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Antônio Flávio Pierucci

O DESENCANTAMENTO
DO MUNDO
Todos os passos do conceito em Max Weber

editorai1 3 4
Para felicidade dos seus leitores Antônio
Flávio Pierucci conseguiu produzir um p a ra ­
doxo: um livro encantador que trata do de-
sencantam ento. Eu ia escrevendo: do irrepa­
rável desencantam ento do m undo. M as con-
tive-me em tem po. H á surpresas dem ais no
texto de Pierucci para permitir form ulações
tão chapadas.
Este é um livro p ara ser lido com gosto,
acom panhando-se p asso a p asso o itinerário
concebido pelo autor para propiciar nada me­
nos do que “ tod os os p a sso s” da reconstru­
ção de um conceito que ocupa p osição de re­
levo na obra de um dos gigantes do pen sa­
mento do século X X , M a x Weber.
J á aqui despontam duas teses fortes. Pri­
meiro, que o termo “ desencantam ento” , apli­
cado a toda uma condição do m undo em que
se movem os hom ens, vai m uito m ais fundo
do que um a vaga noção alusiva a algum a per­
da, carência ou mal-estar subjetivo: desencan­
tam ento não é desencanto. Estam os — e esta
é a prim eira afirm ação forte — diante de um
conceito, construído p ara aju d ar a explicar
o m undo, n ão p ara lam entá-lo. Um concei­
to não se entende sozinho; só ganha sentido
quando encontra seu lugar na estrutura an a­
lítica que, no conjunto, form a uma teoria. É,
pois, toda a arm ação da teoria sociológica de
M a x W eber que está em jogo. É ela que tem
que ser percorrida quando a tarefa consiste
em reconstruir, p asso a p asso, o m odo com o
nela se vai fazendo presente um a peça sem a
qual o resto não avança, que é precisam ente
o conceito de desencantam ento do mundo.
Reconstruir p asso a p asso não quer dizer
pouco. Significa — e aqui encontram os a se­
gunda afirm ação forte — que o conceito não
se encontra inteiriço em todos os pontos e em
todos os m om entos da obra de W eber. M as
também não quer dizer que um simples acom ­
panham ento linear da cronologia dos textos
de W eber resolva o problem a. A coisa não é
O DESENCANTAMENTO
DO MUNDO
T o d o s o s p a s s o s d o c o n c e ito em M a x W eb er
Antonio Flávio Pierucci
O DESENCANTAMENTO
DO MUNDO
T o d o s o s p a s s o s d o co n ce ito em M a x W eber

FFLCH-USP C A P E S
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hum anas
Programa de Pós-Graduação em Sociologia

editoraH34
ED IT O R A 34

Editora 34 Ltda.
R ua H ungria, 5 92 Jard im Europa CEP 01 4 5 5 -0 0 0
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Universidade de São Paulo


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O desencantamento do mundo © A ntônio Flávio Pierucci, 2 0 0 3
A FOTOCÓPIA DE Q UALQ UER FOLHA D ESTE LIVRO É ILEGAL E CONFIGURA UMA
APROPRIAÇÃO INDEVIDA DOS DIREITOS INTELECTUAIS E PATRIMONIAIS DO AUTOR.

Edição conform e o A cordo O rtográfico da Língua Portuguesa.

C ap a, projeto gráfico e editoração eletrônica:


Bracher & Malta Produção Gráfica
Revisão:
Cássio Arantes Leite
Nina Schipper

r Edição - 2 0 0 3 , T Edição - 2 0 0 5 , 3 a Edição - 2 0 1 3

C atalo gação na Fonte do D epartam ento N acion al do Livro


(Fundação Biblioteca N acion al, R J, Brasil)
Pierucci, A n tôn io F láv io , 1 9 4 5 -2 0 1 2
P 624d O d esen can tam en to d o m u n d o : to d o s o s p asso s
d o con ceito em M a x W eber / A n tôn io F láv io Pierucci.
— S ã o P au lo : U SP, P ro gram a de P ó s-G rad u ação em
S o cio lo gia d a FF L C H -U S P /E d ito ra 3 4 , 2 0 1 3 (3 a E dição).
2 4 0 p.

IS B N 9 7 8 -8 5 -7 3 2 6 -2 7 8 -0

Inclui b ib lio grafia.

1. W eber, M a x , 1 8 6 4 -1 9 2 0 . 2. C iên cias


so ciais - A lem anh a. I. U n iv ersidade de S ã o Paulo.
P ro gram a de P ó s-G rad u ação em S o cio lo g ia. II. T ítu lo.

C D D - 300
O D E SE N C A N T A M E N T O
DO M UNDO
T od os os passos do conceito em M a x W eber

A p resen tação .......................................................................

Siglas das obras citadas de M ax W e b e r ..................... 11


In tro d u ção ........................................................................... 15

T o d o s o s p a sso s d o c o n c e it o

1. Passando por Sch iller........................................................ 27


2. M eu p o n to ........................................................................... 32
3. Contando os p a s s o s .......................................................... 47
4. Fazendo as c o n ta s.............................................................. 58
5. Com entando os p a s s o s .................................................... 61
6. Passo 1: Sobre algum as categorias
da sociologia co m p reen siv a...................................... 62
7. Passo 2: “ Introdução” à Ética econôm ica
das religiões m u n d iais.................................................. 89
8. Passo 3: Econom ia e so c ie d a d e ..................................... 100
9. Passo 4: A religião da C h in a .......................................... 114
10. Passos 5 e 6: Consideração interm ediária ................. 135
11. Passos 7 a 12: A ciência com o v o c a ç ã o ...................... 150
12. Passo 13: H istória geral da e c o n o m ia ......................... 167
13. Passos 14 a 17: A ética protestante
e o espírito do cap italism o ......................................... 186
14. M eu ponto final e uma chave de ouro ........................ 215

B ibliografia.......................................................................... 223
A PR ESEN T A Ç Ã O

Um dos m aiores sociólogos até hoje, além de historiador e


econom ista, autor de A ética protestante e o espírito do capitalis­
m o, um dos livros mais lidos do século X X , o alem ão M ax W eber1
(Erfurt, 1864-M unique, 1920) é tam bém autor de alguns concei­
tos e categorias analíticas que entraram definitivamente para o
jargão básico dos cientistas sociais do mundo inteiro. Eles fazem
parte da caixa de ferramentas mais elementar dos sociólogos, cien­
tistas políticos, econom istas e historiadores da econom ia, histo­
riadores sociais, historiadores das religiões, das m entalidades, da
cultura, da m úsica, do direito e assim por diante.
Alguns dos term os e com binados vocabulares de sua auto­
ria — desencantam ento do m undo é um deles — p assaram até
m esm o para o linguajar corrente, a língua geral não especializa­
da, sem que no entanto saísse ofuscada a aura de sua potência
lexical. É que desencantam ento em sentido estrito se refere ao
m undo da m agia e quer dizer literalmente: tirar o feitiço, desfa­
zer um sortilégio, escapar de praga rogada, derrubar um tabu, em
sum a, quebrar o encantam ento. O resto é figuração, sentidos fi­
gurados que nem sempre ajudam na hora das definições que uma
linguagem científica requer.
“ D esencantam ento” , em alem ão Entzauberung, significa
literalmente “ desm agificação” . Z auber quer dizer m agia, sortilé­
gio, feitiço, encantam ento e por extensão encanto, enlevo, fascí-

1 Seu nome completo era Karl Emil Maximilian Weber.

Apresentação 7
nio, charme, atração, sedução... Der Z auberer nomeia o m ágico,
o m ago, o feiticeiro, o bruxo, o encantador. Enfeitiçar, em bruxar
ou encantar pode ser zaubern, verzaubern, bezaubern, anzaubern,
e encantamento se traduz o mais das vezes por Verzauberung, Be-
zauberung e Zauberei, que com o Z auber tam bém quer dizer m a­
gia, feitiçaria, bruxaria, encantaria e assim por diante.
Entre estudiosos e estudantes, M ax Weber costum a ser lem­
brado com o “ o homem que fez da ideia de desencantam ento não
meramente um tema importante para pensar a vida m oderna, mas
talvez o m ais essencial aspecto da m odernidade” .2 Um autêntico
desencantador.^
Este livro pretende acom panhar, pacientemente e na m inú­
cia, o percurso que faz por toda a obra de W eber o conceito de
desencantamento do m undo. O trabalho foi originalmente defen­
dido em 13 de junho de 2 0 0 1 , dia de Santo Antônio, com o tese
de livre-docência em Sociologia, no D epartam ento de Sociologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências H um anas da Univer­
sidade de São Paulo (FFLCH /USP). Aproveito para agradecer aos
cinco m em bros da banca exam inadora pela instigante e profícua
arguição. M eu muito obrigado aos professores Guita Grin Debert
(Unicamp), Vilm a Figueiredo (UnB), Sedi H irano (USP), Ruben
George Oliven (UFRGS) e Gabriel Cohn (USP) por aqueles dias
mem oráveis de discussão e brilho intelectual.
Sou m uito grato tam bém ao C N Pq e à CAPES. Ao CN Pq,
pela bolsa de produtividade em pesquisa que possibilitou a reali­
zação deste estudo. E à CAPES, pelo apoio financeiro que alavan-
cou sua edição em livro.

Antônio Flávio Pierucci


São Paulo, verão de 2003

2 Goldman, 1988: 1.

3 Um Entzauberer (cf. Goldman: ibidem).

8 O desencantamento do mundo
O DESENCANTAMENTO
DO MUNDO
T o d o s o s p a s s o s d o co n ce ito em M a x W eb er
SIGLAS DAS O BRA S CITA D A S DE M A X W EBER

AIntro “ Vorbemerkung” / “ A uthor’s Introduction” (prólogo geral aos


Ensaios reunidos de Sociologia da Religião). In: GARS I: 1-16;
PEeng: 13-31; EPbras: 1-15; EPLus: 11-24; ESSR I: 11-24 [1920].

AJ Ancient Judaism. Glencoe, Illinois, Free Press, 1952 [1917, 1921].

Anti “ Anticritical Last Word on the Spirit of Capitalism ” . American


Jou rnal o f Sociology, vol. 83, n° 5, March: 1105-1131, 1978
[1910],

Cat “ Sobre algunas categorias de la sociologia com prensiva” . In-.


Ensayos sobre metodologia sociológica. Buenos Aires, Amor-
rortu: 175-221, 1958 [1913],

CG “ O caráter geral das religiões asiáticas” . In: C O H N , Gabriel


(org.). Weber: sociologia. São Paulo, Ática: 142-151, 1979b.

China The Religion o f China: Confucianism and Taoism. Glencoe, Free


Press, 1951 [1915, 1920],

CP “ Confucionismo e puritanismo” . In: C O H N , Gabriel (org.). We­


ber: sociologia. São Paulo, Ática: 151-159, 1979b.

CP2V Ciência e política: duas vocações. São Paulo, Cultrix, 1972.

DigitB Digitale Bibliothek Band 58. M ax Weber: Gesammelte Werke.


Berlim, Directmedia, 2001.

E& S Economy and Society: An Outline o f Interpretive Sociology (org.


Guenther Roth e Claus Wittich). 3 vols. N ova York, Bedminster
Press, 1968.

EeS Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensi­


va, 2 vols. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1991-99
[1922],

Siglas das obras citadas de M ax Weber 11


Einleit “ Einleitung”/“ Introdução” à “ Ética econômica das religiões mun­
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EnSoc Ensaios de sociologia (trad, da coletânea FMW de H.H. Gerth e


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EPbras A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Pio­


neira, 1967 [1920].

EPfran Uéthique protestante et 1’esprit du capitalisme. Paris, Plon, 1964


[1920].

EPLus A ética protestante e o espírito do capitalismo. Lisboa, Editorial


Presença, 1996 [1920],

ESSR Ensayos sobre sociologia de la religion, 3 vols. M adrid, Taurus,


1984.

EyS Economia y sociedad: esbozo de sociologia comprensiva, 2 vols.


M éxico, Fondo de Cultura Económica, 1964 [1922].

FMus Os fundamentos racionais e sociológicos da música. São Paulo,


Edusp, 1995.

FMW From M ax Weber: Essays in Sociology (orgs. H .H. Gerth e Ch.


Wright Mills). Nova York, Oxford University Press, 1957.

GARS I Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie I. Tübingen, Mohr,


1988 [1920].

GARS II Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie II. Tübingen, Mohr,


1988 [1921],

GARS III Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie III. Tübingen, Mohr,


1988 [1921].

HEG Historia económica general. M éxico, Fondo de Cultura Econó­


mica, 1942 [1923],

HGE História geral da economia. São Paulo, Mestre Jou, 1968 [1923].

India The Religion o f India: Hinduism and Buddhism. Glencoe, Free


Press, 1958 [1916, 1921],

Introltal “ Introduzione”/ “ Introdução” à “ Ética econômica das religiões


mundiais” . In: FERRARO TTI, Franco. M ax Weber e il destino
della ragione. Roma/Bari, Editori Laterza: 151-188, 1985.

Kat “ Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie” . In: WL:


427-474 11913, 1922],

12 O desencantamento do mundo
KS “ Kritische Studien auf dem Gebiet der kulturwissenschafltlichen
Logik” . In: WL: 215-290, 1988 [1906, 1922],

MSS The Methodology ofth e Social Sciences. N ova York, Free Press,
1949.

MWG Max Weber Gesamtausgabe. Tübingen, M ohr. Série de edições


críticas da obra completíssima de Weber, iniciada em 1984.

Neutr “ O sentido da ‘neutralidade axiológica’ nas ciências sociológicas


e econôm icas” . In: Sobre a teoria das ciências sociais. Lisboa,
Editorial Presença: 113-192, 1974 [1917].

Objekt “ Die ‘Objektivität’ sozialwissenschaftlicher und sozialpolitischer


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PE “ Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalism us” . In:
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PE II Die protestantische Ethik II. Kritischen und Antikritischen (org.


Johannes Winckelmann). Guterloh, Siebenstern, 1968.

PE“ G ” K Die protestantische Ethik und der “ G eist” des Kapitalismus (edi­
ção crítica da edição original de 1904-05, a cargo de Karl Licht­
blau e Johannes Weiss). Bodenheim, Athenäum Hain Hanstein
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PEeng The Protestant Ethic and the Spirit o f Capitalism. Londres/No­


va York, Routledge, 1992 [1920],

PSek “ Die protestantischen Sekten und der Geist des Kapitalism us” .
In: GARS I: 207-236 [1920],

Psico “ A psicologia social das religiões mundiais” [trad. bras. da “ Ein­


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PV “ Politics as a Vocation” . In: FMW: 77-128, 1948 [1919].

RRM “ Rejeições religiosas do mundo e suas direções” . In: WEBER,


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leção Os Pensadores). São Paulo, Abril Cultural: 237-268, 1980
[ver tb. EnSoc: 371-410],

RSt “ R. Stammlers ‘Überwindung’ der materialistischen Geschichts­


auffassung” . In: WL: 291-359 [1907, 1922],

SPro “ As seitas protestantes e o espírito do capitalism o” . In: EnSoc:


347-370, 1974 [1920].

Siglas das obras citadas de M ax Weber 13


SR The Sociology o f Religion. Boston, Beacon Press, 1963.

SWert “ Der Sinn der ‘Wertfreiheit’ der soziologischen und ökonomis­


chen Wissenschaften” . In: WL: 489-540 [1917, 1922].

WaB “ Wissenschaft als Beruf” . In: WL: 582-613 [1917, 1922],

Wg Wirtschaftsgeschichte: Abriss der universalen Sozial- und Wirt-


schafts-geschichte. Berlim, Duncker & Humblot, 1981 [1923].

WL Gesammelte Aufsätze zur 'Wissenschaftslehre. Tübingen, Mohr,


1988 [1922[.

WuG Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriss der verstehenden Sozio­


logie. Tübingen, Mohr, 1985 [1922].

ZB “ Zwischenbetrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen re­


ligiöser Weltablehnung” . In: GARS I: 536-573 [ 1920[.

ZPWk Zur Politik im Weltkrieg. Schriften und Reden 1914-1918 (orgs.


Wolfgang J. Mommsen e Gangolf Hübinger), MW G I, vol. 15.
Tübingen, Mohr, 1984.

14 O desencantamento do mundo
IN T R O D U Ç Ã O

Um mal-entendido ronda a imagem de W eber e toca direta­


mente o tema deste livro. Desde agosto de 1992, quando passei a
oferecer a disciplina “ Leituras de M ax W eber” no curso de pós-
-graduação em Sociologia da USP, todo ano se repete em linhas
gerais o m esmo diálogo com os alunos, provocado pelo m esmo
mal-entendido. É quando vou indicar a bibliografia básica a ser
esm iuçada no semestre e nela então dou destaque aos principais
ensaios teórico-reflexivos de Weber. Aí acontece que alguns es­
tudantes, ao descobrir entre surpresos e confusos que vários m o­
mentos altos da mais avançada e consistente reflexão teórica de
Weber caem sob a rubrica Sociologia da R eligião, partes que são
de um a obra m aior em três volumes intitulada En saios reunidos
de Sociologia da R eligião, deduzem que minha disciplina sobre
W eber vai resultar num curso de Sociologia da Religião.
Eis o mal-entendido: supor que a estratégica posição de que
gozam os três grandes ensaios teórico-reflexivos intitulados “ In­
trodução do au tor” [Vorbemerkung], “ Introdução” [Einleitung]
e “ C on sideração interm ediária” [Zw ischenbetracbtung] com o
pontos nodais de sua teoria m acrossociológica do processo de
racionalização ocidental possa se reduzir a uma especialidade de
área denom inada Sociologia da Religião.
M ax W eber não era um “ sociólogo da religião” . Pelo m e­
nos não com o eu, que já comecei fazendo sociologia numa seção
institucionalizada de Sociologia da R eligião, o Setor de Sociolo­
gia da Religião do C ebrap, uma sociologia especializada, portan­
to. Weber não foi um “ sociólogo da religião” , e contudo ninguém

Introdução 15
poderá dizer que é conhecedor da sociologia de W eber se não
passar por sua Sociologia da Religião, ou frequentar ao menos seus
picos mais altos.
Reinhard Bendix entendeu isso precocem ente.4 Seu M ax
Weber: An Intellectual Portrait de 1960 (ver Bendix, 1986) dedi­
ca vasto volume de texto, nada menos que seis capítulos, numa
atenção simplesmente descom unal para a época, à sociologia das
religiões de Weber. Que é m esm o vastíssim a, diversificada, avan­
tajad a, de encher a boca e as prateleiras. W eber tem de fato uma
grande Sociologia da Religião, m as não é, repito, um “ sociólogo
da religião” com o os que hoje conhecemos ou som os. Weber deu-
-se ao luxo até m esm o de com por passo a passo um a sociologia
sistem ática da religião, publicada na edição convencional de E co­
nom ia e sociedade à guisa de capítulo.5
Entretanto, frequentar a Sociologia da Religião de Weber não
pode se resumir, note bem, em revisitar esse com pêndio sistemáti­
co de Sociologia da Religião publicado em Econom ia e sociedade,
sobre o qual Bourdieu se debruçou com esm ero, e burilou e es­
quem atizou e sistem atizou ainda m ais, dando-lhe um plus ines­
perado de operacionalidade sociológica (Bourdieu, 1971; 1974b).
É m uito m ais que isso. G rande parte da sociologia histórica e
com parada de W eber, sua sociologia substantiva, é tam bém ela
Religionssoziologie — eis aí a melhor parte do mal-entendido. A
“ obra reunida” que ele estava preparando para editar em 1920,
ano em que m orreu, não era outra senão os E nsaios reunidos de
Sociologia da R eligião, os fam osos G A RS [Gesam m elte Aufsätze

4 N ão dá para esquecer que também por essa época as curiosas “ lem­


branças de M ax Weber” , publicadas em 1963 por Paul Honigsheim, mem­
bro do círculo de amigos do casal Weber, dedicavam muitas páginas a falar
de sua tensa relação pessoal com as religiões — as religiões dos seus e as dos
outros (Honigsheim, 1963; cf. Roth, 1995).

5 E o capítulo V da parte II do volume I, da versão brasileira publicada


pela Editora da Universidade de Brasília [EeS], intitulado “ Sociologia da
Religião (tipos de relações comunitárias religiosas)” .

16 O desencantamento do mundo
zur R eligionssoziologie]. O s capítulos iniciais do volum e I dos
G A RS são os dois conhecidíssim os estudos sociológicos sobre o
protestantism o ascético, “ A ética protestante e o espírito do ca ­
pitalism o” e “ As seitas protestantes e o espírito do capitalism o” .
T irando os dois, todo o restante dos três volumes dos G A R S é
tom ado por uma vasta e diversificada obra de sociologia históri-
co-com parada das religiões, a que W eber deu o título de Ética
econôm ica das religiões m undiais [W irtscbaftsethik der Weltreli-
gionen], Ela compreende: as m onografias sobre a China \Konfu-
zianism us und Taoism us] e sobre a índia [Hinduism us und Bud-
dhismus], o estudo inacabado sobre o judaísm o antigo \D as antike
Ju dentu m ], além de dois dos três grandes ensaios teórico-reflexi-
vos supracitados: a longa “ Introdução” [Einleitung], m ais conhe­
cida em português pelo estranho título que herdou da tradução
am ericana, “ A psicologia social das religiões m undiais” , e a pre­
ciosa e celebradíssim a “ Consideração interm ediária” [Zwiscben-
betrachtung\, mais conhecida no Brasil por um título que na ver­
dade é o subtítulo de sua segunda edição alemã, “ Rejeições religio­
sas do m undo e suas direções” , subtítulo m utilado já na versão
em inglês da coletânea From M ax Weber [FMW ].
Dentre os ensaios teórico-reflexivos de W eber, se existe um
que de m odo algum pode ser lido com o peça apenas de Sociolo­
gia da Religião, dado que o próprio Weber nos desautoriza a tanto
de form a explícita, é a “ Consideração interm ediária” [Zwiscben-
betracbtung]. Os term os lançados por W eber são inequívocos:

Antes de m ais n ada, um a busca com o esta em


Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­
po uma contribuição à tipologia e sociologia do pró­
prio racionalism o.6 (ZB /G A R S I: 537; ESSR I: 528;
R R M : 2 4 0 ; EnSoc: 372)

6 Todos os textos de M ax Weber em português foram traduzidos p


mim, exceto quando indicado.

Introdução 17
É uma autoexigência de W eber que me soa tam bém com o
um caveat, uma cham ada de atenção ao leitor. Vejo nos verbos
“ deve e quer ser” uma pretensão e, ao mesmo tem po, um alerta
a que nunca se leiam seus ensaios de Sociologia da Religião co ­
mo se o autor os tivesse escrito na condição de especialista em
Sociologia da Religião e pronto. Ao contrário, W eber se preten­
de o sociólogo que, ao eleger as religiões com o objeto, produz
uma dupla m acrossociologia: uma sociologia geral da m udança
social com o inevitável racionalização da vida, e uma sociologia
específica da m odernização ocidental.7 A popularização de al­
guns de seus trabalhos que tratam enfaticamente de religião, sen­
do A ética protestante e o espírito do capitalism o [PE; EPbras] o
m ais conhecido e o m ais lido, leva inevitavelmente a associar o
nome de Weber a esse cam po especializado de investigação, a So­
ciologia da Religião, que hoje goza de autonom ia muito m aior
com o área de pesquisa e subárea (setorial, fraccionai) do conhe­
cimento do que cem anos atrás. N o s idos de W eber a Religions-
soziologie já se fazia pensável, porém impensáveis eram ainda os
sociólogos da religião.8
Foi desse m odo, nessa chave, que imediatamente traduzi o
caveat assim que o li.

Antes de m ais nada, um a busca com o esta em


Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­
po um a contribuição à tipologia e sociologia do p ró ­
prio racionalism o.

7 M odernização social cum modernização cultural (cf. H aberm as,


1987).

8 Também no nascedouro da escola sociológica francesa o interesse


por estudar o “ fato religioso” do ponto de vista “ sociológico” se manifes­
tou desde logo sem considerações por especialização ou coisa que o valha
(cf. Durkheim, 1998 [1912]).

18 O desencantamento do mundo
E assim que li saí a pendurar im aginariam ente o aviso, que
dum outro ponto de vista mais parece um reclame, no frontispício
imaginário de minhas salas de aula e no alto do ponto mesmo onde
instalei meu observatório sociológico, que, a conselho de Weber,
é o lugar onde exercito asceticamente minha capacidade de con­
tinuar acom panhando, mediante a análise em pírico-substantiva
das religiões e das religiosidades no Brasil e na América Latina, a
evolução da sociedade ocidental com o algo de particular em seu
acontecer e universal em seu alcance cultural.

Antes de m ais nada, um a busca com o esta em


Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­
po uma contribuição à tipologia e sociologia do pró­
prio racionalism o.

E por isso, por essa visada am biciosa, que considero muito


educativo para um sociólogo da religião ler, com a reflexividade
duplicada dos olhos de hoje, a sociologia histórico-com parada
das religiões feita por W eber. Tenho com igo que um dos princi­
pais efeitos subjetivos da leitura desinteressada dessa sociologia
historicamente empírica a que W eber se dedicou durante anos
está justam ente em fazer sair de seu regionalism o fraccionai o
especialista em religião para reinscrevê-lo no quadro de uma teo­
ria sociológica duplam ente m acro m as tam bém genérica o ne­
cessário para ser capaz de ir alcançar o m icro, fortemente histó­
rica e m etodologicam ente bem travejada para exercitar-se nos
moldes categoriais de um a sociologia cada vez mais histórica e
com parativa.
N o decorrer do século X X M ax W eber não foi sempre, m as
foi sim cada vez m ais lem brado, solicitado e revisitado por sua
Sociologia da R eligião. A partir da década de 70, alguns anos de­
pois da com em oração do centenário de seu nascimento em 1964,
quanto m aior ficava o interesse pelas “ grandes teses” (alegada-
mente) weberianas, quase ia dizendo “ grandes n arrativas” — a
do “ desenvolvimento peculiar do racionalism o ocidental de do­

Introdução 19
mínio do mundo [Weltbeherrschung]” 9 ou a do “ desenvolvimento
de um racionalism o prático sui generis tornado conduta de vida
[rationale Lebensfiihrung]” 10 — , tanto m aior foi ficando o inte­
resse em conhecer sua sociologia substantiva das religiões.
Em se tratando de docum entar empiricamente processos de
racionalização de variada extensão, nada melhor que a história
com parada das religiões em chave sociológica para nos fornecer
os exem plos mais salientemente heterogêneos de racionalização
da vida em sua dupla vertente básica, a racionalização teórica e a
racionalização prática (Einleit/GARS I: 265-6; EnSoc: 337). É por
isso que na segunda metade da década de 80 W olfgang J. M om-
msen já podia anotar que “ os estudos de Weber em Sociologia da
Religião passaram a atrair renovada atenção. Por um período, sua
Sociologia da R eligião tinha sido con siderada desatu alizada e
irrelevante [...]. A gora vai se tornando evidente um novo e vivo
interesse por este aspecto da obra de W eber, precisamente na me­
dida em que sua Sociologia da Religião está relacionada às fon­
tes de racionalização no O cidente” (M om m sen, 1989: 5 ).11

Antes de m ais nada, um a busca com o esta em


Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­
po uma contribuição à tipologia e sociologia do p ró ­
prio racionalism o.

A pesquisa sobre M ax Weber nos últimos vinte ou trinta


anos cresceu tanto que tom ou uma série de direções dispersas,

9 Tese defendida por Schluchter, Tenbruck e Habermas.

10 Tese defendida por Wilhelm Hennis (1993; 1996).

11 Quando, por exemplo, Leopoldo Waizbort faz a apresentação de


sua tradução de Os fundamentos racionais e sociológicos da música (Weber,
1995), a parte da obra weberiana que ele com toda razão considera “ como
mais próxima ao seu exame da racionalização da m úsica” é a Sociologia da
Religião (cf. Cohn, 1995: 15-16).

20 O desencantamento do mundo
algum as bem produtivas em novos achados e estudos de fôlego.
Houve, a partir da década de 70 e m ais perceptivelmente ainda
nos anos 80, um a espécie de renascim ento do interesse pelos es­
critos de W eber, que produziu verdadeira enchente de literatura
secundária sobre todos os aspectos de sua obra e, por força, de
sua Sociologia da Religião. Stephen Kalberg (1994: 16) deu a esse
caudal o nome de “ international Weber renascence” . Em m até­
ria de racionalização, o velho ângulo de observação à la M ann­
heim (1962), que favorecia a atenção ao processo de racionali­
zação funcional e portanto de burocratização da sociedade m o­
derna, foi cedendo espaço a um ponto de vista m ais abrangente
em term os históricos, que valoriza o observar-se a sociedade oci­
dental do ponto de vista de um vasto processo de racionalização
de longuíssim a duração.

Antes de m ais n ad a, um a busca com o esta em


Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­
po uma contribuição à tipologia e sociologia do pró­
prio racionalism o.

D ois autores em especial lideraram a grande inflexão nos


estudos da obra de Weber que se desenhou na segunda metade
dos anos 70; juntos, eles personificam o turning point do interes­
se acadêm ico por sua Sociologia da R eligião: Friedrich H. Ten-
bruck, com seu artigo de 1975 sobre “ a obra de M a x W eber”
(1975), m ais conhecido pelo título em inglês “ O problem a da
unidade tem ática nas obras de M ax W eber” (1980), e W olfgang
Schluchter, com seu livro seminal e inexaurível, O desenvolvimen­
to do racionalism o ocidental (1979b), antecipado em alguns anos
pelo artigo não menos descortinador, “ O paradoxo da racionaliza­
ç ã o ” (1976; 1979a). Para Tenbruck, um processo de racionali­
zação religiosa que opera segundo sua própria lógica interna pode
ser considerado o núcleo principal e o tema unificador dos escri­
tos de M ax W eber, principalm ente dos trabalhos de sua m aturi­
dade, m uitos dos quais dedicados a com parar tipologicam ente as

Introdução 21
grandes religiões. Crítico de Tenbruck, Schluchter também se viu
às voltas com as várias sociologias da religião deixadas por We-
ber, e tam bém ele procurou acom panhar passo a passo o fio de
Ariadne do processo de racionalização religiosa em sua peculiar
vertente ocidental. Escreveu sucessivos estudos de explanação
sempre m ais apurada e sistem ática dos ângulos de visão weberia-
nos sobre o desenvolvimento do racionalism o característico do
Ocidente, tendo por referência empírica as diferentes religiões e
seus contrastes (Schluchter, 1989; 1991; 1996).

Antes de m ais nada, um a busca com o esta em


Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem­
po uma contribuição à tipologia e sociologia do p ró­
prio racionalism o.

De m odo que a valorização da Sociologia da Religião de


W eber iniciada nos anos 70 prosseguiu pelas décadas seguintes,
na razão direta da escalada do interesse pós-m oderno pelos pro­
blemas e dilem as da racionalização do social, da racionalização
de todas as esferas culturais m esm o as mais irracionais, da ra ­
cionalização sistêmica do agir e seu crescente im pacto no m un­
do da vida. N ão dá para m enosprezar de m odo algum o im pul­
so que H aberm as aduziu a essa anim ada corrida à Sociologia da
Religião de W eber, a qual não só se acelerou com o se avolum ou
ainda mais ao sabor do crescente interesse intelectual desperta­
do pela análise haberm asiana do discurso filosófico da m oderni­
dade. Com seu prestígio de grande filósofo alem ão contem porâ­
neo e, para com pletar, de pensador “ do bem ” , parece que H a­
berm as transferiu um pouco de sua influência acadêm ica para a
tendência emergente entre os estudiosos de Weber de problem a-
tizar o estatuto universal da racionalização, m antendo sempre
afiado o gume da crítica à am biguidade ím par do racionalism o
ocidental enquanto “ racionalism o de dom ínio do m undo” [ Welt-
beberrschung\ tal com o o caracteriza Weber, designação que nos
remete diretamente ao desencantam ento esclarecido da nature-

22 O desencantamento do mundo
za, com todas as contradições e irracionalidades que esse m odo
de relação com o mundo implica e acarreta.
De m odo que chego ao conceito de desencantam ento em
W eber sendo principalmente eu o sociólogo da religião e ele o
sociólogo da racionalização. N ad a há nisso de acidental.

Antes de m ais nada, um a busca com o esta em


Sociologia da Religião deve e quer ser ao m esm o tem ­
po um a contribuição à tipologia e sociologia do p ró ­
prio racionalism o.

* s:-

M inha intenção no exercício de scholarsbip que apresentei


com o tese de livre-docência à Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências H um an as da USP e que agora se transform a em meu
primeiro livro sobre W eber é percorrer de ponta a ponta a escrita
weberiana, fazendo através de toda a sua extensão um rastrea-
mento com pleto, exaustivo, dos usos do termo “ desencantam en­
to ” [Entzauberung] e de seus derivados e flexões. Inicio o trab a­
lho com uma rápida colheita das passagens relativas ao desencan­
tam ento do mundo localizadas nos escritos de W eber. A coleta
foi feita a princípio artesanalmente, na base da leitura atenta e p a­
cientemente repetida, metodicamente assinalando em código pági­
nas de livro com m arcadores coloridos — foi assim que concluí a
tese em fevereiro de 2001 e a defendi publicamente no dia 13 de
junho de 20 0 1 . A gora, dois anos depois de concluída a primeira
versão, vejo que toda a trabalheira im plicada num rastream ento
como esse se tornou, pelo avanço da tecnologia informacional, não
só muito mais rápida, mais com prim ida no tem po, m as também
e principalm ente m ais segura, garan tida que está hoje a plena
certeza de que nada ficou de fora da contagem e do registro dos
ach ados. G raças, p ois, a essa nova tecnologia editorial que já
chegou à obra de W eber, com pleteza e arredondam ento em ras-
treamentos vocabulares com o este, em obra tão vasta quanto a
dele, hoje estão assegurados a todo pesquisador que tiver acesso

Introdução 23
a um procedimento de busca informatizada de palavras numa obra
(completa) digitalizada.
Pois já existe um “ W eber digital” , viva! O C D -R O M n° 58
da D igitale Bibliotbek (cf. DigitB) saiu em 2001 trazendo sua
obra reunida, precedida da fam osa Lebensbild [biografia] escri­
ta por sua viúva, M arianne Weber. C om o uma grata surpresa e
gentile pensiero de Leopoldo W aizbort, meu colega no D eparta­
mento de Sociologia da USP, esse C D -R O M chegou às minhas
m ãos na hora exata, bem a tem po de subsidiar-me com sua bem-
-vinda exatidão tecnológica no m om ento em que eu devia con­
ferir, p asso a p asso, antes de entregar os originais ao editor, a
localização e a contagem das ocorrências vocabulares que eu fi­
zera para a livre-docência. Penso que devo inform ar aos leitores,
sobretudo aos meus alunos, que para chegar aos bons resultados
que atingi no primeiro rastream ento foram necessários quase três
anos de buscas, releituras para conferir, revisões constantes e rea­
justes infindáveis. H oje estou ciente de que os meios e m odos ar-
tesanais de que dispunha, de longe mais m odestos e dem orados
que os recursos atualmente disponíveis no m ercado, no fundo,
no fundo, não conseguiam , apesar de todo o meu zelo e discipli­
nada atenção, se safar da dúvida instalada na porosidade dos re­
sultados prom etidos: será que não deixei p assar nada? Com o
“ Weber digital” , o trabalho de investigação ficou mais fácil, mais
rápido e até m ais divertido, e o resultado da coleta e da con ta­
gem, cem por cento seguro.
As passagens colecionadas serão, num prim eiro momento
(capítulo 3), dispostas em ordem cronológica, m as sem grandes
contextualizações sistem áticas, pois é intenção deste meu exercí­
cio de pesquisa textual, num segundo momento que será seu cor­
po propriam ente dito (capítulos 5 a 13), contextualizar cada p a s­
sagem nas dobras da estrutura e do movimento interno da pró­
pria teorização sociológica de M ax Weber.

24 O desencantamento do mundo
TODOS OS PASSOS
DO CONCEITO

Ich bin zwar religiös absolut unmusikalisch...


[Não tenho absolutamente nenhum ouvido musical
para religião...]

M ax Weber, carta a Friedrich Naumann, 1909


1.
PA SSA N D O PO R SC H ILLE R

À primeira vista parece fácil, extremamente fácil, atinar com


o significado da expressão desencantam ento do m undo. Assim
com o parece fácil localizá-la nos textos de M ax W eber, sintag­
ma de presença tão densa e tão forte que se im agina onipresente.
M as não.
Se o desencantam ento ressoa por trás de cada página de
W eber, se ele se insinua em cada entrelinha com o se percorresse
a obra toda, travejando-a de ponta a ponta e perpassando cada
um de seus estudos, ficando sempre ali em sua escrita, assim , o
tem po inteiro, isso se deve antes à força da ideia do que à pre­
sença física da palavra. D o term o em si, da expressão vocabular,
é só aparência de onipresença, efeito ilusório. M uito m ais do que
pelo em prego supostam ente frequentíssim o do term o,12 muito
m ais do que pela ocorrência m aterial do significante no fluxo
caudaloso da pena weberiana, a im pressão de onipresença é cau ­
sada pela im portância e significação estratégicas que esse concei­
to, conform e veremos logo m ais, vai assum ir, inclusive retroati­
vamente, na tem ática substantiva da sociologia co m parada de
M ax W eber — a emergência do racionalism o ocidental em meio
a um processo de racionalização generalizado m as heterogêneo.
M as tem outra. Tem algo m ais. Entra aí tam bém , e contan­
do pontos, a beleza da expressão em si, com sua capacidade de

12 Frequência realmente all-pervasive na obra de Weber quem tem são


as palavras “ racionalização” , “ racionalidade” e “ racionalismo” .

Passando por Schiller 27


reverberar e sugerir efeitos de sentido que ultrapassam largamente
seus pontos de aplicação autorais. Basta dizê-la em francês para
logo percebermos seu poder de aludir: désensorcelement du m on­
de... (cf. Ladrière, 1986: 107; Isam bert, 1986). A bela frase que
fala em alem ão desse desenfeitiçamento do mundo, Entzauberung
der Welt, remetendo-o sim ultaneam ente a seus efeitos cosm oló-
gicos e etéreos, Weber foi buscá-la nas reflexões estéticas do filó­
sofo e poeta Friedrich von Schiller (1750-1805). Ou, pelo menos,
para chegar a ela, em Schiller foi se inspirar.
Fora da Alem anha, os prim eiros a divulgar essa filiação li­
terária do termo foram H ans Gerth e Charles W right M ills, au ­
tores da difundidíssim a coletânea de textos de W eber traduzidos
para o inglês: From M ax Weber [FMW ]. U sadíssim a em todo o
m undo, o m undo todo veio a ter m aior acesso à diversidade da
obra de W eber com essa publicação no im ediato pós-Segunda
Guerra, em 1946. A certa altura da longa introdução dos organ i­
zadores pode-se ler o seguinte: “ Ao refletir sobre a m udança nas
atitudes e mentalidades humanas ocasionada por esse processo [de
racionalização], Weber gostava de citar a frase de Friedrich Schil­
ler, o ‘desencantam ento do m un do’.13 A extensão e a direção da
‘racionalização’ podem ser m ensuradas, ou negativam ente, em
term os do grau em que os elementos m ágicos do pensam ento são
desalojados, ou positivam ente, à proporção que as ideias vão g a ­
nhando em coerência sistem ática e consistência n atu ralística”
(FM W : 51, grifos meus).
Trinta anos depois, em 1976, Daniel Bell voltaria à mesma
referência, em seu livro The Cultural Contradictions o f Capita-
lism. N um contexto em que está tratando da racionalização de
todos os ram os da vida cultural e da estrutura social, inclusive dos
m odos e m odalidades da arte, tem ática aliás francam ente we-
beriana, Bell comenta que “ para W eber isso era verdadeiro num

13 “ "Weber liked to quote Friedrich Schiller’s phrase, the ‘disenchant


ment o f the world’” (FMW: 51).

28 O desencantamento do mundo
duplo sentido: os aspectos cosm ológicos do pensam ento e da cul­
tura ocidentais foram caracterizados pela eliminação da m agia (se­
gundo a frase de Schiller, ‘o desencantam ento do m un do’)-, e a
estrutura e a organização form al, a estilística das artes, são ra­
cionais. O exem plo particular de W eber era a m úsica harm ônica
ocidental de acordes, baseada numa escala que permite o m áxi­
mo de relações ordenadas, diferentemente da m úsica primitiva e
não ocidental” (Bell, 1976: 36, grifos meus).
M ais tarde um pouco, em 1988, os brasileiros iam poder ler
num livro de resumo do pensamento weberiano escrito por Donald
M acR ae a alegação de que W eber “ tom ou do poeta Schiller uma
frase que é usualmente traduzida com o ‘o desencanto do m undo’ ”
(M acRae, 1988: 90, grifo meu). É assim mesmo que aparece tradu­
zido o componente verbal do conceito: “ desencanto do m undo” ,
já incorporando em português um certo deslizamento de sentido.
Bem mais recentemente, em 1993, ainda pude encontrar a
mesm a atribuição de filiação term inológica, dessa vez na pena de
Andrew M . Koch, em artigo a respeito do “ m odernism o” de We­
ber publicado no Canadian Jo u rn al o f Political Science, no qual
fica dito que desencantamento “ é um termo em prestado de Fried­
rich Schiller” (Koch, 1993: 138, grifo meu).
E m ais recentemente ainda, pude ler em Peter Ghosh mais
uma referência a tal empréstim o. D epois de com entar que, quan ­
do em prega a expressão “ afinidades eletivas” [W ahlverwandt­
schaften] para caracterizar a relação de “ causalidade ad eq u ad a”
e de “ m útua atra çã o ” entre a ética puritana e o espírito capitalis­
ta, Weber está na verdade “ usando uma frase tornada fam osa por
G oethe” , Peter Ghosh se refere de passagem , em nota de rodapé,
a “ um outro im portante empréstim o literário, tom ado de Schil­
ler, usualmente traduzido com o ‘o desencantamento do m undo’ ”
(Ghosh, 1994: 106, nota 8, grifo meu).
Estam os perante um caso claro de “ ideia recebida” . Pes­
soalm ente, nunca vi nenhum desses autores citando exatam ente
o lugar da obra de Schiller em que se encontra a expressão. Ain­
da estou à espera de provas, pois apesar da aparente unanim ida­

Passando por Schiller 29


de há, é bom que se diga, controvérsias em torno da alegada fi­
liação ou, quando menos, em torno do grau de uma filiação dada
com o certa. Segundo alguns, consta que W eber não estaria citan­
do Schiller, com o estão a dizer por escrito Gerth & M ills, Bell,
M acR ae, Koch, Ghosh e provavelmente m uitos outros, pois já vi
muito aluno meu afirm ando isso em trabalhos de fim de curso,
isto para não falar naqueles que o têm pronunciado m as não es­
crito — o próprio Weber seria o autor do sintagma Entzauberung
der Welt, expressão por isso m esm o tão weberianamente m arcan­
te quanto de fato ela tem soado a todos os que apaixonadam ente
estudam a vida e a obra deste... desencantador.14
E se W eber tivesse apenas se inspirado numa expressão do
grande poeta, numa locução análoga m as não idêntica? Para con­
densar numa única expressão os im pactos da modernidade sobre
a mãe natureza, Schiller teria pensado num efeito de “ desdivini-
z a çã o ” , ou, dizendo-a aqui sob um a outra form a tam bém p ossí­
vel em português, um efeito de “ desendeusam ento da natureza”
— Entgòtterung der N atur. Esta terceira posição, que pessoal­
mente tendo a abraçar, segundo a qual o termo não foi cunhado
pelo próprio Weber, nem adotad o ipsis litteris de Schiller e sim
por ele ad ap tado a partir de um sintagm a sim ilar, eu a aprendi
verbatim do professor W olfgang Schluchter, atual ocupante da
cátedra que foi de M ax Weber na Universidade de Heidelberg,
quando esteve no Brasil em 1997. Parece m esm o que Weber era
dado a tom ar em préstim os vocabulares da alta literatura alemã.
Uma vez pelo menos, e assim m esm o em tempo de verbo com
função adjetiva, Weber usa a ideia de “ desdivinização” para se
referir precisamente ao “ m ecanism o desdivinizado do m undo” .
É quando, na “ Introdução” [Einleitung] à Ética econôm ica das
religiões m undiais, ele discute a diferença entre, de um lado, o
conhecimento e a dom inação racional do mundo natural e, do
outro, as experiências m ísticas individuais, inexprim íveis, inco­

14 Entzauberer (cf. Goldman, 1988: 1).

30 O desencantamento do mundo
municáveis, inefáveis, cujo conteúdo indizível permanece “ com o
o único Além ainda possível junto ao m ecanism o desdivinizado
do m undo” [neben dem entgotteten M echanismus der Welt] (Ein-
leit/GARS I: 2 5 4 ; grifos m eus).15
Pelo sim , pelo não, o fato é que M ax Weber construiu um
conceito, m uito m ais que um sim ples termo. E um a vez elabora­
do o conceito e fixado o significante com toda essa poética lexi-
calidade, tão insinuante que muita gente pensa se tratar tão só de
um a m etáfora — Paul Ricoeur é um deles (1995) — , W eber p as­
sou a m obilizá-lo com tal centralidade e tam anha proeminência
em seus escritos, falas e reescritos da m aturidade — e por “ m a­
turidade” entenda-se aqui algo apenas cronológico, um atalho
vocabular para designar os últimos oito ou dez anos de sua vida
— , que o significante Entzauberung der Welt, inusitado m as in­
discutivelmente um m arcador, intenso com o referência m aterial
pela carga de efeitos de sentido, alusões e ressonâncias que abri­
ga e emite, viria a se tornar um a das m arcas registradas, não só
das teses substantivas de Weber sobre o desenvolvimento do racio-
nalism o ocidental, mas também da própria escritura weberiana.
Entzauberung der Welt — eis aí um m arcador da diferença.
D a diferença do pensam ento, m as tam bém da escrita de M ax
Weber. Em qualquer língua do m undo a ideia de encantam ento
se diz gostosam ente, gozosam ente, em form as belas, arrebatado­
ras, fascinantes: encanto, encantam ento, encantado, encantador,
encantaria... Desencantam ento, seu negativo, quem sabe também
por isso não term inou se im pondo com o um dos melhores identi­
ficadores pessoais de um pensam ento, senão o melhor.

15 A tradução espanhola é ruim neste pormenor, assim como a brasi­


leira. Nelas se lê “ mecanismo de un mundo sin dioses” , “ mecanismo de um
mundo sem deuses” , o que, convenhamos, é muito diferente da noção pro­
cessual de “ mecanismo desdivinizado do mundo” (cf. Weber, 1987: 248;
1974: 325). N ota “ 10 com louvor” para a tradução italiana: “ mecanismo
sdivinizzato dei m ondo" (Introltal: 168).

Passando por Schiller 31


2.
M EU PO N TO

A explicação desta racionalização (da


vida ocidental) e a form ação dos conceitos
correspondentes constituem uma das princi­
pais tarefas de nossas disciplinas.

M ax Weber, Neutr: 169

Claro que um conceito não pode ser tão


proteiforme; algum núcleo duro de significa­
do ele certamente terá.

Gabriel Cohn, 1995: 15

Desencantam ento do m undo é um significante de fraseado


lírico, hipersuscetível de m anipulação m etafórica. Às vezes, é co­
mo se fosse um verso. E verso de tão forte apelo à im aginação
do leitor, que na travessia dessa destinação termina por funcionar
à guisa de um mote. E feito um m ote, ele efetivamente desata a
fantasia glosadora das pessoas que, intempestivamente, começam
por livre associação de ideias a lhe atribuir uma infinidade de sig­
nificados alusivos e fluidos, frouxos, a partir da pura similitude
vocabular.
O termo é realmente bom , é rico o vocábulo “ desencanta­
m ento” . Seu feixe básico de significados lembra tudo que é m á­
gico e encantador, tudo que seduz e atrai, tudo que enfeitiça e
arrebata, tudo que tem charme e fascina. Charm e. Fascinação.
Feitiço. Em bm jo. Sedução. Encanto. Incantesimo. A tração. M ag­
netismo. T udo enfim que encanta — este é o núcleo — pode de
repente sair dessa palavra. E é isto, acho eu, que permite a Weber,
por exem plo, usar e abusar da m etáfora do “ jardim encantado” ,
em alem ão Zaubergarten, m esmo quando está no meio do m aior
esforço intelectual para traçar com clareza e distinção os limites

32 O desencantamento do mundo
lógicos do conteúdo que ele entende dar ao novo conceito. Em
plena assepsia do trabalho de construir um conceito logicamente
consistente, insinua-se na fraseologia de Weber, incontida, a m e­
táfora do “ jardim m ágico” .16 Às vezes na mesm a página, quan ­
do não no m esmo parágrafo (cf. G A RS I: 513), aflora a m etáfora
no afã de ilustrar empiricamente a form ulação abstrata a duras
penas alcançada, e então o pensar de W eber transita pra lá e pra
cá, do lógico ao figurativo. Figurativo, sim, pois o que mais p o ­
deria ser “ jardim encantado” no texto weberiano se não uma fi­
gura de linguagem ? Certamente não um conceito científico.
N o decorrer deste trabalho teremos chance de p assar várias
vezes pela im agem do “ jardim encantado” , essa m etáfora escan­
caradam ente m etafórica que W eber insere em seus escritos de
Sociologia da Religião nada menos que seis vezes (cf. DigitB) no
intuito de condensar numa figura im aginária e com um radical
evocativo — Z auber — a visão algo etnocêntrica que em suas
pesquisas históricas fora elaborando das grandes civilizações asiá­
ticas: encantadas, porquanto dom inadas pela m agia, p aralisadas
pelo tabu.
Isso quer dizer que o significante encantam ento tem força
expressiva própria, quase uma lógica própria, tantas são as on­
dulações e deslizam entos de que seu uso é capaz, viáveis em di­
versos idiom as, e em todos eles carregando o m esm o poder de
enlevo lexical. Im possível não lem brar o cum prim ento francês
encbanté, impossível esquecer que em italiano incantesimo é uma
beleza de palavra, e assim vai. Destino tam bém de todos os seus
contrários. Desencanto, por exem plo, é um a palavra tam bém ela
muito sugestiva, e não são tão raros assim os tradutores que subs­
tituem desencantam ento por desencanto, criando com isso a ex ­

16 As traduções de Weber para o inglês, em vez de jardim encantado,


preferem jardim mágico, magic gardett. O que também fica bom em portu­
guês. N ós não chamamos a ópera de Mozart, Die Zauberflõte, de “ A flauta
mágica” e não “ A flauta encantada” ? Dá no mesmo?

Meu ponto 33
pressão “ desencanto do m undo” (cf. M acR ae, 1988: 90; Haw-
thorn, 1982: 161), ultra-am bígua em português, onde desencanto
diz desaponto, desilusão e decepção, m as corretíssim a e precisa
em italiano, língua na qual desencantam ento se diz sim plesm en­
te disincanto — disincanto dei m ondo (cf. Treiber, 1993: passim ;
W eiss, 1993). N a tradução brasileira de um livro que trata da
genealogia da secularização, escrito pelo italiano G iacom o M ar-
ram ao ,17 em um título de capítulo o tradutor trouxe para o por­
tuguês o disincanto do italiano. E o capítulo ficou se cham ando
“ Racionalidade e desencanto” (cf. M arram ao, 1997: 5; 47).
M as nesse rol dos propensos a tratar o desencantam ento na
chave do desencanto há um nome ainda m ais fam oso que os já
citados, Arthur M itzm an, que em seu livro The Iron Cage, de
1971, pretende descobrir em W eber, “ sob a superfície de sua So­
ciologia da R eligião” , uma síndrome psicológica que ele define e
adjetiva com o “ person al disenchantm ent", e descreve com o “ o
profundo senso de desilusão e desencanto do scholar convalescen­
te com a sociedade e a política alem ãs” de seu tem po, síndrome
cujas raízes M itzm an não dem onstra a menor dificuldade em lo­
calizar “ nos próprios sentimentos de cu lp a” de um M ax Weber
pós-colapso psíquico (cf. M itzm an, 1971: 204-205).
O desencantam ento do m undo, quando traduzido por de­
sencanto e, com isso, re-duzido, psicologizado nos term os de um
estado mental de desilusão pessoal com o m undo (moderno) ou
com os rum os da sociedade (nacional), não leva necessariamente
a lugar teórico nenhum. N ão tem, ou melhor, nem chega a tocar
em sentido cognitivo algum . N ão p assa de um mísero nóm ade
desfigurado nas variações do nome. Pode ser sintom a da pobre­
za mental do com entarista, quando não de preguiça intelectual.
T od a essa dispersão interpretativa leva a crer que o signifi-
cante em si m esmo (fazer o quê?) talvez seja encantador o sufi­

17 Céu e terra: genealogia da secularização, São Paulo, Ed. da Unesp,


1997.

34 O desencantamento do mundo
ciente para impelir sua aplicação a agasalhar carga semântica sem­
pre m ais expandida e alusiva, um feixe sempre elástico de signi­
ficados de uso corrente, definitivamente proteiform e (cf. Cohn,
1995: 15). D evagar com o andor, porém. São tantas na verdade
as excitações cabíveis na elasticidade desse feixe, que sua am plia­
ção pode dar em dissipação. H á este risco. Com palavra assim tão
provocante, de aura tão carregada de m agnetism o e m agia, é mui­
to grande m esm o o risco da volatilização sem ântica e do disp a­
rate, da tolice. É assim , por exem plo, que vam os ler na tradução
brasileira do livro A m áquina de fazer deuses, de Serge M oscovici
(1990), algo com o: “ M as aquilo que W eber cham a de ‘desilusão
do m undo’ [...]” (p. 153); “ Assim sendo, ‘desiludir com o m un­
d o ’ significa [...]” (p. 154); “ O m undo aqui de baixo tendo sido
desiludido, observa Weber a propósito das seitas batistas [...]” (p.
155); “ Por outro lado, a desilusão do m undo representa a des­
coberta de um cam inho estrito [...]” (p. 155). A leitura de frases
com o essas — e exarad as além do mais num léxico atribuído ex ­
plicitamente a W eber — chega a ser uma experiência irritante de
desnecessário nonsense.
N ão haveria nada de errado em procurar inconsistências e
até mesmo contradições no próprio Weber, assim com o, tenho cer­
teza, não haveria nada de errado se o uso da voz “ desencantamen-
to do m undo” por Weber fosse variegado, m ulticolorido ou m es­
mo furta-cor. Apenas teria sido outro o rum o tom ado pela an áli­
se e pelo esforço de exegese que tenho feito. Acontece, porém, que
não é. A o contrário do que m uita gente pensa, inclusive assim
pensava eu tem pos atrás, as coisas não vão por aí. O uso do ter­
mo em W eber de fato não é unívoco, lá isso é verdade. Ele m uda:
dependendo da questão em tela — e não do transcurso dos anos
do autor, atenção! — ele se expande e se retrai, fica m ais forte ou
m ais fraco, m as nem por isso chega a se pôr com o desbragada-
mente polissêm ico. E é isto que eu pretendo deixar bem dem ons­
trado aqui: não é hiperpolissêm ico e muito menos contraditório.
E deveras surpreendente sua consistência lógica e sua fixa­
ção num p ar de sentidos ao longo das sucessivas utilizações.

Meu ponto 35
Talvez isso se deva ao fato de serem quantitativam ente re­
duzidos seus em pregos diretos no texto weberiano, o que já não
acontece com a frase “ processo de racionalização” e menos ain­
da com os substantivos simples “ racionalização” , “ racionalidade”
e “ racionalism o” , de incontáveis possibilidades de uso e uso efe­
tivamente variegado (cf. Vogel, 1973; N elson, 1974; Eisen, 1978;
Kalberg, 1980; Brubaker, 1984; Gonzales, 1988; Sica, 1988). Es­
sas são term inologias polissêm icas no sentido generoso da p ala­
vra, não estando, por isso m esm o, isentas de contradições no pró­
prio pensam ento weberiano (cf. Treiber, 1993: 2 ).18 T ão polissê­
m icas, que o próprio W eber por diversas vezes nos alertou quan­
to a isso: “ Nun kann unter diesem Wort [Rationalism us] bòchst
Verscbiedenes verstanden werden" , ou seja, “ com esta palavra [ra­
cionalism o] podem-se entender as coisas mais diversas” (GARS
I: 11; ESSR I: 21 ; EPbras: 11). Semelhante alerta não se vai en­
contrar em seus textos visando à palavra desencantamento. T am ­
bém, pudera, são de fato poucos os em pregos textuais que faz do
termo “ desencantam ento” . 19 Pode-se contá-los com os dedos das
m ãos. Ele é, sem dúvida algum a, uma exclusividade conceituai da
sua sociologia, uma espécie de m arcador da “ individualidade his­
tó rica” do seu pensam ento — o que, convenham os, está longe de
ocorrer com os termos racionalism o, racionalidade e racionaliza­
ção, apropriados pelas mais variadas correntes de pensamento.
Talvez por isso os usos dele não tenham se beneficiado do sem-

18 “ É o processo de racionalização que estimula cada vez mais os in­


térpretes com respeito às suas premissas, às suas formas, às suas contradi­
ções e consequências. E em boa medida isto também se deve ao fato de que
as relativas elaborações de Weber não estão totalmente isentas de contradi­
ções [non sono dei tutto prive di contraddizioni], mesmo porque os modelos
explicativos e as partes teóricas empregadas estão de sua parte vinculados a
tradições de pensamento extremamente diversas” (Treiber, 1993: 2).

19 Às vezes me acomete a curiosidade de saber: além de Weber, quem


mais naquele tempo teria passado a usar o termo assim teorizado? Marianne
Weber certamente, mas quem mais?

36 O desencantamento do mundo
pre alegado (e ademais muito real) “ caráter fragm entário” da obra
w eberiana para disparar o significante num a spiraling diversity
de significados eivada de inconsistências e contradições.
N ão encontrei nada de escorregadio aí. O terreno que piso
ao rastrear o desencantamento em W eber é surpreendentemente
limpo, é terra firme.
Além do quê, há um lado ético do pensam ento de M ax We­
ber que sustenta a tese segundo a qual o interesse último da ciên­
cia social para um ser hum ano reside em sua contribuição para a
luta do indivíduo com um em busca de clareza. T al busca é em
Weber parte integrante de uma verdadeira obsessão com a hones­
tidade intelectual. D aí seu com prom isso pessoal, uma espécie de
dever profissional do cientista vocacional que ele era, dever au-
toim posto em nome da “ c a u sa ” , com o de resto exigido de todo
cientista no sentido m oderno do termo: o dever de empregar, e
se for necessário construir ele m esm o, conceitos claros, conceitos
que sejam internamente consistentes e externam ente bem deli­
m itados, recortados com nitidez.
Tam bém pretendo dem onstrar aqui, relativamente ao con­
ceito de desencantamento do m undo, que esse cuidado de Weber
com a clareza do conteúdo sem ântico deste significante em p ar­
ticular se patenteia não raro na própria aparência do texto: pela
adoção de determ inados recursos estilístico-form ais de caráter
explicativo, m ais do que apenas enfático, com o por exem plo o
aposto simples, o aposto com dois pontos, a adjetivação especi-
ficante aduzida ao sintagm a original e até m esm o o fraseado co-
nectivo-explicativo explícito do gênero “ isto significa” .
Luta por clareza. Este meu trabalho sobre M ax Weber tem
a ver com essa luta, que era dele m as que tam bém é minha, e eu
sinceramente acho, tal com o ele achava, que ela deve ser de to ­
dos os que se ocupam profissionalm ente de uma ciência. De con­
fusa e em baralhada, basta a vida real, basta a Wirklichkeit, a rea­
lidade em fluxo permanente. O s conceitos, as categorias, as defi­
nições são nossas ferram entas de trabalho, e ferram entas têm de
ser boas e adequadas para o que delas se espera, e no caso das

Meu ponto 37
teorizações científicas sistem áticas, das sistem atizações teóricas,
esperam-se instrumentos de precisão, conceitos portanto de alta
definição. N ão é sempre que se consegue, m as é nosso dever con­
tinuar tentando chegar lá, à clareza, à nitidez. De confusos, repi­
to, bastam os Vorgänge der Welt, diria W eber (WuG: 308), os
“ processos/sucessos do m undo” , que continuam caóticos, nebu­
losos, indom áveis, m esm o quando já tenham sido “ desencanta­
d o s” pela ciência, ela mesma. N ão há momento melhor para fla­
grar nosso autor às voltas com esses seus cuidados que também
são meus — “ ai meus cu id ad os!” — do que nas longas e meticulo­
sas respostas que deu aos críticos da tese do “ espírito” do capita­
lism o, anticríticas publicadas no Archiv em 1910, uma das quais
leva no título a taxativa palavra Schlusswort, “ última palavra”
(texto parcialmente traduzido para o inglês em 1978, Anticritical
last w ord...20).
Em 1910, cinco anos depois da primeira publicação d ’/\ éti­
ca protestante e o “espírito” do capitalism o21 nos fascículos do
Archiv für Sozialw issenschaft und Sozialpolitik, Weber resolveu
publicar no m esmo veículo dois longos textos de resposta a seus
críticos: Antikritischen zum “ G e ist” des Kapitalism us (vol. 30,
fase. 1) e Antikritisches Schlussw ort zum “ G eist des K apitalis­
m u s” (vol. 31, fase. 2). De m odo geral, os pesquisadores dão
pouca atenção a esse conjunto de artigos, fruto da apaixonada
polêmica a que W eber se viu arrastado em razão do im pacto en­
tre os contem porâneos da sua obra mais conhecida. Nem mesmo
a reedição das Kritischen und Antikritischen zur Protestantischen

20 Fora da Alemanha, os interessados que não leem alemão podem ter


acesso apenas a uma parte do segundo texto das anticríticas, na tradução
de Wallace M. Davis para o inglês, Anticritical L ast Word on The Spirit o f
Capitalism, publicada em 1978 em uma revista científica de sociologia de
grande circulação, o American Journal o f Sociology, vol. 83 (ver: Anti).

21 N o título da primeira versão desta obra (1904-05) a palavra “ espí­


rito” vem entre aspas. A partir da segunda versão (1920), caíram as aspas.

38 O desencantamento do mundo
Ethik organizada por Johannes W inckelman em 1968 (ver PE II)
conseguiu interessar de m aneira abrangente os com entadores. É
compreensível.
N esses escritos anticríticos (ver tam bém Fischoff, 1944),
Weber se concede toda a oportunidade (não sem um certo ar bla-
sé) não só de esclarecer de novo conceitos seus que, segundo ele,
já estavam claros em diferentes capítulos d ’A ética protestante de
1904-05 — por exem plo, os conceitos de “ ascese intramunda-
n a” , “ espírito do capitalism o” , “ vo cação” , m as tam bém de fazê-
-lo com alto grau de reflexividade, na medida em que, aqui e ali,
nomeia explicitamente a regra de ouro da “ clareza conceituai”
com vistas ao “ aguçam ento da evidência” .22 Quer me parecer
que essa atitude de Weber (de alta reflexividade científica, repito)
por si só deixa estabelecido ou pelo menos sugerido que o inte­
resse m aior de todo debate intelectual que se pretenda científico
apesar de apaixon ado reside no objetivo subjetivamente valori­
zado de desfazer a confusão conceituai, dissipar a nebulosidade
que dilui o(s) significado(s) m entado(s) pelo pesquisador ao em ­
pregar esta ou aquela term inologia, através de uma operação de
recortar com nitidez os seus contornos e distinguir exatam ente
seus com ponentes parciais. Em ciência não é possível deixar o
significante solto por aí, proteicamente, dionisiacamente, heracli-
tianamente significando a seu bel-prazer, em polissem ias “ se agi­
gantando pela própria n atureza” , dizendo coisas novas a cada
nova leitura m algrado o sujeito-autor-cientista que o empregue.
M as, devemos reconhecer, W eber tam bém é — e isto sem
dúvida é menos importante nele com o homem do intelecto do que
a capacidade de produzir conceitos, m as nem por isso menos real
nem menos elogioso — um autor de grandes m etáforas, m etáfo­
ras que ficaram fam osas. E m etáfora, a gente sabe, é coisa que tem

22 Como no momento não tenho acesso à reedição em alemão (PE II),


cito a partir do inglês: “ conceptual clarity [...] in sharpening the evidence”
(Anti-. 1111-1112).

Meu ponto 39
baixa definição, ainda que intensa comunicabilidade. Quem já não
ouviu falar da “ jaula de ferro” , m etáfora fortíssim a, que mesmo
em inglês é completamente im pactante, ou talvez principalmente
em inglês — iron cage — , onde a im agem sonora fica perfeita, ou
m esm o em francês, cage d ’acier, para não pensar na gab bia d ’ac-
ciaio em italiano, e que em alem ão queria dizer ao pé da letra algo
com o “ carapaça dura feito a ço ” , “ cápsula dura qual a ço ” {Stahl­
hartes G ehäuse]? Eis aí uma bela m etáfora, feita para soar opres­
siva, claustrofóbica, e que em inglês acabou funcionando à per­
feição — iron cage,23
Com que, então, W eber é um bom autor até de m etáforas!
Tanto assim que Paul Ricoeur não perdoa. Paul Ricoeur, o intér­
prete. Para ele, o desencantamento do mundo também é m etáfora,
uma grande m etáfora. Tendo a oportunidade de falar em desen­
cantam ento do m undo, vai logo partindo para evocar a questão
da “ plurivocidade de interpretação” do processo de racionaliza­
ção, sugerindo a recusa da univocidade da leitura que recorrente­
mente se faz desse m esmo processo que, segundo ele, sempre esta­
ciona no registro protoniilista do feitiço que vira contra o feiticeiro.
Diz ele: “ A questão [do processo de racionalização] permanece
aberta: até onde seria preciso rem ontar para reabrir a plurivoci­
dade? Esta questão me parece essencial, se o que se quer é resistir
ao efeito de ofuscam ento criado pelas grandes m etáforas webe-
rianas: ‘jaula de ferro’, ‘luta dos deuses’, ‘último hom em ’, ‘encan­
tam ento’ e ‘desencantam ento’ ” (Ricoeur, 1995: 15).
N ão é preciso ser muito sagaz para reparar que Ricoeur dei­
xou de fora de sua lista a im portantíssim a m etáfora das “ afini-

23 Lawrence Scaff considera a expressão iron cage “ his most telling


figure o f speech” (cf. Scaff, 1989: 5). Convém comentar que todas as tradu­
ções que pretendem fugir da inspiradíssima versão parsoniana da iron cage
e procuram traduzir ao pé da letra a expressão alemã usada por Weber aca­
bam sufocando a sufocante metáfora. A tradução portuguesa, em vez de fa­
lar em jaula ou prisão, põe no lugar a analgésica circunlocução “ pesada es­
trutura de aço” (EPLus: 139).

40 O desencantamento do mundo
dades eletivas” que W eber sorveu diretamente de Goethe e, atra­
vés de Goethe, da jovem química da m odernidade clássica com
sua attractio electiva, ou attractio electrix, e que W eber emprega
numa discussão para ele absolutam ente central, a da causalidade
histórica das ideias religiosas n’A ética protestante (cf. PE/GARS
I: 83; EPLus: 6 4 24) ou, para dizer de m odo mais geral e em ter­
mos seus, na “ análise das conexões causais da realidade empíri­
c a ” (WL: 398). M etáforas, com o se vê no caso das “ afinidades
eletivas” , podem ser de crucial valia, m esm o para as discussões
puramente lógicas e teórico-sistem áticas.
E o que dizer daquela passagem da “ Introdu ção” à Etica
econômica das religiões m undiais (GARS I: 252), na qual W eber,
ao com parar a diferencial eficácia histórico-empírica dos interes­
ses e das ideias, lança m ão da m etáfora dos “ m anobreiros de des­
vio” de linha de trem de ferro, os switchmen, em alem ão Weichen-
steller, para descrever o poder das ideias na definição dos trilhos
por onde se movem os nossos interesses?
N ão tenho neste m om ento espaço nem disposição para co ­
mentar a cism a exagerada que Paul Ricoeur dem onstra nutrir em
relação ao que ele fantasia ser (cito:) “ o desafio ‘nihilista’ conti­
do no diagnóstico cético que M ax Weber faz sobre o curso da m o­
dernidade” (Ibid.: 14). Kulturpessimismus tem hora. Rapidamente
retruco com uma pergunta, que segue por sua vez outra pergun­
ta levantada na mesma linha por Jean Séguy (1996): e quem foi
que disse que o ceticismo de Weber deve necessariamente ser q ua­
lificado de “ niilism o” ? W eber, afinal, sabia m uito bem o que sig­
nifica um ponto de vista, gosta de dizer Schluchter.

24 Lamentavelmente, a edição brasileira d’A ética protestante e o espí­


rito do capitalismo [EPbras] segue a tradução americana e, em lugar de “ afi­
nidades eletivas” , traz para esse contexto metodológico a sensaborona pa­
lavra “ correlações” , totalmente imprecisa e desorientadora do leitor. Vê-se por
aí a influência que teve no Brasil, influência neste caso específico deletéria,
da tradução feita por Talcott Parsons em 1930.

Meu ponto 41
M eu ponto neste trabalho é simples e ao final me agrad a­
ria enormemente tê-lo deixado bem dem onstrado: parti para esta
pesquisa tendo plena consciência de que o uso que M ax Weber
faz do conceito de desencantam ento do m undo não é com plica­
do, nem hesitante, nem muito menos obscuro. Àquela altura de
sua vida, m ergulhado até o pescoço em diversas investigações —
teórico-sistem áticas e histórico-com parativas — , ele sabia m ui­
to bem o que queria com a term inologia escolhida para m ate­
rializar os mais centrais de seus conceitos substantivos. Desen­
cantam ento do m undo tornou-se um deles. Em vista disso, d a­
qui do meio desta minha paciente em preitada, m ergulhado até o
pescoço em textos originais e traduções em diversas línguas, só
p osso augurar para mim m esmo que ao final eu haja conseguido
deixar claro que W eber, pelo menos neste preciso ponto, não foi
nada obscuro.
Para conseguir isso, finco o pé nalgum as vias de dem ons­
tração:
(1) A meu ver é possível, por exem plo, dem onstrar que em
boa parte dos em pregos que W eber faz da expressão term inoló­
gica desencantamento do m undo, e são dezessete empregos ao to­
do, há uma p reocu pação clara em definir o significado que na­
quele preciso contexto ele entende dar ao significante;
(2) Proponho prestar atenção a cada um desses empregos,
perscrutando pacientem ente a escrita w eberiana para que seja
possível, ao final deste longo, tortuoso e às vezes hesitante per­
curso por entre citações o mais possível literais de seu pensam en­
to, deixar dem onstrado que o sintagm a em tela tem apenas dois
conteúdos sem ânticos, e que esses conteúdos, adem ais, são niti­
damente dem arcados;
(3) D escubro no meio dessa travessia, e dem onstro, que os
dois significados encontrados são concom itantes na biografia de
Weber. Eles se acom panham um ao outro sabendo-se entretan­
to distintos, na m edida em que dizem ora o desencantam ento do
mundo pela religião (sentido “ a ” ), ora o desencantamento do mun­
do pela ciência (sentido “ b ” ).

42 O desencantamento do mundo
Leituras recentes segundo as quais o conceito de desencan-
tam ento do m undo no pensam ento de W eber foi m udando de
sentido com o transcorrer dos anos de sua vida, p assan d o do sig­
nificado “ a ” para o “ b ” , estão portanto desatualizadas em rela­
ção ao estado das artes hoje vigente em m atéria de “ biografia da
o b ra ” [W erkgescbichte]. São leituras que trabalham com uma
hipótese aparentemente óbvia, hoje facilmente refutável com d a­
dos de evidência. Trata-se de uma tese que de repente se viu cabal­
mente refutada pelos próprios avanços cum ulativos da scholar­
ship em torno da obra de W eber, propiciados pelas pesquisas do­
cumentais de caráter biográfico, com seus novos aportes para a
cham ada “ biografia da o b ra ” .
Meu pon to: neste trabalho eu uso bastante as águas desse
novo m oinho para m ostrar por a + b que W eber na verdade tra­
balhou com os dois significados ao m esmo tempo e o tempo todo,
desde sua primeira form ulação pouco antes de 1913 até os últi­
mos meses de sua vida, que expirou prem aturam ente em junho
de 1920.
N em todos sabem , mas está em curso desde m eados da dé­
cada de 1970 uma em preitada coletiva de m onta: a edição crítica
das obras de M ax W eber, com plexo projeto que leva o nome de
M ax Weber Gesam m tausgabe [MW G, M ax Weber: Edição C om ­
pleta], com sede em M unique. O grupo inicial dos editores res­
ponsáveis existe desde 1976, form ado por M . Rainer Lepsius (de
Heidelberg), H orst Baier (de K onstanz), Johannes W inckelmann
(de Rottach-Egern, já falecido), W olfgang J. M om m sen (de D üs­
seldorf) e W olfgang Schluchter (de Heidelberg). O projeto tem o
patrocínio da Kom m ission fúr Sozial- und W irtschaftsgeschichte
da Academ ia de Ciências da Baviera, M unique. O editor é J.C .B .
M ohr (Paul Siebeck), de Tübingen. Um primeiro apanhado do pro­
jeto com o um todo foi publicado em 1981, num prospecto expli­
cando seus objetivos e procedim entos e apresentando o estado da
preparação da M ax W eber G esam m tausgabe naquele momento.
N a Biblioteca Central da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên­
cias H um anas da USP nós podem os ter acesso a diversos dos vo-

Meu ponto 43
lumes já publicados, alguns dos quais, por sinal, me interessaram
de perto já no presente estudo. G raças a essas aquisições de nos­
sa biblioteca, meu conhecimento das fontes originais disponíveis
atualmente ganhou substancial incremento. Sabem os que os ori­
ginais de M ax Weber, no sentido técnico da palavra, não existem
mais. T od avia, dispersos em diversas localidades e propriedades,
havia m uitos “ restos literários” guardados em arquivos privados,
em coleções pessoais e em outras form as de conservação, con­
tendo m anuscritos, versões prelim inares, palestras e preleções de
que não se tinha notícia etc.; e as cartas, m uitas cartas, nos mais
diversos paradeiros (cf. Roth, 1991). A ideia que desde o início
preside ao projeto M ax W eber G esam m tausgabe é a de recolher
o m aior número possível de inform ações adicionais ao que já se
conhecia dos escritos de W eber e colocar tudo isso junto à dispo­
sição dos estudiosos, interessados e curiosos de m odo geral, numa
vasta edição crítica que quer ser o m ais com pleta possível quan­
to às inform ações existentes sobre cada ensaio, cada estudo, cada
palestra, cada aula, cada carta dele. Em 1984 foi publicada uma
revisão do primeiro prospecto aparecido em 1981, indicando en­
tão as três grandes subséries da série com pleta: (1) escritos e p a ­
lestras; (2) cartas; (3) aulas. Só para a primeira subsérie, que con­
tem pla sua oeuvre propriam ente acadêm ica, foram previstos 22
volumes (cf. K àsler, 1988: 2 7 5 ; Roth, 1988: I3 6 s; Kim ball &
Ulmen, 1991).25
Esse é realmente um dado novo. Um fato auspicioso e de
extrema relevância para quem estuda ou quer estudar a obra de
Weber. Sua im portância transcende largam ente o fato, já em si
m uito significativo, de passarm os a contar com uma edição críti­
ca com pleta, que abre o acesso a uma quantidade inestimável de
fontes até agora desconhecidas, a novos dados e a lances insus-

25 Parece-me que o primeiro volume que saiu foi um da subsérie “ es­


critos e palestras” , organizado por Wolfgang J. Mommsen em colaboração
com Gangolf Hübinger, intitulado Zur Politik im Weltkrieg. Schriften und
Reden 1914-1918, MWG I, vol. 15, Tübingen, Mohr, 1984.

44 O desencantamento do mundo
peitados em torno da produção intelectual desse m onstro sagra­
do da sociologia. Lá onde chegam os volum es já editados da sé­
rie, a M ax Weber G esam m tausgabe vai silenciosamente suscitan­
do um tipo novo de interesse, o interesse pelo “ texto em si” , até
bem pouco tem po inusitado ou pelo menos raríssim o entre os es­
tudiosos de W eber, o interesse em ir além do conteúdo e muito
além das “ ideias recebidas” e interpretações correntes, eis que o
próprio texto em sua m aterialidade se oferece agora com o objeto
de questionam ento (cf. Séguy, 1996).
A pesar da nitidez das definições de desencantam ento do
m undo, uma certa polissem ia, em bora mínima, persiste e segue
seduzindo a im aginação dos intérpretes. N ão obstante o fato de
que toda essa clareza conceituai no uso dos termos tenha sido algo
metodicamente buscado pelo Weber da m aturidade no que toca
ao fenômeno do desencantam ento, tem os de convir que o sintag­
ma, o nome, o termo “ desencantamento do m undo” continua com
sua carga nada negligenciável de sugestividade, continua a aco­
lher e nutrir possibilidades inúmeras de m etaforização, continua
propenso à diluição dos seus contornos lógicos, convite, por ou ­
tro lado, ao adensam ento filosófico de seus conteúdos no traba­
lho de reflexão sobre os grandes dilem as existenciais postos pelo
processo de racionalização especificamente ocidental. Ocorre que
entre filósofos e dem ais am antes do filosofar prospera a leitura
m elancólica do conceito de desencantam ento basicam ente com o
perda de sentido [Sinnverlust]. A o contrário do conhecim ento
científico, que assum e com realism o e galhardia sua incapacida­
de constitutiva de “ provar cientificamente” (WaB/WL: 600; FMW:
145) que o m undo e a vida trazem em si sentido e valor, e abraça
com coragem e senso de dever a tarefa de pesquisar metodicamen­
te, manipulando e experimentando para modificar e explorar, sem
culpa nem pejo, sem limite nem resto, todo esse m undo natural
que, uma vez desencantado, se oferece à aventura científica feito
zona de caça liberada mercê de sua objetiva falta de sentido \Sinn-
losigkeit], ao contrário das ciências, repito, as visões de mundo
— na verdade todas as visões de m undo, sejam elas religiosas ou

Meu ponto 45
filosóficas — insistem em dotá-lo de um sentido que, lam enta­
velmente do ponto de vista desses pensadores, vai-se perdendo
sempre m ais, e irreparavelmente, quanto m ais se difundem e se
dispersam os diferentes processos rivais de racionalização dos
m undos da vida.
Isso, porém , não nos autoriza a fazer do conceito de desen-
cantamento um uso sempre flexível, pouco apertado, alusivo, falto
de rigor e nitidez. Weber aqui é tão explícito nos seus próprios
term os, que qualquer eventual tentativa de, por aí, dem onstrar
textualmente que ele concebeu o desencantamento do m undo em
term os am plos e fluidos teria de se haver com um bom número
de definições explicativas do conceito que ele não se poupa em
dar, nas quais enquadra o processo em limites muito estritos e
claros, sem m argem para toda a m aleabilidade interpretativa dos
amantes da polissemia. O excesso de am or à polissemia corre neste
caso um sério risco — o de fazer a plurivocidade virar-se contra
si m esm a, vindo então a esfum ar os fortes contrastes da lim itadís­
sima policrom ia (dicrôm ica!) originalmente conferida pelo autor
ao conceito.
Por isso m esm o, ultimamente, alguns autores têm preferi­
do adotar uma nova tradução técnica para Entzauberung. Em vez
de “ desencantam ento” , termo que, com o estam os vendo, se pres­
ta a deslizamentos sem ânticos incontroláveis, dadas as suas co ­
notações rom ânticas (cf. Sayre & Lòw y, 1984) e seus pendores
psicologizantes (veja-se a propósito a falsa proxim idade que há
entre os sintagmas “ desencantamento do m undo” e “ universo em
desencanto” ), respeitáveis estudiosos hoje propõem o uso da p a­
lavra “ desm agificação” .
O recurso a esse outro vocábulo, menos charm oso, de fei­
tio mais técnico e lexicalidade m ais óbvia — desm agificação (mas
há tam bém quem diga desm agicalização) — , é decerto uma ten­
tativa cientificamente bem-intencionada, para o caso do desencan­
tam ento do m undo, de “ chegar ju n to” daquele “ núcleo duro de
significado (que) um conceito certamente terá” , conforme Gabriel
Cohn costum a nos ensinar e cobrar (Cohn, 1995: 15).

46 O desencantamento do mundo
3.
C O N T A N D O OS PASSOS

Apresento a seguir em ordem cronológica, sublinhadas, as


passagens de Weber em que são m encionados o substantivo “ de-
sencantam ento” e o verbo “ desencantar” com suas flexões. C ada
passagem é transcrita em tradução para o português seguida do
original alem ão.

PASSO 1

“ A ação orientada segundo representações m ágicas, por


exem plo, tem m uitas vezes um caráter subjetivamente muito mais
racional com relação a fins do que qualquer com portam ento ‘reli­
gioso’ não m ágico, posto que a religiosidade, à m edida que avan­
ça o desencantamento do m undo, se vê obrigada a aceitar referên­
cias de sentido cada vez mais subjetivamente irracionais com rela­
ção a fins (referências ‘de convicção’ ou m ísticas, por exem plo).”
(Sobre algum as categorias da sociologia compreensiva. Cat: 181)
O RIGIN AL [pouco antes de 1913]: “ An magischen Vorstellungen
orientiertes Handeln beispielsweise ist subjektiv oft weit zweckratio­
naleren Charakters als irgendein nicht magisches ‘religiöses’ Sichver­
halten, da die Religiosität ja gerade mit zunehmender Entzauberung
der Welt zunehmend (subjektiv) zweckirrationalere Sinnbezogenhei-
ten (‘gesinnungshafte’ oder mystische z. B.) anzunehmen genötig ist.”
(Kat/WL: 433)

Em sum a: desencantam ento = perda de sentido.

Contando os passos 47
PASSO 2

“ E além do m ais, a religiosidade devia ser o m ais possível


despojada do caráter puramente m ágico ou sacramental dos meios
da graça. Pois estes sempre desvalorizam a ação no m undo como
tendo um significado religioso na melhor das hipóteses relativo e
ligam a decisão sobre a salvação ao êxito de processos racionais
não cotidianos. As duas condições, desencantam ento do mundo
e deslocam ento da via de salvação, da ‘fuga do m undo’ contem ­
plativa para a ‘transform ação do m undo’ ascético-ativa, só foram
plenamente alcançadas — à exceção de algum as pequenas seitas
racionalistas encontradiças mundo afora — nas grandes form a­
ções de igreja e seita do protestantism o ascético no O cidente.”
(“ Introdução” , ver ESSR I: 2 5 7 , grifos do original)
ORIGINAL [1913, 1915): “ Und ferner musste die Religiosität den rein
magischen oder Sakramentalen Charakter der Gnadenm/ife/ möglichst
abgestreift haben. Denn auch diese entwerten stets das Handeln in der
Welt als religiös höchstens relativ bedeutsam und knüpfen die Ent­
scheidung über das Heil an der Erfolg nicht alltags-rationaler V or­
gänge. Voll erreicht wurde beides: Entzauberung der Welt und Ver­
legung des Weges zum Heil von der kontemplativen ‘Weltflucht’ hin­
weg in die aktiv asketische ‘Weltbearbeitung’, — wenn man von ein­
igen kleinen rationalistischen Sekten, wie sie sich in aller Welt fanden,
absieht, — nur in den grossen Kirchen- und Sektenbildungen des as­
ketischen Protestantismus im Okzident.” (Einleit/GARS I: 262-263,
grifos do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

PASSO 3

“ Q uanto mais o intelectualismo repele a crença na m agia, e


com isso os processos do m undo ficam ‘desencantados’, perdem
seu sentido m ágico e doravante apenas ‘sã o ’ e ‘acontecem ’ mas
não ‘significam ’ m ais nada, tanto m ais urgente resulta a exigên­
cia, em relação ao m undo e à ‘conduta de vida’ com o um todo,

48 O desencantamento do mundo
de que sejam postos em um a ordem significativa e ‘plena de sen­
tido’.” 26 (Sociologia da Religião/EeS I: 344)
ORIGINAL [1913, 1914...]: “Je mehr der Intellektualismus den Glau­
ben an die M agie zurückdrängt, und so die Vorgänge der Welt ‘ent­
zaubert’ werden, ihren magischen Sinngehalt verlieren, nur noch
‘sind’ und ‘geschehen’, aber nichts mehr ‘bedeuten’, desto dringlicher
erwächst die Forderung an die Welt und ‘Lebensführung’ je als Gan­
zes, dass sie bedeutungshaft und ‘sinnvoll’ geordnet seien.” (WuG:
308)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação + perda de


sentido.

PASSO 4

“ N o tocante ao primeiro ponto o protestantismo ascético nas


suas várias m anifestações representa um grau extrem o. As suas
m anifestações mais características elim inaram a m agia do m odo
mais completo. [,..| O pleno desencantam ento do m undo foi le­
vado, apenas aí, às suas últimas consequências.” (“ Confucionismo
e puritanism o” : 151-152, trad. Cohn, grifos do original)
ORIGINAL [1913, 1915]: “ In der ersten Hinsicht stellt der asketische
Protestantismus in seinen verschiedenen Ausprägungen eine letzte Stufe
dar. Seine am meisten charakteristischen Ausprägungen haben der
M agie am vollständigsten den G araus gemacht. [...] Die gänzliche
Entzauberung der Welt27 war nur hier in alle Konsequenzen durch­
geführt.” (GARS I: 513, grifos do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

26 Há uma redundância estilística no texto alemão para a qual as lín­


guas latinas apresentam uma dificuldade léxica. Com intenção enfática, We­
ber usa adverbialmente dois adjetivos bedeutungshaft und sinvoll, que en­
contram seus correspondentes neolatinos em um adjetivo: significativo. Já
no inglês foi possível dizer significant and meaningful (E& S: 506).

27 O próprio Weber grifou o sintagma na segunda edição.

Contando os passos 49
PASSO 5

“ M as ali onde o conhecimento racional empírico realizou de


maneira consequente o desencantamento do mundo e sua trans­
form ação num m ecanism o causal, instala-se de um a vez por to ­
das a tensão contra a pretensão do postulado ético: que o mundo
seja um cosm os ordenado por Deus e, portanto, orientado etica­
mente de m odo significativo, em caráter definitivo daí para fren­
te.” (Consideração interm ediária; ver ESSR I: 553; R R M : 261,
grifo do original)
O RIGINAL 11913, 1915]: “ Wo immer aber rational empirisches Er­
kennen die Entzauberung der Welt und deren Verwandlung in einem
kausalen Mechanismus konsequent vollzogen hat, tritt die Spannung
gegen die Ansprüche des ethischen Postulates: dass die Welt ein gott­
geordneter, also irgendwie ethisch sinnvoll orientierter Kosm os sei,
endgültig hervor.” (ZB/GARS I: 564, grifo do original)

Em sum a: desencantam ento = perda de sentido.

PASSO 6

“ E não foi só o pensamento teórico que desencantou o mun­


do. m as foi precisamente a tentativa da ética religiosa de racio­
nalizá-lo no aspecto prático-ético que levou a este cu rso .” (C on­
sideração interm ediária, ver ESSR I: 560; R R M : 266)
ORIGINAL (1913, 1915]: “ Und nicht etwa nur das theoretische Den­
ken, welches die Welt entzauberte, sondern gerade der Versuch der
religiösen Ethik, sie praktisch ethisch zu rationalisieren, fürhte in diese
Bahn.” (ZB/GARS I: 571)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

PASSO 7

“ Intelectualização e racionalização crescentes, portanto, não


significam um crescente conhecim ento geral das condições de

50 O desencantamento do mundo
vida sob as quais alguém se encontra. Significam , ao contrário,
uma outra coisa: o saber ou a crença de que basta alguém que­
rer para poder provar, a qualquer hora, que em princípio não há
forças m isteriosas e incalculáveis interferindo; que, em vez dis­
so, um a pessoa pode — em princípio — dom inar pelo cálculo
todas as coisas. Isto significa: o desencantam ento do m undo.
Ninguém m ais precisa lançar m ão de meios m ágicos para coagir
os espíritos ou suplicar-lhes, feito o selvagem , p ara quem tais
forças existiam . Ao contrário, meios técnicos e cálculo se encar­
regam disso. Isto, antes de m ais nada, significa a intelectualiza-
ção propriamente dita.” (A ciência como vocação, ver FMW: 139;
CP2V: 30, grifos do original)
ORIGINAL [1917]: “ Die zunehmende Intellektualisierung und Ratio­
nalisierung bedeutet also nicht eine zunehmende allgemeine Kenntnis
der Lebensbedingungen, unter denen man steht. Sondern sie bedeu­
tet etwas anderes: das Wissen davon oder den Glauben daran: dass
man, wenn man nur wollte, es jederzeit erfahren könnte, dass es also
prinzipiell keine geheimnisvollen unberechenbaren Mächte gebe, die
da hineinspielen, dass man viel mehr alle Dinge — im Prinzip — durch
Berechnen berrerschen könne. D as aber bedeutet: die Entzauberung
der Welt. Nicht mehr, wie der Wilde, für den es solche Mächte gab,
muss man zu magischen Mitteln greifen, um die Geister zu beherrschen
oder zu erbitten. Sondern technische Mittel und Berechnung leisten
das. Dies vor allem bedeutet die Intellektualisierung als solche.” (WaB/
WL: 594, grifos do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação + perda de


sentido.

PASSO 8

“ O ra, esse processo de desencantam ento. que vem se dando


na cultura ocidental ininterruptamente através de milênios e, em
term os m ais gerais, esse ‘p rogresso’, do qual faz parte a ciência
com o um elo e força motriz, têm eles um sentido que vá além do
puram ente prático e técnico? Vocês vão encontrar esta questão,

Contando os passos 51
posta em sua mais elevada form a, na obra de Lev T o lstó i.” (A
ciência com o vocação, ver FM W : 139; CP2V: 31)
ORIGINAL [1917]: “ H at denn aber nun dieser in der okzidentalen
Kultur durch Jahrtausende fortgesetzte Entzauberungsprozess und
überhaupt: dieser ‘Fortschritt’, dem die Wissenschaft als Glied und
Triebkraft mit angehört, irgendeinen über dies rein Praktische und
Technische hinausgehenden Sinn? Aufgeworfen finden Sie diese Fra­
ge am prinzipiellsten in den Werken Leo T olstojs.” (WaB/WL: 594)

Em sum a: desencantam ento = perda de sentido.

PASSO 9

“ Pois aqui tam bém diferentes deuses lutam entre si, agora
e para sempre. Tudo se p assa com o se [vivêssemos] no m undo
antigo, mundo ainda não desencantado de seus deuses e dem ô­
nios, só que em outro sentido [...].” (A ciência com o vocação, ver
FM W : 148; CP2V: 42)
O RIG IN A L [1917]: “ Hier streiten eben auch verschiedene Götter
miteinander, und zwar für alle Zeit. Es ist wie in der alten, noch nicht
von ihren Göttern und Dämonen entzauberten Welt, nur in anderem
Sinne [...].” (WaB/WL: 604)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação + perda de


sentido.

PASSO 10

“ Com o o homem helénico sacrificava ora para Afrodite, ora


para A poio e, antes de mais nada, p ara cada um dos deuses de
sua cidade, assim é ainda hoje, só que aquele procedim ento foi
desencantado e despido de sua plasticidade mítica, m as interior­
mente genuína. Impera sobre esses deuses e sua luta o destino, não
a ‘ciência’, com toda a certeza.” (A ciência com o vocação, ver
FM W : 148; CP2V: 42)

52 O desencantamento do mundo
ORIGINAL [1917]: “ Wie der Hellene einmal der Aphrodite opferte
und dann dem Apollon und vor allem jeder den Göttern seiner Stadt,
so ist es, entzaubert und entkleidet der mythischen, aber innerlich wah­
ren Plastik jenes Verhaltens, noch heute. Und über diesen Göttern und
in ihrem Kam pf waltet das Schicksal, aber ganz gewiss keine ‘Wissen­
schaft’.” (WaB/WL: 604)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação + perda de


sentido.

PASSO 11

“ M uitos dos antigos deuses, desencantados e doravante sob


a form a de potências im pessoais, emergem de seus túm ulos, es-
forçam -se por ganhar poder sobre nossas vidas e novamente re­
com eçam sua eterna luta uns contra os outros. M as o que se tor­
na assim tão duro para o homem moderno, e mais duro ainda para
as jovens gerações, é o estar à altura desse dia a dia. T oda busca
de ‘experiência’ provém dessa fraqueza. Pois fraqueza é: não ser
capaz de olhar de frente, em seu severo sem blante, o destino do
[nosso] tem po.” (A ciência como vocação, ver FM W : 149; CP2V:
43, grifo do original)
ORIGINAL [1917]: “ Die alten vielen Götter, entzaubert und daher
in Gestalt unpersönlicher Mächte, entsteigen ihren Gräbern, streben
nach Gewalt über unser Leben und beginnen untereinander wieder
ihren ewigen Kampf. D as aber, was gerade dem modernen Menschen
so schwer wird, und der jungen Generation am schwersten, ist: einem
solchen Alltag gewachsen zu sein. Alles Jagen nach dem ‘Erlebnis’
stammt aus dieser Schwäche. Denn Schwäche ist es: dem Schicksal der
Zeit nicht in sein ernstes Antlitz blicken zu können.” (WaB/WL: 605,
grifo do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação + perda de


sentido.

Contando os passos 53
PASSO 12

“ O destino do nosso tem po, com suas características de ra­


cionalização e intelectualização, e, antes de tudo, desencantamento
do m undo, está no fato de que precisamente os valores últimos e
os m ais sublimes hajam recuado da esfera pública para o reino
transcendente da vida m ística, ou então para a fraternidade das
relações diretas dos indivíduos uns com os ou tros.” (A ciência co­
mo vocação, ver FM W : 155; CP2V: 51)
ORIGINAL [1917]: “ Es ist das Schicksal unserer Zeit, mit der ihr ei­
genen Rationalisierung und Intellektualisierung, vor allem: Entzau­
berung der Welt, dass gerade die letzten und sublimsten Werte zurück­
getreten sind aus der Öffentlichkeit, entweder in das hinterweltliche
Reich mystischen Lebens oder in die Brüderlichkeit unmittelbarer
Beziehungen der Einzelnen zueinander.” (WaB/WL: 612)

Em sum a: desencantam ento = perda de sentido.

PASSO 13

“ Para quebrar a m agia e disseminar a racionalização da con­


duta de vida, só houve em todos os tem pos um único meio: gran ­
des profecias racionais. N em toda profecia, contudo, destrói o
poder da m agia: m as é possível que um profeta que se legitima a
si m esmo mediante o milagre e outros meios quebre as regras sa ­
gradas tradicionais.28 As profecias trouxeram o desencantamento
do m undo e, com isso, criaram o fundam ento para a nossa ciên­
cia m oderna, para a técnica e o capitalism o. N a China falta uma
profecia n ativa.” (H istória geral da econom ia, H G E: 316, grifos
do original)

28 Aqui seria possível inverter os adjetivos e fazer espertamente a se­


guinte tradução, que ganharia um outro sentido, que por sinal permaneceria
sendo totalmente weberiano quanto ao papel inovador do profeta fora do
campo religioso: “ derrubar as sagradas regras tradicionais” .

54 O desencantamento do mundo
ORIGINAL [1919-20]: “ Die Magie zu brechen und Rationalisierung
der Lebensführung durchsetzen, hat es zu allen Zeiten nur ein Mittel
gegeben: grosse rationale Prophetien. Nicht jede Prophetie allerdings
zerstörst ihre Macht: aber es ist möglich, dass ein Prophet, der sich
durch Wunder und andere Mittel legitimiert, die überkommenen
heiligen Ordnungen durchbricht. Prophetien haben die Entzauberung
der Welt herbeigeführt und dam it auch die Grundlage für unsere
moderne W issenschaft, die Technik und den Kapitalism us geschaf­
fen. In China fehlt eine eingeborene Prophetie.” (Wg: 308-309, grifos
do original)

Em sum a: desencantamento = desm agifica^äo.

PASSO 14

“ Isso: a supressão absoluta da salvação eclesiástico-sacm -


mental (que no luteranism o de m odo algum se havia consum ado
em todas as suas consequências) era o absolutam ente decisivo em
face do catolicismo. Aquele grande processo histórico-religioso de
desencantamento do m undo.29 que se iniciou com a profecia do
judaísm o antigo e, em associação com o pensam ento científico
helénico, repudiava todos os meios m ágicos de busca da salvação
com o superstição e sacrilégio, encontrou aqui sua conclusão. O
genuíno puritano ia ao ponto de condenar todo vestígio de ceri­
m ônias religiosas fúnebres e enterrava os seus sem canto nem
m úsica, só para não dar trela ao aparecim ento da superstition,30
isto é, da confiança em efeitos salvíficos à maneira m ágico-sacra-
mental. N ão havia nenhum meio mágico, melhor dizendo, nenhum
meio, que proporcionasse a graça divina a quem Deus houvesse
decidido n egá-la.” (A ética protestante, ver ESSR I: 98-99, grifos
do original)

29 Apenas a palavra desencantamento está grifada por Weber, não a


expressão toda.

30 Em inglês no texto weberiano.

Contando os passos 55
O RIGINAL [1920]: “ Dies: der absolute (im Luthertum noch keines­
wegs in allen Konsequenzen vollzogene) Fortfall kirchlich-sa&ra-
mentalen Heils, war gegenüber dem Katholizism us das absolut Ent­
scheidende. lener grosse religionsgeschichtliche Prozess der Entzau­
berung der Welt.31 welcher mit der altjüdischen Prophetie einsetzte
und, im Verein mit dem hellenischen wissenschaftlichen Denken, alle
magischen Mittel der Heilssuche als Aberglaube und Frevel verwarf,
fand hier seinen Abschluss. Der echte Puritaner verwarf ja sogar je­
de Spur von religiösen Zeremonien am Grabe und begrub die ihm
Nächststehenden sang- und klanglos, um nur ja keinerlei ‘supersti-
tion’ : kein Vertrauen auf Heilswirkungen magisch-sakram entaler
Art, aufkommen zu lassen. Es gab nicht nur kein magisches, sondern
überhaupt kein Mittel, die Gnade Gottes dem zuzuwenden, dem Gott
sie zu versagen sich entschlossen hatte.” (PE/GARS I: 94-95, grifos
do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificagäo.

PASSO 15

“ O ‘desencantam ento’ do m undo: a elim inação da m agia


com o meio de salvação, não foi realizado na piedade católica com
as m esm as consequências que na religiosidade puritana (e, antes
dela, somente na ju d aica).” (A ética protestante, ver ESSR I: 116-
117, grifo do original)
ORIGINAL [1920]: “ Die ‘Entzauberung’ der Welt: die Ausschaltung
der Magie als Heilsmittel, war in der katholischen Frömmigkeit nicht
zu den Konsequenzen durchgeführt, wie in der puritanischen (und
vor ihr nur in der jüdischen) Religiosität.” (PE/GARS I: 114, grifo do
original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

31 Ver nota 29.

56 O desencantamento do mundo
PASSO 16

“ As denominações anabadstas, ao lado dos predestinacionis-


tas, sobretudo dos calvinistas estritos, executaram a m ais radical
desvalorização de todos os sacram entos com o meios de salvação,
e assim levaram o ‘desencantam ento’ religioso do mundo às suas
últimas consequências.” (A ética protestante, ver ESSR I: 155)
ORIGINAL [1920]: “ Die täuferischen Denominationen vollzogen, ne­
ben den Prädestinatianern, vor allem den strengen Calvinisten, die
radikalste Entwertung aller Sakramente als Heilsmittel und führten so
die religiöse ‘Entzauberung’ der Welt in ihren letzten Konsequenzen
durch.” (PE/GARS I: 156)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

PASSO 17

“ Este caráter tranquilo, sóbrio e sobretudo consciencioso foi


adotado tam bém pela práxis vital das com unidades anabatistas
tardias, muito especificamente pelos quakers. O radical desencan­
tam ento do m undo não deixava interiormente outro cam inho a
seguir a não ser a ascese intram undana.” (A ética protestante, ver
ESSR I: 157-158, grifo do original)
ORIGINAL |1920|: “ Diesen ruhigen, nüchternen, hervorragend ge­
wissenhaften Charakter hat denn auch die Lebenspraxis der späteren
täuferischen Gemeinschaften, in ganz spezifischem M asse die der Quä­
ker, sich zu eigen gemacht. Die radikale Entzauberung der Welt liess
einen anderen Weg als die innerweltliche Askese innerlich nicht zu.”
(PE/GARS I: 158, grifo do original)

Em sum a: desencantam ento = desm agificação.

Contando os passos 57
4.
FA Z E N D O AS C O N T A S

Desencantam ento do mundo em Weber tem tudo a ver com


cálculo. Ou melhor, com o ato de calcular — R ech n un g— , que
em inglês se pode traduzir por calculation, m as não em portu­
guês, não sei por quê. N o ssa língua! Tendo em vista, pois, desen-
tortar ao menos parcialm ente o rumo da discussão hoje corren­
te sobre o tema, desem baraçá-la com argum entos concretos e, na
medida do possível, pô-la novam ente sobre seus próprios pés,
feito a Bela Adorm ecida foi desencantada por um simples beijo
do mais puro amor, reconto agora os passos dados e, antes de me
lançar aos com entários técnicos e substantivos em torno de cada
p a sso , apresento meu registro contábil de ocorrên cias term i­
nológicas com o frugal contraponto à opulenta literatura que viaja
em torno desse tema.
Eis, pois, o resumo quantitativo das acepções dadas ao ter­
mo por seu autor: das dezessete incidências do significante, em
nove ele vem usado para significar “ desm agificação” ; em quatro,
com o significado de “ perda de sentido” ; e nas quatro restantes
ele vem com as duas acepções. Basta, pois, contar para ver de que
lado a balança pende, em bora por si só isso signifique muito pou­
co. M ais significativo para a biografia do conceito me parece o
fato de que, das nove com o significado técnico de desm agifica­
ção, nada menos que cinco datem de 1919-20, ou seja, dos meses
finais de seu autor.
Além disso, o conceito aparece doze vezes com o substanti­
vo [Entzauberung] e cinco vezes com o verbo. Com o verbo: q u a­
tro vezes no particípio p assado \entzaubert = desencantado], com

58 O desencantamento do mundo
as devidas flexões de caso, e uma vez no perfeito simples (entzau­
berte = desencantou].
Por duas vezes W eber nom eia o desencantam ento com o
“ p rocesso” : Entzauberungsprozess (passo 8), Prozess der Ent­
zauberung der Welt (passo 14). E por um a vez (passo 1) o de­
sencantam ento do m undo se faz acom panhar do adjetivo verbal
zunehmend = crescente, algo que está no crescente, crescendo,
aum entando. Isso quer dizer, antes de m ais nada, que o desen­
cantam ento do m undo, na medida em que vem definido tecnica­
mente com o desm agificação da atitude ou m entalidade religio­
sa, é para W eber um resultado, porquanto produto da profecia,
e é também fator explicativo do desenvolvimento sui generis do
racionalism o ocidental, ao m esm o tem po que é, ele mesm o, um
processo histórico de desenvolvimento. N esse sentido e na me­
dida em que pode aum entar e crescer, o desencantamento pode
se concretizar historicam ente com solidez variável e diferentes
intensidades. D aí W eber em pregar por duas vezes adjetivos de
intensidade m áxim a para caracterizar o momento singularíssimo
de desm agificação religiosa alcançado nos séculos XVI e XVII
pela conduta de vida m etódica-e-intram undana do protestan ­
tism o ascético: aqui a d esm agificação aparece qualificada de
gänzliche = plena, total, com pleta (passo 4) e radikale = radical,
extrem a (passo 17), quando não die radikalste = a mais radical
(passo 16).

Fazendo as contas 59
5.
C O M E N T A N D O OS PASSOS

Bastou a mera ordenação cronológica da listagem com ple­


ta das vezes em que W eber usou o sintagm a para deixar dem ons­
trado que esse uso é um fato da última década de sua vida, seu
período mais fecundo de produção intelectual, estendendo-se de
1912 a 1920. Com ecem os, pois, do começo. Tardio começo, está-
-se vendo pela datação. Surpreendente começo, ver-se-á logo mais
por quê, quando nos detiverm os em seu conteúdo inaugural.
C ad a passo será com entado isoladam ente ou em bloco, de­
pendendo de ser passagem única num a obra ou mais de um a na
mesm a obra. Isso será feito em dois mom entos.
N um prim eiro m om ento, procurarei situar a obra em tela
em sua própria história, com base nas inform ações historiográfi-
cas m ais atualizadas a que pude ter acesso, com pondo um a bre­
ve seção de “ biografia da o b ra ” m odestam ente intitulada “ Breve
notícia da o b ra ” .
N um segundo m om ento, a seção m ais extensa intitulada
“ C om entário” trará minhas considerações a respeito do conteú­
do e, quando valer a pena, da form a textual das passagens em
exame.
Com ecem os, então, por onde W eber com eçou, pela menção
inaugural do sintagm a. Com ecem os conferindo com o foi o pri­
meiro uso, a primeira vez.

Comentando os passos 61
6.
PASSO 1:
S O B R E A L G U M A S C A T E G O R IA S
D A S O C IO L O G IA C O M P R E E N SIV A
(pouco antes de 1913)

Sou mais materialista do que Delbrück pensa.

M ax Weber, a respeito de si mesmo32

BREVE N O T ÍC IA DA OBRA

A primeira vez que a expressão Entzauberung der Welt a p a ­


receu publicada nalgum trabalho de Weber foi numa revista de
filosofia, Logos n° 4 , ^ em setembro de 1913, no artigo intitulado
Über einigen K ategorien der Verstehenden Soziologie (“ Sobre
algum as categorias da sociologia com preensiva” 34), o qual havia
sido escrito para fazer parte de um livro que daria origem a E co­
nom ia e sociedade (cf. p asso 3). N algun s círculos esse artigo é

32 Apud Cohn (1979: 78), referindo testemunho de um ex-aluno e ami­


go de Weber, Paul Honigsheim (1963).

33 A revista acadêmica Logos se tornou, naquela época, o fórum mais


importante do debate em torno da teoria do valor na filosofia da cultura.

34 Prefiro manter o adjetivo “ compreensiva” , em vez de “ interpre­


ta tiva” , tradução esta preferida já por diversos tradutores em diferentes lín­
guas, decerto contaminados pela dificuldade de dizer “ sociologia compreen­
siva” em inglês, comprehensive sociology (!), sem incorrer em sérias ambi­
guidades. Em português, sociologia compreensiva diz perfeitamente bem,
assim como em espanhol (cf. Cat), a ideia do Verstehen, dispensando-nos de
apelar para o adjetivo “ interpretativa” : a tradução inglesa que apareceu na
revista The Sociological Quarterly n° 2 2 ,1 9 8 1 , leva o título de Some Catégo­
ries o f Interpretive Sociology. Em francês, já há quem queira dizer sociologie
de compréhension, em vez de compréhensive (cf. Brossein, 1996: 80).

62 O desencantamento do mundo
conhecido pelo nicknam e “ o ensaio da L o g o s” ; aqui, vou me re­
ferir a ele pelo nickname “ K ategorien” [Kat|. Hoje já se sabe com
toda a certeza que foi aí que o conceito circulou im presso pela
primeira vez (cf. W inckelmann, 1980). Está fora de dúvida, em ­
bora não tenham os ainda notícia do primeiro uso não público,
ou público só na voz, não escrito.
W eber havia escrito o Kategorien com o parte de um grande
livro de sociologia, mais am plo e de caráter sistem ático, que por
uma série de percalços começou a dem orar a ficar pronto. Por isso
ele tem esse form ato de um verdadeiro dispositivo de conceitos e
conceituações, alguns totalmente novos — excelente lugar, por­
tanto, para aí inscrever a primeira m enção ao desencantamento
do m undo. Em 1921, m uitos anos depois da primeira publicação
do ensaio com o artigo de periódico, o grande livro sairia publi­
cado com o título de Econom ia e sociedade, lamentavelmente sem
incluir o Kategorien, que entretanto seria republicado no ano se­
guinte, na coletânea de textos de Weber sobre ciência e m etodolo­
gia científica, cham ada Gesam m elte Aufsàtzse zur Wissenschafts-
lehre [WL, 1922J.
Logo na abertura do Kategorien, Weber puxa uma nota de
rodapé, bem longa por sinal, na qual termina por fornecer uma
referência cronológica im portantíssim a para a presente pesquisa.
Entre outras coisas, ele atesta que já havia escrito um pedaço do
ensaio algum tem po antes de 1913:

A segunda parte do ensaio é um fragmento de uma


apresentação que escrevi algum tem po a trá s,35 e que,
numa coletânea que deverá aparecer em breve, iria ser-

35 A tradução brasileira desse ensaio, feita por Augustin Wernet, é c


de erros grosseiros, um verdadeiro descalabro. Aqui neste testemunho cro­
nológico, por exemplo, Weber acaba dizendo em português o contrário do
que disse em alemão: a tradução de Wernet desloca a redação do fragmento
que nos interessa para uma distância maior no tempo: afirma que ele “ foi
redigido já há muito tem po” (Weber, 1992b: 313). É de amargar!

Passo 1: Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 63


vir com o fundam entação m etodológica para pesquisas
substantivas (incluindo Econom ia e sociedade), da qual
outras partes vão ser publicadas noutro lugar à m edi­
da que a ocasião permitir. O caráter pedantemente me­
ticuloso das form ulações corresponde ao desejo de dis­
tinguir com nitidez o sentido subjetivamente intentado
do sentido objetivam ente válido (com isso afastando-
-nos em parte do m étodo de Simmel). (Kat: 42 7 , nota
1, grifos meus; Cat: 175, nota 1)

O Kategorien está dividido em sete partes. Weber diz aí que


a segunda parte, precisamente aquela em que menciona o “ cres­
cente desencantam ento do m undo” , consiste de um fragmento
reaproveitado de um paper que ele escreveu não m uito tempo
antes. Isso significa que já em data anterior a 1913 a ideia de de­
sencantam ento do m undo encontrara em W eber sua form a lite­
rária. M as não muito tem po antes: som e time ago, diz a tradu­
ção de Neil Solom on. W olfgang Schluchter vem desenvolvendo
trabalho m inucioso no sentido de precisar o mais possível essa
data (1989: 416-419 e 441-442); conseguiu reunir até agora uma
série de novos indícios docum entais e textuais, todos apontando
para o ano de 1912, não antes. 1912: por enquanto isso é ape­
nas uma hipótese.

C O M E N T Á R IO

Para comentar o conteúdo do passo 1, vou tentar situá-lo


em contextos concêntricos. Considerarei, prim eiro, o conteúdo
mesmo da passagem , procurando em seguida m apear seu contexto
conceituai imediato, que é o ensaio com o um todo, para finalmen­
te, com o não poderia deixar de ser por exigência do próprio con­
teúdo substantivo da form ulação em exam e, remetê-la ao contexto
m aior da teorização sistem ática e histórica de Weber sobre m a­
gia e religião, contida nas três primeiras seções do ensaio sistem á­

64 O desencantamento do mundo
tico de Sociologia da Religião publicado com o capítulo de E co ­
nom ia e sociedade, levando em conta que o Kategorien também
estava pensado para ser parte dessa obra.
Kategorien é um ensaio de m etodologia sociológica. Nele,
W eber lança alguns fundam entos m etodológicos e, im portante
frisar neste m om ento, algum as unidades conceituais da sociolo­
gia com preensiva, tendo os olhos nos outros capítulos (àquela
altura já prontos, sem iprontos ou apenas planejados), que esta­
vam destinados a integrar o volume assinado por ele, o qual com ­
poria uma coletânea de livros encom endados a vários autores,
livros esses que os editores pretendiam tivessem caráter sistem á­
tico, quase didático. Livros de alto nível, m as didáticos. Pode-se
perceber, só por essas ligeiras referências, que o contexto do pri­
meiro uso do sintagm a “ desencantam ento do m undo” não pode­
ria ser m ais digno (ou condigno) em se tratando de um conceito
que estava apenas em seus prim eiros traços. Gabriel Cohn consi­
dera o Kategorien “ um texto da m aior im portância” , justamente
porque nele “ é desenvolvido pela primeira vez o inovador q u a­
dro conceituai destinado a servir às análises daquilo que mais tar­
de seria publicado sob o título de Econom ia e sociedade” (Cohn,
1991: x iv ).
N o próprio período gram atical em que o desencantamento
se encontra inserido, cercam-no de imediato conceitos centrais (eu
quase ia dizendo, anacronicam ente, clássicos) da epistem ologia
sociológica w eberiana, a qual, todos sabem os, concebe a socio­
logia com o ciência do sentido subjetivo da ação social (cf. Burger,
1987; M om m sen, 1981: 2 4 5 ss; Cohn, 1979a: 89ss; 1979b: 26ss;
1991, xiv; 1995). Só nessa frase do passo 1, a palavra subjektiv
aparece duas vezes. Aliás, é a palavra que mais aparece em todo
o ensaio. O K ategorien é um a verdadeira p rofusão de usos do
significante subjektiv, seja com o adjetivo ou com o advérbio, e
Weber chega m esm o a se desculpar nesse rodapé por parecer pe­
dante em querer explicitar tanto o que intenciona com as p ala­
vras. E ainda estão aí, na mesm a frase do desencantam ento, os
weberianíssim os conceitos de ação racional com relação a fins,

Passo 1: Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 65


ação subjetivamente racional com relação a fins, ação com senti­
do, referência de sentido e sobretudo este, sentido subjetivo.36 T ão
logo vem à luz, desencantam ento do mundo já está arrodeado de
consanguíneos de D N A incontestável.
De fato, não podia ter-me calhado um m odo mais weberiano
de dar início à discussão do que este. Refiro-me ao fato de encon­
trar o sintagm a “ desencantamento do m undo” cercado de noções
w eberianas que eu cham aria de m etodológicas, m arcadores refle­
xivos da sociologia com preensiva, próprios de sua peculiar em­
bocadura na concepção do objeto e do m odus operandi de uma
sociologia compreensiva — a sociologia com o ciência do sentido
subjetivo da ação social. Essas noções refletem tom adas de posi­
ção que, segundo Gabriel Cohn, W eber assum ira já “ na fase de­
cisiva do am adurecim ento” de suas concepções m etodológicas, a
saber, “ entre 1903 e 1 9 0 6 ” (Cohn, 1979a: 77). Insisto neste a s­
pecto: é relevante para os objetivos de meu trabalho que o sin­
tagm a tenha feito sua primeira aparição em público (vale dizer,
publicada) num texto de m etodologia científica, uma vez que nes­
sa espécie de trabalho costum a, ou melhor, precisa ser fortíssim a
a reflexividade no uso do vocabulário e, m ais forte ainda, a preo­
cupação subjetiva em “ distinguir com nitidez” . T anto m ais em se
tratando de W eber. N ão por acaso a nota de rodapé citada atrás
registra explicitamente essa sua preocupação em “ distinguir com
nitidez” \sh arf zu scheiden],
M as há mais. Se considerarm os o ensaio inteiro do ponto de
vista de sua novidade conceituai — pois afinal de contas Ent-
zauberung der Welt figura aí novinho em folha e já com o um con­
ceito “ desenvolvim ental” — , cresce consideravelm ente a lista de
novos conceitos aí elaborados e trabalhados por Weber, alguns
deles cruciais, fundacionais, m uitos deles vindo à luz pela primei­
ra vez, exatamente com o Entzauberung der Welt está vendo aí seu

36 Sobre o conceito de sentido enquanto “ sentido subjetivo” , ver prin­


cipalmente Cohn, 1979a, e Oakes, 1982.

66 O desencantamento do mundo
primeiro sol. T udo se p assa com o se W eber quisesse, com todo
esse dispositivo de conceitos novos, m arcar posição num momen­
to im portante do debate m etodológico na Alemanha, com a ques­
tão do juízo de valor na berlinda. R elação com os valores nas
ciências da cultura e nas culturas vividas, na ação social [soziales
Handeln]. A qual, não custa lem brar, em 1913 ainda era designa­
da por W eber de ação em com unidade [Gem einscbatfshandeln]
(cf. Turner, 1983).
Exem plos de novos conceitos desenvolvidos no ensaio de
1913: G em einschaftshandeln (ação em com un idade), G esell­
schaftshandeln (ação associativa), M assenhandeln (ação de m as­
sa), Einverständnishandeln (ação por acordo), Verbandshandeln
(ação organizada), Am staltshandeln (ação institucional), Verge­
m einschaftung (“ com un itarização” , relação com unitária), Ver­
gesellschaftung (“ societarização” , socialização, relação associa­
tiva), Einverständnisvergem einschaftung (relação com unitária
por acordo), estes dois últimos pensados tam bém enquanto au ­
xiliares conceituais do conceito-chave de Rationalisierung (ra­
cionalização) da ação social, do m esm o m odo com o já vem pen­
sado o conceito de Entzauberung, a saber, determinando a R atio­
nalisierung.
É curioso, por outro lado, ao m esm o tem po que revelador
da sim ultaneidade dos diferentes interesses de conhecimento efe­
tivamente tocados por M ax W eber nos anos 1912-14, o fato de
que, ao lado e no meio do esforço de elaboração sistem ática de
todo um conjunto de conceitos gerais e categorias form ais, ao re­
digir o ensaio da L ogos Weber se lance a certos desenvolvimentos
bem interessantes, ainda que passageiros, sobre tem as religiosos:
a irracionalidade do êxtase e da experiência m ística, a contem pla­
ção budista, a ascese cristã da disposição íntima, o “ acosm ism o”
do am or m ístico, os procedim entos m ágicos, o com portam ento
religioso, a perda de racionalidade da religião contem porânea, a
lógica psicológica da ação religiosa e, de repente... o desencanta-
mento do mundo. Que, é bom que se anote m ais uma vez, apare­
ce com o um conceito “ desenvolvim ental” , quer na escolha do

Passo 1: Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 67


adjetivo para qualificá-lo (zunehmend, crescente), quer na forma
lexical de um substantivo form ado com a desinência -ung de-
notativa de movimento, dinam ism o, processo, algo em expansão
ou crescimento [Entzauberung], e não um estado fixo. Um con­
ceito, portanto, que remete a um determ inado processo históri­
co, um conceito idiográfico, singularizante, não nom otético, não
geral; não universal, nem m esm o histórico-universal.37
Indo agora ao m iolo m esm o do conteúdo da passagem : é
com o se eu tivesse sorteado o ponto m ais difícil para com eçar a
falar de desencantamento do m undo em M ax Weber. Confesso
que com eçar por aí me desconcerta um pouco. É com o com eçar
a puxar o fio pelo avesso do avesso. Um enunciado que contras­
ta m agia e religião é normal em Weber. A gora, um enunciado que
contrasta as duas a fim de ressaltar na religião o que esta apre­
senta de (cada vez m ais) irracional, e realçar na irracionalidade
da m agia o que ela tem de racional, é deveras insólito em Weber.
Um a joia rara, preciosidade inestimável. C om eçar por aí, sem ser
por um ato de escolha m as obedecendo ao acaso de uma ordena­
ção cronológica cujo ponto de partida não se sabia de antem ão
qual seria, significa de fato com eçar por um Weber surpreenden­
te, quase estonteante, não só diante das interpretações correntes,
m as em face tam bém da m aior parte de suas análises do fenôm e­
no do m agism o. E que, no esquem a “ desenvolvim ental” com que
Weber trata a religiosidade, a m agia normalmente representa o
polo (mais) irracional e a religião, o polo (mais) racionalizado.

37 “ Desencantamento do mundo” não é um conceito de alcance


versal em hipótese alguma, nem mesmo se se quisesse limitar sua pretensa
universalidade tão somente à história das religiões, como equivocadamente
pretendeu a primeira tradução francesa d’A ética protestante: “ Ainsi, dans
l’histoire des religions, trouvait son point final ce vaste processus de ‘désen­
chantement’ du monde [...]” (EPfran: 121). Weber nunca estendeu o desen­
cantamento do mundo à história das religiões! Dá para adivinhar por aí as
armadilhas que espreitam o leitor da tradução francesa d 'A ética protestan­
te (cf. Grossein, 1999).

68 O desencantamento do mundo
N o Kategorien as coisas vêm invertidas, e não só aparentemente,
há uma am biciosa teorização por trás.
Com ecem os, portanto, do com eço do começo. Para Weber,
a Sociologia da Religião se ocupa de duas form as de religiosida­
de, que no jargão durkheim iano seriam duas form as de relação
com o “ sag rad o ” : m agia e religião. D uas estratégias que o sujei­
to tem para acessar o “ suprassensível” (cf. Pierucci, 2001). D uas
espécies de um m esm o gênero. A elas W eber se apressa em dar o
tratam ento conceituai de tipos ideais, porquan to na realidade
vivida m agia e religião andam m isturadas, não havendo assim m a­
gia em estado puro, apenas enquanto conceito-limite (Isambert,
1986: 84), ao m esm o tem po que ele as presenteia com sua visada
“ desenvolvimental” , tratando-as com o dois momentos de um pro­
cesso de desenvolvimento cultural, que não é único nem unívoco,
a racionalização religiosa. N este sentido, a m agia representa para
Weber o m om ento anterior da religião, com nítida afinidade ele­
tiva com o estágio “ anim ista” de um a hum anidade imersa num
mundo cheio de espíritos, não essencialmente bons nem essen­
cialmente m aus, apenas capazes de influir “ favorável” ou “ preju­
dicialm ente” nos affaires hum anos, povoando invisivelmente um
universo concebido de form a não dual (pois dual é o m undo pen­
sado pela religião). Uma visão de m undo m onista — e só neste
sentido a m agia constitui um a “ imagem de m undo” em catego­
rias w eberianas [ein m agisches Weltbild] (GA RS I: 564; FMW :
350) — para a qual o m undo dos espíritos faz parte do mundo
dos hum anos tanto quanto os anim ais e vegetais, e onde inanima­
dos não há, uma vez que tudo quanto existe tem “ alm a” , ânim a,
anim ação. Um mundo anim ado, em sum a. Um jardim encanta­
do, dirá Weber. Que, por definição, é um m undo indiferenciado,
“ m assivo” . Estágio “ prim itivo” da hum anidade e da religiosida­
de, segundo W eber, ou, p ara m elhor usar de seu vocabulário,
prim ordial, recortado típico-idealmente da religião, m as não só
idealmente, às vezes tam bém efetivamente, às vezes até mesmo
violentamente com o nos episódios de “ caça às b ru x as” , uma vez
que a religião no Ocidente tenderá a se dem arcar por ativa von­

Passo 1: Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 69


tade de diferença em relação à m agia, assim com o por razões
práticas e interesses específicos o sacerdote tenderá a se diferen­
ciar, dem arcando-se ativamente, do m ago, bruxo ou feiticeiro.
M agia é coerção do sagrado, com pulsão do divino, conju­
ração dos espíritos; religião é respeito, prece, culto e sobretudo
doutrina. Sendo principalmente doutrina, a religião representa em
relação à m agia um momento cultural de racionalização teórica,
de intelectualização, com nítidas pretensões de controle sobre a
vida prática dos leigos, querendo a constância e a fidelidade à co­
m unidade de culto. A norm atividade que corresponde à m agia é
o tabu; a norm atividade que vai resultar da religião é a ética reli­
giosa. Por isso, a passagem da m agia à religião corresponde ter­
mo a termo à travessia do império do tabu ao dom ínio do peca­
do, no qual o conceito do “ m al” se separa da noção de “ desfavo­
rável” , “ nocivo” ou “ prejudicial” . Em term os fielmente webe-
rianos extraídos da Sociologia da Religião sistem atizada em E co ­
nom ia e sociedade, a transição da m agia para a religião pode ser
diversamente especificada: transição do tabu para o pecado; da
coerção divina para o serviço divino; da chantagem e do conjuro
para a súplica e a oração; de uma fratellanza m al e m al garantida
por tabus para o am or fraterno garantido pela “ consciência” do
indivíduo orientada por convicção nos princípios. M as o que me­
lhor define, e a meu ver decide, a transição da imagem m ágica do
mundo para a visão ético-religiosa do mundo é a rejeição da equa­
ção “ favorável x prejudicial = bem x m al” (cf. H aberm as, 1987:
64ss), é a aceitação da heterogeneidade crucial dessas esferas de
valor, acrescida de autonom ização e estranhamento recíprocos dos
dois pares de oposição. Deleta-se o sinal de igual.
Eis um típico processo de racionalização das “ imagens de
m undo religiosas” , processo “ desenvolvim ental” nos term os de
W eber, m as nem por isso unidirecional. M ultidirecional que é,
um a das direções historicamente possíveis foi o desencantamen-
to religioso do m undo. O processo de sistem atização teórica e,
p ortanto, de intelectualização que conduz do tabu ao pecado,
noutras palavras, da m agia à religião, pode vir a se tornar, co­

70 O desencantamento do mundo
mo ocorreu com os m onoteísm os ocidentais, um processo de
racionalização religiosa que radicaliza o registro da “ eticização” ,
tornando-se assim , nos term os fortes de Bourdieu, um “ proces­
so de m oralização” (cf. Bourdieu, 1974a: 85). Em outros passos
analisados adiante, W eber vai designar o outro lado da m oeda
da m oralização religiosa com o sendo o desencantamento religio­
so do m undo, ou seja, a desm agificação da religiosidade. É co­
mo se a religiosidade, de gênero que é com duas espécies, se re­
duzisse paulatinam ente a uma espécie só, a uma espécie genéri­
ca: a m oral religiosa. Sem lugar para a m agia — von M agie freie
(GA RS III: 6).
Em diversos escritos W olfgang Schluchter se dedica a elu-
cubrar per longum et latum em torno dessa transição de uma im a­
gem m ágica do m undo, m onista, p ara um a im agem de m undo
metafísico-religiosa, que é dualista (cf. sobretudo 1996: 69ss). Para
a m etafísica religiosa existem “ este m undo” e o “ outro m undo” ,
dois m undos, portanto. Já a m agia concebe o mundo com o sen­
do “ um só com duas b an d as” [the “ tw o-sided” w orld o fm agic],
um m undo visível que traz consigo, imanente e pouco diferente,
uma espécie de Hinterwelt de deuses e dem ônios povoando invi­
sivelmente o m undo visível. São espíritos que gozam de ligeira su­
perioridade sobre os hum anos, uma superioridade muito relati­
va, tão precária que não consegue isentá-los de serem subjugados
pela potência oculta das fórm ulas m ágicas estereotipadas quan­
do corretamente m anipuladas pelo feiticeiro em transe. N o ma-
gism o, os espíritos podem ser conjurados, e isso significa: coagi­
dos pelo carisma do feiticeiro, poder extraordinário que entretanto
só é eficaz se so m ad o ao carism a p róp rio de um ritual mítico-
-mágico cristalizado, estereotipado, inalterável, tradicionalistica-
mente respeitado e iniciaticamente transmitido, na medida do pos­
sível sem adulterações, perigosíssim as estas se vierem a ocorrer.
T abu é isso, afinal.
Já a religião, ela tem lá os seus intelectuais. N ão existiria re­
ligião se não existissem os intelectuais — esse é um dos ensina­
m entos m ais caracteristicam ente sociológicos da Sociologia da

Passo 1 : Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 71


Religião assinada por Weber. Certos intelectuais, segundo ele, são
dotados de um “ ouvido m usical” religioso [religiös m usikalisch\
que as m assas estão longe de possuir — assim com o nosotros, re­
les m ortais, também não, y compris o próprio Weber, seu pai, sua
mulher e tantos e tantos outros m em bros do grande círculo de
am igos e am igas do ilustre casal M ax e M arianne Weber (Roth,
1995) — e é esse tal de “ ouvido m usical para religião” um a espé­
cie de carism a reservado a alguns, que de saída os capacita a se
tornarem verdadeiros virtuoses em matéria de religião. E eles de
fato assim se tornam . H istoricam ente é a eles que devem os as
elucubrações m etafísico-religiosas, e é destas que vai resultar a
visão de mundo dualista, e, porque dualista, suscetível de racio­
nalização ética e intelectualização sublimante. N o dualism o cons­
truído e proposto pelos profissionais da religião, a superioridade
e a autonom ia do “ m undo superior” são progressivam ente ex-
ponenciadas em sua própria lógica até se tornarem absolutizadas
— com o se pode verificar, por exem plo, na ideia da relação entre
o Deus único e o m undo posta em term os de “ Providência Divi­
n a” , crença religiosa que, segundo W eber, outra coisa não é se­
não “ a racionalização consistente da adivinhação m ágica” e, por
isso m esm o, “ antagonista de toda m ag ia” , tendo-se constituído
em passo estratégico na direção do desencantamento do mundo:

A “ crença na Providência” é a racionalização con­


sistente da adivinhação mágica e dela provém, m as que
pela m esm a razão ela desvaloriza o m ais com pleta­
mente possível [am vollständigsten entwertet], com o
uma questão de princípio. N enhum a outra concepção
da relação religiosa poderia ser tão radicalm ente con­
trária a toda m agia [so radikal aller M agie entgegen­
gesetzt], teórica e praticam ente, quanto essa crença na
Providência que foi dom inante nas grandes religiões
teístas da Ásia M enor e do Ocidente. [...] N ão há ne­
nhuma outra concepção da relação religiosa que sus­
tente tão firmemente [...] a condenabilidade da “ divi-

72 O desencantamento do mundo
nização das criatu ras” com o atentado à m ajestade de
Deus. (WuG: 317; E & S : 523; EeS I: 353-354)

O dualism o religiosamente intelectualizado produzido pelo


intelectualismo religiosamente interessado primeiro se põe a sepa­
rar “ este m undo” do “ outro m undo” , a afastar o “ além ” do “ aqui
em b aixo” , a descentrar (piagetianam ente falando) o “ sobrenatu­
ra l” do “ n atural” , e vice-versa. Conheço uma passagem bíblica
que parece feita de encom enda para ilustrar o descentram ento
operado pela religião de Israel entre o divino e o natural, entre o
C riador e as criaturas. É a passagem do prim eiro Livro dos Reis,
em que se relata a subida do profeta Elias ao monte H oreb — ah,
esses profetas de Israel desencantadores do m undo! — , sítio no
qual vai se dar seu grande encontro com Javé:

E Deus disse: “ Sai e fica na m ontanha diante de


Ja v é ” . E eis que Javé passou. Um grande e im petuoso
furacão fendia as m ontanhas e quebrava os rochedos
diante de Javé, m as Ja v é não estava no fu racão; e de­
pois do fu racão houve um terrem oto, m as Ja v é não
estava no terrem oto; e depois do terrem oto um fogo,
m as Ja v é não estava no fo g o ; e depois do fogo o m ur­
múrio de uma brisa suave. Q uando Elias o ouviu, co ­
briu o rosto com o m anto, saiu e se pôs à entrada da
gruta. Veio-lhe então uma voz, que disse: “ Que fazes
aqui, E lias?” . (I Reis 19, 11-13, grifos meus)

D esencantam ento = descentram ento. A intelectualização


também se pode abrir numa direção eticizante de tornar cada vez
mais nítido o desenho da diferença entre a ação e a norm a. N os
term os da “ Introdução” à Ética econôm ica das religiões m un­
diais: rum o à “ diferenciação entre o norm ativamente ‘válido’ e
o empiricamente d a d o ” (Einleit/GARS I: 266; ESSR I: 260). N o u ­
tras palavras, entre o que “ deve ser” e o que simplesmente “ é ” e
“ acontece” (WuG: 308; EeS I: 344). E, em se tratando de éticas

Passo 1 : Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 73


religiosas m onoteístas, heteronôm icas por definição, o “ dever
ser” decerto que coincide cem por cento com a vontade divina,
com tudo aquilo que o Deus único e pessoal deseja, quer e orde­
na (cf. Schluchter, 1979; 1984, cap. IV/B; 1996, cap. I/n° 2).
Fica muito difícil, por isso mesm o, acom panhar M ax Weber
no uso um tanto quanto insólito da term inologia “ ética m ágica”
— expressão encontradiça em vários textos seus — uma vez que
no principal de sua teorização a “ ética m ágica” não pode ser uma
ética no sentido estrito da palavra, porque simplesmente lhe fal­
ta, lembra Schluchter, a clareza da distinção entre uma regra téc­
nica e uma regra norm ativa, além de faltar-lhe, de quebra, a dife­
renciação entre a utilidade e o dever, incapaz que é de separar lo­
gicamente o mau do prejudicial, aquilo que “ é m au ” daquilo que
“ faz m al” . Falta, pois, à m agia abrir m ão da eficácia em nome do
abandono e da entrega de si a um poder superior que salva por
am or. Falta-lhe, enfim, a concepção de que a benevolência divi­
na pode ser ganha, não pelo conjuro dos deuses, pela execução à
risca da fórm ula ritual que funciona fatidicam ente ex opere ope-
rato, m as tão somente pela devoção obsequiosa. Que, no fundo,
no fundo, é pietas, piedade filial, obediência, subm issão.
M agia, ao contrário, im plica a vontade de subordinar os
deuses, o oposto do proposto pela religião eticizada, a qual re­
quer a vontade de obedecer aos m andados de um Deus que pre­
mia e castiga. Subm issão dos deuses e dem ônios, na prim eira;
subm issão aos deuses, na última. H á que se adm itir, claro, que a
m aior parte das éticas religiosas permanecem eivadas de tabus e
práticas m ágicas. W eber vai à minúcia ao descrever os casos da
ín dia e da C hina, m as até m esm o no caso do ju d aísm o, típico-
-idealmente definido por ele com o religião “ hostil à m agia” , as
práticas m ágicas resistiam e persistiam não só entre as m assas, mas
recorrentemente nos círculos palacianos e sacerdotais (cf. W eber,
1952). É que a m agia em determ inados ambientes é m esmo per­
tinaz, inextirpável, inerradicável \unausrottbar\.
Q uando alguém apela para a intervenção m ágica, a ideia já
é a de garantir o resultado que se quer com aquela ação extraor-

74 O desencantamento do mundo
dinária — eis um outro aspecto im portante da racionalidade da
m agia. N o gesto de coagir os espíritos com uma fórm ula m ágica,
e não de lhes fazer um pedido, está em butida a certeza de obter
deles uma intervenção que vá no sentido desejado pelo cliente e
ordenado carism aticam ente pelo feiticeiro. Em bora possa parecer
que o ato de m agia, por não corresponder aos term os da lógica
do nosso conhecimento, não seja exatam ente o que costum am os
cham ar de racional, Weber aqui o classifica com o uma ação su b ­
jetivam ente racional com relação a fins, ou seja, subjetivamente
racional também em sua preocupação com os efeitos im ediatos
que o ritual m ágico diz ter sobre as coisas e os eventos, os quais
por sua vez são percebidos unicamente em term os de sua mera
facticidade (cf. Tenbruck, 1980: 337). Um m undo m ágico assim
tão pragm ático com o de fato é, só pode aparecer (paradoxalm en­
te?) com o pobre em significação, pois afinal os bens que as pessoas
procuram obter com a m agia preenchem realmente a definição do
que sejam fins indiscutivelmente racionais: dinheiro, com ida, saú ­
de, longevidade e descendência. A m agia tem a seu favor essa ra ­
cionalidade dos fins. Ela tem fins racionais — fins “ econôm icos” ,
dirá W eber no início de sua Sociologia da Religião em EeS.
E, no entanto, são incontáveis as vezes em que W eber a sso ­
cia m agia ao irracional. Ele realmente encarava o m undo da m a­
gia com o o reino do irracional e do tradicional. H á uma p assa­
gem curta e grossa das considerações finais do estudo sobre a índia
que merece ser citada. Ele está falando da Ásia, das velhas cultu­
ras do Oriente. O s antigos impérios orientais, com o se sabe, eram
uma das pontas de sua tipologia triangular de estruturas do mun­
do pré-capitalista, sendo as outras duas pontas a antiguidade me­
diterrânea e a Europa medieval. Três grandes contextos culturais-
-civilizacionais, três autênticos “ jardins encan tados” . Pois muito
bem. Em duas frases, não m ais que isso, ao procurar resumir sua
visão geral da religiosidade asiática, ele enuncia o ponto de p ar­
tida contrastivo e a pergunta que percorre toda a sua sociologia
com parada da religião:

Passo 1: Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 75


A este mundo altíssimamente antirracional do fei­
tiço universal pertencia tam bém o dia a dia econôm i­
co, e dali nenhum cam inho partia para uma conduta
de vida intram undana racional | D ieser höchst antira­
tionalen Welt des universellen Z auber...]. (G A R S II:
370, ver ESSR II: 353)

N ão é preciso conhecer muito da sociologia de W eber para


daí deduzir, seguindo as regras básicas de seu pensam ento, que
não há racionalização possível da conduta de vida — e é isto que
no fundo interessa a ele com o indagação sociológica significati­
va — sem que se quebre não só o feitiço, m as o poder do feitiço
sobre a mente das pessoas. “ As m assas por si m esm as” — diz ele
na “ Introdução” — “ perm aneceram em toda parte m ergulhadas
no crescimento m aciço e arcaico da m agia, a menos que uma pro­
fecia que apresente prom essas específicas as tenha arrastado para
um m ovim ento religioso de caráter ético” (Psico: 320). O ma-
gism o, para W eber, é um a “ form a irracional de busca da salva­
ç ã o ” . Isso ele faz questão de escrever ali no comecinho do estudo
sobre o judaísm o antigo, que se tornou, pela ação dos profetas,
uma religiosidade “ livre da m agia” [von M agie freie], uma “ éti­
ca religiosa altam ente racional” (AJ: 4; G A RS III: 6).
A essa altura, cabe então olhar a m agia de um outro ponto
de vista ainda ao lado de W eber, olhando-a junto com ele. N a
“ Introdução” , assim com o em Econom ia e sociedade (E & S: 468-
4 6 9 ; EeS: 321-322), W eber tende a jogar a m agia antes de mais
nada para a vida no cam po. Para a “ natureza” , noutras palavras.
E para o p assado. Em am bos os ensaios, ele faz dos cam poneses
os p ortad ores p or an ton om ásia dessa “ form a de religiosidade
prim ordial” que é a m agia. E que, segundo ele, o contato cons­
tante com a natureza a que se veem obrigados os cam poneses por
sua atividade econômica específica, a qual os submerge nos “ p ro­
cessos orgânicos e fenôm enos n aturais” , puxa irresistivelmente
pela m agia. Pesa ainda o fato de ser uma vida econôm ica “ muito
pouco suscetível de uma sistem atização racional” .

76 O desencantamento do mundo
Os cam poneses, cuja vida econômica por inteiro
esteve especificamente ligada à natureza e foi sempre
dependente das forças elementares, deixaram -se ficar
tão perto da m agia — a saber, o encantam ento coerci­
vo [der zivingende Z au b er] contra os espíritos que re­
giam por sobre e por trás das forças naturais, ou m es­
mo a sim ples com pra da benevolência divina — que
somente transform ações trem endas na orientação da
vida, vindas de outros estratos ou de profetas podero­
sos legitim ados com o feiticeiros pelo poder dos seus
prodígios, conseguiram arrancá-los [herausreissen] de
seu apego a essa form a de religiosidade que é por toda
parte prim ordial. (GA RS I: 255; ESSR I: 250)

Tem os aí nessa passagem relativa ao estrato social dos cam ­


poneses, na qual eles são descritos com o im ersos num m undo
homogeneamente encantado, habitado por espíritos que dom ina­
vam as forças elementares e, por trás delas, interferiam constan­
temente em sua existência econôm ica já de si pouco sistem atiza­
da racionalm ente, tem os aí, repito, um a m odalidade a m ais de
visualizar com os olhos de W eber o significado do desencanta-
mento: serem os indivíduos arrancados do dom ínio de seu p a ssa ­
do m ágico, e, consequentemente, da dom inância de uma imagem
de m undo inteiramente colada aos acontecim entos naturais, a
qual, prodigamente capaz de “ pragm atism o religioso” , é totalmen­
te incapaz de racionalização do agir. N ão é apenas resistente ou
refratária: é incapaz. Por ser m onista. Porque não concebe a dife­
rença entre o “ ser “ e o “ dever ser” , distinção que abre a possibi­
lidade para toda e qualquer pretensão de m oralização duradoura
da conduta diária (cf. Schluchter, 1996: 62-73). N a “ Introdução”
Weber se refere de maneira muito expressiva ao m onism o do pen­
sam ento m ágico quando fala da “ hom ogeneidade da imagem de
mundo prim itiva, na qual tudo era m agia concreta [...]” \die Ein-
beitlichkeit des primitiven Weltbildes, in welcbem alies konkrete
M agie war] (Einleit/GARS I: 254; ESSR I: 248). E “ só raramente

Passo 1 : Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 77


o cam pesinato serviu de portador de uma outra sorte de religio­
sidade que não fosse a [suaj m agia original” [ursprünglich] (EeS
I: 322; E & S: 4 70), a qual lhes propiciava a experiência da irra­
cionalidade extracotidiana dos “ estados orgiásticos e extáticos de
p o ssessão ” , provocados “ pelo uso de meios tóxicos, ou pela dan­
ç a ” , estados que, diga-se de passagem , a nobreza guerreira con­
siderava destituídos de dignidade e que, ironiza Weber, ocupavam
entre os cam poneses o lugar que a experiência m ística sói ocupar
entre os intelectuais — o sagrado extracotidiano (Einleit/GARS
I: 254; ESSR 1: 2 4 8 ).38
M as não é somente junto aos cam poneses que a m agia tem
(e mantém) seu império — ela o tem, e o preserva, junto às m as­
sas de m odo geral: “ As m assas deixadas a si m esm as, com o vere­
m os, perm aneceram por toda parte em baraçadas na sólida pri-
m ordialidade da m agia, a menos que uma profecia com prom es­
sas específicas as tenha capturado num m ovim ento religioso de
caráter ético” (Einleit/GARS 1: 2 48-249; ESSR I: 243-244). Por
isso meu espanto inicial diante de uma afirm ação com o a do pas­
so 1, que ressalta a racionalidade prática da m agia e m ostra a
religião tom ando o rumo do irracional. E que o significado com
que o significante desencantamento do mundo aí aparece — e de-
sencantam ento “ crescente” , é bom frisar — não parece tão sim ­
ples. Desencantam ento do m undo não se apresenta aí carregan­
do um significado de definição clara e direta, nem rum ando nu­
ma direção unívoca, que seria — com o veremos m ais tarde — o
da racionalização religiosa especificamente ocidental desmagifi-
cando a religiosidade por incremento de sua racionalidade axio-

38 Percebe-se, por esse último ângulo classificatório sugerido por


ber, a maior afinidade interna que o misticismo mantém com a magia e sua
distância em relação à pretensão ética de regulamentar a vida cotidiana, su­
gestão que me parece deveras interessante e apropriada para ajudar a em-
basar um diagnóstico crítico da atual configuração do cam po religioso no
Brasil dinamizado pelo crescimento dos pentecostalismos místicos.

78 O desencantamento do mundo
lógica, m as algo m ais com plicado, um processo m ais com plexo
no qual é a m agia que de repente aparece em sua indiscutível ra­
cionalidade teleológica de curto prazo, em sua racionalidade prá-
tico-técnica só que teoricamente irracional, tosca, bem pobre em
significação, contrastando com a abundância de sentido de que
são portadoras as m etafísicas religiosas. A religião, agora, apare­
ce com o sem saída racional, desgarrada de sua velha orientação
em direção a uma racionalização teórico-doutrinária sempre mais
sofisticada e um a prática religiosa sem pre m ais sublim ada ra ­
cionalmente em term os éticos. A gora, a religião afunda no irra­
cional, “ à medida que avança o desencantam ento do m undo” .
Eis-nos assistindo à religião abrir m ão de suas pretensões ra-
cionalistas, inclusive da pretensão ético-prática de regulam entar
racionalmente a vida cotidiana dos fiéis e de im plantar o religio­
samente válido nas ações do dia a dia. Ei-la que se vê, ao contrá­
rio, “ obrigada a aceitar referências de sentido cada vez mais sub­
jetivamente irracionais com relação a fin s” (Kat: 181; WL: 433),
“ à medida que avança o desencantamento do m undo” . Referências
de sentido cada vez mais “ fora do com um ” , extracotidianas, ex ­
traordin árias, m ísticas, deslocando-se da ascese intram undana
para o misticismo extático extram undano, paradoxalm ente fazen­
do, “ à medida que avança o desencantamento do m undo” , o ca­
minho inverso ao percorrido pelo desencantam ento ético-religio-
so do m undo. E isso tudo sem conseguir reverter, por sua conta,
por sua própria capacidade m otivacional agora desorientada, o
processo de desencantam ento, que continua “ avan çan do” , adje­
tiva Weber: zunebm end, m ontante e sem destino. Com o ficam os,
então, se o processo de racionalização ético-religiosa de algum a
forma se faz em detrimento da m agia, mais precisamente, em con­
traste com a irracionalidade da m agia? Já que W eber nessa nossa
listagem de passos acaba nos presenteando com um novo ângulo
de onde olhar para o m undo da m agia, aceito a provocação que
adivinho aí contida e passo agora a considerar o fato por ele apon­
tado: a ação m ágica tem, do ponto de vista (subjetivo) de quem a
executa e pratica, uma forte característica (intram undana) de ra-

Passo 1: Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 79


cionalidade com relação a fins (intram undanos), vinculados por­
tanto a interesses (intram undanos), não a ideias.
O s interesses m ágicos são totalm ente deste m undo. T oda
ação m ágica tem sempre um objetivo pragm ático muito claro e
bem definido, e seus resultados são esperados para o aqui e ago­
ra. N ad a aí é m etafísico, nada é para o outro m undo, nada é para
o lado de lá. Nem mesmo para um futuro longínquo à m oda mile-
narista ou m essiânica: simplesmente agora (Wilson, 1973: 484ss).
E por isso que em term os tipológicos “ um a ética deve ser concei-
tualmente distinguida em sentido estrito não só das tecnologias
científicas, m as tam bém da m agia, a qual pode ser considerada
como uma técnica baseada numa relação meios-fins subjetivamen­
te avaliada” (Schluchter, 1996: 70). Essa observação de Schluchter
me ajuda a retom ar o fio inicial p uxad o pelo prim eiro uso webe-
riano da expressão desencantam ento do m undo, que me fez des­
cobrir em W eber a adm issão destem ida de que a m agia, ao lado
de toda a sua acachapante irracionalidade, tam bém é dotada de
racionalidade. M agia não porta racionalidade teórica, nem sistê­
mica, m as sim prática. N ão prático-ética, mas prático-técnica. Uma
racionalidade subjetivam ente significativa apenas se encarada e
avaliada de m odo avulso, desconexo, desconjuntado. Uma racio­
nalidade elementar, não sistêmica. O s atos m ágicos não se perfi­
lam numa sequência significativa, não se ordenam num plexo
homogêneo de sentido, não são capazes de travejar coerentemente
uma conduta de vida. N ão “ fazem sentido” , um sentido que arre­
gimente a vida de sua dispersão constitutiva. Porque o m agism o
tem vista curta. “ O s interesses m ágicos” , sublinha Bourdieu co­
m entando W eber, “ distinguem-se dos interesses propriam ente re­
ligiosos pelo seu caráter parcial e imediato [...]” (Bourdieu, 1974a:
84-85, grifo do original).39

39 “ [...] e cada vez mais frequentes quando se passa aos pontos m


baixos na hierarquia social, fazendo-se presentes sobretudo nas classes po­
pulares e, mais particularmente, entre os camponeses [...]. O campesinato,

80 O desencantamento do mundo
Este mundo, este lado — Diesseits, é com o se diz em alem ão,
e curiosam ente o som dessa palavra é quase com o no inglês this
side — o lado de cá, o Aquém. É neste m undo, afinal, é nesta vida
que, segundo W eber, estam os todos “ religiosam ente” interessa­
dos, se é que se pode apropriadam ente aditar essa conotação ao
conceito de religioso para abarcar os interesses apontados em seta
não para o Além, o além -túmulo, o outro m undo, a vida após a
morte, o “ andar de cim a” , com o hoje se ouve dizer no Brasil tele­
visivo — jen seits, se diz em alem ão. O ponto de vista de W eber,
que é m uito atual para a sociologia contem porânea da religião, é
este: a demanda “ religiosa” sempre foi, é e segue sendo constituída
essencialmente de interesses voltados antes de mais nada para o
ici bas, com o dizem os franceses, seja este aqui em baixo o aqui e
agora, seja ele um aqui futuro, futuro m essiânico ou m ilenarista,
um aqui posto lá na frente, um futuro, mas aqui, futuro desde que
aqui, não no outro m undo, não lá em cima.
Em diversos m om entos, em vez de qualificar essa dem anda
com o religiosa, Weber vai preferir dizê-la m ágica. Religiosa pro­
priamente dita é a oferta que vem da parte dos profissionais reli­
giosos, via de regra intelectuais, literati, que respondem à demanda
pragm ática com prom essas m etafísicas. Este mundo: só assim faz
sentido falar-se empiricam ente, e não norm ativam ente com o o
fazem alguns, em hom o religiosus. Porque o homem não nasce
religioso, ele se torna. N o nace, se bace. Tal qual a mulher da fa ­
m osa frase que Simone de Beauvoir cunhou lá no fim dos anos
1940, frase prenúncio (depois tornada ícone) da segunda onda do
feminismo, sua expressão idiomática, sua frase feita, passo eu aqui
a cunhar a minha, inspirado em Weber: ninguém nasce religioso
— torna-se religioso. O hom o religiosus é algo que se produz,

comumente circunscrito ao ritualismo meteorológico ou animista, tende a


reduzir a religiosidade ética a uma relação estritamente formalista do do ut
des (tanto em relação ao deus quanto em relação ao sacerdote)” (Bourdieu,
1974b: 84-85).

Passo 1 : Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 81


aprendemos com Weber e reaprendemos com Bourdieu. Ele é pro­
duzido por profissionais da religião, por especialistas em religião,
pelos peritos do discurso mítico, pelos experts da m etafísica, pe­
los virtuoses de ouvido musicalmente religioso.
N o capítulo de Sociologia da Religião em Econom ia e so ­
ciedade, o ser hum ano que comete um ato m ágico ou “ religioso”
não está imediatamente interessado no outro mundo. Esta, sem
som bra de dúvida, é uma das boas ideias que W eber crava no p a­
rágrafo de abertura de sua sociologia sistemática da religião, ideia
que hoje, nos meios sociológicos e afins em que se estudam as re­
ligiões, muita gente se esquece de registrar com a devida ênfase.
N osso pretendido bom o religiosus tem os olhos fitos antes de mais
nada na “ vida real” e não na “ vida após a m orte” . T anto assim ,
que talvez fosse melhor que, na qualidade de sociólogos científi­
cos, nós evitássem os conceber, supor, pressupor, take for granted
que o ser hum ano pode ser pensado com o bom o religiosus. Evi­
tar “ dar de barato” que o ser humano é um animal essencialmente
religioso, um ser que busca espontaneam ente o Além, um animal
metafísico que de per si tem necessidade do Eterno, busca o A bso­
luto, alm eja abandonar-se em oblação ao Absolutam ente Outro.
Evitar, com o um princípio de m étodo — m étodo científico e tam ­
bém m étodo anticoncepcional — conceber o cham ado “ interesse
religioso” com o sendo especificamente religioso já no ponto de
partida, com o sendo prim a facie religioso. Evitar proceder como
se o interesse religioso não fosse um produto do trabalbo religio­
so, que, com o todo trabalho, está sem pre-já constitutivamente
cindido por uma divisão do trabalho religioso que opõe de um
lado os produtores de religião e, da outra banda, os consum ido­
res religiosos.
Antes de tudo, este mundo. N o princípio, este m undo. De
saída, este m undo. A ação dita religiosa é m undana nos bens que
ela visa, intram undana no fim subjetivamente visado. Eu quero
saúde, tu queres dinheiro, ele e ela querem reconhecim ento. E
quase todos nós, com o os chineses, querem os vida longa. Q ue­
remos viver bem e m uito, neste mundo. “ This ivorld... then the

82 O desencantamento do mundo
firew orks” , diz o nome daquele filme. “ Para que tudo te corra bem
e tenhas vida longa sobre a T erra” , diz o Antigo Testamento (WuG
I: 317). Isso sim , isso é W eber. Isso é básico na Sociologia da
Religião weberiana. O ser hum ano, quando age religiosamente,
age com o objetivo de permanecer o m aior tem po possível sobre
a face da Terra. T od o m undo quer sempre adiar a hora da m or­
te, em purrar para depois a despedida deste m undo. Pede, supli­
ca, conjura, sacrifica, chantageia e até se submete “ para que tudo
lhe corra bem e ele viva m uitos anos de vida sobre a T erra” , se­
gundo os generosos term os da prom essa bíblica aos patriarcas de
Israel (e a todos os que honram seus pais e antepassados).
Pierre Bourdieu estava muito atento a essa boa ideia de M ax
Weber quando escreveu seu fam oso ensaio sobre a gênese e estru­
tura do cam po religioso.40 Bourdieu cham a a atenção para o fato
de que Weber, no texto sobre Sociologia da Religião de Econom ia
e sociedade, “ coloca de chofre que as ações m ágicas ou religiosas
são m undanas [diesseitig]41 em seu princípio e devem ser realiza­
das ‘p ara se ter um a vida lon ga’ ” (Bourdieu, 1974b: 32). “ De
chofre” , diz Bourdieu, e é assim m esm o; Bourdieu notou correta­
mente esse gesto de Weber, que logo de cara introduz esse seu p o ­
deroso insight sociológico, quase tão m aterialista-histórico quan­
to um enunciado m arxiano tirado do núcleo d ’A ideologia ale­
mã, e que o editor põe em destaque no frontispício: Ursprüngliche
D iesseitigkeit religiös und m agisch motivierten G em einschafts­
handelns. Em português: “ A prim ordial m undanidade42 da ação
com unitária m otivada religiosa ou m agicam ente” (WuG: 245).

40 Publicado em 1971 na Revue Française de Sociologie (vol. 12, n° 3,


jul.-set. 1971: 295-334), o alentado artigo Genèse et structure du cbamp
religieux foi traduzido para o português por Sérgio Miceli e publicado na
coletânea Bourdieu (1974), A economia das trocas simbólicas (São Paulo,
Perspectiva: 27-78).

41 Ênfases de Bourdieu, tanto o grifo quanto o vocábulo em alemão.

42 Ou, quem sabe, não daria para dizer “ aquendidade” ? Ou “ terrena-

Passo 1 : Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 83


Q uanto m ais velho vou ficando e m ais m aduro na profis­
são, mais me convenço de que nunca se é excessivamente m ate­
rialista quando o que se pretende honestamente fazer é, com to­
das as letras e todas as exigências epistem ológicas e implicações
deontológicas, sociologia da religião. A ciência científica com o
vocação, afinal.
Já na fachada de sua sociologia sistemática da religião, M ax
Weber deixou evidente seu ponto de vista sem -religião sobre a
religião, seu ouvido unm usikalisb para as coisas da religião, sua
perspectiva materialista e decididamente intramundana sobre aqui­
lo que outros autores teriam preferido cham ar de sentimento re­
ligioso, ou senso do sagrado, ou necessidade do absoluto, ou en­
tão, na esteira de R udolf O tto (1917), de busca do numinosum
ac tremendum, m as que W eber preferiu cham ar, sempre com os
pés no chão, de interesse religioso. Vejam os:

A ação religiosa ou m agicam ente m otivada, em


sua existência primordial, está orientada para este mun­
do \diesseitig ausgerichtet\. As ações religiosa ou m a­
gicamente exigidas devem ser realizadas “ para que vás
muito bem e vivas m uitos e m uitos anos sobre a T er­
r a ” . M esm o rituais com o sacrifícios hum anos, extraor­
dinários sobretudo entre uma população urbana, eram
realizados nas cidades m arítimas fenícias sem qualquer
expectativa dirigida ao Além. A ação religiosa ou m a­
gicamente m otivada é, adem ais, precisamente em sua
form a prim ordial, uma ação racional [...] orienta-se
pelas regras da experiência, f...] A ação ou o pensamen­
to religioso ou “ m ágico” não pode ser apartado, p o r­
tanto, do círculo das ações cotidianas ligadas a um fim,

lidade” , “ terraquidade” ... Este último soa muito bem, que tal? A tradução
brasileira supervisionada por Gabriel Cohn preferiu o sintagma “ caráter
intramundano original” (EeS I: 279).

84 O desencantamento do mundo
uma vez que tam bém seus próprios fins são , em sua
grande m aioria, econôm icos. (EeS I: 2 7 9 ; W uG: 245;
grifo do original)

M esm o reduzido às form as elementares mais irracionais da


m agia, o com portam ento religioso apresenta em Weber um pon­
derável conteúdo de racionalidade. Primeiro, a racionalidade do
interesse (alegadam ente) “ religioso” nos resultados visados para
o aqui e agora pela ação m ágica ou religiosa, seus fins “ econôm i­
c o s” ; depois, a racionalidade que podem os situar um pouco além
da mera ad ap tação tópica entre fins e m eios, uma vez que proce­
de pelo menos de um mínimo de regularidade da experiência co-
m unitariamente acum ulada. “ A ação religiosa ou magicamente
m otivada é, adem ais, precisamente em sua forma primordial, uma
ação racional [...] orienta-se pelas regras da experiência” (EeS I:
279; W uG: 245).
N a Consideração interm ediária, ao tratar da tensão que na
modernidade ocidental se instala na relação entre o moderno cos­
m os econômico e a religião m oralizada pela ética do am or fraterno,
W eber volta à carga e retom a essa ideia: em sua form a prim or­
dial, a ação religiosa ou magicamente m otivada tem fins racionais
absolutam ente intram undanos, totalm ente condizentes e nada
tensionados com os interesses econôm icos dos agentes; pelo con­
trário, os fins visados em primeira m ão, originalmente, são indis­
cutivelmente m ateriais e econôm icos. V am os lá:

T od a form a originária, seja m ágica ou m istagó-


gica, de influenciar os espíritos e deuses em favor de in­
teresses particulares visou com o objetivo autoeviden-
te a riqueza, além de vida longa, saúde, honra, descen­
dência e, apenas eventualmente, m elhora do destino
ultraterreno. Assim ocorreu com os m istérios de Elêu-
sis, com a religião fenícia e védica, com a religião po­
pular chinesa, com o judaísm o antigo, com o antigo islã
e com as prom essas feitas aos leigos piedosos hinduís-

Passo 1: Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 85


tas e budistas. Em contraste com isso, a religião subli­
mada de salvação [ou seja, a religião propriamente dita,
AFP] e a economia racionalizada entraram em crescente
tensão uma com a outra. (ZB/G A RS I: 544)

N a “ Introdução” à Ética econômica das religiões m undiais,


redigida na mesm a época que o Kategorien, Weber torna a insis­
tir nesse seu ponto de vista m aterialista a respeito do interesse re­
ligioso nos “ solidíssim os bens deste m undo” :

Para o estudioso empírico, os bens de salvação,


que são diferentes entre si, não devem ser interpreta­
dos apenas, e nem mesmo preferencialmente, como vol­
tados para o “ outro m undo” . Isso ocorre à parte o fato
de que nem toda religião, e nem toda religião mundial,
conhece o “ A lém ” com o um centro de prom essas de­
finidas. A princípio, os bens de salvação das religiões
prim itivas, bem com o das cultas, proféticas ou não,
com a única exceção parcial do cristianism o e de uns
poucos credos especificamente ascéticos, eram os bens
sólidos deste m undo [ganz m assiv diesseitige]: saúde,
vida longa e riqueza. Eram essas as prom essas feitas
pelas religiões chinesa, védica, zoroastriana, hebraica
antiga e islâm ica; e da mesm a form a pelas religiões fe­
nícia, egípcia, babilónica e alem ã antiga, bem com o
eram essas as prom essas do hinduísmo e do budism o
aos devotos leigos. Somente o virtuose religioso — o
asceta, o monge, o sufi, o dervixe — lutava por um bem
de salvação extram undano, em com paração com aque­
les solidíssimos bens deste mundo [massivsten Diesseits-
gutern], E nem m esmo esse tal bem de salvação extra­
mundano de m odo algum era apenas do Além. N ão era
este o caso, nem m esm o quando ele era percebido co ­
mo tal. Psicologicamente considerado, quem busca a
salvação está interessado prim ariam ente no habitus

86 O desencantamento do mundo
voltado para o aqui e agora. (Einleit/GARS I: 249; Psi-
co: 320-321)
[...]
N o p assad o , coube aos intelectuais sublim ar a
posse de bens de salvação numa convicção de “ reden­
ç ã o ” . A concepção da ideia de redenção, com o tal, é
muito antiga, se por ela entenderm os um a libertação
da desgraça, da fome, da seca, da doença e, em últi­
ma análise, do sofrim ento e da morte. N ão obstante,
a redenção só alcançou significação específica quan­
do expressou um a “ im agem de m un d o” sistem ático-
-racionalizada e representou uma tom ada de posição
perante o m undo, pois o significado bem com o a q u a­
lidade pretendida e real da redenção dependeram dessa
im agem e dessa posição. (Einleit/GARS I: 252; Psico:
323, grifos meus)

Resum indo. W eber trata a distinção entre m agia e religião


de uma perspectiva histórica fortemente travejada por uma visada
evolutiva (evolucionista, dirão outros), que Schluchter sugere seja
cham ada de developmental, palavra intraduzível para o português
(Schluchter, 1979b). O processo de racionalização religiosa é tam ­
bém, de um outro ponto de vista, um processo de intelectualização
da oferta religiosa. A religiosidade m ágica vem desde o princípio,
deste tem pos im em oriais, literalmente primordiais-, a religiosida­
de ética, por sua vez, ainda não tem três milênios de existência.
Essa emerge no período histórico que K arl Jasp e rs cham ou de
Achsenzeit, “ era a x ia l” , quando surgem e se definem as cham a­
das religiões mundiais (cf. Eisenstadt, 1982; 1987; Gauchet, 1985),
e desde então a religiosidade se intelectualiza e, de cima para bai­
xo na estratificação religiosa, m oraliza. O desenvolvim ento da
ética religiosa no período axial implica uma guinada axiológica,
an axio lo g ical turn, a saber: a distinção estrita entre o estado
natural e o estado cultural, entre o ser e o valor. A Sociologia da
R eligião de W eber fica inconcebível sem a con sideração argu-

Passo 1 : Sobre algumas categorias da sociologia compreensiva 87


m entada dessa emergência gradual da ética religiosa para fora do
universo do m agism o, sem a ideia — m esmo que avant la lettre,
mesmo que antes do acham ento de sua m arcante nom inação —
do desencantam ento do mundo com sua contraface, a eticização
da religiosidade e a resultante m oralização da conduta.
Um ato de magia é um ato de racionalidade prática subjetiva­
mente racional com relação a fins, ainda que irracional nos meios.
O problema com a magia é que sua validade salvífica “ agu da” não
instala no indivíduo a racionalidade “ crônica” de um a “ conduta
de vid a” [Lebensführung]. Ela não fixa um “ estado du radou ro”
[D auerzustand], não assenta um “ habitus sagrado perm anente”
[beiliger Dauerhabitus\ (cf. ZB/G A R S I: 540; R R M : 242; ESSR
I: 531). Por inconstante e avulsa, a m agia para W eber é incapaz
de vida cotidiana,43 assim como ela é, para Durkheim, incapaz de
igreja: “ z7 n existe pas d ’Église m agique” (Durkheim, 1998: 61).
Insinuando-se de m odo perturbador ou, quando m enos, in­
trigante nessa co-incidência dos processos de desencantam ento e
intelectualização religiosa, estam os com eçando a perceber um
certo p arad o xo viajando na ideia de desencantam ento do m un­
do. É com o se o desencantam ento significasse justamente o con­
trário do que dele se esperava, a saber, a saída de um m undo in­
capaz de sentido e o ingresso num universo significativam ente
ordenado pelas ideias religiosas e, com isso, tornado ele próprio
pleno de sentido, sinnvoll, meaningful. Faz sentido isto, pensar
com o desencantamento justamente o entrar para um mundo cheio
de sentido? Para W eber, faz. Se não entendem os isto, é porque
ainda não estam os entendendo o que quer dizer, para W eber,
desencantamento do mundo.

43 Diferentemente da magia, o conteúdo da profecia “ era a orienta­


ção da conduta de vida para a busca de um bem sagrado. Neste sentido,
portanto, ao menos relativamente: uma sistematização racional da conduta
de vida. Seja sob certos aspectos, seja em sua totalidade” (ZB/GARS I: 540;
RRM : 242; ESSR I: 531).

88 O desencantamento do mundo
PASSO 2:
“ IN T R O D U Ç Ã O ” À É T IC A E C O N Ô M IC A
D A S R E L IG IÕ E S M U N D IA IS
(1913)

O asceta intramundano é um racionalista.

M ax Weber, EeS I: 366

BREV E N O T ÍC IA DA O BRA

A “ Introdução” [Einleitung] à Ética econômica das religiões


m undiais foi escrita em 1913 e só foi publicada dois anos depois,
em outubro de 1915, já em plena Grande Guerra, no vol. 41 (n°
1) do Archiv fiir Sozialw issenscbaft und Sozialpolitik. Tam bém
aqui há um a nota de rodapé inserida já na abertura, na qual We­
ber atesta claramente a data da redação do ensaio, ao declarar que
suas palavras ali aparecem “ inalteradas, tal com o foram escritas
e lidas a am igos dois an os an tes” (Einleit/GARS I: 237; ESSR I:
233, nota 1, grifo meu).
O tema da “ Introdução” é a própria Sociologia da Religião,
agora definitivamente trazida para o centro do am bicioso esforço
de análise com parativa das grandes culturas religiosas do Ociden­
te e do Oriente, intitulado Etica econômica das religiões m undiais,
aventura intelectual de grande fôlego em que Weber se lançara pelo
m enos desde 1911 (cf. Schluchter, 1989: 419). Em inglês, na co ­
letânea From M ax Weber publicada em 1946, esse ensaio intro­
dutório recebeu o inexplicável título de “ A psicologia social das
religiões m undiais” e assim ficou conhecido tam bém em portu­
guês. Aqui eu vou citá-lo sempre sob a forma “ Introdução” (com
aspas) para distingui-lo de outra introdução weberiana, tam bém
m uito importante, o prólogo geral aos E nsaios reunidos de Socio­
logia da Religião, cham ado em alem ão Vorbemerkung e conhe-

Passo 2: “ Introdução” à Ética econômica das religiões mundiais 89


eido internacionalmente com o “ Introdução do au tor” [AIntro],
herança de seu difundido uso em inglês com o A uthor’s Introduc­
tion (cf. N elson, 1974). Ao lado da Introdução do autor, da Con­
sideração interm ediária e d ’A ciência com o vocação, a “ Introdu­
ç ã o ” [Einleitung] com põe o quarteto de ouro da sociologia teó-
rico-reflexiva de M ax Weber.

C O M E N T Á R IO

N a “ Introdução” , Weber emprega o sintagm a desencanta-


mento do mundo uma única e decisiva vez. Decisiva porque enun­
cia de form a explícita e sucinta a correlação direta entre o desen-
cantam ento do mundo e o protestantism o ascético, isto é, a ascese
intram undana com o via de salvação con traposta a outras vias
possíveis. Decisiva, ainda, porque remete o processo de desen-
cantam ento tam bém ao plano das ideias, fazendo dele o que H a ­
berm as cham ou de “ desencantam ento das imagens de m undo44
m etafísico-religiosas” , condição cognitiva sine qua non para a
“ emergência das estruturas de consciência m odernas” (Haberm as,
1987: 200), enfoque este que põe em relevo, em W eber, a im por­
tância atribuída por ele às cam adas intelectuais e, com isso, à in-
telectualização da religiosidade. Decisiva, finalmente, porque m os­
tra o processo de desm agificação da experiência religiosa com o
o outro lado da m oeda da escalada da m oralização religiosa, nou­
tras palavras, da “ eticização” [Ethisierung] da conduta religiosa
e, por conseguinte, se é que se trata m esm o de m oralizar, com o o
outro lado da moeda da arregimentação consciente e alerta da vida
individual num todo unificável, referido a uma “ personalidade”

44 A expressão “ imagens de mundo” [ Weltbilder] é usada por We


o mais das vezes para se referir às “visões de mundo” [Weltanschauungen]
religiosas, às “ imagens de mundo metafísico-religiosas” ; mas ele chega a fa­
lar também em “ imagem de mundo m ágica” , como veremos.

90 O desencantamento do mundo
consciente de sua identidade única, equipada assim para fazer
frente às dem andas de um m undo dom inado por crescente racio­
nalização... e desencantam ento (cf. PE/GARS I: 115-117; G old­
man, 1988: 42s, 118).
O sintagm a desencantamento do m undo aparece aí em seu
sentido estrito: um a operação religiosa (eu diria m esmo intrarreli-
giosa) pela qual uma determinada religiosidade é retrabalhada por
seus intelectuais no sentido de “ se despojar ao m áxim o do caráter
puramente m ágico ou sacram ental dos meios da g raça” , meios es­
ses que, segundo Weber, sempre desvalorizam [entwerten] o agir
no m undo, impedindo com isso que se chegue à noção de que o
trabalho cotidiano, com sua racionalidade técnico-econômica, po­
de ser o lugar por excelência da bênção divina, essa ideia puritana.
O ponto culminante dessa teorização com pacta da evolu­
ção religiosa (Bellah, 1970) que W eber desenvolve na “ Introdu­
ç ã o ” é conhecido. É a fam osa fórmula sobre a eficácia histórica
diferencial de “ ideias e interesses” . Essa fórmula é lembrada tam ­
bém por trazer em seu enunciado m ais uma boa m etáfora de We­
ber, a dos switcbmen, em alem ão Weichensteller, m anobristas de
linha de trem (cf. Pierucci, 2002: 96), função determinante de de­
finir rum os que ele atribui às “ ideias” na história. Eis a fórm ula
m em orável:45

N ão as ideias, mas os interesses (materiais e ideais)


é que dom inam diretamente a ação dos hum anos. O
m ais das vezes, as “ im agens do m un do” criadas pelas
“ ideias” determinaram , feito m anobristas de linha de
trem, os trilhos nos quais a ação se vê em purrada pela
dinâmica dos interesses. (Psico: 323; FMW : 280; ESSR
I: 2 4 7 )46

45 Fórmula que Bendix, não se sabe por que razão, considerou uma
“ enigmática observação” , uma cryptic remark (Bendix, 1986: 65; 1960: 68).

46 “ Interessen (materielle und ideelle), nicht: Ideen, beherrschen un­

Passo 2: “ Introdução” à Ética econômica das religiões mundiais 91


Para o nosso específico objeto e objetivo de pesquisa, o que
interessa ressaltar nessa passagem -chave é a im portância prio­
ritária que W eber confere aos interesses m ateriais e ideais, e nós
já vimos o quão m ateriais e terra a terra podem ser para ele os
interesses ditos “ religiosos” , ao m esmo tem po que ele não tira os
olhos do papel de “ vetor” , “ direcionador” e “ inflector” que têm
as ideias, no caso, o “ racionalism o teórico-religioso” , na condu­
ção dos interesses assim cham ados “ religio so s” , melhor dizen­
do, na conform ação “ religiosa” dos interesses salvíficos da m as­
sa, dos que não são, por qualquer razão, virtuoses em religião.
“ N ão obstante o fato de que a ação hum ana é m otivada di­
retamente por interesses” , — comenta Tenbruck, e logo mais eu
vou me permitir citá-lo extensivamente, com o tam bém o faz Ha-
berm as (1987: 209-210) — “ ocorrem períodos na história cuja
direção a longo prazo é determ inada pelas ideias de tal maneira
que os homens podem se esfalfar até a morte na persecução dos
seus interesses, m as no longo prazo a água da história é conduzi­
da pelo moinho das ideias, e as ações dos homens permanecem
sob a influência das id eias.” E o que é que W eber cham a aqui de
“ ideias” , ele m esm o pondo as asp as? Tenbruck explica: “ O uso
de W eber é o do século X IX . Ideias são aqueles pontos de vista
suprapessoais que articulam os aspectos fundam entais da relação
do homem com o m undo. Em sentido am plo, elas são ‘imagens
de m undo’, mais precisamente, elas devem sua existência à neces­
sidade, e à busca, intelectual de uma narrativa coerente do m un­
do e, com o tal, são criadas predom inantem ente por grupos reli­
giosos, profetas e intelectuais” (Tenbruck, 1980: 335-336). N o u ­
tras palavras, a evolução das im agens de m undo responderia a
coações predom inantem ente racionais, obedeceria a uma “ lega­
lidade p róp ria” [Eigengesetzlichkeit], e a gênese da religião (pro­

mittelbar das Handeln der Menschen. Aber: die ‘ Weltbilder’, welche durch
‘Ideen’ geschaffen wurden, haben sehr oft als Weichensteller die Bahnen
bestimmt, in denen die Dynamik der interessen das Handeln fortbewegte”
(Einleit/GARS I: 252).

92 O desencantamento do mundo
priamente dita) teria portanto com o conteúdo um progresso an­
tes de tudo na racionalidade teórica, um avanço na consistência
interna e na articulação sistêmica de sua imagem de mundo. E um
verdadeiro processo de aprendizagem, que obedece primeiro a uma
lógica interna que é própria de cada grande religião e que se des­
dobra sob pressão tam bém de fatores externos, dentre os quais
sobressaem as dem andas do intelectualismo dos leigos, isto é, dos
leigos intelectualizados.
A linha ao longo da qual o pensam ento m ágico-m ítico das
religiões tribais vai se racionalizando progressivamente até se trans­
formar numa ética religiosa universalista, trajeto que Weber ilustra
porm enorizadam ente, Tenbruck a resume da seguinte m aneira:

Q uando, a um certo m om ento, as potências mis­


teriosas contra as quais os hom ens se debatiam no
meio ambiente não dom inado passam a ser olhadas
não m ais com o forças imanentes nas próprias coisas,
m as com o seres que se escondem por trás das coisas,
para W eber, uma nova ideia apareceu no m undo, e se
os homens fazem desses seres que agem por trás das
coisas entidades pessoais, estam os diante de m ais uma
nova ideia. D o m esm o m odo, para W eber, o concei­
to m onoteísta de um Deus supram un dan o era um a
ideia que tinha de nascer num momento determinado,
m as que, um a vez ad m itido, teve consequências de
grande porte. Finalmente, um a ideia com pletamente
nova forjou a representação dessa divindade com o um
Deus que recom pensa e castiga, especialmente quan­
do daí se desdobrou esta representação suplem entar,
a saber, a de que os destinos dos homens neste m un­
do e no Além dependem essencialmente da observân­
cia dos preceitos éticos. Uma nova ideia apareceu uma
vez m ais com a profecia em issária, ou seja, precisa­
mente no judaísm o, pois desta vez o homem devia com ­
preender-se a si m esm o com o o instrumento de Deus

Passo 2: “ Introdução” à Ética econômica das religiões mundiais 93


agindo no mundo. E foi ainda uma nova ideia quando
o protestantism o acrescentou a isso a predestinação.
(Tenbruck, 1980: 336; 1975: 658)

Algum as ideias, sob a com pulsão de sua própria lógica in­


terna \Eigengesetzlichkeit|, desenvolvem suas consequências ra ­
cionais a tal ponto, que chegam a inflectir empírica e decisivamen­
te a dinâmica dos interesses hum anos. Feito agujeros47 de estrada
de ferro, switchmen da racionalização religiosa. A qual vem sem ­
pre de cim a, dos intelectuais.
A linha de “ evolução religiosa” (Bellah, 1970) que vai da
imagem m ágico-m ítica do m undo à imagem m etafísico-religiosa
do m undo, Weber a descreve com o um processo de racionaliza­
ção e intelectualização que adquire, a partir de um determinado
momento devidamente periodizado e num ponto perfeitamente
localizado do m apa cultural da T erra, a inflexão singular de um
processo de desencantamento do m undo. Pois bem, se olharm os
a mesma evolução nos seguintes termos: de um mundo povoado
de espíritos aos panteões politeístas e destes ao m onoteísm o éti-
co-universalista, o desencantam ento vai se m ostrar aos nossos
olhos com o uma verdadeira “política de despovoam ento” , como
inspiradam ente notou o sociólogo François Isam bert. Pois “ o
m undo da m agia” , escreve Isam bert, “ por prosaico que seja, por
acanhadas que sejam suas finalidades, por pobre que seja sua sim ­
bólica, não deixa de ser essencialmente um m undo anim ado. E
o aspecto m ais tangível do desencantam ento é precisam ente o
despovoam ento [dépeuplem ent] que ele efetua” (Isambert, 1986:
86, grifos do original).
As práticas m ágicas, além do m ais, não são de toda hora.
Os etnólogos atestam isso à exaustão. Ninguém faz m agia o tem­

47 Também em português, e não só em espanhol, os carris de fe


móveis usados para facilitar a passagem dos trens de uma via para outra são
chamados de agulhas.

94 O desencantamento do mundo
po todo e a todo m om ento, nem os povos que nós conhecemos
com o os mais anim istas, nem os indivíduos que depreciam os co­
mo os m ais “ m acum beiros” . O s rituais m ágicos são atividades
extraordinárias e, com o sabem os leitores de W eber, o que é ex­
traordinário é literalmente extracotidiano [ausseralltàglich], em
que pese o pleonasm o embutido nesta ênfase. N o passo 2 em exa­
me, o desencantam ento do m undo é entendido com o desvalori­
zação dos meios m ágicos de salvação na medida em que, em sua
extracotidianeidade constitutiva, essas práticas “ desvalorizam ”
religiosamente o trabalho profissional cotidiano no mundo como
locus das boas relações com o invisível. De m odo aparentem en­
te paradoxal, porém, a desm agificação puritana do mundo se faz
acom panhar, também ela, de uma atitude de desvalorização do
mundo: este mundo é inerentemente corrupto! Ou seja, o m un­
do não tem sentido em si mesm o. E que “ a fé na predestinação
[...]” , explica W eber, “ [ess]a reconhecida im possibilidade de
medir [s/c| os desígnios divinos com critérios hum anos, implica
uma renúncia em fria clareza a um sentido do m undo acessível
ao entendimento hum ano” (ZB/G A RS I: 573, ESSR I: 561). Em
seu estado pecam inoso de criatura, se ele tem sentido é exclusiva­
mente com o objeto do cumprimento dos deveres em ações racio­
nais executadas segundo a vontade de um Deus absolutam ente
supram undano e insondável (cf. EeS I: 373).
O personagem do asceta intram undano — que Weber co­
meçou a descobrir e a descrever já na primeira versão d ’A ética
protestante de 1904-05, no esforço por dem onstrar pela primeira
vez sua tese pessoal acerca da relação entre o protestantism o ascé­
tico e o “ espírito” do capitalism o — equilibra-se por assim dizer
num fio de navalha quando deposita toda a sua expectativa de
estar salvo pelo Deus único no estreitíssim o intervalo que medeia
entre sua concepção negativa do mundo d ’ici bas, visto como peca­
m inoso e sem valor, sem pre perigoso para os bons, e sua concep­
ção positiva da ação racional no mundo, vista como sinal ou prova
de salvação. D ada a sutileza na com binação lógica dos seus com ­
ponentes, o conceito típico-ideal de ascese intram undana consti­

Passo 2: “ Introdução” à Ética econômica das religiões mundiais 95


tui assim um dos grandes tentos m arcados por Weber em sua pro­
lífera capacidade de construir conceitos sociológicos abstratos
logicamente coerentes, empiricamente referidos, culturalmente sig­
nificativos, capazes ainda de evocar figurativamente uns persona­
gens de carne e osso. V am os conferir sem m uita pressa:

O mundo como um todo permanece, do ponto de


vista ascético, uma m assa perditionis [...] que, justamen­
te por ser o irremediável vaso natural do pecado, tor­
na-se, em vista do pecado e da luta contra ele, uma “ ta­
re fa” para a com provação da disposição ascética. O
m undo permanece em seu desvalor de criatura: uma
gozosa entrega a seus bens põe em perigo a concentra­
ção no bem de salvação. [...] Despreza-se, portanto, o
desfrute da riqueza, considerando-se com o “ vo cação”
a economia gerida de m odo ético-racional e levada sob
rigorosa legalidade, cujo êxito, isto é, o lucro, torna
visível a bênção de Deus ao trabalho do homem pie­
doso e, portanto, a benevolência para com sua condu­
ta de vida econômica. Despreza-se todo excesso de sen­
timento nos homens, com o expressão da divinização
das criaturas que nega o valor único da dispensação
divina da graça [...]. Despreza-se toda erótica divini-
zadora da criatura, considerando-se com o “ vocação”
desejada por D eus a “ p rocriação d esap aix on ad a de
filhos” (conforme expressão puritana) dentro do m a­
trimônio. Despreza-se a violência do indivíduo contra
os outros, por paixão ou sede de vingança, em geral por
m otivos pessoais [...]. O asceta intram undano é um
racionalista, tanto no sentido de uma sistem atização
racional de sua própria conduta de vida pessoal, quanto
no sentido da rejeição de tudo o que é eticamente irra­
cional, seja artístico, seja pessoal-sentim ental, dentro
do mundo e de suas ordens. Fica, porém, antes de tudo,
a meta específica: o dom ínio m etódico “ vigilante” da

96 O desencantamento do mundo
própria conduta de vida. (W uG: 329-330; ver EeS I:
365-366; EyS I: 429-430)

O asceta intram undano é um racionalista, sintetiza Weber.


E, na medida em que esse seu racionalism o, cujo objetivo específi­
co é o “ dom ínio m etódico da conduta de vid a” , exige dele “ a re­
jeição de tudo o que é eticamente irracional” , fica dito que o con­
ceito de ascetism o intram undano implica necessariamente a rejei­
ção da m agia com o um de seus componentes básicos. A porm eno­
rizada descrição do asceta intram undano em Econom ia e socie­
dade assim resumida ilumina incisivamente o conteúdo do passo
2 encontrado na “ Introdução” , que nos remete ao desencantamen-
to do m undo levado a cabo pelo protestantism o ascético.
N o desenrolar de suas pesquisas em Sociologia da Religião,
Weber volta várias vezes aos conceitos tipológicos de ascetism o
e m isticism o, que pouco a pouco vão se tornando mais bem deli­
neados e vigorosos com o tipos ideais das possíveis “ vias de sal­
v ação ” historicamente experim entadas pelas diferentes culturas
religiosas. A ascese intram undana torna-se com o tem po referên­
cia inescapável para a com preensão do processo de racionaliza­
ção religiosa tal com o ocorrido no Ocidente. Conform e exigên­
cia explícita de Weber, para poder ser classificada com o ascese
intram undana uma religiosidade precisa ter-se despojado ao m á­
xim o do caráter m ágico ou sacram ental dos m eios da graça, uma
vez que esses meios m ágico-sacram entais representam em si m es­
m os um a desvalorização [Entwertung\ da ação cotidiana neste
mundo. Isto é, eles a põem com o algo de im portância apenas re­
lativa em sua significação religiosa, e isto na melhor das hipóte­
ses. O que, no limite, im plica condicionar “ a decisão sobre a sal­
v ação ” ao sabor de processos pertencentes à esfera do extraordi­
nário. Vida religiosa despojada [abgestreift] dos m eios m ágicos
de salvação? Só no protestantism o ascético. Só então a atividade
ético-ascética do trabalho vocacional se valoriza por si m esm a e
se afirm a “ separada [abgeschnitten] de todos os meios m ágicos
de salv ação ” , autoim pondo-se ali o crente a exigência de “ pro­

Passo 2: “ Introdução” à Ética econômica das religiões mundiais 97


var-se” com o salvo, santo, eleito “ instrumento de D eus” no m un­
do. O ra, agir com o instrumento de Deus outra coisa não é que
pretender “ racionalizar eticam ente” o mundo segundo o m anda­
to divino, define Weber.

E além do m ais, a religiosidade devia ser o mais


possível despojada do caráter puramente m ágico ou sa ­
cram ental dos m eios da graça. Pois estes sempre des­
valorizam [entwerten] a ação no m undo com o tendo
um significado religioso na melhor das hipóteses rela­
tivo e ligam a decisão a respeito da salvação ao êxito
de processos racionais não cotidianos. As duas condi­
ções, desencantam ento do m undo e deslocam ento da
via de salvação, da “ fuga do m un do” contem plativa
para a “ transform ação do m undo” ascético-ativa, só
foram plenamente alcançadas |...] nas grandes form a­
ções de igreja e seita do protestantism o ascético no Oci­
dente. (Einleit/GARS 1: 26 2 -2 6 3 ; ver Psico: 334)

Q uando o puritano da m odernidade clássica mergulha de


cabeça no trabalho profissional em meio ao m undo, ele o faz sob
forte tensão. Porque o m undo simplesmente está podre: m assa
perditionis é só o que este m undo é (WuG: 329). A eloquência
m oralista dos pregadores puritanos não poupa esforços na busca
de evidências da depravação hum ana e da indigna m iserabilidade
da criatura (ver Delumeau, 1978; Greven, 1977; Hill, 1987; 1988;
Thom as, 1985; Walzer, 1987). N ão por acaso a idolatria enquanto
divinização da criatura [Kreaturvergòtterung] volta a ser, com o
nos profetas do Antigo Testam ento, a pior das ofensas a Deus e
o m aior de todos os riscos que um crente neste m undo pode cor­
rer. Incontáveis são os riscos de desandar na idolatria e assim per­
der a certitudo salutis. Desse ponto de vista, ser um asceta intra-
m undano por m issão divina, experim entar o grande júbilo inte­
rior de ter recebido do “ A ltíssim o” a bênção desse cham am ento
[calling], é na verdade um constante tormento, um constante es­

98 O desencantamento do mundo
tado de alerta. Constante vigília. Acresce a isto a im possibilidade
de abandonar-se inteiramente à união m ística, pois no protestan­
tism o radical a unio m ystica não é possível, dado o “ golfo in­
transponível” que separa de nós a absoluta transcendência do “ Al­
tíssim o” , detonadas que foram todas as pontes “ sacram entais” ,
vale dizer, toda a m agia, já que em jargão calvinista sacram ento
é m agia. Desm agificada assim a religião, não resta outra saída ao
renascido santo a não ser a ascese intram undana, dirá W eber em
1920 a propósito dos an abatistas tardios, a ascese do trabalho
profissional e nada mais.
Ascese intram undana = dom ínio m etódico “ desperto” da
própria conduta de vida (WuG: 330; EeS I: 366). O asceta intra-
m undano é um racionalista prático todo dia, não de segunda a
sáb ado, m as de segunda a segunda. D aí a im portância do binô­
mio cotidiano-extracotidiano na sociologia sistemática de Weber,
im portância que eu diria acrescida em sua sociologia sistemática
da religião, na medida em que a oposição “ ética x m agia” replica
diretamente esta outra dicotom ia básica tam bém em sua socio­
logia da dom inação, “ cotidiano x extracotidian o” , “ ordinário x
extraordin ário” , “ rotina x carism a” .

Passo 2: “ Introdução” à Ética econômica das religiões mundiais 99


PASSO 3:
E C O N O M IA E S O C IE D A D E
(1913, 1914)

São incontáveis as coisas que “ acontecem” e que


jamais entrarão na “ história” .

Wilhelm Windelband, Prelúdios filosóficos: 111

BREVE N O TÍC IA DA O BRA

N o dia 30 de dezembro de 1913, em carta a seu editor Paul


Siebeck, M ax W eber informou-lhe que tinha term inado uma pri­
meira versão do capítulo de Econom ia e sociedade sobre a Socio­
logia da Religião. Pouco menos de quatro meses depois, em car­
ta de 21 de abril de 1914, tornaria a informar ao editor que o texto
com pleto de Econom ia e sociedade — o qual, com o se sabe, era
para ter outro título, algo com o Com pêndio de econom ia social,
e do qual fazia parte um capítulo de Sociologia da Religião — iria
dem orar ainda uns cinco meses para ficar pronto e poder ser en­
viado para a gráfica. “ M eu m anuscrito” , escreveu ele a Siebeck
em abril, “ vai estar pronto em 15 de setem bro, para poder com e­
çar a com posição tipográfica.” Por essa razão, até hoje o ano de
1914 tem sido norm alm ente aceito com o a data final da com po­
sição da primeira versão de Econom ia e sociedade (cf. Schluchter,
1989: 392).
A pesquisa para os ensaios que iam com por a Ética econô­
mica das religiões m undiais levara-o a m udar o esboço original
que havia traçado anos antes, provavelmente já em 1909, confor­
me fica evidente quando se com para o prim eiro sum ário com o
segundo, que ele finalmente redigiria em 1914. H oje já não res­
tam dúvidas quanto à estreitíssima relação, intelectual e tem poral,
entre Econ om ia e sociedade e a É tica econôm ica d as religiões

100 O desencantamento do mundo


m undiais (cf. Schluchter, 1989: 4 3 3 ss; Schmidt-Glintzer, 1995),
o que leva a zerar também as dúvidas quanto à íntima relação entre
sua sociologia tipológico-sistem ática e sua sociologia histórico-
-com parativa. Que haja concom itância tem poral é um dado b á­
sico nessa relação entre as “ especialidades sociológicas” de M ax
W eber nessa “ nova fase de sua p ro d u çã o ” (M arianne W eber,
1984: 3 1 8ss; 1995: 306ss). Que cientista ou acadêm ico já não
experim entou isso? Pois não se há de esquecer, adem ais, que as
duas “ especialidades” supracitadas constituem a base vital, a b a­
se sine qua non de sua sociologia teórico-reflexiva (form ada pe­
lo “ quarteto de o u ro ” elencado no passo 2. E isso é uma boa no­
tícia para quem trabalha com o sociólogo da religião e além disso
quer saber “ qual é a ” da sociologia da religião de Weber: tanto
sua vertente sistem ática (Econom ia e sociedade) quanto sua ver­
tente histórico-com parativa (Ética econôm ica das religiões m un­
diais) podem ser lidas com o mutuamente ilustrativas, e uma aju­
da muito a entender a outra, bem com o as reflexões que am bas
provocaram . Q uando isso tudo pode ser lido do ponto de vista
dos interesses intelectuais e tem áticos contem porâneos da socio­
logia “ científica” da religião, fica tudo muito interessante.
Econom ia e sociedade teve uma história atribulada. M as não
foi só sua redação que enfrentou problem as, tam bém sua edição
foi cheia de idas e vindas, m uitas reconsiderações, alterações e
adiam entos. T an to, que acabou virando obra póstum a. Em 1914
explodiria a Prim eira G uerra M un dial, e dois anos depois da
guerra W eber viria a falecer. M orreu no verão de 1920, quando
Econom ia e sociedade, finalmente depois de tanta espera, estava
já a meio cam inho da com posição tipográfica. O volume que saiu
publicado em 1921 estam pava na página de rosto: Com pêndio
de econom ia social. D ivisão III — E conom ia e sociedade — A
economia e as ordens e poderes sociais tratados p or M ax Weber.

48 Ver a reprodução do original em alemão na edição brasileira (EeS


I: xviii).

Passo 3: Economia e sociedade 101


Econ om ia e sociedade só foi traduzido para o português
setenta anos depois: somente em 1991 saiu o prim eiro volume,
publicado pela Editora da Universidade de Brasília, em boa tra­
dução de Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa, com revisão téc­
nica de Gabriel Cohn. O volume dois saiu em 1999.49 A tradu­
ção foi feita com base na quinta edição revista da versão-padrão.
V ersão-padrão de Wirtschaft und Gesellschaft é considerada a se­
gunda edição, de 1925, organizada por Johannes Winckelmann.
A prim eira, de 1921, fora organizada pela viúva de M ax , M a-
rianne Weber.

C O M E N T Á R IO

Em Econom ia e sociedade aparece uma vez o termo, na for­


ma do particípio p assad o do verbo entzaubern, adjetivando o
sintagm a “ os processos do m undo” no parágrafo 7 do capítulo
dedicado à Sociologia da Religião (vol. I, parte II, cap. V ).50 O

49 A demora em vermos uma versão de Economia e sociedade em lín­


gua portuguesa não impediu que os estudantes universitários tivessem aces­
so a essa obra monumental, uma vez que desde 1944 existe a versão em es­
panhol de Economia y sociedad [EyS], editada pela Fondo de Cultura Eco­
nómica, do M éxico, aliás a primeira tradução integral dessa obra em todo o
mundo. Se o Brasil esperou setenta anos, a França também esperou demais
(pasme o leitor, cinquenta anos) para ter uma tradução francesa do primeiro
volume de Economie et société, organizada sob a direção de Jacques Chavy
e Eric de Dampierre, lançada em 1971. Até hoje, trinta anos depois da pu­
blicação do primeiro volume em francês, ainda não saiu o segundo (ver Wil-
laime, 2000: 3). N o Brasil, já.

50 O título dado ao tratado sistemático de Sociologia da Religião varia:


na edição brasileira de Economia e sociedade, com tradução supervisionada
por Gabriel Cohn, é o capítulo V da parte II do volume I, e se chama “ So­
ciologia da Religião (tipos de relações comunitárias religiosas)” , que traduz
ao pé da letra o título alemão que consta da 5a edição revista por Johannes
Winckelmann de 1972, “ Religionssoziologie (Typen religiöser Vergemein-

102 O desencantamento do mundo


parágrafo 7 trata das afinidades eletivas entre as diferentes m o­
dalidades de religião e os estam entos e classes aos quais Weber
atribui o papel de “ cam ad as p o rta d o ra s” [T ràg er] das diferen­
tes atitudes ou m entalidades religiosas, ideia que ele desenvolve
em visada com parativa e de form a condensada na “ Introdução”
da Ética econôm ica das religiões m undiais (cf. Pierucci, 2 0 0 2 :
87-92). E quando analisa a religiosidade dos estratos intelectuais
que Weber introduz a noção de desencantamento do mundo. N o
passo 3, o recuo da crença na m agia está diretam ente relacio­
nado ao avanço do intelectualismo no interior das com unidades
religiosas.
A sociologia sistemática da religião desenvolvida em Econo­
m ia e sociedade, em tese m ais preocupada com a definição típi-
co-ideal de conceitos básicos que sirvam ao tratam ento socioló­
gico da religiosidade em geral, traz tam bém pronunciado pendor
com parativo, remetendo sempre a fatos das m ais diversas cultu­
ras e épocas. M uitas questões cruciais para nossa temática aí es­
tão em jogo, e eu procurarei evitar tornar longo dem ais meu co­
mentário, abordando os tem as m ais diretamente im plicados no
conteúdo do passo 3: a religiosidade ética, o m onoteísm o, o ju­
daísm o, a profecia em issária... em poucas palavras, o processo de
m oralização religiosa, deixando para os passos seguintes o trata­
mento mais detido da questão do sentido. A propósito, nem bem
com eçam os nossa cam inhada e W eber já está falando pela segun­
da vez de desencantamento e sentido. É que a questão do sentido

schaftung)” ; na versão americana em três volumes organizada por Guenther


Roth e Claus Wittich (1968), é o capítulo VI do volume II, e se chama “ Reli­
gious groups (The Sociology o f Religion)” ; na versão em espanhol de Eco­
nomia y sociedad (1944) é o capítulo V da parte II do volume I, e se chama
“ Sociologia de la comunidad religiosa (Sociologia de la religion)” . Em 1963,
o compêndio ganhou uma tradução para o inglês feita por Ephraim Fischoff
que mereceu uma edição como livro à parte, The Sociology o f Religion (We­
ber, 1963, abrev.: SR), que tem de quebra uma introdução assinada por Tal-
cott Parsons. O que sempre valoriza uma publicação.

Passo 3: Economia e sociedade 103


está indissociavelmente ligada ao processo de racionalização éti-
co-m etafísica da religiosidade, ou, para usar um termo que We­
ber pouco usa (ZB/G A RS I: 547) m as H aberm as destaca (1987:
20 9 ; 424), ao processo de “ eticização” [Etbisierung] das imagens
de m undo religiosas.
Vim os nos passos 1 e 2 que a Sociologia da Religião de W e­
ber é bem sensível ao fato sociológico de que os interesses “ religio­
s o s” se form am e se distribuem desigualmente numa população:
as m assas costum am ter necessidades ou interesses “ religiosos”
na verdade muito “ m ateriais” , ao p asso que letrados e intelec­
tualizados de m odo geral são capazes de interesses “ ideais” que
podem ser traduzidos diretamente em linguagem religiosa subli­
m ada, quando não teológica. Linguagem apropriadam ente dita
religiosa justamente porque intelectualizada. N essa linguagem in­
telectualmente sofisticada eles expressam não suas necessidades
terrenas, m as sua “ ânsia de salvação nobre” , sua busca de salva­
ção da “ aflição interior” , sua “ necessidade (metafísica) de senti­
d o ” . Concepções holísticas, totalizantes, do sentido do mundo e
da vida — vetores de novas orientações axiológicas — são pro­
duzidas seminalmente por figuras carism áticas, especialmente os
profetas, e m esmo depois de desenvolvidas e sistem atizadas elas
não falam , para W eber, de outra coisa senão da “ natural neces­
sidade racionalista do intelectualismo de compreender o mundo
com o um cosm os pleno de sentido” (EeS I: 343; E & S II: 505):

A salvação que o intelectual busca sempre é uma


salvação da “ aflição interior” [Erlösung von “innerer
N o t” ] e, por isso, por um lado, de caráter mais estra­
nho à vida, porém , por outro, de caráter mais profun­
do e sistem ático do que a salvação da miséria exterior
[Erlösung von äusserer N ot] que é própria das cam a­
das não privilegiadas. O intelectual, por caminhos cuja
casuística chega ao infinito, procura dar a seu m odo
de viver um “ sentido” coerente, portanto, uma “ uni­
dade” consigo mesmo, com os homens, com o cosm os.

104 O desencantamento do mundo


Para ele, a concepção do “ m undo” é um problem a de
“ sentido” . (EeS I: 343-344; E & S II: 5 0 6 ; W uG: 307-
308)

É na sequência im ediata desse trecho que se engata nosso


passo 3, que não custa reapresentar ao leitor:

Q uanto m ais o intelectualismo repele a crença na


m agia, e com isso os processos do m undo ficam “ de­
sencantados” , perdem seu sentido m ágico e doravante
apenas “ s ã o ” e “ acontecem ” m as não “ significam ”
mais nada, tanto mais urgente resulta a exigência, em
relação ao m undo e à “ conduta de vid a” com o um to ­
do, de que sejam p ostos em uma ordem significativa e
“ plena de sentido” . (EeS I: 344; E & S II: 506)

D aí para a desvalorização das realidades do mundo e uma


sedutora fuga do m undo, é um passo. W eber disseca: é a “ espe­
cífica fuga do m undo dos intelectuais” (EeS: 344). Com efeito,
as dificuldades que encontra neste mundo um m odo de vida que
se pretende em conform idade com uma ordem unificada do eu
individual, da vida pessoal e do m undo natural, levam no mais
das vezes os intelectuais religiosos à fuga m ística “ para fo ra ” do
m undo, pelo mergulho na mais pura imanência divina. M as não
é exatam ente disso que eu quero falar agora, e sim deste outro
aspecto im portantíssim o que Weber não deixa de anotar nesse
momento: a religiosidade intelectual que valoriza a contemplação
mística e procura a ilum inação extática, na medida em que é uma
religiosidade extracotidian a, é de si incapaz de desencantar o
mundo, e aí, por este viés, se casa perfeitamente bem, no nível
das m assas populares, no nível dos “ não intelectuais” [die Nicht-
intellektuellen], com esta outra form a de religiosidade e x tra­
cotidiana que é a m agia. W eber cita aqui exem plos concretos ti­
rados das religiões da China e da índia. São m etafísicas religio­
sas que não se conectam com a ação prática no dia a dia dos “ re­

Passo 3: Economia e sociedade 105


ligiosamente não m usicais” , no cotidiano das m assas. São reli­
giões universais que reproduzem éticas estamentais e aconchegam
toda form a de m agia:

Isso ocorre na ética estam ental confuciana da


burocracia, totalmente estranha à salvação, ao lado da
qual continuam existindo a m agia taoista e a graça sa ­
cram ental budista com o religiosidades populares pe­
trificadas [...]. O m esmo se dá com a ética de salvação
budista do estam ento m onacal, ao lado da feitiçaria
e da idolatria dos leigos, da persistência da m agia de
tabu e do novo desenvolvim ento da religiosidade so-
teriológica hinduísta. (EeS I: 343; E & S II: 506)

O m onoteísm o não é o único a poder reivindicar a qualifi­


cação ética da divindade. W eber reconhece que entre as divinda­
des do politeísm o existem alguns deuses que têm um caráter es­
pecificamente ético, nos lembra Paul Ladrière (1986: 105), coisa
que a gente m uitas vezes esquece. Só que, enquanto no politeísmo
o deus ético não passa de um entre vários deuses, no m onoteísm o
o deus ético é o único Deus. Aqui não existe noção de divindade
que não implique de saída sua qualificação ética. E é então que o
elo entre religião e ética se torna decisivo — no m onoteísm o. E
os m onoteísm os são três: o judaísm o, o cristianism o e o islã.51 O
deus ético não suscita nem m aior nem menor religiosidade que um
outro deus aético, m as, segundo W eber, aquele terá com o carac­
terística própria a capacidade de levar o sentido religioso “ para
dentro” do dia a dia, fora do espaço e do tem po extracotidianos
dos ritos religiosos, de suscitar — pelo m edo, nos contará Delu-
meau (1978) — um a verdadeira condução da vida [eine Lebens-
führung], ou seja, uma m aneira coerente, duradoura e previsível
de agir na vida ordinária. E essa conduta de vida terá a peculiari­

51 Ver parágrafo 12 da “ Sociologia da Religião” (EeS: 404-418).

106 O desencantamento do mundo


dade de ser racional antes de m ais nada por referência a valores
religiosos nem sempre racionais.
Os traços especificamente éticos do Deus m onoteísta a p a ­
recem cada vez mais claramente à medida que se desenvolve a con­
cepção racional da econom ia (a m eteorologia na agricultura, por
exemplo). Segundo essa concepção racionalizadora, o mundo obe­
dece às leis naturais e se constitui com o tal num cosm os, um uni­
verso ordenado no interior do qual o agir hum ano pode sistem a­
ticamente ter em conta fenôm enos racionalmente previsíveis (cf.
Ladrière, 1986). A divindade se confirm a com o deus ético que
pune e recom pensa à m edida que cresce a im portância dos laços
éticos que ligam o indivíduo a um m undo ordenado de “ obriga­
çõ es” , tornando assim sua conduta regular e previsível, suscetí­
vel portanto de interação fundada na racionalidade norm ativa.
Concebe-se a divindade com o um deus ético quando a ordem da
natureza e a ordem das relações sociais deixam de estar situadas
acim a dos deuses e se tornam um a criação — criatura — desse
deus supram undano, concebido com o a fonte e a autoridade mes­
m a da conduta m oral (Roshw ald, 1991). T al concepção pressu­
põe que o deus protegerá de toda violação a ordem justa que ele
criou. As relações com o deus passam a ser provadas na maneira
justa de um agir ordinário que se conform a à ordem justa da qual
o deus é o criador: “ Se de fato obedecerdes aos meus m andam en­
tos [...]” (Deuteronôm io 11, 13).
N ão é mais uma questão de subm eter pela m agia as potên­
cias suprassensíveis da “ n atureza” ao s desígnios desconexos e
inconstantes dos hom ens, nem de pacificá-las ritualm ente sem
considerações minimamente universalizáveis de ordem ética. Tra-
ta-se agora de observar a lei de Deus. A observância da lei, consi­
derada com o expressão da vontade do Deus único e de sua divi­
na justiça, torna-se agora o meio específico de atrair para si e para
todo o povo a bênção divina. N o m onoteísm o, ao contrário do
politeísm o, há Uma Só Lei, que se aplica a todos igualmente. Um
só Deus, uma só lei, uma ordem cósm ica e social. O Uno, em su­
ma. A metafísica propriamente dita. Eis, pois, como surge no mun­

Passo 3: Economia e sociedade 107


do, segundo W eber, a ética religiosa. Eis senão quando a religio­
sidade se eticiza. “ T u és justo dem ais, Javé, para que eu entre em
processo contigo. M as falarei contigo sobre questões de direito”
(Jerem ias 12, 1).
Se a religião que assim se transform ou em ética religiosa ra ­
cional agora porta consigo o princípio de uma ruptura radical com
a m agia, então o judaísm o antigo é a expressão definitiva dessa
decisiva ruptura cultural que teve lugar no m undo antigo. E isso
que faz dessa religião ético-profética, na term inologia weberiana,
um a “ individualidade h istórica” (Burger, 1987; O akes, 1989).
Senão, vejam os. A lei dada por M oisés ao povo de Israel si­
tua o judaísm o na origem de um processo de racionalização ética
da religiosidade que só se com pletará com a emergência do que
Weber chama o Ocidente moderno. O racionalism o ético de M oi­
sés, que consistentemente se oporá aos cultos agrários e aos ritos
orgiásticos, vai se desenvolver no sentido de um a desvalorização
crescente, na verdade um a repressão recorrente, dos m om entos
efêmeros e extracotidianos de emoção e embriaguez religiosas, pro­
curando se internalizar nos indivíduos com o um habitus perm a­
nente de natureza ético-racional. Esse processo se radicaliza com
o advento dos profetas pré-exílicos, os “ profetas da desgraça” ,
lembra Burger (1987), fenômeno que em Israel se inicia ainda no
período pré-exílico, a partir do século VIII a.C . Só o protestan­
tism o ascético, dois mil anos depois dos profetas bíblicos, com ­
partilhará com o judaísm o ético-profético a m esm a repulsa à sa-
cralização de toda e qualquer m ediação entre Deus e o homem,
de toda graça m ágico-sacram ental. E essa atitude, radicalizada ao
m áxim o no período heroico de constituição da m odernidade, vai
se revelar capaz de exercer uma influência extraordinariam ente
forte sobre a totalidade da vida de uma pessoa no decorrer não
dos anos, m as dos dias, de cada dia, e favorecerá o desenvolvi­
mento de uma arregimentação ético-racional da estrutura de cons­
ciência, que passa a operar com o fator aglutinador e unificador
da personalidade e da conduta de vida “ com o um to d o” . “ Condu­
ta de vida com o um to d o ” : são palavras do passo 3. A exigência

108 O desencantamento do mundo


(sistêmica) é dirigida não só ao m undo, m as “ à conduta de vida
com o um to d o ” [ais G anzen), uma “ dem anda interior” de que o
mundo e a vida sejam sistem atizados, tornados coerentes e preen­
chidos de sentido. V oltarem os a isto, pois W eber tam bém sem ­
pre volta.
A profecia em issária do judaísm o antigo é praticam ente si­
nônimo de desencantamento do m undo com o projeto. E na se­
gunda versão d ’A ética protestan te, com o verem os, W eber vai
agregar a ela o pensam ento científico grego na cadeia causal do
processo de desencantamento. (Veja-se o passo 14, em bora aí se
faça essa junção de form a elíptica.) A atenção de W eber parece
m esm o estar toda voltada para a profecia em issária peculiar ao
judaísm o pré-exílico com o o fator crucial de sistem atização ra­
cional da imagem de m undo ético-religiosa. N ão se trata apenas
de postular que o m undo é ordenadam ente significativo, que ele
é um cosm os, pois disso tam bém foram capazes as im agens de
mundo religiosas da Á sia Oriental — trata-se, além disso, de exi­
gir que tam bém e principalmente a vida cotidiana seja em tudo e
por tudo subm etida a um a ordem dotada de sentido, que ela seja
essa ordem significativa. Trata-se de transform ar o “ acontecer”
diário numa “ condução da vid a” no sentido forte da expressão
[eine Lebensführung].52 E do ponto de vista dos profetas éticos
bíblicos, a vida, o m undo vivido, os acontecim entos sociais e p o ­
líticos transfiguram-se em fatos da “ História da Salvação” (cf. Ber-
ger, 1963) e, enquanto tais, tom am a frente dos fenôm enos natu­
rais com o portadores de um sentido unificador que os articula,
os engrandece e os ultrapassa.
Ao conceber o “ m undo” com o um problem a de sentido éti-
co-m etafísico, o intelectualismo repele — zuriickdràngt — , quer

52 Os tradutores brasileiros de Economia e sociedade, com o aval de


Gabriel Cohn, revisor técnico da tradução, preferem dizer condução da vida
em vez de conduta de vida. E não custa nada registrar que Thomas Burger
traduz Lebensführung para o inglês como governance oflife (Burger, 1987:
190).

Passo 3: Economia e sociedade 109


dizer, afasta, faz recuar as práticas m ágicas, porquanto de saída
ele já tornou teoricamente impossível a crença num “ sentido m á­
g ico ” , por desconexo e incongruente, dos processos e sucessos
naturais e sociais, que, “ reen caixad os” num a outra ordenação
inteiramente heterogênea ao m onism o m ágico indiferenciado, se
tornaram agora religiosam ente desencantados. O s acontecimen­
tos da vida tiveram seu encanto quebrado pela exigência ético-
-metafísica de que sejam dispostos numa ordem significativa, que,
ela sim, lhes confere um sentido agora unificado e totalizante; ela,
sim, faz dos fenôm enos naturais e dos eventos sociais, antes to ­
m ados separadam ente com o coisas que aconteciam “ a favo r” ou
“ con tra” e tinha cada qual um a explicação tópica suficiente, um
K osm os; ela, sim, faz dos atos hum anos avulsos um a “ conduta
de vid a” , um a vida governada. A estrutura dessa atribuição p rá­
tica de sentido implica sempre uma sistem atização e, portanto, a
unificação congruente das ações antes pensadas isoladam ente, a
concatenação coerente das “ boas o b ra s” antes avulsas e conta­
bilizadas um a por um a na m entalidade do catolicism o medieval
(aliás fartam ente m agificado nos traços com que M ax W eber o
pinta n’A ética protestante) ou, melhor dizendo, na m entalidade
comum às religiões m ágico-rituais, ao ritualism o m ágico, numa
palavra, à m agia. Essa preocupação em conferir à ação ordinária
um sentido que a u ltrap assa, p reocu pação torn ada disposição
permanente e vigilante, reflexiva e articulante, é identificada por
Weber com o termo “ intelectualism o” .
Diz W eber que os acontecim entos do m undo se tornaram
entzaubert: desencantados, desenfeitiçados. O em prego da voz
passiva se oferece com o uma oportunidade para alertar os mais
açodados quanto ao fato de que não é o mundo (o mundo m oder­
no, hélas!) que “ nos desencanta” por algum a razão, m as é o mun­
do ele m esm o que “ se torna desencantado” . São os processos e
sucessos deste m undo [die Vorgänge der Welt] que “ ficam desen­
can tad o s” , não nós, os sujeitos m odernos, tardom odernos, pós-
-m odernos, pós-m etafísicos, pós-históricos, en bref, pós-tradi-
cionais, que teríam os nos desencantado “ co m ” a vida moderna

110 O desencantamento do mundo


e, ainda por cim a, assim “ desiludidos com o m undo” , talvez nos
im aginássem os estar sendo retratados quando W eber fala em de-
sencantam ento... do m undo. N a realidade estam os sim plesm en­
te confundindo desencantam ento “ d o ” m undo com “ sentimen­
to s” ou “ estados de espírito” de desencanto, decepção, desilusão,
desengano, desapontam ento. D esolação ?, tam bém . E desam pa­
ro, disempowerment, desespero, depressão... nada a ver com We­
ber, para quem desencantam ento do m undo rim ava com ascetis­
mo intram undano, que por sua vez e ao contrário do ascetism o
invectivado por N ietzsche, rim ava com muita coisa, menos com
disem pow erm ent, conform e têm dem onstrado os trabalhos de
Harvey Goldm an (1988 e 1995) com bons e fartos argum entos,
inclusive textuais.
Para terminar este passo: no brevíssim o ensaio com parati­
vo sobre “ As religiões m undiais e o ‘m undo’ ” inserido com o p a ­
rágrafo 12 no final do capítulo dedicado à Sociologia da Religião,
há um a passagem extraordinariam ente densa e estilisticamente
forte em que W eber se refere ao desencantam ento do m undo —
sem usar o sintagm a — com o realização histórica única e exclu­
siva do protestantism o puritano. Ele usa o advérbio “ som ente”
[nur\, abrindo com ele o período cujo predicado será a locução
verbal idiom ática alemã “ den G araus m acben” + dativo, cujo sig­
nificado é fortíssim o: significa nada menos que “ an iquilar” .53

Somente o protestantism o ascético efetivamente


aniquilou a m agia [Nur der asketische Protestantism us

53 É interessante notar que Weber emprega aqui a mesma expressã


idiomática “ den Garaus macben" que usa na conclusão do estudo sobre a
China (ver passo 4), quando diz lá que “ as manifestações mais característi­
cas (do protestantismo ascético) eliminaram a magia do modo mais comple­
to ” (GARS I: 513; CP: 151), frase que, na versão em espanhol, vem traduzi­
da também por uma outra expressão idiomática: “han dado el más completo
golpe de gracia a la m agia” (ESSR I: 505), que em português seria o golpe,
ou tiro, de misericórdia.

Passo 3: Economia e sociedade 111


machte der M agie... wirklich den G araus]. (EeS I: 416;
W uG: 378)

V ejam os a passagem toda para melhor saborear o contras­


te que W eber estabelece entre o protestantism o ascético com sua
vontade de exterm ínio da m agia e a “ religiosidade popular asiá­
tica” , retratada com o um permanente “ jardim encantado” :

Somente o protestantism o ascético efetivamente


aniquilou a m agia, a extram undanidade da busca de
salvação e a “ ilum inação” contemplativa intelectualista
como sua forma mais elevada; somente ele, precisamen­
te em meio ao esforço dedicado ã “ p ro fissão ” intra-
mundana — na verdade o oposto da concepção de pro­
fissão hinduísta, que era estritamente tradicionalista —
criou os m otivos religiosos para buscar a salvação no
desempenho profissional m etodicam ente racionaliza­
do. Para a religiosidade popular asiática de qualquer
tipo, ao contrário, o m undo permaneceu um grande
jardim encantado [blieb dagegen die Welt ein grosser
Z aubergarten]: a veneração ou a coação dos “ espíri­
to s” , a busca de salvação ritualista, idolátrica, sacra­
mental, continuaram sendo o cam inho para se orien­
tar e se garantir na prática. (WuG: 379; ver EeS I: 416;
grifo do original)

Para que uma religião racionalizada desencante o m undo,


ela precisa ser portadora de um senso de dever ser que vincule a
vida cotidiana de form a duradoura, e não eventual, com o faz a
m agia; é preciso que a racionalização religiosa tome o rum o da
m oralização religiosa do cotidiano. E para que o desencantamen-
to se cum pra plenamente com o racionalização religiosa, para que
ele chegue a seu term o religioso, a tendência intelectualista do
virtuose religioso a fugir do m undo deverá ser superada por uma
ética intram undana que faça incidir o valor religioso diretam en­

112 O desencantamento do mundo


te sobre a organização racional do trabalho e da produção indus­
trial, acreditando-se que a í reside a bênção do Altíssim o sobre os
que ele, por puro am or, escolheu e predestinou à salvação eterna.
Segue-se disso, portanto, justamente o oposto do que podia
esperar da ideia de desencantam ento o senso comum acadêm ico,
e em especial o senso comum “ im puram ente acadêm ico” dos so ­
ciólogos “ religiosos” da religião (Pierucci, 1997a; 1997b; 1999):
para Weber, dar um sentido unificado e unificador à totalidade
da vida e do mundo é a melhor maneira de desencantá-los, de afir­
m ar sua inerente carência de sentido imanente. Parece descon­
certante, m as é isso aí. E que o desencantam ento da religiosidade
abre-a para a exigência ética no meio do m undo e isso assum e,
de im ediato, a form a de um conflito sem trégua entre essa “ ne­
cessidade m etafísica” e “ os processos do m undo” em seu estado
presente e puram ente fáctico, puram ente existente. A eticização
da conduta é um verdadeiro “ desencaixe” , com o hoje se diz na
sociologia contem porânea, um disembedment.

Passo 3: Economia e sociedade 113


9.
PASSO 4:
A R E L IG IÃ O DA CH IN A
(1913, 1915)

Cada conto de fadas chinês revela o enraizamen­


to popular da magia irracional. Pululam pelo mundo fe­
rozes deuses ex machina que por capricho são capazes
de tudo. A única ajuda é o contrafeitiço.

M ax Weber, China: 200

BREVE N O TÍC IA DA OBRA

Weber iniciou em 1915 a publicação da grande série de en­


saios de sociologia com parativa cham ada Ética econôm ica das
religiões m undiais, e a m onografia sobre a China foi a prim eira a
sair. K onfuzianism us, este era o título, saiu no volume 41 (n° 1 e
2) do Archiv für Sozialw issenschaft und Sozialpolitik de outubro
e dezembro de 1915. Viu a luz bem acom panhado, é bom que se
diga, na m edida em que vinha intercalado entre dois ensaios teó-
rico-reflexivos de escopo geral, de um lado a “ Introdução” [Ein­
leitung] e do outro a Consideração interm ediária [Zwischenbe­
trachtung]. Segundo o próprio W eber, K onfuzianism us foi escri­
to em 1913 (Einleit/GARS I: 2 3 7 ; ESSR I: 233).
O texto foi todo retrabalhado para um a segunda edição em
1920, passando a integrar o prim eiro dos três volumes dos E n ­
saios reunidos de Sociologia da Religião [G A R S|, que, com o sa ­
bem os, foi o único dos três que W eber teve tem po de apresentar
com pleto ao editor, tendo falecido em seguida. N a segunda ver­
são, W eber introduziu adaptações, interpolações e adendos, am ­
pliou consideravelmente as partes dedicadas aos aspectos econô­

114 O desencantamento do mundo


m ico-estruturais da sociedade chinesa, basicam ente de estratifi­
cação social e organização política, remanejou certos trechos e,
o que m ais cham a a atenção, aum entou muito o número de capí­
tulos, que de quatro na versão de 1915 p assaram a ser oito na de
1920. Até o título do ensaio foi m udado. Espichou, ficando a s­
sim mais com pleto: Konfuzianism us und Taoism us. Falar, pois,
do estudo sobre a China é falar de uma obra com duas versões
distintas, a de 1915, do Archiv, e a de 1920, dos En saios reuni­
dos de Sociologia da Religião.
Se a versão definitiva é de 1920, e se aqui estam os procuran­
do seguir a ordem cronológica de redação dos textos de Weber,
por que não jogar m ais para a frente o tratam ento da passagem
sobre desencantam ento extraída do estudo sobre a China? A ra­
zão é uma só: porque o capítulo de conclusão em que se encon­
tra a referida passagem — texto fam oso por traçar antológico
paralelo de duas condutas religiosas de vida, o confucionism o e
o puritanism o, salientando sua abissal diferença cultural — per­
maneceu praticam ente intacto na segunda versão do ensaio. Os
pequenos ajustes deixaram inalterado o conteúdo original. Ba-
seio-me aqui em estudo de Schluchter,54 para afirm ar que não
houve nenhuma alteração de m onta no R esultat, e que, por con­
seguinte, a passagem relativa ao desencantam ento do m undo foi
escrita por Weber “ dois anos an tes” de 1915.

C O M E N T Á R IO

N o estudo sobre as religiões originárias da China, conheci­


do mundialmente pelo título em inglês The Religion o f China, o
sintagm a desencantam ento do m undo tam bém aparece uma vez
só. E parece que vem com tudo: sua definição é esclarecedora,

54 “ Confucianism and Taoism: World Adjustment” (Schluchter, 19


85-116), publicado em alemão em 1985.

Passo 4: A religião da China 115


didática mesm o, além de superlativamente enfática na explicita­
ção do sentido “ literal” que lhe foi conferido nessa aventura so­
ciológica em que W eber se lançou, tendo em vista a localização
de nexos m ulticausais na relação entre econom ia e cultura; não
um dos sentidos, não um sentido a m ais, dentre uma infinidade
de significações e efeitos de sentido possíveis, m as o sentido es­
trito, tal com o construído logicamente por seu autor que assim o
designou para funcionar com o ferram enta válida e útil em sua
sociologia co m parada dos racionalism os das visões de m undo
[W eltanschauungen] e das condutas de vida [Lebensführungen\.
N ão custa nada relembrar neste m om ento a program ática afir­
m ação que W eber deixou expressa no início da C onsideração
interm ediária, segundo a qual sua sociologia com parada das re­
ligiões m undiais queria e devia “ ser ao mesmo tem po uma con­
tribuição à tipologia e à sociologia do próprio racionalism o” (ZB/
G A RS I: 5 3 7 ; ESSR I: 528; R R M : 240; EnSoc: 372).
Antes de adentrar a encantada Ásia weberiana a com eçar de
“ su a ” encantadíssim a China, convém nos determ os no contexto
textual no qual ocorre o p asso 4, e este contexto se encontra nos
dois prim eiros p arágrafos alem ães da conclusão do ensaio, o Re-
sultat, que vale a pena revisitar na tradução brasileira de Gabriel
e Amélia Cohn:

Para apreciar o nível de racionalização que uma


religião representa podem os usar dois critérios bási­
cos, que se inter-relacionam de várias m aneiras. O pri­
meiro é o grau em que um a religião despojou-se da
magia-, o outro é o grau de coerência sistem ática que
imprime à relação entre Deus e o m undo e, em con­
sonância com isso, à sua própria relação ética com o
mundo.
N o tocante ao prim eiro ponto o protestantism o
ascético nas suas várias m anifestações representa um
grau extrem o. As suas m an ifestações m ais caracte­
rísticas elim inaram a m agia do m odo m ais com pleto

116 O desencantamento do mundo


[haben der M agie am vollständigsten den G arau s ge­
m acht].55 [...]
O pleno desencantam ento do m undo foi levado,
apenas aí, às suas últimas consequências. |...]
A caça às feiticeiras tam bém floresceu na N ova
Inglaterra. M as, enquanto o confucionism o deixava
intacta a m agia em sua significação positiva de salva­
ção, aqui toda a m agia tornou-se dem oníaca e apenas
tinha valor religioso o racionalmente ético: a ação con­
forme ao m andam ento divino, e m esmo isso, apenas a
partir do sentimento piedoso. (G A R S I: 512-513, gri­
fos do original; CP: 151-152; China: 226-227)

Eis-nos diante de um a definição explícita de desencanta­


mento do m undo, agora com o resultado, não com o processo: o
grau em que um a religião se despojou da m agia.
C aso o leitor ainda se sentisse relutante em acatar a concei-
tuação estrita de desencantam ento do m undo, ao atentar para
essa explicação (ex-plicatio = des-dobra) do sentido literal do ter­
m o, diante de form ulação tão enxuta e precisa, tão bem recorta­
da e aprum ada, não teria mais com o deixar de acolhê-la. N a luta
encarniçada do puritanism o com o catolicism o que inaugura a
m odernidade, Entzauberung der Welt perfila-se na teorização
w eberiana nom eando exatam ente a “ rem oção da m agia sacra­
m e n ta r (atitude mais consequente nalgum as denom inações, co ­
mo os calvinistas e os anabatistas tardios, em especial os quakers,
menos radical noutras). Isto em prim eiro lugar. Em prim eiro lu­
gar, insisto, essa atitude de varrer a m agia do exercício da reli­
gião, posicion am en to agon ístico em tudo e por tudo afim ao
iconoclasm o, isto é, à destruição das im agens, essa outra m arca
registrada da puritana rebelião anti-idolátrica “ no Big Bang da

55 N o passo 3 já comentamos sobre esta expressão alemã e suas tra­


duções (ver nota 53).

Passo 4: A religião da China 117


m odernidade” .56 M as não só. O que no fundo im porta é que
aqui se nega à m agia, qualquer que seja, todo valor salvífico p o ­
sitivo, toda vigência religiosa, toda eficácia e poder com o meio
de salvação ou até m esm o apenas enquanto busca de salvação,
valor religioso que se vê totalmente transferido para a boa con­
duta diária, uma vida de trabalho secular “ santificada” , o agir
cotidiano em conform idade com princípios éticos exarados na
form a de m andam entos divinos indiscutíveis. E internalizados,
in trojetados, op erando com o acicates da ação religiosam ente
norm atizada from within. É nessa chave que W eber vai poder
olhar para a religiosidade ético-ascética do Ocidente, deprecia-
dora [entwertend] e perseguidora implacável da m agia,57 só que
agora de um ponto de vista com parativo com a religião dos m an­
darins chineses, que nesses precisos term os nunca peitou as práti­
cas m ágicas, nem na base da argum entação, nem violentamente.
O passo 4 nos leva diretamente aos dois eixos possíveis de
racionalização das imagens de m undo religiosas que Weber isola
e enumera, distinguindo-os sem no entanto os desenlaçar com ­
pletamente: dois critérios básicos para se averiguar, num estudo
com parativo das várias religiões, o grau de racionalização alcan­
çado por um a form a histórica de religiosidade: (1) o grau em que
“ se despojou da m agia” ; (2) o grau de unidade sistem ática que
imprime à relação entre Deus e o mundo e, em consonância com
isso, à sua própria relação ética com o m undo. O enunciado sis-
tem ático-formal dessa passagem -chave constitui verdadeira regra
do m étodo sociológico para a análise com parada das imagens de
m undo religiosas e seus correspondentes m odos de vida.

56 A ideia de aplicar a expressão “ Big Bang da modernidade” à con­


fluência histórica entre capitalismo no sentido moderno da palavra e protes­
tantismo ascético, tal como interpretada por Weber, é de Serge Moscovici
(1990: 143).

57 Weber não deixa de mencionar os Hexenprozesse, os processos


condenatórios das feiticeiras (cf. CP: 152; GARS I: 513).

118 O desencantamento do mundo


Despojar-se, despir-se, desembaraçar-se da magia [die M agie
abstreifen\. a noção de desencantamento, está-se vendo, tem uma
significação muito mais restrita e muito menos polissêmica do que
a de racionalização. Sempre que possível eu tenho procurado cha­
m ar a atenção para o cam po de ação mais contido do conceito
de desencantam ento do m undo, sua m enor circunferência, seu
alcance menos indeterm inado, e cuidadosam ente delim itado pelo
próprio W eber (adem ais de fortemente sinalizado pela própria
etim ologia), que o restringe àquele específico espaço da esfera
religiosa no qual desponta em antagonism os efetivos a sempre
tensa relação da religião com a m agia, ou, se quiserem, da religio­
sidade ético-ascética com a religiosidade m ágico-ritualista. Um
verdadeiro cam po de luta58 cultural se abre no Ocidente por ra ­
zões inteiramente históricas. É importante fazer essa delim itação,
não só para que se possa ter m aior clareza quanto aos tortuosos
caminhos percorridos pelo processo geral de racionalização cultu­
ral do Ocidente, m as é im portante tam bém — e eu diria, também
e principalmente — para as teorizações que atualmente se produ-

58 Sobre a luta sem trégua “ religião versus m agia” , ver também D


heim (1998) [1912] e M auss (1950). Quando Émile Durkheim chama a aten­
ção para “ a aversão profunda da religião pela magia e, consequentemente,
[para] a hostilidade da segunda com a primeira” , embora esteja se referin­
do a fenômeno que ele considera universal, suas considerações na verdade
se aplicam — tipicamente — ao caso particular da história ocidental. Acres­
cente-se aos arrazoados de Durkheim o complemento de lugar “ no Ociden­
te” , e eis que eles imediatamente entram nos eixos weberianos. Se não, ve­
jamos: “ A magia [no Ocidente] põe uma espécie de prazer profissional em
profanar as coisas santas — por exemplo, na missa negra a hóstia é profa­
nada — e nos seus ritos ela assume posição oposta à das cerimônias reli­
giosas. A religião, por sua vez, embora não tenha sempre e em todo lugar
condenado e reprimido os ritos mágicos, olha-os de modo desfavorável. [...]
Há nos procedimentos do mago [ocidental] algo de profundamente antirre-
ligioso. Ainda que possa haver alguns pontos de contato entre essas duas
espécies de instituições, é, entretanto, difícil que [no Ocidente] elas não se
oponham nalgum ponto, e é tanto mais necessário encontrar o ponto em
que se distinguem” (Durkheim, 1998: 75, cf. Pierucci, 2001).

Passo 4: A religião da China 119


zem, com louvável pretensão sistem atizadora, na área cada vez
m ais especializada de Sociologia da Religião (cf. Stark & Bain-
bridge, 1985; 1996). É básico para um cientista social que pre­
tende se especializar no estudo das religiões entender, por exem ­
plo, que desencantam ento em sentido técnico não significa perda
para a religião nem perda de religião, com o a secularização, do
mesmo m odo que o eventual incremento da religiosidade não im­
plica autom aticam ente o conceito de reencantam ento, já que de­
sencantam ento em Weber significa um triunfo da racionalização
religiosa: em term os puram ente tipológicos, a vitória do profeta
e do sacerdote sobre o feiticeiro: um ganho em religião m oral,
m oralizada, isto é, expandida em suas estruturas cognitivas e for­
talecida em sua capacidade de vincular por dentro os indivíduos.
Weber dedica toda uma seção do estudo sobre a China a dis­
cutir a im portância e a enorme presença da m agia naquela cultu­
ra, im portância tam bém quantitativa. É m uita m agia na China, e
m agia por todo canto, em todos os níveis sociais. O próprio impe­
rador é concebido com o um fazedor de chuva (China: 31 e 261,
nota 60). Por isso, o prim eiro aspecto dessa sua pesquisa históri­
ca a interessar o sociólogo da religião que habita em mim, além,
é claro, da cau d alosa e inerradicável presença da m agia numa
cultura superior com o a chinesa, foi o destaque dado por Weber
ao im pacto positivo e alentador que o surgimento de um a m etafí­
sica religiosa do porte do taoism o de Lao Tsé acabou tendo sobre
as tradições m ágicas populares. Com o taoism o, estam os diante
do exem plo m áxim o de uma racionalização metafísica de caráter
holístico e unificador que, ao contrário do que ocorreu com a
racionalização profético-metafísica do judaísm o, só fez aum entar
o fôlego do m agism o, em vez de o afastar, ou pelo menos de o
contradizer e depreciar. D esconfio que isso queira dizer que, em
última análise, a m etafísica taoista não conseguiu trazer à tona
em sua imagem de m undo a distinção entre o que é natural e o
que é cultural. Isso se deve ao fato de não ter conseguido conce­
ber de m aneira forte, nem fundam entar consistentemente, a exis­
tência de um m undo transcendente que valesse a pena. Foi por­

120 O desencantamento do mundo


tanto por insuficiência de dualism o em seu arcabouço teórico que
o taoism o colou sua “ imagem de m un do” ao m undo desde sem ­
pre existente, à pura imanência, o que o levou a se ajustar harm o­
niosamente ao velho pensam ento m ágico, y com pris o m agism o
arcaico das cam adas populares, reabastecido agora e revalorizado
por um racionalism o de tipo holístico-m etafísico de aceitação e
afirm ação do mundo.
Diferentemente do confucionism o dos literati, religião ofi­
cial e “ irreligiosa” que, se não perseguia a m agia popular, pelo
m enos a discrim inava e desvalorizava, o taoism o a acolheu gene­
rosamente e, nutriz, nunca a deixou de retroalim entar. N a seção
“ R acionalização sistem ática da m agia” do capítulo VII, Weber
descreve a longa duração e permanência dessa amigável relação
entre religião e m agia com o uma relação de recíproca polinização,
que de fato se m ostra muito distante, na form a e na direção, do
antagonism o que entre am bas se desenvolveu no Ocidente judai-
co-cristão. Reinhard Bendix, no com entário que dedicou a esse
ensaio em seu livro pioneiro59 de 1960, M ax Weber: An Intellec­
tual Portrait, deu a devida atenção à referida seção, dela fazendo
um resumo que vale a pena transcrever:

Com essa expressão — racionalização sistem áti­


ca da m agia — W eber queria dizer que o conhecimen­
to em pírico e a habilidade dos artesãos [chineses] se
desenvolveram no sentido das ideias e práticas m ági­
cas. Devido a seu suposto significado m ágico, o conhe­
cimento do calendário foi utilizado em prim eiro lugar
na alocação do trabalho agrícola segundo as estações
apropriadas, m as subsequentemente tornou-se a base
para a alocação das tarefas e deveres rituais concer­
nentes ao Cosm os. A utilização m ágica do calendário

59 Pioneiro, pelo menos, no generoso tratamento que dava aos ensai


de Weber sobre o judaísmo antigo e as grandes religiões do Oriente.

Passo 4: A religião da China 121


tornou-se fonte de lucro para os adivinhos oficiais. Em ­
bora a astronom ia fosse cultivada, a astrologia flores­
ceu na medida em que m agos e feiticeiros usavam fe­
nôm enos tais com o a visibilidade de Vênus, terrem o­
tos, nascimentos m onstruosos e m uitos outros como
sinais reveladores em cima dos quais decifravam se os
espíritos estavam ou não pacificados. Do mesmo modo,
a medicina e a farm acologia chinesas desenvolveram-
-se no sentido mágico, caracterizado pela busca de plan­
tas que prolongavam a vida e pela crença de que o cor­
po humano estava relacionado com elementos naturais,
com o o clima e as estações. Acreditava-se tam bém na
possibilidade de obter curas por meio de ginásticas e
de técnicas respiratórias destinadas a arm azenar o fô­
lego, considerado como o portador da vida. A geoman-
cia, ou a prática de adivinhação por meio de desenhos
aleatórios com postos por poeira, pontos ou pedregu­
lhos, era em pregada para determinar não só a época
apropriada para a construção dos edifícios, m as tam ­
bém sua form a e localização. Isso, por sua vez, levou
à ideia de que as form as das m ontanhas, das pedras,
das árvores, das águas e de outros objetos tinham sig­
nificado prem onitório. [...] W eber acreditava que o
taoism o, ao encorajar essas crenças populares, ajudou
a criar uma imagem de m undo, um a cosm ovisão, se­
gundo a qual espíritos caprichosos eram capazes de,
sem qualquer m otivação, praticar ações de todo tipo,
e que a fortuna ou infortúnio das pessoas dependia da
eficácia de encantam entos e desencantam entos. Esta
imagem de um “ jardim encantado” tinha significado
especial para a vida econôm ica: por questão de princí­
pio, o taoism o era contrário a quaisquer inovações, pois
elas tendiam a provocar a ira dos espíritos. Com efei­
to, a crença nos espíritos levou à ideia de que todo ar­
tifício técnico e todo empreendimento do tipo constru-

122 O desencantamento do mundo


ção de estradas, canais ou pontes era perigoso e reque­
ria precauções m ágicas especiais. (Bendix, 1986: 124-
125, grifo meu)

Cham ar de “ jardim encantado” a essa encantaria em pro­


fusão não me parece nenhum exagero literário-sensorial da p ar­
te de M ax Weber. É concisão. N ão bastasse a exuberância toda
do m agism o ali, que é popular e de elite, as grandes doutrinas
religiosas asiáticas (e quando diz asiáticas W eber está se referin­
do empiricamente apenas à China e à índia, se bem que às vezes
ao Jap ão ) foram criação de intelectuais inseridos em estratos so ­
cial e politicam ente privilegiados, com a vantagem , portanto, de
não se verem suas elucubrações intelectualistas expostas à com ­
petição da parte da profecia ética, cu jos p ortad ores, segundo
Weber, são sempre os estratos plebeus das cidades, os estratos
“ cid ad ão s” . O conhecimento que os intelectuais religiosos das
cam adas privilegiadas asiáticas produziam era, antes de m ais
n ada, cosm ológico-reflexivo e não teleológico-produtivo, para
usar aqui antigas sugestões de H aberm as (1987a: 45s). Weber
refere-se a eles com o “ intelectuais que encaram a vida e ponde­
ram seu sentido com o pensadores, m as não com partilham suas
tarefas práticas com o fazedores” (índia: 177). Sua atitude perante
o m undo está tipificada na figura do brâm ane indiano que se vê
e se porta com o “ m ago ordenador do m undo” (E & S: 512). N a
índia, a própria casta sacerdotal é com posta de m agos: sacerdo­
tes que pensam m agicamente, agem m agicamente, am eaçam m a­
gicamente, adm inistram m agicam ente os bens de salvação. Um
pouco com o ocorria, mutatis m utandis, na Idade M édia católica,
cultura na qual — lascou W eber sem rodeios n’A ética protes­
tante — “ o sacerdote era um m ago” [der Priester w ar ein Magier]
(PE/GARS I: 114; EPbras: 81; ESSR I: 117).60

60 “ Com efeito” , comenta Paul Ladrière, “ para Weber a Idade Médi


europeia é a época do contraste entre uma religiosidade cristã genuinamente

Passo 4: A religião da China 123


Tam bém no budism o popularizado ocorreu um processo de
“ m agificação” do serviço divino, à sem elhança do catolicism o
medieval. E, se prestarm os atenção, vam os ver que enquanto no
judaísm o antigo e no m oderno cristianism o W eber identifica um
processo de “ desm agificação” da relação religiosa, na índia, na
China e na Europa medieval e até m esm o no Islã, ele identifica o
processo inverso, de M agisierung [m agificação] da religiosidade
(cf. W uG: 2 8 4 ; EeS I: 320). Exem plos m áxim os: o taoism o desde
o princípio e o budism o tardio.
A intelectualidade plebeia heterodoxa acabou secretando na
China um a cam ada de m istagogos totalmente indulgentes com a
m agia popular. R eligiosam ente am bíguos, eles eram sacerdotes-
-m agos que, por baixo do pan o de um a autoproclam ada hete­
rodoxia taoista, na verdade condescendiam largamente com o en­
tranhado apego das m assas aos expedientes da feitiçaria, cuja ca­
suística há milênios acolhia interesses “ religiosos” intraterrenos
tipicamente representados em dem andas do tipo: “ com o alcan­
çar longevidade” , essa obsessão oriental quase tipo ideal. Dife­
rentemente dos profetas de Israel, o que os intelectuais taoistas
fizeram em última análise foi sistem atizar a m agia popular, in­
corporando-a numa m etafísica religiosa inclusiva que na origem
parecia caracteristicam ente “ intelectualista” , e por isso, lembra
Weber, mística e escapista, tão incapaz quanto a m agia de racio­
nalizar a vida cotidiana (China: 199ss; cf. Sadri, 1992: 61-64).

ética (que tinha as cidades como sedes e os estratos cidadãos como portado­
res) e um cristianismo que assume os traços característicos de uma religião
ritualista e formalista — mágica, numa palavra — moldado de acordo com
os interesses materiais e ideais dos estratos feudais dominantes. A nobreza
guerreira e as forças feudais não tinham nenhuma propensão a se tornar
portadoras de uma ética religiosa ativa. E próprio do guerreiro afrontar com
coragem e valentia a morte e a irracionalidade do destino. Ele não exige de
sua religião senão que ela o proteja contra aquilo que a seus olhos são feiti­
ços maus, magia negra, e lhe assegure os ritos cerimoniais adequados à ideia
que ele faz da dignidade de seu status social” (Ladrière, 1986: 111).

124 O desencantamento do mundo


N a China, tanto a ortodoxia (o confucionism o) quanto a
heterodoxia (o taoism o) foram originalmente religiões de intelec­
tuais, não da m assa (cf. M olloy, 1980). O primeiro exem plificava
a indiferença burocrática para com os sentimentos religiosos, e o
segundo condensava a fuga do m undo individualista para a torre
de m arfim (China: 143ss), assim com o, de sua parte, tam bém o
fazia uma ala do budism o. A ortodoxia confuciana, de um lado,
tolerava os traços mais arraigados da religiosidade popular, tais
com o o culto dos an tepassados e a coação m ágica dos espíritos,
e do outro, m enosprezava (e só em raríssim as ocasiões chegou a
combater) o escapism o individualista prom ovido pelo budism o e
pelo taoism o. Este últim o, por sua vez, procurou cevar form as
bem -sucedidas de com prom isso risonho e franco com a religiosi­
dade m ágica do povo. O taoism o, anota W eber, procedeu a uma
farta e radical incorporação da m agia em sua própria identidade
religiosa (China: 152-153; 191-192). Entre taoism o e m agia ha­
via — e há todavia — mais que afinidade eletiva: há conivência,
cum plicidade, colaboração e incentivo m útuo. O u mais que isso
até: interpenetração, fusão, indiferenciação. Esse é o efeito de sen­
tido que me sugere, em relação ao taoism o por sua visão mágico-
-monista-simpática do universo, a m etáfora do jardim encantado.
D o meu ponto de vista ocidental — e, portanto, contam i­
nado de “ orientalism o” (cf. Said, 1990; Turner, 1994) — o que
m ais surpreende dentre os aspectos trazidos à baila pela análise
que Weber faz da China, repito, é a descrição das boas relações
da m agia com as duas grandes religiões chinesas, o confucionis­
mo e o taoism o. Relações diferenciais com uma e com outra, m as
de todo m odo positivas, relações de boa vizinhança no mínimo,
e quase sem pre. T an to a religião oficial quanto a h eterodoxa
m anifestaram com placência, quando não benevolência, com o
m agism o constitutivo da religiosidade das m assas. As racionali­
zações religiosas que tiveram lugar na China não chegaram a de­
senvolver, nem teórica nem praticam ente, m otivos de desvalori­
zação da m agia em sua significação positiva de salvação. E o medo
dos inúmeros tabus que im peravam sobre a vida cotidiana das

Passo 4: A religião da China 125


m assas continuou a em perrar de tradicionalism os irracionais a
vida econômica.
“ E perm aneceu com valor religioso apenas o racionalmente
ético” é uma frase que diz tudo. É exatam ente esse o meu ponto
neste ensaio, e a definição literal de desencantam ento me permi­
te desenvolvê-lo com muito menos subjetivism o interpretativo e
uma dose bem m aior de objetividade intersubjetiva no trato com
as form ulações de Weber. É disso m esm o que se trata quando
Weber enuncia o conceito. A saber, que no processo de desmagi-
ficação do m undo está mais do que im bricado com o fator causal
sine qua non o processo de eticização da religião; im plicados am ­
bos os processos, intricados e, até onde vai a ideia de Ocidente
em Weber, inextricáveis. Em term os w eberianos, parece-me que
tem todo cabim ento dizer que o processo de desencantamento do
m undo está sobredeterm inado pela em preitada de m oralização
religiosa em seu form ato judaico-cristão: em parte causa, em parte
consequência. Pois que a religião só se m oraliza efetivamente, só
se torna em seu cerne uma ética religiosa consequente, consistente
e vinculante se se extirpa de seu seio não só a ação isolada orien­
tada m agicam ente, m as principalmente a m agia com o atitude e
m entalidade. N ão é outro o sentido de fundo deste ensaio com o
um todo, o prim eiro a aparecer na com posição deste vasto p ai­
nel tipológico-com parativo de sua grande obra substantiva da
m aturidade, a Ética econôm ica das religiões m undiais. Q uando
a religião se moraliza “ para valer” , ela desencanta o mundo; e vice-
-versa, quando uma religião se desm agifica “ até o fim ” , não res­
ta outro cam inho àqueles que a seguem a não ser o ativism o éti-
co-ascético no trabalho profissional cotidiano. A China não co ­
nheceu isso, pois permaneceu encantada.
Zaubergarten — jardim encantado — é a feérica imagem
com que W eber se permite pintar m etaforicam ente a China pelo
menos duas vezes (GA RS I: 4 8 4 6t e 513). N o estudo sobre a ín-

61 “ Essa filosofia e cosmogonia chinesa ‘universista’ transformava o

126 O desencantamento do mundo


dia há o m esmo número de menções, duas (GA RS II: 278 e 371).
N um a delas, ao tratar da popularização do budism o em sua ver­
tente M ah ayan a, W eber parece tão em penhado em sublinhar
retoricamente esse processo de “ m agificação” em escalada, que
ele não resiste a um pleonasm o: alude a “ todo um m undo” que
o excesso de ritualism o desse budism o popularizado transform ou
“ num imenso jardim encantado m ágico” (grifo meu) \in einem
ungebeuren magiscben Zaubergarten] (GARS II: 278). N a m ono­
grafia sobre o judaísm o antigo, ao contrastar a religião de Israel
com a religião da índia, ele fala uma vez em jardim encantado:
“ O mundo do indiano permaneceu um jardim encantado irracio­
n al” [ein irrationaler Zaubergarten]62 (GA RS III: 237). N a con­
clusão do estudo sobre a índia, é digno de nota o fato de Weber
aplicar a im agem do jardim encantado a toda a “ religiosidade
a siática” , e não apenas à da índia. N a cultura asiática em seu
conjunto, generaliza ele, “ não havia nem um a ética prática nem
uma m etódica de vida racionais que conduzissem para fora des­
se jardim encantado da vida toda, para dentro do ‘m undo’ ” [aus
diesem Zaubergarten allen Lebens innerbalb der “ Welt” ] (GARS
II: 371).
Esse enunciado sobre o “ jardim encantado da vida to d a” que
m ais afasta do que aproxim a as pessoas de sua tarefa intramun-
dana, que m ais retira do que mergulha os indivíduos na “ dem an­
da do d ia ” , funciona com o o fechamento lógico-explicativo de
todo um parágrafo de grande força estilística, no qual a palavra
Z auber (encantamento, spell, feitiço) é insistentemente repetida.

mundo num jardim encantado [Zaubergarten]. Cada conto de fadas chinês


revela o enraizamento popular da magia irracional. Pululam pelo mundo fe­
rozes deuses ex machina que por capricho são capazes de tudo. A única aju­
da é o contrafeitiço” (China: 200; GARS I: 484; ESSR I: 478).

62 A frase “ ein irrationaler Zaubergarten" adquiriu em inglês um


vo charme, na tradução de Hans Gerth e Don Martindale: “a garden o f irra­
tional charm” (AJ: 222). A polissemia é sempre uma charmosa tentação.

Passo 4: A religião da China 127


É com o se W eber quisesse mimetizar, com a repetição e o espar­
rame obsessivo do vocábulo, a onipresença da m agia nas gran­
des culturas asiáticas, o “ encantam ento universal(izado)” para
todos os setores da vida, invadindo tam bém “ a vida econômica
cotidian a” . A repetição vocabular cria a im pressão im agética e
encantatória do alastram ento geral, ubíquo e contum az, das cren­
ças e práticas de feitiçaria.

A esse mundo sumamente antirracional do encan­


to mágico universal [des universellen Zaubers] pertencia
tam bém a vida econômica cotidiana, e nenhum cam i­
nho daí partia rumo a uma conduta de vida intramun-
dana racional. O encantam ento [Z au b er] não só era
meio terapêutico, com o tam bém servia para produzir
nascim entos, e particularm ente nascimentos m asculi­
nos, para p assar nos exam es ou para assegurar a con­
secução de todo tipo de bens terrenos im agináveis —
encantam ento |Zauber] contra o inim igo, contra os
com petidores eróticos ou econôm icos; encantam ento
[Zauber] para o orador ganhar a causa jurídica, encan­
tamento [Zauber] do credor para pressionar a execução
do devedor, encantamento [Zauber] para conseguir do
Deus da riqueza o sucesso das em presas. T udo isso na
form a grosseira da m agia de ataque [Zwangsmagie] ou
na form a refinada da persuasão de um Deus ou dem ô­
nio funcional por meio de oferendas. Com tais m eios,
a vasta m assa dos asiáticos iletrados e m esm o dos le­
trados procurava levar a vida de todo dia. N ão havia
nem um a ética prática nem uma m etódica de vida ra ­
cionais que conduzissem p ara fora desse jardim en­
cantado [Zaubergarten] da vida toda, para dentro do
“ m undo” . (G A RS II: 3 70-371; ver ESSR II: 353)

O ra, m agia implica necessariam ente tabu ritual, ritualism o


dos brabos, e tabu ritual é estereotipia de form as, diz Weber, de

128 O desencantamento do mundo


form as estéticas sem dúvida, m as não só: norm as alim entares,
regulação do espaço físico, alocação de tarefas, proibições de toda
ordem. Estereotipia é fixação, é apego congelante ao que sempre
foi e sempre será. E tradicionalism o, portanto. Pois muito bem,
que melhor lugar do que a China para se observar de perto as im ­
plicações e consequências não antecipadas do respeito absoluto
ao ritual e às tradições? M agia implica isto: tradicionalism o. E se
a racionalização religiosa específica da China, a ortodoxa e a he­
terodoxa, não rompe com a m agia, não quebra o feitiço porque
não consegue, isto significa que o tipo de racionalism o religioso
que se desenvolveu na China foi incapaz de injetar nos indivíduos
a m otivação interior suficiente — e sabem os desde a primeira ver­
são d’A ética protestante que para Weber o fator motivacional tem
peso explicativo crucial — para antagonizar o tradicionalism o e
com ele rom per. Veja-se o paralelism o de ideias: rom per com a
tradição = quebrar o feitiço.
Para rom per o círculo m ágico dessa pura im anência ani­
m ada,63 só m esm o a profecia eticamente exigente enviada “ de
fo ra ” por um Deus “ outsider” a esse jardim povoado de potên­
cias invisíveis — e irracionais, porquanto “ capazes de tudo por
puro cap rich o” — um Deus único supram undanam ente ético.
M onoteísm o é básico para a erradicação da m agia. Para romper
a inércia da racionalidade m ágico-prática que faz do m undo um
jardim de m aravilhas m as tam bém de m edo, aguçando no indiví­
duo o desejo de se livrar do medo do feitiço [Befreiung von der
A ngst vor den bösen Z aub er] (W uG: 3 2 0 ; EeS I: 3 56), só m esmo
a racionalidade ético-prática da ascese pedida pelo Deus ético em
meio a um mundo “ desvalorizado” com o corrupto: sem Deus, sem
valor. E isso, somente com a alavanca da profecia ético-emissá-
ria tal com o narrada no Antigo Testam ento, peculiar invenção da

63 “ Desencantar o mundo é destruir o animismo” , vão definir Ador­


no e Horkheimer nos anos 40 (1985: 20).

Passo 4: A religião da China 129


cultura religiosa ju d aica, elo-chave na cadeia cau sal histórico-
-explicativa do desenvolvimento do racionalism o ocidental.
Ao contrário, pois, do que afirm a R andall Collins (1986),
parece que com o p assar do tem po a ênfase de Weber sobre as
consequências econôm icas das crenças e práticas religiosas só fez
crescer, conform e se depreende da leitura atenta dos estudos so­
bre a religiosidade da China e da índia. A análise tipológica que
W eber faz dessas altas culturas asiáticas com parando-as com o
m ainstream da cultura ocidental reprocessa um a vasta casuística
de exem plos heterogêneos, m ostrando que a religião e a m agia
geram , sim, lá com o aqui, consequências sobre a atividade eco­
nôm ica.64 Consequências indiretas, vá lá, m as aos olhos de We­
ber as consequências indiretas não são necessariamente menos im­
portantes que as consequências diretas. Autor do conceito histó-
rico-cultural de “ p arad o x o das consequências” (que, diga-se de
passagem , recebe sua definição m ais explícita justamente na con­
clusão do estudo sobre a China, cf. G A RS I: 524; China: 238),
não seria em Weber — e em nenhuma de suas “ fases” produtivas
— que iríam os encontrar qualquer m enoscabo das consequên­
cias indiretas. M uito pelo contrário. N ão só toda a análise da
influência do protestantism o puritano sobre a conduta de vida dos
em presários capitalistas na fase do “ capitalism o h eroico” está
perpassada de ponta a ponta pela noção de “ consequências não
antecipadas” de duas ou três ideias religiosas sobre o desenvolvi­
mento racional da técnica e da econom ia m odernas, com o tam ­
bém todos esses seus estudos com parativos sobre a “ ética econô­
m ica” das grandes religiões, para não falar do ensaio sistemático
de Sociologia da Religião em Econom ia e sociedade.

64 Apenas um exemplo a mais: na India, a proibição de mudar de


ocupação imposta pelo tabu do sistema de castas foi um fator que impediu
a destruição da organização das guildas (Birnbaum, 1953: 137), um obs­
táculo importante ao desenvolvimento mais racional de uma economia li­
vremente capitalista, baseada nos impulsos econômicos individualistas do
ethos capitalista burguês (ver FMW: 322; SPro: 370).

130 O desencantamento do mundo


Correlacionando diretamente m agia com estereotipia65 e,
por conseguinte, com estagnação e tradicionalism o, à medida que
avançam seus estudos histórico-com parativos entre as altas cultu­
ras Weber passa a considerar sempre mais a questão da “ rem oção
da m agia” na chave da “ rem oção de ob stácu los” ao desenvolvi­
mento do capitalism o. Essa tese, aliás, não custa lem brar, tem-se
constituído desde então num dos eixos da teoria da m odernização
(cf. Eisenstadt, 1968). Em diferentes m om entos dos estudos com ­
parativos sobre a religiosidade da China, da índia e do Oriente
M édio, esta é uma outra chave a partir da qual a m agia p assa a
ser tratada: com o obstáculo que é [H indernis], barreira |Scbran-
ke\; entrave [Hem mung} a uma racionalização ética da conduta
de vida “ eletivamente afim ” à racionalidade econômica do capi­
talism o moderno.
N o estudo sobre a China Weber não se cansa de apontar para
esta outra verdade sociológica da m agia, a saber, que olhada do
ponto de vista do potencial de desenvolvimento econômico, a irra­
cionalidade prática do m agism o aparece, aos olhos do observador
europeu, a um “ filho da m oderna civilização europeia” (AIntro/
GARS 1 :1), sob a form a do tradicionalism o m agicam ente sancio­
nado. Esse efeito de estereotipagem próprio de todo apego m ágico
à eficácia da fórmula representa na verdade o grande “ obstáculo”
a um a racionalização da vida dotada de consistência e “ m otivos
constantes” (cf. PE/GARS I: 117; EPbras: 83), na medida em que
“ em perra” a instalação, nos indivíduos, de uma personalidade ati­
va unificada identitariamente por dentro. O lhada desse ponto de
vista, a m agia não é apenas irracional, m as “ anti” -racional. O en­
raizamento da magia atravanca o fluxo racional da vida cotidiana.

Através do que já expusem os ficou perfeitam en­


te claro: que no jardim encantado [Zaubergarten] da

65 Weber faz isso explicitamente na História geral da economia (ver


adiante, passo 13).

Passo 4: A religião da China 131


doutrina heterodoxa (o taoism o), sob o poder dos cro-
nom antes, geom antes, hidrom antes, m eteorom antes,
a par de uma abstrusa e tosca concepção universística
da unidade do mundo e faltando todo conhecimento
científico-natural, em parte causa e em parte consequên­
cia daqueles poderes elementais, com tantos prebenda­
dos dando apoio à tradição m ágica em cujos rendimen­
tos estavam interessados, estava simplesmente barrada
um a econom ia racional e uma técnica de tipo ociden­
tal m oderno. A m anutenção desse jardim encantado
[dieses Zaubergartens] era uma das tendências m ais
íntimas da ética confuciana. (China: 227; ESSR I: 505-
506; G A RS I: 513, grifos do original)

O nome “ desencantam ento” pode às vezes não ser m encio­


nado, e de fato não aparece no estudo sobre a índia, nem no es­
tudo (pasme o leitor!) sobre o judaísm o antigo, mas sua ideia está
sempre ali, o tempo todo, vivamente presente. Pois está lá, o tem­
po inteirinho, a m agia com o obstáculo, entrave, travação, pedra
no cam inho a ser removida da m entalidade ou atitude ou orien­
tação econôm ica.66
A consideração da m agia com o obstáculo, estorvo, entrave
permite a leitura do desencantamento com o desem baraço. Se a s­
sim é, fica terminantemente descartada do sentido literal de de­
sencantamento do m undo toda a carga m elancólica que o concei­
to m uitas vezes assum e em com entaristas com pendor para o Kul-
turpessim ism us. D esencantam ento é desatravancam ento, livra­
mento, liberação. Befreiung, release. Com o o carism a, aliás. Que
irrompe para rom per, para escancarar portas, abrir cam inhos de
saída. Com o a profecia.

66 “ M entalidade” , “ atitude” , “ orientação” são, todas, traduções pos­


síveis, e boas traduções, de um termo alemão usadíssimo por Weber, Gesin­
nung. Pode também ser traduzido por “ convicção” , como em “ ética de con­
vicção” , Gesinnungsethik.

132 O desencantamento do mundo


Em poucas palavras, a tese de Weber no ensaio com parativo
sobre a China era a seguinte: sem a desm agificação que o ju daís­
mo operou e hereditariamente transmitiu ao cristianismo, não teria
havido o racionalism o de dom ínio do mundo que caracteriza o
desenvolvimento do Ocidente. Trata-se, pois, de uma com p ara­
ção entre racionalismos. D ado que no Oriente os obstáculos m ági­
cos não foram removidos pela religiosidade racionalizada dos seus
intelectuais típicos, fica explicada a grande diferença nos respec­
tivos processos de racionalização e nos racionalism os resultantes.
Em Weber, vale a pena anotar, não se trata apenas de olhar
para essa guerra antim agia do ponto de vista geral da “ gênese e
estrutura do cam po religioso” , da ótica nom ológica de uma so ­
ciologia geral da religião à maneira de Bourdieu (1974), mas tra-
ta-se tam bém de olhar para a m agia com o obstáculo histórico
concreto a uma determinada form a de racionalização objetivado-
ra das relações sociais e da atitude econômica. De todo m odo, não
dá para esquecer que, do ponto de vista que Weber nos oferece
em seus estudos com parativos, m agia é fixidez, é inércia ritualista,
é tradicionalism o: “ a crença na m agia conduz à inviolabilidade
da tradição” [die Unverbriicblichkeit der Tradition], Vejam os:

O contraste [do puritanism o] com o confucionis-


mo é claro. A m bas as éticas tinham suas raízes irra­
cionais: lá a m agia, aqui os desígnios finalmente ines­
crutáveis de um Deus supram undano. M as, tendo em
vista que os meios m ágicos já com provados e, final­
mente, todas as form as adquiridas de conduta de vida,
permaneciam inalteráveis sob pena de atrair a ira dos
espíritos, a crença na m agia conduz à inviolabilidade
da tradição. Em confronto com isso, a consequência da
relação [puritana] com o Deus supram undano e com
o mundo eticamente irracional e corrom pido em sua
condição de criatura foi a absoluta não sacralidade da
tradição, e a tarefa absolutam ente infinita do trabalho
reiterado no controle e dom ínio eticamente racional do

Passo 4: A religião da China 133


m undo dado: a objetividade racional do “ progresso” .
Portanto, em face da adaptação ao m undo, ali, punha-
-se aqui a sua transform ação racional. (GA RS I: 527;
CP: 155, grifo meu)

A firm ação do m undo lá, aqui desvalorização do m undo =


jardim encantado lá, aqui m undo desencantado = adaptação ao
m undo lá, aqui dom inação do mundo.
Sabe quanto dista o Oriente do Ocidente? Weber parece que
sabia.

134 O desencantamento do mundo


10.
PASSOS 5 E 6:
C O N S ID E R A Ç Ã O IN T E R M E D IÁ R IA
(1 9 1 3 ,1 9 1 5 )

Quem quiser “ visões” , que vá ao cinema! [...]


Quem quiser “ sermões” , que vá ao convento!

M ax Weber, AIntro: 14

BREV E N O T ÍC IA DA O BRA

Em inglês, a Zw ischenbetracbtung vem sendo cham ada de


Intermediate Reflexions, no plural. N ão vejo necessidade do plu­
ral. O s tradutores para o espanhol preferiram dar-lhe o anódino
título de Excurso (cf. ESSR I: 527), m as tam bém essa não me p a ­
rece uma boa solução, já que deita a perder a ideia de um m ódu­
lo “ inter’’-calado, efeito de sentido visado com o uso do prefixo
alem ão zwischen, uma preposição que tem correspondência di­
reta no inglês between, “ entre duas coisas ou p esso as” , mas não
nas línguas latinas. A Consideração interm ediária, título no sin­
gular já adotado por m uitos no Brasil, foi propositalm ente co lo­
cada por W eber “ entre” o ensaio sobre as religiões da China e o
ensaio sobre as da índia, e isso já na primeira edição, em 1915.
Neste espírito, solução melhor que a castelhana foi encontrada em
francês, onde, em tradução publicada nos Archives de Sciences
Sociales des Religions (vol. 61, n" 1; cf. W eber, 1986), o ensaio
leva o nome de Parentbèse tbéorique. Já ouvi alguém dizendo em
português “ interlúdio teórico” , o que me pareceu uma forma justa
de traduzir Zw ischenbetracbtung, ainda mais depois que Weber
acrescentou-lhe ao subtítulo a palavra “ teoria” , deixando com isso
o subtítulo ainda m ais forte, que forte já era por falar não só dos
“ estágios” m as tam bém das diferentes “ direções” da rejeição do
m undo pelas grandes religiões.

Passos 5 e 6: Consideração intermediária 135


N a versão final em alem ão, que fez publicar em 1920 no
volume I dos Ensaios reunidos de Sociologia da Religião ainda
sob sua supervisão, W eber acrescentou ao subtítulo a palavra
‘"Theorie'” , e o título definitivo ficou sendo o seguinte: Zwischen­
betrachtung: Theorie der Stufen und Richtungen religiöser Welt­
ablehnung (cf. G A RS I: 536-573). Em português seria, ao pé da
letra: “ Consideração intermediária: teoria dos estágios e direções
da rejeição religiosa do m undo” . O subtítulo anterior, de 1915,
dizia apenas “ Estágios e direções da rejeição religiosa do m undo” .
O fato de decidir estam par a palavra “ teoria” na fachada da últi­
ma versão do ensaio m ostra m uito da crescente estatura que We­
ber passou a lhe atribuir no decorrer dos últimos cinco anos de
sua vida. D a ótica da presente pesquisa, o fato de que o vocábulo
desencantamento seja usado por duas vezes num texto desse porte
teórico e com tal significação biográfica constitui por si só uma
inform ação factual nada desprezível.
Já ficou dito nos passos 2 e 4, relativos à “ Introdução” e à
Religião da China, que a Consideração interm ediária veio a pú­
blico na revista Archiv für Sozialw issenschaft und Sozialpolitik
no final de dezem bro de 1915, tendo sido escrita “ dois anos an­
tes” , em 1913. Em 1919-20, enquanto preparava sua coletânea
de ensaios em Sociologia da R eligião em três volum es, W eber
revisou pela última vez a versão da Zw ichenbetrachtung que ha­
via aparecido no n° 41 do Archiv em dezembro de 1915. Ou seja,
“ Weber trabalhou nesse texto até bem pouco tem po antes de sua
m orte” , salienta Schluchter (1979c: 61), em bora haja muitas evi­
dências de que justam ente as passagens que m encionam o desen­
cantam ento foram redigidas p ara a segunda versão, escrita em
1913 (cf. Grossein, 1996: 51-129). Ensaio altamente teórico, ca-
bendo-lhe com toda a justiça o elogio de ensaio filosófico,67 a

67 São os intérpretes e comentaristas atuais do pensamento de Weber


que em sua quase totalidade avaliam a Consideração intermediária como o
texto mais altamente filosófico de sua vasta produção, só comparável em

136 O desencantamento do mundo


Zwischenbetrachtung não se produziu de imediato na form a como
a conhecemos, não sobreveio assim de estalo. E fruto de diversas
com posições e recom posições. Existem três versões sucessivas (cf.
Schluchter, 1979c: 60), sendo que só as duas últimas receberam
tal título. A versão definitiva, de 1920, figura nas últimas p ági­
nas (536-573) do volume I dos Ensaios reunidos de Sociologia da
Religião [G A R SI], o único totalmente preparado por Weber ainda
em 1920, logo antes de morrer.

C O M E N T Á R IO

E na Consideração intermediária que Weber desenvolve sua


tipologia das esferas de valor [W ertspbáren], E o faz de um du­
plo ponto de vista, o de sua bem conhecida teoria da diversidade
dos processos de racionalização e o de uma teorização sua, me­
nos conhecida, sobre a cultura com o conflito dos valores. Isso
resulta numa teoria da m odernização cultural enquanto autono­
m ização das esferas de valor crescentemente racionalizadas, e ra­
cionalizadas em diferentes direções e sob diferentes pontos de vis­
ta. Desse m odo, o tema central da Consideração intermediária é
a racionalização cultural do Ocidente, que Weber disseca em ter­
m os de diferenciação, autonom ização e institucionalização das
diferentes ordens de vida \Lebensordnungen] e condensa em ter­
m os plásticos, m etafóricos, na imagem helenizante de um “ poli­
teísmo dos valores” (cf. tb. Neutr: 141s; SWert: 507s).
E por isso que desde já me interessa m arcar o rumo desse
com entário fazendo a seguinte observação: politeísm o em Weber
é uma m etáfora para representar a m odernidade cultural na me­
dida mesma em que remete ao “ m undo encantado” da Antigui­
dade clássica, ao m undo das “ altas culturas” [Hocbkulturen] do

ambição filosófica e pathos existencial à conferência de 1917 sobre A ciên­


cia como vocação.

Passos 5 e 6: Consideração intermediária 137


mundo antigo. N a conferência sobre A ciência como vocação feita
quatro anos mais tarde, ele vai deixar transparecer mais ainda esse
seu ponto de vista quando cita aqui e ali nomes de deuses da m ito­
logia grega. Ele aqui vê o politeísm o helénico de uma perspectiva
histórico-evolutiva, mas o faz olhando-o pelo avesso, isto é, da
perspectiva da crescente im posição e autoafirm ação do m onoteís­
mo judaico-cristão, o detonador histórico do desencantam ento
religioso do mundo. Com efeito, na ideia de desencantamento há
efetivamente essa faceta de despovoam ento dos panteões, de es­
vaziam ento e deslegitim ação do politeísm o pelo m onoteísm o.
O desencantamento do m undo pelo m onoteísm o ético atra­
vessa com o um vetor o Ocidente no bojo da milenar dom inância
cultural de uma imagem de m undo m etafísico-religiosa crescen­
temente unificada e internamente sistematizada, que terminou por
se im por com o fundam ento legítimo da ordem social com o um
todo. Com o advento da m odernidade e a ruptura dos laços tra­
dicionais por uma série de fatores, inclusive no plano cultural e
no da personalidade, Weber diagnostica uma importante inflexão
no processo de racionalização ocidental: agora é possível conce­
ber a esfera dom éstica e a econom ia, a política e o direito, a vida
intelectual e a ciência, a arte e a erótica, independentemente das
fundam entações axiológicas religiosas. C ada esfera de valor, ao
se racionalizar, se justifica por si mesma: encontra em si sua pró­
pria lógica interna — uma legalidade própria [Eigengesetzlich-
keit] — que a leva a se institucionalizar autonom am ente e a se
consolidar e se reproduzir socialmente pela form ação de seus pró­
prios quadros profissionais, encarregados de garantir precisamente
sua autonom ia.6*^
Vim os no p asso 1 que em W eber o m undo encantado se as­
semelha antes de tudo ao caos, ao caos indiferenciado, ao impé-

68 Cabe assinalar desde já que as esferas culturais de valor autonomi­


zadas devem ser compreendidas em termos típico-ideais, cada qual “ agrupa­
da artificiosamente numa unidade racional” (ESSR I: 527).

138 O desencantamento do mundo


rio do m onism o m ágico que submerge deuses, espíritos, seres hu­
manos e tudo o mais “ na pura im anência” de um hom ogeneizado
jardim de energias anímicas “ p o v o ad o ” de espíritos não tão su­
periores assim aos outros seres viventes, e quase tudo aí é ser vi­
vente, pois há sempre um ser “ divino” que se encantou nalgum
elemento mineral, na água, na pedra, no raio. M as m undo encan­
tado em Weber tem a ver tam bém com o m undo já razoavelm en­
te diferenciado e incipientemente hierarquizado dos deuses funcio­
nais dos panteões politeístas, com seus inúmeros e desencontrados
caprichos apesar de uma inegável hierarquização intraolím pica
entre as figuras principais e secundárias e assim por diante até o
mais reles dos semideuses. A guerra dos antigos deuses funcionais
mantinha o m undo imanentemente encantado, ao m esmo tempo
que tentava teoricamente racionalizar a vida, sem contudo alcan­
çar muito sucesso nisso, dada a volubilidade das emoções das di­
vindades em permanente desconcerto. Hoje, no m undo que o m o­
noteísm o triunfante no Ocidente desencantou, porque lhe “ uni­
ficou” e “ despovoou” a imagem de mundo religiosa, destituindo
os deuses de seu panteão e m oralizando radicalm ente a religiosi­
dade na base do pecado e da internalização do senso de culpa, pre­
cipitou-se em consequência a instalação de um estado de tensão
“ perm anente” e “ insolúvel” (dois adjetivos usados recorrente­
mente por Weber nesse contexto). Tensão entre os cálidos “ valo­
res deste m undo” objetivados em ordens de vida corresponden­
tes e “ o frio escárnio da ética da fraternidade universal de base
genuinamente religiosa” (cf. R RM : 259; G A R SI: 562). Com isso,
voltam os a viver num permanente “ estado de guerra” , e “ guerra
de deuses” . É isso que significa estar sob a égide do “ politeísmo
dos valores” (cf. Neutr: 141; SWert: 507).
De novo, portanto, no mundo duplam ente desencantado pe­
la religião e pela moderna atitude científica, uma guerra politeísta.
Ordens de vida conflitantes, valores últimos inconciliáveis, deu­
ses intram undanos irredutivelmente plurais e autodeterm inados,
só que se trata agora, Weber vai dizer n’A ciência como vocação,
de deuses “ desencantados” , e os valores últimos agora em luta são

Passos 5 e 6: Consideração intermediária 139


“ valores deste m undo” [Werten der Welt], sublinha a Conside­
ração interm ediária (GARS I: 544). Valores “ deste m undo” , mas
exigentes, com o só os deuses do velho O lim po sabiam ser. De­
sencontrados em suas vontades e desconcertados ao lançar seus
dardos, com o só os deuses de qualquer politeísm o sabem ser.69
E o que pede e impõe a lógica interna da falta de lógica unitária
própria do politeísm o. “ D euses” , diz Weber, porém “ desencan­
tad o s” , mas nem por isso menos encantadores do que o foram em
seus dias A poio, D ioniso, H era, Hermes, Afrodite... desencanta­
dos, m as nem por isso frios, glaciais, pelo contrário, ardentes, in­
flam ados, dardejantes na luta sem trégua que encetam uns con­
tra os outros. E todos contra “ o U n o” (cf. W aB/W L: 605), contra
a pretensão monopolista do monoteísmo ético. N o mundo moder­
no radicalmente desencantado, mundo “ desdivinizado” pela pro­
fecia m onoteísta (GARS I: 254), mundo “ sem Deus e sem profe­
ta s ” (WL: 610), os melhores valores m undanos vêm se apresen­
tar a nós com o deuses sempre-já guerreiros, “ mortalmente hostis
entre si” (Neutr: 142; SWert: 507s), leais apenas a si mesmos, obe­
dientes apenas à “ sua legalidade própria” . E, enquanto tais, guer­
reiam sem paragem , sem repouso, sem trégua uns contra os ou­
tros e a um só tempo contra “ o U no” , o sentido objetivo e unifica­
do que um dia expulsou do mundo a m agia, e lá se foi o “ sentido
m ágico” de cada acontecim ento da vida.
A ideia de esferas de valor autonom izadas e obedientes a
uma lógica interna própria, W eber vai voltar a trabalhá-la du­
plamente em 1917, e am bas as vezes em contextos cujo assunto
principal é a ciência: no ensaio m etodológico sobre O sentido da
“neutralidade ax iológica” nas ciências sociais e econôm icas, cujo
primeiro manuscrito data de 1913, mas que foi revisado para im­
pressão em 1917 (cf. N eutr), e na conferência sobre A ciência
com o vocação. Em diversos m om entos nesses trabalhos emerge
também esta que é uma das grandes m etáforas de Weber, a me-

hS> Haja vista, entre nós brasileiros, os orixás do candomblé.

140 O desencantamento do mundo


táfora do politeísm o — o “ irredutível politeísm o dos valores” —
que im ediatam ente se desdobra nesta outra, a m etáfora da “ in­
conciliável guerra dos deuses” .70 Daí o comentário de Schluchter,
para quem a Consideração intermediária nos oferece “ uma pers­
pectiva ilum inadora [...] sobre A ciência com o vocação, e con­
tém o diagnóstico da m odernidade e seus problem as de sentido”
(Schluchter, 1979c: 64). Schluchter concorda com a avaliação de
M itzm an quando este, em bora lançando m ão de datas erradas,
escreve que “ as últimas páginas das Rejeições religiosas (1916)
[NB: erro de data] e a segunda metade d ’A ciência com o voca­
ção (1919) [NB: segundo erro de data] revelam suas reflexões
mais atorm entadas sobre o problem a da falta de sentido na socie­
dade m oderna” (M itzm an, 1971: 219). A ssociado à ciência m o­
derna, o conceito weberiano de desencantam ento se refere ines-
capavelmente ã “ perda de sentido” .
N ão foi, portanto, na conferência de 1917 sobre A ciência
com o vocação que Weber trabalhou pela primeira vez o conceito
de desencantamento do m undo pela ciência. Pelo menos quatro
anos antes dessa sua fala em M unique, ele dedicou toda uma se­
ção da Consideração interm ediária a este que a seu ver é o mais
radical de todos os conflitos axiológicos: a luta entre a ética reli­
giosa da fraternidade e a esfera do conhecimento racional-inte-
lectual, cuja expressão m áxim a é a ciência empírica m oderna. N o
passo 5 W eber expõe a lógica própria do m oderno conhecimen­
to científico que, num a atitude experim entalista-instrum ental,
potencializada pelo emprego do cálculo matemático, reduz o mun­
do natural a mero “ m ecanism o cau sal” , desem baraçando-o com

70 “ Qualquer meditação empírica sobre estas situações nos leva


como bem observou o velho Mill, ao reconhecimento do politeísmo abso­
luto como única metafísica que lhe convém. [...] Porque no fim das contas
e no que se refere à oposição entre valores, não só se trata sempre e em to­
das as circunstâncias de alternativas, mas de uma luta mortal e insuperá­
vel, comparável à que opõe ‘Deus’ e o ‘diabo’ ” (Neutr: 141).

Passos 5 e 6: Consideração intermediária 141


isso daquele sentido metafísico objetivo de “ cosm os ordenado por
D eu s” (GA RS I: 564; R R M : 261). Imediatamente em seguida ao
passo 5, W eber acrescenta, explicando:

A consideração em pírica do m undo, e de resto


aquela matematicamente orientada, desenvolve em ter­
m os de princípio a rejeição de toda form a de conside­
ração que de m odo geral pergunte por um “ sentido”
do acontecer intram undano [nach einem “Sin n ” des
innerweltlichen Geschehens fragt], (ZB/G A RS I: 564;
ESSR I: 553)

Vou me permitir aqui um pequeno excurso antes de prosse­


guir nos com entários. Q uero cham ar a atenção para esse dado
“ biográfico” dos escritos weberianos: se, por um lado, de confor­
m idade com o testemunho do próprio W eber, a Consideração
intermediária já se achava escrita em 1913 e se, por outro, os anos
de 1912-13 circunscrevem justamente o período que inaugura o
uso do term o desencantamento (ver passo 1), e m ais, se aí nesse
período o termo desencantamento já é usado para dar conta tam ­
bém dos efeitos corrosivos da ciência experim ental m oderna so­
bre as pretensões de validade objetiva das visões de m undo que
veem o m undo com o dotado de um sentido objetivo, penso en­
tão que m ais uma vez fica dem onstrada a tese que eu defendo nes­
ta pesquisa: a de que os dois significados do m esm o significante
são coexistentes, coetâneos, concom itantes, e não sucessivos.
Em 1904, no ensaio sobre A “objetividade” do conhecimen­
to nas ciências sociais e na política social, M ax W eber já deixara
explícito que para ele era autoevidente que, com o advento uni­
versal dos m étodos científicos racionais, toda interpretação da
história m undial com pretensões de aplicabilidade universal, fos­
se religiosa, científica ou filosófico-especulativa, noutras palavras,
qualquer W eltanschauung, Filosofia da H istória ou “ filosofia de
vida” havia sido esvaziada em sua pretensão de objetividade, sim­
plesmente impossível (cf. M om m sen, 1965). Quem não se lem­

142 O desencantamento do mundo


bra da fam osa passagem da parte introdutória do O bjetividade
que fala da “ árvore do conhecim ento” , cujo tema é justamente a
incapacidade do conhecimento científico de gerar sistemas de sen­
tido existencial?

O destino de uma época que comeu da árvore do


conhecimento consiste em ter de saber que não pode­
m os colher o sentido do decurso do m undo do resul­
tado da sua investigação por mais completo que ele seja,
m as temos de estar aptos a criá-lo nós próprios, em ter
de saber que “ visões de m undo” [W eltanschauungen]
jam ais podem ser produto da m archa do conhecimen­
to empírico e que, portanto, os ideais mais elevados,
que mais fortemente nos comovem , somente atuam no
com bate eterno com outros ideais que são tão sagra­
dos para os outros quanto os nossos para nós. (Objekt/
W L: 154; Cohn, 1979b; M SS: 57, grifos do original)

Para W eber, objetivo é o conhecimento científico; o sentido


é subjetivo. O conhecimento científico objetivo, então, é radical­
mente distinto do conhecimento norm ativo produzido pelos m e­
tafísicos e profetas, e contido nas W eltanschauungen [visões de
mundo] ou Weltbilder [imagens de mundo]. A ciência não p ro­
duz visões de mundo e não há orientação axiológica existencial
global que p o ssa pretender em basam ento científico. A ciência
esbarra aí nos seus próprios limites, limites honestamente intrans­
poníveis para um autêntico cientista. A ciência empírica é im po­
tente para arbitrar entre tom adas de posição valorativas diferen­
tes e não raro conflitantes (cf. Brubaker, 1984: 67). E também
neste sentido, me parece, que “ a ciência é um poder especifica­
mente irreligioso” (FMW : 142), ou seja, o cientista no papel pro­
fissional de cientista não precisa ter “ ouvido musical para reli­
g iã o ” . Weber por diversas vezes confessou que não tinha “ ouvi­
do m usical” para religião. N esse ponto e nesse aspecto, ele foi
sempre muito enfático.

Passos 5 e 6: Consideração intermediária 143


Em 1913, quando redige a segunda versão da C onsideração
interm ediária, sua antiga convicção de que a ciência não substi­
tui a religião e nem a nenhuma outra form a de imagem holística
do m undo vai se casar perfeitamente com sua nova concepção do
processo de racionalização religiosa ocidental com o “ descentra-
m ento” do m undo cultural hum ano em relação ao m undo natu­
ral das coisas e, portanto, com o “ naturalização” radical do “ mun­
do natural” (cf. H aberm as, 1987: 64).

M as ali onde o conhecimento racional empírico


realizou de maneira consequente o desencantamento do
m undo e sua transform ação num m ecanism o causal,
instala-se de um a vez por todas a tensão contra a pre­
tensão do postulado ético: que o mundo seja um co s­
m os ordenado por Deus e, portanto, orientado etica­
mente de m odo significativo, em caráter definitivo daí
para frente. (G A RS I: 564; ESSR I: 553)

A m etafísica religiosa, em consequência da atm osfera geral


criada por essa atitude-m étodo da ciência m oderna especializada
[Facbw issenschaft], acaba sendo redirecionada para o reino do
irracional. “ Aquele grande processo histórico-religioso” de racio­
nalização teórica e prática das verdades e norm as de agir divina­
mente reveladas estaciona num determinado ponto, chega a seu
termo, e de repente é com o se todo aquele edifício aparentem en­
te coerente principiasse a não m ais fazer sentido no âm bito do ra­
cional e, diante desse outro valor (que) m ais alto se alevanta, co ­
m eçasse a se desnudar, então, com o um processo “ sem sentido”
de intelectualização com pretensão à doação de sentido e à vali­
dade racional.
W eber não perde a chance de fazer interessante paralelism o
vocabular entre o conteúdo de significado historicamente mais
m oderno que o processo de desencantamento do m undo assum iu
sob o dom ínio crescente da ciência e o desencantam ento enquan­
to rem oção da m agia da prática religiosa, este m uito anterior

144 O desencantamento do mundo


àquele com o fenômeno histórico-civilizacional. Ele emprega para
am bos os processos o m esm o verbo “ d esalo jar” [verdrängen]:71
primeiro a religião (monoteísta ocidental) desalojou a m agia e nos
entregou o mundo natural “ desdivinizado” , ou seja, devidam en­
te fechado em sua “ naturalidade” , dando-lhe, no lugar do encanto
m ágico que foi exorcizado, um sentido m etafísico unificado, to ­
tal, m aiúsculo; m as depois, nos tem pos m odernos, chega a ciên­
cia em pírico-m atem ática e por sua vez d esaloja essa metafísica
religiosa, entregando-nos um mundo ainda mais “ n aturalizado” ,
um universo reduzido a “ m ecanism o cau sal” , totalmente anali-
sável e explicável, incapaz de qualquer sentido objetivo, menos
ainda se for uno e total, e capaz apenas de se oferecer aos nossos
m icroscópios e aos nossos cálculos m atem áticos em nexos cau ­
sais inteiramente objetivos m as desconexos entre si, avessos à
totalização, um m undo desdivinizado que apenas eventualmente
é capaz de suportar nossa inestancável necessidade de nele encon­
trar nexos de sentido, nem que sejam apenas subjetivos e provi­
sórios, de alcance breve e curto prazo.
A ciência, na verdade, obriga a religião a abandon ar sua
pretensão de nos propor o racional. Assim acuada, ela tem de se
conform ar em nos oferecer o irracional, melhor, em retirar-se ela
m esm a no irracional. A ciência remove a religião aus dem Reich
des Rationalen ins Irrationale, “ do reino do racional para o irra­
cional” , reservando-lhe com o prêmio de consolação, “ pura e sim ­
plesm ente” , sublinha W eber, o status de “ potência irracional ou
antirracional por excelência” .72 Se a ciência está “ em luta eterna
com a religião” (WL: 154), não é na qualidade de “ visão de mundo
científica” , uma visão de m undo que estivesse em concorrência

71 Conferir adiante, no comentário sobre o passo 13, o uso da expres­


são “die Magie zu verdrängen" (Wg: 309).

72 Weber emprega o artigo definido grifado: a potência irracional ou


antirracional por excelência [die irrationale oder antirationale M acht] (ZB/
GARS 1: 564).

Passos 5 e 6: Consideração intermediária 145


com a imagem de m undo religiosa no m esmo nível de pretensão,
mas apenas como aquele ímpio fado que desmente — “ a totalidade
é uma m entira” , dirá um dia A dorno — a existência real de sen­
tido objetivo do mundo e da ação hum ana. E ainda por cima We-
ber vem e acrescenta no fim da frase um “ pura e sim plesm ente”
[schlecbtbin] (GA RS I: 564). É o m esm o princípio que opera por
trás da veemente recusa em reconhecer à ciência qualquer apti­
dão para produzir cosm ovisões doadoras de sentido ao m undo e
à vida dos hum anos (cf. M om m sen, 1965; Cohn, 1979a). “ Quem
quiser ‘visões’, que vá ao cinem a! [...]. Quem quiser ‘serm ões’,
que vá ao convento!” , escreverá ele em 1920, separando mais uma
vez, não sem uma ponta de hum or, as esferas do ser e do valor.73
M as a Consideração interm ediária nos entrega ainda, com
o passo 6, uma outra chave de interpretação. Com mais essa chave
penso que vam os estar aptos a afirm ar que em W eber o significa­
do literal de desencantamento do mundo com o desm agificação da
busca da salvação talvez seja m esm o seu sentido m ais forte e de­
cisivo, na medida em que nada mais é que a outra face do p ro­
cesso de m oralização da prática religiosa, um processo histórico-
-religioso tipicamente ocidental e de sérias consequências para o
viver humano. Além do m ais, com essa chave, vam os nos conven­
cer um pouco mais de que, em sua sociologia com parada das re­
ligiões, o que de fato lhe interessava não era principalm ente a
racionalização teórica, a racionalização do conhecimento, a espe­
culação teológica, o racionalism o filosófico, nem m esm o a racio­
nalidade científica enquanto tal, m as sim , e antes de m ais nada,
“ a racionalização do agir” , com o dizem os franceses (cf. Ladrière,
1986). D o agir cotidiano, melhor dizendo, da conduta de vida.
N outras palavras, interessava a ele a racionalidade prática em seus

73 Vale a pena ler na íntegra os parágrafos finais da imperdível “ In­


trodução do autor” dos Ensaios reunidos de Sociologia da Religião que cos­
tuma acompanhar as traduções de A ética protestante e o espírito do capi­
talismo (cf. AIntro/GARS I: 14s; ESSR I: 23s; EPbras: 14s).

146 O desencantamento do mundo


dois leitos ou cursos principais: a racionalização prático-técnica
e a racionalização prático-ética. O passo 6 deixa isso muito claro:

E não foi só o pensam ento teórico que desencan­


tou o m undo, m as foi precisamente a tentativa da éti­
ca religiosa de racionalizá-lo no aspecto prático-ético
que levou a este curso. (ZB/G A RS I: 571; ESSR I: 560)

A intelectualização científica é sem dúvida fator decisivo de


desencantam ento do mundo. A conferência de 1917 e o passo 5
na Consideração interm ediária não deixam dúvida quanto a is­
so. M as, enquanto fator histórico-genético detonador de todo esse
vastíssim o processo histórico-cultural, a racionalização prático-
-ética da conduta de vida [Lebensführung] empalma-lhe com ple­
tamente a precedência na teorização w eberiana: a “ desm agifica-
çã o ” [Entzauberung| radical da prática religiosa pela “ eticização”
[Ethisierung] radical da conduta de vida religiosa foi na verdade
o verdadeiro Big Bang (M oscovici, 1990) do racionalism o práti­
co ao m odo do Ocidente m oderno. A prioridade cronológica é
dela, assim com o tam bém é dela, na “ problem ática” \Fragestel-
lung] de M ax W eber, no conjunto da obra, a prioridade analítica
(cf. Hennis, 1993; 1996).
E porque assim é, vale a pena neste momento atrasar em uns
anos o relógio e ir ler, com calm a e atentam ente, sem m aiores
com entários, um outro texto de M ax W eber absolutam ente sur­
preendente, porquanto praticam ente inédito entre nós, que pou­
quíssim os conhecem. Refiro-me a uma passagem da parte final da
“ última palavra anticrítica” de M ax W eber, publicada em 1910.
Se voltarm os agora a 1910, vam os encontrar um Weber em
pleno debate escrito com seus críticos, excelente situação para o
surpreendermos explicando qual é, afinal, “ o ” seu ponto, “ a ” sua
grande indagação. V am os lá:

O enorme desenvolvim ento que medeia entre os


fenôm enos de desenvolvim ento capitalista tardo-me-

Passos 5 e 6: Consideração intermediária 147


dievais, ainda extrem am ente lábeis, e a m ecanização
da técnica, tão decisiva para o capitalism o contem po­
râneo, com pletou-se com a criação de pré-requisitos
políticos e econôm icos objetivos, im portantes para a
emergência da m ecanização, mas sobretudo através da
criação e preparação do “ espírito” racionalista e anti-
tradicionalista e da hum anidade que o assim ilou para
si na prática. A saber: de um lado, a história da ciên­
cia m oderna e sua relação prática com a econom ia,
que só se desenvolveram na idade m oderna, e, do ou ­
tro, a história da conduta de vida m oderna no seu sig­
nificado prático para a própria economia, eis o que vai
nos fornecer, a este respeito, os elementos-chave da
investigação.
Foi desse último com ponente que eu tratei em
meus artigos e do qual eu provavelmente deverei ain­
da tratar ulteriormente. O desenvolvim ento do m éto­
do racional prático de um a conduta de vida é eviden­
temente algo muito diferente do racionalism o cientí­
fico e não necessariam ente associado com ele. (Anti:
1128-1129, grifos do original)

Se o que interessava basicamente a M ax Weber ao longo de


toda a sua obra era o processo de racionalização ocidental, o foco
desse interesse — ei-lo aqui explicando isso a seus beligerantes
adversários — dirigia-se muito nitidamente para um ponto ne­
vrálgico, melhor dizendo, para “ o ” ponto nevrálgico desse pro­
cesso: que não é a ciência, não, apesar de todo o pathos existen­
cial que embebe o tratam ento w eberiano da atitude científica.
N ão é o racionalism o científico, e menos ainda o racionalism o
teórico: é o racionalism o prático-ético, a racionalização ético-as-
cética da conduta de vida, o verdadeio xis da questão. Hic Rbo-
dus, hic salta!
E se assim é, fica fácil então, extremamente fácil, entender
por que nos últimos meses de sua vida é a acepção estrita de de-

148 O desencantamento do mundo


sencantam ento do m undo enquanto “ desm agificação da religio­
sidade e m oralização da conduta de vida prática” , e não o signi­
ficado de “ perda de sentido do mundo e da vid a” nas m alhas da
ciência a acepção que se faz presente de form a tão intensa nos
acréscim os à segunda versão d ’A ética protestante que com en­
tarem os em últim o lugar. Fica fácil, extrem am ente fácil, atinar
por que o desencantam ento do m undo vai voltar a se nos ofere­
cer de m odo tão inesperadam ente textual com o desm agificação
religiosa nos passos finais dessa trajetória que empreendemos em
sua busca.

Passos 5 e 6: Consideração intermediária 149


11 .
PASSOS 7 A 12:
A C IÊ N C IA C O M O V O C A Ç Ã O
(7 de novembro de 1917)

O trabalho científico está atrelado ao curso do progres­


so. [...] Em princípio, esse progresso não tem fim.
Com isso chegamos ao problema do sentido da ciência,
pois não é de modo algum autoevidente que uma coisa sujeita
assim ã lei do progresso traga em si mesma sentido e razão.

M ax Weber, A ciência como vocaçãorWL: 592-593

BREV E N O T ÍC IA DA O BRA

A ciência com o vocação é um dos textos m ais lidos de M ax


Weber. N o decurso de sua bem -sucedida trajetória de difusão e
recepção, porém , têm-se acum ulado alguns equívocos de inter­
pretação decorrentes, por sua vez, de um outro repetido equívo­
co, tam bém am plam ente difundido, a respeito do ano em que
Weber teria proferido sua fam osa e particularmente inspirada con­
ferência aos estudantes de M unique. Até recentemente se pensa­
va fosse d atada de 1919, após portanto o fim da Primeira Guer­
ra M undial, em 1918, e a ideia de um texto teoricamente ator­
m entado lido em voz alta a poucos meses de sua morte perante
um público jovem levou intérpretes e biógrafos a encará-lo como
se fora seu “ canto do cisne” (Honigsheim, 1963), “ testam ento in­
telectual” legado às novas gerações.
N ão vou aqui descer às m inúcias historiográficas de com o
se chegou erroneamente a tom ar o ano de sua publicação — esta,
sim, de 1919 — com o se fosse a data de sua apresentação ao vivo.
H á um trabalho de Schluchter (1979d) que conta no detalhe es­
sas vicissitudes todas. Basta por ora deixar registrado que hoje
se sabe com precisão a data correta: a conferência sobre A ciên-

150 O desencantamento do mundo


cia com o vocação foi proferida por M ax W eber com o parte de
uma série de conferências organizada em M unique pela “ Frei-
studentische Bund in B avaria” , uma associação de estudantes li­
berais com tendência à esquerda, no dia 7 de novembro de 1917.
O historiador Perry Anderson não me deixa esquecer que esse foi,
tam bém , “ o dia em que os bolcheviques tom aram o poder na
R ú ssia” (Anderson, 1996: 99).

C O M E N T Á R IO

Significativamente, e isto merece ser dito com toda força,


A ciência com o vocação (1917) é o texto weberiano em que o
term o desencantamento m ais aparece. N ad a menos que seis ve­
zes, deu minha contagem , m ais do que em qualquer outro escri­
to de Weber.
M as não é só pela frequência quantitativa do significante
que A ciência como vocação tem sua im portância acrescida para
este meu exercício. Avulta sobretudo pela m udança de registro
no uso do significado: aqui ele só funciona expandido, projeta­
do, alongado em sua capacidade de expressar e conceituar, al­
çando voos inéditos em sua acrescida pretensão de questionar.
N isso, ocorre com o que um deslizamento tam bém em sua posi­
ção gnosiológica, digam os assim , na finalidade visada por seu
uso, na espécie de conhecimento que se pretende produzir com
seu emprego. Basta transitar o autor de ponto de vista, e eis que
o sintagm a desencantamento do m undo, usado o m ais das vezes
para nom ear um elo causal sine qua non no encadeam ento his-
tórico-cultural da emergência e ascensão da form a caracteristi­
camente ocidental de racionalism o que iria se derram ar no “ es­
pírito” do m oderno capitalism o (sentido “ a ” ), p assa a funcionar
tam bém , e regiam ente, p ara a produção de um diagnóstico de
época, um “ diagnóstico do nosso tem po” (sentido “ b ” ). À pers­
pectiva genealógica possibilitad a pela conceituação estrita de
desencantam ento do m undo (sentido “ a ” ) associa-se nessa con­

Passos 7 a 12: A ciência como vocação 151


ferência de 1917, a princípio laconicamente e logo com crescen­
te nitidez e prolixidade, esse outro ponto de vista, o da diagnose
epocal (sentido “ b ” ), que permite a W eber uma reflexão menos
otim ista e sensivelmente mais tensa ante uma determinada atu a­
lidade sociológica — a da Europa de seu tem po, tem po de pai­
x ão nacional e de guerra mundial. Em 1917, a am biguidade do
desencantam ento sai portanto do registro lacônico, m ostra-se
mais inquieta e se solta mais no texto, que é lindo.
E é assim que, nas seis incidências registradas, o significan-
te agora referido ao desencantam ento do m undo em sua “ etapa
superior” , digam os assim , o desencantam ento provocado pela
“ racionalização intelectualista através da ciência e da técnica
cientificamente orien tada” (WaB/W L: 593; CP2V: 30), vai nos
falar obstinadam ente de seu significado “ b ” , isto é, da “ perda de
sentido” [Sinnverlust]. É bem verdade que em m ais da metade
desses seis em pregos continua a aflorar, com o não poderia dei­
xar de ser, o sentido literal de desm agificação religiosa, m as nun­
ca sozinho; ele está sempre acom panhando a ideia m ais am pla,
e mais imponente porquanto mais crítica, da “ perda de sentido” .
Uma vez que o que a ciência visa com sua racionalidade formal
referente a fins [Zweckrationalitàt] é o dom ínio técnico do m un­
do natural pela tecnologia, opondo com isso aguerrida aversão
e resistência à expan são, no cotidiano, da racionalidade su bs­
tantiva com relação a valores [W ertrationalitàt], perde seu chão
a pertinência mesma da questão do sentido, pois dele, no fim das
contas, a ciência que preza seu nome não tem mesmo nada a di­
zer — y com pris o sentido dela própria. Ela que pretende tudo
calcular, prever e dom inar, não é capaz de definir nenhum va­
lor, sequer m esm o de dizer se vale a pena ser cientista e dedicar
a vida à pesquisa.
É aí que entra em cena, no discurso de W eber, a figura de
Tolstói.

“ Qual é, afinal, o sentido da ciência com o voca­


ção? [...]”
Tolstói dá a essa pergunta a mais simples das res­
postas, dizendo:
“ Ela não tem sentido, já que não consegue respon­
der ã indagação que realmente nos im porta: que de­
vemos fazer? como devemos viver?” (WaB/WL; CP2V:
35-36)

A im portância que o conceito de desencantam ento assum e


em A ciência com o vocação pode ser imediatamente com preen­
dida quando recordam os que praticam ente desde a entrada de
W eber no m undo acadêm ico, m arcada de saída por sua disposi­
ção ao debate m etodológico de fôlego filosófico, o traço central
do m oderno conhecimento científico para ele sempre foi sua in­
capacidade constitucional de produzir sentido, ou m esm o de o
fundam entar (cf. Objekt). N o s tem pos m odernos, com efeito, an­
dam juntas a ciência e a “ falta de sentido” .74 A ciência, sendo
“ objetiva” , inevitavelmente termina por nos desvendar os olhos
ante a “ ob jetiva” ausência de “ sentido objetivo” , tanto do m un­
do natural quanto da existência hum ana. N ão querendo fazer
blague, tudo se passa com o se para Weber “ a falta de sentido em­
pírico do acontecer n atural” (KS: 2 2 7 )7<í fosse de longe a m aior
descoberta da ciência m oderna — o grande desvelam ento, e Ent-
hiillung me parece aqui um belo sinônimo para Entzauberung — ,
a verdadeira revolução copernicana que viria definir irremediavel­
mente, irrevogavelmente, “ o destino do nosso tem po” .

74 Em inglês há duas palavras — meaninglessness, senselessness —


para traduzir a alemã Sinnlosigkeit. Em espanhol, descubro de repente que
se usa a substantivação da locução adjetiva sin sentido como “ el sinsenti-
d o ” (cf. Weber, 1958c: 113).

75 “ [Die] empirische ‘Sinnlosigkeit’ des ‘Naturgeschehens’” (KS: 227).


Esse texto em que M ax Weber polemiza com as concepções do historiador
Eduard Meyer, “ Estudos críticos sobre o alcance da lógica das ciências da
cultura” , é de 1906.

Passos 7 a 12: A ciência como vocação 153


Se existe algo com o uma “ visão de m undo científica” — e
em perspectiva estritamente weberiana isso daria uma contradi­
ção nos term os — ela seria o único exem plar de uma espécie de
W eltanschauung que não doa, nem tem a pretensão de doar, sen­
tido ao m undo, aos acontecim entos, às coisas que “ sim plesm en­
te são e acontecem ” . O “ ser” , para ela, tem precedência sobre o
“ dever ser” e am bos já deixaram de se com portar com o vasos co-
municantes. O hiato entre o “ ser” e o “ dever ser” já havia sido
exposto de m odo m ais incisivo na Consideração interm ediária,
onde se diz que os dois “ co sm os” nutrem entre si um a “ oposição
irreconciliável” :

O cosm os da causalidade natural | der Kosm os der


N aturkau salitát} e o pretendido cosm os da causalida­
de ética com pensatória mantiveram-se numa oposição
irreconciliável. E em bora a ciência, que criou aquele
cosm os [da causalidade natural], parecesse não conse­
guir dar uma explicação segura de seus próprios pres­
supostos últimos, arvorou-se em nome da “ honestidade
intelectual” com a seguinte pretensão: ser a única for­
ma possível de consideração pensante do mundo. (ZB/
G A RS I: 569; R R M : 265; ESSR I: 558)

Sendo, pois, impensável que o conhecimento científico p o s­


sa abrigar a pretensão de verdade sistêmica própria de uma filo­
sofia da história, ou filosofia de vida que seja, com o o faz qual­
quer metafísica religiosa, todas as visões de mundo são o que são,
precisamente porque não são científicas: elas dão sentido. A m o­
derna ciência empírica, não. “ Quem ainda hoje continua a acre­
ditar” , pergunta-se Weber a um certo m om ento de sua conferên­
cia, “ que os conhecimentos da astronom ia, da biologia, da física
ou da química pudessem nos ensinar algo sobre o sentido do mun­
do, ou tão somente pudessem nos apontar as pegadas de tal sen­
tido, se é que isso existe? Se existem conhecimentos capazes de
fazer secar até à raiz a crença de que existe algo que se pareça com

154 O desencantamento do mundo


um ‘sentido’ do m undo, eles são fornecidos por ela, a ciência”
(WaB/W L: 5 97-598; CP2V: 34-35).
“ A ciência com o cam inho para D eu s?” , pergunta o velho
mestre diante dessa plateia de jovens, para logo responder per­
guntando, pergunta e resposta assim juntadas: “Ju sto ela, essa
potência especificamente alheia ao divin o?” , com o que a dizer,
“ Claro que n ã o !” .
A atitude científica diante do m undo é especificam ente
“ alheia ao divino” [spezifisch gottfrem de], da mesma form a que
a natureza é “ alheia ao sen tido” [sinnfrem de] — vale dizer, o
m undo natural ele m esm o e o mundo social naturalizado pela
ciência. Isso quer dizer que antes m esmo de exibir seu caráter
“ especificam ente irreligioso” , a atitude científica experim ental
abre m ão sempre-já da “ pretensão [Anspruch] de que o aconte­
cer do mundo seja um processo com sentido” (ZB/G A RS I: 567;
ESSR I: 556), e prodigamente relega para as visões de mundo esse
pleito indomável, de resto sem base científico-racional. Isso ca­
be a elas, sejam elas religiosas ou filosóficas, m etafísicas, holís-
ticas, ideológicas.
N um texto m etodológico de 1907, não muito lido e sequer
m esmo consultado, em que discute as posições epistem ológicas
de R udolf Stammler e o propósito deste de superar a concepção
m aterialista da h istória,76 W eber já havia deixado m eridiana-
mente claro, na trilha aberta por Heinrich Rickert, seu mestre e
am igo, essa concepção de que o m undo natural não traz em seu
curso, objetivamente falando, nenhum sentido, que dirá um sen­
tido m aiúsculo, em chave m etafísica! Vale a pena conferir:

N atureza é então “ aquilo que não tem sentido”


[N atur ist dann das “Sin n lose” ]. O u, m ais exatam en­
te: um processo qualquer torna-se “ n atureza” quando

76 M ax Weber, R. Stammlers “ Ueberwindung” der materialistisch


Geschichtsauffassung [1907] (WL: 291-359).

Passos 7 a 12: A ciência como vocação 155


nós não lhe perguntamos por seu “ sentido” . Neste caso,
o que se opõe à natureza com o “ aquilo que não tem
sentido” não é “ a vida social” , m as antes “ aquilo que
é significativo” [das “Sinnvolle”], isto é, o “ sentido”
que é atribuído a um processo ou a um objeto, ou que
pode “ ser encontrado nele” , e isso vai do “ sen tido”
m etafísico do universo dentro de uma dogm ática re­
ligiosa, até o “ sentido” do latido de um cachorro de
R obinson Crusoé ante a ap roxim ação de um lo b o ” .
(WL: 332-333)

N ão era outra a distinção entre natureza (sem sentido) e his­


tória (com sentido) que brotara lá atrás, da pena do amigo Rickert:
“ A vida cultural apresenta-se sempre com o um acontecer signifi­
cativo e pleno de sentido, ao passo que a natureza se desenvolve
sem significado e sen tido” (Rickert, 1961, ap u d Cohn, 1979a:
6 1 77). Acresce que, nos tem pos de hoje, dirá W eber anos depois
e carregando bem nas tintas, a cultura m oderna se torna ainda
m ais sem sentido “ sob as condições técnicas e sociais da cultura
racional-intelectualista” , e “ a cada passo à frente parece conde­
nada a redundar numa ausência de sentido sempre m ais aniqui-
ladora” . “ Aniquiladora” é a palavra que ele escolhe aqui: vernicht-
endere Sinnlosigkeit (ZB/G A RS I: 570; FM W : 357; E S S R I: 559).
Inevitável citar neste contexto a Consideração intermediária. Se
é verdade que todo m undo que lê essa conferência sobre a ciên­
cia sente que está diante de um texto molto particolare, pois Weber
retom a aí tudo o que já havia dito sobre a m odernidade, só que
num tom de gravidade e com um pathos de tragédia raramente
presentes nos m om entos anteriores em que lhe ocorrera tratar da
racionalização ocidental, não é menos verdade que a leitura da
C on sideração interm ediária provoca a nítida im pressão de ter-

77 H. Rickert, Introducción a los problemas de la Filosofia de la


toria, Buenos Aires, Editorial Nova, 1961: 36.

156 O desencantamento do mundo


mos nas m ãos a “ alm a gêm ea” de A ciência com o vocação. Em
am bas, ciência e aniquilam ento do sentido: vertigem. Ciência im­
plica progresso, passo em frente a toda hora: vertigem, outra vez.
“ O trabalho científico está atrelado ao curso do progresso”
(WL: 592; CP2V: 28). Diferentemente das “ visões” e “ imagens
de m undo” , por definição não científicas e por isso pressupon­
do que o conhecimento tenda a uma finalidade última, a um té-
los pleno de sentido, para W eber o conhecimento científico p ro ­
priamente dito se exercita sem confiar em qualquer fim último
ou valor transcendental. E, no entanto, “ p rogride” (cf. Aron,
1967; Schroeder, 1995). Eis aí uma razão suficiente para sentir­
m os vertigem : o conhecim ento científico progride sem parar,
W eber não tem a menor dúvida quanto a isso. Ele não só não
tem um paradeiro, com o não tem p arada. Seu desenvolvimento
é “ p rogresso” no sentido técnico78 da palavra, e isso quer dizer
que a lógica interna da esfera científica a arrasta de m odo irre­
sistível a acum ular um estoque sempre m aior e sempre mais atua­
lizado de conhecimento sobre o mundo. C ada nova descoberta
é com o se todo um novo continente se abrisse, intenso, trazendo
prom essas de outras tantas novas descobertas. A ciência, afinal,
é ars inveniendi, a arte da descoberta. O processo de investiga­
ção é aberto por sua própria natureza. T udo, em princípio a b so ­
lutamente tudo, “ sem resto” , diz Weber, pode ser cientificamen­
te conhecido, e isso quer dizer: cientificam ente explicado por
nexos causais isolados e apenas parcialmente encadeados, jam ais
totalmente esgotados. Ciência é, portanto, sinônim o de avanço
da ciência. Progresso da ciência, sim, com todas as letras. E esse
progresso não tem fim. Prolonga-se ao infinito: in das Unendliche
(WaB/WL: 593; CP2V: 29). Seu percurso é revolucionário, ascen­
dente e unidirecional, m as não se consum a, não tem repouso,

78 “ O uso legítimo do conceito de progresso nas nossas disciplina


está portanto sempre ligado ao aspecto ‘técnico’, isto é, à noção de ‘meio’
apropriado para um fim dado univocamente. Nunca se eleva até à esfera
das avaliações últim as” (Neutr: 177; cf. SWert: 518ss).

Passos 7 a 12: A ciência como vocação 157


provisório que é, sempre, lim itado que é, sempre, especializado
que é, sem pre, e por isso parcial. Sempre. N unca total, nunca
totalizante nem definitivo. N essa constante e progressiva autos-
superação reside, para W eber, o “ problem a de sentido” da ciên­
cia. Quem não entender isso, “ melhor fará se permanecer alheio
ao trabalho científico” (WaB/WL: 589; CP2V: 25).
Isso de limites da ciência, no limite, é Kant: o conhecimen­
to do m undo não lhe confere nenhum valor de per si (cf. Cohn,
1979a: 60). Aliás, uma das limitações da ciência m ais difíceis de
aceitar é justamente essa sua incapacidade de nos salvar, de nos
lavar a alm a, de nos dizer o sentido da vida num m undo que ela
desvela e confirm a com o não tendo em si, objetivam ente, senti­
do algum. Weber volta a deixar clara sua dívida com Kant nessa
verdadeira m editação filosófica que é a conferência de 1917. N as
ciências históricas da cultura, diz ele, deve-se simplesmente p ar­
tir do pressuposto de que há, sim, um valor ou um sentido dos
fenómenos sob investigação que é “ com partilhado subjetivamen­
te por uma com unidade de seres culturais” , m as é só isso, nada
mais que isso. A questão do sentido deve parar por aí, no “ sen­
tido subjetivamente partilhado pelos sujeitos” , conform e vimos
lá atrás, no passo 1. O utra coisa é pretender que os fenômenos
da vida humana tenham valor ou sentido em si m esm os, o que
“ não pode ser ‘cientificamente’ provado a ninguém ” (WL: 600;
FMW : 145). Se isso vale para as ciências hum anas, mais ainda
para as ciências naturais, quando se pensa adem ais que sua fina­
lidade não é outra que a de dom inar o m undo natural e o m un­
do cotidiano pela técnica: “ se o dom ínio técnico tem qualquer
sentido, isso deve ser deixado de lad o ” (WL: 600; FM W : 144).
Ou seja, kantianam ente falan do, os pressupostos das ciências
naturais e culturais são vazios, não se podendo delas esperar sen­
tido algum , menos ainda que elas consigam desvendar “ cientifi­
cam ente” qualquer sentido do m undo, que dirá o sentido com
“ s ” m aiúsculo. N ão dá, nem que fosse só para justificar, ou m o­
tivar, a dedicação “ vocacional” do cientista “ p rofissional” , re­
cado já dado na Consideração interm ediária:

158 O desencantamento do mundo


Q uanto m ais a atividade a serviço dos bens cul­
turais foi erigida em tarefa sag ra d a, em “ v o c a ç ã o ”
[ “ B eru f”], tanto m ais ela apareceu com o condenada a
se tornar uma agitação sem sentido [sinnloseres| a ser­
viço de fins sem valor [wertloser] e, além do m ais, con­
traditórios em si m esm os e mutuamente antagônicos.
(ZB/G A RS I: 570; ESSR I: 559; R R M : 266)

E isso que a ciência m oderna faz em última análise. É nis­


so que consiste a m oderna atitude ou m entalidade científica: ela
retira o sentido do m undo, agora transform ado em “ mecanismo
cau sal” , em “ cosm os da causalidade natural” , ou seja, em algo
sem mistérios insondáveis, perfeitamente explicável em cada elo
causal mas não no todo, fragm entário, esburacado, “ quebradiço
e esvaziado de valo r” [gleicb brücbig und entwertet] (ibid.). Ela
retira o sentido do mundo e não é capaz de substituí-lo por ou ­
tro. Pensando bem, isto é que é verdadeiramente radical no desen-
cantam ento científico do m undo, o desencantamento na acepção
m ais radical do termo, dim ensão extrem ada que ele só vai assu­
mir quando Weber em sua m aturidade assum ir, por sua vez e re-
signadam ente, o ponto de vista da diagnose do tem po presente.
H oje, na m edida em que nossa própria capacidade de suportar a
condição hum ana foi ela própria desencantada e nosso próprio
proceder diante de escolhas a fazer foi “ despojado de sua genuí­
na plasticidade interior” (WL: 604), o mundo real, a realidade do
m undo em si mesm o, o mundo que criam os com o trabalho, a
ciência e a tecnologia, resiste bravam ente a todo projeto de reen-
cantam ento m etafísico da T otalidade.
Além do m ais, de que adiantaria reencontrar o grande sen­
tido — “ o Uno que faz fa lta ” (W aB/W L: 605) — se o preço dis­
so acaba sendo o “ sacrifício do intelecto” ?79 Eis aí mais um dos

79 “ N ão há absolutamente nenhuma religião inteira e atuante c


força vital, que não tivesse tido de exigir nalgum momento o Credo non quod,

Passos 7 a 12: A ciência como vocação 159


dilem as considerados por Weber. É curioso observar com o a in-
telectualização científica do m undo que o despe de significado
aguça em Weber o desapreço (ou seria desprezo?) pelo “ sacrifí­
cio do intelecto” im plicado em toda fé religiosa, noutras palavras,
em toda ad esão a uma im agem de m undo m etafísico-religiosa
[ Weltbild1e, por extensão, em toda adoção de uma visão de mun­
do totalizante [ W eltanshcbauung]. O olhar científico refrata m or­
talmente a alm ejada unidade de visão. Aqui m ora “ o formidável
problem a da vid a” [das gew altige Lebensproblem j (WL: 604),
afirm a Weber, evocando o mítico e natural “ ciclo orgânico da
existência” , ou seja, a vida propriam ente dita. Que é ela quem,
no fim das contas, ancora e espicaça o desenvolvimento das esfe­
ras de vida “ m ais irracion ais” , com o a esfera estética e a erótica,
tornando-as sempre mais prom issoras de sentido. Só que elas tam ­
bém se desconectaram do T odo, se dispersaram do Uno, e agora
procuram nos atrair cada qual com seus próprios “ valores vitais”
e nos envolver nas m alhas de suas exigentes “ legalidades inter­
n as” (cf. Pierucci, 1998b). Com o fazia o grego antigo, diz Weber,
hoje nós podem os escolher entre uma pluralidade de deuses, sa ­
crificando ora para um ora para outro desses valores últimos tor­
nados potências intram undanas, m as o fazem os cientes tanto do
poder quanto dos limites sempre repostos de nossa razão e nosso
entendimento. Desde a Grécia Antiga, lembra W eber aos jovens,
“ impera sobre esses deuses e sua luta o destino, não a ‘ciência’,
com toda certeza” (WL: 604; FM W : 148).
São m uitas as linhas de pensamento abertas por essas con­
siderações de Weber perante a jovem plateia de M unique. A pro­
pósito da ciência, ele volta, por exem plo, a tem atizar a questão
do cálculo.80 A ciência desencanta porque o cálculo desvaloriza

sed quia absurdum, isto é, o ‘sacrifício do intelecto’” (ZB/G A RSI: 566; ESSR
I: 554; cf. WaB/WL: 611). A frase em latim citada por Weber é de santo
Atanásio e se traduz assim: “ Creio não no quê, mas por que é absurdo” .

80 N ão custa lembrar que o ensaio metodológico Algumas categorias

160 O desencantamento do mundo


os incalculáveis mistérios da vida. Tem a sim meliano por excelên­
cia (cf. W aizbort, 2000), o cálculo é um traço inescapável da in-
telectualização m odernizadora e, por conseguinte, ato próprio da
mente quando abstrai, essa subversiva força propulsora do m o­
derno que a tudo e em toda parte penetra e se aprofunda para,
no entanto, manter a alm a na superfície “ n aturalizada” de suas
objetivações. W eber parece sugerir que já em seu tem po um tipo
diferente de desafio, inteiramente trivial e, nesse sentido, onipre­
sente e por isso m esm o incontornável, p erp assava de ponta a
ponta a cultura m oderna. Por isso essa outra definição do desen-
cantam ento do mundo explode as fronteiras de sua acepção estri­
tamente religiosa de “ elim inação da m agia com o meio de salva­
ç ã o ” (PE/GARS I: 114; ESSR I: 117), para abranger toda a men­
talidade de uma época que, de m odo m ais geral e mais a fundo,
desvaloriza o m isterioso porque incalculável, em favor do conhe­
cimento hipotético-matemático cientificamente configurado, para
o qual “ é possível, em princípio, tudo dom inar mediante o cál­
cu lo” [durch Berechnen beherrschen] (WaB/WL: 594).
Em A ciência como vocação a calculabilidade surge direta­
mente com o o operador específico do desencantam ento especifi­
camente m oderno, desse m om ento da racionalização do m undo
que pode ser cham ado de plenamente m oderno e que por isso se
presta a ser tratado de form a crítica, ou ao menos com um naco
de ironia. Q uando usado nessa dim ensão am pliada, o conceito
de desencantamento se torna definitivamente um item básico do
diagnóstico do tem po, e o tema do desencantam ento ganha no­
tas de m elancolia e pessim ism o. Se em sentido estrito ele era um
conceito “ produtivo” , agora ele se transm uta num conceito “ crí­
tico” , ainda que, para o gosto de muitos, insatisfatoriamente críti­
co. Essa segunda definição do desencantamento do m undo, diga-

da sociologia compreensiva, de 1913, no qual aparece pela primeira vez o


enunciado do desencantamento (ver passo 1), termina com considerações
bastante semelhantes em torno do cálculo (Kat/WL: 473-474).

Passos 7 a 12: A ciência como vocação 161


m os assim , pode fazê-lo significar algo de tão sutilmente crítico
e esteticamente fluido quanto a perda da aura teorizada por Wal-
ter Benjamin (1975; 2000), ou algo de alcance histórico tão verti­
ginosamente dilatado quanto o referente que Adorno e Horkhei-
mer (1985) lhe dão na Dialética do esclarecim ento, desnudando
conceitualmente o desencantam ento operado pelo esclarecim en­
to com o recaída no mito pelo avesso. Ou então, com o faz Haber-
m as, que lê W eber de olho no processo de m odernização da so ­
ciedade entendido sim com o um m odo de racionalização, com
destaque não para a varrição das práticas m ágicas, m as sim para
a extinção do pensam ento m ágico, ou seja: o desencantamento
pensado com o transform ação dos elementos cognitivos das im a­
gens religiosas de m undo (cf. H aberm as, 1987; A raújo, 1996).
R esta, de todo m odo, que para a Teoria Crítica prevalece
na com preensão weberiana do m oderno uma concepção do pro­
cesso de racio n alização ocidental com o desencantam ento do
m undo. E desencantam ento entendido antes de m ais nada com o
desencantam ento do m undo natural, com o aquele trabalho sis­
tem ático a que se lança o pensam ento científico (positivista, por
supuesto) de acossar para sempre a ilusão m ítico-arcaica de que
existe um sentido cosm ológico inerente ao m undo natural. D e­
sencantam ento, portanto, com o “ desm itologização” , um de seus
sinônim os em A dorno e H orkheim er (1985: 22, 2 9 , 90). D e­
sencantam ento com o crítica do “ mito [que| identifica o inanim a­
do ao an im ad o” (p. 29), com o “ destituição das potências” 81 (p.
56) imanentes à natureza, objetivando um “ permanente crepús­
culo dos íd olos” (p. 26). Já no prim eiro parágrafo do primeiro
fragm ento da D ialética podem os ler com to d as as letras: “ O
program a do esclarecim ento era o desencantam ento do mundo.
Sua meta era dissolver os mitos e substituir a im aginação pelo

81 E numa outra passagem , logo adiante: “ O reino dos mortos, on­


de se reúnem os mitos destituídos de seu poder...” . Cf. Adorno e Horkhei­
mer (1985: 77).

O desencantamento do mundo
sab er” .82 E na sequência dos argum entos retorna sempre, ainda
que nem sempre com as m esm as palavras, essa mesma ideia for­
te, com o que a balizar a extensão inteira do longo fragm ento:
“ (O) entendimento que vence a superstição deve im perar sobre
a natureza desencantada. [...] Desencantar o mundo é destruir o
anim ismo. [...] D oravante, a m atéria deve ser dom inada sem o
recurso ilusório a forças soberanas ou imanentes, sem a ilusão
de qualidades ocultas. [...] O que se continua a exigir insistente­
mente é a destruição dos deuses e das qualidades” (pp. 19-23), a
substituição dos m itos pela pretensão de calculabilidade univer­
sal desenvolvida pelo m oderno conhecimento científico.
São m uitos os com entaristas que interpretam a tese do de-
sencantam ento do mundo atendo-se apenas a esse conteúdo que
eu aqui cham o de conteúdo expandido, o qual, não resta dúvida,
com porta sempre essa dim ensão atualíssim a de um desconforto
perante o avanço implacável da ciência. Têm razão, mas não toda.
Isso decorre da influência dos filósofos da Escola de Frankfurt e
do prestígio da releitura que nos anos 1940 eles fizeram do de-
sencantam ento do m undo, associando-o ao movimento irrefreá­
vel do “ esclarecim ento” (cf. W iggershaus, 1994). Talvez seja por
isso que m uitos de nós dão com o certo que é o avanço da ciência
natural por sobre as ilusões m íticas o acontecer histórico que o
conceito weberiano de desencantamento captura e apresenta. N ão
é. Isso aliás me incom oda muito. Pode ser que o fato de praticar
Sociologia da Religião há tantos anos me haja predisposto a re­
conhecer na obra de Weber o registro sociológico reiteradamente
aprofundado da obstinada luta da religião contra a m agia, pre­
sença mais destacada em sua obra do que o com bate que a ciên­
cia trava contra o(s) mito(s) e, com isso, meus olhos talvez se ha­
jam fixado com m ais força nessa perm anência de uma acepção
original que, agora se constata, é também terminal, a saber: a per­

A tradução poderia ser um pouco mais dura e dizer: “ substituir a


crendice pelo conhecimento” .

Passos 7 a 12: A ciência como vocação 163


manência, do com eço ao fim, do significado m ais estrito de de-
sencantam ento com o repressão da m agia pela religião, antes que
com o escalada universal da ciência a tornar tudo esclarecível (cf.
Pierucci, 2001). Foi o vulto da Escola da Frankfurt que andou re-
fratando as coisas.
A conferência de 1917 sobre a p rofissão de cientista, to da­
via, é onde a acepção de desencantam ento com o processo não se
contenta mais com o desm ascaram ento prático-ético da ilusória
causalidade prático-m ágica na vida cotidiana, e o segundo senti­
do que o termo agora traz vai desbordar sem cerim ônias o que
tenho cham ado aqui de desencantamento stricto sensu. Weber,
nessa conferência com o na Consideração interm ediária, avança
m uito além do “ cam po religioso” . Faz ver que o desencantam en­
to científico do m undo é m uito m ais fatal e definitivo do que a
desm agificação da prática religiosa. M ais fatal porque irrevogá­
vel, incapaz de regredir ou recuar, vinculado que é à lei do pro­
gresso técnico, cuja legalidade própria im põe um avançar cons­
tante, sem fim e sem volta atrás. Pois a ciência m oderna é uma
sabença autorreflexiva que desencanta o mundo ao mesmo tempo
que se desencanta a si m esm a, produzindo-se e reproduzindo-se
de forma am pliada em “ ciência desencantada” , conform e form u­
lou com brilho Lawrence Scaff, fazendo de si “ a im agem refleti­
da no espelho do m undo desencantado que ela própria desencan­
to u ” (Scaff, 1989: 230). Desencantados am bos, ficam desde logo
aptos a se representar um ao outro, a se apresentar um no outro,
num processo em espiral interminável, interminável. Vertigem.
São essas, em sum a, as principais linhas de força da argu­
m entação com que Weber procura, na conferência de novem bro
de 1917, retom ar e reprojetar o desencantam ento científico do
m undo com o “ o destino do nosso tem po” .83 São, todos eles, ar­
gumentos que alargam o conceito, aum entando a carga sem ânti­
ca do term o que ao m esm o tem po lhe diferencia a função: de

83 “ D as Schicksal unserer Z eit" (WL: 612).

164 O desencantamento do mundo


desencantam ento stricto sensu operad o pela intelectualização
religiosa, vira desencantam ento lato sensu operado pela intelec­
tualização científica. E, de elo histórico-causal estratégico para
a form ação da atitude ocidental de dom ínio do m undo, de fator
explicativo de um a identidade histórico-cultural, Weber faz dele,
tam bém , pace Frankfurt, uma ferramenta de crítica da contem-
poraneidade.
Destino e desencantamento encerram a conferência feita por
Weber no outono de 1917. O tema do destino é um dos obses­
sivos motes de sua reflexão nessa ocasião quase solene, para a
qual ele preparou algum as de suas m ais ap aixon ad as páginas, e
ele vai ferir o último parágrafo de seu discurso evocando uma vez
m ais... o destino — “ o destino do nosso tem po, com suas carac­
terísticas de racionalização e intelectualização, e, antes de tudo,
de desencantamento do m undo” (WaB/WL: 612; CP2V: 51). C o ­
mo se sabe, destino em latim se diz fatum , e bem assim em in­
glês, fate,84 palavra cuja sonoridade fatalmente nos faz pensar
nos fados, que os há, favoráveis e adversos, que abruptamente nos
atropelam nesses “ hiatos irracionais” da vida povoados de fadas
e fatalidades cham adas por W eber de consequências im previstas,
e quando previstas, de todo m odo não desejadas.85
Fatal, para não dizer fatídico, é com efeito o desencanta­
mento científico do m undo enquanto processo civilizacional, fa­
do inexorável, curso irrefreável. A cossado assim por W eber e sua
clarividência ante o progresso inevitável da ciência, ando me per­

84 “ The fate o f our times, characterized by rationalization and intel-


lectualization and, above all, by the ‘disenchantment o f the w orld’ [...]”
(FMW: 155).

85 “ E o puritanismo — inteiramente contra sua vontade — criou o


método de vida burguês. O paradoxo do efeito diante da vontade: o ho­
mem e o destino (destino: a consequência de sua ação contra sua inten­
ção)” (CP: 154; China: 238; GARS I: 524). Eis, para quem não a conhecia,
uma rara definição weberiana do conceito de efeitos perversos, ou conse­
quências não antecipadas.

Passos 7 a 12: A ciência como vocaçao 165


guntando: abraçar “ a ciência com o v o cação ” não será o m esmo
que assum ir o desencantamento com o um a m issão pessoal, ven­
do nele um destino não apenas “ ep ocal” , não apenas civilizacio-
nal, m as “ o destino de sua alm a” ,86 isto é, o pesquisador cien­
tífico se pensando com o desencantador profissional, o cientista
devendo se ver com o um Entzauberer num tempo em que voltam
a pulular os charmers de toda espécie? Por que não encarar tal
desafio deveras? Sob a égide do m ais fatal dos processos cultu­
rais que a im aginação histórica passou a vivenciar com a chega­
da dos tem pos m odernos — “ o desencantam ento do mundo pela
ciência” 87 — por que não abraçar tal sorte se de resto estam os
fadados a ela, por que não obedecer de bom grado a esse im pera­
tivo que nos designa portadores pessoais da desm agificação do
mundo?
Destino. A m or fati. Des(a)tino.

86 “ D as Schicksal seiner Seele" (WL: 589; CP2V: 24).

87 “ Desencantamento do mundo pela ciência” ; há um velho artigo de


Karl Löwith que leva justamente esse título, “ Die Entzauberung der Welt
durch Wissenschaft” (Löwith, 1964).

166 O desencantamento do mundo


12.
PASSO 13:
H IST Ó R IA G E R A L DA E C O N O M IA
(semestre de inverno-primavera de 1919-20)

Maleficam non patieris vivere!


[Não deixarás viver a feiticeira!]

Êxodo 22, 17

Pois o Senhor Javé não faz coisa alguma sem


revelar seu segredo a seus servos, os profetas.

Amós 3, 7

BREVE N O TÍC IA DA O BRA

Eis-nos agora diante de um texto que é ao m esm o tem po


estratégico e, em si mesmo, problem ático. N ão fosse minha obses­
siva vontade de achar em todas as dobras e nervuras da obra we-
beriana o termo desencantam ento, talvez eu não tivesse tão cedo
me dado a chance de ler de ponta a ponta a Wirtschaftsgeschichte,
que está editada em português desde 1968 com o H istória geral
da econom ia [HGE] e tem tradução para o espanhol muito ante­
rior, de 1942 |H EG ].
O livro é problem ático em sua própria confecção, m ais que
isto, em sua própria autoria enquanto texto: simplesmente por­
que M ax W eber não é o autor de sua escrita, e isto, em sua in­
teira m aterialidade. D a prim eira à última letra, nada do que está
escrito veio diretamente de sua caneta. M as o livro é estratégico
para os meus propósitos, prim eiro por sua data, e depois por es­
tar hoje suficientemente com provado que os editores responsá­
veis por sua redação, Siegmund Hellmann e M elchior Palyi, tive­
ram o m aior cuidado em não introduzir term inologias estranhas

Passo 13: História geral da economia 167


ao universo vocabular frequentado por M ax W eber nos anos fi­
nais de sua vida.
De m odo que esse meu encontro, quero dizer, ter encontra­
do na H istória geral da econom ia o sintagm a inteiro que durante
esse meu esforço de pesquisa foi, ou melhor, tornou-se “ o ” obje­
to de minha libido intelectual, veio conferir a meu trabalho e, de
quebra, ao significado religioso do termo, uma espécie de chan­
cela de validade e solidez, que de certa forma me devolvia aquele
reconfortante senso de realidade que leva alguém a dizer: “ não
estou delirando, não estou vendo coisas, nem ouvindo vozes” , ao
m esm o tem po que a mim me parecia ouvir a própria voz de We­
ber dando aula em M unique, fazendo suas preleções e, de repen­
te, m encionando com todas as letras a Entzauberung der Welt,
falando em “ desm agificação do m undo” enquanto rejeição ético-
-religiosa da m agia. Sim, porque sendo esse um caso raríssim o de
um livro saído todinho de anotações tom adas das aulas de um
curso (curso com pleto de história da econom ia dado por Weber
na Universidade de M unique no semestre de inverno-primavera
de 1919-20, cf. Collins, 1986: 20), ele primeiro foi dito e só bem
depois, escrito. A voz é sua, não a escrita — entre la voix et 1’écri-
ture, já indagou Derrida (1967a, 1967b), qual delas vem antes?
Por qual delas se com eça? N aquele verão, W eber m orreria.
O im portante, o decisivo nisso tudo, é que o significado re­
ligioso do termo desencantamento se m ostra um a constante des­
de sua cunhagem . Firme e forte até o últim o instante. Estar o
sintagm a presente nesse livro tão especial constitui prova inequí­
voca de que Weber em suas aulas em M unique usou-o nessa acep­
ção até o ano de sua m orte, a saber: com o sentido estrito de
desm agificação. Seus alunos docum entaram isso para sempre. Eis
a significação subjetiva que tem, para mim, haver topado com o
passo 13. Será que algo dessas suas últimas palavras não seria,
com o sugere Randall Collins, portador de sua “ última palav ra”
sobre o assunto?
Saiba o leitor que meu encontro inesperado com o sintagma
Entzauberung der Welt aí no final desse com pêndio de história

168 O desencantamento do mundo


universal da econom ia aconteceu mais ou menos no mesmo m o­
mento em que eu tom ava conhecim ento da visão expressa por
R andall Collins, que depois me pareceu hiperbólica mas não na­
quele momento, segundo a qual a História geral da economia seria
nada menos que a “ última p alav ra” de M ax W eber a respeito do
capitalism o moderno (Collins, 1986: 20-1). O ra, se o “ moderno
capitalism o racional” , com sua “ organização capitalista-racional
do trabalho (formalmente) livre” (GA RS I: 7) e essa “ nossa m o­
derna cultura cap italista” da dedicação ao “ trabalho numa pro­
fissão ” ,88 constitui o próprio cerne do objeto do interesse socio­
lógico de M ax W eber, todo voltado para a especificidade dessa
form a particular de capitalism o bem com o para a distintividade
do racionalism o ocidental, logo, a crer em Randall Collins, na
H istória geral da econom ia talvez nós encontrássem os tam bém a
última p alavra tout court do econom ista, historiador e sociólo­
go M ax W eber sobre o processo de desencantamento do mundo
com o uma das “ precondições históricas decisivas” [entscheidende
geschichtliche Voraussetzungen] “ para o desdobram ento da m o­
derna ética econômica do O cidente” (GA RS I: 2 3 8 ; Psico: 309;
ESSR I: 234). Pelas datas — W eber viria a falecer no verão de
1920, poucos meses depois desse curso de inverno — essa histó­
ria de últimas falas parece que faz sentido. Quem sabe?
Ao conjunto dessas aulas de M unique ele tinha dado um
título m odesto: “ Esboço de história econôm ica e social univer­
sa l” .89 Com o título de H istória geral da econom ia, o livro é o

88 “ [...] e vamos ver [...] de quem nasceu essa ideia de ‘vocação profis­
sional’ e de devoção ao trabalho numa profissão — noção essa tão irracional,
como vemos, do ponto de vista de um interesse próprio puramente eude-
monista — que foi, e continua sendo, um dos elementos mais característicos
de nossa cultura capitalista [unserer kapitalistischen Kultur]. A nós, interes-
sa-nos aqui justamente a origem desse elemento irracional que se assenta neste
como em todo conceito de ‘vocação profissional’ ” (PE/GARS I: 62; EPbras:
51; EPLus: 55).

89 Em alemão, “ Abriss der universalen Sozial- und 'Wirtscbaftsgeschi-

Passo 13: História geral da economia 169


resultado de um paciente trabalho de reconstrução póstum a a
cargo de Siegmund Hellmann em colaboração com M elchior Pa-
lyi, am bos da Universidade de M unique, que com pilaram ex post
o curso todo tendo por base as anotações feitas pelos estudantes,
sendo as lacunas cum uladas e as obscuridades sanadas com a aju­
da de outros escritos de W eber, publicados e ainda não. Para tan­
to, puderam contar com a assídua consultoria da viúva de M ax ,
a qual, a princípio, parece não ter gostad o muito da ideia de um
livro feito à base de apontam entos de aula. M as o livro foi feito.
Saiu publicado em 1923. E foi a primeira obra de Weber traduzi­
da para uma língua estrangeira: estava circulando em inglês já em
1927, antes d 'A ética protestante, a qual só foi vertida para o in­
glês em 1930, em fam osa tradução assinada por T alcott Parsons.
Para a terceira edição alemã, de 1958, o texto foi revisto pelo
perito em weberologia, Johannes W inckelmann, de novo com ba­
se em outras notas de alunos posteriormente localizadas, além de
beneficiar-se essa revisão do conhecimento íntimo e extenso que
W inckelmann possuía da pena w eberiana. D á para ver por essas
informações historiográficas que esse livro, dado o seu peculiarís­
sim o processo de form ação, tem um status textual que, se não
chega a ser de m á-form ação congênita, é no mínimo com plicado,
peculiar, devendo ser abordado — alerta-nos Schluchter (1996:
119) — sempre com uma pitada de sal. Coisa que R andall Collins
não fez, não deu atenção ao necessário grão de sal, à necessária
cautela. A postou nessa sua leitura todas as fichas, depositando
nela todas as expectativas que nutria de fechar uma discussão.
M as não é só por causa dos problem as ligados à originalís­
sima história da form ação do texto que ele deve ser tratado com
cautela. Seu singularíssim o histórico tam bém o relegou a um a
posição secundária no interesse dos estudiosos e com entaristas do
pensamento de Weber, sendo quase sempre tratado de m odo bre­

chte” . Em inglês, “ Outline o f Universal Social and Economic History” (cf.


Schluchter, 1996: 324, nota 42).

170 O desencantamento do mundo


ve, episódico, com o um recurso apenas auxiliar à argum entação.
N ão penso, porém , que seja o caso de tratá-lo aqui sequer com
reserva — ao contrário, é uma obra sob m uitos aspectos bem va­
liosa. Basta, no meu caso aqui, o cuidado de não arrastá-lo para
o leito principal da escrita de Weber, pois ao fim e ao cabo ele
não saiu de sua pena, foi escrito por outros.
Q uanto ao conteúdo, na disposição geral e no fundo, não
há o que temer: o curso com o um todo está intimamente entre­
laçado, seja temática e conceitualmente, seja cronológica e bio-
graficam ente, com o restante do trabalho e do esforço de Weber
naquele superprodutivo biênio de 1919-20, em penhado que es­
tava na elaboração e revisão de algum as das principais obras de
sua sociologia: o acabam ento sempre ad iado de Econom ia e so ­
ciedade, a finalização da publicação da série de fascículos sobre
O judaísm o an tigo,90 a conferência sobre A política como voca­
ção ,91 a preparação para publicação do texto da conferência já
feita sobre A ciência com o vo cação,92 a terceira versão da C on­
sideração interm ediária ,93 a revisão do estudo sobre a China e a
consolidação definitiva do texto d ’A ética protestante e o espí­
rito do capitalism o.94

90 Sob o program ático título D as antike Judentum, Weber pouco a


pouco foi publicando no Archiv as partes de sua análise sociológica da ética
religiosa da antiga religião de Israel, posteriormente judaísmo. Como se fos­
se uma sequência de fascículos (embora de extensão desigual e periodicida­
de irregular), essa publicação durou de outubro de 1917 a janeiro de 1920
(cf. Schluchter, 1989: 164).

91 Proferida em janeiro de 1919 (cf. Schluchter, 1979c).

92 Proferida em novembro de 1917 (cf. Schluchter, 1979c).

93 Cf. Schluchter, 1979b.

94 O que lhe exigiu o esforço extra de redigir toda uma série de impor­
tantes aditamentos ao texto de 1904-05, além de novas e longas notas de
rodapé, para fazê-los constar da nova edição de 1920 (ver PE“ G ” K; cf. Kás-
ler, 1988).

Passo 13: História geral da economia 171


C O M E N T Á R IO

N ão concordo com a opinião de Randall Collins, exagerada


a meu ver, m as no momento em que descobri o passo 13, naque­
la primeira hora senti que o achado recom pensava meu esforço
de pesquisa com baixa tecnologia. Era um bocado reconfortante
para minha busca linguística encontrar as palavras “ desencanta-
mento do m undo” justamente entre aquelas que um sociólogo con­
tem porâneo da estatura de Randall Collins considerava as “ últi­
m as p alavras” de Weber.
Para variar, a tradução brasileira de C alógeras Pajuaba faz
o sintagm a brincar de esconde-esconde com o leitor. Sua tradu­
ção em baralha os significantes despistando o investigador ao não
dizer diretamente “ desencantamento do m undo” e apelar para um
circunlóquio que resulta correto no significado, m as que oculta
o significante original: substitui o substantivo pelo verbo e, não
contente, usa no lugar do verbo “ desencantar” toda uma frase:
“ romper o encanto m ágico” . Diz a tradução brasileira:

Às profecias cabe o mérito de haver rom pido o


encanto m ágico do m undo, criando o fundamento para
a nossa ciência m oderna, para a técnica e, por fim, o
capitalism o. (H G E: 316, grifo meu)

M enos mal que pelo menos o significado se haja preserva­


do. A sinoním ia “ desencantar = rom per o encanto” está perfei­
ta, e eu desconfio que o tradutor95 tenha sido induzido, talvez
inconscientemente, pelo próprio texto em alem ão, o qual princi­
pia o parágrafo em que está contida essa passagem com um a ex­
pressão muito própria do jargão m ágico — “ quebrar o encan­
to ” , “ quebrar o feitiço” : die M agie zu brechen — conectando-a

95 O brasileiro mas também o mexicano, cuja tradução diz: “han r


to el encanto mágico dei mundo” (HEG: 304).

172 O desencantamento do mundo


à outra face histórica do m esm o processo bifronte, a racionali­
zação da conduta de vida. O texto alem ão não fala nessa p assa­
gem em quebrar feitiço, mas alude a isso, já que todo feiticeiro
que se preze é sempre um bom quebrador de feitiço alheio (cf.
Pierucci, 2001). O que o texto alem ão faz é valer-se do jargão
para falar da destruição da m agia com o atitude e m entalidade,
com o instituição e caldo de cultura, para se referir, em sum a, ao
m agism o. Q uebrar a m agia, aí, quer dizer destroçar o poder ime­
m orial e inercial do m agism o colocando em seu lugar um a reli­
giosidade eticamente orientada. N ão por acaso, no m esm o p a ­
rágrafo vêm à baila as figuras da China e da índia. Com entando
por alto algum as de suas características históricas, W eber obser­
va comparativamente que a religiosidade dos estratos intelectuais
asiáticos “ nunca foi capaz de desalojar a m agia [die M agie zu
verdrängen]; o m áxim o que conseguia era pôr uma outra no lu­
g a r” (Wg: 309; ver H G E: 3 1 6 ).96
A evocação da religiosidade chinesa e hindu serve aqui de
contraste para Weber teorizar uma vez m ais sobre a importância-
-chave que teve para o desenvolvimento do racionalism o ociden­
tal o surgim ento do judaísm o seguido do cristianism o, “ religiões
de plebeus” , cam adas urbanas “ de ouvido religioso” em luta aber­
ta e certeira contra seu mais arcaico adversário, a m agia, “ rebaixa­
d a ” [herabgedriickt[ pela nova abordagem ético-religiosa da bus­
ca de salvação ao status negativo de “ coisa ímpia e diabólica” [zu
etwas Unbeiligem, Diabolischem ]. Essa luta milenar, aos olhos do
W eber sociólogo, acabaria sendo “ decisiva” para os efeitos de
m assa colhidos pelo cristianism o da Reform a na m odernidade
clássica, tendo sido a m agia “ asfixiada junto às m assas na m edi­

96 Lamentavelmente, a tradução brasileira altera o sentido da frase,


ao dizer de maneira confusa que a religiosidade oriental “ jamais podia es­
tar em condições de eliminar a magia, quando muito, substituí-la” (HGE:
316). O certo seria dizer: “ [...] conseguia, quando muito, substituí-la por outra
m agia” .

Passo 13: História geral da economia 173


da do possível” [die M agie in den M assen sow eit erstickt wurde
ais nur mõglich] (Wg: 310). N otar que não se fala aqui de extinção
total da m agia, m as de sua asfixia “ na medida do possível” .
Em 1919 ele estava inteiramente convencido de que o gigan­
tesco trabalho de pesquisa sócio-histórica co m parada a que se
lançara desde mais ou menos 1910 já lhe trouxera ganhos cogni­
tivos enormes para poder fundam entar com argum entos empíri­
cos uma visão menos unilateral da história econôm ica, com base
em sua teimosa concepção de que a causalidade histórica não pode
ser senão pluridim ensional. Q uase dez anos depois, ei-lo, senhor
de si, a esbanjar uma visada com parativa tão abrangente que lhe
permite, por exem plo, tirar a limpo com clareza e precisão, sem
os exagerados arroubos de seu contem porâneo Werner Som bart,
o verdadeiro papel desempenhado pelo judaísm o na gênese do m o­
derno capitalism o (cf. Som bart, 1982; Dem m, 1989; M itzm an,
1989; A braham , 1992). Vale notar que nessa sua m ais recente
delim itação de um elo causal de alcance histórico m acrocultural
para a especificidade ocidental, W eber aponta insistentemente,
maçantemente, para este ponto-chave: a desm agificação ativa da
religiosidade que o antigo judaísm o pôs em movimento.

Com exceção do judaísm o e do cristianism o, e de


duas ou três seitas orientais (uma delas no Ja p ã o ), não
há nenhuma outra religião com pronunciado caráter de
hostilidade à m agia [Magiefeindlichkeit]. (Wg: 307; ver
H G E: 315)
N a medida em que legou ao cristianism o sua hos­
tilidade à m agia [M agiefeindschaft], o judaísm o teve
um significado decisivo para o capitalismo racional m o­
derno. (Wg: 307; ver H G E: 315)
Enquanto o judaísm o abriu a possibilidade do
cristianism o e, no cam inho, conferiu-lhe o caráter de
uma religião essencialmente estranha à m agia [magie-
fremden Religion\, ele consum ava nessa mesm a m edi­
da uma grande realização histórico-econôm ica [eine

174 O desencantamento do mundo


grosse w irtscbaftsgeschichtliche Leistung], (Wg: 308;
ver H G E: 315)

É na guerra teórica e prática que o judaísm o profético de­


clarou e sem tréguas empreendeu contra o m agism o que Weber
circunscreve o papel “ histórico-econôm ico” do judaísm o, um p a ­
pel indireto m as decisivo. E porque o D N A do cristianism o pro-
tom oderno é judaico, a influência do judaísm o foi decisiva, se bem
que indireta e amplamente negativa. Amplamente negativa e vas­
tamente weberiana, eu diria, na medida em que remete novamen­
te a um outro M otiv muito caro à teorização de Weber, a saber,
o da rem oção de obstáculos culturais e históricos ao pleno desen­
volvimento da racionalidade econôm ica, ao livre curso da ativi­
dade econôm ica lucrativa. Ao fim e ao cabo dessa teorização, a
m agia, pensada com o tradicionalism o m ágico irracionalm ente
em basado, termina categorizada com o entrave, travação, am ar­
ração. Ironia da vida, não é à m agia que compete “ abrir os cam i­
nh os” , antes pelo contrário, dem onstra Weber: ela os atravanca.
M agia é um estorvo.
Por quê? Porque na realidade “ a dom inação da m agia, fora
do âm bito do cristianism o, é um dos m ais pesados entraves à ra ­
cionalização da vida econôm ica” , im pedindo a liberação daque­
le ím peto m otivacional interior que n’A ética protestante Weber
caracteriza com o “ sanção p sicológica” . E por que isso? Sim ples­
mente porque, prossegue W eber, “ m agia quer dizer estereotipa-
ção da técnica e da econom ia” [Magie bedeutet Stereotypisierung
der Technik und Ö k o n om ik | (Wg: 308). N outras palavras, m a­
gia é fixidez, cristalização, inércia, repetição. Em jargão weberia-
no, isso quer dizer tradicionalism o, ação tradicional no sentido
m ais puro de um tipo-ideal. E por isso que no capítulo de Socio­
logia da Religião de Econom ia e sociedade ele nos explica que

[...] a quebra de norm as m ágicas ou rituais estereoti­


padas por meio de profecia ética pode dar origem a re­
voluções — agudas ou paulatinas — também na ordem

Passo 13: História geral da economia 175


cotidiana da vida e particularmente na economia. (EeS
I: 385; W uG: 349)

N a longa trajetória do racionalism o ocidental, um o b stá­


culo de monta a “ remover” [beseitigen] (Wg: 308), na verdade o
grande obstáculo, era a eterna repetição da imutável coreografia
do passad o, daquilo que sempre foi assim e que, por tabu, não
podia ser m udado. M agia é isso, ação estereotipada. Páginas an­
tes, o texto da H istória geral da econom ia associa m agia com
tradicionalism o, que por sinal aí aparece lindam ente definido
com o “ essa incapacidade e essa aversão de separar-se dos rum os
tradicionais” (H G E: 310).

Tam bém é muito intensa a influência que exer­


ce a m agia estereotipada da a ç ã o ,97 essa grande aver­
são a introduzir m odificações no regime de vida co­
mum por tem or de provocar transtornos de caráter
m ágico. De ordinário, atrás dessas considerações es­
conde-se o afã de conservar prebendas, m as a condi­
ção prévia é sempre uma crença em certos perigos de
caráter m ágico. (H G E: 310)

O fato de que o sintagm a “ desencantam ento do m un do”


apareça na H istória geral da econom ia, e justo no capítulo que
trata da origem do capitalism o m oderno, é um dado muito signi­
ficativo para os propósitos deste trabalho. Primeiro, por se tra­
tar de um texto de história econôm ica, e não de um estudo de So­
ciologia da Religião; em segundo lugar, por se tratar de um re­
gistro historiográfico ele m esm o do estado vigente do pensam en­

97 Há nesta passagem da edição brasileira um erro de tradução paq


dérmico: a palavra Handeln, que quer dizer “ ação” , “ agir” , foi traduzida
como “ comércio” , que se diz Handel em alemão, não Handeln. A frase en­
tão ficou da seguinte forma em português: “ a magia estereotipada do comér­
cio” , o que não faz o menor sentido no contexto, um erro inexplicável.

176 O desencantamento do mundo


to w eberiano, registro altam ente fidedigno pelo número de pes­
soas próxim as a Weber envolvidas na reconstituição das aulas. E
o que ele diz com o registro historiográfico? Que no período que
vai do início do curso em 1919 até à época de sua primeira edi­
ção, em 1923, três anos após a m orte de M ax , “ desencantamen-
to do m undo” figurava tranquilamente entre os elementos com ­
ponentes de seu léxico, que assim era recebido e assim era publi­
camente reconhecido. Parece pouco, m as não é. E m ais significa­
tivo fica quando se leva em conta que o contexto da obra em que
vem inserido é o capítulo em que W eber insiste na singularidade
da gênese (e na gênese da singularidade) do racionalism o ociden­
tal, procurando m ostrar, m ais uma vez, qual era o principal fa­
tor de resistência ao livre desenvolvimento do m oderno capitalis­
mo racional plenamente objetivado: o fator interno. O fator moti-
vacional é uma das teim osias de W eber desde a primeira versão
d ’A ética protestante e o espírito do capitalism o, de 1904-05.
N o sso sintagm a, portan to, com parece no biênio final de
1919-20 com seu sentido técnico, não m etafórico. Volta a com ­
parecer em sentido estrito, não em sentido lato, menos ainda em
sentido frouxo ou flexível. Trata-se evidentemente e mais uma
vez do desencantamento ético-religioso do m undo, do processo
de desem baraçar das crenças e práticas m ágicas o estilo de vida
religioso das pessoas, substituindo-as pela disposição ética inter­
nalizada de levar uma vida metódica de trabalho racional in m a­
jorem D ei gloriam .
N o método da sociologia weberiana (e todos acabam os quase
decorando isso, pois ele faz questão de sempre voltar a esse pon­
to e deixá-lo bem claro), “ há que se levar em conta principalmente
as condições econômicas, reconhecendo a importância fundamen­
tal da econ om ia” . M as não se deve ignorar, por outro lado “ tf
relação causal inversa: pois o racionalism o econôm ico depende
em sua origem tanto da técnica e do direito racionais, quanto da
capacidade e disposição dos homens p ara determ inados tipos de
conduta prática racional. Q uando essa conduta se viu impedida
por obstáculos de tipo espiritual, também no cam po da economia

Passo 13: História geral da economia 177


o desenvolvimento de uma conduta racional topou com fortes re­
sistências internas. O ra bem, no p assad o, os poderes m ágicos e
religiosos e as ideias de dever ético ligadas a eles se contaram por
toda parte entre os elementos form adores da con duta” (AIntro:
12; EPbras: 11, grifos meus). W eber se refere aí a “ obstáculos de
tipo espiritual” e no capítulo I da H G E, cham ado “ Preâm bulo
conceituai” , podem os encontrar outra versão do m esmo “ espíri­
to da co isa” , quando ele diz que m esm o numa história da econo­
m ia mundial outros fatores de natureza extraeconôm ica devem
ser considerados. E, com efeito, quando se trata de fazer uma
história econômica de longa duração, com o tratar da economia
antiga sem tocar no tradicionalism o?

N o s períodos antigos, era diferente o grau de ra-


cionalism o econômico. N o princípio está o tradiciona­
lism o, que se apega ao passad o, aos costum es herda­
dos e os transfere a outras épocas, ainda que, com o
decorrer do tem po, já tenha perdido sua primitiva sig­
nificação. Só lentamente se chega a superar esse esta­
do de coisas. Portanto, a história econôm ica tem de
contar tam bém com elementos de caráter não econô­
mico. Entre estes figuram : fatores m ágicos e religiosos
— a ânsia por bens de salvação; fatores políticos — a
ânsia por poder; interesses estam entais — a ânsia por
honra. (Wg: 46 ; ver H G E: 24, grifos do original)

Isso é apenas mais uma prova de quão equivocado é ficar


opondo a H istória geral da econom ia à Sociologia da Religião.
Seu capítulo inicial faz algum as alegações m etodológicas que são
inteiramente consistentes com todo o resto da obra de Weber. E
o capítulo final prova, acima de qualquer outra alegação, o quão
consistentemente Weber manteve até o fim da vida aquela posi­
ção m etodológica básica form ulada am plam ente já no ensaio
sobre a O bjetividade, redigido na mesma época da primeira ver­
são d 'A ética protestante, em 1904 (cf. O bjekt). A posição tom a­

178 O desencantamento do inundo


da desde o início é a seguinte: não é possível explicar nem m es­
mo a econom ia e seus diversificados desenvolvimentos sem levar
a sério os aspectos essenciais da história cultural, sobretudo da
vida religiosa; é necessário torná-los parte imprescindível da an á­
lise, encadeando-os e im bricando-os aos outros fatores, econô­
m icos, políticos e sociais. E nem se trata de ficar im aginando que
Weber pudesse ficar oscilando o tempo todo para a frente e para
trás, entre o idealism o e o m aterialism o. Se a leitura de suas dife­
rentes obras nas diferentes especialidades científicas cria a sensa­
ção dessa flutuação, isso apenas m ostra, com o observou Schluch-
ter com m uita perspicácia e delicadeza, que W eber “ era bem
consciente do que seja um ponto de vista” (Schluchter, 1996: 333,
nota 126; ver, a propósito, o próprio Weber em Objekt: 169-170;
M SS: 71-72).
Resta-m e por fim considerar de maneira mais detida a pro­
fecia, “ a grande profecia racional” , este elemento causal posto em
destaque gráfico no passo 13, com o uso de dois pontos seguidos
de grifo: “ Para quebrar a m agia e dissem inar a racionalização da
conduta de vida, houve em todos os tem pos somente um meio:
grandes profecias racionais” (HGE: 316). Com tal expressão, We­
ber está se referindo pela enésima vez à profecia tal qual a conhe­
cem os do Antigo Testam ento, a profecia tal com o praticada pe­
los grandes profetas de Israel já nos tem pos pré-exílicos. Em ter­
m os sociológicos, a profecia hebraica é do tipo “ profecia em issá­
ria” , a qual se diferencia tipologicamente da “ profecia exem plar” ,
segundo as várias definições conceptuais desenvolvidas porm eno­
rizadamente no p arágrafo 4 do capítulo de Econom ia e socieda­
de dedicado à sociologia sistem ática da religião (WuG: 268-275;
EeS I: 303-310). O profeta emissário é um “ instrumento que anun­
cia um Deus e a vontade dele” , seja essa vontade uma ordem con­
creta ou uma norma abstrata. E um indivíduo encarregado por
Deus de “ exigir a obediência com o dever ético” (EeS I: 308). We­
ber define o tipo-ideal do profeta com o sendo “ o portador de um
carism a puram ente pessoal, o qual, em virtude de sua m issão,
anuncia uma doutrina religiosa ou um m andam ento divino. [...]

Passo 13: História geral da economia 179


Ele se distingue do feiticeiro pelo fato de que anuncia revelações
substanciais e a substância de sua m issão não consiste em m agia,
m as em doutrina ou m andam ento” [nicht in M agie, sondern in
Lehre oder G ebot] (EeS I: 303; W uG: 269).
Comenta Raym ond Aron brilhantemente: “ A força, ao mes­
mo tempo religiosa e histórica, que rompe o conservantismo ritua-
lista e os estreitos laços entre o carism a e as coisas, é o profetismo.
Ele é religiosam ente revolucionário f...] porque estabelece uma
oposição fundam ental entre este mundo e o ou tro” (Aron, 1967:
546) — uma disjunção entre o aquém e o além que afasta cada
vez mais o divino do criado, que separa o sobrenatural da natureza
(Gauchet, 1985: 139-141). Em nome de Javé, o Deus da aliança
com o povo de Israel, os grandes profetas da era pré-exílica ataca­
vam a base mesma dos outros cultos, a visão m ágica do mundo,
ensinando com demonstrações e exortações às suas audiências que
o homem, a natureza e a divindade são entidades totalmente se­
paradas. E se o Deus único da profecia em issária é um Deus pes­
soal e supram undano, os homens estão privados do poder de co a­
gi-lo m agicam ente com rituais sim páticos e fórm ulas m ágicas.
N um primeiro momento, a profecia ética desvaloriza as prá­
ticas m ágicas, retirando-lhes todo valor salvífico — m agia é uma
nulidade, uma bobagem , uma inutilidade [überhaupt ais nutzlos]
(WuG: 278). Desencantar, então, é varrer esse lixo. N um segun­
do m om ento, a profecia ética antagoniza a m agia, que passa a ser
levada a sério com o coerção divina e, enquanto tal, ofensa grave
a Javé, o Deus da aliança: pecado, blasfêm ia, sacrilégio. Pois todo
poder de salvar pertence a Javé e dele provém.

Em virtude de seu sentido, toda profecia, ainda


que em grau diverso, desvaloriza os elementos m ági­
cos. f...] Os profetas israelitas não apenas rejeitam a per­
tinência aos m agos e adivinhos qualificados [...] m as
também rejeitam a própria m agia, com o inútil. Somen­
te a relação significativa especificamente religiosa com
o eterno traz a salvação. (EeS I: 313)

180 O desencantamento do mundo


A m agia não salva, não consegue salvar, eis a acusação.
Q uando o profeta Isaías interpela Babilônia, suas palavras p o ­
dem nos servir de ilustração do desapreço que um “ profeta da
desgraça” reserva à m agia por sua im potência salvífica:

Ouve isto, agora, ó voluptuosa! [...] Uma desgraça


te sobrevirá, tu não saberás com o conjurá-la; uma ruína
se desencadeará sobre ti e tu não p oderás afastá-la.
Repentinamente virá sobre ti a calam idade, sem que o
saibas. Persiste, pois, nos teus encantamentos e na mul­
tidão dos teus sortilégios, com os quais te fatigaste desde
a tua juventude. Talvez consigas tirar deles algum pro­
veito, talvez consigas inspirar medo. Estás cansada com
as tuas consultas inúm eras; apresentem -se, pois, e te
salvem aqueles que praticam a astrologia, que obser­
vam as estrelas, que te dão a conhecer de mês em mês
o que há de sobrevir-te. Eles são como o restolho, o fogo
os queim ará; não conseguirão salvar a sua vida do p o ­
der das cham as, pois não se tratará de um braseiro pró­
prio para aquentar-se, ou de um fogo próprio para sen-
tar-se junto dele. T ais serão os teus adivinhos, com os
quais te fatigaste desde a tua juventude: todos eles se
desgarraram do caminho, nenhum deles conseguiu sal­
var-te. (Isaías 47, 8-15)

Em p ou cas p alavras: m agia não salva, sim plesm ente não


consegue salvar. N ão tem poder redentor, não tem valor salvífico.
Assim o decreta a profecia ética de Israel, e assim o irão pregar
mundo afora os reform adores puritanos. Cabe ao povo obedecer
à vontade de Javé, expressa em m andam entos éticos de regula­
m entação da conduta, fundindo a prática religiosa com a ativi­
dade de cada dia. A ação com valor salvífico deixa de ser o ritual,
o sacrifício, o êxtase m ístico, a ida ao templo. A partir de agora a
salvação se desloca para a conduta reta que brota de um reto co ­
ração, a vida san ta, san tificada sistem aticam ente em conform i­

Passo 13: História geral da economia 181


dade com a vontade expressa do Deus único. “ O que o Deus dos
profetas israelitas quer não são os h olocaustos” , lembra Weber,
“ m as obediência a seus m andam entos” (EeS I: 314).
O s homens se tornam conscientes, com o nunca, da ob riga­
ção de conduzir sua vida diferentemente do que ela sempre foi,
de m oldá-la de acordo com um m odelo ideal de perfeição divina­
mente revelado, sancionado e cobrado. A distinção que emerge
entre o m undo das criaturas e a absoluta transcendência divina,
o dualism o de m undos, desdobra-se nesta outra, a distinção entre
o que os homens “ fazem de fa to ” individual ou coletivamente e
o que o Deus único “ quer que eles façam e eles, portanto, devem
fazer” . Eis aí a gênese da cisão intelectualizada e racionalizadora
entre o “ ser” e o “ dever ser” . E a emergência histórica do com ­
portam ento m oral reflexivo, e de início ele é só isto m esm o, não
pode ser muito mais do que isto em sua heteronom ia essencial: a
condução de uma vida tendencialmente hom ogênea em obediên­
cia a uma norm a religiosa revelada, dotada pela pregação profé­
tica de especial vigência e rigor e abraçad a interiormente pelo
indivíduo num m isto de abandono e responsabilidade (cf. Fahey,
1982; Roshw ald, 1991). E a consum ação da relação religiosa co ­
mo ética religiosa, na suprem acia da ética sobre a teologia. N o u ­
tras palavras, é o triunfo da religião eticizada sobre a religião ritual-
-sacramental embebida de magismo. E a desm agificação da religio­
sidade, seu desencantam ento. E a nascente de tudo isso, rica de
possibilidades ilimitadas de racionalização da vida e de dom inação
do m undo, foi a profecia israelita — a grande profecia racional.

M agia e religião a gente encontra em todos os


lugares. M as um fundam ento religioso da conduta de
vida que com o resultado fosse dar num racionalism o
específico é, em com pensação, peculiar apenas ao O ci­
dente. (Wg: 2 7 0 ; H G E: 280)

Weber não conseguiu esconder em seus escritos a sim patia


pessoal que nutria pelos profetas éticos do Antigo Testam ento,

182 O desencantamento do mundo


esses críticos da cultura. Em Econom ia e sociedade isso fica m ui­
to claro, principalmente pelos elementos da casuística empírica que
o autor reúne e m obiliza no esforço lógico de selecionar os tra­
ços e então definir formalmente pelo menos dois tipos ideais inti­
mamente afins: o profeta98 e a dom inação carism ática.99 O p ro­
feta emerge com o um indivíduo individualizado, digam os assim ,
independente, autônom o, que age por conta própria, socialm en­
te desvinculado e politicamente contestador. Um reform ador in­
flam ado, com a vantagem de som ar em si as duas únicas forças
— carism a e racionalidade — capazes de derrubar os tabus da
tradição religiosa, da autoridade patriarcal, do tradicionalism o
cultural e econômico.
M as a sim patia de W eber pelo profeta em issário — segun­
do ele um tipo social característico apenas das culturas religiosas
do Oriente M édio — fica ainda m ais evidente no inacabado es­
tudo sobre o judaísm o antigo, D as antike Judentum (AJ), o qual
merece aqui pelo menos algum as linhas de consideração. Nele,
páginas e páginas são dedicadas a descrever, em diversos m om en­
tos históricos e em diferentes circunstâncias político-religiosas da
história de Israel, a hostilidade do profetism o judaico ao ritualis-
mo dos sacerdotes israelitas fortemente contam inado de m agia,
bem com o ao m agism o profissional que persistia internamente co­
mo prática heterodoxa e predom inava externamente na religiosi­
dade das civilizações circundantes (sobretudo Egito e Babilônia).
M as, por incrível que pareça, no ensaio inacabado sobre o
judaísm o an tigo não aparece uma vez sequer o term o “ desencan-
tam ento” , muito embora a ideia da desm agificação como “ repres­
são à m ag ia” seja tem atizada o tem po todo e percorra o ensaio

98 Que ele contrapõe a outros dois tipos, o feiticeiro e o sacerdote,


formando assim a tríade dos profissionais religiosos típicos (cf. Bourdieu,
1974a; 1974b).

99 Que forma, com a dom inação tradicional e a dominação racional-


-legal, os “ três tipos puros” de dominação legítima.

Passo 13: História geral da economia 183


de ponta a ponta. A coisa está lá, perm eando todo o texto, mas o
nome não aflora. E bem verdade pelo menos uma vez aparece um
outro sintagm a correspondente a Entzauberung der Welt em seu
sentido técnico: Verwerfung der M agie, que pode ser traduzido
com o reprovação, condenação ou rejeição da m agia (AJ: 22 2 ;
G A R S III: 236; ESSR III: 251). É realmente curiosa essa ausên­
cia, já que W eber não deixa de em pregar, além de outros term os
substitutos, esta outra expressão afim à tem ática do desencanta-
mento. Refiro-me agora à metáfora do “ jardim encantado” (GARS
III: 237). N o capítulo dedicado a analisar a “ ética do javism o” ,
no esforço por distinguir entre “ m ilagre” e “ feitiçaria” , ele não
perde a oportunidade de mais uma com paração cross-cultural com
as religiosidades “ asiáticas” :

Onde nas religiões asiáticas está o “ feitiço” [“ Zau-


ber” ], em Israel está o “ m ilagre” [ “ W under” |. O m ago,
o salvador, o Deus da Á sia “ enfeitiça” [ “zau bert”]; o
Deus de Israel, pelo contrário, quando se o invoca e se
lhe suplica, realiza “ m ilagres” . Já falam os antes desse
contraste tão profundo. Em contraposição ao “ feitiço” ,
o “ m ilagre” é uma figura mais racional. (AJ: 222; ESSR
III: 252)

“ O m undo do indiano permaneceu um jardim encantado ir­


racional.” O m undo do judeu, por sua vez e por contraste, não.
O uso do verbo “ perm anecer” sugere obviam ente que o mundo
israelita antes era um jardim encantado, m as deixou de sê-lo, ra­
cionalizado-se por m arcação de seus virtuoses religiosos carac­
terísticos, os profetas em issários. C ham a a atenção o fato de que
nesse contexto de com paração do m agism o com o m onoteísm o
ético W eber ressalta, m ais um a vez, o caráter irracional da m a­
gia, tema já discutido no passo 1. O que aqui se diz do milagre é
que ele difere do feitiço precisam ente por seu grau m ais exigen­
te de racionalidade sistêmica e coerência narrativa: “ o m ilagre é
um produto significativo e inteligível das intenções e reações da

184 O desencantamento do mundo


divindade” (AJ: 223; ESSR III: 252). Portador de racionalização
teórica, portanto, a qual supõe a atividade sistem atizadora pró­
pria de intelectuais religiosos; intelectualização religiosa, noutras
palavras.
E deveras intrigante observar com o a noção de um sentido
m etafísico que transform a o m undo em cosm os ordenado, quan­
do considerada do ponto de vista do desencantamento do mundo,
tem em W eber uma dupla entrada e, m ais im portante, uma dupla
direção. O judaísm o profético, quando desencanta o mundo, con-
fere-lhe um sentido hom ogêneo [einheitlicher Sinn], tal com o ex­
plica Weber, longamente, no final da seção de Econom ia e socieda­
de dedicada ao profeta (WuG: 275; EeS I: 310); em com pensação,
a ciência empírica m oderna, quando desencanta o m undo, retira-
-lhe o sentido, transform ando este mundo num mero m ecanism o
causal, em cosm os da causalidade natural, conform e dito e repe­
tido n ’A ciência como vocação e na Consideração intermediária.
E pois na relação bifronte que entretém com a ideia m etafí­
sica de um sentido unitário do m undo que aflora a com plexida­
de do conceito weberiano de um mundo desencantado. Aqui, sim,
talvez caiba pensar em plurivocidade do desencantamento, mais
ou m enos na direção apontada por Ricoeur (1995), para evitar
que o conceito se torne vítima de uma univocidade acanhada. T al­
vez, digo eu, e vou logo acrescentando: contanto que não seja para
dissipar em m etaforizações e inconsistências sem qualquer ser­
ventia técnico-científica [facbwissenschaftlich] esse núcleo duro
do conceito que na sociologia tardia de Weber alberga o tempo
todo uma plurivocidade binária concomitante e não estratificada.
Pode-se desencantar o m undo ordenando-o sob um sentido
que unifica, com o fez a profecia ético-metafísica, e pode-se desen-
cantá-lo estilhaçando este sentido unitário, com o tem feito a ciên­
cia em pírico-m atem ática.
Weber sabia muito bem o que significa um ponto de vista.

Passo 13: História geral da economia 185


13.
PASSOS 14 A 17:
A ÉT IC A P R O T E S T A N T E
E O E S P ÍR IT O D O C A P IT A L ISM O
(2a versão: 1920)

Habent sua fata libelli.


[Os livros têm lá seus fados.]

Verso latino, séc. III d.C.

BREVE N O TÍC IA DA OBRA

Considere o que sempre lhe disseram: que A ética protestan­


te e o espírito do capitalism o100 foi publicado pela primeira vez
em 1904-05. Por que, então, há de estar se perguntando, num
estudo todo m ontado em cima da disposição cronológica dos tex­
tos de Weber contendo o significante “ desencantam ento” em di­
versas form as gram aticais, A ética protestante acabou ficando em
último lugar? N ão é o contrário que se esperaria, A ética protes­
tante no começo?
Considere agora o que ficou dito no passo 1, a saber, que foi
somente em 1913 ou pouco antes, no ensaio m etodológico “ So­
bre algum as categorias da sociologia com preensiva” [Kat], que
Weber passou a usar por escrito a expressão Entzauberung der
Welt, não sendo possível desta sorte achar-se o termo na edição
de 1904-05, e a conclusão óbvia a que chegará é que o uso desse
conceito n ’Á ética só pode ser coisa de uma edição posterior.
E com efeito. E da segunda edição, de 1920, trabalho dos
seus últimos meses de vida. D aí sua colocação em último lugar
na ordem cronológica que ora apresento dos p assos do conceito.

100 A partir de agora as menções a essa obra serão feitas em f


reduzida: A ética protestante ou simplesmente A ética.

186 O desencantamento do mundo


Para concluirm os o percurso, convém deixar assentado de
uma vez por todas que Weber nos deixou não somente duas edi­
ções d ’A ética protestante, m as duas versões. A primeira, publicada
em duas levas, em 1904 e 1 9 0 5 ,101 e a outra, revista e am pliada,
editada em 1 9 2 0 .102 T odas as traduções que até hoje conhecemos,
a com eçar da primeira, de 1930, assinada por Talcott Parsons,
usaram a versão am pliada de 1920, inserida por W eber no volu­
me I dos E n saios reunidos de Sociologia da Religião [GARS Ij.
Há diferenças im portantes entre as duas versões, já que a se­
gunda recebeu do autor não só pequenas alterações e ajustes ter­
m inológicos ou gram aticais, m as tam bém e principalmente acrés­
cimos preciosíssim os. Faz tem po já — segunda metade dos anos
1970 — que w eberólogos alem ães com eçaram a nos lembrar de
com o pode ser estratégico na análise da obra de W eber levar em
conta as diferentes versões d ’A ética protestante. Dois deles de
m odo especial, Friedrich H. Tenbruck (1975) e W olfgang Schlu-
chter (1976). Seus aportes historiográficos cada vez mais técni­
cos com eçaram a girar mundo (em inglês, é claro) já na virada dos
anos 70 para os 80. O artigo de Tenbruck, D as Werk M ax We-
bers, o mais explícito a esse respeito até então, saiu traduzido em

101 “ Die protestantische Ethik und der ‘Geist’ des Kapitalism us, I” ,
escrita no verão de 1904 e publicada no Archiv für Sozialwissenschaft und
Sozialpolitik, vol. 20 (nov. 1904), pp. 1-54; e “ Die protestantische Ethik und
der ‘Geist’ des Kapitalismus, II” , escrita no início de 1905 e publicada no
Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, vol. 21 (jun. 1905), pp. 1-
110. Foi essa primeira versão de 1904-05, obviamente, que suscitou a longa
polêmica entre Weber e seus críticos, cujas posições refutou em textos que
ficariam conhecidos como “ anticríticos” (menos conhecidos entre nós bra­
sileiros), e que foram publicados nos anos de 1907, 1908 e 1910, também
na revista Archiv (cf. PE II).

102 Versão revista e ampliada da primeira edição, expandida não ape­


nas com novas e longas notas de rodapé, várias delas “ anticríticas” , mas tam­
bém e sobretudo com importantes adendos do autor. Saiu publicada em 1920,
em seus Ensaios reunidos de Sociologia da Religião (GARS I: 17-206).

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 187


inglês em 1980, um ano depois que o ensaio de Schluchter saíra
num a coletânea publicada em co lab o ração com Roth (1979),
dando a conhecer para fora da Alemanha essa discussão (de todo
m odo insólita) em torno de datas e datações dos escritos de We-
ber, desencadeando e retroalim entando pesquisas que só fizeram
avolum ar desde então, resultado valioso de “ toda uma indústria
W eber” (a expressão é de Roth) que passou a produzir e engre­
nar novidades w eberianas desde m eados dos anos 8 0 .10 5
Para o caso particular de um estudo no form ato do meu, re­
sulta crucial levar em conta que as diferenças entre a primeira e a
segunda edição d ’A ética protestante não só existem como im por­
tam. E m uito. Isto por uma razão a m ais no meu caso: porque
todos os quatro p assos que tratam do desencantam ento do m un­
do n ’A ética protestante estão nos acréscim os tardios que Weber
julga necessário ou conveniente fazer em 1920, a poucos passos
da morte. M ax W eber morre de pneum onia em pleno verão, no
dia 14 de junho de 1920. Tem 56 anos.
O fato de que todos os quatro aditam entos feitos em 1919-
20 façam uso explícito do sintagm a em sua inteireza — “ desen­
cantam ento do m undo” — é, em si m esm o, digno de nota. Deve
fazer algum sentido para as suas exigências de sistem aticidade.
Além do que, para o estudioso de W eber m uda muito saber que
eles não constam da primeira versão de 1904-05: no mínimo isso
quer dizer que m om entos tão altos d ’A ética, ao contrário do que
pensam m uitos com entaristas, não representam o começo da ela­
boração da tese do desencantam ento do m undo, não têm com o
o fazer, pois constam somente da segunda versão, que por fatali­
dade ficou sendo a última, sua form a definitiva. O s p assos de 14
a 17, portanto, trazem as derradeiras intervenções w eberianas
sobre a coisa, não as prim eiras. Isso definitivamente reorienta o

103 Roth aponta com precisão a data em que se tornou publicamente


visível o que ele caracteriza como “ a whole Weber industry": o ano de 1984
(cf. Roth, 1993: 149).

188 O desencantamento do mundo


rumo que se imprimiu às interpretações do tema até essa desco­
berta. “ Se oriente, ra p a z !”
O rientem o-nos, pois. Quer dizer, atualizemo-nos.
Pois as novidades nesse cam po não pararam de chegar, e a
qualidade da inform ação sobre a escrita de Weber não para de se
aprim orar. Em 1993, o cenário dos estudos em torno d ’A ética
ficou ainda mais rico. Entrava em cena, aquele ano, uma edição
crítica trazendo a reprodução da primeira edição. Até o título ori­
ginal vinha reproduzido no detalhe — Die protestantische Ethik
und der “ G eist” des Kapitalism us (cf. PE“ G ” K) — , com aspas no
“ espírito” e tudo, essa m arca registrada da primeira edição, como
que para sinalizar aos bons entendedores que se tratava m esmo
da reprodução do texto original tal e qual aparecera no Archiv
em 1904-05. E, o que é melhor, e nisso residia a grande novidade
da coisa, vinha acrescida de um extenso anexo dando conta de
todas as inserções, variações e pequenas correções tardias, devi­
damente ordenadas e num eradas, que haviam sido incorporadas
por Weber à segunda edição e, dada a quantidade dessas m exi­
das, transform ando-a praticamente numa segunda versão. Desvin­
culada do projeto M ax W eber Gesam m tausgabe de M unique a
que me referi de início,104 eis uma realização de relevância ines­
timável, resultado mais que oportuno de uma boa ideia, aliada a
um prim oroso trabalho de pesquisa e edição coordenado pela du­
pla de w eberólogos Karl Lichtblau e Johannes W eiss. Uma fer­
ram enta doravante indispensável aos estudiosos de W eber em
qualquer nível.
Depois desses avanços no estado da docum entação perti­
nente, hoje não se pode mais desconhecer que os quatro passos
que nomeiam o desencantamento do mundo n’A ética protestante
se encontram nos trechos acrescentados pelo autor nos últimos
meses de vida. E todos os quatro significativamente no capítulo

104 Ver capítulo 2, “ Meu ponto” .

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 189


IV ,105 aquele que leva o título de “ Os fundam entos religiosos da
ascese intram undana” .106 N ão levar em conta hoje que só m ui­
to depois Weber foi e inseriu essas passagens no célebre ensaio
junto com outros tantos adendos, pequenos ajustes vocabulares
e mais um a nova leva de notas de rodapé, representa atraso téc­
nico de consequências drásticas para uma interpretação m inima­
mente plausível do próprio conceito que estiver em jogo com seus
pleitos de clareza, congruência e sistem aticidade, assim com o
p ara um a avaliação fidedigna da trajetória de um pensamento
clássico num ponto im portante de seu sistem a categorial, que
afinal de contas resulta de um trabalho de elaboração conceituai
tam bém ele sistem ático, m as que teve lá suas próprias vicissi­
tudes: avanços e recuos, hesitações vocabulares e escolhas termi­
nológicas. Referindo-se tem pos atrás ao conceito de carism a em
W eber, Guenther Roth saiu-se com a ideia de que o próprio ca­
risma tinha “ uma história desenvolvim ental” (Roth, 1976): pois
o m esmo vale para A ética protestante no que tange ao desencan-
tam ento do mundo.

C O M E N T Á R IO

O desaviso em relação a esse dado histórico pode levar o


intérprete de Weber a concluir, por exemplo, que a tese do desen-
cantam ento fazia parte de sua com preensão explicativa da gêne­

íoj q u capítulo 2.1 noutras edições.

106 Em alemão, “ Die religiösen Grundlagen der innerweltlichen Aske­


se” (PE/GARS I: 84). A velha tradução brasileira da editora Pioneira altera a
ideia do título do capítulo IV (ou 2.1) ao substituir o adjetivo “ intramunda-
no” [innerweltlich] por “ laico” e transforma o ascetismo do título em “ asce­
tismo laico” , quando deveria ser “ ascetismo intramundano” , ou “ ascese intra­
mundana” (cf. EPbras: 65), uma vez que se trata de ascese que é intramun­
dana e fortemente religiosa, não laica.

190 O desencantamento do mundo


se da m odernidade ocidental desde o início de sua produção p ro­
priamente sociológica, e que, naquele início, por volta de 1904,
a expressão desencantam ento do mundo não só detinha tal ou
qual im portância, com o também trazia tal ou qual conteúdo de
sentido.
Foi esse o equívoco de que foi acom etida a ensaísta Cathe-
rine Colliot-Thélène, cujo livro M ax W ebere a história (1995) foi
traduzido no Brasil com o entusiástico aval do filósofo José Arthur
Giannotti. Crente que a segunda edição d 'A ética protestante, à
qual todos os leitores, estudiosos e tradutores tem os tido acesso
desde 1920 em alem ão (e desde 1930 em inglês), fosse igualzinha
à primeira (de 1904-05), sem sequer suspeitar que se tratava na
verdade de um a segunda versão, ela tirou não sei de onde que o
significado do termo que consta da segunda edição revista foi “ o
prim eiro” a vir à tona numa trajetória teórica que supostam ente
estava apenas com eçando ali, m as que a partir de então iria se
com plexificar e aprofundar, alterando-se com isso, na travessia,
o conteúdo do termo. “ A expressão ‘desencantam ento do m un­
d o ’ aparece primeiramente em A ética p ro testan te...", escreveu
(Colliot-Thélène, 1995: 89). Pois se enganou. E desse fulminante
engano tirou conclusões quaisquer a respeito da evolução segui­
da pelo conceito em sua alegada sistem atização no decurso da
produção intelectual de Weber. Para ela, tudo se passa com o se o
conceito tivesse com eçado n’A ética protestante, significando sim
nesse alegado começo “ a elim inação da m agia enquanto técnica
de sa lv a ç ã o ” , m as depois, “ nos textos de 1913 a 1 9 1 9 ” ,107 o
significante em tela teria adquirido, “ além desse em prego, um
sentido m ais am plo e m ais v ag o ” (sic), passando a designar do­
ravante “ um m undo intelectualizado [...] um mundo desprovido
de sentido” (ibidem : 90).
Antes dela, que eu me lembre, um velho e respeitável soció­

107 Periodização descom prom issada, chutada, completamente


pafúrdia.

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 191


logo francês especializado em Sociologia da R eligião, François-
-A. Isam bert, havia com etido algo parecido. N ão tendo a menor
inform ação a respeito da diferença de versão entre as duas edi­
ções, Isam bert deu de barato certa vez que a simples ocorrência
do termo Entzauberung na edição alem ã que estava usando, a de
1920, era o prim eiro em prego que W eber fizera do conceito e
assim , inocentemente, passou a lucubrar em cima de um engano,
derivando supostas im plicações concernentes à “ concepção” de
desencantamento no conjunto da obra do clássico alem ão. Ape­
nas para atestar, cito-lhe o p asso fatídico: “ É nessa perspectiva
que se deve abordar tal apreciação na qual M ax Weber emprega
pela prim eira vez a palavra ‘Entzauberung’ e que pode servir de
ponto de referência central a toda a sua concepção do ‘desencan­
tam ento’: a saber, n ’A ética protestante ele contrasta os meios de
salvação que a Igreja Católica põe à disposição dos fiéis com a
atitude ética do protestantism o” (Isambert, 1986: 90, grifo meu).
Pela primeira vez? Calm a lá!
D evagar com o andor! Por esses dois casos dá para ver que
o velho e bom hábito de pensar A ética protestante com o se fos­
se o início m esmo da produção especificamente sociológica de
W eber pode, de repente, transform ar-se em m au conselheiro,
mormente quando se trata de com parar diferentes significados
assum idos ao longo da obra por determinado conceito, e era esta
a p rop o sta dos com entaristas citados. D evagar com o andor!
Quem deseja ser minimamente fiel ao nível de diferenciação con­
ceituai efetivamente atingido por certos conceitos weberianos não
pode deixar de bem situá-los historiograficam ente nas diferentes
cam adas de texto depositadas no decurso de sua produção e, para
tanto, não pode (ou melhor, não pode m ais hoje em dia) deixar
de levar em conta o enorme avanço técnico-documental por que
tem passado nas últimas décadas a scholarsbip concernente à pró­
pria confecção de cada obra de Weber. Além da “ biografia do
au tor” , hoje enriquecida sobretudo por novas cartas, e cartas são
sem pre reveladoras, sofistica-se e solidifica-se, cada vez m ais
m ais, a “ biografia da o b ra” [Werkgeschichte].

192 O desencantamento do mundo


V am os aos adendos. O startin g p oin t histórico-universal
[universalgeschichtlicb] do desencantamento do m undo foi o sur­
gim ento de uma especificidade cultural do judaísm o antigo, os
profetas bíblicos com sua profecia em issária de interpelação éti­
ca, verdadeiro olho-d’água do Ocidente com seu racionalism o
peculiar. Essa ideia, na verdade também ela uma tese peculiar com
a m arca pessoal de W eber a essa altura plenamente desenvolvida
e empiricamente fundam entada em bora nem sempre com a termi­
nologia própria, Weber volta a enunciá-la condensadam ente na
versão revista e am pliada d ’A ética protestante. Essa fórm ula, que
sempre vale a pena reler, constitui o m iolo de um adendo m aior
que é o passo 14:

Aquele grande processo histórico-religioso de de­


sencantamento do mundo, que começou com a profecia
do judaísm o antigo e, em associação com o pensamento
científico helénico, repudiava todos os meios m ágicos
de busca da salvação com o superstição e sacrilégio,
encontrou aqui sua con clu são.108 (PE/GARS I: 94-95;
ver ESSR I: 98-99; EPbras: 72; grifo do original)

Quinze anos depois da prim eira edição d 'A ética protestan­


te, W eber inseriu na segunda edição essa inform ação um tanto
quanto estranha do ponto de vista de seu alcance tem poral, que
destoava flagrantemente da tem poralidade stricto sensu m oder­
na tanto da ética protestante quanto do espírito do capitalism o.
Tenbruck comenta isso com certo espírito (Tenbruck, 1980: 319).
Eis senão quando, diz ele, no meio de uma obra que já nas primei­
ríssim as págin as delim itara em cerca de três séculos e pouco a
duração tem poral do objeto de sua reflexão — o im pacto do pro-

108 A tradução brasileira, bem como a de Parsons (ver PEeng: 1


falam ambas em “ conclusão lógica” ; o original alemão diz apenas “ conclu­
sã o ” [Abschluss],

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 193


testantism o ascético sobre a cultura capitalista e o hom o econo-
micus dos tem pos m odernos, estendendo-se portanto da primeira
modernidade dos séculos XV I e XVII à belle époque do “ cap ita­
lismo triunfante” |der siegreiche K apitalism us| (PE/GARS I: 204)
— , eis senão quando, diz Tenbruck, o leitor é surpreendido com
a brusca entrada em cena de um processo de desencantam ento
datado de milênios atrás — durcb jabrtausen de109 — dotado, por­
tanto, de um a duração m ais que longa, longuíssim a. Se conside­
rarm os as referências cronológicas de periodização histórica que
o próprio Weber fornece ao tratar do profetism o pré-exílico em
Econom ia e sociedade, datações tom adas dos estudos de seu ir­
m ão Alfred W eber (cf. Dem m, 1989; Krüger, 1989) e das teori­
zações de K arl Jaspers acerca da “ era a x ia l” , vam os verificar que
o starting point da desm agificação religiosa do m undo remonta
ao período histórico que se estende “ do século VIII até o século
VI e m esmo o V [a.C .]” (EeS I: 304; W uG: 270). Ao despontar o
protestantism o ascético, já fazia mais de dois milênios que se ini­
ciara a luta dos profetas bíblicos contra a m ag ia.110
Ponto de partida religioso: o profetism o israelita. Ponto de
chegada ainda religioso: o protestantism o ascético. O enunciado,
surpreendente por sua redondez e abrangência que entretanto não
lhe afetam a parcim ônia, tão bem acabado em term os de enume­
ração, densidade e completeza dos elementos que reúne e im bri­
ca, tornou-se com o tem po uma das frases m ais conhecidas de
W eber, das mais citadas até m esm o de m em ória. Enunciação de
vulto e completamente redonda, delimita o com eço [einsetzen] e
o fim \Abscbluss] de um vasto movimento histórico de m udança
cultural que percorre perto de três milênios.

109 “ [...] esse processo de desencantamento, que vem se dando na cul­


tura ocidental ininterruptamente através de milênios [...]” (WaB/WL: 594;
FMW: 139, grifo meu; cf. passo 8).

110 Sobre a “ era axial” , ver Eisenstadt (1982; 1987) e Gauchet (1985).

194 O desencantamento do mundo


O p arágrafo da edição de 1904-05 que iria receber esse adi­
tam ento na verdade já estava a descrever o fenômeno do desen-
cantam ento religioso do m undo, que todavia na prim eira edição
não tinha um nome. E de fato. O contexto im ediato não descre­
ve outro processo senão este, o da desm agificação da própria reli­
giosidade cristã de matriz judaica no alvorecer da m odernidade,
o esvaziam ento da m agia sacram ental do próprio cristianism o
que Calvino leva a cabo de m odo nec plus ultra. Weber conside­
ra que a mais característica das novas ideias do calvinism o era a
doutrina da predestinação, esse decretum borribile do Deus úni­
co pelo qual, “ p ara a m anifestação de sua glória, alguns homens
e anjos são predestinados à vida eterna e outros são preordenados
à morte eterna” ,111 doutrina que afetava de form a radical a con­
cepção cristã de salvação. C om pactada nesse dogm a estava a no­
ção da absoluta liberdade de Deus para salvar ou condenar, exer­
cida sempre-já muito acim a do mérito ou da culpa das criaturas
hum anas, e muito além de sua capacidade de influenciá-lo com
rituais e rezas, súplicas, chantagens, prestações ou oferendas.
M uito além da m agia, fosse qual fosse. E porque, segundo o co ­
mentário en passan t de W eber, a predestinação para Calvino foi
menos “ viven ciada” \erlebt\ do que “ p e n sad a” [erdacht], sua
doutrina resultou muito m ais lógica, rigorosa e im placável que
a de Lutero, Agostinho e Paulo. A gora as obras piedosas e os ri­
tos religiosos apareciam todos eles em sua miséria salvífica: im­
potentes, ineficazes, destituídos de todo e qualquer valor quanto
a conseguir a salvação, de resto já concedida ou negada desde a
eternidade pelo insondável e assustador desígnio de um Deus so ­
berano, arbitrário e inatingível. Com eça assim o contexto em te­
la, descrevendo em negativas fortes e anaforicam ente dispostas
o im pacto desm agificador da doutrina calvinista:

111 Cap. III, n° 3, da “ Confissão de Westminster” , de 1647 (cf. PE/


GARS I: 90; EPbras: 69).

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 195


Em sua patética desum anidade, essa doutrina de­
via ter com o resultado, para o estado de espírito de uma
geração que se rendeu à sua acachapante consistência,
antes de m ais nada uma consequência: um sentimento
inédito de íntim o isolam ento do indivíduo singular.
N aqu ilo que para os homens da época da Reform a era
o assunto m ais decisivo da vida — a salvação eterna
— o homem foi forçado a seguir sozinho o seu caminho
ao encontro de um destino que lhe fora fixado desde a
eternidade. Ninguém poderia ajudá-lo. Nenhum pre­
gador: pois só o eleito é capaz de com preender “ espi­
ritualm ente” a palavra de Deus. Nenhum sacram ento:
pois os sacram entos são na verdade meios decretados
por Deus para o aum ento de sua glória, devendo en­
tão ser acatados, m as não são meio algum de alcançar
a graça [...]. N enhum a igreja: pois m esm o que se afir­
me que extra ecclesiam nulla salus [...], à igreja (exter­
na) pertencem tam bém os réprobos, os quais devem
estar subm etidos à sua disciplina não para alcançar a
bem -aventurança — o que é impossível — , m as por­
que tam bém eles devem ser forçad os, para glória de
Deus, a observar seus m andam entos. Finalmente tam ­
bém — nenhum Deus: pois o próprio Cristo morreu so­
mente pelos eleitos [...]. (PE/GARS I: 93; cf. ESSR I: 98;
EPbras: 72, grifos do original)

“ Ninguém poderia ajudá-lo. Nenhum pregador... Nenhum


sacram ento... N enhum a igreja... Nenhum D eus...” Aqui o estilo
anafórico de repetição do pronom e nenhum procura realçar a
ousadia m ontante da desm agificação em ato e ainda sem nome,
m as já descrita vigorosam ente em 1904-05. As linhas de força
principais da noção de desencantamento já estavam lá, nessa an á­
fora que costura o inspirado parágrafo em cujo final W eber hou­
ve por bem fazer a inserção do enunciado sobre “ o grande pro­
cesso histórico-religioso de desencantam ento do m undo” , agora

196 O desencantamento do mundo


sim, em 1920, nom eado com todas as letras. A nova fórmula sur­
ge assim en caixad a sem a p ara s ou disfarces no final de uma
listagem já pronta das perdas em poder m ágico-salvífico sofridas
pelo cristianism o na alvorada do m oderno — “ Kein Prediger...
kein Sakram ent... keine Kirche... kein G o tt...” — im pressionan­
te enumeração de destituições de potência sagrada que Weber ela­
borara para a primeira edição, no intuito claro de figurar em tra­
ços bem estudados o significado (religioso) do desencantamento
do m undo muito antes de atinar com seu significante, definindo-
-o entretanto, e definindo-o bem, com o “ o abandono absoluto
da possibilidade de um a salvação eclesiástico -sacram en tar [der
absolute Fortfall kirchlich-sakramenta\en Heils] (PE/GARS I: 94,
grifo do original). Extrem ada privação de um a capacidade salví-
fica que antes, no catolicism o medieval e até m esmo no lutera-
nismo em certa m edida, a instituição eclesiástica acreditava p o s­
suir e poder aplicar eficazmente.
Foi Parsons quem traduziu A ética protestante e o espírito
do capitalism o para o inglês e sua tradução saiu publicada em
1930. O s dois sociólogos brasileiros que prim eiro fizeram a tra­
dução para o português, M aria Irene de Q. F. Szmrecsányi e Ta-
m ás Szmrecsányi, ao que tudo indica, fizeram-na calcada forte­
mente no inglês de Parsons e, nisso, foram trazidas de roldão para
as estantes, escrivaninhas e cabeças brasileiras todas as distorções
e mazelas com etidas pelo grande sociólogo americano no afã pio­
neiro de traduzir Weber para difundi-lo fora da Alemanha. Entre
os muitos desacertos dessa tradução, nunca se lam entará suficien­
temente o obscurecimento, mais que isso, o apagam ento, a supres­
são física a que Parsons condenou desde cedo o sintagm a alem ão
Entzauberung der Welt sempre que a obra é traduzida para outros
idiom as de com unicação científica. N a tradução dele, o sintagma
desencantamento do mundo foi substituído por uma frase que visa
a “ ex-plicar” , a “ des-dobrar” o sentido literal do term o em ale­
m ão sem todavia denominá-lo, do mesmo m odo que a adjetivação
com posta bistórico-religioso é substituída por tortuosa circun-
locução. A cabou ficando assim o enunciado na pena de Parsons:

Passos 14 a 17 \ A ética protestante e o espírito do capitalismo 197


“ The great historie process in the developm ent o f religions, the
elimination o f m agic from the w orld” (EPbras: 7 2 ).112
Para nós, brasileiros, cujo prim eiríssim o contato com We-
ber nos prim eiros anos de gradu ação costum ava ser a leitura d ’
A ética protestan te na tradução publicada pela editora Pionei­
ra, de São Paulo, o estrago beira o irreparável. Até m eados dos
anos 90, ao ler A ética n ossos estudantes foram , sem o saber,
desacostum ados do prazer de se enfrentar com a expressão “ desen-
cantam ento do m undo” em língua portuguesa, surripiada já no
inglês de Parsons em 1930, apesar da proeminência e insistência
com que aparecia na versão alem ã definitiva de 1920. E por que
digo “ até m eados dos anos 9 0 ” ? Porque foi quando chegou às li­
vrarias brasileiras uma tradução portuguesa da editora Presença,
feita por Ana Falcão Bastos e Luís Leitão, e nela o sintagm a nos
tem chegado desde então em tradução à risca, ao pé da letra, co­
m o se deve.113
Ao preencher a noção de desencantam ento do m undo com
referências históricas d atadas, W eber dá a entender nitidamente
que estam os diante de um conceito antes de m ais nada histórico;
não sociológico em sentido estrito à maneira de um conceito ge­

112 A tradução de Parsons deixou sequelas também fora do Brasil. A


tradução italiana, relativamente recente, de 1991, também optou nessa passa­
gem por uma circunlocução substitutiva do sintagma original: “ Quel gran­
de processo storico-religioso di rimozione delia magia dal m ondo” (EPital:
166). M ais adiante será outro o circunlóquio “ ex-plicativo” usado por duas
vezes no lugar do sintagma weberiano: “ la liberazione dei mondo dalla ma­
g ia ” (EPital: 177; 207) e, finalmente, um outro ainda: “ l’eliminazione radi-
cale di ogni m agia” (EPital: 209). Merece destaque positivo a tradução fran­
cesa de Jacques Chavy, lançada em 1964, a qual, apesar de hoje estar sendo
muito criticada na França, detém neste particular o mérito de haver tradu­
zido fielmente Entzauberung der Welt como “ désenchantement du monde”
(EPfran: 121).

113 O que não significa que a edição portuguesa não tenha, por sua vez,
introduzido outras falhas de tradução.

198 O desencantamento do mundo


ral, abstrato, tal com o os conceitos gerais vêm definidos no capí­
tulo I de Econom ia e sociedade .114 Longe disso. O desencanta-
mento do m undo que o sintagm a nos apresenta é tanto um resul­
tado histórico determinado e empiricamente verificável,115 quanto
um processo histórico particular, e am bos os aspectos dizem res­
peito a determ inadas religiões históricas, não a todas as religiões
e nem m esmo a todas as religiões cham adas m undiais (cf. Gros-
sein, 1996: 108). Pode-se pois perfeitamente classificar o desen-
cantam ento stricto sensu com o um conceito “ desenvolvim ental”
à m aneira de Schluchter (1979b), desde que se lhe apegue men­
talmente o qualificativo “ idiográfico” , para dele afastar qualquer
pretensão universalizante em contraste com o estatuto dos con­
ceitos nom otéticos — um conceito “ idiográfico-desenvolvimen-
ta l” (cf. Burger, 1987; Roth, 1976). N outras palavras, o termo
desencantam ento entendido com o desm agificação assum e a di­
m ensão de um “ grande” processo histórico que é especificam en­
te ético-religioso e especificam ente ocidental, e assim pretende
designar, quase à guisa de um nome próprio e não comum, o lon­
guíssimo período de peculiar racionalização religiosa por que p as­
sou, mercê de m otivos puram ente históricos [rein historisch], a
religiosidade ocidental sob a hegemonia cultural alcançada por
esta form a “ caracteristicam ente m oralizad a” de fé m onoteísta
repressora da m agia universal cham ada judeu-cristianism o. Seus
criadores e prim eiros portadores [T räger\ foram os profetas de
Israel, florão do judaísm o antigo; e foram as seitas protestantes
seus radicais e autoconfiantes portadores [Träger] na época he­
róica do parto cultural da m oderna civilização do trabalho, seu
ponto de chegada religioso. D aí para a frente, a ciência empírica
m oderna, esse “ ímpio fa d o ” de “ nosso tem po” , irá se encarregar

114 “ Conceitos sociológicos fundamentais” (EeS I: cap. I, § 1, seção II,


n° 11).

115 Isto é, “ o grau em que uma religião se despojou da m agia” (CP:


151; China: 226).

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 199


de determinar-lhe novos desdobram entos m as tam bém novas di­
reções ao reduzir o m undo, já desm agificado sob o m odo da m o­
ralização religiosa, a um mero m ecanism o causal sem totalidade
possível e sem m ais nenhum sentido objetivo.
Resulta dessas quatro inserções tardias que o conceito de
desencantamento do m undo passa doravante a estar diretamente
associado, tanto em term os de atribuição causal quanto em sua
própria base material-textual, ao ethos ascético intramundano das
seitas protestantes no que tange ã entrada na reta final de sua
consum ação [A bschluss] religiosa. D o específico ponto de vista
de uma Werkgescbicbte weberiana, o conceito se desenha subli­
nhado em seu sentido técnico estrito, às vezes estritíssim o, de
desm agificação da prática religiosa, quer com o processo, quer
com o resultado. N ão por nada, na versão revista por W eber em
1920, o passo 14 se faz acom panhar de uma nota de rodapé —
im portantíssim a tam bém ela e tam bém ela, claro, uma inserção
— na qual W eber explicita uma vez mais o vínculo genealógico
identificado entre o desencantam ento reativado à outrance pelos
puritanos e o desencantam ento prom ovido pelos profetas éticos
do antigo judaísm o. Diz a nota:

Sobre esse processo, vejam-se os ensaios sobre a


Ética econôm ica das religiões m undiais. Ali dem ons­
tram os que a posição peculiar da antiga ética israelita
[...] e seu desenvolvimento desde a época dos profetas
baseiam -se neste fato objetivo fundam ental: a rejeição
da m agia sacram ental com o via de salvação [au f der
A blehnung der sakram entalen M agie ais H eilsw eg],
(PE/GARS I: 94, nota 3; ESSR I: 99, nota 20; PEeng:
2 2 1 , nota 19; EPbras: 167, nota 20)

Eis aí uma estrita definição de desencantam ento do mundo.


Talvez a m ais estrita nos term os que em prega, esforço evidente
da parte de Weber de fincar pé no significado preciso que em 1920
entendia dar à expressão literária atribuída a Schiller:

200 O desencantamento do mundo


A rejeição da m agia sacramental com o via de sal­
vação [die Ablehnung der sakram entalen M agie ais
Heilsweg]. (PE/GARS I: 9 4 )116

Definição aliás muito similar a esta outra, que comparece no


passo 15:

O “ desencantamento” do mundo: a eliminação da


m agia com o meio de salvação [die A usscbaltung der
M agie ais H eilsm ittel|. (PE/GARS I: 114)

Além da identidade no conteúdo (conquanto não nas pala­


vras, se bem que impossível não reparar na hom ologia dessas duas
definições), a última enunciação tem de quebra um a vantagem
form al: ela vem na form a de um ap osto — um ap osto que em
alem ão vem graficam ente precedido de dois pontos, os quais via
de regra são trocados nas traduções por um a vírgula, só que isso,
em bora correto, retira muito da aparência textual original — co­
mo que a dem onstrar na própria disposição e aparência textual
do enunciado a intencionalidade do autor de definir sem rodeios
nem resíduos os seus term os, no caso o sintagm a desencantamen­
to do m undo que no p asso 15 com põe, com asp as e tudo, o pri­
meiro polo dessa equação tardiam ente inserida. Em sua própria
form a externa esse inciso exibe uma preciosidade ím par que Par-
sons, em sua desabusada tradução, simplesmente deletou.
W eber acrescentou ao texto original d 'A ética definições tão
claras, tão caprichadas, tão explicadinhas, que delas se pode di­
zer que não deixam a menor dúvida de que ainda em 1920 o ter­
mo “ desencantam ento” remetia à desm agificação da vida religio­
sa. Com base em tantas dem onstrações de rigor e empenho em

116 N ão esquecer que para a teologia puritana, e Weber a conhecia


muito bem, sacramento é magia (cf. Godbeer, 1992: 10-13; ver também
Thomas, 1985: 63-71).

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 201


ser preciso, m ais do que simplesmente conjecturar nós podem os
afirm ar que o interesse de W eber em manter o controle teórico
sobre a acepção do desencantamento enquanto desm agificação
da prática religiosa, acepção que o delimita com o um processo
histórico que começa religioso e termina religioso, não diminuiu
ao longo de sua produção intelectual. Pelo contrário. Tudo indi­
ca que aum entou, e muito.
Foram os teólogos puritanos, mormente calvinistas e batis­
tas, os portadores intelectuais dessa leitura da graça sacram en­
tal que a acusa diretamente de m agia. Foram eles os agentes de­
cididos e decisivos disso que Weber cham a “ a plena desvalori­
zação do caráter m ágico do sacram ento” (WuG: 323; EeS I: 359),
passo essencial de uma racionalização religiosa tipicamente oci­
dental (cf. W uG: 321-323; EeS I: 358-359; E & S: 530-532). A eli­
m inação de todo acesso à graça sacram ental abriria um fosso co ­
lossal entre o cristianism o católico e o protestantism o ascético;
aquele, com sua generosa teologia da graça institucional a fun­
cionar ex opere operato, doutrina que até hoje vincula a busca
da salvação à celebração periódica de rituais religiosos extraco-
tidianos e, portanto, extram undanos; este, com sua novíssim a
valorização ético-religiosa da atividade prática intram undana, o
trabalho racional exercido cotidianamente com o um dever moral
querido por Deus.
Eticização religiosa em ponto m áxim o, o protestantism o as­
cético fez a proeza de reunir numa mesma conduta de vida racio­
nal e santificada — eis um tema weberiano por excelência — a
rejeição religiosa do m undo com a intram undanidade da ação
religiosamente válida. “ Talvez nunca tenha existido” , diz Weber,
“ uma forma m ais intensiva de valorização religiosa da ação m o­
ral do que aquela provocada pelo calvinism o em seus adeptos”
(PE/GARS I: 112-113; EPbras: 80). É que, uma vez posta em ter­
mos inegociáveis a d esv alorização teórica da salv ação m ágico-
-sacram ental, não restava ao crente radicalmente m onoteísta ou ­
tra saída senão a ascese intram undana, conclui W eber depois de
observar as seitas an abatistas (passo 17).

202 O desencantamento do mundo


É dos an ab atistas que ele pode dizer no p asso 16, pondo-
-os no m esm o pé que os calvinistas estritos: “ executaram a mais
radical desvalorização de todos os sacram entos com o meios de
salvação, e assim levaram o ‘desencantam ento’ religioso do mun­
do às suas últimas consequências” (PE/GARS I: 156; ver ESSR I:
155; EPLus: 119). A própria descoberta do valor ascético-religio-
so do trabalho profissional cotidiano aparece com o consequên­
cia inevitável dessa radicalidade de um desencantamento religioso
“ levado às últim as consequências” . E a crer em M ax Weber, fo­
ram os anabatistas, junto com os predestinacionistas, os m ais ra­
dicais na “ rejeição da m agia sacram ental com o via de salvação” ,
legado vétero-testam entário meticulosamente sorvido na leitura
dos profetas bíblicos. N o contexto im ediato da atenção privile­
giada que confere empiricamente a essas novas religiosidades cris­
tãs, Weber termina por explicitar o influxo m otivacional que a
conduta ético-ascética em meio ao mundo recebeu do extrem is­
m o com que as dem ocráticas com unidades de an abatistas, com
destaque para os quakers, ao desm agificar a religião racionali­
zavam a vida. E duas páginas à frente, arrem ata:

Esse caráter tranquilo, sóbrio e sobretudo cons­


ciencioso foi adotado tam bém pela práxis de vida das
comunidades anabatistas tardias, muito especificamen­
te pelos quakers. O desencantam ento radical do m un­
do não deixava interiormente outro cam inho a seguir
a não ser a ascese intram undana. (PE/GARS I: 158; ver
ESSR I: 157-158; grifo do original)

D o ponto de vista com parativo, que em W eber é sempre


viabilizado pela m ediação do tipo ideal, o puritanism o represen­
ta para a gênese mais im ediata da m odernidade ocidental “ o ti­
po de tratam ento racional do m undo radicalmente oposto [ao da
Á sia]” . Foi o que ele escreveu na fam osa conclusão do estudo so­
bre a China (GA RS I: 524), salientando no fenômeno m oderno
das seitas protestantes justam ente o aspecto que ponho em foco

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 203


neste livro: sua hostilidade à m agia, cism a que se expressa até
m esmo na aparência estética do culto. Em lugar da livre disse­
m inação da m agia com o na China, sua repressão e extirpação; e
não só das práticas m ágicas, com o principalmente do m agism o
enquanto m entalidade, esse am bíguo m ix de confiança nos espí­
ritos e medo do feitiço. “ T od a confiança na coação m ágica dos
espíritos ou dos deuses não só seria desprezível superstição, m as
uma audaciosa blasfêm ia.” N o estudo sobre a China, o desen-
cantam ento estilo quaker chega quase a ser tipificado em ter­
mos de disembellisbment, isto é, com o enxugamento desestetizan-
te da prática religiosa de todos os elementos de sensualidade e
sentim entalism o:117

Tudo o que recordasse a m agia, todo vestígio de


ritualism o e de clericalism o, foi erradicado [ausgerot-
tet\. O quakerism o sequer conhecia a figura do prega­
dor titular [...] N os pequenos e ilum inados espaços de
reunião dos quakers não havia um mínimo vestígio de
emblem as religiosos. (GA RS I: 525; ESSR I: 516)

“ R adical” , “ o mais radical” , “ tudo erradicado” ... E de tal


form a salientado o “ radicalism o” antim agia encontrado por We-
ber na prática religiosa de calvinistas e an abatistas, que não me
parece descabido que se imprima ao conjunto do puritanism o os
term os que M areei Gauchet reserva ao calvinism o: “ religion de
la sortie de la religion” , uma religião feita para sair da religião
(Gauchet, 1985). Eis-nos perante “ o gênio do protestantism o as-

117 Constatação semelhante Weber registra para os gélidos funerais


calvinistas: “ O genuíno puritano ia ao ponto de condenar todo vestígio de
cerimônias religiosas fúnebres e enterrava os seus sem canto nem música,
só para não dar trela ao aparecimento da superstition, isto é, da confiança
em efeitos salvíficos à maneira mágico-sacramental” (PE/GARS I: 94, cf.
passo 14).

204 O desencantamento do mundo


cético” : o caráter racional (consciente, m etódico, sóbrio, desper­
to, vigilante, calm o, tranquilo, constante e incansável) da ação ins­
trumental agora transvalorada, interpretada em sua eficácia como
sinal em si de que a bênção de Deus está bem ali, no trabalho
diuturno e intram undano de crescente dom ínio técnico do m un­
do natural, ação racional com relação a fins que entretanto ag o ­
ra vale por si m esm a, já que transfigurada sem anticam ente no
registro do dever, da obediência, da conform idade a um m an da­
mento exarado pelo Deus todo-poderoso e todo-transcendente.

Uma união de princípio, sistem ática e indissolú­


vel, entre a ética vocacional intram undana e a certeza
religiosa da salvação foi p roduzida, no m undo intei­
ro, som ente pela ética vocacional do protestantism o
ascético. E somente aqui que o mundo em seu estado
decaído de criatura tem significação religiosa exclusi­
vamente com o objeto do cumprimento do dever por
meio de uma atividade racional, segundo a vontade de
um Deus que é simplesmente supram undano. O cará­
ter racional e teleológico da ação, sóbrio, não entregue
ao m undo mas a um objetivo e o êxito desse agir são a
m arca de que nele repousa a bênção de Deus. (WuG:
337; ver EeS I: 373; EyS I: 438)

W eber na verdade está procurando m ostrar que com essa


coincidência (sistemática e baseada em princípios) entre a ativi­
dade profissional e a certeza interior da salvação da alm a adqui­
rida no ato m esmo de trabalhar racionalm ente, o protestantis­
mo ascético produziu um a unidade inquebrantável e singular
entre a ação racional referente a fins [Zw eckrationalitàt] e a ação
racional referente a valores [W ertrationalitãt|. Teria ocorrido aí,
noutras palavras, um encaixe historicamente inaudito entre a ra­
cionalidade prático-técnica e a racionalidade prático-ética. Ha-
bermas viu isso em Weber, e muito nitidamente: “ Q uando a ação
racional referente a fins se conecta com a ação racional referen­

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 205


te a valores produz-se um tipo de ação que preenche as condições
da racionalidade prática em sua inteireza. Q uando as pessoas e
os grupos generalizam ações desse tipo ao longo do tem po e nos
diversos dom ínios sociais, Weber fala de uma conduta de vida
m etódico-racional [m ethodisch-rationale Lebensfübrung]. E ele
vê na ascese protestante da vocação, cultivada pelo calvinism o e
pelas primeiras seitas puritanas, a primeira aproxim ação histó­
rica desse tipo ideal” (H aberm as, 1987: 187).
Evento único na história universal, genuína individualida­
de histórica fazedora da história, a conexão da racionalidade prá­
tica referente a fins com a racionalidade prática referida a valo­
res projeta a figura de um verdadeiro Big Bang de possibilidades
inauditas e especificamente m odernas de expansão e extensão da
racionalidade vida afora, explosão inaugural que descerra as con­
dições de possibilidade de se fazer da vida um a vida consciente­
mente conduzida — um a genuína condução da vida [eine echte
Lebensfübrung], m uito além de algo que apenas é e acontece.

T oda ação individual e, em última análise, a vida


inteira — desde que não flua com o um fenômeno da
natureza, mas seja conduzida com plena consciência —
apenas significa um a cadeia de decisões últimas, gra­
ças às quais a alm a escolhe seu próprio destino, tal
com o em Platão, o que significa escolher o sentido dos
seus atos e do seu ser. (Neutr: 142; SWert: 507s)

Visto de um lado, o processo se dá com o Entzauberung-, vis­


to do outro, ele se nos entrega com o Etbisierung. Desencanta-
m ento/desmagificação, eticização/moralização: dois lados de uma
m esm a m oeda, duas faces de um m esmo processo histórico-reli-
gioso que m arca definitivamente a direção seguida pela raciona­
lização social e cultural do Ocidente, que conform a seu caráter
específico de racionalização vivida com o trabalho racional, quer
dizer, com o dom inação sistem ática do mundo natural [ Weltbe-
berrscbung], tese que Schluchter vem esm iuçando e sofisticando

206 O desencantamento do mundo


sempre m ais desde pelo menos a segunda metade dos anos 70
(Schluchter, 1976 etc.). Para dom inar, pelo trabalho incansável
e organizado, um m undo desde priscas eras “ an im ado” , isto é,
animisticamente encantado, um mundo tradicionalm ente consi­
derado e vivido com o se fosse, na m etáfora de W eber, um “ jar­
dim encantado” (ver passo 4), era necessário antes de m ais nada
— m om ento de anterioridade lógica a desdobrar-se v ag aro sa­
mente num vasto processo histórico de longuíssim a duração —
desencantá-lo. Desdivinizá-lo para dominá-lo. N aturalizá-lo para
poder melhor objetivá-lo, m ais que isto, objetificá-lo. Quebrar-
-lhe o encanto era indispensável para poder transform á-lo. N ão
ã toa, o desencantamento não havido explica para Weber o atra­
so do m undo asiático.
Portadores religiosos dessa inflexão cultural de largo espec­
tro e longo alcance: primeiro, a profecia em issária, o gênio do ju­
daísm o antigo da era dos profetas (Berger, 1963); depois, a asce­
se intram undana, o gênio do protestantism o moderno da fase he­
róica da “ revolução dos santos” (Walzer, 1987). Para Weber, pois,
tanto o desenvolvimento econômico-capitalista quanto o progresso
científico-tecnológico precisaram — e com isso ele deslinda mais
uma causalidade histórica necessária — da apresentação e disse­
m inação de uma conduta de vida racional [eine rationale Lebens-
fiihrung\ na m edida em que, sendo ela a expressão viva de uma
racionalização ética via trabalho objetivante, foi vetor de uma to­
m ada de posição desencantada e dom inadora ante o mundo na­
tural. Esse decisivo deslocam ento do religiosamente válido e va­
lioso, que se transfere dos rituais religiosos extracotidianos para
o cotidiano m ais profano que é o m undo zw eckrational do tra­
balho e dos negócios, essa transferência do salvificam ente signi­
ficativo e eficaz, o qual se retira (às avessas) da vida retirada do
m undo para a vida ativa em meio ao m undo com suas constela­
ções prolíferas de interesses utilitários, era o elo que faltava para
o arredondam ento final do desencantam ento religioso do mun­
do. Recorde-se o p asso 2. N ão é à toa que, com base na escrita
de W eber, desencantam ento do m undo pode ser dito tam bém

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 207


desendeusam ento [E n tgötterun g]:118 um m undo desencantado
é, em última instância e em prim eira m ão, na fórm ula consigna­
da por Weber na “ Introdução” , um “ m ecanism o desdivinizado”
[entgotteter M echanismus] (Einleit/GARS I: 254).
Desencantamento do m undo, portanto, é uma forma especí­
fica de racionalização religiosa, a qual, por sua vez, constitui tam ­
bém uma form a específica de racionalização. Racionalização, We­
ber não se cansou de lem brar, se dá de m uitos m odos, em muitos
graus e em muitas direções.119 Isto quer dizer que desencantamen­
to não pode ser sinonim izado sem mais nem menos com raciona­
lização, não dá. Seria um alargar desatinado de sua acepção, uma
inconsequência de efeito devastador sobre os pretendidos conteú­
dos do conceito. E xtrapolação e depauperam ento. E foi todavia
o que Parsons fez, tom ar os term os com o intercam biáveis, com o
agravante de que sua tradução não é apenas um caso a mais de
m istranslation, mas o carro-chefe que abriu alas para tantos ou ­
tros casos que vieram a seguir, nas mais diversas línguas. Veja-se
com o a primeira e até ontem mais conhecida tradução brasileira
embarcou fácil nessa desconsideração de Parsons — “ Os católicos
não levaram tão longe quanto os puritanos (e antes deles os ju­
deus) a racionalização do m undo, a elim inação da m ágica com o
meio de salvação...” (EPbras: 81) — e, desatenta ao texto alem ão,

lis y er capítu]0 ^ “ Passando por Schilier” .

119 “ Racionalizações têm existido dos tipos mais diversos nos


diferentes âmbitos da vida em todas as culturas. O que é característico para
seu diferente significado histórico-cultural é [saber] que esferas se racionali­
zaram e em que direção” (AIntro: 11-12; EPbras: 11; EPLus: 20). “ Pode-se
mesmo — e esta simples frase, muitas vezes esquecida, deveria figurar em epí­
grafe de qualquer estudo que trate do ‘racionalismo’ — ‘racionalizar’ a vida
sob pontos de vista últimos extremamente diversos e segundo as mais diver­
sas direções. O ‘racionalismo’ é um conceito histórico que encerra em si um
mundo de contradições...” (PE/GARS I: 62; EPbras: 51; EPLus: 55). “ É o caso
aqui, antes de mais nada, de lembrar mais uma vez: que ‘racionalismo’ pode
significar coisas bem diversas...” (Einleit/GARS I: 265; EnSoc: 337).

208 O desencantamento do mundo


passou para a frente com o seu o erro dele, a saber, a arbitrária
sinoním ia Entzauberung = rationalization, produzindo com tal
abuso um deslocado e extem porâneo conflito de acepções. Veja-
-se a equação inteira tal com o form ulada por W eber no adendo
15: “ Die ‘Entzauberung’ der Welt: die A usschaltung der M agie
als Heilsmittel...''’ (PE/GARS I: 114). Veja-se a tradução de Par­
sons: “ The rationalization o f the world, the elimination o f m agic
as a means to salvation...'” (PEeng: 117). E no prim eiro polo da
equação que a falsa sinonímia entra de contrabando, a um só tem­
po sonegando a quem não lê alem ão o significante “ desencanta-
mento do m undo” e confundindo-lhe o significado, trocado que
está por “ racionalização do m un do” , desta sorte aum entando
ainda m ais a incerteza conceituai que ronda esta m atéria.120
Dissem os inicialmente, e vale a pena repeti-lo agora, que cla­
reza conceituai para W eber era básico. Exigência de sistemati-
cidade inerente a toda teorização científica. As inserções tardias
n ’A ética protestante, justamente por serem coisa de quinze anos
depois, feitas num m om ento de revisão editorial com vistas a
m elhorar em clareza e consistência uma obra que havia sido tão
polêm ica e mal com preendida na primeira edição, dem onstram
o alto grau de intencionalidade do autor quanto ao significado
literal que o uso quatro vezes repetido do significante aí retom a,
reafirma, denomina e atualiza. Um final de percurso rigorosamen­
te com portado e preciso, lavrado em term os que não poderiam
ser m ais claros nem menos enredados, intencionalmente inteligí­
veis até m esm o em suas form as gram aticais no intuito de frustrar

120 E para agravar a inconsistência de sua tradução, Parsons despre


zou uma regra básica para o tradutor de textos científicos, que é a de padro­
nizar as correspondências vocabulares. Ele varia, traduz de maneiras diver­
sas a mesma expressão alemã: (1) às páginas 105 e 149 (cf. PEeng), traduz
Entzauberung der Welt como “ elimination ofm agic from the w orld"; (2) às
páginas 117 e 147, como “ rationalization o f the w orld". E a tradução brasi­
leira faz igualzinho todas as vezes, acompanhando Parsons passo a passo, co­
mo um cego seguindo a outro cego.

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 209


a com pulsão polissêm ica do leitor, em bora, com o estam os a ver,
sem defesas ante a violência de tradutores atrevidos.
N ão me perm ito deixar de anotar, adem ais, que também faz
parte da longa inserção que transcrevi integralmente no passo 14
o enunciado imediatamente anterior à frase síntese. Nele Weber
diz haver identificado “ n isto” a diferença decisiva do calvinism o
em face do catolicism o medieval, diferença extrem ada que, emer­
gindo historicamente nos séculos XVI e XVII, consum a, conclui,
conduz ju squ'au bout a lógica ético-religiosa do antigo judaísm o
profético e faz despontar, inaugurando a m odernidade não no
pensam ento m as na vida, a conduta de vida m etódica por voca­
ção. A vida cotidiana agora se embebe de uma racionalidade prá-
tico-édca inteiramente nova e peculiar que a arregimenta, sistema­
tiza e unifica a partir da “ internalização de uma personalidade”
hom ogênea ativamente incorporada (PE/GARS I: 188; EPbras:
121) cuja alavan ca121 religiosa — o ascetism o intram undano por
(con)vocação — W eber vai localizar m ais um a vez no anverso
“ d isto ” : na “ absoluta supressão da salvação eclesiástico-sacra-
m ental” [der absolute Fortfall kirchlich-sakram entalen H « / s | 122
(PE/GARS I: 94; EPbras: 72), ou seja, no desencantam ento ético-
-religioso do mundo.
“ A bsoluto” , “ rad ical” , “ o mais rad ical” , “ pleno” , “ to tal” ,
“ do m odo mais com pleto” , “ até às últimas consequências” , “ seu
grau extrem o” , “ sua con clu são” ...123 O uso insistente do super­
lativo ou, quando m enos, a ênfase ela própria superlativa dessas
form as adjetivas e adverbiais só faz sentido se se entende que o
desencantamento do mundo a que Weber se refere n’A ética p ro ­

121 A imagem da “ alavanca” [Hebel] figura a ascese protestante no


capítulo V (ou 2.2) d ’A ética (PE/GARS I: 192; EPbras: 123).

122 Grifo do original.

123 Em alemão: “ der absolute"; “ die radikale"; “ die r a d i k a l s t e “gänz­


l i c h e “am vollständigsten” ; “ in ihren letzten Konsequenzen” ; “ eine letzte
Stufe” ; “ seinen Abschluss” ...

210 O desencantamento do mundo


testante é, sim , o desencantam ento religioso do m undo e não o
desencantam ento científico do m undo. Este último, convenha­
m os, está longe de haver chegado à sua conclusão, posto que
W eber o pensa atrelado por definição a um progresso que não
tem fim, em protensão para o infinito [in das Unendlicbe] (WaB/
WL: 593; CP2V: 29).
N ão é gratuito, pois, o fato de que por mais de uma vez o
adjetivo religioso com pareça para qualificar o desencantamento:
a primeira é no passo 14, no em prego do adjetivo com posto his-
tórico-religioso que aliás se esfum a na tradução de Parsons, e a
segunda, ainda m ais explícita, é quando Weber analisa o caso das
seitas an abatistas no passo 16. A “ con clusão” à qual os ascetas
puritanos dos séculos XV I e XV II conduziram , por seu dever de
trabalhar racionalmente e sem descanso e de quebra m elhorar os
negócios, esse longo processo histórico de m udança de m entali­
dade e atitude foi, é verdade, um feito cultural de alcance parti­
cular e significado universal, m as ainda de natureza religio sa.124
Une religion de la sortie de la religion? Sou tentado a res­
ponder: Oui, m ais... “ Sim, só q u e...” Pois se o que vem os, quan­
do olham os de um ângulo, é a conclusão lógica de um longo de­
senvolvimento histórico aí chegando às suas últimas consequên­
cias, se o protestantism o ascético é o termo final de um processo
milenar de racionalização religiosa, enquanto permanecer viva e
influente no Ocidente essa religiosidade ético-ascética, nós esta­
remos, na verdade e por outro ângulo, apenas no início do fim.
É a religião de saída da religião, sim , só que ainda é religião.

124 Entre os comentadores mais antigos, Raymond Aron talvez seja o


que mais ênfase deu ao desencantamento do mundo como processo histó-
rico-religioso (Aron, 1967: 545s) e, entre os comentadores não alemães mais
recentes, Stephen Kalberg me parece dos raros que logisticamente circuns­
crevem o conceito weberiano de desencantamento ao cam po da religião.
Com base na monografia sobre a China, ele o entende corretamente como
“ um dos dois eixos maiores que os processos de racionalização seguem no
domínio da religião” (Kalberg, 1980: 1146, nota 2). E com efeito.

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 211


Estam os apenas na abertura de uma nova etapa do desencanta-
mento do m undo, que com eça a se infletir apenas aí numa outra
dim ensão, com outro conteúdo, outra m aterialidade substantiva
e, sobretudo, um outro rumo, outra direção, a partir do momento
em que o esclarecimento encontra, no novo continente do conhe­
cimento empírico redescoberto pela ciência m oderna para a do­
m inação consequente e cada vez m ais profunda da natureza (cf.
A dorno & Horkheimer, 1985: 2 08), a possibilidade de consubs­
tanciar-se, agora sim, com o perda definitiva da ilusão de um sen­
tido cosm ológico inerente, objetivo [Sinnverlust].
Ao final do com entário desses quatro passos d ’A ética p ro ­
testante, é im portante fixar que na revisão que bem m aduro foi
fazer da m ais fam osa e polêm ica de suas obras, W eber de fato se
ocupou, pois que o fez diversas vezes, em nela introduzir a defi­
nição e o nome m ais recente de um conceito histórico-desenvol-
vimental latente ali, cujo conteúdo substantivo porém estoura em
duração e alcance o período mais curto de constituição da m o­
derna cultura capitalista, seu recorte tem poral sob medida para
a tese que defende n ’A ética protestante. D epois dessas quatro
inserções, não é exagero dizer que a revisão feita em 1919-20 aca­
bou entregando ao leitor uma versão d ’A ética verdadeiramente
injetada de desencantamento. E desencantam ento em sentido es­
trito. Se o que ele procurava exprimir era da ordem do compreen­
sível, fazia sentido tanta injeção de clareza num assunto desses.
Fazia sentido, prim eiro, porque o novo conceito estava em ple­
na conform idade com o significado da tese original de 1904-05.
E depois porque os resultados obtidos das análises com parativas
das outras grandes religiões culturais, tendo-as W eber sistem ati­
camente interrogado do ponto de vista de sua relação com a m a­
gia, haviam-no convencido de uma vez por todas de que “ som en­
te o protestantism o ascético realmente liquidou com a m agia”
(WuG: 379; EeS I: 4 1 6 ).125

125 Esta fórmula de Economia e sociedade soa muito similar à do pas-

212 O desencantamento do mundo


É portanto na edição revista d ’A ética protestante, prepara­
da em seus últimos meses de vida, que vam os encontrar os ele­
mentos finais de certeza textual para acabarm os de delimitar tec­
nicamente o sentido literal dado por W eber ao sintagm a Entzau-
berung der Welt e que faz dele um conceito histórico-desenvol-
vimental de abrangência tem poral m ais que milenar e que, não
obstante, se atém aos limites não universais da desm agificação do
m onoteísm o ocidental. Por am pla que seja a tem poralidade his­
tórica que pleiteia, o conteúdo técnico-historiográfico do concei­
to está de tal maneira definido nos aditam entos finais ao texto d ’A
ética, que deixa desvestida com o mera veleidade sem lastro toda
tentativa de universalização ilim itada do fenômeno, m esm o que
se queira universalizá-lo apenas para a história das religiões.126
Isto para não falar da tentação recorrente de detonar a tecnicali-
dade do conceito e puxar o desencantam ento do mundo para um
status m ais aberto, porém mais frouxo e enigmático, de m etáfo­
ra do nosso contem porâneo “ vazio” e “ m al-estar” .
Quem pensa que a expressão “ desencantamento do m undo”
tem a ver com n osso eventual “ desen can to” diante do m undo
m oderno, com a “ desilusão” de vivermos em vão numa roda-viva
sem o menor sentido subjetivo, está redondamente enganado; na­
da a ver tam bém com nossa sensação de “ desalento” ante a per­
sistência invencível da miséria e o alastram ento irresistível da m al­
dade. D esm agificação — e, se me permite o leitor uma redundân­

so 4, onde o que está em jogo é o contraste de duas racionalidades práticas,


a do confucionismo e a do puritanismo, Oriente e Ocidente: “ somente aqui
o pleno desencantamento do mundo foi levado às suas últimas consequên­
cias” (CP: 152; China: 226; GARS I: 513, grifos do original).

126 O sociólogo da religião François-A. Isambert, por exemplo, afir­


ma equivocadamente que “ as grandes religiões, cada uma à sua maneira,
desencantaram o mundo” (Isambert, 1986: 100). Como vimos no passo 4,
não é o que diz Weber a propósito das grandes religiões orientais em seu
“ jardim encantado de toda a vida” .

Passos 14 a 17: A ética protestante e o espírito do capitalismo 213


cia a m ais, desm agificação em sentido literal — , este é na escrita
de W eber, do início de seu uso ao fim de seus dias, e a revisão d ’A
ética protestante em 1919-20 não me deixa mentir, o sentido li­
teral de desencantamento do mundo.

Ninguém mais do que eu é favorável a abrir as


leituras, mas o problema é, ainda assim, o de estabe­
lecer o que se deve proteger para abrir, não o que se
deve abrir para proteger.

Umberto Eco, Defesa do sentido literal: 27

214 O desencantamento do mundo


14.
M EU P O N T O FIN A L
E U M A CH A V E DE O U R O

Chave de ouro costum a ser para fechar. M as esta vai ser


também de abrir, logo veremos.
Desde que a expressão “ desencantamento do m undo” des­
ponta na pena de Weber ela desenha dois circuitos de significado
coexistentes, não sucessivos, m ais ou menos coextensos e às ve­
zes parcialmente superpostos num mesmo passo, e é somente nes­
ses dois circuitos que se distribuem com desigual frequência em
cada um deles os dezessete passos que a expressão pontua sem ­
pre em alta definição de sentido, não deixando as coisas meio
duvidosas. Isto quer dizer que a fluidificação do conceito, sua po-
lissem ização ad libitum , é totalmente extra ou pós-weberiana.
Circula por aí, difundida há um certo tem po no Brasil, uma
tese que supõe uma espécie de m etam orfose da noção de desen­
cantam ento do m undo: ao longo da obra de W eber ela teria p a s­
sado “ de uma acepção técnica a um sentido am p lo” .
Vam os por partes. A primeira vista a tese é bem atraente,
na medida em que acena ao m esm o tem po com uma inform ação
aparentemente nova e uma form ulação aparentemente inócua em
seu esquem atism o: o m esm o significante “ desencantam ento” te­
ria pelo menos dois âm bitos de significado, um sentido estrito e
um sentido am plo. Até aí, tudo bem, só que a açodada tese não
se satisfaz com isso, afirm ando além do m ais que a am pliação de
sentido teria ocorrido com o transição tem poral a par de um su­
posto am adurecim ento intelectual de M ax W eber no tratam ento
da questão, travessia biográfica repercutindo na expansão da car­
ga semântica do nome desencantamento. Com o p assar dos anos,

Meu ponto final e uma chave de ouro 215


Weber teria atribuído um novo conteúdo ao termo que ele m es­
mo, com outro significado, supostam ente havia utilizado já na
primeira análise sociológica que fez da gênese da m odernidade
capitalista em 1904-05.
A cabo de m ostrar com esta pesquisa que, à vista dos conhe­
cimentos hoje disponíveis acerca da datação precisa da maior par­
te dos escritos de W eber, incluindo-se as eventuais revisões, cor­
reções e adições, essa suposição não passa de ledo engano, poden­
do dar em sério desacerto. Em Weber, é certo, não há mais que
dois significados para a mesma expressão vocabular “ desencan-
tamento do m undo” , mas seu uso é simultâneo, não sucessivo nem
muito menos evolutivo: não há progressão de um para outro,
com o se o desencantamento pela religião cedesse o espaço na teo­
rização weberiana do processo de racionalização ocidental ao de­
sencantam ento pela ciência. Acontece que toda essa história, na
verdade, começou tardiamente na vida de Weber, e logo que o con­
ceito emergiu pouco antes de 1913 (cf. W inckelmann, 1980), ad ­
veio imediatamente m as também reflexivamente essa polissem ia
restrita de que tratam os passo a p asso, controlada, calibrada pe­
lo uso sim ultâneo e repetido das duas acepções.
O “ grilo” com a alegação de que para Weber o sentido mais
m aduro de desencantam ento do m undo é seu “ sentido a m p lo”
está em que do am plo se resvala facilmente para o vago. A leitu­
ra de Colliot-Thélène me parece não só o caso m ais explícito,
com o tam bém o m ais assum ido; ela se refere com todas as letras
ao segundo sentido adquirido pelo termo com o um “ sentido mais
am plo e mais v ag o ” :

A expressão “ desencantamento do m undo” a p a ­


rece primeiramente em A ética protestante,127 na qual
ela significa a elim inação da m agia enqu an to técni­
ca de salvação [...]. Entretanto, nos textos de 1913 a

127 Falso: essas aparições são inserções tardias, não as primeiras.

216 O desencantamento do mundo


1 9 1 9 ,128 a mesm a expressão ad qu ire,129 além desse
em prego, um sentido m ais am plo e m ais vago: ela de­
signa a depreciação do religioso sobre as representa­
ções gerais que os hom ens fazem do m undo de sua
existência. (Colliot-Thélène, 1995: 89-90, grifo meu)

Em menos de dez linhas, um “ planetário de e rro s” . E ao


sabor desses equívocos todos e outros mais que deixei de trans­
crever, tome-se mais este: o conceito weberiano de desencanta-
mento sendo descrito com o “ mais am plo e mais v a g o ” , noutras
palavras, um a ferram enta m enos agu çada e consequentem ente
menos útil. N ão dá para acreditar numa coisa dessas. Ou dá?
Com o o termo pertence a filiações etimológicas que relevam
do mundo fluídico e imponderável dos sortilégios e interferên­
cias m ágicas, tudo se passa com o se o emprego pós-W eber da ex­
pressão desencantamento do mundo confinasse sutilmente com
a irresistível força encantatória de que é vetor a faculdade hu­
mana de exalar significados por livre associação. Significados não
necessariam ente nítidos, apenas entrevistos, ap rox im ad os, co­
mo se o “ novo sentido am p lo” tão celebrado deixasse o cam po
sem ântico indefinidamente aberto a rabiscos não mais que alu­
sivos, tornando o vocábulo disponível para usos frouxos, ralos,
alternadam ente eruditos e correntes m as frouxos, fracos, espec­
trais, que ofuscam mais do que ilustram a significação precisa que
um dia lhe im prim iu o autor, (ab)usos que extrapolam , entre
aparências e transferências, aquelas bem dem arcadas definições
que W eber tantas vezes lavrou com todo o esmero e o m áxim o
de nitidez, no empenho reiterado de satisfazer, a cada novo uso,

l2íi A dataçao está equivocada, uma vez que a última data na produ­
ção intelectual de Weber é 1920.

129 Falso: desencantamento não “ adquire” um sentido a mais a par­


tir de 1913, pois é nesse ano que a expressão aparece em Weber pela pri­
meira vez.

Meu ponto final e uma chave de ouro 217


a fome de clareza que era dele, e que é nossa tam bém quando
fazem os ciência.
A intenção do presente estudo foi justamente a de restituir
ao conceito as linhas mais nítidas e palpáveis de seu duplo con­
torno original, obedecendo para tanto a um a cuidadosa e atuali­
zada cronologia de seus em pregos. Seria m uita ingenuidade de
minha parte propor essa sequência de passos com o se fossem de­
graus de uma escada, com o se etapas de um a escalada, avanço ou
progressão no m odo com o Weber pensou o desencantamento do
m undo. N ad a m ais longe de minha perspectiva do que isto. M es­
mo porque, nas idas e vindas a que fui levado pelo próprio arranjo
cronológico em que por questão de m étodo ordenei as citações,
fui ficando m ais consciente a cada p asso de que não há, nessa
m atéria, nada parecido com am adurecim ento ou algo que o va­
lha no tratam ento que Weber dá à questão do desencantamento
do m undo. Se há am pliação de seu ponto de vista quando se p as­
sa do desencantam ento religioso para o desencantam ento cientí­
fico do m undo, os dois usos entretanto se m ostraram ora sim ul­
tâneos ora alternados ou intercalados, nunca porém sucessivos no
sentido de ir deixando para trás prism as de análise menos gerais.
É por essa razão que eu não resisto à tentação de com em o­
rar, em bora discretamente, o fato de que minha busca tenha ter­
m inado assim , com o desencantam ento sendo tem atizado, nos
adendos à segunda edição d ’A ética protestante, com o a desma-
gificação da religiosidade ocidental resultante da racionalização
ético-ascética da conduta diária de vida, e não com o efeito da es­
clarecim ento científico. C om em oro porque esse ach ado refuta
terminantemente a hipótese de uma evolução sem ântica no tra­
balho do conceito.
H oje, ao raiar do século X X I e às vésperas do centenário da
primeira edição d ’A ética protestante, não dá m ais para ficar di­
zendo im punem ente que W eber, com o p assar do tem po, “ foi
m udan do” sua concepção de desencantam ento do m undo. N ão.
N ão só o sentido literal de desencantam ento com o desm agifica-
ção da prática religiosa jam ais foi posto de lado ou deixado para

218 O desencantamento do mundo


trás, com o tam bém não foi ele o prim eiríssim o sentido que a ex ­
pressão ganhou de sua caneta, conforme vimos no comentário do
prim eiro passo.
Eis, em síntese, a minha tese. O termo “ desencantam ento” ,
acom pan h ad o ou desacom pan h ad o de seu com plem ento “ do
m undo” , tem dois significados na obra de W eber: desencanta­
mento do m undo pela religião (sentido “ a ” ) e desencantamento
do m undo pela ciência (sentido “ b ” ). São essas as duas únicas
acepções do termo, os dois únicos registros de seu uso com o con­
ceito, suas duas únicas conceituações. E se quiserm os ser fiéis à
m ais atual cronologia de seus escritos, tem os de convir que as
duas não são sucessivas ao longo da obra, ocorrendo concomi-
tantemente ou de form a intercalada no decorrer de seus derra­
deiros oito anos de vida, a com eçar do ensaio m etodológico es­
crito em 1912-13 até às últimas inserções por ele feitas na segun­
da versão d ’Á ética protestante em 1920, poucos meses antes de
m orrer, passagens estas que por isto m esm o foram as últimas
com entadas aqui (passos 14 a 17).
De repente, qual não foi minha surpresa!
Quem lê em português a tradução brasileira da Zwiscben-
betrachtung, que aliás foi feita diretamente do inglês e por isso se
intitula “ Rejeições religiosas do m undo e suas direções” [R RM ],
exatam ente com o na coletânea From M ax Weber, pode, se desa-
visado, deixar p assar despercebido um primeiro vestígio de con­
firm ação da expectativa hoje em dia bastante generalizada de
encontrar aberta em W eber, ou pelo menos entreaberta, uma pis­
ta de onde possa advir, na m odernidade tardia, algum “ reencan-
tam ento do m undo” que não signifique apenas retrocesso ou que
não passe de autoengano.
Ali, no meio de uma seção dedicada justamente à esfera eró­
tica, eis senão quando meus olhos atentos captam de im proviso,
estam pado sem destaque nem preâm bulos no texto em português,
nada m ais nada menos que o verbo “ encantar” . Com o para au ­
mentar a felicidade do achado, ei-lo que assom a com pondo um
sintagm a — “ encantar todo o m undo” (R R M : 259; EnSoc: 398)

Meu ponto final e uma chave de ouro 219


— o qual, virado do avesso m as sem forçar a m ão, tem tudo a
ver com o desencantam ento do mundo que eu vinha pesquisan­
do. N ão pode ser, penso naquele m om ento, ninguém nunca me
falou nisso antes, ninguém nunca me disse que Weber havia ace­
nado expressam ente com esse outro lado da coisa, com essa doce
ingenuidade de um encantam ento possível e acessível em meio a
um mundo cada vez mais desencantado. Será possível? Com o a s­
sim, uma chave de ouro com o esta ter p assado tanto tempo assim
sem ser notada? Vou correndo conferir o texto em inglês, e está
lá, bem traduzidinho porém com outro núcleo lexical, uma raiz
diferente, uma outra etim ologia, m as está lá, e está lá com a mes­
ma semântica básica: “ ío bewitcb ali the w orld” (FM W : 348).
N a primeira chance que tenho de consultar o original alem ão,
primeiro volume dos En saios reunidos de Sociologia da Religião
(Z B /G A R S I: 5 6 2 ), para meu júbilo intelectual co n stato com
meus próprios olhos que M ax Weber de fato havia usado naquele
contexto o verbo “ encantar” \anzaubern\. E que o sintagma com ­
pleto, ao falar em “ encantar todo o m undo” [aller Welt anzau-
bern\, tem por referentes o am or sexual e a euforia do amante
feliz [die Euphorie des glücklich Liebenden]. Para deixar ainda
mais plausível o sentido de minha inopinada descoberta textual,
o verbo em pregado com partilha com a palavra desencantam en­
to em alem ão o mesmo núcleo léxico, a mesm a raiz: -zauber. E
tudo isso para aludir a esta via modernamente disponibilizada de
encantam ento do m undo, da vida e do m undo da vida, que é o
erotism o.
Esse achado, tão inesperado quanto bem-vindo, no fundo
uma instigação, não m odifica nada do que foi dito neste livro
acerca da conceituação weberiana do desencantamento do m un­
do. M as dá um passo em frente, uma vez que o achado com por­
ta um insight dos m ais instigantes acerca da possibilidade efeti­
va, e isto num nível que realmente im porta, de reversão subjeti­
va desse “ grande processo histórico-religioso de desencantamento
do mundo que teve início nos profetas do judaísm o an tigo” (PE/
G A RS I: 94-95; EPbras: 72; ESSR I: 98).

220 O desencantamento do mundo


Aos olhos de Weber, a possibilidade de reencantar parece
pois que não está no alardeado “ retorno do sag ra d o ” , com o an ­
dam dizendo, querendo e torcendo, quando não com em orando,
tantos sociólogos religiosos da religião que conhecemos. Tenho
criticado essa posição desde 1997 (Pierucci, 1997a; 1997b), m as
somente agora conto com bases w eberianas textuais para m os­
trar que a saída de Weber para o reencantamento do mundo não
é por aí. A crer em sua Consideração interm ediária, o locus da
existência hum ana em que se esgueira um a possibilidade efetiva
de encantar novamente o m undo não é a esfera religiosa, mas
um a outra esfera cultural, ao m esm o tem po não religiosa e não
racional: a esfera erótica, onde reina, segundo Weber, “ a potên­
cia m ais irracional da vid a” — o am or sexual.
O que de melhor poderia esperar um pobre e m ortal leitor
de Weber com o eu, de ouvido religiosamente unm usikalisch, e
com certeza meu ouvido tem andado tão religiosamente im usical
para os dias de hoje quanto o dele ontem, que melhor resultado
esperar de uma paciente pesquisa teórica ao m esmo tem po lite­
rária e textual com o esta, que pretendia ser apenas um trabalho
de m ise-au-point do conceito de desencantamento do m undo na
obra de seu autor e contudo acabou, por puro acaso, descobrindo
uma das chaves m ais preciosas para se começar a pensar weberia-
namente, com tudo o que isso implica de intelectualmente hones­
to e musicalmente irreligioso, um novo encantam ento da vida?

Meu ponto final e uma chave de ouro 221


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236 O desencantamento do mundo


SO BR E O A U TO R

Antônio Flávio Pierucci nasceu em Altinópolis, interior de São Pau­


lo, em 1945.
Foi professor do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciên­
cias Sociais da PUC-SP de 1978 a 1986, especializando-se em Sociologia
da Religião e Estudos Culturais da Diferença. Em 1986 passou a lecionar
do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên­
cias Humanas da USP, onde realizou seu doutorado (1985) e livre-docência
(2001). Ocupou, por dois mandatos consecutivos, de 1992 a 1996, o cargo
de secretário-executivo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Ciências Sociais (ANPOCS) e, de 2001 a 2003, o de secretário-geral da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Ainda em 2001
assumiu o cargo de editor da revista N ovos Estudos Cebrap, onde perma­
neceu até 2004.
Publicou numerosos artigos em revistas científicas e, além da parti­
cipação em coletâneas, é autor de diversos livros, entre os quais A realida­
de social das religiões no Brasil (em coautoria com Reginaldo Prandi, Hu-
citec, 1996), Ciladas da diferença (Editora 34, 2000), A magia (Publifolha,
2001) e O desencantamento do mundo (Editora 34, 2003). Coordenou a
edição crítica de A ética protestante e o “espírito ” do capitalismo, de M ax
Weber (Companhia das Letras, 2004), comemorativa do centenário da pri­
meira publicação da obra.
Faleceu em São Paulo, em 8 de junho de 2012.
C O -ED IÇ Õ ES C U R SO D E PÓ S-G R A D U A Ç Ã O
EM SO C IO LO G IA DA USP/EDITO RA 34

M ário A. Eufrasio, Estrutura urbana e ecologia humana: a escola


sociológica de Chicago (1915-1940)
Antônio Flávio Pierucci, Ciladas da diferença
Leopoldo Waizbort, As aventuras de Georg Simmel
Irene Cardoso, Para uma crítica do presente
Vera da Silva Telles, Pobreza e cidadania
Paulo Menezes, Â meia-luz: cinema e sexualidade nos anos 70
Sylvia Gemignani Garcia, Destino ímpar: sobre a form ação de Florestan
Fernandes
Antônio Flávio Pierucci, O desencantamento do mundo: todos os passos
do conceito em M ax Weber
Leonardo Mello e Silva, Trabalho em grupo e sociabilidade privada
N adya Araújo Guimarães, Caminhos cruzados: estratégias de empresas e
trajetórias de trabalhadores
Eva Alterman Blay, Assassinato de mulheres e Direitos Humanos
E s t e l i v r o f o i c o m p o s t o em S a b o n ,
p e la B r a c h e r & M a l t a , co m C T P d a
N e w P r i n t e i m p r e s s ã o d a G r a p h iu m
em p a p e l P ó l e n S o f t 80 g / m 2 d a C i a .
S u z a n o de P ap el e C e lu lo s e p a r a a
E d ito r a 3 4 , f.m j u n h o d f. 2 0 1 3 .
tão fácil. No mínimo é preciso buscar as ar­
ticulações entre o encadeamento do tema no
tempo e a malha de problemas e de áreas do
conhecimento social que lhe oferece as re­
ferências em cada etapa do seu percurso.
A questão da religião ocupa lugar central
nisso tudo; mas o conceito de desencantamen-
to do mundo, associado ao de racionaliza­
ção, a ultrapassa, expandindo-se num movi­
mento preciso, que só uma análise fina como
a deste livro consegue captar. Entre outras
coisas vê-se como esse conceito, longe de “en­
cantar” toda a obra de Weber espalhando-se
por ela sem limites, tem nela o seu lugar pró­
prio. Pois é disto que se trata: Pierucci está
empenhado em mostrar como a aparente pro­
liferação de significados do termo esconde um
conceito construído com rigor e dotado de
sentido bem definido.
Qual é então, afinal, o significado exato
dessa ideia de “desencantamento do mundo”
na sociologia de Weber? Devagar com o an­
dor, diria Pierucci no seu estilo próprio, em
que o rigor mais severo se mescla ao tom co­
loquial e à intuição fulgurante (“ciência é si­
nônimo de progresso da ciência” ). Não é este
o lugar para antecipar isso. Essa revelação só
tem graça passo a passo, tal como vai sendo
armada ao longo do texto.

G abriel Cohn

Im agem da capa: M ira Schendel, Sem título ( “ il m o n d o ” ),


tinta a óleo s/ p apel arro z, 4 6 ,5 x 2 3 cm , co leção p arti­
cular, S ão P aulo (detalhe).
O mundo, este mundo.
O mundo não tem sentido, dizem as religiões, já que to­
do o sentido, e o sentido do todo, estaria no “ outro m undo” .
Assim nossa vida neste mundo. Ela também só faz sentido por
conta da “ outra vida” , a vida eterna após a morte, ou de ou­
tras vidas antes dela, “ vidas p assad as” , quantas.
Este mundo não tem sentido, mostra por sua vez a ciên­
cia em avanço irrefreável, pois tudo aí pode ser cientificamente
explicado pelo descobrimento de nexos causais: cada fenôme­
no, cada processo, cada evento, cada ser, ah, mas não o todo.
Que o todo a ciência não pretende captar. Ela não consegue,
não chega lá.
Quem rastreou esses limites da razão hum ana no O ci­
dente foi M ax Weber, o grande clássico da sociologia alemã,
quando pensou o desencantamento do mundo e o construiu
como um conceito — também este um nexo causal necessário
para explicar compreendendo, mais que o desenvolvimento da
razão capitalista, o próprio surgimento de nossa moderna cul­
tura racional.

Antônio Flávio Pierucci

FFLCH - USP C A P E S
Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Sociologia

ISBN 978-85-7326-278-0

J l l i l l l e d it o r a .3 4

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