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O Herege
T.C.Oaks
author.tcoaks@gmail.com
www.tcoaks.com.br
Capítulo 1
Horas antes...
– Imagino que por isso não tenha vindo essa noite, não é
mesmo? – continuou, e Walkyria retribuiu com seu habitual sorriso.
Odiava esse tipo de reunião e detestava eventos sociais em geral.
Embora a faculdade de medicina fora uma imposição do pai,
escolhera a cirurgia-geral como profissão exatamente porque
raramente teria que lidar com pacientes e adorava seus pacientes
quando estavam sedados. O problema era quando acordavam.
– Acredito que meu pai tenha ficado muito triste em não poder
comparecer.
Jacó tocou sua mão. Ela o olhou, tentando expressar que ele era
a única razão de sua ida ao evento. Ela via sua alegria, mas não
entendia como podia admirar tanto o homem a sua frente. Walkyria
conhecia William sua vida toda e, desde que havia adquirido a
capacidade de refletir, o desprezava. Era um homem brilhante, mas
também presunçoso e arrogante. Apesar de ser seu padrinho e
amigo de infância de seu pai, a única coisa boa que fizera nesses
anos fora lhe apresentar seu protégée, um jovem psiquiatra
chamado Jacó Cohen, um homem decidido, “das antigas” – como
ele dizia –, cavalheiresco e romântico de uma forma que beirava o
ridículo. Para arrematar, carregava algo muito raro na atualidade:
honra. Talvez por isso seu pai gostasse tanto dele, e este era
definitivamente o maior defeito de Jacó Cohen. Impressionava-se
com a maneira quase brutal pela qual Jack entrara em sua vida.
Afastou-se com elegância, mas não foi aonde dissera que iria.
Procurou a sacada, onde agarrou uma taça de champanhe e tomou
de uma vez. É doce, mas suave, pensou. Uma brisa soprou e ela
respirou fundo, como se saísse de um profundo mergulho. Tremia, e
não sabia se era porque estava furiosa ou se porque estava
aterrorizada.
Perto dali...
– Maldita! – praguejou.
– Mas para mim o casamento não é só isso! – dessa vez foi Jacó
quem explodiu ofendido. – Casamento é compromisso, Walkyria! É
deixar claro diante de tudo e de todos que aquela pessoa é a que
você escolheu como companheira para toda a vida! É um caminho
sem volta – falou enfático. A garota riu.
Atendeu com sua voz ainda rouca pelo sono. O grande corpanzil
mexeu lentamente:
– Alô...
– Fala aí, Carlão. É o Lucca!
Ele não estava satisfeito. Claro que era legal faturar no final da
noite, mas sem uma conversa interessante era como ter um belo
jantar sem uma boa bebida para acompanhar.
– Ele é um hipócrita, sabe, vive saindo com tudo que é vadia que
encontra na balada, aquelas vacas de vestidinho preto mais curto
que uma camisa e com os peitos pulando para fora do decote,
sabe?
– Que canalha...
– Bom, tenho mais de quinhentos mil inscritos. Acho que não sou
o único que acredito nisso, né? – falou irritado.
– Ih, vai dar em casamento. Ei, Carlão, quero ser padrinho, hein!
Eu estava presente no primeiro encontro – gargalhou o repórter e
logo depois levou um safanão do policial.
– Vinnie, dá o fora. Sua namorada está esperando – o policial
apontou para a garota que estava atrás do cordão de isolamento.
– Vai, diz para mim. É ele, não é? O Herege? Está na época, não
está? Você investigou os arquivos que te mandei?
– Sou um ninja, Carlão. As trevas são meu lar – Vinnie falou com
uma voz grave e misteriosa. O delegado revirou os olhos mais uma
vez, depois olhou para a garota atrás do cordão de isolamento.
– E ela?
– Antes que eu vá, mestre, devo lhe informar que ela se encontra
presa com o Mago. Se a retirarmos de lá, acredito que iniciaremos
uma guerra. Magalhães é contra.
– Decapitar?
– Sobre isso...
Ela olhou com firmeza para Jacó, seus olhos reluzindo em fúria.
Ele tentou sorrir para ela, no intuito de demonstrar simpatia – uma
boa impressão era importante –, mas o sorriso não saía. E por mais
que tentasse ignorar, havia algo de semelhante entre ela e sua
amada, o que o incomodava. A semelhança não estava somente no
nome, mas o que seria? Ele não conseguia identificar. – Só me
faltava essa... – pensou.
Jacó não conseguiu terminar a frase. Ela saltou para cima dele e
nem mesmo todo o seu treinamento militar impediu que fosse
jogado ao chão. Ela montou-o com uma agilidade impressionante,
travou suas mãos e pés e, com o rosto próximo do dele, fazendo-o
sentir o calor de seu hálito, deixou sua voz sair serena por detrás da
selvageria de seu cabelo e olhar:
– Raquel.
Capítulo 2
Caso encerrado...
Caso Encerrado...
– Seu Damião?
– Senhor Damião?
– Sangue é vida...
– O que você fez não importa mais. Você deve me dizer por que
fez!
– Ele?
– Mas você fez isso! Você matou seu mestre – afirmou, embora
não tivesse mais plena certeza.
– Sim, você tem razão, chefe, falta o fígado. Olhamos por toda
parte, mas o fígado sumiu, como todos os outros. Já as mulheres
estão intactas, exceto por terem sido estupidamente violentadas,
possivelmente por um animal.
– Quem pode ser tão louco para fazer isso? – Rita enojada
olhava para o corpo horrorizada.
– Escuta aqui, você! Nós estamos no Brasil e aqui não tem urso.
Tem onça, no máximo!
– Presta bem atenção no que vou te falar agora.
– Mas não é muito cedo para o seu irmão vir com essa história
de casamento?
– Wal, foi você que sugeriu que morassem juntos. Você que fala
de mobiliar a casa e tal. Para você pode ser tranquilo ir morar com o
namorado, mas para o meu irmão deve estar sendo um parto
esperar para oficializar as coisas. Desde que algo aconteceu
quando ele estava no exército, o Jack mudou! Ele nunca contou o
que houve, e o exército decretou o projeto como confidencial, mas
desse dia em diante o Jack nunca mais foi o mesmo. Ele não
admite, mas sei que foi por isso que ele optou pela psiquiatria e
desde então tudo para ele parece ser mais intenso! Ele te ama e,
quando o assunto é amor, ele simplesmente não pensa, age! Ele te
quer e você está com ele, então ele não precisa de mais nada. Para
que esperar? –Cibele riu sacudindo a cabeça em negativa. – Meu
irmão é impulsivo e ele te adora! Para ele, era o lógico, simples
assim – deu de ombros, depois olhou para amiga, preocupada. –
Como ele reagiu?
Mas Walkyria não respondeu. Era tão óbvio. Para Jack, mesmo
quando se tratava da lucidez de um paciente, tudo era direto. Preto
e branco. Certo e errado. Dia ou noite. Causa e Efeito. Ela entrara
em pânico e respondera da maneira que mais o machucaria. Não
era o tipo de homem que lidava com crises e dilemas como as
pessoas normais que sofriam e culpavam os outros. Jacó era um
homem que ia fundo nos problemas e os resolvia na hora. Mas
Walkyria sempre buscava fugir dos seus traumas do passado, e
quando confrontada sempre optava pela saída mais fácil, porém,
dessa vez fora longe demais. Permitira que seus temores
afastassem o homem que a amava, como nunca nenhum outro
amara. O homem que ela amava. Sim, nessa hora percebeu que
amava Jacó Cohen, aquele homem determinado, dinâmico e
intenso, que primeiro agia e depois pensava, o oposto dela, que
sempre pensava demais; Jacó, que nunca cedia ao medo, diferente
dela com seus inúmeros temores.
– Ok, Raquel. Então diga-me por que fez isso? – ele indagou
com o seu ar profissional, e a garota deu de ombros. – Isso o quê? –
perguntou casualmente.
– Porque você acha que sabe tudo, acha que o que você vê é o
real. Mas não é! A única coisa que você sabe é aquilo que querem
que você saiba, ou seja, nada – a garota pontuou enfática.
Ele a soltou e ela não tentou atacá-lo novamente. Olhou para ele
com um misto de surpresa e desconfiança. Ele se virou e saiu da
sala. Henrique, o segurança, fitou pasmo o psiquiatra.
– Inteiro, meu amigo. Pode ficar tranquilo – falou calmo e foi para
sua sala. Precisava de um tempo sozinho. Seu dia ia de mal a pior.
Sentou-se em sua mesa e pensou em ligar para a irmã mais velha,
mas ela deveria estar dando aula. Cibele sempre tinha a capacidade
de acalmá-lo; ele comparava sua sabedoria à do Yoda, embora
admitisse que a irmã era muito mais bela que o pequeno
homenzinho verde, o que não o agradava muito, porque atraía
olhares masculinos. Até Matheus, seu amigo padre, às vezes olhava
para Cibele.
Estava pensando na irmã e principalmente em Walkyria. Não
conseguia entendê-la. Era tão carinhosa, tão amável, mas, quando
conversavam sobre algo sério, ela mudava. Demorara quase quatro
meses para assumir o namoro, e nunca disse “eu te amo”.
Costumava brincar com ela: – Amor, diz “eu também”? Ela ria
daquilo e respondia: – Eu também, meu lindo, eu também...
– Obrigado, Dr., mas acho que vou passar. Sua cliente está na
sala 9, Dr. Pacheco; final do corredor à esquerda – falou
desvencilhando-se do advogado e entregando-o aos cuidados de
Henrique, o segurança, com um aceno.
– Cohen.
– Não faz isso não, moça, por favor! Eu posso te ajudar. Vou ser
um bom refém! Prometo não reagir nem tentar fugir. Só quero
entender o que te motiva. Sério! – Vinnie continuava sua lamúria.
Estava claramente assustado, mas conseguia conversar bem com
sua atacante, Jacó reparou.
– Está ali atrás. Botei ele para dormir – ela falou depressa.
– Não! Vou com você! – o youtuber falou quase aos gritos, Jacó
olhou-o surpreso. Ignorando-o Raquel continuou.
– Não, você não me mataria porque sabe que sou mortal. Você
disse que todos daquela família estavam mortos! – ele falou com
bravura, embora estivesse aterrorizado. Raquel olhou surpresa e ele
aproveitou a oportunidade para continuar: – A maneira que você os
matou era um rito antigo de exorcismo, não era? Como os romenos
faziam com os Vampyrs? – ele olhava sério, determinado.
Raquel o soltou.
– Tá bom! – rugiu derrotada – Mas ANDA LOGO! Liga essa
porcaria que precisamos fugir daqui! – ordenou por fim.
– Engine on!
O carro ligou. Tudo o que Jack queria nesse exato momento era
bater sua cabeça bem forte e quantas vezes pudesse até desmaiar,
mas, antes disso, queria matar Vinnie lentamente.
– Com a terra que Ele havia criado meu pai, Ele moldou a mais
bela criatura. Com a noite trançou suas madeixas e com duas
estrelas lapidou seus olhos. E assim meu pai conheceu sua
companheira! Criada como ele e para ele. Essa companheira, no
entanto, era poderosa e pouco dócil... Em verdade digo que desde o
primeiro ar respirado não havia em seu feitio obediência ou
submissão. Ela jamais aceitava que meu pai fosse seu soberano.
Sempre dizia: “– Por que vós deveis comandar? Não foste tu
moldado da mesma terra donde fui? No que és superior a mim? Em
nada, digo-te!”.
– O que meu tolo pai não sabia era que ela estava grávida! E do
ventre da primeira esposa de meu progenitor todo o seu povo teve
origem. E todos os outros primeiros homens e mulheres desse
mundo vieram da primeira ninhada de meu pai e tua mãe. Pois da
semente de meu pai e do ventre de tua mãe corre a força do Criador
e muitos filhos e filhas ela teve.
– Mas meu pai foi somente o primeiro de seus amantes. Logo ela
conheceria o Príncipe Desta Terra.
Toruk ficou feliz e satisfeito, mas esse não era o único motivo de
o Senhor Escuro tê-lo levado até àquele monte.
– Não tocarás nela, Lamech, pois ela não é tua e nunca o será.
Zillah foi separada para a Mãe, e só a Ela a jovem será entregue.
Essa é a lei!
– Eu te desafio, Lamech!
Ora, Lamech acertou seu golpe, mas, ao invés de ferir seu alvo,
uma dor excruciante o devastou. Seus ossos se partiram e ele caiu
no chão, incapaz de continuar o embate. Sua agonia era tanta que
seus gritos feriam aqueles que assistiam.
– Vai em paz, jovem donzela. Lamech não fará mal a ti, pois
muito ferido ele foi e, quando despertar, tu há muito estarás morta.
Viva feliz tua vida e em segurança.
– Nada temas! Oh, doce Zillah! Teu canto subiu aos céus e
alegrou meu coração. Teu desejo inflamou o meu! E vim hoje
satisfazer teu pedido. Não te esconde de mim, mas entrega-te ao
meu toque, como sempre te entregaste ao meu calor!
– Preciso ir, minha amada. Devo voltar aos céus, que é meu
lugar, mas amanhã estaremos juntos novamente.
– Pecaste contra Mãe e contra mim, que lutei por ti. Serás
punida por tal perjúrio! No entanto, não pecaste sozinha. Que
aquele que a deflorou venha diante de mim e se apresente! Pagará
pelo crime junto a ti. Prendei-a e, quando nascer a cria, mataremos
os três: pai, mãe e prole.
E assim Zillah foi aprisionada, mas ficou em silêncio e sem
temor. Foi escoltada a uma cela escavada nas entranhas da terra,
onde a luz do dia não a alcançava.
– Ele sempre refletirá a glória de seu pai, por isso seu nome será
Barashemesh.
– Que assim seja! – disse Qayin – Estás livre para ir, Zillah, a
Feiticeira, e teu filho também. Escolhe tuas pupilas e transmita-nos
o que te foi ensinado.
– Não, mãe, não acho que Deus vai resolver nesse caso! –
revirou os olhos lacrimejados. – Mas se vai te ajudar a ficar calma,
vai lá rezar. Tendo alguma novidade, eu te aviso – e desligando o
telefone, desabafou aos prantos: – Como se ficar sem comer fosse
trazer meu irmão de volta!
As duas se abraçaram e choraram muito, sentindo-se
impotentes. O atendente do bar trouxe água para elas, única coisa
que poderia fazer. Depois de beber, Walkyria olhou para Cibele:
– Você, Rita,, vem aqui. Vá até aquele cara gordo ali. O nome
dele é Lucca. Passe para ele todos os seus contatos. A partir de
agora você só sai do meu lado quando eu mandar, entendeu?
Ela sorriu. – Entendido, senhor – e marchou em direção do
delegado gordo. Carlos, por sua vez, foi até o prefeito, que parecia
conversar com a freira. O delegado respirou fundo, colocando seu
orgulho em uma região que não fosse afetá-lo e falou:
– Não, não estou, e acredito que deva ser algo mais importante
do que uma noticiazinha de jornal para você decidir atrapalhar o seu
pai com suas futilidades.
– O que tem ele? Eu tenho mais o que fazer aqui! Você faz ideia
do que está acontecendo aqui em São Caetano? Acha que tenho
tempo para as suas briguinhas com seu namoradinho?
O descontrole da outra parte era grande e prendeu a atenção do
prefeito, que finalmente deixou de lado o delegado, que perecia
acalmar a freira.
– Cadu?! é a Wal!
– Ok, Cadu. Falei com meu pai também. Ele vai ver o que pode
fazer – a voz de Walkyria era de choro, mas parecia um pouco mais
calma.
– Claro, meu amigo. Vou pedir para a copeira trazer para você;
preciso sair em breve. Posso ajudar de mais alguma forma?
– E delegado...
Carlos olhou para o psiquiatra. William falou com a voz
demonstrando certa conspiração.
– Sei que tem seu foco, mas sou conhecido pela privacidade de
meus pacientes e familiares. Muitas informações já caíram na mídia.
Ficaria extremamente agradecido que fosse o mais sigiloso
possível. Posso contar com o senhor para trazer minha paciente de
volta, junto de meu melhor psiquiatra?
– Sim, sim. Jacó acha que a arte marcial pode tirar as crianças
do tráfico.
– Faça o que tem que fazer, Carlos. Seguro as pontas por aqui –
depois falou com certa tristeza: – Você e o Brandão deveriam
trabalhar juntos e não um contra o outro.
– Achei!
– Então o quê?
– É o destino dele.
– Que tudo o que você passou até hoje trouxe você a este
momento, a nós dois aqui – concluiu.
– Alguma vez em sua vida, Jacó Cohen, você pode dizer com
sinceridade que já se sentiu completo? Alguma vez você foi
completamente feliz ao lado de uma mulher? – Jacó olhou com
desprezo, e um furor incendiando-o internamente.
– Sei que algo aconteceu no seu passado, algo que fez com que
você perdesse a fé no mundo e o fizesse ficar andando por aí
tomando remédios contra alucinação e contra a verdade que você
sempre soube! Você não é louco. Aquilo realmente aconteceu e
existe mais nesse mundo do que você consegue entender! Você é
que é um tolo por não acreditar! Ou fingir não acreditar!
Ele se aproximou dela lívido. Quando falou, as palavras saíram
quase inteligíveis, em meio a rosnados:
– Você virá conosco – falou o jovem com a arma. Não devia ter
muito mais que vinte anos, usava batom preto e lápis no olho. Jacó
levou lentamente a mão à cabeça e deixou-se conduzir. Os rapazes
abriram a porta de um furgão e mandaram ele entrar. Raquel já
estava sendo colocada também e tentava resistir.
Jacó estava furioso. Consigo mesmo, por estar tão furioso que
baixou a guarda e não viu os adversários; com o irritante hino
nacional, que soava incessantemente em sua cabeça; com Raquel,
por ter invadido uma área de sua vida que ele não abria para
ninguém; e com o moleque que a golpeava com um soco no
estômago. Estava tão entorpecido que sentia sua mente nublar.
– O que eu fiz?
– Carlão! Caramba, cara, que susto! – mas quando sua voz saiu,
a tensão dos dois lados ficou novamente perceptível. Matheus se
levantou e abraçou demoradamente o amigo de longa data. – Que
bom te ver, campeão. Faz um tempo já, hein?
– Graças a Deus não, Mato, mas gostaria de estar aqui sim por
razões melhores. Tenho más notícias: o Jack foi sequestrado. Uma
paciente maluca escapou do sanatório e levou ele de refém.
– Sei bem do que está falando. Hoje mais cedo uma das nossas
maiores patronas veio com um caso parecido. Seu filho está
desaparecido e ela estava aos prantos. Perdeu a filha há 20 anos,
quando a menina era quase um bebê, e agora o filho desapareceu.
A mulher não sabe o que fazer. Dei o telefone daquele seu amigo na
antissequestro.
Matheus sorriu.
– Bom, acredito que um dia Jesus voltará. E quando Ele voltar,
todos os que morreram vão passar por um julgamento. Alguns
estudos presumem que voltaremos aos nossos próprios corpos,
inclusive. Essa era a razão de ser pecado antigamente cremar os
corpos, sabia?
– Você sabe muito bem que não é sobre isso que estou falando,
Matheus! – Carlos estava sério. O padre se levantou, foi até a mesa
de canto e preparou dois expressos. Deu um ao amigo, sentou-se
na sua cadeira, tomou um gole e continuou olhando para a xícara. O
silêncio se prolongava. Ao longe era possível ouvir as crianças
brincando no pátio do orfanato.
Carlos sorriu.
Ele ergueu seu corpo para fora da cama. A mulher havia sentado
em frente da penteadeira e cuidava de seus cabelos negros e
curtos, estilo joãozinho, mas com a franja longa, que ela agora
ajeitava com a escova, tirando um pouco da bagunça que o sexo
causara.
– Vou buscar meu filho. Vai ficar para jantar? Teremos um jantar
em família hoje.
– Está bem, mas é o último favor que lhe presto hoje! Estou
muito ocupada.
– Temos que dar um tempo para ele. Se tiver outra crise dentro
do carro, será mais difícil de contê-lo e ele poderá sofrer uma lesão
severa.
Jacó abriu a boca, mas a voz não saiu. Respirou fundo, olhou
para longe e respondeu baixo.
– Está melhor?
– Fujam!
Vinnie, por outro lado, era um dos poucos que conseguia alegrar
sua vida. Conhecera o repórter durante a investigação de um caso
estranho anos atrás, quando ainda começava a carreira de
delegado. Na época, Vinnie era um adolescente que sonhava em
cursar jornalismo e era aficionado por RPG, ufologia e ocultismo.
– Ele fez o quê? Quem ele pensa que é para fazer isso? – ele
gritava a plenos pulmões, enquanto os outros peritos observavam-
no em fúria. – Pode deixar que vou me acertar com esse babaca.
Desligou o celular aos palavrões e se dirigiu à saída.
– Pai!
– Já basta!
– Não criei você para ser uma idiotinha que choraminga por
causa de um homem qualquer! Está na hora de você entender que
pertence a uma estirpe diferenciada. Dentro de suas veias corre um
sangue ancestral e poderoso, que não deve ser humilhado dessa
maneira com sentimentos tão banais – André Marcos se levantou.
Tinha um olhar de fúria gélida enquanto falava com a filha, que o
encarava chocada.
O prefeito ergueu a mão e a desceu com força no rosto da filha.
O tapa ecoou pela sala.
– Mas não farei isso por você. Farei isso porque eu tenho o
poder de fazê-lo! – Virou-se para a filha. – Farei isso porque você é
fraca para fazê-lo! Farei isso porque você deveria ser capaz de
fazer! Se honrasse o sangue sagrado que corre em suas veias, você
já teria feito!
– Eu não sou assim pai... Não sou você...não quero ser que nem
você
– Mas você será! Se quiser seu amado, você será! Pois trarei ele
de volta, Walkyria Haushofer, mas tenho um preço.
– Como você está? – colocou a mão sobre seu ombro. Sua voz
mostrava uma preocupação real.
Ele saiu dando as costas aos dois e voltou depois de meia hora
com vários galhos.
– A selva à noite não é tão fria quanto o deserto, mas fica bem
gelado por causa da umidade. Aproxime-se mais do fogo. As
mesmas paredes que seguram a luz retêm parte do calor.
Precisamos ficar mais perto se quisermos ficar aquecidos. Ela se
aproximou dele e aproximou as mãos das chamas.
– Lembro.
Ele sorriu para ela, e ela retribuiu o sorriso. Teve um calafrio com
o vento gelado, se aproximou mais do fogo e começou a falar.
– Transformados?
– Sei lá. Nunca acampei por aqui, mas devemos estar abaixo de
dez graus. Está muito frio para essa época.
– Acorde! Acorde!
Ele queria fazer algo, puxá-la para dentro. Uma voz dentro de
sua cabeça o mandava agir, mas sempre que pensava em fazer
algo era como se ouvisse outra voz dizendo:
– Acalme-se.
O perigo passara.
A sensação de segurança também.
Tamanha fama foi boa para Khanokh, mas não tão boa para o
jovem Barashemesh, pois para lá se dirigiam estrangeiros, e muitos
que a visitavam voltavam ao lar cantando as maravilhas da terra de
Qayin e do glorioso deus solar que por aquelas bandas habitava. E
um ano antes do seu ritual de passagem para a vida adulta, a boa
sorte de Barashemesh começou a findar, pois, num dia
tempestuoso, lá chegou um estranho. A água corria e se acumulava
nas ruas e telhados da cidade subterrânea e muitos lares já haviam
sido alagados. Todos tentavam salvar seus pertences ou proteger-
se da enxurrada, com exceção do estranho, que caminhava
tranquilamente com as mãos às costas em direção do palácio.
– Sois o maior dentre nós. Por que vieste até mim? O que
aconteceu que lembraste de mim, que nunca quis tal voto?!
Dizem que Zillah sofreu. Alguns falam que até mesmo o senhor
escuro entristeceu-se com a partida. Após o abandono do Senhor
do Sol, o homem escuro passou mais uma vez a vagar e talvez
tivesse vagado para sempre, se não fosse o despertar de seu
descendente. Pois, dois anos depois da partida de Shamsiel,
Lamech finalmente despertou curado.
– Oh pai de todos. Sei que lhe falhei muitas vezes, mas nossa
cidade sofre com essa seca e em breve não teremos o que comer.
Rogo-te que permita que me afaste da cidade em busca de alimento
e só retorne quando encontrá-lo.
Havia uma fúria fria em Lamech, mas ele temia Zillah, pois ela
tornara-se grande ao seu modo. Sabia que ela tinha o poder de
ferver o sangue dentro das veias de quem ela desejasse.
– Sim, meu filho, pois somente assim a besta não verá a seta
mortal. Atira bem, através da mão de teu pai, perfura-a e assim
derrotarás essa criatura. Confia em teu pai e não tema, pois estou
contigo e não deixarei que te façam nenhum mal – ludibriou Lamech
seu filho, pois colocava em andamento sua vil empreitada.
– Eu, meu pai! Por anos esperei a chance de ter tua morte, e
agora finalmente consegui. Adeus. Tarde partes deste mundo
primeiro dos assassinos. Ninguém chorará por ti.
– Ergueste armas contra teu rei? Morrerás por isso! Como meu
primeiro ato como senhor definitivo de Khanokh, condeno-te à
morte!
– Jura pela terra, pelo céu e pelo mar que serás minha até o
último dia de sua vida e poupo seu filho – ordenou.
Tudo o que ele queria era o abraço da morte, que não veio. Em
vez disso, recebeu o banimento para o deserto e o abandono de seu
povo.
Ele suspirou.
– Sim. Foi esse que prendemos e que foi morto em sua cela no
dia seguinte – completou sombrio.
– Aqui diz que ele cometeu suicídio – Rita falou. Carlos assentiu.
– Acho que posso ajudar com isso – Rita falou alegre, e Carlos
olhou para ela: – Diga-me.
– Dei uma olhada nos dados que você juntou e esse dia em
particular chamou minha atenção – ela apontou para uma das datas,
precisamente para a do 17 de novembro, dia da mudança da lua
para cheia. Eu me lembro.
– Vamos lá, Carlão, foca no seu alvo. As coisas vão dar certo.
Vocês têm novas informações. Vamos partir daí, que tal? – Tucca
falou com a voz mais amigável. Carlos respirou fundo.
– Você está certo como sempre, Tucca. Vou focar no que tenho
que fazer – Tucca fez um sinal com a cabeça concordando.
– Sim. Você me disse que, como teremos duas luas novas nesse
mês de março, você acha que ele vai atacar a próxima vítima nos
próximos cinco dias, antes de acabar.
– Sim, mas, ainda assim, não sabemos quem ou onde ele vai
atacar – Rita falou pensativa.
Ela sentia o frio roçando sua própria pele nua e tremia de medo.
Sua boca também estava presa e não podia falar ou pedir ajuda. O
homem caminhava pela nave indiferente a sua nudez. A garota
olhava sua forma repugnante, incapaz de desviar o olhar. Ele era
enorme e caminhava com sua cabeça na altura das colunas que
sustentavam a galeria superior. Ela sabia que era impossível alguém
ser tão grande; as colunas tinham três metros de altura e nenhum
ser humano poderia chegar a tanto. Da mesma forma nenhum ser
humano tinha garras nas mãos deformadas e seis dedos, ou tantos
músculos pelo corpo, mas aquele homem era do tamanho das
colunas, suas garras cortavam como navalhas e tinha mais
músculos que um gorila, além de uma pele enrugada cadavérica e
sem cor.
Ela não gostava do padre Jair, mas sentia muita pena dele. Nem
mesmo ele merecia todo esse mal.
– Isso não é um filme! Nós não vamos achar uma arma mágica
que acabe com esses monstros. Não é assim! – Raquel ralhou com
a voz irritada e completou: – O que precisamos é de um carro para a
fuga, não de um palerma que vive num mundo de fantasia!
– Vou contar o que vi. Vocês vão rir de mim e me humilhar, como
já fizeram! – ressaltou. – Então vão dizer que estou louca. Por que
passaremos por isso de novo?
– Devo ficar com a irmã Gabriela, senhor policial, não vou sair.
– Está tudo bem, madre. Falarei com eles; não tenho nada a
esconder – sorriu afetuosamente para sua superiora. A mulher
estava assustada, mas assentiu e saiu da sala.
– Foi por esse túnel que ele veio e tentou me agarrar. Eu estava
dormindo quando fui surpreendida. Tentei gritar, mas ele tampou
minha boca. Ele lambia meu pescoço e me falava um monte de
absurdos, que eu havia sido enviada do inferno para atormentá-lo e
outras nojeiras sobre meu corpo, seu desejo e o que faria comigo.
– As freiras que ficavam no meu quarto são aquelas que você viu
mortas na igreja. Eram suas concubinas, todas elas. A única que
tentou me ajudar foi Lucia, mas o padre deu um tapa nela e ela se
afastou. Lucia era viciada em heroína, e ele a dominava por isso –
admitiu.
– Isso não pode ser possível! Só pode ser mentira! – Rita estava
chocada. Carlos Eduardo olhou para ela, depois para a freira e
pediu:
– Pensei que não conseguiria fugir, mas então tudo ficou escuro
e alguém arrancou o padre de cima de mim. Depois tomei uma
pancada forte na cabeça e desmaiei. Quando acordei, estava na
Matriz, presa numa pilastra, sem roupa e algemada. O padre Jair
estava bem no centro da igreja, preso por correntes, uma em cada
braço e cada perna. As mulheres estavam próximas a mim, todas
também algemadas.
– O que ele usou para cortar? – Carlos nem piscava. A cena era
ainda mais grotesca em sua mente. Gabriela respirou fundo, como
que criando coragem, e encarou o delegado.
– Não. Disse a ele que a fé era tudo o que eu tinha e que ele não
poderia tirar isso de mim. Disse que o perdoava pelo mal que ia me
fazer, mas que ele deveria buscar a reconciliação com o Pai
Celeste, pois somente assim teria salvação.
Rita ouviu perplexa a voz. Lera no relatório, mas não sabia dos
arquivos de áudio. Quem falaria daquele jeito? Ou o quê? Carlos
Eduardo fechou seu bloco de notas e desligou o celular. Olhou com
ternura para a menina que chorava a sua frente. A madre superiora
entrou na sala ao ouvir o choro desesperado, mas o delegado
continuou.
– Gabriela, não posso explicar o que você viu, nem colocar isso
num relatório, porque é tudo muito fantástico – a freira soluçou
desanimada. O delegado continuou, pegando na mão dela.
– Ora, ora, ora, mas o que temos aqui, se não nosso amigo
André Marcos – falou em seu forte sotaque lusitano. André Marcos
somente riu da falsa hospitalidade.
– Não sei do que está falando, rapaz. Não tenho mestres, como
bem sabe, e nem é de minha responsabilidade o que ocorre em tua
cidade. Temos um acordo, lembraste? Ficas fora de nosso território
e nós ficaremos longe de ti e de tua confraria – disse
tranquilamente.
– Não brinque comigo, idiota! Não sou um dos seus para que me
trate como imbecil! – a voz de André Marcos ecoou pelos salões.
Magalhães desfez o sorriso, lentamente pondo-se de pé. A mulher
ajoelhada correu assustada para longe. O lusitano rosnou, e seus
olhos faiscaram na escuridão ao redor. André Marcos viu centenas
de olhos relampejarem.
– Eu sei. Ela resistiu a meu poder. Imagino como deve ter sido
incômoda a experiência de capturá-la – falou irônico.
Vinnie riu.
– Não venha com meu anjo para cima de mim! Você sabe tão
bem quanto eu que não somos amigas e nem parentes! Você não
me suporta e o sentimento é mútuo. Então cai fora! – cuspiu a última
frase cheia de raiva.
– Sei que fui e sou dura com você, menina. Preciso ser! Isso não
significa que estou impassível diante de sua dor – os grandes olhos
da mulher mais velha encaravam a afilhada com dureza, mas ainda
assim com algo semelhante à compaixão.
Ao voltar para sua sala, viu que Rita dormia num cobertor no
chão, e a irmã Gabriela, no sofá. Fora difícil convencer a madre
superiora, mas, depois de muita argumentação e bate boca, a
mulher finalmente compreendera que a garota estaria mais segura a
seu lado.
– Está explicado por que essa goma é tão da hora! – falou com
ar de entendido. Jacó olhou-o confuso.
– Preciso ligar para a minha mãe, cara... Ela deve estar subindo
pelas paredes; é muito protetora – pediu. “Não me diga”, pensou o
psiquiatra. Vinnie tinha todas as características imaturas de um filho
superprotegido.
– Olha, Madame, tenho que avisar, para ela ficar tranquila. Sério!
– disse preocupado.
– Meu, eu estava dando uma olhada nas minas e elas são bem
parecidas – comentou.
– Obrigada por tudo o que você tem feito – disse a moça para o
psiquiatra quando ficaram sozinhos.
– Imagina – Respondeu.
Ela olhou para ele e sorriu; ele lhe devolveu o olhar. Raquel
desviou, encabulada pela primeira vez, sentindo certo
constrangimento. Esquadrinhando o ambiente em busca de algo
para quebrar o mal-estar, notou um desenho em mosaico violeta no
piso de mármore branco. Parecia um desenho aleatório, mas sentiu-
se aliviada por achar algo para comentar. Ela se dirigiu devagar ao
local e examinou melhor o que vira. Olhou para Jack, como pedindo
permissão, e começou a afastar os tapetes. Jacó a observava e se
preocupou quando ela começou a repetir “não, não, não”
continuamente. Ele levantou e passou a ajudá-la. Afastaram móveis
e todos os objetos que cobriam o piso. Quando estava
completamente descoberto, viram um pedaço de círculo; da
curvatura partia um desenho que parecia a junção de dois raios,
formando um “C” invertido. Raquel ajoelhou-se diante do símbolo
entristecida e assustada.
– Sabe por que estou aqui, não sabe, garota? – a voz fria de
André Marcos soou na sala da madre superiora.
– Eu não o matei! Não fui eu! Por que o senhor está dizendo isso
de mim?
Por alguns segundos André Marcos ficou sem saber o que fazer.
– Prefeito, sou inocente. Nunca fiz mal ao padre Jair! Sou uma
mulher com a vida devotada a fazer o bem e não o mal – indignou-
se. Ele fez ainda mais força, estendendo o ataque, mas sentiu a
mente nublar.
– Você teria razão para tal. Jair não via a hora de se meter entre
suas pernas! – ralhou buscando uma oportunidade de enfraquecê-
la. No entanto, sua cabeça quase explodiu com uma dor lancinante.
Fechou os olhos e cambaleou. – Que mente poderosa! Não consigo
penetrá-la! – percebeu chocado. – Nunca vi alguém que não fosse
um bruxo poderoso e treinado com uma mente tão convicta! –
mesmo frustrado, André Marcos admirava a força de vontade da
jovem, sentia como se ele próprio houvesse recebido o ataque.
– O que temos que fazer agora? – ela estava vestida com a toga
de linho, exatamente como ele ordenara, e o cabelo preso num
longo rabo de cavalo, como deveria ser. Tinha no rosto uma
expressão cética e zombeteira, ele podia reparar, mas estava
empenhada. Ele se recompôs e começou a instruí-la.
Eu não entendo pai, para que foi isso? Vai me trazer o Jack de
volta, pai?
– Poxa, pai. Por que você é sempre tão cruel? – disse com
tristeza.
– Sim, eu sei, mas por amor a esse homem você deu o primeiro
passo e voltou para nós. É o começo, filha – incentivou. – O início
de algo muito bom. Você verá que quem viveu de ilusões e
superstições foi você minha filha. Hoje Walkyria, você começou a
trilhar o caminho de volta a seu destino.
– Sabe o que é pior?! Tenho certeza que esse filho da mãe não
matou o desgraçado!
– Ora, delegado... Sabes bem que Neusa não está mais aqui
no momento.
– Meu Deus do Céu! – Carlos falou chocado. A forma
monstruosa de Neusa sorriu ainda mais, fez um movimento de
negativa com a cabeça.
Jacó levantou-se.
– Raquel, essa é uma acusação muito grave. Você está dizendo
que a família da Wal é um tipo de Illuminati do mal?! – falou
defendendo a linhagem da amada.
– Vinnie, por favor, você acredita nisso por acaso? Acha mesmo
que André Marcos tem toda essa força?
– Diz você. Alguma vez você viu esse cara não conseguir o que
quer? Nunca ouviu nada de absurdo sobre ele? – Vinnie perguntou.
Jacó calou-se. Raquel interveio.
– Porque se você puser isso na internet eles vão nos achar. Não
posso lidar com isso. Precisamos fugir daqui, precisamos voltar para
São Paulo... É o único lugar seguro... – ela andava de um lado para
o outro nervosa.
– Como você vai me ajudar contra seres que não morrem? Nem
ao menos podem ser feridos por armas mortais? – ela olhou para
ele desesperançosa.
– Minha senhora, sabe por que escolhi este mortal para unir-me
depois de tantos anos sem um corpo? – o homem perguntou. A
mulher de vermelho somente o olhou curiosa. A criatura que atendia
pelo nome de Dom Francisco era um dos seres mais misteriosos do
seleto secto do Afogado.
A mulher adiantou-se:
O algo chegou a sua frente. Sabia que seria visto... Não havia
esperança.
Ele se virou olhando para cima, mas nada viu. Ao olhar para
baixo, Janaína estava diante de si com os olhos reluzindo
sombriamente.
Então ela falou, e sua voz saiu doce e delicada, ainda mais
apavorante:
– Estás muito afeiçoado a minha filha, mas ela não deve ser tua,
pois me é muito amada e pretendo tê-la a meu lado por todo o
sempre.
– Foi uma bela barganha que fizeste pela dama, criança! Meu
irmão impôs sobre ti um preço impagável. Não serás capaz de
derrotar tão infame criatura, pois ela é a vergonha de meu irmão, e
nenhuma arma feita pelas mãos do homem poderá feri-la!
O povo que o recebera era belo e alto, assim como ele. Seus
homens eram vigorosos e as mulheres formosas. Eram tão grandes
quanto Barashemesh e muito hábeis. A cidade fora construída não
sobre a terra, mas sobre a água que contornava uma imponente
montanha. Tinha a forma de círculos concêntricos ligados por largas
avenidas. Uma enorme ponte, que fazia o gigante se sentir
pequeno, ligava a cidade ao continente e ele e sua amada alada
caminharam sobre ela, até os grandes portões forjados em ouro,
prata e marfim. Do lado de fora do portão aguardava-os um único
homem. Seus cabelos eram longos e tocavam o chão, da cor da
prata banhada pelo luar. Ele era um pouco mais alto que
Barashemesh, mas mais esguio e frágil. Tinha traços andrógenos,
portanto quem visse somente sua face jamais saberia dizer se era
homem ou mulher. Sua beleza era estonteante, mas nada se
comparava a seus olhos, inteiramente negros, como poços
profundos, com exceção da íris, que reluzia como um diamante,
convertendo a luz branca em uma escala de arco-íris. Sorria e tinha
um ar gentil. Vestia-se com uma túnica cobalto carregada de
ornamentos feitos em ouro, lápis-lazúli e diamantes. Parecia ao
mesmo tempo reluzir e refletir o oceano a sua volta. Quando falou,
sua voz era sedosa, gentil e cheia de sabedoria.
– Sim. Sei de teus intentos e fui enviado pelo grande Minoi para
apresentar-te nosso lar antes que cometas o erro de nos destruir.
– Ainda não entendo por que fazem tantas maldades contra Artu,
se têm um local tão belo e mágico.
– Esse mundo, tudo aquilo que podes ver, sentir, ouvir, cheirar ou
tocar foi criado pelo Altíssimo, o Criador de Tudo, com o único
propósito de servir de lar a um único ser: o Homem! Para tanto, o
Altíssimo criou servos, ajudantes, que deveriam cumprir Suas
ordens. Eram magníficos em força, beleza e poder, mas ainda assim
inferiores àqueles escolhidos como herdeiros do altíssimo. O
primeiro e maior entre eles, a Estrela da Manhã, não aceitou
submeter-se aos filhos do homem e rebelou-se, sendo aprisionado
no subterrâneo do mundo, mas não sem vitória, pois seduzira a
Primeira Esposa, a mãe dos Filhos do Homem, aquela que Qayin
chamava de Senhora da Noite, criada com o Homem, tão poderosa
quanto ele e nada subserviente. E cansada da fraqueza do Homem,
ela o abandonou.
– Cara, me senti num filme do Bruce Lee! Ele vinha e você pow!
– extasiado, Vinnie imitava os golpes de Jack como uma criança. –
Quando você pegou ele por trás, o arremessou por sobre o sofá e
ele caiu no fogo foi retardado, cara! – gritou ao mesmo tempo
aterrorizado e animado.
– Não sei, mas outra dessas viradas e eu acho que vou vomitar!
– Vinnie estava branco que nem papel e suava frio, com os olhos
arregalados. Raquel estava assustada e encarou Jack furiosa,
depois que ele riu deles.
– Posso saber por que está rindo? Não está com medo?
Enlouqueceu? – ralhou nervosa. Jacó negou com a cabeça.
Sentou, queria chorar, mas era duro demais para isso. Sentia o
aperto na garganta, mas o choro ficara aprisionado lá dentro
recusando-se a sair. Buscou a garrafa e encheu mais um copo, mas
mãos delicadas envolveram as suas antes de beber. Rita olhou para
os outros dois ocupantes da sala: – Podem nos dar licença por um
minuto? Tucca, você poderia dar um pouco de água para a irmã
Gabriela? – pediu. O policial assentiu e levou Gabriela em silêncio.
Carlos Eduardo, incapaz de agir, olhou para Rita.
– Pronto – ela falou com um ar tranquilo e conciliador. – Sei que
quer esquecer isso. Sei que quer deixar tudo de lado... Isso é
demais para qualquer um – falou segurando firmemente as mãos do
delegado. – Sei que está com medo.
– Você mergulhou fundo demais nesse caso. Faz dias que não
dorme direito ou descansa de verdade. Você está esgotado. Precisa
voltar à superfície. Precisa renovar o fôlego, dar um passo para trás
para ir além – falou tentando acalmá-lo. – Vamos trabalhar juntos
nisso – seu tom era bondoso e confiante. Ela não sentia essa
confiança, mas sabia que precisava passa-la ao delegado a sua
frente. – Não adianta se desesperar. Temos de achar uma solução,
e vamos achá-la juntos, mas primeiro você precisa respirar –
aconselhou tanto o delegado como a si mesma, porque nunca
sentira tanto medo.
– Eu não consigo... – Carlos Eduardo admitiu frustrado. – Esse
cara, esse ser, sei lá... – rugiu, pondo-se de pé. – Tornou-se
pessoal! É como uma corrida. É isso que ele está tentando! –
continuava quase delirante. Olhava o vazio com olhos injetados. –
Tentando me fazer correr mais rápido, mas estou sempre um passo
atrás dele! Que Droga! – bradou, depois desmoronou no sofá. Rita
pegou o copo e colocou em cima da mesa, sentou ao seu lado,
colocou a mão trêmula sobre seu rosto e virou sua face para que se
encarassem. Precisou de todo o seu controle emocional para não
deixar transparecer sua insegurança naquele momento.
– Então para de correr! – falou com sua voz contida. – Ele está
nos desgastando, nos fazendo correr em círculos, tirando o foco do
que realmente importa! Ele está nos exaurindo, para depois nos
abater – e com um olhar firme e determinado tirou a mão do rosto
de Carlos e apertou seu ombro. – Vamos escolher o terreno e
vamos fortalecer esse local. Chega de corrermos atrás dele. Vamos
deixar que ele se canse tentando derrubar nossas defesas – falou
com firmeza. Carlos reagiu, olhando-a com um vislumbre de
esperança.
– Não lembro de cor, mas é mais ou menos assim: “Se Deus não
cuidar da cidade, em vão vigia a sentinela.” Deveria ser
reconfortante, mas nesse exato momento me sinto como a
sentinela: vigiando em vão... – admitiu. Carlos Eduardo arregalou os
olhos. Ficou parado por alguns segundos e gritou:
– A Lua Negra...
– Não sei direito, mas existe algo a mais aí. Procure a respeito.
Existe uma lua negra? Já ouvi falar de lua azul, que acontece
quando há duas luas cheias no mês, e até de lua vermelha, que não
sei direito quando acontece, mas nunca ouvi falar de lua negra. Se
eu fosse esse cara, tentaria atacar numa lua secreta e não numa
que as pessoas pudessem prever.
Ele deu uma piscadela e abriu seu sorriso cativante. Rita olhou
para ele surpresa, mas deu um sorriso discreto e agradeceu com a
cabeça.
– Não custa tentar – falou com calma e voltou-se para as
anotações de Vinnie, em busca de mais informações. Brandão já
estava se afastando quando ela falou sem tirar os olhos das
anotações.
– Espere, delegado!
– O que foi?
Rita olhou para ele e virou o monitor em sua direção. Havia uma
ilustração com uma lua ainda mais escura que a noite.
– Acho que talvez seu palpite esteja certo, mas não será tão fácil
achar as informações relevantes sobre essa lua negra. Uma ajuda
viria a calhar – ela sorriu. Brandão ficou parado por alguns
momentos.
– Não, claro que não. Ela sempre será bem-vinda – sorriu para a
moça.
– Obrigada, senhor. É muita bondade sua – falou com verdadeira
gratidão.
– Como assim?
O mendigo assentiu.
– Depois você me pergunta por que não gosto dele. Está sempre
se intrometendo nas melhores horas – ele sorriu com malícia. Ela
retribuiu com outro sorriso, embora tímido, e focou nos papéis e
arquivos de Vinnie, em especial em alguns que explicavam sobre
magia. Brandão apoiou os pés na mesa e relia as notas que Rita lhe
enviara quando seu telefone tocou.
– Brandão.
– Delegado Brandão, aqui é o Delegado Figueira da Rodoviária.
Estou ligando para comunicar que estamos com sua suspeita em
custódia. Levamos um tempo para fichá-la, mas acredito que o
senhor vai querer vir buscá-la.
– Se está com roupas tão caras deve ter muito dinheiro e ser um
daqueles que acham que o dinheiro compra tudo. Vai descobrir que
aqui não funciona assim... – pensou o delegado.
A chuva era tão intensa que eles quase tinham que gritar para
ouvir um ao outro. Pouco depois perceberam que havia começado a
cair granizo. Tinham a impressão de que a delegacia estava sendo
atacada, pois as pedras de gelo acertavam o local com tanta
violência que o barulho era o de centenas de armas atirando contra
suas paredes. Jack tinha a sensação incômoda de ouvir os policiais
gritando em pânico. Olhou para a garota sentada na cama e
percebeu uma névoa quase invisível saindo de sua boca enquanto
respirava. Vinnie tentava se aquecer em vão.
– Você é de verdade?
– Sou, garoto. Sou sim, e vi o que aquele idiota fez com você! –
respondeu. O garoto se encolheu envergonhado.
Gabriela gritou...
Ela ergueu a faca para o alto e cantou ainda mais forte. A água
entrava por seus lábios. Levou a lâmina aos seios fartos e cortou
superficialmente a pele. O sangue fluiu vivo e vibrante. Então ela
pegou no baú três estranhos objetos: uma camisa branca
masculina, um brinco artesanal com a pena de um pavão no centro
e uma foto da posse de André Marcos com toda a família – o
prefeito em sua imponência típica, Madalena elegante e deslumbre,
Adolfo com sua inocência, Walkyria em sua beleza frágil e Jacó
Cohen com seu ar soturno. Levou os três objetos até o corpo e
tingiu-os com seu sangue. Depois ergueu-os no alto e pronunciou:
Outro raio cruzou o céu e Jack viu a silhueta negra dos dois na
noite escura. O ferimento doía intensamente, mas sabia que
precisava fazer alguma coisa. Um ódio que nunca sentira antes foi
crescendo em seu interior. Sentiu um estranho aroma de ervas
invadir seu nariz repentinamente e um sabor de sangue na língua.
Era como se sua própria alma estivesse inebriada de fúria e algum
tipo de besta se agitasse em seu interior. Não era um ser qualquer,
mas um animal selvagem, primal e furioso. Podia senti-lo rosnar
dentro de seu coração, impelindo-o para frente. Era uma fúria ácida,
que surgia em suas entranhas e subia pelo seu esôfago, enchendo
sua boca de uma chama líquida, que explodiu em sua face e ocupou
olhos, nariz e ouvidos. Jacó já não pensava direito, nem era senhor
de suas funções; a fúria controlava tudo.
– Você não colocará a mão sobre eles sem antes passar por
mim!
– Isso é bom. Acho que essa menina não tem uma boa noite de
sono há uma semana pelo menos. Se conseguirmos mantê-la em
segurança só por mais essa noite, acredito que estará a salvo.
Talvez eu não consiga pôr as mãos naquele desgraçado do Herege,
mas ao menos salvarei a menina – Carlos falou distante, com as
olheiras fundas em torno dos olhos. Matheus sorriu e olhou para o
amigo.
– Parados! Polícia!
– Fique calmo, Vinnie. Ele ficou para trás – Jacó falou tentando
confortar o repórter, embora ele mesmo não parasse de observar,
com o canto dos olhos, o espelho retrovisor. – Não poderá nos
seguir. Raquel explodiu a cabeça dele com a espingarda.
– Você está feliz com isso? Acha por acaso que é um tipo de
brincadeira? – ela estava furiosa, mas Jacó olhou para ela resoluto.
– Não é possível...
Conforme gritava cada vez mais alto, sua pele parecia ceder. Os
músculos e tendões começavam a ficar à mostra e o garoto parecia
crescer e se tornar adulto diante dos olhos da irmã e do delegado.
A criatura riu e seu riso era mais assustador que seu gemido.
Curvava-se de uma maneira tenebrosa.
Jack olhou para frente e viu dois carros vindo em sua direção,
mas percebeu que não estavam tentando desviar, mas colidir.
Desesperado, fez uma curva abrupta usando o freio de mão.
Conseguiu evitar o impacto de frente, mas acabou batendo num dos
carros de lado. O passageiro do veículo começou a atirar com uma
metralhadora.
– Tive uma ideia! – Vinnie gritou. – Mas é uma ideia muito, mas
muito estúpida!
– Ele está vindo! Ele está vindo! – Vinnie gritava sem parar.
– Ele está vindo! Ele está vindo! – Vinnie continuava seu mantra.
– Você tem razão, demônio. Não sou páreo para você – Wesley
sorriu. O padre largou o livro e a água benta, segurou firmemente a
testa do garoto com as duas mãos e, chorando, olhou para o céu:
– Não sejas tola, Eos, pois teu é meu coração, mas Lamech me
fez grande mal e guarda consigo parte de minha alma, pois a dor
que me casou só será paga em sangue! Somente quando tirar a
vida daquele maldito poderei entregar-me a ti por completo.
– Não faremos nada, pois não será contra meu pai que lutarei,
mas contra o Criador do Céu e da Terra!
– Mas por que, Barsemyaza, por que o Criador nos odeia tanto
assim?
– Assim o farei!
– Por que vens até mim com súplicas? Não sou eu quem faz os
julgamentos... Somente os transmito. Nada que possas dizer
mudará a vontade do Supremo.
– Mas por quê? O que há de tão mal em nossa essência que não
nos dá a chance de tentar nos redimir? – indagou o valente. O
profeta respirou fundo e, com um olhar piedoso, respondeu da
maneira mais doce que sua voz permitia.
– Não, não podeis fazer nada, pois esse crime não foi cometido
por ti, e em sua carne ou em sua alma não reside a força capaz de
reverter esse destino. Há, no entanto, uma saída.
– Sim. Isso é o que deverias fazer: aceitar que esse mundo não
é teu e aguardar a misericórdia do Criador.
– Nunca lhe disse que não há nada que possamos fazer. Disse-
lhe que o julgamento do Criador e sua sentença não podem ser
mudados, e eu os receberei de bom grado, mas, quando a morte
vier me abraçar, cometerei a maior de todas as atrocidades. Serei
ainda mais abominável que nossos pais, e meu crime será de tal
maneira hediondo que me reerguerei na morte maior que em vida!
O metrô estava cheio devido ao horário, mas não tão cheio como
de costume, porque a tempestade prendia muitas pessoas nos
ônibus pela cidade. A alta rotatividade de passageiros fazia o trio
descabelado passar despercebido. Eles ficaram parados
recuperando o fôlego por duas estações. Depois, Jacó passou a
mudar de vagão cada vez que o metrô parava. Agora estavam no
primeiro vagão aguardando seu destino.
– Madame, relaxa, por favor! Você mesma disse que eles devem
ter perdido nosso rastro – Vinnie esticou o pé e colocou sobre outro
assento. – Estou exausto! – uma vez a que a adrenalina começava
a baixar, aparecia o cansaço intenso. – Para onde estamos indo,
afinal?
– Poxa, e não era mais fácil ter usado uma dessas palavras,
madame? Caramba! – ele reclamou. Rachel revirou os olhos.
– Porque você cruzou uma linha, meu caro. Você chegou à beira
de descobrir toda a verdade e, quando isso acontece, é preciso
escolher um lado: o nosso ou o deles – William falou calmamente. –
Sinceramente, acho que seria melhor para a sua vida que
escolhesse o meu lado; não me quererá como inimigo, meu caro
Brandão – William ameaçou com uma voz pacífica, quase paternal.
– Brandão, sei que você não é tolo, meu rapaz, por isso vejo um
potencial em você! Por favor, não presuma que eu seja imbecil. A
guerra a que me refiro acontece bem debaixo dos governantes
brasileiros desde antes da república, e lhe digo que ela é muito mais
antiga. Refiro-me a uma guerra que remonta aos primórdios da
humanidade. Essa guerra tem somente dois lados: o meu, aqueles
que querem que a humanidade atinja seu potencial pleno, e o de
meus inimigos, que pretendem nos escravizar e viver de nosso
sofrimento – Brandão desistiu de mover a mão e focou suas forças
em mover o dedo indicador. Nunca fizera tanta força na vida, mas
ainda assim seu dedo permanecia imóvel. – A verdade é que a sua
influência no departamento de homicídios pode me ajudar. Além
disso, vejo em você o desejo de fazer o que é certo, e o que lhe
ofereço é exatamente isso.
– Sim. Eu vi, mas vou atrás dos canalhas que fizeram isso e vou
continuar minha caçada. Você tem sangue em suas mãos! Não vou
me juntar a você!
– Ou o quê? – desafiou.
– Está tudo bem. Fica calma – ela falava com sua voz plácida e
tranquila. Walkyria olhou ao redor ainda confusa. A professora de
Yoga pareceu perceber sua confusão e explicou: – Você está num
hospital, Wal. Tive que te trazer. O médico disse que você tem uma
úlcera hemorrágica e acabou perdendo bastante sangue, mas está
fora de perigo agora.
Não foi Brandão quem respondeu, mas uma voz que soou atrás
de Tucca:
– Mas agora, filha, sua missão é colocar seu irmão para dormir e
garantir que ele fique a noite inteira lá em cima. Além disso, mais
convidados chegarão e preciso de sua graça para recebê-los e
enviá-los à biblioteca. Pode fazer isso por seu pai e por sua família?
Walkyria sorriu.
André Marcos sorriu mais uma vez, entregou Adolfo nas mãos
dela e seguiu os convidados. Walkyria viu que a mulher, Evelyn,
agora sabia seu nome, a observava, mas não lhe deu importância.
Fora excluída do jantar e quase invisível a todos. William nem ao
menos a cumprimentara, mas também não estava preocupada,
porque finalmente sentia-se fazendo parte de alguma coisa. Sentia
que ali era seu lugar e em breve teria Jack de volta. Sua vida
finalmente estaria completa.
Matheus assentiu.
– O quê?
– O anjo falou, padre, que se seu amigo não tiver fé, ele e a
moça nova vão para o céu...
Walkyria não sabia à qual voz deveria dar ouvidos. Reparou que
todas as mulheres tinham longos cabelos, todos presos no alto num
rabo de cavalo. Reparou também que eram as mulheres que
escolhiam seus parceiros, e os homens tinham de obedecer. Se
uma mulher quisesse somente um homem, ela teria só um; se não
quisesse nenhum, não teria nenhum; se quisesse diversos, eles que
se virassem para preenchê-la como pudessem. A garota tratou de
prender o cabelo no alto da cabeça para evitar chamar atenção.
Agradeceu por gostar de cabelos compridos e ficou se perguntando
se era por isso que a madrasta sempre reclamava quando ela
cortava os cabelos curtos.
– Não, por favor! Eu não quero gozar. Por favor, pare! – uma
mulher lhe fazia sexo oral com vigor, e o garoto parecia mais
chorando que tendo prazer. Olhando melhor, Walkyria percebeu que
duas das garotas estavam chorando enquanto eram penetradas
(penetradas ou estupradas? Não sabia mais dizer). As outras duas
já estavam desfalecidas e tinham uma tinta vermelha que lhes
descia do pescoço até o pé (tinta ou sangue?). Começou a perceber
que os rapazes do canto também pareciam desfalecidos e pintados
com a mesma tinta (desmaiados ou mortos?). Olhou para os três
rapazes e viu que eram atendidos pela mesma mulher. Não havia
reparado nessa cena antes e, ao centrar seus olhos, sentiu suas
pernas bambearem de prazer. A mulher masturbava os dois do
canto enquanto fazia sexo oral no do meio, e era penetrada por dois
homens mascarados. Fazia tudo isso com uma desenvoltura
soberba. O corpo era esbelto, com seios fartos e um cabelo negro
curto – era a única mulher de cabelos curtos, notou agora.
– Gabriela Lancaster!
– Gabriela Lancaster!
Então William (ela sabia que era William) pegou uma jarra e
derramou o que parecia ser mais sangue na tigela. Em seguida,
falou:
– Barashemesh!
E todos repetiram:
– Barashemesh!
– Que suas almas sejam uma! Que seu corpo possa ser
flagelado e que seu espírito seja arrancado! – William gritou com
vigor enquanto erguia a pedra, agora vermelha, como um diamante
de sangue.
Vinnie queria ter aquela força. Era corajoso, sabia disso, mas
sua coragem era impulsionada pela curiosidade. Iria ao fundo dessa
jornada para descobrir cada vez mais sobre esse mundo
sobrenatural e misterioso, mas não saberia o que faria se
encontrasse uma das criaturas sozinho.
Uma mão fria tocou em seu ombro e fez seu coração disparar
dentro do peito. Virou-se encolhido, totalmente assustado, mas em
velocidade, e deu de cara com Gisele, a garota do trem da noite
anterior. Vinnie sorriu estupefato. A visão da moça era um colírio em
meio à loucura dos últimos dias.
– Como sabe meu nome? – mas ela o abraçou e ele sentiu seus
seios rígidos comprimidos em seu peito enquanto ela aproximava os
lábios dela dos dele.
– Ah Vinnie... Deixa der ser chato! Importa como eu vim para cá?
Temos coisas mais divertidas para fazer do que preencher um
questionário – a garota colocou a mão dele em seu seio. Ele
arregalou os olhos. Ela o encarou e seus olhos reluziram mais uma
vez, deixando-o excitado e entretido. A garota o beijou
languidamente.
A garota riu.
– É bom ter esse local sob nossos cuidados, sabe? Tem um ser
de muito poder nessa região que sempre observamos de perto.
– Nem por isso estou menos letal, gajo. Afonso pode ter morrido
há míseros quatro séculos, mas há quase cinco milênios venho
sendo mais esperto que a morte, rapaz.
Jacó usou a arma como porrete para tentar escapar, mas Dom
Magalhães chegou primeiro e o agarrou pelo pescoço, erguendo-o
com uma só mão.
– Acho que seu amigo vai ter que abrir a porta de pijamas! –
falou quando alcançou Raquel.
– Não tens como fugir – Jacó tentava ficar de pé, mas também
caiu no chão, exausto. Vinnie encolhera-se de medo, e Raquel, em
meio a tudo aquilo, chorava. Olhou para os céus e, erguendo as
mãos, começou a falar, entre soluços, numa língua que Jacó não
conhecia.
– w’khay-la w’tesh-bukh-ta.
– l’al-am al-min.
– Am-een!
– Corram!
Jack tinha consciência de que aquele ser era forte demais e via
que seus amigos quase não conseguiam se manter em pé. Sem
outra alternativa, fez o que poderia fazer: empurrou os dois e forçou-
os a correr o máximo que podiam. Raquel indicava o caminho.
– Ora, meu bom rapaz, para onde achas que estás indo?
– Tu não entrarás!
Silêncio.
Não mais...
– Estava a esperar por ti, Não Vivo – a voz com sotaque lusitano
de Dom Magalhães soava clara e audível no cemitério. Vestia uma
roupa antiga, como de costume, mas dessa vez, em especial,
carregava um peitoral de aço a cobrir-lhe o tórax e uma lâmina na
cintura. Tinha uma espingarda na mão. A arma, embora atualmente
seja uma peça de museu, em sua época era o que havia de mais
avançado.
– Ora, sei disso! Não houve sequer uma vez nesse último
milênio que não fizesses essa sua cruzada contra mim; maior
prova de tua ingratidão, uma vez que, mesmo não sendo meu
desejo, concedi a ti a imortalidade! Deverias estar do meu lado,
não contra mim! E durante esta tua cruzada acredito que tenhas
percebido o quanto te tornas mais forte a cada século. Alegro-
me em saber que tua força cresce a cada dia, entretanto dessa
vez trago boas novas! De hoje em diante, não me impedirás
mais, meu amigo. Pelo contrário, me ajudará a concluir meus
planos! – falou com ar conciliatório.
O Não Vivo via a criança com seu riso diabólico vindo em sua
direção... Inocente... Aquela palavra ressoava em sua mente. Não
sabia como impedir o monstro de cometer suas atrocidades, sem
sacrificar uma menina inocente a uma eternidade de condenação.
– Tem ideia do mal que você fez? – ele retorquiu já com rispidez,
fazendo Raquel recuar, como se tivesse sido agredida.
– Então acredito que compreenda que este local não poderá ser
seu destino final? – o Não Vivo falou ainda de costas para o médico,
que tentava se sentar na cama.
– Sim. Você pode ter mil desculpas e falar bonito; pode usar toda
a sua influência nela, mas a verdade é que está louco para nos
escorraçar daqui – falou seco e Michael meneou a cabeça.
– Não existe nada que possa fazer? Não pode nos ajudar?
Principalmente ela. Você gosta dela, posso perceber – falou. O Não
Vivo se voltou para o psiquiatra e olhou-o nos olhos. Eram olhos
cinzas, da cor do aço, frios e duros como o metal.
– Sim. Não entendo o porquê, mas sei que Raquel é alguém que
deve ser protegida. Se outros tiverem que morrer por isso, paciência
– falou seco. O Não Vivo assentiu.
– Tudo o que mais gostaria nesse momento, Jacó Cohen, era
manter Raquel longe de todo o mal, mas não posso. Mantive Raquel
escondida deles por quase dez anos, mas infelizmente ela se
revelou e, agora que Barashemesh a conhece, não existe um lugar
do mundo onde ela esteja segura.
– Mas o que ela tem que eles querem tanto? Não é somente
vingança – Jacó falou.
– Creio que tenha percebido que seus adversários não são seres
humanos? – por mais que lhe custasse admitir, Jack sabia que
enfrentava algo que ia contra tudo o que ele acreditava. A
contragosto, concordou. – Entenda, Jacó Cohen, que a
modernidade em muito alterou o significado das palavras, mas
monstro, do latim monstrum, é um ser vindo dos mitos, criaturas
fantásticas, não humanas, criadas pelos deuses de forma não
natural. Todas as mitologias antigas estão repletas desses seres. É
a isso que me refiro, embora eu mesmo prefira chamá-los somente
de criaturas, seres que abriram mão do amor e perdão de Deus.
– Ah, meu caro, ela não vai falhar, afinal não é à toa que ela é a
única de seu povo que eu respeito – a voz de André Marcos ressoou
no local. Estava vestido elegantemente como sempre e com um
olhar confiante. Parecia ter surgido do nada. Sorria enquanto
Barashemesh revirava os olhos furioso.
– Cordeiro e Leão!
– Sério, irmã? Deus te mandou ficar aqui? Será que Ele não viu
o que aconteceu nesse lugar? – bufou. Rita emitiu um som de
surpresa pela grosseria, mas Gabriela, em toda sua placidez,
colocou sua mão suavemente sobre a mão dura e áspera do
delegado.
– Você precisa entender, Vinnie, Tudo o que você viu foi demais.
– Sim, foi demais, admito! Mas minha vida inteira eu busquei por
isso, doutor! Por anos sou considerado um imbecil porque acredito
em anjos, demônios, fadas e vampiros! Era zoado na escola e, se
não fosse o fato de ser bonito e o melhor da minha turma, seria o
mais zoado na faculdade também!
– Mas como você está magro e doente! Você non tem comido
nada, mio bambino! Ah, mas eu fiquei tão preocupada! Se não fosse
teu e-mail, acho que já me teria morrido de preocupação! – a mulher
falou cheia de drama. Raquel olhou furiosa para Vinnie, que deu de
ombros e apontou para a mãe, depois moveu os lábios sem emitir
som:
– Acidente de carro.
– Não, mãe. Ela está mais para namorada do meu amigo Jacó –
Jacó sentiu um fulgor tomar-lhe a face. Raquel voltou seu olhar
cortante e perigoso para Vinnie, que sorriu alegre. Jacó falou com
toda polidez:
– Sim, uma grande coincidência – Jack falou, mas com tudo que
vinha acontecendo, duvidava que esse contato fosse simples obra
do acaso.
– Carlos, tem a ver com água. Acho que meu palpite até agora é
o mais plausível. Por mais que a geografia atrapalhe, Aparecida
parece ser o local!
– Acharam o Vinnie. Ele está na casa dele com Jacó e mais uma
pessoa.
– Carlos, preciso te dar algo. Sei que vai parecer estranho, mas
gostaria que ficasse com isso.
– Não posso aceitar isso, Mato! Deve valer mais do que ganharei
a minha vida toda!
– Onde ele está? Como posso fazer para vê-lo?! – suplicou aflita.
– Claro. Fica em paz! Estou indo pra lá agora. Acho que em uma
hora, no máximo, eu te ligo – prometeu.
– Mas por que ela veio para cá? Se ninguém entrou aqui, exceto
ela?
– Mas é lógico que não! Um cara da minha idade não pode mais
morar com a mãe. Preciso do meu espaço! – respondeu. – Oh, no
no no. Mio Bambino já é um homem. Ele tem seu próprio cantinho –
ela falou agarrando a bochecha do filho. Vinnie tentava manter a
compostura, mas era difícil, embora Jacó reparasse que ele se fazia
de mais tolo e inocente do que realmente era quando estava na
frente da mãe, quase uma caricatura infantilizada de si mesmo.
Meia hora depois, os três iam para a pequena casa dos fundos,
muito mais empanturrados que queriam, depois de dois bolos, um
pudim e um cafezinho. Jack percebeu que admirava duas coisas em
Vinnie: ele até que era maduro para a família que tinha e,
principalmente, por ele conseguir se manter magro num lugar como
aquele.
– Frio?
– Não mais, mas por muito tempo sim. Os Vrill ficaram famosos
na Segunda Grande Guerra. Muitos acreditam que a sociedade
secreta deles foi fundada lá. Já ouviu falar de como os nazistas se
meteram com bruxaria? Na verdade eram eles! A alta cúpula nazista
basicamente vivia numa religião à parte.
– E então? desafiou.
– É complicado – esquivou-se.
– Eu sou a única filha dos Vrill, sou aquela que eles esperam por
séculos e séculos, sou aquilo que Hitler não conseguiu ser, a
Condutora perfeita, a Herdeira de Atlântida!
– Sou eu que vou dar origem a uma nova era. De meu ventre
nascerá a nação que vai subjugar o mundo. Serei a mãe do Quarto
Reich, aquilo que os nazistas entendiam como mundo perfeito, onde
a raça suprema governará a Terra por mil e quinhentos anos! Essa é
a verdadeira Nova Ordem Mundial, a destruição do mundo como o
conhecemos e o surgimento de um novo, maior, mais grandioso e
divino. Entretanto, para que o mundo novo surja, o velho, decrépito
e mortal deve ser primeiro expurgado!
Carlos abriu a boca para falar, mas hesitou... Então seus olhos
encontraram os de Raquel. O delegado estava muito ferido e tinha
sido uma longa semana, mas com uma agilidade surpreendente ele
levou a mão à arma, sacando-a e apontando-a para a mulher, que
nem reagiu. Porém, Jacó foi bem veloz também e colocou-se na
frente do amigo, servindo de escudo.
– Por você, vou esperar até amanhã – olhou para Raquel. – Mas
vou interrogá-la amanhã cedo e, se não me convencer, ela vem
comigo! – Carlos voltou-se mais uma vez para o psiquiatra. –
Mudando de assunto, você precisa ligar para a Wal. Ela está
devastada desde que você sumiu.
– Jacó, você não precisa ir comigo. Não tem que abrir mão de
sua vida por minha causa.
– Sinceramente, não sei. Tudo que sei é que não consigo deixá-
la, por mais que eu queira. Jamais conseguiria esquecer você. Não
conseguiria seguir em frente sem imaginar os perigos que você
estaria enfrentando. Sinto uma compulsão por protegê-la!
Sorriu. Sentia-se livre de seu fardo e era hora de ser feliz ao lado
da pessoa que amava.
Era Matheus, com a notícia de que a irmã Gabriela não podia ser
encontrada em nenhum lugar.
– Eu sei, Vinnie, mas não posso deixar que ele mate mais uma
garota. Eu não sei como matá-lo, mas talvez possa impedi-lo –
Vinnie aproximou-se do amigo.
Hoje, a vila quase não pode ser vista. Somente as casas mais
afastadas sobreviveram. Nem mesmo a pequena igreja está à
mostra. Somente parte de sua torre permanece desafiando as
aguas plácidas do local.
– Boa pergunta – falou por fim. – Vamos dar uma olhada para
ver se encontramos algo para atravessar.
– Fique com isso. Foi me dado por um amigo querido. Pode ser
útil, mas, se há alguém capaz de usá-lo a nosso favor, esse alguém
é você, porque não sou muito religioso – falou por fim. Ela pegou a
antiga joia com as duas mãos. O delegado voltou-se novamente ao
lago e mergulhou.
– Não vamos, garota, e foi por isso que aceitei que você viesse
comigo. Não pretendo sair daqui com vida...
– Não, Jack, meu destino é pior que a morte, meu amor, mas
não há nada que você possa fazer...
– Não há nada que você possa fazer... – foi a última coisa que
Jack ouviu, antes de perder a consciência.
A água que caiu dos céus veio com tamanha violência que
cobriu prédios e ruas em segundos, lavando o sangue e levando
consigo os cadáveres daqueles perecidos na batalha de Tantalis.
Mas mesmo a tormenta que caía do céu não arrefecia o ritmo da
batalha que se desenrolava. Os Filhos da Queda confrontavam seus
pais com fúria e ardor, e os Guardiões respondiam com selvageria e
poder. E nenhum dos lados cedia. E aqueles que não eram dessas
linhagens acabavam derrotados pela exaustão e logo eram levados
às profundezas dos oceanos. Barashemesh continuava junto de sua
legião e tentava fazer com que os guerreiros aliados a seu pai
cedessem. No outro extremo, no topo da montanha, Vitorioso
confrontava aquele que lhe dera a vida, Semyaza, e o duelo dos
dois era temível de ver. As lâminas se mordiam e nenhum escudo
resistia aos golpes, por isso ambos os combatentes usavam
somente lâminas. Bastava um erro e um dos dois seria dividido ao
meio. Mas aqueles eram os maiores de seus povos. O Maior dos
Guardiões contra o maior entre os Filhos da Queda. Não havia
espaço para erro entre dois combatentes tão formidáveis.
– Por que nos confronta? Por que não se une a nós para que
juntos tentemos pôr um fim ao plano do Criador?
– Você não vai me matar! Eu sei que você está a minha caça
desde antes de eu nascer! Sei o quanto sou importante para você
O Herege riu mais uma vez com sua risada macabra e cheia de
fúria. Não havia alegria nela, somente um ódio sádico e intenso.
Gabriela tremia de frio, mas permanecia num estado de
semiconsciência. Carlos Eduardo tentava levantar, mas a dor em
seu corpo era avassaladora. O Herege ergueu Raquel mais ainda e
aproximou-a do seu rosto deformado. Ela sentiu o fedor de carne
mofada antes de o aperto se tornar mais intenso em seu pescoço.
Então sentiu os pulmões queimaram de dor, sem conseguir respirar.
O da direita completou:
– Cobrimos todo o perímetro. Ninguém sairá vivo – e entregou à
criatura o que parecia ser um detonador a distância.
– Ele não está vivo para ser morto, gajo. Não é minha intenção
matá-lo. Isso seria impossível, uma vez que já foi feito. Meu inimigo
só esqueceu-se de ir a seu próprio funeral, por isso hoje far-lhe-ei
uma gentileza, enterrando-o neste local que ele mesmo roubou de
mim.
– O que fez com ela, maldito? – a voz de Jacó saiu firme. Estava
fraco e quase sem sangue; não conseguia se mexer, mas sua voz
estava firme e furiosa. Boadiceia o ignorou e continuou sua
conversa com o oriental a sua frente.
– Não posso lhe prometer isso: ela sofreu muito, e ainda saberá
que você partiu. Não sei se ela será capaz de aguentar, mas estará
viva.
– Mi KaH El!
– Mi KaH El!
– Mi KaH El!
– Não, meu amado, não posso ir! – disse Eos se libertando dele,
que a olhava confuso. – Não posso ir contigo. Se o fizer, condenarei
não somente a nós dois, mas ao fruto de nosso amor! Pois acredito
que o profeta errou ao dizer que somos incapazes de amar. Acredito
que nossos desejos sejam dominantes e superem nossa razão.
Contudo, acredito que o amor seja forte o bastante para nascer até
mesmo em nossos corações enegrecidos e que esse amor possa
florescer e dar a nós a redenção, pois em meu ventre carrego o fruto
desse amor e não ouso corrompê-lo com meu desejo. Por isso,
submeter-me-ei ao desejo do Criador e aceitarei minha sina na
esperança de que Seu amor por mim floresça e ele me redima
também! Vem, meu amado; mergulhemos juntos para nosso
destino!
– Saiba que nossos pais não podem, de fato, ser mortos, pois
não são mortais, mas nós nos alimentaremos de seus corpos
imortais para nos tornarmos intocados pela morte!
Um Mal perverso.
Feroz.
Eterno.
É
domá-lo. É uma pena. Esse ritual era uma obra de arte, lamento
que não me será de serventia.
Esse tempo foi sua ruína. Ainda usando a física a seu favor, o
psiquiatra aproveitou o movimento de seu corpo para completar o
giro e, enquanto seu corpo subia, a lâmina atacou veloz, mordendo
carne e partindo osso.
Quando Jacó ficou em pé, Walkyria viu seu amado através das
duas metades de seu inimigo, que iam ao chão lentamente, como se
tudo acontecesse em câmera lenta. Jacó sorriu como em um sonho,
e ela também, enquanto mergulhava no esquecimento.
Foi até a sala, que estava arrumada e com a luz acesa (“Jacó
não está aqui também!”). Sentiu o medo começar a instalar-se
novamente em seu coração. Foi então que viu na mesinha de centro
o celular do amado (“Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Oh, meu
Deus!”).
– Oi, Wal. Espero que esteja melhor. Deixei esse vídeo para te
dizer que te amo. Sempre te amei, na verdade, desde o primeiro dia
que coloquei os olhos em você. Meu maior sonho era um dia levar
você para o altar – a voz de Jacó era calma, comedida, mas cheia
de tristeza. – Só há no mundo uma coisa que eu quero mais do que
estar do seu lado: sua segurança. Infelizmente não posso ter os dois
– Walkyria levou a mão livre à boca escancarada, num grito
silencioso de horror. – Envolvime com essas criaturas e eles não
vão descansar enquanto não colocarem as mãos sobre mim. Eu
saberia lidar com isso, mas a verdade é que, por minha causa, você
quase foi morta (“prefiro morrer a te perder, Jacó!”). Eles me deram
uma escolha e a escolha era simples. Percebi que não me importo
se vou viver ou morrer, desde que você esteja viva!
– Seja feliz, Wal! Viva sua vida e não tente me procurar. Esse é
meu último pedido para você: seja feliz e me esqueça! (“como vou
esquecer você?”).
– Isso é tudo, Romeu? (“Ela? Mas ela não morreu? Aquilo foi de
verdade ou não?”).
Chorava copiosamente.