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LOUIS ALTHUSSER

POR MARX

ft
UNICAMP

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS


TRADU ÇÃ O
REITOR
JOSé TADEU JORGE Maria Leonor F. R . Loureiro
Coordenador Geral da Universidade
ALVARO PENTEADO CROSTA
REVIS Ã O T ÉCNICA
íi D I T O R A|
M á rcio Bilharinho Naves
Conselho Editorial Celso Kashiura Jr.
Presidente
EDUARDO GUIMARãES
ELINTON ADAMI CHAIM- ESDRAS RODRIGUES SILVA
GUITA GRIN DEBERT - JULIO CESAR HADLER NETO
LUIZ FRANCISCO DIAS - MARCO AURéLIO CREMASCO
RICARDO ANTUNES - SEDI HIRANO

COLE ÇÃ O MARX 21
Comissáo Editorial
ARMANDO BOITO JUNIOR ( coordenador)
ALFREDO SAAD FILHO - JOã O CARLOS KFOURI QUARTIM DE MORAES
MARCO VANZULLI - SEDI HIRANO
Conselho Consultivo
ALVARO BIANCHI - ANDREIA GALVÃ O - ANITA HANDFAS
ISABEL LOUREIRO - LUCIANO CAVINI MARTORANO
LUIZ EDUARDO MOTTA - REINALDO CARCANHOLO - RUY BRAGA |E D I T O R
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1
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográ fico da Língu;
Portuguesa de 1990. Em vigor no Brasil a partir de 2009. ft
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FICHA CATALOGR ÁFÍ CA ELABORADA PELO
SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP
DIRETÓ RIA DE TRATAMENTO DA INFORMA ÇÃ O
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:
Althusser, Louis, 1918 1990 - I
fei
AL 79p Por Marx / Louis Althusser; tradução Maria Leonor R R. Loureiro; revisão t é cnica:
-
M á rcio Bi í harinho Naves, Celso Kashiura Jr, Campinas, SP: Editora da Unicamp,
r
2015. i
1. Marx, Karl, 1818-1883.2. Comunismo. 3 Filosofia marxista . 4. Humanismo. 5. Mate¬
- i
rialismo dialético. I. Loureiro, Maria Leonor F. R. II.Tí tulo. I
CDD 335.4 !

- - - -
ISBN 978 85 268 1232 1
320.5322
144
146.3 r
I
i
índices para catálogo sistemarico:
i
!. Marx, ICarl, 1818-1883
2. Comunismo
335.4
320.5322 i Dedico estas páginas à memória de Jacques Martin ,
3. Filosofia marxista
4. Humanismo
5. Materialismo dialé tico
335.4
144
146.3
i nosso amigo , que , nas piores provas, sozinho, descobriu
a via de acesso à filosofia de Marx - e me guiou por ela.
/>. A ,

Tí tuio originai: PourMarx

© Librairie Fran çois Maspero / Editions La Découverte, Paris, France,


1965, 1996, 2005.
UNIDADE - IFCH Copyright © by Louis Althusser
N. CHAMADA Copyright © 2015 by Editora da Unicamp

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T0MS0 BC/

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CD D IS DATA S VlUldÁ
Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.2.1998.
É proibida a reprodução total ou parcial sem autorizaçã o,
por escrito, dos detentores dos direitos.

PREÇO R$ kOO
PED. Printed in Brazil.
Foi feito o depósito legal.
N° PR0T.
OSS.: , .
Bá D. TIT. Sis IV
MéDiaxH èQue
RfcPUSUQUE T RAtiÇMSE MaisondeFmn.ee

Cet ouvrage, publié dans ie cadre du Programme d’Aide à la Publication Universí tairç - PAP
Universitaire du Consulac gé né rai dc France à São Paulo, beneficie du soutien du Mí nistère français
des Affaires Étrangères et du Déveioppcment International (MAEDI ).

-
Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação Universit á ria PAP Universitário
do Consulado gerai da Fran ça em São Paulo, conta com o apoio do Ministério ff anccs das Relações
Exteriores e do Desenvolvimento Internacional ( MAEDI).
SUMÁRIO

PREFÁ CIO À EDIÇÃO BRASILEIRA 9

PREFá CIO: HOJE 13

I - OS “ MANIFESTOS FILOSÓFICOS” DE FEUERBACH 33

II - SOBRE o JOVEM MARx ” ( Questões de teoria ) 39


O problema político 40
O problema teórico 42
O problema histórico 54

III - CONTRADIçã O E SOBREDETERMINA ÇÂ O ( Notas para uma pesquisa ) 71


Anexo 92

IV - o PICCOLO , BERTOLAZZI E BRECHT ( Notas sobre um teatro


materialista ) 107

V
— os MANUSCRITOS DE 1844 DE KARL MARX ( Economia política e
filosófica ) 127

vi - SOBRE A DIALéTICA MATERIALISTA ( Da desigualdade das origens ) 133


1. Solução prática e problema teórico: Por que a teoria ? 134
.
2 Uma revolução teórica em ação 141
3. Processo da prática teórica 148
4. Um todo complexo estruturado “ já dado” 156
5. Estrutura com dominante: Contradição e sobredeterminação 162

VII - MARXISMO E HUMANISMO 183

NOTA COMPLEMENTAR SOBRE O “ HUMANISMO REAL” 203


PREF Á CIO À EDI ÇÃ O BRASILEIRA
AOS LEITORES 209
POR ALTHUSSER

Armando Boito Jr.

Em 1965, o filósofo marxista francês Louis Althusser publicava a primeira


edição de sua célebre colet ânea de ensaios à qual deu o título singelo e cortan ¬
te de Pour Marx ( Por Marx ). Os ensaios dessa coletânea propiciaram uma
ampla e diversificada renovação do marxismo. Na filosofia, na sociologia, na
economia, na ciência pol ítica, na lingu ística, na antropologia e na análise his¬
tórica, diversos autores inspiraram-se nas ideias inovadoras de Althusser para
desenvolver a teoria marxista em diferentes domínios e também para realizar
pesquisas empíricas de ponta. O trabalho de Althusser criou escola e serve até
hoje de referência fundamental para aqueles que se dedicam à tarefa de desen ¬
volver e renovar a teoria esboçada por Karl Marx.
; Neste ano de 2015, quando é comemorado o cinquentenário do lançamento
de Pour Marx , a coleção Marx 21 coloca à disposição do leitor brasileiro esta
nova tradução do livro de Althusser. O livro não é inédito no Brasil, mas a
tradução lançada pela Zahar na d écada de 1970 - que recebeu o título de
A favor de Marx - está fora de catá logo há muitos anos. Nessa nova tradu ção,
realizada por Maria Leonor Loureiro, optamos pelo título Por Marx , que nos
parece mais fiel ao estilo do título original.1

Por Marx pertence à primeira fase da obra de Althusser como filósofo mar¬
xista. Nesse período, que se situa na década de 1960, Althusser publicou, além

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PREFÁ CIO À EDI ÇÃ O BRASILEIRA
POR MARX

Éll
desse livro, a obra coletiva Lire le capital, traduzida no Brasil pela Zahar com e da ideologia na vida social, afastando-se da remota e ainda atuante tradição
o título Ler O capital e também fora de cat álogo. O trabalho dele e de seu economicista proveniente do marxismo da Segunda Internacional. Ele mostra
grupo estava voltado para o desenvolvimento do materialismo histórico e para os impasses da concepção voluntarista do processo social e histórico, desen¬
a discussão da relação do marxismo com a filosofia. Desenvolver o materia¬ volvendo o conceito de estrutura como campo que limita a prática dos agentes
lismo histórico significava trabalhar, com base na herança teórica de Marx, na sociais. Extrai dos textos de Marx a originalidade de sua concepção de dialé¬
formulação das leis que regem a reprodução da vida social e também das leis tica, para contrastá-la com a concepção, que considera simplificada, de dialé ¬
que possibilitam a mudança histórica. Esses trabalhos da década de 1960 são, tica presente na obra de Hegel. Apresenta uma leitura original dos escritos de
de longe, os seus trabalhos mais desenvolvidos e sistem á ticos e que obtiveram juventude de Marx, lan çando luz sobre a diferença irredutível que separa esses
maior repercussão. escritos da obra de maturidade do fundador do materialismo histórico. Nesse
Na d écada seguinte, Althusser, em polêmica com alguns críticos, alterou trabalho de leitura dos textos de Marx, Althusser elaborou uma de suas teses
algumas de suas teses, reabrindo a discussão sobre pares conceituais com os mais conhecidas e originais - a da ruptura epistemológica -, indicando com
quais trabalhara no período anterior - teoria e empiria, estrutura social e luta tal tese o corte que se instaura nos escritos de Marx a partir do texto A ideolo¬
de classes, ciência e ideologia. Nessa segunda fase, embora reveja alguns de gia alemã. Uma contribuição importante, e que aparece em mais de um ensaio
seus conceitos e formulações, ele permanece na problemá tica do materialismo de Por Marx , é a crítica de Althusser ao humanismo teórico. Ele detecta
histórico que era a problemá tica da fase anterior. J á na década de 1980, em a presença do humanismo idealista de Feuerbach nos escritos de 1843-1844 do
textos pouco desenvolvidos e que foram publicados apenas postumamente, Jovem Marx e indica os obstáculos epistemológicos que esse humanismo feuer-
Althusser lançou a ideia de que o mundo social e histórico seria o reino da bachiano representa para o desenvolvimento do materialismo histórico.
contingê ncia. Cunhou , ent ão, a expressão “ materialismo aleatório” , rompendo Nesse percurso polêmico e original, Althusser reelabora, desenvolve e pro¬
com a proposta inicial de desenvolver o materialismo histórico. duz conceitos que abriram novos caminhos para a teoria e a pesquisa no cam ¬
Os trabalhos da década de 1960 - a começar pelo texto fundador que é Por po do marxismo. Apresenta, por exemplo, uma nova concepção do conceito de
Marx - são, como dissemos, os mais originais, os mais desenvolvidos e os que modo de produção, pensado não mais como um conceito restrito ao terreno da
obtiveram maior impacto no mundo intelectual. Podemos arriscar a afirmação economia, mas, sim, como uma unidade complexa de diversas inst â ncias da
de que são esses os textos de Louis Althusser que irão permanecer como seu vida social ; reelabora o conceito de determinação em última instância pela
legado para a filosofia, as ciências sociais e o marxismo. economia; introduz o conceito de problemática teórica e seu correlato, que é
o conceito de ruptura epistemológica; abre espaço para se pensar a complexi ¬
dade dos processos sociais com o conceito de sobredeterminação. Esse ú ltimo
conceito propicia aos intelectuais e dirigentes do movimento operário e popu ¬
Por Marx é um livro de polêmica e de instauração. Nele, Althusser polemiza lar uma ferramenta apropriada para abordar a multiplicidade de contradições
com tendências dominantes no marxismo da d écada de 1960 e até hoje atuantes, atuantes nas diferentes conjunturas e que devem ser levadas em conta para que
produz conceitos novos e desenvolve teses inovadoras. Sem a pretensão de se possa definir a estratégia correta do movimento socialista.
exaustividade, destaquemos algumas dessas polêmicas e inovações. As polêmicas de Por Marx não sã o um assunto do passado. A recusa do
Althusser abandona e critica as teses que rebaixam o marxismo a uma cará ter científico do marxismo, o reducionismo economicista, o voluntarismo,
“ concepção de mundo” , a um mero “ guia para a ação” ou a uma simples “ cr o humanismo teórico oriundo de uma leitura ingénua dos escritos do Jovem
í¬
tica do capitalismo” . Desenvolve uma sofisticada argumentação para sustentar Marx e tantos outros alvos da crítica inteligente e fina de Louis Althusser estão
o estatuto científico da obra de Marx. O marxismo é apresentado como uma muito presentes e atuantes no marxismo brasileiro deste século. Estão presentes
ciência da sociedade e da história. O autor evidencia os erros do reducionismo e atuantes também os equívocos políticos que vêm associados a esses equívocos
economicista, argumentando sobre a importâ ncia da estrutura jurídico-política teóricos. A nova geraçã o de marxistas brasileiros poderá encontrar nessas

li
10
POR MARK

polêmicas e nos conceitos inovadores de PorMarx instrumentos eficientes para


as suas reflexões teóricas, para as suas pesquisas e para a sua orientação na luta
pelo socialismo.

Nota
i Na presente tradução, mantivemos sempre a referência às edi ções utilizadas peio próprio
autor, traduzindo do original francês os trechos citados . PREF Á CIO

HOJE

Tomo a liberdade de publicar a compilação destas notas, que saíram, durante


os ú ltimos quatro anos, em diferentes revistas. Alguns destes artigos estão
esgotados: eis a primeira razã o, de ordem prática. Se eles contêm, em sua
&: pesquisa e sua incompletude, algum sentido, este deveria advir de sua reunião:
eis minha segunda razão. Dou -os enfim pelo que são: os documentos de uma
certa história.
Estes textos nasceram, quase todos, de alguma conjuntura: reflexão sobre
uma obra, resposta a uma crítica ou objeções, análise de um espetáculo etc.
Trazem a data e a marca de seu nascimento, até em suas variações, que n ão
quis retocar. Retirei algumas passagens de polêmica demasiado pessoal; resta¬
beleci palavras, notas ou páginas que então tive de reservar, fosse para poupar
a sensibilidade de certas prevenções, fosse para reduzir meus desenvolvimentos
à medida acordada; precisei algumas referências.
Nascidos cada um de alguma ocasião particular, estes textos são, no entanto,
o produto de uma mesma época e de uma mesma história. São, à sua maneira,
testemunhos de uma singular experiê ncia, que todos os filósofos da minha
idade, e que tentaram pensar com Marx, tiveram de viver: a pesquisa do pen ¬
samento filosófico de Marx, indispensável para sair do impasse teórico a que
a história nos relegara.

12 13
POR MARX PREFÁ CIO: HOJE

A história: ela se apoderara de nossa adolescência desde a Frente Popular Escrevo estas linhas èm meu nome e como comunista, que busca em nosso
e a Guerra da Espanha, para nos imprimir, durante a Guerra nua e crua, a ter¬ passado apenas o que venha esclarecer nosso presente, em seguida iluminar
rível educação dos fatos. Ela nos surpreendera ali onde tínhamos vindo ao nosso futuro.
mundo, e dos estudantes de origem burguesa ou pequeno-burguesa que éramos, N ão evoco nem por prazer nem por azedume esse episódio, mas para o
fizera homens instru ídos da existência das classes, da luta destas e de suas sancionar com uma observação que o ultrapassa. Estávamos na idade do entu ¬
implicações. Das evidências que ela nos impusera, havíamos tirado a conclusão, siasmo e da confiança; vivíamos num tempo em que o adversário se mostrava
aderindo à organização política da classe operária, o partido comunista. implacável, falando a linguagem da injú ria para apoiar sua agressão. Apesar
Era o imediato pós-guerra. Brutalmente, fomos jogados nas grandes batalhas disso, ficamos muito tempo confundidos por essa peripécia, a que certos diri ¬
políticas e ideológicas que o Partido conduzia: precisamos então avaliar a gentes, em vez de nos segurarem na encosta do “ esquerdismo” teórico, nos
medida de nossa escolha e assumir suas consequências. arrastaram vigorosamente - sem que, aparentemente, os outros fizessem algo
Em nossa memória política, esse tempo permanece o tempo das grandes para moderá-los, nos avisar ou nos prevenir. Passávamos então a maior parte
greves e das manifestações de massa, o tempo do apelo de Estocolmo e do do tempo a militar, quando devíamos ter também defendido nosso direito e
Movimento pela Paz, quando caíram por terra as imensas esperanças nascidas nosso dever de conhecer, e de simplesmente estudar para produzir. Ou seja,
da Resistência e começou a áspera e dura luta que devia fazer recuar no ho¬ não tínhamos nem mesmo esse tempo. Ignorávamos Bogdanov e o Proletkult,
rizonte da guerra fria, repelida por in ú meros braços humanos, a sombra da e a luta histórica de Lenin contra o esquerdismo, político e teórico; ignorávamos
catástrofe. Em nossa memória filosófica, esse tempo permanece o dos intelec¬ a letra mesma dos textos da maturidade de Marx , demasiado felizes e com
tuais armados, perseguindo o erro em todos os covis, o de filósofos sem obras pressa de encontrar na chama ideológica de suas obras de juventude nossa
que éramos, mas fazendo política de toda obra, e cortando o mundo com uma própria paixão ardente. E os mais velhos do que nós? Os que tinham a respon¬
única lâmina, artes, literaturas, filosofias e ciências, com o impiedoso corte das sabilidade de nos mostrar os caminhos, como viviam também eles na mesma
classes - o tempo que em sua caricatura estas palavras resumem ainda, alta ignorância ? Toda essa longa tradição teórica, elaborada através de tantos com ¬
bandeira desfraldada no vazio: “ ciência burguesa, ciê ncia proletá ria” . bates e provas, testemunhada por tantos grandes textos, como podia ser para
Alguns dirigentes, para defender contra o furor dos ataques burgueses um eles letra morta?
marxismo então perigosamente aventurado na “ biologia” de Lyssenko, relan¬ Daí, viemos a reconhecer que, sob a proteção do dogmatismo reinante,
çaram essa velha fórmula esquerdista, que fora outrora a palavra de ordem de outra tradição negativa, esta francesa, prevalecera sobre a primeira, outra tra¬
Bogdanov e do Proletkult. Uma vez proclamada, ela dominou tudo. Sob sua dição, ou antes, o que poderíamos chamar em eco à “ Deutsche Misere” de
linha imperativa, os filósofos com que cont ávamos então n ão tiveram escolha Heine, nossa “ miséria francesa” : a ausência tenaz, profunda, de uma real cul ¬
tura teórica na história do movimento operário francês. Se o Partido Comunis ¬
a não ser entre o comentário e o silêncio, uma convicção iluminada ou coagida,
ta Francês pudera avançar a esse ponto, dando à teoria geral das duas ciências
e o mutismo do embaraço. Paradoxalmente, foi preciso nada menos que Stalin,
a forma de uma proclamação radical, se pudera fazer disso o teste e a demons¬
cujo contagioso e implacável sistema de governo e de pensamento provocava
tração de sua incontestável coragem política, é também porque vivia de magras
esses del írios, para trazer a essa loucura um pouco de razão. Entre as linhas de
reservas teóricas: as que lhe deixou de herança todo o passado do movimento
algumas páginas simples em que ele censurava o zelo daqueles que pretendiam
operário francês. De fato, sem contar os utopistas Saint Simon e Fourier, que
à força fazer da língua uma superestrutura, entrevimos que o uso do critério de
Marx gosta tanto de evocar, sem contar Proudhon , que não era marxista, e
classe não era sem limites, e que nos faziam tratar a ciência, cujo título cobria
Jaurès, que o era pouco, onde estão nossos teóricos? A Alemanha teve Marx e
até mesmo as obras de Marx, como a primeira ideologia. Foi preciso recuar, e,
Engels, e o primeiro Kautsky ; a Polónia, Rosa Luxemburgo; a R ússia, Plekha-
meio perturbados, retomar os rudimentos.
nov e Lenin; a Itália, Labriola, que (quando tínhamos Sorel!) se correspondia

14 15
POR MARX PREFáCIO: HOJE

de igual para igual com Engels, depois Gramsci. Onde estão nossos teóricos? ao mesmo tempo, suas posições de força e todos os títulos adquiridos no pas¬
Guesde, Lafargue? sado para oferecer aos intelectuais suficiente futuro e espaço, funções bastan ¬
Seria preciso toda uma análise histórica para prestar contas de uma pobre ¬
-
te honrosas, margens de liberdade e de ilusões suficientes para retê los sob sua
za, que contrasta com a riqueza de outras tradições. Sem pretender enveredar lei, e mantê-los sob o controle de sua ideologia. Salvo algumas grandes exce¬
por essa análise, fixemos ao menos algumas balizas. Uma tradição teórica ções, que foram justamente exceções, os intelectuais franceses aceitaram sua
(teoria da história, teoria filosófica), no movimento operário do século XIX e condição e não sentiram a necessidade vital de procurar a salvação ao lado da
do início do século XX, não pode prescindir das obras dos trabalhadores inte¬ classe operária; e quando aderiram a ela, não souberam desfazer-se da ideolo¬
lectuais. Foram intelectuais (Marx e Engels ) que fundaram o materialismo gia burguesa que os marcava e que sobreviveu em seu idealismo e seu refor ¬

histórico e o materialismo dialético, foram intelectuais (Kautsky, Plekhanov, mismo (Jaurès) ou em seu positivismo. Também não foi por acaso que o par ¬

Labriola, Rosa Luxemburgo, Lenin, Gramsci) que desenvolveram sua teoria. tido francês precisou consagrar corajosos e pacientes esforços para reduzir e
Não podia ser de outro modo, nem nas origens, nem muito tempo depois; não destruir o reflexo de desconfiança “ obreirista” contra os intelectuais, que ex ¬
pode ser de outro modo nem agora, nem no futuro: o que pôde mudar e muda¬ primia à sua maneira a experiência e a decepção, incessantemente renascentes,
rá é a origem de classe dos trabalhadores intelectuais, mas não sua qualidade de uma longa história. Foi assim que as formas mesmas da dominação burgue ¬

de intelectuais.1 Foi assim por razões de princípio que Lenin , depois de Kaut¬ sa privaram por muito tempo o movimento operário francês dos intelectuais
sky, nos permitiu compreender: de um lado, a ideologia “ espontâ nea” do mo¬ indispensáveis à formação de uma autêntica tradição teórica.
vimento operário não podia, entregue a si mesma, produzir senão o socialismo Será preciso acrescentar aqui ainda uma razão nacional? Ela se deve à la¬
-
utópico, o trade-unionismo, o anarquismo e o anarco sindicalismo; de outro mentá vel história da filosofia francesa nos 130 anos que se seguiram à revolu¬
lado, o socialismo marxista, supondo o gigantesco trabalho teórico de instau ¬ ção de 1789, à sua obstinação espiritualista n ão somente conservadora, mas
ração e de desenvolvimento de uma ciê ncia e de uma filosofia sem precedente, reacioná ria, de Maine de Biran e Cousin a Bergson , ao seu desprezo pela
só podia ser realizado por homens com uma profunda formação histórica, cien¬ história e pelo povo, a seus vínculos profundos e limitados com a religião, ao
tífica e filosófica, por intelectuais de grande valor. Se tais intelectuais aparece¬ seu encarniçamento contra o ú nico espírito digno de interesse que produziu,
ram na Alemanha, na Rússia, na Polónia e na Itália, seja para fundar a teoria Auguste Comte, e à sua inacreditável incultura e ignorância. Há 30 anos as
marxista, seja para se tornarem seus mestres, não foi em razão de acasos iso¬ coisas tomaram outra direção. Mas o peso de um longo século de embruteci ¬

lados: é que as condições sociais, políticas, religiosas, ideológicas e morais mento filosófico oficial contribuiu muito, também, para o esmagamento da
reinantes nesses países tornavam simplesmente impossível a atividade dos teoria dentro do próprio movimento operário.
intelectuais, a quem as classes dominantes (feudalismo e burguesia compro¬ O partido francês nasceu nessas condições de vazio teórico, e cresceu a
metidos e unidos em seus interesses de classe e apoiados nas Igrejas) não despeito desse vazio, preenchendo, o melhor possível, as lacunas existentes,
ofereciam, no mais das vezes, senão empregos servis e irrisórios. Ali, os inte¬ alimentando-se de nossa ú nica tradição nacional autêntica, pela qual Marx
lectuais só podiam procurar liberdade e futuro ao lado da classe operária, a tinha o maior respeito: a tradição política. Permanece marcado por essa tradi ¬
ú nica classe revolucionária. Na França, ao contrário, a burguesia fora revolu ¬ ção política, e, por isso, por certo desconhecimento do papel da teoria - menos,
cionária, soubera e pudera, de longa data, associar os intelectuais à revolução ali ás, da teoria pol ítica e económica que da teoria filosófica. Se conseguiu
-
que fizera, e mantê los a seu lado depois da tomada e da consolidação do poder. congregar em torno de si intelectuais célebres, foram, antes de tudo, grandes
A burguesia francesa soubera e pudera realizar sua revolu ção, uma revolução escritores, romancistas, poetas, artistas, grandes especialistas das ciências da
nítida e franca, eliminar a classe feudal da cena política (1789, 1830, 1848), natureza, e também alguns historiadores e psicólogos de alta qualidade - e
consolidar sob seu reinado na própria revolução a unidade da nação, combater sobretudo por razões políticas; mas muito raramente homens com formação
-
a Igreja, depois adotá la, porém, chegado o momento, separar-se dela, e cobrir - filosófica suficiente para considerar que o marxismo devia ser nã o só uma
-se com as palavras de ordem de liberdade e de igualdade. Ela soubera utilizar, doutrina política, um “ método” de análise e de ação, mas também, enquanto

16 17
PREF á CIO : HOJE
POR MARX

ciência, o domínio teórico de uma investigação fundamental , indispensável ao que pensavam ter contraído por não terem nascido proletários. Sartre, à sua
desenvolvimento não apenas da ciência das sociedades e das diversas “ ciências maneira, pode servir-nos de honesta testemunha a esse batismo da história: nós
humanas” , mas também das ciências da natureza e da filosofia. O partido fran ¬ também fomos de sua raça; e é sem d ú vida um ganho dos tempos que nossos
cês precisou nascer e crescer nessas condições, sem a herança e o auxílio de camaradas mais jovens pareçam livres dessa Dívida, que pagam talvez de
uma tradição nacional teórica , e, o que é sua decorrência inevitável, sem uma outra maneira. Filosoficamente falando, nossa geração sacrificou-se, foi sacri ¬
escola teórica da qual pudessem sair mestres. ficada nos combates unicamente políticos e ideológicos, quero dizer: sacrifi ¬
Tal é a realidade, fomos obrigados a aprender, e a aprender sozinhos. So ¬
cada em suas obras intelectuais e científicas. Muitos cientistas, e às vezes
zinhos, pois não tivemos entre nós, em filosofia marxista, verdadeiros e gran ¬
mesmo historiadores, ou até alguns raros literatos, puderam safar-se, sem danos
des mestres para guiar-nos os passos. Politzer, que poderia ter sido um, se não ou evitando o pior. Não havia saída para um filósofo. Se escrevia ou falava de
tivesse sacrificado a grande obra filosófica que trazia em si a tarefas económi¬ filosofia para o partido, estava limitado aos comentários e a pequenas variações
cas urgentes, deixara-nos apenas os erros geniais de sua Crítica dos funda¬ no uso interno das Célebres Citações. Não tínhamos audiência entre nossos
mentos da psicologia. Morrera, assassinado pelos nazistas. Não tínhamos pares. O adversário jogava-nos na cara que não passávamos de políticos; nos ¬
mestres. Não falo dos homens de boa vontade nem de espíritos muito cultos, sos colegas mais esclarecidos, que devíamos começar por estudar nossos au ¬
,

eruditos, letrados e outros. Falo de mestres de filosofia marxista, saídos de tores, antes de julgá-los, e por justificar objetivamente nossos princípios antes
nossa história, acessíveis e próximos de nós. Esta ú ltima condição não é um de proclamá-los e aplicá-los. Para incitar os melhores de seus interlocutores a
detalhe supérfluo. Pois herdamos, ao mesmo tempo que esse vazio teórico do lhes dar ouvidos, certos filósofos marxistas viram-se constrangidos, e cons¬
nosso passado nacional, esse monstruoso provincianismo filosófico e cultural trangidos por um movimento natural no qual nã o entrava nenhuma t ática
( nosso chauvinismo) que nos faz ignorar as línguas estrangeiras e praticamen - refletida,, a se disfarçar - a disfarçar Marx de Husserl, Marx de Hegel, Marx
te desconsiderar o que se pode pensar e produzir para além de uma cadeia de de Jovem Marx ético ou humanista -, com o risco de confundir num momento
montanhas, do curso de um rio ou do espaço de um mar. Será um acaso que o ou noutro a máscara e o rosto. Não exagero, conto os fatos. Vivemos ainda hoje
estudo e o comentário das obras de Marx tenham permanecido tanto tempo suas consequências. Est ávamos política e filosoficamente convencidos de ter
entre nós obra de alguns germanistas corajosos e tenazes? Que o único nome aportado na ú nica terra firme do mundo, mas sem saber demonstrar filosofica¬
que podemos expor além de nossas fronteiras é o de um pacífico herói solitᬠmente sua existência e firmeza; em verdade, já ninguém acreditava que tínha ¬

rio, que, ignorado peia Universidade Francesa, prosseguiu, durante anos, mi¬ mos terra firme sob os pés e não apenas convicções. Não falo da irradiação do
nuciosos estudos sobre o movimento neo-hegeliano de esquerda e o Jovem marxismo, que felizmente pode nascer de outras esferas que não a do astro
Marx: Auguste Comu ? filosófico; falo da existência paradoxalmente precária da filosofia marxista
Essas reflexões podiam esclarecer-nos sobre nossa pen úria, mas não aboli- como tal. Nós, que pensá vamos deter os princípios de toda filosofia possível,
-la. É a Stalin que devemos, no seio do mal cujo maior responsável é ele, o e da impossibilidade de toda ideologia filosófica, não conseguíamos sustentar
primeiro choque. É à sua morte que devemos o segundo choque - à sua morte a prova objetiva e pú blica da apodicticidade de nossas convicções.
e ao XX Congresso. Mas, entrementes, a vida entre nós também fizera sua obra. Uma vez posta à prova a vacuidade teórica do discurso dogmático, restava
Não se cria, de um dia para o outro ou por simples decreto, nem uma orga ¬ à nossa disposição um único meio para assumir a impossibilidade de pensar
nização política, nem uma verdadeira cultura teórica. Quantos, entre os jovens verdadeiramente nossa filosofia: pensar a própria filosofia como impossível .
filósofos chegados à idade adulta com a guerra ou o pós-guerra, se tinham Conhecemos então a grande e sutil tentação do “ fim da filosofia” de que nos
consumido em tarefas políticas extenuantes, sem tempo para o trabalho cien ¬ falavam textos enigmaticamente claros da Juventude (1840-1845) e do corte
tífico! É também um traço de nossa história social que os intelectuais de origem (1845) de Marx. Os mais militantes e os mais generosos chegavam ao “ fim da
pequeno-burguesa que vieram então para o partido se sentissem obrigados a filosofia” por sua “ realização” , e celebravam a morte da filosofia na ação, em
quitar com pura atividade, senão com ativismo político, a Dívida imaginária sua realização política e sua realização prolet ária, pondo sem reserva a seu

18 19
POR MARX PREFá CIO: HOJE

serviço as famosas “ Teses sobre Feuerbach” , em que uma linguagem teorica ¬ no mais do que realizar sua morte cr ítica no reconhecimento do real, e na
mente equ ívoca opõe a transformação do mundo à sua explicação. Da í ao volta ao próprio real, o real da história , mãe dos homens, de seus atos e pen ¬
pragmatismo teórico não havia, jamais há, senão um passo. Outros, de espírito samentos. Filosofar era recomeçar por nossa vez a odisseia crítica do Jovem
mais científico, proclamavam o “ fim da filosofia” no estilo de certas fórmulas Marx, atravessar a camada de ilusões que nos oculta o real, e tocar na ú nica
positivistas de A ideologia alemã, onde não são mais o proletariado e a ação terra natal: a da história, para lá encontrar enfim o repouso da realidade e da
revolucioná rios que se encarregam da realização, logo, da morte da filosofia, ciência em harmonia sob a perpétua vigil â ncia da cr í tica. Nessa leitura, não
mas a ciência pura e simples: Marx não nos incita a cessar de filosofar, ou seja, há mais história da filosofia: E como poderia existir uma história dos fantasmas
de desenvolver devaneios ideológicos, para passar ao estudo da própria rea¬ dissipados, uma história das trevas percorridas? Só existe a história do real,
lidade? Politicamente falando, a primeira leitura era a da maioria de nossos i que pode silenciosamente fazer surgir no adormecido incoerências sonhadas,
-
filósofos militantes que, entregando se totalmente à política, faziam da filoso ¬ sem que jamais seus sonhos, ancorados na continuidade dessa profundeza,
fia a religião de sua ação; a segunda leitura, ao contrário, era a dos críticos, que possam compor efetivamente o continente de uma história. N’A ideologia ale ¬

esperavam do discurso científico acabado que ele cobrisse as proclamações mã , o próprio Marx nos dissera: “ A filosofia não tem história” . Quando se ler
vazias da filosofia dogmática. Mas uns e outros, se se punham em paz ou em o texto “ Sobre o Jovem Marx” , julgar-se-á se ele não está ainda preso, em
segurança com a política, pagavam-no forçosamente com m á consciê ncia a parte, a essa esperança mítica de uma filosofia que atinge seu fim filosófico na
-
respeito da filosofia: uma morte pragmático religiosa, uma morte positivista morte contínua da consciência crítica.
da filosofia não são verdadeiramente mortes filosóficas da filosofia.
-
Empenhamo nós então em dar à filosofia uma morte digna dela: uma mor¬
te filosófica. Ainda a esse respeito, apoiávamo-nos noutros textos de Marx, e
numa terceira leitura dos primeiros. Avançávamos a partir do entendimento de Se evoco tais pesquisas e tais escolhas, é porque, à sua maneira, elas têm a
que o fim da filosofia não pode ser, como o subtítulo d' 0 capital proclama marca de nossa história. E é também porque o fim do dogmatismo stalinista
quanto à Economia Política, senão cr í tica: que é preciso ir às coisas mesmas, não as dissipou como simples reflexos de circunstância, porque elas ainda são
acabar com a ideologia filosófica, e empenhar-se no estudo do real, mas , e era nossos problemas. Aqueles que imputam a Stalin, além de seus crimes e seus
o que parecia nos proteger do positivismo, voltando-nos contra a ideologia, a erros, o conjunto de nossas decepções, de nossos erros e de nossos infortú nios,
qual víamos constantemente ameaçar “ a inteligência das coisas positivas” , em qualquer domínio , correm o risco de vir a ficar muito desconcertados ao
sitiar as ciências, turvar os fatos reais. Confiávamos então à filosofia a perpétua constatarem que o fim do dogmatismo filosófico n ão nos devolveu a filosofia
redu ção crítica das ameaças da ilusão ideológica, e, para lhe confiar essa tare¬ marxista em sua integridade. Afinal , n ão se pode libertar, nem mesmo do dog¬
fa, fazíamos da filosofia a pura e simples consciência da ciência, reduzida em matismo, senão aquilo que existe. O fim do dogmatismo produziu uma real
tudo à letra e ao corpo da ciência, mas simplesmente virada do avesso, como liberdade de pesquisa, e também uma febre, em que alguns têm um pouco de
sua consciência vigilante, sua consciência do exterior, para esse exterior ne¬ pressa de declarar filosofia o comentário ideológico de seu sentimento de liber ¬

-
gativo, para reduzi lo a nada. Era o fim da filosofia, visto que todo seu corpo e tação e de seu gosto pela liberdade. As febres caem tão seguramente quanto as
seu objeto se confundiam com o da ciência, e, no entanto, ela subsistia, como pedras. O que o fim do dogmatismo nos devolveu foi o direito* de fazer a con ¬

sua consciência cr ítica evanescente , apenas o tempo de projetar a essência ta exata do que possu ímos, chamar pelo nome nossa riqueza e nossa pen ú ria,
positiva da ciência sobre a ideologia ameaçadora, apenas o tempo de destruir pensar e colocar em voz alta nossos problemas e empreender com rigor uma
os fantasmas ideológicos do agressor, antes de retomar seu lugar, reencontrar os verdadeira pesquisa. Seu fim permitiu sair em parte de nosso provincianismo
seus. Essa morte crítica da filosofia, idêntica à sua existência filosófica evanes¬ teórico, reconhecer e conhecer aqueles que existiram e existem exteriormente
cente , dava -nos enfim as razões e as alegrias de uma verdadeira morte filosó¬ a nós, e, vendo esse exterior, começar a ver- nos a nós mesmos do exterior,
cr .
fica, realizada no ato ambíguo da ítica A filosofia ent ão não tinha por desti - conhecer o lugar que ocupamos no conhecimento e na ignorância do marxismo,

20 21
POR MARX
PREFá CIO : HOJE

e assim começar a nos conhecermos. O fim do dogmatismo nos colocou diante


que devia naturalmente conduzir-me a começar a estudar, no detalhe de seus
desta realidade: a filosofia marxista, fundada por Marx no ato mesmo da fun ¬
respectivos conceitos, a natureza das relações da filosofia de Hegel com a filo¬
dação de sua teoria da história, está ainda em grande parte por constituir, visto
sofia de Marx. A questão da diferença específica da filosofia marxista tomou
que, como dizia Lenin, só as pedras angulares foram colocadas; as dificuldades
assim a forma da questão de saber se existia ou nã o, no desenvolvimento
teóricas, nas quais nós nos debatêramos na noite do dogmatismo, não eram
intelectual de Marx, um corte epistemológico marcando o surgimento de uma
totalmente dificuldades artificiais, mas se deviam também em grande parte ao
nova concepção da filosofia - e a quest ão correlativa do lugar preciso desse
estado de não elaboração da filosofia marxista; melhor, nas formas í rgidas e corte. Foi no campo dessa questão que o estudo das obras de juventude de Marx
caricaturais que havíamos suportado ou mantido, e at é na monstruosidade teó¬
tomou uma importância teórica (existência do corte?) e histórica (lugar do
rica das duas ciências, algo de um problema não resolvido estava, com uma
corte?) decisiva.
presença cega e grotesca, realmente presente, bastam-me como testemunhas Evidentemente, não se podia aceitar, para afirmar a existência de um corte
as obras do esquerdismo teórico (o jovem Lukács e Korsch) recém-publicadas; e definir seu lugar, senão como uma declaração a ser testada, para infirmar ou
e, finalmente, nosso destino e nossa tarefa hoje é simplesmente colocar e en ¬ confirmar, a frase pela qual Marx atesta e situa esse corte ( “ a liquidação
frentar esses problemas à luz do dia, se queremos dar um pouco de existência
de nossa consciência de outrora” ) em 1845 no âmbito d’A ideologia alemã.
e de consistência teórica à filosofia marxista.
Para experimentar os teores dessa declaração, era preciso uma teoria e um
método - era preciso aplicar ao próprio Marx os conceitos teóricos marxistas
com os quais pode ser pensada a realidade das formações teóricas em geral
II (ideologia filosófica , ciência). Sem a teoria de uma história das formações
teóricas, não se poderia efetivamente apreender e estabelecer a diferença espe¬
Permitam-me indicar a que caminho levam as notas que se seguem. cífica que distingue duas formações teóricas diferentes. Acreditei poder, para
O texto “ Sobre o Jovem Marx” , ainda preso ao mito de uma filosofia cr
ítica esse fim, tomar emprestado de Jacques Martin o conceito de problemática para
evanescente, continha, no entanto, a questão essencial, que nossas experiências, designar a unidade específica de uma formação teórica e, por conseguinte, o
nossos fracassos e nossas impotências haviam feito se levantar em nós: em que lugar determinado dessa diferença específica, e de G. Bachelard o conceito de
ponto está a filosofia marxista? Ela tem teoricamente direito à existência? E corte epistemológico para pensar a mutação da problemática teórica contem ¬

se existe por direito, como definir sua especificidade? Essa questão essencial porânea da fundação de uma disciplina científica. Que fosse preciso construir
achava-se colocada praticamente numa questão de aparência histórica, mas que um conceito e tomar outro emprestado não implicava que esses dois conceitos
é, na realidade, teórica: a questão da leitura e da interpretaçã o das obras de fossem arbitrários ou exteriores a Marx; muito pelo contrário, pode-se demons¬
juventude de Marx. Não foi por acaso que pareceu indispensá vel submeter a trar que estão presentes e em ação no pensamento científico de Marx, mesmo
um exame cr ítico sério esses textos famosos com os quais se defenderam todas que sua presença fique na maior parte do tempo em estado prático.2 Nesses dois
as bandeiras e todos os usos, esses textos abertamente filosóficos nos quàis conceitos, eu estabelecera o mínimo teórico indispensável para autorizar uma
acreditáramos, mais ou menos espontaneamente, ler a filosofia de Marx em análise pertinente do processo da transformação teórica do Jovem Marx, e para
!
pessoa. Coloca'r a questão da filosofia marxista e de sua especificidade no to¬ chegar a algumas conclusões precisas.
cante às obras de juventude de Marx era necessariamente colocar a questão das Permitam-me resumir aqui, de forma extremamente sumária, alguns resul¬
relações de Marx com as filosofias que ele desposara ou percorrera, as de tados de um estudo que se estendeu por longos anos e dos quais os textos que
Hegel e de Feuerbach, logo, colocar a questão de sua diferença. publico são apenas testemunhos parciais.
Foi o estudo das obras de juventude de Marx que me levou inicialmente à 1 - Um corte epistemológico inequ ívoco intervém, na obra de Marx, no
leitura de Feuerbach e à publicação de seus textos teóricos mais importantes ponto em que o próprio Marx o situa, na obra n ão publicada em vida, que
do per -
íodo 1839-1845 (cf . meus considerandos pp. 33 38). Foi essa mesma razão constitui a crítica de sua antiga consciência filosófica (ideológica): A ideologia

22
23
POR MARX PREFá CIO: HOJE

alemã. As “ Teses sobre Feuerbach” , que são apenas algumas frases, marcam (c) Proponho designar as obras do período 1845-1857 pela expressão nova:
a borda anterior extrema desse corte, o ponto onde, na antiga consciência e na Obras da maturação. Se podemos efetivamente atribuir ao corte que separa o
antiga linguagem, portanto em fórmulas e conceitos necessariamente desequi¬ ideológico (anterior a 1845) do científico (posterior a 1845) a data crucial das
librados e equívocos, aponta já a nova consciência teórica. obras de 1845 (‘Teses sobre Feuerbach” , A ideologia alemã ), devemos ter em
2 - Esse corte epistemológico refere-se conjuntamente a duas disciplinas conta que sua mutação não pôde produzir de imediato, em uma forma acabada
teóricas distintas. Foi fundando a teoria da história (materialismo histórico) e positiva, a problemática teórica nova que ela inaugura, tanto na teoria da
que Marx, num único e mesmo movimento, rompeu com sua consciência ideo¬ história quanto na teoria da filosofia. A ideologia alemã é, com efeito, o co¬
lógica anterior e fundou uma nova filosofia (materialismo dialético). Retomo mentário quase sempre negativo e crítico das diferentes formas da problemá ¬

expressamente a terminologia consagrada pelo uso (materialismo histórico, tica ideológica rejeitada por Marx. Um longo trabalho de reflexão e de elabo ¬

materialismo dialético), para designar essa dupla fundação num ú nico corte. ração positivas foi necessário, longo período que Marx empregou a produzir,
E assinalo dois problemas importantes inscritos nessa condição excepcional. modelar e fixar uma terminologia e uma sistemática conceituais adequadas a
Que uma nova filosofia tenha nascido da fundação mesma de uma ciência, e seu projeto teórico revolucionário. Foi pouco a pouco que a nova problemá tica
que essa ciência seja a teoria da história, coloca naturalmente um problema revestiu sua forma definitiva. É por essa razão que proponho designar as obras
capital: por qual necessidade de princípio a fundação da teoria científica da posteriores a 1845 e anteriores aos primeiros ensaios de redação d’ O capital
história devia implicar e envolver ipso facto uma revolução teórica na filosofia? .
(por volta de 1855-1857), portanto o Manifesto , Miséria da filosofia Salário ,
A mesma circunstância acarretava também uma consequência prática que não preço e lucro etc., as Obras da maturação teórica de Marx.
pode ser negligenciada: a nova filosofia estava tão bem implicada pela e na (d) Proponho então designar todas as obras posteriores a 1857: Obras da
nova ciência, que poderia ser tentada a confundir-se com ela. A ideologia ale¬ maturidade.
mã consagra mesmo essa confusão, fazendo da filosofia, como notáramos, Teríamos assim a seguinte classificação:
apenas a frágil sombra projetada pela ciência, ou até a generalidade vazia do 1840-1844: Obras da juventude.
positivismo. Essa consequência prática é uma das chaves da história singular 1845: Obras do corte.
da filosofia marxista, de suas origens aos nossos dias. 1845-1857: Obras da maturação.
Examinarei em breve esses dois problemas. 1857-1883: Obras da maturidade.
3 - Esse “ corte epistemológico” divide assim o pensamento de Marx em
dois grandes períodos essenciais: o período ainda “ ideol ógico” , anterior ao -
4 - 0 período das Obras da juventude de Marx ( 1840 1845), ou seja, de suas
corte de 1845, e o período “ científico” , posterior ao corte de 1845. Esse segundo -
obras ideológicas, pode também subdividir se em dois momentos:
período pode, igualmente, ser dividido em dois momentos, o momento da ma ¬ (a) o momento racionalista-liberal dos artigos da Gazeta Renana (até 1842),
turação teórica e o momento da maturidade teórica de Marx. Para facilitar o -
(b) o momento racionalista comunitário dos anos 1842-1845.
trabalho filosófico e histórico que nos aguarda, gostaria de propor uma termi ¬ Como indico rapidamente no texto “ Marxismo e humanismo” , as obras do
nologia provisória, que registra essa periodização. -
primeiro momento supõem uma problemática de tipo kantiano fichtiano. Os
(a ) Proponho designar as obras do primeiro período, logo, todos os textos textos do segundo momento repousam, ao contrário, sobre a problemática an ¬
de Marx, de sua tese de doutorado aos Manuscritos de 1844 e inclusive A sa¬ tropológica de Feuerbach. A problemática hegeliana inspira um texto absolu ¬
grada família, pela expressão já consagrada: Obras da juventude de Marx. tamente ú nico, que tenta de maneira rigorosa operar, em sentido estrito , a
(b) Proponho designar os textos do corte de 1845, ou seja, as “ Teses sobre “ inversão” do idealismo hegeliano no pseudomaterialismo de Feuerbach: são
Feuerbach” , e A ideologia alemã, onde aparece pela primeira vez a nova pro¬ os Manuscritos de 1844. Daí este resultado paradoxal: desconsiderando o exer¬
blemática de Marx, mas quase sempre de uma forma ainda parcialmente nega ¬ cício ainda escolar da tese de doutorado e à exceção do praticamente ú ltimo
tiva e fortemente polêmica e crítica, pela expressão nova: Obras do corte. texto de seu per -
íodo ideológico filosófico, o Jovem Marx nunca foi hegeliano ,

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POR MARX
PREFá CIO: HOJE

e sim inicialmente kantiano-fichtiano, em seguida feuerbachiano. A tese, fre


equívocos. Não se rompe de um só golpe com um passado teórico: são sempre
¬

quentemente difundida, do hegelianismo do Jovem Marx, em geral, é portanto


necessárias palavras e conceitos para romper com palavras e conceitos, e são
um mito. Em contrapartida, na véspera da ruptura com sua “ consciê ncia filo¬
frequentemente as antigas palavras as encarregadas do protocolo da ruptura,
sófica de outrora” , tudo acontece como se Marx tivesse produzido, recorrendo
enquanto perdura a busca por novas. A ideologia alemã nos dá assim o es¬
a Hegel pela ú nica vez na sua juventude, uma prodigiosa “ ab-reação” teórica
petáculo de conceitos aposentados recolocados em serviço enquanto os novos
indispensá vel à liquidação de sua consciência “ delirante” . Até então, ele n ão
ainda estão em preparação... e como é normal julgar esses antigos conceitos
cessara de se distanciar de Hegel, e para compreender o movimento que o fi ¬
pela aparência, tomá-los ao pé da letra , é fácil perder-se numa concepção quer
zera passar dos estudos universitários hegelianos a uma problemática kantiano-
positivista (fim de toda filosofia), quer individualista-humanista do marxismo
fichtiana, depois a uma problem á tica feuerbachiana, seria preciso dizer que,
(os sujeitos da história são “ os homens concretos, reais” ). Ou , ainda, pode-se
em vez de se aproximar dele, Marx não cessara de se afastar de Hegel . Com
cair na armadilha do papel ambíguo da divisão do trabalho , que desempenha
Fichte e Kant, retornava ao fim do século XVIII, e, com Feuerbach, regressava
nesse texto o papel principal, desempenhado nos textos de juventude pela alie¬
ao â mago do passado teórico desse século, se é verdade que, à sua maneira, nação, e que comanda toda a teoria da ideologia e toda a teoria da ciência. Por
Feuerbach pode representar o fil ósofo “ ideal” do século XVIII , a síntese do
todas essas razões, que têm a ver com a proximidade imediata do corte,
materialismo sensualista e do idealismo ético-histórico, a uni ão real de Diderot
A ideologia alemã exige todo um trabalho cr ítico para distinguir a. função teó¬
e de Rousseau. Não se pode deixar de perguntar se, no brusco e total ú ltimo
rica supletiva de certos conceitos desses mesmos conceitos. Voltarei a isso.
retorno a Hegel dos Manuscritos de 1844, nessa síntese genial de Feuerbach e
6 - Situar o corte em 1845 não deixa de ter consequências teóricas impor¬
de Hegel , Marx não reuniu, como numa experiência explosiva, os corpos dos
tantes no tocante não só à relação de Marx com Feuerbach, mas també m à
dois extremos do campo teórico que percorrera até então, e se não foi nessa
relação de Marx com Hegel. Com efeito, não é somente depois de 1845 que
experiê ncia de extraordinário rigor e consciência, na mais radical prova da
Marxdesenvolve uma crítica sistemática de Hegel, mas desde o segundo mo-
“ inversão” de Hegel jamais tentada, nesse texto que nunca publicou , que Marx
meá to de seu período de juventude, como se pode ver na cr ítica da filosofia do
viveu e realizou na prática sua transformação. Se se quiser chegar a alguma
Estado de Hegel (Manuscrito de 1843), no pref ácio à Cr í tica da filosofia do
ideia da lógica dessa prodigiosa mutação, é na extraordiná ria tensão teórica
direito de Hegel (1843), nos Manuscritos de 1844 e n’A sagrada família. Ora,
dos Manuscritos de 1844 que seria preciso procurá-la, sabendo de antem ão que
essa cr ítica a Hegel n ão é outra coisa senão, nos seus princí pios teóricos , a
o texto da quase ú ltima noite é paradoxalmente o mais afastado, teoricamente j retomada, o comentário, ou o desenvolvimento e a extensão, da admirável
falando, do dia que ia nascer.
crítica a Hegel formulada várias vezes por Feuerbach. É uma crítica da filoso ¬

5 - As Obras do corte colocam problemas de interpretação delicados em


fia hegeliana como especulação, como abstração, uma cr ítica conduzida em
função de seu lugar na formação teórica do pensamento de Marx. Os breves
nome dos princípios da problemática antropológica da alienação; uma crítica
clarões das “ Teses sobre Feuerbach” inundam de luz todos os filósofos que
que recorre do abstrato-especulativo ao concreto-materialista, ou seja, que per¬
delas se aproximam, mas todos sabem que um clarão ofusca mais do que ilu ¬
manece serva da problemática idealista da qual se quer libertar; uma cr ítica
mina, e que nada é mais dif ícil de situar no espaço da noite do que um relâ m ¬
que pertence então, de fato, à problemática teórica com a qual Marx vai romper
pago que a atravessa. Um dia será preciso tornar visível o enigmático dessas
em 1845.
onze teses falsamente transparentes. J á A ideologia alemã nos oferece um
Compreende-se que importa para a pesquisa e a definição da filosofia mar¬
pensamento em estado de ruptura com seu passado, derrubando impiedosa
xista não confundir a cr ítica marxista a Hegel com a cr ítica feuerbachiana a
e criticamente todos os seus antigos pressupostos teóricos: primeiro, Hegel e
Hegel, mesmo que Marx a retome em seu nome. Pois, segundo se declare ou
Feuerbach, todas as formas de uma filosofia da consciência e de uma filosofia
não verdadeiramente marxista a cr ítica (de fato, feuerbachiana de ponta a pon-
antropológica. Entretanto, esse novo pensamento, t ão firme e preciso na inqui ¬
rição do erro ideológico, nã o se define a si mesmo sem dificuldades, nem sem
-
ta ) a Hegel, exposta por Marx nos textos de 1843, far se-á uma ideia muito
diferente da natureza ú ltima da filosofia marxista. Assinalo isso como um ponto

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27
PREFáCIO: HOJE
POR MARX

-
decisivo nas interpretações atuais da filosofia marxista; refiro me às interpre¬ objeto à prova, se põe à prova de seu objeto. Que o marxismo possa e deva ser
tações sérias, sistem áticas, baseadas em conhecimentos filosóficos, epistemo- ele mesmo o objeto da questão epistemológica e que essa questão epistemoló¬
lógicos e históricos reais, e em métodos de leitura rigorosos - e não simples gica só possa ser feita em função da problemática teórica marxista são pontos
opiniões, das quais também se podem fazer livros. Por exemplo, a obra, a meu absolutamente necessários para uma teoria que se define dialeticamente n ão
-
ver tão importante, de Delia Volpe e Colletti, na Itália tão importante porque 1 apenas como ciência da história (materialismo histórico), mas também e simul¬
é a ú nica até hoje a pôr conscientemente no centro de suas pesquisas a distin ¬ taneamente como filosofia, capaz de explicar a natureza das formações teóricas,
ção teórica irreconciliável que separa Marx de Hegel e a definição da especifi ¬ e de sua história , portanto capaz de dar conta de si mesma , tomando-se a si
cidade própria da filosofia marxista -, essa obra supõe a existência de um mesma por objeto. O marxismo é a ú nica filosofia que enfrenta teoricamente
corte entre Hegel e Marx, entre Feuerbach e Marx, mas situa esse corte em esse teste.
1843, no pref ácio à Crítica da filosofia do direito de Hegel\ Esse simples des¬ Todo esse trabalho crítico é, portanto, indispensável não só para poder ler
locamento do corte repercute profundamente nas consequências teóricas que Marx de outro modo que não uma leitura imediata, presa quer nas falsas evi¬
dele se tiram, e n ão apenas na concepção da filosofia marxista, mas também, d ências dos conceitos ideológicos da juventude, quer nas falsas evid ências,
como se verá numa próxima obra, na leitura e na interpretação d' O capital. talvez ainda mais perigosas, dos conceitos aparentemente familiares das Obras
do corte . Esse trabalho necessá rio para ler Marx é, ao mesmo tempo, no sen ¬

tido estrito, o trabalho de elaboração teórica da filosofia marxista. A teoria que


permite ver claramente em Marx, distinguir a ciência da ideologia, pensar a
Eu me permiti essas observações para esclarecer o sentido das páginas diferença destas em sua relação histórica; pensar a descontinuidade do corte
consagradas a Feuerbach e ao Jovem Marx, e para tornar perceptível a unidade epistemológico no contínuo de um processo histórico; a teoria que permite
do problema que domina estas Notas, visto que também é ainda a definição da distinguir uma palavra de um conceito; distinguir a existência ou a não exis¬
especificidade irredutível da teoria marxista que está em jogo nos ensaios sobre tência de um conceito sob uma palavra; discernir a existência de um conceito
a contradição e sobre a dialética. pela função de uma palavra no discurso teórico; definir a natureza de um con ¬
Que tal definição não se possa ler diretamente nos textos de Marx, que todo ceito por sua função na problemática, e, portanto, pelo lugar que ele ocupa no
um aparato crítico prévio seja indispensável para identificar o lugar de resi¬ sistema da “ teoria” - essa teoria que é a ú nica a permitir uma autêntica leitura
dos textos de Marx, uma leitura ao mesmo tempo epistemológica e histórica,
1

d ência dos conceitos próprios de Marx em sua maturidade; que a identificação


desses conceitos seja uma e a mesma coisa que a identificação de seu lugar; não é efetivamente senão a própria filosofia marxista.
que todo esse trabalho cr ítico, pré-requisito absoluto de toda interpretação, Partíramos à sua procura. E eis que ela começa a nascer com sua primeira
suponha a aplicação de um mínimo de conceitos teóricos marxistas provisórios, exigência elementar: a simples definição das condições de sua procura.
abordando a natureza das formações teóricas e sua história; que a leitura de
Marx tenha então como condição pré via uma teoria marxista da natureza di ¬
Março de 1965
ferencial das formações teóricas e de sua história, ou seja, uma teoria da his¬
tória epistemológica, que é a própria teoria marxista; que essa operação cons¬
titui em si um círculo indispensável, em que a aplicação da filosofia marxista Observaçõ es
a Marx aparece como a condição prévia absoluta da inteligência de Marx e, ao
mesmo tempo, como a condição mesma da constituição e do desenvolvimento 1. Sobre a terminologia adotada
da filosofia marxista, isso é claro. Mas o círculo dessa operação n ão é, como .

todo círculo desse gênero, senão o círculo dialético da pergunta feita a um Pode-se notar, nos artigos que se vão ler, algumas variações sobre a termino¬
objeto sobre sua natureza, a partir de uma problemática teórica que, pondo seu logia adotada.

28 29
PREFáCIO: HOJE
POR MARX

Em particular o artigo sobre a Dialética materialista propõe o termo Teoria O artigo “ Notas sobre um teatro materialista” [“ Notes sur un théâtre maté-
(com maiuscula) para designar a “ filosofia” marxista (o materialismo dialético) rialiste” ] saiu em Esprit de dezembro de 1962.

—e reserva o termo filosofia às filosofias ideológicas. É nesse sentido de for¬


mação ideológica que o termo filosofia é empregado já no artigo “ Contradição
A crónica filosófica “ Os ‘Manuscritos de 1844” ’ [“ Les ‘Manuscrits de
1844’ ” ] saiu em La Pensée de fevereiro de 1963.
e sobredeterminação” . O artigo “ Sobre a dialética materialista” [“ Sur la dialectique matérialiste” ]
Essa terminologia, que distingue a filosofia (ideológica) da Teoria (ou filo¬ saiu em La Pensée de agosto de 1963.
sofia marxista constituída em ruptura com a ideologia filosófica) pode apoiar- O artigo “ Marxismo e humanismo” [“ Marxisme et humanisme” ] saiu nos
-se em várias passagens de Marx e de Engels. N’A ideologia alemã, Marx fala Cahiers deVISEA de junho de 1964.
sempre da filosofia como de uma pura e simples ideologia. Em seu primeiro A “ Nota complementar sobre o humanismo ‘real’” [“ Note complémentaire
-
pref ácio ao Anti Dtihring (Ed. Sociales, p. 445), Engels escreve: sur Thumanisme ‘réel’ ” ] saiu em La Nouvelle Critique de março de 1965.
Quero agradecer aos senhores diretores das revistas, que muito cortesmente
Se os teóricos são semiconhecedores na área das ciências da natureza, os especia¬ me autorizaram a compilar esses textos no presente volume.
listas atuais dessas ciências o são realmente de igual modo no domínio da teoria, o
domínio do que se chamava até agora a filosofia. L. A.

Essa observação prova que Engels sentira a necessidade de inscrever numa


diferença de terminologia a diferença que separa as filosofias ideológicas do Notas
projeto filosófico absolutamente novo de Marx. Propunha registrar essa dife¬
rença designando a filosofia marxista pelo termo teoria. -
1 Evidentemente, o termo intelectuais designa um tipo muito específico e, em muitos aspectos,

Todavia, uma coisa é uma terminologia nova bem fundamentada e outra - .


inédito de intelectuais militantes São verdadeiros eruditos, armados com a cultura científi -
cá e teórica mais autêntica, instruídos sobre a realidade esmagadora e os mecanismos de todas
coisa sua manipulação e sua difusão reais. Parece difícil impor, contra um as formas da ideologia dominante, constantemente em alerta contra elas e capazes de tomar,
longu íssimo uso, o termo Teoria para designar a filosofia científica fundada em sua prática teórica - a contracorrente de todas as “ verdades oficiais” -, os caminhos fecun¬
dos abertos por Marx, mas interditados e barrados por todos os preconceitos vigentes. Uma
por Marx. Além disso, a maiúscula, que a distingue dos outros usos da palavra tarefa dessa natureza e desse rigor é impensável sem uma confiança invencível e l úcida na
teoria, n ão é evidentemente perceptive! na linguagem falada... É por isso que, classe operá ria, e sem uma participação direta em seu combate.
após o texto “ Sobre a dialética materialista” , me pareceu necessário voltar aos 2 Sobre o duplo tema da problemática e do corte epistemológico (corte que marca a mutação de
uma problemática pré-científica para uma problemática científica), pode-se reportar às páginas
usos da terminologia corrente e falar, a propósito do próprio Marx, de filosofia ,
de extraordin ária profundidade teórica de Engels no pref ácio ao Segundo Livro d’ O capital
e empregar então o termo filosofia marxista. (E.S. tomo IV, pp. 20-24). Farei um breve comentário em Ler O capital , tomo II.

2. Sobre os artigos publicados

O texto: “ Os manifestos filosóficos de Feuerbach” [“ Les manifestes philo-


sophiques de Feuerbach” ] saiu em La Nouvelle Critique de dezembro de 1960.
O artigo “ Sobre o Jovem Marx” (Questões de teoria) [“ Sur le Jeune Marx”
(Questions de théorie)] saiu em La Pensée de março-abril de 1961.
O artigo “ Contradição e sobredeterminação” [“ Contradiction et surdéter-
mination ” ] saiu em La Pensée de dezembro de 1962. Seu anexo permanecera
inédito.

31
30
I

os MANIFESTOS FILOS ó FICOS


DE FEUERBACH

La Nouvelle Critique pede-me para apresentar os textos de Feuerbach que


saíram há alguns meses na coleção Epiméthée (PUF). Faço-o com prazer, res¬
pondendo brevemente a algumas perguntas.
Reuni sob o título “ Manifestos filosóficos” os textos e artigos mais im¬
portantes publicados por Feuerbach entre 1839 e 1845: Contribuição à cr í tica
da filosofia de Hegel (1839), a introdução d’ A essência do cristianismo (1841),
Teses provisórias para a reforma da filosofia (1842), Princípios da filosofia do
futuro (1843), o prefácio à segunda edição d’ A essência do cristianismo (1843)
e um artigo em resposta aos ataques de Stirner ( 1845). A produção de Feuer¬
bach entre 1839 e 1845 não se limitou a esses textos, que exprimem, no entanto,
o essencial de seu pensamento nesses anos históricos.

Por que este título: “ Manifestos filosóficos” ?


A expressão não é de Feuerbach. Arrisquei-a por duas razões: uma subje¬
tiva, outra objetiva.
Leiam-se os textos da Reforma da filosofia e o prefácio dos Princípios. São
verdadeiras proclamações, o an ú ncio apaixonado dessa revelação teórica que
vai libertar o homem de seus grilh ões. Feuerbach dirige-se à humanidade.
Rasga os véus da história universal, destrói os mitos e as mentiras, descobre e
entrega ao homem sua verdade. O tempo chegou . A humanidade está prenhe
de uma revolução iminente que lhe dará a posse de seu ser. Que os homens

33
POR MARX
OS “ MANIFESTOS FILOSÓFICOS" DE FEUERBACH

tomem, enfim , consciência disso, e serão em realidade o que são em verdade: Qual é o interesse desses textos?
seres livres, iguais e fraternos. .
Eles têm, primeiramente, um interesse histórico Escolhi essas obras dos
Tais discursos são, para seu autor, Manifestos. anos 1840 não só porque são as mais célebres e as mais vivas (e vivas ainda
Também o foram para seus leitores. E particularmente para os jovens inte¬ hoje, a tal ponto que alguns existencialistas ou teólogos querem reencontrar
lectuais radicais que, na década de 1840, se debatiam nas contradições da “ mi¬ nelas as origens de uma inspiração moderna), mas também e acima de tudo
séria alemã!' e da filosofia neo-hegeliana. Por que os anos 1840? Porque eles porque pertencem a um momento histórico e desempenharam um papel histó¬
foram a prova dessa filosofia. Em 1840, os jovens hegelianos, que acreditavam rico (num meio restrito, decerto, mas de futuro promissor). Feuerbach é a
que a história tem um fim, o reino da razão e da liberdade, aguardavam do testemunha e o agente da crise do desenvolvimento teórico do movimento
pretendente ao trono a realização de suas esperanças: fim da ordem feudal e jovem hegeliano. É preciso ler Feuerbach para compreender os textos dos jo¬
autocrática prussiana, abolição da censura, submissão da Igreja, em suma, a vens hegelianos entre 1841 e 1845. Pode-se ver, em particular, a que ponto as
instauração de um regime de liberdade política, intelectual e religiosa. Ora, obras de juventude de Marx estão impregnadas do pensamento de Feuerbach.
mal acabara de se sentar no trono, esse pretendente considerado “ liberal” , que Não só a terminologia marxista dos anos 1842-1844 é feuerbachiana (a aliena¬
se tornou Frederico Guilherme IV, voltou ao despotismo. Confirmada a tirania, ção, o homem genérico, o homem total, a “ inversão” do sujeito em predicado
reforçada, acabara-se a teoria, que fundamentava e resumia todas as suas es¬ etc.), mas, o que é sem dú vida mais importante, o fundo da problemática filo¬
peranças. De direito, a história era razão e liberdade; de fato, não era mais do '
sófica é feuerbachiano. Artigos como A questão judaica ou a Crítica da filoso¬
que desrazão e servidão. Era preciso aceitar a lição dos fatos: essa contradição. fia do direito de Hegel são inteligíveis apenas no contexto da problemática
Mas como pensá-la! Foi então que surgiu A essência do cristianismo (1841), feuerbachiana. Certamente os temas da reflexão de Marx ultrapassam as preocu ¬
em seguida os panfletos sobre a Reforma da filosofia. Esses textos, que certa ¬
'

pações imediatas de Feuerbach, mas a problemática e os esquemas teóricos são


mente não libertaram a humanidade, libertaram os jovens hegelianos de seu .
os mesmos Marx verdadeiramente só “ liquidou ” , para retomar sua expressão,
impasse teórico. À pergunta dramática que eles se faziam sobre o homem e sua essa problemá tica em 1845. A ideologia alemã é o primeiro texto que marca a
história, Feuerbach respondia com exatidão, e no próprio momento de maior ruptura consciente e definitiva com a filosofia e a influência de Feuerbach .
perturbação! Vejam o eco desse alívio, desse entusiasmo, 40 anos mais tarde, O estudo comparado dos textos de Feuerbach e das obras de juventude de
em Engels. Feuerbach era justamente essa “ Filosofia Nova” que fazia tabula Marx pode entã o permitir uma leitura histórica dos textos de Marx e uma
rasa de Hegel e de toda filosofia especulativa, que punha outra vez sobre seus melhor compreensão de sua evolução.
;
pés esse mundo que a filosofia fazia andar sobre a cabeça, que denunciava
todas as alienações e todas as ilusões, mas dava também as razões destas , e Essa compreensão histórica não tem uma significação teórica?
;
permitia pensar e criticar a desrazão da história em nome da própria razão, que Certamente. Uma vez lidos os textos feuerbachianos do período 1839-1843,
punha enfim de acordo a ideia e o fato e fazia compreender a necessidade da não pode haver equívoco sobre a atribuição da maioria dos conceitos que
contradição do mundo e a necessidade de sua libertação. Eis porque os neo- justificam tradicionalmente as interpretações “ éticas” de Marx. Fórmulas t ão
-hegelianos foram, como admitiu o velho Engels, “ todos feuerbachianos” . Eis célebres como “ o devir-mundo da filosofia” , “ a inversão sujeito-atributo” , “ a
porque receberam os livros dele como Manifestos que anunciavam os caminhos raiz do homem é o homem” , “ o Estado político é a vida genérica do homem” ,
do futuro. a “ supressão e a realização da filosofia” , “ a filosofia é a cabeça da emancipação
Acrescento que se tratava de Manifestos filosóficos. Pois, sem d ú vida, tudo humana, o proletariado é o coração” etc. são emprestadas diretamente de Feuer¬
acontecia ainda na filosofia. Mas ocorre que acontecimentos filosóficos sejam bach ou diretamente inspiradas por ele. Todas as f órmulas do “ humanismo”
também acontecimentos históricos. idealista de Marx são f órmulas feuerbachianas. E certamente Marx não se li ¬
mitou a citar, retomar ou repetir Feuerbach que, vê-se nestes Manifestos, pen ¬
sa sempre na política, mas não fala muito dela. Para ele, tudo se decide na

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35
POR MARX OS “ MANIFESTOS FILOSÓ FICOS " DE FEUERBACH

crítica da religião, da teologia, e nesse disfarce profano da teologia que é a


1 de bom grado, para ilustrar essa consequência, uma imagem tirada da história
filosofia especulativa. O Jovem Marx, ao contrário, é obcecado pela política, ! ' grega, citada pelo pró prio Marx. Depois dos graves reveses da guerra contra
depois por aquilo do qual a política é apenas o “ céu ” : a vida concreta dos ho
¬
os persas, Temístocles aconselhava aos atenienses renunciar à terra e basear o
mens alienados. Mas ele não é, n’ A questão judaica, na Crítica da filosofia do futuro da cidade em um outro elemento : o mar. A revolução teórica de Marx
direito de Hegel etc. e mesmo quase sempre em A sagrada família , senão um
: consiste justamente em basear em um novo elemento seu pensamento teórico
feuerbachiano de vanguarda que aplica uma problemática ética à compreensão libertado do antigo elemento: o da filosofia hegeliana e feuerbachiana.
da história humana. Poder-se-ia dizer, em outros termos, que Marx, naquele Mas podemos apreender essa problemática nova de duas maneiras:
tempo, n ão fez mais do que aplicar a teoria da alienação, ou seja, da “ natureza Inicialmente, nos textos da maturidade de Marx: A ideologia alemã, Misé¬
humana” feuerbachiana, à política e à atividade concreta dos homens, antes de ria da filosofia, O capital etc. Porém, essas obras não oferecem uma exposição
estend ê-la ( em grande parte) nos Manuscritos à economia política. Importa sistemática da posição teórica de Marx comparável à exposi ção da filosofia de
reconhecer a origem desses conceitos feuerbachianos, n ão para resolver tudo Hegel que se encontra na Fenomenologia, na Enciclopédia ou na Grande ló ¬

por uma constatação de atribuição (eis o que pertence a Feuerbach, eis o que í gica, ou à apresentação da filosofia de Feuerbach que se encontra nos Princípios
pertence a Marx ), mas para não atribuir a Marx a invenção de conceitos e de da filosofia do futuro. Esses textos de Marx são polêmicos (Â ideologia alemã,
.
uma problemá tica que ele apenas toma emprestados É mais importante ainda Miséria da filosofia ) ou positivos ( O capital ). A posição teórica de Marx, que
reconhecer que esses conceitos emprestados não foram emprestados um a um se poderia com uma palavra bastante equ ívoca chamar sua “ filosofia” , certa¬
e isoladamente, mas em bloco, como um todo: sendo esse todo justamente a mente aí está em ação, mas enterrada na pró pria obra e confundida com sua
problemática de Feuerbach. Aí está o ponto essencial. Pois o empréstimo de atividade, quer crítica, quer heurística, e raramente ou jamais explicitada
um conceito isolado pode ter apenas uma significação acidental e secund ária. por si mesma de maneira sistemática e desenvolvida. Tal circunstância obvia -
O empréstimo de um conceito isolado (de seu contexto) n ã o compromete o mente não simplifica a tarefa do intérprete.
tomador do empréstimo com o contexto do qual ele o extrai (assim os emprés¬ É aqui que o conhecimento da problemática de Feuerbach e as razões da
timos d’ O capital a Smith, Ricardo ou Hegel). Mas o empréstimo de um con¬
junto de conceitos ligados entre si de maneira sistemática, o empréstimo de
- ruptura de Marx com ele vêm em nosso aux ílio. Pois, por intermédio de Feuer¬
bach, temos indiretamente acesso à nova problemática de Marx. Sabemos com
uma verdadeira problemática não pode ser acidental, ele compromete seu autor. que problemática Marx rompeu e descobrimos os horizontes teóricos que essa
Creio que a comparação dos Manifestos com as obras de juventude mostra ruptura “ descerra” . Se é verdade que um homem se revela tanto por suas ruptu -
muito evidentemente que Marx literalmente desposou durante dois ou três anos ras quanto por suas ligações, pode-se dizer que um pensador tão exigente quan¬
a própria problemá tica de Feuerbach; que ele se identificou profundamente to Marx pode se descobrir e se revelar em sua ruptura com Feuerbach tanto
com ela e que, para compreender o sentido da maioria das afirmações desse quanto por suas declarações ulteriores. Como a ruptura com Feuerbach se
período - mesmo daquelas que abordam a matéria da reflexão ulterior de Marx acha no ponto decisivo da constituição da posição teórica definitiva de Marx,
(por exemplo, a política, a vida social, o proletariado, a revolução etc.), as o conhecimento de Feuerbach representa, em vista disso, um meio de acesso
quais, em decorrência disso, poderiam parecer justificadamente marxistas -, é insubstitu ível e carregado de implicações teóricas à posição filosófica de Marx.
preciso situar-se no âmago dessa identificação , apreendendo bem todas as suas Eu diria também que ela pode igualmente permitir uma melhor compreen ¬

consequências e implicações teóricas. são das relações entre Marx e Hegel. Com efeito, se Marx rompeu com Feuer¬
Essa exigência me parece capital, pois se é verdade que Marx desposou bach, é preciso considerar, ao menos em seus pressupostos filosóficos ú ltimos,
toda uma problemática, sua ruptura com Feuerbach , a famosa “ liquidação de a crítica de Hegel que se encontra na maior parte dos escritos de juventude de
nossa consciência filosófica de outrora” , implica a adoção de uma nova pro¬ Marx como uma crítica insuficiente, até mesmo falseada, na medida em que é
blemática, que bem pode integrar certo n ú mero de conceitos da antiga, mas feita de um ponto de vista feuerbachiano, ou seja, de um ponto de vista que
num todo que lhes confere uma significação radicalmente nova. Retomaria aqui Marx rejeitou ulteriormente. Ora, por razões às vezes de comodidade, tende-se

36 37
POR MARX

constante e inocentemente a considerar que, embora Marx tenha modificado


ulteriormente seu ponto de vista, a crítica de Hegel que se pode encontrar nas
obras de juventude permanece, em todo o caso, justificada e que ela pode ser
“ retomada” . Mas isso é negligenciar o fato fundamental de que Marx se sepa ¬

rou de Feuerbach quando tomou consciência de que a crítica feuerbachiana


de Hegel era uma crítica “ do seio mesmo da filosofia hegeliana” , que Feuer¬
bach era ainda um “ fil ósofo” , que “ invertera” , é certo, o corpo do edifício
hegeliano, porém conservara sua estrutura e seus fundamentos últimos, ou seja, II
seus pressupostos teóricos. Aos olhos de Marx, Feuerbach ficara na terra he¬
geliana, permanecia prisioneiro dela embora fizesse sua crítica, não fazia mais SOBRE O JOVEM MARX
do que voltar contra Hegel os princípios do próprio Hegel . Não trocara de ( Quest õ es de teoria )
“ elemento” . A verdadeira crítica marxista de Hegel supõe justamente que se
tenha trocado de elemento, ou seja, que se tenha abandonado essa problemá¬
tica filosófica da qual Feuerbach permanecia prisioneiro rebelde. '

A crítica alemã n ão abandonou, nem mesmo em seus esforços


Para resumir numa palavra, que não é indiferente a pol êmicas atuais, o mais recentes, o terreno da filosofia. Em vez de examinar seus
interesse teórico dessa confrontação privilegiada de Marx com o pensamento pressupostos filosóficos de base, todas as suas perguntas bro ¬
-
de Feuerbach, diria que o que está em causa nessa dupla ruptura com Hegel taram no terreno de um sistema filosófico determinado: o
inicialmente, em seguida com Feuerbach - é o sentido do próprio termo filo ¬ sistema hegeliano. Não somente nas suas respostas, mas nas
sofia. O que pode ser, comparada aos modelos clássicos da filosofia, a “ filoso¬ próprias perguntas havia uma mistificação.
fia” marxista? Ou o que pode ser uma posição teórica que rompeu com a pro¬ K, Marx, Deutsche Ideologic, Berlin, Dietz Verlag, 1953, p. 14
blemá tica filosófica tradicional cujo ú ltimo teórico foi Hegel e do qual
Feuerbach tentou , desesperadamente, mas em v ão, se libertar? A resposta a
essa pergunta pode ser, em grande parte, extraída negativamente do próprio A Auguste Cornu, que consagrou a vida a um jovem chamado Marx.
Feuerbach, última testemunha da “ consciência filosófica ” do Jovem Marx, úl ¬
timo espelho em que Marx se contemplou , antes de rejeitar essa imagem de
empréstimo, para assumir seu verdadeiro rosto. A revista Recherches Internationales oferece-nos onze estudos de marxistas
estrangeiros “ Sobre o Jovem Marx” . Um artigo, já antigo ( 1954) de Togliatti,
Outubro de 1960 cinco artigos provenientes da União Soviética (dos quais três assinados por
jovens pesquisadores, 27-28 anos), quatro artigos da Alemanha democrática e
um da Polónia. Podia-se pensar que a exegese do Jovem Marx era o privilégio
e a cruz dos marxistas ocidentais. Essa obra e sua Apresentação lhes mostram
que doravante eles não estarão sozinhos diante dessa tarefa, de seus perigos e
: suas recompensas.1
Gostaria de aproveitar a ocasião da leitura dessa coletâ nea, interessante mas
: desigual,2 para examinar alguns problemas, dissipar certas confusões e propor
por minha conta alguns esclarecimentos.

38 39
POR MARX SOBRE O JOVEM MARX " ( QUEST õ ES DE TEORIA )

Para a comodidade da exposição, permitam-me abordar a questão das obras i Se quiserem salvar Marx dos perigos de sua juventude com os quais os
de juventude de Marx em três aspectos fundamentais: pol ítico (I), teórico (II) adversários os ameaçam, podem, muito esquematicamente, concordar que o
e histórico (III) . Jovem Marx não é Marx, ou afirmar que o Jovem Marx é Marx. Podem -se
nuançar essas teses ao extremo: elas inspiram até as suas nuances.
É certo que esse inventário de possibilidades pode parecer bem irrisório.
O problema pol ítico Caso se trate de uma contestação de tipo histórico, ela exclui toda tática, não
depende senão do veredicto proferido após o exame científico dos fatos e das
O debate das obras de juventude de Marx é primeiramente um debate político . peças. No entanto, a experiência passada, e mesmo a leitura da presente cole¬
Será preciso repetir que as obras de juventude de Marx, cuja história Mehring tânea, prova que é às vezes difícil fazer abstração de considerações táticas mais
escrevera bastante bem e cujo sentido depreendera, foram exumadas por social- ou menos esclarecidas ou de reações de defesa, quando se trata de enfrentar
-democratas e exploradas por eles contra as posições teóricas do marxismo-le- um ataque político. Jahn5 reconhece-o muito bem: não foram os marxistas a
ninismo? Os grandes antecedentes da operação chamam-se Landshut e Mayer lan çar o debate sobre as obras de juventude de Marx. E como não tinham talvez
( 1931). Pode-se ler o pref ácio de sua edição na tradu ção de Molitor para o atribu ído seu justo valor aos trabalhos clássicos de Mehring e às pesquisas
editor Costes (Obras filosóficas de Marx [(Euvres philosophiques de Marx ) , eruditas e escrupulosas de Auguste Cornu, os jovens marxistas foram surpreen ¬
tomo IV, pp. xiii -li). Tudo está ali dito claramente. O capital é uma teoria ética, didos, mal preparados para um combate que não haviam previsto. Reagiram
cuja filosofia silenciosa fala em voz alta nas obras de juventude de Marx.3 Essa como puderam. Resta algo dessa surpresa na defesa presente, no seu caráter
tese, cujo sentido resumo em duas palavras, conheceu prodigioso sucesso. Não reflexo, sua confusão, sua falta de jeito. Acrescentemos: em sua má consciência
só na França e na Itália, como sabemos há muito tempo, mas também na Ale¬ também. Pois esse ataque surpreendeu os marxistas em seu próprio terreno: o
manha e Polónia contemporâneas, como nos informam esses artigos estrangei ¬ de Marx. Talvez mais do que se se tratasse de um simples conceito, sentiram
ros. Filósofos, ideólogos, religiosos lançaram-se numa gigantesca empreitada o peso de uma responsabilidade particular, já que foi colocado um problema
de crítica e de conversão: que Marx retorne as origens de Marx e admita, enfim, que tocava diretamente na história de Marx, no próprio Marx. Ei-los então
que o homem maduro não é senão o Jovem Marx disfarçado. Ou, se persistir ameaçados por uma segunda reação , que vem reforçar o primeiro reflexo de
e teimar em sua idade, que confesse então seu pecado de maturidade, que re ¬ defesa: o temor de falhar em sua responsabilidade, o temor de deixar que o
; legado, cujo encargo assumem, seja destru ído perante eles e perante a história.
conheça que sacrificou a filosofia à economia, a ética à ciência, o homem à
história. Que ele consinta ou se recuse a fazê-lo, sua verdade, tudo o que pode !•
Para dizer as coisas claramente: se não for refletida, criticada e dominada, essa
sobreviver a ele, tudo o que pode ajudar a viver e pensar os homens que somos, reação pode inclinar o filósofo marxista a uma defesa “ catastrófica” , a uma
cabe nessas poucas obras de juventude. resposta global, a qual, para resolver melhor o problema, de fato o suprime .
Esses bons críticos deixam- nos então esta ú nica escolha: admitir que Para confundir aqueles que opõem a Marx sua própria juventude, tomar-
O capital (e, em geral, o “ marxismo maduro” ) é a expressão ou a traição da -se-á resolutamente o partido contrário: reconciliar-se-á Marx com sua própria
filosofia do Jovem Marx. Em ambos os casos é preciso revisar totalmente a juventude: não se lerá mais O capital por meio d’A questão judaica, mas esta
interpretação estabelecida e voltar ao Jovem Marx, em quem falava a Verdade. ); obra por meio d’ O capital; não se projetará mais a sombra do Jovem Marx
Eis, portanto, o lugar do debate: o Jovem Marx. O que está em jogo no sobre Marx, mas a sombra deste sobre o Jovem Marx; e forjar-se-á, sem se
debate: o marxismo. Os termos do debate : se o Jovem Marx é já Marx e todo aperceber de que ela é simplesmente hegeliana, uma pseudoteoria da história
o Marx. da filosofia no “ futuro do pretérito” para justificar essa defesa.6 O temor sagrado
Assim começado o debate, parece que, na ordem ideal da combinatória de um dano à integridade de Marx inspirará o reflexo de se assumir resoluta¬
tá tica, os marxistas tenham escolha entre duas defesas.4 mente a responsabilidade de Marx por inteiro: declarar-se-á que Marx é um
todo, que “ o Jovem Marx pertence ao marxismo” 7 - como se arriscássemos

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POR MARX “ SOBRE O JOVEM MARX " ( QUESTÕ ES DE TEORIA )

perder Marx por inteiro ao abandonar, como ele pró prio, sua juventude à his ¬ pressuposições teóricas , que aí operam sempre tacitamente. A primeira pres¬
tória; como se arriscássemos perder Marx por inteiro ao submeter sua própria
juventude à crítica radical da história, não da história que ele ia viver, mas da
história que ele vivia , não da história imediata, mas de uma história refletida,
da qual ele mesmo nos deu, na maturidade, não a “ verdade” no sentido hege-
I suposição é analítica: ela considera todo sistema teórico, todo pensamento
-
constituído como redutível a seus elementos , condiçã o que permite pensar
separadamente um elemento desse sistema e aproximá-lo de outro elemento
semelhante pertencente a outro sistema.15 A segunda pressuposição é teleo-
liano, mas os princípios de compreensão científica. lógica: ela institui um tribunal secreto da história, que julga as ideias que lhe
Mesmo no campo das defesas, não há boa política sem boa teoria. são submetidas, ou melhor, que permite a dissolução dos (outros ) sistemas em
seus elementos, institui esses elementos como elementos, para medi- los
em seguida com sua norma como se essa fosse a verdade deles.16 Por fim, essas
duas pressuposições repousam sobre uma terceira , que considera a história das
O problema te ó rico
ideias como seu próprio elemento, que defende que nada aí advém que n ão
remeta à própria história das ideias, e que o mundo da ideologia é seu próprio
Aqui tocamos no segundo problema , colocado pelo estudo das obras de juven¬
princípio de entendimento.
tude de Marx: o problema teórico. Quero insistir nisso, pois ele não me parece
Creio que é preciso penetrar até esses fundamentos para compreender a
já resolvido, nem mesmo colocado corretamente na maioria dos trabalhos ins¬
possibilidade e o sentido do traço mais marcante desse método: o ecletismo.
pirados por esse assunto.
Quando se escava abaixo da superfície do ecletismo, encontra-se, a menos que
Muito frequentemente, limita-se a leitura dos textos do Jovem Marx basea ¬

da mais na livre associação das ideias ou na simples comparação dos termos


se trate de formas absolutamente desprovidas de pensamento, sempre essa
teleologia teórica e essa autointeligibilidade da ideologia como tal. Ora, não
do que na crítica histórica.8 Reconhece-se, sem sombra de d ú vida, que essa
se pode deixar de pensar, ao ler alguns dos artigos da coletânea, que eles ainda
leitura pode dar resultados teóricos, mas eles são apenas as preliminares para
permanecem contaminados, mesmo em seus esforços para se libertarem dela,
uma verdadeira compreensão dos textos. Pode-se, por exemplo, ler a tese de
pela lógica implícita dessa concepção. Tudo acontece efetivamente como se a
doutorado de Marx comparando seus termos com o pensamento de Hegel;9 ler
história do desenvolvimento teórico do Jovem Marx exigisse a redução de seu
a Crítica da filosofia do direito de Hegel ( 1843) comparando seus princípios
pensamento a seus “ elementos” , agrupados em geral sob duas rubricas: os
quer a Feuerbach, quer ao Marx da maturidade;10 ler os Manuscritos de 1844
elementos materialistas, os elementos idealistas; e como se a comparação des¬
aproximando seus princípios dos d' O capital." Mesmo essa comparação pode
ses elementos, a confrontação de peso, devesse decidir o sentido do texto exa¬
ser superficial ou profunda. Pode dar lugar a equívocos12 que não deixam de
minado. É assim que se pode destacar, nos artigos da Gazeta Renana, na forma
ser erros. Pode, ao contrário, abrir perspectivas interessantes.13 Mas essa com ¬
exterior de um pensamento ainda hegeliano, a presença de elementos materia¬
paração nem sempre é por si mesma razão.
Com efeito, limitando-se à associação espontânea, e mesmo esclarecida,
listas, tais como a natureza política da censura, a natureza social (classes) das
leis sobre o roubo da lenha etc.; no Manuscrito de 1843 (Crítica da filosofia do
unicamente dos elementos teóricos, corre-se o risco de permanecer prisioneiro
direito de Hegel ), numa exposição e com fórmulas inspiradas por Feuerbach
de uma concepção implícita muito próxima da concepção universitária corren¬
ou ainda hegelianas, a presença de elementos materialistas , tais como a rea¬
te das comparações, oposições, aproximações dos elementos, que culmina na
lidade das classes sociais, da propriedade privada, e de sua relação com o
teoria das origens - ou , o que vem a dar no mesmo, na teoria das antecipações.
Estado, até mesmo da própria dialética materialista etc. Ora, é claro que essa
Um leitor conhecedor de Hegel “ pensará em Hegel” ao ler a tese de doutorado
discriminação em elementos destacados do contexto interno do pensamento
de 1841, até mesmo os Manuscritos de 1844. Um leitor conhecedor de Marx
exprimido, e pensados em si mesmos como entidades significantes por si mes¬
“ pensará em Marx” ao ler a Crítica da filosofia do direito de Hegel.14
mas, só é possível na condição de uma leitura orientada, ou seja, teleológica ,
Ora, não se observa talvez o suficiente que, teoria das origens ou teoria das
antecipações, essa concepção é, na imediaticidade, ingénua, baseada em três
desses mesmos textos. Um dos autores mais conscientes da coletânea, N . La -

42 43
POR MARX v SOBRE O JOVEM MARX ( QUEST Õ ES DE TEORIA )

pine , reconhece-o muito francamente: “ Esse gênero de caracterização [...] é de como materialista, ou melhor, quando ele pode não o ter sido! Para John, por
fato muito eclético, pois não responde à questão de saber como esses dife ¬
exemplo, embora contenham “ ainda toda uma série de elementos abstratos” ,
rentes elementos se combinaram na concepção de mundo de Marx” .17 Ele vê os Manuscritos de 1844 marcam “ o nascimento do socialismo cient ífico” .20 Para
bem que essa decomposição de um texto naquilo que é já materialista e naqui¬ i: Pajitnov, esses Manuscritos “ formam o ponto crucial da virada operada
lo que é ainda idealista não salvaguarda sua unidade , e que essa decomposição por Marx em matéria de ciências sociais. Ali são lançadas as premissas teóricas
é provocada precisamente pela leitura dos textos de juventude mediante o con ¬ do marxismo” .21 Para Lapine , é , “ diferentemente dos artigos da Gazeta Re -
teú do dos textos da maturidade. É, portanto, o tribunal do marxismo maduro, nana , nos quais só alguns elementos do materialismo apareciam esponta ¬
o tribunal do Fim que pronuncia e executa esse julgamento de separação de neamente, o Manuscrito de 1843 [que] atesta a passagem consciente de Marx
corpos entre os elementos de um texto anterior - e assim destrói sua unidade. ao materialismo” e , de fato, “ Marx parte de posições materialistas na sua crí¬
“ Se se partir da concepção que Marx tinha então de sua posição filosófica, o tica de Hegel” (é verdade que essa “ passagem consciente” é no mesmo artigo
Manuscrito de 1843 apresenta-se como uma obra perfeitamente consequente e designada como “ implícita” e “ inconsciente” ).22 Quanto a Schaff, escreve sem
acabada” , ao passo que “ do ponto de vista do marxismo desenvolvido, o Ma¬ , rodeios: “ Sabemos (por relatos ulteriores de Engels) que Marx se tornou ma ¬
nuscrito de 1843 não se apresenta como um todo organicamente acabado, no terialista em 1841” P
qual o valor metodológico de cada elemento é rigorosamente destacado. Uma Não quero apresentar como pretexto demasiado f ácil essas contradições
falta de maturidade evidente faz com que uma atenção exagerada seja conce¬ (nas quais se veria com pouco esforço o sinal de uma pesquisa “ aberta” ). Mas
dida a certos problemas, enquanto outros, de importâ ncia fundamental, são pode-se legitimamente perguntar se essa incerteza em determinar o momento
apenas esboçados [ ~.]” .18 Não creio que se possa reconhecer mais honestamente em que Marx passa ao materialismo etc. n ão se deve ao uso espontâneo e
que é essa perspectiva finalista que provoca a decomposição em elementos, a implícito de uma teoria analítico-teleológica. Como não notar que essa teoria
constituição dos próprios elementos. Acrescento, além disso, que se pode fre¬ pareçe então desprovida de todo crité rio válido para se pronunciar sobre um
quentemente observar uma espécie de “ delegação de referência” conferida pelo pensamento que ela decompôs em elementos, ou seja, cuja unidade efetiva
marxismo maduro a um autor intermediário, por exemplo, a Feuerbach. Como destruiu ? E que est á desprovida justamente porque interditou seu uso por essa
Feuerbach é considerado “ materialista” (ainda que, a rigor, esse “ materialismo” decomposição mesma: de fato, se um elemento idealista é um elemento idea¬
de Feuerbach repouse essencialmente sobre suas declarações de materialismo lista e se um elemento materialista é um elemento materialista, quem pode
tidas como evidentes), ele serve então de segundo centro de referência e per ¬
decidir que sentido eles constituem quando est ão reunidos na unidade efetiva
mite, por sua vez, uma espécie de subprodução de elementos decretados “ ma¬ e viva de um texto? Essa decomposição leva, assim, a este resultado paradoxal,
terialistas” em virtude de seus próprios decretos, ou de sua própria “ verdade” , que a própria quest ão do sentido global de um texto , como A questão judaica
nas obras de juventude de Marx. É assim que será declarada “ materialista” a ou o Manuscrito de 1843, desvaneceu-se, não se coloca , porque foi retirado o
inversão sujeito-atributo, a crítica feuerbachiana da filosofia especulativa, a meio para colocá-la. Contudo, é uma questão da mais alta importância, e que
crítica da religião, a essência humana objetivada em suas produções etc. Essa a vida real e a cr
ítica viva jamais podem evitar! Se um leitor ousasse, porven ¬
subprodução de elementos a partir de Feuerbach, combinada com a produ ção tura, em nossos dias, levar a sério e professar a filosofia d’A questão judaica
de elementos a partir do Marx maduro, pode prestar-se a estranhas redundâncias ou dos Manuscritos de 1844 (isso acontece! Ia dizer: todos passamos por isso!
e quiproquós, quando se trata de saber, por exemplo, o que pode distinguir E quantos passaram por isso sem terem se tornado marxistas!), pergunto-me
ent ão os elementos materialistas autenticados por Feuerbach dos elementos o que poderíamos dizer de seu pensamento, considerado como aquilo que ele
materialistas autenticados pelo próprio Marx.19 No limite, como podemos des ¬
é, ou seja, um todo. Nós o consideraríamos idealista ou materialista? Marxista
cobrir por esse procedimento dos elementos materialistas em todos os textos ou não marxista?24 Ou então deveríamos considerar que o sentido de seu pen ¬
da juventude de Marx, desde a carta a seu pai que n ão busca separar a ideia do samento está em sursis, à espera de um fim que ainda não alcançou ? Mas qual
real, temos muita dificuldade para decidir quando Marx pode ser considerado seria esse fim que nã o conhecemos? Entretanto, é assim que são tratados com

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POR MARX
SOBRE O JOVEM MARX " ( QUEST õ ES DE TEORIA )

demasiada frequência os textos do Jovem Marx, como se pertencessem a um consciência (de si ) de Marx num momento determinado de seu desenvolvi ¬
domínio reservado, dispensado da “ questão fundamental” , pela ú nica razão de mento. Assim, no Manuscrito de 1843 (Crítica da filosofia do direito de Hegel),
que eles deviam desembocar no marxismo... Como se seu sentido tivesse per¬ a consciência de si de Marx era feuerbachiana. Ele falava a linguagem de
manecido até o fim em sursis , como se fosse preciso aguardar a síntese final Feuerbach porque se acreditava feuerbachiano. Mas essa linguagem-cons ¬
para que seus elementos se reunissem, enfim, num todo , como se, antes dessa ciência estava então objetivamente em contradição com sua “ tend ência mate ¬
síntese final, a questão do todo nunca tivesse sido colocada, pela razão muito rialista” . É essa contradição que constitui o motor de seu desenvolvimento. É
simples de que se destruiu toda totalidade anterior à síntese final ? Mas estamos certo que essa concepção tem aparências marxistas (pensa-se no “ atraso da
agora diante do c ú mulo do paradoxo, em que salta aos olhos o sentido oculto consciência” ), mas são apenas aparências, pois, se é possível definir sua cons ¬

desse método analítico-teleológico: esse método, que não cessa de julgar , é ciência (o sentido global de um texto, sua linguagem-sentido), não se vê como
incapaz de pronunciar o menor julgamento sobre uma totalidade diferente dele. definir concretamente sua “ tendência” . Ou antes, vê-se muito bem como ela é
Como admitir melhor que ele só faz julgar a si mesmo, reconhecer a si mesmo definida, assim que se nota que, para Lapine, a distinção entre a tendência
sob os objetos que reflete, que não sai nunca de si mesmo , que o desenvolvi ¬ materialista e a consciência (de si) coincide exatamente com “ a diferença entre
mento que ele quer pensar n ão o pensa em definitivo senão como um desen¬ a maneira como o conteúdo objetivo do Manuscrito de 1843 aparecerá do ponto
volvimento de si mesmo em seu próprio seiol E se desse método, cuja lógica de vista do marxismo desenvolvido e a maneira como o próprio Marx tratava
extrema enuncio, vierem me dizer: é justamente nisso que ele é dialético, res¬ esse conteú do naquela época” . 26 Se compreendida rigorosamente sobressai
ponderei: dialético, sim. Mas hegeliano! dessa frase que a “ tendência” é apenas a abstração retrospectiva do resultado ,
E, de fato, quando se trata de pensar precisamente o devir de um pensa ¬
mento assim reduzido a seus elementos , quando se faz a pergunta, ingénua,
-
do qual se trata justamente de dar conta, ou seja, o em si hegeliano pensado a
partir de seu fim como sua própria origem. A contradição entre a consciência
mas honesta, de Lapine : “ De que maneira esses diferentes elementos se com ¬
e a tend ência se reduz então à contradiçã o entre o em-si e o para-si. Lapine
binaram na concepção final de mundo de Marx ?” , quando se trata de conceber declara, ali ás, sem rodeios, que essa tendência é “ implícita” e “ inconsciente” .
a relação desses elementos cujo fim se conhece, são os argumentos da dialéti ¬
A abstração do problema nos é dada como sua solução. Certamente, n ão
ca hegeliana que se veem surgir, em formas superficiais ou aprofundadas. contesto que haja no texto de Lapine indicações que apontam outra concepção
Exemplo da forma superficial: o recurso à contradição entre o conteú do e a (vão me acusar, a mim também, de cair na teoria dos elementos! Para pensá-los
forma, mais precisamente entre o conteú do e sua expressão conceituai. O “ con ¬ seria preciso renunciar ao conceito de “ tendência ” ), mas é preciso dizer que
te ú do materialista” entra em conflito com a “ forma idealista” , e a própria for
¬
sua sistemática é hegeliana.
ma idealista tende a se reduzir a uma simples questão de terminologia (é preciso Não se pode, portanto, começar um estudo marxista das obras de juventude
que ela se dissipe no fim: não se trata de nada além de palavras ). Marx já é de Marx (e de todos os problemas que elas colocam) sem ter rompido com as
materialista, mas ainda se serve de conceitos feuerbachianos, toma emprestada tentações espontâneas ou refletidas do método analítico-teleológico que é sem¬
a terminologia feuerbachiana, embora ele não seja mais, nunca tenha sido puro pre assombrado, em maior ou menor medida, pelos princípios hegelianos. Para
feuerbachiano; entre os Manuscritos de 1844 e as obras da maturidade, Marx isso é preciso romper com os pressupostos desse método, e aplicar a nosso
encontrou sua terminologia definitiva:25 simples quest ão de linguagem. Todo objeto os princípios marxistas de uma teoria da evolução ideológica.
o devir est á nas palavras. Sei que estou esquematizando, mas para fazer per ¬
Esses princípios são radicalmente diferentes dos princípios enunciados até
ceber melhor o sentido oculto do procedimento. Aliás, às vezes ele é muito aqui. Eles implicam:
mais elaborado, por exemplo, na teoria de Lapine, que n ão mais opõe somente ( l ) qué cada ideologia seja considerada como um todo real, unificado inte¬
a forma (terminologia) ao conteúdo, mas a consciência à tendência. Lapine riormente por sua problemática própria, de tal modo que não se possa retirar-
não reduz a diferença dos pensamentos de Marx a uma simples diferença de
-Ihe um elemento sem alterar seu sentido;
terminologia. Ele admite que a linguagem tem um sentido: esse sentido é o da

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(2 ) que o sentido desse todo, de uma ideologia singular (aqui o pensamen ¬ ou até mesmo escrevê-las (visto que se encontram sempre, pelo menos, dou ¬
to de um indivíduo) depende não de sua relação com uma verdade diferente torandos para publicá-las!) não era seguramente hegeliano... pois desse ponto
dela, mas de sua relação com o campo ideológico existente e com os problemas de vista, hegeliano, as obras de juventude são inevitáveis e impossíveis como
e a estrutura sociais que o sustentam e aí se refletem; que o sentido do desen¬ aquele objeto singular que Jarry exibia: “ o crânio de Voltaire criança” . Elas são
volvimento de uma ideologia singular depende não da relação desse desenvol ¬ inevitá veis como todo começo. São impossíveis porque não se escolhe o co ¬

vimento com sua origem ou seu fim considerados como sua verdade , mas da meço. Marx não escolheu nascer para o pensamento e pensar no mundo ideo¬
relação existente, nesse desenvolvimento, entre as mutações dessa ideologia lógico que a história alemã concentrara no ensino de suas universidades. Foi
singular e as mutações do campo ideológico e dos problemas e das relações nesse mundo que ele cresceu, foi nele que aprendeu a mover-se e a viver, foi
sociais que o sustentam; para ele que se “ justificou ” , foi dele que se libertou. Voltarei mais adiante à
( 3) que o princípio motor do desenvolvimento de uma ideologia singular necessidade e à contingência desse começo. O fato é que há um começo , e que,
não reside, portanto, no interior da ideologia mesma, mas fora dela, aquém da para fazer a história dos pensamentos próprios de Marx, é preciso apreender o
ideologia singular: seu autor como indivíduo concreto, e a história efetiva, que movimento deles no instante mesmo em que esse indivíduo concreto que é o
se reflete nesse desenvolvimento individual segundo os vínculos complexos do Jovem Marx surge no mundo dos pensamentos de seu tempo para aí pensar
indivíduo com essa história. por sua vez, realizando com os pensamentos de seu tempo essa troca e esse
É preciso acrescentar que tais princípios, contrariamente aos anteriores, não debate que constituirão toda a sua vida de ideólogo. Nesse nível de trocas e de
são princí pios ideológicos no sentido estrito, mas princípios científicos: dito contestações, que fazem a matéria mesma dos textos , onde nos são dados seus
de outro modo, eles não são a verdade do processo que se trata de estudar (como pensamentos vivos, tudo acontece como se os próprios autores desses pensa¬
são todos os princípios de uma história no “ futuro do pretérito” ). Eles não são mentos estivessem ausentes. Ausente o indivíduo concreto que se exprime em
a verdade de , são a verdade para, são verdadeiros, como condição para a pro¬ l seus pensamentos e em seus textos, ausente a história efetiva que se exprime
posição legítima de um problema, e portanto, por meio desse problema, para no campo ideológico existente. Assim como o autor desaparece diante de seus
a produ çã o de uma solu ção verdadeira. Pressupõem então o “ marxismo madu ¬ pensamentos publicados restando apenas seu rigor, também a história concreta
ro” , não como a verdade de sua própria génese, mas como a teoria que permi¬ desaparece diante de seus temas ideológicos para ser apenas seu sistema. Será
te o entendimento de sua própria génese, assim como qualquer outro processo preciso questionar também essa dupla ausência. Mas, por enquanto, tudo trans ¬

histórico. E, aliás, unicamente sob essa condição que o marxismo pode dar corre entre o rigor de um pensamento singular e o sistema temá tico de um
conta de outra coisa que de si : não só de sua própria génese, como algo dife¬ campo ideológico. Sua relação é esse começo , e esse começo não terá fim. É
rente de si, mas também de todas as outras transformações produzidas na his¬ esta relação que é preciso pensar: a relação da unidade (interna) de um pensa ¬

tória, inclusive aquelas nas quais estão inseridas as consequências práticas da mento singular (a cada momento de seu desenvolvimento) com o campo ideo¬
intervenção do marxismo na história. Se o marxismo não é a verdade de , no lógico existente (a cada momento de seu desenvolvimento). Mas para pensar
sentido hegeliano e feuerbachiano, mas uma disciplina de investigação cientí ¬ a relação deles, é preciso, no mesmo movimento, pensar seus termos.
fica, ele não está, com efeito, mais constrangido por sua própria génese do que Essa exigência metodológica implica primeiramente um conhecimento efe ¬

pelo devir da história marcada pela sua intervenção: tanto aquilo de que Marx tivo e não alusivo da substâ ncia e da estrutura desse campo ideológico funda¬
veio como aquilo que veio de Marx permanecem igualmente submetidos, para mental. Ela implica que não se fique satisfeito com a representação de um
ser compreendidos, à aplicação dos princí pios marxistas de investigação.27 í mundo ideológico tão neutro como um palco, ao qual compareceriam , em
A primeira condição para propor adequadamente o problema das obras de encontros de circunst ância, personagens tão célebres quanto inexistentes. O
juventude de Marx é, portanto, admitir que os próprios filósofos têm uma ju ¬ destino de Marx nos anos 1840-1845 não se define num debate ideal entre per¬
ventude. É preciso nascer um dia, nalgum lugar, e começar a pensar e escrever. sonagens que se chamam Hegel, Feuerbach, Stirner, Hess, entre outros. O
O sábio que pretendeu que nunca se deveriam publicar suas obras de juventude, í destino de Marx não se define entre esses mesmos Hegel, Feuerbach, Stirner,

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Hess, tais como eles aparecem nas obras de Marx desse per íodo. Menos ainda O que é então essa unidade? Para responder a essa pergunta por meio de
nas evocações muito gerais que farão mais tarde Engels e Lenin. Ele se define um exemplo, voltemos a Feuerbach, mas desta vez para colocar o problema da
-
entre personagens ideológicos concretos aos quais o contexto ideológico unidade interna do pensamento de Marx quando este entra em relação com
impõe uma figura determinada - que não coincidem necessariamente com sua ele. A maioria dos comentadores de nossa coletânea está manifestamente in ¬
identidade histórica literal (por exemplo, Hegel), que extravasam amplamente comodada pela natureza dessa relação, que dá lugar a in ú meras contestações.
a representação explícita que Marx d á deles nos próprios textos em que são Esse embaraço não se deve somente ao fato de que os textos de Feuerbach são
citados, invocados, criticados (por exemplo, Feuerbach) e, evidentemente, as mal conhecidos (é possível lê-los). Deve-se ao fato de que n ão se vai até o ponto
caracter ísticas gerais resumidas que Engels oferecerá deles 40 anos mais tarde. de conceber o que constitui a unidade profunda de um texto, a essência interior
Para ilustrar essas observações com exemplos concretos, direi que o Hegel com de um pensamento ideológico, ou seja, sua problemática. Proponho esse termo,
o qual se debate o Jovem Marx desde sua tese de doutorado não é o Hegel que Marx não usou diretamente, mas que anima constantemente as análises
de biblioteca sobre o qual podemos meditar na solid ão de 1960: é o do movi¬ ideológicas da maturidade (em particular, A ideologia alemã ),29 pois é o con ¬
-
mento neo hegeliano , um Hegel já invocado para fornecer aos intelectuais ceito que melhor apreende os fatos sem cair nos equívocos hegelianos da to¬
,

alemães dos anos 1840 os meios para pensar sua própria história e suas espe¬ talidade. Dizer, com efeito, que uma ideologia constitui uma totalidade (orgâ ¬

ranças; é um Hegel já posto em contradição consigo mesmo, invocado contra nica) é válido a título da descrição somente, e n ão a título da teoria, pois essa
si mesmo, a despeito de si mesmo. Essa ideia de uma filosofia tornando-se descrição, convertida em teoria, só nos permite pensar a unidade vazia do todo
vontade , saindo do mundo da reflexão para transformar o mundo político, na descrito, e não uma determinada estrutura de unidade. Pensar, ao contrário, a
qual se poderia ver a primeira rebelião de Marx contra seu mestre, está em unidade de um pensamento ideológico determinado (que se d á imediatamente
perfeito acordo com a interpretaçã o dominante dos neo-hegelianos.28 Não como um todo e que é “ vivido” , explícita ou implicitamente, como um todo ou
discordo que Marx exerça, já em sua tese, aquela sensibilidade aguda para os uma intençã o de “ totalização” ), com o conceito da problemática, é permitir
conceitos, aquele rigor implacável do traço e aquele gênio de concepção que que se evidencie a estrutura sistemática típica que unifica todos os elementos
lhe trará a admiração de seus amigos. Mas essa ideia não é criação sua. Seria do pensamento; é, portanto, descobrir um conteúdo determinado nessa unidade,
mesmo muito imprudente reduzir a presença de Feuerbach nos textos de Marx que permite, ao mesmo tempo, conceber o sentido dos “ elementos” da ideolo¬
entre 1841 e 1844 unicamente à sua menção explícita, pois numerosas passagens gia considerada e relacionar essa ideologia com os problemas legados ou
reproduzem ou parafraseiam diretamente desenvolvimentos feuerbachianos, colocados a todo pensador pelo tempo histórico em que ele vive.30
sem que o nome Feuerbach seja citado. A passagem extraída por Togliatti dos Vejamos isso num exemplo preciso: o Manuscrito de 1843 (Crítica da filo¬
i:
Manuscritos de 1844 vem diretamente de Feuerbach; poder-se-iam invocar sofia do direito de Hegel ). Encontra-se aí, segundo os comentadores, uma série
muitas outras cujo mérito se atribui um pouco depressa a Marx. Mas por que de temas feuerbachianos (a inversão sujeito-atributo; a crítica da filosofia es¬
Marx devia citar Feuerbach quando todos o conheciam, e, sobretudo, quando peculativa; a teoria do homem genérico etc.), mas também análises que se
ele se apropriara de seu pensamento e pensava nos pensamentos dele como procurariam em vão em Feuerbach (relacionamento entre a política, o Estado
nos seus próprios? Mas é preciso, ver-se-á num instante, ir ainda além da pre¬ e a propriedade privada, realidade das classes sociais etc.). Se se permanecer
sença não mencionada dos pensamentos de um autor vivo, é preciso avançar nos elementos , cai-se nos impasses da crítica analítico-teleológica de que fala ¬
até a presença da possibilidade de seus pensamentos: até sua problemática, ou mos, e em suas pseudossoluções: terminologia e sentido, tendê ncia e consciên¬
seja, até a unidade constitutiva dos pensamentos efetivos que compõem esse cia etc. É preciso ir mais longe e perguntar-se se a presença de an álises e de
domínio do campo ideológico existente, com o qual um autor singular se ex ¬ objetos dos quais Feuerbach nada (ou quase nada) diz basta para justificar essa
plica em seu próprio pensamento. Percebe-se logo que, se não se pode pensar divisão em elementos feuerbachianos e não feuerbachianos (ou seja, já mar ¬

sem o campo ideol ógico a unidade de um pensamento singular, esse campo xistas). Ora, não é dos próprios elementos que se pode esperar uma resposta,
por sua vez exige, para ser pensado, que se pense essa unidade. ' pois o objeto de que se fala não qualifica o pensamento diretamente. Que eu

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saiba, todos os autores que falaram das classes sociais, até mesmo da luta de reflexão do historiador por uma boa razão: é que, em geral, o filósofo pensa
classes, antes de Marx, jamais foram tidos por marxistas pela simples razão de '
1 nela sem a pensar ela mesma e que “ a ordem das razões” do filósofo não coin ¬
tratarem de objetos nos quais, um dia, iria se deter a reflexão de Marx. Não é * cide com “ a ordem das razões” de sua filosofia. Pode-se considerar que uma
a matéria da reflexão que caracteriza e qualifica a reflexão, mas nesse nível a
modalidade da reflexão,31 a relação efetiva que a reflexão mantém com seus
r ideologia (no sentido marxista estrito do termo, no sentido em que o marxismo
não é uma ideologia) se caracteriza justamente a esse respeito pelo fato de que
objetos, ou seja, a problemática fundamental a partir da qual são refletidos os sua própria problemática não tem consciência de si. Quando Marx nos diz, e
objetos desse pensamento. Não digo que a matéria da reflexão não possa mo ¬ repete incessantemente, para n ão tomar a consciência de si de uma ideologia
dificar, em certas condições, a modalidade da reflexão, mas esse é outro pro¬ por sua essência, ele quer dizer que, antes de ser inconsciente dos problemas
blema ( voltaremos a ele), e em todo caso essa modificação da modalidade de reais aos quais ela responde (ou evita responder), uma ideologia é inconscien ¬

uma reflexão, essa reestruturação da problemática de uma ideologia, passa por te dos “ pressupostos teóricos” , ou seja, da problemática em ato mas inconfes-
caminhos muito diferentes da simples relação imediata do objeto com a refle ¬ sada, que fixa nela o sentido e o andamento de seus problemas e, portanto, de
xão! Se se quiser colocar o problema dos elementos nessa perspectiva, reco ¬ suas soluções. Uma problemática n ão se lê geralmente, portanto, como um
-
nhecer-se á que tudo depende de uma questão que lhes é anterior: a da natu¬ livro aberto; é preciso arrancá-la das profundezas da ideologia em que está
reza da problemática a partir da qual eles são efetivamente pensados, num mergulhada mas em ação, e quase sempre a despeito dessa ideologia, de suas
texto dado. Em nosso exemplo, a questão toma então a seguinte forma: a re ¬ afirmações e proclamações. Para quem se dispõe a ir tão longe, pergunto-me
flexão de Marx sobre esses objetos novos que são as classes sociais, a relação se não seria preciso renunciar à confusão entre as proclamações de mate ¬
propriedade privada-Estado etc., na Crítica da filosofia do direito de Hegel , rialismo de certos “ materialistas” (Feuerbach por primeiro) e o próprio ma¬
derrubou as pressuposições teóricas de Feuerbach, reduziu -as ao estado de terialismo. É de acreditar que alguns problemas seriam esclarecidos e alguns
meras frases? Ou esses novos objetos são pensados a partir das mesmas pres ¬ falsqs problemas, dissipados. O marxismo ganharia uma consciência cada vez
suposições? Essa questão é justamente possível porque a problemática de um máis exata de sua problemática, ou seja, de si , e nas suas próprias obras histó¬
pensamento não se limita ao domínio dos objetos de que seu autor tratou, ricas - o que, afinal, é sua dívida, e, direi até, seu dever.
porque ela não é a abstração do pensamento como totalidade, mas a estrutura Resumo estas reflexões. A compreensão de um desenvolvimento ideológi ¬

concreta e determinada de um pensamento, e de todos os pensamentos possíveis co implica, no nível da própria ideologia, o conhecimento conjunto e simultâ ¬

desse pensamento. Assim, a antropologia de Feuerbach pode tornar-se a proble¬ neo do campo ideológico no qual surge e se desenvolve um pensamento; e a
mática não só da religião ( A essência do cristianismo ), mas também da pol íti ¬ atualizaçã o da unidade interna desse pensamento: sua problemática. O co¬
ca (A questão judaica, o Manuscrito de 1843 ), até mesmo da história e da 1; nhecimento do campo ideológico supõe o conhecimento das problemáticas que
economia (os Manuscritos de 1844), sem deixar, no essencial, de ser uma pro ¬ aí se compõem ou se opõem. É o relacionamento da problemática própria do
blemática antropológica, mesmo quando a “ letra” em si de Feuerbach é aban ¬ pensamento individual considerado com as problemáticas próprias dos pensa¬
donada e superada.32 Pode-se, certamente, considerar que é politicamente im ¬ mentos pertencentes ao campo ideológico que pode mostrar qual é a diferença
portante passar de uma antropologia religiosa a uma antropologia política e específica de seu autor, ou seja, se surge um sentido novo. Evidentemente, a
enfim a uma económica, e até que em 1843, na Alemanha, a antropologia re ¬ história real ronda todo esse processo complexo. Mas n ão se pode dizer tudo
presentava uma forma ideológica avan çada, estou inteiramente de acordo. Mas í de uma só vez.
esse julgamento supõe que se esteja primeiro a par da natureza da ideologia Vê-se então que esse método, que rompe diretamente com a primeira pres¬
considerada, ou seja, que se tenha definido sua problemática efetiva. suposição teórica da crítica eclética, já33 se livra das ilusões da segunda pressu¬
Acrescentarei que, se não é tanto o conteú do imediato dos objetos refletidos posição: aquela que institui um tribunal silencioso da história ideológica cujos
quanto a maneira de colocar os problemas que constitui a essência ideológica valores e resultado são determinados antes mesmo que a investigação tenha
ú ltima de uma ideologia, essa problemática não se apresenta imediatamente à começado. A verdade da história ideológica não está em seu princípio (origem)

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nem em seu termo (fim). Ela está nos fatos mesmos, nessa constituição nodal
| gica de Marx, de suas origens e história, certamente nos esclareceria sobre esse
dos sentidos, dos temas e dos objetos ideológicos, sobre o fundo dissimulado
estilo de intervenção, de concepção e de investigação tão impressionante nos
de sua problemática , ela mesma se desenvolvendo sobre o fundo de um mundo
próprios textos de juventude. Discerniríamos aí, se não uma origem radical de
ideológico “ amarrado” e em movimento, submetido à história real. Sabemos sua obra, no sentido em que Sartre o entende (o “ projeto fundamental” de um
certamente que o Jovem Marx se tornará Marx, mas não queremos viver mais
autor), pelo menos as origens de uma exigência muito profunda e muito lon ¬
depressa do que ele, não queremos viver em seu lugar, romper por ele ou des¬
gínqua de apreensão da realidade, que daria um primeiro sentido a essa con ¬
cobrir por ele. Não o aguardaremos de antemã o no final da corrida , para o
tinuidade efetiva do desenvolvimento de Marx, àquilo que Lapine tenta, em
cobrir como a um corredor com o roupão do repouso, porque enfim acabou, e
parte, pensar sob o termo “ tendência” . Sem esse estudo, correríamos o risco
ele chegou. Rousseau dizia que, com as crianças e os adolescentes, toda a arte
de não discernir o que, justamente, distinguiu Marx do destino da maioria de
da educação consiste em saber perder tempo. A arte da crítica histórica con ¬
seus contemporâneos, oriundos do mesmo meio social, confrontados com os
siste também em saber perder suficiente tempo para que os jovens autores se
mesmos temas ideológicos e os mesmos problemas históricos que ele: os jovens
tornem grandes. Esse tempo perdido não é senão o tempo que lhes damos para
hegelianos. Mehring e Auguste Cornu deram-nos a matéria desse trabalho, que
viver. É a necessidade da vida deles que nós escandimos por nosso entendi ¬
í mereceria ser acabado, para nos permitir compreender como um filho da bur¬
mento de seus n ós, de seus adiamentos e de suas mutações. Talvez não haja,
guesia renana pôde tomar-se o teórico e o dirigente do movimento operário da
nessa ordem, maior alegria do que assistir assim, numa vida nascente, uma vez
Europa da época das ferrovias.
destronados os Deuses das Origens e dos Fins, à génese da necessidade.
Mas, ao mesmo tempo que à psicologia de Marx, esse estudo nos conduzi¬
ria à história real, e à sua apreensão direta pelo próprio Marx. Deter-me-ei
aqui um instante para levantar o problema do sentido da evolução de Marx e
O problema hist ó rico de seu “ motor” .
À pergunta: como a maturaçã o e a mutação de Marx foram possíveis?, a
Mas tudo isso deixa aparentemente em suspenso a terceira pressuposição do crítica eclética procura e dá naturalmente uma resposta que permanece no
método eclético: que toda história ideológica transcorre na ideologia. Vejamos. âmbito da própria história ideológica. Dir-se-á, por exemplo, que Marx soube
Lamento que, com exceção dos artigos de Togliatti, de Lapine, e sobretudo distinguir em Hegel o método do conteúdo , e que, em seguida, o aplicou à
do notabilíssimo texto de Hoeppner,34 a maior parte dos estudos que nos ofe¬ história. Dir-se-á também, naturalmente, que ele recolocou de pé o sistema
recem deixa de lado, a não ser em algumas passagens, esse problema. hegeliano (declaração que, num certo sentido, não deixa de ter humor, quando
-
Ora, nenhum marxista pode, em última análise, evitar colocar se o que foi se sabe que o sistema hegeliano é uma “ esfera de esferas” ). Dir-se-á que Marx
chamado, há alguns anos, o problema do “ caminho de Marx” , ou seja, o pro¬ estendeu o materialismo de Feuerbach à história, como se um materialismo
blema da relação entre os acontecimentos de seu pensamento e essa história regional não fosse um materialismo suspeitíssimo; dir-se-á que Marx aplicou
real, una mas dupla, que é o verdadeiro sujeito desse pensamento. É preciso a teoria da alienação (hegeliana ou feuerbachiana) ao mundo das relações so¬
então revogar essa dupla ausência e fazer surgir, enfim, os verdadeiros autores ciais, como se essa “ aplicação” mudasse seu sentido fundamental. Dir-se-á
desses pensamentos até aqui sem sujeito: o homem concreto e a história real enfim, e tudo está aí, que os antigos materialistas eram “ inconsequentes” , e que
que os produziram. Pois, sem esses verdadeiros sujeitos, como prestar contas Marx, ao contrário, era consequente. Essa teoria da inconsequência-consequên ¬

do surgimento de um pensamento e de suas mutações? cia que assombra numerosos estudos de história ideológica marxista é uma
Não colocarei aqui o problema da própria personalidade de Marx, da origem pequena maravilha ideológica fabricada para seu uso pessoal pelos Filósofos
e da estrutura desse extraordinário temperamento teórico, animado por uma do Iluminismo. Feuerbach herdou-a e faz dela uso - infelizmente! - de ma¬
indomável paixão crítica, uma intransigente exigência de realidade, e um pro¬ neira admirável. Ela mereceria por si só um pequeno tratado, pois é a quintes-
digioso senso do concreto. Um estudo da estrutura da personalidade psicoló- sência do idealismo histórico: todos sabem , com efeito, que se as ideias se

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engendram entre si, toda aberração histórica (e teórica) n ão é mais do que um reforçada pela convicção do próprio Marx, que transparece em seus esforços
erro de lógica. e seus entusiasmos, em suma, por sua consciência.
Mesmo quando contêm certo grau de verdade, 35 essas f órmulas permane¬ Direi até que é preciso não só evitar compartilhar as ilusões espont âneas da
cem, tomadas ao pé da letra, prisioneiras da ilusão de que a evolu ção do Jovem concepção idealista da história ideológica, mas também, e talvez mais ainda,
Marx transcorreu e se decidiu na esfera das ideias e de que ela se efetuou em evitar ceder à impressão que nos dão os textos do Jovem Marx, e compartilhar
virtude de uma reflexão sobre as ideias propostas por Hegel, Feuerbach ou sua própria consciência de si. Mas, para entender isso, é preciso falar de his ¬

outros. Tudo ocorre então como se se admitisse que as ideias herdadas de He ¬ tória real, ou seja, questionar o próprio “ caminho de Marx” .
gel pelos jovens intelectuais alemães de 1840 contivessem em si mesmas , con ¬ Volto aqui ao começo. Sim , é preciso nascer um dia, e nalgum lugar, e co¬
tra suas próprias aparências, uma determinada verdade, tácita, velada, masca ¬ meçar a pensar e a escrever num mundo dado. Esse mundo, para um pensador,
rada, desviada, que o poder cr ítico de Marx conseguiu enfim, após anos de é imediatamente o mundo dos pensamentos vivos de seu tempo, o mundo
esforços intelectuais, arrancar delas, fazer-lhes confessar e reconhecer. É essa ideológico no qual ele nasce para o pensamento. Ora, quando se trata de Marx,
l ógica que, no fundo, está implicada no famoso tema da “ inversão” , do “ reco¬ esse mundo é o mundo da ideologia alemã dos anos 1830 a 1840, dominado
locar de pé” a filosofia (ou a dialética) hegeliana, pois se se trata verdadeira¬ pelos problemas do idealismo alemão e pelo que se chamou, com um termo
mente apenas de uma inversão , de repor do direito o que estava do avesso, é abstrato, a “ decomposição de Hegel” . Não é um mundo qualquer , certamente,
claro que virar um objeto inteiro não muda sua natureza nem seu conteúdo pela mas essa verdade geral não basta. Pois o mundo da ideologia alemã é então,
virtude de uma simples rotação! O homem de ponta-cabeça, quando finalmen ¬ sem nenhuma comparação possível, o mundo mais esmagado pela ideologia
te anda com seus pés, é o mesmo homem! E uma filosofia assim invertida não (no sentido estrito), ou seja, o mundo mais afastado das realidades efetivas da
pode ser considerada como diferente da filosofia que se inverteu , a não ser por história, o mundo mais mistificado, mais alienado de então na Europa das
uma metáfora teórica: na verdade, sua estrutura, seus problemas, o sentido de ideologias. Foi nesse mundo que Marx nasceu e começou a pensar. A contin¬
seus problemas continuam perturbados pela mesma problemática 36 É quase
, gência do começo de Marx é essa enorme camada ideológica sob a qual ele
sempre essa lógica que parece agir nos textos do Jovem Marx, ou que de bom nasceu , essa camada esmagadora de que soube desprender-se. Temos de ¬

grado lhe é atribu ída. masiada tendência, justamente porque ele se libertou , a acreditar que a liber¬
Ora, creio que essa visão, sejam quais forem suas razões, não corresponde dade que ele conquistou ao preço de esforços prodigiosos e de encontros de¬
à realidade. Certamente nenhum leitor das obras de juventude de Marx pode cisivos já estava inscrita nesse mundo, e que todo o problema consistia em
permanecer insensível ao gigantesco trabalho de cr í tica te órica a que Marx refletir. Temos demasiada tendência a ter como certa a própria consciência do
submete as ideias que encontra . Raros são os autores que exerceram tantas Jovem Marx, sem observar que ela estava, na própria origem, submetida a essa
virtudes (acuidade, intransigência, rigor ) no tratamento das ideias. Elas são fant ástica servidão e às suas ilusões. Temos demasiada tendência a projetar
para Marx objetos concretos que ele interroga, como o f ísico interroga os ob¬ sobre essa época a consciência ulterior de Marx e a apreender essa história no
jetos de sua experiência para tirar delas um pouco de verdade, a verdade delas. “ futuro do pretérito” de que se fala, mas não se trata de projetar uma consciên
¬

Vejam como ele trata a ideia de censura no artigo sobre a Censura prussiana, cia de si sobre outra consciência de si, e sim de aplicar ao conteú do de uma
essa diferença aparentemente insignificante entre a lenha verde e a lenha seca consciência serva os princípios científicos de inteligibilidade histórica (e não
no artigo sobre o Roubo da Lenha, a ideia da liberdade da imprensa, da pro ¬ o conteúdo de uma outra consciência de si), adquiridos posteriormente por uma
priedade privada, de alienação etc. O leitor não resiste à evidência do rigor da consciência libertada.
reflexão e da força da lógica dos textos do Jovem Marx. E essa evidência in - Marx mostrou bem, em suas obras posteriores, porque essa prodigiosa ca ¬

clina-o, muito naturalmente, a crer que a lógica de sua invenção coincide com mada ideológica era própria da Alemanha, e não da França e da Inglaterra: pela
a lógica de sua reflexão , e que Marx tirou do mundo ideológico sobre o qual dupla razão do atraso histórico da Alemanha (atraso económico e político) e
trabalhava uma verdade que estava contida nele . E essa convicçã o é ainda do estado das classes sociais correspondentes a esse atraso. A Alemanha do

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SOBRE O JOVEM MARX ( QUEST õ ES DE TEORIA )

in ício do século XIX, oriunda da gigantesca reviravolta da Revolução France¬ Alemanha era na verdade também, ao mesmo tempo, a expressão de seu sub¬
sa e das guerras napoleônicas, está profundamente marcada por sua impotência desenvolvimento histórico; era preciso, portanto, voltar aquém desse avanço
histórica para realizar tanto sua unidade nacional quanto sua revolução bur¬ precipitado para a ideologia, a fim de atingir as próprias coisas, tocar a história
guesa. Essa “ fatalidade” dominará toda a história alemã do século XIX e mesmo
real, enfrentando finalmente os seres que assombravam as brumas da consciên¬
muito além, por suas consequências indiretas. Essa situação, cujas origens cia alemã.37 Sem essa volta atrás , a história da libertação intelectual do Jovem
remontam à Guerra dos Camponeses, teve como resultado fazer da Alemanha,
Marx é ininteligível; sem essa volta atrás a relação de Marx com a ideologia
simultaneamente, o objeto e o espectador da história real que ocorria fora dela. alemã, e em particular com Hegel, é ininteligível; sem essa volta à história real
Foi essa impotência alemã que constituiu e marcou profundamente a ideologia (que é também, numa certa medida, uma volta atrás), a relação do Jovem Marx
alemã, que se formou durante os séculos XVIII é XIX. Foi essa impotência que
com o movimento operário permanece misteriosa.
obrigou os intelectuais alemães a “ pensar o que os outros fizeram” , e pensá-lo Se insisto nessa “ volta atrás” é deliberadamente. Pois tem-se demasiada
nas condi ções de sua impotência: nas formas da esperança, da nostalgia e da tendência a sugerir, sob as fórmulas da “ superação” de Hegel, Feuerbach ou

idealização próprias das aspirações de seu meio social a pequena burguesia
dos funcion á rios pú blicos, professores, escritores ou outros - e a partir dos
outros, uma espécie de figura contínua de desenvolvimento; em todo caso, um
desenvolvimento cujas próprias descontinuidades deveriam ser pensadas ( jus¬
objetos imediatos de sua própria servidão: em particular, a religião. O resul¬ tamente pelo modelo da dialética hegeliana da “ Aufhebung” ) no interior de um
tado desse conjunto de condições e de exigências históricas foi justamente o mesmo elemento de continuidade , sustentado pela própria duração da história
desenvolvimento prodigioso da “ filosofia idealista alemã" , na qual os intelec¬ (de Marx e do seu tempo), enquanto a crítica desse elemento ideológico con ¬
tuais alemães pensaram sua condição, seus problemas, suas esperanças e até siste, em boa parte, no retorno aos objetos autênticos anteriores (lógica e his¬
sua “ atividade" . toricamente) à ideologia que os refletiu e investiu.
N ão era pelo prazer do gracejo que Marx declarava: os franceses têm a
Permitam-me ilustrar esta fórmula da volta atrás com dois exemplos.
cabeça política, os ingleses a cabeça económica, os alemães a cabeça teórica.
O primeiro diz respeito aos próprios autores cuja substâ ncia Hegel “ dige¬
O subdesenvolvimento histórico da Alemanha teve por contrapartida um “ so -
riu ” , entre eles os economistas ingleses e os filósofos e os políticos franceses,
bredesenvolvimento ” ideológico e teórico sem medida de comparação com o e os acontecimentos históricos cujo sentido ele interpretou: em primeiro lugar,
que ofereciam as outras nações europeias. Mas o que é capital é que esse desen ¬
a Revolução Francesa. Quando Marx se dedica, em 1843, à leitura dos eco¬
volvimento teórico tenha sido um desenvolvimento ideológico alienado, sem nomistas ingleses, quando empreende o estudo de Maquiavel, Montesquieu,
relação concreta com os problemas e os objetos reais que refletia. Do ponto de Rousseau, Diderot, entre outros, quando estuda a história concreta da Revolu ¬
vista que nos interessa, esse é o drama de Hegel. Sua filosofia é verdadeira ¬ ção Francesa,38 não se trata apenas de voltar às fontes das leituras de Hegel,
mente a enciclopédia do século XVIII, a suma de todos os conhecimentos adqui¬
confirmando Hegel por suas fontes; muito pelo contrário, é para descobrir a
ridos e da própria história. Mas todos os objetos de sua reflex ão são aí “ di ¬ realidade dos objetos de que Hegel se apoderara, para lhes impor o sentido de
geridos” por sua reflexão, ou seja, por essa forma específica da reflex ão ideo¬ sua própria ideologia. Em grande medida, a volta de Marx às produções teóri ¬
l ógica da qual era prisioneira toda a intelig ê ncia alem ã. Pode-se então
cas inglesas e francesas do século XVIII é uma verdadeira volta aquém de
conceber qual podia e qual devia ser a condição fundamental da libertação Hegel , aos próprios objetos em sua realidade. A “ superação” de Hegel não é
de um jovem intelectual alemão que veio a pensar entre os anos 1830 e 1840,
absolutamente uma “ Aufhebung" no sentido hegeliano , ou seja, o enunciado
na própria Alemanha. Essa condição era a redescoberta da história real, a redes- da verdade do que está contido em Hegel; não é uma superação do erro rumo
coberta dos objetos reais, para além da enorme camada ideológica que os in ¬ à sua verdade, mas, ao contrário, uma superação da ilusão rumo à realidade;
vestira, não só convertendo-os em sombras, mas deformando-os. Da í esta con ¬ ou melhor, mais do que uma “ superação” da ilusão rumo à realidade, é uma
sequê ncia paradoxal: para se libertar dessa ideologia, Marx devia ine¬ dissipação da ilusão e uma volta atrás, da ilusão dissipada, rumo à realidade . -
vitavelmente tomar consciência de que o sobredesenvolvimento ideológico da o termo “ superação” não tem, portanto, mais nenhum sentido.39 Marx jamais

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1 É
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SOBRE O JOVEM MARX ( QUEST õ ES DE TEORIA )
POR MARX

desautorizou a experiência, para ele decisiva, da descoberta direta da realidade de ensinar aos alemães a Razão e a Liberdade, Marx decide enfim partir para
por intermédio daqueles que a viveram diretamente e pensaram com a menor a França, é ainda em grande medida em busca de um mito que ele parte, como
deformação possível , os economistas ingleses ( tinham a cabeça econ ómica,
'
7
podia, há alguns anos, partir em busca de seu mito da França, a maioria dos
pois entre eles havia economia!), os filósofos e os políticos franceses (tinham estudantes dos países coloniais ou dominados.4S Mas então produziu-se esta
a cabeça política, pois entre eles havia política!) do século XVIII. E ele é descoberta fundamental: a descoberta de que a França e a Inglaterra não cor¬
notavelmente sensível - como se vê, por exemplo, na sua crítica do utilitaris¬ respondem a seu mito, a descoberta da realidade francesa e da realidade ingle¬
mo francês que, justamente para ele, não tem o privilégio da experiência di ¬ sa, das mentiras da pol ítica pura, a descoberta da luta de classes, do capitalis¬
reta40 - ao “ distanciamento” ideológico provocado por essa ausência: os uti - mo em carne e osso e do proletariado organizado. Uma extraordiná ria divisão
litaristas franceses fazendo a teoria “ filosófica” de uma relação económica de do trabalho fez Marx descobrir assim a realidade da Fran ça, e Engels, a reali ¬
utilização e de exploração cujo mecanismo efetivo os economistas ingleses dade da Inglaterra. Aí também é preciso falar de uma volta atrás (e n ão de uma
descrevem, já que o viam em ação na realidade inglesa. O problema da relação “ superação” ), ou seja, da volta do mito à realidade, de uma experiência efetiva,
entre Hegel e Marx me parece insol ú vel enquanto n ão se levar a sério esse que rasgou os véus da ilusão na qual Marx e Engels viviam, pelo fato de seu
deslocamento de ponto de vista, enquanto não se vir que essa volta atrás situa próprio começo.
Marx num dom ínio, num terreno, que não são mais o de Hegel. É a partir Mas essa volta atrás da ideologia para a realidade começava a coincidir com
dessa “ mudança de elemento” que é preciso fazer-se a pergunta sobre o sen ¬ a descoberta de uma realidade radicalmente nova , da qual Marx e Engels não
tido dos empréstimos de Hegel , da heran ça hegeliana de Marx, em particular encontravam nenhum eco nos textos da “ filosofia alemã” . O que Marx desco¬
da dialética.41 briu na França foi a classe operária organizada , e Engels na Inglaterra o capi¬
Outro exemplo. Quando os jovens hegelianos se debatem no Hegel que talismo desenvolvido e uma luta de classes que seguia suas próprias leis,
forjaram para responder às suas necessidades, não cessam de lhe fazer as per¬ prescindindo da filosofia e dos filósofos.*6
guntas que lhes são feitas, na realidade, pelo atraso da história alemã contem¬ Foi essa dupla descoberta que desempenhou o papel decisivo na evolução
porânea , quando eles a comparam à da França e à da Inglaterra. A derrota de intelectual do Jovem Marx: a descoberta, para aquém da ideologia que a de ¬

Napoleão, com efeito, não mudara substancialmente a defasagem histórica formara, da realidade de que ela falava, e a descoberta, para além da ideologia
entre a Alemanha e os grandes países da Europa ocidental. Os intelectuais contemporânea que a ignorava, de uma realidade nova. Marx tornou-se ele
alemães de 1830 a 1840 olham para a França e a Inglaterra como para terras da mesmo ao pensar essa dupla realidade dentro de uma teoria rigorosa, mudando
liberdade e da razão, sobretudo após a Revolu çã o de Julho e a lei eleitoral de elemento, e ao pensar a unidade e a realidade desse novo elemento. Eviden¬
inglesa de 1832. Ainda uma vez, em vez de vivê-lo, eles pensam o que outros ' temente, é preciso compreender que essas descobertas foram insepará veis da
fizeram. Mas como o pensam dentro do elemento da filosofia, a constituição experiência pessoal de Marx no seu conjunto, que é inseparável da hist ória
francesa e a lei inglesa tomam-se, para eles, o reino da Razão - e é então da alemã que ele vivia diretamente. Pois, apesar de tudo, acontecia algo na Ale¬
Razão, acima de tudo, que aguardam a revolução liberal alemã.42 Tendo o manha. Não se percebia somente o eco atenuado dos acontecimentos do es¬
fracasso de 1840 desvelado a impotência da Razão (alemã) por si mesma, pro¬ trangeiro. A ideia de que tudo se passava fora e nada dentro era, ela mesma,
curam auxílio fora; e vê-se aparecer entre eles esse tema incrivelmente ingénuo uma ilusão do desespero e da impaciência: pois a história que fracassa, não
e comovente, que é a própria confissão de seu atraso e de sua ilusão, mas uma avança ou se repete é, sabemo-lo bem, ainda uma história. Toda a experiência
confissão no seio mesmo da ilusão, que o futuro cabe à união mística da Fran¬ teórica e prática de que acabo de falar esteve, de fato, envolvida na descoberta
ça e da Alemanha, à união do senso político francês e da teoria alemã.*3 São, experimental progressiva da própria realidade alemã. A decepção de 1840, que
portanto, perseguidos por realidades que apenas percebem mediante seu próprio pôs por terra todo o sistema teórico das esperanças dos jovens hegelianos,
esquema ideológico , mediante sua própria problemática, e que são por ela
s
quando Frederico Guilherme IV, esse pseudo “ liberal ” , se transformou em
deformadas.44 E quando, em 1843, decepcionado com o fracasso da tentativa déspota , o fracasso da Revolução pela Razão tentada na Gazeta Renana , as

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" SOBRE O JOVEM MARX ” ( QUEST Õ ES DE TEORIA )

perseguições, o exílio de Marx, abandonado pelos elementos da burguesia gente (no que se refere ao seu nascimento) ele teve de partir, e que gigantesca
alemã que o haviam inicialmente apoiado, ensinaram-lhe nos fatos o que es¬ camada de ilusão teve que atravessar antes mesmo de poder percebê-la Com¬.
condia essa famosa “ miséria alemã” , esse “ filistinismo” denunciado pela in ¬ preende-se então que, num certo sentido, se se tiver em consideração esse
dignação moral e essa própria indignação moral: uma situação histórica con ¬ começo, não se pode absolutamente dizer que “ a juventude de Marx pertence
-
creta, que nada tinha de mal entendido , relações de classe rígidas e ferozes, ao marxismo” , a menos que se entenda que, como todo fenômeno de história,
a evolução desse jovem burguês alemão pode ser esclarecida pela aplicação
reflexos de exploração e de temor mais fortes na burguesia alemã do que todas
as demonstrações da Razão. É então que tudo muda e que Marx descobre, dos princípios do materialismo histórico. Certamente a juventude de Marx
enfim, a realidade dessa opacidade ideológica que o tornava cego; ele se vê conduz ao marxismo, mas ao preço de arrancá-lo prodigiosamente de suas .
constrangido a renunciar projetar sobre a realidade do estrangeiro os mitos origens, ao preço de um combate heroico contra as ilusões de que foi alimen¬
alemães e a reconhecer que tais mitos não só não têm sentido para o estrangeiro, tado pela história da Alemanha onde nasceu, ao preço de uma atenção aguda
mas nem mesmo para a Alemanha, que embala neles os sonhos de sua própria às realidades que essas ilusões recobriam. Se o “ caminho de Marx” é exemplar,
servidão, e que é preciso, ao contrário, projetar sobre a Alemanha a luz das não é por suas origens e seu detalhe, mas por sua vontade indomável de se li¬
experiências adquiridas no estrangeiro para vê-la em plena luz do dia. bertar dos mitos que se faziam passar pela verdade , e pelo papel da experiência
Espero que se tenha compreendido que é preciso, se se quer verdadeira¬ da história real que derrubou e varreu esses mitos.
mente pensar essa génese dramática do pensamento de Marx, renunciar a pen ¬ Permitam-me abordar um último ponto. Se esta interpretação permite uma
-
sá la em termos de “ superação” para pensá-la em termos de descobertas, re¬ melhor leitura das obras de juventude, se permite - esclarecendo os elemen¬
nunciar ao espírito da lógica hegeliana implicado no inocente mas astucioso tos teóricos pela unidade profunda do pensamento (sua problemática) e o
conceito de superação (Aufhebung ), que não é senão a antecipação vazia de desenvolvimento dessa problemática pelas aquisições da experiência efetiva
seu próprio fim na ilusão de uma imanência da verdade, para adotar uma lógica -
de Marx (sua história: suas descobertas) definir os problemas debatidos e
da experiência efetiva e da emergência real, que ponha precisamente um termo rebatidos, saber se Marx já é Marx, se ele ainda é feuerbachiano ou está além
às ilusões da imanência ideológica; em suma, para adotar uma l ógica da ir¬ de Feuerbach, ou seja, determinar, a cada momento de sua evolu ção de juven ¬

rupção da história real na própria ideologia e para atribuir assim um sentido tude, o sentido interno e externo dos elementos imediatos de seu pensamento,
efetivo, absolutamente indispensável à perspectiva marxista, e, além do mais, ela deixa em suspenso, ou melhor, ela introduz uma outra questão: a questão
exigido por ela, ao estilo pessoal da experiência de Marx, a essa sensibilização da necessidade do começo de Marx, considerado então do ponto de vista de
ao concreto, tão extraordin ária nele, que dava a cada um de seus encontros com seu termo.
o real tanta força de convicção e de revelação.47 Tudo acontece, com efeito, como se a necessidade que Marx teve de se li¬
Nã o posso pretender apresentar aqui uma cronologia nem uma dialética bertar de seu começo - ou seja, de atravessar e dissipar esse mundo ideológi¬
dessa experiência efetiva da história, que une, nesse ser singular que é o Jovem co extraordinariamente pesado que o recobria - tivesse tido não só uma signi¬
Marx, a psicologia própria de um homem e a história do mundo, para produzir ficação negativa (a libertação das ilusões), mas também uma significaçã o de
nele as descobertas das quais vivemos ainda hoje. O detalhe deve ser buscado -
algum modo formadora, apesar dessas mesmas ilusões. Pode se certamente
no “ Pai” Cornu, pois nenhum outro - salvo Mehring, que não tinha sua erudi¬ considerar que a descoberta do materialismo histórico estava “ no ar” , e que,
ção nem suas informações - fez esse trabalho indispensá vel. Posso, por isso, em muitos aspectos, Marx despendeu uma soma prodigiosa de esforços teóri¬
predizer com toda a tranquilidade que ele será lido por muito tempo, porque cos para chegar a uma realidade e atingir verdades que já haviam sido, em
não há outro acesso ao Jovem Marx senão o de sua história real. parte, reconhecidas ou conquistadas. Teria havido assim uma “ via curta” da
Espero somente ter dado assim uma ideia da extraordinária relação que descoberta (a de Engels no artigo de 1844, por exemplo,48 ou mesmo aquela
existe entre o pensamento servo do Jovem Marx e o pensamento livre de Marx, cuja pista Marx admirava em Dietzgen) e uma “ via longa” , a que Marx seguiu.
mostrando, o que geralmente é muito negligenciado, de que começo contin¬ O que Marx ganhou então nessa “ longa marcha” teórica que lhe foi imposta

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SOBRE O JOVEM MARX " ( QUESTõES DE TEORIA )

pelo seu pró prio começo? O que ganhou então por ter começado tão longe do da permanência, essa extrema tensão entre o começo e o fim, entre a linguagem
final , por ter permanecido tanto tempo na abstração filosófica e ter percorrido e o sentido, dos quais n ão se poderia fazer uma filosofia sem esquecer que o
i
tais espaços para reencontrar a realidade? Provavelmente, ter exercitado seu destino que envolvem é irreversível .
espírito crítico como ninguém, ter adquirido esse incomparável “ olho cl ínico” í
para a história, alerta para a luta de classes e para as ideologias; mas também, r
Dezembro de 1960
no contato de Hegel, sobretudo, ter adquirido o sentido e a prática da abstração ,
indispensá vel à constituição de toda teoria científica, o sentido e a prática da
síntese teórica , e da lógica de um processo cujo “ modelo” abstrato e “ puro” a
dialética hegeliana lhe oferecia. Indico aqui essas referências, sem pretender
Notas
trazer ainda uma resposta a essa pergunta ; mas elas permitem talvez definir, 1 Deveras notável é o interesse manifestado pelos jovens pesquisadores soviéticos peio estudo
ainda pendente a confirmação pelos estudos científicos em curso, qual pode ter das obras de juventude de Marx. É um sinal importante da tendência atual do desenvolvimen¬
sido o papel dessa ideologia alem ã, e mesmo da “ filosofia especulativa” alemã to cultural na URSS (cf. “ Apresentação” , p. 4, nota 7).
2 Incontestavelmente dominado pelo notabil íssimo texto de Hoeppner: “ A propósito de algumas
na formação de Marx . Estaria inclinado a ver aí menos um papel de formação concepções erró neas da passagem de Hegel a Marx ” [“ A propos de quelques conceptions
teórica do que um papel deformação para a teoria , uma espécie de pedagogia -
erronées du passage de Hegel à Marx ” ] (pp. 175 190).
do espírito teórico por meio das formações teóricas da própria ideologia. Como 3 Cf . Obras filosóficas de Marx [CEuvres philosophiques de Marx ] , trad , francês Molitor, Ed .
Costes. Tomo IV, “ Introdu ção” de Landshut e Mayer: “ É manifesto que, na base da tendência
se, dessa vez, mas numa forma alheia à sua pretensão , esse sobredesenvol - que presidiu à aná lise feita n’ 0 capital , h á [ ...] hipóteses tácitas, as ú nicas, entretanto, que
vimento ideológico do espírito alemão tivesse servido duplamente de prope ¬ podem dar a toda a tendência da obra capital de Marx sua justificação intr ..
ínseca [. ] essas
dêutica ao Jovem Marx: ao mesmo tempo pela necessidade que lhe impôs hipó teses são precisamente o tema formal do trabalho de Marx antes de 1847. Não foram para
.
o Marx d’ O capital erros de juventude, dos quais se libertou à medida que seu conhecimento
criticar toda a sua ideologia para atingir o aquém de seus mitos e pelo treina ¬ ganhava maturidade, e que, na operação de seu aperfeiçoamento pessoal , deviam depositar-se
mento que lhe deu para manejar as estruturas abstratas de seus sistemas, inde ¬ como escórias inutilizá veis . Em seus trabalhos de 1840 1847 , Marx abre a si mesmo todo o
-
pendentemente da validade deles . E se se aceitar tomar alguma distâ ncia em horizonte das condições históricas e assegura-se do fundamento humano geral sem o que toda
a explicação das relações económicas permaneceria o simples trabalho de um economista
relação à descoberta de Marx , considerar que ele fundou uma nova disciplina sagaz . Quem n ão captou essa corrente interior na qual se faz o trabalho do pensamento nessas
científica, que esse próprio surgimento é an álogo a todas as grandes descober¬ obras de juventude, e que percorre toda a obra de Marx , n ão pode chegar a compreender Marx
[...] os princípios de sua an álise económica decorrem diretamente da ‘verdadeira realidade do
tas científicas da história, é preciso convir que nenhuma grande descoberta se
homem ’ [...]” ( pp. XV-XVII). “ Com uma pequena mudan ça, a primeira frase do Manifesto
fez sem que fosse evidenciado um novo objeto ou um novo domínio, sem que Comunista poderia ter esta redação: toda a história passada é a história da alienação própria
aparecesse um novo horizonte de sentido, uma nova terra, de onde são banidos do homem...” (XLII) etc . Pode se encontrar no artigo de Pajitnov, “ Os manuscritos de 1844”
-
[“ Les manuscrits de 1844” ] ( Recherches, pp. 80-96), uma boa recensão dos principais autores
os antigos mitos e as antigas imagens. Contudo, ao mesmo tempo, é preciso dessa corrente revisionista “ Jovem Marx” .
reconhecer como absolutamente necessário que o inventor desse novo mundo 4 -
Eles poderiam evidentemente e essa tentativa paradoxal ocorreu , na própria Fran ça tran -
tenha exercitado o espírito nas formas antigas mesmas , que as tenha aprendido qu ílamente, desposar (sem o saber) as teses de seus adversá rios e repensar Marx por meio de
e praticado; que, na sua crítica, tenha adquirido o gosto e aprendido a arte de
5
-
sua própria juventude. Mas a história acaba sempre por dissipar os mal entendidos.
W. Jahn , em seu artigo “ O conte ú do económico da alienação” [“ Le contenu économique de
manejar formas abstratas em geral , sem a familiaridade das quais n ã o teria 1’ a í i é nation” ] ( Recherches, p. 158) .
podido conceber outras novas para pensar seu novo objeto. No contexto geral 6 Cf. Schaff , “ O verdadeiro rosto do jovem Marx” [“ Le vrai visage du jeune Marx” ] ( Recherches,
do desenvolvimento humano que torna por assim dizer urgente, se não inevitᬠp. 193) . Cf . iguaimente este extrato da “ Apresentação” ( pp. 7-8): “ N ão se pode tentar com ¬
preender seriamente toda a obra de Marx, e o pró prio marxismo como pensamento e como
vel, toda grande descoberta histórica, o indivíduo que se torna seu autor est á ação, com .base na concepção que Marx podia ter de suas primeiras obras, no momento em
submetido à condi ção paradoxal de ter que aprender a arte de dizer o que vai que as elaborava. Somente é v álido o procedimento inverso, aquele que, para compreender
descobrir com aquilo mesmo que deve esquecer. É talvez também essa condi ¬ a significação e apreciar o valor dessas primícias (?) e para penetrar nesses laborató rios cria ¬
dores do pensamento marxista que são textos tais como os cadernos de Kreuznach e os Ma¬
ção que dá às obras de juventude de Marx esse aspecto trágico da iminência e -
nuscritos de 1844, parte do marxismo tal como Marx o legou a nós, e também isso deve ser

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POR MARX SOBRE O JOVEM MARX ( QUEST õ ES DE TEORIA )

dito claramente - tal como ele se enriqueceu de um século para cá por meio da prá tica histó ¬ 19 Cf. por exemplo Bakouradzé, “ A formação das ideias filosóficas de K . Marx ” [“ La formation
rica. Na ausência disso, nada pode impedir que se avalie Marx com o auxílio de critérios des ídées philosophiques de K. Marx” ] (Recherches , pp. 29 32). -
emprestados do hegelianismo, quando n ão do tomismo. A história da filosofia escreve se no - 20 Jahn, art. citado, pp. 169 e 160.
-
futuro do pretérito. Não concordar com isso é, no limite, negar essa história, e erigir se em 21 Pajitnov, art . citado, p. 117.
seu fundador à maneira de Hegel" . Sublinhei expressamente as duas últimas frases. Mas o : 22 Lapine, art. citado, pp. 58, 67, 69.
leitor terá sublinhado por si mesmo, espantado de ver atribuir ao marxismo a concepção mes ¬ 23 Schaff , art. citado, p. 202.
ma da história hegeiiana da filosofia e, c ú mulo da perplexidade, de se ver tratado como hege- 24 Coloco essa questão em relação a um estranho. Mas todos sabem que ela se coloca aos próprios
liano se porventura a recusar... Veremos mais adiante que outros motivos estão em causa em marxistas, que usam as obras de juventude de Marx. Se eles se servem delas sem discernimen¬
tal concepção. Em todo caso, esse texto mostra claramente o movimento que eu indicava: Marx to, se tomam textos d’ A questão judaica , dos Manuscritos de 1843 ou 1844 por textos marxis¬
ameaçado por inteiro a partir de sua juventude, esta é recuperada como um momento do lodo, tas, se se inspiram neles e tiram daí conclusões para a teoria e a ação ideológica, eles respon¬
e fabrica-se para ta! efeito uma filosofia da história da filosofia simplesmente... hegeiiana. dem de fato à questão, pois o que fazem responde em seu lugar: que o Jovem Marx pode ser
Hoeppner em seu artigo “ A propósito da passagem de Hegel a Marx” [“ A propos du passage
considerado Marx , que o Jovem Marx é marxista. Eles dão em voz alta a resposta que d á
de Hegei à Marx” ] (Recherches, p. 180), calmamente define com precisão: “ Não se deve olhar baixinho (evitando justamente responder) a cr ítica de que falo. Em ambos os casos, os mesmos
a história da frente para trás, e. procurar do alto do saber marxista germes ideais no passado. princípios est ão em atividade e em causa.
É preciso seguir a evolução do pensamento filosófico a partir da evolução real da sociedade” . É
25 Jahn , art . citado, p. 173. “ em A ideologia alemã... o materialismo dialético encontrou a termi¬
a própria posição de Marx , amplamente desenvolvida em A ideologia alemã , por exemplo.
nologia adequada" . No entanto, Jahn mostra , em seu próprio texto, que se trata de tudo menos
7 “ Apresentação” , p. 7, Os considerandos são inequívocos. de terminologia.
8 Cf . Hoeppner ( art. citado, p. 178): “ A quest ão n ão é saber em que conte ú do marxista um pes¬ 26 Lapine, art . citado, p. 69.
quisador marxista de hoje pode pensar na leitura de tais passagens, mas, sim, saber que con ¬
27 Evidentemente o marxismo, como toda disciplina científica, não se deteve em Marx, como a
te ú do social elas têm para o pró prio Hegel". O que Hoeppner diz perfeitamente de Hegel ,
f ísica n ão se deteve em Galileu , que a fundara. Como toda disciplina científica , o marxismo
contra Kuczy nsk í que procura em Hegel temas “ marxistas” , vale sem nenhuma restrição para
desenvolveu -se, e durante a própria vida de Marx . Novas descobertas foram tornadas possíveis
o próprio Marx quando se leem suas obras de juventude a partir das obras da maturidade.
pela descoberta fundamental de Marx . Seria bem imprudente crer que tudo já foi dito.
9 Togliatti, “ De Hegel ao marxismo” {“ De Hegel au marxisme” ] (Recherches , pp. 38- 40).
10 N. Lapine, “ Crítica da filosofia de Hegei” [“ Critique de la philosophie de Hegel” ] ( Recherches,
28 Cf . A. Cornu , Karl Marx et F. Engels , tomo I, PUF. Os anos de inf ância e de juventude. A
esquerda hegeiiana. [Les années d’ enfance et de jeunesse. La gauche hégéiienne.] Capítulo
-
pp. 52-71).
sobre “ a formação da esquerda hegeiiana” , particularmente p. 141 e ss. Cornu insiste muito
11 W. Jahn, “ O conteúdo económico do conceito de alienação do trabalho nas obras de juventude justamente no papel de von Cieskowski na elaboração de uma filosofia da ação de inspiração
de Marx" [“ Le contenu économique du concept d’ alié nation du travail dans les oeuvres de neo- hegeliana, adotada por todos os jovens intelectuais liberais do movimento .
jeunesse de Marx” ] ( Recherches, pp. 157-174). 29 Não posso abordar aqui um estudo dos conceitos em ação nas análises d’A ideologia alemã.
12 Por exemplo, as duas citações invocadas por Togliatti para mostrar a superação de Feuerbach Eis um simples texto, que diz tudo. Trata-se da “ cr ítica alemã” : “ Todas as suas questões bro ¬
por Marx são justamente uma... contrafação dos próprios textos de Feuerbach! Hoeppner, ao taram no terreno de um sistema filosófico determinado, o hegelianismo. Não somente em suas
-
qual nada escapa, viu o bem : “ As duas citações dos Manuscritos (de 1844), feitas por Toglia¬ respostas, mas já nas próprias perguntas havia uma mistificação” . N ão se poderia dizer melhor
tti para mostrar que Marx est á desde ent ão livre de Feuerbach, não fazem mais do que repro¬ que n ão é a resposta que faz a filosofia, mas a própria pergunta colocada pela filosofia, e que
duzir quanto ao fundo as ideias de Feuerbach nas Teses provisórias e nos Princípios da filo ¬
é na pergunta , ou seja, na maneira de refletir sobre um objeto (e n ã o nesse objeto) que é
sofia do futuro” (art. citado, p. 184, nota 11 ). Poder-se-ia, no mesmo sentido, contestar o valor preciso procurar a mistificação ideológica ( ou, ao contrário, a relação autê ntica com o objeto).
probatório das citações invocadas por Pajitnov, pp. 88 e 109 de seu artigo ( Os Manuscritos de 30 Essa consequ ê ncia é capital. O que distingue efetivamente o conceito de problemática dos
1844). A moral desses equ ívocos: é bom ter lido atentamente os autores . Ela não é supérflua
conceitos subjetivistas da interpretação idealista do desenvolvimento das ideologias é que ele
quando se trata de Feuerbach. Marx e Engels falam tanto dele, e t ão bem, que se acaba acre ¬
evidencia , no interior de um pensamento, o sistema de referência interno objetivo de seus
ditando ser íntimo dele. próprios temas: o sistema das perguntas que comandam as respostas dadas por essa ideologia.
i 3 Por exemplo, Jahn, Comparação sugestiva entre a teoria da alienação dos Manuscritos de 1844 E preciso então, antes de tudo, fazer a uma ideologia a pergunta sobre suas perguntas para
e a teoria do valor d’ O capital . compreender, nesse nível interno, o sentido de suas respostas. Mas essa problem ática é , em si
14 Ver a nota 5.
15 Excelente cr ítica desse formalismo por Hoeppner, a propósito de Kuczynski (art. citado,
- -
mesma, uma resposta , não mais às suas próprias perguntas problemas internas, mas aos
problemas objetivos colocados por seu tempo à ideologia. Comparando os problemas coloca¬
pp. 177 -178). dos pelo ideólogo (sua problemática) aos problemas reais colocados por seu tempo ao ideó ¬
16 Na teoria das origens, é a origem que mede o desenvolvimento. Na teoria das antecipações, é logo, é possível evidenciar o elemento propriamente ideológico da ideologia , ou seja, o que
o fim que decide o sentido dos momentos de seu curso. caracteriza a ideologia como tal, sua deformação mesma. Não é, portanto, a interioridade da
17 Lapine, “ Cr ítica da filosofia de Hegei” ( “ Critique de la philosophie de Hegei” ] ( Recherches , problemática que constitui sua essência, mas sua relação com os problemas reais: não se pode
p. 68). ent ão evidenciar a problemática de uma ideologia sem a relacionar e submeter aos problemas
reais aos quais ela dá, pela enunciação deformada deles, uma falsa resposta. Mas n ão posso
18 Lapine, art. citado, p. 69.
antecipar o terceiro ponto de meu desenvolvimento (ver a nota 45).

66 67
POR MARX
t
|
$ SOBRE O JOVEM MARX ( QUEST õ ES DE TEORIA )

31 Tal é o sentido da “ questão fundamental” , que distingue o materialismo de todas as formas de dade em Deus), supunha justamente uma descontinuidade radical. Embora o segundo gênero
idealismo. permita a inteligibilidade do primeiro , não é sua verdade .
32 Cf. a excelente passagem de Hoeppner: art. citado, p. 188. Ver igualmente a nota 11 da p. 184. 40 Cf. A ideologia alemã. Costes, tomo IX das Obras filosóficas de Marx , pp. 41 58. “ A teoria,
-
33 J á , pois para realizar-se, essa ruptura , como todo esse processo de libertação, supõe que a que entre os ingleses era ainda a simples constatação de um fato, torna-se, entre os franceses,
história real seja levada a sério .
34 Artigos citados.
; 41
um sistema filosófico” ( p . 48).
Ver Hoeppner, art. citado, pp. 186-187. Ainda uma palavra sobre a expressão “ volta atrás” . Ele
35 Digamos, de verdade pedagógica. Quanto à famosa “ inversão” de Hegel, ela é a própria ex ¬ não poderia evidentemente ser entendido sen ão metaforicamente como o oposto exato da
pressão da tentativa de Feuerbach. Foi Feuerbach que a introduziu e consagrou na posteridade “ superação” . N ão se trata de substituir a compreensão da ideologia pelo s&u fim por uma es¬
hegeliana. B é bastante notá vel que Marx tenha justamente formulado contra Feuerbach, n’ A pécie de compreensão por sua origem . Quis somente figurar desse modo como, no interior
ideologia alemã, a censura de ter permanecido prisioneiro da filosofia hegeliana no momento I í
mesmo da consciência ideológica do Jovem Marx, se manifestou essa exigência crítica exem ¬
-
mesmo em que ele pretendia tê-la “ invertido” . Censurava o por ter aceitado os pressupostos plar: ir consultar os originais ( filósofos pol íticos franceses, economistas ingleses, revolucio ¬
das perguntas de Hegel e por ter dado respostas diferentes, mas às mesmas perguntas. Con- n á rios, entre outros ) dos quais falava Hegel . Mas essa “ volta atrá s” acaba, no próprio Marx,
trariamente à vida cotidiana em que as respostas são indiscretas, em filosofia somente as por anular suas aparências retrospectivas de uma procura do original na forma da origem:
perguntas o são. Quando se mudaram as perguntas, não se pode mais propriamente falar de quando ele volta à hist ória alem ã , para destruir a ilusão de seu “ atraso” , ou seja, para pensá-la
inversão. Sem dií vida , se se comparar a nova ordem relativa das perguntas e das respostas à na sua realidade, sem a medir com um modelo exterior como sua norma. Essa volta atrás é
antiga, pode-se ainda falar de inversão. Mas é apenas por analogia, pois as perguntas não são ent ão propriamente uma retomada atual, uma recuperação , uma restituição de uma realidade
mais as mesmas , e os dom ínios que elas constituem não são compará veis , a não ser, como roubada pela ideologia, e por ela tornada irreconhecível .
dizia, para fins pedag ógicos. 42 É o momento “ liberal” do movimento jovem hegeliano. Ver Cornu, op. cit ., cap. IV, p. 132 e ss.
36 Cf. nota 35. 43 Tema amplamente desenvolvido pelos neo hegelianos. Cf. Feuerbach, Teses provisórias para
-
37 Essa vontade de dissipar toda ideologia e de ir “ às pró prias coisas” , de “ desvelar o existente” -
a reforma da filosofia , par ágrafos 46 e 47 ( PUF, pp . 116 117).
( zur Sache selbst... Dasein zu enthiillen ) anima toda a filosofia de Feuerbach . Seus termos são 44 Essa problemática implica, no fundo, a deformação dos problemas histó ricos reais em proble -
a comovente expressão disso. Seu drama foi ter feito a filosofia de sua intenção, ter permane ¬ mas filosóficos. O problema real da revolução burguesa, do liberalismo pol ítico, da liberdade
cido prisioneiro da própria ideologia da qual queria desesperadamente livrar-se, pensando sua ' de imprensa, do fim da censura, da luta contra a Igreja etc. é transformado em problema filo¬
libertação da filosofia especulativa dentro dos conceitos e da problemática própria dessa filo¬ : sófico: o do reino da Razão, cujo triunfo a História deve assegurar, a despeito das aparências
sofia . Era preciso “ mudar de elemento” . da realidade. Essa contradição da Raz ão, que é a essê ncia interna e o fim da história, e da
38 Excelentes páginas sobre esse ponto em Lapine, art . citado, pp. 60-61 . Essas “ experiências” : -
realidade da histó ria presente, eis o problema fundamental dos neo hegelianos. Essa propo¬
intelectuais de Marx n ão podem, contudo, preencher o conceito de “ tendência” (demasiado sição do problema (essa problem ática) comanda evidentemente suas soluções : se a Raz ão é
vasto e demasiado abstrato para elas, além de refletir o finai do desenvolvimento em curso ) o fim da História e sua essência, basta fazer com que ela seja reconhecida até em suas aparê n ¬
com o qual Lapine gostaria de pensá-las. Estou, ao contrário, profundamente de acordo com cias contrárias: toda a solução reside, portanto, na onipotência cr í tica da filosofia que deve
Hoeppner (art. citado, pp. 186-187): “ Marx não chega à solu ção através de manipulações da -
tornar se prática dissipando as aberrações da Hist ória em nome de sua verdade. Pois denunciar
dialética hegeliana, mas essencialmente baseado em pesquisas muito concretas, sobre hist ória, as desrazões da hist ória real é apenas enunciar sua pró pria razão atuando nas suas desrazões
sociologia e economia política [...]. A dialética marxista nasceu no essencial das terras novas mesmas . Assim, o Estado é a verdade em ato, a encarnação da verdade da Histó ria. Basta
que Marx desbravara e abrira à teoria [...] Hegel e Marx n ão beberam das mesmas fontes” . convertê -lo a essa verdade. É por isso que essa “ prá tica” se reduz definitivamente à cr í tica
39 Para que o termo “ superação” no sentido hegeliano tenha um sentido, não basta substitu í-lo filosófica e à propaganda teórica: basta denunciar as desrazões para que elas cedam, e dizer a
-
pelo conceito de negação-que-conté m -em-si- mesma o-termo-negado para fazer aparecer a razão para que eia vença. Tudo depende, portanto, da filosofia, que é por excelência a cabeça
e o coração ( depois de 40 será apenas a cabeça... o coração será francês!) da Revolu ção. Isso
ruptura na conservação, pois essa ruptura na conservação supõe uma continuidade substancial
no processo , traduzido na dialética hegeliana pela passagem do em -si ao para-si , depois ao no que diz respeito às solu ções requeridas pela maneira de propor o problema fundamental.
em-si-e-para-si etc. Ora, é justamente essa continuidade substancial do processo contendo em Mas o que é infinitamente mais esclarecedor, e ainda a respeito dessa problemática , é descobrir,
germe, em sua própria interioridade , seu próprio futuro, que está aqui em causa. A superação - -
comparando a aos problemas reais propostos pela história aos neo hegelianos, que essa pro¬
hegeliana supõe que a forma ulterior do processo é a “ verdade" da forma anterior. Ora, a po¬ blemática , embora responda a problemas reais, não corresponde a nenhum desses problemas
sição de Marx, toda a sua crítica da ideologia implica ao contrário que, em seu sentido próprio , reais; que nada se decide entre a razão e a desrazâo, que a desrazão não é uma desrazão e não
a ciência (que apreende a realidade) constitua uma ruptura com a ideologia, e que ela se es ¬ é uma aparência , que o Estado não é a liberdade em ato etc. Ou seja, que os objetos sobre os
tabeleça em outro terreno , que se constitua a partir de novas questões, que faça a propósito quais essa ideologia parece refletir, através de seus problemas, nem mesmo são representados
da realidade outras perguntas que não as da ideologia, ou , o que vem a dar no mesmo, que em sua realidade “ imediata” . Quando se chega ao fim dessa comparação, n ão só as solu ções
defina seu objeto de maneira diferente daquela da ideologia. Assim, a ciência não pode, por trazidas pela ideologia a seus próprios problemas caem (elas são apenas a reflex ã o desses
nenhuma razão, ser considerada, no sentido hegeliano, como a verdade da ideologia. Se se problemas sobre si mesmos ), mas a problemática mesma cai ; o que aparece, então, é a defor¬
quiser encontrar em Marx uma ascendência filosófica desse aspecto, mais do que a Hegel, é
: mação ideológica em toda a sua extensão: mistificação dos problemas e dos objetos. Com ¬
a Spinoza que é preciso dirigir-se. Entre o primeiro gênero de conhecimento e o segundo, -
preende se assim o que Marx queria dizer ao falar da necessidade de abandonar o terreno da
Spinoza estabelecia uma relação que, em sua imediaticidade (se se fizer abstração da totali¬ filosofia hegeliana , pois “ não somente em suas respostas, mas já nas próprias perguntas havia
uma mistificação” .

68 69

_Ei .
POR MARX.

45 Cf . “ Carta a Ruge” [Lettre à Ruge] ( set. 1843). Ed. Costes das Obras filosóficas de Marx , p.
205.
46 Cf. o artigo de Engels ( 1844) “ Umrisse zu einer Kritik der Nazionaloekonomie” ; esse artigo,
que Marx mais tarde declarou “ genial ” , exerceu sobre ele influê ncia muito profunda. Em
geral, sua importância é subestimada.
47 Falar de uma lógica da emergência n ão é, como se terá compreendido, esboçar como fez, por
exempio, Bergson, uma filosofia da invenção. Pois esse surgimento n ão é a manifestação de
alguma essência vazia , liberdade ou escolha; ele é, ao contrário, apenas o efeito de suas próprias
condições empíricas. Acrescentarei que essa lógica é exigida pela própria concepção que Marx
faz da história das ideologias , pois, no fundo, a conclusão que sobressai desse desenvolvi ¬
mento sobre a história real das descobertas de Marx põe em causa a própria história ideoló¬
III
cr
gica. Quando está bem claro que a tese imanentista da ítica idealista é refutada, que a his¬ I I).'
tória ideol ógica n ão é seu pr ó prio princípio de inteligibilidade; quando se percebe que a
história ideológica pode compreender-se apenas pela história real que explica suas formações, CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERMINA ÇÃ O
-
suas deformações e as reestruturações destas, e nela emerge, é preciso perguntar se ent ão o ( Notas para uma pesquisa )
que ainda subsiste dessa história ideol ógica como história , admitindo que ela n ão é nada. “ A
moral" - diz Marx “ a religião, a metaf ísica, e todas as outras formas de consciência que lhe
correspondem , n ão podem, portanto, conservar mais a apar ê ncia da autonomia. Elas não têm
história , não tê m desenvolvimento, mas os homens que desenvolvem sua produção material
»
,

e suas trocas materiais modificam, ao mesmo tempo que essa realidade que é a deles, igual ¬ Em Hegel , ela [a dialética! est á dc cabeç a para baixo . E preciso
.
^
mente seu pensamento e os produtos de seu pensamento.” Direi, portanto, para voltar ao invertê- la para descobrir na ganga m ística o n ú cleo racional .
-
nosso começo e estas duas razões são a mesma razão que “ a histó ria da filosofia” n ão se
K. Marx , “ Posf á cio” da 2a edi çã o , O capital
pode fazer no “ futuro do pretérito” , não só porque o futuro do pretérito não é uma categoria
'
<;
da inteligibilidade histórica, mas também porque a história da filosofia, no sentido estrito, não
existe.
48 Cf . nota 46. A Margritte e a Gui.

Sublinhei recentemente, num artigo consagrado ao Jovem Marx ,! o equ ívoco


do conceito de “ inversã o de Hegel” . Era claro que, rigorosamente, essa expres¬
sã o convinha perfeitamente a Feuerbach , que repõe efetivamente “ a filosofia
especulativa sobre seus pcs” , mas para dela tirar apenas, segundo a virtude de
uma implacá vel lógica, uma antropologia idealista; mas era claro també m que
ela n ão se podia aplicar a Marx , pelo menos ao Marx desembara çado de sua
fase “ antropol ógica” .
Irei mais longe, sugerindo que, na conhecida express ão “ A dial ética , em
Hegel , está de cabeça para baixo. É preciso invertê-la para descobrir na ganga
m ística o n ú cleo racional” ,2 a f órmula da “ inversão” é apenas indicativa , até
metaf órica, e que ela coloca tantos problemas quantos os que resolve.
Com efeito, como entend ê-la nesse exemplo preciso ? Já não se trata, ent ão,
da “ invers ã o” em geral de Hegel , ou seja , da invers ã o da filosofia especulativa
como tal . Desde A ideologia alemã , sabemos que essa operação n ão tem sen ¬

tido nenhum. Quem pretender pura e simplesmente inverter a filosofia especu -

70 71
POR MARX CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERMINAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

Iativa (para daí tirar, por exemplo, o materialismo), não será mais que o Prou ¬ comentários ulteriores de Engels),5 a filosofia especulativa, ou a “ concepção
dhon da filosofia , seu prisioneiro inconsciente, como Proudhon o era da -
de mundo” ou o “ sistema” ou seja, um elemento considerado entã o como
economia burguesa. Trata se agora da dialética e unicamente dela. Mas quan
- ¬ exterior ao método, mas que ela se refere à própria dialética. Marx chega a
do Marx escreve que é preciso “ descobrir o n úcleo racional na ganga mística” , dizer que “ a dialética sofre uma mistificação nas mãos de Hegel” , fala de seu
poder-se-ia crer que o “ n úcleo racional” é a própria dialética , e a ganga mís¬ “ lado mistificador” , e de sua “ forma mistificada” , e opõe precisamente a essa
tica , a filosofia especulativa... É, aliás, o que Engels dirá, em termos que a forma mistificada ( mystificirte Form) da dialética hegeliana, & forma racional
tradição consagrou , quando distingue o método do sistema.3 Desprezaríamos ( rationelle Gestalt) de sua própria dialé tica. É dif ícil dizer mais claramente
então a ganga, o invólucro místico (a filosofia especulativa), para conservar seu que a ganga mística não é senão a forma mistificada da própria dialética, ou
precioso n ú cleo: a dialética. Porém, na mesma frase, Marx diz que é uma e a seja, não um elemento relativamente exterior à dialética (como o “ sistema” ),
mesma coisa esse descascamento do n ú cleo e a inversão da dialética. Mas como .
mas um elemento interno, consubstanciai à dialética hegeliana Portanto, não
essa extração pode ser uma inversão? Dito de outro modo, o que, nessa extra ¬ - -
bastou desprendê la do primeiro invólucro (o sistema) para libertá la. É preci ¬
ção, é “ invertido” ? so libertá-la também dessa segunda ganga que se lhe cola ao corpo, que é, ouso
Vejamos isso detidamente. Uma vez extraída a dialética de sua ganga idea ¬ dizer, sua própria pele, inseparável dela mesma, que é .ela própria hegeliana
lista, ela se torna o “ contrário direto da dialética hegeliana” . Isso quer dizer até em seu princípio ( Grundlage). Digamos então que não se trata de uma
que, em vez de se referir ao mundo sublimado e invertido de Hegel , ela se extração sem dores, e que esse aparente descascamento é, na verdade, uma
aplicará doravante em Marx ao mundo real ? É nesse sentido que Hegel foi “ o desmistificação , ou seja, uma operação que transforma o que extrai.
primeiro a expor, de maneira ampla e consciente, suas formas de movimento Penso então que, em sua aproximação, essa expressão metafórica da “ in ¬
- -
gerais” . Tratar-se ia então de lhe retomar a dial ética, e aplicá la à vida em vez versão” da dialética coloca n ão o problema da natureza dos objetos aos quais
-
de aplicá la à Ideia. A “ inversão” seria uma inversão do “ sentido” da dialética. se trataria de aplicar um mesmo método (o mundo da Ideia em Hegel o mun - ¬

Mas essa inversão do sentido deixaria, de fato, a dialética intacta. do real em Marx ), mas sim o problema da natureza da dialética considerada
Ora, justamente no artigo citado, eu sugeria, tomando o exemplo do Jovem em si mesma, ou seja, o problema de suas estruturas específicas Não o pro¬.
Marx , que a retomada rigorosa da dialética na sua forma hegeliana só podia blema da inversão do “ sentido” da dialética, mas o problema da transformação
nos levar a equ ívocos perigosos, na medida em que é impensá vel conceber, em de suas estruturas. Apenas é ú til indicar que, no primeiro caso, a exterioridade
virtude dos próprios princípios da interpreta ção marxista de um fenômeno da dialética a seus objetos possíveis, quer dizer, a questão da aplicação de um
ideológico qualquer, que a dialética possa estar alojada no sistema de Hegel método, coloca uma questão pré-dialética, ou seja, uma questão que, rigoro¬
como um núcleo em seu invólucro.4 Com isso eu queria assinalar que é incon¬ samente, não pode ter sentido para Marx. Pelo contrário, o segundo problema
cebível que a ideologia hegeliana não tenha contaminado a essência da dial é¬ coloca uma quest ão real, à qual seria bem improvável que Marx e seus dis¬
tica no próprio Hegel, ou , visto que essa “ contaminação” não pode senão re¬ cípulos não tivessem dado, na teoria e na prática, na teoria ou na prática, res ¬

pousar sobre a ficção de uma dialética pura, anterior à sua “ contaminação” , posta concreta.
-
que a dialética hegeliana possa cessar de ser hegeliana e tornar se marxista Concluamos, portanto, esta explicação de texto demasiado longa dizendo
pelo simples milagre de uma “ extração” . que, se a dialética marxista é, “ em seu princípio” mesmo, o oposto da dialética
Ora, acontece que, nas linhas rápidas do posf ácio, Marx sentiu bem essa - -
hegeliana, se ela é racional e não mística mistificada mistificadora, essa dife¬
dificuldade; não só ele sugere, no acú mulo das met áforas, e em particular no rença radical deve se manifestar em sua essência, ou seja, em suas determina¬
singular encontro da extração e da inversão, um pouco mais do que diz , como ções e suas estruturas próprias. Para falar claramente, isso implica que estru¬
também ele o diz claramente noutras passagens, meio escamoteadas por Roy. —
turas fundamentais da dialética hegeliana tais como a negação, a negação
da negação, a identidade dos contrários, a “ superação” , a transformação da
Basta ler atentamente o texto alemão para descobrir que, nele, a ganga
mística n ão é absolutamente, como se poderia crer (confiando em alguns qualidade em quantidade, a contradição etc. - possuem em Marx ( na medida

72 73
POR MARX CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERM INAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

em que ele as retoma, o que nem sempre é o caso! ) uma estrutura diferente da miná veis massas imensas, e até povos coloniais dos quais se tiravam tropas,
que elas possuem em Hegel . Isso implica também que é poss ível evidenciar, jogava sua gigantesca infantaria não só nos massacres, mas também na história.
.
descrever, determinar e pensar essas diferenças de estrutura E, se é possível , A experiência e o horror da guerra iam, em todos os países, servir de retrans-
é então necessário, diria mesmo vital para o marxismo. Pois não basta conten¬ missor e de revelador do longo protesto de um século inteiro contra a explora ¬

tar-se com repetir indefinidamente aproximações, tais como a diferença do ção capitalista; de ponto de fixação também, dando-lhe enfim a evidência ful ¬
sistema e do método, a inversão da filosofia ou da dialética, a extra ção do gurante e os meios efetivos de ação. Mas essa conclusão, para a qual a maioria
“ n ú cleo racional ” etc., a menos que se deixe a essas f órmulas o cuidado de das massas populares da Europa foi arrastada (revoluções na Alemanha e na
pensar em nosso lugar, ou seja, de não pensar, e se confiar na magia de algumas Hungria, motins e grandes greves na França e na Itália, os sovietes em T\irim ),
palavras perfeitamente desvalorizadas para terminar a obra de Marx. Digo não provocou o, triunfo da revolução senão na Rússia , precisamente no país
vital , pois estou convencido de que o desenvolvimento filosófico do marxismo “ mais atrasado” da Europa. Por que essa exceção paradoxal? Pela razão fun ¬
está atualmente à espera dessa tarefa.6 damental de que a R ú ssia representava, no “ sistema de Estados” imperialistas,8
o ponto mais fraco. A Grande Guerra precipitou e agravou essa fraqueza: não
a criou sozinha. A Revolução de 1905 já havia, com seu próprio fracasso, to¬
mado e mostrado a medida da fraqueza da R ússia czarista. Essa fraqueza re ¬

E visto que é preciso expor-se, gostaria , por minha conta e risco, de tentar sultava deste traço específico: a acumulação e a exasperação de todas as con¬
refletir um instante sobre o conceito marxista de contradição , a propósito de tradições históricas então possíveis num único Estado. Contradições de um
um exemplo preciso: o tema leninista do “ elo mais fraco” . regime de exploração feudal reinando, sob a impostura dos popes, sobre uma
Lenin dava, antes de tudo, um sentido prático a essa metáfora. Uma corren ¬ enorme massa camponesa “ inculta” ,9 no alvorecer do século XX, tanto mais
te vale o que vale seu elo mais fraco. Quem quer, em geral, controlar uma dada ferozrriente quanto a ameaça crescia - circunst ância que aproximou singular-
situação, cuidará para que nenhum ponto fraco torne vulnerável o conjunto do menfe a revolta camponesa da revolu ção operária.10 Contradições da exploração
sistema. Quem quer, ao contrário, atacá-lo, ainda que as aparências da potência capitalista e imperialista desenvolvidas em larga escala nas grandes cidades e
estejam contra ele, basta-lhe descobrir a ú nica fraqueza, a qual torna precá ria em suas periferias, nas regiões mineradoras, petrolíferas etc. Contradições da
toda essa força. Até aí, nada que seja uma revelação quando se leu Maquiavel exploração e das guerras coloniais, impostas a povos inteiros. Contradição
ou Vauban, que conheciam tanto a arte de defender quanto a de arruinar uma gigantesca entre o grau de desenvolvimento dos métodos da produ ção capita¬
praça-forte, julgando toda defesa por sua falha. lista (em particular quanto à concentração operária: a maior fábrica do mundo,
Mas aqui está o n ú cleo do problema. Se a teoria do elo mais fraco guia a fábrica Putilov, reunindo 40 mil operários e auxiliares, ficava então em Pe-
evidentemente Lenin em sua teoria do partido revolucionário (cuja consciência trogrado) e o estado medieval do campo. Exasperação da luta de classes em
e cuja organização serão uma unidade sem falha para escapar a todo golpe todo o país, não só entre exploradores e explorados, mas no interior das próprias
adversário, abatendo ele mesmo o inimigo), ela inspira també m sua reflexão classes dominantes (grandes proprietários feudais, apegados ao czarismo auto ¬

sobre a própria revolu ção. Por que a revoluçã o foi possível na R ússia, por que ritário, policial e militarista; pequenos nobres fomentando constantemente
foi vitoriosa? Ela foi possível na R ú ssia por uma razão que ultrapassava a conjurações; grandes burgueses e burguesia liberal em luta contra o czar; pe ¬
R ússia: porque, com o desencadeamento da guerra imperialista, a humanidade quenos burgueses oscilando entre o conformismo e o “ esquerdismo” anarqui-
entrara numa situação objetivamente revolucionária.1 O imperialismo pertur¬ zante). Ao que se vieram juntar, no decorrer dos acontecimentos, outras cir¬
bara a cara “ pacífica” do velho capitalismo. A concentração dos monopólios cunst â ncias “ excepcionais” ," ininteligíveis fora desse “ emaranhado” das
industriais e a submissão destes aos monopólios financeiros aumentaram a contradições internas e externas da R ússia. Por exemplo: o caráter “ avançado”
exploração operária e colonial. A concorrência dos monopólios tornava a guer¬ da elite revolucioná ria russa coagida pela repressão czarista ao exílio, onde se
ra inevitável. Mas essa mesma guerra, recrutando para seus sofrimentos inter- “ cultivou ” e colheu toda a herança da experiência política das classes operárias

74 75
POR MARX CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERM 1NAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )
I
da Europa ocidental (e antes de tudo: o marxismo) - circunstância que não foi vam ser promovidos em breve ao triunfo socialista, pelo privilégio de perten ¬
alheia à formação do partido bolchevique, que ultrapassava de longe em cons¬ cerem ao Estado capitalista mais poderoso, em plena expansão económica - eles
ciência e em organização todos os partidos “ socialistas" ocidentais',12 o “ en¬ mesmos em plena expansão eleitoral (há dessas coincidências...). Eles acredi ¬
saio geral ” da Revolu ção de 1905, que lançou uma luz crua sobre as relações tavam, evidentemente, que a História avança pelo outro lado, o lado “ bom” , o
-
de classe, cristalizou as, como ocorre geralmente em todo per íodo de crise do maior desenvolvimento económico, da maior expansão, da contradição
grave, permitindo também a “ descoberta” de uma nova forma de organização reduzida à sua representação mais pura (a do Capital e do Trabalho), esque¬
política das massas: os sovietes; por fim, e não é o menos singular, o “ des¬
13

canso” inesperado que o esgotamento das nações imperialistas ofereceu aos


I cendo que, no caso, tudo acontecia numa Alemanha armada com um poderoso
aparelho de Estado e empetecada com uma burguesia que tinha - há quanto
bolcheviques para que abrissem “ sua brecha” na história, o apoio involuntário, tempo! - suspendido “ sua ” revolução política em troca da proteção policial,
mas eficaz, da burguesia franco-inglesa, que, querendo se livrar do czar, fez, no burocrática e militar de Bismarck e, em seguida, de Guilherme; em troca dos
momento decisivo, o jogo da revolução.14 Em suma, e até nesses pormenores, lucros gigantescos da exploração capitalista e colonialista, dotada de uma pe¬
a situação privilegiada da R ússia perante a revolução possível deve-se a uma quena burguesia chauvinista e reacionária - esquecendo que, no caso, essa t ão
acumulação e uma exasperação de contradições históricas tais , que elas teriam simples representação de contradição era simplesmente abstrata: a contradição
sido ininteligíveis em qualquer outro país que não estivesse, como a R ússia, real confundia-se a tal ponto com essas “ circunstâncias” que n ão era discer-
concomitantemente, atrasado pelo menos um século, em relação ao mundo do n ível, identificá vel e manéjá vel senão por meio delas e nelas.
imperialismo, e à sua frente. Tentemos delimitar o essencial dessa experiência prática e da reflexão que
Lenin disse tudo isso em in ú meros textos,15 que Stalin resumiu em termos ela inspira a Lenin. Mas digamos primeiro que essa experiência n ão foi a ú ni¬
particularmente n ítidos em suas conferências de abril de 1924.16 A desigualda ¬
ca a esclarecer Lenin . Antes de 1917 houve 1905; antes de 1905, as grandes
de do desenvolvimento do capitalismo desembocou, através da guerra de 1914, decepções históricas da Inglaterra e da Alemanha; antes delas, a Comuna; mais
na Revolu ção Russa porque a R ússia era, no período revolucionário aberto longe ainda, o fracasso alemão de 1848-1849. Todas essas experiências tinham
diante da humanidade, o elo mais fraco da corrente dos Estados imperialistas: l sido refletidas durante o caminho (Engels: Revolução e contrarrevolução na
porque ela acumulava a maior soma de contradições históricas então possível; Alemanha; Marx : As lutas de classes na França , O 18 Brumário..., A guerra
porque era, ao mesmo tempo, a nação mais atrasada e a mais avançada, con¬ civil na França, Crítica ao programa de Gotha\ Engels: Crítica ao programa
tradição gigantesca que suas classes dominantes, divididas entre si, não podiam de Erfurt etc.), direta ou indiretamente , e tinham sido confrontadas com outras
ignorar, mas não podiam resolver. Noutros termos, a R ússia estava uma revo¬ experiências revolucionárias anteriores: as revolu ções burguesas da Inglaterra
lu ção burguesa em atraso na véspera de uma revolução proletária, grá vida $ e da França.
então de duas revoluções, incapaz, mesmo adiando uma, de conter a outra. Como resumir então essas provas práticas e seu comentário teórico, a n ão
Lenin via perfeitamente ao discernir nessa situação excepcional e “ sem saída” ser dizendo que toda a experiência revolucionária marxista demonstra que, se
( para as classes dirigentes) 17 as condições objetivas para uma revolu ção na a contradição em geral ( mas ela já é especificada: a contradição entre as forças
R ússia, e ao forjar, nesse partido comunista que foi uma corrente sem elo fra ¬ produtivas e as relações de produção, encarnada essencialmente na contradição
co, as condições subjetivas, o meio de assalto definitivo contra esse elo fraco entre duas classes antagonistas) basta para definir uma situação em que a re ¬
da corrente imperialista. volução está “ na ordem do dia ” , ela n ão pode, por sua simples virtude direta,
Tinham Marx e Engels dito outra coisa ao declararem que a história pro¬ provocar uma “ situação revolucionária ” e, com mais razão, uma situação de
gride sempre pelo seu lado mauV 8 Entendamos por isso o lado menos bom ruptura revolucionária e o triunfo da revolu ção. Para que essa contradição se
para aqueles que a dominam. Entendamos também, sem forçar as palavras, o torne “ ativa” no sentido forte, princípio de ruptura, é preciso tal acumulação
lado menos bom para aqueles que... esperam a história de um outro lado! Os de “ circunstâncias” e de “ correntes” que, seja qual for a origem e o sentido (e
sociais-democratas alemães do fim do século XIX, por exemplo, que acredita¬ muitas delas são necessariamente , por sua origem e seu sentido, paradoxal -
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CONTRADIÇÃ O E SOBREDETERMINAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

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mente alheias, até “ absolutamente opostas” à revolu ção), elas “ fundem se” tituem com sua essência e sua eficácia próprias , a partir do que são e segundo
numa unidade de ruptura: quando atingem esse resultado de agrupar a imen ¬ as modalidades específicas de sua ação. Ao constituir essa unidade , elas re¬
sa maioria das massas populares no assalto de um regime que suas classes constituem e realizam a unidade fundamental que as anima, mas ao fazê-lo
dirigentes são incapazes de defender, w Essa situação supõe n ão só a “ fusão” indicam também sua natureza: que a “ contradição” é inseparável da estrutura
das duas condições fundamentais numa “ crise nacional única” , mas cada con ¬ do corpo social como um todo, no qual ela se exerce, inseparável de suas con¬
dição, tomada (abstratamente) à parte, supõe também a “ fusão” de uma “ acu¬ dições formais de existência, e mesmo das instâncias que governa; que é,
mulação” de contradições. De outro modo, como seria possível que as massas portanto, a própria contradição, em seu âmago, afetada por elas, determinante
populares, divididas em classes (proletários, camponeses, pequeno-burgueses), mas igualmente determinada num ú nico e mesmo movimento, e determinada
possam, consciente ou confusamente, se lançar juntas num assalto geral contra pelos diversos níveis e pelas diversas instâncias da formação social que ela
anima: poderíamos cham á-la sobredeterminada em seu princí pio.
22
o regime existente? E como seria possível que as classes dominantes - que
sabem, por uma longa experiência e igualmente seguro instinto, selar entre si, Não tenho especial apreço pelo termo sobredeterminação (emprestado de
a despeito de suas diferenças de classe (senhores feudais, grandes burgueses, outras disciplinas), mas emprego-o na falta de melhor, ao mesmo tempo como
industriais, financistas etc.), a união sagrada contra os explorados - possam um índice e um problema, e também porque permite bastante bem ver porque
ser assim reduzidas à impotência, dilaceradas no instante supremo, sem solução lidamos com outra coisa que não a contradição hegeliana.
nem dirigentes políticos sobressalentes, privadas de seus apoios de classe no A contradição hegeliana, com efeito, nunca é realmente sobredeterminada,
estrangeiro, desarmadas dentro da própria fortaleza de seu aparelho de Estado embora tenha com frequência todas as aparências disso. Na fenomenologia,
e subitamente submersas por esse povo que controlavam tão bem pela explo ¬
por exemplo, que descreve as “ experiências” da consciência, culminando sua
ração, pela violência e pela impostura? Quando nessa situação entra em jogo, dialética no advento do Saber absoluto, a contradição não parece simples , mas,
no mesmo jogo , uma prodigiosa acumulação de “ contradições” das quais al ¬ pelo contrário, muito complexa. Rigorosamente, só a primeira contradição pode
gumas são radicalmente heterogéneas e não têm todas a mesma origem, nem ser dita simples: a da consciência sensível e de seu saber. Mas quanto mais se
0 mesmo sentido, nem o mesmo nível e lugar de aplicação, e que, no entanto, avança na dialética de sua produção e quanto mais a consciência se torna rica,
“ se fundem” numa unidade de ruptura, não é mais possível falar da ú nica vir¬ mais complexa é a contradição. Porém, poder-se-ia mostrar que essa comple¬
tude simples da “ contradição” geral. Decerto, a contradição fundamental que xidade não é a complexidade de uma sobredeterminação efetiva , mas a comple¬
domina esse tempo (em que a revolução “ está na ordem do dia” ) está ativa em xidade de uma interiorização cumulativa, que tem apenas as aparências da
todas essas “ contradições” , e até em sua “ fusão” . Mas não se pode, contudo, sobredeterminação. Com efeito, a cada momento de seu devir, a consciência
pretender com todo o rigor que essas “ contradições” e sua “ fusão” sejam ape¬ vive e experimenta sua própria essência (que corresponde ao grau que ela
nas seu puro fenômeno. Pois as “ circunstâncias” ou as “ correntes” que a rea ¬
atingiu) através de todos os ecos das essências anteriores que ela foi e através
lizam são mais do que seu puro e simples fenômeno. Elas dependem das rela ¬ da presença alusiva das formas históricas correspondentes. Hegel indica com
ções de produ ção, que são um dos termos da contradiçã o, mas, ao mesmo isso que toda consciência tem um passado suprimido-conservado (aufgehoben)
tempo, sua condição de existência; dependem das superestruturas, instâncias em seu próprio presente e um mundo (o mundo cuja consciência ela poderia
que dela derivam, mas têm sua consistência e eficácia próprias; dependem da ser, mas que permanece como à margem na fenomenologia, com uma presença
própria conjuntura internacional, que intervém como determinação desempe ¬ virtual e latente) - e, portanto, que ela tem també m como passado os mundos
nhando seu papel específico.20 Quer dizer que as “ diferenças” que constituem de suas essências superadas. Mas essas formas passadas da consciência e esses
cada uma das instâncias em jogo (e que se manifestam nessa “ acumulação” de mundos latentes (correspondentes a essas formas) jamais afetam a consciência
que fala Lenin ), se elas se “ fundem” numa unidade real, não se “ dissipam” presente como determinações efetivas diferentes dela mesma: essas formas e
como um puro fenômeno na unidade interior de uma contradição simples. A esses mundos dizem-lhe respeito apenas como ecos (recordações, fantasmas
unidade que constituem nessa “ fusão” da ruptura revolucionária,21 elas a cons¬ de sua historicidade) do que ela se tornou , ou seja, como antecipações de si ou

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POR MARX CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERMINAÇÃ O ( NOTAS PARA VMA PESQUISA )

alusões a si. É porque o passado nunca é mais do que a essência interior (em - no simples, que essa mesma simplicidade, adquirida assim de direito à con¬
-sí) do futuro que ele encerra, que essa presença do passado é a presença ante tradição, pode se refletir aí. É preciso ser ainda mais claro? Essa redução
si da própria consciência, e não uma verdadeira determinação exterior a ela . mesma (cuja ideia Hegel tomou emprestada de Montesquieu), a redu ção de
Círculo de círculos, a consciência tem apenas um centro , o ú nico a determiná- todos os elementos que fazem a vida concreta de um mundo hist órico (insti ¬

-la: precisaria de círculos tendo outro centro que não ela, círculos descentrados, tuições económicas, sociais, políticas, jurídicas, costumes, moral, arte, religião,
para que ela fosse afetada em seu centro pela eficácia deles, em suma, que sua filosofia, até os acontecimentos históricos: guerras, batalhas, derrotas etc.) a
essência fosse sobredeterminada por eles. Mas não é o caso. um princípio de unidade interna, essa redu ção só é possível com a condição
Essa verdade é ainda mais clara na filosofia da história. Também nela se absoluta de considerar toda a vida concreta de um povo como a exteriorização-
encontram as aparências da sobredeterminação: não é toda sociedade históri¬ -alienação (Entãusserung -Entfremdung) de um princípio espiritual interno,
ca constituída de uma infinidade de determinações concretas, das leis políticas que jamais é, em última análise, senão a forma mais abstrata da consciência
à religião, passando pelos costumes, usos, regimes financeiro, comercial, econó¬ de si desse mundo: sua consciência religiosa ou filosófica, ou seja, sua própria
mico, sistema de educação, artes, filosofia etc.? No entanto, nenhuma dessas ideologia. Percebe-se, penso eu, em que sentido a “ ganga mística” afeta e
determina ções é, em sua essência, exterior às outras, n ão só porque elas contamina o “ núcleo” - visto que a simplicidade da contradição hegeliana
constituem todas juntas uma totalidade orgânica original, mas ainda e acima nunca é senão a reflexão da simplicidade desse princípio interno de um povo,
de tudo porque essa totalidade se reflete num princí pio interno único, que é a ou seja, não de sua realidade material, mas de sua mais abstrata ideologia.
verdade de todas essas determinações concretas. Assim Roma: sua gigantesca Aliás, é por isso que Hegel pode nos representar como “ dialética” , ou seja,
história, suas instituições, suas crises e seus empreendimentos não são mais movida pelo jogo simples de um princípio de contradição simples , a História
do que a manifestação no tempo e depois a destruição do princípio interno da Universal desde o longínquo Oriente até nossos dias. É por isso que não há
personalidade jurídica abstrata. Esse princípio interno contém nele como ecos nunca, no fundo, para ele, verdadeira ruptura, fim efetivo de uma história real,
todos os princípios das formações históricas superadas, mas como ecos de si nem começo radical. É também por isso que sua filosofia da história está re¬
mesmo, e é por isso que ele també m não tem senão um centro, que é o centro cheada de mutações todas uniformemente “ dialéticas” . Ele não pode defender
de todos os mundos passados conservados em sua recordação - é por isso que essa concepção estupefaciente a não ser mantendo-se no cimo do Espírito, onde
ele é simples. E é nessa simplicidade mesma que aparece sua própria contra¬ pouco importa que um povo morra, visto que encarnou o princípio determi ¬

dição: em Roma, a consciência estoica , como consciência da contradição ine¬ nado de um momento da Ideia, que há outros às suas ordens, e visto que, en ¬
rente ao conceito da personalidade jurídica abstrata, que visa bem ao mundo
\ carnando-o, também o despojou, para legá-lo a essa Memória de Si que é a
concreto da subjetividade , mas falha. É essa contradição que fará explodir a História, e na mesma ocasi ão a tal outro povo ( mesmo que sua relação histó¬
própria Roma e produzirá seu futuro: a forma da subjetividade no cristianismo rica com ele seja muito fraca!) o qual, refletindo-o na sua substância, encon ¬

medieval. Toda a complexidade de Roma não sobredetermina então em nada l trará aí a promessa de seu próprio princípio interno, ou seja, como por acaso
a contradição do princípio simples de Roma, que não é senão a essência interior o momento logicamente consecutivo da Ideia etc. É preciso compreender de
dessa infinita riqueza histórica. uma vez que todas essas arbitrariedades (mesmo iluminadas por instantes por
Basta ent ão perguntar-se por que os fenômenos de mutação histórica são visões verdadeiramente geniais) n ão estão milagrosamente confinadas só à
pensados por Hegel mediante esse conceito simples de contradição, para colo¬ “ concepção do mundo” , só ao “ sistema” de Hegel, mas que elas se refletem de
car justamente a questão essencial. A simplicidade da contradição hegeliana fato na estrutura, nas próprias estruturas de sua dialética, e particularmente
não é possível, com efeito, a não ser pela simplicidade do princí pio interno , nessa “ contradição” que tem a tarefa de mover magicamente para seu Fim
que constitui a essência de todo período histórico. É porque de direito é pos¬ ideológico os conteúdos concretos desse mundo histórico.
sível reduzir a totalidade , a infinita diversidade de uma sociedade histórica É por isso que a “ inversão” marxista da dialética hegeliana é outra coisa
dada (a Grécia, Roma, o Sacro Império, a Inglaterra etc.) a um princípio inter ¬ que uma extração pura e simples. Com efeito, se se perceber claramente a rela-

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CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERMINAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

ção íntima estreita que a estrutura hegeliana da dialé tica mantém com a “ con ¬ vimentos políticos organizados etc.); especificada pela situação histórica in¬
cepção do mundo” de Hegel , ou seja, com sua filosofia especulativa, é impos¬ terna e externa, que a determina, em função do passado nacional por um lado
sível descartar verdadeiramente essa “ concepçã o do mundo” , sem se obrigar (revolu ção burguesa realizada ou “ recolhida” , exploração feudal total ou par¬
a transformar profundamente as estruturas dessa mesma dialética. Senão, quer cialmente eliminada, ou não, “ costumes” locais, tradições nacionais específi ¬
se queira quer não, arrastar-se-ão ainda, 150 anos depois da morte de Hegel, e cas, até mesmo “ estilo próprio” das lutas ou do comportamento políticos etc.),
100 anos depois de Marx, os farrapos do famoso “ invólucro m ístico” . e do contexto mundial existente, por outro lado (o que aí domina: concorrência
Voltemos agora a Lenin e, por ele, a Marx. Se é verdade, como a prática e das nações capitalistas, ou “ internacionalismo imperialista” , ou competição no
a reflexão leninistas provam, que a situação revolucioná ria na R ússia se devia seio do imperialismo etc.), podendo muitos desses fenômenos depender da “ lei
precisamente ao caráter de intensa sobredeterminação da contradição funda¬ do desenvolvimento desigual” no sentido leninista.
mental de classe, é preciso talvez perguntar-se em que consiste o excepcional O que há a dizer senão que a contradição aparentemente simples é sempre
dessa “ situação excepcional” e se, como toda exceção, esta não esclarece sua sobredeterminada? É aí que a exceção se revela como regra, a regra da regra,
regra - não é, sem o conhecimento da regra, a própria regra. Pois, enfim, não e é então a partir da nova regra que é preciso pensar as antigas “ exceções”
estamos sempre na exceção? Exceção, o fracasso alemão de 1849, exceção, o como exemplos metodologicamente simples da regra. Posso então, para tentar
fracasso parisiense de 1871, exceção, o fracasso social -democrata alemão do cobrir, do ponto de vista dessa regra, o conjunto dos fenômenos, propor que a
início do século XX esperando a traição chauvinista de 1914, exceção, o sucesso “ contradição sobredeterminada” pode ser ou sobredeterminada no sentido de
de 1917... Exceções, mas em relação a quê? Senão em relação a uma determi ¬ uma inibição histórica, de um verdadeiro “ bloqueio” da contradição (por exem ¬
nada ideia abstrata mas confortá vel, tranquilizadora, de um esquema “ dialé¬ plo, a Alemanha guilhermina) ou no sentido da ruptura revolucionária24 ( a
tico” depurado, simples, que tinha , na sua própria simplicidade, como que R ússia de 1917), mas que, nessas condições, ela nunca se apresenta em estado
guardado a memória (ou reencontrado a aparê ncia) do modelo hegeliano, e a -
“ puro "? É então, reconheço o, a própria “ pureza” que seria exceção, mas vejo
f é na “ virtude” resolutiva da contradição abstrata como tal: no caso, a “ bela” mal qual exemplo disso se pode citar.
contradição do Capital e do Trabalho. Não nego decerto que a “ simplicidade” Mas, se toda contradição se apresenta na prática histórica e para a experiên ¬

desse esquema depurado tenha podido responder a certas necessidades subje¬


tivas da mobilização das massas: afinal , sabemos bem que as formas do socia ¬
cia histórica do marxismo como uma contradição sobredeterminada , se é essa -
sobredeterminação que constitui, diante da contradição hegeliana, a especifici¬
lismo utópico também representaram um papel histórico, e representaram- no dade da contradição marxista; se a “ simplicidade” da dialética hegeliana re ¬

porque tomaram as massas no n ível de suas consciê ncias , porque é preciso mete a uma “ concepção do mundo” , e particularmente à concepção da história
levá-las mesmo (e sobretudo) quando se quer conduzi-las mais longe. Um dia, que se reflete nela, é preciso perguntar-se qual é o conteúdo, qual é a razão de
será preciso fazer o que Marx e Engels fizeram pelo socialismo utópico, mas -
ser da sobredeterminação da contradição marxista, e colocar se a questão de
desta vez para essas formas ainda esquemá tico-utópicas da consciência das saber como a concepção marxista da sociedade pode se refletir nessa sobredeter¬
massas influenciadas pelo marxismo (até mesmo a consciência de alguns de minação. Essa questão é capital, pois é evidente que, se não se mostra o vín¬
seus teóricos) na primeira metade de sua história: um verdadeiro estudo histó¬ culo necessário que une a estrutura própria da contradição em Marx à sua con¬
rico das condições e das formas dessa consciênciaP Ora, justamente todos os cepção da sociedade e da história, se não se fundamenta essa sobredeterminação
textos políticos e históricos importantes de Marx e Engels nesse período ofe¬ nos próprios conceitos da teoria da história marxista, essa categoria permanecerá
-
recem nos a matéria de uma primeira reflexão sobre as assim chamadas “ ex ¬
“ no ar” , pois, mesmo exata, mesmo verificada pela prática política, ela não é
ceções” . Depreende-se a ideia fundamental de que a contradição Capital Tra¬
- até aqui senão descritiva , logo contingente - por conseguinte, como toda des¬
balho nunca é simples, mas que ela é sempre especificada pelas formas e pelas crição, à mercê das primeiras ou das ú ltimas teorias filosóficas a chegar.
circunstâncias históricas concretas nas quais se exerce. Especificada pelas Mas aqui vamos uma vez ainda reencontrar o fantasma do modelo hegelia¬
formas da superestrutura (o Estado, a ideologia dominante, a religi ão, os mo- -
no não mais o modelo abstrato da contradição, mas o modelo concreto da

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POR MARX CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERMINA ÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

concepção da história que se reflete nele. Com efeito, para mostrar que a es¬ cípio simples que se torna, por sua vez, o ú nico princípio de inteligibilidade
trutura específica da contradição marxista se baseia na concepção da história universal de todas as determinações de um povo histórico.25 Caricatura? É
marxista, é preciso assegurar-se de que essa concepção não é ela mesma a pura nesse sentido que vão, se tomadas ao pé da letra, ou criticadas, as famosas
e simples “ inversão” da concepção hegeliana. Ora, é verdade que à primeira frases de Marx sobre o moinho movido pela força animal, pela força da água,
aproximação se poderia sustentar que Marx “ inverteu” a concepção hegeliana e a máquina a vapor. No horizonte dessa tentação temos o equivalente exato
da história. Mostremo-lo rapidamente. É a dialética dos princípios internos a da dialética hegeliana - com a pequena diferença de que n ão se trata mais de
cada sociedade, ou seja, a dialética dos momentos da ideia, que comanda toda engendrar os momentos sucessivos da Ideia, mas os momentos sucessivos da
a concepção hegeliana; como disse Marx vinte vezes, Hegel explica a vida Economia, em virtude do mesmo princípio da contradição interna. Essa tenta ¬
material, a história concreta dos povos, pela dialética da consciência (cons ¬ tiva acaba pela redu ção radical da dialética da história à dialética geradora dos
ciência de si de um povo, sua ideologia). Para Marx, ao contrário, é a vida modos de produção sucessivos, ou seja, no limite, das diferentes técnicas de
material dos homens que explica sua história: não sendo então sua consciência, produção. Essas tentações têm, na história do marxismo, nomes próprios: eco -
suas ideologias senão o fenômeno de sua vida material. Todas as aparências nomicismo , e mesmo tecnologismo.
da “ inversão" estão bem reunidas nessa oposição. Levemos então as coisas ao Mas basta citar esses dois termos para despertar imediatamente a memória
extremo, quase à caricatura. O que vemos em Hegel? Uma concepção de so¬ das lutas teóricas e práticas conduzidas por Marx e seus discípulos contra esses
ciedade que retoma as aquisições da teoria política e da economia política do “ desvios” . E para o texto mais do que famoso sobre a máquina a vapor, quan¬
século XVIII e que considera que toda sociedade ( moderna, sem dú vida, mas tos textos peremptórios contra o economicismo! Abandonemos então essa ca ¬
os tempos modernos esclarecem o que outrora era apenas germe) é constituída ricatura, não para opor ao economicismo os troféus de caça das condenações
por duas sociedades: a sociedade das necessidades (ou sociedade civil ) e a oficiais, mas para examinar que princípios autênticos estão em ação nessas
sociedade política (ou Estado) e tudo o que se encarna no Estado: religião, condenações, e no pensamento efetivo de Marx.
filosofia, em suma, a consciência de si de um tempo. Dito de outro modo, es¬ ' É então decididamente impossível manter, em seu aparente rigor, a ficção
quematicamente, pela vida material, de um lado, e a vida espiritual, do outro. da “ inversão” . Pois, na verdade, Marx não conservou, “ invertendo-os” , os
Para Hegel, a vida material (a sociedade civil, ou seja, a economia) não é senão .
termos do modelo hegeliano da sociedade Ele substituiu-os por outros, que
Astúcia da Razão , ela é, sob as aparências da autonomia, movida por uma lei têm com eles apenas longínquas relações. Ou melhor, ele subverteu a relação
que lhe é alheia: seu próprio Fim, que é ao mesmo tempo sua condição de que reinava, antes dele, entre esses termos. Em Marx, são ao mesmo tempo os
possibilidade: o Estado, logo, a vida espiritual. Pois bem, há uma maneira, aí termos e sua relação que trocam de natureza e de sentido.
também, de inverter Hegel, gabando-se de engendrar Marx. Essa maneira con ¬ Os termos, primeiramente, não são mais os mesmos.
siste justamente em inverter a relação dos termos hegelianos, ou seja, em Sem dú vida, Marx fala ainda de “ sociedade civil” (em particular n’A ideo¬
conservar esses termos: a sociedade civil e o Estado, a economia e a política- logia alemã: termo que se traduz inexatamente por “ sociedade burguesa” ), mas
-ideologia, mas transformando a essência em fenômeno e o fenômeno em es ¬ é por alusão ao passado, para designar o lugar de suas descobertas, e n ão para
sência, ou, caso se prefira, fazendo agir a Astúcia da Razão a contrapelo. En¬ retomar seu conceito. Seria preciso estudar detidamente a formação desse con¬
quanto em Hegel o político-ideológico é a essência do económico, em Marx -
ceito. Ver-se-ia desenhar se aí, nas formas abstratas da filosofia política, e nas
seria o económico que faria toda a essência do político-ideológico. O político, formas mais concretas da economia pol ítica do século XVIII, não uma ver¬
o ideológico não seriam então senão o puro fenômeno do económico que seria dadeira teoria da história econ ómica, nem mesmo uma verdadeira teoria da
“ a verdade” deles. O princípio “ puro” da consciência (de si de um tempo), economia, mas uma descrição e uma fundação dos comportamentos económi ¬

princípio interno simples que, em Hegel, é princípio de inteligibilidade de -


cos, em suma, uma espécie defenomenologia filosófico económica Ora, o que .
todas as determinações de um povo histórico, teria sido assim substituído por é bastante notável nesse empreendimento, tanto nos filósofos (Locke, Helvétius
um outro princípio simples, seu contrário: a vida material, a economia - prin- et alií ) quanto nos economistas (Smith, Turgot et alii ) , é que essa descrição da

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POR MARX CONTRADI ÇÃ O E SOBREOETERM INAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

sociedade civil se efetua como se se tratasse da descrição (e da fundação) da ¬ doravante não está mais acima dos grupos humanos, mas a serviço da classe
quilo que Hegel, resumindo perfeitamente seu espírito, chama “ o mundo das dominante; que não tem mais por missão realizar-se na arte, na religião e na
necessidades” , ou seja, um mundo relacionado imediatamente , como à sua filosofia, mas colocar estas a serviço dos interesses da classe dominante, ou
essência interna, às relações de indivíduos definidos por sua vontade particular, melhor, coagi-las a se constituir com base nas ideias e nos temas que ele torna
seu interesse pessoal, em suma, suas “ necessidades” . Quando se sabe que Marx dominantes', que deixa, portanto, de ser a “ verdade da ” sociedade civil, para se
baseou toda a sua concepçã o da economia pol ítica na cr ítica dessa pressu ¬ tornar não a “ verdade de” outra coisa qualquer, nem mesmo da economia, mas
posição (o homo oeconomicus, e sua abstração jur ídica ou moral, o “ homem” o instrumento de ação e de dominação de uma classe social etc.
dos filósofos presume-se que ele não pôde recuperar um conceito que era seu
), No entanto, n ão são somente os termos que mudam: são suas próprias
produto direto. O que importa para Marx não é, com efeito, nem essa descrição relações.
( abstrata) dos comportamentos económicos, nem sua pretensa fundação no Aí n ã o se deveria crer que se trata de uma nova distribuição técnica dos
mito do homo ceconomicus; é a “ anatomia” desse mundo, e a dialética das papéis imposta pela multiplicação dos novos termos. Como, efetivamente, se
mutações dessa “ anatomia” . É por isso que o conceito de “ sociedade civil ” agrupam esses novos termos? De um lado a estrutura (base económica: forças
( mundo dos comportamentos econ ómicos individuais e sua origem ideológica) produtivas e relações de produção); do outro a superestrutura (o Estado e todas
desaparece em Marx . É por isso que a realidade econ ómica abstrata ( que as formas jurídicas, pol íticas e ideológicas). Viu-se que se podia tentar, con ¬
Smith , por exemplo, reencontra nas leis do mercado como resultado de seu tudo, manter entre esses dois grupos de categorias a própria relação hegeliana
esforço de fundaçã o) é ela mesma compreendida por Marx como o efeito de (que Hegel impõe às relações entre a sociedade civil e o Estado): uma relação
uma realidade mais concreta e mais profunda: o modo de produção de uma de essência a fenômeno sublimada no conceito de “ verdade de...” . Desse modo,
formação social determinada. Aí os comportamentos individuais económicos em Hegel, o Estado é a “ verdade da” sociedade civil, a qual não é, graças ao
(que serviam de pretexto a essa fenomenologia económico-filosófica) são pela jogo . da Ast úcia da Razão, senão seu próprio fenômeno, realizado nele. Ora,
primeira vez dimensionados por sua condição de existência. Grau de desenvol ¬ em um Marx, que se rebaixaria assim ao estatuto de um Hobbes ou de um
vimento das forças produtivas , estado das relações de produção: eis os concei ¬ Locke, a sociedade civil poderia ser também apenas a “ verdade do” Estado,
tos fundamentais de Marx doravante. Se a “ sociedade civil ” lhe indicava bem seu fenômeno, apenas uma Astú cia que a Razão Económica poria então a ser¬
o lugar (é aqui que é preciso cavar...), é preciso admitir que ela não lhe forne ¬ viço de uma classe: a classe dominante. Infelizmente para esse esquema dema¬
cia nem mesmo a matéria para tal. Mas onde se encontra tudo isso em Hegel? siado puro, isso não ocorre. Em Marx, a identidade tácita (fenômeno-essência -
Quanto ao Estado, é demasiado f ácil provar que ele não tem mais em Marx -verdade-de...) do económico e do político desaparece em benef ício de uma
o mesmo conteú do que em Hegel. Não só, é claro, porque o Estado nã o pode concepção nova da relação das instâncias determinantes no complexo estru-
mais ser a “ realidade da Ideia” , mas também e acima de tudo porque o Estado tura-superestrutura que constitui a essência de toda formação social. Não resta
é pensado sistematicamente como um instrumento de coerçã o a serviço da dú vida que essas relações específicas entre a estrutura e a superestrutura me ¬

classe dominante dos exploradores. També m a í, sob a “ descrição” e a sublima¬ recem ainda uma elaboração e pesquisas teóricas. Todavia, Marx nos dá as
çã o dos atributos do Estado, Marx descobre um novo conceito , pressentido “ duas pontas da corrente” e nos diz que é entre elas que é preciso procurar: por
antes dele desde o século XVIII (Longuet, Rousseau et alii ), retomado mesmo um lado, a determinação em última instância pelo modo de produção ( eco¬
por Hegel na obra Filosofia do direito (que fez dele um “ fenômeno” da Ast ú cia nómico )', por outro, a autonomia relativa das superestruturas e sua eficácia
da Razão cujo triunfo é o Estado: a oposição da pobreza e da riqueza), e abun ¬ específica. Por aí ele rompe claramente com o princípio hegeliano da explica¬
dantemente utilizado pelos historiadores de 1830: o conceito de classe social , ção pela consciência de si (a ideologia), mas também com o tema hegeliano
em relação direta com as relações de produção. Essa intervenção de um novo -
fenômeno-essência-verdade de... Realmente lidamos com uma nova relação
conceito, seu relacionamento com um conceito fundamental da estrutura eco¬ entre termos novos.
nómica, eis com o que remanejar da cabeça aos pés a essência do Estado, que

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CONTRADIÇÃ O E SOBREDETERMINAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

Escutemos o velho Engels, em 1890, recolocar as coisas no lugar contra os tâncias particulares, nacionais e internacionais) sobre a determinação em
jovens “ economistas” , que não compreenderam que se trata efetivamente de última instância pelo económico. É aqui que se pode esclarecer, parece-me, a
uma nova relação.26 A produção é o fator determinante, mas apenas “ em ú ltima expressão de contradição sobredeterminada que eu propunha, porque não te¬
instância” . “ Nem Marx nem eu afirmamos mais” .. Aquele que “ torturar essa mos mais agora o fato puro e simples da existência da sobredeterminação, mas
frase” para fazê-la dizer que o fator económico é o ú nico determinante “ a porque o relacionamos, no essencial, e mesmo que nosso procedimento seja
transformará em frase vazia, abstrata, absurda” . E explica: ainda indicativo, com seu fundamento. Essa sobredeterminação toma-se ine¬
vitável, e pensável, assim que se reconhece a existência real, em grande parte
A situação econ ómica é a base, mas os diversos elementos da superestrutura - as específica e autónoma, irredutível, portanto, a um puro fenômeno, das formas
formas políticas da luta de classes e seus resultados -, as constituições estabelecidas
da superestrutura e da conjuntura nacional e internacional. É preciso então ir
uma vez ganha a batalha pela classe vitoriosa etc., as formas jurídicas, e mesmo os re ¬
até o fim, e dizer que essa sobredeterminação não se deve às situações aparen¬
flexos de todas essas lutas reais no cérebro dos participantes, teorias políticas, jurídicas,
temente singulares ou aberrantes da história ( por exemplo, da Alemanha), mas
filosóficas, concepções religiosas, e seu desenvolvimento ulterior em sistemas dogmá ¬
que ela é universal , que a dialética económica nunca joga no estado puro , que
ticos, exercem igualmente sua ação nas lutas históricas e, em muitos casos, determinam - :
nunca se veem na história essas instâncias que são as superestruturas etc. se
-lhes de maneira preponderante a forma.
afastarem respeitosamente quando realizaram sua obra ou se dissiparem como
É preciso tomar a palavra “ forma” no sentido forte, e fazê-la designar outra seu puro fenômeno para deixar avançar pela estrada real da dialética sua ma ¬
coisa que não o formal. Escutemos ainda Engels: jestade Economia porque o Tempo teria chegado. Nem no primeiro nem no
último instante, a hora solitária da “ ú ltima instância” jamais chega.
Foram causas históricas e, em ú ltima instância, económicas que formaram igual¬ Em suma, a ideia de uma contradição “ pura e simples” , e n ão sobrede-
mente o Estado Prussiano e continuaram a desenvolvê-lo. Mas dificilmente se poderá termjnada, é, como diz Engels da “ frase” economicista, “ uma frase vazia, abs ¬

pretender sem pedantismo que, entre os numerosos pequenos Estados da Alemanha do trata e absurda” . Que ela possa servir de modelo pedagógico, ou melhor, que
Norte, era precisamente o Brandemburgo que estava destinado pela necessidade eco¬ ela tenha podido, num certo momento preciso da história, servir de meio po¬
nó mica e não por outras ainda (antes de tudo por essa circunstância de que, graças à lêmico e pedagógico, n ão determina para sempre seu destino. Afinal, os siste¬
possessão da Prussia, o Brandemburgo se imiscuía nos negócios poloneses e estava por mas pedagógicos mudam bastante na história. Seria tempo de fazer esforços
eles implicado nas relações internacionais que são decisivas igualmente na formação para elevar a pedagogia à altura das circunstâncias, ou seja, das necessidades
-
do poderio da Casa da Á ustria), a tornar se a grande potê ncia na qual se encarnou a históricas. Mas não há quem não veja que esse esforço pedagógico pressupõe
diferença na economia, na língua , e também , desde a Reforma, na religião entre o outro, desta vez, puramente teórico. Pois se Marx nos dá princípios gerais e
Norte e o Sul.27 ..
exemplos concretos ( O 18 Brumário . ; A guerra civil na França etc.), se toda
a prática política da história do movimento socialista e comunista constitui um
Eis então as duas pontas da corrente: a economia determina, mas em última reservatório inesgotá vel de “ protocolos de experiências” concretas, é preciso
instância, com o tempo, diz Engels de bom grado, o curso da história. Mas esse dizer que a teoria da eficácia específica das superestruturas e outras “ circuns¬
curso “ abre seu caminho” através do mundo das formas mú ltiplas da superes¬ tâncias” resta em grande parte por elaborar; e antes da teoria de sua eficácia,
trutura, das tradições locais28 e das circunstâncias internacionais. Deixo de lado ou ao mesmo tempo (pois é pela constatação de sua eficácia que se pode atin¬
neste exame a solução teórica que Engels propõe para o problema da relação gir sua essência ) , a teoria da essência própria dos elementos específicos da
entre a determinação em última instância , a económica, e as determinações superestrutura. Essa teoria permanece, tal como o mapa da África antes das
próprias impostas pelas superestruturas, as tradições nacionais e os aconteci ¬
grandes explorações, uma área reconhecida nos seus contornos, em suas gran ¬
mentos internacionais. Basta-me aqui reter dela o que se deve chamar a acu¬ des cordilheiras e seus grandes rios, mas quase sempre, salvo algumas regiões
mulação de determinações eficazes (oriundas das superestruturas e das circuns- bem desenhadas, desconhecida nos pormenores. Quem, desde Marx e Lenin ,
i

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POR MARX CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERMINA ÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

verdadeiramente tentou ou prosseguiu a exploração? Só conheço Gramsci .29 Roma. É por isso que o presente pode aliraentar-se das sombras de seu passa ¬
Porém, tal tarefa é indispensável para permitir enunciar pelo menos formula¬ -
do, até mesmo projetá las diante dele, como aquelas grandes efígies da Virtu ¬
ções mais precisas do que essa aproximação sobre o caráter, fundamentado de Romana que abriram aos jacobinos o caminho da Revolu ção e do Terror. É
antes de tudo na existência e na natureza das superestruturas, da sobredeter- que seu passado jamais é outra coisa senão ele mesmo, e nunca lhe recorda
minação da contradição marxista. senão essa lei de interioridade que é o destino de todo Devir Humano.
Permitam-me ainda uma ú ltima ilustração. A prática política marxista cho¬ Mas isso basta, penso eu, para fazer entender que a “ superação” em Marx,
ca-se constantemente com essa realidade chamada as “ sobrevivências” . Não na medida em que essa palavra tiver ainda um sentido (a bem dizer, ela não
há dú vida: elas existem mesmo, do contrário não teriam vida tão longa... Lenin tem nenhum sentido rigoroso), não tem nada a ver com essa dialética do con ¬

combatia-as no interior do partido russo já antes da revolu ção. Inú til relembrar forto histórico; que o passado aí não tem nada de uma sombra, mesmo “ ob ¬

que depois da revolu ção e desde então, e ainda hoje, elas alimentaram muitas jetiva” , mas é uma realidade estruturada terrivelmente positiva e ativa, como
dificuldades, batalhas e comentários. Ora, o que é uma “ sobrevivência” ? Qual são, para o operário miserável de que fala Marx, o frio, a fome e a noite. Mas
é seu estatuto teórico? Ela é de essê ncia “ psicológica” ? Social ? Reduz-se à então como pensar essas sobrevivências? Sen ão a partir de um certo n ú mero
sobrevida de certas estruturas económicas que a revolução não pôde destruir de realidades , que são justamente em Marx realidades, quer se trate das supe¬
por seus primeiros decretos: a pequena produ ção (predominantemente campo ¬ restruturas, das ideologias, das “ tradições nacionais” , até dos costumes e do
nesa na R ú ssia), por exemplo, que tanto preocupava Lenin? Ou ela questiona “ espírito” de um povo etc. Senão a partir dessa sobredeterminação de toda
igualmente outras estruturas - políticas, ideológicas etc., de costumes, hábitos , contradição e de todo elemento constitutivo de uma sociedade, que faz'. (1) que
até “ tradições” , como a “ tradição nacional” com seus traços específicos? “ So¬ uma revolução na estrutura nã o modifique ipso facto num relâmpago (ela o
brevivência” : eis um termo constantemente invocado e que está ainda à procura, faria, porém, se a determinação pelo económico fosse a única determinação )
não diria de seu nome (ele o tem!), mas de seu conceito. Ora, pretendo que para as superestruturas existentes e, em particular, as ideologias , pois elas têm como
lhe dar o conceito que ele merece (e que ganhou merecidamente!) n ão se pode tais uma consistência suficiente para sobreviver fora do contexto imediato de
ficar num vago hegelianismo da “ superação” e da “ manutenção-do-que-é-ne- sua vida, até para recriar, “ secretar” por um tempo, condições de existência de
gado-na-sua-própria-negação” (ou seja, da negação da negação)... substituição; (2) que a nova sociedade, oriunda da revolução pode, ao mesmo
Pois se voltarmos ainda um instante a Hegel, constatamos que nele a sobre¬ tempo pelas próprias formas de sua nova superestrutura, ou por “ circunstâncias”
vivência do passado como “ superado” (aufgehoben) se reduz simplesmente à específicas (nacionais, internacionais), provocar ela mesma a sobrevida, ou
modalidade da recordação, que além do mais é apenas o inverso da anteci¬ seja, a reativação dos. elementos antigos. Essa reativação seria propriamente
pação , ou seja, a mesma coisa. Do mesmo modo que desde a aurora da história inconcebível numa dialética desprovida de sobredeterminação. Parece me, por -
humana, nos primeiros balbucios do Espírito Oriental, alegremente prisio ¬ exemplo, para não evitar a questã o mais candente, que quando se coloca a
neiro das gigantescas figuras do céu, do mar e do deserto, em seguida de seu questão de saber como o povo russo, tão generoso e orgulhoso, pôde suportar
bestiário de pedra, se traduzia já o pressentimento inconsciente dos futuros em tão vasta escala os crimes da repressão stalinista; até mesmo como o par¬
consumados do Espírito Absoluto, igualmente, em cada instante do Tempo, o -
tido bolchevique pôde tolerá los; sem falar da ú ltima pergunta: Como um diri ¬

passado sobrevive na forma da recordação do que ele foi, ou seja, da promessa gente comunista pôde ordená-los? É preciso renunciar a toda lógica da “ supera ¬

murmurada de seu presente. É por isso que o passado nunca é opaco nem ção” , ou renunciar a dizer uma só palavra sobre isso. Mas ainda aí é claro que,
obstáculo. Ele é sempre digestível, porque digerido de antemão. Roma pode teoricamente , resta muito por fazer. Não falo só dos trabalhos de história,
bem reinar num mundo impregnado de Grécia: a Grécia “ superada” sobrevive que comandam tudo: mas visto que comandam tudo, falo do que comanda até
nessas recordações objetivas que são seus templos reproduzidos, sua religião os trabalhos de história pretensamente marxistas: o rigor; uma concepção ri¬
assimilada, a filosofia repensada. Sendo já Roma sem o saber quando se obsti ¬ gorosa dos conceitos marxistas, de suas implicações e de seu desenvolvimento;
nava em morrer para libertar seu futuro romano, ela não obstrui Roma em

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POR MARX
CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERM 1NAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

uma pesquisa e uma concepção rigorosa do que lhes pertence propriamente, Há ação e reação de todos esses fatores (as superestruturas) no interior dos quais o
f movimento econó mico acaba por franquear seu caminho como uma necessidade através
ou seja, do que os distingue para sempre de seus fantasmas.
da multidão infinita dos acasos (ou seja, de coisas e de acontecimentos cuja ligação
Mais do que nunca importa ver hoje que um dos primeiros fantasmas é a
sombra de Hegel. É preciso um pouco mais de luz sobre Marx , para que esse
í -
íntima é tão longínqua ou tão dif ícil de demonstrar que podemos considerá la como
inexistente e negligenciá-la).
fantasma regresse à noite, ou, o que vem a dar no mesmo, um pouco mais de
luz marxista sobre o próprio Hegel. Por esse preço escaparemos da “ inversão” , Eis, portanto, o modelo explicativo: “ os diversos elementos da superestru ¬
de seus equ ívocos e suas confusões.
tura” agem e reagem uns sobre os outros, produzem uma infinidade de efeitos.
Esses efeitos são compará veis a uma infinidade de acasos (seu nú mero é infi ¬
Junho-julho de 1962
nito, e sua ligação íntima é tão longínqua e, por isso, t ão dif ícil de conhecer
que é insignificante ), através dos quais “ o movimento económico” abre seu
caminho. Esses efeitos são acasos , o movimento económico é a necessidade,
Anexo30 a necessidade deles. Deixo de lado por enquanto o modelo: acasos-necessidade,
1.
e seus pressupostos. O que é singular nesse texto é o papel atribuído aos dife¬
Gostaria de me deter um instante numa passagem da carta a Bloch que deixei rentes elementos da superestrutura. Tudo acontece como se eles estivessem
deliberadamente de lado no texto que precede. Pois essa passagem, que se -
aqui, uma vez desencadeado entre eles o sistema ação reação, encarregados
refere à solução teórica de Engels para o problema de fundamento da determi ¬ de fundar a infinita diversidade dos efeitos (coisas e acontecimentos, diz En ¬

nação “ em ú ltima instância” pela economia, é de fato independente das teses gels) entre os quais, como entre outros tantos acasos, a economia traçará seu
marxistas que Engels opõe ao dogmatismo “ economicista” . caminho soberano. Dito de outro modo, os elementos da superestrutura têm
-
Trata se, sem d ú vida, de uma simples carta. Mas como ela constitui um uma eficácia , mas essa eficácia se dispersa de algum modo ao infinito, na infi ¬
documento teórico decisivo na refutação do esquematismo e do economicismo, nidade dos efeitos, dos acasos, dos quais se poderá, quando se tiver atingido
como ela já desempenhou e pode ainda desempenhar por essa razão um papel essa extremidade no infinitesimal, considerar as ligações íntimas como ininte¬
histórico , é melhor não dissimular que a argumentação do fundamento não ligíveis (demasiado difíceis de demonstrar) e, por isso, como inexistentes. A
corresponde mais às nossas exigências críticas. dispersão infinitesimal tem, portanto, o efeito de dissipar na inexistência mi¬
A solução de Engels faz intervir um mesmo modelo em dois n íveis diferen ¬ croscó pica a eficácia reconhecida das superestruturas na sua existência
tes de aná lise. macroscó pica. Decerto, essa inexistência é epistemológica (pode-se “ olhar
(A) PRIMEIRO NÍ VEL: Engels acaba de mostrar que as superestruturas,
-
como” inexistente a ligação microscópica não é dito que ela seja inexistente,
longe de serem puros fenômenos da economia, têm uma eficácia própria: “ Em mas ela o é para o conhecimento ). Seja como for, é dentro dessa diversidade
muitos casos esses fatores determinam de maneira preponderante a forma ( das microscópica infinitesimal que a necessidade macroscópica “ acaba por traçar
lutas históricas )" .* A questão que se coloca é então: como, nessas condições, seu caminho” , ou seja, acaba por prevalecer.
pensar a unidade da eficácia real, mas relativa, das superestruturas, e do prin ¬ É preciso fazer aqui duas observações.
cípio determinante “ em última instâ ncia” da economia? Como pensar a relação
dessas eficácias distintas? Como, nessa unidade, fundar o papel de “ ú ltima Primeira observação. Nesse esquema, não estamos diante de uma verda¬
inst ância” do económico? Resposta de Engels: deira solução, mas da elaboração de uma parte da solução. Aprendemos que
as superestruturas agindo-reagindo entre si cunham sua eficácia por “ aconte¬
cimentos e coisas” infinitesimais, ou seja, outros tantos “ acasos” . Vemos que
* Trecho citado aqui com ligeiras alterações em relação à p. 88, conforme edição original. é no nível desses acasos que se deve poder fundar a solução, visto que esses
(N. doT.) t

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ÈL
POR MARX CONTRADIÇÃ O E SOBREDETBRMINAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

acasos têm por objeto introduzir o contraconceito da necessidade (económica) “ cunhagem” da eficácia das formas da superestrutura (de que se trata aqui) no
determinante em última instância. Mas é apenas uma meia solução visto que infinito dos efeitos microscópicos (acasos ininteligíveis) não corresponde à
a relação entre esses acasos e essa necessidade não é fundada, nem explicitada; concepção marxista da natureza das superestruturas.
visto que (isso é propriamente negar essa relação e seu problema ), Engels
chega a apresentar a necessidade como completamente exterior a esses acasos (B) SEGUNDO NÍVEL: E, de fato, no segundo nível de sua aná lise, vemos
(como um movimento que acaba franqueando seu caminho entre uma infini ¬ Engels abandonar o caso das superestruturas e aplicar seu modelo a outro
dade de acasos). Mas, então, não sabemos se essa necessidade é justamente a objeto, que desta vez lhe corresponde: a combinação das vontades individuais.
necessidade desses acasos, e, se é assim, por que o é. Essa quest ão permanece Vemo-lo também responder à questão, dando-nos a relação entre os acasos e
aqui em suspenso. a necessidade, ou seja , fundando-a .
Segunda observação. Espanta ver Engels apresentar nesse texto formas A história se faz de tal maneira que o resultado final se extrai sempre dos conflitos
da superestrutura como a origem de uma infinidade microscópica de aconte ¬ de um grande número de vontades individuais , das quais cada uma por sua vez é feita
cimentos cuja ligação interna é ininteligível (e, portanto, desprezível). Pois, tal qual ela é , por uma quantidade de condições particulares de existência; há aí, por¬
por um lado, poder-se-ia dizer o mesmo das formas da infraestrutura (e é tanto, inúmeras forças que se contrabalançam mutuamente , um grupo infinito de para ¬
verdade que se poderia dizer que o detalhamento dos acontecimentos econó ¬ lelogramos de forças, do qual se destaca uma resultante - o acontecimento histórico - que
micos microscópicos é ininteligível e desprezível!); mas sobretudo essas for¬ pode ser vista ela mesma, por sua vez, como o produto de uma força agindo como um
mas , como tais, são justamente formas como princí pios de realidade , mas todo , de maneira inconsciente e cega. Pois o que cada indivíduo quer é impedido por
também formas como princípios de inteligibilidade de seus efeitos. Elas são outro, e o que daí se extrai é aquilo que ninguém quis . É assim que a história até nossos
perfeitamente conhecíveis , e a esse título são a razão transparente dos aconte¬ dias transcorre como um processo da natureza e está submetida também, em substância ,
às mesmas leis de movimento que ela. Mas pelo fato de as diversas vontades, das quais
cimentos que se referem a elas. Por que razão Engels passa tão por alto essas
cada uma quer aquilo a que a impelem sua constituição f ísica e as circunstâncias exte¬
formas, sua essência e seu papel, e não considera senão a poeira microscópica
riores , económicas , em última instância (ou suas próprias circunstâncias pessoais, ou as
de seus efeitos, desprezíveis e ininteligíveis? Mais precisamente, essa redução
circunstâncias sociais gerais ), n ão chegarem ao que querem, mas se fundirem numa
a poeira de acasos n ão é absolutamente contrária à função real e epistemo-
média geral, numa resultante comum, não se tem ó direito de concluir que elas são iguais
lógica dessas formas? E visto que Engels o invoca, o que fez então Marx em
a zero. Pelo contrário, cada uma contribui para a resultante, e por esse motivo está in ¬
O 18 Brumário... senão uma análise da ação e das reações desses “ diferentes cluída nela.
fatores” ? Senão uma análise perfeitamente inteligível de seus efeitos? Mas
Marx só pôde realizar essa “ demonstração” ao não confundir os efeitos histó¬ Peço desculpas por essa longa citação, mas devia fazê-la porque contém a
ricos desses fatores com seus efeitos microscópicos. De fato, as formas da resposta à nossa questão. Com efeito, aqui a necessidade é fundada no nível
superestrutura são evidentemente causa de uma infinidade de acontecimentos, : dos próprios acasos, nos próprios acasos como a resultante global deles: logo,
mas nem todos eles são históricos (cf. Voltaire: todos os filhos têm um pai, mas ela é a necessidade deles. A resposta que faltava na primeira análise está aqui.
nem todos os “ pais” têm filhos). Somente o são aqueles que, entre os outros, Mas com que condição a obtivemos? Com a condição de ter trocado de objeto ,
os ditos “ fatores” retêm, elegem, em suma, produzem como tais (para tomar com a condição de partir não mais das superestruturas e de sua interação, e
apenas um caso: todo político, instalado no governo, faz - em função de sua finalmente de seus efeitos microscópicos, mas das vontades individuais, con¬
-
política , em fun ção também de seus meios uma escolha entre os aconteci¬ frontadas e combinadas em relações de força. Logo, tudo se passa como se o
mentos, e promove-os de fato à posição de acontecimentos históricos, por modelo aplicado à eficácia das superestruturas tivesse sido na realidade toma¬
exemplo, ao reprimir uma manifestação!). Neste primeiro nível , eu diria, então, do emprestado de seu verdadeiro objeto com o qual temos agora que lidar: o
f
para resumir: primeiro, ainda n ão temos verdadeira solução; segundo, a jogo das vontades individuais. Compreende-se então que ele tenha podido não

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i
POR MARX CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERMINAÇÂ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

acertar seu primeiro objeto, que não era o seu , e possa atingir o segundo, que mente a dialética da natureza n ão está em causa neste desenvolvimento, pela
é verdadeiramente o seu. boa razão de que ela tem a ver com outra questão.) Epístemologicamente, uma
Por conseguinte, como se faz a demonstração? Ela repousa sobre o modelo tautologia é nula e sem valor; mas ela pode, todavia, desempenhar um papel
f ísico do paralelogramo de forças: as vontades são outras tantas forças; se elas
í .
.
edificante É tranquilizador poder diretamente remeter assim à natureza , isso
se enfrentam duas a duas, numa situação simples, sua resultante será uma não se discute. ( Hobbes já dizia: os homens arrancam os cabelos ou tiram a
terceira força , diferente de cada uma delas e, no entanto, comum a ambas, e -
vida uns aos outros por causa da política, mas entendem se muito bem sobre
tal que cada uma das duas, embora não se reconheça aí, seja porém parte, ou a hipotenusa e a queda dos corpos.)
seja, coautora. Desde a origem, vemos ent ão aparecer esse fenômeno funda ¬ É a própria argumentação de Engels que eu gostaria de examinar detida-
mental da transcendência da resultante em rela ção às forças componentes: mente, argumentação que realiza, à primeira vista, um acordo tão perfeito
.
dupla transcend ência, quanto ao grau respectivo das forças componentes e .
entre seu modelo e seu objeto Ora, o que vemos? Um acordo no nível imedia¬
quanto à reflexão dessas forças sobre si mesmas (ou seja, de sua consciência, to do modelo e do objeto. Mas aquém, e além, um acordo postulado, não de¬
visto que se trata aqui de vontades ). O que implica: primeiro, que a resultante monstrado , e em seu lugar, a indeterminação , ou seja, do ponto de vista do
:
será de um grau completamente diferente daquele de cada força (maior se elas conhecimento, o vazio.
se juntam, menor se elas se opõem); segundo, que a resultante será, em sua
essência, inconsciente (inadequada à consciência de cada vontade e, ao mesmo Aquém. A evidência do conteúdo que nos impressiona quando representa ¬

tempo, uma força sem sujeito, força objetiva, mas, desde o início, força de mos o paralelogramo de forças (vontades individuais) cessa assim que se co¬
ninguém ). É por isso que, no fim, ela se torna essa resultante global que pode loca (e Engels a coloca a si mesmo!) a questão da origem (logo da causa) das
ser “ vista ela mesma, por sua vez, como o produto de uma força agindo como determinações dessas vontades individuais. Então somos remetidos ao infinito.
um todo, de maneira inconsciente e cega” . É claro que nós fundamos e engen¬ “ Cada uma é tal qual ela é por uma quantidade de condições particulares de
dramos essa força triunfante em última instância: a determinação da economia, existência.” Cada vontade individual, simples quando considerada como um
que, desta vez, não é mais exterior aos acasos através dos quais ela abre seu começo absoluto, torna-se o produto de uma infinidade de circunstâncias mi ¬
caminho, e sim a essência interior desses acasos. croscópicas dependentes de sua “ constituição física” e das circunstâ ncias “ ex ¬
Eu queria mostrar: teriores” , de suas “ próprias circunstâncias pessoais” “ ou ” das “ circunstâncias
(1) que agora estamos lidando com o verdadeiro objeto do modelo de Engels; sociais gerais” , das circunstâncias exteriores “ econ ómicas, em ú ltima inst ân ¬
(2) que graças a essa adequação, Engels responde efetivamente à questão cia” , o todo enunciado a esmo, e de tal sorte que, ao lado de determinações
que se propõe e nos dá realmente a solução do problema que propôs; puramente contingentes e singulares, figuram também determinações gerais (e
(3) que problema e soluçã o só existem em função da adequação do modelo em particular o que está justamente em questão: as circunstâncias econ ómicas
a seu objeto', determinantes, em ú ltima instância). Está claro que Engels mistura aqui dois
(4) que, como esse objeto n ão existe, nem o problema nem a solução existem; tipos de explicação.
(5) que seria preciso procurar a razão de toda essa constru ção vã. Primeiro tipo. Um tipo não marxista, mas adaptado a seu objeto presente
e a suas hipóteses, a explicação pelo infinito das circunstâncias ou dos acasos
Deixo voluntariamente de lado a referência de Engels à natureza. Como o '
(essa forma encontra-se em Helvétius e d’ Holbach); essa explicaçã o pode ter
modelo que ele escolheu é físico (o primeiro exemplo disso encontra-se em um valor crítico (na medida, como já era o caso no século XVIII, em que é des¬
Hobbes, depois em in ú meras edições posteriores, dentre as quais destaco par- tinada, por exemplo, a refutar toda intervenção divina), mas, do ponto de vista
ticularmente a de d’ Holbach, notavelmente pura), nada de espantoso em que do conhecimento, ela é vazia. Ela representa uma infinidade sem conteúdo ,
ele possa nos remeter da história à natureza. Não é uma demonstração, é uma uma generalização abstrata e apenas programática.
tautologia. ( Noto que se trata aqui somente do modelo utilizado, e que evidente¬

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POR MARX CONTRADI çã O E SOBREDETERMINA çâ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

Segundo tipo. Porém, ao mesmo tempo , Engeis faz intervir um tipo de ex ¬


Logo, o problema que se coloca é o seguinte: por que tudo é tão claro e tão
plicação marxista , quando coloca entre as circunst â ncias infinitas (que são, bem acordado no nível das vontades individuais , e por que tudo se toma vazio
por essência, microscópicas) determinações simultaneamente gerais e concre¬ ou tautológico aquém e além delasl Como explicar que, tão bem colocado ,
tas , que são as circunst âncias sociais e as económicas (determinantes, em ú l ¬ correspondendo tão bem ao objeto no qual ele é colocado, o problema seja
tima instância ). Mas esse tipo de explicação não responde a seu objeto , visto incapaz de solução assim que nos afastamos de seu objeto inicial? Questão que
que representa, na origem, a própria solução que se trata de produzir e de permanece o enigma dos enigmas, enquanto não se observar que é seu objeto
fundar (a geração dessa determinação, em ú ltima instâ ncia). Resumindo: ou inicial que comanda ao mesmo tempo a evidência do problema e a impossibi ¬
permanecemos no objeto e no problema que Engels se propõe, e então estamos lidade de sua solução.
diante do infinito, do indeterminado (logo, do vazio epistemológico), ou então Toda a demonstração de Engels depende, com efeito, desse objeto muito
retemos, a partir desse momento, como a própria origem, a solução ( plena de particular que são as vontades individuais postas em relação no modelo físico
conteúdo) que está justamente em questão. Mas então não estamos mais nem do paralelogramo de forças. Aí está seu verdadeiro pressuposto, metodológico
no objeto, nem no problema. e teórico. Aí efetivamente o modelo tem um sentido: pode-se dar-lhe um con¬
teúdo e pode-se manejá lo. Ele “ descreve” relações humanas bilaterais de
-
Além. Encontramo-nos na mesma alternativa. Pois, uma vez posto o pri ¬ rivalidade, de contestação ou de cooperaçã o aparentemente “ elementares” .
meiro paralelogramo, n ão temos sen ão uma resultante formal, que não é igual Nesse n ível pode-se dar a impressão de reunir em unidades reais e discretas,
à resultante definitiva. A resultante definitiva será a resultante de uma infini ¬ e visíveis, a infinita diversidade anterior das causas microscópicas. Nesse n ível
dade de resultantes, ou seja, o produto de uma proliferação infinita de parale¬ o acaso se faz homem, o movimento anterior se faz vontade consciente. É exa ¬
logramos. Ainda aí, ou se confia no infinito (isto é, no indeterminado, isto é, tamente aí que tudo começa, e é a partir daí que se pode começar a deduzir.
no vazio epistemológico) para produzir na resultante final a resultante que se Mas infelizmente esse fundamento tão seguro não funda absolutamente nada,
quer deduzir, aquela que coincidirá com a determinação económica em ú ltima esse princípio tão claro não desemboca senão na noite, a não ser que perma¬
instâ ncia etc.; isto é, confia-se no vazio para produzir o cheio (e, se nos ativer¬ neça nele mesmo e repita, como prova imóvel de tudo o que se espera dele,
mos ao modelo formal puro da composição das forças, não escapa a Engels sua própria evidência. Justamente, qual é essa evidência? É preciso reconhe¬
que as ditas for ças em presença podem anular-se, ou contrapor-se... Nessas cer que essa evidência não é outra senão a dos pressupostos da ideologia
condições, quem nos prova que a resultante global não será nula , por exemplo, burguesa clássica e da economia política burguesa. E do que parte essa ideo¬
ou em todo caso, quem nos prova que ela será exatamente aquela que se quer, logia clássica, quer se trate de Hobbes na composição dos conatos, de Locke
a económica , e não uma outra, a política ou a religiosa? Nesse nível formal, e Rousseau na geração da vontade geral; de Helvétius ou d’ Holbach na pro¬
não se tem nenhuma segurança de nenhum tipo sobre o conteúdo das resul¬ du çã o do interesse geral; de Smith ou Ricardo (os textos nã o faltam) nos
tantes, de nenhuma resultante). Ou , entã o, introduz-se sub-repticiamente na comportamentos do atomismo; do que ela parte, senão justamente do confron ¬
resultante final o resultado que se espera , no qual se reencontra verdadeira ¬ to dessas famosas vontades individuais , que não são de maneira nenhuma o
mente o que entre outras determinações microscópicas se tinha, desde a origem , ponto de partida da realidade, mas ponto de partida para uma representação
introduzido como determinações macroscó picas no condicionamento da von ¬ da realidade, para um mito destinado & fundar (para a eternidade) na natureza
tade singular: a economia. Sou obrigado a repetir o que acabo de dizer a propó¬ (ou seja, para a eternidade) os objetivos da burguesia? Se Marx criticou tão
sito do aquém: ou se permanece no problema que Engels propõe a seu objeto bem nesse pressuposto explícito o mito do homo oeconomicus, como pode En¬
(as vontades individuais), mas ent ão cai-se no vazio epistemol ógico da infini ¬ gels retomá-lo tão ingenuamente por sua conta? Como pode ele nos represen ¬
dade dos paralelogramos e de suas resultantes, ou se dá simplesmente a solução tar, senão por uma ficção tão otimista quanto a da economia burguesa, por uma
marxista , só que então ela não foi fundada e n ão valia a pena procurá-la . ficção mais próxima de Locke e de Rousseau que de Marx, que a resultante
das vontades individuais, e a resultante dessas resultantes tem efetivamente

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POR MARX : CONTRADI ÇÃ O B SOBREDETERMINAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

f
um conteúdo geral , encarna verdadeiramente a determinação em última ins ¬
formas elas mesmas históricas , sua inserção nas formas do histórico como tal
tância da economia (penso em Rousseau , que queria por toda força que, de ff :
( as formas da estrutura e da superestrutura ) , formas que não têm nada desse
um voto bem conduzido, de vontades particulares dissociadas umas das outras, mau infinito em que se mantém Engels quando se afastou de seu modelo origi¬
e compondo-se, saísse essa miraculosa Minerva: a vontade geral!). Os ideólo¬ nal; pelo contrário, formas perfeitamente definíveis e conhecíveis (conhecíveis,
gos do século XVIII (salvo Rousseau ) não pediam a seu pressuposto para pro¬ repetiu Marx, e Lenin depois dele, por disciplinas científicas empíricas , ou
duzir algo além dele mesmo. Pediam-lhe simplesmente para fundar os valores seja, não filosóficas). Um acontecimento que se submete a essas formas, que
que esse pressuposto já encarnava, e é por isso que, para eles, a tautologia tem com o que se submeter a essas formas, que é um conteúdo possível para
tinha um sentido , evidentemente proibido para Engels, o qual quer encontrar essas formas, que as afeta, se refere a elas, as reforça ou as abala, que as pro¬
o contrário do próprio pressuposto. voca ou que elas provocam, que elas até escolhem ou selecionam, esse sim é
É por isso que, afinal, Engels reduz suas pretensões a quase nada em seu um acontecimento histórico. São, portanto, essas formas que comandam tudo,
próprio texto. O que nos resta então desse esquema e dessa “ demonstração” ? que detê m de antemão a solução do falso problema que Engels se coloca - que,
Esta frase que, considerando todo o sistema das resultantes, a resultante final a bem dizer, nem mesmo detêm sua solução, visto que nunca houve outro
contém verdadeiramente alguma coisa das vontades individuais originárias: problema sen ão aquele que Engels se colocou a partir de pressupostos pura¬
,

“ cada uma contribui para a resultante, e por esse motivo está incluída nela” . É mente ideológicos , visto que jamais houve problema!
um pensamento que, num contexto completamente diferente , pode tranquilizar Decerto, uma vez mais, havia a aparê ncia de um problema para a ideologia
espíritos preocupados com seu poder sobre a história, ou , uma vez que Deus burguesa , reencontrar o mundo da história a partir de princípios ( o homo
'

está morto, preocupados com o reconhecimento de sua personalidade histórica. oeconomicus e seus avatares políticos e filosóficos ). Estes, longe de serem prin ¬

Diria quase que é, então, um bom pensamento desesperado, que pode alimen ¬ cípios de explicação científicos, eram, ao contrário e simplesmente, a projeção
tar desesperos, ou seja, esperanças. (Não é por acaso que Sartre, sobre a própria de sua própria imagem do mundo , de suas próprias aspirações, de seu programa
base da “ questão” de Engels, sobre a questão do “ fundamento” e da génese da ideal ( um mundo que fosse redutível à sua essência: a vontade consciente dos
necessidade “ sem autor” da história, persegue o mesmo objeto, com argumen¬ indivíduos, suas ações e seus empreendimentos privados...). Mas já que essa
tos igualmente filosóficos, embora de outra inspiração.) ideologia, sem a qual esse problema nunca teria sido colocado, foi varrida por
O que nos resta ainda? Uma frase cuja resultante final não é mais a deter¬ Marx, como restaria ainda o problema que ela propunha, ou seja, como resta¬
minação económica de longo fôlego, e sim... “ o acontecimento histórico” . ,As ria ainda um problema?
vontades individuais produzem, portanto, acontecimentos históricos ! Mas, Para encerrar este comentá rio demasiado longo, permitam-me ainda duas
quando se olha atentamente, pode-se com extremo rigor admitir que o esquema observações: uma epistemológica e uma histórica.
apresenta a possibilidade do acontecimento (homens se enfrentando; ocorre Farei observar, pensando no modelo de Engels, que toda disciplina cientí¬
sempre algo, ou nada, que é também um acontecimento: esperar Godot), mas fica se estabelece num certo nível , precisamente o nível em que seus conceitos
não absolutamente a possibilidade do acontecimento histórico, n ão absoluta¬ podem receber um conteúdo (sem o que eles não são o conceito de nada, ou
mente a razão que distingue da infinidade das coisas que acontecem aos homens seja, não são conceitos) . Esse é o nível da teoria histórica de Marx: o nível dos
em seus dias e suas noites, anónimas graças à sua singularidade, o aconteci¬ conceitos de estrutura, de superestrutura e de todas as suas especificações.
mento histórico como tal. Seria preciso colocar (desta vez !) o problema ao Mas quando a mesma disciplina científica pretende produzir, a partir de outro
contrário , ou melhor, de outro modo. Com efeito, jamais se dará conta de um nível que não o seu, a partir de um nível que não constitui o objeto de nenhum

acontecimento histórico mesmo invocando a virtude dessa lei que transmuta
a quantidade em qualidade - pretendendo engendrá-lo da possibilidade ( inde ¬
conhecimento científico (como, em nosso caso, a gé nese das vontades indi ¬
viduais a partir do infinito das circunstâncias, e a génese da resultante final a
finida ) do acontecimento não histórico. O que faz com que tal acontecimento partir do infinito dos paralelogramos...), a possibilidade de seu próprio objeto
seja histórico não é ele ser um acontecimento , é justamente sua inserção em e dos conceitos que lhe correspondem , então ela cai no vazio epistemológico ,

100 101
POR MARX CONTRADI ÇÃ O B SOBREDETERM INAÇÃ O ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

ou, o que é seu desvario, na plenitude filosófica. É o destino da tentativa de texto menos “ dif ícil ” , se não menos equívoco, do que o seu. Teria ele aceitado, mais tarde,
fundação à qual se entrega Engels na carta a Bloch: e vê-se que é impossível reconhecer a dificuldade de algumas de suas expressões primitivas?

distinguir aí o vazio epistemológico do desvario filosófico, visto que ambos são I Eis a tradução das passagens importantes do texto alemão:
“ Em seu princípio (der Grundlage nach ) , meu método dialético é não só distinto do método
uma única e mesma coisa. Nessa passagem precisa, com argumentos empres ¬
hegel íano, mas seu contr á rio direto. Para Hegel , o processo do pensamento, que ele vai, sob
tados (e é afinal sua ú nica caução , puramente moral ) dos modelos das ciências o nome de Ideia, até transformar em sujeito autónomo, é o demiurgo do real, que não repre¬
senta (bildet) sen ão seu fenômeno exterior. Para mim, ao contrá rio, o ideal não é nada mais
da natureza, na sua mesma forma, Engels é apenas filósofo. É filosófico o uso
do que o material transposto e traduzido na cabeça do homem . Critiquei o lado mistificador
de seu “ modelo” de referência. Mas também, e antes de tudo, é filosófico seu : ( mystifirende ) da dialé tica hegeliana há cerca de 30 anos, quando ela ainda estava na moda
projeto de fundação . Insisto deliberadamente nesse ponto, pois temos outro [...]. Declarei- me então abertamente discípulo desse grande pensador, e, no capítulo sobre a
Teoria do valor, chegava mesmo a flertar (ich kokettirte... mit...), aqui e ali , com sua maneira
exemplo recente, o de Sartre, que também empreendeu fundar filosoficamente particular de se expressar. A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede
(ele tem sobre Engels , a esse respeito, a vantagem de o saber e de o dizer ) os de maneira nenhuma que ele tenha sido o primeiro a expor (darstellen), com amplitude e
conceitos epistemológicos do materialismo histórico. Basta reportar-se a certas consciência, suas formas de movimentos gerais. Ela está nele de cabeça para baixo. É preciso
invertê-la para descobrir na ganga mística (mystiche Hiillé) o n ú cleo ( Kem) racional.”
páginas da Cr í tica da razão dialética (pp. 68-69, por exemplo) para ver que, “ Em sua forma mistificada , a dialé tica foi uma moda alemã, porque parecia transfigurar o dado
embora recuse a resposta de Engels e seus argumentos, Sartre aprova, no fun ¬ ( das Bestehende ). Na sua forma (Gestalt ) racional , ela é um escâ ndalo e um objeto de horror

do, a própria tentativa . Embora discordem em relação aos meios, nesse ponto para os burgueses [...]. Como ela inclui na compreensão do dado ( Bestehende ) ao mesmo
j tempo também a compreensão de sua negação e de sua destruição necessária , como concebe
estão unidos por uma mesma tarefa filosófica. Não se pode interditar a Sartre toda forma madura ( gewordne) no decurso do movimento e, portanto, também sob seu aspec ¬
seu próprio caminho, a não ser fechando aquele que Engels lhe abre. to efémero, ela n ão se deixa enganar por nada , ela é, em sua essência , crítica e revolucion á ria .”
Mas é preciso então colocar o problema dessa tentação filosófica em certos I 3 Cf. “ Feuerbach e o fim da filosofia cl á ssica alemã” .
4 Sobre o “ nú cleo” cf. Hegel. Introdução à filosofia da história . (Vrin, trad. Gibelin, p. 38). Os
textos de Engels. Por que, ao lado de intuições teóricas geniais, se encontram
grandes homens: “ Eles devem ser chamados heróis porquanto extraíram seus fins e sua voca¬
em Engels exemplos dessa volta atrás, aqué m da crítica marxista de toda “ fi ¬ ção n ão só do curso dos acontecimentos, tranquilo, organizado, consagrado pelo sistema vi ¬
losofia” ? Essa pergunta só pode receber resposta da história das relações do gente, mas de uma fonte cujo conteúdo est á oculto, e ainda não chegou à existência atual, do

pensamento marxista e da “ filosofia” , e da nova teoria filosófica ( num sentido ele não é a amêndoa que convém a esse núcleo” . Variante interessante na longa história do
-
espírito interior, ainda subterrâneo, que investe contra o mundo exterior e quebra o, porque

n ão ideológico) que a descoberta de Marx continha . N ão posso, evidentemen ¬ n ú cleo, da polpa e da am êndoa . O n úcleo representa aqui o papel da casca, contendo uma
te, abord á-la aqui. Mas é preciso talvez primeiramente se convencer da exis ¬
amê ndoa, o n úcleo é seu exterior, a amêndoa o interior. A amêndoa (o novo princípio) acaba
por fazer explodir o antigo núcleo, que não lhe serve mais (era o n úcleo da antiga amêndoa ... );
tência desse problema , para suscitar a vontade e os meios de colocá lo corre - ¬
ela quer um n ú cleo que seja seu: novas formas pol íticas, sociais etc. Poder-se-á evocar esse
tamente, para resolvê-lo depois. texto dentro de alguns instantes quando se tratar da dialética hegeliana da história.
5 Cf . o “ Feuerbach” de Engels. Não se deve, sem d ú vida , tomar ao pé da letra todas as fórmulas
de um texto, por um lado destinado a ampla difusão popular e, por isso, Engels não o esconde,
k bastante esquemático, e por outro lado redigido por um homem que vivera, 40 anos antes, a
Notas grande aventura intelectual da descoberta do materialismo histórico, que passara então ele
mesmo por formas de consciência filosóficas das quais empreende, a grandes traços, a hist ória.
1 Ver capítulo precedente. -
E, de fato, encontra se nesse texto uma crítica bastante notável da ideologia de Feuerbach
(Engels vê bem que nele “ a natureza e o homem permanecem simples palavras” . E. S., p. 31 )
2 K. Marx, “ Posf ácio" da 2a edição. Traduzo literalmente o texto da edição alem ã original. A e uma boa elucidação das relações do marxismo com o hegeiianismo. Engels mostra , por
tradução Molitor segue igualmente esse texto (Costes, Le capital , tomo I , p. xcv) , não sem exemplo ( o que me parece capital), a extraordin á ria virtude cr
ítica de Hegel a respeito de Kant
algumas fantasias. Quanto a Roy, cujas provas Marx revisou, edulcora o texto, traduzindo, por
exemplo: “ die mystificirende Seite der h . Dialektik” por “ o lado m ístico” [...], quando não o
I (p. 22 ) e declara em seus próprios termos que “ o mé todo dialético era inutiliz ável na forma
hegeliana” ( p. 33). Outra tese fundamental: o desenvolvimento da filosofia n ão é filosófico ;
corta sem rodeios. Exemplo : o texto original diz: “ em Hegel, a dialética está de cabeça para foram as “ necessidades práticas de sua luta” religiosa e pol ítica que forçaram os neo-hegelia-
baixo. É preciso invertê-ía para descobrir na ganga mística o n ú cleo racional ” , mas Roy diz: nos a se opor ao “ sistema” de Hegel (p. 12); é o progresso das ciências e da indú stria que
“ nele, ela anda de cabeça para baixo; basta repô-la de pé para lhe achar a fisionomia absolu ¬ perturba as filosofias ( p. 17). Notemos ainda o reconhecimento da profunda influê ncia de
tamente razoá vel ” ! O n úcleo e sua ganga foram escamoteados. É preciso dizer, aliás - o que Feuerbach sobre A sagrada família (p. 13) etc. Poré m , esse mesmo texto contém fórmulas que,
talvez não seja sem interesse, mas como sabê-lo? -, que Marx aceitou na versão Roy um tomadas ao pé da letra, nos conduzem a um impasse. Assim, o tema da “ inversão” tem aí um

102 103

ii :
POR MARX eV CONTRADI ÇÃ O E SOBREDETERMINAÇÂO ( NOTAS PARA UMA PESQUISA )

>!•
vigor capaz de inspirar a Engeis esta conclusão, é preciso dizer, lógica: “ [...] no fim das contas, 16 Stalin , Princí pios do leninismo [ Prí ncipes du léninisme ] ( Ed. Sociales), tomo II, pp. 12-15;
o sistema de Hegel não representa sen ão um materialismo invertido e de uma maneira idea¬
-
25 27; 70-71; 94-95; 106; 112. Textos notá veis em v ários aspectos, apesar de sua secura “ peda¬
lista, segundo seu método e seu conte údo, posto de cabeça para baixo" (p. 17). Se a inversão
de Hegel no marxismo é verdadeiramente fundamentada, é preciso então que, inversamente , í gógica” .
17 Lenin, “ Sobre nossa revolução” , Obras escolhidas , tomo II, p. 1.024.
Hegel não seja de antemão senão um materialista ele próprio invertido: duas negações valerão
assim uma afirmação. Mais longe ( p. 34), vemos que essa dialética hegeliana é inutilizável em fc 18 Miséria da filosofia , ed. Giard, p. 142.
sua forma hegeliana precisamente porque anda de cabeça para baixo ( a ideia e n ão o real ):
“ Mas, assim, a dialética da ideia mesma n ão se tornou sen ão o simples reflexo consciente do |; í 19 Sobre toda essa passagem, ver: ( 1 ) Lenin, “ A doença infantil...” (pp. 750-751; pp. 760-762), em
particular: “ é somente quando ‘os de baixo’ não querem mais viver e que ‘os de cima’ não
movimento dialético do mundo real , e, ao fazê-lo, a dialética de Hegel foi posta de cabeça podem mais continuar a viver da maneira antiga ,é então somente que a revolução pode triun ¬
para cima, ou mais exatamente, da cabeça sobre a qual ela se mantinha, foi reposta de novo ' far...” ( p. 751 ). Essas condições formais são ilustradas, pp. 760-762; (2 ) Lenin, Cartas de longe,
I, Obras... ( ed . francesa ), tomo XXIII , pp. 330-331, sobretudo: “ se a revolução triunfou t ão
sobre os pés" . Fórmulas evidentemente aproximativas, mas que, em sua própria aproximação,
indicam o lugar de uma dificuldade. Notemos ainda uma afirmação singular sobre a necessi ¬
\ rapidamente [...] foi unicamente porque, em razão de uma situação histórica de extrema ori ¬
dade, para todo fil ósofo, de construir um sistema ( p. 8: Hegel era “ obrigado a construir um
sistema [...] que deve, de acordo com as exigências tradicionais, concluir-se por uma espécie
qualquer de verdade absoluta” ), obrigação “ oriunda de uma necessidade imperecível do espí¬
t ginalidade, correntes totalmente diferentes , interesses de classe totalmente heterogéneos,
tendências sociais e pol íticas totalmente opostas se fundiram com uma coerência surpreen ¬
dente [...]” (p. 330; grifado por Len í n ).
20 Lenin chega até a considerar, entre as causas do triunfo da revolução soviética, as riquezas
rito humano, a necessidade de superar todas as contradições” (p. 10); e outra afirmação que
explica as limitações do materialismo de Feuerbach pela vida no campo, o embrutecimento e naturais do país e a vastid ão de seu espaço, abrigo da revolução e de seus inevitá veis “ recuos"
a solid ão subsequentes (p. 21), |; : militares e pol íticos.
6 A brochura de Mao Tsé- tung ( Sobre a contradição ) redigida em 1937 conté m toda uma série 21 A situação de “ crise” desempenha , como disse Lenin frequentemente, um papel revelador da
de análises em que a concepção marxista da contradição aparece sob uma luz alheia à pers- estrutura e da dinâ mica da formação social que a vive. O que é dito da situação revolucion ária
pectiva hegeliana . Procurar-se-iam em v ão, em Hegel , os conceitos essenciais desse texto: diz respeito também, portanto, guardadas todas as proporções, à formação social numa situa¬
contradição principal e contradição secund á ria; aspecto principal e aspecto secund á rio da I ção anterior à crise revolucion ária.
contradição; contradições antagónicas e n ão antagó nicas; lei da desigualdade de desenvolvi ¬ 22 Cf. o desenvolvimento dedicado por Mao Tsé-tung ao tema da distinção das contradi ções
mento das contradições. Todavia , o texto de Mao, inspirado pela luta contra o dogmatismo antagónicas (explosivas, revolucion á rias ) e das não antag ónicas ( Sobre a contradição, Edi ¬
dentro do Partido chinês, permanece era geral descritivo e, em consequ ência, abstrato em tora Pekin , 1960, p. 67 e ss.).
certos aspectos. Descritivo: seus conceitos correspondem a experiências concretas. Em parte
abstrato: esses conceitos, novos e fecundos, são apresentados mais como especificações da i 23 Cf . Engels, Carta a J. Bloch (21/9/1890): “ Somos Marx e eu mesmo, parcialmente, que devemos
carregar a responsabilidade pelo fato de que, às vezes, os jovens d ão mais peso do que é de ¬
dialética em geral, do que como implicações necessárias da concepção marxista da socieda¬ vido ao lado económico. Diante de nossos adversários era preciso sublinhar o princípio es¬
de e da história . sencial negado por eles, e então nem sempre achá vamos tempo, lugar, ocasião, de dar lugar
7 Lenin, Obras escolhidas [CEuvres choisies ] , tomo XX1I1, p. 400: “ Foram as condições objetivas aos outros fatores que participam da ação recíproca” . Sobre a representação que Engels faz
reunidas pela guerra imperialista que levaram a humanidade inteira a um impasse e a coloca¬ *. : da determinação “ em ú ltima instância” ver o Anexo , pp. 92-102.
ram diante do dilema: deixar perecer ainda milh ões de homens e aniquilar a civilização euro ¬ l: Nessa ordem de pesquisas a empreender, gostaria de citar as notas que Gramsci dedica à
peia ou transmitir o poder em todos os pa íses civilizados ao proletariado revolucioná rio, tentação mecanicista-fatalista na história do marxismo no século XIX (Obras escolhidas, Ed.
:
realizar a revolu ção socialista” . r Sociales, pp. 33-34): “ O elemento determinista, fatalista , mecanicista, foi um ‘aroma ’ ideoló¬
<
8 Lenin, “ Relatório do CC ao VIII Congresso” , Obras , tomo XXIV, p. 122 ed. russa ).
9 Lenin, “ Feuillets de bloc-notes” , Obras escolhidas , tomo II, p. 1.010 (ed . francesa ).
10 Lenin, “ A doença infantil do comunismo” , Obras escolhidas, tomo II, p. 732 (ed. francesa); I
s gico imediato da filosofia da prá xis, uma forma de religião e de excitante ( mas à maneira dos
estupefacientes) que tornava necessário e justificava historicamente o cará ter ‘subalterno’ das
camadas sociais determinadas. Quando n ão se tem a iniciativa da luta, e a luta acaba por se
“ A Terceira Internacional” , Obras..., tomo XXIX, p. 313 (ed . francesa ). identificar com uma série de derrotas, o determinismo mecâ nico torna-se uma formidável
ça de resistência moral, de coesão, de perseverança, paciente e obstinada. ‘Sou vencido
11 Lenin, “ Sobre nossa revolução” , Obras escolhidas , tomo II, p. 1.023.
12 Lenin, “ A doença infantil do comunismo” , Obras... , tomo II, p. 695. í for
momentaneamente; mas com o tempo a força das coisas trabalha para mim ’ etc. A vontade
real se traveste num ato de fé em uma certa racionalidade da história , em uma forma empírica
13 Lenin , “ A Terceira Internacional ” , Obras..., tomo XXIX, pp. 313-314 (ed . francesa). i e primitiva de finalismo apaixonado que aparece como um substituto da predestinação , da
14 Lenin, “ Conferência de Petrogrado” , Obras..., tomo XXIV , pp. 135-136 (ed. francesa ). i Providência etc. das religiões confessionais. É preciso insistir sobre o fato de que, mesmo
J 5 Ver, em particular, “ A doen ça infantil...” , Obras escolhidas , tomo II, pp. 964-965; 732, 751-752; i nesse caso, existe uma forte atividade da vontade... Convém ressaltar como o fatalismo serve
756; 760-761 ; “ A Terceira Internacional ” , Obras..., tomo XXIX, pp. 311 -312; “ Sobre nossa apenas para velar a fraqueza de uma vontade ativa e real. Eis porque é preciso sempre demons¬
revolução” , Obras..., tomo II, p. 1.023 e ss. ; Cartas de longe: “ Carta I” , Obras..., tomo XXIII, trar a futilidade do determinismo mecâ nico, que, explicável como filosofia ingénua da massa,
.
p. 325 e ss.; “ Carta de despedida aos operá rios su íços” Obras..., tomo XIII, p. 396 e ss. etc. e, unicamente enquanto tal, elemento intrínseco de força, se torna, quando é tomado como
A notável teoria leninista das condições de uma revolu ção (“ A doen ça infantil ...” , Obras es ¬ filosofia refletida e coerente pelos intelectuais, uma fonte de passividade e de autossuficiência
colhidas, tomo II, pp. 750-751; 760-762) abarca perfeitamente os efeitos decisivos da situação i; •
imbecil [...]” . Essa oposição ( “ intelectuais” - “ massa” ) pode parecer estranha na pena de
específica da R ússia.
i
s um teórico marxista. Mas é preciso saber que o conceito gramsciano de intelectual é infinita-
:
r
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! 105

I
POR MARX
1
I
mente mais vasto do que o nosso, que ele n ão é definido pela ideia que os intelectuais fazem rI
de si mesmos, mas por seu papel social de organizadores e de dirigentes ( mais ou menos Sí
subalterno). É nesse sentido que Gramsci pôde escrever: “ Que todos os membros de um par¬
tido político devam ser considerados como intelectuais, eis uma afirmação que pode levar a
piadas e a caricaturas; porém, refletindo, n ão há nada mais exato. Será preciso distinguir graus,
um partido poderá ter uma maior extensão no seu grau mais baixo ou no seu grau mais alto;
o que importa é sua função de direção e de organização, logo, sua função educativa, logo, sua
função intelectual ” (Obras escolhidas. Ed. Sociales, p. 440).
Cf . Engels, Carta a C. Schmidt (27/10/1890): “ A repercussão do poder do Estado sobre o de¬
!
24
senvolvimento económico pode ser de três tipos. Ela pode agir na mesma direção, ent ão tudo
t
anda mais depressa ; pode agir em sentido inverso do desenvolvimento econ ó mico, e em nos ' -
\
IV
sos dias ela faz fiasco em cada grande povo ao fim de um tempo determinado [...]” . A carac -
-
terística das duas situações limite está aí bem indicada.
O “ PICCOLO ” , BERTOLAZZI E BRECHT
25 E, evidentemente, como em toda “ inversão” , ter-se-ão conservado os próprios termos da con¬
cepção hegel íana: a sociedade civil e o Estado. I ( Notas sobre um teatro materialista )
26 Cf. Engels, Carta a J . Bloch (21/9/1890) . Marx e Engels, Étudesphilosophiques, p. 128.
27 Engels acrescenta: “ Marx raramente escreveu algo em que essa teoria n ão represente seu
papel, mas O 18 Brumário é um excelente exemplo de sua aplicação. N’ 0 capital remete se -
com frequê ncia a ele” . Ele cita também o Anti- Diihring e o Feuerbach... ( ibid ., p . 130). I
28 Engels, “ [...] as condições políticas, etc., até mesmo a tradição que habita o cérebro dos homens
desempenham igualmente um papel [...]” ( ibid., p. 129).
§
29 As tentativas de Lukács , limitadas à história da literatura e da filosofia, parecem-me contami¬ Quero fazer aqui justiça à extraordin ária representação dada, em julho de 1962,
nadas por um hegelianismo vergonhoso: como se ele quisesse ser absolvido por Hegel por ter pelo Piccolo Teatro de Mil ão no Teatro das Nações. Justiça porque a peça de
sido aluno de Simmel e Dilthey. Gramsci tem outra estatura. Os desenvolvimentos e as notas
de seus Cadernos do cárcere tocam em todos os problemas fundamentais da história italiana Bertolazzi, El nost Milan , ficou em geral prejudicada pelas condenações ou
-
e europeia: económica , social, política, cultural. Encontram se aí visões absolutamente origi ¬ pelas queixas da crítica parisiense 1 - e, por isso, privada do p ú blico que mere
¬

nais e às vezes geniais sobre o problema, hoje fundamental, das superestruturas. Encontram - cia. Justiça porque, longe de nos distrair com o espetáculo de velharias ranço¬
-se aí í gualmente, como é de praxe quando se trata de verdadeiras descobertas, conceitos
sas, a escolha e a encenação de Strehler nos lançam no â mago dos problemas
novos - por exemplo, o conceito de hegemonia , not ável exemplo de um esboço de solução >y

teórica para os problemas da interpenetração do económico e do político. Infelizmente, quem


retomou e prolongou, ao menos na Fran ça , o esforço teórico de Gramsci ?
i da dramaturgia moderna.
f
30 Este Anexo ao texto “ Contradição e sobredeterminação” permaneceu inédito. A carta de Engels
a Bloch data de 21 /9/1890.

V ã o me perdoar, em razão do entendimento da sequê ncia , por “ contar”


brevemente a peça de Bertolazzi.2
O primeiro dos três atos é o Tivoli de Milão dos anos 1890: um Luna-Parc
popular, miserá vel , na né voa densa de uma noite de outono. Essa né voa é já
outra It ália diferente da dos nossos mitos. E esse povo, que deambula, no fim
do dia, entre as barracas, as cartomantes, o circo e todas as atrações da feira :
desempregados, pequenos artífices, pedintes, moças procurando futuro, velhos
e velhas à espreita de alguns tostões, militares um pouco bêbados, batedores
de carteira perseguidos pela polícia... Esse povo também não é o povo dos
nossos mitos, e sim um subproletariado, que passa o tempo como pode, antes
: da sopa (não para todos) e da noite. Uns bons 30 personagens que vão e vêm

|
106 107

:
POR MARX O “ PICCOLO ” , BERTOLAZZI E BRECHT ( NOTAS SOBRE UM TEATRO MATERIALISTA )

nesse espaço vazio, aguardando não se sabe o quê, que algo comece talvez, o ele a alimentou , contra os mitos pelos quais ele vai perecer. Pois ela se salvará,
espetáculo? Não, pois eles permanecerão diante das portas, aguardando que
algo comece, em geral, em sua vida, na qual nada acontece. Aguardam. No
I e sozinha, já que é preciso. Ela deixará esse mundo, que não é senão noite e
miséria, e entrará no outro, onde reinam o prazer e o ouro. O Togasso tinha
entanto, no fim do ato aparece repentinamente o esboço de uma “ história” , a razão. Ela pagará o preço que for preciso, vender se á, mas do outro lado, do
- -
figura de um destino. Uma jovem, Nina, olha, com toda sua alma, transfigura ‘
¬
lado da liberdade e da verdade. As sirenes tocam agora. O pai, que é apenas
da pelas luzes do circo, através de um rasgão da lona, o palhaço, que faz seu -
um corpo alquebrado, beijou a, depois partiu. As sirenes continuam a tocar.
n úmero perigoso. A noite chegou. Por um segundo, o tempo fica suspenso. Nina, empertigada, sai na luz do dia.
Então, já à espreita, o Togasso, o mau rapaz, que quer agarrá-la. Breve desafio,
recuo, partida. Está ali um velho, “ engolidor de fogo” : o pai , que viu tudo.
Alguma coisa se urdiu, que poderia ser um drama. I
Um drama? O segundo ato esqueceu-o completamente. Estamos èm pleno Eis condensados em algumas palavras os temas dessa peça e sua ordem de
dia, no imenso local de uma sopa popular. Ainda aí uma multid ão de gente aparição. Poucas coisas, em suma. O suficiente, contudo, para alimentar mal-
modesta, mas outros personagens: os mesmos of ícios da misé ria e do desem¬ -entendidos, mas o suficiente também para os dissipar e descobrir, abaixo da
prego, escombros do passado, dramas ou risos do presente: pequenos artesãos, superfície, uma espantosa profundidade.
mendigos, um cocheiro, um velho garibaldino, mulheres... Ademais, alguns O primeiro mal-entendido é naturalmente a acusação de “ melodrama mi-
operários que constroem a fábrica, destacando-se desse lumpemproletariado: serabilista” . Mas basta ter “ vivido” o espetáculo, ou refletir sobre sua economia,
eles já falam de ind ústria, de política, e quase de futuro, mas a custo, e ainda para se desfazer dele. Pois se contém elementos melodramáticos, o drama in ¬
mal. É o avesso de Mil ão, 20 anos depois da conquista de Roma e os faustos teiro é apenas sua crítica. É o pai que vive a história da filha no gênero do me ¬
do Risorgimento: o rei e o papa est ão em seus tronos, o povo na miséria. Sim, lodrama, não somente a aventura da filha, mas, antes de tudo, a própria vida no
o dia do segundo ato é bem a verdade da noite do primeiro: esse povo não tem seu relacionamento com a filha. Foi ele que inventou para ela a ficção de uma
mais história na vida do que em seus sonhos. Subsiste, é tudo: come (somente condição imaginária e a criou nas ilusões do coração; é ele que tenta desespe¬
os operários vão embora, ao toque da sirene), come e aguarda. Uma vida em radamente dar corpo e sentido às ilusões com que alimentou a filha: quando a
que nada acontece. Depois, no fim do ato, sem razão aparente, Nina volta ao quer manter pura de todo contato com o mundo que lhe escondeu e quando,
palco, e com ela o drama. Sabemos que o palhaço morreu. Pouco a pouco, os desesperando de se fazer ouvir por ela, mata aquele que traz o Mal: o Togasso.
homens e as mulheres partem. O Togasso surge, obriga a moça a beijá-lo, a Então ele vive real e intensamente os mitos que forjou para poupar a filha da
dar-lhe os tostões que tem. Apenas alguns gestos. O pai aparece. ( Nina chora lei deste mundo. O pai é, portanto, a pró pria figura do melodrama, a “ lei do
na ponta da longa mesa.) Ele não come; bebe. Matará o Togasso à faca após coração” que se engana sobre a “ lei do mundo” . É justamente essa inconsciên ¬
uma luta selvagem, em seguida fugirá, desvairado, abatido por seu ato. Aí cia deliberada que Nina recusa. Ela faz sua experiência real do mundo. Com o
ainda um breve relâ mpago, depois de uma longa estagnação. palhaço morreram seus sonhos de adolescência. O Togasso abriu-lhe os olhos:
No terceiro ato, é o amanhecer no asilo noturno das mulheres. Velhas, en¬ varrendo os mitos da inf ância e, junto, os mitos do pai. Sua própria violência
costadas à parede, sentadas, falam, calam-se. Uma camponesa forte, radiante libertou-a das palavras e dos deveres. Ela finalmente viu esse mundo nu e cruel,
de sa úde, retornará à sua terra. Mulheres passam: desconhecidas para n ós, onde a moral não é senão mentira; compreendeu que sua salvação estava unica¬
sempre as mesmas. A Senhora benfeitora levará todos os seus à missa, quando mente em suas mãos e que não podia passar ao outro mundo a não ser fazendo
tocarem os sinos. Depois, esvaziado o palco, ressurge o drama. Nina dormia dinheiro com o único bem à sua disposição: a juventude de seu corpo. A grande
no asilo. O pai vem vê-la, pela última vez antes da prisão: que ela saiba ao \ explicação do fim do terceiro ato é mais do que a explicação de Nina com o
menos que ele matou por ela, pela sua honra... Mas, subitamente, tudo se in ¬ pai: é a explicação do mundo sem ilusões com as miseráveis ilusões do “ cora ¬
verte: é Nina que se ergue contra o pai, contra as ilusões e as mentiras com que ção” , é a explicação do mundo real com o mundo melodramático, a conscien-

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POR MARX O " PICCOLO" , BERTOLAZZI E BRECHT ( NOTAS SOBRE UM TEATRO MATERIALISTA )

tização dramática que joga no nada os mitos melodramáticos, esses mesmos crítica da consciência melodramática, não se perceberia o drama latente da
de que foram acusados Bertolazzi e Strehler. Os que tinham essa razão de existência do subproletariado milanês: sua impotência. O que significa, com
queixa podiam simplesmente descobrir na peça a crítica que lhe queriam diri¬ efeito, essa crónica da existência miserável que constitui o essencial dos três
gir da sala. atos? Por que o tempo dessa crónica é esse desfile de seres perfeitamente tipi¬
Mas uma segunda razão, mais profunda, dissipa esse mal-entendido. Acre ¬ ficados, perfeitamente anónimos e intercambiáveis? Por que esse tempo dos
ditei sugeri-la resumindo “ o aparecer” da peça, quando mostrei o ritmo estra¬ encontros esboçados, das conversas mú tuas, das disputas começadas, é justa¬
nho de seu “ tempo” . mente um tempo vazio? Por que, à medida que se avança, do primeiro ao se¬
Eis, com efeito, uma peça singular por sua dissociação interna. Observou- gundo, depois ao terceiro ato, esse tempo tende ao silêncio e à imobilidade?
-se que os três atos apresentam a mesma estrutura e quase o mesmo conteú do: ( No primeiro ato há ainda a aparência da vida e do movimento no palco; no
a coexistência de um tempo vazio, longo e lento a ser vivido, e de um tempo segundo todos estão sentados e alguns já começam a calar-se; no terceiro ato
cheio, breve como um relâmpago. A coexistência de um espaço povoado por as velhas fazem parte das paredes.) Enfim, por que tudo isso senão para suge¬
uma multidão de personagens com relações mú tuas acidentais ou episódicas e rir o conteúdo efetivo desse tempo miserá vel: um tempo em que nada acontece,
de um espaço curto, urdido num conflito mortal, e habitado por três persona¬ um tempo sem esperança nem futuro, em que o próprio passado est á imobili¬
gens: o pai, a filha, o Togasso. Noutros termos, eis uma peça onde aparecem zado na repetição (o velho garibaldino), em que o futuro mal se procura por
cerca de 40 personagens, mas cujo drama abrange apenas três. Bem mais do meio dos balbucios políticos dos pedreiros que est ão construindo a fábrica, um
que isso, entre esses dois tempos, ou esses dois espaços, nenhuma relação tempo em que os gestos n ão têm sequência nem efeito, em que tudo se resume,
explícita. Os personagens do tempo são como alheios aos personagens do re¬ portanto, a algumas trocas no plano da vida, da “ vida cotidiana” , em discussões
lâmpago: cedem-lhes regularmente o lugar (como se a breve tempestade do ou disputas abortadas, ou que a consciência de sua presunção faz voltar ao
drama os expulsasse do palco!) para voltar no ato seguinte, sob outros rostos, nada3,- em suma, um tempo parado no qual nada acontece ainda que se pareça
uma vez desaparecido esse instante alheio ao ritmo deles. É aprofundando o corn a História, um tempo vazio e suportado como vazio: o próprio tempo da
sentido latente dessa dissociação que se chega ao âmago da peça. Pois o es ¬ condição deles.
pectador vive realmente esse aprofundamento, quando passa da reserva des¬ Não conheço nada tão magistral nesse aspecto quanto a encenação do se ¬

concertada ao espanto e depois à adesão apaixonada, entre o primeiro e o gundo ato, porque ela nos dá justamente a percepção direta desse tempo. No
terceiro ato. Gostaria apenas de refletir aqui esse aprofundamento vivido e primeiro ato, podia-se duvidar se o terreno baldio de Tivoli não combinava
dizer em voz alta esse sentido latente, que afeta contra sua vontade o especta ¬ apenas com a indolência dos desempregados ou dos distraídos que vêm, no fim
dor. Ora, eis a questão decisiva: como pode ocorrer que essa dissociação seja do dia, vagu éar em torno de algumas ilusões e de algumas luzes fascinantes.
expressiva a esse ponto, e dissociação do quê? Qual é então essa ausência de No segundo ato, não se pode resistir à evidência de que o cubo vazio e fechado
relações para sugerir uma relação latente, que a funda e justifica? Como essas desse refeitório popular é a própria forma do tempo da condição desses homens.
duas formas de temporalidade podem coexistir, aparentemente alheias uma à Na parte inferior de uma imensa parede gasta pelo uso, e quase no limite de
outra, porém unidas por uma relação vivida? um teto inacessível, coberta de inscrições regulamentares meio apagadas pelos
A resposta está neste paradoxo: é justamente a ausência de relações que anos, mas ainda legíveis, estão duas imensas mesas compridas, paralelas à ri¬
constitui a relação verdadeira. É conseguindo figurar e fazendo viver essa au ¬ balta, uma em primeiro plano, a outra em segundo, e atrás, contra a parede,
sência de relações que a peça alcança seu sentido original. Em suma, não creio uma barra de ferro horizontal delimitando a via de acesso ao refeitório. É por
;
que lidemos aqui com um melodrama tirado de uma crónica da vida popular ali que virão os homens e as mulheres. À direita, uma alta divisória, perpendi ¬

na Milão de 1890. Lidamos com uma consciência melodramática criticada por cular à linha das mesas, separa a sala das cozinhas. Dois guichês, um para o
uma existência: a existência do subproletariado milanês em 1890. Sem essa álcool, outro para a sopa. Atrás da divisória, as cozinhas, panelas fumegantes,
existência, não se saberia de que consciência melodramática se trata; sem essa e o cozinheiro, imperturbá vel. Esse campo imenso das mesas paralelas, em sua

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POR MARX O “ PICCOLO " , BERTOLAZZ 1 E BRECHT ( NOTAS SOBRE UM TEATRO MATERIALISTA )

nudez, esse fundo interminável de parede compõem um lugar de uma auste ¬ conflito substituísse esse espaço visível e vazio por outro espaço invisível e
ridade e de uma vacuidade insustentáveis. Alguns homens estão sentados às denso, irreversível, de uma ú nica dimensão, aquela que o precipita para o
mesas. Aqui e ali. De frente ou de costas. Falarão de frente ou de costas, como drama, enfim, que deveria precipitá-lo, se houvesse verdadeiramente drama.
estão sentados. Num espaço grande demais para eles, que nunca conseguirão É precisamente essa oposição que d á à peça de Bertolazzi sua profundi ¬
preencher. Esboçarão aí suas trocas irrisórias, mas, por mais que tentem deixar dade. Por um lado, um tempo não dialético, em que nada acontece, sem neces¬
seu lugar, reunir-se a um vizinho ocasional - o qual, por cima das mesas e sidade interna provocando a ação, o desenvolvimento; por outro, um tempo
bancos, acaba de lançar um dito a rebater -, jamais abolirão mesas nem bancos, dialético (o do conflito) impelido por sua contradição interna a produzir seu
que para sempre os separam deles mesmos, debaixo do imutável regulamento devir e seu resultado. O paradoxo de El nost Milan é que a dialética aparece
mudo que os domina. Esse espaço é bem o tempo da vida deles. Um homem aqui, por assim dizer, lateralmente, nos bastidores, em algum lugar num canto
aqui, um homem ali . Strehler os distribuiu . Eles permanecerão onde estão. de palco e no fim dos atos; essa dialética (que, no entanto, parecia indispensável
Comendo, parando de comer, comendo de novo. É então que os próprios ges¬ a toda obra teatral), é em v ão que a esperamos: os personagens não lhe dão
tos adquirem todo seu sentido. Esse personagem que se vê no início da cena, importância. Ela leva o tempo necessário e nunca chega senão no fim - primeiro
de frente, com o rosto pouco mais alto do que o prato, que ele gostaria de se¬ de noite, quando o ar está pesado das corujas ilustres, depois, passado meio-dia,
gurar com as duas mãos. O tempo que ele leva para encher a colher, levá-la até quando o sol já está a descer, por fim quando desperta a aurora. Essa dialética
à boca, mais alto do que ela, num gesto interminá vel, para se assegurar bem chega sempre quando todo mundo já partiu.
de não deixar cair nada, a boca, por fim cheia, controlando sua ração, avaliando Como entender o “ atraso” dessa dialética? Está atrasada como a consciên ¬
a quantidade, antes de deglutir. Nota-se então que os outros, de costas, fazem cia em Hegel e em Marx ? Mas como uma dialética pode estar atrasada? Com
os mesmos gestos: o cotovelo erguido alto que fixa as costas em seu desequilí¬ esta única condição: ser o outro nome de uma consciência.
brio; vê-se que comem, ausentes, como se veem todos os ausentes, os outros, Se a dialética de El nost Milan transcorre nos bastidores, num canto de
que em Milão e em todas as grandes cidades do mundo, realizam os mesmos palco, é que ela é apenas a dialética de uma consciência. E é por isso que sua
gestos sagrados, porque é toda sua vida, e nada lhes permite viver de outra destruição é condição pré via de toda dialética real. Lembrem-se das análises
maneira seu tempo. (Os ú nicos que terão ar de se apressarem: os pedreiros, que Marx dedica, n’ A sagrada família , aos personagens de Eugène Sue.4 A
pois a sirene marca a cadência de sua vida e seu trabalho.) Que eu saiba, nunca mola propulsora de seu comportamento dramático é sua identificação com os
se figurou com tanta força, na estrutura do espaço, na distribuição dos lugares mitos da moral burguesa; esses miseráveis vivem sua miséria dentro dos argu ¬
e dos homens, na duração dos gestos elementares, a relação profunda dos ho¬ mentos da consciência moral e religiosa: sob ouropéis emprestados. Disfarçam
mens com o tempo que vivem. aí seus problemas e até sua condição. O melodrama, nesse sentido, é realmente
Ora, eis o essencial: a essa estrutura temporal da “ crónica” opõe-se outra uma consciência alheia aplicada sobre uma condição real. A dialética da cons ¬
estrutura temporal, a do “ drama” . Pois o tempo do drama (Nina) é cheio: alguns ciência melodramática só é possível a este custo: que essa consciência seja
lampejos, um tempo amarrado, um tempo “ dramático” . Um tempo no qual não emprestada de fora (do mundo dos á libis das sublimações e das mentiras da
pode não ocorrer história. Um tempo movido de dentro por uma força irresistí¬ moral burguesa), e seja, no entanto, vivida como a consciência mesma de uma
vel, produzindo ele mesmo seu conteúdo. É um tempo dialético por excelência. condição (a camada mais baixa do povo), no entanto radicalmente alheia a essa
Um tempo que abole o outro e as estruturas de sua figuração espacial. Quando consciência. Consequência: entre a consciência melodramática, de um lado, e
os homens deixaram o refeitório, permanecendo apenas Nina, seu pai e o To- a existência dos personagens do melodrama, do outro, não pode existir, pro ¬

gasso, algo subitamente desapareceu: como se os convivas tivessem levado priamente falando, contradição. A consciência melodramática não é contraditó ¬

consigo todo o cenário (o golpe de gênio de Strehler: ter feito de dois atos um ria a suas condições: é uma consciência totalmente outra, imposta de fora com
ú nico, e representado «o mesmo cenário dois atos diferentes), o próprio espaço uma condição determinada, mas sem relação dialética com ela. É por isso que
das paredes e das mesas, a lógica e o sentido desses lugares; como se só o a consciência melodramática só pode ser dialética com a condição de ignorar

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suas condições reais e se entrincheirar no seu mito. Protegida do mundo, ela constitui a essência de sua obra, só ela permite compreender a interpretação
desencadeia então todas as formas fant ásticas de um conflito ofegante que de Strehler e a reação do público.
nunca encontra a paz de uma cat ástrofe a não ser no estrondo de outra: ela É porque Strehler teve uma consciência aguda das implicações dessa estru ¬
confunde esse alarido com o destino e sua sufocação com a dialética. A dialé¬ tura singular,5 porque sua encenação e sua direção de atores se submeteram a
tica gira no vazio, porque não é senão a dialética do vazio, para sempre corta¬ ela, que o público ficou transtornado. A emoção dos espectadores não se ex¬
da do mundo real. Essa consciência alheia, sem ser contraditória a suas condi¬
plica só pela “ presença” dessa vida popular minuciosa, nem pela miséria des¬
ções, não pode sair de si por ela mesma, por sua “ dialética” . Precisa de uma se povo - que, no entanto, vive e sobrevive um dia após o outro, aguentando
ruptura e do reconhecimento deste nada: a descoberta da não dialeticidade seu destino, assumindo a desforra do riso por vezes, da solidariedade por ins¬
dessa dialética. tantes, do silêncio quase sempre -, nem pelo drama-relâmpago de Nina, de seu
Eis o que nunca se encontra em Sue, mas vê-se em El nost Milan. A ú ltima pai e do Togasso; mas, fundamentalmente, pela percepção inconsciente dessa
cena dá enfim a razão do paradoxo da peça e de sua estrutura. Quando Nina estrutura e de seu sentido profundo. Essa estrutura não está exposta em nenhum
enfrenta o pai, quando o manda de volta à noite com seus sonhos, é ao mesmo lugar, em nenhum lugar constitui o objeto de um discurso ou de uma troca. Em
tempo com a consciência melodramática do pai e com sua “ dialética” que ela nenhum lugar é perceptível diretamente na peça, como se perceberia tal per¬
rompe. Acabaram-se para ela esses mitos e os conflitos que desencadeiam. Pai, sonagem visível ou o desenrolar da ação. Ela está lá, no entanto, na relação
consciência, dialética - ela joga tudo fora, e transpõe o limiar do outro mundo, tácita do tempo do povo e do tempo do drama, em seu desequilíbrio mú tuo, em
como para mostrar que é lá que as coisas acontecem, é lá que tudo começa, que seu constante “ intercâmbio” e, finalmente, em sua crítica verdadeira e decep-
tudo já começou, não só a miséria deste pobre mundo, mas também as ilusões cionante. É essa dilacerante relação latente, essa tensão aparentemente insig¬
irrisórias de sua consciência. Essa dialética que tem direito apenas a um peda ¬ nificante, porém decisiva, que a encenação de Strehler dá a perceber ao público
cinho de palco, ao lado de uma história que ela nunca consegue invadir nem sem que ele possa traduzir diretamente essa presença em termos de consciência
dominar, figura muito exatamente a relaçã o quase nula de uma falsa consciên ¬ clafa. Sim , esse pú blico aplaudia na peça algo que o ultrapassava; que ultra¬
cia com uma situação real. Essa dialética por fim expulsa do palco é a sanção passava talvez seu autor, mas que Strehler lhe dera: um sentido escondido, mais
da ruptura necessária, que a experiência real impõe, alheia ao conte údo da profundo que as palavras e os gestos, mais profundo que o destino imediato
consciência. Quando Nina transpõe a porta que a separa do dia, ainda não sabe dos personagens, vivendo esse destino sem jamais poder refleti-lo. A própria
o que será sua vida, que perderá talvez. Quanto a nós, sabemos pelo menos que Nina, que é para nós a ruptura e o começo, e a promessa de outro mundo e de
ela parte para o verdadeiro mundo, o qual, salvo erro, é o do dinheiro, mas outra consciência, n ão sabe o que faz. Aqui, verdadeiramente, pode-se dizer,
também o que produz a miséria e impõe à miséria até sua consciência do “ dra¬ com toda a razão, que a consciência está atrasada - pois, mesmo ainda cega, é
ma” . Marx não dizia outra coisa quando invalidava a falsa dialética da cons¬ uma consciência que visa, enfim, a um mundo real.
ciência, mesmo popular, para passar à experiência e ao estudo do outro mundo:
o do Capital.
Aqui, talvez queiram deter-me, e opor-me que aquilo que reflito da peça
ultrapassa a intenção de seu autor, e que entrego a Bertolazzi o que pertence Se essa “ experiência” refletida tem fundamento, ela pode esclarecer outras
de direito a Strehler. Direi, porém, que essa observação não tem sentido, pois interrogando-as sobre seu sentido. Penso aqui nos problemas colocados pelas
o que está aqui em causa é a estrutura latente da peça e nada mais. Pouco im ¬ grandes peças de Brecht, os quais, a princípio, talvez não tenham sido perfei¬
porta as intenções explícitas de Bertolazzi: o que conta, além das palavras, dos tamente resolvidos pelo recurso aos conceitos de efeito de distanciamento ou
personagens e da ação de sua peça, é a relação interna dos elementos funda¬ de teatro épico. Estou extremamente impressionado pelo fato de a estrutura
mentais de sua estrutura. Irei mais longe. Pouco importa que Bertolazzi tenha latente dissimétrica-crítica, a estrutura da dialética de bastidores que se encontra
buscado conscientemente ou produzido inconscientemente essa estrutura: ela na peça de Bertolazzi ser, no essencial igualmente, a estrutura de peças como

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M ãe Coragem e seus filhos e ( mais do que qualquer outra) A vida de Galileu. É nesse sentido muito preciso que Brecht alterou a problem ática do teatro
Ali também lidamos com: formas de temporalidade que não chegam a integrar- clássico, quando renunciou a tematizar na forma de uma consciência de si o
-se uma na outra, que não têm relação uma com a outra, que coexistem, se sentido e as implicações de uma peça. Quero dizer com isso que, para produzir
cruzam, mas nunca se encontram, por assim dizer; acontecimentos vividos que no espectador uma nova consciência, verdadeira e ativa, o mundo de Brecht
se urdem em dialética, localizada, à parte, e como no ar; obras marcadas por deve necessariamente excluir de si toda pretensão a recair em si e a figurar
uma dissociação interna, por uma alteridade sem resolução. exaustivamente na forma de uma consciência de si. O teatro clássico (seria
É a din âmica dessa estrutura latente específica, em particular a coexistência preciso excluir Shakespeare e Molière e se perguntar por suas exceções) nos
sem relação explícita de uma temporalidade dialética e de uma temporalidade dava o drama, suas condições e sua “ dialé tica” inteiramente refletidos na cons¬
não dialética, que funda a possibilidade de uma verdadeira crítica das ilusões ciência especular de um personagem central - em suma, refletia seu sentido
da consciência (que se crê e se toma sempre por dialética), de uma verdadeira total em uma consciência, num ser humano falando, agindo, meditando, tor ¬

crítica da falsa dialética (conflito, drama etc.), pela realidade desconcertante nando-se para nós o próprio drama. E talvez não seja por acaso que essa condi¬
que constitui seu fundo e aguarda ser reconhecida. Assim a guerra, em M ãe ção formal da estética “ clássica” (a unidade central de uma consciência dra¬
Coragem..., diante dos dramas pessoais de sua cegueira, das falsas urgências mática, que comanda.as outras famosas “ unidades” ) esteja em estreita relação
de sua avidez; assim em A vida de Galileu, essa história mais lenta que a cons¬ com seu conteúdo material. Gostaria de sugerir aqui que a matéria ou os temas
ciência impaciente do verdadeiro, essa história ademais desconcertante para do teatro clássico (a política, a moral, a religião, a honra, a “ glória” , a “ paixão”
uma consciência que não chega nunca a “ responsabilizar-se” de forma dura ¬ etc.) são justamente temas ideológicos, e continuam a sê-lo, sem nunca ser
doura no tempo de sua curta vida. É essa confrontação tácita de uma consciência questionada, isto é, criticada, sua natureza de ideologia (a própria “ paixão” ,
(vivendo no modo dialético-dramático sua própria situação e acreditando que oposta ao “ dever” ou à “ glória” , é apenas um contraponto ideológico, nunca é
o mundo inteiro é movido por suas próprias molas propulsoras ) e de uma a dissolução efetiva da ideologia). Mas o que é concretamente essa ideologia
realidade, indiferente, outra, a respeito dessa pretensa dialética, e aparentemente não criticada senão simplesmente os mitos “ familiares” , “ bem conhecidos” e
não dialética, que permite a crítica imanente das ilusões da consciência. Pouco transparentes nos quais se reconhece (e não: se conhece) uma sociedade ou um
importa que as coisas sejam ditas (elas são ditas em Brecht na forma de apólo- século? O espelho em que ela se reflete para se reconhecer, esse espelho que
gos ou de songs ) ou não: não são as palavras que, em última instância, efetuam deveria precisamente quebrar para se conhecer? O que é a ideologia de uma
essa crítica, são as relações e as não relações internas de força entre os elemen¬ sociedade ou de um tempo senão a consciência de si dessa sociedade ou desse
tos da estrutura da peça. É que não há verdadeira crítica senão imanente, e tempo, quer dizer, uma matéria imediata que implica, procura, e naturalmente
primeiramente real e material antes de ser consciente. També m me pergunto encontra espontaneamente sua forma na figura da consciência de si, vivendo a
se não se pode considerar essa estrutura dissimétrica, descentrada, essencial a totalidade de seu mundo na transparência de seus próprios mitos? Não quero
toda tentativa teatral de caráter materialista. Se fôssemos mais adiante na anᬠcolocar aqui a questão de saber por que esses mitos (a ideologia como tal) n ão
lise dessa condição, reencontraríamos facilmente este princípio, fundamental foram geralmente questionados no período clássico. Basta-me poder concluir
em Marx, de que não é possível que alguma forma de consciência ideológica que um tempo desprovido de crítica real de si (não dispondo nem dos meios,
contenha nela mesma como sair de si pela sua própria dialética interna, que nem da necessidade de uma teoria real da política, da moral e da religi ão)
não há, no sentido estrito, uma dialética da consciência: uma dialética da cons¬ devia tender a se figurar e a se reconhecer num teatro não cr ítico; ou seja, num
ciência desembocando, pela virtude de suas próprias contradições, na própria teatro cuja matéria (ideol ógica) exigia as condições formais de uma estética
realidade; em suma, que toda “ fenomenologia” no sentido hegeliano é impos¬ da consciência de si. Ora, precisamente, Brecht não rompe com essas condições
sível, pois a consciência acessa o real não pelo seu desenvolvimento interno, formais senão porque já rompeu com suas condições materiais. O que ele quer
mas pela descoberta radical do outro. produzir acima de tudo é uma crítica da ideologia espontânea na qual os homens
vivem. É por isso que ele deve necessariamente excluir de suas peças essa

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POR MARX O “ PICCOLO" , BERTOLAZZI E BRECHT ( NOTAS SOBRE UM TEATRO MATERIALISTA )

condição formal da estética da ideologia que é a consciência de si (e seus deri ¬ não é dada, mas deve ser discernida, conquistada e tirada da sombra original
vados clássicos: as regras da unidade). Em Brecht (falo das “ grandes peças” ), que a envolve e, no entanto, a engendra.
nenhum personagem abarca em si, numa forma refletida, a totalidade das condi¬ Essas observações permitem então, talvez, precisar o problema levantado
ções do drama. Em Brecht, a consciência de si, total, transparente, o espelho do pela teoria brechtiana do efeito de distanciamento. Com isso, Brecht queria
drama completo, é apenas a figura da consciência ideológica, que mantém o criar entre o público e a peça representada uma nova relaçã o: uma relação
mundo inteiro no drama dela, com a ressalva de que esse mundo não é senão crítica e ativa. Queria romper com as formas clássicas da identificação, que
o da moral, da política e da religião, em suma, dos mitos e das drogas. Nesse suspendiam o pú blico ao destino do “ herói” e investiam todas as suas forças
sentido, suas peças são precisamente descentradas, porque não podem ter cen¬ afetivas na catarse teatral. Ele queria distanciar o espectador do espetáculo,
tro, porque, partindo da consciência ingénua, empanturrada de ilusões, ele mas numa situação tal que fosse incapaz de fugir dele, ou de simplesmente
recusa fazer dela esse centro do mundo que ela quer ser. É por isso que o centro fruí-lo. Em suma, queria fazer do espectador o ator que acabaria a peça inaca ¬

está aí, se ouso dizer, sempre ao lado, e, na medida em que se trata de uma bada, mas na vida real. Essa profunda tese de Brecht foi talvez demasiadas
desmistificação da consciência de si, o centro é sempre diferido, está sempre vezes interpretada em função unicamente dos elementos técnicos do distancia ¬
além, no movimento de ultrapassar a ilusão rumo ao real. É por essa razão fun ¬
mento: banimento de todo “ efeito” no jogo dos atores, de todo lirismo e de
damental que a relação cr ítica, que é produção real, não pode ser tematizada todo pathos ; representação “ mural” ; austeridade da encenação, como para
por si mesma; é por isso que nenhum personagem é em si mesmo “ a moral da apagar todo relevo atraindo o olho (cf. as cores de terra escura e cinza de M ãe
história” , salvo quando um deles avança para a ribalta, retira a máscara e, ...
Coragem ) ; luz “ uniforme” : painéis-comentários para fixar o espírito do leitor
acabada a peça, “ tira a lição” (mas ent ão ele não é mais do que um espectador no contexto exterior da conjuntura (a realidade) etc. Essa tese deu igualmente
que a reflete de fora, ou antes lhe prolonga o movimento: “ não pudemos fazer lugar a interpretações psicológicas centradas no fen ômeno da identificação,
melhor, agora é a vez de vocês procurarem fazê-lo” ). com seu suporte clássico: o herói. Pôde-se estabelecer o desaparecimento do
Vê-se, sem d ú vida, porque é necessário então falar da dinâmica da estrutu ¬ herói (positivo ou negativo) portador da identificação como a própria condição
ra latente da peça. É preciso falar de sua estrutura na medida em que a peça do efeito de distanciamento (fim do herói: fim da identificação - vinculando-se,
não se reduz a seus atores nem às relações deles expressadas, mas à relação aliás, a supressão do herói à concepção “ materialista” de Brecht; são as massas
dinâmica existente entre consciências de si alienadas na ideologia espont ânea que fazem a história, e não os “ heróis” ...). Ora, eu me pergunto se essas inter¬
(Mãe Coragem, os filhos, o cozinheiro, o padre, entre outros) e as condições pretações não se detêm em noções importantes, decerto, mas não determinan ¬
reais de sua existência (a guerra, a sociedade). Essa relação, abstrata nela mes¬
tes, e se não é preciso ir alé m das condições técnicas e psicológicas para com ¬
ma (abstrata no que se refere às consciências de si, pois esse abstrato é o verda¬ preender que essa relaçã o crítica muito particular possa constituir se na -
deiro concreto), não pode ser figurada e apresentada por personagens, seus consciência do espectador. Em outros termos, para que nasça uma distância
gestos, seus atos e sua “ história” senão como uma relação que emprega ele ¬ entre o espectador e a peça, de certa maneira é preciso que essa distância seja
mentos estruturais abstratos (exemplo: as diferentes formas da temporalidade produzida no interior da própria peça, não só em seu tratamento (técnico) ou
em El nost Milan, a exterioridade das massas dramáticas etc.), seu desequilíbrio na modalidade psicológica dos personagens (são eles verdadeiramente heróis
e, portanto, sua dinâmica. Essa relação é necessariamente latente, na medida .
ou anti-heróis? Em M ãe Coragem .., a filha muda, em cima do telhado, que se
em que não pode ser tematizada exaustivamente por nenhum “ personagem” torna alvo dos arcabuzeiros porque toca seu infernal tambor para alertar a ci ¬
sem arruinar todo o projeto crítico: é por isso que, se tal relação permanece dade que não sabe que um exército se precipita sobre ela, não é, de fato, um
implicada em toda a ação, na existência e nos gestos de todos os personagens, “ herói positivo” ? A “ identificação” não ocorre, provisoriamente, com esse per¬
ela é o sentido profundo deles, transcendendo sua consciência. E por esse fato sonagem secund ário?). É dentro da própria peça, na dinâmica de sua estrutura
obscura para eles; visível para o espectador na medida em que é invisível para interna, que é produzida e figurada essa distância, simultaneamente crítica das
os atores. E por esse fato visível para o espectador como uma percepção que ilusões da consciência e desprendimento de suas condições reais.

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É preciso partir daí (a dinâmica da estrutura latente produz essa distância verdade, o espectador n ão é a título nenhum essa absoluta consciência de si
na própria peça) para colocar o problema da relação do espectador com o que a peça n ão pode tolerar. Nem a peça contém o “ Ju ízo Final” de sua própria
espetáculo. Ainda aqui , Brecht inverte a ordem estabelecida. No teatro clássico “ história” , nem o espectador é o Juiz supremo da peça. Também ele vê e vive
tudo podia parecer simples: a temporalidade do herói era a única temporalidade, a peça como uma falsa consciência questionada. O que ele é, então, senão o
todo o resto lhe era subordinado, seus próprios adversários eram à sua medida, irm ão dos personagens, preso como eles nos mitos espontâneos da ideologia,
isso era necessário para que pudessem ser seus adversá rios; eles viviam o nas suas ilusões e formas privilegiadas? Se ele é mantido a uma determinada
tempo dele, seu ritmo, estavam na sua dependê ncia, n ão eram senão sua de¬ distância da peça, pela própria peça, n ão é que se queira poupá-lo, ou instaura ¬

pend ência. O adversário era precisamente seu adversário: no conflito, ele lhe do como Juiz; é, ao contrário, para o prender e arregimentar nessa aparente
pertencia tanto quanto ele mesmo a si, era seu duplo, seu reflexo, seu contrário, distância, nessa “ estranheza” - para fazer dele essa distância mesma, que não
sua noite, sua tentação, sua própria inconsciência voltada contra ele mesmo. é sen ão crítica ativa e viva.
Sim, seu destino era realmente, como Hegel escreveu, a consciência de si como Mas, então, deve-se certamente desautorizar o segundo modelo da cons ¬

de um inimigo. Por isso, o conteúdo do conflito se identificava com a cons¬ ciência espectadora, que aparece até não poder mais: o modelo da identificação.
ciência de si do herói. E, muito naturalmente, o espectador parecia “ viver” a Gostaria de colocar aqui nitidamente a questão, em vez de respondê-la verda¬
peça “ identificando-se” com o herói, ou seja, com seu próprio tempo, com sua deiramente: quando se invoca, para pensar o estatuto da consciência especta¬
própria consciência, o ú nico tempo e a única consciência que lhe eram ofer¬ dora, o conceito de identificação (com o herói ), não se corre o risco de uma
tados. Na peça de Bertolazzi e nas grandes peças de Brecht essa confusão assimilação duvidosa? A rigor, o conceito de identificação é psicológico, mais
toma-se impossível, em razão de sua estrutura dissociada. Não é que os heróis precisamente, anal ítico. Longe de mim, pensar em contestar a eficácia de pro¬
tenham desaparecido porque Brecht os baniu de suas peças, mas, por mais cessos psicológicos no espectador sentado diante do palco. Mas é preciso dizer
heróis que sejam, dentro da própria peça, a peça os torna impossíveis, aniquila- que os fenômenos de projeção, sublimação etc. que podem ser observados,
-os, eles e a consciência deles, e a falsa dialética da consciência deles. Essa descritos e definidos, em situações psicológicas controladas, não podem por si
redu ção n ão é o efeito só da ação ou da demonstração que dela fariam, por sós dar conta de um comportamento complexo tão específico quanto o do es-
vocação, certos personagens populares (sobre o tema: nem Deus, nem César), pectador-que-assiste-a-uma-representação. Esse comportamento é, antes de
nem é o resultado só da peça entendida como uma história em suspenso; ela se tudo, um comportamento social e cultural-estético, e por essa razão é também
efetua não no plano dos detalhes ou da continuidade, mas no plano mais pro¬ um comportamento ideológico. É decerto uma tarefa importante elucidar a
fundo da din âmica estrutural da peça. inserção dos processos psicológicos concretos (tais como, em seu sentido psi ¬
-
Preste se bem atenção a este ponto: até aqui tinha-se falado só da peça, cológico rigoroso, a identificação, a sublimação, a catarse etc.) num compor¬
agora trata-se da consciência do espectador. Gostaria de indicar brevemente tamento que os ultrapassa. Mas essa primeira tarefa não pode, sob pena de cair
que n ão se trata de um novo problema, como se poderia crer, e sim do mesmo no psicologismo, abolir a segunda: a definição da especificidade da própria
problema. Todavia, para admiti-lo, é preciso primeiro consentir em desà utori- consciê ncia espectadora. Se essa consciência nã o se reduz a uma pura cons ¬

zar dois modelos clássicos da consciência espectadora, que obnubilam a refle ¬ ciência psicológica, se ela é uma consciência social, cultural e ideológica, não
xão. O primeiro modelo nefasto é, de novo, mas no espectador desta vez, o se pode pensar sua relação com o espetáculo unicamente na forma de identifi ¬
modelo da consciência de si. Está decidido, o espectador não se identifica com cação psicológica. Antes de se identificar (psicologicamente) com o herói, a
o “ herói” : é mantido a dist ância. Mas então ele não é, fora da peça, aquele que consciência espectadora, com efeito, reconhece-se no conteúdo ideológico da
julga, faz as contas e tira a conclusão? Dão-lhe M ãe Coragem... Cabe a ela peça e nos termos próprios desse conteú do. Antes de ser a ocasião de uma iden ¬

representar. A ele cabe julgar. No palco a figura da cegueira, na poltrona a fi¬ tificação (consigo na forma de um Outro), o espetáculo é, fundamentalmente,
gura da lucidez, conduzida à consciência por duas horas de inconsciência. Mas a ocasião de um reconhecimento cultural e ideológico.6 Esse reconhecimento
essa divisão dos papéis equivale a dar à sala o que o rigor recusa ao palco. Na de si supõe, no princípio, uma identidade essencial (que torna possíveis, na

120 121
:
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POR MARX I O “ PICCOLO " , BERTOLAZZI E BRECHT ( NOTAS SOBRE UM TEATRO MATERIALISTA )
I
condição de psicológicos, os próprios processos de identificação): a que une tem como objeto abalar essa figura intangível, pôr em movimento o imóvel,
os espectadores e os atores reunidos num mesmo lugar, por uma mesma noite. essa imutá vel esfera do mundo mítico da consciência ilusória, então a peça é
Sim, estamos primeiro unidos por essa instituição que é o espetáculo, porém , verdadeiramente o desenvolvimento, a produção de uma nova consciência no
mais profundamente unidos pelos mesmos mitos , pelos mesmos temas, que espectador - inacabada, como toda consciência, mas movida por esse mesmo
nos governam sem nosso consentimento, pela mesma ideologia espontanea ¬ inacabamento, essa dist â ncia conquistada, essa obra inesgotá vel da crítica em
mente vivida . Sim, embora ele seja por excelência o dos pobres, como em El ato; a peça é verdadeiramente a produ ção de um novo espectador, esse ator que
nost Milan, comemos o mesmo pão, temos as mesmas cóleras, as mesmas começa quando acaba o espetáculo, que só começa para acabá-lo, mas na vida.
revoltas, os mesmos del írios (ao menos, na mem ória, onde ronda incessante Olho para trás. E, subitamente, irresist ível , assalta - me a pergunta: N ão
mente esse possível iminente), se n ão a mesma prostração diante de um tempo
¬
1
seriam estas páginas, à sua maneira, desajeitada e cega, apenas essa peça des¬
que nenhuma História move. Sim, como M ãe Coragem, temos a mesma guerra conhecida de uma noite de junho, El nost Milan , prosseguindo em mim seu
à porta, e a dois dedos de n ós, se não em nós, a mesma horrível cegueira, a sentido inacabado, procurando em mim , contra minha vontade, abolidos ago¬
mesma cinza nos olhos, a mesma terra na boca. Temos a mesma aurora e a ; ra todos os atores e cen ários, o advento de seu discurso mudo ?
mesma noite, aproximamo-nos dos mesmos abismos: nossa inconsciência. l
Compartilhamos a mesma história - e é por aí que tudo começa. É por isso que, Agosto de 1962
desde o princípio, somos nós mesmos, de antemão, a própria peça - e pouco
importa, então, que conheçamos seu fim, visto que ela não desembocará nunca
i
sen ão em nós mesmos, ou seja, ainda no nosso mundo. É por isso que, desde Notas
o início, e antes mesmo que ele se coloque, o falso problema da identificação
est á resolvido pela realidade do reconhecimento. A ú nica questão é saber então 1 “ Melodrama épico” ; “ mau teatro popular” ; “ miserabilismo contagioso da Europa Central” ;
qual será o destino dessa identidade t ácita , desse reconhecimento imediato de “ o melô lacrimoso” ; “ a mais detestável pieguice” ; “ velho sapato gasto” ; “ Uma canção para
Piaf “ melodrama miserabilista , abuso realista” (fórmulas do Parisien-libéré, de Combat , do
si: O que o autor fez disso? O que farão os atores movidos pelo mestre de obras Figaro, de Libération , Paris- Presse, Le Monde ).
Brecht ou Strehler ? O que se tornará esse reconhecimento de si ideológico? 2 Autor dramá tico milanês do fim do século XIX, que conheceu uma carreira medíocre - talvez
Esgotar-se na dial é tica da consciê ncia de si , aprofundando seus mitos sem
j porque teimou em escrever peças “ veristas” , de um estilo assaz singular para desagradar ao
pú blico que determinava então o “ gosto teatral” : o pú blico burgu ês.
jamais se livrar deles ? Pôr no centro do jogo esse espelho infinito ? Ou entã o 3 Há toda uma cumplicidade tácita desse povinho para separar os brigões, para ludibriar as dores
- - -
deslocá lo, jogá-lo para os lados, agarrá lo e perd ê-lo, deixá lo, voltar a ele, demasiado vivas, como a do jovem casal de desempregados, para reconduzir todos os distú rbios
submetê-lo de longe a forças alheias - e tão tensas - que ele acabe, como por e perturbações dessa vida à sua verdade: ao silêncio, à imobilidade, ao nada .
4 O texto de Marx (A sagrada família , Ed. Costes, tomo II, pp. 85-136; tomo III, pp. 5-124 ) não
essa resson â ncia f ísica que quebra um copo a distâ ncia, por não ser mais subi ¬
contém uma definição explícita do melodrama. Mas ele nos dá sua génese, da qual Sue é
tamente do que um amontoado de estilhaços no ch ão. testemunha eloquente.
Retomando, para terminar, esta tentativa de definição, que gostaria de ser (a) Veem-se n’ Os mistérios de Paris a morai e a religião aplicadas sobre seres “ naturais” (que
apenas um problema mais bem colocado, parecerá que a própria peça é a cons ; o são a despeito de sua miséria ou de suas desgraças). Aplicação laboriosa! É preciso o cinis¬
¬
mo de Rodolphe, a chantagem moral do padre, a mixórdia da polícia, da prisão, do interna¬
ci ência do espectador, pela razão essencial de que o espectador n ão tem outra mento etc. A “ natureza” acaba por ceder: uma consciência alheia a governará (e as catástrofes
consciê ncia sen ão o conteúdo que o une de antemão à peça e o desenvolvi ¬ se multiplicarão para que ela mereça a salvação).
( b ) A origem dessa “ aplicação” salta à vista: É Rodolphe que impõe a esses “ inocentes” tal
mento desse conte ú do na própria peça: o novo resultado que a peça produz a
partir desse reconhecimento de si do qual ela é a figura e a presença. Brecht
consciência de empréstimo. Rodolphe n ão é povo nem “ inocente” . Mas quer (entende se ) -
“ salvar” ó povo, ensinar-lhe que tem uma alma, que existe um Deus etc. - em suma, ele d á ao
tinha razão: se o teatro tem como objeto unicamente ser o comentá rio, mesmo povo, quer ele queira, quer n ão , a moral burguesa para macaquear, para que se mantenha
tranquilo.
“ dialético” , desse reconhecimento-desconhecimento imutá vel de si , o especta¬
(c) Adivinha-se (Marx, III, pp. 75-76: “ Em Sue, os personagens [...] estão encarregados de
dor conhece de antem ão a m ú sica: é a sua m úsica. Se o teatro, ao contrá rio, expor como suas próprias reflex ões, como o motor consciente de seus atos, as intenções lite-

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I
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POR MARX O “ PICCOLO ” , BERTOLAZZI E BRECHT ( NOTAS SOBRE UM TEATRO MATERIALISTA )

rárias que determinaram o autor a fazê-los agir de tal ou qual maneira” ) que o romance de Sue uma contestação e de um combate no qual ressoam, silenciosa ou brutalmente, o barulho e os
é a própria confissã o de seu projeto: dar ao “ povo” um mito literário que seja, ao mesmo abalos das lutas políticas e sociais da humanidade. Admito que é muito estranho alegar puros
tempo, a propedê utica à consciência que ele deve ter e a consciência que ele deve ter para ser processos psicológicos (tal como a identificação) para explicar o comportamento do especta ¬

povo (ou seja, “ salvo” , ou seja, submisso, paralisado, drogado, em suma , moral e religioso). dor, quando se sabe que seus efeitos ficam às vezes radicalmente suspensos; quando se sabe
N ão se pode dizer mais cruamente que foi a própria burguesia que inventou para o povo o mito que há espectadores, profissionais ou outros, que n ão querem ouvir nada , antes mesmo que a
popular do melodrama , que lhe propôs ou impôs ( os folhetins da grande imprensa, os “ roman ¬ cortina se levante, ou que, uma vez levantada a cortina, recusam reconhecer-se na obra que
ces” baratos) ao mesmo tempo que lhe “ dava” os asilos noturnos, a sopa popular etc.: em suma, lhes é apresentada ou em sua interpretação. In ú til procurar muito longe exemplos que se
um sistema de caridades preventivas bastante bem pensado. multiplicam . Não foi Bertolazzi recusado pela burguesia italiana do fim do século XIX, que
fez dele um malogrado e um miserável? E aqui mesmo, em Paris, junho de 1962, n ão foi ele,
-
( d ) É ainda assim picante ver a maioria dos críticos estabelecidos fazer se de desgostosa
diante do melodrama! Como se, neles, a burguesia tivesse esquecido de que o inventara! Mas ele e Strehler, condenado sem ter sido ouvido, verdadeiramente ouvido, pelos diretores de
é preciso dizer, muito honestamente, que essa invenção está fora de moda: os mitos e as carida¬ consciência do p ú blico “ parisiense” , ao passo que um vasto p ú blico popular italiano agora o
des distribu ídos ao “ povo” estão hoje organizados de outra maneira, e mais engenhosamente. adotou e reconheceu ?
Deve-se dizer também que era no fundo uma invenção para os outros, e que é seguramente
muito deslocado ver as suas obras de caridade se sentarem sem rodeios, em plena recepção, à
sua direita, ou se exibirem sem o m ínimo embaraço nos palcos de seus benfeitores! Imagina
-se hoje, por exemplo, a Imprensa água com açúcar (que é o “ mito” popular dos tempos mo ¬ - i
dernos) convidada para o concerto espiritual das ideias dominantes? N ão se devem confundir
as ordens.
(e) É verdade que se pode també m permitir a si mesmo o que se proíbe aos outros ( o que,
outrora, na sua própria consciência, era a marca dos “ grandes” ): a troca dos papéis. Um per¬
1
'
íc-

sonagem de categoria, por brincadeira, pode também usar por empréstimo a escada de serviço
( pedir emprestado ao povo o que ele lhe deu ou deixou ). Tudo está então no subentendido da
:
troca sub-rept ícia , no curto prazo do empréstimo, e em suas cláusulas: em suma , na ironia da
brincadeira, na qual se prova (seria então preciso desta prova?...) que n ão se deixa iludir por
nada, nem mesmo pelos meios que emprega para iludir os outros. Em suma , quer tomar em ¬
prestados do “ povo” os mitos, a pacotilha que lhe fabricam e distribuem (ou vendem... ), mas
- -
com a condição de acomod á los e “ tratá-los” convenientemente. Pode se, nesta ordem, encon ¬ ; :

-
trar grandes “ hospedeiros” ( Bruant, Piaf et alii) ou med íocres ( os Frères Jacques). Faz se
“ povo” , pela vaidade de estar acima de seus próprios métodos: é por isso que é preciso brincar
de ser (de não ser ) esse povo que se exige que o povo seja, o povo do “ mito” popular, o povo
com cheiro de melodrama. Esse melodrama não merece o palco (o verdadeiro: o do teatro).
Degusta -se em pequenos goles, no cabaré.
( f ) Concluirei daí que nem a amnésia , nem a ironia, nem a repugn â ncia ou a complacência
fazem a menor sombra de cr ítica.
5 “ A principal caracter ística da obra consiste justamente em bruscas aparições de uma verdade
que ainda n ão est á bem definida... El nost Milan é um drama a meia-voz, um drama continua-
mente adiado, repensado, que se precisa de vez em quando para ser de novo retardado, que se
compõe de uma longa linha cinzenta que teria os sobressaltos de uma mecha. É talvez, por essa
raz ão que os poucos gritos decisivos de Nina e de seu pai adquirem um relevo particu íarmente
trágico... A fim de acentuar essa estrutura secreta da obra, chegou -se a uma alteração parcial
da construção da peça. Os quatro atos previstos por Bertolazzi foram condensados em três
pela fusão do segundo e do terceiro ato [...]” (Á presentação do espetáculo) .
6 Não se deveria crer que esse reconhecimento de si escapa às exigências que comandam, em
ú ltima instância, o destino da ideologia. A arte, com efeito, é tanto vontade de se reconhecer
quanto reconhecimento de si. Portanto, na origem, a unidade que aqui suponho adquirida (no
essencial ), a fim de limitar o exame, esse compartilhamento de mitos, temas e aspirações
;
comuns, que funda a possibilidade da representaçã o como fen ômeno cultural e ideológico,
essa unidade é tanto querida ou recusada quanto consolidada. Dito de outro modo, no mundo
teatral ou mais geralmente estético, a ideologia nunca deixa , por essência , de ser o lugar de

124 125
V

OS “ MANUSCRITOS DE 1844” DE KARL MARX


( Economia pol ítica e filosofia )

A publicação dos Manuscritos de 1844 constitui um verdadeiro acontecimento ,


para o qual gostaria de chamar a aten ção dos leitores de La Pensée .'
Acontecimento literário e crítico , primeiramente. Até aqui, os Manuscritos
não erá m acessíveis aos leitores de língua francesa a não ser na tradução da
edição Costes (Molitor. Tomo VI das Obras filosóficas [ CEuvres philosophi -
ques]). Todos os que se viram na necessidade de utilizá-la sabem por experiên ¬
cia própria que esse texto parcial, amputado de importantes desenvolvimentos,
cheio de erros e inexatid ões, não podia constituir um instrumento de trabalho
sério. Eis-nos agora, graças a E. Bottigelli, cujo grande mérito é preciso louvar,
de posse de uma edição atualizada (a mais atualizada de todas, visto que Botti ¬

gelli usou as mais recentes informações de leitura e correção que o Instituto


Marx-Engels de Moscou lhe comunicou ), apresentada na ordem mais racional
(a da Mega), e numa tradu ção notá vel pelo rigor, pela min ú cia, pelas notas
críticas, e direi também, o que é muito importante, por sua segurança teórica
( uma boa tradução só é concebível com a condição expressa de que o tradutor
seja bem mais do que um tradutor, é preciso que seja um homem informado
capaz de penetrar n ão só no pensamento de seu autor, mas também no univer ¬

so conceituai e histórico de que ele se alimentou. Condição hoje preenchida ).


Acontecimento teórico , em seguida. Eis-nos diante de um texto que vem
desempenhando, nas polêmicas, no ataque e na defesa de Marx, um papel de
relevo há 30 anos. Bottigelli explica muito bem como, nesse grande debate, os

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POR MARX OS “ MANUSCRITOS DE 1844" DE KARL MARX ( ECONOMIA POLÍTICA E FILOSOFIA )

papéis se distribu íram. Foram os sociais-democratas (os primeiros editores: ordem económica (assim , desde 1842, a questão do roubo da lenha evocava
Landshut e Mayer, inicialmente), depois filósofos espiritualistas, existencia ¬ toda a condição da propriedade feudal agrária; assim, de 1842 igualmente, o
listas, fenomenólogos, entre outros, que fizeram o sucesso desse grande texto; artigo sobre a censura e a liberdade de imprensa encontrava a realidade da
mas, como se sabe, num espírito muito alheio quer ao entendimento de Marx, “ ind ú stria” etc.), mas ele não encontrava então senão questões económicas
quer mesmo à simples compreensão de sua formação. Os Manuscritos econó¬ da economia, e pelo viés de debates políticos: em suma, ele não encontrava a
mico-filosóficos alimentaram toda uma interpretação, tanto ética, quanto (o que economia política, mas certos efeitos de uma política económica, ou certas
vem a dar no mesmo) antropológica, e até mesmo religiosa, de Marx - não condições económicas de conflitos sociais ( Crítica da filosofia do direito de
sendo então O capital , em seu distanciamento e sua aparente “ objetividade” , .
Hegel) Em 1844, é a economia política em pessoa que Marx enfrenta. Engels
senão o desenvolvimento de uma intuição de juventude que teria encontrado abrira-lhe o caminho com seu “ esboço genial” sobre a Inglaterra. Mas, tanto
sua expressão filosófica principal nesse texto e seus conceitos: antes de tudo quanto a Engels, impelira-o para esse encontro a necessidade de ir procurar
os conceitos de alienação, humanismo, essência social do homem etc. É sabi¬ além do político a razão dos conflitos insol ú veis dentro dele. Fora desse en ¬

do que os marxistas só vieram a reagir tardiamente e que, com frequ ê ncia, a contro , o primeiro , os Manuscritos são dificilmente inteligíveis. No período
reação foi proporcional a seus temores e sua precipitação: tenderam a defender parisiense (fevereiro-maio de 1844), decisivo a esse respeito, Marx dedica-se
Marx em bloco, e a aceitar, mas a favor d’ O capital , a tese de seus adversários, ao estudo dos economistas cl ássicos (Say, Skarbek, Smith, Ricardo), toma
superestimando assim o prestígio teórico do texto de 1844. Bottigelli tem, notas abundantes , cuja marca se acha no próprio corpo dos Manuscritos ( a
sobre esse ponto, fórmulas not á veis (pp. IX, XXXIX). Elas introduzem uma primeira parte comporta longuíssimas citações), como se quisesse certificar
exigência que nenhum comentador sério pode ignorar: definir um método de um fato. Mas enquanto o certifica, constata que esse fato não repousa, ao me ¬

investigação novo e rigoroso, um “ outro método” (p. X) que não o da simples nos nos economistas que lê, sobre nada , que ele está no ar e lhe falta seu
assimilação antecipadora ou retrospectiva. Doravante, podemos e devemos tratar próprio princípio. O encontro com a economia política é, portanto, num ú nico
esses Manuscritos, que foram o argumento de um combate, o pretexto de um e mesmo movimento, reação crítica à economia política e pesquisa exigente
processo ou o reduto de uma defesa, com um método seguro: como um mo¬ de seu fundamento .
mento da formação do pensamento de Marx, o qual, como todos os momentos De onde tira Marx a convicção de que a economia política não é fundada?
de um desenvolvimento intelectual, define decerto um futuro, mas delimita Das contradições que ela constata e registra ou aceita e transfigura; e, antes de
também um presente singular e irredutível. Não é exagerado dizer que Botti ¬ tudo, da contradiçã o principal que opõe a pauperização crescente dos tra ¬
gelli nos deu nessa tradu ção irrepreensível um objeto privilegiado , que inte¬ balhadores a essa singular riqueza , cujo advento a economia política celebra
ressa por duas razões teóricas aos marxistas: porque se refere à formação , ou no mundo moderno. Aí est á a cruz, aí está o fracasso dessa ciência otimista
melhor, à transformação do pensamento de Marx, e també m porque oferece à que se edifica sobre esse pobre argumento, como a riqueza dos proprietários
teoria marxista das ideologias uma ocasião exemplar de exercer e pôr à prova sobre a pobreza dos operários. Aí está também seu escândalo, que Marx quer
seu método. suprimir dando à economia esse princípio que lhe falta, que ser á sua luz e
Acrescento por fim que essa tradução é introduzida por uma importante seu veredicto.
apresentação histó rica e teórica, que n ão só nos lança nos problemas essenciais, É aqui que se descobre a outra face dos Manuscritos: a filosofia. Pois esse
mas os situa e esclarece. encontro de Marx com a economia política é ainda, como diz Bottigelli muito
Qual é, com efeito, o caráter específico dos Manuscritos de 1844, quando bem ( pp. XXXIX, LIV, LXVII etc.), um encontro da filosofia com a economia
comparados aos textos anteriores de Marx ? O que trazem de radicalmente política. Não, decerto, qualquer filosofia , mas a filosofia edificada por Marx
novo? A resposta está neste fato: os Manuscritos são o produto do encontro de mediante todas as suas experiências prático-teóricas (Bottigelli explora seus
Marx com a economia política. Decerto não é a primeira vez que Marx se vê, momentos essenciais: o idealismo dos primeiros textos, mais próximo de Kant
como ele mesmo disse, na “ necessidade” de dar sua opinião sobre questões de e de Fichte do que de Hegel; a antropologia de Feuerbach), modificada, retiíi-

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POR MARX
OS MANUSCRITOS DE 1844 " DE KARL MARX ( ECONOMIA POLÍTICA E FILOSOFIA )

cada, amplificada por esse mesmo encontro. De todo modo, ainda uma filo¬
demonstração, diria quase que nesse aspecto, ou seja, no aspecto da dominação
sofia , profundamente marcada pela problem ática feuerbachiana (Bottigelli ,
radical da filosofia exercida sobre um conteú do que em breve se tornará radi¬
p. XXXIX) e tentada pela hesitação a voltar atrás, de Feuerbach a Hegel. É essa
calmente independente dela, o Marx mais afastado de Marx é esse, o Marx
filosofia que resolve A contradição da economia pol ítica, pensando-a , e, por
mais próximo, o Marx da véspera, o Marx do limiar, como se antes da ruptura,
meio dela, pensando toda a economia política, todas as suas categorias, a par¬
e para consumá-la, ele precisasse ter dado à filosofia toda a oportunidade, a
tir de um conceito-chave: o conceito de trabalho alienado. A í estamos ver¬
ú ltima, esse poder absoluto sobre seu contrário, e esse triunfo teórico sem igual:
dadeiramente no âmago do problema e, ao mesmo tempo, próximos de todas
ou seja, sua derrota.
as tentações, quer do idealismo, quer da precipitação materialista, pois encon ¬
A apresentação de Bottigelli coloca-nos no âmago desses problemas. Con ¬
-
tramo nos, à primeira vista, num país conhecido, quero dizer, numa paisagem
sidero das mais notáveis as páginas em que ele se interroga sobre o estatuto
conceituai em que podemos identificar a propriedade privada, o capital, o di ¬
teórico do trabalho alienado, em que ele compara os conceitos económicos dos
nheiro, a divisão do trabalho, a alienação do trabalhador, sua emancipação, e
Manuscritos com os conceitos económicos d' 0 capital , em que coloca a ques ¬
o humanismo, que é seu futuro prometido. Todas as categorias, ou quase , que
tão fundamental da natureza teórica (para o Marx de 1844) dessa economia
reencontraremos n’ 0 capital , e que poderíamos por essa razão aceitar como
política reencontrada. Esta simples frase: “ A economia política burguesa apa ¬

antecipações dessa obra, melhor, como O capital em projeto, ou , melhor ainda,


rece a Marx como uma espécie de fenomenologia" (p. XLI) parece-me decisi ¬
como O capital tracejado, já desenhado, mas com um traço de esboço, não o
va, como me parece capital o fato de Marx aceitar precisamente a economia
definitivo, embora contendo o gênio da obra realizada. Os pintores têm esses
política tal qual ela se dá (p. LXVII), sem questionar o conteú do de seus con ¬
desenhos a carvão que são, já no primeiro esboço e em seu próprio surgimen ¬
ceitos e sua sistemática, como o fará mais tarde; é essa “ abstração” da econo¬
to, maiores do que a obra que contê m. Há algo desse jorrar no fascínio dos
mia que autoriza a outra “ abstração” : a á& filosofia , que vai dedicar-se a fundá-
Manuscritos, na sua lógica irresistível (Bottigelli fala justamente de seu “ rigor
de raciocínio” , pp. XXXHI, LXII, LIV, e de sua “ implacável lógica” ) e na con ¬ - la. Assim, o reconhecimento da filosofia em ação nos Manuscritos nos leva
necessariamente de volta a nosso ponto de partida , a esse encontro com
'

vicção de sua dialética. Mas há também a convicção, o sentido conferido por


a economia política, obrigando-nos a fazer a pergunta: Qual é, então, a reali¬
essa lógica e esse rigor aos conceitos que aí reconhecemos, e assim o próprio
dade que Marx encontrou na forma dessa economia? A pró pria economia? Ou ,
sentido dessa lógica e desse rigor: um sentido ainda filosófico', repito: filosófico ,
antes, uma ideologia económica , inseparável das teorias dos economistas, ou
tomando essa palavra na acepção mesma à qual Marx fará mais tarde uma
seja, segundo a forte expressão já citada, uma “ fenomenologia” ?
condenação inapelável. Pois todo o rigor e toda a dialética n ão valem senão o
Acrescentarei, para terminar, apenas uma observação. Se esta interpretação
que vale o sentido que eles servem e ilustram. Será preciso um dia entrar no
pode desconcertar algumas pessoas, é pelo crédito que elas concedem a uma
detalhe e dar uma explicação palavra por palavra desse texto: interrogar se - confusão (dificilmente evitável, é preciso dizê-lo, para nossos contemporâneos,
sobre o estatuto teórico e sobre o papel teórico atribu ídos ao conceito-chave
pois todo um passado histórico lhes poupa a distinção desses papéis) entre o
de trabalho alienado', examinar o campo conceituai dessa noção; reconhecer
que se pode chamar as posições políticas e as posições teóricas de Marx no
que ela desempenha exatamente o papel que Marx lhe atribui então: um papel
seu período de formação. Bottigelli viu muito bem essa dificuldade e aborda-a
à& fundamento originário', mas que ela não pode desempenhar esse papel a n ão
frontalmente escrevendo, por exemplo (p. XXXIII), que a Crítica da filosofia
-
ser na condição de recebê lo como mandato e missão de toda uma concepção
do direito de Hegel (1843) “ marca a adesão de Marx à causa do proletariado,
do Homem que vai tirar da essência do homem a necessidade e o conte údo dos
ou seja, do comunismo. Isso não significa que o materialismo histórico já
conceitos económicos que nos são familiares. Em suma, será preciso descobrir
esteja elaborado" . Logo, h á uma leitura política e uma leitura teórica dos
- -
nesses termos que vão adquirir um sentido futuro o sentido que ainda os
textos de juventude de Marx. Um texto como A questão judaica , por exemplo,
prende a uma filosofia que vai exercer sobre eles seus ú ltimos encantos e seus
é um texto politicamente engajado na luta pelo comunismo. Mas é um texto
ú ltimos poderes. E se eu não quisesse abusar da liberdade de antecipar essa
profundamente “ ideológico” : não é, portanto, um texto teoricamente compa -
130
131
POR MARX

rável com os textos ulteriores, que definirão o materialismo hist órico e que
poderão esclarecer até o fundo esse movimento comunista real de 1843, nasci ¬
do antes deles, independentemente deles, ao lado do qual o Jovem Marx se
colocou então. Ali ás, mesmo a nossa própria experi ê ncia pode lembrar-nos de
que se pode ser “ comunista” sem ser “ marxista” . Tal distinção é requerida para
evitar cair na tentação política de confundir as tomadas de posição teóricas de
Marx com suas tomadas de posi ção políticas, legitimando as primeiras me¬
diante as segundas. Mas tal distinção esclarecedora nos remete imediatamente
à exigência definida por Bottigelli: conceber “ outro método” para dar conta da VI
formação de Marx, logo, de seus momentos , de suas etapas , de seus “ presentes” ,
SOBRE A DIAL ÉTICA MATERIALISTA
em suma, de sua transformação , para dar conta dessa dialética paradoxal cujo
'

episódio mais extraordin á rio são exatamente esses Manuscritos , que Marx { Da desigualdade das origens )
nunca publicou , mas que talvez por isso mesmo, o desnudam, em seu pensa ¬
mento triunfante e desfeito, no limiar de ser finalmente, por um remanejamen-
to radical , o ú ltimo: ou seja , o primeiro. Todos os mistérios que impelem a teoria ao misticismo encon ¬
tram sua solução racional na prá xis humana e na compreensão
dessa práxis.
Dezembro de 1962
K. Marx, “ Oitava tese sobre Feuerbach ”

Nota
Se fosse preciso caracterizar com uma palavra as cr íticas que me foram diri ¬

1 Apresentação, tradução francesa e notas de Emile Bottigelli. Editions Sociales. gidas, diria que, reconhecendo seu interesse, elas apontam meus estudos como
teórica e politicamente perigosos.
Essas cr íticas formulam, com nuances, duas censuras essenciais:
( 1) ter “ acentuado” a descontinuidade que separa Marx de Hegel. Resul ¬
tado: o que resta então do “ n úcleo racional ” da dialé tica hegeliana, da própria
dialética, e, em decorrência disso, d' 0 capital e da lei fundamental do nosso
tempo?; 1
(2) ter substituído, propondo o conceito de “ contradição sobredeterminada” ,
a concepção “ monista" da história marxista por uma concepção “ pluralista” .
Resultado: o que resta então da necessidade histórica, de sua unidade, do papel
determinante da economia - e, por conseguinte, da lei fundamental do nosso
tempo?2
Dois problemas est ão em causa nessas censuras, como nos meus ensaios.
O primeiro refere-se à dialética hegeliana: Em que consiste a “ racionalidade”
que Marx reconhece nela? O segundo diz respeito à dialética marxista: Em que
consiste a especificidade que a distingue rigorosamente da dialética hegeliana?

132 133
SOBRE A DIAL ÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )
POR MARX

Dois problemas que são apenas um, visto que, em seus dois aspectos, trata-se ção” , existente em estado prático , que a prática marxista deu a uma dificulda ¬

somente de um entendimento mais rigoroso e mais claro do pensamento de real encontrada em seu desenvolvimento, cuja existê ncia ela assinalou e
de Marx. com a qual ela admite ter acertado as contas.3
Tratarei em breve da “ racionalidade” e da dialética hegeliana. Gostaria de Trata-se então apenas de preencher, num ponto preciso, a “ distância” entre
examinar mais acuradamente o segundo aspecto do problema (que comanda o a teoria e a prática. Não se trata absoiutamente de submeter ao marxismo um
primeiro): a especificidade da dialética marxista. problema imaginário ou subjetivo, pedir-lhe para “ resolver” os “ problemas”
Peço ao leitor que considere que tento, tanto quanto posso, dar aos concei¬ do “ hiperempirismo” , nem mesmo o que Marx chama as dificuldades que um
tos de que me sirvo um sentido rigoroso; que, para entender tais conceitos, é filósofo experimenta em suas relações pessoais com um conceito. Não. O pro¬
preciso prestar atenção a esse rigor, e, na medida em que ele não é imaginário, blema colocado4 existe (existiu ) na forma de uma dificuldade assinalada pela
desposá-lo. Posso lembrar que sem o rigor que seu objeto requer, não pode prática marxista. Sua solução existe na prática marxista. Trata-se então apenas
haver teoria, ou seja, prática teórica no sentido rigoroso do termo? de enunci á-lo teoricamente. Esse simples enunciado teórico de uma solu ção
existente em estado prático não é, porém, evidente: exige um trabalho teórico
real que não só elabore o conceito específico, ou conhecimento, dessa resolu ¬
ção prática - mas ainda destrua realmente, por uma crítica radical (até sua raiz
1 . Solu çã o pr ática e problema te ó rico:
teórica), as confusões, ilusões ou aproximações ideológicas que podem existir.
Por que a teoria ?
Esse simples “ enunciado” teórico implica, portanto, num ú nico movimento, a
produção de um conhecimento e a crítica de uma ilusão.
O problema que meu ú ltimo estudo colocava - Em que consiste a “ inversão”
E se se ousar então perguntar: mas por que tantos cuidados para enunciar
da dialética hegeliana por Marx ? Qual é a diferença específica que distingue a
uma “ verdade” “ conhecida” há tanto tempo?,5 responderemos, tomando ainda
dialética marxista da dialética hegeliana? - é um problema teórico.
aqui n palavra em seu sentido rigoroso: a existência dessa verdade é assina¬
Dizer que é um problema teórico implica que sua solução teórica nos dê
lada, reconhecida há muito tempo, mas ela não é conhecida. Pois o reconhe¬
um conhecimento novo, organicamente vinculado aos outros conhecimentos
cimento (prático) de uma existência não pode passar, salvo dentro dos limites
da teoria marxista. Dizer que é um problema teórico implica o fato de que não
de um pensamento confuso, por um conhecimento (ou seja, por teoria ) . E se
se trata de uma simples dificuldade imaginária, mas de uma dificuldade real¬
se perguntar então: mas de que nos serve colocar esse problema na teoria ,
mente existente colocada na forma de problema, ou seja , numa forma subme¬
visto que sua solução existe há muito tempo em estado prático? Por que dar,
tida a condições imperativas: definição do campo de conhecimentos (teóricos)
dessa solução prática, um enunciado teórico de que a prática pôde tão bem
no qual se coloca (se situa) o problema, definição do lugar exato de sua posição
prescindir até aqui ? E o que temos a ganhar, que já não possu íssemos, com essa
e dos conceitos requeridos para colocá-lo.
pesquisa “ especulativa” ?
Unicamente a posição, o exame e a resolução do problema, ou seja, a prá¬
A essa pergunta, poderíamos responder com uma afirmação, a de Lenin:
tica teórica na qual nos vamos empenhar, poderão fornecer a prova de que
“ sem teoria não há prática revolucionária” , generalizando-a: a teoria é essencial
essas condições são respeitadas.
à prática, àquela cuja teoria ela é como àquelas que ela pode ajudar a nascer,
Ora, neste caso preciso, o que se trata de enunciar na forma de problema e
ou a crescer. Mas a evidência dessa afirmação não pode bastar: precisamos de
de solução teórica já existe na prática do marxismo. Não só a prática marxista
seus títulos de legitimidade , portanto, de fazer a pergunta: O que entender por
encontrou essa “ dificuldade” , verificou que ela era bem real, e não imaginária,
teoria, que seja essencial à prátical
como, além disso, dentro de seus próprios limites, “ acertou” as contas com ela
Não desenvolverei desse tema senão o indispensável à nossa pesquisa. Pro ¬

e a superou de fato. A solu ção de nosso problema teórico já existe, há muito


ponho reter as definições seguintes, a título de aproximações prévias.
tempo, em estado prático , na prática marxista. Colocar e resolver nosso pro¬
blema teórico consiste portanto finalmente em enunciar teoricamente a “ solu¬

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POR MARX
SOBRE A DIAL ÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )

Por prática em geral entenderemos todo processo de transformação de uma


ória de uma ciência e suas “ filosofias” ). A prá tica teórica de uma ciência
-hist
matéria- prima determinada em um produto determinado, transformação efe¬
tuada por um trabalho humano determinado, utilizando meios (de “ produção” ) -
distingue se sempre nitidamente da prática teórica ideológica de sua pré his¬ -
tória: tal distinção toma a forma de uma descontinuidade “ qualitativa” teórica
determinados, Em toda prática assim concebida, o momento (ou o elemento)
determinante do processo não é nem a matéria-prima, nem o produto, mas a
e histórica, que podemos designar, com Bachelard, pela expressão “ corte epis-
prática no sentido estrito: o momento do próprio trabalho de transformação, temológico” . Nã o poderíamos tratar aqui da dialé tica em ação no advento
que emprega, numa estrutura específica, homens, meios e um método técnico desse “ corte” : ou seja, do trabalho de transformação teórica específico que o
de utilização dos meios. Essa definição geral da prática inclui em si a possibi¬ -
instaura em cada caso, que funda uma ciência destacando a da ideologia de
lidade da particularidade: existem práticas diferentes, realmente distintas, em ¬ seu passado e revelando esse passado como ideológico. Para nos limitarmos
bora pertencentes organicamente a uma mesma totalidade complexa. A “ prá ¬ ao ponto essencial, que interessa à nossa análise, colocar-nos-emos além do
tica social” , a unidade complexa das prá ticas existentes numa sociedade “ corte” , no interior da ciência constitu ída, e conviremos então quanto às se ¬
guintes denominações: chamaremos teoria toda prática teórica de caráter cien¬
determinada, comporta assim um n ú mero elevado de práticas distintas. Essa
tífico. Chamaremos “ teoria” (entre aspas) o sistema teórico determinado de
unidade complexa da “ prática social” é estruturada, como veremos, de sorte
que a prá tica determinante em ú ltima instância é a í a de transformação da uma ciência real (seus conceitos fundamentais, em sua unidade mais ou menos
contraditória num momento dado), por exemplo: a teoria da atração universal,
natureza (matéria-prima) dada em produtos de uso pela atividade dos homens
existentes, trabalhando mediante o emprego metodicamente regulado de meios
a mecânica ondulatória etc. ou ainda a “ teoria” do materialismo histórico. Em
de produção determinados, no â mbito de relações de produção determinadas. sua “ teoria” , toda ciê ncia determinada reflete na unidade complexa de seus
Além da produção, a prática social comporta outros n íveis essenciais: a práti conceitos ( unidade, aliás, sempre mais ou menos problemática) os resultados,
¬

tornados condições e meios, de sua própria prática teórica. Chamaremos Teo ¬


ca política - que, nos partidos marxistas, já não é espontâ nea, mas organizada
ria (com inicial mai úscula) a teoria geral, ou seja, a Teoria da prática em geral,
baseando-se na teoria científica do materialismo histórico, e que transforma
ela mesma elaborada a partir da Teoria das práticas teóricas existentes (das
sua matéria-prima, as relações sociais, em um produto determinado (novas
relações sociais); a prática ideológica (a ideologia, seja ela religiosa, política, ciências), as quais transformam em “ conhecimentos” ( verdades científicas) o
produto ideológico das práticas “ empíricas” (a atividade concreta dos homens)
moral, jurídica ou artística, transforma também seu objeto: a “ consciência” dos
existentes. Essa Teoria é a dialética materialista que não se separa do materia ¬
homens); e, por fim, a prática teórica. Nem sempre se leva a sério a existência
da ideologia como prática; no entanto, esse reconhecimento pré vio é condição lismo dialético. Essas definições são necessárias para poder dar à pergunta “ De
que nos serve enunciar teoricamente uma solu ção existente no estado prático?”
indispensável para toda teoria da ideologia. Leva-se ainda mais raramente a
sério a existência de uma prática teórica; porém, essa condição pré via é indis¬ uma resposta teoricamente fundamentada.
Quando Lenin diz “ sem teoria, n ão há ação revolucionária” , fala de uma
pensá vel ao entendimento do que é, para o marxismo, a própria teoria e sua
“ teoria” , a da ciê ncia marxista do desenvolvimento das formações sociais
relação com a “ prática social” .
(materialismo histórico). Essa formulação encontra-se em Que fazer? , onde
Aqui, uma segunda definição. Por teoria, entenderemos, portanto, uma for¬
Lenin examina as medidas de organização e os objetivos do partido social-
ma específica da prática, pertencente també m ela à unidade complexa da “ prá¬
-democrata russo em 1902. Ele luta naquele momento contra uma política opor ¬
tica social” de uma sociedade humana determinada. A prática teórica encaixa-
tunista a reboque da “ espontaneidade” das massas: ele quer transformá-la numa
-se na definição geral da prática. Ela trabalha uma matéria-prima (represen¬
tações, conceitos, fatos) que lhe é dada por outras práticas, sejam elas “ empíri¬
prática revolucionária, fundada na “ teoria” , ou seja, na ciência (marxista) do
desenvolvimento da formação social considerada (a sociedade russa daquele
cas” , “ técnicas” , ou “ ideológicas” . Em sua forma mais geral, a prática teórica
não abrange somente a prática teórica científica, mas igualmente a pré-cientí¬ tempo). Mas, ao enunciar essa tese, Lenin faz mais do que diz: relembrando à
prática política marxista a necessidade da “ teoria” que a fundamenta, ele enun-
fica, ou seja, “ ideológica” (as formas de “ conhecimento” constituindo a pré-

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SOBRE A DIALÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )
POR MARX

cia de fato uma tese que interessa à Teoria, ou seja, à Teoria da prática em “ exemplos” das ciências da natureza.6 A aplicação exterior de um conceito
geral: a dialética materialista. nunca é o equivalente de uma prática teórica. Essa aplicação não muda em
É nesse duplo sentido que a teoria importa à prática. A “ teoria” importa à nada a verdade recebida de fora, exceto seu nome , batismo incapaz de produzir
sua própria prática, diretamente. Mas a relação de uma “ teoria” com sua prᬠqualquer transformação real nas verdades que o recebem. A aplicação das “ leis”
tica, na medida em que essa relação est á em causa, interessa também , com a da dialética a determinado resultado da f ísica, por exemplo, não é uma prá tica
condição de ser refletida e enunciada, à própria Teoria geral (a dialética), em teórica se essa aplicação não muda uma vírgula da estrutura e do desenvolvi ¬
que está expressa teoricamente a essência da prática teórica em geral, e por mento da prática teórica em física; pior ainda, ela pode se transformar em
meio dela a essê ncia da prática em geral, e por meio dela a essência das trans¬ entrave ideológico.
formações, do “ devir” das coisas em geral. No entanto, e essa tese é essencial ao marxismo, não basta rejeitar o dog ¬

Se voltarmos a nosso problema, o enunciado teórico de uma solução prá ¬ matismo da aplicação das formas da dialética e confiar na espontaneidade das
tica, notaremos que ele diz respeito à Teoria, ou seja, à dialética. O enunciado práticas teóricas existentes, pois sabemos que não existe prática teórica pura,
teórico exato da dialética interessa primeiramente às práticas mesmas em que ciência totalmente nua, que estaria para sempre em sua história de ciê ncia ,
a dialética marxista opera, pois essas práticas (“ teoria” e política marxistas) preservada por sabe-se lá qual graça de ameaças e ataques do idealismo, ou
precisam, em seu desenvolvimento, do conceito de sua prática (da dialética), seja, das ideologias que a assediam; sabemos que não existe ciência “ pura” a
para não ficarem desarmadas diante das formas qualitativamente novas desse não ser com a condição de purificá-la incessantemente, ciência livre dentro da
desenvolvimento (situações novas, novos “ problemas” ) ou para evitar as que¬ necessidade de sua história, a não ser com a condição de libertá-la incessan ¬
das ou recaídas possíveis nas diferentes formas de oportunismo, teórico e prᬠtemente da ideologia que a ocupa, a habita ou a vigia. Essa purificação, essa
tico. Essas “ surpresas” e esses desvios, imputáveis em última instância a “ erros libertação são adquiridas apenas ao custo de uma incessante luta contra a pró¬
ideológicos” , ou seja, a uma falha teórica, custam sempre caro, quando não pria ideologia, ou seja, contra o idealismo, luta cujas razões e cujos objetivos
caríssimo. a Teoria (o materialismo dialético) pode esclarecer e guiar como nenhum outro
Mas a Teoria é essencial igualmente à transformação dos domínios nos método no mundo. O que dizer então da espontaneidade dessas disciplinas de
quais ainda não existe verdadeiramente prática teórica marxista. A questão, na vanguarda triunfantes, consagradas a interesses pragmáticos precisos; que n ão
maioria desses domínios, não está “ resolvida” como está n' O capital. A práti¬ são rigorosamente ciências, mas pretendem sê-lo porque empregam métodos
ca teórica marxista da epistemologia , da história das ciências, da história das “ científicos” (definidos, poré m, independentemente da especificidade de seu
ideologias, da história da filosofia, da história da arte está em grande parte por objeto presumido); que pensam ter, como toda verdadeira ciência, um objeto ,
constituir. Não que não haja marxistas que trabalhem também nesses domínios quando não lidam senão com uma determinada realidade, cuja posse, aliás,
e que tenham adquirido aí uma grande experiência real, mas eles não têm atrás várias “ ciências” concorrentes disputam: um determinado domínio de fenôme ¬
de si o equivalente d’ O capital ou da prática revolucionária dos marxistas há -
nos não constituídos em fatos científicos e, logo, não unificado , disciplinas que
um século. Sua prática está em grande parte diante deles , por elaborar, se não não podem, em sua forma atual, constituir verdadeiras práticas teóricas, porque
por fundar, ou seja, por assentar sobre bases teoricamente exatas, a fim de que têm , no mais das vezes, apenas a unidade de práticas técnicas ( exemplos: a
ela corresponda a um objeto real , não a um objeto presumido ou ideológico, e psicossociologia, a sociologia e a própria psicologia em in ú meros de seus ra¬
seja verdadeiramente uma prática teórica, não uma prática técnica. É para esse mos).7 A ú nica Teoria capaz de levantar, se não de colocar a questão prévia dos
fim que eles precisam da Teoria, ou seja, da dialética materialista, como do títulos dessas disciplinas, de criticar a ideologia em todos os seus disfarces,
ú nico método que possa antecipar sua prática teórica assinalando suas con¬ inclusive os disfarces das práticas técnicas em ciências, é a Teoria da prática
dições formais. Nesse caso, utilizar a Teoria não equivale a aplicar suas f ór¬ teórica (em sua distinção da prática ideológica): a dialética materialista, ou ma
¬

mulas (as do materialismo, da dialética) a um conteúdo preexistente. O próprio terialismo dialético, a concepção da dialética marxista na sua especificidade.
Lenin censurava Engels e Plekhanov por terem aplicado a dialética de fora aos

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POR MARX SOBRE A DIALÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )

Pois, concordamos todos com isso, se se trata de defender uma ciência


2 , Uma revolu ção te ó rica em ação
realmente existente contra a ideologia que a assedia; de discernir o que é ver¬
dadeiramente ciência e o que é verdadeiramente ideologia, sem tomar, como
Partimos, portanto, das práticas nas quais a dialética marxista em pessoa está
ocorre às vezes, um elemento realmente científico por ideologia, ou, como
em ação: da prática teórica (A ) e da prática política (B) marxistas.
frequentemente se vê, um elemento ideológico por um elemento científico; se
se trata também (o que é politicamente muito importante) de criticar as preten ¬
A prática te ó rica marxista
sões das práticas técnicas dominantes e de fundar as verdadeiras práticas teó¬
ricas das quais nosso tempo, o socialismo e o comunismo necessitam e neces¬
Existe, portanto, uma prática da teoria. A teoria é uma prática específica
sitarã o cada vez mais ; se se trata dessas tarefas que requerem todas a
que se exerce sobre um objeto próprio e desemboca em seu produto pró prio:
intervenção da dialética marxista, evidentemente não basta contentar-se com
um conhecimento. Considerado em si mesmo, todo trabalho teórico supõe
uma formulação da Teoria, ou seja, da dialética materialista, que apresentaria
então uma matéria-prima dada e “ meios de produção” (os conceitos da “ teoria”
o inconveniente de n ão ser exata, de estar mesmo muito longe de ser exata,
e seu modo de utilização: o mé todo). A matéria- prima tratada pelo trabalho
como a teoria begeliana da dialética. Sei bem que ainda aí essa aproximação
teórico pode ser muito “ ideológica” , se se tratar de uma ciência nascente; ela
pode corresponder a certo grau de realidade e ser, por essa razão, dotada de
pode ser, se se tratar de uma ciência já constitu ída e desenvolvida, uma maté¬
certa significação prática, servindo de referência ou de indicação (“ é o que faz
ria já elaborada teoricamente, conceitos científicos já formados. Digamos,
também Engels” , diz Lenin; mas é “ para fazer compreender melhor” . Cahiers ,
muito esquematicamente, que os meios do trabalho teórico, que são sua con¬
p. 279) não só na pedagogia, mas também na luta. Mas para que uma prática
dição mesma: a “ teoria” e o método, representam o “ lado ativo” da prática
possa se servir de fórmulas aproximadas, é preciso necessariamente que pelo
teórica, o momento determinante do processo. O conhecimento do processo
menos essa prática seja “ verdadeira” , que ela possa, se for o caso, se abster do
enunciado da Teoria e se reconhecer globalmente numa Teoria aproximativa. -
dessa prá tica teórica, em sua generalidade, ou seja, como forma especificada,
diferença real da prática, ela mesma forma especificada do processo de trans¬
Mas quando uma prática não existe verdadeiramente, quando é preciso cons-
formação geral, do “ devir das coisas” , constitui uma primeira elaboração teó¬
tituí-la, a aproximação torna-se propriamente um obstáculo. Os pesquisadores
rica da Teoria, ou seja, da dialética materialista.
marxistas que prospectam esses domínios de vanguarda que são a teoria das
Ora, uma prática teórica real (produzindo conhecimentos) pode muito bem
ideologias (direito, moral, religi ão, arte, filosofia); a teoria da história das ciên ¬
cumprir seu ofício de teoria, sem experimentar forçosamente a necessidade de
cias e sua pré-história ideológica, a epistemologia ( teoria da prática teórica da
fazer a Teoria de sua própria prática, de seu processo. É o caso da maior parte
matemática e outras ciências da natureza) etc., esses perigosos mas apaixonan-
das ciências: elas têm uma “ teoria” (o corpo de seus conceitos), mas n ão é uma
tes dom ínios de vanguarda; aqueles que se colocam difíceis problemas no
Teoria de sua prática teórica. O momento da Teoria da prática teórica, ou seja,
próprio domínio da prática teórica marxista (a da história), sem falar desses
o momento em que uma “ teoria” experimenta a necessidade da Teoria de sua
outros “ pesquisadores” revolucionários que enfrentam dificuldades políticas
própria prática, o momento da Teoria do método no sentido geral, vem sempre
de formas radicalmente novas (África, América Latina, passagem ao comunismo
mais tarde , para ajudar a superar dificuldades práticas ou “ teóricas” , a resolver
etc.); todos esses pesquisadores, se não tivessem como dialética materialista
problemas insol ú veis pelo jogo da prática imersa em suas obras - logo, teori ¬
senão a dialética... hegeliana, mesmo desembaraçada do sistema ideológico de
camente cega - ou para enfrentar uma crise ainda mais profunda. Mas a ciên ¬
Hegel, mesmo declarada “ invertida” (se essa inversão consiste em aplicar a
cia pode realizar seu of ício, ou seja, produzir conhecimentos, durante muito
dialética hegeliana ao real em vez da Ideia), eles não iriam sem d ú vida muito
tempo, sem experimentar a necessidade de fazer a Teoria do que ela faz, a
longe em sua companhia! Todos necessitam, portanto, quer se trate de enfren ¬
teoria de sua prática, de seu “ método” . Vejam Marx. Ele escreveu dez obras e
tar o novo no domínio de uma prática real, quer de fundamentar uma prática
esse monumento que é O capital sem jamais escrever nenhuma “ Dialética” .
real, da dialética materialista em pessoa.
Falou em escrevê-la, mas não fez nada. Nunca encontrou tempo para tal. O que

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SOBRE A DIAL ÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )

quer dizer que ele não precisou dela, pois a Teoria de sua própria prática teó¬
pegar uma centena de exemplos, diferentes ou atuais, todos o sentem e sabem
rica não era então essencial ao desenvolvimento de sua teoria, ou seja, à fe¬
muito bem. Nesse exemplo, temos posta em ação e à prova, o que constitui um
cundidade de sua própria prática.
todo, essa “ dialética” que vem de Marx , e, nela, essa “ inversão” que o distingue
Contudo, essa “ Dialética” nos teria interessado muito, porque teria sido a
de Hegel - uma vez mais, no estado prático. Essa dialética vem de Marx,
Teoria da prática teórica de Marx, ou seja, justamente uma forma teórica deter¬
visto que a prática do partido bolchevique se funda na dialé tica d’ C> capital ,
minante da solu ção (existente em estado prá tico) do problema que nos ocupa:
na “ teoria” marxista. Na prática da luta de classes durante a Revolu ção de 1917
,

Em que consiste a especificidade da dialética marxista? Essa solução prática,


e nas reflexões de Lenin , temos a dialética marxista, em sua especificidade,
essa dialética, existe na prá tica teórica de Marx, na qual ela está em ação. O
mas no estado prático. E ainda aí constatamos que essa prática pol ítica, que
método que Marx emprega na sua prática teórica, no seu trabalho científico
tem sua matéria-prima definida, seus instrumentos e seu método, que também
sobre o “ dado” que ele transforma em conhecimento, é justamente a dialética
ela, como toda prática, produz transformações (que não são conhecimentos ,
marxista-, e é justamente essa dialética que contém em si, em estado prá tico,
a solu ção do problema das relações entre Marx e Hegel, a realidade dessa fa¬
-
mas uma revolução nas relações sociais ) , que essa prática pode perfeitamente
existir e desenvolver-se, também ela, sem experimentar, ao menos durante um
mosa “ inversão” , pela qual, no posfácio da segunda edição d' 0 capital , Marx
tempo, a necessidade de fazer a teoria de sua própria prática, a Teoria de seu
nos indica, nos adverte que acertou sua relação com a dialética hegeliana. Eis
“ método” . Essa prática pode existir, subsistir, até mesmo progredir sem ela,
porque podemos hoje lamentar tanto a ausência dessa “ Dialética” de que Marx
como o faz qualquer outra prática, até o momento em que seu objeto (o mundo
não necessitou, de que nos privou, sabendo perfeitamente que a possu ímos, e
existente da sociedade que ela transforma) lhe oponha uma resistência sufi¬
sabemos onde: nas obras teóricas de Marx, n' 0 capital etc. - sim, nós a en ¬
ciente para obrigá-la a preencher essa lacuna, a interrogar e pensar seu próprio
contramos aí, em estado prático, o que é decerto fundamental, mas não em
método a fim de produzir as solu ções adequadas, os. meios de produzi-las, e
estado teórico\%
em particular a fim de produzir na “ teoria” que é seu fundamento (a teoria da
Engels e Lenin sabiam disso.9 Sabiam que a dialética marxista existia n’ 0
formação social existente) os novos conhecimentos correspondentes ao con ¬
capital , mas em estado prático. Logo, sabiam também que Marx não nos dera
teúdo do novo “ estágio” de seu desenvolvimento. Exemplo desses “ novos co¬
uma “ dialética” em estado teórico. Portanto, não confundiam, não podiam
nhecimentos” : os chamados aportes teóricos do “ leninismo” , para o período
confundir, exceto em exposições extremamente gerais, ou em situações de
do imperialismo na sua fase das guerras interimperialistas; ou o que se chama ¬
urgência teórica historicamente definidas, a indicação pela qual Marx assi ¬
rá mais tarde por um nome que ainda não existe: os aportes teóricos necessários
nala que sua relação com Hegel está resolvida, com o conhecimento dessa
ao período presente, no qual, no combate pela coexistência pacífica, aparecem
solução, ou seja, com a teoria dessa solução. As “ indicações” de Marx sobre a
as primeiras formas revolucionárias em alguns países chamados “ subdesen ¬
“ inversão” podiam servir de referências para se situar e se orientar em geral
volvidos” , além de sua luta pela independência nacional.
no domínio ideológico: elas representavam bem a indicação, o reconhecimen ¬
Dito isso, talvez se fique surpreso ao ler que a prática da luta de classes não
to prático da existência da solução, mas de modo nenhum seu conhecimento
tenha sido refletida na forma teórica do método ou Teoria ,10 conquanto tenha ¬
rigoroso. Eis por que as indicações de Marx devem e podem nos estimular à
mos aparentemente dez textos decisivos de Lenin, entre os quais Que fazer? é
teoria: a enunciar t ão rigorosamente quanto possível a solução prática cuja
o mais famoso. Mas se esse ú ltimo texto, por exemplo, define os fundamentos
existência elas nos assinalam.
teóricos e históricos da prática dos comunistas russos e desemboca num pro ¬

grama de ação, não constitui uma reflexão teórica sobre a prática política en ¬
A prá tica pol í tica marxista
quanto taL Ele não constitui, pois n ão é seu propósito, a teoria de seu próprio
método, no sentido geral de Teoria. Não é, portanto, um texto sobre a dialética,
Ocorre o mesmo com a prática política marxista da luta de classes. Tomei,
embora a dialética marxista seja aí empregada.
em meu ú ltimo estudo, o exemplo da Revolu ção de 1917, mas ter-se-ia podido

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POR MARX SOBRE A DIAL ÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )

Para entender bem esse ponto, retomemos o exemplo dos textos de Lenin nesse caso, o objeto de práticas teóricas. O Imperialismo, Lenin o encontra em
sobre a Revolução de 1917, que citei, ou cujas referências precisas dei." É ne ¬ sua prá tica política na modalidade da existência atual: num presente concreto.
cessário precisar a condição desses textos. Não são os textos de um historiador, O teórico da história ou o historiador o encontram em outra modalidade, a da
mas de um dirigente político, o qual subtrai algumas horas da luta para falar inatualidade e da abstração. O objeto próprio da prática política pertence, por¬
da luta a homens que estão nela, dando-lhes a compreensão da luta deles. São, tanto, à história de que falam também o teórico e o historiador; mas é um ob¬
portanto, textos para uso político direto, redigidos por um homem engajado na jeto outro. Lenin sabe perfeitamente que age sobre um presente social que é
revolu ção, que reflete sobre sua experiência prática, no campo de sua própria o produto do desenvolvimento do imperialismo, sem o que ele não seria mar ¬
experiência. Prestaram-me uma grande honra criticando-me, em suma, por ter xista, mas n ão age em 1917 sobre o Imperialismo em geral; age sobre o con¬
respeitado a forma das reflexões de Lenin, seu detalhe, sua própria expressão, creto da situação, da conjuntura da R ússia, sobre o que ele chama notavelmen ¬

dando-as pelo que eram , sem querer “ superá-las” imediatamente numa análise te “ o momento atual” , aquele momento cuja atualidade define sua pr ática
histórica verdadeira.12 Sim, certas reflexões de Lenin tê m todas as aparências política como tal. Nesse mundo que um historiador do Imperialismo é obrigado
do que se chamou “ pluralismo” , “ hiperempirismo” , “ teoria dos fatores” etc. a ver em corte, para o ver tal como Lenin o vivia e compreendia, porque era,
quando evocam essas circunstâncias mú ltiplas e excepcionais que provocaram como o é o mundo existente, o ú nico mundo concreto que existia, no ú nico
e permitiram o triunfo da revolução.13 Tomei-as tais quais eram, não em sua apa¬ concreto possível, o da sua atualidade, no “ momento atual” , Lenin analisa o
rência, mas em sua essência, não na aparência de seu “ pluralismo” , mas na sig¬ que constitui as características de sua estrutura: essas articulações essenciais,
nificação profundamente teórica dessa “ aparência” . Esses textos de Lenin n ão esses elos, esses nós estratégicos, dos quais dependem a possibilidade e a
tê m, com efeito, o sentido de uma simples descrição de uma situação dada, de saída de toda prática revolucionária; essa disposição e essas relações típicas
uma enumeração empírica de elementos diversos, paradoxais ou excepcionais; das contradições de um país determinado (semifeudal e semicolonial, e con ¬
têm, ao contrário, o sentido de uma análise de alcance teórico. Eles se referem tudo imperialista), nesse período em que a contradição principal se toma explo¬
a uma realidade absolutamente essencial à prática política, uma realidade que siva. O insubstitu ível dos textos de Lenin está nisto: na análise da estrutura de
devemos pensar, para atingir a essê ncia específica dessa prática. Esses textos uma conjuntura , nos deslocamentos e nas condensações de suas contradições,
são uma análise da estrutura do campo, do objeto, ou (para retomar nossa termi¬ em sua unidade paradoxal, que são a existência mesma desse“ momento atual" ,
nologia anterior) da matéria-prima específica da prática política em geral, me¬ que a ação política vai transformar, no sentido forte, de um fevereiro em um
diante um exemplo preciso: a prática política de um dirigente marxista em 1917. outubro de 1917.
Assim compreendida, a an á lise de Lenin responde praticamente (sua anᬠE quando se opõe ou propõe a esses textos a lição irrepreensível de uma
lise é essa resposta em estado prá tico) à pergunta teórica geral: O que é a an álise histórica de longo f ôlego,14 em que o “ momento atual” de Lenin é
prática política, o que a distingue das outras práticas? Ou , se se preferir uma apenas um instante absorvido num processo que começou há muito tempo e
formulação mais clássica: O que é a ação política? Por meio de Lenin, e contra vai ultrapassá-lo em seu próprio futuro tomado real, uma dessas análises histó¬
a tese especulativa (hegeliana, mas herdada por Hegel de uma ideologia mais ricas em que o Imperialismo explica tudo, e é bem verdade, mas pela qual
antiga, visto que ela já reina nessa forma em Bossuet) que considera o concre ¬ frequentemente o infeliz Lenin, que se debate em seus problemas e suas aná¬
to de uma situação política como “ a contingência” em que se “ realiza a neces¬ lises de prática revolucionária, é literalmente apanhado, varrido, levado pela
sidade” , conseguimos dar o começo de uma resposta teórica a essa pergunta -
avalanche da demonstração histórica, fica se confuso... Como se, para Lenin ,
real. Vemos que a prática política de Lenin não tem evidentemente por objeto o Imperialismo não fosse justamente tais contradições atuais, sua estrutura e
a História universal, nem mesmo a História geral do Imperialismo. A História suas relações atuais, como se essa atualidade estruturada não constituísse o
do Imperialismo está em causa em sua prática, mas ela não constitui seu objeto único objeto de sua ação política! Como se se pudesse assim com uma palavra,
próprio. A história do imperialismo enquanto tal é o objeto próprio de outras magicamente, dissipar a realidade de uma prática insubstituível, a dos revolucio¬
atividades: a do teórico marxista, a do historiador marxista, mas ela é então, nários, sua vida, seus sofrimentos, seus sacrifícios, seus esforços, em suma,

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SOBRE A DIALÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )
POR MARX

sua história concreta, pelo uso que se faz de uma outra prá tica, baseada na lética marxista da dialética hegeliana? Esse problema já est á resolvido pela
primeira, a de um historiador, ou seja, de um homem de ciência que reflete prática marxista, seja a prática teórica de Marx, seja a prática política da luta
necessariamente sobre o fato consumado da necessidade; como se se pudesse de classes. Logo, sua solução existe, nas obras do marxismo, mas em estado
confundir a prática teórica de um historiador clássico, que analisa o passado, prático. Trata-se de enunciá-la de forma teórica, ou seja, passar do que é, na
com a prática de um dirigente revolucionário que reflete no presente sobre o maioria das “ célebres citações” ,17 reconhecimento prático de uma existência a
seu conhecimento teórico.
presente, sobre a necessidade a consumar, sobre os meios de produzi la, sobre - Essa distinção deve evitar-nos um último impasse. É efetivamente muito
os pontos de aplicação estratégicos desses meios, em suma, sobre sua própria
ação, pois ele próprio age sobre a história concreta! E seus erros e seus suces¬ f ácil, logo tentador, tomar o reconhecimento da existência de um objeto por
seu conhecimento. É essa facilidade que poderia ter-me oposto, como ú nico
sos não figuram simplesmente na cota de uma “ história” escrita em in 8-* na - argumento, ou como equivalente de um argumento teórico, uma parte ou o todo
Biblioteca Nacional; eles se chamam, para sempre, na vida concreta, 1905,
1914, 1917, ou Hitler, ou Franco, ou Stalingrado, ou China, ou Cuba. Distinguir da lista das “ célebres citações” . Elas são preciosas, porém, pois dizem que o
essas duas práticas, eis aqui o fundo da quest ão. Pois Lenin sabia melhor do problema existe e foi resolvido! Elas dizem que Marx o resolveu “ invertendo”
que ninguém que as contradições que analisa provinham de um ú nico e mesmo a dialética de Hegel. Mas as “ célebres citações” não nos dão o conhecimento
Imperialismo, que produzia até seus paradoxos. Mas, sabendo-o, elas lhe in ¬ teórico dessa inversão. E a prova disso é, clara como o dia, que é preciso um
teressavam por outra coisa que não esse saber histórico geral , e é porque ele o esforço teórico extremamente sério para chegar a pensar essa inversão apa ¬
sabia, de fonte segura, que podia interessar-se realmente por outra coisa, pelo rentemente tão evidente... Na verdade, muitos dos “ esclarecimentos” que nos
que constituía a estrutura de seu objeto prático: a essa tipicidade das contradi¬ propuseram se limitaram a repetir as “ célebres citações” , parafraseando-as
ções, a seus deslocamentos, a suas condensações, e a essa “ fusão” da ruptura ( uma paráfrase não é, porém, uma explicação); a misturar os conceitos (in ¬
revolucionária que daí resultava, em suma, a esse “ momento atual” que elas dicativos, mas enigmáticos) de “ inversão” , “ núcleo racional” , com conceitos
constitu íam. É por isso que a teoria do “ elo mais fraco” constitui apenas uma marxistas autênticos e rigorosos, como se a clareza teórica de uns pudesse
única e mesma coisa com a teoria do “ elo decisivo” . esclarecer por contágio a obscuridade dos outros, como se o conhecimento
Quando se viu isso, pode-se tranquilamente voltar para Lenin. Mesmo que pudesse nascer tão só da convivência do conhecido e do mal conhecido ou do
um ideólogo o submerja pela demonstração de uma análise histórica: um ho¬ desconhecido,18 como se bastasse a vizinhança de um ou dois conceitos cien ¬
menzinho continua l á, na planície da Hist ória e da nossa vida , esse eterno tíficos para transfigurar o reconhecimento da existência da “ inversão” ou do
“ momento atual” . Ele continua a falar, pacífica e apaixonadamente. Continua “ nú cleo” em seu conhecimento! É mais convincente assumir claramente a res¬
a falar-nos desta simples coisa: de sua prática revolucionária, da prática da luta ponsabilidade de sua tese, declarar, por exemplo, que a frase de Marx sobre a
de classes, do que permite, em suma, agir sobre a História, do seio da única “ inversão” é um verdadeiro conhecimento , assumir esse risco, verificar essa
história presente, desse específico da contradição, e da dialética, dessa dife ¬
tese pela prática teórica - e examinar seus resultados. Essa tentativa é interes¬
rença específica da contradição, que permite muito simplesmente não demons¬ sante porque é uma experiência real e porque desemboca numa demonstração
trar ou explicar mais tarde, mas “ fazer” , em nosso único presente, as revoluções pelo absurdo, ensinando que é preciso alterar profundamente o pensamento de
“ inevitáveis” ; ou , como diz Marx tão profundamente,13 fazer da dialética não Marx para fazê-lo admitir que ele nos deu, na “ inversão” , um conhecimento.19
a teoria do fato consumado,16 mas um método revolucionário. Essas tentações e essa experiê ncia confirmam à sua maneira que não é na
Resumindo. O problema colocado: Em que consiste a “ inversão” da dialé¬ indicação de sua existência que se deve procurar a teoria da solução. A exis¬
tica hegeliana por Marx ? Qual é a diferen ça específica que distingue a dia¬ tência da solução no estado prático é uma coisa. O conhecimento dessa solução
é outra coisa.

* Ou in-octavo . Tamanho de folha utilizada para impressão que, dobrada, corresponde aproxi-
madamente ao formato A5 atual. (N. do E. )
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POR MARX SOBRE A DIALÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )

Eu disse que Marx não nos deu uma “ Dialética” . Não é totalmente exato. -
versalmente à sua essência. Poder se-ia ironizar sobre esse “ trabalho” prévio
Ele deu-nos um texto de metodologia de primeira ordem, infelizmente inaca¬ do universal que parece ter necessidade de um suplemento de universalidade
bado: a Introdução à crítica da economia política, de 1859. Esse texto n ão cita para poder dar à luz sua especificidade, e tomar esse “ trabalho” pelo trabalho
a palavra “ inversão” , mas fala de sua realidade: das condições de validade do do “ negativo” hegeliano. Ora, se se entender bem o que é o materialismo, esse
emprego científico dos conceitos da economia política. Basta refletir sobre esse “ trabalho” não é um trabalho do universal, mas um trabalho sobre um univer¬
emprego para daí tirar os elementos fundamentais de uma Dialética, visto que sal prévio, trabalho tendo justamente por fim e resultado proibir a esse univer¬
esse emprego nada mais é do que a Dialética no estado prático. sal a abstração ou a tentação “ filosófica” (ideológica), e ligá-lo à força à sua
Eu disse que Lenin n ão nos deu uma “ Dialética” que fosse o enunciado condição: a condição de uma universalidade especificada cientificamente. Se
teórico da dialética em ação na sua própria prática política; mais geralmente o universal deve ser essa especificidade, não temos o direito de invocar um
que o trabalho teórico de enunciação da dialética, em ação na prática marxista universal que não seja o universal dessa especificidade.
da luta de classes, estava por fazer. Não é totalmente exato. Lenin deixou-nos Esse ponto, essencial para o materialismo dialético, é tratado por Marx no
em seus Cadernos algumas frases que são o esboço de uma “ Dialética” . Essas exemplo da Introdução..., quando ele demonstra que, se o emprego de concei ¬

notas foram desenvolvidas por Mao Tsé-tung, em plena luta política contra os tos gerais (exemplos: os conceitos de “ produção” , “ trabalho” , “ troca” etc.) é
desvios dogmáticos do partido chinês em 1937, num texto importante, Sobre a indispensável à prática teórica científica, essa primeira generalidade não coin ¬
contradição.20 cide com o produto do trabalho científico; ela não é seu resultado, mas algo
Gostaria de mostrar como podemos encontrar nesses textos - numa forma que lhe é preliminar. Essa primeira generalidade (que chamaremos Generali¬
já muito elaborada e que basta desenvolver, relacionar a seu fundamento, mas dade 1) constitui a matéria-prima que a prática teórica da ciência transformará
sempre refletindo - a resposta teórica à nossa pergunta: Qual é a especificida ¬ em “ conceitos” especificados, ou seja, nesta outra generalidade (que chama ¬
de da dialética marxista ? remos Generalidade III ) “ concreta” que é um conhecimento. Mas o que é então
^

a Generalidade I, ou seja, a matéria-prima teórica sobre a qual se efetua o


trabalho da ciência? Contrariamente à ilusão ideológica ( não “ ingénua” , sim ¬
3. Processo da prática te ó rica ples “ aberração” , mas necessária e fundamentada como ideologia) do empiris ¬

mo ou do sensualismo, uma ciência nunca trabalha sobre um existente, que


[...] a totalidade concreta como totalidade de pensamento, teria por essência a imediatez e a singularidade puras (“ sensações” ou “ indiví¬
como um concretum de pensamento, é na reaiidade um produ ¬ duos” ). Ela trabalha sempre sobre o “ geral” , mesmo quando ele tem a forma
to do pensar e do conceber; de maneira nenhuma um produto do “ fato” . Quando uma ciência se constitui - por exemplo, a física com Galileu,
do conceito pensando e se engendrando ele mesmo, no exterior
ou a ciência da evolu ção das formações sociais ( materialismo histórico) com
ou acima das intuições e das representações, mas, ao contrá rio,
Marx -, ela trabalha sempre sobre conceitos existentes, Vorstellungen, ou seja,
um produto do trabalho de elaboração que transforma intuições
uma Generalidade I, de natureza ideológica, pré via. Ela n ão “ trabalha” sobre
e representações em conceitos.
um puro “ dado” objetivo, que seria aquele de “ fatos” puros e absolutos. Seu
K. Marx , Introdução à cr
í tica da economia política, 1859
trabalho pró prio consiste, ao contrário, em elaborar seus próprios fatos cien¬
tíficos , mediante uma crítica dos " fatos" ideológicos elaborados pela prática
Mao Tsé-tung parte da contradição em sua “ universalidade” , mas para não
teórica ideológica anterior. Elaborar seus próprios “ fatos” específicos é, ao
falar seriamente senão da contradição na prática da luta de classes, em virtude,
mesmo tempo, elaborar sua própria “ teoria” , já que o fato científico - e não o
aliás, deste princípio, também ele “ universal” , de que o universal só existe no
assim chamado fenômeno puro - não é identificado a não ser no campo de uma
particular, princípio que Mao reflete, a respeito da contradição, na forma univer¬
prática teórica. Quando uma ciência, já constituída, se desenvolve, ela trabalha
sal seguinte: a contradição é sempre específica, a especificidade pertence uni ¬
então sobre uma matéria-prima (Generalidade I) constituída quer de conceitos

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SOBRE A DIALÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )

ainda ideológicos, quer de “ fatos” científicos, quer de conceitos já elaborados


cientificamente, mas pertencendo a um estágio anterior da ciência (uma associadas; ou seja , para n ão acreditar que o abstrato designaria a própria
ex-Generalidade III). Portanto, é transformando essa Generalidade I em Gene ¬ teoria (ciência), ao passo que o concreto designaria o real, as realidades “ con ¬
ralidade III (conhecimento) que a ciência trabalha e produz. cretas” cuja prática teórica produz o conhecimento; para não confundir dois
Mas quem trabalha? O que entender por esta expressão: a ciê ncia trabalha? -
concretos diferentes: o concreto-de pensamento , que é um conhecimento, e
Toda transformação (toda prática) supõe, como vimos, a transformação de uma o concreto-realidade, que é seu objeto. O processo que produz o concreto-
matéria-prima em produtos pelo emprego de meios de produção determinados. -conhecimento ocorre inteiramente na prática teórica: ele diz respeito eviden ¬
Qual é, na prática teórica da ciência, o momento, o nível, a instância, corres¬ temente ao concreto-real, mas esse concreto-real “ subsiste depois como antes
pondentes aos meios de produção? Se nesses meios de produção fizermos em sua independê ncia, no exterior do pensamento” (Marx ), sem nunca poder
provisoriamente abstração dos homens, é a isso que chamaremos Generalida¬ ser confundido com esse outro “ concreto” que é seu conhecimento. Que o
de II , a qual é constituída pelo corpus dos conceitos cuja unidade mais ou - -
concreto de pensamento (Generalidade III) considerado seja o conhecimento
menos contraditória constitui a “ teoria” da ciência no momento (histórico) de seu objeto (concreto-real), eis o que causa “ dificuldade” apenas para a ideo¬
considerado,21 “ teoria” que define o campo no qual está necessariamente colo logia, que transforma essa realidade num pretenso “ problema” (o Problema do
¬

cado todo “ problema” da ciência (ou seja, onde serão colocadas na forma de Conhecimento), que pensa como problemático, portanto, o que é justamente
problema, por e nesse campo, as “ dificuldades” encontradas pela ciência em produzido como solução não problemática de um problema real, pela prática
seu objeto, na confrontação de seus “ fatos” e de sua “ teoria” , de seus “ conhe¬ científica mesma: a não problematicidade da relação entre um objeto e seu
cimentos” antigos e de sua “ teoria” , ou de sua “ teoria” e de seus conhecimen ¬ conhecimento. Logo, é essencial não confundir a distinção real do abstrato
tos novos). Contentemo-nos, sem entrar na dialética desse trabalho teórico, (Generalidade I) e do concreto (Generalidade III) que diz respeito unicamente
com essas indicações esquemáticas. Elas nos bastam para compreender que a à prática teórica, com uma outra distinção, essa ideológica, que opõe a abstra¬
prática teórica produz Generalidades III pelo trabalho da Generalidade II sobre ção (Constituindo a essência do pensamento, da ciência, da teoria) ao concreto
a Generalidade 1. (constituindo a essência do real).
Elas nos bastam, portanto, para compreender duas importantes proposições: Essa confusão é precisamente a de Feuerbach, compartilhada por Marx em
(1) entre a Generalidade I e a Generalidade III nunca existe identidade de seu período feuerbachiano: n ão só ela alimenta os lugares-comuns de uma
essência, mas sempre transformação real, quer por transformação de uma ge ideologia de consumo hoje em dia corrente, mas também corre o risco de
¬

neralidade ideológica em uma generalidade científica ( mutação que se reflete desencaminhar aqueles que se deixam apanhar pelas “ evidências” de suas vir¬
na forma que Bachelard , por exemplo, chama “ corte epistemológico” ), quer tudes de protesto por vezes generosas, para impasses teóricos sem recursos. A
pela produção de uma nova generalidade científica que recusa a antiga “ englo- crítica que opõe, em última instância, a abstração (que pertenceria à teoria, à
bando-a” , ou seja, define sua “ relatividade” e seus limites (subordinados) de ciência) ao concreto (que seria o próprio real ) é uma crítica ainda ideológica,
validade; visto que nega a realidade da prática científica, a validade de suas abstrações
(2) o trabalho que faz passar da Generalidade I à Generalidade III, ou seja, e, finalmente, a realidade desse “ concreto” teórico que é um conhecimento.
se feita abstração das diferen ças essenciais que distinguem Generalidade I e Querendo-se “ concreta” , querendo o “ concreto” , essa concepção quer-se, como
Generalidade III, do “ abstrato” ao “ concreto” , diz respeito somente ao proces¬ concepção, “ verdadeira” , ela se quer, assim, conhecimento; mas começou por
so da prática teórica, ou seja, ocorre inteiramente “ no conhecimento” . negar a realidade da prática que produz justamente o conhecimento! Ela perma¬
É essa segunda afirmação que Marx exprime quando declara que “ o método nece na própria ideologia que declara “ inverter” , ou seja, não na abstração em
científico correto” consiste em partir do abstrato para produzir o concreto no geral, mas numa abstração ideológica determinada.23
pensamento.22 É preciso apreender o sentido preciso dessa tese para evitar cair É a í que é preciso implacavelmente chegar, para reconhecer agora que,
nas ilusões ideológicas às quais essas mesmas palavras estão demasiadas vezes dentro do próprio processo do conhecimento, a generalidade “ abstrata” , pela
qual o processo começa, e a generalidade “ concreta” , pela qual ele termina, a

ISO
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SOBRE A DIAL ÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )
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Generalidade lea Generalidade III não são, segundo a essência, a mesma fundação da ciência, nem na sequência de sua história. É por isso que a Ge¬
generalidade, e que, por conseguinte, as “ aparências” da concepção hegeliana neralidade I sai sempre realmente transformada desse trabalho. Se lhe resta
da autogênese do conceito, do movimento “ dialético” pelo qual o universal ainda a “ forma” geral de generalidade, tal forma não nos ensina nada sobre ela,
abstrato se produz ele mesmo como concreto, repousam na confusão das es ¬
pois se tornou totalmente outra - não mais uma generalidade ainda ideológica,
pécies de “ abstração” , de “ generalidade” em ação na prática teórica. Assim, nem uma pertencente a um estágio superado da ciência, mas uma generalidade
quando Hegel “ concebe” , como diz Marx,24 “ o real como o resultado do pen ¬ científica especificada qualitativamente nova, em todos os casos.
samento que se concentra em si mesmo, que se aprofunda em si mesmo, que Essa realidade da prática teórica, essa dialética concreta da prática teórica,
se move por si mesmo” , faz uma dupla confusão: a saber, a descontinuidade qualitativa intervindo ou aparecendo entre as dife¬
(1) ele toma inicialmente o trabalho de produ ção de um conhecimento cien ¬ rentes Generalidades (I, II, III) na própria continuidade do processo de pro¬
tífico pelo “ próprio processo da génese do concreto (o real)” . Mas Hegel não dução dos conhecimentos, Hegel a nega, ou melhor, ele nã o a pensa , e se lhe
pode cair nessa “ ilusão” senão por meio de uma segunda confusão; ocorre pensá-la, faz dela o fenômeno de uma outra realidade, para ele essencial,
(2) ele toma o conceito universal que figura no in ício do processo do co¬ mas ideológica de uma ponta a outra: o movimento da Ideia. É esse movimento
nhecimento (exemplo: o conceito da própria universalidade, o conceito de “ ser” que ele projeta entã o sobre a realidade do trabalho cient ífico, para conceber
na Lógica ) por essência e motor desse processo, pelo “ conceito que engendra¬ finalmente a unidade do processo do abstrato ao concreto como a autogênese
ria a si mesmo” ;25 ele toma a Generalidade I, que a prática teórica vai transfor¬ do conceito, ou seja, como um simples desenvolvimento, através das próprias
mar em conhecimento (Generalidade III), por essência e motor do próprio formas da alienação, do em-si originário no devir de seu resultado, resultado
processo de transformação! Equivale a dizer, para usar uma comparação em¬ que é apenas seu começo. Por aí Hegel desconhece as diferenças e as trans ¬
prestada legitimamente de outra prática,26 que a hulha, por seu autodesenvol- formações qualitativas reais, as descontinuidades essenciais que constituem o
vimento dialético, produziria a máquina a vapor, as fábricas e toda a extraor¬ processo mesmo da prá tica teórica. Ele lhes impõe um modelo ideológico,
din ária aparelhagem técnica, mecânica, f ísica, qu ímica, elétrica etc. que o do desenvolvimento de uma interioridade simples. O que equivale dizer:
permite hoje sua extração e suas in ú meras transformações! Portanto, Hegel Hegel decreta que a generalidade ideológica que ele lhes impõe é a essência
não cai nessa “ ilusão” a não ser porque ele impõe à realidade da prática teórica ú nica constitutiva dos três tipos de generalidades - 1, n, III - em ação na prá¬
uma concepção ideológica do universal, de sua função e de seu sentido. Ora, tica teórica.
na dialética da prática, a generalidade abstrata do in ício (Generalidade I), ou Somente aí começa a se esclarecer, em todas as suas implicações, o sentido
seja, a generalidade trabalhada, não é a mesma que a generalidade que traba ¬
profundo da crítica marxista de Hegel. O vício fundamental de Hegel não diz
lha (Generalidade II), e com mais razão ainda que a generalidade especificada respeito apenas à ilusão “ especulativa” . Essa ilusão especulativa, já denunciada
(Generalidade III), produto desse trabalho: um conhecimento (o “ concreto- por Feuerbach, consiste na identificação do pensamento e do ser, do processo
-teórico” ). A Generalidade II (que trabalha) não é de forma nenhuma o simples do pensamento e do processo do ser, do concreto “ pensado” e do concreto
desenvolvimento, a passagem (por mais complexa que seja) do em-si ao para- “ real” . Aí está o pecado especulativo por excelência: o pecado de abstração
que inverte a ordem das coisas e toma o processo de autogênese do conceito
-si da Generalidade I (que é trabalhada); pois a Generalidade II é a “ teoria ” da
(abstrato) pelo processo de autogênese do real (concreto). Marx explica-nos
ciência considerada e, como tal, o resultado de todo um processo (história
da ciência a partir de sua fundação), que é um processo de transformações reais isso muito claramente na obra A sagrada família,21 em que vemos a abstração
no sentido forte do termo, ou seja, que não tem a forma de um simples desen ¬ do fruto produzir, na filosofia especulativa hegeliana, a pera, a uva e a mirabela,
volvimento (conforme o modelo hegeliano: o desenvolvimento do em-si em por seu próprio movimento de autogênese autodeterminante... Feuerbach o
para-si), mas a forma de mutações e reestruturações provocando desconti- tinha, se é que isso é possível, ainda mais bem explicado e criticado, em sua
nuidades qualitativas reais. Quando a Generalidade II trabalha sobre a Gene¬ admirável análise do “ universal concreto” hegeliano, datada de 1839. Haveria
ralidade I, ela nunca trabalha, portanto, sobre si mesma , nem na ocasião da assim um mau uso da abstração (o idealista, especulativo) que nos indicaria

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por contraste o bom uso da abstração (o materialista). Nós compreendemos


é ele próprio o produto de práticas distintas - alimentares, agrícolas, até mesmo
muito bem: tudo isso é simples e claro! Preparamo-nos para repor as coisas,
mágicas, religiosas e ideológicas - em suas origens.) Enquanto o conhecimento
ou seja, a abstração, em seu lugar, por uma “ inversão” libertadora, visto
não rompeu com a ideologia, toda Generalidade I está então profundamente
que - não é mesmo? - não é o conceito (geral) de fruto que produz os frutos
marcada pela ideologia, que é uma das pr áticas fundamentais, essenciais à
(concretos) por autodesenvolvimento, mas, muito pelo contrário, os frutos
existê ncia do todo social. O ato de abstração , que extrairia dos indivíduos
(concretos) que produzem o conceito de fruto (abstrato). Estamos de acordo?
concretos sua pura essência, é um mito ideológico. A Generalidade I é por
Não, rigorosamente, não podemos concordar; não podemos concordar com
essência inadequada à essência dos objetos dos quais a abstração deveria ex ¬
as confusões ideológicas que estão implicadas nessa “ inversão” e que permitem
traí-la. É essa inadequação que a prática teórica revela e suprime pela trans ¬

simplesmente falar disso. Não há rigor na inversão em questão a não ser com
formaçã o da Generalidade I em Generalidade III. A própria Generalidade I
a condição de pressupor uma confusão ideológica fundamental; aquela mesma
recusa, portanto, o modelo da ideologia empirista pressuposta pela “ inversão” .
que Marx rejeitaria quando verdadeiramente deixou de ser feuerbachiano ou
'

de invocar o vocabulário de Feuerbach; quando abandonara a ideologia em-


Resumindo: reconhecer que a prática científica parte do abstrato para produ¬
pirista que permitia sustentar que um conceito científico é produzido exata¬
zir um conhecimento (concreto) é também reconhecer que a Generalidade I,
mente como o conceito geral de fruto “ seria” produzido por uma abstração
matéria-prima da prática teórica, é qualitativamente diferente da Generalidade
operando sobre frutos concretos. Quando, na Introdução..., Marx diz que todo
II que a transforma em “ concreto-de-pensamento” , ou seja, em conhecimento
processo de conhecimento científico começa por um abstrato, uma genera¬
(Generalidade III). A negação da diferen ça que distingue esses dois tipos de
lidade, e n ão por concretos reais, ele atesta que rompeu efetivamente com
Generalidade, o desconhecimento do primado da Generalidade II (que trabalha),
a ideologia e a den ú ncia unicamente da abstração especulativa, ou seja, com
ou seja, da “ teoria” , sobre a Generalidade I (trabalhada), eis o fundo mesmo do
seus pressupostos. Quando Marx declara que a matéria-prima de uma ciência
idealismo hegeliano , que Marx recusa; eis, sob a aparência ainda ideol ógica
existe sempre na forma da generalidade dada (Generalidade I), ele nos propõe,
da ''“ inversão” da especulação abstrata em realidade ou ciência concretas , o
nessa tese que tem a simplicidade de um fato, um novo modelo que não tem
ponto decisivo onde se decide o destino tanto da ideologia hegeliana quanto
mais nenhuma relação com o modelo empirista da produ ção do conceito pela
da teoria marxista. Da teoria marxista; pois todos sabem que as razões profun ¬

boa abstração, aquela que partiria dos frutos concretos e evidenciaria sua es ¬
das de uma ruptura - não as reconhecidas, mas as que agem - decidem para
sência “ fazendo abstração de sua individualidade” . Isso está claro agora no
sempre se a libertação que dela se espera será apenas a espera da liberdade (ou
tocante ao trabalho científico: ele não parte dos “ sujeitos concretos” , mas de
seja, sua privação) ou a própria liberdade.
Generalidades I. Mas é ainda verdadeiro quanto a essa Generalidade /? Não é
ela um grau prévio de conhecimento, produzido precisamente por essa boa
Eis, portanto, porque considerar o conceito de “ inversão” como um conhe¬
abstração da qual a especulação hegeliana faria somente mau uso? Essa tese,
cimento é desposar a ideologia que o apoia, ou seja, desposar uma concepção
infelizmente, não pertence organicamente ao materialismo dialético, pertence
que nega a própria realidade da prática teórica. O “ acerto” , que o conceito de
apenas à ideologia empirista e sensualista. É a tese que Marx rejeita quando
“ inversão” nos assinala, não pode consistir então em inverter a teoria, que
condena Feuerbach por ter concebido “ o sensível na forma do objeto” , ou seja,
concebe a autogênese do conceito como “ a gé nese do concreto” (real) ele
na forma de uma intuição sem prática. A Generalidade I, por exemplo, o con ¬
mesmo, na teoria contrária: aquela que concebe a autogênese do real como a
ceito de “ fruto” , não é o produto de uma “ operação de abstração” efetuada por
génese do conceito (é exatamente essa oposição que, se fosse verdadeiramen ¬
um “ sujeito” (a consciência, ou mesmo este sujeito mítico: “ a prá tica” ), mas o
te fundada, autorizaria a expressão de “ inversão” ). Esse acerto consiste (e aí
resultado de um processo complexo de elaboração, no qual entram sempre em
está o ponto determinante) em rejeitar uma teoria ideológica alheia à realidade
jogo várias práticas concretas distintas, de níveis diferentes, empíricas, técni ¬
da prática científica para substituí-la por uma teoria qualitativamente diferente,
cas e ideológicas. (O conceito de fruto, para voltar a esse exemplo rudimentar,
a qual, por sua vez, reconhece a essência da prática científica, distingue a da-
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ideologia que se lhe quer impor, leva a sério seus caracteres próprios, pensa os,
- Aí , ficamos bruscamente diante de três conceitos bastante notáveis. Dois
enuncia-os, e pensa e enuncia as condições práticas desse mesmo reconheci ¬ conceitos de distinção: (1) a distinção entre a contradição principal e as contra¬
-
mento.28 Quando se chegou a esse ponto, vê se que já não se trata, em última dições secund árias; (2) a distinção entre o aspecto principal e o aspecto secun ¬
análise, de “ inversão” , pois não se obtém uma ciência invertendo uma ideolo¬ d á rio da contradição. Por fim, um terceiro conceito: (3) o desenvolvimento
gia. Obtém-se uma ciência com a condição de abandonar o domínio em que a desigual da contradição. Tais conceitos são-nos dados segundo o modo do “ é
ideologia crê lidar com o real, ou seja, abandonando sua problemática ideoló¬ assim” . Dizem-nos que eles são essenciais à dialética marxista, pois são espe¬
gica (a pressuposição orgâ nica de seus conceitos fundamentais e, com esse cíficos dela. Cabe a nós procurar a razão teórica profunda dessas afirmações.
sistema, a maioria desses mesmos conceitos) para ir fundar “ num outro ele¬ Basta considerar a primeira distinção para ver que ela supõe imediatamen ¬
mento” ,29 no campo de uma nova problemá tica, científica, a atividade da nova te a existência de várias contradições (sem o que não se poderia opor a princi ¬
teoria. Emprego seriamente esses termos, e, a título de simples prova, proporia pal às secundárias), num mesmo processo. Ela remete, portanto, à existência
o desafio de que se exibisse o exemplo de uma verdadeira ciência que se tives¬ de um processo complexo. E, de fato, “ Num processo simples” - diz Mao - “ não
se constituído invertendo a problemática de uma ideologia qualquer, ou seja, existe senão um par de contrários; nos processos complexos há mais [...]” , pois
baseada na própria problemática da ideologia.30 Eu colocaria apenas uma con¬ “ todo processo complexo compreende mais de duas contradições” ; mas, então,
dição a tal desafio: que se tomassem as palavras a empregar num sentido não “ em todo processo complexo de desenvolvimento dos fenômenos, existe toda
metafórico, mas rigoroso. uma série de contradições, entre as quais há sempre uma que é a contradição
principal” .31 Já a segunda distinção (o aspecto principal e o aspecto secundário
da contradição) apenas reflete, no interior de cada contradição, a complexidade
4. Um todo complexo estruturado “ já dado” do processo, ou seja, a existência nele de uma pluralidade de contradições das
quais uma é dominante; é essa complexidade que é preciso considerar.
A categoria económica mais simples [. . .] nunca pode existira No âmago dessas distinções fundamentais, encontramos, portanto, a com¬
não ser como relação unilateral e abstrata de um todo concreto plexidade do processo. Aí, tocamos ainda num ponto essencial do marxismo:
vivo já dado [...]. no mesmo ponto central, abordado por outro ângulo. Quando afasta o “ proces¬
K. Marx , Introdução à cr
í tica da economia pol ítica so simples de dois contrários” , Mao parece excluí-lo por razões de fato: ele
não diz respeito a seu objeto, a sociedade, que comporta efetivamente uma
Eis-nos bem longe da especificidade de toda contradição... Não, não nos dis¬ pluralidade de contradições. Mas n ão prepararia ele, ao mesmo tempo, a possi ¬
tanciamos dela nem um passo. Mas sabemos agora que essa especificidade não -
bilidade pura desse “ processo simples de dois contrários” ? Poder-se ia então
é a especificação de uma generalidade qualquer, ou seja, no limite, de uma mesmo perguntar se esse “ processo simples de dois contrários” não é o pro¬
generalidade ideológica. Ela será a especificidade de uma Generalidade III, de cesso originário essencial, do qual os outros, os complexos, não seriam mais
um conhecimento. do que complicações, ou seja, o fenômeno desenvolvido. Lenin não se inclina
Qual é então essa “ especificidade” da contradição? nesse sentido, quando declara: “ O desdobramento do Uno e o conhecimento
A dialética “ é o estudo da contradição na própria essência das coisas” , ou , de suas partes contraditórias” , já conhecido por Filon... (referência incidental
o que é a mesma coisa , “ a teoria da identidade dos contrários” . Por aí, diz de Lenin), “ eis o fundo (uma das ‘essências’ , um dos traços, uma das particu ¬
Lenin, “ apreender-se-á o n úcleo da dialética, mas isso exige explicações e laridades fundamentais, se não a mais fundamental) da dialética” .32 Nesse Uno
desenvolvimentos” . Mao cita esses textos e passa “ às explicações e aos desen ¬ cindido em duas partes contraditórias, Lenin não descreveria só um “ modelo” ,
volvimentos” , ou seja, ao conteúdo desse “ n úcleo” , em suma, à definição da mas a própria “ matriz” de toda contradição, a essência originária manifestada
especificidade da contradição. por toda contradição, até nas formas da maior complexidade? Não sendo então
o complexo senão o desenvolvimento e o fenômeno do simples? A questão é

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decisiva. Pois esse “ processo simples de dois contrários” , onde a Unidade mente a troca, o universal simples por excelência, “ não aparece historicamen ¬
se cinde em duas partes contraditórias, é realmente a própria matriz da contra¬ te com todo o seu vigor a n ão ser nos estados mais desenvolvidos da sociedade.
dição hegeliana. [Essa categoria] não abre absolutamente caminho através de todas as relações
Aí, podemos e devemos verificar mais uma vez nossa interpretação. económicas” .36 Logo, a simplicidade não é originária; é, ao contrário, o todo
Decerto, Mao cita o “ processo simples” para mera informação, e não dá estruturado que designa seu sentido à categoria simples, ou que, ao fim de um
nenhum exemplo. Mas nunca lidamos, em toda a sua análise, senão com pro¬ longo processo e em condições excepcionais, pode produzir a existência eco ¬

cessos complexos, que fazem intervir, não secundariamente, mas primitiva¬ nómica de certas categorias simples.
mente, uma estrutura de contradições múltiplas e desiguais; nenhum proces¬ Em todos os casos, estamos num mundo alheio a Hegel: “ Hegel tem razão
so complexo nos é efetivamente dado como o desenvolvimento de um pro¬ de começar a filosofia do direito pela posse, constituindo esta a relação jurídica
cesso simples; nunca, portanto, o complexo como o fenômeno do simples - pelo mais simples do sujeito. Mas não existe posse antes de existir a família, ou as
relações entre senhores e escravos, que são relações muito mais concretas” .
37
contrário, como o resultado de um processo complexo ele mesmo. Os proces¬
sos complexos são então sempre complexidades dadas, cuja redução a simples A Introdução... nã o é mais do que uma longa demonstração da tese seguinte:
originários nunca é considerada, nem de fato, nem de direito. Ora, se voltarmos o simples jamais existe senão numa estrutura complexa; a existência universal
& Introdução... de Marx de 1857, encontramos a mesma exigê
ncia, expressa de uma categoria simples nunca é originária, ela só aparece ao fim de um lon ¬
com um extraordinário rigor; não só Marx mostra, refletindo então sobre os go processo histórico, como o produto de uma estrutura social extremamente
conceitos da economia política, que é impossível remontar ao nascimento, à diferenciada; nunca lidamos portanto, na realidade, com a existência pura da
origem do universal simples da “ produção” , visto que, “ quando falamos de simplicidade, seja ela essência ou categoria, mas com a existência de “ concre¬
tos” , de seres e de processos complexos e estruturados. É esse princípio fun
¬
produção, é sempre da produção num estágio determinado do desenvolvimen ¬
to social que se trata, da produ ção de indivíduos vivendo em sociedade” ,33 ou damental que recusa terminantemente a matriz hegeliana da contradição.
seja, num todo social estruturado; não só Marx exclui que possamos remontar Efetivamente, se tomarmos o modelo hegeliano, não num sentido metafó¬
aquém desse todo complexo (e é uma exclusão de princípio: não é a ignorância rico, mas na sua essência rigorosa, constatamos que ele requer esse “ processo
que nos impede, mas a essência mesma da produção enquanto tal, seu concei ¬ simples de dois contrários” , essa unidade simples se cindindo em dois contrá¬
to); não só Marx mostra que toda “ categoria simples” supõe a existência do rios, que a referência de Lenin ainda evoca. É essa unidade originária que
todo estruturado da sociedade,34 mas ainda, e é sem dú vida o mais importante, constitui a unidade dilacerada dos dois contrários em que ela se aliena, tornan¬
ele demonstra que, longe de ser origin á ria, a simplicidade é, em condições do-se outra ao mesmo tempo que permanece ela mesma. Esses dois contrá rios
determinadas, apenas o produto de um processo complexo. É unicamente por são a mesma unidade, mas na dualidade, a mesma interioridade, mas na exte¬
essa razão que a simplicidade pode (e ainda num todo complexo!) existir como rioridade; é por isso que eles são, cada um de seu lado, o contraditório e a
tal: na forma da existência de tal categoria “ simples” . Assim o trabalho: “ Ele abstração um do outro, não sendo cada um senão a abstração do outro sem o
saber, sendo-o em-si, antes de restaurar sua unidade originária, mas enrique
¬
parece ser uma categoria muito simples. A ideia do trabalho nessa universa¬
lidade - como trabalho em geral - é, também ela, das mais antigas... No en ¬ cida pelo seu dilaceramento, por sua alienação, na negação dessa abstração que
tanto, concebido do ponto de vista económico nessa forma simples, o ‘trabalho’ negava sua unidade anterior: então eles serão de novo Um, tendo reconstituído
é uma categoria tão moderna quanto as relações que engendram essa abstração uma nova “ unidade” simples, enriquecida pelo trabalho passado de sua negação,
simples” .35 Da mesma maneira o produtor individual, ou o indivíduo como a nova unidade simples de uma totalidade, produto da negação da negação.
sujeito elementar de produção, que os mitos do século XVIII imaginavam na Vê-se que a implacá vel lógica desse modelo hegeliano liga rigorosamente
origem do desenvolvimento económico da sociedade, esse cogito econ ómico, entre si os conceitos seguintes: simplicidade, essência, identidade, unidade,
só aparece, em sua própria “ aparência” , na sociedade capitalista desenvolvida, negação, cisão, alienação, contrários, abstração, negação da negação, superação
ou seja, na sociedade que mais desenvolveu o caráter social da produção. Igual¬ CAufhebung ), totalidade, simplicidade etc. A dialética hegeliana está intei-

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ramente aí: ou seja, inteiramente dependente dessa pressuposição radical de


têm de específico e de positivamente determinado, não lhe podem sobreviver
uma unidade originá ria simples, desenvolvendo-se no interior dela mesma pela
a título teórico, em particular as categorias que “ cunham” o tema da unidade
virtude da negatividade, sem nunca restaurar, em todo seu desenvolvimento,
simples originária, ou seja, a “ cisão” do Uno, a alienação, a abstração (no seu
cada vez numa totalidade mais “ concreta” , senão essa unidade e essa simpli ¬
sentido hegeliano) unindo os contrários, a negação da negação, a Aufhebung
cidade originárias.
etc. Não é de espantar, nessas condições, não se encontrar nenhum traço dessas
Os marxistas podem certamente invocar ou utilizar esse modelo, para abre- j categorias organicamente hegelianas, nem na Introdução... de Marx (1857),
viar, ou como símbolo, por inadvertência ou intencionalmente:38 considerada
nem no texto de Mao Tsé-tung (1937).
rigorosamente, a prática teórica do marxismo o exclui, tanto quanto sua prá ¬
Decerto, podem-se invocar algumas dessas categorias num combate ideoló ¬

tica política. O marxismo o exclui precisamente porque exclui a pressuposi ¬


gico (exemplo: a luta contra Diihring), ou numa exposição geral destinada a
çã o teórica do modelo hegeliano: a de uma unidade simples originária. O que
ilustrar o sentido de resultados dados; enquanto se ficar nesse nível da luta
o marxismo recusa é a pretensão filosófica (ideológica) de coincidir exaustiva- 1
mente com uma “ origem radical” , seja qual for a forma (a tabula rasa, ponto
-
ideológica, ou da exposição e da ilustração, podem se utilizar essas categorias,
com resultados bem reais na prática (luta) ideológica, na exposição geral
zero de um processo; o estado de natureza; o conceito do começo que é, por
de uma concepção. Mas essa última “ exposição” (a ilustração das leis da dialé ¬

exemplo, em Hegel, o ser imediatamente idêntico ao nada; a simplicidade


tica por este ou aquele exemplo) permanece ao abrigo da sanção da prática
que é també m em Hegel aquilo pelo que (re)começa indefinidamente todo pro¬
cesso, que restaura sua origem etc.); ele também rejeita a pretensão filosófica -
teórica pois, como tal, ela não constitui uma verdadeira prática teórica, pro¬
duzindo conhecimentos novos. Se se tratar, ao contrário, de uma verdadeira
hegeliana que se d á essa unidade simples originá ria (reproduzida em cada
prática, transformando realmente seu objeto e produzindo verdadeiros resul¬
momento do processo) que vai produzir em seguida, por seu autodesenvolvi- t tados (conhecimentos, uma revolução...), como a prática teórica ou política de
mento, toda a complexidade do processo, mas sem nunca a í se perder ela
Marx, Lenin, entre outros, então a margem de tolerância teórica no tocante a
mesma,39 sem nunca perder aí nem sua simplicidade, nem sua unidade, visto
que a pluralidade e a complexidade nunca serão mais do que seu próprio “ fe¬
essas categorias desaparece; as próprias categorias desaparecem. Quando se
trata de uma verdadeira prá tica, organicamente constituída e desenvolvida
nômeno” , encarregado de manifestar sua própria essência.40
durante anos, e não de uma simples aplicação sem efeitos orgânicos, aplicação
A exclusão dessa pressuposição não se reduz, lamento-o mais uma vez, à
que não muda nada em seu objeto (por exemplo, na prática da física), em seu
sua “ inversão” . Essa pressuposição n ão é “ invertida” , ela é suprimida: real ¬
desenvolvimento real; quando se trata da prática de um homem verdadeira ¬
mente suprimida (simplesmente! E n ão no sentido da Aufhebung que “ conser¬
mente comprometido numa verdadeira prática, um cientista que se aplica a
va” o que ela suprime...) e substituída por outra pressuposição teórica, que não
constituir ou a desenvolver uma ciência, um homem político a desenvolver a
tem nada a ver com a primeira. No lugar do mito ideológico de uma filosofia
luta de classes, então, já não se trata, já não se pode tratar de impor ao objeto
da origem e de seus conceitos orgânicos, o marxismo estabelece em princípio
categorias ainda que aproximativas. Então as categorias que já não têm nada a
o reconhecimento do dado da estrutura complexa de todo “ objeto” concreto,
dizer calam-se ou são reduzidas ao silêncio. Assim, só nas práticas marxistas
estrutura que comanda o desenvolvimento do objeto, e o desenvolvimento da
realmente constituídas, as categorias hegelianas se calaram há muito tempo.
prá tica teórica que produz seu conhecimento. Não temos mais uma essência
Elas são aí categorias “ inencontráveis” . É talvez por isso que alguns recolhem
originá ria, mas um sempre-já-dado, tão longe quanto o conhecimento remonta
a seu passado. Não temos mais uma unidade simples, mas uma unidade com¬ com os cuidados infinitos da devoção que devemos às relíquias únicas de um
tempo findo, para expô-las a todos os olhares, as duas únicas frases* que se
1
plexa estruturada. Logo, nã o temos mais (de qualquer forma que seja) uma
encontram em todo O capital, ou seja, em 2.500 páginas in-8 da edição fran ¬
a
unidade simples originária, mas o sempre - já-dado de uma unidade complexa
cesa; é talvez por isso que eles reforçam essas duas frases com uma outra
estruturada. Está claro, se for exatamente assim, que a “ matriz” da dialética
frase, a bem dizer, uma palavra, uma exclamação de Lenin assegurando-nos
hegeliana está proscrita, e que suas próprias categorias orgâ nicas, no que estas
muito enigmaticamente que, por não ter lido Hegel, meio século não com-

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preendeu nada de Marx... Voltemos a este simples fato: nas práticas marxistas essencial à própria complexidade. É por isso que a complexidade implica a
realmente constitu ídas, não são as categorias hegelianas que estão em uso e dominação como essencial a si: ela está inscrita na sua estrutura. Afirmar que
em ação; são outras categorias, as da dialética marxista em ação na prática a unidade não é, não pode ser a unidade da essência simples, originária e
marxista. universal, não é, portanto, como acreditam aqueles que sonham com o “ mo-
nisrao” , conceito ideológico alheio ao marxismo;42 sacrificar a unidade no altar
do “ pluralismo” é afirmar algo completamente diferente: que a unidade de que
5. Estrutura com dominante : fala o marxismo é a unidade da própria complexidade , que o modo de orga¬
Contradi ção e sobredetermina ção nização e de articulação da complexidade constitui precisamente sua unidade.
É afirmar que o todo complexo possui a unidade de uma estrutura articulada
A relaçã o desigual de desenvolvimento da produção material, com dominante. É essa estrutura específica que fundamenta, em última análise,
e, por exemplo, do desenvolvimento da produção artística [... ]. as relações de dominação existentes entre as contradições e entre seus aspectos,
O ponto verdadeiramente dif ícil de apreender é este: como as que Mao descreve como essenciais.
relações de produção seguem um desenvolvimento desigual na É preciso perceber e defender esse princípio com intransigência, para não
qualidade de relações jurídicas? lançar o marxismo nas confusões de que ele nos livra, ou seja, num tipo de
K . Marx , Introdução à cr
ítica da economia política pensamento para o qual só existe um único modelo de unidade: a unidade
de uma substância, de uma essência ou de um ato; nas confusões gêmeas do
Dessa prática, ainda temos de aprender o essencial: a lei do desenvolvimento materialismo “ mecanicista” e do idealismo da consciência. Se, por precipitação,
desigual das contradições. Pois, diz Mao, numa frase pura como a aurora, “ não se assimilar a unidade estruturada de um todo complexo à unidade simples de
há no mundo nada que se desenvolva de uma maneira absolutamente igual” . uma totalidade; se se considerar o todo complexo como o puro e simples desen¬
Para compreender o sentido e o alcance dessa “ lei” - que não diz respeito, volvimento de uma ú nica essência ou substância originária e simples, então
como se acredita por vezes, unicamente ao Imperialismo, mas realmente a cai-se, no melhor dos casos, de Marx em Hegel, e no pior, de Marx em Haeckel!
“ tudo o que existe no mundo” -, é preciso voltar às diferenças essenciais da Mas, fazendo isso, sacrifica-se justamente a diferença específica que distingue
contradiçã o marxista, que distinguem em todo processo complexo uma con¬ Marx de Hegel: a que separa radicalmente o tipo de unidade marxista do tipo
tradição principal e, em toda contradição, um aspecto principal. Não retive aqui de unidade hegeliano, ou a totalidade marxista da totalidade hegeliana. O con ¬
essa “ diferença” a não ser como o indício da complexidade do todo, dizendo ceito de “ totalidade” é hoje em dia um conceito de grande consumo: passa-se
que é preciso que o todo seja complexo para que uma contradição possa aí quase sem visto de Hegel a Marx, da Gestalt a Sartre, e assim por diante, in¬
dominar as outras. Trata-se agora de considerar tal dominação não mais como vocando uma mesma palavra, a “ totalidade” . A palavra permanece a mesma,
um indício, mas nela mesma, e de desenvolver suas implicações. porém, o conceito muda, às vezes radicalmente, de um autor a outro. Assim
Para que uma contradição domine as outras, supõe-se que a complexidade que se define esse conceito, termina a tolerância. A “ totalidade” hegeliana não
onde ela figura seja uma unidade estruturada, e que essa estrutura implique a é, com efeito, esse conceito maleável que se imagina, é um conceito perfeita¬
relação de dominação-subordinação assinalada entre as contradições. A domi¬ mente definido e individualizado por seu papel teórico. A totalidade marxista
nação de uma contradição sobre as outras não pode ser, com efeito, para o é também, por seu lado, definida e rigorosa. Essas duas “ totalidades” têm em
marxismo, o fato de uma distribuição contingente de contradições diferentes comum apenas: ( l ) uma palavra; (2) certa concepção vaga da unidade das coi ¬
num agrupamento que se tomaria por um objeto. Não se “ encontra” , nesse todo sas; (3) inimigos teóricos. Em contrapartida, quase não têm relação em sua
complexo “ comportando toda uma série de contradições” , uma contradição essência mesma. A totalidade hegeliana é o desenvolvimento alienado de uma
que domine as outras, como, na tribuna de um est ádio, o espectador mais alto unidade simples, de um princípio simples, ele mesmo momento do desenvol¬
do que os outros. A dominação n ão é um simples /aio indiferente, ela é um fato vimento da Ideia; ela é, portanto, rigorosamente falando, o fenômeno, a mani-

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festação de si desse princípio simples, que persiste em todas as suas manifes¬ uma unidade com as condições de existência do todo complexo. Claramente,
tações, logo, na própria alienação que prepara sua restauração. Ainda aí, não essa proposição implica que as contradições “ secundárias” não sã o o puro
se trata de conceitos sem consequências. Pois essa unidade de uma essência fen ômeno da contradição “ principal” , que a principal não é a essência da qual
simples, ao se manifestar em sua alienação, produz este resultado: que todas as secund árias seriam outros tantos fenômenos ; seriam t ão bem seus fenôme¬
as diferenças concretas que figuram na totalidade hegeliana, inclusive as “ es¬ nos que praticamente a contradição principal poderia existir sem as secundárias,
feras” visíveis dentro dessa totalidade (a sociedade civil, o Estado, a religião, ou sem esta e aquela dentre elas, ou poderia existir antes delas, ou depois.44
a filosofia etc.), todas essas diferenças são negadas tão logo afirmadas; visto Ela implica, ao contrário, que as contradições secundárias são essenciais à
que elas n ão sã o mais do que os “ momentos” da alienação do princípio interno pró pria existê ncia da contradição principal, que elas constituem realmente
simples da totalidade, que se realiza negando as diferenças alienadas que ele a condição de existência dela, assim como a contradição principal constitui a
coloca; ainda mais, essas diferenças são, como alienações - fenômenos do - condição de existência delas. Tome-se o exemplo deste todo complexo estru ¬

princípio interno simples, todas igualmente “ indiferentes” , ou seja, pratica - turado que é a sociedade. As “ relações de produção” não são a í o puro fenô¬
mente iguais diante dele, portanto iguais entre si, e é por isso que em Hegel meno das forças produtivas, são também sua condição de existência; a supe¬
nenhuma contradição determinada jamais é dominante.43 Isso quer dizer que restrutura não é o puro fen ômeno da estrutura , é també m sua condição de
o todo hegeliano possui uma unidade de tipo “ espiritual” em que: todas as existência. Isso decorre do próprio princípio, enunciado anteriormente por
diferenças são colocadas apenas para serem negadas, logo indiferentes; elas Marx: que em nenhum lugar existe uma produção sem sociedade, ou seja, sem
nunca existem por si mesmas; elas têm apenas a aparência de uma existência relações sociais; que a unidade, além da qual é impossível remontar, é a de um
independente; sem jamais manifestar mais do que a unidade do princípio sim¬ todo no qual, se as relações de produção têm efetivamente por condição de
ples interno que se aliena nelas, elas são praticamente iguais entre si, como existência a própria produçã o, a produ ção tem ela mesma por condição de
fenômeno alienado desse princípio. existência sua forma: as relações de produ ção. Que não haja engano aqui: esse
É, portanto, afirmar que a totalidade hegeliana: (1) não é realmente mas condicionamento de existência das “ contradições” umas pelas outras não anu ¬

aparentemente articulada em “ esferas” ; (2) que ela n ão tem por unidade sua la a estrutura com dominante que reina sobre as contradições e nelas (no caso,
complexidade mesma, ou seja, a estrutura dessa complexidade; (3) que ela é a determinação em última instância pela economia). Esse condicionamento
então desprovida dessa estrutura com dominante, que é a condiçã o absoluta não desemboca, em sua aparente circularidade, na destruição da estrutura de
que permite a uma complexidade real ser unidade, e ser realmente o objeto de dominação que constitui a complexidade do todo e sua unidade. Muito pelo
-
uma prática , propondo se transformar essa estrutura: a prática política. Não é contrário, ele é, no interior mesmo da realidade das condições de existência de
um acaso se a teoria hegeliana da totalidade social jamais fundou uma política, cada contradição, a manifestação dessa estrutura com dominante que constitui
se não existe e não pode existir política hegeliana. a unidade do todo.45 Essa reflexão das condições de existência da contradição
Não é tudo. Se toda contradição o é de um todo complexo estruturado com no interior de si mesma, essa reflexão da estrutura articulada com dominante
dominante, n ão se pode considerar o todo complexo fora de suas contradições, que constitui a unidade do todo complexo no interior de cada contradição, eis
fora da relação de desigualdade fundamental entre elas. Dito de outro modo, o traço mais profundo da dialética marxista, aquele que tentei apreender re¬
cada contradição, cada articulação essencial da estrutura e a relação geral das centemente com o conceito de “ sobredeterminação” .46
articulações dentro da estrutura com dominante constituem igualmente condi¬ Para entender esse ponto, passemos pelo desvio de um conceito familiar.
ções de existência do próprio todo complexo. Essa proposição é de primeirís¬ Quando Lenin diz que “ a alma do marxismo é a análise concreta de uma situa ¬
sima importância, pois significa que a estrutura do todo - logo, a “ diferença” ção concreta” ; quando Marx, Engels, Lenin , Stalin, Mao explicam que “ tudo
das contradições essenciais e sua estrutura cora dominante - é a própria exis¬ se deve às condições” ; quando Lenin descreve as “ circunst âncias” próprias da
tência do todo; que a “ diferença” das contradições (que haja uma contradição R ússia de 1917; quando Marx (e toda a tradição marxista) explicam com mil
principal etc., e que cada contradição tenha um aspecto principal) componha exemplos que, conforme o caso, é esta ou aquela contradição que domina etc.,

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eles apelam para um conceito que pode parecer empírico: essas “ condições” tingência” batizada “ existência da Necessidade” , senão a manifestação do mo ¬

são as condições existentes e, ao mesmo tempo, as de existência de um fenô¬ vimento da Ideia; e é exatamente por isso que as “ condições” não existem
meno considerado. Ora, esse conceito é essencial ao marxismo justamente verd àdeiramente em Hegel, visto que se trata, sob o pretexto da simplicidade
porque não é um conceito empírico: a constatação do que existe... É, ao con¬ se desenvolvendo em complexidade, de uma pura interioridade, cuja exterio¬
trário, um conceito teórico , fundado na essência mesma do objeto: o todo ridade é apenas o fen ômeno. Que a “ relação com a natureza” , por exemplo,
complexo sempre-já-dado. Essas condições não são outra coisa, com efeito, para o marxismo, faça organicamente parte das “ condições de existência” ; que
do que a existência em seu papel e em sua essência do todo em um “ momento” ela seja um dos termos, o principal, da contradição principal (forças produti ¬
determinado, no “ momento atual” do homem político, ou seja, a relação com ¬ vas - relações de produção); que ela seja, como a condição de existência delas,
plexa de condições de existência recíprocas entre as articulações da estrutura refletida nas contradições “ secund árias” do todo e de suas relações; que as
do todo. É por isso que é teoricamente possível e legítimo falar das “ condições” , condições de existência sejam, portanto, um absoluto real, o dado-sempre-
como daquilo que permite compreender que a Revolução, “ na ordem do dia” , -já-dado da existência do todo complexo, que as reflete na sua própria estru¬
não eclode e não triunfa senão aqui, na Rússia, na China, em Cuba; em 1917, tura - eis o que é totalmente alheio a Hegel, que recusa, ao mesmo tempo, o
em 1949, em 1958, e não em outro lugar; nem num outro “ momento” ; que a todo complexo estruturado e suas condições de existência, dando-se de ante ¬

revolução, comandada pela contradição fundamental do capitalismo, não tenha mão uma pura interioridade simples. É por isso que, por exemplo, a relação
triunfado antes do Imperialismo e tenha triunfado nessas “ condições” favorá ¬ com a natureza, as condições de existência de toda sociedade humana desempe¬
veis que foram justamente os pontos da ruptura histórica, esses “ elos mais nham em Hegel apenas o papel de um dado contingente, do “ inorgânico” do
fracos” : não a Inglaterra, a França, a Alemanha, mas a R ússia “ atrasada” (Le¬ clima, da geografia (a América, esse “ silogismo cujo termo médio, o istmo do
nin), a China e Cuba (ex-colônias, terras de exploração do Imperialismo). Se Panamá, é muito estreito” !), o papel do famoso “ é assim!” (expressão de He¬
é teoricamente permitido falar de condições sem cair no empirismo ou na gel diante das montanhas), designando a Natureza material que deve ser “ su ¬
irracionalidade do “ é assim” e do “ acaso” , é porque o marxismo concebe as perada” (aufgehoben \ ) pelo Espírito que é sua “ verdade” ... Sim, quando redu ¬
“ condições” como a existência (real, concreta, atual) das contradições que zidas assim à natureza geográfica, as condições de existência são a própria
constituem o todo de um processo histórico. É por isso que Lenin, invocando contingência que será absorvida, negada-superada pelo Espírito que é sua livre
as “ condições existentes” na R ússia, não caía no empirismo: ele analisava a necessidade, e que existe já na Natureza, na forma mesma da contingência
própria existência do todo complexo do processo do Imperialismo na R ússia, (que faz com que uma pequena ilha produza um grande homem!). É porque
em seu “ momento atual” . as condições de existência, naturais ou históricas, nunca são para Hegel senão
Mas se as condições não são senão a existência atual do todo complexo, a contingência, que elas não determinam em nada a totalidade espiritual da
elas são suas próprias contradições, refletindo cada uma em si a relação org⬠sociedade: a ausência das condições (no sentido não empírico, não contin ¬
nica que mantém com as outras na estrutura com dominante do todo complexo. gente) está necessariamente ligada, em Hegel, à ausência de estrutura real do
É porque cada contradição reflete em si (em suas relações específicas de desi¬ todo, à ausência de uma estrutura com dominante, de uma determinação fun ¬

gualdade com as outras contradições, e na relação de desigualdade específica damental e dessa reflexão das condições na contradição que sua “ sobredeter-
entre seus dois aspectos) a estrutura com dominante do todo complexo em que minação” representa.
-
ela existe portanto, a existência atual desse todo; portanto, suas “ condições” Se insisto a tal ponto nessa “ reflexão” , que propus chamar “ sobredetermi-
atuais que ela constitui um todo com elas: assim, fala-se das “ condições de nação” , é porque é preciso absolutamente isolá-la, identificá-la e dar-lhe um
existência” do todo ao falar das “ condições existentes” . nome, para prestar contas teoricamente de sua realidade, que tanto a prática
Será ainda necessário voltar a Hegel para mostrar que nele, finalmente, as teórica quanto a prática política do marxismo nos impõem. Tentemos delimitar
“ circunstâncias” ou as “ condições” não são, também elas, senão fenômeno, bem esse conceito. A sobredeterminação designa, na contradição, a qualidade
portanto evanescentes, visto que elas nunca exprimem, sob essa forma de “ con ¬ essencial seguinte: a reflexão, na própria contradição, de suas condições de

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existência, ou seja, de sua situação na estrutura com dominante do todo ciso acrescentar que, sem conceber essa sobredeterminação, é impossível dar
complexo. Essa “ situação” não é unívoca. Ela não é nem só sua situação “ de conta teoricamente da simples realidade seguinte: do prodigioso “ trabalho” de
direito” (a que ela ocupa na hierarquia das instâncias em relação à instância um teórico, seja ele Galileu, Spinoza ou Marx, e de um revolucionário, Lenin
determinante: a economia na sociedade), nem só sua situação “ de fato” (se ela e todos os seus irmãos, dedicando seus sofrimentos, quando não sua vida, a
é, no estágio considerado, dominante ou subordinada), mas a relação dessa resolver estes pequenos “ problemas” ...: elaborar uma teoria “ evidente” , fazer
situação de fato com essa situação de direito, ou seja, a própria relação que a revolu ção “ inevitável” , realizar em sua própria “ contingência” (!) pessoal a
faz dessa situação de fato uma “ variação ” da estrutura, com dominante, “ inva¬ Necessidade da História, seja ela teórica ou política, onde, em breve, o futuro
riante” da totalidade. viverá muito naturalmente seu “ presente” .
Se assim for, é preciso então admitir que a contradição deixa de ser unívoca Para tornar esse ponto mais preciso, retomemos os próprios termos de Mao
(as categorias deixam de ter, de uma vez por todas, um papel e um sentido fi ¬ Tsé-tung. Se todas as contradições estão submetidas à grande lei da desigual ¬
xos), visto que reflete em si, em sua própria essência, sua relação com a estru¬ dade; se, para ser marxista e poder agir politicamente (e, acrescentarei, para
tura desigualitária do todo complexo. Mas é preciso acrescentar que, deixan ¬ poder produzir na teoria), é preciso a todo custo distinguir o principal do se ¬
do de ser unívoca, ela n ão se torna “ equívoca ” por isso, produto da primeira cundário entre as contradições e seus aspectos; se essa distinção é essencial à
pluralidade empírica a chegar, à mercê das circunstâncias, e dos “ acasos” , seu prá tica e à teoria marxista - é, observa Mao, que ela é requerida para encarar
puro reflexo, como a alma de tal poeta não é mais do que essa nuvem que a realidade concreta, a realidade da história que os homens vivem, para prestar
passa. Muito pelo contrário, deixando de ser unívoca, logo, determinada de contas de uma realidade onde reina a identidade dos contrários , ou seja: (1) a
47
uma vez por todas, assegurada em seu papel e sua essência, ela se revela de¬ passagem , em condições determinadas, de um contrário no lugar do outro, a
terminada pela complexidade estruturada que lhe designa seu papel, como - se mudan ça dos papéis entre as contradições e seus aspectos (chamaremos de
-
me perdoarem esta palavra horrorosa! - complexamente estruturalmente- deslocamento a esse fenômeno de substituição); (2) “ a identidade” dos contrá ¬
-desigualitariamente-determinada... Confesso que preferi uma palavra mais rios numa unidade real (chamaremos de condensação a esse fen ômeno de
curta: sobredeterminada. “ fusão” ). É, com efeito, a grande lição da prática que, se a estrutura com do¬
É esse tipo muito particular de determinação (essa sobredeterminação) que minante permanece constante, o emprego dos papéis muda aí: a contradição
dá à contradição marxista sua especificidade e permite dar conta teoricamente principal torna-se secundária, uma contradição secundária toma seu lugar, o
da prática marxista, seja ela teórica ou política. Só ela permite compreender aspecto principal torna-se secund ário, o aspecto secund ário toma-se principal.
as variações e as mutações concretas de uma complexidade estruturada tal como Há sempre uma contradição principal e contradi ções secundárias, mas elas
uma formação social (a única a que a prática marxista se refere verdadeiramen ¬ trocam de papel na estrutura articulada com dominante, a qual permanece
te até agora), não como variações e mutações acidentais produzidas por “ con ¬ está vel. “ Não há absolutamente d ú vida nenhuma” - diz Mao Tsé-tung - “ de
dições” externas sobre um todo estruturado fixo, suas categorias e a ordem fixa que, em cada uma das diversas etapas do desenvolvimento do processo, só
destas (o mecanicismo é esse mesmo), mas como outras tantas reestruturações existe uma contradição principal que desempenha o papel dirigente” . Mas essa
concretas inscritas na essência, o “ jogo” de cada categoria; na essência, o “ jogo” contradição principal produzida por deslocamento n ão se torna “ decisiva” ,
de cada contradição; na essência, o “ jogo” das articulações da estrutura com ¬ explosiva, a n ão ser por condensação ( por “ fusão” ). É ela que constitui o “ elo
plexa com dominante que se reflete nelas. É preciso dizer ainda mais uma vez decisivo” que é preciso apreender e puxar para si na luta política, como diz
que, doravante, sem assumir, sem pensar, depois de tê-lo identificado, esse tipo Lenin (ou na prá tica teórica...), para que venha toda a corrente, ou , para em ¬

muito particular de determinação, é impossível pensar a possibilidade da ação pregar uma imagem menos linear, é ela que ocupa a posição nodal estratégica
política, da própria prática teórica; ou seja, muito precisamente a essência do que é preciso atacar para “ desmembrar a unidade” existente.48 Ainda aqui n ão
objeto (da matéria-prima) da prática política e teórica, ou seja, a estrutura do se deve deixar-se levar pelas aparências de uma sucessão arbitrária de domi ¬
“ momento atual” (político ou teórico) ao qual se aplicam tais práticas. É pre- nações, pois cada uma constitui uma etapa do processo complexo (base da

168 169
POR MARX SOBRE A DIALÉT /CA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )
.

“ periodização” da história) e é porque lidamos com a dialética de um processo fora e o dentro. Logo, é à desigualdade interior primitiva que é preciso remon ¬
complexo que lidamos com esses “ momentos” sobredeterminados e específicos tar para apreender a essência da desigualdade exterior.
que sã o as “ etapas” , os “ estágios” , os “ per
íodos” , e com essas mutações Toda a histó ria da teoria e da prática marxista confirma esse ponto. Não é
de dominação específica que caracterizam cada etapa. A noâalidade do desen¬ somente como o efeito exterior da interação entre diferentes formações sociais
volvimento (estágios específicos) e o nódulo específico da estrutura de cada existentes que a teoria e a prática marxistas encontram a desigualdade, mas no
estágio são a existência e a realidade mesma do processo complexo. A í está o seio mesmo de cada formação social . E, no seio de cada formação social, n ão
que funda a realidade, decisiva na e para a prática política (e muito evidente¬ é somente na forma da simples exterioridade ( ação recíproca entre a infraes-
mente també m para a prática teórica), dos deslocamentos da dominação e das trutura e a superestrutura) que a teoria e a prática marxistas encontram a de¬
condensações das contradições, de que Lenin nos dá um exemplo tão claro e sigualdade, mas numa forma organicamente interior a cada instância da tota ¬
tão profundo em sua an álise da Revolução de 1917 - o ponto de “ fusão” das lidade social, a cada contradição. É “ o economicismo” (o mecanicismo), e n ão
contradições, nos dois sentidos do termo: o ponto em que se condensam (“ fun¬ a verdadeira tradição marxista, que põe de uma vez por todas no lugar a hie ¬

dem” ) várias contradições tais que ele se toma o ponto defusão (crítico), o rarquia das instâncias, determina a cada uma sua essência e seu papel, e define
ponto da mutação revolucion ária, da “ refundação” . o sentido unívoco de suas relações; é ele que identifica para sempre os papéis
Essas indicações talvez permitam entender por que a grande lei da desi ¬ e os atores, não concebendo que a necessidade do processo consiste na permuta
gualdade não sofre nenhuma exceção.49 Essa desigualdade n ão sofre nenhuma dos papéis “ segundo as circunstâncias” . É o economicismo que identifica de
exceção porque ela mesma não é uma exceção: uma lei derivada, produzida antemão e para sempre a contradição-determinante-em-última-inst ância com
por circunstâncias particulares (o Imperialismo, por exemplo) ou que intervém o papel de contradição-dominante, que assimila para sempre este ou aquele
nas interferências de desenvolvimento de formações sociais distintas (desigual¬ “ aspecto” (forças de produção, economia, prá tica...) com o papel principal, e
dade de desenvolvimento económico, por exemplo, entre países “ avançados” tal outro “ aspecto” (relações de produ ção, política, ideologia, teoria...) com o
ou “ atrasados” , colonizadores e colonizados etc.). É, muito pelo contrário, uma papel secundá rio, ao passo que a determinação em ú ltima instância pela eco¬
lei primitiva, anterior a esses casos particulares, e justamente capaz de explicar nomia se exerce justamente, na história real, nas permutas de papel principal
a razão desses casos particulares na medida mesma em que ela não resulta da entre a economia, a política, e a teoria etc. Engels o havia muito bem visto e
existência deles. É porque a desigualdade abrange toda formação social , em indicado na sua luta contra os oportunistas da Segunda Internacional, que espe¬
toda sua existência, que ela abrange também as relações dessa formação social ravam da eficácia unicamente da economia o advento do socialismo. Toda a
com outras formações sociais de maturidade económica, política, ideológica obra política de Lenin atesta a profundidade deste princípio: que a determina¬
diferente, e que ela permite compreender a possibilidade dessas relações. Por¬ ção em ú ltima instância pela economia se exerce, segundo os est ágios do pro¬
tanto, não é a desigualdade externa que funda, quando ela intervém, a existên ¬ cesso, não acidentalmente, não por razões exteriores ou contingentes, mas
cia de uma desigualdade interna (por exemplo, nos ditos encontros de “ civili ¬ essencialmente, por razões interiores e necessá rias, por permutas, deslocamen ¬
zações” ), mas é, ao contrário, a desigualdade interna que é primeira e que tos e condensações.
funda o papel da externa e até os efeitos que essa segunda desigualdade exerce A desigualdade é, portanto, bem interior à formação social, porque a estru ¬
no interior das formações sociais em presença. Toda interpretação que remete turação com dominante do todo complexo, este invariante estrutural , é ela
os fenômenos de desigualdade interna à externa (por exemplo, que explicaria mesma a condição das variações concretas das contradições que a constituem,
a conjuntura “ excepcional” existente na R ússia em 1917 unicamente pelas rela ¬ logo, de seus deslocamentos, condensações e mutações etc. e, inversamente,
ções de desigualdade externa: relações internacionais, desigualdade de desen ¬ porque tal variação é a existência desse invariante. O desenvolvimento desigual
volvimento económico entre a Rússia e o Ocidente etc.) cai no mecanicismo (ou seja, esses mesmos fenômenos de deslocamento e condensação que se
ou no que é frequentemente seu álibi: numa teoria da ação recíproca entre o podem observar no processo de desenvolvimento do todo complexo) n ão é,
portanto, exterior à contradição, mas constitui sua essê ncia mais íntima. A

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desigualdade que existe no “ desenvolvimento” das contradições, ou seja, no volvimento sejam rejeitados não significa absolutamente que estejamos, por
próprio processo, existe, portanto, na essência da própria contradição. Se o
conceito de desigualdade não estivesse associado a uma comparação externa
i
f
essa razão, no vazio teórico da subjetividade, do “ pluralismo” , ou da contin ¬
gência. Muito pelo contrário, é com a condição de nos libertarmos dos pressu ¬
de caráter quantitativo, eu diria de bom grado que a contradiçã o marxista é postos hegelianos que estaremos seguros de escapar verdadeiramente desse
“ desigualmente determinada” , com a condição de que se aceite reconhecer sob i vazio. É, com efeito, porque o processo é complexo e possui uma estrutura com
essa desigualdade a essência interna que ela designa: a sobredeterminação. dominante que é possível prestar contas realmente de seu devir e de todos os
Resta-nos ainda examinar um último ponto: o papel motor da contradição aspectos típicos desse devir.
no desenvolvimento de um processo. O entendimento da contradição não teria Darei aqui apenas um exemplo disso. Como se poderia, teoricamente, de ¬

sentido se não permitisse o entendimento desse motor. fender a validade desta afirmação marxista fundamental: “ a luta de classes é
O que se disse de Hegel permite compreender em que sentido a dialética o motor da história” ; ou seja, defender teoricamente que é pela luta política
hegeliana é motriz, e em que sentido o conceito é “ autodesenvolvimento” . que é possível “ desmembrar a unidade existente” , quando sabemos de manei¬
Quando a fenomenologia celebra, num texto belo como a noite, “ o trabalho do ra pertinente que não é a política e sim a economia que é determinante em
negativo” nos seres e nas obras, a morada do Espírito na própria morte, a in¬ última inst ância? Como, fora da realidade do processo complexo de estrutura
quietude universal da negatividade desmembrando o corpo do Ser para en ¬ com dominante, poderíamos prestar contas teoricamente da diferença real exis¬
gendrar o corpo glorioso desse infinito, do nada tornado Ser, o Espírito, todo tente entre o econ ómico e o político, na própria luta de classes? Ou seja,
filósofo treme em sua alma como diante dos Mistérios. No entanto, a negati¬ muito precisamente, da diferença real existente entre a luta económica e a luta
vidade só pode conter o princípio motor da dialética, a negação da negação, política, diferen ça que distingue para sempre o marxismo de todas as formas
como a reflexão rigorosa dos pressupostos teóricos hegelianos da simplicidade espontâneas ou organizadas do oportunismo? Como prestar contas da neces ¬

e da origem. A dialética é negatividade como abstração da negação da negação, sidade de passar pelo nível distinto e específico da luta pol ítica , se ela n ão
ela mesma abstração do fenômeno da restauração da alienação da unidade fosse - embora distinta, e enquanto distinta - n ão o simples fenômeno, mas a
origin ária. É por isso que, em todo começo hegeliano, é o Fim que está em condensação real, o ponto nodal estratégico, no qual o todo complexo (econo¬
ação; é por isso que a origem nunca faz senão crescer em si mesma e produzir mia, política e ideologia) se reflete ? Como prestar contas, finalmente, do fato
em si seu próprio fim, em sua alienação. O conceito hegeliano - “ o que per¬ de que a própria necessidade da História passa assim de maneira decisiva pela
manece no ser-outro o que ele é” - é assim a existê ncia da negatividade. A prática política, se a estrutura da contradição não tornasse possível essa prá ¬

contradição é, portanto, motriz em Hegel como negatividade, ou seja, como tica na sua realidade concreta? Como prestar contas do fato de que a própria
reflexão pura do “ ser em si mesmo no ser outro” , logo, como reflexão pura do teoria de Marx, que tornou essa necessidade inteligível, tenha sido ela mesma
princípio da própria alienação: a simplicidade da Ideia. produzida , se a estrutura da contradiçã o não tornasse possível a realidade
Não pode ser assim em Marx. Se lidamos apenas com processos de estru ¬ concreta dessa produção?
tura complexa com dominante, o conceito de negatividade (e os conceitos que Dizer que a contradição é motriz, em teoria marxista, é, portanto, dizer que
ele reflete: negação da negação, alienação etc.) n ão pode servir para o enten¬ ela implica uma luta real , afrontamentos reais situados em lugares precisos
dimento científico dos desenvolvimentos desses processos. Assim como o tipo -
da estrutura do todo complexo , é , portanto, dizer que o lugar do enfrentamento
da necessidade do desenvolvimento n ão pode ser reduzido à necessidade ideo¬ pode variar conforme a relação atual das contradições na estrutura com domi ¬
lógica da reflexão do fim sobre seu começo, igualmente o princípio motor do 1 nante; é dizer que a condensação da luta num lugar estratégico é inseparável
desenvolvimento não pode ser reduzido ao desenvolvimento da ideia em sua do deslocamento da dominância entre as contradições; que esses fenômenos
própria alienação. Negatividade e alienação são, portanto, conceitos ideoló¬ orgânicos de deslocamento e de condensação são a própria existência da “ iden¬
gicos, que, para o marxismo, só podem designar seu próprio conteúdo ideo¬ tidade dos contrários” , até que eles produzam a forma globalmente visível da
lógico. Que o tipo hegeliano da necessidade e a essência hegeliana do desen ¬ mutação ou do salto qualitativo que sanciona o momento revolucionário

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da refundação do todo. É, a partir daí, possível prestar contas da distinção


capital para a prática política entre momentos distintos de um processo: “ não
: tência dela. Assim compreendida, a contradição é o motor de todo desenvolvimento. O
deslocamento e a condensação, baseados na sua sobredeterminação, dão conta, por sua
antagonismo” , “ antagonismo” e “ explosão” . A contradiçã o, diz Lenin, está dominância , das fases (não antagonista, antagonista e explosiva) que constituem a exis¬
sempre em ação, seja qual for o momento. Esses três momentos não são, por¬ tência do processo complexo, ou seja , “ do devir das coisas” .
tanto, senão três formas de existência da contradição. Caracterizarei de bom
grado o primeiro como o momento em que a sobredeterminação da contradição Se a dialética é, como diz Lenin, a concepção, na própria essência das
existe na forma dominante do deslocamento (a forma “ metonímica” daquilo coisas, da contradição, princípio do desenvolvimento dessas coisas e do seu
que é identificado na expressão consagrada: “ mudanças quantitativas” na his ¬ não desenvolvimento , de sua aparição, de suas mutações e do desaparecimento
tória ou teoria); o segundo como o momento em que a sobredeterminaçã o delas, então deveríamos alcançar, com essa definição da especificidade da con ¬
existe na forma dominante da condensação (conflitos de classe agudos no caso tradi ção marxista, a própria dialética marxista.50
da sociedade, crise teórica na ciência etc.); e o último, a explosão revolucio¬ Como todo enunciado teórico, essa definição tem existência somente pelos
nária (na sociedade, na teoria etc.), como o momento da condensação global conteú dos concretos que ela permite pensar.
instável provocando o desmembramento e o remembramento do todo, ou seja, Como todo enunciado teórico, essa definição deve permitir pensar primei ¬
uma reestruturação global do todo sobre uma base qualitativamente nova. A ramente esses conteú dos concretos.
forma puramente “ acumulativa ” , por mais que essa “ acumulação” possa ser Ela só pode aspirar a ser Teoria no sentido geral do termo se permitir pen ¬
puramente quantitativa (a soma não é senão excepcionalmente dialética) apa ¬
sar o conjunto dos conteúdos concretos, aqueles dos quais ela provém e aque¬
rece, portanto, como uma forma subordinada, da qual Marx nos deu um ú nico les dos quais ela não provém.
exemplo puro, não metafórico, mas “ exceptional” (uma exceção baseada nas Enunciamos essa definição da dialética a propósito de dois conteúdos con ¬
suas próprias condições) no único texto d’ O capital que constitui o objeto de cretos: a prática teórica e a prática política do marxismo.
-
um célebre comentário de Engels no Anti Duhring (Livro I, cap. 12). -
, Restaria para justificar seu alcance geral, para verificar que essa definição
da dialética ultrapassa o domínio a propósito do qual foi enunciada e pode,
portanto, aspirar a uma universalidade teoricamente temperada - submetê-la à
prova de outros conteúdos concretos, de outras práticas: por exemplo, à prova
Se puder, para acabar, resumir o sentido desta análise, seguramente muito da prática teórica das ciências da natureza, à prova de práticas teóricas ainda
imperfeita, e muito didática, permitam-me lembrar que empreendemos sim ¬ problemáticas nas ciências (epistemologia, história das ciências, das ideologias,
plesmente enunciar teoricamente a diferença específica da dialética marxista, da filosofia etc.) para assegurar seu alcance e eventualmente, como deve ser,
em ação na prática teórica e política do marxismo; que o próprio objeto do retificar-lhe a formulação; em suma, para ver se foi bem apreendido, no “ par¬
problema que colocáramos era a natureza da “ inversão” da dialética hegeliana ticular” que se examinou, o universal que constituía esse “ particular” .
por Marx. Se esta análise não for demasiado infiel às exigências elementares Isso poderia, ou deveria ser, a ocasião de novas pesquisas.
da pesquisa teórica definidas no início, então sua solução teórica deve dar nos - I
-
Abril maio de 1963
a posse de precisões teóricas, ou seja, de conhecimentos.
Se for então o caso, teríamos adquirido um resultado teórico que eu expres¬
saria esquematicamente da seguinte forma: i
Notas
A diferença específica da contradição marxista é sua “ desigualdade” , ou “ sobrede¬
terminação” , que reflete nela sua condição de existência, a saber: a estrutura de desi l R . Garaudy: “ [...] avaliar o que se arrisca jogar fora, subestimando a herança hegeliana de
¬
Marx: não só as obras de juventude, Engels e Lenin, mas o próprio O capital' . R . Garaudy,
gualdade (com dominante) específica do todo complexo sempre -já-dado, que é a exis¬ “ À propos des Manuscrits de 44” , Cahiers du Communisme , março de 1963 , p. 118 .

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POR MARX SOBRE A DIAL ÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )

2 G. Mury: “ [...] não parece razoá vel admitir que ele (L. A.) tenha introduzido, não sem causar tos. É essa exterioridade que fundamenta a tese de Lenin sobre a necessidade de importar a
sensação, um conceito novo para enunciar uma verdade conhecida desde Marx e Engels. É teoria marxista para a prática pol ítica espontâ nea da classe operá ria . Deixada a si mesma, uma
mais verossímil que lhe tenha parecido urgente insistir sobre a existência de um abismo in¬ prá tica ( técnica ) espont â nea produz somente a “ teoria” de que necessita , como o meio de
transpon ível entre as determinações que vêm da infraestrutura e as que vêm da superestrutura. produzir o fim que lhe é designado: essa “ teoria” nunca é mais do que a reflexão desse fim,
É sem d ú vida por isso que ele se recusa a inverter os polos da contradição afirmada por Hegel n ão criticado, n ão conhecido, em seus meios de realização, ou seja, um subproduto da reflex ão
entre a sociedade civil e o Estado, fazendo da sociedade civil , com Marx, o polo dominante, do fim da prática técnica sobre tais meios. Uma “ teoria” que n ão questiona o fim do qual ela
e do Estado, o fenômeno dessa essência. Ora, essa solução de continuidade introduzida arti- é o subproduto permanece prisioneira desse fim e das “ realidades” que o impuseram como
ficiaimente na dialética da história lhe proíbe discernir como o princípio interno do próprio fim . Tal como in ú meros ramos da psicologia e da sociologia , até mesmo da economia , da
capitalismo em sua contradição específica engendra, por seu próprio desenvolvimento, o es¬ política , da arte etc. Esse ponto é capital caso se queira identificar o perigo ideológico mais
tágio supremo do Imperialismo, a desigualdade do progresso, e a necessidade do elo mais ameaçador: a criação e o reinado de pretensas teorias que n ão têm nada a ver com a verdadei ¬
..
fraco [. ]” (“ Matérialisme et hyperempirisme’’, La Pensée, abril de 1963, p. 49). R. Garaudy : ra teoria , mas que são apenas subprodutos da atividade técnica. A crença na virtude teórica
“ Seja qual for a complexidade das mediações, a prática humana é una, e é sua dialé tica que “ espont â nea ” da técnica está na origem de tal ideologia, que constitui a essência do Pensa ¬
constitui o motor da história. Encobri-la sob a multiplicidade (real) de ‘sobredeterminações’ mento Tecnocrático.
é obscurecer o que é o essencial d' O capital de Marx que é, antes de tudo, o estudo dessa 8 Com uma notá vel exceção, da qual se vai tratar.
contradição principal, dessa lei fundamental do desenvolvimento da sociedade burguesa . Como 9 Cf . Lenin , Cadernos , p . 201 : “ Marx n ão nos deixou uma L ógica (com L mai úsculo), mas
é possível desde então conceber a existê ncia objetiva de uma lei fundamental do desenvolvi¬
mento de nossa época, que é a da passagem ao socialismo?” ( p. 119).
-
deixou nos a lógica d’ O capital . Seria preciso tirar daí o melhor partido possível . N' O capital ,
é a uma ú nica ciência que Marx aplica a l ógica , a dial ética e a teoria do conhecimento do
3 Acertado. Ê o pró prio termo do pref ácio da Contribuição ( 1858) quando, voltando atrás e materialismo ( n ão são necessá rias três palavras, é uma ú nica e mesma coisa ), tomando em
evocando o encontro com Engels em Bruxelas na primavera de 1845 e a redação de A ideolo¬ Hegel tudo o que tem valor e desenvolvendo -o” .
gia alemã , Marx fala do acerto de contas ( Abrechnung ) com “ nossa consciência filosófica 10 Com uma exceção not á vel , de que se vai tratar.
anterior” . O posf ácio da segunda edição d’ O capital registra abertamente esse acerto, que Eu deveria ter citado o detalhe de todos os meus textos, e n ão me contentar com dar deles,
11
comporta , em boa contabilidade, um reconhecimento de d ívida: o reconhecimento do “ lado
quase sempre, só a referência , mesmo exata.
racional” da dialética hegeliana.
12 Cf . Mury, artigo citado, p. 47.
4 Evidentemente, esse problema não é colocado aqui pela primeira vez! Ele constitui atualmen
13 Cf . Lenin, Cartas de longe , I , ( Obras... , ed . francesa , tomo XXIII , p. 330): “ Se a revolução
¬

te o objeto de trabalhos importantes de pesquisadores marxistas, na URSS, e que eu saiba, na


I triunfou tão rapidamente [ ...] foi unicamente porque, em razão de uma situação histórica de
Roménia, na Hungria, na Alemanha democrática, assim como na Itália, onde inspirou estudos
extrema originalidade, correntes totalmente diferentes, interesses de classe totalmente hete ¬
históricos e teóricos de grande interesse científico (Delia Volpe, Rossi, Colletti, Merker, entre
rog éneos , tendências sociais totalmente opostas se fundiram com uma coerê ncia surpreenden ¬
outros).
te ” . O próprio Lenin grifou algumas palavras desse texto. Um pouco mais longe, ele declara:
5 G. Mury declara muito justamente: “ Não parece razoá vel admitir que ele ( L. A. ) tenha intro¬
“ Foi assim, e assim somente que as coisas aconteceram. É assim, e assim somente que deve
duzido [„.] um conceito novo para enunciar uma verdade conhecida desde Marx e Engels [...]”
considerar a situaçã o um pol ítico que não teme a verdade; que encara calmamente a relação
(artigo citado) .
das forças sociais na revolução, que aprecia todo ‘momento atual’ , n ão só do ponto de vista
6 Cf. Lenin, Cadernos, p. 220: “ Não se pode aplicar a Lógica de Hegel tal e qual nem conside¬ de sua originalidade presente , de hoje, mas levando em conta motivos mais profundos, relações
rá-la como um dado. É preciso extrair dela os aspectos lógicos ( gnosioiógicos) após tê-los mais profundas entre os interesses do proletariado e os da burguesia, tanto na R ússia quanto
desembaraçado da m ística das ideias; é ainda um grande trabalho” . no mundo inteiro” , p. 131 ( desta vez, grifos meus - L. A .).
Lenin, Cadernos , p. 279: “ O acerto desse aspecto do conteú do da dialética [ trata-se da ‘iden ¬ 14 Cf. Mury, artigo citado, pp. 47 -48.
tidade dos contrá rios’ , L. A.] deve ser verificado pela história da ciência. Comumente, n ão se 15 Posf ácio da segunda edi ção d’ 0 Capital : “ Em sua forma mistificada , a dial ética [ ...] transfi ¬
presta suficiente atenção a esse aspecto da dialética (Plekhanov, por exemplo): a identidade gurava o dado ( das Bestehende) [ ...]; em sua forma raciona! ela é, em sua essência , cr ítica e
dos contrários é considerada como uma soma de exemplos ( ‘por exemplo, o grão’.; ‘por exem ¬ revolucioná ria” .
plo, o comunismo primitivo’ . É o que Engels faz també m. Mas é ‘para fazer compreender
16 Que pode ser també m o fato consumado de uma revolução ultrapassada .
melhor’ ) e n ão como lei do conhecimento (e como lei do mundo objetivo)” (as passagens
17 Chamo assim , por comodidade, os textos conhecidos dos cl ássicos do marxismo, que balizam
destacadas o são por Lenin ).
nosso problema.
7 A prática teórica produz conhecimentos, que podem em seguida figurar como meios a serviço
18 Marx, Crítica ao programa de Gotha , 1875: “ Desde logo a questão se coloca: que transforma ¬
dos objetivos de uma prá tica técnica . Toda prática técnica se define por seus objetivos: tais
efeitos definidos a produzir em tal objeto, em tal situação. Os meios dependem dos objetivos. ções sofrerá o Estado na sociedade comunista ? [...] Só a ciência pode responder a essa per -
f
gunta ; e n ão é associando dc mil maneiras a palavra Povo com a palavra Estado que se fará
Toda prática técnica utiliza, entre esses meios, conhecimentos, que intervêm como procedi ¬
mentos: quer sejam conhecimentos emprestados de fora, de ciências existentes: quer sejam
avançar o problema um passo que seja” .
“ conhecimentos” que a pró pria prá tica técnica produz, para cumprir seu fim . Em todos os
casos, a relação entre técnica e conhecimento é uma relação exterior, não refletida, radical ¬
-
19 G . Mury tentou essa experiência, em 1 a Pensée , n . 108, artigo citado.
20 Cf . La Pensée, dezembro de 1962, p. 7, nota 6.
mente diferente da relação interior, refletida, existente entre uma ciência e seus eonhecimen- 21 Essa Generalidade 11, designada pelo conceito de “ teoria” , mereceria evidentemente um exa¬
me muito mais aprofundado, que n ão posso empreender aqui. Digamos simplesmente que a

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POR MARX SOBRE A DIAL ÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )

unidade do que chamo “ teoria” raramente existe numa ciência na forma refletida de um siste ¬ sa das reações imediatas dos Cadernos): que possam ser encontradas em Hegel aná lises utili¬
ma teórico unificado. Eia não abrange somente, pelo menos nas ciências experimentais, con¬ zá veis, ou mesmo cenas demonstrações, isoladas decerto, de caráter materialista ? Posso su ¬

ceitos em sua existência puramente teórica, mas iguaimente todo o campo da técnica na qual gerir que se a relação Marx-Hegel n ão é uma relaçã o de inversã o, a “ racionalidade” da
está investida uma grande parte dos conceitos teóricos. A parte expl ícita e propriamente teó¬ dialética hegeliana se torna infinitamente mais inteligível?
rica é ela mesma apenas muito raramente unificada em uma forma não contraditória. No mais
29 Tive a ocasi ão de propor tal “ imagem teórica” emprestada de um pará grafo do Jovem Marx ,
das vezes ela é feita de regiões localmente unificadas em teorias regionais coexistindo num
na Nouvelle Critique , dezembro de 1960, p. 36.
todo complexo e contraditório, possuindo uma unidade n ão refletida teoricamente. É essa
30 Essa espécie de desafio despertará, penso eu , ecos na experiência política dos marxistas. Pois
unidade extremamente complexa e contraditória que está em ação, cada vez segundo um modo
específico, no trabalho de produção teórica de cada ciência. É ela, por exemplo, nas ciências desafiar quem quer que seja a verdadeiramente mudar os efeitos sem mudar a causa, a estrutura
fundamental determinante, é muito parecido com a crítica do reformismo, o desafio cotidiano
experimentais, que constitui os “ fen ômenos” em “ fatos” e coloca na forma de problema uma
dificuldade existente, “ resolvendo” esse problema pelo estabelecimento de dispositivos teóri ¬ que os comunistas fazem a todos os reformistas do mundo, que creem que se pode inverter a
ordem das coisas mantendo sua própria base, por exemplo, transformar a desigualdade social
-
co técnicos que são o corpo real daquilo que uma tradição idealista chama “ hipóteses” etc.
em igualdade social , a exploração do homem pelo homem em colaboração dos homens entre
.
22 Cf. Marx , Introdução..., Contribuição .., Ed. Sociales, 1859, pp. 164- 165: “ Parece ser o méto¬
si , sobre a própria base das relações sociais existentes. A canção dc luta dos trabalhadores diz
do correto, começar pelo real e pelo concreto [...]. No entanto, ao olhar mais detidamente,
que “ o mundo vai mudar de base” : ela é teoricamente irrepreensível.
percebe-se que há aí um erro {...]; este último método [o dos sistemas económicos que vão das
31 Mao Tsé-tung, Sobre a contradição, pp. 45, 55.
noções gerais às noções concretas] é manifestamente o método científico correto. O concreto
é concreto porque é a síntese de m ú ltiplas determinações, logo, unidade da diversidade. É por 32 Lenin , Cadernos , p. 279.
isso que ele aparece no pensamento como processo de síntese, como resultado, n ão como 33 Marx , Introdução... , p. 150.
ponto de partida [...]; [no método científico] as determinações abstratas conduzem à reprodu ¬ 34 Marx, Introdução..., p. 165: “ a categoria económica mais simples [...] nunca pode existir a não
ção do concreto pela via do pensamento [...]. O método que consiste em elevar se do abstrato
- ser na forma dc relação unilateral e abstrata de um todo concreto, vivo, já dado” .
ao concreto não é para o pensamento sen ão a maneira de se apropriar do concreto, de repro¬ .
35 Marx , Introdução .., p. 167.
duzi-lo na forma de um concreto pensado [...]” . 36 Idem , ibid.
23 Exemplo: o próprio Feuerbach. É por isso que conv ém tratar com muita precaução as “ decla¬ 37 Marx, Introdução..., p. 166.
rações de materialismo” de Feuerbach. Já chamei a atenção para esse ponto. Cf . La Pensée , 38 Intencionalmente. Por exemplo, Marx querendo dar uma lição à tolice filosófica de seus con ¬

( março-abril 1961 , p. 8) num artigo sobre o Jovem Marx, em que empreguei


mesmo certas
noções ainda ideológicas que são derrubadas pela presente crítica. Exemplo: o conceito de
temporâneos, “ flertando” com a terminologia de Hegel nó primeiro livro d' O capital (“ koke
' ttieren ” ). Ainda mereceríamos a li çã o?
-
“ volta atrás” , que servia de réplica à “ superação” de Hegel e que queria ilustrar o esforço de
39 Sua própria morte não é senão a iminência de sua Ressurrei ção, como a Sexta-Feira Santa a
Marx para sair da ideologia, para se libertar dos mitos e entrar em contato com o original
deformado por Hegel; esse conceito, em seu uso polêmico até, sugerindo um retorno ao “ real” ,
iminência da Glória da Páscoa. São os próprios símbolos de Hegel.
ao “ concreto” anterior à ideologia, beirava o “ positivismo” . Outro exemplo: a refutação po¬ 40 Indiquemos, para prevenir qualquer mal-entendido, que é exatamente, e ainda mais, num es ¬
lêmica da própria possibilidade de uma história da filosofia. Essa tese baseava-se numa frase tado de extraordin ária pureza e intransigência, essa “ dialética hegeliana” que reina gloriosa ¬

d ’A ideologia alemã que declara que a filosofia ( como a religião, a arte, etc.) não tem história. mente sobre os Manuscritos de 1844 de Marx. Acrescentemos que, para perfazer a demonstra ¬
Ainda aí está vamos na fronteira do positivismo, a dois passos de reduzir (como A ideologia ção, essa dialética hegeliana é aí rigorosamente “ invertida” . É por isso que o rigor desse texto
alemã é constantemente tentada a fazer) toda ideologia (portanto, a filosofia ) ao simples fe¬ rigoroso n ão é marxista.
nômeno (provisório) de uma formação social . 41 Uma frase muito metaf ó rica sobre a negação da negação. Uma outra frase, de que falarei ,
24 Marx, Introdução..., p. 165. sobre a transformação da quantidade em qualidade. Engels cita e comenta esses dois textos
25 Idem, ibid. -
na primeira parte do Anti Duhring , capítulos 12 e 13. Uma palavra ainda sobre “ a negação da
negação” . Decidiu-se agora oficialmente acusar Stalin de tê-la riscado das “ leis da dialética” ,
26 Essa comparação é fundamentada: essas duas práticas distintas tendo em comum a .essência e mais geralmente de se ter desviado de Hegel, para melhor assentar seu dogmatismo. Sugere-
geral da prática.
27 A sagrada família data de 1844. Mesmo tema em A ideologia alemã (1845) e Miséria da filo¬
- se naturalmente, ao mesmo tempo, que certa volta a Hegel seria salutar. Essas declarações
talvez constituam um dia o objeto de uma demonstração. Entrementes, parece-me mais simples
sofia (1847). reconhecer que a rejeição da “ negação da negação" do domínio da dial ética marxista pode
28 Esse trabalho de ruptura foi o resultado da prática teórica de um homem: Kar) Marx. Não comprovar um real discernimento teórico de seu autor.
posso voltar aqui a uma questão apenas esboçada em meu artigo sobre o Jovem Marx. Seria 42 Monismo. Conceito-chave da concepção pessoal de Haeckel, grande bi ólogo alemão, valoro ¬
preciso mostrar porque a prá tica teórica de Marx, que é, também ela, um trabalho de transfor¬
mação, tomou necessariamente na teoria a forma preponderante de uma ruptura, de um corte
-
so combatente materialista-mecanicista da luta antirreligiosa e anticlerical nos anos 1880 1910.
Publicista muito ativo, autor de obras “ populares” que tiveram enorme difusão. Criador da
epistemológico. “ Liga dos Monistas Alemães” . Ele considerava a religião “ dualista” e opunha-lhe o “ monismo” .
Posso sugerir que a partir do momento em que a relação de Marx com Hegel não é mais, em Estimava como “ monista” o que n ão tem duas substâ ncias (Deus e o mundo, o Espírito ou a
ú ltima análise, uma relação de inversão e sim uma relação totalmente diferente , talvez se alma e a matéria), mas uma ú nica . Por sua conta, Haeckel pensava que essa Ú nica Substância
possa compreender melhor o que parecia prodigioso e paradoxal ao próprio Lenin ( na surpre- possuía ( um pouco como a substâ ncia spinozista possui também dois atributos essenciais) dois

178 179
POR MARX
SOBRE A DIAL ÉTICA MATERIALISTA ( DA DESIGUALDADE DAS ORIGENS )

atributos: a matéria e a energia. Todas as determinações, tanto materiais quanto espirituais,


eie as considerava como modos dessa Substância, cuja “ Onipotência” afirmava 45 Marx nos d á, na Introdução..., a mats bela demonstração da invari ância da estrutura com
. Plekhanov dominante na aparente circularidade dos condicionamentos, quando analisa a identidade da
devia retomar esse tema do “ monismo” , que sem d ú vida não deixava de ter
afinidades com as produ ção, do consumo, da distribuição por meio da troca . Capaz de dar ao leitor a vertigem
tendê ncias mecanicistas que Lenin devia censurar-lhe tão severamente mais tarde. Plekhanov
era mais “ consequente” do que Haeckel: reconhecia que o idealismo moderno também
era
-
hegeliana... “ nada mais simples então” , diz Marx, “ para um hegeliano, do que colocar a
monista” , explicando tudo por uma ú nica subst â ncia, o Espírito. Ele considerava o marxismo -
produção e o consumo como idênticos” ( p. 158), mas é enganar se inteiramente. “ O resultado
a que chegamos n ão é o de que a produção, a distribuição, a troca , o consumo são idênticos,
.
um monismo materialista (ef Plekhanov, Ensaio sobre a concepção monista
da história ) . É mas que eles são todos os elementos de uma totalidade, diferenciações no interior de uma
talvez a Plekhanov que se deve imputar a presença simultânea do termo “ monismo”
nos artigos unidade” , na qual é a produção, na sua diferença específica, que é determinante. “ Uma pro¬
de G. Besse, R . Garaudy e G . Mury e de expressões declarando o marxismo essencialmente
“ monista” . A imprecisão desse conceito ideológico foi condenada sem apelo por Engels e dução determinada determina portanto um consumo, uma distribui ção, uma troca determina ¬
Lenin. Meus críticos empregam-no ora num sentido forte (como Mury ), ora num sentido dos; ela regula igualmente as relações recíprocas determinadas desses diferentes momentos.
mais A bem dizer, a produção, também ela, sob a forma exclusiva, é, por seu lado, determinada
ou menos enfraquecido; eles não o opõem ao dualismo, como faziam Haeckel e Plekhanov,
mas ao “ pluralismo” ; o termo pode ser considerado como adquirindo então sob sua pena uma pelos outros fatores” ( p. 164).
nuance metodol ógica, mas sempre ideológica. Esse conceito não tem uso teórico positivo no -
46 Não forjei esse conceito. Como o indicara, tomei o emprestado de duas disciplinas existentes:
marxismo, é até teoricamente perigoso. Ele pode no máximo ter um valor prático negativo: no caso , a linguística e a psicanálise . Ele possui aí uma “ conotação” objetiva dialética e -
atenção ao “ pluralismo” ! Não tem nenhum valor de conhecimento. Conferir lhe
- tal valor e -
particularmente em psicanálise formalmente assaz aparentada ao conteúdo que designa aqui,
para que esse empréstimo n ão seja arbitrá rio. É preciso necessariamente uma palavra nova
-
desenvolver suas consequ ências teóricas (Mury) leva a deformai o pensamento de Marx .
- -
para designar uma precisão nova. Pode se decerto forjar um neologismo. Pode se também
43 Não se deve confundir a teoria de Hegel com o julgamento de Marx sobre Hegel .
Por mais “ importar” (como diz Kant) um conceito assaz aparentado para que sua domesticação (Kant)
espantoso que isso possa parecer a quem o conhece por intermédio do julgamento
de Marx, seja f ácil. Esse “ parentesco” poderia, ademais, permitir, por sua vez, um acesso à realidade
Hegel não é, na sua teoria da sociedade, o avesso de Marx. O princípio “ espiritual ” que
constitui psicanalítica.
a unidade interna da totalidade hegeliana histórica não é de maneira nenhuma assimil ável ao
que figura em Marx na forma da “ determinação em última inst â ncia pela economia . ão 47 Sobre a contradição , pp. 56-57.
” N se
encontra em Hegel o princípio inverso: a determinação em ú ltima instâ ncia pelo Estado 48 Idem, p. 65.
ou
pela filosofia. É Marx que diz: na realidade, a concepção hegeliana da sociedade
equivale a -
49 Idem, pp. 51 52.
fazer da Ideologia o motor da História , porque é uma concepção ideol ógica. Mas Hegel 50 Aqueles a quem essa definição te órica poderia desagradar consentirão considerar que ela não
n ão
diz nada parecido. Não h á para ele na sociedade , na totalidade existente, determinação em , exprime outra coisa senão a essê ncia da dialética agindo no concreto do pensamento e da ação
última instância. A sociedade hegeliana não é unificada por uma instância fundamenta marxistas. Aqueles que essa definição inabitual poderia surpreender consentirão considerar
! exis¬
tente no interior dela mesma, ela n ão é nem unificada , nem determinada por uma de que ela se refere muito exatamente ao entendimento do “ devir ” , do “ nascimento e da morte”
suas
“ esferas” , quer seja a esfera política, quer seja a filosófica ou a religiosa. Para Hegel, dos fenômenos, a que uma longa tradição associa a palavra “ dialé tica” . Aqueles que essa
o prin¬
cipio que unifica e determina a totalidade social não é tal “ esfera ” da sociedade, mas defini ção (que não retém como essenciais nenhum dos conceitos hegelianos, nem a negativi-
um
princípio que não tem nenhum lugar nem corpo privilegiado na sociedade, pela raz dade, nem a negação, nem a cisão, nem a negação da negação, nem a alienação, nem “ a supe¬
ão de que
ele reside em todos os lugares e em todos os corpos. Ele está em todas as determina ração” ) poderia desconcertar consentir ão considerar que se ganha sempre ao perder um con
ções da ¬

sociedade, económicas, políticas, jurídicas etc., e até nas mais espirituais. Tal como Roma: ceito inadequado, quando o conceito que se ganha na troca é mais adequado à prática real.
n ão é sua ideologia que a unifica e a determina, para Hegel, mas um princípio “ espiritual ” ( ele Aqueles que a simplicidade da “ matriz” hegeliana assombraria consentir ão considerar que,
mesmo momento do desenvolvimento da Ideia), que se manifesta em todas as determina em “ circunstâ ncias determinadas” (e a bem dizer excepcionais), a dialética material pode
ções
romanas, economia, política, religião, direito etc. Esse princípio é a personalidade jurídica apresentar, num setor muito limitado, uma forma “ hegeliana” , embora, precisamente por essa
abstrata. É um princípio “ espiritual” , do qual o direito romano não é senão uma manifestação raz ão de exce ção, não seja então essa forma mesma, isto é, a exceção, mas suas condi ções que
entre todas as outras. No mundo moderno, é a subjetividade , princípio igualmente é necessário generalizar. Pensar essas condi ções é pensar a possibilidade de suas pr óprias
universal:
a economia é aí subjetividade, como a política, a religião, a filosofia, a música etc. A totalidade “ exceções” . A dialética marxista permite assim pensar o que constituía a “ cruz” da dialética
da sociedade hegeliana é feita de tal maneira que seu princípio é, ao mesmo tempo, hegeliana: por exemplo, o não desenvolvimento , a estagnação das “ sociedades sem história” ,
imanente
e transcendente a ela, mas que, enquanto tal, ele nunca coincide com nenhuma realidade ¬ sejam elas primitivas ou n ão; por exemplo, o fenômeno das “ sobrevivências” reais etc.
de
terminada da própria sociedade. É por isso que a totalidade hegeliana pode ser dita afetada
por uma unidade de tipo “ espiritual ” , onde cada elemento é pars totalis , e onde as
esferas
visíveis não são senão o desdobramento alienado e restaurado do dito princípio interno. Quer
dizer que não é possível por nenhuma razão identificar ( mesmo como seu avesso) o tipo
de
unidade da totalidade hegeliana com a estrutura de unidade da totalidade marxista
.
44 Esse mito de origem é ilustrado pela teoria do contrato social “ burgu ês” , que, em
Locke, por
exemplo, essa pura joia teórica, define uma atividade económica no estado de natureza
anterior
(de direito ou de fato, pouco importa ) às suas condições jurídicas e pol í
ticas de existência!

180
181
VII

MARXISMO E HUMANISMO

Meu método analítico não parte do homem, mas do período


social economicamente dado [...]
Marx , “ Notas sobre Wagner” , O capital (Ed. Sociales), tomo
Hl, p. 249 (1881)

O “ Humanismo” socialista est á na ordem do dia.


Engajada no per íodo que, do socialismo (a cada um segundo seu trabalho),
vai conduzi-la ao comunismo (a cada um segundo suas necessidades), a União
Soviética proclama a palavra de ordem: Tudo pelo Homem, e aborda novos
temas: liberdade do indivíduo, respeito da legalidade, dignidade da pessoa.
Nos partidos operários, celebram-se as realizações do humanismo socialista e
procuram-se suas justificativas teóricas n’ O capital e, cada vez mais, nas obras
de juventude de Marx.
É um acontecimento histórico. Pode-se mesmo perguntar se o humanismo
socialista não é um tema bastante tranquilizador e atraente para tornar possível
um diálogo entre comunistas e sociais-democratas, até mesmo uma troca ain ¬
da mais ampla com esses homens “ de boa vontade” que recusam a guerra e a
miséria. Hoje em dia, até mesmo a grande via do Humanismo parece conduzir
ao socialismo.
De fato, a luta revolucionária sempre teve por objetivo o fim da exploração
e, portanto, a libertação do homem. Mas, na sua primeira fase hist órica, ela

183
POR MARX MARXISMO E HUMANISMO

.
teve, como Marx previa, de tomar a forma da luta de classes O humanismo II
revolucionário não podia ser então senão um “ humanismo de classe” , o “ hu ¬
manismo proletário” . Fim da exploração do homem queria dizer fim da ex ¬ Para ver além desse acontecimento, para compreendê-lo, para conhecer o sen ¬
ploração de classe. Libertação do homem queria dizer libertação da classe tido do humanismo socialista, não basta tomar nota do acontecimento, nem
operária e, antes de tudo, pela ditadura do proletariado. Durante mais de 40 registrar os conceitos ( humanismo, socialismo) pelos quais o acontecimento
anos, na URSS, por meio de lutas gigantescas, o “ humanismo socialista” , antes pensa a si mesmo. E preciso pôr à prova as justificativas teóricas dos conceitos
de se exprimir em termos de liberdade da pessoa, exprimiu-se em termos de para se assegurar de que eles nos dão um verdadeiro conhecimento científico
ditadura de classe1. do acontecimento.
O fim da ditadura do proletariado abre uma segunda fase histórica na URSS. Ora, o par “ humanismo-socialista” encerra justamente uma desigualdade
Os soviéticos dizem: entre nós, as classes antagónicas desapareceram, a di ¬ teórica impressionante: no contexto da concepção marxista, o conceito de “ so ¬

tadura do proletariado cumpriu sua função, o Estado não é mais um Estado de cialismo” é realmente um conceito científico, mas o de humanismo é apenas
classe, mas o Estado do povo inteiro (de todos). Efetivamente, os homens são um conceito ideológico.
doravante tratados na URSS sem distinção de classe, ou seja, como pessoas. -
Entendamo-nos: trata se não de contestar a realidade que o conceito de
Veem-se então os temas do humanismo de classe ser sucedidos, na ideologia , humanismo socialista está encarregado de designar, mas de definir o valor teó¬
pelos temas de um humanismo socialista da pessoa. rico desse conceito. Ao dizer que o conceito de humanismo é ideológico (e não
Há dez anos, o humanismo socialista existia apenas numa ú nica forma: o científico), afirmamos ao mesmo tempo que ele designa um conjunto de reali¬
humanismo de classe. Hoje, ele existe em duas formas: o humanismo de classe, dades existentes, mas que, diferentemente de um conceito científico, não dá os
em que ainda reina a ditadura do proletariado (China etc.) e o humanismo da meios de conhecê-las. Ele designa, de um modo particular (ideológico), existên¬

pessoa (socialista), no qual aquela está ultrapassada (URSS). Duas formas que cias, mas não dá a essência delas. Confundir esses dois domínios seria inter¬
correspondem a duas fases históricas necessárias. No humanismo da “ pessoa” , ditar todo conhecimento, alimentar uma confusão e arriscar-se a cair em erros.
o humanismo de “ classe” pode contemplar seu próprio futuro, já realizado. Para mostrar claramente, invocarei brevemente a experiência de Marx, que
Essa transformação da história esclarece certas transformações dos espíri¬ chegou à teoria científica da história apenas à custa de uma crítica radical da
tos. A ditadura do proletariado, que os sociais-democratas rejeitavam em nome filosofia do homem , que lhe serviu de fundamento teórico durante os anos de
do “ humanismo” (burguês) da pessoa, e que os opunha ferozmente aos comu ¬ juventude (1840-1845). Emprego as palavras “ fundamento teórico” em seu sen ¬
nistas, está ultrapassada na URSS. Ainda melhor, prevê-se que ela poderá as ¬ tido estrito. Para o Jovem Marx , o “ Homem” não era somente um grito, denun ¬
sumir no Ocidente formas pacíficas e breves. Desde então, esboça-se uma es¬ ciando a miséria e a servidão. Era o princípio teórico de sua concepção do
pécie de encontro entre dois “ humanismos” da pessoa: o socialista e o liberal mundo e de sua atitude prática. A “ essência do homem ” (fosse ela liberdade
burguês ou cristão. A “ liberalização” da URSS d á garantias ao segundo. Quan ¬ -razão ou comunidade) fundava tanto uma teoria rigorosa da história quanto
to ao humanismo socialista, pode-se considerá-lo n ão só como a crítica das uma prática política coerente.
contradições, mas também e sobretudo como a realização das aspirações “ mais Vê-se isso nas duas etapas do período humanista de Marx.
nobres” do humanismo burguês. Nele, a humanidade teria enfim realizado seu I - A primeira etapa é dominada por um humanismo racionalista-liberal,
sonho milenar, representado nos esboços dos humanismos passados, cristãos mais próximo de Kant e de Fichte do que de Hegel. Quando Marx combate a
e burgueses: que no homem e entre os homens chegue enfim o reino do Homem. censura, as leis feudais renanas, o despotismo da Prussia, ele funda teorica¬
Seria enfim cumprida a promessa profética de Marx, encerrada nos Manus ¬ mente seu combate político, e a teoria da história que o sustenta, numa filoso¬
critos de 1844: “ O comunismo [...] apropriação da essência humana pelo ho¬ fia do homem. A história só é inteligível por meio da essência do homem, que
mem, esse comunismo, enquanto naturalismo consumado = humanismo [...]” . é liberdade e razão. Liberdade : ela é a essência do homem como o peso é a
essência dos corpos. O homem está destinado à liberdade, seu ser mesmo.

184 185
POR MARX MARXISMO E HUMANISMO

Ainda que ele a recuse ou a negue, permanece nela para sempre: “ A liberdade encerra precisamente em suas formas modernas as exigências da razão. Ele
constitui tanto a essência do Homem que mesmo seus adversários a realizam não se detém a í. Em toda parte ele supõe a razão realizada. Mas em toda parte
ao combater-lhe a realidade [...]. Logo, a liberdade sempre existiu, ora como ele cai igualmente na contradição entre sua definição teórica e suas hipóteses
um privilégio particular, ora como direito geral ” .2 Essa distin ção esclarece a
,
reais” . Um passo decisivo é então transposto: os abusos do Estado não são mais
história inteira: assim, o feudalismo é liberdade, mas na forma “ não racional” concebidos como distrações do Estado perante sua essência, mas como con ¬
do privilégio; o Estado moderno é liberdade, mas na forma racional do direito tradição real entre sua essência (razão) e sua existência (desrazão). O huma¬
universal. Razão: o homem não é liberdade a não ser como razão. A liberdade nismo de Feuerbach permite precisamente pensar essa contradição, ao mostrar
humana não é nem o capricho, nem o determinismo do interesse, mas, como na desrazão a alienação da razão, e nessa alienação a história do homem, ou
queriam Kant e Fichte, autonomia, obediência à lei interior da razã o. Essa seja, sua realização.6
razão que “ sempre existiu, mas nem sempre na forma racional” 3 (por exemplo, Marx professa sempre uma filosofia do homem: “ Ser radical é pegar as
o feudalismo), existe finalmente, nos tempos modernos, na forma da razão no coisas pela raiz; ora, para o homem, a raiz é o próprio homem [...]” (1843). Mas
Estado, Estado do direito e das leis. “ A filosofia considera o Estado como o o homem não é então liberdade-razão senão porque ele é inicialmente “ Gemein-
grande organismo, no qual a liberdade jurídica, moral e política deve ter sua weser í’ , “ ser comunitário” , um ser que só se realiza teoricamente (ciência) e
realização, e no qual cada cidadão, ao obedecer às leis do Estado, nã o obedece praticamente (política) em relações humanas universais, tanto com os homens
senão às leis naturais de sua própria razão, da razão humana.” 4 Daí a tarefa da quanto com seus objetos (a natureza exterior “ humanizada” pelo trabalho).
filosofia: “ A filosofia pede que o Estado seja o Estado da natureza humana” .5 Ainda aqui, a essência do homem funda a história e a política.
Essa suplica dirige-se ao próprio Estado; que ele reconheça sua essência, e A história é a alienação e a produção da razão na desrazão, do homem
tornar-se-á razão, verdadeira liberdade dos homens, reformando-se a si mesmo. verdadeiro no homem alienado. Nos produtos alienados de seu trabalho ( merca¬
A crítica filosófico-política (que lembra ao Estado seus deveres para consigo) dorias, Estado, religião), o homem, sem o saber, realiza a essência do homem.
resume ent ão o todo da política: é a imprensa livre, livre razão da humanidade, Essa perda do homem, que produz a história e o homem, supõe uma essência
que se toma a própria política. Essa prática política - que se resume à crítica preexistente definida. No fim da história, esse homem, que se tomou objetivi ¬
teórica pública, ou seja, à crítica p ú blica por meio da imprensa, e que reclama dade inumana, terá apenas de reaver, como sujeito, sua própria essência alie ¬
como sua condição absoluta a liberdade da imprensa - é a prática política de nada na propriedade, na religião e no Estado, para se tornar homem total, ho¬
Marx na Rheinische Zeitung [ Gazeta Renaná] , Desenvolvendo sua teoria da mem verdadeiro.
história, Marx funda e justifica ao mesmo tempo sua própria prática: a crítica Essa nova teoria do homem funda um novo tipo de ação política: a política
pública do jornalista, que ele pensa como a ação pol ítica por excelência. Nes¬ de uma reapropriação prática. O apelo à simples razão do Estado desaparece.
sa filosofia Iluminista, tudo se encaixa rigorosamente. A política não é mais simples cr ítica teórica, edificação da razão pela impren ¬
II - A segunda etapa (1842-1845) é dominada por uma nova forma de huma¬ sa livre, mas reapropriação prática de sua essência pelo homem. Pois o Estado,
nismo: o humanismo “ comunitário” de Feuerbach. O Estado-razão permaneceu como a religião, é o homem, mas o homem despossuído; o homem está cindido
surdo à razão: o Estado prussiano n ão se reformou. Foi a própria história que entre o cidadão (Estado) e o homem civil, duas abstrações. No céu do Estado,
exerceu esse julgamento sobre as ilusões do humanismo da razão: os jovens nos “ direitos do cidadão” , o homem vive imaginariamente a comunidade hu¬
radicais alemães aguardavam do pretendente que ele mantivesse, quando rei, mana de que é privado na terra dos “ direitos do homem” . Assim, a revolução
as promessas liberais que anunciara à espera do trono. Mas o trono logo trans¬ não será mais somente política (reforma liberal racional do Estado), mas “ hu ¬
formou o liberal em déspota - o Estado, que devia enfim tornar-se a razão, mana” (“ comunista” ), para restituir ao homem sua natureza alienada na forma
visto que o era em si, não gerava, mais uma vez, senão a desrazão. Dessa fantástica do dinheiro, do poder e dos deuses. A partir de então, essa revolu ção
imensa decepção, que foi vivida pelos jovens radicais como uma verdadeira prática será a obra comum da filosofia e do proletariado, pois, na filosofia, o
crise histórica e teórica, Marx extraiu a conclusão: “ [...] o Estado pol ítico [...] homem é afirmado teoricamente; no proletariado, ele é negado praticamente.

186 187
POR MARX MARXISMO E HUMANISMO

A penetração da filosofia no proletariado será a revolta consciente da afirmação uns aos outros. Ela implicava, quando Marx a enfrentou , os dois postulados
contra sua pró pria negação, a revolta do homem contra suas condições inuma¬ complementares definidos por ele na sexta tese sobre Feuerbach:
nas. Ent ão, o proletariado negará sua própria negação e tomará posse de si no (1 ) que existe uma essência universal do homem;
comunismo. A revolução é a própria prática da lógica imanente à alienação: é (2) que essa essência é o atributo dos “ indivíduos considerados isoladamen ¬

o momento em que a crítica, até então desarmada, reconhece suas armas no te” que são seus sujeitos reais.
proletariado. Ela fornece ao proletariado a teoria do que ele é: o proletariado Esses dois postulados são complementares e indissociá veis. Ora, sua exis¬
lhe fornece em compensação sua força armada, uma única e mesma força onde tência e sua unidade pressupõem toda uma concepção empirista-idealista do
cada um se alia apenas consigo mesmo. A aliança revolucion ária do proleta ¬
mundo. Para que a essência do homem seja atributo universal, é preciso efeti ¬
riado e da filosofia é, portanto, ainda aqui, selada com a essência do homem. vamente que sujeitos concretos existam, como dados absolutos: o que implica
um empirismo do sujeito. Para que esses indivíduos empíricos sejam homens,
é preciso que eles tragam em si toda a essência humana, se não de fato, ao
III menos de direito: o que implica um idealismo da essência. O empirismo do
sujeito implica, portanto, o idealismo da essência e reciprocamente. Essa rela ¬

A partir de 1845, Marx rompe radicalmente com toda teoria que funda a histó¬ ção pode se inverter em seu “ contrário” - empirismo do conceito, idealismo
ria e a política numa essência do homem. Essa ruptura ú nica comporta três do sujeito. A inversão respeita a estrutura fundamental dessa problemática, que
aspectos teóricos indissoci á veis: permanece fixa.
(1) formaçã o de uma teoria da história e da política fundada em conceitos Pode-se reconhecer nessa estrutura-tipo n ão só o princípio das teorias da
radicalmente novos: conceitos de formação social, forças produtivas, relações sociedade (de Hobbes a Rousseau ), da economia política (de Petty a Ricardo),
de produção, superestrutura, ideologias, determinações em ú ltima inst ância 'l da moral (de Descartes a Kant), mas também o próprio princípio da “ teoria”
pela economia, determinação específica dos outros níveis etc.; idealista e materialista (pré-marxista) “ do conhecimento” (de Locke a Feuer¬
(2) cr
ítica radical das pretensões teóricas de todo humanismo filosófico; bach , passando por Kant). O conteú do da essê ncia humana ou dos sujeitos
(3) definição do humanismo como ideologia. empíricos pode variar (como se vê de Descartes a Feuerbach) ; o sujeito pode
Nessa nova concepção, tudo se encaixa também rigorosamente, mas é um passar do empirismo ao idealismo (como se vê de Locke a Kant ): os termos e
novo rigor: a essência do homem criticada (2) é definida como ideologia (3), sua relação variam apenas no interior de uma estrutura-tipo invariante, que
categoria que pertence à nova teoria da sociedade e da história (1). constitui essa problemática mesma: a um idealismo da essência responde sem¬
A ruptura com toda antropologia ou todo humanismo filosóficos não é um pre um empirismo do sujeito ( ou a um idealismo do sujeito, um empirismo da
detalhe secund ário: ela é constitutiva da descoberta científica de Marx. essência ).
Ela significa que, num ú nico e mesmo ato, Marx rejeita a problemática da Ao rejeitar a essê ncia do homem como fundamento teórico, Marx rejeita
filosofia anterior e adota uma problemática nova. A filosofia anterior idealista todo esse sistema orgâ nico de postulados. Ele expulsa as categorias filosóficas
(“ burguesa” ) repousava, em todos os seus domínios e desenvolvimentos (“ teo¬ sujeito, empirismo, essência ideal etc. de todos os dom ínios em que elas rei¬
ria do conhecimento” , concepção da história, economia política, moral, esté ¬ navam . Não só da economia política (rejeição do mito do homo ceconomicus,
tica etc.), sobre uma problemática da natureza humana (ou da essência do ou seja, do indiv íduo com faculdades e necessidades definidas, na condição de
homem). Essa problemática foi, durante séculos, a evidência mesma, e ninguém ( sujeito da economia cl ássica); n ão só da história ( rejeição do atomismo social
sonhava em questioná-la, mesmo em suas modificações internas. e do idealismo político-ético) ; não só da moral (rejeição da ideia moral kan ¬
Essa problemática não era vaga nem imprecisa: era, ao contrário, constitu í
¬ tiana); mas também da própria filosofia: visto que o materialismo de Marx
da por um sistema coerente de conceitos precisos, estreitamente articulados exclui o empirismo do sujeito (e seu inverso: o sujeito transcendental) e o
idealismo do conceito (e seu inverso: o empirismo do conceito).

188 189
POR MARX MARXISMO E HUMANISMO

Essa revolução teórica total somente tem condições de recusar os antigos Pois o anti-humanismo marxista teórico tem por corolário o reconhecimen¬
conceitos porque os substitui por conceitos novos. Marx funda efetivamente to e o conhecimento do próprio humanismo: como ideologia. Marx jamais caiu
uma nova problemática, uma nova maneira sistemática de colocar questões ao na ilusão idealista de crer que o conhecimento de um objeto poderia, no limi ¬
mundo, novos princípios e um novo método. Essa descoberta está contida te, substituir esse objeto ou dissipar-lhe a existência. Os cartesianos, que sabiam
imediatamente na teoria do materialismo histórico, na qual Marx propõe não que o Sol estava a duas mil milhas, espantavam-se de que ele fosse visto a
só uma nova teoria da história das sociedades, mas, ao mesmo tempo, implí¬ duzentos passos: nem Deus lhes chegava para preencher essa distância. Marx
cita porém necessariamente, uma nova “ filosofia” com implicações infinitas. nunca acreditou que o conhecimento da natureza do dinheiro ( uma relação

sência humana por novos conceitos (forças produtivas, relação de produção


-
Assim, quando Marx substitui na teoria da história o velho par indivíduos es¬ social ) pudesse destruir sua aparência, sua forma de existência: uma coisa,
pois essa aparência era seu próprio ser, t ão necessá ria quanto o modo de pro¬
etc.), ele propõe de fato, simultaneamente, uma nova concepção da “ filosofia” . du ção existente.7 Marx nunca acreditou que uma ideologia pudesse ser dissi ¬
Ele substitui os antigos postulados (empirismo-idealismo do sujeito, empi ¬ pada pelo seu conhecimento, pois o conhecimento dessa ideologia, sendo o
rismo-idealismo da essência) que estão na base, não só do idealismo, mas conhecimento de suas condições de possibilidade, de sua estrutura, de sua
também do materialismo pré-marxista, por um materialismo dialético-históri ¬ lógica específica e de seu papel prático, no interior de uma sociedade dada, é
co da práxis: ou seja, por uma teoria dos diferentes níveis específicos da prᬠao mesmo tempo o conhecimento das condições de sua necessidade. Logo, o
tica humana (prá tica económica, prática política, prá tica ideológica, prática
científica) em suas articulações próprias, fundada nas articulações específicas
-
anti humanismo teórico de Marx não suprime de maneira nenhuma a existên¬
cia histórica do humanismo. Tanto depois como antes de Marx , encontram-se
da unidade da sociedade humana. Resumindo, digamos que Marx substitui o no mundo real filosofias do homem, e hoje em dia até mesmo certos marxistas
conceito “ ideológico” e universal da “ prática” feuerbachiana por uma concep¬ sentem-se tentados a desenvolver os temas de um novo humanismo teórico.
ção concreta das diferenças específicas que permite situar cada prática parti ¬
cular nas diferenças específicas da estrutura social.
-
Mielhor ainda: o anti humanismo teórico de Marx reconhece, relacionando-o
com suas condições de existência, uma necessidade do humanismo como ideo¬
Para compreender o que Marx traz de radicalmente novo, é preciso ent ão logia, uma necessidade sob condições. O reconhecimento dessa necessidade
tomar consciência não só da novidade dos conceitos do materialismo histórico, não é puramente especulativo. É unicamente com base nela que o marxismo
mas també m da profundidade da revolu çã o teórica que eles implicam e pode fundar uma política referente às formas ideológicas existentes, sejam elas
anunciam. É com essa condição que é possível definir o estatuto do huma ¬ quais forem: religião, moral , arte, filosofia, direito - e humanismo, em primei ¬
nismo: rejeitando suas pretensões teóricas e reconhecendo sua fun ção prática ríssimo lugar. Uma (eventual ) política marxista sobre a ideologia humanista,
de ideologia. ou seja, uma atitude política a respeito do humanismo - pol ítica que pode ser
Do ponto de vista estritamente teórico, pode-se e deve-se então falar aber¬ a recusa, ou a crítica, ou o emprego, ou o apoio, ou o desenvolvimento, ou a
tamente de um anti-humanismo teórico de Marx , vendo nesse anti-humanismo renovação humanista das formas atuais da ideologia na área ético-política -,
teórico a condição de possibilidade absoluta (negativa) do conhecimento (po¬ essa política só é possível sob a condição absoluta de ser fundada na filosofia
sitivo) do próprio mundo humano e de sua transformação prática. Não se pode marxista cujo anti -humanismo teórico é condição pré via.
conhecer algo dos homens a n ã o ser com a condição absoluta de reduzir a
cinzas o mito filosófico (teórico) do homem. Todo pensamento que recorresse
então a Marx para restaurar de uma maneira ou de outra uma antropologia ou
um humanismo teóricos seria teoricamente apenas cinzas. Mas, na prática, ele
poderia edificar um monumento de ideologia pré-marxista, que pesaria sobre
a história real e arriscaria levá-la a impasses.
1 Tudo depende ent ã o do conhecimento da natureza do humanismo como
ideologia .

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POR MARX
MARXISMO E HUMANISMO

Não se trata aqui de propor uma definição aprofundada da ideologia. Basta


formas ideológicas (por exemplo, as ideologias: “ concepção científica do mun ¬

saber muito esquematicamente que uma ideologia é um sistema (com sua ló ¬


do” , “ humanismo comunista” ), mas, no estado atual da teoria marxista, toma ¬

gica e seu rigor próprios) de representações (imagens , mitos , ideias ou concei ¬


da rigorosamente, não é concebí vel que o comunismo, novo modo de produção,
tos, conforme o caso) dotado de uma existência e de um papel históricos no
que implica forças produtivas e relações de produção determinadas, possa
interior de uma sociedade dada. Sem entrar no problema das relações de uma
prescindir de uma organização social da produção e de formas ideológicas
ciência com seu passado (ideológico), digamos que a ideologia como sistema
correspondentes.
de representações se distingue da ciência pelo fato de que, nela, a função prá¬
Logo, a ideologia não é uma aberração ou uma excrescência contingente
tico-social prevalece sobre a função teórica (ou função de conhecimento).
da História: é uma estrutura essencial à vida histórica das sociedades. Ali ás,
Qual é a natureza dessa função social? Para entendê-lo, é preciso reportar-
unicamente a existência e o reconhecimento de sua necessidade podem permi ¬
-se à teoria marxista da história. Os “ sujeitos” da história são sociedades hu ¬
tir agir sobre a ideologia e transformar a ideologia em instrumento de ação
manas dadas. Elas se apresentam como totalidades, cuja unidade é constituída
refletida sobre a História.
por um tipo específico de complexidade , que põe em jogo instâncias que se
Convencionou-se dizer que a ideologia pertence à região “ consciência” .
podem muito esquematicamente, segundo Engels, reduzir a três: a economia,
Que não haja engano sobre essa denominação, que permanece contaminada
a política e a ideologia. Em toda sociedade se constata, portanto, em formas
pela problemá tica idealista anterior a Marx . Na verdade , a ideologia tem mui ¬

por vezes muito paradoxais , a existência de uma atividade económica de base,


to pouco a ver com a “ consciência” , supondo que esse termo tenha um sentido
de uma organização política, e de formas “ ideológicas” (religião, moral , filo ¬
unívoco. Ela é profundamente inconsciente , mesmo quando se apresenta (como
sofia etc.). Portanto, a ideologia faz organicamente parte, como tal , de toda
na “ filosofia” pré-marxista) numa forma refletida. A ideologia é efetivamente
totalidade social . Tudo ocorre como se as sociedades humanas não pudessem
um sistema de representações, mas essas representações não têm, no mais das
subsistir sem essas formações específicas , esses sistemas de representações (de
n ível diverso) que são as ideologias. As sociedades humanas secretam a I vezes , nada a ver com a “ consciência” ; elas são, no mais das vezes, imagens ,
eventualmente conceitos, mas é antes de tudo como estruturas que elas se
ideologia como o elemento e a própria atmosfera indispensáveis à sua respi¬
impõem à imensa maioria dos homens, sem passar por sua “ consciência” . São
ração e à sua vida históricas. Somente uma concepção ideológica do mundo
objetos culturais percebidos-aceitos-suportados , que atuam funcionalmente
pôde imaginar sociedades sem ideologias e admitir a ideia utópica de um mun ¬
sobre os homens por um processo que lhes escapa. Os homens “ vivem” sua
do onde a ideologia (e não alguma de suas formas históricas) desapareceria
ideologia como o cartesiano “ via” ou não via - se não estava olhando para
sem deixar vestígios , para ser substitu ída pela ciência. Essa utopia está, por
ela - a Lua a duzentos passos: de maneira nenhuma como uma forma de cons ¬

exemplo, no princípio da ideia de que a moral - que é, em sua essência, ideo ¬


ciência, mas como um objeto do seu “ mundo ” - como seu próprio “ mundo” .
logia - poderia ser substituída pela ciência ou tomar- se científica de uma pon-
O que se quer dizer, todavia , quando se diz que a ideologia diz respeito à
ta a outra; ou a religião dissipada pela ciência, que tomaria de algum modo seu
“ consciência” dos homens? Primeiro, que se distingue a ideologia das outras
lugar; que a arte poderia se confundir com o conhecimento ou se tornar “ vida
instâncias sociais, mas também que os homens vivem suas ações, comumente
cotidiana” etc.
atribu ídas pela tradi ção clássica à liberdade e à “ consciência” , na ideologia ,
E para não evitar a questão mais candente, o materialismo histó rico não
mediante e pela ideologia -, em suma, que a relação “ vivida” dos homens com
pode conceber que mesmo uma sociedade comunista possa prescindir de ideo ¬
o mundo, inclusive com a História (na ação ou inação política), passa pela
logia , quer se trate de moral , quer de arte ou de “ representação de mundo” .
ideologia, ou melhor, é a pró pria ideologia. É nesse sentido que Marx dizia
Pode-se decerto prever aí modificações importantes nas formas ideológicas e
que é na ideologia (como lugar das lutas pol í ticas) que os homens tomam
suas relações, até mesmo o desaparecimento de certas formas existentes ou a
consciência de seu lugar no mundo e na história; é no interior dessa incons¬
transferência de sua função para formas vizinhas; pode- se também (com base
ciência ideológica que os homens conseguem modificar suas relações “ vividas”
nas premissas da experiência já adquirida) prever o desenvolvimento de novas

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POR MARX MARXISMO E HUMANISMO

com o mundo e adquirir essa nova forma de inconsciência específica que se consciência jurídica e moral, e as condições jurídicas e morais do liberalismo
chama “ consciência” . económico) e sobre os outros (seus explorados e futuros explorados: os “ tra¬
A ideologia se refere, portanto, à relação vivida dos homens com seu mun ¬ balhadores livres” ) a fim de assumir, preencher e suportar seu papel histórico
do. Essa relação, que não se mostra “ consciente” senão sob a condição de ser de classe dominante. Na ideologia da Uberdade , a burguesia vive assim exata ¬
inconsciente , parece, da mesma maneira, não ser simples senão sob a condição mente sua relação com suas condições de existência; ou seja, sua relação real
de ser complexa, de não ser uma relação simples, mas uma relação de relações, (o direito da economia capitalista liberal ), mas investida por uma relação ima ¬
uma relação de segundo grau. Na ideologia, os homens exprimem, com efeito, ginária ( todos os homens são livres, inclusive os trabalhadores livres). Sua
não suas relações com suas condições de existência, mas a maneira pela qual ideologia consiste nesse jogo de palavras sobre a liberdade , que revela tanto
vivem sua relação com suas condições de existência, o que supõe simultanea ¬ a vontade burguesa de mistificar seus explorados (“ livres” !) para mantê-los sob
mente relação real e relação “ vivida” , “ imaginária” . A ideologia é, ent ã o, a controle, pela chantagem da liberdade, quanto a necessidade da burguesia de
expressão da relação dos homens com seu “ mundo” , ou seja, a unidade (sobre- viver sua própria dominação de classe como a liberdade de seus próprios explo¬
determinada) de sua relação real e de sua relação imaginá ria com suas condi¬ rados. Assim como um povo que explora outro não poderia ser livre, igualmen ¬
ções de existência reais. Na ideologia, a relação real está inevitavelmente in ¬ te uma classe que se serve de uma ideologia está, també m, submetida a ela.
vestida na relação imagin á ria: rela çã o que mais exprime uma vontade Quando se fala da função de classe de uma ideologia, é preciso, portanto,
(conservadora, conformista, reformista ou revolucion ária ), até mesmo uma compreender que a ideologia dominante é efetivamente a ideologia da classe
esperança ou uma nostalgia, do que descreve uma realidade. dominante, e que ela lhe serve não só para dominar a classe explorada, mas
É nessa sobredeterminação do real pelo imaginário e do imaginário pelo também para se constituir ela mesma como classe dominante , fazendo-a acei ¬
real que a ideologia é, em seu princípio, ativa, que ela reforça ou modifica a re¬ tar como real e justificada sua relação vivida com o mundo.
lação dos homens com suas condições de existência, nessa relação ela mesma Mas é preciso ir além e perguntar-se o que acontece à ideologia numa so¬
imaginária. Decorre daí que essa ação jamais pode ser puramente instrumental: ciedade onde as classes desapareceram. O que acaba de ser enunciado permi ¬
os homens que se serviriam de uma ideologia como de um puro meio de ação, te uma resposta. Se toda a função social da ideologia se resumisse ao cinismo
de uma ferramenta, encontram-se presos nela, tomados por ela no momento de um mito (como as “ belas mentiras” de Platão ou as técnicas da publicidade
mesmo em que se servem dela, e acreditam ser seus senhores incontestes. moderna), que a classe dominante fabricaria e manipularia de fora, para enga ¬
Isso é perfeitamente claro no caso de uma sociedade de classes. A ideologia nar aqueles que explora, a ideologia desapareceria com as classes. Mas, como
dominante é então a ideologia da classe dominante. Mas a classe dominante vimos que, mesmo no caso de uma sociedade de classes, a ideologia est á ativa
não mantém com a ideologia dominante, que é a sua ideologia, uma relação sobre a própria classe dominante e contribui para modelá-la, modificar suas
exterior e l ú cida de utilidade ou de astúcia puras. Quando a “ classe ascenden ¬ atitudes para adaptá-la às suas condições reais de existência (exemplo: a liber¬
te” , burguesa, desenvolve, no decurso do século XVIII, uma ideologia huma¬ dade jurídica), está claro que a ideologia ( como sistema de representação de
nista da igualdade, da liberdade e da razão, ela d á à sua própria reivindicação massa ) é indispensável a toda sociedade, para formar os homens, transformá-
a forma da universalidade, como se assim ela quisesse alistar do seu lado, -
-los e colocá los em situação de responder às exigências de suas condições de
formando-os para esse fim, os próprios homens que ela não libertará senão para existência. Se a história é, também numa sociedade socialista, como dizia Marx,
os explorar. Aí está o mito rousseauniano da origem da desigualdade: os ricos uma perpétua transformação das condições de existê ncia dos homens, estes
fazendo aos pobres o “ discurso mais refletido” já concebido, para convencê-los devem incessantemente ser transformados para se adaptar a essas condições;
a viver sua servid ão como sua liberdade. Na verdade, a burguesia deve crer no se essa “ adaptação” não pode ser deixada à espontaneidade, mas deve cons ¬
seu mito, antes de convencer dele os outros, e não só para os convencer, pois tantemente ser assumida, dominada, controlada, é na ideologia que essa exi ¬
o que ela vive em sua ideologia é essa relação imaginária com suas condições gência se exprime, essa distâ ncia se mede, que essa contradição é vivida, e que
de existência reais, a qual lhe permite simultaneamente agir sobre si (dar-se sua resolu ção é “ ativada” . É na ideologiá que a sociedade sem classes vive a

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inadequação-adequação de sua relação com o mundo; nela e por ela que trans¬ essê ncia do homem, recobre um juí zo de valor dobrado , que reclama o par
forma a “ consciência” dos homens, ou seja, sua atitude e seu comportamento, humano-inumano; e escreve: “ [...] o ‘inumano’ tanto quanto o ‘humano’ é um
para colocá-los no nível de suas tarefas e de suas condições de existência. produto das condições atuais; é seu lado negativo” . O par humano-inumano é
Numa sociedade de classes, a ideologia é o intermedi ário pelo qual, e o o princípio oculto de todo humanismo, que não é então senão a maneira de
elemento no qual, a relação dos homens com suas condições de existência se viver-suportar-resolver essa contradição. O humanismo burguês colocava o
resolve em benefício da classe dominante. Numa sociedade sem classes, a homem no princípio de toda a teoria. Essa essência luminosa do homem era o
ideologia é o intermediário pelo qual, e o elemento no qual, a relação dos lado visível de um inumano sombrio. O conteú do da essência humana, essa
homens com suas condições de existência é vivida em benef ício de todos os essência aparentemente absoluta, indicava nessa parte sombria seu nascimen ¬
homens. to revoltado. O homem liberdade-razão denunciava o homem egoísta e dilace ¬
rado da sociedade capitalista. Nas duas formas desse par inumano-humano,
tanto a burguesia do século XVIII, na forma “ liberal-racional” , quanto os inte
¬

V lectuais alemães radicais de esquerda, na forma “ comunitária” ou “ comunista” ,


viviam suas relações com suas condições de existência como uma recusa, uma
Estamos preparados para voltar ao tema do humanismo socialista e prestar reivindicação e um programa.
contas da disparidade teórica que constatamos entre um termo científico (so¬ Qual é a situação do humanismo socialista atual ? Também ele é recusa e
cialismo) e um termo ideológico ( humanismo). denú ncia: recusa de todas as discriminações humanas, sejam elas raciais, po ¬

Em suas relações com as formas existentes do humanismo burguês ou cris ¬ líticas, religiosas ou outras. É recusa de toda exploração económica e servid ão
tão da pessoa , o humanismo socialista da pessoa se apresenta como ideologia política. É recusa da guerra. Essa recusa não é somente uma orgulhosa procla¬
justamente no jogo de palavras que autoriza esse encontro. Longe de mim o mação de vitória, uma exortação e um exemplo dirigidos ao exterior, a todos
pensamento de que se possa tratar do encontro de um cinismo e de uma inge¬ os homens que suportam o Imperialismo, sua exploração, sua miséria, sua
nuidade. O jogo de palavras é sempre, no caso, o ind ício de uma realidade servidão, suas discriminações e suas guerras; ela é também e antes de tudo
histórica, e ao mesmo tempo de um equívoco vivido, e a expressão da vontade voltada para dentro: a própria Uni ão Soviética. No humanismo socialista da
de ultrapassá-la. Quando os marxistas enfatizam, em suas relações com o res ¬ pessoa, a União Soviética certifica, por sua conta, a superação do período de
to do mundo, um humanismo socialista da pessoa, manifestam muito simples¬ ditadura do proletariado, mas também rejeita e condena seus “ abusos” , as for¬
mente sua vontade de vencer a distância que os separa de seus aliados possíveis, mas aberrantes e “ criminosas” que ela assumiu no período do “ culto da perso¬
e antecipam simplesmente o movimento, confiando à história futura o cuidado nalidade” . O humanismo socialista diz respeito, em seu uso interno, à realida¬

de preencher as antigas palavras com um conteúdo novo. de histórica da superação da ditadura do proletariado e das formas “ abusivas”
É esse conteúdo que importa. Pois, mais uma vez, os temas do humanismo que ele adotou na URSS. Ele diz respeito a uma realidade “ dupla” : não só uma
marxista não são, em primeiro lugar, temas para uso dos outros. Os marxistas realidade ultrapassada pela necessidade racional do desenvolvimento das for¬
que os desenvolvem fazem-no necessariamente para eles mesmos antes de ças produtivas e das relações de produção socialistas (a ditadura do proletaria¬
fazê-lo para os outros. Ora, nós sabemos no que são baseados esses desenvol¬ do), mas ainda uma realidade que não se deveria ter tido de ultrapassar, essa
vimentos: nas condições novas existentes na União Soviética, no fim da dita¬ nova forma “ de existência não racional da razão” , essa parte de “ desrazão” e
dura do proletariado e na passagem ao comunismo. de “ inumano” histórica que o passado da URSS carrega em si: o terror, a re¬
É exatamente aqui que tudo se decide. E eis como eu colocaria a questão. pressão e o dogmatismo - justamente o que ainda não se acabou de ultrapassar,
A que corresponde, na União Soviética, o desenvolvimento manifesto dos temas em seus efeitos ou seus danos.
do humanismo da pessoa (socialista)? N \4 ideologia alemã, falando da ideia Mas, por essa vontade, passamos da sombra à luz, do inumano ao humano.
do homem e do humanismo, Marx nota que a ideia de natureza humana, ou de O comunismo pelo qual envereda a Uniã o Soviética é um mundo sem ex-

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ploração econ ómica, sem violência, sem discriminação, um mundo que abre esses problemas são ocasionalmente, se não com frequência, enfrentados teo¬
perante os soviéticos o espaço infinito do progresso, da ciência, da cultura, do ricamente por meio de conceitos que pertencem ao per íodo de juventude de
-
pão e da liberdade, do livre desenvolvimento um mundo que pode ser sem Marx, à sua filosofia do homem: os conceitos de alienação, de cisão, de feti-
sombras nem dramas. Por que, então, esse acento tão deliberadamente posto chismo, de homem total etc. No entanto, considerados em si mesmos, esses
no homem? Para que os homens soviéticos precisam assim de uma ideia do problemas são, no fundo, problemas que, longe de requerer uma “ filosofia do
homem, ou seja, de uma ideia de si mesmos que os ajude a viver sua historial homem” , dizem respeito ao ajuste das novas formas de organização da vida
É dif ícil não estabelecer aqui uma relação entre, por um lado, a necessidade económica, da vida política e da vida ideológica (incluindo-se aí as novas
de preparar e realizar uma mutação histórica importante (a passagem ao formas do desenvolvimento individual) dos países socialistas em sua fase de
comunismo, fim da ditadura do proletariado, desaparecimento do aparelho de desaparecimento ou de superação da ditadura do proletariado. Como explicar
Estado que supõe a criação de novas formas de organização políticas, econó¬ então que os problemas sejam, por certos ideólogos, colocados em função dos
micas, culturais, correspondentes a essa passagem) e, por outro, as condições conceitos de uma filosofia do homem, em vez de serem colocados aberta, níti¬
históricas nas quais essa passagem se deve efetuar. Ora, é evidente que essas da e rigorosamente nos termos económicos, políticos e ideol ógicos etc., da
condições trazem também a marca própria do passado da URSS e de suas difi¬ teoria marxista? Por que tantos filósofos marxistas parecem sentir a necessi¬
culdades - não só a marca das dificuldades devidas ao período do “ culto da dade de recorrer ao conceito ideológico pré-marxista de alienação para pre¬
personalidade” , mas também daquelas mais distantes próprias da “ construção tensamente pensar e “ resolver” esses problemas históricos concretos?
do socialismo num ú nico país” ; e, ademais, num pa ís “ atrasado” económica e
culturalmente em sua origem. Entre essas “ condições” , é preciso mencionar Não se constataria a tentação desse recurso ideológico se ele não fosse, à
em primeiro lugar as condições “ teóricas” herdadas desse passado. sua maneira, o índice de uma necessidade, que não pode todavia abrigar-se sob
É essa inadequação entre as tarefas históricas e suas condições que pode a proteção de outras formas, bem fundamentadas, de necessidade. Está fora de
explicar um recurso a essa ideologia. De fato, os temas do humanismo socialista d ú vida que os comunistas têm boas razões para opor a realidade económica,
designam a existência de problemas reais: problemas históricos, económicos, social, política e cultural do socialismo à “ inumanidade” do imperialismo em
políticos e ideológicos novos que o período stalinista recobrira de sombra, mas geral; que esse contraste faz parte do confronto e da luta do socialismo e do
que ele produziu, entretanto, ao produzir o socialismo: problemas das formas imperialismo. Mas poderia ser igualmente perigoso usar sem discriminação
de organização económicas, políticas e culturais correspondentes ao grau de nem reservas - como se fosse um conceito teórico - um conceito ideológico
desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas do socialismo; problemas como o humanismo, carregado, inevitavelmente, de associações do inconsciente
das novas formas de desenvolvimento individual , num novo período da história, ideológico, e que coincide demasiado facilmente com temas de inspira ção
em que o Estado não se encarrega mais, pela coação , nem da direção, nem do pequeno-burguesa (sabe-se que a pequena burguesia e sua ideologia, à qual
controle do destino de cada um, em que todo homem tem doravante objetiva¬ Lenin predizia um belo futuro, ainda não foram enterradas pela História).
mente a escolha , ou seja, a difícil tarefa de se tomar por si mesmo o que ele é. Aqui tocamos numa razão mais profunda e, sem dú vida, difícil de enunciar.
Os temas do humanismo socialista (livre desenvolvimento do indivíduo, res¬ Esse recurso à ideologia pode também, dentro de certos limites, ser conside ¬
peito da legalidade socialista, dignidade da pessoa etc.) são a maneira pela qual rado, efetivamente, como o substituto de um recurso à teoria. Encontraríamos
os soviéticos e outros socialistas vivem suas relações com esses problemas, ou aqui as condições teóricas atuais legadas ao marxismo pelo seu passado - não
seja, com as condições nas quais eles se colocam. É impressionante constatar só o dogmatismo do per íodo stalinista, mas também, vinda de muito longe, a
que, conforme a necessidade de seu desenvolvimento, na maioria das demo¬ herança das interpretações oportunistas desastrosas da Segunda Internacional,
cracias socialistas como na União Soviética, os problemas da política e da que Lenin combateu durante sua vida, mas que também não foram enterradas
moral passam ao primeiro plano e que os partidos ocidentais são também as¬ definitivamente pela história. Essas condições obstru íram o desenvolvimento
sombrados por esses problemas. Ora, n ão é menos impressionante ver que que teria sido indispensável à teoria marxista para lhe fornecer justamente os

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POR MARX MARXISMO E HUMANISMO

conceitos requeridos pelos problemas novos, conceitos que lhe permitiriam insuficiente. Insuficiente, mas latente e possível. Tal seria o papel dessa tenta ¬

hoje colocar esses problemas em termos científicos, e não ideológicos; que lhe ção de recurso à ideologia: preencher essa ausência, esse atraso, essa distância,
permitiriam chamar as coisas pelo nome, ou seja, pelos conceitos marxistas sem a reconhecer abertamente, fazendo, como dizia Engels, de sua necessida¬
apropriados, em vez de designá-las, como acontece demasiadas vezes, por de e de sua impaciência um argumento teórico, e tomando a necessidade de
conceitos ideológicos (alienação) ou sem estatuto definido. uma teoria pela própria teoria. O humanismo filosófico pelo qual corremos o
É lamentável constatar, por exemplo, que o conceito pelo qual os comunistas risco de ser ameaçados, e que se abriga debaixo das realizações sem preceden ¬

designam um fen ô meno histórico importante da hist ória da URSS e do te do próprio socialismo, seria esse complemento destinado a dar a certos
movimento operário, o de “ culto da personalidade” , seja, se tomado como um ideólogos marxistas, na carência de teoria, o sentimento da teoria que lhes
conceito teórico, um conceito “ inencontrá vel ” , inclassificá vel , na teoria falta: um sentimento que não pode aspirar ao que Marx nos deu de mais pre¬
marxista. Ele pode efetivamente descrever e condenar um estilo de cioso no mundo: a possibilidade de um conhecimento científico.
comportamento, e, por essa razão, possuir um valor duplamente prático, mas, Eis porque, se o humanismo socialista est á na ordem do dia, as boas razões
que eu saiba, Marx jamais considerou que um estilo de comportamento pol í¬ dessa ideologia n ão podem, em nenhum caso, servir de garantia para as más
tico pudesse ser diretamente assimilado a uma categoria histórica, ou seja, a sem nos arrastar para a confusão entre a ideologia e a teoria científica.
um conceito da teoria do materialismo histórico; pois se ele designa uma rea ¬ O anti-humanismo filosófico de Marx permite o entendimento da necessi¬
lidade, não é seu conceito. No entanto, tudo aquilo que é dito do “ culto da dade das ideologias existentes, inclusive do humanismo. Mas permite também,
personalidade” diz respeito precisamente ao domínio da superestrutura, por ¬ ao mesmo tempo, pois é uma teoria crítica e revolucionária, o entendimento
tanto, da organização do Estado e das ideologias; diz respeito, ademais, em da tática a adotar para com elas: apoiá-las, ou transformá-las, ou combatê-las.
geral, apenas a esse domínio, o qual, segundo a teoria marxista, como sabemos, E os marxistas sabem que não é possível nenhuma tática que não se apoie numa
possui uma “ autonomia relativa” (o que explica de maneira muito simples, em estratégia - e nenhuma estratégia que não se apoie na teoria.
teoria, que a infraestrutura socialista tenha podido, no essencial, desenvolver-
-se sem danos durante aquele período de erros que afetaram a superestrutura ). Outubro de 1963
Por que os conceitos marxistas existentes, conhecidos e reconhecidos, não são
evocados para pensar e situar esse fenômeno, descrito, na realidade, como Notas
estilo de comportamento e relacionado à “ psicologia” de um homem, ou seja,
simplesmente descrito , mas não pensado? Por que, se a “ psicologia” de um 1 Entendemos aqui “ humanismo de ciasse” no sentido em que Lenin dizia da revolução socia ¬
homem pôde assumir esse papel histórico, não colocar em termos marxistas a lista de outubro que ela dera o poder aos trabalhadores, operários e camponeses pobres, e que
ela assegurava , por conta deles, condições de vida, de ação e de desenvolvimento que eles
questão das condições de possibilidade históricas dessa aparente promoção da nunca tinham conhecido antes: democracia para os trabalhadores, ditadura sobre os opresso¬
“ psicologia” à dignidade e à dimensão de um fato histórico? O marxismo res. Não entendemos “ humanismo de classe” no sentido, retomado das obras de juventude de
conté m, em seus princípios, os elementos por meio dos quais colocar esse Marx, em que o proletariado representaria , em sua “ alienação” , a própria essência humana,
cuja “ realização” a revolução deveria assegurar: essa concepção “ religiosa” do proletariado
problema em termos de teoria; portanto, por meio dos quais o elucidar e ajudar (“ classe universal” porque “ perda do homem” em “ revolta contra sua própria perda” ) foi re¬
a resolvê-lo. tomada pelo jovem Luk ács em Geschichte und Klassenbewusstsein.
Não evoco por acaso o duplo exemplo dos conceitos de alienação e de 2 Rheinische Zeitung : “ A liberdade da imprensa” (maio de 1842).
3 Carta a Ruge, set. de 1843 - admirável fórmula que é a chave da filosofia da juventude de Marx.
“ culto da personalidade” . Pois os conceitos do humanismo socialista (em par¬
4 Rheinische Zeitung : sobre o artigo do n. 179 da Kõlnische Zeitung : 14 de julho de 1842.
ticular o problema do direito e da pessoa) têm também eles por objeto proble ¬ 5 Rheinische Zeitung : sobre o artigo do n . 179 da Kõlnische Zeitung : 14 de julho de 1842.
mas provenientes do domínio da superestrutura: organização do Estado, vida 6 Esse encontro entre Feuerbach e a crise teórica na qual a história lançara os jovens radicais
política, moral, ideologias etc. E não se pode deixar de pensar que o recurso à alemães explica o entusiasmo deles pelo autor das Teses provisórias..., d' A essência do cris¬
tianismo e dos Princí pios da filosofia do futuro. Feuerbach representa, com efeito, a solução
ideologia é igualmente aí o caminho mais rápido, o substituto de uma teoria teórica para a crise teórica dos jovens intelectuais. Em seu humanismo da alienação, ele lhes

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POR MARX

dá efetivamente os conceitos teóricos que lhes permitem pensar a alienação da essência


humana como momento indispensável da realização de tal essência, a desrazão (a realidade
irracional do Estado) como momento necessário da realização da razão (a ideia do Estado).
Ele lhes permite, assim, pensar o que de outra forma eles teriam sofrido como a
irraciona¬
lidade em si: o vínculo necessário entre a razão e a desrazão. Evidentemente, essa relação
permanece presa numa antropologia filosófica, que a funda, com esta reserva teórica: o rema-
nejamento do conceito de homem, indispensável para pensar a relação histórica da raz ã
o e da
desrazão históricas. O homem deixa de ser definido pela razão e pela liberdade: ele se torna,
em seu princípio mesmo “ comunitário” , intersubjetividade concreta, amor, fraternidade,
genérico” .
“ ser
7 Toda a teoria, em voga, da “ reificação” repousa sobre a projeção da teoria da
alienação dos
textos de juventude, e particularmente dos Manuscritos de 1844, sobre a teoria do “ fetichismo NOTA COMPLEMENTAR
d' 0 capital . Nos Manuscritos de 1844, a objetivação da essência humana é afirmada

como REAL ”
condição prévia indispensável à reapropriação da essência humana pelo homem. Durante
todo
SOBRE O “ HUMANISMO
o processo da objetivação, o homem só existe na forma de uma objetividade na qual ele
encontra sua própria essência sob a aparência de uma essência alheia, não humana. Essa
“ objetivação” não é chamada “ reificação” , embora seja chamada inumana . A inumanidade
não é representada pelo modelo por excelência da “ coisa” , mas ora peio modelo da animali¬
-
dade (ou mesmo da pré animalidade: esse homem que já nem mesmo tem com a natureza
simples relações animais ), ora pelo modelo da onipotência e da fascinação, da
as
transcendê ncia
(Deus, o Estado) e do dinheiro, que, por sua vez, é “ coisa” . N’O capital, a ú
nica relação social
que se apresenta na forma de uma coisa (esse pedaço de metal) é o dinheiro Mas a concepçã
. Algumas palavras sobre a expressão “ humanismo real ” .1
o
do dinheiro como coisa (ou seja, a confusão do valor com o valor de uso no dinheiro) ã
no A diferen ça específica está no adjetivo: real . O humanismo-real se define
corresponde à realidade dessa “ coisa” : não é com a brutalidade de uma simples “ coisa” que
se choca o homem que se encontra em relação direta com o dinheiro: mas com um poder (
ou semanticamente por sua oposi çã o ao humanismo n ã o real , ao humanismo
com sua falta ) sobre as coisas e os homens. Uma ideologia da reificação que vê em toda par¬
ideal(ista), abstrato, especulativo etc. Esse humanismo de referência é simul ¬
te “ coisas” nas relações humanas confunde na categoria de “ coisa” (que é a categoria mais
alheia a Marx) todas as relações sociais pensadas segundo o modelo de uma ideologia taneamente invocado como referência e recusado por sua abstração, sua n ão
da
moeda-coisa. realidade etc., pelo novo humanismo-real. Logo, o antigo humanismo é julgado
pelo novo como um humanismo abstrato e ilusório. Sua ilusã o é visar um
objeto não real, é ter por conteúdo um objeto que não é o objeto real.
i O humanismo real se apresenta como o humanismo que tem por conteú do
não um objeto abstrato, especulativo, mas um objeto real .
No entanto, essa definição permanece negativa: ela basta para exprimir a
recusa de um determinado conteúdo; não dá seu novo conteúdo em pessoa. O
conte údo visado pelo humanismo-real n ão est á no conceito de humanismo ou
de “ real” como tais, mas fora desses conceitos. O adjetivo real é indicativo: ele
indica que, se se quiser encontrar o conteú do desse novo humanismo, é preciso
procurá-lo na realidade: na sociedade, no Estado etc. O conceito de huma¬
nismo-real vincula-se ent ão ao conceito de humanismo como sua referência
teórica, mas opõe-se a ele ao recusar seu objeto abstrato - e ao dar-se um ob-
jeto concreto, real . A palavra real desempenha um duplo papel . Faz aparecer
no antigo humanismo seu idealismo e sua abstração (função negativa do con ¬

ceito de realidade) ; simultaneamente, ela designa a realidade exterior (exterior

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POR MARX NOTA COMPLEMENTAR SOBRE O “ HUMANISMO REAL’’

ao antigo humanismo), onde o novo humanismo encontrará conteúdo (função conjunto das relações sociais, devemos efetuar um deslocamento radical , não
positiva do conceito de realidade). Contudo, essa fun ção positiva da palavra só um deslocamento de lugar (do abstrato ao concreto), mas também um des¬
“ real” não é uma função positiva de conhecimento , ela é uma função positiva locamento conceituai (mudamos os conceitos de base!). Os conceitos com os
de indicação prática. quais Marx pensa a realidade, para a qual apontava o humanismo- real , n ão
Qual é efetivamente essa “ realidade” que deve transformar o antigo huma ¬ fazem mais intervir uma ú nica vez como conceitos teóricos os conceitos de
nismo em humanismo-real? É a sociedade. A sexta tese sobre Feuerbach diz homem ou de humanismo, mas outros conceitos completamente novos - os
mesmo que o “ homem” não abstrato é o “ conjunto das relações sociais” . Ora, de modo de produção, de forças produtivas, de relações de produção, de su ¬

tomando essa expressão ao pé da letra, como uma definição adequada, ela não perestrutura , de ideologia etc. Eis o paradoxo: o conceito prá tico que nos in ¬
quer dizer nada. Que se tente simplesmente dar uma explicação literal dela dicava o lugar do deslocamento foi exaurido no próprio deslocamento, o con ¬
para ver que não se conseguirá, a menos que se recorra a uma perífrase deste ceito que nos indicava o lugar da investigação está doravante ausente da própria
gê nero: “ se se quiser saber qual é a realidade, não aquela que corresponde investigação.
adequadamente ao conceito de homem ou de humanismo, mas aquela que está Está aí um fenômeno característico de tais transições-cortes que constituem
indiretamente em causa nesses conceitos, ela não é uma essência abstrata, mas o advento de uma nova problemá tica. Em certos momentos da história das
o conjunto das relações sociais” . Essa perífrase faz imediatamente aparecer ideias, vemos aparecer conceitos práticos, cuja característica é serem interior¬
uma inadequação entre o conceito homem e sua definição: o conjunto das mente desequilibrados. Por um lado, eles pertencem ao antigo universo ideo ¬

relações sociais. Entre esses dois termos (homem/conjunto das relações sociais) lógico que lhes serve de referência “ teórica” ( humanismo); mas, pelo outro,
há sem dú vida uma relação, mas ela não é legível na definição, não é uma re¬ referem-se a um novo domínio, indicando o deslocamento a efetuar para l á
lação de definição, não é uma relação de conhecimento. chegar. Pelo seu primeiro lado, eles conservam um sentido “ teórico” (o do seu
No entanto, essa inadequação tem um sentido, essa relação tem um sentido: universo de referência) ; pelo seu segundo lado, eles tê m apenas um sentido de
um sentido prático. Tal inadequação manifesta designa uma ação a realizar, um sinal prático , indicando uma direção e um lugar, mas sem dar o seu conceito
deslocamento a efetuar. Ela significa que, para encontrar a realidade à qual se adequado. Permanecemos ainda no dom ínio da ideologia anterior: aproxima ¬
faz alusão na busca pelo homem real e não mais pelo homem abstrato, é pre¬ mo- nos de sua fronteira e uma placa nos assinala um além, uma direção e um
ciso passar à sociedade e dedicar-se à análise do conjunto das relações sociais. lugar. “ Atravessem a fronteira e avancem na direção sociedade, aí encontrarão
-
Na expressão humanismo real, eu diria que o conceito “ real” é um conceito o real.” A placa ainda está fincada no domínio ideológico, seu texto está redi¬
prático, o equivalente de um sinal , de uma placa de sinalização, que “ indica” gido em sua língua, mesmo que empregue palavras “ novas” , a própria recusa
qual movimento se deve efetuar, e em que direção, até onde é preciso se deslo¬ da ideologia está escrita em língua ideol ógica, como se vê de maneira t ão
car para se achar não mais no céu da abstração, mas na terra real. “ Por aqui, impressionante em Feuerbach: o “ concreto” , o “ real” , eis os nomes que têm na
real!” Seguimos o guia e desembocamos na sociedade, nas relações sociais, e ideologia a própria oposição à ideologia.
nas condições reais de possibilidade destas. Você pode permanecer indefinidamente na linha fronteiriça, sem parar de
Mas é então que o escandaloso paradoxo eclode: uma vez realmente efe¬ repetir: concreto! Concreto! Real! Real! É o que disse Feuerbach , que, ele
tuado esse deslocamento , uma vez realizada a análise científica desse objeto também, falava da sociedade e do Estado e não parava de falar do homem real,
real, descobrimos que o conhecimento dos homens concretos (reais) - ou seja, do homem com necessidades, do homem concreto que n ã o é senão o conjunto
do conjunto das relações sociais - só é possível se forem totalmente dispen ¬ de suas necessidades humanas desenvolvidas, da política e da indústria. Ele
sados os serviços teóricos do conceito de homem (no sentido em que ele exis¬ ficava nas palavras, que lhe remetiam, em seu próprio concreto, a imagem do
tia, em sua própria pretensão teórica antes desse deslocamento). Esse conceito homem cuja realização ele invocava (também Feuerbach dizia que o homem
efetivamente nos parece inutilizável do ponto de vista científico, não porque é real é a sociedade, numa definição então adequada a seu conceito, visto que a
abstrato, mas porque não é científico. Para pensar a realidade da sociedade, do

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POR MARX NOTA COMPLEMENTAR SOBRE O “ HUMANISMO REAL '

sociedade era, para ele, em cada um de seus momentos históricos, apenas a face do mundo e sua história. Não devemos, não podemos um instante sequer
manifestação progressiva da essência humana ). renunciar ao benef ício dessa insubstitu ível aquisição, ao benef ício de seus
Você pode ao contrário atravessar de uma vez por todas a fronteira, penetrar recursos teóricos que ultrapassam em riqueza e em potencial o próprio uso que
no domínio da realidade e se colocar “ seriamente a estudá-la” , como diz Marx deles foi feito até aqui. Não devemos esquecer que o entendimento do que se
n' A ideologia alemã. O sinal, então, desempenhou seu papel prático. Ele ficou passa hoje no mundo e o vaivém político e ideológico indispensável para am ¬
no antigo domínio, no domínio abandonado pelo próprio fato do deslocamento. pliar e reforçar as bases do socialismo são possíveis somente se não voltarmos,
Eis que então sozinho diante de seu objeto real, obrigado a forjar os conceitos por nossa conta, aquém do que Marx nos propiciou, até essa fronteira ainda
requeridos e adequados para pensá-lo, obrigado a constatar que os antigos incerta entre a ideologia e a ciência. Podemos ajudar todos aqueles que dela se
conceitos, em particular o conceito de homem-real ou de humanismo real, não aproximam a passar essa fronteira: mas com a condição de a termos nós mes¬
lhe permitem pensar a realidade dos homens , e que para alcançar esse imedia¬ mos transposto e de termos inscrito em nossos conceitos o resultado irreversí¬
to que justamente não é imediato, é preciso, como sempre em matéria de co ¬
vel dessa paisagem.
nhecimento, um longo desvio. Você abandona o antigo domínio, os antigos Para nós, o “ real” não é uma palavra de ordem teórica: o real é o objeto
conceitos. Está num novo domínio, do qual novos conceitos lhe dão o conhe¬ real, que existe, independentemente de seu conhecimento, mas que n ão pode
cimento. Sinal de que se mudou de lugar, de problemática, e de que uma nova ser definido sen ã o por seu conhecimento. Nessa segunda relação, teórica, o
aventura começa: a de uma ciência em desenvolvimento. real forma uma unidade com os meios de seu conhecimento; o real é sua estru ¬
Estamos então condenados a repetir a mesma experiência? O humanismo- tura conhecida ou a conhecer, é o objeto mesmo da teoria marxista, esse objeto
-real pode ser hoje a palavra de ordem de uma recusa e de um programa, no demarcado pelas grandes descobertas teóricas de Marx e de Lenin, esse campo
melhor dos casos um sinal prático , a recusa de um “ humanismo” abstrato, que teórico imenso e vivo, em constante desenvolvimento, onde doravante os acon ¬
-
existia apenas nos discursos, e não na realidade das instituições e a indicação
de um além, de uma realidade que ainda est á além , que ainda não está verda¬
tecimentos da história humana podem ser dominados pela prática dos homens,
porque estão submetidos à sua apreensão conceituai, ao seu conhecimento.
deiramente realizada , mas é esperada, o programa de uma aspiração a fazer Eu não queria dizer outra coisa mostrando que o humanismo-real ou socia ¬
passar para a vida. É demasiado claro que profundas recusas e vontades autên ¬ lista pode ser o objeto de um reconhecimento ou de um mal-entendido confor¬
ticas, que o desejo impaciente de ultrapassar obstáculos ainda não vencidos se me o estatuto que lhe designam em relaçã o à teoria; que ele pode servir de
-
traduzem à sua maneira nesse conceito de humanismo real. É evidente também
que os homens devem, em todas as épocas da história, experimentar por conta
palavra de ordem prática, ideológica , na medida mesma em que ele é exata ¬
mente adaptado à sua função, e não confundido com qualquer outra fun ção;
própria, e não é por acaso que alguns refazem o “ caminho” dos mais velhos ou que ele não pode de maneira nenhuma se arrogar os atributos de um conceito
de seus antepassados. É seguramente indispensável que os comunistas levem teórico. Queria dizer também que essa palavra de ordem não é sua própria luz,
a sério o sentido real dessa vontade, as realidades das quais esse conceito prᬠmas que ela pode no má ximo indicar em que lugar, fora dela , está a luz. Que ¬
tico é o índice. É seguramente indispensável que os comunistas façam o vaivém ria dizer que certa inflação desse conceito prático, ideológico, podia levar a
entre as formas ainda incertas, confusas e ideológicas pelas quais se exprimem teoria marxista a recair aquém de suas próprias fronteiras; e, ademais, podia
seja essa vontade, sejam experiências novas, e seus próprios conceitos teóricos; mesmo dificultar, se não impedir, a colocação correta, portanto, a solução
que eles foijem, quando tal necessidade está absolutamente provada, os novos correta dos problemas cuja existência e cuja urgência ele está encarregado, à
conceitos teóricos adequados às reviravoltas da prática de nosso tempo. j sua maneira, de designar. Para dizer as coisas simplesmente, o recurso à moral,
Mas não devemos esquecer que a fronteira que separava a ideologia da profundamente inscrito em toda ideologia humanista , pode desempenhar o
teoria científica foi transposta há cerca de 120 anos por Marx; que esse grande papel de um tratamento imagin ário dos problemas reais. Esses problemas, uma
feito e essa grande descoberta estão consignados em obras, inscritos no sistema vez conhecidos , colocam-se em termos precisos: são problemas de organização
conceituai de um conhecimento cujos efeitos transformaram pouco a pouco a das formas da vida económica, da vida política e da vida individual. Para pro-

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POR MARX

por verdadeíramente e resolver realmente esses problemas, é preciso chamá-los


pelo nome, seu nome científico. A palavra de ordem do humanismo não tem
valor teórico, mas um valor de índice prático: é preciso chegar aos problemas
concretos em si, ou seja, ao conhecimento deles, para produzir a transformação
histórica cuja necessidade Marx pensou . Devemos tomar cuidado para que
nesse processo nenhuma palavra, justificada pela sua função prática, usurpe
uma função teórica , mas que, cumprindo sua função prática, ela desapareça ao
mesmo tempo do campo da teoria.
AOS LEITORES *
Janeiro de 1965

Nota
1 O conceito de “ humanismo-real” sustenta a argumentação de um artigo de J. Semprun publi¬
cado no n.58 do periódico Clarté (ver Nouvelle Critique, n. 164, março de 1965). É um con ¬
ceito emprestado das obras de juventude de Marx.
Gostaria de apresentar brevemente ao pú blico a tradução de Por Marx , e, na
mesma ocasião, fazer, com o distanciamento no tempo, um “ balanço” do con ¬

teúdo filosófico e da significação deste pequeno livro.


' Por Marx saiu na França em 1965. Mas só o pref ácio (“ Hoje” ) data de 1965.
Todos os outros textos foram publicados anteriormente de 1960 a 1964, na
forma de artigos, em revistas do Partido Comunista Francês.1 Eles foram reu ¬
nidos tal como haviam sido escritos no seu tempo, sem nenhuma correção nem
retificação.
Para compreender e julgar estes ensaios, é preciso saber que foram conce¬
bidos, redigidos e publicados por um filósofo comunista, numa conjuntura
ideológica e teórica precisa. É necessário, pois, tomar estes textos pelo que
são. São ensaios filosóficos , as primeiras etapas de uma pesquisa de longo
fôlego, resultados provisórios que merecem evidentemente ser retificados: esta
pesquisa aborda a natureza específica dos princípios da ciência e da filosofia
fundada por Marx. No entanto, estes ensaios filosóficos não derivam de uma
pesquisa simplesmente erudita ou especulativa. São simultaneamente interven ¬

ções numa conjuntura definida.

* Este texto foi redigido por Louis Althusser em 10 de outubro de 1967, para servir de posf ácio
às numerosas edições de Por Marx em língua estrangeira. Fonte: Arquivos Althusser/IMEC
.
( N. do E. francês )

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POR MARX AOS LEITORES

1 mente à filosofia marxista recente, no interior mesmo dos partidos comunistas


soviéticos e ocidentais.
Como se pode ver no Prefácio, essa conjuntura é antes de tudo a conjuntura Se essa reação ideológica, própria antes de tudo dos intelectuais comunis¬
teórica e ideológica francesa, mais especificamente a conjuntura existente no tas, pôde, apesar de certas resistências, conhecer tal desenvolvimento, é porque
Partido Comunista Francês e na filosofia francesa. Mas além da conjuntura ela se beneficiou do apoio direto ou indireto de certas palavras de ordem polí¬
propriamente francesa, é também a conjuntura ideológica e teórica existente ticas enunciadas pelos partidos comunistas da URSS e do Ocidente. Por um
no movimento comunista internacional. lado, por exemplo, o XXII Congresso do Partido Comunista da União Soviética
Evidentemente, os ensaios que se vão ler não abordam os elementos poli¬ (PCUS) declarou que, com o desaparecimento da luta de classes, a ditadura do
ticos dessa conjuntura (pol ítica dos partidos comunistas, cisão do movimento proletariado estava “ ultrapassada” na URSS, que o Estado soviético n ão era
comunista internacional ). Eles dizem respeito a problemas ideol ógicos e teó¬ mais um Estado de classe, mas o “ Estado do povo inteiro” , e que a URSS esta¬
ricos presentes nessa conjuntura e produzidos por ela. Por alguns de seus as¬ va engajada na “ construção do comunismo” , sob a palavra de ordem “ huma¬
pectos, esses problemas são novos; em outros aspectos, remetem a debates que nista” : “ Tudo pelo Homem” .. Por outro lado, por exemplo, os partidos comu ¬
pertencem há muito tempo à história do movimento operário. nistas ocidentais prosseguiram sua política de unidade com os socialistas, os
Se forem considerados os elementos recentes de sua conjuntura, o movi¬ democratas e os católicos, sob certas palavras de ordem de ressonância similar,
mento comunista internacional vive, desde a morte de Stalin , numa conjuntu ¬ nas quais o acento era posto na “ passagem pacífica ao socialismo” , no “ huma¬
ra dominada por dois grandes acontecimentos: a crítica do “ culto da persona ¬ nismo marxista” ou “ socialista” , no “ diálogo” etc.
lidade” pelo XX Congresso, e a ruptura ocorrida entre o Partido Comunista As interpretações “ humanistas” da teoria marxista que se desenvolveram
Chinês e o Partido Comunista Soviético. nessas circunstâncias definidas representam, em vista do período anterior (o
A denuncia do “ culto da personalidade” , as condições abruptas, e as formas dos anos 1930-1956), um fenômeno novo . No entanto, elas têm numerosos
como ela ocorreu provocaram profundas repercussões não só no domínio po¬ precedentes na história do movimento operário. Marx, Engels, Lenin , para
lítico, mas também no domínio ideológico. No que se segue, considerarei so¬ citar apenas eles, lutaram incessantemente contra as interpretações ideológicas
mente as reações ideológicas dos intelectuais comunistas. de tipo idealista, humanista, que ameaçavam a teoria marxista. Basta recordar
A cr ítica do “ dogmatismo” stalinista foi geralmente “ vivida” pelos inte ¬ aqui a ruptura de Marx com o humanismo de Feuerbach, a luta de Engels con¬
lectuais comunistas como uma “ libertação” . Essa “ libertação” fez nascer uma tra Diihring, a longa batalha de Lenin contra os populistas russos etc. Todo esse
profunda reação ideológica de tend ê ncia “ liberal ” -“ moral ” que espontanea¬ passado, toda essa herança faz evidentemente parte da conjuntura teórica e
mente reencontrou os velhos temas filosóficos da “ liberdade” , do “ homem , ideológica presente do movimento comunista internacional.

da “ pessoa humana” e da “ alienação” . Essa tendência ideológica procurou seus Para voltar aos aspectos recentes dessa conjuntura, acrescentarei a obser ¬

títulos teóricos nas obras de juventude de Marx, que contêm efetivamente vação a seguir.
todos os argumentos de uma filosofia do homem , de sua alienação e de sua No texto “ Marxismo e humanismo” , que data de 1963, eu já interpretava a
libertação. Essas condições provocaram uma inversã o de situação paradoxal ..atual inflação dos temas do “ humanismo” marxista ou socialista como um (/

na filosofia marxista. As obras de juventude de Marx - que, desde a década de I fenômenolãeoíógiStK Eu não condenava de maneira nenhuma a ideologia como
1930, serviam de cavalo de batalha aos intelectuais pequeno-burgueses em sua realidade social: como diz Marx, é na ideologia que os homens “ tomam cons¬

luta contra o marxismo foram pouco a pouco, e depois maci çamente, postas
a serviço da nova “ interpretação” do marxismo que é hoje desenvolvida aber¬
ciência” de sua luta de classe e a “ levam até o fim” ; a ideologia é, na sua forma
religiosa, moral, jurídica e política etc. uma realidade social objetiva; a luta
tamente por in ú meros intelectuais comunistas, “ libertados” do dogmatismo ideológica é parte orgânica da luta de classes. Em contrapartida, eu criticava
stalinista pelo XX Congresso. O tema do “ humanismo marxista” e a interpre ¬ os efeitos teóricos da ideologia, que são sempre uma ameaça ou um entrave ao
tação “ humanista” da obra de Marx se impuseram progressiva e irresistivel¬ conhecimento científico. E assinalava que se devia interpretar a inflação dos

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POR MARX AOS LEITORES

temas do “ humanismo marxista” , e seu transbordamento sobre a teoria mar¬ como “ humanismo” , por outro. Os momentos essenciais dessa segunda inter¬
xista, como o sintoma histórico possível de uma dupla impotência e de um venção são: destaque de um “ corte epistemológico” na história do pensamen ¬
duplo perigo. Impotência para pensar a especificidade da teoria marxista, e to de Marx, diferença fundamental entre a “ problemática” ideológica das obras
perigo revisionista correlativo de confundi-la com interpretações ideológicas de juventude e a “ problemática” científica d' O capital; investigações iniciais
pré-marxistas. Impotência para resolver problemas reais { políticos e econó¬ sobre a especificidade da descoberta teórica de Marx etc.
micos no fundo) colocados pela conjuntura posterior ao XX Congresso, e pe¬ Essa segunda investigação se situa essencialmente no terreno da confron¬
rigo de mascarar esses problemas sob a “ solu ção” enganosa das fórmulas so¬ tação entre as obras de juventude de Marx e O capital.
mente ideológicas. Essas duas interpretações revelam, por trás do detalhe dos argumentos, das
análises de textos e das discussões teóricas, uma grande oposição: aquela que
separa a ciência da ideologia; mais precisamente, aquela que separa uma ciên ¬

II -
cia nova, em processo de constituição, das ideologias teóricas pré científicas
que ocupavam o “ terreno” em que ela se estabelece. Esse ponto é importante:
Foi nessa conjuntura que foram concebidos e publicados os textos aqui reuni¬ o que se enfrenta na oposição ciência/ideologias diz respeito ao “ corte” entre
dos. É preciso relacioná-los a essa conjuntura para apreciar sua natureza e sua a ciência e a ideologia teórica na qual era “ pensado” , antes da fundação da
função: são ensaios filosóficos ,que têm como objeto pesquisas teóricas e como ciência, o objeto cujo conhecimento ela fornece. Esse “ corte” deixa intacto o
objetivo intervir na conjuntura teórico-ideológica existente, para reagir contra domínio objetivo social ocupado pelas ideologias (religião, moral, ideologias
tendências perigosas. jurídicas, políticas etc.). Nesse domínio das ideologias não teóricas, há também
Muito esquematicamente, eu diria que esses textos teóricos contêm uma “ rupturas” ou “ cortes” , mas eles são políticos (efeito da prática política, dos
dupla “ intervenção” , ou , caso se prefira, eles “ intervêm” em duas frentes, para grandes acontecimentos revolucionários) e não “ epistemol ógicos” .
traçar, segundo a excelente expressão de Lenin, uma “ linha de demarcação” Essa oposição entre a ciência e a ideologia e a noção de “ corte epistemoló¬
entre a teoria marxista, por um lado, e tendências ideológicas alheias ao mar¬ gico” que serve para pensar o caráter histórico dessa oposição remetem a uma
xismo, por outro. tese que, sempre presente por trás dessas análises, não é, entretanto, desenvol ¬
A primeira intervenção tem por objeto “ traçar uma linha de demarcação” vida explicitamente: a tese de que a descoberta de Marx é uma descoberta
entre a teoria marxista e as formas de subjetivismo filosófico (e político) que científica sem precedente na história, por sua natureza e seus efeitos.
a comprometem ou a ameaçam: antes de tudo, o empirismo e suas variantes, Com efeito, em conformidade à tradição constantemente retomada pelos
clássicas ou modernas - pragmatismo, voluntarismo, historicismo etc. Os mo¬ clássicos do marxismo, podemos afirmar que Marx fundou uma nova ciência:
mentos essenciais dessa primeira intervenção são: reconhecimento da impor¬ a ciência da história das “ formações sociais” . Para ser mais preciso, eu diria
tâ ncia da teoria marxista para a luta de classe revolucionária, distinção das que Marx “ abriu” ao conhecimento científico um novo “ continente” , o da his¬
diferentes práticas, destaque da especificidade da “ prática teórica” , pesquisa tória - como Tales abrira ao conhecimento científico o “ continente” da mate¬
inicial sobre a especificidade revolucionária da teoria marxista (distinção níti¬ má tica, como Galileu abrira ao conhecimento científico o “ continente” da
da entre a dialética idealista e a dial ética materialista) etc. natureza física.
Essa primeira intervenção situa-se essencialmente no terreno da confron ¬
Eu acrescentaria que, assim como a fundação da matemática por Tales
tação entre Marx e Hegel. “ provocou” o nascimento da filosofia platónica, assim como a fundação da
A segunda intervenção tem por objeto “ traçar uma linha de demarcação” f ísica por Galileu “ provocou” o nascimento da filosofia cartesiana etc., a fun¬
entre os fundamentos teóricos verdadeiros da ciência marxista da história e da dação da ciência da história por Marx “ provocou” o nascimento de uma nova
-
filosofia marxista, por um lado, e as noções idealistas pré marxistas nas quais filosofia teórica e praticamente revolucionária: a filosofia marxista ou o mate ¬
repousam as interpretações atuais do marxismo como “ filosofia do homem” ou rialismo dialético. Que essa filosofia sem precedente esteja, do ponto de vista

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POR MARX AOS LEITORES

de sua elaboração teórica, ainda atrasada em relação à ciência marxista da A experiência mostrou-me que o silêncio sobre essas questões teve conse¬
história (ao materialismo histórico), isso se explica tanto por razões histórico- quências sobre certas “ leituras” (“ teoricistas” ) dos meus ensaios.
-políticas como também por razões teóricas: as grandes revoluções filosóficas 2. Igualmente, se insisti no caráter teoricamente revolucion ário da desco¬
são sempre precedidas e “ gestadas” pelas grandes revoluções cient
íficas, “ em berta de Marx, se indiquei que Marx fundara uma nova ciência e uma nova
ação” nelas, mas é preciso um longo trabalho teórico e uma longa matura
ção filosofia, deixei indefinida a diferença, no entanto muito importante, entre a
histórica para lhes dar uma forma explícita e adequada. Se, nos textos aqui filosofia e a ciência. Não mostrei o que, diferentemente das ciências, constitui
reunidos, o acento está colocado na filosofia marxista, é para tomar a medida a especificidade da filosofia: a relação orgânica de toda filosofia, na condição
ao mesmo tempo de sua realidade e de seu direito à existência, mas també de disciplina teórica , e no seio mesmo de suas formas de existência e suas
m
de seu atraso, e para começar a lhe dar uma forma de existência teórica um exigências teóricas ,com a política. Não indiquei a natureza dessa relação que,
pouco mais adequada à sua natureza. na filosofia marxista, não tem nada a ver com uma relação pragmática. Por¬
tanto, não mostrei claramente o que distingue, nesse sentido, a filosofia mar¬
xista das filosofias anteriores.
III A experiência mostrou -me que o semissilêncio sobre essas questões teve
consequê ncias sobre certas “ leituras” (“ positivistas” ) dos meus ensaios.
Evidentemente, esses textos estão marcados, às vezes sensivelmente, não só Penso retomar essas duas importantes questões, que estão intimamente li¬
por ignorâncias e inexatidões, mas também por silêpcios ou semissilêncios. gadas do ponto de vista teórico e prático, nos meus estudos ulteriores.
Não é somente a impossibilidade de dizer tudo ao mesmo tempo, ou as urgên¬
cias da conjuntura, que explicam todos esses silêncios e seus efeitos. De fato, Outubro de 1967
eu não estava em condições de tratar convenientemente certas questões, alguns Louis Althusser
pontos dif íceis eram obscuros para mim: o resultado foi que não levei em \
conta nos meus textos, como deveria ter feito, certos problemas e certas reali¬
dades importantes. A título de “ autocrítica” , assinalaria dois pontos particular¬ Nota
mente sensíveis.
1. Se destaquei a necessidade vital da teoria para a prática revolucioná ,
ria 1 Com exceção do artigo sobre Bertolazzi e Brecht, publicado na revista cat
ólica Esprit .
e se denunciei assim todas as formas do empirismo, não tratei o
problema da
“ uni ã o da teoria e da prá tica” que desempenha um papel muito
grande na
tradição marxista-leninista. Falei sem dú vida da uni ão da teoria e da prática
no seio da “ prática teórica” , mas não abordei a questão da união da teoria e da
prá tica no seio da prática política. Precisemos. Não examinei a forma de
existência histórica geral dessa união: a “ fusão” da teoria marxista e do mo¬
vimento operário. Não examinei as formas de existência concretas dessa “ fu ¬
são” (organizações da luta de classes-sindicatos, partidos meios e métodos de
-
direção da luta de classes por essas organizações etc.). Não precisei a função,
o lugar e o papel da teoria marxista nessas formas concretas de existê
ncia:
onde e como a teoria marxista intervé m no desenvolvimento da prá
tica po¬
lítica, onde e como a prática pol ítica intervinha no desenvolvimento
da teo¬
ria marxista.

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