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THE FIVE INVITATIONS

Discovering What Death Can Teach Us About Living Fully


Frank Ostaseski
bluebird books for life, UK. e-book

OS CINCO CONVITES
Descobrindo o Que a Morte Pode Nos Ensinar Sobre Viver Plenamente

(tradução livre por Zita Freitas, setembro de 2022)


Esta tradução dos capítulos do livro THE FIVE INVITATIONS - Discovering What Death Can Teach Us
About Living Fully, de Frank Ostaseski foi realizada de forma livre e adaptada, sem autorização do autor,
com a motivação de ser utilizada para trabalho de auto-conhecimento e aprofundamento no tema, e
solicitamos o cuidado e atenção para que não seja comercializada e reproduzida indevidamente.
Desejamos que este trabalho possa trazer benefício a muitos seres.

1
Prefácio – Rachel Naomi Remen, M.D............................................................................. 4
Introdução : O Poder Transformador da Morte............................................................... 6
PRIMEIRO CONVITE – Não Espere...................................................................................14
1.A Porta de Entrada para a Possibilidade........................................................................15
2. Aqui e Desaparecendo..................................................................................................20
3.O Amadurecimento da Esperança................................................................................. 29
4.O Coração da Matéria.....................................................................................................37

SEGUNDO CONVITE – Acolha Tudo, Não Afaste Nada.................................................... 46


5.As Coisas Assim Como São..............................................................................................47
6.Vire-se Para o Seu Sofrimento....................................................................................... 53
7.O Amor Cura................................................................................................................... 63

TERCEIRO CONVITE - Traga Todo o Seu Eu Para a Experiência.........................................70


8.Não seja um papel, seja uma alma..................................................................................71
9.Domando o Crítico Interno..............................................................................................81
10.O Rio Furioso................................................................................................................. 90
11.Ouvindo os Choros do Mundo....................................................................................... 100

QUARTO CONVITE - Encontre um Lugar de Descanso no Meio de Tudo..........................109


12.A Calmaria na Tempestade.............................................................................................110
13.Cuidado com o Vão!........................................................................................................120
14.Presença Corajosa...........................................................................................................129

QUINTO CONVITE – Cultive a Mente do Não-Saber...........................................................139


15.A História do Esquecimento.............................................................................................141
16.Não-saber é Mais Íntimo..................................................................................................149
17.Entregue-se ao Sagrado....................................................................................................156

Epílogo: Morrendo na Vida................................................................................................... 164


2
Sobre o autor.........................................................................................................................167

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PREFÁCIO

Toda tempestade tem, como um umbigo, um buraco no meio,


por onde uma gaivota pode voar em silêncio
- Harold Witter Bynner

Como médica, fui ensinada que a morte era o oposto da vida, um evento físico marcado por alterações
fisiológicas específicas. Fui treinada a “gerenciar a morte”, a prolongar a vida sempre que possível, e
controlar a dor e sofrimento quando isso não fosse possível. A dor daqueles que conseguíamos prolongar
a vida era mais difícil de gerenciar, mas com o tempo, a maioria das pessoas se conforta com o
pensamento de uma vida após a morte e encontra uma maneira de fazer a passagem. Apesar da imensa
experiência com aqueles que estavam morrendo ou que morreram, eu e meus colegas tínhamos pouca
ou nenhuma reação emocional com a morte e certamente nenhuma curiosidade sobre ela. Tal curiosidade
teria sido vista como mórbida. A ideia de que a morte poderia oferecer à pessoa que está viva alguma
coisa de vital importância teria sido percebida como simplesmente bizarra. De uma forma extrema, nossa
postura profissional era um reflexo de toda a cultura em relação à morte e aos moribundos.
Esse é o ambiente no qual Frank Ostaseski começou seu trabalho corajoso e pioneiro, e primeiro ofereceu
sua visão genial de ver cada morte como única e significativa, como uma oportunidade para sabedoria e
cura não apenas para quem está morrendo, mas também para aqueles que estão vivos. A grande
profundeza de experiência que ele transmite nesse esse livro só pode ser acumulada por aqueles que são
destemidos, que encontraram um caminho para quietude e presença, que possuem uma habilidade de se
conectar com o coração e alma dos outros, e quem é abençoado por compartilhar a estrada percorrida.
Os Cinco Convites está repleto de histórias tão profundas que funcionam como uma bússola, um caminho
para atravessar uma estrada desconhecida para um destino desejado. Muitas das histórias verdadeiras
nesse livro podem ser lidas como parábolas, histórias de sabedoria que permitem a todos nós vivermos
de forma mais sábia e com propósito em muitas diversas circunstâncias.
Meu primeiro encontro com a morte foi ao nascer. Pesava 900g e passei os primeiros três meses de minha
vida entre mundos, em uma incubadora, não tocada por mãos humanas. Encontrei a morte novamente
aos 15 anos, quando minha doença crônica revelou-se na noite em que fui levada às pressas inconsciente
para um Hospital em Nova Iorque, onde passei quase um ano em coma. A maioria das pessoas que
conheço bem eu conheci no limite entre a vida e a morte. Frank Ostaseski é uma dessas pessoas – meu
colega, meu companheiro de viagem, meu professor. Em Os Cinco Convites ele escreveu um maravilhoso
livro sobre a vida no limite – sobre toda a vida, realmente - e nos convidou a se juntar a ele no espaço
entre os mundos. Sentar à mesa do desconhecido. Para se maravilhar juntos. Para nos tornarmos sábios.
Meu avô seguia a tradição do Cabala e era místico. Para ele, a vida era um constante diálogo com a alma
do mundo. Todos os eventos eram portas de entrada e o mundo revelava-se por si só constantemente.
Ele conseguia ver a mais profunda das realizações nas ocorrências mais ordinárias. A maioria de nós não
tem esse dom. Precisamos de alguma coisa maior, alguma coisa que nos impeça de ver e ouvir com mais
autoridade, alguma coisa que desafie nossas percepções habituais e formas de pensar para que
reconheçamos a verdadeira natureza das coisas. A morte é uma dessas portas. Consciência é o grande
presente da morte. Para muitas pessoas, a vida autêntica começa no momento da morte – não nossa
própria morte, mas a de outra pessoa.

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Simplificando, a natureza da vida em si é sagrada. Estamos sempre em solo sagrado. Contudo raramente
isso faz parte de nossa experiência cotidiana. Para a maioria de nós, o sagrado apresenta-se como um
relâmpago, uma inspiração súbita entre uma respiração despercebida e a próxima. O tecido/estrutura
cotidiana que protege o que é mais real é comumente confundido com o que é mais real, até que algo
rasga um buraco nele e revela a verdadeira natureza do mundo. Em seu brilhante livro Small is Beautiful
(Pequeno é Maravilhoso), E. F. Schumacher sugere que podemos ver apenas o que temos olho para ver.
Ele propõe que o interminável debate sobre a natureza do mundo não é sobre diferenças, mas
simplesmente sobre a capacidade diferente de nossos olhos.
O livro que você está segurando oferece práticas simples, poderosas, para permitir que você veja o que é
mais real no meio do que é mais familiar. É uma oportunidade para ver além do ordinário. Diferente de
muitos livros sobre a morte e o morrer atualmente disponíveis, esse livro não é sobre uma teoria ou
cosmologia – seja tradicional ou pessoal. Não se trata das ideias e crenças de alguém sobre o que é morrer
e o significado da experiência de morrer. Esse livro é um compartilhar de experiências profundas por um
observador magnificamente consciente. Ele lhe convida a desenvolver seus olhos.
Meu avô me ensinou que um professor não é um homem sábio, mas um dedo apontado dirigindo nossa
atenção para a realidade que nos cerca. Frank Ostaseski é esse professor. Esse livro o fará se lembrar de
muitas coisas. Me lembrou de quão poucas coisas realmente importam e o quanto elas importam. Como
que frequência estamos espiritualmente famintos no meio da abundância, e como muitos, muitos
professores que nos cercam estão pacientemente oferecendo tudo o que precisamos para vivermos bem
e sabiamente. Eu sou lembrada de que a morte, como o amor, é íntima, e que a intimidade é a condição
do aprendizado mais profundo. Eu sou lembrada também, da simplicidade do verdadeiro professor, e o
poder da história de nos incluir numa rede de conexão bem mais profunda do que as coisas superficiais
que nos dividem. Por fim, sou lembrada de que todos estamos convidados para a dança. Sinto uma
profunda gratidão pelo convite para participar plenamente na vida, que tão graciosamente é oferecido
aqui. Você também.
Em última análise, a morte é um encontro pessoal e próximo com o desconhecido. Muitas pessoas que
morreram e foram ressuscitadas pela expertise da ciência nos dizem que a experiência revelou para eles
o propósito da vida. Não se trata de tornar-se próspero ou famoso ou poderoso. O propósito de cada vida
é crescer em sabedoria e aprender a amar melhor. Se esse é seu propósito, então Os Cinco Convites é o
livro para você.
Rachel Naomi Remen, M.D.

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INTRODUÇÃO
O PODER TRANSFORMADOR DA MORTE
Amor e morte são as grandes dádivas que nos são dadas;
na maioria das vezes passam não reveladas.
- Rainer Maria Rilke

Vida e morte são um pacote. Você não pode separá-las. No Zen japonês, o termo shoji é traduzido como
“nascimento-morte”. Não há separação entre vida e morte exceto por um pequeno hífen, uma delgada
linha que conecta as duas palavras.
Não podemos estar verdadeiramente vivos sem manter uma consciência da morte.
A morte não está esperando por nós no fim de uma longa estrada. Ela está sempre conosco, na essência
de cada momento que passa. Ela é a professora secreta escondida à vista de todos. Nos ajuda a descobrir
o que mais importa. E a boa notícia é que não precisamos esperar até o fim de nossas vidas para
realizarmos a sabedoria que a morte tem a oferecer.
Ao longo dos últimos trinta anos tenho sentado no precipício da morte com algumas milhares de pessoas.
Algumas chegaram à sua morte repletas de desapontamentos. Outras floresceram e passaram por aquela
porta com reverência e repletas de maravilhamento. O que fez a diferença foi a vontade de viver
gradualmente nas dimensões mais profundas do que significa ser humano.
Imaginar que no momento de nossa morte teremos a força física, estabilidade emocional e clareza mental
para fazermos o trabalho de uma vida inteira é uma aposta ridícula. Esse livro é um convite – cinco
convites, na verdade – para sentar com a morte, tomar uma xícara de chá com ela, deixar ela lhe guiar
para viver uma vida mais significativa e amorosa.
Refletir sobre a morte pode ter um impacto profundo e positivo, não somente em como morremos, mas
em como vivemos. Ao considerar a morte, é fácil distinguir entre as tendências que nos conduzem à
totalidade, e aquelas que nos inclinam à separação e sofrimento. A palavra “inteiro/totalidade”
(wholeness) está relacionada à “sagrado” (holy) e “saúde” (health), mas não é uma unidade imprecisa,
indefinida. É melhor expressada como interconectividade. Cada célula de nossos corpos é uma parte de
um todo orgânico, interdependente, que deve trabalhar em harmonia para manter boa saúde. Da mesma
forma, todo mundo e todas as coisas existem em uma constante interação de relações que reverberam
por todo o sistema, afetando todas as outras partes. Quando tomamos uma ação que ignora essa verdade
básica, sofremos e criamos sofrimento. Quando vivemos com consciência dela, apoiamos e somos
apoiados pela totalidade da vida.
Os nossos hábitos têm uma força poderosa que nos impulsiona para o momento de nossa morte. A
pergunta óbvia que surge é: Que hábitos queremos criar? Nossos pensamentos não são inócuos.
Pensamentos se manifestam como ações, que por sua vez se desenvolvem em hábitos, e nossos hábitos,
em última análise se solidificam em caráter. Nossos relacionamentos inconscientes com os pensamentos
podem moldar nossas percepções, precipitar reações, e predeterminar como nos relacionamos com os
eventos de nossas vidas. Podemos superar a inércia desses padrões ficando conscientes de nossas visões
e crenças, e ao fazer isso, estamos conscientemente escolhendo questionar aquelas tendências habituais.
Hábitos e visões fixas silenciam nossas mentes e nos inclinam a viver no piloto automático. Questionar
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abre nossas mentes e expressa o dinamismo de ser humano. Uma boa questão tem coração, surgindo de
um profundo amor para descobrir o que é verdadeiro. Nunca saberemos quem somos e porque estamos
aqui se não fizermos perguntas desconfortáveis.
Sem uma lembrança da morte, temos a tendência de considerar a vida como garantida, muitas vezes nos
perdendo em infindáveis buscas por auto-gratificação. Quando mantemos a consideração da morte ao
alcance, ela nos lembra de não nos agarrarmos à vida com muita força . Talvez levar a nós mesmos e
nossas ideias um pouco menos a sério. Deixamos ir um pouco mais facilmente. Quando reconhecemos
que a morte chega para todo mundo, compreendemos que estamos no mesmo barco, juntos. Isso nos
ajuda a nos tornarmos um pouco mais amorosos e gentis um com o outro.
Podemos aproveitar a consciência da morte para apreciar o fato de que estamos vivos, para encorajar a
auto exploração, clarificar nossos valores, encontrar significado, e gerar ação positiva. É a impermanência
da vida que nos dá perspectiva. Quando entramos em contato com a natureza incerta da vida, também
apreciamos sua preciosidade. Então não desejamos perder um minuto. Queremos entrar plenamente em
nossas vidas e usá-las de forma responsável. A morte é uma boa companhia na estrada de viver bem e
morrer sem arrependimento.
A sabedoria da morte tem relevância não somente para aqueles que estão morrendo e seus cuidadores.
Ela também ajuda a lidar com perda, ou uma situação na qual você se sente preso em pequenez ou está
se sentindo fora de controle – quer esteja passando por um rompimento ou divórcio, lidando com uma
doença, uma demissão, o despedaçar de um sonho, um acidente de carro, ou até um atrito com um filho
ou colega.
Logo após o famoso psicólogo Abraham Maslow sofrer um ataque cardíaco quase fatal, ele escreveu em
uma carta: “O confronto com a morte – e o alívio dela – faz tudo no mundo parecer tão precioso, tão
sagrado, tão maravilhoso que eu sinto mais forte do que nunca o impulso de amá-la, de abraçá-la, e me
deixar ser esmagada por ela... A morte, e sua possibilidade sempre presente, torna o amor, o amor
apaixonado, mais possível.”
Eu não tenho romantismo sobre ‘morrer’. Morrer é um trabalho difícil. Talvez o trabalho mais difícil que
faremos nesta vida. Nem sempre acaba bem. Pode ser triste, cruel, maravilhoso, confuso, e misterioso.
Acima de tudo é normal. Todos nós passamos por isso. Nenhum de nós sai vivo.
Sendo um companheiro para as pessoas que estão morrendo, um professor de cuidado compassivo, e co-
fundador do projeto Zen Hospice, tenho observado que a maioria das pessoas com quem trabalhei eram
pessoas ordinárias. Indivíduos encontrando-se face a face com aquilo que imaginavam fosse impossível
ou insuportável, caminhando em direção às suas próprias mortes ou cuidando de alguém amado que
agora estava morrendo. Contudo, a maioria encontrou dentro de si mesmo e da experiência do morrer
os recursos, insight, força, coragem e compaixão para receber o impossível de maneiras extraordinárias.
Algumas das pessoas com quem trabalhei viviam em condições terríveis – em hotéis infestados de ratos
ou bancos de praça. Eram alcoolistas, prostitutas, sem-teto, que mal sobreviviam nas margens da
sociedade. Muitas vezes mostravam uma face de resignação ou estavam com raiva por sua perda de
controle. Muitos tinham perdido toda a confiança na humanidade.
Alguns eram de culturas que eu não conhecia, com linguagem que eu não entendia. Alguns tinham uma
fé profunda que traziam consigo nos momentos difíceis, enquanto outros tinham rejeitado religião.
Nguyen tinha medo de fantasmas. Isaías era confortado por “visitas” de sua mãe falecida. Havia um pai
hemofílico que tinha contraído HIV de uma transfusão sanguínea. Anos antes de sua doença ele havia

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renegado seu filho gay. Mas no fim da vida, pai e filho estavam ambos morrendo de AIDS, deitados um ao
lado do outro em um quarto compartilhado, sendo cuidados por Agnes, a esposa do pai e a mãe do filho.
Muitas pessoas com quem trabalhei morreram em seus vinte e poucos anos, tendo mal começado suas
vidas. Mas houve também uma mulher que cuidei, Elisabeth, que aos noventa e três perguntava, “Porque
a morte chegou pra mim tão cedo?” Alguns tinham bastante clareza e lucidez, enquanto outros não
conseguiam se lembrar de seus próprios nomes. Alguns estavam cercados pelo amor da família e amigos.
Outros estavam totalmente sozinhos. Alex, sem o apoio das pessoas amadas, ficou tão confuso por causa
da demência causada pelo AIDS que subiu na escada de incêndio uma noite e congelou até a morte.
Cuidamos de policiais e bombeiros que tinham salvo numerosos vidas; enfermeiras que tinham cuidado
da dor e da falta de ar dos outros; médicos que tinham declarado óbito de pacientes da mesma doença
que agora estava devastando seus próprios corpos. Pessoas com poder político, riqueza, e bom seguro de
saúde. E refugiados com pouco mais do que a roupa do corpo. Eles morreram de AIDS, câncer, doença
pulmonar, insuficiência renal e doença de Alzheimer.
Para alguns, morrer foi uma grande dádiva. Se reconciliaram com sua famílias há muito perdidas,
expressaram livremente seu amor e perdão, ou descobriram a bondade e aceitação que tinham buscado
por todas as suas vidas. Outros se voltaram para a parede em retirada e desesperança e nunca mais
voltaram.
Todos eles foram meus professores.
Estas pessoas me convidaram em seus momentos mais vulneráveis e tornaram possível para mim chegar
perto e íntimo da morte. No processo, me ensinaram a viver.

Ninguém vivo compreende realmente a morte. Mas como uma mulher que estava próxima da morte uma
vez me disse, “Eu vejo os sinais de partida muito mais claros do que você.” De certa maneira, nada pode
lhe preparar para a morte. Contudo, tudo o que você fez na vida, tudo que tem sido feito pra você, e o
que você aprendeu com ela, tudo pode ajudar.
O prêmio Nobel, Rabindranath Tagore em uma maravilhosa história descreve os caminhos sinuosos entre
aldeias na Índia. Saltando, guiados pela imaginação ou por um riacho sinuoso, um desvio para um belo
mirante, ou contornando uma rochedo afiado, as crianças descalças teciam trilhas em ziguezague pelo
campo. Quando cresceram, ganharam sandálias e começaram a carregar cargas pesadas, as rotas
tornaram-se estreitas, retas e com objetivos.
Eu caminhei descalço por anos. Não segui um caminho linear até este trabalho; caminhei em ziguezague.
Foi uma jornada de contínua descoberta. Tinha pouco treinamento e nenhum diploma, exceto um
certificado da cruz vermelha que certamente expirou. Eu segui o método Braille, tateando o caminho.
Seguindo minha intuição, confiando que a escuta é a maneira mais poderosa de se conectar, propondo o
refúgio do silêncio, e deixando meu coração se partir. São essas as maneiras que descobri que realmente
ajudam.
A morte e eu somos companheiros de longa data. Minha mãe morreu quando eu era adolescente e meu
pai alguns anos depois. Mas eu já os tinha perdido alguns anos antes de suas mortes. Ambos eram
alcoólicos, e dessa forma minha infância foi caracterizada por anos de caos, negligência, violência,
lealdade traída, culpa e vergonha. Caminhava “pisando em ovos”, sendo o confidente de minha mãe,
encontrando garrafas de bebida escondidas, brigando com meu pai, guardando segredos, e crescendo
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rapidamente. Assim, de certa forma suas mortes chegaram como um alívio. Meu sofrimento foi uma
espada que cortou de duas maneiras. Cresci me sentindo envergonhado, amedrontado, solitário e não
atraente. Contudo o mesmo sofrimento ajudou a me conectar empaticamente com a dor dos outros, e
isso tornou-se parte de meu chamado em direção à situações que muitas outras pessoas tenderiam a
evitar.
A prática Budista, com sua ênfase na impermanência, o surgimento e a passagem momento a momento
de cada experiência possível foi uma influência precoce e importante para mim. Encarar a morte é
considerado fundamental na tradição Budista. Pode amadurecer a sabedoria e compaixão, e fortalecer
nosso compromisso com o despertar. A morte é vista como o estágio final de crescimento. Nossas práticas
diárias de mindfulness e compaixão cultivam qualidades mentais, emocionais e físicas saudáveis que nos
preparam para encontrar o inevitável. Através da aplicação desses meios hábeis, eu aprendi a não ficar
incapacitado pelo sofrimento de minha vida precoce/infância, mas permitir que ele, o sofrimento,
estabelecesse o fundamento da compaixão dentro de mim.
Quando meu filho Gabe estava prestes a nascer, eu quis compreender como trazer sua alma para esse
mundo. Então me inscrevi para um workshop com Elisabeth Kübler-Ross, a renomada psiquiatra Suiça
conhecida por seu trabalho inovador sobre a morte e o morrer. Ela tinha ajudado muitas pessoas a
deixarem essa vida; achei que ela poderia me ensinar como prperar meu filho para isso. Elisabeth ficou
fascinada com a ideia e me colocou debaixo de suas asas. Me convidou para participar de mais programas
ao longo dos anos, embora não tenha me dado muitas instruções. Eu ficava sentado quieto no fundo da
sala e aprendi olhando a forma como ela trabalhava com pessoas que estavam enfrentando a morte ou
sofrendo perdas trágicas. Isso moldou fundamentalmente a maneira com que mais tarde acompanhei
pessoas nos cuidados paliativos. Elisabeth era habilidosa, intuitiva, e frequentemente obstinada, mas
acima de tudo, demonstrava como amar aqueles que ela serviu, sem reserva ou apego. Algumas vezes a
angústia na sala era tão esmagadora que eu meditava para me acalmar ou fazia práticas de compaixão
imaginando que poderia transformar a dor que estava testemunhando.
Uma noite chuvosa após um dia particularmente difícil, eu estava tão abalado ao voltar para meu quarto
que caí de joelhos em uma poça de lama e comecei a chorar. Minhas tentativas de tirar o sofrimento do
participante foram apenas uma estratégia de autodefesa, uma forma de tentar me proteger do
sofrimento.
Então Elisabeth veio e me pegou. Me levou a seu quarto para um café e um cigarro. “Você precisa se abrir
e deixar que a dor se mova através de você,” Elisabeth disse. “Não é sua para segurar.” Sem essa lição
acho que não teria conseguido permanecer presente, de forma saudável, com o sofrimento que
testemunharia nas décadas que viriam.
Stephen Levine, um professor e poeta Budista, foi outra figura que exerceu influência em minha vida. Meu
primeiro professor e bom amigo por trinta anos, Stephen era um rebelde compassivo e também um guia
intuitivo e autêntico que abraçava múltiplas tradições espirituais evitando de forma habilidosa o dogma
de qualquer abordagem. Ele e sua esposa, Ondrea, foram verdadeiros pioneiros, liderando uma revolução
delicada na forma com que cuidamos daqueles que estão morrendo. Muito do que criamos no Zen
Hospice foi uma expressão de seus ensinamentos.
Stephen me mostrou que era possível reunir o sofrimento em minha vida, usá-lo como algo profícuo, e
transformá-lo alquimicamente no combustível para o serviço altruísta – tudo sem fazer disso algo
especial. No começo eu modelei meu trabalho e algumas vezes meu comportamento em seu exemplo,

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como alunos devoto tendem a fazer. Ele era muito bondoso e generosamente me emprestou sua voz até
que encontrasse a minha própria.
Como chegamos aonde nos encontramos? A vida acumula, nos expõe a oportunidades de aprendizado e,
se tivermos sorte, prestamos atenção.
Enquanto viajava no México e Guatemala aos trinta e poucos anos, me voluntariei para servir os
refugiados da América Central que tinham sofrido enormes dificuldades, e testemunhei mortes horríveis.
De volta em São Francisco na década de 80, a AIDS estava se disseminando fortemente. Perto de trinta
mil habitantes locais foram diagnosticados portadores de HIV. Eu trabalhei na linha de frente como
auxiliar de saúde domiciliar e cuidei de muitos amigos que morreram desse vírus devastador.
Rapidamente tornou-se claro que minha resposta individual não era suficiente. Assim, em 1987, junto
com minha querida amiga Martha DeBarros e um punhado de outras pessoas, iniciamos o Projeto Zen
Hospice (cuidados paliativos). Aliás, foi ideia de Martha criar o Hospice, e uma ideia genial. Ela foi a mãe
que deu nascimento ao programa sob os auspícios do Centro Zen de São Francisco.
O Zen Hospice (Zen Hospice Project) foi o primeiro Hospice da América, uma fusão de insight espiritual e
ação social prática. Nós acreditamos que havia uma natural correspondência entre os praticantes Zen que
estavam cultivando um “coração de escuta” através da prática de meditação, e aqueles que precisavam
ser ouvidos – pessoas que estavam morrendo. Não tínhamos agenda e poucos planos, mas por fim
treinamos cerca de mil voluntários. Embora as histórias que compartilho sejam principalmente sobre
minhas próprias experiências, o Zen Hospice não foi criado por uma pessoa. Todos o fizemos juntos. Uma
comunidade de grandes corações comprometidos com um propósito compartilhado respondendo a um
chamado ao serviço. Embora quiséssemos recorrer à sabedoria da tradição Zen de 2.500 anos, não
tínhamos interesse em forçar qualquer dogma ou fomentar uma maneira estritamente Budhista de
morrer. Meu slogan era “Receba-os onde eles estão”. Eu encorajava nossos cuidadores a ajudar os
pacientes a descobrirem o que precisavam. Raramente ensinávamos as pessoas a meditar. Nem
impúnhamos nossas ideias sobre a morte ou morrer. Imaginávamos que as pessoas nos mostrariam como
precisavam morrer. Criamos um ambiente maravilhoso e receptivo no qual os residentes se sentiam
amados e apoiados, e onde eram livres para explorar quem eram e o que eles acreditavam.
Eu aprendi que as atividades do “cuidar” são em si, bastante ordinárias. Você prepara uma sopa, faz uma
massagem nas costas, troca lençóis sujos, ajuda com medicamentos, escuta histórias de uma vida vivida
e que agora acaba, mostra-se com uma presença calma e amorosa. Nada especial. Apenas simples
bondade humana, realmente.
Contudo, logo descobri que essas atividades cotidianas, quando tomadas como uma pratica de
consciência, podem nos ajudar a despertar de nossas visões fixas e hábitos de retirada. Quer sejamos
aqueles que fazem as camas ou aqueles que estão confinados nelas, temos de confrontar a natureza
incerta dessa vida. Ficamos conscientes da verdade fundamental de que tudo vem e vai: cada
pensamento, cada momento de fazer amor, cada vida. Vemos que morrer está na vida de tudo. Resistir a
essa verdade conduz à dor.
Outras experiências cruciais moldaram a maneira como recebo o sofrimento e informaram minha
compreensão do que a morte pode nos ensinar sobre a vida. Liderei grupos, aconselhei inúmeras pessoas
em doenças terminais, orientei retiros para pessoas com doenças com risco de morte e facilitei muitas -
talvez bastante – cerimônias fúnebres (cerimoniais). No meio de tudo isso, fui pai de quatro crianças,
ajudando-as a se desenvolverem em adultos notáveis que agora têm seus próprios filhos. Posso lhe dizer

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que criar quatro adolescentes ao mesmo tempo foi muito mais difícil do que cuidar de pacientes
moribundos.
Em 2004 fundei o Metta Institute (Instituto Metta) para promover cuidados de fim de vida conscientes e
compassivos. Reuni grandes professores, incluindo Ram Dass, Norman Fisher, Rachel Naomi Remen, M.D.,
e outros para formar um corpo docente mundial. Nosso projeto era destinado a recuperar a alma no
cuidar e restaurar um relacionamento de afirmação da vida com a morte.
Treinamos centenas de profissionais de saúde e também criamos uma rede nacional de suporte de
clínicos, educadores e advogados, para aqueles que estavam enfrentando doenças com risco de morte.
Finalmente, vários anos atrás, eu me defrontei com minha própria crise de saúde pessoal – um ataque do
coração que me colocou face a face com a mortalidade. A experiência me mostrou como era diferente a
visão do outro lado da moeda. Me deixou ainda mais empático com as lutas que testemunhei meus
alunos, clientes, amigos e familiares enfrentarem.
Muitas vezes na vida nos movemos além do que imaginávamos que seríamos capazes, e atravessar essa
fronteira nos impulsiona em direção à transformação. Alguém certa vez disse, “A morte não vem para
você, mas para alguém que os deuses preparam”. Esse sentimento me parece verdadeiro. A pessoa que
sou hoje, vivendo nessa história, não é exatamente a mesma pessoa que morrerá. A vida e a morte me
mudarão. Eu serei diferente em alguns aspectos muito fundamentais. Para que algo novo emerja dentro
de nós, devemos estar abertos à mudança.
Em geral, como sociedade estamos mais abertos a uma discussão sobre a morte do que estávamos no
passado. Há mais livros sobre o assunto; os serviços de cuidados terminais (hospices) estão bem
integrados no cuidado à saúde; temos diretivas antecipadas e ordens de não ressuscitar. A morte assistida
por médico agora é legal em vários estados e países.
Entretanto, a visão predominante é ainda que morrer é um evento médico e o máximo que podemos
esperar é tirar o melhor de uma situação ruim. Eu testemunhei a dor de pessoas a caminho de suas mortes
sentindo-se vítimas de circunstâncias, sofrendo consequências ruins por causa de fatores que estavam
além de seu controle, ou pior ainda, acreditando que aquelas eram a única causa de seus problemas.
Como resultado, muitas pessoas morrem em aflição, culpa, e medo. Podemos fazer algo sobre isso.
Quando você vive uma vida iluminada pelo fato de sua morte, ela informa suas escolhas. A maioria de nós
tem imagens de morrer em casa cercados daqueles que amamos e aqueles que nos amam, confortados
pelo conhecido, familiar. Contudo raramente é assim que ocorre. Embora sete de 10 Americanos dizerem
que prefeririam morrer em casa, 70% dos Americanos morrem em um hospital, casa de repouso, ou
instituições de longa permanência.
O clichê diz, “Morremos como vivemos”. Em minha experiência, isso não é inteiramente verdade. Mas
suponha que vivêssemos uma vida que se voltasse para o que a morte tem a ensinar, em vez de tentar
apenas evitar o inevitável? Podemos aprender bastante sobre viver plenamente quando nos sentimos
confortáveis sentados com a morte.
Suponhamos que parássemos de compartimentalizar a morte, cortando-a da vida. Imagine se
considerássemos morrer como um estágio final de crescimento com uma oportunidade sem precedentes
de transformação. Poderíamos nos voltar para a morte como um mestre e perguntar: "Como, então, devo
viver?”

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A linguagem que usamos desempenha um importante papel em nosso relacionamento com a morte e o
morrer. Eu não gosto de usar a palavra o moribundo (the dying). A morte é uma experiência que as
pessoas atravessam, mas não é sua identidade. Da mesma forma como acontece com outras
generalizações, quando agrupamos todas as pessoas vivas passando por uma experiência particular em
um lote único, perdemos a singularidade que a experiência - e o que cada indivíduo que passa por ela -
tem a oferecer.
Morrer é inevitável e íntimo. Tenho visto pessoas ordinárias no fim de suas vidas desenvolverem
profundos insights e se engajarem em um poderoso processo de transformação que as ajudou a
emergirem como alguém maior, mais expansivo, e muito mais real do que os selfs pequenos, separados
que antes consideravam como sendo eles próprios. Esse não é um final feliz de conto de fadas que nega
o sofrimento que veio antes, mas sim uma transcendência da tragédia. Essa descoberta regularmente
ocorre para muitas pessoas nos meses, dias, e às vezes até minutos finais da vida.
“Tarde demais”, você pode dizer. E eu poderia concordar. Entretanto, o valor não está em quanto tempo
eles desfrutaram da experiência, mas na possibilidade de que tal transformação exista.
As lições que a morte oferece estão disponíveis para todos que escolhem se mover para ela. Testemunhei
uma abertura de coração não somente em pessoas próximas da morte, mas também em seus cuidadores.
Eles descobriram uma profundeza de amor dentro deles mesmos que não sabiam que tinham acessado.
Descobriram uma profunda confiança no universo e na confiável bondade da humanidade que nunca os
abandonou, independente do sofrimento que encontravam.
Se essa possibilidade existe no momento de morrer, ela existe aqui e agora.
A exploração desse potencial é o que iremos mergulhar juntos aqui: a capacidade inata de amor,
confiança, perdão, e paz que vive em cada um de nós. Esse livro é sobre nos lembrar o que já sabemos,
algo que as grandes tradições tentam exemplificar, mas que muitas vezes se perde na tradução. A morte
é muito mais do que um evento médico. É um momento de crescimento, um processo de transformação.
A morte nos abre para as dimensões mais profundas de nossa humanidade. A morte desperta presença,
uma intimidade conosco mesmos e com tudo que está vivo.
As grandes tradições espirituais e religiosas têm vários nomes para o inominável: o Absoluto, Deus,
Natureza de Buddha, Self Verdadeiro. Todos esses nomes são muito pequenos. São dedos apontando para
a lua. Eu o convido a traduzir os termos que uso da maneira que lhe ajude a se conectar com o que você
conhece e confie mais em seu coração.
Eu usarei o termo simples Ser para apontar aquilo que é mais profundo e mais expansivo do que nossas
personalidades. No coração de todos os ensinamentos espirituais está a compreensão de que esse Ser é
nossa natureza mais fundamental e benevolente. Nosso senso normal de eu, nossa forma usual de
experienciar a vida, é aprendida. O condicionamento que ocorre quando crescemos e nos
desenvolvermos pode obscurecer nossa bondade natural.
O Ser tem certos atributos ou qualidades essenciais que vivem como potenciais dentro de cada um de
nós. Essas qualidades nos ajudam a amadurecer, a nos tornarmos mais funcionais e produtivos. Elas
preenchem nossa humanidade e acrescentam riqueza, beleza, e capacidade à nossas vidas. Essas
qualidades puras incluem amor, compaixão, força, paz, clareza, contentamento, humildade, e
equanimidade, para nomear algumas.
Através de práticas como contemplação e meditação, podemos aquietar nossas mentes, corações e
corpos, e como resultado, nossa habilidade de sentir a experiência torna-se mais sutil e mais penetrante.
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Quando descobrimos a quietude, somos capazes de perceber a presença dessas qualidades inatas. São
mais do que estados emocionais, embora possamos senti-las inicialmente como emoções. Pode ser mais
útil pensar nelas como nosso sistema de orientação interno, que nos conduz a uma sensação de bem-
estar maior.
Esses aspectos de nossa natureza essencial são tão inseparáveis do Ser como a qualidade ‘molhada’ é da
água. Dito de outra maneira, nós já temos tudo o que precisamos para essa jornada. Tudo existe dentro
de nós. Não precisamos ser alguém especial para acessar nossas qualidades inatas e utilizá-las a serviço
de maior liberdade e transformação.
Eu escrevi este livro pela primeira vez nas costas de um guardanapo de coquetel a dez mil pés em algum
lugar sobre o Kansas. Estava viajando para me reunir com outros pensadores críticos no campus da
Princeton University (Universidade de Princeton) para contribuir com um documentário de seis horas
sobre morrer na América chamado On Our Own Terms (Do Nosso Jeito). A sala estaria cheia dos principais
especialistas em saúde do país, defensores da morte assistida por médicos, defensores de mudanças nas
políticas de cuidados médicos e um grupo de jornalistas obstinados. Não haveria interesse em retórica
Buddhista. Bill Moyers, o produtor do documentário, me puxou de lado e perguntou se eu podia falar ao
coração da pessoa que está acompanhando quem está morrendo.
Quando chegou minha vez de falar, eu saquei o guardanapo no qual tinha escrito durante o voo.
1. Não espere.
2. Acolha tudo. Não afaste nada.
3. Traga seu inteiro eu para a experiência
4. Encontre um lugar de repouso no meio das coisas.
5. Cultive a mente do não-saber.
Os Cinco Convites são minha tentativa de honrar as lições que aprendi sentando à beira do leito com
inúmeros pacientes morrendo. São cinco princípios mutuamente suportivos, permeados com amor. Me
serviram como guias confiáveis para lidar com a morte. E, ao que tudo indica, são guias igualmente
relevantes para viver uma vida de integridade. Podem ser aplicados apropriadamente a pessoas que
estejam lidando com todos os tipos de transições ou crises –uma mudança para uma nova cidade, início
ou término de um relacionamento íntimo, saída dos filhos da casa.
Penso nesses cinco convites como cinco práticas insondáveis que podem ser continuamente exploradas
e aprofundadas. Elas têm pouco valor como teorias. Para serem compreendidas precisam ser vividas e
realizadas através de ação.
Um convite é um pedido para participar ou comparecer a um evento particular. O evento é sua vida, e
esse livro é um convite para você estar plenamente presente para cada aspecto dela.

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O PRIMEIRO CONVITE
Não Espere

Tudo o que fizemos com nossas vidas nos torna o que somos quando morremos.
E tudo, absolutamente tudo, conta.
- Sogyal Rinpoche

Jack foi viciado em heroína por 15 anos, passando a vida em seu carro. Um dia, pensando que estava
resfriado foi à emergência do San Francisco General Hospital (Hospital Geral de San Francisco), onde foi
diagnosticado com câncer de pulmão. Três dias depois ele mudou-se para o Zen Hospice (Zen Hospice
Project). Nunca mais voltou para seu carro.
Jack tinha um diário, que ocasionalmente compartilhava comigo e outros voluntários. Ele escreveu:
Ao longo dos anos, eu tenho adiado as coisas. Imaginava que sempre haveria muito tempo mais
tarde. Pelo menos consegui realizar um grande projeto: terminei aquele treinamento para ser
mecânico de motos. Agora, eles me dizem que eu tenho menos de seis meses. Eu vou enganá-los.
Vai ser mais do que isso...
Ah, quem estou enganando? Para dizer a verdade, estou apavorado, com raiva, cansado, e
confuso. Tenho somente 45 anos e me sinto como se tivesse 145. Tem muita coisa que quero fazer,
e agora não há nem tempo para dormir.
Quando as pessoas estão morrendo, é fácil para elas reconhecer que cada minuto, cada respiração conta.
Mas a verdade é que a morte está sempre conosco, intrínseca à vida em si. Tudo está em constante
mudança. Nada é permanente. Essa ideia tanto pode nos amedrontar como nos inspirar. No entanto, se
ouvirmos atentamente, a mensagem que ouvimos é: Não Espere.
“O problema com a palavra paciência,” disse o mestre Zen Suzuki Roshi, “é que ela implica que estamos
esperando que algo melhore, estamos esperando por algo que virá. Uma palavra mais acurada para esta
qualidade é constância/firmeza, uma capacidade de estar com o que é verdadeiro momento a momento.”
Abraçar a verdade de que todas as coisas inevitavelmente devem findar nos encoraja a não esperar para
viver cada momento de maneira profundamente engajada. Paramos de desperdiçar nossas vidas em
atividades sem significado. Aprendemos a não sustentar nossas opiniões, nossos desejos, e até nossas
identidades tão firmemente. Em vez de depositar nossas esperanças em um futuro melhor, focamos no
presente e em sermos gratos por aquilo que temos diante de nós agora mesmo. Dizemos “Eu te amo”
mais frequentemente porque percebemos a importância da conexão humana. Nos tornamos mais
bondosos, mais compassivos, e mais magnâmicos.
Não Espere é um caminho para a realização e um antídoto para o arrependimento.

14
1.
UMA PORTA DE ENTRADA PARA A POSSIBILIDADE
É quase banal dizer isso, mas é preciso enfatizar continuamente:
tudo é criação, tudo é mudança, tudo é fluxo, tudo é metamorfose.
- Henry Miller

Enquanto eu banhava suas costas, Joe virou-se para mim, olhou sobre os ombros, e disse resignadamente,
“Eu nunca pensei que seria assim.”
“O que?”, perguntei.
“Morrer.”
“Como você pensou que seria?”
Ele suspirou. "Acho que nunca pensei sobre isso.”
O arrependimento de Joe de nunca ter refletido em sua própria mortalidade foi causa de mais sofrimento
do que seu câncer terminal de pulmão.
O grande mestre Zen Coreano Seung Sahn ficou famoso por dizer: “Logo morto.” Um alerta irônico.
A morte é o elefante na sala. Uma verdade que todos sabemos mas concordamos não falar sobre.
Tentamos mantê-la à distância. Projetamos nossos piores medos nela, fazemos piada, tentamos
administrá-la com eufemismos, evitá-la quando possível, ou evitar totalmente conversar.
Podemos fugir, mas não podemos esconder.
Existe um antigo mito Babilônico, “Encontro em Samarra”, que W. Somerset Maugham reconta em sua
peça Sheppey. Um mercador em Bagdá envia seu servo ao mercado para adquirir suprimentos. Mas o
homem volta logo depois de mãos vazias, pálido e tremendo de medo. Ele conta a seu senhor que uma
mulher esbarrou nele na multidão. Quando a olhou mais de perto, a reconheceu como a Morte.
“Ela olhou para mim e fez um gesto ameaçador. Agora, me empreste seu cavalo, porque vou fugir dessa
cidade e evitar meu destino. Irei para Samarra e lá, a Morte não irá me encontrar.”
Dessa forma o mercador empresta ao servo seu cavalo. O homem cavalga em uma fúria selvagem.
Mais tarde, o mercador vai ao mercado para comprar seus próprios suprimentos. Lá, ele vê a Morte e
pergunta porque ela ameaçou seu servo mais cedo naquele dia.
“Não foi um gesto ameaçador,” a Morte responde. “Foi apenas um gesto de surpresa. Fiquei espantado
ao vê-lo em Bagdá, pois tinha um encontro com ele esta noite em Samarra.”
Como Joe, quando fechamos os olhos para a inevitabilidade da morte, ela nos pega de surpresa. Mesmo
correndo em outra direção, sempre chegamos em sua porta. A morte só se aproxima de nós porque não
notamos as pistas que ela escondeu à vista de todos.
Na maior parte das vezes, nós imaginamos que a morte virá mais tarde. Não faz sentido se preocupar
muito com isso agora. “Mais tarde” cria a ilusão confortável de uma distância segura. Mas mudança
constante, impermanência, não é “mais tarde”. É agora mesmo. A mudança é a norma. Nos colocamos à
disposição de grande decepção quando nos apegamos, esperando que as coisas nunca mudem. É uma
expectativa irracional. Quando era adolescente, meu pai me lembrava frequentemente de “aproveitar
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cada momento. Ele passa num piscar de olhos.” Eu não acreditava nele. Alguns anos depois minha mãe
morreu. Eu não tive a chance de me despedir dela, lhe dizer que a amava como gostaria. Tenho vivido
num tipo de sonho. Eu vivi dentro do confinamento do arrependimento por muitos anos.
George Harrison dizia a verdade quando cantava “Todas as coisas devem passar.” Esse momento
presenteia o próximo. Tudo está desaparecendo diante de nossos olhos. Isso não é um truque mágico. É
um fato da vida. A impermanência é uma verdade essencial tecida no próprio tecido da existência. É
inevitável, perfeitamente natural, e nossa companheira mais constante.
Um som chega e então vai. Um pensamento surge e então rapidamente se dissipa. Visões, sabores,
cheiros, tatos, sentimentos – todos são o mesmo: impermanentes, transitórios, efêmeros.
Meu cabelo loiro se foi há muito tempo. A gravidade está agindo em mim - meus músculos estão mais
fracos, minha pele tem menos elasticidade, as funções do meu corpo são mais lentas. Isso não é um erro.
Faz parte do processo natural de envelhecimento.
Onde está minha infância? Onde está a última noite de amor? Tudo que está aqui hoje será apenas uma
memória amanhã. Intelectualmente, podemos compreender que o vaso precioso de nossa mãe um dia
cairá da prateleira, o carro quebrará, e aqueles que amamos morrerão. Nosso trabalho é mover essa
compreensão do intelecto e abrigá-la profundo dentro de nossos corações.
A evolução ilumina essa lei imutável quando revela mudanças em escalas muito diferentes, do micro ao
macro. O microscópio eletrônico revela a estrutura extraordinária de uma célula humana. O núcleo, o
campo oscilante, as ondas de ritmo, prótons, nêutrons, partículas ainda menores em fluxo constante,
vivendo e morrendo momento a momento.
Olhando através do Telescópio Hubble, observamos a mesma dinâmica. Nosso universo em constante
expansão está sujeito ao mesmo processo. É verdade, os planetas podem viver mais do que células
humanas. O sol provavelmente seguirá como é agora por muitos bilhões de anos. Mas impermanência é
uma característica até mesmo das galáxias mais vastas. Elas ganham forma a partir de grandes nuvens de
gás, átomos se unem e, em algum momento, estrelas são criadas. Com o tempo, algumas desaparecem e
algumas explodem. Assim como nós, as galáxias nascem, vivem por um tempo e morrem.
Anos atrás, um amigo e eu iniciamos um pequeno programa pré-escolar. Ocasionalmente levávamos as
crianças de 3 a 5 anos para as matas próximas com a tarefa de encontrar “coisas mortas”. As crianças
amavam essa brincadeira. Elas alegremente coletavam folhas caídas, galhos quebrados, uma peça de
carro velho enferrujada, e ocasionalmente os ossos de um corvo ou de animal pequeno. Colocávamos
essas descobertas em uma grande lona azul em um bosque de pinheiros e fazíamos uma espécie de
brincadeira – mostrar e falar.
As crianças não tinham medo, apenas curiosidade. Examinavam cada item cuidadosamente, esfregavam
entre os dedos, cheiravam – explorando as “coisas mortas” de maneira pessoal. Então compartilhavam
seus pensamentos.
Algumas vezes fabricavam as histórias mais incríveis sobre um objeto. Como uma peça de carro
enferrujada caiu de uma estrela ou nave espacial quando passava acima, ou como uma folha foi usada
como cobertor por um ratinho até que chegou o verão e não foi mais necessária.
Lembro de uma criança dizendo: “Eu penso que as folhas que caem das árvores são muito bondosas. Elas
dão espaço para as pequenas folhas crescerem. Seria triste se as árvores não pudessem fazer crescer
novas folhas.”
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Embora associemos a impermanência principalmente com tristeza e términos, não se trata apenas de
perda. No budismo, a impermanência é muitas vezes referida como a "Lei da Mudança e do Vir-a-Ser".
Estes dois princípios correlatos proporcionam equilíbrio e harmonia. Assim como há constante
“dissolver”, há constante “vir-a-ser”.
Nós contamos com a impermanência. O resfriado que você tem hoje não durará para sempre. Esse jantar
chato chegará ao fim. A ditadura do mal desmorona, substituída por democracias prósperas. Até mesmo
árvores antigas são queimadas para que novas possam nascer. Sem impermanência, a vida simplesmente
não poderia existir. Sem a impermanência, seu filho não poderia dar os primeiros passos. Sua filha não
poderia crescer e ir para o baile de formatura.
Assim como a confluência de grandes rios, nossas vidas são uma série de diferentes momentos, juntando-
se para dar a impressão de um fluxo contínuo. Nos movemos de causa a efeito, evento a evento, um ponto
a outro, um estado de existência a outro – o que dá uma impressão externa de que nossas vidas são um
movimento contínuo e unificado. Na realidade não são. O rio de ontem não é o mesmo rio de hoje. É
como o sábio diz: “Não entramos no mesmo rio duas vezes.”
Cada momento nasce e morre. E de uma maneira muito real, nascemos e morremos com ele. Há uma
beleza em toda essa impermanência. No Japão as pessoas celebram o breve, porém abundante,
desabrochar das cerejeiras a cada primavera. Em Idaho, fora da cabana onde ensino, florzinhas azuis (linho
de jardim) vivem um único dia. Por que essas flores parecem mais magníficas do que as de plástico? A
fragilidade, a brevidade e a incerteza de suas vidas nos fascinam, nos convidam à beleza, maravilha e
gratidão.
Criação e destruição são dois lados da mesma moeda.
Em 1991, S.S. O Dalai Lama visitou São Francisco. Na preparação de sua chegada, monges Tibetanos
criaram uma mandala de areia no Asian Art Museum no Golden Gate Park . Usando ferramentas delicadas,
eles produziram um desenho finamente colorido no chão em um design intrincado. A peça de arte sagrada
representando o Kalachakra, ou Roda do Tempo, tinha mais 2 metros de diâmetro. Exigiu muitos dias de
trabalho incansável para os monges completarem.
Porém um dia, não muito depois da mandala ter sido acabada, uma mulher perturbada pulou a corda de
veludo que cercava a frágil criação. Ela atravessou como um tornado, chutando a areia
descontroladamente e destruindo completamente o trabalho meticuloso dos monges.
Os funcionários do museu e os seguranças ficaram chocados. Eles agarraram a mulher, chamaram a
polícia, e ela foi presa.
Os monges, no entanto, permaneceram imperturbáveis. Eles asseguraram aos funcionários do museu que
ficariam felizes de fazer outra mandala; de qualquer forma, essa mandala tinha sido agendada para ser
desmanchada em uma cerimônia de dissolução em uma semana. Os monges calmamente recomeçaram.
O Ve. Losang Samten, chefe dos monges artistas, disse aos repórteres, “Não sentimos nenhuma
negatividade. Não sabemos como julgar as motivações dela. Rezamos para ela com amor e compaixão.”
Para os monges, a mandala tinha servido a seu propósito. Sua criação e destruição tinha a intenção desde
seu início de oferecer uma lição sobre a natureza da vida.
A equipe do museu viu a mandala como um incomparável trabalho de arte, um objeto precioso. Para os
monges, a mandala era um processo cujo valor e beleza existiam em seu ensinamento sobre
impermanência e não-apego.
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No sentido cotidiano, temos a mesma experiência dos monges ao fazer sua mandala, quando cozinhamos.
Adoro assar pão - medir, misturar, amassar, ver a massa crescendo, assar o pão no forno, cortar o pão e
passar manteiga nele. Então o pão se foi. Partilhamos em uma mini-celebração da impermanência em
cada refeição bem preparada consumida com prazer.
De início, as notícias sobre a impermanência normalmente geram muita ansiedade. Em resposta,
tentamos tornar as coisas sólidas e seguras. Fazemos o nosso melhor para organizar as condições de
nossas vidas, para manipular as circunstâncias para que possamos ser felizes.
Adoro deitar na cama, particularmente numa manhã fria de inverno. Os lençóis são macios e quentinhos.
Meu corpo está bem descansado e desfruta de prazer sob os cobertores. Minha mente está em paz e
ainda não se lançou às tarefas do dia. Por um momento, tudo está certo com o mundo. Um momento de
perfeição.
Então preciso fazer xixi. Após um momento de resistência, corro depressa para o banheiro. Depois de
sentir um alívio temporário, salto de volta à cama, sob os cobertores na esperança de recriar aqueles
estado de perfeição. Mas não consigo tudo de volta da forma como estava há alguns momentos. Não
consigo criar condições que sejam capazes de proporcionar felicidade duradoura resistente à mudança.
Como a maioria de nós, eu aprecio circunstâncias boas. Estou entre aqueles afortunados com comida
suficiente para comer; tenho uma família que me apoia e amigos extraordinários, uma vida de
considerável alegria e facilidade. Não estou defendendo um estilo de vida ascético. Estou falando sobre
aprender a viver de forma harmoniosa com mudança constante.
Usualmente, buscamos felicidade tentando organizar o mundo de maneira a encontrar as coisas que são
agradáveis e evitar o que é desagradável. Isso parece natural, certo?
Enganamos a nós mesmos porque algumas vezes podemos manipular as condições de nossas vidas para
nos trazer felicidade temporária. Parece bom no momento, mas assim que o momento passa, estamos
procurando pela próxima experiência satisfatória. Nos tornamos “fantasmas famintos”, aqueles
personagens míticos com barrigas salientes, pescoços longos e finos e bocas minúsculas que nunca podem
ser satisfeitos.
A verdade da vida é que sua constante é a mudança. Quando olhamos de perto, há mais alguma coisa?
Não viver em harmonia com essa verdade nos causa sofrimento sem fim. Reforça nossa ignorância e
estabelece os hábitos de desejo, defesa e arrependimento. Esses hábitos endurecem o caráter e têm uma
força poderosa que frequentemente se mostra como obstáculos à paz no momento da morte.
Um dia, três mulheres judias grandes, incríveis e de meia-idade vieram me ver em meu pequeno escritório
no Zen Hospice. Elas eram irmãs. Uma delas era uma consultora política de elevado poder na cidade. A
mãe delas estava morrendo, e seu médico, um especialista em câncer cerebral tinha sugerido que viessem
me ver.
Eu comecei a falar com elas sobre nossa qualidade de cuidado, o que fazíamos, como respeitávamos as
crenças de cada um. Mas elas não estavam comprando a ideia. Estavam assimilando a esparsa decoração,
o espaço limitado em meu escritório, onde mal cabíamos todos.
Linda, a consultora política, perguntou direto, “Por que deveríamos trazer nossa mãe aqui? Vamos colocá-
la em um bonito quarto no Hotel Fairmont e contratar cuidadores para ficar com ela 24 horas. Por que
não faríamos isso, quando podemos bancar?”

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Eu respondi, “Claro, vocês podem fazer isso. E posso ver algumas pessoas para lhes ajudar.” Então fiz uma
pausa e peguei um livreto de fotos de nosso Hospice. “Mas posso lhe pedir só uma coisa? Mostre a sua
mãe essas fotos para que ela possa ver como é aqui e obter sua impressão.”
Quando partiram logo depois, fiquei pensando que nunca as veria novamente. Mas quarenta e cinco
minutos depois, o telefone tocou. Instantaneamente reconheci a voz aguda e forte de Linda. “Mamãe
quer lhe ver,” ela disse.
Eu havia sido convocado. Fui até o quarto do hospital onde ela estava, uma das melhores instalações em
San Francisco. Lá, encontrei não somente as três irmãs, mas também seu rabino, o especialista em câncer
cerebral, e um psiquiatra.
Me apresentei à mãe, Abigail. Ela sentou-se calmamente na cama, folheando o livro de fotos e me fazendo
todo tipo de perguntas. “Eu posso levar minha porcelana?”
“Claro. Pode trazer algumas”, eu disse.
“E minha cadeira de rodas? Eu realmente adoro minha cadeira de rodas.”
“Claro. Você pode trazer sua cadeira de rodas.”
Subitamente, Abigail congelou. “Espere um minuto. Não existe banheiro privado em meu quarto? Você
quer que eu vá pelo corredor para usar o banheiro?”
Eu olhei em seus olhos. “Me diga. Você está se levantando e indo muito ao banheiro esses dias?”
Abigail afundou de volta em seu travesseiro. “Não, eu não vou ao banheiro. Não consigo mais andar.”
Então ela voltou-se para a filha e disse, “Quero ir com ele.”
Eu acredito que o que Abigail gostou foi o fato de que eu não me rebelei contra sua rabugice nem tentei
fazer dela outra pessoa. Ela apreciou minha honestidade. Ela pode confiar. Ela não tinha uma dica de
como atravessar esse processo de morrer, mas acreditou que eu tinha. Ela sabia que se sentiria segura
conosco.
Abigail mudou-se no dia seguinte, passou uma semana e morreu. Todas as suas filhas estavam à beira de
seu leito quando ela morreu.
A atitude de Abigail mudou quando se dispôs a receber a verdade que estava bem diante dela – ser
honesto, não recusar ou se afastar. Ela reconheceu que era impermanente e que todas as condições de
sua vida estavam em fluxo. Ela entrou em sintonia com a lei da mudança e do devir.
Nomear o que está acontecendo em nosso momento presente é muito poderoso. Em vez de se agarrar
ao passado, entramos em sintonia com a verdade de nossas circunstâncias presentes, e então podemos
deixar de lado a luta.
Por que esperar até que estejamos morrendo para nos livrar da luta?
A impermanência nos torna humildes. Ela é absolutamente certa, embora a forma como irá se manifestar
seja completamente imprevisível. Temos pouco controle. Podemos encolher de medo ou escolher uma
resposta diferente.
O presente da impermanência é que ela nos coloca diretamente no aqui e agora. Sabemos que o
nascimento acabará em morte. Refletir sobre isso pode nos fazer saborear o momento, imbuir nossas
vidas com mais apreciação e gratidão. Sabemos que o fim de toda acumulação é a dispersão. Refletir
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sobre isso pode nos ajudar a praticar simplicidade e descobrir o que tem real valor. Sabemos que todos
os relacionamentos acabarão em separação. Refletir sobre isso pode nos impedir de ficarmos
submergidos pelo pesar e nos inspira a distinguir amor de apego.
Atenção à constante mudança pode ajudar a nos preparar para o fato de que o corpo um dia irá morrer.
Entretanto, um benefício mais imediato dessa reflexão é que aprendemos a estar mais relaxados com a
impermanência agora. Quando abraçamos a impermanência, uma certa graça entra em nossas vidas.
Podemos valorizar as experiências – tudo sem apego. Somos livres para saborear a vida, para tocar
inteiramente a textura de cada momento que passa, seja o momento de alegria ou de tristeza. Quando
compreendemos em nível profundo que a impermanência está na vida de todas as coisas, aprendemos a
tolerar melhor a mudança. Nos tornamos mais apreciativos e resilientes.
Em “Viver e Morrer: Uma Perspectiva Budista,” Carol Hyman escreveu, “Se aprendermos a nos soltar na
incerteza, a confiar que nossa natureza básica e a do mundo não são diferentes, então o fato de que as
coisas não são sólidas e fixas torna-se, em vez de uma ameaça, uma oportunidade libertadora.”
Tudo irá se separar. Isso é verdade em relação a nossos corpos, nossos relacionamentos, toda a vida. Está
acontecendo todo o tempo, não apenas no fim quando as cortinas se fecham. Reunir inevitavelmente
significa separar. Não se preocupe. Essa é a natureza da vida.
Nossas vidas não são sólidas e fixas. Conhecer isso intimamente é como nos preparamos para a morte,
para perdas de qualquer tipo, e como abraçamos totalmente a constante mudança. Não somos apenas
nosso passado; somos o vir-a-ser. Podemos liberar rancores. Podemos perdoar. Podemos nos libertar do
ressentimento e arrependimento antes de morrer.
Não espere. Tudo que precisamos está bem aqui em nossa frente. A impermanência é a porta de entrada
à possibilidade. Abraçá-la é onde está a verdadeira felicidade.

2.
AQUI E DESAPARECENDO
Treine-se na curva de seu próprio desaparecimento

- David Whyte

Os dispositivos mais comuns em hospitais para a medição da morte são monitores de TV que sinalizam o
ritmo da respiração com um beep e mostram o traçado e ritmo dos batimentos cardíacos. Qualquer
pessoa que passou por um drama médico é familiar com a cena de um indivíduo aplicando valentemente
a RCP (ressuscitação cardiopulmonar) ou um médico tentando salvar uma vida aplicando um choque
elétrico com um desfibrilador no coração de um paciente que não está batendo corretamente, em uma
luta infrutífera contra a linda de base mostrada no monitor. É essa temida linha que as famílias esperam
nos hospitais. O monitor anuncia com um tom agudo constante que há ausência de atividade no corpo,
que a morte de fato ocorreu.
Infelizmente, estamos tão desconectados da verdadeira experiência da morte que frequentemente tenho
observado membros da família olhando a morte de seus entes amados em uma tela de TV, em vez de
olhar para os olhos deles ou sentir a morte visceralmente em seus próprios corpos.
20
Mas existem outros sinais mais sutis da chegada da morte do que o beep de um monitor. Sinais que nos
conectam em vez de nos desconectar. Aqueles que nos fazem participar em vez de esperar.
No Sudeste da Ásia é bastante comum que homens jovens, como parte de sua educação, entrem na vida
monástica por um período de um ano, que pode se tornar toda uma vida. Ao entrarem na
comunidade/monastério suas cabeças passam por um ritual de raspar a cabeça e recebem o manto cor
de açafrão de um noviço. Em certos monastérios, esses monges são instruídos a ir para a floresta, sentar
em meditação e permanecer lá até que saibam que pertencem.
Esse “pertencer” que são solicitados a buscar representa mais do que uma mera adesão a uma
determinada comunidade monástica. O incentivo é para refletir no sentido mais fundamental de
pertencimento, que envolve a dissolução das diferenças.
Isso é similar ao que acontece naturalmente no processo de morrer. As formas como definimos nosso
“eu”, as identidades que carregamos por tanto tempo – de mãe ou pai, provedor ou cuidador, pessoa
solitária, rico ou pobre, bem-sucedido ou fracassado – todas essas descrições são despojadas pela doença
e envelhecimento, ou são graciosamente renunciadas. Então descobrimos algo mais elementar e
conectivo, uma verdade fundamental da natureza humana.
Muitas tradições e cosmologias espirituais, incluindo a Grécia antiga, tem sugerido que toda a vida é
composta de quatro elementos básicos: terra, água, fogo e ar. O Zohar, um texto místico Hebraico escrito
no século XIII, vê esses quatro elementos como a base de toda substância. Outras visões de mundo,
incluindo o pensamento Indiano e a filosofia Chinesa, falam do mesmo modo de cinco ou seis elementos
grosseiros. O Budismo observa que cada um desses elementos é um processo em constante mudança,
em vez de uma coisa estática. Se diz que todos esses componentes se dissolvem quando morremos,
através de um processo interdependente de corpo e mente. Os quatro elementos são mais do que forma
física: são estados emocionais e mentais, processos criativos. Eles tem um espectro de características: a
dureza e a suavidade da Terra, a fluidez e a coesão da água, a frieza e o calor do elemento fogo, a quietude
e o movimento do ar.
Algumas vezes as explicações médicas dos sinais e sintomas da aproximação da morte são muito
improdutivas e estranhas. Muitas vezes senti o modelo dos quatro elementos útil para lembrar enquanto
os membros da família mantêm vigília durante longos dias e noites no processo ativo de morte de seu
ente querido. É uma maneira de entender como liberamos nossas identidades e seus componentes; os
elementos grosseiros do corpo, pensamentos, percepções, sentimentos, tudo se dissolvendo.
Samantha era uma guia de natureza selvagem (Wilderness Guide*) em seus quarenta e poucos anos. Eu
sentei com ela em uma noite interminável, enquanto seu marido, Jeff, estava morrendo. Ela me
perguntou o que poderia fazer para ajuda-lo.
(* wilderness guide: é um profissional treinado e experiente, com competência para desenvolver,
organizar, promover e guiar atividades na natureza selvagem. Fonte:
https://www.facebook.com/wildernessguidesassociation/)
Eu perguntei, “O que você faz quando seus filhos pequenos estão doentes?”
Ela disse, “Bem, sento-me calmamente ao seu lado ou às vezes me aconchego com eles. Falo menos e
escuto mais. Eu deixo eles saberem que estou bem aqui com eles. Reitero em palavras e em contato o
quanto os amo.”
“Maravilhoso,” eu disse. “O que mais?”
21
Pude ver ela se lembrando do que já sabia. Ela quase sussurrou, “Tento criar um ambiente tranquilo de
forma que eles não tenham tanto medo. Eu tento fazer coisas simples com grande atenção. Prometo que
não vou deixá-los. Digo que está bem que estejam doentes e que não será assim para sempre.”
Ela começou a chorar. “Mas eu nunca fiz isso numa situação de morte antes. Não compreendo o que está
acontecendo.”
É natural desmoronarmos diante de perda. Não há necessidade de deter isso. Geralmente nossos velhos
mecanismos de enfrentamento simplesmente não funcionam nesse contexto. Entretanto, encontrar
nossa base ou recordar o que tem sido mais significativo pode nos ajudar a estar presentes com o que
estamos experienciando. Para alguns, esse é o fôlego ou a força dos relacionamentos; para outros, são as
tradições culturais ou a fé religiosa. A igreja de Samantha era a natureza selvagem.
Sabendo que ela e Jeff tinham se apaixonado durante uma viagem mochilando, eu perguntei à Samantha
o que ela mais amava no ar livre.
Ela disse, “Estar no meio disso, tudo isso, tudo - as rochas que escalo, a chuva que me encharca até os
ossos, o céu frio e noturno, os ventos que varrem as montanhas, levando cheiros e sons aos meus pés. É
minha verdadeira casa. É onde mais pertenço.”
Samantha e Jeff tinham vivido na natureza; conheciam seus modos e linguagem, e não a viam como algo
separado deles mesmos. Me arrisquei e sugeri que Jeff, talvez, estivesse “no meio disso tudo”. Seu corpo
era de uma forma muito elementar feito de terra, água, fogo e ar. Dessa forma, ao morrer ele estava
retornando à natureza que tanto amavam.
O corpo de Jeff ficou muito quieto. Isso acontece quando o elemento terra se dissolve. Nos estágios iniciais
do morrer, as pessoas podem se queixar que suas pernas ou pés estão dormentes. Eles podem não
responder.
“Você consegue ver o elemento terra em Jeff? Ele era um homem forte?” eu perguntei.
Samantha segurou a mão de Jeff e beijou sua cabeça. Ela riu e ternamente disse, “Ele sempre foi cabeça-
dura e teimoso, mas tem a pele mais macia.” Ela falou não somente em suas qualidades físicas, mas
também as características de sua personalidade, que ela estava agora vendo desvanecer.
“Correto,” eu disse. “Forma sólida, fixa, que está perdendo sua força, sendo drenada a energia, incapaz
de sustentar mais.”
À medida que o elemento terra - forma - se dissolve, revela o elemento água. A pessoa que está morrendo
pode então experienciar uma incapacidade de engolir fluidos, incompetência urinária e intestinal, e
lentidão da circulação sanguínea.
Nos dias anteriores, Samantha tinha dado a Jeff goles de água, e depois, pedaços de gelo. Agora ela
umedece sua boca com uma esponja porque ele não consegue mais engolir. Ela falou sobre o movimento
criativo livre que desfrutavam ao planejar uma excursão na floresta. Samantha disse que nos últimos dias,
ela viu que o corpo e a mente de Jeff tinham começado a se contrair de medo. Eu a recordei do elemento
água e suas características de fluidez e coesividade. Falamos dos grandes rios, como alguns secam em
certas estações, e do desprendimento de gelo das geleiras congeladas do Alasca, a forma como as bordas
desmoronam e deslizam sob a água.
O poeta Persa Ghalib escreveu, “Para a gota de chuva, a alegria está em entrar no rio.”

22
Agora o elemento água está se dissolvendo, dando lugar ao fogo. Quando isso acontece, a temperatura
do corpo flutua. Infecções podem originar febre ou um metabolismo baixo pode deixar a pele fria e úmida.
À medida que Jeff se aproximava da morte, suas mãos e pés ficaram mais frios, o calor se reuniu no centro
de seu corpo em direção ao seu grande coração. Samantha relembrou o fogo apaixonado de seu amor, o
calor de suas discussões, e aquela sensação horrível ao se afastarem um do outro na cama em fria
indiferença. Ela o beijou da cabeça aos pés e se desculpou por ter discutido com ele.
Os cientistas teorizam que em algum lugar em nossa galáxia há muito tempo, uma estrela explodiu,
lançando massas de gás e poeira. Essa supernova, ao longo de bilhões de anos, eventualmente formou
nosso sistema solar. Os poetas diriam que já fomos estrelas brilhantes agora esfriadas, a luz do sol
congelada em forma humana.
O elemento fogo estava se dissolvendo, dando lugar ao ar. Nesse estágio final da morte física, as pessoas
frequentemente exibem dramáticas mudanças no padrão respiratório – respiração lenta e rápida com
longos intervalos entre expirações e inspirações. Às vezes, a única coisa que resta na sala é a respiração.
A morte é muito parecida com o nascimento nesse sentido, com a atenção de todos naturalmente focada
na simplicidade da respiração.
Não havia mais luta ou agitação em Jeff. A ansiedade, desorientação, e caos que tinham configurado os
últimos dias, se foram. Tudo que permanecia era o ritmo errático de sua respiração. O tempo passou, e
Samantha sentava-se calmamente em meditação informal, sentindo a vitalidade, o milagre da vida que
era ao mesmo tempo evidente e em declínio.
Logo antes da última respiração de Jeff, Samantha falou para ele, “Estou bem aqui, e quero ir fundo para
encontrá-lo uma última vez.” Ela fechou os olhos e ficou imóvel. Jeff e Samantha pareciam se encontrar
em um espaço profundo, insondável. O passado se fora, não havia futuro. Havia somente o presente.
Jeff exalou mais algumas vezes e então não respirou novamente.
Uma quietude e uma tranquilidade nos envolveu. Senti isso como calor e senti uma luminosidade, uma
espécie de brilho. Após algum tempo, Samantha falou em voz alta, como se estivesse falando mais para
o espaço do que para mim. “Eu pensava que o estava perdendo, mas ele está em todos os lugares.”
A terra dissolve-se em água. A água dissolve-se em fogo. O fogo dissolve-se em ar. O ar dissolve-se em
consciência.
Morrer, em muitos casos, não acontece de repente. É um processo gradual de se retirar da vida em forma.
Quando eu falo dos quatro elementos se dissolvendo, não estou falando exatamente da forma física. Em
vez disso, estou apontando para as qualidades inspiradoras inefáveis, mas observáveis, que parecem tão
ausentes quando ficamos apenas com o peso do cadáver após a morte. Há algo além dos quatro
elementos – o espírito, alma, ou presença inspiradora. Nossos instrumentos e dispositivos podem
certamente mensurar a desintegração física, mas a dissolução interna que acontece simultaneamente é
sutil e calma.
Estão todos se dissolvendo – os elementos e seus estados associados, e como resultado, o eu está se
dissolvendo, também. Isso está acontecendo todo o tempo, nós apenas vemos na superfície no momento
da morte.
Agora quem é você?

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Até pessoas como Samantha, que não tem crença sobre vida após morte ou qualquer tipo de consciência
sutil, pode perceber uma qualidade do ser cada vez mais irradiante, da qual os adeptos espirituais falam
há séculos. Elas só precisam se abrir a isso. Essa luz, aspecto sutil da existência parece mais accessível
quanto mais perto alguém chega da morte. Embora inexplicável, esse aspecto sutil pode ser sentido,
intuído e facilmente reconhecido por pessoas ordinárias à medida que a aparente solidez e densidade do
corpo está se retirando.
Não temos uma linguagem adequada para descrever esse tipo de experiência incompreensível, desse
modo a chamamos de Mistério, com M maiúsculo. Ao longo dos anos descobri que aquilo que
experienciamos ou conhecemos diretamente pode ser muito mais importante do que nossa habilidade
de explicar ou mensurar.
O que se torna inegável quando sentamos com pessoas que estão morrendo é que a fragilidade e
impermanência fazem parte da natureza da vida. Tudo está o tempo todo se reunindo e se desintegrando
– não apenas as propriedades físicas, e não apenas no momento da morte.
E é possível segurar tudo em amor e compaixão.
É engraçado – todos nós concordamos que a vida está em constante fluxo. Contudo preferimos agarrar a
ilusão de que somos coisas sólidas movendo-se em um mundo em mudança. “Tudo está mudando, exceto
eu,” dizemos a nós mesmos.
Mas estamos equivocados. Não somos apenas os pequenos sólidos selfs que consideramos ser o que
somos. Não somos o professor da escola, não somos o contador, não somos o barista. Não somos o
engenheiro de software. Não somos o escritor, nem o leitor desse livro. Pelo menos não exatamente como
imaginávamos. Não separados e à parte. Estamos em fluxo. Somos feitos de elementos que dançam.
Estamos, como tudo, ao mesmo tempo aqui e desaparecendo.
Somos como as janelas da casa de fazenda centenária onde eu morava. As vidraças pareciam tão sólidas
como as de qualquer janela. Eu podia bater no vidro e ouvir o som vivo das juntas dos dedos fazendo
contato. Mas olhando mais de perto, era aparente que o vidro era mais espesso na parte inferior do que
na superior da vidraça. O vidro não é completamente sólido; ele é fluido, sujeito à força da gravidade. Ao
longo de muitas décadas, a janela que parecia tão rígida, tão permanente, tinha mudado, o vidro tinha se
movido em uma direção descendente.
Nosso senso de self/eu é tão impermanente como aquela janela de vidro. Tem um propósito, mas não é
sólida. Não fica seduzida por sua aparência duradoura.
Embora a doença possa nos contrair em um senso de self/eu ainda menor, muitas pessoas que estão
doentes ou morrendo falam de não estarem mais presas pelos prévios limites de suas identidades antigas,
familiares. Estão expostas a um cenário mais expansivo. De uma maneira estranha, a doença – como um
poderoso encontro com a beleza - nos sacode, nos amadurece e nos abre para dimensões mais profundas
do ser. Não é que a vida se torne perfeitamente doce e perfeitamente ordenada. Há ainda muita
insanidade, desordem, caos. Entretanto, incorporamos identidades muito mais amplas. A vida interior e
o mundo externo permeiam um ao outro e se misturam.
Charles era um homem elegante. Quando mudou-se para o Zen Hospice, trouxe com ele suas finas taças
de champagne de cristal e serviço de prata Espanhol. Ele orgulhosamente organizava pequenos jantares
para amigos nas noites de sexta-feira. Usava ternos italianos e gravatas de seda... até que não conseguiu
mais. Aos poucos, passou a vestir nada mais do que seu roupão e cancelou as ceias íntimas.

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Com o passar do tempo, outros elementos de sua auto-imagem começaram a se soltar também. Ele
começou a agarrar os seios das mulheres e fazer juras como um marinheiro. Isso foi compreensivelmente
perturbador para seus amigos, que ficaram bastante horrorizados com seu comportamento impróprio.
“Bastante inconsistente com o caráter dele!” eles murmuravam baixinho. Não é fácil nem engraçado
conviver com mudanças comportamentais tão radicais.
À medida que Charles ficou mais cansado e confuso, ele se retirou de seus círculos sociais prévios,
escolhendo convidar apenas um velho amigo, de confiança, que tinha sido antes seu amante. Essa foi
talvez a única pessoa que entendeu que Charles não estava agindo diferentemente como resultado de
sua demência relacionada ao AIDS. Era seu mundo inconsciente que estava se intrometendo em sua vida
cotidiana consciente.
Aprendemos muito cedo na vida a não deixar escapar material não desejado. Começamos a moldar a nós
mesmos na infância precoce porque desejamos que nossos pais nos amem, e dependemos deles para
nossa sobrevivência. Inevitavelmente, adotamos suas premissas inconscientes, vieses, e preconceitos –
bons e maus – junto com aqueles de nossa cultura e educação religiosa particular. Ou nos rebelamos
contra eles. Seja qual for o caso, somos condicionados desde cedo a agir de certa maneira. O padrão de
adaptação – de buscar aprovação e evitar desaprovação – continua por toda a nossa escolarização, nossos
chefes e amigos, e serve como modelo para nossos relacionamentos íntimos futuros.
Em resumo, empurramos para baixo da superfície de nossa consciência o que tememos que irá ameaçar
nossa sobrevivência, e apresentamos ao mundo tudo que acreditamos que nos dará aquilo que
desejamos. Ao longo dos anos, os padrões se tornam profundamente arraigados, formando e sustentando
nossa auto-imagem, que por sua vez origina um senso de identidade pessoal.
Quando estamos seriamente doentes, como Charles, toda a nossa energia pode ser drenada para apenas
ficar de pé, ir ao banheiro ou realizar as funções mais simples da vida diária. A doença quebra nossas
noções de controle. Não percebemos, mas o processo de repressão ao longo da vida consome energia.
Quando simplesmente não temos mais aquela energia disponível, material inconsciente começa a
escapar. Frequentemente nos surpreende. Pode ser bastante difícil não reconhecer a si mesmo ou a um
amigo quando essas tendências reprimidas vêm à tona e as identidades mudam. Ao mesmo tempo há
uma liberdade em não mais empurrar para baixo aquilo sobre o qual tínhamos vergonha ou nos sentíamos
indignos, muitas vezes por toda a nossa vida. As dualidade e falsos limites que criamos podem se
dissolver. Quando recebe espaço, a verdade pode ser conhecida, e pode ser integrada em um senso de
self mais expandido.
Algumas vezes aquilo que reprimimos não é nossa energia sexual bruta, nossa vergonha, ou algo sobre o
qual sentimos culpa, mas nossa bondade inata.
Sean chegou ao Zen Hospice em soltura compassiva da prisão, onde estava cumprindo uma pena por
homicídio culposo depois de esfaquear fatalmente sua irmã mais velha dezessete vezes. Um condenado
perpétuo, Sean era circunspecto, isolado e difícil.
De início, o Hospice foi muito desafiador para Sean. Ele nos afastava. Ficava mal-humorado e irritado
quando suas demandas por sua comida não saudável não eram atendidas imediatamente. Raramente
falava sobre sua vida e criticava os voluntários dizendo que eram abelhudos. Nós continuamos a tratá-lo
como a todos, com respeito e amor.
Eu gostava de sair com Sean, tagarelando e fumando cigarros. Aos poucos, aprendi que ele cresceu em
um orfanato e foi para o reformatório aos treze anos. Esteve preso a maioria de sua vida adulta. Se tivesse

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buscado ajuda ou mostrado bondade por alguém naqueles dias, teria sido ridicularizado ou talvez até
morto.
Um dia estávamos sentados no quintal quando Sean disse, “Frank, eu deixei eles me ajudarem hoje.”
“O que você os deixou fazer?” eu perguntei.
“Deixei que os enfermeiros me ajudassem a entrar no chuveiro.” Ir pro chuveiro. Não lhe dar banho. Sean
os tinha deixado ajudá-lo a entrar no boxe com suas roupas, de modo que pudesse ficar nu depois de
deixarem o quarto. Essa foi a primeira vez em décadas que ele tinha deixado alguém ajudá-lo.
Gradualmente, à medida que o ambiente gentil e receptivo do Hospice relaxou suas defesas, Sean ficou
livre para descobrir e revelar mais de si mesmo – partes de sua identidade que tinham ficado há muito
tempo escondidas por segurança. Qualidades como calor e generosidade surgiram.
Durante os quase vinte anos que trabalhei no Zen Hospice, Sean foi a única pessoa que me fez uma festa
surpresa de aniversário. Ele insistiu em usar o dinheiro de seu parco cheque do governo. Ele quis contratar
uma performer para saltar do bolo, mas as enfermeiras o dissuadiram. Ele se contentou com balões e um
bolo de verdade.
Todos os voluntários e enfermeiros(as) estavam reunidos quando trouxeram o bolo, velas acesas, e
começaram a cantar o “Parabéns pra Você”. Eu não estava sabendo da surpresa, e só mais tarde fiquei
sabendo que tinha sido ideia de Sean. Fiquei profundamente tocado. Isso foi a coisa mais amável que ele
fez para mim.
Antes de morrer, Sean fez um vídeo para seu filho – um filho que nunca conheceu. Ele dizia, “Você sabe
que eu nunca estive presente. Você nem me conhece. Mas estou lhe dizendo agora, estou chegando ao
fim da minha vida, e essas coisas são importantes de se saber”. Ele passou a dar ao filho instruções
paternais sobre bondade e perdão.
Foi a reviravolta mais maravilhosa. Quando Sean baixou suas defesas e permitiu que seu coração se
abrisse, sua compaixão, amor e ternura inatos vieram à tona. Não foi porque tentamos mudá-lo, iluminá-
lo, ou convertê-lo. Foi apenas porque nós o amávamos. Com amor, Sean finalmente foi capaz de
abandonar sua identidade ferozmente construída, auto protetora, mas em última análise, autolimitada:
a ideia de que era um condenado, um cara mau, sem nada de bom para oferecer ao mundo.
Meu próprio senso de eu foi desfeito por meu ataque cardíaco. Um dia eu era o respeitado professor
Budista; no outro era apenas mais um paciente em um roupão de hospital com a bunda de fora. Nos
meses seguintes me senti despojado das defesas e identidades psicológicas que uma vez me definiu. Eu
estava humilhado e desamparado. Dediquei dias inteiros à lágrimas, saudade, arrependimento, pânico e
apego a histórias familiares que me davam uma sensação temporária de controle.
Perder o contato com minha auto-imagem foi assustador no início. Eu tinha sido sempre o forte, aquele
que cuidava dos outros. Agora estava cheio de equimoses, mais fraco do que nunca, incapaz de tomar
banho ou amarrar os sapatos sem ajuda. Me sentia fraco e dependente, e experimentei um medo
irracional de que nunca mais pudesse trabalhar ou ser útil ao mundo. Parte de mim pensava que poderia
me recuperar. Mas o que eu precisava fazer era exatamente o oposto – me render ao processo.
Me fizeram recordar o antigo mito Sumeriano da descida da Rainha Inana ao submundo, a imagem
metafórica do inconsciente profundo. É a história de uma jornada arquetípica em direção à totalidade,
onde ela abraça seu lado sombrio e se livra das armadilhas de seu antigo eu e obtém uma visão essencial
da morte para eventualmente retornar com uma apreciação mais completa do ciclo da vida. Ela começa
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vestida com roupas finas e usando a coroa de um deus celestial. No caminho em direção ao submundo,
ela atravessa sete portões. Em cada portão ela é solicitada a renunciar seus símbolos de poder: um anel
de ouro, seu escudo, seu cetro. Até ela ficar nua.
Eu me senti nu.
Costumamos nos enfeitar com vários ornamentos reluzentes para moldar uma auto-imagem positiva, às
vezes inflando nossas capacidades ou importância. Por outro lado, podemos adicionar combustível a um
auto conceito negativo e exagerar falhas ou fraquezas. Sabemos essencialmente que esta construção que
carregamos e projetamos no mundo não é substancial ou real, e contudo investimos nela e a confundimos
com a realidade.
Então alguma coisa chega e expõe o que parecia tão sólido. Nos damos conta de que estamos
constantemente mudando impressões e representações; que nossa história é mantida por nada mais do
que cuspe, cola e hábito. Vemos que a identidade não é estática.
Identificar é uma ação interior, um processo que fazemos conosco mesmo. Podemos nos identificar com
quase qualquer coisa – um emprego, uma nacionalidade, uma preferência sexual, um relacionamento,
nosso progresso espiritual, ou um pensamento passageiro. Tão importante quanto isso, podemos
começar a soltar nossas identidades ficando curiosos. Agora mesmo, podemos observar as atitudes e
reações, as preferências que nos deixam apegados àquilo com o qual nos identificamos. Uma vez
reconhecida, podemos permitir que a identificação seja sem afastá-la. Sem necessidade de lutar com ela.
Gradualmente ela se dissolverá porque ela, também, é impermanente.
Isso é o que o mestre Zen Suzuki Roshi estava apontando quando disse, “O que chamamos de ‘Eu’ é apenas
uma porta de vaivém que se move quando inspiramos e quando expiramos.”
Suavizando em torno dessas identidades, sentiremos menos restrição, mais liberdade, mais prontidão e
presença. Mas de início, normalmente nos sentimos vulneráveis.
Na entrada da maioria das salas de meditação do Zen há um han: um grande e sólido bloco de madeira
que os monges batem com uma marreta para chamar os alunos ao zendo para meditação. Escrito no bloco
em tinta preta sumi está o ensinamento:
Esteja ciente da Grande Questão do Nascimento e da Morte
A vida passa rapidamente,
Acorde, acorde!
Não desperdice esta vida.

Estudantes e professores passam pelo bloco de madeira toda manhã, recordando-se da verdade
fundamental da impermanência. Com o passar dos anos, a marreta abre um buraco onde bate no grosso
bloco de carvalho, e o que parecia tão sólido torna-se fino, vulnerável. As palavras desaparecem, e o bloco
de madeira em si torna-se o próprio ensinamento.
Ser vulnerável é como isso. Quando relaxamos o apego às nossas crenças e ideias estimadas, suavizamos
nossa resistência aos golpes da vida, paramos de tentar administrar a incerteza e nos consideramos com
mais leveza, então nos tornamos uma coisa menos sólida. Uma identidade menos fixa.
Nos meses seguintes ao meu ataque do coração, percebi que quanto mais eu permitia que minha
vulnerabilidade emergisse, menos contido eu me sentia. Fiquei menos ocupado com o trabalho em tempo
integral de produção. Eu podia sentir a exaustão de sustentar minha personalidade. Às vezes minha
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personalidade parecia um balão gigante que eu ficava sem fôlego tentando constantemente inflar. Ao
aceitar a fragilidade da minha vida, isso me abriu. Me senti como uma coisa porosa, mais transparente,
mais permeável.
Uma das poucas memórias que tenho de minhas aulas de biologia é o ensinamento sobre osmose – o
processo pelo qual moléculas entram e saem das células através de uma membrana semipermeável.
Penso que nossa consciência é como essa membrana semipermeável. E nossa natureza mais profunda
pode nos permear através de um processo como a osmose.
Graças à nossa vulnerabilidade, a possibilidade de conhecer nossa identidade mais essencial está sempre
presente. Não precisamos esperar por outro momento ou por condições perfeitas ou por nossa morte
para realizarmos isso. Na verdade, o reconhecimento de nossa impermanência geralmente aparece
quando menos esperamos, estimulado pelas próprias condições que buscamos evitar.
Durante minha recuperação, me sentia permeável a tudo. A beleza sublime e o horror do mundo
entravam em minha consciência sem resistência. Eu estava receptivo a tudo. Eu dava boas-vindas. Não
havia filtros entre mim e qualquer parte de mim ou o mundo. Eu estava apenas sendo.
Lembro de segurar a mão de Sid, uma paciente idosa que chegou até nós no Hospice, rabugenta e rude.
“Bom dia!” uma voluntária diria.
“Estou morrendo de câncer. O que há de bom nisso?” ela vociferava de volta.
Mas em seus últimos dias, ela deixou de ser durona para ser cada vez mais translúcida. Sua pele tornou-
se quase transparente, e todo o seu ser seguiu o exemplo. Ela perdeu tanto peso que parecia que o vento
poderia soprar através dela. Sua bravura desapareceu, substituída por um comportamento calmo e
amoroso. Era como se essa evolução permitisse que sua natureza mais essencial se mostrasse, porque ela
não estava mais preocupada em tentar manter a narrativa desgastada de sua vida.
Quanto mais permeável eu me tornei, mais me conscientizei de que nós humanos somos apenas ‘pacotes’
de condições em constante mudança. Devemos nos levar com mais leveza. Nos levar demasiado a sério
causa muito sofrimento. Dizemos a nós mesmos que estamos no comando: “Prepare-se! Faça isso!”
Quando, na realidade, estamos bastante desamparados, sujeitos aos eventos que ocorrem ao nosso
redor. Mas esse desamparo nos coloca em contato com nossa vulnerabilidade, que pode ser uma porta
para o despertar, para uma intimidade mais profunda com a realidade.
Meu senso de eu não desapareceu completamente após o ataque do coração. Eu ainda era Frank, mas
minha personalidade não era mais a força dominante que uma vez tinha sido. Durante os meses de
recuperação, eu passava muito tempo sentado em uma antiga poltrona de couro com uma maravilhosa
vista para o mar. Normalmente deixava a porta de entrada destrancada pois se alguém viesse me visitar,
eu poderia gritar um boas-vindas e a pessoa entraria sem que eu precisasse me levantar, o que era difícil
para mim.
Então um dia, cerca de seis meses após a cirurgia, eu ouvi a campainha tocar. Instintivamente pulei para
responder. Quando estava atravessando a sala, senti meu senso de eu retornando ao meu corpo. Parecia
uma cena do filme Invasores de Corpos. Meu eu estava se reafirmando com uma desforra.
“Estou de volta. Não se preocupe. Estou no comando novamente,” ele disse.
Por mais estranho que possa soar, eu não fiquei exaltado quando isso aconteceu. Na verdade, parecia
uma perda. Eu estava com medo de voltar aos meus velhos hábitos e perder o contato com o recém-
descoberto senso de minha natureza fundamentalmente ilimitada.
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Felizmente, não foi isso que aconteceu. Em vez disso, eu descobri que era capaz de funcionar como Frank,
minha personalidade que faz coisas no mundo, mas também tinha acessado uma dimensão maior do Ser
que descobri durante minha recuperação. Realizei a possibilidade de uma paz interior. Não importa as
condições de minha vida, eu podia deixar ir. Podia mudar. Podia encontrar contentamento.
Felizmente não precisamos esperar ficar doentes ou estar morrendo para abraçar nossa própria
impermanência. Qualquer evento de mudança de vida importante nos proporciona essa oportunidade.
Pense em como os novos pais expandem sua visão de si mesmos para incluir seu papel como pai ou mãe.
Tomemos, por exemplo, a executiva que perde seu emprego de alto poder. Ela pode se debater por
meses, até anos, depois de tal golpe, se estiver muito apegada à sua identidade como mulher de carreira.
Só quando for capaz de soltar e incluir a si mesma como alguém que é maior do que a função que
desempenhava, como um ser humano com paixões, interesses, medos, e dores que se desenvolvem e
evoluem com o tempo, ela pode começar a se recuperar e forjar um novo caminho para si mesma.
Quando nosso senso de ‘eu’ muda para Ser , vamos além de nossa reatividade à impermanência. Não
somente isso, mas, exatamente como aconteceu comigo, ficamos consciente de algo que está além da
impermanência: a fonte permanente de onde brota a vida. Suzuki Roshi escreveu, “Viver... significa
morrer como um pequeno ser momento após momento.” O que ele quis dizer é que o eu não é uma coisa
estática separada, mas um processo, ou, na verdade, uma rede de processos interconectados. Quando
percebemos isso, vemos que sempre há uma oportunidade de responder a uma situação de forma
criativa. Nada está nos impedindo de mudança e transformação - e nada esteve.
Abraçar nossa própria impermanência é uma jornada, levando-nos cada vez mais fundo em contato com
a verdadeira natureza das coisas. Primeiro aceitamos que as coisas ao nosso redor mudam. Então
compreendemos que, nós mesmos, estamos sempre mudando: nossos pensamentos e sentimentos,
nossas atitudes e crenças, até nossas identidades.
A maravilha é que nossa impermanência nos liga a todos os outros seres humanos. A empatia surge da
apreciação de nossa transitoriedade e da compreensão de nossa interconectividade. Não estamos
separados, como antes pensávamos. Estamos, na verdade, profundamente conectados a tudo e a todos.

3.
O AMADURECIMENTO DA ESPERANÇA
A esperança inspira o bem a se revelar
- Anônimo (ou atribuído a Emily Dickinson)

Caminhando ativamente pelo amplo corredor de um enorme centro médico de vidro e aço, eu refletia
sobre a natureza impessoal do sistema de saúde atual. Nesse momento o som da Canção de Ninar de
Brahms começou a tocar no sistema de autofalantes do hospital.
Perguntei à chefe da enfermagem, que estava me acompanhando para a minha palestra, sobre essa
música encantadora. Ela disse com um sorriso, “Um bebê acabou de nascer.” Surpreso com sua resposta,
pedi que ela me contasse mais.
Ela explicou que sempre que um bebê nascia naquele lugar, o departamento da maternidade tocava a
Canção de Ninar de Brahms. A música era transmitida para todos os espaços.

29
“Até os quartos dos pacientes?” eu perguntei incrédulo.
“Sim, e todos os serviços: ortopedia, UTI, Emergência, salas de cirurgia, setores administrativos, cafeteria,
até o departamento de segurança,” ela disse orgulhosamente.
“É tocado para todos os nascimentos, até os mais difíceis?” eu perguntei com espanto.
Ela respondeu, “Sim, é tocado para todos os nascimentos: partos naturais, bebês prematuros, partos
cesarianas.”
Quando olhei ao redor, vi pessoas que antes corriam em suas atividades pararem para um fôlego. As
conversas pararam e deram lugar a sorrisos sutis. Por alguns momentos, onde havia tensão e estresse,
agora havia alegria e bem-estar.
Hospitais são imãs para o sofrimento. São ambientes com grande dor física, medo, ansiedade, e outros
desconfortos. A equipe tende a se envolver em detalhes técnicos do cuidado, sobrecarregada pelo
sofrimento dos pacientes e sua incapacidade de responder a ele.
A Canção de Ninar de Brahms era um bálsamo, um lembrete alegre do potencial para uma nova vida que
existe a qualquer momento, um encorajamento edificante para continuar mesmo diante da adversidade.
A música era mais do que um anúncio de otimismo. Por um curto período, a esperança preenchia o ar.
Esperança é uma atitude sutil, algumas vezes inconsciente, do coração e mente, um recurso essencial
nesta vida humana. É o ingrediente que abastece a motivação para nos levantarmos de manhã e olharmos
adiante para as possibilidades de um novo dia. É a antecipação de um futuro que é bom. Desmond Tutu,
a consciência moral da África do Sul e crítico ferrenho do apartheid, disse certa vez, “Esperança é poder
ver que há luz apesar de toda a escuridão.”
Experts divergem se a esperança é uma emoção, uma crença, uma escolha consciente, ou todas as três.
Václav Havel, o filósofo e primeiro presidente da República Tcheca, sugeria que a esperança é “uma
orientação do espírito.” Penso que a esperança é uma qualidade inata do ser, uma confiança ativa e aberta
na vida, que se reusa a desistir.
O que sabemos com certeza é que a esperança nos leva além do racional. Às vezes, isso pode ser de
grande valor para nossa sobrevivência. Contudo, outras vezes, quando a esperança é mal-entendida, ela
pode nos mergulhar na delusão e se tornar um obstáculo para encarar os fatos da vida.
Para discernirmos o real valor da esperança, devemos traçar uma linha entre esperança e expectativa. A
esperança é uma força otimizadora que nos move e toda a vida em direção à harmonia. Ela não chega de
fora; em vez disso, é um estado permanente de ser, uma fonte oculta dentro de nós. Quando está quieta
e desperta, podemos ver a realidade mais claramente e reconhecê-la como um processo vivo, dinâmico.
A esperança ativa tem uma ousadia imaginativa, que nos ajuda a realizar nossa unidade com toda a vida
e a encontrar a irreverência necessária para agir em seu nome. Podemos sentir a leveza, a vivacidade
desse tipo de esperança, o entusiasmo e a positividade que ela gera. Isso nos dá energia para nos
engajarmos em atividades que imaginamos irão enriquecer nosso futuro. Esta versão de esperança é uma
necessidade humana básica.
No entanto nosso tipo usual de esperança é pouco mais de que pensamento positivo. Frequentemente
está ligada a uma crença quase infantil, às vezes até fé cega, de que um agente ou autoridade externa
fará o que desejamos. Impulsionada por nossa preferência por um diferente conjunto de condições, essa
visão convencional da esperança é uma rejeição do que está presente para nós aqui e agora. É o outro
lado do medo.
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A esperança habitual disfarçada de expectativa está fixada em um resultado específico. Essa esperança se
confunde com o desejo de um certo resultado futuro. Torna-se focada no objeto. Leva-nos para fora de
nós mesmos. O dilema é que quando o resultado não é alcançado, o objeto não é apreendido, então
nossas esperanças são quebradas.
Conectar nossa felicidade a um resultado específico nos causa todo tipo de sofrimento. Para gerenciar
essa aflição, tentamos controlar tudo que está acontecendo ao nosso redor. Mas não temos controle
sobre o clima no dia de nosso casamento, o humor dos outros, ganhar o prêmio da loteria, ou até receber
um diagnóstico de câncer. Como vimos, a lei da impermanência supera nossos melhores planos.
No cenário em constante mudança de nossas vidas, o apego a resultado posando como esperança só gera
ansiedade e interfere com nossa habilidade de estar presente com nossa experiência de vida enquanto
ela se revela nesse exato momento. Minha amiga, a falecida antropóloga Angeles Arrien aconselhava que
devemos estar “abertos ao resultado, não apegados ao resultado.” Ela escreveu, “Abertura e não-apego
nos ajudam a recuperar os recursos humanos de sabedoria e objetividade.”
Eu observava quando Fred visitava sua esposa Rachel, no Zen Hospice. Ela estava morrendo de câncer de
cólon, e Fred vinha todo dia para alimentá-la com melancia. Não apenas um pouquinho, mas o que parecia
ser uma melancia inteira de cada vez.
“Uau! Você realmente deve adorar melancia!” eu comentei com Rachel um dia.
“Na verdade, eu não me importo muito com isso. Fred leu na internet que me ajudaria a lutar com o
câncer, dessa forma eu como para deixá-lo feliz.”
Melancia. Eu sei, parece absurdo. Não é incomum que pessoas desesperadas busquem todas as
possibilidades de cura. Em algumas ocasiões, até funcionam.
Fred amava Rachel e não conseguia aceitar a realidade de que sua esposa estava morrendo. Preso à
fantasia de que tinha descoberto uma cura secreta para o câncer, carregava uma esperança cega.
Certo dia pedi a Fred que me mostrasse o website informando a melancia como cura. Com entusiasmo,
ele leu para mim em voz alta. Então subitamente ficou cabisbaixo, cobrindo o rosto com as mãos. Se deu
conta de que tinha interpretado mal o website. Havia a sugestão não de que a melancia era alguma cura
milagrosa, mas que consumir a fruta poderia ajudar na hidratação, e que a hidratação era uma importante
parte da cura.
Depois de dar um tempo para que ele sentisse a perda de seus sonhos de cura da melancia, perguntei a
Fred o que ele esperava naqueles que provavelmente seriam seus últimos dias com Rachel.
Ele não hesitou por um momento. “Espero amá-la com todo meu coração,” ele disse. “Amar cada parte
dela sem reservas. Para ter certeza de que ela sabe como minha vida foi abençoada por me casar com
ela.”
Durante a semana restante da vida de Rachel, acho que Fred não saiu do seu lado.
Como Fred, aqueles que estão muito doentes e suas pessoas amadas frequentemente entram nessa
jornada para a morte com uma esperança egoica por um milagre – por exemplo, uma total recuperação
do câncer ou o retorno de toda a sua capacidade física e mental. O que estamos chamando esperança
nessas circunstâncias é realmente apenas uma expressão de nosso medo. Não geramos soluções
confiáveis nesse estado porque elas emergem de nossa confusão.

31
Esperança é uma qualidade humana inata que pode contribuir positivamente para uma sensação de bem-
estar. Jogar fora a esperança não parece útil. Talvez precisemos reformular nossa compreensão e
aplicação da esperança.
Descobri que com apoio compassivo essa esperança pode mudar. Não se trata de gerenciar os sintomas
que não escolhemos e que não podemos evitar, e sim descobrir o valor de viver plenamente, dadas as
nossas condições atuais. Geralmente isso se transforma naquilo que tenho chamado esperança madura,
uma esperança que nos leva para dentro de nós mesmos e para encontrar o bom na experiência.
A esperança madura requer tanto uma intenção clara como um simultâneo soltar, deixar ir. Essa
esperança não é dependente de resultado. Na verdade, a esperança está ligada à incerteza porque nunca
sabemos o que vai acontecer a seguir. A esperança está no potencial para nossa resposta desperta, não
nas coisas saindo de uma maneira particular. É uma orientação do coração, fundamentada em apreço e
confiança em nossa bondade humana básica, não naquilo que podemos obter. Essa confiança
fundamental guia nossas ações e nos permite cooperar com os outros e a perseverar, sem apego a um
resultado específico. Na doença, a esperança madura nos ajuda a chegar a um lugar de inteireza, mesmo
quando a cura está fora do alcance.
Quando relaxamos nossa visão obstinada do futuro – a ideia de que “essa é a única maneira de as coisas
acontecerem” – não estamos mais presos por nossa visão convencional da esperança. Deixamos espaço
para a surpresa. Como Fred descobriu, com flexibilidade e bondade, podemos re-imaginar a esperança
mesmo em uma situação que parece sem esperança. A qualidade energizante da esperança madura nos
ajuda a permanecer abertos à possibilidade de que embora a vida possa não ser do jeito que pensamos,
oportunidades que nunca imaginamos podem também surgir.
Desastres naturais, terremotos, incêndios, e enchentes são exemplos claros de circunstâncias
devastadoras que perturbam drasticamente a vida cotidiana. Casas são perdidas, pessoas morrem. O caos
não antecipado nos impacta de maneiras muito diferentes. Contudo, repetidamente vemos pessoas se
unirem de maneira positiva, alimentando-se umas às outras, agindo com bravura, fazendo amizade com
estranhos e dando o melhor de si. Talvez isso seja em parte porque somos lançados no imediatismo da
vida de maneira intensa, não muito diferente do golpe de receber um diagnóstico de ameaça à vida.
Histórias de pessoas passando por condições impossíveis com graça nos elevam e nos inspiram esperança
na bondade e altruísmo básicos dos seres humanos.
A maioria de nós escolhe o conforto sobre a verdade. Quando pensamos nisso, não crescemos e nos
transformamos em nossas zonas de conforto. Crescemos quando percebemos que não conseguimos mais
controlar todas as condições de nossas vidas, e somos portanto desafiados a mudar. Quando liberamos
nosso apego ao que costumava ser e nosso desejo pelo que achamos que deveria ser, ficamos livres para
abraçar a verdade do que é neste momento.
Esperança madura incorpora a verdade de que não importa o que fazemos ou não fazemos, as coisas
mudarão. A mudança é constante e inevitável. Esperança por um mundo imutável rapidamente torna-se
desânimo. Em vez disso, precisamos confiar em nós mesmos e uns aos outros, na ação correta e
perseverança, sem desespero.
Certa vez conheci um homem que plantou dez mil carvalhos. Naquela época ele tinha 70 anos. Ele não
sabia quantas tinham se tornado árvores adultas, e certamente ele nunca veria nenhuma delas
totalmente desenvolvida. Ele disse que a esperança foi uma promessa compartilhada entre ele, as
árvores, a as crianças que um dia subiriam nos magníficos ramos dos carvalhos.

32
Eu nunca conheci Crystal. Ela me ligou um dia do nada, perguntando se eu poderia ler o Livro Tibetano
dos Mortos para sua professora que estava morrendo, uma psicóloga reconhecida mundialmente. Eu
expliquei que aquele livro era um trabalho altamente esotérico e que algumas de suas imagens podiam
ser bastante amedrontadoras para os não-iniciados. Eu me perguntava porque Crystal queria que eu lesse
esse livro para sua professora no leito de morte.
Crystal disse, “Ela foi uma professora extraordinária que teve uma vida extraordinária, e desejamos que
tenha uma morte igualmente extraordinária.”
Sentindo a pressão que essa expectativa poderia exercer em sua professora, eu respondi, “Talvez ela
queira uma morte perfeitamente ordinária.”
Crystal desligou na minha cara, decidindo, eu supunha, ligar para outra pessoa. Mais tarde, ela voltou a
ligar, explicando que após conversarem entre si, ela e outros alunos tinham se conscientizado de que em
seus corações tudo o que desejavam era ajudar sua professora a morrer pacificamente.
Eu concordei em ajudar desde que fizéssemos todos os esforços para aprender o que a professora
realmente precisava. Lhe pedi para ver o ouvir cuidadosamente o que a professora estava dizendo a ela.
“Oh, mas eu não consigo, “Crystal respondeu. “Ela está em coma parcial. Não pode falar.”
“Olhe mais de perto. Ela está transpirando?”
“Sim,” disse Crystal.
“Então vá pegar uma toalhinha e coloque-a delicadamente na cabeça dela. Ela está lhe dizendo que está
com febre.”
“Certo.”
“Ela está fazendo careta com algum sinal óbvio de dor?”
“Não.”
“Maravilha. Então vamos tentar o próximo passo.” “Como está sua respiração?”
“Está muito acelerada, um pouco irregular,” ela disse.
“Sente-se calmamente ao seu lado, seguindo o ritmo da respiração dela. Inspire quando ela inspira; expire
quando ela expira. Não há necessidade de guiá-la. Apenas a acompanhe. Dessa maneira você proporciona
uma presença amável e amorosa, pacientemente assistindo às mudanças de momento a momento na
experiência dela.”
Crystal continuou dessa forma por cerca de vinte minutos. A mudança na atmosfera era evidente, mesmo
pelo telefone.
“O que está acontecendo agora?” perguntei.
“Bem, sua respiração está ainda acelerada, mas eu estou mais calma agora!” Então ela riu. Que mudança
em relação à seu tom quando me ligou da primeira vez!
Então eu disse, “Apenas continue assim. Continue observando o tom de sua pele. Ouça a respiração dela.
Veja o que acontece quando os olhos dela se agitam. Observe-a com atenção. Veja tudo como uma
comunicação com você. Deixe que ela lhe mostre o caminho. Ela irá guiá-la. Ela sabe fazer isso. Estamos
morrendo há centenas de milhares de anos.”
33
Então eu expressei minha admiração pelo amoroso cuidado de Crystal e desligamos. No dia seguinte, ela
ligou dizendo que a professora tinha morrido pacificamente durante a noite, quando a maioria dos alunos
não estava no quarto.
Em nossa cultura, gostamos de alimentar uma história do que significa ter uma “boa morte”. Damos um
grande valor à esperança romântica de que quando as pessoas morrem, tudo ficará bem resolvido. Todos
os problemas foram resolvidos, e elas estarão completamente em paz.
Mas essa fantasia raramente é a realidade. A “boa morte” é um mito. Morrer é uma bagunça. As pessoas
que estão morrendo costumam deixar marcas de derrapagem, arrastando os calcanhares à medida que
avançam. Algumas pessoas se afastam dos outros e nunca olham para trás. Para muitas, os hábitos de
uma vida inteira não são questionados, e elas lutam com medo para manter esses hábitos no lugar. Para
outras, sua luta é como um distintivo de honra. Pouquíssimas pessoas caminham em direção ao imenso
desafio de morrer e encontrar ali paz e beleza. Mas quem somos nós para dizer como os outros devem
morrer?
Em minha experiência, a expectativa romântica de uma boa morte coloca um imenso e desnecessário
peso na pessoa que está morrendo. Podemos ver isso como um fracasso quando as pessoas não se
acalmam quando a noite chega. “Oh, minha mãe não viu o túnel de luz. Ela morreu apavorada. Foi uma
morte horrível,” ouvi uma vez um homem se queixar. Muitas pessoas se sentem fracassadas
simplesmente por primariamente morrer porque nossa cultura está bastante impregnada na linguagem
de "lutar até o fim". Por que devemos adicionar um peso à pessoa que está morrendo julgando como elas
devem partir? Como Crystal descobriu, permitir que nossas pessoas amadas tenham a experiência que
precisam quando morrem é tremendamente libertador para elas e para nós.
Quando eu sentava ao lado do leito de pessoas que estavam morrendo, meu objetivo primeiro era manter
meu coração aberto. Eu sentia que tinha a responsabilidade de apoiá-los onde quer que estivessem em
sua jornada. Eu aponto para seus recursos internos. Tento iluminar capacidades que eles já possuem mas
podem não reconhecer. Às vezes as pessoas são capazes de buscar bondade em meus olhos. Isso reflete
de volta para elas sua própria bondade e, de repente, elas são capazes de se ver de uma nova maneira.
Emily tinha apenas 34 anos quando chegou ao Zen Hospice morrendo de câncer de mama. Antes que ela
entrasse naquilo que uma amiga chama o “Sono Crepuscular” – o sono do qual raramente emergimos –
ela compartilhou comigo os terríveis momentos que sofreu como uma criança nas mão de Ruth, sua
abusiva mãe.
Quando a condição de Emily ficou crítica, Ruth veio ficar ao lado da filha. Elas não se falavam há anos e
havia muita animosidade entre elas. A mãe sentou-se derramando suas desculpas por seu
comportamento do passado e implorando perdão à sua única filha. Emily permanecia silenciosa e não-
responsiva, como estava há dias.
De repente, Emily sentou-se na cama e olhou para sua mãe diretamente nos olhos. Então, poderosamente
e com perfeita clareza, ela disse à Ruth, “Eu lhe odeio! Sempre lhe odiei.” E então morreu.
Havia um enorme sofrimento naquele quarto. Ruth ficou em choque. Ela estava vivendo seu pior
pesadelo. Foi angustiante que as últimas palavras de Emily tivessem sido tão duras.
É difícil manter nossos corações abertos nesse tipo de inferno. No entanto, quando o fazemos, podemos
enxergar além da angústia imediata e ficar conscientes de outra possibilidade. Emily finalmente foi capaz
de dizer à mãe o que era verdade, o que ela tivera medo de dizer a vida toda. Foi horrível, mas foi real.
Dizer a verdade parece necessário para um futuro baseado na cura e esperança madura.
34
A morte de Emily foi uma “má morte?” Muitas pessoas diriam sim. Eu parei de julgar. Uma “boa morte”
de uma pessoa é o pior pesadelo de outra. Algumas desejam que a morte chegue de repente, enquanto
outras esperam morrer lentamente. Algumas pessoas esperam estar cercadas de familiares amorosos,
enquanto outras temem a interferência do outros bem-intencionados.
Nos meses que se seguiram após a morte de Emily, eu trabalhei com Ruth para apoiá-la em seu luto. Foi
um caminho difícil. No entanto, assumir responsabilidade por suas ações do passado e encarar a
aparentemente impossível verdade do ódio de Emily foi essencial para que ela encontrasse o auto perdão.
Foi fundamental na cura das feridas e a reconciliou com seu relacionamento conturbado com a filha.
Sabendo que não poderia alterar as condições, que não poderia mudar o que tinha acontecido no leito de
morte de Emily ou voltar e ser uma mãe diferente, Ruth foi capaz, eventualmente, de aceitar o que era e
fazer as pazes com isso.
Na morte e na vida, deveríamos “esperar pelo melhor” ou “esperar o pior”? E se, em vez disso,
cultivássemos uma atenção e compromisso não-julgador de estar com a verdade do que quer que esteja
presente? Suponha que em vez de escolher lados, desenvolvêssemos clareza mental, estabilidade
emocional e presença incorporada para não sermos varridos pelo ciclo de altos e baixos, de esperanças e
medos? Equanimidade equilibrada dá origem a uma resiliência que é fluida e não fixa, confiável,
adaptável e responsiva. Talvez devamos aceitar nosso passado, a nós mesmos, os outros, e as condições
em contínua mudança de nossas vidas “como são” – nem boas nem más, porém manejáveis.
É útil aqui tomar refúgio na impermanência. Não na expectativa de que as coisas vão acontecer como
esperamos ou tememos, mas no fato de que as coisas irão mudar se as desejamos ou não.
Falamos de viver no momento presente. Mas onde pode ser encontrado esse momento? É um
nanossegundo que pontua o espaço entre o passado e o futuro? Parafraseando Santo Agostinho, agora
não está no tempo nem fora do tempo. O elusivo momento presente não é medido pelo tic tac de um
relógio, que nós humanos inventamos, nem está separado do passado ou futuro. Não há linha do tempo,
pelo menos não como convencionalmente pensamos sobre ela.
Todos nós experimentamos sentimentos de atemporalidade, quando um momento se expande um pouco
como um sonho. Quando lembro de minha mãe, que morreu há mais de 40 anos, não é o passado
acontecendo agora? O momento presente inclui o passado e também a potência para o futuro. Minha
neta é ainda uma criança, portanto no momento não está moldando conscientemente seu futuro.
Contudo o potencial para aquele futuro vive dentro dela agora mesmo, como vive dentro de cada um de
nós.
É aí onde a energia da esperança tem um lugar – não como um desejo a ser realizado ou um plano a ser
formulado e executado, mas em como recebemos o momento sempre em mudança. O momento
presente inclui todo o tempo; é o agora todo-inclusivo. O momento presente pode ser melhor descrito
como o fluxo da vida. Estamos continuamente sendo moldados por ele, e o estamos moldando através
da forma que o recebemos e respondemos a ele.
Não espere, é um encorajamento para entrar plenamente na vida. Não deixe passar esse momento
esperando pela chegada do próximo. Não espere para agir no que é mais importante. Não fique preso na
esperança de um melhor passado ou futuro; esteja presente.
David estava vivendo com uma severa doença de Parkinson. No início, a deterioração de seu corpo o
frustrava e amedrontava. Ele observava seu relacionamento com o corpo, desejando que fosse de outra
maneira.

35
Se eu pudesse retardar o progresso da doença, pensava. Como e quando minha doença vai piorar. Ao
esperar por uma mudança de sua situação, esperando um futuro diferente, ele estava principalmente
preso em sua aflição e cheio de ansiedade.
Felizmente, David era um meditante dedicado, e com o tempo foi capaz de mudar sua mentalidade. Seus
pensamentos se aquietaram. Ele relaxou e se tornou mais pacífico, mais reflexivo. Descrevia tais
momentos como “intemporais” e me disse, “Eu vejo agora como o constante desejo de que as coisas
fossem diferente do que eram estava me cegando para os aspectos positivos de minha experiência do
Parkinson. Agora eu foco em minha gratidão por aqueles que cuidam de mim. Confio na minha capacidade
de enfrentar quaisquer desafios que surjam.”
David disse, “Em minha mente ordinária eu tenho uma esperança de que vou mudar minha doença. É o
objeto de meu medo e eu quero controlar esse medo. Mas eu só estou me preparando para a decepção.
Eu me perco. Quando surjo em um estado mais pacífico, o objeto chega, e o vejo por aquilo que é: ‘um
pensamento assustador’. Então me dou conta de que estou consciente do pensamento e do medo que o
acompanha, então o medo não é tudo que está presente. E com esse reconhecimento, eu posso escolher
operar a partir do medo ou da consciência.”
Ele continuou, “É como, quando vimos a terra a partir da lua pela primeira vez, pudemos nos entender
de maneiras que antes não eram possíveis. Quando eu não estou tão cheio de esperança/expectativa,
posso ver mais do quadro. Vejo oportunidades que deixei passar antes. Não é um estado passivo,
desamparado ou uma parte vazia em minha mente. É uma pura abertura que tem dinamismo inerente.
Está infundida de curiosidade e descoberta.”
O que David estava descrevendo tão eloquentemente é uma dimensão sutil da ideia de não espere, que
eu chamo de não-espera. É o antídoto da armadilha da expectativa – uma qualidade de mente aberta,
receptiva. Na não-espera, permitimos que objetos, experiências, estados de mente e corações se revelem,
mostrem-se para nós sem nossa interferência.
A diferença entre não espere e não-espera é como a diferença entre desapego e não-apego. Desapego
implica nos distanciarmos de um objeto ou experiência particular. Pode parecer legal, como se
estivéssemos nos retirando ou nos afastando. Não-apego significa simplesmente não sustentar, não
agarrar, não se enredar. Não há necessidade de se distanciar.
De forma similar, não-espera é um estado relaxado e espaçoso, uma maneira de permitir que a
experiência chegue até nós sem necessidade de estender a mão e agarrá-la. Conhecemos nossa
experiência enquanto ela se revela, não deturpando seu significado, ou manipulando-a para ser da
maneira que desejamos que seja, ou sobrecarregando-a com nosso conhecimento prévio. Não-espera é
um acolhimento tranquilo, mais um convite do que uma demanda. Quando paramos de nos inclinar para
a experiência seguinte esperando um resultado particular, ou voltarmos para o passado esperando que
de alguma forma possamos mudá-lo, só então estamos livres para conhecer esse momento
completamente.
Não-espera nos oferece um novo ponto de observação, um pouco como o Google Maps. Em um momento
podemos ter uma visão muito estreita da rua. Podemos estar focando em certas particularidades, como
o endereço de uma casa. Então podemos recuar para uma perspectiva mais panorâmica, e ver como
aquela casa é apenas um pequeno ponto na cidade, país, e hemisfério. Quando vemos o quadro maior,
podemos incluir mais opções.

36
Não-espera não é paciência. Paciência implica expectativa, esperar pelo próximo momento, apenas
fazendo isso de maneira mais calma. A experiência de não-espera é mais como um contato contínuo com
a realidade. Estamos alertas, despertos, e plenamente vivos. Qualquer que seja a experiência – “boa” ou
“má”, quer gostemos dela ou não – dedicamos nossa total atenção a ela, ao que está acontecendo agora
mesmo.
Tanto no viver como no morrer, quando mantemos a esperança à parte da expectativa, independente do
apego ao resultado, desenvolvemos uma conexão sábia com a realidade. Estamos presentes e
participamos diretamente do desenrolar da vida. Nos engajamos na jornada em vez de esperar chegar a
nosso destino.
Esperança com uma atitude de não-espera origina uma expansividade intemporal, uma abertura jubilosa,
uma receptividade não dependente de circunstâncias. Ela surge de uma conexão imediata com a
benevolência dessa vida humana. E, graças a ela, somos capazes de prosseguir com nossas vidas sem
muita interferência. Esperança madura ´é um pouco como a canção de ninar de Brahms, uma doce
lembrança que nos ajuda a relaxar e apreciar o potencial de uma nova vida que sempre pervade o
momento presente.

4.
O CORAÇÃO DA MATÉRIA
Perdão não é um ato ocasional, é uma atitude constante.
- Martin Luther King Jr.

O perdão solta a calcificação que se acumula ao redor de nossos corações. Então o amor pode fluir mais
livremente. Blaze e Travis me ensinaram isso.
Blaze foi a primeira pessoa que viveu e morreu conosco no Zen Hospice. Ela estava vivendo em um
sombrio quarto de hotel quando foi diagnosticada com um câncer terminal. Uma assistente social me
apresentou a Blaze no Hospital Geral de San Francisco. Ela não podia voltar para casa e precisava de
alguém que a amasse, assim a convidamos para ficar conosco. Não foi um convite bem pensado. Não
tínhamos um Hospice ainda. Mas Blaze necessitava de um lugar para ficar, e havia quartos de estudantes
vazios em nosso centro. Achei que de alguma forma tudo daria certo. Eu era jovem, idealista, um pouco
ingênuo e não tinha grandes planos.
Blaze não tinha amigos. Mas assim que chegou nos pediu para descobrir onde estava seu irmão Travis,
dizendo que não o via há mais de 25 anos. Não foi fácil. Isso foi antes da Internet e Travis era um caubói
que participava de circuitos de rodeio. Ele nunca ficava no mesmo lugar por muito tempo. Nós contatamos
a Associação de Profissionais de Rodeio e eventualmente o encontramos.
“Sua irmã está morrendo, e quer lhe ver,” eu lhe disse ao telefone. Eu realmente não esperava que isso
resultasse em alguma coisa.
Então uma noite, Travis apareceu no Zen Center. Era uma figura imponente vestida com trajes de caubói
completo: um enorme Stetson (marca de chapéu), uma fivela de prata king-size e botas de pele de cobra.
“Então, que tipo de lugar é esse onde você recebeu minha irmã?” ele perguntou, olhando ao redor do
modesto interior.
37
“Ela está lá em cima,” respondi. “Você gostaria de ir vê-la?”
“Claro,” então o conduzi ao quarto de Blaze. Mas quando chegamos lá, ficou evidente que Travis estava
muito assustado para entrar. Andava nervosamente.
Após alguns momentos, sugeri que ele descansasse um pouco e tentasse novamente no outro dia.
Quando ofereci um quarto no Zen Center, ele concordou em passar a noite.
Na manhã seguinte, encontrei Travis no refeitório em seus trajes de cowboy, cercado de monges Zen com
cabeças raspadas e trajes pretos comendo tofu. Foi uma bela visão.
Após algum tempo ele disse que estava pronto para subir e entrar no quarto de Blaze. Sentei calmamente
em um canto, observando. Fiquei surpreso com o quão reprimidos este irmão e irmã estavam quando
finalmente se reuniram. Eles não falaram sobre a doença de Blaze ou qualquer coisa séria. Apenas
conversaram um pouco sobre o clima, rodeios, e ouviram Hank Williams no rádio.
Travis visitava a irmã diariamente. Gradualmente a conversa deles se aprofundou. Blaze falava sobre suas
experiências de hospitais, médicos, e como era ter câncer. Houve algumas reminiscências lúdicas e
partilha de memórias.
Dez dias após a chegada de Travis, a condição de Blaze piorou. Enquanto ela descansava, eu e Travis fomos
para o pátio onde podíamos tomar uma brisa. Ele fumava um cigarro e eu escutava. Nada importante
parecia estar acontecendo. Então eu levantei para ir para casa para minha família. Então Travis
murmurou, “Eu quero contar, mas não posso contar.”
Eu me sentei de volta. “Você sabe, Travis, se há alguma coisa que precisa dizer à sua irmã, você deve fazer
isso logo. Não espere. Blaze não tem muito mais tempo.”
“Não sou bom com palavras,” ele respondeu.
“Se não consegue dizer a ela, por que não conta para mim?”
Travis pôs para fora uma longa história. Ele me contou sobre como ele e Blaze foram abandonados como
crianças. Cresceram em orfanatos e lares adotivos, algumas vezes juntos e outras separados. Foi bem
triste. Ele havia machucado muito sua irmã algumas vezes. Tinha feito algumas coisas realmente horríveis
com ela. Foi abusivo com ela de muitas maneiras. É por isso que não se viam há tantos anos.
Minha reação inicial foi, Quem sou eu para ouvir essa confissão? Não sou um padre. Não sou um
terapeuta. Não tenho diploma de psicólogo.
Mas me lembrei de ter encontrado uma vez o grande psicoterapeuta humanista Carl Rogers, que era avô
de um amigo meu. Mais tarde, eu estudei filmes dele trabalhando com pacientes. Observei que ele
raramente falava, mas que sua escuta era tão dedicada que extraía a verdade de seus clientes como um
bálsamo curativo. Algo que ele escreveu sempre me vem à lembrança:
Antes de cada sessão, eu tomo alguns momentos para lembrar minha humanidade. Não há
experiência que essa pessoa tem que eu não compartilhe com ela, nenhum medo que eu não
consiga entender, nenhum sofrimento que eu não consiga cuidar, porque eu também sou humano.
Não importa o quão profunda seja sua ferida, ela não precisa ficar envergonhada diante de mim.
Eu também sou vulnerável. Seja qual for sua história, ela não precisa mais estar sozinha com ela.
É isso que permitirá sua cura começar.

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Quando Travis finalmente terminou sua história, ele estava confuso e cheio de desculpas. Penso que seu
desabafo o surpreendeu tanto quanto à mim. “Então, isso é o que aconteceu. Agora o que eu faço?”
Estava claro que enquanto estivesse com aquele sentimento, tudo que podia fazer era sofrer as
consequências de seu horrível comportamento.
Sugeri que fôssemos falar com Blaze.
Quando entramos no quarto de Blaze, Travis puxou uma cadeira para perto da cama da irmã e disse,
“Sabe, mana, há algo que venho querendo lhe dizer todos esses anos, mas você sabe, não consigo
encontrar as palavras corretas... eu só queria dizer... sobre todas essas coisas que fiz...”
Blaze levantou a mão como um guarda de trânsito mandando parar e disse calmamente, “Nesse lugar,
Travis, eu tenho alguém que me alimenta. Tenho alguém que me dá banho. Estou cercada de amor. Não
há culpa.”
Eu fiquei impressionado com o que acabara de testemunhar. Toda uma vida de sofrimento perdoada em
um único momento. Um poderoso ato de misericórdia, a lousa limpa. Todos nós choramos juntos, então
um silêncio libertador se seguiu.
Lembro-me de um dia, não muito tempo antes de Travis chegar ao Centro Zen, de estar sentado com a
normalmente taciturna Blaze quando ela me fez uma pergunta. “Há pessoas que entram no quarto e me
dizem para amar. Então há outras pessoas que entram e me dizem para soltar. O que devo fazer
primeiro?”
Fiquei um bom tempo sem responder. Então disse, “Blaze, você vai saber o que fazer, e pode confiar nisso.
São ações quase simultâneas. O amor é o que nos permite soltar.”
Amar e soltar são inseparáveis. Você não pode amar e agarrar ao mesmo tempo. Frequentemente
confundimos apego com amor.
No Budismo, a bondade amorosa ou metta, é considerada um estado sublime. Um reino celestial. É
expansivo, acolhedor, de cuidado e conectivo. O apego se disfarça como amor. Se parece e cheira como
amor, mas é uma imitação barata. O apego agarra e é conduzido por necessidade e medo. O amor é
altruísta; o apego é autocentrado. O amor é libertador; o apego é possessivo. Quando amamos relaxamos,
não seguramos tão firmemente, e naturalmente soltamos mais facilmente.
Blaze compreendeu algo sobre soltar. Ao perdoar Travis, ela não estava esquecendo o que tinha
acontecido consigo, nem estava tolerando qualquer coisa que seu irmão tenha feito. Basicamente estava
dizendo para ele, “Olhe, se você deseja carregar essa dor pelo resto de sua vida, sinta-se em casa. Mas
pra mim já chega.” Ao se aproximar da morte, chegou um momento em que quis se liberar de todo
ressentimento e angústia que tinham sido seus companheiros por décadas. O passado não a definia mais.
Desejava estar livre, plena de amor, e compreendeu que a única maneira para isso era perdoar seu irmão
completamente. Nenhuma pergunta.
Dois dias depois, Blaze morreu.
O perdão é crucial por dois motivos. Nos cura ao permitir soltar dores antigas, e ajuda a nos abrir para o
amor.
Para estarmos livres, precisamos perdoar. Quando eu falo de liberdade nesse contexto, não estou
querendo dizer um tipo de iluminação última, mas algo mais prático e imediato: liberdade das acusações,

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recriminações, e julgamentos que nos causam tanto sofrimento. Sustentar nossa dor, simplesmente, não
é do nosso interesse.
A recusa em perdoar é uma maneira de resistirmos à vida. Podemos ser muito leais ao nosso sofrimento.
Contudo, quando nos agarramos firmemente ao nosso passado, estamos segurando não apenas as
memórias, mas também a tensão e os estados emocionais que vem junto com elas. Resistir ao perdão é
como pegar um carvão em brasa e dizer: “Não vou soltar até que você peça desculpas e pague pelo que
fez comigo.” Em nosso esforço para punir, somos nós que nos queimamos.
O perdão nos permite liberar a dor, não adoçando-a com pensamentos positivos, mas permitindo que
nossa experiência avance para que possamos tocar nossa dor com misericórdia. Não precisamos deixar
que velhas dores continuem a definir quem somos aqui e agora. Podemos deixar o passado se dissolver.
Podemos deixá-lo para trás. Podemos dizer adeus para velhas feridas. Ao perdoar, podemos nos liberar
do sofrimento que tem nos confinado desde que o evento aconteceu.
Ao perdoar, passamos a conhecer nossa dor mais intimamente. Foi isso que Travis fez quando me contou
a história de seu passado. Pela primeira vez em sua vida, Travis tirou aquela velha ferida do bolso de trás,
a espanou e a olhou mais de perto. Somente então pode receber o perdão de Blaze.
O perdão tem o poder de superar o que nos divide. Pode derreter a armadura de medo e ressentimento
ao redor de nossos corações que nos mantém separados dos outros, de nós mesmos, e da vida em si
mesma. Certa vez perguntei a uma mulher jovem com câncer que tinha sido abandonada por sua família
e tinha vivido nas ruas se ela achava que o perdão exigia coragem. “Sim,” ela disse, “mas para mim foi
uma maneira de descobrir se eu era capaz de amar novamente.” O perdão libera nossos corações dos
destroços da raiva e de outros sentimentos negativos e abre o caminho para o amor.
Como as japonesas mergulhadoras de pérolas de outrora, quando mergulhamos fundo em nossas feridas,
podemos emergir com tesouros. De seios nus, aquelas mulheres não usavam nada além de uma tanga
curta, uma máscara facial e um par de barbatanas. Enchiam os pulmões de ar e mergulhavam
corajosamente nas águas frias e escuras do mar, desaparecendo sob a superfície e emergindo alguns
minutos após com uma pérola. Explorar nossa própria dor, além de contribuir para nossa cura, nos ajuda
a sentir empatia pelos outros que sofreram danos semelhantes.
Às vezes, um grande acúmulo de dor pode ser liberado de uma só vez, como aconteceu com Blaze e
Travis, mas o perdão não costuma acontecer assim. Eu diria que 99% das pessoas com quem trabalhei se
beneficiaram com a prática do perdão, e cada um chegou a ela de sua própria maneira. Na maioria das
vezes é um processo longo, difícil. Normalmente as pessoas são pegas de surpresa pelas circunstâncias
que cercam a ferida, sua relação com o agressor, a falta de motivação ou simplesmente a passagem do
tempo.
Todos concordamos que o perdão tem muitos benefícios. Por que, então, resistirmos a ele?
O perdão é uma prática feroz. Requer força verdadeira, uma disposição de estar com o que é difícil. Nos
pede para enfrentar nossos demônios. Requer absoluta honestidade. Devemos estar dispostos a ver as
coisas como são, dar testemunho de atos dolorosos que nos aconteceram ou a dor que podemos ter
causado aos outros. Às vezes precisamos nos enfurecer. Às vezes precisamos cair em profunda tristeza.
Perdão não se trata de esmagar qualquer uma dessas emoções. Trata-se de encará-las com amabilidade,
prestando muita atenção ao que está atrapalhando nosso soltar.
Em minha experiência, as pessoas tipicamente chegam a um lugar de perdão quando se dão conta, “Eu
não quero que isso interfira com minha capacidade de amar. Não desejo que isso seja um legado que eu
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deixo para trás ou com meus filhos.” Perdoamos porque não há sentido em esperar nos aliviar da carga,
em desperdiçar tempo nos sustentando a velhos ressentimentos. Perdoamos porque não queremos
chegar ao fim de nossas vidas cheiros de suspiros e remorso. Perdoamos não porque seja “mau” não
perdoar, mas porque segurar nossa dor machuca muito mais e nos impede de amar plenamente.
Uma mulher de 90 anos chamada Magda participou de um de meus retiros. Naquela semana, ela passou
um tempo reclamando do relacionamento com o marido de 91 anos, Jerzy. Eles haviam resistido a
sessenta anos de casamento. Mas agora que estava envelhecendo e cada vez mais frágil, ele começou a
criar distância entre eles. Lhe dizia que queria sair de casa e ir para uma casa de repouso ou voltar para a
Polônia, sua terra de origem. Ela sentiu raiva e ficou magoada por seu comportamento.
“Como ele pode fazer isso comigo depois de tantos anos?”
Quando falamos sobre perdão, eu pude sentir a resistência de Magda. Ela estava esperando que Jerzy lhe
pedisse desculpas. Não estava pronta para deixar de lado sua sensação de ser injustiçada. Mas apesar de
as barreiras ao perdão possam parecer impenetráveis, o amor pode penetrar pela brecha mais fina nas
defesas de alguém.
Semanas depois recebi uma carta de Madga:
Eu aprendi com você no retiro que as pessoas irão morrer. Jerzy irá morrer. Eu não quero passar os
últimos dias sendo má com ele. Eu vi que precisava mudar minha perspectiva em relação a ele,
superando meus sentimentos de indignação e raiva. Comecei a compreender suas constantes
ameaças de que iria embora como apenas sua forma de proteger a si mesmo. Eu percebi que o
amo. Quero apreciar cada momento com ele. Não quero passar nosso tempo restante brigando.
Pode ser difícil mover-se compassivamente em direção à nossa própria ‘feiura’ ou à de outra pessoa. A
beleza do perdão é como a investigação de nossos sentimentos de desconexão, alienação, medo, e
ressentimento nos permite sentir essas emoções dolorosas com amabilidade e redescobrir nossa
humanidade comum.
Todos temos um lado escuro dentro de nós, e todos também temos a capacidade de perdoar.
Eu aprendi como o perdão pode ser desafiador a partir de minha própria experiência. Na década de 80 eu
estava viajando pelas montanhas da Guatemala, um país devastado por uma brutal guerra civil. Eu me
ofereci como voluntário em uma clínica médica improvisada, gerenciada por um estagiário bem-
intencionado, mas jovem e inexperiente, da cidade da Guatemala.
Certa noite, bem tarde, chega um casal Maia carregando o filho de cinco anos. Eu não falava Maia, e eles
só falavam algumas palavras em Espanhol e nada em inglês. Após um exame médico, ficou claro que o
garoto estava com um problema sério abdominal e provavelmente necessitaria de uma cirurgia de
urgência. O problema era que o hospital mais próximo estava a oito horas de jipe. Se eles não conseguisse
ajuda mais cedo do que isso, o filho certamente não sobreviveria.
Mais cedo em minha viagem eu tinha conhecido o coronel Guatemalteco no comando de tropas do
governo na área. Ele havia se gabado de todas as coisas maravilhosas que o exército estava fazendo pelos
indígenas. Então, corri até a casa dele para pedir que ele usasse um helicóptero do exército para levar o
menino ao hospital e salvar sua vida. O coronel tinha uma aparência carrancuda e raivosa quando chegou
à porta. Depois que eu descrevi a situação no meu espanhol quebrado, ele fez um gesto de desprezo com
as mãos como se dissesse: "Por que você me acordou no meio da noite para me falar sobre esse indígena
irrelevante?” Então bateu a porta na minha cara.
41
Eu fiquei furioso. Ia retornar à clínica de mãos vazias.
Quando eu cheguei de volta, a criança estava se contorcendo com uma dor terrível, sua mãe gritando em
espanhol, "Misericórdia Madonna!" Os pais achavam que eu era médico. Eles não sabiam que não havia
nada que eu pudesse fazer. Eu apenas embalei a cabeça suada do garotinho com minhas mãos. Seu pai e
eu nos revezamos segurando-o. Enquanto isso, a mãe oferece ao filho um mingau de milho, um remédio
caseiro. Orações maias foram sussurradas durante toda a noite.
Fiquei sentado lá, impotente, por horas, enquanto a mãe o pai abraçavam seu filho e o viram morrer uma
morte horrível provavelmente devido a uma rotura do pâncreas. Então eles o envolveram em um cobertor
esfarrapado feito à mão. O pai descansou o corpo do menino sobre seu próprio ombro e o carregou.
A experiência me encheu de uma raiva assassina. Estava furioso com aquele coronel. Ele podia ter
impedido essa morte horrenda, desnecessária. Eu honestamente acredito que se tivesse uma arma, teria
atirado no homem. Acho que nunca senti tanto ódio antes ou depois.
Depois que deixei a Guatemala e voltei para a Califórnia, continuei meu trabalho pelos refugiados
pressionando o Congresso por mudanças políticas e falando publicamente sobre as consequências da
guerra civil em curso. Porém meses depois, a imagem daquela criança deitado lá em total agonia, e meu
desespero por ser incapaz de ajudá-lo, ainda me assombrava.
Uma noite, eu estava ouvindo as notícias no rádio sobre as guerras na Guatemala e no resto da América
Central quando minha raiva ressurgiu. Sem me dar conta, comecei a gritar com o rádio. Me virei, e para
meu horror vi meu filhos de 2 anos, Gabe, encolhido no canto. Esmagado, suas mãos cobrindo o rosto,
aterrorizado.
Imagino que todos nós, pais, tivemos um momento como esse, momentos em que pensamos conosco
mesmo, Oh, eu fiz uma coisa horrível com o meu filho. Pode partir a alma. Naquela hora percebi então
que tinha de parar a guerra – não a guerra na Guatemala, mas aquela em meu coração. Nunca iria
desculpar o que o coronel tinha feito; foi errado e sempre seria errado. Havia maldade em suas ações que
eu nunca vou esquecer. Mas minha batalha interna contínua com ele estava me dilacerando e
prejudicando meu relacionamento com meu filho.
Em última análise, minha preocupação com o bem-estar de meu filho serviu como a motivação para me
voltar para aquilo que não queria olhar – minha extrema raiva do coronel – e eventualmente deixá-la ir.
Reconheci que o próximo passo seria o trabalho pesado de praticar o perdão. Eu precisava parar a raiva.
Ela estava machucando muito meu coração. O amor estava me conduzindo ao perdão.
Quando minha raiva me confundia, quando os obstáculos surgiam, minha intenção servia como uma
bússola que me guiava de volta para casa para o perdão. Alguns dias isso era impossível. Eu ficava
esmagado por poderosa resistência ou seduzido pela dúvida. “Isso não está funcionando. Perdão é só uma
história que estou contando para mim mesmo.” Ao retornar repetidamente a meu amor por Gabe e o
desejo de soltar minha própria dor, entrei em contato com minha própria confusão com atenção plena e
compaixão, “Não quero mais estar acorrentado a este ressentimento.”
Para me recordar dessa intenção, pedi a um mestre em caligrafia para pintar minha citação favorita do
Budha: “O ódio nunca cessa pelo ódio, nesse mundo; só pelo amor o ódio cessa. Essa é uma lei antiga e
eterna.” Esse trabalho de arte está no centro de meu altar há mais de 30 anos, e permanece lá até hoje.
É a primeira coisa que vejo todo dia quando sento para meditar.

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Próximo à citação do Budha no altar, eu coloquei uma foto que encontrei do coronel. Quando começava
minha prática de meditação do perdão, olhava para ambos os itens no altar e silenciosamente recitava a
frase: “Por tudo o que você pode ter feito para me prejudicar em seus pensamentos, palavras e ações, eu
te perdoo.” Então eu permitia que toda a ‘feiura’ em minha mente e coração emergissem.
Para ser honesto, muitas vezes eu não me sentia muito indulgente. Experienciava mais raiva do que
aceitação. Estratégias de vingança inundavam minha mente. Quando isso acontecia eu não tentava forçar
o perdão – “isso não é possível, de qualquer maneira”. Sabia que precisava experienciar o perdão de
forma autêntica. Então, em vez disso, eu procurava sentir diretamente o quanto me machucava segurar
a dor. Me permitia sentir minha dor e sofrimento, meu ódio ardente e aversão. Tentar sepultar ou ignorar
esse sentimento desagradável – só o faria vir à tona por sua própria vontade, como aconteceu naquele
dia quando gritei para o rádio.
Às vezes quando sentia que era absolutamente impossível perdoar, eu me permita deixar o coronel de
lado. Lembrava-me do conselho gentil de meu professor anos antes: "Quando você for para a academia,
não pegue o peso de duzentos quilos. Comece com o de vinte.” Eu praticava pequenos perdões: Um
motorista que me cortou na estrada. Um colega que usou palavras afiadas para discordar de uma questão
que pontuei. Desenvolvi o músculo do perdão trabalhando com agravos do cotidiano.
Chamei aliados para se juntarem a mim em minha jornada: compaixão, bondade, e amor. Esses ‘aliados’
serviram como uma base para minha prática de perdão, os recursos aos quais poderia recorrer. Eu
imaginava o amor que sentia por meus amigos e professores favoritos, minha família, e meu filho,
cultivando conscientemente emoções positivas enquanto olhava para a foto do coronel.
Às vezes, eu me via agarrado ao meu ressentimento e amargura. Surgia a ilusão de que o mundo algum
dia confirmaria meu ponto de vista presunçoso. Mas também sabia que provavelmente esse dia nunca
chegaria – o coronel nunca pagaria o preço por deixar aquela criança morrer.
É comum que as pessoas carreguem voluntariamente ressentimento. Algumas preferem morrer a
perdoar. Cada parte de nós grita, “Não! Eu não quero perdoar!” Ao mesmo tempo, muitos de nós não
conseguimos nem se lembrar exatamente do que causou primeiramente aquele ódio. O que lembramos,
o que sustentamos, não é a história ou até a dor, mas o ressentimento que construímos como resultado.
Descobri ser libertador não ser conduzido por sonhos de resultados idealistas. De início, toda a minha
prática era bem simples – a disposição de me deixar sentir os sentimentos completamente. Eu precisava
lamentar a perda da criança. Precisava cozinhar meu ódio contra o coronel por permitir que aquilo tivesse
acontecido. A chave era investigar com um coração aberto os obstáculos que estão no meu caminho a
cada passo da jornada. Quando estou ensinando em um retiro, muitas vezes pergunto, “Como seu
ressentimento é sentido em seu corpo, coração e mente? Seus ombros estão tensos? Sua mandíbula está
travada? Você repete as discussões com o acusado, dizendo o que gostaria de ter dito na época? Isso faz
você se sentir importante? Quais são os sentimentos honestos em seu coração? Não apenas a raiva, mas
o desamparo, a mágoa ou a tristeza que está logo abaixo dessa raiva? Conheça esse ressentimento
intimamente.”
Confundimos perdoar com esquecer. Temos medo de que se perdoarmos, iremos esquecer e o dano
poderá acontecer novamente. Entretanto, não precisamos sustentar tensão mental e aflição emocional
para nos beneficiar das lições aprendidas. Não precisamos nos punir – ou punir qualquer outra pessoa –
para que não esqueçamos. Não precisamos de nosso ressentimento para provar que fomos injustiçados.

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Da mesma forma, imaginamos de forma equivocada que perdão significa desculpar o comportamento má
da outra pessoa. Como disse um homem com quem trabalhei, “Você não quer desistir de nenhuma arma
e deixar a outra pessoa livre de responsabilidade.” Mas o perdão não libera os outros da responsabilidade
por seus atos, nem muda necessariamente seu comportamento. É uma ferramenta para remover os
bloqueios do caminho aos nossos corações e nos liberta do domínio destrutivo de nossa dor passada.
Perdão não é esquecimento.
Muitos insistem que deve haver remorso, uma desculpa pelo perpetrador, justiça ou até punição, antes
que possa haver perdão. Esse é um assunto de muito debate. O problema com essa estratégia é que em
alguns casos, precisamos esperar um longo tempo para que a justiça chegue, se de fato virá. Para mim,
perdão não se trata de justiça – a menos que estejamos falando de justiça restaurativa, que tem como
objetivo a justiça e a cura dos relacionamentos. Perdão trata-se da liberação da contração do
ressentimento em nossos corações e uma redescoberta de paz interior. A indignação pode de fato
alimentar a mudança, mas a raiva desenfreada é um ato de ego, uma reação instintiva e um substituto
barato para a verdadeira força. Quando acessamos a força escondida em nossa raiva, temos a capacidade
de tomar uma ação dinâmica e a resolução de resistir poderosamente à injustiça quando necessário.
Quando eu falava publicamente e fazia pressão contra as guerras na América Central a partir de um lugar
de raiva, as pessoas ficavam menos inclinadas a me ouvir. Como meu filho Gabe encolhido em um canto,
elas fugiam da minha raiva. Ao perdoar o coronel, meu ativismo se infundiu de amor. Fazia aquilo - e mais
- porque amava o povo da Guatemala e não queria vê-lo sofrer.
A identificação com uma antiga dor pode estar alimentando a ausência de perdão. Após carregar a dor
por tanto tempo, nos perguntamos, quem seríamos sem ela? Nosso ressentimento, nossa falsa
moralidade, nos ver somente como vítimas – esses sentimentos, apesar de serem um peso, tornam-se
familiares. Nós sabemos, É assim que se sente. Isso é quem eu sou. Preferimos ficar com o que é conhecido
do que nos livrar da negatividade. Esse desejo de se agarrar à sensação de ter sido injustiçado no passado
pode durar uma vida inteira.
Uma mulher que conheci, de setenta anos, me disse que desde a infância estava atormentada por
ressentimento. Seu pai lhe disse, “Você nunca parece chegar ao seu melhor.” Na tentativa de agradá-lo
ela se tornou uma perfeccionista obsessiva. Mas com o tempo, passou a se ressentir de como a falta de
apreciação dele havia colorido sua vida. Foi só tarde na vida, quando se permitiu ficar com raiva de seu
pai, que ela finalmente o perdoou.
O perdão não implica ou requer reconciliação. O perdão pode levar a um entendimento em algum
momento – como quando uma criança fica adulta e perdoa seus pais por não serem perfeitos - mas a
reconciliação nem sempre é o resultado. Reconciliação requer duas pessoas. Requer um restabelecimento
de confiança. Quando se reconcilia, você faz um acordo pelo futuro. Pense em quando você brigou com
seu amigo ou parceiro. Mais tarde, ambos dizem, “Sinto muito. Machuquei você. Me responsabilizo por
minhas ações. Eu te amo e te respeito, portanto vou tentar não fazer isso novamente.” Isso é
reconciliação.
Não podemos depender de outras pessoas dando esses passos corajosos em direção à vulnerabilidade e
ao amor. Algumas vezes elas não querem. Algumas vezes é muito tarde, e elas já se foram de nossas vidas.
Felizmente, o perdão só precisa de uma pessoa: você. É uma prática benéfica soltar sua própria dor.
Podemos perdoar alguém sem nem mesmo ter uma conversa com a pessoa. Ela pode estar morta, e ainda
assim não ser muito tarde para perdoá-la.

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O perdão não nos pede para acolher as pessoas de volta nas nossas vidas. Ainda podemos dizer ao nosso
abusador, “Não, nunca mais quero ver você novamente.” Mas o perdão nos desobriga: “Não preciso
continuar a carregar todo esse aperto, raiva, ódio e dor dentro de mim.”
O perdão nos pede para nos aproximarmos de nosso sofrimento, e ao fazer isso, descobrir uma parte de
nós mesmos maior, mais compassiva que pode tocar nossas feridas com amabilidade e compreensão.
Gradualmente, deixamos de ser alguém que só tem medo da dor para nos tornar alguém capaz de abraçá-
la. Como tal, a prática do perdão abre a mente à natural compaixão do coração.
No processo, não somente nos liberamos daquele momento particular quando sofremos nossa ferida,
mas também começamos a nos reconhecer como alguma coisa mais do que nossa dor. Nos libertamos
para ser mais de quem realmente somos. Livres. Não confinados. Capazes de crescer e nos re-
imaginarmos. Paradoxalmente nos tornamos mais de quem somos, mais do que nunca.
As palavras de perdão que eu recitava diante da foto do coronel em meu altar todo dia, não soaram
verdadeiras por quase dois anos. Mas eu continuava repetindo, em todo o caso... e um dia elas finalmente
pareceram certas. Fui capaz de abrir meu coração ao coronel. Suas ações foram detestáveis,
imperdoáveis, mas com o tempo compreendi que suas ações eram o resultado de causas e condições
desconhecidas em sua vida que tinham enrijecido em ignorância. Essa ignorância tinha causado o
problema, e não iria me ajudar continuar sustentando meu ódio dele. Eu sabia disso intelectualmente o
tempo todo, mas precisava experimentar minha resistência em todas as suas facetas antes de poder
deixar ir.
Finalmente, vi que minha falta de perdão estava agindo como uma defesa contra meus sentimentos de
fracasso. Eu tinha medo de que, se perdoasse o coronel, estaria abandonando o menino novamente. Mas
na realidade eu lutei essa batalha – e perdi. Sepultado muito, muito abaixo da raiva, como um antigo
navio cheio de crostas perdido no fundo do mar, encontrei o tesouro escondido, o cerne da questão: eu
tinha que me perdoar. Culpei o coronel pela morte do menino, mas sentia que também havia falhado com
a criança. Essa auto aversão estava atrapalhando meu soltar. Eu precisava aceitar que era humano e que
fiz tudo o que pude. As circunstâncias estavam além de meu controle.
Levou mais um ano para eu me perdoar por querer matar o coronel.
O perpetrador e a vítima moram dentro de nós. Se eu pude perdoar o coronel por sua ignorância, então
certamente podia me perdoar. Com o tempo, essa prática me fez compreender que o perdão é sempre
para nosso próprio benefício. Podemos pedir perdão aos outros ou pedir o perdão deles, mas o perdão
primariamente é um ato de auto-interesse, não se trata de mudar a outra pessoa. Quando perdoamos,
damos a nós mesmos a medicina mais útil, uma radical auto aceitação.
Perdão não é um exercício intelectual. Trabalhar com o ódio nos ensina a amar mais profundamente.
Depois que Blaze morreu, realizamos um serviço memorial para ela na Green Gulch Farm, um belo centro
de retiro budista ao longo da costa da Califórnia ao norte de São Francisco. No caminho Travis me pediu
para parar em uma loja da esquina. Ele comprou uma caneca de gim e duas dúzias de rosas. Ele acabou
com a maior parte do gim quando chegamos ao memorial de sua irmã.
Esse foi o primeiro memorial que realizamos por um de nossos pacientes, e não estávamos realmente
certos do que fazer. A maior parte dos voluntários que haviam cuidado de Blaze vieram prestar seus
respeitos. Para iniciar pedimos para cada um compartilhar suas memórias de Blaze.

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Quando foi a vez de Travis falar, ele caminhou pela sala, e entregou uma rosa a cada voluntário. Ele não
sabia a maioria de seus nomes, mas sabia que tinham cuidado de sua irmã, e por isso era grato. Enquanto
oferecia as rosas, ele disse:, “Algumas dessas rosas são por gratidão; algumas são por amor.” Então parou
na minha frente e me olhou diretamente nos olhos. “E algumas dessas rosas, bem, são apenas rosas.”
Eu me perguntei se talvez tivéssemos tido algum tipo de influência Zen em Travis. Ele estava expressando
a ordinariedade da experiência, o que na tradição Zen chamamos “nada especial”. É um insight que
emerge quando vemos e aceitamos as circunstâncias como elas são.
Quem poderia imaginar que o caubói rude que apareceu à nossa porta algumas semanas antes seria capaz
de tanta sabedoria e ternura? Algo mudou em Travis desde que Blaze lhe deu o presente do perdão. Seu
coração se abriu completamente.
E isso aconteceu em grande parte porque Travis estava pronto para receber o perdão de sua irmã. Ao
contar sua história, ao compartilhar cada detalhe doloroso, ele tinha finalmente encontrado a coragem
de enfrentar com misericórdia o que havia escondido a maior parte de sua vida. Sem dúvida, o ato de
perdão de Blaze foi muito generoso, e isso a libertou antes de morrer. Mas a verdadeira cura de Travis
veio com seu auto-perdão.
Todo perdão é auto-perdão. É uma extraordinária forma de auto-aceitação que nos permite liberar uma
dor inacreditável. É sobre perceber que enquanto se agarrar ao carvão em brasa de sua raiva,
ressentimento, e senso de ter sido injustiçado, você só está machucando a si mesmo. A menos que libere
esse peso, você o carregará pelo resto da vida. Você nunca estará livre.
Não espere. Não espere até estar em seu leito de morte para começar o processo de perdoar aqueles que
lhe feriram ou aqueles que você prejudicou. Permita que a frágil natureza da vida lhe mostre o que é mais
importante...então tome uma atitude. Dói demais manter os outros ou nós mesmos fora de nossos
corações.

O SEGUNDO CONVITE
Dê boas-vindas a tudo, não afaste nada

O celeiro foi incendiado. Agora eu posso ver a lua.


- Mizuta Masahide

Minha esposa, Vanda, é da Grã Bretanha, e de início ficou confusa com a forma com que os Americanos
usam o termo “Bem-vindo” (You’re welcome). No seu país é mais comum responderem “obrigado (a)”
acrescentando algo como “Não há de que!” Similar, eu suponho, ao informal de rien Francês, de nada
Espanhol, ou no problem tão comum há gerações. O problema com essas outras expressões é que elas
minimizam um ato de bondade, que "bem-vindo" reconhece. A palavra bem-vindo tem a conotação de
um convite. Quando eu tentei traduzir para ela pela primeira vez o significado de “you’re welcome”, eu
abri os braços em um gesto que sugeria minha receptividade a cada parte dela.
Ao acolher tudo, não precisamos gostar do que está surgindo. Na realidade não é nossa tarefa aprovar ou
desaprovar. A palavra bem-vindo nos confronta; nos pede para temporariamente suspender nossa
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precipitação usual para julgar e simplesmente estar aberto para aquilo que está acontecendo. Nosso
trabalho é dar nossa total atenção àquilo que está se apresentando diante de nossa porta. Receber aquilo
no espírito da hospitalidade.
Uma amiga minha certa vez foi convidada para um jantar na casa de um psiquiatra famoso chamado
Sidney. Ele era um homem de uma inteligência, insight e graça incomuns. Entretanto, há alguns anos o
Alzheimer tinha afetado sua memória de curto prazo e sua capacidade de reconhecer rostos.
Quando minha amiga chegou, tocou a campainha e Sidney abriu a porta. A princípio, ele ficou confuso.
Mas se recuperou rapidamente e disse: "Desculpe. Tenho dificuldade em lembrar rostos hoje em dia. Mas
eu sei que nossa casa sempre foi um lugar onde os hóspedes são bem-vindos. Se você está aqui na minha
porta, então é minha função recebê-la. Por favor, entre.”
Gostamos do familiar; gostamos da certeza. Adoramos ter nossas preferências atendidas. Na verdade, a
maioria de nós foi ensinada que obter o que desejamos e evitar o que não desejamos é a forma de garantir
nossa felicidade. Contudo, inevitavelmente surgem experiências inesperadas em nossas vidas – uma
mudança não prevista, uma perda de emprego, uma doença na família, a morte de um pet amado – que
desejamos afastar com todas as nossas forças. Quando nos defrontamos com uma incerteza, nossa
primeira reação é geralmente resistência. Tentamos evitar essas partes difíceis de nossas vidas como se
fossem hóspedes indesejados. Em tais momentos, dar as boas-vindas parece impossível ou até insensato.
Quando digo que devemos ser receptivos a tudo que apresenta-se para nós, estou querendo dizer que
devemos deixar a vida nos maltratar?
De jeito nenhum.
Quando estamos abertos e receptivos, temo opções. Estamos livres para descobrir, investigar, e aprender
a como responder habilmente a qualquer coisa que encontramos. Não podemos ser livres se estamos
rejeitando alguma parte de nossas vidas. O boas-vindas traz junto uma habilidade para acolher e trabalhar
tanto as circunstâncias agradáveis como as desagradáveis. Gradualmente, com a prática, descobrimos
que nosso bem-estar não depende apenas do que está acontecendo em nossa realidade externa; ele vem
de dentro.
Para experienciar verdadeira liberdade, precisamos dar boas-vindas a tudo assim como é. Em nível mais
profundo, esse convite, como a vida em si, requer de nós cultivar um tipo de receptividade destemida.
Dar boas-vindas a tudo, não afastar nada não é apenas um ato de vontade. Dar boas-vindas a tudo é um
ato de amor.

5.
AS COISAS ASSIM COMO SÃO
O curioso paradoxo é que, quando me aceito como sou, posso mudar.
- Carl Rogers

Eu me sentei em uma cadeira próximo à cama de Lorenzo. Ele estava deitado ali, enrolado em um cobertor
de hospital, virado para a parede verde da instituição. Um sem-teto, na casa dos sessenta, Lorenzo tinha
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adotado um comportamento de resignação, caindo em profunda depressão após ser diagnosticado com
câncer terminal de pulmão. Alguns dias antes ele tinha tentado tirar a própria vida. Agora estava no
Serviço de Emergência Psiquiátrica no Hospital Geral San Francisco. A equipe me disse que ele mal tinha
falado com alguém desde que foi admitido.
Eu me sentei calmamente. O tempo passou.
Após 20 minutos, Lorenzo ergueu o pescoço por cima dos ombros, e perguntou, “Quem é você?”
“Eu sou Frank. Do Zen Hospice,” respondi.
“Ninguém nunca ficou tanto tempo em silêncio comigo antes,” ele disse.
“Eu tenho muita prática de sentar em silêncio.”
Lorenzo era de descendência ítalo-argentina, magro e de aparência elegante, vestido com calças de
moletom largas e uma camisa amarrotada. Por trás de seu desespero e atitude hostil, eu senti uma
inteligência aguçada.
“O que você deseja?” Lhe perguntei com naturalidade.
“Spaghetti”
“Spaghetti? Bem, fazemos um spaghetti realmente bom em nosso lugar. Por que você não vem viver
conosco?”
“Ok, Frank.”
Esse foi o término da entrevista de admissão.
No dia seguinte quando Lorenzo chegou em nosso Hospice, esperava por ele uma grande tigela de
spaghetti. Para Lorenzo spaghetti significava familiaridade, nutrição, lar, e um retorno à normalidade.
Lorenzo viveu conosco por quase três meses. Ele não parou de desejar tirar a própria vida porque lhe
demos spaghetti. Era um bom spaghetti.... mas não tão bom.
Entretanto, Lorenzo e eu passamos a amar e confiar um no outro. Confiança é construída um dia de cada
vez, uma interação de cada vez. Começa com o prático. Quando você ajuda alguém a se mover da cama
para a cadeira, a outra pessoa confia que você não a deixará cair. Com o tempo, lhe confia seus segredos
e medos.
Lorenzo era um homem educado com interesse em arte, literatura, e filosofia. Sua vida despencou depois
que seu casamento se desfez. Ele perdeu o emprego e o seguro de saúde quando não pode mais trabalhar
devido ao câncer. Era um homem autodeterminado que nunca se imaginou um dia vivendo nas ruas. Ele
precisava recuperar alguma aparência de controle.
Não é incomum que pacientes em hospices expressem um desejo de morrer. Lorenzo queria ler Final Exit
(Saída Final), o livro mais vendido de Derek Humphry, sobre suicídio assistido. Isso aconteceu muitos anos
antes das leis atuais que permitem a morte assistida por médico, assim a solicitação de Lorenzo foi
considerada radical. Em todo o caso, eu comprei o livro para ele, e cada noite líamos junto um capítulo.
Algumas vezes precisamos chegar até os lugares mais escuros para encontrar a cura.
Naquelas sessões tarde da noite, Lorenzo falava e eu ouvia enquanto ele lentamente começou a revelar
seus medos mais profundos. Como muitas pessoas, Lorenzo temia virem dias de dor insuportável e
sintomas angustiantes. Eu lhe assegurei que em nosso hospice tínhamos elevada qualidade no manejo da
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dor e sintomas. Ele se preocupava com a possibilidade de ficar emocionalmente abandonado, de que
estar doente significava desistir do controle ou tornar-se dependente dos outros. Prometi que não o
deixaríamos sozinho e que ele escolheria como desejava ser tratado.
Um dia, pouco antes de morrer, Lorenzo me chamou em seu quarto e disse, “Eu quero lhe agradecer.
Estou mais feliz agora do que nunca.”
“Besteira. Há pouco tempo você me disse que não queria viver se não pudesse passear no parque ou
escrever em seu diário. O que foi aquilo?”
“Oh, aquilo,” ele respondeu encolhendo os ombros. “Foi apenas desejo.”
“O que você quer dizer? Aquelas atividades não são mais importantes para você?!
Lorenzo suspirou. “Não, não são as atividades que me trazem alegria. É a atenção às atividades. Agora
meu prazer vem do frescor da brisa e a maciez dos lençóis.”
Eu sorri. Que transformação extraordinária para um homem que encontrei em uma unidade psiquiátrica
alguns meses antes.
Na atmosfera não julgadora de aceitação e respeito que lhe proporcionamos, Lorenzo foi capaz de
descobrir uma nova maneira de estar presente para sua experiência. Ele desenvolveu a capacidade de
prestar atenção, de estar aberto ao que estava acontecendo. Como resultado, descobriu aquela lacuna
muito importante entre estímulo e resposta. Ele viu seu condicionamento mental e se libertou de
pensamentos e comportamentos habituais.
Agora Lorenzo podia se relacionar mais habilmente com sua doença e morte iminente. Ele podia contê-
la, e em certo sentido, fazer amizade com ela. Não mais vítima de sua condição, ou desligado disso, ele
estava livre para experienciar e abraçar sua vida diretamente, imediatamente, e plenamente.
Dar boas-vindas a tudo, não afastar nada, é antes de tudo um convite à abertura. No pensamento budista,
a abertura é uma das características chaves de uma mente curiosa e desperta. Ela não determina a
realidade. A descobre. Chogÿam Trungpa Rinpoche, o carismático professor Budista Tibetano, falava do
coração da prática Budista como a “completa abertura.” Ele descrevia essa abertura como “uma
disposição para olhar tudo o que surge, trabalhar com isso, e se relacionar com isso como parte do
processo geral.... É uma maneira mais ampla de pensar, uma maneira maior de ver as coisas, em vez de
mesquinha, melindrosa.”
Abertura não rejeita nem se apega a uma experiência e visão particular. É uma aceitação espaçosa, sem
defesa e não tendenciosa. Uma total aceitação. Abertura é a natureza da consciência em si, e essa
natureza permite que a experiência se revele.
Essa abertura dá as boas-vindas ao paradoxo e à contradição. Ele permite emergir qualquer coisa que
surja. Abertura significa manter nossas mentes o corações disponíveis para que novas informações,
experiências e oportunidades possam se desenvolver. Significa ter tolerância pelo desconhecido. Significa
acolher os maus momentos e os bons momentos como experiências igualmente válidas.
Dar boas-vindas a tudo, não afastar nada, é o oposto da rejeição. A negação gera ignorância e medo. Eu
não posso ser livre se estou rejeitando alguma parte de minha experiência. A experiência rejeitada
continuará aparecendo como uma moeda falsa. Ela voltará de novo e de novo, encontrando novas
maneiras de se expressar. Até que eu a conheça e veja através dela, sempre será a maldição da minha

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existência. Será sempre causa de meu sofrimento. Devemos soltar nossa oposição à experiência que
estamos tentando evitar, seja o que for – pensamentos, sentimentos, e acontecimentos incluídos.
Como muitas pessoas de quem cuidei, meu irmão mais novo, Alan, era um alcoolista de rua, que teve uma
vida muito difícil. Entrou e saiu de programas de tratamento ao longo dos anos, mas normalmente
acabava perdendo a batalha para as drogas e álcool. Em um momento de sua vida viveu nas barracas de
uma pista de corrida. Trabalhou duro na recuperação, terminou a faculdade e tornou-se um assistente
social apoiando pessoas que vivem com HIV.
Entretanto, com o tempo, os demônios de Alan levaram a melhor. Ele perdeu contato com seus
companheiros de doze passos, deixou de frequentar as reuniões de AA e voltou aos velhos padrões
destrutivos. Passou por esses altos e baixos por anos. Então ficou limpo por um tempo suficiente, casou-
se e teve uma filha. Mas teve uma recaída, e alguns anos depois teve um ataque cardíaco e morreu.
Meu irmão mais velho, Mark, me ligou um dia para informar sobre a morte de Alan. Combinamos nos
encontrar em uma funerária em Kentucky perto de onde Alan morava. Pedi para Mark organizar as coisas
e ver com o gerente do funeral uma permissão para eu sentar um pouco com o corpo de Alan. É um
costume em certas tradições Budistas deixar o corpo imperturbável por três dias. Durante esse período,
as pessoas chegam para meditar com o corpo, realizar cerimônias, e até ajudar a guiar o morto a
atravessar os estados intermediários – os Bardos. Mesmo que a pessoa não esteja conectada a essas
crenças e rituais, descobri que estabelecer um espaço sem pressa, respeitoso e sagrado após a morte
pode ajudar a família e os amigos no processo de luto.
“Por que você quer fazer isso?” Mark me perguntou, não familiarizado com ou inclinado à práticas
Budistas.
“É só uma coisa da Califórnia,” brinquei.
“Bem, não vamos realizar um serviço/cerimônia nem nada. Alan não tinha um círculo de amigos,” ele
disse.
“Está bem. Eu só vou sentar com ele na funerária.”
Quando cheguei no necrotério, um atendente trouxe o corpo de Alan em uma maca. Ele ainda não tinha
sido embelezado, não estava embalsamado, mas isso não me importava. Pedi ao meu irmão Mark para
ficar só com Alan por alguns minutos para que pudesse refletir sobre sua vida e nosso relacionamento.
No momento em que me conectei com minha respiração, a ex-esposa de Alan, Lorraine, entrou no quarto.
Ela era drogadict, e chegou em um estado de grande agitação. Correu para a maca e começou a sacudir o
corpo, com uma enxurrada de perguntas. “Por que essa etiqueta em seu pé? Onde estão seus óculos? O
que é esse arranhão no queixo dele? Ele vai voltar?”
Inicialmente fiquei com raiva. Eu só desejava ficar sentado calmamente com meu irmão, e agora havia
esse caos no quarto. Lorraine continuava, querendo respostas, e eu desejando desesperadamente que
ela fosse embora.
Então parei de tentar forçar para que as coisas acontecessem como eu tinha imaginado. Pensei, Você não
quer ficar com seu irmão? Isso é estar com ele. É isso. Decidi acolher a raiva em vez de afastá-la para que
pudesse ver o que era verdadeiro naquele momento. Ao fazer isso, percebi que havia força na raiva, que
eu poderia aproveitar para enfrentar a situação na minha frente.

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Eu me levantei, caminhei até Lorraine, e pousei minha mão em seu ombro, desejando proporcionar algum
conforto. Ocasionalmente respondia alguma de suas perguntas, mas na maior parte do tempo permaneci
em silêncio. Após 15 minutos, Lorraine se acalmou. “Preciso ir,” ela disse, e foi embora.
Senti uma onda de alívio e me acomodei de volta na cadeira. Mas segundos depois o gerente entrou e
disse, “Sinto muito. Estamos fechando agora. Vou lhe pedir para sair.”
E foi isso. Esse foi todo o tempo que eu consegui ficar com meu irmão.
Dar boas-vindas a tudo, não afastar nada, pensei comigo mesmo - meu próprio ensinamento voltando
para mim. Eu não podia mudar a situação. Se protestasse, só estaria causando a mim mesmo mais
sofrimento. Então deixei de lado minhas expectativas de como seria sentar com meu irmão falecido. Ao
aceitar o que aconteceu, encontrei paz no meio da confusão.
O que você está afastando nesse momento em sua vida? O que você não está permitindo? Que pesadelo
você está tentando evitar?
Certa vez eu estava dando aconselhamento a um grupo de enfermeiras de cuidados paliativos em
pediatria. Perguntei-lhes se estaria ok se as crianças de quem cuidavam morressem. A maioria disse não.
Achavam que aquilo era contra a ordem natural. Contudo, nos EUA, quase 60 mil jovens abaixo dos 19
anos, metade deles crianças, morrem a cada ano. Eu trouxe isso à tona, perguntando como elas ajudariam
as crianças sob seus cuidados a relaxar e morrer em paz quando lutavam contra a experiência toda vez
que entravam na sala?
Quando acolhemos o que é, como é, nos movemos em direção à realidade. Podemos não gostar ou
concordar com tudo que encontramos. Entretanto, quando brigamos com a realidade, sempre perdemos.
Desperdiçamos nossa energia e nos exaurimos com a insistência de que a vida seja diferente.
Apesar do que fomos levados a acreditar - que o destino está em nossas próprias mãos - muitas vezes
temos pouco controle sobre as circunstâncias externas de nossas vidas. Entretanto, temos muita chance
sobre como nos relacionarmos com as cartas que a vida nos oferece a aprendermos com elas.
Desenvolvemos resiliência nos permitindo experienciar o que estamos sentindo em uma dada situação,
seja boa ou má. Até que aceitemos a vida com toda sua loucura e inspiração, nos sentiremos apartados,
separados, isolados. Veremos o mundo ao nosso redor como um lugar perigoso e ameaçador.
Aceitação não é resignação. É uma abertura à possibilidade. E a abertura é a base para uma resposta hábil
à vida.
Claro, existem situações com as quais não podemos conviver, como quando estamos sendo agredidos
física ou emocionalmente e não temos escolha a não ser ir embora. Mas a maioria das situações externas
que encontramos no dia-a-dia não são uma questão de vida e morte. Podemos praticar receber condições
pequenas, desagradáveis, com graça, observando nosso relacionamento com o que está ocorrendo. Como
nossa reação interna e visão está moldando nossa resposta ao mundo externo?
Quando eu penso em acolher/dar as boas-vindas, me vem a imagem de uma porta de entrada aberta que
permite a passagem. Abertura permite que as experiências entrem e que nossas respostas emerjam e
sejam expressas no mundo. Estar aberto é permitir que as coisas sejam conhecidas, estar livre de
dissimulação, não guardar segredos de nós mesmos, ser tudo o que somos e podemos nos tornar.
Algumas vezes isso requer uma dor necessária, como quando lancetamos um abscesso ou nos abrimos a
uma dor psicológica. A abertura é essencial para que uma verdadeira cura seja possível.

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Temos a tendência de nos proteger de experiências e situações que não gostamos. Mas há uma sensação
de liberação e confiança que se desenvolve dentro de nós quando fazemos o oposto, quando não
afastamos nada.

Dar boas-vindas a tudo, não afastar nada, não se trata apenas de aprender a acolher condições de
mudança ou ir além de nossas preferências. É sobre aceitar a vida “como é.”
Minha filha, Gina, e eu gostamos de comprar roupas vintage em brechós. Há grandes achados em tais
lojas - um cachecol de seda estampado, uma jaqueta de couro retrô, saltos de lantejoulas. Enquanto Gina
experimenta roupas, eu examino as prateleiras. Muitas das roupas têm uma pequena mancha, um botão
faltando ou um pequeno rasgo no tecido. Observei em uma loja que todas as roupas traziam uma etiqueta
de papelão com o preço e o aviso de isenção de responsabilidade escrito: Como Estão.
Eu gosto dessas etiquetas. Acho que deveríamos pendurá-las em nós mesmos e um ao outro como
enfeites de Natal. Que presente maravilhoso aceitar a nós mesmos, os outros, e nossa circunstância Como
é, com toda beleza, imperfeições, e desafios que compõem esta nossa vida tão humana.
Dar boas-vindas a tudo, não afastar nada é um convite para descobrir uma dimensão mais profunda de
nossa humanidade, explorar algo além de nossos selfs habituais. Podemos acessar alguma parte de nós
que inclui, mas não é impulsionada por nossa reatividade.
Meu self habitual cotidiano não acolhe facilmente emoções e experiências desafiadoras. Meu pequeno
velho eu pode tomar algumas decisões como querer sorvete de chocolate ou baunilha, mas quer afastar
a dor, raiva, morte - os itens dispendiosos que exigem um investimento mais substancial de uma parte
maior de mim. Porque? Minha personalidade está sempre desejando evitar coisas difíceis. A
personalidade está cheia de “saber” e geralmente tem interesse em manter o familiar. Queremos que
aquilo que está acontecendo se encaixe em nossa agenda.
A única coisa com que nossa personalidade precisa trabalhar é a sua própria história. Mas se tudo o que
temos para enfrentar a situação atual é nossa resposta habitual, então continuaremos obtendo os
mesmos resultados.
Geralmente nos identificamos com os conteúdos de nossa consciência – com nossas opiniões, memórias,
desejos, aversões, autoconceitos, e outras fixações mentais e emocionais. Entretanto, ao acolher tudo,
permitimos que nossas identidades descansem na própria consciência.
A consciência oferece um ponto de vantagem completamente diferente que não precisa afastar nada.
Não está separada de nada mais. É, por definição, aberta, receptiva, e responsiva. Quando nos engajamos
com esse aspecto de nosso ser, uma consciência aberta e não tendenciosa nos permite ver os obstáculos
que estão obscurecendo nossa visão. A consciência nos dá a possibilidade de conhecer e compreender, e
isso significa que temos a possibilidade de descobrir felicidade e liberdade.
Dar boas-vindas a tudo, não afastar nada não é um convite tolo nem idealista. Pelo contrário, é
iminentemente prático. Aceitar a vida como é, significa que nos pacificamos com as coisas como elas são
em vez de tentar forçá-las a ser do jeito que desejamos que sejam (e ficarmos frustrados quando não
conseguimos). Em vez de inventar uma história na qual tentamos viver, nos abrimos para a maneira como
as coisas são e aceitamos que somos completamente humanos.
Ser humano é muito mais de que ter nascido, receber uma educação, encontrar o parceiro certo, ter uma
casa bonita em uma rua agradável, de modo que possa dormir, acordar, trabalhar, ir para a cama, e fazer
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tudo novamente. É um convite para sentir tudo, entrar em contato direto com o estranho, o maravilhoso,
o horrível, e as coisas geralmente perfeitamente ordinárias que chamamos vida. É uma oportunidade de
estar consciente do fato de que alguns de nós iremos fazer amor enquanto outros fazem guerra.
Reconhecer a verdade de que há bebês como minha neta nascida em braços amorosos e acariciada por
uma mãe que beija seu futuro brilhante nas bochechas de seu filho, e há bebês como Carolyn, uma mulher
que conheci cujos pais a deixaram em uma lixeira. Suportar os gritos da noite nos campos de refugiados
e as risadinhas das crianças nas salas de estar sob as tendas feitas de almofadas e lençóis. Há devastação
e desesperança, e há paixão e compromisso sagrado para criar um futuro melhor para todos. Há eu
escrevendo e você lendo e a separação entre nós, e há a unidade que sentimos quase imediatamente
quando somos lembrados de que existe amor.

6.
VIRE-SE PARA O SEU SOFRIMENTO
A jornada de ensinar sobre o amor a me permitir ser amado
provou ser muito mais longa do que eu imaginava.
- Henri Nouwen

Durante um workshop na zona rural, eu estava falando da possibilidade que surge quando paramos
de fugir daquilo que é difícil. Um dos participantes, um homem corpulento de meia-idade com ombros
largos e sorriso ainda mais largo, falou. "Isso me lembra postes telefônicos."
“Postes telefônicos? O que você quer dizer?” perguntei.
Ele explicou que uma vez teve um emprego instalando postes telefônicos. “Eles são duros e pesados,
chegando a 12 metros de altura. Há um momento crítico depois que você coloca o poste no chão,
quando fica instável e pode tombar. Se bater em você, pode quebrar suas costas.”
No seu primeiro dia de trabalho, o homem virou-se para o companheiro e disse, “Se esse poste
começar a cair vou correr como o diabo.”
Mas o veterano respondeu: "Não, você não vai querer fazer isso. Se aquele poste começar a cair, você
vai querer ir direto até ele. Vai querer chegar bem perto e colocar as mãos nele. É o único lugar seguro
para se estar.”
Quando confrontados com realidades duras na vida, ou mesmo algum pequeno desconforto ou
incômodo, nossa reação instintiva é correr na direção oposta. Mas não podemos escapar do
sofrimento. Ele só vai nos pegar de surpresa e nos bater na parte de trás da cabeça. A resposta mais
sábia é nos movermos em direção ao que nos machuca, colocar nossas mãos e nossa atenção
gentilmente e compassivamente sobre o que poderíamos querer evitar.
Especialmente na cultura Ocidental, somos ensinados que, se existe sofrimento, então algo está
errado. Isso é um equívoco. Eu tive um chefe anos atrás que, quando algo não funcionava, exigia, “De
quem é a culpa? Quem é o culpado?” Quando eu explicava que algumas vezes as coisas não
acontecem de acordo com o que se planeja, ele gritava, “Não seja ridículo! Isso é culpa de alguém!”

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Quando acreditamos que o sofrimento é um erro, não é de admirar que façamos tudo ao nosso
alcance para evitar isso. Nosso instinto de evitar é também devido ao fato de que nossa cultura
decidiu que o sofrimento não tem valor. “Por que sofrer?” somos treinados a dizer para nós mesmos.
“É melhor você escapar dessa dor por qualquer meio possível!”
Como resultado, nos tornamos mestres da distração. Em grande medida, esta é a nossa principal
prática humana. Uma grande parte de nosso dia é consumida com atividades que são tentativas de
proteger a nós mesmos do desconforto: surfar na Internet, assistir TV, trabalhar longas horas, beber,
comer. Nosso comportamento naturalmente leva à epidemia de alcoolismo e abuso de drogas;
compulsão alimentar, jogos de azar e compulsão por compras; e um apego inseguro aos nossos
dispositivos tecnológicos. Nos tornamos uma sociedade crivada de vícios insalubres.
Algumas dessas estratégias funcionam realmente? Claro, obtemos algum alívio temporário ignorando
problemas ou substituindo uma experiência desagradável por uma mais agradável. Mas quando olho
mais de perto para minha vida, vejo que tais benefícios tem vida curta. O que permanece no longo
prazo é o hábito do autoengano e suas consequências negativas.
O sofrimento é exacerbado quando se evita. O corpo carrega consigo qualquer dor não digerida.
Nossas tentativas de autoproteção nos levam a viver em um canto pequeno, escuro e apertado de
nossas vidas. Aceitamos uma perspectiva limitada da situação e uma visão limitada de nós mesmos.
Nos agarramos àquilo que é familiar simplesmente para reafirmar controle, pensando que podemos
afastar o que tememos como intolerável. Quando recuamos, esperando nos livrar de uma experiência
difícil, na verdade a estamos encapsulando. Em suma, o que resistimos persiste.
Minha mãe não foi a mãe ideal. Ela ligava e desligava seu amor em um instante. Contudo, numa tarde
quando eu tinha em torno de cinco anos, ela me deu uma lição de grande valor. Eu cortei minha mão
ao brincar com um canivete. Fiquei apavorado com o sangue. Minha mãe olhou a ferida e disse
calmamente, “Oh, acho que precisamos da toalha mágica para isso.” Então me puxou para seu colo,
enrolou minha mão com uma toalha pendurada no fogão, e me segurou até eu começar a me acalmar.
Depois de um tempo, recuperei o fôlego e ela disse: "Vamos dar uma olhada". Eu não queria, estava
apavorado de medo. Mas com sua bondade e tranquilidade, eu tive coragem. Devagar, ela desenrolou
a toalha, e juntos olhamos a ferida. Percebi então que ia ficar tudo bem. Naquele momento, eu vi que
é possível e até útil nos voltarmos para nossa dor e que há sempre a possibilidade de cura.
Aquele insight plantou a semente para muito do trabalho que fiz em minha vida adulta. O segredo da
cura repousa em explorarmos nossas feridas para descobrir o que está realmente lá. Quando
acolhemos a experiência – criando espaço e aceitação para ela – descobrimos que nosso sofrimento
não é uma coisa estática, monolítica, mas ao contrário é composto de muitos elementos, incluindo
nossas atitudes para com ele. Compreendendo isso, podemos trabalhar de forma hábil para aliviar as
reações subjacentes que exacerbam nossos problemas para que possamos amenizar nosso
sofrimento.
O sofrimento só será removido pela sabedoria, não saturando-o com o brilho do sol ou tentando
enterrá-lo em um porão escuro.
O sofrimento é um mundo bastante dramático. A maioria das pessoas não acha que o termo se aplica
a elas. “Eu não estou sofrendo,” dizem. Elas imaginam crianças com fome em um país Africano ou
refugiados fugindo da guerra no Oriente Médio ou pessoas passando por doenças devastadoras.
Imaginamos que, se formos bons e cuidadosos, permanecermos positivos, seguirmos as regras e

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ignorarmos o que está nos noticiários todas as noites, isso não acontecerá conosco. Nós pensamos
que o sofrimento está em outro lugar. Mas o sofrimento está em todo lugar. Essa e uma das mais
difíceis verdades da existência.
Sofrimento é apaixonar-se e depois tornar-se condescendente. Sofrimento é não ser capaz de se
conectar com nossos filhos. É nossa ansiedade sobre o que acontecerá no trabalho amanhã.
Sofrimento é saber que o seu telhado vai vazar na próxima tempestade. É finalmente poder comprar.
É comprar aquele smartphone novo e reluzente e depois ver um anúncio de um dispositivo ainda mais
novo com melhorias incríveis. Esperar que sua empresa se livre de seu chefe mal-humorado que ainda
tem um ano para se aposentar. Pensar que a vida está passando muito rápido ou muito devagar. Não
obter o que você deseja, e receber o que não deseja, ou obter o que deseja, mas ter medo de perder
– tudo isso é sofrimento. Doença é sofrimento, velhice é sofrimento, e assim morrer também.
No Budismo, o termo páli para sofrimento é dukkha, que traduzido seria algo como “angústia” ou
mais simplesmente “insatisfatoriedade” ou até “stress/aflição”. Dukkha surge da ignorância, de não
compreender que tudo é impermanente, não-confiável, e incompreensível – e desejar que seja de
outra forma. Desejamos reivindicar nossas posses, nossos relacionamentos, e até nossas identidades
como imutáveis, mas não podemos. Tudo está constantemente se transformando e escorregando por
entre nossos dedos.
Esperamos que as condições de nossas vidas nos deem de forma confiável o que queremos.
Desejamos construir um futuro ideal ou mitigar nostalgicamente um passado perfeito. Acreditamos
equivocadamente que isso nos fará felizes. Mas todos podemos ver que até aquelas pessoas que
alcançam condições extraordinárias na vida ainda sofrem. Mesmo que sejam ricas, maravilhosas,
inteligentes, com saúde perfeita, e abençoadas com famílias e amizades maravilhosas, com o tempo
essas coisas vão colapsar, ser destruídas e mudar... ou simplesmente perderemos o interesse. Em
algum nível, sabemos disso, contudo não conseguimos parar de nos agarrar a essas condições
“perfeitas”.
Originalmente, a palavra dukkha se referia a um eixo que não se encaixava perfeitamente no centro
da roda em um carro de boi. Já andei naqueles carros na Índia feitos para uma jornada difícil, saltando
para cima e para baixo em estradas enlameadas cheias de buracos. Quando o eixo e a roda não estão
alinhados corretamente, o passeio é mais difícil ainda.
Vamos supor que você foi demitido do emprego. Esse evento é indiscutivelmente aflitivo. Mas o
sofrimento se exacerba bastante se você se recusar a aceitar o que aconteceu como a realidade atual.
Sob tais circunstâncias difíceis, tendemos a dizer para nós mesmos, “Isso não é justo. Não pode ser
verdade. Não deveria ser assim,” o que só nos traz mais sofrimento. Um ponto crucial aqui é que
aceitação não requer concordância. Você ainda pode querer mudar as circunstâncias. Mas não pode
fazer uma mudança até primeiro aceitar a verdade do que está diante de você, olhos bem abertos.
Dukkha surge da confusão mental e emocional de não ver e aceitar as condições da vida como são
realmente. Sempre queremos algo. O que temos nunca parece ser suficiente. Queremos ignorar a
temporalidade da permanência. E isso cria uma insatisfatoriedade, um pavor, que ressoa em nossa
consciência e nos conduz a comportamentos que exacerbam em vez de aliviar nossa dor.
Qual a alternativa para lidar com a inevitabilidade de dukkha?

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O primeiro passo é se conscientizar de que dor e sofrimento são duas experiências intimamente
relacionadas, mas diferentes. O ditado familiar diz: "A dor é inevitável; o sofrimento é opcional". Isso
resume tudo.
Se você está vivo, irá experienciar dor. Todos têm um diferente limiar de dor, e contudo todos nós
experienciamos sofrimento em nossas vidas. A dor física é o alarme interno do sistema nervoso, o
corpo reagindo a um estímulo potencialmente danoso. Há uma experiência sensorial desagradável,
como fome, exaustão, uma dor de barriga, uma dor de cabeça latejante, ou as dores da artrite. A dor
também pode assumir uma forma emocional, como o coração partido ou a tristeza da perda.
Portanto existe dor, da qual não há escapatória. E então há o sofrimento, sobre o qual podemos fazer
algo. O sofrimento geralmente ocorre como uma reação em cadeia: estimulo-pensamento-reação.
Muitas vezes não temos controle sobre o estímulo que nos causa dor. Mas podemos mudar nosso
relacionamento com os pensamentos sobre nossas reações emocionais à dor, que frequentemente
intensificam nosso sofrimento.
Sofrimento tem a ver com percepção e interpretação. É nosso relacionamento mental e emocional
com o que primeiro é percebido como uma experiência desagradável ou indesejada. Nossas histórias
e crenças sobre o que está acontecendo ou aconteceu moldam nossa interpretação daquilo. Quando
as coisas não saem conforme o planejado, algumas pessoas acreditam que são vítimas indefesas ou
que “receberam o que mereciam.” Isso leva à resignação e apatia. Quando somos fisgados em
ansiedade e preocupação sobre o que pode acontecer no futuro, isso pode rapidamente proliferar em
uma rede de medo que não é facilmente cerceada.
Quando nos abrimos à dor no momento presente, podemos ser capazes de fazer algo para melhorar
a situação, talvez não, mas certamente podemos observar como nossas atitudes em direção à
experiência estão impactando o que está acontecendo. Minha reação à dor muda tudo. Pode
aumentar ou diminuir meu sofrimento. Sempre gostei da fórmula:
Dor + Resistência = Sofrimento
Se tentamos afastar nossa dor, seja ela física ou emocional, quase sempre nos descobrimos sofrendo
ainda mais. Quando nos abrimos ao sofrimento, investigando-o em vez de tentar negá-lo, vemos como
podemos fazer uso dele em nossas vidas.
Após meu ataque do coração e uma cirurgia de pontes de safena há alguns anos, um famoso professor
Budista Tibetano me ligou para me desejar melhoras. Eu sabia que ele tinha problemas do coração,
então lhe perguntei como lidava com aquilo – o drama, a confusão, a insegurança, e a beleza. Eu meio
que esperava que ele me oferecesse alguma prática de meditação esotérica.
Em vez disso, houve uma pausa, e então ele disse, “Bem, eu penso comigo mesmo, é bom ter um
coração. E se temos um, devemos esperar que ele tenha problemas!” O professor deu uma risadinha
à sua maneira tibetana, lembrou-me de descansar bastante e desligou o telefone.
Eu me dei conta de que ele estava certo. Era verdade. Todos os humanos têm problemas. Todos os
seres sentem dor. Uma vez tendo aceitado que tinha um coração humano frágil e que o mesmo
necessitaria de algum tempo para curar, pude relaxar na aceitação dessa situação temporariamente
dolorosa. Ao fazer isso, meu sofrimento também relaxou.
Após algum tempo, cheguei à conclusão de que não trocaria meu coração ou seu sofrimento, mesmo
se tivesse a opção de fazê-lo. Sem meu coração, como conheceria todo o amor que estava me
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cercando durante minha doença? Sem sofrimento, como poderia sentir empatia pelos outros ou
acolher seu sofrimento com uma resposta compassiva?
Podemos mudar nosso relacionamento com a dor pela maneira com que voltamos nossa atenção para
ela - virando-se para a mesma em vez de tentar enterrá-la ou correr na direção oposta. Um professor
sugeriu começarmos “colocando o tapete de boas-vindas.” Convidamos a entrar o que nos machuca;
sentamos com aquilo e vamos conhecê-lo realmente bem. Desta maneira, entendemos a natureza da
experiência e as causas profundas nem sempre evidentes à primeira vista. Enfim, o único caminho é
acolhermos o que está acontecendo, dar as boas-vindas à experiência e introduzir consciência e
compaixão onde antes a negação predominava.
Algumas vezes deixamos de lembrar que a dor tem um papel essencial em nossas vidas. Se não
sentíssemos o desconforto do calor de uma chama, queimaríamos nossos dedos. As emoções
dolorosas da vergonha, solidão, e culpa chamam a atenção para problemas mais profundos em nossos
relacionamentos. A dor pode nos motivar a tomar uma atitude, a identificar e tratar suas causas, e até
buscar felicidade.
A jornada da vida já é bastante difícil. Há muita dor inevitável. Mas quando não estamos alinhados
com a maneira como a vida efetivamente funciona, adicionamos bastante sofrimento desnecessário
à mistura. Em tais momentos, é útil parar de lutar com as circunstâncias, voltar à realidade, e nos
centrar novamente. Não há sofrimento sem sofrimento. O sofrimento pode nos abrir para a liberdade,
para a compaixão, para o amor.
Esse conceito é muito importante. É a medicina que muitos de nós almejamos quando percebemos
que o sofrimento é uma atitude da mente. Temos a opção de quebrar o impulso do hábito. Podemos
liberar velhas atitudes e nos voltar para a dificuldade para ver o que ela tem a nos ensinar. Em vez de
tentar evitá-la, negá-la, suportá-la, ou ficar ressentido com ela, podemos descobrir outro caminho.
Um dia, enquanto escrevia um relatório, recebi um telefonema de um homem que não conhecia. Era
o pai de um garoto de sete anos muito doente de câncer. Algumas pessoas lhe disseram que eu
poderia ajudá-lo.
Eu disse que certamente poderia ajudar a família a atravessar o processo de luto. Dei algumas
sugestões sobre como eu poderia apoiá-los quando chegasse a hora.
O homem fez uma pausa. Estava claro que eu não tinha entendido o que estava acontecendo. Ele
praticamente sussurrou, “Não, Jamie morreu há meia hora. Gostaríamos de manter o seu corpo em
casa, na sua cama por um tempinho. Você pode vir agora?”
De repente a situação não era hipotética; era real e na minha cara. Eu nunca tinha feito nada assim
antes. Claro, tinha sentado à beira do leito de pessoas que estavam morrendo, mas não tinha assistido
a morte de uma criança com os pais em dor inimaginável. Eu honestamente não tinha ideia do que
fazer, assim deixei que meu medo e confusão surgissem. Como eu poderia saber de antemão o que
era necessário?
Cheguei na casa pouco tempo depois, onde os arrasados pais me cumprimentaram. Me levaram até
o quarto do menino. Ao entrar, segui minha natural inclinação: fui até o corpo de Jamie, me inclinei e
o beijei na cabeça para dizer olá. Os pais caíram no choro porque, embora tenham cuidado do filho
com muito amor e atenção, ninguém tinha tocado no corpo da criança depois que tinha morrido. Não
era o medo do cadáver dele que os mantinha afastados; era o medo da dor que tocá-lo poderia
desencadear.
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Eu sugeri que os pais começassem lavando o corpo do filho – algo que sempre fazíamos no Zen
Hospice. Banhar o morto é um ritual antigo que atravessa culturas e religiões. Os humanos têm feito
isso há milênios. Isso demonstra nosso respeito por aqueles que morreram, e é um ato que ajuda as
pessoas amadas a conformarem-se com a realidade de sua perda. Meu papel nesse ritual era simples:
agir com mínima interferência e testemunhar.
Os pais coletaram sálvia, alecrim, lavanda e pétalas de rosas de seu jardim. Se movimentavam bem
devagar enquanto colocavam as ervas na água aquecida, pegavam toalhas e panos. Após alguns
momentos de silêncio, a mãe e o pai começaram a lavar o corpo do filho. Iniciaram pela parte de trás
da cabeça e então as costas. Algumas vezes paravam e diziam um ao outro histórias sobre seu filho.
Outras vezes, ficava forte demais para o pai suportar. Ele olhava pela janela para se recompor. A dor
que enchia a sala parecia enorme, como um oceano inteiro se chocando contra uma única praia. A
mãe examinava e cuidava amorosamente de cada pequeno arranhão ou hematoma no corpo de seu
filho. Quando chegou nos dedos dos pés, ela os contou, como tinha feito no dia em que ele nasceu.
Foi ao mesmo tempo angustiante e extraordinariamente bonito de assistir.
De tempos em tempo, ela olhava para mim sentado calmamente num canto do quarto, uma pergunta
suplicante nos olhos: “Conseguirei sobreviver? Consigo fazer isso? Pode alguma mãe viver com tal
perda?” Eu acenava com a cabeça em encorajamento para que ela continuasse em seu próprio ritmo
e lhe entregava outra toalha, confiando no processo. Estava confiante de que ela encontraria a cura
permitindo-se estar no meio de seu sofrimento.
Demorou horas para os pais lavarem o filho. Quando a mãe finalmente chegou ao rosto, que ela havia
guardado para o final, ela o abraçou com uma ternura incrível, seus olhos puro reflexo de seu amor e
tristeza. Ela não somente se voltou apenas para o sofrimento; ela havia entrado nele completamente.
Quando fez isso, o fogo feroz de seu amor começou a derreter a contração de medo em torno de
seu coração. Foi um momento íntimo. Não havia separação entre mãe e filho. Talvez tenha sido como
seu nascimento, quando eles tiveram a experiência de serem psicologicamente um.
Depois que terminaram o ritual do banho, os pais vestiram Jamie com seu pijama favorito do Mickey
Mouse. Seus irmãos e irmã entraram no quarto, trazendo um móbile com os modelos de aviões e
outros objetos voadores que Jamie havia colecionado, e o penduraram sobre sua cama.
Cada um deles enfrentou uma dor inacreditável. Não havia mais fingimento ou negação. Eles
conseguiram encontrar alguma cura no cuidado um do outro e talvez na abertura para a verdade
essencial de que a morte é uma parte integral e natural da vida.
Você consegue se imaginar vivendo o que esses pais viveram? “Não,” muitos diriam, “Eu não consigo.”
Perder um filho é o pior pesadelo para a maioria das pessoas. Eu não conseguiria suportar. Eu não
conseguiria aguentar, você pode pensar. Mas a dura verdade é que acontecem coisas na vida que não
conseguimos controlar, e que de alguma forma as suportamos. Suportamos testemunhá-las. Quando
fazemos isso com a plenitude de nossos corpos, mentes e corações, geralmente uma ação amorosa
emerge.
Os humanos são incríveis. Acho nossa coragem surpreendente. Pessoas em todos os lugares
experienciam dificuldades inacreditáveis – guerras, catástrofes, turbulência financeira, perda de suas
pátrias, morte de seus filhos – e contudo continuam, dão uma virada, se recuperam, vivem. E algumas
vezes agem com enorme compaixão para com outros que sofreram de forma semelhante ou que ainda
sofrerão em tempos vindouros.

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Uma das imagens mais impressionantes que me lembro veio depois que o grande terremoto e tsunami
desativou a estação nuclear de Fukushima no Japão. Uma foto no jornal revelou uma dúzia de
japoneses idosos reunidos humildemente, com cestas de almoço na mão, em fila do lado de fora dos
portões usina nuclear. Eles estavam se oferecendo para substituir os trabalhadores mais jovens que
tentavam conter a usina contaminada por radiação. No total, mais de quinhentos idosos se
voluntariaram.
Um dos organizadores do grupo disse, “Minha geração, a velha geração, promoveu a usina nuclear.
Se não assumirmos a responsabilidade, quem o fará? Quando éramos mais jovens, nunca pensamos
na morte. Mas a morte torna-se familiar à medida que envelhecemos. Temos um sentimento de que
a morte está esperando por nós. Isso não significa que desejo morrer. Mas ficamos com menos medo
da morte à medida que envelhecemos.”
Sofrimento é nosso chão comum. Tentar fugir do sofrimento fingindo que as coisas são sólidas e
permanentes pode nos dar uma sensação temporária de controle. Mas essa é uma ilusão dolorosa
porque as condições da vida são passageiras e impermanentes.
Podemos fazer uma escolha diferente. Podemos interromper nossos hábitos de resistência que nos
solidificam e nos deixam ressentidos e com medo. Podemos suavizar em torno de nossa aversão.
Podemos ver as coisas como realmente são e agir apropriadamente, com discernimento e amor.
O metre de meditação Tailandês Ajahn Chah certa vez apontou para um copo ao seu lado. “Você vê
esse copo?” ele perguntou. “Eu amo esse copo. Ele retém a água admiravelmente. No entanto, para
mim, este copo já está quebrado. Quando o vento o derruba, ou meu cotovelo o derruba da prateleira,
ele cai no chão e se despedaça, eu digo, ‘Pois não.’ Mas quando eu entendo que este copo já está
quebrado, cada minuto com ele é precioso.”
Depois de estar com os pais de Jamie enquanto banhavam seu filho, eu retornei para casa e segurei
meu próprio filho muito perto. Gabe também tinha sete anos nessa época. Eu vi claramente o quanto
ele é precioso para mim, que alegria é tê-lo em minha vida. Embora me sentisse devastado pelo que
tinha testemunhado, também era capaz de apreciar a beleza naquilo.
A experiência clarificou para mim o valor do sofrimento. Encarar o sofrimento de frente me ajuda a
ver que a verdadeira natureza da vida é que ela não pode ser possuída. Além disso, o sofrimento
aprofunda a empatia que eu sinto pelos outros, me deixando mais consciente de nossa humanidade
comum. Quando eu reflito no sofrimento, consigo ver onde estou preso em minha própria dor, e isso
me impede de gerar sofrimento desnecessário para mim mesmo. Finalmente, o sofrimento me mostra
a possibilidade de ter uma visão mais equilibrada da vida, como é possível viver em um mundo de
constante mudança com mais tranquilidade.
Quando damos as boas-vindas ao nosso sofrimento, ele nos sacode de nossa auto-satisfação. Pode
nos trazer clareza e nos ajudar a encontrar significado, sem o qual a dor pode ser demais para
suportar. Ela abranda e nos abre à vulnerabilidade que nos dá a capacidade de sentir, fazer contato
com, e experienciar mais a vida. Acessamos nossa coragem de estar com aquilo que de outra forma
seria intolerável.
Além do mais, quando testemunhamos nosso próprio sofrimento, paramos de nos separar dele.
Percebemos que ele é uma parte integral da condição humana; não é pessoal. Então dizemos a nós
mesmos, “Ei, esse sofrimento pode estar passando por mim de uma forma única, mas ele não é apenas
meu. Ele acontece desde o início dos tempos.”
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Essa perspectiva, por sua vez, dá origem à compaixão e ação. Quando retiramos nossa armadura,
nossos corações ficam mais disponíveis para amar, e a mente está livre para ver as causas
fundamentais do sofrimento. Não somente chegamos a um entendimento com nossos medos mais
profundos, mas também nos conectamos com os outros que tem feridas semelhantes. Somos
motivados a encontrar meios de reduzir o sofrimento – o nosso e o dos outros. Carl Jung escreveu,
“Uma boa metade de todo tratamento que utiliza uma investigação profunda consiste em que o
próprio médico se examine. É sua própria dor que dá uma medida de seu poder de curar.”
Quando nos voltamos para nosso sofrimento podemos submergir em tristeza, medo, e dor que
normalmente tentamos duramente evitar. Mas se estivermos dispostos a enfrentar a escuridão
acolhendo tudo e não afastando nada, a energia que foi consumida por nossa resistência aos eventos
indesejáveis da vida estará agora disponível para contribuir para curar, construir resiliência, e agir com
amor.
Uma parte integral da cura é soltar/deixar ir. Mas não há deixar ir até que haja deixar vir. Aprendi isso
da maneira mais difícil.
Quando tinha treze anos, uma experiência abalou minha inocência. Minha família vivia em uma casa
em uma terra doada ao meu avô pela Igreja Católica. Ficava do outro lado da rua da escola primária
da paroquia, que meus irmãos e eu frequentávamos e que meu avô, pedreiro, ajudou a construir. A
um quarteirão de distância ficava nossa igreja paroquial, onde meu avô havia servido como sacristão,
meu pai assistia à missa aos domingos e minha mãe rezava com devoção.
Como todos os membros da família, eu era um Católico praticante. Eu adorava ser coroinha, participar
de rituais, e estar próximo de Deus. Fiquei feliz quando consegui um emprego na reitoria onde morava
o padre, respondendo chamadas, e fazendo biscates nas noites de domingo.
O emprego dos meus sonhos tornou-se um pesadelo quando um dos padres, um homem corpulento
em torno dos cinquenta, que claramente tinha bebido demais, me chamou até seu quarto uma noite
e começou a me fazer perguntas sobre a escola. Pareceu bastante amigável a princípio, mas quando
eu lhe disse quais eram as minhas notas, ele puxou uma raquete e disse que eu precisava ser punido.
Ordenou que eu abaixasse minhas calças e deitasse seminu sobre seus joelhos. Senti-me assustado,
vulnerável e fraco. Ele tinha todo o poder, e o usou para me molestar.
Tragicamente, isso tornou-se um evento regular. Com o tempo, o abuso tornou-se mais distorcido e
violento, a desonestidade maior e a confusão sobre minha sexualidade mais evidente.
Eu me sentia preso. Tentei sair do emprego, mas meus pais não permitiriam. Estava muito
envergonhado para contar a eles a história verdadeira. Na verdade, não podia contar a ninguém sobre
o que estava acontecendo porque o padre era “um homem de Deus”, uma autoridade protegida,
reverenciada na comunidade. Eu era apenas uma criança. Porque alguém iria acreditar em mim? Não
havia ninguém a quem eu pudesse recorrer. Não poderia nem me confessar.
Em uma véspera de Natal, quando eu tinha quinze anos, minha mãe e eu assistíamos a missa da meia-
noite juntos. Meu irmão mais velho estava no Vietnam nessa época. Após a missa, minha mãe me
trouxe para a capela com esse padre que estava me abusando e soluçou com ele sobre o perigo que
o filho mais velho estava enfrentando.
Eu quis gritar, “Você está brincando comigo? Esse homem é uma fraude! Um monstro! Ele não pode
ajudar seu filho a sobreviver; ele está praticamente me matando!” Mas eu só consegui ficar lá de pé,

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congelado, à medida que meu abusador consolava minha mãe em seu papel sacerdotal. Fiquei
esmagado com a duplicidade de tudo aquilo, mas incapaz de agir em meu nome naquela idade.
Nós coroinhas sugeríamos o que estava acontecendo, mas nenhum de nós falava honestamente sobre
isso. Mais tarde eu soube que o padre também tinha molestado regularmente outros meninos que
confiaram nele. Todos nós tínhamos medo de seu poder e tínhamos problemas em outras áreas de
nossas vidas que nos deixavam sentindo-se fracos e isolados.
O abuso sexual continuou pelos próximos anos. Os Domingos me apavoravam. Como outras vítimas
de abuso, eu aprendi como viver uma mentira. Sepultei o segredo bem fundo e fingia que ele não
existia. Eu carregava a vergonha. Me acostumei a manter as partes sombrias de mim mesmo muito
abaixo da consciência. Cada vez mais me sentia dissociado do corpo, em um estado quase constante
de desorientação. Caminhava pela vida entorpecido, sem emoção. Em outros momentos desejava
matá-lo (o abusador). Odiava-o, e algumas vezes projetava aquele ódio em qualquer pessoa ou
qualquer coisa que atravessasse meu caminho. Me sentia sujo, como se houvesse alguma coisa errada
comigo. Eu estava danificado, irreparável. Tentava suprimir minhas memórias, negar o que havia
acontecido. Não queria que isso me definisse.
Por anos, tive pesadelos e flashbacks horríveis, sobre os quais nunca falei. Esse hábito de não encarar
minhas feridas pode ter me tornado mais susceptível a ainda mais abuso sexual por outros quando
me tornei adolescente. Isso causou mais distorções em minha própria mente. Inconscientemente e
ignorantemente, comecei a fundir como uma coisa só pedofilia, homossexualidade, e abuso infantil.
É claro, agora sabemos que molestamento e abuso sexual infantil não implicam uma compensação ou
causa psicológica específica por parte do perpetrador. Nem todos os incidentes de abuso infantil são
cometidos por pedófilos. E as pessoas que abusam sexualmente de meninos não são necessariamente
homossexuais. De fato, não há dados confiáveis que mostrem uma ligação entre a homossexualidade
e o abuso sexual infantil.
Contudo, nada disso fazia sentido na minha mente de adolescente ferida. Estava com medo, confuso,
e só desejava ser amado. Tornei-me estranho da religião formal. Via todo o clérigo como hipócritas e
não confiava em nenhum professor espiritual, independente da tradição.
Quando estava com vinte e tantos anos, após ter conhecido o Budismo e a meditação enquanto
viajava pela Ásia, retornei ao Norte da Califórnia e comecei a estudar com Stephen Levine, um pioneiro
no campo da morte consciente. Stephen foi o primeiro professor espiritual a quem confiei. Foi a
confiança nele que me permitiu compartilhar minha história de abuso. Stephen ouviu atentamente
sem julgamento ou comentário. Levou tempo para que toda a história fosse revelada. Quando há
vergonha, contar os detalhes da história a torna mais real. Isso começa a curar a sensação de
desconexão com nossa experiência e apoia a integração das feridas.
Stephen, que era muito intuitivo, sabia de meu profundo compromisso em ver a verdade e meu desejo
do coração de curar não importa o que fosse necessário. Ele disse, “Acho que você deveria começar
trabalhando com pessoas com AIDS.” A doença tinha acabado de aparecer em cena e naquela época
estava essencialmente infectando homens gays. Stephen disse, “você deveria servir a essa população.
Eu lhe ajudarei.”
Eu o agarrei pela camisa, joguei-o contra a parede, e gritei, “Você está louco?” Meu adolescente
interno ferido estava explodindo. Naquele momento, tudo o que eu conseguia experienciar eram
proibições contra essa ideia e um bocado de raiva reprimida. Que ideia ridícula, que absurdo, eu
pensava, servir as próprias pessoas que, em minha mente confusa, tinham me causado tanto dano.
61
Mas assim que a palavra Não Saiu de minha boca, eu soube que Stephen estava certo. Foi um
momento de consciência repentina, um reconhecimento do significado que precisava ser encontrado
em meu sofrimento. Eu precisava fazer. Stephen estava me enviando direto ao inferno para encarar
meus demônios. Em um flash, ficou claro que a vítima, o salvador e o perpetrador, todos vivam dentro
de mim. Eu certamente conhecia a experiência de vítima. E tinha desenvolvido um senso distorcido
do salvador saudável. Mas naquele momento, o perpetrador também estava presente. Agora era eu
quem permitia que meus pontos de vista me separassem de outros que não tinham nada a ver com
minhas feridas. Ficou evidente para mim que todos os três precisavam ser acolhidos, conhecidos, e
curados no amor. Eu tinha evitado isso por uma dúzia de anos, me afastando de minhas experiências
do passado, sentindo-me justificado em minha aversão. O serviço simples, transparente e compassivo
era o antídoto necessário.
Não muito tempo depois, eu me inscrevi para ser auxiliar de saúde domiciliar e servir homens gays
com AIDS. Trabalhava no turno da noite, cuidando de homens durante as horas solitárias entre a meia-
noite e o amanhecer, quando minhas experiências profundas, sombrias e vergonhosas muitas vezes
vinham à tona. Cuidar dos outros tornou-se uma maneira de nutrir a mim mesmo. Não foi uma
resolução repentina. Foi o que Stephen chamava um “despertar gradual”. Foi um caminho de cura
que eu caminharia por outros vinte anos.
Ao longo do caminho, descobri que, assim como o evento do corte na mão na infância, eu podia
convocar a coragem para olhar diretamente para o dano, por mais horrível que fosse. Tornar-se
consciente de nossas feridas e as crenças associadas sobre elas não é um processo passivo. Esse olhar
direto, com total aceitação, nos permite tomar uma atitude. Obtemos insight, e então podemos fazer
algo sobre. No momento exato, uma vez que a dor e a vergonha escondidas vieram à luz do dia, a
criança violada foi remendada e o curandeiro ferido começou a surgir.
Eu sei o que é ter dor. Fugir dela, se esconder. E sei o que é ter feridas que acreditamos nunca serão
curadas. Embora essas experiências dolorosas tenham deixado cicatrizes, desafiado minha fé em Deus
e minha confiança em meus semelhantes, algo básico em mim não foi destruído. Eu tive sorte. Nem
todo mundo tem o apoio de amigos sábios que podem nos ajudar a lembrar que somos mais do que
nosso sofrimento.
A crença infantil em um Deus personalizado e uma igreja que me protegeriam não servia mais para
mim. Encontrei uma fé profunda em um amor essencial que se manifesta através de nossos
semelhantes, através de nossos corpos, corações e mentes – em nossa habilidade humana de abraçar
o que parece impossível abraçar.
A disposição de estar com nosso sofrimento dá origem a uma desenvoltura interna que podemos
levar adiante em todas as áreas de nossas vidas. Aprendemos que tudo aquilo ao qual damos espaço
pode se mover. Nossos sentimentos de desconforto ou ansiedade, frustração ou raiva estão livres
para se abrir, se revelar, e revelar suas verdadeiras causas.
Voltar-se para o nosso sofrimento é uma parte fundamental de acolher tudo, não afastar nada. Esse
convite significa que nenhuma parte de nós mesmos ou de nossa experiência deve ser deixada de
fora: nem a alegria e nem a maravilha, nem a dor nem a angústia. Todas fazem parte do próprio tecido
de nossas vidas. Quando abraçamos essa verdade, entramos mais plenamente na vida.

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7.
O AMOR CURA
A vida começa com amor, é mantida com amor e termina com amor
- Tsoknyi Rinpoche

Quando eu estava no final da adolescência, utilizei meu certificado de salvamento da Cruz Vermelha
para trabalhar ensinando natação para crianças com deficiências graves. Jasmine era uma linda garota
de dezesseis anos que teria sido a rainha do baile do ensino médio se não tivesse espinha bífida. A
forma como a doença contorceu seu corpo a deixava muito constrangida em colocar um maiô e se
juntar a nós na piscina. Mas ela adorava assistir, fazer piadas e flertar.
Eu passei meses pacientemente encorajando-a a dar uma chance à natação. Todos os dias eu tentava
refletir de volta para ela a força, a coragem, o senso de aventura e a beleza que via irradiando de
dentro dela. Quando alguém acredita que está além do amor, você não consegue convencer essa
pessoa a amar a si mesmo. Mas você pode mostrar-lhe que são amados. O poeta Galway Kinnell
escreveu, “Às vezes é necessário reensinar a uma coisa a sua beleza.”
Um dia, Jasmine deslizou para fora de sua cadeira de rodas e para a borda de mármore da piscina.
Semanas depois, ela tirou os sapatos ortopédicos pesados para mergulhar os dedos dos pés na água.
E depois de seis meses, ela apareceu em seu maiô turquesa. Sem avisar, ela manobrou suas pernas
retorcidas e magras na beira da piscina, me chamou para mais perto e com um sorriso enorme pulou
em meus braços como uma criança de sete anos.
No horror de meu próprio sofrimento, eu sempre tive a esperança de que um dia alguém me
resgataria. Imaginava que seria salvo pelo amor vindo em minha direção. Exatamente o oposto. Eu fui
resgatado quando o amor chegou através de mim. Eu descobri o amor através de atos de bondade...
não oferecidos a mim, mas vindo de mim. Lembro das palavras do falecido John O’Donohue que
escreveu, “Não precisamos sair e descobrir o amor; em vez disso, precisamos ficar quietos e deixar o
amor nos descobrir.”
A experiência com Jasmine e as outras crianças deficientes destravou uma compaixão escondida
fundo no coração de meu sofrimento. Eu descobri um amor essencial que era confiável, vasto, e
intacto. Isso tornou-se uma fonte de verdadeiro apoio, meu guia firme ao longo de muitos anos de
experiências às vezes incríveis, às vezes penosas, em cuidados paliativos.
O amor tem sido meu mentor. O próprio amor me ensinou a amar.
A imensidão do amor torna-se evidente quando os véus entre este mundo e o mundo invisível são
mais tênues. No nascimento e na morte o amor derrete qualquer divisão. Muitas vezes nos permite ir
além do que pensávamos ser possível. Fazemos coisas que nunca imaginamos. Conheço mulheres que
passaram pelas fortes e poderosas contrações do parto, exaustão, pela dor e, às vezes medo, apenas
para descobrir uma fonte profunda de amor. Um amor que é diferente de qualquer coisa que tinham
conhecido. Existem incontáveis histórias de descobertas semelhantes perto do momento da morte,
como a filha que achava que não conseguiria viver sem seu pai, contudo por amor ela o liberou,
dizendo, “Ok, papai. Eu o amo.... você pode ir.”

63
Em tais momentos vislumbramos um amor sem restrição, um amor diferente da troca comercial que
caracteriza muitos relacionamentos romântico (como quando alguém demonstra amor por nós e nos
sentimos obrigados a retribuir). Essa é uma ordem de amor totalmente diferente, que se origina da
própria fonte de nosso ser. Ele reconhece e responde à bondade intrínseca do coração humano. É
tanto profundamente receptivo como dinamicamente expressivo.
Essa faceta do amor representa a aspiração mais universal de que todos os seres, incluindo nós
mesmos, encontrem felicidade e as causas de felicidade. Ele existe tanto antes como além das
condições. Não é algo a ser alcançado por nossas personalidades. Não é um amor idealista para ser
alcançado seguindo um certo caminho, nem é o resultado de atingir um estado espiritual especial.
Está sempre presente. De certa forma, é o pano de fundo de todas as experiências, a própria essência
do nosso ser.
Por que vive dentro de nós, esse amor está sempre disponível. Está disponível para nos ajudar a
enfrentar os aspectos presos, feridos e rejeitados de nós mesmos e para enfrentar os desafios que
ainda estão por vir. Dissolvendo nossas defesas nos permite lidar com nossos demônios da auto-
imagem negativa, vergonha, confusão e perda não resolvida, em vez de continuarmos a evitá-los.
Então podemos curar.
Podemos imaginar que a tensão e a contenção que usamos para forjar a armadura ao redor de nossos
corações manterão a dor do lado de fora, tornando-nos invulneráveis. Ao contrário, nossa armadura
nos separa do amor, amortecendo nossa sensibilidade, nos enrijecendo à nossas experiências, e
bloqueando a ternura, conforto, misericórdia e alegria que precisamos. Na maior parte,
permanecemos amedrontados por trás desse escudo e crescemos cada vez mais isolados das outras
pessoas e de nós mesmos.
Gradualmente, à medida que exploramos e relaxamos as estratégias habituais que nos mantinham
fechados, nos dando mais espaço, vemos que até nossa couraça nunca esteve separada do amor.
Assim como quando o sol surge ele derrete o gelo, transforma-o em água e então em gás, e então o
absorve de volta na atmosfera, da mesma forma não há nada separado desse amor ilimitado de nosso
ser – nem mesmo as partes mais feias e não amadas de nós mesmos.
Esse amor é a fonte que nos permite acolher tudo e não afastar nada. A abertura destemida
necessária para nos voltarmos para o nosso sofrimento só é possível dentro da ampla receptividade
do amor.
Carl era um filósofo autodidata. Uma conversa com ele facilmente tonava-se um fluxo interminável
de perguntas e mais perguntas. Eu apreciava sua inteligência aguçada e mente lógica, mas eu amava
o coração de Carl. Eu observava o modo gracioso como ele acolhia as pessoas em seu quarto. Tinha
um jeito de avô de abrir espaço para elas. Uma vez, quando dois adolescentes voluntários o visitava
no hospice, ele escutou por quase uma hora a repetição cena por cena do filme favorito deles. Ele
ouvia generosamente, não tanto por interesse, mas por cuidado por eles como seres humanos.
Com tantos Budistas voluntários ao redor, era inevitável que a curiosidade de Carl se voltasse para
perguntar sobre meditação. Ele estava usando uma bomba de auto infusão de morfina, para ajudá-lo
a aliviar a dor de seu câncer do estômago, mas que o deixava às vezes confuso. Ele pensou que poderia
usar mindfulness para lidar com sua dor abdominal em vez de morfina. Assim, me pediu para lhe
ensinar a meditar. Eu concordei tentar.

64
Na meditação, a dor é considerada um grande professor. Há muitas diferentes técnicas para trabalhar
com a experiência de dor. Eu comecei com a mais comum, encorajando Carl a observar a dor dirigindo
sua atenção para seu corpo em geral, então para a sensação de tensão, pontada, às vezes de
queimação e em constante mudança. Alternaríamos entre essa atenção localizada e concentrada e a
atenção à respiração para estabilizar e refrescar, de modo que sua mente não ficasse muito exausta.
Carl estava muito determinado. Notei sua testa franzida e a tensão ao redor de seus olhos. Ele estava
em guerra com a dor, suportando-a em vez de acolher, se abrir à experiência. Estava tentando usar
mindfulness para conquistar sua dor, e ficou frustrado com a falta de resultados imediatos. A dor era
demais para ele. Ele começou a gritar.
Precisávamos descobrir outro caminho.
Gentilmente, eu coloquei minhas mão sobre a barrida de Carl. Dessa vez eu o encorajei a sentir o
espaço entre o centro da dor e o calor de minhas mãos.
“Ainda dói muito,” ele gemeu.
Eu afastei minhas mãos de sua barriga. “E agora?”, perguntei.
“Um pouco melhor.”
Eu afastei minhas mãos ainda mais, encorajando-o a suavizar os músculos ao redor de seu estômago,
relaxar sua fronte, e deixar que a dor flutuasse no espaço que ele estava descobrindo.
“Ah, assim é melhor,” ele disse.
“Agora um pouco mais,” sugeri. Minhas mãos estavam a meio metro de distância de seu corpo.
“Ah, isso é maravilhoso,” ele sussurrou.
Eu não estava fazendo um trabalho de cura com energia. Não estava realizando nenhuma mágica.
Tudo o que estava acontecendo era que Carl tinha criado espaço para sua dor. Ele respirava mais fácil
agora. Os músculos de sua mandíbula tinham relaxando. Ele deitou-se contra o travesseiro, os olhos
fechados.
“Você consegue apenas descansar nesse lugar?”
"Descansar no amor", ele murmurou.
As palavras não vieram de mim, mas de algum lugar profundo, inato, dentro de Carl. Sua consciência
estava agora infundida com amor. Ele tinha encontrado o recurso confiável no amor que poderia usar
quando precisasse. Não precisava gerar o amor ou fazer alguma coisa especial para se tornar digno
dele. O amor já estava presente e bem disponível dentro dele.
A partir de então, sempre que Carl se sentia sobrecarregado pela dor, ele afastava sua bomba de
morfina e dizia para si mesmo: "Descanse no amor, descanse no amor.”
Sua esposa veio visitá-lo alguns dias depois. Era uma mulher nervosa e estava mais ansiosa sobre a
condição de Carl do que ele próprio. Ela se sentou ao lado da cama dele, as pernas balançando e os
dedos se contorcendo de nervosismo. Carl estendeu sua mão, a tocou levemente, e disse, “Descanse
no amor, minha querida. Descanse no amor.”
Mais tarde compartilhei essa história com meu velho amigo Ram Dass um dia no café da manhã. Ram
Dass é o amado professor espiritual mais conhecido por seu livro Be Here Now , e quem primeiro
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trouxe a “consciência” da filosofia Oriental para o Ocidente em 1971. Ele tem sido uma luz guia por
três gerações. Em 1997 sofreu um derrame quase fatal, que o deixou com o lado direito do corpo
paralisado junto com outros problemas desafiadores como afasia expressiva que limita sua
capacidade de falar. Seus ensinamentos se originam em parte de sua experiência pessoal enfrentando
a dor.
Ram Dass sugeriu que Carl tinha provado os frutos da “consciência amorosa.” Ele explicou que para
compreender a consciência amorosa é necessário apenas uma curta jornada, “do ego ao coração
espiritual”. Ram Dass ilustrou isso com um simples gesto, movendo sua mão esquerda da cabeça ao
peito enquanto repetia gentilmente, “Eu sou consciência amorosa.”
Ele continuou, “Quando sou consciência amorosa, estou consciente de tudo dentro e fora. Estou
consciente das ondas do oceano, das flores de hibisco no jardim, dos meus pensamentos assustadores
e sentimentos sombrios. A consciência amorosa testemunha tudo sem se identificar com nada.
Quando me fundo com o amor, não há nada a temer. O amor neutraliza o medo.”
Ram Dass estava falando sobre um amor aberto e todo-abrangente. Claro, todos nós somos fisgados
por nossos “gosto” e “não gosto”. Amor não significa que devemos tolerar mau comportamento ou
dizer sim quando precisamos dizer não. Seremos vítimas da dúvida, não merecimento, tédio, desejos
e ressentimentos. Às vezes, seremos guiados por nossos temperamentos, crenças, e estilos de vida.
Amor não elimina nada disso. Ele nos proporciona uma forma de encarar a vida que suaviza a
identificação, que impede que hábitos inábeis se tornem caráter.
O amor é o que nos ajuda a aceitar a nós mesmos, nossas vidas, e as outras pessoas, como são. Quando
alguma coisa não desejada – tais como morte, doença, perda de emprego ou relacionamento – se
aproxima, é natural que o medo surja. Em tais momentos, precisamos encontrar alguma parte de nós
que não tem medo.
Quando está com medo, você não sabe que está com medo? Então isso significa que alguma parte de
você, a parte que está testemunhando seu medo, não está com medo. Ela não está fisgada pelo medo.
Podemos aprender a nos relacionar com pensamentos difíceis, emoções fortes, ou circunstâncias
desafiadoras do ponto de vista da testemunha, da consciência amorosa. Quando o fazemos, tudo se
torna muito mais viável.
Amamos as experiências positivas de nossas vidas. É relativamente fácil aceitá-las sem questionar suas
origens. Porém uma das mais requintadas capacidades do amor é sua habilidade de abraçar tudo com
o que entra em contato – mesmo se, à primeira vista, a situação, experiência, ou pessoa parece
desagradável. O amor tem sua própria liberdade. Quando sentimos amor, ele não parece se preocupar
com quem ou o que devemos amar. A consciência amorosa nos ajuda a abraçar nossa tristeza, solidão,
medo, depressão, e dor física. Ele acende uma luz na escuridão e revela as verdadeiras fontes de nosso
sofrimento.
O amor não é um condomínio fechado. Todos nós e cada parte de nós são bem-vindos. “Nenhuma
parte é deixada fora,” eles dizem no Zen. Essa é a qualidade receptiva do amor.
Uma vez que encontramos esse tesouro, não faz sentido guardá-lo para nós mesmos. O terreno do
amor é ilimitado. Não precisamos ser mesquinhos sobre isso. Ficamos presos na escassez, mas o amor
não é uma mercadoria a ser negociada. Há um suprimento infinito de amor, e assim podemos doá-lo
infinitamente. Uma maneira de explorar essa colheita abundante de amor é através da prática Budista
de metta.

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Metta é uma prática na qual evocamos conscientemente um sentimento caloroso sem limites. Através
da recitação de frases como “Possam todos os seres em todos os lugares serem felizes e livres,”
gradualmente estabelecemos um sentimento de bondade, amabilidade, simpatia, e amor em nossos
próprios corações, e então estendemos o desejo de bem-estar e felicidade para todos os seres em
todas as direções. Metta expressa o forte desejo de paz e bem-estar dos outros. Ela reconhece que o
amor não pode ser possuído, mas que nosso contato com ele pode ser cultivado com a prática. Eu
acredito que bondade amorosa é a qualidade humana essencial mais benéfica nas vidas daqueles que
estão morrendo e na de seus cuidadores.
Eu tive a alegria de trabalhar com um homem chamado Michael que era um artista e praticante
Budista de longo tempo. Ele tinha sido ordenado pelo Zen e convivia com o Mal de Parkinson há 25
anos. Estava agora no estágio final da doença.
Sua esposa me convidou para conversar com Michael sobre o morrer, mas ele não estava interessado
no assunto. Em vez disso, conversamos sobre suas pinturas, como seu amor por detalhes tivera que
ser renunciado agora que suas mãos tremiam incontrolavelmente, como alguma coisa nova estava
emergindo nesse processo. Falamos da beleza da ameixeira que se erguia do lado de fora da janela.
Nos encontramos várias vezes, cada visita com um foco diferente à sua escolha. Uma conversa era
sobre ferramentas, especialmente sobre ferramentas de poda e pincéis, e a necessidade de cuidar e
de escolher a ferramenta certa para o trabalho. Outras vezes, ele se lembrava de seus primeiros anos,
ou sentava-se silenciosamente no quintal ouvindo o canto dos pássaros.
Às vezes falávamos sobre suas esposas, pois os homens fazem isso mais do que as mulheres podem
imaginar. Ele teve um casamento incomum, onde havia muito amor, mas também tensão e
afastamento. Ele falou de sua teimosia e hábitos de controle que cobraram seu preço. Ele e a esposa
viviam na mesma casa, mas separados. Dentro de seu compromisso e casamento, muitas vezes
estavam em desacordo.
Naturalmente, também falávamos do Zen, o poder do silêncio, e os ensinamentos paradoxais que
fazem nossa mente rodopiar. Por fim, falamos sobre a simplicidade da renúncia, o total soltar do corpo
e mente.
Eu perguntei a Michael o que ele pensava sobre Metta, a prática da Bondade Amorosa.
“Bobagem”, ele disse. Na mente de Michael, metta carecia da clareza e conteúdos que ele achava tão
satisfatórios em sua própria prática zen. Então ele acrescentou, “Mas eu poderia fazer com um pouco
de amor agora.”
A prática de Metta geralmente se realiza de uma maneira específica e estruturada. Tradicionalmente
na Ásia, você começa essa prática primeiro trazendo à mente você mesmo ou sua mãe ou seu
professor mais amado. Mas os Ocidentais muitas vezes têm relacionamentos complexos com essas
pessoas, e muitos de nós tropeçamos quando tentamos começar a prática dessa forma. Dessa forma,
eu pedi a Michael nomear a pessoa que era mais fácil para ele amar, ou a pessoa que o amava ou o
tinha amado sem hesitação.
Ele pensou um pouco e disse, “Meu cão Jonesy.” Seu companheiro de infância, ele explicou.
“Seu cachorro, hein... Por quê?”, perguntei.
“Bem, não importa o que eu fizesse, meu cachorro me amava. Se eu passava o dia fora, ou até mais,
ele sempre estava à porta para me receber quando eu chegava em casa, balançando o rabo, um
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grande sorriso de cachorro. Ele estava cheio de amor por mim.” Michael continuou dizendo, “Não
importava se eu estava mal-humorado ou contente. Ele nunca me julgou. Ele simplesmente me
amava.”
Assim, começamos com Jonesy. Michael deitou-se na cama, repetindo as frases tradicionais e criativas
de sua própria maneira. “Possa você ser feliz.” “Possa você ser livre.” “Possa você ter todos os ossos
de cachorro que deseja.” “Possa você saber que é amado.”
Enquanto repetia essas frases, seu rosto se abriu em um alegre sorriso. Mais tarde, houve lágrimas de
gratidão. Ele manteve a prática durante o mês seguinte. Sempre começava com Jonesy.
Gradualmente, seu amor era como um copo transbordando. Ele agora tinha tanto amor quando
praticava Metta que naturalmente incluiu seus professores, sua mãe, e às vezes, sua esposa –
demonstrando a função expressiva e orientada para o contato do amor.
Quando Michael morreu, sua esposa estava ao seu lado, o segurando. Eles tinham feito sua própria
forma de reconciliação. Não foi tanto sobre palavras. Foi sobre redescobrir o amor. O amor que
sempre esteve lá, escondido por trás do hábito.
Se o amor é abundante e infinito, por que então ficamos presos na escassez, sentindo que devemos
nos apegar tão fortemente a nossos entes queridos? Em parte, é porque confundimos amor com
apego.
O apego gosta de personificar o amor. Ele diz, “Eu lhe amarei se você me der o que eu preciso.” O
amor está focado na generosidade; o apego é obcecado em satisfazer as necessidades. O amor é uma
expressão de nossa natureza mais essencial; o apego é uma expressão da personalidade. O amor gera
fidelidade, alinhando-se com nossos valores, movendo-se com propósito; o apego segura-se ao medo
e se agarra firmemente a um determinado resultado final. O amor é altruísta e encoraja a liberdade;
o apego é autocentrado e gera possessividade. O apego deixa cicatrizes. O amor nos inclina à gratidão.
Considere a experiência do apego não saudável: ele é tenso, irritado, fechado, fixo e muitas vezes
compulsivo. Cria uma dependência não saudável. Acredita que nossa habilidade de sentir prazer e
felicidade, de satisfazer nossas necessidades é dependente de mundos a ações de alguma coisa ou
alguém fora de nós. Mas o amor abrange tudo. Podemos amar alguém mesmo se não concordamos
com essa pessoa e mesmo se não gostamos de todos os seus hábitos. Minha esposa me ama, mas ela
ainda fica aborrecida quando me esqueço de fechar os armários da cozinha. O amor não é cego aos
nossos desafios humanos cotidianos, contudo não está limitado por eles.
O apego saudável é essencial para formar e sustentar relacionamentos humanos, como o apego entre
mãe e filho. Entretanto, o amor é possível sem criar um apego não saudável, ao qual nos agarramos
ao ponto de não reconhecer ou permitir a inevitável verdade da impermanência.
Há uma velha história Budista de uma família cujo amor era um modelo para todo o vilarejo. Eles
viviam em harmonia e se apreciavam mutuamente. Um dia, o filho mais velho morreu. Os aldeões
foram até a casa da família consolá-los em sua perda. Quando chegaram, encontraram a família feliz.
Explicaram aos vizinhos que o segredo de seu amor e harmonia era que eles compreendiam que um
dia partiriam. Quando e como isso iria acontecer era incerto, assim viviam como se isso pudesse
acontecer a qualquer momento. Agora, quando o momento finalmente chegou, estavam preparados.
Uma história/ensinamento como esse não é uma resposta idealizada para a morte. Todos nós
lamentamos a perda de uma pessoa amada. Mesmo as pessoas mais despertas que eu conheço
lamentam. Ou melhor, histórias como essas nos desafiam a repensar nossas ações atuais, a considerar
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o que pode contribuir para um resultado benéfico. Elas nos ajudam a considerar conscientemente
como amamos as pessoas em nossas vidas.
À medida que as pessoas se aproximam da morte, tenho descoberto que apenas duas questões
realmente importam para elas: “Sou amado?” e “Eu amei bem?”
Quando meu ataque do coração e a cirurgia de emergência me trouxe bem próximo da morte, eu
verdadeiramente comecei a compreender a profundeza dessas questões. Agora permito-as me guiar
em viver bem.
A recuperação da cirurgia cardíaca foi assustadora. Eu estava abalado. Fui pego na dor, identificado
com minha deficiência, e experienciando muito medo. Eu questionei minha autoestima e valor. Senti
um desamparo sem razão. Temia ser esquecido. Me sentia perdido.
Inicialmente não podia ir ao banheiro sozinho nem tomar banho sem assistência. Estava frágil, fraco,
deficiente, dependente, meu corpo coberto de cicatrizes feias. Às vezes, minha mente vagava sem
rumo, outras vezes, era como um cão vadio latindo. Eu me sentia inaceitável, pouco atraente e não
amado. Me sentia uma merda.
Felizmente, tive pessoas ao meu redor que me amavam, apesar de mim mesmo. Meu nome era
colocado em altares de centros Budistas em todo lugar, e amigos e alunos cantavam meu nome
durante suas orações e práticas.
Eu não sabia que era tão amado. O amor dos outros me abriu ao auto-amor e mais profundamente
ao reconhecimento do próprio amor sem limites que temos explorado. Não era simplesmente uma
resposta emocional. Era palpável, caloroso, agradável, e incluía uma sensação de profundo
contentamento. Sentia-me nutrido, lembrado de alguma bondade básica dentro de mim. Houve uma
apreciação íntima, comovente de que a essência do meu ser era de fato amor.
Por meses eu só chorava, enquanto reconhecia de novo e de novo a benção de conhecer tal amor em
minha existência. Disse a amigos, “Os médicos me disseram que eu não poderia molhar minhas
incisões, mas eu tomo banho de amor todos os dias.”
Essa experiência de amor me abriu para confiar não nas ações dos outros ou até minhas experiências
do passado, mas em uma inteligência dentro de mim que era um guia sábio, amoroso, em um
território desconhecido. Era uma confiança no processo, de que o que estava acontecendo estava
ótimo, e o que quer que me acontecesse, ao final estaria bem. Uma natural leveza me preencheu.
Não era uma crença; era uma confiança não conceitual, implícita, na qual eu poderia me apoiar. Eu
tinha testemunhado isso muitas vezes em outras pessoas ao se aproximarem da morte.
Esse amor e confiança deu origem a um descanso profundo. Senti uma profunda sensação de bem-
estar, como um mel quente e dourado correndo em minhas veias, calmante, reconfortante. Me
libertou de minha obsessão em tentar fazer com que as coisas fossem de outro jeito que eram. Não
havia necessidade de resistir, de agarrar. Eu simplesmente repousava com as coisas conforme
apareciam, mudavam, ou desapareciam. O corpo em repouso. O coração em repouso. A mente em
repouso.
Repouse no amor, pensava comigo mesmo. Repouse no amor.
Quando as pessoas estão doentes ou feridas, apenas as ame. Ame-as até que possam amar a si
mesmas novamente. Isso funcionou para mim. Me fez pensar que talvez o amor seja realmente a
melhor medicina.
69
O amor é a própria qualidade humana que nos permite dar as boas-vindas a tudo, não apenas aquilo
que mais preferimos. O amor é a motivação que nos permite nos movermos em direção ao medo –
não para conquistá-lo, mas para incluí-lo, para que possamos aprender com ele. No amor, não há
separação. Cuidar de todas as coisas é, portanto, uma ação natural do amor. Nada permanece isolado
de seus cuidados.
Por que o amor é a qualidade que nos permite acolher tudo? Quando vemos a realidade do ponto de
vista de nossas personalidades – a partir de um self pequeno, separado – estamos constantemente
procurando o que nos distingue um do outro. Mas quando olhamos do ponto de vista do amor sem
limites, começamos a ver todos os pontos de conexão que nos unem.
Amor gera amor.

O TERCEIRO CONVITE
Traga todo o seu eu para a experiência

Observando a lua ao amanhecer, solitário, no meio do céu,


eu me conheci completamente: nenhuma parte ficou de fora.
- Izumi Shikibu

Imagine que você tem uma fotografia de si mesmo impressa em um papel grosso e rígido. Agora
imagine que a foto não é apenas de seu rosto ou mesmo de seu corpo inteiro, mas que de alguma
forma representa uma imagem multi dimensional de você, incluindo todas as partes de sua
personalidade. Suponha que você passe essa imagem por um corte a laser para transformá-la em
peças de um quebra-cabeça.
Você pode começar a montar o quebra-cabeça pelos cantos, ou uma parte facilmente identificada
como sua mão ou orelhas, ou talvez seus olhos já que são considerados as janelas da alma. Mas ao
continuar você pode se deparar como uma peça que não gosta – por exemplo, seu medo. E pode
pensar, “Acho que vou deixar essa peça de fora.” Ou você pode encontrar sua volúpia “Não, meu
professor espiritual me disse que isso não é bom. Não posso incluir essa peça.”
E assim continuará, com você considerando certos aspectos de si mesmo aceitáveis e outras partes
totalmente inaceitáveis. Após um tempo, você não conseguirá se reconhecer no quebra-cabeça
porque estará olhando para essa imagem fragmentada. Não será capaz de ver a imagem completa.
Todos nós gostamos de parecer bons. Ansiamos ser vistos como capazes, fortes, inteligentes,
sensíveis, espirituais, ou pelo menos bem-resolvidos. Projetamos uma auto-imagem positiva. Poucos
de nós desejamos ser conhecidos por nossa incapacidade, medo, raiva, ou ignorância, ou que os
outros saibam que às vezes somos um caos mais do que do que gostaríamos de admitir.
Contudo, mais de uma vez descobri um aspecto “indesejável” de mim mesmo, uma coisa sobre a qual
antes me sentia envergonhado e mantido afastado, que era a própria qualidade que me permitia
enfrentar o sofrimento de outra pessoa com compaixão em vez de medo ou pena. Minha própria
experiência de abuso me permitiu ter empatia tanto com o abusado como o abusador, ajudar cada
70
um a encontrar o perdão por sua raiva e se abrir para seu medo. Isso não é nossa expertise, mas ao
contrário, nossa sabedoria obtida a partir de nosso sofrimento, vulnerabilidade e cura que nos permite
ser de real ajuda aos outros. É a exploração de nossa vida interior que nos facilita a formar uma ponte
empática entre nossa experiência e a deles.
Para sermos inteiros, precisamos incluir, aceitar, e nos conectar com todas as partes de nós mesmos.
Precisamos da aceitação de nossas qualidades conflitantes e a aparente incongruência de nossos
mundos internos e externos.
Totalidade não significa perfeição, significa que nenhuma parte é deixada de fora.

8.
NÃO SEJA UM PAPEL, SEJA UMA ALMA
Não venda sua alma para comprar amendoim para os macacos.
- Dorothy Salisbury Davis

Quando estou ao lado do leito de morte de uma pessoa sinto meu próprio medo. Estou em contato
com meu próprio pesar. À serviço da cura, extraio minha incapacidade assim como minha força,
minhas feridas e meu ardor. É assim que podemos descobrir um autêntico ponto de encontro com
as outras pessoas: através da corajosa e vulnerável exploração de nossa própria experiência.
Anos atrás, em 1989, estava cuidando de meu querido amigo John, que estava morrendo de AIDS. Eu
o amava muito e sempre quis lhe oferecer o melhor cuidado possível. Havia vários de nós em seu
grupo de apoio. Nos revezávamos para acompanhá-lo em turnos de 24 horas.
Meu turno era segunda-feira. Naquela inesquecível segunda-feira, uma complicação neurológica
estranha acometeu John, causando completa confusão e esquecimento, uma súbita mudança em seu
pensamento e fala, e uma perda de sensação em suas mãos e pernas. De uma só vez, ele perdeu a
capacidade de segurar uma colher, ficar em pé ou se comunicar de qualquer maneira inteligente.
Quando entrei em seu apartamento, ele estava sentado em um roupão xadrez em sua mesa de
cozinha, curvado sobre uma tigela de Kellog's Cocoa Krispies (salgadinho americano), seu cabelo uma
bagunça e seu rosto absolutamente inexpressivo.
Não consegui encontrar meu amigo. Aonde ele tinha ido? Algumas noites antes estávamos rindo
assistindo Johnny Carson. Honestamente, fiquei apavorado.
À medida que o dia passava e a manhã se transformava em tarde e depois noite, uma escuridão
palpável se instalou ao nosso redor. Tenho vergonha de dizer que às vezes, na tentativa de controlar
o comportamento desconhecido de John, eu era manipulador e bajulador. Outras vezes, eu o tratava
como uma criança. Eu não sabia o que fazer. Estava perdido e confuso.
Cuidar de John nessa condição foi um trabalho difícil. Ele tinha tumores anais e diarreia constante.
Precisava levá-lo do toalete ao chuveiro e de volta ao toalete dezenas de vezes no meio da noite.
Quando a luz do amanhecer finalmente começou a lançar sombras nos azulejos do banheiro, eu estava
exausto. Só desejava ir para a cama. Ansiava que John dormisse e acordasse como a pessoa que
costumava ser. Desejava que aquele pesadelo fosse embora.

71
Então, entre uma daquelas idas do chuveiro ao toalete, enquanto lavava as mãos e olhava no espelho,
vi John sentado atrás de mim, com o pijama abaixado nos tornozelos. Ele murmurava palavras.
Eu me virei.
De sua mente distorcida veio um sussurro. "Você está se esforçando demais.”
Eu parei, sentei no chão ao lado do toalete e comecei a chorar.
Aquele momento acabou sendo o mais íntimo de toda a nossa amizade. Havia merda por todo o
toalete. Não havia separação entre nós. Estávamos indefesos juntos. Choramos e depois de um tempo
rimos do completo absurdo das circunstâncias. Até aquele ponto eu tinha estado com medo de entrar
naquele território de desamparo onde John estava vivendo, com medo de me perder lá. Estive
ocupado tentando ser útil, afirmar o controle e me esconder atrás do meu papel bem definido: Sr.
Hospice.
É comum e perfeitamente natural quando pegos nas garras do medo, nos tornarmos defensivos,
controladores, emocionalmente indisponíveis e irritáveis, e perder a paciência com nós mesmos e os
outros. Queremos nos sentir seguros, por isso nos apegamos aos papéis com suas regras estabelecidas
e comportamentos prescritivos.
Mas para me conectar com John e o servir verdadeiramente, precisava ver como meu medo estava
acionando uma sensação de impotência. Eu precisava desacelerar tudo, suavizar e me abrir para o
que estava presente, em vez de continuar insistindo para que a situação se adaptasse às minhas
preferências.
Afinal, não seríamos indefesos para sempre. A situação nos mostraria o que fazer a seguir. Mas não
podíamos ver o caminho até que eu relaxasse minha identificação com o papel de cuidador e
permitisse que meu desamparo entrasse no quarto.
Somos animais sociais, e como tais, cada um de nós tem múltiplos papeis para desempenhar na
sociedade. Eu sou um marido, pai, e avô em casa; um vizinho quando caminho na minha quadra; um
cliente quando entro em um café; um professor na minha comunidade espiritual; e um paciente nas
mãos de meu cirurgião cardíaco.
Papéis não são bons nem maus. Eles são primariamente funcionais e fornecem alguma previsibilidade
necessária em nossas vidas, especialmente quando se trata de relacionamentos interpessoais.
Nossos papeis mudam conforme nos movemos através da vida. Até a meia-idade, geralmente nos
focamos na realização, criando nossas identidades, nos rebelando, desenvolvendo uma carreira,
construindo uma família, e forjando as estruturas que precisamos para prosperar no mundo. Quando
encontramos a coragem para mudar na segunda metade da vida, geralmente nos voltamos para
dentro. As habilidades que desenvolvemos para lidar com as tarefas da primeira metade da vida não
são suficientes ou apropriadas para nos apoiar nesse próximo estágio de nossa jornada. Nesse
período, normalmente nos orientamos na direção de explorar o significado da vida, abraçando o
mistério, cultivando sabedoria, e relaxando um certo esforço. É um comportamento apropriado para
a idade.
Cada papel chega completo com seu próprio conjunto de comportamentos, funções e
responsabilidades esperados (baterias não incluídas). Torna-se complicado quando um papel entra
em conflito com outro. Mães solteiras que lutam para equilibrar o trabalho em tempo integral com a
parentalidade regularmente relatam exaustão física e emocional que acompanha o conflito de papeis.
72
Na noite no massivo terremoto de San Francisco em 1989, eu fiquei dividido entre meu papel de pai,
cuidando das necessidades da minha família e meu papel de diretor de um hospice, precisando
garantir a segurança dos pacientes e da equipe. É mais difícil ainda quando crenças pessoais entram
em conflito com nossos papeis profissionais. Algumas vezes sabemos o que é certo, mas nos sentimos
impotentes para agir com bom senso.
Papeis são uma escolha. Quando escolhemos estar em um papel, também estamos escolhendo não
estar em outro. Se, como uma jovem garota, eu me comprometo com uma vida focada, rigorosa, para
me tornar uma bailarina profissional, posso escolher desistir de uma educação tradicional ou certos
aspectos de minha vida social. Se em meu papel como jurista, acho que é importante projetar a
imagem de um homem forte, bem-informado, tranquilo em uma crise, posso achar difícil revelar
minha fraqueza ou aceitar minhas qualidades mais nutridoras.
Quando renegamos partes de nós mesmos tendemos a julgar os outros que exibem aquelas mesmas
qualidades. Nós reivindicamos superioridade moral. Assim, se segurar firmemente a um papel pode
criar um abismo entre as pessoas que é difícil atravessar.
A vida nos pede para nos adaptarmos continuamente. Quando os pais envelhecem, os papeis se
invertem e os filhos frequentemente tornam-se cuidadores. Se eu sou o provedor de minha família e
fico doente, alguém precisa cuidar de mim. Se sou aquele que toma decisão e agora estou com
Alzheimer, alguém deve encarregar-se de certas decisões. Ou sou um alcoólatra e estou em
tratamento. De repente não sou mais a ovelha negra da família e tenho que voltar a participar da
tomada de decisões.
Quando estamos super identificados com um papel, ele nos define e reduz nossa capacidade de
escolha consciente. Essa super identificação estabelece uma expectativa sobre como a vida deve
prosseguir. Isso significa mais fragmentação, mais posições fixas e crenças arraigadas, e menos acesso
a nossa sabedoria inata. Frequentemente – especialmente em nossos papeis públicos, profissionais –
não permitimos que o nosso inteiro eu apareça.
Quando eu vou a uma festa inevitavelmente alguém pergunta, “O que você faz?” Mas é claro, se eu
me defino apenas pelo que faço, quem sou eu quando não estou fazendo? A verdade é que não somos
o que fazemos, o que pensamos, o que sentimos, o que dizemos, ou o que temos. Somos mais do que
tudo isso.
Ram Dass diz, “ Não seja um papel; seja uma alma.”
Não somos nossos papeis, e não somos nossas condições. Você pode ter câncer ou uma desordem bi-
polar, mas você não é sua doença. Você pode ter nascido na riqueza ou pobreza, mas não é rico ou
pobre. Pode estar feliz ou triste, velho ou jovem, em boas condições ou em desespero, mas você não
é essas coisas.
Somos antes de tudo seres humanos, com toda complexidade, fragilidade e maravilha que a vida
contém. Quando só olhamos através das lentes de um papel, ele estreita nossa visão do mundo. Não
vemos coisas e pessoas como verdadeiramente são, mas em vez disso projetamos nossa história nelas.
Isso frequentemente nos faz atribuir um significado particular a uma experiência e perdemos o
verdadeiro significado que está tentando emergir.
Muitas vezes no trabalho como cuidadores e outros similares, não estamos procurando ver o que
serve aos outros, mas procurando confirmar nossa identidade socialmente aprovada. Queremos ser
alguém que ajuda. Dizemos, por exemplo, “Eu trabalho com os moribundos” com ênfase no Eu. E
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dessa forma investimos no papel e não na função. Eu chamo isso “doença do cuidador”, e em minha
visão, ela é uma epidemia mais desenfreada do que câncer e Alzheimer juntos.
Estou falando sobre a maneira com que tentamos nos separar do sofrimento das outras pessoas.
Fazemos isso com nossa pena, nosso medo, nossa amabilidade profissional e até mesmo nossos atos
de caridade. Ele (o papel) altera a forma com que tomamos decisões.
Houve uma mulher em nosso hospice a poucos dias da morte. Ao olhar para trás em sua vida, sentiu
arrependimento em relação a muitas de suas escolhas. Como resultado, estava bastante triste – um
pouco deprimida, mas não do ponto de vista clínico. Isso me pareceu natural.
Uma enfermeira visitante me puxou de lado e sugeriu que começássemos uma medicação
antidepressiva. Essa medicação levaria 4 a seis semanas para surtir efeitos benéficos no seu estado de
humor.
“Por que você deseja prescrever essa medicação?” eu perguntei.
A enfermeira respondeu, “Bem, ela está tão desconfortável, e é difícil vê-la assim.”
Eu disse, com ironia, “Talvez você devesse tomar a medicação.”
Ajudar pode ser uma atitude motivada altruisticamente ou egoisticamente. O psicólogo social, Daniel
Batson identificou duas emoções distintas que motivam as pessoas a ajudar outras. A primeira é o que
ele chamou “preocupação empática”, que para ele deveria ser considerada altruísta pois está focada
na outra pessoa. É a ternura e cuidado que são suscitados em nós quando vemos outra pessoa em
sofrimento.
Ele chamou a segunda motivação de “aflição pessoal”. Ele postulou que isso poderia ser considerado
egoísta na medida em que é auto-focado. Aqui, a motivação de ajudar vem do desejo de ganho
pessoal, como melhorar a autoestima, ou porque estamos tentando evitar a dor da culpa, auto crítica,
ou outros sentimentos desagradáveis. É o oposto da empatia pois em vez de promover conexão, pode
levar à autoproteção, retirada, ou a fazer mais, quer a intervenção extra seja ou não desejada ou tenha
ou não real valor.
Não é incomum na área da saúde que os médicos afastem seus próprios sentimentos de medo,
futilidade, ou incapacidade prescrevendo um programa de tratamento, droga ou procedimento
desnecessário, inefetivo, ou não desejado.
Jackson trabalhava em uma fábrica de cabos elétricos. Ele tinha três parelhos de TV em seu quarto e
gostava de assistir todos ao mesmo tempo. Cada uma tinha sua própria antena artesanal, porque é
claro que ele tinha um suprimento ilimitado de cabos. Ele preferia assistir à noite filmes e thrillers de
horror. Geralmente três ao mesmo tempo. De manhã acordava grogue e se queixando de pesadelos
terríveis. Eu sugeri que ele talvez pudesse desligar as TVs antes de dormir.
Ele olhou para mim como se eu estivesse louco e disse, “Não, cara. As TVs me ajudam a dormir.” Eu
me dei conta de que para Jackson, a TV era uma companhia, talvez seu relacionamento mais
duradouro, e que ficar sozinho o apavorava. Seu câncer terminal o apavorava por razões semelhantes.
Tinha medo de que sua doença fizesse com que os outros o abandonassem porque amizade com ele
não tinha futuro.
Jackson nunca queria desapontar os outros, especialmente sua médica, a quem ele entregava seu
futuro na mãos. Era inflexível sobre manter seus compromissos com ela, mesmo quando não era de
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seu interesse. “Você não pode esperar que as pessoas o ajudem se você não aparecer para ser
ajudado,” ele dizia, insistindo em ir ao consultório de sua oncologista para um check-up agendado
um mês antes. Foi uma provação para ele fazer aquela viagem ao hospital. Havia parado de comer
uma semana antes, sentia náuseas na maior parte do tempo e estava muito fraco e incapaz de andar.
A médica claramente ficou aflita quando viu a mudança dramática na condição de Jackson – seu corpo
magro, olhos salientes e as mudanças de humor causadas por seu glioblastoma (tumor cerebral). No
entanto, ela mal fez contato visual com ele durante toda a consulta. Manteve seu medo bem
escondido atrás de seu jaleco branco. Falando abruptamente, ela sugeriu um novo programa de
radiação intensiva para reduzir o tumor cerebral.
Jackson respondeu dizendo que estava nauseado e cansado e queria descansar. A oncologista rabiscou
uma prescrição de um anti-emético e agendou a radioterapia para o dia seguinte.
Eu levei Jackson de volta ao hospice, onde ele morreu mais tarde naquela noite.
Foi difícil observar a interação fria, indiferente, quase robótica da médica com Jackson. Ela poderia ter
pausado, dado um tempo, escutado quando ele disse: "Estou cansado. Preciso descansar." Mas ela
passou direto por ele. Não podia deixar a dor entrar. E ao fazer isso, perdeu uma oportunidade de
cura - não apenas para Jackson, mas também para si mesma. Grudada à segurança e privilégio de seu
papel médico, ela sacrificou um pouco de sua humanidade naquele dia.
Nos ambientes cada vez mais tecnológicos de centros médicos, onde os protocolos de tratamento
mudam rapidamente, os médicos frequentemente são pressionados a realizar mais com menos
recursos. Como resultado, é fácil para eles tornarem-se exclusivamente focados na tarefa. Mas os
seres humanos não são sistemas de entrega de tarefas. No cuidado com o outro, devemos cuidar
tanto da tarefa como do relacionamento. Sem um relacionamento e a conscientização dos valores
intrínsecos do propósito, significado e crescimento espiritual, há uma perda da alma. Nós separamos
o secular do sagrado. Todos nós já encontramos um médico que está cumprindo o papel,
desempenhando o trabalho, mas não está presente conosco. Alma é sobre presença. Quando ficamos
presos em nossos papéis, paramos de nos importar. Os pacientes se sentem ignorados e objetificados,
e sua autonomia é reduzida. Muitas vezes eles na verdade acabam sofrendo mais com o tratamento
que recebem, suportando seu sofrimento sem se queixar enquanto toleram todo o tipo de efeitos
colaterais desagradáveis.
Enfermeiros (as) e médicos (as), pessoas com bom coração, também se tornam frequentemente
fechados à sua própria dor. Impulsionados implacavelmente pelas expectativas irreais dos sistemas
em que trabalham, treinados para usar estratégias de enfrentamento que os fazem ignorar o que mais
dói, eles perdem o contato com seus corações compassivos. Muitas vezes, recebem seu desconforto
e alienação com rejeição em vez de amor. Quando estão sobrecarregados de trabalho, ficam
paralisados; moldados por seu treinamento, veem apenas sintomas e não a pessoa à sua frente. Tudo
o que eles têm a oferecer é sua expertise.
A maioria de nós naturalmente estamos inclinados a ajudar as pessoas; desejamos tentar diminuir o
sofrimento dos outros. No entanto, alguns de nós rapidamente seguem nossa versão de um bloco de
prescrição, distribuindo conselhos não solicitados. Normalmente, nosso primeiro instinto ao ouvir as
dificuldade do outro é tentar consertá-las. Embora nossa intenção possa ser genuína, podemos estar
alegremente insensíveis à maneira como impactamos os outros. Isso já aconteceu com todos nós.
Você encontra um amigo num café e menciona de passagem que não dormiu bem a noite passada.

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Seu amigo bem intencionado descarrega um discurso sobre os riscos à saúde de beber café, talvez
algumas dicas de dieta, e a importância de um programa de exercícios.
Nós gostamos de nossas opiniões. Não há nada errado em ter um ponto de vista. O problemático é
impô-lo aos outros. Dar às pessoas conselhos que não podem usar e não desejam não fará você se
sentir menos impotente. Se você se sente assim, deveria tentar reconhecer sua impotência primeiro,
pelo menos para si mesmo antes de falar ou tomar qualquer ação. Se não lhe solicitaram
especificamente sugestões, é provável que elas não sejam desejadas nem apreciadas. Sempre acho
melhor perguntar antes de oferecer orientação. Respeite um "não, obrigado" e siga em frente. O
apego ao papel daquele que ajuda é mais profundo para a maioria de nós. Se não tivermos cuidado,
se nos apegarmos a esse papel, ele nos aprisionará e àqueles a quem servimos. Porque, vamos
encarar: se eu vou ser uma pessoa que ajuda, então alguém tem que ser indefeso.
Isso ficou claro para mim quando estava no hospital me recuperando do ataque do coração e da
cirurgia. As pessoas chagavam - médicos, enfermeiros, auxiliares - e, muitas vezes, estavam tão
ocupados fazendo as tarefas que tinham que realizar que não me viam. Eu era tocado todo o tempo,
mas raramente aquele toque parecia curativo. Na maior parte eu era “monitorado”. Fico triste em
dizer que aqueles que cuidavam de minha saúde na maioria das vezes tinham mais relacionamento
com os instrumentos e máquinas que estavam usando do que comigo. A equipe tentava administrar
sua ansiedade através de scripts profissionais e estratégias de enfrentamento bem construídas feitas
para criar um amortecedor, mantendo meu sofrimento à distância. Raramente funcionava. A
ansiedade deles simplesmente passava para mim.
Ninguém realmente me perguntava como eu me sentia - perguntavam apenas, como eu pontuava
minha dor em uma escala de um a dez? Meu intestino já tinha funcionado? Eu estava fazendo meus
exercícios respiratórios? Eu era informação a ser mapeada.
Em um determinado momento no Hospital, perdi minha estabilidade. Não conseguia me concentrar.
Fui tomado pelo medo, pela dor e pela dependência. Comecei a me identificar com a ansiedade, com
meu mundo encolhido. Sentia-me cada vez menor.
Hospitais têm uma mentalidade de "consertar". São ambientes de expectativas. Há protocolos para
tudo e um plano para condizi-lo ao longo do processo previsto. Muito disso é necessário e útil para a
recuperação. Eu não estaria vivo hoje se não fosse a excelência dos procedimentos médicos. No
entanto, a ênfase é completamente orientada no futuro.
Imerso em tais condições, foi difícil ficar presente. Os profissionais que chegavam em meu quarto
perguntavam, “Como você está hoje?” Mas inevitavelmente, quando eu dizia “Não muito bem,” eles
repetiam o refrão, “Você irá se sentir muito melhor amanhã.” Até quando os amigos vinham me ver
– incluindo alguns adoráveis Budistas com almas maravilhosas e que tinham se dedicado por anos à
prática de meditação e mindfulness – na maioria das vezes eles direcionavam minha atenção para o
futuro. “Amanhã será um dia melhor,” diziam com intenção de me tranquilizar.
Gradualmente, perdi contato comigo mesmo. Fui arrastado pela “solução” e me juntei à mentalidade
predominante de usar apenas medidas externas para avaliar meu estado de ser. Preso em meu papel
como paciente, não era nada mais do que um problema a ser resolvido. Foi um inferno.
Depois de alguns dias, finalmente me cansei. Disse, “Não quero falar com ninguém. Não quero visitas.
Só quero dar um passeio e ouvir os Blind Boys of Alabama (grupo Gospel Americano). Coloquei fones

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de ouvidos como um adolescente mal-humorado no banco de trás do carro de seus pais, e eu os deixei
de fora. Meus amigos, os profissionais de saúde, todos.
Eu amo esse grupo The Blind Boys of Alabama por causa de sua fé e espírito contagioso. Foram o
primeiro grupo Gospel em 1939. Tinham confiança na benevolência de Deus. Eu caminhei pelo
corredor, ouvindo a música até ser infundido por sua fé. Não era que eu acreditasse exatamente no
que eles acreditavam, mas precisava estar com alguém que tinha confiado na bondade básica da vida.
Naquele momento, para mim, era os Blind Boys of Alabama. Eu tomei emprestado sua confiança até
que a minha própria pudesse se erguer novamente.
Lentamente, comecei a sentir o retorno da minha capacidade de estar com a minha experiência. Voltei
para o quarto, fui direto para o banheiro, fechei a porta, e chorei. Foi a primeira vez após a cirurgia
que consegui chorar, e simplesmente deixei as lágrimas fluírem, meu corpo tremer e arfar.
Finalmente, consegui estar com aquilo que era desconfortável, miserável até. Senti-me bastante
aliviado porque eu - e todos ao meu redor – tínhamos estado nos desviando das coisas difíceis. Mas
agora eu conseguia acessar. Podia sentir o desamparo e o medo e a dor e “O que isso vai significar
para o resto da minha vida?” e “Eu tenho mais algum valor?” e “O que vou conseguir fazer depois
disso?” – todas aquelas perguntas que tinham surgido do trauma físico e emocional do ataque do
coração.
Uma enfermeira entrou no quarto. “Você está ok?” ela perguntou batendo alto na porta do banheiro.
"Você está chorando aí. Você está bem? Você sabe que está tudo bem. Estamos todos aqui. Estamos
aqui para apoiá-lo.” Eu disse, “Por favor, apenas me deixe sozinho.” Mas ela não escutou. Presa em
seu papel de cuidadora, continuou, “Tudo vai ficar bem. Você estará bem amanhã. Volte aqui, e eu
vou chamar um assistente social.”
“Não”, eu disse, mais firmemente dessa vez. “Me deixe só. Me deixe ficar com isso. Tenho tentado
acessar meus sentimentos por dias, e estou finalmente aqui. Me deixe ficar comigo mesmo.”
E ela foi embora. Me deixou estar comigo mesmo.
Eu confiava que se conseguisse tocar meu sofrimento, minha compaixão inata emergiria como uma
resposta amorosa. E aconteceu.
Frequentemente, os cuidadores tendem a aumentar o medo do paciente ou exacerbar a condição de
confusão ao focar exclusivamente na solução do problema. Ao fazer isso, podem intensificar a
contração. Logo, assim como aconteceu comigo, o paciente perde contato com sua capacidade inata.
No caos da doença, uma pessoa calma no quarto pode fazer toda a diferença. Ao cuidar de alguém
que está doente, usamos a força de nossos braços e costas para levar o paciente da cama à poltrona.
Emprestamos ao paciente nossos corpos. Também podemos emprestar às pessoas a concentração
de nossas mentes e o destemor de nossos corações. Podemos ser um lembrete de estabilidade e
confiança. Podemos expandir nossos corações de tal forma que ele possa inspirar o indivíduo que está
lutando para fazer o mesmo. Então nos tornamos um refúgio compassivo. Nossa presença restaura a
confiança na capacidade do paciente de curar.
Eu não curo porque meus problemas estão sendo resolvidos. Eu curo me reconectando com o que
perdi no medo e na contração. Eu curo me conectando com minha capacidade inata de curar. Isso é
sentido como uma autoceitação amorosa, uma qualidade de abertura à minha condição, que é
expandida e fortalecida através do companheirismo dinâmico da compaixão. Isso gera coragem e nos
permite ir em direção ao sofrimento e aprender com ele. Quando refletimos sobre inteireza intrínseca
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nos outros, podemos ser um portal para uma possibilidade maior. Como cuidadores, como amigos,
nosso trabalho é sermos portais, não apenas solucionadores de problemas.
Eu gosto mais da antiga palavra serviço do que cuidado. Serviço fala à profundidade da intenção do
coração, uma personificação de valores altruístas, e a ação que brota da sabedoria. O serviço é sempre
mutuamente benéfico. O cuidado muitas vezes torna-se ajudar e consertar.
Minha amiga Rachel Naomi Remen, M.D., diz isso melhor do que ninguém quando escreve, “Ajudar,
consertar e servir representam três maneiras diferentes de ver a vida. Quando você ajuda, vê a vida
como fraca. Quando você conserta, vê a vida como danificada. Quando você serve, você vê a vida
como um todo. Consertar e ajudar pode ser o trabalho do ego, e o serviço o trabalho da alma.”
Consertar e ajudar são drenantes. Com o tempo podemos entrar em exaustão (burn out). Mas serviço
é renovador. Quando servimos, nosso trabalho em si nos revigora. Ao ajudar, podemos descobrir uma
sensação de satisfação, mas ao servir encontramos uma sensação de gratidão.
Tente isso algumas vezes. Sente-se com outra pessoa sem uma solução para o seu problema, sem
desempenhar um papel. Sem análise, sem conserto, sem intromissão, sem arranjo. Ouça
generosamente, como se a outra pessoa tenha dentro dela todos os recursos que precisa. Apenas
respeite e receba o que está sendo oferecido. Nem mesmo é importante que você compreenda.
Imagine que sua escuta/presença é suficiente, exatamente o que é necessário. Geralmente um
silêncio receptivo cura mais do que todas as palavras bem-intencionadas.
Não é que o papeis não tenham valor; é que eles não são suficientes para nosso bem-estar. Por isso,
precisamos da coragem de sermos autenticamente inteiros.
O que é autenticidade? É dizer o que é assim quando é assim. Mostrando-se, fazendo o que dizemos
que faremos, lembrando nossos compromissos e honrando nossos acordos. Autenticidade se engaja
com a vontade e aponta para o que tem coração e significado, enquanto simultaneamente diminui a
reatividade. Significa assumir responsabilidade pessoal tanto pela tarefa às mãos como os
relacionamentos que edificamos ao executarmos essas tarefas. Agir com autenticidade gera
confiança.
Sarah foi uma estudante em um de nossos treinamentos em cuidado compassivo. Uma mulher branca,
magra e tímida de vinte e poucos anos, ela trabalhava como atendente em um hospice do centro da
cidade, onde cuidava principalmente de Afro-Americanos à beira da morte. Tivemos uma palestra
maravilhosa sobre “doença do cuidador” e nos mostramos autenticamente como nós mesmos, em
vez de nos escondermos atrás de nossos papéis. Algumas semanas depois ela me escreveu a seguinte
carta:
Há um texto que amo de John O’Donohue. Ele pergunta, “O que você tem feito com sua
ferocidade?” Essa experiência tem sido selvagem para mim. Radical. Aprender a abraçar a
realidade daquilo que está surgindo dentro de mim tem exigido coragem de meu coração. Tenho
me testemunhado indo a lugares esmagadores, amedrontadores, escuros. Não posso acreditar,
mas tive momentos de enfiar a cabeça na boca de Mara, em vez de fugir dela. É claro, é difícil, e
não faço isso todo o tempo. Mas uma semente foi plantada em meu corpo. Estou continuando a
nutrir essa semente de compreensão: a compreensão de que ir para, não fugir de, aqueles lugares
amedrontadores é a própria coragem que permite que minha humanidade, minha sensibilidade,
meu poder, minha autenticidade, minha própria selvageria excitante e imprevisível seja.

78
No trabalho, tenho observado que os adoráveis internos intuem quando estou naquele espaço
selvagem. É nessas horas que eles mais confiam em mim. Vou correr riscos para estar lá para eles.
Vou pensar fora da caixa. Vou me recusar a obedecer concepções limitadas de papéis e
regulamentos. Vou ser eu sem remorso. Vou confiar em minha intuição para cuidar. Não somente
ofereço o cuidado realmente necessitado pelos outros, mas crio espaços curadores - não drenantes
- também para mim mesma.
Essa confiança foi o que me guiou para estar ao lado da cama de Miss. Helen e ficar sentada lá por
uma hora com minha mão em sua perna, não perguntando novamente se ela poderia tomar seus
remédios. Foi por isso que disse a todos que estava ocupada e não poderia vir; mesmo que possa
ter parecido que eu estava apenas sentada sem fazer nada. Essa confiança me guiou a responder
a ela quando me xingou dizendo como minha bunda é gorda (tentando não sorrir). Eu sacudi minha
bunda e disse: "Ah, você sabe que está quente, Helen.” A intuição selvagem me permitiu, quando
ela me chamou de "vadia branca estúpida", me manter de cabeça erguida sobre minhas próprias
duas estúpidas pernas brancas, e fazê-lo enquanto abria meu coração e a acolhia e acolhia minha
própria insegurança e auto aversão por minha identidade racial e privilégio racial e conseguindo
nos amar através de todo o drama interior.
Agora Helen é uma das pessoas favoritas que já conheci na minha vida. Sem o treinamento que ela
me proporcionou eu não teria tido a coragem de receber o presente daquele relacionamento. Não
teria tido a coragem de ver, com toda a clareza que posso reunir, que o amor não é pessoal, que o
amor está lá, e que o caminho para ele é realmente, verdadeiramente, mostrar-se e estar lá com
ela, enraizada em meu próprio corpo e todo o meu eu.
Autenticidade requer a confiança em uma profunda sabedoria interna e a disposição de trazer essa
sabedoria para uma ação consciente. Sabedoria não é sobre idade ou expertise, ferramentas ou
papeis. Eu tenho bastante ferramentas que reuni ao longo dos anos, mas ao servir não conduzo com
minhas ferramentas. Descobri que se começar a extrair essas ferramentas e colocá-las entre mim e
meu cliente, então um de nós certamente tropeçará nelas. Então, em vez disso, conduzo com minha
humanidade.
Tentávamos simplificar no Zen Hospice. Quando alguém novo chegava, eu o recebia na entrada e o
conduzia até seu quarto. Raramente falava sobre minha posição, preferindo me apresentar pelo
primeiro nome. Os papeis podiam vir mais tarde. O que mais importava no começo era encontrar
nosso terreno comum um com o outro.
Antes de trazer a enfermeira ou iniciar qualquer avaliação ou procedimento médico, eu falava com o
novato sobre a vizinhança. Explicava sobre a Sra. Mahilia Kennedy, que vivia a duas portas com sua
neta, ou Jeffery e Francis que viviam à esquerda. Mencionava sobre a pré-escola que havia na rua e
como se podia ouvir no quarto ao lado as crianças rindo quando passavam a caminho do parque.
Encontrar um lugar é importante. Em algumas culturas, é a maneira como você se apresenta aos
outros. Em nosso primeiro encontro, uma paciente disse: "Sou filha de Hannah, e nosso povo vem da
paróquia de Tensas, no nordeste da Louisiana. Tenho sete irmãos e irmãs. Eles me chamam de Jerline.
Prazer em conhecê-los.”
Antes de falarmos sobre doença, falávamos sobre comida. Quando se conversa sobre comida juntos,
somos iguais. Quando uma pessoa fala do que mais gosta de comer, você aprende muito com a face
dela, com a maneira como seus olhos se arregalam ou lambem os lábios ou como sua voz desaparece.
Quando compartilhamos sobre comida, compartilhamos detalhes sobre nossas famílias, a maneira

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como crescemos, e como fomos amados ou não. O que as pessoas costumavam amar comer mas
agora não conseguem mais, diz muito sobre seu relacionamento com sua condição de saúde.
Eu aprendi a ver a mim mesmo em cada pessoa que sirvo, e tento vê-las em mim. Isso foi uma prática
tanto maravilhosa como desafiadora, especialmente ao trabalhar nas comunidades multiculturais de
San Francisco.
Superficialmente era fácil focar em nossas diferenças: eles eram negros ou Latinos ou Vietnamitas, eu
sou branco; eles usavam heroína e tinham AIDS, eu não; eles eram sem-teto e sozinhos, eu pagava
uma quantidade absurda de aluguel e estava criando quatro adolescentes. Poderíamos ter passado
um pelo outro nas ruas, desapercebidos. Mas agora no hospice, estávamos juntos da forma mais
íntima.
E no meio das atividades de serviço - trocar as fraldas dos residentes ou ligar para seus familiares
distantes ou providenciar os serviços de que precisavam - encontrávamos um local de encontro. Não
era mesmice; não precisávamos disso para nos conectar. Era um pertencimento que acontecia porque
todas as partes eram honradas. Honestamente, muitas vezes falhamos miseravelmente em nos
conectar, como se estivéssemos cegos por nossa visão privilegiada. Mas continuávamos e as pessoas
com quem trabalhamos bondosamente nos ensinavam um pouco mais todo dia sobre respeitar as
diferenças ao mesmo tempo visando a inclusividade.
Muitas vezes fui guiado pelo bom conselho de George Washington Carver que nasceu escravizado e
mais tarde tornou-se um cientista, botânico e educador. Ele dizia, “Qualquer coisa abrirá mão de seus
segredos se você a amar o suficiente. Não só descobri que, quando falo com a florzinha ou com o
amendoim, eles desistem de seus segredos, mas descobri que, quando comungo silenciosamente com
as pessoas, elas também abrem mão de seus segredos - se você as ama o suficiente.”
Embora servir seja natural, até instintivo, nem sempre é fácil. Às vezes nos afastamos do que amamos
quando somos pegos em um papel. Tornamo-nos drenados. Para encontrar o caminho de casa, temos
que lembrar o que chamou nossas almas para servir em primeiro lugar. Precisamos descobrir como
amar o que fazemos, mesmo que nem sempre façamos aquilo que amamos.
Uma mulher jovem veio para um dos meus workshops. Athena trabalhava como médica em um
grande centro médico no turno da noite. Parte de seu trabalho era anunciar o óbito de pacientes que
ela não conhecia. Não era uma tarefa tecnicamente difícil, mas triste, especialmente nas altas horas
da noite. Ela queixava-se de ter se tornado indiferente à tarefa. Estava exausta, desanimada, sentia-
se desesperada porque a prática da medicina tinha perdido todo o significado para ela. Me pediu para
introduzi-la a uma prática Budista que pudesse ajudá-la a restaurar seu senso de propósito, o amor
que lhe tinha inspirado ser uma médica.
Eu também disse a Athena que uma prática Budista provavelmente não ajudaria. Ela precisava
encontrar a cura que ansiava em sua própria linhagem. Sugeri que a prática da medicina poderia ser
vista como um caminho espiritual. A recordei que ela era uma detentora de linhagem, que a fundação
de sua prática remontava aos Gregos e mais além. Afinal de contas, ao se formar, ela havia feito o
Juramento de Hipócrates. Eu ofereci a possibilidade de que quando ela colocasse o jaleco branco
imaginasse que era um traje cerimonial de Asclépio (Esculápio), imbuído com sua sabedoria e poderes
curativos. Ela pareceu contente com essa sugestão.
Não vi Athena novamente após aquele workshop. Mas quase um ano após, estava ensinando em um
workshop com Dra. Rachel Naomi Remen. Ela mencionou Athena pelo nome, relatando que Athena

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tinha participado em um grupo de apoio médico que Rachel facilitava e que ficou impressionada com
a história dela. Rachel me disse que a prática médica de Athena se revigorou depois que ela e eu
conversamos. Aparentemente, quando eu disse a Athena para se voltar para sua própria linhagem
para descobrir a cura que procurava, aquilo ressoou com ela. Athena veio de uma família de médicos.
Seu pai e avô eram ambos médicos, e tinham falecido recentemente. Mas com a ajuda deles Athena
descobriu seu próprio ritual de cura. Seu avô tinha sido um médico do interior, e ela herdou sua mala
de médico preta velha e surrada. Nela, Athena colocou o estetoscópio de seu pai, uma pequena vela,
e um pouco do óleo essencial de rosas preferido de sua avó. Ela mantinha esse kit em seu armário no
trabalho.
Agora, quando era solicitada para atestar um óbito, Athena pegava sua mala de médico e a levava
consigo até o quarto do paciente. Geralmente fazia uma pausa silenciosa na entrada do quarto para
respirar e convocar seus ancestrais. Às vezes havia uma enfermeira presente retirando os acessos
intravenosos e os adesivos no peito usados para monitorar o ritmo cardíaco. Athena colocava a
pequena vela na mesinha ao lado da cama, acendia, e tirava o estetoscópio de seu pai da mala do avô.
Em silêncio, examinava o paciente, auscultava, e com atenção plena verificava se a respiração tinha
cessado. Sentia intimidade nesses atos simples. Então colocava algumas gotas do óleo na fronte da
pessoa que tinha morrido, acrescentando uma pequena oração intuitiva: “Que você possa estar em
paz, possa encontrar o descanso. Possa todo o seu sofrimento cessar.”
Athena sentiu que não podia mais exercer seu papel de médica da forma como tinha sido treinada:
abnegação; trocar sua humanidade por expertise. No entanto, descobrir esse ritual pessoal restaurou
seu amor pela medicina e a inspirou a continuar sendo a curadora que sempre quis se tornar.
Ao ouvir o chamado de sua alma, Athena descobriu a coragem de ir além de seu papel para seu
autêntico self. Lá, enquanto cuidava dos outros, encontrou paz, contentamento, inspiração renovada,
e acesso à sua bondade inata.

9.
DOMANDO O CRÍTIO INTERNO
A maneira como falamos com nossos filhos se torna sua voz interior
- Peggy O’Mara

Não importa o que faça, você não consegue agradar seu crítico interno.
Não há como enganá-lo. O crítico conhece cada movimento seu, cada truque na manga, cada
pedacinho do seu passado. Ele tem estado lá durante toda a sua vida. Você toma banho com ele. Leva-
o para o trabalho. Senta-se próximo a você em cada refeição e até fica por perto na hora da
sobremesa. Está lá durante e após o sexo. E sim, está definitivamente lá quando você está morrendo.
Ele compara, elogia, desvaloriza, culpa, aprova, condena, e ataca sua aparência, performance
profissional, a maneira como conduz relacionamentos, seus amigos, sua saúde, sua dieta, suas
esperanças e sonhos, seus pensamentos, e seu desenvolvimento espiritual. Escolha algo, qualquer
coisa. Vamos encarar: aos olhos do crítico, nada do que você faça é bom o suficiente. O crítico é o
executor, demandando o cumprimento de um conjunto adquirido de padrões e códigos morais. Ele

81
empunha brutalmente suas armas escolhidas de medo, vergonha e culpa para que você faça o que ele
deseja.
Frequentemente em nossos momentos mais vulneráveis, quando nos beneficiaríamos do afeto, nos
golpeamos com autojulgamento. Mesmo próximas do fim da vida, as pessoas comumente olham para
trás com arrependimento, ficam obcecadas pelo “se apenas”, ou dizem a si mesmas que não estão
fazendo um bom trabalho de morrer. Amigos e parentes acrescentam à pilha de culpa projetando sua
própria voz do crítico interno na pessoa que está morrendo, sugerindo que esta deveria lutar mais ou
soltar mais dignamente.
O crítico interno é ambivalente sobre mudança, troca de identidade, criatividade, e trabalho interno,
e fica absolutamente aterrorizado com qualquer coisa borbulhando do inconsciente. Ele prefere o
status quo, o familiar, o previsível. Insiste na homeostase. “Não perturbe a paz,” ele adverte. “Não é
seguro.”
É por isso que focar no auto aperfeiçoamento ou fazer qualquer tentativa de consertar o que o crítico
vê como “o problema” nunca funciona. Ao buscar a aprovação dos outros, em conformidade com um
padrão externo, e tentando agradar, estamos buscando amor nos lugares errados. Elogio e culpa são
sintomas de uma doença infecciosa. Assim como acontece com todas as doenças, precisamos fazer
mais do que tratar os sintomas; precisamos cuidar das causas subjacentes. Precisamos ir ao cerne da
questão. Precisamos ver como o hábito de constante auto julgamento diminui nossa força de vida,
rouba nossa paz interior, e esmaga nossas almas.
A busca por perfeição é aprendida cedo e, para a maioria de nós, torna-se um vício de toda a vida. É
uma busca baseada no ego, que pode facilmente obscurecer a jornada da alma em direção à
totalidade. Isso porque para trazer nosso inteiro self para a experiência devemos enfrentar a voz do
crítico interno geralmente inconsciente, corrosiva. Ela é o obstáculo primário à auto aceitação,
confiança, e a expansão de nosso potencial dinâmico. Impede todo crescimento, captura o
desenvolvimento interior, rouba nosso poder, e torna o diálogo interno negativo a norma. Além do
mais, o juiz dificulta nossa habilidade de conexão e empatia com outras pessoas. As chances são de
que, se você for extremamente crítico consigo mesmo, será um crítico severo dos outros, mesmo que
não verbalize.
Quando apresentamos nosso self inteiro, incluímos nossa imperfeição. Criamos espaço para defeitos
e pureza, força e vulnerabilidade, sucesso e erros. O julgamento foca aquilo que está errado; alimenta
uma mentalidade “ou/ou”. Abraçar a totalidade é um ato amoroso de regeneração, uma maneira
"ambos/e" de conhecer a vida.
Para nos libertarmos do crítico interno precisamos compreender sua origem, como somos impactados
por ele, e como podemos nos desvencilhar com sucesso de sua influência negativa. Em suma, nosso
plano de tratamento inclui a aplicação de sabedoria, força e amor.
Quando meu filho tinha sete anos, ele construiu uma fortaleza atrás de uma pequena mesa em seu
quarto. Ele rastejava para esse lugar privado quando estava triste, desparecendo por uma hora ou
mais após uma de nossas discussões ou quando eu o importunava.
Alguns anos depois, nos mudamos. Quando afastei a mesa da parede para desmontar seu forte, tive
uma grande surpresa. O painel traseiro de madeira estava completamente coberto de palavrões,
discursos raivosos e xingamentos contra seu doce e velho pai.

82
É natural que uma criança experiencie energia agressiva como essa em direção a um parental. Mas
normalmente ela parece muito perigosa para ser expressada, e assim a criança a reprime. Logo que
me recuperei do choque inicial e do ego ferido, cai na risada. Fiquei aliviado por Gab ter encontrado
uma forma de descarregar sua raiva de mim.
Quando éramos crianças, nossos pais e avós, irmãos mais velhos, professores, conselheiros espirituais,
e outros adultos responsáveis em nossas vidas fizeram seu melhor para nos mostrar o certo e o errado.
Em geral, estavam bem intencionados. Seu objetivo era promover nosso desenvolvimento e nos
proteger do mal. Sem dúvida, precisamos de alguma orientação ou não teríamos chegado à vida adulta
vivos e saudáveis, nem teríamos sido capazes de entrar com sucesso em uma sociedade que depende
de certos códigos de conduta.
E assim esses adultos nos impregnam com seus valores e padrões. Nos ensinam as regras básicas que
acreditam que precisamos para lidar com o mundo. Esse processo natural de socialização só se torna
problemático quando ultrapassa para uma tentativa forçada de alinhar o comportamento de uma
criança com a visão de vida do adulto. A maioria dos adultos não são ogros, mas inevitavelmente
passam adiante suas suposições inconscientes, estratégias inábeis, tendências e preconceitos de suas
próprias vidas não examinadas. Talvez seus pais tenham ficado envergonhados por sua fascinação por
seus impulsos sexuais ou exaustos por sua energia incontrolável. Talvez seus professores e líderes
espirituais tenham usado advertências e reprimendas para controlar seu comportamento, administrar
suas emoções e impedir que você fizesse coisas que os deixavam desconfortáveis. Ou talvez sua mãe
ou pai quiseram que você fizesse coisas que você realmente não queria fazer, como ir dormir quando
não estava cansado, se vestir de uma certa maneira, ter amigos diferentes, ou comer o que era
oferecido, quer aquilo fosse saboroso ou não para você.
Quando éramos pequenos, os adultos tinham o poder. Éramos completamente dependentes deles
para nossa auto percepção emergente e, mais importante, para nossa sobrevivência. Para uma criança
pequena, tal aprovação ou desaprovação frequentemente é sentida como uma questão de vida e
morte.
Por autopreservação, aprendemos a obter e manter a aprovação e evitar a vergonha e punição,
curvando-nos aos desejos dos adultos. Pelo caminho, internalizamos suas vozes, adaptadas a seus
valores, ou nos rebelamos contra elas. Esse condicionamento – os “deverias” e “não-deverias”, a
mensagem de que algo estava “errado” conosco – formou as bases de nossos críticos internos.
Ao chegarmos à fase adulta, a voz dura e coercitiva do juiz supera sua utilidade. Mas ele continua a
viver em nós como uma poderosa estrutura psicológica que deseja nos proteger, gerenciando nossas
vidas. É um pouco como nossos dentes sisos: no passado remoto, quando vivíamos com uma dieta de
carne crua, nozes e raízes, esses dentes foram necessários para nossa sobrevivência. No entanto, à
medida que evoluímos, aprendendo a usar ferramentas, cortando e cozinhando os alimentos que
comemos não precisamos mais de nossos dentes sisos. Da mesma forma, quando amadurecemos
acessamos uma sabedoria menos reativa e mais perspicaz que é objetiva, positiva, e pode funcionar
como um guia confiável e criativo em nossas vidas. Não precisamos dos elogios e ataques constantes
do crítico, sua humilhação, repressão e rejeição, ou o sofrimento que gera. Mas na maioria das vezes
ainda achamos que sim.
Recentemente, o tópico do crítico interno surgiu em uma conversa com uma amiga e vizinha. Beth
tem a mesma idade que eu, saudável e em forma, e a maioria das pessoas a veriam como altamente

83
bem sucedida, com uma vida equilibrada, casamento feliz, próxima dos filhos, e desfrutando a
aposentadoria.
Quando mencionei como é importante domarmos o crítico ao caminharmos pela vida, ela disse: "Mas
o que eu teria abandonado sem a voz do meu crítico interior? Quem eu seria? Uma pessoa preguiçosa
e miserável que nunca foi atrás dos sonhos? Sem ele eu não conseguiria fazer nada. O crítico me diz
a verdade sobre o que estou acertando e errando. É a razão pela qual eu quero ser o meu melhor eu.
Isso me motiva para uma mudança produtiva.”
“Será” perguntei a ela. “Acho que o crítico interno me repreende mais do que me motiva. Não é uma
consciência nem um guia moral confiável, e não é a voz da sabedoria. Sim, pode haver algum miolo
de verdade embrulhado no comentário do crítico. Ele pode ter um tico de informação útil para
oferecer. Mas eu certamente não preciso de seu sistema de entrega. Ele tem um tom de voz particular
que muitas vezes é má, desrespeitosa e manipuladora. Eu estive com muitos professores espirituais
sábios ao longo dos anos, e nenhum deles transmitiu sua sabedoria em um tom tão desagradável.”
“Mas às vezes meu crítico interno me elogia,” Beth retrucou. “Ele me parabeniza por dar duro para
fazer o trabalho.”
Eu balancei a cabeça em concordância. “É verdade, o crítico pode oferecer elogio. E esse tom é muito
mais pegajoso porque gostamos dele; ansiamos por aprovação. Entretanto, nem todos os elogios são
iguais. Devemos questionar os motivos do crítico. Examinando mais de perto descobrimos que só
recebemos elogios quando obtemos um conjunto restrito de resultados ou exibimos as poucas
qualidades aprovadas pelo crítico.”
“É verdade,” disse Beth. “Percebo que tenho sido intimidada pelo meu crítico por cinquenta anos.
Tenho estado muito ocupada tentando ganhar seus elogios e provar meu valor tentando ser mais
inteligente, mais jovem, mais forte e mais bem-sucedida. Abri três empresas lucrativas e ainda me
sinto um impostora.”
Alguns de nós, como Beth, temos uma lealdade equivocada a nosso crítico. Achamos que ele nos
mantém afiados e leva a um pensamento mais crítico que precisamos em nossos trabalhos ou para
entender o mundo. Olhando mais de perto, vemos que o mecanismo do crítico é bastante simples e
pouco sofisticado; afinal, ele foi formado quando éramos crianças.
As pessoas geralmente imaginam que a voz áspera, negativa, em suas cabeças a estão ajudando. Mas
não estão. O crítico não acredita em nossa bondade humana fundamental. Ele só acredita em regras
e códigos morais. Psicologicamente, o crítico é o protetor do ego. Ele nega todo o resto. Não conhece
sua alma. Não confia em seu coração para saber como você se sente, para ser empático e compassivo
nos relacionamentos. Ele não acredita que seu senso intuitivo possa guiá-lo em situações que você
está encontrando pela primeira vez. Ele só quer que você preste atenção aos seus conselhos. Não
confia em sua capacidade de raciocinar e avaliar como uma forma de navegar pelos dilemas da vida.
Há uma alternativa para o crítico. É encontrada no movimento do julgamento ao discernimento.
Julgamento é o hábito duro, agressivo que encerra a conversa, nos liga ao passado e a
comportamentos antigos e fecha o nosso acesso a outras capacidades. O discernimento cria espaço,
nos ajuda a ter perspectiva, e permite que mais de nossa humanidade se mostre. O discernimento
ajuda a sabedoria a emergir e nos permite escolher um futuro mais benéfico. Nossa sabedoria
discriminativa inata é uma voz bondosa, mais objetiva, disponível a todos nós. Ela pode diferenciar,
discernir, e nos guiar sabiamente adiante.

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O crítico pode ter servido a um propósito no jardim de infância, mas é hora de trocar nosso antigo
modelo.
Eu estava conduzindo um workshop na Itália e tive uma troca profunda com uma mulher chamada
Stella. Era uma médica, uma mulher de bom coração e atraente em seus trinta e tantos anos. Após
minha fala sobre o crítico interno, ela se aproximou de mim e disse bem séria, “Eu não tenho um
crítico.”
“Tem certeza?” perguntei.
“Sim, eu não consigo encontrar um,” Stella disse. Ela me disse o quão bem sucedida era, como tinha
alcançado seu objetivo de se tornar uma médica em uma idade jovem, como era um orgulho para
seus pais.
Acontece que na Itália permanece uma forte viés cultural, ou podemos dizer um crítico cultural, que
coloca importante pressão na mulheres em idade fértil para terem filhos. As mulheres Italianas muitas
vezes acham difícil equilibrar o trabalho com as expectativas tradicionalmente exigentes para as mães.
Cada vez mais, muitas estão optando por não ter filhos. No entanto, o condicionamento e as crenças
são profundos e muitas vezes são a causa de conflitos internos consideráveis.
Eu disse, “Você deseja realmente que eu tente lhe ajudar a identificara voz de seu crítico? Pode ser
bem doloroso.”
Stella insistiu, “Sim, sim, por favor. Eu quero entender.”
Então dei um palpite. Em um tom de voz muito calmo, perguntei: "Por que você ainda não teve
nenhum bebê?”
Imediatamente Stella caiu no choro. Não precisei acrescentar nada, nem precisei falar duramente. Eu
sabia que minhas palavras atravessariam seu crítico interno e o juiz faria com que minha pergunta
soasse como uma acusação. “Você está certo! Eu ouço essa voz o tempo todo... não apenas em minha
cabeça. De meus pais, meus vizinhos, meus colegas de trabalho, até dos motoristas de táxi – e isso
sempre me incomoda.”
Identificar seu crítico abalou Stella profundamente. Ela chorava enquanto a segurava, mas queria
continuar investigando sua experiência para ajudar a revelar mais da história. Eu sugeri que ela
explorasse essa questão com o apoio de um bom psicoterapeuta.
De fato, o incidente inspirou Stella a procurar um psicoterapeuta para trabalhar aquela questão. Ela
voltou ao workshop um ano após e anunciou que estava muito feliz por estar grávida. Ela tinha dito a
si mesma que havia descartado os filhos porque estava tão envolvida em sua carreira, mas, na
verdade, seu crítico estava dizendo que ela não seria uma boa mãe e nunca encontraria um parceiro
para ter filhos com ela.
Graças à terapia, Stella confrontou seu juiz. Ela reconheceu uma parte profunda de si mesma que
desejava muito ser mãe. Ela queria muito ser mãe - e sempre quis. Se a voz desagradável e humilhante
que a chamava de "perdedora" por ser solteira aos trinta e sete anos e "incapaz" de criar filhos tivesse
conseguido o que queria, Stella nunca teria discernido o melhor caminho a seguir. Ela teve que se
sintonizar com a voz de sua alma. Então, e só então, ela conseguiu elaborar um plano de como ter
uma carreira de sucesso como médica e ser mãe.

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Nossa natureza essencial tem certos atributos que são inatos, ou seja, já existem dentro de cada um
de nós, e todos temos acesso a eles. Uma dessas qualidades inatas é a sabedoria. As pessoas
normalmente não pensam na sabedoria como inata. Acreditam que seja algo que você deve adquirir
no curso da vida através de experiência. É verdade, há uma sabedoria analítica que necessita ser
treinada e desenvolvida ao longo do tempo. O Budismo se refere a uma sabedoria-natureza auto
reveladora que pode ser sintonizada através da meditação. Assim como Stella, todos nós temos acesso
a essa sabedoria interna, se apenas escutarmos cuidadosamente aquilo que ela tem a oferecer.
Conforme nos movemos através das tribulações da vida cotidiana, nossa natureza essencial atravessa
condicionamentos culturais, familiares e sociais. As qualidades inatas esbarram contra nossas
personalidades, nossos sistemas de crença, e os obstáculos de nossas próprias mentes humanas. À
medida que esse contato ocorre, as qualidades de nossa natureza essencial passa por um processo de
constrição. Ficam deturpadas. Então, em vez de serem expressadas de forma livre, natural, aberta,
surgem distorcidas. Força fica enredada em desejos ou expectativas e se expressa como frustração,
raiva e destrutividade. A compaixão mostra-se como pena ou uma necessidade obsessiva de
“consertar” os outros e nos proteger da dor.
O crítico gosta particularmente de distorcer a sabedoria. De fato, ele gosta de substituir sua própria
voz pelo guia mais suave e gentil de nosso sábio interior. O crítico diz, “Confie em mim. Conheço você
bem. Já passei por isso antes.” A sabedoria diz, “Relaxe em sua experiência. Pode confiar em si mesma
para saber o que fazer.” Em vez de dizer a você o que parece ser verdade, como o crítico faz, a
sabedoria nos ensina como descobrir o que é realmente verdade.
É importante perceber que até nessas expressões deturpadas, a fragrância de nossa natureza
essencial permanece. Tendemos a ver distorções como obstáculos bloqueando nosso caminho para
casa. Nos sentimos derrotados e desistimos, ou travamos guerra contra a nossa raiva, nosso medo e
nossos críticos internos tentando superar ou se livrar deles (os obstáculos). Em vez disso, deveríamos
ver os obstáculos como portas de entradas. Podemos nos mover em direção a eles, gentilmente e
persistentemente, para compreender do que se tratam.
Certa vez, um líder de uma organização espiritual me usou como bode expiatório para levar adiante
um plano sem considerar a disposição da comunidade. Como resultado, fui forçado a deixar a
comunidade e me separar das pessoas mais fundamentais na minha vida naquele momento.
Alguns anos mais tarde, ao refletir sobre o incidente fui tomado de ódio contra aquele que me
ofendeu. Em minha mente, continuava a reproduzir minha versão da história de como eu estava
errado, imaginando que era uma versão completamente verdadeira. Então observei que minha mão
direita estava fazendo um movimento de cortar minha mão esquerda. O ódio crescia em intensidade.
Desejando entender esse obstáculo, me permiti imaginar meus pensamentos mais sombrios e
amargos. Deixei o ódio extravasar, sentindo toda a gama de emoções enquanto fantasiava como
poderia eliminar aquele homem da minha vida. Meu ódio parecia frio, calculista, indiferente e
temporariamente poderoso. Minha mão direita era como uma faca, cortante e destrutiva.
Só então me lembrei da estátua de Manjushri, uma forma arquetípica do Budha, geralmente
encontrada nas salas de meditação Zen. Ela segura uma espada com a mão direita, que é conhecida
como a espada da sabedoria discriminativa. Se diz que a espada é capaz de cortar a ignorância os
emaranhados de visões deludidas.
Naquele momento, percebi que sabedoria era poder verdadeiro. Dentro do ódio que estava
experienciando, havia um sabor, uma fragrância daquela sabedoria, mas ela tinha sido distorcida.
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Quando pude ver mais claramente, compreendi que meu ódio era apenas poder personificado; era
uma versão falsificada de poder.
Com aquela sabedoria que estava emergindo eu vi que embora minha raiva pela rejeição parecesse
estar apenas externamente focada, na verdade ela estava me corroendo há anos na forma de auto-
ódio obsessivo. Eu tinha essa narrativa interna sobre o que eu deveria ter feito anos atrás. Meu crítico
esteve colado à mim por mais de duas décadas, desejando que eu mudasse o que aconteceu, ou
superasse, parasse de me comportar como um bebê. Tornou-se claro como meu impulso em direção
ao auto aperfeiçoamento, como acontece com tantas outras pessoas no caminho espiritual, tinha uma
paixão religiosa. Eu nunca me permitia ficar sozinho. Estava constantemente me comparando com os
outros. Eu nunca era bom o suficiente.
Pensei na monja Budista e best seller Pema Chodrön, que escreveu , “O problema é que o desejo de
mudar a si mesmo é fundamentalmente uma forma de agressão a si mesmo.” Isso não significa que
deveríamos desculpar maldades, abandonar planos ou objetivos, ou nos resignar a ficar presos em
nossas velhas histórias. Significa que deveríamos fazer o nosso melhor para acolher nossas
imperfeições com bondade. Podemos promover auto-aceitação , fazer amizade com nós mesmos e
ficar curiosos sobre as reviravoltas em nossas qualidades inatas, em vez de tentar vencê-las até a
submissão.
Para interromper o padrão de autoengano que ocorre quando estamos à mercê de um crítico interno
descontrolado, temos que nos defender. Precisamos agir em nosso próprio nome. Descobri que era
útil recordar como reagíamos quando nossos pais não aprovavam, ou quando uma figura de
autoridade impunha regras que não achávamos que eram justas. Qual era nossa resposta automática?
Karen Horney, a psicanalista alemã creditada como fundadora da psicologia feminista, escreveu sobre
três estratégias humanas de enfrentamento para lidar com a ansiedade básica. São aplicáveis tanto
para como reagimos à critica como crianças como para a maneira com que continuamos a responder
ao critico interno hoje:
.Alguns de nós se afastam, ao se retirar, se esconder, colapsar, manter segredos e silenciar.
Evitamos conflitos.
Talvez você vá para o quarto, talvez assista TV quietamente enquanto tenta absorver o julgamento
ou simplesmente suportar.

.Alguns de nós se movem em direção a, buscando agradar e se adaptar, negociar, persuadir e explicar.
Talvez você tenha feito um trabalho extra da escola, tentado ser útil nas tarefas de casa, se
comportado bem para ganhar aprovação.
.Alguns de nós se movem contra, tentando ganhar poder sobre os outros. Nos rebelamos ou contra-
atacamos. Talvez você tenha respondido, gritado, agido com hostilidade, batido portas ou escapado
pela janela e feito o que queria.

O problema com todas essas estratégias é que elas ainda dão ao crítico interno todo o poder.
Permanecemos pegos em reagir à autoridade em vez de escolher criativamente nosso próprio caminho.
Para desfazer esse velho hábito, precisamos de força.
A força essencial surge de encontros repetidos com nossa natureza básica, através dos quais
desenvolvemos confiança em sua presença e orientação sábia. Isso torna-se a base sobre a qual estamos,

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a força essencial que colocamos em ação. Quando nossa força fica distorcida, por exemplo, por
sentimento de honradez ou ressentimento, ela toma forma de raiva. Mas podemos aproveitar a energia
da força que mora em nossa raiva. Podemos tocar sua vitalidade, intensidade, e vivacidade.
Por exemplo, traga à consciência uma reação negativa, como ela foi surgindo primeiro dentro de você.
Como eu fiz, quando examinei meu ódio pelo líder espiritual que eu achava que tinha me feito mal, você
pode conter a expressão dolorosa de sua raiva antes de agir, concentrando-se, em vez disso, na
experiência física visceral dentro de seu corpo. Talvez então você possa canalizar essa energia
honestamente para se proteger do ataque.
Há uma dúzia de livros por aí oferecendo inúmeras estratégias para se defender contra o crítico. Para
mim, se resume a isso: reunir coragem para enfrentar de cabeça erguida uma força poderosa e coercitiva.
Estou ao lado do poeta E. E. Cummings, que escreveu, “É preciso coragem para crescer, se tornar quem
você realmente é.”
Certa vez quando estava ensinando sobre o crítico interno, uma mulher levantou a mão e pediu para falar.
Sua frustração era palpável, sua face ficando vermelha e todo seu corpo tremendo. “Eu nunca posso
derrotar o crítico interno!” ela disse. “Ele sempre leva o melhor de mim. Por que eu sou tão fraca?”
Eu puxei uma cadeira para perto e fiquei de pé em cima numa altura maior que ela. Então lhe apontei o
dedo e disse com um tom firme, alto, “Você é má!”
Ela caiu na risada. “Oh, veja isso! Assim é o crítico quando leva o melhor de mim. Não é à toa que me sinto
fraca. Eu não podia revidar contra aquela voz adulta quando era criança. Era muito grande, muito
poderosa.”
Então pedi que ela ficasse de pé na cadeira mais alto do que eu. A guiei para respirar profundamente,
sentir seu corpo, e pensar sobre sua bondade inata.
“Como você responde agora ao critico interno quando ele lhe diz que você é má, que você é fraca?” eu
perguntei.
“Não fale comigo desse jeito,” ela disse com uma voz forte e confiante. “Me machuca quando você fala
comigo assim. Isso não me ajuda a fazer melhor.”
Falar a verdade emocional, expressar desinteresse pelo conselho do crítico, usar o humor, se manter
conectado com o corpo, aproveitar sua força – todas essas estratégias são destinadas à restaurar nosso
contato com a expansividade dinâmica que é nossa natureza essencial. Quando nos defendemos com
sucesso contra um ataque e nos desvencilhamos do crítico, podemos sentir uma mudança na energia
física, talvez a liberação de uma tensão, um fluxo livre de respiração. Emocionalmente, podemos sentir
aumento da confiança e compaixão por aquilo que nos fere. Mentalmente, podemos ter mais clareza e
menos confusão. Entretanto, esteja preparado para sentimentos e sensações residuais, questões e
dúvidas que permanecem por um tempo.
Nos defender contra o crítico interior é um trabalho duro. Requer prática.
Matthew era um homem gay e praticante Budista de longa data. Estava hospitalizado com pneumonia
decorrente de AIDS, com febre alta, chorando ocasionalmente, e constantemente se contorcendo e se
enroscando na cama como se quisesse rastejar para fora de sua própria pele. Matthew também estava
batalhando com seu crítico interno, que, em seu caso, estava vestido em trajes de uma autoridade
espiritual. Estava dominado pela ansiedade, temendo a condenação eterna, bem como a vergonha de
como tinha vivido sua vida.
88
Matthew foi criado em uma família Cristã fundamentalista. Os mandamentos de um deus punitivo o
tinham literalmente atingido por meio de um pai pregador do “fogo e inferno e danação”. Agora,
acreditando que estava próximo da morte, Matthew tinha certeza de que Deus o condenaria ao inferno
por toda a éternidade devido à sua orientação sexual.
Não é incomum que costumes culturais há muito enterrados e treinamento religioso inicial ressurjam
repentinamente no momento da morte, mesmo que a pessoa tenha deliberadamente deixado essas
crenças para trás. Eu tentei dar apoio a Matthew o orientando nas práticas de mindfulness (Atenção
Plena) e compaixão que ele tinha estudado e amado por tantos anos. Criamos um altar ao lado de sua
cama com sua estimada estátua do Buda, e uma thangka tibetana de cura. Quando isso não conseguia
acalmá-lo, eu segurava sua mão, massageava seus pés, e tocava sua música favorita. Não teve mudança.
Finalmente, o médico prescreveu um sedativo. Mesmo isso não funcionou. Ele estava se revolvendo em
um mundo de confusão, vergonha e pavor.
Às duas da manhã, eu estava exausto, me sentindo ineficiente e impotente e resolvi ir para casa e dormir
um pouco. No caminho, por alguma razão desconhecida, lembrei da minha Primeira Comunhão, o ritual
católico que introduz jovens inocentes no colo amoroso de Deus. Quando cheguei em casa fui até o
armário e peguei minha caixa com uma pequena coleção de lembranças que me são caras. Encontrei ali
uma pequena estatueta de Jesus cercado por cordeiros e criancinhas.
Em vez de ir para a cama, dirigi de volta ao hospital. Enquanto Matthew continuava a gemer, gritar e se
sacudir em agonia, eu retirei a thangka e substitui a estátua de Buda pela estatueta de Jesus. Assim que
eu estava alisando a toalha do altar, uma faxineira chamada Deana entrou na sala e viu a estatueta.
Colocando o esfregão de lado, ela disse com grande entusiasmo: "Misericordioso Jesus! Quando a
bondade dele está com você, tudo está bem.”
Imediatamente, os olhos de Matthew se voltaram para Deana. Um sorriso angelical se espalhou em sua
face enquanto ele se voltava em direção ao altar para olhar a estatueta e de volta para Deana. Todo o seu
corpo relaxou. Naquele momento, o Deus punitivo da infância de Matthew, aquele de cuja ira tinha sido
ensinado a temer e cujo julgamento o fizera sentir-se uma pessoa horrível, estava transformado num
Deus misericordioso que ele também conhecia e amava. Aquele que adorava todos os seus filhos, não
importa seus defeitos e falhas . Um Deus amoroso, misericordioso, benevolente.
A fé de Deana no amor de Deus era tão firme que emprestou a Matthew exatamente a força que ele
precisava para derrotar seu crítico interno. Eu os deixei lá. Não precisavam de mim. Quando retornei ao
hospital naquela tarde Matthew estava sentado na cama, sorrindo e comendo uma sobremesa.
A maioria de nós têm ideias, a partir de experiências religiosas da infância, sobre como uma “boa pessoa
espiritual” deveria funcionar no mundo. Eu sou Budista e portanto não deveria sentir raiva. Matthew foi
criado no Cristianismo, portanto não deveria ser gay. Mas, na realidade, essas ideias são apenas nossos
críticos internos projetando-se em cada dimensão de nossas vidas. A voz da figura de autoridade que vive
em nossas cabeças pode facilmente vir de convenções culturais ou religiosas como de pais ou professores.
Matthew conseguiu libertar seu superego espiritual. Em seus últimos dias de vida, conseguiu aceitar
verdadeiramente a si mesmo como o homem maravilhoso, bondoso, dedicado que tinha se tornado. Ele
conseguiu ver claramente que aquilo que lhe internalizaram em sua juventude – o fogo do inferno e
satanás – foi a causa de sua auto-rejeição. Ele sempre sentiu, em algum nível, que era “errado” por ser
gay. Mas finalmente, deixando ir seu crítico interno, compreendeu que estava bem.
Como isso aconteceu?

89
Com amor. O amor é o que nos ajuda a nos libertar. O amor é o aliado que torna a aceitação possível.
Entretanto, geralmente confundimos aceitação com aprovação. Aceitação é um ato amoroso de um
coração aberto. A aprovação geralmente está atrelada a julgamento. Nossa fome por aprovação é
parcialmente causada porque facilmente somos fisgados pelo crítico. Tentamos afastar o sentimento de
desmerecimento buscando nosso valor em autoridades externas cujas vozes há muito internalizamos.
Tentamos satisfazer a enormidade de nossa carência através da acumulação. Esperamos que se
obtivermos o suficiente, fizermos o suficiente, mudarmos o suficiente, um dia finalmente seremos
suficientes. Preocupamo-nos que a aceitação signifique concordância e mediocridade. Nós nos
perguntamos se aceitar irá nos colocar em risco de se tornar um capacho para os outros. Mas a verdade
é: não conseguimos mudar algo que não tenhamos aceitado. Portanto, primeiro precisamos aceitar. Isso
não significa que não mudaremos comportamentos ou faremos intervenções apropriadas quando
necessário. A aceitação nos dá a oportunidade de conhecer a nós mesmos e nossas vozes internas, de
examinar nosso relacionamento com elas. Então podemos usar nossa sabedoria discriminativa para
determinar o que é útil e o que não é. E aí podemos escolher nosso curso de ação.
Com aceitação o que emerge é uma profunda confiança naquilo que é. Nos liberamos completamente da
comparação, avaliação e rejeição do crítico interno. Paramos de nos culpar por ter desejos e vontades, e
em vez disso aceitamos esses desejos como um sabor de amor, que expressa o desejo mais profundo de
seus corações pelo que é verdadeiro e real.
A verdadeira aceitação inicia um processo alquímico. O indesejável pode ser mudado para desejável ao
abraçar conscientemente nossa falhas, deficiências, defeitos, e todos aqueles aspectos rejeitados,
dolorosos e sinistros de nós mesmos. Mesmo as partes aparentemente desagradáveis são amadas porque
são vistas como parte do todo. Expomos nossas imperfeições imaginadas ao fogo feroz da sabedoria, força
e amor, e ao fazer isso aprendemos a transformar chumbo em ouro. A confusão se dissolve em clareza.
Descobrimos coragem em nossa vulnerabilidade. Dissolvemos inimigos internos e os transformamos em
amigos. Esse processo revela o verdadeiro tesouro, que é o potencial puro que existe em tudo, as
propriedades reluzentes de nossa natureza essencial.

10.
O RIO FURIOSO
O que é para dar luz deve suportar queimar.
-Viktor Frankl

Como cultivamos nossa natureza essencial sem nos desviarmos de nossa natureza humana? Isso está no
coração do terceiro convite: Traga Todo o Seu Eu Para a Experiência.
É a coisa mais bonita e difícil ser humano. Despertar nessa experiência humana não é fácil. Prática
espiritual autêntica não se trata de manter estados alterados de consciência elevados, transcender o
corpo, desviar emoções difíceis, ou curar tudo o que permanece não resolvido dentro de nós. É mais
aterrada, real e viva do que isso. A prática espiritual nos ajuda a nos estabelecer na absoluta simplicidade
de sermos nós mesmos. A cura que ela gera acontece quando trazemos consciência aos lugares que
solidificam em nós através dos hábitos condicionados de apego, resistência e evitação.

90
Mindfulnes (Atenção/consciência Plena) é um de-condicionamento. Cultiva uma presença de mente
compassiva, desperta, que não bloqueia mais o coração. Então as coisas estão livres para ser como são.
Acolhemos o difícil, o sombrio, o denso. Nos tornamos mais íntimos com nossa dor e dificuldades, nossa
alegria e beleza, incorporando nossa inteira humanidade e descobrindo uma sensação cada vez mais
profunda e vasta de totalidade.
Às vezes aquilo que está lá parece mais valioso do que aquilo que está bem aqui. Mas ser quem você é só
pode surgir ao aceitar onde você está.
Minha filha, Gina e eu, estávamos caminhando em uma deslumbrante faixa estreita de praia em uma ilha
no norte da Tailândia. Quando jovem, ela era propensa a impulsos emocionais. Este dia foi voltado para
sua atração não correspondida por um menino em casa. Enquanto caminhávamos, ela conversou,
explicando como tinha que conseguir um telefone para ligar para ele. Perguntei se ela tinha certeza de
que queria passar seu tempo no paraíso planejando como chegar a esse cara.
Percebendo sabiamente que ainda não tinha reparado a água azul turquesa ao nosso redor, ela
respondeu, “Não, mas o que eu deve fazer sobre isso? Como me livrar desse sentimento?”
Eu poderia ter descartado isso como um drama de adolescente, mas vi uma pequena abertura. Pedi para
Gina sentir seu corpo, particularmente a área do peito. Ela informou a tensão e calor que encontrou lá.
Respirou algumas vezes. Perguntei se ela conseguia nomear o sentimento que estava experienciando.
“Tristeza e medo de que serei rejeitada,” Gina respondeu imediatamente. Ao falar ela percebeu como
esse sentimento estava abrindo um poço profundo de dor não reconhecida que ela estava carregando.
Com todo amor do coração, eu disse, “Querida, não se subestime. Seus pensamentos e emoções não são
quem você é. Eles passam através de você, mas não são você.”
Ela ficou parada. Foi como Moisés olhando a “sarça ardente”. Sua mente momentaneamente parou.
Aquela simples verdade teve o poder de uma santa revelação para ela.
Nos deitamos na areia e olhamos para cima. Eu disse, “Você é tão maravilhosa como o céu azul sobre nós.
Suas emoções são como as nuvens atravessando o céu. Essa história de amor não correspondido é só
outra nuvem passando. Como as nuvens, as emoções podem ser poderosas e dolorosas. À vezes parecem
grandes o bastante para bloquear o sol. Mas isso só é temporário. Não seja enganada.”
Eu perguntei se havia alguma parte dela que podia estar presente com sua tristeza. Eu pude vê-la
eventualmente encontrando uma parte de si mesma mais espaçosa. Pedi para ela focar a atenção no
relacionamento entre a tristeza e abertura recém encontrada.
Gina disse, “Uau, o relacionamento entre os dois é como uma terceira coisa.”
“Excelente. Deixe que eles se misturem e se conheçam muito bem.”
Gradualmente, sua paixonite pelo garoto desapareceu e seu relacionamento consigo mesma tornou-se
muito mais interessante.
A habilidade de observar nossos dramas internos sem ficarmos perdidos em julgamento ou reatividade é
essencial ao crescimento espiritual. Quando tentamos afastar emoções difíceis ou as sensações corporais
e estados de mente que as acompanham, na verdade os estamos mantendo. Quando os enclausuramos,
não lhes damos o espaço que precisam para se revelar e mostrar o que tem para ensinar.
A resistência não auxilia nosso trabalho interior. Em Unfolding Now, A.H. Almaas resume isso lindamente.:
91
Quando você está resistindo, você está basicamente resistindo a si mesmo. É um tipo de auto-
resistência. Em vez de estar presente consigo mesmo, você está resistindo a isso. Em vez de ser
você mesmo, você está resistindo a ser você mesmo...A resistência implica algum tipo de divisão.
Sinaliza que não estamos reconhecendo que aquilo que está surgindo é uma manifestação de
nossa própria consciência. Quando surge o ódio em nós, por exemplo, ou medo, é nossa alma,
nossa consciência assumindo aquela forma naquele momento, por uma razão que talvez não
compreendemos ainda. Se formos capazes de acolher o medo ou ódio, abraçá-lo, segurá-lo, senti-
lo plenamente em sua totalidade – em toda sua textura, cor e nitidez – lhes damos o espaço para
ser ele mesmo.
Geralmente sentimos que temos duas opções diante de emoções difíceis: reprimir ou expressar.
Reprimimos uma experiência porque ela parece ameaçadora, perturbadora, ou de alguma maneira
inapropriada. Repressão pode ser uma escolha para nos defender contra, como quando ficamos
conscientes de um sentimento ou uma experiência e então a empurramos para baixo da superfície de
nossa consciência. Ou a repressão pode ser tão poderosa que proíbe completamente a experiência, e a
bloqueamos de vir à luz.
Quando reprimimos uma experiência, ela não vai embora. Ela ainda espreita sob a superfície,
encapsulada em sua forma original com toda a sua energia associada. Quando sepultamos sentimentos
ou os desviamos, o material não está disponível para nós. Não conseguimos entendê-lo. Não conseguimos
usá-lo de forma construtiva. Raiva reprimida facilmente torna-se depressão, ressentimento, ou medo.
Repressão gera reatividade mental e distorce nossas percepções. Conduz ao que no Budismo nós
chamamos papanca mind, que se refere a uma proliferação de pensamentos e reações. Reencenamos a
peça como a interpretamos, traçamos nossa resposta e encenamos comportamentos mecânicos e
compulsivos. Fisicamente, a repressão pode se manifestar através de sintomas como tensão, torpor, e
uma falta de vivacidade, e até contribuir para uma doença séria.
A expressão emocional pode ser positiva e saudável. Compartilhando nossas histórias geralmente
descobrimos o significado e valor de uma experiência particular. Expressar dor com a morte de nossas
mães e deixar as lágrimas fluírem pode nos ajudar a metabolizar a perda. Por outro lado, reatividade
emocional normalmente significa que nossa resposta é fora de proporção a um dado estímulo.
Sentimentos inconscientes ou não resolvidos são acionados e irrompem com uma intensidade que nos
subjuga. Frequentemente agimos sobre os outros. Chutamos o gato, nos enfurecemos por estarmos
presos no trânsito, ou tentamos substituir esses sentimentos desconfortáveis porque somos apanhados
pelo desejo de descarregá-los.
Há uma terceira opção: conter/incluir a emoção. É uma resposta mais equilibrada e criativa. Sustentamos
as emoções e o material relacionado a elas de maneira amorosa. Aceitamos a realidade de sua presença,
independente se gostamos ou não delas. Nós as revelamos/apresentamos com interesse respeitoso.
Ficamos curiosos sobre nossa experiência. Talvez exploremos o aperto no peito, a sensação de peso nos
braços ou o sentimento de anseio sem ligar nada disso a uma história. Nos lembramos, em vez disso, de
gentilmente nos manter firmes em experiências e perspectivas aparentemente diferentes.
Com equanimidade, podemos regular, refletir e reavaliar. Respirar, sentir, e trazer consciência à
experiência física estabiliza nossa atenção e permite que o corpo se torne um container seguro no qual as
emoções podem ser incorporadas e reguladas. Então podemos refletir nas possíveis consequências de
representar a emoção ou insistir desnecessariamente nela, o potencial impacto de ferir a nós mesmos ou
os outros. Podemos reavaliar a resposta negativa automática e possivelmente até reinterpretar nossas

92
percepções de eventos para descobrir uma nova maneira que nos ajude a nos relacionar com nossas
emoções de uma forma construtiva. Percebemos que temos a opção de seguir uma direção saudável, ou
pelo menos trazer paciência e bondade à nossa reatividade.
O pesar é uma resposta normal, natural, à perda. Também é natural querer evitá-la completamente. Há
um ensinamento Budista bem conhecido, contado como a parábola da semente de mostarda. Conta a
história de uma mulher chamada Kisa Gotami, cujo filho de oito anos acabara de falecer. Ela estava fora
de si com a dor. Carregou o corpo do filho morto nos braços e caminhou pela aldeia implorando às
pessoas ajuda, algum medicamento para seu filho. Alguém a enviou ao local onde o Buda estava dando
ensinamentos. Ela aproximou-se dele. “Por favor, salve meu filho,” ela implorou.
O Budha respondeu, “Eu posso, de fato, lhe ajudar, mas primeiro você precisa realizar uma tarefa.(Há
sempre uma tarefa nessas histórias míticas) “Você deve me trazer uma única semente de mostarda. Essa
semente de mostarda deve vir de uma casa, de uma família, que nunca tenha sido tocada pela morte.”
Acontece que semente de mostarda era uma especiaria doméstica comum nessa época. O Budha
entendeu que Kisa Gotami precisava acreditar, por enquanto, que seu filho voltaria a viver - ela ainda não
conseguia aceitar sua morte. Ele não tinha planos para remover sua negação ou rejeitar qualquer parte
da experiência dela. Em vez disso, habilmente a guiou para a descoberta de uma verdade poderosa.
Kisa Gotami partiu para a aldeia na esperança de encontrar a semente. E à medida que a história continua,
ela foi de uma casa à outra, mas não conseguiu encontrar uma única que não tivesse sido atingida pela
morte. Ninguém pode lhe dar tal semente. Reconhecer que a morte chega para todos nós, a libertou. Isso
permitiu que ela descansasse e enterrasse seu filho. Em vez de ser derrotada pela verdade, foi consolada
por ela.
A dificuldade com tais histórias é que às vezes lutamos para receber a sabedoria delas, mantendo-as em
uma distância segura. “Oh, sim, mas esses eventos aconteceram há 2500 anos,” dizemos a nós mesmos.
Ou, “Oh, sim, mas isso é apenas uma história.” É por isso que gosto de imaginar como seria se esses
eventos realmente ocorressem aqui e agora.
Suponha essa mulher caminhando em sua vizinhança, sua rua, batendo à sua porta, com uma criança
morta nos braços. Você consegue imaginar como seria? O que você faria quando abrisse a porta? Reflita
por um momento. O que você faria realmente? Imagine sua resposta.
Alguns de nós a convidava para entrar, a abraçava e até pegava a criança nos braços. Poderia oferecer
comida, uma xícara de chá, ou alguma maneira de confortar a enlutada mãe. Outros poderiam sentar no
sofá com ela, ouvir, chorar junto, e se parecesse apropriado, compartilhar histórias de suas próprias
perdas. Como já esperado, a maioria de nós não saberia o que dizer ou fazer. Em nossa confusão, podemos
nos fiar em clichês vazios como: "Ele está em um lugar melhor. Ele está com Deus agora,” ou “Há uma
razão para tudo.” Se formos honestos conosco mesmos, podemos admitir que estaríamos com muito
medo até mesmo de abrir a porta. Em vez disso, ligaríamos para o 101.
Provavelmente estas coisas também aconteceram naquele evento. Desconfio que a história de Kisa
Gotami não foi tão certinha como costuma ser contada. A morte é confusa. O luto é ainda mais confuso.
Imagino que ela, andando de casa em casa, encontrou a tristeza, a rejeição, a solidão e a compaixão dos
outros. Com isso, começou a perceber não apenas que a morte chega para todos nós, mas que o luto é
nosso chão comum. É o tecido que nos une.
A maioria de nós não conseguiria contribuir com uma semente de mostarda. Certamente nenhum de nós
está isento de perda. Cada um de nós tem sua perda. Nossa tendência por autoproteção nos leva a
93
armazenar essas experiências difíceis e às vezes vergonhosas em um canto escuro e apertado de nossas
mentes. Mas cada nova perda aciona a memória de outra. Na imensa dor que surge com a perda de
alguém que amamos, redescobrimos o poço de pesar que sempre carregamos, o pesar ordinário,
cotidiano que habita nossas vidas.
Um tempo atrás no Zen Hospice cuidamos de uma mulher jovem chamada Cindy, com câncer de mama.
Seus pais viviam em Iowa, onde seu pai, Clyde tinha trabalhado por quase quarenta anos em um frigorífico
no turno da noite.
Sabendo que a morte de Cindy estava próxima, liguei para Clyde dizendo que se ele quisesse vê-la antes
de morrer, precisava vir imediatamente à San Francisco.
“Está bem, pegarei o trem. Estarei lá em alguns dias.”
Quando eu questionei porque ele simplesmente não pegava um vôo, Clyde revelou que nunca tinha
viajado de avião. Eu disse, “Clyde, acho que você tem que vir mais rápido do que isso.”
Então ele me disse que iria de avião e que deveria chegar às 10 da noite. Fui até Cindy e sussurrei em seu
ouvido, “Seu papai está vindo. Ele estará aqui às 10.” Ela começou a murmurar repetidamente, “Dez
horas, dez horas, dez horas.”
Enquanto o avião pousava no aeroporto de San Francisco às 10, Cindy morria. Honrando suas raízes
indígenas, banhamos seu corpo em uma infusão de ervas e a cobrimos com ervas e flores do nosso
jardim: sálvia, lavanda, erva-cidreira, louro, gerânios perfumados e pétalas de rosa.
Foi tarefa minha receber o pai de Cindy uma hora mais tarde e dizer a ele que sua filha de trinta anos já
tinha morrido. Chocado, a princípio ele apenas andava pelos corredores. Um dos voluntários permaneceu
com ele, e um de nós ficou com Cindy. Uma pessoa para acompanhar um homem em sua dor, o outro
testemunhando a morte.
Eventualmente, Clyde foi capaz de entrar no quarto de Cindy. Passaram-se horas, algumas em silêncio,
algumas com ele contando histórias sobre Cindy enquanto os voluntários generosamente ouviam. Na
maioria das vezes ficamos perto sem interferência.
Em torno das três da madrugada, eu disse, “Clyde, estou cansado. Vou para a cama agora e vou pra casa
de manhã para levar meus filhos à escola.”
Ele disse, “Está bem. Vou ficar com Cindy.”
Às oito, quando retornei ao Zen Hospice encontrei Clyde sentado ao lado de Cindy. Sua mão direita
descansava no pé de Cindy, sob o manto de flores. Ele estava segurando uma rosca/pão em sua esquerda,
o telefone enfiado no ombro, e providenciando o funeral da filha.
Claramente, tinha havido uma grande mudança em Clyde. Agora ele estava disposto a estar presente com
sua dor. Eu perguntei o que tinha mudado, acrescentando, “Como pai, não consigo sequer imaginar o que
você deve estar experienciando. Deve ser muito estranho a filha morrer antes de você.”
Clyde era um homem franco, direto. Disse, “Você sabe, eu percebi algo. É meio familiar.”
Mais frequentemente, pensamos que o pesar/luto é uma resposta esmagadora a um evento singular,
normalmente a morte de alguém que amamos. Contudo quando olhamos mais atentamente, vemos que
o pesar tem sido nossa companhia por uma parte de nossas vidas. Clyde estava falando sobre o pesar
cotidiano, a resposta às múltiplas perdas e pequenas mortes que ocorrem quase diariamente. A perda de
94
um objeto precioso, a saída de um emprego, a ruptura inesperada de um relacionamento, infertilidade,
crise financeira, ida dos filhos à escola, a perda de nossa vitalidade, ou de uma capacidade mental ou
física, a perda de controle, a perda de nossos sonhos. Todo dia surge pesar quando nos lembramos de
como a falta de cuidado de nossas ações causaram danos aos outros. O pesar chega em momentos
quando não somos reconhecidos, às vezes quando nossas expectativas não são satisfeitas. Às vezes nosso
pesar é sobre o que tivemos e perdemos, e às vezes é sobre o que nunca conseguimos obter.
A tristeza é apenas uma das muitas faces do pesar. Descobri que é útil pensar no pesar como uma
constelação de respostas, um processo em constante mudança. O autor C. S. Lewis, após a morte de sua
esposa, escreveu, “Ninguém me disse que a dor/pesar se parecia tanto com o medo.” Nossa dor/pesar se
manifesta como raiva, autojulgamento, arrependimento, e culpa. Experienciamos solidão e alívio, culpa e
vergonha, e períodos de torpor quando sentimos que estamos caminhando sobre melado. Raramente
estamos preparados para os intensos sentimentos que nos inundam quando alguém que amamos morre.
Karen, uma meditante Budista de longo tempo, mestre jardineira e amante da natureza, experienciou a
morte de ambos os pais no período de um ano. O suicídio de seu pai foi inesperado e particularmente
doloroso para ela. Ela descreveu sua dor como uma raiva que tudo consome. Não muito tempo após esses
eventos, um grupo de ativismo ambiental a convidou para falar em uma manifestação para salvar
sequoias antigas. Em resposta, Karen gritou no telefone, “Meu pai morreu! Não há árvores!”
Ao lidar com a dor dos outros e de nós mesmos, geralmente ficamos com medo e impacientes. Nosso
próprio medo não explorado do pesar nos leva a apressar os outros ao longo do caminho da cura. Mas o
pesar tem um ritmo e textura únicas para cada um de nós. É um processo profundo, lento, da alma. Não
pode ser apressado.
O filho de Dotty morreu de AIDS. Anos depois, ela me contou como uma voluntária do grupo de apoio ao
luto excessivamente zelosa lhe perguntou: "Como você se sente sobre a morte de seu filho?" Dotty, uma
pessoa bastante reservada, disse simplesmente: "Eu sofri. De que outra forma uma mãe poderia se sentir
quando perdeu o filho?”
Ao longo de vários meses, a voluntária, com o encorajamento do grupo de apoio, continuou tentando
ajudar Dotty a “entrar em contato com seus sentimentos.” Ao contar a história, Dotty disse, “Eu senti
muita dor e confusão naqueles dias, não sobre a morte de meu filho, mas sobre a incapacidade de dar
àquela voluntária o que ela estava procurando e obviamente necessitava.”
Precisamos acolher todo o espectro de expressões do pesar - do torpor e ausência de expressão à
demonstrações selvagens, fora de controle. As explosões às vezes quase enlouquecidas de tristeza/pesar
são raramente acolhidas nos grupos de apoio ao luto. Contudo, o pesar/tristeza/luto é imprevisível,
incontrolável. Você pode estar tendo um dia legal, e então de repente uma memória é acionada e fica
esmagado pela tristeza. Emoções intensas lhe atingem quando você menos espera. Uma amiga cuja mãe
morreu disse que aconteceu com ela no corredor de cereais de um supermercado local. “A perdi ali
mesmo.”
Nosso medo dessa falta de controle nos leva a ideias sobre administrar nosso pesar/tristeza ou superá-
lo. É curioso para mim o fato de que nunca falamos sobre “administrar nossa alegria ou “superar” nossa
felicidade. O luto é como um riacho que atravessa nossas vidas, e é importante entender que a perda não
desaparece. Ela dura toda a vida. É nosso relacionamento com uma perda particular que muda. Nem
sempre terá a mesma intensidade para nós, ou a mesma expressão. Mas o pesar como uma resposta
humana natural à perda permanecerá, e nossa resistência a ele só intensificará a dor.

95
Ao desafiar nossas noções de controle, o luto quebra nossa casca defensiva de invulnerabilidade. Expõe
as maneiras como nos escondemos da verdade e nos convida a reconhecer o que sempre esteve aqui mas
antes não era reconhecida: nossa fragilidade humana.
O pesar pode ser tão poderoso que em vez de nos rendermos à sua força, buscamos informações e
modelos que descrevem estágios previsíveis de luto na esperança de que eles nos façam passar por nosso
luto mais facilmente. Ao fazer isso, corremos o risco de confundir o mapa com o território. Na jornada do
luto, de fato pode ajudar nos familiarizar com o terreno, conhecer alguma coisa sobre seus padrões. Não
existe uma maneira "certa" de passar pelo luto, nenhum cronograma, nenhum caminho. E certamente
não há atalhos. O único caminho é direto pelo meio. Não superamos nossa dor. Passamos por ela e somos
transformados por ela.
Nosso coordenador voluntário no Zen Hospice, Eric Poché trouxe uma formulação simples que muitas
vezes usamos para descrever o luto. Falamos de perda, derrota e afrouxamento. Não são estágios, nem
pretendem ser um mapa. Não há progressão linear através do luto. Perda, derrota e afrouxar (loss, lose,
loosing) são simplesmente experiências comuns que podemos percorrer enquanto sofremos, ou que de
repente podem explodir na superfície de nossa consciência.
A experiência inicial da perda é geralmente visceral. Mesmo quando a morte é esperada, nossos corpos e
mentes não parecem aceitá-la imediatamente. Não queremos aceitar que a pessoa que amamos morreu.
Assim como quando você leva um soco na barriga, a dor pode tirar o fôlego. Uma reação comum é o
choque e incerteza. Você pode se sentir desconectado de outros sentimentos ou pessoas. Pode parecer
que você está sonâmbulo ou vivendo um sonho. Pode ser difícil encontrar seu equilíbrio.
Quando sua irmã, Piper, deu seu último suspiro após uma longa luta contra o câncer, Linda estava no
corredor. Quando voltou ao quarto, ela soltou um suspiro, e então seu corpo se dobrou de dor. Ela se
abraçou e, embora estivesse chorando, nenhum som saia. Sentou-se em uma cadeira ao lado da cama,
segurando a mão de Piper e olhando para o nada, balançando a cabeça de um lado para o outro, repetindo
várias vezes: "Ela era tão jovem. Isso não é possível. Não pode ter acontecido. Não pode ter acontecido.”
Não há explicação a ser dada em um momento como esse, apenas acompanhar. Após mais ou menos uma
hora, seguindo nosso costume, eu convidei Linda a se juntar a nós no ritual de banho do corpo de sua
irmã. Ela duramente gritou de volta: "Ela ainda não está morta!"
Claramente Piper estava morta. Não havia respiração, pulsação, e seus olhos já estavam embaçados.
Racionalmente, é difícil imaginar como Linda podia negar essas evidências. Contudo, naquele momento
sua mente não aceitava aquela realidade. Intuitivamente, perguntei a ela, “Quando sua irmã estava mais
viva?”
Ela respondeu, “Oh, Piper era uma peralta quando era uma garotinha. Sempre causando problemas a
nossos pais. Como adolescente era ainda mais travessa. Após o ensino médio, se tornou essa aventureira,
explorando cavernas, escalando montanhas. Mais tarde, ela foi editora de uma revista política de
esquerda. Ela birrenta, geniosa, incrivelmente viva.”
Gradualmente, mais da história emergiu. Linda disse, “ Piper ficou doente há alguns anos. Não sabíamos
o que era de início. Então ela começou a quimioterapia, e depois disso ela teve problemas para andar.
Você se lembra, Frank, que logo depois que chegou aqui, Piper levou aquela queda e quebrou o braço e
você a levou à emergência? Tão teimosa! Ela não aceitava qualquer ajuda para se locomover.

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“Tudo aconteceu muito rapidamente. Nos últimos dias ela parou de comer, então parou de falar e beber.
Sua respiração realmente mudou hoje, não foi? Ficou cada vez mais lenta, e então apresentou aquelas
longas pausas. Eu saí por alguns minutos para ir ao banheiro e quando voltei, ela tinha ido embora.”
Após uma pausa, Linda disse, “Agora podemos banhá-la.”
Então a banhamos, a vestimos com um lindo quimono branco e a cercamos de flores. Contar a história da
vida de sua irmã ajudou Linda a aceitar a realidade da morte de Piper, a estar presente. Ela me disse mais
tarde que banhar o corpo da irmã com o máximo cuidado, tocando a morte diretamente, foi um refúgio
para ela. Ela voltaria àqueles momentos quando a confusão ou a negação surgissem novamente para
bloquear a verdade.
Choque e descrença geralmente dão lugar a culpa e arrependimento. Nós nos julgamos impiedosamente.
Usualmente ouço afirmações como “Eu a deveria ter levado ao hospital mais cedo,” “Poderíamos ter
tentado outros tratamentos,” “Queria ter passado mais tempo com ela,” e “Queria estar lá no momento
de sua morte.” Nossa capacidade de sermos cruéis conosco mesmos nunca deixa de me surpreender. Se
pudéssemos parar por um momento e ouvir os sons de nossas vozes, certamente nossos corações se
abririam para abraçar nossa dor.
Sem reconhecer, é fácil sermos varridos pelas poderosas e incontroláveis emoções que surgem com a dor,
geralmente de forma inesperada. Após meses de cuidados exaustivos, testemunhando continuamente o
sofrimento de alguém que amamos, podemos ter vergonha de sentir alívio quando morrem. Outras vezes
ficamos com raiva, muita raiva. Queremos culpar alguém, qualquer um. “Malditos médicos! Eles disseram
que ela tinha mais 6 meses.” Ou “Que tipo de Deus leva alguém no auge da vida?” É especialmente
confuso quando nossa raiva volta-se para a pessoa que morreu. Mas na verdade estamos com raiva da
pessoa por ter partido nos deixando pra trás com toda essa dor, solidão e confusão.
Não há como evitar essas emoções. Se você está apoiando alguém que sobreviveu ou o sobreviente é
você mesmo, é importante reconhecer os sentimentos e entender que eles são perfeitamente normais.
Algumas pessoas choram oceanos de lágrimas, outras ficam entorpecidas. Os homens atravessam o luto
diferentemente das mulheres. Não existe maneira correta, apenas a sua maneira.
O luto é desorientador. Esquecemos nossas chaves, chegamos em lugares e não conseguimos nos lembrar
porque fomos até ali. É esse estado do luto que no Zen Hospice chamamos de derrota/perda. Não
conseguimos nos concentrar. Vivemos em uma realidade confusa. E isso continua um tempo após a morte
de alguém que amamos.
Alguns meses após a morte de sua mãe, uma mulher contou que caminhava na rua e parou diante de uma
vitrine de loja. Dentro ela viu uma luminária que sua mãe teria realmente amado. Quando chegou em
casa, pegou o telefone para ligar para a mãe e contar sobre o que viu. Então pensou consigo mesma, Oh
meu Deus, estou ficando louca. Mas esse tipo de experiência é uma reação normal durante o período de
luto.
Antigamente as pessoas costumavam usar uma tarja preta para que os outros soubessem que estavam
de luto. E as pessoas os tratavam diferentemente. Cuidavam delas. Nos primeiros dias e semanas após
alguém que você ama ter morrido, não espere conseguir funcionar plenamente. Peça ajuda. Deixe que
alguém mais cuide da comida, da roupa suja. Cancele seus compromissos. Dê um tempo. Faça caminhadas
se desejar. Seu corpo vai se rebelar de todas as maneiras mais estranhas. Fadiga incrível. Suas pernas
parecem chumbo. Inquietação será a regra. Você pode não querer dormir ou comer. Ou pode precisar

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dormir o dia todo. Encontre alguém para lhe abraçar, ou encontre uma camisa com o cheiro de seu ente
querido e segure-a perto. Distrair-se só posterga a experiência. Não faz ela ir embora.
Perder pode durar semanas, meses, até anos. Quando alguém que amamos morre, continuamos
perdendo aquela pessoa de novo e de novo, especialmente nos feriados, nos momentos de decisões
difíceis, e naqueles pequenos momentos íntimos que compartilhávamos.
Durante esse período, percebemos mais claramente os papeis que a outra pessoa desempenhou em
nossa vida, e lamentamos a perda deles também. Não apenas perdemos uma esposa quando ela morre.
Se ela foi a pessoa que batalhou o tempo todo com nossos filhos, ou ganhou o dinheiro, ou tocou nossos
corpos com amor e ternura, nós também perdemos todas essas coisas. Um homem me contou que sua
esposa fazia os serviços de banco e que toda vez que ele ia fazer um depósito ele chorava. “Sempre que
vou lá, sinto como se a estivesse perdendo novamente.” Se nossos pais morrem, podemos nos sentir
realmente frágeis. Eles eram a salvaguarda entre nós e a morte e, de repente, nos tornamos muito mais
conscientes de nossa própria mortalidade.
Essa é a fase do luto quando mais nos sentimos sós. Amigos se afastam, outros nos dão conselhos
indesejados. Após a morte de seu marido, uma mulher me contou que seus amigos lhe sugeriram um pet
para servir de companhia. Outros nos dizem para nos ocuparmos ou seguir com nossas vidas. É o medo
dessas pessoas da dor e nossa predisposição cultural de evitar qualquer coisa desagradável. Infelizmente
seus conselhos não ajudam.
Minha amiga Caroline me contou que uma coisa que a ajudou após a morte de seu marido foi um amigo
que ligava para ela toda semana convidando-a para jantar. O amigo dizia, “Eu sei que você pode não
querer ir, e está bem dizer não. Mas quero que você saiba que estou aqui quando precisar de mim. Ligarei
novamente na próxima segunda.”
Esta fase do luto é o momento de estar perto das pessoas em quem você mais confia, aquelas que
conquistaram o direito de ouvir. Ajuda a aliviar o sentimento de estar desconectado da vida. Aqueles que
conscientemente viveram uma perda própria também sabem a importância de ouvir sem julgamento ou
agenda.
Nesse período é crítico permitirmos a nós mesmos sentir a dor. Alguns dizem que o tempo cura. Essa é
uma perigosa meia-verdade. O tempo sozinho não cura. Tempo e atenção amorosa curam.
Alguns começam esse processo escrevendo cartas à pessoa que morreu, falando o que não foi dito, ou
repetindo o que sentem que precisam dizer novamente. Outras fazem álbum de recortes ou de fotos.
Rituais podem ajudar. Normalmente eu recomendo que as pessoas encontrem algum lugar em sua casa
para criar um altar, e colocar ali uma foto ou algum objeto especial da pessoa que morreu. Ficar algum
tempo lá a cada dia. Conversar com a pessoa, contar a elas como está se sentindo, ou ficar um tempo
meditando ou em oração. Usar esse momento para estender o desejo de que essa pessoa possa estar
livre do sofrimento, que possa ser tocada pela compaixão.
Um professor Zen conduz encontros com mulheres cujos bebês morreram. Elas se reúnem durante um
fim de semana e costuram um rakusu, uma miniatura da veste monástica Budista. Parece um babador e
é feito de dezesseis ou mais tiras de tecido costuradas em um padrão semelhante ao tijolo. Enquanto
costuram, as mulheres falam de seus bebês. Compartilham a dor de seus corpos e corações.
O fim de semana termina com um ritual que envolve colocar o rakusu em uma estátua de Jizo, quem se
diz representar o Voto do Bodisattva, a aspiração de livrar todos os seres do sofrimento. No Japão, Jizo
é o protetor dos viajantes e das crianças, especialmente as mizuku, que traduzido literalmente significa
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“criança de água”, mas se refere às almas dos bebês abortados e natimortos. Alguns daqueles bebês que
não receberam nome, agora o recebem. Geralmente esse é o primeiro e único momento em que a perda
dessas mulheres é reconhecida e ritualmente honrada. Para elas é profundamente curador.
Durante muitos anos eu conduzi um retiro anual para pessoas com AIDS. Uma noite, estávamos reunidos
em torno de uma fogueira e nos apresentávamos uns aos outros relatando as perdas de nossas vidas.
Para alguns tinha sido a perda da esperança ou a perda da fé. Para outros, a perda de identidades. Para
muitos foi o entorpecimento, várias mortes que experienciaram quando seus dez ou vinte ou trinta
amigos próximos morreram de AIDS.
Enquanto ouvíamos, dávamos testemunho uns aos outros. E descobríamos que é possível abrir-se a essa
dor devastadora e até mesmo curá-la. Descobríamos que nossa dor era factível.
Não é a dor que nos desperta; é nossa atenção à dor. A disposição de experienciar e investigar nosso
sofrimento dá origem a compaixão e bondade. Uma atenção amorosa consistente dissolve nossas defesas
bem construídas e libera antigos apegos. Começamos a convidar a dor para nossos corações. Os
pensamentos, as sensações físicas, a turbulência emocional que há tanto rejeitamos e que tinha tão pouco
espaço... elas começam a ser acolhidas no conforto de nossa consciência.
O afrouxamento é o período em que o nó de nossa dor se desamarra. É um tempo de renovação. Você
não consegue voltar à vida como ela era antes porque você é uma pessoa diferente agora, após sua
jornada pelo luto. Mas pode começar a abraçar a vida novamente, sentir-se vivo novamente. A
intensidade das emoções diminuiu um pouco. Você consegue se lembrar da perda sem ser pego pelo
golpe do luto. Você pode seguir adiante sem abandonar aquele que ama.
Uma mulher idosa explicou que ela e seu marido tomavam todas as decisões juntos. Durante vários meses
após a morte do marido, ela continuava a colocar um lugar para ele na mesa de jantar. Ela sentava-se,
falava com ele, e pedia seu conselho, como se ainda estivesse na mesa diante dela.
Gradualmente, ela disse, o hábito parou, mas ela ainda ouvia a voz dele dentro de sua cabeça. E quando
era momento de decisões, seguia seus planos segundo aquilo que ele teria dito ou feito. Após cerca de
um ano de atenção amorosa para com ele e com sua própria dor, ela começou a perceber que as respostas
às suas perguntas vinham em sua própria voz, não na dele.
“Eu conduzo minha própria vida agora,” ela disse. “Ele viaja comigo para todo lugar, mas eu decido para
onde iremos nas férias!”
Quando alguém próximo a nós morre, experienciamos um tremenda sensação de perda. De início, é como
alcançar uma mão que sempre esteve lá, somente para descobrir que aquela mão não está mais
disponível. Gradualmente vemos que o relacionamento continua. A pessoa de alguma maneira está
internalizada, e você pode carregá-la com você aonde for. Pode lhe surpreender uma memória da pessoa
surgir quando você menos espera. Você pode falar com eles, ele podem conversar com você, eles podem
estar com você, e você pode estar com eles. Você não está louco porque sente a presença da pessoa
amada em seu coração.
O processo de luto é como um espaço transitório em nosso relacionamento. A presença física da outra
pessoa costumava estar no centro do relacionamento, mas agora não há presença física, o centro do
relacionamento á a sensibilidade e amor que vive dentro de você.
Sentir a dor da morte de alguém que amamos é como ser atirado em um rio raivoso de emoções fortes e
conflitantes. Nos puxa para baixo, abaixo da superfície de nossas vidas, e para as águas escuras onde não
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conseguimos respirar. Freneticamente tentamos escapar do redemoinho dessa jornada interior. Quando
nos entregamos, sentimos que somos transportados por correntes suaves para um novo destino.
Emergindo da água, pisamos na terra com olhos revigorados e entramos no mundo de uma nova maneira.
Acompanhar uma pessoa moribunda, atravessar nosso luto – estes podem ser os maiores desafios que
enfrentaremos na vida. Mas não dê as costas. Não se afaste. Traga seu eu inteiro para a experiência.
Quando cuidamos de alguém que amamos e o fazemos com integridade e impecabilidade, quando
sentimos que nos entregamos total e completamente à nossa dor e não escondemos nada, então
certamente sentimos grande tristeza. Mas também sentimos gratidão e a possibilidade de nos abrirmos
a uma provisão de alegria e amor que podemos nunca ter conhecido. Eu chamo isso de amor eterno.
No luto, acessamos partes de nós mesmos que eram de alguma forma indisponíveis para nós no passado.
Com consciência, a jornada do luto torna-se um caminho para a totalidade. Pode nos levar a uma profunda
compreensão que vai além de nossas perdas individuais. Cada vez que experienciamos uma perda, temos
outra chance de experienciar a vida de uma forma mais profunda. Nos abre para as verdades mais
essenciais de nossas vidas: a inevitabilidade da impermanência, as causas do sofrimento, e a ilusão da
separatividade. Começamos a apreciar que somos mais do que o pesar/luto.
Finalmente, podemos ainda sentir medo da morte, mas não tememos tanto viver. Ao nos rendermos à
nossa dor, aprendemos a nos entregar à vida.

11.
OUVINDO OS CHOROS DO MINDO
Se você deseja que os outros sejam felizes, pratique compaixão.
Se você deseja ser feliz, pratique compaixão.
- S. S. O Dalai Lama

Os maiores pássaros da América do Norte, os condores da Califórnia são criaturas magníficas. Esses seres
espetaculares, quase mitológicos podem ter envergadura das asas de quase 3 metros e voam como
deuses sobre a costa do Big Sur (região montanhosa da California). Podíamos ver, de uma só vez, centenas
de condores empoleirados nas altas sequoias das montanhas costeiras ao longo do Oceano Pacífico. Mas
os últimos condores que voam livremente foram levados em cativeiro em 1987 para salvar a espécie da
extinção.
No final da década de 90, os condores criados em cativeiro foram reintroduzidos ao ambiente para
restaurar a raça ameaçada de extinção. Infelizmente esses pássaros não se adaptaram bem. Eles não
estavam preparados para viver em regiões selvagens e eram frequentemente encontrados em lugares a
que não pertenciam, voando em círculos confusos ao redor de prédios e perto de pessoas, com muito
medo de se aventurar na floresta.
Os experts em vida selvagem logo aprenderam com o erro. A partir de então se certificavam de que os
pássaros fossem criados por condores adultos desde cedo na vida. Essa nova geração de jovens condores
cativos, quando introduzidos na floresta, se adaptavam bem. A população de condores da Califórnia está
agora prosperando.
No Budismo, sabedoria e compaixão são faladas metaforicamente como as duas grandes asas de nossa
prática. Se o equilíbrio entre as duas é fraco ou imaturo, não podemos voar e encontrar liberdade. Como
100
aqueles jovens pássaros cativos, não fazemos escolhas inteligentes e podemos acabar voando em círculos.
Tentativas de compaixão sem sabedoria facilmente torna-se uma coisa “sentimental” e “fofa”. Tentativas
de sabedoria sem compaixão pode parecer frio, indiferente, e cerebral.
A sabedoria que dá origem à compaixão é a clara compreensão de nossa interdependência, uma
apreciação de que não estamos separados. Podemos parecer assim, mas isso é uma percepção
equivocada, uma visão condicionada que molda como vemos a nós mesmos e como nos engajamos um
com o outro.
Eu tenho vários amigos surfistas que estão sempre tentando me ensinar sobre ondas. Eles falam sobre as
forças elementares que criam ondas oceânicas a milhares de quilômetros da costa, como os ventos geram
energia em movimento no oceano, como as elevações se transformam em ondas de surf. Falam dos
efeitos das marés e correntes, a forma do fundo do oceano, o comprimento de um recife, a altura das
ondas, o alcance e a face das ondas, e como elas se organizam em conjuntos. Passavam horas
intermináveis estudando as ondas. Sendo honesto, nem sempre vejo o que eles veem.
Vejo que cada onda é completamente única. Duas ondas não são iguais. Elas adquirem forma dependente
de muitas condições diferentes, vivem por um tempo e expressam uma beleza distinta antes de
desaparecer, atiradas na praia para então voltarem para o mar. Cada onda é distinta, contudo não estão
separadas. Todas são parte do mesmo oceano. O oceano é um grande corpo, e as ondas são sua expressão
individual.
Nós, seres humanos somos assim: requintadamente únicos e diferenciados, mas não separados. Com
todas as nossas extraordinárias diferenças, compartilhamos a mesma natureza básica. Somos parte do
vasto oceano.
Quando liberamos a nós mesmos de um limitado senso de separatividade, nos abrimos a uma visão de
mundo mais ampla. Uma visão sábia de que não estamos sozinhos, nem podemos gerir nossa vida
sozinhos. Reconhecemos que estamos emaranhados um com o outro e completamente interdependentes
com tudo mais, incluindo a terra, céu, e mar, as criaturas que habitam esses lugares, e as forças vistas e
não vistas que impactam nossas vidas.
Essa realização não requer religião ou qualquer crença espiritual esotérica. Está fundamentada na
observação cotidiana. Compartilhamos necessidades similares por água, alimento, um lar e amor.
Também temos desejos semelhantes por atenção, afeto, por ser visto, e ser feliz. Não imposta o quão
vastas sejam nossas diferenças, nós, seres humanos, somos realmente os mesmos de maneiras bastante
normais e essenciais.
Uma prática de meditação simples, mas efetiva, enfatiza essa verdade e serve como uma forma de evocar,
suscitar a compaixão que está “conectada” (hardwired) em nosso sistema nervoso. Escolha aquele idoso
que dirige o ônibus, ou lembre-se do indivíduo da notícia comovente que você acabou de ler, ou traga a
prática ainda mais perto de casa para quebrar o ciclo de ataque e retirada quando você discute com seu
parceiro. Tente-a quando conhecer alguém novo. Silenciosamente repita algumas frases para enfatizar
seu chão comum com a outra pessoa e sentir a conexão de simples bondade humana:
Essa pessoa tem um corpo, coração, e mente, assim como eu.
Essa pessoa se preocupa e fica com medo, assim como eu.
Essa pessoa está tentando seu melhor para navegar na vida, assim como eu.
Essa pessoa é um ser humano, assim como eu.

101
Agora, deixe que surjam desejos de bem-estar:
Possa essa pessoa ter a força e apoio para encarar as dificuldades na vida.
Possa essa pessoa estar livre do sofrimento e suas causas.
Possa essa pessoa estar em paz e felicidade.
Possa essa pessoa ser amada.

Assim que nos vemos nos outros, e vemos os outros em nós, isso transforma fundamentalmente a forma
como vivemos no mundo. A mudança na percepção acarreta uma mudança no coração. Não podemos
mais nos enganar acreditando que o desrespeito intencional dos outros, nos colocar acima ou abaixo dos
outros, ou agir somente de maneira egoísta nos trará real felicidade.
Eu adoro como o Dalai Lama explica conceitos complexos em linguagem simples:
Não há como negar que nossa felicidade está inextricavelmente ligada à felicidade dos outros, não
há como negar que se a sociedade sofre, nós mesmos sofremos. Nem há como negar que quanto
mais nossos corações e mentes são afligidos pela má vontade, mais miseráveis nos tornamos.
Assim, podemos rejeitar tudo o mais: religião, ideologia, toda sabedoria recebida. Mas não
podemos escapar da necessidade de amor e compaixão.
Vemos que cuidar de outra pessoa não é, no fundo, diferente de cuidar de nós mesmos. O altruísmo é
uma expressão natural dessa compreensão sábia – ação que surge do reconhecimento de nossa
humanidade comum.
Se eu machuco minha mão esquerda, a direita espontaneamente vai até a direita para cuidar dela. Não
pergunta se ela é merecedora de minha atenção, ou um membro de minha igreja, ou se ela compartilha
minhas visões políticas. Tampouco se preocupa em se envolver demais e se deixar levar pelo sofrimento.
Uma mão só abraça a outra com amor e compaixão. Agir altruisticamente em nome de outra pessoa é
exatamente assim.
As crianças possuem um senso natural de altruísmo e compaixão, talvez porque não experienciam tais
limites rígidos entre si e os outros.
Quando meu filho Gabe era pequeno, nós passeávamos em San Francisco juntos. Seu coração se partia
quando via os sem-teto. Assim, costumávamos carregar um saco de moedas, e ele dava o dinheiro para
as pessoas por quem passávamos. Um dia quando ele tinha cerca de 4 anos, passamos por um velho
esfarrapado com uma barba branca desgrenhada. Honestamente, ele me pareceu um pouco assustador.
Mas a resposta imediata de Gabe foi, “Papai, podemos levá-lo para casa?”
“Não,” eu disse. “Não podemos.” E continuamos a caminhar.
Depois de um quarteirão, Gabe parou de andar e franziu a testa. "Alguém deveria ser legal com ele.”
“Que tal se o levarmos para jantar?” Eu sugeri. E assim fizemos. Voltamos e convidamos o homem para
jantar conosco do outro lado da rua, e fizemos perguntas sobre sua vida. Como muitas vezes acontece
quando você dedica um tempo para ouvir a história de alguém, descobriu-se que esse homem, Joseph,
era apenas um cara normal. Ele antes era um trabalhador da construção civil, mas passou por tempos
difíceis devido à crise imobiliária. Perdeu o emprego, gastou suas escassas economias, e assim estava na
rua.
102
Nossa capacidade de compartilhar sentimentos com os outros pode ser tanto gratificante como
problemática. Podemos experienciar um prazer indireto quando um amigo anuncia que está apaixonado,
excitação ao ouvir histórias de viagens, ou suspiro de alivio quando uma pessoa da família informa bons
resultado de exames. A experiência pode ser multiplicada com o compartilhamento.
Da mesma forma, quando vemos alguém que amamos sofrer, isso pode acionar emoções compartilhadas.
Quando outra pessoa chora de tristeza, nós também podemos compartilhar essa tristeza e começar a
chorar. Ver uma imagem de uma criança refugiada largada morta em uma praia estrangeira pode dar
origem a uma sensação de impotência dentro de nós.
É útil fazer uma distinção entre empatia e compaixão. Empatia é a capacidade de sentir como a outra
pessoa. E como tal, é um cimento necessário e essencial na formação de relacionamentos e redes sociais.
Contudo precisamos equilibrar e regular a resposta empática inicial para não confundir nós mesmos com
a outra pessoa. Isso é particularmente importante para aqueles que encaram exposição continuada ao
sofrimento, como enfermeiras, professores, conselheiros, terapeutas. Por outro lado, preocupação
empática pode facilmente deslizar para sobrecarga empática, que tem um impacto negativo em nossa
saúde e bem-estar, levando à exaustão, isolamento, burnout, e até comportamentos egoístas como agir
contra os outros para aliviar nossa aflição empática pessoal.
Carl Rogers melhor descreveu a empatia saudável, aterrada:
Significa entrar no mundo perceptivo privado do outro e sentir-se completamente à vontade nele.
Envolve ser sensível, momento a momento, aos sentidos mutáveis que fluem nessa outra pessoa,
ao medo ou raiva ou ternura ou confusão ou o que quer que ela esteja experimentando. Significa
viver temporariamente na vida do outro, transitar nela delicadamente sem fazer julgamentos;
significa sentir significados dos quais ela mal tem consciência, mas não tentar expor sentimentos
totalmente inconscientes, pois isso seria muito ameaçador. Inclui comunicar suas percepções do
mundo da pessoa enquanto você olha com olhos frescos e destemidos para elementos de que ela
tem medo.
Estar com o outro dessa maneira significa que, por enquanto, você deixa de lado suas próprias
visões e valores para entrar no mundo do outro sem preconceito. Em certo sentido, significa que
você deixa de lado o seu eu; isso só pode ser feito por pessoas que são suficientemente seguras de
si mesmas para saber que não se perderão no que pode vir a ser o mundo estranho ou bizarro do
outro, e que podem retornar confortavelmente ao seu próprio mundo quando desejarem.
Embora a empatia possa ser uma “cartilha/abecedário” para compaixão, nós também podemos sentir
preocupação pelo sofrimento do outro e estar motivado a ajudar, mesmo que necessariamente não
compartilhemos seus sentimentos. Uma distinção útil é que, com empatia, sentimos "com" a outra
pessoa, e com compaixão, sentimos "pelo" outro.
Além disso, a compaixão se diferencia da empatia por uma forte determinação de reduzir o sofrimento e
promover o bem-estar do outro. Sem a presença de compaixão, não podemos estar abertos ao
sofrimento. A compaixão serve como um tipo de “guia” interno, que nos ajuda a responder à exata face
daquele sofrimento.
Eu adoro romances, e também Catherine. Certa noite, quando estávamos assistindo na TV Pretty Woman
(Uma Linda Mulher) no Hospice, ela anunciou que provavelmente só teria seis meses de vida, mas
desejava se casar com seu namorado. Me perguntou se eu realizaria a cerimônia.

103
“Claro, ficarei honrado,” eu disse. “Mas o que você realmente precisa é um coordenador de casamentos,
e sorte sua porque realmente sou bom nisso. Você sabe, existem muitos detalhes para planejar para um
casamento.”
Dessa forma, todo dia eu ia até seu quarto e conversávamos sobre o casamento. Eu fiz perguntas a ela
sobre todos os aspectos de se casar: E o cara com quem ela estava se casando, por que ela o amava? Ela
tinha alguma preocupação sobre a compatibilidade deles? Eles iriam escrever seus próprios votos ou não?
Que tipo de bolo ela queria? Ela queria estar em uma cadeira de rodas ou na cama para a cerimônia? Que
vestido usaria? Durante todo o tempo, eu estava ciente de que havia mais coisas acontecendo nessas
conversas do que detalhes nupciais.
Um dia, no meio de uma decisão sobre o bolo, Catherine caiu no choro e explodiu, “"Eu só quero que
minha mãe esteja aqui.”
A mãe de Catherine tinha falecido há 6 anos, mas aquilo era o que mais importava para ela no momento.
Tampouco seu câncer ou o fato de que estava morrendo. O que mais importava é que sua mãe não estaria
lá para testemunhar seu casamento. Esse era o rosto de seu sofrimento. Eu poderia ter deixado passar
ou oferecido um clichê "Ah, sim, isso seria bom." Em vez disso, fomos direto ao cerne da questão,
explorando como poderíamos trazer a presença de sua mãe para o casamento.
“Podemos colocar retratos dela,” Catherine ofereceu.
“Excelente ideia,” respondi. “E, se ela estivesse lá, o que você gostaria que ela dissesse no dia de seu
casamento?”
Catherine pensou, e então perguntou timidamente, “Eu adoraria que ela lesse em voz alta o poema que
escreveu para mim antes de morrer. Você o leria?”
“Com todo meu coração, querida,” respondi.
Quando nossa atenção não julgadora responde exatamente àquilo que dói no outro, o coração se abre.
Ele se sente cuidado e visto. A compaixão está ciente do espectro de considerações, mas sintonizada com
o que mais importa neste momento. Às vezes essa sintonia é tão íntima que podemos nos sentir engajados
em um encontro "alma a alma".
Ambos, Steven e Rick estavam vivendo com AIDS, em quartos próximos um do outro no Zen Hospice. Rick,
além do diagnóstico de AIDS, tinha sofrido um AVC que paralisou seu lado direito, o deixando com afasia
que tornava sua fala distorcida e imprecisa. Ele estava com muita raiva de sua condição, irritadiço com a
maioria das pessoas. Isso, combinado com sua dificuldade de se comunicar fazia com que ele ficasse
isolado.
Steven, por outro lado, apresentava um comportamento aberto e radiante. Quando você entrava em seu
quarto, sentia como se estivesse num santuário. Steve tinha feito seu “dever escolar”, a jornada interna
de encarar seus demônios. Agora havia nele uma grande sensação de paz e gratidão.
Um dia, expliquei para Rick que Steven estava se aproximando da morte. Rick decidiu se despedir. Eu o
ajudei a mancar pelo corredor até o quarto de Steven, onde Rick se sentou na beira da cama. Eu sentei
no canto, não querendo interferir.
Durante os próximos 20 minutos, presenciei o desenrolar mais incrível: os dois homens entraram em uma
profunda troca silenciosa. Nenhuma palavra foi dita, mas seus olhos não desgrudavam da face um do

104
outro. No final, Rick assentiu, e Steven disse, “Sim, obrigado, isso foi maravilhoso.” Eles se abraçaram, e
então Rick retornou ao quarto. Steven morreu mais tarde naquela noite.
Rick apresentou-se com seu medo e escuridão. Ele sabia que estava encarando seu próprio destino. Ele
também morreria em questão de semanas, e isso o assustava. Mas por ter se aberto para seu próprio
sofrimento, Steven pode estar com o medo de Rick sem adicionar mais medo. Steven olhou para Rick com
um amor e compaixão inacreditáveis. Foi uma conexão de alma que, pelo menos naquele momento,
forneceu a Rick uma bálsamo de cura.
Um equívoco que muitas pessoas têm sobre a compaixão é que devemos ajudar a outra pessoa a se sentir
segura, que não há perigo. Isso é bom, é claro, se você pode fazê-lo. Mas eu trabalho com pessoas que
estão morrendo e, para muitos, morrer não parece seguro.
Descobri que quando estou realmente presente, sentado em minha poltrona, e aterrado em compaixão,
a outra pessoa pode sentir isso e começa a confiar e se abrir – não porque não haja perigo, mas porque
sentem que não estão sós. Uma compreensão genuína e companhia compassiva oferecem a elas o
suporte e o encorajamento que precisam para ir em direção ao que parece perigoso.
Mesmo quando dedicamos nossa vida a ações compassivas, às vezes nos sentiremos esmagados pelo
sofrimento. Em tais momentos precisamos temporariamente nos retirar e nos engajarmos com os
recursos necessários para receber a situação à nossa frente. Eu posso precisar recordar experiências de
compaixão oferecidas a mim ou por mim. Posso precisar estabilizar a atenção para conseguir enfrentar a
sobrecarga emocional. Posso precisar mergulhar em uma atividade de afirmação da vida.
No auge de meu trabalho no Hospice, muitas pessoas morriam no curso de uma semana. Às vezes quando
o sofrimento era esmagador, eu fazia três coisas: eu fazia um trabalho corporal regular, muitas vezes
passando a maior parte de uma sessão chorando na mesa de massagem; retornava à uma prática regular
de meditação sentada e às práticas que estabilizavam minha atenção, regulavam meus estados
emocionais e cultivavam qualidades como bondade amorosa; e visitava minhas amigas enfermeiras que
trabalhavam na unidade do hospital geral cuidando de bebês nascidos de mães viciadas. Eu sentava em
uma cadeira de balanço, segurava os bebês no colo e os balançava fazendo-os dormir. Havia algo na
inocência dos bebês e na satisfação de poder acalmá-los que permitia me reconectar com minha
compaixão e enfrentar o sofrimento diário que fazia parte da experiência do hospice.
Ao falar sobre compaixão, sempre sinto que deveria colocar uma ênfase de advertência. É importante que
os cuidadores ou aqueles que trabalham com o sofrimento compreendam alguma coisa sobre estar
“presente” com compaixão. Quando a compaixão está verdadeiramente presente no quarto do
moribundo, é provável que uma grande quantidade de dor e sofrimento apareça em resposta. Isso
acontece porque a dor deseja se expor ao agente de cura da bondade amorosa.
Anos atrás, fui convidado pelo professor Zen Bernie Glassman Roshi para ajudar a liderar um retiro de
"testemunho" multi-religioso nos antigos campos de extermínio nazistas de Auschwitz-Birkenau. A ideia
era mergulhar em um ambiente tão perturbador que não havia escolha a não ser abandonar nossos
modos habituais de pensar. Bernie escreveu:
Quando testemunhamos Auschwitz, naquele momento não há separação entre nós e as pessoas
que mataram. Nós mesmos, como indivíduos, com nossas identidades e estrutura de ego,
desaparecemos e nos tornamos as pessoas aterrorizadas que descem dos trens, os guardas
indiferentes ou brutais, os cães rosnando, o médico que aponta para a direita ou para a esquerda,
a fumaça e as cinzas arrotando do chaminés.

105
Quando testemunhamos Auschwitz, não somos nada além de todos os elementos de Auschwitz.
Não é um ato de vontade, é um ato de deixar ir. O que deixamos ir é o conceito da pessoa que
pensamos que somos.
Todos os dias, sentávamos ao longo dos trilhos do trem em Birkenau, meditando, rezando e cantando os
nomes dos mortos. Também nos reuníamos diariamente em pequenos grupos para conversar sobre o que
estávamos vivenciando. No grupo que facilitei havia uma mulher que me disse que tinha sido uma criança
nos campos, e outros que eram filhos e filhas de ex-prisioneiros e soldados nazistas.
Sentindo-me inquieto uma noite, decidi entrar no acampamento em Birkenau e meditar em um dos
barracões infantis. Era uma construção longa e sombria que já tinha sido uma estrebaria. Pouco depois
de me sentar, ouvi alguém entrar do outro lado da construção. Era a mulher do meu grupo que disse ter
sido prisioneira infantil no campo. Ela começou a chorar e gritar na escuridão.
Fui até ela e sentei ao seu lado. E ela continuou chorando. Eu nunca tinha ouvido tais sons. Eram
primitivos, quase animais. O choro continuou durante a maior parte da noite. Nenhuma palavra foi dita.
Não há nada que você possa dizer quando alguém está experienciando tal angústia. Tudo o que você pode
fazer é testemunhar. Quando o dia começou a raiar, voltamos para o albergue e nos despedimos
silenciosamente.
Mais tarde naquele dia, voei para Berlim para facilitar um workshop sobre luto e perdão. Não mencionei
minha experiência em Birkenau; ainda pode ser difícil falar dessas coisas na Alemanha. Quando o
workshop estava terminando um ou dois dias depois, no entanto, uma mulher no fundo da sala se
levantou e disse: “Eu tenho escutado você falando sobre perdão, mas meu pai foi um prisioneiro nos
campos de concentração nazistas, e não consigo perdoar seus assassinos. Meu coração é como gelo.”
Toda a sala ficou em silêncio. Novamente, a única resposta apropriada era testemunhar. Então, uma
mulher no outro lado da sala levantou a mão para falar. Pensei comigo mesmo, Agora as histórias dos
campos e a dor daquelas perdas vai chegar.
Ela levantou-se e disse, “Meu coração é como gelo, também. Me sinto como uma pedra. Meu pai era um
oficial Nazista, como guarda nos campos. Eu sei que ele matou pessoas. Não consigo perdoá-lo.”
Silêncio.
Então essas duas mulheres fizeram a coisa mais corajosa que eu já vi. Atravessaram a grande sala com
200 pessoas e se abraçaram. Não disseram uma única palavra. Não precisavam. Apenas se abraçaram.
Seu gesto foi um claro reconhecimento que não estavam mais sozinhas em sua dor. Pois naquele
momento o sofrimento delas era o sofrimento de todos nós.
É fácil imaginar que a compaixão requer alguma força heroica que não possuímos. Podemos acreditar que
não estamos à altura da tarefa de enfrentar o sofrimento do mundo. Pode ser útil considerar a
possibilidade de que a compaixão não seja uma qualidade que já possuímos, mas sim uma que podemos
acessar, inerente à natureza da realidade. O amor esteve aqui o tempo todo. É absoluto porque tudo e
todos sempre foram mantidos em amor.
As escolas posteriores do Budismo baseiam-se na compaixão. Elas incluem ricas descrições de diferentes
tipos de compaixão ligados ao desenvolvimento de Bodhicitta, que se refere ao impulso do "coração-
mente" para despertar.
Em nossos treinamentos no Instituto Metta, meu amigo e colega, o professor Zen Norman Fischer, falava
sobre "conectividade radical" e de como a sabedoria da não-separatividade é a fonte da compaixão. Ele
106
dizia, “Bodhicitta é o sentimento de amor com base em um profundo reconhecimento de que aquilo que
chamamos ‘eu’ e o que chamamos ‘outro’ são conceitos, destinos, hábitos da mente, não realidades do
mundo. Altruísmo real não é auto-sacrifício para o benefício dos outros.... decorrente de algum
sentimento de culpa de que devemos ser bons, devemos ser amáveis, devemos ser gentis ou prestativos.
É um profundo reconhecimento de que o eu e o outro não são fundamentalmente diferentes, apenas
aparentemente diferentes.
Se diz que existem dois níveis de Bodhicitta – Absoluta e Relativa. Por meio da Bodhicitta, transcendemos
o limitado auto-interesse e abraçamos todos os seres com compaixão. De uma forma mais secular,
podemos falar de compaixão universal e cotidiana.
Todas as tradições espirituais apontam para a compaixão universal como um aspecto inato e essencial da
existência. No pensamento Budista ela é vasta e ilimitada, a qualidade dinâmica da realidade que contribui
para a harmonia. Como uma faceta do amor, é aberta e ilimitada. A compaixão universal é a base de toda
cura, uma fonte subjacente de benevolência e cuidado. Sua natureza é impessoal, contudo está sempre
nos abraçando, mesmo que não saibamos, mesmo que nosso condicionamento tenha obscurecido nossa
capacidade de vê-la como parte integrante de toda atividade.
Então há a compaixão cotidiana. É a compaixão expressada na vida cotidiana, quando ajudamos alguém,
alimentamos quem está com fome, nos levantamos contra injustiças, trocamos lençóis sujos,
massageamos os pés, escutamos generosamente os lamentos de um amigo com o coração partido, ou
contribuímos para um fundo de recuperação de uma catástrofe. Podemos ser eficazes ou ineficazes em
nossos esforços, mas fazemos o melhor que podemos.
Essas duas facetas da compaixão dependem uma da outra. A compaixão cotidiana pode ser exaustiva.
Ficamos cansados e esgotados por nossos esforços repetidos para cuidar de nossas famílias, ajudar os
outros ou reduzir o sofrimento do mundo. É por isso que a compaixão cotidiana deve se originar da
abundância da compaixão universal. Mas é uma via de mão dupla. A compaixão universal também precisa
da compaixão cotidiana. Sem essa, a compaixão universal é apenas uma ideia abstrata, uma grande
oração. Se as preces sozinhas fossem suficientes para curar o mundo, teríamos encerrado o sofrimento
há muito tempo.
Com essa compreensão, vemos que compaixão não vem de nossos esforços individuais. Ela emerge de
nossa natureza básica, é uma expressão dinâmica que surge da realidade em si. A compaixão universal
precisa de nossos braços e pernas e costas fortes. Somos seu veículo. Somos o modo como ela se
manifesta no mundo cotidiano. Ela usa nosso compromisso, mentes brilhantes, e corações bondosos.
Entrementes, a compaixão cotidiana é constantemente refrescada porque surge da compaixão universal.
Gradualmente, aprendemos a confiar que, embora haja sofrimento sem fim neste mundo, também há
compaixão infinita para responder.
Às vezes a presença de compaixão parece curar uma dor particular imediatamente. Mas às vezes a
presença da compaixão e bondade amorosa nos permite ficar com o sofrimento que caso contrário seria
muito difícil para tolerarmos. Mas ao ficar com a dor e sofrimento, a compaixão permite que uma verdade
mais profunda seja revelada.
Meu amigo Michael vivia com esclerose múltipla há quase vinte e cinco anos. Trabalhamos juntos por
quinze anos, nos preparando para sua morte. Sim, por quinze anos conversamos. Uma vez, depois de
voltar para casa após um internamento com pneumonia na UTI, ele disse, “Frank, eu não vou voltar.”
Eu disse, “Você não está voltando do hospital?”

107
“Não, eu não estou voltando.”
“Como assim, Michael? Perguntei.
“Eu realmente fiquei com medo. Todo o trabalho que fizemos, e ainda estou com medo!”
Houve uma longa pausa enquanto ambos absorvíamos a profundeza do sofrimento de Michael. Então em
um momento de clareza que veio mais de compaixão do que expertise, eu disse, “Oh, Michael, esse medo
nunca irá embora. A parte de você que está com medo sempre estará com medo.”
A princípio ele pareceu um pouco atordoado. Mas depois de deixar que as palavras tocassem seu coração,
ele disse, “Uau, isso é a coisa mais reconfortante que alguém me disse sobre toda essa situação.”
Não era resignação; era um compreensão de que embora o medo estivesse lá, ele estava consciente do
medo, e podia acessar aquela dimensão de si mesmo que não estava com medo. A consciência podia estar
com o medo. Medo não era mais a única coisa no quarto. Agora a compaixão também estava presente.
Forneceu o espaço necessário para respirar para ver que o medo era factível. Por um momento, Michael
era aquele que não estava doente.
A compaixão requer entrarmos em contato com aquilo que dói. É a dor, o sofrimento em si, que convida
a compaixão a se manifestar. A inteligência da compaixão propõe uma bondade que não está tentando
se livrar do sofrimento. Isso vai contra os desejos do ego. O ego só deseja estar protegido da dor. A
compaixão se abre para a dor.
Temos um armário cheio de estratégias que podemos empregar para manter o desagradável à distância,
para manter o sofrimento à distância. Nossas defesas nos tornam cegos e podem nos enganar sobre as
verdadeiras fontes de nosso sofrimento. Medo, raiva, culpa, preocupação, ressentimento, vergonha – são
todos eles sintomas dolorosos, reativos. Nossas defesas psicológicas podem mascarar dinâmicas mais
profundas em nossas psiques, nos impedindo de compreender as causas fundamentais de nosso
sofrimento. Dessa maneira, nossas defesas geralmente inconscientes servem para reciclar nosso
sofrimento.
Quando a compaixão está presente, nossa defensividade pode relaxar. Quando nossas defesas estão
abaixadas, podemos olhar objetivamente para nossa situação e ver a verdadeira origem de nosso
sofrimento. Então podemos intervir habilmente para cuidar das reais causas e não apenas os sintomas.
Assim, outro aspecto da compaixão é a capacidade de estar com o sofrimento como um meio de chegar
a, experienciar, mais verdade e maior liberdade.
Uma vez, durante uma palestra na Alemanha, Bernie Glassman Roshi fez referência à Avalokitésvara, o
bodhisattva da compaixão. A deidade é retratada com mil braços. Em cada mão, há um ouvido para
escutar os choros do mundo. Os mil braços estão lá para responder. Bernie estava sugerindo que a
compaixão é uma resposta natural e apropriada ao sofrimento.
Um homem levantou-se e disse, “Isso tudo é muito bom, mas eu não tenho mil braços. Só tenho dois
braços. O que devo fazer para aliviar todo esse sofrimento?”
Bernie fez uma pausa, e então maravilhosamente disse, “Você está errado.”
O homem insistiu, “Não, estou bastante certo de que só tenho estes dois braços.”
Bernie pediu a todos presentes no salão que levantassem suas mãos. Havia cerca de quinhentas pessoas.
“Veja,” ele disse. “Mil braços.”

108
Seu propósito era dizer que é uma ilusão pensar que estamos fazendo esse trabalho sozinhos. Na verdade,
tudo está intimamente conectado, relacionado em uma vasta rede de interdependência. Todos os nossos
pensamentos, sentimentos e ações afetam todo o resto dessa rede. O grande naturalista John Muir disse
certa vez, “Quando tentamos escolher qualquer coisa por si só, descobrimos que ela está atrelada a tudo
o mais no Universo.” O que nos traz de volta ao oceano, no qual cada um de nós somos ondas individuais.
Quando olhamos para a realidade do ponto de vista do eu separado, estamos constantemente buscando
aquilo que nos distingue dos outros. Tudo o que vemos são coisas se desintegrando. Tudo o que vemos é
sofrimento. Mas se mudarmos para o ponto de vista da conectividade, podemos sentir a harmonia. Não
abandonamos completamente nossas personalidades, mas adotamos pontos de vista mais inclusivos.
Compaixão é o que nos permite chegar próximo ao sofrimento, conhecer através da intimidade. Quando
chegamos perto, a ilusão de "eu e outro" desaparece. Sabemos que somos parte dessa rede de
mutualidade. A sabedoria nos mostra que o pequeno e limitado senso de eu separado que nos
consideramos ser não é mais do que uma história limitante. Quando a separação desaparece,
reconhecemos que somos tudo. Sendo tudo, a compaixão é simplesmente uma resposta apropriada, a
maneira natural de servir e amar o que é realmente todo o nosso ser, e de expressar sua liberdade.

O QUARTO CONVITE
Encontre um lugar de descanso no meio das coisas

Descanso é a conversa entre o que adoramos fazer e como adoramos ser.

- David Whyte

Adele era uma senhora Judia Russa de oitenta e seis anos, obstinada e sensata. Tive a honra de estar com
ela no Zen Hospice na noite em que morreu. Ela estava sentada na beira da cama, respirando com grande
dificuldade; cada inalação e exalação era uma luta.
Enquanto eu me sentava no sofá no canto, uma enfermeira gentil e bem-intencionada sentou ao lado de
Adele e tentou tranquilizá-la, dizendo: "Você não precisa ter medo. Estou aqui com você.”
Adele retrucou: "Acredite em mim, querida, se isso estivesse acontecendo com você, você estaria com
medo.".
A assistente começou a acariciar as costas de Adele. “Você está um pouco fria. Gostaria de um cobertor?”
Adele retrucou: "Claro que estou com frio. Estou quase morta!”
Eu permaneci no canto.
Rindo comigo mesmo por sua crua honestidade, duas coisas ficaram claras para mim. Uma, Adele queria
conversa direta e relacionamento autêntico. Não desejava processar seu morrer ou falar sobre se dirigir
para a luz. Não tinha interesse em ideias sentimentais. Segundo, apesar de ter recebido todas as
intervenções apropriadas, Adele ainda estava lutando. Há um labor para se morrer como há um labor
para dar à luz.

109
Eu puxei uma cadeira para perto de Adele, e nossos olhos se tocaram. Perguntei, “Adele, você gostaria de
lutar um pouco menos?”
“Sim.” Ela assentiu.
“Eu observei que ao fim de cada exalação sua, há uma pequena pausa. Você pode colocar sua atenção
nessa pausa por um tempinho?” eu sugeri. Acontece que Adele não se importava com o Budismo e nunca
tinha meditado na vida. Mas estava altamente motivada no momento para se livrar do sofrimento. Assim
concordou tentar. “Vou respirar com você,” eu disse.
Depois de um tempo, Adele conseguiu colocar sua atenção naquele pequeno hiato entre a exalação e a
inalação. O medo gradualmente foi desaparecendo de sua face. Continuamos a respirar junto por algum
tempo. Eventualmente ela deitou sua cabeça no travesseiro. Um pouco depois, morreu pacificamente.
O Quarto Convite nos ensina que, como Adele, podemos encontrar um lugar de descanso dentro de nós,
sem precisar alterar as condições de nossas vidas. Afinal de contas, a condição de vida dela permaneceu
a mesma – sua respiração não mudou; ela ainda estava morrendo. Entretanto, encontrou um lugar de
descanso.
Esse lugar de descanso está sempre disponível para nós. Só precisamos nos voltar para ele. É
experienciado quando trazemos nossa total atenção, sem distração, para este momento, para esta
atividade. Com prática genuína, após algum tempo, podemos conhecer essas espaçosidade como uma
parte regular de nossas vidas. Ela se manifesta como um aspecto nosso que nunca está doente, não é
nascido, e não morre.

12.
A CALMARIA NA TEMPESTADE
Descanse em grande paz natural esta mente exausta,
abandonada pelo carma e pensamentos neuróticos
como a fúria implacável das ondas batendo no oceano infinito do samsara
- Nyoshul Khen Rinpoche

Há uma história Zen sobre um monge que está varrendo com grande vigor o templo. Outro monge passa
e solta, “Muito ocupado.”
O primeiro monge respondeu, “Saiba que há alguém que não está muito ocupado.”
A moral da história é que embora o monge que varria possa ter parecido externamente ao observador
casual como “muito ocupado”, realizando ativamente sua tarefa diária monástica, internamente ele não
estava ocupado. Ele podia reconhecer a quietude de sua mente, a parte de si mesmo que estava em
repouso no meio das coisas.
A maioria de nós pensa que estamos muito ocupados. Provavelmente estamos, mas também a maneira
como pensamos sobre o assunto importa. Quando eu estava na terceira série, o ponteiro dos minutos no
grande relógio redondo da escola se movia incrivelmente devagar enquanto eu esperava o sinal de
despedida das duas horas. As férias de verão pareciam durar para sempre. Agora o tempo voa, e as férias
nunca são longas o suficiente. O que aconteceu? Ainda são as mesmas vinte e quatro horas todos os dias,
ou seja, a sensação de "não ter tempo suficiente" não se alinha com a minha realidade objetiva.
110
O que acontece é que quando estou preso em uma mentalidade de escassez, baseada no tempo, ou
tombando inconscientemente de um momento ao próximo, me torno prisioneiro de meus pensamentos.
Fico preso em um cárcere de minha própria construção. E nem percebo que a porta da cela não está
trancada. Eu só preciso escolher abri-la.
Encontrar um lugar de repouso não se trata de acrescentar outra tarefa à sua já tão grande lista. Nem
significa cochilar mais durante o dia de trabalho (embora isso possa ser útil). É uma escolha – uma escolha
de estar alerta, trazer a atenção para esse momento. Multitarefa é um mito que só serve para sequestrar
nossa atenção e nos exaurir. Ao fim do dia, nem é agradável, nem produtivo. Vamos encarar: nenhum de
nós tem superpoder; só podemos viver um momento de cada vez.
Mahatma Gandhi disse uma vez, “Eu não desejo ver o futuro. Estou preocupado em cuidar do momento
presente. Deus não me deu controle sobre o momento seguinte.” Essa ideia nos frustra. Queremos
equilibrar pratos, fazer malabarismo, e viver dois sonhos ao mesmo tempo. Qualquer outra coisa soa
chata. “Vou dormir quando estiver morto,” dizemos.
Como resultado acabamos viciados em estar ocupados. Confundimos descanso com não produtividade e
preguiça. Sem tempo a perder, nós nos repreendemos enquanto corremos de uma atividade à próxima.
Contudo fazemos tudo isso em um estado contínuo de atenção parcial, imaginando que estamos
realizando mais, quando na realidade estamos vivendo menos.
O celular, nosso companheiro mais constante, é um exemplo brilhante dessa mentalidade. Uma recente
pesquisa em San Francisco mostrou que em um dia, a maioria das pessoas interagem com seus smartfones
mais do que com outros seres humanos. Metade das pessoas pesquisadas admitiam usar seus celulares
para escapar de interação social, e quase um terço das pessoas disseram ficar ansiosas quando não
tinham acesso a seus celulares.
Lembram-se de época quando os computadores eram vendidos com a promessa de que criariam mais
tempo de lazer e maior conectividade humana? Eu quero meu dinheiro de volta.
Na verdade, muitos de nós tememos o descanso. Médicos e enfermeiras muitas vezes falam para mim de
como a exaustão é uma parte fundamental de seu treinamento e de como eles continuam se movendo
implacavelmente no trabalho. Eles temem que, se pararem de correr, o enorme sofrimento que têm
testemunhado destruirá suas defesas. Lágrimas podem fluir, e eles não conseguiriam parar de chorar.
A armadura que construímos ao redor de nossos corações pode bloquear nossa dor, mas ela também
impede a ternura de entrar. Temos medo de que seremos esquecidos, de que se pararmos de ir o tempo
todo, a solidão e o vazio que tememos virão à tona. Assim, construímos uma falsa sensação de segurança,
afastando a incerteza, fazendo da atividade constante um fetiche.
Dessa forma, nos tornamos investidos em nossa própria exaustão. Durante seminários com profissionais
da saúde, eu gosto de pedir para eles explorarem a pergunta contraditória, “O que está certo em estar
exausto?” De início eles negam qualquer benefício. Com o tempo, entretanto, surgem respostas honestas.
Alguns dizem, “As pessoas acreditam que estou trabalhando duro. Ganho crédito por ser dedicado.”
Outros respondem, “Estar sobrecarregado e esgotado significa que eu sou importante.” Um ou dois
reconhecem, “As pessoas sentem pena de mim, e isso me faz sentir-me amada.” Frequentemente nossa
exaustão não vem de fazermos muito, mas ao contrário de uma falta de total engajamento ou sinceridade.
Existe um fenômeno comum entre aquelas pessoas recentemente diagnosticadas com câncer. Minha
amiga Ange Stephens, uma terapeuta de longa data atendendo pessoas com doenças fatais o chama “uma

111
gratidão secreta”. Após o choque inicial, muitos de seus clientes expressam alívio. “Agora eu posso dizer
‘não’ já que sempre me senti obrigada a dizer ‘sim’. “Agora posso finalmente descansar.”
Precisamos morrer antes de podermos descansar em paz?
O descanso é encontrado quando estamos presentes em vez de deixar nossas mentes vagarem sem rumo
pelos corredores do medo, preocupação e ansiedade. O descanso vem quando nos tornamos mais
fazendo menos, quando não permitimos que o urgente elimine o importante. É o resultado de uma mente
livre de itens desnecessários e desvinculação de visões fixas. Descanso é um Sabbath, quando paramos e
nos voltamos para venerar as possibilidades do momento sempre novo.
A ociosidade não é uma indulgência ou um vício, mas é indispensável. Quase todas as plantas dormem no
inverno. Certos mamíferos hibernam, desacelerando seu metabolismo dramaticamente. Todos são
guiados por relógios internos para emergirem novamente no tempo certo, nas condições certas. Esse
período de descanso é crucial para sua sobrevivência.
Nós, também, precisamos ouvir nossos instintos e encontrar um lugar para descansar. Minha amiga e
membro do Metta Institute, a falecida Angeles Arrien, gostava de dizer, “O ritmo da natureza é de médio
a devagar. Muitos de nós vivemos na pista rápida, fora do ritmo da natureza. Há duas coisas que nunca
podemos fazer na pista rápida: não podemos aprofundar nossa experiência nem integrá-la.” Ela
geralmente encorajava nossos alunos a passar uma hora ao ar livre todo dia e pelo menos meia hora em
silêncio todo dia. Dizia, “Quando perdemos contato com os ritmos da natureza, ficamos desequilibrados.
Para estarmos plenamente presentes com nossa natureza, devemos estar em equilíbrio com a terra ao
nosso redor.”
Viver fora de contato com os ritmos primitivos da vida nos cobra um preço.
Eu gosto de mergulhar. É uma das formas de entrar em contato com o que a natureza tem para me
ensinar. Minha coisa favorita quando estou mergulhando é descer lentamente e sentar no fundo do
oceano. Penso que a maioria dos guias se movem muito rápido. Querem mostrar a você esse coral a
aquele destroço e outras coisas. Mas eu adoro ficar quieto, observando a vida debaixo d’agua passar por
mim e ouvir minha respiração no infinito silêncio do mar.
Um dia, na Indonésia, fui para um mergulho noturno. Era de uma beleza de tirar o fôlego naquela noite.
Saímos ao pôr do sol, o céu em chamas com listras de laranja queimado, a nuvem irradiando uma paz
rosa-lilás. Viajamos em barcos rústicos de madeira pintados de vermelho intenso, amarelos e o turquesa
do mar. O oceano calmo espelhava o céu, e a fina linha do horizonte dava a impressão de dois mundos se
fundindo.
Tudo o que tínhamos para iluminar nosso caminho quando entramos na água eram lanternas simples,
sem luzes especiais para mergulho noturno. Enquanto eu viajava para a escuridão com meu parceiro de
mergulho, senti uma vontade de desligar minha lanterna. Ao desligar, rapidamente percebi como estava
realmente escuro; uma espécie de escuridão que eu nunca tinha experimentado. Eu não sabia dizer qual
era o caminho para cima, para baixo ou para o lado, e não tinha ideia se alguém ou alguma coisa estava
por perto. Senti uma contração física no peito enquanto experimentava uma onda de ansiedade, mas a
sensação logo passou, como o pesadelo de uma criança.
Quando liguei minha lanterna, meu companheiro e eu nadamos em torno de um enorme recife de coral.
Depois nos acomodamos no fundo. Estava ainda mais quieto do que o normal à noite. Até os peixes
pareciam estar em repouso. À medida que o oceano nos envolvia, senti uma imperturbável sensação de
tranquilidade tão espaçosa quanto o céu noturno.
112
No final do mergulho, quando nosso tempo se encerrava e nosso oxigênio estava acabando, começamos
a subir à superfície. Ao sair de um mergulho, você deve se mover lentamente, parando em alguns pontos
para evitar adoecer. A meio caminho do topo, podíamos sentir as poderosas correntes oceânicas, como
rios vindos de longe que se movem pelo oceano, ameaçando nos levar. Quando emergimos à superfície,
percebemos que havia uma enorme tempestade com chuvas torrenciais, trovões e enormes ondas do
oceano. Foi selvagem.
No mar durante uma tempestade não é o lugar mais seguro para se estar. Eu berrei a plenos pulmões de
pura alegria. A turbulência não me assustava. O contentamento tinha viajado direto do fundo do oceano
para a superfície comigo. Não foi algo especial. Sem mistificação. Eu estava apenas lá, totalmente
presente com o que era, enraizado em minha própria paz interior.
Felizmente, nosso barco estava a uma pequena distância, e conseguimos embarcar junto com todos os
outros mergulhadores. Voltamos para casa em segurança – e nunca irei esquecer a emoção da
experiência.
Quando ensino a prática de meditação, geralmente uso a metáfora do oceano para descrever as camadas
da mente. Na superfície, há geralmente turbulência em nossos pensamentos. Somos afetados por
quaisquer que sejam os ventos que estão soprando no momento, as condições da vida cotidiana, o stress,
a ansiedade. A maioria das pessoas vive neste nível com uma boa quantidade de agitação mental, com
tempestades emocionais ameaçando afogá-los. Pode parecer que é tudo sobre nós. Nos vemos como o
centro do universo. Esta mentalidade narcisista dolorosa, conduzida por nosso instinto de sobrevivência,
pode levar a expectativas do que o mundo nos deve ou uma crença inflada de que somos responsáveis
por muito do que está acontecendo.
Sossegamos a mente um pouco mais por meio da meditação, e começamos a sentir as correntes mais
universais, aqueles rios submarinos que ajudam a produzir as perturbações na superfície. Entramos em
contato com as tendências humanas mais profundas, os impulsos instintivos, as forças primitivas, o
condicionamento ancestral a que todo mundo está sujeito, e que não estão limitados a nossas
circunstâncias individuais. Esses padrões de mente arraigados tentam construir um senso de eu fixo e um
mundo estável a partir de um fluxo de contínua mudança. Eles (os padrões de mente) moldam nossos
comportamentos, criam nossos hábitos, e distorcem nossas crenças – tudo isso leva ao sofrimento.
Com atenção pela, começamos a ver, “Oh, existem essas correntes se movendo através de minha mente,
me empurrando. Elas se mostram como reatividade, medo, raiva, um desejo de controle. Mas elas não
são particulares a mim. Estão se movendo por todos nós. Essa é a condição humana.”
Além do mais, percebemos que essas condições humanas impessoais antecedem nossos nascimentos.
Não são nossa culpa. Eu não escolhi nascer numa família alcoólica. Minha alma não nascida não estava
esperando no céu procurando uma chance de pular em um corpo que seria abusado sexualmente quando
eu tinha apenas treze anos. Mas eu precisei aprender a lidar com o que me aconteceu. O ponto crítico
aqui é que embora precisemos ser responsáveis pelo impacto que essas condições têm em nossas vidas,
não somos responsáveis por sua aparência.
Esse é o começo de nos liberarmos da consciência do eu para uma apreciação mais expansiva da vida, a
realização de que todos nós estamos sujeitos a condições além de nosso controle. O reconhecimento de
correntes (tendências) previamente inconscientes dão origem a mais empatia, compaixão e aceitação,
não apenas em relação a nós mesmos, mas também aos outros.

113
Se mergulharmos ainda mais na superfície de nossas mentes, encontraremos uma calmaria vasta e
serena. Reconhecemos que, embora essa condição humana esteja sempre se movendo através de nós,
não precisamos ficar presos nela. Não precisamos ser varridos por essas correntes universais. Ao fazer
isso, não estamos escapando das vicissitudes da vida. Estamos simplesmente encontrando um natural
local de repouso, como se estivéssemos sentados no fundo do oceano, observando os movimentos de
nossas mente e corações como peixes nadando pelos corais.
Ao repousar nessa consciência aberta, nos liberamos dos hábitos de manipular nossas circunstâncias e
lutar por controle como formas de evitar dor e obter prazer. Temos mais espaço, mais liberdade à
reatividade. Não estamos negando, justificando ou racionalizando; estamos permitindo. Quando é assim,
sabemos que é assim. Essa é uma forma gentil porém comprometida e corajosa de apreciar a verdade
mais profunda daquilo que significa ser humano.
Pode soar complicado, mas começa com consciência básica e colocando em prática rotinas simples. Uma
vez eu trabalhei com um executivo em uma empresa de tecnologia de um bilhão de dólares. Ele estava
experienciando sintomas dramáticos de stress: irritações na pele, problemas intestinais, e noites de
insônia. Passava a maior parte do dia em uma sala de reuniões sem janelas, se encontrando com várias
equipes encarregadas do desenvolvimento e lançamento de um novo dispositivo. As equipes iam e
vinham, mas ele raramente deixava a sala. Começamos com o acordo muito direto de que ele faria uma
pausa a cada hora para usar o banheiro. Gradualmente acrescentamos algumas respirações conscientes
durante reuniões e uma caminhada atenta no corredor até o toalete. Com o tempo, o box do banheiro
tornou-se sua caverna de meditação temporária. Lá, ele se conectava com seu próprio centro de calmaria
e então, muitas vezes serenamente, retornava às reuniões de negócios.
Se esperamos encontrar o verdadeiro repouso, precisamos ver claramente as correntes que nos
perturbam. Contudo o reconhecimento é apenas o começo. Para acontecer uma mudança verdadeira,
precisamos ir mais fundo para compreender as maneiras específicas pelas quais fomos condicionados ao
longo de nossas vidas. Então podemos abordar as causas subjacentes de nossa angústia interna ou falta
de descanso.
Na tradição Budista, existe uma imagem conhecida como a Roda do Samsara. Samsara significa o ciclo de
morte e renascimento ao qual o mundo material está inextricavelmente ligado. A roda como metáfora
ilustra o ciclo contínuo de condições que nos fazem girar e girar. O motor que aciona a roda é referido
como os três venenos. Eles são a raiz (causas) de nosso sofrimento: desejo (ganância), aversão (ódio), e
ignorância (ilusão). A princípio, veneno pode parecer uma palavra forte – até começarmos a reconhecer
a toxicidade desses estados aflitivos e as maneiras com que contaminam nossas mentes, obscurecendo
nossa abertura natural. Ainda assim, prefiro uma forma mais contemporânea e visceral de nomear esses
obstáculos universais, que Martin Aylward, o professor budista residente do centro de retiros Moulin de
Chaves, na França, compartilhou comigo em uma conversa. Ele os chamou de demanda, defesa e
distração ( ddd - demand, defense, distraction).
Desejo, o primeiro veneno, é uma demanda que os objetos de nosso desejo nos forneçam satisfação
duradoura para que nos sintamos inteiros, completos, realizados. É a tendência de se agarrar a alguém,
alguma coisa, alguma ideia, e ficar rigidamente ligado a ela. A ganância cria uma fome interna, estamos
sempre lutando por um objetivo inatingível: um novo emprego, um novo parceiro, um novo filho, um
novo carro ou casa, um novo corpo, uma nova atitude. Acreditamos equivocadamente que nossa
felicidade depende de alcançarmos nosso objetivo, obtermos aquilo que desejamos. Mas o problema é
que mesmo quando conseguimos, descobrimos que não podemos obter satisfação duradoura com nossa
realização ou posse porque tudo na vida está sujeito à lei da impermanência. As circunstância mudarão,
114
ou nos acostumaremos com o novo papel ou coisa ou pessoa em nossas vidas, e nosso prazer
inevitavelmente vai desparecer.
Tragicamente, inerente à demanda está a noção de que o que está aqui agora, o que temos agora, não é
bom o suficiente. Podemos sentir esse impulso por mais como um puxão energético em nossos corpos,
o desejo desesperado por algo que preencha nossa subjacente sensação de deficiência.
O segundo veneno, a defesa ou aversão, pode se apresentar como raiva, ódio, bullying, solidão,
intolerância, ou medo. Habitualmente resistimos, negamos, e evitamos sentimentos, circunstâncias, e
pessoas desagradáveis – tudo o que não gostamos ou não queremos. A defesa nos prende em um ciclo
vicioso de se deparar com conflitos e inimigos em todo o lugar. Isso reforça nossas percepções
equivocadas de que estamos separados de tudo e de todos. Energeticamente, conhecemos esse impulso
em nossos corpos como o oposto do puxão. É um afastar. A ironia é que tudo o que afastamos geralmente
retrocede de forma ainda mais forte.
A ignorância da distração é o terceiro veneno. Ele nos cega para a maneira como a realidade opera, dando
origem à tendência de puxar (demandar) e empurrar (defender). Nós percebemos equivocadamente a
natureza das coisas - que são interdependentes e impermanentes. Em vez disso, ficamos perdidos em
um ciclo de distrações como uma forma de nos desconectarmos de nossa dor.
Álcool, compras, comida, jogo, sexo, mídia social, e vídeo games, até medicações – tudo isso serve como
hábitos e estratégias para nos distrairmos, tudo pode passar inquestionável. Nos perdemos, ficamos
confusos, e sustentamos visões inúteis. Passamos nossas vidas em uma espécie de neblina, incapazes de
ver claramente que há um caminho para nossa dor, que exige que nos voltemos para ela. Tentando
ignorar, tropeçamos e caímos continuamente ainda mais em nosso sofrimento. Energeticamente, nos
sentimos perdidos, entorpecidos ou vagamente inconscientes.
Estes são os três venenos que espreitam sob a superfície de nossa consciência, impactando nosso
comportamento cotidiano e impedindo de nos sentirmos em repouso. Algumas pessoas gostam de pensar
neles divertidamente como versões budistas dos tipos de personalidade de Myers-Briggs. Imagine uma
festa. O tipo demanda (desejo) vai direto para a mesa do buffet. O tipo defesa (aversão) queixa-se da
decoração, da comida, e da música. O tipo distração (ignorância) fica pensando consigo mesmo se ele está
realmente na festa correta. É uma maneira alegre de reconhecer essas condições impessoais que moldam
nossas personalidades.
Falando de modo geral, sentimos a presença dessas condições, mas preferimos não reconhecer o quão
forte é o domínio que têm sobre nós. São as correntes (impulsos) universais agitando nossas mentes como
pequenos navios no mar.
O antidoto para todos os três venenos é consciência plena (Mindfulness). A cura ocorre ao aprendermos
sobre esses estados mentais aflitivos de demanda, defesa, e distração, e compreendermos que eles
impactam todos os momentos de todas as experiências. O sofrimento não é aleatório, nem é uma punição
por nossas deficiências pessoais ou um sinal de fraqueza moral. O sofrimento é a consequência natural
de ignorar a verdade das causas e condições da vida em constante mudança. Nossas naturais inclinações
de desejar, evitar ou nos distrair não vão embora fingindo que não existem. Pelo contrário, elas
necessitam ser vistas e compreendidas. Quando percebemos quanta dor elas causam, ficamos menos
inclinados a seguir seus comandos.
Na tradição Budista, dizemos, “Os obstáculos tornam-se o caminho.” Os passos em falso que damos
quando demandamos, defendemos e nos distraímos, são também portas de entrada para a beleza inata

115
de nosso ser interior. Quando nos permitimos repousar em nossa abertura natural, podemos conhecer
esses venenos claramente e reconhecer seu impacto prejudicial em nossas vidas. Uma vez que as viseiras
são retiradas, não somos mais enganados. Vemos nosso condicionamento, nossa identificação com os
venenos, com consciência clara. Então despertamos para o fato de que nosso sofrimento era abastecido
por um impulso para ignorar a verdade o tempo todo.
Esse é um momento de liberação. A verdade que estava obscurecida, embora sempre presente, agora nos
liberta. É um pouco como a forma como nossa visão pode mudar quase imperceptivelmente ao longo do
tempo, obscurecendo nossas percepções de beleza. Colocamos óculos e de repente vemos sem distorção.
A grandeza do nosso mundo torna-se mais aparente para nós.
Além do reconhecimento dos três venenos, também é útil cultivar fatores de equilíbrio para temperar
suas estranhas forças e transformá-las em algo mais positivo. Por exemplo, podemos nutrir nossa
generosidade e equanimidade básica para equilibrar nossos impulsos de demanda, e descobrir o
contentamento. Quando fazemos isso, descobrimos que desfrutamos bem mais a beleza e o prazer que
já existem em nossas vidas. Além do mais, começamos a pensar em nós mesmos como os cuidadores
temporários, em vez de donos do que nos foi dado, e assim compartilhamos nossos dons abertamente.
Bondade amorosa, gratidão, e ação compassiva pode suavizar nossas demandas e relaxar nossas
tendência de defesa. Explorando uma preocupação pelos outros e um compromisso com cura e conexão,
utilizamos essas capacidades para desafiar a desigualdade, devastação ambiental, e injustiça social.
A sabedoria corta a distração, e clara compreensão substitui a delusão. Quando usamos o insight para
afrouxar o controle de nosso auto-centramento, passamos a apreciar o fato de que todas as nossas ações
tem consequências. Então nos sentimos compelidos a agir para reduzir o sofrimento do mundo e
aumentar a felicidade de todos os seres.
Hoje, depois de derramar água no meu laptop, entrei em pânico. Corri para a loja de computadores onde
os técnicos me disseram que não tinha mais como reparar. Precisava comprar um novo computador e
reinstalar todos os meus arquivos.
Durante a primeira hora, fiquei altamente estressado. Minha reação primária foi de defesa: desejava
afastar a experiência. Sentia-me uma vítima daquela linha azul que sinalizava o quanto iria demorar a
instalação. Eu pensava, Cinco horas? Era muito tempo. Então mais tarde Quatorze horas restantes? O que
está acontecendo aqui?
Aquela pequena linha azul era enlouquecedora. Por um tempo, isso me prendeu em uma realidade
alternativa onde a tecnologia era minha inimiga. Eu culpei o mau funcionamento do computador pela
minha ansiedade e frustração, pois isso desencadeou um crescente medo de não conseguir cumprir os
prazos prometidos.
Então parei, tomei algumas respirações profundas e encontrei um lugar de repouso no meio das coisas.
Percebi que estava contando a mim mesmo uma história baseada em minhas preferências, inutilmente
lutando contra o que estava acontecendo. Com uma simples mudança da “história que a mente contava”,
eu consegui contrabalançar minha reação defensiva instintiva com gratidão. Reconheci como na verdade
era afortunado. Eu tinha me lembrado de fazer um back up em meu antigo computador na noite anterior,
de modo que não havia perdido muita coisa. Não somente isso, mas eu tinha os recursos financeiros para
adquirir um computador novo imediatamente. Nem sempre foi assim, e quem sabe se voltará a ser no
futuro? Lembrei-me de apreciar meus presentes agora, neste momento.

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Tudo estava ok. A gratidão preencheu meu coração. Me senti presente novamente. Tinha redescoberto
minha paz mental.
Domar nossas mentes desordenadamente ativas é um pouco como treinar um cavalo selvagem - não é
fácil, mas não é impossível. Gradualmente, o cavalo domado se acalma e pode ser direcionado para um
serviço útil. Então podemos desfrutar de algum grau de equilíbrio e descanso.
Quando você consegue fazer isso em um relacionamento – seja com alguém que está morrendo, ou seu
chefe, marido, esposa, ou filho –descobrirá que consegue experienciar a vida de uma forma totalmente
diferente. Você consegue ver as causas e condições da situação e interagir habilidosamente com elas para
aliviar seu próprio sofrimento e dos outros. Você pode ser a calmaria na tempestade.
Pode ser necessário – hábil, mesmo – mudar algumas causas e condições de sua vida deliberadamente,
em vez de apenas flutuar como um caminhante desafortunado. Não estou dizendo que você não deva
agir. Você pode precisar largar o emprego com o chefe abusivo, ou pedir ajuda para cuidar de um vício.
Mas quando você está “funcionando” na “superfície” de sua mente, tudo o que consegue fazer é reagir.
Você está à total mercê da tempestade, sendo jogado como um pequeno bote em um mar selvagem.
Quando você viaja para as profundezas calmas, pode agir a partir de um lugar de sabedoria e compaixão.
O filósofo Blaise Pascal escreveu, “Tenho dito muitas vezes que a única causa da infelicidade do homem
é que ele não sabe ficar quieto em seu quarto.” Quanto mais profundo mergulhamos dentro de nós
mesmos, mais expansivos nos tornamos. Permitimos que tudo se apresente, até o que está sepultado no
inconsciente. Não há necessidade de reprimir as partes não desejadas de nossas condições, de nós
mesmos ou dos outros. Percebemos que tudo é um produto de nossas dinâmicas, nossas histórias, e nossa
reatividade – e que tudo é parte da condição humana. Conseguimos permitir que pensamentos,
sentimentos, ideias, venham e vão sem sermos varridos por qualquer um deles.
Quando estou com a família e amigos, ou ao lado de um leito, tento criar um espaço caloroso, aberto, e
não julgador no qual tudo o que precisa acontecer, pode acontecer. Isso é feito melhor se primeiro me
tornar um refúgio para mim mesmo. Eu posso fazer uma pausa e invocar a melhor parte de minha
natureza como um abrigo da minha defensividade, reatividade, ou tendências neuróticas habituais que
me deixam sobrecarregado pelo caos ao meu redor. Nem sempre conseguimos eliminar condições
difíceis, mas podemos usar nossas habilidades adquiridas para transformar obstáculos em oportunidades.
Podemos ser aquela pessoa tranquila no quarto. Ao fazer isso, podemos ser um refúgio para os outros.
Samuel tinha AIDS e era frágil feito um pássaro. Aos 28 anos, ele só pesava 40 quilos. Seus amigos
decidiram lhe oferecer uma festa de aniversário. Eles trouxeram champanhe e trufas e morangos, balões
e música, e muita animação. Estavam se divertindo. Samuel não. Ele parecia estar se encolhendo na cama,
sua figura minúscula quase desaparecendo. Seus amigos tinham boas intenções, mas Samuel parecia estar
se afogando no estímulo.
Então, Ray, um terapeuta massagista voluntário, entrou no quarto. Ray puxou uma cadeira para os pés da
cama, tomou algumas respirações profundas, e assentiu para Samuel com um leve sorriso. O gesto foi
algo como, “Prazer em vê-lo novamente” e uma reverência de respeito, transmitindo a atenção de Ray e
pedindo permissão para tocá-lo.
Nenhum dos amigos de Samuel pareceu observar a presença de Ray. As mãos do terapeuta deslizaram
debaixo das cobertas em direção aos pés de Samuel. Eu não consegui ver seus movimentos; devem ter
sido leves. Não sei se Ray estava pressionando alguns pontos especiais ou fazendo reflexologia, mas não

117
havia mistério para esta massagem nos pés. O que importava era o profundo contato pelo toque em si. A
conexão entre os dois homens era inegável.
Por meia hora Ray “escutou”, tranquilizando, explorando, respondendo a Samuel, nem uma palavra sendo
dita. O burburinho na sala continuou, mas agora Samuel estava flutuando em vez de se afogar. Ray tirou
as mãos devagar, se recostou e fez uma pausa. Samuel soprou-lhe um beijo, fechou os olhos e afundou
no travesseiro, descansando.
As condições permaneceram inalteradas. A festa ainda estava acontecendo. As pessoas continuavam a
comer trufas e beber champanhe. Ray e Samuel nem se falaram. Contudo, através do toque carinhoso,
Ray ajudou Samuel a diminuir o volume de seu estado emocionalmente carregado e a agitação resultante
de seu corpo. Muitas vezes subestimamos o conforto do silêncio e o valor da simples presença humana.
Similarmente, enquanto eu estava me recuperando da cirurgia cardíaca, minha velha amiga Martha
deBarros, co-fundadora do Zen Hospice Project, muitas vezes vinha até minha casa para me apoiar na
prática de meditação. Encerrava nossas sessões com um adorável ritual, que ela ensinou por anos para
pessoas nas prisões. Ela me convidava a colocar a mão direita em meu peito e a esquerda no abdome e
repetir as frases, “Eu estou aqui agora. Estamos aqui agora.”
Aqui e agora é o único lugar de repouso.
Uma noite, após minha cirurgia cardíaca, despertei às duas da madrugada de um sono doloroso e
intermitente e um sonho difícil. Senti-me assustado e resistente ao meu sofrimento. Então ouvi uma voz.
Uma voz de minha alma. Ela estava me dando orientação. Me oferecendo minhas próprias palavras,
“Encontre um local de descanso no meio das coisas,” ela disse.
Eu pensei, Ok, Frank, apenas tente repousar.
Então eu sorri.
A questão é que tentar descansar não é descansar; é apenas tentar mais. O esforço é necessário na vida.
Você não consegue levantar sua sacola e colocar no porta-malas do carro sem esforço. Contudo quando
aplicamos esse mesmo esforço para descansar, ele sai pela culatra. Não conseguimos chegar a um
repouso profundo lutando para mudar a forma como as coisas são. Só conseguimos relaxar a atividade
que obstrui nosso contato com repouso.
Quando olhamos mais atentamente, vemos que o desejo é quase contínuo. É um fogo que está sempre
queimando dentro de nós, e aciona e abastece nossa busca. Ser um buscador – uma identidade que eu
mesmo tenho orgulho de adotar às vezes – é um passo inevitável no caminho espiritual. Essa identidade
pode facilmente se tornar um obstáculo. Energeticamente, a busca parece agitada, inquieta. Ela implica
que eu sou deficiente, estou desconectado de algo essencial em minha vida. Penso que está faltando
alguma coisa, e essa crença perpetua minha busca.
A aparência agitada nunca nos conectará à nossa verdadeira natureza. E tentar nos livrar de nossos
desejos, parar de buscar, também não funciona. É apenas mais busca, mais esforço e mais tentativa.
Esse é o real paradoxo da vida espiritual: aquilo que pode nos salvar também pode nos enlouquecer. Não
me entenda mal. A busca tem um lugar no mundo. Ela não é de todo ruim. Para começar nossas jornadas
espirituais, devemos estar motivados a buscar uma vida melhor – conexões mais profundas conosco
mesmos e com os outros; explicações para nossas questões existenciais; alívio de nossa dor e sofrimento.
Contudo, muitas vezes nossas buscas por paz e satisfação fica emaranhada com o esforço. Lemos livros,
buscamos professores, e procuramos nossas tribos. Acumulamos práticas, crenças, e estratégias à medida
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que buscamos soluções. Buscamos continuamente respostas fora de nós mesmos quando de fato já temos
tudo o que precisamos, aqui, dentro de nós.
Há apenas uma forma de busca que eu acho útil. Eu a chamo de desejo saudável. É o desejo de ser livre,
de saber o que é verdadeiro e ser completamente si mesmo.
Desejo saudável não é agitado. Na verdade, ele remove a inquietação porque paramos de procurar fora
de nós aprovação ou realização. Parece mais amor. Amamos nossa verdadeira natureza, amamos
presença e porque a amamos queremos estar próximo dela, ter intimidade com ela. É uma espécie de
caso de amor com a verdade. É como quando estamos com nossos parceiros, desejamos vê-los sem roupa.
Desejamos eles como são, nus. Assim também na vida espiritual, ansiamos ver a verdade nua, não
obstruída por preferências ou a roupagem de nossas crenças estimadas.
“Eu estou aqui agora. Nós estamos aqui agora.”
Uma das qualidades de uma mente verdadeiramente aberta é sossego profundo. Chegamos a esse
sossego aceitando e compreendendo nossos desejos, não os rejeitando. Entregamos nossas estratégias e
resistência.
Deitado em minha cama naquela manhã, a máquina do desejo agitando e expelindo todos os tipos de
preferências, me senti desencorajado, apanhado em meu esforço para encontrar descanso quando isso
me iludia. Então me lembrei de uma lição aprendida a partir de minhas milhares de visitas a pacientes
morrendo. Sempre faço uma pausa na porta, porque essa pausa quebra o impulso do hábito. Ela nos dá
uma escolha.
Essa escolha, a única escolha que temos realmente, é estar aberto ou fechado. Aberto àquilo que está se
revelando ou seletivo em nossa aceitação daquilo. Na verdade, eu nem gosto da palavra aceitação – ela
tem muitos tons morais. A palavra permitir (allow) é mais adequada ao que estou descrevendo. É uma
palavra mais suave, uma palavra que nos leva além dos conceitos de aceitação e rejeição. Nos libera do
toda ideia de comparação, preferência a favor ou contra, esperança e medo. É um verdadeiro lugar de
descanso.
E assim eu me encontrei descansando no permitir. E nesse momento não havia desconexão, nada faltando
e, portanto, nada mais para procurar. Deitado na minha cama, caí como uma pedra caindo até chegar ao
fundo do oceano escuro e silencioso. Eu me entreguei completamente ao descanso. Corpo em repouso.
Coração em repouso. Mente em repouso. Consciência em repouso.
A busca não termina por encontrar. A busca simplesmente termina. Ela acaba quando nossa consciência
repousa nas profundezas pacíficas de nossa natureza essencial. Então, como o monge que varria,
podemos realizar nossas atividades diárias enquanto ainda funcionamos a partir de um lugar de calma
interior.

119
13.
CUIDADO COM O VÃO
No meu fim está meu começo.
- T. S. Eliot

Quer saber um pouco do que a morte tem a ensinar? Comece a olhar os términos. O fim de uma exalação,
o fim de um dia, o fim de uma refeição, o fim dessa sentença.
Como você recebe os términos na vida? Você fica inconsciente em torno deles? Você parte, seja
emocional ou mentalmente, antes que um evento termine? Ou você é o último no estacionamento,
observando os últimos partirem? Você se sente triste e fica com os olhos marejados sobre os finais? Ou
ansioso? Ou é indiferente, se isolando e se retirando para um casulo protetor? Você para de falar com os
outros antes de o fim chegar? Quando sai do trabalho à noite você se despede dos colegas de trabalho e
clientes? Você espera que os outros reconheçam o fim, ou se antecipa? Você visita amigos que estão
morrendo? Você acha que não importa se você não se despedir?
Durante um retiro focado na impermanência, uma aluna percebeu os términos de cada experiência. Uma
rosa desbotada no caminho a fez se lembrar de como maravilhosa tinha sido aquela flor alguns dias antes.
Quando nos encontramos para uma entrevista, ela se queixou, “Tudo morre!!! Isso é muito triste.”
Eu respondi, “É verdade que todas as coisas mudam. ‘Triste’ é a história que você conta a si mesma.”
A maneira como encerramos uma experiência molda a forma como a próxima surge. Apegar-se ao velho
dificulta o surgimento do novo.
Respirar nos oferece uma oportunidade de estudar nossas relações com términos de forma íntima.
Respirar é um processo vivo, mudando constantemente e se movendo em ciclos – inalação, pausa,
exalação, pausa. Cada respiração tem um começo, meio e fim. Cada respiração passa por um processo de
nascimento, desenvolvimento e morte. Respirar é um microcosmo da vida em si.
Sentimos a jornada da respiração desde a ponta do nariz até a garganta e até o abdome. Lá observamos
o momento sutil de transformação quando a inalação torna-se a exalação. Então observamos a respiração
começando sua longa jornada para cima e para fora do corpo. No fim da expiração há um intervalo, uma
lacuna, uma pausa. Pode ser um momento de medo ou fé: a respiração deixou o corpo, e não sabemos
ao certo se voltará. Você confia que a próxima inalação emergirá por si só? Você consegue repousar sua
mente nesse intervalo?
Após uma cirurgia cardíaca de revascularização de seis horas, as enfermeiras me levaram à unidade
coronariana de cuidados intensivos do hospital. Essa zona de alta tecnologia parecia saindo diretamente
de um filme de ficção científica, repleta de vários monitores eletrônicos e o som incessante de bipes.
Meus batimentos cardíacos eram monitorados por fios presos a almofadas no meu peito. Medicamentos
gotejavam nas veias de um braço, enquanto a morfina fluía para o outro braço. Um cateter ia até minha
bexiga e outro tubo de plástico saindo pelo pescoço drenava fluidos. Um longo tubo de intubação
conectava meus pulmões ao ventilador que respirava por mim. O tempo todo, a equipe silenciosamente
entrava e saía. Minha mente lentamente emergiu da anestesia. Senti como se estivesse dirigindo por uma
estrada enevoada. Detalhes da sala e os rostos de familiares e amigos apareciam em uma névoa
empoeirada, depois desvaneciam ou se misturavam com imagens de sonhos. Eu vivi em um estado liminar
e intermediário por várias horas.

120
Em um momento no final da noite, enquanto meu filho Gabe e minha querido amigo Eugene sentavam-
se ao lado de minha cama, um fisioterapeuta respiratório entrou abruptamente no quarto. Com grande
entusiasmo ele anunciou, “Vamos retirar esse tubo e ver se você pode respirar por si só.” Isso me deu
um sobressalto. Eu não estava certo se poderia respirar. Estremeci e acenei para ele, sentindo que algo
estava errado com meu pulmão esquerdo. Como não podia falar, eu rabisquei, “Estou com medo.”
Eugene é um professor de meditação inteligente e prático. Ele intuitivamente soube o que fazer. Primeiro,
me instruiu a sentir meu corpo. Mas eu não consegui. Só senti parte do meu tronco antes de desistir com
frustração. Aí ele me pediu para encontrar minha respiração, e isso foi ainda pior. Eu meditava há anos,
mas de repente eu não conseguia distinguir entre minha própria respiração e o que a máquina estava
fazendo. Fiz um movimento de pânico, como se estivesse me afogando.
Nesse momento, me veio à mente uma história que ouvi há muito tempo sobre Suzuki Roshi. Esse japonês
gentil foi um dos mais reverenciados professores Zen na América. Foi o fundador do Centro Zen de São
Francisco (San Francisco Zen Center), do qual o Zen Hospice Project nasceu. Suzuki Roshi foi um professor
fundamental em minha vida, embora nunca o tenha encontrado pessoalmente. Ele praticou e ensinou
meditação por décadas com dedicação total. Entretanto, na noite antes de sua morte, seu filho mais
jovem, Otohiro, estava baixando-o na banheira, quando o mestre Zen ficou apavorado. Ele pensou que
podia morrer bem ali no banho. Começou a ofegar por ar e respirar rápido.
Otohiro falou baixinho em seu ouvido, “Pai, se acalme. Respire devagar, respire devagar.” O próprio
Otohiro começou a respirar alto e deliberadamente.
Ouvindo as palavras de seu filho e sentindo o ritmo de sua respiração, Suzuki Roshi conseguiu se aterrar
e ficar calmo mais uma vez.
Se Suzuki Roshi pode ficar com medo, então eu posso, também, eu disse para mim mesmo. Me permiti
sentir o medo em meu coração ferido e maltratado. Tendo passado tanto tempo sentado com minha
respiração, eu também confiei que ao final seria capaz de voltar a ela novamente.
Gabe intuitivamente colocou sua mão em meu coração. Foi como um canal à própria fonte de amor, e
isso me estabilizou imensamente.
Eu puxei Eugene para perto de mim e coloquei meu ouvido próximo à seu rosto. Ele compreendeu, de
alguma forma, que eu queria seguir a respiração dele.
“Apenas respire,” ele disse calmamente. “Deixe que a respiração ‘respire’ você.”
O som de sua respiração e seu ritmo constante e suave tornaram-se minha tábua de salvação. Peguei
emprestado o fôlego de Eugene até encontrar o meu. Gradualmente, fiquei mais tranquilo, mais relaxado.
Depois de algum tempo, fiz sinal para que o terapeuta respiratório fizesse seu trabalho e me desligasse
do ventilador mecânico.
Com amor e respiração, encontrei meu caminho de casa.
Na história da criação Judaico-Cristã, como é dito no livro do Gênesis, aprendemos que no primeiro dia
Deus disse, “Que haja luz.” E assim houve luz. A metáfora continua, conforme nos dias subsequentes,
Deus fala e cria as águas, a terra, as plantas, e criaturas que se movem. No sexto dia, Deus cria um ser
humano à sua própria imagem, com barro e pó da terra. Em tão Deus concede a esse ser o sopro da vida
– não através de palavras, mas respirando nas narinas do novo humano.

121
Uma vez durante um ensinamento no Metta Institute, meu amigo e falecido Rabino Alan Lew sugeriu que
a única maneira de compreender o significado desse elemento da narrativa é que a respiração é a conexão
mais íntima que nós humanos temos com o reino de Deus. Ele explicou que a respiração é o veículo para
alcançar a transcendência. A respiração nos leva a essa experiência que é mais profunda que palavras,
mais profunda que pensamentos, mais profunda que a forma.
A respiração anima a vida humana e a sustenta. A respiração vem antes de pensamento e palavras. É não-
conceitual, sem palavras. Não pode ser descrita; só pode ser experienciada. Podemos respirar sem falar,
mas não podemos falar sem respirar.
Na meditação, usamos a respiração para focar nossa atenção no presente. Respirar só acontece no
momento real. Sempre ocorre no aqui e agora. É isso o que a torna um veículo poderoso para o insight
direto. Na maioria das vezes pensamos no momento presente somente como um trampolim em nosso
caminho para algum objetivo futuro. Mas na verdade, a vida só pode ser vivida no presente, não no
passado ou no futuro. Esse momento presente é o único lugar onde podemos repousar.
Normalmente respirar é um processo involuntário, prosseguindo sem nossa percepção consciente,
seguindo seu próprio ritmo, tratando de sua própria vida. Quando caminhamos, respiramos. Quando
dormimos, respiramos. A respiração está sempre lá, funcionando sem nossa interferência. Isso é
provavelmente uma boa coisa. Imagine se tivéssemos que nos lembrar de respirar? A maioria de nós não
duraria muito.
Curiosamente, porém, quando sentamos para meditar, geralmente começamos tentando moldar a
respiração. A tornamos mais profunda, mais calma, como se houvesse uma “respiração perfeita.” Na
prática Budista, uma respiração longa não é melhor do que uma respiração curta. O importante é observar
que você está respirando.
A respiração nos convida ao corpo. John O’Donohue, o maravilhoso e selvagem poeta Irlandês, escreveu,
“Precisamos voltar para casa para o templo de nossos sentidos. Nossos corpos sabem que eles
pertencem... são nossas mentes que nos tornam sem-teto.” Voltamos para casa conforme sentimos a
textura, o compasso e ritmo da respiração, a duração diferente de cada inalação e exalação. Com tempo
e prática, aprendemos a nos alinhar com a respiração e nos mover com ela, permitir seu próprio fluxo e
profundidade natural. Cada respiração nos leva para onde pertencemos. Ao renunciarmos ao comando
dela, gradualmente sentimos a respiração nos ‘respirando’. Esse é um bom treinamento para liberar o
controle de e entender como cooperar com a vida.
Embora possamos acreditar no contrário, não há nada de chato em estar com respiração. Quando nos
abrimos ao milagre da respiração e sentimos diretamente o processo de oxigenação, apreciamos como,
através de uma colaboração criativa com nosso sangue, o ar alcança cada célula de nossos corpos. Cada
momento é totalmente novo. Cada respiração é única, significativa e essencial à vida. Eu comparo isso a
estar com uma pessoa amada. Respirando conscientemente, nos engajamos em uma exploração, uma
delicada descoberta da vida. Cada respiração é uma maravilha viva. Nossas mentes não podem deixar de
ficar curiosas enquanto nossos corações se enchem de gratidão.
Nossa respiração também serve como uma janela para como operamos no mundo. Com a inspiração,
podemos assimilar o mundo e reivindicá-lo como "eu" ou "meu", construindo uma imagem de um senso
separado de eu. Ou com uma simples expiração, podemos reconhecer nosso lugar em uma rede complexa
de interconexão com toda a vida. Podemos apreciar como tudo o que pensamos, dizemos, ou fazemos
repercute nessa rede, afetando tudo o mais – quer seja isso óbvio para nós ou não.

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A respiração nos convida a repousar, restaurar e ser revitalizado. Nós nos desprendemos do frenesi diário
e equilibramos a tendência instintiva de lutar, fugir ou congelar. O livro do Gênesis nos lembra que Deus
“abençoou e santificou o sétimo dia” e descansou de todo o trabalho. Quando trazemos nossa atenção
inteiramente e completamente para o momento presente – seja na almofada de meditação, durante uma
trilha na natureza, ou deitado absorvido em um grande romance – descobrimos o conforto que surge
quando não estamos nos esforçando, dispersos ou lutando.
Jeffrey, um estudante meu de meditação descreveu como sua mente estava consumida por confusão. Ele
tinha perdido o emprego recentemente, e seu namorado o traiu com seu melhor amigo. Seu mundo uma
vez familiar estava agora um caos. Sua mente estava presa em um tumulto de estratégias constantes, que
não traziam nenhum alívio.
Eu sugeri que ele respirasse.
Alguns dias depois, ele relatou que ao focar sua mente completamente na respiração, pode encontrar
descanso. Disse, “Percebi que quando meu total foco era na respiração, meu mundo externo podia
continuar girando. Eu não precisava detê-lo ou resolver qualquer coisa. As histórias se repetiam de novo
e de novo como um loop em minha mente. Me lembrei do ciclone em O Mágico de Oz - casas, carroças e
plantas girando em círculos. Mas não havia nada que eu pudesse fazer sobre isso. Respirar e sentar no
centro disso tudo me deu uma nova perspectiva no caos. A respiração tornou-se meu lugar de descanso,
um porto seguro.”
A consciência da respiração é uma das maneiras mais diretas e fáceis de estar no momento presente.
Colocar nossa calorosa atenção na respiração conecta corpo e mente: a respiração acalma o corpo, e o
corpo por sua vez acalma a mente.
Com Mindfulness, a mente fica saturada com sensibilidade e uma aceitação equilibrada, abertura e
recebendo o momento presente assim como ele é, sem se agarrar a nada ou rejeitar nada. Pausamos,
relaxamos e permitimos. Nossos pensamentos podem vaguear, sentimentos perturbadores podem se
revelar, mas não estamos tentando controlar, mudar, aprovar ou rejeitá-los.
Quando trazemos nossa atenção para um objeto ou experiência particular e ficamos com isso à medida
que muda, desenvolvemos concentração e uma certa flexibilidade mental. A crescente estabilidade da
atenção plena (Mindfulness) nos predispõe a ir além da superficialidade, a penetrar na experiência e
investigá-la para ter uma compreensão mais profunda. Gradualmente, começamos a ter insights sobre o
porquê desses pensamentos, sentimentos e emoções surgirem, antes de mais nada. Mas Mindfulness não
é apenas olhar para dentro. Essa prática pode guiar nossas ações externas.
A clara compreensão ilumina como nosso relacionamento com nossa experiência pode causar sofrimento
ou cultivar sabedoria. Isso nos permite nutrir uma resposta diferente, mais útil, na próxima vez que
encontrarmos uma situação, pessoa, ou pensamento desafiador. Nos ajuda a permanecer calmos e
aterrados quando no meio de uma discussão com um filho, vizinho, chefe, ou companheiro; ao nos
confrontarmos com doença; ao enfrentarmos perda. Podemos fazer uso de nossa tranquilidade cultivada
e acessar uma orientação interior mais sábia.
Uma de minhas alunas, Liang, era vice-presidente de uma grande empresa de tecnologia e recém mãe.
Ela precisava se acordar várias vezes durante a noite para amamentar seu bebê, mesmo tendo voltado ao
trabalho em um ambiente de alta pressão. Sentia-se exausta e estressada. Toda vez que seu bebê chorava
de madrugada, ela ficava instantaneamente irritada. Enquanto amamentava, se via contando os minutos
até que pudesse voltar a dormir.

123
Então Liang começou a praticar respiração consciente enquanto amamentava, e sua experiência mudou
totalmente. Em vez de desejar que a sessão de amamentação acabasse logo, ela começou a focar
conscientemente sua respiração, observando as sensações que surgiam em seu corpo. Isso permitiu que
ela aprofundasse sua conexão com seu bebê. Liang sentia-se feliz e em paz, grata pela oportunidade de
apenas estar no momento presente com sua preciosa filhinha. De volta ao trabalho, ela relatou, ainda se
sentia fisicamente cansada, mas já não se sentia tão desgastada. Sentia um entusiasmo renovado pela
vida.
Nos dias de hoje você encontra mindfulness fomentado na TV, comercializado em podcasts, vendido
como um app (aplicativo) e como destaque nas capas de revistas populares. No culto da produtividade, a
atenção plena no local de trabalho tornou-se o truque mais recente e mais popular e que promete bons
retornos sobre o investimento. A atual explosão de interesse na aplicação de mindfulness aos negócios,
medicina, educação, neurociência, adição, e questões de justiça social pode nos fazer acreditar em uma
nova descoberta. Mas mindfulness é mais antigo do que a religião, mais antigo do que magia. Algumas
pessoas parecem pensar que a atenção plena é “the new black” *(o "novo preto") - uma solução
adequada para todos os problemas em todas as ocasiões.
(a expressão “the new black” é usada para descrever aquilo que está na moda e que acaba sendo
praticamente uma unanimidade. É também empregada para descrevermos uma nova tendência, que veio
para ficar. Fonte: https://www.teclasap.com.br/the-new-black/
Existem milhares de publicações científicas relatando os impactos positivos de mindfulness na redução
do estresse, manejo da dor, estabilidade dos batimentos cardíacos, ansiedade, expressão genética,
recaída da depressão, cessação de tabagismo, progressão de doença, desordens da personalidade, luto,
e até mesmo ansiedade da morte existencial. O futuro de mindfulness parece brilhante. Entretanto, a
pesquisa sobre mindfulness e neurociência ainda está no estágio de adolescência. Parece prudente
questionar modalidades de tratamentos populares para garantir a segurança e evitar a simplificação
excessiva das expectativas.
É fácil entender equivocadamente os ensinamentos de tradições de fé e até práticas seculares como esta
e aplicá-las de uma maneira que distorce sua intenção original. Ouvimos um expert encorajando uma ação
compassiva e desencorajando emoções negativas, e assimilamos aquilo como significando que nunca
devemos ficar com raiva. Esse objetivo não é só improvável, mas também potencialmente nos impede de
descobrir uma força interna que podemos precisar para sobreviver a eventos difíceis. Muito em breve
começamos a rejeitar partes de nós mesmos em um esforço de criar uma nova “identidade espiritual.” Eu
fiz isso, e quase todo mundo que conheço já fez isso em algum momento.
O fato é, mindfulness não é apenas sobre “fitness” mental, produtividade, ou alcançar um resultado
específico. Ela certamente pode levar à mudanças saudáveis e positivas em nossas vidas. Contudo, a busca
solitária desses fins pode obscurecer nossa apreciação da beleza mais profunda de ser totalmente
humano.
Estamos sempre bagunçando conosco mesmos. Dizemos a nós mesmos o que devemos experienciar e o
que não devemos. Trabalhamos duro para nos definir, esperando estar fazendo da maneira certa. Essa
atividade constante é completamente exaustiva. Desenvolvimento pessoal facilmente torna-se
interminável e trabalhoso. Tentamos - na verdade parece que não conseguimos parar de tentar - ser
melhor, ser alguém especial. Há uma certa agressão em tudo isso chamado auto-aperfeiçoamento. É
melhor voltar à verdadeira intenção da meditação, que é soltar o esforço, abraçar as coisas como são e,
com equanimidade, descobrir liberdade.

124
Uma de minhas alunas, uma médica chamada Kandice, me escreveu depois de participar de um retiro de
uma semana de meditação mindfulness:
Eu costumava ver mindfulness como algo a alcançar. O grau com que conseguia me concentrar na
respiração equivalia ao sucesso. Muitas vezes criticava o tempo que passava em meditação, como
“Bem, essa sessão foi uma merda. Minha mente vagou demais. Fiquei muito inquieta.” Eu também
me pegava rotulando quase tudo que passava pela minha mente durante a meditação como “bom”
ou “ruim”. Acreditava que manter uma ‘tabela de desempenho’ me motivaria a "ser melhor" na
meditação, tornando minhas sessões mais produtivas e eficientes. Ficava pensando comigo mesma
se alguém mais se sentia dessa maneira, mas quando olhava ao redor da sala, todos pareciam tão
bons em meditação. Algumas vezes me questionava porque tinha me inscrito para o curso/retiro.
Eu nunca gostei de praticar (basta perguntar à minha mãe sobre aulas de piano), mas eu queria
resultados, então continuei me segurando.
Então um dia, algumas palavras suas me chamaram à atenção: “Mindfulness resulta em um modo
de ser não-julgador.” Essa sentença foi um catalisador para a mudança em meu mundo. O total
alívio que senti de não precisar gastar tanta energia julgando tudo (inclusive a mim mesma) foi
libertador, vasto e expansivo. Meu corpo inteiro se acalmou. Meus ombros caíram, meu pescoço
parou de doer, e eu parei de estalar meu cotovelo o tempo todo. Comecei a desenvolver a
verdadeira meditação mindfulness, entendendo que ela começava e terminava com uma simples
escolha de prestar atenção ao que é. Ponto. Sem ‘tabela de desempenho’. Sem nota. Sem rótulos.
Sem pressão.
Agora, quando pratico a consciência plena (Mindfulness), me sinto aberta às coisas sem atribuir a
elas um valor: dor, alegria, tristeza, ansiedade. Passado, presente e futuro tudo torna-se o mesmo.
Tudo pode estar lá, e tudo bem. Há espaço para tudo existir. Estou aqui para observar e aprender,
não fugir de minhas emoções mais desafiadoras ou almejar um estado sobre o outro. Na verdade,
quando eu fujo, almejo, ou agrego valor, sofro muito porque desejo que as coisas sejam diferentes
do que são. Que nojo!
A prática de Mindfulness como agora entendo, continua a ser muito difícil às vezes. Porém, cada
vez mais, quando estou sentada em silêncio, sei que estou lá. Literalmente, sei que estou lá. Sinto
meu corpo. Isso é muito importante: eu realmente sinto meus pés no chão, o ar movendo-se através
de minhas narinas, os pequenos acontecimentos internos, como meu pulso, meu estômago
roncando, minhas costas doloridas.
Lentamente ao longo da semana, senti a dor surgindo - dor por todos os anos que passei vivendo
na minha cabeça, julgando, criticando e analisando. Ainda há momentos quando estou meditando
em que choro por causa disso, mas posso respirar através disso e depois o aperto desaparece.
Mindfulness é, e sempre será, sobre voltar para minha respiração. Parece um lugar muito seguro
para pousar, um lar, um abraço amoroso. Não me sinto mais compelido a me pontuar no
desempenho. Aprendi que mindfulness não é alcançar um estado perfeito ou ser o melhor em
alguma coisa. É sobre eu ser autêntica, imperfeita, vulnerável e, bem, humana.
Mindfulness não é uma cura para tudo. Mesmo quando praticamos regularmente, podemos ser
perspicazes sobre certos aspectos e cegos para outros. Eu conheço meditantes experientes altamente
afinados com seus corpos, mas sem contato com suas vidas emocionais. Conheço outros que
compreendem a mente, mas ignoram completamente seus corpos. Posso imaginar praticantes de longo
tempo capazes de sentar em silêncio por dias, mas possuírem habilidades interpessoais limitadas. Outros

125
têm um amor universal por todos os seres, mas são incapazes de amar a si mesmos ou aos outros de uma
maneira pessoal.
Meu amigo, John Welwood, o psicólogo que primeiro cunhou o termo by-pass espiritual, disse uma vez,
“Geralmente usamos o objetivo do despertar ou liberação para racionalizar transcendência prematura:
tentar se elevar acima do lado cru e confuso de nossa humanidade antes de o encarar inteiramente e
fazer as pazes com ele.”
Inicialmente, admito, eu também usei a meditação para escapar do emaranhado da dor relacional em
meu passado. A meditação se mostrou uma forma efetiva para mim de contornar, desviar (bypassar),
minha história difícil como o álcool foi para os meus pais e o uso de drogas foi para o meu irmão Alan.
Minhas sessões de meditação tinham muito esforço. Eu desenvolvi enorme poder de concentração que
deu origem durante retiros intensivos a estados de incrível êxtase e paz. Eu sentia orgulho de minhas
realizações. Mas quando os retiros acabavam, rapidamente percebia que não me sentia mais feliz que
antes. Ficava desapontado ao descobrir que as feridas não curadas, os traumas não explorados e os
conflitos de minha vida ainda estavam lá esperando por mim quando chegava em casa.
Foco, mesmo foco intenso, não produz insight por si só. Nos ensinamentos Budistas nós usamos a
concentração para acalmar a mente e corpo para que possamos aproveitá-los para desenvolver
sabedoria. Mas o apego à tranquilidade pode nos fazer ignorar, sepultar, ou negar importantes áreas de
nossas experiências de vida.
O idealismo é um dos perigos do caminho espiritual. Ele pode ser a morte de qualquer prática. Quando
criamos um ideal espiritual, nos seguramos firmes a alguma ideia de onde pensamos que deveríamos
estar, mas então usamos essa ideia para não estar onde estamos. Por exemplo, prometemos a nós
mesmos que iremos meditar toda manhã por uma hora. Mas então, após uma semana, deixamos de fazer
alguns dias, e desistimos de meditar completamente.
Esta é uma maneira capciosa da personalidade sequestrar nossas práticas espirituais para seus próprios
fins. Se eu tenho tendência ao narcisismo, posso ostentar minha prática de meditação para me sentir
importante e especial. Se tenho a tendência de me retirar de dificuldades internas, posso ser atraído para
ensinamentos de não-apego e renúncia. Se sentimentos fortes me amedrontam, posso aderir à crença de
que uma pessoa ‘espiritual’ não deve ficar visivelmente chateada, e posso falar sobre “ir além de nossas
emoções”. Ao nos distrair de nossas experiências diretas e imediatas, esses mecanismos de defesa nos
desconectam de nossos recursos internos.
Durante os retiros eu aprecio os encontros individuais com alunos nos quais eles compartilham suas
experiências com a meditação. É um pouco como ver minha própria mente louca entrando pela porta,
apenas em traje diferente. A personalidade de Margie julga sua prática de meditação muito duramente,
insistindo que ela é a pior meditante que já nasceu. Barry tem uma clara sensação de superioridade e
tenta fazer tudo um pouco mais conscientemente do que todas as outras pessoas no retiro. Jason
preenche seu diário com ideias brilhantes, anedotas, preciosos insights em vez de praticar meditação
andando. Jeanette fica perdida em procrastinação, no pensamento tudo-ou-nada. Charlotte admite
escapar do retiro para tomar sorvete, sua personalidade insistindo que ela merece uma pausa. Jeremiah
se queixa de que a meditação não está ajudando a resolver suas dificuldades de relacionamento com a
esposa.
Todos eles sou eu.

126
Mesmo quando você ensina essas coisas, os hábitos da mente continuam. Eu estava sentado em um retiro
de meditação com um bom amigo que também é professor de meditação. À vezes somos um pouco
competitivos. Em uma entrevista com nosso professor, meu amigo disse, “Frank me supera na meditação
andando, mas sou muito melhor em comer de forma consciente.” É incrível como a mente reage à simples
instrução de sentar em silêncio. A personalidade acredita que precisamos fazer algo acontecer. Existem
problemas a serem resolvidos.
Nos círculos Budistas geralmente dizemos, “A meditação não resolve seus problemas; os dissolve.” Nossas
mentes são selvagens. Não conseguimos domá-las tentando parar nossos pensamentos, reprimindo
nossas emoções, ou até resolvendo nossos problemas. Temos muito menos controle sobre a vida do que
imaginávamos. Parafraseando a instrução de meditação muito gentil de Suzuki Roshi a qual recitava
muitas vezes no Zen Center, “Oferecer à sua vaca um grande e espaçoso pasto é a melhor maneira de
domá-la.”
Sua mente não se tornou selvagem quando você começou a meditar. A atenção plena simplesmente lhe
deixou consciente daquilo que estava acontecendo em segundo plano durante todo o tempo – aquilo ao
qual sua personalidade está reagindo e tentando gerenciar.
Eis uma sugestão contraditória: permita tudo. Os pensamentos, as emoções fortes, e os padrões
energéticos associados – não se incomode com eles. Deixe que todos eles parem por si só. Sua ‘vaca’
ficará muito mais feliz.
O objetivo da meditação não é mudar a nós mesmos, jogar fora o velho e trazer o novo. É sobre fazer
amizade conosco mesmos, encontrar toda e cada parte de nossas vidas com curiosidade e compaixão.
Isso não significa simplesmente que devemos tolerar o difícil que chega na meditação. Significa que
devemos explorá-lo para ficar profundamente familiarizado com nosso mundo interior.
Darlene Cohen, uma professora de meditação que viveu por muitos anos com artrite reumatoide e câncer,
disse:
As pessoas algumas vezes me perguntam de onde vem minha própria energia de cura. Como, em
meio a esta dor, a esta lenta e implacável paralisação, posso encorajar a mim e aos outros? Minha
resposta é que minha cura vem de minha amargura em si, meu desespero, meu terror. Vem da
sombra. Eu mergulho nessa imundície repetidamente e então sou inundada com essa energia de
cura. Apesar da renovação e vitalidade que ela me dá para enfrentar meus medos mais profundos,
eu não vou de bom grado quando eles me chamam.
Já rodei essa roda um milhão de vezes: primeiro sinto o desespero, mas o nego por alguns dias;
depois seus puxões se tornam mais insistente na proporção da minha resistência; finalmente, ele
me domina e me puxa para baixo, chutando e gritando todo o caminho. É claro que estou presa,
então finalmente desisto, me rendo ao aspecto sombrio de minha acomodação com a dor e perda.
Tonar-se liberto nessa experiência humana significa incluir os aspectos pessoais, psicológicos e
emocionais da vida, e também ir além da personalidade em direção a um despertar mais pleno.
Precisamos estar dispostos a receber nosso sofrimento, descobrir as sombras escondidas, reconhecer
nossos padrões neuróticos, curar feridas da infância, e abraçar o que temos rejeitado. Eu sinto
necessidade de equilibrar prática espiritual com uma boa psicoterapia, trabalho somático,
aconselhamento do luto, e outros métodos de investigação. Essas relações terapêuticas tem sido
inestimáveis em ajudar a me integrar com aquilo que primeiro descobri no silêncio.

127
Hoje em dia, falo da minha prática de mindfulness como uma "prática de intimidade". Não conseguimos
conhecer a nós mesmos, o outro, a morte, à distância. Este trabalho é próximo e pessoal. Meditação é
sobre aprender a ficar íntimo conosco mesmos, com os outros, e com todos os aspectos dessa vida
mundana, trazendo o poder curador da consciência amorosa para que possamos enfrentar o que é
assustador e cru.
Quando olhamos o condicionamento da mente e nossos comportamentos habituais, entendemos as
maneiras pelas quais causamos sofrimento desnecessário a nós mesmos. É aí onde a real liberdade da
prática se encontra. Não ajuda escaparmos da vida ou transcendermos nossa dor. Em vez disso, nos
tornamos íntimos com tudo, e sabemos que não estamos separados de nada disso.
O professor Budista Americano, Jack Kornfield popularizou a expressão “depois do êxtase, a roupa suja”
em um livro com o mesmo nome, o best-seller (After the Ecstasy, the Laundry, editado no Brasil como
Depois do Êxtase, Lave a Roupa Suja). O que isso significa é que até mesmo depois uma experiência
profunda de transcendência, ainda precisamos lidar com os detalhes práticos da vida, as atividades
cotidianas como cozinhar, limpar, cuidar das crianças e dos mais velhos.
Muitas vezes me perguntava por que não usamos lavar a roupa suja como um método para descobrir o
êxtase em primeiro lugar. Essa ideia é muito rebuscada?
Uma aluna de meditação tinha vários filhos pequenos. Ela descobriu que, como mãe solo, simplesmente
não conseguia fazer a prática de meditação formal sentada em uma almofada. Era interrompida muitas
vezes. Isso lhe causava uma sensação de desespero.
Quando seu professor veio visitá-la, a mãe perguntou: "O que devo fazer?"
“Você passa a maior parte do seu tempo fazendo o quê ?”
“Lavando roupas e pratos,” ela respondeu.
Então ele ficou ao lado dela enquanto ela lavava as roupas e os pratos, e lhe ensinou a ficar com atenção
plena o tempo todo. Isso tornou-se a prática dela, pelo menos até as crianças crescerem e ela conseguir
retornar às sessões mais formais de meditação sentada.
Tudo o que fazemos pode ser usado no cultivo de atenção plena: dirigir para o trabalho, comer, criar
nossos filhos, estar com nossos amados. Podemos colocar tudo isso no que chamamos de "nossa prática
espiritual" e integrá-la perfeitamente em todos os aspectos de nossas vidas. Despertar para um novo dia
é um momento santo - portas se oferecem como limiares para novas possibilidades, as árvores são
totalmente elas mesmas. Todas as coisas são uma fonte potencial e apoio e despertar. Quando tentamos
separar o sagrado do ordinário, criamos uma falsa dicotomia.
Por muitos anos, apreciei o ensinamento do guru Indiano do não-dualismo Sri Nisargadatta, que
notoriamente disse, “A mente cria o abismo, o coração o atravessa.” Essa afirmação é geralmente
entendida como realçando a divisão entre a mente pensante e o coração emocional, e como o amor é a
ponte entre os dois.
Ao longo dos anos, cheguei a uma compreensão mais profunda das palavras de Nisargadatta. Na tradição
Budista, mente-coração é uma coisa só. O abismo é formado quando dividimos em dois – mente e
coração. Quando separamos o ordinário do sagrado, eles aparecem como dois lados separados por um
vão/hiato. Nisargadatta está nos relembrando sobre o espaço de consciência vasto, ilimitado, que está
além de pensamento e emoção. Esse espaço não separa. Quando a mente e coração estão despertos,
você vê tudo em seu detalhe único, singular, até seus problemas, e tudo repousa no amor e sabedoria.
128
Sim, há um espaço entre cada respiração, cada pensamento, mas ele na verdade os conecta. É um pouco
como a conhecida imagem de uma velha que, ao olharmos atentamente, também podemos ver uma
jovem. Coração e mente, ordinário e sagrado – na verdade todos são um todo unificado.
Quando a mente está atenta, focada, observamos o espaço. Aqui é onde descobrimos um lugar de
descanso. É creditado a Claude Debussy a afirmação, “A música é o espaço entre as notas”. O espaço
branco nessa página permite que seus olhos repousem nas palavras. Na arte, o espaço negativo é tão
importante quanto a imagem em si, ajudando a trazer equilíbrio à composição. Não importa o quanto de
atividades, não importa o quanto de formas existem em nossas vidas, há pausas e espaços em todo lugar,
nos convidando a descansar.
Hoje em dia, eu me permito deslizar para esses “vãos”. Não são o inimigo. As transições, os lugares
intermediários da vida, são onde eu encontro paz e tranquilidade, a pura consciência, o ponto de
quietude, a perspectiva que reconhece a sacralidade em todas as coisas.
Preste atenção ao ‘vão’. O sagrado pode ser encontrado no ordinário. O repouso pode ser encontrado no
meio das coisas.

14.
PRESENÇA CORAJOSA
Percebo que se eu esperar até não ter mais medo de agir,
escrever, falar, ser, estarei enviando mensagens em um tabuleiro Ouija*,
reclamações enigmáticas do outro lado.
- Audre Lorde

(*tabuleiro ouija ou tábua ouija é qualquer superfície plana com letras, números ou outros símbolos em que se coloca um
indicador móvel. Foi criado para ser usado como método de necromancia ou comunicação com espíritos. Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Tabuleiro_ouija

Para Charles, presença corajosa é acompanhar seu pai ao Hospital para discutir seu câncer inoperável.
Para Steve é conduzir uma cerimônia no funeral da filha de seu melhor amigo. Para Tracy, é ser dilacerada
por ambos, pesar e amor, ao sentar ao lado de sua mãe moribunda enquanto segura o filho recém-
nascido. Para Jackson, é ir até o presídio de segurança máxima e sentar frente à frente com o homem
que assassinou sua mãe. Para Terry, é permitir que seu corpo se sacuda por três dias enquanto as
contrações de antigos traumas sexuais são liberados durante um retiro de meditação. Para Joanna, é
abraçar uma nova amante lésbica de dezessete anos, quando imaginava que nunca mais teria outro
relacionamento.
Quando o medo fala, a coragem é a resposta do coração.
Conheço Janet há 20 anos. Ela é uma aluna, amiga e um lembrete vivo da bondade básica nos seres
humanos. Há alguns anos, estava desfrutando de um churrasco no quintal com seu marido, o amigo Albert
e as famílias deles. Ao olhar ao redor não conseguiu ver seu filho Jack de três anos e meio e Daniel, o filho
de Albert, no jardim. Preocupada, ele disse que ia ver os garotos. Mas seu marido e Albert a chamaram
de volta, dizendo, “Você está sempre pulando de um canto a outro. Sente conosco. Relaxe.” Lhe
asseguraram que as crianças estavam bem, provavelmente brincando dentro da casa.

129
Momentos mais tarde, todos ouviram um estrondo e um grito. Daniel veio correndo até os adultos. Janete
passou correndo por ele em direção à frente da casa onde encontrou Jack estendido no chão quase sem
vida no meio da pacífica rua. O carro que atropelou a criança fugiu.
Janet pegou Jack e todos se empilharam na caminhonete, indo para a sala de emergência o mais rápido
possível. Albert era médico, e trabalhou heroicamente durante todo o percurso para restaurar a
respiração de Jack. Janet se sentia esmagada por culpa e vergonha, ainda que sua preocupação primária
fosse pela perna obviamente quebrada de Jack. Como ela pode permitir que isso acontecesse?
Acontece que Jack sofreu lesões bem piores do que uma perna quebrada. Os médicos no hospital fizeram
o máximo para salvar o garoto, mas explicaram que o dano cerebral era muito severo. O garoto não
sobreviveria. Janet e o marido eventualmente tomaram a decisão de desligar o pequeno Jack do suporte
à vida. Ele morreu quase imediatamente.
Todos estavam em choque, congelados no tempo e incrédulos. Janet segurou seu filho nos braços, o
embalou como tinha feito tantas noites ao colocá-lo para dormir com uma doce canção de ninar. Não
haveria despertar desse sonho.
Cheios de medo e puro horror, os pais voltaram para casa pouco antes do amanhecer. A estrada rural
contornava o rio próximo. Janet observou a lua cheia nascente refletida na água. Esse contato com algo
fora de si mesma a ajudou a sentir uma parte clara e profunda do seu ser, uma consciência calma, que
por um momento poderia atravessar a culpa, dor e descrença. Uma orientação interior falou para ela, “Se
vou honrar a vida de Jack, não posso deixar que esse acidente me destrua.”
No dia seguinte, quando a polícia ligou para confirmar o atropelamento e fuga, todo o seu corpo se encheu
de novo de calor e raiva. Então, às 11 horas, outra mudança ocorreu. Bateram na porta. Um homem mais
velho, um estranho, apareceu do outro lado. Instintivamente Janet soube que era o motorista do carro.
A angústia em sua face temporariamente lavou sua raiva, e ela convidou o homem a entrar.
O poeta Henry Wadsworth Longfellow uma vez escreveu, “Se pudéssemos ler a história secreta de nossos
inimigos, encontraríamos na vida de cada homem tristeza e sofrimento bastante para desarmar toda
hostilidade.”
O motorista se desculpou, admitiu sua responsabilidade, e explicou que não sabia que tinha atropelado
alguém. Mais uma vez Janet ouviu sua orientação interior com uma força remanescente daquele percurso
ao longo do rio. Ela olhou compassivamente para o homem, e sem falsa simpatia, falou honestamente,
“A morte de Jack é uma responsabilidade que nós quatro adultos compartilhamos,” ela disse.
Janet e o homem que acidentalmente tinha matado seu filho conversaram mais um pouco. Janet chorou
ao contar com ela, seu marido, e seu amigo não ficaram de olho o suficiente no menino. O motorista
explicou que sua filha estava se casando e que ele estava correndo para o ensaio da cerimônia. Na mente
de Janet foi um momento de distração da parte de todos eles o que levou a esse resultado desastroso.
Um breve momento de desatenção, nada mais.
Nós tendemos a gostar de causas simples: elas arrumam as incertezas da vida. Desejamos que tais
acidentes estejam sob o controle humano. Queremos que alguém seja responsabilizado. Queremos que
o ultrajante e o impossível sejam compreendidos, de modo a aliviar nossa sensação de desamparo. Mas
a vida nem sempre se apresenta de maneiras que são corretas ou sensatas. A verdade é que raramente
estamos no controle de tais catástrofes, das viradas do destino, e mais especialmente, de nossas mortes.

130
Em sua humildade Janet compreendeu que só podia ser salva desse horror inexplicável aceitando-o. Ela
disse para si mesma, Preciso assumir minha parte de responsabilidade para não viver uma vida cheia de
vergonha e culpa. Ela encontrou um caminho do meio, um chão sem uma desnecessária internalização
(“Tudo é culpa minha!”) ou externalização (É tudo culpa dele!”).
Há ainda muito trabalho a ser feito – trabalho com o luto, dor a ser sentida, raiva do motorista, raiva de
si mesma, e até de Jack por morrer. Tudo tinha que ser reconhecido, e foi preciso coragem para encarar
isso diretamente. Mas Janet reconheceu a importância de receber seu sofrimento se ela quisesse ter uma
vida boa novamente. Sua pequena comunidade rural de Mórmons, Mennonites (grupo cristão), e hippies
a ajudaram a curar. Um buquê de flores apareceu em sua porta um dia, e em outro uma cesta de ovos
frescos.
Janet me disse depois que estar com sua dor a abriu para um novo nível de amor. Por um tempo, ela viveu
com medo da absoluta precariedade da vida, advertindo outras jovens mães de perigos para seus filhos
que elas podiam não reconhecer. A tempo e com atenção, entretanto, seu coração se abriu. Seu
relacionamento com a precariedade da vida se transformou, dando origem à gratidão e uma sensação de
estar plenamente viva. Agora ela não se afastaria de nenhuma parte da vida.
Seu casamento não sobreviveu ao trauma da morte de Jack, mas Janet sim. Ela passou a ser uma das mais
incríveis profissionais no Zen hospice que eu conheci. Ela tem ensinado a centenas de voluntários e
cuidadores familiares como viver com dor e acompanhar a morte. É a pessoa que a comunidade chama
para ficar ao lado dos pais quando há morte súbita ou traumática de crianças. Jack tornou tudo aquilo
possível. Que garotinho poderoso por ter feito tal diferença em tantas vidas.
Os textos Budistas antigos se referem a “os grandes e corajosos bodhisattvas.” São seres que, como Janet,
tem a força moral de estar com o sofrimento que poderia nos subjugar. Não se trata de que estas pessoas
não tenham medo. Pelo contrário, essas pessoas são capazes de manter uma presença corajosa enquanto
estão com medo. Se abrem ao medo e estão dispostas a segurá-lo, aprender com ele, e serem
transformadas por ele. Nesse caminho, o medo serve como catalisador, uma porta de entrada à
compaixão, e um caminho para a transformação para todos os seres que estão com medo.
As ações de Janet diante de pesar e dor inimagináveis nos mostra que presença corajosa não é apenas
para raros bodhisattvas, soldados heróis, e Madres Teresas de nosso mundo. Pessoas ordinárias colocam
em prática a presença corajosa de maneiras pequenas e maravilhosas todos os dias.
Eu conheço um corajoso homem chamado Julio. Ele é um auxiliar de enfermagem em um importante
hospital metropolitano, cuja função é limpar a sala de emergência. Após o pandemônio de um “código de
alarme” disparado, quando a equipe médica tenta sem sucesso manobras de ressuscitação de um
paciente, a adrenalina deixa de ser bombeada, e a equipe vai embora, é aí então que Julio entra na sala.
Lá, ele encontra o paciente deitado imóvel na maca, vestido apenas com uma bata de hospital. Um tubo
de intubação se projetando desajeitadamente da boca. O chão está salpicado de poças de sangue e as
compressas de gaze jogadas de lado durante o procedimento. As gavetas vermelhas do carrinho de
procedimentos de emergência pendem abertas como a caixa de ferramentas negligenciada de um
mecânico em uma oficina. A sala ainda zumbe com atividade residual. As paredes parecem conter as vozes
persistentes da equipe da sala de emergência gritando instruções e informes minutos antes.
Julio entra silenciosamente. Passa um momento assimilando o caos, deixando que seus olhos passeiem
pela sala, verificando o que precisa ser feito. Então seu olhar repousa graciosamente no paciente recém-
falecido, cujo nome ele não sabe. Ele se aproxima, inclina-se respeitosamente, como se estivesse se

131
curvando para a nobreza da pessoa, e sussurra baixinho no ouvido: "Você morreu. Está tudo bem agora.
Farei o meu melhor para limpar toda a sujeira e confusão.”
Depois de arrumar a sala, fechar as gavetas do carrinho, recolher as compressas sujas de sangue e limpar
o chão, ele lava as mãos. Então começa a dar banho no paciente. Uma supervisora de enfermagem recém-
contratada enfia a cabeça na porta e diz, “Precisamos da sala o mais breve possível.” Júlia não presta
atenção a ela. Outras pessoas da equipe do hospital conhecem e respeitam seu trabalho – eles
protegeram esse momento sagrado. Ele leva o tempo que precisa para honrar os mortos.
A disposição de sentar com o medo é um ato de coragem.
O medo é tanto um construto psicológico como uma função biológica inegável do estímulo/resposta
envolvendo a liberação de adrenalina e cortisol na corrente sanguínea, aumentando a frequência
cardíaca, contraindo certos músculos, dilatando as pupilas. Medo é uma reação humana normal, às vezes
uma resposta de sobrevivência necessária diante de uma ameaça percebida, que gera um padrão
específico de comportamento.
Falamos de medo racional e medo irracional. Mas todo medo é subjetivo. O que me deixa apenas nervoso,
como a possibilidade de um grande terremoto atingindo a California, pode gerar pânico total em outra
pessoa. O que faz você se encolher de terror- uma aranha, por exemplo, pode não me causar qualquer
apreensão. O medo pode surgir de uma percepção acurada de uma situação, ou de uma visão
completamente distorcida.
O medo dos tigres dentes-de-sabre é real - ou pelo menos era quando esses tigres vagavam pela terra.
Agora esse medo é uma velha história que vive em nossa imaginação. Contudo, podemos nos assustar
com o pensamento de que estamos sendo caçados ou que devemos nos esconder depois de escurecer
para ficarmos seguros. Podemos até ficar ansiosos com a possibilidade de retorno dos tigres dentes-de-
sabre no futuro.
O medo não requer uma base na realidade para ter um impacto sobre nós. Não importa qual seja a sua
causa, o medo ainda parece real. Dito isso, é melhor não tratar o medo como a verdade absoluta.
Viver a partir de um lugar de medo pode estreitar nossa visão, encolhendo nossas vidas para o que é
confortável e familiar. Facilmente somos consumidos por precauções de segurança e o pavor da incerteza,
constantemente olhando por cima de nossos ombros. É razoável desejar nos protegermos e proteger
aqueles que amamos. Mas quando somos conduzidos apenas pelo medo, deixamos de usar nosso senso
comum e tomamos decisões imprudentes. Crescemos menos dispostos a assumir riscos e enfrentar
conflitos ou desaprovação e podemos até deslizar para a obediência para obter a segurança prometida
pelas autoridades.
Para alguns, o medo se manifesta em tendências contrafóbicas. Nos envolvemos em atividades perigosas,
de alto risco, continuamente testando nossos próprios limites ou a lealdade dos outros. Nos tornamos
agressivos, até mesmo intimadores (praticantes de bullying), para mascarar nosso medo ou negar seu
impacto em nossas vidas. Quando colocamos toda nossa ênfase na superação do medo, não há descanso.
Seja qual for a forma, obediência ou rebelião, ao final o medo não abordado é um exílio auto-imposto,
uma prisão criada por nós mesmos.
Sempre haverá coisas que nos amedrontam. É tolice imaginar o contrário. Eu tenho bastante medo. Meu
medo aparece como dúvida de mim mesmo, procrastinação, dificuldade em confiar e buscar segurança
vinda dos outros. O objetivo não é um dia se livrar de todo medo. Pelo contrário, é nos libertar do
132
estrangulamento do medo em torno de nossas vidas, aprender a encarar nosso medo com presença
corajosa.
Quando Gabe tinha cinco anos, ele desenvolveu um típico medo na infância de monstros escondidos no
armário, Uma noite, em que ele não conseguia dormir, eu mergulhei na cama com ele e ficamos sob os
cobertores com as cabeças cobertas para nos ‘escondermos’ dos monstros.
“Você acha que eles estão lá fora agora?” perguntei com a maior sinceridade.
“Sim, papai. Eles estão no armário,” Gabe respondeu com os olhos arregalados.
“Você acha? Quer ir ver?”
“Não!” ele disse, puxando os cobertores mais ainda.
Deixei que uma atmosfera lúdica e confortável pervadisse o ambiente enquanto ficamos ali debaixo das
cobertas rindo por algum tempo. Então sugeri: "Tem certeza de que não quer ir ver? Poderíamos trazer
os travesseiros conosco para proteção.”
“Ok,” ele disse.
Então agarramos os travesseiros, deitamos no chão e engatinhamos bem devagar em direção ao armário.
Eu abri a porta só um pouco, e então a fechei rapidamente. Fiz isso repetidamente, fazendo um grande
show de espiar dentro para procurar monstros, então rastejando de volta para a segurança. Isso fez Gabe
rir.
Depois de um tempo, abri a porta e joguei todos os travesseiros no armário. Alguns itens caíram no chão
- um par de tênis, uma bola de futebol, uma caixa vazia - mas nenhum monstro. Gabe começou a rir
histericamente. Quanto mais ele ria, mais relaxada a atmosfera, e mais curioso ele ficava, até que subiu
no armário para explorar o que estava dentro. Lentamente mas seguramente, seu medo foi embora.
Gabe não ficou mais com medo de monstros depois desse episódio. Ele não precisava ter medo deles
porque tinha ido e olhado por ele mesmo. Ele encarou seu medo diretamente. Se eu apenas tivesse lhe
dito, “Não, não seja bobo. Não existe nenhum monstro em seu armário. Agora vá dormir,” e desligado a
luz, então ele teria que aceitar minhas palavras. Da forma como aconteceu, ele percebeu que os monstros
não existiam. Eram apenas histórias dentro de sua cabeça.
Acontece que não é tão diferente para nós adultos. Os monstros que enfrentamos podem parecer maiores
e mais feios e mais desafiadores do que aqueles que vivam em nossos armários na infância, mas assim
como os medos de Gabe, os nossos medos se reduzem às histórias que contamos a nós mesmos.
Tomar o medo como nosso professor e aprender a trabalhar habilmente com ele pode nos levar a algum
grau de sabedoria interior. Vemos rapidamente que operar a partir de um lugar de medo significa que
temos pouca confiança na realidade. Estamos separados dos outros, da possibilidade de unidade. Essa é
a nossa posição padrão.
Nos círculos Budistas, o pequeno e limitado senso de eu é às vezes chamado “o corpo de medo.” Assume
forma física como uma concha de tensão em torno de nós, um enrijecimento de nossos corpos, um
espessamento de nossas defesas contra o medo. Então a mente torna-se rígida e confusa. O coração se
fecha.
Precisa ocorrer uma separação, mas não uma que podemos ter imaginado. Ao lidar com o medo, é útil
distinguir nossos estados emocionais do objeto do qual estamos com medo. Quando estamos obcecados
133
pelos objetos que tememos – insetos, roubo de identidade, rejeição, terrorismo, falar em público –
evitamos o contato com a emoção em si. Como os monstros no armário, a coisa que tememos pode nem
existir, mas toda a nossa atenção para ela transforma a ilusão em realidade.
Quando discernimos a diferença entre a emoção e o objeto, podemos ver a parte que desempenhamos
no processo. Então podemos começar a nos desprender da opressão. Relaxamos e temporariamente
sustentamos o medo no container do corpo, apoiado pela respiração estável, para que possamos
examinar as operações da mente - as crenças, suposições, memórias e histórias que sustentam o medo.
Dessa forma, podemos começar a reduzir nossa reatividade.
Quando eu era menino, era chamado com bastante frequência à sala do diretor. Em minha escola isso
significava uma coisa: você estava em sério problema. Em meu caso, entretanto, eu sabia que não estava
sendo convocado por causa de mal comportamento. Minha mãe regularmente ligava para a escola
solicitando que eu voltasse para casa.
Normalmente ela desejava minha ajuda porque estava com problemas respiratórios devido ao seu
enfisema. Eu chegava e a encontrava na varanda dos fundos com falta de ar. Pegava seu inalador, fazia
com que ela fizesse respirações curtas e aceleradas para aumentar o fluxo de ar e a tranquilizasse
enquanto colocava o nebulizador. Quando sua respiração estava especialmente difícil, eu a ajudava a usar
o tubo de oxigênio portátil. Eu ficava surpreendentemente sem medo de sua condição de saúde precária
ou de ajudá-la com esses procedimentos médicos.
Em outros momentos, quando meus pais tinham bebido muito, minha casa se tornava um lugar de medo.
Minha mãe falava em suicídio, e meu pai ficava violento. Eu nunca sabia que tipo de situação encontraria
quando atravessasse o portão da frente. Lembro-me nitidamente da sensação da maçaneta de latão frio
quando a girava lentamente, o rangido das dobradiças, o esforço necessário para abrir a porta e a coragem
necessária para passar para o outro lado. Eu me movia com apreensão pelos muitos quartos da casa.
Podia encontrar o fogão ligado. Podia encontrar minha mãe desmaiada no porão. Minha mente era
supervigilante, meu corpo tenso enquanto atravessava as múltiplas portas.
Muitos anos depois, quando comecei a meditar, um professor me deu instruções de como estar
consciente em todas as atividades. A ideia era reduzir nossos comportamentos automáticos e aumentar
nossa capacidade de estar presente. Um exercício enfatizava a atenção cuidadosa para a maneira como
abrimos e fechamos a porta quando entramos em um espaço novo. Eu fiquei adepto deste exercício em
particular. Ficava com a consciência aguçada ao me aproximar, sentindo a temperatura da maçaneta da
porta, sentindo o peso da porta, abrindo-a com propósito. Mas emocionalmente estava ausente.
Então comecei a praticar sentindo meu corpo assim como a maçaneta da porta ao dar uma pausa diante
da mesma. Sentia um aperto na barriga e observava uma inquietação que parecia não ter relação com a
tarefa em mãos. De repente, começava a chorar tanto que não conseguia atravessar a porta.
O professor representou um grande apoio em me ajudar a fazer a conexão com o medo que eu tinha
experienciado mais cedo na vida.
Abrir portas tornou-se uma prática central na minha vida durante um tempo. Gradualmente, com prática,
a consciência plena (mindfulness) substituiu minha hiper-vigilância aprendida e contribuiu
significativamente para o processo de cura de minhas velhas feridas. Uma maneira como expressamos
presença corajosa é através da prática da consciência plena (mindfulness) de tocar com compaixão e
ternura aquilo que previamente tocávamos somente com medo.

134
Existem três tipos de coragem necessárias para viver plenamente, encarar a morte diretamente, e
descobrir verdadeira liberdade: a coragem do guerreiro, a coragem de um coração forte, e a coragem
da vulnerabilidade.
Nossa imagem mais comum da coragem do guerreiro está relacionada com a bravura em situações
perigosas ou de emergência. Podemos pensar em soldados que demonstram força e persistência, e cujo
treinamento, crenças e pura adrenalina os permitem assumir riscos, ou pelo menos aprender a não ser
detido por seu medo. Os médicos o profissionais da saúde recebem um tipo similar de treinamento que
pode ir até a exaustão. Para algumas pessoas, simplesmente sair da cama pela manhã requer uma
coragem de guerreiro. Para outros, a coragem é convocada para lidar com turbulência emocional,
começar um novo emprego, ou viver com uma doença crônica, depressão e desespero. Para a maioria de
nós, a vida cotidiana exige algum grau de coragem. Coragem pode ser a escolha de fazer o que
acreditamos ser certo.
Uma coragem de guerreiro saudável é motivada por honra, lealdade aos camaradas, serviço, ou
compromisso, e é equilibrada com inteligência em sua aplicação. Entretanto, há um lado sombra nesse
tipo de coragem de guerreiro, que pode ser despertado por vergonha, coerção, necessidade de controle
ou desejo de obter aprovação, levando à defesa e a uma falsa sensação de invulnerabilidade.
Quando eu estava iniciando na prática Budista, ouvi um monte de conversas sobre “guerreiros
espirituais”, ilustradas com histórias de tradições da Ásia. Os textos Budistas estão repletos de imagens
de campo de batalha. Sugere-se que o meditante se imagine cercado por um exército de dez mil soldados.
Se diz que conquistar esse exército é mais fácil do que domar a própria mente. Esses ensinamentos nunca
ressoaram comigo. Descobri que tais imagens encorajavam muito esforço e rejeição. Eram de valor
limitado e de pouca valia às pessoas com feridas de auto-aversão e auto-julgamento.
Entretanto, há um lugar em nossas vidas e na prática da meditação para a coragem do guerreiro. Ela nos
ajuda a ficar firmes diante de dificuldades, voltar-se para o sofrimento, se arriscar a conhecer o
desconhecido, e confrontar a ignorância. Nos impede de ser seduzidos pelo hábito da complacência e
incerteza. Podemos sentir base dessa coragem em nossos ventres.
Essa história abaixo de um samurai e um monge ilustra a coragem e integridade inabalável do guerreio
necessárias para liberar nossos apegos e encarar o medo diretamente.
Um samurai subiu a montanha para alcançar um pequeno templo. Lá, ele encontrou um monge
calmamente sentado em meditação. “Monge,” ele vociferou em uma voz acostumada à obediência. “Me
ensine sobre o céu e inferno!”
O monge levantou os olhos para o guerreiro e respondeu com total desdém, “Ensinar a você sobre céu e
inferno? Não posso lhe ensinar nada. Você é ignorante, sujo, uma desgraça para a classe de samurais. Saia
de minha vista.”
O samurai ficou furioso. Dominado pelo ódio, ele sacou sua espada e se preparou para matar o monge.
Olhando diretamente os olhos do samurai, o monge disse, “Isso é o inferno.”
O samurai congelou, reconhecendo a compaixão do monge que tinha arriscado sua vida para lhe
transmitir essa lição. O guerreiro abaixou sua espada e se curvou em respeito e gratidão.
O monge disse delicadamente, “E isso é o céu.”

135
Destemor não se trata de eliminar, ignorar, ou afastar o medo; é sobre desenvolver uma capacidade de
corajosamente estar presente com nossos poderosos estados de mente e coração mesmo quando
encaramos o terror.
A coragem do coração nos pede para sermos indefesos. É a coragem de sentir, permitir que tanto a beleza
como o horror nos toquem. Pede um tipo diferente de destemor, que requer tanto, se não mais, paixão
do que a coragem do guerreiro. Encontramos esse tipo de coragem quando somos bravos como um leão
em nossa dedicação de permanecer com a verdade de nossa experiência, quando não a rejeitamos e, em
vez disso, enfrentamos o que está aqui e agora.
A coragem de um coração forte ativa uma receptividade destemida ao que está acontecendo, o que cria
espaço para reconhecermos, explorarmos e integrarmos nosso medo. Então podemos incluir tudo o que
queríamos evitar. Não apenas isso, mas esse tipo de coragem nos abre para uma profunda compaixão
pelo sofrimento de todos os seres. Percebemos que todos nós temos medos, e como bodhisattvas
estamos juntos com os outros em seu medo.
Com tanta violência em massa nas notícia de hoje em dia, é fácil perder as histórias subnotificadas de
coragem da força do coração. Jencie Fagan, uma professora de academia de Nevada, arriscou sua própria
vida para deter um adolescente de 14 anos que veio para a escola um dia com uma arma. Ele caminhou
até o pátio da escola e disparou três vezes. O primeiro disparo atingiu outro garoto no braço. Uma garota
foi ferida quando o segundo projétil ricocheteou no chão e penetrou em seu joelho. O terceiro disparo
felizmente não atingiu ninguém.
Jencie calmamente se aproximou do garoto, caminhado até enfrentá-lo e sua arma. Depois de conversar
um pouco com ele, ela o persuadiu a soltar a arma. É aí onde a coragem do guerreiro teria acabado – com
um ato inegavelmente corajoso, que quase certamente salvou vidas.
Mas Jencie demonstrou a coragem do coração forte quando ela então surpreendeu a todos abraçando o
atirador. Ela assegurou o garoto que não e deixaria sozinho. O acompanhou ao posto policial e durante
todo o processo legal para se certificar que ele estava seguro e garantir que a polícia não o machucasse.
Mais tarde, quando questionada porque tinha agido daquela forma tão compassiva com o garoto atirador,
Jencie que é ela mesmo uma mãe, respondeu, “Acho que qualquer outra pessoa teria feito isso. Olho para
os alunos como se fossem meus.”
Vulnerabilidade, o terceiro tipo de coragem é a porta de entrada à dimensão mais profunda de nossa
natureza interior. Associamos principalmente vulnerabilidade com fraqueza, exposição emocional, e ser
susceptível a danos. Ser machucado. Ser ferido. Ficamos portanto, apavorados com a vulnerabilidade e
desejamos evitá-la a todo custo. Mas nossa vulnerabilidade não é apenas uma maldição; é uma benção.
A coragem da vulnerabilidade nos permite sentar com uma amiga cujo filho morreu em um acidente de
carro, sentir sua dor e ouvir abertamente sem preconceitos. Com vulnerabilidade podemos reconhecer
nosso medo de começar uma nova aventura, compartilhar notícias de um divórcio, responder à ânsia de
ficar grávida novamente após um aborto.
Vulnerabilidade não é fraqueza; é não-defensividade. A não- defesa nos permite estar abertos a nossa
experiência. Quando estamos na postura menos defensiva, ficamos menos vagos e mais transparentes.
Nos tornamos sensíveis às dez mil tristezas e dez mil alegrias dessa vida. Se não estamos dispostos a ficar
vulneráveis à dor, perda e tristeza, ficaremos insensíveis à compaixão, alegria, amor, e bondade básica.

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A coragem de amar requer vulnerabilidade. Existe um estado mais vulnerável do que o amor? Ele é cheio
de risco, incerteza, intensidade, intimidade, conflito, e dizer a verdade. Ser vulnerável significa que somos
sensíveis, mais receptivos aos outros e ao nosso própria orientação interior. Reconhecemos a ilusão do
controle, a realidade de que o sofrimento é inevitável, e somos convidados a soltar nossas garras e nos
deixar entrar no inexplicável e imprevisível.
A coragem da vulnerabilidade abre a porta de entrada da invulnerabilidade de nossa natureza essencial.
Essa invulnerabilidade não é estoicismo ou imunidade aos altos e baixos da vida. Em nossa cultura,
invulnerabilidade normalmente implica uma postura contra emoção, uma falsa sensação de ser
impenetrável, que esse corpo não pode ser ferido ou não morrerá. Mas a invulnerabilidade de nossa
natureza essencial é pura abertura, uma espaciosidade indefesa na qual damos um passo atrás e
permitimos que os ventos do medo soprem através de nós. Não há lugar para nosso medo se agarrar, não
há chão no qual ele possa pousar. Podemos soltar nossa luta, relaxar nossos esforços desnecessários e
repousar em um estado de não-defensividade. Reconhecemos que não estamos separados de nada e de
ninguém. O medo retrocede quando realizamos que a essência básica de quem somos nunca é danificada,
nunca adoece, e nunca morre.
Na noite da véspera de minha cirurgia cardíaca, eu estava agitado, com medos da condição clínica, dúvidas
sobre a necessidade do procedimento, e infindáveis perguntas girando em minha mente.
Minha amiga Sharda, uma professora de meditação Budista, chegou sem respostas.
Ela sentou-se ao meu lado, segurou minha mão e mal falou. Permanecemos em silencio juntos por um
longo tempo, só nós dois no quarto do hospital. De vez em quando, eu dizia: "Sabe, estou com medo
dessa cirurgia. Estou com medo de morrer.”
Ela acenava com a cabeça e dizia: "Sim", e voltava a ficar em silêncio. Ela exalava amor e servia como um
espelho claro para a parte mais profunda de mim, uma parte maior que meu medo. Em seu rosto, eu
podia ver um reflexo de minha própria natureza amorosa.
Há um dinamismo que acontece entre duas pessoas. Após uma discussão, você pode sentir a negatividade
e energia tensa no quarto. O mesmo é verdadeiro em circunstâncias opostas. Você pode sentir quando
há uma presença corajosa no quarto.
Sharda não demorou muito, meia hora talvez. Então ela se levantou calmamente e disse, “Preciso ir para
casa.”
Eu disse, “Sim, eu sei.”
Ela disse, “Eu te amo.”
E eu disse, “Sim, eu sei.” E então ela partiu.
Após sua visita me senti calmo, a confiança no procedimento, em mim mesmo e no mundo restaurada. A
gratidão nutria uma sensação de bem-estar. Eu sentia uma conexão com outras pessoas que poderiam
estar sofrendo aquela noite, e fui além do medo que tinha me atormentado.
Dormi bem aquela noite. De manhã cedo quando vieram me buscar, eu estava relaxado. Meu filho Gabe
e minha esposa Vanda me acompanharam no caminho, deitado na maca, até a entrada da sala de cirurgia.
A equanimidade me acompanhou no resto de caminho.
Quando entramos num estado de vulnerabilidade ficamos mais sensíveis a experienciar os prazeres e
dores de nosso corpo, a sentir nossas emoções, e a observar nossos pensamentos. Não é fácil sentir tudo
137
isso ou encarar a raiz de nosso sofrimento - acreditar em nossos eus rigidamente construídos. Mas nossa
capacidade de ser vulnerável também torna possível experienciarmos todos os níveis de realidade.
Sentimos o quão permeáveis realmente somos – como nossas identidades não são fixas, nada na
existência é permanente. Vemos o vazio de nossas compulsões e fixações. Sem defesa, vulneráveis,
estamos abertos a tudo isso, a todas as possibilidades da existência humana, incluindo as dimensões mais
sutis, mais profundas de nosso ser. Por isso, paradoxalmente, a coragem da vulnerabilidade nos leva a
descansar na abertura de nossa invulnerabilidade última.
Conhecer nosso medo, um passeio “palavra por palavra’ pela mente não será suficiente. Para transformar
o medo em presença corajosa, precisamos de amor. Uma de minhas principais professoras, a especialista
em morte e luto, Elisabeth Kübler-Ross, costumava afirmar que existem apenas duas emoções primárias:
amor e medo. Não tenho certeza que seja tão simples, mas certamente podemos dizer que amor e medo
são dois lados da mesma moeda. Medo é o lado contração; amor é o lado expansão.
Podemos ser amigos do medo? Podemos receber o medo com mindfulness, tocar o sofrimento que ele
causa com profunda compaixão e cultivar equanimidade amorosa que nos permitirá ficar com ele? Se for
assim, então podemos encontrar um lugar de repouso mesmo com medo.
Ram Dass uma vez disse, “Após muitos anos me submetendo a psicanálise, ensinando psicologia,
trabalhando como psicoterapeuta, usando drogas, indo pra Índia, sendo um yogi, tendo um Guru, e
meditando por décadas, até onde posso ver não me livrei da neurose. De nenhuma. A única coisa que
mudou é que elas não me definem mais. Há menos energia investida em minha personalidade, dessa
forma é mais fácil mudar. Minhas neuroses não são mais monstros enormes. Agora são como pequenos
shmoos* que eu convido para o chá.
*O shmoo é uma criatura fictícia de desenho animado, uma foca. Fonte:
https://en.wikipedia.org/wiki/Shmoo
É possível aprendermos a amar nosso medo. Escolher o amor sobre o medo fala de uma confiança na
benevolência, na bondade básica da realidade, em algo maior que o medo. Mas para abraçar nosso medo,
precisamos nos sentir seguro.
Donald Winnicott, um proeminente psicólogo e pediatra Inglês desenvolveu o conceito de “ambiente
acolhedor”(holding environment), que é fundamental para a teoria do apego na psicanálise
contemporânea. Ele viu o acolhimento da mãe como um pré-requisito para o desenvolvimento saudável
da criança – amar o bebê de modo que o mesmo se sinta cuidado, seguro, compreendido e continuamente
amado. Quando isso acontece, a criança desenvolve uma sensação de confiança na mãe, que então
estende aos outros e ao mundo. Se o holding for inferior ao ideal, a criança provavelmente será mais
reativa, vendo o ambiente como não confiável.
Observe uma criança com apego relativamente saudável com seu cuidador primário, interagindo no
mundo. Quando há um ‘holding’ bom o suficiente em sua vida, a criança se aventura a tentar coisas novas.
Talvez ela tente andar e caia. A figura materna segura seu bebê, enchendo-o de amor para que o mesmo
tenha coragem de tentar novamente. A cada vez, o pequeno ganha coragem para se aventurar um pouco
além.
Eu experienciei o poder do ‘ambiente acolhedor’ alguns dias após o nascimento de Gabe. Do nada, assim
pareceu, ele começou a chorar incontrolavelmente. Sua mãe, depois de tentar tudo para acalmá-lo,
estava exausta. A doula e uma amiga que tinha criado seus quatro filhos também não conseguiram
consolar Gabe.

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Finalmente, eu disse, “Eu sei que sou um cara, mas deixem-me tentar algo.” Eu o peguei, segurei-o sobre
meu peito e saí com ele para fora, ao ar livre. Respirei profundamente e sussurrei, “Eu lhe amo. Sempre
lhe amarei.” Então cantei para ele a canção que cantava quando ele ainda estava no ventre da mãe.
Foi um contato simples, porém extraordinariamente íntimo com meu filho. Tão profundo quanto qualquer
experiência na meditação. De certa forma, eu emprestei a ele meu sistema nervoso. Eu não estava
preocupado. Eu não fiquei perturbado com a aflição dele, nem julguei como ele estava se sentindo. Só o
segurei dentro do container seguro de meus braços e peito, deixando sua aflição transbordar e se
evaporar no espaçoso céu, até que ele se acalmou e adormeceu.
Suponha que pensássemos na própria consciência como esse ambiente acolhedor (holding environment)?
Imagine que quando meditamos, primeiro nos estabelecemos na postura apropriada, prestando atenção
ao corpo e respiração, e então evocamos nossa atenção amorosa como forma de promover confiança. Às
vezes quando eu sento em meditação gosto de imaginar que eu sou minha própria “boa mãe”. Eu evoco
a presença calorosa de uma mãe ou avó arquetípica. Ocasionalmente, repito uma frase do Metta Sutta –
ensinamento Budista sobre bondade amorosa: “Assim como uma mãe que arrisca sua vida para salvar e
proteger seu único filho, da mesma forma com um coração sem limites deve-se estimar todas as coisas
vivas, espalhando amor por todo o mundo.”
Eu acredito que quando sentimos o ambiente acolhedor (holding environment) da consciência nos
abraçando, ela permite que nosso medo, dor e feiura saiam e mostrem-se e sejam gentilmente
sustentados sem julgamento para que possam ser curados. Sentimos o apoio e coragem indo além de
nossas crenças previamente limitantes. Isso nos permite enfrentar uma situação aparentemente
impossível, como a nossa própria morte ou a de um filho, com graça. A consciência em si mesma é o lugar
de descanso último.

O QUINTO CONVITE
Cultive a Mente do Não-Saber

A mente é como um pára-quedas. Ele não funciona se não estiver aberto.


- Thomas Rbert Dewar, repetido por Frank Zappa

As histórias, diálogos ou frases Zen são oferecidos para nos ajudar a lidar com nossos problemas humanos.
Os koans geralmente parecem contraditórios, mas não pretendem ser enigmas ou quebra-cabeças a
serem resolvidos. Do contrário, são para nos ajudar a ganhar insight, nos libertar de nossas habituais
formas de ver e conhecer o mundo nos impulsionando em direção à experiência direta.

139
O koan “Cultive a mente do não-saber” pode parecer confuso à princípio. Por que devemos procurar ser
ignorantes? Mas isso não é um incentivo para evitar o conhecimento. A mente do não-saber é
caracterizada por curiosidade, surpresa, e admiração. É receptiva, pronta para receber o que quer que
surja como é.
Dias antes da cirurgia cardíaca, meu filho Gabe que estava em seus vinte e tantos anos nessa época, me
visitou na unidade cardíaca de cuidados intensivos. Tivemos uma conversa terna, relembrando nosso
relacionamento. Nossa partilha foi cheia de amor, bondade e risos.
Em um momento, Gabe parou de falar e ficou bastante sério. “Pai, você vai resistir a essa cirurgia?” ele
perguntou.
Amo meu filho além de palavras e, como qualquer pai, queria lhe assegurar que claro que eu sobreviveria,
e que estaria bem. Mas parei por um momento, buscando a resposta correta. Entrei em contato com a
sensação de minha experiência antes de responder. Então ouvi a mim mesmo dizendo, “Eu não estou
tomando partido.”
Minha resposta surpreendeu nós dois. O que eu quis dizer foi que não estava tomando partido da vida ou
da morte. De qualquer jeito, eu confiava que tudo estaria ok. Eu não sabia de onde as palavras tinham
vindo; elas transbordaram de mim sem censura. Eu não estava tentando parecer sábio ou ser um bom
Budista. Contudo ambos fomos tranquilizados por minha resposta. Acho que foi assim porque sabíamos
que estávamos na presença da verdade falada com amor.
Nos abraçamos e Gabe foi para casa com a promessa de retornar de manhã.
Ao caminharmos em nosso dia-a-dia estamos nos apoiando em nosso conhecimento. Temos confiança
em nossa capacidade de pensar sobre problemas, descobrir coisas. Somos educados; treinamos em áreas
específicas que nos permitem fazer bem nosso trabalho. Acumulamos informação por meio de
experiência, apendendo à medida que avançamos. E isso é útil e necessário ao nos movermos pela vida
suavemente.
Geralmente se pensa que ignorância é ausência de informação, não saber. Infelizmente, é mais do que
apenas “não saber.” Significa que sabemos alguma coisa, mas é a coisa errada. Ignorância é impressão
equivocada.
“Mente do Não-Saber” representa algo completamente diferente. Está além do saber e não saber. Está
fora dos mapas de nossas ideias convencionais sobre conhecimento e ignorância. Sobre a “mente do
principiante” o mestre Zen Roshi notoriamente dizia, “na mente do principiante há muitas possibilidades,
mas na do expert há poucas.”
A “Mente do Não-Saber” não é limitada por agendas, papeis, e expectativas. É livre para descobrir.
Quando estamos cheios de saber, isso estreita nossa visão, obscurece nossa capacidade de ver o quadro
todo, e limita nossa capacidade de agir. Sé vemos o que o nosso saber nos permite ver. Uma pessoa sábia
é tanto compassiva como humilde e sabe que não sabe.
Esse momento bem aqui diante de nós, esse problema que estamos enfrentando, essa pessoa que está
morrendo, essa tarefa que estamos terminando, esse relacionamento que estamos construindo, essa dor
e beleza que estamos encarando – nunca experienciamos antes. Quando entramos em uma situação com
a mente do não-saber, temos uma disposição pura, sem apego a uma visão ou resultado particular. Não
jogamos fora nosso conhecimento – ele está sempre lá, no segundo plano, pronto para vir em nossa ajuda
se precisarmos – mas soltamos ideias fixas. Soltamos o controle.
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A mente do não-saber é um convite para entrar na vida com novos olhos, esvaziar nossas mentes e abrir
nossos corações.

15.
A HISTÓRIA DO ESQUECIMENTO
Uma memória é uma coisa complicada, um parente da verdade, mas não sua gêmea.
- Barbara Kingsolver

Leroy estava com setenta e poucos anos quando nos conhecemos. Ele tinha sido um trabalhador ao longo
de sua vida adulta, principalmente em siderúrgicas. Grande, preto e imponente, Leroy estava acostumado
a fazer o que queria. Agora tinha câncer de pulmão com metástases cerebrais. Muitas vezes confuso, ele
vivia dentro e fora do tempo.
Uma noite, eu o estava alimentando com purê de batatas em seu quarto no hospital quando ele gritou,
“Lucinda, não posso pegar mais molho? Você sabe que eu adoro seu molho, mulher. Eu amo derramá-lo
e lambê-lo.” Levei um minuto para perceber que ele não estava falando com a enfermeira, mas com outra
mulher, sua falecida esposa.
No momento seguinte estávamos em seu Pontiac (carro sedan) navegando por uma estrada rural, indo
para sua lanchonete favorita. Leroy dirigia velozmente e gritava para eu aumentar o volume do rádio.
Me juntar a Leroy em sua viagem imaginada foi de início divertido, mas então me senti com medo. Pode
ter sido a desorientação de Leroy que acionou meu próprio medo da demência. Mas parecia ser mais
fundamental do que isso. Acredito que tenha algo a ver com o fato de eu não era reconhecido. Não saber
onde eu me encaixava teve um impacto perturbador no meu senso de realidade. Comecei a pensar que
deveria lembrar a Leroy de que ele era um paciente no hospital e que não estávamos em seu Pontiac. Eu
me senti perdido enquanto ele continuava descendo aquela estrada rural em seu amado carro. Eu só
queria sair.
Dos auto falantes veio um aviso, “Dr. Jeffrey, seu carro está bloqueando a entrada. Por favor dirija-se
imediatamente ao local.”
Eu me virei para Leroy e menti. Eu menti abertamente para esse homem. Eu disse, “Leroy, sinto muito,
mas preciso tirar meu carro imediatamente. Sinto muito, mas não posso ficar.” E em um segundo estava
fora do quarto.
Eu já estava de pé no estacionamento quando me dei conta do quanto ridículo meu comportamento tinha
sido. Tinha permitido que meu desconforto me consumisse.
É confuso estar perto de pessoas confusas. Sua aparente irracionalidade e a ausência de padrões sociais
costumeiros nos perturbam. Esperamos que as pessoas façam sentido.
Estamos tão fortemente identificados com nossa mente racional pensante, que a ideia de perder o
controle é apavorante para a maioria de nós. Não estamos tão preocupados com o funcionamento de
nossos baços quanto com a capacidade de nossos cérebros de formar frases inteligíveis. Dizemos a nossos
amigos e família, “Qualquer coisa menos isso, ser demente ou incapaz de pensar com clareza. Eu odiaria

141
isso.” E é essa aversão a ficar fora de controle que nos leva a nos distanciar de pessoas que estão confusas.
Em nosso medo, nos retiramos, mesmo daqueles que amamos.
Em nossa reatividade ao desamparo, podemos ficar frustrados com nossos pais com Alzheimer quando
esquecem de tomar seus remédios. Não conseguimos entender as palavras distorcidas das pessoas que
sofreram um stroke (AVC), e assim descartamos suas preocupações como desconexas. Paramos de tentar
chegar até a vovó, que está enrolada em sua cama de hospital em posição fetal, porque facilmente
assumimos que "ninguém está em casa.”
Minha tia Mimi tinha oitenta anos quando a visitei num lar de idosos. Uma série de pequenos strokes e
os crescentes efeitos da demência senil a deixaram bastante desorientada. Largada em sua cadeira de
rodas, ela resmungava consigo mesma o tempo todo, e de vez em quando jogava o vestido sobre a cabeça.
Me chamava por uma variedade de nomes, imaginado que eu era diferentes pessoas de seu passado –
um irmão, um professor, um colega. Era impossível ter uma conversa real.
Fiquei curioso. Fiquei pensando comigo mesmo por que tia Mimi nunca casou. “Você teve um amor
secreto?” perguntei. Ela olhou para mim séria, se aprumou na cadeira, cruzou os braços sobre o peito
defensivamente, e disse as palavras perfeitamente, “Algumas questões são muito pessoais para se
perguntar!”
Surpreso por seu súbito momento de clareza, eu simplesmente assentei com a cabeça. Ficamos sentados
em silêncio depois disso, de mãos dada por toda a tarde.
Para entender a desorientação ou confusão de outra pessoas, devemos começar com a nossa própria.
Sentir como é difícil ser incapaz de fazer contato com outra pessoa é um excelente lugar para começar.
Como é ficar perdido no momento, não saber o que está acontecendo, ser incapaz de se conectar?
Receber essa experiência com bondade e aceitação nos permite imaginar como se sentem isolados e
segregados aqueles que não conseguem se fazer entender. Podemos sentir empatia por sua sensação de
solidão, pelo quão amedrontados podem estar. Podemos sentir a vergonha de não ser capaz de funcionar
“normalmente”, e a tendência de querer esconder uma doença dos outros. Podemos refletir sobre como
podemos explodir de raiva ou resistir aos esforços dos cuidadores por desejo de recuperar o controle
sobre nossas próprias vidas.
As pessoas com Alzheimer ou demência geralmente não conseguem controlar seu próprio
comportamento, mesmo quando estão fazendo o máximo para isso. Isso significa que nem você nem eles
podem evitar que problemas surjam. Entretanto, a atitude que você traz ao encontro pode impactar seu
comportamento. O bem-estar deles frequentemente depende de seu bem-estar. Se você está com pressa
ou está irritado, as pessoas com demência provavelmente sentem esses sentimentos.
Frequentemente, como crianças pequenas, elas ficam ansiosas e resistentes. Sua presença calma,
acompanhada por um toque compassivo, pode proporcionar uma sensação de ordem no meio do caos,
uma substituição da estrutura interna que lhes falta. Quase sempre é tranquilizador apenas sentar em
silencio com pessoas nesse estado.
Não muito tempo após ter trazido sua mãe com demência para morar com ela, Gillian foi até a sala para
encontrar seus livros amados, incluindo textos sagrados Budistas. Sua mãe anunciou, “Estou cansada de
todos esses velhos livros empoeirados. Vou dá-los ao meu dentista.”
Gillian foi por um instante fisgada pela raiva. Ela repreendeu a cuidadora de sua mãe. “Como você pode
deixar que isso acontecesse?”
142
A cuidadora, que não estava presa no drama, respondeu, “Senhora, hoje arrumo os livros e amanhã os
coloco na estante de volta. Se isso dá uma sensação de controle a uma mulher que perdeu tanto, bem,
então está tudo bem para mim. Não importa tanto. Eu só gosto de estar com ela.”
Gillian subitamente viu sua própria necessidade poderosa de estar no controle da situação, e isso deu
origem à compaixão pela experiência de desamparo de sua mãe. A filha sentou-se no chão da sala e
desfrutou passar algum tempo com a mãe naquela tarde, ali mesmo, no meio da bagunça.
No dia seguinte, Gillian entrou na sala e descobriu que a cuidadora tinha de fato recolocado os livros na
estante.
Quando eu passo um tempo com pessoas com Alzheimer ou demência, me esforço para olhar além da
superfície e ver o indivíduo como um todo. Apenas me sento, dando espaço a simplesmente estar
presente, sem a habitual ocupação ou agendas. Me esforço para receber as pessoas com aceitação,
ouvindo com o coração, sem qualquer julgamentos sobre seus jeitos ou confusão. Eu cultivo a mente do
não-saber. Desse lugar, descubro que posso apreciar as trocas de linguagem muitas vezes lúdicas sem
preocupações sobre lógica, interpretações literais, ou se o que está sendo dito está correto. Por um
tempo, os deuses da razão e da racionalidade não governam nossa interação, e acho isso bastante
relaxante. Também abraço as intensas emoções subjacentes que muitas vezes surgem, tão tórridas e
imprevisíveis como os ventos ferozes de um furacão.
Isso me permite ver toda a natureza dos relacionamentos de uma maneira nova. Percebo o quão falsas
são nossas noções de autonomia e separatividade; novamente reconheço nossa inseparatividade e
interdependência. Sinto-me mais humano.
E se, assim como eu, você às vezes fizer besteira e se encontrar em um estacionamento tomado pela
ansiedade, por favor, seja gentil consigo mesmo. Somos só humanos, e todos cometemos erros. Faça
algumas respirações profundas. Sinta seu corpo novamente. Ao cuidar de alguém que está confuso,
encaramos nossos medos mais profundos. Isso pode ser emocionalmente desgastante e fisicamente
exaustivo. É hora de compaixão. Cultivar perdão e aceitação de nós mesmos nos permite estender o
mesmo aos outros.
O medo de perder a memória é um medo comum. Descobri ser útil e até tranquilizador reconhecer que,
na verdade, estamos perdendo nossas memórias o tempo todo.
Lembro-me de cultivar rabanetes no jardim aos cinco anos. Lembro-me de fraturar uma costela no ano
seguinte depois de pular do telhado do galinheiro. Lembro-me do teto abobadado do ateliê de cerâmica
acima da garagem onde meu pai lavava carros e da maneira como me deliciava com os potes coloridos de
esmalte. Lembro-me do vestido de algodão branco da minha mãe, mas gostaria de lembrar o cheiro dela.
Então, é claro, há as memórias que eu gostaria de poder esquecer, mas não consigo.
Em nosso mundo racional, temos uma inquestionável fé na eficiência da razão. Conectamos pensamento
claro com competência e valor. Associamos memória com acurácia, e acurácia com confiança, e confiança
com retidão. Quantas vezes você discutiu com um parceiro sobre qual memória de um incidente está
correta?
Marido: “Você estava usando um vestido vermelho em nosso primeiro encontro. Você estava
maravilhosa.”
Esposa: “Obrigada, mas meu vestido era violeta. Eu sei porque escrevi em meu diário que violeta era
minha cor favorita.”
143
Marido: “Bem, eu me lembro daqueles saltos. Não sei como você conseguia andar sobre eles.”
Esposa: “Tenho certeza que usava sandálias. Você deve estar pensando em outra namorada.”
Na realidade, esquecimento acontece a todos nós. Não precisamos estar sofrendo de demência ou
Alzheimer para esquecer coisas, embora isso naturalmente ocorra com maior frequência à medida que
envelhecemos. Entramos distraidamente em um quarto, depois lutamos para lembrar por que entramos.
Um breve lapso na memória faz com que cheguemos atrasados para um compromisso. As chaves do carro,
uma piada que ouvimos outro dia – começamos a esquecer pequenas coisas. E então até aquilo que
costumava ser tão importante para nós escapa –memórias que acalentamos, nomes de pessoas que
amamos. Esquecemos mais e mais detalhes. Talvez seja isso o que mais nos apavora quando confrontados
com o esquecimento de outra pessoa: reconhecemos que não somente nossas memórias, mas até nossas
vidas logo serão esquecidas.
Nossos cérebros não são discos rígidos de computador. A memória humana não é uma simples questão
de “entrada de dados precisos, saída de dados precisos.” É um processo bem mais complicado, sutil, e
maravilhoso. O esquecimento está na verdade incorporado no sistema. A memória tem uma qualidade
“use-a ou perca-a”. Cientistas do cérebro falam sobre a transitoriedade da memória – a maneira com que
o cérebro se livra de memórias não usadas para dar espaço para novas. Muitas vezes, as pessoas com
amnésia severa não conseguem elaborar memórias de curto-prazo, esquecem informações quase
imediatamente. Mas todos estamos fazendo limpeza nos armários de nossos cérebros regularmente.
Isso significa que a memória não é objetiva, verdadeira, exata, ou de alguma forma permanente. Nossas
memórias são construtos maleáveis. Um estudo demonstrou que toda vez que nos lembramos de alguma
coisa, nossas redes cerebrais mudam de maneira que alteram nossa recordação do evento original. Como
a antiga brincadeira do “telefone sem fio” que costumávamos brincar quando crianças, pequenas
imprecisões surgem toda vez que nos lembramos de algo. Esses “erros” então tornam-se parte de nossa
experiência. Eventualmente, a memória de um evento pode crescer tão imprecisa que torna-se
totalmente falsa.
Após meu ataque do coração, experienciei importantes déficits cognitivos e perda de memória. Eu
esquecia fatos simples, confundia nomes e pulava datas do calendário. Meus amigos da enfermagem me
disseram que esse é um efeito colateral comum nas pessoas que passaram por máquinas de CEC
(circulação extracorpórea) na cirurgia cardíaca ou por longo tempo sob anestesia.
De início, minha perda de memória foi embaraçosa. Eu dava tapinhas na cabeça com os dedos, esperando
que isso trouxesse alguma informação. Tentava esconder meus enganos, e ficava cheio de autocrítica
quando errava as coisas.
Eventualmente, entretanto, cheguei a um lugar de aceitação sobre meu esquecimento. Me senti mais
tranquilo quando contei a verdade sobre minha perda de memória sem vergonha ou culpa. Aceitei o fato
de que provavelmente nunca teria a mente aguçada de antes do procedimento.
Sinceramente, os outros nem sempre são amáveis comigo. Alguns amigos e colegas ficam irritados com
minha perda de memória, minha incapacidade de entender uma referência acadêmica que fazem, ou
minha necessidade de usar anotações ao dar uma palestra. Eles querem o velho e confiável Frank de volta.
Mas eu os recordo de que todos nós estamos sempre esquecendo. Nossas memórias estão
constantemente sendo reescritas. A memória falha. Isso faz parte do processo de estar vivo. É melhor,
então, focar em lembrar daquilo que mais importa. Não os detalhes de datas ou conversas, mas que
somos amados e que somos capazes de amar outras pessoas. Quando há total aceitação de nosso não
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saber, em vez de medo, ao paramos de insistir que a realidade deveria ser diferente, então podemos
relaxar com as coisas como são.
Quando memórias são tomadas como verdade, elas seguem inquestionáveis. Isso frequentemente
conduz a suposições fixas, pensamento tudo-ou-nada, que podem ter consequências não-intencionais em
decisões futuras. Trazer um senso de curiosidade e investigação aberta dessas suposições pode nos ajudar
a descobrir novas formas de compreender velhas histórias.
Uma senhora idosa Italiana muito doce chamada Rose esteve conosco no Zen Hospice. Chegou com um
prognóstico de sete semanas de vida. Sete meses mais tarde, ela ainda estava conosco. Dia após dia, os
voluntários descreviam a mesma conversa com Rose. Eles entravam em seu quarto e diziam, “Rose, como
você está hoje?” E ela dizia em um tom de resignação, “Eu só desejo morrer.” Sempre a mesma resposta.
Isso se tornou uma espécie de piada dentro de casa até eu dizer aos voluntários, “Não estamos levando
Rose à sério. Estamos rindo dela quando precisamos ouvir exatamente o que ela está dizendo.”
Na manhã seguinte, fui até seu quarto e disse, “Rose, como você está hoje?”
E novamente ela disse, “Eu só desejo morrer.”
Então perguntei, “O que faz você pensar que morrer vai ser muito melhor?”
Ela olhou para mim como se dissesse, “Que tipo de pergunta é essa para se fazer a uma mulher de oitenta
anos?”
Mas continuei, “Você sabe, Rose, não há garantias de que seja melhor do outro lado.”
“Bem, pelo menos eu escapo,” ela respondeu.
“Escapa do que?” perguntei.
E essa pergunta abriu as comportas. Rose começou a me contar a história de seu relacionamento com o
marido. Desde que ela conseguia se lembrar durante os cinquenta anos de casamento, sempre tinha
cuidado do marido - comprando e cozinhando suas refeições, equilibrando seus gastos, comprando e
limpando suas roupas e acomodando seus humores. Agora que estava doente, ela não conseguia imaginar
como ele podia possivelmente cuidar dela. Ela não queria ser uma carga. Melhor ser cuidada por
estranhos. Assim, mudou-se para o Zen Hospice.
Após compartilhar sua história, passamos um tempo conversando. Eu lhe sugeri que considerasse
compartilhar seus sentimentos com o marido. Eu não estava lá quando conversaram. Mas três dias depois,
Rose saiu do Hospice e voltou para casa. Ela viveu lá por mais seis meses antes de morrer, seu marido
cuidando dela com devoção.
Eu não forneci a Rose uma solução. Simplesmente lhe perguntei sobre sua experiência, e essa pergunta a
ajudou a questionar suas próprias suposições. Rose teve então uma nova compreensão das circunstâncias
de sua vida. Ela percebeu como estava apegada à noção de que precisava cuidar do marido. Ao soltar seu
apego a essa ideia e cultivar a mente do não-saber, uma nova opção emergiu, uma que ela nunca se
permitira considerar antes.
Há um ditado Iídiche que diz, “Às vezes precisamos de uma história mais do que de alimento.” Contar
nossas histórias e ter outros ouvindo é uma poderosa maneira de obter novas compreensões das mesmas
e novas perspectivas em nossas vidas.

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Quando percebemos que nossas memórias não tem precisão confiável, então podemos nos libertar para
contar as histórias que precisamos contar. Compartilhar nossas histórias não é acertar os fatos de um
evento ou a lembrança exata das circunstâncias. Pelo contrário, o ponto da história é pegar as peças
separadas, isoladas e quebradas de nossas vidas e, ao contá-la fabricar momentos de totalidade.
Quando compartilhamos nossas histórias, relaxamos nossa necessidade de interpretar os eventos da vida
de uma maneira particular. Nos abrimos à mente do não-saber e permitimos que uma parte profunda de
nós venha para a frente e fale. De certa maneira o que emerge são as histórias de nossas almas.
Não podemos mudar um evento original que pode ter nos causado dor, mas podemos com certeza mudar
nossa reação ao que aconteceu. Percebemos que quando insistimos sobre e recontamos uma história,
essa recirculação inquestionável de memórias pode alojar ainda mais profundamente em nossas mentes
antigos sofrimentos, fazendo com que o presente seja definido por nosso passado. Quando observamos
nossas presentes reações com compaixão, somos capazes de nos liberarmos das garras de velhas feridas.
Pensamos sobre os eventos agora olhando para nossas interpretações, mudando nossas percepções, e
descobrindo novos significados. Ficamos conscientes das memórias que estavam nos detendo, e então
podemos soltar.
Contar nossas histórias nos permite recuar e ver o quadro geral. Lembramos de coisas diferentemente e
ficamos mais conscientes de certos detalhes, aqueles que podemos não ter observado antes.
Frequentemente sepultada em uma velha história está a força que precisamos para aceitar nossa atual
situação. A cura requer mais do que apenas uma mudança na linha da história, mas contar uma história
pode iniciar um processo. Quando contamos nossas histórias, nós curamos. Quando alguém escuta nossas
histórias, curamos.
Michael, um voluntário do Zen Hospice era um professor de Inglês que conhecia o poder da história. Ele
amava passar um tempo com pacientes, encorajando-os a compartilhar momentos de suas vidas. Eles
contavam a Michael histórias de suas infâncias ou falavam de seus parentes falecidos e expressavam
amor. Falavam de arrependimentos e compartilhavam segredos, e então falavam de coisas que fariam
diferentemente se tivessem uma segunda chance. Alguns tinham uma conversa imaginada com Deus.
Michael gravava essas trocas. Mais tarde, em casa, ele transcrevia as gravações. Então criava lindos livros
de histórias feitos à mão, encadernando-os com uma capa de couro com uma fotografia ou imagem que
destacava um elemento da história. Ele embrulhava os livros para presente, amarrava a caixa de presente
com uma fita vermelha e dava às pessoas suas histórias com suas próprias palavras.
Eram presentes incríveis. Os livros se tornaram legados que os pacientes deixavam para suas famílias e
amigos. Algumas vezes, quando não tinham família ou amigos, pediam que os livros retornassem a
Michael quando morressem, já que ele entendeu a importância de receber graciosamente a história de
outra pessoa.
Um dia, um adolescente com cabelo verde-e-roxo, tatuagens nos braços e pernas, e piercings no nariz,
orelhas e bochechas apareceu no Hospital Laguna Honda (em São Francisco, Califórnia). Ele dirigiu-se ao
escritório onde os voluntários se apresentavam e disse que tinha vindo para aquele hospital
predominantemente geriátrico na esperança de “ajudar pessoas idosas.”
O conservador coordenador olhou para ele, entregou um longo formulário para preencher, e disse
desanimadoramente, “Ligaremos para você se tivermos uma tarefa que achamos adequada para você.”
O homem baixou a cabeça em rejeição e virou-se para sair, quando esbarrou com nosso médico do
hospice, que perguntou ao rapaz onde estava indo. O menino disse, “Bem, eu queria me voluntariar para
146
ajudar pessoas idosas, mas eles não me querem aqui.” O médico ficou curioso e lhe perguntou ao garoto
o que ele gostaria de fazer com as “pessoas idosas”.
O adolescente tirou da mochila uma pequena câmera de vídeo e disse, “Eu gosto de fazer filmes.” Então
o médico decidiu convidá-lo para visitar nosso Zen Hospice.
Isso mostra que você nunca realmente sabe, porque esse garoto punk foi incrivelmente amoroso, e criou
uma das mais incríveis intervenções terapêuticas que eu já testemunhei (embora tenha certeza que ele
não tinha a menor ideia do que estava fazendo).
O garoto fez uma pergunta simples a cada um dos 38 residentes de nossa enfermaria: “Se você pudesse
sair do hospital por um dia e ir a qualquer lugar, para onde você iria?”
Grace disse, “Eu iria à praia. Eu amo os animalzinhos na areia.”
Sally disse, “Eu iria para o piano bar Tiki Bob onde eu costumava cantar e encontrar minha antiga gang.”
Chester disse, “Eu voltaria para a casa onde cresci.”
Assim o garoto foi a todos esses lugares com sua pequena vídeo-câmera. Na praia filmou as ondas
enterrando os dedos dos pés na areia e os pássaros correndo na beira da água. No bar Tiki Bob ele
perguntou se alguém se lembrava de Sally. Então filmou sua antiga turma de surfistas (salty sea dogs)
cantando uma versão de "Friends in Low Places” (Amigos em Todos os Lugares). Ele foi até a casa onde
Chester tinha crescido. Os atuais proprietários, cautelosos no início com a aparência estanha daquele
jovem, o deixaram filmar o antigo quarto de Chester e a casa na árvore que ainda estava no quintal.
Algumas semanas depois, tivemos um festival de filmes no Hospice. Todo mundo assistiu um curta de 7
minutos que esse garoto tinha produzido. Não eram bons filmes, tecnicamente falando. A qualidade do
som era ruim, as cores desbotadas, a algumas vezes as cabeças das pessoas eram cortadas no
enquadramento das imagens. Mas isso não importou. Todos os residentes viram seus filmes, e mais tarde
os convidamos para compartilharem suas histórias enquanto todos ouvíamos. Encontramos fios de nossas
próprias histórias nas de todos os outros.
O garoto desapareceu no dia seguinte, e nunca mais o vimos novamente. Os Bodhisattvas são assim.
Chegam, fazem seu trabalho, e seguem.
Histórias são uma forma de encontrarmos significado, mas raramente um único significado. Geralmente
há camadas de significados. Talvez as coisas sejam assim. Mas talvez não sejam. É onde o não saber pode
nos ajudar a entender a nós mesmos e um ao outro melhor. Quando não estamos tão fixados em nossas
visões, as histórias podem nos levar em uma jornada além de enredos ou mesmo fatos para revelar uma
verdade que podemos ter perdido quando estávamos apenas olhando com nossas mentes comuns. A
maioria das histórias da vida real não tem claros começos e términos. Mas nos ajudam a dar sentido à
vida e a abraçar seu mistério. Por meio das histórias nós nos unimos como uma família, uma comunidade,
e uma cultura, unindo-nos à história humana maior.
Muitas tradições espirituais e a maioria dos psicólogos transpessoais apontam para dimensões da mente
além das visões convencionais de memória, redes neurais e sinapses do passado e a ideia limitante de
que somos apenas máquinas pensantes. Os textos Budistas antigos falam de um contínuum momento-a-
momento de nossas mentes sutis que não tem começo nem fim, chamado Fluxo Mental. Mas mesmo os
cientistas contemporâneos concordam que existe alguma coisa mais do que a mente humana, algo mais
sutil e mais complexo, à qual muitas vezes nos referimos como consciência.

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Harrison Hoblitzelle, ou Hob como era carinhosamente conhecido, era um professor de literatura
comparada, psicoterapeuta e professor Budista. Era um homem de grande bondade e bom humor.
Mesmo depois de ser diagnosticado com Alzheimer, Bob continuou a ensinar práticas Budistas. Algumas
vezes enquanto ensinava, sua memória falhava.
Jack Kornfield conta a história de um momento particular em que Hob estava dando uma palestra do
Dharma. Estava diante de um grupo de meditação e se esqueceu quem era e porque estava lá. Então ele
simplesmente começou a reconhecer conscientemente em voz alta suas experiências; “mente apagada....
curiosidade.... nervosismo... calma.... mente apagada... sentimentos amorosos... mais aquecido... menos
trêmulo... ainda incerteza,” e continuou por vários minutos. Foi tudo o que conseguiu fazer. Ele parou,
descansando em silêncio, e se curvou para o público. As pessoas se levantaram, aplaudiram Hob horando
sua presença e sua coragem. Aquele foi, como muitos disseram, “um dos melhores ensinamentos que já
recebi”. Por um momento, Hob transformou até o Alzheimer em liberdade.
A doença de Hob o deixou confuso, perdendo certas capacidades cognitivas. Mas naquele momento, ele
encontrou um lugar de repouso na consciência. Graças à sua experiência em décadas de treinamento na
meditação da consciência plena, ele conseguiu descansar confortavelmente na mente do não saber. Não
precisava na verdade de saber quem era, onde estava, ou o que estava fazendo para se sentar novamente
na consciência e observar as emoções e experiências presentes. Foi capaz de tocar sua experiência
presente com curiosidade e admiração.
Quando cultivamos a mente do não saber, não estamos jogando fora nosso conhecimento. A experiência
de vida de Hob permitiu que ele entrasse em um intenso estado de não saber; ele estava usando seu
conhecimento, mas não estava limitado pela ignorância ou o saber.
A consciência parece bem familiar, contudo logo se mostra ser desafiador descrevê-la, impossível de
localizá-la no cérebro, e assunto de muito debate. Se eu perguntasse, “Você está consciente agora?” você,
provavelmente sem pensar, responderia, “Sim”. Mesmo com demência ou sofrendo de Alzheimer,
quando perguntados, respondemos “Sim.”
Então, o que queremos dizer?
Nosso sim é baseado em nossas experiências diretas, íntimas e imediatas. Não somos apenas o que
pensamos, o que dizemos ou o que fazemos e certamente não apenas o que lembramos. Estas
experiências não definem tudo o que somos. Quem somos é muito do que isso. A consciência, nossa
capacidade de testemunhar a experiência, não é apenas uma função cognitiva. A consciência está além
do pensamento, além do sentimento, além da ação. Nossas histórias sobre quem somos e o que sabemos
são somente uma contração da consciência. Podemos assumir uma postura dentro de nossa experiência,
como um estado emocional ou um julgamento, ou podemos adotar uma postura de consciência não
reativa.
Lembre-se disso, se puder: tudo vem e vai na consciência. Essa é a base de quem somos. O resto é apenas
fumaça e espelhos.

148
16.
NÃO SABER É MAIS ÍNTIMO
A sabedoria me diz que eu sou nada.
O amor me diz que eu sou tudo.
Entre os dois, minha vida flui.
- Nisargadata Maharaj

A ideia de mente do não-saber se origina em uma história sobre 2 monges Budistas na antiga China: Fayan,
um jovem andarilho e Dizang, seu professor.
Dizang viu Fayan em suas roupas de andarilho embarcando em uma viagem. Lhe perguntou, “Onde você
está indo?”.
Fayan responde, “Em uma peregrinação.”
Dizang perguntou, “Qual o propósito de sua peregrinação?”
Fayan respondeu, “Não sei.”
Dizang disse, “Não saber é mais íntimo.”
Como um koan, essa história é sobre mais do que apenas uma peregrinação na China antiga. A
peregrinação é uma metáfora para a vida cotidiana. Diz algo sobre nossas jornadas, a maneira como
podemos vagar sem rumo ou nos fixar em um certo destino. Podemos facilmente reformular as perguntas
de Dizang para, “Onde você está indo em sua vida? Por que você pensa que algum outro lugar será melhor
do que onde você está agora? Qual o propósito de toda essa busca?”
Quando éramos crianças, as pessoas nos faziam uma pergunta semelhante, “O que você quer ser quando
crescer?” Como adultos, ao conhecer uma nova uma pessoa, umas das primeiras coisas que perguntamos
é, “Qual a sua profissão?” Ao respondermos, queremos parecer como se estivéssemos juntos. Queremos
ser percebidos como inteligentes e focados. Portanto, temos nossas respostas todas alinhadas, talvez até
um discurso de persuasão sobre o que fizemos e o que planejamos alcançar. O ponto é que conhecemos
as coisas. E em nossa cultura, saber é poder.
Acontece que Fayan era um jovem muito inteligente, um aluno maduro que tinha estudado muitos textos
espirituais e praticado meditação por anos. Certamente ele poderia ter oferecido uma resposta mais
virtuosa ou impressionante ao seu professor do que "eu não sei". Mas o que é encantador sobre essa
história é que Fayan respondeu de uma forma não defensiva, com um tipo de inocência infantil, “Eu
gostaria de saber, mas honestamente não posso te dizer.” Talvez ele esperasse que o professor tivesse a
resposta. Talvez, como muitos de nós, ele imaginou que tinha um destino a cumprir e que uma pessoa
sábia poderia apontá-lo o caminho correto. Mas um bom professor não lhe diz o que conhecer, ele ou ela
lhe mostra como ver.
O professor respondeu, “Isso é fantástico, Fayan. É muito bom que você não saiba. Não saber é mais
íntimo.”
No Zen, a palavra íntimo é sinônimo de despertar, realização, ou iluminação. Mas todas essas palavras
parecem implicar um estado mental distante e especial ou uma experiência sobrenatural, metafísica,
transcendente que de alguma forma nos transporta para outra dimensão além dos problemas do dia-a-
dia da vida.

149
Eu prefiro a palavra intimidade porque é um convite para chegar mais perto, para abraçar totalmente e
envolver-se amorosamente com sua vida exatamente onde você está, em vez de tentar ir além dela. É um
reconhecimento de que já pertencemos. Para mim, a intimidade expressa melhor o que imagino que a
iluminação possa realmente parecer. É relaxada, receptiva, ordinária até. Não se encontra em nenhum
outro lugar, separada da vida, mas no meio dela. Como outro ensinamento Zen diz, “O caminho está bem
abaixo dos seus pés.” Intimidade oferece uma inspiração para se conectar com o som dos pássaros, a brisa
da primavera, aqui e agora.
Todos nós experienciamos momentos em que descobrimos soluções para nossos problemas sem precisar
“calcular”. Dissemos coisas como, “De repente, ficou claro,” ou “A resposta simplesmente chegou pra
mim,” ou “Não havia dúvida em minha mente do que eu precisava fazer.” Quando desaceleramos o
suficiente para ouvir atentamente, podemos ouvir o que os Quakers chamam “a voz calma e delicada
dentro,” à qual muitas vezes nos referimos como nossa intuição. É uma qualidade da mente que sente o
que é necessário sem se apoiar somente no processo racional.
Quando não sabemos aonde estamos indo, precisamos permanecer totalmente presentes, sentindo
cuidadosamente nosso caminho, polegada a polegada, momento a momento. Precisamos ficar perto de
nossa experiência real. Quando não sabemos, qualquer coisa é possível porque não estamos limitados
por velhos hábitos de pensamento ou os pontos de vista dos outros. Não saber deixa espaço para a
sabedoria surgir, para a situação em si nos informar.
No nível mais profunda de intimidade, sujeito e objeto desaparecem. Não existem mais limites rígidos e
fixos. “Eu” não sou íntimo de “você.” Nossa separatividade se dissolve. Experienciamos uma abertura
indefesa, união completa. Esse é o verdadeiro coração e beleza da mente do não saber.
Nos dias que antecederam sua morte, meu amigo John estava em uma espécie de coma desperto. Sua
face estava tensa, sua cabeça jogada pra trás, os músculos de sua garganta tensos e contraídos. Cada
respiração era uma luta.
Certa noite, enquanto me sentava ao lado da cama de John, fiquei preocupado, imaginando o que fazer.
Um conhecido professor Budista com experiência em tais assuntos me disse que o espírito de John estava
tentando deixar seu corpo e que eu deveria dar um toque no topo de sua cabeça para lhe mostrar o
caminho. Assim fiz, mas nada mudou.
O médico de John telefonou para dizer que eu devia aumentar um pouco a morfina para relaxar a
respiração de John. Assim fiz, mas nada mudou.
Mais tarde aquela noite, veio um massoterapeuta. Ele me encorajou a pressionar dois pontos especiais
nos pés de John. Isso aliviaria a tensão. Assim fiz, mas nada mudou.
Todo esse conhecimento não estava ajudando. Então eu me voltei para dentro. Soltei o conselho de cada
um e meu próprio medo, e tomei algumas respirações profundas.
Eu comecei a sentir um impulso dentro de mim. Instintivamente, percebi, eu só queria me envolver em
torno desse homem em sofrimento. Não é algo que eu normalmente faria. Mas confiei em minha
intuição. Subi na cama e embalei John na curva do meu braço. Balançando-o para frente e para trás, muito
espontaneamente, comecei a cantar as doces canções de ninar de John. Não aquelas rimas infantis, mas
aquelas que você inventa à medida que avança. Palavras e sons misturados aleatoriamente, sem fazer
nenhum sentido. Canções de amor, eu chamo. Todo parental fez isso para uma criança doente ou
amedrontada. E enquanto eu cantava suavemente no ouvido de John e beijava sua fronte, minhas mãos
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sabiam o que fazer, embora eu não tivesse nenhum objetivo em mente. Meus dedos gentilmente
acariciaram sua garganta e afagaram seu rosto. Minhas mãos circularam em torno de seu coração, muito
suavemente.
Perdemos toda a noção do tempo. Eu podia sentir John afundando em mim, meu corpo amortecendo o
que restava de sua forma óssea. Eventualmente sua garganta relaxou e sua cabeça veio para a frente.
Seus olhos se abriram por um momento. Ele parecia aliviado. Então adormeceu.
Mais tarde, eu me perguntei se tinha feito a coisa certa. Será que eu puxei John de volta de um estado
quase-morte, parei um processo espiritual de liberação cedo demais? Eu não sei. Mas eu sei que o coração
precisa estar suave antes que qualquer um de nós possa ficar livre.
Em retrospecto, eu percebi o problema por trás de todas as estratégias que empreguei antes de
simplesmente segurar John: todas decorreram da ideia de que o que estava acontecendo com ele não
estava ok. Aqueles métodos tinham primariamente a intenção de aliviar seus sintomas. Ao longo do
caminho, John, a pessoa, parecia se perder. Só depois de ficar exausto pela ineficácia de todas as
estratégias é que fiquei disposto a desistir, deixar de lado minhas ideias preconcebidas sobre o que
deveria acontecer. Então minha mente relaxou, e meu coração começou a conduzir o caminho. Eu pude
ver possibilidades que não tinha reconhecido antes. Me permiti me mover naturalmente, sem nenhuma
interferência de minha mente cognitiva. Tudo que eu precisava fazer era ouvir e sair do meu próprio
caminho. E ao fazer isso, fui capaz de honrar e me conectar com John, quem ele realmente era e o que
ele realmente precisava naquele momento. Não saber é mais íntimo. O empenho de não saber é, às
vezes, nosso maior patrimônio. O grau com que somos capazes de viver neste momento sempre novo -
essa é a medida de nossa capacidade do real servir.
Quando Tom, um jovem e amável voluntário do Zen Hospice, tentou mover JD, um residente, da cama
para a poltrona, ele não conseguiu. As pernas de palito de JD desmoronaram, e ele caiu no chão. Lá estava
ele deitado no chão frio, a calça do pijama abaixada nos tornozelos, a fralda meio aberta, os braços
emaranhados. Fisicamente , JD estava bem, mas tudo era uma terrível bagunça. Tom era um desastre
absoluto. Me ligou, constrangido e cheio de autocrítica, me pedindo para rever os procedimentos de um
cuidador para mobilizar uma pessoa frágil. Tom desejava armar-se de mais informação de modo a não
“estragar da próxima vez.”
Acontece que tendo eu mesmo treinado Tom, tinha bastante certeza de que ele conhecia os
procedimentos. E mais, eu tinha uma sensação de que mais informação não acomodaria o medo e dúvida
que estavam correndo soltos em sua mente. Em vez disso, eu tentei acolher suas preocupações com uma
instrução simples. “Na próxima vez, antes de você mover JD, verifique seu abdome. Observe se ele está
tenso e contraído. Não faça nada até que sinta seu abdome macio.”
Tom respondeu com impaciência. “Sim, sim, eu sei todas essas coisas, mas como faço para cruzar as
pernas? Você deve mover a parte inferior do corpo primeiro ou a parte superior?”
Eu persisti. “Apenas cheque seu abdome. Sinta a respiração lá e relaxe-o antes de uma ação.” Então pedi
que me ligasse de volta no fim de seu turno.
Mais tarde aquela noite, Tom retornou, dizendo entusiasmado, “Eu fui posicionar John, e a coisa mais
incrível aconteceu. Enquanto me inclinava sobre a cama, pensei no que você havia dito. Observei que
minha barriga estava dura como uma pedra. E vi que estava com medo. Por alguns momentos o medo
parecia percorrer meu corpo. Então, inspirando e expirando, o medo começou a se dissipar e a barriga a
abrandar. No instante seguinte eu estava embalando JD em meus braços como se ele fosse um amante

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ou uma criança. Levá-lo para a poltrona não precisou de esforço. Tudo aconteceu graciosamente.
Instintivamente eu soube o que fazer. Foi realmente encantador.”
Não saber é uma porta de entrada para uma apreciação mais profunda da potência de nossa natureza
fundamental, que não pode ser conhecida pela mente conceitual sozinha. Ela vai além de nossa maneira
ordinária de pensar e ver as coisas, e para uma intimidade com esse momento agora.
Uma característica de todos os humanos que a morte ilumina é nosso desejo de segurança em um mundo
em constante mudança. Acreditamos que quem somos e como as coisas são para nós devem permanecer
fixas e permanentes. Queremos saber o que o futuro trará. Acima de tudo, não queremos que quem
pensamos que somos morra.
Quando consideramos que nossas personalidades, nosso senso de eu separado, são tudo o que somos, a
morte torna-se “o outro externo” que tememos. Ela ameaça nossa crença de longa data na primazia de
uma identidade limitada e única. Quem Eu serei sem minha familiar história de self? Não é de admirar
termos medo de soltar. Não queremos nada mais exceto esse todo poderoso “mim”. Nos agarramos ao
conhecido, e tememos entrar no desconhecido.
Observe crianças brincando em um playground balançando-se nas barras. Elas movem-se livremente,
soltando uma e alcançando a próxima em um movimento fluido. Você já observou adultos se
movimentando na mesma estrutura? Isso raramente se vê. Mas quando acontece, verá que eles apertam
firme uma barra e não soltam até segurarem com firmeza a próxima.
Mesmo numa reflexão superficial, podemos ver que nossas tentativas de nos tornarmos coisas sólidas e
separadas se opõem ao modo como a realidade funciona. Quando equivocadamente tentamos nos retirar
do rio da mudança, acabamos nos sentindo cada vez mais sozinhos, isolados e com medo. Isso causa um
grande sofrimento no momento de nossa morte, mas também aqui no meio de nossas vidas hoje. No
final, ao perseguirmos segurança nos sentimos mais inseguros.
Estamos em uma luta contra a natureza.
A realidade não pode ser mapeada. Está além de descrição ou de qualquer outra visão. Não é uma verdade
estática única, e sim um mistério sem fim, revelador. É vivo, dinâmico e sendo expressado
constantemente por meio da forma e não-forma.
O Sutra do Coração é um dos sutra do Budismo mais conhecidos, ensinamentos às vezes considerados
confusos, paradoxais.
Forma é vazio; vazio é forma;
Forma nada mais é do que vazio.
Vazio nada mais é do que forma.
As palavras são quase incompreensíveis à primeira vista. Na primeira vez em que se deparou com esse
ensinamento, meu filho disse, “Pai, é sobre esse blábláblá que você fala com as pessoas em seus retiros
de meditação? Isso é o que você faz para viver?” Me fez rir.
Mas se ficarmos com isso, podemos ver que o sutra descreve a natureza de nossas mentes e da realidade
com bastante precisão. Assim como não podemos separar a vida da morte, também não podemos separar
forma e vazio. Eles são um pacote, sempre surgindo juntos.
Vazio, vacuidade, vaziez (emptiness) é uma palavra difícil para a maioria dos ocidentais. Normalmente
associamos vazio com deficiência, improdutividade, ausência. A maioria de nós se relaciona mais
facilmente com as palavras abertura, espaçosidade, ou melhor ainda, sem limites. Eu gosto de pensar em
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vacuidade como uma extensão aberta, uma vastidão, um campo sem bordas que não é limitado por
nenhum conceito.
Pense em como, ao caminhar por uma grande sala, observamos primeiro os objetos nela: as mesas,
cadeiras, sofá, peças de arte, e luminária. Mas com um pouco mais de atenção, podemos observar como
a luz está mudando de momento a momento. Ficamos conscientes do espaço que envolve e mantém os
objetos.
Da mesma forma, quando olhamos para nossas mentes, primeiro vemos os objetos nela – nossos
pensamentos, sentimentos, memórias, devaneios, planos, assim como sensações chegando de nossos
corpos, nossas percepções dos eventos que estão acontecendo para nós. Um pouco mais de reflexão
revela que estamos cientes dessas atividades em nossas mentes porque elas estão ocorrendo no espaço
aberto da consciência. Essa consciência está sempre lá; nós simplesmente não prestamos atenção a ela
porque estamos preocupados com os objetos, nossas percepções, e emoções – assim como quando
entramos na sala mobiliada, nossa atenção foi para as mesas e cadeiras, não para o espaço vazio. Assim
podemos dizer que o espaço aberto de nossa consciência sem limites, que contém as “formas” de nossos
pensamentos e percepções, é “vazio.”
O engraçado é que normalmente pensamos nas formas como permanentes. É para elas que nos voltamos
em nossa busca por segurança. Contudo, após um exame mais atento, descobrimos que até as formas em
si são vazias, impermanentes. Nossas ideias, fantasias, e sensações físicas – podemos pensar nelas como
coisas sólidas, mas elas são como bolhas. Aparecem por um tempo, e então se dissolvem. Vem e vão.
Assim como nós. Assim como tudo no universo. Existimos, e então não existimos mais. Cada vida, cada
evento, cada sentimento, cada ‘fazer amor’, cada café da manhã, cada átomo, cada planeta, cada sistema
solar é passageiro. Cada forma tem sua vez na roda do viver e morrer.
Vazio, vaziez, vacuidade, por outro lado, nunca está acabando. De fato, dá nascimento à forma. A
vacuidade torna tudo possível.
Jennifer Welwood, uma psicoterapeuta, autora e praticante Budista dedicada, escreveu sobre a “beleza
poética” de forma e vazio em um ensaio perspicaz:
Tanto no mundo externo como no interno, sempre que olhamos de forma profunda a vacuidade,
descobrimos a forma; e sempre que olhamos profundamente para a forma, descobrimos a
vacuidade. Este é o sentido em que a forma e o vazio são inseparáveis, indivisíveis e não duais. Em
linguagem tântrica, poderíamos dizer que são amantes unidos em eterno abraço - distintos mas
não separados; nem um, nem dois...
Quando nos consideramos como uma forma sólida, vemos o vazio como algo que pode nos minar
ou aniquilar. Em vez de reconhecer a vacuidade como nossa própria natureza, a vemos como um
inimigo que temos que evitar ou derrotar. E vemos a forma como algo que temos de fabricar ou
defender ou promover. Assim, quando falhamos em reconhecer a não-dualidade de forma e vazio,
elas ficam divididas, e em vez de serem inseparáveis uma da outra como amantes, tornam-se
opostas uma à outra como antagonistas. Temos que evitar o vazio e temos que fabricar a forma.
Quando nos tomamos como formas separadas, sólidas, a morte torna-se o inimigo. A morte é o vazio que
ameaça nossas formas. Podemos relaxar um pouco quando percebemos que nossa verdadeira natureza
é aberta, espaçosa, e ilimitada e que fluir através desse imenso vale de vacuidade é um rio de constante
mudança.

153
A vacuidade não precisa nos amedrontar porque ela não significa o completo nada, que não existimos ou
que não temos nenhum valor, ou que não somos cada um único, maravilhoso. Somos tudo isso. É só que
não existimos separados de todo o resto. Somos apenas uma expressão provisória do grande campo de
vacuidade ininterrupta. Vacuidade não é alguma espécie de céu ou realidade absoluta separada de nós. É
uma infinitude fértil da qual toda forma surge perpetuamente. Mas nenhum indivíduo ou coisa tem uma
existência independente separada; a vacuidade é tecida através do tecido de toda a vida. Sem ela, nunca
teríamos chegado aqui em primeiro lugar.
O grande mestre Tibetano Kalu Rinpoche escreveu, “Vivemos na ilusão e aparência das coisas. Existe uma
realidade. Você é essa realidade. Quando você entender isso, verá que você não é nada. E sendo nada,
você é tudo. Isso é tudo.”
A história de Tommy e sua mãe, Ethel, é uma boa ilustração do jogo de forma e vazio no mundo. Ethel
tinha câncer de cérebro. Ela veio viver conosco quando sua família não conseguiu mais gerenciar cuidar
dela em casa. Seu filho, Tommy, tinha Síndrome de Down. Embora fosse adolescente, seu
desenvolvimento emocional e psicológico era de uma criança de seis anos. Ele visitava sua mãe
frequentemente e passamos a curtir a companhia um do outro. Ao longo dos meses desenvolvemos um
certo nível de confiança.
Na manhã em que Ethel morreu, eu liguei para seu marido, Peter, o pai de Tommy, e perguntei se ele
gostaria de trazer a família para ficar um pouco com o corpo de Ethel.
“O que eu faço em relação à Tommy?” Peter perguntou. Eu sugeri que ele trouxesse Tommy junto. Peter
hesitou, explicando que primeiro queria conversar com a terapeuta dele sobre isso.
Um pouco depois, Peter retornou. “A terapeuta não acha que seja uma boa ideia. Ela me disse que quando
criança foi a um funeral da família e forçada a beijar sua avó morta. Ela acha que expor uma criança a um
defunto pode ser muito traumático.” Ele parou por um momento, e então acrescentou, “Eu não sei o que
fazer porque Tommy está pedindo para ver sua mãe.”
“Por que você não traz Tommy e convida sua terapeuta para vir também?” eu sugeri.
Uma hora depois, a campainha tocou. Lá estavam Peter, Tommy, a terapeuta, e alguns membros da
família. Tommy tinha uma pequena câmera pendurada no pescoço.
“Oi Tommy! Vejo que você trouxe sua câmera. O que você quer fotografar hoje?”
Ele sorriu. “Você, o Buda e minha mãe.” Fomos até a sala de estar onde Tommy tirou foto minha e da
grande estátua do Buda. Então subimos para o quarto de Ethel.
Todos estavam muito apreensivos. Como Tommy reagiria ao ver sua mãe morta? Ele e eu caminhamos de
mãos dadas até a cabeceira da cama. Ele espontaneamente se estendeu sobre a grade da cama e beijou
sua mãe na testa, como havia feito em quase todas as visitas. Então Tommy virou-se e olhou para mim,
não com medo, mas com inocente curiosidade, e perguntou, “Para onde ela foi?”
Forma e vazio. O que antes era animado e cheio de vida, agora era vazio. Tommy pode sentir a ausência
de Ethel, embora seu corpo ainda estivesse presente. Um silêncio caiu sobre o quarto. A maioria dos
adultos se mexia nervosamente, tentando imaginar como responder.
Eu disse o que normalmente faço. “Eu não sei, Tommy. O que você acha?”

154
Ele pensou sobre isso por um minuto antes de relatar uma descrição animada nascida de sua imaginação.
A história do que poderia ter acontecido com sua mãe incluía imagens de uma borboleta saindo do casulo
e cenas do filme Exterminador 2, no qual formas humanas se transformam de uma forma em outra.
Os adultos expiraram e relaxaram. Eles puderam ver que Tommy não estava amedrontado. Na verdade,
ele estava incrivelmente curioso sobre o que estava ausente.
Antes da família partir eu perguntei se Tommy e eu podíamos ficar um tempo a sós com Ethel. Eu senti
que ele precisava ficar com sua mãe uma última vez. Como tínhamos desenvolvido uma boa confiança ao
longo do tempo, Peter concordou.
Tommy se dirigiu à beira da cama novamente e fez mais algumas perguntas.
“Quando você está morto, você pode sentir?” ele perguntou.
“Eu não sei se as pessoas mortas podem sentir, Tommy, mas você consegue sentir sua mãe?”
“Sim, eu posso. Mas ela não está se mexendo.”
“Sim, quando as pessoas morrem, elas não mais respiram ou comem ou falam” eu disse. Minhas respostas
simples e objetivas pareceram satisfazê-lo. Então eu disse, “Tommy, se existe algo que você queira dizer
à sua mãe ou fazer por ela, agora é realmente um bom momento para isso.”
Tommy gentilmente tocou o braço de sua mãe, sentindo sua textura e mudança de temperatura. Após
um momento, ele fez a coisa mais doce e mais extraordinária. Inclinado sobre o corpo da mãe, ele a
cheirou da cabeça aos pés. Aquilo me fez relembrar de uma cena de um bebê cervo de cauda branca em
uma estrada rural. A mãe do filhote foi atropelada por um carro. O jovem cervo moveu-se com ternura,
farejando o corpo de sua mãe com curiosidade. Os movimentos de Tommy tinham uma sensação
semelhante, quase primitiva. Eram completamente sem censura.
É claro, Tommy ainda precisava lamentar, passar pelo luto e levar um tempo para entender a perda de
sua mãe. Mas nesse momento, não havia nada mais que precisasse ser feito ou dito. O caminho de Tommy
do saber era visceral e palpável. Eu duvido que muitos adultos se permitiriam aquele tipo de intimidade
com a morte.
Eu me perguntei, e se a morte pudesse ser tão natural para adultos em nossa cultura quanto foi para
Tommy?
E se nos tornarmos mais íntimos com forma e vazio na vida cotidiana?

155
17.
ENTREGUE-SE AO SAGRADO
Agora é o tempo de saber que tudo o que você faz é sagrado.
- Hafiz

O sagrado faz aparições de surpresa.


Caminhando pelo corredor de trinta leitos na longa e única enfermaria de cuidados paliativos do Hospital
Laguna, notei Isaiah com o canto dos olhos. Um Afro-Americano criado em Mississippi, Isaiah estava
morrendo. Sua respiração estava difícil e ele suava bastante. Sentei próximo a ele.
“Parece que você está trabalhando muito duro,” eu disse.
Isaiah levantou o braço, apontou para a distância, e disse, “Só tenho que chegar lá.”
“Esqueci meus óculos. Não consigo ver à distância. Me diga o que você vê,” eu respondi.
Isaiah descreveu uma planície verde brilhante e uma extensa colina levando a um platô de relva.
Eu perguntei, “Se eu prometer amparar, posso ir?”
Ele segurou minha mão com força, e começamos a subir juntos. Sua respiração ficou mais curta, e ele
transpirava mais a cada passo. Foi uma longa caminhada. Não uma fácil caminhada.
“O que mais você vê?”, perguntei.
Ele descreveu uma escola vermelha com três degraus que levavam a uma porta.
Meu treinamento me informou que Isaiah estava desorientado em tempo e espaço. Podia ter dito àquele
velho homem que suas visões provavelmente estavam sendo causadas pelas metástases cerebrais e pela
morfina. Podia ter lhe recordado que se encontrava em uma enfermaria no Hospital Laguna Honda. Mas
isso era verdade apenas no nível mais superficial.
A verdade mais profunda era que estávamos caminhando para uma pequena escola vermelha.
Eu perguntei, “Você quer entrar?”
“Sim. Eu estive esperando.”
“Posso ir com você?”
“Não.”
“Ok, então vá,” eu disse.
Alguns minutos depois, Isaiah morreu pacificamente.
Conhecer o sagrado não é ver coisas novas, mas ver de uma maneira nova. O sagrado não está separado
ou é diferente de todas as coisas; está oculto em todas as coisas. E morrer é uma oportunidade de
desvelar o que está oculto.
O amado mestre Zen Thich Nhat Hanh usa um exercício simples para ilustrar esse ponto. Ele segura uma
folha de papel em branco e pede às pessoas que digam o que estão vendo.
A maioria responde, “Papel branco.”
156
Crianças e poetas respondem mais criativamente. Eles dizem, “Nuvens, chuva, e árvores.” Porque como
Thich Nhat Hanh diz, “Sem nuvens, não haveria chuva; sem chuva as árvores não podem crescer; e sem
árvores, não conseguimos produzir papel. E se continuamos a olhar, podemos ver o madeireiro que serrou
a árvore e a trouxe para a fábrica para ser transformada em papel. E podemos olhar o trigo. Sabemos que
o madeireiro não poderia trabalhar sem seu pão de todo dia, e portanto o trigo que se tornou seu pão
está também nessa folha de papel. E o pai e a mãe dele estão também. Olhando ainda mais
profundamente, podemos ver que estamos nela também.”
Essa é uma maneira de expressar nosso profundo pertencimento e interdependência com todos e com
tudo. É uma forma de compreender que o sagrado não é algo separado de nós. Está aqui conosco em
cada momento.
O sagrado sempre existiu. Tudo está impregnado com ele. O sagrado é a natureza da realidade. Contudo,
na maior parte do tempo andamos pelo mundo sagrado com visão ordinária. É como se fôssemos
daltônicos, incapazes de distinguir claramente os diferentes tons do espectro; nem sempre percebemos
ou distinguimos o sagrado. Não apreciamos toda a amplitude de sua beleza. Vemos de uma maneira
condicionada, na superfície da vida. Quando prestamos atenção, entretanto, percebemos que o sagrado
revela-se continuamente.
A palavra sagrado é um símbolo que aponta para o inominável. O sagrado não pode ser totalmente
descrito. Tudo o que podemos fazer é falar de certas qualidades que caracterizam sua presença, sua
influência na consciência, e as maneiras pelas quais podemos acessá-lo.
Literalmente, sagrado significa “tornar santo”. A raiz, sacra, também significa "separar o que é altamente
valorizado ou importante". Na tradição Judaica o aposento conhecido como o Santo dos Santos é a área
mais íntima e sagrada do tabernáculo de Moisés. Abriga a Arca da Aliança de ouro, que contém as tábuas
sagradas gravadas com os Dez Mandamentos. Nenhuma pessoa ordinária pode entrar. Somente a pessoa
mais sagrada, o sumo sacerdote, pode entrar neste lugar mais sagrado da terra, no dia mais sagrado do
ano. Na igreja Católica onde eu servi como coroinha, o sacrário tinha duas portas douradas. Ficava
localizado na parte mais alta do altar e continha a Santa Eucaristia, que se dizia ser a morada de Cristo.
Somente um sacerdote ordenado podia abri-lo.
Se não soubéssemos o significado mais profundo dessas tradições, práticas, e metáforas, poderíamos
erroneamente assumir que carecemos das qualificações para conhecer o sagrado. Poderíamos acreditar
que o sagrado só pode ser acessado por pessoas especiais com treinamento especial em momentos
especiais. Mas pessoas ordinárias, como você e eu, podem e regularmente experienciam o sagrado em
uma miríade de caminhos e maneiras, incluindo visões de pequenas escolas vermelhas.
Uluru, também conhecida como Ayers Rock, é uma enorme formação de arenito na Austrália central. É
uma pedra diferente de qualquer outra, se elevando majestosamente de uma planície. Os aborígenes da
área não veneram a pedra, pois a pedra é mais do que uma pedra para eles. Eles reconhecem que ela é
uma manifestação do sagrado. Quando reverenciamos Uluru, a Catedral de Chartres, ou Machu Picchu,
ou a quietude de um bosque de sequoias, podemos sentir que estamos pisando em solo sagrado.
Eu não consigo explicar porque os seres humanos fazem peregrinações a tais sítios há milhares de anos.
Talvez precisemos atribuir o poder do sagrado a um lugar, um objeto, ou uma pessoa para torná-lo mais
real, mais accessível. Talvez esses lugares sejam portas de entrada, portais que de alguma forma auxiliam
nossas percepções. Quem pode dizer? Para essas perguntas mais importantes precisamos não chegar
muito cedo a conclusões.

157
De qualquer maneira, está claro que todos nós vamos a certos lugares para aquietar nossa mentes
ocupadas, como praias, montanhas e monastérios. Algumas vezes encontramos quietude em um
momento breve no sofá. Intenção e atenção aumentam nossas chances de entrar em contato com o
sagrado. Mas reconhecer a presença do sagrado pode também surgir subitamente e espontaneamente,
como foi para Jacó quando, de acordo com a Bíblia, ele despertou de um sono profundo e disse,
“Certamente o Senhor está neste lugar, e eu não sabia disso.”
Nossa resposta ao sagrado pode incluir alegria, êxtase, inspiração, inclusividade, expansividade, e um
sentimento de reverência, como se tivéssemos encontrado o que é santo na vida. É evidente e
inequívoco. Às vezes a experiência tem uma intensidade ou densidade palpável. Podemos sentir uma
quietude interior, como se o ímpeto com o qual contamos para nos manter em movimento pela vida não
fosse mais necessário. O impulso de fazer, lutar, ou controlar é liberado no não-fazer. Reconhecemos que
quem somos é inseparável da quietude e o silêncio.
Zoe trabalhava como empacotadora para um fabricante de roupas antes de se mudar para o Zen Hospice.
Seu passatempo favorito era assistir luta livre na TV. Uma doença hepática avançada causou icterícia,
deixando sua pele amarelada. Seu abdome era volumoso pelo acúmulo de líquido, e devido ao
desconforto perdeu o apetite e parou de comer.
Apesar de se sentir infeliz, Zoe mantinha um espírito alegre. A doença causava severa sonolência, e ela
dormia cerca de dezesseis horas por dia. Nas semanas finais ela entrou em um estado de sono mais
profundo que muitas vezes demorava um ou dois dias em direção ao que eu chamava “prática correr
para morrer.”
Quando Zoe retornava à consciência, ela compartilhava o que tinha ocorrido naquelas jornadas de sono
profundo. Uma vez, ela descreveu uma visita a um lugar de completa paz, e observou, “Se eu soubesse
que o silêncio era tão maravilhoso, teria passado mais tempo em quietude durante minha vida.”
Silêncio profundo não é meramente uma pausa entre sons. É uma quietude interior sentida no coração,
calma como a neve recém-caída em uma passagem na montanha. Esse silêncio nos despoja tanto da
crença como da descrença. Leva-nos além do conhecido, além da linguagem, e para o sagrado.
Silêncio é uma resposta natural à presença do sagrado não importa onde ele apareça. Por meio do
silêncio, ficamos conscientes da majestade no ordinário; a beleza, a unidade, e a profundeza do sagrado
que está sempre ao nosso redor e dentro de nós.
O nascimento é um dos eventos humanos mais reais, honestos e sem glamour, comum para todos nós.
Contudo qualquer um que tenha testemunhado o nascimento de uma criança não pode deixar de sentir
um silêncio reverente na presença de uma nova vida que emerge. No meio da confusão de sangue e
lágrimas, dor, intensidade emocional, gritos e caos, há beleza, alegria infinita e um poder e autenticidade
impressionantes expressos pela mulher que dá à luz.
O nascimento de uma criança é um convite para entrar no sagrado. A chave que abre sua porta é o amor,
um amor diferente de qualquer outro que tenhamos conhecido antes. Pergunte a qualquer mãe.
A morte oferece o mesmo convite. Na verdade, nascimento e morte estão muito próximos um do outro.
É difícil dizermos precisamente quando a vida começa ou termina. Ambos podem ser momentos de
grande vitalidade. Ambos pedem para aceitarmos nossa vulnerabilidade, estar aberto para o inesperado,
e deixar ir a vida como a conhecemos.
Nascimento e morte podem servir como portais para o sagrado. Ou não.
158
Para muitos, a morte é totalmente mundana, um evento puramente biológico, um assunto da ciência
física desprovido de mistério. O tempo de morte de algumas pessoas é gasto assistindo ao game show
'Wheel of Fortune' na TV. Por mim tudo bem; tornei-me muito bom nos quebra-cabeças. Para alguns, a
morte é uma tragédia. Mas para outros, morrer é um momento de transformação espiritual e os leva além
da identidade pessoal, trazendo uma sensação de absoluta segurança, destemor, e até perfeição diante
do desconhecido. No processo de morrer, muitas pessoas passam a se conhecer como o que só posso
chamar de "um amor imortal".
Uma pesquisa Gallup mostrou que “as pessoas querem, em grande parte, recuperar e reafirmar as
dimensões espirituais da morte.” Mas isso não significa necessariamente que elas desejam mais religião
ou crenças. Significa que estão buscando mais do que a maestria da medicina moderna.
Apoio espiritual não é uma questão de práticas esotéricas e discussões existenciais. Pode ser tão simples
como oferecer nossa presença tranquilizadora ou cozinhar uma sopa feita com carinho. No Zen Hospice
adotamos a visão de que quando as pessoas estão morrendo, elas precisam de cuidados intensivos –
intensivo amor, intensiva compaixão e intensiva presença. Em última análise, apoio espiritual é
compromisso destemido de honrar a maneira única do indivíduo de enfrentar a morte.
No início do processo de morrer, as pessoas geralmente precisam de ajuda para descobrir o que tem valor
e propósito na vida. Sem significado a vida torna-se mecânica, vazia, sem alma, muito pequena para os
seres humanos existirem. Victor Frankl identificou a auto-transcendência como uma capacidade humana
indispensável para uma vida plena de sentido quando escreveu, “O homem não é destruído pelo
sofrimento; ele é destruído pelo sofrimento sem significado.”
A morte chega para todos. Quer gostemos ou não desse fato, ela com certeza acontece. Em vez de evitar
essa verdade, é útil compreender seu significado. Encarar nossa própria mortalidade pode mudar nossas
prioridades e valores, e mudar profundamente nossas visões da realidade. Às vezes a adversidade é o que
nos ajuda a descobrir a beleza na vida. Há um compromisso no ato de aceitar a morte que pode nos ajudar
a ir da tragédia para a transformação. Sofrimento é sofrimento. Nem sempre podemos explicá-lo, muito
menos controlá-lo. Mas podemos enfrentá-lo com compaixão. Podemos enfrentá-lo com presença, olhá-
lo diretamente, compreendê-lo, e talvez encontrar significado em nosso relacionamento com ele.
Significado não é sobre se apropriar de uma causa. Significado nos fortalece; edifica resiliência e nos
permite confrontar o sofrimento sem fugir.
É claro, o sofrimento não é necessário para encontrarmos significado. Algumas pessoas descobrem
significado através de atividades como arte, ouvir música, estar na natureza, escrever no diário, e
contação de histórias. Outros encontram significado através do relacionamento – a alegria do
companheirismo, o legado de dar presentes, relembrar com entes queridos sobre os velhos tempos ou
curar amizades distanciadas com o perdão. Em algum ponto, contudo, o significado perde sua
importância para as pessoas que estão morrendo. Elas se retiram do mundo externo e entram um uma
jornada mais interna. Se nós – seus bem-intencionados amigos, familiares, e cuidadores – continuarmos
trazendo-os de volta ao mundo do tempo, objetos, e significado, podemos quebrar sua conexão com o
fluxo do sagrado. Vovó não quer mais falar sobre seu primeiro beijo na roda gigante na feira do condado.
Tocar a música favorita do seu pai não lhe traz mais devaneios sobre o dia do seu casamento. A heroica
expedição de tia Ellen à Antártida, que já foi a aventura que definiu sua vida, perde importância.
Lembra-se da quietude e do silêncio que referi que sentimos em lugares que são portais para o sagrado,
como a Catedral de Chartres ou um bosque de sequoias? Agora imagine diversos ônibus de turismo
chegando de repente e 200 turistas desembarcando com suas câmeras e voz alta, fervilhando pelo lugar.

159
Nossa atenção seria desviada pela agitação. Embora o sagrado ainda estivesse presente, nós poderíamos
temporariamente perder nossa conexão com ele. Quando cuidadores e pessoas amadas aparecem com
suas próprias agendas, memórias, e necessidades, elas tornam-se como os irritantes turistas – uma
distração desagradável para aqueles que estão morrendo. Mas não precisa ser desse jeito. Como
cuidadores e pessoas amadas, podemos escolher atuar como companheiros silenciosos ou guias
confiáveis à medida que a pessoa que está morrendo vai mais fundo na floresta sagrada.
É comum que as pessoas no momento da morte apresentem sintomas físicos angustiantes, agitação
mental ou sonolência, e agitação emocional. Para cuidar delas, devemos efetivamente cuidar da dor,
gerenciar adequadamente os sintomas, e cuidar de quaisquer questões perturbadoras. Isso requer
maestria. Entretanto, se só trouxermos tecnologia e expertise médica, perderemos a santidade daquele
momento. Podemos até interromper uma oportunidade de crescimento e transformação.
A morte acontece em dois níveis simultaneamente – o físico e o espiritual. O corpo está encerrando suas
atividades, enquanto a consciência está se abrindo. Para acompanhar compassivamente o moribundo,
idealmente cuidamos de ambos ao mesmo tempo – nós e ele. Pode ser desafiador para uma pessoa
administrar tudo isso. Descobri ser difícil, mesmo após três décadas de experiência. É por isso que acho
importante ter mais de uma pessoa no quarto. Um cuida das necessidades físicas; o outro acompanha a
pessoa em sua jornada espiritual.
Jennifer estava morrendo após um longo e difícil caminho com um câncer de pulmão. Laurie, uma
enfermeira extraordinária dedicou sua inteira atenção ao corpo de Jennifer. Laurie respirou com Jennifer
em meio à falta de ar, enxugando os lábios rachados com uma esponja úmida e atendendo a todos os
sintomas físicos de Jennifer com habilidade e amor.
Sentado ao lado da cama de Jennifer, acomodei-me em meu próprio corpo e entrei em contato com a
imperturbável consciência silenciosa que repousava sob a agitação. Aquietei minha mente, evoquei a
compaixão em meu coração. Me sintonizei com Jennifer, com sua mudança de consciência, permitindo
que a mesma se imprimisse na minha. Permaneci presente, claro, e calmo, tentando receber o que quer
que surgisse com equanimidade. Não distraído, senti que Jennifer já havia embarcado em sua jornada.
Viajamos juntos, assim como Isaías. Fui honesto comigo mesmo sobre minhas limitações. Eu sabia que só
poderia acompanhá-la até ali. Eu ofereci a ela o espaço da minha mente.
Eu não sabia como Jennifer deveria morrer. A morte é desconhecida e atemporal. A descobrimos
momento a momento. Então eu fiz o meu melhor para não interferir. Confiei na sabedoria da compaixão,
que nosso corações amorosos são guias confiáveis. Assim como duas parteiras ajudaram meu filho Gabe
a respirar pela primeira vez, Laurie e eu ajudamos Jennifer a dar seu último suspiro.
Sentado próximo à Jennifer naquele dia, eu me recordei de um poema de Antonio Machado, que
maravilhosamente expressa para mim como, embora possam parecer agitados no superficial, aqueles que
estão morrendo internamente podem estar bastante calmos.
Não, minha alma não está dormindo.
Está acordada, bem acordada.
Nem dorme, nem sonha, mas vigia,
seus olhos claros abertos,
afastada de coisas, e ouve
nas margens do grande silêncio.

160
Não é infrequente pessoas emergirem de um sono profundo ou semicoma e me dizerem que lembram-
se de estarem comigo naqueles períodos. Geralmente me agradecem por estar com eles sem
interferência. Esse contato não-verbal, ser a ser, está no coração da cura. A sensação de presença
compartilhada com outro ser humano nos ajuda a apreciar que a consciência não é só nossa, ela se
estende e continua além de nossos eus separados. Objetos, experiências, e até pessoas vêm e vão na
consciência. A consciência é o pano de fundo onde não há mudança. A consciência é como uma tela de
cinema que conhece o que está sendo projetado nela.
Normalmente, só vemos o sofrimento da impermanência, o vir e ir de constante mudança, o se juntar e
se separar, sem perceber que tudo isso aparece e desaparece no pano de fundo da perfeita harmonia.
Quando tomamos o que no Zen é chamado o “passo para trás”, podemos olhar do ponto de vista da
consciência aberta, sabemos que somos esse fundo, essa nossa consciência pura, nua, contra a qual
ocorre toda mudança pessoal e universal. É a isso que nos entregamos.
Tenho testemunhado uma radiância cada vez maior conforme pessoas sem prática espiritual tonam-se
transparentes à sua natureza essencial. É similar ao processo de transformação que ocorre nos praticantes
de meditação após décadas de prática contemplativa.
O potencial que essas experiências me mostraram é inquestionável. Sem dúvida, morrer encerra uma
possibilidade inigualável de transformação. Pode ser inspirador e incrivelmente bonito. E pode ser
também intenso, confuso e complicado. Mesmo no morrer somos impactados por condições além de
nosso controle.
A tecnologia médica tem alterado dramaticamente a experiência do morrer. A ideia de uma “morte
natural” está lentamente desaparecendo de nossa cultura, sendo substituída por uma morte mais
institucionalizada, mais antisséptica gerenciada por profissionais médicos. Há maravilhosos benefícios
oferecidos pelos tratamentos e intervenções modernos. No entanto, há também sérias desvantagens.
Testemunhar os avanços no suporte à vida, onde a linha entre quem está vivo e quem está morto tem se
tornado cada vez mais nebuloso.
Parece que não conseguimos deixar de nos intrometer na experiência do morrer, tanto tecnologicamente
como filosoficamente. Noções idealizadas de uma “boa morte” ou uma “morte digna” são igualmente
preocupantes. Essas “noções” podem nos cegar para o que realmente está acontecendo, nos fazendo
passar por cima do desagradável e desprezar o sagrado. Padrões arbitrários sobre as coisas “caminharem
de acordo com o planejado” exercem enorme pressão na pessoa que morre, acrescentando culpa,
vergonha, constrangimento, e uma sensação de fracasso a um processo já desafiador. Dignidade não é
um valor objetivo. É uma experiência subjetiva. Cuidar com dignidade promove auto-respeito, honra as
diferenças individuais, e apoia a liberdade das pessoas de viverem suas vidas e suas mortes de acordo
com seus desejos pessoais.
Quando interferimos, podemos deixar passar ou até interromper as dimensões sutis da experiência do
morrer. Não importa o quão nobre sejam nossa intenções, precisamos resistir à tentação de agir de
acordo com nossas próprias tendências ou impor nosso conselho bem-intencionado ou crenças espirituais
na pessoa que está morrendo.
Hannah era uma cientista Cristã com uma profunda e inabalável fé em Deus. Aos 93 anos, ela tinha
chegado a um lugar de aceitação de sua morte. Ela me disse que sua imagem da morte era “descansar no
colo de Jesus.”

161
Sua neta bem-intencionada, Skye, veio visitá-la. Skye compartilhou que tinha lido vários livros sobre
experiência quase-morte. De acordo com esses livros, no momento da morte, as pessoas são geralmente
saudadas por seus parentes falecidos. Ela disse, “Vovó, você não precisa se preocupar, porque quando
você morrer, todas as pessoas conhecidas suas que morreram antes de você estarão lá para lhe receber.”
Quando ouviu isso, Hannah ficou apavorada. O segredo que ela nunca tinha compartilhado com sua
família era que seu marido, Edgar, tinha abusado fisicamente dela durante muito tempo na vida de
casados. Ele tinha morrido alguns anos antes. A ideia de encontrar Edgar novamente, “do outro lado” e
passar a eternidade com ele encheu Hannah de desespero.
Uma abordagem contemplativa ao morrer inclui consciência plena, calorosidade, autenticidade,
estabilidade, e escuta generosa. Isso nos permite estar presente sem muitas respostas. Estar presente
com a morte pede humildade, aceitação, e uma disposição de soltar o controle.
No processo do morrer, um despertar gradual ocorre. Quase imperceptivelmente, começamos um
processo longo, lento, de soltar, renunciar àquilo que sabemos não poder mais sustentar ou controlar.
Soltar é uma entrada em um território desconhecido. A dor é o pedágio que pagamos. Lágrimas são os
fluidos que facilitam a liberação.
Ao morrer, não podemos segurar nossos bens preciosos. Um residente do Zen Hospice, Brian, me ensinou
isso quando lamentou e então graciosamente doou sua estimada guitarra Gibson Les Paul. “Não somos o
que temos,” ele disse. “E de qualquer forma, não há estoques no céu.”
Quando perdemos nossa capacidade de realizar atividades favoritas, devemos soltar o viajar, ou cozinhar,
ou fazer amor, e até prazeres mais simples como engolir sem dificuldade. Renunciamos os papeis que
desempenhamos em nossas famílias, no trabalho e comunidades, e liberamos os sonhos que carregamos
conosco por toda a vida mas nunca realizamos. Em nosso morrer devemos soltar até o futuro e tudo e
todos que amamos.
É soltando que nos preparamos para a morte. Suzuki Roshi dizia que renúncia não é desistir das coisas do
mundo, mas aceitar que elas vão embora. A aceitação da impermanência nos ajuda a aprender como
morrer. Também revela o outro lado da perda – o deixar ir é um ato de generosidade. Deixamos de lado
velhos rancores, e nos damos paz. Soltamos visões fixas, e nos entregamos ao não-saber. Soltamos a auto-
suficiência, e nos entregamos aos cuidados dos outros. Soltamos o apego e nos entregamos à gratidão.
Soltamos o controle e nos entregamos.
Entrega não é a mesma coisa que soltar. Normalmente, pensamos em soltar como uma liberação
geralmente acompanhada por uma sensação de liberdade de restrições prévias. Entrega é mais sobre
expansão. Há uma liberdade na entrega, mas não é realmente sobre dispor alguma coisa ou nos distanciar
de um objeto, pessoa ou experiência, como é com o soltar. Com entrega, estamos livres porque nos
expandimos em uma qualidade do ser espaçosa, sem limites que pode incluir, mas não ser restringida
pelas crenças limitantes que previamente nos definiam, nos mantendo separados, à parte. Liberamos o
hábito infrutífero de nos agarrarmos a objetos em mudança como fonte de felicidade. Na rendição somos
restaurados. Não somos mais escravizados por nosso passado. Não mais prisioneiros de nossas
identidades antigas. Nos tornamos íntimos com a verdade interior de nossa natureza essencial. Na
entrega, sentimos que não nos distanciamos, e sim nos aproximamos.
Entrega significa se mover no fluxo. Recordo-me de ver meu pai flutuando no Oceano Atlântico. Ele
parecia desaparecer no mar. Tudo o que eu conseguia ver era sua barriga branca subindo e descendo com
as ondas. Você não consegue flutuar se segurar com muita força
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Entrega acontece quando paramos de lutar. Paramos de lutar contra nós mesmos. Paramos de lutar
contra a vida. Paramos de lutar com a morte. Entrega é um estado no qual a resistência de qualquer tipo
cessa. Já não erigimos qualquer defesa.
Eu não estou convencido que a entrega seja uma escolha. Parece involuntária. Me parece uma
contracorrente inevitável ou um fio cármico nos puxando para casa. Qualidades que geram entrega
incluem fé, amor, convicção religiosa, confiança na sabedoria adquirida, uma sensação de
maravilhamento, e também uma coisa bem mais comum – exaustão.
Certa vez, enquanto fazia canoagem em um dos rios mais selvagens da América, fui jogado ao mar em um
redemoinho. Eu fiz tudo errado. Tentei nadar até a beira do redemoinho, imaginando que de alguma
forma conseguiria me erguer para fora da água, como faria em uma piscina. Meus companheiros me
atiraram cordas e gritaram instruções, mas eu continuava lutando com a força do redemoinho, tentando
escapar. Rapidamente fiquei exausto. Eventualmente, fui derrotado.
O redemoinho me arrastou para um caos na água. Fui arremessado por um poder muito maior do que eu.
Era implacável. Não me entreguei a um suave deixar ir para a luz. Eu estava apavorado, cheio de desespero
e lutando pela sobrevivência. Era como se eu estivesse sendo quebrado.
Em um ponto, eu não tinha mais energia para lutar. Este foi o momento em que a rendição entrou. Tive
uma experiência que muitas pessoas descrevem pouco antes de sofrer um acidente de carro. O tempo
parou, e eu podia ver claramente os detalhes do meu entorno, mesmo na turbulência das águas
lamacentas. Padrões caóticos mudaram para uma ordem. Senti uma crescente sensação de tranquilidade,
algum tipo de misericórdia e então uma liberação completa. A consciência não estava mais confinada à
forma. O rio me sugou, me arrastou pelo fundo e me cuspiu rio abaixo. Quando emergi, senti como se
tivesse um novo par de olhos. Eu podia ver minha vida de uma maneira nova, com clareza.
Eu não chamaria essa experiência de uma EQM – experiência quase-morte. No entanto, minha total
entrega ajudou a me aproximar da realidade experienciada e descrita por pacientes que estão morrendo.
Eu tenho uma noção do que Barbara quis dizer quando ela disse, “Eu não estou mais no comando.” Eu
reconheço o sorriso nos olhos de Joshua quando ele quase cantou, “Não tenho mais preocupações. Estou
apenas descansando minha cabeça nas mãos de Jesus.”
Entrega é infinitamente mais profundo do que soltar. Soltar é ainda uma estratégia da mente ocupada
com o passado. É uma atividade da personalidade, e a personalidade está primariamente preocupada em
perpetuar a si mesma. Soltar é ainda mim fazendo uma escolha. O ego não consegue se entregar. A
rendição/entrega é o não-fazer fácil e sem esforço de nossa natureza essencial sem interferência. Estamos
simplesmente conscientes.
A entrega é mais como uma iniciação, na qual o dispensável é sacrificado ao essencial. Embora possamos
resistir, por fim nossa luta acaba sendo ineficaz. A dissolução da falsa vontade estimula uma sensação de
medo, e as vozes em nossa cabeça nos dizem para recuar. Mas o sagrado é tão magnetizante, a rendição
tão cativante, que o medo não nos detém.Com o tempo, a luta cessa. Nossa consciência reconhece que o
poder que sentimos, uma vez tão apavorante, é o nosso próprio ser profundo. Nos entregamos à realidade
da não-separação.
A entrega/rendição é o fim de dois e a abertura para o um.

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Epílogo
MORRER NA VIDA
A brisa do amanhecer tem segredos para te contar.
Não volte a dormir.
Você deve pedir o que você realmente quer.
Não volte a dormir.
As pessoas estão indo e voltando pela soleira da porta onde dois mundos se tocam.
A porta é redonda e aberta. Não volte a dormir.
- Rumi

Morrer é um processo de desnudamento, uma libertação, uma entrega, uma mudança que encerra
possibilidades profundas. A mudança, como a morte, é inevitável. Vimos que essa transitoriedade está na
natureza de todas as experiências. No entanto, a mudança em si não garante transformação.
A transformação é uma mudança profunda interna por meio da qual nossas identidades básicas são
reestruturadas. É uma metamorfose, tão radical como a transformação da crisálida em borboleta. No
processo de transformação, as escamas caem de nossos olhos, e vemos e vivenciamos tudo de uma nova
maneira. Percebemos que somos mais do que nossas histórias. As fronteiras pessoais limitantes se
dissolvem. Uma paz profunda e sensação universal de pertencimento infundem nossa consciência. A
liberdade expansiva do ser está além de nossa compreensão atual e é quase irreconhecível para nossos
antigos eus.
A transformação da consciência, que é possível para cada um de nós em nossas vidas cotidianas, requer
nosso envolvimento ativo. Não conseguimos pensar num caminho para isso. Não é um plano estratégico
que executamos. A transformação requer uma vontade em aberto de ser totalmente vulnerável à
experiência do desconhecido.
Fundamentalmente, a morte é talvez o maior desconhecido. E nosso relacionamento com esse
desconhecido é digno de nossa atenção. Certa vez perguntei a uma Chinesa chamada Shu-Li, que estava
morrendo de câncer, como ela achava que seria depois que ela morresse.
Shu-Li respondeu, “Quando eu era jovem e imigrei sozinha para a América, podia ver fotos das cidades,
do campo, dos prédios. Eu podia ler livros e assistir a filmes sobre as pessoas na América, sua comida e
estilos de vida. Eu tinha uma noção do que poderia ser aqui. Mas a realidade era diferente do que eu
imaginava.” E acrescentou, “Não tenho mais imagens. Viver com a incerteza da minha doença me
preparou para a morte. Me parece que a maioria das pessoas tem medo da morte porque não sabem
como estar com o desconhecido.”
Somos ajudados em nossas jornadas de transformação quando nos abrimos ao mistério, uma experiência
ou força intangível que não podemos prever, mensurar ou explicar. O mistério do qual estou falando não
é como aquele dos romances de Agatha Christie que você aprecia ler em um dia de verão na praia. Não
se trata de somar as pistas como faz o detetive herói e depois dizer que foi o mordomo! O encontro com
a morte é impregnado de mistério. Não pode ser solucionado ou mesmo completamente conhecido pela
mente conceitual. Não pode ser capturado, mas, assim como quando ouvimos uma música extraordinária,
podemos nos entregar ao mistério completamente; percebemos que somos mistério. Ele vive através de
nós.
Em minha experiência e as das muitas pessoas que acompanhei, o encontro com o mistério é geralmente
assinalado por admiração e maravilhamento, como quando nossos queixos caem ao ver uma beleza

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inimaginável. A atividade usual da mente cessa e nossa consciência descansa. Ficamos absorvidos em um
estado de tranquilidade e humildemente testemunhamos. Em tais momentos, o tempo não devora mais
nossas vidas. Entramos no eterno agora. O futuro não existe; ele não aconteceu ainda. O passado não
existe; ele já aconteceu. Aqui no lugar além da tirania do tempo, não há medo da morte. E sempre que
há ausência de medo, há também presença de amor. O amor é o lubrificante que nos permite escapar
dos limites do corpo. O amor é o anseio que nos chama para casa.
Em momentos transformadores como morrer, parir, meditar, fazer amor, estar imerso na beleza da
natureza, se conectar com um trabalho de arte, ou olhar uma criança, temos uma sensação de olhar para
o vasto inominável. Totalmente seguro. Não há falta. Tudo o que precisamos está presente. Cada sabor
dessa experiência expande nosso amor e nos atrai ainda mais para o mistério infinito e inesgotável do ser.
A contemplação da vida, morte, e o mistério inerente em cada momento é muito importante para ser
deixada para nossas horas finais. Aceitar nossos medos e descobrir o que o morrer tem para nos ensinar
sobre a vida são essenciais para nossa transformação. Esses Cinco Convites são um chamado para essa
transformação. Eles podem levá-lo ao limiar, mas cabe a você caminhar. Como Rumi escreveu, “A porta
é redonda e aberta. Não volte a dormir.”
Cada tradição de sabedoria oferece um caminho para aproveitar o poder transformador da morte.
Escolha um caminho e comece a caminhar ou vagueie pelas trilhas marcadas. Não há caminho correto.
No fim de contas, todos os caminhos levam a um campo aberto. Eles nos pedem para liberar nosso apego
a hábitos mentais e noções preconcebidas, para receber a vida de uma maneira nova e curiosa. Como um
professor um dia me perguntou, “Você consegue soltar sua história e entrar no mistério?”
No Budismo, a reflexão sobre a morte é uma prática espiritual essencial. Não é vista como uma ideologia
a ser adotada como uma proteção contra a morte. Pelo contrário, é uma oportunidade de ficar mais
íntimo com a morte como uma parte inevitável da vida. Embora tais reflexões possam parecer mórbidas
para alguns, eu tenho visto que a prática de cultivar uma sábia abertura à morte afirma a vida. O valor
dessas reflexões é que vemos como nossas ideias e crenças sobre a morte estão nos afetando aqui e
agora.
Sono vivia sozinha, no limite, sobrevivendo com um mísero cheque da Previdência Social. Agora ela estava
vivendo seus últimos dias no Zen Hospice. Ela era uma mulher direta e prática, e lembro-me de perguntar
a ela depois de alguns dias de sua chegada, como ela achava que poderia ser morar ali. Ela disse, “Eu acho
que vai ficar tudo bem porque nesse lugar, eu posso morrer da maneira que preciso morrer.”
Estava claro que Sono tinha chegado até nós para enfrentar a morte diretamente. Eu sabia que nos
daríamos bem.
Um dia, estávamos sentados na mesa da cozinha. Sono estava escrevendo em seu diário, e eu estava
lendo o livro Japanese Death Poems (Poemas Japoneses sobre a morte). Há uma antiga tradição no Japão
de monges Zen e outras pessoas escreverem versos curtos ao se prepararem para a morte. Sugere-se
que esses poemas, compostos no dia da morte da pessoa, expressam uma verdade essencial descoberta
na sua própria vida. El geral, são poemas curtos, intensos, algumas vezes profundos, algumas vezes
satíricos, geralmente expressando uma beleza direta e natural simplicidade. Nos recordam de que
estamos mais vivos quando estamos presentes à beira do desconhecido.
Sono me pediu para ler alguns. Eu escolhi alguns dos meus favoritos.
Esse poderoso poema é atribuído ao fundador da Escola Soto Zen no Japão, Dogen Zenji, que morreu em
1253:
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Quatro e cinquenta anos
Eu tenho pendurado o céu com estrelas.
Agora eu pulo –
Que desmoronamento!

Outro poema divertido, escrito por Moriya Sen’na, que morreu em 1838, especula sobre a vida após a
morte.

Enterre-me quando eu morrer


debaixo de um barril de vinho
em uma taverna.
Com sorte
o barril vazará.

Um poema implacável escrito por Sunao, que morreu em 1926 expressa a realidade às vezes difícil de
morrer.
Cuspir sangue
purifica a realidade
e o sonho

E Kozan Ichikyo, que morreu em 1360, ofereceu esse poema de elegante simplicidade.

De mãos vazias eu entrei no mundo


Descalço eu o deixo.
Minha vinda, minha ida –
Dois acontecimentos simples
Que se enredaram

Após ouvir esses profundos poemas lidos em voz alta para ela, Sono ficou inspirada em escrever o seu
próprio. Ela me perguntou sobre a forma e tamanho. Eu sugeri que ela não se preocupasse com essas
questões. A convidei para simplesmente escrever o que ela acreditava ser verdade.
Algum tempo depois, Sono me chamou até seu quarto. “Eu escrevi meu poema de morte.”
“Eu adoraria ouvi-lo,” respondi.
“Quero que você o leia com o coração,” e então continuou, “Quando eu morrer, quero que você o prenda
às minhas roupas. Quero ser cremada com meu poema.”
“Eu prometo, Sono,” eu disse, minhas lágrimas expressando a honra de receber esse presente.
O poema de Sono era um convite para ter a mente e o coração abertos, mesmo em relação ao grande
desconhecido da morte. Ela o leu para mim várias vezes. Então me fez repeti-lo repetidas vezes, para ter
certeza que eu tinha aprendido cada palavra.

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É onde ele tem vivido desde então, em meu coração. Eu nunca escrevi isso até hoje. Compartilho-o como
um belo lembrete do que é possível quando vivemos plenamente à luz da morte. Ela encontrou seu
caminho. Cabe a cada um de nós encontrar o nosso.
Poema de Morte de Sono
Não fique aí parado com seu cabelo ficando grisalho,
em breve os mares vão afundar sua pequena ilha.
Então, enquanto ainda há a ilusão do tempo,
parta para outra margem.
Não faz sentido fazer uma mala.
Você não conseguirá levantá-la em seu barco.
Doe todas as suas coleções.
Pegue apenas sementes novas e uma velho bastão.
Envie algumas orações ao vento antes de navegar.
Não tenha medo.
Alguém sabe que você está vindo.
Um peixe extra foi salgado.
- Mona (Sono) Santacroce (1928-1995)

Sobre o autor
Frank Ostaseski, co-fundador do Zen Hospice Project (Projeto Zen Hospice) e do Metta Institute (Instituto
Metta), é um professor Budista, palestrante internacional, uma voz de liderança no cuidado
contemplativo no estado terminal da vida. Ele foi homenageado por Sua Santidade o Dalai Lama e
nomeado uma das 50 pessoas mais inovadoras da América. Ele ensina em instituições de saúde e
espirituais, como Mayo Clinic e Spirit Rock Meditation Center, e seu trabalho foi apresentado em redes de
TV Americanas.

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