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INTRODUÇÃO................................................................................................................... 1
CAPÍTULO 1
NAS TRILHAS DE UM PERCURSO INTELECTUAL.............................................17
1 – APONTAMENTOS TEÓRICOS.............................................................................18
1.1 – OS CONSTRANGIMENTOS DE CLASSE................................................18
1.2 – OS CONSTRANGIMENTO DE SEXO-GÊNERO.....................................40
2 - APONTAMENTOS METODOLÓGICOS................ .............................................50
2.1 - DA VIAGEM AO UNIVERSO DO MESMO...........................................53
2.2 - DA VIAGEM AO UNIVERSO DA ALTERIDADE.................................62
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA NOÇÃO DO GRUPO.............................74
CAPÍTULO 2
RECONSTRUÇÃO BIOGRÁFICA I: DA TRADIÇÃO A MODERNIDAD............83
INTRODUÇÃO..........................................................................................................84
CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO..................................................................................86
1 - FAMÍLIA DE ORIENTAÇÃO....................................................................................87
1.1 - PROJETO FAMILIAR..................................................................................87
1.2 - ESTILO DE VIDA........................................................................................92
1.3 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO...........................................95
1.4 - PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO......................................98
2 - FAMÍLIA DE PROCRIAÇÃO.....................................................................................99
2.1 - REVISÃO BIOGRÁFICA...........................................................................100
2.2 - PROJETO FAMILIAR................................................................................105
2.3 - ESTILO DE VIDA......................................................................................108
2.4 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO.........................................112
2.5-PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PERENTESCO......................................115
3 - SEPARAÇÃO – REDEFININDO A FAMÍLIA........................................................116
3.1 - REVISÃO BIOGRÁFICA...........................................................................116
3.2 - PROJETO FAMILIAR................................................................................125
3.3 - ESTILO DE VIDA......................................................................................130
3.4 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO.........................................133
3.5 – PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO.................................137
CAPÍTULO 3
RECONSTRUÇÃO BIOGRÁFICA II – DA MODERNIDADE À
VANGUARDA............................................................................................................... 141
INTRODUÇÃO........................................................................................................142
CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO................................................................................145
1 - FAMÍLIA DE ORIENTAÇÃO..................................................................................146
1.1 - PROJETO FAMILIAR................................................................................146
1.2 - ESTILO DE VIDA......................................................................................154
1.3 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO.........................................156
1.4 - PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO....................................157
2 - FAMÍLIA DE PROCRIAÇÃO...................................................................................158
2.1 - REVISÃO BIOGRÁFICA...........................................................................158
2.2 - PROJETO FAMILIAR................................................................................164
2.3 - ESTILO DE VIDA......................................................................................167
2.4 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO.........................................171
2.5 – PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO...................................173
CAPÍTULO 4
HONRA E TRADIÇÃO NA CONSTRUÇÃO SOCIAL DO GAÚCHO.................202
ELEMENTOS PARA UMA ANTROPOLOGIA DA HONRRA NO RS.....................211
1 - RECUPERAÇÃO DA HISTÓRIA.............................................................................220
2 - A HONRA NO MUNDO DOS GUASCAS...............................................................229
CAPÍTULO 5
CASAMENTO VERSUS SEPARAÇÃO – OS FUNDAMENTOS MORAIS E A
POLITICA SEXUAL DA FAMÍLIA...........................................................................286
HIERARQUIA E IGUALDADE NO JOGO DIALÉTICO DO
TRADICIONAL/MODERNO.........................................................................................287
1 - CASAMNETO – OS FUNDAMENTOS MORAIS DA HONRRA E SEUS
IMPASSES............................................................................................................. .........296
1.1 - CAMENTO SOB A ÉGIDE DA HIERARQUIA......................................296
1.2 - CASAMENTO SOB A ÉGIDE DO IGUALITARISMO..........................310
2 - SEPARAÇÃO – OS FUNDAMENTOS DE UMA MORAL UNIVERSAL E SEUS
IMPASSES...................................................................................................... ................323
2.1 - SEPARAÇÃO SOB O SIGNO DA HONRA.............................................325
2.2 - SEPARAÇÃO SOB O SIGNO DA INDIVIDUALIDADE.......................340
CAPÍTULO 6
CONFRONTO DE IMAGENS FEMININAS NA MATERNIDADE.......................355
MATERNIDADE EM COMFLITO: INDIVÍDUO/PESSOA........................................356
1 – “ESPOSA-MÃE” – A NATUREZA MORAL DO GÊNERO.................................360
2 - A CONSTRUÇÃO MORAL DA “ESPOSA-MÃE” – SUAS CONTRADIÇÕES E
CONFLITOS................................................................................................................ ....364
3 - MATERNIDADE: NATUREZA X CONDIÇÃO.....................................................368
3.1 - SEPARAÇÃO – A CISÃO NA CATEGORIA SOCIAL “ESPOSA-
MÃE”.............................................................................................................382
3.2 - DAS CONDIÇÕES E LIMITES NO EXERCÍCIO DA
MATERNIDADE................................................................................................388
3.3 - MÃE. INDIVÍDUO OU PESSOA?...........................................................394
4 - MATERNIDADE E SEPARAÇÃO: AS METAMORFOSES NOS FUNDAMENTOS
MORAIS DA FAMÍLIA .........................................................................................400
CONCLUSÃO................................................................................................................411
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................429
PREFÁCIO
2 - APONTAMENTOS METODOLÓGICOS
O grupo a ser descrito aqui (grupo A), refere-se àquele formado por mulheres que
partilham de valores e noções mais tradicionais, sendo oriundo do interior do Estado e
que, acompanhando o projeto de ascensão econômico-social da família de origem,
desloca-se para zonas mais modernas desta região, fixando residência na Capital, Porto
Alegre, após o casamento. Coloca-se como relevante estes deslocamentos, tendo em vista
as alterações de estilo de vida e visão de mundo daí decorrentes, que conduzem,
especificamente, este grupo a uma aproximação progressiva com um estilo de vida urbano,
sofrendo influências marcantes de um ethos de modernidade.
As implicações destas alterações que marcam a história de vida do grupo de status
aqui descritos são abordadas em função do projeto familiar de ascensão econômico-social
das famílias de orientação e da constituição de um projeto individual no seu interior,
dentro do qual, acham-se articuladas as representações e noções tradicional/moderno dos
papéis sexuais e laços de parentesco. São estas questões que presidem a constituição da
família de procriação e a procriação e a própria separação.
De acordo com este enfoque, constitui-se o projeto de casamento como recurso
feminino para a obtenção de uma alteração de status social, em contraste com a norma
inicial da família de orientação de investir na atuação profissional da geração mais nova,
indistintamente do sexo. A denominação de ethos da produtividade para conceituar o
estilo de vida deste grupo, está referida, inicialmente, ao ethos da família de origem e logo
após o ethos do grupo familiar de procriação, em especial, a atuação profissional do
marido que se encontram atuando na gerencia, e/ou, administração de setores econômicos
da indústria, e/ou, comércio do Estado, e dentro do qual este grupo de mulheres busca se
situar.
Assim sendo, a descrição que se segue tem por objetivo priorizar a reconstrução
biográfica das parceiras dessa pesquisa, em função de uma trajetória social que se orienta
para a formulação de um projeto individual representado como um afastamento da
influência de um ethos mais tradicional, em função de um compromisso com a
modernidade. As possíveis rupturas e os limites culturais das metamorfoses no estilo de
vida e na visão de mundo deste grupo são revelados nesta parte do trabalho, atendo-se ao
universo familiar das mulheres, da sua socialização ao processo de separação. Refere-se,
aqui, as representações que as mulheres descasadas fazem das influências tradicionais,
e/ou, modernas na sua biografia e na forma como estas delimitam o seu estilo de vida em
termos de auto representação.
CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO
1 - FAMÌLIA DE ORIENTAÇÃO
A) RELEVÂNCIA
B) MOTIVAÇAO
1
O termo mencionado tem por objetivo avaliar as características do ethos incorporado pelos membros mais
jovens das famílias das interlocutoras, o qual se delimita no projeto familiar após a migração deste grupo
para zonas urbanizadas do Estado. Em especial, Velho (1981), em “Reflexões Sobre a Noção de Projeto”, In
“Individualismo e Cultura”, se utiliza deste conceito para descrever a ênfase na valorização do sucesso
individual, onde a preocupação com o futuro se une a busca de uma incorporação “vigorosa” ao mercado de
trabalho.
Segundo suas ideias, o ethos da produtividade, de certa forma, se acha associado à experiência de camadas
médias baixas, onde surge um processo de individualização em que a biografia de uma pessoa é destacada da
sua família e lugar de origem (Velho, 1981, p. 108). A experiência do grupo familiar das parceiras da
pesquisa indica este sentido para a construção do projeto familiar, sendo, no entanto, relativizado, para o
elemento feminino, com a situação de casamento.
O projeto construído pela família de orientação deste grupo tem, portanto, como
principal motivação a busca de ascensão social, o deslocamento do grupo familiar para o
meio urbano e a contingencia de redefinição de um estilo de vida familiar, mais de acordo
o novo status social. A ambivalência com que este grupo relata este período em suas vidas
permite verificar os níveis de conflitos advindos da migração e as consequentes
metamorfoses na visão de mundo do grupo familiar. Nesta situação, em particular,
relativiza-se a utilização ampla de um ethos da produtividade para o grupo familiar de
origem. As noções de pureza, simplicidade ou ingenuidade, associadas ao antigo espaço
social, são frequentemente contrapostas a noção do urbano como algo promíscuo, ambíguo
e corrupto. Isto, certamente, se origina na forma como as interlocutoras da pesquisa estão
se filiando, ou não, nestes momentos, a um projeto de vida com base na felicidade a um
código familiar e seus laços de parentesco, peculiar a trajetória deste grupo em sua fase
mais tradicional. Aqui, o processo de projeção e independência pessoal é descrito como
trajetória que rompe, em certa medida, com a antiga unidade familiar, com a dominância
do compromisso moral entre parentes e com seu código de aliança e reciprocidade.
O conceito de ideologia holista (VELHO, citando DUMONT, 1981), uma vez que
se refere a ideia de uma ordem hierarquizada onde o indivíduo é definido a partir do todo,
permite perceber as vinculações que os laços de reciprocidade e fidelidade propõem para o
espaço familiar, neste grupo de mulheres. Neste sentido, elas se sentem, em parte,
comprometidas com o modelo hierárquico do seu grupo familiar, o que restringe a
realização do projeto pessoal em termos de individualização dos seus membros, colocando
limites à atuação de um ethos da produtividade. O casamento, de acordo com estes
princípios, significa, de certa forma, uma mediação neste processo. Ou seja, a filiação a
um código familiar, em detrimento da profissionalização feminina, preservando uma
ordem hierárquica na família, e ao mesmo tempo, permitindo a ascensão econômico-social
das mesmas, bem como sua aproximação com um estilo de vida mais moderno e
urbanizado.
Como projeto individual, e de acordo com o projeto familiar, o casamento faz parte
do ethos feminino deste grupo como uma das formas de obtenção de status e prestigio
social. A realização de um “bom casamento” representa, neste sentido, um reforço, mais
do que um rompimento, do projeto familiar e de seus compromissos de reciprocidade,
atuando durante a vida conjugal das interlocutoras. Em termos de trajetória familiar no
meio social urbano, o ethos feminino, na fase final da adolescência, oscila entre a ideia de
afirmação individual, a de casal, através da constituição de uma família de procriação, a de
incorporação a rede social mais ampla de parentes, dada através de um modelo de família
extensa e seu código de reciprocidade, ou ainda, de busca de profissionalização, que
reflete o sucesso pessoal como independência do código da aliança, mediatizado pela
importância dada ao casamento como forma de ascensão a outro estilo de vida.
A realização do projeto individual, com o casamento, coloca de modo ambíguo a
importância deste ato para as mulheres em processo de separação frente à família de
origem. Ou representa um afastamento relativo dos laços familiares, tendo em vista, uma
residência geograficamente mais afastada da família de orientação, unindo a esta situação,
uma ideia difusa de libertação e individualidade, ou representa a necessidade de acentuar
os laços de sociabilidade da família onde são socializadas, propondo, deste modo, um
modelo de casal integrado ao grupo maior de parentes. Em última instância, tratam-se das
suas famílias de orientação, associadas à ideia do passado tradicional, e das famílias dos
maridos, encaradas do ponto de vista da modernidade, derivando dai, a concepção de
individualização como algo desvinculado da noção de família e, acima de tudo,
representado em função do jogo tradicional/moderno e da busca de prestigio e status
social.
De acordo com estas considerações, a trajetória social do grupo estudado
assemelha-se, de certa forma, a dos white colar que G. Velho (1981, p. 118) analisa em
seu estudo sobre camadas médias urbanas no Rio de Janeiro, onde o autor, descrevendo a
trajetória familiar de moradores do bairro de Copacabana, coloca tratar-se de um
movimento continuo de ida e volta entre individualizar-se (...) e integrar-se a categoria
mais ampla de parentesco, geralmente pais, irmãos, primos-irmãos e tios. As
representações das interlocutoras da pesquisa, associadas ao projeto família é o relato das
suas experiências, expressam em parte esse movimento contínuo em suas noções de
família.
Os testemunhos das mulheres sobre a vida com seus pais indicam uma estruturação
hierárquica e fortemente segregada na divisão dos papéis sexuais em suas famílias de
2
Conforme Bott (1976, p. 112), este termo descreve mais corretamente a situação da família urbana do que o
termo isolado, que é mais frequentemente utilizado.
orientação. Na relação pai-mãe, é apontado o papel de autoridade do pai, contraposto ao
papel afetivo da mãe. Muito embora, estes papéis, no desempenho familiar, sofram
alterações com a migração, o casal procura reproduzir um sistema de representações que
se aproxima daquele modelo. Para três das mulheres, a definição do papel feminino, na
relação de esposa como agente emocional do casal, significa a “submissão” desta figura às
normas e regras colocadas pela personagem paterna, vista como agente emocional do
casal, significa a “submissão” desta figura às normas e regras colocadas pela personagem
paterna, vista como o agente normatizador do casal.
Neste sentido, elas descrevem a figura materna de acordo com categorias mais
severas que as utilizadas na descrição do pai (“reservado”, “desconhecido”, “seco”),
classificando-a de “submissa”, “dependente”, “servil”. Especificamente, quanto às
atividades familiares e sua organização, pode-se assinalar tarefas altamente diferenciadas
entre os pais. De acordo com Bott (1976, p. 72)., os papéis conjugais classificam-se como
fortemente segregados3, quando as atividades de ambos são diferenciadas, sem ligações
umas com as outras até onde for possível. Tomando-se esta classificação, ao marido (pai),
cabem as tarefas básicas referentes ao sustento da casa (com exceção da família de
Antônia), já a esposa (mãe), cabe as atividades de socialização dos filhos, cuidados com a
casa, controle do orçamento doméstico, etc. As tarefas tidas como femininas dificilmente
são cumpridas pelos homens, a não serem os churrascos familiares de domingo, que na
região, caracterizam-se por ser um hábito culinário eminentemente masculino.
2- FAMÍLIA DE PROCRIAÇÃO
3
Sobre este assunto, observar a parte introdutória deste Capítulo.
4
A respeito do conceito de revisão biográfica, ver Berger (1976) “Excurso: Alternação e Biografia” in
Perspectivas Sociológicas.
alterações que conduzem à situação de descasamento. De acordo com Berger (1976, p.
69), a experiência de alternação pode explicar como os depoimentos das mulheres
descasadas, aqui no caso, fazem parte de um processo de revisão do seu passado (trajetória
da sua família de orientação e do seu casamento), de maneira tal que cada uma das suas
fases sirva como explicação para o fracasso final (...). Portanto, as informações obtidas
tendem a revelar um movimento nas representações de si por parte das mulheres no
sentido de um passado pré-fabricado que justifique, ou explique, a presente situação de
separação.
5
Na discussão da noção de Individuo, Individualismo e Projeto, Velho (1981, p. 25) observa duas
alternativas básicas presentes nas sociedades complexas: as experiências individualizadoras, onde o sujeito é
obrigado a se mover e manipular instituições, dimensões e „mundos‟ diferentes, e possivelmente,
contraditórios, e as alternativas de desindividualização, que se apresentam frente à angústia da opção e do
desmapeamento. Para o ethos feminino, a profissionalização pode ser percebida como dimensão de um
mundo diferente, mais diversificado, complexo e fragmentado, que se apresenta às interlocutoras na
migração do grupo familiar para a cidade. Neste sentido, o “mergulho” no mundo dos estereótipos culturais
– “a mãe de família” – significa, para este grupo, delimitar as fronteiras simbólicas do feminino em seu
universo cultural de origem.
O processo de alternação aqui descrito resulta, portanto, na opção pelo casamento
como forma de realizar o projeto familiar. Desta forma, fica claro neste grupo de mulheres
que a realização do projeto familiar, assim como a proposta de redefini-lo num novo estilo
de vida, conforme coloca Velho (1981, p. 25) não se dá fora de normas e padrões por
mais que a liberdade individual possa ser valorizada. De acordo com Maria Inácia
D‟Avila Neto (1980, p. 38), no Brasil, a orientação familiar é ainda eminentemente
voltada para a preparação da mulher para o casamento e se permite com muito mais
tolerância à solteira trabalhar do que a casada. Esta observação é bem adequada para
descrever o que ocorre neste período de sua historia de vida.
Neste grupo há uma exceção, Alice, cujo aspecto profissional assume trajetória
desviante. Competindo, em sua família de orientação, com o irmão mais Velho, a respeito
da profissionalização, esta incorpora uma noção singular da sua atividade profissional:
jamais a abandona, ou mesmo deixa de aperfeiçoá-la após o casamento. No entanto, é
interessante registrar dois aspectos onde fica contextualizada a forma peculiar de
manipular ao nível de profissionalização, o ethos feminino do seu grupo familiar.
Primeiro, a profissionalização na área de turismo surge a partir da sua participação num
curso regional de Miss Rio Grande do Sul, onde é escolhida Miss Bento Gonçalves. A
partir dai, ela diz ter “tirado vantagem” destes acontecimentos para conseguir sua ascensão
profissional e social. E segundo, após o casamento, ganhando mais que o marido, é sempre
Alice quem sustenta a família de orientação. Nesse momento de sua vida, ela considera
que esta manipulando códigos culturais do ethos feminino, no sentido de compor uma
ideologia individualizante onde a mulher aparece como sujeito singular, ético e moral. Por
outro, mesmo nestes momentos da sua vida não há um rompimento drástico com o ethos
da sua família de orientação, pois busca, no casamento, a fonte de legitimação desta
situação desviante. Observe-se como Alice descreve seu casamento: “O meu casamento
serviu como bengala para mim. Não me imaginava saindo de bento sem ser casada; ele foi
uma bengala em que me apoiei.” Evitando o processo de acusação em seu meio social,
Alice, diferentemente das anteriores, consegue manipular as fronteiras simbólicas de seu
universo cultural (Velho, 1981).
a) RELEVÂNCIA
Na busca das razões do casamento, as mulheres acham-se manipulando códigos
sociais que envolvem, basicamente, noções de independência e modernidade no espaço
familiar, os papéis femininos definidos a partir de uma concepção do feminino como
sujeito e individualizado, o casamento como um ritual importante por seu caráter sagrado,
a ideia do lar como espaço natural feminino em detrimento da atuação profissional, a
maternidade como um papel importante, só possível de ser desempenhado dentro de uma
estrutura familiar com a figura do pai e da mãe presentes no seu cotidiano.
Em termos de relevância dos acontecimentos passados, percebe-se, na trajetória
durante o casamento, a necessidade de um afastamento progressivo da vida profissional
por parte das três interlocutoras (com exceção de Alice), e sua maior dedicação à família
(marido e filhos), justificada pelos valores apreendidos na sua família de orientação. No
entanto, desenvolvem as relações de parentesco de acordo com um modelo de família
conjugal, cujo resultado se traduz no afastamento relativo do grupo de origem. Três dessas
mulheres fixam residência na cidade onde o marido trabalha (Porto Alegre), e constituem
sua rede social prioritariamente em função das atividades profissionais daquele. De acordo
com os critérios de relevância do grupo familiar dessas mulheres e seu ethos feminino, a
realização do projeto de vida através do casamento tende a preservar uma estrutura
doméstica para a autuação feminina buscando atualizá-la em função de um ethos de
modernidade. Em relação aos valores ligados à família extensa, mantém-se, de certa
forma, o código da aliança para com o grupo familiar e os laços de reciprocidade. Em
relação a uma ideologia de modernização, torna-se relevante a constituição de uma família
conjugal mais independente dos laços de parentesco, através do predomínio de um código
de amizade (Velho 1983). Quanto ao ethos feminino, é importante experienciar o
casamento como forma de realização de um código moral e sexual, intimamente associado
a um projeto de modernidade ao nível da instância familiar.
b) MOTIVAÇÃO
6
Este grupo não faz menção à noção de casal-grávido, abordada por Salem (1983) O Ideário do Parto Sem
Dor: Uma Leitura Antropológica, que, segundo esta autora, afirma o casal enquanto modelo segmentado dos
laços familiares mais extensivos, através da “contração” da sociabilidade.
7
A respeito deste assunto, ver basicamente o Capítulo III “Papéis Conjugais e Redes Sociais”, in Família e
Rede Social, de Elizabeth Bott (1976).
Constata-se uma diferenciação hierarquizada nas atividades dos papéis sexuais para
o casal. Em raríssimos casos o marido limpa a casa, faz sua comida ou mesmo lava a
roupa. Em alguns momentos da vida do casal, quando não há visitas, ele ajuda a esposa a
retirar a mesa ou organizar a sala de jantar. No entanto, na presença de visitas, estas tarefas
são feitas pela esposa, ou por grupos de esposas, enquanto os homens permanecem na
mesa conversando ou retiram-se e vão fumar. Nestas reuniões, o grupo das mulheres e dos
homens é bem delimitado. Não há quase nenhuma atividade familiar conjunta entre eles. O
cuidado com os filhos é de responsabilidade exclusiva das mulheres. Como não há
empregada neste período de suas vida, somente “faxineiras” que vão regularmente as suas
residências para fazer uma limpeza mais “a rigor”, as tarefas domésticas são basicamente
realizadas por elas mesmas8.
A) RELEVÂNCIA
Após a separação, torna-se relevante a revisão do projeto de vida construído no
casamento, que vincula o papel feminino no interior da família. Uma vez que, durante o
casamento, estão mais sujeitas a uma rede social de malha estreita, às atividades
profissionais do marido, suas reuniões e jantares de negócios (o caso de Antônia e Ângela
mais especificamente), do modo geral, ambas percebem o mundo público através da
figura do marido. Ele esta colocado entre ela e as coisas (Rodrigues, 1980, p. 69). De
acordo com esta autora, isto justifica a existência do processo de acusação pelo qual passa
a figura do marido, em relação aos conflitos familiares: ele é o responsável por tudo o que
acontece (Rodrigues, 1980, p. 70). Por outro lado, o processo de separação implica a
inserção destas mulheres, quase que de imediato, no mundo dos negócios, numa sujeição a
esta realidade, obrigando-as, portanto, a reverem seu ethos feminino e familiar.
Outro aspecto de relevância para a reconstrução da identidade social se refere à
reformulação da visão de mundo deste grupo de mulheres em relação à noção de família
circunscrita, especificamente, a sua forma conjugal: pai-mãe-prole. Com a separação,
redefinem-se estes conceitos, a categoria mãe independiza-se dos laços de afinidade
(esposo-esposa), restringindo-se aos laços de consanguidade (mãe-prole), os quais acabam
sendo tomados como parte de um modelo básico de família pelo grupo pesquisado. Os
laços de parentesco na família são, assim, revistos, bem como o afastamento progressivo
do grupo familiar, ocorridos com a constituição da família de procriação. Para Alice e
Ângela, os laços de parentesco são retomados como modelos polares: a primeira,
“individualiza-se” do grupo de parentes, a segunda, redimensiona estes laços com
afastamentos e aproximações cíclicas do grupo familiar de origem, segundo suas crises
econômicas e profissionais. Para ambas, pela distância física e falta de condições
econômicas dos seus grupos familiares, a fidelidade aos laços de parentesco é valorizada
através da retomada de um estilo de vida e uma visão de mundo próximos aos da família
de origem. Todas as duas passam a reviver estes códigos, na busca de uma reconstrução
dos seus valores após a recente trajetória da separação.
Com a separação, Alice e Angela apesar de receberem algum auxílio financeiro das
suas famílias, elas não usufruem constantemente de uma rede de solidariedade feminina na
criação dos filhos. Comprimidas em uma realidade econômica desfavorável após a
separação, lutam para manterem seu status social, na tentativa de não se proletarizarem, e
neste sentido, a rede de solidariedade familiar, ainda que localizada à distância, cumpre
algum papel econômico. Assim, em alguns momentos, assumem um ethos de
modernidade, em outras ocasiões, filiam-se a uma visão de mundo mais tradicional.
Entretanto, de modo geral, o código da aliança é revisto e relativizado. As relações de
reciprocidade entre os grupos familiares se sustentam sob os laços de consanguinidade,
considerados a partir das relações pai-filhos e mãe-filhos. No caso mais especifico de
Alice, o código de aliança é substituído pelo de amizade, entendido como um valor
primordial para a constituição da sua rede social. A ideia de escolha da rede de
sociabilidade está grandemente apoiada na própria noção de um projeto mais
individualizante, enquanto que para Antônia, e principalmente Ângela e Andréa, a
categoria de parentes surge como valor referencial.
B) MOTIVAÇÃO
Como tem sido frequentemente frisado, o processo de separação sugere, para este
grupo, uma situação de ruptura com um modelo de família, com ethos feminino e suas
fronteiras culturais, e, predominantemente, com um estilo de vida especifico para este
grupo social. A ideia da separação que sugere as interlocutoras uma aproximação com a
dimensão moderna da vida social, se constrói em função da noção de escolha que preside
o espaço de descasamento. A angústia da individualização revela a presença, no ethos e
visão de mundo deste grupo, de valores modernizantes na esfera familiar. A separação é
então, uma instância social onde se evidencia um processo de negociação da realidade, a
nível individual ou familiar, que vai de encontro aos fundamentos morais da família e a
natureza do seu código ético-moral (Velho, 1983).
Quanto ao estilo de vida, o processo de separação resulta, no caso de pelo menos
duas delas, no abandono de um consumo sofisticado, mudança de residência, volta ao
trabalho e no sustento da prole, auxiliadas, algumas delas, pela pensão do marido.
Contudo, este não é o caso de Alice e Ângela: a primeira sempre ganhou mais do que o
marido, e a segunda, o marido foi internado numa clinica, desempregado, sendo o sustento
da família um problema da própria interlocutora e do seu grupo de parentes.
Especificamente na ocasião da pesquisa, apenas Alice possui carro e apartamento próprios
obtidos com os seus rendimentos. Ângela e Andréa adquirem apartamento com a ajuda do
marido e familiares, respectivamente. A primeira, durante o casamento, a outra, após a
separação. Já Antônia possui apartamento próprio, morando num alugado. Nenhuma das
três últimas possui carro. Das quatro mulheres ouvidas, apenas Ângela não tem
empregada, pois suas filhas já são adolescentes. Todas as outras dividem com a empregada
doméstica os cuidados com os filhos, mantendo, para isto, na sua atividade profissional,
um total de 6 horas por dia, em condição de “meio turno”, pagando às domésticas um
salário inferior ao mínimo. A separação, assim, supõe a divisão dos bens do casal e, de
modo geral, com exceção de Ângela, o mobiliário da casa fica com elas. No entanto, neste
grupo, o valor da pensão fornecida pelo ex-marido é praticamente igual ao salário das
mulheres, muito embora o reconhecimento deste auxílio seja irregular, e muitas vezes,
fonte de litígio entre o ex-casal.
Para esse grupo de mulheres, sem exceção, não têm o hábito de sair a noite, quase
não vão ao teatro, não possuem qualquer tipo de hobby e permanecem, basicamente, em
casa. O lazer, quando realizado, ocorre quase sempre em companhia dos filhos, ou de
alguma amiga mais intima, e, geralmente, no ambiente familiar. No estilo de vida, a
valorização do lazer e das atividades extra domésticas e profissionais sofre a influência,
não só da precária situação financeira em que se elas encontram, como também da estima
social associada ao ethos de mulher separada para este grupo e sua rede social. Neste
sentido, o estilo de vida de “mulher separada” significa o afastamento de uma vida social
mais ativa, que existe na época do casamento, e uma aproximação com formas de
sociabilidade mais próximas do grupo familiar de origem.
Há, entretanto, a presença de um elemento importante para a composição da
identidade social da mulher descasada neste grupo, ou seja, a contração da sociabilidade
após a separação ocorre em função da sua noção de honra familiar tendo em vista a
possibilidade do exercício da sua sexualidade sendo ela, mãe. A preocupação com o
controle social, através da vizinhança, é temido como fonte de questionamento da honra
familiar, em termos de suas responsabilidades na criação dos filhos. O depoimento de
Andréa exemplifica: “Eu, no geral, não assumo publicamente minha condição de separada,
mesmo que os vizinhos e colegas de trabalho já saibam.” Pode-se perceber como a
separação afeta o elemento crucial da honra feminina para a noção de família neste grupo,
ou seja, seu papel é de não poluir moralmente um nome de família10. No caso, este nome é
ainda o do ex-marido, agora simbolizado no sobrenome dado aos filhos, que a conduta
feminina deve preservar. Estes aspectos são muito ressaltados, principalmente por Antônia
e Andréa, mas filiadas, após a separação, ao código de moral da família de origem.
12
O termo “transa” é utilizado pelo grupo maior de mulheres quando se refere às relações amorosas sem
vínculos de durabilidade e estabilidade, representando uma relação descomprometida, envolvendo apenas
encontros sexuais e afetivos de duração temporária.
13
O uso do conceito de sentimento de modernidade se relaciona a noção de “sentimento” de parentesco que
Woortmann (1976, p. 182) utiliza quando define as relações de parentesco através de um “modelo
ideológico”, ou seja, “a genealogia biológica é um dado concreto ao qual é atribuído um conteúdo ideológico
(...)”. Desta forma, de acordo com este autor, o „sentimento‟ de parentesco (...) deriva „naturalmente‟ do fato
de ter o filho nascido dos pais (particularmente da mãe) (1976, p. 181). A menção do “natural” refere-se a
questão da construção ideológica deste sentimento.
compromissos com a prole. Ambas as situações, temidas por elas, referem-se à situação da
própria separação e ao desvio que apresentam em relação ao modelo de família para este
estrato social e seu código moral e sexual. Para as interlocutoras mencionadas, o exercício
da sexualidade acarreta, assim, implicações desta ordem, ao nível do papel de mãe.
Especificamente, quando Antônia relata suas “transas”, sempre descreve a situação
ressaltando que, quando sai para seus encontros, se preocupa em deixar o filho bem
protegido e amparado com uma babá. Ou, no caso de Alice, explicando que busca estes
encontros amorosos apenas em viagens. Conforme o exposto acima, a busca da
individualidade, contida no projeto após a separação, no grupo citado, tende a esbarrar nos
limites sociais do papel de mãe, para o seu código moral e seu ethos feminino.
Quanto à profissionalização, a separação afeta drasticamente a situação deste grupo
de mulheres. A consciência da necessidade de manutenção envolve a busca de uma
atividade profissional como forma de autossuficiência. Conforme os testemunhos ouvidos,
a realização desta vida profissional é extremamente penosa, uma vez que, no caso, apenas
Alice possui formação completa, continuando a atuar profissionalmente mesmo após o
casamento. Para as outras, trata-se de finalizar o processo de profissionalização,
interrompido com o casamento, ou de buscar uma colocação no mercado de trabalho, com
o nível de escolarização obtido através de sua família de orientação.
CAPÍTULO 3
CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO
Beatriz - 31 anos, 2 filhos (4 e 2 anos), há 2 anos separada, é arquiteta. Seus pais são
originários do interior do Estado, migram para Porto Alegre quando solteiros. O pai é
advogado e a mãe, dona-de-casa. O ex-marido de Beatriz também é arquiteto.
Beth - 34 anos, é arquiteta, 2 filhos (3 e 6 anos), há 3 anos separada. Seus pais são
originários de Porto Alegre. O pai é advogado e literato, a mãe, dona-de-casa. O ex-
marido é economista.
Betânia - 35 anos, 1 filho (5 anos), há 2 anos separada, é advogada. Seus pais são
originários de Porto Alegre. O pai é ferroviário e a mãe, dona-de-casa. O ex-marido é
economista.
Bruna – 34 anos, 2 filhos (9 e 5 anos), há 2 anos separada, está terminado o curso de
Enfermagem. Os pais são originários da Polônia, emigram para o Brasil após a Segunda
Guerra Mundial. O pai é aviador na época da II Guerra e torna-se mecânico da Varig, a
mãe trabalha no Ministério da Guerra, e na época da pesquisa, costura para fora. O ex-
marido de Bruna é gerente de empresas.
1 - FAMÍLIA DE ORIENTAÇÃO
Neste tópico, interessa descrever, a composição que assume, para este grupo de
mulheres, o projeto da família de orientação, em termos da continuidade do seu estilo de
vida e visão de mundo e a forma como este ordena os conflitos familiares decorrentes da
proposta de um estilo de vida alternativo, de cunho contestatório no período da
adolescência. Trata-se de observar as concepções e valores relevantes do grupo familiar,
considerando sua contraposição aquele projeto com pretensões de “vanguarda”. É
importante esclarecer que, das quatro interlocutoras citadas, três destas percorrem esta
trajetória social em relação ao grupo familiar. A trajetória de Bruna é descrita mais adiante
e tende a desviar-se das outras. Para aquelas que desenvolveram no período da
adolescência um projeto de vida que conflitava com o projeto familiar, os conflitos
geracionais deste período, são mencionados diversas vezes. Observa-se, neste grupo, que a
constituição de um projeto individual de contestação na adolescência tem implicações na
formulação posterior dos seus projetos para a constituição da família de procriação, assim
como no projeto individual do período pós-separação.
Em termos de relevância, a família de orientação projeta valores e concepções
distintas daqueles formulados por elas e sua rede social, na adolescência, residindo neste
ponto, parte dos conflitos familiares. Logo, no período contestatório da adolescência, o
processo de acusação social não envolve apenas as mulheres aqui ouvidas, mas o seu
grupo de pares14. Assim, em relação ao grupo familiar, fica patente que a lealdade em
relação ao grupo está posta em cheque, pode ter se transferido para outro grupo ou estar,
pelo menos, sendo revista (Velho, 1978, p. 3).
No caso aqui descrito, ambos os processos se refletem na escolha dos valores e
atitudes relevantes para a composição dos projetos de vida futuros destas mulheres que
começam a se esboçar no período da adolescência. Observa-se, neste momento, primeiro,
que o fato desse grupo de mulheres, neste período, experienciarem situações diversas das
gerações dos pais, filiando-se a códigos distintos destes, relaciona-se a sua experiência no
14
A noção de grupo de pares (per group) é mencionada por Bott (1976) em Família e Rede Social, a partir
do comentário de Max Gluckmann, quando o autor, referindo-se às relações existentes entre o grau de
segregação entre pais e filhos e o tipo de rede social, afirma que, numa família, os membros mais jovens se
associaram aos seus próprios companheiros de idade, e é destes companheiros que eles derivariam parte do
seu código moral (1976, p. 22). O autor, comentando este conceito, afirma que o grupo de pares exerce uma
poderosa influência sobre os jovens, com base em fortes elos afetivos, e que isto se associa a uma rede social
de malha estreita.
meio urbano onde a fragmentação de papéis permite a vivência de situações diversificadas
dos atores sociais, o que se refere, em última instância, aos projetos sociais existentes na
sociedade para os jovens de acordo com a sua situação de classe. Segundo, se refere à
situação de um grupo residente há algum tempo num mesmo meio social, permitindo a
existência de um círculo de amizades mais duradouro. Terceiro, que o fato delas se
associarem aos seus companheiros de idade torna mais viável o predomínio de um código
de amizade sobre os laços de parentesco.
No discurso acusatório dos pais, as atitudes dessas mulheres passam a ser definidas
como parte de um comportamento “inconsequente”, “irresponsável”, e as classificações
para o grupo de pares daí advindas são de um bando de maconheiras, “comunistas”. Na
época da Faculdade, segundo o depoimento de Beatriz, parte dos próprios colegas
participa deste processo, juntamente com a maioria dos professores. Mas, mesmo
desenvolvendo atitudes de modo geral contestadoras, as mulheres desse grupo de status se
consideram alunas interessadas e estudiosas. A acusação, no âmbito da faculdade, é de
caráter moral, não incluindo o desempenho acadêmico das mesmas ou do seu grupo de
pares.
De acordo com os relatos, pode-se observar que, neste período, o projeto individual
assume como relevante uma proposta de negação do código ético e moral do seu grupo
familiar, embora se sujeitando, em muitos momentos, à estrutura de poder e hierarquia no
nível da família ou da escola. Por exemplo, elas não trabalham, sendo sustentadas pelos
pais, residindo ainda com estes, o que implica certo comprometimento com as normas
familiares, e também, uma forma de participação no estilo de vida familiar, pois,
sujeitando-se a estas normas (familiar), os pais de camadas médias vão dispor durante
mais tempo do poder real sobre a vida dos seus filhos, na medida em que estes se
afigurem como dependentes (Velho, 1978, p. 6)15.
A trajetória de Bruna difere, de alguma forma, deste grupo, e se aproxima mais do
grupo A, com algumas sofisticações. Sua profissionalização só ocorre, definitivamente,
após a separação, e, assim como as outras mulheres do grupo B, não são os pais que
financiam os estudos, mas o grupo familiar como um todo (pais e irmãos). Até os 15 anos,
sua trajetória é a mesma do grupo A. A partir deste período, seu pai sofre um derrame.
Isto, associado à neurose de guerra, leva-o a se aposentar. A mãe, então, passa a assumir
15
De acordo com Velho (1978) em Acusações: projeto Familiar e Comportamento Desviante, o filho de
camadas médias, em princípio levará mais tempo para ingressar no mercado de trabalho (p. 6), o que
justifica, de certa forma, o poder que a geração mais velha exerce sobre as mais jovens e a sua dependência
daquela. Esta situação ocorre neste grupo de mulheres.
os encargos do sustento da família, junto com os filhos mais Velhos (similar à trajetória de
Antônia no grupo A), acarretando uma perda de status econômico e social. No entanto, em
termos do projeto e da vida familiar de Bruna, há a necessidade de obter novamente o
status social que a família possuía antes da doença do pai.
Torna-se relevante o fortalecimento de alguns princípios do ethos da produtividade
no projeto familiar frente à premência de recuperação econômico-social da família. As
contradições familiares, vividas por Bruna neste período, aproximam-se das do grupo A,
pois implicam a relevância da lealdade aos laços de parentesco ou a filiação a princípios
mais individualizantes. Este período da trajetória de Bruna esta permeado destas
contradições e, neste contexto, o casamento é reforçado como uma solução individual, na
busca do prestígio e status social. Para as outras interlocutoras, no entanto, os laços de
parentesco são dimensionados como vínculos moralmente incômodos, apesar da
comodidade econômica que propiciam, pois chamam ao comprometimento como uma
ética que elas negam. Em contrapartida, a amizade se afirma como um valor relevante,
instrumento de realização de uma nova ordem ética e moral, em cuja base reside a
motivação de um afastamento cada vez maior do projeto familiar de orientação.
b) MOTIVAÇÃO
Para o caso da família de orientação, os pais desse grupo de mulheres têm uma
rede social um pouco mais diferenciada do que no grupo A. Forma-se tanto com base na
amizade como no parentesco. De modo geral, os vínculos de parentesco são feitos pelas
mulheres com as famílias de ambos os cônjuges, ficando com os maridos a criação de
laços de amizade a partir da sua vida profissional. O casal sai relativamente mais vezes,
vai a alguns jantares e cinemas, mas, de modo geral, o lazer é feito em casa, através de
visitas a amigos e parentes, que também se conhecem. Neste sentido, também possuem
uma rede social de malha estreita, com ambos os cônjuges possuindo poucos amigos ou
conhecidos que não pertencem ao círculo de suas amizades.
Quanto à rede social - da infância à adolescência - e às relações com os pais, o
panorama se transforma: até a adolescência, e antes do período de “contestação”, os pais
possuem um controle e conhecimento sobre o grupo de amigos, pois tanto os da escola
quanto os do bairro fazem parte da rotina familiar. À medida que as mulheres ficam mais
adultas e entram para a faculdade, esta rede social vai se tornando de malha frouxa, a
ponto dos pais terem pouco conhecimento do seu círculo de amizades.
No entanto, no nível da rede social específica, o grupo de pares forma uma rede de
malha estreita com relacionamento profundamente íntimo entre os seus membros: todos se
conhecem e mantêm frequentes atividades conjuntas. Na adolescência essas mulheres
diferem, assim, das formas de sociabilidade das mulheres pertencentes ao grupo A, tendo
em vista a recente migração delas para a cidade e pouca intimidade, na ocasião, com o
ethos de uma juventude intelectualizada e politizada portoalegrense.
Há uma forte segregação de papéis sexuais na família de orientação, uma vez que
as atividades domésticas são basicamente feitas de modo independente, e a maioria das
tarefas femininas e masculinas são diferenciadas. Esse grupo de mulheres, em seus
depoimentos, criticam esta estrutura familiar enquanto um sistema de dominação, onde a
figura feminina é vista sob dois prismas: o de vítima e o de cúmplice. Neste primeiro
instante, ela é recuperada em sua fragilidade, e, num segundo momento, é acusada por sua
subserviência. O pai também é criticado como fonte de autoridade e poder - a figura que
representa uma ordem de dominação. Há também, uma associação no desempenho da
maternidade e paternidade em termos de papéis sexuais. Os cuidados e a criação dos filhos
representam o exercício da feminilidade, onde a figura da mãe é percebida como o agente
emocional na família. O sustento do grupo familiar é tarefa da figura masculina, percebida
como figura reguladora.
2 - FAMÍLIA DE PROCRIAÇÃO
16
A proposta feminista no espaço do casamento refere-se, certamente, ao fato de algumas destas
interlocutoras terem participado da organização do movimento feminista em Porto Alegre. Neste sentido, é
interessante observar a presença de um discurso feminista com base numa ideologia individualizante, onde a
categoria feminino é definida enquanto indivíduo ético e moral. A este respeito, ver “Antropologia e
Feminismo”, in Perspectivas Antropológicas da Mulher.
O casamento, portanto, ocorre numa situação de indefinição profissional e social,
quando ainda estão cursando a faculdade e morando com os pais. A renda do casal passa a
ser obtida através de “bicos” profissionais e do emprego do marido. Neste fato, a revisão
biográfica do projeto familiar torna-se, na realidade, uma reprodução, com algumas
nuanças, da situação feminina de dependência econômica, agora não mais dos pais, mas
do marido (de certa forma equivalente ao grupo A).
Com o casamento, a busca de uma individualização do grupo familiar é proposta
através da construção de um modelo de família mais nuclearizada e de um projeto com
base em princípios individualizantes ao nível da trajetória feminina. No entanto, o
desempenho de papéis sexuais na família de procriação e a divisão sexual do trabalho
apontam progressivamente para a reprodução das condições estruturais da família de
orientação, que discrimina um lugar para a realização do ethos feminino - o espaço
doméstico com os cuidados com a prole, no qual a experiência com a maternidade é
determinante.
Portanto, em termos do ethos feminino para este grupo, a revisão biográfica com o
casamento envolve o seguinte impasse: a radicalização progressiva da busca da
individualidade feminina no interior da família mais nuclearizada, criando zonas de
conflitos, por um lado, com seus parceiros, e, por outro, com o grupo familiar, forçando os
limites simbólicos das fronteiras culturais dos papéis sexuais e laços de parentesco na
família, ou o redimensionamento dos códigos e valores de sua família de orientação, bem
como dos laços de parentesco, suavizando-se aí, a discussão dos papéis femininos e
neutralizando-se possíveis zonas de conflitos e danos no seu padrão de consumo.
No nível do projeto familiar de origem, o casamento envolve a revisão biográfica
da trajetória “contestadora” e do próprio ethos de vanguarda, pela necessidade de
manutenção de um estilo de vida, padrões de consumo e hábitos culturais que,
especificamente, um projeto de afirmação do status social pode viabilizar. A nuclearização
da família de procriação, que representa uma proposta de garantir a independência de
códigos e valores tidos por seu grupo de pares como “conservadores”, é relativizada - a
influência do ethos da vanguarda passa, agora, de uma ótica de política militante, para
outra proposta como um exercício existencial, sendo experienciada na subjetividade e
interioridade do sujeito face ao parceiro, em sua dimensão familiar. Há um
distanciamento do estilo de vida proposto, a ponto de o ethos vanguardista reduzir-se, tão
somente, a fragmentos modernizantes da visão de mundo dessas mulheres. Beatriz define
o sentido da revisão biográfica com relação ao seu projeto familiar inicial e aquele que
resulta após o casamento: “Nós dois estudamos em colégios excelentes, maravilhosos...
pessoas preparadas para a profissão. Só que até um certo ponto – daí, então, ele continuou
e eu parei.” A pressão do ethos tradicional, dominante no meio social das jovens recém
casadas, tende a alterar, num segundo momento, a composição deste ethos de “vanguarda
existencial”, desta vez na família de procriação, conduzindo este grupo a uma
aproximação progressiva com a estrutura tradicional dos papéis sexuais e laços de
parentesco na esfera familiar.
a) RELEVÂNCIA
B) MOTIVAÇÃO
17
A ideia de se utilizar, nesta descrição, os conceitos de função nutriente e função provedora para
demonstrar a oposição das categorias feminino e masculino nos depoimentos das mulheres, refere-se às
caracterizações feitas por Abreu (1983) e Durham (1983). Quanto ao primeiro, na análise do Mito de D.
Beija, este afirma que a personagem, após o nascimento da sua filha, demonstra, em relação ao passado, sua
capacidade de gerar a vida, revelando sua função nutriente ligada ao código da maternidade (1983, p. 91).
Isto propõe, de certa forma, o predomínio do papel socializador feminino e sua função geradora. Semelhante
caracterização contrasta com aquela feita por Durham quanto à categoria masculina, dada a partir da sua
função provedora, e que define, segundo o modelo tradicional de divisão sexual do trabalho, que o trabalho
remunerado é função do marido, chefe de família, que provê seu sustento (1983, p. 33).
18
De acordo com a análise de Durham (1983), o vínculo conjugal tende a ser revisto em função das ideias
igualitárias que exigem a participação tanto do homem como da mulher no processo social da reprodução
humana, participação essa que o vínculo conjugal concretiza e legitima (1983, p. 42). Isto é particularmente
verdade para este grupo de mulheres, tendo em vista seu projeto de individualização feminina no espaço
familiar e revisão dos papéis sexuais no seu interior.
No entanto, progressivamente, a responsabilidade com a prole passa a ser fonte de
conflito para o casal, significando um sério obstáculo ao seu projeto inicial de
individualização dentro do núcleo familiar constituído para elas. Estas responsabilidades
passam a ser cada vez mais divididas com a mãe, e/ou, irmãs, sendo a participação
masculina praticamente inexistente, dedicando-se o marido quase que totalmente ao papel
de provedor. Os conflitos gravitam ao redor do projeto familiar construído pelo casal após
o casamento, onde é proposta a individuação dos laços de parentesco, referidos à noção de
família extensa. Está presente o projeto de casal considerado mais como unidade
autônoma e individualizada. Observe-se como Beth descreve esta situação: “Quando eu
casei, meu marido insistia para eu largar o serviço: não havia necessidade de trabalhar
fora.” A maternidade, no entanto, é apontada nos testemunhos como um momento de
redefinição dos papéis sexuais na família, a partir de um modelo hierárquico, tendo sido
aceita por elas a necessidade de retornar ao grupo familiar como forma de mediar sua
vinculação ao espaço doméstico e de possibilitar um engajamento, pelo menos parcial, à
esfera pública.
19
O momento da gravidez implica, para estas mulheres, um projeto a dois, afirmando um estímulo
consciente à contração da sociabilidade, no que diz respeito à relação com a família de origem (SALEM,
1983, p. 12).
projeto de maior individualização e independência feminina na esfera pública e uma
autonomia mais ampla do casal em relação ao grupo familiar, deve haver uma redefinição
para a atuação masculina. No entanto, tal fato não se concretiza.
O nascimento dos filhos cristaliza os impasses e contradições do projeto familiar
do casal. Nesta medida, o período relativo ao puerpério é descrito como um período
crítico, onde a figura feminina possui caráter ambíguo, por um lado, em termos da busca
da sua singularidade e profissionalização, e, por outro, quanto à função social englobadora
no desempenho da maternidade e também em função de uma proposta individual de
família nuclearizada e individualizada, assim como o código de aliança e reciprocidade
dado através do parentesco, do rompimento de uma ordem familiar autoritária, baseada na
hierarquia entre os sexos e a afirmação de um projeto familiar onde os papéis sexuais são
refeitos e discutidos de forma a permitir a individualização plena dos seus elementos.
Na realidade, o conflito familiar básico que se delimita entre, de um lado, a livre
expressão da individualidade, que enfraquece o vínculo conjugal e, de outro, a
responsabilidade conjunta em relação aos filhos comuns, que exige seu fortalecimento
(Durham, 1983, p. 40). Neste processo, os laços de consanguinidade, o sentimento de
maternidade, a divisão dos papéis sexuais na família e a sua ordem moral, definem os
limites das fronteiras simbólicas da incorporação de um ethos individualista, no
desempenho do papel feminino na família.
Para Bruna, em especial, os conflitos na relação do casal estão associados às crises
econômicas, que traduzem, em última instância, as frustações familiares de ascensão e
prestígio social. Estas crises econômicas afetam a ordenação dos papéis familiares, os
quais obedecem a uma organização independente de tarefas, numa estrutura altamente
segregada entre as atividades femininas e masculinas. As crises econômicas ocasionam
dois tipos de conflitos básicos: o casal, ao ser englobado na família extensa, é obrigado a
refazer os laços sociais da sua família de procriação. Neste momento, vão residir com os
pais dele ou dela, o que certamente torna as relações familiares mais conflituosas, devido à
ideia de fracasso de um projeto de melhoria de status social. Por outro lado, no nível dos
papéis sexuais, a situação de precariedade obriga os cônjuges a aceitarem um
redimensionamento nas tarefas familiares, com as mulheres indo trabalhar fora para ajudar
no sustento da família, o que resulta, muitas vezes, na inversão da hierarquia entre ambos.
20
Sobre o conceito de alternação, ver Berger (1976) “Excurso: Alternação e Biografia”, in Perspectivas
Sociológicas.
projeto de vida pela maioria das interlocutoras aqui mencionadas. Os impasses, apontados
no casamento e que culminam na separação, têm muito a ver com a frustação de um estilo
de vida, que estabelece, em suas origens, uma proposta política de rompimento com as
relações familiares e com os papéis sexuais tradicionais na sua família de orientação.
Como já está afirmado, não se busca o rompimento com um status social, ou mesmo com
uma posição de prestígio social, associado a sua situação de classe. Principalmente, em
função dos valores preconizados pela rede de amigos, o que se coloca como fato relevante,
isto sim, é a transformação dos princípios contestatórios em termos de “militância
existencial”21, que permite a sobrevivência deste status no espaço do casamento, onde se
apresenta um “clima” de vanguardismo. O fracasso deste projeto de vida implica, tanto
para a rede social dessas mulheres , quanto para elas mesmas, a frustação de um modelo
“alternativo” de família, assim como a revelação dos limites simbólicos das fronteiras
culturais do processo de nuclearização do espaço da família e da absorção de uma
ideologia individualista, no nível dos papéis sexuais.
Os conflitos conjugais apontados, e que culminam com o processo de separação,
localizam-se, basicamente, no desempenho de papéis sexuais na família. A frustação por
terem reduzido, ou abandonado, suas atividades profissionais em função do processo de
maternidade, a acusação de falta de companheirismo do cônjuge, o seu afastamento
progressivo do espaço de intimidade do casal em busca de uma maior profissionalização, a
sujeição às decisões do marido e suas atividades profissionais, principalmente face à
necessidade de progredir no mercado de trabalho, de modo a legitimar o status do seu
grupo social, todas estas acusações fazem parte do sistema de queixas associado à atuação
do ex-marido na família. À figura do homem no desempenho dos papéis masculinos do pai
e marido, dentro de princípios igualitários e individualistas, sugere o desempenho
consciente e responsável das suas atividades familiares, tanto quanto das atividades que
este realiza na esfera pública. No entanto, esta expectativa em relação aos seus parceiros
não se cumpre, a não ser na fase inicial do casamento, antes de surgirem os filhos.
O sistema de queixas apresentado por esse grupo de mulheres está referido nos
limites do status da vanguarda, aplicado às relações familiares e à expressão que o valor
da igualdade dos sexos e liberdade/individualidade feminina formulam nas fronteiras
culturais do espaço social da família. Não há uma adequação entre a estrutura hierárquica
que toma forma no projeto da família de procriação neste grupo de mulheres - invadindo a
21
A ideia de militância existencial tem a ver com a proposta deste grupo no sentido da politização do
cotidiano, tematizando o dia-a-dia e as atitudes privadas, propondo-se aí condutas alternativas.
dimensão contestatória do seu estilo de vida após o casamento - e os princípios modernos
e igualitários das relações familiares que se constituem nas suas trajetórias familiares.
Certamente, o movimento de desgaste e disfunção de um modelo de família
conjugal, com a ideia do casal individualizado, corresponde a outro, que as direciona no
sentido de reverem este ethos da sua família de procriação, a partir dos laços de
reciprocidade com seu grupo familiar, no sentido de se buscar apoio para enfrentar parte
dos impasses deste modelo. A situação típica onde estes laços são retomados corresponde
ao processo de maternidade, que reforça os vínculos com a família extensa. Se, por um
lado, as aproximações com o grupo familiar de origem solucionam certos impasses da
organização do casal numa família nuclearizada, por outro, comprometem este código
ético que propõe uma individualização em relação à família extensa (Velho, 1981, p.
119).
Com relação às progressivas crises do casal e a aproximação das mulheres com seu
grupo familiar, é importante citar alguns exemplos. Beth passa praticamente por duas
sérias crises antes da separação definitiva, sendo que, nos dois casos, ela ainda não mora
em Porto Alegre. Em todas as situações, como no momento da sua separação definitiva,
ela sempre retorna à Porto Alegre, onde sua família reside. No momento decisivo da
separação, é através da influência de parentes que ela consegue uma colocação
profissional. No caso de Bruna, a separação resulta na sua fixação na casa dos pais,
voltando a residir com sua família de origem. De modo geral, é possível perceber a
importância referencial da família de orientação após a separação, através da observação
dos deslocamentos espaciais que essas mulheres realizam em função de estabelecer
residência próxima ao grupo familiar.
A partir da atuação de uma percepção seletiva22, após o processo de separação, as
interlocutoras recuperam os instantes de vida familiar em que elas pensam na
possibilidade de separação. Isto se torna importante no dimensionamento de uma nova
identidade social - mulher separada - pois reconstitui a noção da escolha individual a partir
de um processo individualizante, em que, repentinamente, acham-se envolvidas durante a
separação. Para este grupo de mulheres, não chega a ocorrer um nítido processo de
acusação social por parte dos familiares e amigos, ao seu comportamento especifico
durante a separação. O que acontece é uma acusação ao ex-marido, como aquele que não
22
A noção de percepção seletiva, segundo Berger (1976, p. 66), significa que o ator social diante de um
número quase infinito de coisas que poderiam ser notadas, só observa aquilo que tem relevância para os
objetivos imediatos.
cumpre adequadamente seu papel masculino no casamento. Estas ocorrências podem estar
associadas ao fato de que, de acordo com o projeto familiar, o ethos feminino foi
cumprido: as mulheres após o casamento restringem sua atividade no mundo público,
dedicando-se à maternidade, acompanhando seus maridos quando estes decidem
aperfeiçoar sua vida profissional, realizando suas funções de esposa, além do que, não são
elas que iniciam o processo de ruptura. No caso de Beth, ela própria age como mediadora
neste processo de acusação social: “Tive que convencer meu sogro de que nossa relação
não era mais possível. Ele culpava e acusava-o de ter desagregado a família.”
A rede social de amigos, após a separação, redefine-se: os amigos comuns
particularizam-se, buscando, além disto, uma situação ética de distanciamento ao ex-casal.
O processo de separação passa a ser tematizado, politica e intelectualmente, por esta rede
social. O convívio dos ex-casados, ou os relacionamentos amorosos destes com qualquer
outro membro do grupo, é visto sob um ângulo político, em termos de caracterizar o estilo
de vida desta rede social de acordo com uma posição moderna, aberta e progressista.
Conforme descreve Beth: “Eu sinto atualmente a minha responsabilidade sobre o meu
estado de espírito. Isto não me passava pela cabeça antes.” Da proposta de um casal mais
nuclearizado, independente e moderno que regia o período da formação da família de
procriação, surge à busca de definição de um estilo de vida que leve ao surgimento do
indivíduo absoluto, ser um indivíduo 'livre', sem amarras, senhor absoluto do seu destino,
um verdadeiro demiurgo (Velho, 1981, p. 91). Se, para esse grupo de mulheres, o
casamento precisa ser o foco de tematização e politização do cotidiano, da contestação de
um ethos feminino de subordinação familiar, a separação se torna o centro do processo de
afirmação da subjetividade e interioridade individual,
A) RELEVÂNCIA
B) MOTIVAÇÃO
26
Oliven (1983, p. 20), em seu estudo A fabricação do gaúcho, afirma que a definição do que é a cultura
gaúcha, como se pode perceber, está longe de ser pacífica, constituindo-se um campo de polêmicas.
de uma ordem de existência”, pelos quais, as pessoas que se situam nesta cultura, segundo
sua condição social e sexual, constituem sua identidade social. Em especial, intenta-se
aqui, perceber o aspecto encompassador no código de honra da sociedade gaúcha, de
modo a entender como este permite demarcar paradigmaticamente as fronteiras culturais
neste povo.
1 - RECUPERAÇÃO DA HISTÓRIA
27
A denominação de “pica-paus” origina-se nos partidários do Partido Republicano Riograndense, (PRR),
sob a liderança de J. Castilhos, que monopoliza o governo local, através de uma política conservadora para o
Rio Grande do Sul, e de uma forma de governo autoritária. Os “maragatos” referem-se, principalmente,
àqueles agrupados em torno do Partido Federalista Brasileiro que adota a ideia do parlamentarismo, opondo-
se a J. Castilhos (PRR), sendo liderados por Gaspar Silveira Martins. Cada partido possui sua cor,
respectivamente branco e vermelho, que frequentemente acha-se exposta nos lenços que os homens trazem
amarrados ao pescoço.
O que se coloca como importante é que o símbolo da destruição da honra de ambos os grupos vincula-se a
uma valorização do pescoço, através do uso do lenço com a cor partidária, que afirma o ponto de honra
daquele que o usa, o que também assume importância no ritual da degola.
Importante registrar que neste período, retoma-se o uso frequente da degola dos inimigos que são
aprisionados nos campos de batalha.
Esta oposição retorna nos conflitos de 23 , no Rio Grande do Sul, quando novamente, retoma-se a discussão
política do liberalismo e democracia versus formas centralizadoras e autoritária do Governo. Nesta ocasião,
os partidários de Borges de Medeiros, herdeiro de J. Castilhos na direção do partido, são denominados de
chimangos. A ele opõe-se a Aliança Liberal, composta de republicanos dissidentes e antigos federalistas, os
maragatos.
28
Gaudério - folgaça: pandega; malandrin; vadio (...); diz-se de, ou aquele que acompanha qualquer pessoa,
abandonando-a logo para seguir outra; diz-se de, ou cão sem dono, errante - Rio Grande do Sul.
estrutura no domínio do campo da batalha: (...) h h „ hi g ‟
g „ g ‟; „ g ‟ ã g
„ hi g ‟!.
Gauderiar significa, portanto, andar errante de casa em casa sem ocupação séria - Rio Grande do Sul (...)
(FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa. 11. ed.
Civilização Brasileira, 1969, p. 595).
seu código de honra como o personagem que consegue fazer valer suas posições, num ato
de hombridade. Os mais de cem anos de lutas pela delimitação de fronteiras representam a
construção da moral e da honra da sociedade gaúcha, exigindo daqueles que fazem a
história desta sociedade uma forte dose de resistência física e moral. A construção cultural
da honra gaúcha delimita-se através de imagens que buscam reelaborar esta experiência,
com o monarca das coxilhas, centauro dos pampas, ou seja, da metade pra frente ele é
racional, conversa, e da metade pra trás levanta a cola e faz bobagem (...) (Cortes, 1983,
p. 07). Deste modo, as lutas fronteiriças envolvem uma “dinâmica do terror”, isto é,
degola, profanação, castração, estupro, o que está no fundamento de um senso peculiar de
hombridade.
As lutas entre “chimangos” e “maragatos” e a dialética coragem-covardia
dramatizam, no interior da sociedade gaúcha dividida, os valores e aspectos da honra
gaúcha, do culto ao macho. Assim, medo, fraqueza, incapacidade para a vida rústica,
servem como “categorias acusatórias” ao inimigo, processo este, a que o colono, quando
chega ao Rio Grande do Sul, também tem que se sujeitar. No ridículo destes aspectos
reforçam-se os limites a que o gaúcho deve ater-se na definição da sua identidade social.
Principalmente no domínio da guerra, observa-se o culto ao destemor e o desprezo
pela vida, tendo em vista as péssimas condições de existência das tropas em luta. Estas
mesmas condições também se relacionam com as condições de sobrevivência cotidiana do
gaúcho daquela época. Segundo Saint-Hilaire (1935, p. 34) , os milicianos da região estão
facilmente acostumados a esse regime que pouco difere do seu modelo normal de vida.
Regime este que ele assim descreve: As tropas estacionadas na fronteira da Capitania são
em número de 3.000 homens, compostas de milicianos da região e de uma legião de
paulistas. O soldo desses homens está atrasado há vinte e sete meses, e há três anos que
eles vivem unicamente de carne assada, sem pão, sem farinha e sem sal. A ração de cada
homem é de quatro libras de carne por dia, e somente constituída pelas partes mais
gordas e mais carnudas dos animais. Os oficiais comem fígado com a carne, à guisa de
pão. Os soldados substituem esse alimento fazendo torrar uma parte de suas rações, que
comem com o resto, que é assado de modo costumeiro. Logo, as más condições no campo
de batalha exigem a coragem do “guasca” riograndense, daí decorrendo o uso constante da
violência como forma usual de trato que o gaúcho dispensa, não só ao inimigo, mas a sua
própria vida.
O fato de a região ser um palco constante de guerra, coloca como ponto básico de
honra para o gaúcho a condição da precedência masculina, atuando tanto nas situações
pertinentes à batalha, como no cotidiano da vida social na Capitania. De acordo com as
observações de Saint-Hilaire (a935, p. 41-2) , aqui só se consideram os homens pelas suas
categorias militares, desdenham-se as formalidades da justiça e é perante o General que
se resolvem todas as contendas. É dentro deste culto ao personalismo na guerra e nos
desempenhos de coragem e valentia que se constroem as personagens dos caudilhos,
representando o ideal de honra do gaúcho e a sua capacidade de comando e liderança
sobre os demais. Neste sentido, a prática do ritual da degola, após a batalha, supõe,
justamente, a demonstração viva deste código de honra, onde a hombridade exige que o
vencedor, num ritual que envolve um banho de sangue, em posse não só do direito, mas
do dever de honra, retire a vida dos prisioneiros resgatados no campo de guerra, abrindo
sua garganta de um lado a outro, similar ao que os gaúchos fazem nas arreadas, quando
recolhem o gado xucro para matá-lo e comercializar o couro ou para contrabandeá-lo29.
A própria técnica de guerrear, onde a tropa age em conjunto, sempre alerta para
apertar o círculo da tropa ou abrir campo, processo muito usado nas guerrilhas do pampa,
assemelha-se à concentração da boiada. Nas descrições de Madaline Nichols (1946, p.
705), observa-se que a composição do exército gaúcho diferencia-se muito pouco da dos
habitantes da região, utilizando métodos na guerra extremamente próximos daqueles
usados nas lidas campeiras: O aspecto de um exército gaúcho era tosco. Como armas
carregavam lanças com facas amarradas nas extremidades de varas. Muitos gaúchos
tinham adagas, laços e boleadeiras. (...) Para completar, o aspecto dos próprios
cavaleiros era selvagem. Um exército assim assemelhava-se a uma horda de proscritos.
Com relação aos métodos de guerrear dos gaúchos e sua aproximação com a
prática campeira, a autora os define como “heterodoxos”, ou seja, os ataques gaúchos, por
x ç „g i i i f ‟. Ti h i í i ã g
apavorados cavaleiros inimigos; cada gaúcho empunhando vigorosamente sua lança ou
rodopiando no ar o laço e as boleadeiras para jogá-los nos corpos dos inimigos ou nas
patas dos cavalos dos mesmos, e toda a tropa batendo nos guardamontes com os chicotes,
o que produzia sons semelhantes aos de tiros, como costumavam a fazer para compelir o
gado a movimentar-se (NIichols, 1946, p. 105). É importante, neste momento, a descrição
de parte de alguns rituais campeiros que reproduzem e constituem (ainda hoje) esse ethos
29
O ritual da degola também aproxima as virtudes guerreiras das lidas campeiras, demonstrando uma
sobreposição de estilos de vida que reforçam a visão de um mundo de guascas. Segundo relatos informais de
pessoas que vivem este período, os quais se acham registrados em obras biográficas, a degola chega a
ocorrer na própria estância, onde os prisioneiros são colocados no brete, como gado, sendo laçados na saída,
e então, imobilizados e degolados. Após a degola, são soltos exatamente da mesma forma como o gaúcho
solta o gado novo após a marcação e castração.
peculiar ao gaúcho e sua correspondência a sua visão de mundo cujo culto ao macho
aparece de modo ainda mais preciso.
São utilizadas aqui descrições de inúmeros autores sobre quatro destes rituais que
delimitam algumas fronteiras simbólicas em termos das quais o código de honra da
sociedade gaúcha se constitui.
A) ARREADAS OU VACARIAS
O uso das arreadas refere-se à já citada “preia do gado xucro”. Estas verdadeiras
expedições impõem àqueles que dela participam péssimas condições de vida, porque
podem ser vítimas dos índios, de feras, de doenças e de ataques do próprio gado,
completamente arredio ao contato humano. De acordo com a descrição de Felix Azara,
citada por Décio Freitas (1980, p. 10), as vacarias supõem a preia do gado e a extração do
couro e outros subprodutos do boi, onde o domínio do cavalo é básico: Reúne-se uma
quadrilha de gente pelo comum perdida e facínora, e vão onde há gado, e quando acham
uma ponta ou tropa dele, formam uma meia lua: os ladrões vão unindo o gado, e o que
vai no meio leva um pau comprido guarnecido de uma meia lua bem afiada com que
desjarreta todas as reses, sem deter-se nenhum até que acabaram com as reses ou têm as
necessárias; então voltam pelo mesmo caminho, e o que desjarretou, armado de um
chuço, dá uma chuçada em cada rês que lhe penetra nas entranhas, com o que morre, e se
apeiam os demais para tirar o couro, carregá-lo e estendê-lo com estacas (Azara, 19O4,
p. 177). Neste sentido, a valorização da coragem implica a continuidade desta prática
produtiva, que, por sua vez, representa um campo onde a honra é buscada num mundo
essencialmente masculino.
B) O TROPEIO DO GADO
C) A DOMA DO CAVALO
D) O RODEIO
30
A castração é uma prática ainda eminentemente selvagem na zona da Campanha, onde, apesar das
inovações tecnológicas da medicina veterinária neste âmbito, costuma-se capar os machos (ovinos ou
bovinos) com menos de 3 anos, extirpando-lhes os testículos, sendo utilizada apenas a faca. Em alguns
lugares, após a extirpação, os testículos são assados em brasas e comidos por homens, e somente por estes,
presentes no local.
apontar algumas das metamorfoses ocorridas no corpo da sociedade gaúcha, em função de
uma política social, que implicam mudanças na personagem paradigmática que retrata seu
ethos e visão de mundo e seu conceito de honra - o guasca riograndense.
Inúmeros autores interessados no estudo do culto ao gaúcho, em seu aspecto
ideológico, indicam algumas metamorfoses nesta personagem, que passa da sua vertente
gaudéria à de peão. A estas alterações, na composição do homem gaúcho, corresponde a
transfiguração da sociedade riograndense, isto é, transfiguração do seu aspecto tradicional
para um outro, considerado mais moderno. Assim, a expansão de um capitalismo
industrial, e/ou agrário, transforma a região gaúcha da Campanha, terra de ninguém, em
estâncias. Estas alterações supõem a valorização do passado e da tradição como espaço
delimitador da identidade regional riograndense. Ao longo deste processo, observa-se a
busca da normatização da vida social no pampa, a reordenação do espaço público/privado
neste contexto, e suas implicações no código de honra gaúcho, assim como no campo de
atuação da personagem principal - o macho.
Encontram-se citadas, nos vários autores que registram sua passagem no território
gaúcho neste período, muitas das ações que resultam na busca de controle e ordenação da
vida social no pampa, de modo a submetê-la à lógica da produtividade e racionalização
econômica. Isto gera novos estilos de vida, tanto nas zonas de Campanha, como nas vilas e
cidades. No período que se identifica como da terra de ninguém, observa-se a dominância
da figura do gaudério - gaúcho “sem moral” e com ideias vulgares, respeitando a
propriedade e o espaço somente daquele que o beneficia, emprega ou confia, possuindo,
deste modo, um senso de probidade condicional. Esta personagem é aquela
frequentemente requisitada nas lutas e guerras de fronteira, na formação dos
destacamentos militares. Sua convocação tem por base, o código peculiar da honra, onde a
astúcia, a coragem e a heroicidade conduzem ao culto ao macho, à raça dos guascas.
Assim, esta personagem que anda de rancho em rancho e nas pulperias, embriagando-se e
despois de uma faca na mão, brigando com todo mundo, estão sempre sujos; suas barbas
sempre por fazer; andam descalços, e mesmo sem calças sob a completa cobertura do
poncho. Por seus costumes, maneiras e roupas, conhecem-se os seus hábitos; sem
sensibilidade e muitas vezes sem religião. Eles são chamados de gaúchos, camiluchos ou
gaudérios (depoimento de Miguel Lastarria, em 1805, apresentado por Madaline Nichols,
1946, p. 31). Estes gaudérios têm sua origem na dispersão das Missões e na prática
corriqueira do estupro das índias por bandeirantes e soldados. Apresentam-se então, como
um homem livre que não representava qualquer aplicação de capital (Freitas, 1980, p.
10).
A busca de ordenação do mundo caótico da Campanha, fonte da identidade
regional e do código de honra do povo gaúcho passa por alterações no século XIX, quando
se inicia a colocação do arame farpado na divisão das propriedades e estâncias. Portanto,
esta primeira atitude significa a privatização da zona da Campanha, representando a
estância com seus posteiros e peões, o primeiro veto oposto à liberdade sem peias do
gaúcho nômade (Cesar, 1979, p. 14). Mas o início da formação das estâncias delineia-se
antes, quando da concessão de sesmarias de ordem do Rei a quem possa povoar e defender
a terra da ocupação castelhana. Com o cercamento dos campos, tudo que não se
aglutinasse à estância ou ao quartel equiparava-se ao banditismo (Gonzaga, 1980, p.
116), considerando-se suas personagens como inimigos da ordem. O gaudério, então,
surge como uma personagem que acaba por ficar estrangulada pela racionalização
econômica e sua política social, sendo forçado a assumir seu papel determinado na
estrutura latifundiária-pastoril ou na sociedade militarista do Rio Grande do
Sul.Entretanto, como aponta Sergius Gonzaga (1980, p. 118), o processo de
transformação do gaudério-pária em gaúcho-aristocrata, cheio de virtudes civis e
militares, não foi instantâneo nem uniforme: durou várias décadas, encontrou muitas
formulações e teve o seu coroamento apenas no século XIX (...). Ou seja, a privatização do
campo e a expansão da norma e da ordem da Campanha ocorrem, principalmente, em
função do surgimento das cercas de arame, em 1870, com a implantação da racionalidade
ao campo, na introdução de novas raças de gado, na modernização, na criação da rede de
transportes, etc. Aí, então, o gaúcho se converte em homem gentílico irremovível na
defesa da „h ‟ os „ i i ‟ (Gonzaga, 1980, p. 121).
O código de honra antes referido a uma experiência social peculiar “cristaliza-se”
no século XX, no culto à tradição, aparecendo a figura do peão - parte de uma massa de
trabalhadores rurais da estância gaúcha - justaposta à idealização do seu passado gaudério.
Acompanhando estas alterações na estrutura socioeconômica do Rio Grande do Sul e em
sua politica social, estão presentes metamorfoses no tipo de sociabilidade que caracteriza a
zona da Campanha antes da privatização do campo e da normatização do gaúcho. A
sociedade riograndense, no período em que predomina a figura do gaudério, aproxima-se
muito da descrição que Philipe Ariès (198l) faz das Sociedades tradicionais. Neste sentido,
a comunidade, mais que a família, constitui-se elemento importante na formação e no
destino do indivíduo. Esta comunidade exige relações de solidariedade entre seus
elementos31.
Importante também, revelar a forma como este autor coloca a relação entre o
indivíduo e a comunidade, em termos de um jogo-espaço. Isto é, o homem, como um
animal, uma ave, deve fazer com que a comunidade reconheça que possui um domínio, um
espaço seu, e fazer com que suas fronteiras fossem sem aceitas, cabendo a si mesmo
determinar os limites de seu poder, o que poderiam fazer e até que ponto ir, sem
encontrar as resistências dos outros, fossem seus pais, sua mulher, seus vizinhos, ou seja,
a própria comunidade (Ariès, 1981, p. 73). A conquista do seu domínio depende,
grandemente, de sua habilidade de utilizar os dons da natureza e do nascimento. Desta
forma, uma vez bem sucedido, o jogador se fazia dono de seu lugar. Hesitando em se
impor, era relegado a papel subalterno (Ariès, 1981, p. 14). A descrição da socialização
do gaúcho feita por Madaline Nichols (1946, p. 41) aproxima-se da descrição feita acima:
A educação do gaúcho era limitada à aquisição de habilidade para trabalhar e divertir-
se. Um rapaz, apenas nascido, era carregado a cavalo na frente de seu pai ou de seu
irmão; quando chorava, eles togo o levavam para a casa a fim de ser amamentado,
voltando então a cavalgar. Essa prática continuava até que êle estivesse bastante crescido
para se manter sozinho no lombo de algum cavalo Velho (Nichols, 1946, p. 39). Ou então,
ainda em suas palavras: Um exagerado sentimento de domínio sobre o destino provinha do
simples ato de percorrer, no lombo de um cavalo, a imensidade da planície.
De acordo com Ariès 1(981, p. 14), a noção de domínio é importante, pois este não
se caracteriza nem como público, nem como privado. É privado enquanto correspondia ao
comportamento individual, ao caráter do homem, à sua maneira de estar só ou em
sociedade, à consciência de si mesmo, ao seu ser profundo. É também público porque
designava o lugar do homem na coletividade, seus direitos e deveres (ARIÈS, 1981, p.
14). Segundo este autor, isto é possível, pois o tecido social é “frouxo”, o espaço social
não está completamente preenchido. Neste sentido, assemelha-se a um jogo, em torno dos
seres como em torno das coisas. É comum os autores que descrevem a sociedade gaúcha
desta época apontarem que a vida do gaúcho é uma constante diversão, um jogo, uma
aposta. Segundo Ariès (1981, p. 14), talvez o jogo lúdico fosse o meio de criar ou de
manter o jogo-espaço. A descrição que Nichols (1946) faz dos gaúchos - nas pulperias -
expressa claramente este jogo-espaço: A pulperia, ou loja da campanha, era o lugar de
31
A noção de comunidade está expressa mais adiante, de acordo com a conceituação de pueblo que Pitt-
Rivers (1979) utiliza para a população de Andalucía.
reunião dos gaúchos. Nela podia ser jogada uma partida de cartas ou podia ser
combinada uma corrida de cavalos. Em cada pulperia havia um vilão e alguém ansioso
por tocar para os fregueses ansiosos para cantar (...) (Nichols, 1946, p. 40)32.
O Estado, portanto, neste período da vida da Campanha - a grande sociedade -
intervém minimamente. A família deve cumprir seu papel de reforçar os domínios do
indivíduo, sem alterar suas relações com a comunidade, não possuindo um domínio que
seja seu: cada sexo tinha seu lugar, o único domínio próprio é o que cada indivíduo do
sexo masculino conquistava por sua estratégia, com a ajuda da sua mulher e também dos
seus amigos ou clientes (Ariès, 1981, p. 15).Associa-se ao período da terra de ninguém a
existência deste jogo-espaço e a sua estruturação num código peculiar de honra, onde os
homens se apresentam como figuras corajosas, de quem contam-se deles milhares de feitos
que demonstram sua intrepidez. Estão sempre dispostos às mais árduas lutas, mas ao
mesmo tempo é difícil sujeitá-los a uma disciplina regular (Saint-Hilaire, 1935, p. 126).
Assim sendo, a expansão das estâncias e o cercamento dos campos implica uma
alteração no tipo de sociabilidade existente até este período. Coloca-se a importância do
controle e influência do Estado, em oposição à comunidade. A comunidade tinha uma
fronteira, ou antes, fronteiras, que a audácia dos indivíduos deslocava (Ariès, 1981, p.
15), o que passa a ser controlado no momento em que se privatiza a zona da Campanha.
Assim, não há espaço para o aventureiro, nem se admite a existência de zonas desertas. O
jogo não é mais aceito: a nova sociedade é mais bem ajustada (Ariès, 1981, p. 15). Outro
aspecto apontado por esse historiador, neste processo de transformação da sociedade
tradicional em moderna, é que ocorre uma separação da esfera do trabalho das demais
esferas da vida social - no caso do Rio Grande do Sul, surge a figura do peão, submetido a
uma disciplina e a uma hierarquia. A estância depende agora da precisão do conjunto,
não mais do antigo jogo-espaço.
Neste momento, surge o lugar da família, a partir da divisão entre o setor público e
o privado na vida social: Nela, o indivíduo se apaga em benefício do grupo familiar
(Ariès, 1981, p. 16). Desta forma, o gaúcho, cujo modo de vida é definido como à margem
da lei, torna-se domesticado. Fica, no culto à tradição, a forma de recuperar sua identidade
social, através do culto ao código de honra referente ao período de formação do povo
32
A falta desta separação entre privado/público e a relação do jogo-espaço como delimitador do domínio
onde circula o gaúcho, neste período histórico, também se demonstra nas carreiras de cavalos e jogos de
carta - ainda extremamente comuns nas zonas rurais do Estado.
As carreiras de cavalos tornavam-se duelos, montando cada homem seu próprio animal. Os jogos de cartas
preferidos eram aqueles onde a habilidade prevalecia, em que alguém atacava e defendia-se de homem a
homem (NICHOLS, 1946, p. 42).
gaúcho, numa reconstrução simbólica do centauro dos pampas. Enquanto sistema cultural,
este código de honra afirma a precedência do ethos e da visão de mundo da sociedade
gaúcha em sua fase tradicional sobre a atual, moderna. Desta forma, os valores e noções
referentes ao Rio Grande do Sul como sociedade tradicional - de acordo com a
conceituação de P. Ariès - coloca-se como referencial na formulação de conceitos de uma
ordem de existência geral (Geertz, 1978, p. 105).
O refúgio no tradicional tem implicações não apenas na dissimulação de relações
hierarquizadas entre as classes sociais que compõem a sociedade gaúcha- onde se
apresenta a história gaúcha como uma “história sem povo” - como também permite
expressar, na “questão regional”, os laços de exploração da sociedade nacional em relação
à sociedade regional do Rio Grande do Sul. Segundo Schwartzman (1980, p. 370), a
“questão regional” permite desvincular a história dos conflitos entre as tendências de
centralização e concentração de poder e a força centrífuga das diferentes regiões, que
acabaram se integrando de alguma forma na nacionalidade brasileira. O refúgio no
tradicional recoloca, ainda, a sociedade gaúcha em função de um código de honra que
também se apresenta como uma política sexual.
Neste sentido, o culto à personagem modelar do gaúcho, à natividade e o
surgimento do Tradicionalismo no Rio Grande do Sul, também revelam uma insistência na
ordenação social hierarquizada entre os sexos. Não apenas dissimulam relações de classe,
mas acima de tudo, conduzem a uma política sexual que tem por base um código de honra,
onde o culto ao macho e a natureza dos seus sentimentos e atitudes revelam o predomínio
da noção de hombridade e da precedência masculina, e onde os domínios dos papéis
sexuais acham-se adstritos a uma hierarquia que reforça seus códigos de honra33.
33
Cabe aqui, registrar a letra da música rancheira “Morocha”, apresentada num festival de música nativista,
em 1984. A referida letra causou grande polêmica nos meios de comunicação de massa pelo machismo com
que aborda as relações entre os sexos, vinculando-as à relação do homem com os animais selvagens. Neste
sentido, ocorre uma comparação da condição feminina na situação de submissão sexual enquanto sujeição à
dominação viril do macho.
34
A presença desta classificação do comportamento feminino, em referência ao aspecto moral dos papéis
sexuais no espaço público e privado, nos relatos e descrições da sociedade gaúcha, é uma constante.
Isto é comumente abordado na literatura antropológica sobre as sociedades mediterrâneas, sendo enfocado
nas personagens femininas da bruxa, da viúva, da prostituta. A respeito disso, ver Pitt-Rivers (1979) e
Campbell (1968).
Mary Douglas (1976, p. 16), propondo uma reflexão sobre as ideias e noções de sujeira, pureza e contágio,
recoloca a questão do perigo numa dimensão que se constata na história social da honra gaúcha. Ou seja,
propõe uma reflexão sobre a relação entre a ordem e a desordem, ser ou não ser, forma e não-forma, vida e
morte. As implicações morais para a delimitação da honra-vergonha feminina na sociedade gaúcha, portanto,
podem ser vistas sob este ângulo.
Observa-se, então, no espaço social da fazenda, a presença de relações sociais e papéis
sexuais já definidos segundo alguns padrões e modelos de conduta, que encontram sentido
dentro do processo de normatização da sociedade gaúcha. Persistem, ainda, imprecisões de
limitação dos fundamentos morais da família e da sua política sexual, em função da
inexistência de uma hegemonia no código moral da honra e de limites precisos das esferas
público/privado.
É notório que estes tipos sociais sejam oriundos das ilhas dos Açores, não sendo
comum que uma índia chegue a desempenhar o papel de dona de estância. A timidez e o
recato são observados nestas mulheres, sendo raras as vezes em que o autor se refere ao
fato de entrar no interior das suas casas na ausência do marido, e, na maioria das vezes em
que isto acontece, refere-se ou a viúvas, ou a mulheres que têm seus maridos participando
de alguma disputa ou guerra local. Já nas cidades existentes, é outra a personagem. Trata-
se das damas da sociedade local, vivendo a construção recente de outro código moral. Da
sua estada em Porto Alegre, o autor afirma: Aqui as mulheres não se escondem, mas não
há em Porto Alegre mais sociedade que nas outras cidades do Brasil (Saint-Hilaire, 1935,
p. 37), ou seja, não existe um padrão de cerimoniais e pontos de encontro que sirvam
como locais e modelos de reuniões sociais, cada um vive em seu canto ou visita seu
vizinho, sem cerimônia, com roupas caseiras. Assim, não há o hábito de uma vida
sofisticada e cheia de atrativos como na Europa, de onde o autor se origina. Isto é em torno
dos anos de 1820-1821. Vê-se como, quase um século depois, o panorama urbano se
modifica, atuando um outro tipo de sociabilidade onde os espaços público/privado se
acham bem delimitados.
As descrições dos bailes frequentados pelo autor em Porto Alegre e Rio Grande,
ambos importantes centros de vida urbana na Capitania, revela, por outro lado, como
ocorrem as relações entre homens e mulheres neste meio, muito diferente daquele descrito
na zona da Campanha gaúcha, em termos da separação das esferas público/privado e do
tipo de sociabilidade diferenciado imposto por ambas: As mulheres falavam
desembaraçadamente com os homens e estes cercam-nas de gentilezas, sem contudo
demonstrarem empenho ou ânsia de agradar (...) (Saint-Hilaire, 1935, p. 42). Nestes
bailes, o autor descreve a importância do gosto feminino pela arte, música ou poesia, a
falta de luxo nos trajes, em se tratando de festa entre pessoas intimas, a graciosidade
feminina, embora presencie a falta de vivacidade das mulheres, que tanto “caracteriza as
francesas”. Por outro lado, aponta para falta de brandura com que os homens as tratam.
Nesta atmosfera, onde já vigora, de modo rudimentar, o embrião de um estilo de
vida moderno, muito diversa daquela encontrada em zonas de estâncias do Rio Grande do
Sul, o autor chega a afirmar que no interior as mulheres se escondem e não passam de
primeiras escravas da casa; os homens não têm a mínima ideia dos prazeres que se
podem usufruir decentemente (Saint-Hilaire, 1935, p. 42). Percebe-se a constatação de um
disciplinamento maior do papel feminino e masculino na vida urbana da sociedade gaúcha,
colocada em contraste com a falta de “civilidade” e de padrões mais “sofisticados” da vida
e das relações sociais na estância e na Campanha.
Observa-se que o autor percebe uma diferença qualitativa no tipo de sociabilidade
de ambos os sexos nas diferentes sociedades, e na delimitação de seus domínios, apenas
conseguindo descrevê-la. As descrições específicas à sociedade de Rio Grande
demonstram a preocupação com o estabelecimento de normas para o controle da vida
pública e sua diferenciação do domínio do privado, embora se identifique a presença de
uma oscilação na gradação dentro da estrutura social em que o autor se encontra. Deste
modo, nas festas de Rio Grande, as mulheres são algumas bonitas, porém sem atrativos,
sendo para com os homens muito desembaraçadas, ou demasiadamente tímidas (Satin-
Hilaire, 1935, p. 99). Já os homens são poucos solícitos junto às senhoras, quase não lhes
falando e não mostrando o menor desejo de lhes ser agradáveis.
Observa-se que o culto à hombridade, ao macho, perpassa toda a sociedade
riograndense, a ponto de marcar as relações entre homens e mulheres no meio urbano da
época, caracterizando essas relações como cerimoniosas, mas não envolventes, o que
demonstra uma preocupação com o comedimento sexual das mulheres, assim como com a
expressão de fraqueza ou “frescuras” dos homens. No caso masculino, isto é uma ameaça
à honra masculina, que se define em função da virilidade, da coragem e rudeza, no caso
feminino, demonstra a possibilidade de uma aproximação com as chinas ou índias,
condenadas por sua voluptuosidade e promiscuidade. Em ambos os casos, é o código de
honra oriundo da zona da fronteira que prevalece no meio urbano da época - na honra
masculina, referida à hombridade e na feminina, relacionada à conduta sexual.
Assim, os códigos de honra, nesta época, sofrem um processo de burilamento, na
medida em que se percorre a sociedade riograndense da Campanha à vida citadina. A
primeira, fonte dos símbolos delimitadores de uma identidade regional e a segunda,
sofrendo influências na formação dos seus valores, na busca constante de se diferenciar da
rudeza, agressividade e violência da vida na Campanha, mas sempre problematizada em
função daquele código de honra onde ser gaúcho é definido pelo culto à hombridade e pelo
seu senso de defesa da honra, através da coragem, da astúcia e da prerrogativa masculina
face à passividade e fragilidade feminina.
Desta forma, afirmando este código de honra, ou buscando negá-lo, tendo-o no
fundo como única referência, a sociedade riograndense sofre modificações circunstanciais
no século XX, quando, então, o Rio Grande do Sul passa, após 1930, a ser incorporado na
vida nacional, sendo progressivamente encompassado pelo ritmo de modernização e pela
complexa fragmentação da vida social. Quase um século após as descrições de Saint-
Hilaire, retorna-se a elas de alguma maneira, quando se aborda a obra de Andradina de
Oliveira, que escreve A Mulher Riograndense, em 1907, e que, no relato de diferentes
histórias da vida de escritoras famosas na sociedade riograndense, esclarece um pouco
mais a respeito da situação da mulher na sociedade gaúcha e no seu papel neste código de
honra peculiar.
Suas observações, ao longo da trajetória social destas mulheres, apontam para
alguns requisitos importantes idealizados para a realização da identidade social feminina
no mundo dos “guascas”, face ao aspecto da modernidade. Recortando os momentos
pessoais destas trajetórias, a autora constantemente refere-se ao aspecto “encantador”,
“gracioso” e “belo” das figuras femininas na esfera familiar, vez por outra salientando a
sua força moral como elemento da identidade social feminina na esfera pública. Nos seus
escritos, observa-se claramente que, já há, na sociedade gaúcha, a divisão público e
privado, tendo a mulher conquistado posição importante na esfera do lar. Assim, na
família, as mulheres são um anjo, filha ou irmã encha de inefáveis carinhos o lar
(Oliveira, 1907, p. 11). O desempenho do papel materno é grandemente ressaltado - Mãe,
é de um extremo que toca às raias do fanatismo. Tudo pelo filho! (1907, p. 12). Salienta,
por seu turno, a importância da pureza feminina e os perigos para a sua reputação e moral.
Assim, é colocada como importante a atuação feminina na atividade social, no sentido de
preservação dos fundamentos morais da família, pois para quando faltar-lhe, um dia, o
braço masculino, ou do pae, ou do irmão, ou do marido, ou do filho, não ser preciso, para
matar a fome, atirar-se ao tenebroso abysmo do vicio (Oliveira, 1907, p. 13). Revela-se,
novamente, a proximidade com o passado da Campanha, onde uma mulher só pode atingir
o status de uma pessoa degradada moralmente.
A atuação feminina no espaço público é conduzida em função da educação ou da
caridade, referindo-se, basicamente, àquelas regiões morais da vida social que se
aproximam da esfera familiar, como é o caso de instituições religiosas e escolares, onde é
possível à mulher permanecer com sua condição moral inalterada. É importante registrar
que as histórias de vida que compõem este livro referem-se ao século XIX, a partir de seus
meados. Comenta-se, constantemente, a importância da educação intelectual como forma
de desenvolver-se e aprimorar-se uma educação moral feminina, que no fundo projeta as
glórias do Rio Grande do Sul35. Trata-se de educar a mulher para além do seu papel de
esposa e mãe, como forma de garantir a defesa moral da sociedade gaúcha, dos seus
familiares e parentes, pais, maridos e filhos.
O culto à virgindade é reforçado quando a autora salienta que algumas destas
mulheres guardam apenas para si os soluços e sonhos virginais. A maior virtude feminina
é a manutenção da virtuosidade do lar, dada não só na educação moral das mulheres, mas
na sua educação intelectual. Educação esta que se limita ao direito das mulheres
alfabetizarem-se e trabalharem em prol da educação generosa e caridosa, atuando como
professoras. Neste sentido, a relação do comportamento feminino tem muito da
manutenção da honra gaúcha, das glórias da sociedade gaúcha.
A importância do lar, do marido e dos filhos está expressa numa das muitas
descrições que a autora faz em seu livro: E ella pensou nas douçuras santas da família;
sonhou um lar feliz ao lado de um ente que muito a amasse e a comprehendesse ainda
mais (Oliveira, 1907, p. 45), ou, então, uma filhinha veio então desvendar à sua alma
delicada de o mais puro e santo dos affectos - o de mãe“. Assim, não apenas cumpre à
mulher preservar a honra masculina, mantendo um papel de subalternidade e fragilidade
ante sua ação e prerrogativa, numa sociedade guerreira e militarista em sua origem, como
após a constituição das fronteiras gaúchas e a delimitação do seu código ético-moral a
partir do espaço familiar, cumpre a necessidade de enobrecer, com sua conduta social, a
“pujança” do Rio Grande do Sul. Observe-se qual a politica sexual por trás do código da
sociedade gaúcha, que valoriza e cultua os valores masculinos, e que torna sua
comunidade de origem como principal fronteira para a construção dos valores e noções
que orientam a prática social do gaúcho e seu senso de honra. A discussão da honra do
gaúcho se reflete na questão da nova reputação do mesmo, e depende não só da classe
(peão, estancieiro), mas também do gênero (homem ou mulher).
35
Já Saint-Hilaire (1935, p. 71) aponta para a questão moral da condição feminina na Campanha como um
aspecto relevante na formação do povo gaúcho, e na sua noção de honra, quando comenta que as meninas,
criadas no meio de escravos e tendo sob seus olhos, desde a mais tenra idade, o exemplo de todos os vícios
deles, adquirindo ao mesmo tempo o hábito do orgulho e da baixeza.
Neste momento, busca-se aspectos comparativos entre os estudos realizados por
Pitt-Rivers (1979, 1968), Peristiany (1968) e Campbell (1968) em sociedades pertencentes
ao complexo mediterrâneo e a sociedade gaúcha como parte representativa à nível de
Brasil, das noções e valores mediterrâneos, juntamente com o conceito de honra que lhe é
pertinente. Assim, intenta-se compreender o conceito de honra da sociedade gaúcha à luz
do conceito de honra das sociedades pesquisadas por estes autores, definindo semelhanças
nos traços socioculturais destas sociedades, que permitem a comparação entre estes
conceitos e a posição estrutural que as diferenças sexuais ocupam neste domínio. De
acordo com as ideias de Pitt-Rivers, as questões de honra afetam não apenas os indivíduos,
isto é, os grupos sociais possuem honra coletiva, o que possibilita o estudo do conceito de
honra não só como atributo individual, mas como um sistema cultural onde um
determinado grupo social constitui sua identidade.
Desta forma, um membro de um grupo social comparte el honor de su grupo
(1979, p. 35), ao mesmo tempo em que a reputação social de um se reflete na honra de
todos os membros. Mas, principalmente, a honra do indivíduo é uma honra socialmente
atribuída, depende dos critérios que orientam sua conduta social dentro da sua sociedade.
Logo, a honra se origina no indivíduo, mas se manifesta como tendência no domínio
social. Como contrapartida da noção de honra, afirma-se a importância da vergonha como
um sentimento que busca preservar a reputação do indivíduo. A vergonha se afirma,
portanto, como uma virtude. No entanto, conforme este autor, honra e vergonha são
qualidades eticamente neutras e, no domínio social, tornam-se valores que fundam as
diferenças entre os sexos, articulando seus fundamentos morais (Pitt-Rivers, 1979).
Portanto, honra, no nível de um grupo social ou de um indivíduo, se refere a uma honra a
que se aspira e que se quer reconhecida, decorrendo, daí, a busca de uma posição social
onde as transações de honra são meios através dos quais los indivíduos encuentran su
papel dentro de la organización social (Pitt-Rivers, 1979, p. 81) .
6 - APROXIMAÇÕES SOCIOCULTURAIS
36
Segundo o relato de Mark Jefferson, apresentado por Madaline Nichols (1946, p. 44), pode-se perceber a
dimensão desta noção de “democracia”: O que era fundamental no caráter gaúcho era sua utilização familiar
dos cavalos e das vacas. Ele podia ser pobre ou rico; podia ser branco ou ter considerável porção de sangue
indígena; podia ser subserviente ao patrão ou exigir homenagens com o proprietário de terras ou mesmo com
o bandido.
A relação entre peões e patrões - a importância da personagem do caudilho –
recoloca, novamente, algumas aproximações entre as sociedades mediterrâneas,
especialmente aqui, no caso de Andalucía, e a sociedade gaúcha. Segundo Nichols, os
exércitos gaúchos poderiam ser bárbaros - e eles com certeza o foram nas guerras civis -
mas quando conduzidos por chefe que sabia como tratar seus homens, eram altamente
eficientes. O importante das relações entre a peonada e o caudilho, que Freitas (1980)
formula como um senso peculiar de probidade condicional, é que elas envolvem, acima de
tudo, o fato de que um patrão ou chefe militar deve ter o domínio do código de honra
gaúcho com base nos valores da raça-coragem, disposição guerreira, audácia, pois,
somente assim, aqueles personagens incrementam o prestígio da própria peonada. Isto é, o
patrão incrementa seu prestigio a partir da posse de empregados e os empregados
participam, assim da gloria de seus patrões (Pitt-Rivers,, 1968, p. 57). O compromisso
com base na honra é colocado como fundamento do caráter condicional do senso de
probidade do gaúcho. Desta forma, como Pitt-Rivers afirma para o povo de Andalucía, a
honestidade e a lealdade são definidas em determinadas situações com pessoas específicas,
dentro do domínio do pueblo.
A respeito da dinâmica de delimitação do domínio do pueblo na sociedade gaúcha,
de acordo com o seu período formativo e o código de honra que então começa a se
estruturar, não pode ser abandonado o fato de esta ser uma sociedade guerreira e
militarista, justamente por circunstâncias históricas que colocam no seu interior a disputa
de duas nacionalidades – a espanhola e a portuguesa - numa região habitada por grupos
indígenas de diferentes composições, como os charruas, minuanos e guaranis. Neste
sentido, busca-se afirmar, na dinâmica da delimitação dos pueblos, aspectos aproximativos
dos sarakatsani, pastores do Norte da Grécia, estudados por Campbell (1968). Este autor
aponta pelo menos dois aspectos que, na formação histórica da sociedade gaúcha, podem
ser observados, ou seja, a questão de que a comunidade dos sarakatsani é formada por
grupos sociais opostos e competitivos e é de que os mesmos não possuem instituições
políticas formais. Nesta comunidade, a solidariedade constitui-se através da categoria de
honra simbolizada na ideia de sangue. O autor aponta para os mais diferentes tipos de
conflito, desde o roubo de ovelhas a invasões furtivas dos pastores.
Semelhantes observações conduzem à reflexão da composição da sociedade gaúcha
no período da formação do seu código de honra básico, quando esta não possui limites e
fronteiras definidas, sujeita a disputas entre a Coroa Espanhola e a Portuguesa, o que
conduz seus membros a uma constante definição da sua identidade social, no sentido de
sobreviver a estas dispersões políticas e sociais. A competição origina, na comunidade
estudada por Campbell (1968, p.130) a valorização da hostilidade, da desconfiança, e,
logo, do auto-disciplinamento contra a covardia, e onde o sangue está em última relação
com a coragem. A honra, assim, liga-se a sentimentos de amor próprio e vergonha, o que,
por sua vez, reforça a atitude positiva da competição. Isto se torna relevante no caso de
uma sociedade como a gaúcha, no período formativo, com alto grau de fragmentação. É
importante considerar que, ainda no séc. XX, ocorre o levante revolucionário de 1923,
como decorrência da Revolução Federalista de 1893, que divide a sociedade gaúcha, não
mais em portugueses e castelhanos, mas em “maragatos”, “pica-paus” e “chimangos”.
O sistema de valores que leva à delimitação do código de honra da sociedade
gaúcha se refere, portanto, à fragmentação e competição existentes no interior dos seus
grupos sociais, seja no período da sua formação, seja em períodos posteriores. A questão
do amor próprio, neste código de honra, acha-se associada, como coloca Campbell (1968,
p.130) , ao sentimento de vergonha. E o que se pode observar no caso da competitividade:
Por fim, e possivelmente mais expressivo de tudo, o gaúcho era combativo (Nichols, 1946,
p. 42). Disto resulta um alto grau de competição, não lhe bastava possuir habilidades
especiais que seu modo de vida fazia necessárias. Ele deve contrapô-las às dos outros,
como a ideia de impor sua superioridade e com a esperança de mantê-la sobre todos os
parceiros, A atitude competitiva traz como consequência, uma preocupação extremada
com a estima social, que pode incidir sobre o seu amor próprio. A competição, agora como
tendência de uma sociedade agonística, se reflete num estímulo, impelindo o gaúcho à
mais insensata temeridade tanto para conquistar seus rivais como para merecer-lhes as
unânimes aclamações. Ainda mais uma vez, de acordo com as colocações desta autora
(Nichols, 1946, p. 43)., observa-se, na sociedade gaúcha, e na honra masculina, uma
preocupação constante com a estima social, isto é, essa ânsia por superioridade que o
obcecava, levava o gaúcho até os mais espantosos atos de coragem... dando-lhe o
sentimento de ridículo e endurecendo- o para a dor. Torna-se significativa a aproximação
com a afirmação feita por Campbell (1968) sobre os sarakatsani, onde deve haver la lucha
de autodisciplina contra la cobardia, com base em valores egocêntricos - em que o
conceito de honra se expressa, essencialmente, na ideia de dignidade.
Assim, pode-se concluir sobre alguns aspectos essenciais da sociedade gaúcha e do
seu código de honra. Primeiramente, o fato dessa sociedade se apresentar simultaneamente
competitiva e fragmentada, afirma a primazia do entremeado das relações sociais - as
desventuras de um grupo social, de algum modo, afetam a integridade, em termos
positivos ou negativos, dos outros grupos sociais. É o caso da forma como os
conquistadores definem os índios e suas mulheres, ou de como ridicularizam seus
opositores atribuindo a estes, qualidades como fraqueza e covardia, onde o humilde e
modesto não têm espaço, sendo fonte de chacota, exatamente como entre os sarakatsani,
onde un hombre sólo es bueno cuando és tambiên fuerte. Portanto, el débil, e el humilde,
el modesto, incluso eI meramente benévolo y cooperativo, no es virtuoso (Campbell, 1968,
p. 138).
Em segundo lugar, os valores que norteiam a sociedade gaúcha, a partir deste
código de honra, revelam-se, como nos pastores montanheses, como valores egocêntricos.
Isto coloca uma preocupação que o indivíduo tem por si mesmo, seu amor próprio, sem
muita preocupação com os demais. Neste sentido, e em complementação às observações
feitas acima, os valores de honra são excludentes e particularistas. Daí decorre que em
geral não é vergonhoso lançar insultos, senão recebe-los (Campbell, 1968, p. 138).
Embora se associe a formação da sociedade gaúcha ao aspecto competitivo e
fragmentado que esta possui na sua origem, fato que se torna relevante registrar, é que o
seu código de honra se tornar comum àqueles que se definem como pertencentes a ela.
Utilizando-se Peristiany (1968), diz-se que a base valorativa da honra da sociedade gaúcha
constitui-se num fundo comum, isto é, o ideal de honra é mantido em comum pelos
agentes, o que possibilita uma linguagem valorativa também comum. Assim como este
autor demonstra que os habitantes de Pitsilla, uma aldeia greco-cipriota, orgulham-se da
crença de que são racial e linguisticamente mais puros – os depositários e a incarnação los
depositários y la encarnación vivente de los valores tradicionais de hombria,
perseverança, entereza de caráter y generosidad (Peristiany, 1968, p. 158) - os gaúchos se
revelam os representantes típicos da raça dos machos e guascas, aqueles que encarnam os
princípios máximos da hombridade na nação brasileira.
Peristiany aponta um passado de lutas, domínios e influências na formação da
sociedade greco-cipriota, muito próximo daquele descrito no início deste capítulo sobre a
formação da sociedade gaúcha. Ou seja, a ilha de Chipre está sob a dominação bizantina e
a instauração do reinado franco, a ocupação inglesa e a dominação turca. Deste modo,
Peristiany se refere a uma sociedade em luta com a formulação da sua identidade. De
alguma forma, isto se compara à situação das lutas e guerras que constituem a história da
sociedade gaúcha, indefinida entre uruguaia, argentina e brasileira, e que resulta nas lutas
para definição das fronteiras do Brasil Meridional. Certamente, estas condições históricas
podem ser aproximadas daquelas enfrentadas pela sociedade greco-cipriota em sua
formação, onde a aldeia cipriota se torna unidade de evaluación moral dos componentes
básicos da identidade social dos seus habitantes. Então, as únicas obrigações
imediatamente significativas são as das famílias, da aldeia e da nação, e as referentes ao
eu (pessoa) em que a própria honra esta em jogo (Peristiany, l968, p. ). Estas colocações
dialogam com muitos dos comentários de diferentes autores acerca do espírito nacionalista
da sociedade gaúcha, vinculado às guerras de fronteiras por que passa a formação desta
saciedade - o gaúcho tornou-se um símbolo do espírito nacional e das realidades
nacionais (Nichols, 1946, p. 109). Peristiany (1968, p. 172) apresenta, assim, uma
aproximação entre a ideia de nação e a de família - formada por homens que
compartilham um mesmo nome, dispostos a defender sua honra, segundo uma mesma
motivação.
Novamente, retorna-se ao código de honra que vigora neste tipo de sociedade, onde
o recorte da identidade social do grupo ocorre em função do fato de compartilharem de um
mesmo código de honra. Assim, tanto a sociedade gaúcha quanto a greco-cipriota, não se
apresentam em esferas de competência claramente delimitadas na sua formação histórica,
remota ou recente, o que se reflete no fato da honra residir na capacidade de precedência
do seu povo. Isto é, quando as esferas de influência não estão claramente delimitadas,
cada ator teme una invasã de sua área de prerrogativas e as afimar contra todos os
intrusos (Peristiany, 1968, p. 171). Os greco-cipriotas, assim como os gaúchos, possuem
em seu conceito de honra uma preocupação em provar a si mesmos o lugar que ocupam.
Assim sendo, para atuarem, precisam converter as relações anônimas em pessoais, o geral
em particular. A afirmação feita por este autor se coloca como válida para a descrição da
sociedade gaúcha e seu código de honra, ou seja, a honra se refere ao cEodigo de uma
micro-sociedade exclusivista e agonística.
Por outro lado, este mesmo autor desvenda a inaptidão masculina para o convívio
social, descrevendo o comportamento dos homens como arredio a este domínio da
sociabilidade citadina. Desta forma, assim como não há uma norma na conduta feminina,
em termos morais, neste domínio da vida em sociedade, também não o há no
comportamento masculino. Assim, quanto aos homens são poucos solícitos com as
senhoras, quase não falando (Saint-Hilaires, 1935, p. 99). A gentileza que este autor fez a
uma das senhoras, oferecendo o braço para acompanhá-la na passagem a outra sala de
reuniões, reflete-se num desconforto por parte desta, isto é, as senhoras desta região estão
tão pouco acostumadas a essa delicadeza, que somente acederam contrafeitas (Saint-
Hilaire, 1935, p. 99). Estas descrições aproximam-se do conceito de honra presente na
sociedade pesquisada por Peristiany (1968, p. 168), onde os aspectos de honra de ambos
os sexos se encontram colocados em domínios distintos, caracterizando-se como uma
política sexual. Portanto, os dois atores eram considerados como uma unidades sociais
isoladas enfrentando-se em um campo de valores neutral. No entanto, observa-se que a
dominância do código de honra na sociedade gaúcha, dado em função das características
ligadas às especificidades sexuais, ou seja, na hombridade como asserção da
masculinidade e na feminilidade como manifestação de uma modéstia sexual, e nesta
medida, como manifestação da natureza de ambos os atores, não ocorre simultânea e
uniformemente, dependendo, muitas vezes, do processo de disciplinamento e
hierarquização da sociabilidade da sociedade gaúcha em suas zonas culturais e das
implicações dai decorrentes no seu código de honra.
Acredita-se que a visão de mundo tradicional, como fator determinante da
formulação da identidade regional da sociedade gaúcha, pressupõe a discussão deste
código moral da honra e de suas implicações na ordenação dos papéis sexuais, na
constituição dos seus fundamentos morais e nos seus domínios de atuação na esfera
familiar. A constante contraposição ao pensamento moderno, como algo distante e
estranho à sociedade gaúcha, demonstra a construção de uma identificação desta sociedade
com este código moral da honra. Aparentemente anacrônico, o culto ao estilo de vida e
visão de mundo tradicionais, visto como um aspecto ético e moral que corresponde à
formação histórica da identidade regional do Rio Grande do Sul e a sua articulação num
código de honra, recorta e agrupa esta sociedade no seu projeto de modernidade.
A composição deste código de honra, portanto, envolve sua articulação, ao longo
da história e da formação do Rio Grande do Sul na sua trajetória tradicional/moderno, num
sistema cultural capaz de estruturar o predomínio de uma visão de mundo peculiar ao
mundo da Campanha, em relação a outras zonas culturais no Rio Grande do Sul, e de
conduzir a formulação de um ethos tradicional que recria, na modernidade, suas noções e
valores. Finalizando, aponta-se para um sistema cultural composto de práticas e
representações tradicionais, e/ou modernas, que se constituem num todo ordenado,
atuando na formulação de um quadro referencial de disposições e motivações da sociedade
gaúcha e modelando não só suas relações sociais, mas a própria constituição dos sujeitos
sociais.
CAPÍTULO 5
39
Uma citação de Peristiany (1968, p. 14) permite uma avaliação significativa das perspectivas que o ethos
da modernidade impõe aos estudos da honra em sociedades pertencentes ao complexo mediterrâneo. Afirma
o autor: La fragmentación de la sociedad occidental contemporânea; la multiplicidad de modelos que se
atracan a la invitación, la falta de un claro orden jerárquico de preferência entre esos modelos producen uma
profunda perplejidad en la juventud moderna y dan origen a numerosas ambiguidades, e, conclui: La
mobilidad social y la urbanización han alterado completamente nuestras perspectivas.
40
Não se pretende aqui, fazer a recriação do dualismo tradicional/moderno, mas sobretudo, indicar a
espeficidade de valores que constituem o ethos e a visão de mundo de ambos os espaços. Neste sentido, é
importante penetrar na discussão proposta por Duarte (1983, p. 4), onde o autor reconhece: Falamos em
'segmentação' ao nos referirmos à oposição que o pensamento moderno desenharia contra a visão de mundo
tradicional.
sociedades hierarquizantes, no sentido de que tanto a concepção de honra como a de
vergonha são o reflexo da personalidade social no espelho dos ideais (Peristiany, 1968, p.
12). Aqui a questão da honra ocupa o vértice da pirâmide dos valores sociais temporais e
condiciona a ordem hierárquica desses valores. O espaço da honra, ao atravessar as
classificações sociais, divide, portanto, os membros de uma sociedade em pessoas dotadas
de honra em oposição àqueles que estão dela privados.
O estudo da honra se afirma como relevante para as sociedades, ou para espaços
destas, onde as esferas da ação social são bem delimitadas, não havendo sobreposição
entre elas, quando não interferem e nem entram em competição. O aspecto hierárquico que
contém as questões de honra envolve, para sua estruturação, o aspecto classificatório dos
valores sociais, e assim, a possibilidade de eleição no interior de uma hierarquia de valores
socialmente aceitos e dirigidos para os ideais ordenadores (Peristiany, 1968, p. 13).Como
resultado, obtém-se uma concepção de indivíduo encompassado por uma ordem holista,
percebida como totalidade, onde o sujeito social é definido enquanto elemento do todo. O
indivíduo que atua no interior de um código de honra, lembra a concepção de Dumont de
homem coletivo, ou seja, o ideal se define pela organização da sociedade tendo em vista os
seus fins, e não a felicidade individual; se trata da ordem, da hierarquia; todo o homem
particular deve contribuir com a ordem geral e a justiça consiste na relação com o
conjunto. (Dumont, 1970, p. 13).
De acordo com afirmações de Bourdieu (1968, p. 19l), a honra de um homem é sua
honra. Ser e honra se confundem nele, e aquele que perde a honra, já não é. Ele deixa de
existir para os outros e para si mesmos. Logo, neste contexto, o sujeito social constrói sua
identidade pela referência aos demais. Desta forma, é a pressão da opinião publica funda a
dinâmica da honra. Na análise dos componentes do código de honra incorporado aos
indivíduos, este autor afirma a importância da noção de orgulho (amor próprio), como o
motor da dialética da honra. Assim, no jogo desafio-resposta presente nas questões de
honra, é amor próprio que elege a resposta. Segundo Bourdieu (1968, p. 189) ele não se
dá em função de uma liberdade individual absoluta, mas, ao contrário, de uma sociedade
em que a honra ocupa lugar de destaque no seu sistema de valores, algo diferente do que o
código de honra propõe é impensável. O orgulho ou amor próprio atua, portanto, como
ponto referencial através do qual o sujeito social constrói sua autoestima, sempre em
função da preocupação com a sua reputação, auferida em relação à certa imagem ideal de
si próprio. Disto decorre que, ser um homem de honra implica uma fidelidade a si mesmo,
fidelidade oriunda da opinião pública, uma vez que e a pressão da opinião funda a sua
dinâmica. Desta forma, honra é sempre algo que outros nos imputam, o que supõe
considerar-se o amor próprio como a necessidade interna e a obrigação de identificar-se
com a imagem de eu ideal (Campbell, 1968, p. 135-38), e a honra como algo que se
atribui não uma realidade de fato nem um direito individual.
Na dialética da honra, o amor próprio significa a estima de si mesmo, e acima de
tudo o fato de defender, a qualquer preço, certa imagem de si mesmo destinada aos
demais. Semelhante observação conduz não apenas este autor, mas quase todos aqueles
que estudam sociedades consideradas dentro do complexo mediterrâneo, à constatação de
que o estudo da honra é apropriado em sociedades onde as relações sociais se caracterizam
por sua intimidade, intensidade, proximidade e continuidade. Isto é, as questões da honra
atuam prioritariamente em relações particularizadas, onde cada sujeito é uma persona bem
definida (Campbell, 1968), ou também nas relações pessoais „ ‟ (Peristiany,
1968). Estes autores apontam diferenciações no estudo da honra nos espaços urbanos e
modernizados destas sociedades, comparativamente com seus espaços mais tradicionais.
Tomando-se aqui as observações feitas por Duarte (1983, p. 04), com relação à
caracterização da modernidade a partir da noção de segmentação de instituições, domínios
e práticas, a vida social se apresenta como um mundo recortado por uma fragmentação de
sujeitos autônomos individualizados, que trazem em seu íntimo todos os atributos da
identidade legítima (Duarte, 1983, p. 04). Em decorrência, surge a noção de indivíduo
singular, ético e moral, como valor legitimador da identidade social deste sujeito. O
espaço da modernidade se apresenta, então, como segmentado, complexo, pluralista,
diferenciado, originando outra concepção de indivíduo41.
Semelhantes observações implicam alterações no estudo da honra a partir de
estudos sobre a modernidade. O meio urbano e moderno constrói o espaço do anonimato,
e, quando os atores se tornam anônimos, não há implicações de honra em sua conduta
social (Campbell, 1968). Em domínios sociais diversificados e complexos a característica
é a insegurança e a instabilidade da hierarquia projetada pelo binômio honra-vergonha
(Peristiany, 1968 p. 13). Ainda, a fragmentação de papéis sociais supõe a multiplicidade
de modelos de condutas e a confusão na ordem de hierarquia destes modelos, acarretando
perplexidade e ambiguidade no comportamento do sujeito. Logo, a mobilidade social,
assim como a urbanização, altera as perspectivas dos estudos da honra, isto é, o conceito
41
Segundo Duarte (1983, p. 8-9), o espaço da cultura ocidental moderna se acha comprometido com a
diferenciação ou disseminação diferencial. Assim, o indivíduo é pensado como o S j i „S j i
R zã ‟ Hi ó i M .
de honra varia no tempo assim como sua importância se modifica no meio de uma
sociedade urbana e moderna (Pitt-Rivers, 1968). Em sociedades complexas, a estrutura de
entendimentos comuns, aspecto importante nas sociedades mais tradicionais, pois a honra
se opõe, por seus próprios fundamentos, a uma afirmação moral universal e formal a
igual dignidade de todos os seres humanos e, portanto, os direitos e deveres de identidade
(Bourdieu, 1968, p. 207) - assim como a estrutura dos papéis sociais, é complexa,
diferenciada e diversificada. Finalmente, há a noção de indivíduo singular, sujeito
moderno, que acentua a liberdade pessoal e a igualdade genérica e, segundo Dumont
(1970, p. 07), é quase sagrado, absoluto; não há nada além de suas demandas legítimas;
seus direitos são limitados apenas pela igualdade de direitos dos outros indivíduos.
Certamente, estas considerações de cunho teórico tornam-se relevantes para o
presente estudo, tendo em vista que o grupo pesquisado se movimenta em domínios, ora
referentes a um código de honra que se acha associado à noção de sociedade tradicional,
ora relacionando à dinâmica de uma sociedade urbana e moderna. No entanto, afora estas
considerações de caráter genérico, afirma-se a necessidade de se abordar o espaço da
família, uma vez que, também neste domínio, as inter-relações tradicional/moderno são
retomadas, tanto em função do casamento como da constituição do próprio processo de
separação das mesmas. De acordo com a opinião de muitos antropólogos a respeito da
cultura ocidental, pode-se considerar o espaço da família como um dos últimos refúgios
legítimos da hierarquia, ou seja, mesmo dentro das concepções e valores individualistas
presentes à sociedade moderna, encontram-se presentes espaços holistas, como é o caso da
família42. Isto também é o que os estudiosos das sociedades mediterrâneas constatam - a
ideologia do individualismo moderno não elimina a ideia de parentesco.
Neste ponto, Pitt-Rivers (1979, p. 113), particularmente, entende que mesmo no
meio urbano, nas sociedades ditas mediterrâneas, a categoria parente surge em função do
matrimônio, derivando disto, o fato de a noção de família não ocorrer em função do
sistema de parentesco. Pelo contrário, estas sociedades concedem especial importância à
família nuclear, pois se torna sua unidade primordial, uma vez que é a depositária dos seus
valores e dos seus princípios morais. Ou seja, é uma unidade moral e residencial básica.
Porém, analisar a dimensão holista do espaço familiar, ou mesmo priorizá-la, não
implica ignorar a existência de dimensões individualistas neste espaço, tendo em vista o
próprio sentido de modernização da sociedade em que se acha inclusa. Isto conduz à
42
Sobre a presença da dimensão holística no espaço social da família na sociedade brasileira, ver Velho
(1981) “Individualismo e Cultura” e Da Matta (1979) “Carnavais, Malandros e Heróis”.
percepção da presença de uma versão de mundo e estilo de vida com base na noção de
individualização, afetando a delimitação da família em diferentes modelos, com diferentes
concepções de sociabilidade e composições da rede social, o que se reflete nos princípios e
valores morais que definem este espaço como uma dimensão holista da cultura brasileira.
Por exemplo, a nuclearização da família, associada à fragmentação das
experiências individuais, é um movimento que reverte, como é visto adiante, em
metamorfoses nos fundamentos morais do espaço da família e no código de honra que daí
resulta.
43
Da Matta (1979, p. 111), comentando a posição ambígua que a mulher tem no Brasil e no mundo
contemporâneo, através de duas figuras paradigmáticas que lhe servem de guia - a da Virgem Maria e a da
“puta” - afirma: O lugar de cada uma destas personagens no mundo brasileiro é bastante claro. A Virgem e a
Mãe ficam no recesso do lar, no local sagrado e seguro, onde os homens têm o domínio das entradas e
saídas. Mas a puta fica 'na rua, nas 'casas de tolerância', em locais onde o código de rua invade e penetra o
local de moradia.
minhas funções, procurando facilitar a relação” Ou ainda: “O casamento não era tudo que
eu queria, mas acreditava que deveria cumprir meu papel, era parte de minha natureza, não
poderia ser diferente.” A ideia de passividade e fragilidade da mulher, face ao espaço de
atuação masculina, acha-se frequentemente referida à natureza da diferenciação sexual que
deriva, por sua vez, das qualidades naturais de ambos os sexos.
Como contrapartida, o fundamento da honra masculina se acha associado à
capacidade de prover, ou seja, a posição de hombridade depende da capacidade do pai de
manter ou aumentar a sua riqueza (PITT-RIVERS, 1968, p. 57).Assim, o casamento
surge como uma bengala que permite à mulher, adequando-se ao código ético e moral
familiar, dimensionar-se como pessoa. Verifique-se a fala transcrita abaixo, que apresenta
a tendência da noção de fragilidade feminina, e onde o homem é visto como uma figura de
autoridade: “Na época, poderia me realizar na vida profissional, e tudo o mais. O meu
marido foi uma bengala que me permitiu sobreviver. Casei porque não se concebia, nem
eu mesma, sair da minha cidade, solteira. O casamento foi uma bengala, Eu, sem casar,
seria um vegetal.” O que se observa é que estas características utilizadas para identificar os
papéis sexuais no espaço familiar, são percebidas como atributos naturais de cada sexo, e
neste sentido, a conduta que é honrada para um sexo pode ser o contrário do que é
honorado para o outro. (Pitt-Rivers, 1968, p. 79).
De modo geral, percebe-se nos depoimentos, que o não desempenho do papel de
esposa-mãe, assim como o do marido enquanto provedor, implica uma distorção da
natureza da honra de ambos, isto é, a aspiração que ambos possuem com relação a seus
papéis na família, bem como a realização destes no seu interior. Logo, a rejeição (ou
dificuldade) em adaptar-se a este papel é assumida como uma desonra. Conforme se
observa nesta afirmação: “Começa que o R. sempre achou que eu não era boa mãe. Era
uma coisa que me magoava. Ele tinha mais paciência que eu, era mais calmo. E eu ficava
insegura.” O casamento, então, resulta como a união de classes diferentes de honra para
proporcionar a honra a família nuclear assim formada (Pitt-Rivers, 1980, p. 125).O papel
feminino dentro dos fundamentos morais se revela como primordialmente definido em
função dos papéis de esposa-mãe, recebendo seu poder do mundo interior, ou seja, do
interior da casa, incluindo-se seus corpos (Pitt-Rivers, 1968, p. 12l). Neste ponto, ao
marido cabe o papel de provedor, atuante na esfera pública, sendo seu poder definido
como algo que se origina desde fora e de cima. Ambos os domínios de atuação acham-se
bem naturalizados através dos fundamentos morais da família, adquirindo sua força na
natureza dos sexos. As noções de destino, instinto e natureza feminina, revelam algumas
das categorias que as mulheres deste grupo de status encontram para relatar este período
de suas biografias.
No grupo B, já prevalece as noções mais modernas de indivíduo e de família
nuclearizada, muito embora se encontre, frequentemente, referências à aceitação daqueles
princípios morais norteadores do espaço familiar e da atuação dos sexos, resultando na
passividade feminina em oposição à autoridade e prerrogativa masculina. A contestação
destes padrões morais e éticos dos sexos, no espaço familiar é, então, frequentemente
assumida num discurso feminista acusatório, originando-se projetos conjunturais de
libertação, mais em função das necessidades e impasses conjugais, do que propriamente
em termos de um projeto individualista. Na discussão do espaço familiar, após o
casamento, e sob a égide do igualitarismo, observa-se a noção de dignidade, entendida em
função de um código igualitário. Esta noção pressupõe a universalidade do direito dos
indivíduos percebidos como iguais. Através da lógica igualitária, busca-se impor uma
nova diferenciação e classificação entre os sexos, numa luta pelo poder44.
Esta visão igualitária dos sexos acarreta consequências na forma peculiar que o
código moral tradicional estabelece para a divisão moral do trabalho na família,
recolocando as insatisfações e frustrações em termos de reivindicações e projetos mais
individualizantes. A posição antes vivenciada como parte da natureza moral da mulher é
retomada como valor espúrio, sendo, então, negada, na medida em que transparece como
algo imposto, forçado. Busca-se a ruptura, a negação. Conforme as palavras de uma das
mulheres descasadas: “Comecei a competir com P. quando já havia pensado na
possibilidade de separação. Sabia que se viesse a tomar certas atitudes, nossa relação viria
abaixo. Eu achava que era fracassada, incapaz de trabalhar. Era a coitadinha. Quando
comecei a modificar, dai não deu. Eu achava que também podia fazer, ninguém podia me
impedir. Pensava comigo mesma: Eu não guio a minha vida. Tem outra pessoa segurando
as rédeas da minha vida.” O código hierarquizante da honra, lidando com a noção de
indivíduo encompassado, propõe uma classificação e uma diferenciação na natureza dos
sexos, observando-se aí, não apenas uma hierarquia, mas a representação desta como
assimetria e complementaridade. Já o código igualitário, do direito à dignidade para todos
os homens, representa esta assimetria dos papéis sexuais como opressão.
44
Segundo Eunice Durham (1983, p. 40), a manifestação do igualitarismo individualista dos sexos, uma vez
que não dispõe de modelos estáveis, estabelece um padrão de divisão do trabalho na família que fica na
dependência do confronto interpessoal entre os cônjuges, criando uma enorme área de conflito aberto
possível.
Opondo-se à ideia da hierarquização dos sexos, ele afirma a universalidade dos
indivíduos genéricos, homens e mulheres. Os princípios universalistas atuam, assim, no
interior de um espaço eminentemente hierarquizante, através da polêmica de
opressão/subordinação. Isto conduz ambos os parceiros no espaço do casamento, a
disputas e confrontos pessoais. Estes conflitos familiares geram instantes de ruptura dos
laços conjugais, enquanto no plano externo dos valores e noções culturais, reforçam-se
acomodações e mediações no espaço familiar. Isto ocorre em função da importância que a
sociedade atribui à família, como sendo aquela instância que não apenas ordena e legitima
os fundamentos morais da cultura, mas também organiza a natureza dos sexos num código
ético-moral.
Entra-se, desta forma, na questão relativa aos papéis sexuais assimétricos e seus
valores, fundada em princípios hierarquizantes, concretizados numa divisão moral do
trabalho os quais conferem um atributo moral a ambos os sexos. Logo, a divisão social e
moral do trabalho entre os sexos, durante a maior parte do período do casamento remete
novamente à concepção básica da natureza masculina e feminina, que, por sua vez, pode
ser vista enquanto uma divisão moral do trabalho, ou seja, determina o modo como se
distribuem as qualidades morais entre os sexos (Pitt-Rivers, 1968. p. 121). Ressalta-se,
neste ponto, a autoridade masculina frente à vulnerabilidade feminina, que pode ser
percebida em função da virilidade (potência) masculina em contraste com o comedimento
(pureza) feminino. Na assimetria, percebe-se a passividade feminina em relação à
prerrogativa masculina, o que propõe o seguinte movimento: o homem defende a honra
familiar enquanto a mulher a conserva.
Os impasses gerados na vida do casal quando as mulheres aqui ouvidas afirmam a
importância da sua participação na esfera profissional, demonstram que, no campo da
honra familiar, a assimetria dos movimentos de defesa e conservação constituem-se numa
hierarquia, onde a esfera pública se apresenta como um lugar frágil para o relacionamento
entre os sexos. Os depoimentos são ilustrativos desta realidade na vida conjugal, de modo
mais aguçado no grupo A, mas que se encontra presente também no grupo B, sendo
representativa a afirmativa de uma das mulheres deste grupo: “No campo da competição
profissional, eu achava que não dava para mudar. Quando eu resolvi mudar, o negócio
veio abaixo mesmo. Começamos a trabalhar juntos, as discussões começaram, e cada vez
mais, ficavam pesadas, violentas. A coisa foi ficando insuportável. Eu casei com um
homem dominador, eu dava bola pra tudo o que ele dizia, fui completamente dominada.
Só mudou quando eu achei que também tinha direito de viver”. O afastamento progressivo
da esfera pública e o seu recolhimento à esfera familiar - intimidade - ocorre de modo
mais marcante no primeiro grupo, originando para as mulheres uma grande fonte de
ostracismo.
É o que se observa em dois testemunhos diferentes mulheres, segundo seus grupos
de status: “Depois do casamento fui perdendo meus amigos, passei a viver em função do
meu marido”, ou então: “Na época de casada, o D. era tudo de mais importante para mim,
era como um Deus”. A noção de vergonha, para entender a dimensão feminina da honra,
aqui, torna-se relevante. Através da noção de vergonha, a mulher permanece mantendo sua
posição social na família, como forma de garantir reputação honorável, atuando de modo
predominante no papel de esposa-mãe. De modo referencial, o grupo pesquisado busca
realizar esta posição feminina na família, tendo em vista, que a ruptura com este papel
envolve uma alteração em seu atributo moral na família e, consequentemente, implicações
na sua honra face aos códigos morais constitutivos da sociedade gaúcha.
O terceiro ponto, colocado anteriormente, refere-se ao espaço familiar como
fundamento da honra feminina neste grupo social. Parte-se da importância do espaço
família em termos dos fundamentos morais da sociedade em questão. Neste caso, este
espaço se afirma como referência básica a ambos os sexos, inclusive para a composição da
identidade de sexo-gênero. Desta forma, construir e vivenciar o espaço da família conjugal
tem implicações na honra de ambos os sexos, pois absorve os fundamentos morais, dados
na natureza dos sexos, a partir da sua constituição no âmbito da família. O casamento
assume, assim, um importante papel na composição das qualidades morais dos
sexos45.Pode- se depreender a importância referencial que a dimensão familiar afirma para
a composição moral da natureza feminina no casamento pelos seguintes depoimentos: “Eu
sinto que casei para ter um marido, ter uma figura, não ser sozinha. Eu não ia casar, ou,
então, Estar em casa era aquela coisa de menina de 15 anos. Eu imaginava a minha casa, a
minha família, marido e filhos, meus planos. Enfim, minha vida.” Os aspectos apontados
no espaço do casamento acham-se apoiados num código de aliança que busca a criação e a
manutenção de vínculos e laços de reciprocidade entre as famílias de origem de ambos os
cônjuges, o que pode ser observado nos depoimentos da maioria das interlocutoras da
pesquisa, principalmente, naquelas pertencentes ao grupo A. Ou seja, a família de origem
assume importante papel no sentido de efetivação do matrimônio das mesmas. Como
45
O grupo pesquisado neste estudo, possui alguma similitude com aquele estudado por Abreu (1982, p. 99),
em Araxás, Minas Gerais, onde ele constata que a pessoa já nasce, de certo modo, moralmente constituída,
representante de uma família, de uma tradição, implicando, isto, numa distinção complementar entre o
masculino e o feminino.
atestam, por exemplo, estes depoimentos: “O pai e a mãe me falavam que eu iria casar.
Mas eu não pensava em casar. Por que casar, se eu tinha eles, aquela família maravilhosa,
não sentia vontade de casar”. Outro testemunho: “Casar não era todo o meu sonho. Foi
uma coisa muito estimulada por minha mãe. Meu pai já havia morrido. Minha mãe falava
todo o tempo sobre isto. Nesta ocasião, minha mãe me tiranizou. Reprimia tudo o que eu
fazia, que não levasse ao casamento com M.”. A opinião familiar se torna fonte da
reputação do comportamento moral feminino, que afirma a necessidade última do
matrimônio como principal veículo legitimador das qualidades morais da identidade
feminina. Isto induz à observação de que o matrimônio, principalmente para as mulheres
deste grupo, desempenha um papel importante na honra da família de origem. Assim, um
casamento errado ou até mesmo um não casamento implica certa desonra familiar, tendo
em vista o afastamento de um sistema de valores onde o matrimônio afirma as qualidades
morais dos sexos, e por decorrência, do grupo familiar46.
Se a honra pessoal deriva, em parte, da conduta individual, por outro lado, ela afeta
os seus parentes e familiares com quem as mulheres dividem uma honra coletiva. A
questão da virgindade e das relações sexuais pré-maritais demonstra a forma como este
grupo de mulheres reafirma não apenas a ordem moral, mas a própria ordem global do
domínio familiar, através do matrimônio. Observem-se os seguintes depoimentos e sua
recorrência interna: “Não sei se isto foi uma coisa que nos levou ao casamento, mas nesta
época já estávamos transando. Eu achava que como já tínhamos relações, ele era meu
homem e eu era dele. Não sei, isto nunca me pareceu de modo consciente.” Ou ainda: “Era
como se ele fosse o homem da minha vida, um compromisso até a morte”. Neste sentido, o
matrimônio assume a função de reordenação destes fundamentos morais, recolocando uma
hierarquia na conduta moral dos parceiros, redimensionados no papel de marido e esposa,
mas que de fato nunca está de todo ausente. Dai decorre uma noção de indivíduo
encompassado pelo espaço familiar e o papel que nele ocupa, o que se liga a uma
diferenciação moral de acordo com o sexo a que pertence.
Logo, para a maioria das mulheres aqui ouvidas o período em que optam pelo
casamento e a vida no interior da família representa não só uma atitude de prosseguimento
a uma “ordem natural”, assentada basicamente na natureza moral dos sexos, mas também
46
Na análise do “Mito” de D. Beija, Ovídio de Abreu (1983, p. 91-2) faz um comentário relevante para o
estudo em questão, qual seja, o casamento supõe o controle da sexualidade, o englobamento do corpo pela
alma, onde a filha fuma duplicação moral da mãe e o casamento das filhas confirma a pureza da mãe.
uma tentativa de realizar a ordem global proposta pelos fundamentos morais da família47.
A ocorrência da maioria dos casamentos se refere à noção de vergonha em relação com a
de honra. Para essas mulheres, e do ponto de vista “feminino”, o casamento decorre, então,
de uma não escolha (destino) e se refere à situação peculiar de se enquadrar num sistema
de disposições pré-definidas no corpo social, ou seja: de um indivíduo que se vê sempre
através dos olhos dos demais. (Bourdieu, 1968, p. 191).
Como contrapartida, do ponto de vista masculino, o casamento e o espaço da
família podem, então, ser pensados em função da ideia de respeitabilidade que ao contrario
da vergonha que é própria da uma personalidade que tem a necessidade dos outros para
captar plenamente seu próprio ser (Bourdieu, 1968, p. 191). Pode-se compreender que e
as mulheres ouvidas para esse estudo sobre separação em camadas médias urbanas em
Porto Alegre chegam ao casamento, é porque é neste espaço que se projeta socialmente a
sua imagem de natureza feminina, com seus fundamentos morais. Por seu turno, seus
parceiros chegam a esta mesma situação, uma vez que necessitam desta imagem e daquele
espaço para atingir a posição masculina de honradez. Assim, a natureza moral dos sexos
segue uma lógica holística, onde as relações assimétricas de honra/vergonha do papel
masculino e feminino tornam-se mutuamente complementares.
47
Em Abreu (1980, p. 105), “Parentesco e Identidade Social”, este autor trabalha com a questão específica
dos fundamentos morais da natureza dos sexos no espaço familiar através da categoria raça-moral, e que,
segundo ele, impõe, no plano das avaliações, uma distinção complementar entre o masculino e o feminino, A
oposição entre o masculino e o feminino é central. A mulher é integralmente referida à família e o lar. Os
papéis significativos são os de mãe e esposa (...) O homem aparece referido ao domínio público, aos
'negócios''.
da separação, mas desde sua adolescência48. Portanto, é um projeto que não ocorre apenas
no momento da separação.
Particularmente no grupo B, e com relação aos princípios morais que guiam a
divisão sexual do trabalho no casamento, enquanto escolha, representa parte de um
processo de construção interior da individualidade, muito próximo do que Dumont (1970)
chama de indivíduo quase sagrado, absoluto. No entanto, esta busca ocorre dentro de uma
lógica universalista. Ela está referenciada à outra representação - o indivíduo genérico - a
qual, em determinados momentos, se choca com a anterior - o indivíduo singular. Esta
lógica propõe a igualdade dos sexos acima de tudo, e conceitua homens e mulheres como
encarnação particular da humanidade abstrata (Dumont, 1970), ou seja, é ressaltado o
indivíduo virtualmente presente em todos os homens (tanto diacrônica quanto
transcultural mente) o que corporifica a própria ideia de humanidade (Duarte, 1983, p.
09).
As articulações entre indivíduo singular e genérico são expressas de modo
complexo pelas mulheres durante a sua trajetória social. Até certo ponto da trajetória
conjugal e do projeto familiar, ambos os parceiros acham-se comungando, dentro da
família, de uma mesma dimensão moral (universalista), como indivíduos genéricos,
enquanto em outros espaços dividem-se, segmentam-se, surgindo, assim, o indivíduo
masculino e feminino, especificamente, podendo daí, derivar-se uma hierarquização. As
fronteiras da instauração da vida familiar, do indivíduo genérico, se dão de modo evidente,
no momento do nascimento dos filhos ou do êxito profissional de um dos cônjuges,
particularmente da mulher. Ambos os casos podem ser vistos como situações limites para
a conceituação da igualdade abstrata e universal entre os homens e as mulheres no espaço
familiar.
Com relação ao êxito profissional, no caso mulheres pertencentes ao grupo de
status B, é interessante observar o depoimento abaixo e como a resposta dada a relação do
casal atinge o limite das representações igualitárias dos sexos: “No trabalho, certos
momentos, misturava-se a competição, o ciúme, o censo de propriedade. Eu quase nunca
criava esta situação. Quando eu sentia este clima, eu me moldava.” A maternidade, por
seu turno, realça o papel feminino na esfera doméstica e define outros contornos à relação
48
O discurso feminista presente nos depoimentos das interlocutoras é entendido aqui, dentro deste ponto de
vista, uma vez que produz uma categoria de mulher imbuída de uma matriz individualista. Esta questão é
abordada com o intuito de discernir sobre a relativização das identidades femininas produzidas
culturalmente. Sobre isto, é importante ver “Antropologia e Feminismo” de Franchetto, Cavalcanti e
Heilborn, em “Perspectiva Antropológica da Mulher”, v. I.
do casal, fundamentando, solidariamente, as bases morais da divisão social no trabalho
familiar, através das características biológicas dos sexos.
Isto é bem verdadeiro quando se observa, nos depoimentos, o relato de situações
conjugais onde o marido, inspirado na ideia da igualdade genérica dos indivíduos,
independentemente dos sexos, participa dos afazeres domésticos, especialmente naqueles
afetos aos cuidados com o recém-nascido. Observe-se: “O R. vivia me cobrando que eu
não era boa mãe. Ele tem mais paciência que eu, deixa as crianças fazerem o que querem.
Eu sentia esta cobrança.” Ou então, “P. se metia muito, achava que ele fazia melhor. Eu
me sentia insegura, mas insegura comigo mesma, com as coisas em geral.” Como
consequência disto, as mulheres se sentem inseguras com a invasão masculina neste
território doméstico, visto como preferencialmente feminino. Estas colocações permitem
esclarecer que os domínios público e familiar, exterior e interior, respectivamente
masculino e feminino, constroem, a partir dos padrões éticos e morais da sociedade
gaúcha, fronteiras culturais para ambos os sexos, os quais se manifestam no interior do
espaço familiar.
Desta forma, a divisão sexual do trabalho, com base nestes fundamentos
individualistas que tornam o indivíduo singular como sujeito ético e moral, sempre se
encontra restrita às regiões morais da família, marcadas pelos princípios hierárquicos, e à
discussão das oposições entre libertação e opressão, hierarquia e igualdade, sempre
presentes quando as interlocutoras vivenciam os níveis de articulações neste “jogo”
universal/holismo, no período em que estão casadas. A igualdade de direitos é
parcialmente tematizada nesta fase inicial da trajetória do casamento dessas mulheres
pertencentes ao grupo B, encontrando como contraponto, um código de honra que afirma
um princípio hierarquizante nos fundamentos morais da família, com base na
diferenciação da natureza moral dos sexos.
Neste ponto, é possível entender o sentido dado, neste período, ao discurso
feminista de algumas das interlocutoras da pesquisas, se o relacionarmos com o quadro
cultural que o produz historicamente, ou seja, como uma das formas tomadas pelo
individualismo moderno (Franchetto, Cavalcanti, Heilborn, 1981, p. 32) que é aplicado às
relações familiares e seus fundamentos morais hierarquizantes. A questão da
individualidade surge de modo mais definido a partir do enfoque do casamento como
escolha, evidenciado, principalmente, no grupo B, do que como destino, no grupo A.
De acordo com Velho (1983, p. 08), a valorização e a possibilidade de escolha
reforçam a auto-percepção do indivíduo, o que se encontra mais claramente no grupo B,
aquele que percorre sua trajetória de vida num meio urbano e moderno, inclusive tendo
algumas dessas mulheres morando no exterior49. Observe-se como os depoimentos
diferem daqueles das mulheres do grupo de status A: “Meu casamento não foi
convencional. Estava namorando outro cara quando R. me escreveu pedindo para ir
morar com ele no Chile. Pra mim foi uma decisão, uma escolha. Decidi ir com ele e
tranquei meu curso na faculdade.” Ou ainda, “Com 15 anos eu queria só desenhar, tirar
Belas Artes. Eu tinha a impressão que casou, morreu. Ao mesmo tempo, eu namorava,
achava que ia casar, vestido de noiva, aquelas coisas. Quando eu casei pensava em
construir meu lugar, minha família.” A individualização afeta, não só o espaço dos papéis
sexuais da família, mas também as relações desta com a rede social, num movimento de
contração da sua sociabilidade. Ou seja, afirma-se a importância do casal como instância
capaz de promover a individualidade e redefine-se a composição da sua rede social,
também guiada pela ideia de escolha, e com base na ideia de amizade.
Assim, na ideologia individualista pode-se pensar o individuo como membro de
uma rede de sociabilidade que se centra, basicamente, em torno da amizade enquanto
valor (Velho, 1983, p. 08). Neste sentido, pode-se constatar, neste período, uma contração
na sociabilidade do casal em relação às famílias de orientação, bem como à rede social de
amigos da parte da mulher, que passa a centrar-se na rede social do marido em função dos
seus contatos profissionais. Aqui se revela a importância da mulher como parte dos rituais
de negócios enquanto posição estratégica, capaz de referendar a “respeitabilidade”
masculina nos seus múltiplos planos. O testemunho que segue é bem representativo destes
conflitos na vida conjugal: “Depois de certo tempo de casamento, ele seguiu
desenvolvendo sua vida profissional, seus amigos, suas coisas. Eu fui ficando em casa,
com as tarefas domésticas. Quando saíamos, passamos a ir em jantares de negócios,
encontros de trabalho. Ficávamos falando, conversando. Ali eu era valorizada, tinha uma
posição importante. As mulheres conversavam entre si, como senhoras, enquanto os
maridos trocavam negócios”. A crise na relação conjugal, no caso deste grupo, focaliza,
justamente, a defasagem entre ideais e práticas igualitárias universalistas de ambos os
parceiros, agudizando-se na busca da afirmação das individualidades singulares de ambos,
separadamente.
Para o grupo de status B, mais do que para o grupo A, a busca de um afastamento
da família de origem também se revela como parte deste processo de individualização, e
49
Para uma melhor compreensão das considerações feitas aqui, sugere-se uma retrospectiva do Cap. II,
Reconstrução Biográfica II - da Modernidade à Vanguarda.
desta forma, o casal enclausura-se no novo núcleo por ele formado (Russo e Santos, 1981,
p. 283). Neste processo, observa-se uma valorização do ambiente familiar como o espaço
mais íntimo dos indivíduos que compõem o casal, sendo que a intimidade, novamente,
achava-se referida como a principal área para a autorrealização individual (Russo e
Santos, 1981, p. 287). Semelhante código de valores se choca com o código da aliança e
seus valores éticos e morais da sociedade gaúcha, criando uma tensão no nível das
relações conjugais, além de conflitos pessoais50.
Desta forma, a tensão conjugal se manifesta justamente quando ocorre a busca do
isolamento no núcleo familiar e a contração da sociabilidade do casal em relação ao
restante dos familiares, ressurgindo, no seu interior, princípios hierarquizantes. A
valorização da intimidade doméstica, da privacidade, implica, mais nitidamente, na
tendência da fixação da mulher no âmbito familiar, como este relato esclarece: “Ai ele
entrou naquele esquema de sair quando as crianças estavam dormindo e voltar quando elas
também já estavam dormindo. Minha vida profissional estava parada. Já não havia muita
coisa que nos unia”. Redefine-se uma ideologia individualista, retorna-se a princípios
hierarquizantes dos papéis sexuais, com perdas para a relação conjugal e os projetos
individuais construídos por cada cônjuge.
Coloca-se como importante perceber que o casamento, dentro da trajetória social
das interlocuotras, atua como agência nômica, isto é, como um arranjo social que cria
para o indivíduo o tipo de ordem dentro da qual lhe é possível experimentar sua própria
vida como dotada de sentido (Berger e Kellner, citado por Russo a Santos, 1970, p. 50). O
que se constata no grupo pesquisado é a presença, no espaço social do casamento, de
diferentes visões de mundo, correspondendo a diferentes estilos de vida, oriundos de
contextos culturais diversificados, que se manifestam na construção do projeto familiar a
partir do casamento51. Portanto, o matrimônio se encontra, após algum tempo, numa
situação de grande tensão.
Em primeiro lugar, percebe-se que ele resulta, para ambos os cônjuges, numa
releitura ou redefinição do passado, isto é, as definições de realidade internalizadas na
socialização primária não são abandonadas e sim remanejadas de modo a adequar-se a
50
Considera-se que a ideologia individualista não se manifesta apenas através do culto ao indivíduo
biológico, mas, de modo mais abrangente, abarca a noção de família que pode vir a significar uma ênfase
num projeto individual, que para se expressar, necessita do espaço mínimo favorecido pelo casamento,
mulher e filhos (VELHO, 1981, p. 84), o que resulta num afastamento do número de parentes.
51
Para fins de exemplificação, sugere-se a retomada do Capítulo II, Reconstrução Biográfica I - da Tradição
à Modernidade - e do Capítulo III, Reconstrução Biográfica II - da Modernidade à Vanguarda-,
especificamente na parte referente ao casamento e a construção de um projeto familiar.
novas definições (Russo e Santos, 1981, p. 289). Desta forma, essa releitura reafirma a
necessidade de se analisarem os valores hierárquicos e assimétricos associados aos
fundamentos morais da família e à natureza moral diferenciada dos sexos, diante da busca
de construção de um novo projeto familiar após o casamento, tendo por base um ethos de
modernidade, universalista e individualizante, ambos identificados no campo da sociedade
gaúcha. É significativo recolocar-se, através de dois depoimentos, grupos A e B
respectivamente, estas influências, quais sejam: “Aqui em Porto Alegre. Eu boto pra fora
minhas possibilidades. La onde minha família mora não dá. Se eu saio à noite sempre tem
que ir alguém me buscar, ou então, Em Porto Alegre acho isto muito chocante, tem sempre
um clima de respeito com relação aos filhos. Isto é mais falado do que vivenciado: é a
questão do direito, do respeito, mas no fundo não fazem nada de diferente. Lá em São
Paulo sim, eu senti que há uma preocupação real com estas coisas.” Refere-se,
anteriormente, quando da descrição da sua biografia, ao tratamento dado por elas, a noção
de modernidade, seja em relação a uma posição tradicional, seja em relação a uma postura
de “pseudo-vanguarda”. É importante, agora, descrever como fica este esquema conceitual
quando elas avaliam a atuação dos cônjuges na esfera familiar; após o casamento, numa
apreciação evidente do seu projeto familiar.
Primeiramente, observa-se que o sistema de queixas, apresentado para contar sua
história de vida na família de procriação, acha-se relacionado ao aspecto referencial que o
marido assume na busca da realização do projeto familiar. O parceiro é apreciado, após o
casamento, como elemento catalizador de uma ruptura nômica, ou seja. o parceiro
conjugal torna-se o outro significativo por excelência (substituído os membros da família
de origem), o que faz com que todas as outras relações significativas sejam
automaticamente repercebidas e reagrupadas (Russo e Santos , 1983, p. 291). Observe
neste sentido, o seguinte testemunho de uma das interlocutoras; Acho que nós nos
precipitamos. “O primeiro ano foi difícil. Porque tem uma diferença tu ter um namorado e
ter um marido. De repente, comecei a notar que ele era violento, temperamental. Antes,
não. Ele era romântico, submisso, até....” Isto ocorre num contexto cultural onde a família
afirma uma estreita vinculação entre a honra individual dos seus membros, a partir dos
atributos morais dos sexos e da divisão moral do trabalho no espaço da família. Logo,
semelhante situação conjugal tende a reforçar o aspecto encompassador da vida familiar,
em detrimento do valor individualista buscando num projeto familiar. O outro, o marido, é
contraposto à sua identidade social feminina, mais do que é afirmada a noção do seu “eu”
singular, como mulher (DUARTE, 1983, p. 2-3).
Conforme expressa uma das mulheres: “Quando nos reunimos pra conversar,
discutir, eu nunca participava, sempre acreditei que era burra, não sabia falar. Ele tinha o
poder de me convencer. Impressionante. Ate a escolha do curso que eu ia fazer foi ele
quem realizou”. A ruptura nômica, anteriormente citada no texto a respeito do espaço do
casamento, no grupo pesquisado, tende a ocorrer no sentido da referência a um código
hierarquizante e a uma estrutura assimétrica dos papéis sexuais na família. Assim, a
influência de princípios e noções modernas no campo da divisão moral do trabalho na
família, que envolve concomitantemente a sua própria definição, esbarra num código
moral que é representado pelas mulheres aqui ouvidas como estando fora delas e do
próprio espaço familiar. Isto fica mais evidente no grupo A, onde o casamento implica a
realização de parte de um projeto familiar de ascensão econômico-social, assim como a
adesão mais clara a um ethos de modernidade, percebido como estilo de vida a ser
conquistado: “O G. ganhava bem, tinha gratificações. Vinha para casa revoltado porque o
patrão ia todo o ano pra Europa e EUA, e que ele não tinha dinheiro pra isto. Eu vim
vivenciar a competição quando me casei. Aqui sinto a competição por status, nas festas,
nos programas” . Por outro lado, o projeto familiar de rompimento com o ethos da família
de origem resulta progressivamente em mediações, onde os fundamentos morais da
natureza dos sexos são recuperados num espaço em que princípios individualistas
questionam sua legitimidade52.
Na atuação familiar, busca-se afirmar o discurso da igualdade universal dos sexos,
isto é, as relações e os papéis sexuais no casamento, passam, no caso do grupo B, pela
lógica do indivíduo, sujeito e objeto da reflexão filosófica (Duarte, 1983, p. 03) e a noção
de família nuclearizada, em vias de enfrentar o desafio com respeito às famílias de origem
(Salem, 1983, p. 11). A tentativa de construção, no casamento, de um projeto familiar
contendo ambos os aspectos, resulta num ponto de tensão constante entre os cônjuges, pela
disputa da individualidade de ambos os parceiros, dos espaços que devem ocupar na
família e entre eles e suas famílias de origem, pelos laços de compromisso e reciprocidade
com que as relações familiares são encaradas. A solução para tais impasses é resolvida em
função dos afastamentos e aproximações realizados pelo casal, que são ou não,
relativamente legitimados pela sua rede social face à um ethos e visão de mundo mais ou
52
No artigo de Durham (1983, p. 40), “Família e Reprodução Humana”, esta autora aborda de modo preciso,
as áreas de conflito nas relações conjugais que são um reflexo da ideologia igualitária na família. Este
conflito decorre da busca da livre expressão da individualidade tanto na carreira profissional como na vida
amorosa, o que se aproxima da trajetória conjugal percorrida até aqui pelas mulheres aqui pesquisadas.
menos modernos, e/ou tradicionais para o espaço familiar, em termos de eficácia do seu
projeto familiar com vista a ordenar esta experiência fragmentadora.
As crises conjugais, mais especificamente, apresentam soluções de continuidade,
dependendo da capacidade de filiação dos cônjuges, num projeto conjunto, a um destes
espaços, moderno ou tradicional, construindo prioridade nos seus princípios éticos e
morais do projeto familiar, como também dependem da opção pessoal em definirem-se,
cada um, como sujeito, mais ou menos encompassador, e/ou, mais ou menos
individualista, de acordo com as esferas da sua competência. Certamente a delimitação
destas esferas retorna a uma barganha entre os cônjuges na construção de suas identidades
sociais, em função das suas diferentes trajetórias e bagagens culturais. Desta forma, para
ambos os grupos de status pesquisados, a ruptura nômica, ocorrida no casamento, é pauta
de discussão constante, sofrendo alterações a partir das trajetória social das interlocutoras,
do ethos e da visão de mundo incorporados ao longo da sua biografia, assim como das
opções e escolhas que constituem seu projeto individual e familiar, após seu afastamento
do grupo de origem, e/ou seu deslocamento para outro meio social considerado mais
moderno, onde vigoram novos códigos sociais e morais. Aqui, a composição da rede
social das interlocutoras, após o casamento, é fundamental para a compreensão do sentido
dado não só para o espaço do casamento, mas para sua atuação dentro dele.
Nesta parte do trabalho, toma-se por base a constatação de que, para ambos os
grupos de status, a separação surge predominantemente não como um projeto consciente e
individualizante, mas acima de tudo, como fruto de impasses e situações existenciais que
geram uma determinada conjuntura nas relações familiares, onde a tensão conjugal torna-
se insuportável. A partir do seu desfecho, a situação de separação passa a ser
experienciada, neste contexto, como um momento onde a noção de individualidade toma
corpo e forma e a necessidade de construção de uma escolha surgem para ambos os
parceiros, com a constituição de projetos individuais em função da sua bagagem cultural.
Pode-se pensar que, com o desfecho do processo de separação, os impasses conjugais
desenvolvem-se no sentido da realização de um ethos de modernidade, estabelecendo
deste modo, no grupo em estudo, a passagem para uma situação de modernidade, e/ou
vanguarda, o que facilita, de certa forma, a opção feita por elas pela separação como algo
ate certo ponto aceitável.
No entanto, para este estudo, o que se revela mais importante no desencadear do
processo de separação das interlocutoras são as articulações entre as instâncias individuais
(individualismo) e coletivas presentes à sua lógica e as implicações face à delimitação de
um ethos. Esta discussão conduz a percepção dos limites dos estilos de vida
tradicional/moderno do espaço familiar, norteada por questões de honra e hierarquia e
fortemente influenciada por nações igualitárias. Somente a percepção de que o espaço
familiar não se apresenta apenas como um lugar monolítico, onde precipuamente vigoram
os valores tradicionais e hierárquicos, possibilita a este estudo a identificação de outras
regiões morais, no seu interior, no qual convivem diferentes percepções e visões de
mundo. Ou seja, pressupõe-se a identificação e a presença de processos dinâmicos no
espaço cultural reservado a família, onde subsistem diferentes propostas de visões de
mundo, ligadas que estão a diferentes projetos sociais.
A análise do processo de separação do grupo pesquisado aponta para a importância
de se reconhecer e dimensionar os valores e códigos culturais associados a estas alterações
no espaço tradicional da família, que se direcionam em função de um ethos de
modernidade, de nuclearização da família, da cultura individualista53.
Neste ponto, o estudo deste grupo de mulheres descasadas propõe a relevância de
se entender a influência das ideias igualitárias entre os sexos no espaço familiar, visto aqui
em sua dimensão holista, a partir dos fundamentos morais da natureza dos sexos que
fundem este espaço. A família, então, passa a ser um domínio onde os sexos não possuem
esferas de competência claramente definidas, o que fere os princípios morais da divisão do
trabalho. Diferentes noções de indivíduo passam a atuar e redefinir as relações familiares,
assim como o domínio dos papéis sexuais, recolocando em outros termos os seus
fundamentos morais e reorganizando as experiências pessoais no domínio familiar. Este
trabalho aponta a importância da reflexão acerca dos limites da incorporação e valores e
noções modernas das fronteiras culturais expressas no interior da família, articulada em
função de concepções e valores tradicionais.
53
Estas alterações no espaço da família e dos laços de parentesco, em face de uma ideologia modernizante,
individualista e considerada em oposição ao holismo das sociedades tradicionais, são amplamente discutidas
por Velho (198l) em “Individualismo e Cultura”.
2.1 – SEPARAÇÃO SOB O SIGNO DA HONRA
54
No Cap. I, Orientações Teórico-Metodológicas, reconstrói-se o caráter de inversão que o processo de
separação realiza diante do ritual do casamento e os reflexos na questão da honra no grupo pesquisado - em
função da sua conceituação como um grupo do status.
Decompõe-se a divisão moral do trabalho e as mulheres descasadas se convertem em
homens (Pitt-Rivers, 1968, p. 78).
A separação, refazendo o espaço familiar, redefine o espaço moral das
interlocutoras. Por um lado, estas se definem como mulheres que não sabem manter a
honra familiar, não cumprindo adequadamente o papel de esposa. Por outro, ao perder a
posição tradicional da família, não conservam sua virtude, pois não se abstêm de realizar
ações próprias dos homens (Pitt-Rivers, 1968, p. 77). Assim, a honra pessoal das mulheres
descasadas de ambos os grupos de status é fruto do espaço familiar a que elas se acham
vinculadas pelo casamento, bem como da composição da natureza moral do seu sexo que
se constitui nesta vinculação. A honra, aqui, pressupõe, como afirma Bourdieu (1968, p.
197), dois planos: honra que me esta sendo atribuída e a honra a qual estou vinculada. O
primeiro plano se refere à honra como algo que pode ser perdido, no segundo, a honra é
algo que pode ser defendido. A recuperação da honra perdida, em termos gerais, se guia
através da noção de amor próprio e do orgulho. Ou seja, idealmente, o término da situação
desonrosa significa a atuação do amor próprio na recuperação do espaço familiar e dos
seus fundamentos morais, alterados pela separação.
Isto ocorre de duas formas, ou as mulheres, pós separação, fazem nova tentativa na
relação conjugal, ou assumem a separação como única forma de, em nome da integridade
do espaço familiar e das relações pessoais no seu interior, resgatar este espaço das crises
pessoais. Outra alternativa que não é muito tematizada pelas parceiras da pesquisa nesse
período do seu processo de separação, é a possibilidade de um novo casamento, o que
pode vir a se tornar consciente no relato de algumas delas. E o que demonstra esse
testemunho obtido a partir dos relatos de uma das interlocutoras da pesquisa: “Logo que
me separei achava que eu iria encontrar um homem maravilhoso. Ia me apaixonar, me
casar novamente. Eu estava assim, frustrada. Agora acho bastante difícil casar de novo.
Acho menos necessário. Antes eu não conseguia me imaginava sozinha. Me imaginava
transitoriamente”. A tendência, portanto, também pode ser no sentido de que, através da
noção de amor próprio, as mulheres descasadas recoloquem a questão de um novo
casamento como forma de reconstituir a composição da sua honra, refazendo a reputação
social e recompondo sua integridade em função do papel de esposa55. Especificamente
sobre as relações entre os ex-cônjuges, nos períodos imediatamente anterior e posterior à
55
A questão do orgulho e do amor próprio, em íntima ligação com a ideia de casamento, conduz à aceitação
de uma sociedade percebida como predominantemente relacional: fora da família não há salvação. Percebe-
se, então, o espaço da família como instituição lapidar nesta sociedade, e a 'esposa-mãe', como categoria
focal no interior daquela instituição (...) (ARAGÃO , 1983, p. 115).
separação, observa-se a presença de uma situação de disputa entre ambos os sujeitos
envolvidos, os quais buscam afirmar para si uma situação de exclusividade em relação à
reputação social e a honra daí advindas.
Nesta situação de disputa, por parte dos homens, apresenta-se uma barganha
econômica, pela dependência financeira a que as mulheres estão submetidas, e, da parte
das mulheres, existe uma “chantagem emocional”, devido a sua situação de ascendência
sobre a prole nas relações familiares. Ou seja, ambos se utilizam da relevância dos seus
papéis sociais na família como pontos de honra nas estratégicas de luta durante o período
de dissolução dos laços conjugais.
Nestes pontos cristalizam-se os pontos de honra pertinentes a cada sexo na família
e suas respectivas esferas de competência, tudo dentro de um código de honra que
estabelece uma hierarquia bem precisa quanto aos fundamentos morais de ambos os sexos.
É o que se observa no depoimento de uma das mulheres: “Quinze dias antes de minha
filha nascer ele deu uma batida em nosso carro. Dai tivemos uma tremenda discussão. Ele
não aguentou, pegou sua mala e foi embora. Eu estava de saco cheio. Tínhamos 5 anos de
casados. Ficamos 1 ano e meio separados. Neste meio tempo, eu tive minha filha sozinha,
paguei o hospital, o medico, tudo. E a família toda falando que tínhamos uma filha e coisa
e tal. Depois ele começou a me procurar de novo, dizendo que eu não tinha compreendido
ele, que deveria ter ido conversar, não tinha sido companheira. Mas ele não tinha razão,
tinha sido infantil, irresponsável. Tinha saído de casa na hora que eu mais precisava dele,
nem tinha se importado com a criança..”. Assim, na situação de disputa conjugal, as
acusações se revelam como instrumento para cada um dos cônjuges afirmar sobre o outro
uma diferença e distribuição da honra entre si, ou seja, quem é quem, possuindo a
prerrogativa do ofendido, impõe uma decisão moral, que resulta na desonra do ofensor.
Talvez isto explique porque o inicio da separação é desencadeado pelos seus parceiros,
que viabiliza esta como saída para os conflitos e impasses familiares.
Segundo os relatos ouvidos acerca da politica sexual na família, cabe ao homem,
no exercício da prerrogativa masculina, reposicionar a honra da família, em função da sua
honra-prioridade. A ideia da separação, na maioria dos casos, é sugerida pelo homem
como uma forma de se reestabelecer o fluxo da honra na família e reposicionar, na
hierarquia, as relações familiares. Na realidade, o espaço da separação afirma uma lógica
agonística, isto é, ele ameaça a integridade da honra de ambos os ex-cônjuges, pois é
resultado de uma disfunção nos princípios morais da família.
Com o desencadear dos acontecimentos, ambos os cônjuges se movimentam em
busca de consideração e respeitabilidade. No processo de separação, a reputação social de
ambos se acha constantemente em perigo, incitando-os a afirmação dos seus pontos de
honra. Desencadeando o processo no interior das relações conjugais, os parceiros atuarão
no sentido de defender sua honra da acusação social. Inicialmente, isto irrompe na própria
estrutura dos papéis familiares num questionamento à situação hierarquizante da família.
O relato a seguir permite entender de que formas os códigos da hierarquia familiar são
abordados: “Eu me lembro do momento que eu aceitei claramente o rompimento de nossa
relação. Foi logo depois do nascimento de M., eu tinha passado uma gravidez sem nenhum
apoio. O parto de M. foi difícil, o quarto do hospital era particular, tinha ar condicionado e
tudo. Mas era um tremendo calor. Numa das noites que eu passei mais mal, fiquei sabendo
que o P. desligara o ar condicionado pois tinha se resfriado. Tinha sido uma noite horrível.
Naquele momento eu vi que não tinha mais condições. Não era apenas erro meu o
casamento ter dado errado, e não tinha sentido eu ficar com complexo de culpa por isto.”.
O depoimento citado revela, mais uma vez, ser o espaço da maternidade e paternidade
privilegiado para a atuação da lógica e dos fundamentos morais dos papéis sexuais na
família e, consequentemente, para as disputas de honra.
De acordo com a dialética da honra, presente a lógica moral do espaço da
separação, o que está em jogo é a noção de orgulho e amor próprio das mulheres
descasadas, que, pode-se deduzir, se acha mais evidentemente localizada no papel de
mãe56. Logo, para o grupo pesquisado, a honra feminina está fortemente associada ao
desempenho do papel de mãe que as interlocutoras vivenciam no momento das muitas
crises conjugais, assim como aquele papel que, idealmente, concebe para a maternidade.
Isto, no entanto, não é isolado, pois há referência também as questões da sexualidade e do
papel de esposa.
Conforme se pode perceber em dois relatos recolhidos junto as interlocutoras: “Fui
percebendo que mãe completamente desgraçada e infeliz só podem transmitir estas
emoções. Seu eu fosse uma mãe deprimida, toda ruim,... Eu pensava na influência que eu
tinha, fui vendo que não adiantava mais”. Ou, então: “Eu não suportava mais que ele me
tocasse, me irritava, enojava. Eu não estava mais afim. Que tipo de mulher que eu estou
me tornando, pensava comigo mesma, estou tendo horror a sexo. Já tinha feito aquela
56
A relevância da categoria mãe, para a sociedade brasileira, e as relações e valores que ela articula,
encontram-se criativamente abordadas por Aragão (1983) “Em Nome da Mãe”, In “Perspectivas
Antropológicas da Mulher”, v. III.
última tentativa. Eu me achava egoísta com meus filhos. Achava que os condenaria a
infelicidade. Mas foi ficando insuportável. Perdi o medo do futuro, a culpa com as
crianças, não tinha mais nada que me segurasse, não tinha mais lógica.” Para os grupos
de mulheres descasadas pesquisado, a noção de amor próprio, desencadeada nas disputas
de honra entre os cônjuges, acha-se fundamentalmente veiculada ao exercício da
maternidade numa família fragmentada em seus princípios morais e ligada a uma imagem
que as mulheres fazem de si mesmas, de acordo com a ideia de dignidade expressa num
sistema ordenador de valores, onde a vontade de superar o outro, é acima de tudo o fato
de defender a qualquer preço, certa imagem de si destinada aos demais (Bourdieu, 1968,
p. 189). Os filhos representam, nesta dimensão de honra, um relevante papel na busca da
reconstituição de uma ordem moral nas relações familiares.
Para as disputas de honra presentes no espaço social da separação, considera-se
uma aproximação entra honra e vergonha para ambos os sexos, uma vez que atuam, no
caso, como virtudes necessárias a estes, revelando-se, entre homens e mulheres, uma
preocupação com a sua reputação social (Pitt-Rivers, 1979). A separação atua no sentido
de realçar esta proximidade, pois estimula a sua constituição enquanto valor ético capaz de
orientar as ações dos cônjuges na disputa familiar por uma posição honrável face ao
reconhecimento público. Assim, este espaço social enfatiza a equivalência entre honra e
vergonha para, num segundo momento, recolocá-los sem uma oposição face aos
fundamentos morais na família, de acordo com as características exclusivas de cada sexo.
Na dialética da honra, desencadeada pela separação, atua um fundamento básico, o
reconhecimento recíproco de igualdade na honra entre os cônjuges, mesmo que esta seja
assimétrica. Trata-se de uma “igualdade” a partir de um código moral com base na noção
de honra, isto é, está sujeito a um principio ordenador.
Assim, esta noção de “igualdade” supõe um valor encompassador, pois aponta, ao
menos idealmente, a condição primeira dos indivíduos adquirirem, de igual para igual,
reputação honrada. Neste sentido, a honra não é algo comum a todos, embora todos
tenham igual direito a possui-la. Ela existe para quem é digno dela. Cada parceiro tem a
necessidade constante de afirmar sua superioridade ou sua isotimia em relação ao outro,
isto é, seu direito a ser tratado como uma pessoa com iguais direitos para a estima.
(Periatiany, 1968, p. 157). Particularmente no momento da separação, esta dialética, com
seus princípios hierarquizantes, sofre limitações em termos da sua aplicabilidade na
reordenação das relações entre sexos, tendo por base, a presença neste contexto, da noção
de igualdade dos sexos, peculiar a uma moral universal. Considerando-se, portanto, que no
grupo pesquisado convivem representações e categorias tradicionais, e/ou modernas das
relações familiares, papéis sexuais e laços de parentesco, observa-se a ocorrência de
múltiplas articulações, no espaço social da separação, entre os princípios de uma moral da
honra e de uma moral universalista nas situações de disputa e conflito entre os cônjuges.
Ou seja, em ambos os grupos de status estudados, presente a um princípio
hierarquizante, também se encontra um ethos e uma visão de mundo moderno, assentados
em princípios e valores individualistas. Isto se reflete nos conflitos que conduzem a
separação, onde interagem com princípios holistas presentes no espaço tradicional do
casamento da família. Isto já está presente nas fases críticas das relações conjugais, nas
formas matizadas que assume a tradicional divisão moral. Do trabalho na família, com
algumas interlocutoras insistindo em suavizar e/ou subverter seus antigos fundamentos
morais. Em especial no grupo B, criam-se, no inicio do casamento, esferas de competência
entre os sexos não muito bem precisas e delimitadas, resultando, neste momento das
relações conjugais, num espaço altamente competitivo nas relações entre eles e na esfera
de delimitação dos papéis sexuais.
A interpretação, no espaço social da separação, destas concepções de igualdade, se
revelam como conflitivas se perceber-se que, dentro de uma moral universalista, assim
como na moral presente no código de honra, se está em presença de diferentes concepções.
Na moral universalista, a dignidade se acha virtualmente presente em todos os homens, o
que corporifica a própria ideia de humanidade (Duarte, 1983, p. 9), assumindo, desta
forma, um valor genérico. Esta concepção de dignidade também move as mulheres
descasadas no sentido de assumir a ruptura das relações conjugais e dos fundamentos
morais da natureza dos sexos, sobretudo, no processo de separação, contra a concepção de
que não só as regras impostas aos homens diferem das regras impostas as mulheres, senão
que elas são variáveis segundo as situações, não sendo de forma alguma universalizáveis
(BOUDIEU, 1968, p. 207).
Por seu turno, na moral da honra, predominante no espaço da separação do grupo, a
noção de respeito reflete padrões ideais de conduta que implicam a condição de manter-se
limpo de ataques ou insultos (Campbell, 1968, p. 137). A “igualdade” na honra pressupõe
a condição de respeito, de direito a uma reputação honrada, e se acha fundada em um fim
coletivo que é reconhecido como impondo-se a muitos homens (Dumont, 1970, p. 11).
Portanto, até certo ponto, fica fácil entender, nas disputas e conflitos conjugais presentes
na situação de separação, como as mulheres passam de uma posição de equivalência aos
seus parceiros, na busca da sua honra diferenciada, para uma posição igualitária,
disputando e competindo por sua dignidade enquanto indivíduo-genérico, parte da
humanidade. Em ambos os casos, estão atuando dentro dos limites de códigos que são, em
principio, diferenciados.
Nesta parte do estudo, as implicações práticas destas considerações são colocadas
quando da constatação de que, no espaço da separação, sob a égide da honra, ambos os ex-
parceiros disputam a condição de respeitabilidade em função das noções de orgulho e
amor próprio, e, de certa forma, reafirmam alguns princípios morais singulares da esfera
familiar tradicional. Percebe-se, nos testemunhos sobre a situação de separação, o quanto a
honra de um está intimamente associada à desonra do outro. Os valores morais, neste
momento, assumem uma dimensão particularista e excludente face às diferenças sexuais.
Conforme coloca Velho (1983, p. 07), nesta dialética da honra são discutidos papéis e
paradigmas, estão sendo abordadas noções como a do bom pai, boa mãe, o marido e a
esposa. São apresentadas versões, interpretações são cotejadas. O boato, a intriga, a
inconfidência perpassam a antiga rede criando clivagens e acentuando diferenças de
ponto de vista. Neste jogo, toda a rede social das mulheres separadas se acha envolvida,
legitimando ou não a honradez de cada um isoladamente. Isto esta colocado nos relatos
das mulheres a respeito das crises conjugais que culminam com a ruptura, e onde todos
aqueles que compõem a rede social do ex-casal, parentes ou não, são chamados a
participar.
Conforme já foi dito, e sob outro enfoque, não majoritário, o espaço da separação
se revela como um processo de negociação da realidade, onde as intelocutoras se acham
manipulando concepções e valores peculiares a um ethos de modernidade, o que é, por
exemplo, o caso da noção da moral universalista.
Nesta situação, as noções de individualidade, igualdade e privacidade tornam-se
fonte de brigas e disputas, como um exemplo claro da composição desta visão de mundo
moderna, atuando no espaço social da separação e que se impõem a partir da concepção
do homem como individuo (Dumont, 1970, p. 17). Durante a separação, e sob o signo da
individualidade, as mulheres não só questionam os limites e as fronteiras da constituição
da sua identidade social a partir da tradicional esfera familiar, como indagam sobre a
própria noção de família.
Este momento se caracteriza pela presença daquilo que Velho (1983, p. 44)
denomina angustia da individualização, o que, neste trabalho, está representado pelo
distanciamento percorrido pelas mulheres descasadas em relação à prioridade do
encompassamento proposto pelo código de honra para a solução dos impasses conjugais.
Os depoimentos de algumas mulheres permitem avaliar a profundidade desta angustia e
seus reflexos na situação emocional desencadeada na separação: “Logo que me separei,
comecei a entrar numa de ter medo. Um medo incrível. Um medo de tudo. Medo de
enfrentar decisões. Ou ainda: No inicio, estar separada era um horror. Assim como a
novela das seis. Um horror. Era com sentir-se sozinha, tanta coisa investida nestes 14
anos.” Neste aspecto, a separação, tanto quanto o casamento, por desencadear um processo
de negociação da realidade, estabelece uma ruptura nômica. Esta ruptura afeta não apenas
os padrões e papéis sexuais em jogo no interior da esfera familiar já em estado de
fragmentação, como também atinge a própria imagem social e pessoal após a separação,
constituindo a noção de singularidade em função da possibilidade de construção de uma
nova definição de indivíduo.
O depoimento que se segue permite a identificação das metamorfoses e
perturbações, na definição dada por uma das interlocutoras da pesquisa para si própria
enquanto sujeito da ação, após a separação: “Quando eu me decidi pela separação eu tinha
que me cuidar para não dizer „eu vou me suicidar‟ em vez de „eu vou me separar‟, era uma
coisa incrível. Depois passei um tempo, logo depois da separação, que eu tinha que me
cuidar para não dizer „eu me casei‟, em vez de „eu me separei‟.” Na primeira parte deste
depoimento, o sujeito da ação se define como suicida, na medida em que assume o
processo de separação. Há um desconforto em perceber como aquele que no
descasamento, se suprime a partir da concepção de um sujeito autoconstrutor, se
conciliando com sua imagem pessoal e se achando “casado” consigo mesmo. Neste ponto,
a separação é representada pelo distanciamento da inconsciência (casamento) e a
afirmação da integridade pessoal e da consciência. Portanto, este depoimento nos revela,
de modo sui generis, o movimento do sujeito concebido como “destruidor de si mesmo”
para aquele que “constrói a si próprio”, numa trajetória ate a realização da autenticidade
pessoal.
Da mesma forma o relato transcrito aqui é significativo desta alteração na
identidade social das mulheres descasadas, a partir do nascimento do indivíduo através da
consciência: “O pesadelo terminou. Se eu vejo o meu casamento como processo, antes de
me grilar com as coisas, eu vejo que eu era uma sonambula, uma morta-viva. Era outra
pessoa, não tem explicação. Não era uma pessoa, era uma empobrecida, sozinha”. Neste
momento da reconstrução biográfica, surge, nitidamente, em grande parte dos discursos
das mulheres ouvidas nessa pesquisas, uma noção de indivíduo de acordo com três
dimensões importantes. Ou seja, como sujeito moral, sujeito politico e sujeito da razão57.
Nesta tripartição, é possível observar uma preocupação em constituir a mulher como
sujeito individualizado, buscando sua interioridade, originalidade e singularidade,
processo este que começa a entrar em conflito quando se repensa a esfera doméstica e,
dentro deste contexto, o papel de esposa-mãe. Segundo outro relato ouvido, a separação é
apontada como momento que afirma o espaço do indivíduo singular, sujeito ético e moral:
“A separação me fez ter maior preocupação com minha vida profissional. Estou buscando
descobrir meu espaço, minha forma de ser.” Neste ponto, a importância da separação se
revela na medida em que instaura sua existência como consciência individual, guiando-se
por uma ética individual, destacada de uma ordenação hierárquica de valores associada ao
meio tradicional.
O cultivo a interioridade dimensiona o aparecimento do sujeito da razão, onde é
ressaltado o aspecto da construção interior decorrente do espaço da separação. Os
testemunhos de algumas das mulheres ouvidas nos alertam para estas observações: “Eu
sinto atualmente a minha responsabilidade sobre o meu estado de espirito. Isto não me
passava pela cabeça antes da separação”. Ou, então: “Logo que me separei me senti feliz
em ter meu espaço e poder decidir como usa-lo”. A presença do sujeito da razão, nos
discursos, é significativa quando as mulheres comparam a emocionalidade da situação do
casamento com a presença da consciência, do cogito, após a separação. Este aspecto é
importante na medida em que, neste processo, a não razão, referida ao período do
casamento, tanto constrói como legitima a presença da razão fundamentando a identidade
social das mulheres na situação de separação.
Conforme um dos testemunhos, é no espaço da separação que se coloca a presença
da maturidade, em função de uma atitude mais reflexiva, consciente e racional: “Minha
maturidade chegou com a separação. Maturidade é tu viver o dia-a-dia, o presente. E mais
certezas do que duvidas. Para de imaginar que a vida vai ser de modo que se sonha, e se
dar conta de que a vida é acima de tudo do jeito que é. E saber que tu estas fazendo, saber
o que se quer” . A separação, então, através do culto ao sujeito da razão, afirma a força
interior e individual, e é construída sobre o enfoque da “originalidade”, o que se acha
57
A ideia de utilizar, nesta parte do Trabalho, estas 03 dimensões da moderna noção de indivíduo é sugerida
a partir da leitura de Duarte, (1983) “Três Ensaios sobre Pessoas e Modernidade”.
perfeitamente enquadrado no ethos da modernidade enquanto çã „ if ç ‟, e
i i çã „ i ‟i í if ã „ igi i ‟/„ i g i ‟
/„ i i i ‟ (DUARTE, 1983, p. 25-6).
A forma como se apresenta o relato da vida casada por uma das interlocutoras,
permite avaliar a relevância do espaço da separação como momento desencadeador da
noção do indivíduo original, criativo, contrastando com a situação do casamento, que é
apresentada por ela como uma prisão: “No meu casamento eu me anulei, parei de
desenhar... Não consegui mais. Fazer o que? Não saia nada. Para desenhar tu tens que te
libertar. Quando tu desenha, tu te liberta. Mas como me libertar? Eu tinha que viver
daquela maneira, eu estava presa.” A necessidade de reconstituição da esfera familiar é
intercaladamente projetada, nos depoimentos, como forma de suavizar as conclusões
tiradas a partir do processo de descasamento e avaliar os projetos pós-separação. Estas
ponderações retornam em outros depoimentos: “Estou me sentindo satisfeito, mesmo
separada. Acho que há problemas na minha vida que não são nem de longe os que vivi
quando casada. Por exemplo, a mulher trabalhando, criando filhos, é uma barra muito
pesada. Acho que deveria manter este meu bem-estar agora dentro de uma instituição
como o casamento. Mas de que maneira é bom casar e ter filhos? Em tese eu poderia viver
o que vivo agora dentro de um casamento.” O que esta em jogo não é mais a noção de
família, pois esta é resgatada no processo da separação. A posição indivíduo/família é
superada para a oposição indivíduo na situação de casamento, dissociando-se a aliança
matrimonial da concepção de família. Ou seja, “hoje, família sou eu e meus filhos; é
estarmos juntos”.
Neste ponto, a discussão da liberdade individual deixa de ser afetada pelos limites
da esfera familiar e atinge a dimensão das relações interpessoais entre homens e mulheres.
Resgata-se a noção de família, agora recolocada dentro de outras concepções morais que
não encontram mais fundamento básico na legitimidade da ordenação hierárquica dos
princípios morais ligados à natureza de cada sexo. O que orienta a ação de parte das
mulheres no processo de descasamento, de acordo com a lógica individualista, é a
construção de um projeto individualizante que redimensiona não apenas os papéis sexuais,
mas também, os laços de parentesco e que afirma, em última instância, como uma unidade
legítima da noção de família, a unidade biológica mãe-prole.
Parte deste processo está presente neste depoimento onde aparece, inicialmente,
uma negação dos princípios hierarquizantes vividos no espaço familiar após o casamento,
seguindo-se de uma reflexão a respeito da relação indivíduo/coletivo no seu interior:
“Durante meu casamento eu era outra pessoa. Eu era participante. Parecia, né? Mas
participante coisas de marido. Agora se eu tiver uma pessoa a quem eu tivesse que dedicar
meu tempo eu não saberia o que fazer. Agora vejo que é possível estar feliz. Enquanto no
casamento só consigo ver aquela coisa da cobrança. Isto me deixa com muito medo de
casar de novo.” Quanto ao surgimento da dimensão do sujeito político na separação, este
desencadeia um paradoxo no nível da família e do seu princípio hierarquizante.
Por um lado, privilegia a individualidade, por outro, afirma um compromisso
retotalizador entre os sexos, na medida em que pressupõe sua igualdade universal. As
mulheres diante do acontecimento da separação, então, passam a atuar, em muitos
momentos, em função da sua individualização. Nesta medida, conseguem um espaço
familiar que não apresenta a retotalização dos valores e concepções ligados à hierarquia
dos sexos. Assim, a legitimidade da identidade social oscila entre a universalidade dos
seus direitos como indivíduo genérico, que é parte da humanidade, tomada como
totalidade, e a parte/indivíduo, modelo axial de Indivíduo/Sujeito, em suas múltiplas
refrações (Duarte, 1983, p. 10). Isto está expresso claramente nos seguintes testemunhos:
“Agora na relação com os homens eu quero a minha liberdade tanto quanto eu admito que
eles têm necessidade dela. No casamento era diferente, tinha aquela coisa possessiva. É
moral junto e tenho a impressão que tudo vai recomeçar de novo. Se eu estou sozinha não
fico deixando nada pra alguém fazer. Não pinta aquelas murrinhagens de casal. Por isto,
acho boa esta ideia do casal morar separado, sem as murrinhagens do dia-a-dia”. O quadro
fica mais complexo quando se observa que, paralela a esta composição do discurso das
interlocutoras desse estudo, está presente uma visão de mundo e um estilo de vida vividos
em função de um código ético e moral tradicional, atuante no seu passado com sua família
de origem ou no passado da sua família de procriação, assim como no presente, na
situação de separação e na forma como a sociedade gaúcha articula as dimensões
tradicional/moderno no espaço da família.
CAPÍTULO 6
Visto do exterior (e não percebido, pois a percepção torna inseparáveis exterior e interior),
o corpo feminino recebe um conjunto de atributos derivados de seu mais imediato: a
maternidade.
58
Remete-se aqui à leitura das obras: “O Existencialismo é um Humanismo” J.P. Sartre, 1978 e “Sociologia
da Religião”, M. Weber, 1980, que dão origem a ambas as conceituações - maternidade projetada e
maternidade imanente. A partir dos conceitos de projeto - referido à condição humana em termos de
transcendência, liberdade e escolha, ou em oposição à ideia de essência da natureza humana (SARTRE,
1978) - e de imanência - considerada em função das noções de mística, contemplação, captação de divino,
que se opõem à de transcendência (ação, racionalidade, disciplina) - constrói-se as imbricações entre uma
forma moderna de se pensar a maternidade na delimitação da identidade social feminina e outra mais
tradicional.
“um todo hierárquico” (Abreu, 1982, p. 149). Ou seja, primordialmente, percebem e atuam
neste domínio em função de uma lógica hierárquica para os papéis sexuais.
Por outro lado, a construção social do espaço da maternidade, para as mulheres
descasadas, encontra-se sujeita a uma lógica mais individualista, onde especificamente, o
desempenho da maternidade passa a conter o germe da individualidade feminina, de
acordo com a concepção construída para a singularidade do sujeito feminino59. Nos
depoimentos, a ocorrência de ambas as instâncias de representações e vivências no
desempenho do papel de mãe retoma parte da análise feita no capítulo antecedente, onde
se aborda a política sexual na família das interlocutoras, seus fundamentos morais frente
ao jogo de situações tradicional/moderno e onde se afirmam, de modo recorrente, as
oposições hierarquia/igualitarismo e holismo/individualismo.
Parte-se do suposto da existência concomitante de diferentes modelos de
representações dos papéis sexuais e laços de parentesco no contexto da família,
considerando-se a dimensão de modernidade que perpassa o grupo pesquisado, assim
como as contradições e especificidades da sociedade gaúcha, como parte da sociedade
brasileira, em função de modelos tradicionais, e/ou modernos que contém no seu interior.
Na medida em que as mulheres que foram ouvidas se encontram experienciando um
processo de separação, que de modo geral está associado ao espaço da modernidade,
torna-se relevante discutir os limites desta experiência em função do papel de mãe, o qual
estas continuam desempenhando dentro da esfera familiar. Neste sentido, é importante
analisar os diferentes matizes que assumem as representações hierárquicas e igualitárias
dos papéis femininos na divisão moral do trabalho na família, tendo em vista o processo
da maternidade na trajetória social das mulheres aqui ouvidas e sua relevância para a
construção social das suas identidades de sexo-gênero.
Considera-se o fato da separação ter implicações na forma como se estruturam as
representações femininas na esfera familiar, na divisão moral do trabalho e no seu ethos e
visão de mundo. O espaço da separação é visto, assim, como uma das instâncias que
realiza parte do processo de alteração no modelo familiar, reorientando, até certo ponto,
seus pressupostos hierarquizantes. Trata do estudo do espaço social da maternidade e da
59
Quanto à discussão da condição feminina na maternidade, considera-se relevante estudá-la no espaço
social da separação, do ponto de vista de um sistema de categorias e imagens coletivas constitutivas da
experiência feminina em grupos e culturas diferentes (CAVALCANTI, M. L. et al, 1981, p. 09). Neste
sentido, a análise da condição feminina no grupo pesquisado é inserida no estudo do próprio movimento de
constituição do Sujeito Moderno. Inspirando-se aqui, nos estudos de Duarte (1983), a discussão do espaço
social da maternidade permite uma reflexão sobre Pessoa e Modernidade, dentro da qual, também se insere a
problemática da construção social da identidade feminina.
análise da forma como o grupo pesquisado realiza, neste âmbito, estas metamorfoses e,
ainda, do conteúdo que constrói suas representações e práticas familiares, a partir da
vivência de um processo de separação.
Através do estudo da maternidade, no caso da separação, propõe-se entender a
forma como os fundamentos morais da família, do grupo em questão, sofrem adaptações e
variações ou são contestados. Busca-se captar os seus reflexos, por um lado, na noção de
honra familiar, e por outro, na construção de variações de um individualismo feminino.
Para cada caso, retoma-se a discussão de uma lógica holista e outra individualista, no
âmbito das relações de parentesco e na constituição dos espaços morais dos sexos. Segue-
se a linha de indagações que Durham (1983, p. 31) confere ao conceito de família, onde a
autora remete a discussão prioritariamente ao modelo cultural e a sua representação.
Torna-se necessário, então, analisar em que medida as variações correspondem a
adaptações ou extensões do modelo e até que ponto implicam sua contestação (Durahm,
1983, p . 31). A ideia central a ser desenvolvida concebe, dentro do ethos familiar que as
interlocutoras, em sua maioria, partilham importante papel à noção de honra, assim como
confere à maternidade significativa função na reconstrução da moral feminina face ao
espaço modernizante da separação. Concebe-se aos laços mãe-prole a importância de
reconstituir, após a separação conjugal, os fundamentos morais da natureza feminina do
grupo pesquisado, no sentido de neutralizar as inversões ocorridas com este grupo, tendo
em vista a desarticulação do espaço familiar. Trata-se aqui, do ponto de vista do código de
honra, da cisão do núcleo central da constituição da identidade feminina, ou seja, da
dissolução da categoria social “esposa-mãe”60.
61
Retoma-se, aqui, a discussão levada a efeito no Capo V - Casamento x Separação - Os fundamentos
morais e a política sexual na família - que se orienta seguindo algumas das afirmações feitas por Pitt-Rivers
(1979), em função dos seus estudos sobre os fundamentos morais da família nas sociedades pertencentes ao
complexo mediterrâneo.
62
Para um aprofundamento da implicação da reputação feminina sobre a honra familiar e, como
consequência, sobre a honra masculina, ver os estudos feitos no Brasil por Abreu (1981, 1982, 1983) e
Aragão (1983). Com relação à origem desta discussão nas sociedades mediterrâneas, ver Pitt-Rivers (1979,
1968), Peristiany (1968), Campbell (1968) e Bourdieu (1968), onde estes autores abordam a importância da
honra e da vergonha feminina para o grupo familiar e para os homens que dele fazem parte.
contexto, as mulheres são apontadas como “depositarias” dos aspectos moral e sagrado do
domínio familiar. A honra feminina reside, assim, na sua sexualidade, mais
especificamente, em função de um comportamento sexual comedido e modesto. A honra
familiar, e, em contrapartida, a honra masculina, assenta-se, então, no valor atribuído a
pureza feminina, conduzida por uma moralidade sexual.
É neste campo de discussão que se encaixa a noção de honra-virtude no caso das
mulheres, onde se acentua a noção de honra derivada de uma posição de virtude ligada à
conduta sexual comedida. Isto difere, segundo estes autores, da abordagem sobre a honra
masculina, uma vez que, segundo eles, esta constrói-se em função de uma honra-
prioridade constituída em fazer valer os seus direitos sexuais (Pitt-Rivers, 1979, p. 69), ou
seja, da precedência sexual. O importante para este estudo do espaço social da separação é
que a honra-virtude das interlocutoras, para se manter, necessita da noção de vergonha,
que, atuando na sua conduta sexual, impede-a de destruí-la. Logo, a honra-virtude se
caracteriza por ser algo que não é conquistado, ela é, sim, mantida através da iniciativa
feminina, na busca da realização de um padrão moral em função do “nome da família”.
Especificamente após a separação, este código moral passa a se constituir
predominante em função da prole e das implicações morais da conduta sexual das
mulheres descasadas nessa esfera comportamental. Estas considerações podem ser
indicadas no conteúdo expresso por alguns testemunhos recolhidos em campo: “Eu me
dedico ao meu filho. Eu sempre penso em primeiro plano no meu filho. Tem mulheres que
tem o seu lazer e não querem nem saber. Eu não! Só faço programa se ele sai com pai.”
Ou ainda: “Eu assumi, sou o pai e a mãe dos meus filhos. Muito difícil, muito doido. As
vezes gostaria de chorar, de mostrar minhas fraquezas…mas eu não faço isso porque eles
precisam de uma força maior. Se eu começar a fraquejar também eles não vão ter onde se
apoiar”.
63
A ideia, aqui, é sugerir que o casamento, enquanto agência nômica (RUSSO e SANTOS, 1981), torna-se
produtor de leis e regras que orientam a conduta sexual feminina a partir de um código de fidelidade, sendo
que seus agentes percebem-no como algo dotado de sentido. Isto está expresso na neutralização dos
caracteres mais manifestos da sua sexualidade (ARAGÃO, 1983), dada em função do casamento.
64
Para Oakley (1976, p. 156), a noção do mito, aplicada em seu estudo sobre o trabalho feminino no lar e as
ideologias da domesticidade feminina, significa a purely fictitions narrative (...) emboyding some popular
idea concerning natural or historical phenomena. Assim, os mitos sobre o lugar da mulher na sociedade
provides the rationale for the ideology of gender roles in which femininity and domesticity are equated.
65
Conforme se vê, esta autora estabelece uma significativa vinculação da constituição do mito da
maternidade com a estruturação específica do espaço social do casamento. Isto é particularmente apontado
por Aragão (1983), quando descreve a forma como as categorias sociais centrais - esposa e mãe – se acham
definidas no interior da instituição “casamento” e o seu modelo de “relações intersexos”.
estudo do mito da maternidade leva-a a concluir que a posição da mulher na família é
fundada em sua maternidade, agora e para sempre, o que conduz à afirmação de que a
sua função, no espaço social, é uma validação do status quo. De certa forma, as
apreciações desta autora são constatadas agora, sob outra ótica, quando Durham (1983, p.
04), comentando as metamorfoses no modelo familiar a partir de alterações numa ordem
econômico-social, mais especificamente, com a industrialização, conclui que, o mundo
moderno não apenas divorcia socialmente a produção da reprodução, mas inclui
simultaneamente a mulher nas duas esferas, a pública e a privada, de modo contraditório.
A associação da reprodução do papel feminino retém, de alguma forma, a desigualdade,
agora com novas e sugestivas contradições: presente à noção de igualdade como indivíduo
na esfera do mercado e a desigualdade enquanto mulher, ancorada nu esfera doméstica
da reprodução.
Novamente, aqui, retoma-se para o espaço familiar, a discussão levada no capítulo
anterior, ou seja, verifica-se a presença de dois códigos, o da honra e o universalista,
percebendo-se que a manutenção do primeiro se deve, sobremaneira, à vinculação da
mulher - enquanto reprodutora - ao mito da maternidade, que continua afirmando sua
naturalização - assim, se o papel da dona de casa e o papel mulher são capazes de
mudança, o papel materno não o é (Oakley, 1976, p. 186)66. De outra forma, neste ponto,
se introduzem as palavras de Oakley (1976, p. 188) para exemplificar estas considerações
sobre a dimensão moral da maternidade e a forma como atua na constituição do gênero
feminino: ser feminina significa ser, ou querer ser, mãe: rejeitar a maternidade significa
tornar-se masculina. O que, por sua vez, contraria a natureza moral dos sexos não apenas
na família, mas na sociedade. Entende-se que sua constância se assenta nas características
morais que a maternidade possui para a constituição da esfera familiar e na forma como o
seu desempenho define os espaços morais e legítimos dos papéis sexuais na cultura
mediterrânea.
66
Para ampliar a discussão da naturalização das relações de parentesco, ver Woortmann (1977) e Abreu
(1982, p. 97), onde, este último, afirma a importância de se considerar o parentesco - aqui tematizado nos
laços mãe-filho - como sistema simbólico não necessariamente circunscrito ao parentesco biológico, nem a
um domínio do parentesco definido a „priori‟.
liberdade sexual e igualdade entre sexos (evidenciado principalmente no grupo de status
B). Os impasses são criados em torno de algumas das representações dos papéis sexuais
para o espaço do igualitarismo e individualismo nas relações conjugais, face às normas
tradicionais67. Trata-se, a seguir, do estudo da forma como se compõe esta “tendência”
igualitária na relação conjugal, enfocando a sua alteração face à situação de separação,
relacionando-a ao código moral da família e à natureza moral do gênero feminino, e,
ainda, a forma que adquire o espaço social da maternidade neste contexto, frente às
representações individualistas destas mulheres.
A maternidade, então, pode ser vista dentro de um contexto individualista, como
uma singularidade a ser “trabalhada”, no sentido destas mulheres surgirem, frente aos
homens, como “individualidades”. Neste caso, a desigualdade social entre sexos se
apresenta, não na função reprodutora, mas sim, no espaço familiar, ou seja, está ancorada
na esfera doméstica da reprodução (Durham, 1983, p. 34). Desfaz-se a associação entre
esta desigualdade e as características da natureza biológica dos sexos. Constrói-se, assim,
espaço para o surgimento da ideia da condição feminina, afastando-se a vinculação da
identidade feminina aos condicionantes da sua natureza biológica.
Neste campo, a maternidade constitui-se, primordialmente, como o suporte da
identidade social feminina, enquanto algo que é singular à sua condição, dada no culto ao
eu feminino (Duarte, 1983), através da redefinição do que seja sentimento de maternidade.
De modo complexo, este movimento também é capaz de construir, além do indivíduo
singular, o indivíduo genérico do sexo feminino, através de uma lógica igualitária e
aplicando-se aí, uma moral universalista para a definição dos papéis sexuais.
omo a discussão deste tópico posiciona a maternidade enquanto um discurso sobre
natureza face à condição feminina, é importante considerar, nesta problemática, a noção
moderna de liberdade aplicada à construção social da identidade feminina. Aqui, ressalta-
se a observação feita por Chauí (1985, p. 46), onde a autora comenta: A construção
moderna da ideia de liberdade partiu da distinção entre finalidade externa e finalidade
interna, somente a segunda sendo compatível com a liberdade. A primeira existe, por
exemplo, quando a biologia falava numa força vital que comanda os processos de vida de
longe e de fora (como um general comanda seus exércitos)... A finalidade interna, ao
67
A proposta de se entender os limites que o espaço social da maternidade propõe para o desempenho dos
papéis sexuais na família, ao nível do casal e em função das vinculações tradicional/moderno, se reflete no
artigo de Azevedo (1981a, p. 22), que demonstra a importância de se perceber as instituições como
totalidades sempre sujeitas a serem vistas e decompostas para análise em partes, em traços, em elementos e
componentes „dinâmicos‟.
contrário é imanente à própria ação que se dá fins a si mesma e que as alcança por si
mesma, graças às atividades interiores e exteriores que realiza. Neste ponto, aborda-se a
educação para a maternidade como habitus, capaz de estruturar na mulher uma “matriz de
significações” geradora de um sistema de percepções e disposições, o qual, por sua vez,
também está associado ao corpo e às características biológicas do sexo feminino, sendo
capaz de fundar, de modo exemplar, características morais para este sexo, num processo
que de qualquer modo, busca a naturalização da cultura, que tanto pode se dar através de
uma dimensão holística, como noutra mais individualista68.
Novamente reportando-se a Chauí (1985), o que se revela no grupo pesquisado é
que a maternidade construída, seja através de uma visão de mundo tradicional, seja no
próprio pensamento moderno, retoma a encruzilhada paradoxal entre a Natureza e a
Cultura. Assim, percebe-se uma associação da maternidade ao feminino através do corpo
cujo sentido é outorgado por um pensamento, por uma vontade e por práticas que nele e
sobre ele investem ideologias, isto é, um imaginário social de dissimulação e de
ocultamento (p. 45).
No caso deste habitus, ele vincula o ethos feminino, por um lado, ao espaço dos
laços de parentesco e papéis sexuais no interior da família, tendo por referência sua
dimensão encompassadora da vocação da maternidade que obedece a uma lógica
holística, ou seja, ao instinto e amor materno, formas de controlar e reprimir a sexual
idade feminina (...) (Chauí, 1985, p. 45) ordenando-a dentro dos fundamentos morais da
família. Por outro lado, em determinadas circunstâncias, quando associado ao espaço do
sujeito - da “subjetivação” - tornado aqui em sua referência á noção de indivíduo singular,
segue uma lógica mais moderna. Neste sentido, a constatação, nos testemunhos das
mulheres desacasadas (em particular ao grupo B), da qualificação da mulher enquanto
sujeito sugere que isto se dá através da construção de finalidades 'internas' a partir do
exterior (Chauí, 1985, p. 46), num movimento que obedece à construção do sujeito
moderno.
Tem-se claro que, no discurso da maior parte das falas, a maternidade e suas
representações podem aparecer como condição, acompanhadas de momentos de reflexão e
68
A aplicação restrita deste conceito, no sentido de dimensionar o componente moral da socialização para a
maternidade, considerando-se a tão comentada posição estrutural da categoria mãe no Brasil, tem suas
razões no fato dela atuar como princípio estruturalmente unificador e gerador (BOURDIEU, 1982) das
práticas femininas no campo dos papéis sexuais e laços de parentesco. Este habitus é responsável pela
transferência e durabilidade dos fundamentos morais na família e na sociedade.
A noção de habitus, portanto, enquanto um sistema de esquemas de apreciação, de pensamento, de
apreciação e de ação (BOURDIEU, 1982, p. 47), auxilia no processo de desenvolvimento do ethos em suas
articulações com uma visão de mundo.
subjetivismo. Ou, ao contrário, com base na emoção encompassadora do “amor materno”.
No entanto, ambos os tipos de depoimentos apontam para um processo de naturalização -
culturalização da relação mãe-prole, seja pela ideia de sangue, seja de instinto69. No caso
da “vocação materna”, o desempenho do papel de mãe se apresenta como algo imanente
(auto-evidente). Entende-se que isto ocorre devido às vinculações que as mulheres
descasadas fazem do “amor materno” com a ideia do biológico, em função das noções de
sangue e raça.
Sugere-se, neste caso, uma aproximação com observações do seguinte teor:
sangue, enquanto categoria integra o elemento natural – a substância que corre nas veias
– num contexto de significados que o transforma em categoria de pensamento que,
i g iz f i ” (Abreu, 1980, p. 130). A categoria
sangue no para o papel de mãe articula o individual com uma totalidade: a família
(Abreu, 1982, p. 138) e, neste ponto, a noção de sangue também remete ao parentesco
como uma ideologia, ou seja, ela indica a construção social do sentimento de parentesco
(Woortmann, 1976). A maternidade, na sua acepção imanente, está recoberta pela ideia da
natureza biológica. E entendida aqui enquanto um fenômeno natural, que possui uma
dimensão moral (cultural), aceitando o fato de que é difícil pensarmos o indivíduo
biológico como um indivíduo moral sem referi-lo ao todo (Abreu, 1982, p. 138). A
totalidade encarada aqui é o espaço da família e dos seus fundamentos morais dos sexos,
assim como a forma como se constitui um aspecto do habitus feminino.
Nesta dimensão, a reprodução, para o grupo pesquisado, representa não apenas sua
condição biológica na espécie, pois ela é constitutiva da própria essência feminina no
interior da família, estabelecendo fronteiras significativas entre os sexos, e dando à estas
diferenças biológicas um caráter, um tom, uma moral. Logo, o “amor materno”, enquanto
algo imanente, destinado ao amor do e pelo particular: seu filho, seu marido, seu pai, sua
casa, seu fogão, seu tricô, seu bordado, seus álbuns, seu jardim, seus vizinhos, etc.
(Chauí, 1985, p. 45). É interessante observar como as mulheres do grupo B relata a
experiência da maternidade: “Eu sempre procurei o significado das coisas. Mas não me
pergunto o „porque‟ dos sentimentos com os meus filhos, não é? É a coisa mais importante
69
Entende-se, aqui, uma diferenciação qualitativa entre as noções de sangue e instinto, conforme abordagem
feita por Abreu (1982) e Duarte (1983).
Segundo o primeiro autor, (1982, p. 137) através do sangue uma moral é transmitida e perpetuada de forma
que um individuo tem sempre algo do outro, nunca é uma individualidade autônoma. Por seu turno, Duarte
(1983, p. 23), ao analisar a constituição do Sujeito Moderno em função da “Cultura do Ego”, entende a
noção do instinto sexual como ponto onde se articulam os temas antes acompanhados da „natureza humana‟,
tornando-se fonte da legitimidade daquele sujeito.
da vida, do mundo... são os seus filhos”. Ou então: “Acho que ter filhos é uma coisa
importante. Ela faz parte da natureza”. E ainda: “A coisa mais importante da vida, do
mundo, para mim são os filhos. Não acho que é a única coisa que vou fazer, mas é a mais
importante”. Referenciando-se a Oakley (1976, p. 196), o mito da maternidade se compõe
de três princípios básicos. O primeiro é o mais influente: a de que as crianças precisam de
mães. O segundo é o de observar o seguinte: que as mães precisam de seus filhos. A
terceira afirmação é uma generalização que sustenta que a maternidade representa a maior
conquista da vida de uma mulher: os únicos verdadeiros meios de auto-realização. As
mulheres, em outras palavras, precisa ser mãe.
As duas primeiras assertivas são singularmente importantes para explicarem os
depoimentos quando eles relatam os motivos que as levam à maternidade, onde esta é
percebida como uma essência70: “Eu já sabia que ia ter filhos”; “é uma coisa de bicho,
né?”; “ter filhos fazia parte natural do casamento”, ou ainda, “aí então, minha vida estava
completa” (referindo-se ao nascimento do filho). É neste momento que se identifica, nos
depoimentos, o código da maternidade em função da família e a constituição da função
nutriente feminina, tomada enquanto natureza. Trata-se da capacidade de gerar a vida,
revelando sua função nutriente (ABREU, 1983, p. 91).
Esta função nutriente implica a presença do atributo masculino complementar ao
espaço feminino na família, isto é, a figura do provedor, do marido. Aí se coloca a
importância da diferenciação da reprodução para homens e mulheres, pois, no depoimento
das mulheres, estes aparecem como pessoas que são “aliciados” à paternidade,
independendo dela para a realização da natureza moral masculina. Por outro lado, afirma-
se o que é dito anteriormente a respeito da relevância do casamento como forma de
legitimação do “sentimento de maternidade” e, logo, da essência da natureza moral
feminina. Segundo Oakley (1976, p. 192), é possível constatar esta dimensão no mito da
maternidade quando a prole atinge a idade da independência.
Ao se fazer um corte analítico nestas instâncias, importa observar como ambos os
momentos se constroem separadamente, porém, numa íntima vinculação. Primeiro, sobre a
importância da figura do provedor como algo complementar à natureza moral do feminino
na maternidade: “O R. achava que não estava apto. Mas eu acho importante um filho na
vida de um homem e de uma mulher. Tenho pena do casal sem filhos. É como uma
70
A recorrência, por parte das interlocutoras, da ideia de destino e vocação para a maternidade, recoloca a
discussão proposta por Abreu (1982, p. 117), onde o parentesco é percebido numa dimensão
encompassadora e, portanto, não possibilita uma focalização do indivíduo enquanto unidade significativa.
Isto pode ser aplicado no caso das relações de parentesco mãe-prole no grupo analisado.
anomalia. Não tem raiz, está solto”. Ou então” “ certa altura decidi que nós teríamos um
filho, acho que na ocasião ele também achava isto maravilhoso, né?” A presença iminente
da separação pode expressar problemas na associação, inicialmente feita entre a
maternidade e a paternidade e o casamento. A respeito do assunto uma das interlocutoras
deixa claro que, embora pense na separação, não pretende “sair do casamento com um
filho só, assim, engravidei, e decidi que seria melhor me separar quando a criança já
tivesse nascido. Achava que seria muito ruim enfrentar toda esta situação grávida”. É a
presença dos laços de parentesco legitimados pelo matrimônio que atribuem a um homem
determinado, durante o casamento, ou após a sua dissolução, a responsabilidade para com
a prole de cada mulher (Durham, 1983, p. 22), o que garante a atuação provedora
masculina na família mesmo com a separação. Assim, apesar de ligadas aos fundamentos
morais dos sexos, algumas estruturas da divisão do trabalho tendem a permanecer mesmo
após a separação do casal.
Observa-se, agora, no grupo estudado, como se forma a figura do provedor quando
a maternidade imanente se efetiva, e vem estabelecer, concretamente, os laços
exclusivistas mãe-filho. Neste momento, deve-se verificar o distanciamento da figura do
pai, existindo, mais especificamente, a figura do marido provedor. E o momento em que a
mulher se fecha sobre o(a) filho(a) numa relação simbiótica (Salem, 1984), em que é
excluída a figura do pai, restando ao homem o desempenho da manutenção da família71:
“Daí quando eu fiquei grávida, pronto. Não me interessava mais nada. Por mim o G. não
existia mais, não ligava mais para o que ele fizesse.” Ou então, conforme outro
testemunho: “Eu supervalorizei a maternidade. Cada vez mais não me importava com D.
Estava plena!”. Ou então: “Eu não pensava em „nós dois vamos ter um filho‟ não! O filho
era meu comigo mesma. Não tinha nada a ver com ele. Eu queria para mim, e não queria
mais nada com ele”. Aqui, o nascimento dos filhos atua mais na divisão do casal do que na
sua constituição como uma unidade central, pensada como família. Isto é praticamente
dominante no caso do grupo A.
No grupo de status B, que busca uma reconstrução dos papéis familiares num novo
projeto familiar com base num ethos mais igualitário, o nascimento dos filhos ressalta, por
71
Esta ideia é incorporada de um artigo de Salem (1984, p. 15), no qual a autora comenta o relacionamento
de casais após o nascimento dos filhos, considerando-se a moderna noção de casal gravido (CG), ou seja, a
noção de gravidez como uma experiência a dois. Neste mesmo artigo, Salem delimita a noção psicanalítica
de simbiose entre mãe-filho enquanto sentimento que alude à dificuldade de delimitar fronteiras entre duas
identidades.
Para este caso, importa discutir a noção de simbiose dentro do contexto do mito da maternidade proposto por
Oakley (1976).
seu turno, uma segregação e hierarquização das relações familiares no nível do casal. Cabe
registrar que o nascimento dos filhos (mais especificamente no grupo A) ocorre, segundo
depoimentos, em uma situação de “marasmo” e “estagnação” da vida familiar, das
relações do casal, quando não em situação de profunda crise conjugal. Isto é acompanhado
por representações do tipo: “Quando eu engravidei não estava acontecendo nada no meu
casamento”. Ou então: “Decidi que teria um parto lindo, um parto maravilhoso, sozinha.
Não queria que o G. estivesse junto. Não queria dividir isto com ele.” Estes depoimentos
demonstram que, em situações de crises conjugais, a imagem da mãe não se mantém
próxima daquela descrita na etnografia de Campbell a respeito das sociedades
mediterrâneas, segundo a qual a mãe é o foco material e simbólico da solidariedade do
grupo familiar, ela aparece como ser desinteressado, auto-sacrificado e doador de
cuidados protetores (Aragão, citando Campbell, 1983, p. 125). É possível perceber, neste
caso, uma certa excludência entre os fundamentos morais dos papéis de esposa e de mãe,
cada qual atuando em regiões morais distintas.
A seguir há algumas orientações sugeridas por Oakley (1976), onde a autora
aponta para a situação do poder que a mulher ocupa com a maternidade. Neste sentido, nas
mulheres sujeitas a uma situação opressiva ou hierarquizante, a maternidade envolve o
desejo feminino de experienciar o poder e controle na família se mistura ao desejo de ser
mãe e não pode dele ser separado. Assim, desfavorecidas e oprimidas, as mulheres vêem
na maternidade sua única fonte de prazer, recompensa e satisfação ( OAKLEY, 1976, p.
200), Isto, de certa forma, se afirma no depoimento de uma das interlocutoras onde ela diz
que não se importa mais com o marido, pois “tinha agora o meu filho pra pensar.” O
“sentimento de maternidade”, portanto, assume profundas ligações com o controle da
sexualidade feminina na família, sendo um substituto moral para a renúncia da
sexualidade. Isto é, o casamento constrói, inicialmente, limites precisos para a conduta
sexual das mulheres descasadas aqui ouvidas, seja no papel de esposa ou no de mãe. Como
contrapartida, ocorre o amofinamento, o desencanto do pós-casamento e o próprio
desligamento da sexualidade. No caso da maternidade, ela se afirma como a “sexualidade
negada”, se convertendo em “santidade construída”. Este movimento resulta numa
aproximação estrutural entre os papéis de esposa e de mãe enquanto sujeição ao controle
do casamento.
É exemplar os testemunhos das interlocutoras da pesquisa: “Eu me sentia
deprimida, e pensava. Quantas mães será que se suicidam depois de ter filhos? Eu ficava
sozinha em casa. Eu tinha a impressão que jamais voltaria a ser feliz. Eu achava que não
podia ser uma pessoa sensual. Ser mãe era uma coisa assim?” Ou então: “Eu só percebi
claramente este desígnio de ser esposa quando transei com um cara casado. Estava muito
próxima da situação de amante. Daí eu percebi como ele exigia pouco da mulher dele, e
como ela, também, só queria um marido. Eles não tinham assunto, o único assunto em
comum eram os filhos”. Originalmente, se o papel de esposa se desliga do conteúdo
sexual, o surgimento da figura da mãe também obedece a uma lógica de “renúncia à
sexualidade”, agora associada a uma imagem de “devoção e sacrifício”, confundida nos
qualidades da “natureza feminina”, como “ternura”, “paciência”, “sacrifício”, “honradez”.
Logo, é nas relações afetivas presentes ao espaço social da maternidade que a mulher é
levada a assumir a representação do amor desinteressado e sem conflito.
É justo nesta medida que os espaços sociais das figuras de esposa e mãe passam a
configurar conflitos e oposições entre si: a maternidade sendo apontada como parte da
“interioridade” feminina e o papel de esposa visto como algo exterior, um artifício do
poder. No momento, o que está em discussão é a concepção de um papel que implica a
ideia do sujeito feminino, agora no caso da maternidade, frente a outro percebido como
uma imposição social, arbitrário, e através do qual se questiona a condição feminina na
família. Nesta situação conflituosa, a maternidade, por ser considerada algo que possui
uma finalidade interna ao sujeito feminino, torna-se compatível com a ideia de liberdade.
O papel de esposa, por seu turno, se apresenta como uma finalidade externa, logo,
“obrigatório” e “imposto”.
Nos depoimentos fornecidos pelas mulheres descasadas, esta oposição é assim
construída: Tu sentes que tu estás desenvolvendo tuas capacidades. “Não é a maternidade
que tranca a mulher, ao contrário, é o casamento”. Ou ainda: “A maternidade deu uma
reviravolta na minha cabeça. Os sentimentos, a emoção que eu senti por aquela criança eu
nunca senti por ninguém”. O que se contrapõe a afirmações como “eu sinto que eu casei
para ter um marido, ter uma figura, não ser sozinha ou o casamento pra mim é o lugar da
cobrança, não acho que é o lugar do amor. Acho que é o desígnio de ser esposa que a
gente leva”. Na situação de impasses nas relações conjugais, se dissociam os papeis de
mãe e o de esposa. Em termos de uma ordenação por grau, pode-se dizer que a
maternidade encontra maior legitimidade na sua determinação subjetiva do que no
matrimônio, na medida em que se desconsidera seu atributo de interioridade - a vontade. A
negativa da maternidade, neste sentido, se traduz na noção de uma mulher, segundo
Oakley (1976), difícil, estéril e, obviamente, não feminina. Para o grupo de status A, há
uma forte identificação entre maternidade e feminilidade e se torna impensável ter outra
“carreira” que não a de mãe. Aqui, novamente, recoloca-se a questão da percepção que
esse grupo de mulheres formula da maternidade como “vocação”, e como referente à
relação de sangue mãe-filho. Nos limites desta “vocação”, surgem importantes questões ao
longo da biografia das interlocutoras, no exercício da maternidade, em função da
experiência que vai da gestação ao parto e onde estas representações são abordadas de
diferentes formas.
Assim, a presença de um código mais individualizante dos papéis sexuais no grupo
pesquisado conduz à passagem do ser natural ao ser com vontade, onde a
supervalorização da maternidade tende a se tornar componente basilar na constituição da
identidade social feminina. Aliando-se a estas questões os impasses na relação conjugal, as
mulheres excluem os papéis de esposa e mãe, na situação de casamento, o que tende a
redefinir os fundamentos morais da família, colocando em conflito a noção de casal. A isto
se pode somar a questão do controle da sexualidade feminina na família e o desgaste da
relação conjugal frente a um código hierarquizante dos papéis sexuais, com a sua divisão
moral do trabalho na esfera doméstica. Por outro lado, o que predomina no grupo como
um todo é o fato da ruptura da relação conjugal não romper com a ideia de “natureza”
feminina, uma vez que ela continua presente, acima de tudo, na relação mãe-prole, que
restitui e preserva o espaço moral da feminilidade.
72
Neste sentido, ver o Cap. II - Reconstrução Biográfica I: Da Tradição à Modernidade e Cap. III
Reconstrução Biográfica II: Da Modernidade a Vanguarda, deste trabalho.
fundamentos morais femininos na gravidez, em contraste com suas limitações na situação
específica do parto73.
Observa-se, neste caso, as dificuldades das mulheres descasadas em perceberem os
limites precisos da atuação de um código cultural para o espaço da maternidade. Segue
como esta interlocutora da pesquisa percebe estes limites: “No início foi difícil estabelecer
uma relação com o D. Acho que quando se está grávida a gente brinca de ser mãe. É
diferente desempenhar-se como mãe. Eu sentia muita culpa!” A “culpa”, aqui, pode ter sua
origem num dos elementos que compõe o mito da maternidade (Oakely, 1976: 203) que
estrutura suas representações de imanência, ou seja, o fato de que crianças precisam de
suas mães. Isto apresenta três tipos de implicações morais apontadas por esta autora. O
justo é que as crianças precisam de suas mães biológicas. A segunda é que as crianças
precisam de mães, em vez de qualquer outro tipo de zelador. A terceira é que as crianças
devem ser criadas no contexto de uma relação interpessoal com suas mães. Aqui, a noção
do papel de mãe como algo que faz parte da natureza é dimensionada em função das
dificuldades do seu desdobramento, propriamente biológico, durante o trabalho de parto.
Os depoimentos indicam a ocorrência genérica de partos difíceis, ou pelo menos
complicados, em oposição à ideia de parto natural que muitas mantinham durante o
processo da gravidez.
E importante observar como algumas das mulheres descasadas descrevem esta
situação conflitante: “Lembro-me que era uma dor insuportável. Nessa hora pensava até
em morrer pra me livrar dessa dor”. Ou então: “Lembro somente do momento que fiquei
com contrações insuportáveis na sala de pré-parto. Depois lembro-me de ter tentado retirar
as pernas que estavam no suporte da mesa, e que os médicos pediram minha ajuda.
Lembro-me também de ter gritado”. Em termos gerais, as mulheres não conseguem
manter presente, na sua trajetória social de mães, o sistema de representações em que a
maternidade aparece como “naturalizada” (auto-evidente) na ideia do feminino. No parto,
73
No artigo em que Lévi-Strauss (1975, p. 228) discute a cura xamanística através da noção de eficácia
simbólica, observa-se que aquela é resultado da ação de uma linguagem através da qual o xamã fornece ao
doente condições deste exprimir imediatamente estados não-formulados, de outro modo, informuláveis. O
exemplo se refere, justamente, a um parto difícil e confere importância à presença, neste momento, da
parturiente, de uma linguagem estruturadora que torne pensável uma situação dada inicialmente em termos
afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a tolerar. Segundo este autor, a eficácia
simbólica da cura propõe uma reorganização estrutural, com propriedade indutora, cujas fontes são
individuais ou coletivas: ou seja, o doente acredita nela, e é membro de uma sociedade que acredita (p. 228).
Pode-se dimensionar parte das dificuldades e depressões no parto e puerpério, vividos pelas mulheres, como
algo relacionado aos limites da propriedade indutora da linguagem constituída através do tradicional
sentimento de maternidade, como algo autoevidente, a partir das alterações apontadas por Lévi-Strauss para
o tempo mítico que agora (na civilização mecânica) se localiza no interior de cada individuo.
especificamente, a experiência individual surge como uma presença marcante face à
experiência biológica (natural) da reprodução, numa relativização da natureza moral da
mulher a partir do biológico. Isto contrasta com alguns depoimentos relativos ao período
da gestação, feito por essas mesmas intelocutoras: “Aquela criança durando dias e dias, e
eu ali, eu achava que era praticamente independente da minha vontade. Imagina isto para a
minha cabeça natural! Era como qualquer bicho”. Ou ainda, “também tinha aquele
negócio: eu me sentia maravilhosa, tendo um filho na barriga”.
Para a maioria das interlocutoras, no período de gestação, a maternidade e o papel
da mãe são percebidos como “auto-evidentes”. É na situação de parto que ocorre um
distanciamento do modelo natural, fragmentando-se esta totalidade. A maternidade passa a
ser concebida como algo a ser projetado, construído, envolvendo tarefas instrumentais,
um estoque de conhecimentos, além de um forte investimento emocional (Salem, 1984).
Isto se dá de tal maneira, que as representações e valores a respeito da maternidade e as
implicações na natureza moral dos papéis sexuais passam a ser reavaliados. Resultam
destes momentos, outros depoimentos, outras concepções: “Não existe mãe perfeita, se
existe, não sou eu... E outra coisa, eu não tenho paciência. Sinto muito. Acho que mãe não
tem mais o porquê sacrifício. Já consigo viver com minhas limitações”. Ou então: “Já não
tinha mais nada pra provar pra ninguém... Nem que eu sabia cuidar do M., que eu era uma
supermulher. Não tinha mais estória”. Nesta medida é que surge, no universo dos valores
morais femininos da maior parte das interlocutoras, a ideia de aprender os truques da
maternidade e, desta forma, conseguir manipular as expectativas morais do
comportamento feminino durante a maternidade, redimensionando o papel de mãe.
Recuperam-se, aqui, algumas das noções desenvolvidas por Oakley (1974) na definição
que esta autora faz do mito da maternidade, como as características delimitadoras da
identidade social feminina em função da figura esposa-mãe enquanto símbolo de
dedicação, sacrifício e paciência.
74
Estas representações acham-se presentes, em especial, em um artigo de Aragão (1983), onde o autor
aborda as disposições sociais que cercam o papel de mãe, na sociedade brasileira, de acordo com a posição
estrutural que ela ocupa neste contexto.
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