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• ApÓl; Ul,u:l'oná'lisé do conhecimento no vi da co~diQntl, os


culoro!l possam para umo !corio do sOl.iedode como proCIlstO
dialético entre o reolidode objetiva e subjetivo. Fbro escloroOlr
o lugar que ocupo o sociologio dentro do p<lIloromo gerol d"
Sociologio, desenvolvem o leo r;o dos ins tituições, I~rtim()~()!)
e SOOO II ZOÇO O, cu jas im plicações vão mU ito a lém de seu
ca mpo eS!J&e.Íli cQ . Esta pers pectiva humanística r"\{I lllorilC!~/i()
sociol6gico Intere~sa nao dpenas 005 soci6logos, mel! o :I'XIOI
05 ciennslcu sociais, historia dores e intereSSCldos nos
problamoft do onlropologio filosófico.

WWW.VOles.l;Om.br
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~
AConstrução Social
da Realidade
L. Berger
t:'} EDlTORA
~uckmann ".' VOZES
o livro aborda o assunto de
uma subdiscipliria
sociológica que, desde Max A CONSTRUÇAO SOCIAL
Scheler e Karl Mannheim, DA REALIDADE
ficou conhecida como
sociologia do conhecimento
- campo que foi
interpretado como enfoque
sociológico da história das
idéias, mas vem aqui
redefinido como o estudo
de "tudo aquilo que se
considera conhecimento na
sociedade", mediante o
"conhecimento do senso
comum, que constitui a
realidade cotidiana
para o membro comum
da sociedade.

Dizem os autores: "A


sociologia do
conhecimento deve tratar
da construção social da
realidade. A análise da
articulação teórica desta
realidade continuará sendo
parte desse interesse, mas
não é a mais importante.
O que sugerimos aqui é
uma redefinição de longo
alcance do âmbito da
sociologia do
conhecimento, muito mais
ampla do que tudo quanto
até agora se entendeu
como constituindo
esta disciplina.
A CONSTRUÇÃO SOCIAL
l
DA REALIDADE
Associação Brasileira para
a Proteção dos Direitos Tratado de Sociologia do Conhecimento
Editoriais e Autorais
RESPEITE O AUTOR
NAO FAÇA CÓPIA
;"il;t,~im[Mi"éiltf PETER L. BERGER
Professor de Sociologia
na Rutgers University

THOMAS LUCKMANN
Professor de Sociologia
na Universidade de Frankfurt

Tradução de
Floriano de Souza Fernandes

23 8 Edição

FICHA CATALOGRAFICA
(PreparaM pelo Centro de Catalogação-na-/onte do
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RI)

Berger, Peter L.
B435c A construção social da realidade: tratado de
sociOlogia do conhecimento lporl peter L. Berger
lei Thomas Luckmann; tradução de Floriano de
Souza Fernandes. Petrópolis, Vozes, 1985.
248p. 21cm (Antropologia, 5).
Bibliografia.
1. Sociologia do conhecimento. 1. Luckmann,
Thomas. lI. Titulo. II1. Série.

o
CDD - 301.01
Ih EDITORA
Y VOZES
73-0221 CDU - 301

Petrópolis
2003
Prefácio

o PRESENTE VOLUME PRETENDE SER UM TRATADO TEÓRICO SISTE-


mático de sociologia do conhecimento. Não tem, portanto, a in-
tenção de oferecer uma vista geral histórica do desenvolvimento
desta disciplina nem de empenhar-se na exegese das várias formas
de tais ou quais extensões da teoria sociológica ou mesmo mostrar
. como é possível chegar-se a uma síntese de várias dessas for-
mas e extensões. Tampouco há aqui qualquer intuito polêmico.
Os comentários críticos sobre outras posições teóricas foram
introduzidos (não no texto, mas nas Notas) somente onde possam
servir para esclarecer a presente argumentação.
O núcleo do raciocínio encontra-se nas secções 11 e 111 (<<A
© 1966, by Peter L. Berger e Thomas Luckmann Sociedade como Realidade OQjetiva» e «A Sociedade como Rea-
Título do original inglês: lidade Subjetiva»), contendo a primeira nossa compreensão fun-
THE SOCIAL CONSTRUCTION OF REALITY damentai dos problemas da sociologia do conhecimento e a
Editado por: Doubleday & Company, Inc. segunda aplicando esta compreensão ao nível da consciência
subjetiva, construindo desta maneira uma ponte teórica para os
Direitos de publicação em língua portuguesa no Brasil: problemas da psicologia social. A secção I contém aquilo que
Editora Vozes LIda. poderia ser melhor descrito como prolegômenos filosóficos ao
Rua Frei Luís, 100 núcleo do raciocínio, em termos de an<ilise fenomenológica da
25689-900 Petrópolis, RJ realidade da vida cotidiana (<<Fundamentos do Conhecimento na
Internet: http://www.vozes.com.br Vida Cotidiana»). O leitor interessado somente na argumentação
Brasil sociológica propriamente dita poderia ser tentado a saltar esta
parte, mas deve ser avisado de que certos conceitos-chaves
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra poderá empregados durante todo o raciocínio são definidos na secção I.
ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou . Embora nosso interesse não seja histórico, sentimo-nos na
quaisquer meios (eletrônico ou mecãnico, incluindo fotocópia e gravação) obrigação de explicar por que e em que sentido nossa concepção
ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados da sociologia do conhecimento diferencia-se do que até aqui
sem permissão escrita da Editora. tem sido geralmente compreendido como constituindo essa dis-
ciplina. Desincumbimo-nos desta tarefa na Introdução. Na parte
ISBN 85.326.0598-2 final fazemos algumas observações com o caráter de çonclusões
para indicar o que consideramos serem os «lucros» do presente

Este livro foi composto e impresso pela Edi tora Vozes Ltda. 5

li
sua escola aproveitou imensamente com as interpretações ~
empreendimento para a teoria sociológica em geral e para certas Albert Salomon (também da Graduate Facu1ty). Luckmann, re-
áreas da pesquisa empírica.
cordando-se de muitas proveitosas conversas durante um pe-
A lógica de nosso raciocínio torna inevitável certo número ríodo de ensino conjunto no Hobart College e em outras oca-
de repetições. Assim, alguns problemas são examinados entre siões deseja expressar sua admiração pelo pensamento de Fried-
parênteses fenomenológicos na secção I, tomados novamente na rich ' Tenbl'uck (atualmente na Universidade de Frankfurt).
secção 11 sem esses parênteses e com interesse em sua gênese Berger gostaria de agradecer a Kurt Wolff (Brandeis Univer-
empírica, e depois retomados ainda uma vez na secção III ao sity) e Anton Zijde~veld (Universidade de ~ei~en). por seu cons-
nível da consciência subjetiva. Esforçamo-nos por tornar este tante interesse crítICO no progresso das IdéIas Incorporadas a
livro tão legível quanto possível, mas sem violar sua lógica esta obra.
interna, e esperamos que o leitor compreenderá as razões dessas E' costume em projetos desta espécie agradecer as várias con-
repetições, que não podiam ser evitadas. tribuições impalpáveis das esposas,· filhos e outros colaborado-
Ibn ul'Arabi, o grande místico islâmico, exclama em um de res privados de situação legal mais duvidosa. Embora ao me-
seus poemas: «Livrai-nos, Alá, do mar de nomes!». Temos fre- nos para transgredir este costume estivemos tentados a dedicar
qüentemente repetido esta exclamação em nossas conferências este livro a um certo Jodler de Brand, Vorarlberg. Entretanto,
sobre a teoria sociológica. Conseqüentemente, decidimos eliminar queremos agradecer a Brigitte Berger (Hunter College) e Benita
todos os nomes de nosso atual raciocínio. Este pode ser lido Luckmann (Universidade de Freiburg), não por quaisquer de-
agora como uma apresentação contínua de nossa posição pessoal, sempenhos, cientificamente sem !~portãncia, d~ fu.nções pri.v~das,
sem a constante inclusão de observações tais como «Durkheim mas por suas observações cntIcas como cIentIstas socIaIs e
diz isto», «Weber diz aquilo», «concordamos aqui com Durkheim por sua inflexível recusa a serem facilmente requisitadas.
mas não com Weber», «parece-nos que Durkheim foi mal com-
preendido neste ponto», e assim por diante. E' evidente em PETER L. BERGER
cada página que nossa posição não surgiu ex nihilo, mas dese- Oraduate Faculty
jamos que seja julgada por seus próprios méritos e não em New School for Social Research
função de seus aspectos exegéticos ou sintetizantes. Colocamos THOMAS LUCKMANN
por conseguinte todas as referências nas Notas, assim como (em- Universidade de Frankfurt
bora sempre resumidamente) quaisquer discussões que temos com
as fontes de que somos devedores. Isto obrigou a um aparato
de notas bastante grande. Não quisemos render homenagem aos
rituais da Wissenschaftlichkeit, mas preferimos nos manter fiéis
às exigências da gratidão histórica.
O projeto do qual este livro é a realização foi pela primeira
vez maquinado no verão de 1962, no curso de algumas conversas
folgadas ao pé (e às vezes no alto) dos Alpes da Áustria
Ocidental. O primeiro plano para o livro foi traçado no início
de 1963. De começo tinha-se em vista um empreendimento que
incluía um outro sociólogo e dois filósofos. Os outros partici-
pantes, por várias razões biográficas, foram obrigados a se re-
tirarem da participação ativa no projeto, mas desejamos agra-
decer com grande apreço os contínuos comentários criticos de
Hansfried Kellner (atualmente na Universidade de Frankfurt)
e Stanley Pullberg (atualmente na Ecole Pratique des Hautes
Etudes).
Em várias partes deste tratado ficará clara a dívida que temos
com o falecido Alfred Schutz. Gostaríamos, porém, de reconhecer
aqui a influência do ensino e das obras de Schutz em nosso
pensamento. Nossa compreensão de Weber deve muito aos en-
sinamentos de Carl Mayer (Graduate Faculty, New School for
Social Research), assim como a compreensão de Durkheim e de

6 7
Sumário

Prefácio 5

INTRODUÇÃO:
O PROBLEMA DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO, 11

I. OS FUNDAMENTOS DO CONHECIMENTO NA
VIDA COTIDIANA, 35

1. A realidade da vida cotidiana, 35


2. A interação social na vida cotidiana, 46
3. A linguagem e o conhecimento na vida cotidiana, 53

11. A SOCIEDADE COMO REALIDADE OBJETIVA, 69

1. Institucionalização, 69
a) Organismo e atividade, 69
b) As origens da institucionalização, 77
c) Sedimentação e tradição, 95
d) Papéis, 101
e) Extensão e modos de institucionalização, 110

2. Legitimação, 126
a) As origens dos universos simbólicos, 126
b) Os mecanismos conceituais da manutenção do universo, 142
c) A organização social para a manutenção do universo, 157

111. A SOCIEDADE COMO REALIDADE SUBJETIVA, 173

1. A interiorização da realidade, 173


a) A socialização primária, 173
b) A socialização secundária 184
c) A conservação e a transformação da re;lidade subjetiva, 195

2. A interiorização e a estrutura social 216


3. Teorias sobre a identidade, 228'
4. Organismo e identidade, 236

Introdução
CONCLUSÃO:
A SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO E A TEORIA
SOCIOLOGICA, 242
o Problema da Sociologia
do Conhecimento

As AFIRMAÇÕES FUNDAMENTAIS DO RACIOciNIO DESTE


livro acham-se implícitas no título e no subtítulo e con-
sistem em declarar que a realidade é construída social-
mente e que a sociologia do conhecimento deve analisar
o processo em que este fato ocorre. Os termos essen-
ciais nestas afirmações são "realidade" e "conhecimento",
termos não apenas correntes na linguagem diária mas que
têm atrás de si uma longa história de investigação filo-
sófica. Não precisamos entrar aqui na discussão das mi-
núcias semânticas nem do uso cotidiano ou do uso filo-
sófico desses termos. Para a nossa finalidade será su-
ficiente definir "realidade" como uma qualidade perten-
cente a fenômenos que reconhecemos terem um ser in-
dependente de nossa própria volição (não podemos
"desejar que não existam"), e definir "conhecimento"
como a certeza de que os fenômenos são reais e possuem
características específicas. E' neste sentido (declarada-
mente simplista) que estes termos têm importância tanto
para o homem da rua quanto para o filósofo. O homem
da rua habita um mundo que é "real" para ele, embora
em graus diferentes, e "conhece", com graus variáveis
de certeza, que este mundo possui tais ou quais caracte-
rísticas. O filósofo naturalmente levantará questões re-
lativas ao status último tanto desta "realidade" quanto
'deste "conhecimento". Que é real? Como se ,conhece?
Estas são algumas das mais antigas perguntas não so-

11
mente da pesquisa filosófica propriamente dita mas do ciólogo, possivelmente, não pode fazer isso. Logicamente,
pensamento humano enquanto tal. Precisamente por esta quando não estilisticamente, está crivado de aspas.
razão a intromissão do sociólogo neste venerável terri- Por exemplo, o homem da rua pode acreditar ~ue
tório intelectual poderá provavelmente chocar o homem da possui "liberdade da vontade", sendo por consegumte
rua e mesmo ainda mais provavelmente enfurecer o fi- "responsável" por suas ações, ao mesmo tempo em que
lósofo. E' por conseguinte importante que esclareçamos nega esta "liberdade" e esta "responsabilidade" às crian-
desde o início o sentido em que usamos estes termos ças e aos lunáticos. O filósofo, seja por que ~étodos f?r,
no contexto da sociologia, e que imediatamente repudie- tem de indagar do status ontológico e epistemológiCO
mos qualquer pretensão da sociologia a dar resposta a destas concepções. O homem é livre? Que é a respon-
estas antigas preocupações filosóficas. sabilidade? Onde estão os limites da responsabilidade?
Se quiséssemos ser meticulosos na argumentação a Como se pode conhecer estas coisas? E assim por diant~.
seguir exposta deveríamos pôr entre aspas os dois men- Não é necessário dizer que o sociólogo não tem condi-
cionados termos todas as vezes que os empregamos, mas ções para dar respostas a estas perguntas. O que ~ pode
isto seria estilisticamente deselegante. Falar em aspas, e deve fazer, contudo, é perguntar por que a noçao de
porém, pode dar um indício da maneira peculiar em que "liberdade" chegou a ser suposta como certa em uma
estes termos aparecem em um contexto sociológico. Po- sociedade e não em outra, como sua "realidade" é man- .
der-se-ia dizer que a compreensão sociológica da "rea- tida em uma sociedade e como, de modo ainda mais
lidade" e do "conhecimento" situa-se de certa maneira à interessante, esta "realidade" pode mais de uma vez ser
meia distância entre a do homem da rua e a do filósofo. perdida por um indivíduo ou uma coletividade inteira.
O homem da rua habitualmente não se preocupa com o O interesse sociológico nas questões da "realidade" e
que é "real" para ele e com o que "conhece", a não do "conhecimento" justifica-se assim inicialmente pelo
ser que esbarre com alguma espécie de problema. Dá fato de sua relatividade social. O que é "real" para um
como certa sua "realidade" e seu "conhecimento". O so- monge tibetano pode não ser "real" para um homem de
ciólogo não pode fazer o mesmo, quanto mais não seja negócios americano. O "conhecimento" do criminoso é
por causa do conhecimento sistemático do fato de que os diferente do "conhecimento" do criminalista. Segue-se
homens da rua tomam como certas diferentes "realida- que aglomerações específicas da "re~li~ade" e, ~o "conhe-
des", quando se passa de uma sociedade a outra. O so- cimento" referem-se a contextos sociais especIflcos e que
ciólogo é forçado pela própria lógica de sua disciplina estas relações terão de ser incluídas numa correta aná-
a perguntar, quanto mais não seja, se a diferença entre lise sociológica desses contextos. A necessidade da "so-
as duas "realidades" não pode ser compreendida com ciologia do conhecimento" está assim dada já nas dif.e-
relação às várias diferenças entre as duas sociedades. renças observáveis entre as sociedades em termos daqmh\
O filósofo, por outro lado, é profissionalmente obrigado que é admitido como "conhecimento" n~las. Além disso,
a não considerar nada como verdadeiro e a obter a má- porém, uma disciplina que se chama a SI mesma por es~e
xima clareza com respeito ao status último daquilo que nome terá de ocupar-se dos modos gerais pelos quais
o homem da rua acredita ser a "realidade" e o "conhe- as "realidades" são admitidas como "conhecidas" nas
cimento". Noutras palavras, o filósofo é levado a decidir sociedades humanas. Em outras palavras, uma "sociolo-
onde as aspas são adequadas e onde podem ser segura- gia do conhecimento" terá de tratar não somente ~a mul-
mente omitidas, isto é, a estabelecer a distinção entre tiplicidade' empírica do "conhecimento" nas sociedades
afirmativas válidas e inválidas relativas ao mundo. O so- humanas, mas também dos processos pelos quais qualquer

12 13
sociologia do conhecimento permanece~ no estado de
corpo de "conhecimento" chega a ser socialmente estabe- objeto marginal de estudo entre ?S SOCiólogos em geral,
lecido como "realidade". que não participavam dos particulares problemas que
Nosso ponto de vista, por conseguinte, é que a socio- preocupavam os pensadores alemães na d~cada d~ 1920.
logia do conhecimento deve ocupar-se com tudo aquilo Isto foi especialmente verdade no que diZ res~elto aos
que passa por "conhecimento" em uma sociedade, inde-
sociólogos americanos, que de. ~odo gera! c~nslderavam
pendentemente da validade ou invalidade última (por
a disciplina como uma especlahdad~ p~nfénca,de sa-
quaisquer critérios) desse "conhecimento". E na medida bor caracteristicamente europeu. MaiS Importante, con-
em que todo "conhecimento" humano desenvolve-se,
tudo foi o fato da permanente ligação da sociologia do
transmite-se e mantém-se em situações sociais, a socio-
conh'ecimento com sua original constelação de problemas
logia do conhecimento deve procurar compreender o
ter constituído uma fraqueza teórica, mesmo nos luga~es
processo pelo qual isto se realiza, de tal maneira que
em que houve interesse pela di~ciplina. Isto é, a SOCIO-
uma "realidade" admitida como certa solidifica-se para
logia do conhecimento foi cons~derada. por. seus ~rota­
o homem da rua. Em outras palavras, defendemos o
gonistas e em geral pelo púbhco SOCIOlógiCO ~als .ou
ponto de vista que a sociologia do conhecimento diz
menos indiferente como uma espécie de glosa SOCiológica
respeito à análise da construção social da realidade.
sobre a história das idéias. O resultado foi uma conside-
Esta compreensão do verdadeiro campo da sociologia
rável miopia com relação à significação teórica poten-
do conhecimento difere do que geralmente se entende
por esta disciplina desde que pela primeira vez foi cha- cial da sociologia do conhecimento.
mada por este nome há cerca de quarenta anos atrás. Houve diferentes definições da natureza e do âmbitÇ>
Por conseguinte, antes de começarmos nossa presente da sociologia do conhecimento. N a verdade, é possível
argumentação, será útil examinar resumidamente o de- dizer-se que a história dessa subdisciplina tem sido até
senvolvimento anterior da disciplina e explicar de que agora a história de suas várias definições. Entretanto,
maneira, e por que motivos, sentimos a necessidade de há acordo geral em que a sociologia do conhecimento
nos afastarmos dele. trata das relações entre o pensamento humano e o con-
O termo "sociologia do conhecimento" (Wissenssozio- texto social dentro do qual surge. Pode dizer-se assim
logie) foi forjado por Max Scheler 1 na década de 1920 que a sociologia do conheci~ento ~onstitui o foco so-
na Alemanha, e Scheler era um filósofo. Estes três fa- ciológico de um problema mUlÍo mais. geral, o da deter-
tos são muito importantes para a compreensão da gê- minação existencial (Seinsgebundenhelt) do pensamento
nese e do ulterior desenvolvimento da nova disciplina. enquanto tal. Embora neste caso a atenção se concentre
A sociologia do conhecimento teve origem em uma par- sobre o fator social, as dificuldades teóricas sã~ seme-
ticular situação da história intelectual alemã e em de- lhantes às que surgiram quando outros fatore~ (tais como
terminado contexto filosófico. Embora a nova disciplina os históricos, os psicológicos ou os biológicos) foram
fosse posteriormente introduzida no adequado contexto propostos com o valor de determinantes do pensamento
sociológico, especialmente no mundo de língua inglesa, humano. Em todos esses casos o problema geral tem
continuou a ser marcada pelos problemas da particular sido estabelecer a extensão em que o pensamento reflete
situação intelectual de onde surgiu. Como resultado, a os fatores determinantes propostos ou é independente
1 Cf. Max Scheler, D/e W/ssensformen und d/e Oesellschaft (Berna, Fran-
deles.
cke, 1960). Este volume de ensaios, publicado pela primeira vez em 1925, E' provável que a proeminência do problemSl geral na
contém a formulação básica da sociologia do conhecimento num ensaio
Intitulado "Probleme einer Sozlologle des Wlssens", que foi originalmente recente filosofia alemã tenha suas raízes na vasta acu-
publicado um ano antes.

14 15
mulação de erudição histórica que foi um dos maiores A sociologia do conhecimento tem sua raiz na propo-
frutos intelectuais do século XIX na Alemanha. De um sição de Marx que declara ser a consci.ê~cia do hom~m
modo sem precedente em qualquer outro período da his- determinada por seu ser social. Sem dUVida tem haVido
I

tória intelectual, o passado, com sua assombrosa varie- muitos debates para se saber ao certo que e~pécie de
dade de formas de pensamento, foi "tornado presente" determinação Marx tinha em mente. Pode-se dizer, com
ao espírito contemporâneo pelos esforços da cultura his- certeza, que muito da grande "luta com ~arx': que ca-
tórica científica. E' difícil disputar o direito da cultura racterizou não somente os começos da sociologia do co-
alemã ao primeiro lugar neste empreendimento. Não deve- nhecimento mas a "idade clássica" da sociologia em geral
ria, por conseguinte, surpreender-nos que o problema teó- (particularmente tal como é manifestada nas obras de
rico instituído pelo mencionado empreendimento tenha si- Weber, Durkheim e Pareto) foi realmente uma luta ~on­
do sentido mais agudamente na Alemanha. Pode-se dizer tra uma defeituosa interpretação de Marx pelos marxistas
que este problema é o da vertigem da relatividade. A di- modernos. Esta proposição ganha plausibilidade quando
mensão epistemológica do problema é óbvia. No nível em- refletimos no fato de que foi somente em 1932 que os
pírico conduziu à preocupação de investigar o mais cui- importantíssimos Manuscritos Econômicos e ~ilosóficos
dadosamente possível as relações concretas entre o pen- de 1844 foram redescobertos e somente depOIS da Se-
samento e suas situações históricas. Se esta interpretação gunda Guerra Mundial a plena impli~ação dessa redesco-
é correta, a sociologia do conhecimento tomou a si um berta poderia ser esgotada na pesquisa sobre Marx. Co-
problema originariamente colocado pela erudição histó- mo quer que seja, a sociologia do conhecimen:o herdou
rica, numa focalização mais estreita, sem dúvida, mas de Marx não somente a mais exata formulaçao de ~eu
essencialmente com o interesse nas mesmas questões.' problema central mas também alguns de ~eus concett~s
Nem o problema geral nem sua focalização mais es- chaves, entre os quais deveri~m ser. ~en~lO?adoS parti-
treita são novos. A consciência dos fundamentos sociais cularmente os conceitos de "Ideologia (Idéias que ~er­
dos valores e das concepções do mundo pode ser já en- vem de armas para interesses sociais) e. "falsa consciên-
contrada na Antiguidade. Pelo menos a partir do Ilumi- cia" (pensamento alienado do ser SOCial real do pen-
nismo esta consciência cristalizou-se, tornando-se um dos sador).
principais temas do moderno pensamento ocidental. Assim, A sociologia do conhecimento foi particularm~nte fas-
é possível justificar convenientemente muitas "genealo- cinada pelos dois conceitos gêmeos, estabelecidos por
gias" do problema central da sociologia do conhecimen- Marx, de "infra-estrutura e superestrutura" (Unterbau,
to.' Pode mesmo dizer-se que o problema está contido ueberbau). Foi neste ponto princip.almente que a. con-
in nuce na famosa frase de Pascal de acordo com a trovérsia se tornou violenta a respeito da correta mter-
qual aquilo que é verdade de um lado dos Pirineus é pretação do próprio pensamento de Marx. O marxismo
erro do outro lado.' No entanto os antecedentes inte- posterior teve a tendência a identificar a "infra-estrutura"
lectuais imediatos da sociologia do conhecimento são três com a estrutura econômica toui court, da qual se supu-
criações do pensamento alemão do século XIX, o pensa- nha que a "superestrutura" era um "reflexo" direto
mento marxista, o nietzscheano e o historicista. (assim por exemplo, Lenin). E' agora de todo claro
• Cf. Wilhelm Wlndelhand e Helnz Helmsoeth, Lehrbuch der Oeschichte que isto representa incorretamente o p~n~amento de
der Philosophie (Tüblngen, Mohr, 1950), pp. 605ss.
• Cf. Albert Salomon, In Praise of Enlightenment (New York, Merldlan Marx, pois o caráter essencialmente mecamclsta, em vez
Books, 1963); Hans Barth, Wahrheit und Ideologie (Zurich, Manesse, 1945);
Werner Stark, The Sociology of Knowledge (Chicago, Free Press of Olen-
coe, 1958), pp. 46ss; Kurt Lenk (ed.), Ideologie (Neuwied/Rhein, Luchterhand, I Cf Karl Marx D/e FrUhschriften (Stuttgart, Kr{jner, 1953): ~s Manus-
1961), pp. 13ss. critos .Econômicos' e Filosóficos de 1844, encontram-se nas pp: 22 ss.
• Pensées, v. 294.

17
16
de dialético, desta especle de determinismo econômico ilusão como condição necessana da vida. A concepção
torna-o suspeito. O que interessava a Marx é que o pen- nietzscheana do "ressentimento" como fator causal de
samento humano funda-se na atividade humana ("traba- certos tipos de pensamento humano foi retomada direta-
lho" no sentido mais amplo da palavra) e nas relações mente por Scheler. De modo mais geral, contudo, pode
sociais produzidas por esta atividade. O melhor modo de dizer-se que a sociologia do conhecimento representa uma
compreender as expressões "infra-estrutura" e "superes- aplicação específica daquilo que Nietzsche chamava ade-
trutura" é considerá-Ias respectivamente como atividade quadamente a "arte da desconfiança".'
humana e mundo produzido por esta atividade. • De qual- O historicismo, expresso especialmente na obra de
quer modo, o esquema fundamental "infra-estrutura/super- Wilhelm Dilthey, precedeu imediatamente a sociologia do
estrutura" foi admitido em várias formas pela sociologia conhecimento.' O tema dominante aqui era o esmagador
do conhecimento, a começar por Scheler, sempre com- sentido da relatividade de todas as perspectivas sobre os
preendendo-se que existe alguma espécie de relação entre acontecimentos humanos, isto é, da inevitável historici-
o pensamento e uma realidade "subjacente", distinta do dade do pensamento humano. A insistência com que o
pensamento. A fascinação desse esquema prevaleceu ape- historicismo afirmava que nenhuma situação histórica po-
sar do fato de grande parte da sociologia do conheci- deria ser entendida exceto em seus próprios termos pres-
mento ter sido explicitamente formulada em oposição ao tava-se a ser facilmente traduzida na acentuação da si-
marxismo e de terem sido tomadas diferentes posições tuação social do pensamento. Certos conceitos historicis-
nesse campo com relação à natureza do correlaciona- tas, tais como "determinação situacional" (Standortsge-
mento entre os dois componentes do esquema. bundenheit) e "sede na vida" (Sitz im Leben) poderiam
As idéias de Nietzsche continuaram menos explicita- ser diretamente traduzidos como se referindo à "localiza-
mente na sociologia do conhecimento, mas participam ção social" do pensamento. Em termos mais gerais, a
muito de seus fundamentos intelectuais gerais e da "at- herança historicista da sociologia do conhecimento pre-
mosfera" em que surgiu. O anti-idealismo de Nietzsche, dispôs esta última a tomar intenso interesse pela his-
apesar das diferenças no conteúdo não dessemelhante ao tória e a empregar um método essencialmente histórico,
de Marx na forma, acrescentou novas perspectivas sobre fato, diga-se de passagem, que contribuiu também para a
o pensamento humano como instrumento na luta pela so- marginalização dessa disciplina no ambiente da sociolo-
brevivência e pelo poder. • Nietzsche desenvolveu sua pró- gia americana.
pria teoria da "falsa consciência" em suas análises da O interesse de Scheler pela sociologia do conheci-
significação social do engano e do auto-engano e da mento e pelas questões sociológicas em geral foi essen-
cialmente um episódio passageiro em sua carreira filo-
• Sobre o esquema de Marx UnlerbaulUeberbau, cf. Karl Kautsky, sófica." Seu objetivo final era o estabelecimento de uma
"Verhãltnis von Unterbau und Ueberbau", em Iring Fetscher (ed.), Der
Marxismus (Munich, Piper, 1962), pp. 160ss; Antonio Labriola, "Die Ver-
mittlung zwischen Basls und Ueberbau", ibid., pp. 167ss; jean-Yves Calvez, • Uma das prImeIras e maIs Interessantes apllcaçlles do pensamento
La pensée de Karl Marx (Paris, Editions du Seuil, 1956), pp. 424ss. A de Nietzsche à sociologia do conbecimento encontra-se em Bewuss/seln ais
mais importante reformulação do problema feita no século XX é a de Verhlingnis de Alfred Seidel (Bonn, Coben, 1927). Sei deI, que foi aluno
Oyorgy Lukács, em sua Geschichte und Klassenbewusstsein (Berlim 1923), de '?Ieber, procurou combinar Nletzsche e Freud com uma radical critica
hoje mais facilmente acessivel na tradução francesa, Histoire et conscience sociológica da consciência.
de classe (Paris, Editions de Minuit, 1960). A interpretação de Luk;\cs do • Uma das mais sugestivas discusslles da relaçAo entre historicismo e
conceito de dialética de Marx é tanto mais notável quanto antecedeu de sociologia é a de Carlo em Da/lo s/orlclsmo alia sociologia (Florença
quase uma década a redes coberta dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos 1940). Também cf. H. Stuart Hughes, Consclousneu and Soclet)! (New
de 1844. York, Knopf, 1958), pp. 183ss. A mais importante obra de Wilbelm Dilthey
• As obras mais importantes de Nietzsche para a sociologia do conheci- para nossas presentes consideraçlles é Der Aufbau der geschlcht/lchen
mento são A Genealogia da Moral e A Vontade de Poder. Para discussões Welt In den Oelsteswissenschaften (Stuttgart, Teubner, 1958).
secundárias, cf. Walter A. Kaufmann, Nietzsche (New York, Meridian .. Para um excelente estudo da concepçAo de Scheler sobre • socIologIa
Books, 1956); Karl Liiwith, From Hegel to Nietzsche (tradução inglesa - do conhecimento, cf. Hans-joachlm Lfeber, Wlssen und Oesellscha/t (TO-
New York, Holt, Rinehart and Winston, 1964). blngen, Nlemeyer, 1952), pp. 5558. 'Veja-se, também, Stark, op. clt., passlm.

18 19
antropologia filosófica que transcendesse a relatividade o mundo. Scheler chamou a isto a "relativa e natural
dos pontos de vista específicos histórica e sotialmente concepção do mundo" (relativnatürlich e Weltanschauung)
localizados. A sociologia do conhecimento deveria servir de uma sociedade, conceito que pode ainda ser conside-
de instrumento para alcançar este propósito, tendo por rado central na sociologia do conhecimento.
principal fihalidade esclarecer e afastar as dificuldades Seguindo-se à "invenção" por Scheler da sociologia
levantadas pelo relativismo, de modo que a verdadeira do conhecimento houve na Alemanha um largo debate
tarefa filosófica pudesse ir adiante. A sociologia do co- a respeito da validade, âmbito e aplicabilidade da nova
nhecimento de Scheler é, em sentido muito real, ancilla disciplina. 11 Deste debate emergiu uma formulação que
philosophiae, e de uma filosofia muito específica, além marcou a transposição da sociologia do conhecimento
do mais. para um contexto mais estreitamente sociológico. Foi
Ajustando-se a esta orientação, a sociologia do conhe- nessa mesma formulação que a sociologia do conheci-
cimento de Scheler é essencialmente um método negativo. mento chegou ao mundo de língua inglesa. Trata-se da
Scheler afirmava que a relação entre "fatores ideais" formulação de KarI Mannheim. 12 Pode-se afirmar com
(ldealfaktoren) e "fatores reais" (Realfaktoren) , termos segurança que quando os sociólogos hoje em dia pen-
que lembram claramente o esquema marxista "infra/super- sam na sociologia do conhecimento, pró ou contra, em
estrutura", era meramente uma relação regulativa. Isto geral o fazem nos termos da formulação de Mannheim.
é, os "fatores reais" regulam as condições nas quais certos Na sociologia americana este fato é facilmente inteligível
"fatores ideais" podem aparecer na história, mas não po- se refletirmos em que a totalidade da obra de Mannheim
dem afetar o conteúdo destes últimos. Em outras pala- virtualmente se tornou acessJvel em inglês (uma parte
vras, a sociedade determina a presença (Dasein) mas desta obra na verdade foi escrita em inglês, durante o
não a natureza (Sosein) das idéias. A sociologia do período em que Mannheim esteve ensinando na Ingla-
conhecimento, portanto, é o procedimento pelo qual deve terra depois do advento do nazismo na Alemanha ou
ser estudada a seleção sócio-histórica dos conteúdos foi publicada em traduções inglesas revistas), ao passo
ideativos, ficando compreendido que estes conteúdos en- que a obra de Scheler sobre a sociologia do conhecimento
quanto tais são independentes da causalidade sócio-histó- permaneceu até hoje sem tradução. Deixando de lado o
rica e por conseguinte inacessíveis à análise sociológica. fator "difusão", a obra de Mannheim é menos carregada
Se é possível descrever pitorescamente o método de 11 Para o desenvolvimento geral da sociologia alemã d~rante este per iodo,
cf. Raymond Aron, La soclolog/e allemande contemporame (Paris, Presses
Scheler, poderia dizer-se que consiste em lançar um pe- Unlversitaires de France, 1950). Como Importante contr.lbulção deste pe-
riodo concernente à sociologia do conhecimento, cf. S.egfrled Landshut,
daço de pão de bom tamanho molhado em leite ao Krltik der Soziologle (Munlch 1929); Hans Freyer, Sozlologie ais W/rklich-
dragão a relatividade, mas somente com o fim de poder kettswissenschaft (Leipzig 1930); Ernst Orünwald, Das Problem der Sozl,?log/e
deI Wissens (Viena 1934); Alexander von Scheltlng, Max Webers Wlssen-
melhor penetrar no castelo da certeza ontológica. schaft.dehre (Tliblngen 1934). Esta última obra, ainda o mais Importante
estudo da metodologia de Weber, deve ser entendida levando-se em conta
o debate sobre sociologia do ~onheclmento, então concentrado nas formu-
Neste quadro intencionalmente (e inevitavelmente) lações de Scheler e Mannh·eim.
12 Karl Mannhelm Ideology and Utopia (Londres, Routledge &: Kegan
modesto, Scheler analisou com abundantes detalhes a ma- Paul, 1936); Essay; on lhe Sociology of Knowledfie (New York, Oxlord
neira em que o conhecimento humano é ordenado pela llniversity Press, 1952); Essays on Sociology and Social Psychology (New
York Oxlord Unlverslty Press, 1953); Essays on the Soclology of Culture
sociedade. Acentuou que o conhecimento humano é dado (NeW York, Oxlord University Press, 1956). Um compêndio dos mais Im-
portantes escritos de Mannheim sobre a sociologia do conhecimento, com-
na sociedade como um a priori à experiência individual, pilado por Kurt WolfI, tendo uma útil introdução, é Wissenssoziologie de
Karl Mannhelm (Neuwled/Rheln, Luchterhand, 1964). Para estudos secun-
fornecendo a esta sua ordem de significação. Esta ordem, dários da concepção de Mannhelm sobre a sociologia do conhecimento,
cf. Jacques J. Maquet, Soclolog/e de la conna/ssance (Louvain, Nauwelaerts,
embora relativa a uma particular situação sócio-histórica, 1949); Aron, op. cit.; Robert K. Merton, Social Theory and Sbcial Structure
aparece ao indivíduo como o modo natural de conceber (Chicago, Free Press 01 OIencoe, \957), pp. 489ss; Stark, QP· clt.; Lleber,
op. cito

20 21
de "bagagem" filosófica que a de Scheler. Isto é espe- conduzi-lo. Cunhou o termo "relacionismo" (por oposição
cialmente verdade no que se refere aos últimos escritos a "relativismo") para designar a perspectiva epistemo-
de Mannheim e pode ser visto se compararmos a tradução lógica de sua sociologia do conhecimento, não uma ca-
inglesa de sua principal obra, "Ideologia e Utopid', com pitulação do pensamento diante das relatividades socio-
o original alemão. Mannheim tornou~se assim uma figura históricas, mas o sóbrio reconhecimento de que o conheci-
mais "compatível" para os sociólogos, mesmo para mento tem sempre de ser conhecimento a partir de uma
aqueles que criticavam o seu modo de ver ou não se certa posição. A influência de Dilthey é provavelmente de
interessavam por ele. grande importância neste ponto do pensamento de Man-
A compreensão que Mannheim tinha da sociologia do nheim, o problema do marxismo é resolvido com os ins-
conhecimento era muito mais extensa que a de Scheler, trumentos do historicismo. Seja como for, Mannheim acre-
possivelmente porque o confronto com o marxismo tinha ditava que as influências ideologizantes, embora não pu-
maior destaque em seu trabalho. A sociedade era vista dessem ser completamente erradicadas, podiam ser miti-
determinando não somente a aparência mas também o gadas pela análise sistemática do maior número possível
conteúdo da ideação humana, com exceção da matemá- de posições variáveis socialmente fundadas. Em outras
tica e pelo menos de algumas partes das ciências na- palavras, o objeto do pensamento torna-se progressiva-
turais. A sociologia do conhecimento tornou-se assim um mente mais claro com esta acumulação de diferentes pers-
método positivo para o estudo de quase todas as facetas pectivas a ele referentes. Nisso deve consistir a tarefa
do pensamento humano. da sociologia do conhecimento, que se torna assim uma
E' muito significativo o fato de Mannheim preocu- importante ajuda na procura de qualquer entendimento
par-se principalmente com o fenômeno da ideologia. Es- correto dos acontecimentos humanos.
tabelece a distinção entre os conceitos particular, total e Mannheim acreditava que os diferentes grupos sociais
geral de ideologia - a ideologia constituindo somente variam enormemente em sua capacidade de transcender
um segmento do pensamento do adversário; a ideologia deste modo sua própria estreita posição. Depositava a
constituindo a totalidade do pensamento do adversário, maior esperança na "inteligência socialmente descompro-
(semelhante à "falsa consciência" de Marx); e (aqui, se- metida" (Freischwebende Intelligenz, termo derivado de
gundo pensou Mannheim, indo além de Marx) a ideo- Alfred Weber) , uma espécie de estrato intersticial que
logia caracterizando não somente o pensamento de um acreditava estar relativamente livre de interesses de classe.
adversário mas também o do próprio pensador. Com o Mannheim acentuou também o poder do pensamento
conceito geral de ideologia alcança-se o nível da socio- "utópico", que (tal como a ideologia) produz uma ima-
logia do conhecimento, a compreensão de que não há gem destorcida de realidade social, mas que (ao contrá-
pensamento humano (apenas com as exceções antes men- rio da ideologia) tem o dinamismo necessário para trans-
cionadas) que seja imune às influências ideologizantes formar essa realidade na imagem que dela faz.
de seu contexto social. Mediante esta expansão da teoria Não é preciso dizer que as observações acima de mo-
da ideologia Mannheim procura separar seu problema do algum fazem justiça nem à concepção de Scheler
central do contexto do uso político e tratá-lo como pro- nem à de Mannheim com relação à sociologia do conhe-
blema geral da epistemologia e da sociologia histórica. cimento. Não é esta nossa intenção. Indicamos unica-
Embora Mannheim não partilhasse das ambições on- mente . alguns aspectos decisivos das duas concepções,
tológicas de Scheler, também ele sentia-se pouco à von· que foram convenientemente chamadas, respectivamente,
tade com o pan-ideologismo que seu pensamento parecia as concepções "moderada" e "radical" da sociologia do
22 23
conhecimento. >I O fato notável é que o subseqüente de- mitam-se principalmente à crítica de Mannheim e não
senvolvimento da sociologia do conhecimento consistiu procuram a integração da disciplina no próprio sistema
em grande parte em críticas e modificações dessas duas teórico de Parsons. Neste último, sem dúvida, o "proble-
concepções. Conforme já tivemos ocasião de indicar, a ma do papel das idéias" é analisado extensamente mas
formulação, feita por Mannheim, da sociologia do conhe- num sistema de referência muito diferente do empregado
cimento continuou a estabelecer os termos de referência pela sociologia do conhecimento de Scheler ou de Man-
para essa disciplina de maneira definitiva, particularmente nheim." Podemos, portanto, tomar a liberdade de dizer
na sociologia de língua inglesa. que nem Merton nem Parsons deram qualquer passo de-
O mais importante sociólogo americano que prestou cisivo além da sociologia do conhecimento tal como foi
seriamente atenção à sociologia do conhecimento foi formulada por Mannheim. O mesmo pode dizer-se de
Robert Merton." A análise da disciplina, que abrange outros críticos. Mencionando apenas o mais eloqüente, C.
dois capítulos de sua obra principal, serviu de útil in- Wright Mi11s tralou da sociologia do conhecimento em
trodução a este campo de estudos para aqueles sociólogos seus primeiros trabalhos, mas de maneira expositiva e
americanos que se interessaram por ele. Merton cons- sem fazer qualquer contribuição para o desenvolvimento
truiu um paradigma para a sociologia do conhecimento, teórico positivamente sem contribuir para o desenvolvi-
expondo os temas mais importantes desta disciplina em mento teórico do assunto. 1f
forma condensada e coerente. Esta construção é interes- Um interessante esforço para integrar a sociologia do
sante porque procura integrar a abordagem da sociolo- conhecimento com o enfoque neopositivista da sociolo-
gia do conhecimento com a da teoria funcional estrutural. gia em geral é o de Theodor Geiger, que teve grande
Merton aplica seus próprios conceitos de funções "mani- influência sobre a sociologia escandinava, depois que emi-
festas" e "latentes" à esfera da ideação, fazendo distinção grou da Alemanha. l i Geiger voltou a um conceito mais
entre funções conscientes, intencionais das idéias e funções estreito da ideologia, como sendo o pensamento social-
inconscientes, não-intencionais. Embora Merton se con- mente destorcido e sustentou a possibilidade de superar
centrasse na obra de Mannheim, que é para ele o soció- a ideologia pela cuidadosa observação dos cânones cien-
logo do conhecimento por excelência, acentuou a impor- tíficos de procedimento. O enfoque neopositivista da aná-
tância da escola de Durkheim e dos trabalhos de Pitirim lise ideológica foi, mais recentemente, continuado na so-
Sorokin. E' interessante notar que MeTton ao que parece ciologia de língua alemã na obra de Erost Topitsch, que
deixou de ver a importância para a sociologia do conhe- acentuou as raízes ideológicas de várias posições filo-
cimento de certas importantes extensões da psicologia sóficas. ,. Mas na medida em que a análise sociológica
social americana, tais como a teoria dos grupos de re- das ideologias constitui uma parte importante da socio-
ferência, que discute em um local diferente da mesma logia do conhecimento, conforme foi definida por Man-
obra. nheim, tem havido muito interesse nela tanto na socio-
Talcott Parsons fez também comentários sobre a so-
,. Cf. Ta1eott Parlons, The Social Syslem (OIencoe, 1Ii, Free Press,
ciologia do conhecimento. l i Seus comentários, porém, Ii- 11151), pp. 32651. .
1f Cf. C. Wrlght Milt5, Power, Po/itics and People (New Yorit, Ballantme
800k5, 1963), pp. 45359 •
,. Esta caracterização das duas formulações originais da disciplina foi • Cf. Theodor Geiger, Ideologle und Wahrheit (Stuttgart, Humboldt,
feita por Lieber, op. cito 1953); Arbeiten zur Soziologie (Neuwied/Rhein, Luchterhand, 1962), .pp. 4~2ss.
,. cf. Merton, op. cit., pp. 439ss. " Cf. Ernst Topitsch, Vom Ursprung und Ende der Metaphyslk (VIena,
15 Cf. Talcott Par sons, "An Approach to the Sociology of Knowledge", Sprfnger, 1958); Sozialphilosophle zwischen Ideologie und Wissenschaft (Neu-
Transactions of lhe Fourlh World Congress of Sociology (Louvain, In- wled/Rhein, Lucht.. rhand, 1961). Uma Influência Importante sobre Topltsch
ternational SO'elolo~lcal Assoelation, 1959), Voi. IV. pp. 25ss; "Culture and é a esco:a do positivismo legal de Kelsen. Para as implicações desta última
the SOCial System', em Parsons e coi. (eds.), Theories of SOciety (New no que diz respeito à sociologia do conhecimento, cf. Haos Kêlseo, Aufslitze
York, Free Press, 1961), Voi. 11, pp. 963s5 zur IdNJloglekritik (Neuwled/Rhein, Luchterhand, 19(4).

24 25
logia européia quanto na americana, desde a Segunda pelas questões epistemológicas em nível teórico, e pelall
Guerra Mundial. OI questões da história intelectual em nível empírico.
Provavelmente a mais extensa tentativa de ir além de Desejamos acentuar que não temos reservas de qual-
Mannheim na construção de uma ampla sociologia do quer espécie quanto à validade e importância desses dois
conhecimento é a de Werner Stark, outro erudito conti- conjuntos de questões. Consideramos, porém, infeliz que
nental emigrado, que ensinou na Inglaterra e nos Esta- esta particular constelação tenha dominado até agora a
dos Unidos.... Stark vai mais longe, deixando para trás sociologia do conhecimento. Nosso ponto de vista é que,
a focalização feita por Mannheim do problema da ideo- como resultado, a plena significação teórica da socio-
logia. A tarefa da sociologia do conhecimento não con- logia do conhecimento ficou obscurecida.
siste em desmascarar ou revelar as distorções socialmente
Incluir as questões epistemológicas concernentes à va-
produzidas, mas no estudo sistemático das condições so-
lidade do conhecimento sociológico na sociologia do co-
ciais do conhecimento enquanto tal. Dito de maneira
nhecimento é de certo modo o mesmo que procurar em-
simples, o problema central é a sociologia da verdade,
purrar um ônibus em que estamos viajando. Sem dúvida
não a sociologia do erro. Apesar de seu enfoque carac-
a sociologia do conhecimento, como todas as disciplinas
terístico, Stark provavelmente está mais perto de Scheler
empíricas que acumulam indícios referentes à relatividade
que de Mannheim na compreensão da relação entre as
e determinação do pensamento humano, conduz a ques-
idéias e seu contexto social.
tões epistemológicas a respeito da própria sociologia,
Por outro lado, é evidente que não tentamos dar um assim como de qualquer outro corpo científico de conhe-
adequado panorama histórico da história da sociologia cimento. Conforme observamos anteriormente, neste ponto
do conhecimento. Além disso, ignoramos até aqui certos a sociologia do conhecimento desempenha um papel se-
desenvolvimentos que poderiam teoricamente ter impor- melhante ao da história, da psicologia e da biologia, para
tância para a sociologia do conhecimento mas não foram mencionar somente as três disciplinas empíricas mais
considerados como tais por seus próprios protagonistas. importantes que causaram dificuldade à epistemologia. A
Em outras palavras, limitamo-nos aos desenvolvimentos estrutura lógica dessa dificuldade é fundamentalmente a
que, por assim dizer, navegaram sob a bandeira da "so- mesma em todos os casos, a saber: como posso ter
ciologia do conhecimento" (considerando a teoria da certeza, digamos, de minha análise sociológica dos cos-
ideologia como parte desta última). Isto tornou claro tumes da classe média americana em vista do fato de
um fato. A parte o interesse epistemológico de alguns que as categorias por mim usadas para esta análise são
sociólogos do conhecimento, o foco empírico da atenção condicionadas por formas de pensamento historicamente
situou-se quase exclusivamente na esfera das idéias, ou relativas, e mais que eu próprio e tudo quanto penso
seja do pensamento teórico. Isto é verdade com relação sou determinado por meus genes e por minha inata
a Stark, que colocou como subtítulo de sua obra princi- hostilidade aos meus semelhantes, e além do mais, para
pal sobre a sociologia do conhecimento a expressão "En- rematar tudo isso, eu próprio sou um membro da classe
saio para Servir de Auxílio à Compreensão mais pro- média americana?
funda da História das Idéias". Em outras palavras, o in-
Está longe de nós o desejo de repelir estas questões.
teresse da sociologia do conhecimento foi constituído
Tudo quanto desejaríamos afirmar aqui é que estas ques-
" Cf. Daniel Bell, The End of Ideology (New Vork, Free Press of Çllencoe,
tões não são por si mesmas parte da disciplina empírica
1960); Kurt Lenk (ed.), Ideologle; Norman Birnbaum (ed.), The SoclologlcaI
StudJ' of ldeology (Oxford, Blackwell, 1962).
da sociologia. Pertencem propriamente à m~todologia
21 Cf. Stark, op. cito das ciências sociais, empreendimento que pertence à fi-
26 27
losofia e é por definição diferente da sociologia, que na c1usão feita por nós do problema epistemológico e meto-
verdade é objeto de suas indagações. A sociologia do dológico, admitimos que este foco pertence à sociologia
conhecimento, juntamente com outros criadores de difi- do conhecimento. Defenderemos, porém, o ponto de vista
cuJ.dades epistemológicas entre as ciências empíricas, de que o problema das "idéias", incluindo o problema
"alimentará" de problemas esta investigação metodoló- especial da ideologia, constitui apenas parte do problema
gica. Não pode resolver estes problemas em seu próprio mais amplo da sociologia do conhecimento, não sendo
quadro de referência. nem mesmo uma parte central.
Por conseguinte, excluímos da sociologia do conheci- A sociologia do conhecimento deve ocupar-se com tudo
mento os problemas epistemológicos e metodológicos que aquilo que é considerado "conhecimento" na sociedade.
perturbaram ambos os seus principais criadores. Em virtu- Basta este enunciado para se compreender que a foca-
de desta exclusão afastamo-nos tanto da concepção da lização sobre a história intelectual é mal escolhida, ou
disciplina criada por Scheler quanto da que foi exposta por melhor é mal escolhida quando se torna o foco central
Mannheim, e também dos últimos sociólogos do conheci- da sociologia do conhecimento. O pensamento teórico, as
mento (principalmente os de orientação neopositivista) "idéias", Weltanschauungen não são tão importantes
que partilham de tais concepções a este respeito. Ao assim na sociedade. Embora todas as sociedades conte-
longo de todo este livro colocamos decididamente entre nham estes fenômenos, são apenas parte da soma total
parênteses todas as questões epistemológicas ou metodo- daquilo que é considerado "conhecimento". Em qualquer
lógicas relativas à validade da análise sociológica, na sociedade somente um grupo muito limitado de pessoas
própria sociologia do conhecimento ou em qualquer outro se empenha em produzir teorias, em ocupar-se de "idéias"
terreno. Consideramos a sociologia do conhecimento co- e construir W eltanschauungen, mas todos os homens na
mo parte da disciplina empírica da sociologia. Nosso pro- sociedade participam, de uma maneira ou de outra, do
pósito aqui é evidentemente de caráter teórico. Mas nossa "conhecimento" por ela possuído. Dito de outra maneira,
teorização refere-se à disciplina empírica em seus pro- só muito poucas pessoas preocupam-se com a interpre-
blemas concretos, e não à pesquisa filosófica dos funda- tação teórica do mundo, mas todos vivem em um mundo
mentos da disciplina empírica. Em resumo, nosso em- de algum tipo. Não somente a focalização sobre o
preendimento pertence à teoria sociológica e não à me- pensamento teórico é indevidamente restritiva da sociolo-
todologia da sociologia. Em uma única secção de nosso gia do conhecimento, mas também insatisfatória, porque
tratado (a que se segue imediatamente a esta Introdução) mesmo esta parte do "conhecimento" socialmente exis-
vamos além da teoria sociológica propriamente dita, mas tente não pode ser plenamente compreendida se não for
isto é feito por motivos que nada têm a ver com a epis- colocada na estrutura de uma análise mais geral do "co-
temologia, conforme será explicado no devido momento. nhecimento" .
Contudo, devemos também redefinir a tarefa da so- Exagerar a importância do pensamento teórico na so-
ciologia do conhecimento no nível empírico, isto é, en- ciedade e na história é um natural engano dos teoriza-
quanto teoria engrenada com a disciplina empírica da dores. Isto torna por conseguinte ainda mais necessário
sociologia. Conforme vimos, neste nível a sociologia do corrigir esta incompreensão intelectualista. As formulações
conhecimento ocupou-se com a história intelectual, no teóricas da realidade, quer sejam científicas ou filosó-
sentido da história de idéias. Ainda mais, acentuaríamos ficas quer sejam até mitológicas, não esgotam o que é
que este é, na verdade, um foco muito importante da "real" para os membros de uma sociedade. Sendo assim,
pesquisa sociológica. Além disso, em contraste com a ex- a sociologia do conhecimento deve acima de tudo ocupar-
28 29
se com o que os homens "conhecem" como "realidade" E ainda uma vez:
em sua vida êotidiana, vida não teórica ou pré-teórica.
Em outras palavras, o "conhecimento" do senso comum, o conhecimento encontra-se socialmente distribuído e o me-
e não as "idéias", deve ser o foco central da sociologia canismo desta distribuição pode tornar-se objeto de uma dis-
do conhecimento. E' precisamente este "conhecimento" ciplina sociológica. Na verdade temos uma chamada sociologia
do conhecimento. No entanto, com muito poucas exceções, a
que constitui o tecido de significados sem o qual ne- disciplina assim incorretamente denominada abordou o problema
nhuma sociedade poderia existir. da distribuição social do conhecimento meramente pelo ângulo
A sociologia do conhecimento, portanto, deve tratar da da fundamentação ideológica da verdade em sua dependência
das condições sociais e especialmente econômicas, ou do ângulo
construção social da realidade. A análise da articulação das implicações sociais da educação e ainda do ponto de vista
teórica desta realidade continuará certamente sendo uma do papel social do homem de conhecimento. Não foram os so-
parte deste interesse, mas não a parte mais importante. ciólogos mas os economistas e filósofos que estudaram alguns
Ficará claro que, apesar da exclusão dos problemas epis- dos numerosos outros aspectos teóricos do problema. 21
temológicos e metodológicos, o que estamos sugerindo
Embora não demos o papel central à distribuição so-
aqui é uma redefinição de longo alcance do âmbito da
cial do conhecimento, que Schutz reclama aqui, concor-
sociologia do conhecimento, muito mais ampla do que
damos com a crítica por ele feita à "disciplina assim
tudo quanto até agora tem sido entendido como consti- incorretamente denominada" e derivamos dele nossa no-
tuindo esta disciplina. . ção básica da maneira pela qual a tarefa da sociologia
A questão que se apresenta é a de saber quais são os do conhecimento deve ser redefinida. Nas considerações
ingredientes teóricos que devem ser acrescentados à so- que se seguem dependemos grandemente de Schutz nos
ciologia do conhecimento para permitirem que seja rede- prolegômenos referentes aos fundamentos do conheci-
finida no sentido acima indicado. Devemos a compreen- mento na vida diária e temos uma importante dívida
são fundamental da necessidade desta redefinição a para com sua obra em vários decisivos lugares de nosso
Alfred Schutz. Em toda sua obra, como filósofo e como principal raciocínio ulterior.
sociólogo, Schutz concentrou-se sobre a estrutura do mun- Nossos pressupostos antropológicos são fortemente in-
do do sentido comum da vida cotidiana. Embora não fluenciados por Marx, especialmente por seus primeiros
tenha elaborado uma sociologia do conhecimento, perce- escritos, e pelas implicações antropológicas tiradas da
beu claramente aquilo sobre o que esta disciplina deveria biologia humana por Helmuth Plessner, Arnold Gehlen
focalizar a atenção: c outros. Nossa concepção da natureza da realidade so-
cial deve muito a Durkheim e sua escola de sociologia
Todas as tipificações do pensamento do senso comum são da França, embora tenhamos modificado a teoria durk-
elementos integrais do concreto Lebenswelt histórico e sócio- heimiana da sociedade pela introdução de uma perspe(;-
cultural em Que prevalecem, sendo admitidas como certas e so-
cialmente aprovadas. Sua estrutura determina entre outras coisas tiva dialética derivada de Marx e uma acentuação da
a distribuição social do conhecimento e sua relatividade e impor- constituição da realidade social mediante os significados
tância para o ambiente social concreto de um grupo concreto subjetivos derivada de Weber." Nossos pressupostos
em uma situação histórica concreta. Acham-se aqui os pro-
blemas 'legítimos do relativismo, do historicismo e da chamada li Ibid., Vol. 11 (1964), p. 121.
sociologia do conhecimento." .. Para o debate das Implicações da sociologia de Durkheim sobre a
loclologla do conhecimento, cf. Gerard L. DeCré, Society and Ide%gy (New
Vork, Columbla Unlverslty Bookstore, 1943), pp. 54ss; Merton, op. clt.;
D Alfred SChutz, Collected Papers, Vol. 1 (The Hague, Nljhoff, 1962), Oeorges Ourvltch, "Problêmes de la soclologle de la connaissan~", Traité
p. 149. Grifas noSSOS. ti.. soci%gle (Paris, Presses Unlversltalres de France, 1960), VaI. 11,
111'. 103s5.

30 31
sócio-psicológicos, especialmente importantes para a aná- mas de cuja intenção integradora participamos plena-
lise da interiorização da realidade social, são grande- mente) :
mente influenciados por George Herbert Mead e alguns
desenvolvimentos de sua obra realizados pela chamada o objetivo princIpal do estudo não consiste em determinar
escola simbólico-interacionista da sociologia americana." e enunciar em forma condensada aquilo que estes escritores
Indicaremos nas Notas até que ponto estes vários ingre- disseram ou julgaram relativamente aos assuntos sobre os quais
dientes são usados em nossa formação teórica. Com- es.:reviam. Não é tampouco indagar diretamente, com referência
a cada proposição de suas «teorias>, se aquilo que disseram
preendemos plenamente, é claro, que neste uso não so- pode ser sustentado à luz do atual conhecimento sociológico e
mos, nem podíamos ser, fiéis às intenções originais destas noções afins... E' um estudo da teoria social, não de teorias.
várias correntes da teoria social, mas, conforme já disse- Seu interesse não está nas proposições separadas e descontínuas
mos, nosso propósito aqui não é exegético, nem mesmo o Que se encontram nas obras desses homens, mas em um único
de fazer uma síntese só pelo valor da síntese. Compreende- corpo de raciocínío teórico sistemático."
mos bem que em vários lugares violentamos certos pen-
Nossa finalidade, de fato, consiste em nos empenhar-
sadores integrando seu pensamento em uma formação
mos em um "raciocínio teórico sistemático".
teórica que alguns deles teriam julgado inteiramente es-
tranha. Poderíamos dizer, a título de justificação, que a Deve já se ter tornado evidente que nossa redefinição
gratidão histórica não é por si mesma uma virtude cien- de sua natureza e alcance deslocará a sociologia do co-
tífica. Poderíamos citar aqui algumas observações de nhecimento da periferia para o próprio centro da teoria
Talcott Parsons (sobre cuja teoria temos sérias dúvidas, sociológica. Podemos assegurar ao leitor que não temos
nenhum interesse adquirido no rótulo "sociologia do co-
., o enfoque mais aproximado, tanto quanto saibamos, feito pelo in- nhecimento". Ao contrário, nossa compreensão da teoria
teracionismo simbólico aos problemas da socio'ogia do conhecimento pode
ser encontrado em Tamotsu Shibutani, "Reference Groups and Social Con-
sociológica é que nos levou à sociologia do conhecimento
trol", em Arnold Rose (ed.), Human Behav/or and Social Processes c orientou a maneira pela qual chegaríamos a redefinir
(Boston, Houghton Mifflin, 1962), pp. 128ss. O malogro em fazer a co-
nexão entre a psicologia social de Mead e a sociologia do conhecimento, os problemas e tarefas desta última. O melhor modo de
por parte dos interacionistas simbólicos, relaciona-se sem dúvida com a
limitada "difusão" da sociologia do conhecimento nos Estados Unidos, descrever o caminho que seguimos será fazer referência
mas seu fundamento teórico mais importante tem de ser encontrado no
fato de Mead e seus adeptos posteriores não terem criado um conceito a duas das mais famosas e influentes "ordens de mar-
adequado da estrutura social. Precisamente por esta razão, pensamos, é cha" da sociologia.
tão importante a Integração das abordagens de Mead e de Dur.kheim.
Pode observar-se aqui que, assim Como a indiferença com relação à
sociologia do conhecimento por parte dos psicó:ogos sociais americanos Uma foi dada por Durkheim em As Regras do Método
Impediu estes de relacionar suas perspectivas Com uma teoria macro-socio- Sociológico, a outra por Weber em Wirtschaft und Qe-
Ió!:ica, da mesma maneira a total ignorância da obra de Mead constitui
um grave defeito teórico do pensamento social neomarxlsta na Europa sellschaft (Economia e Sociedade). Durkheim diz-nos: "A
hoje em dia. Há uma considerável ironia no fato de ultimamente os
teóricos neomarxistas estarem procurando uma ligação com a psico!ogia primeira regra e a mais fundàmental é: Considerar Os
freudiana (fundamentalmente incompatível com as premissas antropoló-
gicas do marxismo), esquecendo comp:etamente a existência da teoria de fatos sociais como coisas".:n E Weber observa: "Tanto
Mead sobre a dialétiéa entre a sociedade e o individuo, que seria imen-
suraveimente mais compatível com sua própria abordagem. Como exemplo para a sociologia no sentido atual quanto para a história
deste fenômeno irônico. cf. Georges Lapassade, L'entrée dans la v/e (Paris,
Editions de Minult, 1963), livro por outro lado altamente sugestivo, que, () objeto de conhecimento é o complexo de significados
por assim dizer, brada a favor de Mead a cada página. A mesma ironia, subjetivo da ação".· Estes dois enunciados não são con-
embora em um diferente contexto de segregação intelectual, encontra-se
nos recentes esforços americanos de aproximação entre o marxismo e o traditórios. A sociedade possui na verdade facticidade ob-
freudismo. Um sociólogo europeu que tirou mais coisa, e com sucesso,
de Mead e da tradição deste autor na construção da teor'a sociológico '
Frl~dric.h ·Tenbruck .. Cf. sua Oesch/ch!e und OesseIlschaft (Habilitatlonsschrift,
l i Talcott Parsons, The Structure of Soc/al Action (Chicago, Free Press,
UDlversldade de Frelburg, a ser pubhcada em breve), especialmente a secção
Intitulada "Realitãt". Em um contexto sistemático diferente do nosso, mas 1949), p.v.
OI Emi1e Durkhelm, The Rules 01 Soc/ologlcal Method (Chicago, Free
de certo modo muito compatível com nOSsa própria abordagem da pro-
blemática de Mead, Tenbruck discute a origem soc;al da realidade e as Presa, 1950), p. 14. ,
bases sóchl-estruturals da conservação da realidade. • Max Weber, The Theory of Social and Econom/c Organlzatlon, (New
York, Oxford Unlverslty Press, 1947), p. 101.

32 33
jetiva. E a sociedade de fato é construída pela atividade
que expressa um significado subjetivo. E, diga-se de
passagem, Durkheim conheceu este último enunciado
assim como Weber conheceu o primeiro. E' precisament~
o duplo caráter da sociedade em termos de facticidade
objetiva e significado subjetivo que torna sua "realidade
sui generis", para usar outro termo fundamental de Dur- I
kheim. A questão central da teoria sociológica pode por
conseguinte ser enunciada desta maneira: como é possí-
vel que significados subjetivos se tornem facticidades ob- Os Fundamentos do Conhecimento
jetivas? Ou, em palavras apropriadas às posições teóricas na Vida Cotidiana
acima mencionadas: Como é possível que a atividade
humana (Handeln) produza um mundo de coisas (choses)?
Em outras palavras, a adequada compreensão da "rea- 1. A REALIDADE DA VIDA COTIDIANA
lidade sui gene ris" da sociedade exige a investigação
da maneira pela qual esta realidade é construída. Esta SENDO NOSSO PROPÓSITO NESTE TRABALHO A ANÁLISE
investigação, afirmamos, constitui a tarefa da sociologia sociológica da realidade da vida cotidiana, ou, mais preci-
do conhecimento. samente, do conhecimento que dirige a conduta na vida
diária, e estando nós apenas tangencialmente interessados
em saber como esta realidade pode aparecer aos intelec-
tuais em várias perspectivas teóricas, devemos começar
pelo esclarecimento dessa realidade, tal como é acessível
ao senso comum dos membros ordinários da sociedade.
Saber como esta realidade do senso comum pode ser in-
fluenciada pelas construções teóricas dos intelectuais e
outros comerciantes de idéias é uma questão diferente.
Nosso empreendimento, por conseguinte, embora de ca-
ráter teórico, engrena-se com a compreensão de uma
realidade que constitui a matéria da ciência empírica da
sociologia, a saber, o mundo da vida cotidiana.
Deveria, portanto, ser evidente que nosso propósito
não é envolver-nos na filosofia. Apesar disso, se quiser-
mos entender a realidade da vida cotidiana é preciso levar
em conta seu caráter intrínseco antes de continuarmos
com a análise sociológica propriamente dita. A vida coti-
diana apresenta-se como uma realidade interpretada pe-
los homens e subjetivamente dotada de sentido para eles
na medida em que forma um mundo coerente. Como so-
ciólogos, tomamos esta realidade por objeto qe nossas
análises. No quadro da sociologia enquanto ciência em-
34 35
pírica é possível tomar esta realidade como dada, tomar A análise fenomenológica da vida cotidiana, ou me-
como dados os fenômenos particulares que sutgem dentro lhor da experiência subjetiva da vida cotidiana, abstém-
dela, sem maiores indagações sobre os fundamentos dessa se de qualquer hipótese causal ou genética, assim como
realidade, tarefa já de ordem filosófica. Contudo, conside- de afirmações relativas ao status ontológico dos fenô-
rando o particular propósito do presente tratado, não menos analisados. E' importante lembrar este ponto. O
podemos contornar completamente o problema filosófico. senso comum contém inumeráveis interpretações pré-
O mundo da vida cotidiana não somente é tomado como científicas e quase-científicas sobre a realidade cotidiana,
uma realidade certa pelos membros ordinários da socie- que admite como certas. Se quisermos descrever a rea-
dade na conduta subjetivamente dotada de sentido que lidade do senso comum temos de nos referir a estas in-
imprimem a suas vidas, mas é um mundo que se origina terpretações, assim como temos de levar em conta seu
no pensamento e na ação dos homens comuns, sendo caráter de suposição indubitável, mas fazemos isso co-
afirmado como real por eles. Antes, portanto, de em- locando o que dizemos entre parênteses fenomenológicos.
preendermos nossa principal tarefa devemos tentar escla- A consciência é sempre intencional; sempre "tende
recer os fundamentos do conhecimento na vida cotidiana. para" ou é dirigida para objetos. Nunca podemos apreen-
a saber, as objetivações dos processos (e significações) der um suposto substrato de consciência enquanto tal,
subjetivas graças às quais é construído o mundo inter- mas somente a consciência de tal ou qual coisa. Isto
subjetivo do senso comum. assim é, pouco importando que o objeto da experiência
Para a finalidade em apreço, isto é uma tarefa prelimi- seja experimentado como pertencendo a um mundo físico
nar, mas não podemos fazer mais do que esboçar os externo ou apreendido como elemento de uma realidade
principais aspectos daquilo que acreditamos ser uma so- subjetiva interior. Quer eu (a primeira pessoa do singular,
lução adequada do problema filosófico, adequada, apres- aqui como nas ilustrações seguintes, representa a auto-
samo-nos em acrescentar, apenas no sentido de poder consciência ordinária na vida cotidiana) esteja contem-
servir como ponto de partida para a análise sociológica. plando o panorama da cidade de Nova York ou tenha
As considerações a seguir feitas têm, portanto, a natureza consciência de uma ansiedade interior, os processos de
de prolegômenos filosóficos e, em si mesmas, pré-socio- consciê'ncia implicados são intencionais em ambos os ca-
lógicas. O método que julgamos mais conveniente para sos. Não é preciso discutir a questão de que a consciên-
esclarecer os fundamentos do conhecimento na vida co- cia do Empire State Building é diferente da consciência
tidiana é o da análise fenomenológica, método puramente da ansiedade. Uma análise fenomenológica detalhada
descritivo, e como tal "empírico" mas não "científico", descobriria as várias camadas da experiência e as dife-
segundo o modo como entendemos a natureza das ciên- rentes estruturas de significação implicadas, digamos, no
cias empíricas. 1 fato de ser mordido por um cachorro, lembrar ter sido
mordido por um cachorro, ter fobia por todos os cachor-
1 Esta secção inteira de nosso tratado é baseada no livro de Alfrell ros, e assim por diante. O que nos inter.:ss~ aqui é o
Schutz e Thomas Luckmann, Die Strukturen der Lebenswelt, agora pre-
parada para publicação. Em vista disto, abstemo-nos de fornecer referên- caráter intencional comum de toda consclencla.
cias individuais às passagens da obra publicada de Schutz, onde os mes-
mos prob:emas são discutidos. Nossa argumentação baseia-se aqui em
Schutz tal como foi desenvoivida por Luckmann no trabalho acima men-
Objetos diferentes apresentam-se à consciência como
cionado, in tato. O leitor, desejando conhecer a obra publicada de Schutz constituintes de diferentes esferas da realidade. Reconheço
até esta data, pode consultar Aifred SChütz, Der slnnhafte Aufbau deI
sozialen Welt (Viena, Springer, 1960); Collected Papers, Vo!s. I e li. meus semelhantes com os quais tenho de tratar no curso
O ieitor interessado na adaptação do método fenomenoiógico, feita por
Schutz, à análise do mundo social consulte especialmente seus Collrcted da vida diária como pertencendo a uma realidade intei-
Papers, Vol. I, pp. 99ss, e "'aurice Natanson (ed.), Philosophy of Ih' ramente diferente da que têm as figuras desencarnadas
Social Science (New York, Random House, 1963), pp. 1835s.

36 37
que aparecem em meus sonhos. Os dois conjuntos de minha sociedade; vivo dentro de uma teia de relações
objetos introduzem tensões inteiramente diferentes em humanas, de meu clube de xadrez até os Estados Unidos
minha consciência e minha atenção com referência a eles da América, que são também ordenadas por meio do
é de natureza completamente diversa. Minha consciência vocabulário. Desta maneira a linguagem marca as coor-
por conseguinte é capaz de mover-se através de diferentes denadas de minha vida na sociedade e enche esta vida
esferas da realidade. Dito de outro modo, tenho consciên- de objetos dotados de significação.
cia de que o mundo consiste em múltiplas realidades. A realidade da vida cotidiana está organizada em torno
Quando passo de uma realidade a outra experimento a do "aqui" de meu corpo e do "agora" do meu presente.
transição como uma espécie de choque. Este choque deve Este "aqui e agora" é o foco de minha atenção à rea-
ser entendido como causado pelo deslocamento da aten- lidade da vida cotidiana. Aquilo que é "aqui e agora"
ção acarretado pela transição. A mais simples ilustração apresentado a mim na vida cotidiana é o realissimum de
deste deslocamento é o ato de acordar de um sonho. minha consciência. A realidade da vida diária, porém,
Entre as múltiplas realidades há uma que se apresenta não se esgota nessas presenças imediatas, mas abraça
como sendo a realidade por excelência. E' a realidade da fenômenos que não estão presentes "aqui e agora". Isto
vida cotidiana. Sua posição privilegiada autoriza a dar- quer dizer que experimento a vida cotidiana em diferen-
lhe a designação de realidade predominante. A tensão tes graus de aproximação e distância, espacial e tempo-
da consciência chega ao máximo na vida cotidiana, isto ralmente. A mais próxima de mim é a zona da vida
é, esta última impõe-se à consciência de maneira mais cotidiana diretamente acessível à minha manipulação cor-
maciça, urgente e intensa. E' impossível ignorar e mesmo poral. Esta zona contém o mundo que se acha ao meu
é difícil diminuir sua presença imperiosa. Conseqüentemen- alcance, o mundo em que atuo a fim de modificar a
te, força-me a ser atento a ela de maneira mais completa. realidade dele, ou o mundo em que trabalho. Neste mun-
Experimento a vida cotidiana no estado de total vigília. do do trabalho minha consciência é dominada pelo mo-
Este estado de total vigília de existir na realidade da tivo pragmático, isto é, minha atenção a esse mundo é
vida cotidiana e de apreendê-Ia é considerado por mim principalmente determinada por aquilo que estou fazendo,
normal e evidente, isto é, constitui minha atitude natural. fiz ou planejo fazer nele. Deste modo é meu mundo
Apreendo a realidade da vida diária como uma reali- por excelência. Sei, evidentemente, que a realidade da
dade ordenada. Seus fenômenos acham-se previamente vida cotidiana contém zonas que não me são acessíveis
dispostos em padrões que parecem ser independentes da desta maneira. Mas, ou não tenho interesse pragmático
apreensão que deles tenho e que se impõem à minha nessas zonas ou meu interesse nelas é indireto, na me-
apreensão. A realidade da vida cotidiana aparece já obje- dida em que podem ser potencialmente zonas manipulá-
tivada, isto é, constituída por uma ordem de objetos que veis por mim. Tipicamente meu interesse nas zonas dis-
foram designados como objetos antes de minha entrada tantes é menos intenso e certamente menos urgente. Es-
na cena. A linguagem usada na vida cotidiana fornece-me tou intensamente interessado no aglomerado de objetos
continuamente as necessárias objetivações e determina a implicados em minha ocupação diária, por exemplo, o
ordem em que estas adquirem sentido e na qual a vida mundo da garage se sou um mecânico. Estou interessa-
cotidiana ganha significado para mim. Vivo num lugar do, embora menos diretamente, no que se passa nos la-
que é geograficamente determinado; uso instrumentos, boratórios de provas da indústria automobilística em De-
desde os abridores de latas até os automóveis de es- troit, pois é improvável que algum dia venha a estar
porte, que têm sua designação no vocabulário técnico da em algum destes laboratórios, mas o trabalho aí efe-

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tuado poderá eventualmente afetar minha vida cotidiana. ai, como facticidade evidente por si mesma e compul-
Posso também estar interessado no que se passa em sória. Sei que é real. Embora seja capaz de empenhar-me
Cabo Kennedy ou no espaço cósmico, mas este inte- em dúvida a respeito da realidade dela, sou obrigado a
resse é uma questão de escolha privada, ligada ao "tem- suspender esta dúvida ao existir rotineiramente na vida
po de lazer", mais do que uma necessidade urgente de cotidiana. Esta suspensão da dúvida é tão firme que para
minha vida cotidiana. abandoná-Ia, como poderia desejar fazer por exemplo na
A. realidade da vida cotidiana além disso apresenta-se contemplação teórica ou religiosa, tenho de realizar uma
a mIm como um mundo intersubjetivo, um mundo de que extrema transição. O mundo da vida cotidiana procla-
participo juntamente com outros homens. Esta intersubje- ma-se a si mesmo e quando quero contestar esta pro-
tividade diferencia nitidamente a vida cotidiana de outras clamação tenho de fazer um deliberado esforço, nada
realidades das quais tenho consciência. Estou sozinho no fácil. A transição da atitude natural para a atitude teó-
mundo de meus sonhos, mas sei que o mundo da vida rica do filósofo ou do cientista ilustra este ponto. Mas
cotidiana é tão real para os outros quanto para mim nem todos os aspectos desta realidade são igualmente
mesmo. De fato, não posso existir na vida cotidiana sem não problemáticos. A vida cotidiana divide-se em setores
estar continuamente em interação e comunicação com os que são apreendidos rotineiramente e outros que se apre-
outros. Sei que minha atitude natural com relação a este sentam a mim com problemas desta ou daquela espécie.
mundo corresponde à atitude natural dos outros, que Suponhamos que eu seja um mecânico de automóveis,
eles também compreendem as objetivações graças às com grande conhecimento de todos os carros de fabrica-
quais este mundo é ordenado, que eles também organi- ção americana. Tudo quanto se refere a estes ê uma
zam este mundo em torno do "aqui e agora" de seu faceta rotineira, não problemática de minha vida diária.
estar nele e têm projetos de trabalho nele. Sei também, Mas um certo dia aparece alguém na garage e pede-me
evidentemente, que os outros têm uma perspectiva deste para consertar seu Volkswagen. Estou agora obrigado
mundo comum que não é idêntica à minha. Meu "aqui" a entrar no mundo problemático dos carros de constru-
é o "lá" deles. Meu "agora" não se superpõe comple- ção estrangeira. Posso fazer isso com relutância ou com.
tamente ao deles. Meus projetos diferem dos deles e curioSidade profissional, mas num caso ou noutro estou
podem mesmo entrar em conflito. De todo modo, sei agora diante de problemas que não tinha ainda rotini-
que vivo com eles em um mundo comum. O que tem zado. Ao mesmo tempo, é claro, não deixo a realidade
a maior importância é que eu sei que há uma contínua da vida cotidiana. De fato, esta enriquece-se quando co-
correspondência entre meus significados e seus significa- meço a incorporar a ela o conhecimento e a habilidade
dos neste mundo que partilhamos em comum, no que requeridos para consertar os carros de fabricação es-
respeita à realidade dele. A atitude natural é a atitude trangeira. A realidade da vida cotidiana abrange os dois
da consciência do senso comum precisamente porque se tipos de setores, desde que aquilo que aparece como
refere a um mundo que é comum a muitos homens. O problema não pertença a uma realidade inteiramente di-
conhecimento do senso comum é o conhecimento que eu ferente (por exemplo, a realidade da física teórica ou a
partilho com os outros nas rotinas normais, evidentes da dos pesadelos). Enquanto as rotinas da vida cotidiana
vida cotidiana. continuarem sem interrupção são apreendidas como não-
problemáticas.
A realidade da vida cotidiana é admitida como sendo
a realidade. Não requer maior verificação, que se es- Mas mesmo o setor não-problemático da realidade co-
tenda alétn de sua simples presença. Está simplesmente tidiana só é tal até novo conhecimento, isto é, até que

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sua continuidade seja interrompida pelo aparecimento assim dizer, e a consciência sempre retorna à realidade
de um problema. Quando isto acontece, a realidade da dominante como se voltasse de uma excursão. Isto é
vida cotidiana procura integrar o setor problemático evidente, conforme se vê pelas ilustrações já dadas~ como
dentro daquilo que já é não-problemático. O conheci- na realidade dos sonhos e na do pensamento teórico.
mento do sentido comum contém uma multiplicidade de "Comutações" semelhantes ocorrem entre o mundo da
instruções sobre a maneira de fazer isso. Por exemplo, vida cotidiana e o mundo do jogo, quer seja o brinquedo
os outros com os quais trabalho são não-problemáticos das crianças quer, ainda mais nitidamente, o jogo dos
para mim enquanto executam suas rotinas familiares e adultos. O teatro fornece uma excelente ilustração desta
admitidas como certas, por exemplo, datilografar numa atividade lúdica por parte dos adultos. A transição entre
escrevaninha próxima à minha em meu escritório. Tor- as realidades é marcada pelo levantamento e pela descida
nam-se problemáticos se interrompem estas rotinas, por do pano. Quando o pano se levanta, o espectador é
exemplo, amontoando-se num canto e falando em forma "transportado para um outro mundo", com seus pró-
de cochicho. Ao perguntar sobre o que significa esta prios significados e uma ordem que pode ter relação, ou
atividade estranha, há um certo número de possibilidades não, com a ordem da vida cotidiana. Quando o pano
que meu conhecimento de sentido comum é capaz de rein- desce, o espectador "retorna à realidade", isto é, à rea-
tegrar nas rotinas não problemáticas da vida cotidiana: lidade predominante da vida cotidiana, em comparação
podem estar discutindo a maneira de consertar uma má- com a qual a realidade apresentada no palco aparece
quina de escrever quebrada, ou um deles pode ter algumas agora tênue e efêmera, por mais vívida que tenha sido
instruções urgentes dadas pelo patrão, etc. De outro lado, a representação alguns poucos momentos antes. A expe-
posso achar que estão discutindo uma diretriz dada pelo riência estética e religiosa é rica em produzir transi..
sindicato para entrarem em greve, coisa que está ainda ções desta espécie, na medida em que a arte e a religião
fora da minha experiência mas dentro do círculo dos são produtores endêmicos de campos de significação.
problemas com os quais minha consciência de senso co- Todos os campos finitos de significação caracterizam-
mum pode tratar. Tratará da questão mas como proble- se por desviar a atenção da realidade da vida contempo-
ma, e não procurando simplesmente reintegrá-Ia no setor rânea. Embora haja, está claro, deslocamentos de aten.,
não problemático da vida cotidiana. Se, entretanto, che- ção dentro da vida cotidiana, o deslocamento para um
gar à conclusão de que meus colegas enlouqueceram campo finito de significação é de natureza muito mais
coletivamente o problema que se apresenta é então de radical. Produz-se uma radical transformação na ten-
outra espécie. Acho-me agora em face de um problema são da consciência. No contexto da experiência reli~
que ultrapassa os limites da realidade da vida cotidiana giosa isto já foi adequadamente chamado "transes". E'
e indica uma realidade inteiramente diferente. Com efeito, importante, porém, acentuar que a realidade da vida co-
a conclusão de que meus colegas enlouqueceram implica tidiana conserva sua situação dominante mesmo quando
ipso facto que entraram num mundo que não é mais o estes "transes" ocorrem. Se nada mais houvesse, a lin-
mundo comum da vida cotidiana. guagem seria suficiente para nos assegurar sobre este
Comparadas à realidade da vida cotidiana, as outras ponto. A linguagem comum de que disponho para a
realidades aparecem como campos finitos de significa- objetivação de minhas experiências funda-se na vida co-
ção, enclaves dentro da realidade dominante marcada tidiana e conserva-se sempre apontando para ela mesmo
por significados e modos de experiência delimitados. A quando a emprego para interpretar experiências em cam-
realidade dominante envolve-as por todos os lados, por pos delimitados de significação. Por consegtdnte, "des-

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torço" tipicamente a realidade destes últimos logo assim cido, baseado nas seqüências temporais da natureza, por
que começo a usar a linguagem comum para interpretá- um lado, e o tempo interior por outro lado, em suas
los, isto é, "traduzo" as experiências não-pertencentes diferenciações acima mencionadas. Nunca pode haver
à vida cotidiana na realidade suprema da vida diária. completa simultaneidade entre estes vários níveis de tem-
Isto pode ser facilmente visto em termos de sonhos, mas poralidade, conforme nos indica claramente a experiência
é também típico das pessoas que procuram relatar os da espera. Tanto meu organismo quanto minha sociedade
mundos de significação teóricos, estéticos ou religiosos. impõem a mim e a meu tempo interior certas seqüências
O físico teórico diz-nos que seu conceito do espaço não de acontecimentos que incluem a espera. Posso desejar
pode ser transmitido por meios lingüísticos, tal como tomar parte num acontecimento esportivo, mas tenho de
o artista com relação ao significado de suas criações esperar até que meu joelho machucado se cure. Ou então
e o místico com relação a seus encontros com a divin- devo esperar até que certos papéis sejam tramitados,
dade. Entretanto, todos estes - o sonhador, o físico, o para que minha inscrição no acontecimento possa ser ofi-
artista e o místico - também vivem na realidade da cialmente estabelecida. Vê-se facilmente que a estrutura
vida cotidiana. Na verdade um de seus importantes pro- temporal da vida cotidiana é extremamente complexa, por-
blemas é interpretar a coexistência desta realidade com
que os diferentes níveis da temporalidade empiricamente
os enclaves de realidade em que se aventuram.
presente devem ser continuamente correlacionados.
O mundo da vida cotidiana é estruturado especial e
A estrutura temporal da vida cotidiana coloca-se em
temporalmente. A estrutura espacial tem pouca impor-
tância em nossas atuais considerações. Basta indicar que face de uma facticidade que tenho de levar em conta,
tem também uma dimensão social em virtude do fato isto é com a qual tenho de sincronizar meus próprios
da minha zona de manipulação entrar em contacto com projetos. O tempo que encontro na realidade diária é
a dos outros. Mais importante para nossos propósitos contínuo e finito. Toda minha existência neste mundo é
atuais é a estrutura temporal da vida cotidiana. continuamente ordenada pelo tempo dela, está de fato en-
volvida por esse tempo. Minha própria vida é um episódio
A temporalidade é uma propriedade intrínseca da
na corrente do tempo externamente convencional. O tem-
consciência. A corrente de consciência é sempre ordena-
po já existia antes de meu nascimento e continuará a
da temporalmente. E' possível estabelecer diferenças en-
existir depois que morrer. O conhecimento de minha
tre níveis distintos desta temporalidade, uma vez que
nos é acessível intra-subjetivamente. Todo indivíduo tem morte inevitável torna este tempo finito para mim. Só
consciência do fluxo interior do tempo, que por sua disponho de certa quantidade de tempo para a realização
vez se funda nos ritmos fisiológicos do organismo, em- de meus projetos e o conhecimento deste fato afeta
bora não se identifique com estes. Excederia de muito minha atitude com relação a estes projetos. Também,
o âmbito destes prolegômenos entrar na análise deta- como não desejo morrer, este conhecimento injeta em
lhada desses níveis da temporalidade intra-subjetiva. meus projetos uma ansiedade subjacente. Assim, não
Conforme indicamos, porém, a intersubjetividade na vi- posso repetir indefinidamente minha participação em
da cotidiana tem também uma dimensão temporal. O acontecimentos esportivos. Sei que vou ficando velho.
mundo da vida cotidiana tem seu próprio padrão do Pode mesmo acontecer que esta seja a última oportuni-
tempo, que é acessível intersubjetivamente. O tempo dade que tenho de participar desses acontecimentos.
padrão pode ser compreendido como a intersecção entre Minha espera tornar-se-á ansiosa conforme o. grau em
o tempo cósmico e seu calendário socialmente estabele- que a finitude do tempo incidir sobre meu projeto.

44 45
A mesma estrutura temporal, como já foi indicado, é tidiana? Ainda aqui é possível estabelecer diferenças en-
coercitiva. Não posso inverter à vontade as seqüências tre vários modos desta experiência.
impostas por ela, "primeiro as primeiras coisas" é um A mais importante experiência dos outros ocorre na
elemento essencial de meu conhecimento da vida cotidiana. situação de estar face à face com o outro, que é o caso
Assim, não posso prestar determinado exame antes de prototípico da interação social. Todos os demais casos
ter cumprido certo programa educativo, não posso exercer derivam deste.
minha profissão antes de prestar esse exame, e assim por
Na situação face a face o outro é apreendido por mim
diante. Também a mesma estrutura temporal fornece a num vívido presente partilhado por nós dois. Sei que
historicidade que determina minha situação no mundo da
no mesmo vívido presente sou apreendido por ele. Meu
vida cotidiana. Nasci em certa data, entrei para a escola "aqui e agora" e o dele colidem continuamente um com
em outra data, comecei a trabalhar como profissional em o outro enquanto dura a situação face a face. Como
outra, etc. Estas datas contudo estão todas "localizadas" resultado, há um intercâmbio contínuo entre minha ex-
em uma história muito mais ampla e esta "localização" pressividade e a dele. Vejo-o sorrir e logo a seguir rea-
configura decisivamente minha situação. Assim, nasci no gindo ao meu ato de fechar a cara parando de sorrir,
ano da grande bancarrota bancária em que meu pai perdeu depois sorrindo de novo quando também eu sorrio, etc.
a fortuna, entrei para a escola pouco antes da revolução, Todas as minhas expressões orientam-se na direção dele
comecei a trabalhar pouco depois de irromper a Grande e vice-versa e esta contínua reciprocidade de atos expres-
Guerra, etc. A estrutura temporal da vida cotidiana não sivos é simultaneamente acessível a nós ambos. Isto sig-
somente impõe seqüências predeterminantes à minha nitica que na situação face a face a subjetividade do
"agenda" de um único dia mas impõe-se também à mi- outro me é acessível mediante o máximo de sintomas.
nha biografia em totalidade. Dentro das coordenadas es- Certamente, posso interpretar erroneamente alguns desses
tabelecidas por esta estrutura temporal apreendo tanto sintomas. Posso pensar que o outro está sorrindo quando
a "agenda" diária quanto minha completa biografia. O de fato está sorrindo afetadamente. Contudo, nenhuma
relógio e a folhinha asseguram de fato que sou um outra forma de relacionamento social pode reproduzir a
"homem do meu tempo". Só nesta estrutura temporal é plenitude de sintomas da subjetividade presentes na si-
que a vida cotidiana conserva para mim seu sinal de rea- tuação face a face. Somente aqui a subjetividade do outro
lidade. Assim, em casos em que posso ficar "desorien- é expressivamente "próxima". Todas as outras formas
tado" por qualquer motivo (por exemplo, sofri um aci- de relacionamento com o outro são, em graus variáveis,
dente de automóvel em que fiquei inconsciente) sinto "remotas".
uma necessidade quase instintiva de me "reorientar" den- Na situação face a face o outro é plenamente real.
tro da estrutura temporal da vida cotidiana. Olho para o Esta realidade é parte da realidade global da vida co-
relógio e procuro lembrar-me que dia é. Só por esses tidiana, e como tal maciça e irresistível. Sem dúvida, o
atos retorno à realidade da vida cotidiana. outro pode ser real para mim sem que eu o tenha en-
contrato face a face, por exemplo de nome ou por me
corresponder com ele. Entretanto, só se torna real para
2. A INTERAÇÃO SOCIAL NA VIDA COTIDIANA mim no pleno sentido da palavra quando o encontro
pessoalmente. De fato, pode-se afirmar que o outro na
A realidade da vida cotidiana é partilhada com outros. situação face a face é mais real para mim que ey próprio.
Mas, de que modo experimento esses outros na vida co- Evidentemente "conheço-me melhor" do que po,Sso jamais
46 47
conhecê-lo. Minha subjetividade é acessível a mim de um rejeitar os protestos de amizade do outro acreditando não
modo em que a dele nunca poderá ser, por mais "pró- representarem realmente a atitude subjetiva dele com re-
xima" que seja nossa relação. Meu passado me é acessível lação a mim, simplesmente porque na correspondência
na memória com uma plenitude em que nunca poderei não disponho da presença imediata, contínua e maciça-
reconstruir o passado dele, por mais que ele o relate a mente real de sua expressividade. Sem dúvida, é possível
mim. Mas este "melhor conhecimento" de mim mesmo que interprete mal as intenções do outro mesmo na si-
exige reflexão. Não é imediatamente apresentado a mim. tuação face a face, assim como é possível que ele "hipo-
O outro, porém, é apresentado assim na situação face critamente" esconda suas intenções. De qualquer modo,
a face. Por conseguinte, "aquilo que ele é" me é conti- a interpretação errônea e a "hipocrisia" são mais difíceis
nuamente acessível. Esta acessibilidade é ininterrupta e de manter na interação face a face do que em formas
precede a reflexão. Por outro lado, "aquilo que sou" menos "próximas" de relações sociais.
não é acessível assim. Para torná-lo acessível é preciso Por outro lado, apreendo o outro por meio de esque-
que eu pare, detenha a contínua espontaneidade de minha mas tipificadores mesmo na situação face a face, embora
experiência e deliberadamente volte a minha atenção estes esquemas sejam mais "vulneráveis" à interferência
sobre mim mesmo. Ainda mais, esta reflexão sobre mim dele do que em formas "mais remotas" de interação.
mesmo é tipicamente ocasionada pela atitude com relação Noutras palavras, embora seja relativamente difícil impor
a mim que o outro manifesta. E' tipicamente uma res- padrões rígidos à interação face a face, desde o início
posta "de espelho" às atitudes do outro. esta já é padronizada se ocorre dentro da rotina da vida
Segue-se que as relações com os outros na situação çotidiana. (Podemos deixar de parte para exame poste-
face a face são altamente flexíveis. Dito de maneira ne- rior os casos de interação entre pessoas completamente
gativa, é relativamente difícil impor padrões rígidos à estranhas que não têm uma base comum na vida coti-
interação face a face. Sejam quais forem os padrões que diana). A realidade da vida cotidiana contém esquemas
se introduza terão de ser continuamente modificados de- tipificadores em termos dos quais os outros são apreen-
vido ao intercâmbio extremamente variado e sutil de didos, sendo estabelecidos os modos como "lidamos" com
significados subjetivos que têm lugar. Por exemplo, posso eles nos encontros face a face. Assim, apreendo o outro
olhar o outro como alguém inerentemente hostil a mim como "homem", "europeu", "comprador", "tipo jovial",
e agir para com ele de acordo com um padrão de "re- etc. Todas estas tipificações afetam continuamente minha
lações hostis" tal como é entendido por mim. Na situa- interação com o outro, por exemplo quando decido di-
ção face a face porém o outro pode enfrentar-me com vertir-me com ele na cidade antes de tentar vender-lhe
atitudes e atos que contradizem esse padrão, chegando meu produto. Nossa interação face' a face será modelada
talvez a um ponto tal que me veja obrigado a abandonar por estas tipificações, pelo menos enquanto não se tor-
o padrão por ser inaplicável e considerar o outro amiga- nam problemáticas por alguma interferência da parte
velmente. Em outras palavras, o padrão não pode resistir dele. Assim ele pode dar provas de que, apesar de ser
à maciça demonstração da subjetividade alheia de que um homem", "europeu" e "comprador", é também um
tomo conhecimento na situação face a face. Em contra- farisaico moralista e que aquilo que a principio parecia
posição, é muito mais fácil para mim ignorar essa de- jovialidade é realmente uma expressão de desprezo pelos
monstração desde que não encontre o outro face a face. americanos em geral e pelos vendedores americanos em
Mesmo numa relação de certo modo "próxima", como particular. Neste ponto, evidentemente, meu esquema tipi-
a mantida por correspondência, posso com mais sucesso ficador terá que ser modificado e o programa da noite
48 49
planejado diferentemente ~e acordo .co~ esta. ~~ifi~a­ dualização quando a interação face a face é um assunt<t--
ção. Mas a não ser que haja esta obJeçao, .as ~plflc~çoes do passado (meu amigo Henry, o inglês, que conheci
serão mantidas até nova ordem e determmarao mmhas quando eu era estudante no colégio) ou é de caráter su-
ações na situação. perficial e transitório ( o inglês com quem conversei
Os esquemas tipificadores que entram nas situações pouco tempo num trem), ou nunca teve lugar (meus
face a face são naturalmente recíprocos. O outro também competidores comerciais na Inglaterra).
me apreende de uma maneira tipificada, como "homem", Um importante aspecto da experiência dos outros na
.. americano", "vendedor", um "camarada insinuante", etc. vida cotidiana é pois o caráter direto ou indireto dessa
As tipificações do outro são tão suscetíveis de sofrerem experiência. Em qualquer tempo é possível distinguir
interferências de minha parte como as minhas são da entre companheiros com os quais tive uma atuação co-
parte dele. Em outras palavras, os dois esquemas tipifi- mum em situações face a face e outros que são meros
cadores entram em contínua "negociação" na situação contemporâneos, dos quais tenho lembranças mais ou
face a face. Na vida diária esta "negociação" provavel- menos detalhadas, ou que conheço simplesmente de oitiva.
mente estará predeterminada de uma maneira típica, co- Nas situações face a face tenho a evidência direta de
mo no característico processo de barganha entre com- meu companheiro, de suas ações; atributos, etc. Já o
pradores e vendedores. Assim, na maior parte do tempo, mesmo não acontece no càso de contemporâneos, dos
meus encontros com os outros na vida cotidiana são quais tenho um conhecimento mais ou menos digno de
típicos em duplo sentido, apreendo o outro como um tipo, confiança. Além disso, tenho de levar em conta meus
e interatuo com ele numa situação que é por si mesma semelhantes nas situações face a face, enquanto posso
típica. voltar meus pensamentos para simples contemporâneos,
As tipificações da interação social tornam-se progresi- mas não estou obrigado a isso. O anonimato cresce à
sivamente anônimas à medida que se afastam da si- medida que passo dos primeiros para os últimos, porque
tuação face a face. Toda tipificação naturalmente acarreta o anonimato das tipificações por meio das quais apreendo
uma anonimidade inicial. Se tipificar meu amigo Henry os semelhantes nas situações face a face é constantemente
como membro da categoria X (por exemplo, como inglês), "preenchido" pela multiplicidade de vívidos sintomas re-
interpreto ipso facto pelo menos certos aspectos de sua ferentes a um ser humano concreto.
conduta como resultantes desta tipificação, assim, seus Entretanto, isto não é tudo. Há evidentes diferenças
gostos em matéria de comida são típicos dos ingleses, em minhas experiências dos simples contemporâneos.
bem como suas maneiras, algumas de suas reações emo- Alguns deles são pessoas de quem tenho repetidas ex-
cionais, etc. Isto implica, contudo, que tais características periências em situações face a face e que espero encon-
e ações de meu amigo Henry são atributos de qualquer trar novamente de modo regular (meu amigo Henry);
pessoa da categoria dos ingleses, isto é, apreendo estes outros são pessoas de que me lembro como seres hu-
aspectos de seu ser em termos anônimos. Entr~tanto, lo?o manos concretos que encontrei no passado (a loura ao
assim que meu amigo Henry se torna acesslvel a mim lado de quem passei na rua), mas o encontro foi rápido
na plenitude da expressividade da situação face a face, e, muito provavelmente, não se repetirá. De outros ainda
ele romperá constantemente meu tipo de inglês anônimo sei que são seres humanos concretos, mas só posso
e se manifestará como um indivíduo único e portanto apreendê-los por meio de tipificações cruzadas mais ou
atípico, como seu amigo Henry. O anonimat? do !ip~ .é menos anônimas (meus competidores comerciáis ingleses,
evidentemente menos susceptível a esta espécie de mdlvl- a rainha da Inglaterra). Entre estes últimos é possível
50 51
ainda distinguir entre prováveis conhecidos em situações Um ponto ainda deve ser indicado aqui, embora não
face a face (meus competidores comerciais ingleses) e possamos desenvolvê-lo. Minhas relações com os outros
conhecidos potenciais mas improváveis (a rainha da In- não se limitam aos conhecidos e contemporâneos. Rela-
glaterra). ciono-me também com os predecessores e sucessores,
aqueles outros que me precederam e se seguirão a mim
O grau de anonimato que caracteriza a experiência dos na história geral de minha sociedade. Exceto aqueles
outros na vida cotidiana depende contudo de outro fator que são companheiros passados (meu falecido amigo
também. Vejo o jornaleiro da esquina tão regularmente Henry), relaciono-me com meus predecessores mediante
quanto vejo minha mulher. Mas ele é menos importante tipificações de todo anônimas, "meus antepassados emi-
para mim e não tenho relações íntimas com ele. Pode grantes" e ainda mais os "Pais Fundadores". Meus su-
ser relativamente anônimo para mim. O grau de interesse cessores, por motivos compreensíveis, são tipificados de
e o grau de intimidade podem combinar-se para aumentar maneira ainda mais anônima - os "filhos de meus
ou diminuir o anonimato da experiência. Podem também filhos" ou "as gerações futuras". Estas tipificações são
influenciá-Ia independentemente. Posso ter relações bas- projeções substancialmente vazias, quase completamente
tante íntimas com vários membros de meu clube de tênis destituídas de conteúdo individualizado, ao passo que as
e relações muito formais com meu patrão. Contudo, os tipificações dos predecessores têm ao menos algum con-
primeiros, embora de modo algum inteiramente anôni- teúdo, embora de natureza grandemente mítica. O ano-
mos, podem fundir-se naquele "grupo da quadra" en- nimato de ambos estes conjuntos de tipificações não os
quanto o primeiro destaca-se como indivíduo único. E impede, porém, de entrarem como elementos na realidade
finalmente o anonimato pode tornar-se quase total com da vida cotidiana, às vezes de maneira muito decisiva.
certas tipificações que não pretendem jamais tornarem-se Afinal, posso sacrificar minha vida por lealdade aos Pais
tipificações, tais como o "típico leitor do Times de Lon- Fundadores ou, no mesmo sentido, em favor das gerações
dres". Finalmente, o "raio de ação" da tipificação - futuras.
e com isso seu anonimato - pode ser ainda mais au-
mentado falando-se da "opinião pública inglesa".
3. A LINGUAGEM E O CONHECIMENTO
A realidade social da vida cotidiana é portanto apreen- NA VIDA COTIDIANA
dida num contínuo de tipificações, que se vão tornando
progressivamente anônimas à medida que se distanciam A expressividade humana é capaz de objetivações, isto
do "aqui e agora" da situação face a face. Em um pólo é, manifesta-se em produtos da atividade humana que
do contínuo estão aqueles outros com os quais fre- estão ao dispor tanto dos produtores quanto dos outros
qüente e intensamente entro em ação recíproca em si- homens, como elementos que são de um mundo comum.
tuações face a face, meu "círculo interior", por assim Estas objetivações servem de índices mais ou menos du-
dizer. No outro pólo estão abstrações inteiramente anô- radouros dos processos subjetivos de seus produtores,
nimas, que por sua própria natureza não podem nunca permitindo que se estendam além da situação face a
ser achadas em uma interação face a face. A estrutura face em que podem ser diretamente apreendidas. Por
social é a soma dessas tipificações e dos padrões re- exemplo, uma atitude subjetiva de cólera é diretamente
correntes de interação estabelecidos por meio delas. Assim expressa na situação face a face por um certo número
sendo, a estrutura social é um elemento essencial da de indices corpóreos, fisionomia, postura geral do cor-
realidade da vida cotidiana. po, movimentos específicos dos braços e dos pés, etc.

52
Estes índices estão continuamente ao alcance da vista a face. Qualquer etnólogo ou arqueólogo pode facilmente
na situação face a face, e esta é precisamente a razã() dar testemunho destas dificuldades, mas o próprio fato
pela qual me oferecem a situação ótima para ter acess() de poder superá-Ias e reconstruir, partindo de um arte-
à subjetividade do outro. Os mesmos índices sã() in- fato, as intenções subjetivas de homens cuja sociedade
capazes de sobreviver ao presente nítido da situaçã() pode ter sido extinta a milênios, é uma eloqüente prova
face a face. A cólera, porém, pode ser objetivada por do duradouro poder das objetivações humanas.
meio de uma arma. Suponhamos que tenha tido uma Um caso especial mas decisivamente importante de
alteração com outro homem, que me deu amplas provas objetivação é a significação, isto é, a produção humana
expressivas de raiva contra mim. Esta noite acordo com de sinais. Um sinal pode distinguir-se de outras objeti-
uma faca enterrada na parede em cima de minha cama. vações por sua intenção explícita de servir de índice de
A faca enquanto objeto exprime a ira do meu adversário. significados subjetivos. Sem dúvida, todas as objetiva-
Permite-me ter acesso à subjetividade dele, embora eu ções são susceptíveis de utilização como sinais, mesmo
estivesse dormindo quando ele lançou a faca e nunca () quando não foram primitivamente produzidas com esta
tenha visto porque fugiu depois de quase ter-me atingi- intenção. Por exemplo, uma arma pode ter sido origina-
do. Com efeito, se deixar o objeto onde está posso vê-lo riamente produzida para o fim de caçar animais, mas
de novo na manhã seguinte e novamente exprime para pode em seguida (por exemplo, num uso cerimonial)
mim a cólera do homem que a lançou. Mais ainda, outras tornar-se sinal de agressividade e violência em geral. Mas
pessoas podem vir e olhar a faca, chegand.o à mesma há certas objetivações originárias e expressamente des-
conclusão. Noutras palavras, a faca em mmha parede tinadas a servir como sinais. Por exemplo, em vez de
tornou-se um constituinte objetivamente acessível da rea- lançar a faca contra mim (ato que presumivelmente ti-
lidade que partilho com meu adversá~io e .com out~os nha por intenção matar-me, mas que concebivelmente
homens. Presumivelmente esta faca nao fOI produzIda pode ter tido por intenção apenas significar essa possi-
com o propósito exclusivo de ser lançada em mim. M~s bilidade), meu adversário poderia ter pintado um X negro
exprime uma intenção subjetiva de violência, quer moh- em minha porta, sinal, admitamos, de estarmos agora
vada pela cólera quer por considerações utilitárias, c~mo oficialmente em estado de inimizade. Este sinal, cuja
matar um animal para comê-lo. A faca, enquanto objeto finalidade não vai além de indicar a intenção subjetiva
do mundo real, continua a exprimir uma intenção geral de quem o fez, é também objetivamente exeqüível na
de cometer violência, o que é reconhecível por qualquer realidade comum de que tal pessoa e eu partilhamos jun-
pessoa conhecedora do que é uma arma. Por conseguinte, tamente com outros homens. Reconheço a intenção que
d arma é ao mesmo tempo um produto humano e uma indica, e o mesmo acontece com os outros homens, e
objetivação da subjetivação humana. com efeito é acessível ao seu produtor como "lembrete"
A realidade da vida cotidiana não é cheia unicamente objetivo de sua intenção original ao fazê-lo. Pelo que
de objetivações; é somente possível por causa delas. acabamos de dizer fica claro que há grande imprecisão
Estou constantemente envolvido por objetos que "procla- entre o uso instrumental e o uso significativo de certas
mam" as intenções subjetivas de meus semelhantes, em- objetivações. O caso especial da magia, em que há uma
bora possa às vezes ter dificuldade de saber ao certo fusão muito interessante desses dois usos, não precisa
o que um objeto particular está "proclaman~o", espe~ ser objeto de nosso interesse neste momento.
cialmente se foi produzido por homens que nao conhecI Os sinais agrupam-se em um certo númerd de siste-
bem, ou mesmo não conheci de todo, em situação face mas. Assim, há sistemas de sinais gesticulatórios, de mo-
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vimentos corporais padronizados, de vários conjuntos de cotidiana são mantidas primordialmente pela significação
artefatos materiais, etc. Os sinais e os sistemas de sinais lingüística. A vida cotidiana é sobretudo a vida com a
são objetivações, no sentido de serem objetivamente aces- linguagem, e por meio dela, de que participo com meus
síveis além da expressão de intenções subjetivas "aqui e semelhantes. A compreensão da linguagem é por isso
agora". Esta "capacidade de se destacar" das expressões essencial para minha compreensão da realidade da vida
imediatas da subjetividade também pertence aos sinais cotidiana.
que requerem a presença mediatizante do corpo. Assim, A linguagem tem origem na situação face a face, mas
executar uma dança que significa intenção agressiva é pode ser facilmente destacada desta. Isto não é somente
coisa completamente diferente de dar berros ou cerrar porque posso gritar no escuro ou à distância, falar pelo
os punhos num acesso de cólera. Estes últimos atos ex- telefone ou pelo rádio ou transmitir um significado lin-
primem minha subjetividade "aqui e agora", enquanto güístico por meio da escrita (esta constitui, por assim
os primeiros podem ser inteiramente destacados desta dizer, um sistema de sinais de segundo grau). O desta-
subjetividade, posso não estar de todo zangado ou agres- camento da linguagem consiste muito mais fundamental-
sivo até este ponto mas simplesmente tomando parte na mente em sua capacidade de comunicar significados que
dança porque me pagam para fazer isso por conta de não são expressões diretas da subjetividade "aqui e
uma outra pessoa que está encolerizada. Em outras pa- agora". Participa desta capacidade justamente com ou-
lavras, a dança pode ser destacada da subjetividade do tros sistemas de sinais, mas sua imensa variedade e
dançarino, ao passo que os berros do indivíduo não po- complexidade tornam-no muito mais facilmente destacável
dem. Tanto a dança como o tom desabrido da voz são da situação face a face do que qualquer outro (por
manifestações de expressividade corporal, mas somente exemplo, um sistema de gestos). Posso falar de inume-
a primeira tem caráter de sinal objetivamente acessível. ráveis assuntos que não estão de modo algum presentes
Os sinais e os sistemas de sinais são todos caracterizados na situação face a face, inclusive assuntos dos quais
pelo "desprendimento", mas não podem ser diferenciados nunca tive, nem terei, experiência direta. Deste modo, a
em termos do grau em que se podem desprender das linguagem é capaz de se tornar o repositório objetivo
situações face a face. Assim, uma dança é evidentemente de vastas acumulações de significados e experiências,
menos destacada do que um artefato material que sig- que pode então preservar no tempo e transmitir às gera-
nifique a mesma intenção subjetiva. ções seguintes.
A linguagem, que pode ser aqui definida como sistema Na situação face a face a linguagem possui uma qua-
de sinais vocais, é o mais importante sistema de sinais lidade inerente de reciprocidade que a distingue de qual-
da sociedade humana. Seu fundamento, naturalmente, quer outro sistema de sinais. A contínua produção de
encontra-se na capacidade intrínseca do organismo hu: sinais vocais na conversa pode ser sincronizada de modo
mano de expressividade vocal, mas só podemos começar sensível com as intenções subjetivas em curso dos parti-
a falar de linguagem quando as expressões vocais torna- cipantes da conversa. Falo como penso e o mesmo faz
ram-se capazes de se destacarem dos estados subjetivos meu interlocutor na conversa. Ambos ouvimos o que ca-
imediatos "aqui e agora". Não é ainda linguagem se da qual diz virtualmente no mesmo instante, o que torna
rosno, grunho, uivo ou assobio, embora estas expressões possivel o continuo, sincronizado e reciproco acesso às
vocais sejam capazes de se tornarem lingüisticas, na me- nossas duas subjetividades, uma aproximação intersub-
dida em que se integram em um sistema de sinais ob- jetiva na situação face a face que nenhum flutro sistema
jetivamente praticável. As objetivações comuns da vida de sinais pode reproduzir. Mais ainda, ouço a mim mesmo

56 57
à medida que falo. Meus próprios significad~ subjetiv~s me a entrar em seus padrões. Não posso usar as re-
tornam-se objetiva e continuamente alcançáveis por mim gras da sintaxe alemã quando falo inglês. Não posso
e ipso facto passam a ser "mai~ reais" para mim. Outr~ usar palavras inventadas por meu filho de três anos de
maneira de dizer a mesma cOisa é lembrar o que fOI idade se quiser me comunicar com pessoas de fora da
dito antes sobre meu "melhor conhecimento" do outro, família. Tenho de levar em consideração os padrões do-
em comparação com o conhecimento de mim mesmo na minantes da fala correta nas várias ocasiões, mesmo se
situação face a face. Este fato aparent~~e.nte parad~xal preferisse meus padrões "impróprios" privados. A lin-
foi anteriormente explicado pela acesslblhdade ~aclç_a, guagem me fornece a imediata possibilidade de contínua
contínua e pré-reflexiva do ser do outro na sltuaçao objetivação de minha experiência em desenvolvimento.
face a face, comparada com a exigênc.ia .de reflexão pa~a Em outras palavras, a linguagem é flexivelmenfe expan-
alcançar meu próprio ser. Ora, ao obJehvar meu própno siva, de modo que me permite objetivar um grande nú-
ser por meio da linguagem, meu ~róprio ser torna-se mero de experiências que encontro em meu caminho no
maciça e continuamente acesslvel a mim, ao mesmo tempo curso da vida. A linguagem também tipifica as experiên-
que se torna assim alcançável pelo outro, e posso espon- cias, permitindo-me agrupá-Ias em amplas categorias,
taneamente responder a esse ser sem a "interrupção" da em termos das quais tem sentido não somente para mim
reflexão deliberada. Pode dizer-se por conseguinte que mas também para meus semelhantes. Ao mesmo tempo
a linguagem faz "mais real" minha subj,etividade n~o em que tipifica também torna anônimas as experiências,
somente para meu interlocuto~ mas tambem par~ mim pois as experiências tipificadas podem em princípio ser
mesmo. Esta capacidade da lmguagem de cnstahzar e repetidas por qualquer pessoa incluída na categoria em
estabilizar para mim minha própria subjetividade é con- questão. Por exemplo, tenho um briga com minha sogra.
servada (embora com modificações) quando a Iingu~g~m Esta experiência concreta e subjetivamente única tipifica-
e destaca da situação face a face. Esta caractenshca se Iingüisticamente sob a categoria de "aborrecimento com
~uito importante da linguagem é bem retratada no ditado minha sogra". Nesta tipificação tem sentido para mim,
que diz deverem os homens falarem de si mesmos até se para os outros e presumivelmente para minha sogra. A
conhecerem a si mesmos. mesma tipificação, porém, acarreta o anonimato. Não
A linguagem tem origem e encontra sua referência apenas eu mas qualquer um (mais exatamente, qualquer
primária na vida cotidiana, referindo-se sobretudo à re~­ um na categoria dos genros) pode ter "aborrecimentos
lidade que experimento na co~sciência em .estad? de VI- com a sogra". Desta maneira, minhas experiências bio-
gília, que é dominada por motivos pragmáhcos (IstO é~ o gráficas estão sendo continuamente reunidas em ordens
aglomerado de significados diretamente referentes a açoes gerais de significados, objetiva e subjetivamente reais.
presentes ou futuras> e que partilho co~ outros de uma Devido a esta capacidade de transcender o "aqui e
maneira suposta eVidente. Embora a hnguagem possa agora", a linguagem estabelece pontes entre diferentes
também ser empregada para se referir a outras realida- zonas dentro da realidade da vida cotidiana e as integra
des, o que será discutido a se~uir dentro em br~ve, con- em uma totalidade dotada de sentido. As transcendências
serva mesmo assim seu arralgamento na reahdade do têm dimensões espaciais, temporais e sociais. Por meio
senso comum da vida diária. Sendo um sistema de sinais, da linguagem posso transcender o hiato entre minha
a linguagem tem a qualidade da objetividade. Encontro área de atuação e a do outro, posso sincronizar minha
a linguagem como uma facticidade externa a mim, exer- seqüência biográfica temporal com a dele, e pbsso con-
cendo efeitos coercitivos sobre mim. A linguagem força- versar com ele a respeito de indivíduos e coletividades
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à medida que falo. Meus próprios significad~ subjetiv~s me a entrar em seus padrões. Não posso usar as re-
tornam-se objetiva e continuamente alcançáveis por ffilm gras da sintaxe alemã quando falo inglês. Não posso
e ipso facto passam a ser "mais reais" para mim. Outr~ usar palavras inventadas por meu filho de três anos de
maneira de dizer a mesma coisa é lembrar o que fOI idade se quiser me comunicar com pessoas de fora da
dito antes sobre meu "melhor conhecimento" do outro, família. Tenho de levar em consideração os padrões do-
em comparação com o conhecimento de mim mesmo na minantes da fala correta nas várias ocasiões, mesmo se
situação face a face. Este fato aparent~m.e!1te parado.xal preferisse meus padrões "impróprios" privados. A lin-
foi anteriormente explicado pela acesslblhdade macIça, guagem me fornece a imediata possibilidade de contínua
contínua e pré-reflexiva do ser do outro na situação objetivação de minha experiência em desenvolvimento.
face a face, comparada com a exigência de reflexão para Em outras palavras, a linguagem é flexivelmente expan-
alcançar meu próprio ser. Ora, ao objetivar meu próprio siva, de modo que me permite objetivar um grande nú-
ser por meio da linguagem meu próprio ser torna-se mero de experiências que encontro em meu caminho no
maciça e continuamente acessível a mim, ao mesmo tempo curso da vida. A linguagem também tipifica as experiên-
que se torna assim alcançável pelo outro, e posso espon- cias, permitindo-me agrupá-Ias em amplas categorias,
taneamente responder a esse ser sem a "interru~ção" da em termos das quais tem sentido não somente para mim
reflexão deliberada. Pode dizer-se por consegumte que mas também para meus semelhantes. Ao mesmo tempo
a linguagem faz "mais real" minha subj.etividade n~o em que tipifica também torna anônimas as experiências,
somente para meu interlocutor mas tambem par~ mIm pois as experiências tipificadas podem em principio ser
mesmo. Esta capacidade da linguagem de cnstahzar e repetidas por qualquer pessoa incluída na categoria em
estabilizar para mim minha própria subjetivida~e é con- questão. Por exemplo, tenho um briga com minha sogra.
servada (embora com modificações) quando a hngu~g~m Esta experiência concreta e subjetivamente única tipifica-
se destaca da situação face a face. Esta caractenshca se lingüisticamente sob a categoria de "aborrecimento com
muito importante da linguagem é bem ret~atada no ditado minha sogra". Nesta tipificação tem sentido para mim,
que diz deverem os homens falarem de SI mesmos até se para os outros e presumivelmente para minha sogra. A
conhecerem a si mesmos. mesma tipificação, porém, acarreta o anonimato. Não
A linguagem tem origem e encontra sua referência apenas eu mas qualquer um (mais exatamente, qualquer
primária na vida cotidiana, referindo-se sobretudo à re~­ um na categoria dos genros) pode ter "aborrecimentos
lidade que experimento na consciência em estado de VI- com a sogra". Desta maneira, minhas experiências bio-
gília, que é dominada por motivos pragmáticos (isto é!, o gráficas estão sendo continuamente reunidas em ordens
aglomerado de significados diretamente referentes a açoes gerais de significados, objetiva e subjetivamente reais.
presentes ou futuras) e que partilho com outros de uma Devido a esta capacidade de transcender o "aqui e
maneira suposta evidente. Embora a linguagem possa agora" , a linguagem estabelece pontes entre diferentes
também ser empregada para se referir a outras realida- zonas dentro da realidade da vida cotidiana e as integra
des, o que será discutido a seguir dentro em br~ve, con- em uma totalidade dotada de sentido. As transcendências
serva mesmo assim seu arraigamento na realidade do têm dimensões espaciais, temporais e sociais. Por meio
senso comum da vida diária. Sendo um sistema de sinais, da linguagem posso transcender o hiato entre minha
a linguagem tem a qualidade da objetividade. .Encontro área de atuação e a do outro, posso sincronizar minha
a linguagem como uma facticidade exter?a a mim, exer- seqüência biográfica temporal com a dele, e 'posso con-
cendo efeitos coercitivos sobre mim. A hnguagem força- versar com ele a respeito de indivíduos e coletividades
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com os quais não estamos agora em interação face a e a maneira lingüística pela qual se realiza esta transcen-
face. Como resultado destas transcendências, a lingua- dência pode ser chamada de linguagem simbólica. Ao
gem é capaz de "tornar presente" uma grande variedade nível do simbolismo, por conseguinte, a significação lin-
de objetos que estão espacial, temporal e socialmente güística alcança o máximo desprendimento do "aqui e
ausentes do "aqui e agora". I pso facto uma vasta acu- agora" da vida cotidiana e a linguagem eleva-se a re-
mulação de experiências e significações podem ser ob- giões que são inacessíveis, não somente de facto mas
jetivadas no "aqui e agora". Dito de maneira simples, também a priori, à experiência cotidiana. A linguagem
por meio da linguagem um mundo inteiro pode ser atua- constrói, então, imensos edifícios de representação sim-
lizado em qualquer momento. Este poder que a lingua- bólica que parecem elevar-se sobre a realidade da vida
gem tem de transcender e integrar conserva-se mesmo cotidiana como gigantescas presenças de um outro mundo.
quando não estou realmente conversando com outra pes- A religião, a filosofia, a arte e a ciência são os sistemas
soa. Mediante a objetivação lingüística, mesmo quando de símbolos historicamente mais importantes deste gê-
estou "falando comigo mesmo" no pensamento solitário. nero. A simples menção destes temas já representa dizer
um mundo inteiro pode apresentar-se a mim a qualquer que, apesar do máximo desprendimento da experiência
momento. No que diz respeito às relações sociais a lin- cotidiana que a construção desses sistemas requer, podem
guagem "torna presente" a mim não somente os seme- ter na verdade grande importância para a realidade da
lhantes que estão fisicamente ausentes no momento, mas vida cotidiana. A linguagem é capaz não somente de
indivíduos no passado relembrado ou reconstituído, assim construir símbolos altamente abstraídos da experiência
como outros projetados como figuras imaginárias no fu- diária mas também de "fazer retornar" estes símbolos,
turo. Todas estas "presenças" podem ser altamente do- apresentando-os como elementos objetivamente reais na
tadas de sentido, evidentemente, na contínua realidade vida cotidiana. Desta maneira, o simbolismo e a lingua-
da vida cotidiana. gem simbólica tornam-se componentes essenciais da rea-
Ainda mais, a linguagem é capaz de transcender com- lidade da vida cotidiana e da apreensão pelo senso co-
pletamente a realidade da vida cotidiana. Pode referir-se mum desta realidade. Vivo em um mundo de sinais e
a experiências pertencentes a áreas limitadas de signifi- símbolos todos os dias.
cação e abarcar esferas da realidade separadas. Por A linguagem constrói campos semânticos ou zonas de
exemplo, posso interpretar "o significado" de um sonho significação Iingüisticamente circunscritas. O vocabulário,
integrando-o Iingüisticamente na ordem da vida cotidiana. a gramática e a sintaxe estão engrenadas na organização
Esta integração transpõe a distinta realidade do sonho desses campos semânticos. Assim, a linguagem constrói
para a realidade da vida cotidiana, tornando-a um en- esquemas de classificação para diferenciar os objetos em
clave dentro desta última. O sonho fica agora dotado de "gênero" (coisa muito diferente do sexo, está claro) ou
sentido em termos da realidade da vida cotidiana em vez em número; formas para realizar enunciados da ação
de ser entendido em termos de sua própria realidade por oposição a enunciados do ser; modos de indicar
particular. Os enclaves produzidos por esta transposição graus de intimidade social, etc. Por exemplo, nas línguas
pertencem em certo sentido a ambas as esferas da rea- que distinguem o discurso íntimo do formal por meio de
lidade. Estão "localizados" em uma realidade mas "re- pronomes, (tais como tu e vaus em francês, ou du e Sie
ferem-se" a outra. em alemão) esta distinção marca as coordenadas de um
Qualquer tema significativo que abrange assim esfe- campo semântico que poderia chamar-se zonA de intimi-
ras da realidade pode ser definido como um símbolo dade. Situa-se aqui o mundo do tutoiemenf" ou da Bru-

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derschaft, com uma rica coleção de significados que me diferentes. Como posso ser pobre se uso sapatos e não
são continuamente aproveitáveis para a ordenação de pareço estar passando fome?
minha experiência social. Um campo semântico desta es- Sendo a vida cotidiana dominada por motivos prag-
pécie também existe, está claro, para o falante do inglês, máticos, o conhecimento receitado, isto é, o conhecimento
embora seja mais circunscrito Iingüisticamente. Ou, para limitado à competência pragmática em desempenhos de
dar outro exemplo, a soma das objetivações lingüísticas rotina, ocupa lugar eminente no acervo social do conhe-
referentes à minha ocupação constitui outro campo se- cimento. Por exemplo, uso o telefone todos os dias para
mântico que ordena de maneira significativa todos os meus propósitos pragmáticos específicos. Sei como fazer
acontecimentos de rotina que encontro em meu trabalho isso. Também sei o que fazer se meu telefone não fun-
diário. Nos campos semânticos assim construídos a ex- ciona, mas isto não significa que saiba consertá-lo, e
periência, tanto biográfica quanto histórica, pode ser ob- sim que sei para quem devo apelar pedindo assistência.
jetivada, conservada e acumulada. A acumulação, está Meu conhecimento do telefone inclui também uma infor-
claro, é seletiva, pois os campos semânticos determinam mação mais ampla sobre o sistema de comunicação tele-
aquilo que será retido e o que será "esquecido", como fônica; por exemplo, sei que algumas pessoas têm nú-
partes da experiência total do indivíduo e da sociedade. meros que não constam do catálogo, que em certas cir-
Em virtude desta acumulação constitui-se um acervo so- cunstâncias especiais posso obter uma ligação simultânea
cial de conhecimento que é transmitido de uma geração com duas pessoas na rede interurbana, que devo contar
a outra e utilizável pelo indivíduo na vida cotidiana. com a diferença de tempo se quero falar com alguém
Vivo no mundo do senso comum da vida cotidiana equi- em Hongkong, e assim por diante. Todo este conheci-
pado com corpos específicos de conhecimento. Mais ain- mento telefônico é um conhecimento receitado, uma vez
da, sei que outros partilham, ao menos em parte, deste que não se refere a nada mais senão àquilo que tenho
conhecimento, e eles sabem que eu sei disso. Minha in- de saber para meus propósitos pragmáticos presentes e
teração com os outros na vida cotidiana é por conse- possíveis no futuro. Não me interessa saber por que o
guinte constantemente afetada por nossa participação co- telefone opera dessa maneira, no enorme corpo de co-
mum no acervo social disponível do conhecimento. nhecimento científico e de engenharia que torna possível
a construção dos telefones. Tampouco me interessa os
O acervo social do conhecimento inclui o conhecimento usos do telefone que estão fora de meus propósitos,
de minha situação e de seus limites. Por exemplo, sei por exemplo, a combinação com as ondas curtas do
que sou pobre, que por conseguinte não posso esperar rádio para fins de comunicação marítima. Igualmente,
viver num bairro elegante. Este conhecimento, está claro, tenho um conhecimento de receita do funcionamento das
é partilhado tanto por aqueles que são também pobres relações humanas. Por exemplo, sei o que devo fazer
quanto por aqueles que se acham em situação mais pri- par.a requerer um passaporte. Só me interessa obter o
vilegiada. A participação no acervo social do conheci- passaporte ao final de um certo período de espera. Não
mento permite assim a "localização" dos indivíduos na me interessa nem sei como meu requerimento é pro-
sociedade e o "manejo" deles de maneira apropriada. cessado nas repartições do governo, por quem e depois de
Isto não é possível para quem não participa deste co- que trâmites é dada a aprovação que põe o carimbo no
nhecimento, tal como o estrangeiro, que não pode abso- documento. Não estou fazendo um estudo da burocracia
lutamente me reconhecer como pobre talvez porque os governamental, apenas desejo passar um período de fé-
critérios de pobreza em sua sociedade sejam inteiramente rias no estrangeiro. Meu interesse nos trabalhos ocultos

62 63
do processo de obtenção do passaporte só será desper- mim. como um todo integrado, o capital social do co-
tado se deixar de conseguir meu passaporte no final. nheCImento forne~e-me também os meios de integrar
Nesse ponto, do mesmo modo como chamo a telefonista elementos descontmuos de meu próprio conhecimento.
de auxílio quando meu telefone está com defeito, chamo Em outras palavras, "aquilo que todo mundo sabe" tem
um perito em obtenção de passaportes, digamos um ad- sua própria lógica e a mesma lógica pode ser aplicada
vogado, ou a pessoa que me representa no Congresso, pa.ra ordenar v.árias coisas. qu: eu sei. Por exemplo,
ou a União Americana das Liberdades Civis. Mutatis seI que meu amIgo Henry é mgles e que é sempre muito
mutandis uma grande parte do acervo cultural do co- pontual em chegar aos encontros marcados. Como "todo
nhecimento consiste em receitas para atender a proble- mundo sabe" que a pontualidade é uma característica
mas de rotina. Tipicamente tenho pouco interesse em inglesa, posso agora integrar estes dois elementos de meu
ir além deste conhecimento pragmaticamente necessário, con~ecimento de Henry em uma tipificação dotada de
desde que os problemas possam na verdade ser domina- sentido em termos do cabedal social do conhecimento.
dos por este meio. A validade de meu conhecimento da vida cotidiana é
O cabedal social de conhecimento diferencia a reali- ~uposta certa P?r mim e pelos outros até nova ordem,
dade por graus de familiaridade. Fornece informação I~to é, até surgIr um problema que não pode ser resol-
complexa e detalhada referente àqueles setores da vida vIda. nos termos por ela oferecidos. Enquanto meu co-
diária com que tenho freqüentemente de tratar. Fornece n?eclmento funciona satisfatoriamente em geral estou
uma informação muito mais geral e imprecisa sobre se- dIsposto a s~spender qualquer dúvida a respeito dele.
tores mais remotos. Assim, meu conhecimento de minha Em certas atitudes destacadas da realidade cotidiana _
própria ocupação e seu mundo é muito rico e específico, contar uma piada no teatro ou na igreja ou empenhar-me
enquanto tenho somente um conhecimento muito incom- n~ma especulação filosófica - posso talvez pôr em dú-
pleto dos mundos do trabalho dos outros. O estoque so- VIda alguns elementos dela. Mas estas dúvidas "não são
cial do conhecimento fornece-me além disso os esquemas para ser. levadas a sério". Por exemplo, como homem
tipificadores exigidos para as principais rotinas da vida de negócIOS sei que vale a pena ser indelicado com os
cotidiana, não somente as tipificações dos outros, que outros. Posso rir de uma pilhéria na qual esta máxima
foram anteriormente discutidas, mas "também tipificações leva à falência, posso ser movido por um ator ou um
de todas as espécies de acontecimentos e experiências, pregador exaltando as virtudes da consideração, e posso
reconhecer, em um estado de espírito filosófico, que to-
tanto sociais quanto naturais. Assim, vivo em um mundo
das as relações sociais deveriam ser governadas pela
de parentes, colegas de trabalho e funcionários públicos
identificáveis. Neste mundo, por conseguinte, experimento Regra de Ouro. Tendo rido, tendo sido movido e filo-
sofado, retorno ao mundo "sério" dos negócios, reco-
reuniões familiares, encontros profissionais e relações
nheço uma vez mais a lógica das máximas que lhe dizem
com a polícia de trânsito. O "pano de fundo" natural
re~peito e. ~tuo de acordo com elas. Somente quando
desses acontecimentos é também tipificado no acervo de
mmhas maxlmas falham em "cumprir o prometido" no
conhecimentos. Meu mundo é estruturado em termos de mundo em que são destinadas a serem aplicadas, podem
rotina que se aplicam no bom ou no mau tempo, na provavelmente tornarem-se problemáticas para mim "a
estação da febre do feno e em situações nas quais um sério".
cisco entra debaixo de minha pálpebra. "Sei que fazer"
com relação a todos estes outros e a todos esses aconte- Embora o estoque social do conhecimento represente
cimentos de minha vida cotidiana. Apresentando.,.se a o mundo cotidiano de maneira integrada, diferenciado

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de acordo com zonas de familiaridade e afastamento, ações, ou de que os católicos estão modernizando sua
deixa opaca a totalidade desse mundo. Noutras pala- doutrina se sou ateu, ou que é possível agora voar sem
vras, a realidade da vida cotidiana sempre aparece como escalas até a África se não desejo ir lá. Contudo, minhas
uma zona clara atrás da qual há um fundo de obscu- estruturas de conveniências cruzam as estruturas de con-
ridade. Assim como certas zonas da realidade são ilumi- veniências dos outros em muitos pontos, dando em re-
nadas outras permanecem na sombra. Não posso conhe- sultado termos coisas "interessantes" a dizermos uns aos
cer tudo que há para conhecer a respeito desta reali- outros. Um elemento importante de meu conhecimento da
dade. Mesmo se, por exemplo, sou aparentemente um vida cotidiana é o conhecimento das estruturas que têm
déspota onipotente em minha família, e sei disso, não importância para os outros. Assim, "sei o que tenho de
posso conhecer todos os fatores que entram no contínuo melhor a fazer" do que falar ao meu médico sobre meus
sucesso de meu despotismo. Sei que minhas ordens são problemas de investimentos, ao meu advogado sobre mi-
sempre obedecidas, mas não posso ter certeza de todas nhas dores causadas por uma úlcera, ou ao meu conta-
as fases e de todos os motivos situados entre a expedi- bilista a respeito de minha procura da verdade religiosa.
ção e a execução de minhas ordens. Há sempre coisas As estruturas que têm importância básica referentes à
que se passam "por trás de mim". Isto é verdade a vida cotidiana são apresentadas a mim já prontas pelo
forliori quando se trata de relações sociais mais com- estoque social do próprio conhecimento. Sei que a "con-
plexas que as da família, e explica, diga-se de passa- versa das mulheres" não tem importância para mim como
gem, por que os déspotas são endemicamente nervosos. homem, que a "especulação ociosa" é irrelevante para
Meu conhecimento da vida cotidiana tem a qualidade mim como homem de ação, etc. Finalmente, o acervo
de um instrumento que abre caminho através de uma social do conhecimento em totalidade tem sua própria
floresta e enquanto faz isso projeta um estreito cone estrutura de importância. Assim, em termos do estoque
de luz sobre aquilo que está situado logo adiante e de conhecimento objetivado na sociedade americana não
imediatamente ao redor, enquanto em todos os lados do tem importância estudar o movimento das estrelas para
caminho continua a haver escuridão. Esta imagem é predizer o movimento da bolsa de valores, mas tem im-
ainda mais adequada, evidentemente, às múltiplas reali- portância estudar os "Iapsus Iinguae" de um individuo
dades nas quais a vida cotidiana é continuamente trans- para descobrir coisa sobre sua vida sexual, e assim por
cendida. Esta última afirmação pode ser parafraseada, diante. Inversamente, em outras sociedades a astrologia
poeticamente mesmo quando não exaustivamente, dizen- pode ter considerável importância para a economia, en-
do que a realidade da vida, cotidiana é toldada pela quanto a análise da linguagem é de todo sem significação
penumbra de nossos sonhos. para a curiosidade erótica, etc.
Meu conhecimento da vida cotidiana estrutura-se em Seria conveniente assinalar aqui uma questão final a
termos de conveniências. Meus interesses pragmáticos respeito da distribuição social do conhecimento. Encontro
imediatos determinam algumas destas, enquanto outras o conhecimento na vida cotidiana socialmente distribuido,
são determinadas por minha situação geral na sociedade. isto é, possuído diferentemente por diversos indivíduos
E' coisa que não tem importância para mim saber como e tipos de indivíduos. Não partilho meu conhecimento
minha mulher se arranja para cozinhar meu ensopado igualmente com todos os meus semelhantes e pode haver
preferido, enquanto este for feito da maneira que me algum conhecimento que não partilho com ninguém.
agrada. Não tem importância para mim o fato das ações Compartilho minha capacidade profissional ~om os co-
de uma companhia estarem caindo se não possuo tais legas, mas não com minha família, e não posso partilhar

66 67
com flinguém meu conhecimento do modo de tra
A d' t 'b . - . pacear
no jogo. IS n ~Içao social do conhecimento de ce t
elemeflto~mdf realIdade cotidiana pode tornar-se a~t~~
mente c p exa.. e mesmo confusa para os estranhos
Não somente nao possuo o conhecimento supostament~
exigidO para ~e curar de uma enfermidade física mas
posso mesmo na~ ter o conhecimento de qual seja dentre
a estOJ1tean~e vanedad~ ~e especialidades médicas: aquela II
que pfeten e ter_o direito sobre o que me deve curar
Em taiS casos nao apenas peço o conselho de especia~
listas J11as o ~on~el~o anterior de especialistas em espe- A Sociedade como Realidade
cialistas. A dls~nbUlção social do conhecimento começa Objetiva
assim com o simples fato de não conhecer tudo que é
conhecido por meus ~e!Delhantes, e vice-versa, e culmina
em sist~mas de pencl.a extraordinariamente complexos 1. INSTlTUCIONALIZAÇAO
e esotéflCos. O con~eclmento do modo como o est u
disponíVel do CO?heClment? é distribuído, pelo menos~~ a) Organismo e atividade
suas linhas gerais, é u?I Importante elemento deste pró-
prio estOque ~e conheCimento. Na vida cotidiana sei ao O HOMEM OCUPA UMA POSiÇÃO PECULIAR NO REINO
menos grosseiramente, o que posso esconder de ~ada animal. 1 Ao contrário dos outros mamíferos superiores
pessoa, a 'Iquem pos~o recorrer para pedir informações não possui um ambiente J específico da espécie, um am-
sobre aqUi o q~e nao conheço e geralmente quais os biente firmemente estruturado por sua própria organiza-
tipos de conhe.cm~e~to que se supõe serem possuídos por ção instintiva. Não existe um mundo do homem no sen-
determinados mdlVlduos. tido em que se pode falar de um mundo do cachorro
ou de um mundo do cavalo. Apesar de uma área de
aprendizagem e acumulação individuais, o cachorro ou o
cavalo individuais têm uma relação em grande parte
fixa com seu ambiente, do qual participa com todos os
outros membros da respectiva espécie. Uma conseqüên-
cia óbvia deste fato é que os cachorros e os cavalos, em
comparação com o homem, são muito mais restritos a
uma distribuição geográfica específica. A especificidade
1 Sobre o recente trabalho bIológIco concernente à posIção peculiar do
homem no reIno anImaI, cf. Jakob von Uexküll, BedeutungsJehre (Ham-
burgo, Rowohlt, 1958); F. J. J. Buytendijk, Mensch und Tier (Hamburgo,
Rowohlt, 1958); Adolf Portmann, Zo%gie und das neue Bild vom Menschen
(Hamburgo, Rowohlt, 1956). As maIs importantes avaliações destas pers-
pectivas biológIcas segundo uma antropologia filosófica são as de Helmuth
Plessner. (Dle Stufen des Organischen und der Mensch, 1928 e 1965) e
Arnold Oehlen, (Der Mensch, seine Natur und seine Stellung In der' Welt,
1940 e 1950). Foi Oehlen que levou adiante estas perspectivas em termos
de uma teoria sociológica das instituições (especialmente em seu Urmensch
und Spatkultur 1956). Para uma introdução a este último, cf. Peter L.
Berger e Hans(ried Kellner. "Arnold Gehlen and the Theory'of Instltutions",
Social Research 32: I, 110ss (1965). .
• O termo "ambiente especifico da espécie" foi tirado de VOD UexkOIl.
68
69
do ambiente desses animais, porém, é muito mais do vel dizer que o período fetal no ser humano estende-se
que uma delimitação geográfica. Refere-se ao caráter bio- por todo o primeiro ano após o nascimento.' Impor-
logicamente fixo de sua relação com o ambiente, mesmo tantes desenvolvimentos orgânicos que no animal se
se for introduzida uma variação geográfica. Neste sen- completam no corpo da mãe efetuam-se no lactente hu-
tido, todos os animais não humanos, enquanto espécies mano depois que se separa do útero. Nessa ocasião,
e enquanto indivíduos, vivem em mundos fechados, cujas porém, a criança humana não somente está no mundo
estruturas são predeterminadas pelo equipamento bioló- exterior mas se inter-relaciona com este por muitos mo-
gico das diversas espécies animais. dos complexos.
Em contraste, a relação do homem com seu ambiente O organismo humano, por conseguinte, está ainda de-
caracteriza-se pela abertura para o mundo.' O homem senvolvendo-se biologicamente quando já se acha em re-
não s~~ente conseguiu estabelecer-se na maior parte da lação com seu ambiente. Em outras palavras, o processo
superflcle da Terra, mas sua relação com o ambiente de tornar-se homem efetua-se na correlação com o
circunstante é em toda a parte muito imperfeitamente ambiente. Esta afirmativa adquire significação se refle-
~st!uturada po~ .sua própria constituição biológica. Esta tirmos no fato de que este ambiente é ao mesmo tempo
ultIm~, sem dU~I~a, permite que o homem se empenhe um ambiente natural e humano. Isto é, o ser humano em
em diferentes atIvidades. Mas o fato de continuar a viver desenvolvimento não somente se correlaciona com um
um~ existência nômade em um lugar e voltar-se para a ambiente natural particular, mas também com uma ordem
agrIcultura em outro lugar não pode ser explicado em cultural e social especifica, que é mediatizada para ele
termos de processos biológicos. Isto não significa, está pelos outros significativos que o têm a seu cargo.· Não
claro, que não haja limitações biologicamente determina- apenas a sobrevivência da criança humana depende de
das para as relações do homem com seu ambiente. Seu certos dispositivos sociais mas a direção de seu desen~
equipamento sensorial e motor específico da espécie im- volvimento orgânico é socialmente determinada. Desde o
põe limitações evidentes à sua gama de possibilidades. momento do nascimento, o desenvolvimento orgânico do
A peculiaridade da constituição biológica do homem re- homem, e na verdade uma grande parte de seu ser bio-
pousa antes em sua componente instintiva. lógico enquanto tal, está submetido a uma contínua in-
A organização instintiva do homem pode ser descrita terferência socialmente determinada.
como subdesenvolvida, comparada com a de outros ma- Apesar dos evidentes limites fisiológicos estabelecidos
míferos superiores. O homem, está claro, tem impulsos, para a gama de possíveis e diferentes maneiras de tor-
mas estes são consideravelmente desprovidos de especia- nar-se homem nesta dupla correlação com o ambiente, o
lização e direção. Isto significa que o organismo humano organismo humano manifesta uma imensa plasticidade
é. c~t:az de aplicar o equipamento que possui por cons- em suas respostas às forças ambientais que atuam sobre
htUlçao a uma ampla escala de atividades e, além disso, ele. Isto é particularmente claro quando se observa a
constantemente variável e em variação. Esta peculiari- flexibilidade da constituição biológica do homem ao ser
dade do organismo humano funda-se em seu desenvolvi-
mento ontogenético.· Com efeito, se examinarmos a • A sugestão de que o período fetal no homem se estende durante o
r.rimeiro ano de vida foi feita por Portmann, que chamou este ano o
questão em termos de desenvolvimento orgânico é possí- 'extra-uterine Fríihjahr".
• O termo "outros significativos" foi tornado de Mead. Sobre a teoria
da ontogênese do eu, enunciada por Mead, cf. a obra do autor Mind, SeI'
and Society (Chicago, University of Chicago Press, 1934). Um compêndio
• As Implicações antropológicas do termo "abertura para o mundo" foram útil sobre os trabalhos de Mead é o de Anselm Strauss (ed.), George
desenvolvidas por Plessner e Oehlen.
Herbert Mead on Social Psychology (Chicago, University oi Chicago Press,
• A peculiaridade do organismo humano corno sendo ontogenetlcamente 1964). Para um sugestivo debate secundário, cf. Maurice Natanson, The
fundada foi mostrada particularmente nas Investigações de Portmann. Social Dynamics of George H. Mead (Washington, Public Affalrs Press, 1956).

70 71
submetida a uma multiplicidade de determinações sócio- divíduo pode estimular sua própria imaginação sexual atê
culturais. E' um lugar comum etnológico dizer que as o ponto da sensualidade febril, mas é improvável que
maneiras de tornar-se e ser humano são tão numerosas possa evocar alguma imagem que não corresponda àquilo
quanto as culturas humanas. A humanização é variável que em outra cultura é uma norma estabelecida ou pelo
em sentido sócio-cultural. Em outras palavras, não existe menos uma ocorrência calmamente aceita. Se o termo "nor-
natureza humana no sentido de um substrato biologica- malidade" tem de referir-se ou ao que é antropologica-
mente fixo, que determine a variabilidade das formações mente fundamental ou ao que é culturalmente universal
. sócio-culturais. Há somente a natureza humana, no sen- então nem esse termo nem o antônimo dele pode ser
tido de constantes antropológicas (por exemplo, abertura aplicado com sentido às formas variáveis da sexualidade
para o mundo e plasticidade da estrutura dos instintos) humana. Ao mesmo tempo, é claro, a sexualidade hu-
que delimita e permite as formações sócio-culturais do mana é dirigida, às vezes de maneira rigidamente estru-
homem. Mas a forma específica em que esta humaniza- turada, em cada cultura particular. Toda cultura tem
ção se molda é determinada por essas formações sócio- uma configuração sexual distintiva, com seus próprios
culturais, sendo relativa às suas numerosas variações. padrões especializados de conduta sexual e seus pressu-
Embora seja possível dizer que o homem tem uma na- postos "antropológicos" na área sexual. A relatividade
tureza, é mais significativo dizer que o homem constrói empírica dessas configurações, sua imensa variedade e
sua própria natureza, ou, mais simplesmente, que o ho- exuberante inventividade indicam que são produtos das
mem se produz a si mesmo.' formações sócio-culturais próprias do homem e não de
A plasticidade do organismo humano e sua suscepti- uma natureza humana biologicamente fixa.'
bilidade às influências socialmente determinadas são me- O período durante o qual o organismo humano se de-
lhor ilustradas pela documentação etnológica referente à senvolve até completar-se na correlação com o ambiente
sexualidade.· Embora o homem possua impulsos sexuais é também o período durante o qual o eu humano se
comparáveis aos de outros mamíferos superiores, a se- forma. Por conseguinte, a formação do eu deve também
xualidade humana caracteriza-se por um grau muito alto ser compreendida em relação com o contínuo desenvol-
de flexibilidade. Não só é relativamente independente dos vimento orgânico e com o processo social, no qual o am-
ritmos temporais, mas é flexível tanto no que diz respeito biente natural e o ambiente humano são mediatizados
aos objetos a que se dirige quanto em suas modalidades pelos outros significativos. 10 Os perssupostos genéticos
de expressão. As provas etnológicas mostram que em do eu são, está claro, dados no nascimento. Mas o eu
questões sexuais o homem é capaz de quase tudo. O in- tal como é experimentado mais tarde como uma iden-
tidade subjetiva e objetivamente reconhecível, 'não é. Os
• Há uma dicotomia fundamental entre a concepção do homem como um
ser que se produz a si mesmo e a concepção da "natureza humana". Isto mesmos processos sociais que determinam a constituição
constitui uma decisiva diferença antropológica entre Marx e qualquer pers-
pectiva adequadamente sociológica, de um lado (especialmente a que é do organismo produzem o eu em sua forma particular,
fundada na psicologia social de Mead), e, de outro lado, Freud e a maioria culturalmente relativa. O caráter do eu como produto so-
das perspectivas psicológicas não-freudianas. O esclarecimento desta dife-
rença é muito importante se quisermos que haja um debate significativo cial não se limita à configuração particular que o indi-
entre os campos da sociologia e da psicologia hoje em dia. Na própria
teoria sociológica é posslvel distinguir várias posições conforme se aproximem víduo identifica como sendo ele mesmo (por exemplo,
mais do pÓlo "sociológico" ou do pólo "psIcológicO". Vilfredo Pareto pro-
vavelmente representa a mais requintada abordagem do pólo "psicológico" como "um homem", de maneira particular em que esta
na própria sociologia. Diga-se de passagem que a aceitação ou a reieição
do pressuposto da "natureza humana" também tem interessantes Implica-
ções no que respeita às ideologias politicas, mas esta questão não pode ser • A concepção aqui apresentada sobre a plasticidade slixual do homem
tratada aqui. tem afinidade com a concepção de Freud sobre O caráter primitivamente
• As obras de Bronislaw Malinowski, Ruth Benedict, Margaret Mead, Clyde informe da libido. .
Kluckhohn e George Murdock podem ser citadas a este respeito. 10 Este ponto é explicado na teoria de Mead sobre a gênese social do eu.

72 73
identidade é definida e formada na cultura em questão), produção do homem é sempre e necessariamente um
mas com o equipamento psicológico amplo que serve de empreendimento social. Os homens em conjunto produ-
complemento a essa particular configuração (por exem- zem um ambiente humano, com a totalidade de suas for-
plo, emoções "viris", atitudes e mesmo reações somá- mações sócio-culturais e psicológicas. Nenhuma dessas
ticas). Não é preciso dizer, portanto, que o organismo e, formações pode ser entendida como produto da consti-
ainda mais, o eu não podem ser devidamente compreen- tuição biológica do homem, a qual, conforme indicamos,
didos fora do particular contexto social em que foram fornece somente os limites externos da atividade produ-
formados. tiva humana. Assim como é impossível que o homem se
O desenvolvimento comum do organismo humano e do desenvolva como homem no isolamento, igualmente é im-
eu humano em um ambiente socialmente determinado possível que o homem isolado produza um ambiente hu-
refere-se à relação particularmente humana entre orga- mano. O ser humano solitário é um ser no nível animal
nismo e eu. Esta relação é de caráter fora do comum. 11 (que, está claro, o homem partilha com outros animais).
Por um lado, o homem é um corpo, no mesmo sentido Logo que observamos fenômenos especificamente huma-
em que isto pode ser dito de qualquer outro organismo nos entramos no reino do social. A humanidade específica
animal. Por outro lado, o homem tem um corpo. Isto é, do homem e sua socialidade estão inextrincavelmente
o homem experimenta-se a si próprio como uma en- entrelaçadas. O Ijomo sapiens é sempre, e na mesma
tidade que não é idêntica a seu corpo, mas que, pelo medida, hOmo socius."
contrário, tem esse corpo ao seu dispor. Em outras pa- O organismo humano não possui os meios biológicos
lavras, a experiência que o homem tem de si mesmo necessários para dar estabilidade à conduta humana. A
oscila sempre num equilíbrio entre ser um corpo e ter existência humana, se retornasse a seus recursos orgâ-
um corpo, equilíbrio que tem de ser corrigido de vez nicos exclusivamente, seria a existência numa espécie de
em quando. Esta originalidade da experiência que o caos. Este caso, contudo, é empiricamente inexeqüível l
homem tem de seu próprio corpo leva a certas conse- embora se possa concebê-lo teoricamente. Empiricamente
qüências no que se refere à análise da atividade humana a existência humana decorre em um contexto de ordem,
como conduta no ambiente material e como exterioriza- direção e estabilidade. Surge, então, a seguinte questão:
ção de significados subjetivos. A compreensão adequada de que deriva a estabilidade da ordem humana empiri-
de qualquer fenômeno humano terá de levar em consi- camente existente? A resposta pode ser dada em dois
deração estes dois aspectos, por motivos fundados em níveis. E' possível indicar primeiramente o fato evidente
fatos antropológicos essenciais. de que uma dada ordem social precede qualquer desen-
E' preciso deixar claro, tendo-se em vista o que já volvimento individual orgânico. Isto é, a ordem social
foi dito, que a afirmação segundo a qual o homem se apropria-se previamente sempre da abertura para o mun-
produz a si mesmo de modo algum implica uma espécie do, embora esta seja intrínseca à constituição biológica
de visão prometeica do indivíduo solitário. 12 A auto- do homem. E' possível dizer que a abertura para o mun-
do, biologicamente intrínseca, da existência humana é
11 o termo "excentricidade" foi tomado de Plessner. E' posslvel encontrar sempre, e na verdade deve ser, transformada pela or-
perspectivas semelhantes na última obra de 8cheler sobre antropologia fi-
lnsófica. Cf. Max 8cheler, D/e Ste/lung des Mensr.hen im Kosmos (Mu-
nique, Nymphenburger Verlagshandlung, 1947).
12 O caráter social da autoprodução do homem foi formulado de maneira cisiva. O particular interesse de 8artre nas "mediações" entre os processoll
mais nltida por Marx na critica a Stirner na A Ideologia AlemO. A macroscópicos sócio-históricos e a biografia individual seria grandemente
evolução de Jean-Paul Sartre de seu primitivo existencialismo à sua poste- beneficiado, ainda uma vez, pela consideração da psicologia sacial de Mead.
l i A inextrlcável conexão entre a humanidade do homem é sua socialidade
rior modificação marxista, isto é, do L' étre et le néant a Critique de la
Ta/son d/a/ectique, é o mais impressionante exemplo na antropologia filosó- foi formulada de maneira mais nltida por Durkheim, especialmente na
fica contemporânea da realização desta compreensão sociologicamente de- parte final das Formes é/émentaires de la vie religieuse.

74 75
dem social em um relativo fechamento ao mundo. Em- chada de interioridade quiescente. O ser humano tem de
bora este enclausuramento nunca possa aproximar-se do estar continuamente se exteriorizando na atividade. Esta
fechamento da existência animal, quando mais não seja necessidade antropológica funda-se no equipamento bio-
por causa de seu caráter humanamente produzido e por lógico do homem. 10 A inerente instabilidade do organismo
conseguinte "artificial", é capaz, contudo, na maioria das humano obriga o homem a fornecer a si mesmo um am-
vezes, de assegurar a direção e a estabilidade para a biente estável para sua conduta. O próprio homem tem de
maior parte da conduta humana. A questão pode, então, especializar e dirigir seus impulsos. Estes fatos biológicos
ser transferida para outro nível. E' possível perguntar servem de premissas necessárias para a produção da or-
de que maneira surge a própria ordem social. dem social. Em outras palavras, embora nenhuma ordem
A resposta mais geral a esta pergunta é a que indica social existente possa ser derivada de dados biológicos,
ser a ordem social um produto humano, ou, mais pre- a necessidade da ordem social enquanto tal provém do
cisamente, uma progressiva produção humana. E' produ- equipamento biológico do homem.
zida pelo homem no curso de sua contínua exteriorização. A fim de entender as causas, além das que são esta-
A ordem social não é dada biologicamente nem derivada belecidas pelas constantes biológicas, que conduzem à
de quaisquer elementos biológicos em suas manifestações emergência, manutenção e transmissão de uma ordem so-
empíricas. Não é preciso acrescentar que a ordem social cial é preciso empreender uma análise que resulta em
também não é dada no ambiente natural do homem, em- uma teoria da institucionalização.
bora certos aspectos particulares deste ambiente possam
ser fatores que determinem aspectos de uma ordem so-
cial (por exemplo, sua estrutura econômica ou tecnoló- b) As origens da institucionalização
gica). A ordem social não faz parte da "natureza das
coisas" e não pode ser derivada das "leis da natureza"." Toda atividade humana está sujeita ao hábito. Qualquer
A ordem social existe unicamente como produto da ativi- ação freqüentemente repetida torna-se moldada em um
dade humana. Não é possível atribuir-lhe qualquer outro padrão, que pode em seguida ser reproduzido com eco-
status ontológico sem ofuscar irremissivelmente suas ma- nomia de esforço e que, ipso facto, é apreendido pelo
nifestações empíricas. Tanto em sua gênese (ordem so- executante como tal padrão. O hábito implica além disso
cial resultante da atividade humana passada) quanto em que a ação em questão pode ser novamente executada
sua existência em qualquer instante do tempo (a ordem no futuro da mesma maneira e com o mesmo esforço
social só existe na medida em que a atividade humana econômico. Isto é verdade na atividade não social assim
continua a produzi-la) ela é um produto humano. como na atividade social. Mesmo o indivíduo solitário
Embora os produtos sociais da exteriorização humana na proverbial ilha deserta torna habitual sua atividade.
tenham um caráter sui generis, por oposição a seu con- Quando acorda de manhã e retoma suas tentativas de
texto orgânico e ambiental, é importante acentuar que a construir uma canoa com paus ajustados, pode murmurar
-exteriorização enquanto tal é uma necessidade antropo- consigo mesmo "lá vou eu de novo", ao começar mais
lógica. U O ser humano é impossível em uma esfera fe- uma etapa de um procedimento operatório que consiste,
digamos, em dez etapas. Em outras palavras, mesmo o
.. Ao Insistir na afirmação de Que a ordem social não se baseia em
Quaisquer "leis da natureza" não estamos ipso facto tomando posição Quanto
a uma concepção metafislca' da "lei natural". Nosso enunciado limita-se aos A necessidade antropológica da exteriorização 101 desenvolv\da tanto por
fatos da natureza emplricamente acessiveis . Hegel Quanto por Marx.
.. Foi Durkheim Quem Insistiu mais 10rte'!1ente sobre o caráter sUJ generis 10 O fundamento biológico da exteriorização e de sua relação com a
da ordem social, especialmente em suas Regles de la méthode soc/Ologique. emergência das Instituições 101 desenvolvido por Gehlen.

76 77
homem solitário tem no mínimo a companhia de seus interação social. O fato de mesmo esse indivíduo solitário,
procedimentos operatórios. admitindo que tenha sido formado como um ego (como
As ações tornadas habituais, está claro, conservam teríamos de admitir no caso de nosso construtor de uma
seu caráter plenamente significativo para o indivíduo, em- canoa de paus encaixados), terá de tornar habitual sua
bora o significado em questão se torne incluído como atividade de acordo com a experiência biográfica de um
rotina em seu acervo geral de conhecimentos, admitido mundo de instituições sociais que precede seu estado de
como certos por ele e sempre à mão para os projetos solidão, não nos interessa no momento. Empiricamente,
futuros. n A formação do hábito acarreta o importante a parte mais importante da formação do hábito da ativi-
ganho psicológico de fazer estreitarem-se as opções. dade humana é coextensiva com a institucionalização
Embora em teoria haja uma centena de maneiras de desta última. A questão passa a ser então saber como
realizar o projeto de construir uma canoa de paus ajus- se originam as instituições.
tados, o hábito r~duz estas maneiras a uma única. Isto A institucionalização ocorre sempre que há uma tipi-
liberta o indivíduo da carga de "todas estas decisões", ficação recíproca de ações habituais por tipos de atores.
dando-lhe um alívio psicológico que tem por base a es- Dito de maneira diferente, qualquer uma dessas tipifica-
trutura instintiva não dirigida do homem. O hábito for- ções é uma instituição. 11 O que deve ser acentuado é a
nece a direção e a especialização da atividade que faltam reciprocidade das tipificações institucionais e o caráter
no equipamento biológico do homem, aliviando assim o típico não somente das ações mas também dos atores nas
acúmulo de tensões resultantes dos impulsos não dirigi- instituições. As tipificações das ações habituais que cons-
dos. l i E oferecendo um fundamento estável no qual a tituem as instituições são sempre partilhadas. São acessí-
atividade humana pode prosseguir com o mínimo de to- veis a todos os membros do grupo social particular em
mada de decisões durante a maior parte do tempo, li- questão, e a própria instituição tipifica os atores indivi-
berta energia para decisões que podem ser necessárias duais assim como as ações individuais. A instituição
em certas ocasiões. Em outras palavras, o fundamento pressupõe que ações do tipo X serão executadas por
da atividade tornada habitual abre o primeiro plano para atores do tipo X. Por exemplo, a instituição da lei pos-
a deliberação e a inovação. l i tula que as cabeças serão decepadas de maneiras es-
No que se refere aos significados atribuídos pelo ho- pecíficas em circunstâncias específicas, e que tipos de-
mem à sua atividade, o hábito torna desnecessário que terminados de indivíduos terão de fazer a decapitação
cada situação seja definida de novo, etapa por etapa." (carrascos, ou membros de uma casta impura, ou vir-
Uma grande multiplicidade de situações podem reunir-se gens de menos de certa idade ou aqueles que foram de-
sob suas pré-definições. A atividade a ser empreendida signados por um oráculo).
nessas situações pode então ser antecipada. E' possível As instituições implicam, além disso, a historicidade e
mesmo atribuir pesos padrões às alternativas da conduta. o controle. As tipificações recíprocas das ações são cons-
Estes processos de formação de hábitos precedem to- truídas no curso de uma história compartilhada. Não po-
da institucionalização, na verdade podem ser aplicados a dem ser criadas instantaneamente. As instituições têm
um hipotético indivíduo solitário, destacado de qualquer sempre uma história, da qual são produtos. E' impossível
17 o termo "estoque de conhecimento" foi tirado de Schutz. 11 Temos consciência de que este conceito de Instituição é mais amplo
'" Gehlen refere-se a este ponto em seus conceitos de TrlebUberschuss e do que o prevalecente na sociologia contemporânea. Achamos que este
Entlastung. conceito mais vasto é útil para uma análise global dos processos sociàis
!li Gehlen refere-se a este ponto em seu conceito de HintergrundserfU/lung. básicos. Sobre controle social, cf. Friedrich Tenbruck, "Soziale Kontrolle",
.. O conceito da definição da situação foi formado por W. I. Thomas e Staalslexikon der Goerres-Gesellschafl (1962) e Heinrieh 'Popitz, "Soziale
desenvolvido ao longo de todo o seu trabalho sociológico. Normen", European Toumal of Sociology.

78 79
compreender adequadamente uma instituição sem enten- Na experiência real as instituições geralmente se ma-
der o processo histórico em que foi produzida. As ins- nifestam em coletividades que contêm um número consi-
tituições, também, pelo simples fato de existirem, contro- derável de pessoas. E' portanto teoricamente significativo
lam a conduta humana estabelecendo padrões previamente acentuar que o processo de institucionalização da tipifi-
definidos de conduta, que a canalizam em uma direção cação recíproca ocorreria mesmo se dois indivíduos co-
por oposição às muitas outras direções que seriam teo- meçassem a atuar um sobre o outro de novo. A institu-
ricamente possíveis. E' importante acentuar que este ca- cionalização é incipiente em toda situação social que pros-
ráter controlador é inerente à institucionalização enquanto segue no tempo. Suponhamos que duas pessoas prove-
tal, anterior a quaisquer mecanismos de sanções especi- nientes de mundos sociais inteiramente diferentes come-
ficamente estabelecidos para apoiar uma instituição ou cem a atuar uma sobre a outra. Ao dizer "pessoas",
independentes desses mecanismos. Tais mecanismos (cuja supomos que os dois indivíduos tenham personalidades
soma constitui o que geralmente se chama sistema de. formadas, coisa que evidentemente só poderia ter acon-
controle social) existem evidentemente em muitas insti- tecido em um processo social. Por conseguinte, excluímos
tuições e em todas as aglomerações de instituições que momentaneamente os casos de Adão e Eva, ou das duas
chamamos sociedades. Sua eficiência controladora, po- crianças "selvagens" encontradas numa clareira de uma
rém, é de tipo secundário ou suplementar. Conforme ve- floresta primitiva. Mas estamos admitindo que os dois
remos de novo mais tarde, o controle social primário é indivíduos chegam ao local do encontro provindos de
dado pela existência de uma instituição enquanto tal. mundos sociais que foram historicamente produzidos se-
Dizer que um segmento da atividade humana foi institu- paradamente um do outro e que por conseguinte a inte-
cionalizado já é dizer que este segmento da atividade ração realiza-se numa situação que não foi institucional-
humana foi submetido ao controle social. Novos mecanis- mente definida por nenhum dos dois participantes. E'
mos de controle só são exigidos se os processos de ins- possível imaginar um Sexta-feira encontrando nosso cons-
titucionalização não forem completamente bem sucedidos. trutor da canoa em sua ilha deserta e imaginar o pri-
Assim, por exemplo, a lei pode determinar que todo meiro como sendo um papua e o segundo um americano.
aquele que violar o tabu do incesto terá a cabeça dece- Neste caso então é provável que o americano tenha lido
pada. Esta cláusula pode ser necessária porque houve ou pelo menos ouvido falar da história de Robinson
casos em que indivíduos ofenderam o tabu. E' imprová- Crusoé, o que introduzirá uma certa pré-definição da
vel que esta sanção tenha de ser invocada continuamente situação, ao menos para ele. Chamemos, portanto, nossas
(a menos que a instituição delineada pelo tabu do in- duas pessoas simplesmente A e B.
cesto esteja em curso de desintegração, caso especial que
não precisamos examinar aqui). Não tem sentido, por- Logo que A e B entram em ação comum, qualquer
tanto, dizer que a sexualidade humana é socialmente que seja a maneira, produzir-se-ão rapidamente tipifica-
controlada pela decapitação de certos indivíduos. Ao con- ções. A observa B executar. Atribui motivos às ações
trário, a sexualidade humana é socialmente controlada de B e, ao ver repetirem-se as ações, tipifica os motivos
por sua institucionalização no curso da história particular como recorrentes. A medida que B continua operando, A
em questão. Pode-se acrescentar, sem dúvida, que o pode logo ser capaz de dizer para si mesmo "Ah! lá
tabu do incesto em si mesmo não é outra coisa senão vai ele de novo". Ao mesmo tempo, A pode admitir que
o lado negativo de um conjunto de tipificações que de- B está fazendo a mesma coisa com relação a ele. Desde
fine em primeiro lugar qual a conduta sexual julgada o início tanto A quanto B admitem esta reciprocidade da
incestuosa e qual a que não é assim considerada. tipificação. No curso de sua interação estas tipificações

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serão expressas em padrões específicos de condutas. Isto tidiana. Isto significa que os dois indivíduos estão cons-
é, A e B começarão a desempenhar papéis vis-à-vis truindo um fundamento no sentido acima exposto, que
um do outro. Isto acontecerá mesmo se cada qual conti- servirá para estabilizar suas ações separadas e 'sua in-
nuar a realizar ações diferentes das do outro. A possibi- teração. A construção deste terreno de rotina por sua
lidade de tomar o papel do outro aparecerá com re- vez torna possível a divisão do trabalho entre eles, abrin-
lação às mesmas ações executadas por ambos. Isto é, do o caminho para inovações que exigelo um nível mais
A apropriar-se-á interiormente dos reiterados papéis de alto de atenção. A divisão do trabalho e as inovações
B, fazendo deles os modelos de seu próprio desempenho. conduzirão à formação de novos hábitos, maior expansão
Por exemplo, o papel de B na atividade de preparar do terreno comum a ambos os indivíduos. Em outras
o alimento não é somente tipificado como tal por A palavras, um mundo social estará em processo de cons-
mas entra como elemento constitutivo no próprio papel trução, contendo nele as raízes de uma ordem institu-
de preparação do alimento por A. Assim, surge uma cional em expansão.
coleção de ações reciprocamente tipificadas, tornadas ha- Geralmente as ações repetidas uma vez, ou mais, ten-
bituais para cada qual em papéis, alguns dos quais se dem a se tornarem habituais até certo ponto, assim como
realizarão separadamente e outros em comum." Embora todas as ações observadas por outro necessariamente
esta tipificação recíproca não seja ainda institucionaliza- envolvem alguma tipificação por parte deste outro. Con-
ção (visto que, havendo somente dois indivíduos, não tudo, para que se realize a espécie de tipificação recí-
existe possibilidade de uma tipologia dos atores), é claro proca que acabamos de descrever é preciso que haja uma
que a institucionalização já está presente in nucleo. situação social duradoura, na qual as ações habituais
Nesta etapa é possível perguntar que vantagens esse dos dois, ou mais, indivíduos se entrelacem. Que ações
desenvolvimento traz para os dois indivíduos. A van- têm probabilidade de serem reciprocamente tipificadas
tagem mais importante é que cada qual será capaz de desta maneira?
predizer as ações do outro. Concomitantemente, a inte- A resposta geral é a seguinte: são aquelas ações im-
ração de ambos torna-se predizível. O "Lá vai ele de portantes para A e para B em sua situação comum.
novo" torna-se um "Lá vamos nós de novo". Isto liberta As áreas que têm probabilidade de serem importantes
ambos os indivíduos de uma considerável quantidade de neste sentido variarão evidentemente com as diversas si-
tensão. Poupam tempo e esforço não apenas em qualquer tuações. Algumas serão as que se referem a A e a B
tarefa externa em que estejam empenhados separada ou em termos de suas biografias prévias, outras resultarão
conjuntamente, mas em termos de suas respectivas eco- das circunstâncias naturais, pré-sociais da situação. O
nomias psicológicas. Sua vida conjunta define-se agora que em todos os casos terá de ser tornado habitual é
por uma esfera ampliada de rotinas supostas naturais e o processo de comunicação entre A e B. O trabalho, a
certas. Muitas ações são possíveis num nível baixo de sexualidade e a territorialidade têm probabilidades de
atenção. Cada ação de um deles não é mais uma fonte serem outros tantos focos de tipificações e hábitos. Nessas
de espanto e perigo potencial para o outro. Em vez várias áreas a situação de A e de B é paradigmática
disso, grande parte do que está sendo feito reveste-se da institucionalização que ocorre em sociedades maiores.
da trivialidade daquilo que para ambos será a vida co- Levemos nosso paradigma um pouco mais adiante e
imaginemos que A e B têm filhos. Neste ponto a si-
.. o termo "tornar o papel do outro" foi tirado de .Mead. Tornamos aqui tuação muda qualitativamente. O aparecimento de um
o paradigma da socialização, exposto por Mead, apltcando-o ao problema
mais amplo da institucionalização. A argumentação combina aspectos fun-
damentais. dos enfoques de Mead e de Gehlen. terceiro participante altera o caráter da interação social
82 83
em curso entre A e B, e alterará ainda mais se novos ainda, como foram eles que configuraram esse mundo no
indivíduos continuarem a ser acrescentados." O mundo curso de uma biografia compartilhada, de que podem
institucional que existia in siatu nascendi na situação lembrar-se, o mundo assim formado aparece-lhes com-
original de A e B comunica-se agora a outros. Neste pletamente transparente. Compreendem o mundo que fi-
processo a institucionalização aperfeiçoa-se. Os hábitos zeram. Tudo isto muda no processo de transmissão à
e tipificações empreendidos na vida comum de A e B, nova geração. A objetividade do mundo institucional
formações que até esse ponto ainda tinham a qualidade "espessa-se" e "endurece" não apenas para os filhos mas
de concepções ad hoc de dois indivíduos, tornam-se (por um efeito de espelho) para os pais também. O "Lá
agora instituições históricas. Com a aquisição da histori- vamos nós de novo" torna-se agora "E' assim que
cidade estas formações adquirem também outra qualidade estas coisas são feitas". Um mundo assim considerado
decisiva, ou, mais exatamente, aperfeiçoa uma qualidade alcança a firmeza na consciência. Torna-se real de ma-
que era incipiente desde que A e B começaram a tipifi- neira ainda mais maciça e não pode mais ser mudado
cação recíproca de sua conduta. Esta qualidade é a com tanta facilidade. Para os filhos, especialmente na
objetividade. Isto significa que as instituições que estão fase inicial de sua socialização, este mundo torna-se o
agora cristalizadas (por exemplo, a instituição da pa- mundo. Para os pais perde sua qualidade jocosa e passa
ternidade tal como é encontrada pelos filhos) são expe- a ser "sério". Para os filhos, o mundo transmitido pelos
rimentadas como existindo por cima e além dos indiví- pais não é completamente transparente. Como não par-
duos que "acontece" corporificá-Ias no momento. Em ticiparam da formação dele, aparece-lhes como uma rea-
outras palavras, experimentam-se as instituições como se lidade que é dada, a qual, tal como a natureza, é opaca,
possuíssem realidade própria, realidade com a qual os in- pelo menos em certos lugares.
divíduos se defrontam na condição de fato exterior e
coercitivo. 2f Só nesse ponto é possível falar realmente de um mun-
do social, no sentido de uma realidade ampla e dada,
Enquanto as instituições nascentes são construídas e com a qual o indivíduo se defronta de maneira análoga
mantidas somente pela interação de A e B, sua objeti- à realidade do mundo natural. Só desta maneira, como
vidade conserva-se tênue, facilmente variável, quase lú- mundo objetivo, as formações sociais podem ser trans-
dica, mesmo quando alcançam certo grau de objetividade, mitidas a uma nova geração. Nas fases iniciais da so-
pelo simples fato de sua formação. Dito de maneira li- cialização a criança é completamente incapaz de distin-
geiramente diferente, o terreno rotinizado da atividade guir entre a objetividade dos fenômenos naturais e a
de A e de B conserva-se grandemente acessível à de- objetividade das formações sociais. os Tomando o aspecto
liberada intervenção de A e de B. Embora as rotinas, mais importante da socialização, a linguagem aparece à
uma vez estabelecidas, transportem a tendência a per- criança como inerente à natureza das coisas, não podendo
sistir, a possibilidade de mudá-Ias ou mesmo aboli-Ias perceber a noção do caráter convencional dela. Uma
permanece ao alcance da consciência. Somente A e B coisa é aquilo que é chamada, e não poderia ser cha-
são responsáveis por terem construído esse mundo. A e B mada por um nome diferente. Todas as instituições apa-
conservam-se capazes de modificá-lo ou .aboli-lo. Mais recem da mesma maneira como dadas, inalteráveis e
.. A análise, feita por Slmmel, da expansão da dlada , trlada ê Impor-
evidentes. Mesmo em nosso exemplo, empiricamente im-
tante a este respeito. O argumento seguinte combina as concepções de provável, dos pais terem construído um mundo institu-
Slmmel e de Durkhelm sobre a objetividade da realidade social.
OI Em termos de Durkhelm Isto significa que, com a expansão da dlada ,
trlada e além as formações originais tornam-se genulnos "fatos soclals b , 21 o conceito de "realismo" Infantil de Jean Plaget pode- ser comparado
Isto é, alcançam a choséité. a este propósito.

84 85
cional de novo, a objetividade desse mundo aumentaria verdade, mesmo se o mundo social, como realidade pro-
para eles pela socialização de seus filhos, porque a ob- duzida pelos homens, é potencialmente compreensível de
jetivação experimentada pelos filhos se refletiria de volta um modo que não é possível no caso do mundo natural. 21
sobre sua própria experiência desse mundo. Empirica- E' importante ter em mente que a objetividade do
mente, está claro, o mundo institucional transmitido pela mundo institucional, por mais maciça que apareça ao
maioria dos pais já tem o caráter de realidade histórica indivíduo, é uma objetividade produzida e construída pelo
e objetiva. O processo de transmissão simplesmente r~­ homem. O processo pelo qual os produtos exterioriza-
força o sentido que os pais têm da realidade, quanto mais dos da atividade humana adquirem o caráter de objeti-
não seja porque, falando cruamente, ao dizer "E' assi?I vidade é a objetivação." O mundo institucional é a ati-
que estas coisas são feitas", freqüentemente o própriO vidade humana objetivada, e isso em cada instituição
indivíduo acredita que é isso mesmo." particular. Noutras palavras, apesar da objetividade que
Um mundo institucional, por conseguinte, é experimen- marca o mundo social na experiência humana ele não
tado como realidade objetiva. Tem uma história que an- adquire por isso um status ontológico à parte da ativi-
tecede o nascimento do indivíduo e não é acessível à dade humana que o introduziu. O paradoxo que con-
sua lembrança biográfica. Já existia antes de ter nascido siste no fato do homem ser capaz de produzir um mundo
e continuará a existir depois de morrer. Esta própria his- que em seguida experimenta como algo diferente de um
tória, tal como a tradição das instituições existentes, tem produto humano, será por nós tratado mais tarde. De
caráter de objetividade. A biografia do indivíduo é apren- momento, é importante acentuar que a relação entre o
dida como um episódio localizado na história objetiva homem, o produtor, e o mundo social, produto dele, é e
da sociedade. As instituições, como facticidades histó- permanece sendo uma relação dialética, isto é, o homem
ricas e objetivas, defrontam-se com o indivíduo na qua- (evidentemente não o homem isolado mas em coletivida-
lidade de fatos inegáveis. As instituições estão aí, exte- de) e seu mundo social atuam reciprocamente um sobre
riores a ele, persistentes em sua realidade, queira ou não. o outro. O produto reage sobre o produtor. A exteriori-
Não pode desejar que não existam. Resistem a suas zação e a objetivação são momentos de um processo
tentativas de alterá-Ias ou de evadir-se delas. Têm um dialético contínuo. O terceiro momento deste processo,
poder coercitivo sobre ele, tanto por si mesmas, pela que é a interiorização (pela qual o mundo social obje-
pura força de sua facticidade, quanto pelos mecanismos tivado é reintroduzido na consciência no curso da so-
de controle geralmente ligados às mais importantes delas. clalização), irá ocupar-nos mais tarde com abundância
A realidade objetiva das instituições não fica diminuída de detalhes. Já é possível, contudo, ver a relação fun-
se o indivíduo não compreende ·sua finalidade ou seu damentai desses três momentos dialéticos na realidade
mundo de operação. Pode achar incompreensíveis gran- social. Cada um deles corresponde a uma caracterização
des setores do mundo social, talvez opressivos em sua essencial do mundo social. A sociedade é um produto
opacidade, mas não pode deixar de considerá-los reais. humano. A sociedade é uma realidade objetiva. O homem
Existindo as instituições como realidade exterior, o in- é um produto social. Torna-se desde já evidente que
divíduo não as pode entender por introspecção. Tem de
"sair de si" e apreender o que elas são, assim como 21 A descrição precedente acompanha de perto a análise da realidade
tem de a'preender o que diz respeito à natureza. Isto é social feita por Durkheim. Isto não contradi~ a conc.epção de Webe~ .do
caráter significativo da sociedade. Co.mo a re~hdade SOCIal sempre se onglna
em ações humanas dotadas de sentIdo, continua a transportar um sentido
mesmo se este lor opaco para o indivíduo em determinado momento. O
OI Para uma análise deste processo na familia conten.por~nea, cf. ~et~r original pode ser reconstruído, precisamente por meio daqdilo que Weber
L. Berger e Hansfrield Kellner, "Marriage and the Constrllctlon 01 Real1ty , chamava Versfehen.
Diogenes 46 (1964), Iss. !li O termo "objetivação" é derivado da Versachlichung de Hegel e Marx.

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qualquer análise do mundo social que deixe de lado al- mativas. Estas legitimações são aprendidas pelas novas
gum destes três momentos será uma análise destorcida." gerações durante o mesmo processo que as socializa na
Pode-se acrescentar além disso que somente com a trans- ordem institucional. Iremos ocupar-nos deste assunto
missão do mundo social a uma nova geração (isto é, com mais detalhes a seguir.
a interiorização efetuada na socialização), a dialética so- O desenvolvimento de mecanismos específicos de con-
cial fundamental aparece em sua totalidade. Repetindo, troles sociais torna-se também necessário com a historici.
somente com o aparecimento de uma nova geração é zação e objet~vação das instituições. E' provável que
possível falar-se propriamente de um mundo social. haja desvios dos cursos de ação institucionalmente "pro-
No mesmo tempo, o mundo institucional exige legiti- gramados", uma vez que as instituições passam a ser
mação, isto é, modos pelos quais pode ser "explicado" realidades divorciadas de sua importância original nos
e justificado. Isto não acontece porque apareça como me- processos sociais concretos dos quais surgiram. Dito de
nos real. Conforme vimos, a realidade do mundo social maneira mais simples, é mais provável que (j indivíduo
torna-se cada vez mais maciça no curso de sua trans- se desvie de programas estabelecidos para ele pelos ou-
missão. Esta realidade, porém, é histórica, o que faz tros do que de programas que ele próprio ajudou a
chegar à nova geração como tradição e não como me- estabelecer. A nova geração engendra o problema da
mória biográfica. No exemplo que tomamos por para- transigência e sua socialização na ordem institucional
digma, A e B, os criadores originais do mundo social, exige o estabelecimento de sanções. As instituições de-
podem sempre reconstruir as circunstâncias em que seu vem pretender, e de fato pretendem ter autoridade sobre
mundo, e qualquer parte dele, foi estabelecido. Isto é, ~ indivíduo, independentemente das significações subje-
podem chegar ao significado de uma instituição pelo hvas que este possa atribuir a qualquer situação parti-
exercício de sua capacidade de lembrança. Os filhos de cular. A prioridade das definições institucionais das si-
A e de B acham-se em situação inteiramente diferente. tuações deve ser coerentemente preservada das tentações
O conhecimento que têm da história institucional foi individuais de redefinição. As crianças devem "aprender
recebido por "ouvir dizer". O significado original das a comportar-se" e, uma vez que tenham -aprendido,
instituições é inacessível a eles em termos de memória. precisam ser "mantidas na linha". O mesmo se dá natural-
Torna-se, por conseguinte, necessário interpretar para mente com os adultos. Quanto mais a conduta é insti-
eles este significado em várias fórmulas legitimadoras. tucionalizada tanto mais se torna predizível e controlada.
Estas terão de ser consistentes e amplas no que se refere Se .a socialização das instituições foi eficiente, é possível
à ordem institucional, a fim de levarem à convicção à aplIcar completas medidas coercitivas econômica e sele-
nova geração. A mesma história, por assim dizer, tem tivamente. Na maioria das vezes a conduta se processará
de ser contada a todas as crianças. Segue-se que a or- "espontaneamente" nos canais estabelecidos de modo ins-
dem institucional em expansão cria um correspondente titucional. Ao nível das significações, quanto mais a con-
manto de legitimações, que estende sobre si uma co- duta é julgada certa e natural, tanto mais se restringirão
bertura protetora de interpretações cognoscitivas e nor- as possíveis alternativas dos "programas" institucionais,
sendo cada vez mais predizível e controlada a conduta.
.. A sociologia contemporânea americana tende a abandonar o primeiro Em princípio, a institucionalização pode ocorrer em
elemento. Sua perspectiva da sociedade tende assim a ser aquilo que Marx
chamou relflcaçlio (Verdinglichung), Isto é, uma distorçlio nlio dialética da
realidade social que obscurece o caráter desta última como continua pro-
qualquer área da conduta coletivamente importante. Na
duçlio humana, vlsuallzando-a em vez disto em categorias de coisas, apro- ordem real dos fatos, os conjuntos de processos de ins-
priadas somente para o mundo da natureza. O fato da desumanizaçlio Im-
pllclto nesse processo ser mitigado por valores derivados da tradlçlio mais titucionalização produzem-se concorrentemente. Não há
ampla da sociedade é, presumivelmente, uma felicidade do ponto de vIsta
moral, mas teoricamente é Irrelevante. razão, a priori, para admitir que esses processos te-
88 89
nham necessariamente de "permanecer unidos" em suas Estes últimos i~plicam uma incipiente diferenciação, pelo
funções, e muito menos como sistema logicamente con- ~en?~ no sentId.o em que se atribui a esses tipos um
sistente. Voltando, ainda uma vez, ao exemplo que de- slgmflcado relatIvamente estável. Esta atribuição pode
mos como paradigma e variando ligeiramente a situação basear-se em diferenças pré-sociais, tais como o sexo,
imaginária, suponhamos desta vez não uma famflia em ou em diferenças produzidas no curso da interação so-
crescimento, constituída por pais e filhos, mas um picante cial, por exemplo, as que são engendradas pela tjivisão
triângulo de um macho A, uma fêmea bissexual B e do trabalho. Para citar um caso, pode acontecer que
uma lésbica C. Não é preciso insistir na questão de que s.o.mente as mulheres se relacionem com a magia da fer-
as relações sexuais destes três individuos não coincidirão. tIhdade e só os caçadores se empenhem na pintura das
A relação A-B não é partilhada por C. Os hábitos en- cavernas, ou somente os velhos podem executar o ceri-
gendrados como resultado das conveniências de A e B monial da chuva e apenas os fabricantes de armas po-
precisam relacionar-se com os engendrados pelas conve- dem dormir com suas primas maternas. Em termos de
niências de B-C e C-A. Afinal de contas não há razão sua funcionalidade social externa estas diversas áreas
para que dois processos de formação de hábitos eróticos., de conduta não precisam ser integradas em um único
um heterossexual e outro lésbico, não possam ocorrer sistema coerente. Podem continuar a coexistir com base
lado a lado sem que se integrem funcionalmente um com em desempenhos separados. Mas, enquanto esses desem-
o outro ou com uma terceira formação de hábito, baseada, penhos podem ser separados, os significados tendem
digamos, em um interesse comum no cultivo de flores para uma consistência pelo menos mínima. Quando o
(ou qualquer outro empreendimento que possa ser simul- indivíduo reflete sobre os momentos sucessivos de sua
taneamente relevante para um macho heterossexual ativo experiência, procura ajustar os significados deles em uma
e uma lésbica ativa). Em outras palavras, três processos estrutura biográfica consistente. Esta tendência aumenta
de formação de hábitos ou de incipiente institucionali- à medida que o indivíduo compartilha com outros seus
zação podem ocorrer sem serem funcional ou logicamente significados e a integração biográfica comum. E' possível
integrados enquanto fenômenos sociais. O mesmo racio- que esta tendência a integrar significações se baseie em
cinio é válido se supusermos que A, B e C são coletivi- uma necessidade psicológica, a qual por sua vez pode
dades e não individuos, quaisquer que sejam os con- fundar-se numa base fisiológica (isto é, pode haver uma
teúdos de seus interesses. Igualmente a integração fun- ".n~ess~dade" imanente de coesão na constituição psico-
cionai ou lógica não pode ser admitida a priori quando ftslOlóglca do homem). Nossa argumentação, porém, não
os processos de formação de hábitos ou de institucionali- repousa nessas premissas antropológicas mas antes na
zação limitam-se aos mesmos individuos ou coletividades análise da reciprocidade dotada de sentido nos processos
e não aos elementos separados imaginados em nosso de institucionalização.
exemplo. Segue-se que é preciso grande cuidado ao fazer afir-
ma?ões sob:e ~ ~'I~gica" das instituições. A lógica não
Contudo, continua sendo um fato empirico que as ins- reSIde nas mstltulçoes e em suas funções externas mas
tituições tendem a "permanecer juntas". Se não supuser- na maneIra . em que estas são tratadas na reflexão' que
mos como dado este fenômeno é preciso explicá-lo. Como delas se ocupa. Dito de outra maneira, a consciência
é possível fazer isso? Em primeiro lugar é possível ar- reflexiva impõe a qualidade de lógica à ordem institu-
gumentar que certos interesses serão comuns a todos os cional. •
membros de uma coletividade. Por outro lado, muitas
áreas de conduta só terão importância para alguns tipos. ·.A lI1lállse, feita por Pareto, da "lógica" das instituiçõ,es tem impor-
tânCIa neste momento, Uma afirmativa semelhante à nossa foi enunciada

90 91
A linguagem assegura a superp~ição fundaI?en.tal da mordialmente, qualquer preocupàção com sistemas teó-
lógica sobre o mundo social objetivado. O edIfíCIO das ricos complexos q~e sirvam para a le.gitimação da ordem
legitimações é construído sobre a. lingu,e~ e" usa:a co- institucional. Está claro que as teQrias também têm de
mo seu principal instrumento. ASSim, a lógica ~tnbuida ser levadas em consideração. Mas o -conhecimento teórico
à ordem institucional faz parte do acervo socialmente é apenas uma pequena parte, e de modo algum a parte
disponível do conhecimento, tomado como natural e certo. mais importante, do que uma sociedade considera como
U ma vez que o indivíduo bem socializado "conhece" que conhecimento. Em determinados momentos de uma his-
seu mundo social é uma totalidade consistente, será for- tória institucional aparecem legitimações teoricamente
çado a explicar seu funcionamento e defeitos de fun- complicadas. O conhecimento primário relativo à ordem
cionamento em termos deste "conhecimento". E' muito institucional é o conhecimento situado no nível pré-teórico.
fácil como resultado, que o observador de qualquer 50- E' a soma de tudo aquilo que "todos sabem", a res-
cied~de admita que suas instituições efetivamente fun- peito do mundo social, um conjunto de máximas, prin-
cionam e se integram tal como se "supõe" que devem cípios morais, frases proverbiais de sabedoria, valores e
ser. 11 crenças, mitos, etc., cuja integração teórica exige consi-
De facto, pois, as in~tituiçõ~s são in~egradas, mas sua derável força intelectual, conforme comprova a longa li-
integração não é um Imperativo funCional do proce~so nha de heróicos integradores, de Homero aos últimos
social que as produz, e sim é antes re~lizado de man~lra construtores de sistemas sociológicos. No nível pré-teó-
derivada. Os indivíduos executam açoes separadas l~S­ rico, porém, toda instituição tem um corpo de conheci-
titucionalizadas no contexto de sua biografia. Esta bIO- mento transmitido como receita, isto é, conhecimento que
grafia forma um todo sobre o qual. é feita p~steri.?rmente fornece as regras de conduta institucionalmente ade-
quadas. •
uma reflexão na qual as ações discretas nao sao pen-
sadas como acontecimentos isolados mas como partes Este conhecimento constitui a dinâmica motivadora da
relacionadas de um universo subjetivam~nte dotado .de conduta institucionalizada. Define as áreas institucionali-
sentido, cujos significados não são particulares. ao 10- zadas da conduta e designa todas as situações que se
divíduo, mas socialmente articulados .e comparbl~ad~~. localizam dentro destas áreas. Define e constrói os pa-
Somente mediante este rodeio dos uDlversos de sl~Dlfl­ péis que devem ser desempenhados no contexto das ins-
cação socialmente compartilhados chegamos à neceSSidade tituições em questão. Ipso facto, controla e prediz todas
da integração institucional. estas condutas. Sendo este conhecimento socialmente ob-
Isto tem extensas implicações para qualquer análise jetivado cOmo conhecimento, isto é, como um corpo de
dos fenômenos sociais. Se a integração de uma ordem verdades universalmente válidas sobre a realidade, qual-
institucional só pode ser entendida em termos do "conhe- quer desvio radical da ordem institucional toma caráter
cimento" que seus membros têm. dela, ~egue-se que a de um afastamento da realidade. Este desvio pode ser
análise de tal "conhecimento" sera essencIal para a aná- designado como depravação moral, doença mental ou
lise da ordem institucional em questão. E' importan~e simplesmente ignorância crassa. Embora estas delicadas
acentuar que isto não implica, exclusiva ou mesmo pn- distinções tenham conseqüências óbvias para o tratamento
do indivíduo que se desviou, todas elas participam de
Também ele Insiste em que o "esforço
It um status cognoscitivo inferior no particular mundo so-
~gr se~~\~~rl~~ c!~~~~~I~1 t~~· r~l:ies
no caráter significativo da rçlãO Ihum~~:~ cial. Deste modo, o particular mundo social torna-se o
11 Esta evidência é a fraqueza fundamental de qualquer soe o 0fã a ~rf a
tada no sentido funcional. Para uma excelente critica d a ques o .
discussão da sociedade bororo em Claude Lévi-Straus5, Tristes troplquea
(New Vorle, Atheneum, 1964), pp. 1835s. lO o termo "conhecimento de receltan foi tomado de Schutz.

92 93
mundo tout court. O que a sociedade admite como co- Não é preciso insistir em que aqui "verificação empírica"
nhecimento vem a ser coextensivo com o cognoscível, ou e "ciência" não são entendidas no sentido dos moder-
de qualquer modo fornece a estrutura dentro da qual nos cânones científicos, mas no sentido de conhecimento
tudo aquilo que ainda não é conhecido chegará a ser que pode ser confirmado na experiência, tornando-se em
conhecido no futuro. Este é o conhecimento aprendido seguida sistematicamente organizado como corpo de co-
no curso da socialização e que serve de mediação na nhecimento.
interiorização pela consciência individual das estruturas Além disso, o mesmo corpo de conhecimento é trans-
objetivadas do mundo social. Neste sentido, o conheci- mitido à geração seguinte. E' aprendido como verdade
mento situa-se no coração da dialética fundamental da objetiva no curso da socialização, interiorizando-se assim
sociedade. "Programa" os canais pelos quais a exteriori- como realidade subjetiva. Esta realidade por sua vez
zação produz um mundo objetivo. Objetiva este mundo tem o poder de configurar o indivíduo. Produzirá um
por meio da linguagem e do aparelho cognoscitivo ba- tipo específico de pessoa, a saber o caçador, cuja iden-
seado na linguagem, isto é, ordena-o em objetos que tidade e biografia enquanto caçador têm significação so-
serão apreendidos como realidade. li E' em seguida in- mente num universo constituído pelo mencionado corpo
teriorizado como verdade objetivamente válida no curso de conhecimento em totalidade (por exemplo, em uma
da socialização. Desta maneira, o conhecimento relativo sociedade de caçadores) ou em parte (digamos em nossa
à sociedade é uma realização no duplo sentido da palavra, própria sociedade, na qual os caçadores se reúnem em
no sentido de apreender a realidade social objetivada e um subuniverso próprio). Em outras palavras, nenhuma
no sentido de produzir continuamente esta realidade. parte da instituição da caça pode existir sem o particu-
Por exemplo, no curso da divisão do trabalho desen- lar conhecimento que foi socialmente produzido e obje-
volve-se um corpo de conhecimento que se refere às tivado com referência a esta atividade. Caçar e ser ca-
particulares atividades em questão. Em sua base lin- çador implicam a existência em um mundo social de-
güística este conhecimento já é indispensável para a finido e controlado por este corpo de conhecimento.
"programação" institucional destas atividades econômi- Mutatis mutandis, o mesmo se aplica a qualquer área
cas. Haverá, digamos, um vocabulário que designa os de conduta institucionalizada.
vários modos de caçar, as armas a serem empregadas,
os animais que servem como presas, etc. Haverá, além
c) Sedimentação e tradição
disso, uma coleção de receitas que o indivíduo terá de
aprender para caçar corretamente. Este conhecimento
Somente uma pequena parte das experiências humanas
funciona como força canalizadora, controladora em si
são retidas na consciência. As experiências que ficam
mesma, um indispensável ingrediente da institucionali-
assim retidas são sedimentadas, isto é, consolidam-se na
zação desta área de conduta. U ma vez que a instituição
lembrança como entidades reconhecíveis e capazes de
da caça se cristaliza e perdura no tempo, o mesmo corpo
serem lembradas. Se não houvesse esta sedimentação
li
de conhecimento serve de descrição objetiva dela (e,
o indivíduo não poderia dar sentido à sua biografia. A
diga-se de passagem, empiricamente verificável). Um
sedimentação intersubjetiva também ocorre quando vários
segmento inteiro do mundo social é objetivado por este
indivíduos participam de uma biografia comum, cujas ex-
conhecimento. Haverá uma "ciência" objetiva da caça,
peciências se incorporam em um acervo comum de conhe-
correspondente à realidade objetiva da economia da caça.
.. ~ termo "sedimentação" derivado de Edmund Husserl. 1'01 usado pela
83 o termo "objetivação" derivou da VergegensUlndlichung de Hegel. prtmelTa vez por Scbutz em um contexto sociológico.

94 95
cimento. A sedimentação intersubjetiva só pode ser ver- na-se acessível e talvez fortemente significativa para in-
dadeiramente chamada social quando se objetivou em divíduos que nunca passaram por ela. A designação
um sistema de sinais desta ou daquela espécie, isto é, lingüística (que, numa sociedade de caçadores, podemos
quando surge a possibilidade de repetir-se a objetivação imaginar ser muito precisa e completa - digamqs,
das experiências compartilhadas. Só então provavelmente "sozinho grande matar, com uma mão, rinoceronte
estas experiências serão transmitidas de uma geração macho", "sozinho grande matar, com duas mãos, rino-
à seguinte e .de uma coletividade à outra. Teoricamente, ceronte fêmea", etc.) abstrai a experiência de suas ocor-
a atividade comum, sem um sistema de sinais, poderia rências individuais biográficas. Torna-se uma possibili-
ser a base para transmissão. Empiricamente, isto é impro- dade objetiva para todos, ou pelo menos para todos os
vável. Um sistema de sinais objetivamente praticável con- indivíduos de certo tipo (digamos, os caçadores plena-
fere uma condição de incipiente anonimato às experiên- mente iniciados), isto é, torna-se anônima em principio,
cias . sedimentadàs, destacando-as de seu contexto ori- mesmo quando ainda associada a feitos relativos a in-
ginai de biografias individuais concretas e· tornando-as divíduos particulares. Mesmo para aqueles que não se
. geralmente acessíveis a todos quantos participam, ou po- prevê venham a ter a experiência em sua própria bio-
dem participar no futuro, do sistema de sinais em ques- grafia futura (assim, as mulheres proibidas, de caçar)
tão. As experiências tornam-se assim facilmente trans- esse fato pode ter importância de maneira derivada (di-
missíveis. gamos, em termos do desejo de um futuro marido). Em
todo caso, faz parte do acervo comum do conhecimento.
Em princípio, qualquer sistema de sinais serviria. /\. objetivação da experiência na linguagem (isto é, sua
Normalmente, está claro, o sistema de sinais decisivo é transformação em um objeto de conhecimento por todos
lingüístico. A linguagem objetiva as experiências parti- aproveitável) permite então incorporá-la a um conjunto
lhadas e torna-as acessíveis a todos dentro da comuni- mais amplo de tradições por via da instrução moral, da
dade lingüística, passando a ser assim a base e o ins- poesia inspiradora, da alegoria religiosa e outras coisas
trumento do acervo coletivo do conhecimento. Ainda mais, mais. Tanto a experiência em sentido estrito quanto
a linguagem for~ece os meios para a objetivação de seus apêndices de significações mais amplas podem,
novas experiências, permitindo que sejam incorporadas portanto, ser ensinadas a todas as novas gerações, ou
ao estoque já existente do conhecimento, e é o meio mesmo difundidas a uma coletividade inteiramente di-
mais importante pelo qual as sedimentações objetivadas ferente (digamos, uma sociedade agrícola que pode dar
são transmitidas na tradição da coletividade em questão. significações completamente diferentes ao assunto em to-
Por exemplo, só alguns membros de uma sociedade talidade).
de caçadores têm a experiência de perder suas armas, A linguagem torna-se o depósito de um grande con-
sendo obrigados a combater um animal selvagem unica- junto de sedimentações coletivas, que podem ser adqui-
mente com as mãos. Esta assustadora experiência, ridas monotetícamente, isto é, como totalidades coerentes
quaisquer que sejam as lições de bravura, astúcia e ha- e sem reconstruir seu processo original de formação."
bilidade que produza, fica firmemente sedimentada na Tendo a origem real das sedimentações perdido impor-
consciência dos individuos que a sofreram. Se vários in- tância, a tradição pode inventar uma origem completa-
dividuos participam da experiência ficará sedimentada mente diferente, sem com isso ameaçar o que foi obje-
intersubjetivamente, podendo até talvez formar um pro- tivado. Em outras palavras, as legitimações podem se-
fundo laço entre esses individuos. Sendo, porém, esta
as 1510 é significado pelo lurno "aquisição monotética" dt Husserl. Foi
experiência designada e transmitida IingUisticamente, tor- também extensamente usado por Schutz.

96 97
guir-se umas às outras, de vez em quando outorgando ficados institucionais assegura sua possibilidade de me-
novos significados às experiências sedimentais da cole- morização. Temos aqui, ao nível dos significados sedi-
tividade em questão. A história passada da sociedade mentados, os mesmos processos de rotinização e trivia-
pode ser reinterpretada sem necessariamente ter como lização que já notamos ao discutir a institucionalização.
resultado subverter a ordem das instituições. Assim é que Além do mais, a firma estilizada na qual os feitos herói-
no exemplo acima o "grande matar" pode ser legitimado cos entram para a tradição é uma ilustração útil.
como uma façanha de figuras divinas e qualquer repeti-
ção humana dela como uma imitação do protótipo mi- Os significados objetivados da atividade institucional
tológico. são concebidos com "conhecimento" e transmitidos como
tais. Uma parte deste "conhecimento" é julgada para to-
Este processo acha-se subjacente a todas as sedimen- dos, enquanto outra parte só interessa a certos tipos.
tações objetivadas, e não somente às ações institucionali- Toda a transmissão exige alguma espécie de aparelho
zadas. Pode referir-se, por exemplo, à transmissão de social. Isto é, alguns tipos são designados como trans-
tipificações de outros, não diretamente significativas para missores, outros como receptores do "conhecimento"
particulares instituições. Por exemplo, os outros são tipi- tradicional. O caráter particular deste aparelho variará
ficados com "altos" ou "baixos", "gordos" ou "ma- naturalmente de uma sociedade para outra. Haverá tam-
gros", brilhantes" ou "obtusos", sem quaisquer particu- bém procedimentos para a passagem da tradição dos co-
lares implicações institucionais ligadas a estas tipifica- nhecedores aos não conhecedores. Por exemplo, o conhe-
ções. Este processo, naturalmente, também se aplica à cimento técnico, mágico e moral da caça pode ser trans-
transmissão de significados sedimentados que satisfazem mitido pelos tios maternos aos sobrinhos de certa idade,
a especificação, previamente dada, das instituições. A mediante determinados procedimentos de iniciação. A
transmissão do significado de uma instituição baseia-se tipologia dos conhecedores e não conhecedores, assim
no reconhecimento social dessa instituição como solução como o "conhecimento" que se admite passar de uns
"permanente" de um problema "permanente" da coleti- aos outros é questão de definição social. Tanto o "co-
vidade dada. Por conseguinte, os atores potenciais de nhecimento" quanto o "não conhecimento" referem-se ao
ações institucionalizadas devem tomar conhecimento sis- que é socialmente definido como realidade e não a cri-
tematicamente desses significados. Isto exige alguma for- térios extra-sociais de validade cognoscitiva. Dito de ma-
ma de processo "educacional". Os significados institu- neira mais crua, os tios maternos não transmitem este
cionais devem ser impressos poderosa e inesquecivelmente particular acervo de conhecimento porque o conhecem,
na consciência do indivíduo. Como os seres humanos são mas conhecem-no (isto é, são definidos como conhece-
freqüentemente preguiçosos e esquecidos, deve também dores) porque são tios maternos. Se um tio materno ins-
haver procedimentos mediante os quais estes significados titucionalmente designado, por motivos particulares, re-
possam ser reimpressos e rememorizados, se necessário vela-se incapaz de transmitir o conhecimento em questão,
por meios coercitivos geralmente desagradáveis. Além deixa de ser um tio materno no pleno sentido da palavra
disso, como os seres humanos são freqüentemente estú- e na verdade o reconhecimento institucional deste estado
pidos, os significados institucionais tendem a ser simpli- pode lhe ser retirado.
ficados no processo da transmissão, de modo que uma Dependendo do alcance social da conveniência de certo
determinada coleção de "fórmulas" institucionais possa tipo de "conhecimento" e de sua complexidade e im-
ser facilmente aprendida e guardada na memória pelas portância em uma particular coletividade, Q "conheci-
gerações sucessivas. O caráter de "fórmula" dos signi- mento" pode ter de ser reafirmado mediante. objetos sim-
98 99
bólicos (tais como fetiches e emblemas militares), e ações d) Papéis
simbólicas (tais como o ritual religioso ou militar). Em
outras palavras, os objetos e as ações físicas podem ser Conforme vimos, as origens de qualquer ordem institu-
invocados como auxílios mnemotécnicos. Toda trans- cional consistem na tipificação dos desempenhos de um
missão de significados institucionais implica obviamente indivíduo e dos outros. Isto implica que o primeiro tem
procedimentos de controle e legitimação. Estes ligam-se em comum com os outros finalidades específicas e fases
às próprias instituições e são ministrados pelo pessoal entrelaçadas de desempenho e, ainda mais, que são tipifi-
transmissor. Deve-se acentuar, aqui, ainda uma vez que cadas não apenas ações específicas mas formas de ação.
não se pode presumir a priori a coerência, e muito menos Isto é, haverá o reconhecimento não somente de um par-
a funcionalidade, entre as diferentes instituições e as for- ticular ator que executa uma ação do tipo X, mas da ação
mas da transmissão do conhecimento próprias de cada tipo X como sendo executável por qualquer ator a quem
uma delas. O problema da coerência lógica surge pri- possa ser plausivelmente imputada a estrutura de conve-
meiramente no nível da legitimação (onde pode haver niências em questão. Por exemplo, é possív~1 que um ho-
conflito ou competição entre diferentes legitimações e mem veja seu filho insolente surrado pelo cunhado e com-
seu pessoal administrativo), e secundariamente ao nível preenda que esta particular ação é apenas uma instân-
da socialização (onde pode haver dificuldades práticas cia de uma forma de ação apropriada a outros pares
na interiorização de significados institucionais sucessivos de tios e sobrinhos, na verdade é um padrão geralmente
ou concomitantes). Voltando a um exemplo anterior, não praticável em uma sociedade matrilocal. Somente preva-
há razão a priori pela qual significados institucionais lecendo esta última tipificação é que este incidente se-
que se originam em uma sociedade de caçadores não <Yuirá um curso socialmente aceito, retirando-se o pai
possam difundir-se em uma sociedade agrícola. Ainda discretamente da cena a fim de não perturbar o legítimo
mais, estes significados, para um observador externo, po- exercício da autoridade avuncular.
dem parecer ter duvidosa "funcionalidade" na primeira A tipificação das formas de ação requer haver nestas
sociedade na época da difusão e absolutamente nenhuma um sentido objetivo, que por sua vez exige uma objeti-
"funcionalidade" na segunda. As dificuldades que podem vação Iingiiística. Isto é, haverá um vocabulário que se
surgir aqui relacionam-se com as atividades teóricas dos refere a estas formas de ação (tal como "sobrinho apa-
legitimadores e as dificuldades práticas dos "educadores" nhando", que pertencerá a uma estrutura lingüística de
na nova sociedade. Os teóricos têm de satisfazer-se em parentesco muito mais ampla, com seus vários direitos
saber que uma deusa da caça é um habitante plausível e obrigações). Em princípio, portanto, uma ação e seu
de um panteon agrário e os pedagogos têm como pro- sentido podem ser apreendidos à parte dos desempenhos
blema explicar as atividades mitológicas dessa deusa a individuais dela e dos variáveis processos subjetivos que
crianças que nunca viram uma caçada. Os teóricos legi- a eles se associam. O indivíduo e o outro podem ser
timadores tendem a cultivar aspirações lógicas e as crian- compreendidos como executantes de ações objetivas, ge-
ças tendem a ser recalcitrantes. Isto, porém, não é um ralmente conhecidas, que são recorrentes e repetíveis por
problema de lógica abstrata ou de funcionalidade técnica, qualquer ator do tipo adequado.
mas de engenhosidade de um lado, e credulidade, do Isto tem conseqüências muito importantes para a
outro, o que representa uma proposição bastante di- auto-experiência. No curso da ação há uma identificação
ferente. da personalidade com o sentido objetivo das ações. A
ação que está sendo executada determina, nesse momento,

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sua ação pode ser conservada na consclencia e projetada
a autocompreensão do ator e isto no sentido objetivo que em futuras repetições das ações. Desta maneira tanto o
foi socialmente atribuído à ação. Embora continue a ha- eu atuante quanto os outros atuantes são apreendidos
ver uma consciência marginal do corpo e de outros as- não como indivíduos únicos mas como tipos. Por defini-
pectos do eu não diretamente implicados na ação, o ator, ção estes tipos são intercambiáveis.
nesse momento, apreende-se a si mesmo como essencial-
mente identificado com a ação socialmente objetivada Podemos começar propriamente a falar de papéis quan-
("estou agora batendo em meu sobrinho", episódio na- do esta espécie de tipificação ocorre no contexto de um
tural na rotina da vida cotidiana). Depois de ocorrer a acervo objetivado de conhecimentos comum a uma cole-
ação há ainda uma outra importante conseqüência, quan- tividade de atores. Os papéis são tipos de atores neste
do o ator reflete sobre sua ação. Agora uma parte do eu contexto." Pode ver-se facilmente que a construção de
é objetivado como o executante desta ação, sendo ainda tipologias dos papéis é um correlato necessário da insti-
uma vez o eu total relativamente não identificado com a tucionalização da conduta. As instituições incorporam-se
ação executada. Isto é, torna-se possível conceber o eu à experiência do indivíduo por meio dos papéis. Estes,
como estando somente parcialmente implicado na ação Iingüisticamentc objetivados, são um ingrediente essencial
(afinal de contas o homem em nosso exemplo é outras do mundo objetivamente acessível de qualquer sociedade.
coisas além de ser um espancador do sobrinho). Não é Ao desempenhar papéis, o indivíduo participa de um
difícil ver que quando estas objetivações se acumulam mundo social. Ao interiorizar estes papéis, o mesmo mun-
("espancador do sobrinho", "sustel1tador da irmã", do torna-se subjetivamente real para ele.
"guerreiro iniciado", "virtuose da dança da chuva", etc.), No cabedal comum do conhecimento há padrões de
um setor inteiro da autoconsciência estrutura-se em ter- desempenho de papéis que são acessíveis a todos os
mos destas objetivações. Em outras palavras, um seg- membros de uma sociedade, ou pelo menos àqueles que
mento da personalidade objetiva-se em termos de tipifica- são executantes potenciais dos papéis em questão. Esta
ções socialmente válidas. Este segmento é o verdadeiro acessibilidade geral é parte do mesmo cabedal do conhe-
"eu social", que é subjetivamente experimentado como dis- cimento, pois não somente os padrões do papel X são
tinto do eu em sua totalidade, chegando mesmo a de- universalmente conhecidos mas sabe-se que estes padrões
frontar-se com este ... Este importante fenômeno, que per- são conhecidos. Por conseguinte, todo suposto ator do
mite uma "conversa" interna entre os diferentes segmen- papel X pode ser considerado responsável por confor-
tos da personalidade, será retomado novamente mais mar-se com os padrões, que podem ser julgados parte
tarde quando examinarmos o processo pelo qual o mun- da tradição institucional e usados para verificar as cre-
do socialmente construído se interioriza na consciência denciais de todos os executantes, e além disso servir como
individual. Por ora, o que tem importância é a relação controles.
do fenômeno com as tipificações da conduta objetiva- As origens dos papéis encontram-se no mesmo processe
mente praticáveis. fundamental de formação de hábitos e objetivação que as
Em suma, o ator identifica-se com as tipificações da origens das instituições. Logo que um estoque comum
conduta in actu socialmente objetivada, mas restabelece de conhecimento, contendo tipificações recíprocas de con-
a distância com relação a elas quando reflete posterior- duta, está em processo de formação aparecem os papeis~
mente sobre sua conduta. Esta distância entre o ator e
" Embora nossa argumentação use termos estranhos a Mead, nossa con-
cepção do papel é muito próxima à dele e pretende ser um, extenslio da
.. Sobre o "eu social" confrontado com o eu em sua totalidade, cf. o teoria do p"apel de Mead em um quadro de referência mais amplo, a saber,
conceito de Mead do "mim" [me) com o conceito, enunciado por Durkheim. aquele que inclui uma teoria das instituições.
de homo duple!C.

102 103
e esse processo, conforme vimos, é endêmico na intl~ração
As instituições também são representadas de outras
social e precede a institucionalização propriamente dita. maneiras. Suas objetivações lingüísticas, das si1TIples de-
A questão de saber quais são os papéis que se institucio- signações verbais até a incorporação em simbolizações
nalizam é idêntica à questão de definir quais as áreas da realidade altamente complexas, também as represen-
de conduta afetadas pela institucionalização, e pode ser tam (isto é, tornam-nas presentes) na experiência. E
respondida da mesma maneira. Toda conduta institucio- podem ser simbolicamente representadas por objetos fí-
nalizada envolve um certo número de papéis. Assim, os sicos naturais e artificiais. Todas estas representações,
papéis participam do caráter controlador da instituciona- porém, tornam-se "mortas" (isto é, destituídas de rea-
lização. Logo que os atores são tipificados como execu- lidade subjetiva) a não ser que sejam continuamente
tantes de papéis, sua conduta é ipso facto susceptível "vivificadas" na conduta humana real. A representação
de reforço. A concordância e a não concordância com os de uma instituição em papéis, e por meio destes, é assim
papéis padrões socialmente definidos deixa de ser ótima, a representação' por excelência, de que dependem todas
embora evidentemente a severidade das ações possa variar as outras representações. Por exemplo, a instituição da
de um caso para outro. lei é evidentemente também representada pela linguagem
Os papéis representam a ordem institucional.· Esta legal, pelos códigos da lei, teorias da jurisprudência e fi-
representação realiza-se em dois níveis. Primeiramente a nalmente pelas legitimações últimas da instituição e suas
execução do papel representa a si mesma. Por exemplo, normas em sistemas éticos, religiosos e mitológicos de
empenhar-se em julgar é representar o papel de juiz. O pensamento. Estes fenômenos produzidos pelo homem,
indivíduo julgador não está atuando "por sua própria como a impressionante parafernália que freqüentemente
conta", mas qua juiz. Em segundo lugar, o papel repre- acompanha a administração da lei, e fenômenos naturais
senta uma completa necessidade institucional de conduta. tais como o estrondo do trovão, que podem ser tomados
O papel de juiz relaciona-se com outros papéis, cuja como veredicto divino em um julgamento por ordalio e
totalidade compreende a instituição da lei. O juiz atua mesmo tornar-se finalmente símbolo da justiça última,
como representante desta instituição. Somente mediante representam ainda mais a instituição. Todas estas repre-
esta representação em papéis desempenhados é que a ins- sentações, porém, derivam sua permanente significação e
tituição pode manifestar-se na experiência real. A insti- mesmo sua inteligibilidade da utilização na conduta hu-
tuição, com seu conj unto de ações "programadas", asse- mana, que neste caso é evidentemente a conduta tipifi-
melha-se ao libreto não escrito de um drama. A realiza- cada nos papéis institucionais da lei.
ção do drama depende do repetido desempenho dos pa- Quando os indivíduos começam a refletir sobre estes
péis prescritos por parte de atores vivos. Os atores cor- assuntos enfrentam o problema de reunir as várias repre-
porificam papéis e efetivam o drama ao representá-lo sentações em um todo coerente que tenha sentido. D
em um determinado palco. Nem o drama nem a institui- Qualquer execução concreta de um papel refere-se ao
ção existem empiricamente separados desta realização sentido objetivo da instituição e assim aos outros desem-
repetida. Dizer, por conseguinte, que os papéis repre- penhos complementares do papel e ao sentido da insti-
sentam as instituições é dizer que os papéis tornam tuição em totalidade. Embora o problema de integrar as
possivel a existência das instituições continuamente, co- várias representações em questão seja resolvido primor-
mo presença real na experiência de indivíduos vivos. dialmente ao nível da legitimação, é também tratado em
• o termo ·representação" relaclona-Ie aqui estreitamente com o uso • Este processo de "ligação conjunta" é um dos objetos centrais da
feito por Durkhelm, tendo porém alcance mais largo. 50clologla de Durkheim, a Integração da sociedade mediBllte o Incentivo
da solidariedade.
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105
termos de certos papéis. Todos os papéis representam a tudo, o "conhecimento" dos valores e atitudes julgados
ordem institucional no sentido acima mencionado. Alguns adequados a um juiz, estendendo-se até os que são pro-
papéis, contudo, representam simbolicamente esta ordem verbialmente considerados convenientes para a esposa de
em sua totalidade mais do que outros. Tais papéis têm um juiz. O juiz deve também ter um "conhecimento"
grande importância estratégica numa sociedade, uma vez adequado no domínio das emoções. Deverá saber, por
que re~resentam não somente esta ou aquela instituição, exemplo, quando tem de refrear seu sentimento de com-
mas a mtegração de todas as instituições em um mundo paixão, para mencionar um requisito psicológico impor-
dotado de sentido. Ipso facto, naturalmente, estes papéis tante deste papel. De tal maneira, cada papel abre uma
ajudam a manter esta integração na consciência e na entrada para um setor específico do acervo total do
conduta dos membros da sociedade, isto é, têm uma re- conhecimento possuído pela sociedade. Aprender um pa-
lação especial com o aparelho legitimador da sociedade. pel não é simplesmente adquirir as rotinas que são ime-
Alguns papéis não têm outras funções senão esta repre- diatamente necessárias para o desempenho "exterior".
sentação simbólica da ordem institucional como totalidade E' preciso que seja também iniciado nas várias camadas
integrada, enquanto outros assumem esta função de vez cognoscitivas, e mesmo afetivas, do corpo de conheci-
em quando, acrescentando-as às funções menos enalte- mento que é diretamente e indiretamente adequado a
cidas que desempenham rotineiramente. O juiz, por este papel.
exemplo, pode em certas ocasiões, em algum caso parti- Isto implica uma distribuição social do conhecimento. C1

cularmente importante, representar desta maneira a inte- O acervo do conhecimento social acha-se estruturado em
gração total da sociedade. O monarca tem este papel termos do que é geralmente relevante e do que é somente
durante todo o tempo e de fato em uma monarquia relevante para papéis particulares. Isto é verdade mesmo
constitucional pode não ter outra função senão a de para situações sociais muito simples, tais como nosso
"símbolo vivo" para todos os níveis da sociedade, até exemplo anterior de uma situação social produzida pela
o homem da rua. Historicamente, os papéis que repre- continua interação de um homem, uma mulher bissexual
sentam simbolicamente a ordem institucional total estive- e uma lésbica. Neste caso um certo conhecimento tem
ram na maioria das vezes localizados em instituições po- importância para todos os três indivíduos (por exemplo,
liticas e religiosas." o conhecimento dos procedimentos necessários para man-
ter à tona economicamente esta companhia), enquanto
Para nossas imediatas considerações, mais importante outro conhecimento s6 tem importância para dois dos in-
é o caráter dos papéis como mediadores de particulares divíduos (o savoir faire da lésbica ou, no outro caso,
setores do acervo comum do conhecimento. Em virtude da sedução heterossexual). Em outras palavras, a dis-
dos papéis que desempenha, o individuo é introduzido tribuição social do conhecimento acarreta uma dicotomi-
em áreas especificas do conhecimento socialmente obje- zação no que se refere à importância geral e à impor-
tivado, não somente no sentido cognoscitivo estreito, mas tância para papéis especificos.
também no sentido do "conhecimento" de normas, valo- Dado o acúmulo histórico do conhecimento em uma so-
res e mesmo emoções. Ser juiz evidentemente implica ciedade, podemos admitir que, devido à divisão do tra~
conhecimento da lei e provavelmente também conheci- balho, o conhecimento de papéis específicos crescerá em
mento de uma gama muito mais ampla de negócios hu- proporção mais rápida do que o conhecimento geralmente
manos de repercussões jurídicas. Implica também, con- relevante e acessível. A multiplicação das tarefas espe-
.. As representaçlles slmbóllc:as da Integraçlo c:onstltuem o que Durkhelm
c:hamou "rellgllo». .. O c:onc:eito de distribuição social do c:onhec:imento deriva de Sc:hutz.

106 107
cíficas produzida pela divisão do trabalho requer soluções cialistas em competição ou quando a especialização tor-
padronizadas que possam ser facilmente aprendidas e nou-se tão complicada que o leigo fica desorientado) não
transmitidas. Estas, por sua vez, requerem o conhecimento devem no momento nos preocupar.
especializado de certas situações e das relações entre E' possível, assim, analisar a relação entre os papéis
meios e fins em termos das quais as situações são e o conhecimento partindo de dois pontos de vista. Con-
socialmente definidas. Em outras palavras, surgirão es- siderados na perspectiva da ordem institucional, os papéis
pecialistas cada um dos quais terá de conhecer tudo aparecem como representações institucionais e mediações
aquilo que é considerado necessário para a realização de de conjuntos de conhecimento institucionalmente objeti-
sua particular tarefa. vados. Visto na perspectiva dos vários papéis, cada um
Para acumular o conhecimento de papéis especificos destes transporta consigo um apêndice socialmente defi-
uma sociedade deve ser organizada de tal maneira que nido de conhecimentos. As duas perspectivas, está claro,
certos indivíduos possam concentrar-se em suas espe- apontam para o mesmo fenômeno global, que é a dia-
cialidades. Se numa sociedade de caçadores certos indi- lética essencial da sociedade. A primeira perspectiva pode
víduos devem tornar-se especialistas como ferreiros fabri- ser resumida na proposição segundo a qual a sociedade
cantes de espadas, terá de haver provisões que os liberem só existe quando os indivíduos têm consciência dela, a
das atividades da caça, incumbência que recai sobre todos segunda perspectiva resume-se na proposição de que a
os outros adultos masculinos. O conhecimento especiali- consciência individual é socialmente determinada. Estrei-
zado de tipo mais indefinível, tal como o conhecimento tando a questão para tratar apenas do assunto dos pa-
dos mistagogos e outros intelectuais, requer uma orga- péis, podemos dizer que, por um lado, a ordem institu-
rtização social semelhante. Em todos esses casos os es- cional é real apenas na medida em que é realizada em
pecialistas tornam-se administradores dos setores do ca- papéis executados e que, por outro lado, os papéis são
bedal do conhecimento que lhes foi socialmente atribuído. representativos de uma ordem institucional que define seu
Ao mesmo tempo, uma importante parte do conheci- caráter (incluindo seus apêndices de conhecimentos) e da
mento geralmente significativo é a tipologia dos especia- qual derivam o sentido objetivo que possuem.
listas. Enquanto os especialistas são definidos como in- A análise dos papéis tem particular importância para a
divíduos que conhecem suas especialidades, qualquer sociologia do conhecimento porque revela as mediações
pessoa deve saber quem são os especialistas no caso
existentes entre os universos macroscópicos de significa-
de precisarem das especialidades deles. O homem da rua
ção, objetivados por uma sociedade, e os modos pelos
não tem obrigação de saber as complicações da magia
da produção da fertilidade ou das bruxarias lançadas quais estes universos são subjetivamente reais para os
contra alguém. O que deve saber, porém, é a que fei- indivíduos. Assim, é possível, por exemplo, analisar as
ticeiros deve recorrer se tem necessidade de algum desses raízes sociais macroscópicas de uma concepção religiosa
serviços. Uma tipologia dos peritos (aquilo que os cien- do mundo em certas coletividades (digamos, classes,
tistas sociais contemporâneos chamam um guia de refe- grupos étnicos ou rodas intelectuais), e também analisar
rências profissionais) é assim parte do estoque de conhe- a maneira em que esta concepção do mundo manifesta-se
cimento importante e acessível geralmente, ao passo que na consciência de um indivíduo. As duas análises s6
o conhecimento que constitui a especialidade não é. As podem ser efetuadas juntas somente se indagarmos dos
dificuldades práticas que podem surgir em certas socie- modos pelos quais o indivíduo, em sua ativkfade social
dades (por exemplo, quando existem grupos de espe- total, se relaciona com a coletividade em questão. Esta

108 109
pesquisa será necessariamente um exercício de análise a esfera da institucionalização será ampla. Se são poucas
dos papéis." as estruturas relevantes geralmente compartilhadas, a
esfera da institucionalização será estreita. Neste último
caso, há ainda mais a possibilidade da ordem institu-
e) Extensão e modos de institucionalização cional ser consideravelmente fragmentada, quando certas
estruturas importantes são partilhadas por grupos no in-
Até aqui temos discutido a institucionalização em termos terior da sociedade, mas não pela sociedade em tota-
dos aspectos essenciais que podem ser considerados cons- lidade.
tantes sociológicas. Evidentemente não podemos neste Pode ser útil do ponto de vista heurístico pensar,
tratado dar mesmo uma visão de conjunto das incontá- neste caso, em termos de extremos ideais típicos. E'
veis variações das manifestações e combinações históricas possível conceber uma sociedade na qual a institucionali-
destas constantes, tarefa que só poderia ser realizada es- zação seja total. Nessa sociedade todos os problemas
crevendo-se uma história universal do ponto de vista da são comuns, todas as soluções desses problemas são
teoria sociológica. Há, contudo, muitas variações histó- sociologicamente objetivadas e todas as ações sociais são
ricas no caráter das instituições que são tão importantes institucionalizadas. A ordem institucional abrange a tota-
para a análise sociológica concreta que precisam ser lidade da vida social, que se assemelha à execução con-
pelo menos resumidamente discutidas. Continuaremos, tínua de uma complexa e altamente estilizada liturgia.
naturalmente, focalizando a relação entre as instituições e Não há a distribuição do conhecimento em papéis es-
o conhecimento. pecíficos, ou quase não há, visto que todos os papéis são
Ao investigar qualquer ordem institucional concreta, executados em situações de igual importância para to-
pode-se fazer a seguinte pergunta: Qual é a extensão dos os atores. Este modelo heurístico de uma sociedade
da institucionalização na totalidade das ações sociais em totalmente institucionalizada (tema adequado para pesa-
uma dada coletividade? Em outras palavras, de que ta- delos, diga-se de passagem) pode ser ligeiramente modi-
manho é o setor da atividade institucionalizada compa- ficado, concebendo-se que todas as ações sociais são
rado com o setor não institucionalizado?" E' claro que institucionalizadas, mas não somente em torno de pro-
há uma variação histórica neste assunto, uma vez que as blemas comuns. Embora o estilo de vida que uma socie-
diversas sociedades deixam maior ou menor espaço para dade deste tipo imporia a seus membros fosse por igual
as ações não institucionalizadas. Uma consideração geral rígido, haveria um grau maior de distribuição do co-
importante é o esclarecimento dos fatores que determi- nhecimento em papéis específicos. Várias liturgias esta-
nam um campo de institucionalização mais vasto por riam sendo executadas ao mesmo tempo, por assim dizer.
oposição a um campo mais estreito. Não é preciso dizer que nem o modelo da totalidade
Dito de modo muito formal, a extensão da institucio- institucional nem sua forma modificada podem ser en-
nalização depende da generalidade das estruturas impor- contradas na história. As sociedades reais porém podem
tantes. Se muitas, ou a maioria, das estruturas impor- ser consideradas segundo o modo como se aproximam
tantes de uma sociedade são geralmente compartilhadas, deste tipo extremo. E' então possível dizer que as socie-
dades primitivas aproximam-se desse tipo em grau muito
.. o termo "mediaçlo" foi usado por Sartre, mas sem o significado con- mais elevado do que as civilizadas." E' possível mesmo
creto que a teoria dos papéis é capaz de lhe dar. O termo serve bem
para indicar o nexo geral entre a teoria dos papéi! e a sociologia do
conhecimento. .. E' a isto que Durkheim se referia com o nome de. "solidariedade
.. Esta questlo poderia ser designada como se referindo l "densidade" orgânica". Lucien Lévy-Bruhl dA maior conteúdo psicológico a este conceito
da ordem institucional. Contudo, procuramos evitar introduzir novos terlllos de Durkheim quando fala de "participaçlo mistica" nas sociedades pri-
e decidimos nlo usar este termo apesar de ser sugestivo. mitivas.

110 111
dizer que no desenvolvimento das civilizações arcaicas tância social, isto é, a "teoria pura"... Isto significa que
há um progressivo movimento que as faz afastarem-se certos indivíduos são (voltando a um exemplo anterior)
deste tipo." liberados da caça não apenas para forjar armas mas
O extremo oposto seria uma sociedade na qual hou- também para fabricar mitos. Temos assim a "vida teó-
vesse apenas um único problema comum e só existisse rica", com sua luxuriante proliferação de corpos especia~
institucionalização com respeito a ações referentes a este Iizados de conhecimento, ministrados por especialistas
problema. Nessa sociedade quase não haverá um acervo cujo prestígio social pode realmente depender de sua
comum do conhecimento. Quase todo o conhecimento incapacidade de fazer qualquer outra coisa a não ser
seria de papéis específicos. Em termos de sociedades teorizar, o que conduz a vários problemas analíticos a
macroscópicas, mesmo as aproximações a este tipo são que voltaremos mais tarde.
historicamente impraticáveis. Mas certas aproximações
A institucionalização não é contudo um processo irre-
podem ser encontradas em formações sociais menores,
versível, a despeito do fato das instituições, uma vez
por exemplo, em colônias de Iibertários, onde os interes-
formadas, terem a tendência a perdurar." Por uma mul-
ses comuns limitam-se às disposições econômicas, ou em
tiplicidade de razões históricas, a extensão das ações
expedições militares constituídas por um certo número
institucionalizadas pode diminuir. Pode haver desinsti-
de unidades tribais ou étnicas, cujo único problema co-
tucionalização em certas áreas da vida social." Por
mum é empreender a guerra.
exemplo, a esfera privada que surgiu na moderna socie-
Deixando de lado o estímulo às fantasias sociológicas, dade industrial é consideravelmente desinstitucionalizada,
estas ficções heurísticas são úteis unicamente na medida se comparada com a esfera pública. M
em que ajudam a esclarecer as condições que favorecem
as aproximações a elas. A condição mais geral é o grau U ma outra questão a respeito da qual as ordens ins-
de divisão do trabalho, com a concomitante diferencia- titucionalizadas variarão historicamente é a seguinte:
ção das instituições." Toda sociedade na qual existe Qual é a relação das diversas instituições umas com as
crescente divisão do trabalho está se afastando do pri- outras nos níveis de desempenho e significação?" No
meiro tipo extremo acima descrito. Outra condição geral. primeiro tipo extremo acima indicado há unidade ~e de-
estreitamente relacionada com a anterior, é o acesso a sempenhos e significações institucionais em cada blOgra-
,.,'
um excedente econômico que torna possível a certos in- .. A relaçllo entre "teoria pura" e excedente econômico foi pela primeira
"
divíduos ou grupos empenharem-se em atividades espe- vez Indicada por Marx.
.. A tendência das Instituições a persistirem foi analisada por Oeorg
cializadas não diretamente relacionadas com a subsistên- Slmmel em seu conceito de "fidelidade". Cf. sua Sozlologle (Berlim,
Duncker und Humblot, 1958), pp. 438ss.
cia." Estas atividades especializadas, conforme vimos, .. Este conceito de deslnstitucionalização foi derivado de Oehlen .
•, A análise da desinstltucionalizaçllo na esfera privada é um problema
conduzem à especialização e à segmentação do estoque central da psicologia social de Oehlen da sociedade moderna. Cf. sua obra
comum do conhecimento. E estas tornam possível o co- D/e Sede Im technischen Zeltaiter (Hamburgo, Rowohlt, 1957).
.. Se estivéssemos dispostos a nos acomodar a novos neologismos, pode-
nhecimento subjetivamente destacado de qualquer impor- riamos chamar Isto a questão do grau de "fusllo" ou "segmentação" da
ordem Institucional. A vista disto, esta questllo pareceria ser Idêntica ao
Interesse estruturai-funcionai relativo A "Integração funcionai" das so-
.. E' posslvel comparar aqui os conceitos de "compacidade" e de "dlfe- ciedades. Este último termo, porém, supõe que a "Integraçlo" de uma
renclaçlo" de Erlc Voegelln. Veja-se seu livro Order and History, Vol. I sociedade pode ser determinada por um observador externo, que examina
(Baton Rouge, La., Louislana Unlverslty Press, 1956). Talcot Parsons falou o funcionamento exterior das Instituições da sociedade. Poderlamos afirmar,
de dlferenclaçlo Institucional em vArias partes de sua obra. ao contrArio, que tanto as "funções" quanto as "disfunções" só ,p,odem ser
.. A re/açllo entre a dlvlsllo do trabalho e a dlferenclaçllo Institucional analisadas por melo dos nlveis de significação. Por conseguinte, Integraçlo
foi analisada por Marx, Durkhelm, Weber. Ferdlnand Tõnnles e TalcoU funcionai", se quisermos usar este termo, significa a Integração da ordem
Parsoos • Institucional mediante vArlos processos legitimadores. Em outras palavras,
•• Pode dizer-se que apesar de diferentes Interpretações de detalhes, a integraçlIo nlIo se encontra nas Instituições mas em ~a legltimaçilo.
hA um alto grau de éonsenso sobre esta questlo em toda a história di' Isto Implica, ao contrário do que lulgam os funclonallstas estruturaIs, que
teoria sociológica. uma ordem Institucional nlo pode ser devidamente compreendida COmO
"sistema".

I' , tl2 tl3


fia subjetiva. O acervo inteiro do conhecimento social homem (C-A). Processos institucionais distintos podem
acha-se atualizado em cada biografia individual. Todos continuar a coexistir sem integração total. Afirmamos en-
fazem tudo e sabem tudo. O problema da integração dos tão que o fato empírico de instituições conservarem-se
significados (isto é, da relação, dotada de sentido, entre unidas, a despeito da impossibilidade de admitir isto a
as diversas instituições) é um problema exclusivamente priori, só pode ser explicado com referência à consciên-
subjetivo. O sentido objetivo da ordem institucional apre- cia reflexiva de indivíduos que impõem certa lógica à
senta-se a cada indivíduo como dado universalmente co- sua experiência das diversas instituições. Podemos agora
nhecido, socialmente admitido como natural e certo en- levar esta afirmação um passo adiante, admitindo que
quanto tal. Se há algum problema, deve-se a dificulda- um dos três indivíduos (suponhamos que seja o homem,
des subjetivas que o indivíduo pode ter na interiorização A) fica insatisfeito com a falta de simetria da situação.
de significados a respeito dos quais existe acordo social. Isto não implica que as relações de que participa (A-B e
O crescente desvio com relação a este modelo heurís- C-A) tenham mudado para ele. Ao contrário, é a relação
tico (isto é, evidentemente, em todas as sociedades reais, de que não participava anteriormente (B-C) que agora o
embora não em grau semelhante) determinará importan- aborrece. Isto pode acontecer porque interfere em seus
tes modificações no caráter de serem dadas que se en- próprios interesses (C perde muito tempo fazendo amor
contra nas significações institucionais. As duas primeiras com B e negligencia suas atividades de arranjo de flores
já foram indicadas: a segmentação da ordem institucional, com ele), ou pode ser que tenha ambições teóricas. Em
havendo somente certos tipos de indivíduos que executam qualquer caso, deseja unir as três relações distintas e
certas ações, e, seguindo-se a esta, uma distribuição so- seus concomitantes processos de formação de hábitos em
cial do conhecimento, sendo reservados a certos tipos o uma totalidade coerente, dotada de sentido, A-B-C.
conhecimento de papéis especificos. Com estes desenvol- Como pode fazer isto?
vimentos, porém, aparece uma nova configuração no nível Imaginemos que seja um gênio religioso. Um dia apre-
da significação. Haverá agora um problema objetivo re- senta aos outros dois uma nova mitologia. O mundo foi
ferente à integração envolvente das significações dentro criado em duas etapas, a terra seca pelo deus criador
da sociedade inteira. Este é um problema completamente copulando com sua irmã, o mar foi criado em um ato
diferente do problema puramente subjetivo que consiste de mútua masturbação entre os dois e uma deusa gêmea.
na necessidade que o indivíduo tem de harmonizar o E quando o mundo foi assim feito, o deus criador jun-
I"
" sentido que dá à sua biografia com o sentido que lhe tou-se à deusa gêmea na grande dança das flores, e
é atribuído pela sociedade. A diferença é tão grande desta maneira surgiram a flora e a fauna na face da
quanto a existente entre produzir propaganda para con- terra seca. O triângulo existente, constituído pela here-
vencer os outros e produzir memórias para se convencer rossexualidade, o lesbianismo e o cultivo das flores não
a si mesmo. é outra coisa senão uma imitação humana das ações
Em nosso exemplo do triângulo homem-mulher-lésbica arquetípicas dos deuses. Muito satisfatório? O leitor que
estendemo-nos um pouco para mostrar ser impossível possua alguma cultura em mitologia comparada não terá
admitir a priori que diferentes processos de instituciona- dificuldade em achar paralelos históricos para esta vinheta
Iização "serão coerentes". A estrutura relevante parti- cosmogõnica. Nosso homem pode ter mais dificuldade
lhada pelo homem e a mulher (A-B) não tem de ser in- em conseguir que os outros aceitem sua teoria. Terá
tegrada com aquela de que participam a mulher e a um problema de propaganda. Se admitirmoS' no entanto
lésbica (B-C) ou a de que participam a lésbica e o que B e C também tiveram dificuldades' práticas em

114 115
fazer andarem seus vários projetos ou (menos provavel- 10tal de sentido objetivo para a experiência e o conheci-
mente) que são inspirados pela concepção do universo mento social fragmentado do indivíduo. Ainda mais,
de A, há muitas probabilidades de nosso homem ser haverá não somente o problema da integração total do-
capaz de levar a cabo com êxito seu esquema. Uma vez tada de sentido mas também um problema de legitima-
que tenha sucesso e todos os três ~ndivíduos "saibam" ção das atividades institucionais de um tipo de ator
que suas diversas ações trabalham Junta~, em f~vor d~ com relação aos outros tipos. Podemos admitir que
grande sociedade (que é A-B-C), este c~nhec!mento existe um universo de significação que outorga sentido
influenciará o que continua havendo na sJtuaçao. Por objetivo às atividades de guerreiros, fazendeiros, comer-
exemplo, C pode ser levada a programar se.u ~em.po ~e ciantes e exorcistas. Isto não quer dizer que não haja
maneira mais equitativa entre suas duas pnncJpaJs atI- conflito de interesses entre esses tipos de atores. Mes-
mo dentro do universo comum de significação, os exor-
vidades.
cistas podem ter o problema de "explicar" algumas de
Se esta extensão de nosso exemplo parecer forçada suas atividades aos guerreiros, e assim por diante.. Os
podemos torná-Ia mais convincente imaginando um pro- métodos dessa legitimação também variam historica-
cesso de secularização na consciência de nosso homem mente. l i
de gênio religioso. A mitologia já ?ão parece ~:is. plau- Outra conseqüência da segmentação institucional é a
sível. A situação tem de ser explicada pela CJenCJa so- possibilidade de subuniversos de significação socialmente
cial. Isto naturalmente é muito fácil. E' evidente (isto é separados. Estes resultam de acentuações da especiali-
para o nosso homem de gênío religioso transformado zação dos papéis, levadas a um ponto em que o conheci-
em cientista social) que os dois tipos de atividade sexual mento específico de um papel torna-se inteiramente eso-
incluídos na situação exprimem necessidades psicológicas térico, comparado com o acervo comum do conhecimento.
profundas dos participantes. "Sabe" que frustrar estas Estes subuniversos de significação podem estar ocultos
necessidades levará a tensões "disfuncionais". Por outro à visão geral, ou não. Em certos casos, não somente o
lado, é um fato que nosso trio vende suas flores por conteúdo cognoscitivo do subuniverso esotérico mas até
dólares na outra extremidade da ilha. Isso resolve. Os mesmo a existência dele e da coletividade que o sus-
padrões de comportamento A-B e B-C são funcionais tenta podem ser um segredo. Os subuniversos de signi-
em termos do "sistema de personalidade", enquanto C-A ficação podem ser socialmente estruturados de acordo
é funcional em termos do setor econômico do "sistema com vários critérios, sexo, idade, ocupação, tendência re-
social". A-B-C nada mais é do que o desfecho racional ligiosa, gosto estético, etc. A probabilidade de surgirem
da integração funcional em nível intersistêmico. Ainda subuniversos cresce sem dúvida rapidamente com a pro-
mais, se A tem sucesso na propaganda desfa teoria às gressiva divisão do trabalho e os excedentes econômicos.
duas moças, o "conhecimento" possuido P?r e~as dos Numa sociedade com economia de subsistência pode haver
imperativos funcionais implicados em sua sJtuaçao terá segregação cognoscitiva entre homens e mulheres ou en-
certas conseqüências que influenciarão sua conduta. tre velhos guerreiros e jovens, tal como acontece nas
Mufafis mufandis, o mesmo argumento será válido se "sociedades secretas" comuns na Africa e entre os rn-
o transportarmos do idílio face a face ~e nosso exe~plo dios americanos. Pode ainda ser capaz de custear a
para o nível macrossocial. A segmentaçao da ordem ms- existência esotérica de alguns poucos sacerdotes e fei-
titucional e a concomitante distribuição do conhecimento ticeiros. Subuniversos de significação altamente desen-
,
levarão ao problema de fornecer significados integrado- li Este problema relacIona-se com o da "Ideologia", que discutimos 8
res que abranjam a sociedade e ofereçam um contexto seguir em um contexto mais estreItamente definido.

116 117
volvidos, tais como os que caracterizaram por exemplQ dedade total, cada qual considerando-a do ângulo de um
as castas hindus, a burocracia literária chinesa ou as destes subuniversos. O quiroprático tem um ângulo de
rodas sacerdotais do antigo Egito, exigem soluções mais observação da sociedade diferente do possuído pelo
adiantadas do problema econômico. professor de uma faculdade de medicina, o poeta vê a
Como todos os edifícios sociais de significação, os sociedade diferentemente do homem de negócios, o ju-
subuniversos devem ser "transportados" por uma coleti- deu do gentio, etc. Não é preciso dizer que esta multipli-
vidade particular", isto é, pelo grupo que produz conti- cação de perspectivas aumenta muito o problema de
nuamente os significados em questão e dentro do qual estabelecer um docel estável simbólico para a sociedade
estes significados têm realidade objetiva. Po~e hav~r inteira. Cada perspectiva, seja lá com que teorias anexas
conflito ou competição entre tais grupos. No mvel mais ou mesmo Weltanschauungen venha acompanhada, es-
simples pode haver conflito com relação à alocação ~os tará relacionada com os interesses sociais concretos do
recursos excedentes entre os especialistas em questao, grupo que a sustenta. Isto não significa, porém, que as
por exemplo, quanto à isenção do trabalho. pr~dutivo várias perspectivas, muito menos as teorias ou Weltan-
Quem estará oficialmente isento, todos os feiticeiros ou schauungen, não sejam senão reflexos mecânicos dos in-
somente aqueles que prestam serviços à família do chefe? teresses pessoais. Especialmente no nível teórico é inteira-
Ou quem deve receber das autoridades um pagamento mente possível que o conhecimento chegue a despren-
fix~, aqueles que curam o doente por meio de ervas. ou der-se muito dos interesses biográficos e sociais do co-
os que o fazem entrando em transe? Estes conflitos nhecedor. Assim, pode haver razões sociais tangíveis para
sociais traduzem-se facilmente em conflitos entre escolas que os judeus se preocupem com certos empreendimen-
rivais de pensamento, cada qual procurando estabelecer- tos cientificos, mas é impossível predizer as posições
se e desacreditar, quando não liquidtlr, o corpo de conhe- científicas relacionando-as com o fato de serem susten-
cimento competidor. Na sociedade contem~orânea, ~on­ tadas por judeus ou por indivíduos que não são judeus.
tinuamos a ter estes conflitos (tanto soclo-econômlcos Em outras palavras, o universo cientifico de significação
quanto cognoscitivos) entre a medicina or!odoxa e.~su~s é capaz de chegar a um alto grau de antonomia em
rivais do tipo da quiroprática, homeopatia ou Ctencta oposição à sua própria base social. Teoricamente, embora
Cristã. Nas sociedades industriais avançadas, que per- na prática haja grande variação, isto é válido para qual-
mitem com seu imenso excedente econômico, que gran- quer corpo de conhecimentos, mesmo com perspectivas
de nú:Uero de indivíduos se devotem em regime de te~~o cognoscitivas sobre a sociedade.
integral até aos objetivos mais ?bs~~ros!. a competlçao
pluralista entre subuniversos de sl.gmfl~açao de t~das as Mais ainda, um corpo de conhecimentos, uma vez que
espécies concebíveis torna-se a slÍuaçao nor~al... _ tenha alcançado o nível de um subuniverso de signifi-
Com o estabelecimento de subuniversos de slgmflcaçao cação relativamente autônomo, tem a capacidade de
emerge uma multiplicidade de perspectivas sobre a so- exercer uma ação de retorno sobre a coletividade que o
produziu. Por exemplo, os judeus podem tornar-se cien-
.. Weber refere-se repetidamente a várias coletlvl.dades como "portado- tistas sociais porque têm problemas especiais na socie-
ras" (Trllger) daquilo que chamamos a~ul dSUbU~:Vg~~~O te a~~~r~!IC~~!~~
especialmente em sua soclolol;la compara a a re 'd' Marx Unterbau/
dade por serem judeus. Mas logo que tenham sido ini-
fenÔmeno relaciona-se sem duvida com o esquema e ciados no universo do discurso científico sociológico,
u~eÁba~mpetlçliO pluralista entre subunlversos de slgnlflcaçlio é um
mais Importantes problemas da sociologia emplrlca do conheCltento a
d3 s
podem examinar a sociedade de um ângulo que não
sociedade contemporânea. Tratamos dest~ problema em outro ugar. em é mais caracteristicamente judeu, mas até mesmo suas
nossa obra sobre a sociologia da rellg,lo. mas nlio vemos razlo em
desenvolver a análise deste tema no presente tratado. atividades sociais como judeus podem modificar-se em
118 119
conseqüência das perspectivas científicas sociológicas re- ampla, existe o problema de manter de fora os estranhos
centemente adquiridas. O grau de separação do conhe- e ao mesmo tempo fazer com que admitam a legitimidade
cimento com relação às suas origens existenciais depende deste procedimento. Isto é realizado por meio de várias
de um considerável número de variáveis históricas (tais técnicas de intimidação, propaganda racional c irracio-
como a urgência dos interesses sociais em jogo, o grau nal (apelando para os interesses dos estranhos e para
de requinte teórico do conhecimento em questão, a im- suas :moçõcs), mistificação c, em geral, a manipulação
portância ou falta de importância social deste último, e d.os slmbolos de prestígio. Os íntimos, por outro lado,
outros). O princípio importante para nossas considera- tem de ser mantidos dentro. Isto exige a criação de
ções gerais consiste em que a relação entre o conhed- procedimentos práticos e teóricos pelos quais é possível
mento e sua base social é dialética,' isto é, o conheci- reprimir a tentação de escapar do sub-universo. Exa-
mento é um produto social e o conhecimento é um fator minaremos mais adiante com alguns detalhes este duplo
na transformação social." Este principio da dialética problema de legitimação. De momento, basta-nos dar
entre a produção social e o mundo objetivado que é uma ilustração. Não é suficiente instituir um subuni-
produto dela já foi explicado. E' especialmente impor- ve.rso e~otérico da ~ledicina. E' preciso convencer o pú-
tante tê-lo em mente em qualquer análise dos subuni- bhco leIgo de que Isto é correto e benéfico e a frater-
versoS concretos de significação. nidade médica deve ser conservada nos padrões deste
O crescente número de complexidade dos subuniversos subuniverso. Assim a população geral é intimidada pelas
fazem com que se tornem cada vez mais inacessíveis imagens da ruína física que se segue à atitude de
aos estranhos. Passam a ser enclaves esotéricos, "her- "opor-se aos conselhos do médico". E' persuadida a não
meticamente vedados" (no sentido classicamente ligado fazer isso pelos benefícios práticos da obediência e pelo
ao corpo hermético do conhecimento secreto) a todos, seu próprio horror da doença e da morte. Para subli-
exceto àqueles que foram devidamente iniciados em seus nhar sua autoridade, a profissão médica recobre-se com
mistérios. A crescente autonomia dos subuniversos con- os velhos símbolos de poder e mistério, das vestimentas
tribui para criar problemas especiais de legitimação tanto exóticas à linguagem incompreensível, tudo isso natu-
para os estranhos quanto para os íntimos. Os estranhos ralmente legitim.ado para o público e para ela própria
têm de ser impedidos de entrar, e mesmo conservados em termos práticos. Enquanto isso, os habitantes devi-
na ignorância da existência do subuniverso. Se, porém, damente credenciados do mundo médico são preservados
não chegam a ,ignorá-lo e se o subuniverso requer vários do "charlatanismo" (isto é, de pisarem fora do subuni-
privilégios e reconhecimentos especiais da sociedade mais verso médico em pensamento ou na ação) não só pelos
poderosos controles externos de que a profissão dispõe,
.. Esta proposlçlio pode ser posta em termos marxistas, dizendo-se que
existe uma relação dialética entre infra-estrutura (Unterbau) e superestru- n:'a~ também por todo um corpo de conhecimento pro-
tura (Ueberbau), concepção marxista largamente perdida na principal f1s510nal que lhes oferece a "prova científica" da lou-
linha do marxismo até muito recentemente. O problema da possibilidade
do conhecimento socialmente destacado foi sem dúvida central para a so-
ciologia do conhecimento, tal como era definida por Scheler e Mannhelm.
cura, e até d~ maldade, deste desvio. Em outras palavras,
Não estamos dando-lhe um lugar central por motivos Inerentes a nosso
enfoque teórico geral. A questão importante para uma sociologia do co-
entra e~ açao uma maquinaria inteira de legitimação,
nhecimento teórica é a dialética entre o conhecimento e sua base social. com o fIm de manter os leigos como leigos e os médicos
Questões tais como a de Mannheim referente à "lnteIlgentsia descompro-
metida" são aplicações da sociologia do conhecimento a fenOmenol hIstó- como médicos, e (se possível) que ambos assim pro-
ricos e emplricos concretos. As proposições a respeito destes terão de ser cedam com satisfação.
feitas em um nlvel de generalidade teórica muito menor do que aquele
que nos interessa agora. As questões concernentes à autonomia do conhe-
cimento social-cientifico, por outro lado, deveriam ser tratadas no con-
texto da metodologia das ciências sociais. Esta Area foi por nós exc\ulda
Surgem problemas especiais como resultado. das dife-
de nosSa definição do âmhito da sociologia do conhecimento, por motfvo5 rentes velocidades de variação das instituições e dos sub-
teóricos explicados em nossa Introduçlo.

120 121
universos. 17 Isso torna mais difícil a legitimação global
da ordem institucional e as legitimações específicas de ções da vontade divina. A reificação implica que o ho-
determinadas instituições e subuniversos. Uma sociedade mem é capaz de esquecer sua própria autoria do mundo
feudal com um exército moderno, uma aristocracia agrá- humano, e mais, que a dialética entre o homem, o pro-
ria tendo de existir nas condições do capitalismo indus- dutor, e seus produtos é perdida de vista pela consciência.
trial, uma religião tradicional forçada a enfrentar a po- O mundo reificado é por definição um mundo desuma-
pularização de uma concepção científica do mundo, a nizado. E' sentido pelo homem como uma facticidade
coexistência em nossa sociedade da teoria de relatividade estranha, um opus alienum sobre o qual não tem con-
com a astrologia, nossa experiência contemporânea está trole, em vez de ser sentido como o opus proprium de
tão cheia de exemplos desta espécie que não é necessário sua mesma atividade produtora.
invectivar este assunto. Basta dizer que em tais condi- Deve ter ficado claro, por nossas anteriores consi--
ções o trabalho dos vários legitimadores torna-se espe- derações sobre a objetivação, que logo assim que se
cialmente árduo. estabelece um mundo social objetivo a possibilidade de
U ma questão final de grande interesse teórico, que reificação nunca está afastada." A objetividade do mun-
surge da variabilidade histórica da institucionalização, do social significa que este faz frente ao homem como
é a que se refere à maneira pela qual a ordem institu- algo situado fora dele. A questão decisiva consiste em
cional é objetivada: até que ponto uma ordem institu- saber se ~ ~omem ainda conserva a noção de que,
cional, ou alguma parte dela, é aprendida como uma embora ob]etJvado, o mundo social foi feito pelos ho-
facticidade não humana? Esta é a questão de reificação mens, e portanto, pode ser refeito por eles. Em outras
da realidade social." palavras, é possível dizer que a reificação constitui o
A reificação é a apreensão dos fenômenos humanos grau extremo do processo de objetivação, pelo qual o
como se fossem coisas, isto é, em termos não humanos mundo objetivado perde a inteligibilidade que possui
ou possivelmente super-humanos. Outra maneira de di,.. como empreendimento humano e fixa-se como uma fac-
zer a mesma coisa é que a reificação é a apreensão ticidade não-humana, não-humanizável, inerte." Tipica-
dos produtos da atividade humana como se fossem algo mente, a relação real entre o homem e seu mundo é
diferente de produtos humanos, como se fossem fatos invertida na consciência. O homem, o produtor de um
da natureza, resultados de leis cósmicas ou manifesta- mundo, é apreendido como produto deste, e a atividade
humana como um epifenômeno de processos não-huma-
.. Este é o f'enOmeno comumente chamado "atraso culturljl" na sociologia nos. Os significados humanos não são mais entendidos
americana desde Ogburn. Evitamos este termo devido à sua conotação evo-
lucionista e Implicitamente valorativa . como produzindo o mundo, mas como sendo, por sua
.. A relficação (Verdlnglichung) é um Importante conceito marxista, par-
ticularmente nas considerações antropológicas dos FrUhschriften, em ,seguleja vez, produtos da "natureza das coisas". Deve-se acen-
desenvolvido em termos do "fetichismo das mercadorias" em Das Kapital.
Para os desenvolvimentos mais recentes do conceito na teoria marxista. tuar que a reificação é uma modalidade da consciência
cf. Oyõrgy Lukács, Histolre et consclence de clas4e, pp. l09ss; Lucien ou, mais precisamente, uma modalidade da objetivação
Ooldmann, Recherches dla/ecl/ques (Paris, Oalilmard, 1959), pp. 64ss; Joseph
Gabei, La fuusse conscience (Paris, Editions de Minult, 1962), ,e Formen
der Entfremdung (Frankfurt, Flscher, 1964). Para uma extensa aná:ise da
aplicabl:idade do conceito em uma sociologia do, conhecimento não doutri- • Recentes crít!,~OS franceses da socloiogia de Durkheim. tais como ]ules
nária, cf. Peler L. Berger e Stanley Pullberg, "Relfication and the Soei o" Monnerot (Les falts soclaux ne sont pas des choses 1946) e Armand CuvllJier
logical Critique of Consciousness", Hlstory and Theory. IV: 2, 198ss (1965). ("Durl<helm et Marx", Cahlers internationaux de' socl%gle, 1948) acusa-
No quadro de referência marxista o conceito de reiflcação relaciona-se ram-na de ser uma concepção rei fica da da realidade social. Em outras
estreitamente com o de alienação (Entfremdung),. Este, Jiltlmo conceito tem ~alavras, afirmam que a chosélté de Durkheim é ipso facto uma reiflcação
sido confundido nos recentes trabalhos sociológicos com fenOmenos que eja o que for que se possà dizer a este respeito no sentido da exegese
vão da anomia à neurose. ,quase além do ponto, de, possibilidade, de re- de D~!khelm, é posslvel em principio afirmar que "os fatos sociais são
cuperação terminológica. De qualquer modo,' julgamos que não é' aqui o coisas e ter em vista com esta expressão nada mais do que a objeti-
lugar para tentar esta recuperação e por conseguinte, evitamos o uso dQ V.idadée dos fatos sociais como produtos humanos. A chave teQrica da ques-
conceito. ' t ~ a distinção entre objetivação e reificação.
Compare-se aqui o conceito de Sartre do "prático-Inerte" na Crl-
I /que de la ra/son dla/ectique. '
122
123
pelo homem do mundo humano. Mesmo apreendendo o reificação das instituições consiste em outorgar-lhes um
mundo em termos reificados, o homem continua a pro- status ontológico independente da atividade e da signifi-
duzi-lo. Isto ê, paradoxalmente o homem é capaz de cação humanas. As reificações particulares são variações
produzir uma realidade que o nega. '" sobre este tema geral. O casamento, por exemplo, pode
A reificação é possível no nível pré-teórico e no nível ser reificado como imitação de atos divinos de criativi-
teórico da consciência. Os sistemas teóricos complexos dade, como mandamento universal da lei natural, como
podem ser descritos como reificações, embora presumi- conseqüência neces.sária de forças biológicas ou psico-
velmente tenham suas raízes em reificações pré-te6ricas, lógicas ou, afinal, como imperativo funcional do sistema
estabelecidas nesta ou naquela situação social. Assim, social. O que todas estas reificações têm em comum é
seria um erro limitar o conceito de reificação às cons- sua ofuscação do casamento como uma contínua produ-
truções mentais dos intelectuais. A reificação existe na ção humana. Conforme se pode ver facilmente neste
consciência do homem da rua, e na verdade esta última exemplo, a reificação pode ser tanto teórica quanto pré-
presença é praticamente mais significativa. Seria tam- teórica. Assim, o mistagogo pode maquinar uma teoria
bém um engano considerar a reificação como uma per- altamente complicada, indo do acontecimento humano
versão de uma apreensão do mundo social originaria- concreto aos recantos mais longínquos do divino cosmo,
mente não rcificada, uma espécie de queda cognoscitiva mas um casal camponês analfabeto no ato do casamento
de um estado de graça. Ao contrário, a documentação pode apreender o acontecimento com um estremecimento
etnológica e sociológica disponível parece indicar o reificador de terror metafísico. Através da reificação, o
oposto, a saber que a apreensão original do mundo mundo das instituições parece fundir-se com o mundo
social é consideravelmente reificada, tanto filogenetica- da natureza. Torna-se necessidade e destino, sendo vivido
mente quanto ontogeneticamente." Isto implica que a como tal, feliz ou infelizmente, conforme o caso.
apreensão da reificação como modalidade da consciência Os papéis podem ser reificados da mesma maneira
depende de uma desreificação, ao menos relativa, da que as instituições. O setor da autoconsciência que foi
consciência, o que é um acontecimento comparativamente objetivado num papel é então também apreendido como
tardio na história e em qualquer biografia individual. uma fatalidade inevitável, podendo o indivíduo negar
A ordem institucional em totalidade, e segmentos dela, qualquer responsabilidade. A fórmula paradigmática desta
pode ser apreendida em termos reificados. Por. exemplo, espécie de reificação é a proposição "não tenho escolha
a ordem inteira da sociedade pode ser concebIda como neste assunto, tenho de agir desta maneira por causa
um microcosmo refletindo o macrocosmo do universo de minha posição", como marido, pai, general, arcebispo,
total, feito pelos deuses. Tudo quanto acontece "aqui em presidente da diretoria, bandido ou carrasco, tal seja
baixo" é apenas um pálido reflexo do que ocorre. "lá o caso. Isto significa que a reificação dos papéis estreita
em cima"." Certas instituições podem ser apreendIdas a distância subjetiva que o indivíduo pode estabelecer
de modo semelhante. A "receita" fundamental para a entre si e o papel que desempenha. A distância impli-
Cl Por esta razão Marx chamou a conscltncla relficadora de falsa cons- cada em toda objetivação mantém-se, evidentemente, mas
cltncia. Este conceito pode ser relacionado com a "mA fé" (mauvalse foI) a distância causada pela desidentificação vai se reduzindo
de.. S:rt~~'ra de Luclen Lévi-Bruhl e a de Jean Piaget podem ser conside- até o ponto de desaparecer. Finalmente, a própria iden-
radas básicas para a compreensão da proto-reificaçAo, filogenetlcamente e
ontogenetlcamente. Também cf. Claude Lévl-Strauss, La pensée sau ... ag~ tidade (o eu total, se preferirmos) pode ser reificada,
(Paris, Plon, 1962). " .. • I" I
.. Sobre o paralelismo entre o "aqui embaixo e o I.. em c ma , e.
Mircea Ellade, Cosmos and History (New Vork, Harper, 1959). Uma 'p'0s l-
tanto a do indivíduo quanto a dos outros: Há então
çAo semelhante é tomada por Voegelln, op. clt., em ~eu estudo daq cIvi- uma identificação total do indivíduo com as tipificações
lizações cosmológicas".

124 125
que lhe são socialmente atribufdas. E' apreendido como "segunda ordem". A legitimação produz novos signifi-
não sendo nada senão esse tipo. Esta apreensão pode cados, que servem para integrar os significados já liga-
ser positiva ou negativamente acentuada em termos de dos a processos institucionais díspares. A função da le-
valores ou emoções. A identificação de "judeu" pode ser gitimação consiste em tornar objetivamente acessível e
igualmente reificada por um anti-semita e pelo próprio subjetivamente plausível as objetivações de "primeira or-
judeu, apenas o último acentuando positivamente a iden- dem", que foram institucionalizadas." Embora definamos
tificação, enquanto o primeiro a acentua negativamente. a legitimação por esta função, sem levar em conta os
Ambas as reificações outorgam um status ontológico e motivos específicos que inspiram qualquer processo par-
total a uma tipificação que é produzida pelo homem, e ticular legitimador, deveríamos acrescentar que a "inte-
que, mesmo quando interiorizada, objetifica somente um gração", de uma forma ou de outra, é também o propó-
segmento da personalidade." Uma vez mais, estas rp.i- sito típico que motiva os legitimadores.
ficações podem estender-se do nível pré-teórico do A integração e, correlativa mente, a questão da plau-
"aquilo que toda a gente sabe a respeito dos judeus" sibilidade subjetiva referem-se a dois níveis. Primeiro,
até as teorias mais complexas do judaísmo como mani- a totalidade da ordem institucional deveria ter sentido
festação da biologia ("o sangue judeu"), da psicologia simultaneamente para os participantes de diferentes pro-
("a alma judaica") ou da metafísica ("O mistério de cessos institucionais. A questão da plausibilidade refe-
Israel") . re-se aqui ao reconhecimento subjetivo de um sentido
A análise da reificação é importante porque serve global "por trás" dos motivos do inidV'íduo e de seus
de corretivo padrão para as tendências reificadoras do semelhantes, motivos predominantes no que diz respeito
pensamento teórico em geral, e do pensamento socio- à situação, mas apenas parcialmente institucionalizados,
lógico em particular. E' especialmente importante para tal como acontece na relação do chefe e do sacerdote,
a sociologia do conhecimento porque a impede de cair do pai e do comandante militar, ou até, no caso de um
numa concepção não dialética da relação entre aquilo mesmo e único indivíduo, do pai, que é também co-
que os homens fazem e o que pensam. A aplicação his- mandante militar de seu filho, consigo próprio. Isto,
tórica e empírica da sociologia do conhecimento deve pois, é um nível "horizontal" de integração e plausibi-
levar muito em conta as circunstâncias sociais que favo- !idade, correlacionando a ordem institucional total com
recem a desreificação, tais como o colapso global das vários indivíduos que participam dela em diferentes
ordens institucionais, o conflito entre sociedades ante- papéis, ou com vários processos institucionais parciais
riormente segregadas e o importante fenômeno da mar- de que um único indivíduo pode participar em qualquer
ginalização social." Estes problemas porém excedem o momento dado.
quadro de nossas atuais considerações. Em segundo lugar, a totalidade da vida do indivíduo,
a sucessiva passagem pelas várias ordens de uma or-
2. LEGITIMAÇAO dem institucional, deve ser tornada subjetivamente sig-
nificativa. Em outras palavras, a biografia individual em
a) As origens dos universos simbólicos suas várias fases sucessivas, institucionalmente pré-defi-
A legitimação enquanto processo é melhor definida di- nidas, deve ser dotada de sentido que torne a totalidade
zendo-se que se trata de uma objetivação de sentido de subjetivamente plausível. Por conseguinte, na duração

.. Sobre a relflcação da Identidade, compare-se com a análise do antl- .. O termo "legitimação" deriva de Weber, onde é desenvo.:vldo particu-
semitismo, feita por Sartre. larmente no contexto de sua sociologia polftlca. Demos-lhe aqui um uso
'" Sobre as condições da desrelflcação, cf. Berger e Pullbng, loc. cito multo mais amplo. .

126 127
da vida dos indivíduos singulares, deve acrescentar-se cações" (que tipicamente constituem uma "história" e
um nível "vertical" ao nível "horizontal" de' integração uma "sociologia" da coletividade em questão e que no
e plausibilidade subjetiva da ordem institucional. caso dos tabus do incesto provavelmente contêm tam-
Conforme argumentamos antes, a legitimação não é bém uma "antropologia") são tanto instrumentos legi-
necessária na primeira fase da institucionalização, quan- timadores quanto elementos éticos da tradição. A legi-
do a instituição é simplesmente um fato que não timação não apenas diz ao indivíduo por que deve rea-
exige nenhum novo suporte, nem intersubjetivamente lizar uma ação e não outra; diz-lhe também por que
nem biograficamente. E' evidente para todas as pessoas as coisas são o que são. Em outras palavras, o "conhe-
a quem diz respeito. O problema da legitimação surge cimento" precede os "valores" na legitimação das ins-
inevitavelmente quando as objetivações da ordem ins- tituições.
titucional (agor.a histórica) têm de ser transmitidas a uma E' possível distinguir analiticamente entre diferentes
nova geração. Nesse ponto, como vimos, o caráter evi- níveis de legitimação (empiricamente, está claro, estes
dente das instituições não pode mais ser mantido pela níveis coincidem em parte). A legitimação incipiente
memória e pelos hábitos do indivíduo. Rompeu-se a uni- acha-se presente logo que um sistema de objetivações
dade de história e biografia. Para restaurá-la, tornando lingüísticas da experiência humana é transmitida. Por
assim inteligíveis ambos os aspectos dessa unidade, é exemplo, a transmissão de um vocabulário de parentesco
preciso haver "explicações': e. ju~tificações d~~ ele~en­ ipso facto legitima a estrutura de parentesco. As "ex-
tos salientes da tradição Inshtuclonal. A legltlmaçao é plicações" legitimadoras fundamentais, por assim dizer,
este processo de "explicação" e justificação.·' estão incluídas no vocabulário. Assim, uma criança
A legitimação "explica "a ordem institucional ou"o~­ aprende que outra criança é um "primo", informação
gando validade cognoscitiva a seus signific~dos. o~Jeh­ que imediata e inerentemente legitima a conduta com
vados. A legitimação justifica a ordem InstitucIOnal relação aos "primos", que é aprendida juntamente com
dando dignidade normativa a seus imperativos práticos. a designação. Pertencem a este primeiro nível de legiti-
E' importante compreender que a legitimação tem um mação incipiente todas as afirmações tradicionais sim-
elemento cognoscitivo assim como um elemento norma- ples do tipo "E' assim que se faz as coisas", as pri-
tivo. Em outras palavras, a legitimação não é apenas meiras e geralmente mais eficazes respostas ao "Por
uma questão de "valores". Sempre implica também "co- quê?" das crianças. Este nível, evidentemente, é pré-
nhecimento". Por exemplo, uma estrutura de parentesco teórico. Mas é o fundamento do "conhecimento" evi-
não é legitimada simplesmente pela ética de seus parti- dente, sobre o qual devem repousar todas as teorias
culares tabus do incesto. E' preciso primeiro haver "co- subseqüentes, e inversamente, que estas devem atingir
nhecimento" dos papéis que definem tanto as ações "cer- para serem incorporadas à tradição.
tas" quanto as "erradas", no interior da estrutura. O in- O segundo nível de legitimação contém proposições
divíduo, digamos, não deve casar-se no interior do seu clã. teóricas em forma rudimentar. Podem ser encontrados
Mas é preciso que primeiro ele "saiba" que é um membro aqui vários esquemas explicativos que relacionam con-
deste clã. Este "conhecimento" chega até ele atravês juntos de significações objetivas. Estes esquemas são al-
de uma tradição que "explica" o que os clãs são em tamente pragmáticos, referindo-se diretamente a ações
geral, e o que é seu clã em particular. Estas "expli- concretas. Os provérbios, as máximas morais e os adágios
da sabedoria são comuns neste nível. A ele ta,mbém per-
.,. Sobre as legitimações como as "explicações", compare-se com a
análise das Mderivações" de Pareto. tencem as lendas e histórias populares, freqüentemente

128 129
transmitidas em formas poéticas. Assim, a criança apren- da da relação de parentesco entre primos" pode começar
de ditados como liQuem rouba s{'u primo com verrugas a adquirir vida por sua própria conta, independentemente
nas mãos" ou uVai quando sua mulher grita, mas corre das atividades de meros primos "leigos", e o corpo de
quando seu primo chamar". Ou a criança pode ser ins- "cientistas" pode estabelecer seus próprios processos ins-
pirada pela "Canção dos Primos Leais que Foram Caçar titucionais em oposição às instituições que a "ciência"
Juntos" e ficar amedrontada a ponto de perder o juízo tinha originariamente por função legitimar. Podemos ima-
pela "Oração Fúnebre por Dois Primos que Fornicaram". ginar um desfecho irônico desse desenvolvimento quan-
O terceiro nível de legitimação contém teorias explí- do a palavra "primo" não mais se aplica a um papel de
citas pelas quais um setor institucional é legitimado em parentesco mas ao detentor de um grau na hierarquia
termos de um corpo diferenciado de conhecimentos. de especialistas em "relações de parentescos entre
Estas legitimações oferecem quadros de referência bas- primos".
tante amplos para os respectivos setores de conduta ins- Os universos simbólicos constituem o quarto nível da
titucionalizada. Devido à sua complexidade e diferencia- legitimação. São corpos de tradição teórica que inte-
ção, são freqüentemente confiadas a pessoal especiali- gram diferentes áreas de signifiéação e abrangem a or-
zado que as transmitem por meio de procedimentos de dem institucional em uma totalidade simbólica", usan-
iniciação formalizados. Assim, pode haver uma compli- do o termo "simbólico" da maneira que foi por nós pre-
cada teoria econômica da "relação entre primos", seus viamente definida. Repetindo, os processos simbólicos são
direitos, obrigações e procedimentos operatórios padrões. processos de significação que se referem a realidades
Este conhecimento é ministrado pelos velhos do clã, tal- diferentes das pertencentes à experiência da vida coti-
vez sendo-lhes outorgado depois que sua própria uti- diana. Pode ver-se facilmente a maneira pela qual a
lidade econômica chegou ao fim. Os velhos iniciam os esfera simbólica se relaciona com o nível mais amplo de
adolescentes nesta economia superior no curso dos ritos legitimação. A esfera da aplicação pragmática é su-
da puberdade e apresentam-se como peritos sempre que plantada de uma vez para sempre. A legitimação agora
há problemas de aplicação. Se admitirmos que os ve- realiza-se por meio de totalidades simbólicas que não
lhos não têm outras tarefas que lhes sejam atribuídas, é podem absolutamente ser experimentadas na vida coti-
provável que eles estiquem em minúcias as teorias em diana, exceto, está claro, na medida em que é possível
questão entre si, mesmo quando não há problemas de falar de "experiência teórica" (estritamente falando,
aplicação, ou, mais exatamente, inventem estes proble- uma designação equivocada, que só deve ser usada em
mas no curso de sua teorização. Em outras palavras, caráter heurístico, se é que deve ser usada). Este nivel
com o desenvolvimento de teorias legitimadoras especia- de legitimação distingue-se ainda do precedente pela
lizadas e sua transmissão por legitimadores aplicados extensão da integração dotada de sentido. Já no nível
inteiramente a esse mister, a legitimação começa a ir precedente é possível encontrar um alto grau de inte-
além da aplicação prática e a tornar-se "teoria pura". gração de particulares áreas de significado e de pro-
Com este passo, a esfera das legitimações começa a cessos separados de conduta institucionalizada. Agora,
atingir um grau de autonomia em relação às instituições porém, lodos os setores da ordem institucional acham-se
legitimadas e finalmente podem gerar seus próprios pro- integrados num quadro de referência global, que cons-
cedimentos institucionais.· Em nosso exemplo, a "ciên-
... Nosso conceito de "universo simbólico" está muito próximo do con-
ceito de religião em Durkheim. A análise das "provlncias finitas de signi-
• Tanto Marx quanto Pareto compreenderam a posslvel autonomia da- ficação", de Schulz, e suas relações umas com as outras. e o conceito
quilo que chamamos legitimações ("ideologia" em Marx, "derivações" em sartrlano de "totalização" tiveram grande importância para nossa argu-
Pareto). mentaçlio neste ponlo. "

130 131
titui então um universo no sentido literal da palavra, um corpo de teoria muito mais extenso, que quase cer-
porque toda a experiência humana pode agora ser con- tamente conterá uma teoria geral do cosmo e uma teo-
cebida como se efetuando no interior dele. ria geral do homem. A legitimação final das ações "cor-
O universo simbólico é concebido como a matriz de retas" na estrutura do parentesco será então sua "loca-
todos os significados socialmentt objetivados e subjeti- lização" dentro de um quadro de referência cosmológico
vamente reais. A sociedade histórica inteira e toda a bio- e antropológico. O incesto, por exemplo, alcançará sua
grafia do indivíduo são vistas como acontecimentos que sanção negativa suprema como ofensa contra a ordem
se passam dentro deste universo. O que tem particular divina do cosmo e contra a natureza do homem, divina-
importância é qlle as situações marginais da vida do in- mente estabelecida. O mesmo pode acontecer com uma
divíduo (marginais no sentido de não estarem incluídas má conduta econômica ou qualquer outro desvio das
na realidade da existência cotidiana na sociedade) são normas institucionais. Os limites dessa legitimação su-
também abrangidas pelo universo simbólico. '" Tais si- prema são em princípio coextensivos com os limites da
tuações são experimentadas nos sonhos e nas fantasias ambição teórica e da engenhosidade por parte dos legi-
como áreas de significação destacadas da vida diária e timadores, os definidores da realidade oficialmente cre-
dotadas de peculiar realidade própria. No interior do denciados. Na prática, sem dúvida, haverá variações no
universo simbólico estes domínios separadl)s da realidade grau de precisão em que particulares segmentos da or-
integram-se em uma totalidade dotada de sentido que os dem institucional são colocados em um contexto cós-
"explica" e talvez também os justifica (por exemplo, mico. Além disso, estas variações podem ser devidas a
os sonhos podem ser "explicados" por uma teoria psico- particulares problemas práticos a respeito dos qu~is os
lógica, simultaneamente "explicados" e justificados por legitimadores são consultados, ou podem resultar de de-
uma teoria da metempsicose, e ambas as teorias serão senvolvimentos autônomos da fantasia teórica dos peritos
fundadas em um universo muito mais amplo, digamos cosmológicos.
um universo "científico" oposto a outro "metafísico"). A cristalização dos universos simbólicos segue os pro-
O universo simbólico é evidentemente construído por meio cessos anteriormente descritos de objetivação, sedimen-
de objetivações sociais. No entanto sua capacidade de tação e acumulação do conhecimento. Isto é, os uni-
atribuição de significações excede de muito o domínio versos simbólicos são produtos sociais que têm uma his-
da vida social, de modo que o indivídio pode "Iocalizar- tória. Se quisermos entender seu significado temos de
se" nele, mesmo em suas mais solitárias experiências. entender a história de sua produção. Isto é tanto mais
Neste nível de legitimação a integração reflexiva de importante quanto estes produtos da consciência humana,
processos institucionais distintos alcança sua plena rea- por sua própria natureza, apresentam-se como plena-
lização. Um mundo inteiro é criado. Todas as teorias mente desenvolvidos e inevitáveis.
legitimadoras menores são consideradas como perspec-
tivas especiais sobre fenômenos que são aspectos deste Podemos agora investigar melhor a maneira pela qual
mundo. Os papéis institucionais tornam-se modos de os universos simbólicos operam para legitimar a biogra-
participação em um universo que transcende e inclui a fia individual e a ordem institucional. A operação é essen-
ordem institucional. Em nosso exemplo anterior, a "ciên- cialmente a mesma nos dois casos. E' de caráter nOmico
cia do parentesco entre primos" é apenas uma parte de ou ordenador."

•• o termo "situação marglna:" (Grenzsltuation) foi cunhado por Karl .. Nossa argumentação neste ponto é Influenciada pela análise da anam/tI,
]aspers .. Usamo-lo de maneira inteiramente diferente daquela em que foi feita por Durkheim. Estamos, entretanto, mais Interessados nOI procHlos
usada por ja,pers. n()m/ca, na sociedade do que 008 an()mlco,.

132 133
o universo simbólico oferece a ordem para a apreen- Esta função nômica do universo simbólico para a c.x-
são subjetiva da experiência biográfica. Experiências periência individual pode ser definida de maneira multo
pertencentes a diferentes esferas da realidade são inte- simples dizendo que "põe cada. co~s~ em seu lu~ar certo".
gradas pela incorporação ao mesmo envolvente universo Mais ainda, sempre que um mdlvlduo extravia-se, per-
de significação. Por exemplo, o universo simbólico de- dendo a consciência desta ordem (isto é, quando se en-
termina a significação dos sonhos na realidade da vida contra nas situações marginais da experiência), o uni-
cotidiana, restabelecendo em cada caso a condição do- verso simbólico permite-lhe "retornar à realidade:', isto
minante desta última e mitigando o choque que acom- é à realidade da vida cotidiana. Sendo esta eVldente-
panha a passagem de uma realidade a outra." Areas n;ente a esfera a que pertencem tod~s as fo~ma~ .de con-
de significação que de outro modo permaneceriam co- duta e papéis institucionais, o UnIverso slmbohco for-
mo enclaves ininteligíveis dentro da realidade da vida nece a legitimação final da ordem in~titucional, ~~Ito~­
cotidiana são assim ordenadas em termos de uma hie- gando a esta a primazia na hierarqUIa da expenencla
rarquia de realidades, tornando-se ipso facto inteligíveis humana.
e menos aterrorizantes. Esta integração das realidades Além desta integração decisivamente importante das
de situações marginais na realidade predominante da realidades marginais, o universo simbólico fornece o ní-
vida cotidiana tem grande importância porque estas vel mais alto de integração para os significados dis-
situações constituem a mais aguda ameaça à existência crepantes realizados dentro da vida cotidiana na. socie-
naturalmente aceita e rotinizada na sociedade. Se con- dade. Vimos como a integração, dotada de senhdo, de
cebermos esta segunda existência como o "lado diurno" setores separados da conduta institucionalizada realiza-
da vida humana, então as situações marginais constituem se por meio da reflexão, pré-teórica e teórica. Esta in-
o "lado noturno", que se conserva escondido agourenta- tegração plenamente sig.nificativ~ n~? press~p.õ~ o es-
mente na periferia da consciência cotidiana. Justamente tabelecimento de um UnIverso slmbohco ab ImtLO. Pode
porque o "lado noturno" tem sua própria realidade, realizar-se sem recorrer a processos simbólicos, isto é,
muitas vezes de natureza sinistra, é uma constante amea- sem transcender as realidades da experiência diária. En-
ça à realidade "sadia", natural, material da vida na tretanto, uma vez estabelecido o universo simbólico, os
sociedade. O pensamento continua a sugerir a si mes- setores discrepantes da vida cotidiana podem ser inte-
mo (o pensamento "insano" por excelência) que talvez grados mediante a referência direta ao universo simbó-
a realidade brilhante da vida cotidiana não seja senão lico. Por exemplo, as discrepâncias entre o significado
uma ilusão, que pode se tragada a qualquer momento de desempenhar o papel de primo e desempenhar o
pelos uivantes pesadelos do outro lado, o lado noturno papel de proprietário rural podem ser integradas sem
da realidade. Estes pensamentos de loucura e terror são referência a uma mitologia geral. Mas se uma Weltan-
contidos pela ordenação de todas as realidades concebí- schauung mitológica geral é operante, pode. s~r direta-
veis dentro do mesmo universo simbólico, que abrange mente aplicada à discrepância na vida cohdlana. E~­
a realidade da vida diária, a saber ordenando-os de tal pulsar um primo de um pedaço .de terr~ ~ode entao
maneira que esta última realidade conserva sua domi- ser não somente uma incorreta medIda economlca ou uma
nante e definitiva qualidade (se quisermos, seu caráter deficiência moral (sanções negativas que não precisam
"mais real"). estender-se a dimensões cósmicas). Mas pode ser en-
tendida como violação da ordem do universo divina-
'" A condição dominante da realidade cotidiana foi analisada por Schutz.
Cf., especialmente o artigo "On Multiple Realities", Coltected Papas, mente instituída. Desta maneira, o universo simbólico
Vol. I, pp. 20755.

134 135
ordena e por isso mesmo legitima os papéis cotidianos, tidade precária. Depende das relações individuais com
TO

as prioridades e os procedimentos operatórios, colocan- os outros significativos, que podem mudar ou desapa-
do-os sub specie universi, isto é, no contexto do qua- recer. A precariedade é ainda mais aumentada por auto-
dro de referência mais geral concebível. No mesmo con- experiências nas situações acima mencionadas. A "sadia"
texto ainda as transações mais triviais da vida cotidian<: apreensão de si mesmo como possuidor de uma identi-
podem tornar-se imbuídas de profunda significação. E' dade definida, estável e socialmente reconhecida está
fácil ver como este procedimento fornece uma poderosa continuamente ameaçada pelas metamorfoses "supra-rea-
legitimação para a ordem institucional em totalidade, listas" dos sonhos e das fantasias, mesmo se permanece
assim como para setores particulares dela. relativamente coerente na interação cotidiana. A identi-
O universo simbólico permite também ordenar as di- dade é fundamentalmente legitimada pela colocação dela
no contexto de um universo simbólico. Mitologicamente
ferentes fases da biografia. Nas sociedades primitivas
falando, o nome' "real" do indivíduo é o que lhe é dado
os ritos de passagem representam esta função nômica
pelo seu deus. O indivíduo pode assim "saber quem é"
em forma primitiva. A periodização da biografia é sim-
ancorando sua identidade em uma realidade cósmica
bolizada em cada estágio pela referência à totalidade protegida ao mesmo tempo das contingências da socia-
dos significados humanos. Ser criança, ser adolescente, lização e das ma levo lentes auto transformações da expe-
ser adulto, etc., cada uma dessas fases biográficas é riência marginal. Mesmo que seus vizinhos não saibam
legitimada como um modo de ser no universo simbólico quem ele é e mesmo se ele próprio pone esquecer-se
(mais freqüentemente, como um modo particular de re- quem é nas angústias dos pesadelos, pode certificar-se
lacionar-se com o mundo dos deuses). Não é preciso de que seu "verdadeiro eu" é uma entidade fundamental-
insistir no aspecto evidente de que esta simbolização mente real em um universo supremamente real. Os deu-
conduz a sentimentos de segurança e participação. Seria, ses sabem, ou a ciência psiquiátrica, ou o partido. Em
porém, um erro pensar aqui somente a respeito das so- outras palavras, o realissimum da identidade não pre-
ciedades primitivas. U ma moderna teoria psicológica do cisa ser legitimado pelo fato de ser conhecido a todo
desenvolvimento da personalidade pode desempenhar a momento pelo indivíduo; basta, para fins de legitimação,
mesma função. Em ambos os casos o indivíduo, ao que seja conhecível. Uma vez que a identidade conhe-
passar de uma fase biográfica a outra, pode julgar cida ou conhecível pelos deuses, pela psiquiatria ou pelo
estar repetindo uma seqüência que é dada na "natureza partido é ao mesmo tempo a identidade à qual é atri-
das coisas", ou em sua própria "natureza", isto é, ad- buída a condição de realidade dominante, a legitimação
, , quire a segurança de estar vivendo "corretamente". A ainda uma vez integra todas as transformações conce-
"
"correção" de seu programa de vida é assim legitimada bíveis da identidade com a identidade cuja realidade
no nível mais alto de generalidade. Quando o indivíduo é fundada na vida cotidiana na sociedade. Uma vez
contempla sua vida passada, sua biografia torna-se in- mais, o universo simbólico estabelece uma hierarquia,
teligível para ele nesses termos. Quando se projeta no da "mais real" até a mais fugitiva auto-apreensão da
futuro, pode conceber sua biografia desenvolvendo-se em identidade. Isto significa que o indivíduo pode viver em
um universo cujas coordenadas últimas são conhecidas. sociedade com certa segurança de que realmente é o que
A mesma função legitimadora refere-se à "exatidão" os A precariedade da Identidade subjetiva está já Implicada na análise
de Mead da gênese do eu. Para desenvolvimentos desta análise cf. Anselm
da identidade subjetiva do indivíduo. Pela própria na- Strauss Mirrors and Masks (New Vork, Free Press 01 O1encoe, 1959);
Ervlng 'Ooflman, The Presentation of Self in Evuyday LI/e (Oarden Clty,
tureza da socialização, a identidade subjetiva é uma en- N. V., Doubleday-Anchor, 1959).

136 137
considera ser, enquanto desempenha seus papéis sociais Na legitimação da morte é que a potência transcen-
rotineiros à luz do dia e sob o olhar dos outros sig- dentalizadora dos universos simbólicos se manifesta de
nificativos. maneira mais clara, sendo revelado o caráter fundamen-
Uma função legitimadora estratégica dos universos tai atenuador do terror possuído pelas supremas legi-
simbólicos para a biografia individual é a "localização'; timações da realidade dominante da vida cotidiana. O
primado das objetivações sociais da vida diária só pode
da morte. A experiência da morte dos outros e, conse-
conservar sua plausibilidade subjetiva se for constante-
qüentemente, a antecipação da sua própria morte esta-
belece a situação limite por excelência para o indiví- mente protegido contra o terror. No nível da significa-
duo.'" Não é preciso entrar em pormenores, a morte es- ção a ordem institucional representa, um escudo contra
o terror. Ser anômico, portanto, significa privar-se deste
tabelece também a mais aterrorizadora ameaça às rea-
lidades asseguradas da vida cotidiana. A integração da escudo e expor-se, sozinho, aos ataques dos pesadelos.
morte na realidade dominante da existência social tem Embora o horror à solidão seja provavelmente dadp já
portanto a maior importância para qualquer ordem ins- na socialidade constitucional do homem, manifesta-se no
nível das significações na incapacidade que o homem
titucional. Esta legitimação da morte é por conseguinte
tem de conservar uma existência dotada de sentido iso-
um dos frutos mais importantes dos universos simbó-
lado das construções nômicas da sociedade. O universo
licos. Não é essencial saber se isto é feito recorrendo,
ou não, a interpretações mitológicas, religiosas ou meta- simbólico defende o indivíduo do supremo terror, outor-
gando uma legitimação fundamental às estruturas pro-
físicas da realidade. O moderno ateu, por exemplo, que
tetoras da ordem institucional."
outorga um significado à morte em termos de uma Welt-
anschauung da evolução progressiva ou da história re- A mesma coisa pode ser dita da significação social
volucionária, também assim procede integrando a morte (por oposição à individual, que acabamos de examinar)
em um universo simbólico que abrange a realidade. To- dos universos simbólicos. São dóceis protetores lançados
das as legitimações da morte devem realizar a mesma sobre a ordem institucional, assim como sobre a bio-
tarefa essencial, devem capacitar o indivíduo a continuar grafia individual. Fornecem também a delimitação da
vivendo na sociedade depois da morte dos outros signi- realidade social, isto é, estabelecem os limites do que
ficativos e antecipar sua própria morte com o mínimo de tem importância com referência à interação social. Uma
terror, suficientemente mitigado de modo a não paralizar possibilidade extrema deste fato, às vezes avizinhada
o desempenho contínuo das rotinas da vida cotidiana. nas sociedades primitivas, é a definição de tudo como
li,
'i,l: Vê-se imediatamente que esta legitimação é difícil de realidade social, sendo até a matéria inorgânica tratada
realizar, a não ser integrando o fenômeno da morte em termos sociais. Uma delimitação mais estreita, e
em um universo simbólico. Esta legitimação, portanto, mais comum, inclui somente os mundos orgânico ou
fornece ao indivíduo uma receita para uma "morte cor- animal. O universo simbólico atribui categorias a vá-
reta". No caso ótimo esta receita conservará sua plau- rios fenômenos em uma hierarquia do ser, definindo o
sibilidade quando a morte do indivíduo estiver iminente âmbito do social dentro desta hierarquia. 'fi Não é pre-
e lhe permitirá, de fato, "morrer corretamente". ciso dizer que estas categorias também são atribuídas
a diferentes tipos de homens e freqüentemente acontece
.. Heldegger faz a mais completa análise da morte. na filosofia atual,
como situação marginal por excelência. O conceito de Schutz de "ansie- '" O uso de certas perspectivas sobre a "ansiedade" (Angst) feito pela
'"'I dade fundamental" refere-se ao mesmo fenÔmeno. A análise de Mallnowlkl filosofia existencial torna possivel colocar a análise da ano mIa de Durkhelm
I, da função social do cerimonial funerário é também Importante a este em um quadro de referência antropológico mais amplo
respeito. 'fi Cf. Lévi-Strauss, op. clt. .

138 139
que amplas categorias destes tipos (às vezes todos, fora plano cósmico e tornada majestaticamente independente
da coletividade em questão) são definidos como não das vicissitudes da existência individual."
sendo humanos ou sendo menos do que humanos. Isto Conforme já observamos, o universo simbólico for-
é comumente expresso na linguagem (no caso extremo nece uma integração unificadora de todos os processos
o nome da coletividade é equivalente ao termo "hu- institucionais separados. A sociedade inteira agora ganha
mano"). Este fato não é demasiadamente raro, mesmo sentido. Instituição e papéis particulares são legitimados
em sociedades civilizadas. Por exemplo, o universo sim- por sua localização em um mundo compreensivelmente
bólico da India tradicional atribuía um status aos sem- dotado de significação. Por exemplo, a ordem política
casta que os aproximava mais dos animais de que da é legitimada pela referência a uma ordem cósmica de
condição humana das castas superiores (operação essen- poder e justiça e os papéis políticos são legitimados
cialmente legitimada na teoria do karma-samsara, que como representações desses principios cósmicos. A ins-
abrangia todos os seres, humanos ou não), e mesmo tituição do parentesco divino nas civilizações arcaicas
na época moderna, quando os espanhóis conquistaram é uma excelente ilustração da maneira pela qual opera
a Amériea, foi-lhes possível conceber os índios como per- este tipo de legitimação suprema. E' importante porém
tencentes a uma espécie diferente (sendo esta operação compreender que a ordem institucional, tal como a or-
legitimada de maneira menos compreensiva por uma teo- dem da biografia individual, está continuamente amea-
çada pela presença de realidades destituídas de sentido
ria que "provava" não poderem os índios descenderem
em termos dessa ordem. A legitimação da ordem insti-
de Adão e Eva).
tucional enfrenta também a continl,la necessidade de man-
O universo simbólico também ordena a história. Lo- ter encurralado o caos. Toda realidade social é precária.
caliza todos os acontecimentos coletivos numa unidade Todas as sociedades são construções em face do caos.
coerente, que inclui o passado, o presente e o futuro. A constante possibilidade do terror anômico torna-se
Com relação ao passado, estabelece uma "memória" que atual sempre que as legitimações que obscurecem esta
é compartilhada por todos os indivíduos socializados na precariedade são ameaçadas ou entram em colapso. O
coletividade. fi Em relação ao futuro, estabelece um qua- terror que acompanha a morte de um rei, especialmente
dro de referência comum para a projeção das ações se ocorre com súbita violência, exprime este terror.
individuais. Assim, o universo simbólico liga os homens Acima e além das emoções de simpatia ou de preocu-
com seus predecessores e seus sucessores numa totali- pações políticas práticas, a morte de um rei em tais
dade dotada de sentido", servindo para transcender a circunstâncias traz o terror do caos a uma proximidade
finitude da existência individual e conferindo um signifi- consciente. A reação popular ao assassínio do presidente
cado à morte individual. Todos os membros de uma Kennedy é uma clara ilustração. Pode-se compreender
sociedade podem agora conceber-se como pertencendo a facilmente por que estes acontecimentos têm de ser se-
um universo que possui um sentido, que existia antes guidos imediatamente das mais solenes reafirmações da
de terem nascido e continuará a existir depois de mor- permanente realidade dos símbolos protetores.
rerem. A comunidade empirica é transposta para um As origens de um universo simbólico têm raízes na
constituição do homem. Se o homem em sociedade é
.. Sobre a memória coletiva, veja-se Maurlce Halbwachs, Le:r cadre:r
socla/l% de la mlmoire (Paris, Presses Unlversltalres de France, 1952).
um construtor do mundo, isto se deve a ser constitu-
Halbwachs desenvolveu também sua teoria sociológica da memória em La
mémoire collective (1950) e em La topographie légendaire d~s Evanglles .. A concepçllo do caráter transcendente da sociedade foi especialmente
en Terre Sainte (l94\). desenvolvida por Durkhelm.
lO Os conceitos de "predecessores" e "sucessores" derivam de Schutz.

140 141
cionalmente aberto para o mundo, o que já implica um Mlico que tomou um aspecto problemático e a ela por
conflito entre ordem e caos. A experiência humana, ab conseguinte é que a teorização se dirige. Por exemplo,
initio, é uma exteriorização contínua. O homem, ao se voltando à anterior ilustração da legitimação do paren-
exteriorizar, constrói o mundo no qual se exterioriza a tesco, uma vez que a instituição da relação entre primos
si mesmo. No processo de exteriorização projeta na rea- é "localizada" em um cosmo de primos mitológicos, já
lidade seus próprios significados. Os universos simbó- não é mais uma simples questão de fato social sem
licos, que proclamam ser toda realidade humanamente qualquer significação "adicional". A própria mitologia,
dotada de sentido e apelam para o cosmo inteiro a fim entretanto, pode ser ingenuamente admitida como válida
de significar a validade da existência humana, consti- sem reflexão teórica a respeito dela.
tuem as extensões máximas desta projeção." Somente depois que um universo simbólico é objetiva-
do como "primeiro" produto do pensamento teórico
surge a possibilidade da reflexão sistemática sobre a
b) Os mecanismos conceituais natureza desse universo. Enquanto o universo simbólico
da manutenção do universo legitima a ordem institucional no mais alto nível de ge-
neralidade, a teorização relativa ao universo simbólico po-
Considerado como construção cognoscitiva, o universo de ser considerada, por assim dizer, uma legitimação
simbólico é teórico. Tem origem em processos de refle- de segundo grau. Todas as legitimações, das mais sim-
xão subjetiva, os quais, depois da objetivação social. ples legitimações pré-teóricas de significados institucio-
conduzem ao estabelecimento de ligações explícitas en- nalizados distintos até o estabelecimento cósmico de uni-
tre os temas significativos que têm suas raízes nas versos simbólicos, podem, por sua vez, ser conside-
várias instituições. Neste sentido o caráter teórico dos radas como mecanismos de manutenção do universo.
universos simbólicos é indubitável, por mais que um Estes mecanismos, conforme é fácil ver, exigem desde o
tal universo possa parecer assistemático ou ilógico início uma grande complicação conceitual.
a um estranho "insensível". Entretanto, temos de viver, Evidentemente há dificuldades em traçar linhas rigo-
e tipicamente vivemos, ingenuamente, em um universo rosas entre casos concretos "ingênuos" e "requintados".
simbólico. Enquanto que o estabelecimento de um uni- A distinção analítica, porém, é útil mesmo nesses casos,
verso simbólico pressupõe a reflexão teórica por parte porque chama a atenção para a questão do grau em
de alguém (para quem o mundo, ou, mais especifica- que um universo simbólico é admitido como certo. A
mente, a ordem institucional assume um aspecto proble- este respeito, está claro, o problema analítico é seme-
mático), todos os homens podem "habitar" esse universo lhante ao que já encontramos em nossa discussão da
numa atitude natural. Para que a ordem institucional legitimação. Há vários níveis da legitimação dos uni-
seja aceita como certa em sua totalidade na medida versos simbólicos, assim como há da legitimação das
em que forma um todo dotado de sentido, precisa ser instituições, exceto que dos primeiros não se pode dizer
legitimada pela "localização" em um universo simbólico. que desçam ao nível pré-teórico, pela razão evidente de
Mas, mantendo-se iguais as demais circunstâncias, este que o universo simbólico é por si mesmo um fenômeno
próprio universo não exige uma nova legitimação. Para teórico e se conserva como tal mesmo quando admitido
começar, foi a ordem institucional e não o universo sim- ingenuamente.
lO A concepçAo de "proJeçAo" foi pela primeira vez desenvolvida por Tal como no caso das instituições, surge a questão das
Feuerbach, e em seguida, embora em dlreçOes grandemente diferentes, por
Marx, Nletzsche e Freud. circunstâncias nas quais se torna necessário legitimar
142 143
universos simbólicos por meio de mecanismos concei- boração conceitual. No exemplo anterior, o significado
tuais específicos de manutenção do universo. E ainda da relação de parentesco entre primos é continuamente
uma vez a resposta é semelhante à que foi dada no representado por primos de carne e osso, desempenhando
caso das instituições. Tornam-se necessários procedimen- papéis de primos nas rotinas experimentadas da vida
tos específicos de manutenção do universo quando o uni- cotidiana. Os primos humanos são empiricamente acessí-
verso simbólico tornou-se um problema. Enquanto isto veis. Os primos divinos, infelizmente, não o são. Isto cons-
não acontece o universo simbólico mantém-se por si mes- titui um problema intrínseco para os pedagogos do di-
mo, isto é, legitima-se a si mesmo pela pura facticídade vino parentesco entre primos. Mutatis mutandis, o mes-
de sua existência objetiva na sociedade em questão. E' mo é verdade quanto à transmissão de outros universos
possível conceber uma socíedade em que isto seja possí- simbólicos.
vel. Esta sociedade seria um "sistema" harmonioso, fe-
Este problema intrínseco acentua-se quando versões
chado sobre si mesmo, em perfeito funcionamento. Na
divergentes do universo simbólico começam a ser parti-
realidade, uma sociedade dessa espécie não existe. De- lhadas por grupos de "habitantes". Neste caso, por mo-
vido às inevitáveis tensões dos processos de institucio- tivos evidentes dada a natureza da objetivação a versão
nalização e pelo próprio fato de todos os fenômenos divergente corporifica-se em uma realidade por sua pró-
sociais serem construções historicamente produzidas pela pria conta, a qual, ao existir no interior da sociedade,
atividade humana, nenhuma sociedade é totalmente admi- desafia a condição de realidade do universo simbólico
tida como certa e assim, a fortiori, o mesmo se dá com tal como foi originariamente constituído. O grupo que
o universo simbólico. Todo universo simbólico é inci- objetivou esta realidade divergente torna-se portador de
pientemente problemático. A questão consiste, portanto, uma diversa definição da realidade.·' Quase não é pre-
em saber em que grau tornou-se problemático. císo acentuar que estes grupos heréticos constituem não
Um problema intrínseco, semelhante ao que discutimos somente uma ameaça teórica para o universo simbólico,
em relação à tradição em geral, apresenta-se com o pro- mas uma ameaça prática para a ordem institucional le-
cesso de transmissão do universo simbólico de uma ge- gitimada pelo universo simbólico em questão. Os proce-
ração a outra. A socialização nunca é completamente dimentos repressivos habitualmente empregados contra
bem sucedida. Alguns indivíduos "habitam" o universo tais grupos pelos guardiães das definições "oficiais" da
transmitido de maneira mais definida do que outros. Mes- realidade não nos dizem respeito neste contexto. O que
mo entre os "habitantes" mais ou menos autorizados. importa para nossas considerações é a necessidade dessa
haverá sempre variações idiossincrásicas na maneira como repressão ser legitimada, o que naturalmente implica pôr
concebem o universo. Justamente porque o universo sim- em ação vários mecanismos conceituais destinados a
bólico não pode ser experimentado como tal na vida co- manter o universo "oficial" contra o desafio herético.
tidiana, mas transcende esta última por sua própria na- Historicamente o problema da heresia foi muitas vezes
tureza, não é possível "ensinar" sua significação pela o primeiro impulso para a sistemática conceitualização
maneira direta em que se ensinam os significados da teórica dos universos simbólicos. O desenvolvimento teo-
vida cotidiana. As perguntas feitas pelas crianças a res- lógico cristão como resultado de uma série de impug-
peito do universo simbólico têm de ser respondidas de nações heréticas da tradição "oficial" oferece excelen-
maneira mais complicada do que as perguntas sobre as tes ilustrações históricas deste processo. Como em toda
realidades institucionais da vida cotidiana. As perguntas
dos adultos idiossincrásicos exigem mais completa ela- 11 Compare-se ainda uma vez com o conceito de Nportador" (Trllger) de
Weber.

144 145
teorização, no curso desse processo aparecem novas im- ouviu falar dessas regras, talvez nem mesmo tenha uma
plicações teóricas dentro da própria tradição, sendo esta palavra para designar "primos" e no entanto parece
impelida a novas conceitualizações, além de sua forma passar muito bem em plena atividade. O universo dis-
original. Por exemplo, as formulações cristológicas pre- tinto apresentado pela outra sociedade tem de ser en-
cisas dos primeiros concílios da Igreja foram exigidas frentado com as melhores razões possíveis para afirmar a
não pela própria tradição mas pelos desafios heréticos superioridade do nosso próprio. Esta necessidade exige
que sofreu. Ao serem elaboradas estas formulações, a um mecanismo conceitual consideravelmente requintado.
tradição ao mesmo tempo mantinha-se e expandia-se. O aparecimento de um outro possível universo sim-
Emergiu assim, entre outras inovações, uma concepção bólico representa uma ameça porque sua simples exis-
teórica da Trindade, que não era apenas desnecessária tência demonstra empiricamente que o nosso próprio
mas realmente não existia na primitiva comunidade cris- não é inevitável. Como toda gente pode agora ver, é
tã. Em outras palavras, o universo simbólico não é so-
possível viver nesse mundo sem a instituição da relação
mente legitimado mas também modificado pelos meca-
de parentesco entre primos. E é possível negar os deuses
nismos conceituais construídos para proteção contra o
da relação entre primos ou mesmo zombar deles sem
ataque de grupos heréticos numa sociedade.
fazer imediatamente o céu vir abaixo. Este fato chocante
Uma das principais ocasiões para o desenvolvimento tem de ser teoricamente explicado, quanto mais não seja.
de uma conceitualização conservadora de um universo Evidentemente pode também acontecer que o outro uni-
é o que se apresenta quando uma sociedade defronta-se verso tenha um atrativo missionário. Indivíduos ou gru-
com outra que tem uma história muito diferente. U O pos de nossa própria sociedade podem ser tentados a
problema estabelecido por esta confrontação é tipicamente "emigrar" do universo tradicional ou, perigo ainda mais
mais agudo do que o gerado por heresias internas na sério, transformar a velha ordem à imagem da nova. E'
sociedade, porque neste caso há uma alternativa entre fácil imaginar, por exemplo, como o advento dos gregos
universos simbólicos, tendo o outro uma tradição "ofi- patriarcais deve ter subvertido o universo das sociedades
ciaI" cuja objetividade, suposta certa, é igual a que o matriarcais então existentes ao longo do Mediterrâneo
primeiro universo possui. E' muito menos chocante para oriental. O universo grego deve ter exercido considerá-
a condição de realidade do nosso próprio universo ter vel atração sobre os indivíduos do sexo masculino domi-
de tratar com grupos minoritários de dissidentes, cuja nados pelas mulheres destas sociedades. E sabemos que
oposição é ipso facto definida como loucura ou maldade. a Grande Mãe causou uma profunda impressão sobre
do que enfrentar uma outra sociedade que considera as
os próprios gregos. A mitologia grega está cheia de
nOssas próprias definições da realidade como ignorantes,
elaborações conceituais que demonstram a necessidade
loucas ou completamente más. l i E' uma coisa ter em
de levar em consideração este problema.
torno de si alguns inidvíduos, mesmo quando se reúnem,
formando um grupo minoritário que não pode ou não E' importante acentuar que os mecanismos conceituais
quer conformar-se com as regras institucionais da rela- da conservação do universo são eles próprios produtos
ção de parentesco entre primos. Outra coisa, inteiramente da atividade social, assim como todas as formas de le-
diferente, é encontrar toda uma sociedade que nunca gitimação, e só raramente podem ser compreendidos se-
paradamente das outras atividades da coletividade em
.. As análises de "c:ontactos de culturas" na antropologia cultural ame- questão. Especificamente, o êxito de particulares meca-
ricana contemporânea têm Importância neste ponto.
.. Veja-se o conceito de "choque cultural" na antropologia c.ultural ameri-
cana contemporânea.
nismos conceituais relaciona-se com o poder possuído

146 147
por aqueles que operam com eles." O confronto com das legitimações das várias instituições. Assim, existe
universos simbólicos distintos implica um problema de habitualmente uma continuidade entre os esquemas ex-
poder, a saber, qual das definições da realidade em con- plicativos e exortativos, que servem de legitimação no
flito ficará "fixada" na sociedade. Duas sociedades que nível teórico mais baixo, e as imponentes construções
se defrontam com universos em conflito desenvolverão intelectuais que explicam o cosmo. A relação entre con-
ambas mecanismos conceituais destinados a manter seus ceitualização cognoscitiva e normativa, neste caso, como
respectivos universos. Do ponto de vista da plausibilidade em todos os outros, é empiricamente fluida, pois as con-
intrínseca as duas formas de conceitualização podem ceitualizações normativas implicam sempre certos pres-
parecer ao observador externo oferecer pequena escolha. supostos cognoscitivos. A distinção analítica é no en-
Qual das duas ganhará, contudo, é coisa que dependerá tanto útil, especialmente porque chama a atenção para
mais do poder do que da engenhosidade teórica dos os graus variáveis de diferenciação entre estas duas
respectivos legitimadores. E' possível imaginar que mista- esferas conceituais.
gogos olímpicos e ctônicos igualmente requintados r.eú- Seria evidentemente absurdo tentar fazer aqui um
nam-se em consultas ecumênicas, discutindo os méntos exame detalhado dos diferentes mecanismos conceituais
de seus respectivos universos sine ira et studio, mas é de conservação dos universos, dos quais historicamente
mais provável que a questão seja decidida no nível me- temos conhecimento." Mas algumas poucas observações
nos rarefeito do poder militar. O desfecho histórico de sobre certos notáveis tipos de mecanismos conceituais
todo choque entre deuses foi determinado por aqueles seguem uma ordem, mitologia, teologia, filosofia e ciên-
que impunhavam as melhores armas e não por aque~es cia. Sem propor um esquema evolucionista para estes
que possuíam os melhores argumentos .. A ~esmo cOIsa tipos, pode dizer-se com segurança que a mitologia re-
evidentemente pode dizer-se dos conflItos lOtemos da presenta a forma mais arcaica de manutenção do uni-
sociedade, nesta ordem de problemas. Quem tem a vara verso, pois de fato representa a forma mais arcaica de
mais comprida tem maior probabilidade de impor suas legitimação em geral. l i Muito provavelmente a mitologia
definições da realidade. Esta é uma suposição segura é uma fase necessária no desenvolvimento do pensamento
que se pode fazer a respeito de qu~I~~er grande c?le- humano enquanto tal. '" Em qualquer caso, as mais an-
tividade, embora haja sempre a pOSSIbIlIdade de teóncos tigas conceitualizações de conservação de universo de que
politicament€: desinteressados convencerem uns aos outros, temos conhecimento são de forma mitológica. Para nossos
sem recorrerem a meios mais brutais de persuasão. propósitos é suficiente definir a mitologia como uma con-
Os mecanismos conceituais que mantêm os universos cepção da realidade que postula a continua penetração
simbólicos acarretam sempre a sistematização de legiti-
mações cognoscitivas e normativas, que já estavam pre- lO Pareto é quem mais se aproxima da redação de uma história do
pensamento em termos sociológicos, o que o torna Importante para a so-
sentes na sociedade de modo mais ingênuo e que crista- ciologia do conhecimento, Independentemente das reservas que se possa
fazer a seu quadro teórico de referência. Cf. Brlgltte Berger, Vllfredo
lizam no universo simbólico em questão. Em outras pa- Pareto and lhe Soclology of KnolVledge (tese de dutoramento In~dlta,
lavras, o material do qual são feitas as legitimações de New School for Social Research, 1964).
l i Isto lembra a "lei dos três estados" de Augusto Comte. Não podemos
conservação do universo é principalmente uma elaboração aceitá-Ia, evidentemente, mas pode ainda ser útil ao sugerir que a cons-
cl~ncla se desenvolve em estágios historicamente reconheclvels, embora não
posterior, em um nível mais alto de integração teórica, se possa concebê-los à maneira de Com te. Nossa própria compreenslio
deste assunto estA mais próxima do enfoque hegellano e marxista da hls-
torlcldade do pensamento humano.
OI Marx desenvolveu deta'hadamente a relação entre poder material e n Lévy-Bruhl e Piaget sugerem que a mitologia constitui um estágio ne-
"êxito conceituai", Cf, as formulações bem conhecidas deste assunto em cessário no desenvolvimento do pensamento. Para uma sugestiva discussão
A Ideologia Alemã: "Dle Oedanken der herrschenden Klasse slnd In das raizes biológicas do pensamento mitológico e má~co, cf. Arnold
jeder Epoche dle herrschenden Oedanken" (FrUhschrlften, KrOner. editor, Oehlen, Studien zur Anthropologie und Soziologle (Neuwled/Rheln, Luch-
p. 373). terhand, 1963)" pp. 79s8.

148 149
do mundo da experiência cotidiana por forças sagradas. l1li acesso ao seu conhecimento. Isto é, exige-se um ,,~
Esta concepção acarreta naturalmente um alto grau de gredo" e um corpo de conhecimento intrinsecamente exo-
continuidade entre a ordem social e a ordem cósmica, e térico é institucionalmente definido em termos esotéri-
entre todas as suas respectivas legitimações. l1li A reali- cos. Uma breve olhadela nas "relações públicas" das
dade inteira aparece como sendo constituída de um úni- rodas contemporâneas dos teóricos revelará que esta an-
co tecido. tiga prestidigitação está longe de ter morrido hoje em
A mitologia, enquanto mecanismo conceitual, está mais dia. Apesar de tudo, há importantes diferenças socioló-
próxima do nível ingênuo do universo simbólico, nível gicas entre as sociedades nas quais todas as conceitua-
no qual há o mínimo de necessidade de conservação Iizações de conservação do universo são mitológicas e
teórica do universo, além da suposição prática do uni- as sociedades em que essas conceitualizações não têm
verso em questão como realidade objetiva. Isto explica tal caráter.
o fenômeno historicamente recorrente de inconsistentes Os sistemas mitológicos mais elaborados esforçam-se
tradições mitológicas continuarem a existir lado a lado por eliminar as inconsistências e conservar o universo
com uma integração teórica. Tipicamente, a inconsis- mitológico em termos teoricamente integrados. Estas mi-
tência só é sentida depois que as tradições se tornaram tologias "canônicas", por assim dizer, evoluem para a
problemáticas e já foi realizada alguma espécie de in- conceitualização teológica propriamente dita. Para nossa
tegração. A "descoberta" desta inconsistência (ou, se finalidade atual, o pensamento teológico pode distinguir-
preferirmos, sua suposição ex post facto) é em geral se de seu predecessor mitológico simplesmente em ter-
feita pelos especialistas na tradição, que são também mos de seu maior grau de sistematização teórica. Os
os mais comuns integradores dos temas tradicionais se- conceitos teológicos estão mais distantes do nível ingê-
parados. Uma vez sentida a necessidade de integração, nuo. O cosmo pode ainda ser concebido em termos das
as conseqüentes reconstruções mitológicas podem alcan- forças sagradas ou dos seres da velha mitologia, mas
çar considerável grau de complicação teórica. O exem- estas entidades sagradas foram removidas para uma dis-
plo de Homero basta para demonstrar este ponto. tância maior. O pensamento mitológico opera dentro da
A mitologia aproxima-se também do nível ingênuo continuidade entre o mundo humano e o mundo dos
pelo fato de que, embora haja especialistas em tradição deuses. O pensamento teológico serve de mediação entre
mitológica, seu conhecimento não se diferencia muito do esses dois mundos precisamente porque sua continuidade
que é geralmente conhecido. A iniciação na tradição original parece agora quebrada. Com a transição da mi-
ministrada por estes especialistas pode ser difícil em tologia para a teologia, a vida cotidiana parece menos
seus modos extrínsecos. Pode limitar-se a candidatos se- continuamente penetrada por forças sagradas. O corpo de
lecionados, a ocasiões ou épocas especiais e implicar ár- conhecimento teológico é por conseguinte mais afastado
dua preparação ritual. E', porém, raramente difícil em do acervo geral do conhecimento da sociedade e tor-
termos das qualidades intrínsecas do próprio corpo de na-se assim intrinsecamente mais difícil de adquirir.
conhecimento, que não é difícil de adquirir. Para salva- Mesmo quando não é deliberadamente institucionalizado
guardar as pretensões monopolistas dos especialistas é com caráter esotérico, permanece "secreto" em virtude
preciso estabelecer institucionalmente a impossibilidade de de ser ininteligível para a plebe em geral. Isto tem
como outra conseqüência o fato da plebe poder perma-
l1li Nossa concepção da mitologIa é InfluencIada aquI pelos trabalhos de
Oerardus van der Leeuw, Mlrcea Ellade e Rudolf Bultmann. necer relativamente inatingida pelas requintadas teo-
lO Sobre a continuIdade entre as ordens socIal e cósmIca na conscIência
mitológIca, compare-se novamente com o trabalho de Ellade e Voegelln. rias de conservação do universo maquinadas pelos es-
150 151
pecialistas em teologia. A coexistência da mitologia in- não esgotam necessariamente o assunto. Mas há duas
gênua entre as massas e uma complexa teologia entre aplicações do mecanismo conceitual de conservação do
as elites de teóricos, ambas servindo para conservar o universo que ainda resta discutir no contexto da teoria
mesmo universo simbólico, é um fenômeno histórico fre- geral: a terapêutica e a aniquilação.
qüente. Somente tendo em vista este fenômeno é pos- A terapêutica acarreta a aplicação do mecanismo con-
sível, por exemplo, chamar as sociedades tradicionais ceitual a fim de assegurar que os discordantes atuais
do Extremo Oriente "budistas", ou, igualmente, cha- ou potenciais se conservem dentro das definições institu-
mar a sociedade medieval "cristã". cionalizadas da realidade, ou, em outras palavras, im-
A teologia é paradigmática desta última conceituali- pedir que os "habitantes" de um dado universo "emi-
zação filosófica e científica do cosmo. Embora a teologia grem". Realiza isso aplicando o aparelho legitimador aos
possa estar mais próxima da mitologia no conteúdo re- "casos" individuais. Desde que, conforme vimos, toda so-
ligioso de suas definições da realidade, está mais pró- ciedade enfrenta o perigo de dissidência individual, po-
xima das mais recentes conceitualizações secularizadas demos admitir que a terapêutica, de uma forma ou de
em sua localização social. Ao contrário da mitologia, as outra, é um fenômeno social global. Seus dispositivos
outras três formas historicamente dominantes de meca- institucionais específicos, do exorcismo à psicanálise, da
nismos conceituais passam a ser propriedade de elites assistência pastoral aos programas de aconselhamento
de especialistas, cujos corpos de conhecimento foram pessoal, pertencem naturalmente à categoria do controle
crescentemente afastados do conhecimento comum da social. Aqui interessa-nos, porém, o aspecto conceitual
sociedade em conjunto. A ciência moderna é um passo da terapêutica. Tendo a terapêutica de ocupar-se com
extremo nesse desenvolvimento e na secularização e com- os desvios das definições "oficiais" da realidade, deve
plicação da conservação do universo. A ciência não so- criar um mecanismo conceitual para explicar esses des-
mente completa o afastamento da forma sagrada em vios e conservar as realidades assim ameaçadas. Isto re-
relação ao mundo da vida cotidiana, mas retira desse quer um corpo de conhecimento que inclui uma teoria
mundo o conhecimento conservador do universo como da dissidência, um aparelho de diagnóstico e um sis-
tal. A vida cotidiana fica privada da legitimação sa- tema conceitual para a "cura das almas".
grada e do tipo de inteligibilidade teórica que a ligaria Por exemplo, numa coletividade que institucionalizou
com o universo simbólico em sua pretendida totalidade. a homossexualidade militar, o indivíduo obstinadamente
Dito de maneira mais simples, o membro "leigo" da so- heterossexual é um candidato seguro à terapêutica, não
ciedade não sabe mais como tem de manter conceitual- somente porque seus interesses sexuais constituem evi-
mente seu universo, embora evidentemente ainda saiba dente ameaça à eficiência de combate de sua unidade
quem são aqueles que presumem ser os especialistas da de guerreiros-amantes, mas também porque seu desvio
conservação do universo. Os interessantes problemas pro- é psicologicamente subversivo para a virilidade espon-
postos por esta situação pertencem a uma sociologia tânea dos outros. Afinal de contas, alguns destes, talvez
empírica do conhecimento da sociedade contemporânea "subconscientemente", podem ser tentados a seguir seu
e não podem ser examinados mais a fundo neste con- exemplo. Em um nível mais fundamental, a conduta do
texto. dissidente desafia a realidade social como tal, pondo em
Não é preciso dizer que os tipos de mecanismos con- questão seus procedimentos operatórios cognoscitivos ad-
ceituais aparecem historicamente em inumeráveis modifi- mitidos como certos ("os homens viris ppr natureza
cações e combinações, e que os tipos que examinamos amam uns aos outros"), c os procedimentos normativos

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("os homens VtrlS devem amar uns aos outros"). De tabelece uma simetria entre o mecanismo conceitual e sua
fato, o dissidente provavelmente representa um insulto apropriação subjetiva pela consciência do indivíduo. Res-
vivo aos deuses, que amam uns aos outros no céu, assim socializa o transviado, reintroduzindo-o na realidade ob-
como seus devotos na terra. Este desvio radical re- jetiva do universo simbólico da sociedade. Evidentemente
quer uma prática terapêutica solidamente fundada numa existe uma grande satisfação subjetiva por motivo deste
teoria terapêutica. E' preciso haver uma teoria do des- retorno à "normalidade". O indivíduo pode agora re-
vio (uma "patologia") que explica esta condição cho- tornar ao amoroso abraço do comandante de seu pe-
cante (digamos, postulando a possessão demoníaca). lotão com o feliz conhecimento de se ter "encontrado
E' preciso haver um corpo de conceitos diagnósticos a si mesmo", e de mais uma vez estar certo aos olhos
(digamos, uma sintomatologia, com práticas apropria- dos deuses.
das para aplicá-Ia em julgamentos por ordálio), que A terapêutica lisa o mecanismo conceitual para man-
não somente permita de maneira ótima a precisa espe- ter todos dentro do universo em questão. A aniquilação
cificação das condições agudas mas também descobre a por sua vez usa um mecanismo semelhante para li-
"heterossexualidade latente" e a rápida tomada de me- quidar conceitualmente tudo que está situado fora deste
didas preventivas. Finalmente, deve haver uma conceitua- mesmo universo. Este procedimento pode também ser
Iização do processo curativo (digamos, um catálogo de considerado uma espécie de legitimação negativa. A le-
técnicas de exorcismos, cada qual com adequada funda- gitimação conserva a realidade do universo socialmente
mentação teórica). construído; a aniquilação nega a realidade de qualquer
Este mecanismo conceitual permite sua aplicação te- fenômeno ou interpretação de fenômenos que não se
rapêutica pelos especialistas adequados e pode também ajustam nesse universo. Isto pode ser realizado de duas
ser interiorizado pelo indivíduo que sofre da condição maneiras. Primeiramente, é possível dar um status on-
dissidente. A interiorização em si mesmo terá eficácia tológico negativo aos fenômenos de desvio, com ou sem
terapêutica. Em nosso exemplo, o mecanismo conceitual intenção terapêutica. A aplicação aniquiladora realiza-
pode ser organizado de tal maneira que desperte a culpa da pelo mecanismo conceitual é em geral mais usada
no indivíduo (digamos, um "pânico heterossexual"), fa- com indivíduos ou grupos estranhos à sociedade em
çanha não demasiado difícil se sua socialização pri- questão e por isso inelegíveis para a terapêutica. A
mária teve ao menos um êxito mínimo. Sob a pressão operação conceitual nesse caso é bastante simples. A
desta culpa, o indivíduo chegará a aceitar subjetiva- ameaça às definições sociais da realidade é neutralizada
mente a conceitualização de sua condição com a qual atribuindo-se um status ontológico inferior, e com isso
os profissionais terapêuticos o fazem defrontar-se. Cria um status cognoscitivo que não deve ser levado a sério,
uma "visão interior", e o diagnóstico torna-se subjeti- a todas as ddinições existentes fora do universo sim-
vamente real para ele. O mecanismo conceitual pode ser bólico. Assim, a ameaça da vizinhança de grupos anti-
ainda mais desenvolvido a fim de permitir a conceitua- homossexuais pode ser conceitualmente liquidada por
Iização (e assim a liquidação conceitual) de quaisquer nossa sociedade homossexual considerando esses vizinhos
dúvidas a respeito da terapêutica sentida ou pelo tera- como seres inferiores aos homens, inatamente desnor-
peuta ou pelo "paciente". Por exemplo, pode haver uma teados a respeito da correta ordem das coisas, vivendo
teoria da "resistência", para explicar as dúvidas deste em uma insanável obscuridade cognoscitiva. O silogismo
último, e uma teoria da "contra-transferência", para ex- fundamental é o seguinte: os vizinhos são uma tribo de
plicar as dúvidas do primeiro. A terapêutica eficaz es- bárbaros. Os vizinhos são anti-homossexuais. Por con-

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seguinte, sua anti-homossexualidade é um absurdo bár- tensivamente negam. Num quadro de referência teológico
baro, que não deve ser tomado a sério por homens o mesmo procedimento demonstra que o demônio invo-
razoáveis. O mesmo procedimento conceitual pode sem luntariamente glorifica Deus, que toda descrença é ape-
dúvida ser também aplicado aos transviados dentro da nas desonestidade inconsciente, até mesmo que o ateu é
sociedade. Quer se passe da aniquilação à terapêutica, realmente um crente.
quer se empreenda a liquidação física do que se liquidou As aplicações terapêutica e aniquiladora dos mecanis-
conceitualmente, isto é apenas uma questão de política mos conceituais são inerentes ao universo simbólico en-
prática. O poder material do grupo conceitualmen~e .li- quanto tal. Se o universo simbólico tem de abranger a
quidado na maioria dos casos não será um fator tnslg- realidade, não é possível deixar que alguma coisa fique
nificante. As vezes, infelizmente, as circunstâncias nos.. fora de seu âmbito conceitual. Em princípio, de qualquer
forçam a manter relações cordiais com bárbaros. maneira suas definições da realidade devem abranger a
Em segundo lugar, a aniquilação implica a tentativa totalidade do ser. Os mecanismos conceituais com os
mais ambiciosa de explicar todas as definições dissi- quais se tenta fazer esta totalização variam historica-
dentes da realidade em termos de conceitos pertencentes mente em grau de complexidade. In nuce aparecem logo
que o universo simbólico cristalizou-se.
ao nosso próprio universo. Num quadro de referência
teológico isto acarreta a transição da heresiologia à apo-
logética. As concepções transviadas não recebem sim-
plesmente um status negativo, são atacadas teoricamente c) A organização social
em detalhes. O objetivo final deste procedimento é in-
para a manutenção do universo
corporar as concepções dissidentes ao nosso próprio
Sendo produtos históricos da atividade humana, todos
universo, e com isso em última análise liquidá-Ias. As
os universos socialmente construídos modificam-se, e a
concepções dissidentes devem portanto ser traduzidas em
transformação é realizada pelas ações concretas dos se-
conceitos derivados de nosso próprio universo. Desta ma-
res humanos. Se nos deixarmos absorver pela complexi-
neira, a negação de nosso universo transmuta-se sutil-
dade dos mecanismos conceituais pelos quais é mantido
mente na afirmação dele. Há sempre a pressuposição de
qualquer universo específico, podemos esquecer este fato
que o negador não sabe realmente o que está dizendo.
sociológico fundamental. A realidade é socialmente de-
Suas afirmações só adquirem sentido quando são tradu-
finida. Mas as definições são sempre encarnadas, isto é,
zidas em termos mais "corretos", isto é, em termos de- indivíduos concretos e grupos de indivíduos servem co-
rivados do universo por ele negado. Por exemplo, nossos mo definidores da realidade. Para entender o estado do
teóricos homossexuais podem argumentar que todos os universo socialmente construído em qualquer momento,
homens são por natureza homossexuais. Os que negam ou a variação dele com o tempo, é preciso entender a
isto, em virtude de estarem possuídos por demônios ou organização social que permite aos definidores fazerem
simplesmente por serem bárbaros, estão negando sua sua definição. Dito um pouco rudemente, é essencial in-
própria natureza. Bem no fundo de si mesmos, sabem sistir nas questões sobre as conceitualizações da reali-
que isto é assim. Basta, portanto, investigar cuidado- dade historicamente acessíveis, do abstrato "O que?" ao
samente seus enunciados para descobrir o caráter defen- sociologicamente concreto "Quem diz?". lO

sivo e a má fé da posição deles. Seja lá o que for que


digam neste assunto, isso pode assim ser traduzido em lO Nossas premissas teóricas deixarão claro que não podemos entrar aqui
em detalhes sobre as questões da "sociologia dos Intelectuais". A:ém dn
uma afirmação do universo homossexual, que eles os- importante obra de Mannhelm sobre este assunto (que se encontra espe-

156 157
Como vimos, a especialização do conhecimento e a quer relação com a vida corrente da sociedade mas
concomitante organização do pessoal para ministrar os
. '
eXIstem numa espécie de céu platônico de ideação a-his-
corpos especializados de conhecimento desenvolvem-se tórica e a-social. Isto evidentemente é uma ilusão, mas
como resultado da divisão do trabalho. E' possível con- pode ter grande força sócio-histórica, em virtude da re-
ceber um estágio primitivo deste desenvolvimento no lação entre os processos de definição da realidade e os
qual não há competição entre os diferentes peritos. Cada processos de produção da realidade.
área de especialização está definida pelos fatos prag- Uma segunda conseqüência é o fortalecimento do tra-
máticos da divisão do trabalho. O perito em caça não dicionalismo nas ações institucionalizadas que são assim
pretenderá ser perito em pesca e assim não terá motivo legitimadas, isto é, o reforço da tendência inerente da ins-
para entrar em competição com quem tem este último titucionalização à inércia." O hábito e a institucionaliza-
conhecimento. ção, limitam por si mesmos a flexibilidade das ações
A medida que vão surgindo formas mais complexas humanas. As instituições tendem a perdurar, a menos que
de conhecimento e se constitui um excedente econômico, se tornem "problemáticas". As legitimações supremas
os peritos devotam-se em regime de tempo integral aos reforçam inevitavelmente esta tendência. Quanto mais
assuntos de sua competência, que, com o desenvolvimento abstratas são as legitimações menos probabilidade têm de
dos mecanismos conceituais, podem tornar-se cada vez se modificarem de acordo com as exigências pragmáticas
mais distantes das necessidades pragmáticas da vida co- variáveis. Se existe a tendência a deixar tudo continuar
tidiana. Os peritos nestes corpos rarefeitos de conheci- como antes, esta tendência é evidentemente fortalecida
mento pretendem possuir um novo status. Não são ape- se houver excelentes razões para assim proceder. Isto
nas peritos neste ou naquele setor do acervo societário significa que as instituições podem perdurar mesmo quan-
do conhecimento mas pretendem ter a suprema jurisdição do, aos olhos de um observador externo, perderam sua
sobre este acervo do conhecimento em totalidade. São, original funcionalidade ou praticabilidade. As pessoas fa-
literalmente, especialistas universais. Isto não significa zem certas coisas não porque dão resultado, mas porque
que pretendem saber tudo, mas apenas que pretendem são certas - isto é, certas em termos das supremas
saber o significado último do que todo mundo sabe definições da realidade promulgadas pelos especialistas
e faz. Outros homens podem continuar a ocupar-se em no universal. ..
setores particulares da realidade, mas aqueles pretendem O surgimento de um pessoal em regime de tempo in-
ser especialistas nas definições supremas da realidade en- tegrai para a legitimação da conservação do universo
quanto tal. também traz consigo a ocasião de conflitos sociais. Al-
guns destes conflitos travam-se entre especialistas e
Este estágio no desenvolvimento do conhecimento tem
profissionais. Estes últimos, por motivos que não pre-
várias conseqüências. A primeira, que já mencionamos,
cisam ser esmiuçados, podem chegar a indignar-se com
é a emergência da teoria pura. Como os peritos universais
operam num nível de considerável abstração das vicissi- a8 . g:andiosas pretensões dos peritos e os privilégios
socIaIs concretos que as acompanham. Aquilo que é pro-
tudes da vida cotidiana, tanto os outros quanto eles pró-
vavelmente muito irritante resume-se na pretensão dos
prios podem concluir que suas teorias não têm qual-
peritos de conhecer o significado supremo da atividade
cialmente em Ideology and Utopia e Essays on lhe Sociology of Cullure) ,
cf. Florian Znaniecki, The Social Role of lhe Man of Knowledge (New ., Sobre " "inércia" institucional reforçada pelas legitimações últimas.
York, Columbia Unlversity Press, 1940); Theodor Oeiger, Aufgaben und ("Ude!idade". de Simmel), veja-se ao mesmo tempo Durkheim e Pareto.
Sle/lung der Inle/ligenz in der Oesellschafl (Stuttgart 1949); Raymond Aron, E precIsamente neste ponto que qualquer interpretaçãO luncionalista
L'oplum des Inle/lec/ue/s (Paris 1955); George B. de Huszar (ed.), The das instituiçlles se reve'a mais Iraca, tendendo a procurar coisas práticas
lnle/lecluals (New York, Free Press 01 Oiencoe, 1960). que na verdade não eXIstem.

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dos profissionais melhor do que estes mesmos. Estas Isto nos põe em face de outra possibilidade igual-
rebeliões por parte dos "leigos" podem conduzir ao apa- mente importante de conflito, e que ocorre entre grupos
recimento de definições rivais da realidade e Ünalmente rivais de peritos. Enquanto as teorias continuam a ter
ao surgimento de novos peritos, tendo a seu cargo as aplicações práticas imediatas, qualquer rivalidade que
novas definições. A India antiga oferece-nos algumas possa existir é facilmente harmonizada por meio da prova
das melhores ilustrações históricas deste fato. Os brâ- prática. Pode haver teorias competidoras relativas à ca-
manes, em sua qualidade de peritos na realidade última, çada do javali, nas quais partidos rivais de especialis-
tiveram êxito em grau espantoso na imposição de suas tas em caça criam interesses adquiridos. A questão pode
definições da realidade à sociedade. Qualquer que tenha ser decidida com relativa facilidade verificando-se qual
sido sua origem, foi na qualidade de construção dos das teorias conduz a matar maior quantidade de javalis.
brâmanes que o sistema de castas se expandiu ao longo Esta possibilidade não existe para decidir, por exemplo,
de um período de séculos até cobrir a maior parte do entre uma teoria politeísta e outra henoteísta do universo.
subcontinente indiano. Na realidade, os brâmanes eram Os teóricos respectivos são forçados a substituir a argu-
convidados por um príncipe governante depois do outro mentação abstrata às provas práticas. Por sua própria
para servirem como "engenheiros sociais" para a implan- natureza esta argumentação não traz a convicção ine-
tação do sistema em novos territórios (em parte porque rente ao sucesso pragmático. Aquilo que é convincente
o sistema era visto como idêntico à civilização superior, para um homem pode não ser para outro. Não podemos
e em parte também, sem dúvida, porque os príncipes realmente censurar estes teóricos se recorrem a vários
compreenderam sua imensa capacidade de controle so- resistentes suportes para o frágil poder do simples ar-
cial). O Código de Manu dá-nos uma excelente idéia gumento, como, por exemplo, conseguir que as autori-
tanto do projeto dos brâmanes para a sociedade quanto dades empreguem a força armada para fortalecer um
das vantagens, de todo mundanas, que os brâmanes con- argumento contra seus competidores. Em outras pala-
quistaram em conseqiiência de serem aceitos como os vras, as definições da realidade podem ser reforçadas
planejadores cosmicamente estabelecidos. Era inevitável, pela polícia. Isto, diga-se de passagem, não significa
contudo, que surgissem conflitos entre os teóricos e os que estas definições serão menos convincentes que as
profissionais do poder nesta situação. Os últimos eram aceitas "voluntariamente", pois o poder na sociedade in-
representados pelos Xátrias, a casta militar e princi- clui o poder de determinar os processos decisivos de
pesca. A literatura épica da India antiga, o Mahabharata socialização e portanto o poder de produzir a realidade.
e o Ramaiana, dão eloqüente testemunho deste conflito. Em qualquer caso, as simbolizações altamente abstratas
Não foi por acaso que as duas grandes rebeliões teóricas (isto é, as teorias enormemente afastadas da experiência
contra o universo dos brâmanes, o jainismo e o budismo, concreta da vida cotidiana) são corroboradas mais pelo
tiveram sua localização social na casta dos Xátrias. Não suporte social do que pelo suporte empírico .... E' possí-
é preciso dizer que as redefinições jainistas e budistas vel dizer que desta maneira reintroduz-se um pseudo-
da realidade produziram seu próprio pessoal especialista, pragmatismo. E' possível dizer ainda que as teorias são
conforme provavelmente também aconteceu com os poe- convincentes porque dão resultado, isto é, dão resultado
tas épicos que desafiaram o universo dos brâmanes de no sentido de se tornarem o conhecimento padrão e con-
maneira menos compreensiva e menos requintada.· siderado certo na sociedade em questão.
.. Sobre a validaçlio de proposições diliceis de comprovar cmpiricamente,
.. Sobre o Conflito Brama/Xátrla, consulte-se a obra de Weber s'Ibre a cf. Leon Festinger, A Theory of Cognitive Dissonance (Evanston, 111.,
sociologIa da religllio na Indla. Row, Peterson and Co., 1957).

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Estas considerações implicam haver sempre uma base
poder pragmático das teorias em questão torna-se ex-
social estrutural para a competição entre definições ri-
trínseco, isto é, "demonstra-se" que uma teoria é pra-
vais da realidade e que o desfecho da realidade pode
ticamente superior não em virtude de suas qualidades
ser afetado, quando não diretamente determinado, pelo
intrínsecas mas por sua aplicabilidade aos interesses so-
desenvolvimento desta base. E' perfeitamente possível que
ciais do grupo que se tornou "portador" dela. Há con-
formulações teóricas abstrusas sejam maquinadas quase
siderável variabilidade histórica na organização social de
inteiramente isoladas dos amplos movimentos que se pro-
peritos teóricos, como resultado desta situação. Embora
cessam na estrutura social, e nesses casos a competição
seja evidentemente impossível apresentar aqui uma ti-
entre especialistas rivais ocorre em uma espécie de vazio
pologia exaustiva, será útil examinar alguns dos tipos
social. Por exemplo, dois partidos de derviches eremitas
mais gerais.
podem continuar discutindo sobre a natureza última do
universo no meio do deserto, sem haver ninguém de fora Há em primeiro lugar, talvez paradigmaticamente, a
que tenha o menor interesse na disputa. Logo, porém, possibilidade dos peritos universais deterem o monopólio
que um ou outro desses pontos de vista chegam aos efetivo de todas as definições supremas da realidade em
ouvidos da sociedade circunstante haverá interesses gran- uma sociedade. Esta situação pode ser considerada pa-
demente extrateóricos que decidirão o desfecho da riva- radigmática porque há boas razões para pensar que é tí-
lidade. Diferentes grupos sociais terão afinidades dife- pica das fases primitivas da história humana. Este mo-
rentes com as teorias em competição e conseqüentemente nopólio significa que uma única tradição simbólica man-
se tornarão "portadores" destas últimas. Assim, a teo-
li
tém o universo em questão. Estar na sociedade implica,
ria A dos derviches pode atrair o estrato superior da portanto, a aceitação desta tradição. Os especialistas na
sociedade em questão, enquanto a teoria B dos derviches tradição recebem o devido reconhecimento virtualmente
atrairá o estrato médio, por motivos inteiramente distan- por parte de todos os membros da sociedade e não têm
tes das paixões que animaram os inventores originais competidores reais com quem se defrontar. Todas as so-
dessas teorias. As rodas rivais de peritos terão então de ciedades primitivas empiricamente abertas à nossa ins-
se ligarem aos grupos "portadores" e seu destino sub- peção parecem catalogar-se neste tipo e, com algumas
seqüente dependerá do resultado de qualquer conflito modificações, o mesmo se pode dizer da maioria das ci-
que levou esses grupos a adotarem as respectivas teorias. vilizações arcaicas." Isto não implica que em tais so-
Definições rivais da sociedade são decididas, assim, na ciedades não haja cépticos, que todos tenham sem ex-
esfera dos interesses sociais rivais, e essa rivalidade por ceção interiorizado totalmente a tradição, mas antes que
sua vez "se traduz" em termos teóricos. A questão de se algum ceptismo existe não foi socialmente organizado
saber se os peritos rivais e seus respectivos partidários para desafiar os partidários da tradição "oficial". 1'/
são "sinceros" na relação subjetiva com as teorias em Nesta situação a tradição monopolista e seus minis-
questão, é coisa de interesse apenas secundário para a tradores especialistas são sustentados por uma estrutura
compreensão sociológica destes processos. unificada de poder. Aqueles que ocupam as posições de-
Quando não somente surge uma competição teórica cisivas de poder estão prontos para usar seu poder a,
mas também uma competição prática entre grupos de es- fim de impor as definições tradicionais da realidade à
pecialistas dedicados a diferentes definições supremas da população submetida à sua autoridade. As conceitualiza-
realidade, a despragmatização da teoria é invertida e o
.. Sobre as definições monopolistas da realidade nas sociedades primitiva
e arcaica, compare-se com L>urkheim e Voegelln .
.. o termo "afinidade" (Wahlverwandschafl) deriva de Scheler e Weber. "O trabalho de Paul Radin sugere que o ceticismo é posslvel mesmo
nestas situações monopolistas.
162 163
ções do universo potencialmente competidores são liqui- deus, embora situações semelhantes também surgissem
dadas logo assim que aparecem, quer fisicamente des- nos lugares em que os cristãos e muçulmanos eram for-
truídas ("quem não cultua os deuses deve morrer") quer çados a viverem uns junto dos outros em tempos de
integradas na própria tradição (os peritos no universal paz. Este tipo de segregação, diga-se de passagem, tam-
argumentarão que o panteon V competidor não é "real- bém protegia os universos judaico e muçulmano da
mente" outra coisa senão um aspecto ou uma nomen- "contaminação" cristã. Durante o tempo em que as de-
clatura do panteon tradicional X). Neste último caso, finições competidoras da realidade podem ser segrega-
se os peritos têm êxito em suas argumentações e a com- das conceitual e socialmente como sendo próprias de
petição é liquidada por "incorporação:', por assim d~z~r, estrangeiros, e ipso facto como destituídas de importân-
a tradição sai enriquecida e diferenciada. A compehçao cia para a parte dominante, é possível haver relações
pode também ser segregada no interi?r da socieda,d~, cordiais com estes estrangeiros. A dificuldade começa
tornando-se assim inócua no que respeita ao monopoho quando o "caráter de ser estrangeiro" irrompe, e o uni-
tradicional, por exemplo, nenhum membro do grup? con- verso dissidente aparece como um possível habitat para
quistador ou dominante pode cultuar deuses do hpo V, o nosso próprio povo. Neste ponto é provável que os
mas as camadas subjugadas ou inferiores podem. A especialistas na tradição apelem para o fogo e a espa-
mesma segregação protetora pode ser aplicada aos es-
da, ou, no lado oposto da alternativa, se acontece ser
trangeiros ou "povos hóspedes"." impraticável empregar o fogo e a espada, entrem em
O cristianismo medieval (que certamente não pode ser negociações ecumênicas com os competidores.
chamado primitivo ou arcaico, mas era uma sociedade
As situações monopolistas desta espécie pressupõem
com um eficiente monopólio simbólico) oferece ilustra-
um alto grau de estabilidade da estrutura social, sen-
ções de todos os três procedimentos de liquidação. A
do situações por si mesmas estruturalmente estabiliza-
heresia clara tinha de ser fisicamente destruída, quer se
corporificasse em um indivíduo (por exemplo, uma fei- doras. As definições tradicionais da realidade inibem a
ticeira) quer numa coletividade (assim, a comunidade mudança social. Inversamente, o desmoronamento da
albigense). Ao mesmo tempo, a Igreja, sendo a gu~r­ aceitação indisputada do monopólio acelera a mudança
diã monopolista da tradição cristã, mostrava-se ,mUlto social. Não nos deveria portanto surpreender a existên-
flexível em incorporar à tradição um grande numero cia de uma profunda afinidade entre os indivíduos que
de crenças e práticas populares, desde que est~s não têm interesse em conservar as posições estabelecidas de
se solidificassem em desafios heréticos orgamzados, poder e o pessoal incumbido de ministrar as tradições
ameaçando o universo cristão enquanto tal. Não tinha monopolistas de manutenção do universo. Em outras pa-
a menor importância que os camponeses tomassem um lavras, as forças políticas conservadoras têm a tendên~
de seus velhos deuses, "batizassem-no" como santo cia a dar apoio às pretensões monopolistas dos peritos
cristão e continuassem a contar as velhas histórias e no universal, cujas organizações monopolistas por sua
a celebrar as antigas festas que lhe eram dedicada~. vez tendem a ser politicamente conservadoras. Histori-
E pelo menos certas definições competidoras da rea.h- camente, é claro, a maioria destes monopólios foram
da de podiam conservar-se segregadas dentro do cns- religiosos. E' possível, por conseguinte, dizer que as
tianismo sem serem consideradas como ameaças para igrejas, consideradas como combinações monopolistas
ele. O caso mais importante, sem dúvida, é o dos ju- de peritos, em regime de tempo integral, na definição
religiosa da realidade são inerentemente conservadoras,
.. o termo "povos hóspedes" (GastvlJ/ker) deriva de Weher. logo que conseguem estabelecer seu monopólio em uma
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distintivo da ideologia refere-se mais ao fato do mesmo
d~ada. sociedade. Inversamer:te, os grupos dominantes que
universo glogal ser interpretado de diferentes maneiras,
tem mteresse na manutençao do status quo político são
dependendo dos interesses concretos adquiridos dentro
essencialmente eclesiásticos em sua orientação religiosa
da sociedade em questão.
e, como prova, verifica-se desconfiarem de todas as ino-
vações na tradição religiosa. lO Freqüentemente uma ideologia é aceita por um grupo
As situações monopolistas podem malograr em se es- por causa dos elementos teóricos específicos que são
tabelecerem ou se manterem por grande número de ra- proveitosos aos seus interesses. Por exemplo, quando um
grupo camponês empobrecido luta contra um grupo mer-
z?es hist?ricas, "internacionais" e "domésticas". E' pos-
cantil urbano que o escravizou financeiramente, pode
slvel entao que uma luta entre tradições competidoras,
e seu pessoal administrativo, continue por um longo reunir-se em torno de uma doutrina religiosa que exalta
tempo. Quando uma particular definição da realidade as virtudes da vida agrária, condena a economia mone-
chega a se ligar a um interesse concreto de poder, pode tária e seu sistema de crédito como imoral, e de modo
ser chamado uma ideologia. 'lo Deveria acentuar-se que geral vitupera o luxo da vida urbana. A "vantagem"
este. term_o tem pouca utilidade se for aplicado ao tipo ideológica desta doutrina para os camponeses é evidente.
~e sltuaçao monopolista acima discutido. Tem pouco sen-
Encontram-se na história antiga de Israel boas ilustra-
tIdo, por exemplo, falar do cristianismo como uma ideo- ções deste fato. Seria errôneo contudo imaginar que a
logia na Idade Média, - embora tivesse evidente uso relação entre um grupo de interesses e sua ideologia é
político para os grupos dominantes - pela simples ra- sempre tão lógica. Todo grupo empenhado num conflito
zão de que o universo cristão era "habitado" por toda social exige solidariedade. As ideologias geram solida-
a gente na sociedade medieval, pelos servos tanto quanto riedade. A escolha de uma ideologia particular não é
pelos senhores. No período que se seguiu à Revolução necessariamente baseada em seus elementos teóricos in-
Industrial, porém, há certa justificação para chamar o trínsecos, mas pode derivar de um encontro casual. Está
cristianismo uma ideologia burguesa, porque a burgue- longe de ser claro, por exemplo, que foram elementos
sia usou a tradição cristã e seu pessoal na luta contra intrínsecos do cristianismo que o tornaram politicamente
a nova classe operária industrial, que na maioria dos "interessante" para certos grupos na época de Constan-
países europeus não podia mais ser considerada como tino. Parece, ao contrário, que o cristianismo (origina-
"habitando" o universo cristão. ,., Tem também pouco riamente uma ideologia da baixa classe média, se al-
sentido usar o termo se duas diferentes definições da guma coisa foi) veio a ser aproveitado por poderosos
realidade se defrontam em um contacto inter-social, por interesses para fins políticos que tinham pouca relação
exemplo, se falarmos da "ideologia cristã" dos cruzados com os conteúdos religiosos. Qualquer outra coisa teria
e da "ideologia muçulmana" dos sarracenos. O caráter servido igualmente bem, apenas acontecendo que o cris-
tianismo chegou num momento crucial de decisão. Evi-
.. Sob~e a ~f!nidade ".ent~e ,~s forças politicamente conservadoras e os dentemente, logo que a ideologia é adotada pelo grupo
monopólios religIOSOS ( Igrejas ), compare-se com a análise da hierocracia
feita por Weber. ' em questão (mais exatamente, logo que uma determina-
"lO O termo "ideologia" tem sido usado em sentidos tão diferentes que
é possivel perder a esperança de usá-lo de alguma maneira precisa. Deci- da doutrina torna-se a ideologia do grupo em questão)
dimos conservá-lo, em um sentido estreitamente definido porque é útil de
tal maneira e yreferivel a um neologismo. Não se trat'a aqui de discutir modifica-se de acordo com os interesses que deve agora
as tra!,sformaçoes do termo na história do marxismo e da sociologia do legitimar. Isto acarreta um processo de seleção e acrés-
cO,,!!,eclmentu. Para uma vls~o .ge~al útil cf. Ku.rt Lenk (ed.), Ideologie.
Sobre a relação do CristIanIsmo com a Ideologia burguesa veja-se
Marx e Vebl~n .. Uma proveitosa. visão geral do tratamento da' religião
cimo relativamente ao primitivo corpo de proposições
felt!1 pelo primeIro pode ser obtida na antologia Marx and Engels on teóricas. Mas não há razões para supor que estas mo-
Rel.gion (Moscou, Forelgn Languages Publishlng House, 1957).

166 167
dfficações devam afetar a totalidade da doutrina ado- tigas sociedades. As cidades do período greco-romano
tada. Pode haver numerosos elementos em uma ideolo- final podem servir de exemplo. A situação pluralista en-
gia que não têm relação com os interesses legitimados, contra-se juntamente com condições de rápida mudança
mas que são vigorosamente afirmados pelo grupo "por- social, e na verdade o pluralismo é um fator acelerador
tador" porque estes se abrigou sob a ideologia em causa. precisamente porque ajuda a solapar a eficácia da resis-
Na prática, isto pode levar os detentores do poder a tência à mudança das definições tradicionais da realj-
apoiar seus especialistas ideológicos em discussões teó- dade. O pluralismo encoraja tanto o cepticismo quanto
ricas de todo irrelevantes para os seus interesses. O a inovação, sendo assim eminentemente subversivo da
envolvimento de Constantino nas controvérsias cristoló- realidade admitida como certa do status quo tradicional.
gicas de seu tempo é um bom exemplo deste caso. E' fácil simpatizar com os especialistas nas definições
E' importante ter em mente que a maioria das socit!- tradicionais da realidade quando relembram nostalgica-
dades modernas são pluralistas. Isto significa que com- mente os tempos 'em que essas definições tinham o mo-
partilham de um universo que é o seu núcleo, aceito nopólio do terreno.
como indubitável, e têm diferentes universos parciais Um tipo historicamente importante de especialista, pos-
coexistindo em um estado de mútua acomodação. Estes sível em princípio em qualquer das situações que aca-
últimos provavelmente têm algumas funções ideológicas, bamos de discutir, é o intelectual, que podemos definir
mas o conflito direto entre as ideologias foi substituído como um perito cuja capacidade especializada não é de-
por graus variáveis de tolerância ou mesmo de coopera- sejada pela sociedade em conjunto.'OI Isto implica a re-
ção. Esta situação, criada por uma constelação de fa- definição do conhecimento com relação ao conhecimento
tores não-teóricos, apresenta aos peritos na tradição "oficial", isto é, implica mais do que uma simples inter-
graves problemas teóricos. Administrando uma tradição pretação um tanto dissidente deste último. O intelectual
com seculares pretensões monopolistas, têm de descobrir é assim, por definição, um tipo marginal. Saber se co-
meios de legitimar teoricamente a desmonopolização que meçou sendo marginal e em seguida tornou-se intelec-
ocorreu. As vezes preferem continuar como porta-vozes tual (como é o caso, por exemplo, de muitos intelectuais
das velhas pretensões totalitárias, como se nada tivesse judeus no Ocidente moderno) ou se sua marginalidade
acontecido, mas provavelmente muito poucas pessoas le- resultou de aberrações intelectuais (caso dos heréticos
varão a sério essas pretensões. Sej a o que for que os votados ao ostracismo), é coisa que não nos interessa
peritos fizerem, a situação pluralista transforma não so- aqui. lO< Num caso ou noutro, sua marginalidade social
mente a posição social das definições tradicionais da rea- exprime a falta de integração teórica no universo da
lidade mas também o modo em que essas são susten- sociedade a que pertencem. O intelectual aparece como
tadas na consciência dos indivíduos. >li um contra-especialista no trabalho de definir a realidade.
A situação pluralista supõe uma sociedade urbana, Tal como o perito "oficial", tem um projeto para a so-
com uma divisão do trabalho altamente desenvolvida, ciedade em conjunto. Mas, enquanto o projeto do pri-
uma diferenciação concomitantemente alta na estrutura meiro está de acordo com os programas institucionais,
social e elevado excedente econômico. Estas condições, ,.. Nossa concepção do intelectual como o "perito indesejável" não di-
que evidentemente prevalecem na sociedade industrial fere muito da insistência de Mannheim sobre a marginalidade do intelectual.
Numa definição do intelectual que seja SOCiologicamente útil é importante,
moderna, existiram pelo menos em certos setores das an- segundo nosso modo de ver, separar claramente este tipo do "homem de
conhecimento" em geral.
,.. Sobre a marginalidade dos intelectuais, veja-se a análise, feita por
, .. Cf. Thomas Luckmann, Das Problem der Rel/gion In der modernen Simmel, da "objetividade" do estrangeiro e a de Veblen sobre o papel
Gesellschaft (Freiburg, Rombach 1963). intelectual dos judeus.

168 169
decisiva dos intelectuais na moderna sociedade plura-
e serve para dar-lhes legitimação teórica, o do intelectual lista.
existe num vazio institucional, no melhor dos casos ob- Uma opção historicamente muito importante é eviden-
jetivado em uma subsociedade de intelectuais da mesma temente a revolução. Aqui o intelectual dispõe-se a rea-
espécie. A capacidade de sobrevivência desta subsocie- lizar seu projeto para a sociedade na sociedade. E' im-
dade depende, evidentemente, de configurações estruturais possível examinar aqui as várias formas que esta opção
na sociedade mais ampla. Pode-se dizer com certeza que tomou historicamente 1011, mas é preciso estabelecer um
um certo grau de pluralismo é uma condição necessária. importante ponto teórico. Assim como o intelectual que
O intelectual tem várias opções historicamente inte- se afasta necessita de outros que o ajudem a manter
ressantes que se abrem para ele em sua situação. Pode suas definições discordantes da realidade enquanto rea-
retirar-se para uma subsociedade intelectual, que servirá lidade, assim também o intelectual revolucionário neces-
então de refúgio emocional e (mais importante) de base sita de outros para confirmar suas concepções dissi-
social para a objetivação de suas definições dissidentes da dentes. Esta exigência é muito mais fundamental do que
realidade. Em outras palavras, o intelectual pode sen- o fato evidente de nenhuma conspiração poder ter su-
tir-se "à vontade" na subsociedade e não na sociedade cesso sem organização. O intelectual revolucionário pre-
maior, e ao mesmo tempo ser capaz de manter subjeti- cisa de outros que mantenham para ele a realidade (isto
vamente suas concepções dissidentes que a sociedade é, a plausibilidade subjetiva em sua própria consciência)
mais ampla destrói, porque na subsociedade há outros da ideologia revolucionária. Todas as definições da rea-
que consideram estas concepções como realidade. Criará, lidade socialmente dotadas de sentido têm de ser objeti-
então, vários procedimentos para proteger a realidade vadas por processos sociais. Por conseguinte, os subuni-
precária da subsociedade das ameaças aniquiladoras pro- versos exigem subsociedades como base objetivadora e
venientes de fora. No nível teórico, estes procedimentos as contradefinições da realidade requerem contra-socie-
incluirão as defesas terapêuticas que discutimos ante- dades. Não é necessário acrescentar que todo sucesso
riormente. Na prática, um procedimento mais importante prático da ideologia revolucionária fortificará a realidade
será a limitação de todas as relações significativas aos que possui dentro da subsociedade e na consciência dos
seus companheiros, membros da subsociedade. O estra- membros da subsociedade. Sua realidade assume pro-
nho é evitado porque corporifica sempre a ameaça de porções maciças quando camadas sociais inteiras tor-
aniquilação. A seita religiosa pode ser considerada como nam-se "portadoras" dela. A história dos modernos mo-
o protótipo das subsociedades desta espécie.... Dentro vimentos revolucionários oferece muitas ilustrações da
da comunidade protetora da seita mesmo as concepções transformação de intelectuais revolucionários em legitima-
mais desvairadamente dissidentes tomam o caráter de dores "oficiais" após a vitória desses movimentos. 1" Isto
realidade objetiva. Inversamente, a retirada sectária é sugere não somente que há considerável variabilidade
típica das situações em que as definições da realidade histórica na carreira social dos intelectuais revolucioná-
anteriormente objetivada se desintegram, isto é, tornam- rios, mas que podem também ocorrer diferentes opções
se desobjetivadas na sociedade mais ampla. Os deta- e combinações na biografia dos indivíduos.
lhes destes processos pertencem à sociologia histórica 1" Comparar c"m a análise dos Intelectuais revolucionários feita por
da religião, embora deva acrescentar-se que várias for- Mannhelm. Quanto ao protótipo russo destes últimos, cf. E. Lampert, Stu-
dles in Rebellion (New Vork, Praeg;er, 1957)... .
mas secularizadas de sectarismo são uma característica l0' A transformação dos IntelectuaIs revolUClonános em legItimadores do
status quo pode ser estudada em forma pratlcament~ "pura" no desenvol-
vimento do comunismo russO. Para uma aguda critica deste processo do
1" Cf. Peter L. Berger, "The Soclologlcal Study of Sectarianlsm", So- ponto de vista marxista, cf. Leszek Kolakowskl, Der Mensch ohne Alternative
c/aI Research, Winter 1954, 467ss. (Munique 1960).
171
170
Na análise precedente acentuamos os aspectos estru-
turais na existência social do pessoal que sustenta o
universo. Nenhuma genuína análise sociológica poderia
proceder de outra maneira. As instituições e os universos
simbólicos são legitimados por indivíduos vivos, que têm
localizações sociais concretas e interesses sociais con-
cretos. A história das teorias legitimadoras é sempre
parte da história da sociedade como totalidade. Não há
III
"história das idéias" isolada do sangue e do suor da
história geral. Mas devemos, ainda uma vez, acentuar
que isto não significa serem estas teorias nada mais do A Sociedade como Realidade
que reflexos de processos institucionais "subjacentes"; Subjetiva
a relação entre as "idéias" e os processos sociais que as
sustentam é sempre uma relação dialética. E' correto
1. A INTERIORIZAÇAO DA REALIDADE
dizer que as teorias são maquinadas com o fim de le-
gitimar instituições sociais já existentes. Mas acontece, a) A Socialização Primária
também, que instituições sociais sejam modificadas para
se conformarem com teorias já existentes, isto é, tor- SENDO A SOCIEDADE UMA REALIDADE AO MESMO TEMPO
ná-Ias mais "legítimas". Os peritos em legitimação po- objetiva e subjetiva, qualquer adequada compreensão
dem atuar como justificadores teóricos do status quo, teórica relativa a ela deve abranger ambos estes aspec-
mas podem aparecer também como ideólogos revolucio- tos. Conforme tivemos ocasião de dizer, estes aspectos
nários. As definições da realidade têm um poder auto- recebem correto reconhecimento se a sociedade for en-
realizador. As teorias podem ser realizadas na história, tendida em termos de um processo dialético em curso,
mesmo teorias que eram altamente abstrusas quando fo- composto de três momentos, exteriorização, objetivação e
ram pela primeira vez concebidas por seus inventores. interiorização. No que diz respeito ao fenômeno social,
Karl Marx, meditando na biblioteca do Museu Britânico, estes momentos não devem ser pensados como ocorren-
tornou-se o exemplo proverbial desta possibilidade his- do em uma seqüência temporal. Ao contrário, a socie-
tórica. Por conseguinte, a transformação social deve dade e cada uma de suas partes são simultaneamente
sempre ser compreendida como estando em relação dia- caracterizadas por estes três momentos, de tal modo que
lética com a "história das idéias". Tanto a compreensão qualquer análise que considere apenas um ou dois deles
"idealista" quanto a "materialista" desta relação esque- é insuficiente. O mesmo é verdade com relação a um
cem esta dialética e dessa maneira deformam a história. membro individual da sociedade, o qual simultaneamente
A mesma dialética predomina nas transformações glo- exterioriza seu próprio ser no mundo social e interioriza
bais dos universos simbólicos que tivemos ocasião de este último como realidade objetiva. Em outras palavras,
examinar. O que permanece sociologicamente essencial estar em sociedade significa participar da dialética da
é o reconhecimento de que todos os universos simbólicos sociedade.
e todas as legitimações são produtos humanos, cuja Contudo, o indivíduo não nasce membro da sociedade.
existência tem por base a vida dos indivíduos concretos Nasce com a predisposição para a sociabilidade e tor-
e não possui status empírico à parte dessas vidas. na-se membro da sociedade. Por conseguinte, na vida
de cada indivíduo existe uma seqüência temporal no cur-
172 173
80 da qual é induzido a tomar parte na dialética da compreende as definições das situações partilhadas mas
sociedade. O ponto inicial deste processo é a interiori- somos capazes de defini-Ias reciprocamente. Estabele-
zação, a saber a apreensão ou interpretação imediata de ce-se entre nós um nexo de motivações que se estende
um acontecimento objetivo como dotado de sentido, isto para o futuro. Mais importante ainda é o fato de hav:r
é, como manifestação de processos subjetivos de outrem, agora uma contínua identificação mútua entre n.ó~. Nao
que desta maneira torna-se subjetivamente significativo somente vivemos no mesmo mundo mas parhclpamos
para mim. Isto não quer dizer que compreenda o outro cada qual do ser do outro. . .
adequadamente. Posso de fato compreendê-lo mal, por Somente depois de ter realizado este grau de I.nteno-
exemplo, se está rindo em um acesso de histeria posso rização é que o indivíduo se torna m~mbro da sO~led~de.
entender o riso como significando hilaridade. Mas a sub- O processo ontogenético pelo qual IStO se reahza e a
jetividade dele é entretanto objetivamente acessível a mim socialização, que pode assim ser definida como a ampla
e torna-se dotada de sentido para mim, quer haja ou não e consistente introdução de um indivíduo no mundo ob-
congruência entre os processos subjetivos dele e os meus. jetivo de uma sociedade ou de u~ .seto! dela. A .so~i~­
A completa congruência entre os dois significados sub- Iização primária é a primeira soclahzaçao que o mdlvl-
jetivos e o conhecimento recíproco desta congruência duo experimenta na infância, e em ~ir~ude_ da qual to~­
pressupõe a significação, conforme examinamos anterior- na-se membro da sociedade. A soclahzaçao secundána
mente. No entanto, a interiorização, no sentido geral é qualquer processo subseqüente que introduz um i~di~í­
aqui empregado, está subjacente tanto à significação duo já socializado em novos se!ore~ do mundo ob]ehvo
quanto às suas formas mais complexas. Dito de maneira de sua sociedade. Podemos aqUI deIxar de lado a ques-
mais precisa, a interiorização neste sentido geral cons- tão particular da aquisição do conhecimento relativo ao
titui a base primeiramente da compreensão de nossos mundo objetivo de sociedades diferentes daquela de que
semelhantes e, em segundo lugar, da apreensão do mun- cada homem se tornou primeiramente membro, e bem
do como realidade social dotada de sentido. 1 assim o processo de interiorização desse mundo como
Esta apreensão não resulta de criações autônomas de realidade processo que apresenta, ao menos superficial-
significado por indivíduos isolados, mas começa com o mente c~rtas semelhanças com a socialização primária e
fato do indivíduo "assumir" o mundo no qual os ou- secundária, não sendo contudo estruturalmente idêntico a
tros já vivem. Sem dúvida, este "assumir" em si mesmo nenhuma destas. •
constitui em certo sentido um processo original para cada E' imediatamente evidente que a socialização primária
organismo humano e o mundo, uma vez "assumido", tem em geral para o indivíduo o va!or. ma!s importan~e
pode ser modificado de maneira criadora ou (menos pro- e que a estrutura básica de toda soclahzaçao secundána
vavelmente) até recriado. Em qualquer caso, na forma deve assemelhar-se à da socialização primária. Todo
complexa da interiorização, não somente "compreendo" indivíduo nasceu em uma estrutura social objetiva, dentro
os processos subjetivos momentâneos do outro mas "com- da qual encontra os outros significativos qu~ s~. en:ar-
preendo" o mundo em que vive e esse mundo torna-se regam de sua socialização.' Estes outros slgmflca~lvos
o meu próprio. Isto pressupõe que ele e eu participamos são-lhe impostos. As definições dadas por estes à sltua-·
do tempo de um modo que não é apenas efêmero e numa ção dele apresentam-se como a realidade objetiva. Desta
perspectiva ampla, que liga intersubjetivamente as seqüên-
• Nossas definições da socialização e de seus dois subtipos seguem multo
cias de situações. Agora, cada um de nós não somente de erto o uso corrente nas ciências sociais. Adaptamos, apenas, o voca-
bulirio para conformá-lo com nosso quadro teórico. de referência global.
I Nossa descrição neste ponto apóia-se sem duvida abundantemente na
1 Nossa concepção da "compreensão do outro" deriva de Weber e Schutz. teoria da socialização de Mead.

174 175
maneira nasceu não somente em uma estrutura social tíficação com os outros significativos a criança torna-se
objetiva mas também em um mundo social obj~tivo. Os capaz de se identificar a si mesma, de adquirir uma
outros significativos que estabelecem a mediação deste identidade subjetivamente coerente e plausível. Em ou-
mundo para ele modificam o mundo no curso da media- tras palavras, a personalidade é uma entidade reflexa,
ção. Escolhem aspectos do mundo de acordo com sua que retrata as atitudes tomadas pela primeira vez pelos
própria localização na estrutura social e também em vir- outros significativos com relação ao individuo ", que se
tude de suas idiosincrasias individuais, cujo fundamento torna \) que é pela ação dos outros para ele significa-
se encontra ná biografia de cada um. O mundo social tivos. Este processo não é unilateral nem mecanicista.
é "filtrado" para o indivíduo através desta dupla sele- Implica uma dialética entre a identificação pelos outros
tividade. Assim, a criança das classes inferiores não so- e a auto-identificação, entre a identidade objetivamente
mente absorvem uma perspectiva própria da classe in- atribuída e a identidade subjetivamente apropriada. A
ferior a respeito. do mundo social, mas absorve esta dialética, que está presente em cada momento em que
percepção com a coloração particular que lhe é dada por o indivíduo se identifica com os outros para ele signi-
seus pais (ou quaisquer outros indivíduos encarregados ficativos, é, por assim dizer, a particularização na vida
de sua socialização primária). A mesma perspectiva da individual da dialética geral da sociedade, que já tive-
classe inferior pode introduzir um estado de espírito de mos ocasião de discutir.
contentamento, resignação, amargo ressentimento ou fer-
vente rebeldia. Como conseqüência uma criança da classe Embora os detalhes desta dialética tenham natural-
inferior não somente irá habitar um mundo grandemente mente grande importância para a psicologia social, ex-
diferente do que é próprio da criança de uma classe su- cederia nossa finalidade atual se fôssemos acompanhar
perior, mas pode chegar a ter um mundo inteiramente suas implicações para a teoria sócio-psicológica.' Im-
diferente daquele da criança de classe inferior que mora porta-nos mais aqui, para nossas considerações, o fato
na casa ao lado. • do indivíduo não somente absorver os papéis e atitudes
Não é necessário acrescentar que a socialização pri- dos outros mas nesse mesmo processo assumir o mun-
mária implica mais do que o aprendizado puramente do deles. De fato, a identidade é objetivamente defi-
cognoscitivo. Ocorre em circunstâncias carregadas de nida como localização em um certo mundo e só pode
alto grau de emoção. De fato, há boas razões para se ser subjetivamente apropriada juntamente com este
acreditar que sem esta ligação emocional com os outros mundo. Dito de outra maneira, todas as identificações
significativos o processo de aprendizado seria difícil, realizam-se em horizonte que implicam um mundo social
quando não de todo impossível.· A criança identifica-se específico. A criança aprende que é aquilo que é cha-
com os outros significativos por uma multiplicidade de mada. Todo nome implica uma nomenclatura, que por
modos emocionais. Quaisquer que sejam, a interiorização sua vez implica uma localização social determinada.'
só se realiza quando há identificação. A criança absorve
• Nossa concepção do caráter reflexo do eu deriva de Cooley e Mead.
os papéis e as atitudes dos outros significativos, isto Suas raizes podem ser encontradas na análise do "eu social" de Willlam
James (Principies of Psychology).
é, interioriza-os, tornando-os seus. Por meio desta iden- , Embora isto não possa ser desenvolvido aqui, pode-se dizer o suficiente
para indicar a possibilidade de uma psicologia social genuinamente dialética.
Esta seria igualmente importante para a antropologia filosófica e para a
• o conceito de "mediação" deriva de Sartre, que, contudo, não possui sociologia. No que diz respeito a esta última, uma tal psicologia social
uma adequada teoria da socialização. (fundamentalmente de orientação no sentido de Mead, mas com O acréscimo
• A dimensão afetiva da aprendizagem inicial foi especialmente acentua- de importantes elementos retirados de outras correntes do pensamento
da pela psicologia infantil freudiana, embora haja várias descobertas da socIal cientifico) tornaria desnecessário procurar alianças teoricamente In-
teoria behaviorista da aprendizagem que tenderiam a confirmar isto. NAo sustentáveis com o psicoiogismo freudiano ou behaviorista.·
queremos dizer que aceitamos as premissas teóricas de ambas essas escolas • Sobre a nomenclatura, cf. Claude Lévi-Strauss, La pensü sauvage,
de psicologia em nossa argumentaçAo neste ponto. pp. 253ss.

176 177
Receber uma identidade implica na atribuição de um os vários papéis e atitudes interiorizados, inclusive, en-
lugar especifico no mundo. Assim como esta identidade tre muitas outras coisas, a auto-identificação como
é subjetivamente apreendida pela criança ("eu SOu John pessoa que não derrama a sopa.
Smith"), o mesmo se dá com o mundo para o qual A formação na consciência do outro generalizado
esta identidade aponta. A apropriação subjetiva da iden- marca uma fase decisiva na socialização. Implica a in-
tidade e a apropriação subjetiva do mundo social são teriorização da sociedade enquanto tal e da realidade
apenas aspectos diferentes do mesmo processo de inte- objetiva nela estabelecida e, ao mesmo tempo, o esta-
riorização, mediatizado pelos mesmos outros significativos. belecimento subjetivo de uma identidade coerente e con-
A socialização primária cria na consciência da crian- tínua. A sociedade, a identidade e a realidade cristalizam
ça uma abstração progressiva dos papéis e atitudes dos subjetivamente no mesmo processo de interiorização.
outros particulares para os papéis e atitudes em geral. Esta cristalização ocorre juntamente com a interiorização
Por exemplo, na interiorização das normas há uma pro- da linguagem. De fato, por motivos evidentes à vista
gressão que vai da expressão "mamãe está zangada das precedentes observações sobre a linguagem, esta
comigo agora' a esta outra "mamãe fica zangada comigo constitui o mais importante conteúdo e o mais importante
toda vez que eu derramo a sopa". Desde que mais ou- instrumento da socialização.
tras pessoas significativas (pai, avó, irmã mais velha, Quando o outro generalizado cristalizou na consciên-
etc.) apóiam a atitude negativa da mãe com relação ao cia estabelece-se uma relação simétrica entre a realidade
ato de derramar a sopa, a generalidade da norma é es- objetiva e a subjetiva. Aquilo que é real "fora" corres-
tendida subjetivamente. O passo decisivo ocorre quando ponde ao que é real "dentro". A realidade objetiva pode
a criança reconhece que todos são contra o fato de en- ser facilmente "traduzida" em realidade subjetiva, e
tornar a sopa, e a norma generaliza-se tomando a ex- vice-versa. A linguagem evidentemente é o principal veí-
pressão "Não se deve derramar a sopa", sendo o "se" culo deste progressivo processo de tradução em ambas
parte de uma generalidade que inclui, em princípio, as direções. Conviria, entretanto, acentuar que a simetria
toda a sociedade, na medida em 'lue é significativa para entre a realidade objetiva e a subjetiva não pode ser
a criança. Esta abstração dos papéis e atitudes dos ou- completa. As duas realidades correspondem uma à ou-
tros significativos concretos é chamada o outro gene- tra mas não são coextensivas. Há sempre mais realidade
ralizado.· Sua formação na consciência significa que o objetiva "disponível" do que a efetivamente interiorizada
indivíduo identifica-se agora não somente com os outros em qualquer consciência individual, simplesmente porque
concretos mas com uma generalidade de outros, isto é, o conteúdo da socialização é determinado pela distribui-
com uma sociedade. Somente em virtude desta identifi- ção social do conhecimento. Nenhum indivíduo interio-
cação generalidade sua identificação consigo mesmo al- riza a totalidade daquilo que é objetivado como reali-
cança estabilidade e continuidade. O indivíduo tem agora dade em sua sociedade, mesmo que a sociedade e seu
não somente uma identidade em face deste ou daquele mundo sejam relativamente simples. Por outro lado, há
outro significativo, mas uma identidade em geral, sub- sempre elementos da realidade subjetiva que não se ori-
jetivamente apreendida como constante, não importando ginaram na socialização, tais como a consciência da
que outros, significativos ou não, sejam encontrados. Esta existência do próprio corpo do indivíduo anteriormente
identidade, recentement~ coerente, incorpora em si todos e à parte de qualquer apreensão dele socialmente
apreendida. A biografia subjetiva não é completamente
• o conceito de "outro generalizado" é usado aqui inteiramente no sen- social. O indivíduo apreende-se a si próprio como um
tido que lhe foi dado por Mead.

178 179
ser ao mesmo tempo interior e exterior à sociedade. li
tos subseqüentes, a lembrança de uma certeza que nunca
Isto implica que a simetria entre a realidade objetiva e deverá repetir-se - a certeza da primeira aurora da
a subjetiva nunca é uma situação estática, dada uma realidade - fica ainda aderente ao primeiro mundo da
vez por todas. Deve ser sempre produzida e reproduzida infância. A socialização primária realiza assim o que
in actu. Em outras palavras, a relação entre o indivíduo (numa visão retrospectiva, evidentemente) pode ser con-
e o mundo social objetivo assemelha-se a um ato con- siderado o mais importante conto-do-vigário que a so-
tinuamente oscilante. As raízes antropológicas deste fato ciedade prega ao indivíduo, ou seja, fazer aparecer como
são evidentemente as mesmas que examinamos ao tra- necessidade o que de fato é um feixe de contingências,
tar da peculiar pósição do homem no reino animal. dando deste modo sentido ao acidente que é o nasci-
mento dele.
Na socialização primáda não há problema de iden- Os conteúdos específicos que são interiorizados na
tificação. Não há escolha dos outros significativos. A socialização primária variam naturalmente de sociedade
sociedade apresenta ao candidato à socialização um con- para sociedade. Alguns encontram-se em toda parte. E'
junto antecipadamente definido de outros significativos, a linguagem que tem de ser interiorizada acima de tudo.
que ele tem de aceitar como tais sem possibilidade de Com a linguagem, e por meio dela, vários esquemas
optar por outro arranjo. Hic Rhodus, hic salta. Temos motivacionais e interpretativos são interiorizados com
de nos arranjar com os pais que o destino nos deu. valor institucional definido, por exemplo, querer agir co-
Esta injusta desvantagem, inerente à situação de ser mo um menino valente, admitindo naturalmente que os
criança, tem como conseqüência evidente que, embora meninos se dividem em valentes e covardes. Estes es-
a criança não seja simplesmente passiva no processo de quemas fornecem à criança programas institucionaliza-
sua socialização, são os adultos que estabelecem as re- dos para a vida cotidiana, alguns imediatamente aplicá-
gras do jogo. A criança pode participar do jogo com veis a ela, outros antecipando condutas socialmente de-
entusiasmo ou com mal-humorada resistência. Mas in- finidas para estágios biográficos ulteriores, a bravura
felizmente não há outro jogo à vista. Isto tem um impor- que lhe permitirá um dia ser aprovado nas provas de
tante corolário. Desde que a criança não tem escolha ao vontade provenientes de seus iguais e de todas as es-
selecionar seus outros significativos, identifica-se auto- pécies de outros, assim como a valentia que dela será
maticamente com eles. Pela mesma razão a interioriza- exigida. mais tarde, quando for iniciada como guerreiro,
ção da particular realidade deles é quase inevitável. A por exemplo, ou quando for convocada pelo deus. Estes
criança não interioriza o mundo dos outros que são sig- programas, tanto os imediatamente aplicáveis quanto os
nificativos para ele como sendo um dos muitos mundos antecipatórios, diferenciam a identidade do indivíduo, se-
possíveis. Interioriza-se como sendo o mundo, o único parando-os dos outros, tais como moças, meninos escra-
mundo existente e concebível, o mundo tout court. E' vos ou meninos de outro clã. Finalmente, há interiori-
por esta razão que o mundo interiorizado na socialização zação pelo menos dos rudimentos do aparelho legitima-
primária torna-se muito mais firmemente entrincheirado dor. A criança aprende "por que" os programas são tais
na consciência do que os mundos interiorizados nas so- como são. Deve-se ser valente, porque o menino deseja
cializações secundárias. Por mais que o sentimento ori- tornar-se um verdadeiro homem. Deve-se executar os
ginai de inevitabilidade seja enfraquecido por desencan- ritos, porque se não for assim os deuses se enraivecem.
E' preciso ser leal ao chefe, porque só procedendo assim
'" Compare-se com o que diz Georg Simmel sobre a auto-apreensão do
homem como sendo simultaneamente a sociedade Intern~ e a externa. O
os deuses ajudarão o indivíduo num momento de pe-
conceito de "excentricidade" de Plessner é também Importante a este rigo, etc.
respeito.

180 181
Na socialização pnmana, por conseguinte, é construi- bém, é provável que a maioria dos programas definam
do o primeiro mundo do indivíduo. Sua peculiar quali- a questão diferentemente para os meninos e para as
dade de solidez tem de ser explicada, ao menos em meninas. Este reconhecimento mínimo é naturalmente
parte, pela inevitabilidade da relação do indivíduo com imposto à sociedade pelos fatos biológicos. Além disso,
os primeiros outros significativos para ele. O mundo porém, há uma grande variabilidade sócio-histórica na
da infância, em sua luminosa realidade, conduz a ter definição das etapas da seqüência da aprendizagem. O
confiança não somente nas pessoas dos outros signifi- que é ainda definido como infância numa sociedade pode
cativos mas nas definições da situação dadas por estes. bem ser definido como estado adulto em outra. E as
O mundo da infância é maciça e indubitavelmente real. n implicações sociais da infância variam grandemente de
Provavelmente não poderia ser de outra maneira, nesta uma sociedade para outra, por exemplo, no que se refere
etapa do desenvolvimento da consciência. Só mais tarde às qualidades emocionais, responsabilidade moral ou ca-
o indivíduo pode dar-se ao luxo de ter um mínimo de pacidade intelectual. A civilização ocidental contemporâ-
dúvidas. E provavelmente esta necessidade de um proto- nea (pelo menos antes do movimento freudiano) ten-
realismo na apreensão do mundo refere-se à filogênese dia a considerar as crianças como naturalmente "ino-
tanto quanto à ontogênese." Em qualquer caso, o mun- centes" e "meigas". Outras sociedades consideravam-nas
do da infância é constituído de modo a instilar no in- "por natureza pecaminosas e impuras", diferentes dos
divíduo uma estrutura nômica na qual possa ter con- adultos só pela força e compreensão. Houve variações
fiança de que "tudo está bem", se quisermos repetir semelhantes corr. referência à capacidade infantil de ati-
o que talvez seja a frase mais freqüente pelas mães vidade sexual, responsabilidade criminal, inspiração di-
aos filhos quando estão chorando. A descoberta, ulte- vina, etc. Estas variações na definição social da infância
riormente feita, de haver algumas coisas muito diferen- e de seus estágios afetarão evidentemente o programa de
tes de "estarem bem" pode ser mais ou menos chocan- aprendizagem. 11
te, dependendo das circunstâncias biográficas, mas num O caráter da socialização primária é também afetado
caso ou noutro o mundo da infância provavelmente con- pelas exigências do acervo de conhecimentos a ser trans-
servará retrospectivamente sua realidade peculiar. Per- mitido. Certas legitimações podem exigir um grau de
manece sendo o "mundo doméstico", por mais longe complexidade lingüística para serem compreendidas do
que o indivíduo se afaste dele mais tarde na vida, indo que outras. Podemos suspeitar, por exemplo, que uma
para regiões onde absolutamente não se sente em casa. criança necessitará menos palavras para compreender que
A socialização primária implica seqüências de apren- não deve se masturbar porque faz o seu anjo da guarda
dizado socialmente definidas. Na idade A a criança deve ficar zangado do que para compreender o argumento
aprender X, na idade B deve aprender V, e assim por de que a masturbação opõe-se a seu ajustamento sexual
diante. Cada um destes programas acarreta certo re- futuro. As exigências da ordem institucional global afe-
conhecimento social do crescimento e diferenciação bio- tarão também a socialização primária. Numa sociedade
lógicas. Assim, cada programa, em qualquer sociedade, serão diferentes as habilidades exigidas em diversas ida-
tem de reconhecer que uma criança de um ano de idade des, comparada com outra sociedade, ou mesmo em se-
não pode aprender o que uma de três anos pode. Tam- tores diversos da mesma sociedade. A idade em que
numa sociedade será julgado conveniente para uma crian-
11 A comparar com a realidade maciça do mundo Infantil exposla por ça aprender a dirigir um automóvel pode ser a idade
Plagelo
,. Compare-se com Lévy-Bruhl sobre o análogo fi Iogen él Ico d o U rea lI smolO
Infantil de Piagel o 11 CIo Philippe Aries, Cenlurles of Childhood (New York, Knopf, 1962).

182 183
em que, noutra sociedade, é de esperar que tenha ma- extensão e caráter destes são portanto determinados pela
tado seu primeiro inimigo. U ma criança da classe su- complexidade da divisão do trabalho e a concomitante
perior pode aprender os "fatos da vida" em uma idade distribuição social do conhecimento. Sem dúvida, o co-
na qual uma criança de classe inferior d?minoU os ru- nhecimento universalmente importante também pode ser
dimentos da técnica do aborto. Ou uma cnança de classe socialmente distribuído - por exemplo, ~m forma de
superior pode sentir suas primeiras vibrações de emo- "versões" com base de classe - mas o que temos em
ção patriótica aproximadamente na época. em que ~~a mente aqui é a distribuição social do "conhecimento es-
contemporânea de classe inferior sente ódIO da pohcla pecial", conhecimento como resultado da divisão do tra-
e de tudo quando esta representa. balho e cujos "portadores" são institucionalmente defi-
A socialização primária termina quando o conceito do nidos. Deixando de lado, por ora, suas outras dimen-
outro generalizado (e tudo quanto o acompanha) foi sões, podemos dizer que a socialização secundária é
estabelecido na consciência do individuo. Neste momento a aquisição do conhecimento de funções específicas,
é um membro efetivo da sociedade e possui sujetiva- funções direta ou indiretamente com raízes na divisão
mente uma personalidade e um mundo. Mas esta inte- do trabalho. Há certa justificação para esta definição
riorização da sociedade, da identidade e da realidade não estreita, mas isto não significa de modo algum toda a
se faz de uma vez para sempre. A socialização nunca história. A socialização secundária exige a aquisição de
é total nem está jamais acabada. Este fato põe diante vocabulários específicos de funções, o que significa em
de nós dois outros problemas: primeiro, como é man- primeiro lugar a interiorização de campos semânticos
tida na consciência a realidade interiorizada na socia- que estruturam interpretações e condutas de rotina em
lização primária? ; segundo, como ocorrem novas. inte- uma área institucional. Ao mesmo tempo, são também
riorizações - ou socializações secundárias - na bIogra- adquiridas "compreensões tácitas", avaliações e colora-
fia ulterior do individuo? Examinaremos estes proble- ções afetivas desses campos semânticos. Os "submun-
mas em ordem inversa. dos" interiorizados na socialização secundária são ge-
ralmente realidades parciais, em contraste com o "mundo
b) A Socialização Secundária básico" adquirido na socialização primária. Contudo,
eles também são realidades mais ou menos coerentes,
E' possível conceber uma sociedade na qual não haja caracterizadas por componentes normativos e afetivos
outra socialização depois da socialização primária. Tal assim como cognoscitivos.
sociedade evidentemente teria de possuir um cabedal de Além disso, também eles exigem pelo menos os ru-
conhecimentos muito simples. Todo conhecimento seria dimentos de um aparelho legitimador, freqüentemente
geralmente importante, diferindo os diversos individuos acompanhado de símbolos rituais ou materiais. Por
apenas em suas perspectivas relativamente a. e!e. Esta exemplo, pode surgir uma diferenciação entre soldados
concepção é útil porque estabelece um caso hmlfe, mas de infantaria e de cavalaria. Estes últimos deverão ter
nenhuma sociedade por nós conhecida deixa de ter al- um exercício especial, que provavelmente implicará mais
guma divisão do trabalho, e concomitantemente alguma do que a aprendizagem das puras habilidades físicas
distribuição social do conhecimento. Logo que tal ocorre necessárias para manejar cavalos militares. A linguagem
a socialização secundária torna-se necessária. da cavalaria tornar-se-á diferente da que é usada pela
A socialização secundária é a interiorização de "sub- infantaria. Nascerá uma terminologia referenre aos ca-
mundos" institucionais ou baseados em instituições. A valos, suas qualidades e usos e, às situações resultantes

184 185
da vida da cavalaria, que serão inteiramente destituídas puxar carroças de estrume pouco provavelmente embe-
de importância para o soldado a pé. A cavalaria usará lezará esta atividade mediante complexos ritos ou feti-
também uma linguagem diferente mais do que no sentido chismos e é pouco provável que o pessoal a quem é
puramente instrumental. Um soldado de infantaria en~ atribuída esta tarefa se identifique com tal função de
colerizado pragueja fazendo referência à dor nos pés, maneira profunda. As legitimações, tal como existem,
enquanto o cavaleiro mencionará as costas do cavalo. provavelmente devem ser de natureza compensatória.
Em outras palavras, um corpo de imagens e alegorias Assim, existe grande variabilidade sócio-históric~ nas
é construído tendo por base instrumental a linguagem representações implicadas na socialização secundárIa. Na
da cavalaria. Esta linguagem específica de uma função maior parte das sociedades, contudo, alguns rituais
é interiorizada in toto pelo indivíduo, à medida em que acompanham a transição da socialização primária para
se vai exercitando para o combate montado. Torna-se a secundária. U
um cavalariano não somente por adquirir as habilidades
exigidas, mas por ser capaz de compreender e usar esta Os processos formais da socialização secundária são
determinados por seu problema fundamental, a suposição
linguagem. Pode então comunicar-~e com seus. compa-
nheiros de cavalaria em alusões rIcas de sentIdo para de um processo precedente de socialização primária, isto
é, deve tratar com uma personalidade já formada e um
eles mas completamente obtusas para os homens da ~n­
mundo já interiorizado. Não pode construir a realidade
fantaria. Não é preciso dizer que este processo de In-
subjetiva ex nihilo. Isto representa um problema, por-
teriorização acarreta a identificação subjetiva com a fun-
que a realidade já interiorizada tem a tendência a per-
ção e suas normas adequadas - "Sou um soldado de sistir. Sejam quais forem os novos conteúdos que de-
cavalaria", "Um soldado de cavalaria nunca deixa o ini- vam agora ser interiorizados, precisam de certo modo
migo ver o rabo de sua montaria", "Nunca deixe uma sobrepor-se a esta realidade já presente. Há, portanto,
mulher esquecer a sensação das esporas", "Rápido ca- um problema de coerência entre as interiorizações pri-
valeiro na guerra, rápido cavaleiro no jogo", etc. Se mitivas e as novas. O problema pode ser de solução
surgir a necessidade, este corpo ?e signif~cados será .sus- mais ou menos difícil, conforme o caso. O soldado,
tentado por legitimações que vao de Simples ~áxlm~s tendo aprendido que a limpeza é uma virtude em relação
do tipo das precedentes até complexas con~tr.u~oes mi- à própria pessoa, não terá dificuldade em transferir a
tológicas. Finalmente, pode haver uma m~ltIphCI~ade de mesma virtude para o seu cavalo. Mas tendo aprendido
cerimônias e objetos físicos representatIvos, digamos, que certas obscenidades são reprováveis em uma crian-
a celebração anual da festa do deus-cavalo, na qual ça pedestre, exigirá certa explicação mostrar que são
todos os alimentos são ingeridos a cavalo e os cava- agora de rigueur para o membro da cavalaria. Para
leiros recentemente iniciados recebem os fetiches cons- estabelecer e conservar a coerência a socialização se-
tituídos por caudas de cavalo, que daí em diante levarão cundária pressupõe procedimentos conceituais para in-
pendurados no pescoço. tegrar diferentes corpos de conhecimento.
O caráter desta socialização secundária depende do Na socialização secundária, as limitações biológicas
status do corpo de conhecimento em questão no interior tornam-se cada vez menos importantes nas seqüências
do universo simbólico em totalidade. O treinamento é de aprendizagem, que agora estabelecem-se em termos
necessário para aprender a fazer um cavalo puxar uma das propriedades intrínsecas do conhecimento que deve
carroça de estrume ou para combater numa batalha.
Mas uma sociedade que limita o uso dos cavalos a U Compare-se aqui as análises cultural-antropológicas dos "ritos de
passagem" relacionados com a puberdade.

186 187
ser adquirido, ou seja, em termos da estrutura funda- tarde na vida começa tipicamente a revestir-se de uma
mental desse conhecimento. Por exemplo, para aprender afetividade que lembra a infância, quando procura trans-
certas técnicas de caça é preciso aprender primeiro a formar radicalmente a realidade subjetiva do indivíduo.
escalar montanhas ou para aprender o cálculo é pre- Este fato cria problemas especiais que analisaremos um
ciso aprender primeiro álgebra. As seqüências de apren- pouco mais adiante.
dizado podem também ser manipuladas em função dos Na socialização primária a criança não apreende seus
direitos adquiridos do pessoal que ministra o corpo de outros significativos como funcionários institucionais mas
conhecimentos. Por exemplo, pode ser estabelecido que como mediadores da realidade tout court. A criança inte-
o indivíduo deve aprender a adivinhação pelas entranhas rioriza o mundo dos pais como sendo o mundo, e não
dos animais antes de poder aprender a adivinhação pelo como o mundo pertencente a um contexto institucional
vôo dos pássaros, ou que é preciso ter um diploma de específico. Algumas das crises que acontecem depois da
escola secundária antes da matrícula numa escola de socialização primária são causadas na verdade pelo re-
embalsamento ou que é preciso ser aprovado no exame conhecimento de que o mundo dos pais não é o único
de gaélico antes de poder ser el~ito ~ara ~m car.go mundo existente, mas tem uma localização social muito
no serviço civil irlandês. Estas eshpulaçoes sao extrm- particular, talvez mesmo com uma conotação pejorativa.
secas ao conhecimento pragmático exigido para a exe- Por exemplo, a criança de mais idade chega a reco-
cução das funções de adivinho, embalsamador ou fun- nhecer que o mundo representado pelos pais, o mesmo
cionário público irlandês. São estabelecidas institucio- mundo que anteriormenté considerava com certeza come
nalmente para reforçar o prestígio das funções em ques- a realidade inevitável, é de fato o mundo de gente rural
tão ou satisfazer outros interesses ideológicos. A edu- do sul, sem educação, de classe inferior. Na socializa-
cação primária pode ser perfeitamente suficiente para ção secundária o contexto institucional é em geral per-
apreender o curriculo da escola de embalsamento e os cebido. Não é preciso dizer que isto não implica a re-
funcionários públicos irlandeses executam sua atividade quintada compreensão de todas as implicações do con-
normal em língua inglesa. Pode mesmo acontecer que texto institucional. Contudo, a criança do sul, para nos
as seqüências de aprendizagem manipuladas desta ma- mantermos dentro do mesmo exemplo, compreende que
neira sejam na prática antifuncionais. Por exemplo, pode sua professora é uma funcionária institucional, de um
ser estipulado que a educação universitária de "cultura modo diferente daquele pelo qual compreende seus pais,
geral" tenha de preceder o treinamento p.r~fissional ~e e entende a função da professora como representando
sociólogos pesquisadores, embora suas atiVidades reais significados institucionalmente específicos, tais como os
pudessem de fato ser mais eficientemente executadas se da nação por oposição aos da região, do mundo na-
fossem libertados da carga da "cultura" desta espécie. cional de classe média por oposição ao ambiente de
Enquanto a socialização primária não pode ser rea- classe inferior que encontra em sua casa, da cidade por
lizada sem a identificação, carregada de emoção, da oposição à roça. Por conseguinte, a interação social en-
criança com seus outros significativos, a maior parte da tre mestres e alunos pode ser formalizada. Os mestres
socialização secundária pode dispensar este tipo de iden- não precisam ser outros significativos em qualquer sen-
tificação e prosseguir eficientemente só com a quantidade tido da palavra. São funcionários institucionais, com a
de identificação mútua incluída em qualquer comunica- atribuição formal de transmitir conhecimentos específicos.
ção entre seres humanos. Dito às claras, a criança deve As funções da socialização secundária têm um alto grau
amar a mãe, mas não o professor. A socialização mais de anonimato, sendo portanto facilmente destacáveis dos

188 189
executantes individuais. O mesmo conhecimento ensina- ter havido a socialização primana. Dito em termos cla-
do por um professor poderia também ser ensinado por ros, mais uma vez, é mais fácil para a criança "escon-
outro. Qualquer funcionário deste tipo poderia ensinar der-se" da professora do que da mãe. Inversamente, é
este tipo de conhecimento. Os funcionários individuais possível dizer que o desenvolvimento desta capacidade
podem sem dúvida ser subjetivamente diferenciados de de "esconder-se" é um importante aspecto do processo
várias maneiras (como mais ou menos agradáveis, me- de crescimento e passagem ao estado adulto.
lhores ou piores professores de aritmética, etc.), mas em O tom de realidade do conhecimento interiorizado na
princípio são substituíveis uns pelos outros. socialização primária é dado quase automaticamente. Na
Este formalismo e anonimato estão evidentemente li- socialização secundária tem de ser reforçado por téc-
gados ao caráter afetivo das relações sociais na socia- nicas pedagógicas específicas, "provadas" [em inglês,
lização secundária. A conseqüência mais importante, "trazido para casa". N. do T.] ao indivíduo. Esta
contudo, consiste em conferir ao conteúdo daquilo que frase é sugestiva. A realidade original da infância e
é ensinado na socialização secundária uma inevitabili- a "casa". Impõe-se inevitavelmente como tal, e por
dade muito menos subjetiva do que a possuída pelo assim dizer "naturalmente". Comparada a ela, todas as
conteúdo da socialização primária. Por conseguinte, o outras realidades são "artificiais". Por isso a professora
tom de realidade do conhecimento interiorizado na so- procura "provar" ["trazer para a casa"] os assuntos
cialização secundária é mais facilmente posto entre pa- que está transmitindo tornando-os vívidos (isto é, fa-
rênteses (isto é, o sentimento subjetivo de que estas in- zendo-os parecer tão vivos quanto o "mundo doméstico"
teriorizações são reais é mais fugitivo). São necessários da criança), importantes (isto é, ligando-os com as es-
graves choques no curso da vida para desintegrar a ma- truturas dotadas de importância já presentes no "mun-
ciça realidade interiorizada na primeira infância. E pre- do doméstico") e interessantes (isto é, levando a aten-
ciso muito menos para destruir as realidades interiori- ção da criança a se destacar de seus objetos "naturais",
zadas mais tarde. Além disso, é relativamente fácil anu- passando para outros mais "artificiais"). Estas manobras
lar a realidade das interiorizações secundárias. A criança são necessárias porque já existe uma realidade interiori-
vive quer queira quer não no mundo tal como é definido zada, constantemente "em vias de" novas interiorizações.
pelos pais, mas pode alegremente deixar atrás o mundo O grau e o caráter preciso destas técnicas pedagógicas
da aritmética logo que sai da aula. variarão com as motivações que o indivíduo tem para
Isto torna possível destacar uma parte da personali- a aquisição do novo conhecimento.
dade e da concomitante realidade, fazendo-as só ter im- Quanto mais estas técnicas tornam subjetivamente
portância para a situação funcional específica em ques- plausível a continuidade entre os elementos originais do
tão. O indivíduo estabelece então uma distância entre conhecimento e os novos. tanto mais facilmente adquirem
seu eu total e sua realidade, de um lado, e o eu parcial o tom de realidade. Aprende-se uma segunda língua
funcionalmente específico e a realidade deste, de outro construindo sobre a realidade indiscutível da própria "lín-
lado." Esta importante façanha só é possivel depois de gua materna". Durante longo tempo a pessoa retraduz
.. o conceito de "distAncia de papéis" foi criado por Ervlng Goffman, a saber, refere-se a sociedades estruturadas de tal modo que elementos
particularmente em Asy/ums (Garden Clty, N. V., Doubleday-Anchor, 1961).
Nossa anAlise Indica que esta distância só é possivel relativamente às decisivos da realidade objetivada são Interiorizados em processos secun-
realidades interlorlzadas na soclallzaçlio secundAria. Se a estendermos às dArios de socialização. Esta consideração, diga-se de passagem, deveria
realidades Interlorlzadas na soclallzaçlo primAria/, entramos no domlnlo do tornar-nos cuidadosos em não igualar o "modelo" de Gollman (que, acres-
que a psiquiatria americana chama "pslcopatla, que Implica uma defi- centemos, é muito útil para a análise de importantes aspectos da moderna
ciente formação da Identidade. Um outro ponto muito Interessante sugerido sociedade industrial) com um "modelo dramático" tout codrt. Afinai de
por nossa anAlise é o que se refere aos limites estruturais dentro dos contas, houve outros dramas diferentes do que é experimentado pelo homem
quais um "modelo do tipo de GoUman" de Interaçllo social é exeqülvel, de empresa contemporânea, empenhado na "administração da impresslo".

190 191
riva das diferenças intrínsecas entre o conhecimento da
continuamente na língua original quaisquer elementos da engenharia e o da música, e entre os modos de vida
nova lingua que está adquirindo. Só desta maneira a em que estes dois conjuntos de conhecimentos são pra-
nova língua pode começar a ter alguma realidade. Quan- ticamente aplicados. Um revolucionário profissional, tam-
dO esta realidade chega a estabelecer-se por si mesma, bém, necessita um grau imensamente mais alto de iden-
lentamente torna-se possivel livrar-se da retradução. A tificação e inevitabilidade do que um engenheiro. Mas
pessoa mostra-se capaz de "pensar" na nova lingua. neste caso a necessidade não tem origem nas proprie-
Entretanto, é raro que uma lingua aprendida tarde na dades intrinsecas do próprio conhecimento, que pode ser
vida alcance a inevitável e evidente realidade da pri- muito simples c disperso em seu conteúdo, mas na de-
meira lingua aprendida na infância. Dai deriva, sem dicação pessoal requerida de um revolucionário relati-
dúvida. a qualidade afetiva da "lingua materna". Mu- vamente aos interesses adquiridos do movimento revo-
tatis mutandis, as mesmas caracteristicas de construção lucionário. Às vezes a necessidade das técnicas intensi-
a partir da realidade "doméstica", de ligação com ela ficadoras pode provir de fatores tanto intrlnsecos quanto
à medida que o aprendizado prossegue e a lenta ruptura extrfnsecos. Um exemplo é a socialização do pessoal
desta ligação, são atributo de outras seqüências de religioso.
aprendizagem na socialização secundária. As técnicas aplicadas nestes casos destinam-se a in-
O fato dos processos de socialização secundária não tensificar a carga afetiva do processo de socialização.
pressuporem um alto grau de identificação e de seu Tipicamente, implicam a institucionalização de um com-
conteúdo não possuir a qualidade da inevitabilidade po- plicado processo de iniciação, um noviciado, no curso
dem ser úteis na prática porque permitem seqüências do qual o individuo entrega-se inteiramente à realidade
de aprendizado racionais e emocionalmente controladas. que está interiorizando. Quando o processo exige uma
Mas, como o conteúdo deste tipo de interiorização tem transformação real da realidade "doméstica" do individuo
uma realidade subjetiva frágil e pouco digna de con- constitui uma réplica, tão exata quanto possiveJ, do ca-
fiança comparado com as interiorizações da socialização ráter da socialização primária, conforme veremos dentro
primária, em alguns casos é preciso criar técnicas especiais em pouco. Mas mesmo sem esta tranformação a socia-
para produzir a identificação e a inevitabilidade julgadas lização secundária adquire uma carga de afetividade de
necessárias. A necessidade destas técnicas pode ser intrin- tal grau que a imersão na nova realidade e o devota-
seca relativamente ao aprendizado e aplicação dos con- mento a ela são institucionalmente definidos como ne-
teúdos da interiorização ou pode ser estabelecida em cessários. O relacionamento do individuo com o pessoal
favor dos interesses adquiridos do pessoal que ministra socializador torna-se proporcionalmente carregado de
o processo de socialização em questão. Por exemplo, um "significação", isto é, o pessoal socializador reveste-se
individuo que deseja tornar-se um perfeito músico deve do caráter de outros significantes em face do individuo
mergulhar em seu assunto até um grau de todo desne- que está sendo socializado. O indivíduo entrega-se en-
cessário para um individuo que está aprendendo para tão completamente à nova realidade. "Entrega-se" à
ser engenheiro. A educação para a engenharia pode efe- música, à revolução, à fé, não apenas parcialmente mas
tuar-se . eficientemente mediante processos formais, al- com o que é subjetivamente a totalidade de sua vida.
tamente racionais, emocionalmente neutros. A educação A facilidade com que se sacrifica é evidentemente a con-
musical, porém, implica tipicamente uma identificação seqüênCia final deste tipo de socialização.
muito mais alta com o maestro e uma imersão muito U ma importante circunstância que pode c~iar a ne-
mais profunda na realidade musical. Esta diferença de- cessidade dessa intensificação é a competição entre o
193
192
pessoal das várias instituições encarregado da definição Ao psicanalista impõe-se o conhecimento de "análise di-
da realidade. No caso do treinamento revolucionário o dática", que é apenas sugerida ao assistente social, etc.
problema intrfnseco é a socialização do individuo em Há, por conseguinte, sistemas muito diferenciados de
uma contradefinição da realidade, isto é, contra as de- socialização secundária em instituições complexas, às
finições dos legitimadores "oficiais" da sociedade. Mas vezes montados de modo muito sensível, de acordo com
terá também de haver intensificação na socialização do as diversas exigências das várias categorias do pessoal
músico em uma sociedade que oferece aguda competi- institucional. 11
ção quanto aos valores estéticos da comunidade musical. A distribuição institucionalizada das tarefas entre a
Por exemplo, pode-se admitir que um músico em for- socialização primária e a secundária varia com a com-
mação nos Estados Unidos atualmente tem que dedi- plexidade da distribuição social do conhecimento. En-
car-se à música com uma intensidade emociOnaI desne- quanto esta é relativamente pouco complicada o mesmo
cessária na Viena do século XIX, precisamente porque órgão institucional pode conduzir da socialização primá-
na situação americana existe poderosa competição de- ria à secundária e executar esta última em considerável
rivada daquilo que subjetivamente aparece como sendo extensão. Nos casos de muito elevada complexidade é
o mundo "materialista" e da "cultura de massa" da preciso criar órgãos especializados na socialização se-
"briga de foice". Igualmente, a educação religiosa numa cundária, com pessoal em tempo integral, especialmente
situação pluralista cria a necessidade de técnicas "arti- para as tarefas educacionais em questão. A parte este
ficiais" de acentuação da realidade, desnecessárias numa grau de socialização, pode haver uma série de órgãos
situação dominada por um monopólio religioso. E' ainda socializadores que combinam esta tarefa com outras.
"natural" alguém tornar-se padre católico em Roma, de Neste caso, por exemplo, pode estabelecer-se que em
um modo diferente do que acontece nos Estados Unidos. certa idade o menino seja transferido da cabana ma-
Em conseqüência, os seminários teológicos americanos terna para o quartel dos guerreiros, onde receberá exer-
têm de enfrentar o problema da "evasão da realidade" cício para se tornar cavaleiro. Isto não necessita acarretar
e organizar técnicas para "manter pregada" a mesma um pessoal educacional em tempo integral. Os velhos
realidade, Não é de admirar que tenham descoberto o cavaleiros podem ensinar aos novos. O desenvolvimento
expediente óbvio de mandar para Roma por algum tempo da educação moderna é evidentemente a melhor ilustra-
seus estudantes mais promissores. ção da socialização secundária realizada sob os auspícios
Variações semelhantes podem existir no mesmo con- de organizações especializadas. O declínio da posição
texto institucional, dependendo das tarefas atribufdas a da familia resultante desse fato, com relação à sociali-
diferentes categorias do pessoal. Assim, o grau de com- zação secundária, é por demais conhecido para que exija
promisso com a profissão militar exigido dos oficiais de ser tratado aqui com mais detalhes. 11
carreira é muito diferente do exigido dos convocados,
fato claramente refletido nos respectivos processos de c) A Conservação e a Transformação
treiltamento. Igualmente, exigem-se compromissos dife- da Realidade Subjetiva
rentes com a realidade institucional de um diretor e do
pessoal de escritório de nível inferior, de um psicanalista Não sendo a socialização jamais completa e estando os
e de um assistente social psiquiátrico, etc. Um diretor conteúdos que interioriza continuamente ameaçados em
deve ser "politicamente conservador" de um modo que "Os estudos da sociologia das ocupações, desenvolvidos partlcularmeale
por Everetl Hughes, oferecem interessante material a este rdpeito.
não precisa ser o de um supervisor de um "pool" tipico. 1f Cf. Talcott Parsons, Essays In Soclologlcal Theory, Pure and Apptltd
(Chicago, Free Press, 1949), pp. 23355.

194 195
sua realidade subjetiva, toda sociedade viável de criar mais vulnerável às definições desafiadoras da realidade,
procedimentos de conservação da realidade para salva- não porque não sejam julgadas certas ou seja apreen-
guardar um certo grau de simetria entre a realidade ob- dida como menos do que real na vida cotidiana, mas
jetiva e a subjetiva. Já examinamos este problema a porque sua realidade é menos profundamente arraigada
propósito da legitimação. Focalizaremos aqui a defesa na consciência, sendo assim mais susceptível de desloca-
da realidade subjetiva, mais do que a da realidade ob- mento. Por exemplo, tanto a proibição da nudez, que se
jetiva, isto é" a realidade tal como é apreendida na relaciona com o sentimento individual de vergonha, e é
consciência individual e não tal como é institucional- interiorizado na socialização primária, quanto os çãnoncs
mente definida. do vestuário adequado às diferentes ocasiões sociais, são
A socialização primária interioriza uma realidade aceitos como legítimos na vida cotidiana. Enquanto não
apreendida como inevitável. Esta interiorização pode ser são socialmente desafiados, nem uma coisa nem outra
julgada bem sucedida se o sentimento de inevitabilidade constituem problemas para o indivíduo. Contudo, o de-
estiver presente na maior parte do tempo, pelo menos safio teria de ser muito mais forte no primeiro caso do
enquanto o indivíduo é ativo no mundo da vida cotidiana. que no segundo para constituir uma ameaça à realidade
Mas, mesmo quando o mundo da vida cotidiana con- aceita como verdadeira das rotinas em questão. Uma mo-
serva sua maciça e indiscutível realidade in actu, está dificação relativamente pequena na definição subjetiva
ameaçado pelas situações marginais da experiência hu- da realidade bastaria para o indivíduo considerar correto
mana que não podem ser completamente incluídas na poder ir para o escritório sem gravata. Seria necessário
atividade diária. Existe sempre a presença obsecante de uma modificação muito mais drástica para levá-lo a ir
metamorfoses, as atualmente lembradas e as que são para o escritório sem qualquer espécie de roupa. A pri-
sentidas apenas como sinistras possibilidades. Há também meira modificação poderia ser socialmente mediatizada
as definições da realidade, competindo umas com as ou- apenas por uma mudança de ocupação, digamos de um
tras e mais diretamente ameaçadoras, que podem ser 50. campus universitário rural para um metropolitano. Este
cialmente encontradas. Para um homem de família bem último acarretaria uma revolução social no ambiente do
comportado uma coisa é sonhar com indizíveis orgias na indivíduo. Seria subjetivamente compreendido como uma
solidão noturna, e outra, muito diferente, é ver esses so- profunda conversão, provavelmente depois de uma resis-
nhos empiricamente encenados por uma colônia de li- tência inicial intensa.
bertinos na casa ao lado. Os sonhos mais facilmente po-
A realidade das interiorizações secundárias é menos
dem ser postos em quarentena no interior da consciência,
ameaçada pelas situações marginais porque em geral não
como "coisa sem sentido", que se despreza, ou como
tem importância para elas. O que pode acontecer é que
aberrações mentais, que devem dar motivo a um silencioso
esta realidade seja apreendida como trivial precisamente
arrependimento. Conservam o caráter de fantasmas em
face da realidade da vida cotidiana. A execução real im- porque revela a falta de importância para a situação mar-
põe-se à consciência muito mais clamorosamente. De ginal. Assim, pode dizer-se que a iminência da morte
fato, pode ter de ser destruída antes do espírito poder ameaça profundamente a realidade da prévia auto-identifi-
enfrentá-Ia. Em qualquer caso, não pode ser negada, cação do indivíduo, como homem, ser moral ou cristão.
como se pode ao menos tentar negar as metamorfoses A auto-identificação do individuo como diretor assistente
das situações marginais. do departamento de meias de senhoras não fica tão amea-
O caráter mais "artificial" da socialização secundária çada quanto rebaixada a um nível trivial na .mesma si-
torna a realidade subjetiva da interiorização dela ainda tuação. Inversamente, é possível dizer que a conservação

196 197
das interiorizações primárias em face das situações mar- tros - OU pelo menos a maior parte - encontrados pelo
ginais é uma justa medida de sua realidade subjetiva. indivíduo na vida cotidiana servem para reafirmar sua
A mesma prova seria de todo irrelevante se fosse aplicada realidade subjetiva. Isto acontece mesmo numa situação
à maioria das socializações secundárias. Tem sentido tão "pouco significativa" como viajar num trem diário
morrer como homem, mas tem muito pouco morrer como para um trabalho. O indivíduo pode não conhecer nin-
diretor assistente do departamento de meias de senhoras. guém no trem nem falar com qualquer pessoa. Apesar
Além disso, quando se espera que as interiorizações se- disso, a multidão dos companheiros de viagem reafirma
cundárias tenham este grau de persistência na realidade a estrutura básica da vida cotidiana. Pela conduta glo-
em face de situações marginais, os procedimentos de so- bal os viajantes retiram o indivíduo da tênue realidade
cialização concomitante terão de ser intensificados e re- do estremunhamento matinal e demonstram em termos
for.çados da maneira anteriormente examinada. Ainda uma il1dubitáveis que o mundo é constituído de homens sérios,
vez, é possível citar como ilustrações os processos reli- que vão ao trabalho, de responsabilidade e horários, da
gioso e militar de socialização secundária. New Haven Railroad e do Times de Nova York. Este
E' conveniente distinguir entre dois tipos gerais de último, evidentemente, reafirma as mais amplas coorde-
conservação da realidade, a conservação rotineira e a nadas da realidade individual. Do boletim meteorológico
conservação crítica. A primeira destina-se a manter a até os anúncios de "precisa-se", tudo lhe assegura de
realidade interiorizada na vida cotidiana, a última, a que está, de fato, no mundo mais real possível. Conco-
realidade em situações de crise. Ambas acarretam funda- mitantemente, afirma a condição menos que real dos si-
mentalmente os mesmos processos sociais, embora pos- nistros êxtases experimentados antes do café matinal, a
sam notar-se algumas diferenças. forma estr~nha de objetos supostamente familiares, de-
Conforme vimos, a realidade da vida cotidiana mantém- pois de acordar de um sonho perturbador, o choque por
se pelo fato de corporificar-se em rotinas, o que é a não reconhecer a própria face no espelho do banheiro, a
essência da institucionalização. Ademais disso, porém, a indizível suspeita, um pouco mais tarde, de que a mu-
realidade da vida cotidiana é continuamente reafirmada lher e os filhos são estrangeiros misteriosos. Grande nú-
. na interação do indivíduo com os outros. Assim como a mero de indivíduos susceptíveis a estes terrores metafí-
realidade é originariamente interiorizada por um processo sicos conseguem exorcisá-Ios até certo ponto no curso de
social, assim também é mantida na consciência por pro- seus rituais diários rigidamente executados, de modo que
cessos sociais. Estes últimos não são radicalmente dife- a realidade da vida cotidiana está pelo menos cuida-
rentes dos exercidos na primeira interiorização. Refletem dosamente estabelecida na ocasião em que saem pela
também o fato básico de que a realidade subjetiva deve porta da rua. Mas a realidade começa a ser completa-
ter com a realidade objetiva uma relação socialmente mente segura somente na comunidade anônima dos via-
definida. jantes do trem. Chega a se tornar maciça quando o trem
No processo social de conservação da realidade é pos- entra na Grand Central Station. Ergo sum, pode então
sível distinguir entre os outros significantes e os outros o indivíduo murmurar para si mesmo, e caminhar para o
menos importantes. 11 De modo considerável, todos os ou- escritório inteiramente acordado e seguro de si.
.. Hans H. Oerth e C. Wrlght Mllls, em Character and Social Structure Seria, por conseguinte, um erro admitir que somente
(New Vork, Harcourt, Brace and Co., 1953), sugerem o termo "outros os outros significativos servem para manter a realidade
Intlmos" para os outros significativos empenhados na conservação da rea-
lidade mais tarde na vida. Preferimos não usar este termo devido A seme-
lhança com o termo Intlmsphllre, que tem sido multo empregado na
subjetiva. Mas os outros significativos ocupam uma po-
recente sociologia de IIngua alemã com uma conotação consideravelmente
diferente.
sição central na economia da conservação da realidade.

198 199
São particularmente importantes para a progressiva con~
flrmação daquele elemento crucial da realidade que cha- de degradar algumas dessas pessoas da condição de ou-
mamos identidade. Para conservar a confiança de que tros significativos e voltar-se, em lugar delas, para outras,
é na verdade a pessoa que pensa que é, o individuo ne- em busca de confirmações de sua realidade significativa,
cessita não somente a confirmação implícita desta iden- por exemplo, seu psicanalista ou seus velhos companhei-
tidade, que mesmo os contactos diários casuais poderiam ros de clube. Há muitas complexidades possíveis nesta
fornecer, mas a confirmação explícita e carregada de organização de relações conservadoras da realidade, es-
emoção que lhe é outorgada pelos outros significantes pecialmente numa sociedade onde existe grande mobili-
para ele. Na anterior ilustração, nosso habitante do su- dade e diferenciação de funções. Jt
búrbio provavelmente procurará em sua famflia e em ou~ A relação entre os outros significativos e o "coro" na
tros associados privados dentro do ambiente familiar conservação da realidade é dialética, isto é, existe uma
(vizinhança, igreja, clube, etc.) essa confirmação, embora relação recíproca entre os fatores, assim como no que
os fntimos companheiros de trabalho possam também de- respeita à realidade subjetiva que servem para confirmar.
sempenhar essa função. Se além do mais ele dorme com Uma identificação solidamente negativa por parte do am-
a secretária, sua identidade é confirmada e ampliada. Isto biente mais amplo pode finalmente afetar a identificação
supõe que o indivíduo gosta que sua identidade seja fornecida pelos outros significativos, quando até mesmo
confirmada. O mesmo processo diz respeito à confirmação o ascensorista deixa de dizer "senhor", a mulher re-
de identidades das quais o individuo pode não gostar. nuncia a identificar o marido como um homem impor-
Mesmo conhecimentos casuais podem confirmar sua auto- tante. Inversamente, os outros significativos podem fi-
identificação como um irremediável fracasso, mas a mu- nalmente ter um efeito sobre o meio mais amplo, uma
lher, os filhos e a secretária ratificam este fato com ine- esposa "leal" pode ser uma vantagem em vários aspectos,
gável finalidade. O processo que vai da definição da rea- quando o indivíduo procura fazer compreender uma certa
lidade objetiva à conservação da realidade subjetiva é identidade a seus companheiros de trabalho. A conser-
o mesmo em ambos os casos. vação e a confirmação da realidade implicam assim a
totalidade da situação social do indivíduo, embora os
Os outros significativos na vida do indivíduo são os
outros significativos ocupem uma posição privilegiada
principais agentes da conservação de sua realidade sub-
nestes processos.
jetiva. Os outros menos significativos funcionam como
uma espécie de coro. A mulher, os filhos e a secretária A importância relativa dos outros significativos e do
reafirmam solenemente cada dia que o indivíduo é um "coro" pode ser vista mais facilmente se considerarmos
homem importante ou um fracassado sem esperança. As os casos de desconfirmação da realidade subjetiva. Um
tias solteiras, as cozinheiras e os ascensoristas fornecem ato desconf;rmador da realidade praticado pela esposa,
graus variados de apoio a esta reafirmação. Sem dúvida tomado em si mesmo, tem um poder muito maior do
é possível existir algum desacordo entre estas pessoas. que um ato semelhante executado por um conhecido
O indivíduo enfrenta então o problema da coerência, que ocasional. Os atos deste último precisam adquirir certa
pode caracteristicamente resolver ou modificando sua densidade para se igualarem ao poder do primeiro. A
realidade ou as relações que mantêm sua realidade. Pode reiterada opinião do melhor amigo de um indivíduo, se-
ter a alternativa de aceitar a identidade como um malo- gundo o qual os jornais não estão relatando aconteci-
mentos consideráveis que se passam por baixo das apa-
gro, por um lado, ou de dar um tiro na secretária ou
divorciar-se da mulher, por outro. Tem também a opção lO Veja-se ainda uma vez Ooffman sobre esla quesIto, aS81m CO~
David Rlesman.
200
201
rências, pode ter mais peso do que a mesma opinião com as outras. Isto não nega o rico halo de comunicação
expressa pelo barbeiro. Entretanto, a mesma opinião ex- não-verbal que envolve a fala. Entretanto a fala conserva
pressa sucessivamente por dez conhecidos casuais pode uma posição privilegiada no aparelho total da conversa.
começar a contrabalançar a opinião contrária do melhor E' importante acentuar contudo que a maior parte da
amigo do indivíduo. A cristalização que ocorre subje- conservação da realidade na conversa é implícita, não
tivamente como resultado destas várias definições da rea- explícita. A maior parte da conversa não define em mui-
lidade determinará por conseguinte o modo pelo qual tas palavras a natureza do mundo. Ao contrário, ocorre
provavelmente o indivídua reagirá à aparência de uma tendo por pano de fundo um mundo que é tacitamente
sólida falange de carrancudos, silenciosos chineses que aceito como verdadeiro. Assim uma troca de palavras,
carregam uma pasta de documentos no trem matinal, isto como, por exemplo, "bem, está na hora de ir para a
é, determinará o peso que é dado à definição da realidade estação" e "ótimo, querido, passe um bom dia no escri-
pelo indivíduo. Usando ainda outro exemplo, se alguém tório", implica um mundo inteiro dentro do qual estas
é um crente católico a realidade de sua fé não está proposições aparentemente simples adquirem sentido. Em
ameaçada pelos companheiros de trabalho não-crentes, virtude desta implicação a troca de palavras confirma a
mas provalmente estará muito ameaçada por uma esposa realidade subjetiva desse mundo.
incrédula. Numa sociedade pluralista, portanto, é lógico Entendido isto, ver-se-á que a maior parte, quando não
que a igreja católica tolere uma ampla variedade de a totalidade, da conversa cotidiana conserva a realidade
associações entre pessoas de crenças diferentes na vida subjetiva. De fato, seu caráter maciço é realizado pela
econômica e política, mas continue a considerar com de- acumulação e coerência da conserva casual, conversa que
sagrado o casamento misto. Geralmente falando, em si- pode se dar ao luxo de ser casual justamente porque
tuações nas quais existe competição entre diferentes ins- se refere a rotinas de um mundo julgado verdadeiro. A
tituições definidoras da realidade podem ser toleradas perda da casualidade assinala uma quebra nas rotinas e,
todos os tipos de relações entre grupos secundários com ao menos potencialmente, uma ameaça para a realidade
os competidores, desde que existam, firmemente estabe- considerada verdadeira. Assim, é possível imaginar o
lecidas, relações de grupos primários em cujo interior efeito sobre a causalidade de uma conversa como a se-
uma determinada realidade é progressivamente reafirma- guinte: "Bem, está na hora de ir para a estação",
da contra os competidores ... A maneira pela qual a igreja "ótimo, querido, não se esqueça de levar o revólver".
católica adaptou-se à situação pluralista nos Estados Ao mesmo tempo que o aparelho de conversa mantém
Unidos é um excelente exemplo. continuamente a realidade, também continuamente a mo-
O veículo mais importante da conservação da realidade difica. Certos pontos são abandonados e outros acrescen-
é a conversa. Pode-se considerar a vida cotidiana do in- tados, enfrequecendo alguns setores daquilo que ainda é
divíduo em termos do funcionamento de um aparelho considerado como evidente e reforçando outros. Assim,
de conversa, que continuamente mantém, modifica e re- a realidade subjetiva de uma coisa da qual nunca se
constrói sua realidade subjetiva. l i A conversa significa fala torna-se vacilante. Uma coisa é comprometer-se em
principalmente, sem dúvida, que as pessoas falam umas um ato sexual embaraçoso, outra, muito diferente, é falar
dele, antes ou depois. Inversamente, a conversa dá con-
.. os conceitos de "grupo primário" e "grupo secundário" derivam de
Cooley. Seguimos aqui o uso corrente na sociologia americana.
tornos firmes a questões anteriormente apreendidas de
.. Sobre o conceito de "aparelho de conversação", cf. Peter L. Berger e maneira vaga e pouco clara. O indivíduo pode ter dú-
Hansfried Kellner, "Marriage and the Constructlon 01 Reality" Diogenes
46 (1964), Iss. Friedrich Tenbruck (op. cit.) discute com algu~s detalhes vidas sobre religião. Estas dúvidas tornam-se reais de
a lunção das redes comunicativas na manutenção das realidades comuns.

202 203
uma maneira muito diferente quando as discute. O in- descontinuidade. Sirva de exemplo o uso da correspon-
divíduo então "convence-se" dessas dúvidas, que são ob- dência para continuar a conversa significativa a despeito
jetivadas como realidade em sua própria consciência. Ge- da separação física." Diferentes conversas podem ser
ralmente falando, o aparelho de conversa mantém a rea- comparadas no que se refere à densidade da realidade
lidade "falando" de vários elementos da experiência e que produzem ou conservam. Em totalidade, a freqüência
colocando-os em um lugar definido no mundo real. da conversa reforça seu poder gerador da realidade,
mas a falta de freqüência pode às vezes ser compensada
Esta força geradora da realidade, possuída pela con-
pela intensidade da conversa, quando esta se realiza.
versa, é dada já no fato da objetivação lingüística. Vi-
Uma pessoa pode ver o amado só uma vez por mês,
mos como a linguagem objetiva o mundo, transformando
mas a conversa então empreendida tem suficiente intensi-
o panta rhei da experiência em uma ordem coerente.
dade para compensar a relativa falta de freqüência. Cer-
No estabelecimento desta ordem a linguagem realiza um tas conversas podem também ser explicitamente definidas
mundo, no duplo sentido de apreendê-lo e produzi-lo. A e legitimadas como tendo uma condição privilegiada, tais
conversação é a atualização desta eficácia realizadora da
como as conversas com o confessor, com o psicanalista
linguagem nas situações face a face da existência indi-
ou com uma figura semelhante em "autoridade". A "au-
viduaI. Na conversa as objetivações da linguagem tor- toridade" consiste neste caso na condição cognoscitiva e
nam-se objetos da consciência individual. Assim, o fato normativamente superior que é atribuída a estas con-
fundamental conservador da realidade é o uso contínuo
versas.
da mesma língua para objetivar a experiência biográfica
reveladora. Em sentido mais amplo, todos os que empre- A realidade subjetiva depende assim sempre de estru-
gam a mesma língua são outros mantenedores da reali- turas específicas de plausibilidade, isto é, da base social
dade. A significação deste fato pode tornar-se ainda mais específica e dos processos sociais exigidos para sua con-
diferenciada considerando-se o que se entende por 'uma servação. Só é possível o indivíduo manter, 'Sua auto-iden-
"língua comum", da linguagem idiosincrásica de grupos tificação como pessoa de importância em um meio que
primários nos dialetos regionais ou de classe, à comuni- confirma esta identidade j uma pessoa só pode manter
dade nacional que se define em relações de língua. Exis- sua fé católica se conserva uma relação significativa
tem correspondentes "retornos à realidade" para o indi- com a comunidade católica, e assim por diante. A ruptura
víduo que volta aos poucos indivíduos que entendem da conversa significativa com os mediadores das res-
suas alusões de grupo, setor a que pertence sua pro- pectivas estruturas de plausibilidade ameaça as realidades
núncia, ou à grande coletividade que se identificou com subjetivas em questão. Conforme o exemplo da corres-
uma particular tradição lingüística, por exemplo, em pondência indica, o indivíduo pode recorrer a várias téc-
ordem inversa, aos Estados Unidos, a Brooklyn, ou às nicas de conservação da realidade, mesmo na ausência
pessoas que freqüentaram a mesma escola pública. da conversa real, mas o poder gerador da realidade des-
tas técnicas é grandemente inferior às conversas frente a
A fim de manter efetivamente a realidade subjetiva o frente, que tais técnicas são destinadas a substituir. Quanto
aparelho da conversa deve ser continuo e coerente. As mais tempo estas técnicas estiverem isoladas das confir-
rupturas de continuidade ou consistência ipso facto cons- mações face a face, menos provavelmente serão capazes
tituem uma ameça para a realidade subjetiva em ques- de conservar o tom de realidade. O indivíduo que vive
tão. Já examinamos os expedientes que um indivíduo pode durante muitos anos entre pessoas de diferente religião,
adotar para fazer frente à ameaça de incoerência. Exis-
tem também várias técnicas para enfrentar a ameaça da .. Sobre a corrnpoadfncla, et. Oeorl Slmmel, $ozI0106", pp. 287.1.

204 205
separado da comunidade das que parti<pam de sua pró-
a própria sociedade institui procedimentos específicos
pria fé, pode continuar a identificar-se, digamos, como
para situações reconhecidas como capazes de implicar o
católico. Por meio da oração, dos exercícios religiosos e
risco do colapso da realidade. Nestas situações pré-defi-
de técnicas semelhantes sua velha realidade católica pode
nidas acham-se incluídas certas situações margina.is, das
continuar a ser subjetivamente importante para ele. Por
quais a morte é de longe a mais importante. Entretanto,
pouco que seja, estas técnicas podem conservar sua con-
as crises na realidade podem acontecer em um número
tínua auto-identificação como católico. Contudo, subjeti-
consideravelmente maior de casos do que os estabelecidos
vamente tornar-se-ão vazias de realidade "viva", a não
por situações limites. Podem ser coletivos ou individuais,
ser que sejam "revitalizadas" pelo contacto social cum
dependendo do caráter do desafio à realidade social-
outros católicos. Sem dúvida, o indivíduo em geral lem-
mente definida. Por exemplo, os rituais coletivos de con-
bra-se das realidades do passado, mas a maneira de
servação da realidade podem ser institucionalizados para
"refrescar" estas lembranças é conversar com aqueles que
ocasiões de catástrofe natural, e iftuais individuais para
participam da importância delas."
épocas de infortúnio pessoal. Ou, de acordo com outro
A estrutura de plausibilidade é também a base social exemplo, podem ser estabelecidos procedimentos conser-
par:'l . a_ particular suspensão da dúvida, sem a qual, a vadores da realidade para enfrentar estrangeiros e sua
deftntçao da realidade em questão não pode se conservar ameaça potencial à realidade "oficial". O indivíduo pode
na consciência. Neste ponto, foram interiorizadas e estão
ter de atravessar uma complexa purificação ritual depois
sendo continuamente reafirmadas sanções sociais especí-
do contacto com um estrangeiro. A ablução é interiori-
ficas contra estas dúvidas desintegradoras da realidade.
zada como aniquilação subjetiva da outra realidade re-
O ridículo é uma destas sanções. Enquanto se conserva
presentada pelo estrangeiro. Tabus, exorcismos e maldi-
dentro da estrutura de plausibilidade, o indivíduo sente-
ções contra os estrangeiros, heréticos ou loucos servem
se ridículo quando surgem subjetivamente dúvidas a res-
igualmente à finalidade da "higiene mental" individual.
peito da realidade em questão. Sabe que outros sorri-
riam se as anunciasse. Pode sorrir em silêncio de si A violência desses procedimentos defensivos será propor-
mesmo, sacudir mentalmente os ombros e continuar a cionaI à seriedade com que é considerada a ameaça. Se
existir dentro do mundo sancionado desta maneira. Não os contactos com a outra realidade e seus representantes
é preciso dizer que este processo de autoterapia será se tornam freqüentes os procedimentos defensivos podem
muito mais difícil se a estrutura de plausibilidade não foi evidentemente perder o caráter de crise e tornarem-se ro-
mais acessível como sua matriz social. O sorriso tornar- tineiros. Por exemplo, toda vez que se encontra um es-
se-á forçado, e finalmente com muita probabilidade será trangeiro tem-se de cuspir três vezes, sem dar grande
substituído por um pensativo rosto carrancudo. importância ao assunto.
Em situação de crise os procedimentos são essencial- Tudo quanto até aqui dissemos a respeito da sociali-
mente os mesmos que na conservação rotineira, exceto zação implica a possibilidade da realidade subjetiva ser
que as confirmações da realidade devem se tornar explí- transformada. Estar em sociedade já acarreta um contí-
citas e intensas. Freqüentemente são postas em jogo téc- nuo processo de modificação da realidade subjetiva.
nicas rituais. Embora o indivíduo possa improvisar pro- Falar a respeito da transformação implica, por conse-
cedimentos de sustentação da realidade em face da crise. guinte, a discussão dos diferentes graus de modificação.
Vamos concentrar-nos aqui no caso extremo, aquele no
OI o conceito de "grupo de referência" tem Importância a este respeito.
Compare-se com a anãllse de Merton deste assunto em sua Social Theor, qual há uma transformação quase total, isto é, no qual
and Social Slruelure. o individuo "muda de mundos". Se forem esclarecidos
206 207
os processos implicados no caso extremo, os de casos realidade. Representam a estrutura de plausibilidade nos
menos extremos serão mais facilmente entendidos. papéis que desempenham com relação ao individuo (pa-
Caracteristicamente a transformação é apreendida sub- péis tipicamente definidos de maneira explícita em ter-
jetivamente como total. Isto evidentemen~e é uma .co~­ mos de sua função re-socializante), e mediatizam o
preensão errônea. Uma vez que a reahdade subJettv2 novo mundo para o indivíduo. O novo mundo do indi-
nunca é totalmente socializada não pode ser totalmente víduo encontra seu foco cognoscitivo e afetivo na estru-
transformada por processos sociais. No mínimo o indi- tura de plausibilidade em questão. Socialmente isto signi-
víduo transformado terá o mesmo corpo e viverá no mes- fica uma intensa concentração de toda interação signifi-
mo universo físico. Entretanto, existem casos de trans- l:ante dentro do grupo que corporifica a estrutura de
formação que parecem totais quando comparados com plausibilidade e particularmente no pessoa1 a quem é atri-
modificações menores. Chamaremos alternações essas buída a tarefa de re-socialização.
tr ansformações ... O protótipo histórico da alteração é a conversão re-
A alternação exige processos de re-socialização. Estes ligiosa. As considerações acima podem aplicar-se a este
processos assemelham-s~ à. sociali~ação primária, porque fato dizendo extra ecclesiam nulla salus. Por salus que-
têm radicalmente de atnbUlr tons a realidade e por con- remos dizer aqui (com as devidas desculpas aos teó-
seguinte devem reproduzir em grau considerável. a. iden- 'Jogos, que tinham outras coisas em vista quando cunha-
tificação fortemente afetiva com o pessoal soclahzante, ram esta frase) a realização empiricamente bem sucedida
que era característica da infância. São difere~te.s da so- da conversão. Somente dentro da comunidade religiosa,
cialização primária porque não começam ex mhllo, e co- a ecclesia, a conversão pode ser efetivamente mantida
mo resultado devem enfrentar o problema de desmante- como plausível. Isto não significa negar que a conversão
lar, desintegrar a precedente est~utu.ra nômica da reali- pode antecipar-se à filiação a uma comunidade. Saulo
dade subjetiva. Como pode ser feIto IStO? de Tarso procurou a comunidade cristã depOis de sua
Uma "receita" para a alternação bem sucedida deve «experiência de Damasco:.. Ma~ não é esta a questão.
incluir condições sociais e conceituais, servindo as con- Ter uma experiência de conversão não é nada demais.
dições sociais evidentemente de matrizes para as. ~~ncei­ A coisa importante é ser capaz de conservá-Ia, levando-a
tuais. A condição social mais importante é a possIbIlidade a sério, mantendo o sentimento de sua plausibilidade.
de dispor de lima estrutura efetiva de plausibilidadc, E' aqui onde entra a comunidade religiosa. Esta fornece
isto é de uma base social que sirva de "laboratório" a indispensável estrutura de plausibilidade para a nova
da tr~nsformação. Esta estrutura de plausibilidade será realidade. Em outras palavras, Saulo podia ter-se tor-
oferecida ao indivíduo pelos outros significativos com os nado Paulo na solidão do êxtase religioso, mas só teria
quais deve estabelecer forte identificação .afetiva. ~ã~ é podido permanecer Paulo no contexto da comunidade
possível a transformação radica.1 da reahdade s~bJet!~a cristã que o reconheceu como tal e confirmou o «novo
(incluindo evidentemente a identidade) sen:t. es.ta I~entlf~­ ser» em que ele agora localizou sua identidade. Esta
cação, que inevitavelmente repete as. expenenclas I~fa~t~s
relação entre conversão e c~munidade não é um fenô-
da dependência emocional com relaçao aos outros SIgnifI-
meno particularmente cristão (apesar dos aspectos his-
cativos. • Estes últimos são os guias que conduzem à nova
toricamente peculiares da ecclesia cristã). E' possível o
.. Cf Peler L Rerger, Invilalion lo Soe/ology (Oarden Clty, N. ~ ..
Doubleday-Aachor, 1963), pp. 5458 (em português: Inlroduçllo Ó SociologIa,
CUlO de re-eoclal1zaçlo, com lua relultante Idcntlflcaçlo com OI outrOl
vo,:~Ô 1~~;~~lto p51canalltico de Ntransferencla refere-se precisamente a
N
IlgnlflcatlvOl encarregadol dele, de modo que nlo le pode tirar c:onclus6ef.
este fenOmeno. O que os psicanalistas que o empregam nlo compreendem, desle fen6meno referentes .t validade copolcltlva dai ·compreen"'el"
evidentemente, é que o fenOmeno pode ser encontrado em qualquer pro- que ocorrem na Iltuaçlo pllcan"Utlca.

208 209
A alternação implica assim a reorganização do apa-
individuo manter-se muçulmano fora da umma do Islam, relho de conversa; Os participantes da conversa signifi-
budista fora da sangha, mas provavelmente não pode cativa mudam. E a conversa com os novos outros sig-
permanecer hindu em nenhum lu~a~ fora da I?dia. A re- nificativos a realidade subjetiva é transformada. Man-
ligião exige uma c~munida?~ r:hglosa e a vIda .em u~ tém-se mediante a permanente conversação com eles ou
mundo religioso eXige a flhaçao a essa co~untd~d~. na comunidade que representam. Dito de maneira sim-
As estruturas de plausibilidade da conversa0 rehglosa ples, isto significa que o indivíduo tem agora de ser
foram imitadas por organizações seculares de alterna- muito cauteloso com as pessoas a quem fala. São evi-
ção. Os melhores exemplos encontram-se na área da tadas sistematicamente pessoas e idéias discrepantes das
doutrinação política e da psicoterapia." novas definições da realidade. l i Uma vez que raramente
A estrutura de plausibilidade deve tornar...se o mun- é possível fazer isso com sucesso, quanto mais não seja
do do indivíduo, deslocando todos os outros mundos, por causa da memória da realidade passada, a nova es-
especialmente o mundo que o indivíduo ~habita~a:.. a."tes trutura de plausibilidade fornecerá caracteristicamente
de sua alternação. Isto exige a separaçao do mdlvlduo vários procedimentos terapêuticos para tratar das ten-
dos «habitantes» dos outros mundos, especialmente de dências de «apostasia». Estes procedimentos seguem o
seus «co-habitantes» no mundo que deixou para trás. modelo geral da terapêutica precedentemente examinado.
Idealmente isto será segregação física. Se por alguma A mais importante exigência conceitual da alteração
razão isto não for possível, a segregação é estabelecida é a disponibilidade de um aparelho legitimador para a
por definição, ou seja por uma' definição dos outr,?s que série completa da transformação. O que tem de ser le-
os aniquila. O indivíduo que executa a alternaçao de- gitimado não é somente a nova realidade, mas as eta-
sengaja-se de seu mundo anterior e da estrutura de pas pelas quais é apropriada e mantida, e o abandono
plausibilidade que o sustentava, se possível corporalme~­ ou repúdio de todas as outras realidades. O lado ani-
te, e quando não, mentalmente. Num caso e noutro ~ao quilador do mecanismo conceitual é particularmente im-
está mais «atrelado aos infiéis», ficando assim protegIdo portante em vista do problema de desmantelamento que
da influência potencial destruidora da realidade exercida tem de ser resolvido. A velha realidade, assim como as
por aqueles infiéis. Esta segregação é particularmente coletividades e os outros significativos que anteriormente
importante nas etapas iniciais da alt~rnação (a fas~ do a mediatizavam para o individuo, devem ser reinterpre-
«noviciado» ). Logo que a nova reahdade se consohdou tadas dentro do aparelho legitimador da nova realidade.
é possível estabelecer de novo relações circunspectas com Esta reinterpretação produz uma ruptura na biografia
estranhos embora os estranhos que costumavam ser bio- subjetiva do individuo em termos de «aC.:. e «dC.:.,
graficam~nte significativos sejam ainda perigosos. São «pré-Damasco:. e «pós-Damasco:.. Tudo que precede a
os únicos que dirão «Larga isso, Saulo:., e haverá oca- alternação é agora compreendido como conduzindo a ela
siões em que a velha realidade por eles invocada toma (como um «Velho Testamento:., por assim dizer, ou uma
a forma' de tentação. praeparatio evangelU) , tudo que a segue é compreendido
como derivando de sua nova realidade. Isto implica uma
• E' a Isto que Durkheim se referia em sua anAlise do carAter Jnevita;;
velmente social da religill.o. NlI.o usarlamos, contudo, o .teórméo dlgrel~
interpretação da biografia passada in toto, de acordo
ara designar a "comunidade moral" da religilio, porque s a equa o
~ um caso historicamente especifico na institucionalizaçll.o da religlAo.
com a fórmula. «Então eu pensava... agora sei:.. fre-
Jf Os estudos das técnicas de "Ia~agem cerebral" empregadas pelos co- qüentemente isto inclui a retrojeção para o passado dos
munistas chineses slio consideravelmente reve:adores dos padrOes bASiCC'hlda
alternaçAo. Cf., por exemplo, Edward Hunter, Bralnwa~h1ng In Rl!d na
(New York Vanguard Press, 195\). Oolfman, em seu Itvro Asy/ums, chega • Além disso, compare-se com Pestlncer no que diz respeito a evitar
próximo a' mostrar o paralelo de procedimento com a psicoterapia de as deflnlç6u discrepantes da realidade.
grupos nos Estados Unidos.
21l
210
esquemas interpretativos presentes (a fórmula para isso desta maneira. Estes últimos tornam-se atores de um
é: «Então eu já sabia, embora de maneira pouco cla- drama involuntário, cujo significado não conseguem ver.
ra ... ") e motivos que não eram subjetivamente pre- Não é de admirar que, caracteristicamente, rejeitem a
sentes no passado mas são agora necessários para a atribuição que lhes é feita. E' por esta razão que os
reinterpretação do que ocorreu então (a fórmula é a profetas tipicamente saem-se mal em sua terra. Neste
seguinte: «Realmente fiz isso porque ... :.). A biografia contexto é que se pode entender a declaração de Jesus
anterior à alternação é caracteristicamente aniquilada in segundo a qual seus seguidores devem abandonar o pai
toto, sendo envolvida numa categoria negativa que ocu- e a mãe.
pa uma posição estratégica no novo aparelho legitima- Não é difícil agora propor uma «prescrição:. especí-
dor: "Quando eu ainda vivia uma vida de pecado", fica para a alternação em qualquer realidade concebível,
«Quando eu ainda tinha uma consciência burguesa:., por mais implausível que seja do ponto de vista de
«Quando era ainda motivado por estas necessidades neu- quem está de fora. E' possível prescrever procedimentos
róticas inconscientes:.. A ruptura biográfica identifica-se específicos, por exemplo, para convencer os indivíduos
assim com a separação cognoscitiva das trevas e da luz. de que devem pôr-se em comunicação com seres prove-
Além desta reinterpretação in toto deve haver rein- nientes do espaço exterior, desde que se submetam a
terpretações particulares de acontecimentos e pessoas uma permanente dieta de peixe cru. Deixemos à ima-
com significação passada. O indivíduo que sofre a al- ginação do leitor, se tiver gosto para isto, elaborar em
ternação estaria sem dúvida melhor se pudesse esque- detalhes o que seria uma tal seita de ictiosofistas. A
cer completamente alguns destes. Mas esquecer comple- «prescrição:. implicaria a construção de uma estrutura de
tamente é coisa sabidamente difícil. Por conseguinte, o plausibilidade ixtiosofista, convenientemente separada do
que é necessário é uma radical reinterpretação do sig- mundo exterior e equipada com o necessário pessoal
nificado desses acontecimentos e pessoas passados na socializador e terapêutico. A elaboração de um corpo
biografia do indivíduo. Sendo relativamente mais fácil de conhecimentos ictiosofista suficientemente requintado
inventar coisas que nunca aconteceram do que esquecer para explicar o nexo evidente entre o peixe cru e a tele-
aquelas que realmente aconteceram, o indivíduo pode patia galáctica não tinha sido descoberto antes; e tam-
fabricar acontecimentos e inseri-los nos lugares adequa- bém as necessárias legitimações e aniquilações para da-
dos, sempre que forem necessários para harmonizar o rem sentido ao caminho do indivíduo em direção a esta
passado lembrado com o passado reinterpretado. Sendo grande verdade. Se estes procedimentos forem cuidado-
a nova realidade, e não a antiga, que agora lhe apa- samente seguidos, haverá uma alta probabilidade de su-
rece como dominantemente plausível, pode ser perfeita- cesso, desde que o indivíduo seja seduzido ou seqües-
mente «sincero:. nesse procedimento. Subjetivamente ,não trado em um instituto de lavagem cerebral ictiosofista.
está mentindo a respeito do passado, mas fazendo-o Existem naturalmente na prática muitos tipos inter-
harmonizar-se com a verdade, que necessariamente abran- mediários entre a re-socialização, tal como acaba de ser
ge tanto o presente quanto o passado. Esta questão, examinada, e a socialização secundária, que continua a
diga-se de passagem, é muito importante se quisermos ser construida sobre as interiorizações primárias. Nes-
compreender corretamente os motivos que se acham por tas há transformações parciais da realidade subjetiva ou
trás das falsificações e invenções de documentos religio- de particulares setores dela. Estas transformações par-
sos, historicamente freqüentes. Também as pessoas, prin- ciaís são comuns na sociedade contemporânea em ligação
cipalmente os outros significativos, são reinterpretados com a mobilidade social do indivíduo e o treinamento

212 213
profissional. Neste caso a transformação da realidade
li

subjetiva pode ser considerãvel transformando-se o indi- que se tornou um médico importante no subúrbio; «evi-
víduo em um tipo aceitável da classe média superior ou dentemente:. veste-se e fala de modo diferente; «eviden-
em um médico aceitável e interiorizando os adequados temente:. agora vota a favor dos republicanos; «evidente-
apêndices da realidade. Mas estas transformações carac- mente~ casou-se com uma moça vassar, e talvez seja
teristicamente estão longe da re-socialização. São cons- também um fato natural que só raramente visite os pais.
truídas com bases nas interiorizações primárias e geral- Estes esquemas interpretativos, existentes prontos numa
mente evitam abruptas descontinuidades na biografia sub- sociedade onde hã considerável mobilidade para cima e
jetiva do individuo. Como resultado, enfrentam o pro- já intertorizados pelo índividuo antes que ele próprio se
blema de conservar a coerência entre os primeiros e os tenha tornado realmente móvel, garantem a continuidade
té\rdios elementos da realidade subjetiva. Este problema, biogrãfica e suavizam as incoerências que despertam.··
que não está presente nesta forma na re-socialização, Procedimentos semelhantes ocorrem em situações nas
que rompe a biografia subjetiva e reinterpreta o passado quais as transformações são consideravelmente radicais
mais do que correlaciona o presente com ele, torna-se mas definidas como de duração temporária, por exem-
tanto mais agudo quanto mais a socialização secundária plo, o serviço militar de curto período ou em casos de
tende para a re-socialização sem realmente coincidir com hospitalização não demorada. 11 E' fácil ver aqui a di-
ela. A re-socialização é como o corte do nó górdio do ferença com relação à plena re-socialização, comparan-
problema da coerência, consiste em renunciar à questão do-se o que acontece com o treinamento para a carreira
da coerência e reconstruir a realidade de novo. militar ou com a socialização de pacientes crÔnicos. Nos
Os procedimentos de manutenção da coerência impli- casos- do primeiro tipo a coerência com a realidade e a
cam também um remendo do passado, mas de maneira identidade anterior (existência civil ou de pessoa sa-
menos radical, uma abordagem ditada pelo fato de que dia) está já estabelecida pela suposição de que finalmen-
em tais casos existe em geral uma associação contínua te o indivíduo retornará àquelas condições.
com pessoas e grupos que foram anteriormente signifi- Falando de modo geral, é possível dizer que os proce-
cativos. Continuam a estar em redor, provavelmente pro- dimentos em questão têm caráter oposto. Na re-sociali-
testarão contra as reinterpretações demasiado fantasistas, zação o passado é reinterpretado para se harmonizar
e devem ser eles próprios convencidos de que as trans- com a realidade presente, havendo a tendência a retro-
formações ocorridas são plausíveis. Por exemplo, no ca- jetar no passado vários elementos que subjetivamente
so de transformações que se passam em ligação com a não eram acessíveis naquela época. Na socialização se-
mobilidade social existem esquemas interpretativos pron- cundária o presente é interpretado de modo a manter-se
tos, que explicam o acontecido a todas as pessoas in- numa relação continua com o passado, existindo a ten-
teressadas sem estabelecer a total metamorfose do indi- dência a minimizar as transformações realmente ocorri-
víduo afetado. Assim, os pais de um indivíduo dotado das. I?it? d~ outra maneira, a realidade básica para a
desta mobilidade para cima aceitarão certas mudanças no re-soclahzaçao é o presente, para a socialização secun-
comportamento e nas atitudes deste indivíduo como um dária é o passado.
acompanhamento necessãrio, ou até mesmo desejãvel, de
sua nova posição na vida. «Evidentemente:., concordarão,
Irving teve de disfarçar sua natureza de judeu, agora • O conceito. estabelecido por Rlesman, de "dlreçlo para o outro" e o
conceito de Merton de "soclallzaçlo anteclpat6rla" tem Importlncla a eate
re:relto.
• Cf. Thomas Luckmann e Peter L. Berger, "Social Mobl/ity afld Pe"oflal Cf. os ensaios IIObre sociologia m~dlca por EUot Freldson Theodor
Idefltlty", European lournal of SocioloiY, V, 331ss (1964). J. Lltman e Jullus A. Roth em ArnOld Rose (ed.) Human BtlÍtwtor and
Social Proce88I.. '

214
215
do trabalho e minima distribuição de conhecimento. Em
2. A INTERlORlZAÇAO E A ESTRUTURA SOCIAL tais condições a socialização produz identidades, que
são sOCialmente pré-definidas e delineadas em alto grau.
A socialização realiza-se sempre no contexto de uma es- Uma vez que cada indivíduo se defronta com o mesmo
trutura social específica. Não apenas o conteúdo mas programa institucional para sua vida na sociedade, a
também a medida do «sucesso» têm condições sociais força total da ordem institucional é levada a pesar de
estruturais e conseqüências sociais estruturais. Em outras modo mais ou menos igual sobre cada indivíduo, pro-
palavras, a análise micro-sociológica ou sócio-psicológi- duzindo a macicez coercitiva da realidade objetiva que
ca dos fenômenos de interiorização deve ter sempre por deve ser interiorizada. A identidade é então consideravel-
fundamento a compreensão macro-sociológica· de seus mente delineada, no sentido de representar plenamente
aspectos estruturais." a realidade objetiva na qual está localizada. Dizendo
No nível da análise teórica aqui intentada não pode- em palavras simples, cada pessoa é mais ou menos aquilo
1110S entrar no exame detalhado das diferentes relações que se supõe que seja. Em tal sociedade as identidades
empíricas entre o conteúdo da socialização e as configu- são facilmente reconhecíveis, objetiva e subjetivamente.
rações sócio-estruturais." E' possível, porém, faz~r al- Todo mundo sabe quem é todo mundo e quem a pró-
gumas observações gerais sobre os aspectos sócio-es- pria pessoa é. Um fidalgo é um fidalgo e um camponês
truturais do «sucesso» da socialização. Entendemos por é um camponês, para os outros assim como para si
«socialização bem sucedida» o estabelecimento de um mesmos. Não existe, por conseguinte, o problema da
elevado grau de simetria entre a realidade objetiva e
identidade. E' possível que surja na consciência a per-
a subjetiva (o mesmo quanto à identidade, naturalmen-
(Yunta «Quem sou eu?», uma vez que a resposta social-
te). In\'"ersamente, a «socialização mal sucedida» deve l:>
mente definida por antecipação é maciçamente real sub-
ser compreendida em termos de assimetria entre a rea-
jetivamente e coerentemente confirmada por todas as
lidade objetiva e a subjetiva. Como vimos, a sociali!a-
ção totalmente bem sucedida é antropologicamente Im- interações sociais significativas. Isto de modo algum
possível. A socialização tota~mente mal sucedida. é . n,o implica que o indivíduo seja feliz com sua identidade.
mínímo extremamente rara, limitada a casos de mdlvl- Por exemplo, provavelmente nunca foi agradável ser
duos com os quais mesmo a socialização mínima não é camponês. Ser camponês acarretava problemas de toda
obtida devido a graves condições patológicas orgânicas. sorte, subjetivamente reais, urgentes e longe de produzi-
Nossa análise deve por conseguinte referir-se a grada- rem felicidade. Mas não acarretava o problema da iden-
ções em um contínuo, cujos pólos extremos são empi- tidade. O indivíduo era um camponês miserável, talvez
ricamente inacessíveis. Esta análise é útil porque permi- mesmo um rebelde, mas era um camponês. E' imprová-
te alguns enunciados gerais a respeito das condições e vel que as pessoas formadas em tais condições se con-
conseqüências da socialização bem sucedida. cebam a si mesmas em termos de «profundidades ocul-
O máximo sucesso na socialização verifica-se prova- tas», em sentido psicológico. O eu de «superfície» e o
velmente em sociedades com uma divisão muito simples cu «abaixo da superfície» só se diferenciam em função
da escala da realidade subjetiva presente à consciência
.. Nossa argumentaçlo implica a necessidade de um fundamento macro- em um dado momento, não em função de uma diferen-
sociológico para as análises da Interlorlzaçlio, Isto é, de uma compreenlllo
da estrutura social dentro da qual a Interlorlzaçlo se realiza. A eleola ciação permanente de «camadas» do eu. Por exemplo, o
psicológica americana está hoje em dia grandemente enfraquecida devido ao
fato de faltar em ampla extenslo este fundamento. camponês apreende-se a si mesmo em um pa~1 quando
.. Cf Oerth e Ml1ls op. clt., Também cf. Tenbruck, op. clt., que atribui está batendo na mulher e em outro quando se curva
um lugar destacado .'5 bases estruturais da personalidade em lua ttpolo,la
das sociedades primitivas, tradicionais moderna •.
217
216
servilmente diante do senhor. Em ambos os casos o ou- te presente de maneira estranha e truncada. Um indiví-
tro papel fica «abaixo da superfície:., isto é, não é le- duo assim será socializado sem sucesso, isto é, haverá
vado em conta pela consciência do camponês. Mas ne- um alto grau de assimetria entre a realidade socialmente
nhum dos dois papéis é estabelecido como um eu «mais definida em que de fato se encontra, como em um mun-
profundo:. ou «mais reab. Em outras palavras, nessa do estranho, e sua própria realidade subjetiva, que só
sociedade o indivíduo não somente é aquilo que se su- escassamente reflete aquele mundo. A assimetria, entre-
põe que seja, mas é tal de maneira unificada, «não es- tanto, não terá conseqüências estruturais cumulativas por-
tratificada:.. lO
que não possui base social na qual possa cristalizar-se
Em tais condições a socialização mal sucedida só em um contramundo, com seu próprio aglomerado ins-
acontece como resultado de acidentes biográficos, bioló- titucionalizado de contra-identidades. O indivíduo socia-
gicos ou sociais. Por exemplo, a socialização primária de lizado sem êxito é socialmente pré-definido como um tipo
uma criança pode ser prejudicada devido a uma defor- delineado, o aleijado, o bastardo, o idiota, etc. Por
mação física, socialmente estigmatizada ou por motivo conseguinte, quaisquer auto-identificações contrárias que
de um estigma baseado em definições sociais. l i O alei- possam às vezes surgir em sua própria consciência não
jado e o bastardo são protótipos destes dois casos. Exis- possuem nenhuma estrutura de plausibilidade que as
te também a possibilidade da socialização ser intrinse- transformaria em algo mais do que efêmeras fantasias.
camente impedida por deficiências biológicas, como no
caso da extrema debilidade mental. Todos estes casos Incipientes contradefinições da realidade e da id<!nti-
têm caráter de infortúnio individual. Não fornecem fun- dade tornam-se presentes logo que estes indivíduos se
damento para a institucionalização de contra-identidades congregam em grupos socialmente duráveis. Isto desen-
e de uma contra-realidade. De fato, esta condição dá cadeia um processo de mudança que introduzirá uma
a medida do infortúnio existente nessas biografias. Em distribuição de conhecimentos mais complexa. Pode, en-
uma sociedade dessa espécie o indivíduo aleijado ou tão, começar a ser objetivada uma contra-realidade no
bastardo não tem virtualmente defesa subjetiva contra a grupo marginal dos indivíduos incompletamente socia-
identidade estigmatizada que lhe é atribuída. E' o que lizados. Neste ponto, evidentemente, o grupo iniciará
se supõe que seja, para si mesmo assim como para seus seus próprios processos de socialização. Por exemplo, os
outros significativos e para a comunidade em totalidade. leprosos e os filhos de leprosos podem ser estigmatiza-
Sem dúvida, pode reagir a este destino com ressentimen- dos em uma sociedade. Tal estigmatização pode Iimitar-
to ou raiva, mas é enquanto ser inferior que se mostra se aos indivíduos fisicamente afetados pela doença ou
ressentido ou enraivecido. O ressentimento e a raiva po- incluir outros por definição social, por exemplo, qual-
dem mesmo servir como ratificações de sua identidade quer pessoa nascida durante um terremoto. Assim, os
socialmente definida como ser inferior, visto que os me- indivíduos podem ser definidos como leprosos desde o
lhores do que ele, por definição, estão acima destas emo- nascimento, e esta definição afetará gravemente a socia-
ções brutais. E' presioneiro da realidade Qbjetiva de sua lização primária deles, digamos, sob os auspícios de
sociedade, embora esta realidade lhe seja subjetivamen- uma velha louca que os mantém fisicamente vivos fora
dos confins da comunidade e lhes transmite o mínimo
l i Isto tem como Implicação importante o fato da maioria dos modelos
psicológicos Inclusive os da psicologia cientffica contemporânea, encontra- das tradições institucionais da comunidade. Desde que
rem IImltad~ aplfcabllidade sócIo-hIstórica. Implica alnd.a ql!e uma psicologia estes indivíduos, mesmo quando são mais de um punha-
sociológica terá de ser ao mesmo tempo uma p.dc%gla hIstórica .
.. Cf. Erving Gollman, Stigma (Englewood Cliffs, N. J., Prenticc-Hall. do, não formam uma contracomunidade própria, sua iden-
1963). Também, cf. A. Kardiner e L. Ovesey. The Mark of Oppre,s/on
(New York, Norton, 1951). tidade objetiva e subjetiva estará pré-definida de acordo
218 219
com o programa institucional que a comunidade esta- esta mudança. No 111101mo, não será mais tão fácil re-
belece para eles. Serão leprosos e nada mais. conhecer a identidade dos indivíduos definidos como le-
prosos, não haverá mais certeza se o indivíduo assim
A situação começa a mudar quando existe uma c0-
lônia de leprosos suficientemente grande e durável para definido se identifica a si próprio dessa mesma manei-
servir como estrutura de plausibilidade para contradefi- ra ou não. No caso máximo, não será mais coisa fácil
nições da realidade e do destino de quem é leproso. reconhecer a identidade de alguém, pois se os lepro-
Ser leproso, quer por atribuição biológica quer por es- sos podem recusar ser o que se supõe que sejam, outros
tigma social, pode então ser considerado como um sinal indivíduos também podem, e talvez nós mesmos. Se a
especial da eleição divina. Os indivíduos impedidos de princípio este processo parece fantasista, é admiravel-
interiorizar completamente a realidade da comunidade mente ilustrado pela designação de harijas, isto é, «filhos
podem então ser socializados na contra-realidade de uma de Deus", dada por Oandhi aos párias do hinduísmo.
colônia de leprosos, isto é, a socialização imperfeita Logo que existe uma distribuição do conhecimento
em um mundo social pode ser acompanhada pela so- mais complexa em uma sociedade a socialização imper-
cialização bem sucedida em outro mundo. Numa etapa feita pode resultar de diferentes outros significativos
primitiva deste processo de mudança a cristalização da mediatizarem diferentes realidades objetivas para o in-
contra-realidade e da contra-identidade pode não chegar divíduo. Dito de outra maneira, a socialização imper-
ao conhecimento da comunidade maior, que ainda pré- feita pode resultar da heterogeneidade do pessoal so-
define e continua identificando esses individuos como cializador. Isto pode acontecer de várias maneiras. Pode
leprosos, e nada mais. Não sabe que «realmente:. são haver situações nas quais todos os outros significantes
os filhos especiais dos deuses. Neste ponto um indiví- da socialização primária servem de mediadores para uma
duo a quem é atribuída a categoria de leproso pode realidade comum, mas de perspectivas consideravehncntc
descobrir em si mesmo «profundidades ocultas:.. A per- diversas. Até certo ponto, evidentemente, todo outro sig-
gunta «Quem sou eu?:. torna-se possível simplesmente nificativo tem uma perspectiva difercnte sobre a reali-
porque são exeqüíveis socialmente duas respostas em dade comum, simplesmente pelo fato de ser um indiví-
em conflito, a da velha louca (<<Você é um leproso:.) e duo particular com uma particular biografia. Mas as
a do próprio pessoal socializante da colônia (<<Você é conseqüências quc temos em vista aqui acontecem so-
um filho do deus:.). Como o individuo em sua consciên- mente quando as diferenças entre os outros significati-
cia atribui condição privilegiada às definições da reali- vos referem-se a seus tipos sociais e não a suas idiossin-
dade e de si mesmo dadas pela colônia, acontece a rup- crasias individuais. Por exemplo, homcns e mulheres
tura entre sua conduta «visiveb na comunidade maior podem chabitau mundos sociais consideravelmente dife-
e sua auto-identificação "invisivel" como alguém com- rentes numa sociedade. Se tanto os homens quanto as
pletamente diferente. Em outras palavras, aparece a cli- mulheres funcionam como outros significativos na so-
vagem entre «aparência:. e «realidade:. na auto-apre- cialização primária, servem de mediadores dessas dis-
ensão do individuo. Já então não é mais aquilo que se crepantes realidades para a criança. Isto por si só não
propõe que seja. Atua como leproso, mas é um filho do cria a amcaça de socialização malograda. As versões
deus. Se levarmos o exemplo um pouco mais adiante, masculina e feminina da realidade são socialmente reco-
até o ponto em que esta clivagem torna-se conhecida nhecidas e este reconhecimento também é transmitido
pela comunidade dos não leprosos, não é difícil ver que na socialização primária. Assim, existe a predominância
a realidade da comunidade também será afetada por antecipadamente definida da versão masculina para a

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socializadas com êxito farão pressão sobre as «erradas».
criança do sexo masculino e da versão feminina para a Enquanto não há conflito fundamental entre as definições
do sexo feminino. A criança conhecerá a versão perten- mediatizadas da realidade, mas apenas diferenças entre
cente ao outro sexo n~ medida em que lhe foi transmi- ~ersões da mesma realidade comum, existe boa probabi-
tida pelos outros significativos do outro sexo, mas não hdade de uma terapêutica bem sucedida.
se identifica com esta versão. Mesmo a mínima distri-
buição do conhecimento estabelece jurisdições particula- A socialização imperfeita pode também resultar da me-
res para as diferentes versões da realidade comum. No diação de mundos agudamente discordantes por outros
caso acima a versão feminina define-se socialmente por significativos durante a socialização primária. Ao se tor-
não ter jurisdição sobre a criança do sexo masculino. nar mais complexa a distribuição do conhecimento, apa-
Normalmente, esta definição do «lugar certo» da rea- recem mundos discordantes, que podem ser mediatiza-
lidade do outro sexo é interiorizada pela criança, que dos por diferentes outros significativos na socialização
p.rimá~ia. Isto acontece menos freqüentemente do que a
se identifica «corretamente» com a realidade que lhe foi
designada. sltuaçao que acabamos de examinar, na qual as versões
do mesmo mundo comum distribuem-se entre o pessoal
Contudo, existe a possibilidade biográfica da «anor- socializa~?r, porque os indivíduos (por exemplo, um ca-
malidade» se há competição entre as definições da rea- sa.1) suficientemente coerentes, com o grupo, para assu-
lidade, levantando a possibilidade de escolher entre elas. mir a tarefa da socialização primária provavelmente
Por um certo número de razões biográficas a criança maquinaram um certo tipo de mundo entre ambos. Isto
pode fazer a «escolha errada». Por exemplo, um menino acontece, entretanto, e tem considerável interesse teórico.
pode interiorizar elementos "inconvenientes" do mundo
feminino porque o pai está ausente durante o período Por exemplo, uma criança pode ser educada não so-
decisivo da socialização primária, e tais elementos são mente pelos pais mas também por uma ama recrutada
ministrados exclusivamente pela mãe e três irmãs mais em uma sub-sociedade étnica ou de classes. Os pais
velhas. Podem transmitir as «corretas» definições juris- transmitem à criança, digamos, o mundo de uma aris-
dicionais ao menino, de modo que este sabe não se ima- tocracia conquistadora pertencente a uma raça, enquanto
ginar que tenha de viver no mundo das mulheres. En- a ama transmite o mundo do campesinato subjugado de
tretanto, pode identificar-se com este último. O resultan- outra raça. E' mesmo possível que as duas mediações
te caráter «efeminado» pode ser «visível» ou «invisível». empreguem línguas completamente diferentes, que a cri-
Em ambos os casos haverá assimetria entre sua identi- ança aprende simultaneamente, mas que são mutuamente
dade socialmente atribuída e sua identidade subjetiva- ininteligíveis para os pais e para a ama. Neste caso,
mente real." evidentzmente, o mundo dos pais será predominante por
pré-definição. A criança será reconhecida por todos
Evidentemente, a sociedade fornece mecanismos tera- os interessados, e por ela própria, como pertencente ao
pêuticos para tratar desses casos «anormais». Não pre- grupo dos pais e não ao da ama. Apesar disso a pré-de-
cisamos repetir aqui o que foi dito a respeito da tera- finição das respectivas jurisdições das duas realidades
pêutica, exceto acentuar que a necessidade de mecanis- p~e ser transtornada por váriOS acidentes biográficos,
mos terapêuticos cresce proporcionalmente à possibilidade, assim como pode acontecer na primeira situação exami-
estruturalmente determinada, de socialização imperfeita. nada, exceto que agora a socialização imperfeita acar-
No exemplo há pouco examinado, no mínimo as crianças reta a possibilidade da alternação interioriza,da como
.. Cf. Dona1d W. Cor)'. The Homosexual in Amerlca (New York, Oreen-
aspecto permanente da auto-apreensão subjetiva do in-
berg, 1951).
223
222
divlduo. A escolha potencialmente ao alcance da criança prepara para os mistérios, e a ama quando se exercita
ê entlo mais delineada, implicando mundos diferentes e na cavalaria, assim como trai seu grupo de pares ao
nlo versões diferentes do mesmo mundo. Nlo é pre- ser um jovem estudante «quadrado» e os pais quando
ciso dizer que na prática haverá muitas gradações entre rouba um automóvel, havendo em ambos os casos con-
a primeira e a segunda situaçlo. comitante «traição a si mesmo», na medida em que se
Quando mundos intensamente discordantes slotrans- identificou com dois mundos discordantes. Examinamos,
mitidos na socialização primária o individuo defronta-se em nossa análise anterior da alternação, as várias opções
com a escolha de identidades delineadas apreendidas por que se abrem à criança, embora seja claro que estas
ele como autênticas possibilidades biográficas. Pode tor- opções têm diferentes realidades subjetivas quando já
nar-se um homem tal como ê interpretado pela raça A são interiorizadas na socialização primária. Pode-se ad-
ou pela raça B. E' entlo que aparece a possibilidade mitir com certeza que a alternação permanece sendo uma
de uma identidade verdadeiramente oculta, dificilmente ameaça durante toda a vida para qualquer realidade
reconhecivel, de acordo com as tipificações objetiva- subjetiva que brote de' tal conflito como resultado de
mente acessiveis. Em outras palavras, pode haver uma qualquer opção, ameaça criada uma vez por todas pela
assimetria socialmente escondida entre a biografia «pú- introdução da possibilidade de alternação na própria
blica:.. e a «privada:.. No que diz respeito aos pais, a socialização primária.
criança está agora pronta para a fase preparatória do A possibilidade do «individualismo» (isto é, da esco-
cavalheirismo. Sem que saibam disso, mas apoiada na lha individual entre realidades e identidades discrepan-
estrutura de plausibilidade fornecida pela sub-sociedade tes) está diretamente ligada à possibilidade da sociali-
da ama, a criança está «somente fingindo de:.. n~~ zação incompleta. Afirmamos que a socialização mal
processo, enquanto «realmente:. prepara-se para a lftl- suceàida abre a qUt!stão «Quem sou eu?». No contexto
ciação nos superiores mistérios religiosos do grupo sub- sócio-estrutural, no qual a socialização mal sucedida é
jugado. Discrepâncias deste gênero acontecem na socie- reconhecida como tal, a mesma questão surge para o
dade contemporânea entre os processos de socializaçlo individuo socializado com pleno êxito, em virtude da
na famllia e no grupo de seus pares. No que diz respeito reflexão que faz sobre os outros imperfeitamente socia-
à famllia, a criança está pronta para a formatura a par- lizados. Mais cedo ou mais tarde encontrará esses que
tir da escola secundária. Quanto ao grupo de seus pares, têm «um eu escondido», os «traidores», os que alter-
está pronta para sua primeira prova séria de coragem
naram ou estão praticando a alternação entre mundos
ao roubar um automóvel. Não é preciso dizer que estas
discordantes. Por uma espécie de efeito de espelho, a
situações estão carregadas de possibilidades de confli-
questão pode vir a aplicar-se a ele próprio, a principio
to interno e culpa. de acordo com a fórmula «Ainda bem que, graças a
Presumivelmente todos os homens, uma vez socializa- Deus, eu consegui», finalmente talvez pela fórmula «Se
dos, são potenciais «traidores de si mesmos:... 0. probl-: eles, por que não eu?». Isto abre uma caixa de Pandora
ma interno desta «traiçlo:.. torna-se, porém, mUito mais de escolhas «individualistas», que finalmente generalizam-
complicado se acarreta ademais o problema de saber se quer o curso biográfico do indivíduo tenha sido de-
qual «eu:. está sendo traldo em algu~ mO?I~nto deter- terminado pela escolha «certa» ou pela «errada». O «in-
minado problema criado logo que a Identlflcaçlo com dividualista» sugere como um tipo social particular, que
diferentes outros significativos inclui diferentes outros tem pelo menos a possibilidade de migração entre muitos
generalizados. A criança está traindo os pais quando se mundos exeqüíveis e que construiu deliberada e conscien-
224 225
temente um eu com o «materia1» fornecido por um grande acompanhadas de crises afetivas, pois dependerã'O in~
número de identidades que estavam ao seu alcance. variavelmente da mediaçã'O de 'Outr'Os significativ'Os. A
Uma terceira importante situação que conduz à socia- apresentaçã'O de mundos discordantes na socializaçã'O se-
lização imperfeita surge quando existem discordâncias cundária produz uma configuraçã'O inteiramente diferente.
entre a socialização primária e a secundária. A unidade Na socializaçã'O secundária a interi'Orizaçã'O nã'O é obriga-
da socialização primária é mantida, mas na socializa- t'Oriamente ac'Ompanhada pela identificaçã'O, afetivamente
ção secundária aparecem realidades e identidades opos- carregada, c'Om 'Outr'Os significativ'Os. O indivídu'O p'Ode
tas, como opções subjetivas. Estas são naturalmente li- interi'Orizar diferentes realidades sem se identificar com
mitadas pelo contexto sócio-estrutural do indivíduo. Por elas. P'Or c'Onseguinte, se um mund'O diferente aparece
exemplo, pode desejar tornar-se um cavaleiro, mas sua na socializaçã'O secundária 'O indivídu'O pode preferi-lo
posição social torna esta idéia uma ambição louca. Quan- em f'Orma de manobra. Poder-se-ia falar aqui de alter-
do a socialização secundária diferenciou-se até o ponto naçã'O dria». O indivídu'O interi'Oriza a n'Ova realidade,
em que se tornou possível a desidentificação subjetiva mas em vez de fazer dela a sua realidade, utiliza-a
do «lugar adequado» do indivíduo na sociedade, e quan- c'Om'O realidade para ser usada c'Om especiais finalida-
do ao mesmo tempo a estrutura social não permite a des. Na medida em que ist'O implica a execuçã'O de cer-
realização da identidade subjetivamente escolhida, ac'On- tos papéis, 'O indivídu'O conserva 'O desligament'O subje-
tece um interessante desenvolvimento. A identidade sub- tiv'O com relação a estes, «veste-'Os» deliberada e pro-
jetivamente escolhida torna-se uma identidade de fanta- p'Ositadamente. Se este fenômeno t'Ornar-se amplamente
sia, objetivada dentr'O da c'Onsciência d'O indivídu'O c'Omo distribuíd'O a 'Ordem instituci'Onal em t'Otalidade c'Omeça
seu «eu real». Pode-se admitir que as pess'Oas sempre a tomar 'O caráter de uma rede de manipulações re-
sonham com desejos imp'Ossíveis de serem realizad'Os e cíprocas ...
coisas semelhantes. A peculiaridade desta particular fan- Uma s'Ociedade na qual 'Os mund'Os discrepantes sã'O
tasia reside na objetivação, no nível da imaginaçã'O, de geralmente acessíveis em uma base de mercad'O acarreta
uma identidade diferente daquela 'Objetivamente atribuída particulares c'Onstelações da realidade e da identidade
anteriormente interiorizada na socialização primária. E' subjetivas. Haverá uma c'Onsciência geral cada vez mai'Or
evidente que a ampla distribuição deste fenômeno in- da relatividade de todos 'Os mund'Os, inclusive 'O d'O pró-
troduzirá tensões e inquietudes na estrutura social, pri'O indivíduo, que é entã'O subjetivamente apreendid'O
ameaçando os programas institucionais e sua realidade c'Om'O «um mund'O::. e nã'O c'Om'O «o mundo». Segue-se
assegurada. que a c'Onduta institucionalizada do indivídu'O será apre-
Outra conseqüência muito importante quando há dis- endida c'Om'O «um papel::., d'O qual pode desligar-se em
cordância entre a socialização primária e a secundária sua própria c'Onsciência e que «desempenha» c'Om finali-
é a possibilidade do indivíduo ter relações com mund'Os dade de man'Obra. Por exempl'O, 'O arist'Ocrata nã'O é mais
discordantes, qualitativamente diferentes das relações nas simplesmente um arist'Ocrata, mas representa ser um aris-
situações anteriormente discutidas. Se na socializaçã'O t'Ocrata, etc. A situaçã'O, por conseguinte, tem uma con-
primária aparecem mundos discordantes 'O indivídu'O tem seqüência de muit'O maior alcance do que a possibilida-
a escolha de identificar-se com um deles e não com 'Os de de indivídu'Os representarem ser aquil'O que não se
outros, processo que, ocorrendo na socialização primá- propõe que sejam. Também representam ser aquil'O que
ria, carrega-se de elevado grau de afetividade. A iden-
tificação, a desidentificação e a alternação serão todas "' Acentuarlamos aqui, alada uma vez, as condições sócio-estruturais da
aplicabilidade de um "modelo goffmanlano" de análise.

226 227
se supõe que são, coisa muito diferente. Esta situa- Se tivermos em mente esta dialética podemos evitar a
ção é cada vez mais tipica da sociedade industrial con- noção equivocada de «identidades coletivas», sem preci-
temporânea, mas evidentemente iria muito além dos limi- sar recorrer à unicidade, sub specie aeternitatis, da exis-
tes de nossas atuais considerações entrar na análise da tência individual. co As estruturas sociais históricas par-
sociologia do conhecimento e da psicologia social desta ticulares engendram tipos de identidade, que são reco-
constelação. l i Deveríamos acentuar que esta situação não nhecíveis em casos individuais. Neste sentido é possível
pode ser entendida a menos que se relacione continua- afirmar que um americano tem uma identidade diferen-
mente com seu contexto sócio-estrutural, que decorre lo- te da que é possuída por um francês, um habitante de
gicamente da necessária relação entre a divisão social Nova York é diferente do habitante do Meio-Oeste, um
do trabalho (com suas conseqüências para a estrutura diretor de empresa não se confunde com um vagabundo,
social) e a distribuição social do conhecimento (com e assim por diante. Conforme vimos, a orientação e o
suas conseqüências para a objetivação social da reali-
comportamento na vida cotidiana dependem destas tipi-
dade). Na situação contemporânea isto implica a análise
ficações. Isto significa que os tipos de identidade po-
tanto do pluralismo da realidade quanto do pluralismo
da identidade, referidos à dinâmica estrutural do indus- dem ser observados na vida cotidiana e que as afirma-
trialismo, particularmente à dinâmica dos padrões de es- ções como as que fizemos acima podem ser verificadas
tratificação social produzidos pelo industrialismo." - ou refutadas - por homens comuns dotados de
bom-senso. O americano que duvida de que os franceses
são diferentes pode ir à França verificar por si mesmo.
3. TEORIAS SOBRE A IDENTIDADE Evidentemente, a condição dessas tipificações não é
comparável à das construções das ciências sociais, nem
A identidade é evidentemente um elemento-chave da rea- a verificação ou a refutação seguem os cânones do mé-
lidade subjetiva, e tal como toda realidade subjetiva,
todo científico. Devemos deixar de lado o problema
acha-se em relação dialética com a sociedade. A identi-
dade é formada por processos sociais. Uma vez cris- metodológico de saber qual é a relação exata existente
talizada, é mantida, modificada ou mesmo remodelada entre as tipificações da vida cotidiana e as abstrações
pelas relações sociais. Os processos sociais implicados científicas (um puritano sabia que era um puritano, sen-
na formação e conservação da identidade são determi- do reconhecido como tal, por exemplo, pelos anglicanos
nados pela estrutura social. Inversamente, as identidades com toda a facilidade; o cientista social, porém, que
produzidas pela interação do organismo, da consciência deseja pôr à prova a tese de Max Weber sobre a
individual e da estrutura social reagem sobre a estrutura ética puritana deve adotar procedimentos um tanto dife-
social dada, mantendo-a, modificando-a ou mesmo re- rentes e mais complexos a fim de «reconhecer» os re-
modelando-a. As sociedades têm histórias no curso das presentantes empíricos do tipo weberiano ideal). O pon-
quais emergem particulares identidades. Estas histórias, to interessante na presente análise é que os tipos de
porém, são feitas por homens com identidades específicas. identidade são «observáveis», «verificáveis» na experiên-
cia pré-teórica, e por conseguinte pré-científica.
as Helmut Schelsky criou o sugestivo termo Urellexlvldade permanente"
(Dauerreflektlon) para o cognato psicológico do termo contemporâneo
"mercado de mundos" ("1st dle Dauerreflektlon Instltutlonallslerbar?", .. Não é recomendável falar de "identidade coletiva" po~ ~ausa do p~rigo
Ze/tschrift far evangel/sche Etnlk, 1957). A base teórica da argumentaçlll de falsa (e relficadora) hipostatiza~ão. O exemplum homblle dessa hipos-
de Schelsky é a teoria geral da Usubjetlvaçlo" na sociedade moderna, for- tatlzação é a sociologia "hegeliana' alemã da década de 1920 e de 1930
mulada por Gehlen. Foi desenvolvida mais tarde em termos da sociologia (tal como a obra de Othmar Spann). Este perigo acha-se pre~ente em
da religião contemporânea por Luckmann, op. clt. grau maior ou menor em vários trabalhos da escola de Durkhe,m e da
.. Cf. Luckmann e Berger, loc. cito escola da "cultura e personalidade" na antropologia cultural americana .

228 229
A identidade é um fenômeno que deriva da dialética jacente a essa teoria. Dito de maneira simples, a psi-
entre um indivíduo e a sociedade. Os tipos de identida- cologia pressupõe sempre a cosmologia.
de, por outro lado, são produtos sociais tout court, ele- Este assunto pode ser bem ilustrado fazendo-se re-
mentos relativamente estáveis da realidade social objeti- ferência ao termo muito usado em psiquiatria «orienta-
va· (sendo o grau de estabilidade evidentemente determi- ção na realidade»." O psiquiatra que procura diagnos-
nado socialmente, por sua vez). Assim sendo, são o ticar um indivíduo, a respeito de cujo estado psicológico
tema de alguma forma de teorização em uma sociedade, está em dúvida, faz-lhe perguntas para determinar o
mesmo quando são estáveis e a formação das identida- grau de sua «capacidade de orientação na realidade».
des individuais é relativamente desprovida de problemas. Isto é inteiramente lógico. Do ponto de vista psiquiá-
As teorias sobre a identidade estão sempre encaixadas trico há evidentemente algo problemático relativame.nte
em uma interpretação mais geral da realidade. São «em- ao indivíduo que não sabe qual é o dia da semana ou
butidas» no universo simbólico e suas legitimações teó- que realmente admite que falou com os espíritos de pes-
ricas, variando com o caráter destas últimas. A identidade soas falecidas. De fato, o termo «orientado na realidade:.
permanece ininteligível a não ser quando é localizada pode ser útil neste contexto. O sociólogo, porém, tem
em um mundo. Qualquer teorização sobre a identidade uma outra pergunta a propor: «Que realidade?». Diga-
- e sobre os tipos específicos de identidade - tem, se de passagem que este acréscimo tem importância para
portanto, de fazer-se no quadro das interpretações teóri- a psiquiatria. O psiquiatra certamente levará em consi-
cas em que são localizadas. Voltaremos dentro em pou- deração, quando um indivíduo não sabe o dia da se-
co a este ponto. mana, se este acaba de chegar de outro continente por
Deveríamos acentuar ademais que estamos nos referin- avião a jato. Pode acontecer que não saiba o dia da
do aqui às teorias sobre a identidade enquanto fenômeno semana simplesmente porque ainda está «em outro tem-
social, isto é, sem prejulgar nada quanto à aceitabilidade po», por exemplo, na hora de Calcutá, em vez da Hora-
delas pela ciência moderna. De fato, chamaremos essas Padrão do Oriente. Se o psiquiatra for sensível ao con-
teorias «psicológicas», e incluiremos qualquer teoria so- texto sócio-cultural das condições psicológicas chegará
bre a identidade que pretenda explicar o fenômeno em- a diagnósticos diferentes do indivíduo que conversa com
pírico de maneira ampla, quer essa explicação· seja «vá- os mortos, dependendo desse indivíduo vir, por exem-
lida», quer não, para a disciplina científica contempo- plo, da cidade de Nova Iorque ou de uma zona rural
rânea que tem aquele nome. do Haiti. O indivíduo pode estar «em outra realidade»,
Se as teorias sobre a identidade são sempre incluídas no mesmo sentido socialmente objetivo em que o indi-
em teorias mais amplas a respeito da realidade, isto deve víduo anterior estava «em outro tempo». Dito diferen-
ser entendido de acordo com a lógica que serve de fun- temente, as perguntas relativas ao estado psicológico não
damento a estas últimas. Por exemplo, uma psicologia podem ser decididas sem o reconhecimento das defini-
que interpreta certos fenômenos empíricos como resul- ções da realidade admitidas como verdadeiras na situa-
tado da possessão por seres demoníacos tem por matriz ção social do indivíduo. Expressando-nos de maneira
uma teoria mitológica do cosmo, sendo inadequada para mais precisa, o estado psicológico é relativo às defini-
interpretá-los em um quadro não mitológico. Igualmente, ções sociais da realidade em geral, sendo ele próprio
uma psicologia que interpreta os mesmos fenômenos co- socialmente definido. t i
mo perturbações elétricas do cérebro tem por funda- .. o que está implicado aqui, evidentemente, é uma critica sociológica
mento uma teoria científica global da realidade, humana do "principio de realidade" de Freud. '
<2 Cf. Peter L. Berger, "Towards a Soclologlcal Understandlng of Psycho-
e não humana, e deriva sua consistência da lógica sub- analysls", Social Research, Sprlng, 1965, 26ss.

230 231
A emergência das psicologias introduz uma nova re- exemplo, é improvável que uma teoria psicológica que
lação dialética entre identidade e sociedade, a relação admite a possessão demoníaca seja adequada a interpre-
entre a teoria psicológica e os elementos da realidade tar os problemas de identidade de intelectuais judeus de
subjetiva que pretende definir e explicar. O nível dessa classe média da cidade de Nova Iorque. Essas pessoas
teorização pode naturalmente variar muito, conforme simplesmente não têm uma identidade capaz de produzir
acontece com todas as legitimações teóricas. O que foi fenômenos que sejam interpretados de tal maneira. Os
dito anteriormente a respeito das origens e fases das demônios, se existem, parece que os evitam. Por outro
teorias legitimadoras aplica-se aqui com igual validade, lado, é improvável que a psicanálise seja adequada à
mas com uma diferença que não deixa de ter impor- interpretação de problemas de identidade nas regiões
tância. As psicologias pertencem a uma dimensão da rurais do Haiti, ao passo que algum tipo de psicologia
realidade que tem a maior e mais contínua relevância vudu pode fornecer esquemas interpretativos com alto
para todos os indivíduos. Por conseguinte, a dialética grau de exatidão empírica. As duas psicologias demons-
entre a teoria e a realidade afeta o indivíduo de ma- tram sua exatidão empírica pela aplicabilidade à tera-
neira palpavelmente direta e intensa. pêutica, mas com isso nenhuma delas demonstra a con-
Quando as teorias psicológicas alcançam um alto grau dição ontológica de suas categorias. Nem os deuses vudu
d~ ~omplexidade intelectual torna-se provável que sejam nem a energia da libido podem existir fora do mundo
mmlstradas por pessoal especialmente educado neste definido nos respectivos contextos sociais. Mas nesses
corpo de conhecimento. Qualquer que seja a organiza- contextos existem, em virtude da definição social, e são
ção social desses especialistas, as teorias psicológicas interiorizadas como realidades no curso da socialização.
penetram na vida cotidiana, fornecendo os esquemas in- Os haitianos rurais são possessos e os intelectuais no-
terpretativos para que o especialista se livre dos casos va-iorquinos são neuróticos. A possessão e a neurose
problemáticos. Os problemas que surgem da dialética são assim constituintes de realidade objetiva e subjetiva
entre a identidade subjetiva e as atribuições sociais de nesses contextos. Esta realidade é empiricamente aces-
identidade, ou entre a identidade e seu substrato bioló- sível na vida cotidiana. As respectivas teorias psicológi-
gico (a respeito do qual falaremos a seguir), podem ser cas são empiricamente adequadas precisamente no mes-
c1ass~ficados de acordo com categorias teóricas, o que mo sentido. O problema de saber se, e como, poderiam
é eVidentemente o pressuposto de qualquer terapêutica. ser criadas teorias psicológicas para superar esta rela-
As teorias psicológicas servem por conseguinte para le- tividade sócio-histórica não nos interessa neste momento.
gitimar os procedimentos de conservação da identidade Na medida em que as teorias psicológicas são ade-
e da reparação da identidade estabelecidos na socieda- quadas neste sentido, são capazes de verificação empí-
de, fornecendo a ligação teórica entre a identidade e o rica. Ainda mais, o que está em jogo não é a verifica-
mundo, tal como ambos são socialmente definidos e sub- ção em sentido científico mas a prova feita na experiên-
jetivamente apreendidos. cia da vida social cotidiana. Por exemplo, é possível
As teorias psicológicas podem ser empiricamente ade- propor que os indivíduos nascidos em certos dias do mês
quadas ou inadequadas, e neste sentido não nos referi- provavelmente serão possessos, ou que os indivíduos com
mos à sua adequação em termos dos cânones de proce- mães autoritárias provavelmente serão neuróticos. Estas
dimento da Ciência empírica, mas antes ao valor delas proposições são empiricamente verificáveis na medida em
como esquemas interpretativos aplicáveis pelo perito ou que pertencem a teorias adequadas, no sent~do acima
pelo leigo a fenômenos empíricos da vida cotidiana. Por mencionado. A verificação pode ser empreendida pelos

232 233
par~i:ipantes ou por observadores estranhos das situações nham mais facilmente efeitos socializadores. Isto não é
socIaIs em ques~ão. Um etnólogo haitiano pode empiri- a mesma coisa que dizer serem as psicologias capazes
camente. descobnr ~euroses em Nova Iorque, assim como de se verificarem a si mesmas. Conforme indicamos, a
um etnologo amencano pode empiricamente descobrir a verificação dá-se pelo confronto das teorias psicológicas
possessão vudu. O pressuposto dessas descobertas con- e da realidade psicológica empiricamente acessível. As
si.ste simplesmente em que o observador externo esteja psicologias produzem uma realidade, que por sua vez
dlspo~to . a ~mpregar os mecanismos conceituais da psi- serve de base para a verificação delas. Em outras pa-
cologIa tndlgena na pesquisa em curso. Saber se está lavras, estamos tratando aqui de dialética, não de
ta~bém ~i~posto .a atribuir a essa psicologia validade tautologia.
epls~emologlca maIs geral é coisa que não tem impor- O haitiano rural que interioriza a psicologia vudu
tancla para a pesquisa empírica imediata. tornar-se-á possesso logo que descobre certos sinais bem
_ Outra maneira de dizer que as teorias psicológicas definidos. Do mesmo modo, o intelectual de Nova Iorque
sao a?equa?as consiste em dizer que refletem a realida- que interioriza a psicologia freudiana ficará neurótico
de pSIcológIca que pretendem explicar. Mas se isto fosse logo que diagnostica certos sintomas bem conhecidos.
tudo, a relação entre teoria e realidade não seria neste De fato, é possível que, dado um certo contexto biográ-
caso dialética. Há uma autêntica dialética implicada por fico, os sinais ou os sintomas sejam produzidos pelo
caus.a do poder realizador das teorias psicológicas. Na próprio indivíduo. O haitiano neste caso produzirá não
me~l~a_ em q.ue as teorias psicológicas são elementos da sinais de neurose mas sinais de possessão, enquanto o
deftnlçao socIal da realidade sua capacidade de gerar a nova-iorquino construirá sua neurose de conformidade
realidade é uma característica, de que participam com com a sintomatologia reconhecida. Isto não tem nada
outras teorias legitimadoras. Contudo, seu poder reali- a ver com «histeria em massa», e menos ainda com si-
zador é particularmente grande, porque é atualizado por mulação de doença, mas refere-se à impressão de tipos
processos de formação de identidade emocionalmente car- de identidade social sobre a realidade subjetiva indivi-
regados. Se uma psicologia se torna socialmente estabe- duaI de pessoas comuns dotadas de bom-senso. O grau
lecida (isto é, torna-se geralmente reconhecida como de identificação variará com as condições da interior i-
uma interpretação adequada da realidade objetiva) ten- zação, conforme mostramos anteriormente, dependendo,
de for~osamente a se realizar nos fenômenos que pre- por exemplo, de realizar-se na socialização primária ou
tende tnterpr~tar. Sua i?teriorização é acelerada pelo na secundária. O estabelecimento social de uma psico-
!at~ .de refem-se. à reahdade interna, de modo que o logia, que também acarreta a atribuição de certos pa-
tndlvlduo a realIza no próprio ato de interiorizá-la. péis sociais ao pessoal que ministra a teoria e sua apli-
Além do mais, como uma psicologia por definição re- cação terapêutica, dependerá naturalmente de várias cir-
fe~e-se à identidade, é provável que sua interiorização cunstâncias sócio-históricas." Mas quanto mais social-
~eJa acompanhada pela identificação, por conseguinte mente estabelecida se torna mais abundantes serão os
zpso facto é provável que seja formadora de identidade. fenômenos que serve para interpretar.
Neste 7streit~ nex? entre interiorização e identificação, Se admitirmos a possibilidade de certas psicologias se
as teorIas pSIcológIcas diferem consideravelmente de ou- tornarem adequadas no curso de um processo de reali-
!ros tipos de teoria. Sendo os problemas da socialização zação, implicamos a questão de saber por que as teo-
lI~comt:leta os que mais conduzem a este tipo de teoriza- rias até agora inadequadas (como deveriam ter sido nas
çao, nao é de surpreender que as teorias psicológicos te- .. Cf. Ibid.
234 235
fases ~rimitivas deste processo) surgem em primeiro lu- tos que se passam nesse mundo, que é produto do ho-
g~r. Dtto de m~n~ira mais simples, por que uma psicolo- mem, podem fazer seu estômago roncar mais, menos
gia deve substttulr outra na história? A resposta geral ou diferentemente. O homem é mesmo capaz de comer
é que esta mudança ocorre quando a identidade aparece e fazer teorias ao mesmo tempo. A coexistência perma-
como problema, por motivo qualquer. O problema pode nente da animalidade do homem e de sua socialidade
surgir da dialética da realidade psicológica e da estru- pode ser proveitosamente observada em qualquer con-
trutura social. As transformações radicais da estrutura versa depois do jantar.
social (por exemplo, as transformações produzidas pela E' possível falar de uma dialética entre a natureza e
Revoluç.ão Industrial) podem dar em resultado alterações a sociedade." Esta dialética é dada na condição huma-
concomitantes da realidade psicológica. Neste caso, no- na e manifesta-se renovada em cada indivíduo humano.
vas .teorias p.sicológicas surgirão, porque as antigas não Para o indivíduo, evidentemente, ela se desenrola em
~xplt~am mais a~equadamente os fenômenos empíricos uma situação sócio-histórica já estruturada. Há uma con-
Imediatos. A teorização sobre a identidade procurará en- tínua dialética que começa a existir com as primeiras fa-
tão tomar conhecimento das transformações da identida- ses da socialização e continua a se desenvolver ao longo
de que aconteceram realmente, e será ela própria trans- de toda a existência do indivíduo na sociedade, entre
formada no processo. Por outro lado, a identidade pode cada animal humano e sua situação sócio-histórica. Ex-
!ornar-se problemática no nível da própria teoria, isto ternamente é uma dialética entre o animal individual e
e, como resultado de desenvolvimentos teóricos intrínse- o mundo social. Internamente, é uma dialética entre o
cos. Neste caso as teorias psicológicas serão maquina- substrato biológico do indivíduo e sua identidade social-
das «antes do fato», por assim dizer. Seu estabeleci- mente produzida.
mento ~ocial subseqüente, e concomitante poder gerador No aspecto externo é ainda possível dizer que o orga-
da r~al.ldade, pode ser realizado por qualquer número nismo estabelece limites para aquilo que é socialmente
de aftnldades entre o pessoal teorizador e os vários in- possível. Como disseram os advogados constitucionais
teresses sociais. A manipulação ideológica deliberada ingleses, o parlamento pode fazer tudo exceto os homens
por grupos politicamente interessados é uma possibili- parirem filhos. Se o parlamento tentasse, o projeto fra-
dade histórica. cassaria com base nos fatos rígidos da biologia humana.
Os fatores biológicos limitam a gama das possibilidades
sociais abertas a qualquer indivíduo, mas o mundo so-
4. ORGANISMO E IDENTIDADE cial, que preexiste a cada indivíduo, por sua vez impõe
limites ao que é biologicamente possível para o organis-
Examinamos muito anteriormente os pressupostos orgâ- mo. A dialética manifesta-se na limitação mútua do or-
nicos e as limitações da construção social da realidade. ganismo e da sociedade.
E' importante acentuar agora que o organismo continua Uma oportuna ilustração da limitação que a sociedade
a afetar cada fase da atividade humana construtora da impõe às possibilidades biológicas do organismo é a lon-
realidade e que o organismo por sua vez é afetado por
.. A dialética entre a natureza e a sociedade, por nós aqui discutida,
esta atividade. Dito de maneira rude, a animalidade do de modo algum pode ser equiparada A "dialética da natureza" desenvolvida
homem transforma-se em socialização, mas não é abo- por Engels e pelo marxismo posteriormente. A primeira sublinha que a
relaçlio do homem com seu próprio corpo (do mesmo modo que com a
lida. Assim, o estômago do homem continua roncando natureza em geral) é por si mesma uma relaçlio especificamente humana.
A segunda concepção, pelo contrArio, projeta fenômenos especificamente
mesmo se o indivíduo está tratando de seus negócios humanos numa natureza nlio humana, e em seguida passa a desumanizar
teoricamente o homem, considerando-o apenas objeto das forças naturais ou
na construção do mundo. Inversamente, os acontecimen- leis da l1atureZ8.

236 237
gevidade. A espectativa de vida varia com a localização Assim, funções biológicas tão intrínsecas quanto o or-
social. Mesmo na sociedade americana contemporânea gasmo e a digestão são socialmente estruturadas. A so-
existe considerável discrepância enlre a espectativa de ciedade também determina a maneira pela qual o orga-
vida dos indivíduos de classe inferiór e a dos indivíduos nismo é usado na atividade. A expressividade, o modo
de classe superior. Além disso, a incidência e o caráter de anda-r e os gestos são socialmente estruturados. Não
da patologia variam com a posição social. Os indivíduos podemos nos ocupar aqui com a possibilidade de uma
de classe inferior adoecem mais freqüentemente que os sociologia do corpo, que estas noções suscitam." A
da classe superior. Além disso, têm doenças diferentes. questãó é que a sociedade estabelece limites para o or-
Em outras palavras, a sociedade determina durante quan- ganismo, assim como o organismo estabelece limites pa-
to tempo e de que maneira o organismo individual vi- ra a sociedade.
verá. Esta determinação pode ser institucionalmente pro- No aspecto interno, a dialética manifesta-se como a
gramada na operação dos controles sociais, como na resistência do substrato biológico à modelagem pela so-
instituição da lei. A sociedade pode aleijar e matar. De ciedade." Isto é naturalmente de todo evidente no pro-
fato, é no poder sobre a vida e a morte que manifesta cesso de socialização primária. As dificuldades de socia-
seu supremo controle sobre o indivíduo. lizar inicialmente a criança não podem ser explicadas
A sociedade penetra também diretamente no organis- simplesmente em razão dos problemas intrínsecos da
mo no que diz respeito ao funcionamento deste, prin- aprendizagem. O pequeno animal luta contra, por assim
cipalmente quanto à sexualidade e à nutrição. Embora dizer. O fato de fatalmente ter de perder a batalha não
ambas sejam fundadas em impulsos biológicos, estes im- elimina a resistência de sua animalidade à influência ca-
pulsos são extremamente plásticos no animal humano. da vez mais penetrante do mundo social. Por exemplo,
O homem é compelido pela constituição biológica a pro- a criança resiste à imposição da estrutura temporal da
curar a satisfação sexual e o alimento. Mas sua cons- sociedade à temporalidade natural de seu organismo."
tituição biológica não lhe diz onde deverá procurar a Resiste a comer e dormir de acordo com o relógio, em
satisfação sexual e o que deverá comer. Abandonado a vez de atender às exigências, biologicamente impostas, do
si mesmo, o homem pode ligar-se sexualmente a apro- organismo. Esta resistência é progressivamente quebrada
no curso da socialização, mas se perpetua como frustra-
ximadamente qualquer objeto e é perfeitamente capaz de
ção em todas as ocasiões nas quais a sociedade proíbe
comer coisas que o matarão. A sexualidade e a nutrição
o indivíduo esfomeado de comer e o indivíduo sono-
estão canalizadas em direções específicas mais social-
lento de ir para a cama. A socialização inevitavelmente
mente do que biologicamente, canalização que não so-
implica este tipo de frustraçã9 biológica. A existência
mente impõe limites a estas atividades mas afeta dire- social depende da subjugação contínua da resistência,
tamente as funções orgânicas. Assim, o indivíduo socia- biologicamente fundada, do indivíduo, que acarreta legiti-
lizado com pleno sucesso é incapaz de funcionar social-
mente com o objeto sexual «impróprio» e vomita quando •• Sobre esta possibilidade de uma disciplina da "sócio-somática", cf.
Oeor§ Simmel, op. clt., pp. 483ss. (O ensaio sobre a "sociologia dos sen-
se depara com o alimento «impróprio». Como vimos, a tidos ); Marcel Mauss, Soci%gle et Aothropologie (Paris, Presses Univer-
canalização social da atividade é a essência da insti- sita ires de France, 19!10), pp. 36!1ss. (O ensaio sobre as "técnicas do
corpo"); Edward T. HaU, The SI/eot Laoguage (Oarden City, N. V., Dou-
tl;lcionaIização, que é o fundamento da construção social b:eday, 19!19). A análise sociológica da sexualidade forneceria provavelmente
o mais rico material emplrico para esta disciplina.
da realidade. Pode dizer-se então que a realidade so- te Isto' foi muito bem compreendido na concepção da socialização de
Freud. Foi enormemente substlmada nas adaptações funclonaUstas de Freud,
cial determina não somente a atividade e a consciência de Malinowskl em diante .
•• Confronte-se aqui com Henrl Bergson (especialmente sua teoria da
mas, em grau considerável, o funcionamento orgânico. durée), Maurlce Merleau-Ponty, Alfred Schutz e Jean Plaget.

238 239
mação bem como institucionalização. Assim, a socieda- se para ele a realidade dominante e definitiva. Seus li-
de oferece ao indivíduo várias explicações da causa ter mites são estabelecidos pela natureza, mas, uma vez
de comer três vezes por dia, e não todas as vezes que construído, este mundo atua de retorno sobre a nature-
tem fome, e explicações ainda mais fortes da razão pela za. Na dialética entre a natureza e o mundo socialmente
qual não deveria dormir com a irmã. Na socialização construído, o organismo humano se transforma. Nesta
secundária existem problemas semelhantes de acomoda- mesma dialética o homem produz a realidade e com isso
ção do organismo no mundo socialmente construído em- se produz a si mesmo.
bora naturalmente o grau de frustração biológica p~ova­
velmente seja menos agudo.
No indivíduo completamente socializado há uma dia-
lética interna contínua entre a identidade e seu substrato
biológico." O indivíduo continua a sentir-se como um
organismo, à parte das objetivações de si mesmo de
origem social, e às vezes contra elas. Esta dialética é
freqUentemente apreendida como luta entre um eu «su-
perior» e um eu «inferior», equiparados respectivamente
à identidade social e à animalidade pré-social, possivel-
mente anti-social. O eu «superior» tem de afirmar-se re-
petidamente sobre o «inferior», às vezes em provas crí-
ticas de força. Por exemplo, um homem tem de vencer
o instintivo medo da morte pela coragem na batalha. O
eu «inferior» neste caso é chicoteado até a submissão
, pelo «superior», afirmação de dominação sobre a subs-
trato biológico que é necessária para manter a identi-
dade social do guerreiro, objetiva e subjetivamente. De
modo semelhante, um homem pode exceder-se na execu-
ção do ato sexual, contra a resistência inerte da sacie-
dade fisiológica, a fim de manter sua identidade como
modelo de virilidade. Ainda uma vez, o eu «inferior» é
compelido a servir ao «superior». A vitória sobre o medo
e a vitória sobre o cansaço sexual ilustram a maneira
em qu~ 'O substrato biológico resiste e é derrotado pelo
eu .soclal .de~tro do homem. Não é preciso dizer que há
muItas vItÓrIas menores, realizadas rotineiramente no
, curso da vida cotidiana, assim como também há derrotas
menores e maiores.
O homem é biologicamente predestinado a construir
e habitar um mundo com, os outros. Este mundo torna-
.. Compare-se aqui com Durkhelm e P!essner, e também com Freud.

240 :l41
perdido, por uma série de razões teoricamente sem im-
portância. Esperamos ter tornado claro que a sociologia
do conhecimento pressupõe uma sociologia da lingua-
gem, e que uma sociologia d'O c'Onheciment'O sem uma
sociologia da religiã'O é impossível (e vice-versa). Além
disso, acreditamos ter mostrad'O c'Omo é p'Ossível combi-
Conclusão nar as p'Osições teóricas de Weber e Durkheim em uma
teoria geral da ação social, que não perde a lógica in-
teri'Or de nenhuma das duas. Finalmente, afirmamos que
A Sociologia do Conhecimento a ligação, por nós estabelecida aqui, entre a sociologia
e a Teoria Sociológica do conheciment'O e 'O núcleo teórico do pensament'O de
Mead e sua escola sugere uma interessante possibilidade
para o que p'Oderia ser chamad'O psicologia sociológica,
PROCURAMOS APRESENTAR NAS PÁGINAS PRECEDENTES isto é, uma psicologia que deriva suas perspectivas fun-
uma exposição geral e sistemática do papel do conheci- damentais da compreensão soci'Ológica da condição hu-
ment'O na sociedade. Evidentemente, nossas análises não mana. As observações· aqui feitas indicam um programa
são exaustivas. Mas esperamos que nossa tentativa de que parece teoricamente promissor.
desenvolver uma teoria sistemática da sociologia do co- Dito de maneira mais geral, afirmamos que a análise
nheciment'O estimulará a discussão crítica e as pzsquisas do papel d'O conheciment'O na dialética do indivíduo e da
empíricas. De uma coisa estamos seguros. A redefini- sociedade, da identidade pessoal e da estrutura social,
ção dos probfemas e tarefas da sociologia do. conheci- fornece uma perspectiva complementar essencial para to-
mento já está atrasada. Esperamos que nossas análises das as áreas da sociologia. Isto não significa certamente
indiquem o caminh'O ao 10ng'O do qual novos trabalhos negar que as análises puramente estruturais dos fenô-
possam ser realizados com proveito. menos sociais sejam inteiramente adequadas para gran-
No entant'O, nossa concepção da sociologia do conhe- des áreas da pesquisa sociológica, ind'O d'O estudo dos
cimento também contém algumas implicações gerais para pequenos grupos até o d'OS vastos complexos institucio-
a teoria sociológica e os empreendimentos sOci'Oló'gic'OS, nais, tais com'O a econ'Omia 'Ou a políticà. Nada está
fornecendo uma diferente perspectiva sobre diversas áreas mais longe de nossas intenções do que sugerir que 'O
específicas de interesse sociológico. «ângul'O» da sociologia do conhecimento deve de algum
As análises da objetivaçã'Ü, institucionalizaçã'O e legiti- mod'O ser introduzid'O em todas estas análises. Em mui-
mação aplicam-se diretamente a problemas da sociolo- t'OS casos isto seria desnecessário para a finalidade cog-
gia da linguagem, da teoria da ação e instituições sociais, n'Oscitiva visada por estes estudos. Estamos porém suge-
e da soci'Ologia da religião. Nossa compreensã'O da so- rind'O que a integração dos resultados dessas análises n'O
ciologia do conhecimento leva à c'Onclusão de que as so- c'Orpo da teoria social requer mais do que a 'Obediência
ciologias da linguagem e da religiã'O não devem ser c'On- ocasional que deve ser prestada ao dator humano», si-
sideradas especialidades periféricas, de pequen'O interesse tuado atrás dos dados estruturais patentes. Esta integra-
para a te'Oria sociológica enquant'O tal, mas podem fazer Çã'O exige a sistemática c'Onsideração da relaçã'O dialé-
contribuições essenciais para ela. Este mod'O de ver nã'O tica entre as realidades estruturais e o empre.endimento
é novo. Durkheim e sua escola já 'O possuíam, mas foi humano de construir a realidade na história.

242 243
Ao escrever este livro não tivemos intuito polêmico. cação dos processos dialéticos num quadro conceitual
Seria absurdo porém negar que nosso entusiasmo pelo congruente com as grandes tradições do pensamento
estudo atual da teoria sociológica é acentuadamente res- sociológico. A simples retórica a respeito da dialética,
trito. Em primeiro lugar, procuramos mostrar, mediante tal como aquela em que comumente se empenham os
nossa análise das relações entre os processos institucio- marxistas doutrinários, deve parecer ao sociólogo apenas
naise os universos simbólicos legitimadores, a razao como uma outra forma de obscurantismo. E contudo es-
pela qual devemos considerar as versões padronizadas tamos convencidos de que somente a compreensão da-
das explicações funcionalistas nas ciências sociais uma quilo que Marcel Mauss chamou «fato social total» pro-
prestidigitação teórica. Além disso, esperamos ter mos- tegerá o sociólogo contra as reificações distôrcivas do
trado os motivos de nossa convicção de que uma socio- sociologismo e do psicologismo. E' por oposição à si-
logia puramente estrutural corre endemicamente o pe- tuação intelectual na qual este duplo perigo se torna
rigo de reificar os fenômenos sociais. Mesmo se começa muito real, que desejamos ver compreendido nosso
modestamente por atribuir às suas construções uma con- tratado.
dição meramente heurística, com grande freqüência acaba
confundindo suas próprias conceitualizações com as leis Nosso empreendimento foi teórico. Contudo, a teoria,
do universo. em qualquer disciplina empírica, deve relacionar-se de
dupla maneira com os «dados» definidos como pertinen-
Contrastando com alguns modos dominantes de teori- tes para essa disciplina. Deve ser congruente com eles
zação na sociologia contemporânea, as idéias que nos es- e deve estar aparelhada para promover a pesquisa em-
forçamos por desenvolver não postulam nem um "siste- pírica. Há uma vasta área de problemas empíricos aber-
ma social» a-histórico nem uma «natureza humana» a- ta para a sociologia do conhecimento. Não é aqui o lu-
histórica. O enfoque por nós aqui utilizado é ao mesmo gar para fornecer um catálogo do que consideramos
tempo não-sociologista e não-psicologista. Não podemos
serem '0S mais interessantes desses problemas, e menos
concordar com a noção de que a sociologia tenha por ob- ainda para propor hipóteses específicas. Demos algumas
jeto a suposta «dinâmica» dos «sistemas» sociais psico- indicações do que temos em mente nos exemplos de
lógicos, colocados post hoc numa dúbia relação (diga-se nossa argumentação teórica. Somente acrescentaríamos
de passagem que o itinerário intelectual desses dois ter- aqui que, em nossa opinião, a pes~uis~ empírica. da re-
mos é digno de um estudo especial a ser feito pela so- lação das instituições com os UnIversos SImbólicos le-
ciologia empírica do conhecimento). gitimadores intensificará grandemente a compreensão so-
A concepção da dialética entre a realidade social e a ciológica da sociedade contemporânea: Os probl.emas a
existência individual na história não é de modo algum este respeito são numerosos. São maIs obscurecIdos do
nova. Foi sem dúvida introduzida de maneira mais po- que esclarecidos falando-s: da soc~edade ~on!e.mporânea
derosa no moderno pensamento social por Marx. O que em termos de «secularizaçao», de «Idade clenhftca», «so-
é necessário, porém, é aplicár uma perspectiva dialética ciedade de massa», ou inversamente, do «indivíduo au-
à orientação teórica das ciências sociais. Não é preciso tônomo», da «descoberta do inconsciente», e assim por
dizer que não temos em mente uma introdução doutri- diante. Estes termos indicam somente a imensidade dos
nária das idéias de Marx na teoria sociológica. Nem há problemas que exigem esclarecimento científico. Pode
qualquer finalidade na mera asserção de que a dialética admitir-se facilmente que o homem ocidental contempo-
anteriormente mencionada, de fato e em geral, existe. râneo, de modo geral, vive em um mundo extensamente
O que se precisa é passar dessa afirmativa à especifi- diferente de qualquer outro precedente. No entanto, está
244 245
longe de ser claro o que isto significa, no que se refere com surpresa, herdeiro de questões filosóficas que os
à realidade, objetiva e subjetiva, em que esses homens filósofos profissionais jA não estão mais interessados em
levam a vida cotidiana e na qual suas crises ocorrem. examinar. Em vArias secções deste tratado, especialmente
A pesquisa empírica destes problemas, por oposição à na anAlise dos fundamentos do conhecimento na vida
especulação mais ou menos inteligente, mal começou. cotidiana e no debate da objetivação e institucionaliza-
Desejaríamos que o esclarecimento da perspectiva teó- ção com referência aos pressupostos biológicos da exis-
rica da sociologia do conhecimento por nós aqui inten- tência humana, demos alguma indicação das contribui-
tada aponte problemas para essa pesquisa, que são fa- ções que o pensamento sociologicamente orientado pod~
cilmente ignorados em outras perspectivas teóricas. Da- trazer para a antropologia filosófica.
mos apenas um único exemplo. O atual interesse por Em suma, nossa concepção da sociologia do conheci-
parte dos cientistas sociais em teorias derivadas da psi- mento implica uma particular concepção da sociologia
canálise tomaria uma coloração muito diferente se essas em geral. Não implica que a sociologia não seja uma
teorias não fossem consideradas, positiva Oll negativa- ciência, que seus métodos não devam ser empíricos ou
mente, como proposições da «ciência», mas analisadas que não pode ser «livre de valores». Implica que a so-
como legitimações de uma construção da realidade, mui- ciologia toma seu lugar na companhia dos ciências que
to particular e provavelmente muito significativa na so- tratam do homem enquanto homem. Neste particular sen-
ciedade moderna. Esta análise, sem dúvida, colocaria tido, é uma disciplina humanista. Uma conseqüência
entre parênteses a questão da «validade científica» des- importante desta concepção é que a sociologia deve ser
sas teorias, e simplesmente as consideraria como dados realizada em um contínuo diAlogo com a história e a
para a compreensão da realidade subjetiva e objetiva filosofia, ou perder seu objeto próprio de pesquisa. Este
de que surgem, e que, por sua vez, influenciam. objeto é a sociedade como parte de um mundo humano,
Abstivemo-nos expressamente de seguir as implicações feito pelos homens, habitados por homens e, por sua
metodológicas de nossa concepção da sociologia do co- vez, fazendo os homens, em um contínuo processo his-
nhecimento. Deveria ficar claro, entretanto, que nosso tórico. Não é o menor dos frutos de uma sociologia hu-
enfoque não é positivista, se o positivismo for entendido manista voltar a despertar nosso maravilhamento diante
deste espantoso fenômeno.
como uma posição filosófica que define o objeto das ci-
ências sociais de modo a evitar legislar sobre seus mais
importantes problemas. Apesar disso, não subestimamos
os méritos do «positivismo», entendido em sentido am-
plo, na redefinição dos cânones da pesquisa empírica
para as ciências sociais.
A sociologia do conhecimento compreende a realidade
humana como uma realidade socialmente construída.
Como a constituição da realidade tem sido tradicional-
mente um problema central da filosofia, esta compreen-
são tem certas implicações filosóficas. Na medida em
que tem havido uma forte tendência a tornar trivial este
problema na filosofia contemporânea, com todas as ques-
tões que suscita, o sociólogo pode encontrar-se, talvez

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Os autores consideram a
sociologia do conhecimento
como parte da disciplina
empírica da sociologia. O
propósito é teórico, mas a
teorização refere-se à
disciplina empírica em seus
problemas concretos e não
à pesquisa filosófica dos
fundamentos da disciplina
empírica. Em suma, o livro
trata da teoria sociológica e
não da metodologia
da sociologia.

Os autores

Peter L. Berger é professor


na Universidade de Boston e
) ( l diretor do Instituto para o
Estudo da Cultura
Econômica na mesma
Universidade. Possui
diversos livros publicados,
entre os quais outros dois
traduzidos e editados
pela Vozes: Perspectivas
sociológicas e Rumor
de Anios.

Thomas Luckmann é
catedrático de Sociologia na
Universidade de Frankfurt. É
autor de vários outros livros,
merecendo destaque o que
escreveu em parceria com
Alfred Schultz, Strukturen
der Lebenswelt.

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