que não se preo
cupasse; fizesse o que fizesse, o faria mal. Isto se devia a um ceticismo
por parte do pai da psicanálise? Ou talvez se dirigia a assinalar que
todos somos - e seremos - irremediavelmente neuróticos? Naquele
trabalho argumentei o seguinte: a resposta não fez notar que fizesse
o que fizesse lhe faria mal; só disse que o faria mal. Diferença radi
cal, no meu entender. A questão não consiste no prejuízo ou eventual
neurotização do garoto, mas sim no fato de que a senhora se impu
sesse a cumprir determinadas normas tal investida não seria possível,
porque na verdade faria o que seu de�ejo lhe ditasse, enquanto a nor
ma abstrata e geral tem por .função - velada - a indução do gozo
" mass-mediático " . Faz-se de superego parasita, induzindo mal-estar no
sujeito ao comprovar o inexorável não cumprimento do mandato "sa
lutar". Neste caso, por não implementar - com respeito a seu filho
ou a quem fosse - uma criação como a psicanálise manda. Escutemos
bem: tais procedimentos fazem equivaler a psicanálise ao esperado
de Deus . Neste tipo de propostas, efetivamente, transforma-se a psica
nálise em religião; assim, se lhe pede, se lhe exige, que provoque uma
146
reforma moral da sociedade, tal que está possa chegar a encontrar-se
constituída por " indivíduos sãos " . Tudo isto derivamos da função do
engano contida na falácia da moral socrática - não é exagerado quali
ficá-la assim - que segue sendo vigente até hoje, mediante um engo
do . Quantas vezes os analisandos, frente a uma certa descoberta nas
:sessões, costumam apelar ao pedido de " inocência " , colocando o ana
lista como dimensão superegóica ! A conseguinte " resposta " às irrup�
.ções daquilo que é inconsciente é então " - Ah ! mas eu não sabia
que isso era assim." Aludir à ignorância manifesta é um modo de
,escamotear o registro do desejo 2 • Lacail assinalará, então, que a di
mensão do engano é absolutamente constituinte da transferência. O
engano aludido é, não obstante, bastante distinto da presunção de que
se trata de uma deformação da realidade consensual . Incluamos agora,
no gráfico desenhado antes, a definição da transferência e a relação
opositiva realidade-engano :
I.
A daquilo que é inconsciente posta em ato
J
A' aquilo que é inconsciente posto em ato
,
....------------
Transferência
.-
· · engano(amor)
147
que não o é. Acaso não existe o amor verdadeiro? Bem, não se trata
aqui de fingir amor onde ele não existe, mas sim de afirmar o engano
como constitutivo do amor. Sucede que quando alguém diz amar, o
que quer é ser amado. Esta, a descoberta crucial de Freud 3 : é este
o engano constitutivo do amor. Voltando a nosso conceito fundamen
tal, o caso é que a transferência constitui-se em função do amor.
Recorramos ao texto clássico de Freud: O bservações sobre o amor de
transferência. Podemos nos perguntar porque se inquietou, porque
escreveu de forma exclusiva acerca do amor de transferência, e não
de qualquer outra manifestação do fenômeno. � que foi à medula, ao
nódulo mesmo do que significa a transferência. Não considerou, por
tanto, que a amorosa é a positiva e a do ódio é a negativa; não,
porque a transferência amorosa é aquela que possibilita o trabalho
analítico e ao mesmo tempo o obtura.
Na transferência há a abertura daquilo que é inconsciente, já que
aí se articula o analisando à análise sob a figura do analista - depois
discriminaremos melhor este ponto. Ao mesmo tempo, paradoxalmen
te, a transferência é fecham�nto daquilo que é · inconsciente - cabe
aqui , recordar a nassa, visto que o analisando - como · bem descre
ve Freud - esquiva a remissão de uma situação a outra, atribuindo
lhe absoluta veracidade e legitimidade ao que ocorre aqui e agora.
Se lermos com atenção o texto mencionado, podemos advertir que de
nenhum. modo o amor de transferência é considerado falso. Muito
usualmente a manobra, a condução analítica da transferência amoro
sa, se reduz a emitir · considerações como a seguinte: " - o que você
sente, na realidade não sente comigo mas sim com outro. Você s�
engana : eu sou somente seu analista " . Isto costuma referir-se a algum
personagem passado; então se produz a já aludida confusão da trans
ferência com a repetição. O analisando repete com o analista o que se
refere a outro. Aqui, agora e comigo transfo rma-se no que estava
distante, antes e com outro. . O que diz Lacan é - ainda que não
esteja dito exatamente com este jogo de palavras - que não se pode
pensar a transferência fora do amor, mas tampouco se pode pensar o
amor fora da transferência. O amor, efetivamente, · · implica transfe
rência. Na aula passada me perguntaram pela discriminação entre
148
transferência e efeitos de transferência. Reitero : não faz falta, de
modo algum, a situação analítica -para que se desencadeiem os efeitos
da transferência. Eles sobrevêm juntamente com um fator que não
tem porque requerer, estritamente, o perímetro de nossa práxis. Só se
precisa da aparição de alguém que encarne - devemos tomar isto no
sentido literal do termo : em-carne, dê uma carne, alguém que deve pôr
o corpo - alguém que encarne, dizia, o enquadre decisivo para a
transferência: le sujet supposé savoir. Cito assim para oferecer-lhes
minha tradução desta locução lacaniana que no meu entender foi,
freqüentemente, mal traduzida. Vale a pena destacá- lo : é o sujeito
suposto saber, que também pode ser apresentado como um triplÕ " s ",
com o intermediário em minúscula: S.s.S. Às vezes se tem traduzido
como suposto sujeito do saber, definição que sugere, francamente, a
imaginação acerca de alguém como possuidor de uin saber determi-·
nado. Esse alguém, certamente, é um sujeito. Segundo tal proposta
de tradução, postula-se, novamente, uma dimensão · relacionada com o
enganar-se : assim, se crê que tal pessoa é depositária de um determi
nado saber e, daí, suposto sujeito do saber. Se eu dissesse saber suposto
ao sujeito, ou sujeito que se supõe. saber 4, estaríamos diante do mesmo
problema. Dizer, pelo contrário, sujeito suposto saber - como pro
ponho - implica fazer anteceder o saber ao sujeito; :e
ter em conta,
congruentemente, que há uma estrutura preexistente; à qual o sujeito
oferece seu ser. Claro que esJe desenvolvimento se refere a um saber
não no sentido de um conhecimento - o digo propositalmente de
modo redundante - cognoscitivamente concebido. 1!, ao contrário, uin
saber acerca da dimensão do desejo que conforma o sujeito : o que é
inconsciente como um saber articulado, que não se· sabe. Mas o lugar
do Outro sabe sobre mim , pode dar respostas às. interrogações de
minha existência. Portanto, é sobre a psicanálise onde se realiza, em
última instância, a transferência; o· sujeito com nome e sobrenome,
exigido como analista, se colocará nesse lugar. Ele será a encarnação
parcial do saber faltante ; então, o antecede um saber, assim como
dizíamos que o Simbólico antecede ao sujeito. Se é parcial, a . mano
bra consiste no mais alto grau em supor, como efeito resultante, um
saber ao sujeito; não em subscrever a identidade, a equivalência re
cobridora.
149
Afirmar-se a um certo sujeito como de saber efetivo - a não
supô-lo como tal - corre o risco certo destacado por Lacan em De
uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose: o sinis
tro encontro psicotizante com o que denomina Um-pai 5 • Este é um
personagem particular que em um momento dado da vida de um
sujeito opera como Um-pai real, desencadeando a psicose. Não a de
termina, mas aparece como um detonador ante o chamado do sujeito,
induzido, em maior grau, a um campo .de agressão eretizado. Este
Um-pai, a meu ver, pode chegar a ser o Saber, já não suposto, mas
afirmado sem inconsistência, sem castração. Resulta interessante adver
tir, a respeito, como Lacan pensava que havia, no campo da psicaná
lise, alguém que sabia. Esse que sabia - não enquanto suposto saber
- era Freud 6 • Contudo, seu saber não versava sobre teoria ou con
ceitos; Freud sabia acerca do desejo definidor do psicamdista como tal.
Ser psicanalista é enfrentar-se com a ordem constituinte do dese
jo. Por isso, colocamos como pivô central da análise aquilo que traba
lhamos, basicamente, em nosso segundo encontro: o desejo do analista.
Como antes assinalamos, existe uma moral socrática, falaz, da
qual o analista seria seu lugar-tenente contemporâneo. Como? Pois
supondo que o psicanalista é quem quer o bem do outro, já que seu
trabalho está orientado a levar esse outro para a irresistível união com
aquilo que lhe faz bem. Mas o Seminário adverte que quando se
apela, seguindo esta moral socrática, à parte sã do analisando e o
convida a guiar-se por esse bem, o analista não leva em conta - não
analisa - uma dimensão nodular do desejo: aquela caracterizável
como um aparente não-desejo, como um não querer desejar. Deve-se
_recordar que esta é uma modalida,de típica do psiconeurótico? Na
qual se capta que não querer desejar é querer não desejar. �. precisa
mente! uma fase defensiva por cujo 'intermédio se ratifica um traço
decisivo no pensamento freudiano, batizado como desidero. Isto é só
uma maneira -' apelando ao latim - de expressar que a articulação
do sujeito com o desejo tem caráter de fundamento. O desejo é o
sedimento último da ação do significante sobre o sujeito a que dá
lugar.
1 50
Rememoremos que o sujeito pode ser constituído justamente por
ser aquilo que é inconsciente estruturado como uma linguagem. Pois
esta constituição. determina que tal desidero seja aquele último - ou
primeiro - onde se pode encontrar o modo no qual o sujeito regula
sua vida. Convém enfatizar este ponto já exposto : desejo do análista
não é desejo de ser analista, nem tampouco é o desejo de cada ana
lista . Este último, em particular, coloca-se na rançosa ordem da subje
tividade própria do introspeccionismo - malicioso como orientação
epistemológica - fundando-se precariamente no : " eu sinto que",
ou no " eu penso que " . A apelação, em lugar do desidero, a uma
cognição " sentida" , como parâmetro de verdade e testemunho irrecusá
vel, culmina no inefável . O "eu sinto " , sem dúvida, alude a um
mundo interior, mas comQ transmiti-lo? Sobre isso, ·o que se pode
processar? Que alguém sinta, pertencê à ordem do sujeito da repre
sentação, quem encontra no afeto racionalizado um bastião máximo
e intransferível . O desejo do analista, em troca, leva a colocar o saber
no lugar da verdade; é uma função à qual o sujeito oferece seu ser.
O sujeito deve procurar instalar-se no desejo do analista, que pode
ríamos, talvez, definir como desejo dos analistas . Provisoriamente,
creio que é Ull).a formulação viável, porque permite destacar, do
conceito, o denominador comum implicado no fato de propor-se como
solicitante da transferênda . O desejo do analista - nos diz Lacan -
é aquilo sobre o qual se funda o campo de nossa prática. Isto é
importante, porque implica considerar que não é só o desejo do anali
sando o fundante. Quem vem como analisando chega, e faz sua trans
ferência. O novo é este acento lacaniano : não que o desejo do analista
tenha seu próprio estatuto, mas o circunscrevê-lo como o próprio pivô
da análise. Isto comporta uma torção bastante brusca impressa à eluci
dação global de nossa práxis . Então, se o pivô desfalece, pode chegar
a " cair" a própria análise, ou ver-se interrompida abruptamente re
cordemos aqui o acting out e a passagem ao ato 7 • Esta consideração
faz Lacan recomendar ao analista que ponha as suas barbas de molho.
Que se pergunte - não como uma bela alma · - o seguinte: " Que
parte me toca na sustentação da desordem que denuncio? " 8 • Aborda
esta questão de um modo aparentemente persecutório e possivelmente
antipático para os colegas : com efeito, se deve pôr o analista no banco
151
dos réus. Que dê suas razões; do contrário, todo efeito transferencial
violento fica limitado, em sua "intelecção", ao fato de ter s�a origem
em alguma hipotética patologia intratável do analisando.
Ao fincar pé no desejo do' analista, também está enfatizando que
o desidero do analista deve enfrentar-se, certamente, com a sexuali
dade. Deve fazê-lo a partir do momento em que fica marcado o começo
da psicanálise. Refiro-me ao momento fundante em que a paciente por
antonoJ:Dásia - todo mundo já o conhece · - permite o início de nossa
disciplina. Aquela Anna O. libera paradoxalmente a análise mediante
a articulação com o desfalecimento da condição de seu terapeuta,
Breuer. Ali podemos localizar de que maneira joga a sexualidade no
desejo do analista. Se lemos o histórico de Anna O., não encontramos
praticamente referência alguma à sexualidade. Não havia nada mani
festo, até que aparece o imprevisto na forma mais insólita : a de uma
pseudociese, uma gravidez histérica. Este efeito surgiu de forma sur
preendente, desconcertando Breuer. A reação do terapeuta é célebre:
abandonou sua paciente e se foi com sua mulher para Veneza, para
passar ali uma segunda lua de mel. Segundo Ernest J ones - e Lacan
o · seguia nestes dados· - nesse período o casal Breuer concebeu uma
filha que terminou seus dias suicidando-se, nos Estados Unidos, devi
do, com segurança, às condições em que foi concebida. O subscrito
data de . 1 964; hoje, os testemunhos têm mudado este quadro.
Tenho aqui um livro de Lucy Freeman, publicado em 1 97 1 . Seu
título é A história de Anna O. Contudo não está editado em caste
lhano, o que talvez obedeça ao fato de não ser visto como um texto
capaz de circular de maneira lucrativa. 1! uma pena, porque a leitura
de algumas passagens desta obra resulta muito valiosa para esclarecer
as assim chamadas origens da psicanálise. Para elucidar o sucedido ·
com Breuer conta também uma carta cl,e Freud dirigida a Stefan Zweig
- numerada como 265 em sua Correspóndência - onde revela por
menores da emergência da transferência de " Anna" de maneira tão
peculiar, como inesperada sexualidade, através da pseudociese. Nesse
momento - nos juntamos a Lacan - aconteceu de forma repentina
um desfalecimento dp desejo do analista, em prol do desejo de um
analista em particular, Josef Breuer, à aparente busca de um novo
filho. Filho . verbalizado por "Anna ", em meio a suas contrações abdo
minais. desta forma: - " Chega o menino do doutor Breuerl "
1 52
Na carta citada, escrevia Freud : " Naquele momento ele (Breuer)
teve nas mãos a chave que houvera ' aberto as portas às mães', mas a
deixou cair " i. (Aí há uma referência literária, tomada da parte I I
do Fausto de � oethe) . Evidentemente a situação não pôde ser supor
tada por Breuer, que preso - acrescenta a carta - de " um grande
horror convencional " , deu-�e à fuga. Não obstante, hoje contamos. com
outros dados de tipo histórico, que lhes leio : " O doutor George H ..
Pollock, diretor do Instituto de Psicanálise de Chicago, fêz também
o
investigações sobre caso de Anna O . Descobriu o erro cometido por
J ones ao afirmar que uma filha havia sido concebida logo depois que
Breuer havia terminado precipitadamente o tratamento . . . " Aqui con
tinua o que já lhes relatei : a viagem a Veneza etc. Prossegue o . texto :
" O doutor Pollock obteve de membros da família de Breuer provas
tomadas dos arquivos da cidade de Viena, demonstrando que esta
menina - Dora, a menor dos filhos de Breuer - nasceu a 1 1 de
março de 1 882. O tratamento de Berta Pappenheim (o verdadeiro
nome de Anna O .) terminou em 7 de junho do mesmo ano . Portanto,
esta filha havia sido concebida no ano precedente. " Aqui há, então,
um primeiro erro . Pollock descobriu além disso que Dora não se sui
cidou nos Estados Unidos, como expunha Jones, mas sim o fêz em
Viena quando os nazistas bateram a sua porta para transportá-la para
um campo de concentração, o que foi co:i:ifirmado através de reiteradas
entrevistas de seus familiares 1 0 • Estes são erros que valem a pena
corrigir em honra da verdade, segundo aconteceram os fatos, mas não
modificam, em absoluto, a referência decisiva a uma brusca e inespe
rada irrupção da sexualidade. Foi esta que provocou a fuga atemori
zada de Breuer ante este pequeno fardo . Evidentemente, ele sabia que
não se tratava de um filho seu; então qual era a questão? O que
faríamos em seu lugar? Dizer que o suposto filho era uma demanda
dirigida a outro, ou dar conta da dimensão do engano que constitui
a transferência?
Lacan, com sua habitual agudeza, captou o que sucede com as
vicissitudes do amor já . desde o início da análise.
153
Quando se instala o amor de transferência o analisando quer
transformar-se em amável, não no sentido de gentil, mas sim de alguém
possível de ser amado . Consegue propor-se 1,1esse lugar colocando o
analista no lugar do amador. O amador e o amável conformam uma
dupla que tem sido reconhecida pela outra psicanálise, a qual lhe pôs
o nome ---:- talvez tomando-o da história de Breuer - de " lua de
mel " . Moniento crucia!, enquanto instala o engano como constitutivo
da relação . Parece-me necessário destacar . que se - como acontece -
existe algo passível de desencadear uma situação não criada pela aná
lise, mas por ela aproveitada, esse " algo " é nada. menos que a regra
psicanalítica fundamental : a livre associação . Como recordarão, esta
não consiste em nenhuma introspecção dirigida, nem em nenhuma re
contagem de estados afetivos . Esta ordem de fazer falar, de dizer o
que quer que seja; é válida porque implicitamente estou habilitado,
enquanto analista - como encarnação do sujeito suposto saber -'
para poder interpretar acerca de seu desejo. A sustentação sistemá
tica da livre associação posiciona - como efeito de estrutura - o
analista no lugar de ideal do eu . Esta posição exige um pólo comple
mentar no outro extremo : o eu ideal, o amável :
{amador) {amável)
1 54
Refiro-me aos capítulos VII e VIII da Psicologia dos grupos e
análise do ego, intitulados respectivamente: A identificação e Enamo
ramento e hipnose. O começo da análise é um momento lógico acerca
do qual pode-se postular - alegoricamente - a existência de uma
hipnose. Isto significa que tanto na análise como na hipnose - como
Freud chega a detectar -'-' há uma perda do juízo crítico e uma en�
trega a uma instância do ideal por parte do analisando. Isto não ocorre
por submetimento ou por ingênua dependência mas sim porque parti
mos do engano do amor. Esta é a maneira em que amando, se consti
tui este engano, isolado em sua atualidade, na transferência; vale
dizer, o que· sustenta que amando, me faço amar. Pensemos então
quanto tem esta situação transferencial em comum com a dimensão
do enamoramento.
A concepção da psicanálise com respeito ao amor é, em geral,
bastante decepcionante. Algo em aparência tão elevado, tão sublime
como o amor, fica relegado, por exemplo, à afirmação de que se ama
no outro aquilo que não se possui para poder alcançar o próprio ideal.
O amor não passa a ser senão uma pequena volta do eu para exaltar
se como ideal. Se idealiza-se finalmente o objeto de amor, será somen
te para declarar: " se um objeto tão maravilhoso me ama, quão ll!agní
fico devo ser eu". J! nesse elementaríssimo raciocínio onde toma seu
apoio, sua explicação, a instauração - a níveis �ssombrosos, não pou
cas vezes - da carência de crítica, da perda da mais mínima objetivida
de. Ingressamos, assim, na estrita dimensão da idealização. Então, são
duas formações de ideal com as quais estamos trabalhando: ideal do
eu, eu ideal. Trata-se de dois planos que, de uma forma ou de outra,
giram em torno do amor, se bem que excedam esta apreensão.
. No capítulo VII da Psicologia dos grµpos e análise do ego Freud
distinguia · três tipos de identificação. Metodologicamene, não nos in
teressa, no momento, o modo como as encadeia, mas sim a maneira
em que essa discriminação é lucidamente explorada por Lacan para a
intelecção da cura. Porque, efetivamente, oferece um calilinho privi
legiado parâ penetrar, · suH!mente, no suceder da cura analítica. Para
além dela é a gênese ou o modo como Freud teoriza, ocorre naquela
uma identificação pertinentemente chamada como narcísica e que se
relaciona, de maneira muito clara, com o amor. Em termos lacanianos
pod�rrios denominá-la imaginária ou especular:
155
Ideal do eu --------- Eu ideal
(amador) (amável)
Identificação
narcísica
(imaginária,
especular).
Podemos situar neste esquema uma letra para indicar uma das
localizações funcionais em jogo. Será um I , por cujo intermédio nos
aproximamos da idéia do lugar do analista equanto ideal do eu:
156
demanda carrega. Tampouco devemos deixar de escutar, ao realizar a
escansão do termo repetição, ali surge uma re-petição, quer dizer, um
voltar a pedir; portanto, também entra em jogo o fator de demanda
tomado na vertente repetitiva - falha - do voltar a pedir. A deman
da não é conteúdo manifesto, enquanto que o desejo é conteúdo laten
te, se bem que cabe dizer · que pelos caminhos da demanda rasteja o
desejo. Mas também há demanda inconsciente, pelo que esta discri
minação não tem validade. Resta dizer que a demanda é demanda de
amor. Peça o que se .peça, finalmente é amor o demandado; creio que
esta é uma captação muito fina do que sucede, obviamente, em tantos
pedidos dos analisandos. O desejo, em troca, não se pode senão cercá
lo para ir circunscrevendo-o, mas não há, nesta ordem, uma possibili
dade de nomeação como ac,ontece com respeito à demanda.
Para formalizar a função da demanda na análise, a qual é deman
da de amor - sempre em termos da primeira identificação, a' amoro
sa -, o Seminário introduz um recurso topológico muito simples:
o oito interior:
157
seu analista é alguém maravilhoso, e quer ser como ele. Essa é sua
demanda. Por isso o analista é chamado a encarnar, por via da deman
da, o ideal com vistas a uma identificação. Se se idealiza, o modo em
que tal idealização posteriormente se fixa, determina que, daquele de
quem se diz estar enamorado, se termine procurando a identificação.
Por isso dizemos - com Freud - que existe uma oscilação captu
rante entre o enamoramento e a identificação. A demanda é conduzida
pela transferência até a identificação, mas detrás - no lóbulo oculto
- permanece a d; na cura : desejo do analista. Este é_ o que trata,
precisamente, de impedir a efetuação de tal trânsito; procura, então,
que a transferência não conduza à identificação, advogando pelo res
tabelecimento da demanda. Devemos destacar que isto mesmo que
acontece em toda análise - e prospera naquelas teorizadas inapro
priadamente - em certas escolas analíticas tem sido louvado - ape
sar do paradoxo - como o fim mesmo da análise. A identificação
com o analista é ali buscada, estimulada, o qual se por um lado cons
titui um disfarçado afago narcísico, por outro aliena hipnoticamente
o analisando atrás da pessoa (no sentido etimológico grego de máscara)
do analista.
Esta identificação, na realidade é um momento de detenção da
análise. Pode dar lugar, obviamente, à símile, onde parece que há
psicanálise quando o que ocorre algumas vezes é que se oferece - a
palavra é demasiado brutal, mas ilustrativa - satisfação de uma de•
manda. 'A bem da verdade, tal satisfação é absolutamente impossível,
mas o que se produz é um incentivo narcísico altamente efetivo, de
maneira que a demanda possa conduzir à identificação. Devemos acla
rar, neste ponto, que a identificação não é meramente um processo
&lobalizador, totalizador. Freud postula um segundo tipo de identifi
cação, denominada por traço, por linha. Não é necessário que, ao
identificar-se, isto suceda no sentido de ser " imitada" alguma tota
lidade. Basta um único traço ou linha, nos adverte : um einziger Zug.
Lacan pontua e privilegia este termo; ' indubitavelmente, tem sido seu
mérito tê-lo destacado em Freud, tal como o fêz com tantos outros
conceitos . Então, basta um único traço ou linha para que a identifi
cação do segundo tipo aconteça: o einziger Zug, em conseqüência, é
vertido como traço unitário. Esta identificação pode dar lugar, por
exemplo, à formação de muitos sintomas. Pode ter-se o mesmo sintoma
de alguém a quem se ama. Eventualmente também pode-se sofrer o
sintoma de alguém a quem se odeia. No primeiro caso trata de possuir,
1 58
em si mesmo, o objeto amado . No segundo, o sintoma aparece como
possível castigo frente ao ódio. Os exemplos são múltiplos e há um
elemento crucial para levar em conta. Entendemos que esta formação
ideal, este ideal do eu, possui em seu núcleo um traço unitário. Todo
ideal do eu começa, efetivamente., através de uma identificação por
traço, por linha, a qual permite, a partir de um núcleo, a gestação
do ideal. Esta segunda identificação pode às vezes detectar-se nos
diversos analisandos de um mesmo analista. Tal traço reinterativo faz
com que se reconheçam e que eles apareçam, de certo modo, como
sendo de " uma mesma família " , porque tem " um ar " em comum. O
qual bem pode obedecer aos limites da análise desse anal ista em
particular, cujo caso dará testemunho de um desfalecimento do _desejo
do analista. Em contrapartida, esse elemento comum não é produto,
necessariamente, de uma inferência ou de uma presunção vaga, mas
sim que se pode notar com clareza em traços ligados à fala e/ou em
manifestações de conduta surpreendentes . Analista e analisando cos
tumam não ter a mínima idéia desta identificação, já que possuem
uma condição - para dizê-lo em termos escópicos - de escotoma,
de ponto cego. Em suma, esta é apenas outra das muitas questões liga
das à particular maneira em que pensamos esta fase de estancamento
da cura. A respeito disso; uma vez mais a proposta consiste em con
vidar o analista a despossuir-se do falso brilho que lhe outorga o
poder de ocupar o lugar a que é proposto continuamente pelo anali
sando, como efeito da própria estrutura da psiconeurose, coligada com
o dispositivo analítico . Ao invés desta vaidade, desta ostentação, o
que Lacan propõe é ocupar um lugar mais modesto; aquele que lhe
permite erigir-se em suporte do objeto a, causa do desejo do analisan
do. Agora, se isto ocorre, o problema consistirá em poder distanciar
se de I, para poder isolar-se como objeto a:
l
I Identificação
narcísica
(imaginária,
espec;ular)
159
Se alguém consegue colocar neste lugar do objeto0causa do desejo
- "semblanteá-lo" - o que consegue é, ao invés de fixar-se ao ana
lisando enquanto amável, produzir o que o Seminário 8 denomina
a metáfora do amor. Esta traz consigo , denota, o fenômeno da inver
são dos lugares. Como conseqüência, do antes amável emergirá . agora
um sujeito barrado, que promove uma mudança decisiva no plano da ·
identificação :
l
I Identificação
narcísica
(imaginária,
especular)
a s
Este deslocamento implica que já não devemos compreender o
que sucede nos exclusivos termos do engano do amor, uma vez que
instaurou-se o sujeito do desejo. Ao escrevê-lo como sujeito barrado .
deve�os pensar em outra dimensão convocada; do amor, passamos
ao desejo. A questão será poder apontar o desejo do analisando e
" liberá-lo " , precisamente pela destituição do analista deste lugar do
ideal. :e um processo de despossessão, passível de ser realizado me
diante diversas manobras que se solicitam do desejo do analista. Vale
a pena mencionar uma destas manobras, por cujo intermédio Lacan
entende que o analista pode despo�suir-se, destituir-se.
O corrimento do analista a partir de I não se define de um mo
mento para o outro . Não . basta propor-se voluntariamente não ser
mais I . Trata-se de um processo árduo, porque, sobretudo, nos depa
ramos com o obstáculo fundamental do engano narcísico de "um"
analista, que o convida a consolidar-se em I . No texto Subversão do
sujeito . . . , por exemplo, nos encontramos com uma pequena referên
cia que merece tomar-se em toda a sua qualidade e precisão técnica
- implica uma Tekné, por isso o termo. Lê-se ali : " . . . uma vacila
ção calculada da 'neutralidade' do analista, pode valer para uma his-
1 60
térica mais que todas as interpretações, sob o risco de um enlouque
cimento - transferencial - que pode resultar disso " 1 3 •
O conceito de uma vacilação calculada da "neutralidade " do ana
lista poderia desmontar-se da seguinte maneira, levando em conta cada
um dos termos. Vacilação calculada significa algo não surgido como
um acting intempestivo do · analista, mas sim como produto do cálculo
dos efeitos de tal vacilação. O analista não vacilará exatamente de I ,
mas sim do modo de despossuir-se do lugar do ideal. O conceito de
vacilação calculada da "neutralidade" postula o não ser neutro; inver
samente, aponta a uma particular tomada de partido, em um dado.
momento. "Recomendação" cautelosa, sem dúvida, de todos os câno
nes reprodutivos acerca da conduta esperável do analista, isto é,
aqueles que opinam que um analista não · aconselha, não indica, não
sugere, não opina etc. Além disso, e a manobra vale, para medir seu
efeito, mais que um sem fim de interpretações. E se refere-se ao caso
da histérica, considero esta "indicação " como absolutamente fecunda
para a direção da cura em geral. A vacilação calculada pode valer,
então, mais do que inumeráveis interpretações. l! um tipo de inter
venção que provoca um impactante efeito de interpretação, um ato
analítico; supostamente: significante.
Congruentemente, o texto se estende, na seqüência, sugerindo ao
anaiista a pertinência ocasional de "transmitir a dimensão imaginária
de seu não domínio, de sua necessária imperfeição" . Aqui está em
jogo, entendo, a questão da identidade, e do que o analisando espera,
a todo momento, será o proceder do analista, O modo, muitas vezes,
de provocar um efeito analítico, é justamente fazer calculadamente o
que não se espera do analista. Ofereço-lhes um exemplo muito simples.
Um analisando chega à sessão meia hora mais tarde do combinado.
Ao chegar, assinala que só veio para "avisar", e que já se vai porque
terminou a "sua" hora. Neste caso, fazê-lo entrar seria uma interven
ção deste tipo. Não interessa se na seqüência viesse outro paciente.
Pareceria ser, nesse caso, que a sessão aconteceu quando o analista
quis, ou que cedeu à demanda, que não frustrou a mesma etc. Se pen
samos, pelo contrário, na proposta convocadora da singularidade e
não da geração de normas .:_ como se fossem receitas - a situacão
muda. O analisando chegou tarde à sessão dando por subentendido
que ia encontrar o analista em certa posição. O fazer que não o en-
161
contre no lugar que o esperava é da ordem da vacilação calculada da
neutralidade; aponta, pois, a um encontro falho. Este movimento faz
parte de uma série de manobras da transferência. É uma intervenção
em ato, um ato analítico, porque dali emerge, se toca de leve, um
efeito de verdade - semidita - no qual não está ausente a dimensão
da interpretação . Recordo disto porque já há algum tempo existe um
certo livro originado em um setor do âmbito local reclamado como
lacaniano, intitulado Ato e interpretação; sim, como se fossem dois
termos disjuntos. No meu entender, isto não tem nada a ver com o que
Lacan ensina em seu Seminário . 1 5 : O ato analítico. Ali ele transmite
que tal ato está ligado à ordem significante. Postura, por outro lado,
que jamais mudou .
Voltando à recomendação " técnica " : ela nos serve, também, para
levar em conta de que maneira devemos respeitar o princípio de que
o analista deve envolver-se na cura inclusive com sua pessoa, como
bem o assinala em A direção da cura 14 • Isto não comporta jogar
diversos papéis no transcurso do tratamento psicanalítico ao modo
psicodramático, o que não seria tão comprometedor por parte do ana
lista. Há algo muito mais difícil na proposta lacaniana de que para
ser analista se precisa não sê-lo. Não sê-lo de acordo com os cânones
nos quais aparentemente fica tudo regulamentado, porquanto se sabe,
exatamente, o que pode esperar-se do analista. Lacan disse muito clara
mente: do analista só deveria esperar-se simplesmente uma cura ana
lítica. Pelo visto, este enunciado se encontra muito distante de ser uma
grosseira tautologia.
Para finalizar por hoje vale a pena resgatar algumas notas adicio
na is sobre o termo saber, ambíguo em si mesmo e facilmente com
preensível - isso é o lamentável. O saber ao qual fizemos referên
cia neste encontro não trata, reitero, do cognoscitivo ou epistêmico.
Aponta, em todo caso, ao que tematiza no texto Variantes da cura
tipo 15 : o que o analista deve saber é ignorar o que sabe, isto é,
poder encarar cada análise · como efetivamente uma novidade. O ana
lista não deve embarcar atrás de reencontrar o mesmo senão que ne
cessita suspender seu saber de acordo com uma atitude de douta
ignorância. Isto não é uma negação do saber, mas sim Sllil.
forma mais
elaborada. E, o pedido por uma escuta - como desideratürn - virgi-
1 62
nal, e não uma ratificação do já conhecido. Esta é uma das prerro
gativas, a meu ver, que definiria como característica substantiva da
função desejo do analista.
Questões
163
VII
ERASTÉS, EROMENôS - QUATRO LIMITES,
CINCO DESTINOS PULSIONAIS
1 65
ção : a esfera constitui uma "boa forma' ' de representar graficamente
a factibilidade do encontro hipnótico, situado na antítese da análise .
1 66
não consiste em impor ao analisando um determinado modelo ou pa
drão de conduta, uma espécie de esquema de valores determinado, de
vitalidade salutífera, usufruindo para isso dos poderes conferidos pelo
engano amoroso. Estes aspectos aludem precisamente a alguns dos ris
cos aos quais o psicanalista se · expõe ao desfalecer de seu lugar. Ao
incorrer neles, claro, se .deixa de ser analista, não importa o título
nem a antigüidade na dedicação a nossa prática. O analista pode
"cair" de seu lugar se começa, por exemplo, a fazer um sermão im
plícito onde tenta conformar o analisando · a sua imagem e semelhan
ça. De fato a transferência implica, em um sentido lacaniano - por
freudiano � a possibilidade de poder renunciar ao poder com que
nos investe o lugar de analista. Do contrário, fazendo uso - abuso -
de tal poder, é como nos deslizamos para a antípoda da psicanálise:
a sugestão. Devemos recordar - processando uma escansão com este
termo - que, quanto ao proceder do analista, sugestão não deve
transformar-se em sugestão. Aquela deve permitir centralizar a trans
ferência, e não constituir-se em uma incidência a partir da qual o
enunciado pelo analista se converta em um ditame sentenciado a par
tir de uma particular intimação. Sempre se fala da transferência, se
a reconhece e se a interpreta, ou não; isto, desde já não é igual à
chamada análise da transferência. Não basta unicamente ter presente
este ponto, já que há outro vetor muito importante a considerar. Com
suma sagacidade o Seminário o enunciará da seguinte maneira: não se
trata só do que o analista quer fazer de seu paciente, mas - também
do que o analista quer que seu paciente faça dele. Esta afirmação
sustenta, então, que se pode "reconhecer" o desejo de determinados
analistas. Em tais casos já não estaremos frente ao desejo do analista,
mas sim por exemplo ante o de Abraham, ou de Ferenczi ou o de
Nunberg, evidenciáveis em suas teorias particulares, em suas dire
ções da cura e no que esperam como fim da análise. Todos estes
elementos, entre muitos outros, encontram-se impregnados pelo dese
jo desses analistas. Então, pode comprovar-se como Abraham preten
de ser uma espécie de mãe completa. Pode-se pensar, com estrita
lógica, que tal pretensão alcança · seu zênite no desejo do kleinismo.
Para esta concepção, com efeito, o analista deve chegar a ser, ao
mesmo. tempo, um objeto bom e mau. Começando pela dissociação
enj:re um objeto persecutório, e outro idealizado - como o expressa
Melanie Klein 2 -se consegue finalmente a integração objetal e a
167
síntese egóica. Ser uma mãe completa é aquilo que demanda o ana
lista a seu paciente que este faça dele. Em outra conceitualização,
como a de Nunberg, decanta uma ideologia de aspiração divina, con
gruente com certas postulações arbitrárias sobre a vida e a morte,
tal como podem ser apreciadas nas teorias deste - não obstante -
brilhante psicanalista, redator de uma valiosa Teoria geral da neuro
se ª · (Segundo me informaram, uma editora está para reimprimir em
castelhano · este livro escrito enquanto Freud ainda vivia e prologado
por ele mesmo. Tal texto está há anos-luz, em relação · a sua quali
dade, da famosa obra de O . Fenichel sobre o mesmo tema: Teoria
psicanalitica das neuroses).
Coni os capitais instrumentos oferecidos pelo ensinamento la
caniano podemos repensar, em torno da transferência, uma série de
concepções onde o analista se situa não renunciando ao · 1ugar que na
reunião passada assinalamos com um I , sem mais acréscimos. O I
denota o idealizante da identificação e, como seguramente recordarão,
discriminamos este I de outro conhecido materna, aquele escrito co
mo l(A) .
O segundo materna se lê, rigorosamente, como ideal do eu. O I
é outra instância aparentada, obviamente, com a anterior. Contudo
a notação diferencial implica o propósito de marcar uma diferença
conceituai. Aquilo · que o analista quer que seu paciente faça dele
indica - no meio de suas variantes - como demanda de seu ana
li�ando uma idealização como veículo capturantemente identificatório.
Vale ressaltar que não o desapropria do lugar idealizante da iden
tificação. O que propunha Lacan como alternativa, como aquilo que
deveria remover a função deste l? Nem mais nem menos que o
objeto' a:
168
to a é o deslocamento que cabe ao analista realizar. Poderíamos re
formular, baseados neste desenvolvimento, o falado sobre o desejo
do analista- não o de Abrahan, o de Ferenczi, o de Ntmberg ou
qualquer outro. Se o analista não pode desocupar esse lugar narcí
sico no qual o coloca seu desejo não é possível a assunção do desejo
do analista, o que implica posicionar-se no lugar de resto, de resíduo
enquanto objeto. O lugar rio analista não é esse âmbito unitário, in
teiro, esférico, pleno e completo - próprio da dimensão narcísica ..-:
mas, pelo contrário, um lugar como o do resto de uma operação
aritmética de divisão. Este · resto é precisamente o que permite ao
·
analista erigir-se da seguinte forma:
Analista Analisando
I Eu ideal
Amador Amável
1 69
Analista · Analisando
I Eu ideal
Amador Amável
(erastés) (eromenós)
A n alista A n a l isando
Eu ideal
Amador Amável
(erasté,) (eromenó,)
�
S . M. Klein, op. cit., in Vários, Las emociones básicas del hombre, Buenos
Aires, Nova, 1960, pp. l0S-94.
170
Melanie l(lein quando reitera, várias vezes, que a inveja impede a
gratidão, postulando esta última como vetor crucial para a cura "re
paradora" do objeto. A proposição lacaniana, com o seu tom castra
dor, afirma incomodamente com rigor que, como analistas, não de,
vemos esperar sermos "reparados" por nossos analisandos. O dispo
sitivo analítico não é uma oficina de reparações realizadas sobre o
imaginário envolvente do analista. E o ponto não é que este seja um
amargo pessimista nem que não saiba escutar gratificações ou grati
dões. :8 que estes enunciados podem ser produzidos por motivos não
manifestos, assim como em outras tantas ocasiões muitos analisandos
não podem · dar conta de sua ligação libidinal com o analista e culti
vam, com muita freqüência, um enfrentamento hostil nas sessões.
Seria não transcender o manifesto manter�se nesse plàno de contínua
rivalidade "invejosa" um especial perigo na análise dos obsessivos .·
- insistindo na questão da agressividade - alcançando portanto, so
mente reduplicá-la - em lugar de poder envolver o fator libidinal
que é impossível de evitar.
O desejo do analista, desejo da morte, consiste então em sem
blantear o objeto que causa o desejo, sem injúrias, claro, acerca do
ódio por ocupar tal ·destino. Uma forma de escrevê-lo em nosso es
quema é situando os termos finais, resultantes da relação inversiva
recém destacada:
Analista A nalisando
I Eu ideal
Amador A m ável
(erastés) º )
a � "'t'
Referir-se a uma causa do desejo conforma . um recurso inteli
gente, enquanto é capaz de eludir qualquer idealismo convocado pelo
sujeito da representação. O desejo, assim, não emana do interior
para buscar adiante, um objeto com o qual satisfazer-se. Pelo_ con
trário, é um objeto situado "por detrás" que se faz de engodo cau
sal. Devemos recordar, além disso. que o desejo não se acopJa de
um . modo harmônico com seu objeto correspondente. :8 a brusca pre
sença inesperada - · aquela ligada à Tiquê, a repetição ocorrida como
ao ao.aso - a que conta, pois ela recicla, no sujeito, seu barramento.
Barramento que também cabe considerar enquanto esquize - como
aquela detectada entre o olho e o · olhar .
-17 1
Todavia há outro movimento na análise, uma vez que não ter
mina aqui o que podemos expor sobre este engano crucial impli
cado na transferência. Engano consisiente - reiteramos - não no
fato de ver mal a alguém ou em ter alterada a percepção da realidade,
mas na característica local, e atual, do amor; esta car.acterística -
como muito perspicazmente Lacan a lê em Freud - é, em si, enga
nosa. Por isso mesmo é tão importante pôr em evidência como o
analisando - sem má fé, apenas levado pelo movimento de desdo
bramento de sua patologia na análise - tenta enganar o analista
- leia-se: amar o analista, vale dizer, querer fazer-se amar - tra
tando de convencê-lo de que o que importa é a cura pelo amor · 6 •
Este é um conceito de Freud sumamente valioso para poder com
preender a substância do acontecer analítico. Mas cura por amor não
unicamente no sentido óbvio apontado (aquele segundo o qual o
analisando buscará ser amado pelo analista) . Não, porque tão ou
mais importante que essa circunstância é a questão de certos obje
tos providenciais surgidos com freqüência no curso da análise, e aos
quais o sujeito praticamente confia sua vida, e, desde já, sua feli
cidade . Freud valoriza tais casos muito sabiamente . A princípio, claro ,
não haveria nada de mau neles ; o analisando disse ser feliz , pois
conseguiu à pessoa adequada, o amor de sua vida. Não haveria
maior problema, a não ser pelo traço de forçadíssima, de oprimente
dependência do sujeito em relação a tal objeto providencial. Esse
dado indica o estabelecimento de um laço bastante precário que , em
qualquer momento, pode pôr em perigo o aduzido, reclamado equi
líbrio do sujeito. Por outro lado, o que se fez - acrescenta Freud -
da "incapacidade para amar" própria do analisando? Muito usual
mente fica "resolvida" - de fato, agravada - mediante uma alter
nativa de escolha estabelecida entre o objeto providencial e o ana,
lista. Esta ;g�posição "ou . . . ou . . . " localiza-se em i.Im contexto
onde começa a ceder o interesse p�la análise, onde a aparência as
sinala uma franca (pseudo) ' melhoria sintomatológica.
Por outro lado, a escolha desta' pessoa pode chegar a ser ex
tremamente precisa, a ponto de tratar-se de alguém cegamente adver
so à psicanálise. Há mais casos assim do que se imagina. Portanto,
em alguns momentos pode estabelecer-se uma opção onde se capta
claramente a posição do analisando enquanto amável, o que indica
a crucialidade e a complexidade da problemática englobada na cura
por amor. Não ocorre este fato somente no caso óbvio do paciente
1 72
que, curado por amor, deixa impulsivamente sua análise em uma
acabada passagem ao ato. Pode-se dizer que esse é o caso mais des
caradamente patognomônico; ainda que, parecido com ele, existem
muitas outras sutilezas - concritualizáveis - em jogo, dentl'.O desse
engano chamado amor de - na - transferência.
Por exemplo, ocupa · um lugar na transferência outro elemento
que Lacan trabalha muito perspicazmente desde o seu primeiro Se
minário: trata-se do medo do analisando em relação ao engano, mas
em um sentido distinto do anterior. Assim, náo · é que tenha medo
de ser enganado pelo analista; teme, melhor dizendo, a possibilidade
de poder enganar o analista. Neste Seminário em questão Lacan re
fere o caso de um paciente que havia visitado uma série de ana
listas. O fato é citado por Michel Balint, analista · cujas concepções
Lacan criticou minuciosamente, sem que por isto deixassem de ser
amigos ínti_mos- a crítica lacaniana, por outro lado, dirigia-se a sua
teorização, não a sua notória sagacidade clínica. Relatava então que
certo dia, um senhor vem à consulta, e começa a contar-lhe uma
história estranhíssima, magnífica, longa, que é escutada atentamente
por Balint. Assim se sucederam várias entrevistas, até que finalmente
esta pessoa - veterana em ser entrevistada por analistas - recla
mou se iam ou não começar a análise. Balint respondeu que não era
possível - porque algumas coisas não estavam claras - ainda que
fossem interessantes - e ele não· conseguia compreender essa con
fusa história. Diante disto, o entrevistado, satisfeito, confessou que
Balint era o primeiro homem sincero que encontrava, porque tudo
o que ele havia dito eram mentiras, e os analistas visitados antes
acreditaram de pés juntos em seu relato, o que indicava que, ao po
derem ser enganados, eram charlatães e mentirosos 7 • Portanto, a di
mensão do ""'"posso lhe enganar" marca os limites da escuta atenta
e aberta, frente àquilo que possui simplesmente o vetor de prova.
Aqui é importante marcar, de qualquer maneira, que verdade e meh�
tira não são parâmetros válidos para a análise; na enunciação não
há mentira possível. O exemplo é importante, não obsante, para dar
conta que freqüentemente o analista, do lugar de I, costuma esboçar
queixas sobre porque o analisando não lhe proporcionou no devido
tempo um dado eventualmente essencial. Ante· esta reclamação, res
ponderá Lacan: porque·- o analisando tem medo que o analista inter
prete tudo em função de tal informação. Suponhamos, por exemplo,
que o analisando demorou para contar o fato de haver tido sífilis.
173
Dirá: "- não queria que você acreditasse que tudo se devia a um
problema orgânico, e me interpretasse sempre nesse sentido. Não ve
nho aqui para isso". Aqui aparece claramente esta dimensão do me
do, não de ser enganado pelo analista, mas este como vítima fácil
do engano. Em outras palavras, tem-se que a dimensão do amor traia
o trabalho , analítico.
1 74
a-bê-cê da pergunta analítica. Mas o certo é que um analisando de
traço obsessivo reclamará a sua condição de escravo, sempre à es
pera de uma palavra santa do analista. E , decisivamente, a obten
ção da fustigada permissividade: indagando, diante de cada circuns
tância, se ela se enquadra, ou não, em certo tipo de norma, enten
dida em sentido amplo. Dada essa situação, os atos da vida do ana
lisando estão marcados, inevitavelmente, pelo caráter de proezas ou
feitos heróicos, acerca dos quais nos vemos inclinados . a perguntar:
Tanto alvoroço por _isso? Como pode este ·analisando supor que tem
realizado algo titânico, um gesto fora do alcance de outros seres·
humanos? Não há nestas perguntas, está claro, interpretação algu
ma; mas consistem em uma reação psicol6gicà imediata, afetiva e
consensual, se cabem os termos . Tal dimensão de proeza - a ter
ceira em consideração - surge porque, com semelhantes cadeias, o
fato de que enquanto escravo que pede permissão e encontra-se . iner
me e desvalido, tenha realizado certas coisas, inevitavelmente suscita
um tom de façanha. A questão está sumamente relacionada com as
notas próprias do fantasma 9 , tema a respeito do qual não poderemos
fazer, no decorrer do nosso curso, além de algumas menções. En
tão, no obsessivo, esta característica da façanha, de travessia do Ru
bicão, da condição, pode-se dizer, até épica com a qual pretende
coroar seus atos e desenvolver sua vida, tem uma insistência real
mente proverbial. Não se trata de uma manobra intencional de cho
car; seu objetivo é bastante mais elementar, pois atende . à ordem
da constituição do sujeito. l!, nem mais nem menos, o modo de ten
tar acomodar seu lugar no campo do Outro, de poder responder a
esse interrogante decisivo circunscrito pelo ensino de Lacan que diz :
Che voui?, o que quer? ou, melhor ainda : O que quer . de mim?
(segundo a ma1;1eira em que a pergunta do desejo aparece em Subver
são do suieito 10 , extraída do relato fantástico de Cazotte : O diabo
enamorado). Esta pergunta permite levar em conta, então, o seguinte
enigma: O que o analista quer de mim?
1 75
A manobra, ao contrário, será efetuada pelo analista para destituir-se
de tal lugar, no qual havia sido instalado por um movimento próprio
da estruturação da situação analítica. Deste fato dá conta o traçado
do oito interior, que é uma superfície com propriedades topológicas
mencionadas em nossa última reunião. A maneira na qual circula a
demanda consiste em levar a transferência a esse momento de estan
camento da análise chamado identificação. Momento este inevitável
e que muitos analistas têm concebido como o non plus ultra - não
mais aléin, não vai mais - da psicanálise . Não obstante, uma vez
em presença da identificação com o analista - um "êxito" de de
manda, enquanto é demanda de ser como o analista - deve-se abrir
caminho para isto . Certa vez intitulei ironicamente um trabalho desta
forma: "Ser (o) analista : fim da análise? 11 • Obviamente que não é
assim, se procedemos a uma primeira operação, a uma primeira in
flexão : de I a a. Todavia deve haver outro momento na análise. Estou
falando, obviamente, de momentos lógicos, não dos pertencentes a uma
sucessão cronológica. O que coloco de forma diacrônica deve . ser
apreendido em sentido sincrônico, vale dizer, no sem-chronós, no Ou
trochronós. Se fazemos um corte, podemos notar que inclusive até
em uma mesma sessão analítica pode ocorrer esta passagem : que o
analista se erija em I para logo passar a a, segundo o seguinte es
quema linear (m�s não é métrico) :
I a
1 eu ideal despersonalização
1 76
Trata-se de um conceito . extraído diretamente do campo da esquizo
frenia; contudo, não há porque temer a concepção denotada pelo ter
mo, da forma como é retomado por Lacan.
Vendo por partes, encontramos que o enunciado "no limite" não
significa, não aponta, a uma estrita despersonalização. Não obstante,
ela existe em aproximação, porque o sujeito perde, nesta circunstân
cia, os baluartes narcísicos que o sustentam como um eu . A perda,
claro, não é definitiva; tampouco se trata de uma possível psicotização.
Se alguém é neurótico, não o convertemos por esta inflexão em um
psicótico; tal presunção, na verdade, não é mais que outra das ilu
sões sobre os pretensos poderes ilimitados da análise. :e possível -
sem dúvida - que, talvez por pressa, talvez por uma má captação
do que acontece nas entrevistas preliminares, talvez por ambos os
motivos, uma análise' possa desencadear - não determinar - uma
psicose em um sujeito� pré-psicótico. Aí se argumentará, com certeza,
que a psicanálise teve a culpa. Em certo . sentido lhe cabe a respon
sabilidade, enquanto foi a prática por cujo intermédio desencadeou-se
a psicose . Mas ali não se desenvolveu, não se produziu ex nihilo -
do nada - senão que conformou, reitero, o fator desencadeante.
A despersonalização a qual aludimos implica dimensões momen
tâneas, instantâneas, onde repentinamente ocorre uma queda do sen
tido enquanto a sua plenitude obturadora. Tal queda prolonga-se só
por um instante, pois prontamente se recobrirá com outro sentido.
· creio que é neste ponto que Lacan insiste -- no último capítulo do
Seminário, intitulado: Em ti mais que a ti - quando afirma que se
trata, no fim da análise, de atravessar o fantasma, dar uma volta com
pleta - aludindo ao suporte do oito interior. Este momento - lógico
e vivencial - deve produziMe várias vezes, pois o fim da análise
não quer dizer exatamente o término da mesma. Não alude à cir
cunstância do fato de cessar os encontros entre analista e analisando,
mas sim a uma experiência que deve atravessar-se várias vezes no
curso de uma análise. A despersonalização, então, é possível porque
o a deixa de operar como causa, desprendendo-se de sua localização
no analista. Por este desprendimento do objeto a, o sujeito "perde" -
pontualmente - o barramento que o singulariza no tocante a seu
analista. Não esqueçamos, a esse respeito, que o sujeito cindido só
pode sê-lo, só pode pôr-se em ato, na medida em que esta partição é
sustentada pelo objeto a. Por isso, o branco no segmento do esquema
anterior - o do analisando. Por isso, também, o desprendimento de
a comporta mais do que a perda das sustentações euóicas : implica
tocar o real da pulsão. Em termos de Lacan : "A experiência do su-
177
jeito é assim conduzida ao plano onde pode presentificar-se, da reali
dade daquilo que é inconsciente, a pulsão " 1 2 •
Ponto que corresponde, portanto, ao ingresso em nosso quarto
conceito fundamental : a pulsão. Conseqüentemente, mudaremos agora
nossa atenção para o caminho com o qual se aborda a sexualidade.
Chamaremos a atenção pela forma como esta está pensada, no Se
minário 1 1 , por sua relação com o amor . Definimos a transferência
como a realidade daquilo que é inconsciente posta em ato, realidade
que é antes de tudo sexual. Imediatamente nossa exposição passou
do sexo ao amor. Cabe aqui a pergunta mais elementar: Isto é assim
mesmo? I?. viável tal passagem?
. Que a sexualidade não é alheia ao amor é um dado detectável não
só na experiência clínica. Recorramos aos textos, sobretudo ao traba•
lho psicanalítico crucial sobre o conceito fundamental que agora nos
propomos a abordar. Como já terão inferido corretamente, o texto
em questão é o nosso . conhecido Pulsões e destinos das puls�es. No
primeiro encontro nos servimos justamente da abertura epistemológica
de tal · artigo para apresentar a problemática do conceito fundamental
(o Grundbegri/f). Voltaremos, agora, aos. desenvolvimentos específi
cos ali explicitados.
Se efetuamos uma leitura atenta de Freud, perguntando-nos · se
sexualidade e amor são homogêneos, poderemos ver sua situação : en
contram-�e eminentemente discriminados. Aparece uma primeira parte
acerca dà pulsão e de seus destinos, para logo dar lugar a uma im
portante referência ao amor, colocado quase em uma função de borda
com respeito à sexualidade. I?. abordado, mas ao mesmo tempo se
destaca que não está exatamente compreendido no sexual . No amor
ressalta uma dimensão onde predomina a unidade, a totalidade ; em
síntese: a síntese, a estrutura narcísica. Em compensação, não acon
tece assim com a pulsão. Dele poderemos reconhecer, efetivamente,
diferentes elementos ou componentes ou termos, os quais não são sepa
ráveis no amor. Em função d� outras hriáveis o mesmo poderia· ser
considerado sobre o desejo, conceito no qual não se pode separar
limites e destinos. Ao nos defrontarmos com a pulsão, em contrapar
tida, aparece de forma imediata uma diversificação pontuável.
Quando trabalhamos, já há vários encontros 13 , a questão do es
cópico, desenhamos um esquema com quatro tipos de pulsões, tal
178
como se apresentam na conceitualização lacaniana: oral, anal, escó
pica e invocante. A esta altura, retomaremos tal classificção para ana
lisar como se compõe cada pulsão, em primeiro lugar, e qual é seu
respectivo destino . Existem, no que nos interessa agora, três pontos
distintos a respeito da pulsão, nos quais surge insistentemente o nú
mero quatro. Assim se pode observar nas três colunas - não cor
respo�dentes - que podemos dispor no seguinte quadro, em cuja
primeira coluna situamos as pulsões recém mencionadas:
- oral
- anal
- escópica
- invocante
- fonte - oral
- objeto - anal
- pressão - escópica
- fim - invocante
179
Os destinos pulsionais também são quatro, de modo que os in
cluiremos nesta matriz. São: transformação no contrário, volta contra
a própria pessoa, repressão, sublimação.
1 80
Por outro lado, levamos em cont� que, apoiado na superfície unila
teral conhecida como bando de Mõebius, Lacan demarca que, na rea
lidade, pulsão de vida e pulsão de morte não são senão dois aspectos
da pulsão situados na mesma face. Se recorremos ao trajeto de um:a
pulsão - na banda -mõebiana - concebida como pulsão de vida, a
veremos transformar-se de · pronto - na "outra" face, que é a mes
ma - em pulsão de morte, para logo inverter-se, nóvamente, reto
mando a primeira. Não se trata, assim, de montantes maiores ou me
nores de uma ou outra pulsão, nem tampouco de s�ltos . metafísicos de
um tipo ao outro, nem da idéia tosca que faz . alusão a um entre
cruzamento. Freud, sem dúvida, delimitou o conceito de pulsão, mas
sua formalização advém com Lacan. Nos Escritos, reflete acerca da tra
dução do termo Trieb, propondo, entre outras altern�tivas, por "de
riva" 1'1. Talvez pareça estranho, a esta altura, referir-µos à deriva
de vida e deriva de morte. O termo é válido e ajustado, não obstan
te, porque conota o caráter de trajeto, de deslizamento, próprio da
pulsão. Ademais, sobretudo, deriva leva em conta muito melhor o
instável, o variável, do objeto da pulsão.
Banda de Moebius 1 8
181'
A classificação recém colocada requer ao menos situar a defini
ção que Freud expõe em seu texto. O trabalho assinala : " . . . nos apa
rece como um conceito-limite entre o psíquico e o somático". Aqui já
devemos apontar, porque estamos trabalhando a questão dos concei
tos fundamentais, alguma consideração sobre "cop.ceito-limite" . Freud
não disse que ô conceito está apoiado entre o psíquico e o somático;
o conceito de "limite'' implica que ele deve poder ser trabalhado como
um nó no qual participam o psíquico e o somático. Por outro lado, o
texto tampouco alude a que a pulsão cônte com um forçado referente
empírico. ·Em todo caso, podemos outorgar-lhe o estatuto de ficção
,no sentido proposto por Jeremy Bentham, o utilitarista inglês. A fic
ção �ão é o oposto da verdade; não é uma falsidade. Melhor dizendo,
"ficção" - tal como vimos em nossa primeira aula - é o que per
mitirá a Lacan definir a verdade mesma. "A verdade tem estrutura
de ficção", chegará a expressar. Assim, não devemos "superar" a fic
ção· para chegar logo à verdade. Pelo contrário, enquanto a verdade
se diz - e não vai dizer de todo - não há outra alternativa que
suportá-la como ficcional. A ficção - como a narrativa o demonstra
- não é catalogável segundo Ós cânones formais, tradicionais, da
divisão verdadeiro-falso.
182
- entre outras - a impossibilidade de subscrever conceitualizações
como as kleinianas. Hanna Segai define a fantasia inconsciente - ao
apresen.tar com solvência as idéias de Melanie Klein - como "a
expressão mental dos instintos" 19 • Não há ali trabalho algum. Não
se toma uma matéria-prima inicial, se a articula com um instrumento
determinado de aplicação- é se obtém como resultado algo distinto da
matéria originária, Se há trabalho deve haver mutação, mudança,
transformação. Pensemos no processo que vai desde cortar uma árvore
até convertê-la em unt banco de madeira. Efetivame�te este processo
pode dar lugar a todo tipo de investigações filosófica.s : oµ metafísicas.
Mas não é nisso que nos deteremos, mas sim em reparar como Freud
privilegia a dimensão do trabâlho. Esta exigência do corpo, que se
arremata em uma ordem psíquica, em nada se atém ao âmbito do
instinto. "Arremata", enquánto não se trata de postular um coroado
decalque epifenomênico, como acredito acontece em Melanie Klein,
onde se concebe o psíquico como um mero correlato subordinado e
mecânico. Em tal corrente, através do uso do termo instinto se acaba
por sustentar que o universo fantasioso - inconsciente ..:..... está pré
constituído no funcionalismo J:,iológico. A partir destas idéias - e
incluo isso para demonstrar que elas não são questões ocultas· ·a res
peito das quais se polemiza tolamente - tem sido viável pensar
coisas tais como que a inveja está detern1inada pelo funcionamento
hepático, responsável pela "fabricação" das fantasias específicas. A
esta conclusão se chega atendendo à função cumprida pelo fígado,
decisivamente catabólica, "destrutiva". Por certo' que esta função faz a
digestão; como tal, é necessária e imperativa. Um autor disse, então,
que este processo possui uma expressão mental : a inveja. Para ele, o
invejoso será quem tenta romper e destruir aquilo supostamente va
lioso possuído pelo outro. Com Lacan, em troca, temos aprendido
- neste Seminário - que a inveja está ligada com o olhar, com o
mal olhado, que pouco ou nada se relaciona - enquanto valor in
trínseco - com o que tem o outro. Simplesmente, se trata de que · o
outro aparece unido ao que tem, oferecendo "a imagem de uma
completude que se basta''. 20 • Inveja-se a imagem de completude ofe
recida pelo outro com tal Qbjeto, com o que foi, e, não com aquele
que "dá vontade ". À luz destas afirmações podemos entender melhor
alguns dos problemas surgidos neste campo, · aludidos por essa fi
gura - clinicamente tão valiosa - denominada por Freud como nar-
1 9 . H. Segal, lntroducción a la obra de Melanie Klein, Buenos Aires, Paidós,
1 965, p. 20.
20 . J. Lacan, Los cuatro . . . , cit., p. 125.
1 83
c1s1smo das pequenas diferenças 2 1 • Pequenas diferenças, claro, mo
tores muitas vezes das disputas mais ferozes. Mais do que o distante,
inveja-se o próximo. Essa dimensão contempla uma intelecção ati·
nada, racional, da rivalidade concorrencial - esta, que se denomina
inveja -:- por como o outro tem o a. Se não, levado pelo raciocínio
kleiniano, pode conceber-se - como já se tem feito - que assim
como há uma fantasia hepático-invejosa, há outra cardíaca, outra pul
monar etc. Em suma: se calca, baseado no funcionamento orgânico,
uma -fantasia · presunçosamente psíquica que cumpre a mesma função
etn se� terreno que um órgão com relação ao funcionamento global
qo organismo biológico.
Devemos levar em conta, marcadamente, o demonstrado por La
can : Trieb é um conceito inédito que vem revolucionar a teoria.
Quem traduz Trieb por instinto põe a perder o edifício freudiano.
Não é uma questão de meros vocábulos ; não, porque ao dizer ins
tinto já se começa a ter uma direção da cura e se orienta a operar
segundo o desejo de um analista, não do analista.
Por outro lado, Freud circunscreveu, com rigor, os alcances do
termo " instinto" . Pode-.se situar cinco passagens onde escreve Ins
tinkt para aludir estritamente ao instinto biológico, à dotação zooló
gica. Quando nomeia o quarto conceito fundamental, a pulsão ou a
deriva, escreve Trieb, o que indica que tinha as idéias bem çlaras .
Mais uma prova disto? O que escreve em Os leigos podem exercer a
análise?, · da seguinte forma: "Triebe, um termo que muitas línguas
nos invejam 22 •
Questões
P.: .. . .
R . : Perguntam-se se poderia me estender
' sobre a inveja; se im-
porta mais a imagem ou a idéia do outro completo, que o presumido
valor ostentado por esse outro. Para Lacan lhe parece um lugar
princeps para o tratamento desta questão uma referência de Santo
Agostinho, onde descreve - a citação não é textual, mas esta é a
idéia - como teve a ocasião de ver uma criança que, pálida e enve
nenada de inveja, contemplava sua mãe dando de mamar ao irmão
184
menor 23 • Trata-se por acaso de que esta criança necessitava, lhe era
útil, o leite? Era isto o valioso? Ou - usando o modelo kleiniano -
era o seio bom o que ela queria e que seu irmão menor lhe tirava?
Esta não está, na realidade, dependurado no a separado, satisfazen
do-se disto ? Por outro lado, não era esta a imagem da mãe com
a criança dependurada nela o que tentava render inveja? O insupor
tável é esta mãe-filho dependurado - não esqueçamos o valor fá
lico do filho coino tentativa de tampão da nassa, segundo o que já
desenvolvemos - onde não importa a satisfação orgânica como a
junção tão especial, a completude amboceptora produzida nessa ama
mentação . Aí aparece a inveja, remarca Lacan, seguramente lem
brando Freud, que em O sinistro havia discorrido acerca do " mal
olhado " em sua ligação com a inveja 24 • Trata-se de uma ordem o_nde
está em jogo o escópico . Para onde aponta o mal olhado? Na res
posta a esta questão trabalharemos mais adiante, dando conta do
contexto - mais abarcante - onde se insere. Por agora, digamos
que aparece ali a dimensão separadora do olho, no sentido de que
tenta separar, por exemplo, a mãe do filho que mima e este de pen
dência de a. Porque não é - reitero .:._ que esteja invejando o irmãó ·
menor amamentando, senão que é a fascinação desta imagem em si
mesma a captara. Tal situação pode dar lugar, ao se cristalizar de
maneira significante, a uma particular condição - requisito ...... para
a erotização . Tal fascinação pode erigir-se - articulada, está claro,
com outros fatores que omitiremos - em uma condição de e�cita
ção impossível de evitar em relação ao gozo .
186
certeza recusa a metáfora 27 • Mas o problema é, evidentemente, " pe
rigoso". Muitas vezes, é importante reconhecer, a questão passa pelo
plano ligado à experiência. Lacan mesmo chega a . aludir ao "saber
que a experiência deposita em cada um". Esta captação, definitíva
mente, relaciona-se com o training do analista e é dificilmente con
ceitualizável. Só podemos , apontar alguns dados fragmentados. Em
suma, o que é toda a técnica da psicanálise? Qualquer escolar pode
entendê-la plenamente e reproduzi-la, mas daí a que possa desenvol
ver-se em função da mesma há uma grande distância. Ou será que,
como tal, diretamente não existe?
Um estado pré-psicótico pode chamar a atenção - além de to
da . conceitualização - pela carência de metaforização e por certos
efeitos desencadeados por uma interpretação. Aí corre-se riscos de
que se detone o que haveria de detonar igualmente em outro âmbito.
De qualquer forma, é responsabilidade ética do analista não desen
cadeá-lo por sua ·conta e risco particular. E possível pensar este pro
blema em função de estruturas ou operações constituintes, ou melhor
- como prefiro - pela dimensão de especificidade dos desejos. O
ponto crítico é a maneira particular de entender a estrutura no geral,
e no singular. O crucial, em última instância, para a decisão · de um
analista em conduzir ou não uma análise, não dependerá tanto do
rótulo como de considerar se a análise ajudará ou não ao possível
analisando. Devemos resgatar muitas vezes . estes conceitos - e de
modo não vergonhoso - porque, senão, corremos o sério risco de
nos perder em abstrações sem atender a elementos concretos cuja ava
liação impõ-se caso por caso.
O que significa considerar se a análise. vai ajudar ou não? A
partir de uma perspectiva ligada ao pessoal, diríamos que a análise
deve ser propensa à obtenção da satisfação do analisando. Pois bem,
a satisfação é · aquilo relacionado com o fim. Se o fün da pulsão é
obter a satisfação, a análise demonstra que esta se consegue de nu
merosas maneiras. O analisando refere estar insatisfeito consigo mes
mo; por isso procura a análise. O analista descobrirá, quando delatar
essa insatisfação, quão satisfeito demonstra eatar. Então, ó que justi
fica nossa intervenção? Com muita pertinência, Lacan insiste que os
analisandos, para obter esta peculiar satisfação englobada na neuro-
187
se, sofrem demasiado, se esforçam demasiado . Nós, os analistas; par
timos da base de que, seguramente, as coisas poderiam ser conse
guidas por vias mais curtas, retificando a modalidade da satisfação.
Há análises porque esse a mais de trabalho captura a vida do
psiconeur6tico. Por isso se . surprende sobremaneira quando a cura
determina nela maior vitalidade, quando aparece mais vivo, criativo
ou encantador. O que é possível porque algo do libidinal compro
metido nele sustenta-se da ordem dos sintomas, encontrando-se agora
coin possibilidades de ser aplicado a outros âmbitos e interesses da
vida. Poderíamos repetir aqui a clássica afirmação freudiana a res
peito do objetivo da cura : " amar e trabalhar " . A análise pode ajudar,
efetivamente, nestes âmbitos; usualm�nte afetados no sujeito que nos
consulta. Em defitivo, o processo ,consiste em mudar as condições
do gozo ; em poder responder de um modo diverso à demanda do
futuro; em poder conquistar,_ por fim, um lugar diante do Outro que
não seja o do escravo (isto é, aquele lugar da inquietude mortífera
incessante onde se tenta de�er um desfalecimento contínuo do " Nome-
do-Pai) .
188
VIII
PARCIAL�DADE, BORDA, TRAÇADO :
A DERIVA EM CIRCUITO
189
algo que tem relação com a dimensão genital, ou melhor, com a
sexualidade pulsional. Enquanto não psicanalista, Heidegger outorga
outro sentido ao Grundbegrifl. Contudo, há uma intenção comparti
lhada : a de pensar justamente neste preciso termo. Parece-nos pos
sível estabelecer, então, uma certa linha desde Freud passando por
Heidegger, até Lacan . Não nos interessa especificamente que o Lacan
do Seminário 1 1 tivesse conhecido ou não as aulas de Heidegger. O
dado é irrelevante para um critério como o que sustentamos, no qual
não importa tanto o conhecimento pontual, no tocante às influências,
mas sim o compartilhar um determinado clima cultural . Se alguns
pensamentos "impregnam " o ambiente, não é necessário postular even
tuais influências diretas; não é este o único modo como um precur
sor 1 ·incide. Com esta pontualização não pretendo . afirmar que o tí
tulo publicado do Seminário 1 1 , Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise, foi tomado de Heidegger. Simplesmente se trata de que
Lacan sempre ressaltou o seu respeito pelas idéias do filósofo alemão
-:- de quem, por outro lado, era amigo -; por isso, vale a pena
mencioná-las em nosso curso. O caso é que não invocamos qualquer
idéia ao acaso : o Seminário nos tem ensinado como o acaso sempre
·implica uma estruturação limitada da situação. Não se trata de pôr
em relação uma coisa com outra por mero capricho. Existe uma li
gação possível e . outra que entra na categoria do impossível, isto é ,
d o Real. O propósito similar nos distintos autores - n o que nos
diz respeito - articula-se com o modo • em que são pensados os con
ceitos fundamentais.
1 90
indicam um elemento ligado a um termo caro ao ensino que nos con
voca: o de direção, o que evocará em vocês, com segurança, a direção
da cura. À parte do sentido usual deste vocábulo, podemos relacioná
lo com uma das possíveis traduções de outra noção heideggeriana :
Sorge, traduzível como cuidado ou cura. Esta é um pano de fundo
significativo, a ter em conta. Quando aludimos à direção da cura
tratamos em um campo regulamentado por conceitos-de-fundo e con
cernente ao ser-aí, para denominá-lo com as próprias palavras do filó
sofo . Para finalizar, leremos um último parágrafo como testemunho
de meu encontro : " 'Conceitos-de-fundo' quer dizer: conceber o fundo
de tudo, ou seja, chegar a relacionar-se com o 'fundamento' de tudo.
Isso que aqui significa 'fundamento' deve classificar-se paulatinamen
te. Então também deve-se clarificar em ,que consiste a relação com
o fundamento, em que medida esta relação implica, se se refere a um
saber e em que medida esta relação é em si mesma um saber 4 •
191
vo, que liga ou alude ao reino animal. O termo "reprodução" impli
ca - aproveitando a ambigüidade do vocábulo - que no instinto
está presente um pacote hereditário veiculizador de - como diria
Heidegger - uma sabedoria, de um saber. Do que sabe o instinto?
Pois de algo bastante singular : sabe acerca da conservação. Possui
um tipo de programação da qual dispõe cada espécie para poder so
breviver enquanto tal, e em virtude da qual cada indivíduo de tal
espécie pode perdurar, além de fazer perdurar a espécie através da
descendência. Muitas vezes Lacan, ironizando - porque é no sen
tido freudiano do chiste que o formula e não por erro -, refere-se
a um instinto de morte. Assim o faz justamente pelo valor parado
xal do conceito, porque quer dar conta de uma idéia inédita. Com
efeito, se o instinto animal aponta para um prolongamento, para a
conservação da vida, o que será um instinto de morte? Em retórica
isto se chama oxímoro. Dizer instinto de morte produz um efeito si
milar ao de referir-se, por exemplo, a uma luminosa obscuridade. Pen
sando bem sobre o que significa instinto é possível comprovar como a
proposta freudiana - não a lacaniana, mas sim a do próprio Freud
- é indiscutivelmente revulsiva a respeito de qualquer caracteriza
ção convencional de instinto. Por isso a insistência em destacar que
o conceito de Trieb é um conceito novo. Em compensação, toda esta
ampliação se perde - como acontece na edição inglesa das obras de
Freud, a clássica Standard Edition dirigida por James Strachey - se
traduz indiscriminadamente como instinto, tanto Trieb como lnstinkt.
192
conta de uma instância incoercível, ingovernável, a afirmação que fa
zemos é que ela tem que passar logicamente às vias da ação; vale
ressaltar: implica, de algum modo, a motilidade. Aqui é onde de
vemos começar a ser cuidadosos, porque o problema se torna mais
complexo. Se só se tratasse da definição anterior, a pulsão consisti
ria simplesmente em uma •espécie de descarga motriz. Recordemos,
a esse respeito, o esquema muito básico do arco reflexo:
193
A
e
E
e
E
1 94
O circuito resultante não tem nenhuma razão de ser enquanto
um apoio biológico. :8 o que Freud tenta pensar, mediante uma ficção 7
teórico-biológica, uma problemática estranha ao âmbito da biologia.
Diante destas pontuações, alguns apressados ou mal-intencionados o
têm tachado de biologista. A esta acusação deveríamos replicar que
Freud trabalha com os modelos aportados pelas disciplinas de sua
época. Esse constitµi o seu sistema de referências, mas precisamen
te o subverte para poder processar sua própria experiência, não para
copiá-la da disciplina da qual adota suas ficções teóricas. Não há
aqui nada de biologi'sta; com tal critério qualquer um poderia acusar
Lacan - como se tem feito - de lingüisticista, topologista, atropolo
gista etc, quando na verdade seu procedimento consistiu na impor
tação de outros sistemas de referência - contemporâneos, atuais -
para relançar, para renovar a psicanálise. SI.ia jntenção claríssima foi
evitar o efeito enfraquecedor da reprodução ao infinito da citação
freudiana, o que condenaria nossa disciplina a uma morte por inanição.
Voltando a Freud, o recurso de partir do arco reflexo em Pulsões
e destinos das pulsões não tem por objetivocentrar-se na questão que
em A interpretação dos sonhos denominara direção regrediente (�),
mas sim na problemática caracterizável como do estímulo endógeno :
E
Aqui surge um problema: utilizamos a . mesma palavra para a
estimulação endógena e a exógena, mas ocorre que as duas são su
ficientemente diferentes entre si. Não se esvazia a questão nomeando
uma como interior e outra como exterior. A isto se refere, precisa
mente, a problemática da pulsão.
195
Para tentar elucidar com mais rigor a singularidade do estímulo
endógeno, o Seminário retoma aquilo que na reunião passada havía
mos disposto como os quatro termos da pulsão, segundo um cuidadoso
acompanhamento de Freud, aliado ao desdobramento de certas preci
sões e aportes para distinguir. Como recordarão, os termos são os
seguintes :
- Fonte
Limites · - Objeto
da �
- Pressão
Pulsão
- Fim
,-
1 96
surrealista. Parece-me importante a semelhança porque um dos pri
meiríssimos pontos desta collage é que consiste em uma coisa distinta
da cópia reprodutiva de um mundo representacional, óbvio para to
dos. Nada mais distante da reprodução. Outro ponto a destacar: os
elementos conjugados na collage são, além disso, heteróclitos entre
si. Não têm, por exemplo, a característica homogeneidade implícita
nas distintas cores, formas; linhas, texturas, da clássica pintura sobre
tela. Pode possuí-la, mas também participa na collagé - por exem
plo - um recorte de jornal, um pedaço de pano, uma colher, uma
bombinha elétrica ou a bobina de arame de um televisor. Elementos
que, dada a sua condição convencional de disjuntós, realmente sur
preendem quando se encaixam. Mediante este efeito de surpresa, de
descolocação, o sujeito é "tomadó" por essa experiência tão valiósa
do sem-sentido: denominada pelo Seminário como non-sensical. Sem
sentido onde se alojam experiências de índole diversa. Este ponto -
antes de sua "recuperaçãó" por parte da psicanálise - tem sido
trabalhado - de modo predominante - pela vertentes literárias e
lógicas. Em uma possível lista figura; em lugar destacado, Lewis
Carrol. Claro, não só o de Alice no país das maravilhas e Através do
espelho, mas o redator de lógica recriativa, onde apresenta aqueles
paradoxos frente aos quais o sujeito, repentinamente, fica paralisado
diante do sein�s.entido 8 • De minha parte poderia agregar Edward
Lear, antecessor de Carrol, e autor de um livro intitulado em caste•
lhano Disparatario 9 • Ali podem ser encontradós muitos destes jogos
lógicos - e zombarias, porque não - onde não podemos advertir
que a linguagem seja cópia de nada ou que represente algo particular
mente reconhecível como · externo a ele.
Devemos destacar outra questão relacionada com o tema da com
binatória e da combinação: o salto do geral ao singular. O ins
tinto tem a característica do geral. � universal, abarca todos os in
divíduos da espécie. A pulsão, pelo contrário, dá conta de uma espé
cie de fórmula - se é possível dizer assim - singular. Respeita o
valor da singularidade, ao invés de postular - segundo quer o instinto
- o indivíduo enquanto mero membro da espécie.
Como se observa, este estranho eleme11to, a pulsão, vai-se fa
zendo cada vez mais irreconhecível a partir das notas próprias do
instinto. Assinalamos há pouco como inerente ao Trieb a condição
8 . L. Carroll, Matemática demente, Barcelon� Tusquets, 1983, e El juego de
la l6gica, Madri, Alianza, 1976.
9 . E. Lear, op. cit., Barcelona·;--Tusquets, 1 984.
197
de ingovernável, de incoercível, de algo que passa à ação. Todas es
tas características incitam a colocar em primeiro lugar o termo pres
são, com o qual, muitas vezes, confunde-se pontualmente o conceito
em sua totalidade. O original freudiano é Drang; Lacan traduzirá
para o francês como poussée, conservando este matiz que o relaciona
com a ordem de uma sobrecarga quase explosiva. Na nova tradução
da obra de Freud para o castelhano, Drang se traduz como esforço.
O termo provoca sérios mal-entendidos já que dá lugar, entre outras
coisas, à · traduzir conceitos como o de · repressão secundária - ou
propriamente dita - de um modo errôneo - no meu entender -
já que acaba transformado em "esforço de dar caça". A isto conduz
a necessidade de prosseguir com o mesmo tipo de família semântica.
Nós temos optado, como se nota, por pressão. Por outro lado, na
tradução do Seminário 1 1 publicada por Seix Barrai também figura
como pressão 10•
Este Drang possui outras conexões, se tratamos, está claro, de
assumir os efeitos do ensino das reflexões sobre a linguagem para ar
ticulá-las neste tratamento que realizamos dos conceitos-de-fundo ou
fundamentais. Então, o Drang está relacionado - para situar-nos no
âmbito que especificamente nos compete - com a Verdrangung, pa
lavra que se traduz COIIlcO . repressão. Discordo aqui da nova versão
castelhana de Freud, que propõe neste caso "esforço de abandono e
suplantação". Por quê? Porque Drang, como partícula, está presente
no vocábulo Verdrangung. Homologicamente podemos - devemos
- articular a pressão e a repressão, porque dão conta · do seguinte :
se fazemos uma simples escansão, como as que tantas vezes realiza
mos nas sessões ao "cortar" da segunda palavra seu prefixo, obte
remos re-pressão. Parece-me uma sensata maneira de entender o con
ceito tal, que o situa a máxima distância da alusão a qualquer ati
tude pseudo-volitiva como é, por exemplo, essa do " esforço de dar
caça", com sua inevitável conotação do homúnculo intencional. Quan
do há repressão, recordemos, não é qu� um significante desapareceu
ou caiu no esquecimento, carente de po'tência ou eficácia. Re-pressão
é 6 que volta a pressionar. O reprimido é esse que retorna pressionan
do, não o desaparecido. Como dissemos, o inconsciente freudiano é
eficaz; não é um subconsciente diluído, pálido ou privado de força.
Este circunstância se sustenta solidamente se entendemos que se trata,
198
então, da condição impelente, coercitiva, da pulsão. Estes dados são
suficientes, ao meu entender, para afirmar a necessidade de tradu
zir Drang como pressão. E importante aclarar estes pontos, porque
se recorrermos à : nova tradução de Freud· nos encontraremos cons
tantemente com " esforço". Se elegemos outros vocábulos, pelo me
nos devemos fundamentar esta escolha. A nossa é uma opção fundada
de dentro mesmo da psicanálise, e não só das vertentes lingüísticas
(etimológica ou semântica); assim, se deduzirá com rigor que repres
são não indica a ação de nada que desaparece, mas justamente o
contrário. Poderá cáptar-se, também, o laço existente entre um limite
e · um destino pulsional.
Para resumir, qual é a ação da repressão? Provocar o retorno
do significante suprimido, retorno que se verifica de modo deslo
cado ou substitutivo. A pressão - como temos assinalado - . pode
dar lugar a supor que define, por si mesma, a pulsão. Se dizemos:
a pulsão é o inéoercível, e marcamos seguidamente este elemento
como traço crucial do Drang, se produz, quase espontaneamente, um
silogismo grosseiro; o definidor da pulsão pareceria ser, precisamente,
a pressão, enquanto mandato irresistível. Tal confusão tem provocado
numerosos desvios dos pós-freudianos, que se por um lado susten
taram - sem reconhecê-lo assim - um campo que nós aprendemos
a chamar de significante, por outro lado afirmaram também um "mais
além" , que escapa à condição regida pelo significante. Esse mais
além seria algo elementar, primitivo, onde o símbolo não tem pos
sibilidade alguma de acesso; Se esta concepção ressoa em nossos ou
vidos de um modo teológico, acredito viável dar-lhe tal crédito; com
efeito, por algum motivo estamos falando de " mais além" . Por outro
lado a pulsão não é uma emanação interior, indescritível, inefável,
que - uma vez aparecida - só sabe pôr-lhe - no melhor dos casos
- certo freio. A pulsão se gera, especificamente, no campo do Ou
tro. Não é própri� da espécie, como o instinto, mas sim que se desen
volve justamente em uma estrutura crucial, aquela das ligações re
conhecíveis em psicanálise como pertencentes ao campo do Edipo,
que compreende relações muito mais complexas que as contempla
das pelo clássico relato por todos conhecido. Pensemos orientativa
mente, com Freud 1 1, em todas as relações detectáveis nos fantasmas,
que não é nosso propósito analisar neste curso; só assinalaremos seu
desenho em forma de uma rede muito mais rica e intrincada que a
típica redução à dialética do incesto e do parricídio.
199
Se consideramos a pulsão também como um efeito das opera
ções de constituição do sujeito, se desenvolve uma alternativa com
pletamente diferente à proposta do instinto, que já está dado com
indivíduo da espécie. Portanto, a confusão que considera Drang como
equivalente da pulsão, parte também de outro mal-entendido. Lacan
se pergunta: Pode tratar-se por acaso da pressão própria do indi
víduo urgido por certa necessidade? Por exemplo o que ocorre com
alguém desesperado de fome, é igual ou distinto ao que Freud es
creve sobre a pressão? Desde já, a resposta é que se tratá de algo
distinto, e isto se fundamenta no seguinte : a tensão da necessidade,
esse mal-estar que também conduz à ação, carrega uma implicação
de todo o organismo. De sua parte a pressão, o Drang, incumbe uni
camente o sistema nervoso, o eu real. Limita-se somente a uma di
mensão parcial. Esta última palavra - parcial - é decisiva em todo
o nosso desenvolvimento. Aqui desejo deter-me um momento por
que a elucidação deste termo nos permite também compreender o
problema do objeto. Na teorização dos analistas kleinianos, divide-se
o objeto em parcial e total. Então, já que falamos do traço " parcial" ,
é ·conveniente fazer algumas breves observações sobre este ponto. A
citada corrente supõe a existência de uma evolução pré-formada, o
que se apresenta intimamente ligado a toda a ideologia do instinto.
Os kleinianos postulam um tipo de protótipo da espécie que recorre,
no melhor dos casos - e, eventualmente, ajudado pelo meio -
determinado caminho em cada indivíduo. O processo começa no meio
de uma · experiência difusa, caótica e desintegrada. Logo tem lugar
uma colocação precisa, onde se chega a captar as coisas - perceptiva
e afetivamente - como globalidade. Esta argumentação se entende
facilmente; parece possuir uma lógica esmagadora. Efetivamente é as
sim porque está provida da lógica do Imaginário, que, sempre con
tundente, capta-se de imediato de forma intuitiva. Esta pseudoteoria
é altamente persuasiva. Se, não obstai;ite, aludimos que a questão não
é tão felizmente integradora, nos aproximamos muito mais do pro
posto pelo caminho da verdade. Porque o objeto cotn o qual tratamos
a partir da perspectiva da pu1são é inalteradamente parcial . Quando
ô objeto se diz total, estamos em presença de outra dimensão : a do
objeto do amor. E, isto o sabemos, uma coisa são as pulsões e seus
destinos, e outra bem distinta é o amor. Em Freud está terminante
mente escrito desse modo. de forma quase literal. Quem não pode ver
assim é porque simplesmente não deseja vê-lo. Devemos discriminar
de forma precisa estes dois objetos. Como se lembrarão, quando tra
balhamos o conceito de transferência sublinhamos que o objeto de
200
amor se produz justamente no terreno narcísico. Assim, o sujeito se
sente amador, erastés, quando na realidade o que busca é ser amá
vel, eromenós.
Aí é onde acontece a totalização do objeto, porque estamos no
eixo narcísico, o qual, �o ensino lacaniano, é ' apreendido sob a se-,
paração dó estágio do espelho 12 , situando o registro imaginári_o. Nesse
âmbito, tein sentido o objeto total, segundo a notação " i(a) " 1 3 • Não
há nenhuma pertinência evolutiva, nem um encaixado reencontro da
totalidade, como pretendem os kleinianos. Eles pensam, em síntese, que
no princípio há uma unidade, logo ela se dissocia e mais tarde se
reintegra. De minha parte, há anos entendi esse hipotético périplo
como uma metáfora laica da queda e · da redenção. A salvação advém,
justamente, pela reparaçãp capaz de redimir a culpa derivada do pe
cado sádico original. As notas exemplificadas nos textos kleinianos
como de busca de " reparação " se sucedem através de condutas ma
nifestas gratas dos pais empíricos . :e possível encontrar com facili
dade, nessa teorização, um núcleo protestante, presente como verda
deiro conceito-de-fundo. Definitivamente, no kleiniailismo a pulsão não
aparece'; só fica · bem claro o plano do instinto . O buscado é, pois, a
totalização do objeto. Este dado indica em que nível pode · transitar
uma análise sustentada em tais premissas ; se mantém no registro do
imaginário . E quem disse que o Imaginário não tem sua eficácia?
Os resultados podem ser espetaculares . Tenhamos presente, uma vez
mais, a hipnose . Quando o analista se sustenia no lugar que designa
mos como I, possivelmente chegue a resultados "eficazes". Seria pre
cisá definir, claro, em que consiste a ética deste analista - a do
desejo do analista - e o que se propõe, conseqüentemente, na direção
da cura. Com segurança se propõe - sob uma aparência de análise
- manter uma dimensão hipnótica, ainda que não pratique ostensi
vamente tal dispositivo . Igualmente pode tentar sustentar uma rela
ção psicoterapêutica, em vez de " numa hipnose ao contrário, encar
nar, ele·, o hipnotizado " 1 4 • Por isso, insisto, é importante estabelecer
uma eficácia imaginária, parafraseando a eficácia simbólica sobre a
qual escreveu Lévi-Strauss 111 • Em tais casos se observa em q1.1e medi-
12 . J. Lacan, "El estadio del espejo como formador de la funci6n del yo tal
como se nos revelá en la experiencia psicoaQalíticà", Escritos 1, cit.,
pp. 1 1-8.
1 3 . J. Lacan, "Observaci6n sobre el informe . . . ", cit., p. 302.
14 . J. Lacan, Los cuatro conceptos . . . , cit., p. 276.
15 . C. Levi-Strauss, Antropología estructural, Buenos . Aires, Eudeba, 1968,
pp. 1 68-85. .
201
da esta discriminação a respeito de um objeto parcial ou total não
é só um mero jogo de palavras ou uma simples opção teórica sem
maiores conseqüências. A diferença tem uma incidência clínica real
mente maiúscula. Se a proposta consiste em entregar-se alegremente
ao amor, recusando a divisão que nos constitui - posto que o amor
totaliza - estamos diante de uma alienação imaginária que obriga ·
o sujeito a. incorrer em uma figura possível de ser denominada cura
por amor . . . ao analista.
O objeto concebido como parcial possui aliás outra característica
definida a respeito da discriminação instinto-pulsão. Para nossa sur
presa, Freud aponta que o objeto da pulsão é um objeto indiferente.
No instinto, de modo algum pode ser indiferente, acontece justamente
o contrário. Deve conectar-se com um objeto definido, recortado e
intransferível. Isto indica uma flexibilidade pertencente à pulsão, é
a antítese da rigidez própria do instinto. O instinto é, inclusive, não
inteligente, porque não tem adequação possível a circunstâncias mu
táveis. Repete cegamente um mecanismo de sucessividade que, se é
interrompido em um dado momento, quando se reinstala, o animal
guiado pelo instinto não completa o circuito no trecho restante, mas
começa novamente pelo primeiro passo. O objeto e o modo de con
duta para alcançá-lo são fixos, rígidos, estáticos. O objeto da pulsão.
segundo a observação freudiana, é indiferente. Não é uma vulgar
coincidência que em um texto crucial de Freud como é o Três en
saios de teoria sexual, se situem expositivamente, em primeiro lugar.
as aberrações sexu,ais.. ie. Não há ali uma intenção do autor no sentido
de inscrever-se na categoria de po�nográfico ou de ostentar alguma
mórbida curiosidade psicopatológica. Este começo se deve a uma es
tratégia discursiva; é o melhor modo de apresentar o que está em jogo
no campo da pulsão. Sua estratégia d.e argumentação prossegue em
seguida com a sexualidade infantil. Aí apresenta claramente desenvol
vimentos desencadeantes de uma ruptura epistemológica - tomando
o conceito bachelardiano - com os p�conceitos vigentes acerca · do
sexo. Repassemos brevemente - o que propunham estes preconceitos.
A sexualidade era uma função biológica, total, cuja missão consistia
na reprodução da espécie, o que se verificava por um ato específico:
o coito heterossexual. Fato possível após o desenvolvimento da pu
berdade. Contra tudo isto Freud· formulou sua crítica e erigiu sua
postulação. Em tal concepção - e quase nem precisaria assinalar -
o objeto aparece como fixo e predeterminado. Ao começar expondo
202
as aberrações, é possível demonstrar como elas oferecem o modelo
para determinar que o objeto não é fixo de modo nenhum. As pa
tologias configuram precisamente esta demonstração, e para isto, de
ve-se deixar de entendê-las como desvios hereditários.
Certa psicanálise incorre em uma concepção pré-psicanalítica da
sexualidade quando propugna a ideologia do genitalismo . Supõe " o
genital" comõ o estágio a que normalmente s e chega n a análise; o ge
nitalismo, então, é homólogo à posição depressiva kleiniana: portas
de entrada a uma ptêssuposta saúde mental. Neste caso se está exer
cendo uma concepção tributária não só da totalização do objeto, mas
também da totalização da pulsão.
Como é possível observar, a partir do parcial do Drang come
çamos a girar em tomo de duas noções que em alguma medida são
próximas : pulsão parcial-objeto parcial . O curioso é que são duas.
parcialidades que não conduzem a nenhuma totalidade. Não são par
ciais no sentido de que, em algum momento, chegarão em algo supe
rior ou maior. Sobre este ponto, anotemos que a pulsão é parcial
porque representa parcialmente a finalidade biológica :-- totalista -
implicada D_ll sexualidade. A sexualidade assim concebida possui in
tegrantes que não confluíram - " se tudo vai bem" - em um feixe
dirigente ou com centralização diretiva, mas, ao contrário, permane
ceram disjuntos, da mesma forma que ocorre com os termos compo
nentes de cada pulsão. :8 1,1m primeiro ponto a se prestar a atenção .
O segundo é algo j á mencionado quando fizemos referência ao con
ceito de repetição . Como se lembram, abordamos interessantes colo
cações sobre a questão da psicologia evolutiva e as etapas do desen
volvimento. Lacan observava, segundo comentamos, que a partir da
psicanálise esta concepção evolutiva - que até ostenta um grau não
desprezível de platonismo - é impensável. A psicanálise, frente a ela,
insiste nos acidentes ou traumas - utilizando o vocábulo freudiano.
Importa-nos o inesperado, como vetor de mudança da posição do su�
jeito. O mesmo postulará o Seminário a respeito de como vão se su
cedendo as pulsões e de que modo vão se sucedendo seus objetos.
Não há nenhum lugar onde esteja pontificado que como uma espécie
de trânsito maturativo natural deva haver uma passagem evolutiva
do oral para o anal, daí para o fálico, depois um período de latência,
e por último a genitalidade, seguindo certas leis preestabelecidas da
migração libidinal. Se é que alguém pode prever certa ,Passagem, isto
se torna possível mediante a consideração da demanda do Outro.
Mas, em que consiste este Outro? Vamos exemplificá-lo.
203
Existe um momento em. que, pot sua inserção na ordem simbó
licà, a mãe reconhece ter chegado o · momento de solicitar - como
Freud nos ensinou - os excrementos de seu filho em um lugar e
tempo determinados. Aqui se vê claramente; há uma demanda do
Outro exigindo a atenção para um lugar preciso para as deposições,
um saber pedir, e um levar em conta que, se se outorga este regalo,
se obterá algo em troca. Isto funda a dimensão do dom, como aponta
o Seminário. Inaugura-se assim uma dialética da troca simbólica; por
isso, enfatiza o quanto está relacionado o doinínio da troca - e
inclusive, do sacrifício - com a analidade. Se imaginássemos um
enunciado da demanda do Outro, diríamos: " te demando que me
dê isso ". Ainda que esta não seja uma fórmula muito perfeita, ela
pode dar provisoriamente a idéia acerca do que foi exposto : que psi
canalisticamente não há uma evolução prescrita, nada morfogenético
nem evolutivo, visto que o acontecer dependerá de requerimentos
simbólicos. Não há, necessariamente, uma explicitação ;, te peço uma
parte · de teu corpo" ou nielhor um " faça-o por mim ". Trata-se de
um pedido com valor de troca. Não é um valor em si mesmo, uma
vez que é outorgado pelo Outro. " Se me der isso, em troca te darei
este outro" ; aí entramos em um plano obviamente interlocutivo 17 •
204
:e claro : não podemos considerar o registro da fome como fenômeno
biológico exclusjvamente, uma vez que também é tomado pela ordem
significante; assim, a ingestão não está excluída do pulsional, não
pertence só a uma necessidade alimentícia. Temos para prová-lo os
casos de bulimia e anorexia. Ambos dão conta de que não se trata
de uma satisfação- alimentícia inscrita unicamente na ordem do qui
mismo. Reiteremos : o objeto a não é o alimento, como acredita Me
lanie Klein, ainda que o chame de seio . ou peito. :e
efetivamente o
peito, mas não no IP0Jllento da amamentação, mas sim quando o perde.
Para representá-lo de algum- modo, seria o seio constituído no
momento · 4ôdesmame. :e
ali onde, e quando, constitui-se este objeto.
Logo depois de perdê-lo começa a ser objeto, uma vez que a sua
condição consiste em uma. espécie de automutilação, eni um órgão
corporal perdido, que cai e convoca a falta. Porque o peito não " é "
d a mãe, nem sequer a representa parcialmente. Tampouco é viável,
então, essa oscilação kleiniana entre satisfação instintual-peito bom
porque dá leite, frustração instintual-peito mau porque não dá leite.
O ritmo de presença-ausência, essa rígida rítmicidade do instinto, se
situa em m;na ordem de satisfação muito distinta da que propõe uma
pulsão.
Voltemos ao que lhes referia ao final de nosso encontro ante
rior: era a observação cotidiana a respeito de nossos analisandos, no
sentido de · como e quanto alegam não estarem , satisfeitos com o que
sãb. Que não estão contentes, não vivem bem, estão angustiados, não
conseguem o desejado etc. Nosso problema consiste precisamente, nos
diz Lacan, em tratar de demonstrar-lhes que, através de seus sinto
mas - em virtude dos quais não estão satisfeitos - contudo, se
satisfazem. A questão será esclarecer o que denota esta impersona
lidade do " se " . Assim, produziremos um caminho muito importante
para· compreender certas questões, pois, sem dúvida, a algo dão sa
tisfação . O Seminário afirma a pulsão como aquilo que basicamente
atenta contra o reinado do princípio do prazer. Assim sendo, a pulsão
é responsável por estabelecer, determinar e impor outra coisa que o
mero princípio do prazer.
Prossigamos mediante esta citação de Freud, mediante esta ques
tão de Freud: " Como uma satisfação pulsional teria por resultado
um desprazer?" 18 Esta problemática, obviamente, se liga com tal
205
questão; mas Lacan, em lugar do desprazer - expresso-o de maneira
orientativa somente para introduzir o conceito - inclui algo além do
prazer, isto é, o gozo. Tal gozo tem certamente muito pouco de pra
zeroso, muito pouco de prazer decorrente do acúmulo excitativo. Dis
semos gozo e isto provoca um efeito de sentido. Mas como conceito,
trata-se do contrário que é sugerido pelo vocábulo. O que quer indicar
nos com isso, além de uma armadilha léxica montada? No meu en
tender, demonstrar, uma vez mais, o caráter arbitrário do signifi
cante. De algum modo acontece sempre o assinalado por Humpty
Dumpty de Alice no pais das maravilhas: uma palavra quer dizer,
finalmente, o que o Amo determina que queira dizer. Entre outras
coisas, isto marca a relação de um significante ao poder, mas ao mes
mo tempo afirma a flutuação que admite a qualquer significante, en
quanto não carrega, de nenhuma maneira, seu " próprio " significado.
Comprovamos já, por outro lado, como a respeito do conceito do
Real, Lacan procede de um modo similar, modo talvez caracterizável
- para efeito de ensino - como chistoso e irônico.
206
sintoma V sublimação
207
De alguma forma, para entender de que satisfação se trata na
sublimação, e como se obtém a mesma, devemos levar em conta o
quarto - e último - limite pulsional: a fonte. Tal fonte é o que
Freud denomina zona erógena. Seria muito simples entender isto
se instintivizássemos a pulsão. Tudo começa com uma fonte, da qual
surge a pressão que impele à busca do objeto. Quando o alcança,
obtém seu fim que consiste - usualmente - na assimilação, na in
corporação do objeto:
208
bito - pelos dados fidedignos de que dispomos - é dificilmente
entendida. Geralmente se parte da premissa de que o sujeito quer
instalar-se no reino da plenitude imaginária; coerentemente, o obje
tivo consiste ern incorporar cada vez mais coisas: brevemente, to
talizar-se. Esta premissa costuma determinar interpretações estereo
tipadas e falsas; por exemplo, que o sujeito não suporta "a falta" ou
"a ausência", que "quer a completude fálica" etc. Pensar exclusiva
mente desta maneira é um bom índice revelador de uma cosmovisão
filosófica onde tudo se explica em função de uma monotemática re
negação ou forclusão de uma suposta falta intolerável. A falta é,
assim, uma maldição da qual todos tentamos fugir; outra vez, a idéia
do pecado original. Pois bem, o que Lacan vem assinalar é algo
absolutamente oposto a estas noções, que não são mais do que ou
tra forma de achatamento dos três registros sobre o Imaginário 21•
------.: na erógena-borda
��
/
209
/�::;n• er6gena-borda
Zona erógena-borda
',./�
I 'v
22. A segunda versão castelhana opta aqui, insolitamente, por "juego de _ma
nos". Será por aquilo de "juego de manos, juego de ... ? (cit., p. 176).
210
Assim, o instintual procederia deste modo: da fonte, a pressão
impulsionaria o instinto para a obtenção de seu objeto. Encontra-o,
incorpora-o de alguma forma e consegue finalmente a sua satisfaçãQ.
No circuito pulsional, as coisas não são assim, o que acontece é
um retorno efetuado sob�e a mesma zona erógena, sem a famosa
incorporação. O objeto não é o fim da pulsão; é aquilo mediante
o qual a pulsão consegue sua satisfação na zona erógena. A satis
fação tem lugar na fonte; a obtenção da satisfação consiste precisa
mente na suspensão ·da estimulação local da zona erógena. O que se
produz aqui, portanto, é um caminho de ida e volta, um "fazer-se":
chupar, defecar, olhar, ouvir. Movimento que condensa, sincronica
mente, a conjuração pulsional: voz ativa, voz passiva, voz reflexiva 23•
Convém recordar neste ponto que o objeto da pulsão possui a
condição de ser indiferente (enquanto realização, . uma vez que não
como estrutura). Por outro lado, a pressão, em termos desta magni
tude da exigência de trabalho imposta ao psíquico como conseqüên
cia de sua ligação com o corporal - um corpo que é antes de tudo,
um registro disjunto de zonas erógenas - ostenta já muito pouco
·da ordem relativa ao corpo biológico ou ao trajeto prefixado do arco
reflexo. Pode-se situar o Drang freudiano nessa tessitura, que dá
conta da perfuração a que se submete a zona erógena, para f ruti
ficar no cultivo dos "contornos" do objeto:
Pressão
211
Questões
212
R.: Sou consciente de que na exposição surgem às vezes exem
plos que, por didáticos, chegam a parecer empirista_s. Assim, o caso
da pulsão anal; nela, o seu objeto particular engana pelo patente.
Evidentemente é muito mais fácil citar um exemplo deste tipo do que
outro referente ao olhar, porque neste último já não é tão intuitivo,
tão contundente, o objeto · desprendido; caído. E evidente: a defeca
ção constitui um claro ato de desprendimento de algo do corpo, que
inclusive ilumina todo o circuito do dom e da troca simbólica. - De
qualquer maneira, no_ tempo subseqüente à analidade, surge a ques
tão que Lacan designa, escreve, do seguinte modo: (: 'P). Isto é o
contrário da imagem fálica: (-'/l), a qual se poderia homologar par
cialmente com a instância conhecida desde Freud como eu ideal 24•
Como é possível ver-se, esta questão relaciona-se com o registro do
Imaginário. A negativização da imagem fálica se produz pela cas
tração. Alude a um par que não pode ser concebido na ausência _de
qualquer um de seus limites, tal como Freud pontualizou em A or
ganização genital infantil 25, ensaio de 1923 escrito como comple
mento de Três ensaios de uma teoria sexual, onde aparece inaugu
ralmente a eficácia determinante - apres-coup - da fase fálica. Ve
rificamos aí uma franca ruptura com qualquer naturalismo das fun
ções biológicas. Em primeiro lugar, aparece o que acabou de ser
mencionado: não há inscrição da vagina, o que indica que não há
nenhum tipo de função vital em jogo. Assim, Freud disse fálica, e
e não genital. Isso significa que nessa ordem intervém uma nítida
dimensão simbólica onde a queda se produz em torno de uma fun
ção, e já não à separação de um· fragmento do corpo. :E uma queda
diante da ausência do Falo monumental, perene, que em algumas
ocasiões, clinicamente, coloca-se como inibição funcional. P.ara es
clarecer isto, recorreremos ao capítulo III de O ego e o id. "Como
eu - o pai ---:- não hás de ser", é o ditame superegóico. Podemos ex
pressá-lo de maneira imaginária: "não poderás ter a esta mulher co
mo mulher, já que para ti não é mulhe_r: é mãe". :E a instância pai
quem diz que o sujeito não será como ele. Paralelamente ·a isto, che
gá o reverso do mandato: "deves ser como eu" 26• Há uma incitação
à identificação no sentido de ordenar certos atributos, de outorgar
os dons para procurar uma mulher no dia de amanhã. Na etapa fá-
24. Outra sustentação lacaniana desta instância, postulada por Freud, é cons
tituída por uni par - alimentado na reciprocidade - que se escreve
assim: m Cc) i (a).
25. S. Freud, o.e., cit., t. XIX, pp. 141-9.
26. S. Freud, op. cit., p. 36 e ss. ·
213
lica não se corta nem se perde nada corporal, ainda que seu trânsito
implique uma dimensão funcional . Em termos empíricos esta condi
ção funcional está provida de certas alternativas nas quais podem
caber numerosas disfunções, que indicam, de algum modo, uma não
atenção, uma revolta contra este mandato que ordena: "como eu não
hás de ser ".
Trata-se de que a mulher eleita se relaciona de maneira pouco
metafórica com a série materna, com ela " não se pode " . Assim, se
obedece funcionalmente ao " como eu não hás de ser" ; obedece-se,
também, ao "sou como você", desobedecendo-se, finalmente - ou
em primeiro lugar - através do "tenho a 'mesma' mulher". Aí se
produz um nó difícil de desfazer, que como fator de uma conste
lação, pode dar lugar a impotências, ejaculações · precoces etc. Toda
a questão procede, como acredito pode-se observar, da demanda do
Outro, seja patente, seja implícita, seja invertida - como demanda
ao Outro -, seja inclusive, a nível do desejo, de acordo com as
mesmas alternativas. Mas a questão se complica ainda mais por cer
tos efeitos de estrutura . que podemos precisar por meio de referentes
clínicos. Lacan aludia a que o homem demasiadamente enamorado
de sua mulher, por exemplo, pode dificultar em seu filho a operação
do Nome-do-Pai, porque a mulher é quem marca a Lei. Não se trata
de uma localização imaginária de uma mulher fálica e de um homem
débil. Acontece neste caso que o homem entregue à idealização fun
dante do amor se coloca em um lugar a partir do qual tudo o que
provém do' objeto - amado merece um sim. Promoção do não, então?
Com efeito: se o não à díade materno-filial não é uma oposição gros
seira, sistemática, veicula a função paterna ao ditar à mãe: não rein
tegrarás teu produto. Não reincorporarás a teu filho 27 • Ao enfantizar
este momento estrutural da castração, se desimaginarizam os exem
plos das etapas.
J
214
o final de sua vida - no incompleto Compêndio de psicanálise -
chega a reiterar, como Goethe : " o que tenha herdado de tens p�is,
deves adquiri-lo para que seja teu" 28• Esta sentença parece-me uma
inteligente evitação a todo tipo de rotulação da ordem do inato e do
adquirido, por meio de uma resolução inédita. Nem sequer o herdado
é possível possuir se não se' faz uma operação capaz de outorgar a
possibilidade de adquiri-lo, de recebê-lo. Se entendemos esta propo
sição em função do dom - por exemplo, para o menino, o dom pe
niano - será : não acr�dites que, por possuir o órgão, este funciona
rá, pois isto ocorrerá, ou não, de acordo com as vicissitudes da di
mensão desejante, ou seja, de acordo a como adquirirás essa herança.
A " possessão " do corpo não diz nada. Aí se percebe uma enorme
diferença com o instinto da espécie. Não diz nada precisamente por
que falta o dizer, o cair no campo interlocutivo, em virtude do qu�l
o corpo resulta imerso no Simbólico. Por certo, o aforismo de Goethe
é muito valioso pela quantidade de antinomias que resolve ou que,
minimamente, fazem repensar, pois há todo um " programa" implica
do nesta formulação.
215
raciocínio que temos feito a partir de pressão e repressao . Não sao
só " palavras " ; devemos lembrar que é com elas, através delas, que
podemos entender, ou não, toda uma série de fenômenos .
216
alguém, por exemplo, declara que vai escrever e chega a considerar
que deve dedicar-se a fazê-lo porque lhe é impossível pensar em outra
.:oisa, fazer qualquer outra coisa até finalizar seu · escrito, é muito
difícil atribuir a isso - do modo psiquiátrico . - a característica de
sintoma. Por outro lado, circunscreve-se na sublimação - e isto é
bastante crucial - uma capacidade de intercâmbio simbóli�o diferen
te da privacidade do sintoma. Enquanto está presente a dimensão do
Outro - enquanto demanda a ele dirigida - se estabelece uma ·cir-'
culação, e não fica o produzido como mera manifestação catártica.
Além disso, do sintomá - em princípio - o sujeito costuma querer
curar-se; deste tipo de circunstâncias, não. Depois de tudo, o sinto
ma, psicanaliticamente, é próprio de quem diz padecê-lo. Quem não
diz, não o tem. A atribuição não � produz de fora, mas sua denún;
eia depende do interessado.
21 7
IX
SEXUALIDADE OU MANTICA? -
O "VEL" DA ALIENAÇÃO
219
Hoje prosseguiremos com o desdobramento da pulsão para -
após algumas observações mais sobre o tema - levar em considera
ção as operações de causação do sujeito. Sem dúvida, este é um
problema transcendente, o que já fica demonstrado pela sua denomi
nação levemente empolada. Trata-se, efetivamente, de como se produz
um sujeito, partindo do rechaço da clássica · idéia segundo a qual
aquele é - permitam-me a expressão latina - causa sui, ou seja,
causa de si mesmo. Para nós, o sujeito não se autoengendra, uma vez
que reconhece uma origem, uma gênese, no que temos denominado
o campo do Outro. E. ali onde reconheceremos a operância de duas
funções decisivas. A primeira é designada com um vocábulo já tradi
cional� muito conhecido e divulgado, do qual o Seminário produzirá
uma leitura sumamente diversa, original : trata-se da alienação. O
outro vocábulo em jogo, a outra operação de causação do sujeito se
nomeia - por agora nos limitaremos a mencioná-la - como sepa
ração. Ao .esclarecimento de ambas chegaremos de um modo gradual;
com efeito, há alguns pontos que quero colocar antes sobre a sexuali
dade, no desenvolvimento ligado à pulsão.
E. necessário aqui nos referirmos à sexualidade; recordemos como
foi esta, a partir da transferência, a que nos conduziu à pulsão; Pôr
em ato a realidade daquilo que é inconsciente, qual é sexual : esta
mos, assim, diante da transferência. Agora, sabemos que em Freud
trata-se, desde o começo, de uma dicotomia pulsional, , vertida final
mente como pulsão de vida e pulsão de morte. No Seminário 1 1 se
oferecerá uma fórmula muito atinada acerca desta bipartição, ao fazer
constar à pulsão enquanto voltada para dois aspectos : o da vida e o
da morte. Esta conceitualização indica, obviamente, uma concepção
muito distinta daquela dos respectivos montantes de dQas essências
dissimilares. O que o ensino lacanianq assevera é que há uma pulsão
com dua11 faces ''mõebianamente" unilaterais. Se a recorremos por
uma face terá certas características; se à seguimos por outra elas serão
diferentes. E sempre tendo eni conta que se trata da " mesma" face.
Assim, pulsão de vida e pulsão de morte se imbricam: veremos de
que modo o fazem.
Existe outro ponto importante a ressaltar, que mostra como é
precisamente por intermédio dâ sexualidade que a psicanálise conse
gue excluir-se das práticas usualmente conhecidas como mânticas. A
relação se dá em termos de conceber a psicanálise versus a mântica.
220
O que é uma mântica? A palavra encontra-se, por exemplo, como
sufixo em quiromancia, oniromancia etc; todos estes vocábulos fazem
referência à adivinhação através de um recurso particular. Em um
sentido estrito se chama mântica a um sistema particular de adivi
nhações, entendo, especialmente, a antecipar o futuro. Embora date
das convicções religiosas da antiga Grécia, hoje existem com uma
índole muito distinta; inclusive muitos analistas da outra psicanálise
têm incorrido em uma delas, ao conformar sistemas de símbolos fixos,
universais e imagé.licos, Há numerosos dicionários . de símbolos· cir
culando, além das versões mais vulgares oferecidas nas bancas de
jornais e revistas. Existe, por exemplo, um livro intitulado Psicanálise
dos sonhos, de Angel Garma 1 , onde na última seção se organiza um
dicionário - " índice" - como uma mântica. Diante destas confu
sões devemos, então, descrever um modo preciso de circunscrever a
prática analítica. Para tal efeito, um elemento crucial para esta distin
ção é o reprimido primariamente :
Vs. mântica
Repressão primária
(ou odg�ria) .
Vs. mântica
Sintoma.
Repres�ão primária
(ou originária) .
22 1
Significantes
Vs. mântica
Repressão primá
S ignifican tes � i a o u originária )
Sintoma .
Um sintoma em última instância não implica - em determinada
leitura - senão uma particular articulação de significantes. Na teori
zação lacariiana isto é um pólo da experiência analítica, na qual encon
tramos - como recordarão - uma ordem de hiância onde aparece
um intervalo temporal. Devemos ter presente este dado, e incluí-lo em
nosso diagrama. Além disso nos encontramos, no outro extremo da
série mencionada, com a interpretação:
Vs. mântica
epressão primá-
Sign ifica ntes � a ou o rigin ária) .
i ntom a .
epressão primá
S ignifican tes �a ou origin ári a) .
intonià .
222
"Vs . " do esquema. A " interpretação " , com efeito, dando um salto
violento para uma experiência armada estritamente por meio de signi
ficantes, daria lugar a uma mântica, por um lado. Além disso - e não
devemos deixar de reparar nisto - originaria, segundo o caso, uma
concepção espiritualista, intelectualista e especulativa do " analítico " .
Vocês sabem que esta última é uma das freqüentes refutações que
por ingenuidade ou má fé - quando não por mera ignorância - se
formula a Lacan. Tacha'-se a sua teoria de sistema intelectualista. O
seria, naturalmente, se. não situasse - coisa que realiza - nesta
hiância onde se dá o salto, a sexualidade :
Vs . mântica
Significantes
LlRepressão primá
·ia ou originária) .
Sexualid ade .
r n terpre t a ç ã o .
Sintoma .
Vs. mântica
epressã o primá
Signif ican tes �ia ou origi nári a ) .
Pulsação
S i n toma . temporal 2 •
223
Frente à interpretação, e recorrendo as nossas já conhecidas refe
rências cronológicas, situa�se uma relação de sincronia :
Vs . mântica
epressão primá
�
Significantes 1a ou originária) . Pulsação
interna . temporal .
Sincron i a .
224
mentação é somente uma pequena sofisticação pseudopsicológica da
experiência imaginária cotidiana; em outras palavras, pura eficácia
imaginária. Lacan trata, pelo contrário, de oferecer uma formalização
mais séria sobre este ponto . Assim é como remarca que os citados ori
fícios são passíveis de serem zonas erógenas por possuírem uma comu
nidade topológica com aquilo que é inconsciente. Há algo em comum
quanto a sua estrutura - não pelo lado, claro, do empirismo -: à
condição de ser susceptível de abertura e fechamento . Estes são, então,
orifícios sexuais, sexualizados, pulsionalizados, nos quais opera , justa
mente, a pulsão, acomodando-se à ·condição de abertura e fechamento
daquilo que é inconsciente. Observa enigmaticamente que só um
destes orifícios carece desta qualidade de abertura e fechamento, e
agrega : isto traz conseqüências . No Seminário 1 1 tal circunstância
não se desenvolve, não se elucida quais são as conseqüências que tra
zem consigo a indefectível abertura do ouvido. Não obstante, por
agora só reparemos em que o resto das zonas erógenas possui a con
dição assinalada . Desde já, se pensamos no desenvolvimento efetuado
reuniões atrás sobre o olhar, devemos convir que o olho reúne essa
qualidade de abertura e fechamento . Por outro lado, este órgão pode
ser muito estimulante - no sentido imaginário - para considerá-lo
como zona de intercâmbio com o mundo, ou coisa similar. Essa seria
a degradação psicológica do conceito de zona erógena. O verdadei
ramente importante é o movimento de abertura e fechamento indica
dos pela pulsação temporal . Baseada nela uma zona determinada passa
a ser erógena, graças a uma homologia topológica com aquilo que é
inconsciente . Aqui se explica, entre outras coisas, porque aparece a
pulsão parcial como presentificação da sexualidade naquilo que é in
consciente.
Se existisse uma pulsão total - especulemos por um momento
com essa idéia - não haveria zonas erógenas abrindo-se e fechando
se. � a comunidade topológica com aquilo que é inconsciente que atrai
à pulsão e faz que ela, através de sua específica zona erógena, se rela
cione com aquele. Desse modb. é como se articulam dois conceitos
fundamentais : aquele que é incons.ciente, e a pulsão, segundo postu
lamos em nossa primeira reunião . A sexualidade faz-se de articuladora,
de ligação, de lugar de intersecção, para permitir que a pulsão possua
sua inserção naquilo que é inconsciente.
Toda pulsão é parcial - não é supérfluo reiterá-lo . Quando fa
zemos referência ao total j á estamos incursionando em outra dimensão
22S
da qual dará conta o título de um capítulo do Seminário 1 1 - ainda
que com os termos invertidos -: Do amor à libido. Aqui, marcamos
a passagem da libido ao amor ; neste último, podemos apreender a
questão do total, isso que de imediato induz reciprocidade, a qual é
uma caracerística definidora do amor. A partir deste ponto Lacan
oferece uma concepção global, ao assinalar - em diversos trechos de.
sua produção - que os sentimentos são recíprocos . Sob a aparência
de uma simples fórmula esta afirmação possui uma importância clínica
transcendental . Se ci assumimos ao pé da letra, captaremos então como
a contratransferência está falando - concordando que pretende dar
conta do sentimento do analisando - está falando, dizia, do senti
mento do analista. Portanto indica, como operação do analista - se
podemos chamar assim - uma confissão acerca do que sente a res
peito de seu analisando. E isto é assim inclusive quando o analista só
pretende revelar o propósito "fracassado " do analisando com relação
a provocar-lhe tais ou quais sentimentos ; sim, porque o mero fato de
verbalizar que quer lhe induzir essas emoções, assinala como já as
está sentindo. Se expressa : "- você faz isso para que eu me irrite,
fazendo o possível para que eu chegue a sentir-me irritado", direta
mente já está tudo confessado. Presenciamos, então, uma maneira
imaginária, dual, especular, de " dirigir " a cura.
Detenhamo-nos novamente na pulsão, seguindo a leitura de Pul
sões e destinos das pulsões. Recordarão como assentamos, nesse texto,
a clara divisão realizada por Freu d entre as pulsões e seus destinos,
por um lado, e o amor, por outro. Isto se liga, como reflexão ou exten
são teórica, ao problema da pulsação, do porquê à sexualidade sua
própria pulsação lhe permite estabelecer uma imbricação com aquilo
que é inconsciente. Para entender melhor esta circunstância, devemos
marcar que a interpretação se desdobra em uma ordem de metonímia :
Vs." mântica
epressão primá
Significantes �a ou originária) . Pulsação
intoma. temporal .
Sincronia.
226
Em primeiro lugar, e no plano mais empmco, devemos recordar a
aparente tautologia : a interpretação se diz. Talvez não seja excessivo
repeti-lo, porque existe uma certa tendência - autodenominada " la
caniana " (sic) - que acredita que a interpretação pode não ter a ver
com a fala. Não é nenhuma novidade assinalar que toda interpretação
está construída com palavras, mas o fato de dizê-la tem suas conse
qüências. Entre outras coisas, fenomenologicamente, implica ser exten
siva no tempo; portanto, passível de deslizamento. E é neste desliza
mento onde encontramos, precisamente, a metonímia.
Ao ligar interpretação e metonímia, se descobre a presença de
outra estrutura comum. Se há metonímia, que ordem é convocada
imediatamente no ensino lacaniano? Aparece, desde já, o dese_j o:
Vs. mântica
227
já citado: O desejo e sua interpretação. Temos na mesma ordem os
dois conceitos: interpretação e desejo. Podemos pressupor que o ana
lista interprete o desejo que " está" no analisando, de acordo com a
nossa maneira mais vulgar de entender as coisas. Agora, o simples fato
de levar em consideração que o desejo é desejo do Outro, já complica
bastante tal maneira imaginária de elucidação. Se o desejo é o desejo
do Outro - repito - a questão consiste em que o desejo é sua inter
pretação. Não que a interpretação seja aquela de um desejo situado
dentro da cabeça do analisando. Alguém poderá · objetar que segundo
a forma como estamos expondo este problema, o analista estaria con
duzindo de um modo quase sugestivo, quase hipnótico, o analisando.
O tema é, sem dúvida, diferente; na interpretação se põe em ato,
precisamente, uma dimensão à mercê da qual o sujeito é constituído.
Por acaso este não se constitui a partir do Outro? Assim sendo, não
é justamente a interpretação um voltar a pôr em ato uma operação
de constituição do sujeito?
Não é certo que sujeito se tenha constituído em um certo mo
mento histórico e de uma vez para sempre. O fato de que o analista
faie ao analisando dentro da situação analítica, indica de que modo
se põe em ato, novamente, certa operação de causação do sujeito (que
exporemos mais à frente). Atendendo a estes pontos, podemos precisar
porque o desejo é interpretação. Não há, assim, um desejo "preexis
tente" ao discurso do Analista, visto que consiste naquilo instaurado
pela operação analítica chamada interpretação.
Agora, na medida em que aparece este intervalo aberto pela se
xualidade em forma de uma pulsação temporal, cabe inserir em nosso
diagrama, nomeando-o, um conceito que trabalhamos no começo deste
curso: trata-se de uma estrutura de hiância:
Vs . ;mântica
228
No meu entender, hiância é uma tradução aceitável do francês
béance, porque permite inteligir a determinação em jogo em termos de
significantes . Recordemos como se relacionava a hiânéia com aquilo
conhecido em poesia conio verso biante, com esse corte, essa censura
condicionante do corte da e na frase.
229
totalizadora do amor. O que é a reciprocidade? :e a relação eu-tu. Eu
te falo, tu me escutas. Imediatamente se trocam os papéis: tu me falas,
eu te escuto. :e um ponto de partida equivocado. Especificamente sobre
o solilóquio, o Seminário advertirá que o pontuável - antes do pre
sumido egocentrismo - consiste em levar em conta a presença dos
outros. Os outros são a condição de possibilidade, de existência, para
que o pretendido discurso egocêntrico inicial apareça. Portanto, o ego
centrismo - a rigor - não é esse, senão que as crianças ali presentes�
dedicadas a seus jogos, são aquelas que provocam seu falar� um falar
- ver o chiste, emitido nas traduções - "à la cantonade ", vale dizer,
o "falar ao pano", · próprio dos recursos teatrais ª. Pensar esta situação
de tal modo deriva de levar em conta a gestação do sujeito enquanto
não causa sui. Sustentar o contrário é tropeçar novamente com con
cepções próprias do sujeito da representação.
O egocentrismo, longe de ser inicial, está concebido segundo as
envaidecidas determinações do sujeito da representação. Pelo fato de
ter representações, chego a acreditar-me criador do ·mundo. Se quero,
me abro a tal mundo; se não, me fecho. :e uma postura soberba, pró
pria de todo ser falante; como tal, resulta uma condição de estrutu
ração ligada ao posicionamento narcísico. Como já assinalamos em
outro momento, tudo parece reduzir-se a um exercício da vontade:
o outro existirá segundo eu o queira ou não. 1! esta tendência que em ·
filosofia se denomina idealismo. Muitos expoentes da outra psicaná
lise passam esta convicção: o neurótico é uma espécie de egoísta
fechado em si mesmo, que se cura quando consegue abrir-se ijO mundo.
Se nós o vemos, conforme a experiência cotidiana, constrangido e
praticamente entregue à demanda do Outro, a imagem - paradoxal -
que possuem estas correntes é quase de um auto-suficiente, que se
pode apartar e prescindir do mundo a seu gosto e vontade. Como é
possível observar-se, o perigo clínico desta concepção é máximo. Por
que não é precisamente um elemento decisivo, opinável, a partir do
2.30
sujeito egocêntrico ou do Outro. O fato de conceber o neurótico como
um renunciante soberbo implica uma cabal falta ética e deontológica,
uma vez que determina uma colocação - quanto à direção da cura -
no sentido implícito do reforço do eu. Toda análise fica reduzida,
assim, a uma terapia de reforço. Ainda que acreditemos fazer psica
nálise, como efeito não pas.sará de uma terapia de apoio - exercida
indiretamente. O induzido nesses casos é, finalmente, insuflar no
analisando a convicção de poder ingressar e sair desse mundo imagi
nário a piacere. Que melhor terapia egóica que aquela que consiste
em niaquiar o fantasrÍia da realidade do analisando, para outorgar-lhe
a "patente de corso " que diga : " Titereiro " ?
231
atribui um estatuto especial, através do recurso à conformação de um
mito . O mito de outrora tem a eficácia de estar articulado àquele
famoso mito do andrógino, relatado por Platão - que o põe na boca
de . Aristófanes - em O Banquete ou O convite de amor 4 • Como re
cordarão, essa narração refere que, em tempos primordiais existia uma
espécie de ser completo - homem e mulher ao mesmo tempo - o
qual, após diversas vicissitudes, foi cindido - como castigo - pelos
deuses. Aí se criar8Ill os sexos como diferenciais; todo esforço poste
rior destes seres buscaria reconstituir esse andrógino original, voltar
a ser uma unidade. Lacan proporá outra saída mítica, renovando de
maneira audaz o estatuto válido do mito para a psicanálise . . Que
alguém considere analisável um mito e lhe atribua validade teórica
já é dificilmente assimilável para a ideologia positivista. Mas que se
postule um novo mito, lhe resulta diretamente inaceitável. Nas antí
podas: se tomarmos os textos de Freud, poderemos encontrar ali todo
tido de insólitas, de criativas maneira de "compor " documentalmente
a psicanálise. Como afirma Ricardo Piglia, A interpretação dos sonhos
é, entre outras coisas, "um estranho tipo de ficção autobiográfica ",
situável no gênero das Confissões de Rousseau 5 • :8 uma proposta
muito aguda, parece-me, o convite para tomar esta obra como um relato
autobiográfico, onde se ficcionaliza - creio que podemos coincidir
nisto - o momento fundacional da psicanálise.
232
Esta palavra é, em francês , um neologismo . Refere-se, em pri
meiro lugar, a homem (homme) . Na condensação excluindo - como
se aprecia - um h e um m, aparece a popular omelete de ovos,
coisa que não é de todo alheia porque aqui também se trata de fazer
algo a partir de quebrar ovos. O qual poderia traduzir-se ao caste
lhano - ao menos por este vocábulo se optou, creio que com bom
tino - como lamininha . Uma pequena lâmina, concebida como ele
mento extraplano - praticamente , sem espessura - passível de des
locar-se, de passar pqr qualquer lugar. De preferência, a lamininha
costuma situar-se nas bordas das zonas erógenas, em virtude de sua
condição amebóide . Mas é lícito perguntar-se o que explicaria este mito,
se supomos válida sua incorporação ao corpus psicanalítico . Tal recur
so, precisamente, dá conta de que algo decisivo acontece na passagem
da reprodução por cissiparidade dos organismos unicelulares à reprodu
ção sexual . Uma coisa é que um microorganismo se divida em duas
células iguais - como assinala Lacan, mas antes também Freud 8 -
e seja, então, imortal. De algum modo, neste caso o indivíduo não
desapareceu, uma vez que se converteu em dois; aqui não há morte
do indivíduo, da espécie . A questão é distinta, em troca , quando
aparece a reprodução sexuada : _de modo inevitável, se produz ali uma
perda. Especificamente trata-se da perda do indivíduo , que requer en
tão a necessariedade do pareamento para obter, a partir do mesmo a
produção de um novo ser . Se este surge é ao preço de que o ser da
geração anterior, mais distante ou mais próxima, desapareça : De tal
maneira, podemos observar as implicações da aparição da sexualidade
neste escalão, dir-se-ia, primitivo da zoologia . A instauração da se
xualidade conduz, portanto, à instauração da morte .
Nessa ligação entre sexo e morte encontramos duas coordenadas
cruciais - iniciais , permanentes - da teorização freudiana : sexo e
morte, um levando à outra . Não se esgota esta conexão na observação
de que um espécime vive, cresce, se reproduz e logo morre : essa seria
uma banal descrição fenomenológica. O caso é que ao não existir j á a
exclusividade da reprodução por cissiparidade - onde, além disso,
sustenta-se o idêntico - a reprodução sexuada introduz o não idên
tico , a radical diversidade existente entre os indivíduos . Aludindo a
sua hommelette, Lacan assinalará que a libido representa aquilo per
dido pelo vivente sexuado em sua condição de tal, a partir - mitica-
233
mente - de seu nascimento. Com a sexualidade, algo se perde, algo
fica no caminho.
A condição de perda marca o ser vivo; esta é, precisamente, a
maneira de entender - a meu juízo - a situação que a religião enga
na como própria do pecado original. O sujeito emerge impregnado
das conseqüências dessa ação que o compele a deixar algo em seu
próprio ponto de partida. Por tal perda inicial está condenado, irre
missivelmente, a desaparecer. Esta operação será considerada como
mortífera, e tal fator letal se verá, justamente, redobrado pela própria
ação do significante, pela relação coni o Outro.
Certamente, a libido também é representada - como figura -
por aquele objeto ao qual fizemos referência quando trabalhamos os
limites da pulsão: o objeto a. Característica definidora desse objeto
é o tratar-se de algo automutilado que o sujeito perde. Segundo assi
nalamos; em determinados exemplos, como o das fezes, estas circuns
tâncias eram muito claras. Em outros casos, como o do olhar, as notas
definidoras eram mais difíceis de observar. De todas as maneiras, o
objeto a sempre refere a certo elemento automutilado que fica perdido
no caminho da constituição do sujeito. Convoca mediante essa mesma
automutilação, inevitavelmente, a ordem da falta, do buraco central
expresso na castração ( - <p) .
� muito fácil, e de todos os dias, pensar que mediante o libidi
nal o sujeito busca seu harmônico complemento, já que isto responde
ria a uma presumida ordem de estrutura. O Seminário aportará, a esse
respeito, a demonstração da psicanálise : na realidade, busca-se essa
parte de si mesmo que se perdeu, procurando seu reencontro. Mas
esse reencontro é impossível pois o perdido o é de modo definitivo.
Obviamente, esta afirmação é muito menos lírica que aquele enfoque
romântico, preconizador de um encon�ro perfeito e acabado; aqui, os
desenvolvimentos lacanianos já avançam para o que autoriza a leitura
"ampliada" do quase clássico aforismo '1 Não há relação sexual" .
Que não haja relação sexual significa: não existe nenhum pro
nunciamento no psiquismo capaz de determinar que alguém, possua
o corpo que possua, esteja programado previamente para situar-se como
homem ou mulher, com o intuito de obter - em conseqüência, como
o andrógino - seu "adequado " complemento. O processo terá a ver,
melhor, com as transformações articuladas no campo do Outro. E,
a partir deste, a lei do não encaixe será decisiva, inevitável.
234
Como já observamos, vamos lentamente chegando a esta domi
nância do campo do Outro. Assim é como Lacan se vê finalmente
conduzido a incluir, no Seminário, uma temática notoriamente deci
siva: a que dá conta das operações de causação do sujeito. A partir da
pulsão e de como a mesma reconhece sua gênese no campo do Outro,
colocar-se-ão duas operaçõ(is essenciais, cuja articulação procuraremos
depois. Além disso surgirá daí, entre outros itens, uma maneira defi
nida de entender a teoria de interpretação.
As duas operações, já aludidas, são a alienação e a separação. A
primeira operação é denominada por meio de um vocábulo que não
deixa de causar-me - se me permitem a confissão pública - certo
incômodo. Provoca uma inquietação a manipulação a qual esta palavra
tem sido e segue sendo submetida. Já passou ao vocabulário comum,
a esse repertório onde figuram, por exemplo, "ter um trauma", " ter um
complexo" etc. Assim, é possível escutar freqüentemente que alguém
" está muito alienado ". Nesse sentido é quase como um convite desa•
fiante de Lacan o recorrer ao rótulo de " alienação" . A palavra é boa
se alguém trata de limpá-la de toda a escória aderida pelo abuso. Sim,
porque já a partir de sua própria etimologia, alienação · faz referência
ao Outro. Na versão castelhana de Posição do inconsciente traduziu-se
como enajenaci6n 1 , ainda que não fique claro o motivo desta escolha,
reiterada na edição corrigida e aumentada dos Escritos, de 1 984.
Devemos realizar, em primeiro lugar, uma ,discriminação. Parece
que esta condição do alienado está relacionada não só com o es
tranho senão com um modo de estranho, mais precisamente, perse
cutório, sinistro. Seguramente recordai-ão o filme Alien, de Ridley
Scott, com os efeitos realmente sinistros que provoca seu horripilante
"protagonista" . Poderíamos pensar que na imaginária modelada por
seu realizador, o " oitavo passageiro" ocupa um lugar homólogo ao de
das Ding na concepção lacaniana. Já que falamos de cinema, outro
filme similar onde se expõe bastante terminantemente esta concepção
de das . Ding é o conhecido em nosso âmbito como O enigma de outro
mundo, de John Carpenter. Esta obra perdeu muito quando a titu•
laram desse modo para a distribuição local.
O título original em' inglês era sumamente sugestivo: The Thing,
a Coisa. Se o virem, poderão verificar, de modo impactante, o que
7 . J. Lacan, "Posici6n . . . " cit., pp. 375 e ss. (Ajeno : alheio, estranho, de
diferente natureza). (N.T.)
235
conota o termo das Ding - a Coisa - no sentido de uma experiência
devoradora e horripilante . , Então, se tentamos preservar em sua deno
minação o caráter ameaçador portanto pelo alheio, bem podemos
fazer referência à alienação. Devemos descartar absolutamente a con
cepção vulgar de alienação ; para esta, o vocábulo denota a perda
desnecessária, mas reversível, de certa essência valiosa do humano.
Nesses ·casos, estar alienado significa haver sacrificado algo interior
em prol de alguma atividade ou pessoa; a meta conseguinte, ante esta
situação, seria - como dizem - desalienar-se. O que é muito pare
cido com pensar que alguém adoece por uma identificação projetiva
massiva e se curá mediante a reintrojeção do projetado. Melanie Klein
- cuja teoria comentamos - na realidade considera que alguém adoe
ce por tirar demasiado de si : numa espécie de ideologia cercada por
um espaço intuitivo elementar, os conteúdos que têm sido retirados
de si mesmo podem, devem, ser reincorporados ao "mundo interno" .
O kleinismo modela tal teoria com o ideário - implícito - de uma
inversão financeira. O ponto de partida de Lacan - . reitero mais uma
vez - é que o sujeito é efeito do significante, e se constitui no, e a
partir do, campo do Outro. De tal modo, não há nenhuma essência
mais ou menos extemalizada na alienação, segundo a qual esta consis
�iria em um nocivo ir tirando para fora uma presumida essência do
humano. Daí que a postura lacaniana não seja de modo algum . essen
dalista, o que tampouco indica que, de acordo com a clássica dicoto
mia, seja existencialista. Não se trata aqui de colocar a existência pre
cedendo a essência, segundo apontaria um Sartre 8 • Trata-se de um .
sujeito concebido a partir do campo do Outro, mas isto não implica
que este último seja uma espécie de vazio, conforme o coloca, no meu
entender, a reflexão sartreana - libertária - da existência.
236
mento nos oferece o suporte para pensar, precisamente duas opera
ções, inclusive no pequeno algoritmo de referencia:
/\
V
A fim de discernir estas operações, devemos situar à direita o su
jeito e, correlativamente com este, o Outro, enquanto lugar dos signi
ficantes (à esquerda) :
A AS
Alienação
237
Alienação
Por agora, s6 situaremos este segundo vetor em sua relação; vere
mos, mais à frente, em que consiste . . Antes, sigamos tratando de
caracterizar a alienação. Nos diz Lacan que pela relação com o Outro
é que pode surgir um sujeito. Isto parece simples, mas a história da
produção de um sujeito é certamente complicada; o prévio apenas
equivale a uma indicação programática.
Como já marcamos, todo sujeito se constitui deixando algo de si
no caminho. Não pode aparecer, então, senão como sujeito tomado
em um conflito. Se aparece como sujeito, o que efetivamente acontece
em um movimento da operação, é à mercê que, no campo do Outro,
se reconhece como sentido. O primeiro que acontece ao sujeito "vir
tual" é seu embate com uma chuva de significantes que, se bem
permitem seu surgimento, o petrificam. O tema é realmente complexo;
o sujeito nasce na · cultura por meio da ação do significante, que lhe
outorga a única vida possível para o falante e, ao mesmo tempo, lhe
presentifica - enquanto fator letal - a morte. l! que, em última ins
tância, o sujeito aparece ao preço de uma desaparição. Para os pres
tígios do e.u é duro escutar afirmações como esta. Não é nada agradá
vel porque obriga a pensar que o sujeito não está alienado por haver
extraído algo de si, senão que esse é o preço para formar parte do
rebanho. É nessa ordem que se pode considerá-lo petrificado ou até
imbecilizado; colocado, em suma, em uma condição quase hipnótica,
vale dizer, aquela que pode categorizarile como a dimensão do se:
a impersonalidade, o coletivizante. Em definitivo, esta ação do signi
ficante verifica-se cabalmente - no meu entender - no fenômeno
trabalhado por Freud próximo a 1 920, de maneira tão certeira: · a
formação da massa (ou, aggiornada,nente, de grupo) . Em Função e
campo da fala . . . , já é possível auscultar indicações convergentes:
com efeito, estamos fartos de palavras por todos os lados. Palavras
armazenadas, recolhidas, escutadas, escritas etc. Tudo isto, que indica
em aparência uma grandíssima riqueza de elementos, ao mesmo tempo
238
constrói um cerco: é o " muro da linguagem" 9 • Nesta construção o
sujeito se petrifica, fica como aniquilado - palavra precisa, pol'.que
denota ficar como um nada, desaparecido. Tal condição será deno
minada afanise:
1) Alienação - afanise
'2) Separação
1 ) Alienação-afanise-/ading
�) Separação
ng
Aqui voltamos a colocar os mesmos termos : o sujeito e o Outro,
invertendo seus lugares. O que é o que o sujeito - após a alienação -
"obterá" do Outro? Precisamente a possibilidade de ser sujeito. Se
obtém o ser, o será enquanto sujeito barrado :
$
se r
$
ser sentido
240
um lugar de intervalo entre os dois campos onde - dizíamos - é
possível evocar a figura algorítmica do punção. Então, nesta zona de
relação entre o sujeito e o Outro, que aparece como zona de pulsa
ção, inscreve-se o que já não será denominado sentido, mas sem
sentido.
A
sentido
sem- sentido
241
$ A
1 ) Exclusiva
2) Inclusiva
1 ) Exclusivo
2) Inclusivo
3) Da alienação,
10 . Lacan adota o caminho assinalado por uma tendência atual na lógica, se
gundo a qual o vel engloba também a disjunção exclusiva. Tradicional
mente, em troca, o vel ("ou" ) , só denotava a inclusiva, reconhecendo-se
a
a restante como "aut . . . aut . . . " (ou . . . ou • . . ") . Congruentemente, dife
rem as notações : 'V' para a inclusiva, '#' para exclusiva.
242
ção. Tampouco refere a uma disjunção onde dá no mesmo um termo
ou outro. Este vel indica uma relação eletiva bastante paradoxal : traz
como conseqüência um " nem um, nem outro", seja qual for a opção
abraçada:
Vel '
1 ) Exclusivo (ou . . . ou . . . )
2) Inclusivo (ou)
3) Da alienação (nem um nem outro)
243
Questões
244
perder-me", ou " poderia faltar-te" . A manobra de separação por exce
lência - como vêem, é um avanço da próxima - é o suicídio 11•
Se o suicídio é o clímax da separação, tal liberdade aparece aqui
como liberdade de, e para, morrer. Esta colocação remete, está claro,
a um encadeamento ao Outro que não é, obviamente, o do sujeito da
liberdade sartreana, aquela do projeto, determinado a partir do para-si.
Não há, então, liberdade abrangente de forma alguma. Trata-se, em
síntese, da liberdade do sujeito de trabalhar com sua própria falta.
O significm1;te, a partir do campo do Outro, dá desse modo vida
e morte a um vivente sexuado, prometido a sujeito dividido, em todo
caso, mas que ainda não o é. Antes - tempo lógieo - do significante
e seu impactai só contamos com uma cria do sapiens; essa que Lacan
chama infans, o mu�. aquele que não fala.
24S
X
SEPARAÇÃO, METÁFORA; INTERPRETAÇÃO
Como todos sabem, este é nosso último encontro. Por ser assim,
vei:n acompanhado de certo inevitável afã de pretender oferecer tudo
o que falta. Não obstante, se nos fazemos seguidores dos ensinamentos
de · Lacan com respeito a este ponto da falta, devemos convir que
sempre faltará algo. E bom, não está mal que, ao concluir, a falta
perdure.
247
acredito que, de todas as formas, será útil tentar esta série de discri
minações. Antes desse desenvolvimento, contudo, seria interessante re
passar brevemente o problema da alienação e desdobrar o da separa
ção, o qual ficou suscintamente exposto na resposta à última questão
que me formularam na vez anterior.
A alienação - como tentamos demonstrar - liga-se à constitui
ção do sujeito no campo do Outro enquanto operação que determina
a captura do sujeito pelo significante. Este lhe dá a oportunidade de
viver enquanto ser falante. Ao mesmo tempo, e inversamente, o signi
ficante induz um efeito letal, mortífero - em sentido metafórico.
Este significante não mata, de nenhuma maneira, mas sim inaugura
um função: aquela denominada como afanise (Ó termo é tomado de
Ernest Jones) e que constitui um desvanecimento, um desaparecimell
to, uma petrificação. O efeito do significante é introduzir uma espécie
de knock-out, onde o sujeito fica - tal qual ocorre usualmente em
lutas de boxe - desvanecido. Nesta operação, indubitavelmente, a
primazia corresponde ao campo do Outro. A partir daí se produz esta
condição divisória de vivificação e letalização. Dispõe-se assim o
acesso ao nível do sujeito do que não era mais que uma promessa de
sê-lo. Sujeito, portanto, falador? :e. redundante referir-se a um sujeito
que fala. Na doutrina lacaniana, aludir a um "sujeito falador " , impli
ca uma tautologia; por isso, é preciso referir-nos a um · ser falante 1 •
Sujeito implica efetivamente o fato de haver sido dividido pela ação
do significante. Este é, então, o caminho conceituai a privilegiar na
alienação: encontrar-se cindido.
As divisões do sujeito podem encarar-se segundo vertentes di
versas. No Seminário 1 1 desenvolve-se uma em particular, a que
havíamos representado na reunião anterior; trata-se de que elegendo
qualquer das alternativas, entre o sujeito e o Outro sempre a opção
se vê diminuída de - por - esse lug�r intermediário denominado o
sem-sentido. Se a opção procura constituir-se buscando o sentido, de
para-se com o sem-sentido. Não há sentido plano em nenhum ser
falante, porquanto inevitavelmente ocorre uma perda que o constitui,
a qual, na realização do sujeito, é aquilo que é inconsciente. Não há
opção entre uma e outra condição; acreditando que se elege e ganha,
248
sempre se perde algo do eleito, que já não será como antes . da eleição
(recordemos somente o exemplo do dinheiro ou a vida) . Na realidade
trata-se de um falsa opção, uma presunção de eleição, que não é
assim. Lacan batizará isto como vel da alienação. Mas tal vel ('ou',
em latim) não assinala disjunção alguma, mas sim a crença de que se
elege quando não há tal • eleição. O que indica, então, é uma falta:
nem um, nem outro. Esta é a ação do campo do Outro na constituição
do sujeito em seu primeiro movimento, mas ainda nos resta a outra
operação : a separação.
Em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise o problema
da separação se expõe e desenvolve com extrema sagacidade. Insta
lada a falta no sujeito - diz Lacan - este procede a colocá-la com
relação ao Outro : isto é, a buscá-la; inclusive, a induzi-la. Há quem
considere - não sei se por má fé ou por pura ignorância - que o
Outro lacaniano é Deus filtrado de contrabando. Grosseiro : não se
pôde ou não se quis captar, como o Outro não é uma entidade, uma
enteléquia como habitual recurso a sua falta; assinalam-no assim, ou
com algum adjetivo acompanhando-o. Por exemplo, é o caso do Outro
primordial - ao que bem poderíamos referir-nos como a mãe. Por
que não chamá-la assim, então? O que acontece é que a mãe tem sido
e é tão criticada na teoria - e nos conselhos " psi " - que convém
mencionar um Outro primordial, porquanto dá conta de um lugar da
mãe, onde ela desempenha - habitualmente - uma ação .mediadora
em função da ordem simbólica. Isto não dependerá de seu instinto
matemo nem de seus sentimentos, mas sim do seu lugar como presen
tificação do Outro. A isso se deve o Outro primordial; não obedece
simplesmente a uma tentativa de complicar a questão ou de propor
sem necessidade palavras alternativas . Em tal vocábulo, portanto, há
uma concepção em jogo : a dos registros da experiência, e as conse
qüências derivadas deles. Em suma: invocar a mãe não é igual - o
que dá lugar a todas essas teorias da puericultura ou " dos cuidados
para não neurotizar os filhos " etc - a dar conta de um Outro
primordial.
Quando o Outro primordial é interpelado, por exemplo, através
dos célebres " porquês " infantis, encontramos um dado interessante.
Estes " porquês " são com freqüência difíceis de tolerar, porque con
frontam com a impossibilidade de uma resposta, com a impossibilida
de de responder a tudo; em definitivo, colocam o interrogado frente a
249
um real inefável. Não se trata - comenta o Seminário - de um afã
de saber. Aqui há um ponto onde se diferenciá de Freud, que aludia
a uma Wissentrieb, uma pulsão de saber. A criança não pergunta para
saber, senão que questiona: " Por que me dizes isto?". Não é somente
um porquê embativo, mas um porquê que pergunta pelo desejo do
Outro.
250
fique uma mera convenção lingüística. De todas as maneiras, pode
comprovar-se - ao situar a separação em direta relação com um
quadro inédito, difícil e expandido como o da anorexia mental -
como esta segunda operação não constitui, simplesmente, uma nova
filosofia éspeculativa da constituição do sujeito : a remissão clínica é
imediata, e fecunda.
Imediatamente depois, nos deparamos com uma série de associa
ções, de supressões, a partir da palavra separa�ão. Neste jogo de pala
vras - o que não quer dizer, está claro, um divertimento - recorre
ao latim separare, a que separada - escandida - dá se parare: em
francês, se parer, é tanto vestir-se como pôr-se em guarda.- Logo após,
e novamente a partir do latim, expõe outro equívoco por derivação
de separare: é o surgido de se parere, o que remete a parir-se, a
engedrar-se - coisa que não devemos confundir com autoengen
dramento:, com a pretensão do sujeito enquanto causa sui. Apesar de
que a determinação se situa no campo do Outro, é possível um " en
gendrar-se" relativamente à separação. Alguns dos elementos que
vimos expondo já podemos incluí-los nas colunas, para proceder um
ordenamento do correspondente a estas duas operações · conforme um
certo grau de abstração. Existindo várias linhas que se vão conjugan
do, é possível pontuar - em uma primeira aproximação - quatro
colunas, dispostas da seguinte forma :
Relação com
a cadeia
significante, Operação Modalidade
Efeito no
com o campo lógica . da falta.
$. do Outro.
1 1
Alienação
Separação
25 1
Este quadro pode ajudar, ao menos provisoriamente, como um
conjunto de andaimes que permita pensar certas questões. Como com
todo andaime acontece, uma vez finalizada a construção, deve ser
desmontado.
Quanto ao efeito no sujeito mencionamos duas possibilidades
conjuntas. A alienação provoca um efeito divisório : quando se escolhe
o sentido, é inevitável o non-sensical: acha-se o sentido ao preço de
sua forçosa articulação com aquilo que é inconsciente, que é sem
sentido. Este efeito divisório envolve, por outro lado, a nomeada
afanise, o que dá lugar a esse movimento que Lacan chama fading do
sujeito, enquanto reali.zação - amputada - de seu ser:
�-
Relação com
a cadeia
Efeito no significante, Operação Modalidad e
com o campo lógica . da falta.
do Outro.
divisório :
Alienação afanise sentido
(fadin;,) 1 (sem)
Separação
divisório:
Alienação afanise sentido
1
(fading) (sem)
engendrar-se
Separação (se parere)
função da
" liberdade "
252
As aspas servem para levar em conta que esta liberdade, como es
clarecemos em nosso último encontro, nada tem a ver com a liber
dade absoluta, abrangente - ao modo sartreano, derivada da existên
cia como precedendo a essência. Provoca tantas reflexões, tantos escla
recimentos, como para que, ao menos, a circunscrevamos mediante o
entre aspas. A função da liberdade é limitada, restringida, trabalhando
a partir da falta. Não é aquela que serve para ditar, para desenvolver
um "projeto", no estilo existencialista.
Vamos à segunda coluna. Quanto à relação com a cadeia signi
ficante nos esclarecerá muito o uso de um pequeno diagrama que
representa a mínima parelha de articulação significante. Os anota
remos como: S1 , S2, Assinalamos que o efeito em relação com a cadeia
significante é que, em função de ao menos dois significantes, se pro
duz, como resultante, tima incógnita 'x': a do sujeito, falador e petri
ficado conforme o mesmo movimento :
Relação com
a cadeia
Efeito no significan te, O p eração Mod alidade
$. com o campo lógi ca. da falta .
do Outro.
divi sório : S1-- S2
Alienação afanise J sentido
(/ading) (sem) X �
engendrar-se
Separação (se parere)
função da
"liberdade "
Aqui pode-se ver claramente como no momento em que acontece
a articulação S1 - S2, o sujeito cai como um efeito dela. Portanto,
este é produzido na alienação pela bateria significante mínima, um
par. A fórmula é outro modo de dizer que não há um significante,
mas sim pelo menos dois. A definição deste significante deve envolver
necessariamente um significante a mais e ainda outro elemento : o su
j eito. :8 por isso que os desenvolvimentos lacaniànos jamais · poderiam
chegar a ser confundidos com uma lingüística "objetiva", porquanto
neles está constantemente intercalada de maneira decisiva, a função
do sujeito. Ao acontecido na alienação, podemos denominá-lo como
captura:
253
Relação com
a cadeia
significante,
Efeito no Operação Modalidade
com O c ampo da falta.
$. lógica.
do Outro .
divisório :
afanise _ sentido S
1--'S2
Alienação 1
,
(fading) (sem) captura x $
engendrar-se
(se parere)
Separação
função da
" liberdade "
Devemos _ recordar que Lacan utiliza também, em outro contexto,
o termo captura: quando alude à captura imaginária chamada amor.
Aqui se trata, em troca, de uma captura significante, pertencente ao
registro simbólico.
No caso da separação o diagrama correspondente representará
uma diferença crucial com respeito ao item anterior. O retomo cir
cular ainda que dissimétrico, implic ará o seguinte:
Relação com
a cadeia
significante, _
Efeito no 0 peraçao Modalidade
com o c ampo
$. l ógica . da falta.
d o o u t ro.
divisório : S 1-- S2
Alienação afanise 1 sentido 1
(fading) (sem) captura x i
engendrar-se s 1+ s2
Separação
(se parere)
função da !
: X
1
J\
" liberdade"
O pontilhado introduzido entre os dois significantes representa
que, no intervalo entre S1 e S2,· tem lugar um ataque à cadeia. Este é
o lugar do · sujeito, quem deve irromper na cadeia_ simific ante p�ra
conseguir ali · a separação, a qual não implica · ficar fora da cádeia,
senão fazer um lugar nela. Entende-se que aqui não há nenhuma di
mensão fora (de) discurso o que é próprio da psicose. O estar fora
da cadeia é algo relativo, algo dependente daquele significante que
254
denominamos Nome-do-Pai; assim, na psicose, seu não compareci
mento condiciona tal "fora". Aqui a questão é outra; consiste em se
fazer um lugar. Não implica, contudo, uma devastação, uma espécie
de postura anárquica nem nada parecido. Veremos, com respeito à
interpretação do anali�ta, como funciona nela também este ataque · ao
par significánte no ponto débil do intervalo, onde, por outro lado,
"jaz " o · desejo - por localizar - do Outro. Tal ponto pode .ser
qualquer um, ainda que convencionalmente o representamos aproxi-
madamente até a metáde do trajeto:
Relação com
a cadeia
significante,
Efeito no com o campo O peração Modalidade
$. do Outro. lógica . da falta.
divisório :
Alienação afanise j
sentido
S 1-- S2
!
(fading) ( sem) captura x
engendrar-se s1-+ s2
Separação
(se parere)
função da
1
1 1
ataque : x '$
· ' liberdade"
1
255
que se procura fazer habitualmente - como no caso de André Green,
a quem já se situa disputando com o expositor - é buscar a pequena
diferença, como se ela garantisse a separação. Desse modo se cons
trói - como esc1:eveu uma vez Laplanche - a pequena metapsico
logia portátil, própria de cada analista. Aí está a diferença relativa
à qual parece tomar-se uma benéfica, criativa distância dos signi
ficantes que transportam a doutrina dos mestres. Contudo, parece-me
que a posição correta consiste · em tratar de fazer jogar estes signifi
cantes, com estes significantes, para que produzam novos efeitos; uti
lizando-os e alienando-se neles, mas de um modo que lhes permita
render efeitos inesperados, em função de es-tendê-los e en-tendê-los .
Assim, poderão insertar-se outros, mas sempre no mesmo campo.
De não ser assim, acontece muito freqüentemente - e este é um
dos riscos que se corre com um ensino tão elaborado, rico e ainda
proporcionalmente pouco trabalhado - que se chegue a incorrer no
que chamei ecolalia gargarística . Como é gargarejo, muito não se
éngole; como na escolalia, só se reproduz. Aí não existe senão aliena
ção. Se isto é assim, passará com Lacan como antes ocorria com Freud :
há um perigo, certo, de " morte " . Se se insiste em uma marcada repro
dução do idêntico, não em uma repetíção - já que esta inclui dife
rença - encontramos a pura alienação. Naturalmente, é um desafio,
já que se_ trata de algo indubitavelmente árduo, complicado. Melhor
seria, talvez, ·optar por autoengendrar-se, segundo apregoa o sujeito
da representação, 2 • muito atrativo o tentar construir uma teoria
própria a partir do zero. Há um trabalho de um colega meu deste
Centro de Extensão, Carlos Pérez, que demonstra pelo absurdo, pelo
irrisório, o ponto de referência. Em tal texto 4 narra - ficcional
mente - · o achado de cartas e manuscritos de um tal Amaretto di
Saronno (nome, claro, do conhecido li_cot). A partir deste descobri
mento reconstrói todo um movimento; e _ que maneira começa di
Saronno suas impenetráveis teorias, Jazendo complexas elaborações que
logo são retificadas, até chegar a um sistema a mercê do qual conver
te-se em célebre pensador. Com grande perspicácia e mordaz senso
-de humor, Carlos Pérez " mostra " correspondência e textos vários
como testemunho do processo mencionado. O problema é que qual-
256
quer um pode preferir comparar-se com este imaginário Amaretto di
Saronno, antes que suportar alienar-se· nos significantes dos mestres.
Sempre é grande a tentação de acreditar que somos filhos de nós
mesmos. Por que não, se dirá? 8 imoral? Trata-se acaso de apregoar
uma submissão, uma obediência? Nada disso: é esquecer que se se
tende "escapar" da alienação desse modo, o fato é que se incorre
em uma muito mais eficaz, . por inconsciente. Sem dúvida, aqui esta
mos falando da dívid� com o pai: das possibiiidades de reconhecer
a dívida ou, pelo contrário, dar-se por nascido a si mesmo. Em síntese,
parece difícil de conceber - não só em termos biológicos, senão pelo
lugar verídico ostentado pelo campo do Outro - uma espécie de
iluminação a partir do zero; vale mais advertir que o próprio discurso
encontra sua origem no campo do Outro. E que a criação é possível
pela função da dívida, e não pelo oposicionismo a ela. Como criar
repetindo, ou repetir-criando?
A questão da separação possui conseqüências muito importantes
para a ética do analista. Ou, para ser mais preciso: suportar a aliena
ção e, dentro do movimento de retorno torcional, ir para a separação.
Aprofundaremos este ponto um pouco mais à frente, ao encarar nova
mente, como anunciamos, o tema da interpretação. Antes, atendere
mos às operações lógicas no quadro que estamos desenvolvendo. Na
alienação, segundo assinalamos em nosso encontro anterior, achamos
o que na teoria de conjuntos se designa como reunião:
Relação com
a cadeia
significante,
Efeito no com o campo Operação Modalidade
$. do Outro. lógica. da falta.
.
t
· divisório : S 1--S 2 Reunião
Alienação afanise ' sentido
(fading) (sem) captura x
engendrar-se S 1�S2
Separação (se
I I
l
parere)
função da ataque x �
" liberdade "
O de reumao era aquele procedimento que representamos me
diante os seguintes círculos de Euler:
257
Se há x elementos em cada conjunto, no caso de haver elementos
comuns, esses contam uma vez só. · Isto é precisamente o que ocorre
na falha eleição de " nem um nem outro", segundo o vel da alienação :
sempre algo se subtrai. Em troca, a operação · de causação do sujeito
denominada separação está relacionada com a intersecção ou produto.
Em matemática moderna a intersecção designa ' 1tos incluídos como
elementos comuns e ambos conjuntos, na mesma lúnula apontada ante-
·
riormente:
.---- .----
divisório: S 1-- S2
I 1
afani_se sentido Reunião
Alienação
(fading) (sem) captu ra x $
engendrar-se S t --4- S2
Separação (se parere)
função da 1 1 Intersecção
ou produto
" liberdade " ataque ! x $
258
Fitl,almente, quanto à modalidade da falta encontraremos - como
vimos nâ= · a,ula passada - no caso (!a. alienação, o vel correspondente.
ConJO já assinalamos, não há eleição; se eleja o que se eleia, have
rá perda:
Relação con't
a cadeia
significante,
Efeito no com o campo Operação Modalidade
· $. do Outro. lógica. da falta.
divisório:
Alienação afanise
(fading)
I
sentido
(sem)
S 1-- S2
1
captura x $
Reunião Vel (não
há eleição,
perde)
engendrar-se S 1 --+S2 Intersecção
Sep aração (se parere) 1
1 ou produto
I t
1
função da ataque x
" liberdade "
·--
259
Completamos, assim, este diagrama, que pode ser útil - assim
espero - para orientar basicamente na leitura de um trecho tão deci
sivo - e não simples - do Seminário como é o dedicado às opera
ções de causação do sujeito .
Nos capítulos 1 7 e 1 9 de Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise desenvolvem-se alguns pontos que é necessário pormeno
rizar ; ao menos, dois deles . O primeiro será novamente a problemá
tica por significante S1 e S2, a qual , como vemos, se encontra na
segunda coluna de nosso diagrama. Lacan estipulará que o S1 - ao
qual chama significante unário - está articulado como " questão de
vida e morte " 5 ao S2, ou significante binário .
Este S2 é precisamente aquele que aparece em Freud sob o termo
Vorstellungsreprãsentanz, cuja tradução proposta é representante da
representação, e não representante representativo 6 • Questão de mera
terminologia? De maneira nenhuma : não são simples vocábulos os
que estão em jogo, senão que existe uma diferença crucial .
Vo rstellung é a representação psicológica tradicional , é a idéia,
a percepção que alguém possui das coisas do mundo : a subjetividade,
em suma, com a qual se entronca a gnosiolog'ia. Em uma palavra : é
a significação. Isto determina que Vorstellung deva ser entendido por
um lado e Reprãsentanz por outro :
Vorstellung: Significação
Repriisentanz:
260
Sentimentos inconscientes? Pois eles não existem : o sentimento se
sente . Não há possibilidade de repressão alguma. O afeto - como o
explica Freud - na medida em que se liga a uma representação, indu
bitavelmente sofre os efeitos do deslocamento. Também pode trans
formar-se em angústia, sofrei: a transformação no contrário, ver-se " su
primido " , mas nada disto implica a ação da repressão, porquanto ela
se executa sobre o Vorstellungsreprasentanz, representante da repre
sentação. Se Vorstellung se lê pelo caminho da significação, o Repra
sentanz - como os embaixadores - é alguém que não fala em nome
próprio : não é senão um representante, um significante das cambian
tes, das móveis significações que porta :
Vorstellung: Significação
Reprasentanz: Significante
8 . J. Lacan, Los cuatro . . . ., cit. , p. 223 . A nova edição, cit. , p. 225, tampouco
assinala o lapso.
9 . S. Freud, n.c., cit. , t. XIV, pp. 10S, 1 3 S e 1 53 .
261
Em troca, como procede o desenvolvimento deste Seminário, pelo
;que temos podido acompanhar? Este é o itinerário:
➔ Repressão I nconsciente
Estratégi a freudiana
Dado que é este o caminho lacaniano ern estado prático, conforme
a ordem lógica deste Seminário, é razoável que o mesmo tenha dado
pé a um lapso: o de haver trocado o lugar seqüencial de um texto .
O qual de nenhuma maneira é imputável a uma suposta ignorância
sobre Freud; ao contrário : conhecendo como freqüentava e dominava
a obra do pai da psicanálise, este fato se faz duplamente chamativo.
De pronto, parece indicar uma forte inclinação em situar em primeiro
lugar os desenvolvimentos sobre aquilo que é inconsciente. Assim,
ao dar conta daquilo que é inconsciente estruturado como uma lin
guagem lhe permite - dado que aquilo que é inconsciente não é
causa sui - .não partir da pulsão como se fosse um instinto. Não é
esta uma ordem de preferência, não implica uma hierarquia, senão
que é uma ordem lógica de razões. Que transmite, no lapso, a linha
de um programa. ·
Nestas passagens quase conclusivas do Seminário, se ressalta uma
discussão com Jean Laplanche; assim, oufro marco da polêmica vai
penetrar na questão relacional metáfora-repressão. Trata-se, em suma,
da instauração da metáfora paterna. Esta, naiuralmente, segue os linea
mentos de qualquer metáfora; daí que seja Únportante, decisivo, poder
estipular se tem tido lugar, em um sujeito, a substituição do Desejo
da Mãe pelo Nome-do-Pai - o que configura a metáfora paterna.
Para isto, é preciso possuir uma intelecção ajustada desta circunstân
cia estruturante:
Nestes trechos do Seminário, Lacan refere-se com bastante raiva
a certo aficionado que tomou · uma cátedra universitária. Já sabemos
de quem se trata. Comenta, entre outras coisas, como este catedrático
262
tentou fazer uma redução da fórmula - por ele produzida - de me
táfora, procedimento este que, ao ser seguido, leva a um perigoso
impasse de especial importância para circunscrever a questão da inter-
pretação.
Em A instância da letra 10 vemos escrito o seguinte:
s (+) s
F � :') S ao S ( + ) s
263
que a função da metáfora paterna consiste em poder situar, substitu
tivamente, o Nome-do-Pai sobre o Desejo da Mãe. E o que de maneira
mais empírica - ou mais imaginária - Freud assenta quando explica
a passagem da mãe ao pai no caso da sexualidade feminina 1 1 • Na
tentativa de formalização lacaniana, trata-se de dar conta de que esse
trânsito não só se produz na mulher, porquanto, como operação de
pas��gem, é próprio de todo sapiens. Agora, pode apelar-se - com
reservas - ao recurso das frações aritméticas para formalizar o item
aludido. Portanto, o que acontece neste exemplo - como em toda
metáfora - pode ser vertido, de maneira muito simples, em uma
fórmula como esta :
A ...L
B D
Nome-do-Pai
significado ao sujeito
264
A
e
Fica assim A sobre D, que por sua vez sobre B sobre C. O ponto,
indicativo do produto, substitui-se por uma barra de divisão; assim,
é sabido, se reconstitui a relação do produto.
Se a fórmula de Laplanche dá conta da estrutura daquilo que é
inconsciente, a barra larga separa o manifesto do latente, entendido
como (pré)-consciente sobre inconsciente. Entende-se, então, esta divi
são como representando uma ar1iculação qualquer, uma prisão de
dois significantes (aqui, B e C) naquilo que é inconsciente. Assim, com
isso se está dizendo, finalmente, que o significante se significa a si
mesmo, ao invés de marcar - lacanianamente - uma substituição dis
tanciadora, "expulsante " . Levando em conta suas considerações como
certas, Laplanche chega a apresentar, como dedução valiosa a partir
delas, que a interpretação está aberta a todos os sentidos. Então, na
medida em que a ligação entre significantes é absolutamente arbitrá
ria, diga o analista o que diga, "tocará" a cadeia daquilo que é incons
ciente, de modo tal que a interpretação pertinente pode consistir em
dizer qualquer coisa. Obviamente, isto fomenta que qualquer adven
tício diga a seu paciente o que lhe ocorra, na convicção de estar
produzindo um efeito psicanalítico. :e que, indubitavelmente, podem-se
provocar efeitos : há suficientes formas de eficácia imaginária - se
gundo o que desenvolvemos antes - e muitos são os casos nos quais
não se sabe porque passam certas coisas nas análises. E conste que não
falamos somente das conseqüências nocivas senão inclusive das favo
ráveis ao fim da · análise.
Na fórmula lacaniana o adotado é a convenção, a ficção, de uma
proporção contínua; isto é, aquela que possui os mesmos termos nos
meios. :e, somente, um modo particular dá proporção; por outro lado,
o modelo da fração não dá conta, com propriedade, da relação signi
ficante-significado - cujo algoritmo ..!.. parece, de fato, uma fração -,
265
porque não contempla a produção de efeito de sentido. Então, uma
coisa é interpretar o significante se se pensa, com um inínimo de
rigor, que nos regemos segundo às leis da metáfora e metonímia, e
outra coisa é supor que se interpreta o significante de acordo com
uma brincadeira insensata com as palavras, o qual em nada corres
ponde · ao ensino que nos convoca.
Quando Lacan procede ligando separare com se parare e se pa
rere, por exemplo, não está recorrendo a uma espécie de delírio ma
níaco onde por rápida fuga de idéias as palavras se articulam alegre
mente entre si. As vezes pareceria que se o tem entendido nesse
sentido, sobretudo por parte de alguns analistas sempre dispostos a
brincar com o significante em uma associação transloucada. Em suma,
a proposta de Laplanche falha de seu ponto de partida .até suas conse
qüências últimas. Repito: não é só questão de fórmulas matemáticas,
mas sim das implicações clínicas, às vezes imprevisíveis.
Quanto ao que sucede com as fórmulas - plano da notação
algébrica - resulta que no desenvolvimento lacaniano importa espe
cialmente o acontecer pontuado na, e pela lógica implícita, antes do
que somente o resultado empírico. Se o resultado eventual obtido em
sua fórmula da metáfora chegasse a ser casualmente .idêntico ao pro
duzido pela proposta de Laplanche, isso não indicaria que ambas
portulações são igualmente corretas. Estamos aqui pensando de que
forma articulam-se os elementos; por isso, o mesmo resultado não
garante sempre a legitimidade das respectivas operações. Acreditar no
contrário seria não distinguir o fato de haver chegado a uma inter
pretação exitosa porque constitui uma significação relacionada com
o analisando, do haver "encontrado" uma resolução do sintoma por
meio de uma interpretação improcedente (digo no singular, para sim
plificar). Neste último caso deveremos dizer que mais precisamente
houve um influxo transferencial, a_ntes do que uma ocupação signifi
cante. Este influxo provocará, indubitavelmente, efeitos. A remissão
momentânea poderá produzir-se, inclusive, em ambos os casos ; con
tudo, as possibilidades de uma recaída são inexoráveis em ocasião da
suspensão do efeito "hipnótico " .
Portanto, ' um ponto importante a recordar é que a interpretação
não está aberta a todos os sentidos. Pode ser relativamente falha, mas,
em qualquer caso, deve fundamentar-se nos, e pelos, significantes for-
266
necidos pelo analisando. Não se pode então - e aqui há uma impli
cação ética, atinente ao desejo do analista - supor que por uma espé
cie de reação em cadeia, digamos o que digamos, encararemos respon
savelmente a problemática do paciente.
267
Questões
268
R. : Um dos pontos nodulares da crítica lacaniana consiste em
que, para Perelman, a metáfora inscreve-se como uma das formas da
analogia. Para o psicanalista, a analogia se situa no registro do Imagi
nário, enquanto a metáfora no do Simbólico 17• Toda a tentativa de
Perelman - ainda que Laçan reafirme que se trata de páginas " admi
ráveis" - se enquadra na questão das proporções integradas por
termos homogêneos, porque entende que é assim como se constituem
as analogias. A esse respeito, o " salto" é bem marcado; A metáfora
do su;eito rende homenagem ao retórico mas ao mesmo tempo marca
distâncias infranqueáveis . Uma das discordâncias básicas situa-se na
função do sujeito. Esse é o ponto crucial, inclusive, .pelo qual - se
gundo expusemos - não há "lingüística aplicada " na psicanálise: a
introdução da função sujeito .
Por último, despejadas algumas questões sobre a metáfora, desejo
colocar um item importante, antes de dar por concluída nossa leitura
do Seminário. Encontramos neste uma formalização muito simples da
interpretação por meio da escrita invertida do já célebre algoritmo
saussuriano. Partamos, uma vez mais, da relação de significação:
Significante s
significado s
A respeito da interpretação, a proposta consiste em sua inversão.
O resultado será então:
significado J s
Significante s
Na edição em castelhano do Seminário 1 1 há dois diagramas {nas
páginas 242 e 255 da primeira edição, e 245 e 258 da segunda) , que
merecem bastante mais tempo do que dispomos agora para sua análise.
O enibasamento de ambos, seu pilar radical, é esta inversão.
Esta postulação indica que a interpretação, em primeiro lugar, é
uma significação. Esta determinada significação propõe-se isolar um
significante reprimido sob a barra, para que possa transpô-la. Se toma-
26º
mos o Seminário 20, Encore, traduzido erroneamente para o castelhano
como Aun (Até) - mais pertinente em seu título na versão portuguesa:
Mais, ainda - comprovaremos como considerava, enquanto fim da
análise, a possibilidade de extração do S 1 1 8 • Isto é interessante porque
marca, segundo vimos, outro ponto decisivo de diferença em relação
. a posições como a kleiniana. Um psicanalista kleiniano tentará levar
a análise à introjeção do objeto bom, à reintroj�ção de tudo aquilo que .
pela identificação projetiva massiva tem empobrecido - diz - o
sujeito . Tarefa de incorporeção que, se advertirmos como a ironiza
Lacan em A direção da cura 19 , conviremos que se trata finalmente
de oferecer-se como alimento para o analisando, por parte do analista.
Não como um semblante, senão como um alimento que se tomará
como degradado, degradante e, inclusive, fétido. Assim, no texto ci
tado chega-se a comparar ao analista nesta "função", com o alimento
para porcos, Essa suposta incorporação (" come de meu corpo, bebe
de meu sangue", chegará a parodiar) ligaMe-á a um fim de análise
entendido como identificação com o analista. Momento que para nós
é só de detenção da análise, de estancamento, que deve ser - como
designo - franqueado pelo analista. Para Lacan, em lugar da identi
ficação introjetiva, o objetivo será poder extrair esse significante S1 ,
ao qual também denomina sem-sentido. A interpretação tem signifi
cação, é uma significação. Não consiste em uma conduta psicodrama
ticamente caótica à qual costuma-se chamar ato e que alguns, em nosso
meio, e em ·.nome de Lacan, têm concebido como ótima intervenção
analítica. Uma espécie de encenação insensata e reativa, que surpreen
de inutilmente o analisando, que não vê nisso sentido algum. Segundo
dizem, isto faz interrogar-se sobre o desejo do Outro, e outorga cer
teza (?) acerca do objeto a. De forma diferencial, Lacan propugna
uma significação que busca isolar um significante irredutível, sem
sentido, e a esta denomina interpretação, p.ierarquizando sua utilização
por parte do analista.
No artigo - já citado - O inconsciente, uni estudo psicanalítico,
aparece um exemplo clássico no âmbito lacaniano. Ainda que o texto
seja assinado por Laplanche e S . Leclaire, é este último quem expõe
a vertente clínica. Ali se apresenta o caso em questão, que constitui
uma referência habitual nos textos ou cursos de orientação lacaniana.
Leclaire, como verão lendo-o, tem honrado seu nome: com efeito, com
18 . J. Lacan, Encore, cit. , pp: 129-33.
19 . J. Lacan, "La dirección . . . ", cit., pp. 270 e ss.
270
" clareza" consegue isolar, no analisando, esse Kern, esse núcleo de
sem-sentido que não tem nenhuma possibilidade de tradução lexical.
O significante em jogo aí - dito a partir do Outro, está claro - é
Poordjeli '20. O desenvolvimento de Leclaire é suficientemente me
ticuloso como para que se possa advertir em que consiste o· ir da inter
pretação significativa para ó sem-sentido significante.
Os dois esquemas mencionados têm dado lugar a dúvidas, a
várias versões, devido a sua dificultosa inteligibilidade, mas devere
mos deixar sua consideração para outra ocasião 21 • Agora, só nos resta
prosseguir com as perguntas finais .
P . : Em uma reunião passada eu perguntei sobre a operação que
estava implicada na sublimação, já que ali não atuava a repressão.
Que incidência têm as . operações de alienação e separação na subli
mação?
R.: O primeiro ponto a considerar é que não devemos outorgar
uma condição adaptativa à sublimação, lembrando a definição lacl!•
niana de elevar o objeto à dignidade da Coisa. Como já expusemos,
das Ding possui uma dimensão devoradora, envolvente. Pela sublima
ção se recusa, se renuncia, se retira do amor e do sexo. Algo muito
distante da simples imagem da inserção exitosa no social. A sublimação
possui um lado devorador, distinto da adaptação à cultura. Agora,
se a sublimação está relacionada com a possibfüdade de que possa
aparecer a metáfora como criadora de sentido, ali há que encontrar
justamente a operação de separação.
A separação trabalha com os dados providos pelo muro da lin
guagem, para fazer nele uma fenda. Romper algo nessa parede que se
levanta diante do sujeito e produz o efeito afanísico. Desse módo, todo
ato criador ligado à metáfora e, portanto, à separação, deve possuir,
como condição necessária, a capacidade de subversão, de ataque à
cadeia significante, logo, logicamente, de haver-se alienado em, e
por, ela.
27 1
P. : Qual relação haveria aí, então, entre pulsão e separação?
Porque parece que a separação trabalha na cadeia significante e a
pulsão se situa em um plano não significante.
R. : Nisso há um engano. Não devemos considerar que a pulsão
fique por fora da ordem significante. ½_embre-se como criticamos a
concepção a qual a pulsão seria algo irreprimível, presumivelmente de
caráter energético. Não é assim porque está tomada pela ordem signi
ficante e além disso, pelo limite da zona erógena, tem homologia topo
lógica com a estrutura daquilo que é inconsciente. Por essa função
de corte, de hiância, presente em ambos, a pulsão possui pulsação
temporal. Não é o que irrompe bestialmente, mas sim uma construção
circuitada onde se envolvem significantes e, portanto, desejos. O pro
blema é que Lacan propõe duas operações de constituição do sujeito
dispostas pela ação significante. Às vezes, colocar isto em estrita corre
lação com os instrumentos conceituais freudianos é difícil. O campo é
comum, mas há toda uma tarefa de articulação por fazer (a esse
respeito, destaquemos como Freud postulava as· inflexões pulsionais
enquanto dados da conjugação verbal, do " verbo ") 22 •
De todas as formas, a sublimação encontra-se mais ligada à sepa
ração que à integração aos hábitos sociais. Esta última, na realidade,
me parece estar relacionada éom a alienação. Mas isto não deve ser
entendido, contudo, no sentido hegeliano ou o de Marx jovem, como
processo no qual alguém aliena algo de si mesmo. Na alienação laca
niana não se perdeu uma essência, mas sim que o sujeito aparece
''domesticado" pela cadeia significante.
P.: Seria um ataque à demanda do Outro?
R. : Com efeito : pelo caminho da separação, a sublimação con
siste em uma não resposta à demanda do Outro. Já que associativa
mente me é dada a oportunidade, lhes comento algo sobre outro pon
to: o pensar na interpretação como o lugar onde o analista põe em
ato a operação de separação. Em outras palavras : de que maneira
podemos encolitrar, na sublimação do analista, a ação da separação.
Quando por exemplo dizemos re-petição, realizamos uma escan
são. Ao escandir o termo, como é sabido, cria-se um efeito de sentido.
Aqui surge a seguinte questão : Onde estava antes tal sentido? Até
272
não realizar-se a operação, não existia. Essa é, efetivamente, a tarefa
do analista: quando escande, separa. " Ataca" e ressalta um intervalo
hiante na parelha significante (neste caso: " re-petição ").
Em Posição do inconsciente 23 é possível · advertir que a separação
não se realiza de uma vez para sempre, porquanto estruturalmente es
tamos tomados em, e por, esta dialética de alienação-separação. De
modo que não fazemos referência, de modo algum, a fenômenos pro
duzidos em certo mo'1).ento evolutivo. Esta operação de separação é,
por outro lado, reiterada de modo freqüente na intervenção analítica;
por exemplo, na passagem de I para a. Também se produz, indubi
tavelmente, no momento de corte da sessão, onde não é que haja
separação porque dois corpos se despedem até a próxima senão porque
ali se pontua um corte significante. Trabalhar com sessões estrita
mente terminadas nos 50 minutos, implicaria permanecer no plano da
alienação. O notável é que, como talvez vocês saibam, o motivo pelo
qual duram esse tempo é porque assim o fazia empiricamente Freud,
que nem considerava tal norma como incondicionalmente obrigató
ria 24 • Assim, isto não implica uma crítica a Freud, mas. sim aos que
em prol de uma inaudita crença na ortodoxia sustentam que essa rigi
dez é inexorável como requisito para reclamar-se como freudianos.
Já dissemos: " façam como eu, não me imitem" - assinalou uma
vez Lacan. Nessa brilhante aporia há muito que pensar a respeito das
implicações da alienação e da separação. Trabalhar estas operações
resulta altamente frutífero, já que podem dar conta, efetivamente, de
numerosos conceitos da psicanálise.
Chegamos, assim, ao final de nosso percurso. Por tê-lo tornado
possível, lhes agradeço muitíssimo, a todos vocês, por sua assistência,
escuta e participação. Muito obrigado.
273