Você está na página 1de 245

A MODERNA CONDIÇÃO FEMININA

METAMORFOSES DE CORPOS E AFETOS DE MULHERES DESCASADAS

ANA LUIZA CARVALHO DA ROCHA


Dedicatória

A Camila - presença feminina constante em meus sentimentos e


ações – pela compreensão e inquietação dos seus seis anos.
Armamos para nós um mundo em que podemos viver ao
admitirmos corpos, malhas, superfícies, causas e efeitos,
movimento e repouso, forma e conteúdo, sem esses artigos de fé,
ninguém toleraria agora viver! Mas com isso, ainda não são nada
de demonstrado. A vida não é argumento: entre, as condições da
vida poderia estar o erro.

F. Nietzsche. A gaia ciência


AGRADECIMENTOS

A publicação deste livro, resultado de minha Dissertação de


Mestrado, cujo titulo original foi “A dialética do estranhamento: a
reconstrução da identidade social de mulheres separadas em Porto
Alegre/RS” se deve aos esforços carinhosos de Valdir Pedde e
Mauro Meirelles, meus colegas de profissão, e que me
incentivaram a reatar os laços com meus escritos antropológicos de
mais de 20 anos atrás, quando ainda me sentia engatinhando na
prática da pesquisa etnográfica com camadas médias urbanas no
contexto da vida metropolitana. Pelo entusiasmo, dirijo a eles
meus primeiros agradecimentos.

Na retomada da dissertação, me volto, mais uma vez, para todas as


minhas parceiras de pesquisa para agradecer pela generosidade dos
ensinamentos recebidos durantes os momentos de diálogo e troca
de confidências. O compartilhamento das suas angústias quanto à
dissolução dos seus laços conjugais e os dilemas ético-morais que
dela decorrem, me propiciaram uma reflexão mais acurada sobre
os difíceis caminhos da pesquisa antropológica com a construção
das subjetividades contemporâneas.

Ao meu orientador, Prof. Gilberto Velho, um especial


agradecimento por sua confiança e apoio no decorrer deste estudo.
Sua presença constante no processo de minha formação de
Mestrado não se traduz apenas em provocações intelectuais que
aprimoraram meus saberes e práticas na pesquisa em
Antropologia, mas contribuíram para o meu aperfeiçoamento como
pessoa humana. A ele devo muitas de minhas atuais reflexões
sobre a importância de um mestre para o despertar da prática da
etnografia na formação do pensamento antropológico. A leitura
atenta e detalhada dos meus escritos por parte do meu saudoso
mestre, sempre me provocaram saudáveis inquietações acerca das
formas que adotam a vida social no contexto das modernas
sociedades urbano-industriais.

No mesmo sentido, agradeço a Profa. Tânia Salem e à Profa.


Maria Luiza Heilborn, pela generosidade intelectual no
acompanhamento da minha caminhada na Antropologia. Ambas
contribuíram com comentários valiosíssimos no desenvolvimento
das ideias e estrutura desta dissertação. Agradeço também ao Prof.
Ruben G. Oliven, Luiz Fernando Dias Duarte e Prof. Ignácio
Schimtz. Aos dois primeiros, por suas observações e comentários
no momento da defesa da dissertação, como membros do júri, ao
segundo, por ter sido meu professor na disciplina de Teoria
Antropológica, e pelo auxílio, com sua dedicação e sensibilidade,
em desvendar os mistérios antropológicos.

Meus débitos afetivos e conceituais também estão presos aos laços


com as amigas e colegas Cornelia Eckert (e que ao longo das
últimas décadas se transformou numa parceira de produção
intelectual inestimável), Léia Freitas Perez e Ondina Fachel Leal,
com quem desfrutei, como membro do GEAS-Grupo de Estudos
em Antropologia Simbólica, ricos e profundos debates em
Antropologia. A elas agradeço nossas misturas emocionais e
cognitivas ao longo do processo de formação no Mestrado.

Dedico especial carinho, neste espaço de agradecimentos, a meu


país, Célia e Antônio, que sempre souberam, generosamente, me
apoiar e me incentivar neste percurso, sem medir esforços em sua
dedicação e desvelo. A eles, agradeço a segurança de poder me
afastar de Porto Alegre, durante meus períodos de orientação ou,
nos momentos de intranquilidade, fechar-me em meus
pensamentos em Santa Rita.

Agradeço a todos os meus amigos, em especial a Malu Rocha,


responsável pela criação e produção da capa da dissertação,
companheira de muitas viagens, por sua presença constante nos
períodos críticos e nossa renovadora troca de ideias.

A Ana Maria e Gilberto Herter, agradeço a acolhedora


hospedagem durante meus períodos de orientação no Rio de
Janeiro e aos nossos bate-papos animados, madrugada adentro.

Meu singular reconhecimento à Dra. Telma Bernardes,


interlocutora constante, que enriqueceu minha prática
antropológica ao ajudar a precisar os limites da constituição do
sujeito do etnógrafo e sua aplicabilidade na pesquisa, enquanto
processo de afastamento e objetivação do outro.

Considero também fundamental o apoio que recebi da amiga e


profissional, Rejane Barcelos, por sua paciência, dedicação e
competência na revisão original do texto de dissertação e nas horas
inquietantes de decisões.

Finalmente, agradeço a CAPES-Coordenação do Aperfeiçoamento


de Pessoa de Nível Superior, e ao CNPq-Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico, pela concessão das bolsas de estudo
nos períodos finais da escrita da dissertação, assim como a
ANPOCS-Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais,
pela ajuda recebida para financiar o projeto de pesquisa do qual
resultou a dissertação.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................................................... 1

CAPÍTULO 1
NAS TRILHAS DE UM PERCURSO INTELECTUAL.............................................17
1 – APONTAMENTOS TEÓRICOS.............................................................................18
1.1 – OS CONSTRANGIMENTOS DE CLASSE................................................18
1.2 – OS CONSTRANGIMENTO DE SEXO-GÊNERO.....................................40
2 - APONTAMENTOS METODOLÓGICOS................ .............................................50
2.1 - DA VIAGEM AO UNIVERSO DO MESMO...........................................53
2.2 - DA VIAGEM AO UNIVERSO DA ALTERIDADE.................................62
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA NOÇÃO DO GRUPO.............................74

CAPÍTULO 2
RECONSTRUÇÃO BIOGRÁFICA I: DA TRADIÇÃO A MODERNIDAD............83
INTRODUÇÃO..........................................................................................................84
CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO..................................................................................86
1 - FAMÍLIA DE ORIENTAÇÃO....................................................................................87
1.1 - PROJETO FAMILIAR..................................................................................87
1.2 - ESTILO DE VIDA........................................................................................92
1.3 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO...........................................95
1.4 - PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO......................................98
2 - FAMÍLIA DE PROCRIAÇÃO.....................................................................................99
2.1 - REVISÃO BIOGRÁFICA...........................................................................100
2.2 - PROJETO FAMILIAR................................................................................105
2.3 - ESTILO DE VIDA......................................................................................108
2.4 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO.........................................112
2.5-PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PERENTESCO......................................115
3 - SEPARAÇÃO – REDEFININDO A FAMÍLIA........................................................116
3.1 - REVISÃO BIOGRÁFICA...........................................................................116
3.2 - PROJETO FAMILIAR................................................................................125
3.3 - ESTILO DE VIDA......................................................................................130
3.4 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO.........................................133
3.5 – PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO.................................137

CAPÍTULO 3
RECONSTRUÇÃO BIOGRÁFICA II – DA MODERNIDADE À
VANGUARDA............................................................................................................... 141
INTRODUÇÃO........................................................................................................142
CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO................................................................................145
1 - FAMÍLIA DE ORIENTAÇÃO..................................................................................146
1.1 - PROJETO FAMILIAR................................................................................146
1.2 - ESTILO DE VIDA......................................................................................154
1.3 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO.........................................156
1.4 - PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO....................................157
2 - FAMÍLIA DE PROCRIAÇÃO...................................................................................158
2.1 - REVISÃO BIOGRÁFICA...........................................................................158
2.2 - PROJETO FAMILIAR................................................................................164
2.3 - ESTILO DE VIDA......................................................................................167
2.4 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO.........................................171
2.5 – PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO...................................173

3 - SEPARAÇÃO – REDEFFININDO A FAMÍLIA......................................................180


3.1 - REVISÃO BIOGRÁFICA...........................................................................180
3.2 - PROJETO FAMILIAR................................................................................186
3.3 - ESTILO DE VIDA......................................................................................189
3.4 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO.........................................192
3.5 - PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO....................................193

CAPÍTULO 4
HONRA E TRADIÇÃO NA CONSTRUÇÃO SOCIAL DO GAÚCHO.................202
ELEMENTOS PARA UMA ANTROPOLOGIA DA HONRRA NO RS.....................211
1 - RECUPERAÇÃO DA HISTÓRIA.............................................................................220
2 - A HONRA NO MUNDO DOS GUASCAS...............................................................229

2.1 - AS VIRTUDES GUERREIRAS.................................................................229


2.2 - AS HABILIDADES CAMPEIRAS.............................................................234
3 - AS TRASFORMAÇÕES DO MONARCA DAS COXILHAS.................................239
4 – A CONDIÇÃO FEMININA NA COMPOSIÇÃO DA SOCIEDADE GAÚCHA.....248
5 - FUNDAMETOS DA HONRA GAÚCHA.................................................................260
6 - POLÍTICA SEXUAL NA HONRA GAÚCHA.........................................................271

CAPÍTULO 5
CASAMENTO VERSUS SEPARAÇÃO – OS FUNDAMENTOS MORAIS E A
POLITICA SEXUAL DA FAMÍLIA...........................................................................286
HIERARQUIA E IGUALDADE NO JOGO DIALÉTICO DO
TRADICIONAL/MODERNO.........................................................................................287
1 - CASAMNETO – OS FUNDAMENTOS MORAIS DA HONRRA E SEUS
IMPASSES............................................................................................................. .........296
1.1 - CAMENTO SOB A ÉGIDE DA HIERARQUIA......................................296
1.2 - CASAMENTO SOB A ÉGIDE DO IGUALITARISMO..........................310
2 - SEPARAÇÃO – OS FUNDAMENTOS DE UMA MORAL UNIVERSAL E SEUS
IMPASSES...................................................................................................... ................323
2.1 - SEPARAÇÃO SOB O SIGNO DA HONRA.............................................325
2.2 - SEPARAÇÃO SOB O SIGNO DA INDIVIDUALIDADE.......................340

CAPÍTULO 6
CONFRONTO DE IMAGENS FEMININAS NA MATERNIDADE.......................355
MATERNIDADE EM COMFLITO: INDIVÍDUO/PESSOA........................................356
1 – “ESPOSA-MÃE” – A NATUREZA MORAL DO GÊNERO.................................360
2 - A CONSTRUÇÃO MORAL DA “ESPOSA-MÃE” – SUAS CONTRADIÇÕES E
CONFLITOS................................................................................................................ ....364
3 - MATERNIDADE: NATUREZA X CONDIÇÃO.....................................................368
3.1 - SEPARAÇÃO – A CISÃO NA CATEGORIA SOCIAL “ESPOSA-
MÃE”.............................................................................................................382
3.2 - DAS CONDIÇÕES E LIMITES NO EXERCÍCIO DA
MATERNIDADE................................................................................................388
3.3 - MÃE. INDIVÍDUO OU PESSOA?...........................................................394
4 - MATERNIDADE E SEPARAÇÃO: AS METAMORFOSES NOS FUNDAMENTOS
MORAIS DA FAMÍLIA .........................................................................................400
CONCLUSÃO................................................................................................................411
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................429
PREFÁCIO

Retomar os escritos da minha dissertação, A dialética do estranhamento: a


reconstrução da identidade social de mulheres separadas em Porto Alegre/RS, para
publicação, mais de 30 anos após sua defesa, não é uma tarefa das mais fáceis. Não apenas
a cidade de Porto Alegre, cenário dos dramas aqui descritos, se transformou, como as
minhas interlocutoras se encontram hoje, assim como eu mesma, em outro momento de
nossas vidas.
A Antropologia se consolidou no Brasil como um campo de estudos e pesquisa no
interior das universidades. Mestrados e doutorados foram sendo criados ao longo desta
última década, sendo que nesta empreitada, minha geração desempenhou um papel
importante.
O desafio de publicar uma dissertação, abordando o tema da identidade de gênero,
família, laços de parentesco, estilo de vida e visão de mundo em camadas médias urbanas
me impôs algumas decisões. Uma releitura da minha antiga escrita no sentido de atualizar
o seu campo teórico-conceitual, com desdobramento no interior da estrutura original, ou, a
publicação do trabalho em sua versão original, assumindo-o como um fato etnográfico que
traduzia um momento singular pelo qual passavam os estudos antropológicos no contexto
das cidades brasileiras.
Optei pelo segundo percurso, e não poderia ser diferente, uma vez que, operando
no campo dos estudos sobre memória coletiva e patrimônio etnológico nas modernas
sociedades complexas, não posso me colocar fora do fenômeno ao qual me dedico a
pensar. Assim, este livro segue a risca a estrutura original da dissertação, obedecendo a
forma como o tempo marcou os limites de minhas reflexões antropológicas sobre o tema
do processo de reconstrução da identidade social das mulheres separadas e pertencentes as
camadas médias urbanas de Porto Alegre.
É importante assinalar que a dissertação apresenta algumas peculiaridades, uma
vez que a sua estrutura expressa o processo de produção de conhecimento que a originou.
Ou seja, a escrita seguiu a rítmica das minhas idas e vindas de Porto Alegre ao Rio de
Janeiro, e de lá, de volta para casa! A escrita seguia o pulsar das idas e vindas das leituras
realizadas, na época, na Biblioteca do Instituto de Filosofia de Ciências Humanas da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no Campus do Vale, e, mais tarde, na
Biblioteca do Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social do Museu Nacional, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, na Quinta da Boa Vista. Da mesma forma, se
desenrolava segundo os múltiplos trajetos da minha casa em Porto Alegre, na época na
Rua João Telles, à casa de Ana e Gilberto Herter, no bairro Botafogo, à casa do meu
orientador, Gilberto Velho, no bairro Leblon, e das minhas queridas interlocutoras, Tania
Salem e Maria Luiza Heilborn, nos bairros Santa Tereza e Gávea, no Rio de Janeiro.
As repetições que nela existem, a ausência de maior brevidade nos argumentos, de
maior concisão no encadeamento dos capítulos se deve a este processo de feitura da
própria escrita que foi seguindo estas temporalidades. Apesar de, na época, o Mestrado ter
a duração de 4 anos, hoje algo impensável, o período de obtenção de créditos, o processo
de realização do trabalho de campo e das entrevistas, pautados pelas viagens de orientação
foram, assim, resultando na produção da escrita da dissertação. Peço, assim, ao leitor, um
pouco de paciência para percorrer os meandros desta escrita, e desde já, agradeço o seu
empenho em enveredar por este percurso, não sem sobressaltos.
Outro tópico importante para assinalar neste prefácio é, sem dúvida, o fato de que
dos anos de 1980 até o presente, os estudos sobre família e gênero se tornaram uma área
clássica da produção de conhecimento da Antropologia brasileira. Neste sentido, esta
publicação é um convite ao leitor ou a leitora, sob a influência do movimento feminista
dos anos de 1970, a adentrar nos estudos da época no contexto do processo de
redemocratização do país, um debate que se amplia para as discussões teóricas entre sexo
e gênero e as distinções polarizadas e, então, comuns do masculino e do feminino. Da
mesma forma, a dissertação tem por contexto específico as lutas feministas dos anos de
1980, período em que se criou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (1985) e as
Delegacias da Defesa dos Direitos da Mulher.
A escolha do objeto e do tema da dissertação, aliás, se deve ao meu próprio
engajamento no interior do movimento feminista, como parte de um grupo de reflexão,
precisamente quando se delineava no Brasil, os contornos de uma série de trabalhos
fundamentais para esse campo de conhecimento, o caso da publicação de Heleieth Safiotti,
A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, publicado em 1969. Pensar o desafio
de reescrever a dissertação seria abraçar uma tarefa demiúrgica de retomar a bibliografia
utilizada na dissertação, atualizando-a com os textos mais recentes sobre o tema dos
estudos de gênero no Brasil, e que se caracterizam por sua enorme diversidade em razão
do crescimento dos centros de pesquisa e das publicações, tais como a Revista de Estudos
Feministas e Cadernos Pagu, ambas criadas no início da década de 1990.
O cenário político-cultural do movimento feminista e da disseminação de seus
postulados nos contextos dos grandes centros metropolitanos do Brasil, como Rio de
Janeiro e São Paulo, influencia, grandemente, a escrita do capítulo quarto da minha
dissertação, versando sobre o tema da honra e dos fundamentos morais dos papéis de sexo-
gênero no âmbito dos processos de negociação das identidades sociais de mulheres
descasadas, no caso das minhas interlocutoras de pesquisa.
Aconselhada por meu orientador, inicio meu percurso de estudo desta bibliografia
do campo da Antropologia das sociedades mediterrâneas (Honra e vergonha, valores das
sociedades mediterrânicas, de J. Peristiany, e El concepto del honor en la sociedad
mediterránea, organizada pelo mesmo autor), no esforço de compreender o lugar das
categorias de honra, vergonha e sangue, no processo de reordenamento moral da
identidade social das mulheres descasadas, com as quais convivi durante o trabalho de
campo, em Porto Alegre.
Lembro-me que na ocasião, meu professor Ruben Oliven, havia recentemente,
escrito o artigo A fabricação do gaúcho, a partir dos seus estudos sobre o Movimento
Tradicionalista Gaúcho, remontando a centralidade da figura do gaúcho, o Centauro dos
Pampas e a criação dos Centros de Tradição Gaúcha (CTGs), na memória coletiva da
sociedade riograndense.
Tratava-se de pensar as desigualdades entres os papéis de sexo-gênero, a
importância da família e a importância do comportamento sexual das mulheres no interior
do sistema de práticas e dos códigos ético-morais oriundos de uma sociedade gaúcha
patriarcal. Os aspectos dramáticos da honra e da vergonha, geralmente associados ao
contexto rural ou provinciano, apareciam no contexto urbano porto-alegrense dos anos de
1980 com uma força impressionante, através das falas das minhas interlocutoras de
pesquisa.
Num jogo de espelhos, acompanhando a escrita do capítulo, mergulhei nas
memórias fotográficas da vida nas fazendas da minha própria família paterna, as imagens
veiculadas por álbuns comemorativos do Rio Grande do Sul e, em conjunto com a escrita
do capítulo, construí, pela primeira vez, uma narrativa fotográfica no sentido de apresentar
ao leitor a força do simbolismo das imagens da masculinidade, da honra e da hombridade
para a composição da figura do gaúcho, ao mesmo tempo em que meu olhar interrogava o
lugar da vergonha, do pudor e da pureza sexual feminina para a estrutura ideal da família
riograndense, assim como o sistema de valores morais a ela associado.
Certamente, desafiada pelo olhar “carioca” dos meus interlocutores antropólogos
sobre o contexto das questões de honra e vergonha nas narrativas acerca das rupturas dos
laços de casamento das minhas parceiras de pesquisa, me dediquei a explorar, por meio de
imagens, a mise en scène da cultura gaúcha, onde se tramava a presença ausente da figura
feminina na retórica fundacional da sociedade riograndense. Minha intenção era restaurar
para os “cariocas”, em alguma medida, os gestos, as ações e os comportamentos
celebrados pela sociedade gaúcha, os quais construíam os limites da fala da figura
feminina na sua posição narrativa de mãe dedicada e esposa fiel. Sem o conhecimento
adequado dos significados profundos do uso dos recursos visuais da narrativa etnográfica,
explorava, pela primeira vez, o registro das imagens.
Seria minha primeira incursão desavisada no campo da Antropologia Visual (a
segunda, na minha tese de doutorado), sob os efeitos do saber que a ordem do sensível
provoca na escritura antropológica. Uma incursão provocada e autorizada pelo
conhecimento das linguagens expressivas, aprendidas como aluna de graduação do curso
de Artes Cênicas (e que jamais conclui). Olhando através da janela do tempo, me
confronto com o fato de ter elaborado tal narrativa visual na total ignorância da existência
formal da Antropologia Visual, como área de conhecimento, apesar de ela ser, na época,
um campo respeitável de produção do pensamento antropológico. Uma área de
conhecimento que se inaugura com Margaret Mead, nos anos de 1940, em seu famoso, e já
clássico artigo, Visual Antropolgy in a discipline of words, sem esquecer, obviamente, da
obra do fazer antropológico-cinematográfico de Jean Rouch, nos anos que se seguem.
Todos eles, nomes celebrados da Antropologia Visual, muito antes do tempo da
elaboração da minha defesa de dissertação.
Outro ponto relevante de reflexão deste prefácio diz respeito ao emprego do
conceito weberiano de grupo de status para descrever as composições de
unidade/descontinuidade de universos simbólicos de pertença de minhas interlocutoras ao
contexto metropolitano das camadas médias urbanas de Porto Alegre. Fortemente
questionada por meu orientador procurei no uso do conceito de grupo de status refletir
acerca da centralidade das categorias de honra e de vergonha no processo de reordenação
das identidades sociais de mulheres separadas no contexto metropolitano de Porto Alegre
dos anos 80, moradoras de bairro residenciais de camadas médias, relativamente próximas
umas das outras, mas sem quaisquer vínculos de associatividade entre elas. O caráter
provisório que assumiu na minha dissertação o uso do conceito de grupo de status para o
recorte de minha etnografia com famílias de camadas médias urbanas, em Porto Alegre,
foi o que me conduziu, posteriormente, a elaboração de meu projeto de tese de doutorado [MP1] Comentário: Dissertação ou
tese? Ok
intitulado i i
Ti T i h i i i i i.
Nem grupos, nem quase-grupos, nos termos definidos por Adrian Mayer, da Escola
de Manchester, minhas parceiras de pesquisa, talvez, pudessem ser igualmente situadas
nesta linha de argumentação, como membros de agregados residenciais das camadas
médias urbanas da cidade de Porto Alegre, uma vez que mantinham certa proximidade em
termos de territórios urbanos e de estilos de vida das novas camadas médias porto-
alegrense, que surgiam nos anos de 1980, mas sem contato entre si. Em particular, o
mergulho na obra de Elizabeth Bott sobre os estudos de rede social e família, muito me
ajudou a compreender o potencial de metamorfoses identitárias e as variações das
narrativas biográficas e trajetórias sociais, no que tange aos papéis sexuais e de gênero no
interior das estruturas familiares das minhas interlocutoras.
Agora, mais do que antes, torna-se claro porque as reverberações de sistemas de
valores ético-morais fundacionais da sociedade rural, latifundiária e patriarcal gaúcha, no
presente etnográfico de Porto Alegre dos anos de 1980, se tornariam, mais tarde, uma
dimensão não domesticada na escrita da minha dissertação, e que me levariam nos anos de
1990, a realização da minha tese de doutorado, sob a direção de Michel Maffesoli, na
Universidade René Descartes, Paris V, Sorbonne, na França, tendo como foco o estudo
antropológico das cidades tropicais como objeto temporal.
Neste sentido, considero que foi fundamental para esse estudo da complexidade e
da heterogeneidade da cultura feminina na paisagem urbana da cidade de Porto Alegre as
contribuições das pesquisas da Escola de Manchester acerca das interconexões
proporcionadas pelas redes de relações sociais no contexto metropolitano (John Barnes)
assim como dos estudos promovidos pela rede de intelectuais da Escola de Chicago (Ezra
Park, Foote-White, etc.). [VP2] Comentário: Sugestão de
redação desse parágrafo:
Talvez, a lição que eu possa tomar com a publicação da minha dissertação de Neste sentido, considero que as
contribuições das pesquisas da Escola de
mestrado, escrita há mais de 30 anos, seja a de que, a Antropologia, como campo de Manchester, no caso dos estudos de
conjuntos de pessoas, que tinham por base
conhecimento, é eternamente jovem, uma vez que os sentidos dos seus saberes e práticas as interconexões proporcionadas pelas redes
de relações sociais (John Barnes), assim
transmutam-se na medida em que a figura humana, com a qual dialogamos, se transforma, como os estudos das diferenças
socioculturais (Ezra Park, Foote-White,
etc.) no contexto metropolitano,
e a assim como ela, a figura do próprio antropólogo, num complexo processo de promovidos pelas redes de intelectuais da
Escola de Chicago, aparecem apenas, de
reinvenção, porque é sempre constante e ininterrupto. Esta passagem do tempo que forma indireta como objeto de reflexão
desta dissertação, a respeito do estudo da
atravessa a própria construção do conhecimento antropológico nos obriga a pensarmos complexidade e heterogeneidade da cultura
feminina na paisagem urbana da cidade de
nosso ofício como parte movente de nossas vidas ordinárias. Porto Alegre.
OK

Porto Alegre, 2014

Ana Luiza Carvalho da Rocha


INTRODUÇÃO

Este livro trata da experiência do processo de separação de mulheres de


camadas médias urbanas no contexto metropolitano de Porto Alegre dos anos de
1980. Acontecimento traumático que me levou a refletir sobre a função que
desempenham os sistemas de práticas, de representa ções sociais e de valores
ético-morais associados aos papéis de sexo-gênero pela sociedade gaúcha, assim
como seus efeitos no processo de reconstrução das identidades sociais das
mulheres separadas. No enfrentamento de rearticulação das suas vidas após a
ruptura dos laços conjugais, desvendamos, assim, uma superposição de vozes
narrativas, as quais nos informam as fronteiras culturais que delimitam a
produção simbólica da figura feminina na sociedade gaúcha, com base nas categorias
de honra e vergonha.
Não se trata de abordar genericamente a pro blemática da separação das
camadas médias urbanas de Porto Alegre, senão, contribuir para o estudo dos
gêneros, dos papéis sexuais e dos laços de parentesco na moderna sociedade
gaúcha contemporânea, tendo em vista, o estudo da separação de casais na sociedade
brasileira dos anos de 1980.
Considerando-se as características das trajetórias sociais e narrativas
biográficas de minhas interlocutoras da pesquisa, e da própria sociedade
gaúcha, tornam-se necessárias algumas considerações sobre a forma como está
construído o presente estudo. Toma-se, como ponto de partida, o sistema de
representações e valores que o grupo constrói no espaço da família, ao longo da sua
trajetória social.
A perspectiva adotada, assume, numa primeira instân cia, o espaço social
da separação/descasamento e suas vinculações com estilos de vida
disseminados pelos postulados do individualismo moderno aos novos arranjos
familiares no contexto da sociedade brasileira, em contraste com o espaço social
do casamento como lugar de expressão da tradicional natureza moral dos papéis
de sexo-gênero e dos laços de parentesco, considerando-se a lógica
hierarquizante da honra e seus princípios mo rais como legado das suas raízes
patriarcais. Em um segundo momento, abordo a forma que adotam os
postulados e suas respectivas ideologias, quais sejam, do igualitarismo e da
hierarquia, nos testemunhos que me foram relatados acerca da dissolução de
seus laços familiares.
No Capitulo I, denominado nas trilhas de um percurso intelectual, apresento as
linhas interpretativas que segui para a elaboração da minha pesquisa de campo realizada
junto as minhas interlocutoras. Para adentrar a perspectiva teórica da análise dos
testemunhos a mim fornecidos durante a etnografia, optei por criar uma
subdivisão, no sentido de refletir sobre as características diferenciais nas
trajetórias das mulheres pesquisadas, tendo em vista duas determinações, a social
e a de sexo-gênero.
O tratamento teórico dos determinismos sociais, neste capítulo, detém-se nas
características do segmento social analisado, considerando-se o contexto da sociedade
brasileira em suas dimensões tradicional/moderno, hierarquia/igualdade,
referentes, em particular, ao espaço da família e suas questões ético-morais, uma vez
que o estudo da separação aponta dire tamente para esta problemática. A proposta foi
pensar os estudos antropológicos sobre o tema da estrutura familiar na sociedade
brasileira e suas feições “mediterrâneas” dentro de uma perspectiva que aborda o
código da aliança e dos laços de reciprocidade que os fundamentam, tomando-se, como
contraponto, o enfoque da disseminação dos postulados do individualismo moderno
para o rearranjo das formas de vida no contexto familiar do Brasil contemporâneo.
Nesta parte, procuro interpretar a centralidade do código da aliança nos
dramas de reconfiguração da identidade de sexo –gênero de mulheres
separadas entre minhas parceiras de pesquisa, partindo das tensões entre estes
universos simbólicos e seus respectivos códigos de emoções no interior dos
sistemas de práticas e de valores do descasamento. Um fenômeno, que mais
tarde, será por mim abordado como a persistência do valor família e do par
honra/vergonha, oriundo do processo fundacional da sociedade rural e
patriarcal riograndense (e sua figura arquetípica do gaúcho) em sua polêmica
com a ideologia moderna, a centralidade da categoria de individuo e os processos
de individuação desencadeados, mais recentemente, nas modernas metrópoles
contemporâneas brasileiras.
Percorro, assim, as representações que minhas parceiras de pesquisa
constroem a respeito do espaço do casamento, considerando o seu código da
aliança e os valores de sangue e de honra, assim como os laços de reciprocidade
que abarcam os papéis de sexo-gênero nas suas famílias de origem, e onde a
separação é vista como a expressão de um movimento de caráter individualizante,
com uma forte valorização do individual e da renúncia aos fundamentos morais das suas
identidades de sexo-gênero.
Enfoco a relevância de se pensar o estudo do processo de separação como
fruto de conexões possíveis entre as dimensões sociais tradição/modernidade na sociedade
brasileira, muito embora, caracterize-se, em alguns momentos de análise desta
dissertação (Cap. II e Cap. III), uma relação contrastiva entre ambas. A proposta
foi a de restaurar, no interior dos testemunhos que me foram relatados, as
fronteiras culturais que tecem as conexões entre os papéis sexuais e os laços de
parentesco no espaço familiar, atentando, assim, as tensões ético-morais que presidiam o
reordenamento das identidades sociais no processo de descasamento entre mulheres de
camadas médias.
No âmbito desta polêmica, abordo ainda, a estreita vinculação entre as categorias
de honra e de vergonha, os papéis de sexo-gênero e os laços de parentesco para a
discussão dos fundamentos morais da família, que passam a atuar em um sistema
de significados que dá sentido a prática social das mulheres contatadas em sua
trajetória social de separação/descasamento.
Os deságios foram os de compor um tecido interpretativo para o meu
problema de pesquisa, tendo em vista diferentes conceitos capazes de
instrumentalizar uma demarcação teórica para pensar as diferentes
interpretações dos valores de sangue, honra e vergonha, empregando
mulheres pertencentes a um mesmo segmento social diante da experiência de
dissolução de seus matrimoniais. Sem esquecer os trabalhos do tempo que [VP3] Comentário: Desculpe a
ignorância, mas não entendi o que isso
organizam a disseminação diferenciada dos postulados do individualismo quer dizer... rsrsrs ta mal escrito!!!
ok
moderno na sociedade brasileira, em particular, no caso da sociedade gaúcha, em
sua polêmica com os valores de honra e vergonha para a divisão dos
fundamentos morais de sexo-gênero na família.
Teoricamente, eu estipulava a meta de refletir, não apenas acerca das
particularidades e diferenciações de identidade de sexo-gênero, contidas num
mesmo segmento social, camadas médias urbanas, mas também, seu próprio
sentido temporal mais amplo, para além do processo em si de descasamento que estava
sendo relatado, e suas respectivas dimensões hierarquizantes/igualitárias dos papéis
sexuais na família e os laços de parentesco na sociedade brasileira. Uma tarefa, a qual me
dedico na confecção dos Capítulos II e III do livro, buscando esclarecer suas
articulações na construção das representações dos papéis se xuais e laços de
parentesco no espaço social da família na sociedade brasileira.
Aponta-se aqui, a importância da tradição dos estudos antropológicos sobre
o espaço social da família brasileira e das camadas urbanas inauguradas por meu
orientador, Prof. Gilberto Velho, para compreender as trajetórias de ascensão e descenso
social como campo de possibilidade onde atuam processos de negociação da
realidade, fundamentais para a recomposição das identidades dos atores sociais,
e, neste sentido, para o estudo da construção social das identidades femininas na
cultura brasileira.
É, portanto, no interior da reconstrução das fronteiras simbólicas da
identidade de sexo-gênero que se discute as vinculações deste meu estudo
realizado em Porto Alegre, nos anos de 1980, juntamente com os estudos
feministas que buscavam, na ocasião de estar sendo feito, compreender o modelo
e as representações femininas na sociedade brasileira, mais especifica mente, na
sociedade gaúcha, assim como as relações que se estabelecem entre papéis sexuais e
laços de parentesco, tendo como elemento prioritá rio, a esfera da dissolução dos
laços matrimoniais.
Neste ponto, é significativa a abordagem de concei tos de honra e
vergonha, assim como das suas reflexões sobre os sistemas morais a eles
associados para uma reflexão crítica acerca da política sexual na família
brasileira e a divisão moral aplicada as identidades de sexo -gênero em
sociedades com forte influência do complexo cultural mediterrâneo (caso da
sociedade gaúcha), cotejando-a com perspectivas teóricas que analisam esta
problemática face aos processos de disseminação dos postulados do individualismo
moderno.
Na parte concernente às orientações metodológicas, comento as imbricações
entre as dimensões objetivo/subje tivo da estrutura do fato social estudado e do
trabalho de pesquisa em Antropologia urbana, mais especif icamente, minha
busca na delimitação da problemática tratada, conside rando-se, em particular, as
estratégias usadas na constante tentativa de interiorizar a objetividade.
Este tópico propõe que a minha viagem na busca do entendi mento do
espaço social da s eparação - e suas implicações na construção das fronteiras
culturais da identidade feminina - resulta de um processo similar àquele
pertinente a discussão do universo das emoções sociais de minhas próprias parceiras de
pesquisa. Logo, o descasamento não se trata apenas de uma dimensão da cultura
objetiva das modernas sociedades complexas, seu estudo permite adentrar a
dimensão subjetiva dos dramas pessoais e subjetivos a ele associados, neste
caso, mulheres de camadas médias urbanas.
A separação, então, como processo cotidiano vivido em conjunto com
minhas parceiras de pesquisa, se apresenta como um fenômeno particular do
que Georg Simmel costumava assinalar como sendo a “tragédia da cultura”, na
medida em que os sujeitos que testemunham a dissolução dos seus laços
matrimonias, são também, objetos de recriação da própria vida social, e como
parte deste entrecruzamento, buscam compreender a sua condição feminina no
corpo coletivo ao qual pertencem. Da mesma forma, a própria pesquisadora, na
ocasião do trabalho de campo, encontrava-se numa situação de familiaridade
que a aproximava daquela das suas interlocutoras .
Co m a f ina lidad e de ref le tir s obre di v ers id ade dos tes te mu nhos
ouvidos s obre o des cas a men to por parte das minhas interlocutoras, priorizei,
nos Capítulos II e III, a restauração das suas narrativas biográficas segundo as suas
diferenças de ethos e visão de mundo, no que tange a forma como as categorias de Pessoa
e Indivíduo eram acionadas em seus relatos.
No Capitulo II - Reconstrução Biográfica I: da Tradição a Modernidade, procurei
restaurar a unidade biográfica algumas das minhas interlocutoras, que ao longo das suas
trajetórias sociais, passaram junto à família de orientação, por um processo de
ascensão econômico-social, as camadas médias urbanas, no deslocamento
interior/capital, e que culmina com o casamento e a constituição da família de
procriação. Descrevem-se, então, suas implicações no desencadeamento do
processo de separação, seus limites e proposições.
No Capítulo III - Reconstrução Biográfica II: da Modernidade a Vanguarda,
aborda-se outros testemunhos, os de algumas mulheres que, desde a família de
orientação até a família de procriação, não só conservam uma posição
econômico-social estável no interior dos segmentos de camadas médias urbanas,
como a amplificam na adesão de novas modalidades de construção dos papéis sexuais e de
gênero, disto resultando um processo singular em relação às outras
interlocutoras, que na forma, testemunham o processo de separação.
Em ambos os capítulos, minha preocupação é reconstruir a trajetória social
das minhas interlocutoras segundo as suas diferenciações de ethos e visão de
mundo, considerando a condição de classe (camadas médias urbanas
portoalegrense) como princípio interpretativo dos múltiplos códigos éticos-morais
que as orientam, após a dissolução dos laços matrimoniais, os fundamentos morais de suas
identidades de sexo-gênero.
A reconstrução biográfica alinha-se às diferenciações que se apresentam no
processo de ascensão econômico-social das mulheres com quem me relacionei ao
longo do trabalho de campo, consideradas em três instâncias: 1) a família de
orientação; 2) a família de procriação (casamento); e 3) a situação de
separação. Para cada uma das três instâncias, estabeleci como critérios de análise, quatro
dimensões a serem observadas, quais sejam: projeto familiar, estilo de vida, rede
social e laços de parentesco, papéis sexuais e laços de parentesco.
Na primeira dimensão, a do projeto familiar, destaco a importância dos
sistemas de valores e dos códigos ético-morais que fundaram o projeto familiar das minhas
interlocutoras, analisando-os em função da relevância e das motivações que a s
conduziram ao matrimônio. No que tange ao estilo de vida, procuro apreender
as características de composição do ethos familiar da unidade de procriação
que surge com o casamento. Pela via da observação da rede social e dos
laços de parentesco que contextualizam suas experiências familiares,
procuramos dimensionar os universos simbólicos pelos quais transitam minhas
interlocutoras ao longo dos seus itinerários no contexto metropolitano . Procuro
destacar a composição das suas redes sociais ao longo das alterações biográficas,
testemunhadas com a dissolução dos laços de parentesco e do código da aliança pós-
descasamento. Por fim, no quadro das metamorfoses sociais que o descasamento provoca,
e em relação aos papéis sexuais e laços de parentesco, destaco os dramas subjetivos que a
controvérsia objetiva entre a lógica holista e a lógica individualista que é estabelecida
dentro do processo de reorganização do espaço familiar.
Considera-se, em ambos os capítulos, a relevância da abordagem dos contrastes e
articulações possíveis entre ethos e visão de mundo tradicional e moderna, a partir das
lógicas que presidem a trajetória social das interlocutoras da pesquisa
(holista/individualista). O dimensionamento desta problemática ocorre em função da
composição do espaço familiar e das metamorfoses aí implicadas, até a ocorrência do
processo de separação. Delas emerge o enfoque de que o jogo dialético
tradicional/moderno se acha localizado no interior da própria realidade sociocultural da
sociedade gaúcha onde estas biografias se constituem, sendo uma das instâncias em que o
quadro em questão se delimita.
Logo, a estrutura descritiva dos Capítulos II e III confere a importância de alguns
pontos para reflexão. Um deles se refere à compreensão do ethos e visão de mundo do
segmento social escolhido (camadas medias urbanas) para a pesquisa, considerando-se a
determinação social e de gênero.
Por um lado, foi fundamental acompanhar as conexões das metamorfoses na
condição social vividas por minhas parceiras de pesquisa e suas implicações para a
delimitação da condição de gênero em função dos códigos éticos e morais dos papéis
sexuais, assim como os laços de parentesco em suas famílias de origem e família de
procriação, conforme o jogo tradicional/moderno que preside estas imbricações.
Por outro lado, minha intenção era dimensionar algumas situações nas quais o
valor Individuo, veiculado pelo postulado do individualismo moderno, se contrapunha aos
valores ditos tradicionais da sociedade gaúcha, tendo o espaço da família rural e patriarcal,
assim como o seu código ético-moral, aplicado aos laços de parentesco e papéis sexuais, e
onde os valores de honra, vergonha e sangue se destacavam. Estes apontamentos me
conduziram, provocada pessoalmente por meu orientador, diretamente a composição que
assume o Capitulo IV – Honra e Tradição no RS – onde busco restaurar a figura masculina
no interior dos códigos éticos e morais fundacionais e a centralidade da categoria Pessoa e
do valor sangue e honra para a sociedade gaúcha, dimensionando a presença ausente da
figura feminina na composição da identidade regional.
A figura lendária do gaúcho, o monarca das coxilhas e todo o seu cortejo
de símbolos é preconizado, neste estudo, como parte do complexo cultural
fundacional dos fundamentos morais da sociedade gaúcha, expressão de um
estilo de vida e uma visão de mundo que remontam aos episódios
mitológicos e acontecimentos históricos da formação do Rio Grande do Sul.
Neste processo, acompanhamos as metamorfoses da figura do gaúcho-gaudério em
gaúcho-peão, e deste último, na figura do gaúcho a pé, seguindo-se a
disseminação de uma politica com base na lógica da capital para as relações de
trabalho no campo, fenômeno peculiar a sociedades modernas.
Nessa parte do livro, convidamos o leitor para a imersão em um regime de imagens
que se orienta para o culto aos valores de virilidade e hombridade, como integrante da
natureza moral da identidade de sexo -gênero do homem gaúcho. A r e g i ã o
d a C a m p a n h a se impõe como território-mito onde se originam os códigos
éticos e morais basilares da “alma bárbara e guerreira” da figura do gaúcho,
pautados pelos valores de valentia e de coragem.
No desdobramento de minhas intenções narrativas, o apelo a uma narrativa visual
se tornou atraente como uma forma de fazer o leitor viajar por uma coleção de imagens
imemoriais da sociedade riograndense, nas quais podemos testemunhar os avanços de uma
civilização urbana e cosmopolita sobre as antigas formas de vida no campo e nas cidades
do interior. São registros fotográficos retirados do Álbum Oficial Estado do Rio Grande do
Sul e da célebre Revista do Globo, ambas publicadas nas décadas de 1920 e 1930 do
século passado, respectivamente, e que são por si mesmas o testemunho do que procuro
descrever, com palavras, ao longo do Capitulo IV.
Na hierarquia do desempenho dos papéis de sexo-gênero no interior da sociedade
gaúcha, observa-se, assim, clivagens entre os espaços públicos e os espaços privados. À
figura feminina cabe uma posição coadjuvante, atuando nos espaços reservados à vida
familiar, no sentido de lhe assegurar a sua reputação nos espaços públicos, pela
manutenção da pureza da sua conduta sexual, associada ao sentimento de vergonha e de
pudor, sob o reforço dos laços de parentesco e a valorização da maternidade.
Semelhante percurso intelectual se impôs pela imperativa necessidade de
restauração, no interior de uma duração, das fronteiras culturais e dos universos
simbólicos, nos quais se originam da sociedade riograndense, no sentido de se
demonstrar a proximidade das condições histórico-sociais produtoras deste
código moral com aquelas pertinentes ao complexo mediterrâneo, e seu código de
honra e vergonha, sugerindo-se a importância da discussão dos valores
tradicionais na sociedade gaúcha nos moldes da Antropologia da Honra.
A restauração me conduziu para a compreensão da distinção de
hierarquia e igualdade nos quadros da construção social dos papéis de sexo -
gênero na memória coletiva da sociedade do Rio Grande do Sul, e à
interpretação dos jogos de composição entre tradição e modernidade no
contexto urbano portoalegrense. Nesta medida, o rompimento dos laços
matrimoniais se coloca como espaço de negociação dos códigos ético -morais
associados às identidades de sexo-gênero, uma vez que desloca o centro da
honra familiar ocasionando uma reordenação dos arranjos na “natureza” dos seus
fundamentos morais.
Em decorrência do percurso que adoto para minhas indagações, prossigo
minha caminhada no Capitulo V - Casamento versus Separação - os
fundamentos morais e a política sexual da família - onde procuro analisar
algumas respostas fornecidas por minhas interlocutoras para o colapso do
sistema de representações do espaço familiar diante do processo de dissolução
dos laços matrimoniais. Refiro-me as tensões entre o código ético-moral hierárquico
de honra e seu sistema moral na organização da esfera familiar e os valores e princípios
oriundos da ideologia moderna e da sua moral universalista e igualitária de que são
testemunhas as minhas interlocutoras.
Tomando-se, como ponto referencial, as descrições feitas nos Capítulos II
e III, e levando-se em consideração as ideias desenvolvidas sobre a sociedade gaúcha
no Capitulo IV, me dedico a tecer uma aproximação entre os diferentes testemunhos de
minhas parceiras de pesquisa a partir da forma de como elas conduzem a
reconstrução das suas identidades sociais no processo de descasamento.
Particularmente, na forma como suas trajetórias testemunham o jogo de
descontinuidade/unidade dos universos simbólicos que conformam as modernas
sociedades complexas, expressas nas articulações, na ordem do cotidiano, entre
holismo/individualismo e hierarquia/igualitarismo.
É neste sentido que os tópicos relativos a ambos os temas (casamento e
separação) tratam, respectivamente, dos fundamentos morais da honra e da
universalidade e seus impasses. Num primeiro momento, o espaço do
casamento, os impasses apresentados no código da honra e seus fundamentos
morais, se referem à forma como a família de procriação, mesmo tendo como
contexto os valores e noções hierarquizantes, é viabilizada enquanto projeto, sob a
égide de valores igualitários. Dedico-me a pensar, então, na forma como o casamento,
nos testemunhos de descasamento, são apontados como um acontecimento social
onde elas estabelecem conexões, e/ou oposições, entre ambos os códigos morais
para a conformação dos papéis sexuais e laços de parentesco em sua família de procriação
em relação à família de origem.
Num segundo momento, atentas ao presente da narrativa da separação,
seus testemunhos revelam a forma como os fundamentos da moral universalista,
que podem ser percebidos como paradigmaticamente individualizantes, também
sofrem seus impasses frente à constante presença dos valores e concepções
ligados ao universo da tradição e da honra, associados à família de origem, com os quais
minhas parceiras de pesquisa parecem estar em constante debate. Quanto ao Capitulo VI
- Confronto de Imagens Femininas na Maternidade - novamente se recoloca a
necessária aproximação entre ambos os testemunhos constituídos, diferentemente dos
Capítulos II eIII, tendo em vista a presença de uma lógica holista na or denação
das representações das relações de parentesco e papéis sexuais do espaço familiar,
seja na sua forma afirmativa paradigmática (casamento), seja na forma negativa
(separação).
Na análise dos efeitos do processo de descasamento na experiência da
maternidade retomo as tensões entre dimensões hierarquizantes e igualitárias na forma
como minhas parceiras de pesquisa negociam com a dissolução do papel esposa -
mãe no seu cotidiano familiar. Em particular, procura-se refletir sobre os
dilemas dos códigos ético-morais de honra e vergonha na determinação de
gênero para o caso dos processos de reconstrução de suas identidades sociais de
mulheres separadas. [MP4] Comentário: O parágrafo
parece estar confuso.
Como uma das preocupações do meu estudo também era refletir sobre As alterações estão em amarelo. Sugestão
de nova redação:
as imbricações que os papéis de sexo-gênero e laços de parentesco assumem na Em minha análise dos relatos sobre os
efeitos do descasamento na experiência da
maternidade, no interior dos arranjos
reordenação da esfera familiar, o estudo da maternidade permite dimensioná- familiares que se estabelecem, tornam a
emergir as articulações das dimensões
las em função da análise das inter-relações que os códigos morais universalistas e hierarquizantes e igualitárias que presidem
o cotidiano familiar das informantes, agora
os códigos hierárquicos da honra propõem para a construção dos fundamentos morais atuando particularmente na determinação de
gênero para o caso dos processos de
do feminino, através das noções de condição humana e de natureza, ambas reconstrução de suas identidades sociais de
mulheres separadas.
ok
consideradas em função das características biológicas da reprodução. Nesta parte,
retomo a polêmica entre o ethos e a visão de mundo ligados à tradição do código de
honra e da vergonha, e, também, aqueles associados à modernidade e como
ambos tratam dos condicionantes biológicos dos se xos, considerando os
fundamentos morais dos papéis sexuais e laços de parentesco, assim como a delimitação
na construção das fronteiras do espaço familiar nas modernas sociedades complexas e a
construção das oposição dos gêneros masculino/feminino.
Na tentativa de prosseguir em minhas intenções de pensar as articulações
das representações e significados da maternidade, proponho a análise comparativa
interna da composição do espaço da maternidade, segundo uma lógica holista em
sua dimensão autoevidente (natureza feminina), e outra individualizante
(condição feminina), numa dimensão autoconstruída, e, ainda, a direção que
ambos os conjuntos de representações apontam no sentido da constituição do
feminino e nos seus dilemas frente à passagem da situação de casamento para a de
separação. O código ético-moral associado ao exercício da maternidade, na
separação, é re-pensado em função da ruptura dos laços que unem a figura da
mãe a figura da esposa (esposa-mãe) e, por consequência, da negação da
“natureza” dos fundamentos morais da família para o caso da cultura patriarcal no
sul do Brasil. [VP5] Comentário: Frase confusa.
Sugestão de redação onde o amarelo é a
Avaliando-se as implicações da separação na formulação dos papéis sugestão:
A composição do código social da
maternidade, na separação, é vista, neste
sexuais, laços de parentesco e código moral familiar em função desta categoria ponto, em função da ruptura da categoria
estrutural na cultura brasileira, para com os
estrutural esposa-mãe, procurei o entendimento do espaço da maternidade e do fundamentos morais da família - a de
esposa-mãe.
papel que cumpre na reordenação moral do espaço familiar. Reposicionava, ok

finalmente, a importância do debate acerca da maternidade e do papel de mãe


nas modernas sociedades complexas, a delimitação da identidade social do gênero
feminino no interior das articulações possíveis entre os códigos e valores
tradicionais/modernos do espaço familiar, tendo em vista, a forma como se
redimensiona a “natureza” na formulação cultural dos papéis sexuais e laços de
parentesco.
CAPÍTULO 1

NAS TRILHAS DE UM PERCURSO INTELECTUAL

O conhecimento tornou-se, pois, um pedaço da própria vida e


como a vida uma potência em constante nascimento; até que,
enfim, o conhecimento e aqueles antiguíssimos erros fundamentais
entraram em choque, ambos como vida, ambos como potência,
ambos no mesmo homem.
F. Nietzsche. A gaia ciência
Mais profundamente para a antropologia, não se trata em dar a
razão para o primitivo ou de lhe dar razão contra nos, e sim de
instalar-se num terreno onde já sejamos, uns e outros, inteligíveis,
sem redução nem transposição temerária.

M. Merleau Ponty. De Mauss a Lévi-Strauss


1 - APONTAMENTOS TEÓRICOS

O presente capítulo tem por objetivo dimensionar as linhas teórico-metodológicas


do estudo da separação, considerando-se as representações dos papéis sexuais e laços de
parentesco, em função da trajetória social de um grupo de mulheres de camadas médias
urbanas de Porto Alegre. Assim, de acordo com este objetivo central, procura-se discutir
algumas abordagens teóricas que possibilitem a análise dos limites e fronteiras culturais do
processo de reconstituição da identidade social destas mulheres.
Para fins analíticos, o processo de separação, então, e percebido em uma feição
particular, tendo em vista duas determinações: a de classe (camadas médias urbanas) e a
de gênero (feminino).

1.1 – OS CONSTRANGIMENTOS DE CLASSE

Desenvolve-se aqui a noção de ethos referida à posição social do grupo estudado,


onde o estilo particular de vida corresponde à ordem geral da existência (Geertz, 1978) e à
trajetória social do segmento a que as mulheres aqui ouvidas pertencem. A palavra ethos
traduz aqui, de modo particular, os aspectos morais e os elementos valorativos de uma
cultura ou grupo social, em torno, dos quais, o ator social interpreta a sua experiência e
organiza sua conduta (Geertz, 1978, p. 144).
Considerando-se o que Bourdieu (1974) enfatiza sobre as propriedades de posição
e as de situação para as classes sociais, percebem-se importantes distinções em nível de
ethos de um grupo social. Seguindo o raciocínio deste autor, mesmo quando considera a
noção de estrutura social, onde se supõe que cada classe, pelo fato de ocupar uma posição
numa estrutura social historicamente definida e por ser afetada pelas relações que a unem
a outras partes constitutivas da estrutura, possui propriedades de posição (Bourdie, 1974,
p. 3), torna-se necessário ressaltar, também, a existência de uma margem de variação que
se refere a situação de classe.
No caso deste estudo, no nível das determinações sociais a que o grupo pesquisado
como um todo, acha-se sujeito, é significativo para o entendimento da composição do seu
ethos perceber a experiência da posição da classe em função desta representar uma etapa
de uma situação de ascensão ou descenso (Bourdieu, 1974, p. 23), assim como a atuação
das marcas de distinções através das quais as mulheres descasadas traduzem e revelam aos
olhos dos outros e, sobretudo, dos estranhos ao grupo, seu corte posicional na sociedade.
De acordo com este ponto, Bourdieu (1974) afirma: os traços distintivos mais prestigiosos
são aqueles que simbolizam mais claramente a posição diferencial dos agentes da
estrutura, o que demostra a importância das distinções significantes em termos da
afirmação de status social. A lógica da distinção atua de outra forma, através de uma
ordem simbólica, nos valores necessariamente vinculados à posição de classe de um
grupo. Isto não afasta a variável da situação de classe, uma vez que se acha referida, em
última instância, ao modo de distribuição do prestigio social (Bourdieu, 1974). A questão
do status, neste contexto, define-se em função da maneira como são utilizados os bens
(simbólicos ou materiais) que o grupo possui.
A problemática teorética acima especificada busca recortar o grupo pesquisado de
acordo com a sua posição e situação de classe, em face da trajetória social do seu grupo
familiar, considerando-se um projeto familiar de ascensão social e as marcas de distinções
que o delimitam, o que resulta na afirmação de limites internos dentro do grupo de status.
A situação de negociação da realidade social, que ocorre a partir da separação das
mulheres, aponta a presença de distintas formas de negociação, onde estão presentes
diferentes enfoques de uma mesma realidade social. Embora se perceba, neste trabalho, o
grupo de mulheres descasadas como parte específica de um segmento social, ou seja, são
mulheres pertencentes às camadas médias urbanas de Porto Alegre, considera-se o
panorama de uma sociedade moderna e urbanizada em termos de sua heterogeneidade e
complexidade cultural, e da fragmentação de papéis sociais, contrastando, de certa forma,
com a experiência social rural ou interiorana, mais tradicional, que muitas mulheres aqui
ouvidas trazem em sua bagagem histórica.
Neste ponto, concorda-se com Velho (1981, p. 106) quando o autor afirma que
quando realizou pesquisas com camadas médias baixas tipo white collar (1973) tanto
quanto com camadas médias altas nos limites de uma burguesia (1975), se deparou com o
fato de constantemente encontrar indivíduos ou famílias que, sob critérios
socioeconômicos descritivos tipo renda, ocupação, educação, etc., seriam incluídos na
mesma categoria, mas que apresentavam fortes diferenças em termos de ethos e visão de
mundo. De acordo com a experiência desse antropólogo percebeu-se, então, a existência
de fortes diferenças de ethos e visões de mundo na representação e comportamento das
interlocutoras da pesquisa ao longo das suas trajetórias sociais face às relações
tradicional/moderno no que se refere aos papéis de sexo-gênero na família. Pretende-se
aqui, recompor tais diferenças nas narrativas biográficas segundo as peculiaridades da
trajetória social, do grupo familiar à separação.
Como resultado da pesquisa de campo, identificamos claramente a formação de
dois grupos de status básicos, oriundos destas experiências sociais específicas,
vivenciando problemas diversos para a mesma situação estrutural de descasamento e seus
efeitos sobre os papéis femininos da família. Há interlocutoras que pertencem a famílias
cuja trajetória social envolve uma migração recente para o meio urbano, na qual, o grupo
familiar ainda percorre um processo de ascensão econômico-social, e outras, cujas famílias
de origem já realizam há algum tempo este projeto de ascensão social, estando mais
integradas a um estilo de vida e visão de mundo urbano e moderno.
Tendo em vista estas peculiaridades, propõe-se teoricamente pensar as implicações
destas na forma como transcorre o processo de separação e na reordenação de uma
identidade social. O que se torna fundamental é a delimitação que o ethos da família de
origem, dado a partir da própria trajetória social do grupo social, realiza no ethos de classe
e gênero a que os atores sociais acham-se filiados. Basicamente, estas distinções são
acompanhadas no nível da família de orientação, família de procriação (cujos conceitos
estão explicitados a seguir) e do processo de separação em função do projeto familiar,
estilo de vida, rede social e papéis sexuais, laços de parentesco e papéis sexuais e, quando
é o caso, da reconstrução biográfica nas alterações transcorridas no ethos familiar original.
Recolocando-se a questão de outra forma, a existência de diferenciações e
descontinuidade no ethos e visão de mundo de um grupo social estão referidas, neste
trabalho, às distintas trajetórias sociais dos grupos familiares, e, em última instância, às
diferentes experiências e tradições que uma classe comporta, mesmo quando se observa
sua unidade a nível socioeconômico. Opera-se assim, por um lado, com um conceito de
família conjugal enquanto resultado de um processo modernizante na família, onde os
vínculos conjugais destacam-se dos laços de reciprocidade do grupo de parentes. Por
outro, utiliza-se o conceito de família extensa, referindo-se a um modelo familiar que se
mantém ainda não fragmentado ou individualizado dos demais grupos de parentes. Nesta
perspectiva, reconstrói-se a trajetória das mulheres, da sua família de origem à separação,
passando pela família constituída pelas mesmas após o casamento, acompanhando um
processo de diferenciação da estrutura familiar ou uma relativa fragmentação das suas
relações sociais em termos da autonomia e independência dos indivíduos que a compõem.
Seguem estudos feitos por P. Ariès (1981), onde o autor sugere um processo de
transformação da passagem de sociedades tradicionais e modernas. No contexto da
modernidade, os laços familiares tornam-se um espaço social mais autônomo e
privatizado, a família separa-se do mundo e opõe a sociedade, o grupo solitário dos pais e
filhos. Ou seja, segue a noção de que a família moderna foi gerada a partir do seu
desprendimento com relação à família extensa – evento este que redundou em sua
individualização e na contratação de sua sociabilidade (Salem, 1983, p. 11). Esta
contratação está associada, neste estudo, a alteração na composição da rede social
familiar, num redimensionamento dos laços com base no parentesco, bem como na própria
delimitação dos papéis sexuais. Considerados em função da trajetória social do grupo no
jogo tradicional/moderno.
O processo de fragmentação da estrutura familiar, do qual resulta o modelo de
família nuclearizada envolve, assim, uma discussão do caráter interno dos papéis sexuais
na família e na divisão sexual do trabalho. Ressaltando algumas metamorfoses ocorridas
na moderna sociedade urbano-industrial e observando a descrição que Durham (1983, p,
40) faz das metamorfoses recentes do modelo familiar, percebe-se que, ao nível do casal,
começa a existir o conflito básico entre, de uma lado, a livre expressão da individualidade,
tanto na carreira profissional quanto na vida amorosa, que enfraquece o vínculo conjugal,
e de outro, a responsabilidade conjunta em relação aos filhos comuns, o que exige seu
fortalecimento. Neste ponto, o feminismo, enquanto ideologia moderna individualizante é
capaz de gerar metamorfoses pois, juntamente com críticos da família, coloca uma
imagem diferente das relações entre esposas e maridos. Em vez de amor e
companheirismo, a ideologia moderna do feminismo enfatiza padrões de desigualdade e
conflito (Thorne, 1982). Coloca-se, então, como ponto central para reflexão, as alterações
de estilos tradicionais para modernos, onde se acredita que ocorre uma oposição no
sentido de uma dimensão holista hierarquizante para outra mais individualista (Velho,
1981; Dumont, 1970). Está presente, neste trabalho, a descrição da trajetória individual
das interlocutoras da pesquisa na família de orientação e de procriação, através dos
conceitos de projeto familiar e projeto individual.
Primeiramente, é importante esclarecer que o conceito de projeto se refere à
capacidade que o sujeito tem de projetar, ou seja, quando há ação com algum objetivo pré-
determinado ter-se-á o projeto (Velho, 1981, p. 26). Mas, como assinala este mesmo
autor, o projeto não se refere a um fenômeno subjetivo, ele atua através de uma linguagem
de códigos culturais e está referido a experiências socioculturais historicamente
delimitadas. Ele, então, é elaborado dentro de um campo de possibilidades, que delimita a
manipulação de códigos de valores culturais em sua constituição.
Portanto, a própria conceituação do projeto aqui utilizada, refere-se à organização
de estratégias e planos de grupos ou indivíduos no sentido de atingir certos objetivos.
Neste sentido, o enfoque biográfico desenvolvido contribui, de certa forma, para a
discussão adequada dos projetos constituídos pelas mulheres em sua trajetória social e a
experiência social do grupo familiar a que pertence. Segundo Velho (1981, p. 99), a
própria noção de indivíduo, tal como se conhece, esta intimamente associada a
desagregação da família extensa, da rede de sociabilidade mais ampla e diversificada e
ao desenvolvimento da família nuclear que, com todas as suas ambiguidades, é
individualizante por excelência.
De acordo com as condições sociais presentes no relato biográfico da vida familiar
do grupo pesquisado, associa-se, em principio, ao meio urbano (moderno), a noção de
indivíduo como proposição de um sujeito mais segmentado das relações de parentesco e
familiares, tendo em vista a realização de projetos individualizantes, enquanto no contexto
mais tradicional, toma-se a noção de indivíduo como sujeito que se constitui através da
expressão de relações familiares, a partir da condição de membro de uma coletividade,
parte de um todo. Pode-se, neste sentido, falar não só de projeto, mas de projetos, pois
estes são essencialmente dinâmicos, não só a nível social, mas também em termos da
biografia individual dos autores sociais.
No tratamento da diversidade de projetos, portanto, recorre-se a duas
caracterizações referidas anteriormente: projeto individual e projeto familiar. O primeiro
busca resgatar a experiência dos atores considerados em seu núcleo de individualidade,
onde, através de um ethos individualista, enfatiza-se a noção de indivíduo enquanto valor,
sujeito moral e unidade mínima significativa (Velho, 1981, p. 51). Quanto ao segundo,
refere-se a um projeto que preside a dinâmica de relações familiares. Seria o projeto
dominante, na medida em que é assumido pelas pessoas que desempenham os papéis
familiares com maior parcela de poder (Velho, 1978, p. 10). Pode ser definido então,
como projeto familiar, tanto aquele construído no sentido de direcionar os membros da
família de orientação, quanto o da família de procriação que estas constituem após o
casamento.
O conceito de projeto individual também pode ser aplicado à noção de família
conjugal, expressa no meio urbano (moderno), onde o casal é projetado enquanto unidade
composta de indivíduos singulares que atuam como indivíduo coletivo (Salem, 1983). A
utilização de ambos os conceitos é relacional, ou seja, a tentativa de desvincular-se da
família conjugal, através de um projeto de família conjugal, numa primeira instância, pode
ser entendida como um projeto individual para, logo após, consolidar-se como projeto
familiar. Toma-se, assim, como projeto individual, a tentativa de nuclearização da família,
concebendo-se o casal como um indivíduo em relação ao grupo familiar maior.
No sentido de instrumentalizar a descrição do ethos familiar do grupo pesquisado,
segundo suas vinculações no jogo tradicional/moderno, assume-se para o grupo de origem
mais tradicional, a definição de ethos da produtividade. Esta conceituação tem suas
origens na interpretação que Velho (1981) faz do estilo de vida dos white collar em
Copacabana. Segundo ele, este ethos constrói uma expectativa quanto ao projeto familiar
de ascensão econômico-social, a inserção num estilo de vida modernizante, definido a
partir da incorporação vigorosa dos seus membros no mercado de trabalho, na busca de
sucesso e com base na produtividade individual. Como implicações, este ethos está
fundamentado sobre situações sociais ambivalentes: ou individualização ou permanência
dos laços com a família. Em ambos os casos, no entanto, está presente a necessidade de
confirmação de um projeto familiar que se inicia na família de orientação, no sentido da
opção por um estilo de vida urbano, modernizado, em função da aquisição de prestígio e
status social. Aqui, tem-se como necessários a prosperidade e a ascensão material que
conduzem à necessidade de afastamento da família extensa, tendo em vista, o
deslocamento dos seus membros para um meio social mais moderno. Em consequência, há
a oportunidade de um enfraquecimento dos laços de reciprocidade no universo maior de
parentes e uma filiação aos laços de amizade (Velho, 1981). Estas modificações, portanto,
tendem a afetar a composição da rede social dos indivíduos, bem como a estruturação dos
papéis sexuais e dos laços de parentesco e o ethos e visão de mundo familiar.
Em oposição ao ethos da produtividade, contrapõe-se o ethos da contestação,
buscando fazer aí uma discussão entre diferenças de ethos dentro de um mesmo universo
social de classe, analisado em sua heterogeneidade a partir de padrões socioeconômicos. É
novamente nos trabalhos de Velho (1975) que constrói-se esta definição. O autor, no seu
estudo sobre o uso de tóxicos nas camadas médias urbanas do Rio de Janeiro, aborda a
temática da contestação quando analisa o ethos da vanguarda associado ao que ele define
como aristocracia de estratos médios. De acordo com o autor, este ethos caracteriza-se
pela valorização do talento individual e das atividades culturais, constituindo-se um grupo
em que o artista e o intelectual têm lugar de honra, relegando a um plano secundário o
trabalho convencional. Neste sentido, e ainda segundo este autor, sentem-se superiores
dentro da sociedade e manipulam, na sua visão de mundo, o princípio hierarquizador com
muita intensidade, marcando a posição fortemente elitista (Velho, 1975).
Embora exista no grupo pesquisado, a valorização da educação ou o gosto pela
cultura, estes só adquirem importância para o grupo que se filia a este ethos, na medida em
que marcam uma posição de contestação política. A noção de vanguarda no interior desse
grupo de status se traduz no seu engajamento em uma proposta de um pioneirismo para o
caso dos estilos de vida das camadas médias intelectualizadas de Porto Alegre. De acordo
com a proposta deste ethos da contestação e em contraposição ao ethos da produtividade,
sugere-se um afastamento do projeto de ascensão econômica baseado no desempenho de
funções produtivas, o qual está presente no projeto familiar de origem. O vanguardismo
valoriza, em contrapartida, as formas mais ousadas, mais pioneiras que estão associadas a
uma maneira de viver mais livre, liberada, desreprimida (Velho, 1975). O pioneirismo é
enfatizado em ações políticas de tendência contestadora, não tendo como consequências
rupturas definitivas com o próprio estilo de vida assumido em relação à família de
orientação e buscando viabilizar, após o casamento, um projeto familiar alternativo.
Na delimitação do próprio projeto, seja familiar, seja individual, torna-se
importante, nos dois casos, compor as motivações e os traços relevantes que o orientam.
Considera-se a definição utilizada por Geertz (1978, p. 110), quando este precisa o
conceito de motivação na estruturação da religião enquanto um sistema cultural: A
motivação é uma tendência persistente, uma inclinação crônica para executar certos tipos
de atos, experimentar certas espécies de sentimento em determinadas situações. Os
motivos não são, portanto, nem atos (isto é, comportamentos intencionais), nem
sentimentos, mas inclinações para executar determinados tipos de atos ou ter determinados
tipos de sentimentos.
Para este estudo, importa salientar o fato de que a construção ou realização de um
projeto, seja a nível familiar ou individual, envolve inclinações, construídas socialmente,
que o indivíduo guarda em si mesmo. Este elemento tendencioso, presente no jogo de
inter-relações que preside um projeto, possibilita o desvendamento de um arranjo, segundo
Geertz, inerente à ação humana, que tende a persistir nas experiências existenciais dos
indivíduos em suas condutas sociais.
Adota-se aqui, a noção de que o conceito de motivação permite a um projeto,
enquanto sistema de representações, se concretizar num ethos particular, e vice-versa.
Assim, os projetos, como a própria ação social, inspiram certos sentimentos e inclinações,
ou como coloca aquele autor, expressam o clima do mundo e o modelam (Geertz, 1978, p.
109). De acordo com este ponto de vista, as motivações também ocorrem em função de
valores e categorias sociais relevantes para o grupo estudado, os quais presidem, e seu
próprio ethos, constituindo matéria-prima do projeto. Segundo G. Velho, o conceito de
relevância permite avaliar em função do que os indivíduos armam suas estratégias de vida,
fazem opções, estabelecem projetos. Citando Schutz (1981, p. 85), o autor afirma: a
própria ordem de domínios de relevância que prevalece num determinado grupo social é
um elemento da concepção relativamente natural do mundo tida pelo grupo interno como
pressuposto e como estilo de vida inquestionável. Ou seja, a noção de relevância propõe a
discussão da construção de um projeto em termos de códigos e valores gerados e
aprovados socialmente - de acordo com o ethos do grupo onde estes se originam. Retoma-
se, de certa forma, a problemática de delimitar as motivações presentes na constituição de
um projeto que, unido aos critérios de relevância utilizados pelo indivíduo, permitem a
orientação de sua conduta em função dos arranjos realizados em torno do ethos do grupo
social ao qual pertence, em termos da dinâmica do contexto sociocultural onde se acha
situado.
Considerando-se que o grupo de status estudado apresenta heterogeneidade na
composição do ethos, embora se verifique que os padrões econômicos são similares e que
as diferenciações são colocadas em função da trajetória particular dos grupos familiares
dentro de determinado domínio social, a análise das motivações de relevâncias que
presidem a formulação dos projetos obedece à linha histórica da sua biografia, da família
de origem ao descasamento. Mais especificamente, é na retomada dentro da sociedade
gaúcha, do sentido da trajetória social do grupo familiar das interlocutoras e da sua
posição de classe, quanto à condição feminina que estas assumem no seu interior, que se
aborda o processo de separação. No interior da trajetória familiar percorrida pelo grupo
pesquisado, dimensiona-se a ideia de escolha individual e a sua constituição enquanto
projeto. De acordo com Velho (1981, p. 106), é importante, no entanto, não só estar
atento para o sentido da trajetória, seu ritmo, direção e daí extrair consequências, mas
também procurar perceber a própria trajetória enquanto expressão de um projeto.
Reafirma-se a extrema significação do conceito de projeto na medida em que
ressalta a importância do estudo da dimensão consciente da ação em que o sujeito se
organiza para a realização de objetivos definidos, permitindo desvendar, nesta atuação, a
manipulação dos símbolos culturais que são elaborados na trajetória social do grupo
familiar das mulheres aqui retratadas. Isto é, o processo de descasamento concebido dentro
de um „campo de possibilidades‟ circunscrito histórico e culturalmente, tanto em termos
da própria noção de indivíduo como dos temas, prioridades e paradigmas culturais
existentes (Velho, 1981, p. 270). Nestes termos, os símbolos e valores culturais que atuam
na construção do projeto acham-se circunscritos na trajetória histórico-social da sociedade
gaúcha, constituindo-se através dos seus paradigmas e valores ético-morais. No caso
específico da delimitação deste campo de possibilidades, trata-se de perceber as inter-
relações entre um código tradicional, hierarquizante, fundado na noção de honra e um
código mais moderno, individualizante, baseado num código universalista de igualdade e
seus reflexos no espaço familiar da sociedade riograndense, considerada em termos de
uma política sexual que ordena laços de parentesco e papéis sexuais.
A circunscrição histórico-social da sociedade gaúcha se refere à prioridade de um
sistema de valores, constituído a partir das noções de tradição e hierarquia e formulado por
um código moral de honra. No plano paradigmático, considera-se a vida na zona da
fronteira e a figura social do gaúcho como pontos constitutivos da identidade regional em
relação a alterações “modernizantes” neste contexto social. Isto é sugerido em inúmeros
trabalhos que abordam o processo de constituição da sociedade e da cultura gaúcha, seja
através da literatura (Verissimo, 1976, 1977; Martin, 1944, 1954; Netto, 1913), onde estas
adquirem concretude na vida das personagens literárias, demonstrando o sistema de
valores e símbolos constitutivos do ethos e visão de mundo do povo gaúcho e suas
metamorfoses ao longo de processos histórico-sociais, adquirindo, dentro da narrativa
literária, uma dimensão épica, seja também no folclore, onde a “mitologia” do gaúcho se
acha ritualizada e cultuada em Centros de Tradições Gaúchas, movimentos de música
nativista, e/ou, cultura regionalista, etc., enfocadas como as tradições mais puras e
originais da sociedade riograndense (Cortes, 1983).
Também são inúmeros os estudos feitos no campo da Literatura e História Social,
no sentido de captar-se, através da história das ideias da sociedade gaúcha, a constituição e
história desta mesma sociedade e a construção do mito do gaúcho face à sociedade
riograndense (Dacanal, 1980; Gonzaga, 1980; Pesavento, 1980; ChavesS, 1980; Cesar,
1979). Dentro da área da Sociologia da Cultura, pode-se localizar isolado das abordagens
folclóricas da sociedade gaúcha, o estudo feito por Oliven (1983), onde se destaca uma
preocupação com o tratamento mais sistemático da problemática da construção social da
identidade gaúcha face à fabricação do gaúcho. Na área da Antropologia, propriamente
dita, esta questão da circunscrição histórica e cultural das prioridades e paradigmas
culturais da sociedade gaúcha tem uma lacuna em termos de produção acadêmica,
remetendo apenas àquelas obras mais tradicionais, realizadas no inicio do século XX, por
alguns autores clássicos, impregnados de uma visão, até certo ponto, romântica desta
sociedade e suas manifestações culturais (Freyre, 1947, 1968; Barcelo, 1981; Viana, 1974;
Galvão, 1976).
A perspectiva teórica adotada nesta pesquisa propõe aproximações socioculturais
da sociedade riograndense com sociedades pertencentes ao complexo mediterrâneo,
sugerindo-se algumas comparações com o processo histórico-social da sua constituição,
seu código ético-moral, seu sistema de valores e padrões de comportamentos, e por último,
seus reflexos na forma como as sociedades (pertencentes ao complexo mediterrâneo)
formulam uma politica sexual na família e seus fundamentos morais (Pitt-Rivers, 1979,
1968; Periztiany 1968), demonstrando que o ethos da modernidade, permeando o contexto
sociocultural de sociedades mais tradicionais, acaba por alterar substantivamente seu
panorama sociocultural. Esta perspectiva considera que a sociedade gaúcha, pela forma
como dimensiona a sua regionalidade, se revela como um espaço peculiar onde a
sociedade brasileira formula as relações tradição/modernidade.
A demarcação deste fenômeno, no nível da sociedade gaúcha, bem como da
sociedade nacional, e seus reflexos na constituição das suas fronteiras culturais,
certamente sugerem o enfoque de outros autores (Ariès, 1978, 1981; Duarte, 1984), que
tratam dos limites constitutivos da modernidade, face às instâncias mais tradicionais,
refletindo-se sobre os próprios pressupostos da moderna cultura ocidental (Dumont, 1970).
Portanto, dentro das perspectivas teóricas existentes para a delimitação deste campo de
possibilidades, onde o grupo pesquisado contextualiza sua experiência de separação,
adota-se um posicionamento reflexivo que permita seguir tais aproximações socioculturais
entre sociedade gaúcha e sociedades mediterrâneas, através de estudo de sua formação
histórico-social e da formulação de um processo de modernização que, ao permear o
contexto tradicional, acaba por alterar a estruturação do código ético-moral da honra,
colocando-o diante de uma moral universalizante, e do qual a noção de separação, sob o
signo da individualidade, é um dos resultados.
Logo, os dados através dos quais se busca chegar à biografia das interlocutoras da
pesquisa, guardam em si mesmos a peculiaridade de estarem compondo, eles próprios, no
processo de redefinição de identidade social do grupo, os sistemas de significados que
correspondem a uma estrutura social, e, os “paradigmas culturais” da sociedade
riograndense. Tem-se, então, que a trajetória social é refeita continuamente, numa
constante transformação dos códigos e valores socialmente constituídos, através dos quais,
estes concretizam sua vivência pessoal. Acredita-se que os testemunhos de histórias de
vida feito pelas mulheres - de sua família de origem à situação de descasamento – exige,
constantemente, uma redefinição dos momentos passados em função do entendimento e
reordenação das condições de vida presentes. Como coloca P. Berger (1976, p. 65), na
medida em que nos lembramos do passado, o reconstruímos de acordo com nossas ideias
atuais sobre o que é e o que não é importante.
Ao fazer-se uso da reconstrução da narrativa biográfica, parte-se do princípio de
que a restauração do passado, material em torno do qual se constituem os depoimentos das
mulheres descasadas aqui ouvidas, é um ato social que implica a negociação de uma
realidade, a nível individual, no sentido da significação da trajetória social de uma vida.
Na busca de dimensionar este processo de redefinição da identidade social do grupo
pesquisado, a partir da trajetória biográfica dos seus elementos, utilizam-se, neste estudo,
os conceitos de família de orientação e família de procriação. Segundo definição dada por
Schusky (1973, p. 131), família de orientação é aquela na qual o ego nasceu e foi criado e
família de procriação refere-se àquela que o ego forma através do casamento. O processo
de separação sugere, neste contexto, um momento de individualização para as mulheres,
em função de uma redefinição nas noções de família, de papéis sexuais e de laços de
parentesco.
Parte-se, então, do suposto de que a separação implica um confronto entre atores
sociais, uma disputa pela legitimidade, prestígio, estima e reconhecimento social, enfim,
um processo de negociação da realidade (Velho, 1983). Indo adiante nas reflexões aqui
propostas, e de acordo com Leach (1978, p. 45), considera-se a biografia de um indivíduo,
através da totalidade de sua existência social, quando passa de um status social a outro,
numa série de saltos descontínuos - criança para adulto, solteiro para casado, vivo para
morto, doente para são. Considera-se aqui, o status de separação como uma situação de
liminaridade social, que coloca os atores sociais numa situação particular em relação ao
resto da sociedade. O autor, assim, para o caso do estudo de um excurso biográfico pensar
o espaço dos jogos a memória e as mudanças de status com um cruzamento de fronteiras
sociais que acontece no tempo de ninguém.
Comentando a situação de separação em camadas médias urbanas, Velho (1983, p.
6) afirma: são discutidos os papéis e os paradigmas estão em questão; o bom pai, a boa
mãe, o marido e a esposa. No caso da pesquisa aqui relatada, discute-se o ethos do grupo
maior em função das diversidades nas experiências sociais em termos da família de
orientação e do posicionamento das mulheres descasadas em relação ao projeto familiar,
num primeiro momento, seguindo-se a constituição de um projeto individual, do qual a
formação de uma nova unidade (família de procriação) faz parte, até a possibilidade de
construção de um projeto mais individualizante após a separação. A diversificação no
ethos do grupo de status estudado retoma a afirmação de Velho (1981, p. 16) de que a vida
social é uma constante negociação entre atores (indivíduos, grupos, categorias)
envolvendo os mais díspares interesses e motivos, materiais e não materiais, o significado
do mundo está sempre, em alguma medida, em questão.
Assim, os testemunhos biográficos das mulheres aqui retratadas espelham e
recriam a constante negociação de valores e significados presentes na sociedade
riograndense, desde a sua formação histórico-social. Retratam, por sua vez, o jogo de
distinções entre os espaços sociais tradicional/moderno e suas dimensões
hierarquizantes/individualizantes, projetadas no espaço familiar, nos papéis sexuais e nos
laços de parentesco. Também são objeto de análise deste estudo, as determinações de
gênero do grupo de status pesquisado, que se manifestam ao nível dos testemunhos das
mulheres descasadas que foram interlocutoras da pesquisa e delimitam-se, socialmente, na
constituição particular de um projeto social, como é o caso do movimento feminista e seu
ideário. Procura-se, neste momento, esclarecer em que termos são aqui abordadas as
condições sociais através das quais atuam as determinações sexuais.

1.2 - OS CONSTRANGIMENTO DE SEXO-GÊNERO

Considera-se que as diferenças biológicas, quando significadas culturalmente,


fixam limites de experiências e valores, distinguindo-se em termos de gênero masculino e
feminino, através de fronteiras culturais significativas. Disto resulta a constatação da
existência de um conjunto de disposições e motivações associado às categorias feminino e
masculino. As determinações de gênero (ethos feminino), como as de classe, também são
aqui entendidas em função da noção de ethos. Segundo Geertz (1976, p. 143), o ethos
constitui o sujeito na medida em que é atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu
mundo que a vida reflete. Propõe-se aqui, estender o conceito de ethos às determinações
de gênero, resultando disto a noção de ethos feminino.
Inicialmente, as ideias presentes neste trabalho sofrem grande influência de estudos
clássicos sobre a mulher (Beauvoir, 1970; Mitchell, 1967, 1979; Rosaldo, 1974;
Lamphere, 1979; Chodorow, 1979; Rubin, 1975; Firestone, 1976), muito embora a
proposta dirija-se a um estudo de práticas e representações de um grupo determinado de
mulheres. Trata-se particularmente de entender a especificidade da experiência feminina
no segmento de classe média urbana, tomando-se o processo de separação como elemento-
chave para a sua compreensão. Neste sentido, relativizam-se conceitos e abordagens
teóricas destas autoras que basicamente afirmam ser a identidade feminina socialmente
produzida, e busca-se a concretude das diferenças sociais e culturais que a constituem,
(Franchetto, Cavalcanti e Heilborn, 1980, p. 43). De acordo com Rubin (1975, p. 165), um
sistema social de sexo-gênero constitui-se de um conjunto de mecanismos pelos quais a
matéria-prima biológica no sexo e procriação humana é moldada por humanos,
intervenção social e satisfeita de um modo convencional. A proposta da autora delimita o
uso, dado aqui, à noção de ethos feminino, que preside as representações no espaço da
família, ligando-a, desta forma, ao modo como um grupo social experiência este sistema
de sexo-gênero.
Torna-se importante, neste caso, resgatar algumas das delimitações propostas por
esta autora que, segundo Thorne (l982, p, 9) considera a criação social dos dois sexos
dicotômicas do sexo biológico resultado de uma divisão sexual do trabalho assim como de
uma regulação social da sexualidade. Estas dimensões, portanto, envolvem a organização
do parentesco, onde os homens regulam o exercício dos direitos de sexualidade e de
reprodução das mulheres (Thorne, 1982). Esta organização é percebida, aqui, em sua
instância ideológica, ou seja, enquanto uma construção cultural. A reprodução, que
adquire importância na construção social do parentesco, apresenta-se como relevante para
este estudo, uma vez que existe uma tendência generalizada no sentido de definir-se o
feminismo segundo a natureza, através dos laços da maternidade, e/ou, laços dos vínculos
conjugais. Neste sentido, os papéis sexuais e os laços de parentesco na família reforçam-se
e delimitam-se.
A reprodução implica, acima de tudo, uma divisão sexual do trabalho na sociedade
e uma construção dos fundamentos morais dos sexos, constituindo-se, desta forma, o ethos
feminino e/ou masculino. Segundo E. Durham (1983, p. 16), o cuidado com as crianças e
sua socialização inicial são sempre da competência feminina, e os homens apenas
intervêm de forma auxiliar ou complementar, ou seja, há uma construção cultural da
divisão sexual do trabalho não só na família, mas na sociedade como um todo, que se
constitui a partir das diferenças biológicas. Trata-se aqui de analisar em que medida estas
diferenças, dentro de um sistema de representações, revelam-se como natureza ou
condição.
Para a análise do modelo ideológico estruturante do sistema de representações que
compõe a identidade social feminina, no grupo estudado, especialmente quanto à
maternidade, seguem-se alguns conceitos desenvolvidos teoricamente por J.P. Sartre
(1978) e M. Weber (1978), respectivamente, de natureza humana/condição humana e
imanência/transcendência. A abordagem destas noções auxilia na tentativa de construir as
fronteiras culturais delimitadoras dos fundamentos morais dos sexos. As ideias destes
autores também permitem equacionar a discussão da maternidade em seus pressupostos
filosóficos, e/ou, religiosos, abordando-se as noções culturais que regem a composição do
papel feminino. Segundo Abreu (1983, p. 81), a tradição cristã que impregna a cultura
ocidental, pensa a mulher como inferior ao homem e associada às tentações da carne (...).
Tal afirmação delimita aí, princípios filosóficos e religiosos para os fundamentos morais
dos papéis sexuais, os quais sofrem alterações face às modernas concepções de indivíduo.
Neste capítulo, discute-se as repercussões destas duas dimensões - natureza e condição -
face ao jogo de categorias culturais tradicional/moderno, na formulação do espaço social
da maternidade. As discussões apresentadas por estes autores encontram-se, de alguma
forma, inseridas nas proposições de Duarte (1983) em torno das oposições entre
pensamento moderno e visão de mundo tradicional, e do surgimento de uma nova lógica
totalizante, para o culto ao eu, onde este autor referência no espaço da modernidade as
oposições Razão/Religião e a ideologia e concepções individualistas/princípio e noções
hierarquizantes.
É justamente em Weber (1978) que se vai buscar o conceito de imanência, por
oposição ao de transcendência, para caracterizar a maternidade, onde não se estabelece a
segmentação entre a natureza da feminilidade e o sujeito que a vivencia, exatamente como
na ideia de natureza religiosa apresentada por este autor na sociedade oriental. A ideia de
imanência para a natureza do sentimento religioso em Weber significa a noção de
contemplação religiosa em oposição à ideia de transcendência, que envolve a ação no
campo da vida religiosa. Este autor percebe na ideia de transcendência a ideia da
religiosidade segmentada e projetada, pois reflete a passagem psicológica da posse de
Deus (Weber, 1978, p. 252). Assim, a religiosidade do indivíduo afirma-se na sua
transformação em instrumento de Deus.
A dimensão da imanência aufere um caráter encompassador para a religiosidade,
sendo totalizante, na medida em que, a posse de Deus é sempre possível e com o místico é
consumada, portanto, a forma de ação não tem significação (WEBER, 1978, p. 252-3).
Assim, a religiosidade expressa uma concepção de indivíduo que atua como recipiente de
Deus, na apreensão da essência religiosa da natureza. Sugere-se, deste modo, que as
representações da maternidade, segundo os princípios “místicos” da imanência da natureza
feminina, ajudam na compreensão da forma hierarquizante e encompassadora que
assumem os fundamentos morais do papel feminino na família, onde o seu desempenho
implica a posse da feminilidade, encarando-se o papel materno como o recipiente do
feminino. Deste contexto, cria- se a noção de maternidade imanente para aquelas que
encaram o desempenho da maternidade em função do princípio hierarquizante da natureza
feminina. Já o conceito de transcendência, em Weber, remete à noção de segmentação,
uma vez que o sujeito, na sua experiência religiosa, passa a concebê-la como algo a ser
construído fora de si, aproximando-se da ideia de projeto concebida por Sartre (1978, p.
21) para a condição humana, ou seja, é projetando-se e perdendo-se fora de si que ele faz
existir o homem (...).
Assim, dentro dos pressupostos filosóficos de Sartre (1978, p. 6), como parte do
pensamento moderno, observa-se a negação da ideia da essência da natureza humana, seja
ela religiosa ou não. Segundo ele, a condição humana, contrastando com a noção de
natureza humana, se revela no fato de que o homem, como ela, não é mais do que o que
ele (o homem) faz. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer, logo o
homem se revela como um projeto. Coerente com as formas modernas de pensar, este
autor, ao representar a existência humana, coloca o indivíduo diante de uma escolha, no
domínio da sua individualidade, atribuindo-se responsabilidades. É neste campo de
concepções que se concebe a noção de maternidade projetada, a qual, opondo-se ao
conceito de maternidade imanente, recoloca o jogo pensamento moderno/visão de mundo
tradicional na análise do espaço social da maternidade para o grupo analisado.
Também são apontadas outras noções modernas, como a noção de subjetivismo –
impossibilidade para o homem superar a subjetividade humana, o que, para Duarte
(1983), representa a construção interior, a de liberdade - os homens são livres e decidirão
livremente amanhã o que será do homem, aproximando-se do que Duarte (1983) considera
o Sujeito Político e a condição humana – conjunto de limites a priori que esboçam a sua
(do - homem) situação fundamental no universo - propondo a construção infinita do
homem dentro dos limites da universalidade humana, ou seja, o homem se realiza
realizando um tipo de humanidade (Sartre, 1978, p. 17). Confere-se às suas noções de
transcendência e condição humana um valor universalista, moderno, muito próximo da
afirmação de Dumont (Peirano, citando Dumont, 1984, p. 7) sobre a sociedade humana:
Nossa humanidade é como o jardim de Herder, onde cada planta, cada sociedade, traz a
sua própria beleza, porque cada uma exprime o universal à sua maneira.
Como Weber (1978) aponta alterações na forma de representações religiosas
ocidentais e orientais (ascetismo/misticismo), sugere-se a construção de um sistema de
representações para a compreensão do homem com dimensões holista e individualista.
Exatamente o mesmo processo é identificado em Sartre (1978), na sua diferenciação entre
condição humana (indivualismo/universalismo) e essência da natureza humana (holismo).
Ambos os autores, recolocados dentro da discussão firmada por Dumont (1970) quanto à
análise da ideologia ocidental moderna, e por Duarte (1983), na discussão da construção
da pessoa na modernidade, auxiliam a delimitação e análise teórica do sentido das
alterações que sofrem o sistema de representações acerca da maternidade e do espaço
social da reprodução na família, no grupo pesquisado: alterações que vão desde
maternidade imanente - maternidade projetada.
A ideia da maternidade imanente liga-se, portanto, à diferenciação que Weber
(1978) constrói entre o asceta e o místico, considerando-se a capacidade de “captar” a
religiosidade, (imanência). A noção de maternidade projetada aproxima-se do quadro
conceitual presente ao sistema de representações proposto por Sartre (1978), que
diferencia a natureza humana (essência) da condição humana. Ela pode, então, ser vista
como algo “projetado”, sendo exercida dentro de um “racionalismo prático”, que revela a
um só tempo a noção de transcendência - peculiar à noção de projeto - e a ideia de escolha
e de liberdade, propondo a construção ativa do papel feminino na maternidade (neste caso,
os cursos de psicoprofiláticos atuam dentro das normas de disciplinamento “metódico-
racional” para os papéis sexuais e laços de parentesco na família).
Logo, a questão dos papéis sexuais parte da noção de que, enquanto parte de um
modelo ideológico, eles representam uma das formas através das quais uma determinada
cultura expressa certas relações sociais, em função de um sistema de categorias culturais
(Woortamann, 1976). Sobrepondo-se aos papéis sexuais os laços de parentesco, observa-se
que ambos são o que a cultura específica define como sendo um ponto de vista que
implica a possibilidade de que possa até mesmo não ser (Woortamnn, 1976, p. 179).
Considera-se, então, que seus fundamentos ideológicos podem ser explicitados quando se
intenciona descobrir o “valor” cultural localizado dado a eles e o significado que lhe são
atribuídos. Para o estudo dos papéis sexuais, especificamente em sua ordenação ao nível
da instância familiar e nas alterações do seu desempenho ao longo da trajetória das
mulheres, do casamento à separação, recorre-se à conceituação proposta por Elizabeth
Bott (l970), onde a autora relaciona os papéis conjugais na família com a rede social que a
rodeia. Buscando dimensionar, portanto, a heterogeneidade dos interesses e motivos,
assim como caracterizar o que as mulheres separadas negociam na trajetória social no
interior da instância familiar, em função do ethos de classe e gênero, utilizam-se os
conceitos de rede social e papéis sexuais de Elizabeth Bott.
A partir da conceituação desta autora, e em função da experiência social do grupo
estudado, recorre-se, particularmente, aos conceitos de rede social de malha estreita e
malha frouxa e de papéis conjugais segregados e conjuntos. Em relação aos primeiros,
toma-se aqui a definição dada pela própria autora, ou seja: emprego o termo 'malha
estreita' para descrever uma rede social na qual existem muitas relações entre as
unidades componentes e emprego o termo 'malha frouxa' para descrever uma rede na
qual existem poucos relacionamentos deste tipo (Bott, 1976, p. 76). Portanto, de acordo
com Bott, existe, em oposição ao conceito de malha frouxa, a noção de rede social de
malha estreita, no sentido desta possuir, no seu interior, uma sobreposição de papéis
sociais (1976), onde uma mesma pessoa desempenha dois ou mais papéis. Na noção de
papéis conjugais segregados, Bott (1976, p. 73) estabelece uma graduação que possui
como extremos, aqueles fortemente segregados, no qual o marido e a esposa têm uma
proporção relativamente grande de atividades independentes e complementares (...), e os
conjuntos, onde a proporção de atividades complementares e independentes é
relativamente pequena, ao passo que a proporção de atividades conjuntas é relativamente
grande.
Para esta autora, existe uma relação entre a segregação do papel entre marido e
esposa e a rede social da família. Ou seja, o grau de segregação varia em proporção direta
à conexidade da rede social. No presente estudo, avalia-se dimensionar a relação entre a
referida conexidade e a própria trajetória social que a mulher descasada percorre dentro da
família de orientação, procriação e pós-separação, em função, basicamente, do projeto que
se constitui ao longo de uma experiência sóciohistórica. Supõe-se que, conforme a
trajetória social do grupo de status estudado, ocorre uma transformação na estrutura de
conexidade da rede social, afetando não só a organização dos papéis conjugais, mas
também os laços de parentesco, assim como o próprio modelo familiar utilizado pelas
interlocutoras dessa pesquisa e suas concepções de indivíduo, e assim, a própria
delimitação da categoria feminino.
É importante apresentar, além das relações percebidas por E. Bott, outras que se
referem à diversificação no ethos familiar das mulheres descasadas aqui ouvidas, tendo em
vista o projeto familiar que preside um processo de ascensão econômico-social do grupo
familiar, na afirmação ou confirmação de um status socioeconômico no nível das camadas
médias. Como é afirmado neste estudo, observa-se, na constituição do projeto familiar, a
discussão - no nível do grupo maior - de um ethos mais moderno e outro mais tradicional,
segundo as diferentes concepções do grupo estudado para as classificações
progressista/conservador e individualista/hierarquizante, o que tende a afetar a delimitação
dos papéis sexuais e a conexidade da rede social familiar, em suas mais diversas instâncias
em função da trajetória social do grupo como um todo.

2 - APONTAMENTOS METODOLÓGICOS

De modo geral, o relato dos trabalhos antropológicos inicia com comentários do


pesquisador em função da pesquisa de campo, através da sua atuação junto a um grupo
social observador participante, onde, muitas vezes, são abordadas as dificuldades a serem
superadas para que a pesquisa chegue a bom termo. Seguindo as ideias de Da Matta (1981,
p. 150), a realização da viagem ao mundo das representações das biografias das mulheres
parceiras da pesquisa, que aqui compõem o universo estudado, resulta na experiência
temporária, porém, bem familiar, desta pesquisadora com a diversidade humana que o
grupo de mulheres investigado, na sua essência e nos seus dilemas, problemas e
paradoxos representa, através da vivência de um processo de separação ao nível das
camadas médias urbanas. Acredita-se que é justamente quando o pesquisador realiza a
aproximação cada vez mais profunda com o universo do grupo social que é o seu objeto de
estudo, transformando o exótico em familiar, que ele próprio, lentamente, afasta-se da sua
realidade particular e, num processo de estranhamento e relativização, obtém não só a
compreensão daquele universo, mas também a passagem para as diversas dimensões que o
compõem (Da Matta, 1981).
No entanto, em particular, esta pesquisa aponta para o oposto, ou seja, a situação
de familiaridade entre pesquisadora e objeto acarretando principalmente a busca contínua
da objetividade e distanciamento durante o trabalho de pesquisa. Neste sentido, torna-se
pertinente que o antropólogo, no estudo da sua própria cultura, transforme o familiar em
exótico. Mais especificamente, o objetivo maior é atingir, não a neutralidade científica,
mas basicamente desenvolver um movimento de estranhamento que permita ao familiar
também revelar-se como conhecido (Velho, 1978). Parte-se do suposto da existência da
invisibilidade social, que permite, segundo Da Matta (1981, p. 151), não só ao
antropólogo, mas também ao noviço, serem retirados de sua sociedade e realizarem uma
viagem para os limites de seu mundo diário. Coloca-se como necessário esclarecer que
esta invisibilidade ocorre dentro de certos limites, o que tende a ser contextualizado no
trabalho de campo. A própria noção de distância, que pressupõe esta viagem conjunta
entre o produtor de conhecimento e aquele que é o objeto de estudo, é relativizada, uma
vez que a familiaridade não implica necessariamente conhecimento, ou seja, tornar o
exótico familiar não implica torná-lo conhecido. Neste sentido, o que não vemos e
encontramos pode ser exótico, mas até certo ponto, conhecido (Velho, 1978, p. 39).
A descrição do envolvimento da pesquisadora com o objeto de estudo e o seu
progressivo afastamento no sentido de uma objetividade relativa (Velho, 1978) é
estruturada neste capítulo, de acordo com dois tópicos, assim constituídos: l) viagem do
antropólogo ao seu universo pessoal; 2) viagem do antropólogo ao universo do “outro”. A
primeira parte dá conta da dimensão da subjetividade e interpretação que estão presentes
no trabalho de pesquisa, onde se caracteriza a análise da realidade do objeto enquanto
realidade filtrada por um determinado ponto de vista do observador (Velho, 1978, p. 42).
Neste ponto, associa-se o foco de análise não só às experiências acadêmica e profissional
da pesquisadora, mas também à familiaridade que esta possui com a temática em questão.
Em função disto, define-se aqui, o produtor de conhecimento como sujeito portador de
valores sócio-históricos (BOURDIEU, 1975), partilhando, portanto, de uma linguagem,
juntamente com o seu objeto social e historicamente estruturado.
A outra parte refere-se ao esforço da pesquisadora, no sentido de delimitar e
registrar o universo e valores associados ao grupo pesquisado, buscando confrontar
intelectualmente e mesmo emocionalmente, diferentes versões e interpretações existentes
a respeito de fatos e situações (Velho, 1978, p. 45). Novamente, orientando-se por
Bourdieu (1975, p. 35), este momento se refere á situação propriamente dita de
interiorização da objetividade.

2.1 - DA VIAGEM AO UNIVERSO DO MESMO


O interesse da pesquisadora pela problemática da condição feminina em nossa
cultura, particularmente na situação de separação de casais surge, inicialmente, não só da
observação e vivência dos conflitos familiares e da trajetória social de pessoas
pertencentes à sua rede social, mas, também, da discussão frequente, e sempre atual, que
estes temas suscitam na sociedade como um todo, assim como nos meios acadêmicos que
se dedicam ao tema mulher e família. Num segundo momento, coloca-se relevância na
discussão destes temas em vista da trajetória social da própria pesquisadora, do casamento
à separação. Na descrição do envolvimento com o tema subjacente desta pesquisa - a
construção social da identidade feminina - convém ressaltar a participação da
pesquisadora, ao longo de dois anos, num grupo de reflexão sobre a condição social
feminina, onde se busca o domínio dos recursos teóricos necessários à explicação e
entendimento dos elementos constitutivos da identidade feminina em nossa sociedade,
bem como, a discussão dos projetos possíveis de ruptura com um modelo cultural para o
desempenho do papel feminino. O grupo constitui-se unicamente de mulheres pertencentes
às camadas médias urbanas - solteiras ou casadas - residentes todas em Porto Alegre,
muitas delas pertencendo à rede social da pesquisadora.
A recuperação desta experiência pessoal da pesquisadora, em função da sua vida
acadêmica e profissional, torna-se relevante para se entender os aspectos primordiais que
este trabalho pretende tematizar. E na busca da delimitação dos códigos, através dos quais,
o elemento feminino, neste grupo social, constrói e negocia os limites culturais de sua
identidade de sexo-gênero, assim como na necessidade de se enriquecer uma escassa
literatura referente à condição feminina neste segmento social, e a sua problematização ao
nível da literatura feminista, que se demonstra a relevância deste estudo em suas
determinações de gênero e de classe. Ao se rever o período em que este grupo de estudos
se reúne, é possível resgatar, para este trabalho, importantes aspectos que constroem a
delimitação da condição feminina nestas camadas, que por sua vez, dirigem as indagações
no sentido do laço de parentesco e papéis sexuais, em função do papel de mãe e esposa na
formação do ethos feminino e sua consequente “naturalização” no espaço familiar. Por
exemplo, durante as reuniões de estudo, frequentemente se coloca em pauta os impasses e
conflitos relativos à condição social feminina que são vivenciados cotidianamente por
mulheres, seja na esfera familiar, seja na pública (profissional). Muitas referem aos
obstáculos à atuação profissional feminina, às dificuldades com a socialização dos filhos,
ao relacionamento com o sexo masculino, aos conflitos emocionais com a própria
definição de gênero, etc., e, de modo geral, as discussões giram em torno das possíveis
soluções para esses impasses.
Pode-se definir este grupo de mulheres como um grupo que busca, conjuntamente,
uma redefinição dos códigos sociais da sua identidade de sexo-gênero, rompendo, nesta
medida, com um ethos feminino oriundo de uma situação de classe e propondo-se a
construir um novo projeto de vida para o espaço de atuação feminina na sociedade. Na
realidade, se durante a existência do citado grupo de estudos há momentos de uma forte
identidade, este sentimento de pertencimento a um grupo se refere, grandemente, ao fato
dos seus membros se identificarem internamente enquanto mulheres que partilham de uma
situação estrutural no nível de valores e visão de mundo: são mulheres que de uma forma
ou de outra acreditam-se desviantes da identidade social feminina, no segmento social a
que pertencem, considerando-se filiadas a um novo conceito de feminino que contrapõe-se
à sua formação de origem. Estas questões permitem parte da construção teórica deste
estudo, em termos elas fronteiras reais e simbólicas para a construção social da identidade
de sexo-gênero nesta classe social.
Evidentemente, o grupo em questão, seguidamente recorre à literatura de cunho
feminista para o embasamento e constituição de um novo projeto de vida, com vistas a
superar os impasses sociais à redefinição da identidade social feminina. De acordo com o
projeto social ligado a este tipo de literatura, discute-se a importância da mulher vivenciar
um processo de libertação, obter o domínio do seu corpo através do controle da
reprodução e da libertação sexual, dedicar-se a sua vida profissional, enfocando-se neste
ponto, a experiência reveladora do indivíduo na esfera pública, redefinir a atuação
feminina na esfera familiar pela reordenação dos papéis sexuais e os laços de parentesco,
no desempenho dos papéis de mãe e esposa, etc. Quando, algum tempo após a dissolução
do grupo, surge o interesse e a premência na definição do contexto, em torno do qual, se
delimita o projeto de tese da pesquisadora, recorre-se de muitas formas, às impressões
causadas por esta experiência pessoal para demonstrar metodologicamente a relevância de
estudar-se a condição social de um grupo numa situação de impasse ou ruptura, onde os
atores sociais acham-se premidos na busca de soluções para seus conflitos existenciais, e,
neste sentido, manipulam os códigos culturais que delimitam sua identidade social.
No entanto, sintomaticamente, somente após algum tempo da dissolução do grupo
de estudos, e com a presente pesquisa chegando ao seu final, torna-se possível estabelecer
estas inter-relações, o que permite avaliar não só a importância desta delimitação
metodológica do presente trabalho, mas também a relevância teórica do tema em questão,
para a compreensão e esclarecimento da condição feminina no meio, tendo em vista sua
posição de classe. Nestes termos, coloca-se a importância da experiência cotidiana deste
grupo de mulheres e seus projetos, que buscam, dentro de suas possibilidades, ultrapassar
os limites e impasses da sua condição sexual associados a sua posição desse, ressaltando-
se, no seu contexto, a relevância da esfera familiar para a definição do universo feminino
em nossa cultura, onde constrói-se a noção de honra familiar em função da domesticação
da sexualidade, do “sentimento” de maternidade, da precedência do elemento masculino,
da relevância do código da aliança, da influência de uma ideologia individualista ao nível
do modelo familiar hierarquizado e dos papéis sexuais e laços de parentesco, etc.
Resgatando-se a vivência da pesquisadora no grupo de estudos e, associando a esta
a situação familiar das pessoas da sua rede social, é que se entende como relevante enfocar
aqui as representações associadas às vivências do elemento feminino no âmbito da família,
percebida como elemento ordenador e referencial básico da identidade social feminina
neste segmento social, através do seu código moral e ético. Por outro lado, a experiência
pessoal da pesquisadora, em função do seu processo particular de separação (bem como de
algumas pessoas da sua rede social), alerta-a para a importância estratégica deste momento
- enquanto situação de ruptura e negociação da identidade social - para focar a composição
do universo simbólico feminino e suas relações com a estruturação da esfera familiar na
construção da identidade. A partir dai, estabelece-se um processo no sentido de
interiorizar a objetividade, na medida em que a avaliação de todas as condições de
subjetividade está envolvida na delimitação não só do projeto de dissertação, mas também
da experiência do trabalho de campo, a qual se torna objetivada, teórica e
metodologicamente, â medida em que o estudo se desenrola em sua totalidade, onde se
apresenta, cada vez mais, a necessidade de se traduzir as experiências acima citadas em
função de um corpo teórico científico.
Buscando-se assim, um sentido mais amplo para estas experiências pessoais e
existenciais em termos de contribuição a uma ciência antropológica, observa-se a
necessidade de construir metodologicamente, algumas impressões familiares sobre a
condição social feminina nas camadas médias urbanas no sentido de torná-las conhecidas.
Deste modo, considera-se por um lado, o interesse cada vez mais acentuado nos estudos da
condição feminina no interior da instituição familiar, a sua relevância na tradição
antropológica e na literatura feminista e a necessidade de se pesquisar a condição feminina
em situação. Por outro lado, a importância de, através de uma abordagem mais sistemática
do contexto urbano em sua complexidade, onde atuam diferentes modelos e padrões
culturais, códigos ético-morais, visões de mundo em suas tendências de particularização e
universalização, perceber experiências suficientemente significativas para criar fronteiras
simbólicas (Velho, 1981, p. 16), o que é possível na situação de separação.
Metodologicamente, coloca-se a importância do estudo da identidade social de um
grupo em função de uma sociologia dos projetos, que aqui envolve não só a dimensão
sóciohistórica, presente nas biografias das mulheres aqui ouvidas, enquanto um conjunto
de ideias e condutas localizáveis no tempo e no espaço, mas também uma dimensão que se
refere às emoções, matéria-prima constitutiva dos projetos, e que está referida, desta
forma, a uma sociologia das emoções (Velho, 1981). Portanto, em função disto, a
realização do estudo das crises e impasses na reconstrução da identidade social e de
gênero de um grupo, a partir da situação de separação, caracteriza-se pela relevância dada
a biografia dos seus membros, aos sentimentos e emoções que a referida situação de
ruptura provoca nos indivíduos. Recoloca-se, então, uma preocupação deste estudo, que
está presente na estruturação não só da própria situação de entrevista, mas no
relacionamento desenvolvido entre a pesquisadora e as suas interlocutoras, e que Velho
aponta como em torno do que é despertada a emoção (Velho, 1981, p. 29). Nesta medida,
torna-se pertinente, em muitas situações iniciais da pesquisa, recorrer à familiaridade da
pesquisadora com o tema e o universo estudado para que se constituam os limites e as
especificidades do problema em questão.
Num segundo momento, coloca-se a necessidade de um corte epistemológico no
nível dos códigos sociais e emocionais da pesquisadora com o universo investigado. Esta
situação também se encontra presente na situação de análise dos testemunhos e biografias
ouvidos. Afirma-se, assim, como prioritário, em diversos momentos, separar as situações
vividas na biografia das interlocutoras e as emoções que tais vivências evocam. Disto,
depende a possibilidade de se estudar as experiências socioculturais biográficas das 50
interlocutoras, percebendo-as enquanto interações e vivências interpretadas. Ressalta-se a
importância de se perceber na expressão dos códigos emocionais a relação entre o projeto
dos atores sociais e seu campo de possiblidades, referido à trajetória do seu campo social,
pois, desejos „pecaminosos‟, „emoções inconvenientes‟, „sentimentos impróprios‟ são
limitados e balizados por sanções e normas vigentes e dominantes (Velho, 1981, p. 28).
O resultado da viagem ao mundo pessoal da pesquisadora, suas relações de
familiaridade com o universo pesquisado e as reflexões a cerca do corpo teórico-cientifico,
afirmam como preocupação central deste trabalho a discussão do processo de separação e
suas implicações na composição do ethos feminino nas camadas médias urbanas. Enfoca-
se esta problemática do ponto de vista da discussão das inter-relações entre espaço
doméstico e público, da composição do ethos feminino neste segmento social e das noções
de indivíduo e honra que aí se constituem. Impõe-se, desta forma, como necessária, a
análise dos projetos constituídos pelas mulheres desacasadas na busca de soluções para a
situação de separação e seus impasses existenciais, de acordo com os limites culturais da
sua identidade de gênero. Considera-se que as noções e categorias que as mulheres
descasadas utilizam em seus depoimentos refletem, de modos diversos, os códigos
culturais que estão associados à posição de classe deste grupo na estrutura social, e são,
assim, uma aplicação restrita dos códigos do seu grupo social e sexual, numa cultura
determinada - a sociedade gaúcha. A dimensão subjetiva e emocional dos depoimentos
torna-se fundamental para o presente estudo, pois permitem atingir os conjuntos
organizados de representações (Raymond, citado por Maitre, 1980).
Desta forma, associando-se a instância social das mulheres descasadas a instâncias
não conscientes dos seus testemunhos, metodologicamente, pretende-se apreender a forma
como a mulher, enquanto ser social formula suas representações de sexo-gênero,
considerando-se, no caso, a trajetória coletiva do grupo social e de seu conjunto de
condições objetivas de existência (Rodrigues, 1980, p. 23). Expressando as preocupações
acima expostas, fundamenta-se este trabalho de dissertação a partir da reconstrução
biográfica de 08 mulheres pertencentes às camadas médias de Porto Alegre, com idade
variável de 28 a 42 anos, em sua maioria, com filhos na idade de 2 a 7 anos, atuantes na
esfera pública, com um intervalo de 2 a 7 anos de separação e sem outros relacionamentos
afetivos mais estáveis. Seus depoimentos caracterizam-se como livres e autobiográficos,
possibilitando a recuperação da instância não consciente existente nos relatos biográficos e
revelando, na sua delimitação, a presença dos determinismos sociais que atuam na
constituição do sujeito social.

2.2 - DA VIAGEM AO UNIVERSO DA ALTERIDADE

O grupo de mulheres descasadas pesquisado se delimita a partir da importância da


situação de separação para a condição feminina nas camadas médias urbanas e seus
reflexos sobre a identidade social feminina, neste segmento social. A formação de um
grupo de status a ser estudado ocorre em função da rede social da pesquisadora, tendo em
vista a experiência do grupo de reflexão, buscando, no entanto, afastar a possibilidade de
trabalhar com pessoas muito próximas dela mesma, procurando, neste sentido, uma maior
isenção emocional da biografia a ser estudada. O fato de as mulheres pertencerem à rede
social da pesquisadora implica que as mesmas, em muitas situações de pesquisa, jogam
dentro do seu depoimento o conhecimento que a pesquisadora possui do seu papel nesta
rede de relações. A tentativa de distanciar as representações das interlocutoras da pesquisa
e o papel social que desempenham propõe uma revisão constante no interior da análise dos
discursos, sendo, muitas vezes, rebatido para o interior da entrevista como forma de
instigá-las a trabalharem com a imagem social que possuem naquela rede. Isto permite a
elas esclarecerem alguns mecanismos inconscientes, assim como ajuda a pesquisadora a
apreender como trabalham os códigos sociais associados à sua identidade.
Apesar das dificuldades oriundas desta situação, no momento das entrevistas e dos
contatos entre pesquisadora e suas interlocutoras, ao se canalizar o jogo dos papéis sociais
para a situação de debate aberto, obtém-se uma aproximação. Por um lado, ocorre a
situação de elas utilizarem, na avaliação da sua trajetória social, códigos que não estão
correspondendo a uma determinada posição na rede social, sendo que, muitas vezes, os
seus depoimentos são contraditórios, face à imagem que passam em seu circulo social. Por
outro lado, elas também possuem algumas informações sobre a pesquisadora através desta
mesma rede social. Isto acarreta implicações na forma como estas, muitas vezes, colocam-
se na situação de entrevista. A percepção da imagem que as interlocutoras fazem da
pesquisadora também é um detalhe a ser estudado, pois revela dados importantes a
respeito dos valores e noções que circulam nesta rede social. Buscar a apreensão destas
regras do jogo, bem como saber utilizá-las no sentido de, se possível, criar um melhor
envolvimento entre pesquisadora e suas interlocutoras é um aspecto relevante para o
conhecimento do universo das mesmas. Coloca-se, então, como prioritário, que as
parcerias da pesquisa considerem-se elas próprias em situação de separação, portanto, num
momento de liminaridade em sua condição social, no que tange ao código ético e moral do
seu grupo.
Torna-se importante aqui, a caracterização deste momento de separação como algo
não definido, considerando-se o que as próprias mulheres descasadas colocam, ou seja,
estão em fase de separação porque sua situação civil, afetiva e social, define-se por suas
características instáveis e transitórias - nem solteiras, nem casadas - e onde as relações
com o sexo masculino ocorrem sem qualquer regularidade mais definida e pré-fixada, ou
sem compromisso expresso entre ambos. Assim, o comportamento feminino se encontra
referido à situação de relativa marginalidade, considerando-se as situações sociais de
solteiro e casado. Esta caracterização, por ser mais acadêmica, não obedece
necessariamente à forma como a separação é representada por este grupo de mulheres,
uma vez que não é constante nos seus depoimentos a discussão dos limites imprecisos de
sua situação social liminar, estando as mulheres mais preocupadas na fixação das
fronteiras culturais da sua identidade social. Inicialmente, é feito um levantamento de
mulheres pertencentes à rede social da pesquisadora que estejam interessadas em
participar da pesquisa e que preencham os requisitos necessários. Após algum tempo de
espera, as pessoas são localizadas, os encontros iniciais são feitos pela pesquisadora,
através de contatos telefônicos em sua maioria, ou pessoais.
O primeiro contato tem por objetivo esclarecer as parcerias da pesquisa sobre os
objetivos da pesquisa e os temas relevantes para o presente estudo. Há um rápido acerto de
detalhes - onde se ressalta a importância delas escolherem livremente as condições em que
a entrevista deve ocorrer, sem prejuízo da sua rotina familiar e dos seus compromissos.
Busca-se, também, saber da disponibilidade de tempo e horário para as entrevistas, sendo
acertado o local para a sua realização. De modo geral, os encontros acontecem nas suas
residências, à tardinha, quando esta volta do serviço e quando os filhos já estão
devidamente “acomodados”. Neste sentido, as entrevistas respeitam os horários e
compromissos das interlocutoras em função das suas atividades, não só profissionais, mas
também familiares. Em algumas situações, as crianças estão presentes na entrevista, e,
após a curiosidade estar satisfeita, abandonam o local e vão brincar. Em outras situações,
há outros familiares ou amigos, que se retiram após algum tempo de entrevista, ou
permanecem isolados, uma vez que não são chamados a contribuir. Mas, de modo geral os
encontros acontecem isoladamente, pesquisadora e as parceiras da pesquisa, a pedido da
maioria delas. A gravação das entrevistas nem sempre acontece, pois muitas se inibem
diante do gravador. Neste caso, não se força a situação e a entrevista acontece sem
gravação, o que exige da pesquisadora maior trabalho, já que após o seu término, há a
necessidade de registrar os principais momentos, retidos na memória.
Frequentemente, a primeira entrevista não ocorre imediatamente após o primeiro
contato. Constantemente, acontece uma série de situações que ressalta a necessidade de
transferir a data marcada. Associa-se a isto a inibição da pesquisadora em firmar os
primeiros contatos com as mulheres, devido a angustia de iniciar os trabalhos de campo.
Por outro lado, coloca-se a importância, na maioria dos casos, das interlocutoras
procurarem redirecionar os encontros e situações de entrevista no sentido de elas próprias
tomarem a iniciativa do primeiro contato, suavizando a “invasão” da pesquisadora em sua
rotina familiar. Há momentos em que a própria pesquisadora busca reestabelecer contatos
desmarcados, o que, em muitas situações, não resolve o impasse da realização da primeira
entrevista. A frustração destas solicitações para com as mulheres implica a constatação de
que é importante para as últimas neutralizarem a “invasão” da pesquisadora na sua
intimidade. Torna-se, assim, significativo que elas próprias assumam o compromisso do
primeiro encontro.
Além disto, observa-se a necessidade da delimitação, em muitos casos, de zonas de
poder na interação pesquisadora-interlocutoras. Ou seja, as situações de entrevista, muitas
vezes, só ocorrem após caracterizar-se a posição de dependência da pesquisadora face à
participação da parceira da pesquisa, para a viabilidade da própria investigação. Isto
demonstra aquilo que seguidamente se comenta sobre a entrevista em família, no sentido
de haver invasão numa área de intimidade, o que pode ser contornado na própria
maleabilidade em que se estrutura a interação entre pesquisadora-interlocutoras. Após
ultrapassar estes impasses iniciais, considerados como processos adaptativos de ambas as
partes, coloca-se a proposta para os encontros que se seguem. Não é elaborado um roteiro
fixo, apenas regionaliza-se a situação da entrevista de acordo com as preocupações deste
estudo, as áreas que as parceiras da pesquisa s devem considerar em seus depoimentos e
testemunhos. A maior preocupação é permitir, na medida do possível, um discurso livre e
autobiográfico a cerca da sua trajetória social até a separação.
Neste sentido, divide-se a entrevista em três momentos, que são sugeridos às
mulheres parceiras desse estudo, ou seja, primeiramente, aborda-se a separação, depois, o
casamento, e por último, recupera-se a biografia familiar. Há a proposta de que, de acordo
com suas necessidades, possam alterar esta ordenação. Ocorrem alterações substantivas a
partir da estruturação interna dos seus depoimentos, as quais se buscam respeitar na
ordenação deste trabalho de dissertação. Estas questões são desenvolvidas mais adiante.
Agora, torna-se relevante esclarecer por que a entrevista não diretiva é um importante
método utilizado neste estudo, e a sua significação quando associada à história de vida.
A entrevista não diretiva possibilita a estruturação da pesquisa em função de um
discurso livre e autobiográfico, na medida em que limita a participação e intervenção do
pesquisador nos depoimentos dos entrevistados, levando-o a se manter o máximo possível
como ouvinte. Assim, este tipo de entrevista pressupõe a ação centrada no discurso livre
das mulheres ouvidas ao longo do trabalho de campo, embora se compreenda os limites
desta técnica, uma vez que é o pesquisador que explora uma situação vivencial das
interlocutoras, numa iniciativa de solicitação (Kande, 1980). A opção por história de vida,
na presente pesquisa, refere-se à sua importância para o entendimento da vivência do
processo de reorganização da identidade social das interlocutoras, dado através da
presença de um processo de separação na sua trajetória social.
Como já está afirmado nesta pesquisa, o processo de separação é significativo
enquanto situação de impasse social que se reflete no nível das suas instâncias subjetivas.
Resgata-se, desse modo, na história de vida de um grupo de mulheres que está
experienciando semelhante situação, a análise da forma como os atores sociais compõem a
dinâmica da explicação, tendo por base códigos e valores construídos em sua trajetória
social (Berger, 1978). A história de vida permite, ainda, o estudo dos determinismos
sociais que estão presentes na reconstrução da identidade social do referido grupo, ou seja,
a história de vida se revela como certa especificação da história coletiva de seu grupo ou
de sua classe (Bourdieu, 1978). Nesta pesquisa, a história de vida é o suporte principal que
revela a rede de relações sociais, ou seja, o depoimento é decomposto, reagrupado e
interpretado, e pode ainda, diluir-se na trama social que integra o conjunto de atores
(Camargo e Rocha Lima, 1983, p. 12). A utilidade de um discurso livre e autobiográfico
em pesquisa social, por seu turno, pressupõe que as biografias tenham por base um sistema
de significados que estão referidos, em última instância, a uma estrutura social. De acordo
com este ponto de vista, a separação, como momento onde o ator social negocia sua
identidade e manipula símbolos e valores culturais do seu grupo social, implica
metamorfoses nos sistemas de significados a partir de uma mudança qualitativa nas
relações sociais dos sujeitos ai envolvidos.
Portanto, unindo-se a entrevista não diretiva à proposta de apreensão das biografias
das mulheres ouvidas durante o trabalho de campo, e no seu interior a emergência de um
processo de separação, percebe-se, nos depoimentos, um processo de exteriorização das
condições objetivas interiorizadas em sua trajetória social, referente à sua dupla
determinação - gênero e classe - bem como os momentos de ruptura na construção social
da identidade e de suas instâncias subjetivas. Agora, retornando a descrição dos momentos
de descoberta do universo do grupo pesquisado e a sua determinação na estrutura deste
trabalho, é possível observar como a disposição dos depoimentos, na situação de
entrevista, interfere na forma como os dados se dispõem neste estudo. Basicamente,
colocam-se como resultado três tipos de interferência na estruturação e disposição das
informações.
A primeira refere-se ao fato de que, ao longo dos depoimentos, as interlocutoras da
pesquisa reconstroem, de modo recorrente, o seu processo pessoal no interior da família de
origem, enquanto referência a um sistema de significados referentes à condição feminina,
um código ético-moral, um estilo de vida, um projeto familiar, etc. A reconstrução ocorre
no sentido de, por um lado, justificar o projeto familiar construído para os membros mais
jovens, e por outro, explicar, face à situação anterior do casamento, as alterações em sua
condição social, ambos correspondendo a momentos distintos na sua trajetória social.
Assim, os dados apresentados no discurso autobiográfico relacionam a situação de
separação a um projeto familiar onde as mulheres descasadas estão inseridas e a um estilo
a que se acham sujeitas e onde são socializadas. A segunda interferência é um
aprofundamento do primeiro aspecto assinalado, sendo aquela que origina a criação, para
fins analíticos, de dois grupos de status de mulheres descasadas, em função da trajetória
apontada pelo seu grupo familiar e das diferenciações que se refletem ao nível de ethos e
visão de mundo. De acordo com Velho (1981, p. 20), a experiência de mobilidade social,
a ascensão ou descenso introduz variáveis significativas na experiência existencial dos
atores dentro de um segmento social, assim como o contato com outros grupos e círculos
pode afetar vigorosamente a „visão de mundo‟ e estilo de vida de indivíduos situados em
uma classe socioeconômica particular, estabelecendo diferenças internas. Na
preocupação de tornar conhecido o familiar, a construção teórica dos limites internos, no
grupo estudado, torna-se relevante. Este aspecto se refere ao tipo de rede social e laços de
parentesco que cada grupo distinto se acha comprometido no decorrer de sua trajetória
social. A terceira e última interferência tem em vista a própria forma como as mulheres
descasadas se movem, frente a pesquisadora, em seus depoimentos no processo de
reconstituição da identidade social. Novamente, o aspecto subjetivo e inconsciente,
presente no discurso autobiográfico, indica uma razão para a sua trajetória social, o que
este estudo busca resgatar e discutir.
Observa-se este sentido quando se depreende dos depoimentos autobiográficos de
cada interlocutora a criação de uma linha imaginária que conduz sua história de vida e
origina-se na experiência familiar, onde a mesma é socializada. Isto é colocado como fato
contingente, pois atravessa a experiência familiar no casamento, buscando os motivos da
sua opção por um determinado modelo familiar e remetendo esta experiência à sua
condição na família de origem, à dependência e limitação daquele modelo e projeto
familiar, para, finalmente, culminar no processo de separação, onde a estrutura familiar,
nos moldes tradicionais, é desfeita, acarretando um retorno às críticas à família de origem
e seus reflexos na própria construção individual das identidades sociais de mulheres
separadas e na ampliação destas observações à instância social da família, definida em sua
função conservadora e a condição feminina no seu interior.
É importante realçar, que no roteiro inicialmente esboçado, também há uma
preocupação em abordar a discussão das oposições entre as esferas familiar e pública para
o desempenho do papel feminino, através do jogo de relações maternidade x profissão.
Esta proposta, antes de ser concebida conforme o roteiro inicial, numa fase única das
entrevistas, resulta na sua dispersão sistemática ao longo de 03 encontros com cada
interlocutora. Portanto, do roteiro proposto, quando do início dos trabalhos de campo,
resultam depoimentos que de modo insistente avaliam a trajetória das mulheres descasadas
no espaço familiar, de modo que, qualitativamente, os dados obtidos nos depoimentos
indicam a relevância da esfera da organização do espaço familiar para o entendimento da
situação de separação, o que é feito tendo por base uma perspectiva histórica da trajetória
biográfica familiar. Ao serem solicitadas a indagarem-se dos motivos e razões da
separação, assim como da sua sobrevivência nesta situação, as interlocutoras, quase que de
imediato, apresentam, como fonte das respostas, a ordem familiar e a condição feminina
no seu interior. Isto demonstra a impossibilidade de perceber a situação de separação
longe do seu código ético-moral, seu projeto familiar, etc.
Finalizando, cabe ainda ressaltar a importância dos depoimentos obtidos junto as
mulheres descasadas. Todas, de uma forma ou de outra, levam até o fim a proposta de
contribuir com este trabalho, sendo que, muitas vezes, isto implica suscitar antigas
lembranças e reviver emoções adormecidas. Esta busca de honestidade pessoal das
interlocutoras só pode ser reforçada e registrada como ponto importante deste trabalho,
pois não raras são as vezes que, no final da série de entrevistas, as próprias parceiras da
pesquisa constatam a importância desta participação no processo de redefinição de
identidade social por que estão passando.
De qualquer forma, isto demonstra que não é apenas relevante ao pesquisador o
estudo de situações de rupturas e impasses sociais. A participação numa pesquisa deste
tipo, muitas vezes, se revela como fundamental para o próprio grupo investigado, o que
tende a enriquecer o trabalho de campo. Certamente, a situação de envolvimento entre a
pesquisadora e as parceiras da pesquisa ocorre nas mais diferentes situações, onde em
muitas ocasiões, a distância entre seus sentimentos e apreensões tornam-se tênues, o que
se deve a sobreposição de papéis daquele que investiga e a relação entre ambas as partes
envolvidas, o que aqui se procura explicitar, esclarecendo a forma como e conduzindo o
trabalho de pesquisa.
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA NOÇÃO DE GRUPO

Trabalha-se aqui, com a noção de grupo referida à conceituação de Max Weber


(1973) para a definição de grupo de status, onde o autor define situação de status como
um poder advindo da honra social. Neste sentido, a relação entre situação de status e
honra social implica considerar-se todo o componente típico do destino dos homens
determinado por uma estimativa social específica, positiva ou negativa, de „honra‟
(Weber, 1973, p. 71). Como o autor afirma, a honra do status não precisa necessariamente
estar ligada a uma situação de classe. Aqui, portanto, ela se encontra referida à situação de
separação vivida pelo agrupamento de mulheres pesquisado. Logo, o que transforma este
agrupamento em um grupo de status é a composição da sua honra social em função da
alteração estrutural do status de casada para separada, acusando-se, neste sentido, a
presença de uma mesma situação de igualdade de estima social, considerando-se também,
sua posição de classe.
Quanto à noção de honra, a situação de status deste grupo de mulheres separada s
refere-se à característica compartilhada por uma pluralidade de indivíduos (Weber, 1973,
p. 71). O grupo pesquisado se aproxima, mais especificamente, daquele descrito por
Weber como um grupo de status negativamente privilegiado, ou seja, aquele cujo
sentimento de dignidade é a precipitação nos indivíduos da honra social e das exigências
convencionais que um grupo de „status‟ mais privilegiado cria para a conduta dos seus
membros (Weber, 1973, p. 75). Para a interpretação do que neste trabalho significa a
conceituação de um grupo de status negativamente privilegiado, torna-se relevante
ampliar as noções de status e honra formuladas por Weber, através da leitura de Leach e
Pitt-Rivers, respectivamente. Segundo Leach, a noção de status implica a ideia de
fronteiras, na medida em que o seu uso permite distinguir uma classe de coisas ou ações
de uma outra (Leach, 1978, n. 44). Estas observações estão presentes na obra de Weber,
quando o autor utiliza na análise do grupo de status, a noção de marcas de distinções, que
cumprem a função de estabelecer fronteiras internas num segmento social. O autor salienta
ainda o caráter ambíguo da natureza destas fronteiras, que socialmente, são fontes de
conflito e ansiedade por parte dos indivíduos.
Utilizando como modelo, o que este autor afirma sobre a mudança do status social
feminino de solteira para casada, na passagem da situação de casada para separada (meio
solteira), existe uma troca de categorias associadas a um cruzamento de fronteiras sociais
(Leach, 1978).Sem dúvida, trata-se de dimensionar em que medida o status de mulher
separada, em nossa cultura, pode revelar-se como um limite que separa duas zonas de
espaço-tempo social que são 'normais', 'definidas' (...) (Leach, 1978, p. 45), entendidas
aqui, na oposição inicial solteira-casada, e que, ao nível das distinções sociais, constrói
uma honra de status peculiar à situação de separação, tornando a pessoa que a experiencia
uma pessoa normal que existe num tempo anormal. Segundo indica Leach, após o
momento de separação, segue-se um intervalo de ausência de marcação de tempo social
que se auferido no relógio, pode durar poucos momentos ou se estender durante meses
(1978, p. 96).
Neste sentido, passa-se a outro plano da caracterização das interlocutoras desta
pesquisa como um grupo de status. Ou seja, afirma a sua peculiaridade em outra
dimensão da noção de honra social, que possui fundamento numa estima social, não só
através da aquisição de poder na estrutura social, mas também da instância moral da
conduta social do ator, desenvolvida aqui através das ideias de Pitt-Rivers (1979, 1968) e
Peristiany (1968). Para avaliar-se então, a noção de honra na delimitação de um grupo de
status de mulheres em situação de separação, é importante considerar as modalidades de
construção cultural da autoridade e dependência entre os sexos (Aragão, 1983, p. 132).
Neste sentido, percebe-se a necessidade de abordar a construção da honra feminina através
da posição que a personagem feminina ocupa no código social da aliança e da sexualidade
peculiar a uma sociedade. Retoma-se aqui, importantes concepções a respeito da sociedade
brasileira enquanto parte do complexo cultural mediterrâneo (Pitt-Rivers, 1979), e da
especificidade que assumiu seus padrões culturais na sociedade gaúcha.
Trabalhos como o de Abreu (1982, 1983) e Aragão (1983) permitem uma
inferência com relação à composição da honra social feminina no Brasil, em particular na
sociedade riograndense, e conduzindo a importantes caracterizações de status do grupo
pesquisado. Por um lado, estes autores avaliam a condição feminina dentro do código
social da aliança matrimonial, onde se encontram presentes a sacralização da figura
materna e o controle da sexualidade feminina, considerados como fonte de tensão social
no nível dos papéis sexuais. Por outro lado, demonstram que as forças sociais dos valores
e costumes referem o feminino, em última instância, a sua posição na esfera doméstica. O
“machismo”, a noção de honra familiar e a domesticação da sexualidade feminina se ligam
à situação de “precedência e privilégio” na sociedade brasileira. A categoria de esposa-
mãe (Aragão, 1983; Abreu, 1983) torna-se, assim, relevante, pois permite o entendimento
da instituição familiar no Brasil, onde a condição feminina surge em seu aspecto politico,
como referencial desta ordem social e seu código ético-moral. Na dimensão esposa do
papel feminino, portanto, verifica-se o controle da sexualidade feminina e a manutenção
da honra familiar através da noção de fidelidade, associando esta à conduta sexual
feminina e sua consequente reputação social. A outra dimensão, mãe, permite o corte
radical entre a reprodução e o prazer sexual, atuando desta forma na conduta sexual
feminina.
De acordo com estas colocações, a situação de separação vem afetar de modo
estrutural a composição da honra social do grupo de mulheres pesquisado, associando a
estas mulheres um status social peculiar dentro da estrutura social. Logo, retornando à
questão central de caracterizar-se o grupo de mulheres descasadas enquanto grupo de
status, é importante aprofundar, através das ideias de Pitt-Rivers (l979), o sentido moral e
ético da noção de honra na sociedade brasileira, vista como parte daquele complexo
cultural. Este autor, assim como Weber, afirma a importância das relações entre a noção
de honra e a distribuição do poder estrutura social. Observe-se como é possível aproximar
suas locações daquelas feitas por esse autor para a noção de honra social: los sistemas
conceptuales relativos al honor proporcionan, cuando tomados cada uno de ellos em su
totalidad y en sus diferentes marcos, un mecanismo que distribue el poder y determina
quién ocupará los papeles de mando y dictará la imagem ideal que la gente tiene de su
sociedade (Pitt-Rivers, 1979, p. 43).
Para o autor, portanto, a honra sentida por um indivíduo é uma honra socialmente
designada: a sociedade constrói os critérios que orientam o sentimento de honra que o
indivíduo vem a sentir. A honra, assim a como virtude, no caso feminina, representa o
sentimento de vergonha, que Pitt-Rivers define como una preocupación por la reputación,
pero es a un tiempo um sentimiento y también el reconocimento público dicho sentimiento
(1979, p. 44). A honra feminina acha-se submetida à pressão social da opinião pública,
sendo que a reputação feminina origina-se da forma como se expressa sua conduta social e
sexual. O sentimento de vergonha afirma-se diante da ameaça da negação da honra
feminina colocada em função do comedimento e da pureza sexual. Também de acordo
com Pitt-Rivers, a honra, além de ser um atributo individual, está referida a uma honra
coletiva que se associa à posição que os indivíduos ocupam na hierarquia social.
Percebe-se, portanto, que este autor não só relaciona a noção de honra a uma
hierarquia social, mas também a uma política sexual. Na delimitação das instâncias,
através das quais, a noção de honra se realiza, o autor afirma que qualidades eticamente
neutras tornam-se os ingredientes necessários das qualidades vinculadas com um sexo e
com outro (Pitt-Rivers, 1979). É neste sentido que se cria uma diferenciação entre honra
masculina e feminina uma vez que a conduta que estabelece a reputação depende da
condição da pessoa em questão. Novamente, além de relacionar a honra à posição social,
refere-se à reputação e conduta sexual dos atores sociais. Assim, dimensiona-se a honra
masculina a partir da prerrogativa da autoridade e a honra feminina em função da pureza
ou controle da sexualidade. Afirma, portanto, a honra-prioridade que é algo que pode
ganhar-se com a ação, a iniciativa masculina, diferentemente da honra-vergonha que não
pode ganhar-se, somente se pode manter-se evitando a conduta que pode destrui-la,
iniciativa feminina (Pit-Rivers, 1979, p. 71). Então, para este tipo de sociedade, a noção
de honra social tem sua eficácia referida não só às relações dentro da hierarquia de uma
sociedade mas às manifestações de uma hierarquia no nível dos papéis sexuais, isto é, de
uma política sexual.
Discutir estas questões em relação à hierarquia entre os sexos, a situação de
separação para a condição feminina, neste contexto, recoloca a discussão de grupo de
status, referindo-o a esta honra coletiva que as mulheres em processo de separação se
encontram manipulando. Para este grupo, afirma-se em última instância: a ideia de que as
mulheres não submetidas a autoridade masculina são um perigo (Pitt-Rivers, 1979, p.
76), acarretando implicações na sua reputação social. De acordo com isto, cada parceria da
pesquisa, tendo em vista sua posição e situação de classe, compartilha de um mesmo
status em sua honra social, o que lhe confere a classificação de grupo de status. Esta
identificação permite a avaliação e a comparação destas mulheres, seu estilo de vida e
visão de mundo com relação a outras mulheres de seu segmento social que se achem
vivenciando um status social diferente daquelas. A situação de separação acarreta, assim,
um redimensionamento na sua honra social, tanto em função da honra que aspiram, quanto
em função da honra que lhes é reconhecida pelo corpo social.
Neste sentido, este estudo propõe-se a uma abordagem do processo de reconstrução
da identidade social e sexual destas mulheres consideradas desta forma como um grupo,
pois as redefinições nos papéis sociais e sexuais e as transações de honra são os meios
através dos quais os indivíduos encontram seu papel dentro da organização social (Pitt-
Rivers, 1979, p. 81). No entanto, a descoberta das mediações possíveis de um padrão
cultural para as relações entre os sexos e a práxis social das mulheres vivendo o processo
de separação torna-se relevante, uma vez que este estudo se localiza no contexto urbano da
sociedade gaúcha, parte de uma sociedade complexa como a brasileira. Encontra-se ai
presente, não apenas uma ideologia hierárquica e relacional, mas também uma ideologia
individualista e moderna (DA MATTA, 1979), onde se opõem as dimensões
tradicional/moderno através de diferentes concepções e valores ético-morais. As
diferenciações entre ethos e visão de mundo não obedecem só a uma posição e situação de
classe, mas também a uma condição sexual, considerando-se o sistema sociocultural que
ordena e significa a trajetória social dos indivíduos. Segundo indica o próprio Pitt-Rivers
(1979, p. 72), o conceito de honra varia de época para época e sua importância é menor
na sociedade urbana e moderna, tornando-se, portanto, necessário que a abordagem
teórico-metodológica deste estudo apreenda estas diferenciações e metamorfoses,
apontando não apenas sua direção, mas também seu sentido.
CAPÍTULO 2

RECONSTRUÇÃO BIOGRAFICA I: DA TRADIÇÃO A MODERNIDADE

E possível transformar da noite para o dia as relações de poder


existentes em uma sociedade, no entanto grande parte de símbolos
que as legitimam e sustentam sobreviverão e apenas se
transformarão vagarosamente.

A. Cohen. O homem bidimensional.


INTRODUÇÃO

O grupo a ser descrito aqui (grupo A), refere-se àquele formado por mulheres que
partilham de valores e noções mais tradicionais, sendo oriundo do interior do Estado e
que, acompanhando o projeto de ascensão econômico-social da família de origem,
desloca-se para zonas mais modernas desta região, fixando residência na Capital, Porto
Alegre, após o casamento. Coloca-se como relevante estes deslocamentos, tendo em vista
as alterações de estilo de vida e visão de mundo daí decorrentes, que conduzem,
especificamente, este grupo a uma aproximação progressiva com um estilo de vida urbano,
sofrendo influências marcantes de um ethos de modernidade.
As implicações destas alterações que marcam a história de vida do grupo de status
aqui descritos são abordadas em função do projeto familiar de ascensão econômico-social
das famílias de orientação e da constituição de um projeto individual no seu interior,
dentro do qual, acham-se articuladas as representações e noções tradicional/moderno dos
papéis sexuais e laços de parentesco. São estas questões que presidem a constituição da
família de procriação e a procriação e a própria separação.
De acordo com este enfoque, constitui-se o projeto de casamento como recurso
feminino para a obtenção de uma alteração de status social, em contraste com a norma
inicial da família de orientação de investir na atuação profissional da geração mais nova,
indistintamente do sexo. A denominação de ethos da produtividade para conceituar o
estilo de vida deste grupo, está referida, inicialmente, ao ethos da família de origem e logo
após o ethos do grupo familiar de procriação, em especial, a atuação profissional do
marido que se encontram atuando na gerencia, e/ou, administração de setores econômicos
da indústria, e/ou, comércio do Estado, e dentro do qual este grupo de mulheres busca se
situar.
Assim sendo, a descrição que se segue tem por objetivo priorizar a reconstrução
biográfica das parceiras dessa pesquisa, em função de uma trajetória social que se orienta
para a formulação de um projeto individual representado como um afastamento da
influência de um ethos mais tradicional, em função de um compromisso com a
modernidade. As possíveis rupturas e os limites culturais das metamorfoses no estilo de
vida e na visão de mundo deste grupo são revelados nesta parte do trabalho, atendo-se ao
universo familiar das mulheres, da sua socialização ao processo de separação. Refere-se,
aqui, as representações que as mulheres descasadas fazem das influências tradicionais,
e/ou, modernas na sua biografia e na forma como estas delimitam o seu estilo de vida em
termos de auto representação.

CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO

Andréa - 34 anos, separada há 2, tem uma filha de 6 anos. É filha de comerciantes


de Rio Grande. Veio para Porto Alegre com 18 anos para continuar os estudos. Casa-se
com um engenheiro, é professora de matemática no 2º Grau.
Antônia - 35 anos, separada há 3, tem um filho de 5 anos. É filha de proprietários
rurais, que migram para Passo Fundo quando ela tinha 12 anos. Veio para Porto Alegre
para continuar os estudos com 17 anos. Casa-se aos 19 com um executivo de empresas.
Trabalha numa boutique (de sua propriedade) junto com uma amiga.
Alice - 38 anos, separada há 3, tem um filho de 7 anos. É filha de imigrantes
italianos, mora no interior de Bento Gonçalves, migrando para Porto Alegre após o
casamento, devido a sua atividade profissional. Trabalha com turismo, num órgão
governamental. Casa-se com 25 anos com um gerente de indústria.
Ângela - 42 anos, filha de imigrantes alemães, separada há 7, tem duas filhas (17 e
19 anos). Mora com os pais no interior de Triunfo, migrando para Porto Alegre, a fim de
profissionalizar-se, casa-se aos 18 anos, com um comerciante. É professora de química no
2º Grau.

1 - FAMÌLIA DE ORIENTAÇÃO

1.1 - PROJETO FAMILIAR

A) RELEVÂNCIA

Em termos da necessidade de incorporação de novos valores por estas famílias e,


tendo em vista sua adaptação ao meio social urbano, torna-se relevante uma revisão da
estrutura existente no período anterior a migração, quanto a sua reordenação, com o
objetivo de realização do projeto familiar. Assim, os elementos jovens da família, em fase
de escolarização, passam a ser influenciados por um ethos da produtividade1, atentos para
a importância de um desempenho individual – a partir da escolarização – com finalidade
profissional e de uma projeção pessoal dentro da família na busca de prestigio e status
social.
Neste sentido, o projeto de ascensão social deste grupo de mulheres enfatiza o
sucesso individual, objetivando a incorporação dos elementos jovens ao mercado de
trabalho. Evidentemente, como se vê adiante, a incorporação desse ethos da produtividade
é matizado. Não só do tipo de adaptação ao meio moderno, que está contida na trajetória
social do grupo familiar de orientação, mas também da filiação deste grupo a um projeto
de modernização. Isto ocorre em função do desempenho dos papéis sexuais, em função do
ethos feminino do grupo familiar onde é o casamento que aparece predominantemente
associado à realização daquele projeto familiar.
No interior do grupo familiar, alguns antigos vínculos e papéis sexuais são refeitos,
de modo a possibilitar a realização do seu projeto, o que implica a redefinição da posição
de poder das figuras paterna e materna, que pouco a pouco se tornam diluídas frente à
função que a geração mais nova incorpora – a realização de um projeto de ascensão
econômico-social – enquanto que na zona rural, a trajetória familiar esta definida em suas
atividades conjuntas. Neste momento, e de acordo com o ethos familiar das mulheres cujas
biografias são aqui retratadas, a escolarização torna-se fundamental, pois traduz um dos
instrumentos básicos (junto com o casamento) de realização, como uma forma de inserção
num mercado de trabalho grandemente diversificado e especificado e especializado, e na
possibilidade de conquista de uma situação de prestigio social.

B) MOTIVAÇAO

1
O termo mencionado tem por objetivo avaliar as características do ethos incorporado pelos membros mais
jovens das famílias das interlocutoras, o qual se delimita no projeto familiar após a migração deste grupo
para zonas urbanizadas do Estado. Em especial, Velho (1981), em “Reflexões Sobre a Noção de Projeto”, In
“Individualismo e Cultura”, se utiliza deste conceito para descrever a ênfase na valorização do sucesso
individual, onde a preocupação com o futuro se une a busca de uma incorporação “vigorosa” ao mercado de
trabalho.
Segundo suas ideias, o ethos da produtividade, de certa forma, se acha associado à experiência de camadas
médias baixas, onde surge um processo de individualização em que a biografia de uma pessoa é destacada da
sua família e lugar de origem (Velho, 1981, p. 108). A experiência do grupo familiar das parceiras da
pesquisa indica este sentido para a construção do projeto familiar, sendo, no entanto, relativizado, para o
elemento feminino, com a situação de casamento.
O projeto construído pela família de orientação deste grupo tem, portanto, como
principal motivação a busca de ascensão social, o deslocamento do grupo familiar para o
meio urbano e a contingencia de redefinição de um estilo de vida familiar, mais de acordo
o novo status social. A ambivalência com que este grupo relata este período em suas vidas
permite verificar os níveis de conflitos advindos da migração e as consequentes
metamorfoses na visão de mundo do grupo familiar. Nesta situação, em particular,
relativiza-se a utilização ampla de um ethos da produtividade para o grupo familiar de
origem. As noções de pureza, simplicidade ou ingenuidade, associadas ao antigo espaço
social, são frequentemente contrapostas a noção do urbano como algo promíscuo, ambíguo
e corrupto. Isto, certamente, se origina na forma como as interlocutoras da pesquisa estão
se filiando, ou não, nestes momentos, a um projeto de vida com base na felicidade a um
código familiar e seus laços de parentesco, peculiar a trajetória deste grupo em sua fase
mais tradicional. Aqui, o processo de projeção e independência pessoal é descrito como
trajetória que rompe, em certa medida, com a antiga unidade familiar, com a dominância
do compromisso moral entre parentes e com seu código de aliança e reciprocidade.
O conceito de ideologia holista (VELHO, citando DUMONT, 1981), uma vez que
se refere a ideia de uma ordem hierarquizada onde o indivíduo é definido a partir do todo,
permite perceber as vinculações que os laços de reciprocidade e fidelidade propõem para o
espaço familiar, neste grupo de mulheres. Neste sentido, elas se sentem, em parte,
comprometidas com o modelo hierárquico do seu grupo familiar, o que restringe a
realização do projeto pessoal em termos de individualização dos seus membros, colocando
limites à atuação de um ethos da produtividade. O casamento, de acordo com estes
princípios, significa, de certa forma, uma mediação neste processo. Ou seja, a filiação a
um código familiar, em detrimento da profissionalização feminina, preservando uma
ordem hierárquica na família, e ao mesmo tempo, permitindo a ascensão econômico-social
das mesmas, bem como sua aproximação com um estilo de vida mais moderno e
urbanizado.
Como projeto individual, e de acordo com o projeto familiar, o casamento faz parte
do ethos feminino deste grupo como uma das formas de obtenção de status e prestigio
social. A realização de um “bom casamento” representa, neste sentido, um reforço, mais
do que um rompimento, do projeto familiar e de seus compromissos de reciprocidade,
atuando durante a vida conjugal das interlocutoras. Em termos de trajetória familiar no
meio social urbano, o ethos feminino, na fase final da adolescência, oscila entre a ideia de
afirmação individual, a de casal, através da constituição de uma família de procriação, a de
incorporação a rede social mais ampla de parentes, dada através de um modelo de família
extensa e seu código de reciprocidade, ou ainda, de busca de profissionalização, que
reflete o sucesso pessoal como independência do código da aliança, mediatizado pela
importância dada ao casamento como forma de ascensão a outro estilo de vida.
A realização do projeto individual, com o casamento, coloca de modo ambíguo a
importância deste ato para as mulheres em processo de separação frente à família de
origem. Ou representa um afastamento relativo dos laços familiares, tendo em vista, uma
residência geograficamente mais afastada da família de orientação, unindo a esta situação,
uma ideia difusa de libertação e individualidade, ou representa a necessidade de acentuar
os laços de sociabilidade da família onde são socializadas, propondo, deste modo, um
modelo de casal integrado ao grupo maior de parentes. Em última instância, tratam-se das
suas famílias de orientação, associadas à ideia do passado tradicional, e das famílias dos
maridos, encaradas do ponto de vista da modernidade, derivando dai, a concepção de
individualização como algo desvinculado da noção de família e, acima de tudo,
representado em função do jogo tradicional/moderno e da busca de prestigio e status
social.
De acordo com estas considerações, a trajetória social do grupo estudado
assemelha-se, de certa forma, a dos white colar que G. Velho (1981, p. 118) analisa em
seu estudo sobre camadas médias urbanas no Rio de Janeiro, onde o autor, descrevendo a
trajetória familiar de moradores do bairro de Copacabana, coloca tratar-se de um
movimento continuo de ida e volta entre individualizar-se (...) e integrar-se a categoria
mais ampla de parentesco, geralmente pais, irmãos, primos-irmãos e tios. As
representações das interlocutoras da pesquisa, associadas ao projeto família é o relato das
suas experiências, expressam em parte esse movimento contínuo em suas noções de
família.

1.2 - ESTILO DE VIDA

Como se observa na caracterização desse grupo de mulheres descasadas, elas


passam em sua trajetória social por um processo de ascensão que se inicia na trajetória da
sua família de orientação. Dentro desse esquema, é bem comum na trajetória dessas
famílias, a migração de seus membros mais novos para o meio urbano a fim de
continuarem os estudos em busca de profissionalização, acarretando modificações nas
funções e no tamanho do grupo familiar. A migração significa realização de um projeto
familiar de ascensão social na busca de um show de vida mais moderno. Neste sentido, a
profissionalização dos filhos, principalmente a dos homens, é incentivada como forma de
realização deste projeto, significando fonte de prestígio no grupo familiar. Os
deslocamentos, nestas famílias, são sempre acompanhados de um código moral de
compromisso daquele(s) que migra(m), com os parentes que ficam, no sentido de auxiliá-
los e ampará-los futuramente num processo de ascensão econômica social.
Velho (1981), ao investigar a importância de morar em Copacabana, em um
segmento das camadas médias e suas relações com um projeto de ascensão social no meio
urbano, aponta para a existência de um código moral ao nível do grupo familiar, que tende
afirmar, no indivíduo que se afasta deste núcleo através de um processo de ascensão, a
ideia de reciprocidade com base na situação de parentesco, onde é reconhecida a
importância dos parentes. Para este estudo, observa-se que a noção de reciprocidade
nestas famílias permite, por sua vez, a própria realização do projeto familiar. Tais
princípios de reciprocidade atuam no sentido de manutenção dos laços de parentesco e,
consequentemente, a estrutura familiar de origem.
Trata se, portanto, de um código familiar baseado no princípio de hierarquia, ou
seja, uma ordem moral em que o prestígio está associado a certas noções de
reciprocidade onde o parentesco exerce um papel fundamental (Velho, 1981, p. 53). Deste
modo, os irmãos (ãs) mais velhos (as), que migram para Porto Alegre, cumprem a função
de auxiliar na realização da sua profissionalização, num compromisso expresso com o
projeto familiar de ascensão social. A maioria delas tem pais que possuem apenas a
alfabetização básica: sabem escrever. O grupo familiar se sustenta a partir da atividade
profissional do pai que desempenha o papel de chefe da família, de provedor.
Os motivos que levam o grupo familiar à migração referem-se às dificuldades
encontradas nas suas atividades profissionais ou na possibilidade de prosperar no ramo de
negócio em que se encontram. De modo geral, a migração está associada a uma especial
atração que a vida urbana desempenha para estas famílias: a busca de uma situação mais
estável, maior mobilidade social e maiores chances de ascensão social. No entanto, a
migração para o um centro urbanizado representa mudanças com ativos no estilo de vida
familiar. As noções de mobilidade social e estabilidade econômica vão sendo redefinidas a
partir da citação do grupo familiar em função da colocação do pai no mercado de trabalho
ou da sua adaptação à vida urbana.
O caso do pai de Antônia é peculiar e, de certa forma, representativo: vende as
terras que possui e desloca-se com a família para a cidade, onde já mora quando da
migração dos seus pais, migração esta, frustrada em seus objetivos. Ali, dedica-se às
atividades de fotógrafo. A situação econômica vai tornando-se difícil, e este passa a beber.
Devido às crises financeiras da família, os irmãos mais velhos passam a trabalhar para
ajudar no orçamento doméstico, e pouco a pouco, a figura materna vai se sobressaindo nas
decisões familiares. As famílias de Alice e Ângela passam por uma trajetória um pouco
diferente, uma vez que seus pais têm algum contato com os centros modernos através das
suas atividades econômicas. Deste modo, o projeto familiar de ascensão social e de
afirmação de um estilo de vida é realizado dentro de condições mais estáveis.
Para essas interlocutoras, a infância representa um período de vida familiar mais
tranquilo que os subsequentes, quando o processo migratório se inicia. A rede social,
naquela época, é construída em termos de parentesco e de vizinhança, sobrepondo-se um
ao outro, através das relações de compadrio. No período de vida no interior, o meio a
partir do qual a rede social da família constitui-se são as festas paroquiais e os rituais que
envolvem basicamente os parentes e amigos íntimos. De acordo com Bott, pode-se
classificar a rede social nessa época de vida da família como de malha estreita.

1.3- REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO

Este grupo redefine o estilo de vida, a partir, basicamente, de um processo


migratório do seu grupo familiar, na busca de ascensão social. Primeiramente, migração
realiza-se no sentido da referência familiar dos pais, ou seja, eles migram para um meio
mais moderno, onde já vivem outros parentes seus. Desta forma, mesmo havendo uma
alteração do tipo de serviço social, a migração, num primeiro momento, reforça alguns
laços de parentesco.
Durante a infância, numa situação mais tradicional, registra-se o predomínio da
família extensa, de acordo com a constante referência que as mulheres fazem dos seus
avós, tios e primos na descrição da rotina da vida familiar. Na adolescência, após a
migração, apresenta-se uma diversificação relativa na rede social. Os programas sociais
passam a ocorrer através de laços de amizade, ainda que estejam presentes os vínculos de
parentesco. Mesmo participando de bailes, passeios e cinemas com amigos, elas devem ir
acompanhadas de um homem de sua rede de parentesco, geralmente irmão ou primo. No
caso de namoro, ele acontece no âmbito familiar, em dias determinados da semana. A
vizinhança, neste momento, é uma atuante, pois se torna fonte de controle social de
comportamento moral dos namorados. No entanto, apesar da sua maior participação em
atividades diversificadas, elas continuam fortemente filiadas à moral familiar e ao seu
código ético. Todas aceitam as regras básicas desta moral familiar na sua conduta social,
não questionando os padrões familiares, sendo que Andréia e Ângela se descrevem como
adolescentes bem comportadas. De acordo com o ethos feminino do grupo familiar, a
virgindade é mantida como um valor a ser preservado, e o casamento, neste ponto,
significa a culminância de uma relação amorosa do futuro casal. As famílias são todas
católicas praticantes, e Ângela, durante o processo de migração na busca da sua
profissionalização, mora algum tempo num internato de freiras, em Bento Gonçalves.
Verifica-se, nestes grupos familiares, a presença de um código de honra com base
no controle da sexualidade feminina, com o pressuposto básico da aliança matrimonial;
isto significa que, a biografia feminina polariza-se em torno do casamento, este é o centro
organizador da percepção biográfica feminina (Abreu, 1982, p. 105). O código da aliança
torna-se importante para as suas famílias, pois realça as relações de reciprocidade entre
famílias, através da união de seus membros. Neste sentido, o grupo familiar procura
englobar os membros que dele não fazem parte em seu código ético e moral,
principalmente aqueles que pertencem ao círculo social do elemento feminino. Todas as
mulheres deste grupo de status casaram-se no civil e no religioso, envolvendo os rituais
comemorativos na família e culminando com a lua-de-mel dos recém-casados.
A descrição que Bott (1976, p. 112) oferece ao processo de individuação da família
elementar no meio urbano, permite relativizar a análise das alterações ocorridas na família
de orientação, após seu deslocamento para este meio social. Para esta autora, através da
individuação, a família torna-se nitidamente separada, diferenciada como um distinto, e,
em certa medida, autônomo, grupo social2. Neste caso, mesmo estabelecendo-se num
meio social urbano, as famílias das interlocutoras da pesquisa preservam de diversas
formas, os laços de parentesco, face às necessidades econômico-sociais, advindas com a
recente migração, relativizando-se o processo de individuação enquanto família alimentar
e não permanecendo, portanto, comprometidas com aquele código.

1.4- PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO

Os testemunhos das mulheres sobre a vida com seus pais indicam uma estruturação
hierárquica e fortemente segregada na divisão dos papéis sexuais em suas famílias de

2
Conforme Bott (1976, p. 112), este termo descreve mais corretamente a situação da família urbana do que o
termo isolado, que é mais frequentemente utilizado.
orientação. Na relação pai-mãe, é apontado o papel de autoridade do pai, contraposto ao
papel afetivo da mãe. Muito embora, estes papéis, no desempenho familiar, sofram
alterações com a migração, o casal procura reproduzir um sistema de representações que
se aproxima daquele modelo. Para três das mulheres, a definição do papel feminino, na
relação de esposa como agente emocional do casal, significa a “submissão” desta figura às
normas e regras colocadas pela personagem paterna, vista como agente emocional do
casal, significa a “submissão” desta figura às normas e regras colocadas pela personagem
paterna, vista como o agente normatizador do casal.
Neste sentido, elas descrevem a figura materna de acordo com categorias mais
severas que as utilizadas na descrição do pai (“reservado”, “desconhecido”, “seco”),
classificando-a de “submissa”, “dependente”, “servil”. Especificamente, quanto às
atividades familiares e sua organização, pode-se assinalar tarefas altamente diferenciadas
entre os pais. De acordo com Bott (1976, p. 72)., os papéis conjugais classificam-se como
fortemente segregados3, quando as atividades de ambos são diferenciadas, sem ligações
umas com as outras até onde for possível. Tomando-se esta classificação, ao marido (pai),
cabem as tarefas básicas referentes ao sustento da casa (com exceção da família de
Antônia), já a esposa (mãe), cabe as atividades de socialização dos filhos, cuidados com a
casa, controle do orçamento doméstico, etc. As tarefas tidas como femininas dificilmente
são cumpridas pelos homens, a não serem os churrascos familiares de domingo, que na
região, caracterizam-se por ser um hábito culinário eminentemente masculino.

2- FAMÍLIA DE PROCRIAÇÃO

A descrição da trajetória social dessas interlocutoras que as conduz ao casamento,


através da constituição das suas famílias de proteção, está determinada por um processo de
revisão bibliográfica4 que elas fazem do seu passado, redefinindo o seu ethos e a sua visão
de mundo a partir, primeiramente, da afirmação de um processo de ascensão social através
do casamento, e, depois, da reordenação deste processo após a separação.
Uma vez que os depoimentos apresentam características peculiares, impõe-se a
necessidade de realçar, na sua decisão, as implicações que o processo de separação
acarreta na forma como estas mulheres descrevem o casamento, com vistas a legitimar as

3
Sobre este assunto, observar a parte introdutória deste Capítulo.
4
A respeito do conceito de revisão biográfica, ver Berger (1976) “Excurso: Alternação e Biografia” in
Perspectivas Sociológicas.
alterações que conduzem à situação de descasamento. De acordo com Berger (1976, p.
69), a experiência de alternação pode explicar como os depoimentos das mulheres
descasadas, aqui no caso, fazem parte de um processo de revisão do seu passado (trajetória
da sua família de orientação e do seu casamento), de maneira tal que cada uma das suas
fases sirva como explicação para o fracasso final (...). Portanto, as informações obtidas
tendem a revelar um movimento nas representações de si por parte das mulheres no
sentido de um passado pré-fabricado que justifique, ou explique, a presente situação de
separação.

2.1 - REVISÃO BIOGRÁFICA

As interlocutores deste grupo casam, aproximadamente, numa faixa etária entre os


17 e 19 anos, no início da fase de definição profissional e da migração para Porto Alegre.
Três delas se casam com o seu primeiro namorado e ainda virgens. Somente Antônia
tivera outros namorados e se casa sem ser virgem. Para três delas, o noivado ocorre em
Porto Alegre, quando moram com parentes ou amigas. Os noivos são mais velhos do que
elas no mínimo seis anos, já possuindo alguma estabilidade econômica e profissional.
O caso de Ângela é bem típico deste grupo: case-se com 17 anos com um rapaz 9
anos mais velho do que ela, tendo sido incentivada ao casamento por sua família, em
detrimento de um projeto de profissionalização. Ângela é a última dos filhos a vir para
Porto Alegre para prosseguir seus estudos. De acordo com o seu relato, o namorado
aparenta ser de família “de bem” (a ideia de berço para família de orientação é muito
importante), e concretamente, possui estabilidade profissional. Nos momentos que
antecedem sua decisão de casamento, os familiares pressionam nesta decisão, procurando
ressaltar as qualidades do noivo. Ela declara que nessa época tem intenções de continuar a
busca de uma profissão, pois apresenta facilidade nos estudos. Segundo seu testemunho, as
pressões familiares chegam ao ponto de “sufocá-la”, resolvendo, então, abandonar esse
projeto e casar-se. Lembra-se de chorar muito no dia do casamento, especificamente logo
que coloca seu vestido de noiva. A noção de “destino” está presente no depoimento sobre
este período de sua trajetória de vida.
Ângela define assim seu projeto de casamento: “Quando casei chorei muito.
Achava que não era tudo que eu queria, mas que deveria cumprir meu papel, não achava
que poderia ser diferente”. Novamente, observa-se uma interpretação, conforme sua
condição sexual e de classe e a partir da trajetória familiar, do seu projeto de ascensão e
buscas de prestígio e status social. As implicações sociais de ruptura com estes valores
demarcam um limite no desempenho do ethos feminino do grupo familiar. O relato das
outras mulheres também afirma o espaço do conhecimento como instrumento de obtenção
do status social, envolvendo a aceitação do papel feminino nos laços de parentesco,
através do código da aliança é dos compromissos de reciprocidade que se estabelecem
entre os grupos sociais.
Logo, a revisão biográfica da trajetória da família de orientação, frente ao projeto
de vida, no momento que antecede a situação de casamento, implica para essas mulheres a
partilha do ethos feminino que significa, de um lado, uma experiência individualizadora, e
de outro, a busca de uma solução individual do papel de esposa e mãe5. Tanto o primeiro
quanto o segundo, orientam-se na busca de um estilo de vida diverso daquele vivido pela
família de orientação, acentuando-se a afirmação de um ethos de modernidade. No
entanto, é importante registrar que ambos se fundam em instâncias sociais distintas: esfera
pública e esfera familiar, respectivamente. Estas diferenças propõem distintas visões de
mundo, uma, atuando particularmente com a noção de indivíduo “segmentado”, referido à
complexa fragmentação da esfera pública de papéis e a outra, a de indivíduo
encompassado pelo sistema hierárquico da família.
Para a família de orientação, o distanciamento delas e a constituição de um modelo
mais isolado de família conjugal, através do casamento, é razoavelmente assimilado.
Justifica-se, em primeiro lugar, tendo em vista o projeto familiar de ascensão social,
representando este afastamento um “progresso”, pois assume, junto com os novos
encargos de esposa, um novo estilo de vida, percebido como mais moderno e atual. Em
segundo lugar, porque, concretamente, não ocorre um afastamento absoluto da sua família
de orientação devido à persistência dos vínculos de reciprocidade dos laços de parentesco
de origem. Neste caso, a procura restrita de um desempenho profissional pela mulher
como forma de ascensão social é vista como uma atitude desviante do ethos feminino,
implicando, de certa forma, um rompimento maior com o código da aliança e o papel
feminino no seu interior.

5
Na discussão da noção de Individuo, Individualismo e Projeto, Velho (1981, p. 25) observa duas
alternativas básicas presentes nas sociedades complexas: as experiências individualizadoras, onde o sujeito é
obrigado a se mover e manipular instituições, dimensões e „mundos‟ diferentes, e possivelmente,
contraditórios, e as alternativas de desindividualização, que se apresentam frente à angústia da opção e do
desmapeamento. Para o ethos feminino, a profissionalização pode ser percebida como dimensão de um
mundo diferente, mais diversificado, complexo e fragmentado, que se apresenta às interlocutoras na
migração do grupo familiar para a cidade. Neste sentido, o “mergulho” no mundo dos estereótipos culturais
– “a mãe de família” – significa, para este grupo, delimitar as fronteiras simbólicas do feminino em seu
universo cultural de origem.
O processo de alternação aqui descrito resulta, portanto, na opção pelo casamento
como forma de realizar o projeto familiar. Desta forma, fica claro neste grupo de mulheres
que a realização do projeto familiar, assim como a proposta de redefini-lo num novo estilo
de vida, conforme coloca Velho (1981, p. 25) não se dá fora de normas e padrões por
mais que a liberdade individual possa ser valorizada. De acordo com Maria Inácia
D‟Avila Neto (1980, p. 38), no Brasil, a orientação familiar é ainda eminentemente
voltada para a preparação da mulher para o casamento e se permite com muito mais
tolerância à solteira trabalhar do que a casada. Esta observação é bem adequada para
descrever o que ocorre neste período de sua historia de vida.
Neste grupo há uma exceção, Alice, cujo aspecto profissional assume trajetória
desviante. Competindo, em sua família de orientação, com o irmão mais Velho, a respeito
da profissionalização, esta incorpora uma noção singular da sua atividade profissional:
jamais a abandona, ou mesmo deixa de aperfeiçoá-la após o casamento. No entanto, é
interessante registrar dois aspectos onde fica contextualizada a forma peculiar de
manipular ao nível de profissionalização, o ethos feminino do seu grupo familiar.
Primeiro, a profissionalização na área de turismo surge a partir da sua participação num
curso regional de Miss Rio Grande do Sul, onde é escolhida Miss Bento Gonçalves. A
partir dai, ela diz ter “tirado vantagem” destes acontecimentos para conseguir sua ascensão
profissional e social. E segundo, após o casamento, ganhando mais que o marido, é sempre
Alice quem sustenta a família de orientação. Nesse momento de sua vida, ela considera
que esta manipulando códigos culturais do ethos feminino, no sentido de compor uma
ideologia individualizante onde a mulher aparece como sujeito singular, ético e moral. Por
outro, mesmo nestes momentos da sua vida não há um rompimento drástico com o ethos
da sua família de orientação, pois busca, no casamento, a fonte de legitimação desta
situação desviante. Observe-se como Alice descreve seu casamento: “O meu casamento
serviu como bengala para mim. Não me imaginava saindo de bento sem ser casada; ele foi
uma bengala em que me apoiei.” Evitando o processo de acusação em seu meio social,
Alice, diferentemente das anteriores, consegue manipular as fronteiras simbólicas de seu
universo cultural (Velho, 1981).

2.2 PROJETO FAMILIAR

a) RELEVÂNCIA
Na busca das razões do casamento, as mulheres acham-se manipulando códigos
sociais que envolvem, basicamente, noções de independência e modernidade no espaço
familiar, os papéis femininos definidos a partir de uma concepção do feminino como
sujeito e individualizado, o casamento como um ritual importante por seu caráter sagrado,
a ideia do lar como espaço natural feminino em detrimento da atuação profissional, a
maternidade como um papel importante, só possível de ser desempenhado dentro de uma
estrutura familiar com a figura do pai e da mãe presentes no seu cotidiano.
Em termos de relevância dos acontecimentos passados, percebe-se, na trajetória
durante o casamento, a necessidade de um afastamento progressivo da vida profissional
por parte das três interlocutoras (com exceção de Alice), e sua maior dedicação à família
(marido e filhos), justificada pelos valores apreendidos na sua família de orientação. No
entanto, desenvolvem as relações de parentesco de acordo com um modelo de família
conjugal, cujo resultado se traduz no afastamento relativo do grupo de origem. Três dessas
mulheres fixam residência na cidade onde o marido trabalha (Porto Alegre), e constituem
sua rede social prioritariamente em função das atividades profissionais daquele. De acordo
com os critérios de relevância do grupo familiar dessas mulheres e seu ethos feminino, a
realização do projeto de vida através do casamento tende a preservar uma estrutura
doméstica para a autuação feminina buscando atualizá-la em função de um ethos de
modernidade. Em relação aos valores ligados à família extensa, mantém-se, de certa
forma, o código da aliança para com o grupo familiar e os laços de reciprocidade. Em
relação a uma ideologia de modernização, torna-se relevante a constituição de uma família
conjugal mais independente dos laços de parentesco, através do predomínio de um código
de amizade (Velho 1983). Quanto ao ethos feminino, é importante experienciar o
casamento como forma de realização de um código moral e sexual, intimamente associado
a um projeto de modernidade ao nível da instância familiar.

b) MOTIVAÇÃO

As razões que dão origem ao casamento baseiam-se, geralmente, nas condições em


que se encontram as mulheres no momento do descasamento e que precedem a elaboração
do seu projeto de vida. A ideia principal, nos relatos, é de que o ato de casar implica “ter
minha casa”, “ter meu canto, meu marido e meus filhos”. Sobre esta noção de família
como motivação ao casamento, temos o depoimento de Andréa: “Esperava encontra
alguém com quem me sentisse segura, que gostasse de mim. queria uma vida tranquila,
segura, com alguém, com filhos”. Ou seja, o momento do casamento representa, já de
modo claro, a necessidade de uma solução individual no estereótipo da imagem da esposa-
mãe e a noção (não muito sofisticada, levando-se em conta o grupo B) de uma família de
procriação com base no modelo de família conjugal percebido como símbolo de
modernidade, pois a ocorrência do afastamento do grupo de parentes representa a
incorporação de um estilo de vida mais moderno.
Por outro lado, é importante registrar que quando optam pelo casamento, as
interlocutoras aqui ouvidas estão iniciando a busca profissional e a maioria morando com
parentes (irmãos-ãs). Assim, pode-se pensar no casamento como uma forma de obter sua
privacidade, seu espaço próprio, afastando-se do estilo de vida do seu grupo familiar e
investindo num outro meio social (Porto Alegre) - o do marido - o que, para o projeto
familiar (de origem) já significa a aquisição de maior prestígio e status social.
Neste sentido, a noção de que a mulher é um indivíduo que não consegue viver
sozinha, que precisa de um marido, de alguém para protegê-la, é uma argumentação
importante nos depoimentos de todas elas. O casamento representa a possibilidade de
obter a necessária complementaridade da sua identidade sexual e seus condicionamentos
femininos, fundada numa ideia de fraqueza, fragilidade e pureza moral. Antônia,
assinalando as metamorfoses na sua visão de mundo após a separação, comenta as
representações do feminino que a levam ao casamento: “No início da separação me
apavorei. Eu achava que esse negócio da mulher ser sozinha não poderia ser! Agora eu
vejo que é possível eu ser sozinha e estar bem. Não tive mais medo!” As motivações que
estão associadas ao casamento aparecem de modo mais claro nos depoimentos que se
relacionam ao processo de separação, onde se percebe um esforço no sentido de tornar
coerente sua trajetória do casamento à separação, e, assim, da reflexão do passado,
resultam os motivos do casamento. De acordo com Velho (1981, p. 87) em função de
determinadas experiências existenciais e sociológicas que os atores (...) têm o background
do porque das suas ações . A separação e a necessidade de reconstrução social da sua
identidade, levam, muitas vezes, as mulheres descasadas desse grupo de status a esta
situação peculiar.

2.3 ESTILO DE VIDA

Após o casamento, todas as mulheres pertencentes a este grupo fixam residência na


cidade de Porto Alegre. Ao final de certo tempo, três delas conseguem, junto com seus
maridos, adquirir residência própria morando em bairros residenciais típicos de camadas
médias de Porto Alegre. Uma marca de seus estilos de vida, após o casamento, são os
jantares de negócios em que participam com os maridos e nos quais suas presenças são
fundamentais. De modo geral, o lazer familiar consiste em algumas visitas aos parentes do
marido, em jantares que ocorrem com frequência, onde as transações profissionais dos
maridos acontecem, e em poucas atividades culturais durante o mês (cinema,
teatro).Basicamente, o desempenho do “feminino”, após o casamento, centra-se na atuação
doméstica, nas tarefas com a casa, comida e compras, num afastamento dos laços de
parentesco mais geográfico do que afetivo. A correspondência com os familiares é
mantida com regularidade juntamente com contatos telefônicos, e alguns parentes
residentes em Porto Alegre ainda constituem sua rede social. Afora algumas raras amigas
ou parentes, não possuem muita intimidade com os familiares do seu marido, ficando estes
contatos restritos aos fins de semana e a rituais familiares onde os encontros são
formalizados.
As dificuldades e crises conjugais são pouco discutidas em nível da rede social, e,
em geral, não ultrapassam as fronteiras do casal. Com frequência, as dificuldades de
relacionamento do casal não são solucionadas na dinâmica da sua interação, gerando
verdadeiros impasses no cotidiano familiar, que por sua vez, conduzem ao desgaste dos
papéis sexuais e laços de parentesco. Em relação ao ethos feminino, a busca de adequação
ao papel de esposa torna-se uma importante meta a ser atingida por todas elas – a
dedicação ao cumprimento deste papel implica o cuidado com as roupas do marido, o
preparo de um bom jantar, a busca de informações em jornais para acompanhar as
atividades do marido. Em seu testemunho elas fazem constantes observações sobre estas
crises, e a situação de “solidão” em que vivem na sua época de casadas. Neste sentido, os
filhos não só são apontados como uma forte motivação nas suas vidas, como sugerem uma
saída para a situação de isolamento social e afetivo.
Com referência às alterações em seu ethos social, as interlocutoras aprendem a
oferecer jantares, a frequentar reuniões comerciais, participando do mundo profissional do
marido a ajudam a progredir profissionalmente, o que, em última instância, implica sua
própria ascensão. Os gastos com o consumo de bens simbólicos e materiais, que traduzem
status social, também é uma das marcas do casal: carro, televisão, joias, o próprio
mobiliário do apartamento, etc. A casa é percebida como um lugar de manifestação de
prestígio social do casal, tanto para sua rede social de amigos, como para vizinhos e
parentes, principalmente, levando-se em conta os jantares comerciais e familiares
realizados no âmbito doméstico. Com exceção de Ângela, todas as outras conseguem
manter até a separação este estilo de vida. Especialmente nesse caso, Ângela descobre ao
longo de seu casamento os reflexos econômicos da doença mental do seu marido. Este
sofre de agudas crises psicóticas, período no qual realiza grandes gastos e atividades
ilícitas: ao final de um tempo, estas realizações começam a ser denunciadas por oficiais de
justiça, que cobram as contas feitas por ele. Nestes momentos, é Ângela quem atende os
cobradores, pois geralmente o marido some por uma ou duas semanas. Nestas situações
familiares críticas, redefinem-se as relações entre Ângela e sua família de orientação,
reativando os laços de solidariedade com base no parentesco. Pouco a pouco a sua família
vai interferindo nas crises do casal, buscando ajuda financeira para os impasses
econômicos de Ângela. Ela, portanto, a partir das crises econômicas decorrentes das
atividades do marido, não consegue confirmar um estilo de vida com base no prestígio
social e na ideia de modernização. De acordo com sua própria definição, seu casamento é
“o maior desastre”, ou seja, não confirma nem o projeto familiar de ascensão econômico-
social, nem seu projeto individual no casamento.
Neste sentido, é comum nos testemunhos a “queixa” em relação ao isolamento
doméstico em função da desvinculação do marido à vida familiar. É apontada dentro deste
quadro, a preocupação deste com o trabalho, a busca de ascensão funcional, produtividade
e status em detrimento das suas responsabilidades como marido, companheiro e pai, o
apoio à atividade profissional do marido passa a se tornar mais precário em função do
descontentamento apresentado. De acordo com as falas das interlocutoras, percebe-se,
como indicativo das razões que levam tais mulheres à separação e das crises conjugais, o
desapontamento com um estilo de vida urbano e modernizado, e seus reflexos ao nível da
vida familiar. Os papéis sexuais e a divisão de trabalho na sociedade tendem a restringir o
feminino à esfera do doméstico e a realçar a participação masculina, principalmente à
esfera da produção, tornando-a ausente da vida familiar.

2.4 – REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO

Após o casamento a rede social onde as mulheres atuavam se altera, centrando-se,


agora, em alguns poucos vizinhos e parentes e num número fixo de amigos e esposas de
amigos – ligados às atividades profissionais do marido e que costumam frequentar as
mesmas reuniões e encontros. Nestes termos, pode–se definir a rede social do casal como
de malha estreita. Com poucos contatos sociais diferenciados e restringindo-se às
atividades conjuntas de um grupo único de amizades, o casal possui poucas chances de
participar de situações variadas entre si e, assim, redimensionar seus sistemas de valores e
conduta social. Tendo em vista que os contatos vinculam a situações de negócios ou
envolvimentos eminentemente sociais, elas não possuem muitas amigas íntimas,
vivenciando relacionamentos pouco particularizados. O mesmo é simplesmente
impensável à nível de possíveis amigos.
Como relação à caracterização do papel de esposa e ao desempenho associado aos
laços de parentesco de afinidade, a descrição do papel de mãe e seu desempenho feminino
associado aos laços consanguíneos retoma novamente a discussão de P. Berger (1976)
sobre revisão biográfica. Presencia-se a ação de percepção seletiva em termos das
dissociações entre as relações de esposa e mãe. Na descrição do momento do casamento e
da maternidade, verifica-se uma dissociação de representações e sentimentos ligados à
figura do marido e da prole. Aqui, deve-se levar em conta o que Arakcy M. Rodrigues
(1980) comenta a respeito dos fatores emocionais como pré-condição dos aspectos
cognitivos, ou seja, torna-se necessário, para a análise do comportamento dessas
interlocutoras da pesquisa, encarar os aspectos cognitivos e emocionais dos depoimentos
como interdependentes. O relato sobre a figura do marido durante o casamento, assim
como o da sua família antes deste ocorrer, envolve, continuamente, um sistema de queixas.
Os depoimentos transformam-se em reivindicações, isto é, o discurso é um protesto e uma
forma de atuação (Rodrigues 1980, p. 71). O marido é acusado de ser responsável por
uma série de desavenças familiares, o que não ocorre com relação à maternidade. A
descrição da relação mãe-prole é menos conflitante, e mesmo que não seja assim, a raiva
ou ódio são negados.
A maternidade ocorre, de modo geral, como opção a uma situação conflitiva no
casamento, no sentido de ocupar um tempo dentro do lar com alguém que retribui
situações compensadoras. De acordo com esta ideia, os filhos são descritos como partes
suas, “pedaços de mim mesma.” Antônia descreve: “o filho é sempre da gente... É uma
parte de mim”. A descrição da gravidez e do parto contrasta com a descrição do puerpério,
onde os cuidados com os recém-nascidos, seus novos desempenhos como mãe e esposa
acontecem de modo conflitante. A maternidade significa a intensificação dos laços com a
família de orientação e a do marido, e, portanto, um envolvimento maior com ambos os
grupos de parentes. Neste sentido, a ocorrência da maternidade rompe com o isolamento
relativo do casal e reafirma a dinâmica do código da aliança. As famílias de ambos os
cônjuges passam a ajuda-las nas tarefas com a maternidade até as mesmas sentirem-se
suficientemente adaptadas às novas funções de esposa e mãe. Em termos de estilo de vida
do casal, isto afeta a proposta de construção de um projeto de família conjugal, uma vez
que o nascimento dos filhos reforça a rede social com base no parentesco. Algumas delas,
nestes momentos das suas vidas, vão passar um período na casa da família de origem, ou
suas irmãs e mães vêm residir um tempo com o casal.
Na gestação e no parto, praticamente não há a participação dos maridos, que só
acompanha o processo dando apoio econômico e conforto material para as mulheres aqui
ouvidas. A maternidade está mais profundamente associada à rede feminina de
solidariedade e reciprocidade familiar, não havendo nada de similar ao que se pode
chamar de ideologia moderna do “casal gravido”6. Nenhuma delas fez cursos
psicoprofiláticos, o que revela, em parte, a inexistência de uma ideologia psicologizante na
relação do casal durante o processo de reprodução, pois suas agências de socialização não
são buscadas pelos mesmos. Ao contrário, a gestação, assim como o parto, são
experiências especificamente femininas onde a figura masculina não atua, e, neste sentido,
reforçam os laços de sociabilidade femininos, através da rede social de parentes, amigas e
vizinhas.

2.5 – PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO


Em termos de desempenho dos papéis sexuais na família de procriação, percebe-se
a existência de relação conjugal fortemente segregada7. De certa forma, reproduz-se a
divisão de papéis sexuais da família de orientação: o marido é o responsável pelos
contatos com o mundo público dos negócios e à mulher cabem as tarefas domésticas de
cuidar da casa e das crianças. No entanto, introduz-se alguns elementos de modernidade
nesta divisão, o papel feminino, após o casamento, envolve o cumprimento de uma agenda
social, na esfera pública, em função das atividades do marido. Símbolo de estabilidade
familiar, a categoria esposa, no mundo dos negócios, permite, ao marido, o rótulo de
“homem-sério”.

6
Este grupo não faz menção à noção de casal-grávido, abordada por Salem (1983) O Ideário do Parto Sem
Dor: Uma Leitura Antropológica, que, segundo esta autora, afirma o casal enquanto modelo segmentado dos
laços familiares mais extensivos, através da “contração” da sociabilidade.
7
A respeito deste assunto, ver basicamente o Capítulo III “Papéis Conjugais e Redes Sociais”, in Família e
Rede Social, de Elizabeth Bott (1976).
Constata-se uma diferenciação hierarquizada nas atividades dos papéis sexuais para
o casal. Em raríssimos casos o marido limpa a casa, faz sua comida ou mesmo lava a
roupa. Em alguns momentos da vida do casal, quando não há visitas, ele ajuda a esposa a
retirar a mesa ou organizar a sala de jantar. No entanto, na presença de visitas, estas tarefas
são feitas pela esposa, ou por grupos de esposas, enquanto os homens permanecem na
mesa conversando ou retiram-se e vão fumar. Nestas reuniões, o grupo das mulheres e dos
homens é bem delimitado. Não há quase nenhuma atividade familiar conjunta entre eles. O
cuidado com os filhos é de responsabilidade exclusiva das mulheres. Como não há
empregada neste período de suas vida, somente “faxineiras” que vão regularmente as suas
residências para fazer uma limpeza mais “a rigor”, as tarefas domésticas são basicamente
realizadas por elas mesmas8.

3 – SEPARAÇÃO – REDEFININDO A FAMÍLIA

3.1 – REVISÃO BIOGRÁFICA

A separação surge na vida familiar dessas interlocutoras, predominantemente,


como uma situação externa a elas, é assumida aos poucos, pois ocorre de modo alheio a
sua decisão pessoal. A visão do processo de separação dá-se pouco a pouco, passando a
ser, após algum tempo, entendida enquanto um projeto de vida futura. Durante a evolução
desta situação particular de trajetória de vida, elas acabam por manipular alguns códigos
culturais da sua classe e sexo, e passam a redefinir fronteiras culturais para o espaço da
família em seu grupo social9. Também é neste momento, que ocorre um processo de pré-
fabricação do passado, com vistas à reconstrução de uma imagem pessoal e social.
Evidentemente, quem muda seus sistemas de significados muda suas relações sociais
(Berger, 1963, p. 73).
Para elas, trata-se, seguindo as ideias deste autor, de buscar outros “conspiradores”
na nova visão de mundo, após o processo de separação. De todas, somente Alice busca a
separação como projeto pessoal, isto é, como tentativa consciente de dar sentido ou uma
8
O desempenho feminino nas atividades domésticas, para este grupo e seu círculo social, bem como o
cuidado com a aparência pessoal, são tidos como símbolos de status feminino. Ou seja, saber gerenciar uma
casa, fazer pratos sofisticados, receber os amigos, atender os filhos, suas exigências de socialização, são tão
importantes para o ethos feminino quanto os cuidados com o corpo e a estética.
Assim, a figura da empregada doméstica é dispensada em função do “desafio” no desempenho do papel de
esposa, mãe e mulher.
9
A este respeito, ler, em especial, o Capítulo V onde se analisa o projeto de vida destas mulheres após o
processo de separação.
coerência a experiência fragmentadora (Velho, 1981, p. 15). Observa-se a descrição das
condições de separação, as razões apontadas pata tal e como ela ocorre para este grupo de
mulheres. Alice, com algum tempo de casada, já morando em Porto Alegre, numa situação
profissional estabelecida, resolve, a partir das crises do casal, fazer análise. Segundo ela
mesma, seu casamento já está desgastado, o marido não assume sua profissão, etc. Ela tem
que tomar todas as decisões em casa, enquanto ele passa todo o dia no sofá, deitado, lendo
o jornal”, já quase não conversam. De acordo com o seu relato, não discutem nem brigam,
o que confirma, para o grupo, a pouca discussão dos problemas conjugais ao nível do
casal. Há um “clima de indiferença”. Ao mesmo tempo em que conta estas passagens da
sua vida familiar, ela relata os avanços profissionais que faz neste período: obtém um
cargo importante no Governo Estadual, no Setor de Turismo, recebe convite do Governo
Italiano para fazer um curso especifico sobre Turismo na Itália, viaja constantemente,
participa de reuniões sociais e politicas de importância. A presença do marido, neste seu
mundo individual, e sua “inexpressividade”, começa a “incomodar” Alice. Decidida a se
separar, ela elabora a sua separação num tratamento psicoterapêutico. Três anos depois,
após inúmeras tentativas de separação, da sua parte, resolve “tomar uma atitude”. Ajeita as
coisas do marido, e quando este chega em casa à noite, explica a ele a situação,
aconselhando-o a ir para um hotel. Este momento da entrevista é extremamente tenso,
tendo Alice chorado muito. Segundo ela mesma, o pior é ter percebido que “mesmo
tirando tudo que pertencia ao F. do nosso quarto, não conseguia sentir um vazio neste
espaço.” Sempre usando o casamento como um instrumento (o marido é definido como
uma “bengala”), ela , num momento de definição do seu status social – na busca de
prestígio e ascensão econômico–social – solidificada uma visão de mundo mais próxima
da sociedade moderna, através de um processo de psicoterapia. Amparada pelo recurso de
uma pratica social mais individualizante, em última instância, a sua vida profissional,
constrói um projeto pessoal que busca uma “segmentação” com os laços de parentesco,
numa confirmação de um estilo de vida modernizante, conferindo a sua individualidade
um valor referencial em sua visão de mundo. Na época da pesquisa, os únicos parentes que
Alice procura são os pais, quando vai de viagem, em raras ocasiões, para a sua cidade
natal.
Diferentemente de Alice, Ângela vivencia seu processo de separação apoiada numa
ação familiar. Seu marido, muito afetado pela doença, inicia um processo de psicose, passa
a se achar perseguido e começa a lhe bater e a ameaçá-la de morte. Ele costumava, neste
período, dormir na sala, com uma arma sob o travesseiro. O casal já não tinha mais
qualquer tipo de envolvimento, e Ângela já possuía as suas duas filhas. Vivendo sob
intensa pressão emocional, não conseguia se decidir pela separação. Ajudada por suas
irmãs, abandona o marido e é sustentada um tempo por elas. Segundo Ângela, o que não
conseguia deixá-la se decidir pela separação era o terror de que o marido matasse as
crianças, e, associado a isto, um grande medo dele. Diz que se sentia “paralisada” quando
ele estava em casa. A ação da sua família dá-se no sentido de recriminar sua covardia e
alertá-la do perigo desta situação para as crianças. Após a separação, vive cerca de 4 anos
na dependência das irmãs, até fazer o vestibular e se formar. A partir de então, vai morar
com as filhas num apartamento, no prédio onde as irmãs residem (na época da entrevista
são duas, pois uma já é casada). De acordo com seu relato, se esforçou muito para se
profissionalizar, e, durante este processo, vai transformando sua visão de mundo a partir
de novos valores. A obtenção de uma profissionalização e a sua subsequente colocação no
mercado de trabalho implica a afirmação, em sua trajetória pessoal, de uma ideologia
modernizante: a noção de indivíduo singular ético e moral. Após a separação, mesmo
retornando aos vínculos de parentesco, busca referências em símbolos culturais distintos
do seu grupo de origem – a ideia de individualização do sujeito feminino. A dedicação à
vida profissional ocupa longo tempo do seu período de separação (5 anos), só diminuindo
o ritmo de trabalho quando admite ter conquistado uma situação de razoável estabilidade
profissional, com consequente melhora em seu status social. A rede social, com base no
parentesco, significa um apoio inicial para a realização deste projeto individualizante,
passado progressivamente para um segundo plano.
Quanto a Antônia e Andréa, a situação de separação é descrita como um processo
moroso, que envolve uma definição de ambos os cônjuges. A situação do casal vai se
tornando “indiferente”, “desgastada”. Na trajetória de Antônia, ela descreve a “impotência
sexual” do marido como um dos pontos de atrito. Para Andréa, por outro lado, a
“irresponsabilidade” do marido com os compromissos familiares, com sua relação
conjugal e com sua vida profissional, é descrita como aspecto negativo. Em ambos os
casos, o casal em si nunca chega a falar seriamente sobre a separação, e elas “toleram” a
situação, pois têm “medo” do que pode lhes acontecer quando separadas, não sabendo o
que fazer depois. Em ambos os casos, com o tempo, o marido se afasta de casa, se abstém
de qualquer relacionamento, tornando-se indiferente para, finalmente, estabelecer-se a
separação entre o casal. Oscilando entre a necessidade de afirmação de um novo projeto de
vida e o reconhecimento de um projeto familiar falido, porém, seguro no nível de prestigio
social, estas mulheres “deixam” acontecer à separação, como se não tivessem muito a ver
com ela. Nem impulsionadas por um ethos conservador e nem filiadas a um novo estilo de
vida, o que as mantêm na situação de casamento é a permanência de um código moral, que
se torna desgastado na medida em que a relação conjugal se deteriora, a partir dos seus
relatos, pela ação masculina, a quem ambas no fundo se sentem submetidas.
Em termos de relevância de códigos e valores, o processo de revisão biográfica de
Alice e Ângela assumem aspectos distintos. Quanto aos projetos familiares, o processo de
separação implica a busca de afirmação de um status social que possuem na época do
casamento. Em decorrência da separação, e em função desta busca, orientada menos para
escolha do que para circunstâncias, ocorre uma redefinição da visão de mundo, do ethos
feminino e do projeto familiar em termos de uma ideologia mais individualista. Alice
canaliza seus esforços no sentido de um reconhecimento profissional definitivo, e Ângela,
amparada pela rede social de parentes, reestrutura sua vida profissional, optando por
formalizá-la, na busca de uma colocação no mercado de trabalho. Ambas percorrem
trajetórias distintas em relação ao grupo familiar. A primeira, na construção de um projeto
mais individualista, após a separação, tende a afastar-se dos familiares. Ângela, por outro
lado, utiliza-se dos laços de parentesco como forma de viabilizar, num primeiro momento,
seu projeto individual. De qualquer forma, ambas salientam com a separação, o recurso da
individualização na trajetória de ascensão social.
Para as outras duas, Antônia e Andréia, os códigos e valores relevantes dizem
respeito à busca de reordenação de uma moral familiar, seu código de aliança e dos seus
princípios reguladores. O casamento resulta, em última instância, na negação de princípios
morais na relação conjugal e na interação familiar. Para elas, a separação envolve, por um
lado, a perda de status social, por outro, o retorno a visão de mundo de sua família de
orientação. Após a separação, continuam residindo em Porto Alegre, sujeitas a maior
fragmentação de papéis sociais, a diferentes códigos e padrões de comportamentos, mas
orientando-se de acordo com a ética da sua família de origem. Os valores presentes nos
depoimentos envolvem a noção de fidelidade aos laços de parentesco, uma visão de
família como algo cooperativo e integrado e o projeto de ascensão social ainda associado a
um novo casamento. Possuem uma ligação moral com a prole, saem muito pouco e
convivem no âmbito de uma rede social de malha estreita, descrita mais adiante.
Os motivos apontados para a separação formam um sistema de queixas que se
delimita num processo de acusação ao marido, como o responsável por uma gama de
distúrbios familiares. Semelhante artificio acaba por preservar, dentro do ethos e visão de
mundo tradicional, a instituição do casal e da própria família como tal. É importante
registrar que essas mulheres também admitem sua participação na desarticulação da vida
doméstica, na medida em que “se sujeitam” a esta ordem de coisas. Os motivos
recorrentes da separação apontam para uma insatisfação com o tipo de vida em que resulta
o casamento: a dominância de uma apatia amorosa na relação conjugal ou a presença da
violência; a negação, por parte do marido, em assumir suas funções como principal
provedor da família ou a busca acentuada de produtividade, o que o leva a se afastar da
unidade familiar; a idealização de um casal perfeitamente integrado e amoroso ou a
existência de desavenças e ressentimentos profundos; a busca de um estilo de vida
sofisticado ou a sensação de uma vida artificial.
Ou seja, o sistema de queixas do grupo A, se move dentro de um código moral da
honra, onde as mulheres apontam para o fato das relações familiares não se constituírem
dentro da ordem hierárquica da natureza moral dos sexos na família e seus fundamentos
morais. Os valores da moral e da honra marcam a os seus depoimentos, postulando
princípios holistas para a esfera familiar, os papéis sexuais e os laços de parentesco. Estas
razões indicam um questionamento de modelos culturais ao nível dos papéis sexuais e das
relações interpessoais na família, que tendem a chocar noções modernas e tradicionais,
reais e imaginárias, no interior do espaço familiar destes estratos médios, cujo processo
recente de ascensão, que se inicia na família de procriação, tende a delimitar.
Portanto, na descrição da trajetória de vida de tais mulheres, faz-se necessário
pensar a experiência existencial da separação em termos de uma situação critica, ao nível
do corpo social e seu sistema de valores, onde se encontram, muitas vezes, dissociados o
estilo de vida aprovado (ethos) no casamento e a estrutura da realidade adotada (Geertz,
1976, p. 146). De acordo com este autor, as relações existentes entre ethos e visão de
mundo apontam, de um lado, a objetivação de preferências morais e estéticas, retratando-
as como condições de vidas impostas (...), e de outro, os sentimentos morais e estéticos
que são sentidos profundamente como provas experienciais de sua verdade. A separação
como processo implica, neste grupo, o rompimento desta congruência entre ethos e visão
de mundo.

3.2 – PROJETO FAMILIAR

A) RELEVÂNCIA
Após a separação, torna-se relevante a revisão do projeto de vida construído no
casamento, que vincula o papel feminino no interior da família. Uma vez que, durante o
casamento, estão mais sujeitas a uma rede social de malha estreita, às atividades
profissionais do marido, suas reuniões e jantares de negócios (o caso de Antônia e Ângela
mais especificamente), do modo geral, ambas percebem o mundo público através da
figura do marido. Ele esta colocado entre ela e as coisas (Rodrigues, 1980, p. 69). De
acordo com esta autora, isto justifica a existência do processo de acusação pelo qual passa
a figura do marido, em relação aos conflitos familiares: ele é o responsável por tudo o que
acontece (Rodrigues, 1980, p. 70). Por outro lado, o processo de separação implica a
inserção destas mulheres, quase que de imediato, no mundo dos negócios, numa sujeição a
esta realidade, obrigando-as, portanto, a reverem seu ethos feminino e familiar.
Outro aspecto de relevância para a reconstrução da identidade social se refere à
reformulação da visão de mundo deste grupo de mulheres em relação à noção de família
circunscrita, especificamente, a sua forma conjugal: pai-mãe-prole. Com a separação,
redefinem-se estes conceitos, a categoria mãe independiza-se dos laços de afinidade
(esposo-esposa), restringindo-se aos laços de consanguidade (mãe-prole), os quais acabam
sendo tomados como parte de um modelo básico de família pelo grupo pesquisado. Os
laços de parentesco na família são, assim, revistos, bem como o afastamento progressivo
do grupo familiar, ocorridos com a constituição da família de procriação. Para Alice e
Ângela, os laços de parentesco são retomados como modelos polares: a primeira,
“individualiza-se” do grupo de parentes, a segunda, redimensiona estes laços com
afastamentos e aproximações cíclicas do grupo familiar de origem, segundo suas crises
econômicas e profissionais. Para ambas, pela distância física e falta de condições
econômicas dos seus grupos familiares, a fidelidade aos laços de parentesco é valorizada
através da retomada de um estilo de vida e uma visão de mundo próximos aos da família
de origem. Todas as duas passam a reviver estes códigos, na busca de uma reconstrução
dos seus valores após a recente trajetória da separação.
Com a separação, Alice e Angela apesar de receberem algum auxílio financeiro das
suas famílias, elas não usufruem constantemente de uma rede de solidariedade feminina na
criação dos filhos. Comprimidas em uma realidade econômica desfavorável após a
separação, lutam para manterem seu status social, na tentativa de não se proletarizarem, e
neste sentido, a rede de solidariedade familiar, ainda que localizada à distância, cumpre
algum papel econômico. Assim, em alguns momentos, assumem um ethos de
modernidade, em outras ocasiões, filiam-se a uma visão de mundo mais tradicional.
Entretanto, de modo geral, o código da aliança é revisto e relativizado. As relações de
reciprocidade entre os grupos familiares se sustentam sob os laços de consanguinidade,
considerados a partir das relações pai-filhos e mãe-filhos. No caso mais especifico de
Alice, o código de aliança é substituído pelo de amizade, entendido como um valor
primordial para a constituição da sua rede social. A ideia de escolha da rede de
sociabilidade está grandemente apoiada na própria noção de um projeto mais
individualizante, enquanto que para Antônia, e principalmente Ângela e Andréa, a
categoria de parentes surge como valor referencial.

B) MOTIVAÇÃO

Com relação às motivações na reconstrução de um projeto familiar, após a


separação, observa-se, neste grupo, uma tendência no sentido de reconstrução de unidade
familiar a partir de um novo casamento. Observe-se como Ângela descreve este processo:
“Esperava encontrar alguém com quem sentisse segurança afetiva, que gostasse de mim.
Gostaria de levar uma vida tranquila, segura, com alguém, com os filhos...”
De certa forma (com exceção de Alice), começa a definir-se um sentimento de
“vazio” (Antônia, Ângela) pela comparação que essas mulheres estabelecem entre o
esforço realizado em função de uma profissionalização, e/ou, independência financeira, na
esfera pública, por um lado, e as condições que possuem quando casadas, na esfera
familiar, por outro. A orientação do projeto familiar, então, neste momento, é fruto de
certo grau de questionamento, através de uma posição avaliativa deste período da trajetória
biográfica, onde predomina a preocupação com a conquista de um espaço individual,
tendo como inspiração a ideia de liberdade e individualidade. A comparação estabelece-se
no sentido de acentuar um ethos feminino mais individualista e competitivo, na esfera
pública, ou a retomada da atuação feminina restrita apenas à esfera familiar, como esposa
e mãe, sendo esta situação percebida como confortável e menos desgastante. É importante
frisar, que neste grupo, o sustento pessoal significa acima da tudo a manutenção da prole,
derivando disto, uma atuação efetiva e constante destas na atividade profissional, antes
abandonada.
A viabilização de um retorno ao modelo familiar tradicional, através de algumas
mediações, isto é, um novo casamento, onde as relações de casal são hierarquizadas, torna-
se uma das principais motivações deste grupo, recuperando-se a noção de casal e,
buscando, concomitantemente, retornar a um padrão de vida do qual se afastam com o
processo de separação (caso excepcional de Alice). A recuperação daquele modelo
familiar passa pela noção de proteção, relacionada com a existência de um companheiro,
de um “pai para os filhos”, refletindo a necessidade social da figura masculina na sua
função provedora. Por outro lado, a ideia da “segurança” dentro de uma estrutura familiar
conjugal – pai/mãe/prole – constantemente projetada nos depoimentos, demonstra a
função social normatizadora da figura masculina, fonte de legitimação para a unidade
familiar.
O processo de separação, portanto, acarreta um redimensionamento nas noções de
família, o que as próprias interlocutoras da pesquisa admitem. Mas a necessidade de
restauração de uma família nos moldes socialmente aceitos torna-se importante, pois
aufere as mesmas, dentro do seu ethos de origem, uma posição de prestigio social, o que é
muito valorizado neste grupo. Com exceção de Alice, que sempre reconhece como
importante a conquista da independência e liberdade pessoal a nível profissional, as
interlocutoras desse grupo de status consideram ambos os aspectos como um ônus social e
emocional, depois de passados alguns anos de separação. O projeto familiar, em termos de
motivação, implica um novo direcionamento do ethos modernizante da figura feminina, no
sentido de impor limites e mediações ao processo de libertação e independização
associado à situação de separação.

3.3 – ESTILO DE VIDA

Como tem sido frequentemente frisado, o processo de separação sugere, para este
grupo, uma situação de ruptura com um modelo de família, com ethos feminino e suas
fronteiras culturais, e, predominantemente, com um estilo de vida especifico para este
grupo social. A ideia da separação que sugere as interlocutoras uma aproximação com a
dimensão moderna da vida social, se constrói em função da noção de escolha que preside
o espaço de descasamento. A angústia da individualização revela a presença, no ethos e
visão de mundo deste grupo, de valores modernizantes na esfera familiar. A separação é
então, uma instância social onde se evidencia um processo de negociação da realidade, a
nível individual ou familiar, que vai de encontro aos fundamentos morais da família e a
natureza do seu código ético-moral (Velho, 1983).
Quanto ao estilo de vida, o processo de separação resulta, no caso de pelo menos
duas delas, no abandono de um consumo sofisticado, mudança de residência, volta ao
trabalho e no sustento da prole, auxiliadas, algumas delas, pela pensão do marido.
Contudo, este não é o caso de Alice e Ângela: a primeira sempre ganhou mais do que o
marido, e a segunda, o marido foi internado numa clinica, desempregado, sendo o sustento
da família um problema da própria interlocutora e do seu grupo de parentes.
Especificamente na ocasião da pesquisa, apenas Alice possui carro e apartamento próprios
obtidos com os seus rendimentos. Ângela e Andréa adquirem apartamento com a ajuda do
marido e familiares, respectivamente. A primeira, durante o casamento, a outra, após a
separação. Já Antônia possui apartamento próprio, morando num alugado. Nenhuma das
três últimas possui carro. Das quatro mulheres ouvidas, apenas Ângela não tem
empregada, pois suas filhas já são adolescentes. Todas as outras dividem com a empregada
doméstica os cuidados com os filhos, mantendo, para isto, na sua atividade profissional,
um total de 6 horas por dia, em condição de “meio turno”, pagando às domésticas um
salário inferior ao mínimo. A separação, assim, supõe a divisão dos bens do casal e, de
modo geral, com exceção de Ângela, o mobiliário da casa fica com elas. No entanto, neste
grupo, o valor da pensão fornecida pelo ex-marido é praticamente igual ao salário das
mulheres, muito embora o reconhecimento deste auxílio seja irregular, e muitas vezes,
fonte de litígio entre o ex-casal.
Para esse grupo de mulheres, sem exceção, não têm o hábito de sair a noite, quase
não vão ao teatro, não possuem qualquer tipo de hobby e permanecem, basicamente, em
casa. O lazer, quando realizado, ocorre quase sempre em companhia dos filhos, ou de
alguma amiga mais intima, e, geralmente, no ambiente familiar. No estilo de vida, a
valorização do lazer e das atividades extra domésticas e profissionais sofre a influência,
não só da precária situação financeira em que se elas encontram, como também da estima
social associada ao ethos de mulher separada para este grupo e sua rede social. Neste
sentido, o estilo de vida de “mulher separada” significa o afastamento de uma vida social
mais ativa, que existe na época do casamento, e uma aproximação com formas de
sociabilidade mais próximas do grupo familiar de origem.
Há, entretanto, a presença de um elemento importante para a composição da
identidade social da mulher descasada neste grupo, ou seja, a contração da sociabilidade
após a separação ocorre em função da sua noção de honra familiar tendo em vista a
possibilidade do exercício da sua sexualidade sendo ela, mãe. A preocupação com o
controle social, através da vizinhança, é temido como fonte de questionamento da honra
familiar, em termos de suas responsabilidades na criação dos filhos. O depoimento de
Andréa exemplifica: “Eu, no geral, não assumo publicamente minha condição de separada,
mesmo que os vizinhos e colegas de trabalho já saibam.” Pode-se perceber como a
separação afeta o elemento crucial da honra feminina para a noção de família neste grupo,
ou seja, seu papel é de não poluir moralmente um nome de família10. No caso, este nome é
ainda o do ex-marido, agora simbolizado no sobrenome dado aos filhos, que a conduta
feminina deve preservar. Estes aspectos são muito ressaltados, principalmente por Antônia
e Andréa, mas filiadas, após a separação, ao código de moral da família de origem.

3.4 – REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO

A valorização dos laços de reciprocidade com base no parentesco e afirmação de


amizade como um valor necessário a sua sobrevivência social são as oposições presentes
nos testemunhos ouvidos, no nível da rede social, após a separação. Por outro lado, a
afirmação dos laços de parentesco implica uma visão mais hierarquizada da noção de
indivíduo e das suas relações sociais, baseada num código moral de reciprocidade e numa
desindividualização, senão total, pelo menos parcial, pelas mulheres em processo de
descasasmento. A afirmação destes laços tende a delimitar-se na ajuda familiar em função
da manutenção do status social ou da construção de condições mínimas de
profissionalização que lhes permitam atingir um status social (caso de Ângela). Por outro
lado, a negação significa uma filiação a noção mais individualista e modernizante de
indivíduo, dando à rede social um aspecto predominante de escolha pessoal, o que só pode
ocorrer mediante a obtenção de um status econômico mais estável por parte das
interlocutoras pertencentes a esse grupo de status (caso de Alice), possibilitando uma
margem de individualização do grupo de origem, independente deste agir ou não como
fonte de legitimação e apoio econômico e social.
No entanto, em termos do contexto de uma sociedade urbana, moderna, que
comporta diferentes estilos de vida, códigos e regiões morais11, este grupo, como um todo,
reafirma a experiência, após a separação, de uma rede social de malha estreita,
preservando, neste sentido, um ethos familiar mais próximo a sua trajetória original. As
redes sociais, com base na amizade, em realidade, correspondem basicamente a contatos
com poucas pessoas ligadas às atividades profissionais, uma vez que não costumam
10
Esta afirmação se encontra em Abreu (1982) Parentesco e Identidade Social, quando o autor analisa o
sistema parentesco como procedimento metodológico para estudos de família, considerando, no seu interior,
as noções de sangue, honra e moral.
11
A expressão “regiões morais” é utilizada por Velho (1981, p. 32) em “Projeto, emoção e orientação em
Sociedades Complexas”, In Individualismo e Cultura, onde o autor afirma que a fragmentação de papéis e a
heterogeneidade de experiência criam uma situação particular em termos existenciais.
Isto é, o termo aqui é utilizado no sentido de avaliar a experiência originaria deste grupo de mulheres
descasadas e aquela advinda após a separação, quando buscam solidificar um ethos de modernidade.
gravitar por outros círculos sociais que não envolvam o ambiente familiar, e até mesmo, o
lazer se encontra reduzido a esta esfera.

3.5 – PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO

Com a separação, ocorre uma dissociação entre os laços de afinidade esposo-


esposa (marido-mulher) e entre os laços de consanguinidade pais-filhos. Descreve-se aqui,
como, para essas interlocutoras da pesquisa, a ocorrência da ruptura que o papel de esposa
redimensiona a relação mãe-prole. No casamento, o papel de esposa implica a dedicação à
esfera doméstica, os cuidados com a prole e a restrição da sexualidade ao controle do
marido, tendo em vista, a noção de fidelidade para o grupo. A separação, no entanto,
desarticula no cotidiano destas mulheres, essas dimensões de vida em família, redefinindo
o ethos feminino. Apenas uma delas, no momento da realização da pesquisa, não tem
experiências sexuais após a separação.
Segundo os testemunhos ouvidos todas as mulheres que têm “transas”12 com outros
homens, sempre procuram manter discrição nestas relações, tanto aos olhos da vizinhança
quanto dos filhos. A maternidade, em comparação com outros papéis femininos na família,
é descrita como a fonte última da definição de gênero. Com a separação, esta noção tende
a ser reforçada, transformando-se no verdadeiro referencial do ethos feminino. O
sentimento de maternidade13 é glorificado por este grupo de mulheres como fonte de
legitimação de sua identidade feminina, profundamente alterada após a separação, nos
códigos simbólicos associados às fronteiras culturais da família de orientação e procriação.
A descrição do papel de mãe apresenta um forte conteúdo avaliativo, podendo-se observar
que nele se estabelecem os limites de uma possível situação de acusação social para a
mulher separada.
O maior temor destas mulheres é o de serem consideradas mães de vida mundana,
sujeitando os filhos às criticas morais do seu comportamento, ou mães egoístas, que
apenas pensam na sua própria pessoa, esquecendo-se, na busca da realização pessoal, dos

12
O termo “transa” é utilizado pelo grupo maior de mulheres quando se refere às relações amorosas sem
vínculos de durabilidade e estabilidade, representando uma relação descomprometida, envolvendo apenas
encontros sexuais e afetivos de duração temporária.
13
O uso do conceito de sentimento de modernidade se relaciona a noção de “sentimento” de parentesco que
Woortmann (1976, p. 182) utiliza quando define as relações de parentesco através de um “modelo
ideológico”, ou seja, “a genealogia biológica é um dado concreto ao qual é atribuído um conteúdo ideológico
(...)”. Desta forma, de acordo com este autor, o „sentimento‟ de parentesco (...) deriva „naturalmente‟ do fato
de ter o filho nascido dos pais (particularmente da mãe) (1976, p. 181). A menção do “natural” refere-se a
questão da construção ideológica deste sentimento.
compromissos com a prole. Ambas as situações, temidas por elas, referem-se à situação da
própria separação e ao desvio que apresentam em relação ao modelo de família para este
estrato social e seu código moral e sexual. Para as interlocutoras mencionadas, o exercício
da sexualidade acarreta, assim, implicações desta ordem, ao nível do papel de mãe.
Especificamente, quando Antônia relata suas “transas”, sempre descreve a situação
ressaltando que, quando sai para seus encontros, se preocupa em deixar o filho bem
protegido e amparado com uma babá. Ou, no caso de Alice, explicando que busca estes
encontros amorosos apenas em viagens. Conforme o exposto acima, a busca da
individualidade, contida no projeto após a separação, no grupo citado, tende a esbarrar nos
limites sociais do papel de mãe, para o seu código moral e seu ethos feminino.
Quanto à profissionalização, a separação afeta drasticamente a situação deste grupo
de mulheres. A consciência da necessidade de manutenção envolve a busca de uma
atividade profissional como forma de autossuficiência. Conforme os testemunhos ouvidos,
a realização desta vida profissional é extremamente penosa, uma vez que, no caso, apenas
Alice possui formação completa, continuando a atuar profissionalmente mesmo após o
casamento. Para as outras, trata-se de finalizar o processo de profissionalização,
interrompido com o casamento, ou de buscar uma colocação no mercado de trabalho, com
o nível de escolarização obtido através de sua família de orientação.
CAPÍTULO 3

RECONSTRUÇÃO BIOGRÁFICA III: DA MODERNIDADE À VANGUARDA

Assim, muito embora os símbolos de parentesco e os símbolos


rituais possam se tornar obsoletos na sociedade moderna, outros
símbolos tomarão seus lugares na articulação de antigas e novas
funções simbólicas.
A. Cohen. O homem bidimensional.
INTRODUÇÃO

A descrição deste grupo de mulheres(Grupo B) parte da trajetória do seu grupo


familiar, no sentido de perceber as alterações propostas pelas mesmas para o projeto
familiar, em função da sua filiação a outras dimensões do ethos da modernidade que
contestam aquele projeto, e que encontram fundamentos na fragmentação dos espaços
sociais, característica do contexto. Procura-se, como linha de orientação, descrever a
trajetória social dessas mulheres segundo as diferenciações inerentes a seus projetos de
vida em função da segmentação de estilos de vida presente ao meio urbano de Porto
Alegre, considerando suas biografias neste meio e na complexidade do seu código ético-
moral. Portanto, opera-se com os limites das relações entre projeto individual e projeto
familiar dessas interlocutoras da pesquisa e as aproximações e afastamentos que ambos
realizam na composição do ethos da modernidade, considerando o jogo
tradicional/moderno no meio urbano de Porto Alegre. Discute-se, assim, dentro do ethos
da modernidade que o compõem, as modificações propostas pelas interlocutoras da
pesquisa para o projeto familiar de origem, em função da sua filiação a outras dimensões
do seu sistema de representações.
Diferentemente do grupo anterior, os projetos individuais destas mulheres não
pressupõem o seu afastamento do ethos sociocultural de sua família de orientação.
Encontram-se percorrendo, neste momento, caminhos particulares dentro de um mesmo
ethos da modernidade. Filiando a experiências contestatórias de cunho vanguardista,
buscam imprimir no seu cotidiano, um estilo de vida alternativo. Este Capítulo aborda as
modificações possíveis nas fronteiras internas de um mesmo sistema de representações
que dá conta de diferentes estilos de vida e visões de mundo em Porto Alegre, o qual, na
trajetória das mulheres descasadas aqui ouvidas, acha-se associado a suas experiências
neste contexto e às escolhas, até certo ponto, socialmente constituídas. A delimitação,
aqui, de um ethos da vanguarda de contestação, refere-se, em particular, à necessidade de
se precisar o estilo de vida sugerido pelas interlocutora desse grupo de status, na situação
de adolescência e pós-casamento, e que conduz este grupo à afirmação de princípios
individualistas e igualitários na estrutura familiar, seus papéis sexuais e laços de
parentesco, com forte teor polemizante, sem traduzir-se, ao final de um percurso de
casamento, numa prática efetiva.
Assim, se para o grupo A, o casamento representa o espaço social que permite a
afirmação de um processo de ascensão econômico-social e de obtenção de prestígio e
status, construído em função da filiação a um ethos da modernidade, e a incorporação
relativa de um estilo ele vida mais urbano, compartilhando tais valores e ações com outras
noções de cunho mais tradicionais, para o grupo B, o casamento surge como polemização
dos valores e concepções familiares, constituindo-se numa posição de contestação e busca
de ruptura pelo grupo, tomadas como tradicionais e conservadoras.
Evidencia-se, nesta parte do estudo, o fato de que, para ambos os casos, o ethos
feminino delimita o campo de discussão das rupturas nas biografias das mulheres,
definindo suas fronteiras no nível da vida familiar, dos papéis sexuais e laços de
parentesco. Semelhante traço comum cabe a ambos os grupos, conduzindo a descrição
biográfica e sua análise à constatação do espaço prioritário que o contexto familiar (mais
especificamente o casamento) encerra nos projetos individuais construídos por estas
mulheres e suas implicações no desencadeamento do processo de separação pelo qual
passam.

CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO

Beatriz - 31 anos, 2 filhos (4 e 2 anos), há 2 anos separada, é arquiteta. Seus pais são
originários do interior do Estado, migram para Porto Alegre quando solteiros. O pai é
advogado e a mãe, dona-de-casa. O ex-marido de Beatriz também é arquiteto.
Beth - 34 anos, é arquiteta, 2 filhos (3 e 6 anos), há 3 anos separada. Seus pais são
originários de Porto Alegre. O pai é advogado e literato, a mãe, dona-de-casa. O ex-
marido é economista.
Betânia - 35 anos, 1 filho (5 anos), há 2 anos separada, é advogada. Seus pais são
originários de Porto Alegre. O pai é ferroviário e a mãe, dona-de-casa. O ex-marido é
economista.
Bruna – 34 anos, 2 filhos (9 e 5 anos), há 2 anos separada, está terminado o curso de
Enfermagem. Os pais são originários da Polônia, emigram para o Brasil após a Segunda
Guerra Mundial. O pai é aviador na época da II Guerra e torna-se mecânico da Varig, a
mãe trabalha no Ministério da Guerra, e na época da pesquisa, costura para fora. O ex-
marido de Bruna é gerente de empresas.

1 - FAMÍLIA DE ORIENTAÇÃO

1.1 - PROJETO FAMILIAR


a) RELEVÂNCIA

Neste tópico, interessa descrever, a composição que assume, para este grupo de
mulheres, o projeto da família de orientação, em termos da continuidade do seu estilo de
vida e visão de mundo e a forma como este ordena os conflitos familiares decorrentes da
proposta de um estilo de vida alternativo, de cunho contestatório no período da
adolescência. Trata-se de observar as concepções e valores relevantes do grupo familiar,
considerando sua contraposição aquele projeto com pretensões de “vanguarda”. É
importante esclarecer que, das quatro interlocutoras citadas, três destas percorrem esta
trajetória social em relação ao grupo familiar. A trajetória de Bruna é descrita mais adiante
e tende a desviar-se das outras. Para aquelas que desenvolveram no período da
adolescência um projeto de vida que conflitava com o projeto familiar, os conflitos
geracionais deste período, são mencionados diversas vezes. Observa-se, neste grupo, que a
constituição de um projeto individual de contestação na adolescência tem implicações na
formulação posterior dos seus projetos para a constituição da família de procriação, assim
como no projeto individual do período pós-separação.
Em termos de relevância, a família de orientação projeta valores e concepções
distintas daqueles formulados por elas e sua rede social, na adolescência, residindo neste
ponto, parte dos conflitos familiares. Logo, no período contestatório da adolescência, o
processo de acusação social não envolve apenas as mulheres aqui ouvidas, mas o seu
grupo de pares14. Assim, em relação ao grupo familiar, fica patente que a lealdade em
relação ao grupo está posta em cheque, pode ter se transferido para outro grupo ou estar,
pelo menos, sendo revista (Velho, 1978, p. 3).
No caso aqui descrito, ambos os processos se refletem na escolha dos valores e
atitudes relevantes para a composição dos projetos de vida futuros destas mulheres que
começam a se esboçar no período da adolescência. Observa-se, neste momento, primeiro,
que o fato desse grupo de mulheres, neste período, experienciarem situações diversas das
gerações dos pais, filiando-se a códigos distintos destes, relaciona-se a sua experiência no

14
A noção de grupo de pares (per group) é mencionada por Bott (1976) em Família e Rede Social, a partir
do comentário de Max Gluckmann, quando o autor, referindo-se às relações existentes entre o grau de
segregação entre pais e filhos e o tipo de rede social, afirma que, numa família, os membros mais jovens se
associaram aos seus próprios companheiros de idade, e é destes companheiros que eles derivariam parte do
seu código moral (1976, p. 22). O autor, comentando este conceito, afirma que o grupo de pares exerce uma
poderosa influência sobre os jovens, com base em fortes elos afetivos, e que isto se associa a uma rede social
de malha estreita.
meio urbano onde a fragmentação de papéis permite a vivência de situações diversificadas
dos atores sociais, o que se refere, em última instância, aos projetos sociais existentes na
sociedade para os jovens de acordo com a sua situação de classe. Segundo, se refere à
situação de um grupo residente há algum tempo num mesmo meio social, permitindo a
existência de um círculo de amizades mais duradouro. Terceiro, que o fato delas se
associarem aos seus companheiros de idade torna mais viável o predomínio de um código
de amizade sobre os laços de parentesco.
No discurso acusatório dos pais, as atitudes dessas mulheres passam a ser definidas
como parte de um comportamento “inconsequente”, “irresponsável”, e as classificações
para o grupo de pares daí advindas são de um bando de maconheiras, “comunistas”. Na
época da Faculdade, segundo o depoimento de Beatriz, parte dos próprios colegas
participa deste processo, juntamente com a maioria dos professores. Mas, mesmo
desenvolvendo atitudes de modo geral contestadoras, as mulheres desse grupo de status se
consideram alunas interessadas e estudiosas. A acusação, no âmbito da faculdade, é de
caráter moral, não incluindo o desempenho acadêmico das mesmas ou do seu grupo de
pares.
De acordo com os relatos, pode-se observar que, neste período, o projeto individual
assume como relevante uma proposta de negação do código ético e moral do seu grupo
familiar, embora se sujeitando, em muitos momentos, à estrutura de poder e hierarquia no
nível da família ou da escola. Por exemplo, elas não trabalham, sendo sustentadas pelos
pais, residindo ainda com estes, o que implica certo comprometimento com as normas
familiares, e também, uma forma de participação no estilo de vida familiar, pois,
sujeitando-se a estas normas (familiar), os pais de camadas médias vão dispor durante
mais tempo do poder real sobre a vida dos seus filhos, na medida em que estes se
afigurem como dependentes (Velho, 1978, p. 6)15.
A trajetória de Bruna difere, de alguma forma, deste grupo, e se aproxima mais do
grupo A, com algumas sofisticações. Sua profissionalização só ocorre, definitivamente,
após a separação, e, assim como as outras mulheres do grupo B, não são os pais que
financiam os estudos, mas o grupo familiar como um todo (pais e irmãos). Até os 15 anos,
sua trajetória é a mesma do grupo A. A partir deste período, seu pai sofre um derrame.
Isto, associado à neurose de guerra, leva-o a se aposentar. A mãe, então, passa a assumir

15
De acordo com Velho (1978) em Acusações: projeto Familiar e Comportamento Desviante, o filho de
camadas médias, em princípio levará mais tempo para ingressar no mercado de trabalho (p. 6), o que
justifica, de certa forma, o poder que a geração mais velha exerce sobre as mais jovens e a sua dependência
daquela. Esta situação ocorre neste grupo de mulheres.
os encargos do sustento da família, junto com os filhos mais Velhos (similar à trajetória de
Antônia no grupo A), acarretando uma perda de status econômico e social. No entanto, em
termos do projeto e da vida familiar de Bruna, há a necessidade de obter novamente o
status social que a família possuía antes da doença do pai.
Torna-se relevante o fortalecimento de alguns princípios do ethos da produtividade
no projeto familiar frente à premência de recuperação econômico-social da família. As
contradições familiares, vividas por Bruna neste período, aproximam-se das do grupo A,
pois implicam a relevância da lealdade aos laços de parentesco ou a filiação a princípios
mais individualizantes. Este período da trajetória de Bruna esta permeado destas
contradições e, neste contexto, o casamento é reforçado como uma solução individual, na
busca do prestígio e status social. Para as outras interlocutoras, no entanto, os laços de
parentesco são dimensionados como vínculos moralmente incômodos, apesar da
comodidade econômica que propiciam, pois chamam ao comprometimento como uma
ética que elas negam. Em contrapartida, a amizade se afirma como um valor relevante,
instrumento de realização de uma nova ordem ética e moral, em cuja base reside a
motivação de um afastamento cada vez maior do projeto familiar de orientação.

b) MOTIVAÇÃO

A motivação que funda o projeto familiar, neste momento, refere-se à permanência


dos valores e estilo de vida da geração dos pais, que é, por sua vez, questionada pelas
jovens em razão de um ethos de contestação, regido por uma filosofia de contracultura,
negadora do consumo e sucesso material. A composição deste ethos se acirra quando essas
mulheres, na vida universitária, participam, junto com amigos, de movimentos estudantis,
desenvolvendo um discurso político para a sua prática contestatória, onde se estabelecem
atitudes de protesto das mais variadas: desde o desleixo com o corpo e os hábitos de
higiene e prática sexual pré-marital. A liberação sexual surge, então, associada com a
perda da virgindade e dos contatos sexuais sem regra de fidelidade, o que é buscado nas
interações pessoais no interior do grupo de pares. Observe-se como Beatriz descreve este
período quando relata a forma pela qual conheceu seu atual ex-marido: “Conheci P. na
Faculdade. Éramos os dois muito politizados. Eu era do grupo dos hippies. Ele era do
grupo dos politizados. Ambas as chapas disputavam o Diretório. Ele era um cara diferente,
sabia falar muito bem, tinha um discurso marxista.” Neste momento, a ordem moral
familiar “burguesa” e com base, primeiramente, na virgindade, e depois, na fidelidade
feminina, é questionada a partir de uma militância de esquerda.
De modo geral, o que é colocado por esse grupo de mulheres como motivo de
contestação refere-se à noção de hierarquia, hora e limpeza, consideradas “atitudes
burguesas”. A preocupação, neste período específico, é a “denúncia” dos hábitos
burgueses, associada à negação de um estilo de vida que consideram “pequeno-burguês”.
Em termos do ethos da família de orientação, a conduta contestatória é assumida enquanto
recusa de um estilo de vida “bem sucedido”, de seguir um projeto familiar, uma vez que
este se origina na situação de “injustiça”, “exploração” e é fundamentado numa atitude
produtivista, no consumo de bens materiais e na busca do sucesso econômico.
Interessa neste estudo, resgatar a descrição dos tipos de contradições presentes no
estilo de vida desse grupo de mulheres separadas e seu discurso político. De um lado, a
família de orientação é negada, por ser o lugar onde se reproduz uma ideologia burguesa
capitalista, assentada em ideias e princípios de competição, produtividade e consumo. As
mulheres aqui ouvidas denunciam este estilo de vida como peculiar a uma pequena
burguesia e seu projeto de “aburguesamento”. Reagem a isto durante o período da sua
formação de Segundo Grau (na época, Científico), recebendo na década de 1960-1970,
influência do movimento de contracultura, passando a aplicar seu ideário em sua relações
pessoais no seu grupo de pares. A contestação, então, coloca-se na proposta de um estilo
de vida comunitário, com base numa ideologia socializante e numa militância de esquerda.
Para a descrição do estilo de vida deste grupo, opta-se por identificá-lo com alguns
princípios que compõem um ethos da vanguarda, de modo, até certo ponto, contrastivo ao
grupo anterior, onde se percebe uma aproximação com o ethos da produtividade.
Em oposição à forma de vida do grupo A, utiliza-se aqui, um discurso de esquerda,
associado a uma postura com alguns traços de vanguarda, onde se coloca como prioritário
o discurso de rompimento com uma ordem social e familiar, tida como reacionária e
repressiva. Este ethos propõe uma postura de negação destes valores tomados como
burgueses, projetando-se num modelo de vida alternativo, que redefina a ordem social e
antecipe uma contestação dos seus valores e instituições. Sobre o detalhamento deste
ethos, em contraste com o ethos do grupo A, é importante ver o Capítulo I, onde ambos
são percebidos como estilos de vida que se opõem dentro de um mesmo contexto de
modernidade.
No entanto, para fins descritivos, este ethos da vanguarda, no plano contestatório,
ao propor como projeto a vivência antecipada da ruptura de uma ordem social, de um
código moral e ético, constitui-se, de modo marcante, num processo que culmina em
mediação com a sua contextualização na situação de casamento. A tentativa de aplicação
deste ethos à ordenação familiar e à relativização de princípios vanguardistas e
contestatórios implica na reordenação do poder e da hierarquia ao nível dos papéis
sexuais, a revisão da noção de honra e a implantação de um novo ethos feminino, com
base na noção de igualdade e liberdade.
Em termos de vida profissional, este ethos propõe, num primeiro momento, uma
desvinculação com a exploração do mercado de trabalho, sua linguagem de competição e
lucro, através de um engajamento político na atividade profissional. Nesta situação, a
negação do ethos da produtividade tem em vista, o rompimento de ideias e valores de uma
sociedade de consumo, com a noção de poder e prestígio social, enfim, com uma ordem
social capitalista vista como “injusta” e “desigual”. Esta negação da inserção convencional
no mercado de trabalho é relativizada, tendo em vista as suas implicações na manutenção
do padrão de vida a qual as mulheres aqui ouvidas, como seus parceiros, acham-se
acostumados. Como proposta para este período de contestação à ordem familiar, esse
grupo de mulheres opta pela valorização de atitudes comunitárias como forma de impor
uma ordem social do futuro.
Assim, o processo de acusação social dentro do grupo familiar origina conflitos e
discussões, onde a noção de indivíduo-sujeito ético e moral é seguidamente recuperada
para legitimar seu direito de opinar e agir individualmente, desvinculando-se do
compromisso com a ordem moral familiar. Neste momento, o ethos burguês é dissociado
da sua dimensão “individualista”, recuperando-se aí, a noção do livre arbítrio e do direito
individual. Dissocia-se o ethos burguês de uma visão de mundo
universalista/individualista.

1.2 - ESTILO DE VIDA

Verifica-se, assim, para esse grupo de mulheres, em relação as interlocutoras do


grupo A, o fato de que predominam as experiências da família de origem na cidade de
Porto Alegre, sendo a única exceção Bruna. O ethos de camadas médias intelectualizadas
da família de orientação incentiva não só a escolarização, mas também a
profissionalização de seus membros, sendo estas consideradas questões básicas no seu
processo de socialização em um papel feminino. O caso de Bruna e Betânia é específico,
pois, apesar de sempre terem morado em Porto Alegre e terem suas origem nas classes
trabalhadoras urbanas, participaram com suas famílias de orientação de um processo de
ascensão social durante a infância. Neste caso, no grupo familiar de ambas, suas trajetórias
sociais nas camadas médias estão imbuídas de um esforço de consolidação desse projeto
de ascensão econômico-social iniciado com seus pais. Tanto Bruna como Betânia não
trabalham para ajudar no sustento da família, e, tal como as outras duas, sua escolarização
é financiada pela família de orientação.
A preocupação básica destas famílias é possibilitar integralmente a formação
profissional dos filhos, protegendo-os das dificuldades financeiras - não faz parte do ethos
familiar o trabalho dos filhos, ainda que este venha a facilitar o sustento ou mesmo a
profissionalização a nível médio. O importante não é tão somente a realização de um
Curso Superior, a busca de uma colocação no mercado de trabalho como profissional
liberal, mas também, a sofisticação no estilo de vida, através do consumo de bens
simbólicos e materiais, tendo por base o desempenho pessoal. A infância envolve os
amigos do bairro, da escola e os parentes (primos e irmãos). As brincadeiras realizam-se
nas ruas do bairro, predominantemente fora das casas dos familiares.
A descrição do período de adolescência permite perceber, de modo mais preciso, a
visão de mundo associada ao ethos familiar. É o período do namoro, dos cursinhos, do
vestibular, da faculdade, dos grupos de amigos, etc. Enquanto a família de orientação
valoriza o consumo e o sucesso material, as mulheres, neste período de suas biografias,
passam a desenvolver um estilo de vida bem oposto ao da família. O questionamento por
parte das mesmas, assim como da sua rede de amigos, se orienta no sentido da negação da
ideia de privacidade proposta na forma de vida do grupo familiar. Os acampamentos de
fim de semana, as reuniões de estudo, as festas grupais, os programas de shows, teatro ou
cinema propõem um tipo de vida com base na ideia comunitária, na vida coletiva.

1.3 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO

Para o caso da família de orientação, os pais desse grupo de mulheres têm uma
rede social um pouco mais diferenciada do que no grupo A. Forma-se tanto com base na
amizade como no parentesco. De modo geral, os vínculos de parentesco são feitos pelas
mulheres com as famílias de ambos os cônjuges, ficando com os maridos a criação de
laços de amizade a partir da sua vida profissional. O casal sai relativamente mais vezes,
vai a alguns jantares e cinemas, mas, de modo geral, o lazer é feito em casa, através de
visitas a amigos e parentes, que também se conhecem. Neste sentido, também possuem
uma rede social de malha estreita, com ambos os cônjuges possuindo poucos amigos ou
conhecidos que não pertencem ao círculo de suas amizades.
Quanto à rede social - da infância à adolescência - e às relações com os pais, o
panorama se transforma: até a adolescência, e antes do período de “contestação”, os pais
possuem um controle e conhecimento sobre o grupo de amigos, pois tanto os da escola
quanto os do bairro fazem parte da rotina familiar. À medida que as mulheres ficam mais
adultas e entram para a faculdade, esta rede social vai se tornando de malha frouxa, a
ponto dos pais terem pouco conhecimento do seu círculo de amizades.
No entanto, no nível da rede social específica, o grupo de pares forma uma rede de
malha estreita com relacionamento profundamente íntimo entre os seus membros: todos se
conhecem e mantêm frequentes atividades conjuntas. Na adolescência essas mulheres
diferem, assim, das formas de sociabilidade das mulheres pertencentes ao grupo A, tendo
em vista a recente migração delas para a cidade e pouca intimidade, na ocasião, com o
ethos de uma juventude intelectualizada e politizada portoalegrense.

1.4 - PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO

Há uma forte segregação de papéis sexuais na família de orientação, uma vez que
as atividades domésticas são basicamente feitas de modo independente, e a maioria das
tarefas femininas e masculinas são diferenciadas. Esse grupo de mulheres, em seus
depoimentos, criticam esta estrutura familiar enquanto um sistema de dominação, onde a
figura feminina é vista sob dois prismas: o de vítima e o de cúmplice. Neste primeiro
instante, ela é recuperada em sua fragilidade, e, num segundo momento, é acusada por sua
subserviência. O pai também é criticado como fonte de autoridade e poder - a figura que
representa uma ordem de dominação. Há também, uma associação no desempenho da
maternidade e paternidade em termos de papéis sexuais. Os cuidados e a criação dos filhos
representam o exercício da feminilidade, onde a figura da mãe é percebida como o agente
emocional na família. O sustento do grupo familiar é tarefa da figura masculina, percebida
como figura reguladora.

2 - FAMÍLIA DE PROCRIAÇÃO

2.1 - REVISÃO BIOGRÁFICA


Conforme é feito no grupo A, descreve-se aqui a trajetória dessas mulheres até a
constituição da sua família de procriação. A revisão do período passado em suas famílias
de orientação tem a ver com as soluções e mediações apresentadas pelas mesmas em
relação a um novo projeto familiar após o casamento e a composição do ethos da
vanguarda. A discussão do projeto familiar, neste período das suas vidas, envolve uma
análise política do mesmo, assim como a sua aplicabilidade (salvo a situação de Bruna que
é descrita logo após).
Presas ao ethos familiar, mais tradicional, elas constroem mediações nos
pressupostos contestatórios do ethos da vanguarda sugerido até este momento em suas
biografias. Percebe-se que, na origem e no decorrer da constituição da família de
procriação, resta apenas deste ethos vanguardista de contestação, uma preocupação com a
leitura política dos papéis sexuais na esfera familiar. As interlocutoras experienciam,
então, na maior parte da sua trajetória social do casamento, um conflito com o ethos
familiar em que foram socializadas, em suas dimensões hierárquicas e tradicionais dos
papéis sexuais e laços de parentesco oriundos da sua família de orientação. Sugere-se que
a tentativa de manter parte deste ethos da vanguarda de contestação dos papéis sexuais na
família de procriação, tematizada na igualdade dos sexos, corresponda apenas a uma visão
de mundo modernizada que convive, no grupo B, com um estilo de vida ambíguo dentro
do jogo das fronteiras culturais tradicional/moderno, aplicado à estrutura familiar.
Neste momento, a revisão biográfica da trajetória social das mulheres do grupo B
desvenda alguns impasses: a busca de aplicabilidade, na constituição do seu projeto
familiar, de um ethos da vanguarda, e, através de suas noções modernizantes de
igualdade, liberdade e individualidade, levá-lo às últimas consequências, numa
reordenação em negativo da sua trajetória social de até então, ou relativizar este sistema de
representações, articulando o ethos familiar com algumas dimensões da postura
vanguardista-contestatório, para que ocorra a perda de uma posição sociocultural
importante nestes segmentos médios em nossa cultura, sugerindo-se uma “militância” em
alguns aspectos da sua trajetória social, mais especificamente, aquela que afeta a leitura
política dos sexos na família. Assim, as grandes questões são: evitar um casamento que
reproduza, no seu interior, o estilo de vida “burguês”, ou mesmo “pequeno-burguês” - o
que implica a busca de produtividade, status social, consumo de bens e símbolos, como
forma de obter afirmação econômica e prestígio social e um código moral familiar onde a
honra feminina é dada no controle da sua sexualidade.
Dentro deste projeto de vida, afirma-se a contestação no casamento mais como
visão de mundo do que como estilo de vida colocando-se ainda a redefinição dos papéis
sexuais, numa crítica à dominação entre os sexos e o “machismo”. O casamento supõe a
restrição do ethos de contestação a partir da reordenação e discussão do espaço familiar de
acordo com estas tematizações16, com implicações na consecução dos objetivos
vanguardistas de até então. O espaço do casamento não é negado, é antes dimensionado
como forma de modificar os códigos que compõem o ethos familiar, sem de fato romper
com seu estilo de vida. Assim é que o casamento deve conduzir à negação do estilo de
vida do grupo familiar sem abrir mão das vantagens materiais a ele associadas, ou seja,
carro, livros, viagens, educação sofisticada, um apartamento “agradável”, “bem transado”.
Neste ponto, é relevante a descrição do ethos da rede social na qual se move esse
grupo de mulheres durante este período da sua trajetória pessoal. Pode-se, então, verificar
que os hábitos sociais a que se acham acostumados o seu grupo de pares reproduzem de
muitas formas aqueles almejados por seus pais num projeto familiar, só que ainda
revestidos de uma “posição de vanguarda”. São estas aproximações, neste período, que
fundam a reordenação dos limites de atuação do ethos de vanguarda na trajetória social do
grupo B.
Beatriz, Beth e Betina se casam com 25, 23 e 25 anos, respectivamente, apenas no
civil, quase no final do Curso Superior, quando ainda estão subempregadas em estágios ou
“bicos”. Já não são mais virgens, apesar de “transarem” apenas com aqueles que serão os
seus maridos. O fato de perderem a virgindade fora de uma situação formal de casamento
dá um caráter de escolha a esta relação. No entanto, é admitido, posteriormente, que com a
permanência desses contatos sexuais, elas pensam que seus parceiros são “naturalmente”
seus maridos. Observa-se como Beatriz define esta situação: “A gente começou a trepar,
eu acho que comecei a me sentir casada com ele... tenho a desconfiança que com isto ele
já era o homem da minha vida. Sabe, como é... um compromisso até a morte. Nós íamos
naturalmente casar.” Da mesma forma, Beth: “Já tínhamos tido relações, o que me fez
pensar que eu era posse dele.” Embora relatem desta forma as suas relações com seus
parceiros, importante é que, na ocasião, elas admitem não ter consciência deste fato.

16
A proposta feminista no espaço do casamento refere-se, certamente, ao fato de algumas destas
interlocutoras terem participado da organização do movimento feminista em Porto Alegre. Neste sentido, é
interessante observar a presença de um discurso feminista com base numa ideologia individualizante, onde a
categoria feminino é definida enquanto indivíduo ético e moral. A este respeito, ver “Antropologia e
Feminismo”, in Perspectivas Antropológicas da Mulher.
O casamento, portanto, ocorre numa situação de indefinição profissional e social,
quando ainda estão cursando a faculdade e morando com os pais. A renda do casal passa a
ser obtida através de “bicos” profissionais e do emprego do marido. Neste fato, a revisão
biográfica do projeto familiar torna-se, na realidade, uma reprodução, com algumas
nuanças, da situação feminina de dependência econômica, agora não mais dos pais, mas
do marido (de certa forma equivalente ao grupo A).
Com o casamento, a busca de uma individualização do grupo familiar é proposta
através da construção de um modelo de família mais nuclearizada e de um projeto com
base em princípios individualizantes ao nível da trajetória feminina. No entanto, o
desempenho de papéis sexuais na família de procriação e a divisão sexual do trabalho
apontam progressivamente para a reprodução das condições estruturais da família de
orientação, que discrimina um lugar para a realização do ethos feminino - o espaço
doméstico com os cuidados com a prole, no qual a experiência com a maternidade é
determinante.
Portanto, em termos do ethos feminino para este grupo, a revisão biográfica com o
casamento envolve o seguinte impasse: a radicalização progressiva da busca da
individualidade feminina no interior da família mais nuclearizada, criando zonas de
conflitos, por um lado, com seus parceiros, e, por outro, com o grupo familiar, forçando os
limites simbólicos das fronteiras culturais dos papéis sexuais e laços de parentesco na
família, ou o redimensionamento dos códigos e valores de sua família de orientação, bem
como dos laços de parentesco, suavizando-se aí, a discussão dos papéis femininos e
neutralizando-se possíveis zonas de conflitos e danos no seu padrão de consumo.
No nível do projeto familiar de origem, o casamento envolve a revisão biográfica
da trajetória “contestadora” e do próprio ethos de vanguarda, pela necessidade de
manutenção de um estilo de vida, padrões de consumo e hábitos culturais que,
especificamente, um projeto de afirmação do status social pode viabilizar. A nuclearização
da família de procriação, que representa uma proposta de garantir a independência de
códigos e valores tidos por seu grupo de pares como “conservadores”, é relativizada - a
influência do ethos da vanguarda passa, agora, de uma ótica de política militante, para
outra proposta como um exercício existencial, sendo experienciada na subjetividade e
interioridade do sujeito face ao parceiro, em sua dimensão familiar. Há um
distanciamento do estilo de vida proposto, a ponto de o ethos vanguardista reduzir-se, tão
somente, a fragmentos modernizantes da visão de mundo dessas mulheres. Beatriz define
o sentido da revisão biográfica com relação ao seu projeto familiar inicial e aquele que
resulta após o casamento: “Nós dois estudamos em colégios excelentes, maravilhosos...
pessoas preparadas para a profissão. Só que até um certo ponto – daí, então, ele continuou
e eu parei.” A pressão do ethos tradicional, dominante no meio social das jovens recém
casadas, tende a alterar, num segundo momento, a composição deste ethos de “vanguarda
existencial”, desta vez na família de procriação, conduzindo este grupo a uma
aproximação progressiva com a estrutura tradicional dos papéis sexuais e laços de
parentesco na esfera familiar.

2.2 - PROJETO FAMILIAR

a) RELEVÂNCIA

O casamento, em termos de relevância para este grupo de mulheres, indica a


continuidade de um estilo de vida urbano, persistindo alguns aspectos de contestação que
são apontados na trajetória do casal, mais especificamente em termos de seus primeiros
anos de casamento, no campo da atuação profissional de ambos. Os testemunhos
referentes à constituição do núcleo familiar, neste período, indicam a relevância do uso da
categoria indivíduo como ponto central da redefinição do espaço familiar e do papel
feminino. Isto contrasta com a noção de indivíduo que tais mulheres associam ao espaço
da sua família de orientação, a qual é vista como algo subordinado a uma ordem familiar
descrita como altamente hierarquizada, com laços fortes de dependência e reciprocidade
ao nível dos parentes.
Neste sentido, o casal recém-formado busca se colocar como independente da rede
social dos parentes - definindo o projeto familiar de orientação como conservador - e
associando ao projeto familiar de procriação uma ideia de modernidade. Alguns princípios
contestatórios são identificados, sendo utilizados como forma de avaliar a proposta
política de ambos os projetos familiares: um, associado a uma ordem social tradicional é
denunciado na sua função “reacionária”, o outro, pensado enquanto modelo progressista e
libertário.
Num primeiro momento, rejeitando se inserir num mercado formal de trabalho,
tendo em vista a negação de um ethos da produtividade, o casal, no início da vida
conjugal, não consegue manter seu padrão de vida. Então, suas preocupações políticas
passam a ser refeitas, e a maioria dos princípios que compõem o seu ethos da vanguarda é
pouco a pouco redimensionada, quando não abandonada. Progressivamente, reavaliando a
sua posição social, refazem, com o casamento, o projeto familiar de contestação a uma
moral “burguesa” e uma estrutura de poder familiar.
No entanto, durante o casamento, essa mulheres não atingem, de fato, um processo
de profissionalização. Isto ocorre somente quando o casamento já se acha ameaçado na
sua própria estrutura. Observe como esta situação é vista por Beatriz: “Tivemos todo um
preparo para batalhar a nossa vida profissional, como os homens. Por outro lado, tivemos
um preparo para a casa que eles não tiveram. Quando chega a competição, eu vejo que
tenho todo o preparo para cuidar dos filhos, da casa.” As ambiguidades no enfrentamento
da competição profissional demonstra como é marcante para o ethos feminino, neste
grupo, a noção de mulher como sujeito encompassado pelo núcleo familiar.
Particularmente para o ethos feminino neste grupo, torna-se relevante, com o casamento, a
resolução de alguns impasses na divisão sexual do trabalho na família, de modo a
harmonizar um desempenho adequado do papel de esposa e mãe, com a realização
individual a partir da afirmação da mulher como profissional competente.

B) MOTIVAÇÃO

Apesar das contradições, o casamento é construído em função de um projeto


individualizante de família nuclearizada, onde, basicamente, o casal tenta articular sua
vida familiar de modo independente face aos laços de parentesco. A procura desta
separação da rede social de parentes reforça a constituição de um projeto de casal
desvinculado, do controle social familiar, e, portanto, com menos comprometimento com
um estilo de vida que propõe o consumo e o sucesso como forma de obtenção de prestígio
social. Assim, a motivação que compõe a constituição da família de procriação, para o
caso deste grupo, acena para a instabilidade e a fraqueza dos pressupostos contestatórios e
vanguardistas desenvolvidos até o casamento e sua rede social.
Esta fragilidade se expressa na forma como este grupo define as aproximações com
sua família de orientação, evitando contatos intensivos ou expressivos no sentido do grupo
familiar não “contaminar” as ideias de liberdade e individualidade veiculadas na
constituição do projeto que inclui a família de procriação das interlocutoras. O
afastamento físico ou geográfico é encarado como expressão de um afastamento
ideológico do grupo familiar, recolocando-se neste processo, alguns aspectos da trajetória
familiar desse grupo de mulheres na sua fase de adolescência. A aspiração a um ethos da
vanguarda, no entanto, constrói-se face aos limites socioculturais descritos nos pontos de
relevância constitutivos deste projeto familiar. Relevância e motivação não se traduzem,
neste grupo, assim como no grupo A, num todo coerente e organizado, capaz de se revelar
como um projeto de vida consistente e eficaz.

2.3 - ESTILO DE VIDA

O estilo de vida durante o casamento recoloca as questões delimitadas


anteriormente. Todas as informações continuam trabalhando em “bicos”, após o
casamento, reduzindo a atividade profissional para dedicarem-se à organização do espaço
doméstico, o que as diferencia do grupo de status A. No inicio do casamento, elas
possuem um círculo social bem extenso. A busca de atividades culturais é uma constante:
vão a shows, teatros, reuniões de caráter político-culturais. Todas têm, em sua rede de
amigos, artistas e intelectuais, participando na vida cultural da própria cidade. Mais
especificamente, antes do nascimento dos filhos, a vida social do casal é muito
diversificada e agitada, saem quase sempre à noite, chegando a classificar a casa como um
“hotel” ou “ponto de encontro”. Com o nascimento dos filhos, estas atividades diminuem,
sendo esta diminuição mais intensa para as mulheres do que para seus maridos.
No caso desse grupo de mulheres, há, portanto, dois pontos básicos a serem
ressaltados no casamento e no estilo de vida: o antes e o depois da maternidade. Como
Beth mesmo diz: “A minha casa era um hotel para mim, quando o F. nasceu foi que eu
entrei para dentro de casa.” O primeiro momento do casamento é uma situação de
transitoriedade na formulação do projeto familiar. Existe o casal independente, com uma
rede social constituída com base na amizade, ainda não inserida plenamente no mercado
formal de trabalho, etc. Com o nascimento dos filhos, a ideia de uma família
verdadeiramente nuclear torna-se mais presente juntamente com a necessidade de
afirmação especifica de um estilo de vida.
A partir deste momento, elas se afastam desta rede social, dos encontros e reuniões,
das atividades culturais e centram suas atividades na socialização dos filhos e nos cuidados
com a casa. Os amigos do casal passam a pertencer basicamente à rede social do marido,
afastando-se do seu grupo particular de amigos e suas atividades sociais. Se antes o
mobiliário da casa não importava, os horários não são obedecidos e a limpeza não é
preocupação, com o aparecimento dos filhos, este ethos familiar se redefine, assim como
os papéis sexuais. As principais razões apontadas são as responsabilidades com as
crianças, a preocupação com o seu futuro, com a forma de educação, as discussões das
eventuais reuniões e encontros com amigos, centram-se nos valores a serem firmados na
socialização da prole, que também entende uma discussão política e intelectual, tanto por
parte delas como do seu marido. As discussões se alargam para os grupos de amigos, e
suas implicações passam a ser analisadas basicamente pelas mulheres, numa situação
avaliativa do seu papel feminino.
É quase ao final deste processo de questionamento que acontece a separação, sendo
que todas as mulheres aqui ouvidas buscam ajuda profissional de psiquiatras e
psicoterapeutas para poderem dar conta das metamorfoses entre o seu projeto de vida, a
partir da sua família de orientação, e as modificações ocorridas com o seu projeto
individualizante na busca da constituição de uma unidade familiar mais nuclearizada. Até
aqui, na trajetória deste grupo não está incluída a experiência familiar de Bruna, uma vez
que para ela, o casamento é a busca da afirmação de um status social, estando a sua
trajetória muito próxima à do grupo de status A. Seu estilo de vida, após o casamento, não
acompanha a trajetória das outras mulheres do mesmo grupo, ficando esta limitada às
atividades domésticas ou trabalhando fora, conforme as crises financeiras do casal. Como
projeto, o casamento propõe um tipo de estrutura familiar com base na noção do casal
mais “segmentado” do grupo familiar. No entanto, o seu estilo de vida reproduz de perto a
trajetória familiar. Após o casamento, ela e o marido vão residir no mesmo bairro que
seus pais, que também são vizinhos, permanecendo este meio social como referência
mesmo após alguns deslocamentos do grupo familiar em função da atividade profissional
do marido. Nos momentos de crise do casal, os cônjuges sempre solucionam seus
impasses econômicos indo residir com os pais de um ou de outro. Pode-se afirmar que,
com o casamento, Bruna reproduz, em sua trajetória social, um tipo de família extensa, ora
com a família do marido, ora com a sua. A instabilidade econômica e a alteração de status
na família de procriação de Bruna é uma das marcas no seu estilo de vida, representada
por crises de consumo, crises de valores e problemas conjugais, reproduzindo, de certa
forma, a insegurança econômico-social do seu grupo de origem e as ambivalências deste
laço de parentesco.
A definição do estilo de vida do casal, neste período, envolve uma redefinição
constante nos padrões de consumo e na sua visão de mundo - modificados pelas condições
de sobrevivência - e uma reorganização nos laços familiares. O que se percebe, de modo
geral, no relato dessas mulheres, é o afastamento do grupo familiar, através da proposta de
“nuclearização” da família de procriação, e a predominância da noção de indivíduo
desvinculada da totalidade dos laços e compromissos de parentesco, sendo que isto tende a
ocorrer, basicamente, quando a situação econômica do casal se acha estável. Caso isto não
ocorra, a tendência é a afirmação do código da aliança familiar e da sobrevivência da
noção de indivíduo definida a partir desta totalidade.

2.4 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO

Conforme relatado anteriormente, três das interlocutoras, todas elas pertencentes a


esse mesmo grupo de status, desenvolvem, em sua rede de relações sociais, uma norma de
conduta que busca um afastamento do código de aliança (sua ética e moral), centrando-se
na noção de amizade, que passa a funcionar como valor predominante. A ideia de escolha
na composição da sua rede social está associada à opção, de acordo com uma noção
moderna (logo, considerada pelo grupo como não reacionária) e progressista de indivíduo.
De acordo com Velho (1981, p. 08), isto é importante, na medida em que a valorização e a
possibilidade de escolha reforçam a auto-percepção do indivíduo.
Os laços de parentesco são contrapostos à ideia de autonomia do indivíduo e sua
liberdade, e novamente, observa-se aqui, que o fundamental para a estrutura da rede de
relações sociais, para este grupo, é a noção de direito individual, associada a uma ideia de
tradição, e politicamente, a uma ordem social reacionária. No entanto, a análise dos
testemunhos revela que, apesar de construírem uma rede social com base na amizade
como solução na busca de um novo estilo de vida, através de um discurso modernizante,
as mulheres desse grupo de status, assim como seu grupo de amigos, retornam às ideias e
valores de uma ordem burguesa, uma vez que é a noção de indivíduo que é tomada como
centro das suas concepções.
É na maternidade, basicamente, que estas contradições são mediatizadas. O
cuidado com a prole é concebido como um desempenho especificamente feminino.
Recebendo ajuda através da rede social de parentes e seus laços de reciprocidade, as
interlocutoras da pesquisa, sem exceção, retomam os vínculos com suas famílias de
ordem, utilizando-se destes para o seu desempenho na maternidade. Quando Beatriz tem
seus dois filhos, a mãe ajuda nos primeiros tempos. Beth, que neste período da sua vida
está em Brasília, hospeda a mãe na sua casa por certo período de tempo, até sentir-se
“adaptada” as suas novas funções. Betânia, que nesta época mora na Inglaterra, obtém
assistência pelo programa de apoio à maternidade desenvolvido pelo governo daquele
país. Quando retornam à Porto Alegre, buscaram auxílio nas suas irmãs e mães, nos
cuidados com os filhos. A rede de solidariedade feminina na família, neste momento, é
estimulada, redefinindo-se, por sua vez, o projeto de individuação familiar. Para Bruna, a
situação é outra. Seu estilo de vida, após o casamento, constrói-se concretamente sobre
uma rede social com base no parentesco e na vizinhança, mais do que na amizade.
Para este grupo de mulheres separadas, a rede social, numa primeira fase do
casamento, se apresenta temporariamente como uma rede de malha frouxa. Mais tarde,
com a redefinição dos papéis conjugais, especificamente, a partir da maternidade, ela se
caracteriza como rede de malha estreita, com base mais no parentesco do que na amizade,
tornando-se mais restrita que no inicio da vida do casal.

2.5 - PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO

Embora negados por Beatriz, Beth e Betina, os modelos tradicionais de papéis


sexuais na família, se delineiam ao longo da trajetória familiar das mesmas. Na fase inicial
do casamento, as tarefas domésticas são realizadas conjuntamente, definindo-se, então,
uma divisão de papéis sexuais não hierarquizados, numa relação de papéis conjugais
conjuntos. Isto significa que o casal consegue, por um determinado período de tempo, ter
muitas atividades conjuntas com um mínimo de diferenciação de tarefas e separação de
interesses (Bott, 1976, p. 72). Esta época da vida do casal refere-se à fase em que ambos
estão terminando seus cursos de graduação (Beatriz e Betânia) ou vivem numa situação
transitória de vida profissional (o caso de Beth quando mora no Chile).
Neste período, os papéis sexuais ainda não estão estruturados a partir de laços de
parentesco, tornando-se esta situação diferente após o nascimento dos filhos. É justamente
neste momento que os conflitos do casal aguçam-se no nível dos papéis sexuais pela
aproximação com as famílias de orientação. Estas observações são acompanhadas por
estudos feitos por Salem (1981, p. 20) sobre a constituição do casal grávido, onde a autora
comenta: “A relação do casal com os núcleos de origem também sofre modificações
significativas após o nascimento do bebê.” Neste sentido, tudo se passa como se o
triângulo projetado de mãe/pai/filho corresse o risco de ser preterido pelo arranjo entre
avó/mãe/bebê (Salem, 1981, p. 21)
Por decorrência, nesse grupo de mulheres descasadas, a ideia de uma imprecisão na
divisão sexual do trabalho familiar é reconsiderada em função de uma diferenciação e
assimetria entre os papéis sexuais. A reprodução resulta na valorização dos laços de
consanguinidade através do desempenho da maternidade, implicando nisto, uma revisão
do ethos feminino. O papel de mãe para elas envolve uma redefinição no espaço
doméstico, tornando as atividades familiares organizadas no sentido da independência
entre as tarefas masculinas e femininas. Ou seja, o desempenho da maternidade ocasiona
uma divisão sexual do trabalho, ao nível da família de orientação. A figura feminina passa
a se definir pelo desempenho dos papéis de esposa e mãe, atuando de modo predominante
no espaço doméstico através da sua função de agente emocional do casal, ficando a figura
masculina restrita basicamente à função provedora. Os papéis sexuais tendem a se
estruturar de modo segregado e diferenciado.
Há, portanto, a partir deste período, uma forte segregação no desempenho dos
papéis conjugais. Neste sentido, a situação passa a ser vivida por este grupo de mulheres
descasadas, com aproximações ao grupo A, segundo os limites expressos por um código
moral que propõe para o ethos feminino uma função nutriente, (Abreu, 1983) através da
maternidade, e para o ethos masculino uma função de provedor17 (Durham, 1983), em
conflito com as representações igualitárias para os papéis sexuais na família. A
responsabilidade com a prole, sendo uma obrigação típica do desempenho do papel
feminino na família de orientação, passa a ser resgatada na família de procriação da
mesma, para a solução de crises conjugais advindas dos impasses no seu modelo familiar,
que propõe uma individualização para ambos os cônjuges e uma redefinição dos vínculos
conjugais18. Tomando por parâmetro a situação de uma profissionalização incompleta,
frente às exigências de cuidados com a prole, elas revisam um modelo familiar e se
aproximam do código de aliança, com o predomínio dos laços de parentesco, que lhes
possibilita o desempenho da maternidade de modo adequado ao novo ethos feminino.
Mantém-se, ao fundo, a busca de uma adequação entre a maternidade e a continuação de
um projeto feminino de individualidade.

17
A ideia de se utilizar, nesta descrição, os conceitos de função nutriente e função provedora para
demonstrar a oposição das categorias feminino e masculino nos depoimentos das mulheres, refere-se às
caracterizações feitas por Abreu (1983) e Durham (1983). Quanto ao primeiro, na análise do Mito de D.
Beija, este afirma que a personagem, após o nascimento da sua filha, demonstra, em relação ao passado, sua
capacidade de gerar a vida, revelando sua função nutriente ligada ao código da maternidade (1983, p. 91).
Isto propõe, de certa forma, o predomínio do papel socializador feminino e sua função geradora. Semelhante
caracterização contrasta com aquela feita por Durham quanto à categoria masculina, dada a partir da sua
função provedora, e que define, segundo o modelo tradicional de divisão sexual do trabalho, que o trabalho
remunerado é função do marido, chefe de família, que provê seu sustento (1983, p. 33).
18
De acordo com a análise de Durham (1983), o vínculo conjugal tende a ser revisto em função das ideias
igualitárias que exigem a participação tanto do homem como da mulher no processo social da reprodução
humana, participação essa que o vínculo conjugal concretiza e legitima (1983, p. 42). Isto é particularmente
verdade para este grupo de mulheres, tendo em vista seu projeto de individualização feminina no espaço
familiar e revisão dos papéis sexuais no seu interior.
No entanto, progressivamente, a responsabilidade com a prole passa a ser fonte de
conflito para o casal, significando um sério obstáculo ao seu projeto inicial de
individualização dentro do núcleo familiar constituído para elas. Estas responsabilidades
passam a ser cada vez mais divididas com a mãe, e/ou, irmãs, sendo a participação
masculina praticamente inexistente, dedicando-se o marido quase que totalmente ao papel
de provedor. Os conflitos gravitam ao redor do projeto familiar construído pelo casal após
o casamento, onde é proposta a individuação dos laços de parentesco, referidos à noção de
família extensa. Está presente o projeto de casal considerado mais como unidade
autônoma e individualizada. Observe-se como Beth descreve esta situação: “Quando eu
casei, meu marido insistia para eu largar o serviço: não havia necessidade de trabalhar
fora.” A maternidade, no entanto, é apontada nos testemunhos como um momento de
redefinição dos papéis sexuais na família, a partir de um modelo hierárquico, tendo sido
aceita por elas a necessidade de retornar ao grupo familiar como forma de mediar sua
vinculação ao espaço doméstico e de possibilitar um engajamento, pelo menos parcial, à
esfera pública.

A maternidade é uma opção, fazendo parte do seu projeto de vida no casamento.


Consideram esta experiência importante para a noção de feminilidade, sendo negadas
quaisquer associações com as crises do casal. Significa um projeto consciente, onde o
corpo e a singularidade da mulher são considerados fontes de identidade de sexo-gênero
feminino. Todas as interlocutoras, sem exceção, descrevem a maternidade em termos de
perplexidade com a naturalidade do processo e com o fato disto estar acontecendo ao seu
corpo e a si mesma. Todas fazem cursos psicoprofiláticos, e, em alguns momentos do
curso, os maridos chegam a acompanhá-las. Como projeto familiar, na gravidez, há
esmaecidamente, a idealização do casal grávido (Salem, 1983), isto é, em parte, o
processo de gravidez significa, ao nível do casal, uma acentuada valorização do privado,
do íntimo e do afetivo19. Para elas, diferentemente daquelas do grupo A, o exercício da
maternidade implica a revisão do ethos feminino, uma vez que o desempenho da
paternidade não corresponde ao previsto no projeto familiar e àquele construído no
casamento. Isto é, em contraste com o grupo A, propõem uma redefinição do espaço
doméstico através da crítica à divisão sexual do trabalho na família, que conduz a mulher à
esfera do doméstico e o homem à esfera pública. Tendo em vista à proposição de um

19
O momento da gravidez implica, para estas mulheres, um projeto a dois, afirmando um estímulo
consciente à contração da sociabilidade, no que diz respeito à relação com a família de origem (SALEM,
1983, p. 12).
projeto de maior individualização e independência feminina na esfera pública e uma
autonomia mais ampla do casal em relação ao grupo familiar, deve haver uma redefinição
para a atuação masculina. No entanto, tal fato não se concretiza.
O nascimento dos filhos cristaliza os impasses e contradições do projeto familiar
do casal. Nesta medida, o período relativo ao puerpério é descrito como um período
crítico, onde a figura feminina possui caráter ambíguo, por um lado, em termos da busca
da sua singularidade e profissionalização, e, por outro, quanto à função social englobadora
no desempenho da maternidade e também em função de uma proposta individual de
família nuclearizada e individualizada, assim como o código de aliança e reciprocidade
dado através do parentesco, do rompimento de uma ordem familiar autoritária, baseada na
hierarquia entre os sexos e a afirmação de um projeto familiar onde os papéis sexuais são
refeitos e discutidos de forma a permitir a individualização plena dos seus elementos.
Na realidade, o conflito familiar básico que se delimita entre, de um lado, a livre
expressão da individualidade, que enfraquece o vínculo conjugal e, de outro, a
responsabilidade conjunta em relação aos filhos comuns, que exige seu fortalecimento
(Durham, 1983, p. 40). Neste processo, os laços de consanguinidade, o sentimento de
maternidade, a divisão dos papéis sexuais na família e a sua ordem moral, definem os
limites das fronteiras simbólicas da incorporação de um ethos individualista, no
desempenho do papel feminino na família.
Para Bruna, em especial, os conflitos na relação do casal estão associados às crises
econômicas, que traduzem, em última instância, as frustações familiares de ascensão e
prestígio social. Estas crises econômicas afetam a ordenação dos papéis familiares, os
quais obedecem a uma organização independente de tarefas, numa estrutura altamente
segregada entre as atividades femininas e masculinas. As crises econômicas ocasionam
dois tipos de conflitos básicos: o casal, ao ser englobado na família extensa, é obrigado a
refazer os laços sociais da sua família de procriação. Neste momento, vão residir com os
pais dele ou dela, o que certamente torna as relações familiares mais conflituosas, devido à
ideia de fracasso de um projeto de melhoria de status social. Por outro lado, no nível dos
papéis sexuais, a situação de precariedade obriga os cônjuges a aceitarem um
redimensionamento nas tarefas familiares, com as mulheres indo trabalhar fora para ajudar
no sustento da família, o que resulta, muitas vezes, na inversão da hierarquia entre ambos.

3 - SEPARAÇÃO - REDEFININDO A FAMÍLIA


3.1 - REVISÃO BIOGRÁFICA

Assim como no grupo anterior, no período de separação essas mulheres também


redefinem seu passado, tanto na família de orientação quanto na de procriação, em função
das alterações da sua identidade social advindas do processo de descasamento. A
separação é tomada aqui em função da revisão, enquanto um processo de mudança de
status social, em sua condição feminina e trajetória de classe. A experiência de
alternação20, que surge a partir da separação, na delimitação da identidade social das
mulheres separadas no caso do grupo de status aqui mencionado, remete às informações
reunidas até aqui, a respeito das alterações e conflitos em termos do seu projeto familiar e
individual, em função da condição sexual e situação de classe.
No momento da separação, 3 delas já haviam passado por um processo de
psicoterapia, o que indica que já possuíam experiência de um processo peculiar de revisão
biográfica. É importante ser ressaltado que este processo terapêutico tende a enfocar o
indivíduo como sujeito ético e moral, afirmando, deste modo, uma ideologia individualista
típica de um meio social urbano e modernizado. De acordo com Velho (1983, p. 2), a
ideia de psicologização da sociedade procura, justamente, dar conta do que seria um
processo generalizado em que o sujeito psicológico passa, de fato, a ser a medida de
todas as coisas.
A descrição a ser desenvolvida neste momento deve, portanto, resguardar estas
especificidades, além do fato de os próprios depoimentos das mulheres submetidas a um
processo de separação terem o sentido de reinterpretar seu casamento, de modo a explicar
a própria separação. Assim, os acontecimentos que antes constituíam motivo de orgulho,
agora não passam de episódios embaraçosos na pré-história de uma pessoa (BERGER,
1976, p. 67). Das quatro interlocutoras, apenas Beatriz inicia o processo de separação, as
outras assumem-no a partir da proposta de rompimento por parte do marido. Mesmo
assim, para elas, a separação não se constitui, inicialmente, num projeto de
individualização. Buscam, sim, esta saída face às necessidades e implicações de uma
decisão externa.
No entanto, neste grupo, em comparação ao anterior, a separação é
progressivamente tematizada pelo casal, à medida que as crises conjugais acontecem.
Mesmo fazendo parte de uma possibilidade de vida para ambos, ela não é procurada como

20
Sobre o conceito de alternação, ver Berger (1976) “Excurso: Alternação e Biografia”, in Perspectivas
Sociológicas.
projeto de vida pela maioria das interlocutoras aqui mencionadas. Os impasses, apontados
no casamento e que culminam na separação, têm muito a ver com a frustação de um estilo
de vida, que estabelece, em suas origens, uma proposta política de rompimento com as
relações familiares e com os papéis sexuais tradicionais na sua família de orientação.
Como já está afirmado, não se busca o rompimento com um status social, ou mesmo com
uma posição de prestígio social, associado a sua situação de classe. Principalmente, em
função dos valores preconizados pela rede de amigos, o que se coloca como fato relevante,
isto sim, é a transformação dos princípios contestatórios em termos de “militância
existencial”21, que permite a sobrevivência deste status no espaço do casamento, onde se
apresenta um “clima” de vanguardismo. O fracasso deste projeto de vida implica, tanto
para a rede social dessas mulheres , quanto para elas mesmas, a frustação de um modelo
“alternativo” de família, assim como a revelação dos limites simbólicos das fronteiras
culturais do processo de nuclearização do espaço da família e da absorção de uma
ideologia individualista, no nível dos papéis sexuais.
Os conflitos conjugais apontados, e que culminam com o processo de separação,
localizam-se, basicamente, no desempenho de papéis sexuais na família. A frustação por
terem reduzido, ou abandonado, suas atividades profissionais em função do processo de
maternidade, a acusação de falta de companheirismo do cônjuge, o seu afastamento
progressivo do espaço de intimidade do casal em busca de uma maior profissionalização, a
sujeição às decisões do marido e suas atividades profissionais, principalmente face à
necessidade de progredir no mercado de trabalho, de modo a legitimar o status do seu
grupo social, todas estas acusações fazem parte do sistema de queixas associado à atuação
do ex-marido na família. À figura do homem no desempenho dos papéis masculinos do pai
e marido, dentro de princípios igualitários e individualistas, sugere o desempenho
consciente e responsável das suas atividades familiares, tanto quanto das atividades que
este realiza na esfera pública. No entanto, esta expectativa em relação aos seus parceiros
não se cumpre, a não ser na fase inicial do casamento, antes de surgirem os filhos.
O sistema de queixas apresentado por esse grupo de mulheres está referido nos
limites do status da vanguarda, aplicado às relações familiares e à expressão que o valor
da igualdade dos sexos e liberdade/individualidade feminina formulam nas fronteiras
culturais do espaço social da família. Não há uma adequação entre a estrutura hierárquica
que toma forma no projeto da família de procriação neste grupo de mulheres - invadindo a

21
A ideia de militância existencial tem a ver com a proposta deste grupo no sentido da politização do
cotidiano, tematizando o dia-a-dia e as atitudes privadas, propondo-se aí condutas alternativas.
dimensão contestatória do seu estilo de vida após o casamento - e os princípios modernos
e igualitários das relações familiares que se constituem nas suas trajetórias familiares.
Certamente, o movimento de desgaste e disfunção de um modelo de família
conjugal, com a ideia do casal individualizado, corresponde a outro, que as direciona no
sentido de reverem este ethos da sua família de procriação, a partir dos laços de
reciprocidade com seu grupo familiar, no sentido de se buscar apoio para enfrentar parte
dos impasses deste modelo. A situação típica onde estes laços são retomados corresponde
ao processo de maternidade, que reforça os vínculos com a família extensa. Se, por um
lado, as aproximações com o grupo familiar de origem solucionam certos impasses da
organização do casal numa família nuclearizada, por outro, comprometem este código
ético que propõe uma individualização em relação à família extensa (Velho, 1981, p.
119).
Com relação às progressivas crises do casal e a aproximação das mulheres com seu
grupo familiar, é importante citar alguns exemplos. Beth passa praticamente por duas
sérias crises antes da separação definitiva, sendo que, nos dois casos, ela ainda não mora
em Porto Alegre. Em todas as situações, como no momento da sua separação definitiva,
ela sempre retorna à Porto Alegre, onde sua família reside. No momento decisivo da
separação, é através da influência de parentes que ela consegue uma colocação
profissional. No caso de Bruna, a separação resulta na sua fixação na casa dos pais,
voltando a residir com sua família de origem. De modo geral, é possível perceber a
importância referencial da família de orientação após a separação, através da observação
dos deslocamentos espaciais que essas mulheres realizam em função de estabelecer
residência próxima ao grupo familiar.
A partir da atuação de uma percepção seletiva22, após o processo de separação, as
interlocutoras recuperam os instantes de vida familiar em que elas pensam na
possibilidade de separação. Isto se torna importante no dimensionamento de uma nova
identidade social - mulher separada - pois reconstitui a noção da escolha individual a partir
de um processo individualizante, em que, repentinamente, acham-se envolvidas durante a
separação. Para este grupo de mulheres, não chega a ocorrer um nítido processo de
acusação social por parte dos familiares e amigos, ao seu comportamento especifico
durante a separação. O que acontece é uma acusação ao ex-marido, como aquele que não

22
A noção de percepção seletiva, segundo Berger (1976, p. 66), significa que o ator social diante de um
número quase infinito de coisas que poderiam ser notadas, só observa aquilo que tem relevância para os
objetivos imediatos.
cumpre adequadamente seu papel masculino no casamento. Estas ocorrências podem estar
associadas ao fato de que, de acordo com o projeto familiar, o ethos feminino foi
cumprido: as mulheres após o casamento restringem sua atividade no mundo público,
dedicando-se à maternidade, acompanhando seus maridos quando estes decidem
aperfeiçoar sua vida profissional, realizando suas funções de esposa, além do que, não são
elas que iniciam o processo de ruptura. No caso de Beth, ela própria age como mediadora
neste processo de acusação social: “Tive que convencer meu sogro de que nossa relação
não era mais possível. Ele culpava e acusava-o de ter desagregado a família.”
A rede social de amigos, após a separação, redefine-se: os amigos comuns
particularizam-se, buscando, além disto, uma situação ética de distanciamento ao ex-casal.
O processo de separação passa a ser tematizado, politica e intelectualmente, por esta rede
social. O convívio dos ex-casados, ou os relacionamentos amorosos destes com qualquer
outro membro do grupo, é visto sob um ângulo político, em termos de caracterizar o estilo
de vida desta rede social de acordo com uma posição moderna, aberta e progressista.
Conforme descreve Beth: “Eu sinto atualmente a minha responsabilidade sobre o meu
estado de espírito. Isto não me passava pela cabeça antes.” Da proposta de um casal mais
nuclearizado, independente e moderno que regia o período da formação da família de
procriação, surge à busca de definição de um estilo de vida que leve ao surgimento do
indivíduo absoluto, ser um indivíduo 'livre', sem amarras, senhor absoluto do seu destino,
um verdadeiro demiurgo (Velho, 1981, p. 91). Se, para esse grupo de mulheres, o
casamento precisa ser o foco de tematização e politização do cotidiano, da contestação de
um ethos feminino de subordinação familiar, a separação se torna o centro do processo de
afirmação da subjetividade e interioridade individual,

3.2 - PROJETO FAMILIAR

A) RELEVÂNCIA

A descrição deste momento na trajetória social das interlocutoras da pesquisa tem a


ver, particularmente, com a revisão do ethos da família de orientação e de procriação, em
termos dos aspectos relevantes que são apontados para o rompimento da situação do
casamento e da construção de um projeto individual na separação. Com relação à família
de orientação, torna-se importante, após o processo de separação, a recuperação dos laços
de reciprocidade e do código da aliança, que permitem a tais mulheres, auxiliadas por uma
rede familiar e social de solidariedade feminina23, romper com uma divisão de papéis
sexuais que define o feminino como exclusivamente doméstico e maternal. Apesar de
todas elas terem, no momento da pesquisa, empregadas ou babás, as viagens de fins de
semana são programadas tendo em vista o lazer dos filhos na casa dos avós. No caso de
qualquer imprevisto, é a família delas que assume os encargos com a prole, o pai é
procurado eventualmente, ficando os seus contatos restritos aos encontros de fins de
semana.
Com relação ao ethos feminino, o desempenho consciente da maternidade é
apontado como importante, uma vez que é percebido como fator de responsabilidade e
coerência com suas noções de dignidade e direito individual. A maternidade se torna
importante, neste momento, menos pela revelação da natureza feminina, do que pelo
caráter político que a socialização envolve. A função socializadora feminina torna-se, para
o referido grupo, fonte de transformação da própria sociedade. O processo de inculcação
de valores e comportamentos é discutido ao nível do desempenho da maternidade,
enquanto projeto de transformação social. A tematização deste processo, por outro lado, é
associada à reconstrução de alternativas do papel feminino que existe na sua família de
orientação, as quais assumem no casamento, onde a figura materna é percebida como uma
figura sem poder.

B) MOTIVAÇÃO

A separação, neste ponto, acarreta na retomada de um projeto de individualização


onde as dificuldades com a maternidade são percebidas enquanto singularidade da
condição feminina na atual sociedade: “as exigências da maternidade não se alteraram
com a separação, sempre estiveram comigo”, segundo Beatriz. A separação não acarreta,
necessariamente, na revisão do papel de mãe e seu lócus central, pelo contrário, este pode
23
A noção de solidariedade feminina refere-se, seguindo as ideias de Lamphere (1979, p. 121), à situação de
mulheres que, pertencendo ao grupo doméstico, dividem interesses comuns e se unem na solução de
problemas, na medida em que estes apareçam nas atividades diárias, tais como criar os filhos, cozinhar,
costurar e mesmo cultivar e colher produtos alimentícios. Estas colocações relacionam-se à cooperação e ao
interesse comum existente entre as interlocutoras e as mulheres do seu grupo familiar, após o nascimento dos
filhos, e a uma revisão no modelo de família nuclearizada. Esta autora, no entanto, afirma a cooperação entre
mulheres de grupos sociais onde a relação conjugal nunca se sobrepõe totalmente à mãe-filha, ou também,
quando os grupos domésticos são estruturados em torno dos vínculos femininos, apoiados por uma
valorização maior do papel de mãe (1979, p. 128).
Para este estudo, no entanto, a cooperação tende a surgir a partir de um impasse no modelo de família
nuclearizada, e de seus papéis sexuais, que levam estas mulheres a lidar com os problemas domésticos
através dos vínculos femininos, sobrepondo-se à relação conjugal e criando zonas de conflito entre a
fidelidade à família extensa e à nuclearizada.
ser recuperado como um aspecto social estruturante da identidade feminina neste grupo
social. Beth afirma: “Agora eu acho que minha família é meu núcleo: eu e meus filhos.”
Em termos de motivação, as responsabilidades com a prole são associadas de modo
ontológico à definição da categoria feminina. No nível do ethos familiar, após a separação,
buscam manter a discussão intelectualizada e política da vida familiar, das situações e
relações de poder e dominação, da imposição de uma ordem hierárquica que “sufoca” o
indivíduo.
Neste sentido, este momento recoloca a negação de um estilo de vida com base no
consumo e na aquisição de bens materiais e simbólicos que, segundo este grupo, afirmam
uma situação de prestígio social com base numa ideia de “exploração” e “poder”. Esta
percepção do estilo de vida da sua classe se refere, ao longo da entrevista, ao tipo de
dedicação profissional do ex-marido, que é tida como “desumanizante”, uma vez que
busca, acima de tudo, o lucro e o consumo, em oposição ao tempo dedicado à família. Em
vista disto, o projeto de vida, com a separação, está direcionado a um retorno parcial à
situação de “marginalidade” social, com as mulheres preocupando-se em trabalhar o
mínimo necessário para o seu sustento, retomando aquela negação de um ethos da
produtividade da fase adolescente e visando uma situação social, onde a noção de
prestigio está referida àquela colocada por sua rede social de amigos, cuja proposta é a
politização do cotidiano.

3.3 - ESTILO DE VIDA

O processo de separação traz como consequência, em última instância, uma


redefinição no estilo de vida deste grupo, e, não tanto uma alteração no seu status social,
como ocorre no grupo A. Na época da pesquisa, todas as interlocutoras possuem
empregadas ou babás, que ficam com a responsabilidade de, durante o dia, manter a rotina
doméstica dos cuidados com a casa e com as crianças. De acordo com seu relato, no
entanto, esta situação não é assim desde a separação. Até fixarem residência com os filhos,
após a separação definitiva, a família de orientação assume parte do encargo de subsidiar a
disponibilidade das mulheres exercerem sua atividade profissional. Todas moram em
apartamentos alugados e possuem carro. Os filhos estão em creches ou escolinhas
maternais, e as despesas são divididas com os ex-maridos, que dão a elas uma pensão
praticamente duas vezes maior do que o salário recebido no exercício da sua atividade
profissional. Possuem hobbies, desenvolvendo estas atividades através de contatos com
amigos, artistas e músicos - Beatriz está num curso de desenho, Beth aprende música e
Betânia retorna a sua rotina de estudos, pois resolve se dedicar a um Curso de
Especialização em Direito Administrativo. Costumam sair frequentemente à noite, com
amigos e amigas, indo a bares, cinemas e teatros da cidade. Beth, especificamente, como
conhece artistas, costuma participar de apresentações e shows. Trabalham em atividades
que fazem parte do seu campo profissional, tendo abandonado definitivamente a situação
anterior de subemprego, embora procurem dividir igualmente as horas dedicadas ao
trabalho e aquelas dedicadas ao lazer e aos filhos.
A separação implica o afastamento do ex-marido da casa, ficando os móveis e toda
a infraestrutura doméstica, com as mulheres e a sua prole. A importância da permanência
destas condições materiais é apontada como necessária devido aos cuidados com a prole.
Residir, independentemente do grupo familiar, é valorizado como sinal de independência e
autossuficiência feminina, demonstrando a importância da sua condição em função da sua
individualização do marido e família de orientação, assim como atestando sua capacidade
de libertação.
Para Bruna, a trajetória da separação supõe uma volta à situação estrutural de
solteira, com especificidades como o retorno à casa dos pais, residindo, a partir dai, com
estes, sem receber pensão do marido, sem assumir uma situação profissional definida (está
finalizando o curso de Enfermagem) e com dois filhos. Sendo sustentada pelo grupo
familiar (mãe e código de aliança e as relações de reciprocidade, irmãos), seu estilo de
vida reforça os laços de parentesco, o código de aliança e as relações de reciprocidade,
mão apenas internamente, em sua família de orientação, mas no nível da família do ex-
marido.
Uma vez que estas relações dos grupos familiares também envolvem uma relação
de vizinhança (ambas as famílias moram no mesmo bairro, em ruas muito próximas), o
controle sobre a socialização da prole é grandemente discutido entre as famílias, havendo
momentos de conflitos pela disputa de interferência na relação de Bruna com os filhos.
Devido a este controle, ela sai muito pouco, apesar de desenvolver um discurso
individualista para resolver os impasses destas situações - a ideologia do feminismo
também é colocada aqui, como um instrumento de legitimação para a busca das suas
saídas individuais. Em termos de estilo de vida, Bruna passa a ser pressionada por um
ethos familiar com base num código de moral e honra, sendo sua sexualidade vigiada por
ambos os grupos familiares. Sua separação resulta como um momento específico de
desindividualização, a partir das difíceis condições econômico-sociais em que se encontra
no momento em que esta ocorre, com o marido desempregado e ela ainda em fase de
profissionalização.

3.4 - REDE SOCIAL E LAÇOS DE PARENTESCO

No entanto, para a maioria das interlocutoras deste grupo de mulheres descasadas,


a separação reformula, parcialmente, a rede social em torno da qual circulam, estendendo-
a aos laços de parentesco, embora, ainda centrando-se na ideia de escolha, dada a partir de
amizades antigas que são retomadas e de outras novas que surgem com a mudança de
residência e a inserção num mercado de trabalho. A rede social apresenta características
de uma rede de malha frouxa, com a maioria das mulheres desacasadas convivendo com
diferentes pessoas, desde aquelas que são incorporadas à rede devido ao processo de
profissionalização, até amigos que pertencem à época do colégio e da faculdade, embora
com poucos contatos entre si. Também fazem parte desta rede, os amigos do ex-marido,
que de uma forma ou de outra, frequentam suas casas. O próprio ex-marido faz parte,
indiretamente, desta rede de amigos.
O contato com os familiares continua sendo controlado enquanto “aproximação”,
com uma postura conservadora da família. Além disso, as relações com alguns amigos
boêmios também são evitadas, por serem suas atitudes consideradas politicamente
“inconsequentes”. Os laços de parentesco são recuperados e a visão familiar é de certa
forma refeita, tendo em vista o apoio da família de orientação na situação da separação. As
intervenções familiares na educação dos filhos, no entanto, geram conflitos, ficando claro,
no nível do código familiar, que a rede social com base no parentesco deve seguir os laços
de reciprocidade e solidariedade, sem, no entanto, comprometer a proposta individualista
do estilo de vida deste grupo. Ou seja, de modo ambíguo, a família de orientação deve
fornecer a ajuda e o auxilio às dificuldades existenciais dessas mulheres, porém não deve
interferir na sua proposta de vida.
O caso de Bruna é bem diferente, uma vez que ela é englobada nas relações de
parentesco e vizinhança, caracterizando sua rede social como predominantemente de
malha estreita: seus amigos são basicamente parentes e, além de tudo, vizinhos. Os laços
de parentesco predominam neste caso, em contraste com as situações das outras mulheres
pertencentes a esse mesmo grupo de status, as quais valorizam grandemente a amizade em
sua rede social, buscando associar, a este valor, alguns laços de parentesco, utilizando-se
de um critério de escolha pessoal.
3.5 – PAPÉIS SEXUAIS E LAÇOS DE PARENTESCO

A separação acentua, neste grupo, no nível do ethos feminino, a retomada


das posturas feministas das interlocutoras no período de adolescência (exceção feita à
Bruna). Betânia, comentando sua separação diz: “Se eu te disser que tenho a sensação de
estar vivendo minha adolescência, tu não irias acreditar.” Este processo de revisão
biográfica tem implicações na disposição dos papéis sexuais na estrutura familiar,
resultante do processo de separação. O fato delas estarem atuando na esfera pública, num
domínio até então percebido por elas como basicamente masculino (o sustento da sua
família de procriação vem quase que exclusivamente da parte do marido), implica a
contratação de serviços de pessoas ou instituições (creches, maternais) que auxiliam,
principalmente, nas tarefas de socialização da prole. De acordo com os testemunhos, a
maior responsabilidade das empregadas é com as crianças, vindo, em segundo lugar, o
cuidado com a casa. Tanto para essas mulheres, como para os ex-maridos, a
responsabilidade com a prole, após a separação, passa a envolver um gasto que antes não
existia, pois o trabalho doméstico feminino recobre este papel.
Aqui, a separação pode ser projetada como uma solução ao projeto de
individualização, proposto, inicialmente, no nível de um modelo de família mais
nuclearizada, o que o estilo de vida desenvolvido no casamento não permite, pois mantém
a continuidade da segregação na divisão sexual do trabalho na família. Aparentemente, a
socialização da prole fica sob a responsabilidade de ambos os cônjuges, agora com
projetos de individualização isolados. Entretanto, todas as mulheres desse grupo de
interlocutoras ficam com os filhos do casal, decidindo pessoalmente, o colégio em que
estes estudam, seu lazer, a hora que dormem, que acordam, etc. Os pais passam,
geralmente, um dia com os filhos, o que é feito durante os fins de semana.
Este período, então, é aproveitado para os encontros sociais e amorosos ou para a
organização do espaço doméstico, é o período de “descanso”, de realização de tarefas que
envolvem maior dedicação de tempo: costumam então, pousar na casa de amigas, ir a
festas, boates, ou seja, atividades que não possuem um horário rígido. Como não possuem
“transas” fixas, os encontros amorosos são eventuais. A sexualidade é objeto de
preocupação neste grupo, e o seu exercício faz parte da ideia individualista do prazer
próprio. A separação envolve, assim, a redescoberta da sua sexualidade, na sua
importância para a realização pessoal, a qual tem se desgastado na experiência familiar. A
tensão nos conflitos dos papéis sexuais na família individualizada e nuclearizada explica-
se, de acordo com Eunice Durham (1983, p. 40)., devido a este modelo familiar valorizar e
exigir, simultaneamente, o apoio emocional do casal e o prazer sexual recíproco (...), o
que tende a refletir na relação conjugal como uma sobrecarga de existências.
Como se afirma anteriormente, de acordo com o ethos deste grupo de mulheres
entrevistadas, e da sua rede social, a separação, embora afirmando uma situação de
constrangimentos sociais, não envolve um processo radical de acusação social, pois a sua
aceitação entende a assimilação da separação como um fato da vida moderna, que de certa
forma, questiona o código moral e familiar. Para este grupo, a separação é projetada como
uma solução individualizante, recolocando-se, neste espaço, o jogo de oposições entre os
papéis feminino e masculino.
Significa, portanto, uma atitude progressista por parte dessas mulheres descasadas
e sua rede social. Como explica Beth: “Eu quero a minha liberdade tanto quanto eu acho
que ele também tem necessidade.” O trajeto de Bruna fica à parte desta descrição. Os seus
testemunhos apontam para a necessidade de um novo casamento após a separação, como
forma de obter, de modo mais rápido, a alteração do seu status social. Segundo seu próprio
depoimento: “Continuo buscando alguém, mas uma pessoa de quem eu possa me orgulhar.
Sentir que esta pessoa me acrescenta coisas.” Sem uma experiência tão diversificada em
sua trajetória de vida, como a das outras mulheres aqui ouvidas, a separação encerra um
processo extenso mais difícil de ser internalizado através de códigos individualizantes e de
uma proposta de libertação sexual. A separação acarreta o afastamento significativo de um
estilo de vida onde a figura feminina se restringe, basicamente, ao desempenho dos papéis
de esposa e mãe. Sem uma rede social que legitime um novo estilo de vida, sem as
condições econômico-sociais que possibilitem sua manutenção própria, sem a vivência
política necessária, Bruna recupera, com a separação, uma ordenação tradicional dos
papéis sexuais e um estilo de vida cujo principal objetivo é a busca de prestígio e ascensão
social.
CAPÍTULO 4

HONRA E TRADIÇÃO NA CONSTRUÇÃO SOCIAL DO GAÚCHO

Longe, pois, de que a busca da inteligibilidade culmine na história


como seu ponto de chegada, é a história que serve de ponto de
partida para toda a busca de inteligibilidade. Assim como se diz
de certas carreiras, a história leva a tudo, mas com a condição de
sair dela.

C. Lévi-Strauss. O pensamento selvagem.


Escanear todas as figuras e suas citações das páginas 203 a 210.

ELEMENTOS PARA UMA ANTROPOLOGIA DA HONRA NO RS

Nos testemunhos biográficos das interlocutoras da pesquisa, delimitar os


significados dos jogos de oposição tradição/modernidade que estão presentes na
reconstrução da identidade social feminina após a sua situação de descasamento,
representa o desafio de se refletir acerca dos valores ético-morais de honra e vergonha
com os quais operam como parte da sociedade (a gaúcha) em que se acham inseridas.
Deste modo, a análise do espaço social da separação implica a tentativa de esboçar as
fronteiras culturais que circunscrevem histórica e socialmente o meio social onde ambos
os grupo de mulheres descasadas se situam, especificamente quanto ao que Velho (1981)
argumenta serem as prioridades e paradigmas culturais.
A referência constante aos sentimentos de honra e de vergonha, nos testemunhos
de vida das mulheres descasadas, aqui no caso, propõe a reconstituição dos limites
culturais de seu contexto sociocultural, em termos do processo de construção social da
sociedade gaúcha, seu sistema de representações e da figura paradigmática do gaúcho,
traduzido por seu estilo de vida e visão de mundo. Neste caso, propõe-se um mergulho na
memória e história da sociedade gaúcha para aprofundar os paradigmas culturais que
sustentam os fatores regionais de uma sociedade patriarcal, agraria e pastoril no sul do
Brasil. Ou seja, em referência ao seu mito de fundação como uma região de fronteira,
delimitando-se a partir desse território o lugar paradigmático da figura do gaúcho e da
zona de Campanha para a composição dos valores tradicionais da família na sociedade
gaúcha.
A existência de diferenciações no interior da região gaúcha, em termos sociais,
econômicos e culturais - por exemplo, zonas de colonização açoriana, alemã e italiana -
não impede que se pense a construção de uma unidade cultural desta região, em função da
sociedade gaúcha se definir pela produção econômica ligada à terra, não importando as
origens culturais dos grupos colonizadores, e, mais ainda, por se definir, frente ao
nacional, como uma região de fronteira, o que, para Schwartzmann (1980, p. 369),
caracteriza um local onde se dão atritos e formam todo um tipo de estruturas sociais
próprias de regiões de fronteiras e de contato. A constituição, dentro deste quadro
sociocultural e econômico, de um sistema de representações com base na noção de
tradição, honra, valentia e coragem, é, portanto, uma das propriedades desta região. Sua
análise, em função do quadro conceitual da Antropologia mediterrânea, permite enriquecer
o estudo específico da honra e da tradição no Rio Grande do Sul, através das sutilezas que
estruturam semelhante sistema de representações num estilo de vida e visão de mundo
unificadores das diferenças culturais da região, compondo-se fronteiras e limites culturais
que têm por base, então, a figura modelar do gaúcho da campanha e do Rio Grande do Sul
como uma região de lutas e conquistas.
Como se observa na trajetória social de muitas das interlocutoras da pesquisa, tanto
o projeto de suas famílias de orientação, como o daquelas que elas constituem com o
casamento e, até mesmo, o projeto de vida pós-separação encontram-se, no ethos familiar,
frequentemente referidos às oposições e arranjos entre valores e noções ditos tradicionais
e/ou modernos. Cumpre agora recompor esta oposição tradicional/moderno na forma
como a sociedade gaúcha a formula, ou seja, como um campo de possibilidades,
fundamental para a constituição ou realização de projetos de vida. Refere-se, aqui, ao
contexto cultural da sociedade gaúcha na qual as mulheres descasadas pertencem enquanto
delimitador das fronteiras culturais para a formulação dos seus projetos de vida e com
implicações particulares na formulação de um ethos feminino.
Este capítulo, portanto, se orienta no sentido da discussão do código de honra que
esta sociedade postula para seus membros, o qual se acha composto, basicamente, em
função do domínio do tradicional. Neste sentido, não se está referindo tão somente à noção
de tradição cultuada nos CTGs (Centro de Tradições Gaúchas), nem também aos
“verdadeiros” valores gaúchos, onde a construção social da identidade ocorre a partir de
uma imagem cristalizada do gaúcho. A tradição, aqui, se reflete também, enquanto
delimitação de uma cultura gaúcha, a partir da conservação de um ethos e visão de mundo
ligados ao regionalismo e ao gauchismo.
Desta forma, além do aspecto da sociedade gaúcha entender que os modernos
meios de comunicação de massa alteram peculiaridades dos seus valores culturais
regionais, ela própria propõe que o gaúcho deixou de ser exclusividade dos CTGs. Deixou
de ser passatempo de fim de semana, e passou a ser uma ameaça como outra qualquer
(Rosa, 1981, p. 15). Assim, tradição significa, antes de qualquer coisa, a conservação de
traços de distinção cultural, onde o regional e o gaúcho são acima de tudo cultuados.
Concepções e valores considerados tradicionais, em oposição aos modernos como não
originais desta sociedade, são formulados como noções que constituem a identidade social
dos gaúchos. Isto implica a análise da visão de mundo tradicional, enquanto código de
honra, que define os limites morais e éticos da sociedade gaúcha e daqueles que nela
convivem.
Postula-se, neste momento do trabalho, o enfoque de que o culto a valores
tradicionais resume um estilo de vida e uma visão de mundo peculiares ao mundo gaúcho
da fronteira e à constituição da sua identidade regional. Desta forma, a oposição de
elementos associados a um mundo mais tradicional ou, ao contrário, mais moderno, tão
acentuada no testemunho das trajetória social das mulheres descasadas que fizeram parte
da pesquisa, revela-se como um movimento que ocorre não só ao nível dos indivíduos,
mas da própria sociedade gaúcha como um todo. No caso desse estudo é importante se
pensar a referência da noção de tradição, muito presente na sociedade gaúcha atual, como
uma forma de elaborar os elementos históricos que compõem um código de honra em
torno do qual esta sociedade se estrutura24. Assim sendo, torna-se importante a abordagem
da sociedade gaúcha através do esquema conceitual desenvolvido pela Antropologia das
sociedades mediterrâneas e a discussão do seu sistema cultural. Entende-se aqui, o estudo
da honra como possível de apreender uma realidade cultural, enquanto um sistema. Neste
ponto, a definição dada por Geertz (1978, p. 146) sobre sistema religioso é bem frutífera,
pois o autor aponta para um conjunto de símbolos sagrados tecido numa espécie de todo
ordenado.
Na aproximação dos estudos sobre o conceito de honra nas sociedades
mediterrâneas e a sua formulação enquanto um sistema cultural, utiliza-se, em primeiro
lugar, alguns conceitos com que Geertz (1978) estuda a religião. Isto afirma a necessidade
de uma primeira instância de discussão, qual seja, captar, em qual medida o estudo da
honra tem a ver com a questão religiosa. Inicialmente, uma das conexões é o fato de que
os próprios autores que trabalham com sociedades mediterrâneas, ao discutirem a
problemática, apontam para a relação com a religião. Segue-se daí, uma segunda
implicação, a de que ambos os campos - religião e honra - referenciam-se a questões
morais, que perpassam ambos os domínios25. Desta forma, esta aproximação relativa entre
o estudo da religião e o da honra de uma determinada sociedade, envolve considerá-la
como um sistema, como um “tecido”, “um todo ordenado”, que é capaz de ...estabelecer
24
Utiliza-se aqui o conceito de tradição enquanto memória coletiva, que, segundo Mauss (1981, p. 117),
significa aquelas tradições que consistem no saber que uma sociedade tem de si própria e de seu passado
mais ou menos imediato, resultante das necessidades da vida em comum.
25
Estas relações entre os campos da religião e da honra também são abordadas por Durkheim (1970),
quando o autor analisa a determinação do fato moral. Coloca-se aqui, duas citações que aproximam ambos
os campos e onde o autor discute a questão do bem e do dever como parte destas realidades sociais. Assim,
os atos cometidos em conformidade com a regra moral são louvados; aqueles que os realizam são honrados
(p. 51). Por outro lado, é muito difícil compreender a vida moral sem assemelhá-la à vida religiosa (p. 55).
poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens (...)
(GEERTZ, 1978, p. 109).
Semelhante afirmação se aproxima daquela feita por Pitt-Rivers (1979), sobre a
honra, onde o autor afirma que ela fornece uma ligação entre os ideais de uma sociedade e
sua reprodução no indivíduo por sua aspiração em personifica-los. Portanto, o sentimento
de honra implica uma conduta honrada. Isto também se relaciona à afirmação que Geertz
(1978, p. 109) faz a respeito dos símbolos religiosos e dos sistemas simbólicos, que,
modelando o mundo, induzem o individuo a um certo conjunto distinto de disposições
(tendências, capacidades, propensões, habilidades, hábitos, compromissos, inclinações)
que emprestam um caráter crônico ao fluxo de sua atividade e à qualidade de sua
experiência. Neste sentido, a honra também produz um conjunto peculiar de disposições,
pois a honra sentida se converte em honra reclamada e a honra reclamada passa a ser
paga (Pitt-Rivers, 1979, p. 19).
Se um homem é religioso enquanto motivado pela religião, um homem honrado só
adquire este status enquanto motivado pela honra. Assim, ao discutir-se os conceitos de
honra e de vergonha, neste estudo sobre descasamento e separação, se aborda os padrões e
paradigmas culturais da sociedade gaúcha, considera-se ambos como significa fontes
extrínsecas de informações a respeito do ethos e visão das camadas urbanas
portoalegrense dos anos 80. Assim, pensar os sentimentos de honra e vergonha aos quais
se referem as mulheres descasadas para testemunhar seu processo de dissolução dos laços
matriominiais significa pensa-los como categorias estão fora dos limites do organismo do
indivíduo, mas que agem como modelos – conjuntos organizados de símbolos cujas
çõ „ ‟ as relações entre as instituições do casamento e da
família e os respectivos fundamentos morais papéis de sexo-gênero que delas decorrem.
Desta forma, os códigos ético-morais de honra e vergonha são aqui pensados como
sistemas de valores que atribuem significado ao papel feminino na sociedade gaúcha, isto
é, ao mesmo tempo uma forma conceptual objetiva (Geertz, 1978) de composição de uma
dada realidade social e psicológica, e onde as mulheres, modelando-se em conformidades
a ela, ao mesmo tempo modelam-na a elas mesmas.
Para o caso dos testemunhos das biografias de descasamento aqui pesquisadas,
seguem-se as considerações de Pitt-Rivers (1979, p. 38) , onde este autor afirma que se
honra sentida pelo indivíduo passa ser a honra sentida pela sociedade, logo a honra que é
valorizada pela sociedade estabelece os critérios estabelece que ditam o que o indivíduo
deve sentir. Desta forma, as questões de honra e de vergonha no descasamento permitem
vincular uma relação entre os ideais da sociedade gaúcha e a sua reprodução nas ações das
interlocutoras da pesquisa, assim como a ordem ideal e a cotidiana validam as estruturas
de poder e as ordens de sua prioridade no interior da instituição familiar e nos dispositivos
dos fundamentos morais dos papéis de sexo-gênero correlatos. Recuperando-se no estudo
da honra a “dimensão cultural”, percebe-se a importância de analisar o conceito de honra
na sociedade gaúcha enquanto capaz de revelar, segundo Geertz (1979, p. 103-4) o tom, o
caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticas e sua visão
de mundo – o quadro que fazem do que são as coisas nas simples atualidade, suas ideias
mais abrangentes sobre ordem.
Seguem-se as observações de G. Ruben (1983) sobre o surgimento do movimento
tradicionalista gaúcho e dos fenômenos culturais do nativismo e gauchismo em termos da
“fabricação do gaúcho”, assim como a construção da identidade regional no Rio Grande
do Sul, identificando-se, neste processo, uma das dimensões onde esta visão de mundo se
corporifica, e, através dos seus rituais, reafirma um estilo de vida, no meio tradicional,
e/ou moderno. No entanto, como afirma Pitt-Rivers (1970, p. 39), um sistema de valores
nunca se revela no interior de uma sociedade, como um código homogêneo de princípios
abstrattos obedecidos pelos participantes de uma cultura determinada. Há um recorte
geracional, sexual, de classe, etc26. Interessam, aqui no caso, os dois últimos itens, pois
num mesmo grupo social de mulheres de camadas médias de Porto Alegre, que partilha de
um mesmo “sistema cultural”, observam-se diferentes abordagens da questão da honra na
separação, tendo em vista o jogo tradicional/moderno em sua trajetória social, num meio
urbano onde o consenso não é uniforme. Assim, o objetivo de compor-se a circunscrição
histórica e social da sociedade gaúcha neste capítulo, refere-se ao fato de que os valores de
honra e tradição, para delimitação das fronteiras culturais do Rio Grande do Sul no jogo
tradicional/moderno, assume, historicamente, uma concretude diferenciada segundo as
determinações de classe e de gênero.
Devido a estas considerações, coloca-se como prioritário estabelecer os limites
culturais da sociedade gaúcha, através da análise de um código de honra proposto e suas
vinculações com o tradicional, seguindo-se aí, a sua política social e sexual. Tal
abordagem exige uma retomada da história formativa desta sociedade, buscando-se
localizar e discutir dimensões que compõem o “padrão de significados” deste código de
honra. Dimensões, estas, que, através da sua transmissão histórica, formulam “conceitos

26
Oliven (1983, p. 20), em seu estudo A fabricação do gaúcho, afirma que a definição do que é a cultura
gaúcha, como se pode perceber, está longe de ser pacífica, constituindo-se um campo de polêmicas.
de uma ordem de existência”, pelos quais, as pessoas que se situam nesta cultura, segundo
sua condição social e sexual, constituem sua identidade social. Em especial, intenta-se
aqui, perceber o aspecto encompassador no código de honra da sociedade gaúcha, de
modo a entender como este permite demarcar paradigmaticamente as fronteiras culturais
neste povo.

1 - RECUPERAÇÃO DA HISTÓRIA

São evidentes as vinculações entre o surgimento de um senso de honra peculiar ao


mundo gaúcho e as lutas de fronteiras, que se desenvolvem no sentido de demarcar os
limites meridionais do Brasil, onde é comum ao povo que habita estas regiões traçarem
estes limites à ponta de lança e pata de cavalo (Reverbel, 1979, p. 12). Evidencia-se aqui,
a necessidade de recuperarem-se partes desta linha histórica no sentido de esclarecer estes
momentos imprescindíveis para a formulação de uma identidade regional gaúcha, a qual
afirma um código de honra muito especial ao nível de sociedade nacional: o culto ao
“macho”.
De acordo com muitos historiadores, a ação tensa e estimulante do quase
permanente estado de guerra em que vive a Região Sul no início da sua formação
histórica, devido aos constantes conflitos de fronteiras que colocam em campos opostos as
Coroas Espanhola e a Portuguesa, origina, nos seus habitantes, um espírito militar,
derivando-se daí, uma sociedade guerreira, onde as atitudes exigem coragem e custam
sangue. Ou seja, uma opção de “macho”. Estabelecem-se vinculações entre a situação
instável e conflituosa por que passa esta região brasileira na sua constituição e formulação
de um código de honra que marca seu povo com um “tom” singular. Saint-Hilaire (1935),
em sua passagem pela Capitania de São Pedro, em 1820, resgata estes aspectos das
fronteiras sociais e simbólicas do povo gaúcho, afirmando que a Capitania é dotada de
atividade, de espírito militar e de um sentimento nacional que só a guerra faz nascer.
Portanto, considerando-se a origem desta sociedade guerreira e militarista, deve-se
iniciar uma pequena descrição de como ocorre a ocupação do Rio Grande do Sul e seus
reflexos posteriores na composição de um ethos e uma visão de mundo peculiares, onde a
personagem modelar do gaúcho é valorizada e vinculada a um mundo de “guascas”.
Importante frisar que, embora o descobrimento do Rio Grande do Sul ocorra nos
primórdios do século XVI, esta região permanece inexplorada por mais ou menos um
século. Assim, ainda não inserida num modo de exploração colonial, a Província de São
Pedro é visitada algumas vezes por expedições litorâneas. Conforme S. Pesavento (1980,
p.7): desvinculado da agricultura colonial da exportação diretamente integrada ao
mercado internacional, o Rio Grande do Sul carecia de sentido de frente ao processo de
acumulação primitiva de capitais que se verificava nos quadros do Antigo Sistema
Colonial. Portanto, é apenas no século XVII que ocorrem as primeiras tentativas
portuguesas de expansão rumo à Região Sul, devido aos problemas no tráfico de mão-de-
obra negra, o que origina a caça ao índio. Neste sentido, formam-se as Bandeiras paulistas,
cujo objetivo é o aprisionamento de índios, que, conduzidos por missionários, penetram
em território castelhano. Nas palavras da Pesavento (1980, p. 80), as bandeiras paulistas
que se constituíram lançaram- „ çõ ‟ i íg i
missionários da Companhia de Jesus (...). De acordo com as descrições desta autora, os
missionários fogem dos paulistas e penetram em território pertencente à Coroa Espanhola,
fundando, nestes deslocamentos, reduções jesuíticas, agora sob bandeira espanhola.
Estas descrições referem-se, na história gaúcha, de modo particular, ao período de
1580-1640. No período subsequente, quando do fim do domínio espanhol, retomando-se o
fluxo normal do tráfico negreiro na colônia, os jesuítas regressam à margem do Uruguai,
levando os índios, mas deixando o gado que criavam nas reduções (Pesavento, 1980, p.
9). É este gado, abandonado no pampa, que origina o fundamento econômico básico, o
qual norteia a ocupação e a apropriação da terra gaúcha, ou seja, trata-se da preia do gado
xucro. Este rebanho forma uma grande reserva de gado, denominada de Vacaria del Mar,
e que é frequentemente citada por diferentes autores que percorrem a região gaúcha nos
períodos que se seguem. A preação do gado torna-se, então, objeto de atenção especial de
diferentes grupos sociais que percorrem a região gaúcha - ainda sem limites territoriais
definidos - sendo eles portugueses, índios aldeados, castelhanos, indivíduos sem rei, sem
fé, sem lei. Este período revela-se um referencial à identidade regional, como
representação de uma região cujo povo atua através de um peculiar senso de
independência e liberdade: a h „ i g ç ‟ i iz çã
couro, movimenta o extremo-sul, atraindo as atenções para a região, que se torna
conhecida pela riqueza pecuária (Pesavento, 1980, p. 11).
Portanto, a expansão da Coroa Portuguesa rumo ao Sul, dá-se, primeiramente com
a criação da Colônia de Sacramento, na fronteira com Buenos Aires, significando um
estabelecimento português no Prata, onde se afirma não apenas uma posição estratégico-
militar de conservação desta área, mas também o contato direto com aquelas imensas
reservas de gado de Vacaria del Mar, além do que, representa a sustentação do
contrabando nesta região. A falta de aspectos jurídico-legais, neste período histórico, vai
colocar importantes questões para a fomentação de um ethos gaúcho.
No século XVIII, assumem importante papel as Missões Jesuítas dos Sete Povos,
como uma segunda fonte de expansão rumo ao sul, agora sem vínculo a alguma Coroa, e
sim, como unidades econômicas desenvolvidas e praticamente autônomas. A região dos
Sete Povos, por sua ameaça econômica e política, coloca em xeque a segurança das
monarquias ibéricas, sendo fonte de constantes e sangrentos conflitos na história da
formação do Rio Grande do Sul, o que tem implicações na formação da identidade do
gaúcho. Em termos gerais, a região sul do Brasil, nos inícios do século XVIII, é percorrida
por tropeiros e contrabandistas de gado. De acordo com Pesavento, tratava-se, contudo, de
uma atividade que se fazia de arma na mão, uma vez que para conquistar rebanhos, era
preciso enfrentar os castelhanos (1980, p. 14).
É neste período que a Coroa Portuguesa resolve promover, como terceira fonte de
expansão, o povoamento das terras do Sul, com o objetivo de conservar o domínio luso no
Prata. Inicia-se o processo de distribuição de sesmarias, através da qual, a Coroa distribui
terras a tropeiros - que se sedentarizam - ou a militares, que se afazendam: Sesmarias
eram concedidas como retribuição a serviços militares prestados (Pesavento, 1980, p. 15).
Adiante são estudadas as implicações destas atitudes enquanto fundamento de uma política
de ordenação e normatização da sociabilidade na Região Sul. Agora, convém ressaltar um
aspecto retomado por muitos historiadores que se ocupam da história rio-grandense e que
se define como a apropriação militar da terra gaúcha. Ou seja, de modo geral, a formação
histórica do Rio Grande do Sul, na sua definição primeira, dá-se mais como um baluarte
fronteiriço militarizado do que como um núcleo produtor (Pesavento, 1980, p. 17).
Observe-se, a seguir, a sequência de conflitos e guerras que acabam por resultar na
proposição de inúmeros tratados políticos entre Portugal e Espanha, e que têm por fundo, a
discussão, nem sempre pacifica, entre os limites e fronteiras desta região do Brasil
Meridional. A fundação da Colônia de Sacramento, como colocada anteriormente, ocorre
em 1680, sendo, logo após a sua criação, tomada e arrasada pelos espanhóis, mas, sendo
reerguida em 1683, ocorrendo um breve período de suspensão de hostilidades na região.
Em 1706, devido ao conflito europeu da Guerra da Sucessão Espanhola, que coloca
Portugal e Espanha em campos opostos, a Colônia é invadida e ocupada até 1715, quando
resulta o Tratado de Ultrecht, onde a Espanha devolve Sacramento ao domínio português.
Novamente, de 1735 a 1737, os castelhanos voltam a sitiar Sacramento. Como
resposta, Portugal funda na zona compreendida entre Laguna e o Prata, quatro
fortificações. São elas: Fortaleza de Jesus-Maria-José (1737), Comandância Militar de Rio
Grande de São Pedro (1738) e as guardas avançadas de Taim e Chuí. Esta reação
portuguesa deve-se à aproximação cada vez maior dos castelhanos. Em decorrência do
avanço espanhol, acontece o Tratado de Madrid, onde Portugal tem que entregar
Sacramento, obtendo em troca as Missões da Coroa Espanhola. No entanto, a demarcação
dos limites referentes a este Tratado não se efetiva. De 1745 a 1756, ocorrem rebeliões dos
índios missioneiros, que se recusam a entregar suas terras (“Guerrilha Guaranítica”). Estes
conflitos, e muitos outros que apontam na Província de São Pedro, acentuam cada vez
mais o reforço militar de área. Assim, alguns estancieiros, com seus homens, atuam em
defesa das suas terras, sendo respaldados pela Coroa Portuguesa, que lhes outorga poder e
autoridade, distribuindo cargos e sesmarias entre aqueles que participam destes conflitos e
que se destacam com atos de bravura e heroísmo.
A partir de 1761, as Missões são abandonadas, entrando em decadência, o que leva
a massa indígena a migrar em busca de sobrevivência. De 1763 a 1776, deflagra-se a
Guerra dos Sete Anos, na Europa, onde, mais uma vez, Portugal e Espanha ocupam
campos opostos, ocorrendo novo ataque à Capitania de São Pedro, com os castelhanos
conquistando Rio Grande. Novamente, reforça-se a militarização da sociedade gaúcha,
onde todo o homem válido era um soldado em potencial (Pesavento, 198O, p. 22). Das
constantes lutas e da necessidade premente de sobrevivência num meio guerreiro,
decorrem importantes implicações não apenas no estilo de vida do povo gaúcho, neste
período, como em sua visão de mundo.
A invasão dos espanhóis ameaça a posição portuguesa em Santa Catarina, trazendo
como consequência, o Tratado de Santo Ildefonso, onde Portugal, para manter sua
soberania naquela região, cede à Espanha a Colônia de Sacramento e as Missões, criando
os “Campos Neutrais”. A criação dos “Campos Neutrais” demonstra a necessidade de se
abrir um domínio sem controle de ambas as Coroas, onde se torne possível um jogo e
disputa de poder, transformando esta zona em valhacouto de contrabandistas e
aventureiros (Cesar, 1979, p, 19). A partir de 1801, os portugueses obtêm a conquista das
Missões Orientais, definindo-se aí a fronteira oeste do Rio Grande do Sul, a qual se
confirma através da expansão das sesmarias. Em 1820, ocorre a conquista da Cisplatina,
que amplia esta fronteira, dilatando-se a concessão também através de sesmarias.
De 1835 a 1845, acontece, no panorama da sociedade gaúcha, a Revolução
Farroupilha, onde os gaúchos enfrentam, por dez anos, o Império. Pela primeira vez,
fatores de ordem moral são apontados nas acusações ao Império. A honra gaúcha é
colocada em jogo – o Rio Grande do Sul é a “estalagem do Império”. Fornece soldados,
cavalos e alimentos nas lutas fronteiriças, a população assume os conflitos de guerra, mas
não é considerada nas decisões. Esta rebelião, como quase todas as outras na região, é
mantida por estancieiros que mobilizam sua peonada, no sustento das lutas e conflitos.
Disto, resulta a importância do caudilhismo nesta sociedade, que, como se vê em
abordagem posterior, envolve uma noção condicional de lealdade, onde o código de honra
se torna o referencial maior.
Ainda no período da Província Cisplatina, sobrevém a Guerra do Paraguai, de
1864-70, onde, novamente, os gaúchos são convocados a participar, sendo arregimentados
através de um código de honra que cultua o heroísmo e o espirito guerreiro. No final do
século XIX (1893-95) e no inicio do século XX (1923), ocorrem conflitos na sociedade
gaúcha que quase chegam a cindi-la, numa guerra civil entre “pica-paus”, “maragatos” e
“chimangos”27. De acordo com Pesavento (1980, p. 47), nestes momentos da história
riograndense, são recuperadas práticas de violência e arbitrariedade, as quais dizem
respeito à própria formação da sociedade gaúcha e que, neste trabalho, referem-se ao culto
da heroicidade do gaúcho, sua bravura e coragem, que o levam a desenvolver um senso
peculiar de hombridade, ou seja, ser mais ou menos macho para com este ou aquele. A
prática da degola, algo muito comum nas lutas internas de delimitação de fronteiras, ou
ainda no período dos gaudérios28, apresenta-se como um dos pontos onde esta honra se

27
A denominação de “pica-paus” origina-se nos partidários do Partido Republicano Riograndense, (PRR),
sob a liderança de J. Castilhos, que monopoliza o governo local, através de uma política conservadora para o
Rio Grande do Sul, e de uma forma de governo autoritária. Os “maragatos” referem-se, principalmente,
àqueles agrupados em torno do Partido Federalista Brasileiro que adota a ideia do parlamentarismo, opondo-
se a J. Castilhos (PRR), sendo liderados por Gaspar Silveira Martins. Cada partido possui sua cor,
respectivamente branco e vermelho, que frequentemente acha-se exposta nos lenços que os homens trazem
amarrados ao pescoço.
O que se coloca como importante é que o símbolo da destruição da honra de ambos os grupos vincula-se a
uma valorização do pescoço, através do uso do lenço com a cor partidária, que afirma o ponto de honra
daquele que o usa, o que também assume importância no ritual da degola.
Importante registrar que neste período, retoma-se o uso frequente da degola dos inimigos que são
aprisionados nos campos de batalha.
Esta oposição retorna nos conflitos de 23 , no Rio Grande do Sul, quando novamente, retoma-se a discussão
política do liberalismo e democracia versus formas centralizadoras e autoritária do Governo. Nesta ocasião,
os partidários de Borges de Medeiros, herdeiro de J. Castilhos na direção do partido, são denominados de
chimangos. A ele opõe-se a Aliança Liberal, composta de republicanos dissidentes e antigos federalistas, os
maragatos.
28
Gaudério - folgaça: pandega; malandrin; vadio (...); diz-se de, ou aquele que acompanha qualquer pessoa,
abandonando-a logo para seguir outra; diz-se de, ou cão sem dono, errante - Rio Grande do Sul.
estrutura no domínio do campo da batalha: (...) h h „ hi g ‟
g „ g ‟; „ g ‟ ã g
„ hi g ‟!.

2 - A HONRA NO MUNDO DOS “GUASCAS”

Evidentemente, os códigos de honra da sociedade gaúcha não encontram referência


apenas nas lutas e conquistas advindas com a formação das suas fronteiras. Eles estão
referidos, por outra parte, à própria atividade produtiva que este grupo social, em
particular, realiza ao longo do seu período formativo, onde seu ethos e visão de mundo
começam a estruturarem-se em termos de um sistema cultural. Neste sentido, os valores
apreciados e aceitos são as virtudes guerreiras e as habilidades campeiras (Pesavento,
1983, p. 30). Observa-se, isoladamente, as relações entre estes códigos de honra do
domínio da guerra e aqueles pertinentes às lidas campeiras.

2.1 - AS VIRTUDES GUERREIRAS

Um aspecto apontado por diferentes estudiosos da formação histórica da sociedade


gaúcha se refere ao seu aspecto de conquista, isto é, a barbárie e a valentia que pressupõe
uma conquista, onde a vitória está na razão direta da disposição de luta e força (Goulin,
1983, p. 14). A própria formação das estâncias acontece formalmente, como um símbolo
de conquista, e j i „ i ‟ i iz
ocupação da terra (Goulin, 1983, p. 14). Assim, a doação das sesmarias está ligada aos
efeitos históricos de guerras, aos atos de bravura e coragem, sendo concedidas em
retribuição aos serviços militares prestados.
As lutas e conquistas implicam de um modo muito amplo, a crença e valorização
de um código de honra onde a coragem sem limites e o desprezo pela vida dão origem ao
culto dos valores masculinos. Observada a descrição feita anteriormente, pensa-se na
importância da eficácia destes valores e noções e dos fundamentos deste código de honra,
tendo em vista que somente após 1930 torna-se possível pensar a sociedade gaúcha em
termos de domínio pacífico. Mesmo assim, a Revolução de 30 recupera o herói gaúcho e

Gauderiar significa, portanto, andar errante de casa em casa sem ocupação séria - Rio Grande do Sul (...)
(FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa. 11. ed.
Civilização Brasileira, 1969, p. 595).
seu código de honra como o personagem que consegue fazer valer suas posições, num ato
de hombridade. Os mais de cem anos de lutas pela delimitação de fronteiras representam a
construção da moral e da honra da sociedade gaúcha, exigindo daqueles que fazem a
história desta sociedade uma forte dose de resistência física e moral. A construção cultural
da honra gaúcha delimita-se através de imagens que buscam reelaborar esta experiência,
com o monarca das coxilhas, centauro dos pampas, ou seja, da metade pra frente ele é
racional, conversa, e da metade pra trás levanta a cola e faz bobagem (...) (Cortes, 1983,
p. 07). Deste modo, as lutas fronteiriças envolvem uma “dinâmica do terror”, isto é,
degola, profanação, castração, estupro, o que está no fundamento de um senso peculiar de
hombridade.
As lutas entre “chimangos” e “maragatos” e a dialética coragem-covardia
dramatizam, no interior da sociedade gaúcha dividida, os valores e aspectos da honra
gaúcha, do culto ao macho. Assim, medo, fraqueza, incapacidade para a vida rústica,
servem como “categorias acusatórias” ao inimigo, processo este, a que o colono, quando
chega ao Rio Grande do Sul, também tem que se sujeitar. No ridículo destes aspectos
reforçam-se os limites a que o gaúcho deve ater-se na definição da sua identidade social.
Principalmente no domínio da guerra, observa-se o culto ao destemor e o desprezo
pela vida, tendo em vista as péssimas condições de existência das tropas em luta. Estas
mesmas condições também se relacionam com as condições de sobrevivência cotidiana do
gaúcho daquela época. Segundo Saint-Hilaire (1935, p. 34) , os milicianos da região estão
facilmente acostumados a esse regime que pouco difere do seu modelo normal de vida.
Regime este que ele assim descreve: As tropas estacionadas na fronteira da Capitania são
em número de 3.000 homens, compostas de milicianos da região e de uma legião de
paulistas. O soldo desses homens está atrasado há vinte e sete meses, e há três anos que
eles vivem unicamente de carne assada, sem pão, sem farinha e sem sal. A ração de cada
homem é de quatro libras de carne por dia, e somente constituída pelas partes mais
gordas e mais carnudas dos animais. Os oficiais comem fígado com a carne, à guisa de
pão. Os soldados substituem esse alimento fazendo torrar uma parte de suas rações, que
comem com o resto, que é assado de modo costumeiro. Logo, as más condições no campo
de batalha exigem a coragem do “guasca” riograndense, daí decorrendo o uso constante da
violência como forma usual de trato que o gaúcho dispensa, não só ao inimigo, mas a sua
própria vida.
O fato de a região ser um palco constante de guerra, coloca como ponto básico de
honra para o gaúcho a condição da precedência masculina, atuando tanto nas situações
pertinentes à batalha, como no cotidiano da vida social na Capitania. De acordo com as
observações de Saint-Hilaire (a935, p. 41-2) , aqui só se consideram os homens pelas suas
categorias militares, desdenham-se as formalidades da justiça e é perante o General que
se resolvem todas as contendas. É dentro deste culto ao personalismo na guerra e nos
desempenhos de coragem e valentia que se constroem as personagens dos caudilhos,
representando o ideal de honra do gaúcho e a sua capacidade de comando e liderança
sobre os demais. Neste sentido, a prática do ritual da degola, após a batalha, supõe,
justamente, a demonstração viva deste código de honra, onde a hombridade exige que o
vencedor, num ritual que envolve um banho de sangue, em posse não só do direito, mas
do dever de honra, retire a vida dos prisioneiros resgatados no campo de guerra, abrindo
sua garganta de um lado a outro, similar ao que os gaúchos fazem nas arreadas, quando
recolhem o gado xucro para matá-lo e comercializar o couro ou para contrabandeá-lo29.
A própria técnica de guerrear, onde a tropa age em conjunto, sempre alerta para
apertar o círculo da tropa ou abrir campo, processo muito usado nas guerrilhas do pampa,
assemelha-se à concentração da boiada. Nas descrições de Madaline Nichols (1946, p.
705), observa-se que a composição do exército gaúcho diferencia-se muito pouco da dos
habitantes da região, utilizando métodos na guerra extremamente próximos daqueles
usados nas lidas campeiras: O aspecto de um exército gaúcho era tosco. Como armas
carregavam lanças com facas amarradas nas extremidades de varas. Muitos gaúchos
tinham adagas, laços e boleadeiras. (...) Para completar, o aspecto dos próprios
cavaleiros era selvagem. Um exército assim assemelhava-se a uma horda de proscritos.
Com relação aos métodos de guerrear dos gaúchos e sua aproximação com a
prática campeira, a autora os define como “heterodoxos”, ou seja, os ataques gaúchos, por
x ç „g i i i f ‟. Ti h i í i ã g
apavorados cavaleiros inimigos; cada gaúcho empunhando vigorosamente sua lança ou
rodopiando no ar o laço e as boleadeiras para jogá-los nos corpos dos inimigos ou nas
patas dos cavalos dos mesmos, e toda a tropa batendo nos guardamontes com os chicotes,
o que produzia sons semelhantes aos de tiros, como costumavam a fazer para compelir o
gado a movimentar-se (NIichols, 1946, p. 105). É importante, neste momento, a descrição
de parte de alguns rituais campeiros que reproduzem e constituem (ainda hoje) esse ethos

29
O ritual da degola também aproxima as virtudes guerreiras das lidas campeiras, demonstrando uma
sobreposição de estilos de vida que reforçam a visão de um mundo de guascas. Segundo relatos informais de
pessoas que vivem este período, os quais se acham registrados em obras biográficas, a degola chega a
ocorrer na própria estância, onde os prisioneiros são colocados no brete, como gado, sendo laçados na saída,
e então, imobilizados e degolados. Após a degola, são soltos exatamente da mesma forma como o gaúcho
solta o gado novo após a marcação e castração.
peculiar ao gaúcho e sua correspondência a sua visão de mundo cujo culto ao macho
aparece de modo ainda mais preciso.

2.2 - AS HABILIDADES CAMPEIRAS

São utilizadas aqui descrições de inúmeros autores sobre quatro destes rituais que
delimitam algumas fronteiras simbólicas em termos das quais o código de honra da
sociedade gaúcha se constitui.

A) ARREADAS OU VACARIAS

O uso das arreadas refere-se à já citada “preia do gado xucro”. Estas verdadeiras
expedições impõem àqueles que dela participam péssimas condições de vida, porque
podem ser vítimas dos índios, de feras, de doenças e de ataques do próprio gado,
completamente arredio ao contato humano. De acordo com a descrição de Felix Azara,
citada por Décio Freitas (1980, p. 10), as vacarias supõem a preia do gado e a extração do
couro e outros subprodutos do boi, onde o domínio do cavalo é básico: Reúne-se uma
quadrilha de gente pelo comum perdida e facínora, e vão onde há gado, e quando acham
uma ponta ou tropa dele, formam uma meia lua: os ladrões vão unindo o gado, e o que
vai no meio leva um pau comprido guarnecido de uma meia lua bem afiada com que
desjarreta todas as reses, sem deter-se nenhum até que acabaram com as reses ou têm as
necessárias; então voltam pelo mesmo caminho, e o que desjarretou, armado de um
chuço, dá uma chuçada em cada rês que lhe penetra nas entranhas, com o que morre, e se
apeiam os demais para tirar o couro, carregá-lo e estendê-lo com estacas (Azara, 19O4,
p. 177). Neste sentido, a valorização da coragem implica a continuidade desta prática
produtiva, que, por sua vez, representa um campo onde a honra é buscada num mundo
essencialmente masculino.

B) O TROPEIO DO GADO

É um processo de trabalho que visa introduzir o gado no processo de circulação.


Como não há o cercamento dos campos das estâncias e o gado conserva-se
semisselvagem, o tropeio exige os melhores campeiros. As distâncias percorridas
consomem de 20 a 30 dias de viagem, onde os peões passavam a noite caminhando e
troteando ao redor da tropa desinquieta ou arisca. Enquanto uns dormiam ao relento,
sobre pelegos, outros faziam a ronda, na chuva ou no frio. No final da jornada, as roupas
dos peões, os xergões e a cavalhada estavam imprestáveis (Freitas, 1980, p. 13).

C) A DOMA DO CAVALO

A importância do código de honra onde a coragem e a astúcia afirmam-se como


ideais masculinos esta presente também nos relatos da doma do cavalo entre os gaúchos:
As habilidades de um gaúcho tinham que ser praticadas montado, domando cavalos
xucros, trabalhando o gado, e defendendo-se. Ele devia ser capaz de montar qualquer
cavalo. Se o cavalo caísse, devia estar pronto para pisar o chão, de um lado, e isso com
as rédeas na mão para que o cavalo não pudesse escapar. Um gaúcho devia se capaz de
não se perder no pampa, de conseguir abrigo. Ele devia ser capaz de se defender e de
manejar a faca com que seus duelos eram travados; isso não significava perícia em
„ ái iz h ‟
(Nichols, 1946, p. 39). Nesse contexto de dificuldades e desafios agonísticos, o cavalo se
afirma como elemento importante, não só para a composição da honra do gaúcho, mas
também, num reforço a esta composição, como forma de viabilizar o processo produtivo
no campo. No entanto, o cavalo, assim como o gado, é xucro, exigindo também um
trabalho social: Dos charruas e dos minuanos herdaram os gaúchos o governo no cavalo,
com bocal de guasca sovada passado nas rédeas, durante os primeiros repasses do potro,
isto é, durante a fase em que ele é redomão, metendo-se-lhe mais tarde o freio, depois do
animal governar bem como as rédeas, munidas do dito bocal (JOÃO CEZIMBRA
Jacques, citado por Freitas, 1980, p. 26-7). De acordo com o relato de Madaline Nichols
(1946, p.36, a doma do cavalo significa importante aspecto da honra gaúcha, pois ninguém
podia ser um gaúcho notável se não fosse hábil cavaleiro. O cavalo se torna importante
para o trato com o gado selvagem, que precisa ser dominado para o aproveitamento na
economia pastoril.

D) O RODEIO

É realizado pelos gaúchos divididos em grupos. Primeiramente, se reconhecem os


paradeiros do gado, depois, estes grupos vão rodeando-o até “sujeitá-lo a rodeio”. O gado,
então, é tratado, curado, castrado, apartado, costeado e, nas invernadas, alimentado com
sal. O rodeio, portanto, consistia em reunir o gado em determinado lugar - um grande
campo situado em terreno mais elevado, lomba ou colina, às vezes cercado e provido de
aguada natural. No meio cravava-se um poste de inhaduvã, que servia para assinalar o
centro do rodeio e atrais o gado. A este lugar se dava o nome de rodeio (Freitas, 1980, p.
12). Esta atividade abarca, como já é dito, o trabalho de marcação, que é fundamental para
determinar a propriedade do rebanho, considerando-se que as estâncias ainda não possuem
divisas. Também se inclui aí a castração, onde os touros com menos de três anos são
capados30. O rodeio se localiza distante do estabelecimento da estância, e muitas vezes,
exige daqueles que dele participam, que se movimentem senão no dia anterior, pelo menos
de madrugada alta.
A atuação nas atividades do campo compõe parte do quadro onde se encerram as
fronteiras da honra gaúcha, valorizando-se um mundo masculino, percebido em termos de
uma raça de machos, como parte dos elementos da natureza com os quais seus habitantes
lidam. São estes os aspectos da delimitação do código de honra gaúcho, notados por Saint-
Hilaire, logo que toma contato com a Capitania de São Pedro: Chamou-me a atenção,
desde minha entrada nesta Capitania, o ar de todos que tenho encontrado, e a destreza de
seus gestos, livres de languidades, o que caracteriza os habitantes do interior. Seus
movimentos têm mais vivacidade e há menos afabilidade em suas maneiras. Em uma
palavra - são mais homens. Raça de homens cujo senso de hombridade é definido por sua
natureza forte e corajosa, disposição guerreira, audácia, destemor e, principalmente, força
para fazer valer suas posições.

3 - AS METAMORFOSES DO “MONARCA DAS COXILHAS”

A reconstrução dos aspectos históricos e sociais da composição do ethos e da visão


de mundo que delimitam os códigos de honra da sociedade gaúcha, no entanto, conduz a
mudanças no interior desta sociedade. A honra gaúcha passa a ser transmitida
historicamente, tendo como definição aqueles valores e noções, muito embora a figura,
tema central destas representações, tenha sofrido profundas alterações. Interessa aqui,

30
A castração é uma prática ainda eminentemente selvagem na zona da Campanha, onde, apesar das
inovações tecnológicas da medicina veterinária neste âmbito, costuma-se capar os machos (ovinos ou
bovinos) com menos de 3 anos, extirpando-lhes os testículos, sendo utilizada apenas a faca. Em alguns
lugares, após a extirpação, os testículos são assados em brasas e comidos por homens, e somente por estes,
presentes no local.
apontar algumas das metamorfoses ocorridas no corpo da sociedade gaúcha, em função de
uma política social, que implicam mudanças na personagem paradigmática que retrata seu
ethos e visão de mundo e seu conceito de honra - o guasca riograndense.
Inúmeros autores interessados no estudo do culto ao gaúcho, em seu aspecto
ideológico, indicam algumas metamorfoses nesta personagem, que passa da sua vertente
gaudéria à de peão. A estas alterações, na composição do homem gaúcho, corresponde a
transfiguração da sociedade riograndense, isto é, transfiguração do seu aspecto tradicional
para um outro, considerado mais moderno. Assim, a expansão de um capitalismo
industrial, e/ou agrário, transforma a região gaúcha da Campanha, terra de ninguém, em
estâncias. Estas alterações supõem a valorização do passado e da tradição como espaço
delimitador da identidade regional riograndense. Ao longo deste processo, observa-se a
busca da normatização da vida social no pampa, a reordenação do espaço público/privado
neste contexto, e suas implicações no código de honra gaúcho, assim como no campo de
atuação da personagem principal - o macho.
Encontram-se citadas, nos vários autores que registram sua passagem no território
gaúcho neste período, muitas das ações que resultam na busca de controle e ordenação da
vida social no pampa, de modo a submetê-la à lógica da produtividade e racionalização
econômica. Isto gera novos estilos de vida, tanto nas zonas de Campanha, como nas vilas e
cidades. No período que se identifica como da terra de ninguém, observa-se a dominância
da figura do gaudério - gaúcho “sem moral” e com ideias vulgares, respeitando a
propriedade e o espaço somente daquele que o beneficia, emprega ou confia, possuindo,
deste modo, um senso de probidade condicional. Esta personagem é aquela
frequentemente requisitada nas lutas e guerras de fronteira, na formação dos
destacamentos militares. Sua convocação tem por base, o código peculiar da honra, onde a
astúcia, a coragem e a heroicidade conduzem ao culto ao macho, à raça dos guascas.
Assim, esta personagem que anda de rancho em rancho e nas pulperias, embriagando-se e
despois de uma faca na mão, brigando com todo mundo, estão sempre sujos; suas barbas
sempre por fazer; andam descalços, e mesmo sem calças sob a completa cobertura do
poncho. Por seus costumes, maneiras e roupas, conhecem-se os seus hábitos; sem
sensibilidade e muitas vezes sem religião. Eles são chamados de gaúchos, camiluchos ou
gaudérios (depoimento de Miguel Lastarria, em 1805, apresentado por Madaline Nichols,
1946, p. 31). Estes gaudérios têm sua origem na dispersão das Missões e na prática
corriqueira do estupro das índias por bandeirantes e soldados. Apresentam-se então, como
um homem livre que não representava qualquer aplicação de capital (Freitas, 1980, p.
10).
A busca de ordenação do mundo caótico da Campanha, fonte da identidade
regional e do código de honra do povo gaúcho passa por alterações no século XIX, quando
se inicia a colocação do arame farpado na divisão das propriedades e estâncias. Portanto,
esta primeira atitude significa a privatização da zona da Campanha, representando a
estância com seus posteiros e peões, o primeiro veto oposto à liberdade sem peias do
gaúcho nômade (Cesar, 1979, p. 14). Mas o início da formação das estâncias delineia-se
antes, quando da concessão de sesmarias de ordem do Rei a quem possa povoar e defender
a terra da ocupação castelhana. Com o cercamento dos campos, tudo que não se
aglutinasse à estância ou ao quartel equiparava-se ao banditismo (Gonzaga, 1980, p.
116), considerando-se suas personagens como inimigos da ordem. O gaudério, então,
surge como uma personagem que acaba por ficar estrangulada pela racionalização
econômica e sua política social, sendo forçado a assumir seu papel determinado na
estrutura latifundiária-pastoril ou na sociedade militarista do Rio Grande do
Sul.Entretanto, como aponta Sergius Gonzaga (1980, p. 118), o processo de
transformação do gaudério-pária em gaúcho-aristocrata, cheio de virtudes civis e
militares, não foi instantâneo nem uniforme: durou várias décadas, encontrou muitas
formulações e teve o seu coroamento apenas no século XIX (...). Ou seja, a privatização do
campo e a expansão da norma e da ordem da Campanha ocorrem, principalmente, em
função do surgimento das cercas de arame, em 1870, com a implantação da racionalidade
ao campo, na introdução de novas raças de gado, na modernização, na criação da rede de
transportes, etc. Aí, então, o gaúcho se converte em homem gentílico irremovível na
defesa da „h ‟ os „ i i ‟ (Gonzaga, 1980, p. 121).
O código de honra antes referido a uma experiência social peculiar “cristaliza-se”
no século XX, no culto à tradição, aparecendo a figura do peão - parte de uma massa de
trabalhadores rurais da estância gaúcha - justaposta à idealização do seu passado gaudério.
Acompanhando estas alterações na estrutura socioeconômica do Rio Grande do Sul e em
sua politica social, estão presentes metamorfoses no tipo de sociabilidade que caracteriza a
zona da Campanha antes da privatização do campo e da normatização do gaúcho. A
sociedade riograndense, no período em que predomina a figura do gaudério, aproxima-se
muito da descrição que Philipe Ariès (198l) faz das Sociedades tradicionais. Neste sentido,
a comunidade, mais que a família, constitui-se elemento importante na formação e no
destino do indivíduo. Esta comunidade exige relações de solidariedade entre seus
elementos31.
Importante também, revelar a forma como este autor coloca a relação entre o
indivíduo e a comunidade, em termos de um jogo-espaço. Isto é, o homem, como um
animal, uma ave, deve fazer com que a comunidade reconheça que possui um domínio, um
espaço seu, e fazer com que suas fronteiras fossem sem aceitas, cabendo a si mesmo
determinar os limites de seu poder, o que poderiam fazer e até que ponto ir, sem
encontrar as resistências dos outros, fossem seus pais, sua mulher, seus vizinhos, ou seja,
a própria comunidade (Ariès, 1981, p. 73). A conquista do seu domínio depende,
grandemente, de sua habilidade de utilizar os dons da natureza e do nascimento. Desta
forma, uma vez bem sucedido, o jogador se fazia dono de seu lugar. Hesitando em se
impor, era relegado a papel subalterno (Ariès, 1981, p. 14). A descrição da socialização
do gaúcho feita por Madaline Nichols (1946, p. 41) aproxima-se da descrição feita acima:
A educação do gaúcho era limitada à aquisição de habilidade para trabalhar e divertir-
se. Um rapaz, apenas nascido, era carregado a cavalo na frente de seu pai ou de seu
irmão; quando chorava, eles togo o levavam para a casa a fim de ser amamentado,
voltando então a cavalgar. Essa prática continuava até que êle estivesse bastante crescido
para se manter sozinho no lombo de algum cavalo Velho (Nichols, 1946, p. 39). Ou então,
ainda em suas palavras: Um exagerado sentimento de domínio sobre o destino provinha do
simples ato de percorrer, no lombo de um cavalo, a imensidade da planície.
De acordo com Ariès 1(981, p. 14), a noção de domínio é importante, pois este não
se caracteriza nem como público, nem como privado. É privado enquanto correspondia ao
comportamento individual, ao caráter do homem, à sua maneira de estar só ou em
sociedade, à consciência de si mesmo, ao seu ser profundo. É também público porque
designava o lugar do homem na coletividade, seus direitos e deveres (ARIÈS, 1981, p.
14). Segundo este autor, isto é possível, pois o tecido social é “frouxo”, o espaço social
não está completamente preenchido. Neste sentido, assemelha-se a um jogo, em torno dos
seres como em torno das coisas. É comum os autores que descrevem a sociedade gaúcha
desta época apontarem que a vida do gaúcho é uma constante diversão, um jogo, uma
aposta. Segundo Ariès (1981, p. 14), talvez o jogo lúdico fosse o meio de criar ou de
manter o jogo-espaço. A descrição que Nichols (1946) faz dos gaúchos - nas pulperias -
expressa claramente este jogo-espaço: A pulperia, ou loja da campanha, era o lugar de

31
A noção de comunidade está expressa mais adiante, de acordo com a conceituação de pueblo que Pitt-
Rivers (1979) utiliza para a população de Andalucía.
reunião dos gaúchos. Nela podia ser jogada uma partida de cartas ou podia ser
combinada uma corrida de cavalos. Em cada pulperia havia um vilão e alguém ansioso
por tocar para os fregueses ansiosos para cantar (...) (Nichols, 1946, p. 40)32.
O Estado, portanto, neste período da vida da Campanha - a grande sociedade -
intervém minimamente. A família deve cumprir seu papel de reforçar os domínios do
indivíduo, sem alterar suas relações com a comunidade, não possuindo um domínio que
seja seu: cada sexo tinha seu lugar, o único domínio próprio é o que cada indivíduo do
sexo masculino conquistava por sua estratégia, com a ajuda da sua mulher e também dos
seus amigos ou clientes (Ariès, 1981, p. 15).Associa-se ao período da terra de ninguém a
existência deste jogo-espaço e a sua estruturação num código peculiar de honra, onde os
homens se apresentam como figuras corajosas, de quem contam-se deles milhares de feitos
que demonstram sua intrepidez. Estão sempre dispostos às mais árduas lutas, mas ao
mesmo tempo é difícil sujeitá-los a uma disciplina regular (Saint-Hilaire, 1935, p. 126).
Assim sendo, a expansão das estâncias e o cercamento dos campos implica uma
alteração no tipo de sociabilidade existente até este período. Coloca-se a importância do
controle e influência do Estado, em oposição à comunidade. A comunidade tinha uma
fronteira, ou antes, fronteiras, que a audácia dos indivíduos deslocava (Ariès, 1981, p.
15), o que passa a ser controlado no momento em que se privatiza a zona da Campanha.
Assim, não há espaço para o aventureiro, nem se admite a existência de zonas desertas. O
jogo não é mais aceito: a nova sociedade é mais bem ajustada (Ariès, 1981, p. 15). Outro
aspecto apontado por esse historiador, neste processo de transformação da sociedade
tradicional em moderna, é que ocorre uma separação da esfera do trabalho das demais
esferas da vida social - no caso do Rio Grande do Sul, surge a figura do peão, submetido a
uma disciplina e a uma hierarquia. A estância depende agora da precisão do conjunto,
não mais do antigo jogo-espaço.
Neste momento, surge o lugar da família, a partir da divisão entre o setor público e
o privado na vida social: Nela, o indivíduo se apaga em benefício do grupo familiar
(Ariès, 1981, p. 16). Desta forma, o gaúcho, cujo modo de vida é definido como à margem
da lei, torna-se domesticado. Fica, no culto à tradição, a forma de recuperar sua identidade
social, através do culto ao código de honra referente ao período de formação do povo

32
A falta desta separação entre privado/público e a relação do jogo-espaço como delimitador do domínio
onde circula o gaúcho, neste período histórico, também se demonstra nas carreiras de cavalos e jogos de
carta - ainda extremamente comuns nas zonas rurais do Estado.
As carreiras de cavalos tornavam-se duelos, montando cada homem seu próprio animal. Os jogos de cartas
preferidos eram aqueles onde a habilidade prevalecia, em que alguém atacava e defendia-se de homem a
homem (NICHOLS, 1946, p. 42).
gaúcho, numa reconstrução simbólica do centauro dos pampas. Enquanto sistema cultural,
este código de honra afirma a precedência do ethos e da visão de mundo da sociedade
gaúcha em sua fase tradicional sobre a atual, moderna. Desta forma, os valores e noções
referentes ao Rio Grande do Sul como sociedade tradicional - de acordo com a
conceituação de P. Ariès - coloca-se como referencial na formulação de conceitos de uma
ordem de existência geral (Geertz, 1978, p. 105).
O refúgio no tradicional tem implicações não apenas na dissimulação de relações
hierarquizadas entre as classes sociais que compõem a sociedade gaúcha- onde se
apresenta a história gaúcha como uma “história sem povo” - como também permite
expressar, na “questão regional”, os laços de exploração da sociedade nacional em relação
à sociedade regional do Rio Grande do Sul. Segundo Schwartzman (1980, p. 370), a
“questão regional” permite desvincular a história dos conflitos entre as tendências de
centralização e concentração de poder e a força centrífuga das diferentes regiões, que
acabaram se integrando de alguma forma na nacionalidade brasileira. O refúgio no
tradicional recoloca, ainda, a sociedade gaúcha em função de um código de honra que
também se apresenta como uma política sexual.
Neste sentido, o culto à personagem modelar do gaúcho, à natividade e o
surgimento do Tradicionalismo no Rio Grande do Sul, também revelam uma insistência na
ordenação social hierarquizada entre os sexos. Não apenas dissimulam relações de classe,
mas acima de tudo, conduzem a uma política sexual que tem por base um código de honra,
onde o culto ao macho e a natureza dos seus sentimentos e atitudes revelam o predomínio
da noção de hombridade e da precedência masculina, e onde os domínios dos papéis
sexuais acham-se adstritos a uma hierarquia que reforça seus códigos de honra33.

33
Cabe aqui, registrar a letra da música rancheira “Morocha”, apresentada num festival de música nativista,
em 1984. A referida letra causou grande polêmica nos meios de comunicação de massa pelo machismo com
que aborda as relações entre os sexos, vinculando-as à relação do homem com os animais selvagens. Neste
sentido, ocorre uma comparação da condição feminina na situação de submissão sexual enquanto sujeição à
dominação viril do macho.

Não vem morocha, te floriando toda,


que eu não sou manso e esparramo as garras
Nasci no inferno, me criei no mato
e só carrapato é que em mim se agarra
Tu te aprochegas, rebolando os quarto
Trocando orelha, meu instinto rincha
E eu já me paro todo embodocado
que nem matungo quando aperta a cincha
Aprendi a domar amanunciando égua
e para as mulher vale as mesmas regras
Animal te pára, sou lá do rincão
mulher pra mim é como redomão:
Associam-se a este código, as metamorfoses que conduzem à contração da sociabilidade à
família, onde, então, a mulher tem seu domínio assegurado, ficando o homem
parcialmente livre desta privatização. Os cafés tão típicos da vida social riograndense do
início do século XX, pois revelam que este código de honra livra o domínio masculino do
controle do Estado e do seu disciplinamento, o que é pensado como um aspecto em que
seus privilégios como machos são “preservados”.

4 - A CONDIÇÃO FEMININA NA COMPOSIÇÃO DA SOCIEDADE GAÚCHA

Numa sociedade marcadamente militarista e guerreira, em sua formação, a mulher


ocupa papel pouco relevante na composição dos seus valores e concepções
paradigmáticos. Na atividade produtiva da Campanha, a mulher também não ocupa um
espaço especial, ficando mais ligada à tecelagem, aos trabalhos na horta, à ordenha das
vacas, à quebra do milho e aos cuidados domésticos. No entanto, a situação feminina na
sociedade gaúcha assume modificações qualitativas, em função do processo de
normatização e disciplinamento das relações sociais a partir das metamorfoses no modo de
produção capitalista no Rio Grande do Sul, no sentido de relações modernizantes, com
uma delimitação mais nítida entre as esferas pública e privada.
No início da formação do Rio Grande do Sul, no período das lutas e conquistas, a
mulher existente é basicamente a índia, constantemente vítima de estupro e violência por
parte dos bandeirantes e soldados. Esta e frequentemente considerada pelos conquistadores
como “lasciva” e “despudorada”, ou seja, ao colonizador nunca foi suficiente apossar-se
das mulheres autóctones. Era preciso desmoralizá-las (Dacanal, 1980, p. 29).Observam-
se nas descrições feitas por inúmeros estrangeiros que viajam pela Região Sul neste
período, que estes percebem a conduta das índias dentro de um código moral
completamente indiferente àquelas.

Maneador nas patas, pelego na cara...


Crinuda velha, não escolho lado.
Nos meus arreios não há quem pelinche
Tu murchas o lombo, te encaroço o laço
boto os cachorros e por mim que abiche
Não te boleias que o cabresto é forte
O palanque é grosso: sentas e te arrepende
Sou carinhoso, mas incompreendido,
e pra teu bem, vê se tu me entendes.
(Coxilha Nativista, ano 1984)
De acordo com estes relatos, observa-se que o acasalamento com mulheres
indígenas ocorre fundamentalmente entre os grupos mais baixos da escala social, sendo
que isto é considerado um desabono dentro do código de honra masculino. No entanto, a
nudez, a “docilidade” e o “despudor” das índias, numa terra onde se cultuam as atitudes
viris, de “macho”, propõem um ponto de honra para o “guasca” riograndense, ou seja, é
impossível conviver com suas atitudes sedutoras e não “investir” e aproveitar suas
facilidades. Assim, a perseguição, por “justa causa”, às índias em busca de seus “favores”
sexuais, na maioria das vezes tomados à força, são ponto de afirmação da virilidade dos
conquistadores, habituados com outros tipos de mulheres, onde o recato e o pudor são
valores fundamentais de vergonha tão cara aos conquistadores “civilizados”.
Afora a violência sexual às mulheres indígenas, estas ainda são depreciadas pela
ótica do colonizador, sendo consideradas pouco suscetíveis de afeição e gratidão,
desavergonhadas, com riso parvo e andar ignóbil, não se afeiçoam ao amante, etc. As
índias são acusadas de, por sua “voluptuosidade”, atraírem os homens, não mantendo
afeição ou mesmo fidelidade ao amante: seguem seus maridos por toda a parte, é certo,
mas fazem-no unicamente por que seus maridos são homens, seguiriam outro qualquer em
seu lugar, si se apresentasse (Saint Hilaire, 1935, p. 206). Observa-se um distanciamento
dos valores de uma sociedade cujo ponto de honra reside na virilidade, no machismo,
tendo a mulher o papel de, através do recato e do comedimento sexual e do pudor, manter
um papel passivo, conservando a honra do seu marido, e/ou, da sua família, através da
pureza sexual.
Torna-se difícil, então, entender a atitude de liberdade que as índias mantêm
quando do contato com o branco: Começam a fazer delicadezas, com ar sério e
encabulado, para depois porem-se a rir, esse riso tolo e infantil que lhes é peculiar (Saint-
Hilaire, 1935, p. 210). Um relato deste período, feito por esse viajante, demonstra
claramente a posição desvalorizada que as Índias possuem na sociedade gaúcha, em
função do indisciplinamento e da falta de normas em sua conduta sexual no contexto
moral da vida na fronteira e das suas condições sociais: Quando estive em S. Nicolau,
mulheres quase nuas vieram ter ao redor de minha carroça para aproveitar os restos dos
alimentos, já apodrecidos, dos meus soldados, no que eram acompanhadas pelas crianças
que amamentavam (Saint-Hilaire, 1935, p. 225).
Isto reforça a ideia de que a prostituição se apresenta como única saída para sua
vida miserável, numa terra permeada por guerras, onde os homens se dedicam a lutas,
ficando as mulheres sujeitas a privações e ataques sexuais de conquistadores. Sem sua
comunidade de origem, passam a percorrer longas distâncias, acompanhadas, em alguns
casos, dos seus maridos, muitos deles índios, migrando com estes, conforme suas
atividades campeiras. Aos homens brancos que se casam com índias, são designadas
atitudes de desconsideração, por serem “rudes” o bastante para só procurar na mulher o
“prazer carnal”, e não o complemento de sua honra masculina, ou seja, a vergonha e o
pudor da sexualidade feminina.
Além das índias, também existem as chinas, “prostitutas de campanha”, que
andavam descalças, sendo sua única roupa uma bata parecida com as que usavam as
índias (Nichols, 1946, p. 37), parecendo inteiramente destituídas de personalidade. As
chinas encarnam outra faceta da situação feminina na vida da Campanha, em função da
sua politica sexual, posicionando-se, através de uma valoração negativa, dentro do código
moral da honra. Independentemente destas duas personagens - consideradas “perigosas” e
“impuras” - ainda existe outra, que também divide o panorama da Campanha, ela é a
senhora - a esposa do estancieiro34.
Nos relatos de Saint-Hilaire, essa personagem histórica surge, ora como uma
simpática e hospitaleira mulher, ora como uma arredia e preservada pessoa. De qualquer
forma, este autor avalia que o comportamento social deste tipo de mulher difere
grandemente do comportamento feminino da Europa de então. Fica bem claro nos seus
depoimentos, que esta personagem se atém à tecelagem, aos cuidados domésticos do
estabelecimento da estância, cumprindo dentro destas funções a hospitalidade a viajantes,
fato comum numa terra percorrida pelos mais diferentes tipos sociais. O comportamento
de fazer as “honras da casa” vai desde a conversa animada na soleira da porta até o envio
do melhor em alimentação ao visitante, sem deixá-lo entrar ou aproximar-se do
estabelecimento. Disto, deduz-se o pouco disciplinamento da conduta feminina, embora
seja observada sua atitude de recato em diferentes graus. O discernimento e a ponderação
são aspectos ressaltados pelo autor, que afirma serem as esposas dos estancieiros melhor
bom-senso que os próprios maridos, constantemente comprometidos com o guerrear.

34
A presença desta classificação do comportamento feminino, em referência ao aspecto moral dos papéis
sexuais no espaço público e privado, nos relatos e descrições da sociedade gaúcha, é uma constante.
Isto é comumente abordado na literatura antropológica sobre as sociedades mediterrâneas, sendo enfocado
nas personagens femininas da bruxa, da viúva, da prostituta. A respeito disso, ver Pitt-Rivers (1979) e
Campbell (1968).
Mary Douglas (1976, p. 16), propondo uma reflexão sobre as ideias e noções de sujeira, pureza e contágio,
recoloca a questão do perigo numa dimensão que se constata na história social da honra gaúcha. Ou seja,
propõe uma reflexão sobre a relação entre a ordem e a desordem, ser ou não ser, forma e não-forma, vida e
morte. As implicações morais para a delimitação da honra-vergonha feminina na sociedade gaúcha, portanto,
podem ser vistas sob este ângulo.
Observa-se, então, no espaço social da fazenda, a presença de relações sociais e papéis
sexuais já definidos segundo alguns padrões e modelos de conduta, que encontram sentido
dentro do processo de normatização da sociedade gaúcha. Persistem, ainda, imprecisões de
limitação dos fundamentos morais da família e da sua política sexual, em função da
inexistência de uma hegemonia no código moral da honra e de limites precisos das esferas
público/privado.
É notório que estes tipos sociais sejam oriundos das ilhas dos Açores, não sendo
comum que uma índia chegue a desempenhar o papel de dona de estância. A timidez e o
recato são observados nestas mulheres, sendo raras as vezes em que o autor se refere ao
fato de entrar no interior das suas casas na ausência do marido, e, na maioria das vezes em
que isto acontece, refere-se ou a viúvas, ou a mulheres que têm seus maridos participando
de alguma disputa ou guerra local. Já nas cidades existentes, é outra a personagem. Trata-
se das damas da sociedade local, vivendo a construção recente de outro código moral. Da
sua estada em Porto Alegre, o autor afirma: Aqui as mulheres não se escondem, mas não
há em Porto Alegre mais sociedade que nas outras cidades do Brasil (Saint-Hilaire, 1935,
p. 37), ou seja, não existe um padrão de cerimoniais e pontos de encontro que sirvam
como locais e modelos de reuniões sociais, cada um vive em seu canto ou visita seu
vizinho, sem cerimônia, com roupas caseiras. Assim, não há o hábito de uma vida
sofisticada e cheia de atrativos como na Europa, de onde o autor se origina. Isto é em torno
dos anos de 1820-1821. Vê-se como, quase um século depois, o panorama urbano se
modifica, atuando um outro tipo de sociabilidade onde os espaços público/privado se
acham bem delimitados.
As descrições dos bailes frequentados pelo autor em Porto Alegre e Rio Grande,
ambos importantes centros de vida urbana na Capitania, revela, por outro lado, como
ocorrem as relações entre homens e mulheres neste meio, muito diferente daquele descrito
na zona da Campanha gaúcha, em termos da separação das esferas público/privado e do
tipo de sociabilidade diferenciado imposto por ambas: As mulheres falavam
desembaraçadamente com os homens e estes cercam-nas de gentilezas, sem contudo
demonstrarem empenho ou ânsia de agradar (...) (Saint-Hilaire, 1935, p. 42). Nestes
bailes, o autor descreve a importância do gosto feminino pela arte, música ou poesia, a
falta de luxo nos trajes, em se tratando de festa entre pessoas intimas, a graciosidade
feminina, embora presencie a falta de vivacidade das mulheres, que tanto “caracteriza as
francesas”. Por outro lado, aponta para falta de brandura com que os homens as tratam.
Nesta atmosfera, onde já vigora, de modo rudimentar, o embrião de um estilo de
vida moderno, muito diversa daquela encontrada em zonas de estâncias do Rio Grande do
Sul, o autor chega a afirmar que no interior as mulheres se escondem e não passam de
primeiras escravas da casa; os homens não têm a mínima ideia dos prazeres que se
podem usufruir decentemente (Saint-Hilaire, 1935, p. 42). Percebe-se a constatação de um
disciplinamento maior do papel feminino e masculino na vida urbana da sociedade gaúcha,
colocada em contraste com a falta de “civilidade” e de padrões mais “sofisticados” da vida
e das relações sociais na estância e na Campanha.
Observa-se que o autor percebe uma diferença qualitativa no tipo de sociabilidade
de ambos os sexos nas diferentes sociedades, e na delimitação de seus domínios, apenas
conseguindo descrevê-la. As descrições específicas à sociedade de Rio Grande
demonstram a preocupação com o estabelecimento de normas para o controle da vida
pública e sua diferenciação do domínio do privado, embora se identifique a presença de
uma oscilação na gradação dentro da estrutura social em que o autor se encontra. Deste
modo, nas festas de Rio Grande, as mulheres são algumas bonitas, porém sem atrativos,
sendo para com os homens muito desembaraçadas, ou demasiadamente tímidas (Satin-
Hilaire, 1935, p. 99). Já os homens são poucos solícitos junto às senhoras, quase não lhes
falando e não mostrando o menor desejo de lhes ser agradáveis.
Observa-se que o culto à hombridade, ao macho, perpassa toda a sociedade
riograndense, a ponto de marcar as relações entre homens e mulheres no meio urbano da
época, caracterizando essas relações como cerimoniosas, mas não envolventes, o que
demonstra uma preocupação com o comedimento sexual das mulheres, assim como com a
expressão de fraqueza ou “frescuras” dos homens. No caso masculino, isto é uma ameaça
à honra masculina, que se define em função da virilidade, da coragem e rudeza, no caso
feminino, demonstra a possibilidade de uma aproximação com as chinas ou índias,
condenadas por sua voluptuosidade e promiscuidade. Em ambos os casos, é o código de
honra oriundo da zona da fronteira que prevalece no meio urbano da época - na honra
masculina, referida à hombridade e na feminina, relacionada à conduta sexual.
Assim, os códigos de honra, nesta época, sofrem um processo de burilamento, na
medida em que se percorre a sociedade riograndense da Campanha à vida citadina. A
primeira, fonte dos símbolos delimitadores de uma identidade regional e a segunda,
sofrendo influências na formação dos seus valores, na busca constante de se diferenciar da
rudeza, agressividade e violência da vida na Campanha, mas sempre problematizada em
função daquele código de honra onde ser gaúcho é definido pelo culto à hombridade e pelo
seu senso de defesa da honra, através da coragem, da astúcia e da prerrogativa masculina
face à passividade e fragilidade feminina.
Desta forma, afirmando este código de honra, ou buscando negá-lo, tendo-o no
fundo como única referência, a sociedade riograndense sofre modificações circunstanciais
no século XX, quando, então, o Rio Grande do Sul passa, após 1930, a ser incorporado na
vida nacional, sendo progressivamente encompassado pelo ritmo de modernização e pela
complexa fragmentação da vida social. Quase um século após as descrições de Saint-
Hilaire, retorna-se a elas de alguma maneira, quando se aborda a obra de Andradina de
Oliveira, que escreve A Mulher Riograndense, em 1907, e que, no relato de diferentes
histórias da vida de escritoras famosas na sociedade riograndense, esclarece um pouco
mais a respeito da situação da mulher na sociedade gaúcha e no seu papel neste código de
honra peculiar.
Suas observações, ao longo da trajetória social destas mulheres, apontam para
alguns requisitos importantes idealizados para a realização da identidade social feminina
no mundo dos “guascas”, face ao aspecto da modernidade. Recortando os momentos
pessoais destas trajetórias, a autora constantemente refere-se ao aspecto “encantador”,
“gracioso” e “belo” das figuras femininas na esfera familiar, vez por outra salientando a
sua força moral como elemento da identidade social feminina na esfera pública. Nos seus
escritos, observa-se claramente que, já há, na sociedade gaúcha, a divisão público e
privado, tendo a mulher conquistado posição importante na esfera do lar. Assim, na
família, as mulheres são um anjo, filha ou irmã encha de inefáveis carinhos o lar
(Oliveira, 1907, p. 11). O desempenho do papel materno é grandemente ressaltado - Mãe,
é de um extremo que toca às raias do fanatismo. Tudo pelo filho! (1907, p. 12). Salienta,
por seu turno, a importância da pureza feminina e os perigos para a sua reputação e moral.
Assim, é colocada como importante a atuação feminina na atividade social, no sentido de
preservação dos fundamentos morais da família, pois para quando faltar-lhe, um dia, o
braço masculino, ou do pae, ou do irmão, ou do marido, ou do filho, não ser preciso, para
matar a fome, atirar-se ao tenebroso abysmo do vicio (Oliveira, 1907, p. 13). Revela-se,
novamente, a proximidade com o passado da Campanha, onde uma mulher só pode atingir
o status de uma pessoa degradada moralmente.
A atuação feminina no espaço público é conduzida em função da educação ou da
caridade, referindo-se, basicamente, àquelas regiões morais da vida social que se
aproximam da esfera familiar, como é o caso de instituições religiosas e escolares, onde é
possível à mulher permanecer com sua condição moral inalterada. É importante registrar
que as histórias de vida que compõem este livro referem-se ao século XIX, a partir de seus
meados. Comenta-se, constantemente, a importância da educação intelectual como forma
de desenvolver-se e aprimorar-se uma educação moral feminina, que no fundo projeta as
glórias do Rio Grande do Sul35. Trata-se de educar a mulher para além do seu papel de
esposa e mãe, como forma de garantir a defesa moral da sociedade gaúcha, dos seus
familiares e parentes, pais, maridos e filhos.
O culto à virgindade é reforçado quando a autora salienta que algumas destas
mulheres guardam apenas para si os soluços e sonhos virginais. A maior virtude feminina
é a manutenção da virtuosidade do lar, dada não só na educação moral das mulheres, mas
na sua educação intelectual. Educação esta que se limita ao direito das mulheres
alfabetizarem-se e trabalharem em prol da educação generosa e caridosa, atuando como
professoras. Neste sentido, a relação do comportamento feminino tem muito da
manutenção da honra gaúcha, das glórias da sociedade gaúcha.
A importância do lar, do marido e dos filhos está expressa numa das muitas
descrições que a autora faz em seu livro: E ella pensou nas douçuras santas da família;
sonhou um lar feliz ao lado de um ente que muito a amasse e a comprehendesse ainda
mais (Oliveira, 1907, p. 45), ou, então, uma filhinha veio então desvendar à sua alma
delicada de o mais puro e santo dos affectos - o de mãe“. Assim, não apenas cumpre à
mulher preservar a honra masculina, mantendo um papel de subalternidade e fragilidade
ante sua ação e prerrogativa, numa sociedade guerreira e militarista em sua origem, como
após a constituição das fronteiras gaúchas e a delimitação do seu código ético-moral a
partir do espaço familiar, cumpre a necessidade de enobrecer, com sua conduta social, a
“pujança” do Rio Grande do Sul. Observe-se qual a politica sexual por trás do código da
sociedade gaúcha, que valoriza e cultua os valores masculinos, e que torna sua
comunidade de origem como principal fronteira para a construção dos valores e noções
que orientam a prática social do gaúcho e seu senso de honra. A discussão da honra do
gaúcho se reflete na questão da nova reputação do mesmo, e depende não só da classe
(peão, estancieiro), mas também do gênero (homem ou mulher).

5 - FUNDAMENTOS DA HONRA GAÚCHA

35
Já Saint-Hilaire (1935, p. 71) aponta para a questão moral da condição feminina na Campanha como um
aspecto relevante na formação do povo gaúcho, e na sua noção de honra, quando comenta que as meninas,
criadas no meio de escravos e tendo sob seus olhos, desde a mais tenra idade, o exemplo de todos os vícios
deles, adquirindo ao mesmo tempo o hábito do orgulho e da baixeza.
Neste momento, busca-se aspectos comparativos entre os estudos realizados por
Pitt-Rivers (1979, 1968), Peristiany (1968) e Campbell (1968) em sociedades pertencentes
ao complexo mediterrâneo e a sociedade gaúcha como parte representativa à nível de
Brasil, das noções e valores mediterrâneos, juntamente com o conceito de honra que lhe é
pertinente. Assim, intenta-se compreender o conceito de honra da sociedade gaúcha à luz
do conceito de honra das sociedades pesquisadas por estes autores, definindo semelhanças
nos traços socioculturais destas sociedades, que permitem a comparação entre estes
conceitos e a posição estrutural que as diferenças sexuais ocupam neste domínio. De
acordo com as ideias de Pitt-Rivers, as questões de honra afetam não apenas os indivíduos,
isto é, os grupos sociais possuem honra coletiva, o que possibilita o estudo do conceito de
honra não só como atributo individual, mas como um sistema cultural onde um
determinado grupo social constitui sua identidade.
Desta forma, um membro de um grupo social comparte el honor de su grupo
(1979, p. 35), ao mesmo tempo em que a reputação social de um se reflete na honra de
todos os membros. Mas, principalmente, a honra do indivíduo é uma honra socialmente
atribuída, depende dos critérios que orientam sua conduta social dentro da sua sociedade.
Logo, a honra se origina no indivíduo, mas se manifesta como tendência no domínio
social. Como contrapartida da noção de honra, afirma-se a importância da vergonha como
um sentimento que busca preservar a reputação do indivíduo. A vergonha se afirma,
portanto, como uma virtude. No entanto, conforme este autor, honra e vergonha são
qualidades eticamente neutras e, no domínio social, tornam-se valores que fundam as
diferenças entre os sexos, articulando seus fundamentos morais (Pitt-Rivers, 1979).
Portanto, honra, no nível de um grupo social ou de um indivíduo, se refere a uma honra a
que se aspira e que se quer reconhecida, decorrendo, daí, a busca de uma posição social
onde as transações de honra são meios através dos quais los indivíduos encuentran su
papel dentro de la organización social (Pitt-Rivers, 1979, p. 81) .

6 - APROXIMAÇÕES SOCIOCULTURAIS

Feitas estas considerações a respeito do caráter conceitual, é importante esclarecer


as aproximações entre as condições históricas da sociedade riograndense e as das
sociedades mediterrâneas. Em Pitt-Rivers, é relevante resgatar a noção de pueblo, com a
qual constrói o recorte da identidade social dos moradores de Andalucía. De acordo com
ela, a noção de pueblo reúne o ideal da igualdade em honra, isto é, quando ameaçam
conflitos, o atributo pessoal da masculinadas salta para o primeiro plano para determinar a
preeminência de um homem sobre o outros, e se pode ouvir a palavra “culhões” (Pitt-
Rivers, 1968, p. 54). Portanto, a noção de pueblo pressupõe uma comunidade de iguais
que prescreve que um homem no tem direito a humilhar outro homem. Logo, cada
indivíduo tem direito à honra. Esta noção refere-se, em última instância, a uma
comunidade de iguais onde as diferenças econômicas não chegam a resultar significativas
como diferenças de classes sociais (...) (Pitt-Rivers,, 1968, p. 52).
Em termos históricos, a formação da sociedade gaúcha pode conduzir à percepção
de que esta, em grande parte da sua estruturação, corresponde a este tipo de realidade. A
própria ideia utilizada por alguns autores para afirmar esta comunidade de iguais refere-se
à ideia da democracia gaúcha, onde o patrão, eleito de maneira democrática, convive com
o peão (Gonzaga, 1980, p. 120)36.Antes de ser uma realidade de fato, trata-se de um
código de honra que pressupõe que o patrão deve manifestar, no âmbito social, tanto
quanto o peão, o domínio absoluto do código de honra da comunidade, onde a hombridade
é fundamental, obrigando ambos a defenderem-se por si mesmos, como atributo físico da
masculinidade. A covardia ou fraqueza não são permitidas nem ao patrão, nem ao peão.
Ambos partilham o ideal da igualdade em honra. Por outro lado, nas lutas e guerras com
os castelhanos, recupera-se a importância da honra coletiva. Neste sentido, a noção de
pueblo também pode ser aplicada, ou seja, a honra coletiva, do pueblo, se expressa na
forma de rivalidade entre pueblos (Pitt-Rivers, 1968, p. 55). De acordo com este autor, os
desafios de honra só ocorrem em situações em que os desafiantes se percebem como
iguais, isto é, a importância dos desafios reside basicamente na busca de estabelecer a
superioridade sobre a pessoa confrontada. As observações de Madaline Nichols (1946,
p.43) remetem as constantes disputas de honra: Carreiras, jogos, danças e desafios ao
violão, em regra terminavam em duelos ou em bebedeiras, quando cada qual esforçava
para conservar-se em paz com os adversários, rendendo-se somente quando derrubado
pelo álcool. Assim, o recorte para a identidade social do gaúcho surge circunscrito a uma
comunidade que é uma unidade territorial, e a proximidade implica efetivas sanções do
puebIo.

36
Segundo o relato de Mark Jefferson, apresentado por Madaline Nichols (1946, p. 44), pode-se perceber a
dimensão desta noção de “democracia”: O que era fundamental no caráter gaúcho era sua utilização familiar
dos cavalos e das vacas. Ele podia ser pobre ou rico; podia ser branco ou ter considerável porção de sangue
indígena; podia ser subserviente ao patrão ou exigir homenagens com o proprietário de terras ou mesmo com
o bandido.
A relação entre peões e patrões - a importância da personagem do caudilho –
recoloca, novamente, algumas aproximações entre as sociedades mediterrâneas,
especialmente aqui, no caso de Andalucía, e a sociedade gaúcha. Segundo Nichols, os
exércitos gaúchos poderiam ser bárbaros - e eles com certeza o foram nas guerras civis -
mas quando conduzidos por chefe que sabia como tratar seus homens, eram altamente
eficientes. O importante das relações entre a peonada e o caudilho, que Freitas (1980)
formula como um senso peculiar de probidade condicional, é que elas envolvem, acima de
tudo, o fato de que um patrão ou chefe militar deve ter o domínio do código de honra
gaúcho com base nos valores da raça-coragem, disposição guerreira, audácia, pois,
somente assim, aqueles personagens incrementam o prestígio da própria peonada. Isto é, o
patrão incrementa seu prestigio a partir da posse de empregados e os empregados
participam, assim da gloria de seus patrões (Pitt-Rivers,, 1968, p. 57). O compromisso
com base na honra é colocado como fundamento do caráter condicional do senso de
probidade do gaúcho. Desta forma, como Pitt-Rivers afirma para o povo de Andalucía, a
honestidade e a lealdade são definidas em determinadas situações com pessoas específicas,
dentro do domínio do pueblo.
A respeito da dinâmica de delimitação do domínio do pueblo na sociedade gaúcha,
de acordo com o seu período formativo e o código de honra que então começa a se
estruturar, não pode ser abandonado o fato de esta ser uma sociedade guerreira e
militarista, justamente por circunstâncias históricas que colocam no seu interior a disputa
de duas nacionalidades – a espanhola e a portuguesa - numa região habitada por grupos
indígenas de diferentes composições, como os charruas, minuanos e guaranis. Neste
sentido, busca-se afirmar, na dinâmica da delimitação dos pueblos, aspectos aproximativos
dos sarakatsani, pastores do Norte da Grécia, estudados por Campbell (1968). Este autor
aponta pelo menos dois aspectos que, na formação histórica da sociedade gaúcha, podem
ser observados, ou seja, a questão de que a comunidade dos sarakatsani é formada por
grupos sociais opostos e competitivos e é de que os mesmos não possuem instituições
políticas formais. Nesta comunidade, a solidariedade constitui-se através da categoria de
honra simbolizada na ideia de sangue. O autor aponta para os mais diferentes tipos de
conflito, desde o roubo de ovelhas a invasões furtivas dos pastores.
Semelhantes observações conduzem à reflexão da composição da sociedade gaúcha
no período da formação do seu código de honra básico, quando esta não possui limites e
fronteiras definidas, sujeita a disputas entre a Coroa Espanhola e a Portuguesa, o que
conduz seus membros a uma constante definição da sua identidade social, no sentido de
sobreviver a estas dispersões políticas e sociais. A competição origina, na comunidade
estudada por Campbell (1968, p.130) a valorização da hostilidade, da desconfiança, e,
logo, do auto-disciplinamento contra a covardia, e onde o sangue está em última relação
com a coragem. A honra, assim, liga-se a sentimentos de amor próprio e vergonha, o que,
por sua vez, reforça a atitude positiva da competição. Isto se torna relevante no caso de
uma sociedade como a gaúcha, no período formativo, com alto grau de fragmentação. É
importante considerar que, ainda no séc. XX, ocorre o levante revolucionário de 1923,
como decorrência da Revolução Federalista de 1893, que divide a sociedade gaúcha, não
mais em portugueses e castelhanos, mas em “maragatos”, “pica-paus” e “chimangos”.
O sistema de valores que leva à delimitação do código de honra da sociedade
gaúcha se refere, portanto, à fragmentação e competição existentes no interior dos seus
grupos sociais, seja no período da sua formação, seja em períodos posteriores. A questão
do amor próprio, neste código de honra, acha-se associada, como coloca Campbell (1968,
p.130) , ao sentimento de vergonha. E o que se pode observar no caso da competitividade:
Por fim, e possivelmente mais expressivo de tudo, o gaúcho era combativo (Nichols, 1946,
p. 42). Disto resulta um alto grau de competição, não lhe bastava possuir habilidades
especiais que seu modo de vida fazia necessárias. Ele deve contrapô-las às dos outros,
como a ideia de impor sua superioridade e com a esperança de mantê-la sobre todos os
parceiros, A atitude competitiva traz como consequência, uma preocupação extremada
com a estima social, que pode incidir sobre o seu amor próprio. A competição, agora como
tendência de uma sociedade agonística, se reflete num estímulo, impelindo o gaúcho à
mais insensata temeridade tanto para conquistar seus rivais como para merecer-lhes as
unânimes aclamações. Ainda mais uma vez, de acordo com as colocações desta autora
(Nichols, 1946, p. 43)., observa-se, na sociedade gaúcha, e na honra masculina, uma
preocupação constante com a estima social, isto é, essa ânsia por superioridade que o
obcecava, levava o gaúcho até os mais espantosos atos de coragem... dando-lhe o
sentimento de ridículo e endurecendo- o para a dor. Torna-se significativa a aproximação
com a afirmação feita por Campbell (1968) sobre os sarakatsani, onde deve haver la lucha
de autodisciplina contra la cobardia, com base em valores egocêntricos - em que o
conceito de honra se expressa, essencialmente, na ideia de dignidade.
Assim, pode-se concluir sobre alguns aspectos essenciais da sociedade gaúcha e do
seu código de honra. Primeiramente, o fato dessa sociedade se apresentar simultaneamente
competitiva e fragmentada, afirma a primazia do entremeado das relações sociais - as
desventuras de um grupo social, de algum modo, afetam a integridade, em termos
positivos ou negativos, dos outros grupos sociais. É o caso da forma como os
conquistadores definem os índios e suas mulheres, ou de como ridicularizam seus
opositores atribuindo a estes, qualidades como fraqueza e covardia, onde o humilde e
modesto não têm espaço, sendo fonte de chacota, exatamente como entre os sarakatsani,
onde un hombre sólo es bueno cuando és tambiên fuerte. Portanto, el débil, e el humilde,
el modesto, incluso eI meramente benévolo y cooperativo, no es virtuoso (Campbell, 1968,
p. 138).
Em segundo lugar, os valores que norteiam a sociedade gaúcha, a partir deste
código de honra, revelam-se, como nos pastores montanheses, como valores egocêntricos.
Isto coloca uma preocupação que o indivíduo tem por si mesmo, seu amor próprio, sem
muita preocupação com os demais. Neste sentido, e em complementação às observações
feitas acima, os valores de honra são excludentes e particularistas. Daí decorre que em
geral não é vergonhoso lançar insultos, senão recebe-los (Campbell, 1968, p. 138).
Embora se associe a formação da sociedade gaúcha ao aspecto competitivo e
fragmentado que esta possui na sua origem, fato que se torna relevante registrar, é que o
seu código de honra se tornar comum àqueles que se definem como pertencentes a ela.
Utilizando-se Peristiany (1968), diz-se que a base valorativa da honra da sociedade gaúcha
constitui-se num fundo comum, isto é, o ideal de honra é mantido em comum pelos
agentes, o que possibilita uma linguagem valorativa também comum. Assim como este
autor demonstra que os habitantes de Pitsilla, uma aldeia greco-cipriota, orgulham-se da
crença de que são racial e linguisticamente mais puros – os depositários e a incarnação los
depositários y la encarnación vivente de los valores tradicionais de hombria,
perseverança, entereza de caráter y generosidad (Peristiany, 1968, p. 158) - os gaúchos se
revelam os representantes típicos da raça dos machos e guascas, aqueles que encarnam os
princípios máximos da hombridade na nação brasileira.
Peristiany aponta um passado de lutas, domínios e influências na formação da
sociedade greco-cipriota, muito próximo daquele descrito no início deste capítulo sobre a
formação da sociedade gaúcha. Ou seja, a ilha de Chipre está sob a dominação bizantina e
a instauração do reinado franco, a ocupação inglesa e a dominação turca. Deste modo,
Peristiany se refere a uma sociedade em luta com a formulação da sua identidade. De
alguma forma, isto se compara à situação das lutas e guerras que constituem a história da
sociedade gaúcha, indefinida entre uruguaia, argentina e brasileira, e que resulta nas lutas
para definição das fronteiras do Brasil Meridional. Certamente, estas condições históricas
podem ser aproximadas daquelas enfrentadas pela sociedade greco-cipriota em sua
formação, onde a aldeia cipriota se torna unidade de evaluación moral dos componentes
básicos da identidade social dos seus habitantes. Então, as únicas obrigações
imediatamente significativas são as das famílias, da aldeia e da nação, e as referentes ao
eu (pessoa) em que a própria honra esta em jogo (Peristiany, l968, p. ). Estas colocações
dialogam com muitos dos comentários de diferentes autores acerca do espírito nacionalista
da sociedade gaúcha, vinculado às guerras de fronteiras por que passa a formação desta
saciedade - o gaúcho tornou-se um símbolo do espírito nacional e das realidades
nacionais (Nichols, 1946, p. 109). Peristiany (1968, p. 172) apresenta, assim, uma
aproximação entre a ideia de nação e a de família - formada por homens que
compartilham um mesmo nome, dispostos a defender sua honra, segundo uma mesma
motivação.
Novamente, retorna-se ao código de honra que vigora neste tipo de sociedade, onde
o recorte da identidade social do grupo ocorre em função do fato de compartilharem de um
mesmo código de honra. Assim, tanto a sociedade gaúcha quanto a greco-cipriota, não se
apresentam em esferas de competência claramente delimitadas na sua formação histórica,
remota ou recente, o que se reflete no fato da honra residir na capacidade de precedência
do seu povo. Isto é, quando as esferas de influência não estão claramente delimitadas,
cada ator teme una invasã de sua área de prerrogativas e as afimar contra todos os
intrusos (Peristiany, 1968, p. 171). Os greco-cipriotas, assim como os gaúchos, possuem
em seu conceito de honra uma preocupação em provar a si mesmos o lugar que ocupam.
Assim sendo, para atuarem, precisam converter as relações anônimas em pessoais, o geral
em particular. A afirmação feita por este autor se coloca como válida para a descrição da
sociedade gaúcha e seu código de honra, ou seja, a honra se refere ao cEodigo de uma
micro-sociedade exclusivista e agonística.

7- A POLÍTICA SEXUAL NA HONRA GAÚCHA

Segundo as observações de Pitt-Rivers (1979, p. 44), as questões de honra remetem


à problemática da conduta e reputação social dos indivíduos numa sociedade, sendo que a
conduta que estabelece a reputacion depende da condição da persona em questão. As
qualidades das condutas sociais possuem, portanto, não apenas um componente de classe,
mas a contrapartida das qualidades, vinculadas con un sexo o con otro (1979, p. 49). Estas
inferências sobre a composição da honra social dirigem as observações das diferenças
sexuais no nível de um sistema cultural.
Na sociedade de Andalucía, este autor observa que existem dois tipos básicos
através dos quais a honra social dos sexos se afirma: o primeiro se refere à honra-
prioridade, definido como particular ao homem, é algo que pode se ganhar com a ação, a
iniciativa masculina; o segundo, diz respeito à honra-vergonha que não pode se ganhar,
só pode manter-se evitando a conduta que pode destruí-la, a iniciativa feminina” (Pitt-
Rivers, 1979, p. 57). É com base nestas noções que se observa o homem na sociedade
gaúcha como o elemento que cultua a violência sexual como um aspecto lógico do seu
código moral. Por exemplo, no caso das índias guaranis, o homem gaúcho não deve evitar
o contato sexual com elas, tendo em vista que as mesmas, em seu código moral, não
possuem vergonha, logo, não evitam a destruição da sua honra.
No caso da sociedade gaúcha fica evidente que o comportamento feminino ideal,
portanto, envolve a noção de honra-vergonha, que está associada à ideia da sexualidade
feminina como incontrolável, sendo esta, a visão que as mulheres, índias e chinas,
inspiram nos colonizadores. É a falta de comedimento sexual destas mulheres que faz com
que, elas agindo como animais, entregando-se totalmente à voluptuosidade, atraiam os
homens que por elas é recebido nos braços (Saint-Hilaire, 1935). No caso das índias e
chinas, elas se aproximam da função social que a figura da viúva provoca no pueblo, isto
é, depredadora do homem, que, por sua natureza de macho, é por si mesmo, sexualmente
agressivo. Ou seja, cabe à mulher, em sua conduta sexual comedida, construir o
disciplinamento da sexualidade masculina, e, principalmente, da preservação da honra
masculina. A conduta sexual das índias e chinas apresenta-se ao conquistador como um
desafio a sua honra sexual. Desta forma, dentro deste código de honra, o excesso de
sensualidade ou uma conduta sexual indisciplinada se contrapõe à passividade feminina, a
sua virtude de comedimento e pureza sexual masculina e sua honra-prioridade.
O recato e o pudor são encontrados, contudo, num outro tipo de mulher, que,
convivendo no cotidiano com os tipos anteriores, busca se diferenciar de ambos, atuando
dentro das muitas morais da esfera familiar. Trata-se da senhora, da esposa do estancieiro,
daquela que faz as honras da casa na lei da hospitalidade gaúcha. Identifica-se, neste
momento, na estância, a presença de uma política sexual da sociedade gaúcha, tanto
quanto é neste contexto que ela mesma se constitui. É o que descreve Saint-Hilaire (a935,
p. 19): Entabolei conversação com minha hospedeira, que se conservava sempre do lado
de dentro, por trás de uma meia-porta (cancela). Achei muito alegre e palradora.
Entretanto ela teve para comigo um ar frio e desdenhoso (...). É nesta figura que, através
dos relatos dos viajantes, se percebe a preocupação com o recato e o pudor. É nela que se
localiza a honra-vergonha, tão cara à complementaridade da honra-prioridade masculina,
ambas localizadas nas fronteiras da esfera família.
Observa-se que, neste domínio, a honra está referida à família, assim, esse tipo de
mulher percebe o poder da sua sexualidade que ameaçam a honra dos homens, em certo
sentido, tem sua honra comprometida pelos simples fato de ser mulher (Campbell, 1968, p.
136). O recato e a vergonha sexual conduzem a mulher, então, ao respeito a um código de
conduta moral, ajustando-se a ele através de um comportamento disciplinado. Par ao caso
da sociedade gaúcha. segundo a descrição de Saint-Hilaire (1935, p.39), isto se revela
como um ideal de conduta feminina - a dona da estância, que estava só, não me fez
entrar, mas mandou-se abrir um quarto, muito cômodo, dando para o campo, e onde me
instalei prazerosamente. O medo das sanções externas, a percepção da sua fragilidade
diante da falta da presença masculina, capaz de defender sua honra, e o papel que, na
sociedade gaúcha de então, representa o ato feminino de fazer as honras da casa, implica
o domínio de um código onde a honra depende da reputação que a comunidade quer
conceder-lhe e não da evidência dos fatos (Campbel, 1968, p. 138).
A partir destes comentários, afirma-se que neste período formativo da sociedade
gaúcha, diante da presença predominante das índias e chinas, o apelo da reputação social
se torna fundamental à manutenção de um comedimento sexual como forma de
constituírem-se as fronteiras entre mulheres “puras” e “impuras”. Observa-se na nova
descrição de Saint-Hi1aire (1935, p.174), quando da sua estada em outra estância, apenas
se modificando pelo fato do autor ter entrado na casa, uma vez que o estancieiro ali se
encontra: Ao entrar deparei a dona da casa a coser, agachada sobre táboas colocadas em
cima de pedras e cobertas por uma pele de carneiro. Estava bem vestida e, apesar de
tímida, respondeu às perguntas que lhe dirigi. Portanto, seguindo-se mais uma vez as
palavras de Campbell (1968, p.132-3) a mulheres devem ter vergonha para a hombridade
de seus homens não seja desonrada.
Tais códigos éticos e morais dos papéis sexuais na sociedade riograndense ainda
predominam no inicio do Século XX. É o que sugere a leitura dos escritos de Andradina
de Oliveira. Embora tenham sido publicados em 1907, numa sociedade aristocrática e
urbana de Porto Alegre, observa-se, em seus relatos, a presença destes códigos na
formação da honra da sociedade gaúcha e a política sexual que lhe dá suporte na esfera
familiar. A autora retoma, na trajetória social das mulheres que são objeto do seu livro,
aspectos importantes dos valores morais da sua sociedade. Também se encontram
presentes as relações entre honra-prioridade (hombridade) masculina e a honra-vergonha
(pudor) feminina. Aos homens, cabe proteger el honor sexual de sus mujeres de ataques e
insultos externos, enquanto as mulheres preservam a hombridade dos membros masculinos
da sua família. De certa forma, a disciplina e o controle da sociabilidade da Campanha
gaúcha assentam-se na passagem para a valorização do código moral da honra na família,
e dentro dela, no comportamento e na sexualidade feminina, como unidade fundamental e
básica na preservação da integridade moral da mesma.
No meio urbano, a virtude feminina reside num virtuoso lar, onde recebe uma bem
dirigida educação doméstica, ensina-se a mulher a dividir seu precioso tempo entre os
deveres de esposa e mãe, sendo como esposa um modelo: amante, dedicada,
trabalhadora, paciente, caprichosa (Oliveira, 1907). A maternidade, por seu turno,
desvenda à alma feminina delicada o mais puro e santo dos affectos o de mãe” (Oliveira,
1907). Neste contexto, o braço masculino significa a proteção e a guarda da sua honra e da
sua vida. A modéstia sexual se apresenta como um ideal a ser atingido no interior da
família e no convívio social. Assim, nesta sociedade, a mulher deve se preservar de
qualquer alusão a sua conduta moral, devendo ser uma virgem, se é solteira e uma dama
se é casada (Peristiany, 1968, p. 166).
De acordo com as observações de Saint-Hilaire (1935, p. 69), as mulheres da
sociedade gaúcha, residentes nas cidades, são para com os homens muito
desembaraçadas, ou demasiadamente tímidas, isto é, não se apresenta, nos primórdios da
vida urbana gaúcha, uma norma acerca da conduta moral feminina. Quando a mulher
assume, no entanto, uma atitude pouco comedida ou recatada, é foco de comentários no
nível da comunidade local, o que já indica uma preocupação em realizar um determinado
ideal de comportamento moral, uma mocinha dançou um solo, mas, apesar de reconhecer
sua graciosidade, não posso deixar de censurar a mãe honesta que deixa sua filha se
expor desse modo aos olhares de toda a gente.

Por outro lado, este mesmo autor desvenda a inaptidão masculina para o convívio
social, descrevendo o comportamento dos homens como arredio a este domínio da
sociabilidade citadina. Desta forma, assim como não há uma norma na conduta feminina,
em termos morais, neste domínio da vida em sociedade, também não o há no
comportamento masculino. Assim, quanto aos homens são poucos solícitos com as
senhoras, quase não falando (Saint-Hilaires, 1935, p. 99). A gentileza que este autor fez a
uma das senhoras, oferecendo o braço para acompanhá-la na passagem a outra sala de
reuniões, reflete-se num desconforto por parte desta, isto é, as senhoras desta região estão
tão pouco acostumadas a essa delicadeza, que somente acederam contrafeitas (Saint-
Hilaire, 1935, p. 99). Estas descrições aproximam-se do conceito de honra presente na
sociedade pesquisada por Peristiany (1968, p. 168), onde os aspectos de honra de ambos
os sexos se encontram colocados em domínios distintos, caracterizando-se como uma
política sexual. Portanto, os dois atores eram considerados como uma unidades sociais
isoladas enfrentando-se em um campo de valores neutral. No entanto, observa-se que a
dominância do código de honra na sociedade gaúcha, dado em função das características
ligadas às especificidades sexuais, ou seja, na hombridade como asserção da
masculinidade e na feminilidade como manifestação de uma modéstia sexual, e nesta
medida, como manifestação da natureza de ambos os atores, não ocorre simultânea e
uniformemente, dependendo, muitas vezes, do processo de disciplinamento e
hierarquização da sociabilidade da sociedade gaúcha em suas zonas culturais e das
implicações dai decorrentes no seu código de honra.
Acredita-se que a visão de mundo tradicional, como fator determinante da
formulação da identidade regional da sociedade gaúcha, pressupõe a discussão deste
código moral da honra e de suas implicações na ordenação dos papéis sexuais, na
constituição dos seus fundamentos morais e nos seus domínios de atuação na esfera
familiar. A constante contraposição ao pensamento moderno, como algo distante e
estranho à sociedade gaúcha, demonstra a construção de uma identificação desta sociedade
com este código moral da honra. Aparentemente anacrônico, o culto ao estilo de vida e
visão de mundo tradicionais, visto como um aspecto ético e moral que corresponde à
formação histórica da identidade regional do Rio Grande do Sul e a sua articulação num
código de honra, recorta e agrupa esta sociedade no seu projeto de modernidade.
A composição deste código de honra, portanto, envolve sua articulação, ao longo
da história e da formação do Rio Grande do Sul na sua trajetória tradicional/moderno, num
sistema cultural capaz de estruturar o predomínio de uma visão de mundo peculiar ao
mundo da Campanha, em relação a outras zonas culturais no Rio Grande do Sul, e de
conduzir a formulação de um ethos tradicional que recria, na modernidade, suas noções e
valores. Finalizando, aponta-se para um sistema cultural composto de práticas e
representações tradicionais, e/ou modernas, que se constituem num todo ordenado,
atuando na formulação de um quadro referencial de disposições e motivações da sociedade
gaúcha e modelando não só suas relações sociais, mas a própria constituição dos sujeitos
sociais.
CAPÍTULO 5

CASAMENTO VERSUS SEPARAÇÃO


OS FUNDAMENTOS MORAIS E A POLÍTICA
SEXUAL DA FAMÌLIA

O significado da família para um grupo social ou universo particular está vinculado a


outros significados e supõe-se, falando de cultura, que de alguma forma estes constituem
um todo mais ou menos sistemático embora não necessariamente ajustado ou harmonioso.

G. Velho. Parentesco, individualismo e acusações.


HIERARQUIA E IGUALDADE NO JOGO DIALÉTICO DO
TRADICIONAL/MODERNO

No presente capítulo, interessa a discussão do espaço da separação em função da


atuação de um código de honra, com sua ética e moral especificas, considerando-se a
oposição moderno/tradicional. No interior desta fronteira, discutem-se as concepções e os
ideais que presidem os depoimentos dessas mulheres descasadas, referentes ao espaço da
modernidade e da tradição em termos de uma ótica individualista e holista,
respectivamente. Ou seja, a separação aparece como momento de “individualização” para
o grupo pesquisado, em relação ao espaço holista da família e dos seus princípios morais.
Seu estudo implica a necessidade de compreensão das diferentes concepções de indivíduo
que se encontram presentes, as quais não se referem apenas ao espaço familiar, mas,
fundamentalmente, ao interior dos códigos culturais da sociedade que as contém.
No capítulo anterior, constroem-se os determinantes sócio históricos que
fundamentam e ordenam o código de honra da sociedade gaúcha, o qual busca articular as
concepções de moderno e de tradicional, tendo em vista a construção de uma identidade
cultural peculiar37. O eixo principal de construção daquele código de honra encontra-se
referido, constantemente, a uma visão de mundo onde o tradicional ocupa lugar de
destaque. Observa-se, na sociedade gaúcha, principalmente em meados do séc. XX, um
movimento rumo a uma sociedade modernizada, onde o estilo de vida urbano se afirma
cada vez mais como hegemônico. Semelhante observação permite avaliar a influência
recente de uma versão de mundo mais moderna, onde outras concepções de valores
passam a atuar, e, entre elas, algumas referentes ao espaço da família, seu código de honra,
seus princípios morais e sua conceituação de indivíduo38.
Assim, aqui, o objetivo central é a discussão deste movimento, em função de
visões de mundo e estilos de vida, considerando-se a trajetória de vida das mulheres aqui
ouvidas, do casamento à separação, e a movimentação que estas realizam, enquanto um
37
Em Oliven (1983) “A Fabricação do Gaúcho”, há importantes considerações sobre a delimitação que o
tradicionalismo realiza entre as questões regional/nacional, fabricando, deste modo “a identidade cultural”
gaúcha.
38
O cultivo do tradicionalismo no Estado, através da atuação dos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs),
demonstra a relevância do Movimento Tradicionalista no Rio Grande do Sul em termos de uma reação
àquilo que alguns tradicionalistas encaram como a perda da integridade dos “verdadeiros” valores gaúchos.
Este movimento, conforme se constata, surge justamente quando o Rio Grande do Sul já apresentava um
considerável nível de industrialização e urbanização (...)” (OLIVEN, 1983).
grupo pertencente aos estratos médios da sociedade gaúcha e residente na capital, no
espaço de uma comunidade que, buscando a modernização, se define pelo tradicional.
Coloca-se como prioritário, esclarecer algumas questões teóricas importantes para o
entendimento do estudo que se segue. Importa salientar aqui, como é percebido o estudo
da honra, levando-se em consideração o jogo de oposições tradicional/moderno.
Nos autores que estudam as sociedades mediterrâneas, observa-se uma constância
em diferenciar estas sociedades daquelas mais urbanizadas e modernas, e em verificar suas
implicações nos estudos da honra. Neste sentido, a fragmentação, a segmentação e a
mobilidade social são apontadas como fatores que modificam a abordagem convencional
dada a estes estudos39. De acordo com estes autores, o principal reflexo desta
diferenciação se refere à questão da dificuldade de se encontrar, no meio moderno, um
consenso com relação aos seus princípios morais céticos, elementos estes, referenciais na
delimitação do campo da honra. Juntam-se a este, mais dois fatores que são
frequentemente citados: no meio urbano, ocorrem pouca efetividade das “sanções morais”
e multiplicidade de modelos de conduta, o que afeta diretamente, não apenas a eficácia do
código da honra, mas também a mesma composição do seu significado.
Esta breve introdução permite vislumbrar algumas relações entre os estudos da
honra em sociedades tradicionais, e/ou modernas, e seus aspectos correlatos de hierarquia,
e/ou individualização, bem como a atuação dos atores sociais, tendo em vista, um código
mais holista, e/ou individualista. De acordo com Duarte (1983, p. 5), o mundo tradicional
se estrutura a partir de uma concepção de totalidade, onde o indivíduo atua num modelo
social não-segmentado (holista), ou seja, fundado no princípio de hierarquia organizada a
partir do valor fundamental que articula sua identidade.
Assim, a honra, bem como a religião, nas sociedades tradicionais, possui um valor
encompassador40. Observe-se como é possível entender a dimensão encompassadora da
honra nas sociedades mediterrâneas a partir de algumas questões presentes nas obras de
autores que as estudam. Primeiramente, entende-se as sociedades mediterrâneas como

39
Uma citação de Peristiany (1968, p. 14) permite uma avaliação significativa das perspectivas que o ethos
da modernidade impõe aos estudos da honra em sociedades pertencentes ao complexo mediterrâneo. Afirma
o autor: La fragmentación de la sociedad occidental contemporânea; la multiplicidad de modelos que se
atracan a la invitación, la falta de un claro orden jerárquico de preferência entre esos modelos producen uma
profunda perplejidad en la juventud moderna y dan origen a numerosas ambiguidades, e, conclui: La
mobilidad social y la urbanización han alterado completamente nuestras perspectivas.
40
Não se pretende aqui, fazer a recriação do dualismo tradicional/moderno, mas sobretudo, indicar a
espeficidade de valores que constituem o ethos e a visão de mundo de ambos os espaços. Neste sentido, é
importante penetrar na discussão proposta por Duarte (1983, p. 4), onde o autor reconhece: Falamos em
'segmentação' ao nos referirmos à oposição que o pensamento moderno desenharia contra a visão de mundo
tradicional.
sociedades hierarquizantes, no sentido de que tanto a concepção de honra como a de
vergonha são o reflexo da personalidade social no espelho dos ideais (Peristiany, 1968, p.
12). Aqui a questão da honra ocupa o vértice da pirâmide dos valores sociais temporais e
condiciona a ordem hierárquica desses valores. O espaço da honra, ao atravessar as
classificações sociais, divide, portanto, os membros de uma sociedade em pessoas dotadas
de honra em oposição àqueles que estão dela privados.
O estudo da honra se afirma como relevante para as sociedades, ou para espaços
destas, onde as esferas da ação social são bem delimitadas, não havendo sobreposição
entre elas, quando não interferem e nem entram em competição. O aspecto hierárquico que
contém as questões de honra envolve, para sua estruturação, o aspecto classificatório dos
valores sociais, e assim, a possibilidade de eleição no interior de uma hierarquia de valores
socialmente aceitos e dirigidos para os ideais ordenadores (Peristiany, 1968, p. 13).Como
resultado, obtém-se uma concepção de indivíduo encompassado por uma ordem holista,
percebida como totalidade, onde o sujeito social é definido enquanto elemento do todo. O
indivíduo que atua no interior de um código de honra, lembra a concepção de Dumont de
homem coletivo, ou seja, o ideal se define pela organização da sociedade tendo em vista os
seus fins, e não a felicidade individual; se trata da ordem, da hierarquia; todo o homem
particular deve contribuir com a ordem geral e a justiça consiste na relação com o
conjunto. (Dumont, 1970, p. 13).
De acordo com afirmações de Bourdieu (1968, p. 19l), a honra de um homem é sua
honra. Ser e honra se confundem nele, e aquele que perde a honra, já não é. Ele deixa de
existir para os outros e para si mesmos. Logo, neste contexto, o sujeito social constrói sua
identidade pela referência aos demais. Desta forma, é a pressão da opinião publica funda a
dinâmica da honra. Na análise dos componentes do código de honra incorporado aos
indivíduos, este autor afirma a importância da noção de orgulho (amor próprio), como o
motor da dialética da honra. Assim, no jogo desafio-resposta presente nas questões de
honra, é amor próprio que elege a resposta. Segundo Bourdieu (1968, p. 189) ele não se
dá em função de uma liberdade individual absoluta, mas, ao contrário, de uma sociedade
em que a honra ocupa lugar de destaque no seu sistema de valores, algo diferente do que o
código de honra propõe é impensável. O orgulho ou amor próprio atua, portanto, como
ponto referencial através do qual o sujeito social constrói sua autoestima, sempre em
função da preocupação com a sua reputação, auferida em relação à certa imagem ideal de
si próprio. Disto decorre que, ser um homem de honra implica uma fidelidade a si mesmo,
fidelidade oriunda da opinião pública, uma vez que e a pressão da opinião funda a sua
dinâmica. Desta forma, honra é sempre algo que outros nos imputam, o que supõe
considerar-se o amor próprio como a necessidade interna e a obrigação de identificar-se
com a imagem de eu ideal (Campbell, 1968, p. 135-38), e a honra como algo que se
atribui não uma realidade de fato nem um direito individual.
Na dialética da honra, o amor próprio significa a estima de si mesmo, e acima de
tudo o fato de defender, a qualquer preço, certa imagem de si mesmo destinada aos
demais. Semelhante observação conduz não apenas este autor, mas quase todos aqueles
que estudam sociedades consideradas dentro do complexo mediterrâneo, à constatação de
que o estudo da honra é apropriado em sociedades onde as relações sociais se caracterizam
por sua intimidade, intensidade, proximidade e continuidade. Isto é, as questões da honra
atuam prioritariamente em relações particularizadas, onde cada sujeito é uma persona bem
definida (Campbell, 1968), ou também nas relações pessoais „ ‟ (Peristiany,
1968). Estes autores apontam diferenciações no estudo da honra nos espaços urbanos e
modernizados destas sociedades, comparativamente com seus espaços mais tradicionais.
Tomando-se aqui as observações feitas por Duarte (1983, p. 04), com relação à
caracterização da modernidade a partir da noção de segmentação de instituições, domínios
e práticas, a vida social se apresenta como um mundo recortado por uma fragmentação de
sujeitos autônomos individualizados, que trazem em seu íntimo todos os atributos da
identidade legítima (Duarte, 1983, p. 04). Em decorrência, surge a noção de indivíduo
singular, ético e moral, como valor legitimador da identidade social deste sujeito. O
espaço da modernidade se apresenta, então, como segmentado, complexo, pluralista,
diferenciado, originando outra concepção de indivíduo41.
Semelhantes observações implicam alterações no estudo da honra a partir de
estudos sobre a modernidade. O meio urbano e moderno constrói o espaço do anonimato,
e, quando os atores se tornam anônimos, não há implicações de honra em sua conduta
social (Campbell, 1968). Em domínios sociais diversificados e complexos a característica
é a insegurança e a instabilidade da hierarquia projetada pelo binômio honra-vergonha
(Peristiany, 1968 p. 13). Ainda, a fragmentação de papéis sociais supõe a multiplicidade
de modelos de condutas e a confusão na ordem de hierarquia destes modelos, acarretando
perplexidade e ambiguidade no comportamento do sujeito. Logo, a mobilidade social,
assim como a urbanização, altera as perspectivas dos estudos da honra, isto é, o conceito

41
Segundo Duarte (1983, p. 8-9), o espaço da cultura ocidental moderna se acha comprometido com a
diferenciação ou disseminação diferencial. Assim, o indivíduo é pensado como o S j i „S j i
R zã ‟ Hi ó i M .
de honra varia no tempo assim como sua importância se modifica no meio de uma
sociedade urbana e moderna (Pitt-Rivers, 1968). Em sociedades complexas, a estrutura de
entendimentos comuns, aspecto importante nas sociedades mais tradicionais, pois a honra
se opõe, por seus próprios fundamentos, a uma afirmação moral universal e formal a
igual dignidade de todos os seres humanos e, portanto, os direitos e deveres de identidade
(Bourdieu, 1968, p. 207) - assim como a estrutura dos papéis sociais, é complexa,
diferenciada e diversificada. Finalmente, há a noção de indivíduo singular, sujeito
moderno, que acentua a liberdade pessoal e a igualdade genérica e, segundo Dumont
(1970, p. 07), é quase sagrado, absoluto; não há nada além de suas demandas legítimas;
seus direitos são limitados apenas pela igualdade de direitos dos outros indivíduos.
Certamente, estas considerações de cunho teórico tornam-se relevantes para o
presente estudo, tendo em vista que o grupo pesquisado se movimenta em domínios, ora
referentes a um código de honra que se acha associado à noção de sociedade tradicional,
ora relacionando à dinâmica de uma sociedade urbana e moderna. No entanto, afora estas
considerações de caráter genérico, afirma-se a necessidade de se abordar o espaço da
família, uma vez que, também neste domínio, as inter-relações tradicional/moderno são
retomadas, tanto em função do casamento como da constituição do próprio processo de
separação das mesmas. De acordo com a opinião de muitos antropólogos a respeito da
cultura ocidental, pode-se considerar o espaço da família como um dos últimos refúgios
legítimos da hierarquia, ou seja, mesmo dentro das concepções e valores individualistas
presentes à sociedade moderna, encontram-se presentes espaços holistas, como é o caso da
família42. Isto também é o que os estudiosos das sociedades mediterrâneas constatam - a
ideologia do individualismo moderno não elimina a ideia de parentesco.
Neste ponto, Pitt-Rivers (1979, p. 113), particularmente, entende que mesmo no
meio urbano, nas sociedades ditas mediterrâneas, a categoria parente surge em função do
matrimônio, derivando disto, o fato de a noção de família não ocorrer em função do
sistema de parentesco. Pelo contrário, estas sociedades concedem especial importância à
família nuclear, pois se torna sua unidade primordial, uma vez que é a depositária dos seus
valores e dos seus princípios morais. Ou seja, é uma unidade moral e residencial básica.
Porém, analisar a dimensão holista do espaço familiar, ou mesmo priorizá-la, não
implica ignorar a existência de dimensões individualistas neste espaço, tendo em vista o
próprio sentido de modernização da sociedade em que se acha inclusa. Isto conduz à

42
Sobre a presença da dimensão holística no espaço social da família na sociedade brasileira, ver Velho
(1981) “Individualismo e Cultura” e Da Matta (1979) “Carnavais, Malandros e Heróis”.
percepção da presença de uma versão de mundo e estilo de vida com base na noção de
individualização, afetando a delimitação da família em diferentes modelos, com diferentes
concepções de sociabilidade e composições da rede social, o que se reflete nos princípios e
valores morais que definem este espaço como uma dimensão holista da cultura brasileira.
Por exemplo, a nuclearização da família, associada à fragmentação das
experiências individuais, é um movimento que reverte, como é visto adiante, em
metamorfoses nos fundamentos morais do espaço da família e no código de honra que daí
resulta.

1 - CASAMENTO - OS FUNDAMENTOS MORAIS DA HONRA E SEUS


IMPASSES

Diferentemente de Pitt-Rivers, prefere-se utilizar a noção de família conjugal para


analisar o código moral do espaço familiar do grupo pesquisado, tendo em vista que o
conceito família nuclear pressupõe um grau bem rígido de contração da sociabilidade dos
cônjuges em face da sua· rede social, o que não transparece nos depoimentos aqui
relatados.

1.1 - CASAMENTO: SOB A ÉGIDE DA HIERARQUIA

Nesta parte busca-se discutir os testemunhos sobre o descasamento, de acordo com


três pontos observados como relevantes para o estudo do período da sua trajetória social
até o casamento, em função de um código de honra específico que afirma a família como
uma unidade moral básica, quais sejam: os princípios morais, os valores e papéis sexuais
assimétricos, a família e a honra feminina. Com relação ao primeiro ponto, percebem-se
dois aspectos importantes que estruturam os princípios morais, segundo os quais, as
mulheres ordenam a vida familiar após o casamento. Inicialmente, está presente a
concepção, principalmente no grupo A, de que os fundamentos morais da divisão sexual
do trabalho na família encontram-se alicerçados na natureza dos sexos. Prevalece, nesta
medida, a ideia da debilidade feminina, a mulher honrada, la pierna quebrada y en casa
(Pitt-Rivers, 1968, p. 48).
Observe-se o testemunho de uma das interlocutoras da pesquisa e a forma como ela
estabelece relações entre os papéis de esposa e mãe e a natureza feminina: “Tivemos um
preparo para casa que os homens não tiveram. Quando chega a competição na vida
profissional eu vejo que sou eu quem tem este preparo para cuidar dos filhos, fazer
comida, né? Agora, quando chegam os filhos, isto balança a cabeça da gente. Apesar de eu
achar que poria na creche, tudo certo, etc... Mas não. Quando nasceram meus filhos, eu
virei supermãe. Eu não me via assim. Como é que poderia ser mãe e continuar fazendo
outras coisas ao mesmo tempo?” Ou então, a fala de outra dessas mulheres: “Quando
solteira, eu trabalhava. Mas logo que eu casei, meu marido me fez largar o serviço. Não
havia necessidade de trabalhar fora. E eu acabei sempre almoçando sozinha. Ele
trabalhava tanto que não tinha tempo de vir em casa almoçar comigo.” Esta concepção
primordial na divisão do trabalho na família fundamenta a noção de que o espaço público,
como parte de vida profissional da mulher não se apresenta como um espaço legitimador
da sua identidade feminina. Esta se encontra referida, primeiramente, ao espaço
doméstico, à intimidade, ao interior.
A noção de inadequação da natureza feminina à esfera do púbico, em sua dimensão
profissional, surge nesta constatação feita por uma delas: “Nós dois estudamos em
colégios excelentes, maravilhosos. Ele foi sempre o primeiro no Colégio, eu fui excelente
aluna, não tão brilhante, mas... pessoas, enfim, preparadas para a profissão. Só que até um
ponto. Daí em diante, ele continuou e eu parei.” Esta ideia encontra proximidade com
observações feitas por Bourdieu (1968, p. 199), em Cabilia, através do conceito de horma-
haram, que no sistema de representações e valores, se expressa numa bipartição, ou seja, a
oposição de dentro e fora, modo particular da oposição entre o masculino e o feminino.
Neste esquema, bem próximo aos depoimentos acima mencionados, existe a intimidade –
mais precisamente o universo feminino, o mundo do segredo, do espaço fechado da casa
por oposição ao mundo aberto da praça, do espaço publico masculino. Verifica-se o
predomínio desta concepção mais no grupo A do que no grupo B, muito embora, todas as
interlocutoras que foram ouvidas durante o trabalho de campo também tenham reduzido
sua participação na esfera pública, principalmente, após a maternidade. Cabe, portanto, à
mulher, uma atuação restrita à esfera doméstica, tendo esta como referência moral a sua
honrabilidade43. Isto se revela de modo claro em pequenas e constantes observações feitas
pela maioria das mulheres descasada, e que podem ser exemplificadas nestes testemunhos:
“Logo que eu casei senti problemas entre nós, mas me achava disposta a desempenhar

43
Da Matta (1979, p. 111), comentando a posição ambígua que a mulher tem no Brasil e no mundo
contemporâneo, através de duas figuras paradigmáticas que lhe servem de guia - a da Virgem Maria e a da
“puta” - afirma: O lugar de cada uma destas personagens no mundo brasileiro é bastante claro. A Virgem e a
Mãe ficam no recesso do lar, no local sagrado e seguro, onde os homens têm o domínio das entradas e
saídas. Mas a puta fica 'na rua, nas 'casas de tolerância', em locais onde o código de rua invade e penetra o
local de moradia.
minhas funções, procurando facilitar a relação” Ou ainda: “O casamento não era tudo que
eu queria, mas acreditava que deveria cumprir meu papel, era parte de minha natureza, não
poderia ser diferente.” A ideia de passividade e fragilidade da mulher, face ao espaço de
atuação masculina, acha-se frequentemente referida à natureza da diferenciação sexual que
deriva, por sua vez, das qualidades naturais de ambos os sexos.
Como contrapartida, o fundamento da honra masculina se acha associado à
capacidade de prover, ou seja, a posição de hombridade depende da capacidade do pai de
manter ou aumentar a sua riqueza (PITT-RIVERS, 1968, p. 57).Assim, o casamento
surge como uma bengala que permite à mulher, adequando-se ao código ético e moral
familiar, dimensionar-se como pessoa. Verifique-se a fala transcrita abaixo, que apresenta
a tendência da noção de fragilidade feminina, e onde o homem é visto como uma figura de
autoridade: “Na época, poderia me realizar na vida profissional, e tudo o mais. O meu
marido foi uma bengala que me permitiu sobreviver. Casei porque não se concebia, nem
eu mesma, sair da minha cidade, solteira. O casamento foi uma bengala, Eu, sem casar,
seria um vegetal.” O que se observa é que estas características utilizadas para identificar os
papéis sexuais no espaço familiar, são percebidas como atributos naturais de cada sexo, e
neste sentido, a conduta que é honrada para um sexo pode ser o contrário do que é
honorado para o outro. (Pitt-Rivers, 1968, p. 79).
De modo geral, percebe-se nos depoimentos, que o não desempenho do papel de
esposa-mãe, assim como o do marido enquanto provedor, implica uma distorção da
natureza da honra de ambos, isto é, a aspiração que ambos possuem com relação a seus
papéis na família, bem como a realização destes no seu interior. Logo, a rejeição (ou
dificuldade) em adaptar-se a este papel é assumida como uma desonra. Conforme se
observa nesta afirmação: “Começa que o R. sempre achou que eu não era boa mãe. Era
uma coisa que me magoava. Ele tinha mais paciência que eu, era mais calmo. E eu ficava
insegura.” O casamento, então, resulta como a união de classes diferentes de honra para
proporcionar a honra a família nuclear assim formada (Pitt-Rivers, 1980, p. 125).O papel
feminino dentro dos fundamentos morais se revela como primordialmente definido em
função dos papéis de esposa-mãe, recebendo seu poder do mundo interior, ou seja, do
interior da casa, incluindo-se seus corpos (Pitt-Rivers, 1968, p. 12l). Neste ponto, ao
marido cabe o papel de provedor, atuante na esfera pública, sendo seu poder definido
como algo que se origina desde fora e de cima. Ambos os domínios de atuação acham-se
bem naturalizados através dos fundamentos morais da família, adquirindo sua força na
natureza dos sexos. As noções de destino, instinto e natureza feminina, revelam algumas
das categorias que as mulheres deste grupo de status encontram para relatar este período
de suas biografias.
No grupo B, já prevalece as noções mais modernas de indivíduo e de família
nuclearizada, muito embora se encontre, frequentemente, referências à aceitação daqueles
princípios morais norteadores do espaço familiar e da atuação dos sexos, resultando na
passividade feminina em oposição à autoridade e prerrogativa masculina. A contestação
destes padrões morais e éticos dos sexos, no espaço familiar é, então, frequentemente
assumida num discurso feminista acusatório, originando-se projetos conjunturais de
libertação, mais em função das necessidades e impasses conjugais, do que propriamente
em termos de um projeto individualista. Na discussão do espaço familiar, após o
casamento, e sob a égide do igualitarismo, observa-se a noção de dignidade, entendida em
função de um código igualitário. Esta noção pressupõe a universalidade do direito dos
indivíduos percebidos como iguais. Através da lógica igualitária, busca-se impor uma
nova diferenciação e classificação entre os sexos, numa luta pelo poder44.
Esta visão igualitária dos sexos acarreta consequências na forma peculiar que o
código moral tradicional estabelece para a divisão moral do trabalho na família,
recolocando as insatisfações e frustrações em termos de reivindicações e projetos mais
individualizantes. A posição antes vivenciada como parte da natureza moral da mulher é
retomada como valor espúrio, sendo, então, negada, na medida em que transparece como
algo imposto, forçado. Busca-se a ruptura, a negação. Conforme as palavras de uma das
mulheres descasadas: “Comecei a competir com P. quando já havia pensado na
possibilidade de separação. Sabia que se viesse a tomar certas atitudes, nossa relação viria
abaixo. Eu achava que era fracassada, incapaz de trabalhar. Era a coitadinha. Quando
comecei a modificar, dai não deu. Eu achava que também podia fazer, ninguém podia me
impedir. Pensava comigo mesma: Eu não guio a minha vida. Tem outra pessoa segurando
as rédeas da minha vida.” O código hierarquizante da honra, lidando com a noção de
indivíduo encompassado, propõe uma classificação e uma diferenciação na natureza dos
sexos, observando-se aí, não apenas uma hierarquia, mas a representação desta como
assimetria e complementaridade. Já o código igualitário, do direito à dignidade para todos
os homens, representa esta assimetria dos papéis sexuais como opressão.

44
Segundo Eunice Durham (1983, p. 40), a manifestação do igualitarismo individualista dos sexos, uma vez
que não dispõe de modelos estáveis, estabelece um padrão de divisão do trabalho na família que fica na
dependência do confronto interpessoal entre os cônjuges, criando uma enorme área de conflito aberto
possível.
Opondo-se à ideia da hierarquização dos sexos, ele afirma a universalidade dos
indivíduos genéricos, homens e mulheres. Os princípios universalistas atuam, assim, no
interior de um espaço eminentemente hierarquizante, através da polêmica de
opressão/subordinação. Isto conduz ambos os parceiros no espaço do casamento, a
disputas e confrontos pessoais. Estes conflitos familiares geram instantes de ruptura dos
laços conjugais, enquanto no plano externo dos valores e noções culturais, reforçam-se
acomodações e mediações no espaço familiar. Isto ocorre em função da importância que a
sociedade atribui à família, como sendo aquela instância que não apenas ordena e legitima
os fundamentos morais da cultura, mas também organiza a natureza dos sexos num código
ético-moral.
Entra-se, desta forma, na questão relativa aos papéis sexuais assimétricos e seus
valores, fundada em princípios hierarquizantes, concretizados numa divisão moral do
trabalho os quais conferem um atributo moral a ambos os sexos. Logo, a divisão social e
moral do trabalho entre os sexos, durante a maior parte do período do casamento remete
novamente à concepção básica da natureza masculina e feminina, que, por sua vez, pode
ser vista enquanto uma divisão moral do trabalho, ou seja, determina o modo como se
distribuem as qualidades morais entre os sexos (Pitt-Rivers, 1968. p. 121). Ressalta-se,
neste ponto, a autoridade masculina frente à vulnerabilidade feminina, que pode ser
percebida em função da virilidade (potência) masculina em contraste com o comedimento
(pureza) feminino. Na assimetria, percebe-se a passividade feminina em relação à
prerrogativa masculina, o que propõe o seguinte movimento: o homem defende a honra
familiar enquanto a mulher a conserva.
Os impasses gerados na vida do casal quando as mulheres aqui ouvidas afirmam a
importância da sua participação na esfera profissional, demonstram que, no campo da
honra familiar, a assimetria dos movimentos de defesa e conservação constituem-se numa
hierarquia, onde a esfera pública se apresenta como um lugar frágil para o relacionamento
entre os sexos. Os depoimentos são ilustrativos desta realidade na vida conjugal, de modo
mais aguçado no grupo A, mas que se encontra presente também no grupo B, sendo
representativa a afirmativa de uma das mulheres deste grupo: “No campo da competição
profissional, eu achava que não dava para mudar. Quando eu resolvi mudar, o negócio
veio abaixo mesmo. Começamos a trabalhar juntos, as discussões começaram, e cada vez
mais, ficavam pesadas, violentas. A coisa foi ficando insuportável. Eu casei com um
homem dominador, eu dava bola pra tudo o que ele dizia, fui completamente dominada.
Só mudou quando eu achei que também tinha direito de viver”. O afastamento progressivo
da esfera pública e o seu recolhimento à esfera familiar - intimidade - ocorre de modo
mais marcante no primeiro grupo, originando para as mulheres uma grande fonte de
ostracismo.
É o que se observa em dois testemunhos diferentes mulheres, segundo seus grupos
de status: “Depois do casamento fui perdendo meus amigos, passei a viver em função do
meu marido”, ou então: “Na época de casada, o D. era tudo de mais importante para mim,
era como um Deus”. A noção de vergonha, para entender a dimensão feminina da honra,
aqui, torna-se relevante. Através da noção de vergonha, a mulher permanece mantendo sua
posição social na família, como forma de garantir reputação honorável, atuando de modo
predominante no papel de esposa-mãe. De modo referencial, o grupo pesquisado busca
realizar esta posição feminina na família, tendo em vista, que a ruptura com este papel
envolve uma alteração em seu atributo moral na família e, consequentemente, implicações
na sua honra face aos códigos morais constitutivos da sociedade gaúcha.
O terceiro ponto, colocado anteriormente, refere-se ao espaço familiar como
fundamento da honra feminina neste grupo social. Parte-se da importância do espaço
família em termos dos fundamentos morais da sociedade em questão. Neste caso, este
espaço se afirma como referência básica a ambos os sexos, inclusive para a composição da
identidade de sexo-gênero. Desta forma, construir e vivenciar o espaço da família conjugal
tem implicações na honra de ambos os sexos, pois absorve os fundamentos morais, dados
na natureza dos sexos, a partir da sua constituição no âmbito da família. O casamento
assume, assim, um importante papel na composição das qualidades morais dos
sexos45.Pode- se depreender a importância referencial que a dimensão familiar afirma para
a composição moral da natureza feminina no casamento pelos seguintes depoimentos: “Eu
sinto que casei para ter um marido, ter uma figura, não ser sozinha. Eu não ia casar, ou,
então, Estar em casa era aquela coisa de menina de 15 anos. Eu imaginava a minha casa, a
minha família, marido e filhos, meus planos. Enfim, minha vida.” Os aspectos apontados
no espaço do casamento acham-se apoiados num código de aliança que busca a criação e a
manutenção de vínculos e laços de reciprocidade entre as famílias de origem de ambos os
cônjuges, o que pode ser observado nos depoimentos da maioria das interlocutoras da
pesquisa, principalmente, naquelas pertencentes ao grupo A. Ou seja, a família de origem
assume importante papel no sentido de efetivação do matrimônio das mesmas. Como

45
O grupo pesquisado neste estudo, possui alguma similitude com aquele estudado por Abreu (1982, p. 99),
em Araxás, Minas Gerais, onde ele constata que a pessoa já nasce, de certo modo, moralmente constituída,
representante de uma família, de uma tradição, implicando, isto, numa distinção complementar entre o
masculino e o feminino.
atestam, por exemplo, estes depoimentos: “O pai e a mãe me falavam que eu iria casar.
Mas eu não pensava em casar. Por que casar, se eu tinha eles, aquela família maravilhosa,
não sentia vontade de casar”. Outro testemunho: “Casar não era todo o meu sonho. Foi
uma coisa muito estimulada por minha mãe. Meu pai já havia morrido. Minha mãe falava
todo o tempo sobre isto. Nesta ocasião, minha mãe me tiranizou. Reprimia tudo o que eu
fazia, que não levasse ao casamento com M.”. A opinião familiar se torna fonte da
reputação do comportamento moral feminino, que afirma a necessidade última do
matrimônio como principal veículo legitimador das qualidades morais da identidade
feminina. Isto induz à observação de que o matrimônio, principalmente para as mulheres
deste grupo, desempenha um papel importante na honra da família de origem. Assim, um
casamento errado ou até mesmo um não casamento implica certa desonra familiar, tendo
em vista o afastamento de um sistema de valores onde o matrimônio afirma as qualidades
morais dos sexos, e por decorrência, do grupo familiar46.
Se a honra pessoal deriva, em parte, da conduta individual, por outro lado, ela afeta
os seus parentes e familiares com quem as mulheres dividem uma honra coletiva. A
questão da virgindade e das relações sexuais pré-maritais demonstra a forma como este
grupo de mulheres reafirma não apenas a ordem moral, mas a própria ordem global do
domínio familiar, através do matrimônio. Observem-se os seguintes depoimentos e sua
recorrência interna: “Não sei se isto foi uma coisa que nos levou ao casamento, mas nesta
época já estávamos transando. Eu achava que como já tínhamos relações, ele era meu
homem e eu era dele. Não sei, isto nunca me pareceu de modo consciente.” Ou ainda: “Era
como se ele fosse o homem da minha vida, um compromisso até a morte”. Neste sentido, o
matrimônio assume a função de reordenação destes fundamentos morais, recolocando uma
hierarquia na conduta moral dos parceiros, redimensionados no papel de marido e esposa,
mas que de fato nunca está de todo ausente. Dai decorre uma noção de indivíduo
encompassado pelo espaço familiar e o papel que nele ocupa, o que se liga a uma
diferenciação moral de acordo com o sexo a que pertence.
Logo, para a maioria das mulheres aqui ouvidas o período em que optam pelo
casamento e a vida no interior da família representa não só uma atitude de prosseguimento
a uma “ordem natural”, assentada basicamente na natureza moral dos sexos, mas também

46
Na análise do “Mito” de D. Beija, Ovídio de Abreu (1983, p. 91-2) faz um comentário relevante para o
estudo em questão, qual seja, o casamento supõe o controle da sexualidade, o englobamento do corpo pela
alma, onde a filha fuma duplicação moral da mãe e o casamento das filhas confirma a pureza da mãe.
uma tentativa de realizar a ordem global proposta pelos fundamentos morais da família47.
A ocorrência da maioria dos casamentos se refere à noção de vergonha em relação com a
de honra. Para essas mulheres, e do ponto de vista “feminino”, o casamento decorre, então,
de uma não escolha (destino) e se refere à situação peculiar de se enquadrar num sistema
de disposições pré-definidas no corpo social, ou seja: de um indivíduo que se vê sempre
através dos olhos dos demais. (Bourdieu, 1968, p. 191).
Como contrapartida, do ponto de vista masculino, o casamento e o espaço da
família podem, então, ser pensados em função da ideia de respeitabilidade que ao contrario
da vergonha que é própria da uma personalidade que tem a necessidade dos outros para
captar plenamente seu próprio ser (Bourdieu, 1968, p. 191). Pode-se compreender que e
as mulheres ouvidas para esse estudo sobre separação em camadas médias urbanas em
Porto Alegre chegam ao casamento, é porque é neste espaço que se projeta socialmente a
sua imagem de natureza feminina, com seus fundamentos morais. Por seu turno, seus
parceiros chegam a esta mesma situação, uma vez que necessitam desta imagem e daquele
espaço para atingir a posição masculina de honradez. Assim, a natureza moral dos sexos
segue uma lógica holística, onde as relações assimétricas de honra/vergonha do papel
masculino e feminino tornam-se mutuamente complementares.

1.2 - CASAMENTO: SOB A ÉGIDE DO IGUALITARISMO

Certamente, embora no espaço do casamento seja dominante um principio


hierarquizante nas relações e papéis sexuais familiares, frequentemente, acham-se
justapostas a ele representações igualitárias entre os sexos no espaço da família, o que se
manifesta em determinados momentos da vida conjugal. Apesar de não apresentarem uma
atuação constante, estas representações acham-se vivas no contexto familiar, em maior
grau no grupo B, uma vez que este possui uma trajetória social no meio urbano mais
constante e efetiva que as mulheres descasadas do grupo A. De acordo com estas
especificações, é importante observar que, entre os dois grupos, o B possui uma influência
considerável do discurso feminista, que aqui é visto como um projeto social ao qual as
mulheres se filiam no final da adolescência. Isto ocorre, portanto, não apenas no momento

47
Em Abreu (1980, p. 105), “Parentesco e Identidade Social”, este autor trabalha com a questão específica
dos fundamentos morais da natureza dos sexos no espaço familiar através da categoria raça-moral, e que,
segundo ele, impõe, no plano das avaliações, uma distinção complementar entre o masculino e o feminino, A
oposição entre o masculino e o feminino é central. A mulher é integralmente referida à família e o lar. Os
papéis significativos são os de mãe e esposa (...) O homem aparece referido ao domínio público, aos
'negócios''.
da separação, mas desde sua adolescência48. Portanto, é um projeto que não ocorre apenas
no momento da separação.
Particularmente no grupo B, e com relação aos princípios morais que guiam a
divisão sexual do trabalho no casamento, enquanto escolha, representa parte de um
processo de construção interior da individualidade, muito próximo do que Dumont (1970)
chama de indivíduo quase sagrado, absoluto. No entanto, esta busca ocorre dentro de uma
lógica universalista. Ela está referenciada à outra representação - o indivíduo genérico - a
qual, em determinados momentos, se choca com a anterior - o indivíduo singular. Esta
lógica propõe a igualdade dos sexos acima de tudo, e conceitua homens e mulheres como
encarnação particular da humanidade abstrata (Dumont, 1970), ou seja, é ressaltado o
indivíduo virtualmente presente em todos os homens (tanto diacrônica quanto
transcultural mente) o que corporifica a própria ideia de humanidade (Duarte, 1983, p.
09).
As articulações entre indivíduo singular e genérico são expressas de modo
complexo pelas mulheres durante a sua trajetória social. Até certo ponto da trajetória
conjugal e do projeto familiar, ambos os parceiros acham-se comungando, dentro da
família, de uma mesma dimensão moral (universalista), como indivíduos genéricos,
enquanto em outros espaços dividem-se, segmentam-se, surgindo, assim, o indivíduo
masculino e feminino, especificamente, podendo daí, derivar-se uma hierarquização. As
fronteiras da instauração da vida familiar, do indivíduo genérico, se dão de modo evidente,
no momento do nascimento dos filhos ou do êxito profissional de um dos cônjuges,
particularmente da mulher. Ambos os casos podem ser vistos como situações limites para
a conceituação da igualdade abstrata e universal entre os homens e as mulheres no espaço
familiar.
Com relação ao êxito profissional, no caso mulheres pertencentes ao grupo de
status B, é interessante observar o depoimento abaixo e como a resposta dada a relação do
casal atinge o limite das representações igualitárias dos sexos: “No trabalho, certos
momentos, misturava-se a competição, o ciúme, o censo de propriedade. Eu quase nunca
criava esta situação. Quando eu sentia este clima, eu me moldava.” A maternidade, por
seu turno, realça o papel feminino na esfera doméstica e define outros contornos à relação

48
O discurso feminista presente nos depoimentos das interlocutoras é entendido aqui, dentro deste ponto de
vista, uma vez que produz uma categoria de mulher imbuída de uma matriz individualista. Esta questão é
abordada com o intuito de discernir sobre a relativização das identidades femininas produzidas
culturalmente. Sobre isto, é importante ver “Antropologia e Feminismo” de Franchetto, Cavalcanti e
Heilborn, em “Perspectiva Antropológica da Mulher”, v. I.
do casal, fundamentando, solidariamente, as bases morais da divisão social no trabalho
familiar, através das características biológicas dos sexos.
Isto é bem verdadeiro quando se observa, nos depoimentos, o relato de situações
conjugais onde o marido, inspirado na ideia da igualdade genérica dos indivíduos,
independentemente dos sexos, participa dos afazeres domésticos, especialmente naqueles
afetos aos cuidados com o recém-nascido. Observe-se: “O R. vivia me cobrando que eu
não era boa mãe. Ele tem mais paciência que eu, deixa as crianças fazerem o que querem.
Eu sentia esta cobrança.” Ou então, “P. se metia muito, achava que ele fazia melhor. Eu
me sentia insegura, mas insegura comigo mesma, com as coisas em geral.” Como
consequência disto, as mulheres se sentem inseguras com a invasão masculina neste
território doméstico, visto como preferencialmente feminino. Estas colocações permitem
esclarecer que os domínios público e familiar, exterior e interior, respectivamente
masculino e feminino, constroem, a partir dos padrões éticos e morais da sociedade
gaúcha, fronteiras culturais para ambos os sexos, os quais se manifestam no interior do
espaço familiar.
Desta forma, a divisão sexual do trabalho, com base nestes fundamentos
individualistas que tornam o indivíduo singular como sujeito ético e moral, sempre se
encontra restrita às regiões morais da família, marcadas pelos princípios hierárquicos, e à
discussão das oposições entre libertação e opressão, hierarquia e igualdade, sempre
presentes quando as interlocutoras vivenciam os níveis de articulações neste “jogo”
universal/holismo, no período em que estão casadas. A igualdade de direitos é
parcialmente tematizada nesta fase inicial da trajetória do casamento dessas mulheres
pertencentes ao grupo B, encontrando como contraponto, um código de honra que afirma
um princípio hierarquizante nos fundamentos morais da família, com base na
diferenciação da natureza moral dos sexos.
Neste ponto, é possível entender o sentido dado, neste período, ao discurso
feminista de algumas das interlocutoras da pesquisas, se o relacionarmos com o quadro
cultural que o produz historicamente, ou seja, como uma das formas tomadas pelo
individualismo moderno (Franchetto, Cavalcanti, Heilborn, 1981, p. 32) que é aplicado às
relações familiares e seus fundamentos morais hierarquizantes. A questão da
individualidade surge de modo mais definido a partir do enfoque do casamento como
escolha, evidenciado, principalmente, no grupo B, do que como destino, no grupo A.
De acordo com Velho (1983, p. 08), a valorização e a possibilidade de escolha
reforçam a auto-percepção do indivíduo, o que se encontra mais claramente no grupo B,
aquele que percorre sua trajetória de vida num meio urbano e moderno, inclusive tendo
algumas dessas mulheres morando no exterior49. Observe-se como os depoimentos
diferem daqueles das mulheres do grupo de status A: “Meu casamento não foi
convencional. Estava namorando outro cara quando R. me escreveu pedindo para ir
morar com ele no Chile. Pra mim foi uma decisão, uma escolha. Decidi ir com ele e
tranquei meu curso na faculdade.” Ou ainda, “Com 15 anos eu queria só desenhar, tirar
Belas Artes. Eu tinha a impressão que casou, morreu. Ao mesmo tempo, eu namorava,
achava que ia casar, vestido de noiva, aquelas coisas. Quando eu casei pensava em
construir meu lugar, minha família.” A individualização afeta, não só o espaço dos papéis
sexuais da família, mas também as relações desta com a rede social, num movimento de
contração da sua sociabilidade. Ou seja, afirma-se a importância do casal como instância
capaz de promover a individualidade e redefine-se a composição da sua rede social,
também guiada pela ideia de escolha, e com base na ideia de amizade.
Assim, na ideologia individualista pode-se pensar o individuo como membro de
uma rede de sociabilidade que se centra, basicamente, em torno da amizade enquanto
valor (Velho, 1983, p. 08). Neste sentido, pode-se constatar, neste período, uma contração
na sociabilidade do casal em relação às famílias de orientação, bem como à rede social de
amigos da parte da mulher, que passa a centrar-se na rede social do marido em função dos
seus contatos profissionais. Aqui se revela a importância da mulher como parte dos rituais
de negócios enquanto posição estratégica, capaz de referendar a “respeitabilidade”
masculina nos seus múltiplos planos. O testemunho que segue é bem representativo destes
conflitos na vida conjugal: “Depois de certo tempo de casamento, ele seguiu
desenvolvendo sua vida profissional, seus amigos, suas coisas. Eu fui ficando em casa,
com as tarefas domésticas. Quando saíamos, passamos a ir em jantares de negócios,
encontros de trabalho. Ficávamos falando, conversando. Ali eu era valorizada, tinha uma
posição importante. As mulheres conversavam entre si, como senhoras, enquanto os
maridos trocavam negócios”. A crise na relação conjugal, no caso deste grupo, focaliza,
justamente, a defasagem entre ideais e práticas igualitárias universalistas de ambos os
parceiros, agudizando-se na busca da afirmação das individualidades singulares de ambos,
separadamente.
Para o grupo de status B, mais do que para o grupo A, a busca de um afastamento
da família de origem também se revela como parte deste processo de individualização, e

49
Para uma melhor compreensão das considerações feitas aqui, sugere-se uma retrospectiva do Cap. II,
Reconstrução Biográfica II - da Modernidade à Vanguarda.
desta forma, o casal enclausura-se no novo núcleo por ele formado (Russo e Santos, 1981,
p. 283). Neste processo, observa-se uma valorização do ambiente familiar como o espaço
mais íntimo dos indivíduos que compõem o casal, sendo que a intimidade, novamente,
achava-se referida como a principal área para a autorrealização individual (Russo e
Santos, 1981, p. 287). Semelhante código de valores se choca com o código da aliança e
seus valores éticos e morais da sociedade gaúcha, criando uma tensão no nível das
relações conjugais, além de conflitos pessoais50.
Desta forma, a tensão conjugal se manifesta justamente quando ocorre a busca do
isolamento no núcleo familiar e a contração da sociabilidade do casal em relação ao
restante dos familiares, ressurgindo, no seu interior, princípios hierarquizantes. A
valorização da intimidade doméstica, da privacidade, implica, mais nitidamente, na
tendência da fixação da mulher no âmbito familiar, como este relato esclarece: “Ai ele
entrou naquele esquema de sair quando as crianças estavam dormindo e voltar quando elas
também já estavam dormindo. Minha vida profissional estava parada. Já não havia muita
coisa que nos unia”. Redefine-se uma ideologia individualista, retorna-se a princípios
hierarquizantes dos papéis sexuais, com perdas para a relação conjugal e os projetos
individuais construídos por cada cônjuge.
Coloca-se como importante perceber que o casamento, dentro da trajetória social
das interlocuotras, atua como agência nômica, isto é, como um arranjo social que cria
para o indivíduo o tipo de ordem dentro da qual lhe é possível experimentar sua própria
vida como dotada de sentido (Berger e Kellner, citado por Russo a Santos, 1970, p. 50). O
que se constata no grupo pesquisado é a presença, no espaço social do casamento, de
diferentes visões de mundo, correspondendo a diferentes estilos de vida, oriundos de
contextos culturais diversificados, que se manifestam na construção do projeto familiar a
partir do casamento51. Portanto, o matrimônio se encontra, após algum tempo, numa
situação de grande tensão.
Em primeiro lugar, percebe-se que ele resulta, para ambos os cônjuges, numa
releitura ou redefinição do passado, isto é, as definições de realidade internalizadas na
socialização primária não são abandonadas e sim remanejadas de modo a adequar-se a

50
Considera-se que a ideologia individualista não se manifesta apenas através do culto ao indivíduo
biológico, mas, de modo mais abrangente, abarca a noção de família que pode vir a significar uma ênfase
num projeto individual, que para se expressar, necessita do espaço mínimo favorecido pelo casamento,
mulher e filhos (VELHO, 1981, p. 84), o que resulta num afastamento do número de parentes.
51
Para fins de exemplificação, sugere-se a retomada do Capítulo II, Reconstrução Biográfica I - da Tradição
à Modernidade - e do Capítulo III, Reconstrução Biográfica II - da Modernidade à Vanguarda-,
especificamente na parte referente ao casamento e a construção de um projeto familiar.
novas definições (Russo e Santos, 1981, p. 289). Desta forma, essa releitura reafirma a
necessidade de se analisarem os valores hierárquicos e assimétricos associados aos
fundamentos morais da família e à natureza moral diferenciada dos sexos, diante da busca
de construção de um novo projeto familiar após o casamento, tendo por base um ethos de
modernidade, universalista e individualizante, ambos identificados no campo da sociedade
gaúcha. É significativo recolocar-se, através de dois depoimentos, grupos A e B
respectivamente, estas influências, quais sejam: “Aqui em Porto Alegre. Eu boto pra fora
minhas possibilidades. La onde minha família mora não dá. Se eu saio à noite sempre tem
que ir alguém me buscar, ou então, Em Porto Alegre acho isto muito chocante, tem sempre
um clima de respeito com relação aos filhos. Isto é mais falado do que vivenciado: é a
questão do direito, do respeito, mas no fundo não fazem nada de diferente. Lá em São
Paulo sim, eu senti que há uma preocupação real com estas coisas.” Refere-se,
anteriormente, quando da descrição da sua biografia, ao tratamento dado por elas, a noção
de modernidade, seja em relação a uma posição tradicional, seja em relação a uma postura
de “pseudo-vanguarda”. É importante, agora, descrever como fica este esquema conceitual
quando elas avaliam a atuação dos cônjuges na esfera familiar; após o casamento, numa
apreciação evidente do seu projeto familiar.
Primeiramente, observa-se que o sistema de queixas, apresentado para contar sua
história de vida na família de procriação, acha-se relacionado ao aspecto referencial que o
marido assume na busca da realização do projeto familiar. O parceiro é apreciado, após o
casamento, como elemento catalizador de uma ruptura nômica, ou seja. o parceiro
conjugal torna-se o outro significativo por excelência (substituído os membros da família
de origem), o que faz com que todas as outras relações significativas sejam
automaticamente repercebidas e reagrupadas (Russo e Santos , 1983, p. 291). Observe
neste sentido, o seguinte testemunho de uma das interlocutoras; Acho que nós nos
precipitamos. “O primeiro ano foi difícil. Porque tem uma diferença tu ter um namorado e
ter um marido. De repente, comecei a notar que ele era violento, temperamental. Antes,
não. Ele era romântico, submisso, até....” Isto ocorre num contexto cultural onde a família
afirma uma estreita vinculação entre a honra individual dos seus membros, a partir dos
atributos morais dos sexos e da divisão moral do trabalho no espaço da família. Logo,
semelhante situação conjugal tende a reforçar o aspecto encompassador da vida familiar,
em detrimento do valor individualista buscando num projeto familiar. O outro, o marido, é
contraposto à sua identidade social feminina, mais do que é afirmada a noção do seu “eu”
singular, como mulher (DUARTE, 1983, p. 2-3).
Conforme expressa uma das mulheres: “Quando nos reunimos pra conversar,
discutir, eu nunca participava, sempre acreditei que era burra, não sabia falar. Ele tinha o
poder de me convencer. Impressionante. Ate a escolha do curso que eu ia fazer foi ele
quem realizou”. A ruptura nômica, anteriormente citada no texto a respeito do espaço do
casamento, no grupo pesquisado, tende a ocorrer no sentido da referência a um código
hierarquizante e a uma estrutura assimétrica dos papéis sexuais na família. Assim, a
influência de princípios e noções modernas no campo da divisão moral do trabalho na
família, que envolve concomitantemente a sua própria definição, esbarra num código
moral que é representado pelas mulheres aqui ouvidas como estando fora delas e do
próprio espaço familiar. Isto fica mais evidente no grupo A, onde o casamento implica a
realização de parte de um projeto familiar de ascensão econômico-social, assim como a
adesão mais clara a um ethos de modernidade, percebido como estilo de vida a ser
conquistado: “O G. ganhava bem, tinha gratificações. Vinha para casa revoltado porque o
patrão ia todo o ano pra Europa e EUA, e que ele não tinha dinheiro pra isto. Eu vim
vivenciar a competição quando me casei. Aqui sinto a competição por status, nas festas,
nos programas” . Por outro lado, o projeto familiar de rompimento com o ethos da família
de origem resulta progressivamente em mediações, onde os fundamentos morais da
natureza dos sexos são recuperados num espaço em que princípios individualistas
questionam sua legitimidade52.
Na atuação familiar, busca-se afirmar o discurso da igualdade universal dos sexos,
isto é, as relações e os papéis sexuais no casamento, passam, no caso do grupo B, pela
lógica do indivíduo, sujeito e objeto da reflexão filosófica (Duarte, 1983, p. 03) e a noção
de família nuclearizada, em vias de enfrentar o desafio com respeito às famílias de origem
(Salem, 1983, p. 11). A tentativa de construção, no casamento, de um projeto familiar
contendo ambos os aspectos, resulta num ponto de tensão constante entre os cônjuges, pela
disputa da individualidade de ambos os parceiros, dos espaços que devem ocupar na
família e entre eles e suas famílias de origem, pelos laços de compromisso e reciprocidade
com que as relações familiares são encaradas. A solução para tais impasses é resolvida em
função dos afastamentos e aproximações realizados pelo casal, que são ou não,
relativamente legitimados pela sua rede social face à um ethos e visão de mundo mais ou

52
No artigo de Durham (1983, p. 40), “Família e Reprodução Humana”, esta autora aborda de modo preciso,
as áreas de conflito nas relações conjugais que são um reflexo da ideologia igualitária na família. Este
conflito decorre da busca da livre expressão da individualidade tanto na carreira profissional como na vida
amorosa, o que se aproxima da trajetória conjugal percorrida até aqui pelas mulheres aqui pesquisadas.
menos modernos, e/ou tradicionais para o espaço familiar, em termos de eficácia do seu
projeto familiar com vista a ordenar esta experiência fragmentadora.
As crises conjugais, mais especificamente, apresentam soluções de continuidade,
dependendo da capacidade de filiação dos cônjuges, num projeto conjunto, a um destes
espaços, moderno ou tradicional, construindo prioridade nos seus princípios éticos e
morais do projeto familiar, como também dependem da opção pessoal em definirem-se,
cada um, como sujeito, mais ou menos encompassador, e/ou, mais ou menos
individualista, de acordo com as esferas da sua competência. Certamente a delimitação
destas esferas retorna a uma barganha entre os cônjuges na construção de suas identidades
sociais, em função das suas diferentes trajetórias e bagagens culturais. Desta forma, para
ambos os grupos de status pesquisados, a ruptura nômica, ocorrida no casamento, é pauta
de discussão constante, sofrendo alterações a partir das trajetória social das interlocutoras,
do ethos e da visão de mundo incorporados ao longo da sua biografia, assim como das
opções e escolhas que constituem seu projeto individual e familiar, após seu afastamento
do grupo de origem, e/ou seu deslocamento para outro meio social considerado mais
moderno, onde vigoram novos códigos sociais e morais. Aqui, a composição da rede
social das interlocutoras, após o casamento, é fundamental para a compreensão do sentido
dado não só para o espaço do casamento, mas para sua atuação dentro dele.

2 - SEPARAÇÃO – OS FUNDAMENTOS DE UMA MORAL UNIVERSAL E SEUS


IMPASSES

Nesta parte do trabalho, toma-se por base a constatação de que, para ambos os
grupos de status, a separação surge predominantemente não como um projeto consciente e
individualizante, mas acima de tudo, como fruto de impasses e situações existenciais que
geram uma determinada conjuntura nas relações familiares, onde a tensão conjugal torna-
se insuportável. A partir do seu desfecho, a situação de separação passa a ser
experienciada, neste contexto, como um momento onde a noção de individualidade toma
corpo e forma e a necessidade de construção de uma escolha surgem para ambos os
parceiros, com a constituição de projetos individuais em função da sua bagagem cultural.
Pode-se pensar que, com o desfecho do processo de separação, os impasses conjugais
desenvolvem-se no sentido da realização de um ethos de modernidade, estabelecendo
deste modo, no grupo em estudo, a passagem para uma situação de modernidade, e/ou
vanguarda, o que facilita, de certa forma, a opção feita por elas pela separação como algo
ate certo ponto aceitável.
No entanto, para este estudo, o que se revela mais importante no desencadear do
processo de separação das interlocutoras são as articulações entre as instâncias individuais
(individualismo) e coletivas presentes à sua lógica e as implicações face à delimitação de
um ethos. Esta discussão conduz a percepção dos limites dos estilos de vida
tradicional/moderno do espaço familiar, norteada por questões de honra e hierarquia e
fortemente influenciada por nações igualitárias. Somente a percepção de que o espaço
familiar não se apresenta apenas como um lugar monolítico, onde precipuamente vigoram
os valores tradicionais e hierárquicos, possibilita a este estudo a identificação de outras
regiões morais, no seu interior, no qual convivem diferentes percepções e visões de
mundo. Ou seja, pressupõe-se a identificação e a presença de processos dinâmicos no
espaço cultural reservado a família, onde subsistem diferentes propostas de visões de
mundo, ligadas que estão a diferentes projetos sociais.
A análise do processo de separação do grupo pesquisado aponta para a importância
de se reconhecer e dimensionar os valores e códigos culturais associados a estas alterações
no espaço tradicional da família, que se direcionam em função de um ethos de
modernidade, de nuclearização da família, da cultura individualista53.
Neste ponto, o estudo deste grupo de mulheres descasadas propõe a relevância de
se entender a influência das ideias igualitárias entre os sexos no espaço familiar, visto aqui
em sua dimensão holista, a partir dos fundamentos morais da natureza dos sexos que
fundem este espaço. A família, então, passa a ser um domínio onde os sexos não possuem
esferas de competência claramente definidas, o que fere os princípios morais da divisão do
trabalho. Diferentes noções de indivíduo passam a atuar e redefinir as relações familiares,
assim como o domínio dos papéis sexuais, recolocando em outros termos os seus
fundamentos morais e reorganizando as experiências pessoais no domínio familiar. Este
trabalho aponta a importância da reflexão acerca dos limites da incorporação e valores e
noções modernas das fronteiras culturais expressas no interior da família, articulada em
função de concepções e valores tradicionais.

53
Estas alterações no espaço da família e dos laços de parentesco, em face de uma ideologia modernizante,
individualista e considerada em oposição ao holismo das sociedades tradicionais, são amplamente discutidas
por Velho (198l) em “Individualismo e Cultura”.
2.1 – SEPARAÇÃO SOB O SIGNO DA HONRA

As questões de honra referem-se, em última instância, à aspiração (e validação),


por parte do sujeito, a uma posição social determinada. Assim, faz da natureza das
questões de honra o desejo que tem o sujeito de assumir um papel social que lhe confira
posição honrável, bem como a sua consecução adequada. Por outro lado, conforme
afirmação anterior, em sociedades onde a dimensão da honra constitui suas próprias
fronteiras, a família se torna uma unidade moral básica. Seus fundamentos encontram-se,
pois, referidos a divisão biológica do trabalho como o ponto de partida (Pitt-Rivers, 1968,
p. 113). Este dinamismo se baseia no fato de que, no contexto familiar, os padrões de
comportamentos considerados honráveis para ambos os sexos são, por si mesmos,
assimétricos e complementares. A honra referida as mulheres se torna, então, diferente
daquela afeta aos homens, o mesmo ocorrendo no nível das classes sociais, isto é, as
questões de honra também dependem do lugar que o sujeito trabalha sua identidade social.
Diz-se ainda, que dependem da própria noção de indivíduo com que este sujeito trabalha
sua identidade social. No contexto familiar tradicional, portanto, surge uma noção de
honra diversificada em função da natureza dos sexos. A ideia de honra-precedência, ligada
à posição masculina de autoridade e ascendência, e a ideia de honra-vergonha, associada à
posição feminina em termos de virtude e condicionamento. Ou seja, enquanto o homem se
afirma pela posição de disputa e defesa da honra familiar, traduzida na ideia de
hombridade, a mulher cabe a manutenção desta honra pela posição de recato e timidez. No
primeiro caso, defende-se a natureza forte e viril do macho, no outro, ressalta-se a natureza
delicada e frágil da fêmea.
Observa-se que a honra familiar se baseia numa assimetria na noção de honra,
cujos fundamentos morais naturalizam as diferenças no caráter dos sexos. Dentro da lógica
da honra, a noção de vergonha surge como um aspecto complementar à noção de honra,
demonstrando o sujeito uma sensibilidade particular acerca da sua reputação social, o ato
de envergonhar-se representa, de certo modo, a perda da honra ou uma ameaça à posição
de honradez. Vergonha e humilhação são dimensões de um mesmo problema, a despoja da
honra, o que, socialmente, pode afetar a qualquer um dos sexos. Assim, a sensação de
vergonha não é algo inerente à pessoa, e sim, uma questão moral, logo, é imposta
socialmente, significando, em função da honra, o limite da aspiração de uma condição
honrável ou, então, o sinal da sua perda.
A separação, considerada dentro deste quadro teórico, conduz a reflexos estruturais
relevantes. Primeiramente, o descasamento desordena o domínio básico onde os
fundamentos morais de ambos os sexos são construídos. Submete os espaços designados
para cada sexo, refaz a ideia da natureza moral dos papéis sexuais, e, portanto,
redimensiona o caráter da honra feminina e masculina54. Em termos do código de honra
peculiar ao espaço familiar, construído a partir do casamento, pode-se observar a
dimensão da noção de vergonha desencadeada pelo processo de separação.
Nos relatos sobre descasamentos, encontra-se, com muita frequência, a menção ao
fracasso na consecução do seu papel de esposa, e, portanto, em sua honra. Isto sugere a
grande importância do casamento para a realização dos fundamentos morais da família no
grupo pesquisado. Veja o depoimento de uma dessas mulheres: “Antes eu me sentia
frustrada por ter construído uma família. Eu achava que não existia família se não tivesse
pai-mãe-prole. Família significava esta reunião” . Logo, a ordenação dos papéis sociais e
dos laços de parentesco fundam, entre si, a natureza moral de ambos os sexos, traduzindo
códigos morais que compõem a honra daqueles que desempenham estes papéis,
constituindo suas identidades sociais. É o que se observa, por exemplo, nesta afirmação de
uma delas sobre os reflexos que possui a separação em sua identidade social: “eu me
sentia frustrada porque não tinha sabido conservar minha família”. A separação propõe,
pelo menos num determinado período de tempo, a negação deste espaço moral,
acarretando reflexos na honra dessas mulheres.
A sensação de frustração é acompanhada da sensação de vergonha, que vem
associada à ruptura com os atributos morais do seu sexo. A separação desencadeia, assim,
um questionamento dos atributos femininos comparativamente aos masculinos,
provocando uma confusão na delimitação das esferas de competência feminina e
masculina. Neste sentido, é esclarecedor o testemunho que segue: “Aos poucos fui
perdendo esta visão que eu tinha logo que me separei. Aquele negócio: mulher tinha
mesmo que ser um segundo homem. Achava que para o homem tudo era melhor, tudo era
mais fácil”. A representação de que a mulher, com a separação, tende a se masculinizar,
tem muito a ver com o fato de estas assumirem uma participação no espaço público, pelo
retorno a atuação profissional, alcançando uma prerrogativa, por “natureza”, masculina.

54
No Cap. I, Orientações Teórico-Metodológicas, reconstrói-se o caráter de inversão que o processo de
separação realiza diante do ritual do casamento e os reflexos na questão da honra no grupo pesquisado - em
função da sua conceituação como um grupo do status.
Decompõe-se a divisão moral do trabalho e as mulheres descasadas se convertem em
homens (Pitt-Rivers, 1968, p. 78).
A separação, refazendo o espaço familiar, redefine o espaço moral das
interlocutoras. Por um lado, estas se definem como mulheres que não sabem manter a
honra familiar, não cumprindo adequadamente o papel de esposa. Por outro, ao perder a
posição tradicional da família, não conservam sua virtude, pois não se abstêm de realizar
ações próprias dos homens (Pitt-Rivers, 1968, p. 77). Assim, a honra pessoal das mulheres
descasadas de ambos os grupos de status é fruto do espaço familiar a que elas se acham
vinculadas pelo casamento, bem como da composição da natureza moral do seu sexo que
se constitui nesta vinculação. A honra, aqui, pressupõe, como afirma Bourdieu (1968, p.
197), dois planos: honra que me esta sendo atribuída e a honra a qual estou vinculada. O
primeiro plano se refere à honra como algo que pode ser perdido, no segundo, a honra é
algo que pode ser defendido. A recuperação da honra perdida, em termos gerais, se guia
através da noção de amor próprio e do orgulho. Ou seja, idealmente, o término da situação
desonrosa significa a atuação do amor próprio na recuperação do espaço familiar e dos
seus fundamentos morais, alterados pela separação.
Isto ocorre de duas formas, ou as mulheres, pós separação, fazem nova tentativa na
relação conjugal, ou assumem a separação como única forma de, em nome da integridade
do espaço familiar e das relações pessoais no seu interior, resgatar este espaço das crises
pessoais. Outra alternativa que não é muito tematizada pelas parceiras da pesquisa nesse
período do seu processo de separação, é a possibilidade de um novo casamento, o que
pode vir a se tornar consciente no relato de algumas delas. E o que demonstra esse
testemunho obtido a partir dos relatos de uma das interlocutoras da pesquisa: “Logo que
me separei achava que eu iria encontrar um homem maravilhoso. Ia me apaixonar, me
casar novamente. Eu estava assim, frustrada. Agora acho bastante difícil casar de novo.
Acho menos necessário. Antes eu não conseguia me imaginava sozinha. Me imaginava
transitoriamente”. A tendência, portanto, também pode ser no sentido de que, através da
noção de amor próprio, as mulheres descasadas recoloquem a questão de um novo
casamento como forma de reconstituir a composição da sua honra, refazendo a reputação
social e recompondo sua integridade em função do papel de esposa55. Especificamente
sobre as relações entre os ex-cônjuges, nos períodos imediatamente anterior e posterior à

55
A questão do orgulho e do amor próprio, em íntima ligação com a ideia de casamento, conduz à aceitação
de uma sociedade percebida como predominantemente relacional: fora da família não há salvação. Percebe-
se, então, o espaço da família como instituição lapidar nesta sociedade, e a 'esposa-mãe', como categoria
focal no interior daquela instituição (...) (ARAGÃO , 1983, p. 115).
separação, observa-se a presença de uma situação de disputa entre ambos os sujeitos
envolvidos, os quais buscam afirmar para si uma situação de exclusividade em relação à
reputação social e a honra daí advindas.
Nesta situação de disputa, por parte dos homens, apresenta-se uma barganha
econômica, pela dependência financeira a que as mulheres estão submetidas, e, da parte
das mulheres, existe uma “chantagem emocional”, devido a sua situação de ascendência
sobre a prole nas relações familiares. Ou seja, ambos se utilizam da relevância dos seus
papéis sociais na família como pontos de honra nas estratégicas de luta durante o período
de dissolução dos laços conjugais.
Nestes pontos cristalizam-se os pontos de honra pertinentes a cada sexo na família
e suas respectivas esferas de competência, tudo dentro de um código de honra que
estabelece uma hierarquia bem precisa quanto aos fundamentos morais de ambos os sexos.
É o que se observa no depoimento de uma das mulheres: “Quinze dias antes de minha
filha nascer ele deu uma batida em nosso carro. Dai tivemos uma tremenda discussão. Ele
não aguentou, pegou sua mala e foi embora. Eu estava de saco cheio. Tínhamos 5 anos de
casados. Ficamos 1 ano e meio separados. Neste meio tempo, eu tive minha filha sozinha,
paguei o hospital, o medico, tudo. E a família toda falando que tínhamos uma filha e coisa
e tal. Depois ele começou a me procurar de novo, dizendo que eu não tinha compreendido
ele, que deveria ter ido conversar, não tinha sido companheira. Mas ele não tinha razão,
tinha sido infantil, irresponsável. Tinha saído de casa na hora que eu mais precisava dele,
nem tinha se importado com a criança..”. Assim, na situação de disputa conjugal, as
acusações se revelam como instrumento para cada um dos cônjuges afirmar sobre o outro
uma diferença e distribuição da honra entre si, ou seja, quem é quem, possuindo a
prerrogativa do ofendido, impõe uma decisão moral, que resulta na desonra do ofensor.
Talvez isto explique porque o inicio da separação é desencadeado pelos seus parceiros,
que viabiliza esta como saída para os conflitos e impasses familiares.
Segundo os relatos ouvidos acerca da politica sexual na família, cabe ao homem,
no exercício da prerrogativa masculina, reposicionar a honra da família, em função da sua
honra-prioridade. A ideia da separação, na maioria dos casos, é sugerida pelo homem
como uma forma de se reestabelecer o fluxo da honra na família e reposicionar, na
hierarquia, as relações familiares. Na realidade, o espaço da separação afirma uma lógica
agonística, isto é, ele ameaça a integridade da honra de ambos os ex-cônjuges, pois é
resultado de uma disfunção nos princípios morais da família.
Com o desencadear dos acontecimentos, ambos os cônjuges se movimentam em
busca de consideração e respeitabilidade. No processo de separação, a reputação social de
ambos se acha constantemente em perigo, incitando-os a afirmação dos seus pontos de
honra. Desencadeando o processo no interior das relações conjugais, os parceiros atuarão
no sentido de defender sua honra da acusação social. Inicialmente, isto irrompe na própria
estrutura dos papéis familiares num questionamento à situação hierarquizante da família.
O relato a seguir permite entender de que formas os códigos da hierarquia familiar são
abordados: “Eu me lembro do momento que eu aceitei claramente o rompimento de nossa
relação. Foi logo depois do nascimento de M., eu tinha passado uma gravidez sem nenhum
apoio. O parto de M. foi difícil, o quarto do hospital era particular, tinha ar condicionado e
tudo. Mas era um tremendo calor. Numa das noites que eu passei mais mal, fiquei sabendo
que o P. desligara o ar condicionado pois tinha se resfriado. Tinha sido uma noite horrível.
Naquele momento eu vi que não tinha mais condições. Não era apenas erro meu o
casamento ter dado errado, e não tinha sentido eu ficar com complexo de culpa por isto.”.
O depoimento citado revela, mais uma vez, ser o espaço da maternidade e paternidade
privilegiado para a atuação da lógica e dos fundamentos morais dos papéis sexuais na
família e, consequentemente, para as disputas de honra.
De acordo com a dialética da honra, presente a lógica moral do espaço da
separação, o que está em jogo é a noção de orgulho e amor próprio das mulheres
descasadas, que, pode-se deduzir, se acha mais evidentemente localizada no papel de
mãe56. Logo, para o grupo pesquisado, a honra feminina está fortemente associada ao
desempenho do papel de mãe que as interlocutoras vivenciam no momento das muitas
crises conjugais, assim como aquele papel que, idealmente, concebe para a maternidade.
Isto, no entanto, não é isolado, pois há referência também as questões da sexualidade e do
papel de esposa.
Conforme se pode perceber em dois relatos recolhidos junto as interlocutoras: “Fui
percebendo que mãe completamente desgraçada e infeliz só podem transmitir estas
emoções. Seu eu fosse uma mãe deprimida, toda ruim,... Eu pensava na influência que eu
tinha, fui vendo que não adiantava mais”. Ou, então: “Eu não suportava mais que ele me
tocasse, me irritava, enojava. Eu não estava mais afim. Que tipo de mulher que eu estou
me tornando, pensava comigo mesma, estou tendo horror a sexo. Já tinha feito aquela

56
A relevância da categoria mãe, para a sociedade brasileira, e as relações e valores que ela articula,
encontram-se criativamente abordadas por Aragão (1983) “Em Nome da Mãe”, In “Perspectivas
Antropológicas da Mulher”, v. III.
última tentativa. Eu me achava egoísta com meus filhos. Achava que os condenaria a
infelicidade. Mas foi ficando insuportável. Perdi o medo do futuro, a culpa com as
crianças, não tinha mais nada que me segurasse, não tinha mais lógica.” Para os grupos
de mulheres descasadas pesquisado, a noção de amor próprio, desencadeada nas disputas
de honra entre os cônjuges, acha-se fundamentalmente veiculada ao exercício da
maternidade numa família fragmentada em seus princípios morais e ligada a uma imagem
que as mulheres fazem de si mesmas, de acordo com a ideia de dignidade expressa num
sistema ordenador de valores, onde a vontade de superar o outro, é acima de tudo o fato
de defender a qualquer preço, certa imagem de si destinada aos demais (Bourdieu, 1968,
p. 189). Os filhos representam, nesta dimensão de honra, um relevante papel na busca da
reconstituição de uma ordem moral nas relações familiares.
Para as disputas de honra presentes no espaço social da separação, considera-se
uma aproximação entra honra e vergonha para ambos os sexos, uma vez que atuam, no
caso, como virtudes necessárias a estes, revelando-se, entre homens e mulheres, uma
preocupação com a sua reputação social (Pitt-Rivers, 1979). A separação atua no sentido
de realçar esta proximidade, pois estimula a sua constituição enquanto valor ético capaz de
orientar as ações dos cônjuges na disputa familiar por uma posição honrável face ao
reconhecimento público. Assim, este espaço social enfatiza a equivalência entre honra e
vergonha para, num segundo momento, recolocá-los sem uma oposição face aos
fundamentos morais na família, de acordo com as características exclusivas de cada sexo.
Na dialética da honra, desencadeada pela separação, atua um fundamento básico, o
reconhecimento recíproco de igualdade na honra entre os cônjuges, mesmo que esta seja
assimétrica. Trata-se de uma “igualdade” a partir de um código moral com base na noção
de honra, isto é, está sujeito a um principio ordenador.
Assim, esta noção de “igualdade” supõe um valor encompassador, pois aponta, ao
menos idealmente, a condição primeira dos indivíduos adquirirem, de igual para igual,
reputação honrada. Neste sentido, a honra não é algo comum a todos, embora todos
tenham igual direito a possui-la. Ela existe para quem é digno dela. Cada parceiro tem a
necessidade constante de afirmar sua superioridade ou sua isotimia em relação ao outro,
isto é, seu direito a ser tratado como uma pessoa com iguais direitos para a estima.
(Periatiany, 1968, p. 157). Particularmente no momento da separação, esta dialética, com
seus princípios hierarquizantes, sofre limitações em termos da sua aplicabilidade na
reordenação das relações entre sexos, tendo por base, a presença neste contexto, da noção
de igualdade dos sexos, peculiar a uma moral universal. Considerando-se, portanto, que no
grupo pesquisado convivem representações e categorias tradicionais, e/ou modernas das
relações familiares, papéis sexuais e laços de parentesco, observa-se a ocorrência de
múltiplas articulações, no espaço social da separação, entre os princípios de uma moral da
honra e de uma moral universalista nas situações de disputa e conflito entre os cônjuges.
Ou seja, em ambos os grupos de status estudados, presente a um princípio
hierarquizante, também se encontra um ethos e uma visão de mundo moderno, assentados
em princípios e valores individualistas. Isto se reflete nos conflitos que conduzem a
separação, onde interagem com princípios holistas presentes no espaço tradicional do
casamento da família. Isto já está presente nas fases críticas das relações conjugais, nas
formas matizadas que assume a tradicional divisão moral. Do trabalho na família, com
algumas interlocutoras insistindo em suavizar e/ou subverter seus antigos fundamentos
morais. Em especial no grupo B, criam-se, no inicio do casamento, esferas de competência
entre os sexos não muito bem precisas e delimitadas, resultando, neste momento das
relações conjugais, num espaço altamente competitivo nas relações entre eles e na esfera
de delimitação dos papéis sexuais.
A interpretação, no espaço social da separação, destas concepções de igualdade, se
revelam como conflitivas se perceber-se que, dentro de uma moral universalista, assim
como na moral presente no código de honra, se está em presença de diferentes concepções.
Na moral universalista, a dignidade se acha virtualmente presente em todos os homens, o
que corporifica a própria ideia de humanidade (Duarte, 1983, p. 9), assumindo, desta
forma, um valor genérico. Esta concepção de dignidade também move as mulheres
descasadas no sentido de assumir a ruptura das relações conjugais e dos fundamentos
morais da natureza dos sexos, sobretudo, no processo de separação, contra a concepção de
que não só as regras impostas aos homens diferem das regras impostas as mulheres, senão
que elas são variáveis segundo as situações, não sendo de forma alguma universalizáveis
(BOUDIEU, 1968, p. 207).
Por seu turno, na moral da honra, predominante no espaço da separação do grupo, a
noção de respeito reflete padrões ideais de conduta que implicam a condição de manter-se
limpo de ataques ou insultos (Campbell, 1968, p. 137). A “igualdade” na honra pressupõe
a condição de respeito, de direito a uma reputação honrada, e se acha fundada em um fim
coletivo que é reconhecido como impondo-se a muitos homens (Dumont, 1970, p. 11).
Portanto, até certo ponto, fica fácil entender, nas disputas e conflitos conjugais presentes
na situação de separação, como as mulheres passam de uma posição de equivalência aos
seus parceiros, na busca da sua honra diferenciada, para uma posição igualitária,
disputando e competindo por sua dignidade enquanto indivíduo-genérico, parte da
humanidade. Em ambos os casos, estão atuando dentro dos limites de códigos que são, em
principio, diferenciados.
Nesta parte do estudo, as implicações práticas destas considerações são colocadas
quando da constatação de que, no espaço da separação, sob a égide da honra, ambos os ex-
parceiros disputam a condição de respeitabilidade em função das noções de orgulho e
amor próprio, e, de certa forma, reafirmam alguns princípios morais singulares da esfera
familiar tradicional. Percebe-se, nos testemunhos sobre a situação de separação, o quanto a
honra de um está intimamente associada à desonra do outro. Os valores morais, neste
momento, assumem uma dimensão particularista e excludente face às diferenças sexuais.
Conforme coloca Velho (1983, p. 07), nesta dialética da honra são discutidos papéis e
paradigmas, estão sendo abordadas noções como a do bom pai, boa mãe, o marido e a
esposa. São apresentadas versões, interpretações são cotejadas. O boato, a intriga, a
inconfidência perpassam a antiga rede criando clivagens e acentuando diferenças de
ponto de vista. Neste jogo, toda a rede social das mulheres separadas se acha envolvida,
legitimando ou não a honradez de cada um isoladamente. Isto esta colocado nos relatos
das mulheres a respeito das crises conjugais que culminam com a ruptura, e onde todos
aqueles que compõem a rede social do ex-casal, parentes ou não, são chamados a
participar.

2.2 – SEPARAÇÃO SOB O SIGNO DA INDIVIDUALIDADE

Conforme já foi dito, e sob outro enfoque, não majoritário, o espaço da separação
se revela como um processo de negociação da realidade, onde as intelocutoras se acham
manipulando concepções e valores peculiares a um ethos de modernidade, o que é, por
exemplo, o caso da noção da moral universalista.
Nesta situação, as noções de individualidade, igualdade e privacidade tornam-se
fonte de brigas e disputas, como um exemplo claro da composição desta visão de mundo
moderna, atuando no espaço social da separação e que se impõem a partir da concepção
do homem como individuo (Dumont, 1970, p. 17). Durante a separação, e sob o signo da
individualidade, as mulheres não só questionam os limites e as fronteiras da constituição
da sua identidade social a partir da tradicional esfera familiar, como indagam sobre a
própria noção de família.
Este momento se caracteriza pela presença daquilo que Velho (1983, p. 44)
denomina angustia da individualização, o que, neste trabalho, está representado pelo
distanciamento percorrido pelas mulheres descasadas em relação à prioridade do
encompassamento proposto pelo código de honra para a solução dos impasses conjugais.
Os depoimentos de algumas mulheres permitem avaliar a profundidade desta angustia e
seus reflexos na situação emocional desencadeada na separação: “Logo que me separei,
comecei a entrar numa de ter medo. Um medo incrível. Um medo de tudo. Medo de
enfrentar decisões. Ou ainda: No inicio, estar separada era um horror. Assim como a
novela das seis. Um horror. Era com sentir-se sozinha, tanta coisa investida nestes 14
anos.” Neste aspecto, a separação, tanto quanto o casamento, por desencadear um processo
de negociação da realidade, estabelece uma ruptura nômica. Esta ruptura afeta não apenas
os padrões e papéis sexuais em jogo no interior da esfera familiar já em estado de
fragmentação, como também atinge a própria imagem social e pessoal após a separação,
constituindo a noção de singularidade em função da possibilidade de construção de uma
nova definição de indivíduo.
O depoimento que se segue permite a identificação das metamorfoses e
perturbações, na definição dada por uma das interlocutoras da pesquisa para si própria
enquanto sujeito da ação, após a separação: “Quando eu me decidi pela separação eu tinha
que me cuidar para não dizer „eu vou me suicidar‟ em vez de „eu vou me separar‟, era uma
coisa incrível. Depois passei um tempo, logo depois da separação, que eu tinha que me
cuidar para não dizer „eu me casei‟, em vez de „eu me separei‟.” Na primeira parte deste
depoimento, o sujeito da ação se define como suicida, na medida em que assume o
processo de separação. Há um desconforto em perceber como aquele que no
descasamento, se suprime a partir da concepção de um sujeito autoconstrutor, se
conciliando com sua imagem pessoal e se achando “casado” consigo mesmo. Neste ponto,
a separação é representada pelo distanciamento da inconsciência (casamento) e a
afirmação da integridade pessoal e da consciência. Portanto, este depoimento nos revela,
de modo sui generis, o movimento do sujeito concebido como “destruidor de si mesmo”
para aquele que “constrói a si próprio”, numa trajetória ate a realização da autenticidade
pessoal.
Da mesma forma o relato transcrito aqui é significativo desta alteração na
identidade social das mulheres descasadas, a partir do nascimento do indivíduo através da
consciência: “O pesadelo terminou. Se eu vejo o meu casamento como processo, antes de
me grilar com as coisas, eu vejo que eu era uma sonambula, uma morta-viva. Era outra
pessoa, não tem explicação. Não era uma pessoa, era uma empobrecida, sozinha”. Neste
momento da reconstrução biográfica, surge, nitidamente, em grande parte dos discursos
das mulheres ouvidas nessa pesquisas, uma noção de indivíduo de acordo com três
dimensões importantes. Ou seja, como sujeito moral, sujeito politico e sujeito da razão57.
Nesta tripartição, é possível observar uma preocupação em constituir a mulher como
sujeito individualizado, buscando sua interioridade, originalidade e singularidade,
processo este que começa a entrar em conflito quando se repensa a esfera doméstica e,
dentro deste contexto, o papel de esposa-mãe. Segundo outro relato ouvido, a separação é
apontada como momento que afirma o espaço do indivíduo singular, sujeito ético e moral:
“A separação me fez ter maior preocupação com minha vida profissional. Estou buscando
descobrir meu espaço, minha forma de ser.” Neste ponto, a importância da separação se
revela na medida em que instaura sua existência como consciência individual, guiando-se
por uma ética individual, destacada de uma ordenação hierárquica de valores associada ao
meio tradicional.
O cultivo a interioridade dimensiona o aparecimento do sujeito da razão, onde é
ressaltado o aspecto da construção interior decorrente do espaço da separação. Os
testemunhos de algumas das mulheres ouvidas nos alertam para estas observações: “Eu
sinto atualmente a minha responsabilidade sobre o meu estado de espirito. Isto não me
passava pela cabeça antes da separação”. Ou, então: “Logo que me separei me senti feliz
em ter meu espaço e poder decidir como usa-lo”. A presença do sujeito da razão, nos
discursos, é significativa quando as mulheres comparam a emocionalidade da situação do
casamento com a presença da consciência, do cogito, após a separação. Este aspecto é
importante na medida em que, neste processo, a não razão, referida ao período do
casamento, tanto constrói como legitima a presença da razão fundamentando a identidade
social das mulheres na situação de separação.
Conforme um dos testemunhos, é no espaço da separação que se coloca a presença
da maturidade, em função de uma atitude mais reflexiva, consciente e racional: “Minha
maturidade chegou com a separação. Maturidade é tu viver o dia-a-dia, o presente. E mais
certezas do que duvidas. Para de imaginar que a vida vai ser de modo que se sonha, e se
dar conta de que a vida é acima de tudo do jeito que é. E saber que tu estas fazendo, saber
o que se quer” . A separação, então, através do culto ao sujeito da razão, afirma a força
interior e individual, e é construída sobre o enfoque da “originalidade”, o que se acha

57
A ideia de utilizar, nesta parte do Trabalho, estas 03 dimensões da moderna noção de indivíduo é sugerida
a partir da leitura de Duarte, (1983) “Três Ensaios sobre Pessoas e Modernidade”.
perfeitamente enquadrado no ethos da modernidade enquanto çã „ if ç ‟, e
i i çã „ i ‟i í if ã „ igi i ‟/„ i g i ‟
/„ i i i ‟ (DUARTE, 1983, p. 25-6).
A forma como se apresenta o relato da vida casada por uma das interlocutoras,
permite avaliar a relevância do espaço da separação como momento desencadeador da
noção do indivíduo original, criativo, contrastando com a situação do casamento, que é
apresentada por ela como uma prisão: “No meu casamento eu me anulei, parei de
desenhar... Não consegui mais. Fazer o que? Não saia nada. Para desenhar tu tens que te
libertar. Quando tu desenha, tu te liberta. Mas como me libertar? Eu tinha que viver
daquela maneira, eu estava presa.” A necessidade de reconstituição da esfera familiar é
intercaladamente projetada, nos depoimentos, como forma de suavizar as conclusões
tiradas a partir do processo de descasamento e avaliar os projetos pós-separação. Estas
ponderações retornam em outros depoimentos: “Estou me sentindo satisfeito, mesmo
separada. Acho que há problemas na minha vida que não são nem de longe os que vivi
quando casada. Por exemplo, a mulher trabalhando, criando filhos, é uma barra muito
pesada. Acho que deveria manter este meu bem-estar agora dentro de uma instituição
como o casamento. Mas de que maneira é bom casar e ter filhos? Em tese eu poderia viver
o que vivo agora dentro de um casamento.” O que esta em jogo não é mais a noção de
família, pois esta é resgatada no processo da separação. A posição indivíduo/família é
superada para a oposição indivíduo na situação de casamento, dissociando-se a aliança
matrimonial da concepção de família. Ou seja, “hoje, família sou eu e meus filhos; é
estarmos juntos”.
Neste ponto, a discussão da liberdade individual deixa de ser afetada pelos limites
da esfera familiar e atinge a dimensão das relações interpessoais entre homens e mulheres.
Resgata-se a noção de família, agora recolocada dentro de outras concepções morais que
não encontram mais fundamento básico na legitimidade da ordenação hierárquica dos
princípios morais ligados à natureza de cada sexo. O que orienta a ação de parte das
mulheres no processo de descasamento, de acordo com a lógica individualista, é a
construção de um projeto individualizante que redimensiona não apenas os papéis sexuais,
mas também, os laços de parentesco e que afirma, em última instância, como uma unidade
legítima da noção de família, a unidade biológica mãe-prole.
Parte deste processo está presente neste depoimento onde aparece, inicialmente,
uma negação dos princípios hierarquizantes vividos no espaço familiar após o casamento,
seguindo-se de uma reflexão a respeito da relação indivíduo/coletivo no seu interior:
“Durante meu casamento eu era outra pessoa. Eu era participante. Parecia, né? Mas
participante coisas de marido. Agora se eu tiver uma pessoa a quem eu tivesse que dedicar
meu tempo eu não saberia o que fazer. Agora vejo que é possível estar feliz. Enquanto no
casamento só consigo ver aquela coisa da cobrança. Isto me deixa com muito medo de
casar de novo.” Quanto ao surgimento da dimensão do sujeito político na separação, este
desencadeia um paradoxo no nível da família e do seu princípio hierarquizante.
Por um lado, privilegia a individualidade, por outro, afirma um compromisso
retotalizador entre os sexos, na medida em que pressupõe sua igualdade universal. As
mulheres diante do acontecimento da separação, então, passam a atuar, em muitos
momentos, em função da sua individualização. Nesta medida, conseguem um espaço
familiar que não apresenta a retotalização dos valores e concepções ligados à hierarquia
dos sexos. Assim, a legitimidade da identidade social oscila entre a universalidade dos
seus direitos como indivíduo genérico, que é parte da humanidade, tomada como
totalidade, e a parte/indivíduo, modelo axial de Indivíduo/Sujeito, em suas múltiplas
refrações (Duarte, 1983, p. 10). Isto está expresso claramente nos seguintes testemunhos:
“Agora na relação com os homens eu quero a minha liberdade tanto quanto eu admito que
eles têm necessidade dela. No casamento era diferente, tinha aquela coisa possessiva. É
moral junto e tenho a impressão que tudo vai recomeçar de novo. Se eu estou sozinha não
fico deixando nada pra alguém fazer. Não pinta aquelas murrinhagens de casal. Por isto,
acho boa esta ideia do casal morar separado, sem as murrinhagens do dia-a-dia”. O quadro
fica mais complexo quando se observa que, paralela a esta composição do discurso das
interlocutoras desse estudo, está presente uma visão de mundo e um estilo de vida vividos
em função de um código ético e moral tradicional, atuante no seu passado com sua família
de origem ou no passado da sua família de procriação, assim como no presente, na
situação de separação e na forma como a sociedade gaúcha articula as dimensões
tradicional/moderno no espaço da família.
CAPÍTULO 6

CONFRONTO DE IMAGENS FEMINAS NA MATERNIDADE

Visto do exterior (e não percebido, pois a percepção torna inseparáveis exterior e interior),
o corpo feminino recebe um conjunto de atributos derivados de seu mais imediato: a
maternidade.

M. Chauí. Participando do debate sobre mulher e violência.


MATERNIDADE EM CONFLITO: INDIVÍDUO/PESSOA

A discussão a ser desenvolvida neste Capítulo remete à observação de que, para o


grupo pesquisado, o domínio social da maternidade no espaço da separação, surge
associado a dois modos diversos na prática, e a representações da trajetória social das
mulheres descasadas. O primeiro refere-se à essência da natureza feminina, na qual a
mulher está encompassada, sendo em função desta natureza que se constituem os limites
do exercício da maternidade. O desempenho do papel de mãe representa, então, a captação
de sua essência - maternidade imanente. Em segundo lugar, a maternidade é representada
em termos das noções de escolha e individualidade, considerando-se, no processo de
reprodução, a condição feminina na esfera familiar e o desenvolvimento, então, da ideia de
liberdade, de opção pela maternidade, tornando-a uma construção individual - maternidade
projetada58.
A análise que se constrói para a maternidade articula algumas reflexões sugeridas
por Duarte (1983) a respeito das oposições entre pensamento moderno e visão de mundo
tradicional, aplicando-se ao estudo do sistema de representações, veiculado aos laços de
parentesco e papéis sexuais na maternidade, e suas implicações na constituição da
identidade social feminina e na formulação das fronteiras culturais no espaço social da
família. Unem-se às ideias deste autor, os conceitos como os de maternidade projetada e
maternidade imanente expressos no Capítulo 1 – Orientação Teórico-Metodológica,
especificamente, no que se refere à determinação do gênero, oriundos de outros autores
representativos do pensamento moderno (Sartre, 1978; Weber, 1980) que ajudam as linhas
interpretativas desta análise.
Em parte, esta abordagem propõe a discussão específica do espaço social da
maternidade como um lócus privilegiado para o estudo das relações de parentesco como

58
Remete-se aqui à leitura das obras: “O Existencialismo é um Humanismo” J.P. Sartre, 1978 e “Sociologia
da Religião”, M. Weber, 1980, que dão origem a ambas as conceituações - maternidade projetada e
maternidade imanente. A partir dos conceitos de projeto - referido à condição humana em termos de
transcendência, liberdade e escolha, ou em oposição à ideia de essência da natureza humana (SARTRE,
1978) - e de imanência - considerada em função das noções de mística, contemplação, captação de divino,
que se opõem à de transcendência (ação, racionalidade, disciplina) - constrói-se as imbricações entre uma
forma moderna de se pensar a maternidade na delimitação da identidade social feminina e outra mais
tradicional.
“um todo hierárquico” (Abreu, 1982, p. 149). Ou seja, primordialmente, percebem e atuam
neste domínio em função de uma lógica hierárquica para os papéis sexuais.
Por outro lado, a construção social do espaço da maternidade, para as mulheres
descasadas, encontra-se sujeita a uma lógica mais individualista, onde especificamente, o
desempenho da maternidade passa a conter o germe da individualidade feminina, de
acordo com a concepção construída para a singularidade do sujeito feminino59. Nos
depoimentos, a ocorrência de ambas as instâncias de representações e vivências no
desempenho do papel de mãe retoma parte da análise feita no capítulo antecedente, onde
se aborda a política sexual na família das interlocutoras, seus fundamentos morais frente
ao jogo de situações tradicional/moderno e onde se afirmam, de modo recorrente, as
oposições hierarquia/igualitarismo e holismo/individualismo.
Parte-se do suposto da existência concomitante de diferentes modelos de
representações dos papéis sexuais e laços de parentesco no contexto da família,
considerando-se a dimensão de modernidade que perpassa o grupo pesquisado, assim
como as contradições e especificidades da sociedade gaúcha, como parte da sociedade
brasileira, em função de modelos tradicionais, e/ou modernos que contém no seu interior.
Na medida em que as mulheres que foram ouvidas se encontram experienciando um
processo de separação, que de modo geral está associado ao espaço da modernidade,
torna-se relevante discutir os limites desta experiência em função do papel de mãe, o qual
estas continuam desempenhando dentro da esfera familiar. Neste sentido, é importante
analisar os diferentes matizes que assumem as representações hierárquicas e igualitárias
dos papéis femininos na divisão moral do trabalho na família, tendo em vista o processo
da maternidade na trajetória social das mulheres aqui ouvidas e sua relevância para a
construção social das suas identidades de sexo-gênero.
Considera-se o fato da separação ter implicações na forma como se estruturam as
representações femininas na esfera familiar, na divisão moral do trabalho e no seu ethos e
visão de mundo. O espaço da separação é visto, assim, como uma das instâncias que
realiza parte do processo de alteração no modelo familiar, reorientando, até certo ponto,
seus pressupostos hierarquizantes. Trata do estudo do espaço social da maternidade e da

59
Quanto à discussão da condição feminina na maternidade, considera-se relevante estudá-la no espaço
social da separação, do ponto de vista de um sistema de categorias e imagens coletivas constitutivas da
experiência feminina em grupos e culturas diferentes (CAVALCANTI, M. L. et al, 1981, p. 09). Neste
sentido, a análise da condição feminina no grupo pesquisado é inserida no estudo do próprio movimento de
constituição do Sujeito Moderno. Inspirando-se aqui, nos estudos de Duarte (1983), a discussão do espaço
social da maternidade permite uma reflexão sobre Pessoa e Modernidade, dentro da qual, também se insere a
problemática da construção social da identidade feminina.
análise da forma como o grupo pesquisado realiza, neste âmbito, estas metamorfoses e,
ainda, do conteúdo que constrói suas representações e práticas familiares, a partir da
vivência de um processo de separação.
Através do estudo da maternidade, no caso da separação, propõe-se entender a
forma como os fundamentos morais da família, do grupo em questão, sofrem adaptações e
variações ou são contestados. Busca-se captar os seus reflexos, por um lado, na noção de
honra familiar, e por outro, na construção de variações de um individualismo feminino.
Para cada caso, retoma-se a discussão de uma lógica holista e outra individualista, no
âmbito das relações de parentesco e na constituição dos espaços morais dos sexos. Segue-
se a linha de indagações que Durham (1983, p. 31) confere ao conceito de família, onde a
autora remete a discussão prioritariamente ao modelo cultural e a sua representação.
Torna-se necessário, então, analisar em que medida as variações correspondem a
adaptações ou extensões do modelo e até que ponto implicam sua contestação (Durahm,
1983, p . 31). A ideia central a ser desenvolvida concebe, dentro do ethos familiar que as
interlocutoras, em sua maioria, partilham importante papel à noção de honra, assim como
confere à maternidade significativa função na reconstrução da moral feminina face ao
espaço modernizante da separação. Concebe-se aos laços mãe-prole a importância de
reconstituir, após a separação conjugal, os fundamentos morais da natureza feminina do
grupo pesquisado, no sentido de neutralizar as inversões ocorridas com este grupo, tendo
em vista a desarticulação do espaço familiar. Trata-se aqui, do ponto de vista do código de
honra, da cisão do núcleo central da constituição da identidade feminina, ou seja, da
dissolução da categoria social “esposa-mãe”60.

1 – “ESPOSA-MÃE” – A NATUREZA MORAL DO GÊNERO FEMININO

Na análise a ser realizada, é necessário o resgate de algumas questões do código de


honra e da construção dos fundamentos morais da família, mais específicos às relações
femininas de parentesco e a formulação dos papéis sexuais neste domínio. Em termos
gerais, considera-se a presença de uma politica sexual na família que atribui um valor
diferenciado às qualidades morais dos sexos, conforme o que se discute nos capítulos
anteriores e que compõem, no grupo pesquisado, os fundamentos morais dos sexos,
60
Utiliza-se, neste capítulo, a tese central do artigo de Aragão (1983), “Em nome da Mãe”, onde o autor
afirma ser a categoria estrutural “esposa-mãe” o centro focal do sistema cultural brasileiro. Ou seja, tem-se,
aqui, uma matrifocalidade estrutural. Neste sentido, ele sugere que o centro ético dos valores culturais no
Brasil se encontra localizado na família, na mãe, em última análise (p. 138).
atuando no espaço social das relações de parentesco. Especificamente dentro do quadro
cultural e social do grupo em questão, percebe-se a presença da posição estrutural
feminina na família, traduzida no que Aragão (1983, p. 114) denomina a categoria focal
'esposa-mãe', isto é, há uma sobreposição destas relações de parentesco, e ela é
significativa de uma posição (logos estrutural) à qual se aloca um valor (logos cultural)
'sacralizado'.
Em princípio, percebe-se, então, uma relação entre a política sexual no espaço
familiar, orientada em função de um código de honra, e o estabelecimento e ordenação
moral dos papéis sexuais neste espaço, demarcando e hierarquizando a natureza das
diferenças sexuais. Desta forma, tem-se, como consequência, a constituição de uma escala
de valores diferenciada de acordo com cada sexo e fundada na natureza moral dos laços de
parentesco, que acabam por se sobreporem aos papéis sexuais e a divisão moral de
trabalho na família61. Recordando algumas considerações feitas por autores que estudam
sociedades pertencentes ao “complexo mediterrâneo” (Pitt-Rivers, 1968, 1979; Peristiany,
1968; Campbell, 1968, Bourdieu, 1968, etc.), e observando que alguns estudiosos da
cultura brasileira a encaixam no interior deste complexo (Da Matta, 1979; Aragão, 1983,
1980; Abreu 1982, 1983), verifica-se um quadro muito preciso, no qual as representações
que as mulheres descasadas s fazem do papel feminino na família são passíveis de serem
integradas.
De acordo com os primeiros autores, há uma distribuição de qualidades morais
entre os sexos no domínio familiar, tendo por base, o que Pitt-Rivers (1979, p. 121)
denomina divisão moral do trabalho, e que, por sua vez, postula ser o poder masculino
aquele oriundo do mundo exterior, enquanto o feminino se refere ao mundo interior,
incluso de sus cuerpos. Assim, a honra feminina reside na reputação social, tendo em
vista, a sua conduta sexual. Isto afeta, particularmente, a honra familiar, campo através do
qual se constitui a honra masculina62. Logo, a falta de castidade nas mulheres pões em
perigo a honra da familia, o que, por derivação, implica a vulnerabilidade da honra
masculina face as ações das mulheres de sua família sejam elas mães ou irmãs. Neste

61
Retoma-se, aqui, a discussão levada a efeito no Capo V - Casamento x Separação - Os fundamentos
morais e a política sexual na família - que se orienta seguindo algumas das afirmações feitas por Pitt-Rivers
(1979), em função dos seus estudos sobre os fundamentos morais da família nas sociedades pertencentes ao
complexo mediterrâneo.
62
Para um aprofundamento da implicação da reputação feminina sobre a honra familiar e, como
consequência, sobre a honra masculina, ver os estudos feitos no Brasil por Abreu (1981, 1982, 1983) e
Aragão (1983). Com relação à origem desta discussão nas sociedades mediterrâneas, ver Pitt-Rivers (1979,
1968), Peristiany (1968), Campbell (1968) e Bourdieu (1968), onde estes autores abordam a importância da
honra e da vergonha feminina para o grupo familiar e para os homens que dele fazem parte.
contexto, as mulheres são apontadas como “depositarias” dos aspectos moral e sagrado do
domínio familiar. A honra feminina reside, assim, na sua sexualidade, mais
especificamente, em função de um comportamento sexual comedido e modesto. A honra
familiar, e, em contrapartida, a honra masculina, assenta-se, então, no valor atribuído a
pureza feminina, conduzida por uma moralidade sexual.
É neste campo de discussão que se encaixa a noção de honra-virtude no caso das
mulheres, onde se acentua a noção de honra derivada de uma posição de virtude ligada à
conduta sexual comedida. Isto difere, segundo estes autores, da abordagem sobre a honra
masculina, uma vez que, segundo eles, esta constrói-se em função de uma honra-
prioridade constituída em fazer valer os seus direitos sexuais (Pitt-Rivers, 1979, p. 69), ou
seja, da precedência sexual. O importante para este estudo do espaço social da separação é
que a honra-virtude das interlocutoras, para se manter, necessita da noção de vergonha,
que, atuando na sua conduta sexual, impede-a de destruí-la. Logo, a honra-virtude se
caracteriza por ser algo que não é conquistado, ela é, sim, mantida através da iniciativa
feminina, na busca da realização de um padrão moral em função do “nome da família”.
Especificamente após a separação, este código moral passa a se constituir
predominante em função da prole e das implicações morais da conduta sexual das
mulheres descasadas nessa esfera comportamental. Estas considerações podem ser
indicadas no conteúdo expresso por alguns testemunhos recolhidos em campo: “Eu me
dedico ao meu filho. Eu sempre penso em primeiro plano no meu filho. Tem mulheres que
tem o seu lazer e não querem nem saber. Eu não! Só faço programa se ele sai com pai.”
Ou ainda: “Eu assumi, sou o pai e a mãe dos meus filhos. Muito difícil, muito doido. As
vezes gostaria de chorar, de mostrar minhas fraquezas…mas eu não faço isso porque eles
precisam de uma força maior. Se eu começar a fraquejar também eles não vão ter onde se
apoiar”.

Assim, os aspectos da natureza moral dos sexos e a construção dos gêneros


masculino e feminino possuem seu fundamento, para o contexto cultural analisado, no
domínio familiar e na divisão moral do trabalho no seu interior, que estabelece de modo
“natural” as características das relações de parentesco e dos papéis sexuais num universo
fundado na noção de honra, que, em última instância, se afirma sob uma lógica
hierarquizante. Considera-se aqui, no interior das representações e práticas do grupo
pesquisado e em função da ideia de família, a existência de qualidades que, em princípio,
são eticamente neutras, como honra e vergonha, e que se constituem, na vivência familiar
das mulheres descasadas, em ingredientes necessários às qualidades, vinculadas com um
sexo ou com o outro (Pitt-Rivers, 1979, p. 44), recebendo, neste contexto, um valor ético.
O espaço da separação, atuando nas relações de parentesco mãe-prole, reconstitui parte
desta problemática, já descrita no capítulo anterior, em função dos domínios sociais do
casamento e da separação e seus reflexos num código de honra familiar, acentuando o
deslocamento das questões de honra-virtude feminina no exercício da maternidade e no
desempenho do papel de mãe como garantia daquela virtude feminina.

2 - A CONSTRUÇÃO MORAL DA ESPOSA-MÃE – SUAS CONTRADIÇÕES E


CONFLITOS

Segundo Aragão (1983, p.124-5), percebe-se no discurso moral do brasileiro que


os papéis femininos de esposa e mãe, na esfera familiar, implicam a renúncia a uma
sexualidade que nasce e morre praticamente latente, já que um dos princípios do sistema
ê justamente o corte radical entre função maternal, ou de reprodução, e prazer sexual).
Para o mesmo autor, há uma relação simbólica entre ambos os papéis, esposa e mãe, dada
na imagem da devoção e do sacrifício que os formam. Na mesma linha, Abreu (1983, p.
99) também reconhece que os papéis de esposa e mãe envolvem renúncia à sexualidade,
isto porque, tendo por base a tradição cristã, a mulher é pensada como “inferior” ao
homem. O papel da esposa busca um controle da sexualidade feminina, uma vez que
associada às tentações da carne - sem a proteção e controle masculinos, a mulher se
rende à sua sexualidade e se expõe a tentação do demônio (Abreu, 1983, p. 81-2). Coloca-
se na base destas representações a ideia da natureza da sexualidade feminina como algo
disruptivo, sendo isto, uma constatação basilar para as representações que organizam as
relações entre os sexos na cultura mediterrânea.
O casamento, veículo através do qual se estabelecem núcleos familiares,
representa, portanto, uma forma de domesticar esta natureza, colocando-a sob a “guarda”
masculina. A mulher, no papel de esposa, está sujeita à submissão do controle do
casamento (Abreu, 1982). Logo, o “discurso moral” acompanha uma divisão de papéis
sexuais na família, onde surge a construção social dos gêneros masculino e feminino,
tendo por base, as diferenças biológicas. Para tanto, aponta-se uma afirmação de Durham
(1983, p. 17), onde a autora, comentando os espaços sociais de ambos os sexos de acordo
com a lógica desta divisão sexual do trabalho, percebe a atuação de códigos morais
diferenciados para cada sexo e onde demonstra a existência de duas esferas bem
delimitadas dos papéis sexuais: a esfera pública, eminentemente masculina, associada à
politica e à guerra, e uma esfera doméstica, privada, feminina, presa à reprodução e aos
cuidados com a criança. Segundo a autora, em função da reprodução humana, a família é
constituída através de uma politica sexual, o que demonstra, claramente, o fato de que este
espaço organiza, orienta, modifica, ressalta ou suprime características que possuem
fundamentação biológica (Durham, 1983, p. 17). Nesta organização e orientação, surgem
os papéis sexuais e as relações de parentesco na família que atribuem responsabilidades e
direitos específicos diferenciados para homens e mulheres.
Parte deste processo, portanto, ocorre em função dos padrões sexuais, aliados à
conduta e características de cada sexo, onde a cultura atua no sentido do controle e da
normatização. O casamento, como uma destas agências nômicas, atua no que se refere à
fidelidade conjugal, mais restritamente à fidelidade conjugal, mais restritamente à
fidelidade feminina63. Especificamente quanto aos valores e concepções tradicionais, em
oposição ao moderno, no ambiente da família, a organização dos padrões sexuais, segundo
princípios hierárquicos, propõe a função provedora para o homem e, para a mulher, a
função nutriente, ligada, basicamente ao desempenho e cuidados com a prole.
Segundo Oakley (1976, p. 221), esta divisão sexual do trabalho, e mais
especificamente, a maternidade, funcionam, neste contexto, como mitos que definem o
lugar da mulher na família, assim, os mitos atuam no sentido de confirmar a
domesticidade das mulheres em uma duradoura identificação psicológica do feminino com
o mundo interno da casa. Sob esta ótica, o mito da maternidade64 conserva a mulher na
esfera doméstica e sugere a importância do casamento como intrínseco a esta “vocação”,
ou seja, desde a infância as mulheres são levadas a ter filhos e não necessariamente a
casar. Casamento é aceito posteriormente como uma legitimação do desejo de procriar (...)
(Oakley, 1976, p. 191)65. Assim como E. Durham, Oakley (1976: 186) percebe que existe
uma profunda vinculação dos papéis sexuais com a questão da reprodução humana, seu

63
A ideia, aqui, é sugerir que o casamento, enquanto agência nômica (RUSSO e SANTOS, 1981), torna-se
produtor de leis e regras que orientam a conduta sexual feminina a partir de um código de fidelidade, sendo
que seus agentes percebem-no como algo dotado de sentido. Isto está expresso na neutralização dos
caracteres mais manifestos da sua sexualidade (ARAGÃO, 1983), dada em função do casamento.
64
Para Oakley (1976, p. 156), a noção do mito, aplicada em seu estudo sobre o trabalho feminino no lar e as
ideologias da domesticidade feminina, significa a purely fictitions narrative (...) emboyding some popular
idea concerning natural or historical phenomena. Assim, os mitos sobre o lugar da mulher na sociedade
provides the rationale for the ideology of gender roles in which femininity and domesticity are equated.
65
Conforme se vê, esta autora estabelece uma significativa vinculação da constituição do mito da
maternidade com a estruturação específica do espaço social do casamento. Isto é particularmente apontado
por Aragão (1983), quando descreve a forma como as categorias sociais centrais - esposa e mãe – se acham
definidas no interior da instituição “casamento” e o seu modelo de “relações intersexos”.
estudo do mito da maternidade leva-a a concluir que a posição da mulher na família é
fundada em sua maternidade, agora e para sempre, o que conduz à afirmação de que a
sua função, no espaço social, é uma validação do status quo. De certa forma, as
apreciações desta autora são constatadas agora, sob outra ótica, quando Durham (1983, p.
04), comentando as metamorfoses no modelo familiar a partir de alterações numa ordem
econômico-social, mais especificamente, com a industrialização, conclui que, o mundo
moderno não apenas divorcia socialmente a produção da reprodução, mas inclui
simultaneamente a mulher nas duas esferas, a pública e a privada, de modo contraditório.
A associação da reprodução do papel feminino retém, de alguma forma, a desigualdade,
agora com novas e sugestivas contradições: presente à noção de igualdade como indivíduo
na esfera do mercado e a desigualdade enquanto mulher, ancorada nu esfera doméstica
da reprodução.
Novamente, aqui, retoma-se para o espaço familiar, a discussão levada no capítulo
anterior, ou seja, verifica-se a presença de dois códigos, o da honra e o universalista,
percebendo-se que a manutenção do primeiro se deve, sobremaneira, à vinculação da
mulher - enquanto reprodutora - ao mito da maternidade, que continua afirmando sua
naturalização - assim, se o papel da dona de casa e o papel mulher são capazes de
mudança, o papel materno não o é (Oakley, 1976, p. 186)66. De outra forma, neste ponto,
se introduzem as palavras de Oakley (1976, p. 188) para exemplificar estas considerações
sobre a dimensão moral da maternidade e a forma como atua na constituição do gênero
feminino: ser feminina significa ser, ou querer ser, mãe: rejeitar a maternidade significa
tornar-se masculina. O que, por sua vez, contraria a natureza moral dos sexos não apenas
na família, mas na sociedade. Entende-se que sua constância se assenta nas características
morais que a maternidade possui para a constituição da esfera familiar e na forma como o
seu desempenho define os espaços morais e legítimos dos papéis sexuais na cultura
mediterrânea.

3- MATERNIDADE: NATUREZA X CONDIÇÃO

Do ponto de vista de um ethos de modernidade, a reprodução, no espaço da família


das parceiras dessa pesquisa, estabelece alguns importantes impasses para a proposta da

66
Para ampliar a discussão da naturalização das relações de parentesco, ver Woortmann (1977) e Abreu
(1982, p. 97), onde, este último, afirma a importância de se considerar o parentesco - aqui tematizado nos
laços mãe-filho - como sistema simbólico não necessariamente circunscrito ao parentesco biológico, nem a
um domínio do parentesco definido a „priori‟.
liberdade sexual e igualdade entre sexos (evidenciado principalmente no grupo de status
B). Os impasses são criados em torno de algumas das representações dos papéis sexuais
para o espaço do igualitarismo e individualismo nas relações conjugais, face às normas
tradicionais67. Trata-se, a seguir, do estudo da forma como se compõe esta “tendência”
igualitária na relação conjugal, enfocando a sua alteração face à situação de separação,
relacionando-a ao código moral da família e à natureza moral do gênero feminino, e,
ainda, a forma que adquire o espaço social da maternidade neste contexto, frente às
representações individualistas destas mulheres.
A maternidade, então, pode ser vista dentro de um contexto individualista, como
uma singularidade a ser “trabalhada”, no sentido destas mulheres surgirem, frente aos
homens, como “individualidades”. Neste caso, a desigualdade social entre sexos se
apresenta, não na função reprodutora, mas sim, no espaço familiar, ou seja, está ancorada
na esfera doméstica da reprodução (Durham, 1983, p. 34). Desfaz-se a associação entre
esta desigualdade e as características da natureza biológica dos sexos. Constrói-se, assim,
espaço para o surgimento da ideia da condição feminina, afastando-se a vinculação da
identidade feminina aos condicionantes da sua natureza biológica.
Neste campo, a maternidade constitui-se, primordialmente, como o suporte da
identidade social feminina, enquanto algo que é singular à sua condição, dada no culto ao
eu feminino (Duarte, 1983), através da redefinição do que seja sentimento de maternidade.
De modo complexo, este movimento também é capaz de construir, além do indivíduo
singular, o indivíduo genérico do sexo feminino, através de uma lógica igualitária e
aplicando-se aí, uma moral universalista para a definição dos papéis sexuais.
omo a discussão deste tópico posiciona a maternidade enquanto um discurso sobre
natureza face à condição feminina, é importante considerar, nesta problemática, a noção
moderna de liberdade aplicada à construção social da identidade feminina. Aqui, ressalta-
se a observação feita por Chauí (1985, p. 46), onde a autora comenta: A construção
moderna da ideia de liberdade partiu da distinção entre finalidade externa e finalidade
interna, somente a segunda sendo compatível com a liberdade. A primeira existe, por
exemplo, quando a biologia falava numa força vital que comanda os processos de vida de
longe e de fora (como um general comanda seus exércitos)... A finalidade interna, ao

67
A proposta de se entender os limites que o espaço social da maternidade propõe para o desempenho dos
papéis sexuais na família, ao nível do casal e em função das vinculações tradicional/moderno, se reflete no
artigo de Azevedo (1981a, p. 22), que demonstra a importância de se perceber as instituições como
totalidades sempre sujeitas a serem vistas e decompostas para análise em partes, em traços, em elementos e
componentes „dinâmicos‟.
contrário é imanente à própria ação que se dá fins a si mesma e que as alcança por si
mesma, graças às atividades interiores e exteriores que realiza. Neste ponto, aborda-se a
educação para a maternidade como habitus, capaz de estruturar na mulher uma “matriz de
significações” geradora de um sistema de percepções e disposições, o qual, por sua vez,
também está associado ao corpo e às características biológicas do sexo feminino, sendo
capaz de fundar, de modo exemplar, características morais para este sexo, num processo
que de qualquer modo, busca a naturalização da cultura, que tanto pode se dar através de
uma dimensão holística, como noutra mais individualista68.
Novamente reportando-se a Chauí (1985), o que se revela no grupo pesquisado é
que a maternidade construída, seja através de uma visão de mundo tradicional, seja no
próprio pensamento moderno, retoma a encruzilhada paradoxal entre a Natureza e a
Cultura. Assim, percebe-se uma associação da maternidade ao feminino através do corpo
cujo sentido é outorgado por um pensamento, por uma vontade e por práticas que nele e
sobre ele investem ideologias, isto é, um imaginário social de dissimulação e de
ocultamento (p. 45).
No caso deste habitus, ele vincula o ethos feminino, por um lado, ao espaço dos
laços de parentesco e papéis sexuais no interior da família, tendo por referência sua
dimensão encompassadora da vocação da maternidade que obedece a uma lógica
holística, ou seja, ao instinto e amor materno, formas de controlar e reprimir a sexual
idade feminina (...) (Chauí, 1985, p. 45) ordenando-a dentro dos fundamentos morais da
família. Por outro lado, em determinadas circunstâncias, quando associado ao espaço do
sujeito - da “subjetivação” - tornado aqui em sua referência á noção de indivíduo singular,
segue uma lógica mais moderna. Neste sentido, a constatação, nos testemunhos das
mulheres desacasadas (em particular ao grupo B), da qualificação da mulher enquanto
sujeito sugere que isto se dá através da construção de finalidades 'internas' a partir do
exterior (Chauí, 1985, p. 46), num movimento que obedece à construção do sujeito
moderno.
Tem-se claro que, no discurso da maior parte das falas, a maternidade e suas
representações podem aparecer como condição, acompanhadas de momentos de reflexão e
68
A aplicação restrita deste conceito, no sentido de dimensionar o componente moral da socialização para a
maternidade, considerando-se a tão comentada posição estrutural da categoria mãe no Brasil, tem suas
razões no fato dela atuar como princípio estruturalmente unificador e gerador (BOURDIEU, 1982) das
práticas femininas no campo dos papéis sexuais e laços de parentesco. Este habitus é responsável pela
transferência e durabilidade dos fundamentos morais na família e na sociedade.
A noção de habitus, portanto, enquanto um sistema de esquemas de apreciação, de pensamento, de
apreciação e de ação (BOURDIEU, 1982, p. 47), auxilia no processo de desenvolvimento do ethos em suas
articulações com uma visão de mundo.
subjetivismo. Ou, ao contrário, com base na emoção encompassadora do “amor materno”.
No entanto, ambos os tipos de depoimentos apontam para um processo de naturalização -
culturalização da relação mãe-prole, seja pela ideia de sangue, seja de instinto69. No caso
da “vocação materna”, o desempenho do papel de mãe se apresenta como algo imanente
(auto-evidente). Entende-se que isto ocorre devido às vinculações que as mulheres
descasadas fazem do “amor materno” com a ideia do biológico, em função das noções de
sangue e raça.
Sugere-se, neste caso, uma aproximação com observações do seguinte teor:
sangue, enquanto categoria integra o elemento natural – a substância que corre nas veias
– num contexto de significados que o transforma em categoria de pensamento que,
i g iz f i ” (Abreu, 1980, p. 130). A categoria
sangue no para o papel de mãe articula o individual com uma totalidade: a família
(Abreu, 1982, p. 138) e, neste ponto, a noção de sangue também remete ao parentesco
como uma ideologia, ou seja, ela indica a construção social do sentimento de parentesco
(Woortmann, 1976). A maternidade, na sua acepção imanente, está recoberta pela ideia da
natureza biológica. E entendida aqui enquanto um fenômeno natural, que possui uma
dimensão moral (cultural), aceitando o fato de que é difícil pensarmos o indivíduo
biológico como um indivíduo moral sem referi-lo ao todo (Abreu, 1982, p. 138). A
totalidade encarada aqui é o espaço da família e dos seus fundamentos morais dos sexos,
assim como a forma como se constitui um aspecto do habitus feminino.
Nesta dimensão, a reprodução, para o grupo pesquisado, representa não apenas sua
condição biológica na espécie, pois ela é constitutiva da própria essência feminina no
interior da família, estabelecendo fronteiras significativas entre os sexos, e dando à estas
diferenças biológicas um caráter, um tom, uma moral. Logo, o “amor materno”, enquanto
algo imanente, destinado ao amor do e pelo particular: seu filho, seu marido, seu pai, sua
casa, seu fogão, seu tricô, seu bordado, seus álbuns, seu jardim, seus vizinhos, etc.
(Chauí, 1985, p. 45). É interessante observar como as mulheres do grupo B relata a
experiência da maternidade: “Eu sempre procurei o significado das coisas. Mas não me
pergunto o „porque‟ dos sentimentos com os meus filhos, não é? É a coisa mais importante

69
Entende-se, aqui, uma diferenciação qualitativa entre as noções de sangue e instinto, conforme abordagem
feita por Abreu (1982) e Duarte (1983).
Segundo o primeiro autor, (1982, p. 137) através do sangue uma moral é transmitida e perpetuada de forma
que um individuo tem sempre algo do outro, nunca é uma individualidade autônoma. Por seu turno, Duarte
(1983, p. 23), ao analisar a constituição do Sujeito Moderno em função da “Cultura do Ego”, entende a
noção do instinto sexual como ponto onde se articulam os temas antes acompanhados da „natureza humana‟,
tornando-se fonte da legitimidade daquele sujeito.
da vida, do mundo... são os seus filhos”. Ou então: “Acho que ter filhos é uma coisa
importante. Ela faz parte da natureza”. E ainda: “A coisa mais importante da vida, do
mundo, para mim são os filhos. Não acho que é a única coisa que vou fazer, mas é a mais
importante”. Referenciando-se a Oakley (1976, p. 196), o mito da maternidade se compõe
de três princípios básicos. O primeiro é o mais influente: a de que as crianças precisam de
mães. O segundo é o de observar o seguinte: que as mães precisam de seus filhos. A
terceira afirmação é uma generalização que sustenta que a maternidade representa a maior
conquista da vida de uma mulher: os únicos verdadeiros meios de auto-realização. As
mulheres, em outras palavras, precisa ser mãe.
As duas primeiras assertivas são singularmente importantes para explicarem os
depoimentos quando eles relatam os motivos que as levam à maternidade, onde esta é
percebida como uma essência70: “Eu já sabia que ia ter filhos”; “é uma coisa de bicho,
né?”; “ter filhos fazia parte natural do casamento”, ou ainda, “aí então, minha vida estava
completa” (referindo-se ao nascimento do filho). É neste momento que se identifica, nos
depoimentos, o código da maternidade em função da família e a constituição da função
nutriente feminina, tomada enquanto natureza. Trata-se da capacidade de gerar a vida,
revelando sua função nutriente (ABREU, 1983, p. 91).
Esta função nutriente implica a presença do atributo masculino complementar ao
espaço feminino na família, isto é, a figura do provedor, do marido. Aí se coloca a
importância da diferenciação da reprodução para homens e mulheres, pois, no depoimento
das mulheres, estes aparecem como pessoas que são “aliciados” à paternidade,
independendo dela para a realização da natureza moral masculina. Por outro lado, afirma-
se o que é dito anteriormente a respeito da relevância do casamento como forma de
legitimação do “sentimento de maternidade” e, logo, da essência da natureza moral
feminina. Segundo Oakley (1976, p. 192), é possível constatar esta dimensão no mito da
maternidade quando a prole atinge a idade da independência.
Ao se fazer um corte analítico nestas instâncias, importa observar como ambos os
momentos se constroem separadamente, porém, numa íntima vinculação. Primeiro, sobre a
importância da figura do provedor como algo complementar à natureza moral do feminino
na maternidade: “O R. achava que não estava apto. Mas eu acho importante um filho na
vida de um homem e de uma mulher. Tenho pena do casal sem filhos. É como uma

70
A recorrência, por parte das interlocutoras, da ideia de destino e vocação para a maternidade, recoloca a
discussão proposta por Abreu (1982, p. 117), onde o parentesco é percebido numa dimensão
encompassadora e, portanto, não possibilita uma focalização do indivíduo enquanto unidade significativa.
Isto pode ser aplicado no caso das relações de parentesco mãe-prole no grupo analisado.
anomalia. Não tem raiz, está solto”. Ou então” “ certa altura decidi que nós teríamos um
filho, acho que na ocasião ele também achava isto maravilhoso, né?” A presença iminente
da separação pode expressar problemas na associação, inicialmente feita entre a
maternidade e a paternidade e o casamento. A respeito do assunto uma das interlocutoras
deixa claro que, embora pense na separação, não pretende “sair do casamento com um
filho só, assim, engravidei, e decidi que seria melhor me separar quando a criança já
tivesse nascido. Achava que seria muito ruim enfrentar toda esta situação grávida”. É a
presença dos laços de parentesco legitimados pelo matrimônio que atribuem a um homem
determinado, durante o casamento, ou após a sua dissolução, a responsabilidade para com
a prole de cada mulher (Durham, 1983, p. 22), o que garante a atuação provedora
masculina na família mesmo com a separação. Assim, apesar de ligadas aos fundamentos
morais dos sexos, algumas estruturas da divisão do trabalho tendem a permanecer mesmo
após a separação do casal.
Observa-se, agora, no grupo estudado, como se forma a figura do provedor quando
a maternidade imanente se efetiva, e vem estabelecer, concretamente, os laços
exclusivistas mãe-filho. Neste momento, deve-se verificar o distanciamento da figura do
pai, existindo, mais especificamente, a figura do marido provedor. E o momento em que a
mulher se fecha sobre o(a) filho(a) numa relação simbiótica (Salem, 1984), em que é
excluída a figura do pai, restando ao homem o desempenho da manutenção da família71:
“Daí quando eu fiquei grávida, pronto. Não me interessava mais nada. Por mim o G. não
existia mais, não ligava mais para o que ele fizesse.” Ou então, conforme outro
testemunho: “Eu supervalorizei a maternidade. Cada vez mais não me importava com D.
Estava plena!”. Ou então: “Eu não pensava em „nós dois vamos ter um filho‟ não! O filho
era meu comigo mesma. Não tinha nada a ver com ele. Eu queria para mim, e não queria
mais nada com ele”. Aqui, o nascimento dos filhos atua mais na divisão do casal do que na
sua constituição como uma unidade central, pensada como família. Isto é praticamente
dominante no caso do grupo A.
No grupo de status B, que busca uma reconstrução dos papéis familiares num novo
projeto familiar com base num ethos mais igualitário, o nascimento dos filhos ressalta, por

71
Esta ideia é incorporada de um artigo de Salem (1984, p. 15), no qual a autora comenta o relacionamento
de casais após o nascimento dos filhos, considerando-se a moderna noção de casal gravido (CG), ou seja, a
noção de gravidez como uma experiência a dois. Neste mesmo artigo, Salem delimita a noção psicanalítica
de simbiose entre mãe-filho enquanto sentimento que alude à dificuldade de delimitar fronteiras entre duas
identidades.
Para este caso, importa discutir a noção de simbiose dentro do contexto do mito da maternidade proposto por
Oakley (1976).
seu turno, uma segregação e hierarquização das relações familiares no nível do casal. Cabe
registrar que o nascimento dos filhos (mais especificamente no grupo A) ocorre, segundo
depoimentos, em uma situação de “marasmo” e “estagnação” da vida familiar, das
relações do casal, quando não em situação de profunda crise conjugal. Isto é acompanhado
por representações do tipo: “Quando eu engravidei não estava acontecendo nada no meu
casamento”. Ou então: “Decidi que teria um parto lindo, um parto maravilhoso, sozinha.
Não queria que o G. estivesse junto. Não queria dividir isto com ele.” Estes depoimentos
demonstram que, em situações de crises conjugais, a imagem da mãe não se mantém
próxima daquela descrita na etnografia de Campbell a respeito das sociedades
mediterrâneas, segundo a qual a mãe é o foco material e simbólico da solidariedade do
grupo familiar, ela aparece como ser desinteressado, auto-sacrificado e doador de
cuidados protetores (Aragão, citando Campbell, 1983, p. 125). É possível perceber, neste
caso, uma certa excludência entre os fundamentos morais dos papéis de esposa e de mãe,
cada qual atuando em regiões morais distintas.
A seguir há algumas orientações sugeridas por Oakley (1976), onde a autora
aponta para a situação do poder que a mulher ocupa com a maternidade. Neste sentido, nas
mulheres sujeitas a uma situação opressiva ou hierarquizante, a maternidade envolve o
desejo feminino de experienciar o poder e controle na família se mistura ao desejo de ser
mãe e não pode dele ser separado. Assim, desfavorecidas e oprimidas, as mulheres vêem
na maternidade sua única fonte de prazer, recompensa e satisfação ( OAKLEY, 1976, p.
200), Isto, de certa forma, se afirma no depoimento de uma das interlocutoras onde ela diz
que não se importa mais com o marido, pois “tinha agora o meu filho pra pensar.” O
“sentimento de maternidade”, portanto, assume profundas ligações com o controle da
sexualidade feminina na família, sendo um substituto moral para a renúncia da
sexualidade. Isto é, o casamento constrói, inicialmente, limites precisos para a conduta
sexual das mulheres descasadas aqui ouvidas, seja no papel de esposa ou no de mãe. Como
contrapartida, ocorre o amofinamento, o desencanto do pós-casamento e o próprio
desligamento da sexualidade. No caso da maternidade, ela se afirma como a “sexualidade
negada”, se convertendo em “santidade construída”. Este movimento resulta numa
aproximação estrutural entre os papéis de esposa e de mãe enquanto sujeição ao controle
do casamento.
É exemplar os testemunhos das interlocutoras da pesquisa: “Eu me sentia
deprimida, e pensava. Quantas mães será que se suicidam depois de ter filhos? Eu ficava
sozinha em casa. Eu tinha a impressão que jamais voltaria a ser feliz. Eu achava que não
podia ser uma pessoa sensual. Ser mãe era uma coisa assim?” Ou então: “Eu só percebi
claramente este desígnio de ser esposa quando transei com um cara casado. Estava muito
próxima da situação de amante. Daí eu percebi como ele exigia pouco da mulher dele, e
como ela, também, só queria um marido. Eles não tinham assunto, o único assunto em
comum eram os filhos”. Originalmente, se o papel de esposa se desliga do conteúdo
sexual, o surgimento da figura da mãe também obedece a uma lógica de “renúncia à
sexualidade”, agora associada a uma imagem de “devoção e sacrifício”, confundida nos
qualidades da “natureza feminina”, como “ternura”, “paciência”, “sacrifício”, “honradez”.
Logo, é nas relações afetivas presentes ao espaço social da maternidade que a mulher é
levada a assumir a representação do amor desinteressado e sem conflito.
É justo nesta medida que os espaços sociais das figuras de esposa e mãe passam a
configurar conflitos e oposições entre si: a maternidade sendo apontada como parte da
“interioridade” feminina e o papel de esposa visto como algo exterior, um artifício do
poder. No momento, o que está em discussão é a concepção de um papel que implica a
ideia do sujeito feminino, agora no caso da maternidade, frente a outro percebido como
uma imposição social, arbitrário, e através do qual se questiona a condição feminina na
família. Nesta situação conflituosa, a maternidade, por ser considerada algo que possui
uma finalidade interna ao sujeito feminino, torna-se compatível com a ideia de liberdade.
O papel de esposa, por seu turno, se apresenta como uma finalidade externa, logo,
“obrigatório” e “imposto”.
Nos depoimentos fornecidos pelas mulheres descasadas, esta oposição é assim
construída: Tu sentes que tu estás desenvolvendo tuas capacidades. “Não é a maternidade
que tranca a mulher, ao contrário, é o casamento”. Ou ainda: “A maternidade deu uma
reviravolta na minha cabeça. Os sentimentos, a emoção que eu senti por aquela criança eu
nunca senti por ninguém”. O que se contrapõe a afirmações como “eu sinto que eu casei
para ter um marido, ter uma figura, não ser sozinha ou o casamento pra mim é o lugar da
cobrança, não acho que é o lugar do amor. Acho que é o desígnio de ser esposa que a
gente leva”. Na situação de impasses nas relações conjugais, se dissociam os papeis de
mãe e o de esposa. Em termos de uma ordenação por grau, pode-se dizer que a
maternidade encontra maior legitimidade na sua determinação subjetiva do que no
matrimônio, na medida em que se desconsidera seu atributo de interioridade - a vontade. A
negativa da maternidade, neste sentido, se traduz na noção de uma mulher, segundo
Oakley (1976), difícil, estéril e, obviamente, não feminina. Para o grupo de status A, há
uma forte identificação entre maternidade e feminilidade e se torna impensável ter outra
“carreira” que não a de mãe. Aqui, novamente, recoloca-se a questão da percepção que
esse grupo de mulheres formula da maternidade como “vocação”, e como referente à
relação de sangue mãe-filho. Nos limites desta “vocação”, surgem importantes questões ao
longo da biografia das interlocutoras, no exercício da maternidade, em função da
experiência que vai da gestação ao parto e onde estas representações são abordadas de
diferentes formas.
Assim, a presença de um código mais individualizante dos papéis sexuais no grupo
pesquisado conduz à passagem do ser natural ao ser com vontade, onde a
supervalorização da maternidade tende a se tornar componente basilar na constituição da
identidade social feminina. Aliando-se a estas questões os impasses na relação conjugal, as
mulheres excluem os papéis de esposa e mãe, na situação de casamento, o que tende a
redefinir os fundamentos morais da família, colocando em conflito a noção de casal. A isto
se pode somar a questão do controle da sexualidade feminina na família e o desgaste da
relação conjugal frente a um código hierarquizante dos papéis sexuais, com a sua divisão
moral do trabalho na esfera doméstica. Por outro lado, o que predomina no grupo como
um todo é o fato da ruptura da relação conjugal não romper com a ideia de “natureza”
feminina, uma vez que ela continua presente, acima de tudo, na relação mãe-prole, que
restitui e preserva o espaço moral da feminilidade.

3.1-SEPARAÇÃO - A CISÃO NA CATEGORIA SOCIAL “ESPOSA-MÃE”

A separação provoca, inicialmente, uma desarticulação da categoria focal “esposa-


mãe”, acarretando algumas alterações na forma como se constitui moralmente a identidade
social das mulheres descasadas. A noção de vergonha, no ato de assumir publicamente o
status da separação, desvenda, de modo claro, o ônus moral que este espaço acarreta à
maioria das mulheres do grupo pesquisado (mais especificamente àquelas do grupo A):
“No fundo ainda tenho preconceito com a minha situação de separada. No geral eu não
assumo esta condição publicamente, apesar de alguns vizinhos e colegas de trabalho já
saberem do fato.” Ou então: “Eu sempre achei importante a família. Às vezes ainda tenho
grilos do meu filho ser infeliz.” Os testemunhos revelam que elas ocupam um status, em
função da honra, similar ao da mãe-solteira, uma vez que não respondem aos padrões
sociais e à normatividade que ali igualmente cercam a função feminina na maternidade
(Abreu, 1982, p. 124), ou também ao da viúva, pois as mulheres em processo de
separação, na sua grande maioria, retornam à esfera pública, dedicando-se à sua profissão
e passando a lutar e buscar sua sobrevivência, assumindo assim, até certo ponto, uma
prerrogativa masculina, ou seja, passa a ser sumamente masculina em seus atributos
morais; seu lugar na divisão moral do trabalho foi invertida, e, ao se ver despojada de
sua honra (feminina), se converteu em uma figura masculina (Pitt-Rivers, 1979, p . 129).
Há, nestas inversões, uma conotação moral associada à conduta social das
mulheres separadas, pois estão dotadas de atributos simbólicos masculinos e associadas
com um comportamento sexual livre (Pitt-Rivers, 1979, p . 129). Esta sobreposição,
presente nas suas representações, em função dos atributos simbólicos masculinos e
femininos, se verifica na forma como percebem sua atuação na esfera pública, através da
relevância dada a sua atuação profissional. É importante observar-se como isto se expressa
no seguinte depoimento: “Aos poucos fui perdendo esta visão que eu tinha, aquele negócio
que mulher trabalhando tinha que ser um segundo homem”. A separação acarreta,
socialmente, uma redefinição moral do espaço da família, da rede social das interlocutoras
e do seu meio cultural como um todo. Ela propõe o rompimento, de certa forma, com a
ideia de que a mulher só consegue definir-se socialmente através da família, ou seja, como
filha, esposa ou mãe (ABREU, 1982, p. 124-5).
Novamente, o recurso aos depoimentos das interlocutoras dessa pesquisa se torna
relevante para contextualizar estas afirmações, mais pertinentes ao grupo de status B:
“Agora eu me sinto bem, com meus filhos, trabalhando. Faço as coisas como gosto, e
nunca gostei tanto. Pra mim e minha família sou eu e meus filhos: é o meu núcleo. Agora
eu que é possível eu estar só e bem”. Com relação aos fundamentos morais da natureza
dos sexos no espaço familiar, a situação de separação propõe, para a mulher, a ausência
masculina na composição da sua identidade social, fugindo de um modelo de recato,
fidelidade e resignação representado na metáfora da mãe, e que pode ser identificada ao
amálgama ideal lógico que recobre a categoria prostituta (Aragão, 1983, p. 139).
Utilizando uma expressão de Abreu (1983), a separação propicia uma abertura excessiva
na composição da identidade social feminina e atua no espaço sacralizado do lar,
transformando a família - constituída pelas mulheres com os filhos - em um tipo de família
excessivamente feminina, cujos membros estão excessivamente abertos e expostos ao
mundo, ainda dentro da ideia da proteção masculina à honra familiar (Abreu, 1983, p. 82).
Presente a estas questões encontra-se a recuperação da sexualidade do corpo por
parte das interlocutoras, com derivativos na discussão da “ameaça suplementar” à honra
feminina e familiar. O depoimento de uma das interlocutoras pertencentes ao grupo B é
muito esclarecedor: “Eu sinto atualmente aminha responsabilidade sobre o meu estado de
espírito. Isto não me passava pela cabeça antes. Um dos exemplos disto é que eu achava
que não podia ser uma pessoa sensual; eu era casada, era mãe”. No grupo estudado, a
mulher separada se percebe enquanto um sujeito que aproxima os espaços morais
masculino e feminino, ou seja, ela é vista como uma pessoa que diminui o intervalo que
separa e opõe as categorias homem/mulher, masculino/feminino (Abreu, 1983, p. 88). Ela
se percebe como um agente de inversões, subvertendo, com sua atuação, os fundamentos
morais da ordem familiar e sua política sexual. Ela ameaça a posição de prioridade e
precedência masculina – ocupa o espaço público, conectando o feminino com valores
vinculados a natureza moral do sexo masculino e seus papéis na família.
Busca-se, agora, discutir em que medida a dimensão moral da maternidade atua, no
caso da separação, através da noção de uma raça-moral capaz de conduzir as mulheres do
grupo pesquisado ao esmaecimento daquelas fronteiras culturais da sua identidade social,
mediando estas inversões nos limites da sua condição de mulheres separadas. Neste
sentido, a maternidade é o agente moral capaz de assegurar a continuidade da honra do
grupo familiar após a separação, uma vez que atua através da noção raça-família. A partir
disto, estas mulheres, novamente, estão englobadas na relação hierarquizada e diferenciada
dos papéis sexuais, onde o feminino se apresenta como revelação e incorporação de uma
ordem moral.
Seguindo Abreu (1982, p. l03), utiliza-se, nesta análise, o conceito de raça-família
em função de a maternidade expressar um código moral estruturador da identidade social
feminina no espaço familiar da separação, numa dimensão hierarquizante. Refere-se, aqui,
ao fato de que ela permite demarcar a qualidade e fronteiras de um universo
consanguíneo. Assim, os laços consanguíneos mãe-prole, enquanto raça-moral, realizam a
possibilidade de avaliação dos comportamentos dos parentes em relação à honra familiar
e sublinham a ideia de procedência e virtude moral (Abreu, 1982, p. 103) para os sexos
masculino e feminino, respectivamente.
Embora não seja representativo do grupo como um todo, pois é mais verdadeiro
para o grupo de status A do que para o B, o depoimento a seguir exemplifica a
preocupação que as mulheres descasadas têm com sua conduta sexual em termos das
implicações morais que possam vir a afetar o conteúdo da sua raça-família, pela qual se
tornam responsáveis: “Me preocupo como meu filho se sente. Faço programas que acho
que vão trazer coisas boas para nós, para nossa casa. Não tenho turma, não vou a barzinho.
Acho ele muito pequeno. Fico pensando: será que ele vai cobrar?” Portanto, a
maternidade, no espaço da separação, ao recuperar a ideia do papel feminino, enquanto
estruturador de uma raça-moral, afirma-o enquanto um compromisso expresso que é o de
não poluir moralmente um „nome de família‟ (Abreu, 1982, p. 104).
Agora, o nome de família - a honra familiar - é evocado não em termos da honra
masculina, afetada diretamente pela conduta sexual feminina, mas em função da prole e da
capacidade que a conduta sexual da mulher, enquanto mãe, tem em imprimir uma
avaliação moral a esta prole. Neste caso, está presente uma ordem hierarquizante no
espaço da separação, revelando-se a virtude moral do desempenho do papel de mãe como
uma forma de controle e avaliação da conduta sexual feminina em função das repercussões
desta na reputação familiar (prole).

3.2-DAS CONDIÇOES E LIMITES NO EXERCÍCIO DA MATERNIDADE

São discutidas nesta parte, as formas que assumem o exercício e o desempenho do


papel de mãe, em função das representações da maternidade como algo imanente, ou não,
e suas vinculações com a questão do biológico na sua dimensão encompassadora para a
construção social da identidade feminina, no grupo pesquisado. No período da gestação, a
maternidade, para o grupo analisado (mais marcadamente no grupo A do que no B), se
define por sua representação como algo imanente, ou seja, a partir do fato biológico, que
atua de fora e de longe, como força vital, comandando o processo de maternidade (Chauí,
1985). Neste sentido, a maternidade imanente atua através de uma lógica hierarquizante -
dada na noção do ser natural.
Principalmente no grupo B, com o nascimento dos filhos e as crises conjugais, ela
tende a se transformar, passando a significar a constituição do sujeito feminino em sua
singularidade (Duarte, 1983), ou seja, como ser com vontade (Chauí, 1985). Na primeira
situação, a maternidade, é constituída como algo auto-evidente. Sua forma e conteúdo são
concebidos como parte da natureza moral do papel feminino dentro do ponto de vista do
sujeito feminino, determinado por sua constituição biológica e encompassado numa
estrutura hierárquica em função da família e da natureza do seu corpo. No plano da
maternidade projetada, ela surge em sua dimensão mais moderna, fruto das representações
que cercam a noção de indivíduo, se orientando segundo a construção da individualidade
feminina, concebida a partir da ideia do “sujeito singular” e quase tomada como um
“santuário”. A maternidade, transformando-se de imanência para transcendência, assume,
enquanto sistema de representações que tem o corpo como centro de significações, um
caráter primordialmente moderno, “individualizante”, demonstrando para a identidade
social feminina a proeminência do indivíduo, não só do ponto de vista lógico, mas também
genético (Duarte, 1983, p. 22).
No grupo, de modo genérico, a maternidade é representada em função destes dois
eixos: imanência e transcendência, havendo, ao longo da trajetória das mulheres, uma
transformação do seu conteúdo e forma, no sentido da natureza e da essência feminina,
para as concepções de vontade e liberdade, neste espaço social. Em particular, parte destas
metamorfoses decorre da vivência do processo da maternidade, da gestação ao puerpério,
no grupo estudado, apontando, de forma singular, para estas instâncias de discussão das
representações e práticas femininas, que têm no corpo, de uma forma ou de outra, o ponto
de partida das suas representações e das suas implicações na delimitação da identidade
social deste grupo de mulheres. Neste processo, também são discutidas as imagens da
figura feminina a partir da maternidade e dos limites reais e práticos destas representações.
Especificamente, o exercício da maternidade, diante de uma proposta igualitária dos
papéis sexuais na família, coloca as mulheres descasadas, principalmente as do grupo B,
frente a alguns importantes obstáculos ao código universalista na família, afetando as
relações conjugais e o projeto familiar.
Conforme o que foi colocado anteriormente, uma das crises que passa a existir na
família após o nascimento dos filhos, se refere às consequências, para a visão igualitária
dos sexos, o que a contração da sociabilidade do casal provoca na estrutura familiar. Como
resultado, afirma-se que o papel masculino é a função de provedor da família, conduzindo
o homem a uma atuação cada vez mais acirrada na esfera do mercado e forçando a mulher
a uma suspensão, senão total, pelo menos parcial, das suas atividades profissionais num
compromisso expresso com a socialização do filho. Isto está colocado na reconstrução
biográfica de ambos os grupos de mulheres72, se bem que de modo mais marcante no
grupo B, uma vez que é este grupo que idealiza, no projeto familiar, princípios igualitários
para os papéis sexuais. Por outro lado, a discussão do espaço da maternidade imanente, é
mais característica do grupo A, principalmente na vivência concreta do momento da
gestação e, depois, do parto. Trata-se dos limites da “eficácia simbólica” contida na
linguagem do “sentimento da maternidade” como algo natural, dada na finalidade
biológica, capaz de conduzir as mulheres descasadas a uma experiência de plenitude dos

72
Neste sentido, ver o Cap. II - Reconstrução Biográfica I: Da Tradição à Modernidade e Cap. III
Reconstrução Biográfica II: Da Modernidade a Vanguarda, deste trabalho.
fundamentos morais femininos na gravidez, em contraste com suas limitações na situação
específica do parto73.
Observa-se, neste caso, as dificuldades das mulheres descasadas em perceberem os
limites precisos da atuação de um código cultural para o espaço da maternidade. Segue
como esta interlocutora da pesquisa percebe estes limites: “No início foi difícil estabelecer
uma relação com o D. Acho que quando se está grávida a gente brinca de ser mãe. É
diferente desempenhar-se como mãe. Eu sentia muita culpa!” A “culpa”, aqui, pode ter sua
origem num dos elementos que compõe o mito da maternidade (Oakely, 1976: 203) que
estrutura suas representações de imanência, ou seja, o fato de que crianças precisam de
suas mães. Isto apresenta três tipos de implicações morais apontadas por esta autora. O
justo é que as crianças precisam de suas mães biológicas. A segunda é que as crianças
precisam de mães, em vez de qualquer outro tipo de zelador. A terceira é que as crianças
devem ser criadas no contexto de uma relação interpessoal com suas mães. Aqui, a noção
do papel de mãe como algo que faz parte da natureza é dimensionada em função das
dificuldades do seu desdobramento, propriamente biológico, durante o trabalho de parto.
Os depoimentos indicam a ocorrência genérica de partos difíceis, ou pelo menos
complicados, em oposição à ideia de parto natural que muitas mantinham durante o
processo da gravidez.
E importante observar como algumas das mulheres descasadas descrevem esta
situação conflitante: “Lembro-me que era uma dor insuportável. Nessa hora pensava até
em morrer pra me livrar dessa dor”. Ou então: “Lembro somente do momento que fiquei
com contrações insuportáveis na sala de pré-parto. Depois lembro-me de ter tentado retirar
as pernas que estavam no suporte da mesa, e que os médicos pediram minha ajuda.
Lembro-me também de ter gritado”. Em termos gerais, as mulheres não conseguem
manter presente, na sua trajetória social de mães, o sistema de representações em que a
maternidade aparece como “naturalizada” (auto-evidente) na ideia do feminino. No parto,

73
No artigo em que Lévi-Strauss (1975, p. 228) discute a cura xamanística através da noção de eficácia
simbólica, observa-se que aquela é resultado da ação de uma linguagem através da qual o xamã fornece ao
doente condições deste exprimir imediatamente estados não-formulados, de outro modo, informuláveis. O
exemplo se refere, justamente, a um parto difícil e confere importância à presença, neste momento, da
parturiente, de uma linguagem estruturadora que torne pensável uma situação dada inicialmente em termos
afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a tolerar. Segundo este autor, a eficácia
simbólica da cura propõe uma reorganização estrutural, com propriedade indutora, cujas fontes são
individuais ou coletivas: ou seja, o doente acredita nela, e é membro de uma sociedade que acredita (p. 228).
Pode-se dimensionar parte das dificuldades e depressões no parto e puerpério, vividos pelas mulheres, como
algo relacionado aos limites da propriedade indutora da linguagem constituída através do tradicional
sentimento de maternidade, como algo autoevidente, a partir das alterações apontadas por Lévi-Strauss para
o tempo mítico que agora (na civilização mecânica) se localiza no interior de cada individuo.
especificamente, a experiência individual surge como uma presença marcante face à
experiência biológica (natural) da reprodução, numa relativização da natureza moral da
mulher a partir do biológico. Isto contrasta com alguns depoimentos relativos ao período
da gestação, feito por essas mesmas intelocutoras: “Aquela criança durando dias e dias, e
eu ali, eu achava que era praticamente independente da minha vontade. Imagina isto para a
minha cabeça natural! Era como qualquer bicho”. Ou ainda, “também tinha aquele
negócio: eu me sentia maravilhosa, tendo um filho na barriga”.
Para a maioria das interlocutoras, no período de gestação, a maternidade e o papel
da mãe são percebidos como “auto-evidentes”. É na situação de parto que ocorre um
distanciamento do modelo natural, fragmentando-se esta totalidade. A maternidade passa a
ser concebida como algo a ser projetado, construído, envolvendo tarefas instrumentais,
um estoque de conhecimentos, além de um forte investimento emocional (Salem, 1984).
Isto se dá de tal maneira, que as representações e valores a respeito da maternidade e as
implicações na natureza moral dos papéis sexuais passam a ser reavaliados. Resultam
destes momentos, outros depoimentos, outras concepções: “Não existe mãe perfeita, se
existe, não sou eu... E outra coisa, eu não tenho paciência. Sinto muito. Acho que mãe não
tem mais o porquê sacrifício. Já consigo viver com minhas limitações”. Ou então: “Já não
tinha mais nada pra provar pra ninguém... Nem que eu sabia cuidar do M., que eu era uma
supermulher. Não tinha mais estória”. Nesta medida é que surge, no universo dos valores
morais femininos da maior parte das interlocutoras, a ideia de aprender os truques da
maternidade e, desta forma, conseguir manipular as expectativas morais do
comportamento feminino durante a maternidade, redimensionando o papel de mãe.
Recuperam-se, aqui, algumas das noções desenvolvidas por Oakley (1974) na definição
que esta autora faz do mito da maternidade, como as características delimitadoras da
identidade social feminina em função da figura esposa-mãe enquanto símbolo de
dedicação, sacrifício e paciência.

3.3- MÃE: INDIVIDUO OU PESSOA?

Retoma-se neste campo de discussão, a forma que estas questões assumem na


oposição: representações da mulher moderna e da mulher tradicional. A primeira,
maternidade totalizadora, que passou a vigorar no inicio dos anos de 1970 (Salem, 1984),
a partir da atuação do movimento feminista, onde se afirma a importância da
individualização feminina no núcleo familiar, numa “libertação” dos papéis de esposa e
mãe. Segundo concepções de “mulher vanguardista”. Ou seja, as mulheres devem ter a
liberdade de optar por não ter filhos; devem ter fácil acesso à contracepção segura e
absorção; deve ser capaz de continuar o seu trabalho, se as mães; e deve ter à sua
disposição bons cuidados. Finalmente, a vida das mulheres não deve ser constrangida ao
cuidado das crianças ou a serem férteis (Chodorow, Contratto, 1982, p. 55). Estas
discussões encontram-se presentes, principalmente, nos discursos das mulheres do grupo
B, já que no grupo A, se ainda mantém, de muitas formas, a noção da natureza moral
feminina com base na maternidade imanente. Entende-se que o rompimento de parte
destas concepções da maternidade como entidade encompassadora, reside, grandemente,
no fato de ambos os grupos incorporarem o movimento de valorização e ênfase dos seus
aspectos subjetivos, emocional e individual, o que tende a redefinir a natureza moral da
mulher face à maternidade (e o seu corpo), tornando-a fonte de singularidade, e onde o
biológico atua como uma dimensão da sua individualidade, determinado a partir da noção
de interioridade, e da construção moderna da ideia de liberdade (Cauí, 1985).
Portanto, a discussão dos limites e fronteiras do espaço social da maternidade e do
seu sistema de representações, a partir do desdobramento da gestação ao puerpério, para o
grupo pesquisado, afirma um espaço de negociação da noção da maternidade como lugar
“auto-evidente” da identidade social feminina. A negociação que se estabelece ao nível do
sentimento de maternidade propõe um espaço social em “construção”, colocando em
relação, novamente, nos depoimentos das mulheres descasadas dos grupos A e B, a ideia
de tradicional e moderno, agora na delimitação do gênero feminino, a partir da
maternidade. A visão da mulher tradicional está associada, aqui, à ideia da maternidade
como uma “instituição total”, atuando na delimitação do sistema de representações
feminino, observando-se a inflação de um aspecto de sua personalidade - o de mãe - em
detrimento de outros (Salem, 198:), p. 16). Segundo uma delas: eu não conseguia ver
como poderia ser mãe e continuar fazendo outras coisas ao mesmo tempo. Ampliam-se,
neste estudo, algumas das afirmações que Oakley (1976, p. 188) constrói sobre a
maternidade como vocação e instinto. A referida autora constata que tais instâncias, o
instinto maternal ou da vocação para a maternidade propiciam a identificação do papel
materno como um componente essencial do papel de gênero feminino; a classificação do
comportamento reprodutivo (maternidade) como moral no ramo de comportamento
psicossexual (feminilidade).
Entretanto, entende-se que, modernamente, os papéis de pai e mãe não são mais
vistos como mera divisão moral do trabalho, que recupera a natureza biológica dos sexos,
eles são redimensionados em função da premência da noção de indivíduo, de um
compromisso emocional no desempenho da paternidade e da maternidade, sendo
introduzida nesta esfera a ideia de vontade, consentimento, ganhando um atributo de
maternidade. Assim, apresenta-se outra estrutura de diferenciação entre os papéis sexuais
na família, atuando através de novo dispositivo. Nestes termos, os papéis familiares
vinculam-se aos valores do afeto, da subjetividade, de um relacionamento livre e
igualitário - o que está mais claramente expresso nas expectativas das mulheres do grupo
de status B aqui descrito. Para a discussão que aqui se desenvolve, é importante perceber
as dimensões encompassadoras (natureza) e individualistas (condição) presentes a estas
noções de vocação e instinto. Conforme já dito aqui, a noção de instinto se liga ao próprio
processo de constituição do sujeito moderno (Duarte, 1983, p. 23), que implica a ênfase na
'natureza humana', como processo abrangente de individualização a partir da passagem,
no sistema de representações sobre a maternidade, da finalidade interna vivida e refletida,
para a finalidade externa, que cria o sujeito livre (Chauí, 1985).
O sentimento de maternidade como instinto revela a construção do Sujeito
Psicológico feminino e a interiorização das finalidades externas. A maternidade, para o
grupo B, especificamente, se altera, enquanto processo na construção social da identidade
feminina, dentro de um ethos de modernidade, resultando na sua transformação em termos
de arbitrários casulos de eclosão do Sujeito - do desenvolvimento pessoal e da 'espécie
humana' (Duarte, 1983, p. 23). Seguindo estas considerações, a maternidade projetada, do
ponto de vista da mulher moderna, supõe a construção de uma “causalidade íntima”,
“interior” para a sua “natureza moral”, ela se torna fonte da legitimidade do sujeito
feminino. Segundo Chauí (1985, p. 46), estas metamorfoses modernas, na concepção do
feminismo são feitas sob a forma de uma outorga da subjetividade às mulheres. Em
resumo, há um discurso sobre as mulheres e não das mulheres. Passa-se de certa forma,
da vocação sagrada da maternidade para a constituição do sujeito moderno e para a
internalização do 'sagrado' (Duarte, 1983, p. 22). Porém, em todo este processo, seja para
uma ótica holista (hierárquica) ou uma ótica individualista (igualitária), a reprodução volta
a recolocar o homem e a mulher diante das “necessidades distintas”, reforçando a
permanência da ideia de que o cuidado com a criança é assunto de família - ou se sequer,
de sangue (Salem, 1984, p. 18). É o que se verifica no depoimento a seguir: Eu descobri
que eu não tinha paciência, ser mãe é ter calma, aquele silêncio. Eu não, achava que
tinha que gargalhar. Às vezes eu não me acho boa mãe porque me sacrifico pouco pelos
meus filhos.
Segundo Salem (1984), o nascimento dos filhos assume, nas relações conjugais,
uma carga simbólica importante, retomando dispositivos típicos da aliança, e no caso
discutido, também recuperam um código moral hierarquizante ligado ao espaço familiar e
aos fundamentos morais da natureza dos sexos. Neste contexto é que as mulheres aqui
ouvidas passam a definir-se como seres para os outros (Chauí, 1985), típico de um código
moral da honra. No fundo destas questões, ainda se tem um código de honra familiar onde
se constitui a natureza dos papéis sexuais, com base numa divisão moral de trabalho.
Diante da presença da ideia de indivíduo, o “instinto” passa a uma esfera psicológica e
subjetiva, constitutiva da individualidade feminina. Entende-se, aqui, que a maternidade,
vista como vocação ou instinto, pode se constituir através das dimensões de pessoa e de
indivíduo, apresentando, no entanto, a permanência do fato de que o corpo feminino é o
elemento fundamental para as ideologias de feminilidade (Chauí, 1985, p. 42). Enquanto
instinto, observa-se que o mito da maternidade não mais se encontra na ordem familiar,
mas está formando o próprio sujeito feminino (Duarte, 1983, Lévi-Strauss, 1975).
Desta forma, a discussão que Duarte (1983, p. 25) leva, em termos do culto à
preservação da especificidade e irredutibilidade das experiências individuais dos sujeitos,
pode ser pensada, para o caso da maternidade neste grupo, segundo um ethos da
modernidade. Isto se expressa na seguinte afirmação de uma idas interlocutoras: “Ter filho
é uma coisa comigo mesma. Nunca me passou pela cabeça não ter filho. Não pensava que
meu filho era filho de P. O filho era meu comigo mesma”. Neste momento, o filho e o
exercício da maternidade acham-se associados a uma ideia peculiar da identidade
feminina, desligando-se, principalmente, nas situações de crises conjugais, da noção de
casal e família, e, portanto, organizando-se como parte da individualidade feminina, da sua
interioridade.
Estas representações estão mais presentes no grupo de status B do que no grupo A,
e mais fortemente, se delimitam em função da situação de separação vivida pelas
mulheres. Algumas admitem que só assumem a maternidade sob este ângulo após a
separação e a dissolução dos laços conjugais. Pode-se pensar até que ponto a tendência
hierárquica do espaço familiar impede a dinâmica destas representações, mantendo-as nos
limites de seus códigos morais e da sua política sexual. Ou, mais ainda, a situação da
separação ocasiona uma transformação na “naturalização” do mito da maternidade,
desvinculando-o do espaço da família tradicional e remetendo-o à construção da moderna
individualidade feminina e à internalização do sentimento de maternidade como um
“casulo” do sujeito feminino. Assim, após a separação, são o papel e a figura de mãe que
atuam como fonte de legitimidade para a condição feminina na família, tornando-se algo
constitutivo da sua individualidade.

4 – MATERNIDADE E SEPARAÇÃO: AS METAMORFOSES NOS


FUNDAMENTOS MORAIS DA FAMÍLIA

Neste caso, entendem-se como válidas ambas as suposições consideradas acima.


Os fundamentos morais do espaço familiar, propondo um quadro de significações para a
maternidade, associando-a a organização hierárquica dos papéis sexuais, segundo sua
concepção de essência da natureza feminina, obstaculizam o desenvolvimento da noção da
maternidade projetada, tanto quanto a vivência da desarticulação da lógica holística, a
partir da separação, permite a reordenação das representações dos papéis sexuais na
família, em função do projeto de construção do sujeito feminino, principalmente através
da cisão do seu núcleo central esposa-mãe. Isto ocasiona a construção de princípios mais
individualistas para a definição das fronteiras simbólicas do feminino no espaço familiar.
Busca-se, aqui, recolocar em que medida o espaço social da separação remete à
desarticulação de valores e noções morais que constroem a natureza dos sexos, segundo
uma lógica encompassadora (holista). Conforme o depoimento de uma delas, onde a noção
de luta sugere o despontar de uma concepção de indivíduo na delimitação da identidade
social feminina, a separação propõe um esforço que privilegia o novo estatuto da
„biografia individual‟ (Duarte, 1983, p. 21). Ou seja: “Depois que me separei tive de me
esforçar muito, tinha forças não sei de onde para ajeitar a minha vida. Sinto que só eu
poderia fazer isto por mim”.
Desta forma, a separação permite e promove, em princípio, a eclosão de uma
lógica individualista para os papéis sexuais na família e seus fundamentos morais, embora
esteja subjacente à discussão da dominância da categoria focal, “esposa-mãe” no espaço
da família. Verifica-se, nesta parte da discussão, que a separação, por se apresentar como
um espaço de negociação da realidade (Velho, 1981), atua segundo princípios
individualistas no espaço das relações de parentesco e na constituição da natureza moral
dos sexos, redimensionando-as através das suas noções genéricas e igualitárias, o que é
particularmente verdade para o desempenho da maternidade em contraste com o papel de
esposa. Assim, a separação acarreta algumas inversões importantes na política sexual da
família segundo um código de honra, e mais especificamente, no papel de mãe, derivando-
se daí, mediações na prática social das interlocutoras dessa pesquisa.
Logo, o espaço da separação, visto a partir de um código moral da honra,
representa uma ameaça de ruptura e de poluição no conteúdo moral da natureza dos sexos
e na noção de honra familiar para o grupo analisado. A maternidade, particularmente,
estabelece um campo de discussões sobre os papéis sexuais na família e seu componente
moral, pois propõe mediações na condição que a mulher separada enfrenta em termos de
uma “condensação” entre a mulher natureza e o homem-social, onde se afirma uma luta
individual no comportamento feminino, localizada não apenas subjetivamente nas
mulheres descasadas, mas expresso também, na casa, na educação dos filhos. Ou seja, não
se trata apenas, para o grupo pesquisado, de uma luta individual essencialmente moral
contra seus instintos (Aragão, 1983)74. Ela também propõe a redescoberta dos limites no
código da honra e da aliança, na família, através de novos arranjos nos seus fundamentos
morais, buscando renegociar uma realidade cultural, seus códigos e valores, numa
tentativa de ultrapassar os impasses de uma situação concreta de vida, que aponte, em seu
projeto de vida, para um ethos de modernidade.

74
Estas representações acham-se presentes, em especial, em um artigo de Aragão (1983), onde o autor
aborda as disposições sociais que cercam o papel de mãe, na sociedade brasileira, de acordo com a posição
estrutural que ela ocupa neste contexto.
CONCLUSÃO

Este estudo, ao abordar as fronteiras sociais que constituem a identidade de um


grupo de mulheres separadas, de camadas médias urbanas, em Porto Alegre, permite
precisar alguns pontos relevantes para o entendimento dos valores responsáveis pela
construção desta identidade. Ou seja, a produção social da identidade feminina, no grupo
pesquisado, acompanha a direção da trajetória social e o sentido da sua biografia
individual, segundo seus determinantes de classe, da trajetória familiar e o sentido da sua
biografia individual, segundo seus determinantes de gênero.
Aqui, destaca-se o fato de ambos os determinantes estarem imbricados na
reordenação da identidade social do grupo pesquisado, em função do seu processo de
separação. Em termos de análise, compreende-se que a matéria simbólica que constitui o
projeto individual das interlocutoras na separação está referida à forma como estas se
inserem neste segmento social - camadas médias urbanas - e aos temas e paradigmas que
presidem a condição feminina no seu interior. Deste modo, os valores que instauram as
fronteiras da identidade encontram-se presentes na biografia social das mulheres
descasadas, interlocutoras da pesquisa, e na forma como estas constituem e articulam, em
suas revisões biográficas, as tradições e padrões culturais associados às determinações de
gênero na família, nas camadas médias urbanas as quais pertencem, quando no momento
da separação.
O percurso social assumido por este grupo atua como um do campo de
possibilidades onde se afirma seus projetos individuais de mulheres separadas,
considerando a sua constituição em razão do jogo de relações entre uma matriz
individualizante, ligada a dimensões modernas da sua biografia e uma matriz
hierarquizante, associada a aspectos mais tradicionais da instituição familiar, dentro da
qual estão os papéis femininos e seus laços de parentesco. Em ambos os grupos de status
analisado, analisado, estas matrizes contribuem de distintas formas na composição dos
valores femininos que instauram as fronteiras da identidade social, na fase de separação,
associadas que estão aos deslocamentos destas mulheres em diversos contextos
socioculturais, no decorrer de seu trajeto social.
Destes deslocamentos, resultam metamorfoses nos fundamentos de gênero que
delimitam a esfera familiar, os quais guardam entre si aspectos ambíguos e contraditórios
das relações familiares, os papéis femininos e seus laços de parentesco, atuando na
construção de diferenças internas no grupo pesquisado, em termos de aproximação com o
que se denomina visão de mundo tradicional e pensamento moderno. Em vista disto,
surgem contradições e conflitos na forma como o grupo de mulheres reordena sua
identidade social numa situação de separação. A experiência cotidiana destas mulheres
indica uma tensão, no nível das determinantes de gênero, entre distintas concepções do
feminino daí resultantes, segundo seu envolvimento com pressupostos hierarquizantes,
e/ou individualizantes, em particular, durante o processo de separação e, de modo
genérico, ao longo da sua biografia familiar. Portanto, ambas as concepções propõem
formas heterogêneas na produção cultural da identidade feminina, que não dizem respeito,
especificamente, ao momento da separação, mas, ao contrário, localizam-se na experiência
familiar das interlocutoras, da família de orientação à de procriação.
O espaço social da separação, então, se caracteriza por recolocar a ambiguidade e
o conflito entre estes sistemas de representações nas relações femininas na família, em
vista dos processos sociais que provoca como, por exemplo, o da dissolução do espaço
tradicional da família, a reordenação moral dos laços de parentesco e papéis sexuais, bem
como a desarticulação do foco central proposto pela identidade social feminina, neste
segmento, a categoria “esposa-mãe”. Desvenda-se, no espaço social da separação das
mulheres descasadas, a atuação, por um lado, de valores femininos ligados a uma visão de
mundo mais tradicional, com base em princípios hierárquicos dos papéis sexuais e laços de
parentesco na família, relacionando-se, nesta medida, à presença de um código moral da
honra, do respeito e da autoridade masculina. Por outro lado, aponta-se a existência no
corpo das relações familiares na situação de separação, da moderna concepção de
individuo, que propõe uma igualdade entre os sexos, uma diluição dos papéis sexuais e
laços de parentesco e, também, um abandono da totalidade familiar hierarquicamente
constituída.
Logo, a ambiguidade que caracteriza os testemunhos e orienta o sentido, muitas
vezes contraditório, da reconstrução da sua identidade de gênero no grupo de status
pesquisado, encontra seu alvo nas noções de indivíduo e pessoa, concebidas por este
segmento social, para a produção cultural da identidade feminina. Ambas as concepções
do feminino se acham constituídas dentro da própria instituição familiar das mulheres
descasadas que aqui foram ouvidas. A moderna noção de individuo, utilizada pelo grupo
pesquisado, encontra-se representada na autonomização do feminino na esfera familiar,
postulando sua independência da totalidade hierarquizada da família. Já a noção de pessoa
se localiza nas representações mais tradicionais do feminino, relacionando-o a esfera
familiar, vista como uma totalidade referencial, preconizante à noção de casal, a
complementaridade dos fundamentos morais da natureza dos sexos - base de uma divisão
moral do trabalho - e a hierarquia de uma política sexual e de parentesco a partir da noção
de honra, do código da aliança e dos laços de reciprocidade.
A ambiguidade de representações acerca da definição da identidade feminina é
desvendada, em particular, na discussão do espaço social da maternidade deste grupo de
mulheres, uma vez que demonstra a heterogeneidade na forma como as mulheres abordam
a reprodução no espaço da família, com seu sistema de representações, ora articulado com
princípios individualistas, tomando-se o corpo feminino em função da sua capacidade de
promover a singularidade da condição feminina, ora considerado em função de princípios
hierárquicos, onde o corpo feminino surge como recipiente da natureza moral feminina,
ligada à totalidade familiar e aos papéis sexuais e laços de parentesco aí dispostos.
A tensão entre as definições da natureza, e/ou condição feminina na maternidade,
neste segmento social, recoloca o papel central da família na delimitação das fronteiras da
identidade feminina deste grupo de mulheres e das dimensões de indivíduo e pessoa na
determinação de gênero. A maternidade representada através da noção de pessoa afirma a
natureza do papel feminino – em sua função nutriente – pela complementaridade do papel
masculino de provedor, ambos legitimados através do código da aliança. Por outro lado,
entendida do ponto de vista da noção de indivíduo, ela projeta a singularidade feminina na
sua condição de liberdade e autonomia. No primeiro caso, o feminino se encontra
encompassado pela rede de relações e compromisso familiares, sendo definido em função
da totalidade hierárquica da esfera doméstica. No segundo, ele surge desvinculado da
dimensão familiar e seus laços de reciprocidade, permitindo a reordenação das concepções
femininas em função da noção de individualidade.
Os conflitos entre ambos os sistemas de representações apontam, portanto, de
modo recorrente, para as relações das dimensões público/privado e suas implicações na
ordenação dos valores femininos dentro da família. Ou seja, trata-se, aqui, da forma como
as mulheres descasadas aqui ouvidas, ao assumirem os valores individualizantes, se
afastam da esfera familiar, desvinculando-se da sua totalidade hierárquica, ou, ao
contrário, do aspecto encompassador que a constituição do sujeito social feminino assume
quando essa mulheres compõem sua identidade feminina em função das relações
familiares e a posição que nela ocupa.
A dicotomia público/privado se intensifica diante da experiência da separação,
recompondo as tensões entre indivíduo/pessoa na reconstrução da identidade social das
mulheres deste segmento analisado, visto que o desempenho social do papel de mulher
separada implica, neste grupo, uma aproximação progressiva entre ambas as dimensões da
vida social. Neste sentido, ao conduzir as interlocutoras a uma atuação cada vez mais
efetiva na esfera pública, a separação desvincula o sujeito social feminino das relações
familiares e, em particular, da figura masculina, tida, nos moldes tradicionais, de
provedora, de autoridade, levando-as a assumirem, progressivamente, o exercício da sua
individualidade, da sua igualdade abstrata e genérica, nos moldes mais modernos. Para a
maioria delas, estes momentos se revelam como aqueles mais críticos na experiência da
separação e os mais cruciais para a reconstrução da sua identidade social, pois se
encontram vivendo em um processo de desmembramento no arranjo interno dos códigos
de origem da sua identidade feminina. A angústia da individualização representa, deste
modo, um desajuste no arranjo daqueles códigos femininos, fruto de uma dinâmica
cultural no interior das relações familiares desencadeada com a separação.
A análise do projeto e das representações do feminino como indivíduo, e/ou
pessoa, formulado por elas durante o processo de separação, remete às motivações e
relevâncias de temas e valores dos papéis femininos e laços de parentesco neste segmento
social. Desvenda-se, ai, a forma como este grupo organiza suas emoções em função de
uma tentativa consciente de dar sentido à dimensão fragmentadora da experiência da
separação, face à tendência hierarquizante das relações familiares. Neste sentido, as
emoções destas mulheres refletem a tendência hierárquica do espaço familiar, onde os
fundamentos morais da natureza feminina estão postulados em função da
complementaridade moral dos sexos e onde a divisão moral do trabalho está associada às
diferenças biológicas, auferindo-lhes códigos éticos e comportamentais diferenciados.
O projeto, em sua dimensão de consciência e de individualização, se defronta com
a organização destas emoções e disposições femininas, constituídas na trajetória social e
família, estabelecendo-se, portanto, dentro deste campo de possibilidade, considerado na
sua circunscrição histórica e social a partir dos determinantes de classe e de gênero, dos
temas e paradigmas associados ao papel feminino, assim como dos sentimentos e afetos
que lhe correspondem e que delimitam a organização das emoções durante a elaboração do
seu projeto na situação de separação. Percebe-se que tais sentimentos e emoções
representam matéria do projeto das mulheres descasadas, no decorrer da separação,
balizando suas motivações, além de interferir no nível de consciência que este projeto
articula. Partindo-se das suas motivações, chega-se à delimitação de alguns focos, em
torno dos quais, aquelas emoções são despertadas no grupo pesquisado. Por um lado,
aponta-se a presença de uma tendência valorativa dos limites da construção da identidade
feminina, neste segmento social, em função de um código hierarquizante da honra, onde a
natureza moral feminina é representada a partir das noções de fragilidade, dependência,
passividade, emocionalidade, nutriência, etc. Por outro lado, valoriza-se um estilo de vida
e padrão de consumo bem diversificado, cabendo ao homem, como a figura do provedor e
da autoridade, realizar tais expectativas no meio familiar. Esta tendência valorizada no
discurso e trajetória familiar das interlocutoras dessa pesquisa, da infância ao casamento,
associa o feminino, em sua natureza, a um código ético-moral que fixa a mulher na esfera
doméstica, como pessoa recebedora daqueles bens provenientes da ação masculina na
esfera pública, chamando para a falta de disposições femininas para o desempenho
profissional, competição e busca do lucro.
Estes fundamentos morais da natureza feminina, associados à esfera familiar e à
sua divisão moral do trabalho, representam a tendência dos valores familiares no grupo
pesquisado, formando, na separação, o lócus privilegiado da sua vida emocional. A
construção do projeto individual, neste contexto, oscila no sentido de ruptura ou
legitimação daqueles valores. A organização das emoções, no grupo, assume dimensões
ambivalentes, com as mulheres separadas ora afastando-se, ora aproximando-se da ideia
de um novo casamento como forma de reordenar a natureza moral do seu papel feminino,
reconstituindo a esfera familiar e o papel masculino do provedor e da autoridade como
fonte de legitimidade de sua identidade de gênero.
O grau de organização destas emoções é responsável, portanto, pelo nível de
plasticidade do projeto individual das mulheres ao longo da separação. Nesta
reconstrução, é levada a efeito uma série de relativizações e estranhamentos acerca dos
valores que fundam as determinações de gênero para este grupo social. As aproximações
entre público/privado, bem como as consequentes articulações entre as noções de
indivíduo/pessoa para a delimitação da identidade feminina, no grupo pesquisado,
questionam a tendência cultural dos valores tradicionais na família e a noção dos
fundamentos naturais dos sexos, colocando em xeque as definições do gênero neste
segmento social. O projeto individual constituído pelas interlocutoras da pesquisa para a
reordenação da sua identidade social, em função de um processo de separação, implica,
assim, a necessidade de articular, com um mínimo de plasticidade, a tendência central
hierarquizante das relações familiares, em presença de momentos e situações
individualizadoras no seu interior.
Neste sentido, é exemplar o fato de a separação não ocorrer em função da ideia de
construção de um projeto individualizante. Em parte, ele se revela como resultado de
impasses acumulados na norma da ordenação tradicional das relações familiares, neste
segmento social, conduzindo ao desgaste progressivo dos fundamentos morais da família e
debilitando a ordenação hierárquica dos papéis femininos e seus laços de parentesco.
Neste caso, a separação se desencadeia a partir de pressupostos tradicionais, com base na
idealidade dos valores da honra e do respeito das relações familiares e na
complementaridade hierárquica dos papéis sexuais. Ou seja, a separação é desencadeada
tendo por referência uma política sexual e seus princípios hierárquicos na família, para os
quais, o grupo pesquisado desenvolve respostas distintas. A separação, então, pode ser
analisada em razão da frustração dos fundamentos morais dos papéis sexuais e da
aplicabilidade desta ordem de significados na realização do projeto familiar das mulheres
(Grupo A), ou da forma como tais fundamentações obstaculizam (Grupo B) alterações na
ordenação tradicional dos papéis femininos na família, face ao ethos da modernização.
Esta dinâmica nas relações familiares encontra influência no fato das interlocutoras
estarem vivendo em Porto Alegre, num contexto sociocultural heterogêneo, com distintos
domínios sociais, os quais permitem que elas atinjam instâncias de particularização na sua
condição feminina na família.
A separação, portanto, não se apresenta, na trajetória familiar das mulheres
ouvidas, como a culminância máxima dos impasses e contradições no contexto das
relações familiares, nem, tampouco, o despontar original de formas modernas da produção
cultural da identidade feminina neste segmento social. Ela surge associada aos limites da
plasticidade do projeto familiar constituído pelas mulheres no casamento, em função da
presença desta tendência hierárquica nas relações femininas, culturalmente estabelecida
neste segmento social, e sob a influência de outros estilos de vida e definições da realidade
familiar, presentes no meio urbano e moderno de Porto Alegre.
Trata-se, aqui, de entender que a esfera familiar, neste grupo analisado, não se
apresenta como totalidade completamente “integrada”, no nível de códigos e valores
tradicionais, e/ou modernos, mas uma totalidade cuja unidade se revela como
provisoriamente estável. A estabilidade depende, portanto, da dinâmica interna e externa
da estrutura das relações familiares, em função das experiências socioculturais das
mulheres aqui ouvidas na sua trajetória de classe e de gênero dos projetos femininos por
elas constituídos nestes deslocamentos e das metamorfoses dai decorrentes, que podem
impedir a existência estável destas estruturas enquanto tais. Em termos das condições de
plasticidade do projeto familiar, percebe-se que, dentro dele, está em jogo uma série de
valores e temas referentes à família de orientação das interlocutoras, conservados na sua
bagagem cultural, e que se constituem nos seus sistemas e disposições femininas.
O aspecto individualizante que a separação assume, então, para este grupo social,
passado algum tempo das suas crises familiares, tem a ver com o fato de existir a
possibilidade de estas mulheres realizarem o deslocamento das representações femininas
da totalidade familiar para a noção de individualidade dentro da esfera familiar,
dissociando os limites da sua identidade social de família para a noção do Eu. É neste
ponto que a separação, para este segmento social, assume sua dimensão moderna, ou seja,
ela se desencadeia a partir de um contexto urbano.
Logo, a análise da separação, neste grupo, parte de uma percepção fundamental: o
fato de que este segmento possui, em seu percurso sócio histórico, um caráter fragmentado
e plural, refletido nas características da biografia dos seus membros, e que isto se torna
mais complexo em função da sua inclusão num contexto sociocultural moderno e urbano,
como é o caso de Porto Alegre. No entanto, a percepção desta heterogeneidade e
diversidade não elimina a atuação, na sociedade gaúcha, de valores que atuam
tendencialmente como instrumento hierarquizante das relações sociais, como é o caso das
noções de honra, tradição e respeito.
Desta forma, a reconstituição dos limites da identidade deste grupo de mulheres
separadas apresenta aspectos ambíguos e heterogêneos nas suas determinações de classe e
de gênero. Tais diferenças se relacionam de muitas formas, ao movimento da sua
constituição como sujeito feminino. Nisto, incluem-se os projetos constituídos por elas
face à situação de separação em razão da concretude das suas trajetórias sociais, frente às
dimensões tradicionais, e/ou modernas, em Porto Alegre, de acordo com a inserção social
que realizam dentro dos segmentos médios urbanos e dentro dos parâmetros da condição
feminina no seu interior.
Logo, as diferenciações na forma como as mulheres descasadas projetam a
reconstrução da sua identidade social estão associadas às metamorfoses nos valores e
concepções femininas, relacionadas à esfera familiar, e à forma como estas metamorfoses
colocam em jogo as propriedades estruturais dos papéis sexuais e laços de parentesco na
família, para este segmento social. O estudo da separação, no grupo de status analisado,
apresenta, então, a problemática das noções de unidade/descontinuidade da dimensão
moderna e urbana e seus reflexos na produção cultural da identidade feminina destas
mulheres, considerando-se o contexto sociocultural de Porto Alegre e da própria sociedade
gaúcha, nos seus dilemas de homogeneidade/heterogeneidade. A existência de uma
tendência pluralista, moderna e fragmentária dos valores e paradigmas familiares no
espaço urbano de Porto Alegre, em oposição à outra hierarquizante, tradicional e
encompassadora, não significa negar sua complementaridade.
Trata-se de precisar os limites em função dos quais se torna evidente o
desenvolvimento de uma oposição, não mais sendo plausível a manutenção da sua
complementaridade na vida familiar, resultando daí, um processo de transformação social.
O aspecto da complementaridade entre as dimensões tradicional/moderno se refere à
dinâmica cultural projetada na trajetória social do grupo pesquisado, na forma como as
interlocutoras orientam e dão significado às suas ações femininas alterando valores e
paradigmas tradicionais do feminino para expressar situações de modernidade.
Desta forma, a oposição indivíduo-pessoa, para a reconstrução da identidade social
feminina, na separação, não assume necessariamente um caráter antagônico, muito embora
em suas representações assumam valores opostos. Considera-se que é a partir dos papéis
femininos tradicionais que as interlocutoras fazem uma leitura da modernidade no espaço
das relações familiares, onde se percebe que o código moral da honra e da tradição, muito
embora não atue como regra, se afirma como tendência cultural valorizada não só no
contexto sociocultural de Porto Alegre, como dentro dos limites da sociedade gaúcha.
É na retomada dos quadros sócio históricos que circunscrevem a sociedade gaúcha
que se vislumbra parte do processo constitutivo da dimensão destes códigos morais (honra,
respeito, hierarquia), formulando-se como um repertório de preocupações e problemas
centrais desta sociedade. Na análise deste repertório, torna-se evidente a forma singular
com que a sociedade gaúcha, e mais particularmente, Porto Alegre, em sua dimensão
urbana e modernizada, articula, através da sua memória histórica e coletiva, aspectos
tradicionais peculiares à própria sociedade brasileira, guardando, neste ponto, algumas
aproximações socioculturais com as sociedades pertencentes ao complexo mediterrâneo,
com concepções e valores modernizantes e cosmopolitas.
Este estudo, portanto, aponta a impossibilidade de discutir a separação para este
grupo social, a partir de um modelo simplificador, onde se pode precisar um nítido
distanciamento entre os domínios tradicionais e modernizantes, nos determinantes de
classe e gênero. Considera-se a inviabilidade de constituir, pelas características deste
grupo social, no estudo do espaço social da separação, tais relações - tradicional/moderno -
num binômio redutor das articulações entre diferentes domínios socioculturais,
especialmente, àqueles relacionados à delimitação dos papéis femininos na esfera familiar.
Neste sentido, demonstrando-se a complexidade da problemática da separação do grupo de
mulheres pesquisado, afirma-se que, para aquelas mulheres cuja trajetória social se
aproxima mais das esferas modernizantes do contexto sociocultural da sociedade gaúcha e,
em particular, de Porto Alegre, predomina a moderna concepção de indivíduo para a
delimitação dos valores constitutivos da identidade social feminina. Elas trazem, na sua
socialização e bagagem cultural, uma diversidade de experiências socioculturais, as quais
são responsáveis pela formulação de uma visão de mundo modernizante, aplicada aos
papéis femininos e seus laços de parentesco, quando da constituição do seu projeto
familiar, no casamento, e com implicações na formulação do seu projeto de vida na
separação.
Por outro lado, no caso das mulheres que se inserem na sua trajetória social, em
dimensões mais tradicionais, vigora a concepção de pessoa na produção social da
identidade de gênero, sendo estas, mais adeptas de princípios hierarquizantes das relações
femininas, através da constituição de uma visão de mundo mais tradicional, onde a família
surge como totalidade hierárquica, o que se apresenta em função da própria constituição
de tradições trazidas da família de orientação. Isto repercute na forma como concebem
seu projeto pessoal no casamento e na própria separação, apontando a relevância do
código da aliança e dos laços de reciprocidade para definição dos limites da sua identidade
feminina.
Deste modo, é possível precisar qual o material simbólico, em função do qual,
estas mulheres reconstroem os limites e sua identidade social de mulheres separadas, está
em íntima vinculação com as experiências de mobilidade social, ascensão ou descenso,
vividas por elas em sua trajetória social, desde a família de orientação até a de procriação.
Os deslocamentos são responsáveis, portanto, neste segmento social, por alterações e
diferenciações na composição da sua visão de mundo e estilo de vida, contribuindo para a
forma heterogênea com que este grupo de mulheres constrói seus mapas de orientação, na
situação de separação, sendo também responsáveis pelos limites na produção das
fronteiras culturais da identidade feminina.
Logo, este estudo desvenda, por um lado, os limites de se trabalhar teórica e
metodologicamente, com um modelo monolítico para a análise da instituição familiar,
referido a um sistema de representações puro e associado a experiências socioculturais que
buscam, na trajetória social dos atores, um movimento unidirecional e uniforme,
considerando-se, particularmente, a inserção destes no contexto moderno e urbanizado.
Por outro lado, aponta para a complexidade de se discutir a questão da identidade de um
grupo, levando-se em conta suas determinações de classe e de gênero, a partir da matriz
histórico-social do sistema de representações no qual foram geradas.
Desdobrando-se a discussão da identidade social deste grupo de mulheres
separadas, em Porto Alegre, segundo um jogo contrastivo das representações
individualismo/hierarquia dos papéis femininos e seus laços de parentesco, constata-se
que, neste jogo de oposições, os valores que os fundam não se defrontam de modo
uniforme neste segmento social. Acima de tudo, resultam de um processo concreto de
confronto e diferenciação entre as fronteiras simbólicas do feminino no contexto das
relações e conflitos familiares, da divisão do trabalho em função da natureza moral dos
sexos e do processo de enfrentamento, oposição, dominação e submissão no interior das
relações familiares.
POSFÁCIO

A antropóloga Veena Das, em seu artigo Fronteiras, violência e trabalho do


tempo: alguns temas wittgensteinianos (REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS
SOCIAIS, v. 14, n. 40, junho/1999), ao abordar o fenômeno da violência de gênero no
processo de separação do Paquistão da Índia, em fins dos anos de 1940, assinala que para
muitos, a memória traumática significa o limite da capacidade humana de representar.
Dentro destes limites, a autora assinala que do ato de testemunhar a violência, decorre, em
muitos casos, da pobreza das palavras humanas, ou da sua incapacidade em formular
respostas para o sentido de uma ação humana no mundo. Neste sentido, o testemunho de
acontecimentos extremos nos confronta com outras fronteiras de nosso self no interior da
própria vida social.

Com esta referência da atual literatura antropológica dos estudos de gênero e


violência, gostaria de provocar o leitor ao fechamento das ideias contidas nessa obra,
procurando relacionar a situação do descasamento vivido por minhas interlocutoras na
época da pesquisa com a descrição dos prejuízos que a partição da Índia provocou nas
relações familiares, na cultura Punjab, a partir da trajetória social de Asha, que fez Veena
Das. Assim como Asha, e a morte das suas relações familiares oriundas do casamento,
minhas interlocutoras são arrastadas para um cotidiano diferente daquele vivido no
passado.

O descasamento, ao provocar a morte das antigas relações familiares e de amizade,


confronta as suas subjetividades com os valores ético-morais que fundamentam os papéis
de sexo e de gênero que fundam os ideais patriarcais dominantes na sociedade gaúcha. Em
decorrência, a separação do casal, além de resultar na inviabilidade dos seus projetos de
família de procriação por ela projetados, coloca em risco a integridade moral destas
mulheres ao jogá-las no interior de uma fragmentação de si mesmas.

E da mesma forma que os estudos de Veena Das apontam para as narrativas de


violência entre os parentes no interior das famílias Punjab, os relatos de traição e discórdia
por mim ouvidas e testemunhadas significaram, em muitas situações, para minhas
interlocutoras, o rompimento com o silêncio de uma experiência dolorosa.
A minha presença, com certa regularidade, no interior da morada dessas mulheres,
funcionava para elas, como oportunidade de reconstrução continuada do sentido do
passado. As narrativas que me eram relatadas apontavam para o processo de incorporação
dos acontecimentos passados, aprendidos acerca dos fundamentos morais dos papéis de
sexo-gênero nas suas famílias de origem, ou seja, na estrutura temporal dos projetos de
suas famílias de procriação. Ou seja, elas revelavam o intenso esforço por parte das
minhas interlocutoras na domesticação das experiências dolorosas vividas na dissolução
dos laços conjugais, em particular, pelo afastamento da figura masculina como garantia da
sua identidade de sexo-gênero. [VP6] Comentário: Este parágrafo me
pareceu um pouco confuso. Tomo a
liberdade de redigir uma sugestão:
Certamente, não foi par hasard que as falas dessas mulheres giravam, em sua Narrativas que testemunhavam o lugar da
honra e da vergonha no engendramento dos
papéis sexuais e de gênero das mulheres no
grande maioria, em torno da morte das suas relações sociais considerando-se não apenas a interior do tecido social da sociedade
riograndense, assim como das suas ideias
experiência traumática do descasamento mas o fracasso em atingir os modelos tradicionais de família. Portanto, não era por acaso que
as falas giravam, em sua grande maioria,
de papéis de sexo-gênero transmitidos por suas famílias de origem. Tais acontecimentos em torno da morte das suas relações sociais
a partir da experiência traumática do
testemunhavam o lugar da honra e da vergonha no engendramento dos papéis sexuais e de descasamento, revelando um intenso
esforço por parte das minhas interlocutoras,
um sentido de domesticação das
gênero das mulheres no interior do tecido social da sociedade riograndense, assim como experiências dolorosas vividas em virtude
da dissolução dos laços conjugais e da
das suas ideais de família. ausência da figura masculina para a
composição da sua identidade de gênero.

Assim, as confidências prolongadas ao longo do trabalho de campo, assim como os


momentos de silêncio, me levavam, pouco a pouco, a refletir sobre o esforço com que
minhas interlocutoras se dedicavam a descrever as suas experiências dolorosas, sofridas no
momento da dissolução dos laços conjugais e de, juntamente com seus filhos, inventar, em
meio ao sentimento de vergonha, fracasso e desonra, novos modelos de vida em família.

Em particular, o que mais me instigou a prosseguir com a pesquisa junto às minhas


interlocutoras foi, sem dúvida, o reconhecimento de que na tessitura das suas narrativas
acerca do luto pela morte da vida em família, muitos foram os momentos críticos que
poderiam ter dado origem às rupturas dos seus laços matrimoniais. Entretanto, tais
momentos não eram o que as minhas interlocutoras escolhiam para justificar o ato do
descasamento em si.

Foram os episódios inesperados e traumáticos, sempre envolvendo a prole e não as


protagonistas das historias narradas, que influenciaram a decisão pela separação. As
experiências de frustações e infortúnios vividos na condição de esposas, ao longo do
casamento, eram continuamente recompostas, mas quando se expandiam para a
experiência da maternidade, resultavam, segundo elas, numa súbita fratura dos laços
conjugais. Neste ponto, precisamente o tempo passado “em família” não mais poderia ser
retomado em sua forma original. A maternidade, e não a sexualidade, é que as conduz na
reconstrução da identidade social de mulheres descasadas e na direção da sua reconstrução
como “sujeito com gênero”, conforme as palavras de Veena Das em seu artigo O ato de
testemunhar, violência, gênero e subjetividade (CADERNOS PAGU, (37), julho-
dezembro de 2011, p. 9-41). E, em decorrência, a experiência radical de dissolução dos
laços conjugais se radicaliza com a extroversão das categorias acusatórias de desonra e
vergonha na esfera do desempenho do papel de mãe.

Finalmente, se é verdade que o descasamento colocou minhas interlocutoras em


uma posição de vulnerabilidade, não é menos verdade que é ela que lhes permitiu criar
novos contextos e novas formas de subjetividade “feminina” , numa reinvenção de si
mesmas. Os antigos valores ético-morais com relação aos papéis sexuais e de gênero na
família foram sendo re-narrados e desse acontecimento traumático, testemunhado a partir
dos seus dramas e infortúnios, inaugura-se para elas um novo conhecimento de si e do
mundo. Ou seja, o descasamento provoca o deslocamento do sentido original das
formações discursivas da família patriarcal no Sul do Brasil, impulsionando novas
configurações de suas subjetividades. [VP7] Comentário: Aqui uma grande
dúvida. Duas formulações estão em
questão:
1) inaugura-se para elas um novo
conhecimento de si e do mundo, deslocando
as formações discursivas da família
patriarcal no Sul do Brasil sobre suas
subjetividades.
2) inaugura-se para elas um novo
conhecimento de si e do mundo,
deslocando-se das formações discursivas da
família patriarcal no Sul do Brasil sobre
suas subjetividades.
3) inaugura-se para elas um novo
conhecimento de si e do mundo,
deslocando-se das formações discursivas da
família patriarcal no Sul do Brasil, sobre as
suas subjetividades.
Tentei resolver, não sei se consegui
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Ovídio de. O parentesco como sistema de representações: Um estudo de caso. In:
VELHO, G.; FIGUEIRA, S. (Orgs.) Família, psicologia e sociedade. Rio de Janeiro:
Campus, 1981, p. 95-118.
________ Parentesco e identidade social. In: Anuário Antropológico 80. Fortaleza/Rio
de Janeiro: UFC/Tempo Brasileiro, 1982, p. 133-50.
________ Dona Beija: análise de um mito. In: FRANCHETTO, CAVALCANTI;
HEILBORN (Orgs.) Perspectivas antropológicas das mulheres 3. Rio de Janeiro: Zahar,
1983, p. 73-106.
ARAGAO, Luiz Tarlei de. Em nome da mãe. In: FRANCHETTO, CAVALCANTI;
HEILBORN (Orgs.) Perspectivas antropológicas da mulher 3. Rio de Janeiro: Zahar,
1983.
ARIES, Philippe. A história social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978,
p. 279.
________ A família e a cidade. In: VELH0, G.; FIGUEIRA, S. (Orgs.) Família,
psicologia e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 13-23.
AZEVEDO, Thales de. Namoro à antiga: tradição e mudança. In: VELHO, G.;
FIGUEIRA, S. (Orgs.) Família, psicologia e sociedade. Rio de Janeiro: Campus, 1981, p.
219-75.
________ Rio Grande, imagem e consciência. In:. Os brasileiros: estudos de caráter
nacional. Salvador: Centro Editorial Didático da Universidade Federal da Bahia, 1981a, p.
25-43.
BARBOSA LESSA, Luiz Carlos; PAIXÃO CORTES, J.C. Peculiaridades da sociedade
sul-riograndense. In: Danças e andanças da tradição gaúcha. Porto Alegre: Garatuja,
1975 p. 67-111.
BARCELOS, Ramiro Frota. Gaúcho riograndense e gaúcho platino - aproximações e
distanciamentos. In: FLORES, M. (Org.) Cultura sul-riograndense. Porto Alegre: Escola
Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 198,1 p. 55-6l.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 1. Fatos e mitos. 4ª ed. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1970, p. 309.
BERGER, Peter. Perspectivas sociológicas. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1976, p. 191.
________ A construção social da realidade. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 1978, p. 247.
BOURDIEU, Pierre. El sentimiento del honor en la sociedad de Cabilia. In:
PERISTIANY, J.G. (Org.) El concepto del honor en la sociedad mediterránea.
Barcelona: Labor, 1968, p. 137-51.
________ A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 361.
________ A opinião pública não existe. In: THIOLLENT, M. (Org.) Critica
metodológica, investigação social e enquete operaria. São Paulo: Polis, 1980, p. 175-
224.
BOURDIEU, P.; PASSERON, J.C. A reprodução – elementos para uma teoria do
sistema de ensino. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1982, p. 238.
BOURDIEU, P. et al. El ofício del sociólogo: pressupostos epistemológicos. Buenos
Aires: Siglo XXI, 1975.
BOTT, Elizabeth. Família e rede social. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 144.
CAMARGO, Aspasia. et al. História de vida na América Latina. BIB: Boletim
Informativo e Bibliográfico de Ciências Sociais. Órgão da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais. Rio de Janeiro, n. 16, p. 33-64, 1983.
CAMPBELL, J.K. El honor y el diablo. In: PERISTIANY, J.G. (Org.). El concepto del
honor en la sociedad mediterránea. Barcelona: Labor S.A, 1968, p. 127-56.
CESAR, Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço. In: DACANAL, J.H.;
GONZAGA, S. RS: Economia e política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979, p. 7-28.
CHAVES, Flávio Loureiro. A história observada pelo avesso. In: DACANAL, J. H.;
GONZAGA, S. (Orgs.) RS: Cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p.
133-49.
CHAUÍ, Marilena. Participando do debate sobre mulher e violência. In: FRANCHETTO,
CAVALCANTI; HEILBORN (Orgs.). Perspectivas antropológicas da mulher 4. Rio de
Janeiro: Zahar, 1985, p. 23-62.
CHODOROW, Nancy. Estrutura familiar e personalidade feminina. In: LAMPHERE, L.;
ROSALDO, M.Z. (Orgs.). Mulher, cultura e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1979, p. 65-94.
CHODOROW, N.; CONTRATTO, S. The fantasy of the perfect mother. In: THORNE,
B.; YALOW, M. Rethinking the family - some feminist question. New York and
London: Longman Inc., 1982, p. 54-75.
DACANAL, José Hildebrando. A miscigenação que não houve. In: DACANAL, J.H.;
GONZAGA, S. (Orgs.). RS: Cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p.
25-33.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema
brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 272.
________ Relativizando: uma introdução a antropologia social. 2ª ed. Petrópolis:
Vozes, 1981, p. 246.
DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva S.A., 1976, p. 232.
DREYS, Nicoláu. Notícia descritiva da província do Rio Grande de São Pedro. Porto
Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961, p. 204.
DUARTE, Luiz Fernando Dias. Três ensaios sobre a pessoa na modernidade. In: Boletim
do Museu Nacional, Rio de Janeiro, MN, n. 41, p. 69, 1983.
DUMONT, Louis. Homo hiearchicus – ensayo sobre el sistema de castas. Barcelona:
Aguilar, 1970, p. 429.
HAM, Eunice R. Família e reprodução humana. In: FRANCHETTO, CAVALCANTI;
HEILBORN (Orgs.). Perspectivas antropológicas da mulher 3. Rio de Janeiro: Zahar,
1983, p. 13-42.
DURKHEIM, Émilie. Sociologia e filosofia. Rio de Janeiro: Forense, 1970, p. 99.
STONE, Shulamith. A dialética do sexo: um manifesto de revolução feminista. Rio de
Janeiro: Labor do Brasil, 1976, p. 275.
RANCHETTO, Bruna. et al. Antropologia e feminismo. In: Perspectivas antropológicas
da mulher. Rio de Janeiro: Zahar, v. l, p. 11-47, 1981.
FREITAS, Décio. O gaúcho: o mito da produção sem trabalho. In: DACANAL, J.H.;
GONZAGA (Orgs.). RS: Cultura e ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980, p. 7-
24.
FREYRE, Gilberto. Unidade e diversidade, nação e região. In: Interpretação do Brasil.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1947, p. 139-75.
________ Narcisismo gaúcho. In: Região e tradição. Rio de Janeiro: Record, 1968, p.
241-55.
GALVÃO, Wolnice Nogueira. Insidiosa presença. In: Ensaios críticos. São Paulo: Duas
Cidades, 1976, p. 35-41.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 323.
GONZAGA, Sergius. As mentiras sobre o gaúcho: primeiras contribuições da literatura.
In: DACANAL, I. H.; GONZAGA, S. (Orgs.). RS: Cultura e ideologia. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1980, p. 113-32.
GOULIN, Taw. A mulher no mundo tradicionalista. Porto Alegre: Tchê, n. 29, p. 14,
dez. 1983a.
________ A ideologia do gauchismo. Porto Alegre: Tchê, 1983, p. 174.
ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande. Rio de Janeiro: Zelio
Valverde S.A., 1949, p. 160.
KANDEL, Liliane. Reflexões sobre o uso da entrevista, especialmente a não diretiva, e
sobre as pesquisas de opinião. In: THIOLLENT, M. (Org.). Crítica metodológica,
investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis, 1980, p. 169-189.
LEACH, Edmundo. Cultura e comunicação. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 49.
LEVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975,
p. 456.
MAITRE, Jacques. Sociologia da ideologia e entrevista não diretiva. In: THIOLLENT, M.
(Org.). Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis,
1980, p. 213-223.
MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 493.
MARTINS, Cyro. Porteira fechada. Porto Alegre: Globo, 1944, p. 248.
________ Estrada nova. São Paulo: Brasiliense, 1954, p. 204.
MITCHELL, Juliet. Mulheres: A revolução mais longa. In: Revista da civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 14ª ed., n. 14, p. 5-39, 1967.
________ Psicanálise e feminismo. Belo Horizonte: Interlivros de Minas Gerais Ltda,
1979, p. 453.
NETO, Maria Inácia D'Ávi1a. O autoritarismo e a mulher – o jogo da dominação
macho-fêmea no Brasil. Rio de Janeiro: Achiamé, 1980, p. 126.
________ Lendas do Sul. Pelotas: Echenique, 1913, p. 92.
NICHOLS, Madaline Wallis. O gaúcho. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1946, p. 232.
OAKLEY, Ann. Woman’s work – the housewife, past and present. New York: Vintage
Books Edition, 1976, p. 275.
OLIVEN, Ruben George. A fabricação do gaúcho. Trabalho apresentado no VII
Encontro Anual da ANPOCS. Águas de São Pedro, São Paulo: Mimeo, 1983, p. 22.
OLIVEIRA, Andradina de. A mulher riograndense. In: 1ª Série Escritoras Mortas. Porto
Alegre: Livraria Americana, 1907, p. 65.
PAIXAO CORTES, J.C. O gaúcho nunca foi irracional com as mulheres. In: Zero Hora.
Entrevista em 07/08/1983, p. 12.
PEIRANO, Mariza G.S. O antropólogo como cidadão: Louis Dumont e o caso
brasileiro. Trabalho apresentado no VIII Encontro da Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS). Águas de São Pedro, São Paulo:
Mimeo, 1984, p. 30.
PERISTIANY, J.G. (Org.). Honor y vergüenza en una aldea chipriota de Montana. In: El
concepto del honor em la sociedade mediterrânea. Barcelona: Labor S.A., 1968, p. 11-
20 e 157-173.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado
Aberto, 1980, p. 95.
PITT-RIVERS, Julian. (Org.). Honor y categoría social. In: El concepto del honor en la
sociedad mediterrânea. Barcelona: Labor S.A., 1968, p. 21-75.
________ Antropologia del honor e política de los sexos. Barcelona: Editorial Crítica,
1979, p. 266.
REGIUS, W. Álbum do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, imp. II, s/d.
RODRIGUES, Arakcy M. Operário, operária: estudo exploratório sobre o operariado
industrial da grande São Paulo. 2ª ed., São Paulo, Edições Símbolo, p. 144, 1978.
ROSALDO, Michelle Zimbalist. A mulher, a cultura e a sociedade: uma revisão teórica.
In: ROSALDO, M.Z. e LAMPHERE, L. (Orgs.). A mulher, a cultura e a sociedade. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 3-64.
RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes on the political economy of sex. In: REITER,
Raycia R. (Ed.). Toward an anthropology of women. New York and London: Monthly
Review Press, 1975.
RUSSO, Jane e SANTOS, Tania Coelho dos. Psicanálise e casamento. In: VELHO, G. e
FIGUElRA, S. (Orgs.). Família, psicologia e sociedade. Rio de Janeiro: Campus, 1981,
p. 277-304.
SAINT-HILAIRE, Augusto de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo,
1935, p. 295.
SALEM, Tania. O Velho e o novo: um estudo de papéis e conflitos familiares.
Petrópolis: Vozes, 1980.
________ O ideário do parto sem dor: uma leitura antropológica. In: Boletim do Museu
Nacional. Nova série. Rio de Janeiro: MN, n. 40, p. 27, 1983.
________ A trajetória do casal gravido: de sua construção à revisão do seu projeto.
Rio de Janeiro: MN/PPGAS, Mimeo, 1984, p. 30.
SARTRE, Jean Paul. O existencialismo é um humanismo. In: Textos selecionados. Sel.
José Américo Motta Pessanha. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 3-32.
SCHUSKY, Ernest L. Manual para análise de parentesco. São Paulo: EPU, 1973, p.
146.
SCHWARTZMAN, S.; MELLO, H. C. de; CAMARGO, Aspásia. A Revolução de 30 e o
problema nacional. In: Simpósio sobre a Revolução de 30 (UFRGS). Porto Alegre:
ERUS, 1980, p. 363-418.
THORNE, Barrie. Feminist rethinking of the family: an overview. In: THORNE, B. and
YALOM, M. (Eds.). Rethinking the family - some feminist questions. New York and
London: Longman Inc., 1982, p. 1-20.
VELHO, Gilberto. Nobres e anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. São Paulo:
USP/Departamento de Ciências Sociais/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, mimeo (Tese de Doutorado), 1975.
________ Acusações: projeto familiar e comportamento desviante. In: Boletim do Museu
Nacional, nova série. Rio de Janeiro: MN, n. 28. P. 11, 1978.
________ Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p. 149.
________ Aliança e casamento na sociedade moderna: separação e amizade em camadas
médias urbanas. In: Boletim do Museu Nacional, nova série. Rio de Janeiro: MN, n. 39,
p. 11, 1983.
VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o vento: o retrato. 8ª ed., Porto Alegre, Globo (O
Retrato, v. 2, t. 1 e 2), p. 611, 1976.
________ O tempo e o vento: o continente. 14ª ed., Porto Alegre, Globo (O Continente),
v. 1, t. 1), p. 309, 1977.
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil: O campeador
riograndense, Rio de Janeiro, Paz e Terra, v. 2, p. 368, 1974.
WEBER, Max. Conceito e categorias da cidade. In: VELHO, Octávio Guilherme (Org.).
O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
________ Rejeições religiosas do mundo e suas direções (1915). In: WEBER, M. Textos
selecionados. Seleção de Maurício Tragtenberg. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.
239-68.
WOORTMANN, Klass. Reconsiderando o parentesco. (Anuário Antropológico/76).
Fortaleza/Rio de Janeiro: UFC/Tempo Brasileiro, 1977, p. 149-86.

Você também pode gostar