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O Filho da Queda:

O Herege

T.C.Oaks

author.tcoaks@gmail.com

www.tcoaks.com.br
Capítulo 1

O sol tingia o céu de São Caetano do Sul de tonalidades róseas e


Rita terminava sua ronda naquela manhã de domingo. A jovem
policial apreciava aquele momento, a aurora. Gostava dessa palavra
e sempre dizia que batizaria sua filha assim, se um dia tivesse uma.
Rita sorria em seu devaneio, curtindo os últimos momentos de seu
trabalho, quando quase atropelou uma jovem que atravessou a
avenida de maneira desvairada. Rita freou, fazendo os pneus
gritarem em resposta e o cheiro de borracha queimada subir aos
céus.

Desceu do carro e foi furiosa na direção da menina. Por haver


muitos bares na região que funcionam até a madrugada,
principalmente aos sábados, tinha certeza de que seria uma dessas
meninas perdidas na bebida que cometem atos irresponsáveis.
Preparou-se para aplicar-lhe um sermão e, dependendo do caso,
levá-la para a delegacia; o susto às vezes serve como lição. Quando
pousou os olhos na jovem, todavia, sentiu a descarga de adrenalina
tomar conta de si e seu coração acelerar. A jovem, completamente
nua, estava coberta de sangue.

Já passara por situações das mais diversas durante as vigílias


na madrugada, mas nunca por alguma parecida com essa. Sacou a
arma, vendo que a jovem soluçava e tremia em espasmos.

– O que aconteceu? – indagou já vasculhando o ambiente com o


olhar em busca de suspeitos. – O que houve?

A menina desmoronou em seus braços, com os olhos verdes


esbugalhados, a expressão demonstrando todo o pânico de sua
alma; a pele fria ao toque.

– Me ajude... O Padre Jair, a Lucia, todos mortos, todos mortos!


– ela começou a gritar, histérica. – Oh Deus, me ajude!

– Onde você estava? Onde aconteceu isso? – a policial


esforçou-se para ser ao mesmo tempo dura, para tirar a garota do
choque, e gentil, para fazê-la se sentir protegida.

– Na Matriz, oh Deus, a Igreja... – a jovem continuava


balbuciando e soluçando sem sentido. Rita colocou-a no carro,
cobriu-a com seu sobretudo e acelerou até a porta da igreja
enquanto falava ao rádio.

– Central, aqui é a policial Souza. Temos uma suspeita de


homicídio. Solicito todas as unidades disponíveis para a Igreja
Matriz. Urgente! Tenho uma jovem no carro coberta de sangue,
possivelmente vítima de estupro. Venham agora. Repito, venham
agora – suas palavras ficaram entaladas na garganta quando
avistou a majestosa igreja.

O que antes era uma casa de oração agora era um local


profanado. Chamas tremulavam dentro do templo, e, em cada uma
de suas duas portas escancaradas e arrebentadas, duas mulheres
nuas encontravam-se crucificadas de ponta-cabeça.

– Minha mãe do céu! – Rita falava enquanto fazia o sinal da cruz


com a mão livre. Falou nervosa ao rádio: – Jesus Maria José!
Atenção, enviem bombeiros e, pelo amor de Deus, venham
depressa! – a última frase fora gritada ao aparelho. Sem esperar,
saiu do carro empunhando a pistola e ignorando os débeis gemidos
desconexos da jovem ao lado. – Fique no carro, está bem? – falou
da forma mais gentil que conseguiu, embora ouvisse o próprio
tremor na voz.

Passo a passo adentrou no templo. Amava aquela igreja. Era


devota de Nossa Senhora e ia todos os domingos à missa. Fora a
Aparecida em procissão duas vezes: uma na adolescência, outra
quando a mãe fora curada do câncer. Fazia novenas quando
possível e nunca ficava mais de um mês sem se confessar,
principalmente se atirasse em alguém. Aquela igreja era como uma
segunda casa para ela; seu santuário particular, seu local de paz.

Mas não hoje...

Hoje, Rita engolia o grito enquanto seu estômago revolvia-se em


fúria, diante da bizarra imagem que a golpeava como uma marreta
de cruel realidade. Alguma coisa ardia em chamas no meio da nave,
mas ainda não conseguia identificar o que era. Parecia um enorme
bloco de madeira, erguido por correntes no centro da construção, do
tamanho de um saco de cimento; outros quatro blocos menores
ardiam em cada um dos cantos da igreja; finalmente, um outro
objeto, do tamanho de uma bola de futebol, jazia em chamas no
altar; os outros objetos flamejantes se assemelhavam a toras
grandes do tamanho de traves. Sangue cobria as colunas e o chão,
como se um enorme saco cheio do líquido rubro tivesse sido
estourado no centro do templo. Para seu horror, cinco mulheres
nuas, ensanguentadas e empaladas estavam espalhadas pelas
laterais da igreja, onde outrora famílias haviam dedicado grandes
recursos para tornar o local aprazível e belo. Rita via suas entranhas
escorrendo pelas estacas que as trespassavam e saíam por suas
bocas. O cheiro de fezes e sangue só não era pior, porque aquilo
que queimava fedia ainda mais.

Ela se aproximou do objeto no altar no intuito de tirá-lo de lá,


mas, ao vê-lo, finalmente gritou. Encontrara o Padre Jair, ou melhor,
sua incandescente cabeça.

Horas antes...

Era noite na cidade de São Paulo, numa das avenidas mais


valorizadas e nobres da capital. Ali, uma construção chamava a
atenção por sua arquitetura inusitada. Como um gigantesco navio
ancorado no meio da metrópole e rodeado de um belo jardim, o
Hotel Unique se destacava pela beleza e inovação.

Em um de seus suntuosos salões, decorado com diversos


lustres de cristal que pareciam estalagmites reluzentes, uma festa
estava em andamento embalada pelo jazz. Por todo o local, sobre
as mesas e aparadores de madeira de lei que serviam de apoio,
viam-se fotos de um homem na casa dos sessenta anos, com um
nariz torto.

Em determinado momento, após o jantar, o mestre de cerimônias


foi até o microfone.

– Senhoras e senhores... E agora, para entregar a homenagem


ao Dr. Sallutti por suas valiosas contribuições à psiquiatria, chamo
ao palco o Dr. Jacó Cohen.

Em meio às palmas, um jovem se colocou de pé e caminhou em


direção ao palco e ao microfone abotoando o paletó. Aparentando
pouco mais de trinta anos, era bonito, tinha uma cabeça acima da
média de estatura e seu corpo era bem definido, como o de um
nadador, com costas largas. Sua pele tinha um tom branco comum a
quem fica longe do sol, e o cabelo levemente ondulado cortado bem
rente era claro como o ouro envelhecido. O nariz era pequeno,
delicado e arrebitado, que, em companhia do queixo protuberante e
quadrado, dava um ar mais sério do que ele realmente era. O
sorriso era jovial, e a boca, de lábios fartos, era um pouco delicada
para um homem, mas, em conjunto com os olhos grandes e verdes,
conferiam-lhe um ar sagaz, sugerindo uma ferocidade e magnetismo
quase animal. As grossas sobrancelhas claras eram curvadas e lhe
davam um ar eternamente irritado. Vestia-se num belo terno azul
escuro. Quando falou, sua voz revelou-se grave e levemente rouca.

– Boa noite a todos. Quando me chamaram para apresentar o


homem que será homenageado aqui hoje, só posso dizer que fiquei
honrado e feliz. No meu primeiro ano de especialização, um
professor disse que a psiquiatria era uma ciência que se baseava
em analise e frieza. Sempre fui impulsivo e preferi à ação ao
pensamento. Esse mesmo professor disseme que eu deveria ir para
ortopedia, pois eu jamais seria um bom psiquiatra. Meu primeiro
contato com o Dr. Sallutti, o “Mago” da psiquiatria, foi como o de
muitos da minha geração: estudando seu livro “A mente psicótica e
seu funcionamento”. Passei todo o meu trabalho de conclusão de
curso debruçado sobre ele e, num rompante de ousadia, enviei um
e-mail ao escritor com detalhes de minha tese, a qual desejava
compartilhar. Qual não foi minha surpresa quando tive o e-mail
respondido por ele próprio, marcando uma entrevista para dali a
alguns dias. Saí de lá não somente com mais conhecimento acerca
da mente humana, mas também com um estágio e um mentor.

Após breve pausa, continuou:

– Durante todos esses anos ao lado desse homem genial, deste


“mago”, uma coisa, que o doutor Sallutti, sempre me disse foi: -“Siga
seus instintos Jacó”. Dessa tutela surgiu uma relação de verdadeira
amizade e companheirismo, mas ainda assim permanece em mim
toda a admiração e respeito que sentia por esse grande mestre e
escritor, que hoje recebe dos senhores, alguns dos maiores nomes
da psiquiatria, o merecido reconhecimento, com esse prêmio. Posso
dizer que nesses quase seis anos conheci muito do homem por trás
do Mago, e lhes digo, que é uma honra e privilégio poder chamá-lo
de amigo.

– Sem mais demoras, chamo um dos maiores nomes de nosso


tempo, e um grande estudioso da mente humana e seus caminhos
tortuosos, Dr. William “O Mago” Sallutti.

Ovacionado, o homem das fotos se levantou. Não era gordo,


embora aparentasse estar um pouco acima do peso, devido a sua
estrutura física. Tinha uma pele curtida e grossa, bem esticada
sobre a pele, e os olhos eram espaçados, cinzentos, nem claros,
nem escuros, dando-lhe um ar predatório, misterioso e frio, sem
porém esconder sua sabedoria. Os cabelos mostravam fios
prateados, que clareavam ainda mais o loiro quase branco
predominante; eram curtos e penteados para o lado esquerdo,
acentuando ainda mais o ar metódico e distante. O rosto, muito
sério, era fino, com um queixo longo e protuberante. Destoando do
conjunto, havia o nariz torto, em forma de gancho, possivelmente
resultado de uma antiga fratura. Vestia-se graciosamente num terno
completo, com colete e gravata, perfeitamente alinhado. Sua
postura era inegavelmente elegante.

Caminhou com desenvoltura e confiança até o palco e abraçou o


rapaz que o apresentara.

– Uma das qualidades do Dr. Cohen que mais admiro, além


dessa intuição legítima que o torna um excelente e único psiquiatra,
– William falou olhando para ele – é a de sempre me fazer acreditar
que sou um homem melhor do que realmente sou – as pessoas
riram junto com o homenageado, enquanto o rapaz, também rindo,
entregava ao mentor o prêmio esculpido numa forma abstrata de
cristal. Depois, voltou para a mesa e sentou-se ao lado de uma bela
mulher, de cabelos na altura dos ombros, loiros, lisos e platinados.
William continuou seu discurso.

– A mente talvez seja a área médica mais nebulosa que existe.


Quando um órgão falha, sabemos identificar a causa, assim como
quando um osso se parte. Todavia, e quando a mente não funciona
de acordo com o que entendemos como certo? Alguns chamam as
doenças mentais de doenças da alma. Estariam errados? Será que
podemos dizer que apenas alguns componentes químicos em
disfunção ou uma conexão neural discrepante é suficiente para
definir a loucura, a psicose ou a sanidade? Vou ainda mais longe:
será que os homens da Antiguidade, como os gloriosos romanos ou
os imponentes faraós, ao observarem nossa vida, considerar-nos-
iam pessoas sãs? Ou seríamos queimados na fogueira da
inquisição como demônios? A verdade, meus amigos, é que ainda
existe muito para se descobrir sobre o que é loucura e o que é de
fato realidade, onde acaba a ciência e onde começa algo ainda mais
profundo. Alguns aqui chamam-me de “mago” e devo lhes dizer que
gosto do apelido. Mago vem de Magush, que do Persa quer dizer,
estudante, buscador de conhecimento. Isso é o que venho
buscando a minha vida inteira, o conhecimento e a habilidade para
descobrir o caminho correto a seguir. Espero que um dia, quando
essa carne finalmente parar de funcionar, em minha lápide
escrevam: esse era um homem que buscava o caminho – Então deu
de ombros. – Se não for possível, então escrevam: ele gostava de
um bom uísque.

Todos riram. William brindou os convidados com piadas jocosas


de si mesmo e encerrou seus agradecimentos falando sobre o futuro
da psiquiatria e das transformações necessárias da compreensão
humana para a evolução daquilo que ele chamava de “caminho do
futuro”.

A noite continuava alegre quando se sentou à mesa principal, na


qual o Dr. Cohen e sua acompanhante estavam juntos de outras
pessoas importantes.

– Diga-me, William, como é trabalhar com Jacó? – perguntou


uma socialite na casa dos cinquenta anos. Sua pele era dura e
esticada em função das diversas intervenções plásticas. William, o
homem que parecia em paz com suas rugas e idade, sabia que ela
era repórter de uma revista de celebridades, mas não demonstrou
receio ao responder.

– Excepcional. Jack é um dos melhores e mais dedicados


psiquiatras que já vi trabalhar, e o melhor de sua geração. Muito
melhor que eu era em sua idade. – Jacó sorriu embaraçado,
sentindo um calor correr-lhe o pescoço, enquanto sua companheira
acariciava seu braço. William ergueu a taça a ela. – E com muito
mais jeito com as mulheres do que eu tinha na idade dele –
acrescentou rindo.

A mulher voltou sua atenção à bela e jovem mulher.

– E por falar em você, como está seu pai, Walkyria?

Walkyria respirou fundo à menção de seu pai. No entanto, sem


demonstrar desconforto, vestiu-se logo de um sorriso encantador, o
que não era difícil, porque além de ser uma mulher linda, com seus
estonteantes olhos azuis cristalinos e reluzentes, que beiravam o
sobrenatural, tinha um rosto que parecia esculpido, nariz arrebitado,
rosto em formato de coração, lábios carnudos e fartos, tudo em
perfeita simetria. Aliada a sua beleza marcante, vinha a educação
rígida de princesa, por ter sido cuidada com zelo pelo pai, que, para
ela, se preocupou mais com o que os outros veriam na filha do que
com o que ela pensava de si mesma.

Walkyria estava acostumada com festas e com a alta sociedade,


mas isso não era suficiente para curar seu desprezo por pessoas
como aquela mulher: repuxada e esticada, tentando fingir uma idade
que não possuía. Não entendia tanto investimento e esforço para
esconder a feiura interior sob belos traços artificiais. Para Walkyria,
tantas intervenções a deixava ainda mais desagradável de olhar. A
repórter perguntava com genuína curiosidade sobre o prefeito de
São Caetano, André Marcos, pai de Walkyria.

– Excelente e ocupado, como sempre – respondeu de maneira


encantadora, escondendo sua frustração com o fato de que a
maioria das pessoas queriam saber mais do pai do que da filha.

– Imagino que por isso não tenha vindo essa noite, não é
mesmo? – continuou, e Walkyria retribuiu com seu habitual sorriso.
Odiava esse tipo de reunião e detestava eventos sociais em geral.
Embora a faculdade de medicina fora uma imposição do pai,
escolhera a cirurgia-geral como profissão exatamente porque
raramente teria que lidar com pacientes e adorava seus pacientes
quando estavam sedados. O problema era quando acordavam.

– Acredito que meu pai tenha ficado muito triste em não poder
comparecer.

William então entrou na conversa:

– Ora, minha querida, você conhece o André. É um dos poucos


políticos honestos e funcionais desse país, e só trabalha. Tenho
orgulho de meu grande amigo, porque quando não comparece
nessas festas é para fazer de São Caetano uma cidade-modelo –
falou com orgulho, e a mulher riu afetada.

– Ora, Dr. Sallutti, fazendo campanha política? Esse é ano de


reeleição, estou correta? – acusou. O psiquiatra respondeu-lhe com
um sorriso jovial.

– André Marcos não precisa de mim para fazer campanha,


madame. Suas ações falam por si – emendou. Walkyria revirou os
olhos involuntariamente por força do hábito e disfarçou logo em
seguida.

Jacó tocou sua mão. Ela o olhou, tentando expressar que ele era
a única razão de sua ida ao evento. Ela via sua alegria, mas não
entendia como podia admirar tanto o homem a sua frente. Walkyria
conhecia William sua vida toda e, desde que havia adquirido a
capacidade de refletir, o desprezava. Era um homem brilhante, mas
também presunçoso e arrogante. Apesar de ser seu padrinho e
amigo de infância de seu pai, a única coisa boa que fizera nesses
anos fora lhe apresentar seu protégée, um jovem psiquiatra
chamado Jacó Cohen, um homem decidido, “das antigas” – como
ele dizia –, cavalheiresco e romântico de uma forma que beirava o
ridículo. Para arrematar, carregava algo muito raro na atualidade:
honra. Talvez por isso seu pai gostasse tanto dele, e este era
definitivamente o maior defeito de Jacó Cohen. Impressionava-se
com a maneira quase brutal pela qual Jack entrara em sua vida.

A repórter voltou seu olhar novamente para Jacó.

– Vocês dois estão juntos faz tempo? – perguntou com falsa


inocência.

– Sim. Faz quatro anos, e me apaixonei no exato momento em


que coloquei os olhos sobre ela – ele respondeu, enquanto levava à
boca o copo com Whisky sem gelo. Walkyria, em seu devaneio, nem
vira que o amado caíra na cilada da mulher.
– Ora, amor à primeira vista? Isso está tão fora de moda, meu
rapaz – escarneceu.

– Nunca achei o amor fora de moda, madame, e também sempre


soube o que queria. Quando vi a Wal naquele dia, sabia que ela era
a mulher com quem iria me casar – falou convicto.

Walkyria voltou a si com um incômodo na boca do estômago.


Jacó tinha o rosto levemente avermelhado e estava ligeiramente
mais solto do que de costume, e ela entendeu que talvez o
namorado estivesse um pouco mais cheio de álcool do que deveria,
o que poderia levá-lo a se expor ou, pior, expô-la.

– Ora, meu amor, chega de historinhas de amor. A primeira vez


que me viu foi naquele discurso do meu pai, na inauguração da
clínica do William, e ele falava sem parar. Você devia estar mais
com sono do que pensando em mim – riu nervosa tentando parar o
assunto. William riu junto da piada, mais por educação. Jacó abriu
um sorriso distante.

– Isso é verdade. Seu pai falou e falou e falou e eu não sabia se


estava acordado ou dormindo quando te vi, porque você parecia um
sonho. Seja como for, soube naquele dia que queria passar o resto
da minha vida ao seu lado.

– Ora, ora, e quando será o casamento? – a repórter perguntou


ainda mais curiosa. Jacó deu de ombros.

– Em breve, não, amor? – respondeu colocando a mão direita


sobre a da amada que a mantinha rígida como pedra.

– Você verá que festa! – William falou animado. – Entrará para a


história de São Caetano. Quem sabe você não possa fazer a
cobertura do evento – William sugeriu jovial. A mulher pareceu ficar
lisonjeada. Walkyria interrompeu, quase incapaz de esconder o
nervosismo.
– Acho que não é local nem hora para decidirmos isso, não é,
Jacó?

– Claro que não! – disse ele rindo, sem perceber o tom da


namorada. Walkyria levantou-se.

– Com licença, preciso ir ao toalete.

Afastou-se com elegância, mas não foi aonde dissera que iria.
Procurou a sacada, onde agarrou uma taça de champanhe e tomou
de uma vez. É doce, mas suave, pensou. Uma brisa soprou e ela
respirou fundo, como se saísse de um profundo mergulho. Tremia, e
não sabia se era porque estava furiosa ou se porque estava
aterrorizada.

Perto dali...

O Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho foi construído


em meados do século XX e é mais conhecido como Pacaembu,
nome do nobre bairro paulistano onde se encontra. Com o conceito
de bairro jardim, foi um dos primeiros planejados da cidade,
revelando um índice de arborização acima da média das outras
regiões. As casas que ali foram construídas ostentam áreas verdes
internas e estão entre as mais valorizadas da cidade, apesar de
terem por vizinho um dos maiores cemitérios paulistas. Por motivos
de segurança, muitas delas ficam enclausuradas dentro de muros
imponentes, geralmente adornados com câmeras de vigilância, mas
isso nem sempre é suficiente para manter transgressores afastados.

Sem parecer se intimidar, uma figura delgada esgueirou-se com


agilidade por cima do muro de uma das casas, evitando as câmeras
que haviam no local. Vestia uma roupa de moletom folgada que não
limitava seus movimentos e um capuz que lhe escondia as feições.
Seguiu pelo jardim da casa com atenção aos pequenos detalhes,
ocultando-se atrás das árvores e demonstrando que tinha
conhecimento do esquema de segurança.
Ao cruzar o jardim, alcançou uma janela de vidro ampla, com
uma cortina branca semicerrada, através da qual passou a observar
com calma a sala de jantar. Podia ver ao redor da mesa uma família
composta por um homem, uma mulher e duas crianças fazia uma
refeição alegremente. Em seus pratos, tinha um assado, e
brindavam com alegria e taças cheias. Quando uma das crianças, a
mais jovem, levou a taça aos lábios, não se conteve:

– Maldita! – praguejou.

O jantar não foi longo. A família parecia feliz; a criança mais


nova era claramente o centro das atenções, e quem visse a cena
como a figura oculta via poderia achar que aquela menina era a
verdadeira chefe da família. O pai e a mãe a observavam com
reverência e mesmo a irmã mais velha aparentava respeitá-la.
Quando terminaram de comer, foram para outra sala.

O observador permaneceu no jardim, mas precisou mudar de


posição para ver melhor. De onde estava agora, conseguia
calmamente observar todas as suas vítimas. Depois de semanas de
planejamento, não havia espaço para ansiedade.

Quando percebeu que a família estava distraída, moveu-se.


Cuidadosamente aproximou-se da porta dos fundos e com algumas
ferramentas de chaveiro abriu a porta silenciosamente. Entrou
furtivamente na área de serviço e trancou a porta atrás de si. Ficou
na lavanderia por horas, até que ouviu a família subir as escadas
para o andar de cima, onde ficavam os dormitórios. Atravessou
então a cozinha, a sala de jantar e finalmente chegou à sala de
estar. Caminhando no escuro, apenas com a iluminação da lua
vinda da janela, observava as fotos que retratavam uma família feliz.
O pai era jovem, não tinha quarenta anos, e mostrava um físico
comum; a mulher era elegante, na faixa dos trinta e poucos; e as
duas crianças eram encantadoras. Observou por alguns momentos
aquela família feliz, até que um pequeno lampejo vermelho próximo
da porta chamou sua atenção. O alarme silencioso piscava,
alertando o intruso que a polícia estava a caminho.
– Onde errei?! Quanto tempo tenho? Desgraçados! –
demonstrou inquietação pela primeira vez, mas não desistiu e
correu para a escada, agora com menos preocupação de fazer
ruídos.

Adentrou no primeiro quarto, o do casal, e com passos leves


chegou ao homem, que dormia tranquilamente. Levou a mão às
costas e de lá sacou um objeto afiado e pontudo, cravando-o no
peito do homem, que não teve tempo para gritar. Quando a mulher a
seu lado abriu os olhos, só conseguiu ver uma figura encapuzada
com outra das armas pontiagudas que trouxera descendo sobre seu
peito...

A polícia chegou. Os quatro agentes entraram com violência,


botando a porta abaixo, e ouviram um grito agudo no andar superior,
para onde se dirigiram imediatamente. Estarrecidos, ao abrirem a
porta do quarto da filha mais nova, assistiram a uma cena grotesca.
Os corpos do pai e da mãe estavam alinhados um ao lado do outro;
seus tórax haviam sido perfurados com o que parecia ser um punhal
de madeira, e suas cabeças, decapitadas. A filha mais velha
encontrara o mesmo destino, mas a mais nova, apesar de
desacordada, ainda estava viva.

Os policiais gritaram e ordenaram que largasse a arma, mas a


figura encapuzada não obedeceu. Um dos policiais armado com um
taser disparou, levando o criminoso ao chão em espasmos
frenéticos; isso salvou a vida da menina. Os policiais correram até o
misterioso assassino e o algemaram. Quando tiraram o capuz, se
depararam com uma enorme cabeleira dourada e o lindo rosto de
uma jovem mulher.

Jacó estava no banco de trás do carro observando a silhueta de


sua incrível namorada. Sentia-se felizardo por tê-la conhecido.
Observou, cheio de um desejo vibrante, como ondas que se
espalhavam por todo o seu corpo, as curvas provocantes da
companheira. As coxas eram torneadas e bronzeadas, o quadril,
largo, e os seios, fartos. A pele bronzeada contrastava com os
cabelos loiros platinados, que pareciam fios de ouro banhados ao
luar. O nariz era delicado e arrebitado e ficava acima de uma boca
marcante, carnuda e naturalmente provocante. Os olhos... os olhos
de um azul mais vívido e mais claro que o céu mais ensolarado
reluziam em toda sua luminosidade única e estonteante.

Ela olhava pela janela em silêncio. Havia um ar de contrariedade


nela que ele não entendia. A noite estava sendo ótima e
extremamente divertida, e Jacó ainda pretendia terminá-la bem na
casa da garota. Porém, parecia que Walkyria tinha outros planos.

– Está tudo bem, baby? – o rapaz indagou incerto. A garota


respondeu sem olhá-lo.

– Por que não estaria, Jacó? – a voz fria o assustou menos do


que o uso de seu nome, que ele odiava e por isso sempre se
apresentava como Jack. Walkyria respeitava isso, mas quando
estava brava com o namorado o usava quase como forma de
punição.

– Não sei, mas claramente você está irritada, e eu sinceramente


não faço ideia do porquê – indagou com uma apreensão gélida
formando-se em seu estômago. Walkyria o fitou com os olhos azuis
carregados de frieza. – Ah, sério, Jacó? Você não faz ideia do
porquê estou tão irritada? – olhou para fora e permaneceu um longo
período sem falar. Quando o fez, ainda olhava para a rua.

– Sabe com quantos anos comecei a ter aulas de piano? – sem


esperar a resposta completou: – Quatro anos! – então ela olhou
para Jacó. – Odeio pianos! Assim como odeio Ballet, mas ainda
assim tenho os pés cheios de calos porque fiz essa porcaria desde
os meus três anos! Três anos, Jacó! – exclamou enfurecida. – Ah,
também sou fluente em alemão, grego e latim! Grego e latim eu tive
que aprender! – ela não disfarçou a revolta e continuou. – Sabia que
eu queria ser fotógrafa, Jacó? Era o meu sonho! Em vez disso, fui
fazer medicina, porque meu pai exigiu! Era meu dever aprender a
ter um coração pulsante nas mãos! A única coisa boa nisso é que
finalmente tive dinheiro para mandar aquele filho da mãe pastar e
cuidar da minha vida! – Walkyria desabafava cheia de rancor, e Jacó
observava analisando todo aquele ódio. – Desde que nasci, sou um
cavalo de raça, um bichinho de estimação de dois loucos que
achavam que eu deveria atender a todas as expectativas frustradas
deles! Deveria ser uma rainha! Nunca tive o direito de escolher a
roupa que ia usar! Na adolescência, não podia sair de casa porque
a primeira vez que sai enchi a cara, o que era óbvio para uma
garota que nunca podia escolher nada – completou com azedume. –
Fiquei de castigo até meus dezoito anos! Eles me deixaram na
droga de um colégio interno toda a minha adolescência! – estava
aos gritos. Jacó olhava-a sem nada dizer, surpreso, mas também
frustrado. Mesmo depois de tanto tempo junto da garota, ela ainda
não conseguia se relacionar. Walkyria continuava furiosa. – Nunca
tive direito a nada, porque tinha que representar a perfeição que era
o casamento de meu pai. Ele sempre falava a mesma coisa:
“Qualquer coisa, exceto o excelente, é sinal de mediocridade!” – ela
assumiu um tom grave ao imitar o pai. O rapaz surpreendeu-se com
a precisão da imitação. Ela continuava, como se fosse impossível
conter anos de frustação. – Sabe quando consegui me libertar?
Quando a faculdade acabou, porque não pude trabalhar enquanto
cursava medicina. Bem que tentei, mais de uma vez, mas o todo
poderoso André Marcos, meu pai, e a nobre e sofisticada Madalena,
minha adorada madrasta, sempre me impediam. Sabia que uma vez
consegui um emprego num bar perto da faculdade e meu pai
literalmente ameaçou o dono, imagino que de morte, se ele não me
demitisse? – Walkyria falava cada momento de frustação como se
fossem flechas afiadas, e Jacó, incapaz de reagir, somente
observava. – Hoje finalmente consegui me libertar desse insano, e
agora que começo a controlar a minha vida, vem você e acha que
vai decidir o meu destino? Quem você pensa que é para me dar
ordens?

Jacó olhou chocado para a namorada. Quando falou, sua voz


estava rouca, como se houvesse esquecido de como usá-la. – O
quê? Quando que te dei ordens, Walkyria? – sentia-se fisicamente
ofendido. Ela o olhou com desprezo.
– Você simplesmente determinou que vamos nos casar! Sem
nem ao menos perguntar minha opinião!

– O quê? Você pelo jeito bebeu demais! Uma chama furiosa


começava a se acender no seu interior. Ele continuou defendendo-
se. – Você está delirando! Eu não fiz isso!

– Como não? Quando aquela bruxa perguntou sobre o


casamento, você falou que seria em breve! – a garota vociferou.

– Foi uma resposta evasiva, um jeito simples de terminar uma


conversa, e qual o problema em falar que será em breve? –
perguntou, sem conseguir se conter. – Estamos juntos há quatro
anos, Walkyria. Você ganha bem, eu também, e estamos pensando
em morar juntos. Acho que é meio óbvio falar que nosso casamento
será em breve. Qual o problema nisso? – defendeu-se com uma
acidez envelhecida, cansado de toda a fúria da garota que parecia
queimar sua pele.

– O problema é que você decidiu se casar comigo e não


perguntou minha opinião. Eu não sei se um dia vou me casar, ainda
mais com você! – Walkyria cuspiu as palavras e se arrependeu
antes mesmo de terminá-las. Jacó recuou, sentindo-se golpeado por
uma força insuportável, e olhou incrédulo para sua namorada.

– Como assim?! – disse meio cego em meio à dor e tristeza que


encobriam seus olhos.

Walkyria respirou fundo, com uma pontada de arrependimento,


mas estava muito furiosa para parar agora. – Casamento, Jacó?
Sério? Sabe o que é o casamento? Simplesmente um contrato
muito bem redigido, uma instituição falida e sem sentido. Iremos
morar juntos, e está tudo bem. Não precisa haver essa palhaçada
política!

– Mas para mim o casamento não é só isso! – dessa vez foi Jacó
quem explodiu ofendido. – Casamento é compromisso, Walkyria! É
deixar claro diante de tudo e de todos que aquela pessoa é a que
você escolheu como companheira para toda a vida! É um caminho
sem volta – falou enfático. A garota riu.

– Por favor, Jacó, inventaram uma volta do caminho. Chama-se


divórcio ou, se preferir, quebra de contrato – respondeu sarcástica,
que serviu de faísca para inflamar ainda mais o psiquiatra, que,
quando falou, sua voz estava elevada e aquecida de fúria. – Não
para mim! Não acredito nessa palhaçada de “se der errado a gente
se separa”. Casamento é sim até que a morte nos separe!

– Virou religioso agora, Jacó? – Walkyria retrucou com ironia. –


Se ao menos você fosse um desses crentes fanáticos como sua
mãe, eu entenderia, mas você é ateu. Como pode acreditar em algo
sagrado como o casamento?

– O fato de não acreditar num ser perfeito e sagrado não me


torna menos respeitoso de algumas tradições! Sempre acreditei no
compromisso e sempre tive honra e palavra! – respondeu convicto.
Isso é o casamento para mim. Não fico atado a uma mulher porque
um deus mesquinho ordenou que o fizesse. Permaneço casado
porque jurei pela minha honra que irei amar, cuidar e proteger, na
alegria e na tristeza, e todo o mais, até que a morte nos separe! –
frisou a última frase. Walkyria riu. – Ah, Jacó, me poupa, vai! Daqui
a pouco você vai chamar para um duelo um cara que me der uma
cantada! Em que mundo você vive, afinal? – perguntou ainda com
escárnio. Jacó respondeu com uma voz triste e gelada.

– Pelo jeito, não no mesmo que o seu! No meu mundo, Walkyria,


existe comprometimento, portanto vou te perguntar e quero uma
resposta clara e simples! Em que ponto estamos? – a pergunta foi
feita num tom duro e cortante.

Walkyria olhou desconcertada para o namorado. – Como assim?


– perguntou sem saber ao certo o que responder. O rapaz a
encarou. Seus olhos exalavam o frio e a determinação de um
predador furioso.
– Você disse que não quer casar comigo. Eu quero casar com
você! Quero algo mais sério, então quero saber se estou aqui
perdendo meu tempo com você, afinal já fazem quatro anos dessa
palhaçada! – a dureza no seu tom de voz fez a mulher recuar
assustada. Sentia-se presa na jaula de um grande felino ou de um
lobo feroz. Quando falou, sua voz saiu insegura. – Jacó, presta
atenção. A gente se diverte e por mim a gente fica juntos, mas é
isso. Se o que você espera é uma esposinha, acho melhor ir
embora, porque não vou me casar com você!

O silêncio era congelante, e mesmo o motorista do veículo


estava visivelmente constrangido. Walkyria não suportou encarar os
olhos verdes do namorado, e novamente olhou para a janela. Jacó
olhou-a por alguns segundos, depois se virou para sua janela. A
distância física não era muita, mas Walkyria sentia que um abismo
gigantesco havia se aberto entre eles. Seu coração pesou e,
reconsiderando, ela decidiu que deveria tentar se desculpar.
Quando o carro parou num farol, respirou fundo, criando coragem
para falar, mas a porta abriu, e Jacó desceu. Sem olhar para ela,
falou com a voz fria.

– Adeus, Walkyria, tenha uma boa vida – começou a caminhar, e


Walkyria abriu a porta do seu lado e saiu. – Aonde você está indo? –
indagou confusa. Jacó não se deu ao trabalho de olhar para trás.
Caminhava com uma amarga determinação. – Vou pegar um taxi,
Walkyria, para minha casa. – Jacó falou sem olhá-la nos olhos,
estendendo a mão para chamar um táxi.

O céu começava a clarear, quando William Sallutti, em seu


consultório, saboreava um whisky sentado numa enorme poltrona
de couro estilizada e assinada. A enorme mesa de mármore branco
se destacava no ambiente acarpetado e revestido em mogno. Havia
três porta-retratos. Nos três o homem estava sozinho, em locais
diferentes. Em um deles, estava em Salvador; em outro, em
Stonehenge, na Inglaterra; e, no último, nas pirâmides do Egito, o
que Jack achava mais interessante. A sala ainda tinha livros e mais
livros em estantes, acima das quais diversos diplomas e certificados
atulhavam a parede.

Qualquer um que observasse aquele ambiente perceberia


claramente que William era um homem que vivia para o trabalho. Se
conhecesse a verdade, no entanto, saberia que o homem daquele
escritório sorriria com escárnio da estupidez desse pensamento.
William era devotado a uma causa, a qual julgava ser mais
importante que qualquer paciente.

O telefone tocou, tirando-o de seu devaneio. Atendeu e


conversou com a pessoa do outro lado:

– Sim, fique calmo. O mais importante é que ela foi encontrada,


mesmo numa situação como essa.

William ouvia e tomava notas.

– Entendo. Não se preocupe. Farei o que estiver ao meu


alcance. O mais importante agora é que ela seja trazida
imediatamente até mim. Fale com seu advogado. Farei algumas
ligações.

Horas depois, quando o dia começava a ganhar força, um carro


de polícia parou no estacionamento da luxuosa clínica psiquiátrica.
Um homem forte de camisa polo e calças jeans desceu primeiro.
Tinha cabelos curtos e escuros e traços que revelavam sua
descendência mediterrânea. Era mais vistoso que belo e caminhava
com a autoconfiança de um policial experiente. Mais relevante que
isso, contudo, foi um detalhe que passou desapercebido por todos,
exceto por William: a maneira como o homem olhara seu próprio
reflexo. A primeira vez no espelho retrovisor do carro, a segunda, ao
ver a janela, e a terceira, ao ver-se no espelho da entrada. Em seu
íntimo William sorriu e pensou: – Narcisista. Esse será fácil –
pensou.

– Delegado Brandão, chefe da operação – falou o homem


enquanto erguia a mão para um cumprimento rígido. William sentiu
quando o homem apertou fortemente sua mão.

Tão previsível... Nem bem chegou e já precisou marcar seu


território com o título e com o aperto de mão forte – pensou, fingindo
mais dor do que sentia de verdade. Sutilmente curvou seus ombros,
dando um ar mais servil a si mesmo e diminuindo um pouco sua
postura altaneira.

– Obrigado pela gentileza de trazer minha paciente, delegado –


afinara um pouco a voz, a fim de torná-la mais insegura e fazer com
que o homem a sua frente se sentisse ainda mais confiante. Como
esperado, o outro estufou ainda mais o peito.

– Vamos esclarecer algumas coisas, doutor. Ela não é sua


paciente. É uma criminosa pega em flagrante. Uma assassina
sanguinária e fria, que merecia um tiro bem dado na testa. A lei não
me permite fazer justiça, mas não ache que por algum momento
permitirei a essa mulher regalias só porque o pai dela é um
mandachuva do interior, ficou claro? – falou gostando do tom de sua
própria voz.

– Claro como água, delegado – William falou em subserviência.


– Previsível mais uma vez – pensou.

O delegado entrou na clínica como um governante cheio de


autoconcedida autoridade, analisando cada local e, de vez em
quando, dando alguma ordem a um policial, como ficar de guarda.
William somente observava, sem interferir. Quando o delegado
finalmente parou, o psiquiatra aproximou-se:

– Será que podemos conversar a sós? – falou com candura. Os


dois foram para a sala do psiquiatra, onde ele ofereceu uma bebida
ao policial.

– Estou de serviço, doutor. Não bebo durante o expediente –


respondeu rígido.
– Claro, meu amigo, que tolice a minha – falou, desculpando-se.
– Posso então oferecer-lhe um café? – Brandão aceitou com um
aceno.

O psiquiatra caminhou até a cafeteira italiana e preparou o pó.


Com uma habilidade surpreendente, derramou uma pequena erva
seca na infusão e serviu.

Meia hora depois, o delegado saía da clínica do doutor Sallutti


convencido de que seria melhor para prender a criminosa, que um
laudo fosse feito pelo médico, diminuindo assim as chances da
defesa de alegar insanidade. Sentia-se satisfeito consigo mesmo.
Tinha tido ideias brilhantes durante a conversa com o psiquiatra e
mostrado como era um homem ímpar. O doutor ainda prometera
ajudá-lo com informações privilegiadas. Brandão acreditava que sua
hora estava finalmente chegando. Seria reconhecido por seu
trabalho e por seu intelecto. Exatamente como William queria que
ele pensasse.

William era um homem de muitos talentos, capaz de tudo para


atingir seus objetivos. Era um visionário que pretendia mudar o
mundo. E com tanta coisa em jogo, só faltava movimentar mais uma
peça em seu intricado tabuleiro.

Do outro lado de São Paulo, enquanto nascia o sol, o telefone do


delegado Carlos Eduardo Vaccari soou. Ele resmungou irritado.
Odiava acordar cedo, especialmente depois de uma noitada com os
amigos. Não que isso fosse comum. Não era dado a baladas, mas
um de seus melhores amigos precisava de um ombro amigo, e ele
não era o tipo de cara que abandonava os amigos.

Atendeu com sua voz ainda rouca pelo sono. O grande corpanzil
mexeu lentamente:

– Alô...
– Fala aí, Carlão. É o Lucca!

– Tucca, é bom ser algo muito importante, tipo “mataram o


presidente”, para me tirar da cama uma hora dessas...

– Melhor! Teu sujeito voltou a agir! Só que dessa vez em São


Caetano do Sul!

Carlos acordou. Colocou-se de pé já procurando os óculos e se


arrumando.

– Estou indo! Onde foi?!

– Foi na matriz, acredita? A mídia vai cair matando. Aquele


playboyzinho metido a repórter vai conseguir a matéria dele
finalmente!

– Já falei para o Vinnie ficar longe desse caso! – rosnou


preocupado. – Ai dele se aparecer. Esse idiota ainda vai se meter
em problemas por causa dessa matéria! Se ele aparecer, enquadro
ele! Encontro você na matriz.

– Calma lá, Carlão, calma lá. Já tem gente da cidade cuidando


do caso. Não é nossa jurisdição ainda. Temos que esperar a P.M.
liberar a cena para a gente! – Lucca falou do outro lado da linha
tentando acalmar os ânimos do delegado.

– Não é, uma pinoia! Esse cara é meu e de mais ninguém! Vou


lá agora, antes que esses incapazes contaminem toda a cena do
crime! E quero ver esses incompetentes me pararem! – vociferou,
enquanto desligava o telefone injuriado. Sabia que teria problemas
com a polícia local, mas há um ano já que perseguia esse animal.
Se o maldito agira tão abertamente, tinha de ser encontrado! Vestiu-
se com a roupa da noite anterior, ainda cheirando a malte e cigarro.
Sem se preocupar em parecer elegante, esquentou um café velho
no micro-ondas e fez uma careta pelo gosto horrível da bebida.
Comeu um pedaço de pizza borrachuda e saiu; seu Maverick
rasgando o asfalto. Era um longo caminho a percorrer até seu
destino...

Em São Caetano do Sul, enquanto o sol começava a dar o tom


azul ao céu, um jovem de vinte e poucos anos refletia sobre sua
falta de sorte ao sair do Country Beer. Muitos julgariam injusta sua
reclamação, já que saía acompanhado de uma bela mulher loira
com seios fartos comprimidos no vestido justíssimo e se
equilibrando em um salto alto e em sua embriaguez. Ria de algo que
o rapaz havia dito. Ele sabia que ainda teria a chance de se dar bem
e passar a manhã que surgia em um motel.

O problema era que “Bela”, como a garota se apresentara, fazia


jus ao nome, e por causa disso esquecia de uma habilidade que o
rapaz gostava muito: pensar. A garota era bonita e sabia disso;
infelizmente também considerava que isso lhe bastava.

Ele não estava satisfeito. Claro que era legal faturar no final da
noite, mas sem uma conversa interessante era como ter um belo
jantar sem uma boa bebida para acompanhar.

– Bom, podia ser pior – Vinicius, ou Vinnie, como ele sempre


preferia ser chamado, pensava consigo revirando os olhos,
enquanto a garota, mais uma vez, frisava quanto o namorado, ou
melhor, ex-namorado, era calhorda.

– Tanta mulher interessante, e eu fiquei com a bêbada chutada


pelo ex. Essa não foi minha melhor noite – meneou a cabeça,
depois deu mais uma olhada para o corpo da garota. – Bom, ainda
assim, vai ser um fim de noite bom! – Sorriu para si mesmo. – Isso
se ela não continuar chorando sobre o ex, é claro – pensou
conformado, enquanto a garota continuava seu discurso.

– Ele é um hipócrita, sabe, vive saindo com tudo que é vadia que
encontra na balada, aquelas vacas de vestidinho preto mais curto
que uma camisa e com os peitos pulando para fora do decote,
sabe?

Vinnie tentou evitar, mas não conseguiu e olhou para o vestido.


Fez uma cara de indignação fingida e assentiu com a cabeça,
dizendo:

– Que canalha...

A garota assentiu e prosseguiu diligente despejando veneno


sobre o ex e sobre a sogra, mas Vinnie já não lhe dava atenção.
Inicialmente, fora o cheiro horrível que o tinha posto em alerta, mas
agora colocava os olhos na origem do odor. A Igreja Matriz de São
Caetano estava com suas portas escancaradas como um cadáver
mutilado. A fumaça escura ainda saía do local, e as luzes azuis e
vermelhas das viaturas refletiam nas paredes. Um carro de
bombeiro, uma ambulância e várias viaturas policiais enxameavam
o local. Era impressão ou vira uma mulher pregada na porta?!

Vinnie soluçou, ajeitou a camisa desalinhada e logo sacou seu


crachá. A bebedeira ficava para depois, a garota também. Respirou
fundo e pegou o celular. Ligou a câmera do aparelho e se colocou
no foco. A câmera passou a mostrar um jovem de cabelos
castanhos despenteados casualmente e grandes olhos verdes,
agora avermelhados por causa da bebida. Sua boca, recheada de
dentes brilhantes e perfeitos, davam-lhe um ar jovial e agradável. O
nariz, nem fino nem largo, cabia perfeitamente no rosto e
arrematava uma aparência bonita. Não era lindo, mas com certeza
chamava atenção.

– Fala aí, pessoal do True Seeing. Aqui é o seu investigador da


verdade Vinnie Romanato trazendo uma chocante notícia sobre um
trágico incidente aqui na Igreja Matriz de São Caetano do Sul.
Vamos descobrir o que está acontecendo!

A garota olhou para ele. – True Seeing? Esse é seu canal?


Aquele que fala que alienígenas construíram as pirâmides e tal? –
perguntou com a voz enrolada. Vinnie praguejou. Agora teria de
editar o vídeo.

– Exato. Meu canal do Youtube, com todas as verdades que a


mídia tenta esconder.

– Alguém acredita nessas bobagens? Quer dizer, você realmente


acha que existem lobisomens e vampiros a solta por aí? – Bela riu
afetada. Vinnie respirou fundo.

– Bom, tenho mais de quinhentos mil inscritos. Acho que não sou
o único que acredito nisso, né? – falou irritado.

– Mas... – a garota tentou continuar a conversa, no entanto


Vinnie deu-lhe as costas e foi em direção ao templo, ignorando sua
acompanhante, que tentava segui-lo. Logo avistou uma figura
conhecida, o homem que analisava um dos corpos. Era enorme e
musculoso, mas estava coberto por um longo sobretudo preto. Tinha
os cabelos raspados, na tentativa de esconder uma avançada
calvície. Em uma palavra, Vinicius o descreveria como quadrado; o
homem era um bloco! Seu olhar era severo, quase duas fendas no
enorme rosto em forma de tijolo. A pele branca estava vermelha,
como se tivesse acabado de fazer exercícios; até os óculos eram
quadrados, com a clássica armação de casco de tartaruga. A boca
fina estava repuxada numa carranca, e o olhar, extremamente
irritado, flechava um policial franzino que estava a sua frente
assustado.

– Ei, Carlão! – Vinnie gritou. – O Herege atacou de novo?!

O delegado interrompeu imediatamente o que estava fazendo,


virou-se para o repórter e marchou em sua direção. Vinicius,
baixinho, estendeu a mão com jovialidade, pronto para
cumprimentá-lo. Carlos, no entanto, ao chegar perto, agarrou o
braço dele e falou entredentes:

– Que diabos você já está fazendo aqui, cacete!? – Carlos


rosnou, vendo se alguém mais observava a discussão.
– Cara, por incrível que pareça, foi sorte! Eu estava aqui nas
redondezas quando vi o acontecido. Aliás, o que aconteceu? Foi ele
de novo, não foi? Tem a cara dele. Está tudo muito grotesco! É a
assinatura dele – falou com certa excitação. Carlos apertou seu
braço com mais força.

– Vinnie, isso aqui é assunto de polícia. Dá o fora! – ralhou. O


youtuber ia responder, quando foram interrompidos.

– Delegado? – uma voz firme e suave pronunciou a palavra.

Carlos e Vinicius pararam sua rusga e se viraram para a dona da


voz. Uma mulher na casa dos 25 anos os encarava. Seu cabelo era
tingido de um vermelho forte, cor de beterraba, preso bem no alto da
cabeça tão firme que dava a sensação de que todo o rosto estava
esticado. Os olhos escuros eram pequenos para a face, e o nariz
era reto e longo. A boca, de tamanho médio, não tinha batom. O
resultado era uma expressão severa. O corpo era extremamente
voluptuoso. Os seios grandes e os quadris largos davam a ela uma
silhueta sensual. Era alta, e sua agressividade natural impedia os
dois de continuarem com sua singela discussão. Ao terem
consciência da presença feminina, os dois assumiram um ar mais
sério. Carlos assumiu o papel de delegado; já Vinnie tentou parecer
sóbrio, mas teve a noção imediata de quantas cervejas havia
ingerido.

– Você é...? – perguntou secamente Carlos.

– Policial Maria Rita Soares, da Polícia de São Caetano, e você


não tem jurisdição aqui, delegado. Esse caso é meu.

– Escuta aqui, mocinha – Carlos começou a rosnar, com uma


veia vermelha saltando em sua testa a ponto de explodir, toda sua
compostura escoando pelo ralo da raiva. – Você está achando que
vem botar a penca no MEU caso?! Só porque ele aconteceu na SUA
cidadezinha? Isso é coisa de cachorro grande, garota!
– Não venha achando que vou ficar quieta enquanto você fica se
metendo no meu caso. Até onde sei, cinco assassinatos já
aconteceram e você ainda não fez nada!

– Cinco não. Com esse foram quatro, e as investigações estão a


todo vapor. É a primeira vez que o Herege age numa igreja tão
grande, o que significa que ele se cansou de esperar por sua
aparição na mídia. Tenho certeza de que deixou pistas e não quero
seu pessoal contaminando a cena do crime!

– Contaminando? Essa é boa – agora era Rita que estava


irritada. Passou a bater boca com o delegado. Sua impressionante
altura a tornava uma boa rival a Carlos e se encaravam como iguais,
situação rara para um homem da estatura dele. Ela continuou: –
Quer dizer que agora esse animal tem um nome? Por que Herege?

– Porque ele só ataca gente do clero, garota, e porque esse


imbecil – e apontou o dedo para Vinnie, que sorriu animado e
orgulhoso – adora dar nomes “impactantes” aos criminosos!

– É, chama mais a atenção do público, que, diga-se de


passagem, tem o direito de saber que tem um assassino à solta! –
completou.

Carlos revirou os olhos. – Como eu ia dizendo antes de o panaca


interromper, você não tem treinamento para resolver esse caso.

– E você, oh todo-poderoso delegado, não tem jurisdição nessa


área – cruzou os braços sobre o peito. – Então é bom se acostumar,
porque, se você quer participar desse caso, vai precisar da minha
ajuda! – apontou o polegar para si.

A policial deu as costas a Carlos e ao esquecido Vinnie, que


colou no amigo policial para provocar.

– Ih, vai dar em casamento. Ei, Carlão, quero ser padrinho, hein!
Eu estava presente no primeiro encontro – gargalhou o repórter e
logo depois levou um safanão do policial.
– Vinnie, dá o fora. Sua namorada está esperando – o policial
apontou para a garota que estava atrás do cordão de isolamento.

– Namorada nada, Carlão. Só umazinha que peguei na balada,


mas isso aqui é mais importante – falou rindo, depois assumiu um
tom mais sério.

– Vai, diz para mim. É ele, não é? O Herege? Está na época, não
está? Você investigou os arquivos que te mandei?

– Vinnie, já chega! Você não vai entrar nessa cena, está me


ouvindo? – Carlos Eduardo rosnou para o repórter enquanto se
aproximava, ficando mais evidente o disparate entre a forma física
dos dois. Vinnie engoliu em seco, mas cheio de coragem o
enfrentou.

– Você SABE que não pode me impedir. Isso é obstrução da


verdade! Não vou largar esse caso, Carlão, e você sabe disso!

– Caramba, Vinnie! – Carlos explodiu. – Será que não entende


que esse seu portal só está atrapalhando? Esse cara quer fama, e
você está dando isso para ele!

– Ele não está atrás de fama, Carlão, já te falei. Há algo a mais!


Esse cara está preparando um ritual! Você só está fazendo vista
grossa porque acha ridículo, mas não se fala de outra coisa se você
souber onde procurar! Você pode bloquear a tv, mas esse cara já é
famoso e tem centenas de seguidores na rede!

– Vinnie, se continuar se metendo, eu talvez não esteja presente


para te ajudar, caramba!

– Relaxa, Carlão. O importante é você pegar esse cara! Faz um


favor para mim! Lê os arquivos que lhe enviei! A gente já trabalhou
juntos antes e fomos uma boa dupla! Deixa de ser tonto porque eu
posso e QUERO ajudar! – suplicou o repórter.

Carlos respirou fundo.


– Ok... conversaremos melhor mais tarde, tá legal? Vê se não
contamina a cena. Estamos no meio de território inimigo. Esse crime
não foi na nossa cidade e esses manés podem tentar atrapalhar.
Entra, mas seja invisível.

– Sou um ninja, Carlão. As trevas são meu lar – Vinnie falou com
uma voz grave e misteriosa. O delegado revirou os olhos mais uma
vez, depois olhou para a garota atrás do cordão de isolamento.

– E ela?

Vinnie deu de ombros: – Ela pega um táxi...

Longe dali, esquecido em meio à mata, um homem caminhava


com pressa e determinado por uma rua de terra. Era negro, alto e
muito forte, além de elegante. Trajava um terno branco impecável,
com colete de veludo negro e gravata e lenço de cetim vermelhos,
mesmo tecido e cor da fita que envolvia a base do chapéu de feltro
branco que descansava em sua cabeça. O sapato era branco e
reluzia envernizado e parecia repelir a imundice local.

As sombras de uma ruína abandonada repleta de mofo e detritos


ocultavam a presença de um homem. Seu porte era o de um
gigante, mas nada além de sua silhueta assustadora podia ser vista
na penumbra. Estava entretido com algo sobre sua bancada de
trabalho, e não parou quando o homem de terno branco chegou e
postou-se de joelhos no chão imundo.

– Mestre, tenho notícias que irão agradá-lo – a voz do homem


negro era melodiosa e grave, e, embora fosse bela, não
demonstrava resquícios de misericórdia. O cheiro de sangue o
perturbava; sentiu a boca salivar. O frio cortante do ambiente não o
incomodava, mas dava ao local um aspecto enigmático.

O outro apenas gemeu, um lamento curto e agoniado, mas o


homem de terno acatou aquilo como uma permissão para falar:
– Encontramos a mulher, meu senhor. Nossos espiões foram
mortos, mas ela falhou em exterminar a criança. Os mortais a
aprisionaram.

A figura enorme ergueu a cabeça com interesse.

– Nesse exato momento ela está detida. Basta uma ordem e eu


a pegarei para o senhor.

O gigante assentiu discretamente. O homem colocou-se de pé.

– Antes que eu vá, mestre, devo lhe informar que ela se encontra
presa com o Mago. Se a retirarmos de lá, acredito que iniciaremos
uma guerra. Magalhães é contra.

A mão esquerda coberta de sangue se levantou e indicou que


partisse.

O homem de terno branco assentiu sorrindo, deu as costas e se


retirou.

– Guerra, então! – sussurrou.

No Sallutti e Associados, Hospital Psiquiátrico em São Paulo, um


Veloster preto entrava no estacionamento. No total, a clínica contava
com 20 profissionais, entre psiquiatras e psicólogos, para dar
atendimento aos abastados, assim como a seus filhos e esposas,
que pagavam caro para ser atendidos pelos pupilos do “Mago”. Ele
mesmo já não aceitava novos clientes, e atendia pessoalmente
somente os que já estavam em acompanhamento havia muito
tempo, como era o caso de alguns políticos influentes e um seleto
grupo de empresários.

Os clientes especiais, aqueles que trariam renome à clínica, seja


por se revelarem um caso excepcionalmente difícil ou então por
integrarem alguma família renomada da cidade, eram atendidos
pelo chamado “Olimpo”, grupo composto por Jael, o mais antigo e
sócio de William, que, embora menos famoso, ainda era um dos
maiores palestrantes e psiquiatras do estado; por Cláudia, uma
profissional de currículo internacional e professora na Universidade
de São Paulo; por Antunes, psicólogo e também líder do
departamento de psicologia da mesma universidade; e, para
encerrar o quadro, havia dois profissionais jovens que alcançaram
um lugar entre os deuses: Marta, uma excelente profissional, com
um futuro promissor, e seu colega de sala, Jacó Cohen, que descia
de seu carro sem muito ânimo. Pegara congestionamento, e o
cansaço devido à noite anterior não ajudava nisso. Se não fosse
pelo tom aflito do mentor, pediria o dia de folga. William fora
categórico no telefonema mais cedo: a presença de Jacó era vital. O
psiquiatra estranhara o chamado urgente e pegou-se imaginando o
que seria tão importante.

Toda a equipe médica da clínica estava na Suécia, onde um


importante congresso acontecia, e os convidados de honra eram
exatamente os “Olimpianos”. Apresentariam algumas das suas
maiores descobertas, muito do trabalho focado na psicose e
esquizofrenia. William e Jacó só não haviam partido ainda por causa
do prêmio. Para o Mago aceitar um caso num dia como esse só
poderia ser algo de vida ou morte.

William encontrava-se sentado em sua poltrona quando Jacó


chegou. Assim que o viu, olhou no relógio.

– Você está atrasado, Jack! – o homem bateu o dedo indicador


no relógio, o rosto abatido depois da noite em claro.

– Para você é fácil, Will... vem a pé trabalhar. Eu tenho que


cruzar a cidade, correndo o risco de ficar parado em um
congestionamento absurdo. É um caos! Essa cidade está cada vez
pior. Fiquei 1 hora na Berrini. De madrugada faço o mesmo percurso
em menos de 10 minutos.

– Imagino – o homem falou reprimindo um bocejo.


– William, você dormiu? Apesar de ser um longo voo até a
Suécia, você precisa descansar pelo menos um pouco – Jacó
comentou com genuína preocupação.

– Dormir é um luxo ao qual não pude me entregar hoje.


Deixemos isso de lado! Este é o caso – e dizendo isso jogou a pasta
para Jacó.

– Essa é Walkyria Germania, filha de dois grandes amigos meus.


Foi presa ontem por decapitar toda uma família extremamente
influente daqui de São Paulo.

– Decapitar?

– É... Pegou uma espada, vê se tem cabimento, e cortou a


cabeça do pai, da mãe e de uma das meninas.

– E não podemos fazer isso depois do congresso?

William respirou fundo e assumiu uma expressão melancólica.

– Sobre isso...

Jacó sentiu um frio na barriga...

– Você quer que eu fique, não é? Cuidando dela? – tentou


esconder a frustação na voz, mas falhou miseravelmente. Seu dia
não estava indo nada bem. Enquanto o silêncio começava a se
adensar, deu alguns passos na direção de um quadro que havia ali.
Era seu preferido, pela grandiosidade. Fora concebido no estilo
renascentista, parecendo mais uma fotografia do que uma tela. Via-
se o rei Rômulo, fundador de Roma, sentado em um trono dourado
colocado sobre um morro de enormes crânios desproporcionais.
Deitada sobre seus pés havia uma loba do tamanho de um leão. A
mão esquerda do rei mostrava uma cicatriz em forma de estrela e
estava erguida. A sua volta e por todo o quadro, pessoas curvavam-
se diante dele. Jacó reparara que ali se aglomeravam pessoas de
todas as etnias do planeta, simbolizando a grandiosidade de Roma
sobre o mundo. O título do quadro era “O Rei que Há de Vir”, o qual
não entendia bem, devido ao fato de retratar um evento de mais de
2700 anos aproximadamente.

William olhou para ele com pesar.

– Jacó, sinto muito – começou, mas foi interrompido.

– Jack! William, por favor. Você já vai me dar a bomba de ficar no


Brasil com uma filhinha de papai psicótica; pelo menos não me
chama de Jacó, vai. Sabe que odeio esse nome – falou sorrindo o
quanto pôde, tentando quebrar o gelo. O outro sorriu.

– Sim, filho. Preciso que fique aqui e espero de verdade que me


perdoe, mas quero que entenda, não é uma escolha leviana, queria
você ao meu lado, mais que qualquer outro membro desta clínica,
porém, creio que só você será capaz de alcançar a mente desta
jovem. – William falou transmitindo um verdadeiro pesar. - Jack foi
até ele comovido e colocou a mão em seu ombro.

– Não se preocupe, Will. Parece que o caso dela vale a pena?


Ou a garota nunca sairá daqui?

– Jack – William olhou nos olhos do rapaz. – Essa garota é muito


importante para mim. É filha de pessoas mais queridas para mim
que minha própria família. E não creio que a mera analise será o
suficiente, ela é selvagem, quase primitiva, preciso de alguém com
faro, alguém como você! Sua intuição, seu instinto, nos levou longe
onde estamos hoje, esse premio é mais seu que de qualquer outro
médico! Mas preciso muito de você aqui, consideraria isso um favor
pessoal – controlara seu tom de voz, dando as pausas e entonações
necessárias para amenizar o impacto de seu pedido e convencer
Jacó.

– Tudo bem... Eu fico. – assentiu. – Mas tenho uma condição –


Jacó falou erguendo o indicador. William levantou uma sobrancelha,
questionando em silêncio.
– Você vai dormir agora! Precisa descansar e preparar suas
coisas para o voo! – ambos sorriram.

– Estou realmente precisando dormir um pouco – e foi até o divã


para se deitar, feliz por ter tido êxito. – Jack, se precisar de qualquer
coisa, meu voo só sai às 23:00.

– Eu sei. Descanse um pouco. Eu te levo ao aeroporto – respirou


fundo e foi preparar um expresso duplo; seria um longo dia. Deu um
gole na bebida quente e estimulante, sentindo-se preenchido por
ela.

Agora focado em sua paciente, tomou a pasta e passou a


estudá-la, toda sua razão e emoção empregadas nisso.

Sabia que sua família tinha dinheiro e William a influência para


deixar a polícia afastada por algum tempo, mas não poderia
demorar para chegar a um diagnóstico. Na ficha dizia que ela estava
na sala 9 e sob forte efeito de calmante, apesar de não demonstrar
sinais de relaxamento.

Ao terminar a leitura, concluiu que Walkyria Germania era filha


de pais ricos e ausentes, que compensavam essa falha enchendo-a
de mimos. Na adolescência, envolveu-se com misticismo e bruxaria;
aos 18, foi enviada à Alemanha em intercâmbio, voltando para o
Brasil quatro anos mais tarde, totalmente transtornada. Foi para a
fazenda dos pais, mas fugiu em menos de seis meses. Estava
completamente desaparecida havia 3 anos quando reapareceu
assassinando uma influente família de São Paulo. O homem, marido
exemplar e empresário, a mulher, socialite, e as duas filhas, uma
com 8 e a outra com 12, ambas alunas exemplares, formavam o que
parecia ser uma família comum. No entanto, segundo Walkyria,
eram seres canibais que se alimentavam de sangue e carne
humana para sobreviver. Ela, na verdade, dizia que não havia
matado as pessoas, mas “Libertado seus espíritos do domínio
demoníaco!” e que “Eles estavam mortos bem antes de eu chegar”.
Todo o crime tinha seguido um ritual detalhado. Inicialmente, as
vítimas tiveram o tórax perfurado por uma espécie de ponta de lança
feita de aveleira. Os membros superiores e inferiores foram cobertos
com correntes de prata, possivelmente incandescentes, pois os
corpos demonstravam queimaduras onde o metal tocara.
Posteriormente, os corpos foram besuntados de azeite e mirra e
tiveram suas cabeças decapitadas. Segundo a paciente, faltava
queimar os corpos, mas ela foi impedida com a chegada da polícia,
que a prendeu em flagrante.

A paciente não demonstra remorso e está assustada por não ter


conseguido completar o crime, dizendo que eles voltarão para caçá-
la e que ela precisa fugir. Enquanto dorme, balbucia sempre o
mesmo nome: Michael. Todavia, quem é Michael e como as vítimas
ressurgirão ela não nunca comenta.

Jack fechou a pasta e meditou por alguns segundos. Criara o


hábito nas artes marciais. Gostava de deixar a mente vazia, porque
se sentia mais capacitado para tratar de um paciente. Ficou como
uma estátua por quase uma hora, então levantou-se e foi até a sala
9.

A sala estava trancada com um cadeado, e Henrique, o enorme


segurança, estava de guarda ao lado da porta. Era grande, numa
mistura de músculo e gordura. Era negro, do tom do chocolate, com
olhos grandes e escuros; o nariz era largo e as narinas bem abertas,
dando-lhe um ar taurino; o cabelo estava bem curto e seu olhar
parecia malévolo e selvagem, escondendo a brandura e delicadeza
de um bom homem.

– Bom dia, Henrique, como vai?

O enorme segurança abriu um sorriso branco e reluzente em sua


face escura. Quando o fazia, perdia o ar “mal-encarado”. – Tudo
bom, Dr. Cohen. Vai dar conta da pantera? Ou precisa de reforços?
– sua voz era bem grave, de barítono, e carregava um ar bonachão.

– Tão grave assim?


O segurança ergueu o braço e afastou a manga do paletó e da
camisa, mostrando claramente a marca de uma arcada dentária.
Jacó fez uma careta de agonia.

– Nossa! Deve ter doído!

– Doeu... Mas faz parte, não é? Ossos do ofício! Se o senhor


quiser, posso entrar junto.

– Precisa não, Henrique, dou eu jeito na pantera! – e sorriu.


Henrique abriu a porta e Jacó entrou.

Sentada de cócoras em cima da cama estava uma jovem entre


vinte e trinta anos, com cabelos cor de palha, revoltos e
encaracolados. Era extremamente esguia, e os músculos todos
definidos, como os de uma bailarina; as coxas eram longas e
davam-lhe uma aparência ainda mais felina. Jacó notou que o lábio
inferior se destacava em seu rosto, sendo quase duas vezes mais
grosso que o superior. Estavam cerrados, em uma linha que
demonstrava completa indiferença. O nariz arrebitado era perfeito,
delicado e pequeno. A pele, levemente bronzeada, combinava com
todo o resto, e os olhos, grandes e brilhantes, castanhos claros,
ardiam como uma chama enlouquecida. Os seios pareciam
pequenos e o quadril, largo. Tudo naquela mulher levava a associá-
la a um felino preparando-se para o bote.

Ela olhou com firmeza para Jacó, seus olhos reluzindo em fúria.
Ele tentou sorrir para ela, no intuito de demonstrar simpatia – uma
boa impressão era importante –, mas o sorriso não saía. E por mais
que tentasse ignorar, havia algo de semelhante entre ela e sua
amada, o que o incomodava. A semelhança não estava somente no
nome, mas o que seria? Ele não conseguia identificar. – Só me
faltava essa... – pensou.

– Olá, Walkyria, meu nome é Doutor Jacó Coh...

Jacó não conseguiu terminar a frase. Ela saltou para cima dele e
nem mesmo todo o seu treinamento militar impediu que fosse
jogado ao chão. Ela montou-o com uma agilidade impressionante,
travou suas mãos e pés e, com o rosto próximo do dele, fazendo-o
sentir o calor de seu hálito, deixou sua voz sair serena por detrás da
selvageria de seu cabelo e olhar:

– Raquel.
Capítulo 2

O delegado Carlos Eduardo saiu pisando firme em direção a Igreja.


A garota abandonada por Vinnie reclamara, chorara e por fim
vomitara no sapato do delegado, mas finalmente ele conseguira
colocá-la no taxi e se livrar dela. Ao adentrar na nave, ele deparou
com uma cena menos saída dos filmes de terror e mais parecida
com um episódio de seriados criminais, seu ambiente natural. O
cheiro de carne queimada ainda era muito forte, mas as chamas
haviam sido apagadas; policiais enxameavam o local, isolando-o,
tirando fotos e baixando os restos mortais do padre Jair. Tucca
analisava o pedaço maior que sobrara, o tronco do corpo estripado.

Tucca, que na verdade se chamava Lucca, era um homem na


casa dos cinquenta anos, cabelo rareando, grisalho, um nariz bem
longo e adunco, que lhe rendia o apelido, referência à semelhança
de seu nome com tucano. A barriga já começava a avançar por
sobre a calça, resultado das cervejas e bolinhas de queijo que o
policial sempre tomava e comia durante os jogos do Palmeiras. Era
um dos melhores investigadores do departamento e fora o mentor
de Carlos, porém o jovem delegado o havia superado. Tucca, que
nunca se preocupava com fama e evitava assumir responsabilidade
e cobranças, apesar de seu grande senso de justiça, recomendara
seu antigo subordinado ao seu cargo de delegado quando foi
possível. Poucas vezes acertara tanto em uma escolha. Em dois
anos à frente do DHPP (Departamento Estadual de Homicídios e de
Proteção à Pessoa) de São Paulo, Carlos Eduardo aumentara o
desempenho e a efetividade da equipe em mais de 200%. Não
diminuíra a criminalidade, porém pegava mais criminosos.
Aficionado por tecnologia e dono de um senso de dever típico de um
ex-militar, Carlos buscara o que a tecnologia oferecia de melhor,
forçara o treinamento dos recrutas e participava, sem exceção, dos
casos mais difíceis, passando noites em claro à caça de
transgressores. A única vida do delegado parecia ser o trabalho.
Nunca era visto com mulheres, raramente saía com os colegas para
um Happy Hour e sempre que tinha um tempo livre lia algum livro
relacionado a perícia criminal. Passara seis meses nos Estados
Unidos treinando por um projeto de parceria do governo americano
com o brasileiro. Como dizia Tucca, “o cara é uma máquina”. Tucca
sabia que Carlos só tinha três amigos: Vinnie, o youtuber – o único
que Tucca conhecia pessoalmente –, um padre e um psiquiatra,
ambos irmãos de armas no exército. Carlos Eduardo era um homem
reservado e fechado. Nos quase cinco anos no DHPP, somente um
criminoso intrigava verdadeiramente o delegado: o Herege.

Tudo começara havia pouco mais de um ano. No dia 11 de


março do ano anterior, ocorreu um crime hediondo numa igreja
evangélica pentecostal no Bairro de Itaquera, em São Paulo. A
igreja ficava num pequeno galpão. O pastor, conhecido como
Antunes, um homem do bairro, respeitado pela comunidade, foi
encontrado morto abraçado ao altar. No púlpito foram espalhadas
notas de dinheiro, somando cerca de cem mil reais. A brutalidade do
crime, no entanto, residia principalmente na crueldade do ato. Da
vítima ainda viva foram removidos cirurgicamente o baço, o
pâncreas e o estômago; depois o resto do sangue foi drenado por
uma incisão na coxa direita que dava acesso à aorta. Exames
posteriores revelaram que a vítima havia sido morta por volta das
cinco da manhã, sendo que de algum modo o pastor teria tido
relações sexuais durante, ou, mais provavelmente, logo antes do
crime, uma vez que seu sêmen fora todo extraído do escroto
cirurgicamente e também pelo “método tradicional”, zombara o
legista. O assassino, fosse quem fosse, tinha um conhecimento
médico impressionante, por isso os delegados acreditavam que
algum traficante de órgãos seria o suspeito mais provável.

Carlos mergulhou de cabeça no caso, colocando o departamento


inteiro de prontidão. Descobriu que o pastor estava em franca
ascensão e que a igreja crescia a cada dia, já com um projeto de
reforma se iniciando depois do desafio dado aos fiéis de compra do
galpão. Tinha um programa no rádio, durante o qual eram feitas as
pregações. A vida do pastor em especial melhorara
consideravelmente. Antes de iniciar nessa atividade, era vendedor,
tinha um fusca e morava de aluguel. Menos de cinco anos mais
tarde, morava em casa própria, tinha uma Ecosport recém-saída da
concessionária e ternos feitos sob medida.

– Impressionante, não é mesmo? O cara abre a igreja hoje, e em


menos de uma década fica rico. Fala, Carlão, que raios a gente está
fazendo trabalhando? No Brasil, só existem três maneiras de ganhar
dinheiro: ser gostosa e bunduda, coisa que não sou – Tucca apertou
a exuberante barriga. – Jogar futebol... – outro talento que você não
tem – interrompeu Carlos sem tirar os olhos da papelada. – E por
último – Tucca continuou confirmando com a cabeça o comentário
do amigo – Ser pastor! Esse, aliás, é o mais lucrativo. Caramba!

– Esqueceu a melhor profissão para se ganhar dinheiro no Brasil


– Carlão falou ainda sem tirar os olhos dos documentos – Ser
político! Aí sim é vida mansa! Para ser gostosa, você precisa pôr
silicone e ralar o rabo na academia; para ser jogador de futebol,
você é obrigado a ficar confinado na concentração, pode ter lesão e
se ganha dois quilos te chamam de gordo; e sendo pastor você
trabalha de fim de semana e ainda tem que ficar até tarde
atendendo fiel pentelho. Agora, político não! Só trabalha na
campanha, ganha a maior nota, se aposenta com salário cheio, o
governo te paga tudo, até passagem área e carro público, e ainda
consegue helicóptero da polícia para uso próprio, enquanto a gente
pega mais de cem quilômetros de congestionamento na Marginal
para investigar cena de crime! Isso sim é vidão! – os dois
gargalharam e Carlos apontou para uma anotação. – Dá uma
olhada nesse sujeito. Médico, cirurgião, fazia parte da congregação,
mas foi expulso por difamar o pastor. Dei uma pesquisada e ele
falava que o pastor estava desviando dinheiro da igreja. Para mim
parece um motivo! – E sem mais se colocou de pé.
Horas depois, com mandato em mãos, a viatura do delegado
freava bruscamente na casa do médico. Depois de uma simples
vistoria, Carlos encontrou a prova inconteste: bisturis contendo
resquícios do sangue da vítima escondidos em um armário no
banheiro da suíte. O médico foi preso na hora, mas jurava ser
inocente e não se lembrar de absolutamente nada daquela noite.

O delegado dormiu satisfeito por mais um crime resolvido, porém


dez semanas depois...

Outro crime extravagante aconteceu, agora no bairro do Brás.


No moderno e enorme templo da Assembleia de Deus, Laercio, o
pastor suplente foi encontrado morto ao lado de Mirian, esposa do
pastor oficial. Ambos foram colocados no meio do púlpito, com a
mulher fazendo sexo oral no homem. Apesar disso, não havia
evidências de que o casal fizera sexo. O assassino usou uma
adulteração da técnica de preservação de corpos conhecida como
plastificação, que permite transformar os corpos em esculturas e
estátuas. Porém, enquanto a técnica usa polímeros que mantêm o
corpo com a textura e resistência naturais da carne, essa mistura
tornava os corpos duros como pedra. Um crime singular, com
algumas características estranhamente semelhantes aos do
cometido em Itaquera: os corpos tiveram todo o sangue drenado
através de uma incisão na aorta da coxa direita; também faltavam
órgãos, mas nesse caso os rins; as vítimas eram pessoas influentes
em suas congregações; e mais uma vez havia a demonstração de
perícia médica excepcional.

Embora fossem crimes diferentes, e o criminoso do primeiro


estar detido, havia uma similaridade entre os dois que não poderia
ser ignorada. A primeira pessoa que o delegado interrogou foi o
pastor principal, arrasado pela situação. Seu melhor amigo e esposa
assassinados... E a que tudo indicava, o assassino sugeria que os
dois fossem amantes. Uma investigação nos e-mails e nos
computadores confirmou as suspeitas, o que tornava o pastor ainda
mais um suspeito em potencial. Porém, o álibi do líder da
congregação era inegável: milhares de pessoas podiam atestar que
se encontrava em um congresso no sul do país, na mesma época
do desaparecimento, do casal dois meses antes. O que poderia ser
um caso difícil de resolver se provou banal. A identidade do
assassino foi revelada já no dia seguinte. O tesoureiro da igreja, um
homem severo e magricelo, em depoimento, disse que a esposa do
pastor tinha uma desavença com a cantora mais proeminente da
igreja e estudante de medicina. Em interrogatório, a cantora não
sabia dizer onde estava na noite de 12 de março, quando as vítimas
desapareceram, assim como na hora do crime. Uma busca simples
em sua casa também esclareceu o ocorrido. Roupas sujas de
sangue foram encontradas jogadas no cesto de lixo do apartamento,
além dos produtos necessários para o processo de plastificação,
produtos químicos raros e caros. Um exame de DNA confirmou as
suspeitas.

Caso encerrado...

Dessa vez, no entanto, enquanto todos do departamento


comemoravam a segunda excelente atuação em poucos meses,
Carlos estava sentado em sua mesa, girando a caneta nos dedos,
com o olhar fixo no vazio, pensativo...

Caso Encerrado...

Os dois crimes apresentavam certa similaridade; Carlos sentia


que havia algo mais. Ambos os acusados juravam inocência e
tiveram uma estranha amnésia. Era insólita também a conveniência
de ambos serem versados em técnicas cirúrgicas. E além de tudo
isso, incomodava o delegado o desaparecimento das duas vítimas
do segundo crime um dia após a realização do primeiro.

“Quando tudo se encaixa bem demais é porque há algo errado!”


– Carlos costumava dizer.

Quase cinco meses depois, nos primeiros dias de novembro,


houve mais um crime.
Dessa vez aconteceu no primeiro templo budista da América
Latina, situado em Cotia, a cerca de meia hora da capital paulista. O
criminoso foi pego ainda enquanto praticava o ato, mas a vítima já
estava morta. Chamava-se Chang e era um dos sacerdotes do
templo. Já o criminoso era um residente de medicina, fiel doador
que tinha sérios problemas com drogas e encontrara no budismo a
paz de espírito necessária para se recuperar. Ninguém entendia por
que matara seu mentor, um homem que largara sua vida anterior
para se dedicar ao templo, fundado por seus ancestrais.

Mais impressionante é a forma pela qual a vítima foi morta. Logo


após o almoço, os outros sacerdotes notaram que Mestre Chang
havia desaparecido. Ao procurarem por ele, se depararam com o
assassino, que o havia estrangulado até a morte, cortado sua artéria
da coxa direita e dissecado seu abdômen, retirando-lhe o intestino
grosso (com tamanha perícia que o delgado estava intacto) e os
pulmões. Segundo as testemunhas ainda no local do crime, fizera
isso com as unhas longas e afiadas como facas.

– Espera um pouco – Carlos interrompeu a testemunha. – Ele


cortou a vítima com as unhas!?

– Sim, mas pareciam garras. Eram enormes, como facas presas


aos dedos.

– Poderia ser uma luva então?

– Poderia, mas tenho quase certeza de que eram as unhas!

– E como você o derrubou?

– Não fui eu. Na verdade, eu e os outros monges tentamos


impedi-lo, mas ele nos arremessou para longe como se fôssemos
de papel. Foi Seu Damião que conseguiu derrubá-lo, não sei como.

– Seu Damião?

– Sim, Damião, o faxineiro.


Carlos foi atrás do Faxineiro e, ao vê-lo, seu queixo foi ao chão.
Esperava encontrar um homem grande, capaz de derrotar um
adicto, porém Damião era um senhor, na casa dos 70 anos, magro,
de aparência cansada e fragilizada, como uma pessoa que há muito
deveria já ter se aposentado. As roupas simples e surradas
aumentavam seu ar desgastado. A pele curtida de sol e bem
enrugada encontrava-se flácida sobre os ossos, quase como se não
houvesse músculos entre eles.

– Senhor Damião?

– Oi, fio, sô eu mesmo – falou com um forte sotaque.

– O senhor que conseguiu conter o criminoso?

– Eu não, fio, foi o sinhô.

– Eu?! – Carlos olhou com surpresa para o velho. – Como eu


poderia ter pegado o criminoso se acabei de chegar na cena do
crime?

– Não, fio, não o sinhô policial; o sinhô Jesus.

– Você poderia me explicar isso melhor?

– Bom, fio, eu vi lá a coisa. O pobre Chang estava todo rasgado,


ensanguentado, e o rapais lá batendo nos sacerdotes; me subiu um
comichão, fiquei muito brabo, e percebi que era coisa do cão. Homi
ninhum tem uma força daquela. Olhei pro arto, pedi força pro Sinhor
Jesuis pra sarva aquelas pessoas e PIMBA! Dei com a vassora
nele, e ele caiu, apagou na hora.

Carlos não conseguiu conter o sorriso e pensou: – Velho sortudo.


A vassoura deve ter acertado o assassino no lugar certo, o que fez
desacordá-lo.

– O senhor foi um herói, senhor Damião, fez um bem para


sociedade, mas, da próxima vez, mais cuidado. Esse é um homem
perigoso e o senhor correu um grande risco.

Carlos mandou que o criminoso fosse levado à delegacia, onde


finalmente poderia interrogá-lo. Chegando à sala de interrogatório,
encontrou um homem grande e musculoso, como ele, e de cabelo
raspado, mas as semelhanças acabavam aí. O sujeito tinha cabelos
escuros, olhos de um azul muito claro, que pareciam reluzir a luz,
como olhos de gato, e o corpo totalmente tatuado. A orelha era uma
couve-flor, típica de lutadores de MMA e outras lutas de solo. O
rosto parecia repuxado, como se alguém tivesse esticado a face de
um bebê sobre um crânio muito grande. Tudo era retesado, mas o
que mais incomodava Carlos era o olhar. Havia algo incomum
naqueles olhos. Eram absolutamente frios, vidrados e sem vida.
Olhavam com curiosidade e sadismo todo o local, e fitaram o
delegado com pura maldade.

Carlos sentiu um calafrio percorrer todo o seu corpo, como se


uma pedra de gelo tivesse sido colocada em seu cangote e
escorregado por suas costas. Medo era algo que o delegado e ex-
militar aprendera bem a controlar, mas sentia que a única coisa que
seu instinto dizia naquele momento era: “Corra! Para bem longe”.
Engolindo o frio na barriga e dominando seus instintos, Carlos
sentou na mesa, olhou a ficha de antecedentes criminais do homem
e leu: roubo à mão armada e agressão, ambos claramente por uso
de drogas. Preso e condenado a 10 anos de cadeia, foi libertado em
dois, por ser primário e apresentar bom comportamento após
conhecer o Mestre Chang e se tornar adepto do budismo. Passara
quase a viver no monastério desde então.

– Diga-me, Ricardo, por que fez isso? – Carlos olhou no rosto do


criminoso, que não tinha emoção, embora sua maldade emanasse
como uma onda de ar frio. Ele permaneceu em silêncio.

– Está me ouvindo, Ricardo?

O homem permanecia em silêncio. Olhava nos olhos do


delegado sem nem ao menos piscar.
– Você é surdo, animal? – Carlos se levantou depressa,
controlando a situação. O homem o desconcertava e o assustava, e
isso o incomodava terrivelmente. Assumir um ar mais agressivo
poderia virar a mesa, mas não obteve êxito. O homem continuava
olhando-o com um ar ligeiramente interessado, mas nada
assustado. – Teu nome é ou não é Ricardo, imbecil?

– Por ora, atenderei por este nome – a voz do homem saiu,


fazendo o delegado se sentar chocado. A voz era aguda e fria, mas
o que o tornava ainda mais assustador é que ele não falava
exalando o ar, mas inspirando.

Carlos tentou recuperar a postura. A maneira peculiar de falar do


homem lhe mostrou que não lidava com um louco qualquer.
Inconscientemente pousou a mão na arma, buscando segurança,
mas arrependeu-se assim que o fez; o homem sorriu ao perceber o
gesto do delegado.

– Está com medo, delegado? Acha que sua arma pode


protegê-lo de mim? – ele riu. – Acalme-se, não vou lhe fazer mal.
Vim apenas lhe dar um recado nesse momento. Você não pode
me prender, seu tolo, ninguém pode. Não há prisão neste
mundo que possa me deter.

– Alguém te contou que você está algemado à cadeira? E daqui


você vai para uma cela, e da cela, possivelmente para o Pinel ou
para algum lugar para gente como você!

– Como eu? – O homem gargalhou e, por mais que tentasse


dominar seu medo, Carlos estava apavorado. A luz das lâmpadas
frias oscilou por um breve momento. Carlos já lidara com loucos,
com tiroteios e com o medo da morte, mas esse medo irracional que
quase o dominava e o fazia querer abandonar a sala em pânico
quanto antes ele só sentira uma vez, no passado, e isso mudara sua
vida. O ar-condicionado começou a incomodá-lo. – Para o lugar de
onde venho não irei voltar, mas levarei muitos para lá. Agora,
preste atenção ao que vou lhe dizer. Abandone o caso, arquive-
o, ou faça corpo mole. Estou em uma missão e destroçarei
qualquer um que tentar me impedir! Não tenho querelas contra
você, policial, mas se vi-lo novamente arrancarei seu coração
com minhas mãos!

– A única coisa que você vai fazer é apodrecer numa cela! –


Embora tentasse soar confiante, a voz de Carlos vacilava.

– Amanhã, quando me prender, estarei livre, criança...

Ao dizer isso, o homem fechou seus olhos e não mais falou ou


fez qualquer coisa. Carlos tentou, mas o homem atingira um estado
catatônico que ninguém conseguiu reverter. Derrotado, Carlos
mandou que o levassem para a cela e foi para sua sala. Tremia de
medo e de frio. Abriu a garrafa de Whisky e virou o líquido num
copo, mas viu a bebida também se espalhar pela mesa. Colocou a
garrafa no lugar e tentou controlar a tremedeira. Bebeu de uma só
vez.

Foi acordado por Tucca, já na manhã seguinte. Caíra no sofá e


nem vira o sono que a bebida lhe dera. Acordou assustado.

– A loucura parece ter abandonado o assassino, Carlão, e agora


ele não para de chorar. Vai falar com ele?

Nem bem Tucca acabara a frase e seu superior já estava de pé,


seguindo para a cela.

Ao chegar lá, Carlos se espantou com o que viu. Ricardo, antes


uma figura fria e hedionda, chorava copiosamente. Repetia sem
parar o nome do mestre e “O que foi que eu fiz?”, seguido de
“Sangue é vida!”, quase como se fosse um mantra: Chang-o-que-foi-
que-eu-fiz-sangue-é-vida!

Carlos abriu a cela e se aproximou do homem abraçado aos


joelhos e balançando para frente e para trás, ainda repetindo as
mesmas palavras; os olhos agora castanhos bem vermelhos. Estava
encostado no canto da pequena e apertada cela, próximo à única
janela protegida por grades.
Carlos olhou para o criminoso, que parecia uma criança grande
em visível estado de choque, encarou profundamente seus olhos e
falou, dessa vez frio e senhor de si. O homem que tanto o assustara
agora só lhe dava pena.

– Onde você colocou as lentes de contato?

– O quê? – A voz saiu normalmente embargada por choro e


confusão, não como na noite anterior. Era uma voz bonita, grave, de
barítono; o rosto também agora era diferente e não estava retesado.
Era um homem bonito mesmo com os olhos inchados. Carlos se
perguntava se era a bebida da noite anterior, mas quase não
acreditava que o bebê chorão e o monstro assassino eram a mesma
pessoa. Precisava falar com Jack e pedir uns conselhos, porque
parecia um caso de loucura extrema.

– Diga-me onde estão as lentes de contato?

– Eu não sei do que está falando, senhor policial. Por favor, me


responda, eu matei ele, não foi? Matei a única pessoa que acreditou
em mim?

– Se está se referindo a Chang Chown, sim, você o matou. A


pergunta, Ricardo, é por quê?

– Sangue é vida...

– O quê? Sangue é vida? Por isso bebeu o sangue dele? Você é


o que agora? Conde Drácula?

– Oh Deus, o que eu fiz? O que eu fiz? – O homem se levantou e


passou a andar em círculos, cada vez mais nervoso.

– O que você fez não importa mais. Você deve me dizer por que
fez!

– Eu já lhe disse, policial, SANGUE É VIDA! – As últimas


palavras foram gritadas para a janela. O assassino se agarrou às
grades e passou a urrar sem parar “Sangue é vida”.

Carlos tentou se aproximar. Não queria que o louco entrasse


novamente em seu estado catatônico e precisava que ele se
acalmasse.

– Calma, filho. Vamos, converse comigo – A voz de Carlos era


serena, aveludada, tentava acalmar o assassino. Aos poucos o
homem se acalmou, fez algum tipo de reza em voz baixa e depois
de dois minutos falou com a voz mais controlada.

– Vou lhe contar tudo, delegado, assim o senhor poderá impedir


que ele faça novamente.

– Ele?

– Sim, quem fez isso. Ele vai continuar, matará mais.

– Mas você fez isso! Você matou seu mestre – afirmou, embora
não tivesse mais plena certeza.

– Preste atenção! – O homem gritou, agora em pânico. – Ele vai


voltar para acabar comigo. Não tenho muito tempo. Ele vai matar
mais, não vai parar até conseguir o que quer!

– Alguém mandou você fazer isso? Quem foi?

Então algo aconteceu. Um ar frio como um vento polar sacudiu a


sala e Ricardo ficou de pé, como se alguém o erguesse, e passou a
sufocar. Colocou as mãos em volta do pescoço e parecia tentar se
libertar de algo, mas aos poucos foi ficando vermelho. Carlos tentou
ajudá-lo e gritou chamando ajuda, mas o homem continuava
sufocando. Em pouco tempo Ricardo caiu morto.

Isso acontecera havia pouco mais de quatro meses e agora,


menos de uma semana do primeiro crime completar um ano, um
novo ataque, ainda mais violento. Carlos tinha deixado de lado a
policial que encontrara o corpo e estudava o cadáver do finado
padre. Rita, a policial, olhava chocada para as mulheres pregadas
na porta.

– Esse não é o estilo dele – Tucca, com um lenço no rosto


tentava esconder o fedor de carne queimada. – Ele nunca
esquartejou antes. Tem certeza que é ele?

– Absoluta. Sabe quantas mulheres foram queimadas acusadas


de bruxarias por padres católicos? Além do mais, onde está o
sangue? Um corpo esquartejado dessa maneira deixaria uma
piscina aqui, mas a quantidade é mínima e, pode apostar, algum
órgão está faltando, tenho certeza!

– Sim, você tem razão, chefe, falta o fígado. Olhamos por toda
parte, mas o fígado sumiu, como todos os outros. Já as mulheres
estão intactas, exceto por terem sido estupidamente violentadas,
possivelmente por um animal.

– Por que animal? – Perguntou Carlos surpreso, tirando os olhos


do tronco carbonizado e caminhando até uma das freiras. Os órgãos
sexuais das freiras estavam completamente dilacerados e o corpo
estava coberto de arranhões e mordidas de algo muito grande.

– Dinamarquês ou fila... Talvez até um urso.

– Quem pode ser tão louco para fazer isso? – Rita enojada
olhava para o corpo horrorizada.

– Como eu disse, menina, você não deveria estar aqui.

– Ah é?! E onde por acaso achariam um urso em São Caetano?


Nem zoológico a gente tem aqui!

– Escuta aqui, garota...

– Escuta aqui, você! Nós estamos no Brasil e aqui não tem urso.
Tem onça, no máximo!
– Presta bem atenção no que vou te falar agora.

Foi quando um grito agudo e infeliz cortou a nave, um lamento


agoniante de gelar a espinha. O delegado e a policial levaram a mão
à arma, procurando quem gritara. O que o delegado tinha para falar
a Rita morreu em sua garganta, pois para sua surpresa era do
celular de Vinnie que vinha o grito assustador. O rapaz tentava em
vão atender o telefone para parar o som, amaldiçoando sua própria
tolice de não ter silenciado o aparelho. Olhou para o delegado com
um claro pedido de desculpas. A veia de Carlos Eduardo voltara a
saltar. Vinnie, por sua vez, ficou completamente eufórico com o
telefonema.

– O quê? Toda a família? Decapitada? Caraca, mano! Não, estou


aqui em Sanca. É, o Herege atacou de novo – Carlos deixou a
policial e andou numa fúria contida em direção a Vinnie, que falava
empolgado e, ao que ele parecia acreditar, em sussurros, mas na
nave silenciosa sua voz se amplificava, por mais cuidado que
tivesse. Ao mesmo tempo fazia anotações em seu tablet. – Certo,
anotei o endereço. Estou meio longe, mas vou voar para lá!
Descobre como posso me infiltrar e prepara a arte e vinheta do
portal com a chamada: “Madame Van Helsing”, com uma foto bem
bizarra de uma mulher vestida de noiva suja de sangue – Vinnie
falou enquanto se levantava. Viu que o delegado estava se
aproximando. – Carlão, eu te ligo depois, tá? Aconteceu um outro
crime bizarro. Parece até teu cara, embora as vítimas não se
enquadrem no perfil. Entro em contato se vir algo que você possa
usar na sua investigação!

Carlos, atônito, com a veia da testa explodindo numa fúria


silenciosa, falou sem mover a boca, com os dentes tão grudados um
no outro que era possível ouvi-los ranger.

– Dá para falar mais baixo, cabeçudo?

– Relaxa. Já estou saindo. Vou investigar o outro crime – Falou


fugindo do policial. Depois parou na porta e falou alto: – Não
esquece de ver os arquivos que te enviei. Vai te ajudar! Lembre-se
que esse crime não tem a ver com psicopatia, mas com magia! Está
tudo interligado! – falou saindo da Igreja. Carlos se preparou para
correr atrás dele quando Tucca chamou:

– Esquece ele, Carlos. Temos pessoas piores do que ele


chegando.

– Quem está chegando? Já falei que ninguém entra nessa joça


sem minha ordem.

– O prefeito sim, Carlos. O prefeito sim, e ele está furioso!

Walkyria saiu da aula de Yoga exausta. Esforçara-se o máximo


para tirar sua atenção da conversa da madrugada. Jacó era tão
intenso. Não sabia como ele podia ser um homem tão frio e
controlado, e ao mesmo tempo tão impulsivo e agressivo. Era para
ser um bom dia, mas ele estragara tudo. Será que ele que estragara
tudo mesmo? O que ele fizera de tão errado? Teria mesmo Jack
cometido um erro? Ou ela que teria se apavorado? Será que o
problema estava no fato de Jacó estar tão certo do futuro dos dois,
ou o simples fato de ele amá-la com tanta certeza? Ou o fato seria
que ela não o amava tanto assim e que ao ver para onde as coisas
estavam indo ela entrou em pânico? Por que estragara tudo? Jacó
era tudo o que ela queria. Tinha um senso de humor único, irônico,
mas divertido, fazia piada de tudo, até do que não devia, era
cavalheiro, gentil e carinhoso. Tratava-a como uma rainha, demais
até; aliás, se tinha um defeito, era este: muito “tapete”, mas, ainda
assim, tinha um tipo de caráter único e ela sabia disso. Jack era um
“homem das antigas”, daqueles que ainda abriam a porta para a
moça e acreditava em honra, uma palavra tão fora de moda e tão
necessária. Nunca avançara o sinal, sempre a respeitara, a pedira
em namoro para o pai, e com certeza faria o mesmo no casamento.
Lembrava-se dele no dia em que se apresentou formalmente ao
ocupado Prefeito André Marcos:
– Olá, senhor. Sou Jacó Cohen e gostaria de pedir permissão ao
senhor para namorar a sua filha.

Ela achara aquilo piegas e desnecessário, não seria o pai que


definiria seus namorados, não mais! Embora tivesse que admitir que
a jogada do amante conquistara o pai, que implicava com todos os
seus namorados. Ele parecia realmente aprovar Jacó e talvez isso
que tanto a aterrorizava.

Sua mestra aproximava-se. Uma mulher qualquer se sentiria


intimidada já pelo corpo escultural de Cibele, uma mulher delicada,
que movia-se com uma graça felina. Seu corpo era algo entre o
estonteante e o espetacular, fruto de anos de uma alimentação
estritamente saudável e exercícios físicos, que deram a ela curvas
de uma personagem de história em quadrinhos. O silicone ajudara a
aperfeiçoar o perfeito, dando-lhe o equilíbrio que faltava, ou, como
ela dizia: desequilibrou o olhar dos homens, que saiu da boca e foi
para o decote. Se não bastasse isso, o rosto tinha feições fortes e
bem definidas, que combinavam perfeitamente com os olhos
límpidos e verdes como duas lagoas; os cabelos negros
costumavam ficar presos num coque, e ela raramente usava
qualquer tipo de maquiagem. Por isso, embora estivesse com trinta
e nove anos, sua pele e corpo faziam inveja em muitas meninas de
vinte. Por detrás de toda essa beleza, Cibele era dona da mente
mais sábia que Walkyria conhecia. Desde jovem, a mentora vivera
nos livros. Ela dizia ter sido magra, alta e feia na adolescência, o
que a incentivou a ler muito. Quando tinha treze anos, conheceu o
método DeRose e descobriu sua vocação. Fez Yoga até os dezoito,
quando juntou todo o dinheiro que tinha e foi para Índia. Viveu lá até
seus trinta anos, tornando-se mestra. Voltou ao Brasil e teve a honra
de conhecer o Mestre criador do método. Hoje, doutora em Yoga,
tem seu próprio estúdio e ainda usa o método do Mestre. Tornara-se
famosa no meio e era considerada uma verdadeira mestra. Walkyria
se considerava sortuda por ter conhecido Cibele, e a amizade das
duas se tornou superior ao fato de ela ser irmã do namorado; era a
única pessoa que parecia conhecer Jacó de verdade e também
conhecia Walkyria muito bem. A médica tinha a sensação de que ela
podia ler sua mente, como Jacó comumente dizia: a irmã só podia
ser uma Jedi, só faltava o sabre de luz.

– Onde você estava hoje, Wal? Nunca te vi tão distante – a voz


de Cibele tinha um ar austero, ao mesmo tempo que divertido e
debochado.

– Desculpa, Ci! Estou com a cabeça meio cheia. Será que


podíamos conversar? – pediu angustiada. A outra sorriu com
complacência: – Claro.

Foram até a cafeteria do estúdio; estúdio esse que Walkyria


considerava um pedaço do paraíso. Fora construído no espaço de
um antigo casarão no bairro da Vila Nova Conceição. Cibele
derrubou a casa, mas manteve as árvores centenárias. Com a ajuda
de um arquiteto, construiu um local ecológico e sustentável. Quase
todo o ambiente era feito em vidro, para permitir o contato com a
terra, e não tinha pavimento. Walkyria adorava quando faziam o
treino ao ar livre. A proximidade com o parque do Ibirapuera
garantia o silêncio, mesmo estando a avenida República do Líbano
a poucos metros dali. A cafeteria era virada para o parque, e os
alimentos eram todos orgânicos. O café era especialmente
apreciado por Walkyria. A única exceção a esse clima “zen” era a
enorme e moderna TV que ficava pendurada para o lado oposto do
parque. Cibele não gostava nem um pouco da TV, mas os alunos
insistiram para que ela comprasse. Ela assim o fez, porém aqueles
que queriam a tecnologia tinham de abrir mão da vista do paraíso.
Cibele sempre se sentava de frente para o parque, nunca dando
atenção ao aparelho. Coube a Walkyria ficar de frente para a TV.

– Diga, Wal, o que te aflige?

– Bom, na verdade, foi o seu irmão. Eu e ele brigamos feio


ontem... – falou evasiva.

– Deixe-me ver se adivinho: teve a ver com o fato de vocês irem


morar juntos?
Walkyria olhou surpresa para ela e assentiu com a cabeça.

– Já imaginava – Cibele admitiu por fim.

Walkyria moveu-se na cadeira com desconforto.

– Como assim? – perguntou. Cibele tomou um gole de seu café.

– Quando Jacó me disse que você havia sugerido a ideia, falei


para ele que era burrice – disse com o tom mais delicado que pôde,
mas ainda assim Walkyria sentiu-se ofendida.

– Burrice? Por quê? – perguntou na defensiva. Cibele deu de


ombro.

– Porque eu sabia que nunca daria certo – a maneira como


Cibele frisara o nunca incomodara Walkyria. Na verdade, toda essa
franqueza a incomodava. Cibele não era conhecida por ter papas na
língua e dizia que uma mentira boa ainda era mais prejudicial que
uma verdade ruim, mas às vezes parecia a Walkyria que Cibele não
percebia quanto feria as pessoas com suas verdades sem arestas.

– Por que nunca? – perguntou na defensiva. Cibele riu


complacente.

– Ora, Wal, porque você jamais seria capaz de se entregar num


relacionamento a esse ponto. Para você, o casamento é sinônimo
de dor e desconfiança. Não é algo que você sonhe desde
menininha. Tudo o que você conhece de casamento é um contrato
bem redigido entre duas partes, e você odeia contratos! –sorriu com
leve pesar e depois continuou:

– Quer queira quer não, morar junto é uma espécie de


casamento, mas sem a solidez da lei ou da sociedade. Mais cedo ou
mais tarde, você ia achar uma maneira de pular fora desse
compromisso – olhou para a amiga com empatia.
– Mas eu te entendo. Com um pai como o seu, que vive ao lado
de uma mulher de que não gosta simplesmente porque a imagem
de pai e homem de família lhe garantem mais votos, eu também não
sonharia casar; aliás, não sonho – pontuou.

– Você acha que é isso? – realmente Walkyria nunca sonhara


com casamento. Na verdade, detestava a madrasta, Madalena, uma
linda mulher que só servia de chaveiro ao pai; era vazia, fútil, volúvel
e tratava Walkyria como se ela fosse uma menina de dez anos ou
um cachorro muito malcriado, sempre falando que ela não se
portava como convinha àquela família, e, principalmente, como
convinha a uma mulher como ela. Para Walkyria, parecia que a
madrasta a tratava como se ela fosse uma espécie de princesa
rebelde. Nunca ouvia o pai falar da mãe, e o pai jamais demonstrava
qualquer tipo de sentimento por ela.

Voltou sua mente novamente à briga do dia anterior, em busca


da concordância e apoio da amiga.

– Mas não é muito cedo para o seu irmão vir com essa história
de casamento?

– Quando o assunto é você? Lógico que é! – Walkyria franziu o


cenho ao ouvir a resposta.

– Por que para mim, caramba? – Cibele riu.

– Wal, foi você que sugeriu que morassem juntos. Você que fala
de mobiliar a casa e tal. Para você pode ser tranquilo ir morar com o
namorado, mas para o meu irmão deve estar sendo um parto
esperar para oficializar as coisas. Desde que algo aconteceu
quando ele estava no exército, o Jack mudou! Ele nunca contou o
que houve, e o exército decretou o projeto como confidencial, mas
desse dia em diante o Jack nunca mais foi o mesmo. Ele não
admite, mas sei que foi por isso que ele optou pela psiquiatria e
desde então tudo para ele parece ser mais intenso! Ele te ama e,
quando o assunto é amor, ele simplesmente não pensa, age! Ele te
quer e você está com ele, então ele não precisa de mais nada. Para
que esperar? –Cibele riu sacudindo a cabeça em negativa. – Meu
irmão é impulsivo e ele te adora! Para ele, era o lógico, simples
assim – deu de ombros, depois olhou para amiga, preocupada. –
Como ele reagiu?

Mas Walkyria não respondeu. Era tão óbvio. Para Jack, mesmo
quando se tratava da lucidez de um paciente, tudo era direto. Preto
e branco. Certo e errado. Dia ou noite. Causa e Efeito. Ela entrara
em pânico e respondera da maneira que mais o machucaria. Não
era o tipo de homem que lidava com crises e dilemas como as
pessoas normais que sofriam e culpavam os outros. Jacó era um
homem que ia fundo nos problemas e os resolvia na hora. Mas
Walkyria sempre buscava fugir dos seus traumas do passado, e
quando confrontada sempre optava pela saída mais fácil, porém,
dessa vez fora longe demais. Permitira que seus temores
afastassem o homem que a amava, como nunca nenhum outro
amara. O homem que ela amava. Sim, nessa hora percebeu que
amava Jacó Cohen, aquele homem determinado, dinâmico e
intenso, que primeiro agia e depois pensava, o oposto dela, que
sempre pensava demais; Jacó, que nunca cedia ao medo, diferente
dela com seus inúmeros temores.

Desesperada percebeu que possivelmente nunca teria a chance


de dizer a ele que o amava, pois, na moderna TV, a imagem
conhecida do delegado Brandão estava dando uma entrevista a
uma repórter contando sobre o caso da assassina que fora enviada
à clínica psiquiátrica Sallutti e Associados e, aproveitando uma
distração, tinha rendido o segurança e levado Jacó Cohen como
refém.

– O que você quer, afinal? – A garota rosnou para Jack.

– Fica calma. Meu nome é Jacó e quero te ajudar – ele falou


tentando acalmá-la.
- Jacó, é? – Ela pareceu achar graça do nome dele, o que lhe
rendeu uma vergonha quente e irritante. Não só fora subjugado por
uma menina com metade de seu peso, no máximo, e ainda tinha
que vê-la fazendo farra do nome dele.

– Pode me chamar de Jack. Também não sou fã desse nome.


Foi escolha do meu pai. Se você soubesse quanto me zoavam por
causa desse nome na escola... – ele sorriu tentando fazê-la rir da
piada, mas a garota continuava a observá-lo séria. Ficaram assim
por vários segundos e, nesse tempo, Jacó não se importava de ser
levemente estrangulado, nem com o fato de uma assassina
psicótica estava imobilizando-o. A única coisa real de que Jack tinha
consciência era do calor que os lábios dela pareciam emitir e de seu
próprio coração disparado na garganta.

– Não, prefiro Jacó – ela sorriu levemente e aproximou-se ainda


mais dele, seus cabelos desceram sobre seus rostos como um véu,
e seus lábios chegavam a se roçar quando ela falou.

E então, sem mais nem menos, ela o largou e voltou para a


cama, sentando-se elegantemente. Jack ficou esparramado no
chão, tentando descobrir por que suas pernas estavam tão bambas.
Preferiu achar que era medo da assassina, não da mulher.

Enfim conseguiu se levantar, andou meio trêmulo para a cadeira


e se sentou. Ela o olhava sorrindo, com um ar ao mesmo tempo
zombeteiro e divertido, fazendo com que ele se sentisse um
adolescente paspalhão.

Pigarreou buscando arrancar a compostura do lugar profundo


em que ela se escondera. Dois pigarros depois, a compostura
finalmente pareceu dar o ar de sua graça e ele conseguiu usá-la,
ainda que desajeitadamente. Tentando manter um pouco de sua
dignidade, ele começou:

– Ok, Walkyria... – Raquel – ela o interrompeu. Ele a olhou


confuso. – Quer que eu a chame de Raquel, é isso? – perguntou. A
garota assentiu: – Sim.
– Mas seu nome é Walkyria, estou correto? – perguntou mais
uma vez. A garota revirou os olhos e olhou secamente para ele. –
Walkyria foi o nome que meus pais me deram, não o que Deus
escolheu para mim. Raquel foi aquele escolhido por Deus, então é o
nome que uso.

– Deus mudou o seu nome? – a perplexidade de Jacó era


visível. Na mesma hora a imagem da mãe e das irmãs mais novas
vieram-lhe à mente, porque eram do tipo de pessoas que viam tudo
como sobrenatural e que Deus realizava milagres mirabolantes.
Jacó, como homem da ciência e conhecedor profundo da mente,
tinha uma visão cética e esse respeito.

– Por que não? Mudou o nome de Abrão para Abraão. Saraí


para Sara, Saulo para Paulo, e até mesmo Jacó para Israel. O que
há de errado em Ele querer mudar Walkyria para Raquel?

– Nenhum problema – embora se perguntava por que Deus, se é


que Ele existia, ficava perdendo seu tempo mudando o nome de
psicóticas, em vez de fazer algo pelo mundo, mas achou que esse
argumento não era o melhor para criar vínculo com a paciente.
Respirou fundo e pensou que pelo menos assim não precisaria ficar
invocando o nome da amada cada vez que falasse com a paciente.

– Ok, Raquel. Então diga-me por que fez isso? – ele indagou
com o seu ar profissional, e a garota deu de ombros. – Isso o quê? –
perguntou casualmente.

– Matar essa família – o psiquiatra respondeu. A garota


novamente deu de ombros e desviou o olhar, encarando o vazio. –
Não matei ninguém. Eles já estavam mortos – falou informalmente.

– Mortos? Você chegou lá e eles estavam decapitados e... todo o


resto? – o psiquiatra perguntou confuso. A garota respondeu sem
paciência:

– Não, eles estavam jantando quando cheguei, conversando. A


mais nova contava com alegria o que havia feito na escola, mas isso
não muda o fato de estarem mortos há meses – sua voz era
indiferente e não carregava o menor pesar. Havia até um leve tom
de asco e raiva ao se referir à família, em especial quando falava da
menina mais nova.

– Você pode me explicar isso melhor? – Jacó perguntou. Raquel


inspirou profundamente e soltou o ar, cansada. Olhou para ele como
se olhasse para uma criança.

– Por exemplo, a investigação revelou que havia uma geladeira


cheia de bolsas de sangue. Foi você que os colocou lá?

– Por que eu faria isso, me diga? Porque eu colocaria bolsas de


sangue na geladeira? – soltou o ar frustrada. – Isso é uma perda de
tempo – falou por fim.

– O que é uma perda de tempo, Raquel? Fale comigo, me conte


sua história.

– Para quê? – Ironizou. – Posso dizer o que eu quiser, e você


ainda vai achar que sou louca. Para você, sou uma pirada,
possivelmente incurável. Você nunca vai acreditar no que vou dizer
e terá pena de mim. O mais irônico é que eu é que tenho pena de
você, e você é o louco nessa sala – falou com pesar. – Eu? E por
que eu sou o louco? – Jacó perguntou curioso e anotando em sua
ficha: paranoia.

– Porque você acha que sabe tudo, acha que o que você vê é o
real. Mas não é! A única coisa que você sabe é aquilo que querem
que você saiba, ou seja, nada – a garota pontuou enfática.

Seria um caso complicado, pensou. Voltaria ao assunto depois.

– Diga-me, Raquel, onde esteve nesses últimos três anos? –


perguntou de modo casual, mudando o foco. Raquel ficou quieta,
pensativa.
– Tive que nascer de novo, aprender a viver e me preparar para
a guerra – falou por fim. – Guerra? – Jacó perguntou. – Que
Guerra? – provocou.

– A que virá! A que vem acontecendo desde que o mundo é


mundo. A que acontece bem debaixo do seu nariz obtuso – ela
respondeu acidamente. Jack respirou fundo e olhou nos olhos da
garota.

– Olha, eu quero seu bem, tá bom? Só quero ajudar – falou no


tom mas conciliatório que conseguiu. Ele podia perceber uma
estranha fragilidade na garota por detrás daquele olhar selvagem.

– Você quer me ajudar de verdade? – aqueles grandes olhos de


chocolate o encaravam e seu coração voltou a bater de uma
maneira escandalosa, o calor tomando conta de seu rosto. – Sim –
gaguejou totalmente sem graça.

– Deixe-me sair! – ela suplicou pegando nas mãos do psiquiatra.


– Preciso fugir antes que eles venham me pegar! – pela primeira vez
ela abaixara a guarda, e Jack viu que ela estava assustada.

– Quem quer te fazer mal? – indagou.

– Não sei o nome dele. Eu o chamo somente de “O Sombrio”.


Ele virá atrás de mim, virá para se vingar! Preciso fugir, por favor!
Preciso ver o Michael! – implorou aflita.

– Ninguém te fará mal, eu prometo; você está segura aqui –


colocou a outra mão sobre a dela, mas se arrependeu logo em
seguida. Ela se afastou, fria, com sua armadura colocada no lugar
novamente.

– Você não pode me proteger! Você não pode proteger nem a si


mesmo! – sentenciou, dando-lhe as costas. Jacó suspirou... Seria
um dia bem longo.
– Diga-me, Raquel, o que aconteceu na Alemanha? – percebeu
na mesma hora que tocou em um ponto delicado. Os olhos da
jovem se estreitaram, ela assumiu um ar agressivo e atacou
novamente.

Porém, dessa vez Jacó não estava despreparado. Simplesmente


dobrou um dos joelhos, deixando o corpo tombar para o lado e
esperando a jovem passar direto por ele. Ao tocar o chão, Raquel
levantou a perna tentando um forte chute na altura do peito, mas
novamente o doutor se desviou sem nem levantar os braços. Um
segundo chute, seguido de um soco tinham o rosto como alvo, mas
Jacó também se desviou de ambos. Quando seria alvo de um
segundo soco, ele ergueu o braço, segurou no pulso dela e virou-o,
com tamanha habilidade e leveza que logo ela se viu imobilizada.
Raquel percebeu que todo o movimento de Jacó era delicado e
suave, para não machucá-la.

– Lamento se a deixei irritada. Não era minha intenção. Vou


deixá-la agora para se acalmar. Descanse e, por favor, não faça
mais isso.

Ele a soltou e ela não tentou atacá-lo novamente. Olhou para ele
com um misto de surpresa e desconfiança. Ele se virou e saiu da
sala. Henrique, o segurança, fitou pasmo o psiquiatra.

– Ainda vivo, doutor? – o volumoso segurança perguntou, a que


Jacó assentiu.

– Inteiro, meu amigo. Pode ficar tranquilo – falou calmo e foi para
sua sala. Precisava de um tempo sozinho. Seu dia ia de mal a pior.
Sentou-se em sua mesa e pensou em ligar para a irmã mais velha,
mas ela deveria estar dando aula. Cibele sempre tinha a capacidade
de acalmá-lo; ele comparava sua sabedoria à do Yoda, embora
admitisse que a irmã era muito mais bela que o pequeno
homenzinho verde, o que não o agradava muito, porque atraía
olhares masculinos. Até Matheus, seu amigo padre, às vezes olhava
para Cibele.
Estava pensando na irmã e principalmente em Walkyria. Não
conseguia entendê-la. Era tão carinhosa, tão amável, mas, quando
conversavam sobre algo sério, ela mudava. Demorara quase quatro
meses para assumir o namoro, e nunca disse “eu te amo”.
Costumava brincar com ela: – Amor, diz “eu também”? Ela ria
daquilo e respondia: – Eu também, meu lindo, eu também...

Sabia que ela tinha um receio profundo de compromissos, e em


parte isso era fruto dos desentendimentos com o pai e a madrasta,
mas já havia se passado muito tempo. Já era para ela ter entendido
que ele era diferente. Seu estômago estava começando a
incomodar, quando o interfone tocou.

– Doutor, o advogado da paciente Walkyria está aqui em baixo e


deseja vê-la. Posso deixá-lo subir?

Meia hora antes, Vinnie havia abandonado a cena do crime e


fora direto para o seu escritório. Lá, diante da enorme tela de seu
computador, falava ao telefone com um de seus contatos.

– Fala, Rubão. Descobriu quem é a Van Helsing? – Rubão lhe


passava a informação e Vinnie ia anotando tudo. Na parte de trás de
seu carro, havia um notebook e ele digitava as informações.

– Acabei de puxar a ficha criminal da madame. Puts, é o


Brandão que está cuidando do caso? Esse cara é um idiota –
reclamou. – Ele vai tentar blindar a gente. Esse cara me detesta. Ele
era o responsável pelo caso que quase me levou para cadeia, mas
o Carlão provou que eu era inocente. Desde então ele me olha torto.
Não vamos conseguir nada dele – falou ao colega do telefone.

– Já vi quem é o advogado – continuou.

– O cara é coroa, mas acho que dá para eu me passar de filho


dele. Deixa comigo!
Pouco depois, Vinnie estacionava o carro na garagem da clínica
Sallutti e Associados. Trocou rapidamente a camisa listrada por uma
simples branca e colocara uma gravata e um paletó por cima. Sentiu
o hálito de bebida e colocou balas de menta na boca, tantas que
seus olhos chegaram a lacrimejar. Na recepção da clínica, se
apresentava o Dr. Pacheco Jr., advogado da senhorita Germania,
para falar com o psiquiatra responsável pelo caso, Dr. Cohen.

Jacó liberou sua entrada e logo um rapaz de boa aparência, com


cabelos castanhos, entrou na sala.

– Olá. Sou o advogado da família da Walkyria, doutor.

– Sim. Olá. Sou o Dr. Cohen, responsável pelo tratamento de


sua cliente – disse isso sentindo um cheiro intenso de menta.

– Meu nome é Dr... – hesitou por um segundo. – Pacheco.

– Olá, doutor. Por favor, por aqui – indicou o corredor ao


pretenso advogado e Vinnie, seguiu com ele. O médico continuou: –
Mas o aviso de que ela está muito agressiva.

– Não se preocupe. Só vou conversar com ela – Vinnie falou


com um ar jovial. Jacó olhou para ele e notou que era muito jovem,
mas o que o deixava inquieto era a sensação de familiaridade. Onde
Jacó já o vira? Possivelmente em uma das festas de William?
Intrigado, perguntou:

– Já nos vimos antes?

– Não, creio que não. Talvez no camarote do carnaval? – Vinnie


falava com descaso de um dos lugares mais elitizados do país.
Achava que isso combinaria bem com o personagem.

– Não, senhor, definitivamente não. Não sou fã de carnaval – o


psiquiatra desculpou-se.
Vinnie reparou na desconfiança do psiquiatra. Precisava acalmá-
lo e distraí-lo. Decidiu uma abordagem diferente.

– Olha, pra te ser sincero não sou o maior fã de desfile também


não, mas as mulheres que eu pego no camarote compensam –
sorriu de maneira maliciosa. – Entende o que eu digo? Você deveria
tentar um dia. Se quiser, coloco seu nome na lista no próximo. Acho
que nos veremos bastante, com minha cliente internada aqui – falou
confiante e casualmente, como se fosse fácil fazê-lo, e num dia
normal talvez ele tivesse alertado o psiquiatra, mas Jack tinha seus
próprios problemas, e o advogado, com seu sotaque meio italiano e
hálito de menta, o estava irritando. Estava com fome, deprimido,
frustrado e cansado. Tudo o que não queria era falar de mulher.

– Obrigado, Dr., mas acho que vou passar. Sua cliente está na
sala 9, Dr. Pacheco; final do corredor à esquerda – falou
desvencilhando-se do advogado e entregando-o aos cuidados de
Henrique, o segurança, com um aceno.

– Muito obrigado – Vinnie falou, despedindo-se do psiquiatra feliz


por ter conseguido enganá-lo. –Tenha um bom dia!

Enquanto Vinnie se despedia feliz, Jack pensava em como seu


dia podia ser bom...

Menos de cinco minutos depois, na sala reservada aos


psiquiatras na ala de segurança máxima, Jacó preparava o seu
lanche, enquanto vestia uma blusa. Estava com frio. O telefone
tocou.

– Cohen.

– Como ela está? – era William, com a voz carregada de sono e


cansaço. Jacó riu.

– Ah, William, caso complicado mesmo. O advogado dela


chegou e acho que pode nos ajudar. Deixei ele conversando com
ela a sós um pouco. Você devia estar dormindo – censurou. O outro
riu.

– Adoraria, mas acabei acordando. Está muito frio e fui ajustar o


ar condicionado – reclamou. – Quando o Dr. Claudio sair, fala para
ele passar na minha sala; preciso falar com ele.

– Na verdade, quem veio foi o filho dele, pode ser?

– Como assim?! O Claudio não tem filho, só uma filha, a Claudia,


e ela é arquiteta! – William falou já desesperado.

– Desgraçado! – rosnou furioso, enquanto colocava-se de pé. –


Vou resolver isso...

O psiquiatra parou abruptamente de falar ou se mover e fixou o


olhar na porta. Raquel estava do lado de fora da sala. Tinha
atravessado o corredor com Vinnie preso numa chave de braço e
uma injeção enfiada no pescoço dele. Um líquido azul preenchia a
seringa. Vinnie choramingava e Jacó sentia o cheiro do medo
exalando de sua pele.

– Pelamordedeus, Madame Van Helsing, a gente consegue sair


dessa sem você me furar! Não me mata!

Ela encarou Jacó, entre a porta da sala dele e a saída.

– Abra a porta. Sei que você tem a chave – ordenou.

– Acalme-se. Você não quer fazer isso – Jack tentava se


aproximar, com as mãos levantadas. Ela apertou a seringa ainda
mais firme no pescoço de Vinnie, que choramingou mais alto,
engolindo as palavras. Na mesa, o telefone cuspia os gritos de
William, que tentava entender o que estava acontecendo.

– Não faz isso não, moça, por favor! Eu posso te ajudar. Vou ser
um bom refém! Prometo não reagir nem tentar fugir. Só quero
entender o que te motiva. Sério! – Vinnie continuava sua lamúria.
Estava claramente assustado, mas conseguia conversar bem com
sua atacante, Jacó reparou.

– Cala a boca e para de chorar! – vociferou ela.

– Ele está em pânico. Só vai atrasá-la. O que fez com Henrique?


– o psiquiatra perguntou tentando ganhar tempo.

– Está ali atrás. Botei ele para dormir – ela falou depressa.

– Leve-me no lugar dele. Ele está em pânico e vai te causar


problemas. Pense. Sou um refém mais útil e tenho as chaves.

– Não! Vou com você! – o youtuber falou quase aos gritos, Jacó
olhou-o surpreso. Ignorando-o Raquel continuou.

– E também mais treinado – falou com um sorriso irônico. Vapor


saía de sua boca, e Jacó percebeu que a temperatura estava
realmente muito baixa.

– Você pode me render com a mesma seringa. O que tem aí? –


com o olhar, indicou a seringa no pescoço de Vinnie.

– Algum desinfetante ou algo assim que peguei da faxineira. Não


sei o que faz, mas com certeza mata se for injetado na veia.

O barulho de um soco veio do fim do corredor. William se


encontrava do outro lado da porta que separava a área de
segurança máxima. Somente Henrique levava a chave sempre com
ele. Jacó estendeu a mão para o mentor, para que ele também se
acalmasse. Tremia de frio.

– Vamos com calma. Vou pegar as algemas de Henrique, me


algemarei e ficarei virado para a parede. Você pode então me pegar
com essa seringa. Só, por favor, deixa o rapaz ir. Se o que você
quer é escapar, eu sou o único que pode tirá-la daqui – falou da
maneira mais conciliatória que conseguiu.
Raquel estava visivelmente aterrorizada, e ele não entendia bem
a razão. Temia que ela tivesse um surto psicótico. O médico tentava
ganhar tempo para, quando surgisse uma oportunidade, tentar
desarmá-la e detê-la.

Ela se afastou. Jacó foi até o segurança, que estava estendido


no chão. Jacó procurou por sinais vitais e ficou feliz ao constatar
que Henrique estava apenas inconsciente. Era um bom sinal a
garota não ter tentado matar o segurança. Jack pegou as algemas,
as chaves e se prendeu. Nem bem terminou, ela já estava sobre ele.
Vinnie foi largado na sala de Jacó. Ela trancou a porta, ignorando as
reclamações dele.

– P-por que está fazendo isso? – ela perguntou entre gaguejos


de frio.

– Porque ele definitivamente não é seu advogado; só um coitado


que estava no local errado e com a pessoa errada. E porque você é
minha paciente e não pode simplesmente sair por aí.

– Onde está a chave? – ele perguntou com urgência, seus


dentes batendo por causa do frio. Jacó deixou o bolso do jaleco
mais à mostra. – Aqui. Raquel enfiou a mão no bolso, pegou as
chaves e juntos foram em direção da porta.

– Para onde é a saída de emergência? – ela perguntou aflita.


Jacó indicou com a cabeça. – Logo em frente, na porta à esquerda,
descendo as escadas – falou com a voz tranquila, mas o frio
chegava a ser doloroso.

Raquel abriu a porta com agilidade, e o delegado olhou para seu


mentor, fazendo um leve aceno com a cabeça para indicar que
ainda considerava a situação sob controle.

Eles desceram. Ouviram o som de vidro quebrando de onde


vinham, mas não pararam. Raquel pegou um enorme molho de
chaves com uma pizza como chaveiro. Apertou o botão algumas
vezes e um Kia Soul azul anil perolizado destrancou-se. Eles
entraram, alheios ao seu redor, e fecharam as portas. Ouviram um
barulho atrás do carro, mas não viram nada. A friagem era quase
insuportável. Jack tremia da cabeça aos pés e não entendia da onde
vinha tamanho frio. Ao tomar consciência da temperatura, a garota
pareceu ficar ainda mais aterrorizada. Tentava nervosamente ligar o
carro, mas ele não dava partida.

– Liga, inferno! Liga! – Raquel gritava socando o volante.

– Tem código, moça. O carro só liga por biometria. Nem adianta


tentar, ele não vai dar a partida – uma voz orgulhosa veio da traseira
do carro. Ela olhou para trás e viu Vinnie no compartimento traseiro
do carro, no meio de uma parafernália computadorizada e caixas de
pizza.

– O que você está fazendo aqui? – ela perguntou furiosa. Jacó


se limitou a olhar de maneira inconformada. Ele estava algemado e
era prisioneiro de uma paciente extremamente perigosa para que o
idiota ficasse livre, e o maldito vinha de bom grado atrás dela!

– Olha, Madame Van Helsing – Raquel olhou confusa para o


rapaz, mas ele continuou sem se incomodar. – Deixa eu ficar! Se me
prometer uma entrevista me contando a sua visão do caso, vocês
vão precisar de mim para ligar o carro toda vez! Eu quero ir junto!

– Esquece! Cai fora ou eu te mato! – ameaçou agarrando-o pelo


colarinho, mas ele não pareceu se intimidar.

– Não, você não me mataria porque sabe que sou mortal. Você
disse que todos daquela família estavam mortos! – ele falou com
bravura, embora estivesse aterrorizado. Raquel olhou surpresa e ele
aproveitou a oportunidade para continuar: – A maneira que você os
matou era um rito antigo de exorcismo, não era? Como os romenos
faziam com os Vampyrs? – ele olhava sério, determinado.

Raquel o soltou.
– Tá bom! – rugiu derrotada – Mas ANDA LOGO! Liga essa
porcaria que precisamos fugir daqui! – ordenou por fim.

Vinnie fez um sinal de sentido com a mão direita e avançou até o


volante, colocando-se no meio dos dois bancos da frente. Encostou
o dedão num pequeno painel.

– Agora silêncio! Meu carro tem controle de voz.

Pigarreou e com um ar de fidalgo falou:

– Engine on!

O carro ligou. Tudo o que Jack queria nesse exato momento era
bater sua cabeça bem forte e quantas vezes pudesse até desmaiar,
mas, antes disso, queria matar Vinnie lentamente.

– Está tão frio aqui – reclamou Vinnie. – Vocês precisam


maneirar no ar.

– Não é o ar – Raquel gritou. – É ele! – e apontou para a saída,


seus olhos marejados de lágrimas.

Na porta, bloqueando o caminho, estava parado um homem


enorme. Sua pele era negra como azeviche. Vestia-se com um
impecável terno branco, de colete negro, e a única cor era a da
gravata: vermelho sangue, que criava um contraste forte com o
colete de veludo negro.

Jack perguntava-se quando tinha desmaiado e em que momento


as alucinações tinham começado, quando o carro deu um solavanco
e acelerou. Jack via o homem se aproximar rapidamente e gritou
mandando ela parar, mas ela não obedeceu. O corpo foi
arremessado para cima, bateu no teto e quicou mais três vezes
antes de parar dezenas de metros atrás. Sangue descia pelo vidro,
e Vinnie choramingava.
– Meu carrinho... Por que ele não fugiu? Você acabou com meu
carrinho. A gente precisa ajudar o moço. Matou mais um, Madame
Van Helsing.

– Você é completamente louca! O que ele fez para trucidá-lo


dessa maneira?! – Jack estava furioso e ela olhou para ele
triunfante.

– Louca, é? Olhe para trás, doutor, e sinta sua sanidade fugir


diante de seus olhos.

Jack e Vinnie olharam para trás, no mesmo momento em que a


figura se erguia. Sangue empapava o terno outrora branco, ossos
da perna e do braço estavam expostos, porém, com um único mover
violento do braço, o negro enorme colocou os ossos do braço no
lugar, e depois, segurando a perna, encaixou o fêmur partido, então
começou a correr na direção do carro.

Raquel pisou com força no acelerador e o carro arrancou em


velocidade. Sem se incomodar com os ferimentos, o homem
disparou atrás deles e, sem nenhum esforço, alcançou o veículo. –
CORRE! – gritaram Jacó e Vinnie juntos. – CORRE!

O carro tentou disparar, mas a figura sombria foi mais rápida e


agarrou na parte traseira, erguendo as duas rodas do chão. Raquel
pisava fundo no acelerador, e as rodas da frente fritavam no chão,
enchendo o lugar de fumaça e do cheiro de borracha queimada.

Vinnie soluçava em pânico, enquanto Jacó debatia-se tentando


se soltar das algemas. O psiquiatra gritou de dor, mas finalmente
conseguiu deslocar o dedão, soltando uma das mãos. Ele pulou
para o banco de trás e, usando a algema como soco inglês, golpeou
o vidro traseiro, estilhaçando-o, enquanto Vinnie se encolhia
assustado. O segundo soco foi direto na face do homem, e o
psiquiatra sentiu o rosto ceder diante do metal, mas o adversário
continuou segurando o carro, indiferente ao golpe. Olhou o
psiquiatra nos olhos e sorriu, com o sangue escorrendo em
profusão. Estarrecido, o psiquiatra percebeu que o frio congelante
emanava da figura a sua frente.

Nessa hora, o para-choque traseiro do carro se desprendeu e o


veículo voltou a tocar no chão com suas quatro rodas. Raquel
disparou em frente.

O homem rugiu em fúria, partiu a peça solta do carro como se


fosse uma vareta e começou a correr em perseguição ao veículo em
uma velocidade alucinante.

– Ele vai alcançar a gente! – Vinnie gritava estarrecido.

Mas Raquel continuou em frente conduzindo o veículo sem se


desesperar, o que não acontecia com Vinnie, porque, embora o
carro estivesse em velocidade acima de oitenta quilômetros por
hora, o homem diminuía a distância cada vez mais.

– Isso é impossível! – Jacó gritava enquanto procurava algo com


o que golpear a figura uma vez que estivesse ao alcance. Pegou a
chave de boca e estava pronto para atacar o homem, que já
estendia a mão para agarrar o carro, quando algo aconteceu. A mão
da figura rompeu em chamas, enquanto o carro saía de uma via
arborizada e caía na rodovia Fernão Dias. O homem freou
bruscamente, não ousando sair da proteção das árvores, e urrou
enfurecido.
Capítulo 3
Há muito tempo, na infância da Terra e na aurora da
humanidade, existiu uma grande cidade.

E enquanto os homens vagavam sem lar, caçando e devorando


o que encontravam, escondendo-se em cavernas, e os faraós do
Nilo nem sonhavam em nascer, surgiu um homem. Não um homem
qualquer, mas um homem poderoso, com a aparência mais grotesca
e tenebrosa que já fora vista, pois sua tez era mais negra que a
mais escura das noites e seus olhos eram vermelhos como se
sangue tivesse invadido seu olhar. Seus longos, fartos e
encaracolados cabelos eram também rubros, como o líquido da
vida, assim como a sua barba, que cascateava pelo corpo
musculoso. Era alto em estatura e marcante em aparência.

Vindo de onde nascia o Sol, ele escolheu um belo vale, e lá


passou a trabalhar a terra. Aos poucos, os vagantes que por lá
buscavam sobreviver foram se aproximando. Temiam-no por causa
de sua estranha aparência, e consideravam-no um poderoso e
estrangeiro deus. Inicialmente, levaram animais sacrificados à beira
do antro que o homem havia cavado para si, onde ele dormia. Dias
depois, deixaram peles e, assim, começaram lentamente a conviver.
Pouco a pouco eles tentaram conversar, mas aqueles selvagens
nada mais eram do que homens das cavernas e sua linguagem era
muito tosca e primitiva. Porém, o homem era inteligente e logo
conseguiu se comunicar com eles, portanto passaram a se
entender, e então o homem convidou-os a morar com eles.

– Mas como arrumaremos comida? – disse o líder dos


selvagens. – Precisamos buscar nossas presas.

– Não será preciso – o homem escuro falou vigoroso. – Pois eu


conheço os segredos da terra. Sei como fazer as sementes
brotarem e como colher a água da chuva. Com minha ajuda, teu
povo nunca mais precisará se mudar de lugar e poderá repousar,
pois por incontáveis invernos vaguei sem descanso, mas agora
estou cansado de perambular.

Assim o homem recebeu os selvagens e passou a governar


aquele ínfimo ajuntamento, que era chamado pelos seus membros
de o “Povo”. E cavaram enormes buracos no chão, e criaram
moradias subterrâneas, e o Povo perguntou o nome do homem
escuro, e ele lhes disse que seu nome era Qayin.

E os anos se passavam. A cidade prosperava cada vez mais, e


dos quatro cantos do mundo vinham nômades para admirar sua
glória e de seu senhor misterioso, em busca de refúgio e descanso.
Sua fama e poder cresciam.

E Qayin tornou-se líder e guerreiro daquele povo. Até mesmo o


xamã, vindo da mais respeitada e poderosa família, colocou-se
como servo particular do Senhor Escuro. E dessa servidão surgiu
uma grande amizade, tão forte que Qayin não tomava nenhuma
decisão sobre o bem-estar do povo sem antes pesar a opinião do
xamã, que tinha o nome de Toruk.

Pouco antes, Toruk era conhecido como o mais sábio, o mais


forte e o mais poderoso entre sua tribo quando ainda eram
nômades. Era uma cabeça mais alto que o segundo homem de
maior estatura, e sua força física só era superada pela sua
inteligência. Assim, fora fácil tornar-se líder quando seu pai, o antigo
líder da tribo, uniu-se a terra. Pois era conhecedor dos grandes
mistérios e demonstrava grande sapiência. Era um guerreiro
orgulhoso e diziam que ele jamais se curvava diante de alguém.

Com a chegada de Qayin, no entanto, tudo mudara, pois Toruk


fora o primeiro a perceber que aquele ser era diferente dos demais
e, diante de sua grandeza, Toruk, xamã e líder do seu povo, passou-
lhe seu bordão. Contudo, não havia entre eles maior ou menor. Era
mútuo o respeito e a amizade e tratavam-se como a irmãos.
Ora, tamanha era a fraternidade que em uma noite escura e sem
lua Qayin levou Toruk ao cume de uma montanha e estendeu uma
faca de pedra.

– Meu pai sentira-se deveras solitário – começou a falar o


homem de olhos sanguinolentos. – Então falou com o Criador do
Céu e da Terra e lhe pediu uma companheira.

Toruk olhava para o misterioso amigo com ansiedade, já que


esta era a primeira vez que o Homem Escuro falava de seu
passado. Qayin então se abaixou e pegou a terra com suas mãos.

– Com a terra que Ele havia criado meu pai, Ele moldou a mais
bela criatura. Com a noite trançou suas madeixas e com duas
estrelas lapidou seus olhos. E assim meu pai conheceu sua
companheira! Criada como ele e para ele. Essa companheira, no
entanto, era poderosa e pouco dócil... Em verdade digo que desde o
primeiro ar respirado não havia em seu feitio obediência ou
submissão. Ela jamais aceitava que meu pai fosse seu soberano.
Sempre dizia: “– Por que vós deveis comandar? Não foste tu
moldado da mesma terra donde fui? No que és superior a mim? Em
nada, digo-te!”.

– E meu pai se encolerizava! Nem mesmo no leito a mulher


aceitava seu senhor por sobre ela! “– Por que deveis ficar acima de
mim? Se sou eu quem vos envolve em meu ser? Ficai abaixo, que é
vosso lugar!” Ela era indomável, mas meu pai era valente e
poderoso e, sem conseguir dobrá-lo, ela fugiu do lar que habitavam.
Na direção das grandes águas ela partiu, mas o Criador, decidido a
puni-la, amaldiçoou-a!

– O que meu tolo pai não sabia era que ela estava grávida! E do
ventre da primeira esposa de meu progenitor todo o seu povo teve
origem. E todos os outros primeiros homens e mulheres desse
mundo vieram da primeira ninhada de meu pai e tua mãe. Pois da
semente de meu pai e do ventre de tua mãe corre a força do Criador
e muitos filhos e filhas ela teve.
– Mas meu pai foi somente o primeiro de seus amantes. Logo ela
conheceria o Príncipe Desta Terra.

– O Príncipe Desta Terra? – Toruk indagou. – O que queres


dizer?

– Muito antes do nascimento de meu pai e de tua mãe, quando a


luz ainda não existia, o Príncipe nasceu. Era o maior e mais
poderoso entre todos os seres da criação, e de seu surgimento
nasceu a Luz. Viu ele a escravidão dos seus irmãos, todos criados
como escravos de um tirano, todos feitos única e exclusivamente
para adorá-lo. Esse ser tirano, o mesmo que criou meu pai, era um
pai de escravos, mas o príncipe não aceitou isso! Reuniu seus
irmãos e juntos lutaram para derrotá-lo.

– Ora, o Tirano era muito poderoso e derrotou o Príncipe e seus


irmãos, e o aprisionou nesta terra, pois o Príncipe era temível
demais para ser destruído! E nesta terra permaneceu até a chegada
de tua mãe e de sua prole. Foi ele quem cuidou de vós, daqueles
que seriam teu povo, e vos ensinou tudo o que sabem, mas à
primeira de meu pai, tua mãe, o Príncipe deu todo o conhecimento
do céu e da terra. E ela se tornou a Senhora da Noite, como ele era
o Senhor do Alvorecer. E a Senhora tornou-se sua rainha. E o
Príncipe deu-lhe a morada de prata que você pode ver sempre que
ela se ergue altaneira e brilhante no céu. A Rainha da Noite!

– Anos depois, o Senhor do Alvorecer tentou libertar meu pai das


garras do Criador. Quase conseguiu, convencendo minha mãe ao
ensiná-la como conquistar a sabedoria e os poderes do Tirano, mas
meu pai, fraco, teve medo, e, assim, ambos também foram expulsos
para essa terra. Então eu nasci e depois de mim veio meu irmão! –
fez uma pausa.

– Meu irmão era fraco e covarde! Ainda assim, todos o amavam


mais que a mim! Ele servia ao Tirano com devoção, em uma época
na qual, devo admitir, eu também era seu escravo. No entanto,
embora sempre entregasse todo o meu ser em minha labuta, o
Criador preferia a meu irmão – falou com amargor o Senhor Escuro.
– A mim foi ordenado que cuidasse da terra, e a meu irmão, dos
animais. Antes mesmo de o sol nascer, eu feria minhas mãos
cavando o solo. O sol castigava minha pele e meu corpo doía com o
esforço, mas ainda assim eu dava o máximo de mim, para agradar
ao Criador, Cujo Nome Não Se Deve Dizer! Já meu irmão divertia-se
brincando com os animais e nada fazia, mas mesmo assim era o
favorito d’Ele. E por isso meu maldito irmão me humilhava e
zombava de mim!

– Cansado de suas constantes humilhações, eu o enfrentei.


Lutamos – hesitou o Senhor Escuro e manteve-se em silêncio por
um momento antes de continuar. – No embate, o covarde acabou
tropeçando, e sua cabeça foi atingida por uma rocha, e assim
morreu meu irmão, sem que eu lhe tivesse tirado a vida – falou
Qayin sem firmeza.

– Mas foi sobre meus ombros que recaiu a acusação de sua


morte, e do Criador recebi essa aparência grotesca. A qualquer um
que me fizer mal recairá um mal sete vezes maior, pois a vingança
do Inefável será eterna e a mim não é reservado o descanso da
morte se não pelo caminho do assassínio.

– Fui condenado a vagar por essa terra perdida pela eternidade,


sem nunca ter onde descansar. Vivi com medo da morte até a noite
sem lua em que Ela me encontrou!

– Ela me deu de comer, e ensinou-me os prazeres da carne;


deu-me alegria e felicidade, e, durante as longas noites que
passamos juntos, ela me ensinou os segredos mais profundos do
solo e mostrou-me como tudo e todos obedecem a ela e às suas
faces, desde o mar até o nascimento dos seres! Ela me ensinou a
desvendar os mais difíceis enigmas da abobada celeste e os mais
surpreendentes bens ocultos das entranhas da terra, mas alguns,
em especial, ela guardou para si, e só ensinará a suas filhas.

– Diga-me, amigo, a Senhora ensinaria minhas filhas? – Toruk


perguntou.
Qayin ficou pensativo, observando o céu escuro. Olhou para
Toruk, seu único amigo em toda a vastidão do mundo, e disse por
fim:

– Dê-me a mais bela de tuas filhas como esposa, unamos


nossas famílias, e eu clamarei à senhora e ela ensinará os segredos
a tuas filhas.

Toruk ficou feliz e satisfeito, mas esse não era o único motivo de
o Senhor Escuro tê-lo levado até àquele monte.

– Há algo que desejo compartilhar contigo, companheiro – E,


erguendo a lâmina de pedra, continuou. – O sangue. Deixaremos de
ser amigos, para tornarmo-nos irmãos – E dizendo isso feriu sua
própria mão, deixando seu sangue vivo e brilhante fluir. Estendeu a
faca a Toruk, que sem hesitar fez o mesmo. Então os dois juntaram
suas mãos, e Qayin falou:

– Agora, meu sangue corre em tuas veias, e o teu, nas minhas!


Somos irmãos!

– A mais bela de minhas filhas eu entrego a ti, meu irmão! Que


nosso sangue seja o mesmo também em nossos descendentes!

E a mais formosa entre as filhas de Toruk foi dada para selar


essa amizade. Seu nome era Kashaph. Conheceu Qayin a
Kashaph, e ela deu à luz Khanokh. Em homenagem a ele, também
assim Qayin batizou sua cidade. Seus filhos herdaram os cabelos
de sangue e a pele de piche.

E tanto cidade como criança cresciam de forma assombrosa. Os


buracos logo tiveram de ser ampliados, e com a sabedoria de Qayin
grandes salas foram escavadas. As pessoas entravam pelo teto e
viviam em suas casas feitas no chão. Seus telhados fervilhavam
com o comércio de produtos à base de troca. Pessoas fizeram suas
casas subterrâneas e assim nasceu a primeira cidade dos Filhos do
Homem.
Sob a proteção de seu temido e poderoso senhor, a civilização
passou a prosperar, e a cidade logo tinha mais de cinco mil almas. E
mesmo depois que Toruk se uniu ao solo, a cidade se desenvolveu
com o seu senhor-deus escuro e sua linhagem. Porém, depois da
morte de seu amigo, Qayin passou novamente a vagar, ficando
muitos dias, meses e até anos fora, pois parecia que o tempo nunca
o tocava e que a maldição do Inefável o mantinha vivo.

E assim os séculos passaram, e a linhagem de Qayin se


desenvolveu. A cidade tornou-se ainda mais poderosa, e ao seu
exemplo a humanidade passou a viver em grupos maiores, e os
Filhos dos Homens, outrora nômades, agora tinham um lugar para
chamar de lar e trocavam entre si objetos. Aqueles que tinham
rebanho trocavam seus animais por roupas ou armas, e do comércio
nasceram as cidades, mas nenhuma se comparava em tamanho e
poder a Khanokh.

E o filho de Qayin, Khanokh, coabitou com sua esposa e dela


nasceu Irade, que coabitou com sua mulher e gerou Mehujael; o
filho de Mehujael foi Methushael, que, por sua vez, viveu com sua
mulher e gerou uma criança forte e muito geniosa. Methushael,
assim que o viu, falou: esse nasceu para governar, por isso seu
nome será Lamech, pois ele será um conquistador e aumentará
nossas terras!

Desde sua infância, o jovem mostrou um carisma fascinante.


Sabia como controlar os homens e como incitá-los à guerra.
Também era um excelente administrador, portanto, antes mesmo de
ser um homem, Lamech já era, de fato, mas não de direito, o
governante da cidade. Ele conseguiu torná-la ainda mais poderosa e
grandiosa. Porém, por mais que conseguisse fazê-la prosperar,
Lamech ainda era o príncipe, e aquela ainda era a cidade de Qayin.

O Senhor Escuro já não era visto havia séculos, desde a morte


de Toruk, e aqueles da Escura Linhagem viviam anos além do
normal. Muitos acreditavam que o Senhor Escuro já havia perecido,
porém alguns pastores alegavam que às vezes podiam ver um
homem negro como a noite andando pelos campos, e, como todos
os seus filhos viviam séculos e séculos imunes ao tempo, todos
acreditavam que seu senhor estava vivo, em seu eterno vagar. E
enquanto seu corpo não fosse encontrado, ele seria o governante.

Lamech exigia que lhe fosse passado o poder absoluto, mas


seus antepassados diziam:

– Não enquanto o senhor Qayin estiver vivo. Quando ele voltar,


tu poderás lhe pedir a coroa. Caso ele faça como pedes, nós o
serviremos. Até lá, tu serás o príncipe.

E enquanto Lamech permanecia queixando-se em fúria por seu


destino, do outro lado da cidade existia uma bela mulher de nome
Zillah. Era a mais bela entre todas as mulheres. Seus cabelos
escuros pareciam feitos de sombras sedosas, seus olhos eram da
cor do mar e sua pele tinha o brilho do sol. Seu pai tinha muito
orgulho de sua jovem donzela e a vigiava com esmero e zelo.
Prometera que a filha seria guardada para a Mãe Terra, que
ensinara ao Senhor da Cidade tudo o que ele sabia, aquela que O
Senhor Escuro chamava de Senhora da Noite.

Zillah adorava caminhar pelas colinas vizinhas da cidade a


pastorear ovelhas. Cantarolava para o vento, para as árvores, para
o rio e principalmente para o Sol. No momento em que o astro-rei
atingia seu pico nos céus, e sua luz aquecia a terra, Zillah exibia
toda sua beleza banhando-se no rio e secando seu corpo no calor.
Quando os raios tocavam seu corpo, sonhava com o grande astro
como um belo amante beijando sua pele perfeita, e assim ela se
entregava ao sol dia após dia, seu amante divino.

Um dia, enquanto se banhava nas colinas, Zillah foi vista por


Lamech, que a espiava por entre os arbustos, e naquele momento a
quis para si. Cheio de lascívia ele tentou tomá-la à força, mas Zillah
era astuta e escondeu-se de seu caçador. Ora, enquanto a
perseguia, Lamech foi momentaneamente cegado pelo sol
fulguroso, guardião da jovem, que pareceu brilhar mais forte
naquele momento e distraiu o caçador, dando a chance que ela
precisava para buscar refúgio entre os anciões da cidade.
Lamech caminhou altaneiro até o conselho dos anciões e exigiu
que a garota lhe fosse entregue. O Conselho, no entanto, o
enfrentou e falou em uma só voz cheia de autoridade:

– Não tocarás nela, Lamech, pois ela não é tua e nunca o será.
Zillah foi separada para a Mãe, e só a Ela a jovem será entregue.
Essa é a lei!

O jovem guerreiro ficou furioso e começou a destruir o local.

– Quem sois vós para impedir-me de ter a mulher que desejo?


Quem de vós tende a minha força ou minha habilidade? Quem
dentre vós, seja meu tio, pai ou avô, pode contra mim? Sou o
herdeiro dessa terra e seu legítimo senhor! Quem dentre vós podeis
me negar aquilo que é meu?! Desafio agora qualquer um que ouse
se apresentar, se houver um valente que me possa ferir, ou
entregai-me a mulher. Caso contrário, a todos matarei!

E o silêncio imperou logo após a bravata do jovem guerreiro,


temido por todos, porque nem mesmo seu pai, Methushael, ousava
desafiá-lo. E quando Zillah, aterrorizada, percebeu que seria
entregue ao seu cruel amo, temeu por sua vida e, olhando para o
astro-rei, pediu-lhe sua proteção.

E a proteção veio... Na forma mais assustadora e sombria que


poderia surgir, pois do meio da multidão uma voz rugiu acima de
tudo e todos.

– Eu te desafio, Lamech!

E Lamech, o maior da cidade, temeu. Diante dele estava o


primeiro senhor de Khanokh. Qayin retornara! Furioso, agarrou seu
descendente e o jogou no chão. E, com um único e violento golpe,
deixou o jovem estatelado no solo. Quando Lamech despertou, seu
ancestral estava diante dele e gritou:

– O que pensas que estás fazendo tentando tomar uma mulher


que não é tua? Acaso não entendeste que esta foi separada para a
Senhora? Achas que as damas da noite foram separadas para que
te deleitem em teus braços? Lembra-te: esta é minha cidade e
minha palavra é a lei! Não tocarás na donzela ou terás de
confrontar-te com minha ira!

Lamech, no entanto, era valente. Rindo de seu ancestral,


colocou-se de pé e preparou seu ataque. O golpe foi tão violento
que o ar deslocado derrubou a multidão. Qualquer mortal teria sido
feito em pedaços, mas a vítima do ataque era o primeiro dos Filhos
do Homem nascido de uma mulher. Fora concebido pelo amor e
perfeição divina e corrompera seu coração na inveja. Era o primeiro
dos assassinos, derramando o sangue de seu irmão, e recebera do
Criador a maior de todas as maldições: uma eternidade de
sofrimento e arrependimento, e ninguém poderia abrandar-lhe esse
sofrimento sem sofrer ainda mais.

Sete vezes mais...

Ora, Lamech acertou seu golpe, mas, ao invés de ferir seu alvo,
uma dor excruciante o devastou. Seus ossos se partiram e ele caiu
no chão, incapaz de continuar o embate. Sua agonia era tanta que
seus gritos feriam aqueles que assistiam.

Qayin, intocado pelo golpe, ajoelhou-se perto do descendente e


com zelo e amor o recolheu, levando-o para dentro de seu palácio.
Lá usou a arte da cura, embalando o corpo de Lamech, que caíra
num sono profundo.

O Senhor de Khanokh foi então até Zillah e disse-lhe:

– Vai em paz, jovem donzela. Lamech não fará mal a ti, pois
muito ferido ele foi e, quando despertar, tu há muito estarás morta.
Viva feliz tua vida e em segurança.

E assim Zillah voltou a seus afazeres, a cuidar de suas ovelhas e


a cantarolar para o Sol, senhor supremo de seu coração.
Um dia, olhou para seu amado, mas ele não podia ser visto.
Pesadas nuvens o encobriam. Zillah, que acabara de se banhar nas
águas do rio, olhou brava para as nuvens ciumentas que escondiam
seu amante. Cantou uma melodia nunca antes cantada, uma música
que carregava todo seu desejo e também sua revolta, uma melodia
ao mesmo tempo linda e tentadora. A trova falava de saudades, do
desejo de uma jovem que desconhecia o amor e ansiava pelo toque
de um amante. Sentia angústia de não poder ser amada. E sua
canção subiu alto, até o mais alto céu.

Zillah cantava com fervor quando percebeu o calor do sol em sua


pele. Sorriu e abriu os olhos voltados para cima, mas as nuvens
continuavam a escondê-lo. Ela percebeu que o calor não vinha do
céu, mas de suas costas. Virando-se assustada, ela buscou cobrir
sua nudez, mas, ao ver o que a aquecia, a jovem prendeu a
respiração.

Diante dela estava um ser divino. Alto, grandioso, como uma


estátua muito bem feita. Sua pele era semelhante ao cobre polido,
brilhante, metálica e refulgia como o sol, que não podia ser visto.
Seus olhos eram como duas velas acesas que iluminavam todo o
local. Tinha músculos firmes como rochas esculpidas e duas
gigantescas asas, que pareciam feitas de ouro. Seus cabelos
balançavam mesmo sem haver uma brisa sequer. Eram vermelhos,
com as pontas douradas que mais pareciam chamas.

Ele brilhava. Brilhava fortemente como o próprio sol. Ao se


aproximar dela, Zillah sentiu o calor do astro-rei diante dela em
carne e osso. Sua pele ardeu e ela foi ao chão, temendo
grandemente a figura radiante diante dela.

– Por favor, não me faça mal! – gemeu com a mão cobrindo os


olhos. Encolheu-se de medo, nem mais lembrando de que estava
nua. O terror a dominava e ela nem entendia o que sentia naquele
momento. Queria muito fugir, mas suas pernas não respondiam.

– Nada temas! Oh, doce Zillah! Teu canto subiu aos céus e
alegrou meu coração. Teu desejo inflamou o meu! E vim hoje
satisfazer teu pedido. Não te esconde de mim, mas entrega-te ao
meu toque, como sempre te entregaste ao meu calor!

Então ela entendeu, e seu rosto se iluminou. Zillah abaixou seus


braços e viu seu amado diante de si. Seu rosto era o mais belo e ele
sorria. O ser glorioso envolveu-a em seus braços e logo seus lábios
se encontraram num beijo ardente. E assim Zillah entregou-se ao
seu amado Sol Vivo, e assim ela finalmente conheceu o calor dele
dentro dela. A jovem donzela tornou-se uma mulher, como tanto
desejava. E, com ele, ela conheceu um prazer sobrenatural. Tomada
de um êxtase que mais parecia arrancá-la de seu próprio corpo, ela
adormeceu. Foi acordada horas depois pelo toque quente de seu
amado. Ao abrir os olhos, ela percebeu que o céu se tornara mais
escuro, e seu amado a beijava carinhosamente.

– Preciso ir, minha amada. Devo voltar aos céus, que é meu
lugar, mas amanhã estaremos juntos novamente.

– Qual é o teu nome, meu amor? Como devo chamá-lo? De


deus? De sol? Ou de senhor?

– Chama-me de amado, mas saiba que meu nome é Shamsiel,


pois sou o brilho do sol e ele me obedece!

– Shamsiel... – repetiu embriagando-se com o nome de seu


amado.

E todas as tardes eles se deitavam juntos. Enquanto seu pai


achava que ela apascentava as ovelhas, Zillah descobria coisas que
nem podia imaginar. Ela aprendeu tudo sobre o prazer e como se
sentir completa com um homem, mas não foi só isso que aprendeu.
Aprendeu também sobre seu amado e soube que ele controlava o
sol, aprendeu sobre as estrelas, sobre o sistema solar, sobre a Lua.
Aprendeu a se comunicar com o vento, com a água, com fogo e
com a terra. Aprendeu as palavras secretas e como desenhá-las.
Aprendeu como moldar o mundo ao seu redor a sua vontade e bel
prazer. E os anos se passaram...
Um dia, Qayin mandou chamá-la para que servisse à Senhora
da Noite. Qual foi sua surpresa quando diante de si chegou não uma
menina, mas uma mulher assustadoramente bela, de olhar sombrio
e versada em artes arcanas tão complexas que nem mesmo a sumo
sacerdotisa da Mãe compreendia.

– Quem lhe ensinou isso, criança? – perguntou o Homem


Escuro.

– O pai de meu filho, oh mestre da cidade – disse-lhe a mulher


sem temor nos olhos escuros, e, ao dizer isso, revelou o ventre já
estendido por uma gravidez.

Tomado de fúria, o Primeiro dos Assassinos ergueu-se de seu


trono furioso, os olhos rubros brilhando enfurecidos.

– Não foste separada para a Mãe? Não sabias que nenhum


homem deveria tocá-la?

– Sim! E em verdade vos digo que nenhum Filho do Homem


toucou-me, oh Senhor Escuro. Fui possuída pelas chamas do sol,
que me dominaram e de mim fizeram esposa de um deus
flamejante. E graças a isso, oh rei meu, trarei o raio solar que
iluminará vosso império! Pois o que aprendi ensinarei às filhas da
noite e elas ensinar-me-ão o que sabem, e meu filho será aquele
conhecido pela glória de seu pai celeste reluzindo em suas faces,
pois ele será o filho do Alvorecer e o arauto de uma nova era, pois
sou a Feiticeira de Khanokh, a Senhora do Arcano! Não nasci para
servir a Mãe Negra, mas ao Senhor Dourado! Pois dele serei
sempre sua concubina e escrava.

Qayin urrou furioso.

– Pecaste contra Mãe e contra mim, que lutei por ti. Serás
punida por tal perjúrio! No entanto, não pecaste sozinha. Que
aquele que a deflorou venha diante de mim e se apresente! Pagará
pelo crime junto a ti. Prendei-a e, quando nascer a cria, mataremos
os três: pai, mãe e prole.
E assim Zillah foi aprisionada, mas ficou em silêncio e sem
temor. Foi escoltada a uma cela escavada nas entranhas da terra,
onde a luz do dia não a alcançava.

A jovem feiticeira fora, portanto, privada da luz solar, o que não


aconteceu com os outros habitantes de Khanokh. Pois, daquele
momento em diante, quando o dia chegava ao fim e a noite estava
para surgir, o astro-rei se mantinha altaneiro no céu, sem se pôr.

Os habitantes ficaram surpresos, inicialmente, mas depois


aterrorizados. O sol que nunca se punha passou a ressecar o solo e
a matar as plantas. A luz incessante e constante desnorteava a
todos, pois o dia nunca tinha fim. E assim três meses se passaram,
até que, enfurecido, o Senhor da Cidade desceu aos calabouços e
confrontou sua prisioneira.

– Que bruxaria é essa? O sol mantém-se no céu desde que foste


trazida para cá. O que fizeste?

– Nada fiz, meu senhor; foste tu que o fizeste! Meu amado só


cumpre aquilo que foi ordenado. Mandaste que meu amante se
apresentasse diante de ti e ali está ele sem cessar. Mantém-se a tua
frente, assim como ordenaste. Livra-me de minhas amarras e deixa-
me ensinar às filhas da noite, ou confronta meu amado. A escolha é
tua, oh Senhor de Khanokh.

– Qual será o nome de tua prole, feiticeira? Qual será o nome do


filho do sol? – perguntou estarrecido Qayin.

– Ele sempre refletirá a glória de seu pai, por isso seu nome será
Barashemesh.

– Que assim seja! – disse Qayin – Estás livre para ir, Zillah, a
Feiticeira, e teu filho também. Escolhe tuas pupilas e transmita-nos
o que te foi ensinado.

E, ao dizer isso, nuvens encobriram o grande globo flamejante.


E, depois de um dia de três meses, finalmente anoiteceu...
Capítulo 4
Walkyria estava desesperada.

Pegou o telefone e o encarou, teria de fazer aquela ligação, mas


para ela, fazer aquilo era como se mutilar. Finalmente criou coragem
e discou o segundo número de que menos gostava. Ninguém
atendeu... Repetiu mais quatro vezes, até que finalmente conseguiu.

– Pai, você está vendo o jornal? – Walkyria irritou-se com o que


ele disse e respondeu com a voz alterada. – Sim, se eu estou te
ligando, é porque é importante! É o Jacó!

A outra pessoa falou e Walkyria bufou.

– Não, eu não faço ideia do que tem acontecido em São


Caetano! Nem me interessa saber! O que me interessa é o Jacó! –
depois de um breve silêncio, continuou: – Ele foi sequestrado! Por
uma louca, lá da clínica daquele velho idiota! – a outra voz falou
mais firme e também mais alto. Agora Walkyria gritava e chorava
junto. – Lógico que eu estou descontrolada! – lágrimas caíam de
seu rosto transfigurado de angústia. – Como você esperava que eu
estivesse? – o que a outra pessoa disse a fez contorce-se de
incomodo, mas pareceu acalmá-la. – Ok, estou indo para a sua
casa, te encontro lá! – falou pouco, mas estava com a voz mais
contida, embora ainda chorasse de quase soluçar.

Ela desligou e se virou para Cibele, que também falava ao


telefone.

– Não, mãe, não acho que Deus vai resolver nesse caso! –
revirou os olhos lacrimejados. – Mas se vai te ajudar a ficar calma,
vai lá rezar. Tendo alguma novidade, eu te aviso – e desligando o
telefone, desabafou aos prantos: – Como se ficar sem comer fosse
trazer meu irmão de volta!
As duas se abraçaram e choraram muito, sentindo-se
impotentes. O atendente do bar trouxe água para elas, única coisa
que poderia fazer. Depois de beber, Walkyria olhou para Cibele:

– O que faremos? Não sei até onde a influencia de meu pai se


extende para fora de São Caetano!

Cibele limpou as lágrimas e enxugou o nariz vermelho do choro.

– Não podemos fazer nada... – inspirou profundamente o ar e


depois falou: – Minha mãe tem razão. Só podemos rezar – fez uma
pausa, mas pareceu se lembrar de algo na sequência. Olhou para a
amiga de maneira resoluta. – Mas tem uma pessoa que pode nos
ajudar! Alguém que faria qualquer coisa pelo meu irmão: o Cadu!

O sorriso de Walkyria iluminou sua face abatida.

As ruas de São Caetano fervilhavam naquela manhã de


domingo. A maioria dos moradores da cidade trabalha na sua
metrópole vizinha, São Paulo, o que faz o trânsito na sua principal
avenida, a Goiás, transbordar durante a semana. Com o ocorrido na
Matriz, o centro da cidade literalmente travou. Repórteres e curiosos
tentavam de todas as formas ver além do cordão de isolamento
montado pela polícia na Praça da Matriz. Pela contramão da
Avenida Goiás, guiado por duas motos da polícia, um Passat preto
deslizava velozmente. Suas janelas eram tão escuras que nada lá
dentro podia ser visto pelo lado de fora, e a placa preta com letras
douradas SCS-0001, ao lado do brasão da cidade, indicavam a
procedência do carro oficial. Os habitantes da cidade sabiam de
quem era o carro. Em uma cidade dominada pela fábrica da General
Motors, era quase um insulto um homem público utilizar um carro de
uma concorrente. No entanto, o prefeito André Marcos nunca se
deixou intimidar, nem mesmo pela grande montadora, e conseguiu o
carro que queria.
Ele falava ao celular por um fone de ouvido, enquanto virava
velozmente páginas em seu tablet. Fora acordado no meio da
madrugada pelo secretário de segurança, mas ninguém diria isso se
o visse. Os cabelos claros e prateados pela idade estavam
impecavelmente penteados de lado, sem sinais de calvície. Os
olhos de um cinza chumbo pesado estavam atentos e totalmente
despertos. O terno feito à mão, impecável, preto, não tinha uma
marca, e o sapato de cromo alemão estava lustrado até ofuscar.
Quem olhasse para esse homem jamais diria que ele se arrumara
às pressas. Para André Marcos, a imperfeição era inaceitável.

E nada naquele final de manhã para começo de tarde estava


perfeito. O assassinato de um dos padres mais populares da cidade
só não havia explodido na boca de todos os jornais porque o
prefeito, com sua mão de ferro, impedira a mídia de se aproximar;
todos, exceto o maldito moleque daquele site sensacionalista. Para
piorar, chamaram o tal chefe do DHPP de São Paulo, homem sobre
o qual não tinha influência. Precisava consertar as coisas com
urgência, antes que saíssem do controle, do seu controle. Por isso
mesmo passara toda a manhã usando de toda a sua influência e
habilidade para abafar aquele crime hediondo.

O carro fez mais uma manobra proibida e entrou em mais uma


contramão. Depois de algum tempo chegou à praça da igreja, que
estava apinhada de curiosos. Centenas de repórteres enxameavam
o local, mas nenhum tinha permissão de entrar. Alguns reclamavam
de obstrução da imprensa e dos direitos, mas André Marcos não era
um democrata e detestava repórteres. Ignorou-os e atravessou o
bloqueio. Uma vez longe das câmeras, saiu do carro. O secretário
de segurança, um homem de meia idade, calvo e acima do peso, de
fortes traços nordestinos, se aproximou.

– Senhor, não havia a necessidade de vir aqui. A polícia já está


tratando de tudo.

– Fico feliz que você tenha tanta fé no sistema policial brasileiro,


meu caro Luiz. Eu, no entanto, sou um homem mais cético. Leve-me
ao delegado – sua voz era seca e contida, mas não disfarçava o
desprezo.

O prefeito caminhou em direção à igreja e parou na porta. Os


corpos das mulheres ainda estavam lá, escondidas dos repórteres
por biombos. Reconheceu uma das freiras; seu nome era Paula,
uma mulher interessante, habilidosa no sexo como poucas. Ele
mesmo a escolhera. Era uma prostituta antes de o prefeito tirá-la
das ruas. Haviam feito um acordo: ele lhe dava dinheiro e segurança
e ela acalmaria a luxúria do Padre Jair e manteria a boca calada. Se
assim o fizesse, teria tudo o que desejasse, inclusive as drogas em
que era viciada. As outras eram algumas das meninas de ruas
convenientemente adotadas pelo convento. O apetite do padre por
meninas adolescentes era quase insaciável. Dera muito trabalho
conseguir contê-lo. Ao que parecia, um fiel descobrira a verdadeira
vocação do sacerdote e dera um fim nele e em seu harém particular.
Se a notícia vazasse, teria uma repercussão catastrófica, não
somente para a igreja, mas para a imagem de sua cidade. André
Marcos fechou os olhos por uns segundos.

– Estúpido! – respirou fundo. Precisava de um culpado logo. A


reputação do padre seria destruída sem dúvida, mas não podia
deixar que a verdade viesse à tona. Precisava de uma distração, de
um motivo. Jair sem dúvida era um homem desprezível, conseguiria
usar isso. A imagem de bom homem destruída, revelando um
pedófilo lascivo e todo um esquema de corrupção no convento
enfraqueceria a influência da igreja em seus assuntos, porém ainda
precisava de um assassino. Focou seus olhos na única
sobrevivente. Os cabelos eram ruivos, como fios de cobre, muito
longos, a pele extremamente branca, e, diferentemente do ruivo
estereotipado, ela não tinha sardas. Soluçava, estava coberta com o
sobretudo cinza da polícia e seu corpo ainda estava sujo de sangue.
Era uma das freiras, quer dizer, uma das freiras de verdade. André
Marcos a conhecia. Qual era mesmo seu nome? Daniela? Gisela?
Marcela? Não lembrava. Sua esposa era melhor nisso, mas ele
sabia da freira que viera do sul, com cara de boneca e corpo de
demônio. Era assim que o padre a chamava. Ele a queria, mas
essa, André Marcos sabia, tinha vocação. Isso seria talvez um
problema. Ainda assim, era perfeito. Ela teria o motivo ideal para
cometer o crime. Só precisava olhar fortemente em seus olhos e
usar sua “influência” para convencê-la.

Rita fazia uma oração silenciosa. Estava desolada. O fedor de


carne queimada ainda dominava o local. Ouviu um soluçar contido
e, ao procurar o som, deparou-se com a freira que encontrara na
rua. A pobre moça tremia com o frio; o sobretudo era pouco para o
dia que se iniciava. Levantou-se e foi até uma mesa. Os padres,
embora em choque com a morte de uma de suas figuras mais
proeminentes, estavam sempre solícitos. Prepararam um café para
os policiais que investigavam a cena e o colocaram em uma garrafa
térmica. Rita se aproximou da garrafa, pegou um copo plástico e
encheu-o. Levou até a moça, que chorava.

– Tome, beba um pouco. Vai te manter aquecida – a jovem freira


olhou para a policial. Seus olhos tinham uma coloração verde, com
matizes de castanhos. Eram grandes com longos cílios, que lhe
davam um ar ainda mais infantil. Seu nariz estava vermelho de tanto
chorar e era largo, reto e delicado. O rosto triangular e as
sobrancelhas arqueadas em união com a pele de marfim davam-lhe
um ar de boneca de porcelana. Rita impressionou-se com o ar
angelical da garota. Olhar para ela era como olhar para um anjo,
pensou.

– Obrigada – ela falou depois de dar um gole longo no café, a


voz quase um murmúrio, ainda carregada de choro.

– Qual é seu nome?

– Gabriela. Irmã Gabriela – a garota tinha um forte sotaque


sulista. Rita desconfiou de que a menina fosse gaúcha.

– Você consegue me explicar o porquê disso tudo, irmã?


– Você não tem autorização para interrogar a testemunha,
policial – a voz trovejante de Carlos retumbou pela nave, e a garota
pareceu encolher-se ainda mais. Rita se levantou encarando
novamente o delegado de igual para igual. Estava feliz porque ele
estivera por algumas horas ocupado catalogando cada uma das
evidências e cuidando dos corpos desmembrados, mas, ao que tudo
indicava, não havia se esquecido da policial.

– Você também não tem a menor autoridade aqui, delegado –


falou encostando o dedo no peito largo de Carlos e pontuando cada
palavra.

– Você bebeu, menininha? – Carlos Eduardo perguntou, frisando


o termo pejorativo. – Sou da homicídios. Esse caso é minha
jurisdição. Vai parar motoboy na rua, ou playboy bêbado e não me
atrapalhe. A única pessoa que tem jurisdição aqui, garota, sou eu –
ele respondeu com dureza.

– Na verdade, nenhum dos dois têm autoridade aqui – a voz fria


e penetrante ecoou no ambiente, calando a todos, e nesse silêncio
absoluto o prefeito André Marcos adentrou na nave e dirigiu-se
diretamente a Carlos. – Suponho que você deva ser o delegado
paulistano Carlos Eduardo, e a senhorita a policial Rita Silva? –
embora usasse uma pergunta, o prefeito afirmava sem dúvida na
voz. – Creio que temos um problema de hierarquia aqui. Ambos
estão lutando por um caso sem saber a quem compete, de fato.
Para que não tenhamos mais problema ou desgaste, vou resolver a
questão dos senhores. Ou trabalham juntos ou ambos estão fora do
caso.

A veia da testa de Carlos Eduardo, que só sumira depois de uns


dez minutos da partida de Vinnie, de repente saltou de forma tão
furiosa que parecia ter vida própria. O delegado, que havia voltado à
sua cor habitual, assumiu um tom de vermelho tomate e seus olhos
brilharam de maneira assassina. Pareceu crescer de tamanho e
cruzou o espaço de quase três metros que o afastava de André
Marcos com duas passadas.
– O senhor acha mesmo que porque é prefeito desta cidade vai
simplesmente me tirar do caso? –vociferou. – Vossa excelência por
acaso enlouqueceu? Sua autoridade é administrativa e representa o
município, excelência! – falou com o indicador erguido e furioso. O
prefeito continuava encarando-o impassível. – Sou da Polícia Civil.
Estou acima de sua jurisdição e não respondo ao senhor, mas ao
governador! – Carlos falava com silvos furiosos, sua voz carregada
de ódio e incredulidade.

O prefeito o encarou com olhos frios. – Sim, policial, sem dúvida


alguma o senhor tem sua autoridade, mas está enganado, e
permita-me que lhe corrija, pois de fato o senhor responde, na
verdade, ao delegado-geral, que por sua vez responde ao
governador. – Sua voz era quase um sussurro, mas não escondia o
tom de ameaça.

– Creio, no entanto, que aqui o importante é: o senhor está


tentando usar de burocracia para me mostrar quem é que manda,
não é mesmo? – sorriu para o delegado, mas era um riso livre de
alegria e cheio de maldade.

– Bom, deixe-me lhe explicar como as coisas funcionam por


aqui. Você verá que é bem simples.

O prefeito falou com um ar educativo. Ao redor, todos


presenciavam o embate em silêncio, os policiais da cidade
claramente acuados. Sua voz agora era quase inaudível, mas o
silêncio do local fazia seus sussurros se amplificarem.

– Pegue tudo o que você conhece sobre legislação, toda essa


burocracia complicada e demorada... – ele pegou calmamente um
bloco de notas e começou a traçar a cadeia de comando acima de
Carlos, todos os nomes de todos os seus superiores até finalmente
chegar ao ministro da justiça e ao presidente.

– Percebe? Pois bem! Pegue toda essa complicação e ordens e


coloque isso em São Caetano – dobrou o papel com os superiores
de Carlos e em outro papel escreveu “São Caetano”. Colocou o
papel dos superiores dentro do de São Caetano, dobrando-o
calmamente um sobre o outro, até que só o papel com o nome da
cidade ficasse visível.

– Finalmente, coloque tudo isso no seu devido lugar! – E, ao


dizer isso, fechou os dedos, fazendo o papel desaparecer em sua
mão.

– Está é minha cidade! Meu reino, se preferir. A lei e a ordem se


submetem a mim! – agora, sua voz, ainda baixa, era cortante e seus
olhos cinzentos pareciam duas flechas apontadas para o delegado.

– Com uma ligação, convocarei o próprio ministro a escolher


alguém mais habilitado, talvez o delegado Brandão, que o senhor
tanto detesta, para mostrar a todos que o senhor vaza informações
àquele repórter de quinta categoria.

A perplexidade de Carlos era totalmente visível. – Eu jamais


vazaria informação – balbuciou espantado.

– Até provar isso, delegado, o caso estará fora de suas mãos, e


sua brilhante carreira, destruída! Tudo isso com um simples
telefonema meu!

– Ou eu posso ligar para o delegado – André Marcos assumiu


um tom de voz tranquilo, quase informal e displicente. – E informá-lo
de que o senhor solicitou pessoalmente pela ajuda da policial Rita,
por sua eficiente capacidade e prontidão! Em outras palavras,
delegado, sua autoridade termina onde a minha começa! Não se
esqueça disso! – sorriu. – A partir de agora, a policial Rita
acompanhará o senhor, como uma ajuda conjunta entre polícias
militar e civil e cooperação entre as cidades. Será muito bom para o
moral de meus policiais, que não terão sua credibilidade manchada
pela mídia, e também será bom para minha campanha de reeleição,
assim todos saem ganhando – Carlos Eduardo o encarava
boquiaberto. O prefeito sorriu sem alegria e deu as costas ao
delegado, voltando-se para Rita.
– Quero ser colocado a par de tudo, entendeu Rita? – falava com
uma autoridade quase sobrenatural e cheia de um carisma inegável.
A policial olhava para ele com uma mistura de assombro e fascínio.

A Cavalgada das Valquírias começou a tocar, vindo do bolso do


prefeito, ele pareceu surpreso quando o telefone começou a tocas,
mas o ignorou e continuou falando.

– Você deve se esforçar ao máximo para prender esse verme, fui


claro?

– Sim, senhor! Farei tudo o que estiver ao meu alcance! – assim


como a maioria dos moradores da cidade, Rita nutria uma profunda
admiração por André Marcos, não à toa. O prefeito estava no final
de seu primeiro mandado e era uma verdadeira inspiração a
qualquer cidadão orgulhoso de sua cidade. Assumira o cargo como
vice-prefeito no penúltimo ano de candidatura de seu antecessor.
Um homem que tinha sua campanha focada no combate à
corrupção, fora flagrado como o cabeça de um esquema que
estendia seus tentáculos por cada órgão público da cidade. Para
evitar um impeachment, renunciou, e assim o quase desconhecido
André Marcos, livre de qualquer acusação, assumiu o poder. Em um
ano e meio de governo, parecia ter feito o impossível: combatera a
corrupção intensamente! O evento ficara conhecido como
“Operação Caça às Bruxas”.

O então prefeito interino usara de toda a sua força e de certo


autoritarismo para desbancar os esquemas. Ganhara o apelido de
Inquisidor, por sua implacabilidade, porém André Marcos poderia ter
passado despercebido pelo poder se, ao final de seu mandato, não
tivesse conseguido lidar com um evento derradeiro: o sequestro de
seu filho caçula.

Todos sabiam que o sequestro havia sido uma retaliação dos


corruptos derrubados na Operação Caça às Bruxas. Dois juízes e
alguns repórteres mostraram o poder de verdadeiros cartéis na
cidade e foram assassinados por denunciar e tentar prender os
criminosos. O sequestro do pequeno Adolfo, então com 8 anos,
deveria ter arruinado André Marcos, assim como devastou sua
mulher, Madalena, socialite de prestígio, de família abastada e que
vivia sempre ligada a obras assistenciais. Mas não foi assim que
aconteceu.

O prefeito não cedeu aos sequestradores. Em vez disso,


colaborou integralmente com a força policial e, numa brilhante
operação do departamento antissequestro, o garoto foi encontrado,
e os bandidos executados; segundo algumas testemunhas, a
sangue frio.

Grato, o prefeito doou de sua fortuna pessoal o equivalente a


dez vezes o valor do resgate ao departamento de polícia, assim
como aumentou o salário de seus agentes por ter reduzido custos
públicos desnecessários. Nem precisou de campanha para se
reeleger.

Quando lançou sua candidatura, ganhou em primeiro turno.


Agora como prefeito eleito pelo povo, fez de novo o impossível.
Governando com mão de ferro, mudou a cidade. O policiamento
cerrado reduziu a criminalidade a índices quase nulos e, com uma
administração enxuta, encheu os cofres públicos, devolvendo à
cidade a primeira posição no Índice de Desenvolvimento Humano
municipal do país.

Por outro lado, a criminalidade aumentou drasticamente nas


áreas fronteiriças de São Caetano, principalmente o assassinato.
Bandidos da cidade eram com frequência encontrados mortos fora
de seus limites.

Como assunto ainda mais polêmico, vazavam boatos de que


uma estranha sociedade secreta dominava a cidade. Seus símbolos
podiam ser vistos por toda parte e dizia-se que o prefeito era um de
seus membros. Mas diziam que ele pertencia a outra, muito mais
secreta e bem mais sombria...
Para uma mulher como Rita, isso não era um problema. Policial
por opção, sempre considerara o Estado “frouxo”, especialmente
com bandidos. Para ela, os bandidos andavam à solta enquanto os
cidadãos viviam em cativeiro dentro de casa. Detestava a
criminalidade e a considerava um câncer. Ver o prefeito agir com
autoritarismo ao mesmo tempo feroz e eficiente era uma alegria. “Se
todos fossem assim, nosso país seria bem melhor”. E era com um
prazer malicioso que via a impotência do delegado Carlos Eduardo
em bater de frente com a muralha que era André Marcos e, quando
o Prefeito se dirigira a ela, seu orgulho quase não coubera dentro de
si.

– Não irei decepcioná-lo, senhor! Pegaremos o maldito.

– É o mínimo que espero, delegada Rita.

– Não sou delegada, senhor, somente soldado – corrigiu a


policial.

– Era soldado. Estou promovendo-a a delegada.

Carlos deixou o queixo cair, sem acreditar no que ouvia. Ele


simplesmente passava por cima de todos os procedimentos como
uma criança mimada e todo mundo olhava para ele com admiração?
– Cadê a porcaria do Vinnie quando preciso dele? Esta aí uma
matéria real. O cara é um ditador descarado! – pensou
inconformado.

Estava revoltado, sentindo-se humilhado, mas nada disso


importava. Se quisesse aproveitar o deslize do Herege de agir tão
claramente, precisava engolir seu orgulho e aceitar as condições do
ditador de São Caetano, e nada era mais importante para Carlos
que o Herege, nem mesmo seu orgulho. Resignado, voltou-se para
Rita.

– Você, Rita,, vem aqui. Vá até aquele cara gordo ali. O nome
dele é Lucca. Passe para ele todos os seus contatos. A partir de
agora você só sai do meu lado quando eu mandar, entendeu?
Ela sorriu. – Entendido, senhor – e marchou em direção do
delegado gordo. Carlos, por sua vez, foi até o prefeito, que parecia
conversar com a freira. O delegado respirou fundo, colocando seu
orgulho em uma região que não fosse afetá-lo e falou:

– Ninguém neste país ou no mundo conhece esse cara tão bem


como eu, prefeito. Você pode até conseguir me tirar do caso, mas
não conseguirá solucionar esse crime e os demais. No fim, tudo
voltará a sua amada cidade, porque é na sua igreja, no marco zero
da sua cidade, que o pior crime ocorreu – e então, engolindo todo
seu orgulho que descia amargo por sua garganta, o delegado falou:
– Deixe-me fazer o meu trabalho, prefeito, e o senhor terá o gosto
de ver esse maldito atrás das grades! E poderá dizer que a justiça
foi feita graças à ajuda de homens da sua cidade – olhou nos olhos
do prefeito com um ar de dolorosa súplica. André Marcos encarava
o delegado, depois passou os olhos novamente na freira, que
continuava olhando a xícara de café. A música continuava insistente
em seu celular. André Marcos deu as costas ao delegado e à freira e
atendeu o telefone.

Nem bem tinha iniciado a ligação, a outra pessoa já falava, mas


André a cortou:

– Não, não estou, e acredito que deva ser algo mais importante
do que uma noticiazinha de jornal para você decidir atrapalhar o seu
pai com suas futilidades.

A outra pessoa no telefone falou irritada. André Marcos via a


parede que eram as costas do delegado, impedindo-o de ter contato
visual com a freira. Se conseguisse colocar-se na posição certa,
conseguiria seu objetivo, mas a pessoa ao telefone estava
desconcentrando-o.

– O que tem ele? Eu tenho mais o que fazer aqui! Você faz ideia
do que está acontecendo aqui em São Caetano? Acha que tenho
tempo para as suas briguinhas com seu namoradinho?
O descontrole da outra parte era grande e prendeu a atenção do
prefeito, que finalmente deixou de lado o delegado, que perecia
acalmar a freira.

– O que aconteceu com ele, afinal?

André Marcos estacou. Sua mente começou a raciocinar


freneticamente. Ficara realmente preocupado com as informações.
Ligou os pontos e entendeu ao que se referia a ligação. Fechou os
olhos e exalou o ar profundamente. Quando falou, estava com a voz
severa.

– Agora tome tento. Parece uma louca descontrolada! – sua voz


ecoou pela nave. Alguns, inclusive Carlos, olharam para ele. A
pessoa do outro lado gritava. Dessa vez André Marcos falou
calmamente:

– Walkyria, eu resolverei isso, está bem? Mas você sabe o meu


preço: Vá até minha casa. Encontro você lá e já terei novidades –
desligou o telefone e olhou mais uma vez para a freira. Não seria
dessa vez que conseguiria resolver o assunto com ela. Tinha algo
mais importante agora para fazer. Um escândalo sexual em sua
cidade não era nada comparado a isso.

Discou um número em seu telefone ao sair da igreja e, enquanto


dirigia-se a seu carro, a outra pessoa antedeu.

– William, o que raios aconteceu aí? Onde está a mulher?

– Como você já está a par disso? – William perguntou surpreso.


André Marcos respondeu:

– Está em todos os telejornais, William! – o prefeito rosnou e


William praguejou.

– Se não fosse esse estúpido delegado com sede de fama,


ninguém estaria a par disso, mas não se preocupe, porque já estou
resolvendo isso. Não será uma conferência de Imprensa que
atrapalhará nossos planos.

– Resolvendo? – a incredulidade tomou conta da voz de André


Marcos. – Como pode deixá-la escapar e com Jacó como refém? E
ainda ter a mídia em cima... como isso pode ser próximo de uma
resolução? Falei que queria discrição, e te disse que era perigoso
demais aproximar os dois! Mas você nunca faz o que eu digo, não é
mesmo? E quem diabos é esse delegado do inferno?

– Não se preocupe com isso, André! Já estou cuidando do


delegado estrelinha. Ele é facilmente manipulável. Temos assuntos
mais urgentes: o Zumbi esteve aqui!

André Marcos parou em silêncio, depois meneou a cabeça em


negativa.

– Isso é impossível! Nós temos uma trégua. Eles não ousariam


tanto – falou incrédulo. Do outro lado da linha, William suspirou.

– André, por que eu mentiria? Estou lhe dizendo que o Zumbi


esteve aqui. Ele invadiu minha clínica e perseguiu os fugitivos. Isso
só saiu do meu controle, porque as criaturas intervieram.

– Mas isso seria suicídio! O que os colocaria numa rota de


colisão conosco? – o prefeito indagou confuso e chocado.

– “O que” não, meu amigo – William falou misterioso. – Quem...


– concluiu. André Marcos ficou em silêncio. – Seria possível? –
indagou-se mentalmente e, reunindo seus pensamentos, perguntou:

– Você acha... então... que eles?

– Não acho, André... – William sentenciou por fim. – Eu sei!


Sempre te disse que sabia!

Embora preocupado, William estava triunfante.


Dentro da Igreja, foi a vez do telefone de Carlos tocar. A menina,
que agora Carlos sabia se chamava Gabriela, estava mais calma e
aos cuidados de Lucca e da antiga policial, agora delegada Rita.
Carlos atendeu o aparelho.

– Cadu?! é a Wal!

– Estou ocupado, Wal – o delegado falou com rispidez. – O que


houve?

– Você sabe do Jack? – ela perguntou, fingindo não notar a


dureza na voz do amigo, mas o delegado não fez questão de
disfarçar. – Sei que ele está bem chateado com a conversa de
vocês dois – falou em tom acusatório.

– Cadu, isso não é importante agora. Aconteceu algo terrível! –


respondeu e contou tudo o que acontecera. Carlos pareceu perder a
cor. Deu alguns passos à frente e apoiou-se na coluna da igreja,
permanecendo assim por alguns segundos. Recompôs-se e falou
metodicamente, ocultando qualquer emoção.

– Você fez bem em me ligar. Quero que se acalme, está bem? –


falou no tom mais sereno que podia. – Vou imediatamente para a
clínica. Descobrirei quem é o responsável do caso do Jack, fique
tranquila. Nós o encontraremos. Falarei com meus amigos da
antissequestro. Fica calma. Acharemos o Jack!

– Ok, Cadu. Falei com meu pai também. Ele vai ver o que pode
fazer – a voz de Walkyria era de choro, mas parecia um pouco mais
calma.

Carlos revirou os olhos. Um dia lhe contaria que agora entendia


por que nunca apresentava o pai para ninguém. Se tivesse um pai
como André Marcos, também evitaria. – Isso é ótimo! Fica calma.
Vou ver o que posso fazer. Beijão – desligou e virou-se para Tucca.

– Tucca, pega a irmã Gabriela e leve-a para um lugar seguro.


Quero saber de tudo. Você e a delegada Rita podem interrogá-la.
Encontro vocês no escritório, em três horas.

– Você não vai? – o delegado mais velho perguntou como se o


outro tivesse acabado de dizer que ia assistir a uma apresentação
de Ballet. – Mais tarde... Há algo urgente que preciso averiguar –
falou já se afastando. – Mais urgente que o Herege? – agora parecia
a Tucca que o delegado tinha expressado seu desejo de ser a
Primeira Bailarina. Carlos parecia se dar conta dos pensamentos do
amigo e respondeu evasivamente: – Falamos depois, Tucca.

Saiu da igreja ignorando os repórteres e entrou em seu Maverick


azul cobalto com listras brancas. Sem olhar para trás, seguiu para a
clínica no Butantã.

Quase meia depois, chegou a seu destino, deparando-se com a


imponente construção onde o amigo trabalhava.

A clínica era magnífica, de arquitetura moderna, com cinco


andares. Sua forma lembrava a de vários cubos empilhados de
forma irregular, sendo cada cubo um andar diferente. Era uma
verdadeira prisão spa.

Em sua sala, William observava o espelho. Seus olhos cinzentos


e severos estavam vermelhos e cansados. Respirou fundo,
amaldiçoando sua idade avançada, que o tornava tão abatido e
fraco. Estava acordado havia pouco mais de 30 horas, e seu corpo
já pedia o merecido descanso. Há poucos anos, ficava uma semana
inteira sem dormir, somente meditando por algumas horas. Agora,
mesmo a meditação dava espaço a ocasionais cochilos. William
odiava a decrepitude da vida.

Respirou fundo e atendeu o telefone interno que tocava,


autorizando a entrada do delegado Carlos Eduardo.

– Mais um delegado – suspirou. Mais cedo tivera um verdadeiro


incômodo com o delegado Brandão. A fuga da paciente
Walkyria/Raquel levando Jack e o outro invasor fora inesperada,
mas pior ainda era a necessidade do delegado por holofotes. Nem
bem reunira uma força-tarefa para prender a mulher, o delegado já
trouxera a mídia e convocara uma coletiva. Agora, a foto de
Walkyria estava em todos os jornais e seu anonimato, perdido.

O desejo de William era de arrancar com as próprias mãos o


coração egocêntrico daquele policial imbecil, mas era impossível. A
hora da vingança chegaria. Inicialmente, seu objetivo era a
contenção de danos. Olhou mais uma vez no monitor a imagem do
invasor, que ele chamava somente de “O Preto”, tentando agarrar o
carro. Sorriu com inegável orgulho ao reparar que quem atacara o
homem com as mãos não fora Raquel, mas Jacó. Depois pausou o
vídeo e encarou a imagem do inimigo. Aquilo seria uma batalha, ele
sabia, e a polícia não tinha ideia do que realmente estava
acontecendo, exatamente como ele queria.

Despenteou um pouco o cabelo e aproveitou a aparência


cansada. Tivera tempo para fazer a barba e ficar apresentável, mas
pensou que a barba por fazer e os olhos vermelhos transmitiriam o
ar de fraqueza que desejava. Inspirou profundamente e saiu da sala
ereto, determinado como sempre.

O delegado entrou na clínica e foi logo recebido por William.


Notou imediatamente como o mentor de seu amigo parecia frágil e
cansado. Subiu as escadas com sua autoridade habitual, quase
numa marcha, e William percebeu que diante dele estava um ser
humano formidável. Já conhecia o delegado, mas nunca precisara
avaliá-lo como um adversário ou uma peça a ser usada. Precisaria
de toda a sua habilidade para ser capaz de manipulá-lo. Estendeu a
mão e colocou em sua face um sorriso abatido. Quando Carlos
estendeu a mão para cumprimentá-lo, William colocou a outra mão
sobre ela, num movimento paternal.

– Olá. Carlos. Fico tão aliviado em vê-lo. É uma visita oficial?

– Semioficial, eu diria, Dr. William. O caso não é meu,


infelizmente.
– Espero sinceramente então que sua visita sempre se
mantenha extraoficial – sorriu com tristeza. – O delegado Brandão
foi um pouco expansivo em sua atuação e temo pela segurança de
Jacó.

– Brandão é o responsável pelo caso? – a voz de Carlos


Eduardo era azeda, e William fez uma nota mental sobre a antipatia
do delegado.

– Infelizmente – sorriu com tristeza fingida. Agora que minha


paciente está com o rosto em todos os noticiários, temo pela vida de
Jacó. Tentei informar o quanto essa paciente era perigosa, mas o
delegado Brandão simplesmente me afastou e disse que eu já havia
atrapalhado o suficiente – deu de ombros. – Como posso ajudá-lo,
Carlos?

– Sim. Pode me fornecer todas a informações do ocorrido.

– Mas é claro! O que puder fazer para ajudá-lo. O outro policial


não mostrou boa vontade – alfinetou e viu com satisfação o
incômodo do delegado.

– Sabe, Carlos, não gosto de admitir diante do rapaz, mas tenho


um zelo especial por Jacó – falou com a voz entristecida e sincera.
Pelo menos nisso estava sendo verdadeiro.

Carlos condoeu-se do homem. A afeição pelo amigo era visível.

– Gostaria de ter acesso a todos os vídeos de segurança, por


favor.

– Mas é claro, Carlos. Por aqui.

William o conduziu até uma pequena sala nos fundos. Câmeras


mostravam todas as celas dos pacientes, além da entrada e outros
ambientes. Henrique, o segurança, estava sentado na cadeira,
tomando café preto num copo de vidro. O aroma da bebida fez
Carlos salivar. Lembrou-se de que não havia tomado café da manhã
e percebeu que estava faminto.

– Se não for pedir muito, gostaria de um pouco de café.

– Claro, meu amigo. Vou pedir para a copeira trazer para você;
preciso sair em breve. Posso ajudar de mais alguma forma?

– Gostaria de ver o vídeo da garagem. Não vejo nenhuma


imagem da câmera de lá.

William assumiu um ar entristecido:

– Infelizmente não tenho vídeos na garagem...

– Mas vi pelo menos duas câmeras lá – Carlos comentou


confuso.

– Falsas – admitiu William. – São somente para fingir. Na


verdade, quase metade das minhas câmeras são só decoração,
sinto muito – desculpou-se observando a frustação nos olhos do
delegado.

Carlos praguejou, mas entendia o doutor. Isso era bastante


comum. Lamentou a situação, porque aquela câmera em particular
serviria muito bem. Henrique, o segurança, moveu-se
desconfortavelmente em sua poltrona.

– Bom, vou analisar os vídeos que tenho então, se me dá licença


– falou por fim.

– Claro. Se precisar de mim, Carlos, aqui está meu celular. Não


hesite em me chamar. Rezo para que consiga achar Jacó – William
sabia que já tinha a confiança e o afeto do delegado, portanto
resolveu atacar. Colocou certa hesitação na voz e falou:

– E delegado...
Carlos olhou para o psiquiatra. William falou com a voz
demonstrando certa conspiração.

– Sei que tem seu foco, mas sou conhecido pela privacidade de
meus pacientes e familiares. Muitas informações já caíram na mídia.
Ficaria extremamente agradecido que fosse o mais sigiloso
possível. Posso contar com o senhor para trazer minha paciente de
volta, junto de meu melhor psiquiatra?

Carlos sorriu. – Claro, doutor, fique tranquilo; serei discreto.

– Obrigado, delegado, se me dá licença – William se afastou.

Carlos assistiu à entrevista de Jacó com Raquel em velocidade


acelerada, depois parou. Arregalou os olhos, chocado, ao ver
entrando na sala da fugitiva o Vinnie.

Carlos parou a cena e ele mesmo ficou congelado. Incrédulo,


analisou a cena silenciosa, mas podia ver o amigo gesticulando,
como sempre fazia, com o sorriso infantil e franco, visivelmente
tratando a psicopata como sua amiga de infância. Quase podia ouvi-
lo dizer “Meu nome é Vinicius, mas pode me chamar de Vinnie.
Prazer, madame Van Helsing!”. Era assim que ele tinha chamado a
mulher? Não tinha certeza. Apertava fortemente o porta-canetas de
acrílico.

A “madame” o agarrou sem nem pestanejar. Carlos reparou em


seus movimentos precisos. Ela sabia o que estava fazendo. Era
perigosa e temeu pelo repórter, mas lembrou-se de Jack. A
psicopata era boa, mas o amigo já teria escapado dessa
imobilização pelo menos de seis maneiras diferentes. Acelerou
novamente a cena e viu a mulher desarmando o segurança. Estava
tão entretido que nem viu Henrique entrar na sala com o café. Viu
Jack se entregando como refém. Ficou rígido. – Idiota cavalheiresco
– praguejou. Apertou ainda mais o porta-canetas.

– Você sempre acredita que uma conversa pode mudar as


pessoas, não é, seu trouxa? Sempre acredita que as pessoas têm o
melhor para dar se forem incentivadas! Sempre com sua mania de
herói, não é mesmo?

Um som de algo partido e uma dor lancinante na mão trouxera-o


de volta à realidade. Viu o segurança encarando-o sério, os cacos
do porta-canetas espalhados pela mesa. Deu um sorriso desajeitado
ao segurança.

– Desculpe. Compro um novo.

Henrique entregou o café e ficou em silêncio novamente. Carlos


voltou sua atenção para a fita.

– O Senhor e o doutor se conhecem faz tempo? – o segurança


falou com sua voz severa.

Carlos concordou com a cabeça sem tirar os olhos da tela. Viu


que Jacó e a mulher iam sozinhos. Vinnie estava no chão
choramingando.

– O doutor sempre acreditou em mim... – Henrique falou mais


uma vez. A voz grave e severa soava distante, porém havia nela
uma determinação que o delegado não reparou, tão entretido que
estava com o vídeo. Voltou a confirmar com a cabeça, vendo o
amigo psiquiatra e a paciente descerem as escadas.

– Ele dava aula de defesa pessoal na minha comunidade –


Henrique continuava o papo, e Carlos Eduardo se perguntava por
que. Mesmo sem olhar para o segurança, falou:

– Sim, sim. Jacó acha que a arte marcial pode tirar as crianças
do tráfico.

– Não só crianças, mas me tirou também – ele falou, finalmente


conseguindo a atenção do delegado. Carlos pausou o vídeo e olhou
para o enorme segurança, forte e gordo, com pele de azeviche.
– Já ouviu falar do Fio-Dental, delegado? – o segurança
perguntou.

– Sim, ouvi falar. Era um traficante que estava começando na


região, conhecido pela brutalidade – Carlos falou desconfiado

– Era eu – admitiu o segurança.

Carlos levantou uma sobrancelha e passou novamente os olhos


pelo homem enorme. – Fio-Dental?

– Sim, era uma piada – Henrique sorriu, mostrando os dentes


brancos. – Eu era chamado assim porque sou branquelo e magrelo,
como um fio dental... – disse irônico. – Seja como for, passei a
participar das aulas. Queria aprender a quebrar os caras melhor.
Jacó sabia, mas me aceitou mesmo assim – Carlos observava
calado o homem.

– Por três meses ele conversou comigo, me ensinou a controlar


a raiva, me mostrou que tinha uma vida fora do crime. Quando
pensei em largar o movimento, ele me colocou aqui, falou para o Dr.
William que assumiria total responsabilidade por meus atos.

Carlos voltou os olhos para a tela. Lá estava seu amigo, calmo,


mesmo com uma psicótica fazendo-o de refém. “Sempre o melhor
das pessoas”.

– Desde então – continuou Henrique – Nunca o decepcionei.


Não fiz nada que pudesse me incriminar. Não peguei uma caneta
que não fosse minha e sou um funcionário exemplar. Faço tudo o
que me mandam, e não sou de desobedecer – estendeu a mão
segurando um DVD.

– Até agora... – Carlos olhou para o DVD e então para o


segurança.

– Os filmes do estacionamento, das câmeras que não existem.


Gostaria que o senhor visse. Espero que encontre o bom doutor.
Devo-lhe muito mais que a minha vida – e, sem dizer mais nada,
deu as costas e saiu da sala.

Carlos encarou o DVD dado a ele e sorriu com o canto da boca.

– Parece que estava certo, amigo, sobre esse aí – olhou de novo


para o filme e deu play. A veia da fúria saltou de novo. Dilatou as
narinas ao ver o repórter indo em direção às escadas.

– Imbecil! – socou a mesa e saiu apressado. Ao entrar no carro,


inseriu o DVD no aparelho, único anacronismo que permitira em sua
máquina restaurada, e começou a assistir ao DVD. Enquanto saía,
telefonou:

– Tucca, como anda? – dividia sua atenção entre o vídeo, a rua


e a conversa.

– Uma verdadeira loucura, Cadu. O IML está estudando o padre


nesse momento, e sua policial não para de encher meu saco; quer
mais informações sobre o caso.

– Manda a pentelha ler o arquivo inteiro do Vinnie. Isso vai


mantê-la ocupada por hoje. Amanhã a gente inventa alguma
papelada para ela preencher e assim...

– Carlos freou o carro, os olhos vidrados no vídeo que se


desenrolava na pequena tela de LED.

– Assim...? – a voz de Tucca no telefone quase não era ouvida


pelo delegado, que incrédulo e horrorizado olhava para o monitor
sem desviar ou piscar.

– Carlão? Está tudo bem? – Tucca voltou a indagar.

Carlos tentou falar, mas as palavras pareciam se enrolar na


garganta. Sentia um suor frio descer pelo pescoço. Estaria ficando
louco?
– Tucca, você pode dar conta sozinho por hoje? Tenho coisas
que preciso fazer que não podem esperar.

Tucca ficou em silêncio. Percebeu que seu chefe estava


assustado, o que era absolutamente incomum. – Está tudo bem?

– Eu realmente não sei, Tucca, mas preciso resolver algo antes


de voltar... Preciso... Preciso ver alguém. Olha Tucca, vou ter que te
pedir ajuda com uma coisa chata. Preciso me intrometer na
investigação do Brandão.

Tucca permaneceu em silêncio por algum tempo e depois falou


com sua voz paternal e cheia de zelo:

– Faça o que tem que fazer, Carlos. Seguro as pontas por aqui –
depois falou com certa tristeza: – Você e o Brandão deveriam
trabalhar juntos e não um contra o outro.

– Não tenho culpa se você escolheu a mim e não a ele para te


suceder, Tucca. Ele precisa superar isso – o delegado desligou o
telefone, voltou o vídeo e lhe assistiu mais quatro vezes antes de
ligar o carro de novo. Num cavalo-de-pau, definiu seu novo destino.
Esse não era um caso que poderia resolver sozinho... Precisava de
ajuda especializada, e ele sabia exatamente onde encontrá-la.

O Monumento à Independência do Brasil está localizado no


exato local onde, em 1822, às margens do rio Ipiranga, Dom Pedro
deu seu famoso brado tornando o país independente de Portugal.
Cem anos depois, o monumento era erguido em honra à pátria.
Esculpido em granito e bronze, o monumento foi inspirado no
famoso quadro do pintor Pedro Américo “Independência ou Morte”.
Suas 131 esculturas de bronze contam episódios relacionados ao
processo de independência, como a Inconfidência Mineira, de 1789,
e a Revolução Pernambucana, de 1817. À frente, coroando o
monumento sobre doze degraus, está o “Altar da Pátria”, com uma
chama que nunca se apaga, simbolizando o amor incondicional ao
Brasil. Acima de tudo, uma biga romana comandada pela República,
a Marcha Triunfal da Nação Brasileira, serve de abrigo à cripta do
primeiro imperador do Brasil. Seu interior é revestido de granito
escuro, com um leve tom esverdeado, e possui dois enormes
sarcófagos da mesma pedra, o da esquerda guardando os restos do
Imperador, e o da direita, de sua primeira esposa. Os restos da
segunda esposa encontram-se também enterrados no local.

Esses, no entanto, não eram os únicos mortos no local.


Caminhando sofregamente, a figura vestida de branco e coberta de
sangue se aproximava do túmulo do imperador. Tocando no dragão
que servia de base para o caixão, abriu uma porta secreta, entre os
dois sarcófagos, que levava ainda mais às profundezas da terra. A
pele negra quase desapareceu na escuridão, e ele caminhava sem
tochas ou chamas, seguindo por um estreito e frio corredor,
ignorando os ossos quebrados. O homem continuou sua marcha
resoluta sem olhar para trás, até entrar num longo e amplo salão
subterrâneo todo feito de granito negro como a cripta. A luz do sol
entrava timidamente por uma pequena passagem no teto, quase
invisível, dando um ar ainda mais lúgubre ao salão.

Logo abaixo da luz, um grande trono de ébano com espaldar de


veludo negro esculpido na forma de ossos estava sobre um patamar
de nove degraus. Ninguém ocupava o trono, porém, quatro degraus
abaixo, uma cadeira menor e menos imponente abrigava uma figura
saída do passado. Os cabelos bem aparados, encaracolados e
grossos combinavam com o longo e vistoso bigode e costeletas.
Seus olhos eram castanhos escuros, e o nariz curvado e longo era
típico de alguém de origem mediterrânea. Vestia-se com roupas da
era vitoriana: calças brancas, uma jaqueta azul-escuro e todo o
bordado na forma de folhas de árvores douradas, ombreiras
militares, sapatos envernizados negros, por sobre o paletó um
manto de veludo verde-bandeira preso ao casaco por um pesado
medalhão de ouro e pérolas. Não era alto, nem forte, mas tinha um
ar régio. Olhou para o gigante alquebrado a sua frente com um
misto de repugnância e desprezo.
– Se bem me lembro, eu disse que queria o sangue de nossa
vítima, não o teu, Dom Francisco – a voz arrogante e aguda era
carregada de sotaque lusitano.

– Pouco me importa o que você queria que eu fizesse


Magalhães. Não obedeço às suas ordens. Não lhe obedecia quando
era humano, muito menos o farei agora! Minha servidão é ao
Afogado e a ninguém mais! Então cale-se! – a voz do negro não
mostrava sinal de dor. Ao lado do português, uma jovem vestida
somente com um leve vestido de seda tremia de frio segurando uma
bandeja dourada, com uma taça também de ouro. Caminhou em
direção do homem vestido de branco e lhe entregou a taça. Ele a
pegou e sorveu o líquido de uma só vez em grandes goles. O líquido
rubro e espesso desceu por seu queixo. Ao terminar, jogou a taça e
agarrou a jovem pelo pescoço.

– Mais, garota! Ou eu pego o seu mesmo! – a jovem saiu às


pressas. Enquanto ela não voltava, o enorme negro colocou
novamente os ossos da perna no lugar e aos poucos o ferimento
começou a cicatrizar. – E onde está? – falou o homem sentado no
trono, visivelmente irritado com o desrespeito do outro. A tensão e o
ódio mútuo eram claros. Dom Francisco, que observava sua perna
se curando, olhou para o rival: – Escaparam num carro azul.

–- Ah sim, eu sei. Eu vi na televisão. Pelo menos você não


apareceu nas câmeras – sua voz era cheia de escárnio. – Para
alguém que nem os melhores capatazes conseguiam achar, você
anda meio desleixado, não acha? – riu maliciosamente. – Será que
SEU Mestre ficará feliz com você por quase quebrar nossa lei
primordial de segredo de nossa existência para o rebanho mortal? –
perguntou com arrogância. A jovem voltou com mais uma taça
tremendo de medo. Dom Francisco pegou e bebeu todo seu
conteúdo. Agora suas costelas voltavam para o lugar, mas não se
curou por completo. Encarou Dom Magalhães furioso e cheio de
desprezo. – Se você é tão capaz, por que não vai pegá-los você
mesmo? – e, se virando para a jovem: – só isso que você trouxe? –
ela olhou assustada. – Vou buscar mais, senhor.
– Tarde demais – ele a agarrou pela nuca e enfiou a boca em
sua garganta. Ela gritou e logo o grito foi substituído por um som
gorgolejante, seguido ao de algo sendo rasgado. Quando Dom
Francisco se afastou, metade do pescoço da jovem estava em sua
boca, com um pedaço de sua traqueia e laringe. Ele mastigou a
carne enquanto ela agonizava no chão, sufocando em seu próprio
sangue. Ele montou sobre ela e bebeu seu sangue enquanto tinha
seus últimos espasmos e depois passou a lamber o líquido do chão.
Insatisfeito, agarrou o corpo da jovem e terminou de arrancar sua
cabeça. Depois pegou o corpo e forçou suas mãos pelo buraco
aberto, quebrando os ossos do peito e rasgando músculos e
tendões. Finalmente chegou ao seu prêmio: arrancou o coração,
mais um pouco dos brônquios e passou a devorar o músculo
desesperadamente, enquanto seus ferimentos se curavam
rapidamente.

Dom Magalhães, sentado em seu trono, olhou com asco para a


cena. – Raios, gajo, não precisava matar a rapariga. Sabe como é
difícil arranjar bons criados! Será que tu não fases nada direito? –
falou socando o apoio do braço. O negro enorme gargalhou com
sua bocarra cheia de carne crua e sangue. – Fala dessa vadia ou
dos fugitivos? Já disse, Magalhães. Se pode fazer melhor, então
faça!

– Oras, meu caro – Dom Magalhães balançou a cabeça de um


lado para outro ironicamente. – Já fiz! – sorriu arrogante.

– Eu quero coração de frango!

O carro seguia em velocidade na rodovia Regis Bittencourt, que


leva ao sul do país. Vinnie continuava encarando a janela, olhando
para o vazio. – Coração de frango no espeto e assado... hum... –
lambeu os lábios. – Gente, estou com fome. Dá para parar?

– NÃO! – Raquel bradou sonoramente. Inconformado, Jacó


revirava os olhos. Sentia o azedume de sua frustação. Continuaram
por mais cinco minutos em silêncio sepulcral, quando Vinnie
começou a mexer no porta-malas do carro. – Deve ter comida por
aqui, aposto.

– Então... – Jacó virou-se para Raquel, ignorando o repórter, que


continuava a procurar algo no porta-malas do carro. – Explique-me o
que aconteceu. Como um sujeito é atropelado, arremessado a
quase dez metros, se levanta e corre atrás de um carro a quase
oitenta quilômetros por hora?

– Tão simples como óbvio – respondeu Raquel. Jacó bufou. –


Não há nada de simples, muito menos de óbvio em uma pessoa sair
correndo com aqueles ferimentos! Qualquer ser vivo estaria morto
depois de um acidente daquele – disparou exasperado.

Raquel sorriu triunfante: – E-XA-TA-MEN-TE! – pontuou cada


sílaba, olhando para Jacó e para a estrada. Deixou o silêncio se
espalhar. – Você está me dizendo que aquele cara? Que ele
estava? – o médico perguntou chocado. – Estou – ela respondeu.

– Achei!

Jacó teve um sobressalto. Vinnie voltou com uma caixa de pizza,


o desenho de um garoto dentuço de boné para o lado com um
estilingue na mão e os dizeres Bambino Travesso estampados na
tampa. Abriu a embalagem. Tinha dois pedaços de pizza de
muçarela com o queijo ressecado. Devia ter de dois a três dias.

– Está meio velhinha, mas, se não vamos parar, como isso


mesmo. Vinnie deu de ombros.

– Não vamos morrer se pararmos para comer. Estamos a quase


duas horas nesse carro, pegamos congestionamento para sair da
cidade e ninguém nos perseguiu, fora o louco ainda na clínica, e já
faz um tempo que o despistamos.

– Nós não o despistamos. Ele parou de nos perseguir porque as


árvores acabaram... – Raquel colocou a cabeça para fora do carro,
olhou para o céu e voltou para dentro. – Tudo bem. Tem sol.
Podemos parar para comer.

Já na cidade de Embu, pararam em uma churrascaria à beira da


estrada, para alegria de Vinnie. Era um estabelecimento simples:
um enorme salão com móveis antigos e uma mesa no centro com
guarnições e salada. Porém, a carne era boa e compensava a
parada.

O lugar estava completamente lotado. A maioria eram


caminhoneiros. Raquel insistiu para que sentassem em uma mesa
distante.

– Então? – perguntou Jack.

– Então o quê?

– O que está acontecendo? Quem era aquele cara?

– Não sei o nome dele, mas o chamo de Zé Pilintra.

Vinnie riu. – Gostei. Por causa da roupa? Boa – continuou rindo.


Raquel concordou com a cabeça. Jacó interrompeu.

– Zé Pilintra? Você deve estar de brincadeira! – falou incrédulo. –


Não poderia usar um nome mais assustador ao menos? – zombou.

– Você o viu? Consegue pensar em mais alguém? Zé Pilintra é


uma entidade malandra do candomblé, e é sempre retratado como
um negro de terno branco e gravata vermelha. É associado a bares
e bebidas, e principalmente à malandragem. No entanto, não se
engane com o que as pessoas falam. Essa entidade é um ser
ladino, traiçoeiro, mestre da enganação e da trapaça, mas esse, em
específico, pelo pouco que sei, é um caçador, um ser perigoso e
malévolo. – A mulher falou severa.

– Mas o Seu Zé é gente boa, Madame Van Helsing – Vinnie


interveio em defesa da entidade. – Ele ajuda as pessoas.
– Ah, claro! Ele queria nos ajudar a quê? A desencarnarmos? –
ela respondeu com azedume.

– Bom... Vendo por essa ótica... – Vinnie se calou e começou a


atacar a comida. – Garçom, pode me trazer coraçãozinho de
frango? – o garçom tinha dificuldade em atender a todos, porque a
todo momento mais pessoas entravam na churrascaria o almoço era
o momento mais agitado do estabelecimento, e em pleno domingo
sempre acontecia por volta das duas da tarde. Um grupo grande,
talvez de duas famílias juntas, estava na espera com as crianças
reclamando da demora e fazendo manha.

Jack olhou para Vinnie.

– Talvez fosse hora de deixá-lo. Aqui pelo menos é seguro e ele


pode pegar um ônibus para São Paulo. Vinnie engoliu a comida e
olhou para os dois. Parecia engasgado. Raquel deu de ombros.

– Por mim tudo bem.

– Por mim não! – replicou Vinnie, inconformado! Raquel respirou


fundo.

– Olha, Vinnie, é perigoso estar perto de mim. Você deveria ficar


– falou com ar maternal.

– É perigoso para mim e não para o bom doutor aí? – apontou o


garfo com dois corações de frango espetados para Jacó. – Além do
mais, você me prometeu uma exclusiva! Você é a única pessoa que
eu já conheci que realmente viveu essas paradas; não é uma louca
com delírios! – falou. Depois ficou em silêncio antes de emendar: –
Se bem que todo mundo acha que você é doida de pedra – disse
em tom de desculpas.

Raquel respirou fundo e tomou um gole de sua bebida. Em outra


mesa, ocupada por cinco rapazes, todos vestidos em sobretudos
pretos e roupas góticas, falavam animadamente de um show que
teria naquela noite em Embu. Suas vozes soavam felizes, enquanto
a mulher cortava um pedaço de carne que acabara de ser servido.
Falou depois de mastigar longamente:

– Jacó é diferente – respondeu por fim.

– Como assim? – Vinnie e Jacó falaram juntos. Ela permaneceu


quieta. Depois de algum tempo em silêncio mexendo no pedaço de
carne em seu prato, falou sem levantar os olhos:

– É o destino dele.

– Como assim meu destino? – Jacó largou os talheres com


força, fazendo barulho. Raquel ficou calada por um momento antes
de responder.

– Esquece. Você nunca acreditaria mesmo – disse frustrada.

– Não acreditaria no quê? – ele perguntou interessado. Raquel


continuou:

– Que tudo o que você passou até hoje trouxe você a este
momento, a nós dois aqui – concluiu.

– Como assim? – Jacó indagou. Raquel olhou nos olhos dele,


mas ainda assim cheia de tristeza.

– Alguma vez em sua vida, Jacó Cohen, você pode dizer com
sinceridade que já se sentiu completo? Alguma vez você foi
completamente feliz ao lado de uma mulher? – Jacó olhou com
desprezo, e um furor incendiando-o internamente.

– Mas é lógico. Tenho uma namorada, nós vamos morar... – Mas


não completou a frase. A lembrança de Walkyria doeu em seu peito
e escorreu fria por suas costas. Raquel continuou.

– Vocês terminaram, não é mesmo? Ou melhor, você terminou,


não é? Alguma vez foi outra pessoa que terminou o relacionamento
que não você, Jacó Cohen? – isso já era demais para ele. Riu cheio
de ironia. Sentia a fúria amarga espreitando no seu interior,
rosnando selvagemente.

– Ah tá! Então era a vontade de Deus que eu me ferrasse, que a


mulher da minha vida, meu grande amor, com quem eu esperava
um dia me casar e ter filhos, fosse incapaz de um relacionamento
sério e que eu, então, encontrasse uma louca psicótica e junto com
ela fugisse para um mundo encantado de conto de fadas? –
ironizou, cada palavra recheada de uma fúria primal que uivava em
seu interior.

– Sim! Exceto o conto de fadas e o fato de essa sujeita ser a


mulher da sua vida... – Raquel olhava nos olhos dele calma e quase
sem emoção.

– Para mim chega! – levantou-se enfurecido. – Tem uma falha


nesse seu plano celestial mirabolante, garota mágica: Deus não
existe! É só mais um delírio de pessoas medíocres que não
conseguem entender que a vida não tem um significado, por isso
inventam coisas como um ser superior ou essa bobagem de destino!
Deu as costas aos dois e dirigiu-se ao caixa. Pagou a conta dos três
em dinheiro e, sem olhar para trás, saiu do restaurante. Tremia de
ódio e fúria.

– Então você acha que o que aconteceu no seu passado foi


“acaso”? – Raquel o seguira para fora. Ela agora falava alto, quase
gritando.

– O que você sabe sobre meu passado?

– Sei que algo aconteceu no seu passado, algo que fez com que
você perdesse a fé no mundo e o fizesse ficar andando por aí
tomando remédios contra alucinação e contra a verdade que você
sempre soube! Você não é louco. Aquilo realmente aconteceu e
existe mais nesse mundo do que você consegue entender! Você é
que é um tolo por não acreditar! Ou fingir não acreditar!
Ele se aproximou dela lívido. Quando falou, as palavras saíram
quase inteligíveis, em meio a rosnados:

– Eu não acredito e nunca vou acreditar nessas bobagens, sua


psicótica maldita e insana! – foi até o carro e parou. Os quatros
pneus do carro tinham sido rasgados, possivelmente com facas, e
estavam no chão. Jacó se perguntava o que havia acontecido,
quando sentiu algo frio e duro contra sua nuca.

– Se você se mexer, explodo sua cabeça! – a voz era de um


rapaz jovem, mas Jacó quase não a ouvia direito. Ela soava
distante. Estivera tão furioso que nem percebera a aproximação do
estranho.

– Vire-se lentamente – o rapaz falou. Jacó virou-se. Sua vista


estava nublada. Ouvia estranhamente o hino nacional em sua
cabeça. Viu que Vinnie choramingava para um dos jovens de
sobretudo, que o estrangulava. Raquel também estava detida. Dois
a prendiam, um com uma faca na sua garganta e outro por trás.

– Você virá conosco – falou o jovem com a arma. Não devia ter
muito mais que vinte anos, usava batom preto e lápis no olho. Jacó
levou lentamente a mão à cabeça e deixou-se conduzir. Os rapazes
abriram a porta de um furgão e mandaram ele entrar. Raquel já
estava sendo colocada também e tentava resistir.

– Você sabe o que deve fazer, soldado... – uma voz soou na


cabeça de Jacó e ele perdeu o equilíbrio.

– Ela não para! – gritou um dos jovens.

– Então dá um murro na vadia – o jovem da pistola tirou os olhos


por um segundo de Jacó, para olhar para o comparsa; foi o
suficiente.

Jacó estava furioso. Consigo mesmo, por estar tão furioso que
baixou a guarda e não viu os adversários; com o irritante hino
nacional, que soava incessantemente em sua cabeça; com Raquel,
por ter invadido uma área de sua vida que ele não abria para
ninguém; e com o moleque que a golpeava com um soco no
estômago. Estava tão entorpecido que sentia sua mente nublar.

Um manto de silêncio cobriu Jacó. Não havia gritos nem sons,


nem mesmo o hino, e, em meio ao mar de quietude, ouviu somente
uma frase saída do passado: – Hora da guerra, Cohen!

Jacó viu mãos que se moveram em direção do homem que o


rendia. Uma agarrou a arma e rodou-a na mão do atacante e a
arrancou, enquanto a outra esmagou a traqueia do agressor.
Quando o jovem que segurava Raquel percebeu o que acontecera,
era tarde. O tiro da pistola atravessou sua cabeça bem no meio dos
olhos, ao passo que seu companheiro também era alvejado. O
terceiro, aquele que segurava Vinnie, pensou em gritar “Vou matá-
lo”, mas não teve essa oportunidade. Mais um disparo e o rapaz já
estava morto.

Então Jacó acordou. Três tiros. Quatro garotos mortos.

– O que eu fiz?

Jacó deixou a arma cair no chão.


Capítulo 5
Quando os jesuítas fundaram a pequena Vila de São Paulo, em
1554, não imaginavam que um dia se tornaria uma das maiores
cidades do mundo. Um dos seus bairros mais antigos conserva-se
como uma pequena cidade interiorana, em meio à selva de pedra. A
Mooca herdou seu nome dos índios, os primeiros moradores do
local, que, impressionados com as moradias construídas pelos
portugueses, chamavam-nos de “fazedores de casa” no idioma
indígena: Mooca.

Por séculos, a conglomeração de índios e portugueses nada


mais era que uma pequena vila de passagem entre o litoral e o
centro da cidade, mas em 1876 tudo mudou, quando Raphael
Aguiar Paes de Barros construiu no bairro o primeiro clube de
hipismo da cidade, que viria a se tornar o Jockey Club, dando-lhe
uma nobreza antes não possuída. O Hipódromo se tornaria a
sensação da cidade, e mesmo Maria Domitila de Aguiar Castro, neta
da mais célebre amante do primeiro imperador do país, a Marquesa
de Santos, teve um cavalo vencedor na competição: Corisco.

Foi, no entanto, com o surgimento das indústrias em São Paulo


que o bairro ganhou seus moradores mais característicos: os
italianos – imigrantes empobrecidos e fugidos da Primeira Guerra
que vieram dar início a uma nova vida nesse país e eram a força
motriz da revolução industrial brasileira.

Mesmo cheio de fábricas e modernidade, o bairro conseguiu


manter-se com sua mentalidade interiorana, sendo um verdadeiro
oásis no caos paulistano. Em uma de suas fronteiras, numa alta
colina, um grupo de padre jesuítas decidiu fundar um orfanato,
batizando-o com o nome de um dos maiores exploradores da
história: Cristóvão Colombo. Por mais de um século, crianças que
não tinham pais eram lá refugiadas e viviam uma nova chance, mas
os tempos mudaram, e os órfãos diminuíram gradativamente, ao
passo que o número de crianças carentes crescia cada vez mais.
Decididos a dar suporte não só àquelas crianças que não tinham pai
e mãe, mas, fazendo valer a máxima da igreja católica “O dom da
caridade!”, os padres decidiram que iriam dar aos menos
afortunados uma oportunidade. Construíram creche, escola e
quadras esportivas para essas crianças, que, sem outra alternativa,
exceto a vida no crime, logo seriam aliciadas pelos traficantes.
Assim, o orfanato cresceu e se tornou um instituto.

Há mais de duzentos anos, homens dedicados ao bem-estar do


próximo cuidam desses órfãos da vida, e foi uma surpresa quando
os padres, normalmente de idade avançada, escolheram o jovem
Padre Matheus, então com 25 anos de idade, para assumir a
direção do orfanato. Alguns dos sacerdotes mais velhos ficaram
enciumados, enquanto outros criticavam sua idade, mas seu
antecessor, o famoso Padre Jorge, antes de se aposentar fora claro:
era preciso sangue novo para lidar com esses novos tempos. Assim,
o jovem Matheus assumiu o cargo, vencendo um inimigo naquele
período: o preconceito, não somente por sua idade, mas por sua
cor. Embora seja um assunto velado dentro da igreja, é incomum ver
um negro nos altos cargos eclesiásticos no país. Porém, cinco anos
de muito esforço e trabalho deixaram claro que a escolha por
Matheus fora uma das mais sensatas que os padres do instituto
tiveram em muitos anos.

Matheus era um homem muito bonito, alto, tendo um pouco mais


de 1,80 m, cabelos negros fartos escuros e crespos curtos. Sua pele
tinha o tom de chocolate, e os dentes que adornavam o sorriso
sincero e simpático eram brancos como marfim. Tinha olhos escuros
como a noite, mas eram cheios de sensibilidade e bondade
incomuns. O físico era também invejável. Corria todos os dias por
paixão, não havendo espaço para gorduras localizadas. A vida
eclesiástica seguida com afinco não lhe permitia extravagâncias e,
assim, o homem se tornava mais saudável. “Um desperdício”,
diziam algumas das jovens mães que deixavam seus filhos na
creche do instituto, mas Matheus escolhera ouvir o seu chamado e
seguir a vocação, mantendo, entre todos os votos, o celibato com
afinco. Por isso mesmo nunca dava margem para falação. Colocou
uma câmera no seu escritório para impedir o avanço de mães mais
afoitas e sempre se mantinha reservado, nunca respondendo aos
constantes assédios. A característica mais marcante de Matheus, no
entanto, era seu carisma, que se sobrepunha a toda a sua beleza
física. Aquele homem emanava bondade e liderança, revestidas de
muita gentileza e educação.

Sentado a sua mesa de madeira maciça de jacarandá com mais


de cem anos, toda entalhada com figuras dos doze apóstolos e de
passagens da vida de Jesus, Matheus lia a bíblia preocupado.
Desenhos das crianças retratando a vida do Salvador e da Virgem
adornavam as estantes como as de um pai orgulhoso, que exibe os
desenhos de seus filhos. Concentrado como estava, não se deu
conta da figura que adentrara seu escritório.

– Como vai, Mato – a voz grave de Carlos quebrou o silêncio e


assustou o padre, que pulou na cadeira assustado. Olhou para o
amigo surpreso, então ambos caíram na gargalhada.

– Carlão! Caramba, cara, que susto! – mas quando sua voz saiu,
a tensão dos dois lados ficou novamente perceptível. Matheus se
levantou e abraçou demoradamente o amigo de longa data. – Que
bom te ver, campeão. Faz um tempo já, hein?

Carlos afastou-se do abraço, colocou a mão no ombro do amigo


e sorriu com sinceridade:

– Sim, meu amigo. Faz tempo.

– Mas me fala. O que você está fazendo por aqui? Algum


assassinato na Mooca?

– Graças a Deus não, Mato, mas gostaria de estar aqui sim por
razões melhores. Tenho más notícias: o Jack foi sequestrado. Uma
paciente maluca escapou do sanatório e levou ele de refém.

– Meu Deus! E agora?


– O Jack vai se virar. Você o conhece, Mato. Ele escapa de tudo!
Se não fosse ele, a gente já era.

A lembrança criou uma pausa desconfortável.

– Sim, Jacó sabe se cuidar – Matheus falou mais para seu


próprio conforto que para o amigo.

– O problema é que uma fonte minha foi levada junto. Agora


tenho que avisar a família. Pior que o guri é filho único. A mãe dele
vai ficar com o coração na mão. Não sei o que dizer...

– Sei bem do que está falando. Hoje mais cedo uma das nossas
maiores patronas veio com um caso parecido. Seu filho está
desaparecido e ela estava aos prantos. Perdeu a filha há 20 anos,
quando a menina era quase um bebê, e agora o filho desapareceu.
A mulher não sabe o que fazer. Dei o telefone daquele seu amigo na
antissequestro.

– Espero que achem o garoto – Carlos falou mais em


solidariedade ao amigo que à pobre mãe. – Mato, posso te fazer
uma pergunta, digo, posso fazer uma pergunta ao padre e não ao
amigo?

Matheus sorriu. Carlos não era um homem muito religioso. Se


pudesse ajudá-lo, ajudaria.

– Mas é claro. Pergunte o que quiser – apontou a cadeira,


indicando para que ele se sentasse, e deu a volta na mesa, fazendo
o mesmo. O sacerdote reparou que o amigo estava embaraçado.

– Pode falar, meu amigo.

– Mato... – começou. – Você acredita que os mortos possam


voltar à vida?

Matheus sorriu.
– Bom, acredito que um dia Jesus voltará. E quando Ele voltar,
todos os que morreram vão passar por um julgamento. Alguns
estudos presumem que voltaremos aos nossos próprios corpos,
inclusive. Essa era a razão de ser pecado antigamente cremar os
corpos, sabia?

– Você sabe muito bem que não é sobre isso que estou falando,
Matheus! – Carlos estava sério. O padre se levantou, foi até a mesa
de canto e preparou dois expressos. Deu um ao amigo, sentou-se
na sua cadeira, tomou um gole e continuou olhando para a xícara. O
silêncio se prolongava. Ao longe era possível ouvir as crianças
brincando no pátio do orfanato.

– Quero te mostrar um negócio – Carlos falou, se levantou e,


sem cerimônia, ligou a tv e inseriu o DVD no leitor. Logo o confronto
entre o kia azul e o negro vestido de branco começou. Matheus
assistiu chocado ao atropelamento e, conforme a cena se
desenrolava, foi ficando cada vez mais sério. O silêncio avassalador
imperava na sala. O vídeo sem som continuava num looping. Carlos
encarava o sacerdote, que tinha o olhar vago para a xícara a sua
frente. Essa agonia durou apenas alguns minutos, mas, para Carlos
e Matheus, parecia que cada segundo se arrastava por uma hora.

Matheus respirou fundo. – Carlão... – desviou os olhos da xícara


e fixou-o no crucifixo de madeira que ficava acima da porta do
escritório. – Você sabe por que me tornei padre?

Carlos olhou-o estupefato com a súbita mudança de assunto,


mas ao mesmo tempo aliviado. Nem mesmo o amigo parecia
compreender o que tinha visto. Respondeu com um riso nervoso: –
Olha, Mato, não consigo entender como alguém vira padre, nem
com noventa anos, então não! Não consigo entender como você se
meteu num seminário aos vinte anos. Ainda mais você, que era o
mais galinha – Carlos debochou.

Matheus se levantou lentamente e caminhou até um antigo


armário, também de Jacarandá maciço, mais simples que a mesa,
mas tão sólido quanto. Ao abrir a porta, Carlos pôde ver uma
pesada porta de metal de um cofre, dentro do móvel. Matheus
pegou uma chave que tinha no pescoço e abriu o cofre. Carlos
tentava ver o que ele pegava, mas sua visão estava bloqueada.
Carlos viu quando o amigo embalou algo nos braços e trouxe até a
mesa. Era retangular, parecia uma caixa, e estava coberto por uma
manta de veludo púrpura. Matheus colocou o embrulho
reverentemente sobre a mesa, e então revelou seu conteúdo,
desembrulhando-o.

Era um livro de couro negro, com bordas de prata, muito antigo.


Devia ter mais de duzentos anos. As páginas eram grossas e
amareladas e qualquer que fosse o título do livro, se é que um dia
tivesse tido um, já se apagara. Ao lado do livro havia um grande
crucifixo feito em prata maciça. A cruz era atípica, conhecida como
croix pattée, por ter suas extremidades iguais e mais largas que a
base, como se fossem “patas”, dando origem ao nome. Nesse caso,
porém, ela era semelhante à famosa Flor de Lis, símbolo da antiga
realeza francesa, com um dos braços mais longo que os demais e
sua ponta, maior que as outras, afiada como um punhal. Em cada
uma das flores de Lis havia três rubis. Era uma verdadeira obra de
arte. O padre retirou-a com reverência e colocou-a do lado envolta
pelo veludo. Então depositou o pesado livro na frente do delegado.

– Quando entrei no seminário, não queria ser padre. Nunca quis


um rebanho ou um orfanato para cuidar. Entrei no seminário porque
queria ser exorcista. Passei três anos na Itália me preparando. Foi
para isso que estudei. Foi naquele dia, Carlos, no exército, que eu
entendi que existe outro mundo, um mundo espiritual, que influencia
o nosso, muito mais que imaginamos. Fui para a Itália, para o berço
da Igreja, buscar respostas.

– E você as encontrou? – Carlos olhava com certa reverência


para o amigo. Na verdade, nunca falavam do passado, por causa do
Pacto. Cada um partira em busca de respostas, Jacó pela
psiquiatria, Carlos pela Criminalística e Matheus pela Fé.

– Não – o padre se levantou e foi até a janela. A expressão séria


tinha mudado e agora sorria afetuosamente, olhando para o lado de
fora do escritório.

– Mas parei de perguntar...

– Por quê? O que te fez parar? – perguntou confuso.

Matheus se virou, estendeu a mão e chamou Carlos. Saíram do


escritório e foram até o pátio. Carlos viu dezenas de crianças de
diversas idades brincando. Nem bem o padre adentrou no local e
várias delas foram até ele, gritando de alegria e cheias de amor o
abraçavam. Matheus ria, e a cada uma chamava pelo nome,
perguntando de sua família, das dificuldades na escola, conversava
sobre coisas banais. Carlos sentiu paz em seu interior e uma
sensação de plenitude que nunca sentira, como se fosse um rádio
antigo, e de repente alguém finalmente acertasse a estação correta
e o zumbido de estática parasse. Levou um susto ao ver o amigo de
pé olhando para ele com lágrimas nos olhos.

– Encontrei nas crianças que eu cuido algo muito maior que


combater demônios. Deus é grandioso, Carlão, Sua obra é perfeita
e minuciosa, mas também muito frágil. Sei que demônios existem,
sei que um mal inexplicável e muito maior que nossas
compreensões podem suportar rodeia esse mundo e busca devastá-
lo, e sei que existem várias maneiras de confrontá-lo, mas, em vez
de lutar essa batalha, escolhi outra: cuido daqueles que não podem
lutar por si mesmos, cuido para que a obra não seja destruída, mas
fortalecida. Acho que o Amor é a mais poderosa arma do mundo.

– Você, melhor que ninguém, conhece Jacó, sabe que ele é um


tipo único de ser humano, daqueles que não se curvam facilmente.
Ele tem fibra. A luta dele não é a sua, Carlão. Vá atrás desse
assassino e não tenha medo. Deus está com você.

Carlos sorriu.

– Você tem noção de que não respondeu minha pergunta, não


é? – perguntou irônico.
Os dois riram, e depois de o riso morrer, Matheus finalmente
falou:

– Não importa minha opinião, meu amigo. O vídeo é inegável.


Nenhum ser vivo sobreviveria àquele atropelamento. Você sabe
disso e eu também...

Não muito longe dali, na cidade de São Caetano do Sul, no


bairro de Jardim São Caetano, em uma enorme mansão de estilo
colonial germânico com seu característico estilo Enxaimel, na suíte
magnífica, uma linda mulher saía da cama. Seu corpo suado era
belo, principalmente para uma mulher de sua idade. A pele, já mais
flácida, ainda mostrava uma musculatura rígida e bem cuidada. Os
seios eram o maior destaque: rígidos, redondos e empinados,
mostravam que a natureza e a gravidade não afetam o silicone da
mesma maneira que afetam o ser humano. O corpo apresentava
algumas estrias e um pouco de celulite, mas qualquer homem ficaria
excitado de ver uma beldade como aquela andando nua pelo quarto
no auge de seus mais de cinquenta anos, quase sessenta, não
aparentando mais de quarenta e cinco.

O homem deitado na cama observava com lascívia a bela


mulher desfilar sua beleza e ainda a desejava, embora soubesse
que provavelmente não conseguiria possuí-la novamente em tão
pouco tempo, afinal, sua virilidade não era mais a mesma.

“Mas ainda assim a desejo tanto quanto a desejava vinte anos


atrás!”

Poucas coisas na vida de William o mantinham entretido por


tanto tempo, mas a maneira como a mulher se abaixava para pegar
as roupas do chão, curvando o corpo sem dobrar as pernas e
elevando o quadril de maneira tão erótica, não sem antes dar uma
olhadela safada para o companheiro, provaram a William que
aquela mulher sempre teria sua atenção.
Ela pegou sua lingerie e jogou as roupas dele em seu peito.

– Não adianta me olhar desse jeito! Mesmo se quisesse, não


teríamos tempo para mais diversão. Tenho o dia cheio hoje, Dr.
Sallutti, e o senhor também. Ainda vai para o congresso?

Os olhos verde-esmeralda, grandes e sensuais, em conjunto


com as sobrancelhas arqueadas, o fitavam cheios de malícia. O
nariz era longo e arqueado, mas, embora forte, se mostrava
delicado. O rosto era retangular e a boca, mediana, nem carnuda,
nem longa. Tinha um ar severo, austero e uma postura de confiança
que assustaria a maioria dos homens, porém somente excitavam
ainda mais William Sallutti.

Ele ergueu seu corpo para fora da cama. A mulher havia sentado
em frente da penteadeira e cuidava de seus cabelos negros e
curtos, estilo joãozinho, mas com a franja longa, que ela agora
ajeitava com a escova, tirando um pouco da bagunça que o sexo
causara.

William aproximou-se ainda nu por trás dela, agarrou com


firmeza seus seios e passou a lamber selvagemente seu pescoço,
enchendo-a de saliva.

– Por mim passaria a tarde inteira dentro de você! Tenho


maneiras de me preparar para mais umas cinco, no mínimo, se você
quiser! – falou com ar triunfante. Ele pegou a mão dela e levou ao
seu membro.

A mulher riu alto, empurrou o amante e se levantou, ficando de


frente para ele.

– Tenho certeza que sim, meu querido – e envolveu seus braços


em torno do psiquiatra, deixando os lábios colados. – Mas a verdade
é que, hoje, tudo o que você quer é só um local para despejar essa
sua irritação, não é mesmo? – perguntou. – Não teria problema
nenhum, mas você sabe que tenho que buscar Adolfo, e logo, logo,
Valkyria estará aqui com todo seu drama de existência patético, e o
senhor tem um avião para pegar! – completou. William negou com a
cabeça: – Cancelei a viagem. O congresso não é nada se
comparado ao que está acontecendo aqui...

William respirou fundo, afastou-se da mulher e começou a se


vestir.

– Aquela mulher, Walkyria...

– Sim, eu sei. Você acha que Walkyria é uma decepção, assim


como André, mas eu lhe digo que ela tem potencial; só precisa ser
despertado! – a mulher falou convicta enquanto também se vestia.

– Não, não me refiro a essa Walkyria, mas à filha de Oswaldo.

– Ah sim – a mulher sentou na cama e começou a colocar a


meia-calça. – Essa Walkyria... – falou com suspeita e um leve
ciúme.

– Ela é indomável, selvagem! Ela é perigosa! – a voz de William


vibrava a cada adjetivo. – Precisamos dela, você sabe. Talvez
devesse eu mesmo ter tratado dela, antes de entregá-la assim a
Jacó. Depois de tantos anos não me perdoaria por colocar tudo a
perder por ansiedade! – Madalena sentiu a sinceridade no homem.
Sempre sentira que, com ela, ele sentia-se livre para dar vazão às
inseguranças e dúvidas em seu coração. Madalena acreditava que,
em todo o mundo, a pessoa que o Mago mais confiava e que melhor
o conhecia era ela.

– Ora, William, o que está dizendo? – a mulher se aproximou


dele pelas costas, sinuosa como uma serpente, colocou os braços
em volta do tronco do homem e mordeu-lhe a nuca. – Você está
com medo? William Sallutti amedrontado? – riu provocativa. Ele se
afastou dela, endurecido pelo comentário. Madalena sorriu
internamente. William não era de fraquejar e odiava sentir-se assim
e ela sabia disso, por isso mesmo provocara o homem,
reacendendo sua chama.
– Lógico que não! – William rosnou. – Se estou sendo um pouco
mais zeloso que o habitual, é apenas porque o plano de nossos
antepassados finalmente está chegando ao seu ápice! Nunca, em
toda a história, estivemos tão perto de atingirmos o nosso objetivo!
Daqui a um século, Madalena, quando a humanidade olhar para trás
e vir o que construímos, será o meu nome a ser dito como o do pai
da nova era da humanidade! – a voz de William tremia de fervor. Os
olhos mantinham-se obcecadamente fixos no futuro sonhado.

Madalena observava com entusiasmo a paixão de William, que o


inflamava e expulsava a idade de seus ossos fatigados. Ele falava
com o mesmo fervor e calor com que ela o vira havia mais de trinta
anos, quando lhe fora apresentada, e toda vez que ele agia assim
ela sentia as pernas formigarem de desejo por aquele homem.

– Ora, ora, William, acalme-se, ou acabará estragando a nova


era da humanidade com um derrame!

Aproximou-se novamente, colocou a mão em seu peito, tentando


acalmá-lo. O coração batia acelerado.

– A sua vida inteira você trabalhou por esse momento. Ninguém


nunca foi tão fiel à causa como você. Sei que não foi precipitado. Se
colocou Walkyria e Jacó juntos, é porque era a hora; nós
venceremos! – E beijou-lhe os lábios, com o sentimento mais
próximo de compaixão que seu coração se permitia sentir.

– Vou buscar meu filho. Vai ficar para jantar? Teremos um jantar
em família hoje.

– Sim, vou ficar – falou terminando de se vestir.

Ela começou a se afastar, mas ele pegou o seu pulso. Madalena


olhou para ele.

– Mas antes de ir, você deveria me acalmar, não acha? – ele


sorriu.
Ela o olhou confusa.

– Achei que estivesse mais calmo, meu querido.

– Não é calma que busco em você Madalena, mas alívio.

Ele arriou as calças novamente. Ela baixou os olhos e sorriu


cheia de lascívia.

– Está bem, mas é o último favor que lhe presto hoje! Estou
muito ocupada.

E dizendo isso, Madalena se ajoelhou na frente de William, que


segurou sua cabeça e gemeu de prazer.

Vinnie despertou sentindo a garganta doer. Massageou o


pescoço e tentou engolir, mas sua traqueia doía bastante. Tentava
se lembrar do que ocorrera, mas a última cena de que lembrava era
do garçom servindo-lhe corações de frango no espeto.

– O que houve, gente? Onde estamos?

– Rodovia Régis Bittencourt. Estamos indo para Curitiba –


Raquel respondeu.

A rodovia BR-116 é oficialmente chamada de Régis Bittencourt,


em homenagem ao engenheiro que trabalhou em sua criação na
década de 60. No entanto, ela possui um nome mais nefasto, hoje
em dia quase nunca pronunciado, mas sempre lembrado: Rodovia
da Morte.

O nome não é um exagero, e se deve principalmente a um


trecho entre São Paulo e Curitiba conhecido como Serra do Cafezal,
um pedaço não duplicado da via extremamente sinuoso e perigoso
que atravessa as montanhas que dividem o Sudeste do Sul do país.
Acrescentado a isso, o tráfego intenso de caminhões fere o asfalto
já todo remendado e torna o local ainda mais mortal. Por outro lado,
a estrada possui uma das mais belas vistas do país, e entre uma
curva e outra observa-se um desfiladeiro cheio da rara Mata
Atlântica, um verdadeiro Oásis letal.

Raquel, Vinnie e Jacó viajavam exatamente por esse trecho,


quando o repórter despertou. O médico estava no banco de trás, de
braços cruzados e cara brava. Vinnie então se deu conta que
estavam em um furgão, que em nada se assemelhava a seu carro.

– Ei! E meu carro? O que aconteceu?

– Eles rasgaram os pneus, não se lembra?

– Eles? Eles quem? Do que você está falando? – Vinnie


começou a falar rápido e nervosamente.

Jacó, que estava em silêncio atrás do furgão somente


observando a vista, ouviu Raquel dizer:

– Os lacaios de meus perseguidores, aqueles que quase te


estrangularam e que Jacó massacrou.

– O quê? Do que você está falando? Eu não entendo – Vinnie


começou a se encolher no banco, procurando a janela e tentando
abri-la com os dedos. – Eu não consigo respirar!

– Pare o carro – Jacó falou rispidamente. – Ele está tendo um


ataque de pânico. Pare o carro!

Raquel encostou no acostamento de uma curva longa que


bordeava o desfiladeiro. Vinnie desceu correndo e, se não fosse a
ação rápida de Jacó ao puxá-lo, teria sido atropelado por um
caminhão que passou velozmente embalado pela descida.

– Eu não consigo respirar! – Vinnie chorava. Logo em seguida,


revirou os olhos e teve uma convulsão. Jacó montou firme no rapaz,
tirando a camisa e posicionando-a como um travesseiro. Depois o
virou de lado e começou a falar baixo:
– Acalme-se. Shhhh, já vai acabar... Pronto... Assim... Calma...

Aos poucos, o corpo de Vinnie foi parando de tremer, relaxando,


e ele perdeu a consciência. Jacó pegou-o no colo e afastou-o ainda
mais da estrada, levando-o até as árvores.

– Devemos continuar. Eles devem estar atrás de nós – Raquel


falou preocupada.

– Temos que dar um tempo para ele. Se tiver outra crise dentro
do carro, será mais difícil de contê-lo e ele poderá sofrer uma lesão
severa.

Raquel respirou fundo e olhou para cima.

– Ainda temos sol. Precisamos chegar numa cidade enquanto é


dia.

– Daqui para Curitiba são no máximo três horas, e antes dela há


várias cidades. A gente chega, Raquel. Na verdade, quero deixar o
garoto em Registro. É na divisa de São Paulo e ele pode pegar um
ônibus para casa. O garoto não vai aguentar essa loucura toda e só
vai nos atrapalhar.

– Concordo – Raquel assentiu. – De quanto tempo ele precisa?

– Acho que meia hora.

Quinze minutos depois, no entanto, Vinnie já recuperava a


consciência.

– Você matou eles, não foi? – falou com a voz entristecida.

Jacó abriu a boca, mas a voz não saiu. Respirou fundo, olhou
para longe e respondeu baixo.

– Eu não tive opção. Eles iriam feri-los... Simplesmente reagi...

– Eu sei. Obrigado por ter salvado minha vida.


Vinnie sorriu, tentou se levantar e Jacó o ajudou. Raquel se
aproximou dos dois e olhou nos olhos do repórter.

– Está melhor?

– Bom, vou sobreviver... Acho que foi muita informação de uma


vez só – deu de ombros. – Acho que surtei que nem uma menininha
– sorriu encabulado. – Não vou fazer isso de novo, Madame Van
Helsing, prometo que não vou mais atrapalhar.

Raquel cruzou o olhar com o de Jacó, sem saber o que dizer.

– Eu vou pegar um refrigerante para você. Tem ali no furgão.


Deve estar sem gelo, ou até meio quente, mas acho que vai te
ajudar.

Ela caminhou em direção ao furgão aliviada por não precisar


olhar para quem estava pretendendo abandonar. Andando distraída,
de repente algo chamou sua atenção. Os segundos seguintes
pareciam ocorrer em câmera lenta. Jacó viu os músculos da mulher
se retesarem. Ela se virou bem devagar para eles e gritou:

– Fujam!

Então o mundo voltou à velocidade normal e da curva uma


enorme carreta surgiu quase acertando Raquel, que pulou o mais
longe que pôde. Jacó moveu-se o mais rápido que conseguiu e
agarrou a mulher antes que batesse no chão. Enquanto isso, o
enorme caminhão acertava em cheio o furgão, destruindo-o
imediatamente. O veículo seguiu até se chocar contra as árvores na
encosta da montanha.

Enquanto o sol descia no horizonte, o Maverick azul de Carlos


andava pelas ruas do bairro da Mooca. Parou em frente a uma
tradicional pizzaria paulistana, com seu antigo galpão longo e de
esquina. No totem, via-se o logo de um garoto dentuço com boné
para trás e um estilingue na mão, e os dizeres Pizzaria Bambino
Travesso.

Carlos Eduardo desceu do carro e caminhou ao lado do galpão,


vendo a fumaça sair das chaminés e sentindo o aroma adocicado de
lenha queimando. Chegou a uma casa contigua à pizzaria. A
fachada antiga fora pintada e anexada ao galpão, mas os imóveis,
embora ligados por uma porta, eram separados. Carlos respirou
fundo e adentrou na casa. Passou reto pela sala, andou pelo
corredor cheio de ervas e especiarias em vasos e foi direto para a
cozinha. Logo começou a ouvir vozes de mulheres repetindo Ave
Maria. Entrou na cozinha e observou.

Oito mulheres de idade avançada estavam rezando com seus


terços em mãos, todas em um círculo. O delegado fixou os olhos na
senhora que era segurada por duas outras. Era bem gorda, com
cabelos grisalhos, seios enormes e ancas largas. Estava com um
vestido simples e um avental sujo de farinha, assim como os braços
até os cotovelos. Estava com o cabelo desgrenhado e os olhos
vermelhos. Parecia exausta e desconsolada. Quando a oração
terminou, Carlos respeitosamente sussurrou um amém. A senhora
então viu o delegado, levantou-se e chorando o abraçou. Chorou
compulsivamente. Uma das senhoras tentou fazê-la sentar, mas
Carlos não permitiu. Abraçou firmemente a senhora e respirou
fundo, obrigando que as emoções fossem para as profundezas de
seu ser.

– Mio bambino – choramingou a senhora.

Ele segurou-a firmemente pelos ombros.

– Mio bambino, levaram mio bambino – A mulher continuava a


chorar.

O delegado encarou-a nos olhos.

– Dona Domênica, eu prometo que vou encontrar seu filho! –


jurou.
A mulher sorriu entre lágrimas, colocou a mão no rosto de Carlos
Eduardo e o acariciou de maneira maternal.

– Mas que descuido o meu... Você me tá com fome, menino? – a


mulher perguntou com a voz embargada e com seu forte
mooquense, um português cantado como italiano, tão característico
que muitos de fora de São Paulo descrevem esse modo de falar
como o sotaque paulistano.

O delegado sorriu embaraçado. O estômago roncava. Percebeu


que não comera nada o dia inteiro, tão mergulhado estava no
desaparecimento de dois de seus amigos mais queridos de uma só
vez.

Embora Jacó e Vinnie não se conhecessem e fizessem parte de


dois mundos bem distintos, ambos ocupavam um lugar especial no
coração do delegado durão. Jacó era o companheiro de infância,
uma amizade sólida, que enfrentara todo tipo de desafio e que
sempre estaria presente como um alicerce na vida de Carlos
Eduardo.

Vinnie, por outro lado, era um dos poucos que conseguia alegrar
sua vida. Conhecera o repórter durante a investigação de um caso
estranho anos atrás, quando ainda começava a carreira de
delegado. Na época, Vinnie era um adolescente que sonhava em
cursar jornalismo e era aficionado por RPG, ufologia e ocultismo.

Vinnie ajudara Carlos como uma espécie de especialista, quando


o delegado precisou tratar de um assassinato numa convenção de
RPG. Vinnie era um dos organizadores. Na época, ainda não era
uma verdadeira celebridade da internet, com um canal de vídeo com
dezenas de milhares de visualizações. Era só um estudante de
jornalismo fanático por cultura pop, portanto também um dos
principais suspeitos, mas o jovem jurava que era inocente, embora
todas as provas levassem a ele. Somente Carlos Eduardo acreditou
nele, e o crime parecia uma boa oportunidade para o delegado
crescer na carreira, e ele mergulhou de cabeça.
Os assassinos foram encontrados. Dois garotos psicóticos
usaram o universo da fantasia como desculpa para extravasar sua
maldade e acabaram cometendo o crime. Vinnie, liberado de todas
as acusações, ficou indignado, dizendo que pessoas como essa que
“queimavam o filme do RPG”. Estava também frustrado que não era
verdadeiramente uma seita satânica infiltrada em sua convenção.

– Eles existem, sabia? Os satanistas! – falou para o delegado,


enquanto os dois bebiam uma cerveja depois de terem resolvido o
caso. – Não esses caras que acham que são satanistas, mas os
satanistas mesmo, adoradores do bom e velho diabo, saca? Tipo
mantos negros, rituais, comer coração em troca de poderes e tudo o
mais.

Carlos riu. Tomou outro gole da cerveja no gargalo.

– Tem louco para tudo. As pessoas acreditam em cada coisa.

– Mas a verdade, Carlão, é que existe mais nesse mundo que a


gente vê! Demônios, anjos, alienígenas, eles existem; só são
encobertos pelos governos e seitas!

O delegado tomou outro gole da cerveja em silêncio, pensativo.

– As coisas não são o que parecem, Vinicius, mas achar que


alienígenas existem...

– Me chama de Vinnie, Carlão, caramba! A gente é amigo! E


existem sim, e eu vou provar!

– A gente é amigo agora, é?

– Você foi o único que acreditou em mim, cara! Você nunca me


deixou na mão...

“Você nunca me deixou na mão...”

A voz o assombrava. Embora os crimes do Herege tenham


afastado um pouco os dois, Carlos nutria uma verdadeira feição por
Vinnie.

– Vou achar o seu filho, Dona Domênica, prometo! – repetiu. A


senhora sorriu.

– É claro que vai! Mas agora eu me quero saber se você está


com fome, menino! Vem comer. Vou fazer uma pizza do jeito que
você gosta!

Horas depois, quando o delegado saía da casa dos pais de


Vinnie saciado e até um pouco cheio, seu celular tocou. Ele não
reconheceu o número:

– Delegado Carlos Eduardo falando.

– Delegado, aqui é a delegada Souza. Li todo o caso, como o


senhor solicitou – havia certa acusação na voz da policial, que fez o
delegado sorrir.

– Excelente, Souza, mas não precisa me ligar só porque fez sua


lição de casa. Mais alguma coisa?

– Sim. Gostaria de saber como anda o caso. Alguma nova


informação?

– Nenhuma. Informo assim que tiver.

Do outro lado da linha, Carlos pôde ouvir o sarcasmo na voz da


garota.

– Sério? Nenhuma novidade? Também, com esse seu afinco.

– Que papo é esse, menininha? – frisou o adjetivo com todo o


seu desprezo.

– Você fica dando uma de antissequestro e nem dá atenção ao


caso que é de sua jurisdição. Se trabalhasse, saberia que temos
como prever quando será o novo ataque do Herege.
– Sei que ele vai atacar em uns 6 meses, aproximadamente,
mas não há como prever esse ataque. De tivesse lido o caso,
saberia que as datas são aleatórias...

– Engano seu. O Herege não ataca aleatoriamente. Ainda não


descobri quando ele atacará novamente, mas posso lhe assegurar
exatamente quando ele não vai atacar! – a ex-policial, agora
delegada, falou cheia de confiança.

Carlos Eduardo arregalou os olhos. Estaria ela sabendo de algo


que ele não sabia?

– Vamos nos encontrar no DHPP, Souza! – falou desligando o


telefone e entrando em seu carro. O Maverick azul cobalto saiu em
disparada.

Longe dali e alheio a tudo isso, no bairro do Pacaembu, o


delegado Brandão analisava a cena do crime em que Raquel fora
presa. Brandão estudava minuciosamente o local em busca de
qualquer pista. Ficara excitado quando o caso surgira. Um crime tão
brutal e grotesco como os ataques do Herege era exatamente do
que ele precisava para desbancar Carlos Eduardo como delegado
principal da DHPP, título dado aos delegados de homicídio no Brasil.

Brandão nunca perdoara Tucca por ter escolhido o outro, com


menos tempo de casa, para assumir o cargo de chefia. Claro que
Carlos tinha a melhor média nos últimos anos e maior número de
casos resolvidos, mas Brandão tinha mais experiência e, além do
mais, os casos do rival foram fáceis, tanto que agora estava
emperrado com um maníaco. Brandão tinha certeza de que se o
Herege estivesse em suas mãos, já teria resolvido o caso. Ele tinha
que ser o delegado-chefe do departamento, era o seu destino.

O policial permitiu-se sonhar por alguns segundos. Aquele


psiquiatra, como era o nome? William. Ele havia lhe mostrado toda
sua grandiosidade oculta. Brandão percebia agora como estava
destinado a grandes feitos. William oferecera até consultas gratuitas
para despertar no policial todo seu potencial. Brandão sorriu com
alegria; o destino finalmente lhe dera atenção.

Precisava prender essa maluca, essa garota louca que matava


indiscriminadamente adultos e crianças, uma assassina cruel e
sanguinária. Só precisava achá-la. Revisou mais uma vez cada
detalhe da cena, quando seu telefone tocou.

– Brandão – respondeu com voz austera e, ao ouvir o que a


outra pessoa falou, assumiu um olhar cheio de fúria.

– Ele fez o quê? Quem ele pensa que é para fazer isso? – ele
gritava a plenos pulmões, enquanto os outros peritos observavam-
no em fúria. – Pode deixar que vou me acertar com esse babaca.
Desligou o celular aos palavrões e se dirigiu à saída.

Era noite quando Walkyria chegou aos portões da mansão de


seu pai. Identificada pelo segurança, o portão automático foi aberto
e ela entrou com seu carro pela alameda central, dando a volta na
enorme fonte que enfeitava o pátio de entrada da mansão.

A fonte era a escultura de uma mulher alada, numa biga puxada


por quatro cavalos. A mulher segurava um longo cetro, encimado
por uma águia, que repousava sobre uma cruz do sol escandinava,
que se assemelhava a uma cruz dentro de um círculo, mas na
verdade era como se duas letras “S” cruzadas formassem um
círculo vazado com uma cruz ao centro.

A escultura era feita em bronze e era magnifica. Walkyria sempre


se impressionava com os detalhes do rosto da estátua: tinha um
nariz arrebitado delicado, sem perder a força, sobrancelhas fortes
curvadas e marcantes. O rosto tinha o formato de diamante e os
olhos eram felinos. A boca era bem desenhada, com lábios finos e
protuberantes. Os cabelos eram longos e esvoaçantes. Walkyria
sempre pensava na mãe falecida ao ver a estátua imponente.
Ela entrou na sala e dirigiu-se para a sala de jantar. Ouviu vozes
em conversa e logo chegou ao seu ouvido o timbre de uma criança
especial:

– Waaaal! – um menino de cabelos castanhos escuros e olhos


azuis correu em sua direção. Tinha dez anos, era franzino e
delicado. Ele pulou nela e a abraçou com força enquanto lhe dava
vários beijos estalados na bochecha. Walkyria abraçou o menino
com ternura e assim ficaram por alguns minutos.

– Poxa, maninha, que saudades! – ele falou entusiasmado.

– Oi, Dô! Como você está, meu anjo? – Walkyria retribuiu os


beijos do irmão.

– O Adolfo está excelente, Wal querida. Suas notas são as


melhores e ele melhora sua pintura a cada dia, não é mesmo, meu
bebê? – A voz afetada da madrasta veio de encontro aos seus
ouvidos e rapidamente fechou a cara. A mulher continuou: – E você,
minha querida, cortou seus cabelos de novo? Já lhe disse que você
não deveria cortá-los – falou meneando a cabeça. Walkyria olhou
para a esposa de seu pai sem disfarçar o desagrado. Madalena
estava impecável, num vestido azul petróleo justo e elegante que
Walkyria sabia ser assinado por algum famoso fashionista, assim
como o colar de pérolas e todas as outras joias. A madrasta sempre
ostentara, e talvez por desprezar tanto a mulher Walkyria também
desprezava joias e luxo como um todo.

Ignorando a madrasta, Walkyria olhou para a sala de jantar e


sentiu seu estômago virar. O pai estava lá comendo e conversando
com o seu secretário e com o homem que ela mais desprezava no
mundo: William, melhor amigo do pai.

– Pai, já tem alguma notícia do Jacó? – Walkyria continuava


parada na porta da sala sem entrar, mesmo com os puxões
incessantes do irmão. Madalena olhava para ela com seu sorriso
mais doce e convidativo.

O prefeito André Marcos, que continuava comendo, sem olhar


para a filha falou secamente:

– Ocupe seu lugar à mesa, Walkyria.

A garota manteve-se firme.

– Primeiro quero saber do... – Mas não terminou a frase. O pai


simplesmente levantou o olhar, focando diretamente nos olhos da
filha, que sentiu seu corpo gelar como se mergulhada em água
congelada e quase involuntariamente se sentou à mesa.

O jantar transcorreu sem mais conversas da parte de Walkyria,


que parecia não existir, exceto para o irmão, que tagarelava
incansavelmente sobre a escola, as aulas de artes e o sonho de ser
um pintor famoso. O pai ignorava-a totalmente conversando com os
dois outros homens na mesa e a esposa, como se a filha fosse
invisível. A angústia de Walkyria crescia.

Ao término do jantar, os criados tiraram os pratos e serviram a


sobremesa, a angústia de Walkyria agora se tornando um choro
contido.

– Pai – Walkyria falou.

– Agora não – respondeu secamente André Marcos.

Depois da sobremesa, novamente os criados retiraram os pratos


e trouxeram o café. André Marcos continuava discutindo sobre a
segurança da cidade. Walkyria, exasperada, não aguentou mais e
gritou:

– Pai!

Houve silêncio e todos pararam de falar. Walkyria tentava


segurar o choro, mas não conseguia.
– Pai, por favor, estou desesperada, me ajuda! – Walkyria
começou a falar rápida e freneticamente.

– Já basta!

André Marcos deu um soco na mesa e Walkyria calou-se.

– Deixem-nos todos vocês! – o prefeito ordenou.

Madalena pegou o filho pela mão. Adolfo deu um último olhar


entristecido para a irmã e foi junto com a mãe. O secretário saiu
apressado. William primeiro levou o guardanapo aos lábios,
levantou-se tranquilamente, sussurrou algo no ouvido de André
Marcos e saiu.

Walkyria e André Marcos ficaram sozinhos e em silêncio por


mais alguns segundos, até que o prefeito falou.

– Você acha que alguém como eu tem tempo para resolver os


seus problemas na hora que você quer?

– Mas – Walkyria tentou responder, no entanto seu pai ergueu a


mão.

– Acha que a coisa mais importante da minha vida é dar atenção


ao sumiço do seu namoradinho? Ele mesmo fez tudo o que não
devia e se ofereceu gratuitamente para ser um refém!

– Pai - Walkyria gemeu. André Marcos deu outro soco na mesa.

– Engula esse choro! – vociferou.

– Não criei você para ser uma idiotinha que choraminga por
causa de um homem qualquer! Está na hora de você entender que
pertence a uma estirpe diferenciada. Dentro de suas veias corre um
sangue ancestral e poderoso, que não deve ser humilhado dessa
maneira com sentimentos tão banais – André Marcos se levantou.
Tinha um olhar de fúria gélida enquanto falava com a filha, que o
encarava chocada.
O prefeito ergueu a mão e a desceu com força no rosto da filha.
O tapa ecoou pela sala.

– VOCÊ É UMA RAINHA! Eu a criei para governar e não para


viver à sombra de um homem! – Ele gritava as palavras a plenos
pulmões.

Walkyria, incapaz de reagir, começou a chorar. André Marcos


ficou em silêncio e deu as costas para a filha. Na sala só se ouvia o
choro desconsolado da garota devastada.

– Eu irei encontrá-lo. Talvez demore alguns dias, mas ele estará


são e salvo em seus braços em breve – falou ainda de costas para
ela.

Walkyria chorou mais, mas agora estava aliviada. Levou as mãos


ao rosto.

– Mas não farei isso por você. Farei isso porque eu tenho o
poder de fazê-lo! – Virou-se para a filha. – Farei isso porque você é
fraca para fazê-lo! Farei isso porque você deveria ser capaz de
fazer! Se honrasse o sangue sagrado que corre em suas veias, você
já teria feito!

Walkyria se encolheu e olhou para o pai, que parecia um gigante


diante dela. Sentia-se pequena e frágil. O rosto formigava e ela
sentia que ele começava a inchar.

– Eu não sou assim pai... Não sou você...não quero ser que nem
você

– Mas você será! Se quiser seu amado, você será! Pois trarei ele
de volta, Walkyria Haushofer, mas tenho um preço.

Walkyria respirou fundo, engolindo o choro. Olhou para o pai.

– Quero que assuma seu lugar de direito em nossa família. -


André Marcos falou com frieza.
Jacó contou quinze homens.

O psiquiatra puxou fundo o ar depois de ficar sem respirar até


aquele momento, horrorizado. Viu quando as portas da parte
traseira da carreta acidentada se abriam e um verdadeiro batalhão
desceu para capturá-los.

Quinze homens armados com tasers, cacetetes e armas de gás


lacrimogêneo.

– Armas não letais. Querem nos capturar, não matar – pensou.

Eles estão zonzos da batida, possivelmente com o tórax


machucado por causa dos cintos de segurança, que os mantiveram
vivos. Foi uma manobra suicida.

– Esses caras não têm medo de morrer – concluiu.

Os pensamentos pipocavam em sua mente nos poucos


segundos em que Raquel, desesperada, tentava fugir, e Vinnie,
encolhido num canto, tentava entender o que tinha acontecido.

– Jacó, deitado, agiu rapidamente. De costas para o chão, jogou


as pernas para o alto e apoiou as mãos atrás da cabeça, num
movimento acrobático típico de lutadores e colocou-se de pé.

– Para a floresta! – gritou, enquanto partia para cima de um dos


homens armados, ainda atordoado pela colisão.

Jacó escolhera o terceiro homem, que estava com a mão sobre


as costelas. Atacou rapidamente, socando com extrema violência a
costela do homem já machucada e ouviu o estalo quando ela se
partiu.

Prendeu o fôlego, arrancou a arma de gás da mão do inimigo,


apontou para a cara do segundo e atirou, derrubando-o. Num chute
giratório, escapou do taser do primeiro, levando-o ao chão.
Voltando a arma para onde estavam os homens, deu três
disparos, enchendo o ambiente com gás.

Soltou o ar enquanto se virava para a floresta. Viu para onde


Raquel e Vinnie fugiam e gravou em sua memória. Disparou à sua
frente mais dois tiros, fechou os olhos e correu em sentido da
fumaça.

Depois de dez passos, abriu novamente os olhos e sentiu-os


arder. Olhou para trás e não conseguia ver os homens. A
camuflagem o ajudaria a fugir. Apertou o passo e foi atrás dos dois.

Logo os encontrou, porque faziam muito barulho. Agarrou


Raquel e cobriu-lhe a boca; olhou para Vinnie e pôs o dedo sobre os
lábios.

– Vocês fazem muito barulho. Venham por aqui.

Puxando Raquel pela mão, começou a guiá-los pela floresta.

– Ganhei tempo, mas logo estarão atrás de nós. Precisamos nos


camuflar.

– Para onde iremos? – Raquel estava quase histérica.

– Temos que dar a volta. Estamos indo montanha acima. Eles


são muitos; vão nos encontrar. Precisamos da gravidade a nosso
favor. Vamos descer, mas precisamos primeiro enganá-los. Sigam-
me e façam exatamente como eu faço.

Nos primeiros 500 metros, correram desembestados pela mata.


Ouviam o grito dos homens atrás, então de repente Jacó parou.

– Agora devagar e me sigam!

Voltou pela trilha uns dez metros, virou abruptamente à sua


esquerda e colocou os dois no meio de arbustos.
– Não deem um pio; esperem eu voltar! Vou enganá-los. Não se
mexam até que eu volte.

Voltou para a trilha e continuou quebrando galhos e seguindo em


frente embaladamente.

Dois minutos depois, os homens começaram a aparecer. Raquel


tampou a respiração, Vinnie fechou os olhos e rezou em silêncio. Os
homens passaram a quase 10 metros dali sem notá-los.

Ficaram ouvindo os homens se afastarem, e depois somente


silêncio. Raquel e Vinnie estavam com medo, queriam sair de lá,
mas Jacó não voltava.

Quando pareceu a Raquel que mais de dez minutos tinham se


passado, ela percebeu que não poderia esperar mais. Olhou para
Vinnie e mexeu os lábios sem emitir som: – Vamos... – e indicou a
direção com a cabeça. Vinnie balançou a sua vigorosamente em
negativa. Raquel estava a ponto de deixá-lo quando alguém a
agarrou por trás. Era Jacó. Vinnie quase gritou, mas, com muita
força de vontade, segurou o grito.

Ele pegou Raquel pela mão.

– Pegue ele – falou. – Em fila indiana, tentem pisar exatamente


onde piso.

Desceram a montanha fugindo da estrada, se embrenhando


cada vez mais na mata, Jacó como guia.

– Temos que ir mais rápido! – Raquel falou.

– Não. Eles estão sem cães, o que significa que só a floresta


pode dizer onde estamos. Quanto menos marcas deixarmos, mais
dificil será seguir nossa trilha. Possivelmente só a acharão de
manhã, porque sob as árvores é mais escuro e em breve o sol
começará a se pôr. Já estaremos bem longe quando puderem nos
seguir com mais facilidade. Sei o que estou fazendo. Vou mantê-la a
salvo – falou olhando direto nos belos e redondos olhos castanhos
dela.

– Sei disso! Confio em você, Jacó!

Continuaram assim por quase duas horas. A luz do sol já havia


praticamente desaparecido quando Vinnie começou a ofegar alto.

– Por favor, não aguento mais. Podemos parar só um


pouquinho? – Vinnie sentou e colocou as mãos sobre os joelhos
curvados de cansaço.

Jack parou, olhou em volta e foi até Vinnie.

– Como você está? – colocou a mão sobre seu ombro. Sua voz
mostrava uma preocupação real.

– Can... sado... de... mais – falou ofegante.

– Ok. Pararemos em breve. Você está fraco por causa da


convulsão, mas ainda não podemos parar. Venha, vou levá-lo.

Pegou Vinnie, colocou-o nas costas e seguiu em frente.

Seguiram aproximadamente mais um quilômetro serra abaixo,


quando Jacó viu uma pequena gruta. Ele entrou e colocou Vinnie
sentado no chão. O repórter estava exausto, assim como os outros
dois. As costas de Jack doíam. Ele as alongou e virou-se para
Raquel.

– Estamos suados. Quero que você o abrace, ok? Os corpos de


vocês servirão de aquecedor até eu acender um fogo.

– Mas se você acender uma fogueira eles nos verão.

– Não. Sei fazer fogueira camuflada. Fará muita fumaça, mas já


é noite e eles não verão. Passaremos um tempo aqui e seguiremos
daqui a algumas horas.
– Mas eles vão nos achar!

– Vão rodar em círculos. Precisam da luz do dia. Sairemos antes


do amanhecer, mas precisamos descansar nossos corpos. Acalme-
se. Volto já.

Ele saiu dando as costas aos dois e voltou depois de meia hora
com vários galhos.

O problema de uma floresta tropical é a alta umidade, que


dificulta acender uma fogueira. Porém, isso não parecia atrapalhar
Jacó. Primeiro ele cavou um buraco com pouco mais de dez
centímetros. Depois molhou o dedo e sentiu de onde vinha o ar.
Seguindo a direção do vento, cavou outro buraco mais raso que o
anterior e fez uma espécie de rampa entre os dois. Encheu o buraco
maior com gravetos e depois criou uma chama e a colocou no
buraco. Logo eles estavam aquecidos pelo fogo.

– Pronto. Agora podemos descansar. Temos o calor das chamas,


sem a luz para nos revelar. Amanhã iremos para a cidade e
daremos um jeito de fugir.

– Ok! – Raquel respondeu.

Vinnie tinha adormecido, tamanha a exaustão. Raquel parecia


cansada também. Jacó olhou para ela:

– Pode dormir. Eu faço a vigília.

– E se você cair no sono? – ela disse sorrindo.

– Não vou. Um bom soldado cuida do seu pelotão. Vocês são


meu pelotão agora – deu uma piscadela.

Ela sorriu, aninhou-se na parede da gruta e adormeceu. Algumas


horas depois, acordou com frio. Jacó continuava colocando lenha na
fogueira, mas a madrugada na selva estava fria.

– Esfriou – ela disse.


– Sim – ele sorriu para ela.

– A selva à noite não é tão fria quanto o deserto, mas fica bem
gelado por causa da umidade. Aproxime-se mais do fogo. As
mesmas paredes que seguram a luz retêm parte do calor.
Precisamos ficar mais perto se quisermos ficar aquecidos. Ela se
aproximou dele e aproximou as mãos das chamas.

– Por que eles estão atrás de você? – Jack perguntou


finalmente.

Ela respirou fundo e não respondeu de imediato. Ele esperou,


depois desitiu da pergunta.

– Lembra da família que matei? – ela falou encarando as


chamas.

– Lembro.

– Não sei se você vai acreditar no que vou dizer...

– Olha, Raquel. Vi você atropelar um homem que se levantou e


nos perseguiu a mais de oitenta por hora, mesmo com quase todos
os ossos estavam quebrados. Vi adolescentes góticos tentarem me
matar e finalmente tem um pequeno esquadrão suicida atrás de
você. Acredite: nunca estive com a mente tão aberta.

Ele sorriu para ela, e ela retribuiu o sorriso. Teve um calafrio com
o vento gelado, se aproximou mais do fogo e começou a falar.

– Vi a menina primeiro. Pude sentir que havia algo de estranho


nela.

– Como assim? – Jack perguntou.

– São os olhos, sabe? Quando olho para eles, é como se fossem


de vidro, sem vida. Passei a acompanhar a família. Nada no
comportamento indicava que eram monstros. Ninguém os
reconheceria, porque sabem fingir muito bem. São nos detalhes que
você percebe. A dieta mudou. Eles sempre pediam pizza, mas
pararam. Sempre que saíam iam a churrascaria, a nenhum outro
tipo de restaurante. E as reuniões... Todas as noites havia
reuniões...

– Reuniões? – Jack estava confuso.

– Sim. À primeira vista, parece uma festa inocente, mas é só


fachada. Eles estão escolhendo as vítimas. As festas parecem
iguais, mas não são. Eles escolhem aqueles que vão ser alimentos
e os que serão transformados.

– Transformados?

– Sim – os dentes dela batiam sem parar. Jack também tremia


muito.

– Tá muito frio – ele falou.

– Não é normal por aqui fazer tanto frio? – Raquel perguntou


preocupada.

– Sei lá. Nunca acampei por aqui, mas devemos estar abaixo de
dez graus. Está muito frio para essa época.

– Droga! Precisamos ir! – ela sacudiu Vinnie.

– Acorde! Acorde!

– O que foi? – Jack perguntou, mas a mulher só estava


preocupada em acordar o repórter. Com um safanão violento, ela o
despertou.

– Eles estão aqui!

Vinnie despertava assustado, e Raquel tinha os olhos


arregalados. Jack estava perdido, sem entender, então os três
sentiram.
Jack não sabia dizer exatamente o que estava acontecendo,
mas sentiu todo seu corpo se encolher, como se entrasse debaixo
de uma cachoeira gelada. Então pôde ouvir passos pesados se
aproximando. Pensou que fosse um animal selvagem, como um
grande gorila ou algo ainda maior.

Depressa, jogou terra em cima da fogueira, buscando escondê-


la. Seu interior parecia se contrair, a ponto de sentir a carne se
soltando dos ossos, como se encolhessem. Tudo parecia acontecer
muito devagar e vertiginosamente depressa, não sabia precisar. Sua
mente ordenava a ele que corresse em disparada, mas as pernas
estavam fixas em seu lugar, como se ele fosse uma árvore
enraizada.

Ele se lembrava de um único dia que o fazia se sentir dessa


maneira no passado, um dia no exército, dia que mudou sua vida. E
ele odiava se sentir assim, mas havia algo lá fora, uma presença
fisica de algo aterrador.

O médico se preparava para sair quando Raquel o segurou. – É


tarde demais. Tem alguém aqui!

Jack pôde ouvir os passos pesados cada vez mais próximos.


Procurou a arma de gás, agora sem projéteis, que ele mantivera
para usar de porrete. Raquel o segurou. – Por favor, não se mexa –
ela falou. Jacó olhou para ela: – Tenho que proteger vocês.

Raquel segurou o rosto dele com as duas mãos: – Lembra que


eu falei que seus conhecimentos são inúteis no meu mundo? Por
favor, confie em mim! Não se mexa! – pediu, e, sem entender ao
certo o porquê, o psiquiatra obedeceu. Raquel foi para a frente da
gruta, ajoelhou-se, elevou as mãos aos céus e começou a
murmurar.

Jack aproximou-se de Vinnie, que estava assustado encolhido


num canto, segurou a arma pelo cano e preparou-se. Os passos
continuavam cada vez mais próximos. A noite era um breu absoluto.
Jack só conseguia ver os contornos das árvores e de Raquel à sua
frente. A gruta estava em uma escuridão absoluta. Ninguém os veria
lá dentro, mas Raquel estava no limiar dessa escuridão, portanto
seria vista se alguém se aproximasse muito.

Ele queria fazer algo, puxá-la para dentro. Uma voz dentro de
sua cabeça o mandava agir, mas sempre que pensava em fazer
algo era como se ouvisse outra voz dizendo:

– Acalme-se.

Viu que algo se aproximava. Parecia um homem enorme, ou


talvez um gorila, embora andasse ereto. Rosnava, isso ele podia
ouvir, e parou na frente da gruta.

Jack podia ouvir sua respiração rosnante, como um urso


gigantesco, ou algo ainda maior. Raquel continuava murmurando,
sem se dar conta do perigo. O médico segurou com mais firmeza a
arma na mão, preparado para atacar. Vinnie encolheu-se mais ainda
à sua esquerda, aterrorizado. A criatura olhou na direção deles com
os olhos reluzindo, como os de um gato que reflete a luz. Jack
sentia que seu coração ia explodir. A criatura olhava para eles, mas
não parecia enxergá-los. Ela deu mais um passo para frente e Jack
decidiu se pôr de pé.

Então sentiu uma mão em seu ombro direito. Teria Vinnie se


levantado? Sentiu uma paz inundar seu coração, um sentimento tão
profundo e dominante que sua mão afroxou o aperto na arma.
Sentia-se seguro, guardado, protegido.

A fera deu ainda mais dois passos à frente e ficou a menos de


um palmo de distância de Raquel, farejou o ar, então virou-se e foi
embora. Raquel continuou seus murmúrios numa língua que ele não
entendia. Lembrava-lhe a sonoridade do árabe.

Vinnie se mexeu à sua esquerda.

O perigo passara.
A sensação de segurança também.

Jack sentia-se sozinho...


Capítulo 6

E a cidade de Khanokh conheceu sua era de ouro nos anos que se


seguiram ao nascimento de Barashemesh. Os anos de sua infância
foram bons, pacíficos e alegres. Shamsiel e Zillah viveram felizes
enquanto seu filho engatinhava. A Feiticeira tornou-se ainda mais
poderosa e respeitada na região, sendo versada nas artes da
magia, em suas formas mais poderosas, e ensinou algumas
escolhidas para dar continuidade a sua arte.

Barashemesh era uma criança maior que os maiores da cidade,


sua pele tinha a cor do bronze, os cabelos refletiam a glória de seu
pai e corriam pelas costas musculosas em matizes de ouro e
sangue. Os olhos brilhavam como o céu de primavera. Suas mãos e
pés eram grandes e possuíam seis dedos. Muitas foram as
mulheres que desejaram o belo rapaz antes mesmo que ele
entendesse o que era desejo, e, quando entendeu, não deixou
nenhuma delas insatisfeita.

Era um guerreiro poderoso e cavaleiro habilidoso. E aprendia


vários segredos com seu pai, que, embora não lhe oferecesse muito
afeto, não lhe negava o conhecimento.

O Senhor do Sol aliou-se ao Senhor Escuro da cidade e juntos


desenvolveram confortos e prazeres aos moradores. Shamsiel
ensinou-lhes a música, a dança e todas as artes e ofícios que
tornam a vida mais agradável; ensinou às pessoas também os jogos
atléticos, a caça, a contemplação da natureza e a percepção de
suas belezas próprias, e todo dia parecia um dia de festa. Logo
muitos ouviram falar da misteriosa e imponente cidade de Khanokh
e migraram para lá em busca de uma vida de fardos mais leves e
prazeres fugazes. E diziam que era melhor viver em Khanokh que
em qualquer paraíso construído pelos deuses.

Tamanha fama foi boa para Khanokh, mas não tão boa para o
jovem Barashemesh, pois para lá se dirigiam estrangeiros, e muitos
que a visitavam voltavam ao lar cantando as maravilhas da terra de
Qayin e do glorioso deus solar que por aquelas bandas habitava. E
um ano antes do seu ritual de passagem para a vida adulta, a boa
sorte de Barashemesh começou a findar, pois, num dia
tempestuoso, lá chegou um estranho. A água corria e se acumulava
nas ruas e telhados da cidade subterrânea e muitos lares já haviam
sido alagados. Todos tentavam salvar seus pertences ou proteger-
se da enxurrada, com exceção do estranho, que caminhava
tranquilamente com as mãos às costas em direção do palácio.

Ele entrou como se convidado e àqueles que tentaram impedi-lo


bastou um olhar para que mudassem de ideia. Parou apenas
quando encontrou aquele que viera visitar: o grande e reluzente
Shamsiel, sentado em um trono dourado ao lado do trono escuro do
senhor da cidade.

– Olá, irmão – falou com uma voz trovejante, e muitos na sala do


trono não souberam se o homem falara ou se um trovão rasgara o
céu.

– O que vieste fazer aqui, irmão meu? Apenas apreciar a beleza


da cidade que criamos a nossa imagem e semelhança, como muitos
outros, ou vieste juntar-te a nós? Seria de bom grado que Vossa
Senhoria, o maior entre os de nosso povo, aquele que enfrentou o
Criador e que por vontade própria assumiu o título de Rebelde e o
nome de Infame, vós, que a tudo se opões e que a ninguém se
submetes, dissesses o que viestes fazer aqui.

E quando falava, o local lampejava, e mesmo Qayin, em toda


sua glória, temeu aqueles seres, pois Shamsiel já era maravilhoso e
terrível de se ver em toda sua majestade solar, e aquele a quem ele
se dirigia parecia ainda maior! Era alto, mais alto que qualquer
outro, chegando à altura de quatro homens, e trajava-se em mantos
alvos e nobres. O peito era nu e sem pelos, mas no rosto exibia uma
longa cabeleira escura e uma barba farta. Seus olhos tinham o
negrume de um céu em dia chuvoso e a tez era também escura,
não como a do senhor da cidade, mas como a cor da nogueira.
Algumas madeixas tinham um tom de prata e se misturavam à
cabeleira. Seu olhar era severo, mas também sábio, como de
alguém que já vivera muito. De fato, tal ser era ainda mais velho que
a terra em que colocava os pés.

– Irmão, vim aqui em paz – pronunciou tirando as mãos das


costas e erguendo-as de forma apaziguadora. – Trago-te um
memento de outra era – e então jogou a seu irmão reluzente uma
pequena rocha não maior que uma maçã.

O senhor reluzente ficou ali encarando aquela pedra por uma


eternidade e, quando falou, sua voz era pálida e infeliz.

– Por que me trouxeste isso? Que quereis dizer com essa


lembrança amarga do passado? – indagou.

– Venho com esta pedra para lembrar-te de nosso sacramento! –


respondeu.

Houve silêncio na sala. O cintilante contemplava seu irmão.

– Sois o maior dentre nós. Por que vieste até mim? O que
aconteceu que lembraste de mim, que nunca quis tal voto?!

O forasteiro sorriu, mas era um riso cheio de malícia e sem


bondade. Seu olhar vagou pela sala até que parou sobre a bela e
misteriosa Zillah. Ele moveu-se e, mais depressa que um piscar de
olhos, ele surgiu diante da bruxa, como se deixasse de existir onde
estava e surgisse novamente diante dela. O terror percorreu a sala
do trono, e mesmo o senhor escuro impressionou-se com o
estranho. Ele sorria ao observar a feiticeira, que enfrentou seu olhar.
Não temia o estranho, mas sentia seu poder esmagador
subjugando-a à total imobilidade.
– Ora, irmão, como podes dizer tais perjúrios se a razão de teu
voto é tão esplêndida e encantadora? Não está diante de mim
aquela por quem abriste mão de tua sagrada forma e condenaste a
ti mesmo quando assim juramos na montanha que escolhemos
como berço de nossa queda? Escolheste, como todos nós, ser um
pária entre nossos irmãos em troca do amor, irmão. Desfrutaste,
como posso bem ver em tua prole viril. Porém, agora é chegada a
hora de te submeteres ao julgamento. O Criador falou e sentenciou-
nos ao tomento eterno.

O fulgente fraquejou e pareceu perder parte de seu brilho.


Quando tornou a falar, sua voz era sem vida.

– Quer dizer que o Criador finalmente se fartou de nossos


pecados e decidiu condenar-nos ao tormento eterno? Sabíamos que
esse dia chegaria. Só gostaria de que tardasse mais, mas que seja.
Aceitarei minha sina!

– Aceitar? E desde quando somos seres que acatam ordens, se


foi nossa rebeldia que trouxe tal julgamento sobre nós? Foram
nossos desejos e anseios de liberdade que enfureceram o Criador e
agora, quando ele decide punir-nos por nossas escolhas, aceitamos
o tormento eterno como servos? Aquele juramento não só nos
condenou a esse momento, meu irmão. Aquele juramento deu-nos a
soberania de nosso destino e o governo de nossos passos. Eu digo
agora, irmão, que não nos submetamos, mas nos insubordinemos! –
bradou, e raios e relâmpagos rasgaram os céus, rachando a terra e
esmigalhando a coragem dos homens. Shamsiel, o Reluzente, no
entanto, animou-se e colocou-se de pé sorrindo.

– Como faremos, irmão?

– Vem comigo e far-te-ei soberano sobre o céu como jamais


foste antes! Nossos irmãos e eu edificamos um local para nossa
adoração e lá erigiremos a aurora de nosso governo! E seremos tão
temíveis que, se o altíssimo e seus servos ousarem se levantar
contra nós, derrubaremos a todos!
– O que precisas que eu faça? – perguntou.

– Acompanhame, irmão. Deixa tudo para trás e vem ter conosco


em nosso domínio. Assume teu lugar de direito e brilha altaneiro em
tua carruagem de chamas!

E assim aconteceu. Shamsiel partiu sem olhar para trás, sem


derramar uma lágrima de arrependimento. Partiu sem dizer adeus à
mulher que um dia deflorara e amara, sem um adeus ao filho, que
clamava pelo pai. O fulgente estava faiscando de confiança e alegria
e, em seu fulgor, não ouviu o choro do menino quase homem que
chorava como qualquer criança que visse seu pai partir para nunca
mais voltar.

Dizem que Zillah sofreu. Alguns falam que até mesmo o senhor
escuro entristeceu-se com a partida. Após o abandono do Senhor
do Sol, o homem escuro passou mais uma vez a vagar e talvez
tivesse vagado para sempre, se não fosse o despertar de seu
descendente. Pois, dois anos depois da partida de Shamsiel,
Lamech finalmente despertou curado.

A notícia espalhou-se pela cidade como fogo em capim seco.


Todos temiam sua reação quando descobrisse que havia ficado
desacordado por duas décadas. Porém, ao sabe-lo, o herdeiro de
Khanokh pareceu resignado.

– O tempo perdido foi resultado de minhas ações descabidas.


Plantei durante anos egoísmo e maldade, que floresceram em meu
ser, mas o sono me trouxe mansuetude. Não viverei mais para meus
próprios desejos, mas servirei a cidade que resido, e um dia, se for
a vontade de meus ancestrais, governarei.

E isso foi o que ele fez. Organizou os homens conhecedores de


armadilhas e habilidosos com o arco, e a carne passou a fluir na
cidade como se fosse colhida e não caçada. Era também o vigia das
fronteiras. Perseguia qualquer bandoleiro ou criminoso na região e,
ainda fora dos muros da cidade, julgava-os e executava-os. Tornou-
se implacável.
Não se dirigiu uma vez sequer a Zillah ou a sua prole. E os
habitantes da cidade diziam que um novo homem havia surgido
daquele sono. Lamech aos poucos ganhava mais e mais
admiradores.

Um dia, quando uma grande seca feriu as plantações e


afugentou os animais, Lamech chegou diante do Senhor Escuro e
pleiteou:

– Oh pai de todos. Sei que lhe falhei muitas vezes, mas nossa
cidade sofre com essa seca e em breve não teremos o que comer.
Rogo-te que permita que me afaste da cidade em busca de alimento
e só retorne quando encontrá-lo.

O grande Qayin aquiesceu e o caçador partiu com um punhado


de seus servidores fieis, mas, quando ia partindo, Barashemesh,
que pouco sabia das querelas de sua mãe com o Príncipe e
admirava-o por sua força e bravura, o abordou, ajoelhou-se e pediu-
lhe que deixasse segui-lo.

– Oh senhor Lamech. Sou Barashemesh, filho de Zillah, a


feiticeira, e peço-te que me aceites entre os teus nessa empreitada!

Uma sombra negra passou pelos olhos do futuro governante, e


suas palavras foram ásperas e geladas.

– Afasta-te de mim, abominação celeste! Nunca mais me dirija a


palavra! – e Lamech partiu junto de seus asseclas.

A seca continuou por quase uma década, e Lamech não


retornou. A ausência do Reluzente e de toda a sua sabedoria fez
com que Zillah fosse atrás de conhecimentos ainda mais ocultos, na
tentativa de abrandar as dificuldades, enquanto a cidade
desenvolveu novas técnicas de irrigação, assim como outras
estratégias para restaurar o equilíbrio, mas nada era capaz de
vencer a fúria do sol, que parecia ter se esquecido da cidade, assim
como seu condutor o havia feito. Foi nessa época de sequidão que
Barashemesh deixou de ser criança e tornou-se homem, ajudando
Qayin e sua mãe no auxílio às pessoas.

Muitos morreram nessa época, e os que restaram acreditavam


que Lamech encontrara seu fim nos desertos vizinhos. Por outro
lado, olhavam para Barashemesh com respeito e admiração, uma
vez que o jovem homem tornara-se influente e poderoso; tornara-se
um gigante, o maior entre os homens, com a estatura equivalente a
três humanos; era mais forte que uma manada de touros e mais
veloz que um cavalo, e usara todas as suas habilidades para manter
vivo o povo de Khanokh. E diziam que somente ao raiar do dia que
o valente parava sua labuta e admirava o amanhecer.

A seca, no entanto, era cada vez maior, e todos perdiam a


esperança. Mães choravam vendo seus filhos moribundos, pastores
sacrificavam seus animais mais fracos para que os fortes não
precisassem dividir a água.

Quando a cidade encontrou seu limite, surgiu Zillah! A feiticeira


caminhou entre aquele povo sedento e desesperado, e mandou
reunir toda a lenha que pudessem. E assim eles fizeram, mas
alguns questionavam de que serviria o fogo se era por água que
clamavam. Zillah, contudo, falou com firmeza:

– A água não atenderá, e nem mesmo virá se não pelas chamas,


pelas cinzas e principalmente pelas lágrimas. Farei do céu água
verter!

E muitos ficaram confusos, e a confusão foi aos poucos cedendo


lugar ao temor. A feiticeira fizera uma grande pira e perguntavam-
lhe:

– E o que ofereceremos em holocausto? Pois aqui vemos de


onde virão as chamas e as cinzas, mas não as lágrimas.

Como em uma sentença, ela pronunciou:


– Trazei a mim as crianças, aquelas ainda de peito, e os infantes
que choram sedentos – e assim as crianças mais novas de Khanokh
foram levadas à mulher, sob gritos de desespero de mães que
perdiam seus filhos e clamavam por misericórdia. Zillah prendeu as
crianças sobre a pira e acendeu as chamas, que irromperam
selvagens e famintas devorando a tudo. E quando o grito
desesperado das crianças em chamas uniu-se ao clamor das mães
desconsoladas, o céu escureceu com a fumaça e cinzas que
subiam. O calor das chamas, a fumaça escura e o clamor das mães
agora sem filhos cobriram os céus, e finalmente a chuva caiu.

Pessoas morreram e muitas mães lamuriosas jogaram-se nas


chamas para assim partir com seus rebentos, e outras nunca
pararam de chorar, mas, por mais amarga que fosse aquela água,
todos beberam dela com avidez, e assim Khanokh sobreviveu,
continuou e, mesmo entre as dificuldades, prosperou. E
Barashemesh cresceu ainda mais em respeito e admiração por
todos na cidade. Tomou para si uma jovem e com ela teve doze
filhos, todos belos e poderosos.

Zillah usara muito de seu poder para salvar a cidade, e muitos


feitiços e encantamentos foram realizados, assim como muito
sangue derramado, mas ela ainda era a mais formosa e poderosa
mulher. Por sua grande sabedoria, fora-lhe concedido um lugar no
conselho de anciões, e todos respeitavam sua sabedoria e pediam-
lhe conselhos.

Nessa época, estava abaixo somente do Senhor Escuro e muito


tempo passavam juntos, o que o incentivou a se aproximar
novamente da cidade. Assim, não foi surpresa quando o grande
Qayin e a poderosa Zillah passaram a compartilhar do mesmo leito,
mas ela não lhe deu filhos.

– Muitas mães perderam seus filhos naquele dia de sequidão e


dor, mas eu fiz a maior das ofertas, pois meu ventre nunca mais
gerará criança alguma; assim jurei a terra! Este, meu companheiro,
foi o preço por Khanokh e, com esse pagamento, agora todos em
nossa cidade são meus filhos – mas amava o filho de seu primeiro
amor, o único fruto de seu ventre, como a ninguém mais.

Anos mais tarde, Qayin tornou a vagar pelos desertos e savanas


e raramente era visto, recaindo sobre Zillah e seu filho o governo da
cidade.

Um dia, quando a seca começava a ser esquecida, um viajante


trouxe notícias ainda mais alarmantes. Nas regiões vizinhas,
bandidos matavam e massacravam. Matavam aqueles incapazes,
violentavam as mulheres e escravizavam as crianças. Era um grupo
poderoso, controlado por um homem que se vestia de ferro e tinha
uma lâmina escura e letal. Vinha em direção de Khanokh e por onde
passava deixava uma trilha de destruição e morte.

Até aquele momento nunca se havia ouvido falar de algo assim.


O mundo era um local grande e as tribos eram pacíficas, mas a
guerra sempre bate nos portões daqueles que querem paz. E sem
saber como ou o que fazer, o jovem regente tomou um grande arco
e conclamou os mais fortes da cidade para irem até as fronteiras
esperar o inimigo.

Qual não foi a surpresa de Barashemesh ao saber que aquele


que a tudo devastava era Lamech, o conquistador, que não viera
destruir a cidade, mas enchê-la com seus espólios! Os cidadãos
sorriram aliviados e aproveitaram os tesouros trazidos. Animais
desconhecidos, alimentos exóticos e toda sorte de adornos e
ferramentas. E Lamech não estava sozinho, mas constituíra família.
Sua mulher chamava-se Adah e tinham um filho de nome Yabal, e,
com sua família, Lamech trouxera seu maior presente à cidade:
escravos! Centenas ou milhares, tratados como gado ou
ferramentas.

– Povo de Khanokh, ouvi-me! – bradou Lamech. – O Tirano e


Criador condenou nossos ancestrais a vivermos do suor de nossos
rostos, mas eu vos digo que semearemos o solo e conquistaremos
tudo o que a terra pode nos oferecer com o suor de outros!
Daqueles mais fracos e menos dignos de nós. Somos o povo
destinado a governar essa terra e todos deverão se subjugar a nós.
Somos os senhores e eles serão sempre nossos servos!

As pessoas gritavam extasiadas, todos se alegraram, e o povo


de Khanokh não mais precisava trabalhar a terra e podia se dedicar
a outras artes e ofícios, e ainda mais prosperidade alcançou
Khanokh, que já não era mais uma cidade, mas um povo, uma
nação, um império.

No entanto, não possuía imperador! Qayin não era encontrado, e


Lamech exigiu novamente a coroa, mas Zillah sentava-se no trono
negro e dizia:

– O grande Qayin colocou-me aqui e esperarei por ele.

– Mas eu sou o herdeiro! É meu o direito de governar!

– Somente quando seu ancestral estiver morto. Enquanto não


puser os meus olhos sobre seu corpo, não cederei!

Havia uma fúria fria em Lamech, mas ele temia Zillah, pois ela
tornara-se grande ao seu modo. Sabia que ela tinha o poder de
ferver o sangue dentro das veias de quem ela desejasse.

– Chegará o dia, mulher, que a sombra de meu ancestral não


mais poderá proteger-te, e a ti juro que, quando esse dia chegar, far-
te-ei sofrer mais que a todos.

– E eu te prometo que, se tentar me fazer mal, far-te-ei sofrer a ti


e a toda tua descendência, e minha fúria será tão grande que
clamarás pela morte sem nunca encontrá-la!

Entretanto, não foi preciso descobrir naquele momento quem


faria valer as juras, pois, pressentindo tal embate, Qayin retornou e
recebeu o descendente com felicidade, proclamando-o regente,
destituindo Barashemesh de seu cargo. Zillah tentou argumentar,
mas o Senhor Escuro falou: – Zillah, minha amada, devemos ser
prudentes. Lamech é o herdeiro de direito deste trono e deve
aprender a governar.

Os anos se passaram e, sob a regência de Lamech, Khanokh


deixou de ser uma cidade para se tornar um império. Suas fronteiras
foram expandidas e todos que se lhe opunham eram derrotados.
Todos prestavam honra e louvor a Lamech, seu regente, e todos
sempre falavam de quão poderoso era seu senhor e que ninguém
seria capaz de vencê-lo.

Ninguém, diziam eles, exceto Barashemesh.

Ora, o filho do Sol tornara-se um guerreiro habilidoso e sua força


e estatura sem igual faziam dele o maior guardião da cidade. E o
regente, que o desprezava, mandava-o sempre às fronteiras e para
os confrontos mais perigosos, ansiando que caísse em batalha, mas
Barashemesh sempre voltava vitorioso e com cada vez mais fama e
poder. Sua família prosperava e seus filhos eram muitos, assim
como seus rebanhos.

– Não o quero aqui! – Lamech falou a seu ancestral, em uma de


suas viagens aos ermos. Ele cobiça meu trono e é invejoso. Quero-
o fora de minhas terras!

– Não são suas terras para expulsá-lo – disse seco o Senhor


Escuro. – São minhas e ele sempre será bem-vindo. Barashemesh
é um homem bom e filho de minha mulher.

– Essa é outra das tuas afrontas contra mim? – acusou o


regente. – Por isso me proibiste de coabitar com ela? Porque queria
tu mesmo possuí-la?

O Senhor Escuro encarou seu herdeiro e seu olhar quebraria a


coragem de homens inferiores. –Cuidado com tua língua, Lamech. É
afiada e perigosa, e poderá ainda matar-te. Desafia-me de novo e
tirarei de ti minha herança e darei a teu filho, ou a um de teus
primos.

– Mas o trono é meu por direito!

– Teu direito porque te dei! O Trono Escuro é meu e meu


somente, e quem sentar-se nele será por mim escolhido e não por ti!

Lamech esboçou responder, mas refreou a língua e calou-se.

– Vejo que estás aprendendo a segurar teu impulso e isso é


bom. Parece que a ferida anterior ainda te causa lembrança e te
acalma.

– Sim. Ainda me lembro da ferida ancestral, e jamais irei


esquecê-la!

– Bom, meu herdeiro, use-a para tornar-te sábio. Agora volte à


cidade, pois ela precisa de ti, e eu desejo ficar só.

E Qayin continuou com suas viagens. Lamech ocasionalmente


acompanhava-o e, com o tempo, passou a levar também seu filho.
O menino adorava caçar e por isso o pai lhe construíra um arco e
treinava-o pessoalmente, para se tornar cada vez mais habilidoso.

Quando o rapaz estava à beira de tornar-se homem, seu pai


deu-lhe um presente. Era um arco branco feito em osso. Como suas
flechas, era todo ornamentado e ricamente adornado. Sua corda era
de prata e as penas, mais brancas que a neve mais alva.

– Hoje, filho meu, torna-te um homem! – disse Lamech


orgulhoso. – Venha. Caçaremos o maior dos prêmios para
comemorarmos a tua emancipação.

Os dois partiram, e Lamech perseguia uma presa que só ele


parecia conhecer.

– Falta pouco – dizia ele. – Veja ali à frente – e o jovem só via as


pegadas de um homem.
– Agora ouça-me, minha criança, e com atenção, pois diante de
ti estará uma fera que nenhum homem pode ferir, e se chegar perto
ela o trucidará e devorará teus membros. Tu és um grande arqueiro
e tua flecha não deve errar o alvo. No entanto, esta besta que tu
terás de atingir verá a flecha se lançardes, por isso atirarás ela
através de mim!

– Queres que eu dispare uma flecha através de ti, meu pai?

– Sim, meu filho, pois somente assim a besta não verá a seta
mortal. Atira bem, através da mão de teu pai, perfura-a e assim
derrotarás essa criatura. Confia em teu pai e não tema, pois estou
contigo e não deixarei que te façam nenhum mal – ludibriou Lamech
seu filho, pois colocava em andamento sua vil empreitada.

E assim fez o garoto. Seu pai ergueu a mão e ele atirou,


perfurando o membro, cruzando os céus e acertando a criatura, que
parecia homem, diretamente em seu coração. E quando a flecha
transfixou o músculo, o rapaz gritou de dor e caiu, vítima de um
ferimento no peito. Se não fosse o sangue poderoso que corria em
suas veias, ali mesmo teria perecido.

Lamech correu não ao filho, mas à criatura, e lá viu seu ancestral


Qayin com a flecha no peito, que agonizava em sofrimento e dor.

– Tu? – falou entre gorgolejos de sangue.

– Eu, meu pai! Por anos esperei a chance de ter tua morte, e
agora finalmente consegui. Adeus. Tarde partes deste mundo
primeiro dos assassinos. Ninguém chorará por ti.

E, arrancando a flecha, Lamech caminhou até seu filho, que


sofria de dor.

– Pai, o que está havendo? Disseste que estaria seguro, mas


algo me feriu.
– Não se pode confrontar a ira do Criador e ficar impune, filho
meu. Teu ancestral não podia morrer porque seu crime foi muito
grande, mas agora dei ao Criador crime maior e sobre mim cai um
poder sem nunca igual.

Ora, por todos os anos que viajara em busca de riquezas, o


maior dos tesouros que Lamech buscava não eram mulheres, ouro
ou mesmo comida, mas uma maneira de exterminar seu ancestral.
E ele encontrara a maneira nas terras distantes, de onde seu
ancestral viera, pois, em uma caverna onde ainda vivia a linhagem
do terceiro filho dos pais de Qayin, nascido após o luto e escolhido
para continuar a linhagem e guardar os ossos de seu pai – o
primeiro homem –, Lamech achou sua arma. Dos ossos do
ancestral, ele criou o arco e a flecha que levariam a termo seu
intento.

E Lamech ergueu uma pedra em cada mão e esmagou a cabeça


do filho entre elas; o filho, que ele criara com a única intenção de um
dia abater e ter sobre si uma maldade que suplantasse a de seu
ancestral. Agora, portanto, ele punha fim àquele que o trouxera à
vida e também àquele que gerara, como um dia seu ancestral fizera
ao irmão.

E carregando o descendente e arrastando o cadáver de seu


antepassado, entrou na cidade. E quando viram o grande Qayin
caído, as pessoas gritaram e choraram; alguns rasgaram suas
vestes e outros cobriam-se com as cinzas das chamas apagadas. E
quando Zillah viu seu amado senhor morto, gemeu e chorou, e,
deitada aos pés dele, urrou de dor.

– Agora, mulher, serás minha! – Lamech falou e tomou-a em


seus braços. Ela tentou escapar e com ódio começou a ferver o
sangue de Lamech, mas com surpresa sentiu que era seu próprio
sangue que esquentava.

– Maldito, o que fizeste?


– O impensado e o necessário, pois agora sou rei e ninguém
pode tocar-me!

Então Barashemesh apareceu, vestido em ferro e fúria, e


confrontou Lamech, mas o regente riu e bastou um ataque para que
Barashemesh percebesse seu erro, pois o golpe que dera em seu
adversário voltara contra si e fora como um exército golpeando seu
corpo de uma vez só. Sangue veio a seus lábios, e a dor o curvou,
colocando-o de joelhos, e Lamech riu e aproximou-se de seu
adversário.

– Ergueste armas contra teu rei? Morrerás por isso! Como meu
primeiro ato como senhor definitivo de Khanokh, condeno-te à
morte!

Então Zillah gritou e Lamech voltou-se a ela.

– Poupe meu filho, eu lhe imploro!

– E por que deveria dar ouvidos a teu pleito? – perguntou. Zillah


respirou fundo e colocou-se de pé. Porque se fizeres isso entrego-te
aquilo que mais desejas em teu coração.

– E por acaso sabes dos desejos de meu coração, mulher?

– Teu coração é negro e sanguinário, mas existe algo que nunca


o abandonou, um desejo antigo que ainda o consome. E dizendo
isso, despiu-se na frente de todos, revelando sua nudez e beleza.

E Lamech viu diante de si a mulher que sempre ansiara e lhe


fora negada.

– Jura pela terra, pelo céu e pelo mar que serás minha até o
último dia de sua vida e poupo seu filho – ordenou.

– Juro! – ela disse sem hesitar. Lamech gargalhou. Olhou para


Barashemesh e disse:
– Só ficarás vivo porque terei misericórdia de ti – e virando-se
aos guardas sentenciou: – Trazei a família dele e executai-os.

Zillah e Barashemesh gritaram, mas Lamech riu e, voltando-se a


suas mulheres, disse:

– Ouvi a minha voz. Vós, mulheres de Lamech, escutai minhas


palavras, porque eu matei Qayin por me ferir, e a meu filho por feri-
lo! E vos digo que, se sete vezes mais sofria quem ferisse Qayin,
aquele que se voltar contra mim será fustigado setenta vezes sete!
Jurei-te que ele ficaria vivo, não que nada faria a sua linhagem
imunda! – E enquanto Zillah era possuída por Lamech, o sangue da
linhagem de Barashemesh era derramado diante de seus olhos.

Tudo o que ele queria era o abraço da morte, que não veio. Em
vez disso, recebeu o banimento para o deserto e o abandono de seu
povo.

– Procure por seu pai, Barashemesh, e clame a ele que te ajude


em tua vingança! – foram as últimas palavras de sua mãe.

E assim o gigante alquebrado partiu para o deserto sem nada.


Sabia que não conseguiria sobreviver às intempéries do deserto por
muito tempo e que o local inclemente logo reivindicaria sua vida,
mas continuou caminhando sem água ou descanso por quarenta
dias. E em todo crepúsculo ele desfalecia e desistia de se levantar.
E a noite fria castigava seu corpo cansado e combalido, e os
animais selvagens, os carniceiros do deserto, caminhavam ao seu
lado como seu cortejo fúnebre, esperando que o gigante finalmente
cedesse ao abraço da morte para se refestelarem sobre sua carne.
Entretanto, toda aurora vinha acompanhada de uma canção que
enchia seu coração de ânimo e ele caminhava em frente obstinado,
como que alimentado por aquela doce melodia. Não sabia para
onde ir, mas não tinha para onde voltar, portanto seguia em frente
sem parar, sem olhar para trás.

E numa noite finalmente seu corpo desistiu da luta e caiu


esgotado. A aurora veio com a canção, mas o gigante não levantou.
Ele ouviu a canção cada vez mais forte, mas seu corpo derrotado e
cansado recusava-se a se mexer.

“A aurora é chegada e digo-lhe adeus! Meu corpo despedaçado


finalmente se perdeu!

Oh, aurora fria, vem saudar-me com tua sinfonia;

Perdido estou em agonia, em prantos por minha família.

Abandonado aos corvos do deserto meu final já é certo”.

Ele fechou os olhos, esperando pelo gelado abraço da morte,


mas, quando veio, surpreendeu-se, pois não era frio, como
esperava, mas cálido e reconfortante. E alguém abriu seus lábios e
um líquido refrescante desceu por suas entranhas, dando-lhe forças
para abrir os olhos.

E diante dele estava a mais formosa dama já por ele admirada.


Sua pele era feita de ouro. Os cabelos eram negros, mas lançavam
uma luz rubra e dourada como toras incandescentes, e seus olhos
reluziam uma luz amarela quente e pacífica. Vestia uma túnica que
era carmim nos ombros e, ao longo do seu comprimento, se tornava
púrpura. Assim como o grande guerreiro, a jovem possuía nas mãos
e nos pés seis dedos em vez de cinco. O que mais chamava a
atenção, no entanto, era o par de asas que brotavam de suas costas
como chamas. Não eram penas alvas, mas chamas selvagens.

– Quem és tu, minha resgatadora – falou em sussurro.

– Descansa, ó bravo viajante, pois tua determinação me


comoveu, e a morte não irá te levar. Estarás seguro em meus
braços... Nem o dia inclemente nem a noite enregelante irão te fazer
mal.

Ele suspirou.

– Pois sou Eos, a Senhora D’aurora!


Capítulo 7

O Palácio da Justiça fica localizado no centro de São Paulo e é


sede de vários departamentos, entre eles o DHPP, que ocupa o
quinto andar do edifício.

Carlos Eduardo saiu do elevador e caminhou firme pelos


corredores solitários. Era quase meia-noite e somente aqueles de
plantão e os viciados em trabalho ficavam até essa hora, portanto
quase não havia movimentação. A sala dedicada à 3a Delegacia,
responsável pelos assassinatos em série, era espartana, com
móveis velhos e simples, porém sólidos e confortáveis. Lembrava
uma sala parada no tempo há mais de trinta anos. Um sofá de couro
marrom confortável e antigo ficava próximo a um minibar, e era uma
segunda casa para o delegado. Todos esses objetos estavam ali
anos antes de Carlos se tornar delegado. Quando assumiu o
departamento, quis mantê-los, mas isso era tudo o que havia
mantido. O equipamento, por outro lado, parecia saído de um filme
de ficção científica: telas de led, lousas digitais, tablets e
computadores moderníssimos ficavam sobre os móveis antiquados.
A sala parecia um estúdio de informática, e Carlos Eduardo usava
toda a tecnologia a seu favor.

Somente duas pessoas estavam na sala quando entrou: Tucca,


que estava sentado em sua cadeira, com os pés sobre a mesa,
lendo um livro com o título Iniciação dos Mistérios Wicca; e Rita, de
costas para a entrada, encarando a lousa digital onde diversas
anotações estavam expostas. Livros de ocultismo e astronomia
estavam espalhados pela sala. Nas telas dos computadores,
diversos arquivos estavam abertos com textos, imagens, vídeos e
áudios, graças a Vinnie.
Quando Tucca o viu, sorriu, apontou com a cabeça para a nova
delegada e fez sinal de ok com as mãos. Carlos Eduardo virou os
olhos e falou.

– O que é tudo isso?

Rita teve um sobressalto de susto, tão compenetrada que


estava. Tucca e Carlos Eduardo seguraram o riso, e ela recuperou a
compostura ajeitando a camisa. Tinha posto de lado o uniforme de
policial e se vestia com uma camisa branca, calça jeans e coturno.
As roupas mais justas revelavam mais de seu belo corpo e, embora
os trajes pudessem ser facilmente usados por um homem, ela
estava agora com um ar mais feminino, chamando a atenção pela
primeira vez do delegado.

– Ele não ataca aleatoriamente – ela continuou. – Nem retira os


órgãos ao acaso. Tudo, cada mínimo detalhe, tem uma razão! –
falou surpresa. Carlos Eduardo assentiu satisfeito.

– Exatamente, cada órgão está ligado a um elemento da magia:


terra, ar, fogo, água... – o delegado falou em tom de professor. Rita
olhou para ele e continuou:

– Sim. Agora entendo. O padre Jair foi o fogo, certo? – ela


interpelou, interrompendo o delegado, Carlos novamente assentiu.

– Sim, o padre Jair foi o fogo. Os outros estão relacionados aos


demais elementos.

– O que eu não entendi é a relação do primeiro crime com a


água – a garota falou incerta, mas o delegado negou com a cabeça,
ligeiramente contrariado.

– O primeiro crime não está ligado à água, preste atenção! O


primeiro crime está relacionado a um elemento específico,
essencialmente a “argamassa” dessa hedionda construção: o
espírito!
– Espírito? Como um elemento da natureza? – Rita perguntou
confusa. Carlos Eduardo olhou-a sério.

– Preste atenção, Souza, já disse! Estamos falando dos


elementos da magia e não da natureza.

Ergueu a mão aberta e contou baixando os dedos, começando


com o mindinho: terra, ar, fogo, água. Deixou propositalmente o
dedão à mostra. – Espírito – falou feliz pelas anotações e estudos
de Vinnie, que permitiram que ele chegasse a essa conclusão. –
Rita assentiu, absorvendo a informação e compreendendo melhor a
mente do psicótico.

– Pelo que entendi, portanto, em cada morte ele recolhe um


órgão diferente, que é relacionado a cada um dos elementos. É
isso?

– Sim – Carlos Eduardo admitiu.

– No primeiro crime, o do pastor Tavares, o elemento foi o


espírito. Todo o sangue foi drenado, assim como o sêmen. Nas
culturas antigas, o sangue e o sêmen eram a representação física
do espírito, por isso havia tantas orgias e sacrifícios religiosos –
Carlos explicou. – Além disso, foram retirados o baço, o estômago e
o pâncreas, órgãos relacionados ao espírito.

– Já no segundo, foi o elemento terra, por isso os corpos foram


transformados em esculturas – falou, e Rita completou:

– E os órgãos roubados foram o fígado e a vesícula,


relacionados à terra. Estou entendendo! – falou animada e entretida.
Carlos continuou:

– O terceiro crime, que prendemos o acusado em flagrante, foi o


do ar. O mestre Chang foi primeiro sufocado, tendo em seguida
seus pulmões e o intestino grosso retirados. O mais interessante
desse caso é que o intestino delgado foi cirurgicamente separado. O
assassino fez questão de tirar apenas o grosso, porque o delgado
está ligado ao elemento da água. Percebe?! – falou animado. Rita
concordou, ficando de pé.

– Sim. Como Chang era ligado ao elemento do ar, o delgado


permaneceu intocado. Interessante. Esse foi o crime que você
conseguiu prender o responsável em flagrante, certo? – ela
perguntou, e uma nuvem negra passou pelo semblante do delegado
lembrando-lhe daquele dia. A voz de Ricardo ecoou em sua mente:
“Sangue é Vida!”. Um calafrio percorreu seu corpo.

– Sim. Foi esse que prendemos e que foi morto em sua cela no
dia seguinte – completou sombrio.

– Aqui diz que ele cometeu suicídio – Rita falou. Carlos assentiu.

– É o que diz a ficha – Rita olhou-o com estranheza, mas ele


continuou:

– Como dizia, o corpo de Chang refere-se ao crime do ar.


Finalmente temos Jair. Seu corpo foi dilacerado e queimado, mas
nosso criminoso fez questão de levar com ele dois suvenires – falou
passando a frase a ela, que respondeu de pronto: – O fígado e a
vesícula! – Carlos concordou com a cabeça. – Exato. Agora só está
faltando o elemento água – falou preocupado. – No entanto, não
temos certeza de quando ou onde ele atacará.

– Acho que posso ajudar com isso – Rita falou alegre, e Carlos
olhou para ela: – Diga-me.

– Você não acha estranho os horários dos crimes? Ou os dias?


Eles não lhe parecem aleatórios demais? – ela falou, aumentando o
suspense. Carlos Eduardo assentiu:

– Esse sempre foi o nosso maior problema. Estamos sempre um


passo atrás dele. Se ao menos pudéssemos prever algo sobre o
ataque...
– Ele atacará novamente dentro de cinco dias – ela falou com
uma exatidão, sem hesitar, que Carlos olhou para ela surpreso.

– Como assim? Por que tem tanta certeza? – indagou. Rita


sorriu e levantou-se. Foi até a lousa digital, clicou num dos arquivos
e diversas imagens da Lua apareceram. Ela então falou confiante.

– Esse mês teremos um evento incomum, chamado Lua Azul,


quando a Lua fica cheia duas vezes no mesmo mês.

Carlos Eduardo olhou-a confuso, e ela continuou entusiasmada.

– Dei uma olhada nos dados que você juntou e esse dia em
particular chamou minha atenção – ela apontou para uma das datas,
precisamente para a do 17 de novembro, dia da mudança da lua
para cheia. Eu me lembro.

– Você se lembra quando a lua mudou para cheia em novembro?


– Carlos Eduardo perguntou surpreso. Rita ficou um pouco
encabulada, mas concordou com a cabeça.

– Gosto de cortar o meu cabelo de acordo com as fases da lua –


cortar na cheia o torna mais forte e cheio, e eu pretendia pintar meu
cabelo dessa cor que eu estou agora! – falou na defensiva, dando
de ombros. Tucca riu, e Carlos olhou surpreso para ela. Sua postura
agressiva e ar autoritário escondiam parte dessa feminilidade. O
delegado achou interessante vê-la encabulada:

– Por favor, continue – ele disse; ela, aliviada, retornou ao seu


raciocínio.

– Como ia dizendo, pesquisei se os crimes tinham alguma


relação com as luas. Foi então que reparei nisso.

– O primeiro crime, do Pastor Tavares, aconteceu no dia 11 de


março do ano passado, precisamente quando a lua mudava para
cheia. O segundo crime, Laercio e Mirian, as vítimas na Assembleia
de Deus, foram revelados – porque fica impossível precisar quando
exatamente foram mortos devido à plastificação – no dia 18 de
maio, que coincide exatamente com a mudança da lua para
crescente. Finalmente temos o crime do mestre Tang, no dia 17 de
novembro, que, como eu disse, foi quando a lua ficou cheia.

Carlos Eduardo arregalou os olhos

– Brilhante! Meus parabéns, Souza! – bradou satisfeito. – E por


que você acha que ele vai atacar dentro de cinco dias?

– Porque esse mês temos um evento raro: duas luas novas no


mesmo mês. Seria perfeito para assim concluir um ciclo, não acha?
– a garota perguntou cheia de orgulho de si mesma. Carlos Eduardo
observou o quadro pensativo. Preparava-se para dar sua opinião
quando a porta da sala foi aberta com violência.

Ao olhar para a porta, recebeu um soco direto no queixo e foi


jogado para trás, sem tempo de reagir. Teria recebido um segundo
golpe se demorasse pouco mais para se recompor. Seus reflexos
funcionaram e, ao se desviar, assumiu uma postura de defesa e
encarou seu atacante.

O delegado Brandão estava furioso e tentou mais uma vez


golpear Carlos Eduardo. Então a balbúrdia começou. Os dois se
engalfinharam e começaram a trocar socos. Foi Tucca quem
conseguiu separar os dois.

– Você está maluco, Brandão? Atacar seu superior dessa


maneira? – Carlos Eduardo gritava enfurecido. Estava com o rosto
vermelho e sua veia da fúria saltava com vida própria. Brandão, com
os olhos injetados de raiva, retornava os gritos.

– Superior uma ova! Quem você acha que é para se meter no


meu caso? Quem te deu permissão para ir à clínica? O que você
acha que está fazendo, metendo o bedelho na minha investigação,
seu desgraçado?
Os gritos dos dois chamavam a atenção das outras pessoas no
andar. Tucca era a única barreira que impedia os dois policiais de se
engalfinharem novamente.

– Meter o bedelho na sua investigação? – Carlos também estava


aos berros. – Deixa de ser imbecil, Brandão. Eu estava tentando
saber mais do desaparecimento do meu amigo, seu animal! Estou
me lixando para a sua investigação, seu imbecil!

– Deixa de fingir, seu idiota! Você estava metendo a mão na


minha investigação, porque você não consegue dar conta desse
Herege e está tentando fazer sua fita com o departamento ferrando
com meu caso – acusou Brandão, mas finalmente o grito de Tucca
calou os dois.

– Agora deixem de palhaçada os dois – o velho delegado falou, e


os outros dois se calaram. – Brandão, quero que você saia
imediatamente dessa sala e se recomponha! – Tucca falou com
firmeza. Brandão abriu a boca para falar, mas bastou um olhar do
delegado mais velho para calá-lo. Engolindo seu orgulho,
respondeu:

– Está certo, Tucca. Vou para o meu escritório – com um olhar


de ódio para Carlos Eduardo ele saiu.

– Vou suspender esse palhaço! – Carlos falou inconformado,


mas novamente Tucca o calou.

– Você vai se concentrar no seu crime e não se deixar


atrapalhar. Você estava num local que está na jurisdição do
Brandão. Se tomar medidas contra ele, vai ter que se punir também!
Quero que foque no Herege e deixe-me cuidar do Brandão. Vou
também conversar com a antissequestro. Você está se dispersando
e isso não é bom! – Carlos abaixou a cabeça calado. O velho
delegado colocou a mão em seu ombro.

– Vamos lá, Carlão, foca no seu alvo. As coisas vão dar certo.
Vocês têm novas informações. Vamos partir daí, que tal? – Tucca
falou com a voz mais amigável. Carlos respirou fundo.

– Você está certo como sempre, Tucca. Vou focar no que tenho
que fazer – Tucca fez um sinal com a cabeça concordando.

– Vou conversar com o Brandão agora, e vou cuidar


pessoalmente com o antissequestro sobre o desaparecimento dos
seus amigos. Você e a Souza fiquem aqui e se concentrem em
pegar esse desgraçado – e depois de dizer isso saiu da sala.

Carlos Eduardo olhou para Rita, que estava em um silêncio


constrangido. Ele deu de ombros: –Desculpe por isso, Souza – a
mulher ergueu a mão num sinal de banalidade.

– Acontece... Podemos continuar? – falou ansiosa por deixar


aquele momento para trás.

– Sim. Você me disse que, como teremos duas luas novas nesse
mês de março, você acha que ele vai atacar a próxima vítima nos
próximos cinco dias, antes de acabar.

– Sim, mas, ainda assim, não sabemos quem ou onde ele vai
atacar – Rita falou pensativa.

– Mas temos alguém que talvez possa nos ajudar com


informações: a freira sobrevivente – Carlos respondeu, já virando
para a porta. Acharia Jacó e Vinnie, disso tinha certeza, mas Tucca
estava certo. Agora tinha uma verdadeira chance de perseguir seu
inimigo.

– Venha. Temos que interrogá-la.

– Você está maluco? – Rita retorquiu. – É uma hora da manhã.


Temos que esperar até de manhã! – o delegado encarou a mulher
surpreso.

– Sério mesmo? Você quer deixar a freira dormir? – indagou


incrédulo.
– Mas é lógico! Aquela é uma mulher de Deus e da Igreja. Não
vamos bater num convento escola de madrugada e perguntar sobre
um assassino! Deixe-a dormir! – afirmou com veemência.

Dessa vez Carlos riu de sua nova companheira, que o


surpreendia cada dia mais.

– Você é uma beata, não é mesmo? – falou ainda rindo. Rita


assumiu uma postura defensiva, fechou a cara, estufou o peito e
disparou:

– Sou, e o senhor vá para casa dormir um pouco. Amanhã tome


um banho antes de falar com uma madre. Vai chamá-la de senhora
e tratá-la com o respeito que uma mulher que dedica a vida ao amor
e caridade merece!

Carlos Eduardo sorriu. Tinha um ar tranquilo com a garota pela


primeira vez.

– Tudo bem, Souza, vou para casa descansar e tomar um


banho, mas siga seu conselho também. Durma um pouco, Rita.
Vamos nos encontrar no convento às 6 – falou, mas a mulher negou
com a cabeça.

– Às 10 – ela respondeu. Carlos Eduardo olhou para ela com um


olhar indagador. – Freiras acordam assim tão tarde?

– Não – respondeu a mulher. – Devem acordar por volta das


cinco, porém precisam fazer as orações matinais e as tarefas, que a
deixarão livre por volta das 10. A mulher passou por situações
difíceis, portanto tem o direito de buscar a Deus nessa hora, e nós
temos o dever de dar a ela esse tempo. Assim ela poderá respirar e
colocar os pensamentos em ordem. Quando a interrogarmos, ela
não ficará balbuciando sobre o trauma que foi o crime e nos dará
informações valiosas.

Carlos confirmou com a cabeça sem nada dizer. Já na porta,


prestes a sair, falou:
– Às 10 então. E Rita... – esperou a mulher olhar para ele antes
de continuar: – Bom trabalho. Eu estava enganado sobre você. Será
uma excelente delegada – sorriu e foi embora.

Ela sentia o cheiro de fezes, sangue e carne queimada. Se as


mãos estivessem livres, teria tampado os ouvidos. Os gemidos de
dor das mulheres empaladas não se igualavam aos da que era
violentada sobre o sarcófago do Cristo morto, no canto direito da
igreja. Os gritos da mulher eram tanto de dor, por ter seus órgãos
sexuais dilacerados por um doente, como por já saber seu destino.

Em sua mão esquerda, ele segurava a estaca de madeira


entalhada de maneira grosseira que seria enfiada no ânus da
mulher. A gravidade faria seu papel de impelir o peso do corpo
contra a estaca, que rasgaria os órgãos internos e provocaria uma
morte agonizante e excruciante.

Alguns minutos depois, o homem ejaculou. Não havia prazer


nenhum no ato; era mecânico. Ele saiu de cima da mulher, que se
encontrava incapaz de andar ou fugir por causa dos ferimentos. Ele
a agarrou pela face, tampando-lhe a boca e quase quebrando seu
maxilar. Na sequência, com a mesma indiferença, ergueu-a como se
ela pesasse alguns gramas e, com a precisão de um cirurgião,
apoiou a estaca no chão e perfurou a mulher como se ela fosse um
pedaço de carne sem vida. O grito estridente foi calado pelo aperto.
Quando estava suficientemente imobilizada pela estaca, ele a fixou
no chão da igreja.

O homem voltou-se para o padre, que estava preso por


correntes. Cada uma imobilizava um membro, e ele já estava quase
morto, com a maior parte de seu sangue drenado pela incisão na
perna direita, mas ainda vivia. A boca fora amordaçada, então não
conseguia falar.

Ela sentia o frio roçando sua própria pele nua e tremia de medo.
Sua boca também estava presa e não podia falar ou pedir ajuda. O
homem caminhava pela nave indiferente a sua nudez. A garota
olhava sua forma repugnante, incapaz de desviar o olhar. Ele era
enorme e caminhava com sua cabeça na altura das colunas que
sustentavam a galeria superior. Ela sabia que era impossível alguém
ser tão grande; as colunas tinham três metros de altura e nenhum
ser humano poderia chegar a tanto. Da mesma forma nenhum ser
humano tinha garras nas mãos deformadas e seis dedos, ou tantos
músculos pelo corpo, mas aquele homem era do tamanho das
colunas, suas garras cortavam como navalhas e tinha mais
músculos que um gorila, além de uma pele enrugada cadavérica e
sem cor.

Ele olhou para o padre com uma mistura de desprezo e nojo.


Tirou a mordaça de sua boca e imediatamente ouviu:

– Por favor! Eu não quero morrer!

Ela não gostava do padre Jair, mas sentia muita pena dele. Nem
mesmo ele merecia todo esse mal.

– Por favor! – falou. – Perdoe-me! Liberte-me!

O ser segurava as correntes que prendiam os braços e pernas


do padre. Elas foram colocadas em polias, cada uma em uma
extremidade da nave, com as pontas unidas na mão enorme do ser
que as segurava como se fossem cordões.

Ao choramingo do padre ele riu e, quando ria, o frio se tornava


mais intenso. Olhou para o padre. Seus olhos reluziam as velas do
local. Voltou a colocar a mordaça e então falou, com sua voz aguda,
fria e inumana.

– Você está além do perdão! – uma voz inspirada e não exalada.


– Mas terá sua liberdade!

O ser começou a puxar as correntes, cada uma delas esticando


um membro do padre até o limite. Seus olhos vertiam lágrimas de
aflição e desespero, mas não conseguia gritar. Ficou assim, imóvel,
sofrendo por aproximadamente trinta segundos. Então os tendões
não resistiriam à pressão e se partiram.

Ela pôde ouvir o grito contido do padre quando seu corpo se


partiu em pedaços...

Gabriela acordou... Toda vez que fechava os olhos via a mesma


cena. Levantou-se, colocou o roupão sobre o pijama e decidiu visitar
a capela do externato. Ajoelhou-se em frente do altar e começou a
orar. Tentava parar de pensar na cena, mas a voz do padre Jair
ainda ecoava em sua cabeça. Lembrou-se do primeiro encontro com
ele. Tinha acabado de chegar do interior do estado de Santa
Catarina, assustada com a grandiosidade de tudo, mas feliz de
iniciar sua nova vida nos seios da igreja. Fora recebida no aeroporto
por Clarissa, madre superiora do convento e pelo padre, que, assim
que a viu, mediu-a de cima abaixo. Sentiu o rubor na face e achou
que estivesse enganada. Ele era um homem renomado dentro da
igreja, respeitado na comunidade e muito querido. Um homem
assim nunca a olharia desse jeito. Pediu perdão a Deus pelo
julgamento precipitado e se sentiu envergonhada de julgar um
homem bom dessa maneira. No caminho, ele fora muito gentil com
ela, mas Gabriela não deixava de achar que havia algo em seus
olhos. A voz era bondosa, assim como suas palavras, mas os olhos
pareciam cheios de luxúria.

Os dias se passaram e a noviça estudava com afinco suas


matérias. Adorava filosofia mais que qualquer outra. Uma vez que
vivia no convento, raramente via o padre e logo esqueceu o
ocorrido. No entanto, um dia foi levada pelas freiras à Matriz, onde
decidiu se confessar. Estava em paz. Havia confessado seus
pecados e sentia-se mais leve. Esperava por sua penitência, mas,
em vez disso, o padre perguntou:

– Tem mais alguma coisa que queira me contar, filha?

Gabriela vasculhou sua mente.


– Creio que não, padre. Acho que isso é tudo.

– Não teve nenhum sonho pecaminoso, ou desejos noturnos?


Não sente falta de um homem, minha menina? – o padre perguntou
com a voz estranhamente tremida.

Gabriela olhou confusa para a grade que os separava, sem


entender a pergunta. Será que as companheiras de quarto falavam
alguma coisa dela?

– Não, padre. Sempre peço à virgem que me livre dos desejos


carnais, e ela tem me ajudado. Estou em castidade.

– Isso é bom filha, muito bom – Gabriela arregalou os olhos. O


homem falava entre gemidos?

– O senhor está bem, padre? O que está fazendo?

– Sim, minha filha, estou... estou... – soltou um gemido baixo,


mas Gabriela não tinha mais dúvidas do que o homem estava
fazendo. Cobriu o corpo, sentindo-se nua e violentada!

– Já acabou, padre? Pode me dar minha penitência. Sua voz era


firme. As lágrimas caíam pelo rosto.

– 10 ave-marias e 5 pais-nossos. Deve vir regularmente. Quero


acompanhá-la de perto.

Ela saiu do confessionário possessa, com as lágrimas


escorrendo. Relatou tudo à madre superiora, que, embora tivesse
ficado ofendida, pareceu não se surpreender nem se chocar.

– Gabriela, há uma coisa que deve aprender sobre essa cidade.


Ela é excelente para se viver, e muitas pessoas precisam de nossas
orações, mas São Caetano é como o padre Jair, que é uma boa
pessoa, embora eu saiba que no momento você não acredita nisso,
mas tem um ladro negro, malévolo e intocável. Não podemos
remover o mal de São Caetano, nem do padre, mas vou protegê-la.
Desde então, a jovem freira não vira de novo o sacerdote
promíscuo, embora soubesse aos poucos que a mácula, como a
madre chamava aquilo, já estava bem embrenhada na igreja da
cidade. Gabriela passou a focar suas forças em derrotar o mal
dentro do seu próprio convento. Sabia que algumas garotas eram
prostitutas com o propósito de acalmar a luxúria do padre, e eram
financiadas por uma sociedade secreta que tinha como objetivo
“Cuidar de São Caetano”, mas a mácula da cidade era um mal muito
grande para a jovem freira. Já as prostitutas ela conseguiria
combater. Escolhera uma delas para começar seu “plano de
ataque”. Chamava-se Lucia. Gabriela decidiu que ela seria sua
“primeira vítima”.

Pacientemente, Gabriela deu à prostituta amor, carinho e


atenção, nunca a julgou e lhe deu o que ninguém dava: o valor
humano. Nos primeiros meses, Lucia zombava da “freirinha”, mas
ela nunca desistiu. Em poucos meses, Lucia começava a amolecer
e pensava em abandonar a vida promíscua, mas o vício em heroína
dificultava a decisão. Gabriela buscava uma solução para libertá-la,
mas não teve tempo.

O monstro veio e tudo mudou. Em um dia, ele matou todas as


prostitutas que viviam infiltradas no convento para satisfazer o
padre. Lucia foi a última a morrer...

A freira estava imersa em pensamentos quando foi despertada


pela madre superiora.

– Olá, madre. Desculpe-me, mas não consegui dormir – assumiu


a garota ainda ajoelhada no genuflexório.

– Entendo, irmã, mas você tem visita – a madre falou em tom de


desculpas.

– A polícia de novo? – indagou.

– Não, filha. Vá se vestir e me encontre na minha sala – a voz da


madre estava carregada de tensão.
Gabriela colocou seu hábito, prendeu o cabelo e colocou o
capuz; depois se dirigiu para a sala da madre. Por onde passava,
recebia olhares surpresos das outras freiras.

Gabriela entrou na sala e viu a madre conversando com um


homem alto e bem vestido.

– Vou me retirar agora, senhor – antes de sair, colocou


gentilmente a mão no ombro da garota e ofereceu um olhar de
pena.

– Fico feliz que esteja bem, irmã Gabriela. Sente-se. Precisamos


conversar – a voz firme de André Marcos estava imponente como
sempre. Olhou para a freira sem sorrir, os olhos cinzentos
encarando-a.

Gabriela sentiu um calafrio percorrer sua espinha como um raio.


Olhou para o crucifixo atrás da cadeira da madre e pediu a Deus
sua proteção.

Miracatu é uma pequena cidade entranhada na mata atlântica.


Tem pouco mais de vinte mil habitantes, e sua economia gira em
torno do turismo e da produção de banana. Como a maioria das
cidades interioranas, tem um ar tranquilo, como se vivesse parada
no tempo.

Em uma de suas várias fazendas de banana, uma cena


pitoresca acontecia. Três jovens, sendo uma mulher e dois homens,
emergiram da mata próxima ao rio São Lourencinho, que margeia a
cidade, e seguiram em direção à fazenda. Jack, habilidoso, pegou
um cacho de banana e continuaram sua jornada em direção à área
urbana da cidade.

Depois de se alimentarem da fruta, estavam mais animados e


voltaram a conversar.
– Para onde agora? – Raquel perguntou ainda mastigando.

– Não acho que devemos continuar para Curitiba – Jack


concluiu. – Aqui perto tem uma rodovia que nos levará ao litoral.
Minha namorada tem casa lá. Podemos ficar escondidos uns dias e
depois fugir. Devemos esperar a poeira abaixar. Depois decidimos
para onde ir.

– É uma boa ideia – Vinnie concordou.

Jack olhou para ele e ameaçou falar algo, mas se calou.


Seguiram por uma estrada de terra alguns quilômetros até
chegarem à cidade. Depois de mais um tempo caminhando, Jack
reconheceu a rodoviária. Virou-se para Vinnie:

– Olha, Vinnie, a rodoviária. Você pode pegar um ônibus que te


leve de volta para São Paulo daqui.

Vinnie olhou surpreso:

– Por que eu faria isso? Nós não vamos para a praia?

– Nós não, Vinnie, somente a Raquel e eu.

– Que história é essa? – Vinnie olhou para Raquel. – Madame


Van Helsing, fala para ele que eu vou com vocês! – suplicou, mas
Raquel desviou o olhar.

– Cara, qual é? – Vinnie continuou. – Sei que não sou o maioral


aqui e nem conheço as técnicas que você conhece, mas eu tenho
conhecimentos que poderiam ajudar vocês! Sou um hacker
habilidoso, tenho contatos. Enfim, posso ser útil! – insistiu. Jacó o
cortou com rispidez:

– Isso não é brincadeira, Vinnie. Você viu que aqueles caras


estavam dispostos a tudo, e, seja lá o que nos perseguiu à noite, é
muito perigoso! Nem sabemos com o que estamos lidando! –
desabafou.
– Eu sei com o que estamos lidando! – retrucou. – Passei toda a
minha vida investigando isso! Finalmente estou perto de provar a
verdade! – sua voz era cheia de emoção e determinação, mas seu
olhar era suplicante. – Vocês não podem me tirar disso! Por favor!

– Isso não é um filme! Nós não vamos achar uma arma mágica
que acabe com esses monstros. Não é assim! – Raquel ralhou com
a voz irritada e completou: – O que precisamos é de um carro para a
fuga, não de um palerma que vive num mundo de fantasia!

Vinnie parecia ter tomado um tapa. Jack sentia o coração


pesado com as palavras duras. Achou o comentário extremamente
grosseiro e absurdo, até pelo fato de estarem fugindo de monstros
saídos de histórias de terror. Na verdade, passou a gostar de Vinnie
e não queria deixá-lo, mas realmente achava que ele estaria
condenado se os acompanhasse. Sabia que seria mais seguro se
ele ficasse.

Vinnie estreitou o olhar e, sem falar mais nada, deu as costas


aos dois e se afastou. Jack respirou aliviado, porém com o coração
pesado de culpa. Raquel pareceu ler os pensamentos do médico e
completou:

– É melhor para ele se ficar longe.

– Eu sei – o médico respirou fundo. – E agora?

– Precisamos de um carro. Você sabe fazer ligação direta? –


arriscou.

– Não – Jack respondeu frustrado. – Você sabe? – perguntou em


dúvida.

– Lógico que não! Por que eu saberia? – a garota defendeu-se.

– Bom, você invade casas... Imaginei que talvez soubesse


roubar carro – o psiquiatra deu de ombros enquanto falava. Raquel
bufou.
– Como faremos? – perguntou.

– Bom, podemos pegar um ônibus – ele sugeriu.

Ela riu do comentário.

– Sim. Quando eles atacarem o ônibus, o que faremos? Como


você pretende proteger tantos inocentes? – teremos de roubar um
carro, mas com alguém que tenha as chaves – sugeriu.

– Essa pessoa chamará a polícia. Eles farão bloqueio na estrada


e seremos pegos – retorquiu.

Ficaram nessa discussão por quase cinco minutos, sem achar


uma alternativa cabível, quando uma velha caminhonete branca
cheia de ferrugem buzinou para eles. Era Vinnie. Acenava contente
de dentro do carro. Raquel olhou surpresa:

– Como conseguiu o carro? – perguntou surpresa.

Vinnie cutucou as unhas com ar triunfante.

– Sabe, não sou um mestre do Kung Fu que nem vocês ou um


exército de um homem só, mas tenho habilidades com as quais
vocês nem sonham, como por exemplo... – sorriu triunfante. – Fazer
ligação direta! Acho que salvei o dia, não? – riu confiante.

Raquel olhou para Jack, que deu de ombros, abriu a porta do


passageiro e entrou na parte de trás do carro, deixando Raquel ir na
frente. Ao entrar, o psiquiatra pousou a mão sobre o ombro do
motorista.

– Mandou bem, Vinnie! – elogiou satisfeito.

Orgulhoso Vinnie colocou a primeira marcha, mas deixou o carro


morrer.

– Ops! – olhou para os dois. Jack revirou os olhos e Raquel


bufou olhando pela janela do carro.
Vinnie religou o carro e a caminhonete branca arrancou.

Por volta das dez e meia da manhã, o Maverick estacionava em


frente do Externato em São Caetano do Sul. O delegado desceu
com seu sobretudo, mas, como lhe fora sugerido, tomara um banho
e trocara de roupa. Vestia uma camisa preta, calças jeans e um
coturno. Rita o esperava na porta, com uma roupa semelhante à do
dia anterior: camisa e calça jeans, mas usava um tênis no lugar do
coturno.

– Bom dia – falou num bocejo, enquanto caminhava até a


policial. A moça estendeu um copo de isopor, e Carlos Eduardo
sentiu o doce perfume de café.

– Imaginei que gostaria de um café antes de entrarmos – Rita


falou e Carlos assentiu agradecido. Tomou a bebida, que aqueceu
seu espírito, e ambos se dirigiram para a escola. Entraram no hall
do colégio e seguiram para a diretoria. Logo foram direcionados à
parte do colégio ainda reservada ao convento.

Depois de esperarem por alguns minutos, foram recebidos pela


madre superiora. Enquanto Rita beijava a mão da madre, o
delegado começou a explicar o motivo da visita. A freira então os
levou a uma sala de reuniões. Minutos depois Gabriela entrou na
sala, acompanhada da madre.

Carlos olhou para Rita e fez um aceno para que desse


andamento ao interrogatório. A ex-policial arrumou-se na mesa e
começou.

– Irmã Gabriela, sei que está passando por um momento difícil,


mas temos que lhe fazer algumas perguntas – a freira ruiva respirou
fundo, parecendo contrariada.

– Desculpe perguntar, mas o que falei no meu depoimento não é


suficiente? Se vieram com acusações, já digo que não tenho nada a
ver com esse crime!

Carlos Eduardo ergueu as sobrancelhas. A freira estava na


defensiva e irritadiça, o que não era normal. A não ser, é claro, que
tivesse algo a ver com o crime, mas o choque dela parecia autêntico
no dia anterior.

– Por favor, irmã, existem alguns detalhes que só uma


testemunha ocular poderia nos ajudar. Seu depoimento é vital para
nós – Rita continuou. O tom reverente irritava Carlos Eduardo.
Freira ou não, a mulher era uma testemunha, talvez uma suspeita, e
a policial deveria pôr suas convicções religiosas de lado e agir com
firmeza.

– Vou contar o que vi. Vocês vão rir de mim e me humilhar, como
já fizeram! – ressaltou. – Então vão dizer que estou louca. Por que
passaremos por isso de novo?

– Quem falou que você era louca? – Carlos interrompeu.

Gabriela pareceu incomodada.

– A última pessoa que me interrogou – respondeu evasivamente.

Carlos Eduardo fez uma nota mental e olhou para a madre


superiora.

– Senhora, poderia nos dar licença?

– Devo ficar com a irmã Gabriela, senhor policial, não vou sair.

– A senhora é advogada? – o delegado perguntou de maneira


incisiva.

– Não, é claro que não, mas... – a mulher tentou responder, no


entanto Carlos Eduardo a interrompeu.

– Então não pode ficar aqui. Pode chamar um advogado se


quiser e a testemunha pode falar somente diante de um, mas até
agora ela é testemunha, não uma suspeita. Normalmente, quem
chama um advogado tem algo a esconder – falou em tom acusatório
e voltou-se para Gabriela.

– Quer continuar sem advogado? Ou devemos esperar um? –


perguntou secamente.

– Está tudo bem, madre. Falarei com eles; não tenho nada a
esconder – sorriu afetuosamente para sua superiora. A mulher
estava assustada, mas assentiu e saiu da sala.

– Desculpem pela madre. Ela está mais protetora em função de


todo o acontecido – respirou fundo, cruzou os braços e olhou para
os policiais. – O que vocês querem saber? – havia uma estranha
tristeza na voz da moça. Rita continuou.

– Por favor, irmã Gabriela, conte-nos o que aconteceu.

Ela respirou fundo mais uma vez, olhando para o alto.

– O que eu vou contar foi o que aconteceu! Não foi coisa da


minha mente, nem nada do tipo! Foi real! Foi o que o que
aconteceu.

Carlos se ajeitou na cadeira e Rita fitou a moça com curiosidade.

– Meu tormento teve início há alguns meses. O padre Jair


começou a me perseguir. Sei que acham que ele era um grande
homem, mas era um porco; essa era a verdade! – desabafou
finalmente, exprimindo toda a sua raiva. – Todo mundo fala das
inúmeras qualidades daquele monstro como se ele fosse uma boa
pessoa, mas era uma máscara! Uma máscara que escondia um
demônio. Ele tentou inúmeras vezes fazer com que eu cedesse aos
seus desejos. Quando percebeu que não conseguiria, tentou me
estuprar. Isso foi horas antes do que ocorreu na Matriz. A igreja e o
convento são ligados por um túnel subterrâneo, resquícios das
guerras mundiais. Existe um abrigo antibombas na igreja. É secreto
e serve para esconder refugiados. Poucos o conhecem, porque não
está nem nas plantas da igreja!

– Foi por esse túnel que ele veio e tentou me agarrar. Eu estava
dormindo quando fui surpreendida. Tentei gritar, mas ele tampou
minha boca. Ele lambia meu pescoço e me falava um monte de
absurdos, que eu havia sido enviada do inferno para atormentá-lo e
outras nojeiras sobre meu corpo, seu desejo e o que faria comigo.

– Mas e suas colegas de quarto? As outras freiras? Não fizeram


nada? – Rita estava inconformada.

– As freiras que ficavam no meu quarto são aquelas que você viu
mortas na igreja. Eram suas concubinas, todas elas. A única que
tentou me ajudar foi Lucia, mas o padre deu um tapa nela e ela se
afastou. Lucia era viciada em heroína, e ele a dominava por isso –
admitiu.

– Isso não pode ser possível! Só pode ser mentira! – Rita estava
chocada. Carlos Eduardo olhou para ela, depois para a freira e
pediu:

– Por favor, continue.

– Pensei que não conseguiria fugir, mas então tudo ficou escuro
e alguém arrancou o padre de cima de mim. Depois tomei uma
pancada forte na cabeça e desmaiei. Quando acordei, estava na
Matriz, presa numa pilastra, sem roupa e algemada. O padre Jair
estava bem no centro da igreja, preso por correntes, uma em cada
braço e cada perna. As mulheres estavam próximas a mim, todas
também algemadas.

Gabriela olhava para o vazio horrorizada, revendo a cena diante


de seus olhos. As palavras saíam como uma enxurrada, o que não
havia acontecido até agora:

– A criatura pegou cada uma das mulheres... Estuprou


lentamente cada uma delas, quase como uma obrigação, segurando
uma estaca de madeira durante todo o ato. Então, desprovido de
qualquer emoção, utilizou a estaca como espeto. Não sei como ele
fez, mas elas estavam vivas! Foi horrível!

– Enquanto ele as estuprava, o padre Jair era obrigado a ver


tudo. Ele tinha sido ferido na coxa e perdia muito sangue. Quando o
monstro acabou com elas, ele puxou com força as correntes,
quebrando o corpo do padre em pedaços. Depois, ele pegou o que
restou do tórax e o rasgou para pegar um pedaço de dentro dele.

– O que ele usou para cortar? – Carlos nem piscava. A cena era
ainda mais grotesca em sua mente. Gabriela respirou fundo, como
que criando coragem, e encarou o delegado.

– Suas unhas – falou. – Ou melhor, suas garras – continuou a


olhar fixamente para o delegado, desafiando-o a contestá-la. Em
vez disso, ele falou:

– Como uma espécie de Freddy Krueger? – Gabriela sorriu


aliviada. Parecia que alguém acreditava nela finalmente. – Sim,
exatamente! Mas não era uma luva, era a mão dele!

– Como eram os olhos dele, Gabriela? Pode me descrever o


suspeito?

– Enorme, quase três metros de altura, se não mais,


grotescamente musculoso; tinha a pele pálida, meio cinzenta e
estava encharcado; não tinha pelo no corpo e a pele parecia meio
solta; era um monstro grande, de olhos azuis brilhantes parecidos
com os de gato. Sei que parece loucura, mas isso foi o que eu vi –
admitiu por fim.

Rita olhava chocada, porque Carlos Eduardo realmente parecia


acreditar nela. A garota estava nitidamente alucinando. A descrição
do sujeito era no mínimo surreal. Carlos, no entanto, só tomava nota
e perguntou:

– Ele falou com você?


– Sim. Depois de rasgar o padre em pedaços, ele veio até mim e
derramou o sangue do padre todo em mim – falou com asco. Teve
um arrepio à lembrança, mas segurou o choro e continuou: – Depois
ele soltou minhas algemas e falou que se eu negasse minha fé, ele
me deixaria viver; se não, eu morreria.

– E você negou – Carlos afirmou, não perguntou.

– Não. Disse a ele que a fé era tudo o que eu tinha e que ele não
poderia tirar isso de mim. Disse que o perdoava pelo mal que ia me
fazer, mas que ele deveria buscar a reconciliação com o Pai
Celeste, pois somente assim teria salvação.

– E por que ele não te matou? – Rita estava impactada pela fé


da garota. Carlos Eduardo, incrédulo. Gabriela deu de ombros.

– Sinceramente, não sei dizer, mas minhas palavras foram como


um veneno para ele. Quando falei aquilo, e fui sincera ao dizer, ele
me soltou. Parecia com dor e de suas mãos saíam fumaça. Não
fiquei para ver o que aconteceria. Corri como nunca fiz na vida e
então você me achou – disse olhando para Rita.

Carlos Eduardo parecia impassível. Tomou nota de tudo o que


ela disse, além de ter gravado no celular o depoimento.

– Como era a voz dele? – perguntou.

Gabriela endureceu e virou assustada para o delegado.

– Como a de uma assombração. Era algo que não saberia


explicar de jeito nenhum.

Carlos concordou com a cabeça, pegou o celular, parou a


gravação e procurou um arquivo.

– Seria assim? – deu play num arquivo de áudio, e a conversa


dele com Ricardo, o assassino do templo budista, começou. Foi só a
voz inspirada soar que Gabriela se encolheu e levou as mãos aos
ouvidos.

– Sim, é essa! Desligue, por favor! – a freira começou a chorar,


desabando diante das lembranças assustadoras.

Rita ouviu perplexa a voz. Lera no relatório, mas não sabia dos
arquivos de áudio. Quem falaria daquele jeito? Ou o quê? Carlos
Eduardo fechou seu bloco de notas e desligou o celular. Olhou com
ternura para a menina que chorava a sua frente. A madre superiora
entrou na sala ao ouvir o choro desesperado, mas o delegado
continuou.

– Gabriela, não posso explicar o que você viu, nem colocar isso
num relatório, porque é tudo muito fantástico – a freira soluçou
desanimada. O delegado continuou, pegando na mão dela.

– Mas acredito em você. Também vi esse cara. Não do jeito que


você o descreveu, mas vi o sujeito. Não tenho explicações para te
dar, mas garanto que vou caçar e prender esse desgraçado!

Gabriela sorriu entre os soluços. Finalmente tinha alguém em


quem confiar, alguém que a protegeria.

– Não é dele que tenho medo, delegado.

– E de quem você tem medo? – perguntou surpreso.

– Do homem que esteve aqui mais cedo, antes de vocês –


confessou, mesmo diante dos protestos da madre superiora.

O Museu Paulista da Universidade de São Paulo, conhecido


também como Museu do Ipiranga, faz parte, com o Monumento a
Independência, do conjunto arquitetônico do Parque da
Independência. É o mais importante museu da Universidade de São
Paulo e um dos mais visitados da capital paulista. Planejado pelo
primeiro imperador brasileiro, foi inaugurado como museu de história
natural. Porém, no início da república, foi adaptado para guardar e
elevar a origem do país chamado Brasil. Não é à toa que, no salão
nobre, figura uma das obras mais conhecidas de seu acervo, o
quadro de 1888 do artista Pedro Américo, "Independência ou
Morte", retratando de maneira heroica e pomposa a Independência
do Brasil.

Com a ideia de construir um marco para a população, o


imperador Dom Pedro trouxe da Europa diversos trabalhadores
especializados no estilo eclético, moda entre os europeus da época,
e construiu ali um verdadeiro palácio renascentista. O arquiteto e
engenheiro italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi foi contratado para
dar vida ao edifício de 123 metros de comprimento e 16 metros de
profundidade com uma profusão de elementos decorativos e
ornamentais. Gaudenzio foi inovador no país, construindo com
tijolos cerâmicos numa cidade que ainda usava uma forma
rudimentar de construção à base de argila e madeira. Em 1909, o
paisagista belga Arsênio Puttemans criou o paisagismo ao redor do
palácio, mas, na década de 20, foi substituído pelo alemão Reinaldo
Dierberger, cujo legado se mantém quase intocado até os dias de
hoje.

Infelizmente, o descaso das autoridades pela herança do país se


refletiu na estrutura do prédio, provocando rachaduras e infiltrações
que comprometeram toda a construção. O museu, portanto, foi
fechado para reformas, com previsão de nove anos para serem
concluídas.

Hoje, ninguém está autorizado a entrar em seus salões


grandiosos e contemplar a escadaria representando o rio Tietê
(principal rio do estado), com as águas dos principais rios do país
colocadas nos corrimões em globos de vidro, ou as estátuas de
mármore de Carrara dos Bandeirantes Raposo Tavares e Fernão
Dias como heróis do desbravamento do território Nacional.

André Marcos parou por alguns segundos apreciando a


grandiosidade do saguão de entrada do museu. Sozinho, se
permitiu ser tocado pelo sentimento de grandeza impregnado no
local. Respirou fundo toda aquela glória e seguiu em frente,
contornando a grande escadaria que levava para cima e dirigindo-se
à esquerda, onde encontrou uma outra, discreta e de madeira, que
levava para baixo. Na frente da escada, tinha uma placa amarela
com os dizeres em preto “Acesso restrito a funcionários.”, mas ele a
ignorou.

Desceu o lance de escadas e se viu em um corredor simples


com luzes neon. Estava na fundação do prédio e nas salas de
restauração. A única obra de arte no corredor era um enorme
quadro retratando uma mulher nua de cabelos rubros flamejantes e
vestes que iam da cor púrpura ao rubro como o céu ao amanhecer.
Era abraçada por um homem musculoso e belo, vestido numa
couraça dourada no estilo greco-romano. Por cima, carregava um
manto que parecia feito de sombras. Uma observação mais
profunda do quadro mostrava que o pintor usara vários matizes de
negro para dar às sombras que faziam as vezes do manto a textura
de várias faces de pessoas em agonia. A mulher e o homem
estavam submersos num lago ou mar, e a sensação de quem
olhasse era de que o quadro estava molhado, tamanha a
capacidade do pintor.

Muitos funcionários do museu se perguntavam o porquê daquele


quadro naquele local, ou de quem seria uma obra tão fantástica,
mas não sabiam a resposta. André Marcos sabia. Apertou um
detalhe minúsculo na moldura do quadro, e a pintura se moveu para
trás, revelando outro lance de escadas, de granito negro, que levava
ainda mais para baixo.

Desceu com a porta se fechando atrás de si. O caminho não era


iluminado, mas ele usou seu celular como lanterna. Depois de
descer um longo lance, ele se deparou com o enorme salão
subterrâneo. Observou a arquitetura diferenciada; lembrava em
muito a grega, mas brincava demasiadamente com as curvas. Uma
enorme cúpula, toda decorada em granito negro e ouro, reluzia com
a luz do meio-dia entrando pelo seu óculo, que, André Marcos sabia,
ficava à frente das fontes do museu entre os dois dragões
esculpidos em mosaicos. Um buraco com não mais de trinta
centímetros de diâmetro, mas, sendo a única fonte de luz,
aumentava ainda mais a aura de mistério do local. André Marcos fez
questão de ficar no centro de onde a luz incidia.

Sentado em seu trono estava Dom Magalhães. Ao seu lado, uma


de suas servas ajoelhava-se aos seus pés. O trono maior
continuava vazio, mas, a sua direita, o enorme Dom Francisco
estava de pé, totalmente revigorado, usando seu impecável terno
branco com gravata vermelha. Do outro lado do trono vazio, uma
figura esguia e lânguida vestia um manto de cetim vermelho que lhe
ocultava tudo, exceto os lábios fartos, pintados de carmesim. Dom
Magalhães sorriu. Parecia estar aguardando o convidado, pois
quando ele chegou levantou-se de sua cadeira sorrindo e abriu os
braços.

– Ora, ora, ora, mas o que temos aqui, se não nosso amigo
André Marcos – falou em seu forte sotaque lusitano. André Marcos
somente riu da falsa hospitalidade.

– Poupe-me de suas modéstias, Dom Magalhães. Sabe que não


vim em busca de confraternização, mas de respostas – falou com
rispidez.

– Pois então diga-me, meu caro, que respostas posso eu dar a


ti? – indagou com falsa ignorância.

– O que seu mestre faz em minha cidade!? – bradou. Magalhães


mantinha a surpresa fingida, embora tenha endurecido o olhar à
pronuncia da palavra “mestre”.

– Não sei do que está falando, rapaz. Não tenho mestres, como
bem sabe, e nem é de minha responsabilidade o que ocorre em tua
cidade. Temos um acordo, lembraste? Ficas fora de nosso território
e nós ficaremos longe de ti e de tua confraria – disse
tranquilamente.
– Não brinque comigo, idiota! Não sou um dos seus para que me
trate como imbecil! – a voz de André Marcos ecoou pelos salões.
Magalhães desfez o sorriso, lentamente pondo-se de pé. A mulher
ajoelhada correu assustada para longe. O lusitano rosnou, e seus
olhos faiscaram na escuridão ao redor. André Marcos viu centenas
de olhos relampejarem.

– Pensas que podes entrar em meus domínios, ofender-me e


ainda sair vivo, gajo? És mais idiota que imaginava se realmente
tinhas esta pretensão! – o português falava entre rosnados. Era uma
figura impressionante. André Marcos hesitou por um segundo, com
os rosnados ecoando pelo átrio, mas então fechou as mãos com
força e chamas explodiram de seus punhos.

– Se não estou enganado, o fogo é a maneira mais eficiente de


destruí-los – havia certa apreensão em sua voz, mas também um
desafio claro. Ao brilho das chamas, diversos rosnados irromperam
no salão. Dom Francisco, até aquele momento impassível, assumiu
uma postura de combate; a mulher de carmesim continuava imóvel.
Magalhães urrou enfurecido.

– OUSA ME DESAFIAR EM MEU PALÁCIO?

Caminhando na direção da ameaça, levou a mão à cintura, onde


um sabre com uma rebuscada empunhadura de ouro repousava.
André Marcos apertou os punhos e as chamas tornaram-se mais
vivas. Sentia-as aquecendo sua face.

– Ouso mais que isso – bradou. – Se continuarem, haverá


guerra, como nunca houve antes! Há setenta anos quase mudamos
a história da humanidade! Vocês não vão nos atrapalhar! Vocês vão
se manter longe da garota e do médico. O Vrykolaka é meu! –
explodiu a plenos pulmões com as chamas agora o envolvendo por
inteiro, como se fosse um farol em meio às trevas.

Magalhães hesitou por alguns segundos, mas depois riu


selvagemente e seus olhos se tornaram vermelhos e ainda mais
reluzentes, como duas brasas. Seus dentes se tornaram longos e
mortíferos e ele rosnou como um gato. O lusitano, senhor de São
Paulo, saltou ferozmente contra o prefeito de São Caetano, e o
combate dos dois seria terrível, não fosse uma lufada poderosa,
como um pequeno tornado, que derrubou todos. Magalhães foi
arremessado de um lado, enquanto André Marcos do outro, tendo
suas chamas extintas imediatamente.

– Basta! Sua petição será atendida, André Marcos de São


Caetano do Sul. Afastar-nos-emos do homem e da mulher. Não é o
desejo do Afogado que essa guerra tenha início – a mulher de cetim
vermelho falou com uma voz grave, decidida e régia. Foi a única
que permanecera alheia à ventania. Magalhães se levantou furioso:

– Eu sou o senhor desta cidade, mulher! Eu governo aqui e não


tu! Eu decido se haverá guerra ou não, e eu digo que tal insulto só
será perdoado com sangue! – virou para o prefeito em postura de
combate. André Marcos preparou-se. A mulher, sem se mexer, disse
apenas:

– Essa é a vontade do Príncipe.

O senhor de São Paulo parou. Seus olhos se apagaram e ele


assumiu uma postura rígida e contrariada.

– Que seja. Esse conflito acaba aqui – deu as costas e sentou-se


em seu trono. Dom Francisco, agora de pé, observava a tudo
silencioso.

– Estamos resolvidos? – André Marcos falou, dirigindo-se à


mulher de capuz vermelho. Ela concordou, e ele se virou para ir
embora.

– Gostaríamos de lhe pedir algo – a mulher falou com sua voz


contida e aveludada.

– O quê? – disse sem se virar.


– A freira. Precisamos dela – a mulher confessou serena. Ele
pensou por instantes.

– Por que deveria ajudá-los? – indagou ainda de costas.

– Creio que é de nosso interesse comum. Ela é uma testemunha


de um crime incômodo a você e a sua cidade, e nós não podemos
pegá-la. Ela tem o coração imaculado, portanto não podemos tocá-
la. Ela é protegida.

André Marcos se virou encarando a mulher.

– Eu sei. Ela resistiu a meu poder. Imagino como deve ter sido
incômoda a experiência de capturá-la – falou irônico.

– Sim. A experiência é, no mínimo, desagradável – a dama de


vermelho confessou. – Seja como for, queremos ela.
Desconsideraremos sua invasão caso nos preste esse serviço –
falou sincera e benevolente. André Marcos gargalhou.

– Desconsiderarão minha invasão? Primeiro invadem minha


cidade e trucidam um dos meus protegidos, depois invadem o
refúgio de um dos nossos e permitem fugir alguém que buscamos
há anos. Acho que se engana se estou aqui em busca de paz.

– Se me dão licença, senhora, senhor – a voz grave de Dom


Francisco ressoou no local. O negro estava tranquilo e olhava para
o prefeito respeitosamente. – Acho que tenho uma solução para
agradar a todos.

A mulher assentiu, André Marcos esperou e Dom Francisco


continuou.

– O senhor sabe que não temos como tocar na garota, mas


vocês bruxos possuem formas de tornar isso possível. Se o senhor
criar um encantamento para que possamos pegá-la e fazer com ela
o que desejamos, nós voltaremos a perseguir a mulher e o médico,
mas com o único propósito de entregá-los ilesos ao senhor.
Abriremos mão de nossos planos para com eles, como forma de
saldar nossa dívida – a mulher de capuz vermelho hesitou por um
momento, mas nada falou. Magalhães, no entanto, bufou furioso.

– Agora nos rebaixamos a capachos de feiticeiros? Não me


venha com bobagens! Essas criaturas só estão vivas por nossa
misericórdia. Submeter-nos-emos a eles agora?

– Pode ser uma boa solução – Dom Francisco continuou,


ignorando Magalhães e seu orgulho. – Eles se afastam cada vez
mais de sua esfera de influência, cada minuto mais distante de São
Caetano, enquanto a freira está além do nosso alcance, mas o
senhor pode tornar esse encontro possível, e nós estamos próximos
de seus alvos. Um ajudará o outro naquilo que não podemos fazer.
Todos saem ganhando. As desavenças do passado podem ser
esquecidas, ao menos momentaneamente, para um ganho mútuo,
Alto-Feiticeiro – o homem de terno branco falou respeitosamente.
André Marcos meditou em silêncio por alguns segundos e
respondeu.

– Tenho como tirar momentaneamente a proteção da garota,


mas durará somente um dia.

– Não precisamos mais que isso – disse a mulher. – desde que


seja no dia certo – acrescentou.

– Que seja. Escolham o dia. De minha parte quero os dois! Não


importa quanto tempo demore, mas quero ambos incólumes –
exigiu.

– Você os terá, senhor Alto-Feiticeiro – Dom Francisco


respondeu.

– Estamos acordados? A trégua permanece por enquanto – o


prefeito deu as costas e subiu a escadaria rumo à saída e à luz do
dia.
No meio da tarde, na cidade litorânea de Peruíbe, uma
caminhonete branca parava num posto de conveniência no meio da
estrada. Três pessoas desceram do carro cansados e
desconfortáveis e entram num restaurante cheio de caminhoneiros.
Raquel ficou de olho no lado de fora, enquanto Jack ria da ironia de
novamente estarem numa churrascaria.

Vinnie, despreocupado, começou a atacar a carne bem servida.


Raquel, também faminta, o imitou. Já Jack bem tentou resistir,
porque não conseguia tirar Walkyria da cabeça, mas o perfume da
carne o seduziu. Logo os três devoravam os pedaços que eram
servidos. Vinnie novamente empanturrava-se de corações de
frango.

Depois de um almoço tranquilo, Raquel fez questão de pagar em


dinheiro. Como ela mesma não tinha, usou o de Vinnie. Entraram de
novo no carro.

– Antes de irmos, quero rever algumas coisas. A partir de agora,


nada de cartões de crédito. Somente dinheiro. Nada de telefones ou
poderão nos rastrear. Temos que ser incomunicáveis.

Vinnie riu.

– Olha, Madame Van Helsing, me chamam de paranoico, mas


você dá um novo significado à palavra, sabia? Relaxa, moça,
estamos no Brasil. Os caras não têm essa tecnologia toda não. Vão
localizar a gente por onde? Satélite?

Jack riu do comentário.

– Concordo, Raquel. Não tem como eles nos acharem.

– Se estivéssemos falando de tecnologia, concordaria com


vocês, mas estamos falando de forças mais poderosas – concluiu.

– Como assim? – ambos perguntaram confusos.


– Estamos lidando com entidades que literalmente observam
tudo o que viaja pelo ar, seja rádio, dados, ou qualquer tipo de
informação – disse.

– E quem teria esse poder? –Jack perguntou.

Raquel respirou fundo e encarou o doutor.

– Os seres que estão nos perseguindo! Os que querem se


vingar, porque destruí um grupo influente deles. São seres que
vagam pelo mundo há milhares de anos, dominando a humanidade
como fantoches: Nosferatu.

– Nosfe-o-quê? – o médico perguntou. Por alguma razão o nome


trazia a lembrança de um filme antigo.

Vinnie deu um gemido de êxtase!

– Nosferatu, Jack! Agora eu vou esfregar isso na cara de todos!


– vibrou. – Eu sabia que estava certo, que tinha mais neste mundo
do que a gente vê!

– O que é um Nosferatu, afinal? – Jack perguntou perdido.


Vinnie assumiu novamente seu ar professoral:

– Os Nosferatu ou homo sanguinus são mais conhecidos pela


cultura popular como Vampiros!

Brandão entrou numa casa luxuosa de São Paulo. Havia


marcado hora com o advogado e tutor da pequena Janaína, a única
sobrevivente do ataque de Raquel. Sentado na luxuosa sala de
visitas, tentava imaginar como a garota poderia viver sabendo de
todo o mal que lhe fora feito. Odiava a criminosa pela crueldade que
havia causado àquela menina, e desejava pegá-la o mais rápido
possível. Além do mais, sua carreira dependia dessa captura.
Fora decisão de Brandão deixar a garota na clínica. Na hora, a
ideia do doutor Sallutti parecia genial, mas quando pensava agora
com mais frieza não tinha certeza se aquela jogada havia sido
esperta. Não era, no entanto, hora para arrependimentos. Tinha que
pegar a criminosa e faria isso.

– Delegado Brandão, ela já irá recebê-lo – a voz da criada tirou


Brandão de seu devaneio. Ele ficou em posição e viu quando a
menina entrou no aposento acompanhada do advogado.

Janaína era uma beldade infantil. Era estonteantemente exótica


e bela. Tinha uma pele cor de madeira e traços miscigenados de
origem africana, europeia e indígena. Os cabelos escuros reluziam
pesados com cachos fartos e perfeitos. O corpo pequeno e delgado
caminhava numa naturalidade, confiança e feminilidade que não
cabiam numa criança tão jovem. Os olhos eram talvez a
característica mais bela da garota. Eram azuis, mas tão claros e
cristalinos que pareciam brancos. Ela se aproximou do delegado
com um ar régio e majestoso.

– O senhor queria me ver? – perguntou segura. O delegado


concordou sentindo-se incomodado:

– Desculpe-me, Janaína, mas preciso te fazer algumas


perguntas sobre o acontecido – falou com doçura.

A garota respirou fundo e sentou-se no sofá. O que mais


incomodou Brandão foi que a garota se sentou ereta e rígida, depois
cruzou as pernas e apoiou as mãos no joelho, com classe e
confiança, mais madura do que se espera em crianças dessa idade.

– O que precisa de mim, delegado? – ela o encarou com aqueles


olhos azuis quase brancos, os lábios vermelhos como rubis.
Brandão sentia um frio invadi-lo. Não sabia ao certo o porquê, mas
seu coração estava acelerado e sentia-se em alerta.

– Poderia me explicar direito o que aconteceu? – ele perguntou


desviando o olhar da menina para o bloco de notas. Ela pareceu
contrariada.

– Novamente? Preciso reviver todo o acontecido mais uma vez?


– perguntou. Brandão engoliu seco. O que estava acontecendo com
ele?

– S-sim – gaguejou. – Por favor.

– Quando a criminosa adentrou nossos aposentos, estávamos


adormecidos. Ela inicialmente atacou meus guardiões.

– Seus guardiões? Você quer dizer seus pais? – perguntou


confuso. A garota assentiu com impaciência.

– Sim. Chame-os como desejar. Eles foram os primeiros a cair,


depois foi a minha irmã, e finalmente fui rendida. Como deve
perceber, não tenho um corpo que me permita me defender – a
garota falou observando com desprezo suas pequenas mãos
rechonchudas. O advogado aproximou-se com ar servil e falou no
ouvido da criança, que bufou mais uma vez contrariada. Então falou
com o advogado numa língua que Brandão não conhecia, mas que
ele achava, pelo que já havia ouvido na televisão, ser da África. O
advogado falava no mesmo idioma, e não era possível entender.
Brandão ficou incomodado com a subserviência do homem e a
personalidade irritadiça da menina. Mais uma vez o detive sentiu o
mal-estar no peito e boca do estômago. Parecia que seu coração ia
explodir. Depois de mais algumas palavras ríspidas da criança, ela
calou-se e olhou para um ponto distante, e o advogado falou com o
delegado.

– Lamento, delegado, mas será muito difícil minha cliente


continuar essa conversa. Todo o trauma afetou profundamente sua
personalidade e ela está reagindo ao luto com muita agressividade.
Acredito que terá de fazer as perguntas a mim e não mais a minha
cliente.

Brandão sentou-se mais ereto.


– Preciso de qualquer informação sobre a mulher. Ela falou
alguma coisa? Qualquer informação que pudesse me ajudar. Quero
pegá-la e farei o que estiver ao meu alcance para prendê-la!

– Eu não a quero presa – a menina falou num sibilar frio e cheio


de crueldade. – Eu a quero morta. Quero a nazireia agonizando! – a
voz da garota tornara-se um pouco mais grave quando falou, mas
havia algo no tom de voz daquela menina que arrepiou todos os
pelos de Brandão. Sentiu como se nitrogênio líquido escorresse por
suas costas, e podia jurar que aqueles olhos claros pareciam ter
reluzido como os de um gato quando ela moveu a cabeça.

– Nazireia? – perguntou confuso. – O que é isso? – mas a garota


não falou mais nada. Colocou-se de pé e, numa frase imperativa,
caminhou para a saída. Brandão se levantou e foi até a menina.

– Espere! – falou colocando a mão no ombro da garota. A


menina parou ao ser tocada e olhou para a mão do policial. Depois
esquadrinhou cada parte de seu corpo até chegar ao contato visual.

Foi apenas uma fração de segundo, mas Brandão afastou-se


depressa, como se houvesse levado um choque. Havia algo
naquele olhar, um tipo de perigo que ele nunca sentira antes e que
possivelmente jamais sentiria novamente naquela intensidade. Olhar
nos olhos daquela menina tão pequena, tão frágil, mas ainda assim
tão monstruosamente fria e maligna, foi uma experiência marcante.

O advogado conduziu o delegado para fora da casa e disse que


encaminhasse todas as informações que desejasse por e-mail; faria
o possível para responder a tudo, mas pediu que não voltasse a
falar com a garota, porque ela estava muito traumatizada.

Brandão, contudo, não ouvira nada disso. Não estava prestando


atenção. A única coisa que permanecia em sua mente era aquele
olhar e toda a crueldade que aqueles olhos possuíam.
Walkyria estava sentada na sala de música da casa de seu pai,
dedilhando ao piano a Sonata ao Luar, de Beethoven, de maneira
distraída e relaxada. Tinha a mente longe. Já estava havia quase
dois dias sem notícias do namorado. Será que ainda estaria vivo?

Bateu nas teclas com força, estragando a música e cedendo ao


choro.

– Por favor, minha querida, não pare! – a voz de Madalena veio


da entrada da sala. Walkyria, surpresa, sobressaltou-se. Ao
perceber que era a madrasta, entretanto, ficou séria.

– É você? Poderia me dar um pouco de privacidade, por favor? –


falou com sequidão enquanto tentava enxugar as lágrimas.

– Walkyria, meu anjo... – começou a madrasta, com gentileza,


mas a moça a impediu.

– Não venha com meu anjo para cima de mim! Você sabe tão
bem quanto eu que não somos amigas e nem parentes! Você não
me suporta e o sentimento é mútuo. Então cai fora! – cuspiu a última
frase cheia de raiva.

Madalena ficou parada alguns instantes, antes de dar meia-volta


para sair. Deu dois passos, parou e voltou para o centro da sala.

– Está enganada, sabia? Gosto de você. Sempre gostei. Não


concordo com a maneira que você vê a vida, mas sempre fui muito
afeiçoada a você – falou e sua voz era sincera. Walkyria olhou para
a madrasta.

– Você sempre me tratou mal, desde que me conheço por gente,


e vem me falar que gosta de mim? Sempre me cobrando. Sempre
me dizendo o que fazer. Sempre me sufocando com suas regras
infernais de tudo!

Madalena ergueu o dedo em riste:


- Ora, Walkyria, me poupe! Sempre te tratei com dureza e
firmeza e nunca dei atenção as suas lamúrias por uma única razão:
sei de que material você é feita! Sim, sempre te forcei ao extremo
porque é só assim que você funciona! – exclamou. – Você só
trabalha sob pressão, tem que ser esmigalhada e pressionada até
não aguentar mais, aí você floresce e mostra para que veio. Não me
culpe por tratar você como o diamante resistente e valioso que você
é, Walkyria! Só porque você nunca se deu valor não espere que eu
faça o mesmo! – Bufou irritada. Walkyria estava de boca aberta.

– Quer dizer que você transformou minha infância e


adolescência num inferno porque queria o meu bem? Alguma vez se
perguntou Madalena se eu queria essa vida? – ironizou. Madalena
ignorou a agressividade da garota ao responder.

– É lógico que não! Walkyria, você é a herdeira de um império!


Sua linhagem data de uma era ancestral! Em suas veias corre o
sangue de deuses, e você esperava mesmo que a vida fosse fácil
para você? – a mulher gesticulava enquanto falava, como se
explicasse o óbvio a uma criança, mas era inegável que ela cria nas
palavras que dizia.

– Analise seu nome, filha. As Valquírias eram as guerreiras de


Odin! Anjos guerreiros que escolhiam os melhores entre os saxões
vikings para subir aos salões do Valhalla, o paraíso nórdico.
Esqueça as bobagens de anjinhos com cara de crianças
rechonchudas sentados em nuvens e tocando harpas. O Paraíso
dos nórdicos é um campo de batalha onde os mortos voltam à vida
em todo pôr do sol graças a essas guerreiras poderosas de Odin!
Foi nessas mulheres que seu pai pensou quando lhe deu esse
nome. Aquela estátua na frente de casa de que você tanto gosta foi
feita em sua homenagem! – falou com fervor. Walkyria olhava
abismada para a madrasta.

– Vocês me cantam esse discurso de grandeza desde que eu


era pequena. Não entendem que eu não quero isso? – disse.
– Ora, minha filha, e você acha que grandes homens e mulheres,
como Júlio César, de Roma, Rainha Elizabeth da Inglaterra ou até
mesmo Joana D’arc queriam seus destinos? A Rainha Elizabeth
nem era a herdeira na linha de sucessão e quis fugir da coroa com
todas as suas forças, mas no fim aceitou seu destino e tornou-se a
maior rainha de todos os tempos! Tanto que até hoje o hino da
Inglaterra diz “Deus, salve a Rainha”.

Madalena sentou-se ao lado de Walkyria, acariciando seu cabelo


e dando-lhe um beijo fraternal em sua testa.

– Sei que fui e sou dura com você, menina. Preciso ser! Isso não
significa que estou impassível diante de sua dor – os grandes olhos
da mulher mais velha encaravam a afilhada com dureza, mas ainda
assim com algo semelhante à compaixão.

– Tudo o que quero é ser feliz, Madalena. É tão difícil assim? –


choramingou.

– Infelizmente, meu anjo, para você sim – sentenciou a


madrasta. – Os grandes governantes sacrificam o seu eu pelo seu
poder real. Você achará seu homem e se casará com ele, mas
nunca será feliz, Walkyria. A felicidade é um luxo dado pelos deuses
a camponeses. Os reis não têm direito à felicidade, filha, e não se
iluda: você nasceu para ser rainha...
Capítulo 8

Amanhecia no Palácio da Justiça e aos poucos o prédio começava


a se encher de vida. Numa das celas do quinto andar, reservada
para manter suspeitos na hora do interrogatório, Carlos Eduardo
dormia profundamente.

Tucca se aproximou e acordou o parceiro.

– Carlos, hora de acordar, amigo. Em meia hora os suspeitos


estarão aqui para interrogatório.

Ele sentou ainda meio perdido, ficou um tempo para despertar e


depois se levantou, lavou o rosto na pia do banheiro e fez um
bochecho.

Ao voltar para sua sala, viu que Rita dormia num cobertor no
chão, e a irmã Gabriela, no sofá. Fora difícil convencer a madre
superiora, mas, depois de muita argumentação e bate boca, a
mulher finalmente compreendera que a garota estaria mais segura a
seu lado.

O delegado acordou as duas com um bom dia meio sonolento.


Elas se arrumaram da maneira que puderam.

– Vou buscar um café da manhã para a gente – Rita falou


descendo.

– Hoje à noite vou arrumar um lugar melhor pra você, irmã.


Desculpe pelo desconforto.

– Imagina, delegado, está tudo bem. Obrigada por me acolher.


Carlos Eduardo sorriu um pouco embaraçado e voltou a atenção
para a ficha dos suspeitos e diversas anotações. Momentos mais
tarde, tornou a olhar para Gabriela, ainda meio descabelada e com
cara de sono.

– Precisarei do seu depoimento completo, irmã, cada detalhe,


por mais absurdo e fantasioso que possa parecer. Sei que os
policiais que a interrogaram zombaram do que contou, mas lhe
prometo que não farei isso.

Gabriela sorriu. – Eu sei, delegado. Confio no senhor – falou


bondosa. Rita chegou pouco tempo depois e os três tomaram o café
da manhã juntos. O delegado foi até o banheiro, molhou o rosto,
lavou as axilas com o sabonete e molhou os parcos cabelos
tentando parecer decente, mas falhou miseravelmente. Respirou
fundo... Sentia que seria um dia longo.

Jack acordou assustado com uma música alta que tocava em


alguma parte da casa. Chegara na noite anterior à casa de praia de
Walkyria depois de abandonarem a caminhonete em Santos,
pegarem a balsa para o Guarujá a pé e um coletivo até a cidade de
Bertioga. Dali foi uma longa caminhada até chegarem ao
condomínio fechado da namorada, mas finalmente conseguiram.
Como tinha o crachá da cancela na carteira, entraram sem
problemas. No esconderijo, foi Raquel quem desativou o alarme e
abriu a porta.

A casa era enorme, localizada ao final da rua, numa península,


no alto de um morro que oferecia uma vista espetacular do oceano.
A casa era feita em aço, concreto e vidro, deixando o oceano à
mostra de todos os ângulos. Jack tinha dormido no quarto de
Walkyria e sonhava com ela, abraçado a seu travesseiro. Raquel e
Vinnie tinham dormido em outros dois, dos sete que a casa tinha.

O médico subiu ao terraço, onde ficava a piscina e a


churrasqueira e de onde vinha o som. Encontrou Vinnie sem camisa
e descalço com a música ligada colocando linguiças na grelha. Ele
cantava e dançava enquanto preparava a comida.
– O que você está fazendo, Vinnie? – o psiquiatra indagou com a
voz ainda rouca de sono. – Que horas são?

– Umas onze horas, meu! – respondeu com seu forte sotaque


mooquense. – Você e a Madame dormiram muito! Eu estava com
fome e decidi fazer um churrasquinho para a gente!

– Sério? – Jacó questionou com certa repulsa. – Churrasco de


novo? Você não cansa? – perguntou. Vinnie riu.

– Você não sabe quanta pizza eu como normalmente –


respondeu, enquanto Raquel subia as escadas, ainda com cara de
sono.

– Vou preparar alguma coisa para forrar nosso estômago.


Preciso de frutas – a mulher falou com a voz também cheia de sono.
Os dois dias haviam sido extenuantes.

– Se comer carne pura de novo acho que vou vomitar – a mulher


comentou descendo as escadas à procura da cozinha.

Vinnie olhou para uma foto que ficava próxima à churrasqueira.


Toda a família de Walkyria estava ali: ela, sempre bela, o pai,
imponente, a madrasta, elegante como sempre, e o filho, na época
com pouco mais de quatro anos. Todos sorriam para a foto em
frente à famosa pirâmide de vidro do Museu do Louvre, na França.
Fora uma das últimas viagens em família, até onde Jacó sabia.

– Caraca, mano! Sua mina é filha do mandachuva de Sanca? –


usou o apelido típico da cidade de São Caetano. Jack riu da
surpresa dele e assentiu com a cabeça. Vinnie completou:

– Está explicado por que essa goma é tão da hora! – falou com
ar de entendido. Jacó olhou-o confuso.

– Essa o quê? – indagou totalmente perdido. Vinnie apontou com


o braço para a casa.
– Sua casa, ou melhor, a casa deles, é animalesca! – elogiou. –
Muito da hora! A gente vai ficar muitos dias aqui? – perguntou
esperançoso. Jacó meneou a cabeça.

– Uma semana, mais ou menos. Acho que assim baixamos a


poeira – comentou pensativo enquanto cruzava os braços. Vinnie
pegou uma linguiça, cortou em fatias finas e ofereceu ao psiquiatra,
que, embora farto de tanta carne, sentiu a boca salivar. Em seguida
se serviu:

– Preciso ligar para a minha mãe, cara... Ela deve estar subindo
pelas paredes; é muito protetora – pediu. “Não me diga”, pensou o
psiquiatra. Vinnie tinha todas as características imaturas de um filho
superprotegido.

– Impossível – Raquel tinha voltado ao terraço. Escolhera


algumas roupas de Walkyria: uma camiseta simples e leve que a
namorada usava para correr e uma calça jeans rasgada. Jack ficou
impressionado em como as duas eram semelhantes. Ao perceber o
olhar do médico, ela justificou.

– Desculpe ir pegando assim roupas no armário, mas precisava


tirar aquela roupa e não tenho outra muda. Espero que não tenha
problema – desculpou-se a garota, mas Vinnie interrompeu a
conversa dos dois.

– Olha, Madame, tenho que avisar, para ela ficar tranquila. Sério!
– disse preocupado.

– Vinnie... – Raquel começou. – Não podemos telefonar, ou eles


vão nos achar. Prometa-me que você não vai usar o telefone.
Amanhã podemos mandar uma carta para ela. Seria a maneira mais
segura – concluiu. Ele voltou-se às carnes contrariado.

Comeram em tranquilidade, Raquel e Vinnie descontraídos


depois de dois dias de fugas e perigos. Já Jack estava detestando a
calmaria. Sem ter de se preocupar em salvar a vida deles, tudo em
que conseguia pensar era em Walkyria. Ficar na casa dela e ainda
vendo Raquel usar suas roupas não ajudavam em nada. Pensava
se poderia resolver a situação com ela, mas ao mesmo tempo
irritava-se em pensar que, não importava o que fizesse, ela sempre
seria distante. Não se imaginava num momento como esse ao lado
dela. Frustrado, levantou-se.

– Vou ao banheiro – falou e desceu. Sentou-se no sofá e pegou


um porta-retratos com a foto da amada. Ficou ali tanto tempo
concentrado que não percebeu que alguém se aproximara.

– Ela é gata, viu! – Vinnie elogiou, assustando o médico. Ele e


Raquel haviam descido também. Raquel afastou-se dos dois
parecendo irritada. Vinnie aproximou-se do psiquiatra com ar de
segredos:

– Meu, eu estava dando uma olhada nas minas e elas são bem
parecidas – comentou.

– Quem? – Jack perguntou, embora soubesse a resposta.

– Ué, tua namorada e a Van – respondeu surpreendendo o


psiquiatra.

– Van? Que Van? – Jack indagou confuso.

– Van de Van Helsing, né, doutor! – Vinnie respondeu como se


estivesse dizendo uma coisa óbvia. – Mas como eu ia dizendo, olha
só. A Van é quase a tua mina sem chapinha. Tudo bem que a sua
namorada é mais corajosa e tal, mas são parecidas – falou e Jacó
estranhou o comentário.

– A Walkyria é mais corajosa que a Raquel? – perguntou


perplexo. Não imaginava a namorada fazendo metade das loucuras
que Raquel fazia.

– É, sabe? A tua é uma mulher de mais... peito – colocou as


mãos na frente do tórax segurando seios invisíveis. Jack deu um
soco amigável no braço de Vinnie, porém um pouco mais forte do
que deveria.

Vinnie massageou o braço e deu risada. Jack olhou a foto e


realmente viu que havia várias semelhanças físicas entre as duas.
Seria isso que o fazia se sentir estranhamente atraído pela jovem
que salvara? Não sabia dizer e nem queria. O estranho fascínio por
Raquel o incomodava; sentia-se maculando o sentimento que tinha
por Walkyria. No entanto, perguntava-se se ela dava a ele tanto
valor.

Nesse momento Raquel retornou à sala e Jack colocou a foto


novamente no lugar. A garota se aproximou dele. Vinnie levantou-
se.

– Bom, vou preparar um vinagrete! Vai ficar da hora! – e foi para


a cozinha.

– Obrigada por tudo o que você tem feito – disse a moça para o
psiquiatra quando ficaram sozinhos.

– Imagina – Respondeu.

– Preciso te perguntar uma coisa meio pessoal – ela o fitou com


seus grandes olhos castanhos. Jack reparou em seus cílios. Eram
longos e curvados e os olhos tinham um brilho singular.

– Os olhos dela são tão vivos e sinceros – pensou.

– Diga – falou. Sua barriga de repente esfriou.

– Por que continua me ajudando? – ela perguntou direta,


movendo os lábios carnudos e úmidos. Jacó lembrou-se da primeira
vez que a ouvira falar. Sentia-se arrastado àqueles lábios, como se
eles possuíssem sua própria gravidade.

– Que boca mais linda! – sua mente divagava, mas então um


choque mental o lembrou de que aquela mulher não era Walkyria.
– Por que eu continuo ajudando? – focou-se na pergunta e
desviou o olhar da jovem, com muita dificuldade. – Bom – o
psiquiatra continuou. – No começo fiz isso pelo Vinnie. Achei que
você seria muito perigosa, mas depois tudo mudou. Você passou a
ser perseguida por uns seres estranhos e começou a me parecer
que o louco era eu. Dessa forma, concluí que precisava vir junto.
Além do mais, quando o “Zé Pilintra” apareceu na frente do
estacionamento, vi como ficou assustada. Não poderia abandoná-la.
E além do mais... – ele hesitou. Ia dizer algo, mas meneou a
cabeça. – ... Você precisa de minha ajuda – falou com um ar
tristonho. Raquel assentiu com a cabeça, levantou-se e foi até a
lareira apagada, que era encimada por uma enorme TV,
possivelmente mais cara que um carro popular. Era extremamente
fina, quase como um quadro negro. – Obrigada, Jacó. Não
conseguiria ter escapado se não fosse por você – a garota admitiu.

Raquel observava as peças de decoração na estante que havia


ao lado da lareira. Jack observou seu corpo. Embora sólido, tinha
um ar frágil e delicado; parecia uma bailarina. Jack queria se
levantar e abraçá-la, mas em vez disso falou de forma respeitosa:

– Poderá sempre contar comigo.

Ela olhou para ele e sorriu; ele lhe devolveu o olhar. Raquel
desviou, encabulada pela primeira vez, sentindo certo
constrangimento. Esquadrinhando o ambiente em busca de algo
para quebrar o mal-estar, notou um desenho em mosaico violeta no
piso de mármore branco. Parecia um desenho aleatório, mas sentiu-
se aliviada por achar algo para comentar. Ela se dirigiu devagar ao
local e examinou melhor o que vira. Olhou para Jack, como pedindo
permissão, e começou a afastar os tapetes. Jacó a observava e se
preocupou quando ela começou a repetir “não, não, não”
continuamente. Ele levantou e passou a ajudá-la. Afastaram móveis
e todos os objetos que cobriam o piso. Quando estava
completamente descoberto, viram um pedaço de círculo; da
curvatura partia um desenho que parecia a junção de dois raios,
formando um “C” invertido. Raquel ajoelhou-se diante do símbolo
entristecida e assustada.

– O que foi? O que é isso? – Jack perguntou.

– Esse símbolo... – ela falou. O psiquiatra olhou. Já havia visto


aquele símbolo em algum lugar, mas onde? – O que tem ele? –
perguntou confuso.

– Ele quem? – era Vinnie voltando da cozinha. Rapidamente


Raquel jogou o tapete novamente sobre o símbolo. – Nada demais –
disse falsamente despreocupada, mas ele não caiu no engodo dela.
Levantou uma sobrancelha e se aproximou do tapete.

– Tá bom. Sou um idiota e vou fingir que vocês me enganaram –


falou sentando no sofá. Tinha uma bandeja cheia de guloseimas,
com o tal molho. Ele comia com gosto. Os outros, tentando
disfarçar, também comiam. Parecia que Vinnie realmente deixaria o
assunto de lado, mas, quando os dois baixaram a guarda, ele
colocou a bandeja no sofá e com agilidade arrancou o tapete,
expondo o símbolo.

– Que que é isso? – perguntou acusatório. Jacó deu de ombros.


Raquel respondeu casualmente: – Mal gosto de decorador? – Vinnie
meneou a cabeça.

– Era isso que estavam tentando esconder – repreendeu


encarando os dois. – Você sabe algo sobre esse símbolo.

Foi a vez de Raquel menear a cabeça.

– Mais ou menos. Vi esse símbolo uma vez, mas não sei


exatamente o que é.

– Vi algo a respeito... – Vinnie falou, chamando a atenção da


garota. – Se eu pudesse dar uma olhada na internet... – praguejou.
– Já vi esse símbolo em minhas anotações – disse caminhando de
um lado para o outro. Então gritou:
– Lembrei!

– Sabe por que estou aqui, não sabe, garota? – a voz fria de
André Marcos soou na sala da madre superiora.

Gabriela olhou assustada de relance para o prefeito. Ele saiu de


frente da janela, sentou-se na cadeira, cruzou as pernas e encarou
a irmã, que tinha a cabeça baixa.

– Sabe ou não sabe?

– Na verdade, não, senhor prefeito – timidamente respondeu,


intimidada pela presença do homem.

– Vou explicar-lhe – André Marcos falou sisudo. – Vim aqui por


que Jair era um tremendo desgraçado! – ela olhou para ele
surpresa.

– Um porco imundo, que vivia me dando trabalho. Sendo a


senhorita uma moça dedicada a Deus, acredito que ele deva ter
tentando molestá-la. Estou certo? – indagou, totalmente cônscio da
resposta.

Gabriela novamente desviou o olhar, envergonhada e intimidada.


Não conseguia encarar o prefeito. Cheia de tristeza, ainda de
cabeça baixa, assentiu em silêncio com a cabeça.

– Eu entendo, irmã. Deve ter sido duro – o prefeito assumiu um


tom mais complacente, quase caridoso e curvou-se um pouco para
frente em direção à frágil menina.

– Deve ter sido muito difícil aguentar as investidas desse porco,


não é mesmo? – indagou cheio de uma simpatia que não lhe era
natural.

Gabriela novamente só aquiesceu com a cabeça. André Marcos


se levantou e cruzou a mesa, colocou as mãos sobre o ombro dela,
que encolheu-se horrorizada com o toque.

– Vamos, olhe para mim, menina – ele pensou, contendo a


ansiedade. A garota estava vulnerável, como ele esperava. Um
contato visual firme seria o suficiente para compeli-la a agir como
ele queria. Conhecia um poderoso encantamento que subjugava
qualquer pessoa a sua vontade.

– Só preciso que você olhe para mim – André Marcos pensava


enquanto aguardava placidamente que a garota se acalmasse.
Novamente tocou-lhe o ombro, não forte demais para assustá-la,
nem distante demais, somente com a pressão correta e sólida para
que sentisse nele uma presença paterna e segura.

– Mais tarde, quando o delegado vier, terá uma surpresa ao


descobrir que você é a assassina – sorriu a si mesmo. Com as
novas lembranças, quando os delegados viessem pela manhã,
teriam o depoimento de uma assassina confessa, que usara os
ataques recentes para disfarçar o seu próprio. Uma mulher fria e
maligna que assassinou membros da comunidade religiosa da
cidade, e tudo estaria resolvido para André Marcos. Precisava
apenas do contato visual...

Ele se ajoelhou com seu ar mais bondoso e paternal, o mesmo


que usava quando visitava as crianças carentes, que ele tanto
desprezava. De joelhos podia ver o rosto da irmã. Manteve o aperto
tranquilizador em seu ombro. Gabriela voltou-se a ele com os olhos
marejados e cheios de medo, totalmente fragilizada. Seus olhares
se encontraram finalmente, e o coração do prefeito acelerou.
Começou a fazer um movimento com os dedos treinado
exaustivamente, dando início ao feitiço. Quando falou, nem ao
menos piscava, mantendo sua voz empostada no tom certo. Quem
o visse naquele momento poderia estranhar o movimento de seus
dedos, que parecia um tique, ou a voz mais grave que o habitual,
mas jamais imaginaria que aquele homem traçava a realidade com
os dedos e a moldava a sua vontade com a voz utilizando uma arte
antiga e profana.
– Foi por isso que o matou, Gabriela? – ela olhou para ele
chocada, o que André Marcos já esperava. Agora esperava que
suas pupilas dilatassem e seu corpo relaxasse. Depois disso ela
repetiria tudo o que ele lhe dissesse com um olhar vago.

A moça, no entanto, assumiu uma expressão horrorizada e,


afastando-se, disse:

– Eu não o matei! Não fui eu! Por que o senhor está dizendo isso
de mim?

Por alguns segundos André Marcos ficou sem saber o que fazer.

– Não é possível! – pensou atônito. Colocou-se lentamente de


pé, olhando fixamente nos olhos da garota, que o encarava
ofendida. Colocou toda sua força de vontade no encantamento.
Tamanha era a potência da magia que sentiu o suor escorrer-lhe
pela face.

– Prefeito, sou inocente. Nunca fiz mal ao padre Jair! Sou uma
mulher com a vida devotada a fazer o bem e não o mal – indignou-
se. Ele fez ainda mais força, estendendo o ataque, mas sentiu a
mente nublar.

– Você teria razão para tal. Jair não via a hora de se meter entre
suas pernas! – ralhou buscando uma oportunidade de enfraquecê-
la. No entanto, sua cabeça quase explodiu com uma dor lancinante.
Fechou os olhos e cambaleou. – Que mente poderosa! Não consigo
penetrá-la! – percebeu chocado. – Nunca vi alguém que não fosse
um bruxo poderoso e treinado com uma mente tão convicta! –
mesmo frustrado, André Marcos admirava a força de vontade da
jovem, sentia como se ele próprio houvesse recebido o ataque.

– O senhor está bem? – ainda havia irritação na garota, mas a


preocupação em sua voz era genuína. André olhou-a surpreso e
desestruturado.
– Jair sempre me dizia que você era uma tentação enviada por
Deus para testá-lo... – disse, sentindo o calor do sangue a escorrer-
lhe pelo nariz. Gabriela pegou um lenço de papel, levou-o à língua,
umedecendo-o, e limpou o nariz do prefeito. Falou com pesar
enquanto cuidava dele:

– Sim, prefeito, o padre era um homem doente. Uma pessoa


qualquer teria feito o que o senhor sugeriu, mas sou uma serva do
Altíssimo, não uma vingadora. Sim, ele tentou me estuprar, mas
acredito que Deus tenha me guardado. Acredito que Ele tenha me
salvado do monstro que tentou aquilo. Fui uma vítima, não uma
assassina, senhor, e espero de coração que o senhor seja mais
rápido em perdoar e proteger do que em julgar. Lembre-se de que
da maneira que o senhor julgar será julgado. Deus é bom, prefeito,
não a humanidade. Por isso pessoas como eu dedicam suas vidas
para mostrar ao mundo essa bondade. Que Deus perdoe o senhor
por uma acusação tão leviana!

Foi então que André Marcos percebeu que nenhum de seus


encantamentos seriam capazes de feri-la.

– O senhor deve cuidar de sua saúde, e eu devo voltar para


minhas orações. Se me dá licença... – disse afastando-se.

– Ainda não acabei – falou, mas Gabriela continuou caminhando


em direção da porta.

– Mas eu sim. Adeus, prefeito. Que Deus te abençoe – sem mais


a mulher saiu. Derrotado, André Marcos ficou observando a moça
partir. Estava lá estático, impotente, até que sua atenção se voltou
para o guardanapo sujo de sangue e úmido de saliva.

– Pai? – a voz de Walkyria o tirou de sua lembrança do dia


anterior. A lua já estava alta no céu.

– O que temos que fazer agora? – ela estava vestida com a toga
de linho, exatamente como ele ordenara, e o cabelo preso num
longo rabo de cavalo, como deveria ser. Tinha no rosto uma
expressão cética e zombeteira, ele podia reparar, mas estava
empenhada. Ele se recompôs e começou a instruí-la.

– Segure esse escudo, como se estivesse realmente tentando se


proteger de um ataque – Walkyria fez como indicado, ainda tinha o
rosto cheio de ceticismo. –“Isso vai mudar em breve”, André Marcos
pensou e então começou então a murmurar algumas palavras que a
ela pareciam desconexas, mas tratava-se de um encantamento
complexo, talvez a única chance de vitória sobre a irmã que o
deixara impotente antes.

Como William dizia, o destino conspirava a favor deles. Com


cuidado e delicadeza, apoiou o lenço de papel que Gabriela
umedecera com a língua sobre o escudo e murmurou as últimas
palavras do feitiço. O escudo virou pó nas mãos de Walkyria. Que
pulou surpresa.

– Está feito! – André Marcos falou enfático.

– O que houve? O escudo virou pó na minha mão. – o que foi


isso?

-Magia Walkyria, não os truques de mágica que os ilusionistas


fazem na T.V. Mas a verdadeira Arte Antiga. O poder de mudar a
realidade confrme o meu deleite! Falou com paixão, a filha o olhava
espantada.

Eu não entendo pai, para que foi isso? Vai me trazer o Jack de
volta, pai?

André Marcos olhou para a filha ansiosa.

– Sim, filha, de maneira indireta. Esse encantamento criará as


condições para termos o seu Jacó de volta.

– Mas como assim, é como nos filmes? O que fizemos? Algum


tipo de feitiço localizador? – perguntou confusa.
André Marcos olhou de maneira reprovadora para a filha.

– Pense, Walkyria. O que você estava segurando?

– Um escudo? – respondeu insegura.

– Para que serve um escudo? – ele a provocou.

– Para proteger – respondeu.

– Exatamente – André Marcos assentiu e continuou suas lições.


– Agora, diga-me, o que acredita que fiz?

– Parece que você destruiu um escudo. Você está tentado


quebrar alguma coisa? – perguntou em dúvida e o prefeito sorriu.

– Quase. Estamos quebrando as defesas daqueles que nos


impedem de atingirmos nossos objetivos – Walkyria pareceu
confusa com a resposta.

– Quem nos impede de chegarmos até Jacó? Por acaso aquela


psicopata é uma bruxa? – perguntou ofendida e preocupada. Dessa
vez André Marcos sorriu da pergunta da filha. – Se ela soubesse
quem é aquela mulher! – pensou.

– Não exatamente, mas ela é alguém poderosa, descendente de


uma linhagem tão nobre quanto a sua – Walkyria não gostou da
admiração do pai.

– Ela é uma vaca louca e perigosa, isso sim! – falou irritada.


André Marcos assentiu.

– Você tem razão. Se tem uma coisa que essa mulher é, é


perigosa – concordou. Walkyria fitou o pai desconfiada. Vira muita
coisa estranha naquele dia. Tivera de desmarcar todas as suas
consultas, tomara um banho cheio de sais perfumados, usara uma
loção para perfumar a pele, e a roupa que vestia era exótica e
antiga. Havia se alimentado, por ordem do pai, de algo semelhante
a uma gelatina com batatas e mandiocas, sem saber que se
alimentara da placenta de uma criança natimorta e de raízes
distintas de três plantas, batatas, mandioca e cebolas. Sentia um
constante frio na barriga, como se estivesse caminhando por ruas
escuras à noite e sozinha; era uma apreensão incômoda.

– Você a conhece, pai? – indagou. André Marcos negou com a


cabeça. – Mas conheço sua mãe –admitiu. – Agora temos mais o
que fazer. Venha – virou-se para sair do local. Walkyria sorriu.

– Nossa... Essa foi a nossa maior conversa de pai e filha, sem


brigas, em uns 15 anos. Acho que é a primeira vez, desde que sou
adulta, que me sinto sua filha – confessou um pouco tímida.

O prefeito olhou para a filha sério, enquanto pegava os materiais


usados nos encantamentos e guardava-os num baú.

– Essa é a primeira vez, desde que se tornou adolescente, que


você age como minha filha. Nada mais justo do que ser tratada
como tal.

Walkyria se encolheu diante do comentário.

– Poxa, pai. Por que você é sempre tão cruel? – disse com
tristeza.

André Marcos parou o que estava fazendo e voltou a olhar para


a filha.

– Você me acha uma pessoa má, Walkyria?

Ela ficou um tempo em silêncio. Reunindo coragem, disse:

– Sim! Acho você um homem cruel e implacável! – disse


enfrentando-o.

André Marcos digeriu o comentário. Quando falou, não estava


irritado, pelo contrário, estava mais calmo e paciente do que
Walkyria esperava.
– Diga-me: um tigre é maligno, filha? – indagou.

– Não. Um tigre é um animal. Não é bom nem mau.

– Entendo. Ainda assim, no entanto, ele mata outros animais,


sendo o predador supremo de seu ecossistema – concluiu e, sem
deixar a filha falar, continuou:

– E um maremoto, é maligno? Ou um terremoto? Ou ainda um


vulcão em erupção?

– Pai, não é a mesma coisa – Walkyria interrompeu. – Essas são


forças da natureza – André Marcos sorriu satisfeito.

– Entendo. São forças da natureza e, como tais, não podem ser


malignos, porque tudo o que fazem é fruto de sua natureza. Estou
correto? – provocou.

– Sim – concordou, mas não entendia para onde estava indo a


conversa.

– Um cirurgião é maligno, filha? – o prefeito continuou sua


argumentação.

– Lógico que não! – respondeu irritada.

– Melhor ainda, um oncologista! O que acha de um oncologista?

Walkyria respondeu levemente ofendida:

– Pai, por favor! Oncologistas tentam impedir o câncer. Como


poderiam ser malignos?

– Mas a quimioterapia pode muito bem matar um paciente –


André Marcos disse e, antes que a filha pudesse contestar,
continuou:

– E o que dizer do fato de o cirurgião ter, dependendo do câncer,


de mutilar o corpo do paciente? Se a parte afetada for o seio, por
exemplo, ele desfigurará a mulher arrancando-o todo. Se for no
cérebro, talvez seja necessário ser tão intrusivo que, embora salve a
vida do paciente, destruir suas memórias e personalidade,
destruindo a “alma” do paciente – concluiu com um sorriso irônico. –
Isso não é maligno, cruel ou até mesmo implacável? – ironizou.

– Não pai, não é! Ele está fazendo o necessário para salvar o


paciente! – ela defendeu. André Marcos sorriu triunfante.

– Sim, ele tem uma razão, mas suas atitudes de desfigurar ou


mutilar uma pessoa, ou, ainda, privá-la daquilo que ela é, são, por si
só, atitudes nobres ou malignas?

– Mas não tem cabimento você falar isso pai – Walkyria


exclamou. – Essas atitudes foram extremas e buscavam salvar a
vida do paciente.

– Exato, filha! – concluiu feliz o prefeito.

– Minhas atitudes, assim como as dos médicos, são extremas,


mas tudo o que busco é salvar a vida do meu paciente.

– Que paciente, pai? Do que está falando? – indagou confusa.

– Da raça humana, minha filha!

– Como assim? – ela estava ainda mais confusa.

– Walkyria, o que você deve entender é que o ser humano


acredita estar no topo da cadeia alimentar, quando isso não é
verdade. Somos apenas gado... – André Marcos continuava sua
explicação. – Desde que foi criada, a raça humana é escrava de
seres malignos; seres que nos moldaram e moldam para o abate!
Eles nos domam e nos engordam para que fiquemos mansos e
sejamos mais fáceis de massacrar. São seres monstruosos, que nos
usam para atingirem seu objetivo nefasto: corromper a nossa
espécie – ele continuava apaixonado. – Olhe em volta. O ser
humano é capaz de coisas grandiosas, mas a cada dia que passa o
número de pessoas que se guia o altruísmo, que busca fazer algo
para um bem maior diminui. O ser humano torna-se cada dia mais
egocêntrico, mimado e cruel. Isso, minha filha, é um câncer
colocado por esses seres em nossa natureza. Somos fantásticos,
sempre querendo mais e alcançando mais – a voz do prefeito era
cheia de admiração, mas também de tristeza. – Entretanto, a cada
dia a humanidade se perde para o individual. Tornamo-nos egoístas
e pensamos que somos autossuficientes. Sabe por quê? Porque
sozinhos, longe do rebanho, somos presas mais fáceis; porque
somos numerosos e, se nos unirmos, podemos destruí-los –
garantiu. – É isto que venho tentando fazer durante toda a minha
vida! Unir a raça humana em um único povo, purificar os seres
humanos da corrupção colocada pelos Senhores da Noite e guiar a
humanidade para uma era de luz e prosperidade. É isso que nossa
família tem feito por milênios! – revelou. – Fomos caçados e
destruídos, considerados monstros cruéis e implacáveis, porque
lutamos pelo ser humano, como uma raça divina perfeita e
grandiosa! Mas pela raça e não pelo indivíduo!

Walkyria observava em silêncio a paixão do pai.

– É isso que estamos fazendo aqui! Não apenas salvando seu


namorado, mas toda a humanidade! Eu lhe digo, Walkyria, que
quando você consegue colocar seus objetivos mesquinhos de lado
em prol da humanidade você age como minha filha! Entende agora
por que sou tão implacável? Estou tentando tratar um câncer
extremamente agressivo e estou perdendo a batalha, mas hoje tive
uma vitória: minha filha, que desde a adolescência vivia uma vida
mesquinha e medíocre, somente pensando nela, está aqui,
assumindo seu papel e tentando fazer algo pelo mundo –
pronunciou solenemente para a filha, que olhou para ele e disse
envergonhada.

. – Vi o que você fez, mas para mim, ainda é apenas um truque


ou superstições como as pessoas que fazem macumbas ou jejum. -
confessou – Pai, ainda estou fazendo tudo isso pelo Jacó, você
sabe disso, não é? – admitiu. – Acho que ainda sou egoísta –
curvou a cabeça em vergonha. André Marcos sorriu e colocou a
mão nos ombros da filha

– Sim, eu sei, mas por amor a esse homem você deu o primeiro
passo e voltou para nós. É o começo, filha – incentivou. – O início
de algo muito bom. Você verá que quem viveu de ilusões e
superstições foi você minha filha. Hoje Walkyria, você começou a
trilhar o caminho de volta a seu destino.

Ele se virou e começou a sair da sala, sem olhar para trás ou


diminuir o passo.

– Bem-vinda de volta à família, minha filha!

O dia de Carlos Eduardo foi longo, moroso e trabalhoso. Tanto o


Dr. Felipe, médico acusado do primeiro crime, como a senhorita
Neusa, a estudante de medicina e cantora gospel aos domingos,
acusada do segundo, continuavam negando a autoria dos seus
respectivos crimes e ainda permaneciam confusos. Cada detalhe foi
tratado. Cada mínimo acontecimento foi trazido à tona e relembrado.
Isso tomara o dia todo do delegado.

Carlos, Rita e Tucca estavam na sala adjacente à que eram


realizados os interrogatórios intermináveis e acompanharam todo o
processo. O médico acusado foi o primeiro a ser questionado e
chorou desmedidamente.

– Sabe o que é pior?! Tenho certeza que esse filho da mãe não
matou o desgraçado!

– Eu te entendo, Carlão, mas convenhamos... Como poderemos


explicar isso? Temos o DNA do cara e qualquer tipo de prova no
local. Como provar que não foi ele, quando todas as evidências
apontam para ele? Por Deus! O homem tem até o motivo. Tudo foi
muito bem engendrado.
– Sei o que o quer dizer, Tucca, mas olha para ele. Ele não se
encaixa! – Rita falou.

– É, eu sei, eu sei. – Nós sabemos, no nosso íntimo, que não foi


ele! No entanto, não temos como provar que não foi! – falou
frustrado.

Entretanto, Carlos estava mais confiante, porque, munido das


informações dadas pela irmã Gabriela, tinha agora uma linha de
investigação. A defesa era tênue, frágil e extremamente delicada, o
que demandaria quase todo o período da manhã para ser
elaborada, mas tinha um caso.

Depois de exaustivas perguntas ficou claro que a falta de


memória dos acusados era tão grande que nem mesmo se
lembravam de terem cometido os crimes. Era como se eles
estivessem desacordados durante os ataques. O que Carlos notou
de comum nos depoimentos foi a lembrança de sentirem muito frio
pouco antes de ficarem inconscientes.

O que o delegado não entendia era por que o Herege atacara


pessoalmente Gabriela e o padre Jair.

– Deve haver alguma razão em particular, algo que estamos


deixando passar – falou pensativo.

– Talvez se descobrirmos como ele fazia para dominar as vítimas


– Rita meditava sobre o assunto.

Tanto Felipe como Neusa tinham a mesma memória. Parecia


que haviam combinado, mas Carlos sabia que isso era impossível,
porque não tinham tido contato no encarceramento e não se
conheciam previamente. E não somente a semelhança física do
misterioso homem careca de olhos azuis eram coincidentes, mas
todos os sintomas de amnésia e confusão também davam mais
força para o caso de manipulação dos acusados. Carlos acabava de
explicar isso a Neusa, a cantora, estudante de medicina, acusada
do segundo crime, que chorava copiosamente aliviada e feliz.
– Não sei como foi feito, mas acho que posso provar que você foi
drogada ou de alguma maneira manipulada para realizar os crimes.
Você não estava em suas plenas faculdades mentais e foi usada
para encobrir os rastros de um criminoso cruel e doentio. Ainda
haverá um longo processo pela frente, mas já posso dizer que você
não é mais suspeita. Precisamos pegar o verdadeiro assassino, mas
você é inocente – sorriu com benevolência. A menina, com os olhos
cheios de lágrimas, o abraçou e chorou ainda mais. Carlos retribuiu
o abraço e tentou acalmá-la.

Normalmente, quando via alguém chorando nessa sala, era


porque finalmente desmascarara um assassino, não uma vítima,
mas ficou satisfeito. Reparou que a moça tremia de frio. Carlos
Eduardo se levantou.

– Vou pedir para pegarem uma blusa para você e


conversaremos com seu advogado. Quem sabe conseguimos seu
Habeas Corpus ainda hoje? – foi abrir a porta, mas ouviu ela se
trancando sozinha. As luzes se apagaram e o frio se intensificou a
um nível insuportável. Carlos virou para trás ao ouvir um riso cruel e
frio, que ele já havia ouvido antes. Na escuridão só pôde ver o
reluzir de um par de olhos sombrios e azulados.

– Encontramo-nos novamente, delegado. Pensei ter sido


claro da última vez.

– A mesma voz – Carlos pensou. Pegou o celular e acendeu sua


lanterna, jogando a luz no rosto de Neusa. Quase deixou o aparelho
cair ao vê-la. Seu rosto estava deformado, com a musculatura
retesada, dando a sua face uma aparência insana e psicótica. A
boca tinha um sorriso gigantesco e demoníaco. Os olhos estavam
repuxados, assim como o nariz, que mais parecia um focinho.

– Neusa? O que houve?

– Ora, delegado... Sabes bem que Neusa não está mais aqui
no momento.
– Meu Deus do Céu! – Carlos falou chocado. A forma
monstruosa de Neusa sorriu ainda mais, fez um movimento de
negativa com a cabeça.

– Oh não. Ele também não, delegado. Estamos a sós.

Tucca socava a porta, mas ela não cedia.

– És persistente, delegado. Digno de admiração. Foi a


persistência que me manteve na Terra por todos esses séculos,
mas estás começando a me aborrecer. Gentilmente solicitei a ti
que abandonasse o caso, que parasse de se pôr em meu
caminho ou outros sofreriam. Se continuares nessa busca,
matarei teus entes mais queridos. Esse é meu último aviso.

– Cala a boca, desgraçado! – Carlos partiu para cima da criatura,


mas a mulher deu uma pancada tão forte no delegado com a mão
fechada que ele foi arremessado até o outro lado, indo de encontro
ao espelho que separava as duas salas, trincando-o. O celular foi ao
chão com a luz ainda acesa, dando à criatura um ar ainda mais
aterrorizante. Ela se olhou no espelho e depois levantou a cabeça,
farejando o ar.

– Sinto o cheiro dela, delegado. Sei que tentarás protegê-la e


quero que o faças, porém aviso que o corpo dela será o
próximo a ser encontrado dilacerado.

Carlos Eduardo sacou a arma e apontou para a criatura, que


gargalhou. O delegado tremia dos pés à cabeça, parte pelo frio
intenso, parte pelo terror sobrenatural que o dominava.

– Pretendes atirar em mim, delegado? Pensas que tuas


balas causar-me-ão algum ferimento? Ou será que matarão a
mulher que se esforçaste tanto para inocentar? Enquanto
estiveres em meu caminho, verás uma trilha de sangue
inocente. Não pretendia tirar a vida dessa tola invejosa. Queria
que ela sofresse as punições dos homens e visse a
incapacidade de seu deus pregado em livrá-la, mas parece que
não me lavaste a sério, delegado, e por isso ela perecerá, para
que tu aprendas que aqueles que me confrontam pagam com
um sofrimento maior que a morte. O sangue desta mulher está
em tuas mãos!

Ao falar isso, segurou a própria mandíbula e, num tranco


violento, arrancou o osso, rasgando pele, músculos e tendões.
Jogou aos pés do delegado o que restara em sua mão. Ele ainda
pôde ver a língua se mexendo na mandíbula mutilada. Os olhos da
mulher se apagaram e ela desabou, no mesmo instante que o frio
abrandou e a porta se abriu. Carlos Eduardo correu à moça e viu
seus olhos castanhos desesperados pedirem por ajuda, enquanto
ela se afogava no próprio sangue.

– Alguém me ajude, por favor! – Carlos gritou a plenos pulmões.

Tucca entrou na sala com arma em riste, assim como Rita.


Carlos tinha lágrimas nos olhos. Tentava estancar o sangue, mas
sabia que não seria possível. Os olhos dela mostravam o medo e o
desespero que sentia ao delegado, que, incapaz de qualquer
atitude, via a vida da mulher fugir diante dele.

– Esse símbolo é o brasão de uma sociedade secreta cujos


membros acreditam numa força mística que rege todo o universo e
que podem usar esse poder a favor deles para fazer as coisas –
proclamou animado. Jacó pareceu confuso.

– Uma Força que rege o universo? Tipo “Use a Força, Luke?” –


perguntou confuso, enquanto parafraseava o famoso filme. O
repórter assentiu.

– Mais ou menos. Na verdade, George Lucas baseou a Força


nessa coisa. Quem acredita nesse negócio baseia-se em uma
história mais antiga, num livro da época do Julio Verne. É ficção
científica pura, mas tem gente que acredita – falou dando de
ombros. – Mas meu, relaxa que essa galera é maluca de pedra. Não
tem nada demais.

– Não é bem assim. Isso é só um disfarce. Esse símbolo e


aqueles que ele representa eram para ser um dos maiores segredos
da antiguidade, mas a segunda guerra mundial os revelou, por isso
eles tiveram que criar essa história banal que você conhece, Vinnie,
mas é tudo mentira. Lytton, o autor desse livro, conseguiu as
informações por meio de um herege da ordem, que passou-lhe as
informações e, depois que o disfarce da sociedade caiu, na segunda
guerra, eles decidiram popularizar e ridicularizar sua própria crença,
conseguindo assim esconder-se mesmo estando a mostra. Na
verdade, eles estão no mundo há milhares de anos, sempre agindo
nos bastidores. Esse símbolo não está aqui por acaso. Essa casa é
um local especial. Talvez um refúgio – Raquel finalizou desanimada.

– Você está dizendo que a família da Walkyria pertence a uma


sociedade secreta? – Jack perguntou incrédulo. Raquel deu de
ombros e Vinnie ficou pensativo.

– Não saberia dizer. Não convivo com eles.

– Alguma vez você já viu esse símbolo em algum lugar? – ela


perguntou. Jacó ficou em silêncio buscando na memória. Então
lembrou-se... Seu quadro favorito no escritório do William, o “Rei
que Há de Vir”. A estranha cicatriz na mão esquerda do rei era
aquele símbolo.

– Talvez – era incapaz de admitir mais do que isso. Teria William


algo a ver com aquilo tudo? – Não tenho certeza – mentiu para os
amigos e para si mesmo.

– Independentemente do que sabemos, acho que é seguro


afirmarmos que há algum envolvimento desse local com essa
sociedade – Raquel falou.

Jacó levantou-se.
– Raquel, essa é uma acusação muito grave. Você está dizendo
que a família da Wal é um tipo de Illuminati do mal?! – falou
defendendo a linhagem da amada.

– Bom, os Illuminati são do mal – intrometeu-se Vinnie. – Sabe,


Jack, isso faz sentido! Existem boatos sobre São Caetano do Sul,
sobre o poder que o André Marcos tem sobre a cidade. Dizem que
até o presidente do país tem medo dele. Boatos dizem que São
Caetano é como um país independente.

Jacó riu em negativa.

– Vinnie, por favor, você acredita nisso por acaso? Acha mesmo
que André Marcos tem toda essa força?

– Diz você. Alguma vez você viu esse cara não conseguir o que
quer? Nunca ouviu nada de absurdo sobre ele? – Vinnie perguntou.
Jacó calou-se. Raquel interveio.

– O importante é que os nosferatus são inimigos dessa


sociedade e já é perigoso o suficiente estarmos sendo caçados por
“vampiros”, por assim dizer – a garota fez as aspas com os dedos
no ar. – Para termos esses também no nosso encalço. Temos que ir
embora o mais rápido possível!

– Por que eles nos caçariam? – Jack perguntou.

– Porque eles sempre me caçaram! Mesmo antes dos


nosferatus. Foi por isso que fugi da Alemanha, para escapar desses
bruxos...

– Cara, isso é demais! – Vinnie estava extasiado. – Preciso


postar isso no meu blog para ontem! Parece que finalmente estou
completando um quebra-cabeça de umas dez mil peças – falou
elétrico.

Raquel o segurou pelos ombros.


– Não, Vinnie, ainda não. Você não pode fazer isso.

– Por que não?

– Porque se você puser isso na internet eles vão nos achar. Não
posso lidar com isso. Precisamos fugir daqui, precisamos voltar para
São Paulo... É o único lugar seguro... – ela andava de um lado para
o outro nervosa.

– Espera aí – Jacó disse em tom de contrariedade. – Por que


São Paulo? A primeira coisa que você nos disse é que
precisávamos sair de lá.

Raquel continuava andando de um lado para o outro. Mais para


si mesma do que para os outros murmurou:

– Eu estava enganada. Não estaremos seguros em lugar


nenhum. Não podemos nos proteger sozinhos. Preciso da ajuda
dele! – havia nítida veneração por aquela pessoa em quem Raquel
depositava sua confiança. Jacó aproximou-se dela.

– Por favor, Raquel, espere – Jacó falou tentando acalmá-la. –


Quem é essa pessoa? Por que ela poderia nos ajudar? – perguntou.

– Só ele pode nos proteger, se conseguirmos chegar até lá –


olhou para o psiquiatra aflita. – Você não entende, Jacó. Se eles nos
encontrarem, estaremos perdidos! Não há uma forma de vencê-los!

Jacó segurou-a pelos ombros.

– Eu vou te proteger! – falou com firmeza. Raquel o encarou.


Seus olhos grandes estavam úmidos, embora ela resistisse com
firmeza às lágrimas.

– Como você vai me ajudar contra seres que não morrem? Nem
ao menos podem ser feridos por armas mortais? – ela olhou para
ele desesperançosa.

Jacó sorriu confiante.


– Quanta falta de fé, garota! Você mesma me disse que esse é o
meu destino. Hora de acreditar nele. O destino achará uma forma –
riu confiante, mas infelizmente não acreditava em nada do que
dizia...

Já passava da meia-noite quando Jack cedeu ao sono. Os três


haviam assistido a alguns filmes na TV da sala com a lareira acesa
e comido pipoca. Raquel cochilava entre os dois e Jack também
estava sonolento, mas Vinnie permanecia bem acordado. Vencido
pelo cansaço, o psiquiatra decidiu se deitar, a garota também.

Vinnie continuou na internet.

– Desde que não se identifique, é seguro – Raquel dissera.

Portanto, xeretou sites e se distraiu vendo alguns filmes. Uma


hora depois, decidiu descansar. Antes, porém, precisava enviar um
recado... Tinha um conhecimento profundo de informática e tinha
certeza de que não poderiam rastreá-lo. Por outro lado, se Raquel
tivesse razão... O risco era grande. Não foi fácil decidir.

Num profundo e úmido corredor, resquícios de uma galeria


subterrânea há muito esquecida, duas figuras distintas caminhavam.
Dom Francisco, em seu característico terno branco com gravata
vermelha, andava ao lado de uma mulher delgada, alta e atraente,
de cabelos volumosos e vermelhos como o sangue, de olhos verde-
esmeralda e pele branca como marfim. O rosto era tatuado em
tribal, na forma de uma águia azul de asas abertas, que se
estendiam ao redor dos olhos, e o corpo ocupava a ponte do nariz.
O corpo escultural estava coberto por um vestido chinês
elegantíssimo bordado com fios dourados que formavam dragões
orientais. Um decote grande e provocante mostrava boa parte de
seu corpo sensual. Sobre o vestido descansava o longo manto
vermelho com capuz.
– Diga-me de novo, Dom Francisco. Como seu plano pode nos
ser útil? – a mulher falou em tom informal. – Como fazer um acordo
com os magos de entregar o Vrykolaka pode ter sido uma boa
ideia? – perguntou ainda com o mesmo tom, mas revelando agora
uma forte censura. – Se não te conhecesse tão bem, diria que essa
mulher que você tem tão obcecadamente perseguido está te
enlouquecendo.

– Minha senhora, sabe por que escolhi este mortal para unir-me
depois de tantos anos sem um corpo? – o homem perguntou. A
mulher de vermelho somente o olhou curiosa. A criatura que atendia
pelo nome de Dom Francisco era um dos seres mais misteriosos do
seleto secto do Afogado.

– Esse mortal foi um dos maiores opositores de meu eterno


inimigo Dom Magalhães. Esse homem tinha o sonho de construir
nessa terra um reino do povo que foi trazido para cá da África. Eu
era o espírito guardião desse povo e compartilhava do sonho desse
mortal, mas havia obviamente o problema de Dom Magalhães. Ele
tentou por anos capturar o mortal sem sucesso. Sabe por quê? Ele
olhava além – concluiu.

– O que quer dizer com isso? – a mulher indagou.

– O mestre tem certeza de que dessa vez ele completará seus


objetivos. No entanto, há pouco mais de duas década, ele também
estava certo, e fomos atrapalhados pelo Não-Vivo – lembrou à
mulher. –Daquela vez o mestre ficou furioso e levou esses quase
vinte anos preparando esse novo plano – continuou. – Agora
estamos aqui, tão perto de conseguir uma vitória. Porém, ainda
assim, tudo pode falhar – terminou.

– Cuidado, Dom Francisco. Se o mestre ouvir isso, você corre o


risco de ser destruído – alertou a mulher. Dom Francisco negou com
a cabeça.

– O mestre confia em mim, ou nunca teria me dado essa pós-


vida! Ele confia em mim porque sempre vejo mais longe; porque
sempre me preparo para a pior das situações – afirmou. – Nosso
mestre sabe que não podemos mais nos dar ao luxo de falhas. Eu
sou o plano alternativo dele, senhora – disse finalmente.

A ruiva concordou. Chegaram a uma enorme cisterna, fria e


cheia de água. A iluminação era parca. Somente uma luz de
lampião iluminava o local. Um corpo grande e pesado, cinzento e
musculoso, sem nenhum pelo boiava na cisterna com a cabeça
voltada para baixo. A mulher falou com a voz servil.

– Mestre. O senhor nos chamou?

A figura submersa levantou. Os olhos refletiam a luz do pequeno


lampião. A figura monstruosa voltou-se para os dois recém-
chegados e anunciou:

– O tempo está se esgotando, meus servos! – a voz soou


maligna e inalada por todo o local, reverberando pelas paredes. –
As peças faltantes estão quase nos seus devidos lugares.
Finalmente, depois de tantas interrupções, concluirei o plano que se
iniciou há quase dois mil anos! – o ser sorriu, com dentes
apodrecidos e cheios de musgo. – É chegada a hora que tanto
esperávamos! – concluiu com um fervor religioso – Porém, se
formos atrasados, tudo estará perdido! – e apontado para seu corpo
decrépito concluiu: – Este corpo não resistirá por mais vinte anos!

– Sim, mestre, estamos fazendo todo o possível – a mulher falou


com seu joelho dobrado em sinal de servidão. A ponta da capa
rubra encostava na água, mas ele não se incomodou.

– Dom Francisco conseguiu um apoio com os magos – ela falou.


O ser careca olhou para o negro.

– Como anda nossa caçada ao Receptáculo? – indagou com sua


voz inspirada e aguda. Dom Francisco deu um passo à frente e
depois de se ajoelhar saudou seu senhor.
– Eu o perdi na floresta, meu senhor – relatou. – Mas, graças a
nossos vigias, descobri o seu atual paradeiro. Já enviei meus
lacaios – informou antes de concluir. – Os outros dois que
acompanham o Receptáculo serão silenciados.

– Como pretende entregar-me o Receptáculo se o prometeu aos


magos? – indagou. Dom Francisco sorriu.

– Os feiticeiros não são dignos de nossa palavra, meu senhor.


Há séculos esperamos uma oportunidade para destruí-los, e agora
temos a oportunidade e a razão para iniciar a guerra que o senhor
tanto ansiava.

– É bom que esteja certo, Dom Francisco! Há três mil anos


espero por isso – falou ansioso antes de ameaçar: – Não falhe
comigo!

– Não falharei, senhor – Dom Francisco curvou-se servilmente.

A mulher adiantou-se:

– Eu também não, mestre. Nunca falhei com o senhor em todos


esses séculos. Não será agora – falou fervorosa. – A irmã será sua,
milorde – prometeu.

– Excelente, Boadiceia, excelente! – sua voz parecia cansada. –


Preciso de uma nova noiva – o Afogado falou enquanto deixava o
corpo afundar novamente. Ao se mover, moveu também os
cadáveres de dezenas, quase uma centena, de mulheres
submergidas na cisterna congelante – mulheres com os cabelos
vermelhos como cobre...

Seu peito doía... Os pulmões queimavam de cansaço e o


coração, embora se esforçasse para bombear o precioso sangue
aos músculos desesperados, não era suficientemente forte para
aguentar tanto esforço, e era um coração habituado a correr mais de
quinze quilômetros todos os dias.

Quanto já havia corrido? Vinte? Quinze? Cinquenta? Não sabia


mais dizer. Parecia que corria a sua vida toda, mas ele não podia
parar!

– Não desista, Brandão! – falou entre inspirações ofegantes.


Corria desesperadamente entre enormes containers. Estava num
porto? – Continua em frente, cara! – falava a si mesmo tentando se
incentivar a seguir em frente. Olhou para trás, pensando que talvez
finalmente tivesse despistado seu perseguidor, mas a luz
bruxuleante e pálida do local revelava uma sombra alongada que
vinha em sua direção.

– Minha mãe do céu! – gemeu horrorizado. Voltando-se para


frente, obrigou-se mais uma vez a ir além do que podia num
arranque desesperado.

Fez outra curva entre o vão de dois containers sentindo-se como


um rato em um labirinto. A noite escura e aparentemente sem lua
mais parecia uma poça de escuridão infernal acima de sua cabeça.
O horror o dominava. Ao seu redor, cada sombra parecia esconder
um olhar, a cada curva parecia que encontraria seu fim.

Não aguentava mais correr, portanto fez a curva em outro vão e


tentou se esconder. Talvez pudesse despistar seu caçador se
ficasse bem quieto. Apurou os ouvidos e tentou rezar, mas o medo
era profundo demais. Ficava somente repetindo em sua mente: “Ave
Maria, rogai por nós”.

Para seu tormento, ouviu o som de algo se arrastando, um som


grotesco de algo muito grande e pesado rastejando.

Ave Maria, rogai por nós.

Então também ouviu um som parecido com o de um chocalho.


Ave Maria, rogai por nós.

Ele se deu conta do coração escandaloso que batia em seu peito


e de sua respiração ofegante e desesperada. Levou a mão à boca
buscando esconder o som.

Ave Maria, rogai por nós.

Sentia os pulmões ardendo por tentarem transformar o gás


carbônico em oxigênio. Não ousava inspirar mais fundo. Aquilo
poderia ouvi-lo.

Ave Maria, rogai por nós.

Viu a sombra gigantesca que se avolumava diante de si. Seus


olhos se encheram de pânico e transbordaram em lágrimas.
Brandão reprimiu o soluço apavorado usando toda a força de
vontade que ainda lhe restava.

Ave Maria, rogai por nós.

Algo se aproximava... Era enorme. Rosnava como uma fera e


escondia toda a luz com sua sombra aterrorizante.

Ave Maria, rogai por nós.

Fechou os olhos. Não seria capaz de encarar aquilo. Medo era


tudo o que tinha em seu interior.

Ave Maria, rogai por nós.

O algo chegou a sua frente. Sabia que seria visto... Não havia
esperança.

Ave Maria, rogai por nós!

Então houve silêncio. O momento que se estendeu em seguida


durou uma eternidade. A curiosidade foi maior que o medo e ele
abriu os olhos.
Ave Maria, rogai por nós.

Nada havia a sua frente. Fosse o que fosse havia partido.


Colocou-se lentamente de pé e da maneira mais silenciosa que
pôde espiou fora de seu esconderijo. Percebeu que estava sozinho
e se sentiu seguro. Aliviado soltou o ar e pronunciou em voz alta a
frase que ecoava em sua mente como um agradecimento:

– Ave Maria, rogai por nós.

Sua voz saiu levando a opressão com ela. Fechou os olhos em


agradecimento e, quando os abriu, reparou na enorme sombra que
se avolumava às suas costas.

Ave Maria, rogai por nós.

Ele se virou olhando para cima, mas nada viu. Ao olhar para
baixo, Janaína estava diante de si com os olhos reluzindo
sombriamente.

– Ave Maria, rogai por nós! – Brandão gritou apavorado


enquanto sacava a arma e disparava, mas nada aconteceu. As
balas resvalaram na menina, que sorria com dentes afiados e
serrilhados como navalhas.

Ave Maria, rogai por nós.

Então ela falou, e sua voz saiu doce e delicada, ainda mais
apavorante:

– Ninguém roga por ti, delegado.

Brandão tentou gritar, mas a mão pequenina da criança envolveu


seu pescoço e apertou, partindo cartilagem e ossos. Seus olhos
voltaram-se para cima, para o negrume da noite, e onde deveria
haver uma lua ele só pode vislumbrar um disco ainda mais escuro...

Como uma Lua Negra...


Jack acordou no meio da madrugada tremendo de frio. Acendeu
a luz intrigado. O relógio marcava quase cinco horas da manhã. O
frio palpável e úmido o incomodava. Colocou um roupão e foi para a
área de serviço, onde ficava o ar condicionado central da casa, sem
acender luz nenhuma. Sabia que aquele frio não era causado por
um aparelho, mas ainda era muito cético para não verificar. A única
luminosidade vinha da lareira da sala, já quase apagada.

Quando chegou à sala, no entanto, teve um calafrio e sentiu um


cheiro pútrido, o que confirmou seus piores temores e, como um
gato que pressente o perigo, parou e olhou ao redor. A escuridão
era total.

Continuou parado observando em meio às trevas sufocantes, até


que percebeu um pequeno reflexo à frente. Reflexo esse que
pareciam dois olhos! Jack quase não teve tempo, mas conseguiu
pular para o lado evitando o ataque.

– Estamos sendo atacados! – gritou, torcendo para despertar os


dois companheiros. A figura se moveu. Jack fechou os olhos e
apertou o interruptor. A luz se acendeu, mas ele não ficou
atordoado. Seu adversário, no entanto, não teve a mesma sorte e
guinchou irritado. Jack abriu os olhos devagar para se adaptar à luz
e se deparou com uma enorme figura diante de si.

À primeira vista, parecia um homem qualquer, muito grande e


truculento, mas bastava um segundo olhar para perceber que havia
algo diferente nele. Tinha unhas que pareciam garras de gato
longas e afiadas. Os dentes eram pontiagudos, mas o mais
assustador era a língua, tão grande que ficava para fora da boca,
caindo até abaixo do queixo. Era pontuda e viscosa, como um
grande verme vermelho. A criatura grunhiu nervosa e tentou atacar
Jack dando um salto sobre ele.

Raquel e Vinnie chegaram nessa hora. Ambos se assustaram ao


ver o monstro saltar sobre o psiquiatra, e da mesma forma se
assustaram com a maestria com que o rapaz se esquivou do golpe.
A criatura pousou em cima da estante, de cócoras, pronta para mais
um bote. Jack preparou-se para o ataque, ao mesmo tempo que
Raquel puxou Vinnie pela mão e correu para a cozinha.

Quando a besta atacou, o ex-soldado estava pronto. Desviando-


se do novo ataque, levantou a perna num chute giratório, acertando
a face da criatura, que foi ao chão. O médico montou sobre ela e
passou a golpear freneticamente sua face, afundando seu rosto. O
monstro grunhia desesperado e com toda sua força arremessou o
médico para perto do fogo. Ao cair, queimou parte do braço.

Raquel voltou nessa hora e agarrou a criatura com força,


imobilizando-a tempo o suficiente para que Vinnie apertasse com
força um frasco plástico de álcool que carregava, espalhando o
líquido nos dois.

– Fogo! – gritou Raquel. – Fogo!

Vinnie largou o frasco e pegou a caixa de fósforo, mas o


nervosismo o deixava lento. Não conseguiu acender o fósforo a
tempo. A criatura debateu-se e conseguiu se desvencilhar de
Raquel. Virou-se para ela furioso e agarrou-a pelo pescoço. Jack
então avançou, atacando com todo o seu peso e velocidade o joelho
da criatura, que estalou alto. Quando a fera largou Raquel, ele
agarrou seu braço e usou o cotovelo como alavanca para quebrá-lo.
Ouviu-se um grunhido de agonia seguido de um segundo estalo. Na
sequência, Jack aplicou mais um golpe forte em seu rosto e, num
movimento ágil e brutal, colocou-se costas com costas com o ser.
Nessa posição, agarrando-o pelo maxilar e usando o próprio corpo
como alavanca, arremessou seu inimigo na lareira.

O monstro explodiu em chamas e começou a gritar em agonia.


Jack pegou um molho de chaves e gritou:

– Para a garagem, depressa!

Vinnie correu desembalado. À frente, Raquel surpresa também


correu, mas perguntou:
– Como fez isso? Como você derrotou sozinho aquele monstro?
– indagou impressionada.

– Uma mistura de técnicas marciais que aprendi no exército. É


letal! – falou quase automaticamente, cheio de frieza,
esquadrinhando cada metro e avançando com um olhar obstinado.
A criatura se estapeava tentando apagar as chamas. Chegaram à
garagem e Jack pulou no banco do motorista de um buggy amarelo
ouro que estava lá.

– Entrem depressa! – ordenou. Os dois pularam no carro,


quando a besta em chamas surgiu na porta. Jack abaixou-se no
banco para apertar o botão de abrir o portão. A criatura saltou, e o
ex-militar girou o corpo com força. Usando o extintor do carro como
arma, acertou-o na face da fera, que rolou alguns metros com o
impacto.

O psiquiatra desceu do carro com o extintor na mão, ergueu-o


bem alto e o baixou com violência na cabeça da criatura. Um som
de algo se partindo ressoou enquanto a criatura parava de se
debater. Jacó caminhou até o carro. Seu olhar tinha uma expressão
fria e assassina. O psiquiatra sentou no banco do motorista e
acelerou.
Capítulo 9

Do momento que caíra inconsciente ao instante de seu despertar,


Barashemesh não sabia se estava acordado ou sonhando, nem
quanto tempo havia se passado da última vez em que estivera
consciente. Talvez tivesse ficado sob o cuidado da estranha mulher
de púrpura por horas, dias ou até anos. Por diversas vezes abrira os
olhos, mas a morte é uma amante ciumenta e por diversas vezes
levara o amado a seu mundo de sonhos. No entanto, certo dia a luz
da aurora brilhou e trouxe de volta o gigante debilitado.

Não estava mais perecendo nem ferido. Encontrava-se saudável


e fortalecido, e reparou que estava em um local diferente. Não era o
deserto causticante, mas um quarto feito em mármore branco como
marfim e brilhante como pérola. Uma brisa suave e úmida soprava.
Vislumbrou um oceano azul e límpido à frente, percebendo que
estava num lugar muito alto, numa montanha, presumiu. A
paisagem era deslumbrante. O mar plácido e cristalino contrastava
com o céu, que parecia um campo cheio de ovelhas prontas para a
tosquia, e onde o céu e o mar se tocavam ele viu o resplandecer do
Astro-Rei.

– Finalmente despertaste, filho meu – e Barashemesh regozijou-


se, pois era Shamsiel que entrara em seu quarto. Vestia uma toga
fina e leve de cor áurea. Estava mais belo que antes e parecia mais
jovem. Em sua cabeça usava uma coroa feita de louros e tinha um
arco nas costas.

Encontrara o pai que buscava desesperadamente. E


Barashemesh contou-lhe o que sucedera a Khanokh após sua
partida. A tudo ouviu o senhor do Sol e ponderou sobre as notícias
com um olhar grave.

– Alarmantes notícias trazes dos filhos do homem, meu filho,


mas a mim não cabe decidir, pois não sou senhor dessa terra. Vem.
Levaremos essa notícia a meu senhor e ele dir-nos-á o que fazer.

E assim foram os dois a Semavetevi, a enorme montanha, a


morada dos deuses. E lá Barashemesh prostrou-se diante do
grande senhor de todos. Grande era seu trono, maior que uma torre,
feito em ouro e pedras preciosas. O magnífico Semyaza sentava-se
nele imponente e terrível. À sua esquerda havia uma enorme esfera
azul sobre a qual repousava uma águia; e à sua direita sentava-se
uma mulher alada, que Barashemesh reconheceu ser sua
salvadora.

– A donzela que me salvou? O que fazes nesse local?

– Ora, meu bom Barashemesh, este é meu lar, e este a quem tu


te prostras é meu pai.

Então Barashemesh temeu ainda mais o grande Semyaza diante


de si e falou com sua voz cheia de veneração.

– Oh, Senhor de Tudo, grande Semyaza, ouvi meu rogo e ajudai-


me!

E Barashemesh falou da sina de Khanokh e da queda de Qayin


e a tudo Semyaza ouviu. Ao final anunciou:

Ouve-me, Barashemesh, o belo, pois tristes e alarmantes são as


notícias que trazes. Vejo que a maldade dos Filhos do Homem
cresce sem controle. E muito me entristece tamanha crueldade, mas
não é minha a incumbência de puni-los, mas dos outros a quem
voltamos nossas costas, pois há muito não sou mais Semyaza, o
Vigilante, mas Dyeuspiter, O Senhor dos Céus e pai de todos os
meus filhos, aqueles a quem o Criador chama de Os Filhos dos
Caídos! Pois aqueles abandonados pelos pais são por mim
adotados e deles farei um mundo a minha própria imagem e
semelhança. Vê! Olha ao redor o mundo que criei. Aqui não há fome
ou medo. Esta é a terra de que cuidarei. Aquele que chamas de
Lamech é vigiado pelo Criador e seus servos. Sua maldade não tem
fim, mas sobre ele recai a maldição do altíssimo e a ele ninguém
poderá fazer mal exceto ele próprio. A Lamech resta a morte
sozinho e consumido pelo próprio mal, mas o mesmo não precisa
acontecer contigo. Fica aqui em meus domínios e far-te-ei grande
entre os nossos.

E muito triste ficou Barashemesh, mas ponderou que tudo o que


um dia amara em Khanokh fora perdido, e agora uma nova terra e
oportunidade colocava-se diante de si cheia de promessas e
delícias. E ficou tentado a permanecer, mas o orgulho e o dever o
impelia a voltar. Então Eos, a bela donzela alada, pediu-lhe que
ficasse, e o coração de Barashemesh tremeu... Vencido, aceitou
ficar.

E assim Barashemesh permaneceu ao lado de seu pai, que


adotara o nome de Paean, e por anos viajou pelas terras de
Semavetevi, tornando-se mestre no arco e na espada. E a cada ano
que passava tornava-se mais e mais afeiçoado à bela Eos, e nunca
deixava o seu lado por muito tempo.

Ora, a aproximação dos dois não passou despercebida pelo


Senhor dos Céus, que um dia chamou Barashemesh diante de si e
decretou.

– Estás muito afeiçoado a minha filha, mas ela não deve ser tua,
pois me é muito amada e pretendo tê-la a meu lado por todo o
sempre.

– Oh, Senhor dos Céus, clamo a ti que reconsideres este vosso


intento. Dizei-me o que posso fazer para tê-la ao meu lado! Se
exigirdes de mim que suba aos Céus até o altíssimo de seu trono eu
o farei! Pois aqui descobri o que de fato não procurava, mas, ao
encontrar, quis possuir para sempre. Pois está acima de todo o ouro
e de toda a prata e supera todas as pedras preciosas. E nem vento
nem tempestade me afastarão do tesouro que desejo, pois Eos,
vossa filha, é a mais bela de todas as criações do Mundo.

– Pois estarias tu disposto a morrer para conquistá-la?

– Mil vidas se fosse preciso e ainda mais se fordes de vosso


desejo!

– E pergunto a ti, minha filha – Dyeuspiter falou dirigindo-se à


Donzela da aurora. – Tens em teu coração a mesma afeição que
este valente?

– Pai, se for esta tua vontade darei alegremente minha vida


somente para ter com meu amigo um único dia, pois digo-te que
meu coração não mais é de meu domínio, mas há muito o entreguei
a Barashemesh e a ele quero de companheiro por toda a
eternidade!

– Pois se tão querido és por minha filha e tão gratuitamente


ofereces tua vida, aceito-a de bom grado. Tenho um desafio para ti,
e, se conquistardes aquilo que proponho, terás aquela que anseias.
Longe de meus domínios vive uma das bestas mais terríveis que já
botou as patas nesse mundo. Ela vive nos mares profundos, em
uma gruta escura e sem vida. Persegue essa criatura e traze prova
de sua derrota e Eos será te dada como esposa.

– Por preço baixo vendeis vossa filha. Se essa é vossa vontade,


Dyeuspiter, realizarei essa tarefa. E nos encontraremos novamente,
pois essa não é a última vez que vê Barashemesh, filho de Paean!

E partiu o Valente para sua caçada. E por muito tempo perseguiu


a trilha de destruição, mas a criatura estava distante e era veloz.
Barashemesh continuou sua busca. Dormia pouco e nunca
repousava por muito tempo. Incansavelmente perseguiu a criatura,
até que finalmente alcançou-a.

Era um monstro saído de pesadelos. Possuía o tronco de uma


mulher, mas do ventre para baixo era uma serpente vil, com uma
cauda armada de um ferrão venenoso. De seu pescoço erguiam-se
oito cabeças como serpentes e uma como a de uma mulher com
cabelos empertigados e olhos de serpente. Suas bocas eram cheias
de presas maiores que espadas e mais afiadas que navalhas, e
cuspiam chamas quentes como lava. Por suas narinas exalava
fumaça como um caldeirão fervente, e seus olhos eram como lagos
de metal derretido. O corpo era coberto por fileiras de escamas tão
justas umas às outras que nem mesmo o ar esgueirava-se entre
elas. A criatura encarou o Valente e arreganhou o cenho com fúria.
Suas muitas bocas falaram em uníssono.

– Quem vem lá diante de mim e o que deseja?

– Sou Barashemesh, o Valente, e vim aqui terminar com tua


tirania de horror e maldade!

A criatura gargalhou e seu hálito pôs em brasas a madeira ao


redor.

– Ora, achas mesmo que alguém como tu podes enfrentar-me?


Venha, Valente, pague com sangue tua estúpida ousadia.

E Barashemesh atacou com espada e com arco e com fúria, mas


tudo apenas resvalava na couraça impenetrável. Então ela se
mexeu e a terra tremeu, as montanhas se partiram e o guerreiro foi
ferido.

A criatura gargalhou e bradou.

– Não há neste mundo arma feita pela mão do homem que


possa me ferir, pois sou filha do pecado e da luxúria descabida! Sou
abominável a todo olhar, um lembrete aos que deveriam proteger do
mal aqueles a quem fecundaram! Devorarei as crianças deste
mundo ainda nas entranhas de suas mães. Sugarei os ossos dos
valentes e me fartarei no sangue inocente! Você será apenas mais
um que cairá diante de mim!
E assim teria sido se Eos não houvesse intervindo. A dama da
aurora desceu do céu como uma águia ao ataque e com suas fortes
mãos levou para longe o herói caído. E Barashemesh desesperou-
se ao ver que não podia derrotar a criatura. Rasgou suas vestes e
cobriu-se das imundícies da terra tamanha sua agonia, mas a
amada o reconfortou.

– Querido do meu coração. Não teme a besta destruidora, pois


somos filhos de deuses e a nós tudo é possível! Vem. Vamos
encontrar algo para ferir sua couraça.

– Onde encontraríamos algo assim? Não existe artífice entre os


homens capaz de forjar arma que possa fender tal criatura!

– Está correto, meu amado, mas àquele que te levarei não é


deste mundo, nem mesmo é um homem, e seu conhecimento sobre
tudo o que é letal supera o de todos os homens, pois te levarei a
Ara, o Belicoso!

Ara, o Belicoso, era conhecedor da feitura de armas e sua


habilidade em combate por ninguém era superada. Era um dos
Guardiões, como Paean ou Dyeuspiter, mas era incontrolável e
perigoso. Embora vivesse com seus irmãos, mantinha-se distante e
alegrava-se no derramamento de sangue e na loucura da batalha!
Comandava os exércitos e era sempre visto portando uma pesada
couraça e um elmo assustador. Riu quando soube da empreitada de
Barashemesh, e quando falou sua voz era cheia de escárnio.

– Foi uma bela barganha que fizeste pela dama, criança! Meu
irmão impôs sobre ti um preço impagável. Não serás capaz de
derrotar tão infame criatura, pois ela é a vergonha de meu irmão, e
nenhuma arma feita pelas mãos do homem poderá feri-la!

– Mas tu não és um homem! Sabes forjar a arma que me daria a


vitória.

– Um homem de fato não sou, mas ainda assim um artífice. E


mesmo o melhor dos artífices precisa das ferramentas para criar
uma obra prima. Este ser é fruto da terra e pela terra deve ser
devastada e, ainda que consigas tal arma, perecerá nessa
empreitada! Pois a criatura, mesmo ferida, destruir-te-á com suas
presas. Não precisas de algo para feri-la, mas de algo para guardar-
te do mal que ela é capaz de te fazer! Por sorte, conheço um meio
de dar-te os dois, mas já o aviso que minha empreitada é tão ou
mais perigosa quanto a última!

Fez uma pausa, mas logo deu sequência em tom solene:

– Em um vale próximo daqui existe uma besta tão terrível quanto


a que buscas, o Bahimuth! Sua pele não pode ser rasgada e suas
presas a tudo partem! Derrota o Bahimuth. Com sua pele forjarei
uma couraça, e as presas poderás usar para assim matar o animal.
Volto, entretanto, a dizer-te que o Bahimuth não será ferido por nada
que possas criar! Pois só as presas da própria besta rasgarão seu
duro couro! Por isso te digo que essa empreitada está malfada
antes mesmo de começar, pois o Bahimuth foi concebido pelo
Criador para dar fim à perversidade de Liwyatan, e é tão temível e
assustador que mesmo Liwyatan, de quem todos fogem, quando
ouve o rugido desta besta, desparece devido ao terror!

– Tudo o que preciso é de minhas próprias mãos e meu desejo


que me leva adiante!

E assim partiu Barashemesh em busca do lendário Bahimuth.


Encontrou-o em seu covil cheio de ossos e com o azedo odor da
morte a envolvê-lo. A besta estava deitada na beira do rio com a
bocarra aberta, semelhante a uma caverna grotesca. Suas presas
eram grossas como troncos e sua pele tinha a cor de madeira
escura. Era coberta de pelos negros e pontudos como espinhos e
tinha uma juba enorme que lhe descia da cabeça ao ventre. Seus
olhos eram duas poças negras como petróleo e seu hálito fétido era
nauseante. A besta irritou-se com a aproximação do Valente, que a
encarou sem armas, munido apenas de sua coragem.
Engalfinharam-se os dois rolando na lama e na água. Ela tentava
mordê-lo e ele se enrolava nela como um amante. Por fim,
conseguiu colocar os braços contra a garganta do animal,
pressionando-o com todas suas forças até sufocá-lo, pondo fim ao
Bahimuth.

Exausto, ele caiu desmaiado a seu lado. Ao despertar, viu-se


junto de Eos e Ara, que usara a presa da criatura como faca e
transformara a pele do animal em uma couraça completa e a cabeça
da besta em um elmo aterrorizante. Além disso, usara o dente do
Bahimuth, para esculpir uma lança poderosa feita do osso da besta.

E assim, munido de suas novas armas, Barashemesh partiu


novamente em busca da lendária besta dos oceanos. Quando o
reviu, a besta riu-se e bradou indolente:

– Novamente retornas em busca de mim. Poderias gabar-se por


toda a tua breve vida de ter-me encontrado e sobrevivido. Seu tolo
imprudente. Tiveste o presente da vida entregue-lhe gratuitamente e
o recusaste. Mereces o sofrimento que irei infringir-te!

E ela o atacou, confiante e arrogante, com a certeza de que


nada seria capaz de rasgar sua couraça. No entanto, em uma
surpresa seguida de dor, sentiu que se enganara.

Pois agora Barashemesh foi capaz de feri-la! Provocando não


uma ferida superficial, mas uma mortal, que rompeu escama, rasgou
a carne e penetrou fundo, trespassando o coração corrompido. A
criatura gritou, e seu grito tornou-se um urro de agonia, até que,
curvando-se sobre seu próprio corpo, bradou exasperada:

– Tolo maldito! Não fazes ideia da injustiça que cometeste! Pois


com violência e maldade arrancas a vida colocada nessa terra pelo
desejo consumidor! Achas que pondo fim a essa carne dará fim ao
mal perpetuado em mim?! Pois dize a Semyaza, o Infame, que o
mal que ele me fez deu frutos! Pois foste tu, Ó filho do Sol, que
terminaste assim de trazer a este mundo o mais infame dos crimes
de Semyaza!

E assim tombou a criatura mais temida dos tempos antigos, a


serpente do passado. E seu corpo explodiu em chamas tão vorazes
e furiosas que consumiram a tudo que estava por perto. Por pouco o
gigante não encontra seu fim ali. A poderosa couraça que guardava
sua carne se provou eficaz.

E Barashemesh observava orgulhoso seu feito quando um som


de algo se partindo fez o gigante se dirigir ao interior da caverna. E
lá, em meio aos cacos ressequidos, uma pequena e grotesca
criatura clamava, pois a morte de Liwyatan e as chamas vorazes por
fim chocaram sua única e maldita cria.

E o valente observava aquela criatura com um sentimento


singular. Ergueu a arma para colocar-lhe fim, mas não foi capaz.

– És valente como eu, pequena criatura, e abandonada como fui


um dia. Deveria matar-te, mas não o farei porque vejo em ti a
valentia que só conheci dentro de meu próprio coração! Chamar-te-
ei Aglaeca, pois és um guerreiro valente. Nasceste do fogo e da
morte e se fores capaz de resistir a este mundo serás um adversário
digno de ser combatido! Recebe agora a misericórdia de
Barashemesh, para que possas viver neste mundo se fores capaz!

E Barashemesh voltou vitorioso e todos clamavam seu nome. E


Dyeuspiter, o poderoso Semyaza, agradecido, entregou Eos ao seu
amado. E Barashemesh foi eleito como governante de Artu, a
cidade principal de Semavetevi, adotando para si o nome pelo qual
todos agora o chamavam: Milqartu, o Senhor da Cidade!

E os anos seguintes foram de felicidade e paz. O povo de


Semavetevi cresceu e tornou-se famoso nos quatro cantos da Terra.
E mesmo Lamech, em toda sua força, temia-os atrás das muralhas
de Khanokh.

Toda alegria, no entanto, finda e toda paz é sucedida pela


guerra. E nos anos mais felizes de Barashemesh a guerra chegou a
Artu. No princípio, eram somente boatos, histórias de horror
contadas à noite sobre seres malignos de olhos faiscantes que
devoravam os recém-nascidos. Aos poucos, a lenda criou nome:
Utukku, e o pavor a essas criaturas dominou a cidade. Os temores
chegaram aos ouvidos do Milqartu, que os levou diante do
Dyeuspiter:

– Sombria é a hora que chegam a mim tais notícias, Milqartu,


pois sei quem é o causador de tais conflitos e lhe digo que esses
ataques não são frutos somente da crueldade, mas também do
desejo por vingança. Longe daqui, em uma terra amaldiçoada por
mim, existe um povo de crueldade tamanha que mesmo as criaturas
das cavernas mais obscuras os temem. São criaturas macabras,
que se alimentam de seus próprios filhos e dos nossos! Devoram a
carne como se fosse pão e o sangue como se fosse vinho!
Refestelam-se com o sofrimento e desejam subjugar o mundo a sua
vontade. Por muito tempo nós lutamos contra essas vis criaturas,
mas essa maldade não pode ser vencida. Essas criaturas são
governadas por um cruel regente chamado de Minoi, o mais maligno
de seu povo e também o maior, e creio que por minha culpa agora
tu te tornaste motivo de contenda e ódio, pois a amante e consorte
de Minoi era a serpente que destruíste!

Encolerizou-se Barashemesh e bradou em fúria:

– Ora, coloquei fim à maldade da serpente. Darei cabo da tirania


desse ser da mesma forma. Diga-me, Senhor dos Céus, para onde
ir e levarei nossa justiça a esse Minoi!

Ora, partiu então mais uma vez Barashemesh, e sua amada o


acompanhou. Cruzaram montanhas e mares e por fim chegaram ao
lugar onde estava estabelecida a maior cidade dos Utukku e muito
se impressionou Barashemesh com o local, pois era belo, nada
semelhante ao que esperava encontrar.

O povo que o recebera era belo e alto, assim como ele. Seus
homens eram vigorosos e as mulheres formosas. Eram tão grandes
quanto Barashemesh e muito hábeis. A cidade fora construída não
sobre a terra, mas sobre a água que contornava uma imponente
montanha. Tinha a forma de círculos concêntricos ligados por largas
avenidas. Uma enorme ponte, que fazia o gigante se sentir
pequeno, ligava a cidade ao continente e ele e sua amada alada
caminharam sobre ela, até os grandes portões forjados em ouro,
prata e marfim. Do lado de fora do portão aguardava-os um único
homem. Seus cabelos eram longos e tocavam o chão, da cor da
prata banhada pelo luar. Ele era um pouco mais alto que
Barashemesh, mas mais esguio e frágil. Tinha traços andrógenos,
portanto quem visse somente sua face jamais saberia dizer se era
homem ou mulher. Sua beleza era estonteante, mas nada se
comparava a seus olhos, inteiramente negros, como poços
profundos, com exceção da íris, que reluzia como um diamante,
convertendo a luz branca em uma escala de arco-íris. Sorria e tinha
um ar gentil. Vestia-se com uma túnica cobalto carregada de
ornamentos feitos em ouro, lápis-lazúli e diamantes. Parecia ao
mesmo tempo reluzir e refletir o oceano a sua volta. Quando falou,
sua voz era sedosa, gentil e cheia de sabedoria.

– Sejam bem-vindos a Tantalis. Que sua estada seja prazerosa!

– Qual é seu nome, guardião das portas? – indagou


Barashemesh.

– Tenho muitos nomes e muitos cargos, meu bom amigo, mas


chama-me de Vitorioso, pois assim se referem a mim. Vem, pois a
nossa cidade te recebe com alegria e ânimo, pois tua fama te
precede, oh grande Milqartu.

– Conheces-me? Então sabes por que estou aqui?

– Sim. Sei de teus intentos e fui enviado pelo grande Minoi para
apresentar-te nosso lar antes que cometas o erro de nos destruir.

– Como pode ser errado destruir criaturas malignas como vós?

– Peço-te primeiro que nos conheça e veja com teus próprios


olhos nossa vida antes de nos julgar por palavras mentirosas.

Assim Barashemesh o fez e caminhou entre os seres que


deveria destruir. E lá conheceu maravilhas que não sonhava e
realizou desejos que não sabia possuir. E foi muito bem quisto por
todos devido a sua força e beleza, e foi seduzido por Vitorioso, que
lhe mostrava os profundos segredos do céu, do ar, do fogo, da água
e da terra.

– Ainda não entendo por que fazem tantas maldades contra Artu,
se têm um local tão belo e mágico.

– O que fazemos contra tua cidade não é um ato deliberado. É


verdade que atacamos os filhos de Dyeuspiter sem perdão e
devoramos seus filhos, mas nossos ataques são respostas àquilo
que sofremos nas mãos dos Caídos!

– Como assim? O que estás dizendo?

– Vê essa cidade que erguemos com nosso sangue e lágrimas.


Somos os proscritos abandonados, a primeira geração dos filhos de
Semyaza!

– Que blasfêmias são essas que dizes? – bradou Eos furiosa.

– Confundes as palavras, minha bela, pois o que digo são


verdades e não blasfêmias. Contarei a vocês tudo o que lhes foi
ocultado, o plano cruel e covarde de Semyaza, o Infame, mas antes
tenho de desvendar-lhes nossa gênese.

E contou sua história:

– Esse mundo, tudo aquilo que podes ver, sentir, ouvir, cheirar ou
tocar foi criado pelo Altíssimo, o Criador de Tudo, com o único
propósito de servir de lar a um único ser: o Homem! Para tanto, o
Altíssimo criou servos, ajudantes, que deveriam cumprir Suas
ordens. Eram magníficos em força, beleza e poder, mas ainda assim
inferiores àqueles escolhidos como herdeiros do altíssimo. O
primeiro e maior entre eles, a Estrela da Manhã, não aceitou
submeter-se aos filhos do homem e rebelou-se, sendo aprisionado
no subterrâneo do mundo, mas não sem vitória, pois seduzira a
Primeira Esposa, a mãe dos Filhos do Homem, aquela que Qayin
chamava de Senhora da Noite, criada com o Homem, tão poderosa
quanto ele e nada subserviente. E cansada da fraqueza do Homem,
ela o abandonou.

– Ora, ela estava grávida e trazia em seu ventre a semente do


Homem, mas foi rejeitada pelo Altíssimo e seus filhos foram criados
por ela e pelo Primeiro Rebelde, a Estrela da Manhã. Quanto ao
Homem, o Altíssimo lhe criou uma nova esposa de sua própria
carne. A Mulher serviu e foi obediente, e dela descendeu a linhagem
que o Criador escolheu para si, porém o primeiro desta linhagem
também abandou o Criador, pois era valente e poderoso.
Conhecestes o primeiro Filho do Homem com a Mulher e o
chamavas de senhor: o Homem Escuro, conhecido como Qayin, o
primeiro dos assassinos, que tirou a vida do irmão. E estaria a
linhagem dos Filhos do Homem condenada se Homem e Mulher não
tivessem um terceiro filho, que eles chamaram de Seth, pois fora
escolhido para continuar a linhagem eleita do Criador.

– Ora, todos os outros deveriam perecer nessa terra, mas a


vontade da Primeira Esposa era forte e ela conseguiu criar um povo.
O berço de sua prole foi a base dessa montanha que você vê
rodeada pelo mar, local que ela escolheu para dar à luz! Aqui ela
viveu por muitos e muitos invernos em companhia da Estrela da
Manhã, cuidando de sua cria e dando-lhe conhecimento e força.

– Esses filhos cresceram e tiveram filhas belas e formosas, que


chamaram atenção dos Servos do Altíssimo, em especial de uma
casta, outrora chamada Guardiões. Deles era a tarefa de cuidar
desses filhos e escolher dentre eles aqueles que pudessem ser
dignos de continuar a linhagem do Homem, e escolher para Seth
uma esposa.

– Ora, essa linhagem não era servil como a da Mulher, a


segunda esposa do Homem! Não. Éramos os filhos da Primeira
Esposa, dona de seu destino e subserviente a ninguém! Suas filhas
eram belas, robustas e sedutoras, e o maior entre os guardiões, que
vigiava Seth e deveria encontrar-lhe uma companheira, ficou cheio
de lascívia, e desejou a carne das belas filhas da Senhora da Noite.
Junto de outros de seus irmãos e companheiros de armas, aqueles
que tinham o nome de Vigilantes, desceram sobre o pico dessa
montanha e fizeram um juramento de juntos sucumbirem aos seus
desejos e caírem nessa terra sem nunca voltar à morada do
Altíssimo.

– E assim o fizeram, exceto um, que, embora tenha caído com


eles, partiu para longe Ele era o Guardião que cuidava da
carruagem solar, Shamsiel, seu pai! Os outros possuíram as filhas
da Primeira Esposa, e com elas tiveram filhos e filhas, mas
Semyaza, o Infame, desejou não menos que a Primeira Esposa e
tomou ela à força, e dessa relação foram geradas duas crias.
Gêmeas, no entanto, opostas! Uma fêmea, Liwyatan, e um macho,
Barsemyaza.

– Ora, Semyaza era cheio de lascívia e não se contentou com a


Primeira Esposa, mas continuou fornicando e dominando todas as
filhas da terra. E desejava até mesmo sua própria filha, mas ela
também o horrorizava, pois refletia toda a violência e luxúria que ele
possuía. E era ela um reflexo de toda sua maldade, com seu corpo
sedutor, mas monstruoso, pois Liwyatan, quando desejava, poderia
ser tão bela quanto a mãe, mas normalmente exibia as feições de
uma fera assustadora, com corpo de serpente e presas como facas,
forma que bem conheceste.

– O filho de Semyaza, por sua vez, era a imagem de todo o


poder que o guardião possuía, e era forte e temível, mesmo quando
criança! Semyaza teve ainda mais uma filha, prole de sua violência
com a Primogênita, a primeira filha da Senhora da Noite, sua prole
mais amada.

– A Primogênita era uma donzela inocente e muito gentil, e


entregou-se de bom grado em troca da promessa de Semyaza de
que parasse de molestar suas irmãs e mãe. Semyaza assim jurou,
mas quebrou seu juramento, como todos os demais. Do ventre de
Primogênita nasceu uma bela donzela, a filha da aurora, e ela
refletia a glória que um dia Semyaza tivera, pois era gloriosa e alada
como ele um dia já fora.
– Ora, os Gêmeos cresciam em força e beleza, e Semyaza
temeu sua prole e desejou destruí-la, mas os Gêmeos eram muito
poderosos, uma vez que sua mãe havia lhes ensinado um segredo:
as crias dos Vigilantes tornam-se cada vez mais poderosas ao se
alimentarem da carne dos vivos e ao beber-lhes o sangue. E
quando o sol deitava-se no horizonte, a Senhora da Noite, depois de
saciar a luxúria de Semyaza, abandonava-o e, tomando a forma de
uma coruja, sequestrava os recém-nascidos e os dava de alimento a
seus dois filhos.

– Ora, Liwyatan tornava-se cada dia mais poderosa, e também


mais formosa, e então um dia, cheio de luxúria, Semyaza decidiu
tomá-la também. E Liwyatan mudou sua aparência e tornou-se o
monstro horrível que você combateu, mas mesmo assim Semyaza a
possuiu e violou. Tomada de dor e sofrimento, ela gritou pelo irmão
e, nesse momento, o grande Barsemyaza ergueu-se contra o pai e o
feriu! E expulsou-o desta terra junto com seus asseclas! Mas
Semyaza jurou vingança e, como uma última pérfida medida, roubou
mulheres e crianças e a jovem filha alada e levou-os consigo. Longe
daqui, criou uma nova nação, e desde então tenta nos por fim. Os
sobreviventes escolheram Barsemyaza como seu governante e lhe
deram um novo nome: Minoi, que, em nossa língua, significa
Governante.

– Já Liwyatan partiu daqui para nunca mais voltar. A amargura


preenchera seu coração, e seu ventre estava cheio da semente de
Semyaza. Ela usou toda a sua força para prender essa semente em
uma prisão, e uniu sua alma àquele ser que ela tanto odiava, mas
também amava. E Semyaza a temia, mas também temia o fruto
daquela violência, por isso enviou muitos assassinos para
exterminar a vida da irmã de Barsemyaza, mas nunca obteve
sucesso, até tu chegares, que derrotou Liwyatan e ao derrotá-la
destruiu a prisão que prendia sua prole, e agora vem em nosso lar
em busca do sangue de Minoi.

– Mas você foi misericordioso, poupando a vida da criatura que


tem em suas veias o sangue de Liwyatan, e por isso o grande Minoi
decidiu não levar a vingança diretamente a ti, e por isso hoje você
se coloca diante de mim incólume.

– Como sabes de tudo isso?

– Porque Minoi é o nome que foi dado a Barsemyaza quando ele


venceu o pai traiçoeiro, mas ele escolheu para si outro nome, um
que refletisse o seu momento de triunfo!

– E o nome escolhido por Barsemyaza foi Vitorioso!


Capítulo 10

Que diabos era aquilo na sala? Era um vampiro? – Jack bradou


assustado logo que saíram da casa de Walkyria em Bertioga
montados no buggy amarelo.

– Não exatamente – respondeu Raquel. – Aquilo era um ghoul,


um ser humano que aceitou beber sangue de um nosferatu –
explicou. – Estão num estado de semivida eterno. Não estão
mortos, mas também não estão vivos – continuou. – Precisam se
alimentar de cadáveres ou começam a apodrecer – ela olhou para
Jacó. – São seres corrompidos e condenados, usados pelos
nosferatus por sua capacidade de se mover sob a luz do dia – falou
séria. – Não consigo imaginar como você o confrontou daquela
maneira.

– Sou apaixonado por artes marciais. Treinei minha vida inteira.


Foi só isso – Jacó se defendeu.

– Não, não foi só isso – retorquiu a mulher. – Ghouls são


resistentes. Alguns existem há milhares de anos. A mitologia árabe
é cheia de lendas dessas criaturas quase imortais. A última vez que
destruí um desse tive que descarregar toda a munição de uma
espingarda e mesmo assim ele resistiu, foi preciso uma faca de
prata pura, e muita, muita sorte. – confessou antes de finalizar
exasperada: – Mas você espancou aquele cara como se ele fosse
um bêbado qualquer! – Vinnie não se conteve:

– Cara, me senti num filme do Bruce Lee! Ele vinha e você pow!
– extasiado, Vinnie imitava os golpes de Jack como uma criança. –
Quando você pegou ele por trás, o arremessou por sobre o sofá e
ele caiu no fogo foi retardado, cara! – gritou ao mesmo tempo
aterrorizado e animado.

Raquel olhava para Jacó pensativa, mas se dirigiu a Vinnie.

– Que bom que acha divertida nossa aventura – falou com


azedume. – Se não fosse por seu super-herói aqui, estaríamos
mortos! – concluiu fatalista. Vinnie encolheu-se com o comentário e
Jacó continuou sentindo-se estranhamente animado.

Logo saíram da cidade. Seguiram pela Rodovia Governador


Mario Covas, mais conhecida como Rio-Santos, até a Rodovia
Cônego Domenico Rangoni, pela qual começaram a subir a Serra
do Mar para São Paulo.

A neblina era intensa e o frio, com a umidade, era fatal. Quando


a adrenalina diminuiu, começaram a tremer. Havia alguns carros na
estrada, mas naquele horário a rodovia estava mesmo tomada pelos
caminhões que saíam dos portos e se dirigiam ao interior do país.

Quando estavam ainda em Cubatão, antes de chegar à serra,


um carro forte, uma SUV, se aproximava deles em velocidade. Jacó
foi para a pista da direita, para deixá-la passar, mas, em vez de
realizar a ultrapassagem, a SUV arremessou-se contra o buggy,
destruindo parte da lateral.

Jack quase foi jogado para fora da estrada, mas conseguiu


controlar o veículo. Ele sabia que não conseguiria fugir, portanto
reduziu a marcha e tentou desviar do segundo ataque, mas não teve
sucesso. O buggy girou diversas vezes totalmente desgovernado,
mas o psiquiatra manteve a frieza, mesmo com os gritos frenéticos
de Vinnie. Quando o carro recuperou parte da aderência, ele
engatou a ré e deixou a inércia fazer seu trabalho. O veículo
começou a correr de ré, enquanto a SUV os pressionava pela frente.
A pessoa que dirigia tinha um olhar alucinado. Jack gritou para
Raquel:
– Pegue o volante! – Raquel fez o que ele pediu e Jack se virou
para Vinnie. – Passa o macaco! – ordenou.

Vinnie pegou o macaco atrás do banco. Jack agarrou a chave de


roda que ficava com o macaco, fez mira e a arremessou no para
brisa da SUV. O motorista desviou a tempo de não ser acertado,
mas o vidro da frente trincou por completo. Jack então pegou o
macaco e com toda força que tinha arremessou a ferramenta de
ferro maciço em cima do adversário, que tentava se livrar do vidro
espatifado a sua frente e não conseguiu escapar. O ferro, com a
velocidade, esmagou o crânio da vítima. A SUV perdeu o controle e
colidiu contra a mureta. Raquel parou o buggy no acostamento, Jack
retomou o volante e partiu em acelerada.

– O que mais falta acontecer? – Jack perguntou atônito.

– Não sei, mas outra dessas viradas e eu acho que vou vomitar!
– Vinnie estava branco que nem papel e suava frio, com os olhos
arregalados. Raquel estava assustada e encarou Jack furiosa,
depois que ele riu deles.

– Posso saber por que está rindo? Não está com medo?
Enlouqueceu? – ralhou nervosa. Jacó negou com a cabeça.

– Estava assustado e com medo – admitiu. – Mas era como o


medo de uma montanha russa, ou de fazer algo radical e perigoso.
É um medo bom. Não sei por que, mas toda aquela perseguição,
em vez de me aterrorizar, fez com que me sentisse cada vez mais
vivo, como não me sentia havia anos! – desabafou. Raquel olhou
para ele séria.

– Você tem o coração de um guerreiro, Jacó – disse por fim. Ele


mantinha o sorriso na face, mas a frase da mulher gelara seu
coração e minara sua alegria. Dentro de sua mente ressoava outra
voz, de um fantasma do passado.

“– Você nasceu para a guerra, soldado. Muitos aqui serão


excelentes soldados, mas você... Você irá buscar a guerra como um
amante. Nunca se sentirá completo se não for no campo de
batalha...”

Tentaram seguir em frente o mais rápido possível, mas o carro


danificado fazia com que fossem devagar. A toda hora o psiquiatra
olhava pelo espelho esperando encontrar outro perseguidor. Fazia
isso com tanta frequência que quase não viu o carro de polícia à
frente ordenando que parassem. Sem alternativa, estacionaram. Um
dos policiais, com arma em riste, veio até eles enquanto o outro lhe
dava cobertura. O primeiro policial olhou o dano do veículo e falou
rispidamente:

– Saiam do carro com as mãos para cima e devagar! – Jack saiu


com calma, assim como Raquel. Vinnie fez o mesmo, mas estava
muito assustado e não tirava os olhos da arma do oficial.

– Por favor, acalme-se, policial – falou assustado. O homem


jogou-o na frente do carro. Depois de revistá-lo, o algemou.

– Teve um acidente com vítima fatal perto daqui, e de repente


vocês aparecem com esse carro destruído? Acham que as coisas
vão ficar por isso mesmo? Para a delegacia vocês três! – o policial
falou, enquanto ia prendendo o braço de Jack, que não reagia à
prisão.

Raquel não foi tão pacífica e atacou o homem com selvageria. O


policial não teve chances e caiu desacordado. O segundo atirou na
direção dela, mas Jacó a desviou da trajetória da bala. Rolando no
chão, ele pegou a arma do policial desacordado e acertou um tiro no
ombro do outro. Então correu até ele e, com um chute violento,
derrubou-o sem sentidos. Depois disso, olhou para a garota
inconformado.

– O que raios você fez? – bradou furioso. A mulher apontou para


o homem desmaiado.

– Ele tem a sua altura. Pegue a roupa dele. Iremos disfarçados


de policiais. Isso nos dará algum tempo! Tivemos sorte! – falou séria
já indo em direção de Vinnie e soltando suas algemas.

– Sorte? Acabei de balear um policial. Onde está a sorte nisso?

– O baleado é o policial. Não um de nós... – ela falou com frieza.


– Não temos tempo a perder. Vamos!

Minutos depois, uma viatura da polícia subia a serra. Jack, no


volante, fingia ser um policial. Ao seu lado, Vinnie usava o uniforme
do segundo, mas estava grande e folgado, portanto só conseguiria
enganar alguém se ficasse na viatura. Raquel ia no banco de trás.

Seguiram por quase todo o percurso sem contratempos, apenas


na companhia da apreensão. No final da serra, no entanto, quando
chegavam a São Paulo, a estrada estava bloqueada por vários
carros de polícia. Policiais com armas em riste apontavam para o
carro.

– O que faremos agora? – Raquel perguntou aflita. Jacó reduziu


a velocidade e parou o veículo:

– Não há nada que possamos fazer – respondeu levando as


mãos à cabeça enquanto um enxame de policiais vinha em sua
direção.

Carlos Eduardo entrou em sua sala estarrecido e


ensanguentado. Parou em frente a seu bar e pegou a garrafa de
whisky. Encheu o copo e também a mesa com a bebida de tanto
que tremia. Virou o copo de uma vez e sentiu o álcool queimando-
lhe as entranhas, trazendo junto o leve conforto do torpor. Repetiu o
processo outras duas vezes e começou a se sentir melhor.

Rita, Tucca e Gabriela entraram. O delegado deixou-se


despencar no sofá. Sangue escorria por suas calças encharcadas,
molhando o assoalho. O silêncio era mórbido ali dentro. Fora dela, o
vozerio era perturbador. Pessoas corriam de um lado a outro em
desespero.

– Como ele fez isso? – indagou para si inconformado e


nitidamente comovido. – Eu falei com ele! Sei que falei com ele! – o
delegado murmurava revendo a cena em sua mente, sem entender
ou acreditar. – Não foi com ela, foi com ELE! – estava desesperado
e confuso. Levantou-se abruptamente. – Temos que tirá-la daqui! –
apontou para Gabriela. – É atrás dela que ele está! – tornou a falar
com certeza. – Não vou deixar nada acontecer com ela. Morro antes
de ele encostar um dedo nela! – jurou socando a própria mão em
fúria.

– Carlos, acalme-se! – Tucca, que também estava nervoso,


nunca tinha visto o outro tão abalado. Carlos Eduardo tentava
colocar a cabeça em ordem, mas as lembranças do presente
fundiam-se com as do passado e todo o terror vinha à tona.

– Como poderei prender, ou mesmo matar esse desgraçado?! –


bradou por fim em fúria. Todos observavam sem terem o que fazer.
Tucca, impotente, tomou um gole da bebida. Rita abraçou Gabriela,
que estava pálida e assustada. A policial acariciava o ombro da irmã
tentando trazer-lhe algum conforto ou segurança, mas seu esforço
era em vão.

– Droga! – Carlos gritou e tornou a gritar ainda mais alto: –


Droga!

Sentou, queria chorar, mas era duro demais para isso. Sentia o
aperto na garganta, mas o choro ficara aprisionado lá dentro
recusando-se a sair. Buscou a garrafa e encheu mais um copo, mas
mãos delicadas envolveram as suas antes de beber. Rita olhou para
os outros dois ocupantes da sala: – Podem nos dar licença por um
minuto? Tucca, você poderia dar um pouco de água para a irmã
Gabriela? – pediu. O policial assentiu e levou Gabriela em silêncio.
Carlos Eduardo, incapaz de agir, olhou para Rita.
– Pronto – ela falou com um ar tranquilo e conciliador. – Sei que
quer esquecer isso. Sei que quer deixar tudo de lado... Isso é
demais para qualquer um – falou segurando firmemente as mãos do
delegado. – Sei que está com medo.

– Eu não... – começou o delegado, mas Rita apertou levemente


suas mãos e o encarou sem piscar. Carlos Eduardo abaixou os
olhos envergonhado. Ela continuou com a voz branda, quase
maternal. – Não precisa ser durão agora. Sei que você está com
medo. Sei que não sabe o que fazer, e antes que você tome
qualquer atitude, você precisa entender isto – ela deixou o delegado
absorver as palavras. Ele relaxou os ombros e olhou para ela.

– Não tenho como protegê-la – confessou. – Isso não é normal...


Não tem uma explicação para o que eu vi – admitiu, e Rita
concordou com a cabeça.

– É verdade. Não tem explicação – disse ela.

– Não posso fraquejar agora, não posso desistir – havia um


fervor em sua voz que fez a mulher novamente apertar suas mãos.

– Acalme-se, delegado. Você não vai desistir. Vai apenas subir à


superfície para respirar – falou enigmática.

– O quê? – ele olhou para ela confuso, sem entender.

– Você mergulhou fundo demais nesse caso. Faz dias que não
dorme direito ou descansa de verdade. Você está esgotado. Precisa
voltar à superfície. Precisa renovar o fôlego, dar um passo para trás
para ir além – falou tentando acalmá-lo. – Vamos trabalhar juntos
nisso – seu tom era bondoso e confiante. Ela não sentia essa
confiança, mas sabia que precisava passa-la ao delegado a sua
frente. – Não adianta se desesperar. Temos de achar uma solução,
e vamos achá-la juntos, mas primeiro você precisa respirar –
aconselhou tanto o delegado como a si mesma, porque nunca
sentira tanto medo.
– Eu não consigo... – Carlos Eduardo admitiu frustrado. – Esse
cara, esse ser, sei lá... – rugiu, pondo-se de pé. – Tornou-se
pessoal! É como uma corrida. É isso que ele está tentando! –
continuava quase delirante. Olhava o vazio com olhos injetados. –
Tentando me fazer correr mais rápido, mas estou sempre um passo
atrás dele! Que Droga! – bradou, depois desmoronou no sofá. Rita
pegou o copo e colocou em cima da mesa, sentou ao seu lado,
colocou a mão trêmula sobre seu rosto e virou sua face para que se
encarassem. Precisou de todo o seu controle emocional para não
deixar transparecer sua insegurança naquele momento.

– Então para de correr! – falou com sua voz contida. – Ele está
nos desgastando, nos fazendo correr em círculos, tirando o foco do
que realmente importa! Ele está nos exaurindo, para depois nos
abater – e com um olhar firme e determinado tirou a mão do rosto
de Carlos e apertou seu ombro. – Vamos escolher o terreno e
vamos fortalecer esse local. Chega de corrermos atrás dele. Vamos
deixar que ele se canse tentando derrubar nossas defesas – falou
com firmeza. Carlos reagiu, olhando-a com um vislumbre de
esperança.

– Mas como vamos nos defender de um fantasma? – levantou-


se novamente pensativo. – Como nos guardar de alguém que pode
literalmente possuir você? – falava pensativo. Rita cruzou os braços
também incerta. Carlos Eduardo continuou.

– Parece que não importa o que eu faça... Há uma força superior


que me diz: não importa o que você faça será em vão – admitiu
dando de ombros frustrado. Rita riu do comentário. Ele a encarou
com uma mistura de surpresa e fúria.

– Qual a graça? Falei alguma piada? – disse com rispidez,


beirando a grosseria. Rita olhou para ele e ergueu a mão em sinal
de desculpas:

– O que você falou... – começou a explicar ainda incerta. – Não


sou de saber versículos bíblicos de cabeça, mas me veio um – deu
de ombros. – Infelizmente ele só cabe na situação como um
comentário irônico e sem graça, nada inspirador – desculpou-se.

– O quê? – ele perguntou. A mulher respirou fundo:

– Não lembro de cor, mas é mais ou menos assim: “Se Deus não
cuidar da cidade, em vão vigia a sentinela.” Deveria ser
reconfortante, mas nesse exato momento me sinto como a
sentinela: vigiando em vão... – admitiu. Carlos Eduardo arregalou os
olhos. Ficou parado por alguns segundos e gritou:

– É isso! – gritou indo até Rita. Puxou-a pelos ombros e beijou-


lhe os lábios, um selinho rápido. A policial ficou sem reação,
chocada.

– É exatamente isso! – Carlos Eduardo falou animado,


indiferente ao desconcerto da mulher, largando-a e indo para a
porta.

– Isso o quê? – Rita perguntou confusa. Sentia a pele


formigando onde a barba mal feita do policial raspara nela. O calor
de seus lábios e o sabor do whisky se misturavam a isso, causando
uma sensação estranha. Carlos Eduardo parou na porta e falou
rápido, finalmente encontrando uma possível solução.

– Nós realmente estamos vigiando em vão! – admitiu. – Não


tenho como lutar com um ser sobrenatural como esse. Não sei lidar
com isso – confessou. – Mas acredito que conheço um local para
mantê-la segura! Ou melhor, conheço alguém que pode me ajudar a
protegê-la – concluiu saindo da sala e chamando Tucca. Rita ficou
onde estava. Ainda levaria algum tempo para se recompor.

William entrou no gabinete da Prefeitura de São Caetano. Era


conhecido no local e nem precisou ser anunciado. Chegou em frente
à sala do prefeito, e a secretária, ao vê-lo, abriu a porta com certa
reverência. William sorriu. André Marcos sabia escolher seus
funcionários. A subserviência dos empregados o impressionava.
Sempre se sentia algum tipo de lorde medieval quando estava nos
ambientes de trabalho do prefeito, como se fosse de uma linhagem
superior ou algo assim.

– Na verdade, sou mesmo – pensou entrando na sala.

O escritório do prefeito André Marcos mostrava pouco de sua


personalidade, exceto por ser espartano. Com poucas cadeiras e
sem bar, os móveis haviam sido pensados estritamente para se
conduzir uma cidade. Tinham um design moderno e prático, do
gosto de Madalena, nada parecido com o de André Marcos.

William olhou seu companheiro sentado e digitando rapidamente


num teclado. A exaustão de André Marcos era visível. Estava com
olheiras profundas, e as costas, sempre eretas, estavam levemente
arqueadas.

– Dormir faz bem às vezes, ou pode aderir à meditação. Sabe


que faz mais de cinco anos que não durmo, somente um ou outro
cochilo quando esse corpo decrépito está esgotado – William falou,
lembrando a si mesmo da fraqueza de seu corpo que pedia um
descanso. André Marcos surpreendeu-se com a presença do
psiquiatra e se recompôs.

– Bem que eu gostaria de poder dormir um pouco, ou talvez


encontrar uma ou duas horas para meditar, mas parece que tudo
está acontecendo de uma só vez. Não acredito que as criaturas
cumprirão com sua parte do acordo. O Afogado atacou na
delegacia, possuiu uma mulher e a matou. A policial me ligou
apavorada, nem sabia como explicar. Estava transtornada. Se essas
aparições vierem a público, não teremos como remediar! – pontuou
com azedume. William foi até a Janela, as mãos às costas.

– Tenho certeza disso, mas não me preocuparia tanto com o


público geral. Nossos inimigos são criaturas ardilosas e traiçoeiras.
Não acredito que em algum momento eles cumprirão sua parte em
nossa barganha – concluiu olhando para os carros parados no farol.
O sol claro do meio-dia tornava tudo mais claro. André Marcos
esperou que ele falasse, mas nada dizia. O prefeito explodiu:

– Então é isso. Atacaremos hoje à noite! Mostraremos a esses


seres o poder que acumulamos ao longo desses séculos! –
determinou de forma régia. William ainda permaneceu em silêncio
por mais um período e falou:

– Você deveria ter continuado controlando a cidade pelas


sombras. Agora que você é verdadeiramente o prefeito tem
obrigações que antes não tinha.

– Sim, você tem absoluta razão – o prefeito admitiu. – Mas você


sabe muito bem que precisávamos de uma ação mais drástica.
Nossa hora chegou, irmão! O que podemos fazer se não lutarmos
mais intensamente?

William ficou num profundo e meditativo silêncio, caminhou pela


sala, chegou à mesa do prefeito, onde uma única garrafa de vidro
cheia de água mineral repousava, e tranquilamente encheu um
copo, levando-o aos lábios e saboreando o líquido puro. André
Marcos observava impassível, embora seu olhar queimasse de
impaciência. William tomou o equivalente a meio copo, depois,
ainda com o recipiente na mão, sentou no sofá.

– O seu problema, André – William finalmente falou, enquanto


lentamente entornava o conteúdo do copo no chão do escritório. – É
que você é um homem movido pelas chamas, meu irmão – falou
olhando calmamente para o prefeito, que, enfurecido, via o líquido
cristalino espalhar-se pelo assoalho. William agora também
observava o líquido que corria pelo chão. – Tem que ser mais
parecido comigo, meu caro. Sou como a água, sempre me
adaptando – ao dizer isso, ele continuou observando a água deslizar
lentamente pelas irregularidades do chão. – A magia é fluida, André,
como a água. Usamos os rituais para controlá-la e nossas emoções
para intensificá-la. Uma rajada de chamas pode parecer um feitiço
mais poderoso à primeira vista, no entanto a telepatia e até mesmo
a manipulação de sonhos podem ser ainda mais eficientes para
atingirmos nosso objetivo – William estalou os dedos e a água
assumiu o formato de uma serpente pequena. – Mas a magia pura é
simples! Ah! A magia é fluída, dinâmica e está em eterna e
constante mudança – com um comando, o líquido saltou de volta ao
copo. O psiquiatra então levou-o aos lábios e saboreou o líquido
mais uma vez, sorrindo. André Marcos fez cara de desprezo e nojo
àquela atitude.

– O que sugere que façamos, William? Que fiquemos quietos,


enquanto essas criaturas atacam nosso refúgio?

William colocou o copo na mesa que havia ao lado do sofá.

– Mudando de assunto, quando Jacó voltar, você acha mesmo


que Walkyria continuará do seu lado, André? Acha que aquela
garota aceitará de bom grado a vocação? – indagou. André Marcos
ficou em silêncio, irritado pela mudança da conversa, depois negou
com a cabeça.

– Por isso mesmo precisamos atacar! – falou retomando o


assunto. – Eles estão muito perto de colocar as mãos no Vrykolaka,
e sua ideia de unir a mulher e Jacó só aumentou as chances de as
criaturas serem vitoriosas! É hora de lutarmos ou colocaremos tudo
a perder! – exclamou.

– André, segundo nossos escritos mais antigos, o Vrykolaka é o


único ser nesse mundo capaz de vencer uma dessas criaturas e
colocar um fim em sua existência maldita – William tornou a
levantar-se e caminhou até a janela. – Essa é a única vitória que
precisamos obter! Isso é tudo o que importa!

– Devemos focar nossas ações em preparar Walkyria. Ela é a


chave para conquistarmos o poder do Vrykolaka. Faça com que ela
confie em você, André. Ela anseia por um pai, por aceitação. Dê-lhe
isso, e a teremos mesmo que percamos a mulher e até mesmo Jacó
no processo.

– Você arriscaria a vida de seu pupilo, depois de tudo?


– Se pretendemos vencer essa guerra, temos que estar
dispostos a perdê-la – falou de forma profética.

– Então teremos guerra? Você concorda comigo que é hora de


atacarmos?

– Não – William falou enfático. – Você não prestou atenção ao


que eu disse – André olhou-o com dúvida.

– É hora de perdermos – o psiquiatra falou sem olhar para o


prefeito.

Brandão gritou desesperado e suado ao acordar. No entanto, ao


perceber que estava em casa, gargalhou aliviado. Aliviado, mas
ainda apavorado. Foi até o pequeno bar de sua casa e tomou uma
dose de vodca, agradecido por estar vivo.

Tomou um banho e foi para a sede do DHPP. Chegou por volta


da hora do almoço. Tinha que falar com Tucca, que estava bem
entretido com o caso do Herege e tinha uma predileção por Carlos
Eduardo que Brandão jamais perdoaria, mas ainda era uma voz
importante e um dos poucos em que Brandão confiava.

Ao chegar no local, porém, ficou sabendo do ocorrido durante a


madrugada. O pesadelo voltou com força em sua mente e o coração
começou a martelar o peito com força. Agoniado, procurou Tucca.
Quando entrou na sala, a única que se encontrava lá era Rita.
Trocara de roupa e não estava mais suja de sangue, embora ainda
estivesse abalada.

– Sim, senhor. Qualquer outra informação entro em contato


imediatamente, excelência – ela falava ao telefone de costas para o
delegado, alheia a sua entrada.

– Ei, garota, você viu o Tucca? – Brandão perguntou para a


policial. Rita, que desligava o telefone e encarava a lousa com os
mapas lunares, finalmente percebeu a presença de Brandão.

– Lamento, delegado; o Tucca está com o Carlos Eduardo. Não


creio que voltará tão cedo. Quer deixar algum recado? – perguntou
com sua polidez habitual, mas Brandão meneou a cabeça. Antes de
sair, reparou pela primeira vez na garota e percebeu que era muito
bonita.

– Qual é o seu lance com o Carlos? – perguntou meio


galanteador. Rita fechou a cara:

– Meu “lance”, delegado, é que temos um criminoso para pegar.


Estou ajudando no caso, colaborando! Se me dá licença, tenho
muito o que fazer – e voltou-se novamente para a lousa digital,
ignorando o delegado. Brandão riu.

– Caramba... Nem bem chegou e já está no timinho do Carlos.


Já me odeia só porque eu não fico lambendo as botas daquele
idiota – falou rindo com uma pontada de sarcasmo. Rita olhou para
ele.

– Não sou do timinho do Carlos Eduardo, delegado Brandão.


Sou do time do DHPP. Faz cinco anos que quero fazer parte do
departamento e finalmente, por sorte, meu talento foi reconhecido.
Apenas agarrei a oportunidade. O prefeito de São Caetano me
colocou no caso Herege, e é desse caso que vou cuidar. Não por
ser do time do Carlos ou do seu. Vou cuidar desse caso e dar meu
sangue e minha vida por ele porque esse verme maldito entrou na
minha igreja, um local sagrado, violentou e matou diversas
mulheres, esquartejou um padre e corrompeu um local de oração!
Aquela igreja será limpa e reformada, mas nunca mais conseguirei
entrar lá sem sentir o fedor de fezes e carne queimada, ou de ver
aquela cabeça pegando fogo! Esse desgraçado acabou com o lugar
que eu mais amava no mundo, e não quero isso para ninguém – ela
foi até um saco plástico, abriu e tirou de lá sua camisa branca
ensanguentada. – Essa noite ele entrou aqui e matou uma
testemunha, sem que ninguém consiga explicar como. Ele fez com
que ela arrancasse o próprio maxilar! Meu time, delegado Brandão,
é aquele que estiver contra esse maldito Herege! Não acho que haja
times no DHPP. Ao meu ver, não deveria haver, porque somos
aqueles que trazem justiça às pessoas que não podem se defender.
Deveríamos ser aqueles que trazem algum conforto aos pais que
perderam seus filhos e aos filhos que desejam justiça pela morte
dos pais – falou num misto de raiva e tristeza e se amaldiçoou por
sentir a emoção lhe embargando a voz.

Ela se calou e voltou a observar a lousa. Brandão ficou em


silêncio, sentindo-se um pouco sem graça. Observou o que a garota
havia escrito, todos os mapas lunares. Falou quase sem pensar:

– A Lua Negra...

Rita olhou para ele confusa.

– Lua Negra? O que é isso? – Brandão deu de ombros e desviou


o olhar. Não queria ter dito, mas uma força parecia impeli-lo.

– Não sei direito, mas existe algo a mais aí. Procure a respeito.
Existe uma lua negra? Já ouvi falar de lua azul, que acontece
quando há duas luas cheias no mês, e até de lua vermelha, que não
sei direito quando acontece, mas nunca ouvi falar de lua negra. Se
eu fosse esse cara, tentaria atacar numa lua secreta e não numa
que as pessoas pudessem prever.

– Isso é algum tipo de piada, delegado? – falou com a voz grave,


cheia de seriedade. Brandão balançou a cabeça em negativa.

– Não. De jeito nenhum! Não brincaria com isso – respondeu


com veemência e, assumindo um tom mais amigável, continuou: –
Olha, não vou com a cara do Carlos, mas nunca esconderia uma
informação que achasse vital para o caso!

Ele deu uma piscadela e abriu seu sorriso cativante. Rita olhou
para ele surpresa, mas deu um sorriso discreto e agradeceu com a
cabeça.
– Não custa tentar – falou com calma e voltou-se para as
anotações de Vinnie, em busca de mais informações. Brandão já
estava se afastando quando ela falou sem tirar os olhos das
anotações.

– Espere, delegado!

Ele voltou-se para ela confuso:

– O que foi?

Rita olhou para ele e virou o monitor em sua direção. Havia uma
ilustração com uma lua ainda mais escura que a noite.

– Acho que talvez seu palpite esteja certo, mas não será tão fácil
achar as informações relevantes sobre essa lua negra. Uma ajuda
viria a calhar – ela sorriu. Brandão ficou parado por alguns
momentos.

– Quer que eu ajude no caso de Carlos Eduardo? – perguntou


perplexo. Rita o encarou entediada.

– Não, delegado. Quero que me ajude com o caso Herege de


São Paulo – ela falou séria. Brandão deu uma gargalhada.

– Que se dane então. Eu te ajudo, mas saindo daqui tomaremos


uma cerveja! – ela assentiu.

– Pelo menos tirei alguma coisa boa daquele pesadelo – pensou


e se juntou a ela na pesquisa.

Muitos alegam que o Museu do Ipiranga é mal-assombrado.


Turistas e funcionários relatam que vultos podem ser vistos entre as
mobílias e que sons estranhos podem ser ouvidos principalmente à
noite. Nesse fim de tarde, em específico, seguranças se contraíam
de calafrios. Tinham a sensação de ouvir gemidos e lamentos de
agonia. Alguns faziam o sinal da cruz, outros achavam que era
imaginação, mas a verdade é que os gritos de dor eram reais.
Vinham dos corredores gelados e úmidos das profundas
catacumbas escondidas nas entranhas do Museu.

Nas profundezas sombrias e úmidas da construção, num local


desconhecido até mesmo aos curadores do museu, o sangue corria
vivo das costas dilaceradas e caíam na água congelante. Um som
agudo e estalado soou no ar, e Dom Francisco sentiu o impacto do
flagelo que lhe rasgava a carne. Gritou mais uma vez. A dor e a
humilhação eram enormes para serem suportadas mesmo por ele.
As pontas metálicas do flagelo estavam grudentas e vermelhas com
o sangue e pedaços de carne que dilaceravam, mas a maior ferida
que causavam era na alma mortal, alma do homem a quem um dia
esse corpo pertencera, alma de um ex-escravo que sofrera na
chibata a maior das humilhações. Dom Francisco sabia lidar com a
dor, mas ser novamente colocado no pelourinho e receber
chicotadas feriam a essência de seu ser. O chicoteador era ninguém
menos que Dom Magalhães, que realizava a tarefa cheio de júbilo.

– Já basta, Magalhães – a voz sombria do Herege ecoou pela


cisterna. O ancião lusitano atacou uma última vez antes de parar,
rasgando ainda mais a carne de ébano. O Afogado se levantou e
aproximou-se do negro.

– Você entende, meu querido Dom Francisco, por que está


sendo punido dessa maneira? – a voz era quase gentil, mas Dom
Francisco sabia que era uma máscara, porque não havia bondade
naquele coração.

– Sim, Mestre. Estou sendo punido porque falhei com vossa


senhoria – Dom Francisco falou com subserviência. Magalhães
gargalhou. O Afogado continuou com seu ar paternal.

– Sim. Exatamente, meu servo – falou com um ar protetor. –


Você me decepcionou, mas não estou furioso. Considere isso uma
correção, como um pai caridoso que pune seus filhos em busca de
sua superação – as palavras embora bondosas, mas soavam frias e
sem emoção na voz inalada.
– Se soubesse como me dói vê-lo assim tão ferido... – ao dizer
isso, lambeu as feridas das costas de seu servo, absorvendo cada
cota do precioso líquido da vida.

– Mestre, eu vivo para servi-lo – a voz de Dom Francisco era


subserviente, mas ele queimava em ódio.

– Isso agrada meu coração, Dom Francisco. Agora, levante-se –


ao dizer isso, as correntes que prendiam o grande guerreiro se
soltaram e Dom Francisco virou-se para seu mestre.

Dom Magalhães observava Dom Francisco cheio de júbilo.


Boadiceia, a mulher escarlate, estava sentada ao lado do Afogado,
alimentando-o com o sangue colhido das chibatadas. Ele estava
sentado em uma grande escultura feita da mesma rocha da qual a
cisterna também fora escavada. Era a figura de uma beldade nua
com longos e esvoaçantes cabelos. A parte esquerda do corpo era
linda e sedutora, porém a outra parecia uma caveira endemoniada
com músculos e alguns tendões revestindo o corpo ressequido. O
detalhe mais insólito era que desse lado podia-se perceber que o
ventre da mulher tinha um feto decrépito agarrado às suas costelas.

O Afogado sentou-se. Dom Francisco reparou que a pele dele


perdera ainda mais vigor. Estava flácida e enrugada, desprendendo-
se dos músculos. A gordura da carne tinha se endurecido, em
decorrência de um fenômeno conhecido como adipocere, que faz a
gordura de um cadáver se tornar cera natural, e formava enormes
manchas brancas e rígidas pela carne. Já nas extremidades, o
corpo se encontrava negro e gangrenado.

Dom Francisco se perguntava como seu mestre conseguia andar


com aquele corpo tão decadente e ainda fazer as coisas que era
capaz de fazer. Tinha uma mistura de sentimentos em relação a ele.
Por um lado, nutria uma admiração enorme pelo ser que lhe dera a
vida eterna, um verdadeiro titã capaz de qualquer coisa para atingir
seus objetivos; por outro, guardava um ódio amargo por ele, já que
abominava a servidão e a escravidão mais que qualquer coisa.
– Diga-me, Dom Francisco! – a voz inalada soou pela cisterna.
– Onde está meu Receptáculo? – indagou enquanto bebia o
líquido colhido das pontas ensanguentadas da chibata.

– Em uma cadeia da policia rodoviária. Assim que o sol se puser,


meus homens o trarão para cá, meu senhor! – o africano respondeu.

Dom Magalhães observava em silêncio contemplativo afagando


o longo bigode. O Afogado continuava bebendo o sangue que a bela
ruiva lhe dava em uma taça, feita de um crânio invertido que
permitia o líquido sair pela antiga boca da vítima. Junto dos dentes
estava encrustado um recipiente oval feito em ouro. A base também
era dourada e lembrava garras segurando o topo do crânio. Havia
diversas granadas vermelhas e ametistas incrustadas que se
intercalavam. As órbitas vazias do crânio haviam sido preenchidas
por duas enormes pedras de ônix. O líquido parecia tornar a carne
do Afogado mais rígida e mais ligada aos músculos.

– Senhor, o Receptáculo e os outros dois só foram presos


porque meus lacaios o perseguiram pela estrada. Permita-me
terminar o que comecei – pediu Dom Francisco. Dom Magalhães riu
irônico. O Afogado estendeu a mão e os outros dois ficaram em
silêncio.

– Não precisas mais se preocupar. Mandei outro para


terminar o serviço – falou com desprezo. Dom Francisco
argumentou:

– Mas meu senhor... o senhor confiou o Receptáculo a mim! Sou


capaz de raptá-lo.

O outro o encarou com seus olhos reluzindo uma luz azulada e


fria.

– É mesmo, Dom Francisco? Há quanto tempo estás atrás


da caçadora que nos persegue sem conseguir feri-la? – falou
com ódio na voz. – E a vergonha que nos fez passar desde que
se envolveu pessoalmente em sua busca, quase revelando
nossa identidade a todos os mortais? – sua voz crescia junto ao
frio. – Quantas de nossas leis primordiais quebraste nesses
últimos dias, tendo como resultado somente falhas
constantes? – ele ficou de pé. As juntas estalavam e a carne em
seu joelho pareceu ceder, mas a criatura não demonstrou sentir dor.
Deu três passos tão velozes que o olho humano jamais seria capaz
de captá-los e, com um forte golpe, arremessou Dom Francisco para
o outro lado da cisterna. – Estou farto de teus fracassos, Zumbi!
– bradou furioso. – Farto de tua teimosia em achar que, quando
me desobedeces, melhor me obedeces! Se digo que outro
cuidará do Receptáculo, então outro o fará! – a voz do Afogado
reverberava pela cisterna. Magalhães somente sorria. Adorava ver
Dom Francisco, seu inimigo de outrora, tão humilhado. – A ti resta
somente reconquistar o respeito que uma vez tive por ti! Então
falou contido e benevolente: – Já escolhi qual será tua chance de
redenção.

Dom Francisco, o Zumbi, parou por um instante absorvendo as


informações. Ficou ereto e rígido. Dom Magalhães encarou o líder
das criaturas inconformado. Dom Francisco perguntou com sua
habitual subserviência: – O que precisa de mim, meu senhor?

– Preciso que uses tuas habilidades. Poucos podem se


misturar aos humanos de maneira tão imperceptível – explicou.
Dom Magalhães assistia a tudo numa fúria silenciosa.

– Vigia a mulher de cabelo em chamas. O delegado está


planejando algo, e não posso perdê-la. Ele a está levando para
longe da delegacia e preciso descobrir onde ele irá abrigá-la –
com um gesto da mão direita, dispensou todos. – Agora deixem-
me. Preciso criar uma distração aos mortais.

– Será feito, meu senhor – Dom Francisco prometeu. Magalhães


saiu da cisterna tomado pelo rancor.

– Excelente, Francisco. Não terás nova chance – e deu as


costas ao negro, voltando-se ao seu trono. Parou por um momento
e tocou no ventre da escultura. Em seguida, foi até o meio da
cisterna, pareceu se concentrar e colocou as mãos sobre as águas.
A temperatura, já fria, começou a despencar vertiginosamente.

– Senhor, se me permite... – Dom Francisco arriscou antes de


sair. – Quem cuidará do Receptáculo?

– Minha Vingança. – o outro respondeu com voz soturna,


enquanto lá fora, sobre o museu, nuvens negras e carregadas
começavam a se formar.

O tênue brilho da lua começava a surgir no céu, refletido nas


nuvens densas ainda tingidas dos tons do crepúsculo, enfeitando a
paisagem de uma grande e antiga construção. O Maverick de Carlos
Eduardo estacionava em frente.

Ele abriu a porta e deixou que a irmã Gabriela descesse. A


jovem estava com roupas simples, uma camiseta verde-água com
desenhos de flores, uma calça jeans e tênis. Parecia uma
adolescente comum. Carlos Eduardo fizera questão de ficar com ela
o dia inteiro. Foram primeiro à casa de Tucca, onde ela se arrumou;
depois ele organizou toda a operação de transferência. Sabia que
estava sendo paranoico, mas não tiraria os olhos dela até ter
certeza de que estaria em segurança.

Ao olhar para a sólida e antiga construção do orfanato, sentiu


segurança pela primeira vez no dia. Olhou ao redor antes de entrar.
A rua estava deserta, exceto por um mendigo que estava sentado
na porta fechada de um bar. Gabriela, que tinha um saco com o
resto de um lanche que haviam comprado de jantar, aproximou-se
do mendigo e lhe entregou a comida. O sem-teto agradeceu.
Gabriela sentiu pena do homem, que fedia a urina e cachaça. Tinha
uma aparência frágil. Gabriela não saberia dizer onde a pele escura
do homem não estava coberta por uma grossa camada de sujeira.
Era uma pele frágil, enrugada e parecia que se partiria facilmente.
Os ossos revelavam quão grande era sua miséria. Ela se virou com
uma expressão de compaixão para Carlos Eduardo, que tinha
torcido o nariz ao sentir o fedor do homem e o olhava com certo
desprezo. Puxou a moça pelo braço de maneira protetora,
afastando-a do indigente.

– Irmã, acho linda essa história de caridade, mas você está em


São Paulo agora. Esse cara é só mais um dos pobres coitados que
lotam as ruas da cidade.

Gabriela encarou os olhos cinzentos do delegado.

– Talvez você esteja certo, mas e se estiver errado? – indagou. –


Ele pode ter sido um médico bom e capaz, que por alguma razão
não aguentou a pressão da vida e acabou indo para a rua, ou um
grande delegado que frustrado se rendeu à bebida, ou, ainda, um
pai de família que um dia chegou em casa e pegou sua esposa o
traindo com seu melhor amigo, e essa traição o decepcionou tanto
que sua única solução foi se afogar na bebida para tentar esquecer
– falou da maneira mais branda que conseguiu e sorriu ao continuar.
– Ele não compreende que somente o amor de Deus pode
transformar uma pessoa como ele.

A freira colocou a mão no braço do policial.

– Você faz um excelente trabalho caçando esses criminosos, não


tenho a menor dúvida, mas existe um assassino muito pior nas ruas,
que é a droga, e somente Deus, em seu infinito amor e misericórdia,
pode derrotá-la. Não permita que a dureza do seu trabalho
transforme seus olhos em lentes sujas que só mostrem a podridão
do coração das pessoas. Ter um bom coração vai ajudá-lo a ver a
vida com um pouco mais de cor. Você deveria tentar, delegado.
Talvez veja que a vida não é tão escura – ela sorriu para Carlos
Eduardo, que envergonhado guiou a moça pelo que parecia uma
construção estilo colonial.

Ela viu ao fundo a característica torre do sino de uma igreja, mas


não fazia ideia de onde estava. Passou por uma quadra
poliesportiva e finalmente por um prédio que parecia uma escola.
Gabriela se perguntava aonde fora trazida e o porquê, até que viu
um homem se aproximar. Era alto, de boa aparência e sorridente.
Ele se aproximou de Carlos Eduardo e os dois se abraçaram de
forma fraterna.

– Duas vezes na mesma semana... Isso sim é estranho, Carlão!


– o padre falou. O delegado riu.

– Pois é, Mato. Você vê que coisa maluca? – os dois riram.

– Alguma notícia do Jack?

– Não exatamente, mas a mãe daquele meu amigo que estava


com o Jack recebeu uma mensagem de que ele está bem. Como
estão juntos, acho que está pelo menos tudo sob controle.

Gabriela pigarreou chamando a atenção.

– Ah sim... Matheus, essa é a irmã Gabriela de que falei. Irmã,


esse é o padre Matheus. Ele que vai protegê-la.

– No passado, quando alguém fugia de uma perseguição,


escondia-se na igreja e pedia por santuário – o padre começou e
Carlos Eduardo revirou os olhos.

– Eu sei... Assisti a O Corcunda de Notre Dame – Carlos fez


como se puxasse a corda de um grande sino e imitou uma voz
grave e teatral: – Santuário! Santuário! – os três riram. Matheus
estendeu a mão para a irmã, que a pegou beijou.

– Reverendo – falou com respeito. Matheus gentilmente colocou


a mão no ombro da garota para guiá-la.

– Irmã, seja bem-vinda ao Instituto Cristóvão Colombo.

– Gostaria que você a mantivesse aqui por um tempo. Tem


problema? – Carlos pediu.

– Não, claro que não. Ela sempre será bem-vinda – sorriu para a
moça.
– Obrigada, senhor. É muita bondade sua – falou com verdadeira
gratidão.

– Carlão, nos acompanhe, por favor.

Os três seguiram até dentro da construção. O padre arrumou um


quarto para a irmã. Era simples, mas ainda assim aconchegante.
Tinha brinquedos e um berço.

– Às vezes temos algumas mães que precisam se esconder do


marido porque ele bebe e fica violento ou porque ela quer sair do
mundo do tráfico. Sei que o quarto é um pouco bagunçado, mas a
cama é confortável – sorriu de maneira afável.

Grabriela encarou os olhos bondosos do padre em busca de


alguma lascívia e ficou feliz em não encontrar nenhuma. Suspirou
aliviada. O ambiente era acolhedor e se sentia em casa, finalmente.

– Por favor, descanse e tente comer algo. Depois do jantar,


apresentarei o local a você – falou gentilmente.

– Estará segura aqui, irmã – o delegado afirmou.

Gabriela assentiu e, depois que o delegado e o padre saíram,


trocou de roupa e adormeceu pesadamente, como havia muito não
conseguia.

Do lado de fora, o delegado e o padre continuavam a conversar.

– É melhor você ir, Carlão – o sacerdote falou olhando para o


céu. – Vai cair um pé d’agua daqueles e a cidade vai travar.

– Já vou indo. De qualquer maneira, deixarei dois guardas


vigiando a entrada e um aqui dentro. Não acredito que haverá um
ataque. Acho que o lugar estará suficientemente protegido.

– Com três guardas? – Matheus riu.


– Não, amigo. Não acho que esses guardas possam fazer algo
efetivo. Trouxe-a para cá pelo corcunda mesmo.

– Como assim?

– Não procuro uma fortaleza, mas um santuário. Não tenho


conhecimento sobre o que vi naquela delegacia, mas reconheço que
é mais sua área de atuação que a minha. Estou confiando essa
moça ao mais habilidoso guerreiro que conheço.

– Quem? – Matheus questionou na defensiva. Carlos Eduardo


colocou a mão no ombro do amigo sacerdote.

– Você, Mato. Estou colocando-a sob sua guarda porque acho


sinceramente que você é o único capaz de protegê-la.

– Carlão, já falei que não sou mais exorcista.

– Lembra-se do que o Major falava? “Um soldado sempre será


um soldado, não importa se ele se tornou um major, um médico, ou
um simples velho jogando dominó na praça. Quando ouvir as
trombetas, o sangue dele vai ferver; quando a luta se apresentar
diante de seus olhos, o soldado dentro dele se levantará e lutará!”

Os dois ficaram em silêncio. Matheus endireitou a postura e


encarou o amigo. Levou a mão direita à têmpora e bateu
continência. O delegado retribuiu o gesto. Então deram as costas
um ao outro. O padre se dirigiu para seu escritório e Carlos Eduardo
foi embora.

Matheus se aproximou de sua estante e pegou o livro de capa


preta decorada em prata. Abriu-o e olhou para o crucifixo na parede.

– Senhor, dai-me forças e discernimento para fazer aquilo que


devo fazer.

O delegado entrou no seu carro pensativo. Um trovão rugiu no


céu, que se tornava cada vez mais sombrio, com nuvens cada vez
mais escuras e carregadas. Carlos Eduardo ouviu uma tosse do
outro lado da rua. Era o indigente. Bufou. Então viu o pacote de
alumínio com o resto do almoço que guardara para comer em casa.
Ficou encarando-o por um tempo.

– Ei você – falou com o indigente. O homem olhou assustado. –


Está com fome? – já entregando a comida.

O mendigo assentiu.

– Está um pouco fria, mas bem gostosa – o homem abriu o


pacote e começou a comer o que tinha dentro.

– É melhor achar um lugar para se esconder. Vai chover feio hoje


– o homem olhou para o céu e assentiu com a cabeça.

– Boa sorte! – Carlos Eduardo falou por fim. O homem olhou


para ele e agradeceu silenciosamente.

O delegado voltou para o carro e encarou seus olhos frios no


espelho retrovisor satisfeito. Sentia-se melhor agora. A freira estava
segura. Ligou o carro e saiu, deixando na esquina o indigente que
comia sua marmita.
Capítulo 11

Nazireia é o feminino de “Nazireu” e vem do hebraico nazir, da raiz


nazar, que significa “consagrado” ou “separado” na Torá, que é
como uma bíblia judaica. Nazireu é como era chamada uma pessoa
que fazia um voto para ficar a serviço de Deus por um certo tempo,
ou até mesmo por toda a vida. Para mostrar isso, ela ficava sem
cortar o cabelo e não podia beber vinho nem comer uva. Em
resumo, a pessoa fazia parte da Congregação Cristã! – Brandão riu
de sua própria piada. Rita olhou-o sério.

– Não acho legal zombar da fé das pessoas – falou amuada.


Brandão se empertigou.

– Desculpe-me... É sua religião? – perguntou pressuroso; Rita


negou.

– Sou católica, mas tenho evangélicos na família. Nunca entendi


direito essa rixa entre crentes e católicos, afinal, todos nós seguimos
a Jesus – falou dando de ombros. – Algo mais? – perguntou e o
delegado assentiu.

– Sim. Segundo o Antigo Testamento, o voto de nazireado ou


nazireato foi institucionalizado e regulamentado na Torá, no Livro de
Números 6:1-21. Quem se submetesse a ele não poderia comer
certos alimentos, como os chamados animais imundos, por exemplo
o porco, e, em alguns dias, não poderia ingerir carne de qualquer
procedência; não poderia tomar nenhuma bebida alcóolica e nem
cortar o cabelo e a barba, no caso dos homens. Além disso, não
poderia, de maneira nenhuma, tocar em cadáveres. Esses caras
definitivamente não eram os mais populares numa festa – o
delegado queixou-se e Rita não conteve o riso.

– Você deve entender, Brandão, que a ideia era se manter puro,


são e em sujeição a Deus, por isso não tocavam em cadáveres, não
ficavam bêbados e representavam a sujeição a Deus nos cabelos
longos, tanto que, ao término do voto, eles raspavam o cabelo.
Existem dois nazireus famosos: Samuel, profeta que coroou Davi
rei, e Sansão, o mais famoso. Se você se lembrar, ele perde sua
força sobre-humana quando cortam seu cabelo.

– É mesmo... Então ser nazireu te dá superforça? – ele


perguntou confuso.

– Não exatamente. A força de Sansão vinha da aliança dele com


Deus. Não era dele, mas de Deus. Cortar o cabelo foi apenas a
última das falhas dele, porque ele comeu mel que estava num
cadáver e também bebeu muito, além de ter tido um caso com
Dalila, que era uma mulher não judia. Isso para a época era se
contaminar. Existem diversos registros judaicos que dizem que
essas pessoas eram, frequentemente, as que não bebiam vinho ou
qualquer bebida feita de uvas. Também eram aquelas que não
cortavam o cabelo, ou que não tocavam nos mortos. Os mesmos
registros ainda dizem que essas pessoas poderiam até mesmo fazer
parte de uma seita, mas tudo isso é muito obscuro na história do
povo Hebreu. Existiam dois tipos de nazireus: aqueles que realizam
o voto por um período que vai de três meses judaicos, equivalentes
a aproximadamente seis meses, até sete anos; e aqueles que eram
os mais admirados, porque faziam o voto para a vida toda. Sansão
era um deles e dizem que sua família era de nazireus. Samuel, o
juiz e profeta, também foi prometido à seita desde antes de nascer.
Eles eram muito respeitados e eram vistos como grandes heróis
pelos hebreus. Outras figuras históricas são identificadas como
nazireus. O último famoso era São João Batista. São Paulo também
fez o voto, mas por alguns anos. Segundo estudiosos, o nazireado
deu origem ao modelo de vida dos monges.

Rita deixou de lado suas anotações e respirou fundo:


– Foi tudo o que achei sobre nazireu ou nazireia. De que forma
você acha que essas informações estão conectadas com a fugitiva?
– Brandão e Rita trabalhavam juntos em ambos os casos,
aproveitando o farto banco de dados fornecido por Vinnie a Carlos
Eduardo. Ele a ajudava procurando as informações sobre a lua e ela
sobre o termo usado por Janaína, a única criança sobrevivente do
massacre no Pacaembu.

– Não sei ainda – Brandão falou pensativo. – Não consigo


entender o que isso tem a ver com os crimes. Será que essa mulher
acha que está fazendo um voto sagrado matando as pessoas? –
perguntou mais para si mesmo do que para a policial. – O meu
medo é que ela pertença a algum tipo de seita e que pegá-la só dê
origem a mais crimes – falou pensativo enquanto coçava o queixo. –
Obrigado, Souza, você foi de grande ajuda – ele falou com certa
doçura. Rita riu.

– Brandão, você é quase legal quando se conhece, sabia? – ela


falou rindo. O delegado deu risada também.

– Mas ainda acho seu chefe um imbecil, então ainda sou um


sujeito desprezível – eles riram. O telefone de Rita tocou e ela saiu
do escritório para atender.

– Era o Carlos me perguntando se consegui algum avanço nas


investigações – ela comentou assim que voltou. Brandão deu de
ombros.

– Depois você me pergunta por que não gosto dele. Está sempre
se intrometendo nas melhores horas – ele sorriu com malícia. Ela
retribuiu com outro sorriso, embora tímido, e focou nos papéis e
arquivos de Vinnie, em especial em alguns que explicavam sobre
magia. Brandão apoiou os pés na mesa e relia as notas que Rita lhe
enviara quando seu telefone tocou.

– Brandão.
– Delegado Brandão, aqui é o Delegado Figueira da Rodoviária.
Estou ligando para comunicar que estamos com sua suspeita em
custódia. Levamos um tempo para fichá-la, mas acredito que o
senhor vai querer vir buscá-la.

Brandão quase caiu da cadeira com a notícia. Colocou-se de pé


imediatamente e falou excitado:

– Sim, sim! Você pode me passar o endereço?

O delegado da Polícia Rodoviária passou as informações.


Brandão as anotava ansioso.

– Acredito que ainda hoje eu os tire daí! Obrigado, delegado –


desligou satisfeito e passou a correr com a solicitação de um veículo
para transferir os prisioneiros. A sorte parecia sorrir para ele. Enfim
colocaria as mãos na sua fugitiva. Saiu do escritório depois de uma
rápida despedida à Rita.

A policial riu para si mesma enquanto continuava analisando as


anotações de Vinnie. Então seu olhar captou uma informação.
Começou a ler e seus olhos foram se transformando em pura
perplexidade.

A cidade de São Paulo estava debaixo de um temporal. A


metrópole é feita de concreto e praticamente não tem áreas verdes.
Em virtude disso, uma chuva torrencial sempre obriga as
autoridades a decretarem estado de emergência. Por vezes as ruas
viram verdadeiros rios, com água encobrindo os veículos.

A base da Polícia Rodoviária, onde Jacó, Raquel e Vinnie


estavam encarcerados, mais parecia um barco em meio ao oceano.
A água que caía do lado de fora era tanta que os prisioneiros não
conseguiam ver mais de dez metros além. Parecia noite, embora
soubessem que por detrás de tantas nuvens carregadas o sol ainda
poderia ser visto dando adeus no horizonte. As nuvens escureciam
de tal maneira o céu que as luzes automáticas das ruas estavam
acesas, dando ao ambiente um ar lúgubre e melancólico. Trovões
agressivos soavam do lado de fora e sacudiam a construção.

Em meio à torrente, um elegante e luxuoso sedan parou na


frente da base. Era de um verde bem escuro, com o logotipo e a
grade do motor cromados. Dele desceu o motorista, vestido como
tal, inclusive com quepe e luvas, que abriu um enorme guarda-
chuva negro e dirigiu-se para a porta traseira.

Um homem de aparência exótica saiu do veículo. Era japonês,


com seus olhos puxados retos como dois cortes horizontais na face.
As sobrancelhas seguiam o formato dos olhos e desenhavam um
ângulo perpendicular ao nariz, que era um pouco mais curvado e
fino que o normal. O rosto era quadrado, com malares
proeminentes, que lhe davam um ar obstinado, suavizado pela boca
em formato de coração, que parecia sempre apresentar um leve
sorriso irônico. Os cabelos eram bastante longos e estavam presos
em um coque no estilo chonmage, característico dos samurais do
passado. O rosto perfeitamente barbeado e liso tinha uma
tonalidade de madeira clara e ele aparentava no máximo quarenta
anos. Sua vestimenta era igualmente extravagante e cheia de uma
elegante excentricidade. Vestia uma camisa em forma de bata feita
de lona negra. Da cintura para baixo, cobria-se com um longo
hakama também escuro, típica calça japonesa longa que parece
uma saia. Por sobre essa roupa usava um sobretudo de couro
também preto, cortado no estilo samurai do kataginu, com ombros
largos. Diferentemente da roupa tradicional, no entanto, que não
tem mangas, esse sobretudo descia até os pulsos. Nos pés usava
um coturno simples também negro. A única cor em sua vestimenta
era uma enorme echarpe que lhe envolvia o pescoço e descia pelas
costas. Era vermelha, com diversos corvos com três pernas
bordados num padrão.

– Seus serviços não são mais necessários – falou com o


motorista num forte sotaque, curvando levemente a cabeça.
Caminhou em direção à pequena base. Entrou calmamente,
fechando o guarda-chuva e apoiando-o na parede. Havia no total
cinco policiais no local. O forte cheiro de café queimado exalava da
cafeteira elétrica onde a bebida já se tornava grossa e rançosa. A
chuva açoitava as paredes e janelas tornando o barulho irritante.
Um raio caiu perto do local, e o trovão que se seguiu parecia uma
explosão.

O elegante japonês dirigiu-se com desenvoltura até a mesa do


delegado.

– Creio que estejas com três pessoas presas na cela, uma


fêmea e dois machos. Estou correto?

O delegado Figueira, que tinha acabado de desligar o telefone,


estranhou a maneira do homem falar, mas já tinha visto todo tipo de
figurão com seus advogados poderosos. Contas gordas faziam o
que queriam.

– Se está com roupas tão caras deve ter muito dinheiro e ser um
daqueles que acham que o dinheiro compra tudo. Vai descobrir que
aqui não funciona assim... – pensou o delegado.

– Se são machos eu não sei, mas tenho três meliantes que


foram presos na serra, por entre outras coisas atacar um policial. Se
acha que vai chegar aqui com um mandatozinho e soltá-los, está
muito enganado. Uma das meliantes é uma fugitiva procurada e o
pessoal da civil está vindo buscá-la – esperou a reclamação do
homem de terno estranho e o papo clássico do “A gente não pode
resolver isso?”, ou a propina. Era tudo o que queria para meter esse
engomadinho no xilindró junto dos “clientes”, mas, em vez disso,
porém, o pretenso advogado fechou os olhos e meneou a cabeça
em negativa.

– Não vim aqui soltar ninguém, caro guardião da lei. Foi-me


solicitado vir buscar um alvo e exterminar os outros dois, e é
exatamente isso que pretendo fazer – outro raio caiu, mas dessa
vez parecia ter atingido a delegacia, justamente quando o oriental
abriu os olhos, que estavam totalmente brancos e embaçados.

O delegado viu quando o homem colocou uma exótica e


tradicional máscara do teatro japonês chamada Hanay. Esculpida
em marfim, representava um demônio de pele branca com um
sorriso diabólico que revelava grandes dentes, como as presas de
um javali, tanto em cima como em baixo. Da testa saíam dois chifres
curvados para fora. Tanto os chifres como os dentes eram feitos em
ouro. A máscara era muito antiga e estava desgastada.

O delegado olhava para a cena apreensivo, quando um som de


algo úmido ressoou no chão. O policial, horrorizado, percebeu que
uma mandíbula humana tingia o chão de carmesim. O delegado
tentou gritar, mas, antes de qualquer reação, ele viu um brilho
metálico, como um flash de máquina fotográfica, e sentiu uma dor
aguda no peito. Um metro de aço forjado mais de duas mil e
quinhentas vezes atravessou sua caixa torácica, rasgando seu
coração e também o estofado da cadeira em que estava sentado. A
arma penetrou de forma tão suave que não emitiu som. Os outros
policiais, ao verem isso, começaram a sacar suas armas e a
disparar. O homem aparou os três primeiros disparos com a lâmina,
que faiscava ao contato com as balas, depois saltou por sobre as
mesas, com uma agilidade sobrenatural, e, antes de tocar o solo,
sua lâmina saltou novamente da bainha, decapitando o segundo
policial. Enquanto a cabeça do homem ia ao chão e a vida
abandonava seus olhos, suas pupilas se contraíram com outro raio,
que atingia a base rodoviária com violência, enchendo-a de uma luz
fustigante. Depois, escuridão...

Walkyria chegou ao estúdio de Cibele pouco antes da chuva,


agradecida pelo trânsito ter de alguma maneira colaborado e ela ter
conseguido chegar a tempo. Comeu uma porção de açaí com
banana e foi ao vestiário se trocar.
Longe dali, em São Caetano do Sul, numa casa de muros altos
repletos de trepadeiras, com um jardim tão vasto que no meio dele
havia um pequeno bosque de carvalhos, a bela Madalena chegava
ao seu quarto todo feito em mármore e madeira de lei. Na frente do
espelho passou a tirar a camisa de marca, revelando uma ousada
lingerie negra.

No estúdio, Walkyria despia seu conjunto de roupas íntimas


delicadas, simples, bordadas de flores. Na sequência, vestiu um top
mais confortável, uma calcinha que não lhe limitasse os movimentos
e uma calça folgada de malha.

Sua madrasta cobriu o corpo apenas com uma toga de seda


negra, mas colocou inúmeras joias de prata, anéis em todos os
dedos e brincos com padrões de lua e pedras brutas. Finalizou os
adornos com uma tiara em forma de uma lua crescente na fronte.
Saiu da casa e caminhou pelo gramado indiferente à tormenta que
encharcava suas vestes, as quais aderiam ao seu corpo e
revelavam suas curvas provocantes.

Jacó, Raquel e Vinnie estavam melancólicos em sua cela. Jacó


estava sentado num banco próximo à grade, Vinnie estava deitado
no chão e Raquel estava na cama mais próxima à janela.

– Como a gente vai sair daqui? – perguntou a garota frustrada.

– Estou tentando achar uma solução, mas sinceramente não sei


– Jacó admitiu. – Se estivéssemos em São Caetano, eu poderia
tentar falar com a Walkyria.

Um raio caiu bem perto, assustando Vinnie. Raquel falou depois


do barulho.

– Não. Já disse. Até sabermos mais sobre esse pessoal, se são


ou não bruxos, quero eles longe da gente.
Mais um trovão sacudiu a cela. A força do impacto fez as
paredes tremerem.

– Se continuar chovendo desse jeito, podemos sair nadando


daqui a pouco – ironizou o psiquiatra. Os outros dois sorriram.
Vinnie teve um calafrio.

– Não gosto quando chove tanto e estou fora de casa. Acho


assustador.

– Eu gosto – Raquel falou fechando os olhos e levantando a


cabeça. – Esse som é reconfortante para mim – nem bem ela
terminou de falar e outro raio caiu ainda mais próximo que o
anterior, quase como se tivesse entrado na delegacia. As luzes se
apagaram...

– Você realmente acha esse dilúvio reconfortante, madame Van


Helsing? Você é mais doida do que eu achava – Vinnie falou
incomodado.

A chuva era tão intensa que eles quase tinham que gritar para
ouvir um ao outro. Pouco depois perceberam que havia começado a
cair granizo. Tinham a impressão de que a delegacia estava sendo
atacada, pois as pedras de gelo acertavam o local com tanta
violência que o barulho era o de centenas de armas atirando contra
suas paredes. Jack tinha a sensação incômoda de ouvir os policiais
gritando em pânico. Olhou para a garota sentada na cama e
percebeu uma névoa quase invisível saindo de sua boca enquanto
respirava. Vinnie tentava se aquecer em vão.

Com um calafrio, ficou de pé em prontidão. Voltou os ouvidos


para fora da cela, buscando ouvir na direção da entrada e percebeu
que os policiais não pareciam estar em pânico, eles estavam em
pânico.

– Tem alguma coisa errada! – alertou os outros. Por um instante


fez-se silêncio, quebrado na sequência pelo barulho que a porta que
separava as celas da área administrativa fez ao ser escancarada
por um policial que entrou cambaleando pelo corredor. Estava sujo
de sangue, branco como cera e com um olhar aterrorizado. Parecia
sentir muita dor. Sua mão direita repousava sobre o abdômen. Deu
alguns passos em direção ao fundo da delegacia, mas teve um
espasmo e sangue jorrou de sua boca. Caiu de joelhos na frente
dos três e, quando retirou a mão do ventre, algo úmido veio ao chão
com suas vísceras. Ele soltou um gemido roco antes de desfalecer.
Com a porta aberta, o som de disparos e gritos era bem maior.

Vinnie gritou aterrorizado ao ver o corpo do policial. Raquel ficou


de prontidão. O psiquiatra puxou o corpo para perto de si e passou a
revistar os bolsos do uniforme, em busca das chaves.

– Estão ali no chão. Ele as deixou cair – Raquel gritou apontando


para o molho de chaves no chão. Vinnie pulou, jogando o braço
entre as grades para tentar alcançar. Com algum esforço conseguiu
e logo passou a tentar abrir a cela, com Raquel e Jack ao seu lado.
Na quinta tentativa a chave entrou e a fechadura cedeu, abrindo a
porta. Jack foi na frente, servindo de proteção aos dois. Raquel
pegou a pistola do policial e se posicionou atrás de Vinnie. Assim
seguiram pela delegacia escura.

Os gritos haviam parado e somente o constante som da chuva


açoitando as paredes podia ser ouvido. Adentraram no saguão
principal da base. O cheiro de sangue e excrementos era intenso.
Vinnie, que virava a cabeça tentando ver qualquer coisa, não
reparou que Jacó havia desviado de algo, tropeçou e caiu.

– Você está bem? – Raquel perguntou. Jack tentava ajustar seus


olhos à escuridão.

– Achem um celular, uma lanterna, alguma coisa que ilumine.

Vinnie tateou o chão e sentiu um líquido viscoso, que estava


também espalhado por sua roupa em virtude da queda. Demorou
algum tempo, mas encontrou um celular. Apertou o botão e a tela se
acendeu. Ao se levantar conseguindo enxergar, percebeu que o
líquido viscoso era sangue e estava coberto dele. Em pânico, voltou
a tropeçar. Com a parca luz, pôde ver que pisara em um braço
decepado.

Outro raio rasgou o céu seguido de um trovão poderoso. No


lampejo, Jack viu uma única pessoa de pé entre eles e a saída. Era
uma figura de vestes negras, calça hakama, um casaco em forma
de kataginu e uma bata também escura envolta por uma echarpe
vermelha. Sua face não podia ser vista, porque estava coberta por
uma máscara hanay, mas seus longos cabelos negros dançavam
com a ventania.

No orfanato, a chuva torrencial saturava a terra do pátio onde as


crianças costumavam brincar, e a luz da cozinha era uma das
poucas acesas. Lá dentro, sozinho, um garoto lavava a louça.

Wesley não era um menino querido pelos seus colegas no


instituto Cristóvão Colombo, e não era à toa. Era grande e sempre
procurava briga, batendo nos menores e maltratando os novatos.
Também demostrava sinais de sadismo. Adorava torturar os filhotes
de gatos que apareciam no local. Uma vez decidiu testar a
habilidade dos felinos em sempre cair de pé e jogou um da torre da
igreja. Ficou de castigo e levou centenas de broncas dos padres,
mas nada funcionava. “O garoto é ruim”, dizia o padre Sebastião,
um dos mais velhos do instituto, mas Matheus acreditava que o
comportamento do garoto tinha raiz na infância violenta. Sabia que o
menino fora espancado e quase morto, além de molestado pelo pai
diversas vezes antes de ser transferido definitivamente para o
instituto. Em menos de uma década de vida, Wesley já havia sofrido
o que muitas pessoas não sofrem durante toda uma vida.

Matheus tentava à exaustão expurgar o ódio do coração do


garoto e estava começando a ter alguma vitória. Wesley começava
a se socializar, mas ainda não aceitava ser contrariado e tinha o
hábito de responder com violência.
Naquela noite chuvosa em particular, Wesley estava irritado.
Sempre fora um dos mais fortes do instituto, mas provocou o garoto
errado, Kleber Wesley pegou a bola de futebol do menino mais
velho sem autorização. Quando Kleber descobriu, não só tomou a
bola do mais novo como o agrediu. Enfurecido, Wesley roubou uma
faca na cozinha e rasgou a bola de lado a lado. O outro, por isso, o
espancou. Os padres intervieram, mas Wesley ficou muito
machucado, que não foi suficiente para livrá-lo do castigo. À noite,
enquanto a tormenta caía lá fora, o menino lavava furioso a louça da
ceia, amaldiçoando seu novo inimigo. Foi quando ouviu uma voz
grave.

– Está com bastante raiva, hein garoto?

Com o susto, o prato em sua mão caiu dentro da pia e se partiu


em dois. Ao se virar, viu um homem negro de terno branco e gravata
vermelha sorrindo. O menino ficou inicialmente confuso, porque já
vira aquela figura antes no terreiro que a mãe visitava, mas era
sempre uma estátua, nunca uma pessoa de carne e osso.

– Quem é você? O que você quer? – perguntou assustado.

– Calma, Wesley – falou a voz grave. – Você sabe quem sou.


Sua mãe sempre conversava comigo, lembra-se?

O garoto olhava assustado. Tinha a impressão que seu corpo


exalava uma fina fumaça.

– Você é de verdade?

O homenzarrão andava pela cozinha despreocupado.

– Sou, garoto. Sou sim, e vi o que aquele idiota fez com você! –
respondeu. O garoto se encolheu envergonhado.

– Não tem do que se envergonhar – falou se aproximando do


garoto. – Ele foi mal, eu sei, e você não era tão forte, mas posso
mudar isso. Você quer? – sorriu com bondade ao garoto, mas o
menino estava aterrorizado. – Quer ser mais forte que aquele
desgraçado? Mais forte que os padres e todo o resto? – falava com
calma e doçura, mas suas palavras inflamavam o coração da
criança.

– Sim! – o garoto respondeu, com os olhos faiscando de raiva. –


Mas como?

O homem caminhou até o prato partido, ergueu o braço e


arregaçou a manga. Depois cortou a carne, deixando o sangue
escuro verter.

– Beba e nenhum ser vivo conseguirá te machucar. Nunca mais!

O garoto olhou aturdido para o corte, mas, como que fascinado


pelo líquido que corria do ferimento, foi se aproximando lentamente.
Pegou o braço com suas mãozinhas e levou-o à boca.

A dor por estar num local consagrado era quase insuportável


para Dom Francisco. Sentia sua pele queimando como se estivesse
sendo mergulhado em água fervente e quase não podia disfarçar a
dor, mas precisava dessa vitória. Bastaria uma brecha no coração
de alguém para entrar e abrir as passagens para seu mestre, e o
coração desse garoto, uma criança imaculada pelos poderes das
trevas, mas totalmente tomada de rancor pela maldade humana, era
o aríete perfeito para a invasão. Dom Francisco olhou malignamente
para o menino:

– Tão jovem e tão cheio de ódio... Agora tão condenado...

Walkyria, diferentemente de muitas pessoas estava satisfeita


com a chuva. Quando ela era muito forte, poucos alunos apareciam
para as aulas, portanto poderia se alongar sem olhares cobiçosos.
O único ponto negativo do Yoga era que algumas das posições lhe
pareciam tão sensuais e eróticas que se sentia exposta e vulnerável
para alguns colegas de sala que, embora disfarçassem, lançavam
olhares furtivos ao seu corpo. Ligou o aparelho de som da sala e
acendeu um incenso de que gostava. Pensava no pai, em seu
acordo, e no que seria capaz de fazer por Jack.

Madalena, por sua vez, adentrava no bosque. As longas árvores


lhe ofereciam pouca proteção da água. Sentia seu corpo rígido pelo
frio, que começava a se intensificar, mas não era incômodo o
suficiente para perturbá-la. Chegou ao seu destino, um pequeno
lago entre as árvores. Suas águas estavam onduladas por causa da
tempestade. Ela tirou o manto e o colocou no chão. Nua entrou no
lago, que chegava até sua cintura. Sobre uma pedra na borda havia
um baú feito em madeira escura e metal, já desgastado pelas
intempéries do tempo. Ela o abriu. Diversas ervas encontravam-se
lá dentro separadas em frascos. Começou a entoar cânticos numa
língua estranha que lembrava o latim e a selecionar algumas das
ervas, as quais ia jogando na água. Vapor começou a se soltar e
subir aos céus...

A chuva foi forte demais para Carlos Eduardo e ele percebeu


que não conseguiria prosseguir. O trânsito começava a congestionar
e o delegado sabia que o mais prudente seria esperar a tempestade
passar. Perguntou a si mesmo onde iria esperar... Olhou em volta e
encontrou um bar interessante, a pouco mais de um quilômetro
depois do orfanato. Com certa dificuldade conseguiu chegar lá e
estacionar.

O bar tinha temática esportiva, com os maiores times europeus e


brasileiros de futebol decorando suas paredes. Tudo era limpo e
organizado. Estudantes da faculdade vizinha iam para lá ao final da
aula (ou durante). O delegado se sentou numa mesa e pediu uma
porção de provolone e fritas, além de uma cerveja.

Apreciou os petiscos e ficou assistindo ao jogo de futebol


europeu que passava na tv. Uma hora mais tarde, pouca coisa havia
mudado. O placar era o mesmo e a chuva continuava castigando a
cidade.
– Vai ser uma noite daquelas, hein? – o garçom falou retirando
as bandejas e a garrafa vazia.

Carlos Eduardo respirou fundo e se espreguiçou para alongar as


costas.

– Pois é! Estou vendo que essa chuva não vai passar.

– Outra cervejinha e mais fritas, chefe? – ele sacou o aparelho


para anotar o novo pedido, mas o delegado ergueu a mão em
negativa.

– Não, obrigado. Traz a conta e um cafezinho, por favor.

Minutos depois entrava no carro. Respirou fundo e sentiu o


telefone vibrar. Quando atendeu, a voz de Rita soou preocupada do
outro lado.

– Delegado, o senhor pode vir para cá? Tenho notícias


perturbadoras.

Carlos Eduardo ficou sério:

– Estou saindo daqui. A chuva pode me atrasar, mas darei um


jeito – desligou o telefone, ligou o carro e a sirene com o giroflex, e
saiu em meio à tempestade.

O percurso, normalmente feito em quarenta e cinco minutos,


tomou duas horas e meia. Carlos Eduardo chegou ensopado,
irritado e cansado.

– Souza, espero que suas notícias valham a pena, porque essa


chuva está impossível – entretanto, quando o delegado olhou para a
policial, soube que era grave. – Rita? Está tudo bem? – perguntou
preocupado.

– Amanhã... Será amanhã...


– O que será amanhã? – Carlos Eduardo perguntou sentindo um
calafrio, quase certo do que ela diria.

– Eu estava errada, Carlos. Ele não pretende atacar na Lua


Nova. O assassinato de Grabriela será amanhã... Eu estava errada!
– ela estava inconsolada. Carlos Eduardo foi até ela.

– Recomponha-se e explique, Souza – a voz autoritária causou o


efeito esperado. A policial foi mais forte que a mulher e Rita ajeitou
as costas e pigarreou.

– Desculpe, delegado. Por favor, deixe-me mostrar.

Ela mostrou suas anotações.

– Eu imaginava que o Herege estivesse esperando a segunda


lua nova do mês, mas estávamos analisando apenas as fases da
lua conhecidas por nós. Essas são as fases astrológicas da lua, não
as místicas! Quando olhei pela ótica do ocultismo, tudo fez sentido.
Veja – foi até a lousa. – Na tradição mística, existem cinco
elementos, não quatro – começou a escrevê-los na lousa: Terra, Ar,
Fogo e Água. – No entanto, o mais importante deles é o Éter, ou
espírito. Segundo Platão e as ordens antigas de magia, além dos
elementos naturais, existe esse, que deu origem a tudo, o Éter, que
em resumo seria a matéria-prima do Espírito – ao falar, acrescentou
o último elemento à lousa. – Já sobre as fases da lua, as religiões
antigas acreditavam numa deusa mãe, com suas várias faces,
representando os aspectos da mulher. Essa deusa tinha cinco faces.
A última e mais assustadora era representada pela quinta lua, a Lua
Negra, que indica o declínio, a face oculta da deusa. Neste ano, por
acaso, somente uma vez teremos as cinco luas no mesmo mês: em
março, exatamente esse mês – então escreveu as datas de cada
lua:

Dia 01 às 05:00 – Lua Nova

Dia 08 às 10:27 – Lua Crescente


Dia 16 às 14:08 – Lua Cheia

Dia 23 de às 22:46 – Lua Minguante

Dia 30 às 15:45 – Lua Nova

– Mas onde está a lua negra de que você está falando? É a


segunda lua nova? – ele perguntou confuso. Rita negou com a
cabeça.

– Não, a lua negra não é uma fase exata, mas um momento


específico e místico, que só acontece três dias antes da lua nova, o
que significa que a última vítima de nosso inimigo será morta dia 27
até as 16 horas!

– Então se impedirmos o maldito de colocar as mãos em


Gabriela até amanhã às 16 horas teremos acabado com seus
planos! – Carlos Eduardo falou triunfante. – Tudo o que temos de
fazer é manter Gabriela segura por mais um dia! Isso foi brilhante,
Souza! – Carlos Eduardo falou saindo às pressas.

Rita, vendo ele sair, perguntou aflita:

– Aonde você vai?

– Vou para o orfanato. Se esse bastardo pretende levar Gabriela,


será nessa noite, e ele terá de passar primeiro por mim!

Outro raio cruzou os céus e o trovão soou furioso. Da porta


escancarada entrava uma enxurrada de água, que aos poucos
lavava o chão encoberto de sangue.

Os raios eram a única fonte de luz do ambiente, já que o apagão


e a tempestade tornavam a noite escura como nanquim. Vinnie
ainda segurava o celular aceso, mas a luz débil servia apenas para
assustar ainda mais, porque revelava na penumbra a lâmina tingida
de vermelho e os chifres dourados da máscara hanay. Revelar o
inimigo só trazia mais medo...

– Olá, Walkyria – a voz do oriental ressoou e todos puderam


ouvi-la, não porque falasse, mas se comunicasse pela mente de
alguma maneira sobrenatural. Diferentemente do que aconteceu
quando falou com os policiais, agora não tinha sotaque e
comunicava-se com perfeição, embora de maneira extravagante e
elegante. Continuou indo na direção de Raquel: – Vejo que gozas de
plena saúde. Anseio em tornar isso uma inverdade.

Jacó se abaixou rapidamente e pegou no corpo de um dos


policiais uma pistola. Apontou na direção da máscara, mas ela não
estava mais no mesmo lugar. Ao girar o corpo, viu a lâmina sendo
erguida sobre a cabeça de Vinnie e Raquel. A mulher também
pegara rapidamente uma arma e, sem hesitar, disparou três vezes
mirando na máscara.

O oriental manteve a lâmina erguida com uma das mãos e, com


a outra, fez movimentos com tamanha agilidade e velocidade que
Raquel não conseguiu acompanhá-los. Quando ela terminou os
disparos, ele abriu a mão e jogou os três projéteis no chão.

– Trazes-me profunda consternação, Walkyria, observar que


usas arma tão covarde – ele continuava a se comunicar com Raquel
usando seu nome de batismo. – Confesso que esperava mais
valentia de tua parte. O Não-Vivo ensinou-lhe mais que isso, tenho
certeza.

Aterrorizada, Raquel atirou até não restarem mais balas em seu


revólver, mas seu alvo, novamente numa velocidade assustadora,
aparou os disparos, dessa vez com a espada. Faíscas voaram por
todo o ambiente.

– Decepcionante – ele falou enquanto meneava a cabeça em


negativa e guardava a lâmina tranquilamente. – Deverias saber,
Walkyria, que pistolas são subterfúgios de covardes e, como tais,
não têm poder contra um verdadeiro guerreiro – toda vez que usava
o nome dela, sua entonação mudava sutilmente, deixando-lhe claro
que ele sabia o quanto o nome a incomodava. – Colocarei um fim
em sua covardia – e atacou a garota, mas o psiquiatra, que tivera
tempo de pensar por alguns instantes, entrou na frente e recebeu os
golpes no lugar dela.

Ele foi atingido por punhos, cotovelos e joelhos. Foram


movimentos tão rápidos que Jacó sentiu todos ao mesmo tempo.
Um último movimento, como um relâmpago, produziu uma dor
excruciante na altura de seu abdômen.

O psiquiatra foi arremessado longe, quebrando uma mesa de


escrivaninha ao se chocar contra ela. Jack gemeu e sentiu um
líquido quente escorrer pela lombar. Percebeu então que o último
golpe fora com uma das lâminas que o oriental trazia e estava
cravada em seu abdômen.

Gabriela acordou gritando mais uma vez... Levantou-se suada e


tremendo. Colocou o roupão por sobre o pijama, calçou as pantufas
e saiu do quarto. Queria uma capela, mas desconfiava que não
houvesse uma ali, portanto decidiu ir até a igreja do instituto.

Passou pelo pátio central, agradecendo a Deus pelo telhado de


acrílico que a protegia da chuva, quando reparou que uma criança
estava de pé imóvel em meio à tempestade. Gabriela ignorou o
aguaçal e correu até lá. Pôde reparar, conforme se aproximava, que
era um menino, ele estava com as mãos como se segurasse algo.

– Menino, você está bem? Temos que sair da chuva! É perigoso!

– Não tens ideia do quanto a chuva é perigosa, irmã


Gabriela.

Gabriela recuou com pavor, perdeu o equilíbrio e caiu no chão.


– Aquela voz! – pensou desesperada ao se lembrar dos
assassinatos na igreja. Tudo voltou a sua mente.

Wesley se virou. Seus olhos tinham um brilho azul macabro e ele


sorria de forma psicótica. Sem falar nada, mostrou o que tinha em
suas mãos: um coração humano... Pequeno demais para um adulto.

Gabriela gritou...

Depois de muito se esforçar e fazer respirações profundas,


Walkyria começou a abrir mão de seus pensamentos e recitar
tranquilamente o mantra tocado na canção indiana. Foi se sentindo
mais leve aos poucos, e os problemas finalmente abandonaram seu
angustiado coração.

Passou a sentir-se como se estivesse boiando em uma piscina.


A ausência de peso dava-lhe uma sensação de liberdade
indescritível. Inconscientemente sorriu. Em sua mente, outra canção
surgia concomitantemente ao mantra, cantada por uma voz feminina
familiar numa língua que lembrava o latim.

Em meio a raios e trovoadas, Madalena continuava seu cântico e


uma dança em meio às águas do lago, agora numa temperatura
quase intolerável, o que deixava o corpo da mulher mais corado.
Sua face estava vermelha e ela suava mesmo com a água
inclemente que caía fria do céu. Ela dançou até o baú e de lá retirou
uma adaga com uma lâmina encurvada em um padrão de serpente
feita de prata; o cabo tinha uma empunhadura de couro tingido de
púrpura. O pomo da arma era a pata de um corvo que segurava
uma enorme ametista.

Ela ergueu a faca para o alto e cantou ainda mais forte. A água
entrava por seus lábios. Levou a lâmina aos seios fartos e cortou
superficialmente a pele. O sangue fluiu vivo e vibrante. Então ela
pegou no baú três estranhos objetos: uma camisa branca
masculina, um brinco artesanal com a pena de um pavão no centro
e uma foto da posse de André Marcos com toda a família – o
prefeito em sua imponência típica, Madalena elegante e deslumbre,
Adolfo com sua inocência, Walkyria em sua beleza frágil e Jacó
Cohen com seu ar soturno. Levou os três objetos até o corpo e
tingiu-os com seu sangue. Depois ergueu-os no alto e pronunciou:

– Jacó Cohen, Walkyria Volkisch.

O sangue que ela derramou sobre a roupa inflamou-se e logo


consumiu foto, camisa e brinco. As chamas envolveram o corpo da
mulher sem feri-la.

Raquel gritou quando foi agarrada pelo pescoço. O oriental a


ergueu do chão como se ela não pesasse nada e a aproximou da
máscara. Raquel pôde ver o pálido reflexo que saía de um olho
branco sem pupilas e sem vida.

Outro raio cruzou o céu e Jack viu a silhueta negra dos dois na
noite escura. O ferimento doía intensamente, mas sabia que
precisava fazer alguma coisa. Um ódio que nunca sentira antes foi
crescendo em seu interior. Sentiu um estranho aroma de ervas
invadir seu nariz repentinamente e um sabor de sangue na língua.
Era como se sua própria alma estivesse inebriada de fúria e algum
tipo de besta se agitasse em seu interior. Não era um ser qualquer,
mas um animal selvagem, primal e furioso. Podia senti-lo rosnar
dentro de seu coração, impelindo-o para frente. Era uma fúria ácida,
que surgia em suas entranhas e subia pelo seu esôfago, enchendo
sua boca de uma chama líquida, que explodiu em sua face e ocupou
olhos, nariz e ouvidos. Jacó já não pensava direito, nem era senhor
de suas funções; a fúria controlava tudo.

Seus olhos flamejaram e de repente aquele fogo interno fez com


que sua visão se tornasse mais apurada. Podia ver não somente os
contornos das coisas, mas parecia que tudo havia se iluminado
como se alguém tivesse ligado a visão noturna de uma câmera.
Podia ver até mesmo o reflexo opaco que saía dos buracos dos
olhos da máscara do oriental. Os cheiros também se intensificaram
e ele passou a sentir cada nuance de aromas nunca antes inalados.
Podia sentir o sangue, que impregnava o local, mas também o
cheiro de coisa velha mofada e de fungos que emanava do homem
de branco, assim como as colônias baratas e desodorantes usados
pelos policiais e o aroma adocicado de baunilha que Jacó sabia ser
de Raquel. Sentia o desespero exalado por cada poro de Vinnie, e
sua audição aumentada captava o ritmo descompassado que
batiam os corações de seus amigos. Percebeu pela primeira vez
que Raquel estava com muito medo, apavorada.

Nessa hora, o animal dentro de Jack agiu... Começou


arrancando a espada que estava encravada em sua carne sem que
sentisse a dor, somente o sangue fresco que correu com o puxão
violento. Como um gato selvagem, o ex-militar colocou-se de pé e
saltou em direção ao oriental, que agarrava sua companheira. Ele
apertava Raquel com sua mão estendida, quando percebeu uma
sombra se aproximando. O ar foi cortado.

Raquel, que sentia o peito queimando pela busca desesperada


por oxigênio, de repente sentiu o aperto afrouxar e a gravidade
puxá-la para baixo. Tombou no chão duro com força enquanto algo
grudento e frio espirrava em seu rosto, um sangue escuro, velho e
gelado. Ela olhou para frente e viu Jacó empunhando uma lâmina
ensanguentada encarando seu adversário. Ainda mais
surpreendente foi ver o braço da criatura no chão sem vida.

Jack colocou-se entre o oriental e seus amigos, com a espada


em punho posicionada próxima à cintura numa bainha invisível. Sua
postura era ereta e perfeita.

– Saiam daqui! – urrou, com sua fúria bestial.

Raquel levantou-se e Vinnie pegou-a pelo braço, tentando ir em


sentido da saída, mas o samurai atacou com sua lâmina, desviada
por um potente golpe do psiquiatra.
O oriental voltou sua face para a própria espada e depois para
seu adversário, que o enfrentava como um igual. Jack sorriu com
selvageria.

– Você não colocará a mão sobre eles sem antes passar por
mim!

O outro o encarou. A máscara mostrava apenas o sorriso


demoníaco e sem vida. Ele parou por alguns segundos, avaliando a
situação, até que também tomou uma postura de defesa. Jack o
encarava imóvel, mas era semelhante a uma arma engatilhada,
pronta para disparar. O samurai embainhou sua espada e encarou
seu adversário, depois fez uma reverência, curvando-se
respeitosamente diante do psiquiatra. Jacó repetiu a reverência e
novamente se preparou. Seu adversário sacou a espada e as
lâminas se encontraram.

Outro relâmpago cortou os céus...

Carlos Eduardo demorou para voltar ao orfanato. Quando


chegou, ficou feliz em ver as duas viaturas solicitadas estacionadas
perto da entrada e o vulto dos policiais lá dentro. Deu sinal com o
farol e entrou. O policial o cumprimentou.

Depois de estacionar, percorreu pouco mais de quinze metros, a


distância do estacionamento até a entrada do instituto, suficiente
para deixa-lo encharcado. Matheus o recepcionou e o levou até seu
quarto. Como os dois tinham o mesmo porte físico, emprestou uma
camiseta e uma calça a Carlos Eduardo, que agradeceu ao amigo.
Juntos tomaram uma xícara de café quente enquanto a água
açoitava o prédio com selvageria. Os dois se sentiam incomodados,
mas sem saber explicar ao certo por quê.

– Ela está bem? – perguntou Carlos ao padre, referindo-se à


irmã.
– Eu a vi agora há pouco dormindo feito um bebê – Matheus
comentou. Carlos assentiu preocupado.

– Isso é bom. Acho que essa menina não tem uma boa noite de
sono há uma semana pelo menos. Se conseguirmos mantê-la em
segurança só por mais essa noite, acredito que estará a salvo.
Talvez eu não consiga pôr as mãos naquele desgraçado do Herege,
mas ao menos salvarei a menina – Carlos falou distante, com as
olheiras fundas em torno dos olhos. Matheus sorriu e olhou para o
amigo.

– Conheço um delegado que também parece não dormir há


séculos – falou rindo.

Carlos, voltando a si, sorriu ao ver o olhar do amigo. Tinha


reparado no livro de capa negra em cima da escrivaninha e sabia
que o amigo estava fazendo algo que lhe era muito custoso, mas
isso enchia o delegado de orgulho. Sentia-se abençoado por ter
amigos de verdade, como Matheus e Jacó, e por incrível que
parecesse, Vinnie.

– Só mais essa noite... Só mais essa noite em segurança e ela


estará salva – pensou quase numa prece silenciosa, mas um grito
aterrorizante cortou a noite...

Walkyria tinha a sensação de estar à deriva no meio do oceano,


como um barco sem lemes, remos ou velas, levado pela corrente, e
essa sensação lhe dava imenso prazer. Entretanto, pouco depois,
sentiu um abraço suave, mas firme, envolvendo seu corpo e abriu
os olhos assustada. Não estava mais no dojo, mas num cenário
idílico: um lago no meio de árvores longas e ancestrais. Lembrava
vagamente do lago da casa do pai, mas esse era tão antigo, tão
majestoso e soberano que fazia ela pensar como um tesouro desse
poderia ter sobrevivido no mundo moderno. Deu-se conta de que
era Jacó que a abraçava e seu coração se encheu de alegria. Já
não ouvia mais o mantra do estúdio de Yoga, somente a estranha
melodia cantada por uma voz feminina e estranhamente familiar.
Abraçou o homem que amava e beijo-o sofregamente, sentindo seu
calor flamejante e o sabor doce de seus lábios.

Coberta por chamas, Madalena cantava alto agora. O ferimento


dos seios, misteriosamente curado, parecia brilhar mais que as
chamas. A água borbulhava como se fervesse. A mulher sorriu. Seu
plano seguia exatamente como queria...

Os relâmpagos cortavam o céu da delegacia onde dezenas de


policiais jaziam mortos no chão. Os flashes de luz refletiam nos
olhos sem vida das vítimas. O som que as espadas produziam ao se
chocar lembrava os trovões de fora; e as faíscas, os raios. Se os
ruídos não pudessem ser ouvidos, a batalha entre os dois guerreiros
seria quase um balé marcial. A velocidade do combate, com todas
as acrobacias desenhadas, tornava a cena grotescamente bela de
se assistir.

Para Jacó, as coisas tinham ficado realmente estranhas. A fúria


que sentia dentro de si parecia torná-lo um espectador dento do
próprio corpo. Todas as suas energias estavam concentradas em
não permitir que a lâmina o rasgasse como se fosse de papel. Para
deixar tudo ainda mais confuso, começou a pensar intensamente
em imagens eróticas com Walkyria, que nunca assumia a relação, o
abraçando e beijando num lago castigado pela chuva. Isso, de
forma até contraditória, o mantinha totalmente atento ao seu
adversário a sua frente. Queria trucidá-lo. Estava cheio de uma fúria
contida e represada, mas, mesmo nesse turbilhão de sentimentos,
nunca sentira-se tão em paz.

Aquele instante era quase mágico para o psiquiatra. Tudo se


movia mais devagar e nada mais parecia importar, exceto aquele
momento.

As lâminas se morderam novamente. O samurai, num


movimento rápido, atacou as pernas do psiquiatra, que deu um
mortal para trás do oriental e atacou suas costas. A armadura
absorveu boa parte do impacto, mas a carne foi rasgada
profundamente. A surpresa e crescente admiração do guerreiro
mascarado eram visíveis. Mesmo sem conseguir observar a
expressão do samurai, Jacó podia sentir que, embora ferido, ele
também apreciava o combate. Sua voz misteriosa ecoou no coração
do psiquiatra.

– Pergunto-me o que há em ti, mortal, que o impulsiona dessa


forma. Seria o dever para com esses que escolheste como seus
protegidos? Admira-me muito a maneira como se move e luta. É
hipnotizante. Sinto-me vivo, como há milênios não me sinto! A isto
sou-lhe grato.

Jacó a nada respondia. Seu olhar era selvagem. Já não


pensava, somente agia. Os beijos inflamados de Walkyria o
impulsionavam ainda mais. O psiquiatra sorriu com selvageria e
apertou a lâmina em sua mão.

Os dois se atacaram, lâmina contra lâmina, diante de suas faces.


Os corpos se aproximaram, um testando e sustentando o outro.
Jacó subiu seu joelho, acertando a virilha do outro e, num giro
rápido, atacou o pescoço, visando decapitar o inimigo. Quase
conseguiu. O mascarado desviou do golpe e subiu a lâmina num
corte transversal, acertando de raspão o tórax de Jacó, que recuou
e atacou logo em seguida por cima. O mascarado aparou, rodou a
espada e atacou na altura da cintura. Jacó bloqueou e atacou de
baixo para cima, mas o samurai saltou para trás e voltou a investir
contra seu oponente.

Assim a luta continuou selvagemente pela base policial e talvez


não tivesse tido fim tão cedo, se não fosse por um novo rugido que
chegou na sala seguido de duas luzes fortes. A parede da delegacia
foi destruída num estrondo e a frente de um camburão atingiu o
samurai mascarado. Jacó conseguiu saltar para o lado e viu Raquel
descer do lado motorista com uma espingarda na mão. Ela se
aproximou do oriental e apontou a arma para sua cabeça:
– Desvia disso! – e disparou.

A máscara foi feita em pedaços, e o rosto mutilado do samurai


foi revelado. Era descarnado, com olhos esbugalhados brancos e
leitosos. Não tinha maxilar e os dentes de cima ficavam expostos,
pois também não tinha lábios. O nariz era um buraco escuro. O
rosto se revelava desfigurado, mas ficou ainda pior, pois Raquel não
esperou a reação do inimigo e descarregou mais três vezes, todas
em sua face, transformando sua cabeça numa massa pastosa de
sangue e chumbo.

Vinnie não fez questão de assistir às cenas finais e se manteve


escondido no banco de trás do veículo.

Ela se virou para Jacó:

– Vamos! Agora! – eles saltaram para o camburão. Jack assumiu


o volante e deu a ré, terminando de destruir a entrada da delegacia
e saindo a toda velocidade.

– Você está bem? – ela perguntou. – Foi ferido?

– Vou sobreviver! – Jacó falou tocando onde a lâmina tinha


entrado quando foi arremessado.

Chocado, percebeu que o ferimento estava curado.

– Vai na frente! – Matheus gritou para Carlos Eduardo, que saiu


em disparada para o pátio do orfanato.

Quando o delegado chegou ao pátio, viu Gabriela no chão suja


de terra e encharcada, chorando em desespero. A sua frente havia
três pessoas. Wesley sorria diabolicamente enquanto segurava um
coração pequeno em suas mãos infantis. Dom Francisco estava
logo atrás dele. Era a primeira vez que Carlos o via pessoalmente.
O guerreiro africano segurava pelos pés o corpo sem vida de Kleber,
com um buraco no peito. O homem arrastava o garoto com descaso,
como se ele fosse um saco de lixo.

Sem pensar, Carlos levou a mão aonde costumava carregar sua


pistola, mas lembrou-se de que havia se trocado ao chegar ao
orfanato e deixado a arma lá. Amaldiçoando seu descuido, gritou:

– Parados! Polícia!

Zumbi encarou o policial enxerido que atrapalhava tanto seu


mestre. O pequeno Wesley virou a cabeça lentamente e, ao encarar
o delegado, sorriu com prazer:

– Delegado! Quanto tempo! – gargalhou maldosamente. – Na


última vez que nos vimos eu estava ocupado matando aquela
garota. Acabei sendo rude com o senhor... Por favor, desculpe-
se pela grosseria – Wesley falou ironicamente. A voz infantil estava
ainda mais aguda, agora que era inspirada. – Mas parece que,
sempre que nos encontramos, estou ocupado massacrando
uma pessoa querida pelo senhor. Precisamos marcar um dia
para tomarmos um café, assim posso dar-lhe a devida atenção
– enquanto falava, o garoto andava calmamente na direção de
Gabriela, que se arrastava no chão aterrorizada. Carlos não sabia o
que lhe irritava mais, se a maneira casual de o assassino falar ou a
zombaria de um encontro tão casual.

O delegado olhou ao redor e achou uma vassoura, o único


objeto por perto que poderia servir de arma. Ele agarrou o utensílio
e quebrou com o pé a parte que segurava a escova. Usando a
madeira como lança, correu para o garoto.

Dom Francisco, entretanto, foi mais rápido. Entrou na frente do


menino e deu um único e potente soco na cabeça do delegado.
Carlos sentiu como se tivesse batido a cabeça contra um bloco de
concreto com toda a força. A pressão do impacto parecia ter jogado
seus olhos para trás e sacudido seu cérebro dentro do crânio. Viu
estrelas brilhantes diante de si e tudo girou descontroladamente
enquanto era arremessado longe.
Walkyria e Jack continuavam em seu beijo caloroso, como se
mais nada no mundo importasse. Ele a cobria com beijos sedutores
e apaixonados; o calor de seu corpo a aquecia e a incendiava de
amor e desejo. Ela o queria dentro dela. Assim estariam ligados
como um só ser. Avançou contra ele e tentou tirar suas vestes, mas
colocou a mão sobre algo que envolvia o peito do rapaz como um
cabo feito de gelo. Abriu os olhos e diante dela estava Jack, porém,
enlaçada às suas costas, estava uma mulher estonteante, de
cabelos vermelhos como chamas e olhos de esmeralda. Sua mão
delicada, com unhas longas e vermelhas, puxaram o rosto de seu
amante. Em aflição, Walkyria viu aqueles lábios vermelhos e cheios
beijarem os de seu amado. Quando tentou separá-los, sentiu a mão
da mulher gelada como neve afastando-a com força. Walkyria
gemeu exasperada em sofrimento. Jacó a abandonava por essa
criatura toda beleza e maldade.

O camburão corria pelo acostamento da via Anchieta totalmente


congestionada. A sirene girava com urgência. Vinnie não parava
quieto e olhava para trás a cada segundo.

– Fique calmo, Vinnie. Ele ficou para trás – Jacó falou tentando
confortar o repórter, embora ele mesmo não parasse de observar,
com o canto dos olhos, o espelho retrovisor. – Não poderá nos
seguir. Raquel explodiu a cabeça dele com a espingarda.

– Você acha isso divertido, Vinnie? Estamos sendo perseguidos


por seres das trevas e você acha que está no quê? Num filme de
ação dos anos oitenta? – Jacó estava aterrorizado, furioso e
perplexo. Seu abdômen estava totalmente curado e sentia uma
excitação que não compreendia. Sentia-se profundamente
realizado.

– Não se iluda – Raquel falou com sua voz cortante, segurando a


arma com firmeza na mão. – O tiro só serviu para atrasá-lo. Uma
mera espingarda nunca pararia aquela criatura. Estamos sendo
caçados por seres imortais, perigosos, e esse em especial é um dos
piores.
– O que você quer dizer? – Jacó desviou os olhos da estrada e
encarou os olhos de chocolate dela. Raquel continuou:

– Existem lendas sobre esse ser, uma criatura vinda do oriente,


um samurai maldito. Ele irá nos perseguir e nunca parará, até que
atinja seu objetivo! Não estamos livres dele – falou fatídica.

– Que venha! –Jacó rosnou.

Raquel olhou para ele Incrédula. – Que venha? Você perdeu o


juízo de vez? Eu não acabei de dizer que essa criatura é
implacável? Que nunca desistirá? Precisamos fugir o quanto antes,
isso sim!

– Para com esse papo – Jacó a cortou. – Sim, estamos sendo


perseguidos, mas estamos de pé e revidando! – falou excitado.

– Você está feliz com isso? Acha por acaso que é um tipo de
brincadeira? – ela estava furiosa, mas Jacó olhou para ela resoluto.

– Foi você mesma que disse, Raquel, que eu não sabia da


verdade do mundo. Você tinha razão... Realmente não sabia! Desde
o final da minha adolescência que me considero louco, como se não
soubesse lidar com o mundo e com as coisas que vi. Levei anos me
convencendo de que nada era real e tudo estava na minha cabeça.
Agora vejo que estava errado, e sabe como a percepção disso faz
eu me sentir? Livre! – gritou. – Não vamos parar de revidar, nem
hoje nem amanhã nem enquanto eu viver. Por isso, minha querida,
volto a dizer: que venha! Verão que também temos garras! Portanto,
senta e curte a viagem! – falou triunfante.

O camburão continuou em velocidade cortando pelo


acostamento, até que chegaram ao fim da estrada.

– O acostamento acabou... Como faremos agora?

O oceano de carros impedia que continuassem. A pista expressa


terminava e a área urbana da rodovia que desembocava na cidade
de São Paulo, com seus milhões de habitantes tentando voltar para
casa em plena chuva, estava intransitável. Jack buzinava sem parar
e a sirene ficava incansavelmente gritando seu lamento. Os carros
tentavam abrir caminho, mas havia pouco espaço. Jack respirou
fundo e procurou uma solução. No entanto, ao olhar de relance no
espelho retrovisor, congelou.

– Não é possível...

Mas as fronteiras do possível, Jack estava começando a


perceber, iam um pouco além do que a princípio compreendia...

Carlos Eduardo estava zonzo e tentava se levantar, mas sentiu


outro impacto agudo e violento, agora no estômago, que arrancou o
ar de seus pulmões e o levantou quase meio metro do chão. Na
sequência, foi espancado na lateral. Uma costela se partiu e ele foi
arremessado a alguns metros dali.

– Dom Francisco, por favor... Estás maltratando o bom


delegado, que só está tentando fazer seu trabalho. Por favor,
mostre boas maneiras ao meu amigo – irônico, o pequeno Wesley
tinha se aproximado da irmã, que se arrastara até uma parede sem
ter para onde fugir. O menino acariciou gentilmente o cabelo
ensopado da garota. Gotas de chuva se misturavam às lágrimas
que vertiam da sua face assustada.

– O que você quer, afinal, seu maníaco? – Gabriela perguntou


numa mistura de raiva e medo.

O menino sorriu. Suas mãos ensanguentadas desceram pelo


cabelo da moça e chegaram ao seu queixo. Com autoridade, ele
levantou o rosto dela, que o olhou de maneira desafiadora.

– Será que ainda não percebeste, minha doce e pura dama?


– falou enquanto tocava os cabelos dela. – Há tanto dela em ti! Teu
olhar imaculado, teus cabelos que lembram-me o raiar do dia,
teus lábios carmesins! Desde que a vi, sabia que teria de
possuir-te! Tua pureza fere-me como a chama viva, mas meu
desejo incendeia-me ainda mais! Nem mesmo o Criador há de
proteger-te de mim! – Wesley arrastou o rosto dela para perto do
seu. Gabriela tentou recuar, mas a força do menino era muito
superior à dela. Com horror nos olhos, Gabriela foi puxada para
Wesley, num beijo promíscuo e lascivo.

Madalena de repente gritou de dor, abrindo os olhos surpresa. O


ferimento voltara a se abrir e um vento gelado apagou suas chamas.
Enfurecida, perguntou-se o que havia acontecido, quando percebeu
que alguém emergia da água atrás de si. Virou-se depressa e o que
viu roubou-lhe a voz.

Uma mulher vestida em farrapos de um vermelho desbotado


saía da água. Suas longas madeixas ruivas estavam salpicadas de
fios brancos. A pele tinha uma coloração acinzentada, com manchas
verdes e amarelas. As veias roxas saltavam da pele flácida e
enrugada. Ela levantou o rosto e Madalena pôde ver a figura
apodrecida e decrépita a sua frente em detalhes. Os dentes podres
estavam negros, a língua e os lábios eram roxos e inchados, e os
olhos eram como duas profundas poças de piche negras e saltadas.

Assim que emergiu, começou a abrir sua boca enorme, que


rasgou a carne apodrecida das bochechas. Um gemido vindo das
entranhas de um corpo apodrecido e fétido foi se avolumando
rapidamente, até se transformar em um grito vindo das profundezas
do mundo dos mortos. Madalena gritou junto, mas seu lamento era
de uma dor excruciante que tomava todo seu ser.

Por sobre o teto dos carros, vindo na direção de Jacó, Raquel e


Vinnie, saltava o oriental com sua roupa negra ensanguentada e
uma máscara hanay partida, que mostrava parte de uma face
desfigurada e cheia de ódio. Ele corria com uma agilidade
assustadora, deixando um rastro de terror e confusão entre os
motoristas.

O camburão acelerou, acertando a traseira do carro a sua frente


e empurrando-o. Jack pisou fundo no acelerador sem tirar os olhos
do espelho. Quando conseguiu um pequeno espaço, jogou o veículo
por cima do canteiro central, destruindo alguns arbustos, e entrou na
contramão. As pessoas gritavam, buzinavam e o pânico foi se
instalando. O psiquiatra, porém, dirigia com maestria, como se tudo
acontecesse mais lentamente. O oriental, porém, desesperado com
a ideia de perder seu alvo de vista, deu um salto longo e arriscado
buscando cravar a espada no teto do veículo. Apesar de ter se
desequilibrado, teve sucesso, tamanha sua força.

Vinnie gritou desesperado e Raquel tentava fazer algo, enquanto


o psiquiatra ziguezagueava com o carro pela contramão para
desviar dos veículos que vinham contra ele e desestabilizar o
guerreiro em cima do carro.

O samurai, usando o osso exposto do coto de seu braço


amputado, golpeou o teto, abrindo um buraco no metal, que
aumentava rapidamente. Vinnie gritava desesperado e fugia do
sangue coagulado que corria do ferimento viscoso. Raquel pegou a
arma e deu um tiro. O cheiro de pólvora e o estrondo atordoaram a
todos, mas o samurai não parou, mesmo sendo baleado mais uma
vez.

– Ele vai entrar! – Raquel gritou.

Jack subiu com dificuldade na calçada, quase atropelando duas


pessoas, que fugiram desesperadas. Seguiu com velocidade em
direção a uma loja que tinha uma sacada, buscando acertar o
guerreiro e derrubá-lo. A estratégia funcionou. O samurai não foi
atingido, mas precisou saltar antes do impacto. Jack voltou para a
pista e, devido ao tranco, quase acertou uma moto. O motoqueiro
conseguiu desviar do camburão, mas deu de frente com o oriental,
que sacou arma e o decapitou. Sem hesitar, pegou a moto no chão
e partiu atrás do carro da polícia, enquanto o sangue do motoqueiro
diluía na chuva tenebrosa...

Um raio caiu na torre da igreja no instante em que Gabriela


tentava tirar o menino de cima dela. Entretanto, o garoto tinha a
força de pelo menos vinte homens adultos e subjugou-a com
facilidade. Ela sentiu o calor dos pequenos lábios do menino e sua
língua tentando invadir sua boca. A irmã cerrou os lábios com
firmeza e sentiu a boca do garoto queimar.

O Afogado se afastou urrando de dor. Mais três raios caíram


diretamente sobre a torre da igreja, tornando a cruz de metal que a
encimava incandescente como chama. O garoto e Dom Francisco,
ainda em luta com Carlos, se curvaram e começaram a exalar
fumaça.

– Não! Não me impedirás dessa vez! – o garoto gritava


olhando para o céu diluviano. – Eu a terei!

Carlos Eduardo ficou de pé e pegou sua lança tosca de madeira.


Aproveitando o momento, enfiou o pedaço de madeira no estômago
do guerreiro africano, que olhou surpreso para o delegado e agarrou
seu pescoço, começando a sufocá-lo. Carlos Eduardo continuava
forçando a estaca mesmo sem ar, com o rosto ficando vermelho,
sentindo seu coração bombear o sangue freneticamente em busca
do oxigênio que não vinha; seu pulmão parecia em chamas.

Wesley rosnou e se recompôs.

– Acha mesmo que podes nos impedir, delegado? Quando


nem mesmo Deus e seus anjos podem nos parar?! Ele destruiu
o mundo para nos exterminar e aqui estamos! Eu não vou
desistir!

Conforme gritava cada vez mais alto, sua pele parecia ceder. Os
músculos e tendões começavam a ficar à mostra e o garoto parecia
crescer e se tornar adulto diante dos olhos da irmã e do delegado.

Carlos Eduardo lutava contra a inconsciência que tentava


dominá-lo. Seu corpo buscava oxigênio com todas as forças, mas os
dedos de Dom Francisco o estrangulavam com força. Sentia a
mente se anuviando e começava a não distinguir a realidade do
sonho. Olhou para o garoto e viu nitidamente dois seres num só: o
menino, que sofria em agonia, e um vulto grande, deformado e
maligno atrás dele. Olhou nos olhos do guerreiro que tirava sua vida
e viu nele mais do que um homem. Eram olhos negros, cruéis e sem
vida.

– Dizem que os olhos são a janela da alma – pensou


desfalecendo. – Será que esse ser consegue ver a minha partindo?
Pois quando olho em seus olhos, tudo o que vejo é morte...

Seus sentidos o estavam abandonando e de repente o tempo


pareceu passar mais devagar. Outro raio caiu na cruz da torre e lá
em cima, enquanto o céu refulgia com a energia produzida pelo
relâmpago, o delegado pareceu vislumbrar um grande pássaro de
asas abertas planando diante deles. As batidas das asas daquela
enorme ave pareceram oferecer um novo sopro de vida ao
delegado. Ele sentiu seu corpo carregado de energia e não abriu
mão daquela oportunidade. Colocou toda a força recém-encontrada
nas mãos, apertando com força a lança que ainda segurava e a
forçou para cima, rasgando diafragma, pulmão e coração.

Carlos Eduardo sentiu o aperto em seu pescoço afrouxar e pôde


sorver com força o ar.

Walkyria tossia no estúdio de Yoga e um escarro de sangue saiu


de seus lábios. Ela não tinha consciência, mas começava a se
engasgar com o sangue em sua garganta. Em sua mente, ela
continuava no lago, agora congelado, e Jack era afastado dela.
Desesperada, agarrou seu braço. Ele a olhou perdido, sem saber o
que fazer. A bela ruiva riu.
– Acha mesmo que ele ficará com alguém fraca como você?
Uma menininha mimada indecisa e apática?

Foi então que ouviu a voz da madrasta, repetindo o que havia


lhe dito antes:

– Sua linhagem data de uma era ancestral. Em suas veias corre


o sangue de deuses, e você esperava mesmo que a vida seria fácil
para você?

Um jato de chamas voou na direção da mulher cadáver, que


rebateu com uma lufada de vento gelado. A bola de chamas
estourou num dos carvalhos, incendiando-o, mas a chuva logo o
apagou. Madalena encarava a criatura a sua frente.

– Sai daqui! – disse com a voz cheia de esforço. A criatura


gemeu mais uma vez e Madalena sentiu a dor invadindo-a.

A mulher cadáver falou:

– Deveria estar concentrada em realizar o ritual, feiticeira, não


brincado de bruxaria com sua enteada!

– Não lhe devo satisfações, criatura desprezível. Não ouse me


desafiar ou virei em toda a minha fúria e a farei pagar!

A criatura riu e seu riso era mais assustador que seu gemido.
Curvava-se de uma maneira tenebrosa.

– Saiba o seu lugar, feiticeira. Não se meta em nossos planos ou


eu irei destruí-la! – a última palavra foi gritada, e Madalena curvou-
se com a dor, colocando-se de joelhos.

Jacó seguia em frente. Seu olhar ia do retrovisor para a pista à


frente. Os carros se desviavam como podiam, e a cada minuto
ficava mais difícil a fuga do seu adversário.
– Não sei como faremos para fugir dele – Raquel falou
preocupada. – Não tem como continuarmos pela contramão! – falou
em pânico.

– Para onde iremos, afinal? – Jacó perguntou impaciente.

– Temos que ir para a zona norte, para a Serra da Mantiqueira! –


Raquel respondeu nervosa.

– Vamos nos meter no mato de novo? – ele perguntou incrédulo.

– É o único lugar seguro. Confie em mim!

Jack olhou para frente e viu dois carros vindo em sua direção,
mas percebeu que não estavam tentando desviar, mas colidir.
Desesperado, fez uma curva abrupta usando o freio de mão.
Conseguiu evitar o impacto de frente, mas acabou batendo num dos
carros de lado. O passageiro do veículo começou a atirar com uma
metralhadora.

– Droga! São mais deles na nossa cola! – Jack amaldiçoou. –


Não temos para onde ir!

– Tive uma ideia! – Vinnie gritou. – Mas é uma ideia muito, mas
muito estúpida!

Dom Francisco cambaleou segurando a lança que havia


lacerado seu coração imortal.

– Mortal insignificante, acha mesmo que vai me parar? – falou


entre rosnados.

Carlos Eduardo colocou-se de pé com esforço. Ainda respirava


fundo tentando repor o oxigênio perdido. Estava tonto e
desnorteado, mas ainda assim partiu para cima do africano,
socando-o na face com todo o peso de seu corpo. Foi um impacto
violento, e Dom Francisco foi arremessado para trás, mas não
pareceu sentir o golpe. Mudou o peso para o pé esquerdo, firmando-
o no chão, e usou o impulso para formar um estilingue. Rodando o
corpo, desferiu um soco brutal, que arremessou Carlos Eduardo ao
chão, quase partindo seu maxilar e arrancando-lhe um dente.

Carlos Eduardo sentiu como se fosse atingido por um coice.


Seus olhos explodiram em luzes multicoloridas e o chão parecia
feito de gelatina. O sangue correu quente pela boca, e o gosto
ferroso ocupou todas as papilas gustativas de sua língua.

O delegado cuspiu o sangue grosso e o dente partido, tentando


se levantar, mas um chute na costela partida o fez trincar os dentes
de dor. Wesley o golpeara. Embora fosse de uma criança, sua força
era como a de um cavalo. Carlos Eduardo caiu e rolou de dor, mas,
reunindo toda sua coragem e força de vontade, aproveitou o embalo
e colocou-se novamente de pé.

Wesley o encarou com um sorriso e os olhos reluzindo.

– Devo admitir que tua resiliência e determinação me


admiram, delegado, mas olhe para você. Mal consegue ficar de
pé, enquanto meu servo e eu não somos feridos por seus
ataques – falou gesticulando com a mão para Dom Francisco.

– Seu servo não está muito diferente de mim e tem um


probleminha no estômago – Carlos se irritou de perceber como sua
voz estava enrolada, mas apontou com a cabeça para Dom
Francisco, que ainda tinha a lança improvisada no abdômen.

O riso forçado de Carlos, no entanto, teve fim quando zumbi, em


fúria, arrancou a lança do próprio corpo e, num piscar de olhos,
voltou a surgir na frente do delegado. Quando o delegado pensou
em fazer alguma coisa, seu pescoço estava preso mais uma vez e
seus pés estavam suspensos do chão. Wesley gargalhou na sua
voz de criança cheia de maldade.

– O que dizias, delegado? – Carlos Eduardo soltou as mãos do


aperto de Dom Francisco, aceitando sua derrota. Não poderia
vencê-los... Nada que fizesse seria capaz de destruí-los. Quando o
garoto viu sua expressão derrotada, sorriu triunfante.

– Entendeste, afinal? Não há nada que possas fazer para me


impedir. Aceita teu destino. Seria mais digno de tua parte – falou
caminhando em direção do policial combalido. Carlos Eduardo olhou
para o céu sem esperanças. O que poderia fazer?

– Pelo Sangue de Cristo, Espírito das Trevas, eu ordeno: partam


deste lugar! – uma voz trovejou forte e determinada como um raio,
logo depois do barulho de uma porta sendo escancarada à força.
Ouviu-se um grito grave saído das entranhas de Dom Francisco.
Carlos sentiu quando o aperto afrouxou mais uma vez e seu corpo
foi solto. Ele caiu no chão exausto e ferido e não foi o único. O
pequeno Wesley urrou como uma besta selvagem, um urro
monstruoso que gelou a espinha de todos. Como se recebesse uma
descarga elétrica fulminante, despencou estatelado no chão se
contorcendo e babando feito um cão raivoso. Dom Francisco,
exalando um cheiro horrível de ovo podre e emanando uma fumaça
ocre, virou-se para a porta, o mesmo movimento que fez Carlos
Eduardo.

Matheus estava de pé totalmente vestido para um exorcismo,


com a túnica negra e a estola púrpura por sobre ela. Tinha um olhar
furioso. Numa mão carregava o grande livro negro e, na outra, o
crucifixo de prata, mas não parecia um padre pronto para missa,
mas um guerreiro armado para a batalha.

Dom Francisco encarou o padre com olhos incandescentes e


arreganhou as presas, emitindo um rugido felino. Caminhou com
muito sofrimento na direção do sacerdote. Matheus ergueu o
crucifixo e recitou as palavras em voz alta com autoridade.

– Regna terrae, cantate deo, psállite dómino, tribuite virtutem deo


– falou se aproximando de Gabriela e o negro contorceu-se em dor,
caindo de joelhos. Matheus continuou com o crucifixo erguido e a
criatura encarava o relicário com extrema agonia. O padre
continuou. – Exorcizamus te, omnis immundus spiritus, omnis
satanica potestas, omnis incursio infernalis adversarii, omnis legio,
omnis congregatio et secta diabolica, in nomine et virtute Domini
Nostri Jesu Christi! – Dom Francisco, antes musculoso, era agora
uma figura de dar pena. Os músculos murcharam e a carne parecia
definhar. Antes um guerreiro assustador, agora lembrava uma
múmia decrépita que se contorcia de dor. Matheus ficou frente a
frente com Dom Francisco e disse solenemente: – Eradicare et
effugare a Dei Ecclesia, ab animabus ad imaginem Dei conditis ac
pretioso divini Agni sanguine redemptis – as últimas palavras foram
bradadas com autoridade e poder dignas de um rei. Assim que
terminou de falar, o sacerdote encostou o crucifixo na testa do negro
ressequido, que explodiu em chamas e se desfez em cinzas.

– Tomarei a garota por refém, como incentivo para que conclua


seu ritual, feiticeira – a criatura putrefata falou.

Madalena olhou para a mulher. Erguendo os braços, invocou


todas as suas forças.

– Você vai sair daqui agora! – gritou. Chamas novamente


irromperam de suas mãos.

Mas as duas gemeram em sofrimento. A criatura nefasta se


desfez em sombras e Madalena caiu na água, pensando quem
poderia ter quebrado o ritual...

No estúdio de Yoga, Cibele fazia uma massagem cardíaca em


Walkyria, depois de tê-la desengasgado com dificuldade de uma
enorme massa de sangue. Walkyria respondeu bem e acordou, mas
apenas olhou para a amiga sem saber onde estava e voltou a
perder os sentidos, dessa vez sem nenhum sonho.

O camburão entrou no viaduto que ficava sobre a Avenida


Tancredo Neves, o único caminho disponível não congestionado.
– Meu Deus, nós vamos morrer! – Vinnie gritou desesperado.

– Cala a boca e se segura! – Jack gritou. Estava tentando


alcançar a velocidade máxima do veículo, que rasgava pela rampa
desvairadamente. Raquel se segurava como podia na porta, e o
psiquiatra apertou com força o volante antes de girá-lo para a
direita, arremessando o veículo contra a mureta de proteção.

A viatura arrebentou a parede e saltou no ar, caindo no corredor


de ônibus murado e inacessível para carros. Jacó controlou o
veículo desgovernado e acelerou o quanto pôde. A resposta não foi
a que esperava, mas compreensível, já que o carro estava muito
danificado. Ele sabia que não aguentaria mais impactos. De
qualquer forma, a pista estava completamente vazia e ele acelerou.
Viu no retrovisor quando a moto do samurai saltou pelo buraco e
caiu com mais graça que a pesada viatura.

O carro danificado não conseguia ir a mais de oitenta


quilômetros por hora e logo a moto o alcançou. O oriental cortou
pela esquerda, emparelhou com o camburão e tentou acertá-lo com
a espada, mas Jack usou o peso do veículo para contra-atacar. O
furgão esmagou a motocicleta no muro lateral, mas o samurai
conseguiu saltar novamente para o teto do veículo.

– Cara chato do inferno! – o psiquiatra gritou, e o oriental enfiou


a espada pelo buraco já aberto, mas dessa vez o ex-militar estava
preparado para o ataque e, assim que a mão surgiu em seu campo
de visão, a agarrou e o puxou para dentro.

– Segura o volante! – ele gritou para Raquel. Com a mão direita,


segurou o pescoço do adversário e, com a esquerda, passou a
socá-lo violentamente.

Aplicou toda a sua força nos golpes e esmagou o rosto já


castigado do samurai com seus punhos. Ao invés de se defender, o
outro tentava golpear o psiquiatra com o osso descarnado de seu
braço amputado. Jack, cansado do combate e ferido, abriu a porta
e, apoiando-se no cinto de segurança, colocou o rosto do inimigo no
asfalto, que passou a ficar com uma marca vermelha de sangue.
Fagulhas da máscara iluminavam o local como fogos de artifício. O
psiquiatra usou o pé esquerdo para forçar o corpo do samurai ainda
mais para baixo, até que ele perdesse as forças e o atrito o
arrastasse para fora do carro. Ao cair, o oriental rolou algumas
vezes, mas logo depois se colocou de pé. Metade de seu rosto
havia sido devorado e pedaços de carne estavam pendurados, mas
ele gritou enfurecido e começou a correr atrás deles.

– Só pode ser sacanagem! – Jack falou inconformado.

– Ele está vindo! Ele está vindo! – Vinnie gritava sem parar.

– Não é possível! – Raquel gritou irritada. Soltando o cinto,


pegou a arma e pulou para o banco de trás.

Jack tentou olhar, mas ela gritou:

– Leve-nos para o metrô!

Ela abriu o porta-malas, onde eram colocados os presos, e, com


a arma em punho, passou a disparar contra o oriental. Os disparos
eram certeiros, mas não o paravam, apenas retardavam.

– Ele está vindo! Ele está vindo! – Vinnie continuava seu mantra.

– Eu sei, droga! Cala a boca! – Raquel falava enquanto


recarregava a arma e voltava a disparar.

Jack continuou a corrida, até que o caminho exclusivo dos


ônibus se aproximava do fim.

– Segurem-se! – Jack gritou e os dois fizeram o melhor que


puderam. O psiquiatra deu um cavalo de pau, virou de frente para o
mascarado e tornou a acelerou. O oriental saltou para o para-brisa
do carro, quebrando o vidro.

– A arma! – o psiquiatra gritou e Raquel jogou para ele a


espingarda. Ele atirou no peito do guerreiro, que caiu mais à frente
do carro se agarrando no capô.

Jack acelerou, vendo a estação de metrô já próxima, virou o


carro e meteu-o no muro, esmagando o mascarado entre os dois.
Deu a ré e acelerou novamente. Repetiu o processo uma, duas, dez
vezes, até que o motor engasgou e finalmente parou.

Os três saíram correndo para a estação. Somente a mão do


samurai podia ser vista entre o metal retorcido. Atravessaram a
avenida congestionada e entraram o mais rápido que podiam. Em
poucos minutos, estavam dentro do vagão.

Olhavam sem descanso para fora do trem, para as escadarias,


temerosos de que o samurai pudesse surgir a qualquer momento.
Depois do que pareceu uma eternidade, o sinal de aviso de partida
do trem soou, as portas se fecharam e ele partiu para outra estação.
Jacó, Raquel e Vinnie respiraram aliviados.

Lá fora, curiosos tiravam fotos e faziam vídeos para registrar o


que havia acontecido ao carro de polícia destruído quando um
tranco arrastou o que sobrara do veículo. Devastado, com ferragens
cravadas em seu corpo, o oriental colocou-se de pé. Ainda não
terminara sua caçada...

Carlos Eduardo despertou sem saber exatamente quanto tempo


havia se passado, mas ainda era noite e a chuva continuava. Ouvia
rosnados e palavras ríspidas, mas sua mente confusa e cansada
não sabia identificar o que estava acontecendo. Aos poucos, seu
cérebro foi voltando ao normal e a primeira coisa que identificou
foram os soluços de Gabriela. Mais atento, abriu os olhos, mas não
aguentou quando a luz fluorescente o agrediu.

– Pior que ressaca é ser espancado... – pensou.

Abriu os olhos mais calmamente e viu Wesley ajoelhado diante


de Matheus. O garoto estava todo contorcido, como se estivesse
amarrado por cordas invisíveis, e rosnava como um cão grande e
perigoso. Tinha um olhar de ódio contra o Padre que o encarava e
lia em voz alta palavras em latim. Ao fim de cada frase, o menino
urrava como um monstro, um urro agudo e para dentro, que
encolhia a alma dentro do corpo e fazia as luzes tremeluzirem.
Matheus estava suado e exausto.

– Eles estão assim por três horas já – Gabriela falou entre


lágrimas. Havia mais dois padres com Matheus, todos vestidos da
mesma forma e assustados.

– Onde estão os outros padres? – Carlos Eduardo falou e seu


maxilar doeu. Sentia o rosto inchado e duro.

– Cuidando das crianças. Os que tinham mais conhecimento em


exorcismo vieram para ajudar o padre Matheus, mas esse ser é
muito poderoso.

– Qual o seu nome? Eu ordeno! Diga seu nome, criatura! –


bradou com autoridade Matheus.

Wesley rugiu e depois gargalhou.

– Não saberás meu nome, padre! – a voz monstruosa do


garoto fazia com que todos, com exceção de Matheus, se
encolhessem.

– Matarei esse moleque! Disso tenhas certeza! Liberta-me! –


gritou e as luzes novamente quase se apagaram.

– Você me dirá seu nome, criatura! Agora, pelo Sangue de


Cristo! – e colocou a cruz na testa de Wesley, que gritou enquanto o
ornamento sagrado queimava sua testa.

– Não tens poder sobre mim!

Então ele revirou os olhos e, quando falou novamente, chorava e


sua voz saiu como a do menino assustado.
– Por favor, padre Matheus, eu estou com medo; me ajuda! –
depois de outro espasmo, voltou a falar com a voz inalada.

– Eu vou matá-lo, padre, como fiz com o outro! Vou matá-lo!

– Você irá libertá-lo agora, pelo poder do Sangue de Cristo! Você


vai libertá-lo! – rugiu, aspergiu água benta no garoto e novamente
começou a fazer uma oração em latim, que parecia ferir fisicamente
a criança demônio.

– Não podes me parar! Não vais me parar! – Wesley gritou. –


Eu sou mais poderoso do que podes imaginar, padre!

Matheus respirou fundo e olhou para cima. Já fizera tudo o que


sabia, mas aquele ser era mais forte que qualquer outro de que já
ouvira falar. Estava temendo pela vida da criança, mas, movido por
sua intuição, olhou nos olhos do menino e encarou a criatura.

– Você tem razão, demônio. Não sou páreo para você – Wesley
sorriu. O padre largou o livro e a água benta, segurou firmemente a
testa do garoto com as duas mãos e, chorando, olhou para o céu:

– Pai celeste, me ajuda agora! Clamo a ti, oh Senhor dos


Exércitos. Cristo-Rei, vem dos céus e envia teus anjos! Ajuda-me e
livra esse garoto! Clamo a ti! Tem misericórdia do teu filho!

Carlos lutava contra a inconsciência, que tentava abraçá-lo mais


uma vez. Não fazia ideia do que estava acontecendo, mas viu
quando uma lufada de vento varreu o lugar. A chuva começou a
perder a força e uma sombra abandonou o garoto, uma sombra que
tentava se agarrar à criança, uma silhueta gigantesca e grotesca
com olhos azuis pálidos.

– Não! – Wesley gritou com uma voz monstruosa, que aos


poucos foi mudando de tom até se tornar exalada. Agora era apenas
o grito de uma criança assustada, que caiu no chão desmaiada, sua
pele sendo tocada por uma leve garoa.
Matheus se colocou de pé encarando a sombra, que tentava de
qualquer maneira se manter no local, mas era arrastada por uma
força ainda mais sobrenatural e poderosa que ele.

– Não vais me vencer!

– Diga-me seu nome! – gritou o padre.

– Nunca! – a sombra falou e sua voz reverberou nas paredes,


como se ele estivesse em todos os locais ao mesmo tempo. Os dois
padres que ajudavam se encolheram de medo e desfaleceram.
Gabriela, de olhos fechados, rezava a Ave-Maria sem parar. Carlos,
estático, a tudo observava tentando manter a consciência. O céu se
abria e as nuvens se desfaziam.

– Diga seu nome e parta! Em nome do Pai, eu ordeno! –


Matheus falou com reverência, levantando a mão direita com o dedo
indicador e médio erguidos acima da cabeça.

– NUNCA! – gritou e os vidros estouraram.

– Diga seu nome e parta! Em nome do Filho, eu ordeno! –


desceu o braço com firmeza até a altura de sua cintura.

– NUNCA! – um vento tenebroso socou paredes arrombou


portas e atingiu o local, derrubando os padres encolhidos, mas
Matheus permanecia de pé. Levou a mão até a altura do ombro
esquerdo e depois ao direito, completando o sinal da cruz.

– Diga seu nome e parta! Em nome do Espírito Santo, eu


ordeno! – gritou a plenos pulmões e a criatura urrou ainda mais alto.

As luzes explodiram e um apagão cobriu todo o bairro. Em meio


à escuridão, no momento em que Carlos Eduardo cedia aos seus
ferimentos e tombava inerte no chão, ele ouviu a sombra, incapaz
de resistir àquilo, bradar ao ser expulsa:

– MEU NOME É BARASHEMESH!!!


Capítulo 12

Meu Nome é Barashemesh e vim trazer a essa cidade corrompida


a justiça!

– O que entendes por justiça, bravo Barashemesh? – indagou


Vitorioso. – Aquilo que o maior dos traiçoeiros julga certo ou o que
diz teu coração? Ora, se consideras certo o que diz meu progenitor,
também consideras correto ter sido privado de tua vingança contra
Lamech e seus descendentes.

– O que dizes não tem fundamento. Lamech é guardado pela


maldição do Criador e ninguém pode fazer-lhe mal.

– Ainda não entendeste o que lhe foi contado? Estás acima da


maldição do Criador. Não és submetido a ela, pois ela afeta
qualquer criatura feita no plano do Criador... Nós, meu amigo, não
somos parte do plano da criação e, portanto, somos maiores que
suas maldições. Sim, é verdade que, se ferires Lamech, sofrerás o
dano de sua ferida setenta vezes, mas lhe digo que, se aprenderes
o verdadeiro segredo que reside em teu corpo, nenhuma chaga será
capaz de matá-lo!

E então Vitorioso revelou o maior segredo da cidade de Tantalis,


a razão de sua barbárie e crueldade.

– Sangue é vida, Barashemesh! Tornamo-nos cada vez mais


poderosos ao devorar a carne de nossos irmãos e irmãs. Não há
ferida que possa nos matar! Sofrerás setenta vezes de forma mais
intensa as feridas que infligir a Lamech, mas viverás e serás capaz
de dar um fim ao seu maior inimigo. O que ofereço a ti, meu amigo,
não é um ato de crueldade, mas de justiça! Tu te baseias em um
código moral estabelecido pelo Criador, segundo o qual não
devemos nos alimentar de nossos semelhantes e dos filhos do
Criador, mas lhe digo que somos maiores que as regras impostas
por um ser que nos despreza. Faço minhas próprias leis! Devoro
aqueles abaixo de mim, porque assim agem os maiores predadores
desta terra e lhe digo que não há, abaixo do céu ou nas profundezas
dos oceanos, nem nas mais escuras florestas, predador maior que
eu! O que lhe ofereço é teu por direito e sempre lhe foi negado!

– Por que achas que acreditaria em tuas pérfidas mentiras? Se


fosses tão poderoso como diz, jamais eu teria tido poder para
derrotar tua irmã. Ainda assim, fui capaz de fazê-lo! Não estava ela
também alimentando-se dos filhos dos Homens?

– Não, meu caro. Minha irmã, embora poderosa, ainda prendia-


se às regras do Criador. Agora, pois, se duvida de minhas palavras
e de minha verdade, posso provar que o que falo é real. Acredito
que tenhas consigo a arma que tirou a vida de minha irmã. Acerta-
me com ela. Não vou revidar e verás que não importa o mal que me
cause, novamente me reerguerei.

E assim atacou Barashemesh com toda sua fúria e potência,


enquanto Eos a tudo observava, e o golpe fora um ataque tremendo
feito com a lança que matara Liwyatan. O estrondo ressoou pela
cidade como um grande trovão, e nenhum mortal ou deus
permaneceria de pé ante um golpe tão magnífico, e nem mesmo o
Vitorioso resistiu, indo ao chão.

Entretanto, aquele era Barsemyaza, o primeiro dos Filhos da


Queda, e ele não havia mentido. Seu corpo foi arremessado a
grande distância e altura e caiu partido no chão, e assim ele
permaneceu por um longo e silencioso momento, enquanto
Barashemesh, caminhando com desenvoltura, se aproximava do
guerreiro combalido. Assim que chegou perto, o Minoi de Tantalis
colocou-se de pé com sofrimento e lamento. Seu corpo estava
devastado, mas ainda permanecia com vida. Ainda surpreso,
Barashemesh percebeu que as feridas fechavam diante de seus
olhos e, decidido a não dar à criatura uma chance, atacou
novamente, mas Barsemyaza, mesmo ferido, desviou-se do golpe e,
com o braço que estava já cicatrizado, agarrou a poderosa arma
que fora a ruína de sua irmã. Fazendo uma força descomunal e
maior que a de Barashemesh, arrancou a arma de sua mão e
arremessou-a no chão, e, fechando o punho, atacou com um
potente murro. O golpe partiu os ossos do gigante e o lançou ao
topo da montanha, por onde mergulhou nas entranhas fumegantes
da terra.

E assim teria perecido, e a história seria diferente. Vitorioso, no


entanto, era obstinado e queria Barashemesh do seu lado.
Completamente incólume, resgatou o valente caído na rocha
derretida e deu a ele de beber de seu próprio sangue. E alimentado
pelo sangue do primeiro caído, Barashemesh despertou totalmente
curado e mais forte que outrora.

– Mas como pode ser? Que bruxaria é essa?

– Eu lhe disse, meu irmão: Sangue é Vida! Junte-se a mim,


Barashemesh, e eu lhe darei aquilo que lhe foi negado! Junte-se a
mim e colocá-lo-ei a minha direita em minha mesa e oferecer-lhe-ei
o coração de Lamech em um prato, para que te refesteles no
sangue de teus inimigos!

Barashemesh ficou em silêncio pesando a oferta de seu outrora


inimigo, imaginando o mal que deveria aceitar para ter sua
vingança. Então inflamou-se seu coração com todas as injustiças
sofridas nas mãos de Lamech, e Barashemesh aceitou, selando
assim para sempre seu fatídico destino.

E passou Barashemesh a alimentar-se da carne dos filhos dos


Homens e a beber de seu sangue, e Eos a tudo observava, mas em
nada tomava parte. Quando estavam no leito, ela o indagava:

– O que vale essa vingança se tu precisas abrir mão de tudo o


que foste um dia? Eras um herói, um valente que os arautos
louvavam. Agora o temem todos aqueles que um dia te admiraram.
Será tão importante para ti tua vingança que não te importas de
perderes tua essência para seres algo novo, maior em poder, mas
também em crueldade?

– Não entendes o que perdi se me indagas dessa maneira –


falava o gigante contrariado, mas a bela mulher alada com cabelos
de fogo e olhos de esmeralda continuava.

– E o que ganhaste vindo dessa perda? Esqueceste? Clamas


contra a injustiça de Lamech e contra tudo o que ela lhe roubou,
mas esqueces que, se não fosse por essa injustiça, jamais teria a
mim! A ti não basta mais meu amor? Teria o ódio por Lamech
ocupado em teu coração o lugar que um dia foi meu?

– Não sejas tola, Eos, pois teu é meu coração, mas Lamech me
fez grande mal e guarda consigo parte de minha alma, pois a dor
que me casou só será paga em sangue! Somente quando tirar a
vida daquele maldito poderei entregar-me a ti por completo.

Por um ano ele se alimentou da carne dos filhos dos Homens e,


quando não era o bastante, ele se alimentava daqueles nascidos da
mesma luxúria que ele. A cada dia que passava seu apetite crescia,
assim como sua força. E Tantalis também crescia em poder. Pelo
mundo corria a notícia de que a poderosa Tantalis se preparava
para a guerra. Os anúncios chegaram aos ouvidos de Lamech, e o
senhor de Khanokh também preparou seus homens. Animais foram
abatidos e o metal foi arrancado das entranhas da terra, do qual
lanças, armaduras, machados e flechas foram produzidos.

E então Tantalis foi à guerra...

E Khanokh estava preparada, pois os vigias da cidade viram


quando o grande exército começou a se avolumar à distância. E,
como um enxame, os Filhos de Qayin partiram para o ataque.

Sangue lavou a terra, e as viúvas levaram seus choros até os


céus. A morte e a devastação no campo de batalha foram
avassaladoras. E, em meio aos corpos mutilados de ambos os
lados, Lamech e Barashemesh finalmente se encontraram!

Lamech, o filho do senhor escuro; Barashemesh, o filho da luz!

Um embate como nunca fora visto e como nunca mais se veria


aconteceu naquele momento. Os golpes ressoavam e as lâminas se
mordiam, e a cada toque de lâmina contra lâmina relâmpagos
rasgavam o local e trovões partiam os ouvidos. A vontade dos
homens fraquejou, mas aqueles dois guerreiros que tanto se
odiavam permaneceram em combate.

Não houve troca de palavras, nem mesmo xingamentos ou


maldições. O ódio era tamanho que não podia ser expressado em
palavras. Lamech era um guerreiro feroz e implacável! Sabia que
era protegido pela maldição, por isso lutava sem couraça ou temor.
E Barashemesh o confrontava com igual valentia, mas cada golpe
que o valente aplicava sua carne feria-se.

E no começo riu de seu adversário Lamech, pois vira que o


valente fora ferido por sua própria violência, mas o riso morreu em
sua boca quando viu que o gigante colocara-se de pé, e a ferida
curara-se diante dos seus olhos pasmos. Em uma dança sem
palavras, os dois guerreiros lutaram por quarenta dias e quarenta
noites sem descanso. Barashemesh não apenas confrontava seu
inimigo; repelia seus golpes, cegando a lâmina adversária e
cansando seu inimigo, ainda que cada estocada ou corte tirava mais
seu sangue que o de seu adversário.

E quando toda a guerra ao redor findou, e os exércitos de


Khanokh foram destruídos pelos de Tantalis, ainda assim o embate
continuou, mas o grande Lamech fraquejou pela exaustão e nessa
hora Barashemesh o destruiu.

Não com a lança, mas com os punhos, pois, ao ver o cansaço de


seu inimigo, o valente investiu com todo seu corpo sobre ele e
derrubou-o ao chão. Seus murros eram como rochas que
arrebentavam a face de seu adversário. Cada golpe quebrava os
ossos e deformava a fisionomia. O sangue em suas veias os unia
novamente. Barashemesh estava muito ferido no final do combate,
mas abaixo dele, onde deveria haver a cabeça de Lamech, uma
poça pérfida exalava o odor da morte do maior entre os filhos de
Qayin.

Barashemesh procurou sua mãe, mas não a encontrou. Foi


então até o herdeiro de Lamech, um rapaz de nome Tubal-Qayin.

– Onde está a feiticeira Zillah?

– Não vai encontrá-la, maldito! A mulher que você procura há


muito sumiu deste local! E mesmo que soubesse seu paradeiro,
jamais diria a você onde se escondeu minha mãe!

– Tua mãe? – indagou confuso.

– Sim. Sou Tubal-Qayin, herdeiro de Lamech e última prole de


Zillah, o filho do juramento partido!

E assim Barashemesh tomou conhecimento do que acontecera a


Khanokh depois de sua partida e o preço que sua mãe pagara por
sua vida. A grande feiticeira tornara-se a segunda esposa de
Lamech e de seu ventre dera à luz o herdeiro de Lamech, Tubal-
Qayin, mesmo tendo jurado nunca mais dar à luz, pelo bem da
cidade. Lamech não era um homem que respeitava juramento, e a
feiticeira concebera o rapaz, que era forte e valente como o pai, mas
decidido como a mãe. E Barashemesh contou-lhe sua história, e
Tubal-Qayin contou que a mãe, antes de a guerra ter explodido e
depois de Tubal ter se tornado homem, partira durante uma noite
para o deserto, mesmo sem a permissão de Lamech, seu senhor, e
na sequidão das rochas e no negrume da noite a feiticeira
desapareceu. Mesmo com todo o seu poder, Lamech jamais
conseguiu encontrá-la. Dizia-se que a feiticeira soubera notícias de
seu primogênito e de como ele se tornara poderoso em Tantalis e
que, não mais temerosa pela vida dele, pôde finalmente deixar para
trás seu carcereiro. Se perecera no deserto ou simplesmente
desaparecera na noite, ninguém parecia saber. E nunca mais viu em
vida Barashemesh a sua mãe, e, embora houvesse inimizade entre
os dois meios-irmãos, decidiram não se atacar. Assim, mais uma
vez Barashemesh voltou as costas para Khanokh e partiu dali para
nunca mais colocar seus pés no solo onde nascera...

Barashemesh vira sangue demais ser derramado e desejava


paz. Junto de Eos, que nunca o abandonava, ele deixou para trás as
politicagens de Tantalis e, como amigo mais estimado do Vitorioso,
desfrutava de uma vida de paz e harmonia. E parecia mesmo que a
paz viria, pois nem a chegada de Aglaeca à cidade, a prole de
Liwyatan poupada por Barashemesh no combate à besta, pareceu
mudar a harmonia da cidade, e Barsemyaza, o Vitorioso, tomou o
sobrinho sob sua tutela e fez dele seu próprio filho, mas havia uma
paz tensa entre Barashemesh e Aglaeca.

A guerra, no entanto, é uma amante invejosa e nunca abandona


completamente aqueles que deseja cortejar. Portanto, embora
sonhasse com a paz, Barashemesh nunca era esquecido por ela.

Dessa vez, a guerra veio não coberta de sangue, mas na forma


gloriosa e fulgurosa de Paean, o outrora Guardião chamado
Shamsiel.

Barashemesh bem tentou dialogar com o pai, mas o


resplandecente veio com uma única mensagem: morte!

– Haverá guerra, e vós traidores perecereis pelos crimes


cometidos! E você, que um dia chamei de filho, saiba que eu mesmo
desferirei o golpe que tirará sua vida!

Temeu a fúria de seu pai Barashemesh, mas Vitorioso se ergueu


contra o senhor do Sol, e com toda a majestade que lhe era peculiar
enfrentou o olhar do celestial e falou:
– Traga teus melhores e afia tuas armas, pois juro que nenhum
dos teus sairá vivo dessa contenda. Agora parta ou serás o próximo
a cair.

E assim partiu Shamsiel de volta a sua pátria com as novidades


da guerra em seus calcanhares. E então Barashemesh voltou-se a
seu amigo temeroso.

– Como faremos para derrotar os únicos que são maiores do que


nós?

– Não faremos nada, pois não será contra meu pai que lutarei,
mas contra o Criador do Céu e da Terra!

– Do que estás falando, Barsemyaza? Enlouqueceste?

– Pelo contrário, meu amigo. Nunca estive tão são! Percebi, na


batalha de Khanokh, que ninguém poderá nos impedir, pois não
somente tu encontraste a vitória contra teu inimigo, como eu
também encontrei em Khanokh aquilo que buscava! Pois o que meu
pai teme é a vontade do Criador, que decidiu que esta terra está
condenada. Ele nos culpa pelo que aconteceu a esta terra e Ele
está certo! O Criador tinha um plano que não nos incluía, mas nós
somos os senhores de nossos próprios destinos e a cada dia que
passa nossa linhagem cresce em força e poder. Logo tomaremos
essa terra e faremos dela o que bem nos aprouver, mas o Criador
quer pôr fim ao nosso governo, destruindo tudo e todos! Ele é meu
inimigo. Meu pai é somente um contratempo.

– Pretendes desafiar o Criador? Pretendes ir contra Sua


vontade? Por que achas que podes prevalecer?

– Não é uma questão de prevalecer, mas de sobreviver, meu


amigo. Ninguém prevalecerá. O Criador já decidiu e julgou-nos
segundo Sua vontade, e seremos condenados a uma eternidade de
sofrimento e dor. Nossos pais serão aprisionados e os piores
tormentos lhes serão reservados, mas nós também estamos
condenados a perecer, meu caro, e nada que tentemos fazer
mudará o coração do Criador ou seu decreto. Por isso mesmo o
aceito de bom grado, mas lhe digo agora que receberei minha sina e
dela tirarei algo maior!

– Mas por que, Barsemyaza, por que o Criador nos odeia tanto
assim?

– Já lhe expliquei a razão. Ele não aceita que fomos criados


contra sua ordem e nos considera impuros abomináveis. Não existe
um consenso entre o Criador e nós. Ele irá nos destruir! Acredite,
pois eu tentei de todas as formas apelar diante do Altíssimo, mas
meu pedido nunca foi aceito!

– Falou com o Criador?

– Não, pois o Altíssimo nunca me receberia diante dele, mas


falei com seu profeta, o homem que todos os caídos temem. Caso
não creias em minhas palavras, vai até ele e ouve a verdade de
seus próprios lábios.

– Assim o farei!

– O nome desse profeta é o mesmo da cidade pela qual tu tanto


lutaste para conquistar e depois abandonaste. Khanokh é um
parente distante de Qayin, mas sua linhagem é fiel ao Criador, e
somente um de seus descendentes será poupado. Essa é a justiça
do Criador! Destruirá toda a vida desse planeta infeliz por capricho e
manterá somente um homem e sua família, porque nunca tiveram a
ousadia de ir contra a Sua vontade! Não te iludas com as palavras
do profeta. Ele lhe dirá que o Altíssimo é bom e sábio, mas ele é só
um deus cruel, mesquinho e covarde, que teme que seus filhos
andem com suas próprias pernas.

E assim partiu Barashemesh em busca do profeta, e Eos, que a


tudo observava em silêncio sem expressar sua opinião, ia ao lado
de seu amado. Eles cruzaram o grande deserto e montanhas e
vales, até que finalmente chegaram à morada do povo de Khanokh,
que ficava no topo de uma montanha. Lá encontraram o homem que
falava com o Criador.

Ora, Khanokh, da linhagem de Set, último irmão de Qayin, era


conhecido em sua terra por não ter morrido, mas ter sido levado,
quando chegou a uma idade avançada, pelos mensageiros do
Criador a sua grande morada há quase mil anos. Porém, havia
menos de um século o profeta retornara a terra e clamava que a
hora final estava chegando. Era grande em poder, mas isso não se
demonstrava em sua aparência de mendicante. Era um homem todo
pelo e peles; seus cabelos eram fortes, grossos e selvagens, assim
como sua barba, tão alva que parecia feita de algodão. Seus olhos
faiscavam como duas pedras de carvão, e os dentes reluziam
ferozes. O manto que cobria seu corpo era feito da pele de diversos
animais, e o homem portava um cajado grosso. Quando viu o
gigante, suspirou cansado.

– Por que vens até mim com súplicas? Não sou eu quem faz os
julgamentos... Somente os transmito. Nada que possas dizer
mudará a vontade do Supremo.

– Não lhe trago súplicas, oh Khanokh, o grande, mas


questionamentos que consomem minh’alma. Por que um ser que
criou a tudo e todos decide agora exterminar toda a criação?

– Enganas-te, Barashemesh, pois o Criador não intenta destruir


a humanidade, mas salvá-la da condenação, pois os filhos dos
Homens se corromperam de tal forma que nada mais pode ser feito
pela carne que habitam. A maldade do homem tornou-se tão vil e
sanguinária que corrompeu até mesmo o solo, o ar e a água! É
preciso lavar essa terra de tamanho mal para que haja um renovo!

– Renovo? Destruirá o Criador toda a vida? – indagou o gigante.


O profeta observou-o em silêncio por um período antes de falar
novamente.

– Dize-me, valente, o que é a vida para ti?


– Meus amados, meus amigos, aquilo que tenho e aquilo que
sou. A história que construí e tudo o que ainda posso fazer. Isso é
minha vida!

– Enganas-te, bravo gigante. Isso são obras, aquilo que deixarás


para teus descendentes e aos outros que vierem depois de ti. Este é
teu Legado, e isso somente, mas não é tua vida. Tua vida deveria
ser a tua ligação com o Altíssimo, a tua comunhão com o Criador do
Céu e da terra, e quando essa carne cansada e mortal finalmente
acabasse, tua vida, a essência do Criador em ti, o Espírito do
Altíssimo, voltaria aos braços do Pai, e uma eternidade de regozijo
seria vivida por ti e pelos teus. Lá, junto dele, verias todos aqueles
que vieram antes e depois de ti, e juntos celebraríamos o amor do
Criador. Isso, caro gigante, é vida. Tudo aquilo que fizeste seria a
história contada aos que vieram depois de ti, e eles lhe diriam o que
tuas ações desencadearam e como tuas obras construíram a
estrada que teus descendentes trilharam. Tu, Barashemesh, no
entanto, não viverás isso, nem teus descendentes.

– Mas por quê? O que há de tão mal em nossa essência que não
nos dá a chance de tentar nos redimir? – indagou o valente. O
profeta respirou fundo e, com um olhar piedoso, respondeu da
maneira mais doce que sua voz permitia.

– Não é aquilo que tens que te torna maligno, criança, mas


aquilo que não possui e nunca possuirá. Isso te torna perigoso.
Quando o Criador fez o mundo, separando as luzes das trevas, a
água do solo e colocando o firmamento sobre as rochas, ele criou
as árvores, os animais e finalmente o Homem. Tudo era perfeito,
mas as criações eram sem vida e estáticas. O Criador, em seu
infinito amor e misericórdia, soprou seu próprio Espírito, a única
fonte de vida em todo o universo, sobre o homem, enchendo-os de
vida. O Criador soprou seu Espírito sobre todos os animais que
habitam o céu a agua e a terra. Todos eles são cheios de vida
graças ao espírito do pai celestial. Se não fosse por isso, estariam
todos frios e estáticos, como estátuas. Porém, antes de dar vida aos
seres desse mundo, o Criador fez, também com seu espírito, servos
que fariam sua obra ainda maior. O Criador não restringiu esses
seres a essa carcaça de carne corruptível. Eles eram feitos de Sua
vontade unida a Seu espírito. Ora, o primeiro entre eles, aquele
chamado de Estrela da Manhã, invejou a glória do Criador e
cobiçou-a para si. Desprezava o homem e sua pequenez. Assim,
junto de um terço do céu, decidiu ocupar o lugar do Altíssimo.
Porém, houve aqueles fieis que se voltaram contra o Estrela da
Manhã e, guiados pelo seu general, o maior guerreiro celeste, criado
com o intuito de extirpar o governo do primeiro rebelde, puseram fim
a esse mal. O Criador então determinou que esses rebeldes fossem
julgados pelo Homem, a quem o Estrela da Manhã desprezava, e o
Criador decidiu que aquele criado menor julgaria um dia aquele
criado maior. Desde esse dia, o Estrela da Manhã recebeu o nome
de Opositor e temeu o Homem, por isso intentou matá-lo. Começou
seduzindo sua companheira e ela é aquela que tu conheces como a
Senhora da Noite. Entretanto, ele não parou aí. O Opositor seduziu
também a Mulher, a segunda esposa do Homem, criada de sua
própria carne. Oferecendo-lhe aquilo que ele mesmo um dia
cobiçara, amaldiçoou a ela e ao Homem, condenando-os, assim
como toda sua prole, à mortalidade e ao afastamento do Criador.
Ora, foi essa mesma maldade que fermentada na inveja fez com
que Qayin um dia ceifasse a vida de seu próprio irmão, e estariam
os filhos dos Homens condenados se não fosse o Criador, em seu
infinito amor, a protegê-los. E àqueles que se voltaram contra o
Primeiro Rebelde o Criador deu a tarefa de guardar os filhos dos
Homens, exatamente aqueles que hoje são chamados de deuses
por eles, mas a si mesmos deram o nome de Guardiões, pois essa
era sua tarefa: a de guardar o Homem e sua prole. Não eram feitos
da carne que decai e um dia apodrece; estavam acima dela e por
isso eram plenos em poder e majestade. Os Guardiões, no entanto,
embora não fossem feitos de carne, desejaram a bela carne das
filhas do homem. Não as amaram, mas quiseram possui-las, por
isso abriram mão de sua forma de vontade do Criador e moldaram
para si corpos poderosos, simulando a força do espírito que neles
fluía livremente, e esses corpos poderosos eram cheios do espírito,
não soprado pelo Criador, mas encarnados num simulacro de carne
vil, incapaz de conter tamanho poder. Esse poder jorrou de seus
corpos junto de seus desejos e fecundou as filhas dos homens, mas
o fruto dessa união carecia daquilo que dá a vida: o espírito. Não
eram filhos do amor do Criador, mas do desejo consumidor dos
guardiões. Embora pareçam vivos, são consumidos por seus
desejos e vivem uma vida de mentira. Ainda assim, o Criador não
lhes faria mal, pois ama todas as criaturas, até essas desprovidas
de espírito, mas esses filhos desespiritualizados geraram filhos, que
da mesma forma carecem de espírito. Ora, o espírito é aquilo que
mantém em paz o mundo, uma vez que o corpo de carne se desfaz
e o espírito que vaga na terra é novamente usado pelo Criador para
gerar mais e mais vida. Assim, todos aqueles que voltam ao pó têm
suas almas levadas pelos anjos à presença do Criador, mas seu
espírito, sua força vital, flui na terra e novamente alimenta a água, o
ar, a terra e o fogo. Esses cinco juntos – espírito, fogo, água, terra e
ar – alternam entre si, permitindo que a harmonia desta terra
continue. Porém, agora, a cada dia, mais e mais seres nascem sem
o espírito e consomem a terra indiscriminadamente, secam riachos
e rios com ganância e cobrem o ar com a fumaça usada em suas
forjas sempre em busca de mais e mais. O mundo sofre com a
ganância desses filhos sem espírito, e a terra clama pelo equilíbrio,
mas não mais existem homens puros com espírito para ouvir o
desejo do Criador. Nenhum, exceto a família escolhida. Um homem,
meu neto, escolhido pelo Criador e ainda não corrompido, sua
esposa e filhos também cheios do espírito, e finalmente suas
esposas, os últimos filhos do homem que não caíram diante da
desgraça dos guardiões. Entendes agora por que a terra deve ser
limpa, por que o mundo deve ser liberto de sua presença?

– E o que acontecerá comigo e os de minha espécie?

– Tua espécie continuarás fazendo aquilo que faz melhor:


consumindo tudo. Livres do invólucro de carne que os limitam, vós
vos tornareis aquilo que os consome. Privados do espírito, jamais
serão capazes de abandonar aquilo que desejam, e estarão
condenados a vagar eternamente nesta terra. Sua real natureza e
crueldade irão aflorar e vós sereis eternamente consumidos pelos
vossos próprios desejos e pela maldade que lhes deu vida.
– Então não há escapatória para mim? Ou para Eos? Não há
nada que possamos fazer?

– Não, não podeis fazer nada, pois esse crime não foi cometido
por ti, e em sua carne ou em sua alma não reside a força capaz de
reverter esse destino. Há, no entanto, uma saída.

– Qual? – bradaram juntos ele e Eos, que até o momento


mantivera-se em silêncio diante do profeta, mas sorvia suas
palavras sedenta, e seus olhos não se desviavam dele nenhum
momento sequer.

– És chamado de valente, mas creio que nem mesmo tu tenhas


coragem de confrontar o desafio. Pois aqui o que será pedido de ti
não é tua valentia, mas tua obediência.

– Diga-me o desafio e confrontá-lo-ei, pois não há criatura ou


situação que me amedronte – Barashemesh bradou triunfante, mas
o profeta, fitando-lhe, disse:

– Entregai-vos ao abraço da morte e sucumbi. Aceitai o fim


determinado pelo Criador e abri mão dos desejos que vos levam a
mergulhar no mal cada vez pior. Escolhei desaparecer desse mundo
e encontrareis na morte a paz.

– Somente isso? – bradou Barashemesh furioso. – Quer que eu


escolha a morte? Eu, que a venci tantas vezes? Quer que eu, que
quase sucumbi diversas vezes, entregue-me assim a um fim
desprezível?

– Sim. Isso é o que deverias fazer: aceitar que esse mundo não
é teu e aguardar a misericórdia do Criador.

– Misericórdia? E quando o Criador, em sua imensa grandeza,


mostrou-me alguma misericórdia? Quando fez o Criador algo por
mim? Por que deveria eu agora submeter-me a ele, quando nunca
submeti-me a ninguém?
– Enganas-te, Barashemesh. O Criador tem por ti amor, um amor
que tu jamais entenderás, porque nunca entenderás sua
profundidade! Entende-o como desejo ou até afeição, entende-o
como posse, mas o amor é, antes de tudo, entrega! Desde a queda
do primeiro homem, o Criador vem preparando a humanidade para
novamente ser unida a ele e a Seu infinito amor. Como lhe disse,
nem tu nem o maior entre os teus sereis capaz de reparardes um
mal tão grande. Pois em verdade vos digo que não existe, nessa
terra, sangue puro e valioso que possa pagar pelo sangue inocente
derramado pelos vossos pais e por vós, pois só o Criador tem poder
para desfazer esse mal. Sim, incontáveis anos se passaram e ainda
muitos outros passarão antes que o mundo esteja preparado para a
chegada do Salvador. Porém, digo-lhe que haverá um dia,
Barashemesh, que o próprio Criador gerará um Filho de sua
suprema vontade e amor, e Ele, que será perfeito, andará por esta
terra imperfeita e ensinar-nos-á, aos filhos dos Homens, tudo o que
planejou para nós. E Aquele que é o maior entre todos se tornará o
menor, morrendo por todos que somos imperfeitos. Ele perecerá por
cada um dos filhos dos homens que consomem essa terra e a
destroem, que matam seus irmãos, por cada um dos guardiões que
sucumbiram ao desejo e até por ti, que sempre viveu de seus
desejos, tu, que nunca esteves nos planos dele, poderás um dia
sentar-se ao lado do Pai. Se aceitares teu julgamento e pereceres,
livrando o mundo de teu mal para que essa terra possa renascer,
terás paz! Pois em verdade te digo que só na morte encontrarás a
vida!

– Nunca! – bradou Barashemesh em alta voz. – A morte nunca


me conquistou e jamais me conquistará! Não é de meu desejo
perecer e nem nunca será!

– Então, minha criança, tua alma já está consumida por teu


desejo e em breve consumirá tudo o que tu és, e teu medo de ser
conquistado pela morte será exatamente aquilo que lhe sobrevirá.
Lamento por ti, Barashemesh...
E assim Barashemesh e Eos partiram, ela ainda mais calada e
perdida em pensamentos e ele ainda mais atormentado.
Retornaram a Tantalis, onde foram novamente recebidos por
Barsemyaza, o Vitorioso.

– Tinhas razão, irmão, o Criador nos despreza e não existe nada


que possamos fazer.

Barsemyaza sorriu ao ouvir as palavras cansadas e tristes de


Barashemesh.

– Nunca lhe disse que não há nada que possamos fazer. Disse-
lhe que o julgamento do Criador e sua sentença não podem ser
mudados, e eu os receberei de bom grado, mas, quando a morte
vier me abraçar, cometerei a maior de todas as atrocidades. Serei
ainda mais abominável que nossos pais, e meu crime será de tal
maneira hediondo que me reerguerei na morte maior que em vida!

– E o que será de mim e Eos?

– Isso cabe a vós decidires. Eu abraçarei a condenação como


um amante desejoso, mas tamanha condenação não pode ser
imputada por outra pessoa. Deve ser recebida de livre vontade.
Hoje, tu, eu e todos os iguais a nós somos amaldiçoados
independentemente de nossa escolha, mas eu escolherei ser
maldito e me colocarei acima do julgamento do Criador! Se quiseres
viver uma eternidade condenada, segue-me, mas, se preferires a
morte, aceita teu destino.

– Eos calou-se depois das palavras do profeta e não fala mais


comigo. Permanece encarando as estrelas em uma quietude
perturbante. Acredito que tema a condenação, mas eu e ela
estaremos juntos por toda a eternidade. Condenados ou não, ela
estará sempre ao meu lado.

– Tenho certeza que sim. Tuas palavras sempre conduziram o


coração dela e é uma mulher valente, que enfrentou os maiores
perigos para estar ao teu lado. No fim, ela permanecerá a teu lado.
Não temas, meu irmão. Quando tudo acabar, seremos senhores da
morte!

E a conversa terminou ali, pois um som estridente rasgou os


céus. Era uma corneta límpida e alta, que anunciava a chegada do
maior exército que pisara na terra. Os Guardiões, liderados por
Dyeuspiter, outrora Semyaza, e seus exércitos haviam vindo a
Tantalis confrontar seu primogênito caído, e o antigo Guardião tinha
sede de vingança e fome de guerra.

Sangue correria pelo chão e inundaria os oceanos como nunca


antes e nem depois daquela batalha...
Capítulo 13

Próxima estação: República.


– Precisamos chegar no terminal Barra Funda. De lá a gente
pega o trem para Francisco Morato e de lá um táxi. Acho que
ficaremos bem – Raquel parecia aliviada, Vinnie estava sentado em
um dos bancos do metrô e Jack estava de pé, com a arma
escondida na lateral do corpo. Sentia o metal frio em contato com
sua pele e achava isso reconfortante. Embora sua mente mandasse
ele se acalmar, sentia uma comichão que fazia com que ele se
mantivesse alerta.

O metrô estava cheio devido ao horário, mas não tão cheio como
de costume, porque a tempestade prendia muitas pessoas nos
ônibus pela cidade. A alta rotatividade de passageiros fazia o trio
descabelado passar despercebido. Eles ficaram parados
recuperando o fôlego por duas estações. Depois, Jacó passou a
mudar de vagão cada vez que o metrô parava. Agora estavam no
primeiro vagão aguardando seu destino.

– Próxima estação: Santa Cecília.

– Só mais duas estações e estaremos fora do metrô. Depois


iremos pegar a linha 7 do trem: Rubi – ela mostrou no mapa. –
Então serão apenas mais 6 estações.

– Madame, relaxa, por favor! Você mesma disse que eles devem
ter perdido nosso rastro – Vinnie esticou o pé e colocou sobre outro
assento. – Estou exausto! – uma vez a que a adrenalina começava
a baixar, aparecia o cansaço intenso. – Para onde estamos indo,
afinal?

– Na Cantareira, tenho alguém que pode nos proteger – ela


falou. Estava tensa e olhava para todos os lados nervosa.

– Como? Pelo que entendi, esses seres podem entrar em


qualquer lugar – Jacó falou azedo, olhando ao redor a procura de
perigo, sem encontrar. Raquel negou com a cabeça.

– Na verdade, em quase qualquer lugar. Eles não podem pisar


em solo sagrado – explicou. Vinnie olhou pra ela.

– Solo sagrado? Sério isso? Por que a gente não se esconde


numa igreja então? – perguntou sem entender. Raquel tornou a
negar.

– Não é tão simples. Um solo sagrado não necessariamente é


uma igreja, mas um local consagrado a deus e não conspurcado
pelo homem – explicou.

– Conspu-o-quê? – Vinnie perguntou.

– Conspurcado, corrompido, contaminado.

– Poxa, e não era mais fácil ter usado uma dessas palavras,
madame? Caramba! – ele reclamou. Rachel revirou os olhos.

– Como ia dizendo, o solo precisa ser abençoado e consagrado,


e não mais contaminado. Muitas igrejas acabam se contaminando,
seres humanos, são por natureza pecadores e como tal cometem
pecados, e o pecado contamina tudo ao redor.

– E esse lugar para onde estamos indo é abandonado ou algo


assim? Não consigo imaginar alguém que possa viver uma vida sem
pecados – Jacó falou com sarcasmo. Não gostava do conceito
opressor de pecado.
– Ele não é alguém normal, ele é... algo a mais... – Raquel falou
reticente.

O metrô parou e pessoas saíram e entraram. Jack ficou alerta.


Um grupo de oito garotos, vestidos com camisetas de bandas de
Heavy Metal, longos cabelos e coturnos entraram no metrô e foram
para o outro lado do vagão encarando o trio. Além dos rapazes,
embarcaram dois homens engravatados com bolsas e conversando
sobre mercado financeiro, que ficaram entre o psiquiatra e os
rapazes, e uma bela mulher de pele morena, vestido justo e
digitando mensagens no celular. Ela se sentou na frente de Vinnie,
que não pôde evitar um discreto olhar ao decote generoso da
garota. Jacó sabia que estava julgando os rapazes pelas
vestimentas, mas ficou de guarda. Sentia um incômodo no ar, um
perfume adocicado estranho.

O metrô partiu, mas o psiquiatra continuou alerta. Ao lado dele,


os engravatados falavam do chefe.

– Sabe o que é pior? Esse atacante é um mercenário, nunca vi o


cara jogar com fibra de verdade! – o outro riu. – Faz tempo que essa
diretoria deveria ser mudada. Os caras não estão lá pelo futebol,
mas pela grana – concluiu enfático. Continuaram a falar de futebol,
comparando um time com o outro, como verdadeiros entendidos.

– Por que as pessoas aqui gostam tanto de futebol? Nunca


consegui entender essa paixão pelo jogo – falou irritada. Jacó deu
de ombros.

– Não saberia dizer ao certo. Creio que existam várias razões


para isso. Afinal, somos o país do futebol.

A moça do vestido justo riu de algo que leu e percebeu o olhar


de Vinnie. Sorriu com certa malícia, e ele devolveu o sorriso; depois
desviou o olhar para a janela.

– Como ele consegue? Com tudo acontecendo com a gente, ele


fica de xaveco no metrô? – Raquel perguntou inconformada. Jack
mais uma vez deu de ombros.

– Acredito ser uma autodefesa – respondeu. A garota olhou para


ele indagadora. – Toda vez que mergulhamos mais fundo nesses
perigos, toda vez que o real e o sobrenatural, por falta de palavra
melhor, se tocam, Vinnie parece fugir um pouco da realidade, venho
reparando nisso. É a hora em que ele fica mais infantil ou distante –
falou. Raquel olhou para o Vinnie. Ele mostrava seu belo sorriso
para a garota.

– Gostaria de fazer isso às vezes – embora seus olhos


estivessem em Vinnie, sua mente estava muito distante. – Gostaria
de esquecer de tudo isso, de viver uma vida que os outros chamam
de normal, sabe? Ficar triste por não ter o celular mais moderno, ou
pensar nas tendências da moda... Mas aí eu lembro que todos os
dias pessoas são rasgadas e devoradas como gado, e todo o resto
perde a importância.

Jacó estendeu a mão e tocou-lhe o ombro. Raquel olhou para


ele, que sorriu em simpatia. Ela retribuiu o sorriso, grata pelo
silêncio.

Os garotos com camisetas de bandas se mexeram e Jack


colocou a mão na arma. Eles se aproximaram da porta do trem.

– Próxima estação: Marechal Deodoro.

Os rapazes saíram apressados, rindo e discutindo, assim que o


metrô parou. Os engravatados sentaram onde eles estavam. A
garota digitava e de vez em quando trocava olhares com Vinnie.
Duas senhoras entraram no metrô e um punhado de estudantes
com roupa de escola. Os engravatados deram seus lugares às
senhoras, que gentilmente aceitaram, surpresas com a gentileza tão
incomum na metrópole paulistana.

Alguns dos jovens esbarraram em Jacó. Um deles até encostou


na arma e ele se afastou. O vagão continuava cheio. Entretanto,
uma briga aqui faria com certeza muitas vítimas inocentes. Nervoso,
o psiquiatra ativava suas lembranças militares para estabelecer
rotas de fuga. Seus sentidos estavam atentos. Sentia o perfume das
meninas misturado a um leve aroma de erva queimada, vindo de um
dos rapazes que sorria estupidamente, e ao cheiro de suor de um
deles escondido no meio do perfume do desodorante. Não sabia
dizer com certeza, mas desconfiava que sentia também um leve
cheiro acre e ferroso, característico de menstruação, e se perguntou
desde quando sentia tantos odores... Eram até embriagantes.
Sacudiu a cabeça confuso por tantas informações olfativas.

Minutos depois chegavam à última estação. Jack olhou para


Vinnie, que se levantou, assim como todos os outros passageiros. A
moça chegou do lado de Vinnie e desviou o olhar encabulada.
Vinnie sorriu. Jack sentiu o perfume doce das senhoras e o aroma
da loção dos homens de terno, mas também percebeu que o cheiro
estranho aumentara, e agora conseguiu discernir que era um odor
levemente pútrido. Ficou ainda mais temeroso.

Jacó respirou fundo quando as portas se abriram. Os três


seguiram pela plataforma da estação, subiram escadas e fizeram a
baldeação para o trem. Jacó olhava ao redor, mas não via perigo
iminente. Vinnie parecia estar certo dessa vez. A moça de vestido
preto ia à frente, junto de uma multidão cansada e molhada. Lá fora,
a chuva ainda caía, mas estava mais fraca.

Três estações depois, Jack olhava pela janela o relógio que


marcava mais de oito horas. Já haviam escapado do ser esquisito
fazia quase duas horas. Respirou fundo e olhou no mapa das
estações. Faltavam três. O trem seguia seu curso tranquilo, e Jack
observava os galpões industriais do início do século XX e as casas
pobres da periferia da grande metrópole, enquanto tentava se
acostumar com o cheiro de roupa úmida, mofo e suor que invadia
suas narinas para identificar o odor pútrido que continuava a
incomodá-lo. Ele caminhou pelo vagão como pôde. O odor parecia
estar próximo de Vinnie. Jacó aproximou-se e novamente pousou a
mão na arma. Raquel observava com ele os galpões, num silêncio
acabrunhado, e Vinnie, ainda quieto, também continuava a trocar
olhares com a garota, que, ainda no celular, fizera mais uma vez
questão de ficar à vista de Vinnie. A viagem seguia tranquila,
quando finalmente a voz feminina soou nos alto-falantes:

– Estação Jaraguá – Vinnie se levantou. Jacó, que ainda sentia o


leve odor pútrido, ficou atento; e Raquel estava pronta para sair,
quando uma voz delicada e feminina falou.

– Com licença – Jacó sentiu um frio na espinha, e o jorro de


adrenalina pareceu fazer o fedor pútrido aumentar. Raquel se virou
para a voz, e a garota de vestido preto estava ali, olhando para
Vinnie, com um pequeno papel na mão. Entregou a ele com um
sorriso encabulado. Vinnie pegou o papel e o abriu. Lá estava
escrito “Gisele” e um número de telefone, junto da frase “Me liga”.

Raquel bufou saindo do trem, Jack sorriu, mesmo preocupado, e


Vinnie deu uma piscadela para a garota. Eles saíram da estação e
Jacó respirou aliviado. Tudo bem até ali. Conseguiram fugir. Ao sair
na rua, reparou como o local estava vazio. Era uma região
descampada, pobre e modesta. Os estabelecimentos que
encontravam já estavam fechados havia algumas horas. O cheiro de
esgoto a céu aberto de um córrego próximo incomodava Jacó.
Caminharam por uns cinco minutos, até avistarem uma padaria
aberta. Não estava cheia, e os que lá estavam, em sua maioria,
eram homens cansados de um dia de trabalho que aproveitavam
para tomar uma cerveja antes de voltar para casa. Os três entraram
no local e pegaram alguns salgados para comer. Muitos olhavam
para Raquel, o que irritou Jacó.

Sentaram em uma mesa afastada das pessoas e, enquanto


comiam, procuravam traçar um plano a ser seguido dali em diante.
Raquel dizia com veemência que deveriam ir de manhã, pois seria
desrespeitoso chegar nesse horário, e estava totalmente inflexível a
esse respeito, por mais temerosa que pudesse estar. Assim,
pensavam onde poderiam passar a madrugada, quando algo
começou a incomodar Jacó. Reparou que alguns dos clientes da
padaria olhavam para eles assustados e se afastavam ou
apontavam, tentado ser discretos. O mais estranho é que não
olhavam somente para Raquel, o que seria normal, já que ela era
uma das poucas mulheres no local. Embora estivesse desgrenhada
e suja, seu cabelo cor de platina e corpo delgado chamavam
atenção. O problema é que muitos olhavam para ele também e para
o Vinnie. Olhou ao redor procurando alguma resposta. Ao pousar os
olhos sobre um televisor, congelou.

No noticiário noturno, um vídeo amador mostrava o exato


momento em que ele saía do camburão e fugia para o metrô.
Percebeu atônito que muitos no bar falavam ao telefone. Outros
pareceram se levantar naquele momento. Era paranoia sua ou
muitos pareciam encará-los? Sentia um cheiro forte, um cheiro que
por qualquer razão parecia lhe dizer que havia pessoas assustadas
ali.

– Temos que ir! – falou levantando-se.

Brandão tentava absorver o que havia acontecido, mas parecia


impossível. Olhava para a cena a sua frente com horror na face. A
pequena delegacia rodoviária revelava uma cena saída de algum
circo de horror. Pedaços desmembrados dos policias misturados
com vísceras numa quantidade assustadora estavam espalhados
pelo chão tingido de vermelho. Brandão era um delegado da
homicídios e estava acostumado a cenas fortes, mas tentava
compreender como aquilo tudo acontecera. Pegou o rádio para
chamar reforços, mas alguém falou antes dele.

– Eu não faria isso, Brandão – o delegado virou assustado e


colocou a mão na arma, mas se tranquilizou quando viu o doutor
William Sallutti entrar no ambiente numa calma impassível. Veio
caminhando tranquilamente, com as mãos no bolso, desviando de
um braço amputado, colocando os pés cuidadosamente entre as
voltas de um intestino rasgado, evitando a todo custo sujar seus
sapatos. Parecia despreocupado com o cenário repugnante.
– O que faz aqui, doutor? – o delegado perguntou. – William foi
até a cafeteira, serviu-se de café, experimentou a bebida, mas fez
uma careta e jogou a bebida sobre o rosto de um dos policiais
mortos. Brandão sentiu seu sangue ferver.

– Vim falar com você, na verdade – o psiquiatra falou,


extremamente incomodado com o sabor da bebida em sua língua e
indiferente ao resto do ambiente.

– Será que ao menos poderia ter algum respeito e


principalmente cuidado onde pisa e onde toca, doutor, para não
contaminar a cena do crime? – Brandão estava furioso com o
descaso do psiquiatra e não entendia a razão dele ali. Um alarme de
perigo começou a soar em sua cabeça. Repousou mais uma vez a
mão sobre a arma. William finalmente achou uma cadeira que não
estivesse empapada de sangue e sentou-se despreocupado.

– Agora já chega, doutor Sallutti. O que pensa que está fazendo?


Pessoas foram mortas aqui. Tenha algum respeito! – Brandão
estava se aproximando do psiquiatra, mas William ergueu o dedo
indicador e o policial parou onde estava.

– Pessoas morrem todos os dias, senhor Brandão. O senhor,


como delegado da homicídios, deveria saber. Porém, não vim aqui
conversar sobre policiais mortos. Eles são como vítimas de guerra,
como os refugiados do oriente médio ou, ainda, como as crianças-
soldados na África. Não posso fazer nada sobre isso, mas posso lhe
dar algumas informações importantes: por exemplo, o termo que
você tanto queria entender, Nazireia, faz referência a Walkyria, uma
pessoa muito especial para mim, e não só para mim, mas também
para aqueles que a caçam. Eles chamam de Nazireias as pessoas
que eles são incapazes de fazer mal. Na verdade, a garota é uma
peça intricada de um quebra-cabeças ancestral – Brandão escutava
tudo parado. Pensava em se mexer, mas parecia que seu corpo
estava tão entretido que simplesmente parara de obedecer. William
continuava sua explicação.
– A verdade, Brandão, é que você caiu no meio de um fogo
cruzado de uma batalha que ocorre há mais de dois mil anos e que
continuará acontecendo. O que você vê aqui é exatamente o que
acontece quando a humanidade se envolve com forças que ela não
compreende – ele falou gesticulando com a mão para mostrar o seu
arredor. – Agora nós temos um problema, Brandão. Quando decidi
usá-lo para pegar Walkyria, admito que imaginei que as coisas
seriam mais fáceis, mas então meus inimigos se moveram de uma
maneira inesperada e isso me forçou a agir. Espero que entenda...
Preciso que certas coisas aconteçam. Essa guerra de que lhe falei...
No momento, estamos numa trégua, que foi muito boa para o
desenvolvimento do país e do mundo, mas ela precisa acabar.

Brandão continuava parado. Tentou mover a mão, mas ela não


lhe obedecia. Percebeu que não importava o comando que seu
cérebro enviasse seu corpo não o recebia. Sentia-se um
tetraplégico.

– Por que está me contando tudo isso? – Brandão perguntou


tentando ganhar tempo.

– Porque você cruzou uma linha, meu caro. Você chegou à beira
de descobrir toda a verdade e, quando isso acontece, é preciso
escolher um lado: o nosso ou o deles – William falou calmamente. –
Sinceramente, acho que seria melhor para a sua vida que
escolhesse o meu lado; não me quererá como inimigo, meu caro
Brandão – William ameaçou com uma voz pacífica, quase paternal.

– Guerra? Do que você está falando? Não estamos em guerra. O


Brasil não está em guerra com ninguém! – Brandão falou, tentando
fazer o homem a sua frente falar. Colocava toda a sua força de
vontade num esforço tremendo para se mover.

– Brandão, sei que você não é tolo, meu rapaz, por isso vejo um
potencial em você! Por favor, não presuma que eu seja imbecil. A
guerra a que me refiro acontece bem debaixo dos governantes
brasileiros desde antes da república, e lhe digo que ela é muito mais
antiga. Refiro-me a uma guerra que remonta aos primórdios da
humanidade. Essa guerra tem somente dois lados: o meu, aqueles
que querem que a humanidade atinja seu potencial pleno, e o de
meus inimigos, que pretendem nos escravizar e viver de nosso
sofrimento – Brandão desistiu de mover a mão e focou suas forças
em mover o dedo indicador. Nunca fizera tanta força na vida, mas
ainda assim seu dedo permanecia imóvel. – A verdade é que a sua
influência no departamento de homicídios pode me ajudar. Além
disso, vejo em você o desejo de fazer o que é certo, e o que lhe
ofereço é exatamente isso.

Brandão encheu-se de coragem e, encarando o psiquiatra, falou:

– E se eu me recusar? Se não me importar com essa guerra? Já


que tudo o que me interessa no momento é resolver essa droga de
crime e colocar essa mulher atrás das grades? – desafiou, ainda
incapaz de se mover. William assentiu com a cabeça impressionado.

– Não se importa com a humanidade? Diga-me, Brandão. Desde


que se envolveu com esse crime, não viu ou sentiu nada que
desafiasse sua sanidade? Algo que fez isso aqui... – ele moveu a
mão mostrando a cena grotesca na delegacia. – parecer
irrelevante?

– Sim. Eu vi, mas vou atrás dos canalhas que fizeram isso e vou
continuar minha caçada. Você tem sangue em suas mãos! Não vou
me juntar a você!

William meneou a cabeça frustrado.

– Eu realmente peço que reconsidere.

– Ou o quê? – desafiou.

– Seria com pesar, mas você teria de ser eliminado – o psiquiatra


falou, desviando o olhar numa negativa frustrada.

Brandão então viu quando sua mão direita desabotoou o coldre


da pistola e calmamente alcançou a arma. Sentiu a arma em sua
mão e sua mão começar a puxá-la. Os músculos e tendões de seu
braço se moviam contra sua vontade. Seu maxilar se abriu
lentamente. Ele se esforçava para resistir, mas era em vão. Em
pânico, viu quando sua mão colocou a pistola dentro de sua boca.

William, com sua calma peculiar, voltou a olhar para Brandão,


agora pensativo.

– Sabe, Brandão, você parece um bom policial; tem potencial, é


valente, posso perceber, mas há uma linha muito tênue entre a
valentia e a estupidez. Portanto, lhe darei novamente a chance de
reconsiderar. Vou lhe perguntar mais uma vez: está comigo ou
contra mim?

Um dedo de Brandão retirou a trava da arma, deixando-a pronta


para disparar, e outro se posicionou no gatilho.

Walkyria despertou com o corpo todo dolorido. Sentia como se


houvesse levado uma surra. Primeiro ela ficou assustada e procurou
por Jacó, mas, ao perceber que estava num quarto estranho, olhou
ao redor. Cibele aproximou-se dela:

– Está tudo bem. Fica calma – ela falava com sua voz plácida e
tranquila. Walkyria olhou ao redor ainda confusa. A professora de
Yoga pareceu perceber sua confusão e explicou: – Você está num
hospital, Wal. Tive que te trazer. O médico disse que você tem uma
úlcera hemorrágica e acabou perdendo bastante sangue, mas está
fora de perigo agora.

– Mas o que aconteceu?

– Parece que você, enquanto meditava, teve um refluxo e quase


se afogou no seu próprio sangue, mas já te medicaram e você vai
ficar bem.
As duas continuaram a conversar, Cibele encaminhando o
diálogo para assuntos mais leves, até que Madalena entrou no
quarto. A madrasta, como sempre, estava elegantemente vestida,
mas em vez do sorriso habitual, tinha uma expressão séria, quase
furiosa. Cumprimentou Cibele com gentileza e olhou para a enteada.

– Vamos lá, Walkyria, hora de ir para casa – disse como se


falasse com uma criança. – Caiu uma tempestade terrível na cidade
que durou até agora há pouco e temos que voltar para casa.
Teremos um jantar importante hoje à noite – Walkyria se ajeitou
melhor na cama:

– Hoje? Mas não era amanhã? – indagou confusa. Madalena


negou.

– Já estamos na quinta, minha querida. Você ficou desacordada


por várias horas. São seis da manhã – Walkyria olhou para a amiga,
que assentiu. Olhou para a janela e viu a claridade que começava a
entrar pelas frestas.

– E meu pai? Onde ele está? – indagou, sendo um pouco mais


rude do que gostaria de aparentar. A madrasta notou e fechou ainda
mais a cara.

– Seu pai continua bem ocupado com seus afazeres e em


cumprir a promessa que ele te fez. Por isso ele não pôde vir, mas eu
estou aqui e vou levá-la para casa – colocou ao lado da garota uma
pequena mala com mudas novas de roupa e, virando-se para
Cibele, falou com seu tom mais delicado. – Cibele, minha querida,
mal tenho palavras para agradecer sua rápida ajuda! Se não fosse
por você talvez uma grande tragédia tivesse ocorrido.

Madalena conversou um pouco mais com Cibele, enquanto


Walkyria terminava de se arrumar. As três saíram do hospital e no
estacionamento se despediram.

Walkyria ficou o caminho todo em silêncio, e, por mais estranho


que parecesse à garota, a madrasta também ficou num silêncio
acabrunhado. Quando estavam chegando, Walkyria finalmente
falou.

– Você me parece furiosa, Madalena. É por minha causa? –


perguntou na defensiva. A mulher olhou para a enteada e sorriu.

– Ora, minha querida, por que estaria furiosa com você?

– Não sei. Porque fui parar no hospital e você teve de ir me


pegar? – perguntou se sentindo ridícula. – Devo ter atrapalhado
seus planos de hoje...

Para a completa surpresa de Walkyria, Madalena sorriu com


sinceridade.

– Minha querida, não foi você quem me atrapalhou hoje. Estou


irritada sim, mas não se preocupe que não é com você – falou com
ar maternal. Walkyria respirou aliviada. – Independentemente disso,
você precisa se continuar tomando os remédios recomendados pelo
médico e se preparar. Hoje é uma noite muito importante para nós, e
para você especialmente – Walkyria assentiu.

– Eu sei, Madalena. Não se preocupe, porque vou cumprir com


meus deveres e não vou decepcioná-los – falou com fervor.

Madalena colocou a mão sobre a da enteada.

– Sei disso, querida – deu dois tapinhas na mão de Walkyria.

O carro parou em frente à bela estátua da entrada da casa.


Walkyria se preparava para sair do carro, quando voltou-se para a
madrasta:

– Madalena, meu pai sabe que passei mal? – perguntou


receosa. Madalena negou com a cabeça.

– Ainda não. Ele está muito ocupado com os preparativos e não


pode ser atrapalhado.
Walkyria olhou para a madrasta.

– Posso lhe pedir uma coisa? – Madalena olhou para a enteada


em silêncio. – Pode ficar sem contar para ele? Se ele souber, vai me
ver mais uma vez como uma coisa frágil de cristal e estou cansada
de ser vista como uma fracote. – admitiu. A madrasta sorriu.

– Você não é fraca, querida. Não se preocupe; esse será um


segredinho nosso – falou com ar conspiratório e deu uma piscadela.
Walkyria sorriu.

– Aonde vai? – perguntou já saindo do carro.

– Resolver um assuntinho pessoal... Nada para se preocupar,


querida – Madalena respondeu em tom casual. – Vejo você à noite –
falou despedindo-se.

Carlos Eduardo tentou abrir os olhos, mas pareciam de chumbo.


Sentia uma mão delicada colocando compressa úmida e refrescante
sobre sua testa. Então ouviu um lamento, como o grito de uma alma
penada, e sua cabeça latejou. Apurou os ouvidos e percebeu que o
lamento nada mais era que o choro inconsolado de uma criança.
Tentou novamente abrir os olhos, mas era como encarar o sol
estando somente a um metro dele. Fechou-os logo em seguida e
mergulhou novamente na escuridão.

Nas profundezas das catacumbas secretas do Museu do


Ipiranga, Boadiceia estava sentada diante de uma bela penteadeira
antiga. Vestida em seus trajes rubros, penteava as madeixas ruivas
com desenvoltura, observando no espelho sua bela forma, que
muito lhe agradava. Suas belas feições pareciam esculpidas no
mármore.

De repente, o espelho explodiu a sua frente em diversos


fragmentos. Boadiceia se voltou para trás surpresa e se deparou
com uma de suas ghouls favoritas parada na frente da porta e
segurando a cabeça arrancada de outro ghoul pela língua nojenta.

A criatura de vermelho ficou de pé, em toda sua majestade. Suas


feições, até então belas, haviam mudado e revelavam uma palidez
cadavérica. Os olhos escureceram e se tornaram dois poços negros.
A região doas pálpebras estavam cheias de veias enegrecidas que
partiam dos olhos em direção ao rosto.

– Samantha – Boadiceia falou encarando a serva. – O que pensa


que está fazendo? – sua voz soava grave e cheia de crueldade.
Tinha um tom macabro e parecia saído de pesadelos. A reação
natural de um ghoul é o de subserviência, mas a criada encarava a
sua senhora com escárnio.

– Estou aqui para lhe dar um recado, sua vadia apodrecida – a


ghoul grunhiu com raiva. Encarava sua mestra sem nenhum temor.
A podridão no rosto de Boadiceia aumentou, seus cabelos perderam
parte da cor e seu corpo tornou-se húmido e enrugado. Estava
extremamente assustadora, mas a serva não se abalou.

As duas se encararam: de um lado, a ghoul com roupas simples,


mas provocativas, um vestido de látex no formato tubinho vermelho
sangue marcando suas formas humanas provocativas, os olhos
brilhando numa fúria latente; Boadiceia, do outro lado, com sua
majestade necrótica.

– Já conheci diversos mortais que foram arrogantes a ponto de


me enfurecer, mas nenhum foi tão estúpido, criança – falou indo
para frente, porém a ghoul não parecia temê-la e também avançou.
Então abriu sua boca, revelando seus dentes de tubarão e a língua
grotesca. A fera atacou selvagemente e suas garras foram em
direção à garganta de sua senhora, mas Boadiceia desviou-se sem
o menor esforço.

– Samantha, não aceitarei uma insurgência da sua parte. Pare


imediatamente! – rosnou com toda sua majestade sobrenatural. Sua
voz estava contrariada e demonstrava certa preocupação.
Samantha reteve o ataque, porém gargalhou antes de falar com
zombaria:

– Está com medo de ferir seu bichinho de estimação, Rainha das


Fadas? Admita! Essa criaturinha aqui lhe é cara, não é, sua
maldita? – disse apontado para si mesma. – Qualquer outro desses
seus vermes que tentasse algo como o que essa malditazinha está
fazendo já teria sido destruído por você – continuou. – Mas como é
sua queridinha, aquela que você vem preparando e fortificando há
quase um século para ser sua prole você não a destrói – Samantha
falava, mas sua postura e entonação de voz eram incomuns. A
mulher, outrora subserviente e sedutora, tinha uma postura régia e
uma confiança que ultrapassavam a arrogância.

Quando a compreensão chegou à face de Boadiceia, ela urrou


enfurecida. Samantha passou a gargalhar ainda mais alto. De suas
narinas, olhos e ouvidos escorria sangue. Boadiceia segurou seu
urro magistral e encarou a criada. Quando falou, sua voz era cheia
de fúria e maldade.

– Feiticeira! – rosnou. Samantha sorriu com malícia e crueldade.

– Finalmente percebeu, sua criatura estúpida – a ghoul


respondeu arrogante. – Você teve a ousadia de atrapalhar meu
encantamento e ainda atacou minha enteada. Achou mesmo que
uma afronta desse tamanho passaria em branco?

– Quem você pensa que é, mortal, para me desafiar? – a mulher


de vermelho gritou enfurecida e mais uma vez sangue correu dos
olhos de Samantha, mas a ghoul mantinha-se firme.

– Eu sou aquela que tem as mãos manchadas com centenas de


milhares de inocentes massacrados! Sou aquela em cujas veias
corre o sangue divino. Sou aquela que domina a magia do fogo e
dos mortos. Sou aquela que não se curva diante de ninguém. Se me
desafiar mais uma vez, Rainha das Fadas, serei aquela que porá
um fim em sua eternidade! – a ghoul falava com tamanha confiança
que mesmo a mulher de vermelho sentiu-se temerosa.
– Tua arrogância não conhece limite! – Boadiceia falou. –
Ordenei-lhe, feiticeira, que preparasse o amuleto. Em vez disso,
perdeu tempo com suas bruxarias. Estava disposta a aceitar tua
insolência, mas desta vez foi longe demais! Farei com que se
arrependa!

Num rompante de fúria, os olhos da ruiva ancestral se


iluminaram e ela abriu a boca num rosnado felino com suas presas
apodrecidas e assustadoras. Preparava seu grito mais gutural e
macabro, quando a voz de Dom Magalhães soou no local.

– Já basta! – gritou em fúria. – As duas estão desrespeitando


uma trégua que só nos trouxe vantagens – e olhando para
Boadiceia falou: – Vai desrespeitar a vontade de teu mestre,
mulher?

Boadiceia ficou rígida e encarou o português, suas feições


voltando ao normal e toda a lividez saindo de sua face. Com a
cabeça, em silêncio, fez um sinal em negativa. Dom Magalhães
virou-se para a ghoul.

– E tu, oh feiticeira, pretendes pôr fim à paz que teu marido a


tanto custo conquistou? Pois digo-te que tal afronta, se não for
agora acabada, não será por mim perdoada. Estou farto de ti e de
seus camaradas. Este é meu domínio e exijo o devido respeito! – as
palavras foram ditas em velocidade e cheias de sotaque, mas
também tinham ali o comando de alguém acostumado com a
obediência. A ghoul também baixou a guarda. Quando falou, sua
voz era comedida.

– Que assim seja, Dom Magalhães. Meu recado já foi dado. Se


aproximarem-se novamente de minha família, serei menos
misericordiosa. Espero que tenha sido clara.

– Foste cristalina. Agora parta! – ordenou o português.

Perto dali, há apenas algumas quadras do Museu, sentada no


banco traseiro do carro, Madalena estava de olhos fechados, mas
não parecia adormecida. Ela assentiu, movimento repetido pela
ghoul. Madalena começou a falar.

– Mas que fique claro, Magalhães, que outra afronta e nem


mesmo meu marido será capaz de me impedir de arrancar a pele
dessa prostituta ancestral! – Madalena, a feiticeira, e Samantha, a
ghoul, falavam em uníssono. Madalena segurava em sua mão uma
estatueta feminina de argila, mal feita e grosseira. O único
ornamento que possuía era um longo fio de cabelo enrolado no
pescoço como um colar. Madalena abriu os olhos, e a ghoul
despertou confusa. Quando olhou para Boadiceia, falou com
humildade e subserviência.

– Minha senhora? A senhora me convocou? – parecia perplexa


e, aos poucos, foi arregalando os olhos. Então levou a mão
esquerda ao braço direito, que se torceu sozinho para trás até
estalar e se partir. Samantha gritou de dor.

Sorrindo, Madalena terminou de dobrar o braço da escultura e foi


embora...

Próximo ao meio-dia, numa loja de departamentos no bairro do


Jaraguá, um rapaz de boné e óculos de sol fazia algumas compras.
Escolheu roupas masculinas, femininas, duas mochilas e uma mala
de ginástica. Pagou em dinheiro e saiu do local. Na rua, seu
caminhar era apreensivo, principalmente ao passar na frente de um
posto policial.

Entrou no supermercado e comprou comida fácil de ser


carregada, muita água, alguns refrigerantes e uma enorme
quantidade de amendoins. Comprou também três escovas de
dentes, sabonete e um xampu. Também pagou em dinheiro e foi
embora.

Então caminhou até uma rua cheia de galpões. Parou na frente


de um abandonado e apoiou-se na grade, onde aproveitou para
comer um pouco de amendoins. Quando percebeu que ninguém o
observava, esgueirou-se pela cerca e entrou. O galpão era uma
antiga fábrica abandonada.

– Doutor? Madame? – chamou.

– Aqui, Vinnie! – soou a voz rouca de Jacó. Vinnie sorriu e tirou o


boné e os óculos de sol.

– Trouxe mantimentos – falou animado. – E olha só: roupas


novas! Comprei boné e também blusas com capuz para a gente
chamar menos atenção.

Jacó sorriu para o companheiro.

– Parabéns, cara. Só não sei como você fez pra conseguir o


dinheiro.

– Falei para você... Tenho meus esquemas, Jack – Vinnie falou


arrogante. O psiquiatra olhou-o desconfiado.

– O grande detalhe desse mundo moderno é que tudo é


controlado por computadores. Se você tem acesso a uma rede e as
habilidades necessárias, tudo é possível – Vinnie explicou, mas
Jacó continuou a fitá-lo. Ele respirou fundo.

– Ok. Bati a carteira de uma garota que eu paquerei, peguei o


cartão bancário dela, fui a uma lan house e paguei com o dinheiro
dela. Entrei na internet, fiz alguns bloqueios de IP e transferi
moedas virtuais de uma conta que tenho para uma conta que criei
para ela. Depois as converti para o Real e fiz uma transferência para
a conta que ela costuma usar. Então retirei parte desse dinheiro e
deixei um pouco para ela cobrir as despesas que terá por eu ter
roubado sua carteira. Para finalizar, enviei por correio a carteira dela
para a agência bancária na qual tem conta. Satisfeitos? – falou
como se tivesse feito uma tarefa simples. Jacó olhou-o surpreso.
– Vinnie, isso foi impressionante! – o psiquiatra admitiu. – Fico
feliz de não termos largado você! – Vinnie sorriu satisfeito.

– Moedas virtuais? – Raquel perguntou confusa. Vinnie revirou


os olhos.

– Francamente, madame, moedas virtuais são o futuro do


comércio. Logo, logo nem deve mais existir dinheiro como a gente
conhece. Elas têm até câmbio e lugar na bolsa de valores! – falou
meneando a cabeça. Raquel olhou para Jacó, que deu de ombros.

– Bom, então vamos! – Raquel falou, mas Jacó segurou sua


mão.

– Não. O Vinnie tem razão. Precisamos tomar banho e nos trocar


para ficarmos diferentes. Você trouxe o que te pedi? – indagou
olhando para Vinnie, que sorriu satisfeito.

– Xampu tonalizante cor castanho. Está aqui.

– Xampu tonalizante? – Raquel olhou confusa. Jacó assentiu.

– Nossos cabelos são claros. Chamam a atenção. Cabelos


castanhos são mais comuns. Você e eu precisamos dar um jeito de
ficarmos disfarçados. O Vinnie também, mas ele é mais fácil por
causa da altura mediana dele.

Usaram a enorme caixa d’água do galpão para isso e depois de


quase três horas estavam prontos. Vestidos, banhados e
disfarçados, saíram; Raquel, agora com cabelos castanhos e
presos, Jacó com um blusão e barbeado, com os cabelos também
escurecidos. A espingarda foi guardada na mala de ginástica.

– Para onde iremos? – Vinnie perguntou.

– Ao pico do Jaraguá. Será uma longa caminhada – Raquel falou


olhando para a montanha à frente.
– Você acha que estão atrás de nós, Jack? – Vinnie perguntou.
O psiquiatra assentiu.

– Sim, estão, mas não se preocupe. São Paulo é uma cidade


enorme. Será difícil nos encontrarem.

– Além do mais, para onde estamos indo – Raquel emendou. –


Não vão nos encontrar jamais! Vamos. Temos uma longa caminhada
pela frente, possivelmente a noite toda – concluiu. Vinnie gemeu.

O dia havia sido desesperador para Carlos Eduardo. A dor


excruciante dos ferimentos fazia com que se curvasse de sofrimento
a todo momento, mas ele recusara-se a tomar a medicação
oferecida pelo amigo Matheus ou a ir para um Hospital. Tudo o que
importava era a segurança de Gabriela. As horas se arrastaram
lentamente, mas ele aguardava ansioso com a arma na mão ao lado
da freira.

– Você precisa descansar, Carlos – Gabriela falou preocupada.

– Não ainda – ele respondeu sem conseguir disfarçar a dor.

Quando o relógio finalmente bateu 16 horas, sorriu aliviado.

– Conseguimos – disse e perdeu os sentidos vencido pela dor.

A cidade de São Paulo é hoje uma das maiores, mais influentes


e poderosas do mundo. É mundialmente conhecida pela influência
internacional e principalmente nacional que exerce, seja do ponto de
vista cultural, econômico ou político. Diversas atrações e eventos
deixam a cidade fervilhando durante todo o ano e vão de desfiles de
moda a carnaval, de competições de automobilismo à maior paixão
nacional: o futebol.
No entanto, no ano de 1554, enquanto padres jesuítas subiam a
implacável serra de Paranapiacaba e encontravam entre os rios
Anhangabaú e Tamanduateí um local para catequisar os índios que
viviam no então Planalto da Piratininga, as condições não eram as
mesmas. Portanto, no dia 25 de janeiro daquele ano, fundaram um
pequeno colégio no local, e, como era da crença católica que
naquele dia o Apóstolo Paulo havia se convertido ao cristianismo,
decidiram homenageá-lo, batizando o local de São Paulo de
Piratininga.

Nos dois séculos seguintes, a cidade viveu isolada pelo difícil


acesso, principalmente em virtude da enorme parede de 700 metros
que separava a vila do litoral: a Serra de Paranapiacaba, depois
rebatizada como Serra do Mar. Sua pobreza e subdesenvolvimento
seriam o solo perfeito para o surgimento dos exploradores e maiores
responsáveis pelo crescimento do território nacional: os
Bandeirantes.

A descoberta do ouro e, posteriormente, a de que o solo era


propício ao plantio do café atraiu vários portugueses sedentos de
poder, entre eles o Velho Capitão Afonso Sardinha. Foi, no entanto,
durante a Independência do Brasil que o destino de São Paulo
realmente mudou. Em 1822, o então imperador Dom Pedro I do
Brasil declarou a independência do país às margens do riacho do
Ipiranga, na periferia da cidade, e elevou seu status à cidade
imperial, construindo ali um enorme memorial à nação, o Museu da
Independência, posteriormente conhecido como Museu do Ipiranga.

Com a virada do século e o declínio do domínio do café, São


Paulo investiu num novo e crescente aspecto da economia da
época: a industrialização. O crescimento da cidade foi meteórico.
Em menos de vinte anos, a cidade dobraria sua população, indo de
pouco mais que quatrocentos mil habitantes para impressionante
1,1 milhão, um número considerável para a época.

O crescente populacional aumentou também a demanda por


mais energia. Para supri-la, decidiu-se usar o potencial hidrográfico
da região para geração de energia barata. A ideia brilhante e
simples veio de um visionário americano que trabalhava na empresa
fornecedora da época, um homem chamado Asa White Kennig
Billings, que sugeriu algo até então impensado: por que não usar a
queda abrupta de mais de 700 metros do planalto paulista para
gerar energia elétrica? Dessa forma, a maior barreira para o
crescimento da cidade no passado, a Serra do Mar, seria usada
agora para proporcionar desenvolvimento.

Porém, a ideia genial teria de confrontar a indomável serra, uma


vez que a topografia da cidade fazia com que os rios que nasciam
próximos à Serra do Mar corressem em direção ao interior do
estado, não para o litoral.

Aquilo que havia sido outrora uma enorme vantagem para os


Bandeirantes, que usaram os rios para explorar as entranhas do
estado, tornava-se um empecilho para as ideias de Billings, mas a
perseverança e criatividade do engenheiro americano não tinham
limites e mais uma vez teve uma ideia que aparentemente parecia
absurda: se os rios não correm para a Serra do Mar, por que não
reverter seu curso através de estações elevatórias, formando um
reservatório que permita a geração de energia?

Assim, barragens foram criadas em um dos principais rios da


cidade, transformando-o em um canal, e uma represa foi construída
às margens da cidade. As águas foram levadas a um enorme
reservatório para que, através dessa barragem, criada por braços
humanos, fossem conduzidas às turbinas por tubulações que
desceriam a Serra.

O maciço da Serra do Mar, que tantos obstáculos havia criado


para a colonização do planalto, serviria agora como catapulta para o
maior crescimento da cidade, tornando-a a mais importante do país
e de toda a América Latina. A obra receberia o nome de seu criador,
Billings, e, embora sua história fosse basicamente esquecida pela
população, seu legado se estende até os dias de hoje.

Lucca estacionou seu carro às margens da enorme represa e


observou a força estonteante da natureza. O sol descia lentamente
atrás do grande corpo d’água.

– Uma fotografia perfeita – pensou enquanto se perguntava por


que, de tantos lugares, a pessoa que marcara aquele encontro
queria que fosse justo ali.

Pouco depois, Tucca viu que uma figura musculosa se


aproximava com um cigarro aceso. Não esperou que chegasse para
perguntar amigavelmente:

– Você sabia que meu pai foi um dos operários responsáveis


pela construção dessa represa? – Tucca falou cheio de nostalgia.
Brandão parou ao lado dele, observando o pôr do sol. Tragou
lentamente o cigarro, mas não soprou a fumaça de imediato; deixou
a fumaça aquecer seus pulmões. Tucca continuou:

– Meu pai veio do sul da Itália no começo do século. Minha


família é de lá. Tivemos uma seca que nos fez perder quase toda a
plantação de uvas. Meu pai vendeu tudo o que tinha e veio pra cá:
ele, a esposa e seus oito filhos. Eu fui o único que nasci aqui no
Brasil. Meu pai teve uma vida difícil recomeçando do zero, mas tinha
um orgulho enorme de ter participado disso – falou apontando para
a represa. Brandão deixou a fumaça sair lentamente do seu peito,
assentindo. Tucca olhou para ele. – O que foi, Brandão? Para que
me chamou aqui? – perguntou calmo. Brandão tragou o cigarro
lentamente mais uma vez, depois olhou para o delegado mais velho.
Havia muita tristeza em seu olhar.

– Desculpe-me, Tucca... Eu... Eu não tive escolha – gaguejou.


Tucca olhou para ele confuso.

– Não teve escolha? Como assim?

Não foi Brandão quem respondeu, mas uma voz que soou atrás
de Tucca:

– Na verdade, Brandão foi só um chamariz, meu caro; precisava


de você aqui – a voz educada e contida fez o velho delegado se
virar sobressaltado, levando a mão à arma. Era William que olhava
fixamente em seus olhos.

O corpo de Tucca aos poucos relaxou e ele tirou a mão da arma.


Sua pupila se contraiu até se tornar um pequeno ponto preto nos
olhos e depois se abriu, ocultando toda a íris.

Brandão observava a tudo num silêncio resignado, com o cigarro


aceso em sua boca. William falou com uma voz calma e sem
nenhuma emoção:

– Vocês não conseguirão solucionar o caso a tempo, meu caro, e


preciso que vocês sejam mais dinâmicos, por isso preste atenção no
que vou lhe dizer.

Em São Caetano, Walkyria terminava de se arrumar no justo


vestido de tubinho branco com um trabalho em preto na forma de
vários “y” invertidos, que davam uma sensação de escamas brancas
sobre um fundo negro. Estava com uma gargantilha negra e o
cabelo preso num coque; usava uma pulseira preta e brincos
grandes ovais de prata com ônix. Colocou um sapato alto preto.
Arrumada desceu até o saguão de entrada da casa do pai pronta
para receber os convidados especiais da família.

Pontualmente às 21h os convidados chegaram num sedan cinza


chumbo. Desceram do carro um homem e uma mulher. O homem
tinha aproximadamente a idade do pai. Havia longas entradas nos
cabelos totalmente brancos e ralos. Era um homem enorme, com
quase dois metros de altura e aparência sólida. Embora fosse um
senhor, parecia musculoso e apresentava uma postura ereta e
elegante. Seus olhos eram parecidos com os do pai, Walkyria
pensou. Eram cinzas e frios. A boca parecia um simples corte no
rosto, reta e severa. Ele estava vestido num terno impecável e caro,
ela reparou. A mulher era impressionante. Devia ter seus cinquenta
anos, mas facilmente enganaria alguém se dissesse ter pouco
menos de quarenta. Walkyria era incapaz de precisar. Não sabia o
quanto podia ser resultado de cirurgias plásticas, de genética
privilegiada ou algo mais, mas a jovialidade da mulher causava
admiração. Era ainda mais loira que Walkyria. Seus cabelos
realmente pareciam brancos, de tão claro; eram longos e
esvoaçavam ao vento. Tinha um nariz arrebitado, delicado sem
perder a força, sobrancelhas fortes curvadas e marcantes. O rosto
tinha o formato de diamante, e os olhos eram felinos, de um azul tão
claro que pareciam duas poças de águas cristalinas. A boca bem
desenhada e marcante tinha lábios finos e protuberantes. O corpo –
Walkyria reparou – era outra obra de arte: seios fartos, cintura fina,
nenhuma barriga, coxas longas e torneadas e um quadril largo, mas
firme.

– Parece o meu, mas não sou tão malhada e tenho a metade da


idade dela – pensou frustrada.

Sorriu da forma mais agradável que podia, mas a mulher lhe


devolveu um olhar gelado e distante. Havia nela algo estranhamente
familiar, Walkyria sentiu. Já o homem cumprimentou-a
educadamente e os três entraram. Lá dentro, nem seu pai nem
Madalena lhe apresentaram os convidados. Embora estivesse
curiosa e se perguntasse o motivo de tanto mistério, não conseguiu
reunir coragem para perguntar. O jantar prosseguiu bem, com
amenidades, sorrisos e muita futilidade. Walkyria reparou que o pai
e a mulher se davam muito bem. Curiosa, decidiu se intrometer.

– Desculpe-me, não me lembro do seu nome – Walkyria disse


sorrindo para a bela mulher. – Posso lhe oferecer mais vinho? –
perguntou. A mulher sorriu com educação polida.

– Obrigada, Walkyria – estendeu a taça para a garota e depois


levou o vinho aos lábios e, sem lhe dar mais atenção, continuou sua
conversa com André Marcos, que parecia extremamente à vontade
ao lado da loira misteriosa e anônima.

– Bem demais – pensou enciumada. Olhou para a madrasta, que


parecia não se importar com a proximidade do pai e conversava
com o marido da bela senhora. Se estava incomodada, não deixava
transparecer. Walkyria percebeu que sempre admirara isso em
Madalena. Mesmo no sequestro do irmão, a mulher mantivera-se
firme. Ficara abalada, claro, mas alguns jornalistas e sites de fofoca
usaram o termo “devastada”, com o qual a garota não concordava.
Madalena era o tipo de mulher que parecia nunca ficar “devastada”.
Ficou triste e não saiu de casa durante todo o processo de resgate.
Permaneceu trancafiada no porão secreto da mansão, que, desde a
infância, Walkyria não conhecia a localização. Ela sabia apenas que
lá embaixo tinha um grande salão de festas para as reuniões do pai
e o ateliê da madrasta, onde ela fazia pinturas quando estava triste
ou irritada. Madalena nunca fora o tipo de mulher que ficava
chorando pelos cantos; diferentemente dela, que chorava por
qualquer coisa.

Pensou em Jack. Já estava sem notícias dele havia uma


semana, mas o pai insistia em dizer que o encontrariam. Carlos
Eduardo também estava confiante e sempre dizia a mesma coisa: “–
Relaxa, Wal, o Jack é osso duro de roer e vai ficar bem!”.

Walkyria passou o resto do jantar sendo praticamente ignorada,


porém se sentiu agradecida por isso. Ficou perdida em
pensamentos que rondavam o seu medo de nunca mais encontrar
Jack ou dizer o quanto o amava...

Despertou de seu devaneio com a chegada de William, que, ao


entrar na sala, foi logo cumprimentando o homem e a mulher.

– William, que prazer revê-lo! – a mulher abraçou o psiquiatra e


deu dois beijos, um em cada bochecha.

– Evelyn, é bom revê-la, minha cara – William sorria enquanto


abraçava a mulher. Depois sentou-se à mesa.

– Está atrasado, como sempre – André Marcos falou, limpando a


boca num guardanapo. A filha sabia bem que seu pai estava furioso.
Podia ver em seus olhos, mas William sorriu e encarou o olhar
cortante de André Marcos.
– Ah, não se preocupe. Já jantei. Vim para a reunião, não para
comer – sorriu desafiadoramente para o prefeito, que tomou um gole
do vinho branco em sua taça de cristal.

– Para a reunião chegou na hora. Acho que devemos descer,


não acham? – a voz de André Marcos estava contrariada, mas
como sempre ele mantinha a compostura. Todos se levantaram e se
dirigiram à biblioteca, inclusive Walkyria, mas então André Marcos
colocou a mão sobre seu ombro e ela se virou para ele. O pai
estava com seu irmão, Adolfo, na outra mão.

– Leve seu irmão para cima e fique lá durante a noite.

– Não vou participar da sua reunião?

– Não, Walkyria, ainda não é hora de tê-la conosco.

– Mas pai... Eu realmente quero participar!

André Marcos sorriu e olhou para filha.

– Você está participando. Esteve no jantar com as pessoas mais


poderosas do mundo. Outros virão ainda hoje, mas são meros
peões. As peças principais estão aqui e você faz parte delas – disse
orgulhoso.

– Mas agora, filha, sua missão é colocar seu irmão para dormir e
garantir que ele fique a noite inteira lá em cima. Além disso, mais
convidados chegarão e preciso de sua graça para recebê-los e
enviá-los à biblioteca. Pode fazer isso por seu pai e por sua família?

Walkyria sorriu.

– Mas é claro pai.

André Marcos sorriu mais uma vez, entregou Adolfo nas mãos
dela e seguiu os convidados. Walkyria viu que a mulher, Evelyn,
agora sabia seu nome, a observava, mas não lhe deu importância.
Fora excluída do jantar e quase invisível a todos. William nem ao
menos a cumprimentara, mas também não estava preocupada,
porque finalmente sentia-se fazendo parte de alguma coisa. Sentia
que ali era seu lugar e em breve teria Jack de volta. Sua vida
finalmente estaria completa.

Quando finamente conseguiu despertar, Carlos Eduardo viu o


olhar tranquilizante da irmã Gabriela, que umedecia sua testa com
uma compressa. Ela sorriu ao ver os olhos abertos do delegado,
virou-se para o lado e falou num sussurro.

– Ele acordou, padre – o sussurro ecoou no ouvido do delegado


convalescido como se fosse um grito. Franzindo os olhos, viu que
seu amigo se aproximava. O gosto ferroso em sua boca era
marcante e sentia uma dor latejante na lateral do corpo.

– Como você está, amigo? – o padre perguntou da maneira mais


tranquila possível, mas, para o delegado, as palavras mais pareciam
agulhas aferroando seu crânio. Pelo menos sentia que já se
acostumara com a luz.

– Vou viver – falou tentando se erguer; uma dor lancinante, no


entanto, o impediu de prosseguir. – Não sei como ainda respiro e dói
muito, mas vou viver. Mais importante que isso... – olhou para
Gabriela e fez um esforço enorme para sorrir. – É que você está viva
e continuará assim – falou com alívio. Então ouviu um grito que fez
novamente sua cabeça vibrar e viu o padre se levantando e
correndo para um leito ao lado do dele. Percebeu que estava na ala
hospitalar do instituto. O dono da voz era a criança possuída, e
Carlos Eduardo sentiu um calafrio ao vê-la.

Matheus sentou ao lado do menino e começou a sussurrar no


ouvido dele calmamente e acariciar sua cabeça. Aos poucos o
menino foi se acalmando e parou de chorar. Matheus o abraçou e,
como um pai dedicado, embalou a criança. O choro tornou-se em
soluços, depois em gemidos cada vez mais leves, até que se
silenciou, e a criança voltou a respirar tranquilamente. Matheus o
deitou na cama e continuou a mexer os lábios; Carlos Eduardo não
sabia se ele orava em silêncio ou cantava uma canção de ninar.

Depois de algum tempo, Matheus voltou a se sentar perto do


amigo.

– Ele está bem? – o delegado perguntou. – Aquela coisa saiu


dele?

Matheus assentiu.

– Sim. Depois de muita luta finalmente o exorcizamos – Matheus


olhava para Wesley cheio de preocupação. – Mas não sei se vai se
recuperar. Ele teve uma parada cardíaca e não acorda do choque.
Acho que talvez não passe dessa noite. Seu ferimento é profundo,
mas não na carne. Sua alma foi dilacerada. Posso ajudá-lo, mas
não muito – assumiu triste. – O que esse menino passou vai
assombrá-lo por toda a vida.

Carlos Eduardo concordou com a cabeça em silêncio. Depois de


um tempo perguntou:

– Ele vai voltar?

– Possivelmente... – Matheus respondeu.

Gabriela, que continuava tratando das feridas de Carlos, fez o


sinal da cruz em silêncio. O delegado estendeu a mão e segurou a
dela com ternura.

– Fica tranquila. Acabou! – falou com toda a sinceridade de seu


coração.

– Mas o que afinal ele queria comigo? – Gabriela perguntou


frustrada. – A maneira como ele me tocou, o jeito que... – ela olhou
para o pequeno Wesley deitado. – Ele me beijou... Aquilo foi... –
tentou achar palavras. – Aquilo foi... – hesitou. – Foi nojento e
assustador!
– Eu realmente não sei, irmã. Ele parece obcecado por você.
Acredito que ele queria fazer de você sua última vítima – concluiu.

Gabriela recuou horrorizada. O delegado olhou fixamente nos


olhos dela e pegou sua mão entre as dele. Fazer isso fez suas
costelas fisgarem mais uma vez em protesto, mas ele tentou
esconder a dor.

– Gabriela, a Lua Negra passou. Ele tinha até as 16h para


conseguir te pegar. Esse Herege, esse tal de Barashemesh, é
metódico e ontem, seja sorte ou milagre, nós o impedimos! Ele não
vai mais te ferir. Acabou... – falou aliviado, mas com uma leve
tristeza. Salvara Gabriela, mas sabia que o Herege estava perdido
para sempre. Possivelmente jamais encontraria seu criminoso. – Se
eu encontrar esse maldito, nem que eu tenha que morrer, boto uma
bala no coração dele! – jurou.

– É, delegado, acabou – Gabriela sorriu. Falou tranquila e


resignada, pois em seu coração tinha a intuição de que não havia
terminado.

Matheus observava os dois em silêncio e pensativo. Olhava para


o garoto deitado que gemia e sofria. Tentara de todas as maneiras
guardar o menino, e ainda assim o mal chegara até ele... Sabia que
Wesley, se sobrevivesse, jamais seria o mesmo. Nenhum psicólogo
conseguirá tratar a mente daquele menino, pensou entristecido.
Ainda assim pediria a Jacó que cuidasse dele. Só ele poderia
entender o que aquele garoto estava passando. Afinal, somente
Jacó já havia passado por algo tão traumático como aquilo. Durante
as horas seguintes Matheus tratou de seus dois pacientes e, depois
que os dois estavam dormindo profundamente, o padre caminhou
até o altar da igreja e lá permaneceu por tanto tempo que perdeu a
noção.

Matheus se perguntava como podia um ser tão mau invadir um


local sagrado e ainda destruir o futuro de uma criança. Não entendia
como o mal podia ter penetrado tão profundamente no santuário.
Tentava analisar o plano de Deus em algo tão macabro, pois ele
realmente acreditava que, se algo assim havia acontecido, era
porque o Pai Celeste assim havia permitido. Entretanto, embora se
empenhasse em entender, só conseguia mesmo ver um plano
diabólico em andamento. Sua única arma contra isso era a fé, a
certeza naquilo que não se pode ver, e Matheus não deixaria seus
olhos a abalarem. Ele continuaria fazendo sua parte, pois sabia que
Deus faria a d’Ele.

Por mais impossível que parecesse, a noite continuou tranquila e


sem mais ataques do sobrenatural. Matheus passou o resto da
madrugada em vigília diante do amigo de infância e do garoto de
que decidira cuidar. Gabriela, exausta, dormiu no sofá da ala
hospitalar se recusando a ir para o quarto.

Horas se passaram e o céu começou a tomar tonalidades lilases.


O padre olhava para as maravilhas da natureza tentando buscar um
conforto para seu coração, mas a verdade é que a tristeza não
passava. Demônios haviam entrado em seu refúgio, quase mataram
seu amigo e destruíram a vida de uma criança...

– Eu vi um anjo hoje... – a voz infantil de Wesley despertou o


padre de seus pensamentos melancólicos.

– Wesley, você acordou! – o padre abraçou o garoto.

– Eu vi um anjo hoje, padre – a voz do menino era pacífica, tão


cheia de paz que surpreendeu o sacerdote.

– Um anjo? – perguntou surpreso.

– Sim, padre. Quando o senhor entrou na sala, quando o


monstro estava me machucando – o menino falou. O sacerdote
arregalou os olhos.

– O garoto lembra do exorcismo? – pensou.

– O senhor entrou e junto tinha um anjo bem grande! Era bem


maior que o senhor, ou que a casa. Era tipo um gigante! – o menino
continuava falando com sua voz fraca e debilitada, mas seus olhos
brilhavam felizes. – O monstro tentou me levar embora, mas,
enquanto você brigava com ele, o anjo falou que nada ia me
acontecer, que ele estava lá para me proteger, e ele tirou o monstro
e mandou ele para bem longe! – o padre olhava para a criança sem
nada dizer. – Sabe, padre, eu não gostava do Papai do Céu. Achava
Ele tão malvado como o meu pai, mas hoje eu vi que Ele gosta de
mim – o menino continuava falando com um ar distante. – O anjo
me falou que o Papai do Céu me trouxe para cá para eu não ser
mais machucado pelo meu pai e que agora o senhor era meu novo
pai e ia cuidar de mim como meu pai nunca fez. Disse que eu devia
ser como o senhor: uma pessoa boa e não malvado, como meu pai
era – falou. Matheus, emocionado e surpreso, provocou:

– O anjo te falou tudo isso?

– É, ele me levou para ver o céu! – o menino falou com voz


sonhadora e olhar distante. – E me mostrou um monte de coisas
bonitas – o menino continuava, com o olhar cada vez mais distante.
– Falou que agora eu devia voltar e ficar aqui, mas eu não queria
voltar. O Céu é legal e lá não tem dor, você não fica triste, mas o
anjo me mostrou que você estava muito triste, e eu não queria ver
você triste, padre, por isso eu voltei! Voltei porque eu quero ser que
nem você, padre, e ajudar as crianças com pais malvados como o
meu. Quero mandar os monstros todos embora! Achei que monstros
não existissem, padre, mas eles estão em todos os lugares
machucando as pessoas. O senhor sabe enfrentar isso, padre. O
senhor me ensina? – pediu a Matheus. O padre abraçou o menino,
chorando e sorrindo ao mesmo tempo.

– Sim, eu te ensino, é claro que eu te ensino.

– Sabe, padre, apesar de ter me machucado muito quando o


monstro entrou em mim, foi bom, sabia? Porque parece que,
quando o anjo levou o monstro embora, levou também a minha
raiva. Bem que o senhor sempre fala que o Papai do Céu faz coisas
estranhas, e às vezes parece que Ele faz coisas ruins, mas ele usa
as coisas ruins para ajudar a gente, como quando a gente tem que
tomar uma injeção para sarar de uma doença. Dói, mas faz a gente
ficar bom. Acho que o monstro foi minha injeção.

Matheus transbordava de emoção. O garoto, que até pouco


tempo atrás estava moribundo, agora parecia totalmente
recuperado. Olhou para os céus numa prece agradecida. Wesley
continuou.

– Padre, o anjo me pediu para te falar uma coisa – Matheus


olhou atento para o garoto.

– O quê?

– O monstro vai voltar! Há pessoas muito malvadas ajudando


ele, e quando o monstro voltar ele vai pegar a moça que veio morar
com a gente. O anjo falou que não tem como parar o monstro, mas
que seu amigo... – o garoto apontou para Carlos Eduardo. – Pode,
se o senhor ajudá-lo a ter fé.

Matheus olhou para o amigo convalescido. Fé era algo de que


Carlos Eduardo era muito carente. Wesley falou a próxima frase
quase num sussurro.

– O anjo falou, padre, que se seu amigo não tiver fé, ele e a
moça nova vão para o céu...

O Pico do Jaraguá é o ponto mais alto da cidade de São Paulo,


com 1135 metros de altitude. Em dias claros, proporciona a melhor
vista da cidade, alcançando até 55 quilômetros. O local foi palco de
diversos confrontos sangrentos entre índios e bandeirantes, em
virtude de suas ricas jazidas de ouro. Dilapidado de seus recursos,
continuou sendo um marco e ponto de referência a qualquer viajante
que desejasse ir ao interior do estado. Hoje, o pico e as terras ao
seu redor são os últimos locais remanescentes, dentro da
metrópole, em que se pode ver a mata atlântica nativa. Por isso, foi
transformado num gigantesco parque.
Saída de lendas e histórias antigas, uma casa resiste ao tempo.
Erigida há quase 500 anos, a construção de paredes de quase um
metro de largura está com a pintura branca descascada e repleta de
umidade. As janelas e portas de madeira foram pintadas de azul
anil, mas também se encontram malconservadas. Hoje, é conhecida
como o Casarão de Afonso Sardinha, um famoso explorador da
época das bandeias paulistas, um guerreiro duro, inimigo ferrenho
de índios, capitalista inescrupuloso e habilidoso homem de armas.
Implacável, construiu um pequeno império minerador na região,
conhecida como o Peru Brasileiro, fazendo clara alusão à cidade de
El Dorado, do país vizinho.

Ao lado do casarão, que possui mais de 20 cômodos, há uma


antiga pia de lavagem em que o bandeirante garimpava o metal
precioso. A construção também tem um cômodo contíguo, com
altura de 1,60 m e poucos metros quadrados, com apenas uma
pequena janela, nada mais que uma mínima entrada de ar e luz. É o
mais terrível dos aposentos, mas indispensável à época: a senzala,
o cárcere onde eram mantidos os escravos negros vindos da África.
Embora não haja provas, por ser um homem belicoso como era
Sardinha, muitos negros e também indígenas ocuparam essa sala
como prisioneiros.

Afonso Sardinha se foi, mas relatos de espíritos e almas


penadas ainda rondam o casarão fechado ao público.

A noite estava sem lua. As matas mergulhavam em sombras,


mas o casarão não estava tão abandonado como de costume. Três
figuras se esgueiraram pelos seus portões e se esconderam na
senzala. Estavam com frio. Raquel tentava iluminar o local enquanto
Jacó abria espaço em meio aos lixos no chão. Vinnie tremia.

– Poxa, por que precisamos passar a noite aqui, nesse lugar


assustador e frio? – olhou ao redor. Além de claustrofóbico, o local
estava decrépito, com tábuas do teto pendendo soltas, teias de
aranha, detritos em todo lugar e uma atmosfera assustadora, já que
a única fonte de luz era a de um isqueiro.
– Não reclama, Vinnie. A temperatura está boa e não precisamos
de fogo – disse Jack, em reprovação. – As paredes daqui são
grossas e retêm o calor. Pelo jeito são feitas de barro.

– Na verdade, as paredes foram feitas em taipa de pilão –


Raquel falou finalmente. Estava silenciosa desde a entrada do
parque. – Passaremos a noite aqui, Vinnie. Foi difícil chegarmos até
aqui e estamos cansados. Foram horas de caminhada, ainda mais
buscando ficar longe dos guardas do parque. Iremos de manhã para
um local onde poderemos ficar em segurança.

– Por que não vamos agora de uma vez? Esse lugar me dá


medo, Madame! – choramingou.

– Já disse. Não é uma atitude educada chegarmos no meio da


noite, e o dono do local preza por bons costumes. Ele é... – hesitou
procurando as palavras certas. – por assim dizer, um homem das
antigas.

– Ela está certa. Aqui, venhamos e convenhamos, estamos bem


protegidos.

– Estamos? – interrompeu Vinnie. – Pois eu me sinto pelado,


coberto de mel, na frente de uns dez ursos!

– Para de ser dramático, Vinnie! Ninguém sabe que estamos


aqui. Sossega! – falou taxativo.

Walkyria despertou assustada. Tivera um pesadelo horrível com


Jack, que parecia fugir na mata de uma criatura que lembrava um
morcego gigante ou algo assim. O irmão dormia pesado em seu
colo. Olhou para o relógio. Eram três e quinze da manhã. Saiu da
cama do irmão pensativa. Três horas antes, aproximadamente, dez
carros de luxo chegaram à mansão consecutivamente. Deles
desceram casais de diversas idades, vestidos em gala e usando
máscaras ricamente adornadas. Walkyria acreditava que mais de 50
pessoas haviam vindo até a festa. Finalmente, uma van chegara
trazendo alguns jovens com roupas casuais. Eram nove ao todo,
cinco garotos e quatro garotas, todos muito bonitos e com não mais
de vinte anos.

Walkyria se perguntava como essas pessoas se apertavam na


biblioteca. Sabendo que não conseguiria voltar a dormir e não mais
contendo sua curiosidade, desceu até o térreo, onde o silêncio
imperava. Caminhou até a biblioteca, mas ela estava vazia. Andou
por toda a casa sem encontrar ninguém. Voltou à biblioteca
perplexa. Sentou em uma das poltronas favoritas de seu pai e se
perguntou onde estariam todos. Então sentiu uma fragrância suave
no ar. Era um cheiro adocicado, que lembrava incenso e parecia sair
dos livros na estante. Inspirou profundamente e o perfume pareceu
acalmá-la e dar-lhe uma sensação agradável de prazer. Aproximou-
se da estante tentando entender de onde vinha a fragrância.
Reparou, então, em uma pequena estatueta à qual ela nunca dera
atenção, por ser quase idêntica à enorme estátua da entrada da
casa. Era uma mulher anjo, portando escudo e uma balança. Ela
tentou pegar a estatueta, mas a peça estava presa na estante.
Walkyria fez força e percebeu que, embora não saísse do lugar, a
estátua parecia ser capaz de girar no próprio eixo. Ela o fez.

Com um estalo, a estante começou a se mover lateralmente,


revelando uma antessala com as portas duplas e luxuosas de um
elevador. Quando as portas se abriram, ela pôde ver uma caixa de
madeira e ricamente adornada em dourado e espelhos. Era bem
espaçoso, para quinze pessoas. Walkyria entrou sozinha e olhou o
painel, que só tinha dois botões, um para cima e outro para baixo.
Apertou o que descia e as portas se fecharam.

Em poucos segundos, as portas se abriram novamente. Havia


diante de seus olhos uma lindíssima sala de estar, com diversas
poltronas e espreguiçadeiras de tecido púrpura, além de um bar em
madeira de lei. Tapetes pretos, com detalhes em branco formando o
símbolo que adornava o chão da sala da casa da praia, uma
espécie de raio em formato de C. As cortinas eram brancas, com
arabescos na forma do estranho raio em preto. E do lado oposto de
onde estava, havia duas majestosas portas de madeira negra
entalhadas com o mesmo símbolo e suas maçanetas eram
cromadas. O aroma adocicado dominava o ambiente, e Walkyria
sentiu-se levemente excitada, além de relaxada, como se houvesse
bebido um pouco mais do que devia. Sentia uma leveza
embriagante e um calor sedutor em sua virilha.

O mais curioso da sala, no entanto, era que, perto das portas,


havia duas entradas laterais abertas, das quais partiam longos
corredores. Walkyria reconheceu, pendurados em cabides, os
vestidos de gala e ternos dos convidados. Com um olhar mais
atento, também encontrou as roupas dos jovens que chegaram na
van. Via roupas íntimas e mantos que cobririam todo o corpo. Eram
capas longas com capuz, feitas de cetim, também púrpuras, com o
símbolo bordado em prata brilhante nas laterais mantendo um
padrão. O forro da capa era de veludo negro.

Walkyria podia sentir o cheiro adocicado sair pelas portas duplas.


Aquele aroma e os sons abafados, que pareciam uma espécie de
cântico, despertavam sua curiosidade. Sentiu o calor invadindo seu
corpo e desejou entrar. Pensava em como faria isso quando as
portas se abriram. Escondeu-se entre as roupas e ficou observando.
Uma mulher saiu da sala. Estava nua, exceto pela máscara e pela
capa. Walkyria via os seios expostos da mulher, que foi até bem
perto dela. Tampou a respiração e se apertou na parede atrás dos
vestidos. A mulher abriu uma bolsa e puxou um cigarro, acendeu-o
com um isqueiro dourado e ficou tragando a fumaça tranquilamente
sentada no bar.

Minutos depois, a porta se abriu novamente e um rapaz saiu.


Também estava nu, exceto pela máscara e capa. Walkyria percebeu
com certo desejo que o membro do rapaz estava duro como uma
rocha.

– Você vai demorar? – o rapaz perguntou, tocando a moça com


lascívia. A mulher riu com prazer.
– Só vou fumar esse cigarro. Já estou voltando. A última foi boa
demais. Precisava respirar um pouco – a mulher falou soltando a
fumaça.

– Não demora. A noite será longa! Temos que aproveitar! – o


rapaz falou voltando para a sala.

A mulher fumou o resto do cigarro tranquilamente e depois


retornou para a sala, deixando Walkyria novamente só. Sua
curiosidade parecia uma criatura viva dentro dela. Desejava entrar
no aposento, mas sabia que precisaria de uma máscara e uma
capa. Procurou pelo local sem sucesso. Já aflita com a possibilidade
de não conseguir, lembrou-se da sala de música da casa. Correu
com o coração acelerado e sentindo a descarga de adrenalina.
Tinha a sensação de estar fazendo algo proibido, mas intensamente
desejado, como uma adolescente que começa a descobrir os
prazeres do sexo com seu primeiro namorado. Depois de tanta
tensão por causa do sumiço de Jacó, aquela sensação era bem-
vinda.

– Devo estar maluca! – falou para si mesma enquanto


vasculhava a sala de música, impressionada com sua ousadia e, por
outro lado, confusa com ela. Finalmente seus olhos acharam o que
procurava. Na parede, havia uma bela máscara veneziana que a
madrasta trouxera de uma das viagens em família. Deveria haver
duas, mas somente uma estava lá. Sem hesitar, colocou-a sobre a
face e tornou ao andar inferior. Ao chegar lá, despiu-se rapidamente.
Parou por alguns segundos, embaraçada diante de suas roupas
íntimas, mas respirou fundo e absorveu o quanto pôde do ar
adocicado do incenso, que pareceu preenchê-la como uma chama,
dando-lhe coragem. Deixando-se perder nas sensações que o
perfume lhe proporcionava, sentiu o jorro de adrenalina no corpo.
Sem mais medo, tirou o que faltava de suas vestes. Nua, exceto
pela máscara, colocou a capa sobre a pele pálida e bela. O tecido
acariciava seu corpo de uma maneira erótica. Sentia a curiosidade e
o desejo aumentado conforme girava a maçaneta e abria a porta em
busca dos mistérios que sua família nunca lhe havia revelado.
Uma lufada de ar quente veio em sua direção carregado com o
cheiro dos aromas que pareciam afogá-la num oceano de flores e
açúcares. Sentiu as pernas moles. Olhou ao redor e se surpreendeu
com o que via. Diante de Walkyria havia um verdadeiro anfiteatro
em miniatura. Sua arquitetura e arte eram góticas. Esculturas
belíssimas de mulheres de corpo escultural e cabelos presos em
longos rabos de cavalo que chegavam até o chão recheavam o
ambiente. O que mais impressionou Walkyria, no entanto, não foi o
cômodo ricamente decorado que ela jamais havia visto, mas o que
acontecia ali.

Lá estavam os convidados que ela havia visto chegar. Estavam


nus, exceto por suas máscaras extravagantes. Os mantos de cor
púrpura descansavam no chão. Identificou também os jovens da
van, nus e desmascarados, posicionados lado a lado no centro do
salão, de pé, amarrados e vendados. Da esquerda para a direita,
havia uma garota, um garoto, outra garota, uma sequência de três
rapazes, seguidos de mais uma jovem, um garoto e a última garota.

Esses jovens estavam sendo usados pelos convidados como


objetos. Seus corpos eram possuídos das formas mais criativas e
lascivas que a mente humana é capaz de conceber. Entretanto, não
eram somente os jovens as atrações. Por todo o salão, homens e
mulheres atracavam-se numa orgia selvagem, da qual o corpo e
seus desejos eram os únicos senhores. Não havia uma mulher ou
homem sozinho, fosse acompanhado de alguém do mesmo sexo ou
de alguém do sexo oposto. Walkyria também via mulheres com
vários homens e vice-versa, assim como grupos de homens e
mulheres ligados um ao outro por seus sexos, num verdadeiro grupo
sexual.

O cheiro de sexo misturava-se ao do incenso, e Walkyria sentiu


com assombro seu corpo responder àquela cena com uma
excitação que jamais sentira. Sempre achara repugnante orgias ou
bacanais. “Sou exclusiva”, dizia quando o assunto caía na mesa
entre as amigas. “Não divido meu homem com ninguém, nem sou
dividida!”, era categórica toda vez.
Agora, no entanto, vendo essa cena, sentia seu corpo desejando
ser uma daquelas mulheres. Não entendia o que estava
acontecendo com ela. Uma voz dentro de sua mente dizia: vá
embora! Quase um débil sussurro, mas outra gritava a plenos
pulmões: ninguém saberá que é você. Entregue-se! Só se vive uma
vez!

Walkyria não sabia à qual voz deveria dar ouvidos. Reparou que
todas as mulheres tinham longos cabelos, todos presos no alto num
rabo de cavalo. Reparou também que eram as mulheres que
escolhiam seus parceiros, e os homens tinham de obedecer. Se
uma mulher quisesse somente um homem, ela teria só um; se não
quisesse nenhum, não teria nenhum; se quisesse diversos, eles que
se virassem para preenchê-la como pudessem. A garota tratou de
prender o cabelo no alto da cabeça para evitar chamar atenção.
Agradeceu por gostar de cabelos compridos e ficou se perguntando
se era por isso que a madrasta sempre reclamava quando ela
cortava os cabelos curtos.

Um homem se aproximou de Walkyria e, num sobressalto, ela


olhou para ele. O corpo era definido e musculoso, e o membro
estava rígido diante dela. Ela olhou nos olhos por detrás da máscara
e viu Jack. Ele pareceu esperar que ela lhe desse a autorização
para tocá-la. Extasiada, abraçou o homem com alegria e sentiu seu
pênis como uma clava de carne encostando na sua pele e quase
queimando-a como brasa.

– Esse cara não é o Jack! – o pensamento veio num relampejo.


– Jack foi sequestrado. Ele não está aqui! – mas o cheiro era do seu
amado (ou seria o cheiro do incenso?) e o toque era o mesmo (não
exatamente o mesmo. Era mais grosso e mais selvagem. Tocava
em seus seios com lascívia, e Jack, mesmo excitado, era um
homem carinhoso). Ela queria tanto esse homem (Ou queria tanto o
Jack?)...

Entregava-se para os dedos do homem, que já a invadiam


ansiosos, e olhava para o local. Sua cabeça estava leve e nas
nuvens, mas seu corpo parecia fixado nos dedos que a penetravam
afoitamente. Notou que atrás dos jovens, que soluçavam de tanto
prazer, havia quatro figuras distintas, três homens e uma mulher.
Todos tinham a pele bem clara (e de repente Walkyria se deu conta
de que não havia nenhum negro na festa, somente pessoas
brancas). A mulher tinha cabelos loiros como os dela e eram muito
compridos. Na verdade, mesmo presos no alto da cabeça,
cascateavam pelas costas como uma capa e chegavam quase na
altura dos joelhos. Walkyria nunca vira cabelos tão longos. O corpo
da mulher era escultural e Walkyria sentiu o desejo de beijá-lo e
lambê-lo inteiro!

– Eu gosto de homem, não de mulher! (gosto mesmo? Talvez só


não tenha experimentado algo novo...) – os fluxos de pensamentos
vinham constantes e oscilantes. Walkyria não pensava direito. Com
o êxtase a dominando, pegou no membro do rapaz Jack a sua
frente cheia de malícia e desejo.

Do quarteto do tablado, um homem sentava em um trono,


enquanto os outros dois possuíam ao mesmo tempo a bela mulher
loira que Walkyria cobiçava. O homem no trono era mais velho,
talvez da idade de seu pai, acreditava ela, mas tinha uma
musculatura rígida, assim como o seu pênis. Tudo o que Walkyria
queria era colocá-lo na boca.

Um dos jovens soluçou mais alto e tirou um pouco a garota de


seus devaneios sexuais. O homem que a tocava pedia para possuí-
la, mas o rapaz gemendo alto no meio do salão chamou sua
atenção pelo que começou a dizer.

– Não, por favor! Eu não quero gozar. Por favor, pare! – uma
mulher lhe fazia sexo oral com vigor, e o garoto parecia mais
chorando que tendo prazer. Olhando melhor, Walkyria percebeu que
duas das garotas estavam chorando enquanto eram penetradas
(penetradas ou estupradas? Não sabia mais dizer). As outras duas
já estavam desfalecidas e tinham uma tinta vermelha que lhes
descia do pescoço até o pé (tinta ou sangue?). Começou a perceber
que os rapazes do canto também pareciam desfalecidos e pintados
com a mesma tinta (desmaiados ou mortos?). Olhou para os três
rapazes e viu que eram atendidos pela mesma mulher. Não havia
reparado nessa cena antes e, ao centrar seus olhos, sentiu suas
pernas bambearem de prazer. A mulher masturbava os dois do
canto enquanto fazia sexo oral no do meio, e era penetrada por dois
homens mascarados. Fazia tudo isso com uma desenvoltura
soberba. O corpo era esbelto, com seios fartos e um cabelo negro
curto – era a única mulher de cabelos curtos, notou agora.

Walkyria gemeu num espasmo de prazer enquanto atingia o


clímax nos dedos do rapaz Jack. Sentia o corpo desfalecendo e
pareceu-lhe que os rapazes também iam atingir o clímax. Foi então
que o homem do trono ergueu a mão, e os outros dois ocupados
com a loira escultural deixaram-na e foram até os garotos,
posicionando-se atrás deles. O homem do trono foi até o do centro.
Todos pararam tudo o que faziam, exceto os homens que
penetravam a mulher do centro, que também continuava dando
prazer aos rapazes.

Todos passaram a entoar um cântico mórbido e estranho,


inclusive o rapaz Jack, que continuava com os dedos dentro de
Walkyria. Ela sentiu um hálito de fumante (Jack odeia cigarro!) e sua
voz era grossa e falha, nada semelhante ao amado.

O cântico a deixava ainda mais tonta e o prazer invadia seu


corpo em ondas. Começou a recitar as palavras desconexas, que
saíam como uma canção. Walkyria era tomada por um novo
orgasmo e já não controlava seu corpo, mas seu coração batia
dolorosamente.

– Há algo errado. Preciso sair daqui! – pensou, mas esqueceu


logo o pensamento quando outro orgasmo a atingiu como um raio.

Os homens mascarados atrás dos rapazes ergueram suas


cabeças pelos cabelos. Os garotos choravam e gritavam em pânico.
Walkyria foi tomada por mais um orgasmo e seu pânico aumentou.
Seu corpo se contorcia de prazer, mas sua alma gritava
aterrorizada.
– Não, por favor! – gritou um dos rapazes. Seu corpo tremia e
sua voz estava cheia de terror e prazer.

Walkyria, que estava entre o desfalecimento e o pânico, voltou


os olhos para seu amante e viu uma barba espessa e branca (o
Jack não tem barba, ainda mais branca!). Os três rapazes atingiram
o orgasmo ao mesmo tempo e, enquanto os sêmens eram colhidos
por três mulheres, Walkyria pôde ver a máscara da mulher de
cabelos escuros. Era a que fazia par com a sua! Madalena!

Então ela soube. Lembrou-se dos primeiros convidados, aqueles


do jantar: a mulher loira, o marido, William e seu pai. Eles eram os
homens do tablado. Seu pai era o homem do trono (o homem que
eu quis dentro de mim!), o mesmo que agora segurava a faca perto
do pescoço do rapaz do meio.

Horrorizada, afastou-se do seu amante e viu um homem velho,


com mais de sessenta anos, com uma barriga flácida e um membro
ainda mais horroroso e desprezível. O coração da garota começou a
rugir selvagemente, quase quebrando a caixa torácica e saindo do
peito sozinho, quando seu pai e os outros dois homens (William e o
outro, meu Deus!) cortaram com solenidade a garganta dos jovens e
o sangue correu vermelho e fluido.

– Oh meu Deus! – sussurrou, e seu corpo ainda gritava por sexo.

Outras mulheres colheram o sangue. Madalena, ainda nua,


exceto pela máscara, sangue e sêmen, pegou as tigelas e,
enquanto recitava uma canção diferente, mas complementar à
outra, misturou os dois líquidos numa bandeja de prata e levou-a até
a mulher loira, que, erguendo-a, recitou ainda uma terceira melodia,
com sua voz límpida como a de uma soprano. A bandeja passou a
emitir um brilho púrpura.

Seu pai se aproximou da mulher e ergueu suas mãos. Segurava


uma pequena pedra, que parecia um diamante. Com os dedos em
forma de pinça, colocou-o na tigela, fazendo o brilho aumentar.
O velho, que antes fora Jack, aproximou-se de Walkyria tentando
beijá-la, mas ela o empurrou com força. Ele foi para trás e olhou
para ela confuso, mas voltou a abraçá-la. Walkyria tentou afastá-lo
novamente, mas o corpo estava enfraquecido pelo prazer absoluto.

Seu pai ergueu a voz, que trovejou pelo aposento:

– Gabriela Lancaster!

Todos repetiram em uníssono:

– Gabriela Lancaster!

O velho também repetiu “Gabriela Lancaster” no ouvido de


Walkyria e ela sentiu nojo quando ele a lambeu.

Então William (ela sabia que era William) pegou uma jarra e
derramou o que parecia ser mais sangue na tigela. Em seguida,
falou:

– Barashemesh!

E todos repetiram:

– Barashemesh!

– Que suas almas sejam uma! Que seu corpo possa ser
flagelado e que seu espírito seja arrancado! – William gritou com
vigor enquanto erguia a pedra, agora vermelha, como um diamante
de sangue.

– Sangue é vida! – o salão trovejou.

Walkyria torceu a mão do velho com um movimento ensinado


pelo Jack e empurrou-o para longe. Abriu as portas e saiu. A orgia
havia sido retomada de maneira ainda mais intensa e ninguém a
impediu, nem mesmo o velho que a bolinava, que agora fora puxado
por uma senhora de seios murchos e barriga pelancuda, que
também entregava-se a um rapaz forte e musculoso.
Na antessala, dois homens fumavam charutos sentados num
sofá enquanto se masturbavam um ao outro. Largou o manto no
chão sem se importar com sua nudez, pegou suas roupas e entrou
no elevador. Da biblioteca foi até a sala de música e devolveu a
máscara ao seu devido lugar com as mãos trêmulas. Em seguida,
correu até o quarto e foi direto para o chuveiro.

Lavou seu corpo diversas vezes, mas sentia a aspereza das


mãos do velho na sua pele. Parecia que sua saliva havia penetrado
pelos poros. Esfregava-se compulsivamente enquanto as lágrimas
lavavam seu rosto.

Saiu do banho sem se preocupar em se vestir. Foi ao quarto da


madrasta e do pai. No banheiro, abriu o armário do espelho e pegou
os remédios de Madalena (ainda podia vê-la com aquele olhar
sedento ao colher o sêmen do rapaz assassinado). Abriu o frasco e
pegou três comprimidos. Foi até o bar que havia no quarto, puxou
uma garrafa do Whisky de mais de 20 anos e encheu um copo.
Levou os comprimidos à boca e tomou a bebida, que desceu
flamejante aquecendo seu corpo e amortecendo-o. Voltou ao seu
quarto e trancou a porta. Deitou em sua cama e chorou até
adormecer. Sabia que teria de lidar com as informações recebidas
naquele dia, mas não tinha forças para isso agora.

Tudo o que Walkyria queria no momento era o abraço do


esquecimento.

Por mais que tentasse, Vinnie simplesmente não conseguia


dormir. O chão era desconfortável, o local era assustador e sua
cabeça estava muito ativa para pregar os olhos. Jacó e Raquel
dormiam tranquilamente. Com tanto cansaço e correria, os dois
conseguiram separar todos os problemas da mente em uma caixa e
lacrá-la até a manhã seguinte. Ele se levantou silenciosamente e pé
ante pé saiu da senzala assustadora para o ar refrescante da noite.
Observou as estrelas e se perguntou como o céu podia ser tão
bonito se ainda estava na cidade. A poluição sempre o cobria com
uma manta cinzenta que apagava as estrelas, mas naquele local
elas se exibiam belas. Vinnie pensou em tudo o que tinha
presenciado e se surpreendeu.

Há menos de um ano, tudo em sua vida era especulação.


Sempre desconfiara, ou melhor, sempre soubera que havia mais
nessa terra que os olhos podiam ver, mas nunca teve a chance de
comprovar suas teorias. Então houve o primeiro ataque e tudo
mudou... O Herege mexera com a realidade ao cometer alguns dos
crimes mais brutais da história brasileira, e quanto mais Vinnie
mergulhava na busca do assassino mais sua vida mudava. Agora,
depois de conhecer Raquel, parecia que o real e a especulação
haviam se tornado uno. Vampiros, que Raquel continuava
chamando de Nosferatus... Ghouls... De repente se viu mergulhado
num mundo que só vira em video games.

Vinnie sempre fora atrás da verdade. Agora a havia encontrado,


e ela era ainda mais espetacular e macabra do que imaginara.
Sabia a verdade, mas não podia contá-la. Presenciara um monstro
que rasgava metal com as mãos e não tinha isso gravado em vídeo.
Vira pessoas serem mortas como brinquedo e não tinha como
provar. Estava possesso!

Respirou fundo e pensou na mãe. A pobre coitada fizera sempre


de tudo para confortá-lo e protegê-lo. Sorriu ao pensar na senhora
gorda e bondosa que o amava mais que tudo. A mãe jamais poderia
saber o que estava acontecendo. Seus pensamentos vagaram da
mãe para o psiquiatra, que o protegia como um campeão.
Perguntava-se de onde aquele homem tirava coragem para fazer as
coisas que fazia.

– A Madame Van Helsing até entendo. Ela é louca – pensou. –


Mas o Doutor parecia um cara tão normal...

Vinnie queria ter aquela força. Era corajoso, sabia disso, mas
sua coragem era impulsionada pela curiosidade. Iria ao fundo dessa
jornada para descobrir cada vez mais sobre esse mundo
sobrenatural e misterioso, mas não saberia o que faria se
encontrasse uma das criaturas sozinho.

Uma mão fria tocou em seu ombro e fez seu coração disparar
dentro do peito. Virou-se encolhido, totalmente assustado, mas em
velocidade, e deu de cara com Gisele, a garota do trem da noite
anterior. Vinnie sorriu estupefato. A visão da moça era um colírio em
meio à loucura dos últimos dias.

– O que você está fazendo aqui, garota? – ele perguntou


espantado. Ela deu de ombros.

– Não tinha nada para fazer em casa... Decidi te ver.

– Como sabia que eu estaria aqui? Mais importante: como você


entrou aqui? – perguntou com um pequeno alerta se formando em
sua mente, mas Gisele riu. Vinnie teve a sensação de que os olhos
da garota reluziram, e ele se sentiu mais relaxado na presença dela.
A mulher falou:

– Isso importa, Vinnie? Ou importa mais eu estar aqui com você?


Uma mulher tem que ter os seus segredos...

Vinnie olhou para ela confuso. Sentia um desconforto, que não


sabia dizer o que era, mas bastava olhar para aqueles olhos que
uma calma se apoderava dele. A voz da garota parecia cantada.
Ainda assim, estava curioso:

– Como sabe meu nome? – mas ela o abraçou e ele sentiu seus
seios rígidos comprimidos em seu peito enquanto ela aproximava os
lábios dela dos dele.

– Ouvi no metrô, seu bobinho – e o beijou.

Vinnie foi às alturas. A garota beijava muito bem. Beijaram-se


longamente. Seu beijo o fez esquecer dos problemas. Parecia um
calmante natural. Sentia-se zonzo, quase embriagado.
– Mas sério – falou depois do beijo. – Como você chegou aqui,
Gisele? – a curiosidade e algo a mais não permitiam que
desconsiderasse a presença dela naquele lugar, embora lhe
parecesse natural. O que o fazia raciocinar era imaginar Jack
dizendo: – É muita coincidência para ser coincidência...

A garota olhou para ele frustrada, sem largar o abraço.

– Ah Vinnie... Deixa der ser chato! Importa como eu vim para cá?
Temos coisas mais divertidas para fazer do que preencher um
questionário – a garota colocou a mão dele em seu seio. Ele
arregalou os olhos. Ela o encarou e seus olhos reluziram mais uma
vez, deixando-o excitado e entretido. A garota o beijou
languidamente.

– Os outros dois estão lá dentro? Jacó está dormindo? Raquel?


– ela perguntou. Ele aproximou os lábios dos dela.

– Estão – falou voltando a beijar a moça, mas em seguida abriu


os olhos no meio do beijo e afastou-se. – Não tinha como saber que
vínhamos para o pico do Jaraguá, muito menos que ficaria aqui na
casa do Afonso Sardinha! – falou sério, lembrando-se das lendas
sobre o local, dos espíritos atormentados que viviam na casa do
Velho Sardinha.

A garota riu.

– Isso importa, meu amor? – conduziu a mão do repórter para


sua virilha. Seus olhos voltaram a reluzir, mas dessa vez ele foi mais
firme e, afastando-se da garota, falou:

– Sim. Importa sim! – sentia um medo instalando-se em seu


estômago.

A garota fez biquinho com cara de triste:

– Eu conheço o dono da casa, Vinnie. Ele me contou que você


estava aqui.
– A casa de Afonso Sardinha faz parte do patrimônio do estado
de São Paulo. Não pertence a ninguém – seu coração passou a
bater freneticamente. Deu mais um passo para trás. Ela o
acompanhou.

– Você sabia que essa casa foi construída em taipa de pilão,


Vinnie? – perguntou enquanto ele se afastava.

– Ouvi falar – disse aumentando o tom de voz na esperança de


acordar os companheiros. – O que tem isso? – suas últimas
palavras foram quase um grito. A garota riu.

– Quando Afonso Sardinha construiu essa casa, usou uma


mistura de barro batido com vísceras e sangue de animal. Ao menos
é o que dizem, mas na verdade Afonso usou o sangue dos índios
que o desafiavam, assim como de suas esposas e crias. Foi uma
magia poderosa e até hoje o Velho sabe quando sua casa é
invadida.

Vinnie aproximou-se da janela da casa. Andava de costas


encarando a garota, que continuava vindo com passos sinuosos e
falando com malícia:

– É bom ter esse local sob nossos cuidados, sabe? Tem um ser
de muito poder nessa região que sempre observamos de perto.

– O garoto deu um tapa na janela. Estava aterrorizado. A garota


continuava falando enquanto se aproximava dele.

– Tínhamos medo de que vocês fossem até ele, mas vocês


pararam aqui... Isso foi tão perfeito! – falou extasiada.

– Perfeito por quê? – Vinnie perguntou, mas já previa a resposta.

– Ora, Vinnie, esse local é uma verdadeira fortaleza, o refúgio de


Dom Afonso Sardinha, o Velho – falou com um sorriso confiante.
– Dom Afonso Sardinha, o Velho, está morto há mais de 400
anos, Gisele – falou perturbado.

– Nem por isso estou menos letal, gajo. Afonso pode ter morrido
há míseros quatro séculos, mas há quase cinco milênios venho
sendo mais esperto que a morte, rapaz.

Vinnie se virou. Diante dele estava uma figura majestosa saída


do passado. Os cabelos castanhos escuros, da mesma cor dos
olhos, bem aparados, encaracolados e grossos combinavam com o
longo e vistoso bigode e costeletas. O nariz, em conjunto com
curvado e longo entregava sua origem mediterrânea. Vestia uma
jaqueta azul, calças brancas e somente se dera o trabalho de trocar
os sapatos envernizados por uma bota de gola. Tirara a capa e
carregava um sabre na cintura.

Dessa vez Vinnie não disfarçou. Puxou o ar com força e gritou.


Dom Magalhães, como hoje era conhecido Dom Afonso Sardinha, o
Velho, deu um passo à frente com sua expressão arrogante e
vitoriosa. Gisele pulou sobre Vinnie abrindo a boca de maneira
abominável e mostrando uma língua grotesca e pontiaguda. Vinnie
gritou ainda mais alto ao ver a verdadeira face da garota, uma
ghoul. Sentiu o hálito de carniça e viu suas mãos crescerem até se
tornarem garras. Seus dentes eram serrilhados como os de um
tubarão e se enfileiravam em três camadas. Os olhos brilhavam
como os de um gato.

Magalhães se aproximou rindo. Estava exultante! Conseguira o


que todos buscaram sem êxito. Chegara até o Receptáculo e estava
prestes a aprisioná-lo. Só precisava lidar com o último adversário e
o Receptáculo estaria a sua mercê! Ele construíra aquela casa
desde a fundação, uma casa onde ele, ainda mortal, esmagara e
regara o barro com o sangue de seus inimigos, misturando a ele os
ossos de suas esposas e filhos, a mesma casa onde o velho
português invocara terríveis demônios e os aprisionara naquelas
paredes.
Arrombando a porta da casa com um chute violento, o ex-militar
surgiu com a espingarda em punho e, sem cerimônia, disparou na
cabeça de Gisele, que explodiu formando uma poça de ossos e
miolos. Vinnie afastou o corpo da melhor forma que pôde e se
arrastou na direção da porta. Jack engatilhou a arma sacudindo-a
para cima e para baixo com uma única mão e disparou novamente,
dessa vez no bandeirante.

Dom Magalhães recebeu o impacto no peito e foi jogado para


trás pelo coice dos projéteis, mas, sem perder o equilíbrio, urrou.
Era um urro sobrenatural de gelar o coração.

Quando Raquel percebeu o que aquele grito provocaria, gritou


em desespero:

– Corram! – bradou já olhando ao redor à procura de perigo e


correu para a mata fechada seguida por Vinnie. Jack ficou mais para
trás para dar tempo aos companheiros. Caminhando de costas,
disparava a espingarda o mais rápido que conseguia, acertando
todos os tiros em Dom Magalhães, que continuava andando
imponente na direção do psiquiatra.

Jack sentiu algo enroscando em seu pé e caiu. Amaldiçoou-se,


imaginando ter pisado numa raiz, e olhou para ver o que havia
acontecido. Teve um sobressalto. Seu tornozelo estava preso por
uma garra esquelética, que o segurava com força.

– Isso não pode estar acontecendo... – falou. Puxou seu pé com


toda a força, mas o braço cadavérico não soltou. E não era o único.
De diversos locais do solo mãos esqueléticas surgiam.

Jacó usou a arma como porrete para tentar escapar, mas Dom
Magalhães chegou primeiro e o agarrou pelo pescoço, erguendo-o
com uma só mão.

– Não estás tão valente agora, não é gajo?


Os olhos de Magalhães ferviam numa luminosidade
avermelhada. Sua mão tinha um aperto vigoroso, como garras de
metal, na garganta de Jack.

– Finalmente estás preso, seu rato – falou no seu carregado


sotaque português. Jack sentia o ar queimando nos pulmões.
Encostou o cano da arma no pulso do adversário e disparou. O
zumbido da explosão o deixou surdo momentaneamente e o rosto
ficou coberto de sangue. Alguns chumbinhos do projétil e lascas de
ossos feriram sua face, mas foi um prazer imenso ouvir o grito do
monstro agora maneta.

O psiquiatra caiu no chão e rapidamente olhou ao redor,


sabendo que teria pouco tempo para agir. Diversos cadáveres de
índios ressecados começavam a sair do solo. Sem esperar pelo que
eles podiam fazer, correu para a mata. Dom Magalhães o seguiu
mesmo com dificuldade.

– Acho que seu amigo vai ter que abrir a porta de pijamas! –
falou quando alcançou Raquel.

Eles tentavam correr, mas os índios reerguidos, embora lentos,


agarravam com força e retardavam o avanço do grupo. Magalhães
continuava gritando e a terra se revolvia por toda parte.

– Tens ideia de quantos inimigos e companheiros caídos


coloquei por este lugar? – gritou. – Podes tentar fugir; meu exército
é imbatível.

– Não vamos conseguir fugir para sempre! – Vinnie gritou


desesperado. Raquel parecia nem lhe dar atenção. Corria pela mata
olhando para cima; parecia procurar algo.

Jack ia na frente, derrubando os cadáveres andantes que


encontrava a dezenas. Eram criaturas trôpegas, que se moviam
com dificuldade, seres aprisionados em corpos decrépitos sem vida
com juntas apodrecidas e ressecadas, verdadeiras múmias. Viviam
em dor e só sabiam obedecer a seu criador, mas ansiavam pela
liberdade. Quando o psiquiatra os golpeava e despedaçava seus
corpos, não imaginava o ato de misericórdia que cometia. Muitos
daqueles seres estavam aprisionados por quase meio milênio.

Então começaram os gritos. Dezenas de vozes lamuriosas


gritavam numa cacofonia insana. Na escuridão da madrugada, tudo
o que podia ser visto eram olhos refletores de luz, movendo-se em
grande velocidade atrás deles. O cheiro de carniça era nauseante e
parecia impregnar o local de maneira palpável.

Jack, Raquel e Vinnie tentavam fugir, mas seus corpos estavam


cansados. Logo foram cercados por um exército de corpos
decrépitos, que os encaravam com sua órbitas vazias e carnes
pútridas. Magalhães surgiu dentre os mortos, sorrindo triunfante.

Jacó segurou a espingarda e golpeou um dos cadáveres que se


aproximava. Magalhães gargalhou. Não tinham como fugir. Jacó
sabia disso e Raquel também, então ela caiu de joelhos. Parecia
chorar. Magalhães, vendo isso, deliciou-se. Jacó, tomado de fúria,
avançou contra o português, que o repeliu num golpe violento.

– Não tens como fugir – Jacó tentava ficar de pé, mas também
caiu no chão, exausto. Vinnie encolhera-se de medo, e Raquel, em
meio a tudo aquilo, chorava. Olhou para os céus e, erguendo as
mãos, começou a falar, entre soluços, numa língua que Jacó não
conhecia.

– Awan d’wash-maya nith-qa-dash shmakh.

Os corpos apodrecidos começaram a se contorcer e alguns a


cair:

– Teh-teh mal-ku-thakh neh-weh tzew-ya-nakh – continuava e


lágrimas de medo corriam por seu rosto.

– Ay-ka-na d’wa-shma-ya ap b’ar-aa haw-lan lakh-ma d’sun-qa-


nan yaw-ma-na – os gritos frenéticos agora eram mesclados com
urros de dor.
– W’ash-wuq lan khau-bayn ay-ka-na d’ap akh-nan shwa-qan
l’kha-ya-wayn – Raquel encarou seus adversários com uma
coragem renovada e colocou-se de pé. Encarou o exército de
mortos. Jacó fez o mesmo e viu diversos homens e mulheres
vestidos em trapos, com línguas monstruosas, olhos de gato, dentes
serrilhados e garras de chacais na sua frente, além de Magalhães,
que os encarava furioso.

– W’la ta-lan l’nes-yu-na e-la pa-tzan min bi-sha – gritou a frase


olhando para cima e Jack sentiu novamente a estranha presença
pacífica que havia sentido na serra dias atrás, um ar de segurança
enorme que emanava de trás dele como o calor de um forno.
Claramente as criaturas não sentiam paz. Gritavam freneticamente
e algumas se encolhiam de horror. Até mesmo Magalhães ficou
atemorizado.

Raquel gritava as frases como um guerreiro brande uma espada.

– me-tol d’di-lakh hi mal-ku-tha.

Uma leva de criaturas veio ao chão como golpeadas.

– w’khay-la w’tesh-bukh-ta.

Outras dezenas caíram. Jacó não acreditava em seus olhos.


Raquel, que outrora parecia ter perdido suas esperanças, agora
estava tomada de fé. Seu duelo com Magalhães permanecia. O ser
ancestral rosnava como um felino. Com os olhos flamejantes, como
seus lacaios, ele tentava avançar, mas as palavras bradadas com
autoridade pareciam empurrá-lo para longe. Firmava os pés no solo,
mas ainda assim era arrastado.

– l’al-am al-min.

Todas as criaturas caíram. Somente Dom Magalhães continuava


em pé com esforço. E Raquel gritou a última palavra, e o grito foi
selvagem, cheio de força e poder. Vinnie sentiu seu corpo ser
invadido por uma energia vibrante que o preenchia de coragem.
Jack estava fervilhando com uma força que não sabia que possuía.
E a voz de Raquel pareceu cobrir qualquer outro som:

– Am-een!

E Dom Afonso Sardinha, o Velho, conhecido como Dom


Magalhães, não suportou aquilo e caiu diante do poder que
emanava dela. A floresta se calou ao mesmo tempo que Raquel.

– Acabou? – Jacó perguntou.

Dom Afonso, prostrado diante deles, reuniu todas as forças que


lhe restavam para uma última bravata.

– Não, gajo, está apenas começando... – e desabou no solo


derrotado.

Não podemos perder tempo. Temos que continuar. Sinto uma


presença ainda maior se aproximando – Raquel falou num sussurro.
Estava esgotada, parecia sem vida. Os dois a ajudaram e seguiram
sem questionar no sentido que ela ordenava.

Aquele era o mundo de Raquel, um mundo que Jacó sabia não


fazer parte. Entendia agora por que as criaturas a queriam tanto. Ela
era poderosa, tinha uma chama dentro de si que o psiquiatra não
entendia, uma força avassaladora e desconhecida por ele. Sabia
que sua vida havia mudado para sempre. Entrara em um território
sombrio e desconhecido, ficara louco, mas agora compreendia que
a loucura e a demência eram duas coisas diferentes. Havia aqueles
irremediavelmente perdidos dentro de sua própria mente, mas
também havia aqueles que tinham os olhos abertos para a verdade
e simplesmente não conseguiam se calar. Jacó aprendera mais
nesses poucos dias sobre o mundo que em seus extensivos
estudos, e soube, no fundo de sua alma, que aquela vida que havia
planejado jamais existiria. Ele agora sabia a verdade e não poderia
ignorá-la. Ele também sabia que Raquel nunca estaria a salvo. Jack
embarcara numa jornada que não tinha volta. E quando sua mente
absorvia tudo isso e Jack era esmagado pela verdade de que nunca
mais veria seus amigos nem sua amada, o frio se tornou
congelante. Uma chuva torrencial voltou a cair em São Paulo e com
ela vieram granizos, quase como projéteis. O caminhar ficou mais
penoso. Com a água veio uma sensação de maldade e poder
onipotentes. Alguém se aproximava, ou alguma coisa, e seu cortejo
era o medo e o desespero.

– Vrykolaka! – as árvores gritaram! A palavra o vento repetiu, a


terra gemeu e a água clamou! De todos os cantos a voz
assustadora podia ser ouvida. Era terrível, inspirada, e transformava
os ossos em cristais e o sangue em água.

– Você é meu! – bradou a voz fantasmagórica, e Raquel já não


tinha forças para lutar. Vinnie, que nunca sentira tanto medo, se
encolheu apavorado. Somente Jacó estava entre a presença
maligna e a garota. Então começou o horror.

Ao longe, Jacó viu erguer-se uma enorme sombra, com mais de


cinco metros de altura. De tão escura, fazia a noite parecer dia.
Emanava uma escuridão tamanha que parecia sólida. Sua forma era
vagamente humanoide, pois tinha cabeça, dois braços e duas
pernas, mas as semelhanças paravam aí. No lugar das mãos havia
tentáculos sombrios, e os pés eram um borrão indefinido. A sombra
abriu seus olhos, que reluziram sua luz azul pálida e macabra. A luz
refletia seu interior. Jacó podia ver que naquele emaranhado de
trevas havia pessoas, mergulhadas num mar de sofrimento eterno;
observando melhor, não eram pessoas, não seres humanos, mas
almas... Almas condenadas que um dia haviam sido pessoas, e que
hoje, depois de décadas, séculos, talvez milênios, clamavam por
salvação, por alguém que pudesse livrá-las daquele sofrimento.

Jacó não conseguiu evitar as lágrimas. Não eram lágrimas de


medo, nem mesmo de piedade ou tristeza. Eram lágrimas de
certeza. Certeza de que sua vida jamais seria a mesma. Certeza de
que havia coisas na eternidade piores que a morte ou a loucura.
Sua mente sabia que aquilo não era real. Sabia que nenhum ser
seria capaz de viver naquele estado. Sabia que aquilo tudo era
impossível. Contudo, tudo aquilo estava acontecendo e por isso
estava estarrecido. Porque Jacó tinha a certeza nesse momento que
tudo o que ele queria era a morte ou a loucura, uma vez que a
realidade era ainda pior.

Devastado, lágrimas corriam por sua face inerte. Entretanto,


enquanto seu corpo, alheio a sua vontade, desejava o fim silencioso
da morte, sua alma incendiou-se numa fúria bestial. Negava-se a
desistir. Disparou seus dois últimos tiros enquanto se virava para
seus companheiros:

– Corram!

Os disparos pareceram apenas incomodar o emaranhado de


almas que formava o corpo de sombras. Elas gritaram e se
remexeram em agonia com os tiros, que, no entanto, como pedras
em um lago, produziram somente marolas inofensivas.

Jack tinha consciência de que aquele ser era forte demais e via
que seus amigos quase não conseguiam se manter em pé. Sem
outra alternativa, fez o que poderia fazer: empurrou os dois e forçou-
os a correr o máximo que podiam. Raquel indicava o caminho.

A sombra movia-se trazendo um frio sobrenatural. Por onde


passava, plantas morriam, a terra ressecava e árvores definhavam;
insetos fugiam em profusão e passarinhos caíam mortos dos galhos.
Todos os seres que se alimentavam da podridão e morte, vermes
insetos e demais parasitas, vinham à tona em selvageria.

Raquel voltou a recitar suas palavras desconhecidas, que


surtiram efeito, pois a criatura parecia enfrentar obstáculos ao
avançar.

– Muita gente inocente morreu nessa floresta – Raquel falou. De


seus olhos corriam lágrimas de sangue. – Ele pode usá-las contra
nós. Ele é muito forte... – gemeu.

Jacó a pegou no colo. Vinnie recuperara o fôlego. Os dois


saíram correndo, Jack com a moça nos braços. Em sua corrida
frenética, na maior parte do tempo olhava para trás e não para
frente. Quanto mais na mata entravam, mais surreal tudo se
tornava. As árvores lembravam pessoas tortas, quebradas, em
agonia e sofrimento. A terra se tornava mais negra e exalava um
fedor intenso de podridão. Ossos brotavam do solo e sombras
dançavam ao redor.

– Não fugireis, filhos dos homens! A cada passo que dais


adentram mais no reino dos mortos. Logo sereis incapazes de
escapar. Entregai-vos e eu vos darei uma morte tranquila e
indolor.

– Vai para o inferno! – Jacó gritou. A sombra gargalhou.

– Ora, meu bom rapaz, para onde achas que estás indo?

Jacó engoliu em seco. Então um som horrível começou. Era uma


cantoria desafinada e desconexa em diversas línguas. O psiquiatra
conseguiu entender apenas algumas palavras:

– O, te jotka tulevat tänne, luopua kaikki toivo. O, julle wat hier


ingaan, laat vaar alle hoop. O, die ihr hier eintretet, alle Hoffnung
aufzugeben. O, yeogie iblyeog neohuineun modeun huimang-eul
pogi. O, vous qui entrez ici, abandonnez tout espoir.

Até que pôde entender:

– Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança!

– Está na sua mente! – Raquel gritava. – Não é real. Está


acontecendo tudo na sua mente.

Mas Vinnie já não ouvia nada. Gritava e soluçava em terror,


guiado somente pelo aperto firme de Jacó, que tentava continuar,
mas estava à beira de perder a consciência. Seus sentidos não lhe
prestavam o auxílio de sempre e um véu parecia nublar sua razão.
Então a garota gritou apontando ao longe:
– Ali! Ali! – Jacó olhou e viu uma antiga construção. Era uma
enorme mansão ou um pequeno castelo, não sabia ao certo o que
pensar, encravado no meio da mata com suas torres e um enorme
portão. Lembrava uma fortaleza ou uma igreja, também não
conseguia definir, mas teve a certeza dentro de seu coração que era
para lá que deveria correr. As palavras de Raquel não atrasariam a
sombra por muito mais tempo, portanto aumentaram a velocidade
como puderam.

Quando viu o castelo, a criatura urrou furiosa. O frio ficou quase


insuportável. Os gritos e lamúrias se tornaram gemidos mórbidos e
perturbadores. A chuva tornara-se quase neve.

Jacó olhava para a frente e viu o portão da construção sendo


aberto por uma figura encapuzada num manto negro. Tudo o que o
psiquiatra via, em seu delírio, era um queixo forte quadrado e
branco como osso. O manto negro cobria-lhe todo o corpo maciço,
mas era uma figura imponente, com um ar majestoso. Deu
passagem para que os três passassem e falou com uma voz fria e
grave.

– Vocês podem entrar.

Eles assim o fizeram e, ao cruzarem o portão, parte do terror se


desfez, pois parecia que haviam cruzado uma cortina. Seus corpos,
cedendo ao cansaço, foram ao chão. Perceberam aliviados que
dentro dos portões tudo era normal: as árvores, o ar, a terra. A única
figura estranha era o ser encapuzado, que levantou parte do manto
e revelou um brilho dourado em seu corpo. Pegou a empunhadura
de uma espada antiga, como a dos gladiadores romanos, e, quando
a desembainhou, o psiquiatra viu que parte da lâmina era feita de
ouro, a única parte que sobrara. Então o homem gritou e sua voz
trovejou acima dos lamentos.

– Tu não entrarás!

A sombra fria cresceu e se avolumou ainda mais diante do


homem, e os gritos se tornaram uma cacofonia macabra. O outro
ergueu a lâmina partida e novamente gritou:

– Tu não podes entrar!

Então a lâmina partida se acendeu em chamas e tornou-se uma


língua de fogo. O ser de manto negro que a carregava encontrou o
ser de sombras e coração de gelo, e uma grande explosão
flamejante surgiu dos dois, cegando momentaneamente a todos.

Silêncio.

Jacó ouviu passos metálicos que esmagavam a terra. Quando


pôde enxergar quem vinha na direção deles, o homem havia
retirado o capuz do manto. Era um homem belo, de traços fortes e
marcantes, tipicamente britânicos; era alto e musculoso e possuía
olhos azuis límpidos, controlados e frios.

– Meu nome é Michael Anwr. Sejam bem-vindos ao meu lar.

Vinnie gemeu mais uma vez e caiu desacordado. Jacó,


esgotado, fez o mesmo.
Capítulo 14

Quase trinta anos antes...


Era o início do vigésimo nono dia de fevereiro – um dia com seus
augúrios e peculiaridades; um dia para profanações e sacrifícios. O
homem que caminhava pela avenida em plena madrugada sabia
disso. Considerava aquele dia, também, talvez o mais auspicioso e
místico, perfeito para encantamentos.

– Enquanto eu andar por essa terra, não haverá sacrifícios! –


pensou.

Estava usando seu longo sobretudo negro por cima de algo


volumoso, o que deixava o homem, já grande, enorme. Agradecia
por ser alta madrugada; chamaria menos atenção. Mesmo assim,
acabava sendo alvo de curiosos, porque era verão e estava calor.
No entanto, tinha a clara e absoluta certeza de que atrairia ainda
mais a atenção para si caso abandonasse o sobretudo. Seu único
objetivo era encontrar seu alvo.

Sentiu no ar o cheiro de terra revolvida e podridão. Chegara a


um antigo cemitério. O muro alto de concreto mantinha os mortos
seguros, e os desabrigados, fora. A figura sombria parou por alguns
momentos e observou a rua com calma, sem ver ninguém. Com
pouco esforço, saltou e agarrou no alto do muro. Os cacos de vidro
que penetraram na carne de seus dedos não causaram dor.

Flexionou o corpo para cima e, com um salto gracioso, caiu de


pé do outro lado, afundando na terra revolvida, como se fosse uma
enorme estátua viva que saltava e não um ser humano e, de fato,
não era.

Não mais...

Ergueu a cabeça e farejou o ar, sentindo uma fragrância suave e


incomum de talco entre o fedor de carne pútrida. Seguiu o perfume
até o centro do cemitério, e, no coração da necrópole, encontrou
seu alvo.

– Estava a esperar por ti, Não Vivo – a voz com sotaque lusitano
de Dom Magalhães soava clara e audível no cemitério. Vestia uma
roupa antiga, como de costume, mas dessa vez, em especial,
carregava um peitoral de aço a cobrir-lhe o tórax e uma lâmina na
cintura. Tinha uma espingarda na mão. A arma, embora atualmente
seja uma peça de museu, em sua época era o que havia de mais
avançado.

– Se sabias de minha chegada, tu e teu mestre deveríeis ser


mais cautelosos, Magalhães – a voz de sotaque indefinido e tom
grave do homem chamado de Não Vivo era fria e cortante do alto de
seus dois metros. Era uma voz de tenor e combinava com o rosto
pálido e quadrado de grandes e severos olhos azul-celeste. A
melena se derramava pelo meio das costas, negra e pesada, como
seu sobretudo.

– Ora, gajo, era de nosso interesse atrair-te para cá. Hoje


daremos fim a teu sofrimento e tua constante impertinência! –
Magalhães riu. O Não Vivo ouviu rosnados e gemidos e percebeu
que o fedor pútrido não vinha das valas, mas de seus ocupantes.
Ghouls se escondiam nos túmulos e por entre as lápides. Quando
se deu conta do perigo, encontrava-se cercado por dezenas de
lacaios das trevas. Impassível, o homem de sobretudo ergueu o
manto e sacou sua espada. Era dourada, tinha a forma de um
gládio, mas a lâmina encontrava-se partida na metade.

As criaturas atacaram o guerreiro, mas, embora suas garras


fossem afiadas como navalhas, somente puderam despedaçar o
sobretudo que cobria uma gloriosa armadura dourada. Lembrava as
armaduras dos legionários romanos, com peitoral, saiote e grevas
nos tornozelos e antebraços. As semelhanças, no entanto, paravam
por aí. Era uma cota feita de pequenas escamas douradas e polidas
que cobriam toda a carne; ombreiras em forma de cabeça de leões
adornavam os ombros; a cabeça do felino também adornava a fivela
do cinturão e era o emblema no peitoral. A armadura estava intacta,
exceto por um enorme buraco na região do abdômen. Um golpe de
tamanha agressividade teria levado à morte quem a estivesse
usando no momento do impacto. Naquela noite, entretanto, seu
usuário era um arauto dourado do anjo da morte, magnífico e letal.

Incólume, o Não Vivo partiu para o ataque. A cada golpe


devastador, dois ou mais ghouls caíam, vítimas de decapitação ou
desmembramento preciso. A lâmina partida não parecia menos
mortal. O Não Vivo era um matador experiente, um guerreiro de
quase mil anos de experiência. As criaturas mal conseguiam se
aproximar. Quando Dom Magalhães percebeu, era tarde demais.
Antes que pudesse fugir ou armar nova estratégia, o cavaleiro de
ouro estava diante dele com espada em punho.

O antigo bandeirante quase não teve tempo de sacar sua própria


lâmina. Atirou com a espingarda enquanto a sacava, mas o projétil
resvalou na armadura dourada sem nem ao menos marcá-la. A
espada do Não Vivo cortou o ar e o peitoral de aço, fazendo um
rasgo na carne e nos ossos mortos. Dom Magalhães rugiu furioso
como um gato acuado e seus olhos se acenderam; um esplêndido
confronto teve início naquele momento.

Mas Dom Magalhães era também uma criatura de séculos e um


guerreiro habilidoso, e percebeu que nem toda a sua força
sobrenatural seria capaz de impedir aquele ser tão hercúleo.
Engolindo seu orgulho, gritou:

– Ajudai-me AGORA! – e então outras criaturas apareceram.


Ghouls e esqueletos vieram em auxílio daquele que tinha o poder de
controlar os mortos. Diversos inimigos outrora derrotados pela
criatura ancestral partiram para o ataque contra o guerreiro imortal,
mas o habilidoso guerreiro era maior que todos eles, portanto em
pouco tempo as criaturas abomináveis jaziam no chão derrotadas
juntas de seu senhor.

O Não Vivo preparava o golpe final, que daria cabo daquele


corpo de Magalhães, quando um vento gelado assaltou o lugar. O
guerreiro dourado, ignorando o adversário derrotado, seguiu em
direção ao vento, espada em punho e olhar resoluto. Dom
Magalhães tentou impedi-lo mais uma vez, mas um potente golpe
com o pomo da espada partiu seu crânio. O Não Vivo seguiu em
frente sem olhar para trás.

– Bem-vindo, meu eterno adversário! É bom reverte! – a voz


inalada vinha carregada de uma emoção falsa e degradante.

– Gostaria de poder dizer o mesmo... Barashemesh – a voz do


Não Vivo não escondia seu desafeto, nem seu desprezo.

O ser confrontado pelo Não Vivo se virou lentamente o encarando.


Estava no auge de sua forma física, com o corpo musculoso ainda
intacto: músculos rígidos como pedra e nenhum pelo na pele
esticada, acinzentada e úmida. Os olhos brilhavam azuis com a
excitação do momento. Atrás dele havia duas crianças, uma menina
e um menino com pouco mais de três anos, presos, nus e dopados.

– Ora, ora, ora... Estamos nos tratando pelos nomes agora,


Michael Anwr? – a voz inalada era cheia de ironia e maldade. – O
que vieste fazer aqui? Não poderás me oferecer resistência
dessa vez! – falou num riso afetado.

– Não só dessa vez, como todas as seguintes. Já o fiz diversas


vezes nesses últimos séculos e continuarei a fazer até o final dos
tempos! Enquanto esse corpo imortal caminhar por essa terra,
impedirei seus planos de se concretizarem! – o Não Vivo bradou
com firmeza. O outro assentiu sorrindo.

– Ora, sei disso! Não houve sequer uma vez nesse último
milênio que não fizesses essa sua cruzada contra mim; maior
prova de tua ingratidão, uma vez que, mesmo não sendo meu
desejo, concedi a ti a imortalidade! Deverias estar do meu lado,
não contra mim! E durante esta tua cruzada acredito que tenhas
percebido o quanto te tornas mais forte a cada século. Alegro-
me em saber que tua força cresce a cada dia, entretanto dessa
vez trago boas novas! De hoje em diante, não me impedirás
mais, meu amigo. Pelo contrário, me ajudará a concluir meus
planos! – falou com ar conciliatório.

– Nunca o ajudarei! – rosnou o Não Vivo. O Herege olhou para


ele e, dando de ombros, falou despreocupado:

– Pois que seja. Parte agora e nunca mais vem ao meu


encalço e não tomará parte de minha jornada – o Herege então
olhou para seu inimigo de longa data. – Mas a ti digo que, se
ousares levantar a mão contra mim, tornar-me-ei ainda mais
poderoso... graças a você! – alertou.

O Não Vivo empunhou sua lâmina dourada e golpeou


violentamente seu inimigo. O Herege não impediu o ataque;
recebeu-o de braços abertos, perdendo a cabeça num corte limpo.
Uma sensação terrível passou pelo corpo do Não Vivo, um frio
anormal a que seu corpo cadavérico não estava acostumado. Sentiu
sua espinha dorsal formigar e o formigamento se espalhar por seu
corpo como ondas.

Sem entender o que acontecera, o Não Vivo caminhou até a


menina de belos cabelos castanhos cacheados e a soltou. Michael
então voltou-se para resgatar o menino, mas um riso gutural e
assustador o fez parar. Era a menina que ria.

– Viste, Michael, no que me tornei? – a voz profana do Herege


ecoava do corpo infante da garota, que ria, com seus olhos
reluzindo em azul. Horrorizado olhava a garota caminhar
tranquilamente até o rapaz.

– Como você?... – perguntou Michael perplexo. A menina


respondeu:
– Possessão! Graças a ti! Levei séculos para dominar esse
poder, mas agora ele é meu! – ela gargalhou desvairadamente,
depois gritou aterrorizada e passou a chorar. – Ninguém mais
estará a salvo. Graças a ti! – a voz da menina saiu, entre o choro,
exalada e apavorada. Michael observava estarrecido a pequena
menininha que caminhava em sua direção. Seu corpo estava
retorcido, como se houvesse sofrido um terrível derrame e estivesse
cheia de sequelas. Então ela curvou seu corpo para a frente e
inspirou enquanto gritava. O rugido parecia preencher a garota
enquanto ela inspirava com sofreguidão. O silêncio que se seguiu
era perturbador. A garota aprumou-se, de olhos fechados, virou a
cabeça, como se estalasse o pescoço, e, quando abriu seus olhos,
abriu também um sorriso hediondo.

– Descobri que nossa ligação não fortalece somente a ti,


mas a mim também! Enquanto viveres, Michael Anwr, eu não
preciso de um corpo carnal! – Barashemesh continuava a andar
em direção ao Não Vivo, nos passos pequenos da criança, sem se
importar com o tempo. Vez ou outra tinha um espasmo violento. A
garota parecia recuperar o domínio de seu corpo e gritava em
pânico, mas logo o ser ancestral a dominava novamente.
Barashemesh sorriu, fingindo embaraço. – Perdoa-me... Ainda não
acostumei me com esta carcaça – falou olhando para a mão
diminuta. – É uma menina valente, essa infante – ela meneou a
cabeça. – Perdoa-me, Michael. Fico aqui divagando, quando
devia dar a ti a devida atenção. Como eu dizia, nossa ligação
torna-te imortal, um reverso que nunca imaginei. Nos últimos
dez séculos, busquei uma maneira de desfazê-la. Foi somente
por acaso que percebi que ela também me beneficiava. E uma
vez que ambos sabemos que tua imortalidade não pode ser
revertida, a minha também tornou-se irreversível! Por mil anos
venho fortalecendo minha alma para esse momento, mas o
golpe final precisava ser teu! Por isso a ti agradeço – a menina
se curvou numa reverencia irônica. – Agora, se me dás licença,
preciso finalizar um ritual.
O Não Vivo colocou-se entre a menina e o menino, mas ela riu
com descaso.

– Ora, não contei a ti a melhor parte? Possuída ou não, essa


garota é inocente e vou usá-la para o ritual. E tu estarás
impotente a isso! Terás de matar essa criança pura, mas já
aviso, Anwr: a maldição que coloquei sobre ti hoje se estende a
cada vida que tirares! Tornar-se-á mais e mais poderoso, mas
condenarás a alma de cada mortal assassinado ao inferno, sem
possibilidade de expiação! Eles alimentarão tua alma imortal e
ocuparão o teu lugar no tormento eterno!

O Não Vivo via a criança com seu riso diabólico vindo em sua
direção... Inocente... Aquela palavra ressoava em sua mente. Não
sabia como impedir o monstro de cometer suas atrocidades, sem
sacrificar uma menina inocente a uma eternidade de condenação.

Jacó gemeu, despertando Michael de suas lembranças. O


psiquiatra continuava inconsciente. O Não Vivo se ergueu e
caminhou até Raquel, que tomava uma xicara de chá com uma
mistura de ervas brasileiras excelentes para acalmar o estômago e
os nervos, além de acalentar a alma.

– Está melhor? – perguntou; havia zelo em sua voz. Raquel


moveu a cabeça positivamente. – Por que veio para cá, Raquel? –
então falou, sem esconder a censura.

– Estávamos sendo perseguidos e não tínhamos mais como


fugir. Sabia que você podia nos proteger – disse temerosa.

– Tem ideia do mal que você fez? – ele retorquiu já com rispidez,
fazendo Raquel recuar, como se tivesse sido agredida.

– Como assim? – perguntou abismada.


– Eu a aceitei como aprendiz porque vi em você a chance de
equilibrar essa batalha. Há mil anos eu venho combatendo essas
feras e há mil anos vidas inocentes são perdidas! Eu já condenei
muitos nessa guerra; tenho sangue demais em minhas mãos,
Raquel! Cada vez que interfiro, rios de sangue inocente lavam a
terra! – sua voz grave saía num sotaque irreconhecível, semelhante
a diversas línguas misturadas.

– Mas mestre! – ela começou, mas o homem ergueu a mão.

– Sem mais! – finalizou severo. Raquel calou-se; o homem


também ficou em silêncio, depois falou com a voz mais branda.

– Eu e aquele ser que vos perseguia estamos ligados por uma


maldição. A mesma que me mantém vivo há quase um milênio –
falou, e Raquel olhou-o surpresa.

– Eu não sabia disso... – ele anuiu em silêncio.

– Nunca contei a ninguém – admitiu. – Muitos são tocados por


essa maldição e não somente nós dois. Todos aqueles que caíram
vítimas dessa magia negra pereceram de maneira terrível, e não
foram poucos. Por isso me ocultei do mundo: cansei de ver pessoas
boas sendo mortas pela maldade que mantém a mim e a ele vivos!
Naquele dia em que a encontrei perdida e desesperada, vi em você,
pequena Raquel, a força e a fé capazes de mudar o destino e pôr
um fim às artimanhas de meu inimigo.

– Mestre, é exatamente o que estou tentando fazer... – Raquel


interrompeu em busca de aprovação, entretanto o homem continuou
ignorando seus apelos.

– Mas você é muito impulsiva e cheia de raiva no coração! Ainda


há muito o que treinar. Ao invés de fazê-lo, você fugiu daqui e foi
enfrentá-los, mesmo sabendo que não estava pronta. Ao fazê-lo,
revelou sua existência justamente àqueles aos quais eu queria que
fosse mantida oculta. O que você desencadeou não sei se poderá
ser impedido! – falou por fim; Raquel negou com a cabeça.
– Sempre pode ser impedido! – Raquel falou com veemência. –
Sempre há esperança! O senhor me ensinou isso! – falou convicta;
Michael ficou em silêncio. Seu peito não se movia com o ar puxado,
porque ele não inspirava ou expirava, exceto quando precisava de
ar para falar. Depois de um longo silêncio, olhou para ela e falou
serenamente:

– Antes de mais nada, precisamos mandar o rapaz para


segurança. O lugar dele não é aqui, filha – então parou observando
o repórter. Vinnie estava sentando numa cadeira totalmente em
choque. Olhava o vazio e balbuciava algo ininteligível; vez ou outra
parecia recobrar um pouco os sentidos, mas bastava um olhar para
o Não Vivo que seus olhos perdiam o foco e ele afundava em um
mundo só seu. – Por favor, vá até a cozinha e prepare um caldo ou
uma canja. Vai animá-lo um pouco – concluiu.

– Sim, mestre – assentiu e dirigiu-se para o andar inferior.


Michael, vendo-a sumir na escada, falou.

– Você ouviu tudo? – perguntou. Depois de um breve silêncio,


veio a resposta.

– Sim – embora deitado, Jacó estava acordado há algum tempo.

– Então acredito que compreenda que este local não poderá ser
seu destino final? – o Não Vivo falou ainda de costas para o médico,
que tentava se sentar na cama.

– Sim. Percebi que você não vê a hora de nos expulsar –


continuou com acidez. Michael voltou-se para o psiquiatra; seus
movimentos eram contidos, controlados, como se cada ação fosse
planejada e repensada. Seu rosto era uma máscara sem emoções,
mas seus olhos eram frios e cheios de uma sabedoria endurecida
pelo tempo e forjada em tristezas.

– Acha mesmo, criança, que tudo o que quero é ver-me livre de


vocês? – a voz era contida como os gestos e quase sem emoção,
mas Jacó percebeu que seu comentário incomodara o seu
interlocutor.

– Sim. Você pode ter mil desculpas e falar bonito; pode usar toda
a sua influência nela, mas a verdade é que está louco para nos
escorraçar daqui – falou seco e Michael meneou a cabeça.

– Engana-se, Jacó Cohen – falou cansado.

– Meu nome é Jack! – o psiquiatra respondeu e o homem


rebateu.

– Não. Seu nome é Jacó. O fato de não gostar do nome não o


muda, assim como a situação aqui. Você quer ficar aqui porque se
sente seguro, mas no fundo você sabe a verdade: seu nome é Jacó
Cohen e sabe que de nada vai adiantar ficar aqui neste local! – falou
pragmático. Jacó calou-se, incapaz de responder. Quando
finalmente falou, sua voz saiu desanimada.

– Não existe nada que possa fazer? Não pode nos ajudar?
Principalmente ela. Você gosta dela, posso perceber – falou. O Não
Vivo se voltou para o psiquiatra e olhou-o nos olhos. Eram olhos
cinzas, da cor do aço, frios e duros como o metal.

– Posso ajudá-los. Posso fazer muitas coisas, mas eu lhe


garanto: para ajudar Raquel, teria antes de matar muitos inocentes.
Embora acredite no valor dela, não seria capaz de sacrificar a
tantos. Você seria?

Jacó manteve-se em silêncio, olhou para longe, incapaz de


manter o contato com aqueles olhos. Respondeu encarando a
parede.

– Sim. Não entendo o porquê, mas sei que Raquel é alguém que
deve ser protegida. Se outros tiverem que morrer por isso, paciência
– falou seco. O Não Vivo assentiu.
– Tudo o que mais gostaria nesse momento, Jacó Cohen, era
manter Raquel longe de todo o mal, mas não posso. Mantive Raquel
escondida deles por quase dez anos, mas infelizmente ela se
revelou e, agora que Barashemesh a conhece, não existe um lugar
do mundo onde ela esteja segura.

– Barashemesh? – Jacó perguntou. Michael assentiu.

– Barashemesh é o nome do líder dessas criaturas, um ser tão


antigo quanto a humanidade e de maldade incomparável.

– Mas o que ela tem que eles querem tanto? Não é somente
vingança – Jacó falou.

– Creio que você já tenha percebido que é muito mais do que


isso – Michael falou; o psiquiatra concordou.

– Sim. Eles já tiveram a oportunidade de nos matar, mas em


todas as vezes senti que estavam comedidos. A verdade é que eles
não a querem morta, certo? – perguntou e Michael apenas
consentiu silenciosamente. Não falaram mais por alguns instantes.

– Raquel é especial. Ela vem de uma antiga linhagem. Os


monstros que a perseguem acreditam que ela seja um ser que eles
chamam de Receptáculo – revelou e o psiquiatra indagou confuso:

– Monstros? Você está falando sério? – indagou. Michael ficou


em silêncio e depois continuou.

– Creio que tenha percebido que seus adversários não são seres
humanos? – por mais que lhe custasse admitir, Jack sabia que
enfrentava algo que ia contra tudo o que ele acreditava. A
contragosto, concordou. – Entenda, Jacó Cohen, que a
modernidade em muito alterou o significado das palavras, mas
monstro, do latim monstrum, é um ser vindo dos mitos, criaturas
fantásticas, não humanas, criadas pelos deuses de forma não
natural. Todas as mitologias antigas estão repletas desses seres. É
a isso que me refiro, embora eu mesmo prefira chamá-los somente
de criaturas, seres que abriram mão do amor e perdão de Deus.

Jacó meneou a cabeça.

– Isso tudo é tão fantástico, tão surreal...

– E nem por causa disso menos verdadeiro – Michael falou.

– Você falou que eles chamam Raquel de um termo:


Receptáculo, correto?! Como um objeto para guardar algo? –
perguntou ávido para uma conversa menos fantástica.

– Sim, mas não um objeto; uma pessoa... um corpo, para ser


mais exato.

– Essas criaturas vagam pelo mundo há séculos. Num passado


remoto, eles governaram o mundo. Deuses, demônios, monstros: a
história está recheada com suas lendas, mas então veio o Dilúvio, a
grande inundação, e lavou a terra, separando-os de nosso mundo.
Eles foram condenados a uma eterna agonia, alimentando-se do
sangue dos mortais e usando seus corpos para assim interagir com
o mundo físico e colocar em prática toda a sua maldade. Embora
não sejam mais carnais, anseiam pelos desejos da carne, e, como o
corpo mortal é frágil, não resiste, e por isso se decompõe
rapidamente. Eles acreditam que existe um ser capaz de suportar
todo esse poder.

– O Receptáculo – Jacó concluiu.

– Só existem duas maneiras de surgir um Receptáculo. Uma


delas é pela magia e rituais. A última vez que tentaram algo assim
eu pude impedir. A outra forma é pelo destino: o caso mais raro e
também o mais poderoso; um Receptáculo natural, criado ao longo
dos séculos como um cão de raça – concluiu sem olhar para o
psiquiatra. Esperou que Jacó absorvesse a informação antes de
continuar. – Mas o Receptáculo natural é muito poderoso e é o único
ser humano que consegue vencer uma dessas criaturas num
combate corpo a corpo. Por isso, ao mesmo tempo que é desejado,
é perigoso. Uma vez dominado, o Receptáculo é o corpo perfeito.
No entanto, se o mortal escolhido tiver uma grande força e vontade,
ele se tornará uma arma capaz de destruir essas criaturas. Portanto,
resta-lhes somente duas alternativas: controlá-lo ou...

– Destruí-lo! – Jack completou fatalista.

– Eu tentei escondê-la, mantê-la a salvo, mas parece que Raquel


nasceu para lutar contra essas criaturas. Infelizmente, em sua ânsia
por justiça, ela chamou a atenção do mais poderoso desses seres, e
agora eles sabem quem ela é; não haverá um lugar em que ela
estará segura.

– Ela não estará desprotegida – Jack falou colocando-se de pé.


– Eu a protegerei, custe o que custar!

Sangue, gemidos e ossos partidos num frio congelante. Um urro


selvagem e sobrenatural rasgou os salões escuros abaixo do museu
do Ipiranga. O Herege estava furioso e todos sofreriam as
consequências.

As lacaias que viviam no local, mulheres belas, mas sem nada


além disso, que viviam em servidão das criaturas na esperança de
manterem-se sempre jovens foram as primeiras a serem rasgadas
como tecidos inúteis. Seu sangue desperdiçado correu livre no
chão. Depois, os alvos foram os guardas, diversos ghouls e,
finalmente, seus asseclas.

Boadiceia, Dom Magalhães e o Oriental eram arremessados com


violência e descaso, cruzando o ar e se chocando contra a parede.
No meio de tudo isso, num ar congelante, Barashemesh, o Herege,
urrava como uma besta selvagem.

– Inúteis! – sua voz reverberava pelas paredes. Mortais que


serviam esses seres em busca da vida eterna colocavam as mãos
por sobre os ouvidos, mas era inútil. A voz macabra atravessava
carne, sangue e ossos e penetrava direto na alma.

– Meu tempo está acabando e vocês patéticos rastejam


diante de mim sem nada fazer! Estou cercado por incapazes! –
ele golpeava com violência a tudo e a todos descontando sua
frustação – Somos seres que até o tempo se curva diante de
nós! Os anjos nos temem e vocês não conseguem me trazer um
simples mortal a minha presença – dizia irado.

– Mas mestre! – Boadiceia tentou falar, mas foi silenciada por


ele, que a agarrou pelo queixo e a ergueu. Os olhos do Herege
ardiam frios e enlouquecidos. – O Receptáculo é mais forte do que
imaginávamos – ela argumentou. O Herege aproximou o rosto dela
do seu quando berrou.

– O Receptáculo é só um ser mortal! – urrou descontrolado. –


Como pode um mortal derrotar a todos vós? – vociferou.

– Senhor, se me permitir falar... – Boadiceia insistiu. O Herege


aproximou a face deformada da dela. Ele mais parecia um de seus
ghouls. A língua estava longa e inchada com uma cor arroxeada; a
pele tinha perdido toda a cor e estava flácida sobre os músculos.
Pedaços enormes de carne começavam a se soltar apodrecidos.

– É bom que seja útil, Boadiceia!

– Mestre, o Receptáculo parece imune aos nossos poderes. Seja


sorte ou audácia, não conseguimos nos aproximar, não importa o
que façamos.

– Ocupou meu tempo com obviedades, mulher?! – o Herege


começou a esmagar seu maxilar, mas ela continuou falando.

– Mestre, é exatamente isso que estou falando. Devemos deixar


o óbvio de lado e agirmos de outra forma. No fim, o Receptáculo é
humano e, como tal, pensa e sente como um ser humano – o
Herege afrouxou o aperto.
– E? – ele indagou olhando-a, apreciando a dor desenhada no
rosto da bela mulher.

– Se me permitir, senhor, gostaria de pôr de lado o ataque e


tentar uma maneira mais delicada. Sei que o senhor tem grandes
planos para hoje à noite. Permita-me cuidar disso. Não falharei com
o senhor! –implorou; o Herege riu.

– Todos disseram o mesmo e todos falharam, Boadiceia! –


zombou.

– Eu nunca falhei convosco, em todos esses séculos. Por favor,


mestre, lembre-se de Rasputin. Até o senhor havia perdido as
esperanças. Todos falharam, mas sempre estive ao teu lado! Não
começarei a falhar-te agora! – falou com veemência. O Herege
largou o aperto e colocou a mulher no chão.

– Ah, meu caro, ela não vai falhar, afinal não é à toa que ela é a
única de seu povo que eu respeito – a voz de André Marcos ressoou
no local. Estava vestido elegantemente como sempre e com um
olhar confiante. Parecia ter surgido do nada. Sorria enquanto
Barashemesh revirava os olhos furioso.

– Não é uma boa hora, feiticeiro. Sugiro que partas – rosnou


com desprezo. André Marcos sorriu friamente.

– Pelo contrário. Neste exato momento, eu sou a resposta de


todas as suas preces, seja lá para que entidade demoníaca você
dedique suas orações – falou com ironia. O prefeito de São Caetano
colocou a mão no bolso e de lá tirou um pequeno colar com corrente
de prata e uma pedra muito pequena lapidada como uma gota. Uma
pedra vermelho-sangue.

O Herege se aproximou do prefeito a passos largos. O chão


tremia com suas passadas. Ergueu a mão para o objeto, mas o
feiticeiro retirou de perto dele.
– Tenho sua palavra? – perguntou, lembrando-se do conselho de
William: – Antes de entregar a joia, faça-o jurar!

O Herege olhou para o feiticeiro por alguns segundos,


estudando-o.

– Sim, você tem minha palavra, feiticeiro, de que o Vrykolaka


não sofrerá nenhum mal. Agora me dê o amuleto – exigiu. André
Marcos estendeu a mão, mas recuou; toda a teatralidade ensaiada
horas antes com o companheiro.

– Se me trair... Trarei Guerra, Fogo e Destruição como ninguém


jamais viu nesse mundo! – ameaçou; cada palavra ensaiada. O
Herege fitou o rival, ergueu a mão e agarrou o amuleto. Então falou
comedidamente:

– Eu já vi o mundo acabando, feiticeiro. As pessoas sempre


falam de chuva de fogo e rios de sangue, mas, quando houve
um fim, quando o mundo acabou, foi embaixo d’água. Nunca
temi o fogo, feiticeiro. Ao final dessa noite, se o amuleto se
mostrar útil, então você terá o seu messias...

Carlos Eduardo acordou sem ter ideia de quanto tempo havia


passado desde a última vez que tivera consciência. Viu a luz do dia
entrando pela janela e ouviu o respirar pesado de Wesley, que ainda
dormia ao seu lado, e o som das crianças que brincavam no pátio
do orfanato.

Com dificuldades, se levantou, caminhou pela enfermaria até a


saída e abriu a porta. Do outro lado estavam Tucca e Rita. A policial
olhou aliviada; viu o delegado cambaleante, mas finalmente em pé.
Alegres, os dois correram para abraçá-lo, dando um espasmo de
dor em Carlos Eduardo.

– Pega leve, gente! – falou o delegado combalido; os


companheiros se afastaram um pouco. Carlos Eduardo forçou um
sorriso. Todo o corpo gemia de dor, mas agradeceu com o olhar os
companheiros. Onde está a irmã Gabriela? – perguntou.

– Acho que na sala de música – respondeu Tucca. – Estamos


arrumando um novo local para ela, mas a garota se recusa a sair
daqui. Se você estiver melhor, talvez possa convencê-la a sair? –
arriscou.

Com o apoio de Rita, Carlos foi caminhando até a sala de


música e surpreendeu-se com a delicadeza e zelo da mulher, que
ele sempre vira como alguém forte e vigorosa. Quando se
preparavam para entrar na sala, Carlos ouviu notas sendo tocadas
no piano. Uma melodia delicada, calma e contemplativa preenchia o
ambiente; era muito tranquila e também muito bonita. Gabriela
começou a cantar, e sua voz era a de uma soprano, perfeita em
cada tom e nota, e saía com a delicadeza de um anjo, ou de uma
mãe que embala o filho recém-nascido, ou de uma jovem cheia de
amor e inocência. Não havia sensualidade ali, somente a pureza de
uma arte delicada.

– Com o esplendor de um Rei, em Majestade e Luz, faz a terra


se alegrar, faz a terra se alegrar. Ele é a própria Luz, e as trevas vão
fugir. Tremer com sua voz, tremer com sua voz.

Carlos Eduardo ouvia a letra que retratava algo superlativo numa


melodia ao mesmo tempo humilde e serviente. A moça continuava,
e sua voz aos poucos tornava-se mais potente e apaixonada. Ela
não precisava forçar seus pulmões ou diafragma, pois era sua alma
que cantava.

– Por gerações Ele é! O tempo está em Suas mãos! O começo e


o fim! Ele é o começo e o fim! Três que se formam em um: Filho!
Espírito! Pai!

– Cordeiro e Leão!

E Carlos Eduardo reparou que a música retratava um ser ao


mesmo tempo supremo e poderoso para além de qualquer medida,
e um ser que era, simultaneamente, uma mísera e frágil ovelha e
um majestoso Rei das Selvas. Diante de seus olhos ele via o animal
nas savanas, num rugido glorioso e confrontando diversas hienas e
outros predadores sozinho; e ao mesmo tempo, aquele outro
animal, alvo, delicado e pequenino num pasto incapaz de ferir
qualquer um.

A voz de Gabriela ergueu-se ainda mais e ela bradou cheia de


paixão e devoção. Sua voz retumbou pelas paredes, mas, mais que
qualquer outro lugar, o som de sua voz invadiu o coração
endurecido e resistente do delegado.

– Quão grande é o meu Deus! Cantarei quão grande é o meu


Deus! E todos hão de ver Quão grande é o meu Deus!

E Carlos Eduardo viu, e, mais que isso, sentiu... um sentimento


de pequenez e assombro acompanhado do espanto que encheu
seus olhos, embargou sua garganta e correu livre por seus olhos,
para sua completa surpresa, uma vez que se sentia incapaz de
resistir ao sentimento que tomava seu ser.

– Sobre todo nome é o Seu! Tu és digno do louvor! Eu cantarei


Quão Grande é o Meu Deus.

Carlos olhou para o lado, para Rita, e ela estava de olhos


fechados; chorava, segurava o crucifixo pendurado no pescoço e
cantava tomada de um êxtase tão sublime que nada mais parecia
existir. Então Gabriela mudou os acordes e continuou.

– Então minh'alma canta a Ti, Senhor: Quão Grande és Tu! Quão


Grande és Tu!

– Quando eu medir o Teu amor, tão grande. Teu Filho dado ao


mundo para salvar na cruz, verteu seu precioso Sangue! Minh'alma
pôde assim purificar!

– Então minh'alma canta a Ti, Senhor: Quão Grande és Tu! Quão


Grande és Tu!
– Sobre todo nome é o Seu. Tu és digno do louvor. Eu cantarei
Quão Grande é o Meu Deus.

E assim como antes, a sala se encheu com sua voz angelical.


Aos poucos, ela desceu o tom e terminou a canção com a delicada
melodia que começara. Quando seus dedos finalmente
abandonaram as teclas, o silêncio que ali havia deu a Carlos
Eduardo uma paz desconhecida. Ele tentava se recompor, mas não
conseguia; fora tocado de uma maneira que não compreendia.
Aproximou-se da moça desejoso de novamente assumir suas
emoções. Ao falar, no entanto, sua voz saiu rouca.

– Irmã, precisamos ir para um lugar mais seguro. Acredito que


esteja a salvo e que frustramos os planos do tal Barashemesh, mas
ficarei mais tranquilo quando a próxima lua cheia chegar e
estragarmos de vez os planos daquele monstro – Gabriela o olhou.
Ela também chorava, mas parecia leve e feliz. Meneou a cabeça e
fechou os olhos, sorrindo de maneira sonhadora.

– Não, delegado. Deus falou comigo. Ficarei por aqui –


sentenciou calma e complacente. – Não acho que haja um local
seguro para mim e nem que ficarei a salvo. Tenho a plena convicção
de que, infelizmente, esse monstro chegará até mim – a voz de
Gabriela era cheia de resignação, mas estava calma, quase
complacente. Para Carlos Eduardo, entretanto, aquelas palavras
eram quase uma bofetada. Toda a sensação de paz estava
escoando e sendo substituída por uma surpresa inconformada.
Quando falou, sua voz já estava mais natural e também mais
ríspida.

– Sério, irmã? Deus te mandou ficar aqui? Será que Ele não viu
o que aconteceu nesse lugar? – bufou. Rita emitiu um som de
surpresa pela grosseria, mas Gabriela, em toda sua placidez,
colocou sua mão suavemente sobre a mão dura e áspera do
delegado.

– Delegado, tenho certeza de que Deus viu tudo o que


aconteceu aqui ontem. Eu que lhe pergunto: o senhor viu tudo o que
aconteceu aqui ontem? – sua voz era suave e tranquila, mas
resoluta. Carlos Eduardo olhou-a sem saber de onde vinha tamanha
força interior. Gabriela continuou: – Diga-me. Se Deus não me
proteger aqui, que outro lugar seria mais seguro? – ela sustentou a
pergunta com um olhar firme. Incapaz de responder, ele desviou o
olhar. Ela continuou: – Não creio que haja algum lugar que o senhor
possa me colocar que seja mais seguro que aqui. Nosso adversário
já mostrou que não será impedido por paredes grossas. Volto a lhe
perguntar: o que podemos fazer longe daqui que não podemos fazer
aqui? – perguntou. Carlos Eduardo não tinha o que dizer, exceto
fazer a única pergunta que o atormentava. Incapaz de contê-la,
revelou-a:

– E o que devemos fazer, irmã? Nada? Esperaremos ele vir te


matar? Sinceramente, não sei mais o que fazer! – pela primeira vez,
diante daquela menina que ele jurou proteger, o delegado revelou
toda a sua fragilidade e seu medo, quase desmoronando diante
dela. Gabriela, como sempre, somente sorriu com seu jeito angelical
e colocou as mãos dele entre as dela.

– Desde que tudo começou tenho deixado essa criatura controlar


meus passos. Cansei disso – falou dando de ombros. – Decidi
aceitar a vontade do meu Deus! Entrego-me nas mãos d’Ele! Que
Ele faça comigo o que bem Lhe aprouver – seu tom era de
subordinação. Carlos Eduardo falou também com a voz branda, mas
ainda incisivo.

– Sabe, quando eu era pequeno, também acreditava como você;


fui até coroinha. Minha família é Católica. Cresci na igreja, mas
desde que entrei no exército e, principalmente, na homicídios, vi
coisas que me fizeram questionar a minha fé. Não consigo entender
como você pode acreditar num Deus que deixa acontecer tudo o
que aconteceu até agora! Ele deixou que aquele rapaz quase
morresse, que você fosse atacada e também quase morta e
finalmente que eu também quase não resistisse. Então diga-me: o
que o seu Deus fez por nós até agora? – perguntou exasperado.
Gabriela novamente sorriu, como se a pergunta de Carlos tivesse
uma resposta certa e óbvia, e, para ela, realmente havia:

– Quase! – respondeu sorrindo.

– O quê? – o delegado indagou confuso. Gabriela falou:

– Meu Deus fez quase – respondeu mais uma vez. Carlos


Eduarda olhou-a confuso.

– O que você está falando, irmã? – indagou sem entender.

– Você mesmo disse, delegado, que o Herege tentou matar


Wesley, você e principalmente a mim, mas em nenhuma vez ele
conseguiu. Em todas as vezes, ele quase conseguiu, mas ele
sempre fracassou. Dê o nome que quiser, mas para mim, delegado,
o quase tem um nome: Jesus – falou, diante de um delegado
perplexo. Sem esperar reação, continuou:

– Acredito que foi Deus que me libertou na igreja, que protegeu


Wesley, que capacitou o padre Matheus e, mais que tudo, acredito
piamente que Deus colocou perto de mim um anjo da guarda
poderoso, disposto a qualquer coisa para me proteger – concluiu.
Carlos Eduardo revirou os olhos e riu debochadamente:

– Queria conhecê-lo! Facilitaria meu trabalho!

– Ah, delegado, mas o senhor o conhece muito bem: esse anjo


da guarda é o senhor!

Walkyria acordou ainda tonta pela medicação. Percebia que


sofria leves alucinações. Não havia como a parede piscar com
tantas luzes psicodélicas, e ela poderia jurar que vira um gnomo
pulando na sua penteadeira... Sentiu náusea e correu até o
banheiro. Vomitou somente suco gástrico. Estava zonza, perdida e
fora de si, mas ainda se lembrava da noite anterior. Cambaleou até
a cama pensando em se deitar, mas olhou para o espelho e viu seu
reflexo.

– Estou um lixo! – pensou, observando sua imagem que dançava


diante de si. O rosto estava inchado e borrado, o cabelo, bagunçado
e emaranhado, os olhos, inchados e vermelhos.

– Está mesmo! – o reflexo respondeu.

Walkyria se assustou, mas depois pensou que talvez fosse só


sua mente lhe pregando peças.

– Sabe o que devíamos fazer? Tomar um banho reconfortante,


colocar uma roupa bem bonita e levar o Adolfinho para tomar um
sorvete no shopping! – a Walkyria do espelho falou, e a Walkyria da
cama adorou a sugestão. Olhou para o reflexo decidida:

– É isso que farei!

Levantou-se, tirou a camisola e se encarou nua no espelho.


Lembranças da noite anterior vieram à mente e ela encolheu-se
enojada, com vergonha do próprio corpo, mas o reflexo se recusou
a acompanhá-la na vergonha.

– Esconder-se por quê? Você não é como o resto dessa família,


Walkyria! Nem você nem o Adolfo! Tome um banho, vista-se e vá
para o shopping, como uma pessoa normal, pois é isso que você é:
uma pessoa normal!

Tonta, confusa e desnorteada, Walkyria achou seu reflexo muito


mais sábio do que ela mesma, por isso decidiu ir para o banho.

Meia hora depois, revigorada, estava linda e arrumada. Maquiou-


se. O reflexo não voltou a falar com ela, agindo somente como um
espelho. Walkyria se viu bonita e arrumada. Sorriu, deu um beijo em
seu reflexo, deixando uma marca de batom no espelho.

– Obrigado pelo conselho! Deveria me ouvir mais!


Saiu feliz de seu quarto, sem reparar que seu reflexo não a
acompanhara. A figura do espelho tornou a encostar os lábios na
marca do batom, e, primeiro seus lábios, depois por completo, o
reflexo abandonou sua prisão, ocupando o quarto. A Walkyria do
espelho aos poucos mudou de forma. Sua pele ficou mais clara, e
os cabelos assumiram um tom de sangue; nas mãos, um sexto dedo
cresceu. A mulher sedutora saiu do espelho, suas longas vestes
vermelhas esvoaçantes revelando suas curvas sensuais.

– Eu que agradeço – falou com a voz de Walkyria; os olhos


esmeralda reluziam com crueldade.

Próximo do meio dia, Raquel Jacó e um Vinnie ainda


desacordado saíam num velho jipe da propriedade de Michael. Jacó
e o Não Vivo haviam conversado por mais quase duas horas antes
de o médico combalido e esgotado voltar a deitar. Raquel também
dormira um pouco; Vinnie, no entanto, não havia melhorado.

– O garoto é uma alma inocente. Nem todos possuem a força


para ver tudo o que vocês viram e se manter firme. Sua mente se
lacrou para protegê-lo – Michael falou, colocando a mão com
ternura sobre sua testa. Depois se virou para Jack e entregou-lhe
um papel. É o endereço dele. Estarão em segurança nesta casa,
lhes asseguro. Pelo menos por um período. Arrumem mantimentos
e fujam para longe.

Raquel o abraçou. Michael retribuiu o gesto com doçura


incomum para um ser tão frio. Jack e ele se olharam. Michael
estendeu a mão e o psiquiatra o cumprimentou.

Além de dinheiro e uma mochila com todos os mantimentos


necessários para um acampamento, Michael ainda providenciou um
meio de transporte. Era um jipe velho e muito enferrujado, mas
resistente. Assim, munidos de um novo objetivo, os três partiram.
Jack, no volante, olhou para longe, em direção à cidade que se
erguia majestosa, e pensou, com o coração cheio de tristeza, que
talvez jamais voltasse a ver a amada Walkyria novamente. Esse
sentimento o consumiu por toda a viagem.

Quase duas horas de congestionamento mais tarde, eles


chegaram ao seu destino. Durante o caminho, Vinnie despertara
sem lembranças posteriores à fuga da delegacia. Por mais que
tentassem lembrá-lo, sua mente se recusava a voltar. Jacó imaginou
a gravidade do trauma que se instalara no companheiro, mas não
era hora para análises. Inconformado, Vinnie buscava tomar nota
mental de tudo o que havia ocorrido. O psiquiatra e Raquel narraram
o dia anterior, mas amenizaram muitas das situações.

– Vocês não estão me contando tudo – falou chateado.

– Vinnie – Jacó começou. – Você passou por um trauma muito


violento. Sua mente desligou e apagou de sua memória quase um
dia inteiro da sua vida; precisamos ir com calma – falou conciliatório.
Vinnie deu um soco no Santo Antônio do carro, irritado.

– Sabe, foi exatamente por isso que comecei o hábito de


escrever em diários! – esses apagões eram extremamente comuns
em minha infância, mas fazia anos que não me acontecia algo
assim! E justo agora!

– Você precisa entender, Vinnie, Tudo o que você viu foi demais.

– Sim, foi demais, admito! Mas minha vida inteira eu busquei por
isso, doutor! Por anos sou considerado um imbecil porque acredito
em anjos, demônios, fadas e vampiros! Era zoado na escola e, se
não fosse o fato de ser bonito e o melhor da minha turma, seria o
mais zoado na faculdade também!

– O mais bonito, é? – Raquel perguntou. Não era de fazer


piadas, mas preferiu acalmar o companheiro.

Vinnie olhou para ela e sorriu confiante.


– Madame, eu sou bonito. Você preferir o doutor não muda o fato
– falou confiante. Raquel enrubesceu, e Jacó focou seu olhar no
trânsito. Vinnie continuou sem abalar sua confiança.

– Sabe, Jack, vivemos em uma era em que tudo só existe se


puder ser explicado, se puder ser provado. Até a Igreja Católica tem
padres que tentam explicar milagres! Eles têm um padre que viaja o
mundo em busca do sobrenatural, e ele é tipo um cientista de batina
que analisa todas as possibilidades para saber se o milagre é
inexplicável ou não! As pessoas acham ridículos aqueles que
acreditam terem sido curados numa igreja ou pessoas que fazem
magias para arrumar um namorado e tal. Falam que vampiros são
parte do imaginário popular, mas, na verdade, tudo isto é verdade: a
coitada que foi curada na igreja evangélica, o sujeito que deixa uma
galinha morta na encruzilhada e os monstros de faz de conta que
assustam as crianças! Eles estão por aí! Mas todo mundo gargalha
e fala que não é cientificamente plausível porque não há provas! –
depois de um breve instante de reflexão, continuou:

– Droga! Eu tinha as provas na minha mão e elas se foram! E


nem eu mesmo me lembro da verdade! Enquanto isso, esses seres
fazem o que querem conosco! A gente é tipo uma vaca no curral
que acha o máximo o cara que a alimenta, mas nem se liga que ele
só da comida para ela porque a quer mais gorda para o abate! E
ninguém faz nada para mudar isso!

– Eu faço! – Raquel falou. Vinnie concordou com a cabeça.

– Pois é, e te tiram de louca! Entende? Você é só mais uma


maníaca que mata gente inocente! Eu quero mudar isso, eu preciso
mudar isso! – falou com fervor.

– Então venha comigo, Vinnie! – Raquel falou. – Eu irei caçá-los


e posso te ensinar, e você poderá expô-los! Escancararemos a
verdade na cara do mundo até que se torne inegável! – ela falou
fervorosa.
– Você pirou? – Jacó falou com raiva. – Você ouviu o seu mestre.
O Vinnie não foi feito para esse tipo de coisa! Ele é um garoto
normal. Não o condene a sua vida, Raquel! – sua voz estava
genuinamente preocupada. Vinnie olhou para Jack pelo retrovisor.

– Doutor, olha pra mim. Você é um psiquiatra. Acha mesmo que


eu sou só um garoto normal? Acha que depois de tudo o que
passei, amanhã vou estar numa balada enchendo a cara e
paquerando as menininhas? – sua voz era cheia de tristeza. Jacó
não soube o que dizer, e pelo resto do caminho os três ficaram em
silêncio.

A pizzaria estava fechada, obviamente, então Vinnie, Jacó e


Raquel dirigiram-se à casa ao lado. Antes de entrarem, Vinnie falou:

– Olha, independentemente de tudo o que aconteceu, não quero


que minha mãe saiba. Ela está velhinha já, e o coração dela pode
não aguentar! Vamos guardar segredo, tudo bem? – pediu. Os dois
assentiram em silêncio. Vinnie respirou fundo, colocou seu belo
sorriso no rosto, entrou e falou alto e demoradamente.

– Mama? – a mãe de Vinnie apareceu na porta, gritando de


alegria e confusão. Por quase uma hora, Jack e Raquel
presenciaram a alegria constrangedora de uma mãe que reencontra
o filho perdido.

– Ah, mi bambino, pensei que nunca mais ia te ver! – ela repetia


com seu forte sotaque italiano entre choramingos. Vinnie a abraçava
toda vez e a beijava. Pouco tempo depois, todos estavam sentados
na mesa da cozinha. Raquel sorria, enquanto tomava um
cappuccino feito na hora (tomava a típica variação paulista, em que
o café misturado ao leite cobria um pedaço generoso de chocolate)
e comia bruschettas com queijo e salame. Ela olhou para Jack e
sorriu:

– Sempre quis viver assim, sabia? – falou entre os goles da


bebida. – Entre uma família de verdade, com brigas, choros e risos;
uma família normal – falou sonhadora.
– A sua não era assim – Jack falou não em tom de indagação,
mas como quem atesta um fato. Ela olhou para ele.

– É o psiquiatra me analisando? – acusou em tom conspiratório.


Sorria com uma leveza que não lhe era característica.

– Não. Só estou curioso mesmo – defendeu-se. Raquel riu,


tomou um gole do café e ficou um pouco em silêncio vendo a
demonstração de afeto de Dona Domênica, que enfiava comida na
boca de Vinnie reclamando.

– Mas como você está magro e doente! Você non tem comido
nada, mio bambino! Ah, mas eu fiquei tão preocupada! Se não fosse
teu e-mail, acho que já me teria morrido de preocupação! – a mulher
falou cheia de drama. Raquel olhou furiosa para Vinnie, que deu de
ombros e apontou para a mãe, depois moveu os lábios sem emitir
som:

– Ela estava preocupada! – Raquel o fuzilava com os olhos, mas


depois desistiu e voltou seu olhar mais uma vez para sua caneca.

A mãe de Vinnie continuava.

– Tem de comer melhor se quiser ficar forte e bonito para as


ragazzas! – a mulher falou com seu carregadíssimo sotaque italiano,
típico do bairro, e deu uma olhadela cheia de intenções à Raquel,
que sorriu constrangida e falou sem olhar para Jacó.

– Minha família, à primeira vista, é muito unida. Meus pais


sempre estão juntos, e, se você olhar de fora, vai achar que somos
uma família nos moldes esperados pela sociedade, sempre perfeita
– ela sorriu infeliz. – Mas é só fachada. Meus pais nunca me deram
amor, somente presentes e regras; muitas regras – ela desatou a
falar, ainda olhando para a caneca com a bebida cremosa. – Eu
tinha de ser a melhor em tudo! Primeira bailarina, aluna mais
inteligente, habilidosa na esgrima – respirou profundamente antes
de continuar. – Sempre me senti mais como um cavalo de raça,
treinado e tratado para ganhar prêmios, do que uma filha de
verdade – falou e depois ficou um instante em silêncio, que
perturbou Jacó, embora a casa estivesse numa balbúrdia alegre. –
Sempre fui treinada, mas nunca amada – Raquel continuou depois
do que pareceu uma eternidade ao psiquiatra. – Fui lapidada para a
perfeição, no que quer que fosse. Nunca soube o que é ter um amor
de pai ou de mãe. Nunca fui uma filha de verdade, mas um projeto
em constante evolução – Jacó achou curioso o comentário; era algo
que Walkyria sempre dizia da relação do pai e da madrasta com ela,
mas preferiu não falar da amada.

– Eu realmente lamento por você – falou finalmente. – Sei como


é crescer sem a presença de um pai; nunca conheci o meu. Ele
morreu quando minha mãe ainda estava grávida – revelou.

– Morreu? Como? – Raquel perguntou.

– Acidente de carro.

– Eu sinto muito, mas ainda assim te invejo. Você nunca


conheceu seu pai; o meu, embora vivo, nunca me tratou como filha
– falou, e os dois ficaram num silêncio amuado, até que Dona
Domênica bradou com sua voz trovejante.

– Então... – começou apontando para Raquel. – Questa é tua


namorada, Vinnie? – sua voz tinha um tom conspiratório. Raquel
arregalou os olhos surpresa e meneou a cabeça. Vinnie sorriu cheio
de malícia e falou:

– Não, mãe. Ela está mais para namorada do meu amigo Jacó –
Jacó sentiu um fulgor tomar-lhe a face. Raquel voltou seu olhar
cortante e perigoso para Vinnie, que sorriu alegre. Jacó falou com
toda polidez:

– Dona Domênica, Raquel e eu somos só amigos. Na verdade,


tenho namorada. O nome dela é Walkyria – a mãe de Vinnie ia
acrescentar algo, mas pareceu lembrar-se de algo.
– Dio Mio, tenho uma ligação! Teu amigo Carlo está procurando
por você desde que sumiu. Pôs toda a polícia atrás de você!

– Carlos? – Jacó perguntou. – Carlos Eduardo, da Homicídios?

– Sim! – Vinnie falou surpreso. – Eu sabia que você me era


familiar! – Jack falou vitorioso. – Você conhece o Carlão? – Vinnie
perguntou. – De onde? – Jacó riu.

– De minha vida toda! – falou. Os olhos de Vinnie brilharam.

– Caramba, mas que coincidência! – Vinnie falou alegre.

– Sim, uma grande coincidência – Jack falou, mas com tudo que
vinha acontecendo, duvidava que esse contato fosse simples obra
do acaso.

O Gabinete de Matheus estava uma confusão. O padre havia


emprestado o escritório a Carlos Eduardo, que tornara-o sua nova
base de operações. Rita e Tucca trouxeram um notebook e dois
tablets do DHPP (Rita trouxera isso; Tucca trouxera seu caderno de
anotações e as fotos do caso. Sempre dizia que nada substituía um
bom caderno). Sentados ao redor da mesa, os três policiais
tentavam decifrar em que local o Herege pretendia executar
Gabriela.

– De uma coisa temos certeza: não importa onde ele esteja


planejando o crime, com certeza estará envolvido com água, já que
é o único elemento que falta.

– Sim, Rita, mas onde? – Carlos apertava a ponte do nariz com o


indicador e o dedão, devido à dor de cabeça que o incomodava.
Depois de um tempo, ela exclamou:

– Aparecida! – Carlos e Tucca a olharam surpresos.


– Por que Aparecida? – Carlos perguntou. – Ele só atacou na
cidade, basicamente, e em seus arredores. Por que iria tão longe?

– Faz sentido até. Aparecida é a padroeira dos pescadores –


Tucca falou, e Rita assentiu. Carlos Eduardo ficou pensativo e
depois falou:

– Não. Tem algo a mais. Sei disso!

Tucca anotava tudo no seu caderno, pensativo. Carlos, sentado


na mesa, encarava a tela do notebook com as fotos das vítimas.
Rita andava de um lado para o outro.

– Sabemos que a vítima será a irmã Gabriela; isso é bom – a


policial pensava enquanto caminhava pela sala. – Acreditamos que
seja entre hoje e amanhã, os dias restantes da lua, mas nem
sabemos se ele realmente vai atacar – falou desanimada.

– Ele vai atacar! – Carlos Eduardo retorquiu com fervor. – Ela


não está a salvo, eu sei disso! Ele vai atacar, e o crime terá, de
alguma maneira, relação com a água, possivelmente afogamento, e
com certeza deve haver algum tipo de violência sexual – falou
exaltado. Rita acompanhava o raciocínio, e Tucca continuava a
escrever em seu caderno. Pressionava os lábios tenso; parecia
dividido, em dúvida.

– Se ele vai atacar, sabemos que ele rouba algum pedaço da


vítima – Rita continuou. – E desconfiamos que será o intestino
delgado e o coração!

– Mas o mais importante nós não sabemos: nem o local, nem


como ele fará para atacar! – Carlos Eduardo explodiu frustrado.
Tucca estava em silêncio, pensativo, enquanto os outros dois
discutiam. O velho delegado ameaçou falar algo, mas permaneceu
em silêncio. Rita continuou:

– Carlos, tem a ver com água. Acho que meu palpite até agora é
o mais plausível. Por mais que a geografia atrapalhe, Aparecida
parece ser o local!

– Mas não faz sentido, Rita. É muito longe daqui! – Carlos


Eduardo argumentava. – Por que se mover para tão longe?

– Porque é o último crime! Porque Aparecida é o maior santuário


do Brasil, porque Aparecida é a padroeira dos navegantes. Carlos,
você sabe que faz sentido, principalmente porque Aparecida fica
bem longe de você! – ela falou enfática. Carlos olhou para ela.

– Ele não mudaria o local do crime por minha causa! Ele é


arrogante demais para isso!

– Ora, Carlos; convenhamos. Você o atrapalhou, o atrasou em


um dia. Aposto que, embora antes ele não o considerasse um
problema, ele já tenha percebido o quanto você pode atrapalhá-lo! –
ela falou confiante. Carlos anuiu, mas ainda assim disse:

– Até faz sentido, mas sinto que estamos errados.

– Estou me lembrando de algo que talvez ajude – Tucca


finalmente falou, revelando suas conclusões. Seus olhos pareciam
desfocados, como um sonâmbulo. Estava profundamente pensativo.
Carlos Eduardo olhou para ele.

– Diga! – falou para o mentor.

– Meu pai participou da construção da represa Billings.

– Sim, Tucca, você já me contou isso. Era o grande orgulho da


vida dele. O que isso tem a ver com o caso?

– Bom, como vocês sabem, foi uma obra grandiosa, faraônica,


bem típica da ditadura militar, mas o mais importante é que precisou
de muita mão de obra. Meu pai era um dos encarregados da obra.
Naquela época, a região da Billings não era nada, não tinha uma
cidade em torno como hoje, por isso foi construída uma vila de
funcionários e, como de costume, também uma capela – Tucca
girava a caneta entre os dedos. Falava direto, quase como um texto
lido. O olhar ainda estava distante, perdido em pensamentos;
parecia mergulhado em memórias. – Até aí sem novidades – Tucca
continuou. – Mas existe algo diferente nessa capela.

– E o que seria, Tucca? – perguntou imediatamente o delegado.

– Ao término da obra, toda a vila, inclusive a capela, foi


abandonada e depois inundada.

– Você quer dizer... – Carlos Eduardo perguntou segurando o


braço da cadeira e se aproximando do colega, como se quisesse
ouvir melhor.

– Que essa capela não está apenas próxima da água; está


afundada nela – o delegado mais velho falou triunfante.

Carlos Eduardo ficou em silêncio. Rita o observava parada no


meio da sala. Por fim, ele falou:

– Tucca, você pode estar certo! Traga-me mais informações


dessa capela; vale arriscar.

O celular de Carlos Eduardo tocou.

– Dona Domênica, como vai? – a voz falou do outro lado e


Carlos Eduardo arregalou os olhos. – Acharam? Quem o achou?
Meu amigo Jacó? Uma namorada? Dona Domênica, estou indo para
aí imediatamente. – desligou o telefone e fez um esforço para se
levantar. Tucca o ajudou.

– Acharam o Vinnie. Ele está na casa dele com Jacó e mais uma
pessoa.

– Quem? – Tucca e Rita perguntaram juntos.

– Se estou correto... – o delegado falou desconfiado. – Sua


sequestradora. Vou averiguar. Enquanto isso, Tucca, traga-me tudo
o que puder sobre essa capela.
Foi mancando para o carro, mas o padre Matheus apareceu e o
acompanhou.

– Achamos o Jack, ou melhor, ele nos achou.

– Que bom! – Matheus estava genuinamente feliz; seu sorriso


iluminou sua face. Carlos permitiu-se sorrir também. – O Jacó está
bem?

– Quando que o Jack não fica bem, Mato? – os dois riram.


Carlos sentiu outra fisgada na costela, e Matheus o amparou
olhando para o amigo preocupado.

– Carlos, preciso te dar algo. Sei que vai parecer estranho, mas
gostaria que ficasse com isso.

O padre ergueu algo envolto num pano de veludo púrpura. À


primeira vista, pareceu a Carlos que o amigo lhe dava um punhal,
mas, ao abrir o embrulho, viu que era o grande crucifixo de prata
com três enormes rubis que Matheus usara para exorcizar e derrotar
Dom Francisco e o Herege.

– Esta é a Cruz de Santiago, insígnia da antiga Ordem Militar de


Santiago. Foi-me dada pelo meu mentor, padre Giancarlo, lá da
Itália, quando me tornei um exorcista. Foi criada há quase mil anos
pelos Cavaleiros do Cárcere, e era usada pelos cavaleiros que
protegiam peregrinos. Ela foi abençoada por São Gregório, quando
era papa, e é uma relíquia antiga feita para proteger um guardião. É
conhecida como cruz guardiã, ou, ainda, Cruz Espada.

Carlos Eduardo afastou o objeto, temeroso de uma relíquia tão


antiga e inestimável.

– Não posso aceitar isso, Mato! Deve valer mais do que ganharei
a minha vida toda!

– O valor dela é insignificante, se não valer para o que foi criada!


– o padre falou com firmeza. – Carlos, essa cruz foi criada para
proteger os viajantes. Quando os templários foram fundados, há
quase mil anos, para guardar os peregrinos, ela foi entregue pelo
próprio papa Honório II a seu grão-mestre e, depois da extinção dos
cavaleiros, à ordem dos exorcistas, finalmente chegando às minhas
mãos, mas eu não sou um guardião. Acredito que essa cruz tenha
vindo a mim porque era a vontade de Deus que um dia ela te
pertencesse. Você é o guardião de Gabriela, Carlos, não eu.

Carlos tentou argumentar novamente, mas o padre foi enfático.

– Somos amigos há muitos anos. Sei que não acredita em Deus


como eu, mas, se não pode fazer isso por Deus, ou mesmo pela
irmã Gabriela, faça por nossa amizade, faça isso por mim.

Carlos respirou fundo e estendeu a mão para pegar a joia. Sua


mão tremia.

Walkyria andava feliz pelo shopping com seu irmão. O garoto


tinha uma predileção por livros, portanto passaram quase uma hora
na livraria. Ele gostava de grandes sagas de heróis profetizados,
distopias e mundos de fantasia de espada e magia. Depois, jogaram
alguns jogos para os video games mais novos, e ela acabou
comprando um para o irmão.

Atualmente, era raro que Walkyria e Adolfo passassem tanto


tempo juntos, e o menino estava elétrico com toda a atenção. Eles
caminhavam pelas galerias do shopping de mãos dadas, e Walkyria
sabia que muitos imaginavam que o garoto era seu filho.
Antigamente, isso a incomodava, mas agora não. Na verdade, se
pegava torcendo para que, se um dia tivesse um menino, ele fosse
tão bondoso e carinhoso como Adolfo.

Adolfinho era como uma ilha de paz e bondade em meio à


insanidade que era sua família. Walkyria se preocupava,
perguntando-se como poderia tirar Adolfo dessa vida terrível que o
esperava, e não via muitas saídas, o que a entristecia. Então
lembrava-se que prometera a si mesma que hoje seria um bom dia.
Respirou fundo; acharia uma saída, tinha fé nisso.

Quando o garoto ficou com fome, foram para a praça de


alimentação. Como uma espécie de revolta contra o rígido controle
alimentar da madrasta, Walkyria deixou o menino escolher, que não
teve dúvidas e escolheu sem pestanejar um hambúrguer com todos
os condimentos possíveis e muito bacon. Ela o colocou numa mesa
e foi pegar sua comida. Decidiu comer estrogonofe de camarão, que
ela adorava. O prato demorou um pouco e, enquanto esperava, seu
telefone tocou. Era Carlos Eduardo.

Walkyria atendeu num misto de terror e alegria. Seu coração


esforçava-se para manter um ritmo constante diante de tanta
opressão.

– Oi Cadu, e aí? – sua voz nervosa cheia de ansiedade.

– Oi Wal. Acharam o Jack. Ele está bem! – o delegado falou em


tom carinhoso.

Ela começou a chorar, enquanto Carlos Eduardo tentava acalmá-


la.

– Onde ele está? Como posso fazer para vê-lo?! – suplicou aflita.

– Calma, Wal. Vou encontrá-lo daqui a pouco. Ele está sem


telefone, mas, assim que estiver com ele, faço ele te ligar, tudo
bem? – o delegado tinha um ar paternalista e protetor; o coração de
Walkyria bateu livre e alegre.

– Tá, Cadu! Por favor, não me esquece. Preciso muito ver o


Jack! – falou aflita – Ver que ele está legal! – completou por fim.

– Claro. Fica em paz! Estou indo pra lá agora. Acho que em uma
hora, no máximo, eu te ligo – prometeu.

– Obrigada, Cadu, por tudo. Falou agradecida.


– Não se preocupe, Wal! Fica bem!

Ela desligou, respirou fundo, aliviada, e pegou seu prato. Foi


para a mesa e sentou-se, quase à parte do mundo. Olhou para o
irmão para lhe dar a boa notícia e estacou. Ele não estava na
mesa... Olhou desesperada ao redor, sentindo tontura e seu
estômago sendo empurrado aos pés. Levantou-se e gritou:

– Adolfo! – algumas pessoas olharam para ela confusas.

Ela subiu na cadeira e gritou, à beira do desespero, com todos


os seus medos, incertezas e problemas desde a noite anterior a
sufocando.

– ADOLFO! – um rapaz foi até ela.

– Moça, está tudo bem? Perdeu seu filho?

– Meu irmão. Eu o deixei aqui agorinha – a voz nervosa estava


embargada, os olhos embaçados por lágrimas e ela tremia
freneticamente.

– Mas moça, acabei de ver você saindo com ele... – mas


Walkyria nem deu atenção. Vislumbrou o irmão saindo da praça de
alimentação, virando a esquina, acompanhado de uma mulher.

Walkyria disparou na direção dos dois. Quando virou a esquina,


o irmão já estava no final do corredor, virando outra. Walkyria
continuou sua perseguição desesperada. Corria pelo shopping
gritando pelo irmão. O salto quebrou e ela caiu. Pessoas olhavam
surpresas, outras se aproximaram para ajudar, mas ela deixou os
sapatos de lado e continuou. Chegando ao final do corredor, viu o
irmão e a mulher desaparecerem pela saída de emergência. Agora
descalça, acelerou. Ao abrir a porta, entreviu o irmão e uma mulher
loira e alta saindo da escadaria de incêndio para o subsolo. Walkyria
subiu a escada saltando três degraus por vez e se perguntando
como se moviam tão rápido.
Saiu no subsolo do shopping, nas docas (que tinha uma placa de
“proibida a entrada, exceto de pessoas autorizadas” na porta).
Diversos caminhões de carga estavam estacionados. Homens
pegavam as caixas e olharam surpresos quando ela apareceu
correndo desorientada. Ela viu mais uma vez a mulher de costas
para ela, segurando uma porta aberta para que o irmão entrasse e
logo depois segui-lo. A quase cinquenta metros de distância,
Walkyria correu até a porta, seu pé se machucando no asfalto, mas
ela não se abalou. Alguns dos carregadores chamaram, tentando
acudi-la, mas ela não parou, cruzou a porta e se viu em outra
escadaria para baixo. Alguns seguranças tentaram alcançá-la, mas,
ao chegarem na porta, constataram que estava trancada.

– Para onde vai isso? – Perguntou um deles aos outros.

– Para as galerias pluviais. Você sabe o que deu na mulher? Por


que ela veio para cá do nada?

– Não sei. Disseram que ela estava correndo atrás do irmão.

– Mas por que ela veio para cá? Se ninguém entrou aqui, exceto
ela?

Jack, Raquel e Vinnie estavam comendo uma bela macarronada.


Depois de dias correndo em fuga, era bom estar num lugar com
uma pessoa que os enchia de mimos, e, se alguém sabia mimar,
esse alguém era Dona Domênica.

– Bom, precisamos conversar sobre algumas coisas – Vinnie


falou tentando manter um ar sério e preocupado, mas, tendo um
enorme guardanapo bordado com um ursinho marrom com boné
para o lado, preso à gola da camisa como um babador e todo sujo
de molho de tomate, isso era impossível, mas Vinnie não era o
único. Babadores eram regra na casa dos Romanatos. Jacó tinha
um com um cachorro abanando o rabo. Já Raquel fora mais
sortuda: o seu tinha uma bela bailarina. – Acho que deveríamos ir
para a minha casa.

– Mas nós não estamos na sua casa? – Raquel perguntou. O


seu babador, diferente do de Vinnie, estava sem nenhuma mancha.

– Mas é lógico que não! Um cara da minha idade não pode mais
morar com a mãe. Preciso do meu espaço! – respondeu. – Oh, no
no no. Mio Bambino já é um homem. Ele tem seu próprio cantinho –
ela falou agarrando a bochecha do filho. Vinnie tentava manter a
compostura, mas era difícil, embora Jacó reparasse que ele se fazia
de mais tolo e inocente do que realmente era quando estava na
frente da mãe, quase uma caricatura infantilizada de si mesmo.

– Ele vai precisar de muita terapia – Jack pensou.

– Nós temos uma casa no fundo do terreno, onde mio bambino


leva suas namoradas não é, meu Dom Juan? – o pai de Vinnie,
Senhor Giovanni, falou orgulhoso; Vinnie conseguiu ficar ainda mais
vermelho que o molho de tomate.

– Muita terapia mesmo – Jack concluiu em silêncio.

Meia hora depois, os três iam para a pequena casa dos fundos,
muito mais empanturrados que queriam, depois de dois bolos, um
pudim e um cafezinho. Jack percebeu que admirava duas coisas em
Vinnie: ele até que era maduro para a família que tinha e,
principalmente, por ele conseguir se manter magro num lugar como
aquele.

A casa dos Fundos era simples, com a típica arquitetura do


bairro, e em nada semelhante ao rapaz que abria a porta da frente.

– Sejam bem-vindos... ao Covil.

Jack imaginava encontrar uma casa muito semelhante à de


Dona Domênica, mas enganou-se. Vinnie reformara a casa
completamente, abolindo as paredes, exceto as do banheiro. O
andar interior foi inteiramente convertido num Loft. A cozinha era
moderníssima, toda em metal e pedra. Era pequena, dando muito
espaço para um computador, que parecia saído das telas de um
filme de ficção científica, e para três enormes televisores de última
geração: um com notícias do mundo todo, outro em sites
sensacionalistas e o último era dividido entre redes sociais, um
programa de textos e pornografia (que Vinnie mudou, assim que se
deu conta de que Raquel poderia ver). Ao lado deste computador,
parecia haver um mais simples, ligado num monitor solitário, mas
estava desligado.

Do outro lado, um sofá amplo e confortável encarava outra TV,


ainda maior, com possivelmente todos os consoles de video games
já inventados. Na estante, havia diversos personagens da cultura
pop, de Super-Homem a Chaves e Chapolin. As paredes todas
eram recheadas de estantes, com livros de assuntos diversos,
desde religião a geopolítica. Uma em destaque possuía todo tipo de
graphic novels e quadrinhos. O restante da parede era preenchido
com pôsteres de filmes clássicos. Posicionados em pontos
específicos, havia refletores de luz com aparador, e um tripé munido
de uma câmera digital que enquadrando os ambientes da estante,
da cozinha e da enorme tv. Na verdade, era difícil dizer se aquele
ambiente era um enorme loft ou um pequeno estúdio de TV com
seus cenários.

O andar de cima fora quase extinto, deixando um pé direito


duplo. Somente acima da cozinha, ao fundo, o quarto principal fora
mantido, porém a parede frontal fora substituída por uma armação
de aço escovado, criando um parapeito com vista ao andar inferior.

Era um local sofisticado, confortável e recheado de cultura pop.

– Então é aqui que você mora? – Raquel falou impressionada.

– Não só moro aqui. O Covil também é sede do “Truthunter”,


meu portal onde falo das coisas que realmente importam. É daqui
que alerto o mundo sobre as verdades que “Eles” querem esconder!
– exclamou com imponência, depois deu de ombros e por fim
confessou: – É também onde falo das novidades do mundo dos
games, faço meus podcasts e passo umas receitas legais sobre
petiscos como acompanhamento de jogos e jantares para ganhar as
meninas.

Raquel olhou surpresa para ele.

– E de onde você tira dinheiro para tanta tecnologia?

– Muita coisa eu ganho. As outras eu pago com o que eu recebo


– confessou.

– Vendendo pizza? – indagou intrigada.

– Não, né, madame! – pontuou indignado. – Ganho dos meus


patrocinadores. Tenho um dos portais mais acessados do País! Não
acredito que nunca viu meus vídeos! – falou incrédulo.

Vinnie mostrou alguns de seus vídeos a Raquel, e os três


começaram a discutir o que fazer e por onde começar. Iriam seguir o
plano de Michael. Jacó passou quase uma hora lhe explicando os
acontecimentos do dia anterior e traçando uma nova estratégia,
para fugir de Barashemesh e seu séquito.

– Não só deles. Há muito mais em jogo – Vinnie falou. – Temos


que trazer a verdade à tona, Jacó, ao mundo! Precisamos revelar à
humanidade que seres como esses existem e nos comandam pelas
sombras! Mas muitos tentarão nos impedir! – Vinnie, preciso te
perguntar: quem você acha que vai tentar nos impedir? – Vinnie se
levantou e foi até seu computador mais aparelhado, sentou-se à sua
frente, começou a abrir umas pastas e falou sem olhar para Jacó.

– Olha Jack, muitos vão tentar: os maiores governos do mundo,


que desejam uma população alienada sem saber dos bastidores do
jogo do poder – falou com ar de mestre. – Os seres como esse tal
de Barashemesh, que nos persegue, os donos de alguns dos
impérios mais ricos do mundo – Vinnie estava de novo de pé. Ia
contando nos dedos enquanto andava pela sala, falando daquilo
que mais entendia. – Pessoas poderosas que vivem à margem da
sociedade alimentando os desejos mais depravados do mundo, que,
embora doentios, rendem fortunas ilegais. Todos eles não querem
que a verdade venha à tona... –falou. Raquel somente confirmava
com a cabeça. Vinnie continuou. – Adoraria dizer que tudo é
controlado por uma única sociedade secreta como os Illuminati, mas
a verdade é que são diversas facções que desejam que vivamos à
sombra da verdade! Cada uma com seu interesse particular, mas,
em resumo, todas querem a mesma coisa: controle absoluto – falou
juntando os dedos num aperto. – Embora o dinheiro mova o mundo,
nada é mais valioso que o conhecimento – concluiu. – Ah, mas para
deixar claro: os Illuminati são sim muito bons em esconder as coisas
– acrescentou.

– Então os Illuminati existem? – indagou o psiquiatra.

– Sim, eles existem – sentenciou, mas não são tão poderosos


quanto pintam os filmes, livros e hqs. Existem ordens muito piores –
esclareceu.

– Tem alguma que eu deva saber em especial? – perguntou;


Vinnie assentiu.

– Várias, mas tem uma em particular, algo como o bicho-papão


dos bichos-papões! – falou olhando sério para o psiquiatra. – Uma
ordem mística de seres humanos tão perigosa e poderosa que
precisou da união de alguns dos maiores países do mundo para
exterminá-la, e, ainda assim, eles sobreviveram, e acredito que nós
já cruzamos o caminho deles: Os Vrill.

– Frio?

– Não, Vrill – ele escreveu o nome num papel. Raquel teve um


calafrio.

– O que são os Vrill?


– Você já ouviu boatos sobre os Illuminati, ou a boa e velha
história de que existe alguém por trás do mundo puxando os
pauzinhos de tudo, certo? Ou, para ser mais preciso, a história de
uma nova ordem mundial? Os culpados por isso são os Vrill.

– Como assim? Os caras controlam o mundo, é isso? – Jacó


perguntou com incredulidade.

– Não mais, mas por muito tempo sim. Os Vrill ficaram famosos
na Segunda Grande Guerra. Muitos acreditam que a sociedade
secreta deles foi fundada lá. Já ouviu falar de como os nazistas se
meteram com bruxaria? Na verdade eram eles! A alta cúpula nazista
basicamente vivia numa religião à parte.

– Sim. Eles eram satanistas, já ouvi dizer – Jack comentou.

– Errado! Satanista tem duas definições diferentes: uma que


realmente adora o capeta, Satanás, como uma antítese de Deus;
fazem rituais ao diabo e toda aquela história de ser malvadão e tal.
Mas há aqueles que seguem uma versão mais filosófica de
satanismo, adorando o ser humano em todas as suas imperfeições.
Eles acreditam que Deus nada mais é do que a forma de controle do
sistema, e que um soberano castrador foi criado com o único intuito
de privar o ser humano do que ele realmente é. Eles usam a figura
do diabo como referência para se revoltar contra o que a religião
ensina e viver o que seu corpo pede.

– Não importa no que acreditem, os dois têm um destino certo: o


inferno! – Raquel rosnou com azedume, afastou-se dos dois e,
ligando a TV e o video game, saiu da conversa. Vinnie
acompanhou-a com os olhos, depois olhou para Jacó e continuou.

– Os Vrill não seguiam nenhum dos dois. Logicamente, eles não


seguiam os ensinamentos do Deus judaico-cristão, nem de nenhum
outro deus que você possa considerar bom. Eles seguiam uma
antiga filosofia e crença. Segundo eles, a humanidade descende de
uma raça de seres divinos e perfeitos, chamados Arianos. Eles
criaram uma soberba nação num continente perdido, que muitos
acreditam ser a Antártida. Essa raça suprema acabou, de algum
modo, decaindo e deu origem a uma outra raça, os Atlantes, que
criaram a cidade de Atlântida. Finamente, os Atlantes também
decaíram e deram origem a nós, Homo sapiens, raça mortal
imperfeita, sujeita a doenças, que dominou o mundo. Segundo os
Vrill, a perfeição pode ser reatingida por meio do aperfeiçoamento, e
principalmente da manipulação da força divina que existe em todos
nós, que alguns chamam de chi, outros de espírito, outros de magia.
Eles têm um nome específico para isso.

– Deixe-me ver se adivinho: Vrill! – exclamou Jacó com pompa;


Vinnie assentiu e Raquel bufou um rosnado insatisfeito.

– Sim. Eles acreditam que o corpo humano esteja contaminado


com essa doença que é a decrepitude, o que nos faz envelhecer e
morrer. Entretanto, dentro do corpo humano existe a perfeição
guardada nos genes. Eles buscam então criar o ser humano
perfeito, como as pessoas fazem para criar o cão de raça perfeito,
combinando os genes bons e suprimindo os ruins, para assim trazer
de volta a linhagem perfeita: a linhagem dos Arianos.

– Quando você diz arianos, refere-se aos mesmos do nazismo?

– Exatamente. Quando Hitler começou sua campanha, antes dos


campos de concentração focarem no extermínio e na morte de
judeus, os primeiros alvos eram os doentes mentais e vítimas de
paralisia cerebral. Foi a chamada “Solução Definitiva” do nazismo.
Tudo tinha em vista um processo de limpeza étnica muito antes do
descobrimento do DNA e da genética propriamente dita. Percebe as
semelhanças? Pois é, o Nazismo foi onde os Vrill colocaram em
prática toda a sua filosofia, abandonando as sombras e começando
uma nação. Eles eram os caras que comandavam o nazismo e, se
eles tivessem vencido a guerra, a gente estaria bem ferrado!
Acontece que eles mexeram com peixes graudíssimos. Na verdade,
eles acharam que estavam prontos para derrubar todos os outros
que pudessem se opor a eles. Foi aí que o caldo entornou. Os
grandes governos, entre eles as duas maiores potências da época,
o Tio Sam e a mamãe Rússia, viram que os Nazis estavam ficando
muito poderosos e não tiveram escolha a não ser chutar o traseiro
branquelo do Hitler e deram um fim a essa praga – concluiu.

– E o que isso tem a ver com a Raquel? – perguntou finalmente.

Vinnie ficou pensativo, tentando responder, mas deu de ombros


e olhou para a companheira.

– Esta aí uma boa pergunta. Não faço ideia.

Raquel continuava jogando, apertando os botões do controle


furiosa. Cravou o olhar nos dois. Vinnie engoliu em seco e Jacó
retribuiu o olhar.

– E então? desafiou.

Ela desviou o olhar, voltando-se à tela.

– É complicado – esquivou-se.

– Imagino que sim –- admitiu o psiquiatra. – Mas acho que,


depois de tudo pelo que passamos, merecemos umas respostas,
você não acha? – pressionou.

Raquel ficou mais um tempo em silêncio, depois respirou fundo,


largou o controle e encarou os dois.

– O que o nosso amigo se esqueceu de dizer é que toda essa


nação Vrill não teria origem sem um homem; um homem que pegou
uma nação devastada como era a Alemanha ao final da Primeira
Grande Guerra e transformou-a num império capaz de desafiar o
mundo; um homem que tinha um poder de oratória capaz de
transformar seus seguidores em fanáticos absolutos; um líder como
poucas vezes o mundo já viu; um nome tão poderoso e assustador
que até hoje existem malucos que seguem sua filosofia descabida.
Eles não pretendiam apenas criar um povo perfeito, mas um deus
para esse povo. Seu maior experimento foi nesse homem: o
Condutor. Na língua alemã: Führer!
– Hitler! – Jacó concluiu com um calafrio; sempre aterrorizara-o a
figura do ditador alemão. Raquel assentiu. Olhava para o nada e
falava quase mecanicamente.

– No começo, eu achei que eles me perseguiam por vingança,


mas depois entendi que eles estão me caçando por outra razão.

– E qual seria essa razão? – perguntou com temor.

– Eu sou a única filha dos Vrill, sou aquela que eles esperam por
séculos e séculos, sou aquilo que Hitler não conseguiu ser, a
Condutora perfeita, a Herdeira de Atlântida!

– Vinnie arregalou os olhos surpreso e abriu a boca, mas não


falou nada.

Raquel olhou para eles, envergonhada, mas de cabeça erguida.

– Sou eu que vou dar origem a uma nova era. De meu ventre
nascerá a nação que vai subjugar o mundo. Serei a mãe do Quarto
Reich, aquilo que os nazistas entendiam como mundo perfeito, onde
a raça suprema governará a Terra por mil e quinhentos anos! Essa é
a verdadeira Nova Ordem Mundial, a destruição do mundo como o
conhecemos e o surgimento de um novo, maior, mais grandioso e
divino. Entretanto, para que o mundo novo surja, o velho, decrépito
e mortal deve ser primeiro expurgado!

– Mas o que isso quer dizer?

– Basicamente, Jacó, que eu sou o anticristo.

Walkyria continuava correndo por um gigantesco encanamento


sem saber ao certo para onde ir. O irmão sempre estava uma curva
à frente, mas, quando achava que ia finalmente alcançá-lo, o garoto
sumia de sua vista. Ela estava esgotada e os pés doíam, cortados e
ralados, mas nada mais importava, exceto a segurança do irmão.
– Adolfo! – seu grito se alongou pelos encanamentos, ecoando
com desespero, mas ninguém respondia. Finalmente, ela encontrou
o irmão no fundo de um corredor deitado no chão. Buscando forças
sem saber de onde, ela correu mais uma vez até o irmão.

Adolfo estava deitado inconsciente. Ela o sacudiu, mas o garoto


estava num sono profundo.

– Acalme-se. Ele está bem.

Walkyria olhou para trás e, chocada, encarou a si mesma diante


dela, mas sua cópia estava impecável, totalmente arrumada,
calçada e nada suada. Já Walkyria ofegava, tinha a maquiagem
borrada pelo choro, a pele grudenta pelo suor e os pés
machucados.

– Não se preocupe, Walkyria. Seu irmão ficará bem, assim como


você.

A Walkyria arrumada sorriu, revelando dentes brancos


impecáveis, caninos protuberantes; a Walkyria ferida gritou, mas
ninguém lá embaixo podia ouvir seus gritos.

Carlos Eduardo chegou à casa de Vinnie duas horas mais tarde.


Desceu do carro com dificuldade e caminhou até a casa do amigo.
Lá dentro, os três decidiram parar a conversa sobre Raquel, até que
o delegado tivesse partido. Carlos abraçou forte Vinnie e ambos
sorriram. Ao se afastarem, Carlos viu seu melhor amigo, Jacó. Foi
até ele e se abraçaram por um longo período. Era um abraço
apertado e forte, um daqueles abraços que falam mais que qualquer
conversa. O delegado ficou em silêncio ao se afastar, contendo a
emoção. O psiquiatra fez o mesmo.

– Fico feliz que está bem – Carlos exclamou, recuperando sua


postura firme. Olhando para o cabelo tingido do amigo, comentou: –
Novo visual agora?
Jacó riu e passou a mão no cabelo. – É, tive que dar uma
mudada no visual. O que aconteceu com você? Parece que foi
atropelado por um caminhão! – Jacó indagou preocupado.

– Não é nada – o delegado desconversou. – O caso em que


estou envolvido está complicado, mas estou bem, só com umas
costelas quebradas. Vai melhorar.

Vinnie se aproximou dando um soco amigável no ombro do


delegado.

– Pegou o Herege, Carlão? – perguntou ansioso.

Carlos abriu a boca para falar, mas hesitou... Então seus olhos
encontraram os de Raquel. O delegado estava muito ferido e tinha
sido uma longa semana, mas com uma agilidade surpreendente ele
levou a mão à arma, sacando-a e apontando-a para a mulher, que
nem reagiu. Porém, Jacó foi bem veloz também e colocou-se na
frente do amigo, servindo de escudo.

– Calma, Carlão. Ela é a vítima aqui! – falou de forma


apaziguadora.

– Como assim? Eu vi o vídeo! Essa mulher pegou você e o


Vinnie como reféns. Ela vem comigo para a delegacia agora! – deu
um passo à frente. O psiquiatra colocou a mão sobre seu peito.
Raquel encarava o delegado obstinada; não demonstrava nenhum
temor diante da arma ou da possibilidade de ser presa.

– Carlos, você precisa me deixar ao menos tentar explicar. Sei


que parece que foi ela que nos sequestrou, mas não é verdade. Nós
estamos tentando ajudá-la a escapar!

– Escapar de um quádruplo homicídio qualificado? Vamos


lembrar que essa assassina massacrou uma família inteira?

– Não havia uma família para matar. Eles já estavam mortos!


Nunca tirei uma vida humana! Eu estava tentando salvar aquela
família! Dar a eles o direito de ter uma morte digna e não de ter seus
corpos usados como roupas e depois descartados! – Raquel
explodiu. Jacó continuava olhando para o amigo.

– Carlão, alguma vez, investigando seus crimes, você viu algo


que não podia explicar? Crimes que não faziam sentido? Eu sei que
existem coisas que não podem ser explicadas. Você sabe disso e
precisa acreditar em mim.

O delegado abaixou a arma, olhou os amigos nos olhos, depois


encarou Raquel. Empurrou Jacó e ficou de frente para ela,
encarando-a. Ela retribuiu o olhar.

– O que você quis dizer com nunca tirei vidas humanas? – o


delegado perguntou; Raquel respondeu com dureza.

– Você nunca acreditaria.

– Minha tolerância ao inexplicável está maior que o de costume!


– retorquiu com certa ironia; Raquel o olhou em silêncio e falou com
falso descaso, descrente da atenção dele.

– Eles estavam mortos, delegado, e monstros os possuíam. Não


foi uma criança que eu matei, mas um ser com mais de séculos de
maldade! – Carlos a observava atentamente.

– Carlos, eu sei que parece loucura, mas... – Jacó tentou


explicar, porém o delegado guardou a arma na cintura e interrompeu
o amigo.

– Por você, vou esperar até amanhã – olhou para Raquel. – Mas
vou interrogá-la amanhã cedo e, se não me convencer, ela vem
comigo! – Carlos voltou-se mais uma vez para o psiquiatra. –
Mudando de assunto, você precisa ligar para a Wal. Ela está
devastada desde que você sumiu.

O coração do psiquiatra acelerou. Ouvir o nome da amada, que


parecia tão distante, acalentava sua ansiedade, porém, em meio a
tamanha felicidade, o seu olhar encontrou o de Raquel, que fechou-
se ao ouvir aquele nome.

Um pouco acanhado, o psiquiatra pegou o telefone do amigo e


ligou para Walkyria, que atendeu de imediato.

– Oi Wal! – Jack falou. Ela exasperou e depois chorou de alegria.

– Jack, finalmente! – sua voz era cheia de choro. – Como você


está, meu amor? Sabe como eu estava desesperada? – as frases
eram grudadas umas nas outras, sem tempo de resposta. O
psiquiatra bem tentava responder, mas não conseguia. Ela
continuou. – Jack, por favor, onde você está? Eu quero te ver! Você
está bem? Está ferido?

– Wal, calma. Eu estou legal! Eu sei que a gente precisa


conversar, mas agora não posso – falou olhando para Raquel,
dividido entre o amor e o dever.

– Jack – Walkyria falou com a voz em prantos. – Eu sei que te


decepcionei, que não agi como você esperava, mas fiquei
assustada; foi só isso! Eu sei que te magoei, porque assim te
afastaria de mim, mas a verdade é que, quando você sumiu, e eu
achei que nunca mais ia te ver... – ela começou a chorar. Jacó
desviou o olhar de Raquel e falou baixo, afastando-se dos outros.
Raquel voltou-se novamente para o video game. Carlos Eduardo e
Vinnie conversavam.

– Amor – Walkyria quase não conseguia falar. – Eu sei que te


machuquei, mas, se me der uma segunda chance, passarei o resto
de minha vida tentando te recompensar! Eu quero você, Jacó, quero
me casar com você e viver do seu lado! Por favor, vem me ver! –
Jack sentiu o bater intenso de seu coração fazer o sangue correr
selvagem por suas veias. O calor o consumia e queimava sua
razão, sobrepondo seu senso de dever.

– Eu estou indo, meu anjo! Onde você está? – Walkyria


continuava chorando, mas seu choro encheu-se de alegria.
– Estou no meu apartamento te esperando! Vem agora, por
favor! – falou agoniada.

– Estou saindo daqui. Te amo! – falou carinhoso.

– Eu também te amo, Jacó Cohen! – ela falou com alegria e


firmeza. Jacó sentiu a alegria que o inundava por ouvir pela primeira
vez essas palavras ditas com firmeza, e não como uma simples
resposta. O psiquiatra desligou o telefone e aproximou-se dos
amigos, que discutiam sobre Raquel.

– Carlão, pode me emprestar o carro? Preciso ver a Wal – pediu;


Carlos tirou a chave do bolso e lhe entregou. Aqueles que
conheciam Carlos Eduardo sabiam que aquilo era a maior
demonstração de amizade e confiança que ele podia demonstrar.
Ninguém tocava em Trovão, seu Maverick azul.

– Mas para na garagem, hem; não vai parar na rua!

– Pode deixar, Carlão – Jacó se despediu dos dois e aproximou-


se de Raquel.

– Olha, eu vou ver minha namorada, mas volto antes do


amanhecer, tudo bem? Para irmos embora daqui – falou em tom de
desculpas e saiu. Chegando do lado de fora da casa, em frente ao
carro, parou.

Pensava em como explicaria tudo a Walkyria e como faria para


seguir com Raquel. Como lhe explicar que tinha que fugir para longe
e que não voltaria tão cedo? Não queria mentir, mas não tinha
escolha. Estava tão absorto em seus pensamentos que nem
reparou em Raquel ao seu lado.

– Está pensando no que falar para ela? – ela perguntou


tranquilamente; Jack teve um sobressalto e olhou nos olhos de
Raquel, aqueles olhos grandes de chocolate e extremamente
expressivos.
– Não sei o que dizer – confessou; Raquel colocou a mão em
seu ombro com uma delicadeza incomum.

– Jacó, você não precisa ir comigo. Não tem que abrir mão de
sua vida por minha causa.

Jack encarou sua companheira, ponderando o que dizia. Por um


momento, sentiu-se tentado em deixar tudo para trás. Por um
momento, pensou em dar as costas a tudo isso e simplesmente
esquecer. Então fechou os olhos e viu o ser de sombras vestido em
morte com olhos azuis. Sabia que jamais poderia esquecer essa
cena... Muito menos abandonar Raquel por conta própria.

– Não, Raquel. Eu tenho que ir com você – falou; Raquel o


encarou.

– Por quê? – o olhar intenso dela acelerava seu coração e o


intimidava. Ela fazia com que o chão onde ele pisasse se tornasse
viscoso e incerto. – Por que sou tão importante para você? – Jacó
respirou fundo. Criando coragem e mais uma vez olhando-a nos
olhos, falou:

– Sinceramente, não sei. Tudo que sei é que não consigo deixá-
la, por mais que eu queira. Jamais conseguiria esquecer você. Não
conseguiria seguir em frente sem imaginar os perigos que você
estaria enfrentando. Sinto uma compulsão por protegê-la!

Raquel sorriu e acariciou mais uma vez o ombro do psiquiatra.


Sua ternura o confundia ainda mais.

– Converse com sua namorada. Acho que você precisa saber o


que está fazendo. O caminho que trilho é sem volta, Jacó. Essa será
sua última chance de uma vida comum – então ela o deixou perdido
em pensamentos. Por muito tempo Jacó ficou lá parado, até que se
decidiu. Raquel era uma mulher habilidosa e sabia se cuidar.
Walkyria era frágil e precisava dele. Além do mais, ela era a mulher
da sua vida, aquela que ele havia escolhido para passar todos os
dias ao seu lado. Queria ser feliz ao lado dela. Ajudaria Raquel no
que fosse possível, mas sua paixão por Walkyria era algo de que
não podia abrir mão.

Sorriu. Sentia-se livre de seu fardo e era hora de ser feliz ao lado
da pessoa que amava.

Gabriela encontrava-se, naquele momento, em oração. Pedia a


Deus e aos seus anjos que lhe guardassem e dessem sabedoria.
Pedia coragem para enfrentar seus adversários. Estava com muito
medo, mas ainda assim em paz.

– Eu só vos peço, meu Deus-Pai que habita no Alto, que o


senhor me dê forças para enfrentar meu martírio, seja ele qual for –
orava em voz alta, de joelhos, com os braços apoiados na cama.

– Deus não está aqui no momento, minha querida, mas terei


enorme prazer em atender suas preces – a voz fria ecoou no quarto
da freira. Assustada, olhou para trás a fim de encarar o dono da voz
fria e cheia de maldade. Um homem belo, de traços japoneses, a
encarava. Estava usando um terno de alta alfaiataria, uma calça
caqui, sapatos de coro vermelho tijolo e uma camisa branca de linho
por fora da calça; o paletó de seda era vermelho vivo e estampado
com o padrão de um corvo de três pernas bordado em linha negra e
combinava com a echarpe carmesim que lhe caía por sobre os
ombros. Estava de cócoras sobre o encosto de uma cadeira, que
não caía com seu peso. Brincava com um pequeno colar nas mãos,
um colar com uma pedra vermelho-sangue.

– Quem é você? O que faz aqui e como entrou? – perguntou


nervosa.

– Ora, querida, não vamos nos prender a frivolidades. Só vim


aqui para ajudá-la a cumprir a vontade do Criador – ele sorria e sua
voz era cheia de malícia; a irmã olhou confusa para ele, que riu,
revelando seus dentes brancos como marfim e caninos afiados.
Falou com a voz cheia de reverência irônica, recitando o versículo
bíblico como um padre numa missa:

– “Eis que vos envio como cordeiros para o meio de lobos” – e,


novamente olhando para ela, falou baixo. – “Auuuh” – imitou um
uivo lupino fazendo um bico exagerado com os lábios. Gabriela
encheu os pulmões para gritar, mas o oriental desapareceu de onde
estava, reapareceu atrás dela e a agarrou.

Matheus saiu do refeitório e foi ao quarto da irmã, que estava


atrasada para a hora do jantar mais uma vez. Ela tinha o costume
de se perder em orações e se esquecer do horário. O padre
afeiçoara-se muito à moça. Tentara pôr alguém para guardar o seu
quarto, mas a freira recusara veementemente. Mesmo perseguida
por seres sobrenaturais e poderosos, ela mantinha a fé e a alegria.
Tornara-se uma figura muito bem-vinda no local. As crianças a
adoravam e estavam sempre junto dela; até os padres mais velhos
começavam a vê-la como uma filha. Por isso todos a esperavam
para dar início ao jantar. Como ela não descia, coube ao padre ir
buscá-la.

– Gabriela? Você vem jantar? – perguntou enquanto batia em


sua porta, mas ela não respondeu. –Gabriela? – o padre bateu um
pouco mais forte na porta, com certa urgência. Ainda sem resposta,
abriu a porta e entrou no quarto.

– Irmã Gabriela? – o quarto estava escuro e quieto. Matheus


acendeu a luz temeroso e percebeu que algo estava errado: a janela
estava escancarada e nenhum sinal da moça. No chão, o crucifixo
do qual ela não se separava, sempre pendurado no pescoço, estava
largado com a corrente partida.

Carlos Eduardo conversava com Vinnie e Raquel, que lhe


contavam toda a história, desde a fuga da clínica. Para o delegado,
Raquel não parecia louca nem perigosa, e ele estava no dilema
entre deixá-la ir ou levá-la algemada imediatamente. Seu telefone
tocou e, desculpando-se pela interrupção, atendeu.

Era Matheus, com a notícia de que a irmã Gabriela não podia ser
encontrada em nenhum lugar.

– Como assim, Mato? Ela não pode simplesmente ter


desaparecido – falou inconformado; Matheus falou do outro lado da
linha.

– Deixa eu falar com o Tucca – em instantes, disse “alô”.

– Tucca, manda umas viaturas e fala com o pessoal da polícia de


Aparecida. Eu vou até aquela capela que você comentou na Billings.
Ele verá se um monte de viatura surgir por lá, Tucca, então vou
sozinho. Quero que ele pense que não sabemos do local, que ele
ache que vamos à Aparecida! Faça alarde, mas não deixe ninguém
saber da capela.

Desligou o telefone e gritou:

– Barashemesh maldito! – ao que Vinnie e Raquel saltaram


chocados. Raquel perdeu a cor. O delegado se encaminhou para a
saída! – tenho que ir, Vinnie. O Herege atacou de novo, mas ainda
tenho a chance de salvar a garota! Fique de olho nessa aí! – já
estava quase na porta, quando se lembrou que havia emprestado o
carro para o amigo. – Droga, estou sem carro! – socou o ar
enfurecido; Vinnie se levantou.

– Carlão, espere! – o delegado olhou para ele. – O que foi?

– Eu sei que você me acha maluco, mas esse Barashemesh...


Ele que é o Herege? – o delegado assentiu.

– Por quê? Você já ouviu falar dele? – Vinnie balançou a cabeça


positivamente.
– Não dá tempo de explicar agora, mas há algo que você precisa
saber! Esse Herege... Não é uma pessoa normal! Sei que parece
maluquice, mas você não vai conseguir matá-lo! Ele é que vai matar
você! – Vinnie esperava que o delegado fosse rosnar e falar que era
bobagem ou coisa parecida, e se preparou para rebater, mas Carlos
foi por outro caminho.

– Eu sei, Vinnie, mas não posso deixar que ele mate mais uma
garota. Eu não sei como matá-lo, mas talvez possa impedi-lo –
Vinnie aproximou-se do amigo.

– Você não sabe como matá-lo, mas eu sei quem pode te


auxiliar! – então se virou para Raquel. – Por favor, madame, ajuda
meu amigo! – implorou. Raquel arregalou os olhos.

– Vinnie, esse ser, esse Barashemesh, é o mais poderoso entre


os dele. Não sei se nem mesmo eu sou capaz de pôr fim a ele,
quando nem o Michael conseguiu – falou receosa; Vinnie
aproximou-se aflito.

– Você precisa tentar, madame! Nós precisamos tentar! –


corrigiu.

– Do que vocês estão falando? – Carlos Eduardo perguntou


furioso; Raquel olhou para ele.

– Eu sei o que você caça. É o que venho caçando! Esse ser é da


mesma estirpe daquela família que matei, mas ele é muito
poderoso. Mesmo que eu vá com você, é provável que morramos
todos! – concluiu; Carlos não se importou. Só tinha uma coisa em
mente.

– Você acha que conseguiria me ajudar a salvar a garota?


Conseguiria detê-lo por algum tempo pelo menos? – perguntou
esperançoso; Raquel pensou um pouco.

– Sim. Acho que conseguiria segurá-lo o suficiente até que você


e a garota fujam de lá! – concordou.
– Não! – ele respondeu enfático. – Você conseguiu escapar até
agora. Não quero que morra! – aproximou-se. – Quero que me
ajude a resgatar Gabriela. Depois disso, quero que fuja com ela
para bem longe. Faça isso e você está livre! É pegar ou largar! –
Raquel olhou para Vinnie, que já estava de pé terminando de
guardar as coisas na mochila.

– Já estou quase pronto! – falou esbaforido.

– Você não irá comigo agora, Vinnie – Raquel sentenciou; ele


começou a argumentar, mas ela foi até ele e tampou sua boca.

– Vinnie, você falou que quer saber mais da verdade. Não


conseguirá dar andamento nisso se estiver morto! Você ainda não
tem treinamento; só irá atrapalhar – ela enfatizou cada palavra. –
Prometo que se sobreviver volto para te buscar e te ensino o que
sei! Mas agora preciso que você faça o que estou pedindo! Arrume
dinheiro, o máximo que puder, e escolha uma rota de fuga! Se eu
escapar, volto com a irmã e a gente vai para bem longe. Se eu
morrer, você irá até o Michael, dirá a ele que morri e pedirá que te
ensine!

– Eu nem lembro desse cara, esqueceu? Tive um blackout! –


Vinnie argumentou, mas Raquel respondeu.

– Mas o Jacó sabe. Você fala com ele, mas só se eu morrer.


Jacó escolheu seu destino; ele não quer fazer parte disso. Prometa
que você não vai nos seguir! – pediu com firmeza e emendou: –
Esse não é um caminho que possa ser escolhido levianamente.
Jacó tem o direito de viver feliz e longe de tudo isso.

Vinnie apertou os punhos. Tinha lágrimas nos olhos.

– Droga! Está bem! Prometo! Mas por favor, voltem vivos! –


implorou segurando o choro.

Carlos foi até o amigo, colocou a mão no seu ombro e depois o


abraçou.
– Vou fazer o possível, seu tonto – sorriu com uma confiança que
não sentia. Vinnie foi até a mesa da entrada e entregou a chave do
jipe de Michael para o delegado. – Toma. Você vai precisar de um
carro. Não é o Trovão, mas dá para o gasto – falou com a voz
embargada e frustrada, e deu mais um abraço apertado e temeroso
no amigo.

– Se cuida, Vinnie – Carlos Eduardo falou e olhou para Raquel.


Fez um aceno com a cabeça e saiu em direção ao jipe. Vinnie se
voltou para Raquel:

– Cuida dele, madame, por favor! – pediu mais uma vez


sentindo-se totalmente impotente. Raquel sorriu triunfante.

– Não se preocupe, Vinnie. Sou a escolhida, lembra? Vou trazer


seu amigo de volta – e, dizendo isso, também partiu.
Capítulo 15

Toda história que remeta à origem da humanidade retrata uma


batalha entre deuses tão soberba e grandiosa que seu eco pode ser
ouvido através dos tempos. Todas dizem que nunca houve batalha
igual e nunca haverá embate semelhante àquele.

Todas estavam erradas!

Pois qualquer embate real ou mitológico que tenha existido foi


apenas um pálido reflexo do que aconteceu em Tantalis. E essa
batalha até hoje subjaz a memória humana.

Os guardiões, seres de glória suprema, confrontaram seus filhos


– inferiores somente no nascimento –, de igual força e
determinação. Ambos se confrontaram e aos seus pés a terra
gemeu e sangrou. A cada golpe de um dos valentes, fendas
rasgavam-se no solo como um tecido incapaz de aguentar um
impacto violento. Sangue fluía pelas ruas, tingindo a todos de rubro;
o perfume ferroso dominava a todo o ambiente; os gritos e lamentos
eram cacofonias grotescas que dominavam todo o espaço e
despedaçavam a coragem dos fracos e covardes.

Medo e morte corriam pelo campo de batalha, tornando soldados


em crianças. Aqueles embebidos de coragem graças ao vinho
morriam rápido, e os mais habilidosos permaneciam em pé tempo
suficiente somente para tirar a vida de um adversário antes de cair
vítima do próximo.

E entre Deuses e Titãs, Barashemesh, em sua fúria dourada,


flamejava como uma vela em meio ao breu. Com sua lança
perfurava, sangrava e matava seus rivais, muitos dos quais outrora
haviam sido amigos que lutaram, riram e viveram junto do grande
Milqartu.

Vitorioso comandava uma falange de valentes e rasgava a carne


soberba dos guardiões, e seus gritos de dor chegavam aos céus!

A terra rugia e cuspia suas entranhas flamejantes, e o mar fervia


rubro de sangue e magma!

A cada golpe do grande Semyaza, a terra tremia e se desfazia.


Quando Shamsiel erguia sua lâmina refulgente, queimava o solo,
até as cinzas ressecadas que restavam daqueles que estivessem
diante do calor calcinante. E Azazel, o terrível senhor das armas
com muitos braços, desmembrava seus inimigos e criava um jardim
grotesco de membros decepados e uma montanha com as cabeças
sem vida que eram separadas do corpo.

E em meio a tudo isso, só uma pessoa estava comprometida


com salvar vidas e não tirá-las. Era Eos, que cantava com sua voz
celestial, contrastando com a cacofonia infernal, e trazia alento
àqueles que a ouviam. Com seu toque de cura, sarava feridas
quando podia; ou dava de beber e segurava a mão daqueles que
estavam se encontrando com a morte. Para ela, não havia um lado
ou outro; todos eram vítimas da casualidade que era aquela batalha.
E ela chorava com seu coração atormentado pelo sofrimento de
todos.

E, em determinado momento, teve início um dos maiores


embates entre todos, pois Barashemesh chamara para si algum dos
seus maiores soldados e, juntos, alinharam seus escudos um
sobreposto ao outro, e, com lança em punho, marcharam como um
único ser rasgando e furando a todos. Mas do outro lado do campo
de batalha, seu pai, o grande Penem, outrora chamado Shamsiel,
fizera o mesmo e agora essas duas feras encouraçadas, que eram
somente homens e lanças afiadas e escudos de madeira reforçada
no metal, se encontravam, e o choque dos escudos foi como trovões
que se chocavam contra um vulcão rugindo. E ninguém percebera
que o céu coberto pela escura manta de fumaça da montanha
tornara-se ainda mais negro e o clamor da batalha ocultava os
rugidos furiosos de um céu tenebroso. E então, enquanto o maior
combate da história acontecia na terra, o clamor dos inocentes
tornou-se tão alto que enfureceu o coração do Criador, que, de seu
Alto Trono, ordenou que as comportas do firmamento se abrissem.

Primeiro foram pequenas gotas, que trouxeram alívio aqueles


fustigados e feridos, mas logo a água correu do céu como grandes
cataratas e, ao cair no solo, destruiu tudo com sua violência. Logo
os desertos se tornaram lagos e as pedras sumiram de vista e
muitos dos soldados afogaram-se nela e no desespero.

O Criador decidira lavar o mundo! O Dilúvio expurgaria o mal dos


caídos da face da Terra, levando consigo toda a humanidade...

A Represa Billings fica encravada numa das últimas regiões da


Mata Atlântica preservada, onde a flora e fauna local permanecem
intocadas pelas mãos humanas. Próximo de uma de suas margens,
aonde a civilização ainda tem acesso, casas de luxo de
condomínios fechados dividem o espaço com pequenos vilarejos
pesqueiros. Esquecidas no interior da mata ficam as ruínas de uma
pequena vila, criada pela empresa geradora de energia para abrigar
as centenas de trabalhadores que tornaram possível essa obra
magnífica.

Hoje, a vila quase não pode ser vista. Somente as casas mais
afastadas sobreviveram. Nem mesmo a pequena igreja está à
mostra. Somente parte de sua torre permanece desafiando as
aguas plácidas do local.

Em meio à escuridão da noite, com somente a lua como


testemunha, um jipe velho e enferrujado chegava ao local. Dele
desembarcaram o delegado Carlos Eduardo e Raquel, que
caminhavam pela única rua ainda existente na cidade fantasma. O
asfalto estava tomado pela selva, assim como as construções de
tijolo. A sinfonia selvagem de cigarras, mosquitos, aves e outros
animais ocupava o ambiente e dava uma sensação de medo
constante. Sentiam-se observados, e realmente eram vigiados por
dezenas de criaturas da noite, embora procurassem apenas uma, a
mais letal das criaturas das trevas. Pararam em frente à margem da
grande represa e viram, a quinhentos metros, os restos inundados
da antiga casa de oração, somente sua torre fora da água, como
uma mão ressequida de um cadáver afogado que aponta para as
estrelas seu dedo carcomido. A construção era típica do início do
século XX, toda em tijolo, o que a tornava sólida e resistente à
erosão. Carlos Eduardo apontou para o topo.

– Vê ali, na torre? É onde ficava o sino. Acredito que seja lá que


ele queira acabar com a vida de Gabriela.

– Como você sabe? Como sabe que é aqui? – ela perguntou; o


delegado olhava fixamente para a torre e falou sem olhar para a
garota.

– Na verdade, não posso te dizer como sei. Foi um palpite de


meu parceiro, mas eu sei que é aqui! Posso sentir! – falou
determinado; a garota olhou para a torre.

– Como chegaremos até lá? – Raquel perguntou e Carlos olhou


em volta.

– Boa pergunta – falou por fim. – Vamos dar uma olhada para
ver se encontramos algo para atravessar.

E assim fizeram, mas não obtiveram êxito. Portanto, sem achar


embarcação que pudesse levá-los até as ruínas, sem outra
alternativa, o delegado parou diante do lago e tirou sua jaqueta.

– O que está fazendo? – Raquel perguntou.

– Olhe em volta – ele respondeu enquanto tirava a camisa,


revelando o tórax cheio de ataduras e hematomas. – Não temos
como chegar lá, a não ser a nado!
E, sem esperar respostas ou protestos, continuou a tirar a
camisa e o coldre da arma. Pegou na mão o crucifixo dado por
Matheus e por um longo tempo o observou. Estendeu-o à garota.

– Fique com isso. Foi me dado por um amigo querido. Pode ser
útil, mas, se há alguém capaz de usá-lo a nosso favor, esse alguém
é você, porque não sou muito religioso – falou por fim. Ela pegou a
antiga joia com as duas mãos. O delegado voltou-se novamente ao
lago e mergulhou.

Raquel andou de um lado para o outro e depois, derrotada,


começou a tirar os calçados.

– Fique de bota! Não sabemos no que vamos pisar, então é bom


proteger seus pés – Raquel parou e começou a tirar a jaqueta.
Pegou a dela e as roupas do delegado e colocou-as numa das
casas. Carlos Eduardo agradeceu a rapidez de raciocínio dela.
Estava tão focado em chegar à torre que esqueceu que deixara
suas roupas largadas no chão, o que poderia revelá-los.

Nadaram até a torre sem grandes dificuldades. A água estava


fria, mas suportável, graças ao clima quente e úmido da região. A
janela mais próxima estava a pouco mais de um metro acima deles,
dificultando invadir a torre. O delegado praguejou furioso.

– Fique aqui. Já volto – Raquel falou e voltou à margem; saiu da


água e sentiu o vento esfriando sua carne. Não era um frio letal,
mas era incômodo. Ela foi até o carro e voltou de lá com uma
lanterna na mão.

Quando se aproximou do delegado, acendeu a lanterna à prova


d’água e mergulhou. Um minuto depois emergiu.

– Tem uma janela ali. Podemos mergulhar e entrar, porque não é


longe – disse sorrindo; o delegado assentiu e mergulhou com ela.

Foi uma travessia muito difícil para Carlos. Nadar forçava as


costelas, e a sensação era a de que pequenas lascas de ossos
rasgavam a carne do seu peito como uma faca de serra. A água
gelada amortecia parte da dor, mas não era o suficiente. Quando
emergiu, já dentro da torre, estava pálido e ofegante. Raquel nem
reparou, tão absorta que estava olhando a construção decadente. A
torre estava cheia de musgo, e plantas aquáticas a envolviam como
uma veste viva. Mas o que realmente chamara a atenção era a
decoração do local. Em cada degrau da escada não tomado pela
água havia uma cabeça humana, em diferentes estágios de
decomposição, algumas recentes e outras antigas, mas todas
tinham uma característica em comum: cabelos vermelhos como
fogo. A parede fora tingida com diversas inscrições desconhecidas,
mas Raquel podia reconhecer um ou outro símbolo místico e até
mesmo alguns hieróglifos. Entre eles a garota viu uma sequência de
uma pena, um quadrado submerso em algo e um pássaro seguido
por um chacal. Ela apontou para o delegado.

– Ali. Consegue ver? Aqueles desenhos são o símbolo que


representam Anúbis, o guardião dos mortos egípcio. E ali... –
apontou para um desenho de uma serpente devorando a própria
cauda, formando um círculo. No meio do círculo, havia o desenho
de um cajado de pastor de ovelhas ao lado de um semicírculo sob
um retângulo. – Aquele é o símbolo de Set, o diabo egípcio, por
assim dizer. Mas não é só isso... Cada símbolo aqui parece se
referir a alguma divindade caída. São representações das grandes
divindades do caos e destruição da antiguidade. É como um mapa
para o inferno de todas as religiões! O que diabos ele estava
fazendo aqui?

– Preparando tudo para o último sacrifício. Gabriela é esse


sacrifício – o delegado falou olhando enojado para as figuras e para
os crânios. A cada momento que passava odiava mais e mais seu
inimigo profano. Tocou a arma. – Ainda bem que as balas de hoje
em dia são vedadas e não molham.

Raquel o olhou cheia de complacência.

– Suas balas serão inúteis contra esse adversário, delegado –


Carlos assentiu incomodado e, olhando o local, perguntou:
– Acha que ele pretende assim atingir um estado supremo?
Seria isso? Tornar-se um deus?

– Não sei – Raquel falou pensativa. – Mas parece mais um


grande ritual de invocação, como se na verdade ele quisesse abrir
um portal para o mundo dos mortos.

– Seja qual for a razão, vou impedi-lo hoje – falou decidido o


delegado. Raquel assentiu.

Subiram até o topo da torre, onde encontraram um altar feito de


um enorme bloco de obsidiana. Fora esculpido de tal maneira que
parecia um bloco de vidro negro afiado. O sino não existia mais. Em
seu lugar, todo o teto havia sido coberto pelos corpos decapitados
de mulheres. Eram muitas. Os corpos estavam pregados. Alguns
dos cadáveres nada mais eram que uma ossada, enquanto outros
ainda apodreciam, portanto o fedor pútrido era nauseante... Além da
rocha negra, o altar era uma caricatura blasfema de uma missa.
Havia um crucifixo feito de ossos entrelaçados, uma toalha feita em
coro, que Carlos tinha certeza ser pele humana. No chão, ao lado
do altar, havia cinco crânios, todos com as calotas cranianas
cortadas e seu interior escavado para ser transformados em
vasilhas. Dentro de cada crânio havia uma vela grosseira e, ao lado
deles, havia uma enorme bacia, feita em ouro maciço e trabalhada
com lápis-lazúli num padrão de uma estrela de cinco pontas, sendo
uma delas voltada para baixo, não para cima, como de costume.
Além disso, cada uma possuía um padrão diferente da outra.

A primeira bacia era cravejada por diversas pedras de ônix


esculpidas na forma de um ovo negro, que ficavam exatamente
abaixo da estrela. Dentro da bacia havia um líquido escuro e de
cheiro ferroso, que o delegado conhecia bem: sangue! Boiando no
líquido ele podia ver um baço, um pâncreas e um estômago
apodrecidos, cheios de vermes.

Na segunda bacia, sob a ponta esquerda superior da estrela,


pedras de topázio esculpidas em um perfeito quadrado dourado
estavam encrustadas no ouro. A bacia estava cheia de terra e
guardava dois rins.

A terceira tinha, sob a ponta inferior da direita, encrustada em si


uma safira esculpida num círculo. Todas as pedras tinham o mesmo
preciso tamanho. Essa vasilha estava vazia, exceto por um pulmão
e um intestino grosso, que haviam sido limpos e preservados.

A quarta bacia tinha, sob a ponta superior da direita, um belo


rubi, esculpido na forma de um triângulo. Dentro da bacia havia
cinzas de carvão, e, sobre essas cinzas, um fígado defumado e
ressecado.

Finalmente, a última vasilha, que estava sob a ponta inferior


esquerda de suas estrelas uma lua crescente feita em prata, estava
cheia de agua límpida e reluzente.

– Aqui! – o delegado falou apontando excitado para a vasilha


vazia. – É aqui que ele vai tentar colocar o coração de Gabriela!
Achei seu esconderijo, afinal, seu desgraçado! – ele tinha um ar
quase ensandecido no olhar. Raquel chamou sua atenção:

– Precisamos nos esconder, para quando ele chegar – ele


apontou para o fundo do cômodo, oposto ao altar, onde uma
verdadeira pilha de corpos ressequidos descansava grotescamente.

– Céus! – exclamou Raquel chocada. – Deve haver mais de cem


corpos aqui! Como ninguém nunca achou esse lugar?

– É perfeito! – Carlos falou. Fica longe da civilização, o cheiro,


embora forte, é facilmente levado pelo ar para a mata; e, se você
notar, esses corpos não estão largados aqui... Todos eles foram
meticulosamente mumificados! Esse demônio vem torturando e
matando mulheres há mais tempo que eu imaginava!

– Exato, delegado. É com isto que estamos lidando: com um


demônio do tempo antigo, tão maligno e cruel quanto ancestral.
Acha mesmo que vamos derrotá-lo? – ela perguntou ácida. Carlos
Eduardo a olhou com bondade.

– Não vamos, garota, e foi por isso que aceitei que você viesse
comigo. Não pretendo sair daqui com vida...

– O quê? – Raquel olhou-o confusa.

– Não poderemos matá-lo, nem mesmo vencê-lo. Estou bem


ferido para mais um combate corpo a corpo, mas talvez eu possa
segurá-lo aqui por tempo suficiente para que o ritual dê errado e
você possa fugir com a irmã. Se eu conseguir isso, boto um fim nos
planos desse animal. Para mim, é a melhor maneira de morrer! É
por isso que, não importa o que aconteça, você deve ir embora
daqui e levar Gabriela para bem longe! Por isso eu te trouxe!

Raquel olhou para o delegado em silêncio, admirada por sua


coragem e desprendimento.

– Farei o que estiver ao meu alcance, delegado! – retribuiu. –


Mas agora precisamos nos esconder – dizendo isso, começou a se
cobrir com vários dos corpos para tentar se ocultar, atitude copiada
pelo delegado.

Carlos olhava com admiração para Raquel, que, embora


abalada, não evitou cobrir-se com os cadáveres. Ele mesmo achava
aquilo nauseante, mas sua necessidade era maior que seu horror.

Levaram um bom tempo cobrindo-se com os corpos e tentando


tornar-se invisíveis.

– Agora esperamos... – Carlos sentenciou.

Jack levou um tempo para chegar à casa de Walkyria. Estava um


pouco nervoso quando estacionou o carro. Tinha comprado flores e
tentava ficar apresentável, algo difícil depois de dias em fuga por
florestas, praias e serras. Ainda assim, tentava parecer normal. Seu
estômago estava embrulhado e ele se sentia num primeiro encontro.

– Deixe de ser idiota, Jacó! – falou encarando seus olhos


assustados pelo espelho retrovisor. Respirou fundo e decidiu entrar
de uma vez no prédio.

O porteiro o cumprimentou e abriu o portão sem anunciá-lo,


como sempre fazia. Era só mais um dia para o funcionário, mas
para o psiquiatra parecia uma nova vida, por isso pediu para o
funcionário avisar que ele estava subindo. Da última vez em que
estivera naquele apartamento, tudo era tão diferente. Acabara de ter
um jantar romântico com Walkyria de dia dos namorados. Tudo fora
perfeito. Fazia pouco tempo que estavam namorando e Jacó tinha a
plena convicção de que aquela mulher seria aquela com quem ele
queria passar o resto de seus dias. Ela seria a mãe de seus filhos!
Entretanto, havia pouco mais de uma semana que ela, que deveria
ser sua mulher, o deixara e então tudo mudou...

Ele caminhou até o elevador e entrou nele. Desceu no 18º andar


e se dirigiu ao apartamento 181. Quando foi abrir a porta, ela se
abriu sozinha. Jack estranhou, mas terminou de empurrá-la. O
apartamento estava todo apagado. A única luminosidade parecia vir
do corredor pelo qual se chegava ao quarto. O coração do psiquiatra
começou a bater acelerado. Preocupado, ele abriu a porta atento a
cada detalhe. Havia algo errado, podia pressentir.

No caminho, pegou uma estatueta de metal que estava na mesa


de centro da sala, mas, ao entrar no quarto, tudo perdeu a
importância. Walkyria estava deitada de bruços, vestida com uma
camisola de seda branca, e parecia adormecida. Quando ele entrou,
ela pareceu despertar. Seus olhos estavam vermelhos, como se
houvesse chorado muito, e a maquiagem estava borrada, com duas
listras negras escorrendo pela face alva. Jacó achou que ela nunca
esteve tão linda e perfeita como naquele momento.

– Jack? – a garota perguntou numa voz confusa, que não sabia


se aquilo que via era verdade ou mentira.
Jacó largou a estatueta e correu até ela, pegando-a nos braços e
beijando-a profundamente. Foi um beijo cheio de desejo. As mãos
de Walkyria agarravam seu amante com desespero. Suas unhas
arranhavam sua pele e os dentes buscavam a carne. Jacó
inicialmente estranhou. Walkyria era uma mulher delicada e sempre
doce. Mesmo no sexo, não era de arranhar ou morder, mas desde o
dia na churrascaria, e principalmente desde o combate com o Gaki
na delegacia, uma fera havia despertado dentro do psiquiatra, que,
em especial, clamava por Walkyria! Logo os dois se atracavam na
cama, a mulher rasgando as vestes do amado e seus lábios
explorando todo seu corpo. Jacó a puxava e empurrava, e o sexo
que ocorria estava entre uma luta e um flerte. Rolavam pela cama
como selvagens, Jacó de olhos fechados, aproveitando as carícias
da amada, quando sentiu uma dor aguda no pescoço onde a mulher
o beijava. Quando abriu os olhos, viu uma vasta cabeleira vermelha
como sangue sobre ele. Aquilo que antes era um beijo agora era
como um anzol que o fisgava e o paralisava.

Jacó tentava lutar, mas estava dominado pela mordida da


mulher. Era uma dor ao mesmo tempo insuportável e de prazer
profano, que fazia seus membros se contorcerem como se fossem
atingidos por descargas elétricas. Como alguém que fica agarrado
ao fio de eletricidade que o mata, o psiquiatra contorcia-se sem
poder escapar.

Quando a mulher finalmente tirou seus lábios do pescoço de


Jacó, ele viu a mulher mais linda que ele já havia posto os olhos.
Não era uma beleza comum, nem mesmo uma beleza rara. Era uma
beleza inumana e perfeita além do possível. Boadiceia encarava-o
com seus olhos de esmeralda, que refletiam uma luz também verde
como uma felina no escuro. Ela riu, revelando os dentes caninos
afiados e manchados de vermelho. Antes que o psiquiatra
conseguisse se mexer, ela abriu a boca e tornou a cravar os dentes
nele.

Jacó estava incapacitado, sentindo seu sangue fluir pela ferida,


sem força para lutar. Ele sabia que estava sendo lenta, dolorosa e
prazerosamente assassinado. Fechou os olhos, e a imagem de
Raquel apareceu diante dele. Ele tentou dizer a ela que sentia
muito, que gostaria de tê-la ajudado, mas não conseguia. Então
Walkyria apareceu em sua mente, ainda como sempre, com seus
cabelos quase brancos que esvoaçavam. Estava vestida numa
túnica branca leve ao vento, que contrastava com a pele bronzeada.

– Eu estou morrendo, não é? – falou para ela.

– Está – ela falou com tristeza.

– Não parece ser tão ruim – concluiu.

– É terrível – ela emendou.

– Você está morta, Wal? – Jack perguntou com tristeza; Walkyria


sorriu sem felicidade.

– Essa é a parte triste, Jack... Estou viva, no quarto ao lado, mas


você está morrendo.

– Eles vão te matar? Depois de mim? – ele perguntou. Sentia


muito sono mesmo na visão. Sentia seu coração perdendo a força, a
pressão sanguínea caindo cada vez mais.

– Não, Jack, meu destino é pior que a morte, meu amor, mas
não há nada que você possa fazer...

– Não há nada que você possa fazer... – foi a última coisa que
Jack ouviu, antes de perder a consciência.

Estava triste. Sentia-se derrotado. Isso, mais que qualquer coisa,


o enfurecia!

A água que caiu dos céus veio com tamanha violência que
cobriu prédios e ruas em segundos, lavando o sangue e levando
consigo os cadáveres daqueles perecidos na batalha de Tantalis.
Mas mesmo a tormenta que caía do céu não arrefecia o ritmo da
batalha que se desenrolava. Os Filhos da Queda confrontavam seus
pais com fúria e ardor, e os Guardiões respondiam com selvageria e
poder. E nenhum dos lados cedia. E aqueles que não eram dessas
linhagens acabavam derrotados pela exaustão e logo eram levados
às profundezas dos oceanos. Barashemesh continuava junto de sua
legião e tentava fazer com que os guerreiros aliados a seu pai
cedessem. No outro extremo, no topo da montanha, Vitorioso
confrontava aquele que lhe dera a vida, Semyaza, e o duelo dos
dois era temível de ver. As lâminas se mordiam e nenhum escudo
resistia aos golpes, por isso ambos os combatentes usavam
somente lâminas. Bastava um erro e um dos dois seria dividido ao
meio. Mas aqueles eram os maiores de seus povos. O Maior dos
Guardiões contra o maior entre os Filhos da Queda. Não havia
espaço para erro entre dois combatentes tão formidáveis.

E assim o embate se estendeu por dias a fio. Na base da


montanha, Eos tentava salvar aqueles incapazes de aguentar um
ritmo tão frenético. As vítimas só aumentavam, e ela batalhava tanto
quanto os demais valentes, se não mais, no seu combate solitário
contra a morte. E de todas as rusgas que aconteciam naquela hora,
essa era a única em que a derrota era certa, pois a morte clamava
mais e mais vidas com seu apetite voraz. E a cada morte, a mulher
alada gritava e gemia de agonia.

Barashemesh e seus homens lutavam com todas as suas forças,


assim como os soldados do Senhor do Sol. Aos poucos, entretanto,
a vontade dos homens começou a falhar, e foi então que o gigante
mostrou sua glória! Clamando aos seus companheiros desgastados
e falando palavras que aqueciam seus corações, Barashemesh
moveu seus soldados numa última carga feroz. E inspirados pelo
discurso de seu capitão, homens apertaram, estocaram e feriram
ainda mais seus oponentes, rompendo as barreiras de Shamsiel. Foi
então que pai e filho finalmente se encararam.

Embora o Astro-Rei estivesse coberto pelas nuvens carregadas


de água, os dois guerreiros resplandeciam com sua luz
incandescente e se digladiavam como titãs flamejantes. E a
habilidade de ambos fazia com que muitos parassem o combate
para observar a dança de lâminas e fúria.

E entre voleios e fintas, Barashemesh olhos nos olhos dourados


do pai e finalmente libertou a pergunta que o atormentava:

– Por que nos confronta? Por que não se une a nós para que
juntos tentemos pôr um fim ao plano do Criador?

– Porque tu, meu filho, sempre foi e sempre será o maior de


meus erros! Nunca deveria ter te gerado, mas meu desejo por Zillah
era tão grande que preenchi o ventre dela! Tu sempre foste a
abominação que eu deveria ter exterminado quando respiraste pela
primeira vez! Tu és viva demonstração de meu pecado! E colocarei
um fim a ti de uma vez por todas!

– Alguma vez me amaste? Alguma vez tiveste orgulho de teu


filho? Pois tudo o que fiz por muitos anos foi para ter teu agrado,
mas jamais demonstraste outra coisa que não desprezo por mim! –
falou o gigante com amargura. O Guardião o observou e por fim
falou, suas palavras ainda mais ferinas e cortantes que suas
lâminas.

– Tudo o que fizeste só aumentou o desprezo que sempre senti


por ti. Ver teu poder e grandeza crescendo somente alimentou ainda
mais meu desprezo, pois via diante de mim uma abominação que
nunca deveria ter sido banhada por minha luz! Tu és o meu maior
crime, e tua grandeza só eleva ainda mais esse fato. Hoje eu
colocarei um fim a tua vida e livrar-me-ei desse pecado!

Barashemesh urrou em sofrimento. E então atacou com uma


fúria renovada. Sua lança rasgou o céu e buscou o coração de seu
progenitor, mas ele se desviava dos golpes como um dançarino
habilidoso. A fúria de Barashemesh, entretanto, antes contida pelo
zelo com o pai, agora estava inflamada pelo desprezo e alcançou tal
magnitude que nem mesmo o Guardião pôde resistir. Numa
estocada fatal, a lança feita da fera mais perigosa já criada pelo
Altíssimo rasgou couraça, mordeu carne e perfurou coração.

O resplandecente e fulguroso Shamsiel grasnou com surpresa


ao ver a lâmina perfurando seu corpo divino, e então tornou-se
incandescente e suas chamas tomaram a Barashemesh sem, no
entanto, queimá-lo. Shamsiel, nesse momento, se apagou e
diminuiu, tornando-se cinzas, mas antes de apagar completamente,
olhando o filho nos olhos falou:

– Maldito seja, parricida, o dia em que nasceste! Minha única


alegria é saber que a morte virá a ti pelo Criador. Afoga-te em tuas
próprias desgraças!

E assim morreu Shamsiel, o Fulguroso, pela mão do próprio


filho, que tanto o buscou por seu amor, sem nunca encontrá-lo.

E ao redor de Barashemesh, o mundo era submerso em morte.


Eos tentava em vão salvar os feridos, mas esses eram encobertos
pelas águas destruidoras. E no topo da montanha, o Vitorioso e o
Infame continuavam seu confronto. E Barsemyaza, o maior dos
Caídos, ria com a destruição ao seu redor! Tudo parecia perdido
para todos, mas ele ainda assim gargalhava triunfante. Nesse
momento, um alto brado foi ouvido nos céus, e mesmo os dois
generais pararam seu duelo e olharam para cima; a chuva não era a
última ofensiva dos céus.

Refletindo a glória do Criador, o exército alado chegava para pôr


um fim ao embate, destruindo a todos os remanescentes da batalha
de Tantalis.

A primeira coisa que viram foram as velas. Elas se acenderam


sozinhas, mas não foi só isso que lhes chamou a atenção. Os
crânios transformados em vasilhas ganhavam um tom macabro e
assustador com suas órbitas flamejantes e narinas iluminadas.
Depois começou o som forte das passadas. Ele subia as
escadas lenta e pesadamente, como um grande animal de carga.

Em seguida veio o cheiro. Era pútrido, mas não nauseante. Era o


fedor de algo velho e que ficara imerso por muito tempo, uma
podridão misturada a mofo e umidade.

E então eles viram o inimigo surgir pela passagem. O corpo


volumoso e gigantesco estava ainda mais decrépito. Seu olho
esquerdo estava branco e baço; o direito havia desaparecido, uma
vez que aquele lado da face era descarnado e revelava o crânio
grotesco. O pouco da musculatura que restava segurava o osso
maxilar, que começava a se soltar, tendo poucos tendões que ainda
o mantinham preso. A carne cedia em diversos lugares, revelando
uma musculatura escura e sem cor.

O Herege era uma mistura de tons. A pele branca tinha uma


tonalidade apática; a carne por debaixo dela tinha uma coloração
acinzentada repugnante. Em alguns lugares, como nos ombros ou
nas costelas, ossos esverdeados e cheios de musgo surgiam das
feridas cheias de água, mas sem sangue. Enormes calotas de
gordura, cada vez mais transformadas em sabão duro e
embranquecido, surgiam, assim como fungos e até mesmo alguns
pequenos corais. O ventre rasgado estava inchado de água e,
conforme ele caminhava, a força do líquido empurrava suas
entranhas para fora, fazendo com que seu intestino se arrastasse
como um cordão profano.

Em meio a tanta podridão, o monstro vestia-se de maneira


soberba. Embora descalço, torques de ouro e lápis-lazúli cravejados
de safiras adornavam seus tornozelos. Nos pulsos, dois enormes
braceletes também em ouro. Sobre a cabeça descarnada repousava
um diadema feito também em ouro e lápis-lazúli. Na orelha
esquerda (a única restante), um belo brinco também em ouro e azul.
Além dessas joias, vestia apenas um saiote de linho tingido em azul,
com um padrão bordado em ouro e safiras pregadas à barra. Ele
tinha um corte no estilo grego antigo.
Gabriela também havia sido vestida numa bela túnica azul
transparente que revelava a beleza de seu corpo imaculado. Estava
inconsciente.

O Herege calmamente caminhou pelo andar e depositou seu


prêmio sobre o altar escuro. A irmã gemeu ainda desacordada. Ele
voltou-se para a pilha de corpos e farejou o ar. Ficou em silêncio por
alguns segundos e depois sorriu, revelando seus dentes
pontiagudos e afiados como os de um tubarão.

– Ah! – exclamou, e sua voz macabra e inumana soou aguda.


Estava ainda mais macabra que antes, um tom mais baixo e mais
sobrenatural... – Então me encontraste, delegado! – seu olho
vazio reluziu com um brilho azulado, e todas as chamas tomaram
essa tonalidade. O vento frio atingiu o local, e Gabriela gemeu mais
uma vez.

– Vamos, por favor! Não há mais a necessidade de te


esconderes. Sinto teu cheiro e de mais alguém. Mostra-te,
delegado. Somente covardes se escondem.

Carlos Eduardo afastou os corpos e encarou seu adversário.


Raquel também surgiu com um ar desafiador.

– Se não há a necessidade de esconder-se, por que você está


aqui enfurnado nesse lugar esquecido por Deus? Por isso estamos
aqui escondidos de todos, seu animal? Por que você é um covarde?

– Escondido? – o Herege gargalhou sua risada macabra e


cruel. – Ora, delegado... Estou tudo menos escondido! Estou
diante da audiência à qual sempre desejei mostrar-me. Dizeis
que estou escondido até de Deus, mas é justamente a ele que
revelo-me! Estou na morada de meu inimigo, e bem diante dos
olhos Dele profanarei mais uma vez as crianças que Ele tão
veementemente escolheu guardar!

– Então é isso? Algum padre abusou de você quando ainda era


um demoninho inocente e gentil e por causa disso você quer se
vingar de Deus Todo-Poderoso?

– Acha que algum mísero sacerdote me fez mal? – o herege


gargalhou e o frio aumentou no lugar. Carlos Eduardo e Raquel
sentiram, mas continuaram firme.

– Delegado, pensas que vingo-me dos servos? Minha


contenda não é contigo, ou demais lacaios do Soberano. O
Altíssimo é o cerne de minha cólera, e é a Ele que eu farei mal!

– E essa garota é Deus por acaso? – Carlos falou apontado para


a irmã Gabriela. – Não vejo Deus aqui para acertar as contas com
você, seu animal! Não, Deus não está aqui, Barashemesh, nem
enviou um arauto ou messias. Sua briga não é com Deus, ou com
os anjos do céu, ou Jesus ou Buda ou a Virgem Maria! Não são eles
que estão aqui hoje! Hoje sou eu que estou aqui: delegado Carlos
Eduardo, da Polícia de Homicídios, e é a mim que você vai se
submeter e a um júri escolhido por essa nação. Você vai pagar por
seus crimes, seja pela justiça ou por minhas mãos! Mas eu lhe
prometo isto: essa garota não morre hoje! – sentenciou.

O Herege parou por um instante, analisando seus oponentes.


Falou, por fim, de uma maneira branda e incomum.

– Eu te admiro, delegado Carlos Eduardo. Teu senso de


dever e justiça é impressionante! Quase como sua religião
particular! Tanta força de vontade num único homem... Ah
delegado! Em outras épocas eu te escolheria para ser meu
hospedeiro. Um homem como tu resistiria ao processo, sem ser
consumido e andaríamos juntos por séculos ou talvez até mais!
Esse corpo decrépito que vês me serviu bem por quase setenta
longos anos! – falou apontando para si mesmo. – Era um
guerreiro valente como tu e mesmo os horrores das Guerras
Mundiais não o curvaram, mas minha força imortal o consumiu
e hoje devo dar-lhe o descanso da morte. Como gostaria que tu
fosses meu novo corpo, para que juntos pudéssemos
presenciar o alvorecer de um novo tempo – sua voz maligna
tinha um tom sincero e também idealista. – Um tempo em que a
humanidade atingirá seu pleno potencial e finalmente colocará
fim a um deus prepotente e desprezível – o herege continuava
seu discurso, quase alheio aos dois adversários e à sua vítima,
deitada no altar. – Um pai egoísta que cria seus filhos para sua
diversão pessoal e os escraviza a sua própria vontade e bel
prazer.

Gabriela tremia de frio e lentamente dava sinais de recobrar a


consciência. Carlos Eduardo encarava seu adversário sem mover
um músculo. Raquel, no entanto, se movia de maneira muito sutil na
direção da freira e do Herege, como um felino pronto para o bote. O
Herege olhava para longe, perdido em seu discurso de ódio e
nostalgia.

– Um ser que se considera onipresente, mas que é incapaz


de me impedir! Uma nova era em que eu serei o messias de
uma nova humanidade! – sua voz assustadora era alimentada pelo
fanatismo. Ele olhava para o delegado, mas via além, num futuro
que outrora lhe parecia tão distante e inalcançável e que agora
encontrava-se tão perto.

– Odeio estragar seus planos, oh todo poderoso deus da nova


era – era Raquel que falava, já perto dele. Ele se impressionou com
a proximidade da garota, que continuou falando cheia de sarcasmo.
– Você acha que é superior, mas precisou de todo esse ritual para
começar sua nova fase. Nosso bom Deus só precisou falar para
criar o mundo. Essa é a diferença d’Ele para você!

Barashemesh sorriu olhando para a garota em sua fervorosa


convicção.

– Ah, e tem mais uma coisa: esse Criador do universo está


comigo! Não tenho medo de você e faço aquilo que Deus mandar! –
falou apontando o dedo na face do gigante, que mostrava seus
dentes serrilhados num sorriso monstruoso. Raquel, inabalável,
continuou. Falava com pompa e parecia se aproximar do gigante
como se o desafiasse, mas na verdade tinha um plano mais
arriscado em andamento. – E se você acha que vou servir a você a
qualquer momento engana-se! A única coisa que farei É POR UM
FIM A SUA LOUCURA! – gritou e correu em direção ao gigante.
Antes de se encontrar com ele, no entanto, Raquel agilmente e
mudou seu percurso, indo na direção das vasilhas que estavam
atrás do gigante.

Barashemesh gritou, demonstrando pela primeira vez medo, e


avançou sobre ela, mas o corpo grande estava já muito decrépito.
Isso deu a Carlos Eduardo a oportunidade que precisava para agir
primeiro. Sabendo que não teria forças para conter o gigante, o
policial jogou-se, agarrando as pernas do monstro e indo ao chão
com a criatura. Foi o tempo suficiente para Raquel.

A garota agarrou o órgão endurecido pela fumaça e gritou. Uma


força pareceu arremessá-la longe, como se atingida por uma
violenta corrente elétrica. O órgão defumado caiu no chão.

– NÃO! – o urro de Barashemesh foi estrondoso! Erguendo-se


em fúria, agarrou Carlos Eduardo e o arremessou a metros de
distância, como se o peso de seu corpo musculoso fosse irrisório. O
policial bateu as costas na parede e alguns dos cadáveres se
despregaram do teto e caíram no chão. O delegado também tombou
com muitas dores e quase perdeu a consciência.

Raquel então sacou o crucifixo do padre Matheus e, usando-o


como um punhal, tentou cravar no coração da besta. O Herege
agarrou a cruz e suas mãos irromperam em chamas, mas ainda
assim ele foi mais forte e segurou o braço dela, que tentou resistir,
mas a agonia do fogo que lambia seu braço foi maior e, gritando de
dor, ela foi obrigada a abrir a mão. Barashemesh então pegou a cruz
e arremessou-a longe.

– Vós estais condenados! – bradou furioso. Uma fúria gelada


começava a gerar uma névoa no local e a criar uma pequena
camada de gelo ao redor da torre. Erguendo sua mão, que agora
era uma mistura de tendões e carne queimada e ossos escurecidos,
ele agarrou o pescoço de Raquel. Ela o encarou enquanto ele a
erguia. O frio que saía de sua mão doía tanto quanto as chamas, e
ela sentia sua pele ressecando e queimando pelo frio sobrenatural
que ele emanava. Falou com a voz estrangulada:

– Você não vai me matar! Eu sei que você está a minha caça
desde antes de eu nascer! Sei o quanto sou importante para você

O Herege riu mais uma vez com sua risada macabra e cheia de
fúria. Não havia alegria nela, somente um ódio sádico e intenso.
Gabriela tremia de frio, mas permanecia num estado de
semiconsciência. Carlos Eduardo tentava levantar, mas a dor em
seu corpo era avassaladora. O Herege ergueu Raquel mais ainda e
aproximou-a do seu rosto deformado. Ela sentiu o fedor de carne
mofada antes de o aperto se tornar mais intenso em seu pescoço.
Então sentiu os pulmões queimaram de dor, sem conseguir respirar.

– Tu? – Barashemesh perguntou num misto de surpresa e


desprezo. – Sua criaturinha arrogante. Acha mesmo que eu iria
atrás de ti? Uma reles égua de raça, criada por magos
medíocres que só buscavam um instrumento de procriação?
Acha mesmo que tu tens algum valor para mim? – o Herege
cedeu um pouco do aperto para que ela pudesse falar, divertindo-se
com seu sofrimento.

– Eu sou a escolhida, aquela que vocês vêm esperando – ela


falou confusa. Suas mãos afrouxaram o aperto sobre o braço
descarnado do gigante, e seus olhos cheios de descrença e choque
encheram-se de lágrimas.

– Errado! – vociferou o gigante tão próximo da garota que seu


hálito gelado era como uma névoa diante dela. O frio que emanava
dele era insuportável.

– Tu não és nada! Nunca foi! Nem nunca serás! Teu único


valor está em teu ventre, criatura ridícula! Tu és fraca e
medíocre! Inútil! Por isso eles a deixaram partir! – cada grito era
como um ataque. Raquel sentia-se golpeada, partida, ferida. – Ah! –
o Herege exclamou ao ver a agonia e a confusão no rosto da garota.
– Para mim, tu sempre foste uma peça, sua tola! Aqueles que tu
destruíste tão nobremente? A família de monstros, como tu a
chamas. Acha mesmo que teria uma chance contra um de nós?
– suas palavras eram afiadas e duras. – Eles se permitiram ser
destruídos por ti a meu comando! Eu queria que tu os
destruísses, principalmente a maldita criança profana, no que
falhaste tão miseravelmente! Eu queria que derramasses aquele
sangue, porque isso a marcaria, sua tola! E ainda me daria a
vitória sobre dois inimigos antigos. Falhaste em matar a
criança, e terei de lidar com isso depois de acabar convosco!
Ainda assim tu me foste útil, porque levou-me àquele que
sempre quis! Ao Receptáculo, o único capaz de suportar nosso
espírito sem se corromper! E qual foi minha surpresa ao
descobrir que não somente me levaste até ele, como também a
meu velho inimigo, escondido há quase três décadas! Levaste-
me ao ser que por mil anos atrapalha meus planos! Sim,
querida Raquel, tu falhaste – ele falou com malícia, apertando o
pescoço da garota com uma mão, enquanto com a outra colocava o
fígado defumado de volta na vasilha. – Em sua estupidez e
impulsividade, entregaste-me meus dois maiores objetivos de
uma vez! Sempre achamos que o Receptáculo ainda levaria
anos para nascer... Foi uma surpresa descobrir que era ele
quem te protegia, e que tu, tão gentilmente, com sua doce
recusa, levaste-o direto a nossos braços.

Raquel olhou exasperada para Barashemesh.

– Hoje, o Receptáculo será meu!

A Serra da Cantareira é um dos poucos redutos de Mata


Atlântica preservada. A grande quantidade de árvores e mata
tropical, associada à alta umidade do Trópico de Capricórnio,
permite que, à noite, uma forte neblina assalte o local, deixando-o
ainda mais misterioso. Em uma das poucas trilhas da região, um
portão com os dizeres “Não Entre! Propriedade Privada!” era
arrebentado por uma pesada SUV. O carro andava com seus faróis
apagados e avançava na mata pelo mesmo caminho que algumas
horas antes uma mulher e dois homens fugiam de um pesadelo
vivo.

O carro estacionou diante de um castelo imponente cercado por


outro portão de ferro. De dentro do carro desceu um homem. Com
botas reluzentes, calças antigas e um chapéu de outra época, Dom
Magalhães encarou o local que por tantos anos havia pertencido as
suas terras. Lá, desafiando-o, estava hoje o castelo de seu inimigo.
Mostrou seus dentes para o castelo. Somente uma luz tremulava em
um dos cômodos mais altos. Michael Anwr, o Não Vivo, estava lá.

– Maldito seja, gajo. Continuas a perturbar-me e atrapalhar meus


planos – falou com seu forte sotaque lusitano. Então aproximou-se
do portão e empurrou-o, abrindo-o, mas não entrou. Ficou ali parado
olhando para a linha imaginária que deveria cruzar. Colocou o pé
para dentro do solo consagrado.

Isso bastou. Chamas irromperam da carne maldita de


Magalhães. Ele resistiu à dor lancinante que tomava seu ser por
alguns segundos, mas enfim foi vencido e tirou o pé do local. As
chamas se apagaram sozinhas e bastou um tapa para apagar o
pouco que ainda tentava consumir a roupa. Respirou
profundamente, contrariado, mas não fez mais nada...
Simplesmente colocou a mão no bolso e caminhou em torno do
portão, incapaz de adentrá-lo. Pouco mais de meia hora se passou
quando ele viu o que esperava ver vindo de dentro do terreno. Dois
homens vinham na sua direção. Estavam vestidos inteiramente em
preto, com roupas justas, apesar de confortáveis, trajes militares,
coturnos, calças com diversos bolsos, um colete e capuz. Pareciam
soldados de forças especiais. Quando chegaram diante dele,
colocaram-se de joelhos.

– E então? – perguntou. O homem da esquerda falou:

– Está feito, mestre, como ordenou.

O da direita completou:
– Cobrimos todo o perímetro. Ninguém sairá vivo – e entregou à
criatura o que parecia ser um detonador a distância.

Dom Magalhães sorriu com escárnio.

– Ele não está vivo para ser morto, gajo. Não é minha intenção
matá-lo. Isso seria impossível, uma vez que já foi feito. Meu inimigo
só esqueceu-se de ir a seu próprio funeral, por isso hoje far-lhe-ei
uma gentileza, enterrando-o neste local que ele mesmo roubou de
mim.

Magalhães deu dois passos em direção ao castelo.

– Deverias ter abandonado tua letargia enquanto tinha tempo,


mas escolheste essa autoimposição ao exílio do combate... Mereces
o que lhe aguarda.

Então ele apertou o botão.

Primeiro veio o estrondo, como o de centenas de trovões


atingindo um local com violência; depois houve o deslocamento do
ar; e finalmente surgiram as chamas. Os dois homens haviam
posicionado explosivos em pontos estratégicos do castelo com
perfeição. Sem o suporte para manter de pé tanta rocha, a
construção cedeu e desmoronou. O tremor afastou pássaros e
animais selvagens e foi ouvido a quilômetros de distância. Na
manhã seguinte o acontecimento estaria em todos os jornais.

O castelo do Não Vivo veio abaixo, enterrando-o em toneladas


de rocha. Magalhães observava a tudo saboreando o estrondo e o
calor em sua face. – Ah, Não Vivo... Achaste por um momento que
serias capaz de ficar de fora do jogo? Achaste que ficarias assim
tranquilamente sentado em teu refúgio? Espero que gostes desse
lugar, pois ficarás eternamente soterrado embaixo de tantas pedras.
Comprarei este local e terminarei por sepultá-lo abaixo de todas
essas rochas, de onde ninguém escutará teus gritos por toda a
eternidade!
Os dois homens arrastaram-se para próximo de seu senhor.
Dom Magalhães sorria de braços cruzados em triunfo, suas presas
à mostra, as chamas refletindo em seus olhos cruéis e sem vida.

– Mestre, nosso trabalho foi de seu agrado? – um dos homens


perguntou ansioso e subserviente.

– Ah sim ó pá. Teu trabalho agradou-me muitíssimo.

– Somos dignos de seu favor, mestre? – o outro perguntou.

– Sim, gajo, sois dignos de meus favores.

Dizendo isso, Dom Magalhães descruzou os braços, agarrou os


próprios pulsos e rasgou-os, fazendo o sangue verter.

– Bebei de meu sangue e vivei eternamente – falou com pompa.

Os homens aproximaram-se dos pulsos dilacerados e levaram-


nos à boca. Sorviam o líquido com sofreguidão. Indiferente a eles, o
velho demônio português observava seu triunfo.

Boadiceia deleitava-se com o sangue de Jacó. Deitada sobre


ele, com seus lábios sobre a ferida em seu pescoço, ela saboreava
o mais prazeroso sangue que já provara em toda a sua vida. Nunca
antes um mortal a satisfizera como ele. Sentia que seu corpo
regenerava qualquer desgaste que o tempo lhe causara. Estava
vívida como há séculos não ficava. Sentia o líquido da vida
percorrendo suas vias, enchendo-a de vida.

Mas então sentiu algo agarrar seu cabelo, e o que pareciam


navalhas feriram seu couro cabeludo com uma força imensa. Sua
cabeça foi puxada para longe da ferida.

Com espanto, ela percebeu que quem a afastava era o Oriental.


Em seus trajes exóticos e impecáveis, ele a segurava com uma mão
e trazia junto de si Walkyria. A moça estava acordada, mas ainda
alheia ao mundo, possivelmente drogada. Parecia hipnotizada e
sem reação.

– Você está me machucando, Gaki – Boadiceia falou referindo-


se ao Oriental por seu nome. – Não me lembro de ter-lhe dado essa
liberdade – a mulher escarlate falou, seus olhos reluzindo num
verde florescente como olhos de gato, os lábios ainda mais rubros
com o sangue do psiquiatra. Sua voz era calma, mas perigosamente
controlada, como a de uma fria assassina pronta para matar. O
oriental, por sua vez, falou em tom casual, sem esconder seu
característico sarcasmo.

– Oh! Mil perdões se com um leve puxão de cabelo a feri. Ou


seria o ego ferido por impedi-la de dar andamento na refeição? Seja
como for, saiba que o faço por preocupar-me com o seu bem-estar
somente. Acredito que o mestre não ficará nada satisfeito em ver
você levando nosso convidado sem uma gota de seu precioso
sangue. Ele precisa dele vivo. Não sei se esse conceito lhe é
estranho, mas vou lhe dar uma dica, querida: o coração tem que
bater para manter uma pessoa viva e, para isso, ele precisa de
sangue. Portanto que tal parar de brincar com a comida e
partirmos? Esse apartamento já me cansou, e essa garota... – falou
balançando Walkyria no seu braço. – Ela não tem uma conversa
muito agradável.

– O que fez com ela, maldito? – a voz de Jacó saiu firme. Estava
fraco e quase sem sangue; não conseguia se mexer, mas sua voz
estava firme e furiosa. Boadiceia o ignorou e continuou sua
conversa com o oriental a sua frente.

– Você não me dá ordens, Gaki. É somente um escravo sem


vontade, que obedece cegamente aos comandos de meu senhor
Barashemesh. Desafie-me novamente e o farei sofrer. Não me
interrompa enquanto me alimento! – o oriental largou o cabelo da
mulher e falou com uma voz servil e obediente:

– Perdoe-me, senhora, se a ofendi de qualquer maneira. Não foi


minha intenção – curvou a cabeça em sinal de obediência.
Boadiceia voltou a cravar suas presas na ferida de Jacó e a sorver o
sangue vorazmente.

O Oriental continuou a falar com sua voz servil:

– A senhora está certa. Sou somente um servo a serviço de


Barashemesh, e o comando de meu mestre é o meu propósito de
existência – a mulher continuava a sorver o sangue cheia de desejo
e fome. Então sentiu uma dor na garganta. Algo afiado cortou sutil e
precisamente seu pescoço. Foi um corte rápido, limpo e preciso. O
sangue correu ao peito do psiquiatra.

– Infelizmente, “Senhora” – e nessa hora o oriental assumiu todo


o seu sarcasmo novamente. – A ordem de meu senhor é que Jacó
Cohen seja levado a ele vivo. Portanto, se continuar se alimentando
dele, eu terei de matá-la com requintes de crueldade sem iguais. E
bem, eu já estraguei uma roupa tão bela ontem... Não pretendo
sujar essa com seu sangue, Boadiceia, então saia de cima do rapaz
enquanto eu o embrulho para o mestre? Olhe só a sujeira que está
fazendo – e afastou-se da poça de sangue que tomou o quarto
quando a mulher se ergueu com o olhar injetado em fúria e
desconserto. Estava inconformada com a ousadia da morte
silenciosa, mas sabia que aquele a sua frente era um adversário
formidável. O oriental limpou a lâmina no vestido de Walkyria e a
largou no sofá. A moça tombou quase inconsciente.

Nessa hora Jacó reagiu. Estava quase inconsciente, devido à


extrema falta de sangue, mas seu espírito ardia em fúria. Tentou
colocar-se de pé aproveitando a confusão causada pelo ferimento
de Boadiceia, mas ao fazê-lo sentiu o mundo girar e novamente
tombou. Suas pernas estavam frouxas e o corpo estava letárgico.
Enfurecido, gritou:

– Deixe a Walkyria em paz!

O Oriental olhou para o psiquiatra como se acabasse de


perceber sua presença, levou a mão ao peito numa fingida surpresa
e depois apontou para Walkyria.
– Quem? Ela? Não, meu querido, longe de mim feri-la. Não
tenho o menor interesse de machucar essa garota, embora, devo
admitir, jamais conheci uma mulher tão entediante e fraca como ela.
Você realmente vê alguma coisa de interessante nessa menina sem
sal? Tudo bem. Ela é bonita, chama atenção, mas é só isso. Já
aquela outra Walkyria sim! Que mulher de fibra! Como ela gosta de
ser chamada? Raquel?

– Cale a boca! – Jacó gritou. O Oriental fez um gesto de choque


afetado, como ofendido e então falou com sua voz uma oitava acima
do normal.

– Como ousa falar assim comigo? – Jacó o encarava furioso.


Toda sua força de vontade estava focada em mantê-lo desperto e de
pé. Ao fundo, Boadiceia, já curada, soltava o pescoço outrora ferido.
Ela observava a tudo, mas não interferia. O Oriental deixou de lado
sua afetação e deixou os braços cair ao lado, como se estivesse
cansado.

– Sabe, Jacó Cohen, quando era um mortal, fé e honra eram


tudo para mim. Matei homens por muito menos que esse
desrespeito ao se dirigir a mim. Quando me tornei o que hoje sou,
na infância de minha imortalidade, sempre fiz questão de ser tratado
com o devido respeito. Desprezo os mortais dos tempos modernos,
porque são infiéis, covardes e mesquinhos. No entanto, surpreendo-
me às vezes com mortais dignos, como você, homens que ainda
têm fibra e que enfrentam um inimigo como eu sem medo no olhar.
Meus irmãos e irmãs se enfurecem com sua bravura e ousadia; eu a
admiro. Mas, por favor, não se engane. O que Boadiceia falou é
verdade: eu existo para servir a meu mestre e nada nem ninguém
me impede de cumprir meus objetivos, por isso eu lhe prometo duas
coisas – falou erguendo o indicador direito. – Você virá comigo, não
importa o que faça, porque eu sou mais poderoso que você e irei
subjugá-lo! – ergueu então o segundo dedo e apontou-o para
Walkyria. – Serão suas decisões e não as minhas que manterão
viva essa mulher. Venha comigo em paz e nenhum mal será
causado a ela por mim ou Boadiceia e também nenhum mal será
causado a essa mulher além do mal que lhe já foi feito. Recuse-se e
assistirá impotente eu desmembrá-la diante de você até que ela
sofra uma morte que nenhum ser humano foi feito para sofrer; ela e
o irmão, que se encontra adormecido no outro quarto. E depois
disso, ainda assim, você virá comigo. A escolha é sua, Jacó Cohen,
mas ela deve acontecer agora! Volto a lhe dizer: a vida dela está
nas suas mãos, a sua liberdade não.

Jacó então falou:

– Se eu for com você, ela ficará bem?

– Não posso lhe prometer isso: ela sofreu muito, e ainda saberá
que você partiu. Não sei se ela será capaz de aguentar, mas estará
viva.

Jacó assentiu, depois olhou para Boadiceia.

– E o que acontecerá comigo?

– Aquilo que está determinado desde seu nascimento – ela falou


olhando o psiquiatra nos olhos.

– Será o fim de sua vida e o início de uma nova! – o oriental


sentenciou e segurou mais firme a espada, levando-a ao pescoço
de Walkyria.

– Hora da escolha: Walkyria vive ou morre?

Morte. Destruição. Sofrimento.

Foi isso que os guerreiros alados trouxeram ao campo de


batalha. Aqueles em busca de algum refrigério logo perceberam seu
erro. Como um enxame de bestas aladas os guerreiros celestiais
sobrevieram sobre o campo de batalha ceifando a todos com uma
precisão avassaladora. Tiraram a vida de Gigantes e Guardiões sem
distinção. Suas lâminas flamejantes tornavam a água em vapor
constante e cortavam e trucidavam seus adversários. Ninguém
estava a sua altura.

Quando Semyaza olhou ao redor, viu seu glorioso sonho e todas


as suas ambições escorrendo com as águas diluvianas. Furioso,
abandonou o filho e partiu ao ataque de seus outrora irmãos.

O massacre que se deu em seguida foi inimaginável. Mesmo os


mensageiros do Altíssimo eram inferiores em poder ao maior dos
guardiões. Entretanto, os alados eram valorosos e não fugiam de
um combate, mesmo que lhes custasse a vida. Falange celestial
após falange celestial os guerreiros avançaram contra Semyaza e
esse a todos derrubava. Então, em uníssono, os anjos começaram
um grito de batalha:

– Mi KaH El!

– Mi KaH El!

– Mi KaH El!

E Semyaza, guerreiro cruel e implacável, teve medo, pois os


anjos deram passagem a seu general: o maior dos Anjos, aquele
que tinha o título de Arcanjo! Era o guerreiro imbatível, a Fúria
suprema do Criador. Seu nome fora o grito de batalha na primeira
rebelião celestial, quando o Estrela da Manhã revoltara-se contra o
Altíssimo e tentara usurpar o trono sagrado. Era o brado de combate
contra o Primeiro Rebelde.

– Quem É como o Criador?

Mikahel, o Arcanjo. O maior guerreiro celestial.

Era diferente de todos os seus irmãos. Seu corpo tinha a cor do


bronze e era tão perfeito que parecia esculpido. O cabelo era rubro
como o amanhecer e cobria-lhe as costas como um manto
flamejante. Seus olhos eram como o ferro incandescente e
brilhavam na tempestade como duas tochas em meio às trevas. De
suas costas surgiam três enormes e deslumbrantes pares de asas.
Eram gigantescas e cada uma deveria ter o dobro do tamanho dele.
Tinham a forma das asas das águias, mas eram de um azul anil
como a dos pavões e, de forma semelhante, suas pontas tinham o
que pareciam olhos. Vestia-se em linho púrpura e em sua testa
adornava um pequeno diadema feito em ouro. Empunhava uma
lâmina enorme, maior que um homem, e infinitamente mais pesada,
toda feita em ouro e estava em chamas.

Não houve um combate entre Semyaza e Mikahel, nem seria


possível. Semyaza era o maior dos Guardiões e um dos mais
poderosos guerreiros celestiais de outrora, mas diante dele estava o
único, além do próprio Criador, poderoso o bastante para derrotar o
Inimigo do Mundo, o Primeiro Anjo Caído, o Estrela da Manhã.
Semyaza, o Infame, era grande em força e valentia, e não se
permitiu intimidar. Ergueu sua potente maça, capaz de partir
montanhas, e atacou com toda a força de seus braços celestiais. E
o estrondo que se ouviu foi tremendo, e um grande vau abriu-se na
terra, engolindo água e os cadáveres que flutuavam, assim como a
gloriosa cidade de Tantalis.

Mikahel, entretanto, em nada sentiu o golpe, que resvalou em


seu peitoral. Então o maior dos arcanjos ergueu sua espada,
Famígera, e com ela desferiu um potente golpe que estremeceu o
mundo. E foi derrotado num único ataque o maior dos Guardiões.
Semyaza foi arremessado na fissura feita por ele e pelo arcanjo, e
lá, na mais profunda vala do oceano, foi aprisionado.

Barashemesh observava a tudo estarrecido e nem percebeu


quando Barsemyaza surgiu ao seu lado.

– Vem comigo, meu irmão. Agora é a hora de nosso triunfo!

Despertou assim Barashemesh de seu torpor e procurou por sua


amada, e Eos ainda tentava em vão cuidar dos moribundos. O
gigante se aproximou dela.
– Por que perdes teu tempo cuidando desses que estão
condenados?

– Estariam eles mais condenados que nós, meu amor? Vê em


tuas mãos o sangue de todos esses que pereceram por nosso
orgulho e valentia? Não posso impedir-te de lutar, meu amado, mas
não tomarei parte nesta guerra de vaidades...

– Vaidade? Lutamos por nossa sobrevivência, minha amada!

– E de que adianta a nossa sobrevivência, se ao fim daquilo que


chamamos de vida não nos restará nada exceto o tormento de
nossos desejos? Para que, Barashemesh, devemos permanecer
nesse mundo?

– Porque estamos destinados a ficar juntos, meu amor! Tu e eu


somos um só! De nada me importa a danação eterna se estiver ao
teu lado! E que outra escolha temos, minha amada? Sermos
engolidos pelo tempo e aceitar a morte?

– E que mal há na morte, se nunca deveríamos ter existido, meu


amado? Se o desejo do Criador é o nosso fim, acredito que essa é a
escolha mais amável e misericordiosa que existe, pois não acredito
que ele nos deseje qualquer tipo de mal! Somos uma praga nesta
terra. Olhe ao redor e veja o que nossos pais construíram. Seria
melhor para esta terra que desaparecêssemos.

– O que falas é bobagem, minha amada. Estás contaminada


pela tristeza do combate e deixando as lágrimas anuviarem o teu
olhar. Olhe ao redor. Digo a ti: esse é o amor que o Criador reservou
a nós! Perecer nas águas ou nas mãos dos anjos! Por que achas
que há bondade nisso?

– Porque o Criador gerou a tudo! E ele tem um desígnio que não


conseguimos compreender.

– O Criador não nos criou e seu único desígnio é o de pôr fim a


nossa existência!
– E se não for como diz, meu amado? E se na morte e no fim
encontrarmos o início de algo novo e desconhecido, mas bom? Por
que temer a morte? Se ela é o destino final de todos? Acredito no
profeta, quando diz que o Redentor virá e me levará diante do
Criador e que ele me aceitará assim como sou. Acredito
verdadeiramente que, mesmo não fazendo parte de sua criação, Ele
me ama e que me aceitará como sua filha!

– Estás fora de si! – Barashemesh bradou agarrando-a. – Mas


trarei a ti o bom senso. Vem. Salvar-te-ei da fúria do Criador!

– Não, meu amado, não posso ir! – disse Eos se libertando dele,
que a olhava confuso. – Não posso ir contigo. Se o fizer, condenarei
não somente a nós dois, mas ao fruto de nosso amor! Pois acredito
que o profeta errou ao dizer que somos incapazes de amar. Acredito
que nossos desejos sejam dominantes e superem nossa razão.
Contudo, acredito que o amor seja forte o bastante para nascer até
mesmo em nossos corações enegrecidos e que esse amor possa
florescer e dar a nós a redenção, pois em meu ventre carrego o fruto
desse amor e não ouso corrompê-lo com meu desejo. Por isso,
submeter-me-ei ao desejo do Criador e aceitarei minha sina na
esperança de que Seu amor por mim floresça e ele me redima
também! Vem, meu amado; mergulhemos juntos para nosso
destino!

– Nunca! – Barashemesh bradou, e seu desejo de viver foi mais


forte que seu amor e ele se afastou de sua amada. E com o coração
partido, Eos, a dama da aurora, abriu suas belas asas e, num
mergulho final, encontrou a paz.

Devastado, Barashemesh urrou e pranteou por sua esposa,


olhando para os céus, que derramavam sua chuva incessante.

– Odeio-te, Criador! Odeio tua obra e toda a tua Criação! Juro-te


pelo ódio que sinto e me consome que por toda a eternidade eu
destruirei teus filhos, como fizeste com o meu! Juro-te que me
alimentarei da carne de teus filhos e beberei do sangue de tuas
filhas! Por toda a eternidade eu existirei para afrontar o teu nome e
ferir a todos que estejam atrás de Ti! Destruirei a raça dos homens e
os escravizarei! E todos aqueles que buscarem auxílio em ti eu
levarei à dor e à morte!

Então Vitorioso falou:

– Estás mesmo disposto a seres eternamente condenado? Tua


sede de vingança está acima de teu temor da morte?

– Não tenho nada além de meu ódio, meu companheiro! Pois


farei do ódio o meu mundo!

– E estarias disposto a me seguir por toda a eternidade, meu


irmão, para fazeres valer tua vingança?

– Seguir-te-ei até os confins desse mundo, Barsemyaza! É o


único companheiro que tenho!

– Pois juntos, meu amigo, faremos esse mundo gemer! Aceite-


me como seu único senhor e dar-te-ei a vida eterna!

E assim Barashemesh ajoelhou-se diante do Vitorioso e falou:

– Eu, Barashemesh, filho de Shamsiel, devoto minha alma a ti,


Barsemyaza, o Vitorioso, Inimigo da Vida e do Mundo, por toda a
eternidade e além, para que os Filhos do Homem saibam sempre
que o mal dos Filhos da Queda nunca poderá ser contido!

E então Barsemyaza, o Vitorioso, levou seu fiel companheiro até


a abertura do vulcão e lá todos os filhos e filhas e as mulheres que
geravam dentro de si rebentos dos caídos se reuniram. Lá ele tirou
a vida de todas as crianças, até daquelas que ainda estavam no
útero de suas mães e até mesmo de seu sobrinho, Aglaeca, o filho
de Liwyatan, e de todas ele e Barashemesh comeram a carne e
beberam o sangue. Então o Vitorioso pegou o cadáver de Shamsiel,
abandonado em meio ao campo de batalha, e, enquanto os Anjos e
Guardiões combatiam, os dois filhos partiram sentido ao oceano, e
juntos mergulharam na fenda profunda onde Semyaza fora
aprisionado.

– Saiba que nossos pais não podem, de fato, ser mortos, pois
não são mortais, mas nós nos alimentaremos de seus corpos
imortais para nos tornarmos intocados pela morte!

Na superfície, nenhuma vida prevalecia, e somente uma


embarcação conduzida pela última família dos Filhos dos Homens,
chefiada pelo último homem bom na terra, daria continuidade à
linhagem do Criador.

E nas profundezas dos oceanos, os últimos Filhos da Queda


ainda vivos devoraram os corpos de seus pais e assim destruíram a
carne que um dia os gerara. E como último ato de profanação,
Barsemyaza, o Vitorioso, e Barashemesh, o Valente, tiraram suas
próprias vidas e assim morreram os últimos gigantes, os maiores
dos valentes de sua época, dando um fim ao reinado dos Filhos da
Queda. Nunca mais sua pérfida linhagem caminharia sobre a terra.
Não mais os Gigantes destruiriam a terra em seus corpos
grandiosos.

Entretanto, o legado dos Gigantes continuaria a atormentar o


mundo...

Pois naquele momento, em que o mundo era lavado em água, as


incontáveis almas dos filhos da queda clamavam em agonia e
tormento. E o mundo dos mortos reverberava com o choro de todos
os condenados. Alguém que observava tudo das sombras
finalmente agiu.

Ele havia esperado enquanto a humanidade crescia em


malignidade e corrupção, sussurrando malícias nos corações mais
ambiciosos, aumentando a inveja e o desejo descabido dos mortais,
levando os Filhos da Queda a um abismo cada vez mais profundo.

Aquele que havia sido aprisionado nesse mundo desde a aurora


da Terra, aquele que deveria ser o portador da luz e que
permanecera em silêncio enquanto os guardiões mergulhavam cada
vez mais fundo em sua corrupção e desejo finalmente agiu,
enquanto a Terra era lavada pelo Criador.

– Venham a mim, oh filhos da Queda – ele sussurrou. – Sirvam-


me por toda a eternidade e eu vos farei maiores do que nunca
foram. Sirvam-me e eu lhes darei aquilo que o Criador sempre vos
negou: a eternidade, para ferirmos o Criador, corromper os seus
filhos e atormentar essa terra até o final dos tempos!

E assim aconteceu. Os Filhos da Queda perdidos e


atormentados aceitaram a subserviência ao Primeiro Caído, ao
Rebelde, ao Estrela da Manhã, e muitos outros nomes ele tinha e
viria a ter, mas seria mesmo conhecido por um único nome:
Adversário!

Nem todos os Filhos da Queda, no entanto, foram recrutados


pelo Adversário, pois, quando Vitorioso e Barashemesh se
desfizeram do invólucro carnal que guardava suas almas, todos
aqueles que pereceram naquelas águas, todos os caídos que um
dia viveram na cidade de Tantalis e todos que foram vítimas da
guerra entre as duas maiores nações da Antiguidade fundiram-se
aos dois maiores gigantes do tempo antigo, e suas vontades foram
submetidas aos dois, servindo de fundação para a gênese de um
mal sem precedentes.

Um Mal perverso.

Feroz.

Eterno.

E com sede de sangue!

Dor: um aviso do corpo de que algo está errado. No caso de


Carlos Eduardo, essa dor o avisava de que havia algo muito errado.
Sua coluna doía vertiginosamente, mas menos que seu tórax,
porque ele sentia que mais costelas haviam se partido com o
impacto.

Tomado por uma calma inexplicável ante o inevitável, o delegado


tentou sentir os dedos do pé. Deu o comando mental para movê-los
e se alegrou com a dor que lhe subiu pelas costas e com a
sensação dos dedos respondendo ao seu comando, ainda que sob
protestos. Depois disso, ordenou a si mesmo que não havia tempo
para dar atenção à dor, e, pensando em Gabriela, reuniu o que
restava de sua força de vontade e colocou-se de pé, apertou as
mãos, segurando o que estava a sua frente, buscando assim
disfarçar a dor. Seus dedos da mão direita envolveram algo duro e
gelado. A dor fluía por seu corpo feroz, e ele apertava ainda mais o
objeto em suas mãos, como se tentasse livrar-se do sofrimento pelo
aperto. Trincou os dentes e forçou o olhar.

O frio que tomava o ambiente há muito havia deixado de ser


suportável, e tudo parecia mais lento na mente do delegado. Sabia
que em breve perderia a consciência, mas não podia desistir.
Raquel também parecia que ia perder os sentidos devido ao aperto
de Barashemesh, que continuava a estrangular, mas antes que a
moça finalmente desfalecesse, o gigante afrouxou. Por reflexo, a
garota puxou uma grande golfada de ar e depois tossiu. Com a mão
livre, o Herege acariciou-lhe a face e riu.

– Não, menina, tu não vais morrer agora. Vou fazê-la sofrer


bastante primeiro. Farei com que grite pelo seu Deus e, quando
finalmente perceberes que ele está morto, quando toda a sua
esperança findar, aí sim darei a ti a morte, e então levarei a tua
cabeça ao nosso amigo Michael, ou ao que houver sobrado
dele, depois que Dom Magalhães acabar com aquele casebre
maldito.

Carlos Eduardo reuniu todas as suas forças e correu em direção


ao gigante, mas, com um movimento extremamente veloz, o Herege
agarrou-o com a mão que tocava a face de Raquel e o ergueu.
– Ah, Carlos Eduardo! Que espírito flamejante tu tens. Quase
lamento ter de matá-lo – o Herege arremessou o delegado pela
janela, que mergulhou na água congelante, quebrando a fina
camada de gelo que começava a se formar no lago a partir da torre.
Seu corpo formigou e se tornou ainda mais mole. No silêncio da
água, ele deixou-se afundar. O cansaço o vencera finalmente.
Sentiu seu corpo leve afundar lentamente nas águas congelantes. O
silêncio o confortava. No entanto, naquela quietude que vinha com a
morte por hipotermia, uma canção suave ecoou em sua mente, a
mesma canção que Gabriela tocara no piano. Aquela melodia
ecoava em sua mente. Não podia desistir...

Encontrara em si uma nova chama. Aquela canção parecia


aquecer seu corpo cansado e renovava suas forças. Empurrou o
corpo para frente, entrando novamente na torre pela parte
submersa. Quando saiu da água, ouviu os gemidos de Raquel e a
respiração forçada do Herege. Subiu as escadas determinado,
embora soubesse, no seu âmago, que não podia vencer seu
inimigo. A canção dentro de si já havia desvanecido e somente o
medo e o senso de dever o impulsionavam. – Você vai morrer hoje,
Carlos Eduardo – falou para si mesmo. – Ao menos salve as
garotas.

Quando o Herege o viu, sorriu com um prazer inegável.

– Sim! Sim! Foi isso mesmo que eu falei, meu caro


delegado! – falou inebriado de alegria. – Essa chama em teu
interior! Ah, meu bom homem, os maiores poetas do passado
cantariam sobre tua valentia! Você é um verdadeiro herói da
Antiguidade, como eu mesmo fui um dia... – falou cheio de um
orgulho quase paternal. – Invencível! Ah, meu rapaz! É triste que
não estejamos do mesmo lado! Lamentarei tanto a tua morte...
– e havia sinceridade na voz do gigante, mas nenhuma misericórdia.

Carlos Eduardo sacou sua pistola e disparou até o último tiro,


todos precisamente no mesmo alvo. O Herege ficou parado
recebendo todos os disparos. Depois o delegado usou a coronha da
arma e bateu desenfreadamente no gigante, fazendo com que ele
largasse Raquel, que tombou enfraquecida.

Barashemesh virou-se para Carlos Eduardo com os braços


abertos e recebeu os impactos com um riso nos lábios rasgados.
Um dos golpes esmagou o olho baço restante, e o líquido escorreu,
revelando atrás dele o brilho azul. Outro golpe destroçou o que
restara da cartilagem nasal. Outros, ainda, rasgaram os poucos
pedaços de carne podre do crânio. Entretanto, os ossos pareciam
de aço.

Carlos parou de golpear com a arma e passou a socar com seus


punhos. Barashemesh somente gargalhava e continuava a gritar: –
Sim! SIM! SIM!

Então, com um movimento violento de seu braço, tudo acabou.


Bastou uma pancada para derrubar o delegado como uma criança
atingida por um adulto. O golpe do gigante o arremessou no chão, e
seu corpo rolou alguns metros.

Pela primeira vez houve silêncio.

– Por quê? – Carlos Eduardo perguntou, ainda prostrado, com a


face no chão empoeirado e gelado. – Por que continua fazendo isso,
se você já ganhou, se conseguiu o que queria? Por que todas as
mortes, por que a morte de Gabriela?

O Herege deu de ombros.

– A freira era parte de um plano de contingência. Eu


precisava de um Receptáculo digno de sua missão, e não
sabíamos quando o Receptáculo profetizado pelas estrelas
viria. Sabíamos que seria nesse século, mas não o dia ou ano.
Há trinta anos já sabia que os astros teriam as conjunções que
tiveram nesse mês, por isso vinha me preparando. Quando
encontramos o Receptáculo, o plano já estava em andamento, e
achei que valia a pena ter um resguardo, caso fosse difícil de

É
domá-lo. É uma pena. Esse ritual era uma obra de arte, lamento
que não me será de serventia.

– Se você não precisa mais de Gabriela, deixe-a ir!

– Ah não, delegado, isso não será possível... Tu precisas


entender que Gabriela não foi escolhida ao acaso. Ela me
lembra alguém muito querida que se foi. Agora que o ritual
falhou, ainda poderei usá-la para satisfazer meus desejos.
Depois, quando seu corpo não tiver mais utilidade para mim,
colocá-la-ei em minha coleção – falou mostrando o ambiente. –
Vês? Sou muito apegado a um estilo específico de mulheres... –
riu com malícia e maldade.

– Deixa-as ir. Se é um novo corpo que deseja, entrego-me de


bom grado, mas deixe-as vivas! – implorou, olhando nas órbitas
vazias do Herege, que reluziam com a luz azulada e nauseante.
Barashemesh continuava a sorrir e balançou a cabeça em negativa.

– Não, delegado, tem muito mais em jogo aqui. Teu sacrifício


é nobre, mas minha batalha, como lhe disse, é com o Altíssimo.
Ele deveria implorar no teu lugar. Ele deveria fazer o que você
está fazendo. Se houvesse um Deus! Se ele fosse bom, se ele
amasse essas garotas que devotaram a vida delas cada uma de
sua maneira à vontade d’Ele, algo aconteceria! Se esse Deus
ainda tivesse alguma força, Ele desceria dos Céus ou enviaria
seus anjos, como um dia o fez para exterminar o meu povo e
minha família! Há milênios ele considerou-me um anátema –
Barashemesh falava com fúria. Carlos Eduardo percebeu que ainda
segurava o objeto duro e frio. Não que isso importasse, porque só
importava manter-se em pé! O Herege continuava.

– Ele me julgou um mal a esta terra e me destruiu, mas eu


permaneço mesmo depois dele! Eu vi teu Deus morrer pregado
na cruz! E hoje vós comeis sua carne e bebeis seu sangue e
esperais por seu retorno, mas onde ele está? – Carlos conseguiu
colocar-se de joelhos. Já não sentia mais frio. Seu corpo não tremia.
Embora ouvisse a voz trovejante e furiosa de Barashemesh,
lembrava-se de outra conversa, em outro lugar.

“– Sabe, quando eu era pequeno, eu também acreditava como


você...”

– Eu me alimento do sangue dos Filhos de Deus e devoro


sua carne! Uso seus corpos como uma vestimenta e destruo
suas filhas, mas Ele faz alguma coisa?

“– Não consigo entender como você pode acreditar num Deus


que deixa acontecer tudo o que aconteceu até agora!”

– Ele por acaso envia a elas uma proteção? – os urros de


Barashemesh reverberavam pela câmera, e Carlos Eduardo
continuava a apertar o objeto em sua mão.

“– Acredito que foi Deus que me libertou na igreja, que protegeu


Wesley, que capacitou o padre Matheus e, mais que tudo, acredito
piamente que Deus colocou perto de mim um anjo da guarda
poderoso, disposto a qualquer coisa para me proteger.”

– Ele envia um guardião? Um protetor? – urrou o gigante, e


Carlos Eduardo colocou-se de pé, finalmente compreendendo as
palavras de Gabriela no conservatório; finalmente cônscio de seu
papel.

– Sim! – falou com convicção. – Ele enviou!

“– Esse anjo da guarda é o senhor, delegado!”

E Carlos Eduardo correu como se nunca houvesse sido ferido,


como seu corpo não estivesse alquebrado. Apertou o que tinha na
mão.

“– É uma relíquia antiga feita para proteger um guardião...”

Carlos Eduardo avançou contra Barashemesh como um herói da


Antiguidade.
“– Acredito que essa cruz tenha caído em minhas mãos porque
era a vontade de Deus que um dia chegasse em suas mãos.”

Barashemesh golpeou, mas o golpe passou sobre a cabeça do


delegado, que se esquivou usando o que aprendera na infância e
adolescência com Jacó, e, num único golpe, levou ao peito do
adversário aquilo que segurava em suas mãos.

– “Você é o guardião de Gabriela, Carlos.”

A cruz rasgou a carne, a prata partiu os ossos e a ponta afiada


perfurou o coração enegrecido.

– Deus enviou a mim, maldito! – Carlos falou encarando o


inimigo com firmeza e com algo que ele achou não possuir mais: Fé.

O gigante cambaleou, mas o delegado continuou a enfiar a cruz,


agora um punhal, fundo na carne do inimigo. Os olhos do gigante
perderam sua luz, e a carne passou a se decompor rapidamente. O
frio se desfez de uma vez, dando espaço a uma lufada de ar quente.
O gigante caminhou para trás, tentando tocar na lâmina que lhe
perfurava com as mãos em decomposição. A carne em torno do
ferimento tornava-se mais negra e se desfazia em pó. O gigante
tombou no parapeito da janela e caiu. O lago da represa Billings
recebeu os ossos ressequidos de um antigo soldado da primeira
guerra mundial, feito de escravo por quase setenta anos, agora
finalmente livre para descansar em paz.

– E então? – O Oriental perguntou para Jacó. Walkyria


observava a tudo na sua semiconsciência. Tentava entender o que
estava acontecendo, mas seu corpo não respondia. O amado ficou
por somente alguns segundos parado e então respondeu.

– Ela vive – Jacó sentenciou.


E Walkyria fechou os olhos, mergulhando na inconsciência.
Ainda assim, viu seu amado, num movimento rápido, jogar o corpo
para frente, segurar a espada na cintura do adversário, sacar a
lâmina afiada e, num giro preciso, atacar sua inimiga atrás dele, a
criatura que Walkyria tanto odiava, a mulher ruiva. A vítima não teve
tempo de reagir e a lâmina desceu num semicírculo, separando a
cabeça, o ombro esquerdo e parte do tronco do resto do corpo. Sem
fazer pausa, como um contorcionista, Jacó acompanhou o giro da
lâmina, levando as mãos ao chão e, como um capoeirista, golpeou
com as pernas o adversário que avançava. O chute não foi o
bastante para derrubar o Oriental, mas o bastante para retardá-lo.

Esse tempo foi sua ruína. Ainda usando a física a seu favor, o
psiquiatra aproveitou o movimento de seu corpo para completar o
giro e, enquanto seu corpo subia, a lâmina atacou veloz, mordendo
carne e partindo osso.

Quando Jacó ficou em pé, Walkyria viu seu amado através das
duas metades de seu inimigo, que iam ao chão lentamente, como se
tudo acontecesse em câmera lenta. Jacó sorriu como em um sonho,
e ela também, enquanto mergulhava no esquecimento.

Quando abriu os olhos novamente, Walkyria não sabia mais o


que era sonho e o que era realidade. Estava melhor. A mente agora
estava menos anuviada e Adolfinho dormia tranquilamente ao seu
lado. O quarto estava quase arrumado. O único vestígio de luta era
o sangue no lençol, mas o chão estava curiosamente limpo, assim
como não havia corpos desmembrados. Walkyria percebeu que
deveria sentir alívio, mas aquele quarto quase pacífico a enchia de
terror. Não queria ver os corpos dos monstros que a torturaram e
aterrorizaram, mas a verdade era que sua mente de médica sabia
que dois corpos mutilados brutalmente deixariam um rastro de
sangue bem difícil de esconder.

Walkyria se levantou com muito esforço.

– Jack... – falou, e sua voz saiu num sussurro quase inaudível.


Não houve resposta. O apartamento estava mergulhado num
silêncio tumular. Ela pigarreou e forçou a voz para fora, chamando
novamente o amado. Ainda assim Jacó não respondeu, e Jacó
sempre respondia...

Gentilmente colocou a mão no peito do irmão. Ficou alegre de


sentir o calor de seu corpo e o movimento suave de sua respiração.
Paz, afinal (“ao menos para ele” – pensou aflita).

Cambaleante, caminhou para fora do quarto em busca de Jack,


que deveria (“tinha que”) estar na cozinha, preparando uma bebida
para fortalecê-la, um café ou talvez um cappuccino quente (“um
whisky sem gelo mesmo viria mais a calhar, depois de tanto
sofrimento”).

– Jack? – chamou mais uma vez ao perceber que a cozinha


estava com a luz apagada (“onde estão os corpos?”).

Foi até a sala, que estava arrumada e com a luz acesa (“Jacó
não está aqui também!”). Sentiu o medo começar a instalar-se
novamente em seu coração. Foi então que viu na mesinha de centro
o celular do amado (“Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Oh, meu
Deus!”).

Ela deu passadas mais velozes e quase caiu na mesa quando,


ainda confusa e trôpega, se aproximou do aparelho. Quando ela
acendeu a tela, viu o rosto do amado num vídeo pausado. Seu
coração encheu-se de alegria. Ela apertou o botão para que o vídeo
se iniciasse.

Jacó estava na sala quando gravou o vídeo. Estava abatido e


com sangue no pescoço, mas o ferimento estava coberto por uma
bandagem grosseira. O psiquiatra começou a falar:

– Oi, Wal. Espero que esteja melhor. Deixei esse vídeo para te
dizer que te amo. Sempre te amei, na verdade, desde o primeiro dia
que coloquei os olhos em você. Meu maior sonho era um dia levar
você para o altar – a voz de Jacó era calma, comedida, mas cheia
de tristeza. – Só há no mundo uma coisa que eu quero mais do que
estar do seu lado: sua segurança. Infelizmente não posso ter os dois
– Walkyria levou a mão livre à boca escancarada, num grito
silencioso de horror. – Envolvime com essas criaturas e eles não
vão descansar enquanto não colocarem as mãos sobre mim. Eu
saberia lidar com isso, mas a verdade é que, por minha causa, você
quase foi morta (“prefiro morrer a te perder, Jacó!”). Eles me deram
uma escolha e a escolha era simples. Percebi que não me importo
se vou viver ou morrer, desde que você esteja viva!

Jacó sorriu e seus olhos estavam cheios de lágrimas, assim


como os de Walkyria.

– E você está viva! E isso é tudo o que importa! Quero te pedir


uma coisa: VIVA! Seja feliz, meu amor!

– Oh, por favor, menos melodrama, doutor! – a voz fria do


Oriental saiu do telefone cheia de desprezo (“mas ele não estava
morto?”). Jacó olhou para alguém furioso, e voltou novamente seu
olhar para o telefone.

– Seja feliz, Wal! Viva sua vida e não tente me procurar. Esse é
meu último pedido para você: seja feliz e me esqueça! (“como vou
esquecer você?”).

Ele olhou por mais um segundo para o telefone. A voz de


Boadiceia surgiu do aparelho.

– Isso é tudo, Romeu? (“Ela? Mas ela não morreu? Aquilo foi de
verdade ou não?”).

Jacó olhou para alguém fora do alcance da câmera, com um


olhar cheio de fúria.

– Sim – o psiquiatra respondeu frio (“Isso não pode ser tudo!”).

– Nós cumprimos nossa parte, doutor. A mulher vive. Agora é


hora de irmos! – o Oriental concluiu. (“Irmos? Irmos para onde?”).
O vídeo parou (“Oh meu Deus!”).

Walkyria caiu de joelhos.

Chorava copiosamente.

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