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Entre sangue e lagrimas

Os primeiros raios do amanhecer cobriam os telhados do Distrito 2 ,


transformando as rochas pálidas em ouro. O ar estava calmo, e os
únicos sons que chegavam até os altos terraços do jardim no lado leste
da cidadela eram o delicado coro de pássaros matinais e o murmúrio
abafado da cidade que começava a despertar.
Theo sentava-se de pernas cruzadas sobre um estrado de pedra. Ele
estava com as mãos sobre a espada que repousava sobre seu colo. Seu
olhar passava pelas camadas inferiores do jardim, sobre as ameias,
atravessando a capital e seguindo além. Ver o sol nascendo sobre sua
da pátria normalmente lhe traria paz... mas não hoje.
Seu manto estava carbonizado e repleto de respingos de sangue. Sua
armadura estava deformada e desgastada. Sob circunstâncias normais,
ele já teria se banhado e se livrado de todo aquele suor, sangue e fedor
de fumaça. Ele já teria mandado sua armadura para que o ferreiro
consertasse, já teria arranjado um novo manto. As aparências eram
importantes, especialmente para um guardião da nobreza.

Mas aquelas não eram circunstâncias normais.

O seu senhor morreu e sua filha estava desaparecida.

Ele era o homem mais honrado que Theo’Zyn havia conhecido, pai
daquela que ele amava, o respeitava mais do que qualquer outro. Theo
havia feito um juramento para protegê-lo... mas ele não estava lá
quando o senhor mais precisou.

E sua filha era a pessoa mais gentil que Theo havia tido a honra de
conhecer, uma diplomata com dotes artísticos incríveis, onde ensinou
para Theo que o dialogo evitaria mais guerras do que a força bruta. E
assim como gentilmente ela conheceu Theo, ela dominou seu coração.

Ele soltou um suspiro profundo e desolado. O peso de sua falha


ameaçava esmagá-lo por dentro.
A revolta dos magos no dia anterior pegou toda a cidade de surpresa.
Theo’Zyn foi ferido nas batalhas enquanto lutava para retornar ao
palácio, mas não sentia nada. Durante horas, permaneceu sentado,
sozinho, deixando que o frio da pedra penetrasse seus ossos enquanto
a nuvem de luto, vergonha e culpa pairava sobre ele. Os guardas do
palácio – aqueles que sobreviveram ao ataque – optaram por deixá-lo
com seu sofrimento, mantendo-se longe daquele jardim. Ele
permaneceu ali em silêncio durante as horas de escuridão. Theo estava
grato por tal compaixão. Ele não sabia se poderia lidar com o olhar
acusatório dos guardas.

Por fim, o sol o alcançou, como a luz do julgamento, forçando-o a


franzir os olhos diante do brilho ofuscante.

Theo suspirou profundamente e se forçou a encarar a realidade. Ele se


levantou e olhou pela última vez para a cidade que tanto amava, bem
como o jardim que sempre lhe reconfortou. Depois, virou-se e
caminhou rumo ao palácio.

Anos atrás, ele havia feito uma promessa. E pretendia mantê-la.


Inerte e inconsolável, Theo era como um fantasma assombrando o
local de sua morte. Mas até mesmo a morte teria sido melhor. Ser
abatido enquanto protegia seu senhor seria ao menos nobre.
Ele passou pelos corredores do palácio, que repentinamente pareciam
gélidos e sem vida. Os servos em seu caminho não disseram uma
palavra sequer, passando por ele num silêncio alarmado e os olhos
arregalados. Os guardas que ele encontrou tinham expressões
pesarosas. Eles até o cumprimentaram, mas tudo o que ele conseguia
fazer era olhar para baixo. Ele não merecia qualquer reconhecimento.
Finalmente, ele chegou a uma porta fechada. Aproximou-se para
bater, mas hesitou. Sua mão estava mesmo tremendo? Amaldiçoando
sua fraqueza, bateu bruscamente no carvalho maciço e recuperou sua
postura, brandindo sua espada como sempre fazia em seus
treinamentos. O som ecoou por todo o corredor. Por um longo e
arrastado momento, Theo permaneceu imóvel, encarando a porta e
esperando que alguém a abrisse.
Dois guardas da patrulha do palácio surgiram no corredor e passaram
por ele. Ouvia-se apenas o tilintar das armaduras. A vergonha impediu
que ele os olhasse. A porta permanecia fechada.

"Acredito que a Senhorita Zyn esteja na ala norte", informou um dos


guardas. "Garantido maior defesa e segurança."

Por dentro, Theo’Zyn suspirava, mas cerrou os dentes e assentiu em


agradecimento ao guarda.

"Meu irmão...", começou o outro guarda. "Ninguém o culpa pela–"

"Obrigado, irmão", replicou Theo, sem deixar que ele terminasse. Não
queria que sentissem pena dele. Os guardas o saudaram e seguiram
seu caminho.

Theo se virou e seguiu pelo corredor, tomando o caminho de onde


vieram os guardas, rumo à ala norte do palácio. Não era um alívio que
a sua mestra, Júlia’Zyn não estivesse na sala. Isso só alongava o
assunto.
Ele caminhou por um corredor repleto de flâmulas e bandeiras,
parando brevemente sob uma delas: um estandarte que retratava um
floco de neve um campo branco. Havia sido tecido pela falecida
esposa de seu senhor e suas criadas. Embora quase um terço da peça
tivesse sido destruído pelo fogo, a obra ainda era dotada de uma
beleza impressionante. O estandarte havia caído na batalha contra a
revolução dos magos, mas o próprio senhor liderou um ataque para
recuperá-lo, com Theo ao seu lado. Para alcançá-lo, eles abriram
caminho em meio a dezenas de magos furiosos que vestiam pesadas
roupas de pele. Foi Theo quem o ergueu, mesmo enquanto as chamas
devoravam seus delicados bordados. Recuperar aquele estandarte
mudou o rumo da batalha naquele dia, reanimando os cristhalianos e
garantindo uma vitória antes improvável. Seu senhor, Hedrik, não
permitiu que ele fosse restaurado, apenas que voltasse em segurança
para o palácio. Queria que todos que olhassem para o estandarte se
lembrassem de sua história.

Theo passou por uma pequena sala, uma biblioteca afastada em um


canto pouco usado do palácio, um dos lugares onde Hedrik mais
gostava de passar suas noites. Aquele era seu refúgio, onde podia se
distanciar da agitação dos servos e outros nobres. Theo havia passado
muitas noites longas ali com seu senhor, saboreando vinho licoroso e
discutindo estratégias, política e as saudosas lembranças de sua
juventude. Hedrik sempre foi um líder estoico e rígido em público,
mas aqui, nesse santuário – especialmente na madrugada, quando os
dois já haviam mergulhado em taças e mais taças – ele ria até que as
lágrimas escorressem pelo rosto e falava fervorosamente sobre suas
esperanças e sonhos para Theo, como se fosse seu próprio filho.
O sofrimento voltou a dominar Theo’Zyn quando percebeu que nunca
mais ouviria a risada de seu amigo.
Pensar na filha do seu senhor como um soco no estômago. Theo pode
ter perdido sua amiga, ou melhor, amada mais querida. Sua mãe já
tinha falecido durante o parto, então agora, Theo estava sozinho.

Com pesar, Theo se forçou a continuar caminhando, mas um som


familiar fez com que ele parasse: uma lâmina cega batendo na
madeira. Alguém estava treinando. Theo’Zyn franziu a testa.

Uma sensação nauseante subiu até a boca de seu estômago enquanto


passava pelas portas maciças que levavam ao interior do salão.
Inicialmente, ele não viu quem estava lá. Os arcos e pilares da sala em
abóboda mantinham oculta a identidade de quem treinava ali. O som
da espada ecoava fortemente ao seu redor.

Ao contornar um conjunto de pilares, ele finalmente viu a filha de seu


senhor atacando um boneco de madeira com uma pesada espada de
ferro. Ela estava coberta de suor e seu peito arfava, dando sinais de
exaustão. Sua expressão era de angústia e ela atacava de forma
selvagem.
Theo permaneceu nas sombras, com o coração feliz e dilacerado por
ver a jovem dama tão arrasada e ferida. Desejava desesperadamente ir
até ela, consolá-la e ajudá-la a passar por esse momento tão difícil. Ela
e Hedrik eram o mais próximo de uma família que Theo’Zyn havia
tido em toda a vida. Mas como a presença dele faria bem a ela? Ele
era o guarda-costas de Hedrik e estava ali, vivo, enquanto o mesmo
estava morto.

Theo não estava familiarizado com a hesitação, tampouco se sentia


confortável com tal sentimento. Nem nas arenas [ insira nome ]
ele havia titubeado. Balançando a cabeça, virou-se rumo à saída.

‘’Theo?"
Theo’Zyn se arrependeu de não ter ido embora imediatamente.
Ele se virou lentamente. Ela já não era mais uma garotinha. Estava até
mais alta do que Theo. Seus olhos estavam avermelhados e rodeados
por profundas olheiras. Theo’Zyn percebeu que não era o único que
havia passado a noite em claro.

"Minha princesa", disse ele, ajoelhando-se e abaixando sua cabeça.

Ambos permaneceram em silêncio. Ela ficou imóvel, olhando para


Theo, com respiração intensa.
"Eu sinto muito", disse Theo, com a cabeça ainda abaixada.

"Por interromper meu treinamento ou por não estar lá para proteger


meu pai quando ele foi assassinado?"

Theo olhou para cima. Ela o olhava furioso, com a pesada espada de
treinamento ainda na mão. Não existia uma resposta adequada, uma
forma de dizer tudo o que sentia.
"Eu falhei com ele", respondeu Theo, finalmente. "E falhei com você."

Ela permaneceu ali por mais alguns instantes, depois se virou e foi em
direção a uma das várias prateleiras de armas espalhadas pelo salão.
‘’Levante-se", ordenou ela.

Quando Theo’Zyn o fez, ela jogou uma espada em sua direção. Ele
pegou a espada com a mão esquerda por reflexo. Era outra lâmina de
treinamento, pesada e embotada. Ela avançou na direção dele, com
postura intensa e furiosa.

Theo’Zyn pulou para trás, desviando do golpe.

"Minha dama, acho que não é uma boa ide–", começou ele, sendo
interrompido por outra investida dela, atacando com a espada em
direção ao seu peito. Theo empurrou-a para o lado com o cabo de sua
espada e recuou.

"Ama–", disse ele, mas ela atacou novamente, muito mais furiosa do
que já estava.

Dessa vez foram dois golpes, um alto, um baixo. Ela estava usando
uma espada de treinamento, mas se acertasse os golpes, certamente
seria capaz de quebrar alguns ossos. Theo foi obrigado a se defender,
esquivando-se do primeiro golpe e inclinando seu corpo, e desviando
do segundo com a lâmina de sua própria espada. Ele sentiu o impacto
no braço.

"Onde você estava?", questionou ela com rispidez, andando ao redor


dele.

Theo’Zyn abaixou suas armas. "É assim que quer fazer isso?",
murmurou ele.

"É", respondeu ela, com uma ira latente e segurando a espada com um
aperto feral.

Theo suspirou. "Só um momento", pediu ele, dirigindo-se a uma das


prateleiras para deixar sua espada lapidada. Ela esperou por ele,
abrindo e fechando as mãos sobre o cabo da espada.

Quando Theo retornou ao centro do salão, ela atacou. Ela avançou em


disparada, grunhindo com esforço. Os golpes eram pouco elegantes e
técnicos, mas tamanha fúria lhes concedia uma força tremenda. Theo
apenas desviava, usando a força dela contra ela mesma, mas sem
enfrentar diretamente os golpes pesados.

Em qualquer outra ocasião, ele teria repreendido a princesa por focar


apenas no ataque, deixando sua guarda aberta e ficando exposto a
ripostas e contra-ataques, mas Theo preferiu não interromper a ira
legítima da príncesa. Ele também não seria capaz de tirar vantagem
das falhas defensivas dela. Se ela precisasse dar uma surra nele,
Theo’Zyn deixaria que ela o fizesse.

"Onde... você... estava?!”, vociferou ela entre os golpes.

"Eu deveria ter feito isso há muito tempo", disse o rei sem tirar os
olhos de sua mesa, sobre a qual escrevia uma carta.
Cada mergulho da pena na tinta era uma espetada violenta, e sua
escrita era rápida e furiosa.

Era raro ver as emoções do rei tão à flor da pele.

"Meu senhor?", indagou Theo, confuso.

"Nos fixamos tanto naquilo que temíamos...", matutou o rei, ainda


sem olhar para cima, mas interrompendo sua escrita furiosa por um
momento. "Fomos tolos. Eu fui tolo. Enquanto tentávamos nos
proteger, criamos o próprio inimigo de quem queríamos nos
resguardar."

Theo’Zyn bloqueou um ataque violento na direção de seu pescoço. A


força do golpe o empurrou um passo para trás.
"Não tem nada a dizer?", questionou ela.

"Eu deveria ter estado com seu pai", respondeu Theo.

"Isso não é uma resposta!", esbravejou. Ela deu as costas


abruptamente, tacando a própria espada no chão, que fez ecoar um
som agudo. Por um momento, Theo’Zyn torceu para que sua nobre
parasse por ali, mas ela pegou uma arma diferente de uma das
prateleiras.

A espada lendária de seu pai ( insira nome)

Ela alinhou a espada em direção a ele, com uma expressão severa e


inflexível.
"Pegue sua espada", ordenou ela.

"Você não está usando armadura", contestou Theo.

Armas de treinamento podiam quebrar ossos com facilidade, mas o


menor movimento mal calculado com uma lâmina de batalha poderia
ser fatal.

"Não me importa", respondeu ela.

Theo abaixou a cabeça. Ele curvou-se para pegar a espada de


treinamento que ela havia jogado e colocou-a cuidadosamente sobre
uma prateleira, ao lado da sua. Com relutância e pesar, ele recuperou
sua espada e voltou para a área aberta ao centro do salão.

Sem dizer sequer uma palavra, ela o atacou.


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"Não sei se estou entendendo, meu senhor", confessou Theo.
O rei fez uma pausa, olhando para cima pela primeira vez desde a
chegada de Theo. Naquele momento, de repente, ele parecia velho. As
marcas de expressão em sua testa estavam profundamente delineadas,
seus cabelos e sua barba pareciam estar grisalhos há tempos. Eles já
não eram mais jovens.

"A culpa é minha", revelou o seu senhor. Seus olhos estavam


dispersos, olhando para o nada. "Deixei que tivessem muito poder.
Nunca me pareceu certo, mas os argumentos eram convincentes e eles
tinham o apoio do conselho. Agora, vejo que errei ao ignorar minha
própria opinião. Com essa carta, ordeno que os caçadores de magos
suspendam suas prisões."
Com um hábil movimento, ela estirou a espada na direção de
Theo’Zyn. A haste da arma lendária quase pareceu dobrar de tamanho,
e suas lâminas letais avançaram rapidamente para o pescoço de Theo.
O monge se esquivou para o lado, desviando o ataque mortal com um
movimento circular de sua espada, mas com muito cuidado para que
as lâminas não prendessem sua arma.

Nem mesmo nas disputas brutais da (arena) Theo havia visto uma
arma daquele calibre. Na verdade, o segredo de como lutar com ela
havia se perdido na época dos primeiros nobres do distrito 2, em mãos
inexperientes, ela era tão letal para quem a empunhava quanto para o
inimigo. Por isso, é vista como uma arma cerimonial há séculos,
tornando-se um ícone da família nobre. No entanto, quando a nobre
era apenas uma garota, sonhava em lutar com ela, como os heróis de
antigamente que ela tanto idolatrava. Theo’Zyn prometeu que o
ensinaria quando ela estivesse pronto.

Ela saltou para a frente, descendo a arma em um golpe ceifante. Theo


desviou, mas a nobre seguiu imediatamente com um golpe giratório a
apenas alguns centímetros dele, com a ponta afiada passando de
raspão por sua garganta. Ela não estava de brincadeira.

Contudo, antes que Theo pudesse ensinar ela como manejar a arma,
ele mesmo precisava dominá-la. Com a aprovação do senhor, ele
começou a treinar para aprender seus segredos. Surpreendentemente
leve e perfeitamente equilibrada, era uma arma sublime criada por um
mestre no auge de suas habilidades.

Theo’Zyn treinou com a lança todos os dias antes do amanhecer por


anos. Só começou a ensinar a jovem a manejá-la quando acreditou ter
conhecimento suficiente.

Ela grunhia com esforço, partindo para cima de Theo’Zyn. O monge


pensava apenas na defesa, afastando-se com cuidado e sempre de olho
no entorno. Mal se podia ver os movimentos da espada de Theo, que
interrompia os golpes do príncipe cada vez que se aproximavam.

A jovem já estava aprendendo a usar a espada, a lança e os punhos,


bem como as artes mais intelectuais da história militar e retórica. Em
seu aniversário de dezesseis anos, ela finalmente foi apresentado à
arma lendária por seu pai. Ela treinou arduamente, ferindo-se
incontáveis vezes ao longo do percurso até a maestria. Por fim, passou
a lutar com aquela arma como se fosse uma extensão do próprio corpo

Contudo, embora ela fosse aluna de Theo, sua alta estatura


proporcionava um alcance maior. Ela já não era mais uma iniciante
desajeitada; tantas batalhas e treinamentos a fortaleceram, e a
habilidade dela com aquela espada agora superava facilmente a de seu
mestre. Ela o perseguia implacavelmente, forçando-o a recuar a cada
passo.

Theo’Zyn precisou usar toda a sua habilidade para permanecer ileso...


mas isso não duraria muito mais tempo.
O senhor olhou para baixo, lendo a carta. Ele suspirou de forma
claramente audível.
"Se eu tivesse a coragem de fazer isso antes, poderia ter evitado o
desastre deste dia", ponderou ele.

Então, assinou a carta e pingou uma cera azul real ao lado de seu
nome, usando seu sinete pessoal sobre ela. Ele assoprou a carta e a
ergueu, sacudindo-a levemente para que a cera esfriasse.

Com a cera seca, o rei enrolou a carta e colocou-a em um invólucro


cilíndrico de couro branco curado, selando a tampa.
Ele a entregou para Theo.
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Theo quase não foi capaz de escapar de um golpe violento do


príncipe, virando o rosto no último segundo. As lâminas chanfradas
daquela lâmina atingiram sua bochecha, de onde escorria sangue.
Pela primeira vez desde que começaram, Theo se perguntou se sua
paixão estava realmente tentando matá-lo, isso quebrou ele.

Mas havia certo equilíbrio em ser morto pela filha do homem que ele
devia ter protegido.

Ela jogou a espada de Theo para o lado com a extremidade da sua


arma e virou-se rapidamente, com um apertado movimento arqueado
da arma, apontando a lâmina para o pescoço dele.

Foi um movimento perfeitamente executado, ensinado justamente por


Theo. Os passos dela na execução do ataque foram sublimes e a força
inicial aplicada em sua arma foi suficiente para jogá-la para o lado,
mas sem reduzir a velocidade do golpe final.

Mesmo assim, Theo podia ter bloqueado. Seria por pouco, mas sua
velocidade – mesmo estando exausto – garantiria que o golpe não
fosse concluído.

No entanto, ele nem sequer se moveu. Ele já não queria mais lutar.

Simplesmente ergueu um pouco o queixo, para que o golpe fosse


certeiro.
As lâminas da lendária espada sibilaram. O golpe foi aplicado com
velocidade, habilidade e potência. Seria capaz de causar um corte
profundo, matando-o quase instantaneamente.

O golpe mortal foi interrompido ao tocar a garganta de Theo, criando


um rastro de gotículas de sangue e nada mais.

"Por que não diz onde estava?", perguntou ela.


Theo engoliu em seco. Um fio quente de sangue escorreu pelo seu
pescoço. "Porque a culpa é minha", assumiu ele. "Eu devia ter estado
lá."

Ela manteve a lâmina na garganta de Theo’Zyn por mais alguns


instantes, mas depois recuou. De repente, ela pareceu murchar. Todo
aquele fogo e fúria começaram a se dissipar, deixando apenas uma
filha triste e perdida.

"Meu pai ordenou que você fosse embora", disse ela. "E você não quer
culpá-lo pela sua ausência."

Theo permaneceu em silêncio.

"Estou certa, não é?", indagou ela.

Theo apenas suspirou e olhou para baixo.


Theo’Zyn estava quieto e imóvel. Ele olhou para a carta que o senhor
na mão estendida em sua direção, mas não a pegou.
O senhor ergueu as sobrancelhas e Theo finalmente aceitou.

"Quer que eu a entregue a um mensageiro, senhor?".


"Não", disse seu senhor. "Confio apenas em você para entregá-la,
meu filho."

Theo assentiu com a cabeça e prendeu-a ao seu cinto.

"Para quem devo entregá-la?"

"Para o dirigente da ordem dos caçadores de magos", disse Hedrik.


Ele levantou um dedo, sinalizando o aviso que estava por dar. "E não
quero que entregue para nenhum dos criados dele. Quero que
entregue em mãos, diretamente."

Theo abaixou a cabeça, assentindo. "Farei isso assim que as ruas


estiverem desobstruídas e o paradeiro do foragido for determinado."

"Não", contestou o senhor. "Quero que vá agora."


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"Ele era tão cabeça-dura", comentou ela, balançando a cabeça.

"Quando ele tomava uma decisão, ninguém era capaz de fazê-lo


mudar de ideia."

"Eu devia ter estado lá", disse Theo em voz baixa.

Ela esfregou os olhos.

"E desobedecer uma ordem dele? Você não faria isso, eu te conheço",
respondeu ela. "O que ele pediu que você fizesse?"
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Theo franziu a testa.


"Meu lugar é ao seu lado, senhor", afirmou ele. "Eu prefiro não sair
do palácio. Não hoje."

"Quero que entregue essa mensagem antes que as coisas piorem",


comandou o senhor.

"Os caçadores de magos devem ser contidos antes que tudo isso se
agrave. Já foi longe demais."

"Meu senhor, não acho que seja sensato eu–", dizia Theo’Zyn,
quando o senhor o interrompeu abruptamente.

"Não é um pedido, cavaleiro", declarou ele. "Você entregará esse


decreto. Agora."

"Entregar uma carta...", ela o questionou.


"Foi isso que ele ordenou que fizesse?"

Theo acenou com a cabeça em sinal de concordância, e ela deu uma


risada descontraida. "Isso é tão a cara dele!", ela disse feliz, porem era
nítido que estava se lamentando.

"Sempre pensando em assuntos oficiais. Sabia que ele perdeu meu rito
da espada, no meu aniversário de 14 anos, por causa de uma reunião
do Conselho de Defesa? Uma reunião sobre impostos."

"Eu lembro", disse Theo, dando segurando uma risada.

"Então você entregou a carta, eu presumo?"

"Não", respondeu Theo, balançando a cabeça. "Voltei assim que ouvi


os sinos. Tentei retornar ao palácio o mais rápido que pude."

"E teve alguns problemas no caminho, pelo visto", observou ela,


referindo-se à aparência devastada dele.

"Nada que não pudesse ser resolvido."


"Magos?", perguntou ela.

Theo assentiu. "E outros que se uniram ao assassino."

"Devíamos ter prendido todos eles!", esbravejou ela.

Theo olhou alarmado para a princesa. Ele nunca a tinha ouvido falar
com tanta aspereza. Na verdade, a princesa sempre se incomodou com
o tratamento dado aos magos naquele distrito. Mas isso foi antes.

"Acredito que seu pai não compartilharia essa visão", disse Theo, com
uma voz comedida.

"E eles o mataram", retrucou ela, com frieza.

Não havia nada de útil que Theo pudesse dizer, então permaneceu em
silêncio. O fogo da ira que havia tomado ela naquele momento foi
quase imediatamente extinto. Seus olhos se encheram d'água, por mais
que ela tentasse conter as lágrimas.

"Eu não sei o que fazer", confessou. Naquele momento, ela era uma
garota outra vez, uma apavorada e sozinha.

Theo avançou, soltando sua espada, e envolveu ela em seus braços,


abraçando-a bem forte.

Então, ela começou a chorar, com soluços tão intensos que sacudiam
seu corpo todo, e todas aquelas lágrimas contidas também começaram
a escorrer pelo rosto de Theo.

Eles permaneceram abraçados por mais algum tempo, compartilhando


a dor da perda, e depois se separaram. Theo se virou para pegar sua
espada caída, dando um momento para que os dois pudessem se
recompor.

Quando se virou, viu que ela havia tirado sua camisa suada e vestia
uma longa túnica branca de linho com um cristal azul estampado. Ela
parecia mais serena.
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"Agora você fará o que nasceu para fazer", disse Theo. "Você irá
governar."

"Acho que não estou pronta...."

"Ninguém está. Pelo menos, não os bons."

"Mas você ficará ao meu lado, Theo? Preciso da sua ajuda."

Theo'Zyn sentiu uma aflição cortante em seu coração. "Creio... que


não será possível", respondeu ele.

"Há muito tempo, fiz uma promessa", explicou Theo. "Se o seu pai
sofresse qualquer mal, eu perderia minha vida."

"E quantas vezes você salvou a vida do meu pai?", perguntou ela, num
tom repentinamente severo. Naquele momento, sob o olhar de Theo,
ela parecia muito com o pai. "Testemunhei pessoalmente pelo menos
três vezes. Sei que foram muito mais."

Theo franziu a testa.

"Minha honra é minha vida", disse ele. "Eu não seria capaz de viver
com a desonra de descumprir minha palavra."
"Para quem prometeu isso?"

"Para a Alta Marechal Julia'Zyn."

Ela lançou um olhar de desaprovação.

‘’Mas não será aqui que eu acabarei com minha vida.....’’

‘’Ainda tenho uma dívida para pagar a você’’ – Disse Theo olhando
nos olhos dela

‘’Então pague-a ficando ao meu lado! Por favor’’ – Retrucou ela,


brava.

‘’Seria a recompensa mais gentil que eu poderia receber, mas eu


estarei por perto, eu prometo que irei me lembrar’’ – Disse Theo
erguendo os ombros e virando para em direção a saída

‘’Eu no entanto eu preciso lhe dizer uma coisa.....minha senhora’’ –


Theo parou repentinamente, gaguejando enquanto falava

‘’Hum?’’

‘’Não posso prometer que vou voltar, então eu preciso dizer enquanto
tenho a chance....’’ – Ele disse sem olhar para os olhos dela, quase
sussurrando

‘’Eu te...’’ – Theo para de falar abruptamente

‘’Eu... o que?’’ – Ela questiona, ansiosa

‘’Na verdade eu prometo-lhe que irei voltar, eu te digo quando nos


encontrarmos novamente ’’ – Theo ergueu um sorriso convencido
enquanto olhava para ela.

‘’Você continua o mesmo’’ – Ela chega a esboçar um sorriso, mas


ainda estava sem entender os motivos de Theo.
‘’Me tornarei alguém digno para ficar ao seu lado, para sempre’’ –
Disse Theo indo para a saída

‘’Mas eu já lhe considero digno!’’ – Disse ela, brava.

‘’Eu não consigo aceitar essas suas palavras gentis, ao menos não
agora.’’ – Retrucou Theo, com um pesar no coração.

‘’Agora se me dá licença, preciso ir agora, até logo.’’

‘’Você vai me deixar assim?! Ao menos dê um motivo decente!


Porque você sempre é tão cabeça dura?’’ – Disse ela ferozmente

‘’Você me superou. Não posso ficar do seu lado sem estar ao seu
nível, eu não conseguiria, perdão.’’ – Theo disse isso abrindo a grande
porta de metal da ala de treinos, e depois a mesma se fecha sozinha.

E então, a jovem ficou sozinha na sala de treinos, com mais


questionamentos que respostas.

Foi um abalo.

Havia perdido seu fiel escudeiro e seu próprio pai no mesmo dia.

E então eles se dividiram, com a promessa de se encontrarem


novamente em um futuro próximo.

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