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Ilustração da capa por Saemi Oliveira

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AVISO DE GATILHO

ESTA SÉRIE DE LIVROS É FICTÍCIA, E CONTÉM


CONTEXTOS DE TRANSTORNOS
PSICOLÓGICOS, CUNHO SEXUAL, ABUSO DE
DROGAS LÍCITAS E ILÍCITAS, ASSASSINATO E
TORTURA. PODE NÃO SER RECOMENDADO A
ALGUNS LEITORES SENSÍVEIS.

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AOS MEUS DEMÔNIOS INTERNOS QUE ME
VIRAM CRESCER
E A ME FORTALECER
COM MINHA PRÓPRIA DOR
LHES DEDICO ESTE LIVRO, QUE PROVÉM
DA MINHA MELHOR PARTE.

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ÍNDICE
Aviso de Gatilhos........................................................................ 4
Dedicatória.................................................................................. 5

Seja um afiliado.......................................................................... 6

Índice.......................................................................................... 7
Prólogo....................................................................................... 8

1. O Gene do imperador............................................................. 15

2. A Vítima e o Intruso............................................................... 32
3. Chamada Anônima................................................................. 46
4. A Desintegração..................................................................... 65

5. Potência................................................................................... 88

6. A casa do Vilarejo................................................................... 106


7. Sangue do Seu Sangue............................................................ 124
8. O Poço das Cerejeiras............................................................. 142
9. Uma Hanaoka.......................................................................... 161
10. Profecia.................................................................................. 182
11. Cerimônia Interrompida......................................................... 207
12. Obsessão................................................................................. 226
13. Poder e Justiça........................................................................ 246
14. O Avanço do Pequeno............................................................ 271
Extra de continuação.................................................................... 293
Agradecimentos............................................................................ 297
Sobre a autora............................................................................... 298

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PRÓLOGO
São Paulo, Brasil, 1992

A mistura do mormaço de verão na manhã me fazia


pingar de suor, mesmo com as janelas de bandeiras
venezianas abertas para a rua. Tudo naquele pequeno
quarto de cor desbotada me nauseava de maneira que
minha cabeça latejava como se tivesse sido golpeada
diversas vezes por um martelo.
As paredes, portas e chão de madeira do antigo hotel
pareciam encolher a cada suspiro profundo e
angustiante que eu dava. Numa ânsia de tirar aquilo de
dentro de mim a força.

— Dez centímetros de dilatação. Já está na hora. — A


mulher de cabelos escuros e lisos me lançou um curto
aceno de cabeça junto de um sorriso pontiagudo,
demarcando as linhas de expressão do seu rosto fino e

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sardento — Inspira, e empurra! — Colocou sua mão
sobre minha barriga, fazendo uma certa pressão.

Assenti apertando sua mão magra contra a minha,


soltando um grito que rasgava minha garganta numa
agonia intensa.
— Isso vai sair ou não?! — Esbravejei numa voz
falha, cerrando os olhos com força.

— Estou vendo a cabeça! — Analisou com o seu rosto


curioso entre minhas pernas, o que não me gerava
nenhum pouco de desconforto, já que, Raquel era uma
das poucas e únicas amigas que tive e confiava a vida
— Só mais um pouco! — Berrou colocando todo seu
êxtase para fora.

Fiz uma contagem regressiva mental, dando um último


empurrão com todas as forças que me restavam, numa
dor que havia se ampliado centenas de vezes após
longas dezessete horas, proveniente de uma onda de

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relaxamento que escureceu minha visão e anestesiou
todos os meus sentidos.
O ambiente silenciou, o que me fez pensar por um
momento que estava morta, deitada em um chão
quente e suado, rodeada de sangue, mas não demorou
muito para eu voltar a realidade, sentindo uma leve
brisa gélida de vento que passou pela janela, roçando
na camada úmida de pele da minha bochecha. Sendo a
sensação mais acolhedora que tive em todos esses
míseros nove meses.
Naquele momento minha respiração havia voltado
repentinamente, e meus batimentos cardíacos
aumentavam como se houvesse uma alta dose de
adrenalina momentânea percorrendo em minhas veias.
Um choro fino desconsolado se intensificou
lentamente aos meus ouvidos, ecoando por todo o
cômodo.

— Amélia... — Abri os olhos com um certo esforço


para olhar Raquel, que segurava o bebê sujo de sangue

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com cuidado, sendo possível ver o cordão umbilical
que ainda estava em intacto e se estendia até dentro de
mim. — É uma menina.

Respirei fundo, soltando um choro emocionado.


— Deixe-me segurá-la. — Murmurei ainda debilitada
entre soluços. — Eu quero ver seu rosto.

Raquel cuidadosamente colocou-a em meus braços,


enrolada em um lençol.
Seu rostinho inchado e os olhos grandes traziam uma
expressão chorosa, que logo cessou quando a segurei.
Alguns pequenos tufos de cabelos cresciam,
manchados do líquido amniótico, mas ainda sim era
possível notar seus fios brancos como a neve.
Senti minha espinha gelar no mesmo momento.

— Raquel, olha o cabelo dela... — Ponderei confusa e


assustada. — É branco. — Engoli seco.

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A mulher chegou mais perto, analisando a cabeça suja
da criança.
— É sim, são clarinhos. — Raquel vincou a testa
aturdida. — Mas pode ser que apenas sejam loiros,
ainda não dá para saber. Espere algum tempo. —
Completou receosa.

Eu sabia exatamente o porquê dos cabelos brancos, e


agora não só eu seria perseguida pelos Murakami, mas
também tentarão exterminar minha filha. Ela era a
emissária que os Hanaoka tanto esperavam.
Pensar nisso fez meu estômago embrulhar.
Eu jamais quis ter filhos, nunca me imaginei criando
uma criança. Principalmente por minha falta de
maturidade. Porém, o seu rosto me trazia calma e
esperança, como seu pai também me trouxera um dia.
Então era isso, amor maternal?

— Ela tem o rosto do pai. — Passei o indicador


levemente por suas sobrancelhas — Mas seus olhos

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são como amendoados e grandes como os meus. —
Completei firmemente.

Um sorriso cálido surgiu em sua pequena face


rechonchuda, e sua mão se levantou com dificuldade,
mexendo os dedinhos na tentativa de me alcançar.
A dor de ter essa criança me custou, mas compensou
todo esse tempo.

— É melhor você se deitar na cama, meu bem. Pode


deixar que eu limpo. — A mulher ordenou.

— Só mais um pouco, por favor. — Implorei chorosa.


— Ela é tão linda.

Raquel voltou a me encarar, franzindo a sobrancelha.


— Ela é realmente linda. — Afirmou sincera. — Qual
será o nome?

— Ela nasceu na manhã — Cantarolei anestesiada por


seus olhos grandes que mais tarde assumiriam um
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preto tão escuro quanto o mesmo. — Lucy, significa
iluminada. Eu amo esse nome.

Hiro também amaria.

CAPÍTULO UM
O GENE DO IMPERADOR

Kanazawa, Japão, 2006

LUCY

Da colina de onde eu moro, o pico de montanha mais


alto da cidade, dá para se ver todos os prédios e as
casas de arquiteturas do período edo na zona costeira.
Em dias nublados, iguais a este, me pego observando
por trás da fria camada de vidro, a névoa nas
intermináveis montanhas verdes escuras e imaginando
que se por um momento eu me perdesse por todo
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aquele território tortuoso e vazio, sem saber o caminho
de volta para casa, eu talvez me encontrasse e achasse
minha verdadeira essência.
Em um sentimento oculto e irrevogável de fuga da
minha própria mente, sempre tentando me sabotar a
cada passo, como um buraco que eu mesma cavei
esperando encontrar sobras para preencher o resto.

— Lulu. — A voz de Amélia soava com destreza e


suavidade às minhas costas, tirando-me da dissociação
enquanto observava a paisagem, que escurecia
lentamente no horizonte — Lulu, preciso que se sente.

Virei-me num ímpeto, encarando os olhos de formato


amendoado de cor violeta num semblante abatido de
minha mãe.
Sentada à mesa chabudai redonda, ela batucou os
dedos na planície de madeira recheada de comidas,
com um cheiro misto que emanava ao ar.
Seu cabelo, que usualmente era castanho-claro num

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ondulado armado que realçava o seu rosto de formato
triangular, agora estava escuro e sem vida num coque
espigado que mostrava todo seu rosto pálido numa
tonalidade oliva.
Assenti de leve com a cabeça, me sentando junto a ela.

— Algo de errado? — Indaguei pegando os hashis ao


lado do prato, me servindo das pequenas porções de
lula frita e arroz.

— Você fez treze ontem, e sei que prometi que hoje


iríamos fazer nossa trilha anual. — Deu um gole da
bebida a sua frente no copo americano, torcendo o
rosto — Mas precisaremos fazer isso outro dia, espero
que entenda. — Vincou sua testa, tentando analisar
como reagi. — E deve parar de matar aula, hoje recebi
uma ligação... três dias de falta sem justificativa? Você
não pode fazer isso.

Dei de ombros com indiferença.

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— Eu me sinto mal só de pisar naquele pátio. —
Suspirei arqueando as sobrancelhas. — Não estou
bem, mas é irrelevante para você, não é? — Ironizei
analisando-a de longe com um semblante apático.

— Sei que tudo têm sido difícil para você, mas é algo
que não deve se repetir. — Amélia exigiu, me olhando
no fundo dos olhos como se sugasse minha alma. —
Não dormi muito bem esses dias, e olha o tamanho das
minhas olheiras. Ainda assim preciso trabalhar para
manter esse lugar em pé.

— Estou vendo. Parece bem ocupada, hum? — Deixei


um sorriso presunçoso surgir em meus lábios. —
Alguém do trabalho? Você chegou quatro e meia da
manhã.

— Qual foi a última vez que namorei alguém? —


Murmurou sarcástica para sí. — Antes fosse esse tipo
de problema. — Me encarou indiferente. — E não

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muda de assunto.

Amélia sempre foi uma mulher realmente muito


bonita, esbelta e sempre era o centro das atenções
quando o assunto era beleza, ou estar bem com ela
mesma.
Seu temperamento e falta de interesse no amor nunca
ajudaram muito, não que eu saiba, mas isso também
não fazia falta para si.

— Aconteceu algo além das faltas. — Murmurei a


mim mesma de boca cheia. — Você está péssima.
Com todo respeito...

Ela suspirou recuando com o corpo.


— Presumo que tenha visto aquela van escura na
subida da colina. — Sugeriu revirando a comida no
prato, tornando a ficar impaciente.

— Por isso achei estranho, pensei que era algum novo

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namorado psicótico seu. — Concordei abocanhando o
arroz quente que parecia derreter. — Isso aqui está
divino, mãe. — Aprovei com a cabeça.

Ela suspirou afrouxando a postura e encarou o seu


prato a frente, pensativa.
— Essa madrugada toda eu fiquei de olho nesse carro
— Praguejou entre murmúrios — Por incrível que
pareça, tenho certeza que os Murakami estão
envolvidos.

— Quem são esses? — Soltei um riso incrédulo.

Seu semblante baixou, pensativa.


— Esses mafiosos de merda! — Bateu a mão em cheio
na mesa se exaltando com os olhos cerrados, me
fazendo sobressaltar dando uma guinada com o corpo
para trás.
Meu susto foi o suficiente para sua mão afrouxar na
mesa e seu corpo amolecer. — Eles estão me

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procurando. Estou marcada — Murmurou me
lançando um olhar cruel com as pálpebras pesadas —
É com eles o meu problema.

A encarei assustada, sentindo a comida entalar na


garganta.
— Como? O que quer dizer com marcada? —
Questionei largando os hashis na mesa e engolindo o
resto que insistia em voltar, com um olhar estarrecido
para ela.

Amélia se aquietou, enchendo outro copo, virando de


uma vez. — Uma marca de morte, da máfia. —
Completou hesitante. — Parece que Goro Murakami
não desistiu de sua promessa — Baixou a cabeça
queixando-se, absorta em pensamentos — Algo está
prestes a acontecer com o império dos Hanaoka.

Senti cada palavra sua revirar minhas entranhas, e


minha espinha gelar.

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— Devagar, co-como assim? Você vai morrer? —
Sobressaltei assustada, negando a mim mesma estar
louca.

— Me escute Lulu, pessoas vêm e vão num piscar de


olhos. Pessoas que você ama irão embora de sua vida,
e você precisará enfrentar isso de cabeça erguida. —
Acautelou de modo suave. — Não posso prometer
estar viva quando amanhecer, mas prometo tentar de
tudo. — Deu um sorriso letárgico e indiferente como
se não tivesse acabado de surtar, observando o relógio
acima da batente atrás de mim com atenção. —
Apenas saiba que não estará sozinha. — Engoliu seco
desviando o olhar tentando evitar contato visual,
colocando na mesa o que parecia ser uma carta antiga,
com papel amarelo, como se estivesse escondido por
muito tempo em alguma gaveta trancada.
Em sua abertura de V havia um selo circular prateado
de cera com um carimbo marcado.
Peguei-a com um certo receio.

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Olhando de perto, era o desenho de uma pétala de
Ume com uma lua crescente na horizontal.
— Sobre o que é? — Questionei estarrecida no lugar.

Seus olhos roxo púrpura me encararam por um


momento, baixando em tom de constrangimento.
— Antes de abrir... A verdade é que, eu só tinha medo
de te perder — Engoliu seco. — Menti para você e a
mim mesma esse tempo todo, mas foi por um
propósito.
Um dia irá me entender, por mais que pareça errado se
a mentira for justa, ela se torna válida. — Senti meu
coração quase parar por um momento, como se fosse
saltar pela boca. Eu estava pálida e gelada. — Nessa
carta tem o contato de uma família. Ligue para eles
antes do amanhecer. — Completou com os olhos
grudados aos meus. — São os únicos que poderão lhe
ajudar.

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— Mãe. — Engasguei com minhas próprias palavras
sentindo meus olhos marejarem. — Como pode dizer
uma coisa dessas? — Meu rosto ferveu.

— Mostre a marca de nascença no seu ombro.


— Encheu outro copo de saquê com a mão trêmula,
derramando sobre a mesa. — Só me promete que você
vai abrir essa carta e ligar no número indicado. —
Ordenou chegando perto de meu rosto, dando para ver
melhor suas pequenas rugas entre as sobrancelhas de
tanto serem vincadas. — Não hesite, não ligue para a
polícia. Só faça o que te pedi. Os Hanaoka resolverão
tudo, eles são uma potência, então não os subestime.
— Virou o copo, fazendo com que o odor de bebida
exalasse no cômodo inteiro, nauseando-me.
Minha mãe havia-se tornado dependente do álcool
desde que viemos morar aqui, talvez para repor os
momentos em seu próprio casulo, junto do seu velho
saquê forte e vagabundo que ela comprava de um
amigo suspeito do trabalho. — Você será muito

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respeitada, portanto, deve fazer jus para que isso
aconteça. Me ouviu?

— Sim senhora. — Acenei com a cabeça, apertando


meus dedos com força o papel, de maneira que as
lágrimas ralas desceram pelo meu rosto.

Amélia permaneceu em seu lugar com um olhar vazio


e entorpecido para mim, seu semblante de derrota
agora era mais visível do que nunca.
— Vou te pedir uma última coisa, preciso que confie
em mim — Virou o resto de bebida barata no copo —
Preciso que se tranque em seu quarto quando o relógio
der meia-noite em ponto.

— Mas por quê? — Indaguei colérica.

— Chega de questionamentos. Apenas faça o que eu te


pedi. — Amélia interrompeu serena olhando no fundo
dos meus olhos, de forma inexpressiva e vazia — Não

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saia de lá. Está me escutando? Essa noite essa casa vai
acabar em um banho de sangue, e a única coisa que eu
te peço é para não chorar, e não gritar — Engoliu o
resto de bebida — Como brincávamos, se lembra?
Deve manter a paciência e tomar cuidado com o
barulho da própria respiração. Se não o intruso pode te
achar.

Algo me soou nostálgico, como um dos meus jogos


favoritos com ela. A vítima e o intruso.
A brincadeira consistia em que a vítima fizesse o
mínimo de barulho e bolar estratégias para alternar de
cômodos e chegar à bokken escondida. Caso a vítima
encontrasse, o jogo alternava e a mesma tornava-se o
intruso.

Senti meu estômago revirar, como se uma pedra de


toneladas tivesse sido lançada esôfago abaixo.
Eram muitas informações a serem digeridas. Minha
mãe estava prestes a morrer e tinha consciência disso,

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e quanto a mim, eu talvez iria para um lar adotivo ou
coisa assim.
— Ok, vamos por partes — Neguei com a cabeça
tentando calcular, meu coração parecia que ia saltar
pela boca — Você está me contando que tem uma
dívida por mafiosos, e que, na verdade devo me
esconder? — Questionei apontando a mim mesma —
Esse tempo todo... — Cerrei os olhos e massageei a
têmpora. — Como sabe disso? E ainda presume que
será hoje?! — Dizer aquilo em voz alta soava como
uma piada, senti um riso abafado e nervoso escapar,
então abafei com o dorso da mão. — Isso é piada?
Você sabe que não é legal esse tipo de brincad...

— Olha bem para minha cara, e vê se eu brinco assim.


— Interrompeu-me aumentando o tom de voz, então a
encarei incrédula. — Só confia em mim, por favor.
Preciso que colabore, Lulu. — Completou.

Suspirei baixo, me sentindo rendida.

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— Sim senhora. — As palavras saíram como um
murmúrio ofendido — Seria bem melhor se fosse uma
piada, né? — Afrouxei a postura baixando a cabeça
desanimada. — Só me promete... que vai acabar com
essa idiotice. — Respondi abatida.

— Prometo — Baixou a cabeça bufando — Sei que


parece loucura te falar tudo isso, mas eu só gostaria de
ter lhe dado uma vida diferente da que tive, e falhei.
— Sua mão apertava a minha numa força acolhedora,
como se fosse a última vez que sentiria meu toque.

Era como se toda a fartura de comida ali em cima


estivesse azedado, e uma ânsia me tomasse em um
nojo irrepreensível.

— Por que tem que ser assim? Podemos fazer uma


estratégia. — Sugeri olhando em seus olhos —
Podemos fazer isso juntas, mãe, você sabe. Não
precisa passar por isso sozinha.

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Seus olhos me fuzilaram como se eu tivesse acabado
de dizer uma ofensa.
— Nunca, jamais me peça isso de novo. — Crispou
apontando para mim — Isso é entre mim e eles. Se
quer tanto me ajudar, promete ficar dentro do seu
quarto até tudo acabar, e sem barulho. — Ergueu o
mindinho a minha frente, então retribuí o juramento
com relutância.

— Só me diz uma única coisa... e então pararei de


perguntar. — Recuei o corpo. — Como sabe que será
hoje?

— A van foi-se embora ao anoitecer. Isso significa que


há algo de pior por vir. — Vincou as sobrancelhas,
pensativa — Tem outro carro chegando, então um
homem irá entrar por aquela porta. — Soltou um riso
malicioso, remexendo a comida ainda pensativa. —
Espero por isso faz anos.
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— Indiscretos daquela forma? — Comentei apontando
para a janela ao lado direito que dava para a descida da
colina, que agora se encontrava vazia.

— A intenção é essa. — Respondeu indiferente,


virando o último gole — Mas eu já cuidei de tudo. —
Cochichou para si, balançando a garrafa para baixo
esperando sair algo no copo.

— Então teoricamente isso não é culpa sua, você só


tentou fugir do passado, mas ele não te larga — Sugeri
— E sabe... Não tem problema em recomeçar, nós
erramos e isso só nos torna mais forte.

Amélia sorriu levemente, tentando esconder suas


bochechas que coraram entre goles.
— Aonde quer chegar?

— Sabe, mãe — Interrompi remexendo a comida que


por sinal já estava esfriando — Fugir não é covardia
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dependendo da situação...

— Eu fugi minha vida toda — Soltou um muxoxo


insípido. — Não tenho mais para onde correr, mas
você sim... Por isso não se esqueça do que
conversamos.

— Me prometa que sairá viva disso. —


Seu olhar descrente nem sequer me convencia de tal
afirmação.

— Prometo que irei tentar. — Piscou de volta


suspirando sem ânimo — É um fardo, mas há coisas
inalteráveis.
Lembre-se de que seu sobrenome é Guerra. Lute até
seu corpo definhar. Morra, mas morra com honra.
Faça diferente de mim, nunca corra, você é a única
solução para tudo. — Ela apontou o dedo em minha
direção de forma esperançosa.

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— Mãe... — A encarei deixando algumas lágrimas
escaparem — E quando doer muito?

Um sorriso leve surgiu em seus lábios pálidos.


— Uma hora para de doer, então você só para de sentir
tudo e todos.

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CAPÍTULO DOIS
A VÍTIMA E O INTRUSO

Meus olhos acompanhavam os ponteiros do relógio


que ecoavam pela sala de jantar silenciosa, num tique
taque incessante.
23h30.
Amélia encarava seu prato com o cenho franzido,
cochichando coisas a si. Provavelmente por algum tipo
de efeito do alcoolismo que eu jamais vira.

— Estou saindo, mãe. — Afirmei estranhando seu


comportamento animalesco.
Os trovões transpassavam pelo shoji, ricocheteando
seu feixe de luz em seu rosto, que me fixou com as
pálpebras pesadas e o corpo lânguido.
— Me sinto subestimada por você — Discordou entre
bocejos, murmurando a si mesma. — Por que ainda
não saiu? — Ela semicerrou os olhos encarando o
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relógio fino prateado que circulava seu pulso,
totalmente inebriada.

Entrei em meu quarto que dava vista para a sala de


jantar, deixando uma brecha suficiente para espreitar
pela porta corrediça.
Escorada no fusuma, agachei-me com os olhos atentos
pela pequena abertura.
Outro feixe de luz passou pela porta, e dessa vez não
eram os trovões que rugiam, mas sim um par de
lanternas altas que chegavam subindo a colina com
uma certa rapidez brusca, trazendo consigo barulhos
de pneus pesados sobre a lama com pedregulhos da
entrada.
Amélia pigarreou endireitando seu corpo
indiferentemente, tornando a ficar atenta.
Seja corajosa, este é seu destino.
Meus pensamentos pessimistas vieram como um flash
rápido e uma tensão, cessando minha respiração alta.

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A porta deslizante da sala principal se abriu, e passos
pesados lentamente se aproximaram perto da mesa
onde Amélia estava sentada.
— Quanto tempo. — Uma voz grossa que queimava
como fogo sibilou sardônica num inglês fluente, se
aproximando da mesa no meu campo de visão — A
casa não é nada mau, nada mau mesmo... —
Seu rosto se aproximou acima de Amélia, deixando a
mostra sua grande cicatriz que ia da têmpora até o
maxilar inferior, coberta por algumas curtas mechas de
cabelo mal repicadas.

— Te convido a se sentar. — Ela apontou para a


almofada vermelha atrás do outro lado da mesa, onde
há segundos eu estava. — Vejo que não mudaste em
nada — Sua fala aveludada casual parecia indiferente,
partindo para um jeito formal e arcaico.

O homem alto e forte o fez, apoiando as mãos sobre a


mesa um tanto desafiador.

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— Atrapalhei seu último jantar Ame? — Soltou um
riso zombeteiro — Sabe por que estou aqui?

— Chega de joguinhos. — Amélia manteve a postura


— Seus homens me perseguem já faz sete anos, e você
estava ao lado de Goro esse tempo todo. — Concluiu
soltando um suspiro incrédulo, seguido de uma
reprovação de cabeça.

— Matar você será entediante de fácil — Seu riso em


escárnio soou alto, fazendo arrepiar-me toda — Eu
sempre esperei por isso, na real... Tão cheia de si,
tirando de todos um pouco. Ainda pensou que ia se
safar?

— Se é tão fácil, por que não veio antes? — Exaltou-


se, batendo com o punho fechado na mesa. — Há
quanto tempo você trabalha para Murakami Goro?

— Sabe, se eu te contar vai perder toda a graça —

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Respondeu em tom irônico, soltando um riso abafado
— Mas a sua filha pode acabar como você daqui a uns
anos.

Cambaleei quase desabando ao chão, colocando a mão


em meu peito, me acalmando com uma longa
inspiração inaudível.
Meu coração estava batendo tão alto que por um
momento receei que ele ouvisse.

Amélia se levantou bruscamente cerrando os punhos a


frente do rosto do homem, que não moveu um
músculo.
— Nunca mais dirija uma palavra se quer sobre minha
filha. Está me escutando seu militarzinho de merda?
Você vive lambendo as bolas daqueles extremistas
para chegar onde quer, estou procurando sua moral
para vir aqui tentar me matar.

— É fácil... — Soltou um riso forçado — Goro sabe

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quem é sua filha, e irá vê-la morrer aos poucos antes
de cortar a cabeça dela.

Amélia pareceu pensativa e quieta, tomando o


ambiente em um silêncio momentâneo.
— Uma Leoa Branca jamais morre. Espere para ver o
império de Namio afundar lentamente. — O homem se
manteve sentado e imóvel, acompanhando cada
movimento de Amélia com os olhos embebidos de
ódio. — Dou alguns anos para ela matar um por um.
Até chegar em você.

— Se ela não fugir das próprias responsabilidades. —


seu braço se apoiou na mesa, e um meio sorriso brotou
em seus lábios. — Exatamente como a mãe fez.

— Olha se não é o próprio Judas dando lições de vida.


— Amélia murmurou retorcendo o rosto.

O homem caçou alguma coisa no bolso de trás da

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calça, retirando um maço de cigarro e fisgando-o com
a boca.
— Aceita? — Ofereceu apontando para Amélia, que
recusou impaciente — Não vai ser educada e me
oferecer uma bebida? — Acendeu o tabaco com seu
isqueiro cromado, que incendiou a ponta soltando
aspirais de fumaça.

Semicerrei os olhos tentando enxergar mais de perto,


vidrada no olhar sedutor e enraivecido do norte-
americano.
— Acabou o saquê — Respondeu indiferente mirando
os olhos na garrafa de vidro a sua frente — Não pode
ser só você aqui, tem mais quantos? — Sugeriu
desinteressada, cruzando os braços e olhando por trás
das costas largas e musculosas do homem a sua frente.

— Não estou aqui a negócios Ame. — Respondeu


com uma ira estampada no rosto, dando de ombros e
tragando o cigarro. — Vim terminar o que comecei, e

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receber o que me foi prometido.

Ela se levantou cerrando os punhos e erguendo os


braços, protegendo sua guarda — Como quiser, mas
que resolvamos isto de modo justo. — Seus ombros
engatilharam dando uma arqueada e os cotovelos se
voltaram para dentro. Seu pé chutou a mesa em cheio
por baixo, tombando-a de lado, quebrando as tigelas e
a garrafa de vidros que tilintaram se espatifando ao
chão, me fazendo saltar de susto enquanto os
espionava pela fresta.
O homem se levantou, dando um longo último trago
no cigarro que havia acabado de acender, jogando-o de
lado com os dedos. Seu tamanho era quase o dobro de
minha mãe, e seus músculos bem definidos me davam
arrepios.
Ele poderia espremer a cabeça de Amélia com a palma
da mão se quisesse.

— Mas é claro. — Debochou cantarolando — Se

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prefere complicar as coisas. — Chegou mais perto
erguendo proteção, e estendendo o braço para socá-la.
Os movimentos dele eram potentes, porém, lentos,
acabando em vantagem para minha mãe, que desviou
para o lado acertando-o um direto em seu rosto.
Os dois saíram do meu campo de visão, arrastando a
briga pelos cômodos, sendo possível apenas ouvir
murmúrios de ódio e dor.

— Você continua previsível. — Amélia soltou um riso


marcante de adrenalina.

O jarro de barro brasileiro que ficava no tokonoma


voou em pedaços ao chão, e um gemido de dor soou
grave. Era o do homem, que cambaleou até meu
campo de visão novamente. A lateral de sua testa
jorrava sangue.
Ele baixou o corpo dando uma rasteira giratória,
fazendo Amélia cair. Mas ela se levantou num salto
louvável, indo para cima dele, lhe dando um chute

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frontal que acertou em seu abdome, com uma força
inútil que o manteve incólume.
Desviando de seus ataques de socos frontais, o homem
acertou um soco em cheio na costela dela, que caiu
sem fôlego sobre a mesa quebrada, num gemido
dolorido.
Ele foi para cima da mulher, e sua mão pesada e
grande agarrou seu pescoço magro sem esforço,
apertando-o com facilidade e erguendo seu corpo até
acima da altura de seus olhos inexpressivos.
Um rubor nervoso me subiu, mas eu não conseguia me
mexer, estática e assustada sem saber como reagir
naquela situação.
O rosto de Amélia ficou vermelho escarlate, e as veias
de sua face dilataram. Seu corpo lutava com as pernas
tentando alcançá-lo com um chute, sendo inútil.
Ele ergueu uma faca de seu bolso com a mão oposta, e
sua lâmina tão fina quanto um papel refletiu contra a
luz.

39
— Não, po-por favor, não — Amélia pediu sufocando
com uma voz dificultosa.
Sem hesitar, ele apunhalou-a em seu peito
repetidamente, alternando de maneira rápida com um
grito animalesco de prazer.
O rosto dela retorceu numa agonia e as lágrimas
desceram pelo seu rosto, junto de um estertor alto, sua
boca jorrou um sangue viscoso e escuro.
Reprimi o soluço que vinha junto das lágrimas com a
palma da mão. Numa tentativa de me convencer de
que aquilo era um delírio, numa súplica silenciosa.
Ele jogou seu corpo no chão, que caiu num estrondo
aos meus ouvidos.

Seja forte e corajosa, forte e corajosa, forte e


corajosa, forte e corajosa.
Todo o ar em meu peito se esvaiu, e um sufoco tomou-
me por inteira.
Agarrei meu próprio pescoço, arranhando-o numa
ansiedade de sentir o ar passar por minhas narinas e

40
boca. Então a porta deslizante da entrada se fechou, e
em segundos, o barulho de carro derrapou na lama
descendo colina abaixo.

— MÃE! — Gritei abrindo o fusuma correndo em sua


direção desesperada — Não fecha os olhos, por favor.
— Me agachei junto ao seu corpo caído, encostando a
ponta dos dedos em sua roupa, agora toda vermelha e
banhada numa poça de sangue que se estendia
lentamente como se sugasse o chão.

— E-eu falhei — Tossiu em meio a suas palavras. —


Me desculpe, não cumpri minha promessa.

— Não fala. — Supliquei com os olhos marejados,


pegando uma toalha que momentos antes estava na
mesa, apertando em seu peito ensanguentado. —
Segura assim...

Sua mão meio vacilante apertou meu pulso, puxando-a


41
para perto de si.
— Ligue para eles... — Assenti quieta colocando sua
mão trêmula em meu rosto — Mostre sua marca de
nascença, todos vão saber. — Suas sobrancelhas se
vincaram com dor — A sua família real... S-seu pai...
— Limpou minha lágrima com seu polegar e acariciou
meu rosto com dificuldade.

— Mãe? — Interpelei procurando algum sinal de vida.


Seus olhos violetas marejados me encararam estáticos,
fechando-se lentamente, deixando uma última lágrima
escapar rolando pelo seu rosto sujo.
Sua mão se afrouxou em meu rosto, caindo ao chão.
— Mãe! Mãe... Não me deixa. — Gritei entre soluços
descansando a cabeça em seu ombro que ainda quente
exalava seu perfume único, mas seu peito não se
movia, sem sinal de respiração — Não faz isso
comigo. — Esbravejei em prantos, sentindo meu rosto
queimar e uma raiva me tomar por completo.
Uma sonolência me atingiu como uma anestesia local,

42
mas eu conseguia suportar e manter meus olhos
abertos e atentos.
Retirei a carta amassada do bolso e dobrada em dois,
abrindo e manchando-a de sangue.
A letra inclinada e escrita à mão em itálico, continha
apenas o número de telefone e um nome.
Hanaoka Hidemi.
Andei até o telefone de mesa, discando cada número
um tanto hesitante.
O telefone chamou, e na quinta vez, uma pessoa
atendeu.

— Residência dos Hanaoka. — Uma voz rouca e


calma ressoou na outra linha — Com quem eu falo?

43
CAPÍTULO TRÊS
CHAMADA ANÔNIMA

Tokyo, Japão.

ICHIRO

Yuriko batucava os dedos na planície da caderneta

44
vermelha com impaciência, me encarando com
semblante exausto que pedia socorro.

— Assinar um contrato com os Fujiwara seria muito


vantajoso para empresa Hanaoka Co. Os índices de
exportações aumentariam, e o preço de desembarque
teria apenas vinte por cento de aumento. — O
conselheiro Takeuchi gesticulava animado apontando
para o gráfico mal desenhado na lousa branca,
enquanto as pessoas sentadas à mesa concordavam em
murmúrios.

— O conselheiro tem meu apoio, não podíamos adiar.


— Concluí indiferente, de modo que ele sorriu com
seus lábios assimétricos — Alguém se opõe à decisão?
— Todos me encararam de volta decididos — Ótimo.

Pigarreei estendendo à mão para Yuriko, que abriu a


caderneta retirando uma papelada grossa e me
entregando.

45
Li os pequenos termos com tinta falha na impressão, e
preenchi com um carimbo, devolvendo-a.
— Estão todos dispensados. — Afirmei em voz alta
me levantando, e arrumando a lapela do terno cinza.

Os suspiros cansados ecoaram antes de se despedirem


diretamente a mim, esvaziando a grande sala de
reunião escura em questão de segundos.
— Você pegou pesado. Devia ter assinado isso em
alguma reunião particular... — Yuriko me encarou
bocejando, jogando seus cabelos longos e escuros para
trás.
Seu rosto fino nitidamente provinha de sua mãe, com
seu jeito doce e gentil que também era uma de suas
maiores virtudes. Nada parecida comigo.

— Algumas horas extras não matam ninguém se


estiver em boas condições, e isso será adicionado em
cada conta. — Dei um meio sorriso fechando a maleta
e deixando a sala.

46
O telefone no bolso vibrou, tomando minha atenção.
— Me aguarde só um minuto. — Ordenei levantando
o indicador, me virando para o lado oposto.

— Ichiro — A voz calorosa e serena de Hidemi soou


na linha em tom de urgência — Você deve ir direto
para Kanazawa com Yuriko.

— Mãe, o que houve? São seis horas de Tokyo. —


Tensionei as sobrancelhas encarando o relógio em
meu pulso, marcando uma e meia da madrugada.

Um silêncio mortal tomou a outra linha, onde ecoavam


suspiros pesados.
— Goro matou Amélia há algumas horas. —
Completou hesitante — A filha dela nos contatou, e
precisa de ajuda neste momento. Por isso deve chegar
em Kanazawa e buscá-la antes do meio dia.

47
O corredor com piso cinza polido, iluminado com
luzes semi diretas que se estendiam ao longo das salas
com portas de vidros escuras e persianas horizontais,
me pareceram infinitas por um momento. Enquanto eu
procurava algum tipo de resposta adequada para
aquela situação.
Amélia foi como uma filha que as entidades nos
enviaram para criarmos, sua partida da aldeia não foi
fácil para eu na época. E minha agonia em receber a
notícia de sua morte, me perseguia por muito tempo,
sendo algo inevitável.

— Morta? — Repeti virando-me para Yuriko, que me


encarava com os olhos curiosos — Estou a caminho.
Mande apenas os nossos policiais até o local, é uma
ordem.
Não diga nada à Hiro, ele não precisa saber disso
agora.

Desliguei o telefone, tentando digerir cada palavra.

48
— O que aconteceu? — Sua voz assustada com um
tom aveludado chegou perto de mim, confusa.

— Amélia Guerra, está morta.

— C-como? Ela voltou para o Japão? — Acenei com a


cabeça em concordância, suspirando fundo.
Yuriko levou as mãos a boca, e um horror tingiu seu
olhar, de maneira que as lágrimas rolaram de seu rosto
marcado numa lassidão.

— Precisamos ir direto para Kanazawa — Propus


voltando a andar em passos apressados. — Acione os
nossos policiais até o distrito de Ishikawa na colina
maior.

— Irei com você... — Declarou em voz alta com


confiança.

49
— A filha de Amélia está viva, isso significa que a
garota precisa de um lar, certo? — Indaguei apertando
o botão do elevador com impaciência — Ela ligou
para Hidemi.

— Uma filha? — Parou por um momento de frente


para o elevador, pensativa.— Se ela está viva... Isso é
um alívio — Colocou a mão no coração se acalmando
— Foi a melhor coisa que a garota fez... Como ela
tinha o número da nossa família?

— Isso não importa agora. — As portas do elevador se


abriram, então entramos quietos, sentindo a vibração
pesada tomar o lugar — Peça para os nossos homens
acharem a histórico de Amélia Guerra e Lucy Guerra,
e me envie uma cópia de cada. — Exigi olhando a
paisagem iluminada por pequenos pontos de luzes
ofuscados do centro pela parede de vidro do elevador.

— Para quando? — Yuriko segurou o celular entre as

50
mãos, pronta para discar.

— Agora mesmo. E façam isso rápido, não temos todo


tempo do mundo. — Completei soltando um pigarreio
— Devemos chegar até o meio-dia, ou eles levarão a
garota em resposta de não haver nenhum responsável.
É assim que lidam com imigrantes.

— Tudo bem. — Acenou com a cabeça levemente.

Meu corpo pareceu flutuar por milésimos segundos,


quando o elevador parou abrindo no térreo.
A aglomeração de pessoas entrando e saindo pelas
portas de vidro espelhado mais cedo, agora se
mantinha num silêncio de paz, com o saguão vazio
onde ecoava os barulhos distantes de outros
automóveis que passavam nas ruas.
Um Lancer preto e bem polido esperava na porta do
prédio, indicando ser nossa carona, e o seu interior era
branco creme, com o banco revestido de couro que

51
cheirava aromatizante doce, de modo que meu nariz
queimava por dentro.
— Boa noite, Sr e Srtª Hanaoka. — O homem de
aparência velha e encolhida se virou, me lançando um
sorriso com um aceno de cabeça.

— Boa noite, Senhor Oyama. Leve-nos até Golden


Gai, o mais rápido possível. — Yuriko ordenou com
urgência por trás da nuca do homem.

— Claro. — O mesmo acenou a cabeça, girando a


chave na ignição e acelerando para sair, fazendo os
pneus cantarem.

Andei pelo beco tortuoso com luminárias que me


inebriou por um momento, onde normalmente teria
mais pessoas e agora se encontrava tão vazio que os
pensamentos falavam mais alto. Havia marcado de
encontrar meu agente em um bar antigo de um velho
amigo que por um bom tempo esteve em alta, e por ser

52
uma área nossa, conseguíamos realizar reuniões de
emergências sem questionamentos paralelos.
Seus letreiros verdes agora estavam falhos enquanto a
garoa fina caía sobre, então entrei vasculhando cada
canto, onde não havia ninguém seguido de um silêncio
absoluto.
Uma mulher alta com as mãos estáticas e juntas a
frente do corpo, se dirigiu a mim com um sorriso de
orelha a orelha.
— Seja bem-vindo, senhor Hanaoka, me acompanhe.
— A jovem se inclinou num cumprimento, com uma
voz doce.
Seus passos rápidos que pesavam no assoalho
levaram-me até a última sala que se estendia ao longo
de corredor de paredes de shoji, aparentemente sendo
a única sala ocupada.

Meus passos chegaram perto do homem corpulento em


um terno escuro e o cabelo repartido de lado. Seu rosto
oval e rechonchudo se virou para mim, me encarando

53
com seus olhos pequenos ao me aproximar. Sentado à
mesa, sua mão segurava um envelope preto, e ao seu
lado, uma garrafa de saquê suava gelada sobre a
planície de madeira.

— É bom vê-lo, Ichiro. — Um sorriso gentil surgiu de


lado nos lábios do homem, que sem malícia alguma,
tentava simpatizar.

Acenei com a cabeça retribuindo com um sorriso


forçado, sentando-me ao zabuton.
— Conseguiu os documentos? — Indaguei com uma
voz falha.

— Foi fácil. Consegui até as fotos atuais que as


indicam nos passaportes a partir de 2000 — o homem
corpulento deu de ombros sorrindo, mostrando seus
dentes brancos e tortos — Lembro-me bem de Amélia,
sempre grudada em Hiro para todo canto... Não acha
que há algo de errado com a garotinha, não é?

54
— Por que acha isso? — Indaguei um tanto
desafiador, semicerrando os olhos.

— Eu trabalho para você há mais de trinta anos, me


diga uma vez que errei. — Sua mão entregou o
envelope escuro com cuidado. Então abri com receio,
desdobrando a folha onde uma pequena foto de
Amélia atual no canto, se estendia com dados comuns.

35 anos
Formada em Arquitetura em Pernambuco.

Conseguiu validar os documentos, e veio trabalhar


numa empresa de contabilidade no distrito de
Ishikawa junto da filha de 7 anos.
Multa por dirigir bêbada em alta velocidade.

Informações inúteis.
Amélia escolheu viver como uma pessoa comum todo
esse tempo, creio que para proteger a filha.
55
Pigarreei virando a folha, dando de cara com a
pequena foto da garotinha. Seus olhos amendoados
finos pareciam perdidos e vazios, eram como os da
mãe.
O seu rosto era latino-americano e continham traços
bem desenhados, com os maxilares inferiores bem
marcados. Juntamente de seus cabelos que batiam nos
ombros, numa tonalidade tão branca que até ofuscava.

14 anos.
Lucy Guerra, ganhou medalhas de primeiro lugar em
ciências e geografia nas escolas do Brasil.
Aos doze ganhou dois troféus em primeiro lugar em
natação e literatura, na escola de Kanazawa.
Não há registros de filiação paterna.
Andréia Ferreira abriu um B.O em nome de Lucy
Guerra no ano de 1997 enquanto esteve no Brasil, por
agredir sua filha jogando uma cadeira em sua cabeça,
localizado na escola Farias Peixoto.

56
Voltei meus olhos ao homem, acenando conclusivo, e
retirando outro envelope amarelo para ele, com uma
quantia gorda de propina em dinheiro.
Me levantei arrumando a lapela do terno com
indiferença, guardando as fichas na maleta.

— Pensei que beberíamos um saquê como sempre,


hum? — O homem deu um riso gentil.

Me virei de frente para a porta deslizante e abri,


virando meio rosto para olhá-lo.
— Tenho que fazer uma viagem agora, mas podemos
marcar outra hora. — Afirmei conclusivo.

—Ah... Então tenha uma boa viagem, Ichiro. — Ele


deu uma risada asmática, abrindo a garrafa de vidro
verde e deu um gole alto.
Acenei a cabeça, saindo da sala sem prolongar.

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O carro estremecia a cada buraco que passávamos na
subida da colina enlameada pela chuva, que cessou
mantendo apenas uma garoa fina que mais pereciam
fagulhas trazidas pelo vento forte ao amanhecer.
A pequena casa branca tradicional se estendia no topo
da montanha era cercada por viaturas e ambulâncias.
Mais parecido com uma cena de horror ocultada
propositalmente.

— Quero que me acompanhe — Ordenei encarando


Yuriko, que me acenou quieta colocando grandes
óculos escuros quadrados, de pontas arredondadas que
tampavam quase a metade do seu rosto.

O carro parou lentamente a frente da casa na colina,


onde era possível ver que entre os carros, a porta de
entrada estava escancarada e cercada por fitas zebradas
em amarelo, presas na diagonal de maneira que
impedia qualquer passagem.

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— A garota com certeza têm algum parentesco com os
Hanaoka, porque no ano em que Amélia saiu... Ela já
estava grávida.
Você sabe de algo? Pois se sabe, acho melhor me
contar antes que nosso tratado com os Murakami se
rompa, e isso se torne uma guerra. — Murmurei para
Yuriko, que se manteve estática ponderando com as
mãos finas pousadas sobre as pernas, evitando
qualquer contado visual por trás dos seus óculos.

— Todos já sabiam que Hiro tinha um caso com


Amélia, mas nada indica que... — Respondeu
confiante.

— Não é o que os papéis dizem. — A interrompi,


batendo a porta e andando até onde haviam alguns
policiais.

— Bom dia, senhor Hanaoka. — Um policial


uniformizado se dirigiu a mim, num cumprimento

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sério ajeitando sua prancheta na mão.

— O que houve exatamente? — Questionei estufando


o peito e cruzando os braços.

— Nessa madrugada, por volta da meia-noite, uma


mulher chamada Guerra Amélia foi esfaqueada no
peito cinco vezes seguidas, enquanto sua filha a olhava
de longe. — Franziu o cenho engolindo seco —
Tentamos de tudo... Mas a garota não fala nada, quase
nem pisca.

Senti uma pontada de piedade no rosto do policial, que


suspirou baixo, olhando para o chão numa tentativa
falha em disfarçar.
— Me deixe vê-la — Ordenei, vidrando-me em seus
olhos um tanto ingênuos, de forma que me ele levou
até um dos lugares onde a ambulância estava
estacionada. Alí, a mesma garota da foto, agora um
pouco mais velha, permanecia sentada no beiral do

60
carro, encarando o nada à sua frente com uma aflição
interna e os pequenos pés descalços, imundos de
sangue seco e lama.

Os seus cabelos bagunçados e sujos ainda assim eram


tão brancos quanto nas fotos, o que me levava a uma
única hipótese.
Cheguei mais perto, observando o paramédico magro e
alto, de aparência jovial, que mostrava os dedos a
frente do rosto da garota com paciência, na esperança
de ouvir alguma resposta.

— Me dê licença com a garota — Ordenei, então ele


se virou, me encarando estarrecido e abrindo alas.

A garota manteve os olhos estáticos ao nada, com a


cabeça meio inclinada de modo lânguido. — Lucy? —
A chamei com uma voz fleumática, então seu rosto
inemotivo subiu lentamente, me encarando perdida —
Sou Hanaoka Ichiro, cuidei de Amélia como um pai. E
a partir de agora assumirei sua tutela antecipada. —
61
Nenhuma resposta.
Lucy permaneceu analisando-me, de cima a baixo e
fazendo o mesmo com Yuriko, que surgiu ao meu lado
em passos cuidadosos pela lama misturada com
pedregulhos.
— Peço desculpas por te fazer esperar por tanto tempo
— Completei — Antes de partirmos para a aldeia,
gostaria de levar algo? Pode escolher qualquer coisa.

Seus olhos brilharam tristemente, como se eu tivesse


ganhado toda sua atenção, mas que de certa forma não
podia usufruí-la.
— Qualquer coisa? — Um murmúrio calmo e baixo
soou, me fez sorrir com aprovação.

— Claro... O que você quiser. — Afirmei com um


curto aceno de cabeça.

Lucy olhou pensativa ao redor, mordendo o lábio


inferior numa batalha interna de decisões.

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— Os livros. Todos eles. — Respondeu decidida.

— Então terá seus livros. — Reafirmei acenando de


leve com a cabeça, numa expressão de piedade.—
Preciso que nos acompanhe até o carro. Sei que agora
é um momento difícil para confiar em alguém, mas é
preciso.

Deu de ombros numa expressão rendida, se levantando


num ímpeto e puxando uma mochila vermelha com
pins do Brasil, jogando apenas uma alça no lado
direito do ombro.
Seu andar cansado me fez pensar que a garota devia
estar exausta, a madrugada toda olhando para o
mesmo canto e ouvindo as mesmas perguntas
repetidamente em sua cabeça.
— À partir de agora, você parte da nossa família,
entendeu? — Assegurei-lhe, a acompanhando em
direção ao carro.

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Lucy me encarou, acenando a cabeça levemente em
concordância.
— Ótimo.
Ergui um leve sorriso em resposta, abrindo a porta do
carro para a mesma, que entrou analisando cada canto
com receio.

CAPÍTULO QUATRO
A DESINTEGRAÇÃO

LUCY

O silêncio desconcertante que pairava no carro pelas


longas seis horas de estrada, era preenchido por uma
clássica música japonesa dos anos 70' na estação de
rádio em volume baixo. O motorista velho e corcunda
lançava alguns olhares curiosos pelo retrovisor,
enquanto dirigia e cantarolava para si.

64
Tokyo é um lugar superestimado, mas eu enxergava
suas paisagens negativas, lembrando-me de que o mal
e o bem coexistem de maneira caótica.
Ali eu me sentia particularmente invalidada, vendo
aquelas pessoas indo e vindo com vidas corridas e
responsabilidades realmente preocupantes. E eu só
estava lá, como um peso morto.

Foquei no terno cinza-escuro, e o relógio prateado ao


redor do pulso do velho que se dizia chamar Ichiro,
numa tentativa de adivinhar sua personalidade.
Ele aparentava ter na faixa de uns sessenta e poucos
anos, e apesar das linhas de expressão pela idade, seu
rosto era estranhamente bem cuidado e conservado. O
cabelo impecavelmente repartido de lado realçava seu
rosto de formato quadrado e maxilar inferior saliente.
Sentado no banco ao meu lado, seus olhos puxados se
mantinham estáticos folheando uma papelada com
seriedade. Ele com certeza era o peixe grande de
alguma empresa, seu jeito arrogante não se opõe aos

65
fatos.
Ao meu lado oposto, uma mulher japonesa de cabelos
longos e escuros que decaía sobre seus ombros, de
aparência jovial hipnotizante mantinha seu rosto fino
me lançando um sorriso, com os lábios em tom
escarlate. Seus olhos eram cobertos por um óculos
imenso e quadriculado, o que a fazia aparentar ser uma
modelo acompanhante, ou agente do homem.

— Pedimos perdão pela falta de consideração, mas o


seguro neste momento foi te levar até a capital de fora
— A mulher pálida proferiu em um japonês refinado,
retirando os grandes óculos e encarando meus cabelos
sujos com um olhar piedoso. — Me chamo Hanaoka
Yuriko.

Hanaoka.
Talvez a filha mais nova.
Suas mãos também eram delicadas, e as unhas médias
e bem feitas, revestidas por uma camada fina de base

66
vinil rosa-claro.
Baixei a cabeça encarando os meus pés, enlameados e
sujos de sangue numa comparação incessante com a
mesma, que aparentava ser perfeita.

— Limpe as mãos, por favor.


A mulher estendeu uma caixa de lenços em minha
direção, então peguei meio vacilante, retirando uma
camada fina de algodão úmido que exalava em um
fraco cheiro de lavanda, passando na superfície da pele
suja, e retirando a seiva vermelha que virava agora
uma crosta seca.
De longe, os prédios como um império começavam a
se erguer quase numa competição de beleza e
arquitetura, mas um deles me chamava mais a atenção.
O mais alto tinha seus quarenta andares, e sua
aparência era tão absurda de intocável, ofuscando
todos os outros prédios ao redor.

— Chegamos — Ichiro murmurou com desânimo ao

67
meu lado. O carro virou descendo pela rampa,
entrando direto ao estacionamento subterrâneo.
A quantidade de carros esportivos parecia surreal.

— Antes de subirmos, esconda seus cabelos — A mão


do velho se estendeu, entregando uma boina estilo
breton de cor preta. Então seus olhos me faiscaram,
como uma ordem.

— Eu te ajudo, querida. — Yuriko proferiu com


delicadeza, então virei-me de costa para ela, de modo
que a mulher passou os dedos finos pelas mechas
bagunçadas e sujas do meu cabelo mediano, torcendo
em um coque, e colocando a boina por cima.
Ajeitando alguns fios de fora com o dedo e apertando
pelas laterais, de maneira que nada aparecesse.
Ichiro entregou um sobretudo da tonalidade escura
igual ao do chapéu, e aquela altura eu me sentia como
um manequim com roupas largas. Vesti-o encarando
as mangas que pareciam cinco sete maiores, chegando

68
ao meu polegar.
Ichiro percebendo meu desconcerto, deu um riso
abafado e puxou meus pulsos ajeitando a manga com
algumas dobras.
Senti meu rosto queimar de vergonha. — Está tudo
bem? — Yuriko me chamou com sua voz aveludada,
segurando meu ombro com gentileza, me virando para
ela.
Acenei com a cabeça, a encarando por uma fração de
segundos — Perfeito. Quero que ande apenas ao nosso
lado, isso é importante.

Ichiro voltou o olhar para mim — Prontas? — Sua voz


rouca e grossa ressoou impaciente.

— Só mais um detalhe... Calce estes sapatos. — Me


entregou meus tênis pretos que certamente pegara na
bolsa vermelha que minha mãe havia montado,
sabendo que partiria.

69
— Vamos — A mulher jovem me lançou um sorriso
raso — Você está pronta Lucy? — Assenti em
concordância, sentindo meu estômago remoer como
em todas às vezes em que eu ficava nervosa.

— Você está segura aqui, não se preocupe. — Ichiro


asseverou vincando o rosto, então Yuriko acenou para
o motorista que a encarava pelo retrovisor. O mesmo
saiu do carro com a postura corcunda, abrindo a porta
primeiro para Ichiro, que arrumou o terno dando um
suspiro impaciente.
Tentei me arrastar por onde ele saiu, mas a mulher
segurou meu pulso e censurou com a cabeça.

— Espere. Ele abrirá o nosso lado. — Deu um meio


sorriso, me corrigindo calmamente.

Os dois acompanharam-me lado a lado para o elevador


do estacionamento, que era exuberante em cada
detalhe. O sino ressoou, parando no último andar e

70
então a mulher saiu em nossa frente, girando o molho
de chaves em seu indicador, e examinando cada
detalhe dos dois lados do corredor, aparentando não
encontrar nada fora de lugar.
A segui, admirando aquele prédio igual a uma caipira,
parando no último quarto, que continha um número
4002 em itálico.

Por dentro, o tamanho era tão grande de tirar o fôlego,


acompanhado de um chão de cimento queimado
interno, que dava um ar leve e limpo para o ambiente,
misturado em cores frias e neutras que seguiam essa
referência de tonalidade.
— Estarei no quarto ao lado — Ichiro baixou a cabeça
pisando fundo, saindo de vista sem dar muita
assistência, enquanto segurava uma maleta preta pelas
alças.
A mulher alta e esbelta cruzou as mãos a frente do
corpo e me guiou até a suíte principal no fim do
pequeno corredor.

71
— Agora você pode ter seu momento, se precisar de
algo não hesite em me chamar.
Sua mochila está na mesa ao lado da cama. — Dei
uma leve inclinada com a cabeça num agradecimento
indizível. Palavra alguma poderia expressar a
segurança que me acercou, tirando toda ânsia e estado
alerta que me encontrava.
O quarto era grande e aconchegante, e o mais
encantador dali era o privilégio da visão dos prédios
iluminados pelo céu nublado e escuro que banhava
todo o horizonte. Por trás da parede grossa de vidro
reforçado com respingos da chuva, senti uma nostalgia
perdurar.

Mãe, como eu amaria que visse isso.

— Nunca veio à Tokyo? — Yuriko questionou com


certa surpresa me vendo admirar com os olhos
brilhantes, então discordei cabisbaixa — Pode vir

72
quando quiser comigo ou Ichiro. Basta pedir, e eu tiro
o dia para te mostrar tudo que nossa cultura tem para
oferecer. — Respondeu com um português de sotaque
puxado, que soou num êxtase contagiante.

Bufei fingindo me sincronizar com o seu bom humor,


forçando um sorriso.
— Seu português... é ótimo. — Murmurei baixo, e
encarei o seu rosto corando pela timidez.

— Muito obrigada — Respondeu confiante —


Aprendemos com Amélia, que era uma mulher
especial como você, e fez quase todos os Hanaoka
aprenderem o Português Brasileiro para que
pudessemos ensinar japonês.

Eu sempre soube exatamente quais eram as intenções


de uma pessoa apenas por suas expressões ou gestos e
manias, portanto, estava analisando-a com cautela. E
nesse exato momento, percebi que Yuriko não me
73
oferecia risco nenhum.

— Bom... Quando terminar, apresente-se na sala.


Estaremos te aguardando. — Deu um sorriso gentil.
Juntei as mãos a frente do corpo, e acenei a cabeça em
uma concordância plácida.
— Agora você é parte dos Hanaoka, acostume-se. —
Completou se retirando do quarto com um balançar de
quadris harmoniosos.

Fui até o banheiro com certo receio, dando de cara


com o ambiente mais relaxante do resto do quarto de
hotel. A parede de vidro dava como vista de frente
para o ofurô de cerâmica que já estava cheio e soltava
leves fumaças pela superfície d'água.
Despi-me das roupas pesadas, entrando com a ponta
dos pés, permitindo que a água quente me relaxasse
por inteira, podendo dar finalmente um suspiro de
alívio.
Uma parte interna de mim, gritava até desmaiar, e a

74
outra não sabia como reagir, entre uma onda
melancólica que me consumia.
Me bater até me machucar era inevitável em
momentos de crise, minha mão com o punho fechado
socou minha têmpora com força repetidamente, junto
de um choro baixo e agonizante. Mergulhei a cabeça
debaixo d'água por alguns segundos, soltando o grito
mais alto que eu conseguia para que ninguém pudesse
ouvir.

Sequei o cabelo e vesti um pijama longo de malha,


saindo do quarto.
A sala de estar tinha cerca de três pessoas equipadas
com jaleco e luvas azuis, andando por todo canto. O
que me fez presumir ser enfermeiros.
Ichiro e Yuriko mantinham-se em pé conversando com
um deles de modo atento.
— Lucy, querida. Precisamos fazer alguns exames e

75
checar se está tudo certo — Aprovei veemente,
sentando-me no sofá escuro e esticando o braço.
Uma enfermeira com cerca de quarenta anos deu
algumas palavras e apertou meu bíceps com um
aparelho de medir pressão, chegando mais perto com
um estetoscópio que circulava seu pescoço.
— Vai ser rápido — Posicionou os aparelhos,
apertando a pera de silicone.

De longe, Ichiro e Yuriko cochichavam, lançando


olhares de preocupação de vez em quando, me
parecendo muito específico.
Como seria daqui para frente? Ser acompanhada até
uma escola com a mensalidade de um órgão, e amigos
caros? Roupas de grife e uma família narcisista podre
de dinheiro? Não era o que eu precisava, mas é melhor
que dividir quarto com órfãos.

— Prontinho. Sua pressão está ótima. — A enfermeira


respondeu retirando o aparelho do braço com rapidez,

76
me lançando um sorriso calmo — Vamos realizar seu
hemograma, tudo bem? — A mesma questionou com
paciência, então acenei com a cabeça quieta, a
observando amarrar o garrote azul-marinho envolta do
meu bíceps.
Aquela altura, os murmúrios pela sala pareciam vozes
abafadas pelos pensamentos que me rodeavam, como
uma sobrecarga sensorial.
Fechei os olhos apagando tudo ao meu redor,
lembrando apenas do calor de quarenta graus no
interior de Pernambuco, misturado com cheiro do
chambaril na casa de viagem e grama recém cortada.
Os pássaros daqui, não tem o som único que me
maravilhava como no Brasil.
Outra coisa que me lembro foi quando nos atrasamos
pela primeira vez de volta em São Paulo, e choveu tão
forte que para correr até o metrô, pareceu uma
eternidade, com a água batendo nas canelas.
Aquelas memórias que eu gostaria de manter frescas,
estavam lentamente se apagando pelo tempo, e eram

77
meus únicos gatilhos para um resgate de crise.
Tudo seria substituído por uma memória de um grito
agonizante, e do cheiro metálico do sangue em meu
nariz. Se isso é a vida, talvez não fosse para mim.
Não me sinto forte o suficiente para continuar uma
batalha que não foi começada por mim, mas que me
foi dado em mãos para terminar.

— Prontinho. — Mais uma vez a enfermeira me tirou


do torpor, me trazendo aos sentidos de volta.
Retirou a agulha com um algodão pressionando por
cima, colocando um pedaço de micropore
transparente. Ao seu lado, mais algumas amostras de
sangue estavam enfileiradas. — Está tudo bem
querida? Ficou pálida. — Puxou a bolsa dos meus
olhos para baixo, analisando a cor.

— Estou... Muito obrigada — Respondi me


levantando do sofá num ímpeto.

78
— Precisamos sanar algumas questões sobre sua rotina
daqui em diante — Yuriko chegou perto,
questionando-me seriamente — Me acompanhe.

No rooftop do prédio na parte interna era possível


admirar toda a beleza da cidade, vista de um único
ponto. Onde tudo e todos pareciam tão pequenos
quanto as gotículas de chuva que batiam no vidro
resistente.
Uma das mesas de dentro, estava recheada de porções
e iguarias que mesmo parecendo ser ótimas, não me
despertavam o desejo de provar. Minha saliva
amargava só de pensar em tocá-las. — Sente-se por
favor — Apontou para a cadeira a sua frente
— Espero que se sinta confortável. A mesa foi
montada a pedido de Ichiro, mas por questões pessoais
ele não poderá comparecer. Portanto, terei de retomar
os avisos.
Concordei novamente sem muitas perguntas, tornando
a puxar as cutículas do meu polegar de modo ansioso
embaixo da mesa.
79
— Sua mãe foi adotada por nossa família quando
criança. Então judicialmente tem papéis designando
uma de nossas tias, como mãe adotiva de Amélia.
Compreende isto? — Yuriko lançou um sorriso
melancólico para mim.

— O sobrenome de vocês nem está de nascimento. —


Dei de ombros engolindo seco.

— Ela escolheu isso por conta própria quando


completou a maioridade. Usou um sobrenome novo
para voltar ao Brasil. — A mulher me encarou de volta
pintada de um sentimento de comiseração. — Mas
Amélia nos denominou pelos papéis, e conseguimos
coletar provas para manter sua tutela.

Assenti baixando os olhos.


— Então quem a criou? — Questionei num murmúrio,
erguendo as mãos feridas sobre a mesa.

80
— Hanaoka Meiko, a irmã mais nova de Ichiro.
Falecida há dezesseis anos. — Yuriko deu piscadas
seguidas, como se formulasse uma resposta mental.

— Vocês nem sequer notariam a morte de Amélia se


eu tivesse optado em não ligar. — Cerrei o punho em
cima da mesa, rangendo os dentes — Puta hipocrisia
do caralho. — A mulher baixou o olhar totalmente
afligida, como se entendesse o que eu xingava em
minha língua nativa.
Senti meu rosto queimar de constrangimento, mas não
pude evitar.

— Iríamos receber um comunicado. Seu destino seria


nos encontrar de uma forma ou outra. — A mulher
umedeceu os lábios, dando um longo e exausto suspiro
— Amélia nunca se interessou em viver em lugares
com pessoas que não entendessem seu espírito livre.
Dizia que aqui todos eram muito sérios e
conservadores. — A mulher sorriu com os olhos

81
baixos — Fazia todos se apaixonarem, uma
aventureira nata. O seu rosto lembra o dela.

Dei de ombros e cruzei os braços, estalando um


muxoxo.
— Talvez eu seja igual minha mãe, um bicho do mato,
igual vocês a descrevem. — Levantei o tom de voz
com uma certa intimidade, fazendo Yuriko pigarrear
com um chá que ela bebericou após servir para nós.

— Lucy, querida — Cantarolou — Você é a pessoa


mais importante que a gente tem, e sei que possa
demorar um tempo para entender isso, mas você se
difere das outras crianças, e tem algo que elas não têm.
— A encarei desconcertada e com as sobrancelhas
franzidas. — Administrar isso tudo. E que para isso
aconteça, terá que se familiarizar em nossa aldeia,
mantendo um rotina de educação privada com
acompanhamento certo. Será tratada como rainha, e
terá liberdade de ir e vir, mas preciso de sua palavra.

82
— Como? Eu vou morar em uma... O que? —
Aumentei o tom, aturdida.

— Há algumas aldeias pelo Japão que continuam


habitadas. Não será um problema viver em uma. —
Yuriko serviu-se mais do chá, enquanto minha xícara
permanecia intocada. — Os nossos ancestrais
conseguiram mantê-la viva, apesar de muito dinheiro
investido. Todos que moram lá tem empregos ou
mantém a tradição familiar.
Saiba que você deve usufruir de tudo que terá direito a
partir de hoje,
mas há algo que precisa me prometer.

Senti as últimas palavras fazerem minha espinha gelar


e meu coração apertar.
— Odeio promessas — Elevei uma oitava na voz
estreitando os olhos para a chuva fina que caía do lado
de fora.

83
— Tudo bem... Então apenas colabore comigo —
Suspirou — Não mostre seus cabelos a ninguém e
nenhum morador de lá, exceto nossa família. Me
entende?

— Qual é? — Ergui uma sobrancelha ofendida.


Me lembro da primeira vez em que os japoneses riram
da minha cara apontando e soletrando alto quando
cheguei na escola.
G A I J I N.
Por minha saúde, Amélia me instruiu a não sair no
soco com nenhum deles, aliás, eu era a estrangeira ali
e não seria bom para nossa reputação.

— Não é nada pessoal. Apenas uma ordem direta de


Ichiro, então deve cumpri-la. — Yuriko sorriu de
canto.— Você precisa comer... Desculpe-me se tirei
sua fome, eu deveria ter falando depois. — Murmurou
se distraindo ao colocar algumas porções em meu

84
prato com cuidado.

— Não é sua culpa, eu já estava sem fome. — Concluí


inspirando fundo.

— Está o dia todo sem comer, precisa fazer isso. —


Me olhou com serenidade — Faça por mim, não posso
deixá-la desistir.

Cruzei os braços, escorando o corpo na cadeira com


um tom de descaso e os olhos estreitos da comida.
— Há uma grande diferença entre querer e poder.

— Chame como quiser, mas saiba que não irei sair


daqui até você comer. — Acabei cedendo, já que ela
não parecia estar blefando nem um pouco — Você
pode escolher o que tomar no café da manhã, antes de
partirmos.

A encarei, deixando escapar o brilho em meus olhos

85
junto de um meio sorriso.
— Sabe, a comida parece ótima, não quero que pense
mal, mas já que perguntou... Eu amaria um bom e
velho café expresso, com pão na chapa com manteiga
— Respondi com um só folego.

— Tudo bem... Você que manda. — A mulher se


manteve incólume enquanto servia os pratos — Agora
come tudo.

— Você é legal, então já adianto que é inútil insistir


em mim. — Murmurei descontente fazendo-a rir alto
— Ah... Eu amei a magia da exclusividade que você e
sua família têm com este lugar. — Ironizei olhando ao
redor abocanhando um pedaço da comida mal
temperada.

— Na verdade, o prédio é nosso, inclusive é seu. —


Comentou de modo cordial. — Quando completar sua
maioridade, você poderá ter um apartamento aqui ser

86
quiser. Só se quiser.

— Puta merda, isso é surreal. — Arregalei os olhos


quase engasgando — É óbvio que quero, e que seja no
último andar. — Ordenei em tom sarcástico, bebendo
um gole do chá quente sem açúcar, com um fundo leve
e saboroso que provinha de uma harmonia que eu
jamais experimentara.

— Como quiser — A mulher deu de ombros com


indiferença — Trate de terminar de comer, amanhã
será um longo dia.

87
CAPÍTULO CINCO
POTÊNCIA

O quarto grande e mal iluminado estava tão gelado,


que o sopro frio que saía dos meus lábios era revestido
por uma fumaça branca.
Levantei-me da cama, sentindo a cabeça girar, me
deixando um tanto nauseada. O chão sólido de
madeira puxava meus pés como ímãs, os tornando
pesados o suficiente para se manterem imóveis, e a
respiração vinha com dificuldade, como se as forças se

88
esvaíssem com facilidade.
Um silêncio perdurável logo trazia consigo, um grito
de horror, que, vinha de algum cômodo.
Prendi a respiração e fechei os olhos mentalizando, de
maneira que o peso sob meu corpo desapareceu,
possibilitando-me de sair do quarto.
Senti minhas pernas titubearem com um vento que
vinha da porta da frente, junto de gélidos flocos de
neve que entravam até o corredor escuro, iluminado
apenas pela fraca luz da cozinha.
Meu corpo parou estático na porta, e uma cena me
estarreceu, me fazendo tapar a boca com a mão para
evitar um grito.

Todos os móveis estavam quebrados, e Amélia caída


no chão, tinha sua barriga e seu peito expostos, tomada
por um sangue escuro e viscoso que era cercado por
moscas ao redor de seu corpo, enquanto o forte cheiro
de putrefato trazia um ardor insuportável nas narinas.
Já seu corpo, entrava em decomposição como se o
tempo ali passasse de maneira vertiginosa.
89
Sua boca se abria lentamente, e de lá saíam vermes
brancos que caíam pelo chão, arrastando por toda
parte. A pele clara de Amélia ia se desfazendo como
um chiclete cuspido numa tonalidade acinzentada e
suja, rompendo em buracos pelo rosto, e seus olhos
agora eram como bolas de gordura murcha, totalmente
desproporcionais a sua face.
Diante daquilo, corri dali, na tentativa de sair de casa,
sentindo o vômito subir pelo esôfago.
A porta da frente estava escancarada, e o vento forte
trazia consigo a neve que começava a preencher o piso
dentro de casa.
Não estava nevando nesse dia.
Estou sonhando.

Uma respiração forte em minha nuca fez meu corpo


arrepiar, então me virei dando de cara para o homem
alto de cicatriz.
Sua cabeça sangrava, e uma de suas mãos
ensanguentadas até o cotovelo segurava uma faca, com

90
a lâmina de trinta centímetros que reluzia. Igual a que
ele usara para matar minha mãe.

— Te achei — Sua voz rouca e ardente ressoou pelo


cômodo, junto de um riso sardônico.
Sua mão livre apertou meu pescoço com tamanha
facilidade, puxando-o para cima sem esforço para
longe do seu corpo. Debati-me, sentindo forças se
esvaírem até perceber o quão inútil seria, e como
minha mãe fez exatamente isso.
Ele levantou a faca com uma das mãos, apunhalando-
me no peito.

Acordei assustada num pulo, junto com uma tragada


de ar intensa eu passei a mão em meu pescoço,
sentindo o peso sumir.
O céu escuro estava clareando sem nenhum sinal de
chuva, e o relógio digital oval na mesinha de cabeceira
marcava 6:30.

91
Suspirei aliviada, sentindo minha pele suada e meus
cabelos encharcados.

Passei a mão no peito, sentindo a dor da faca, como se


fosse tão real quanto.

Lavei o rosto, sentindo o morno da água me acalmar,


como também levando todo suor que me dava a
impressão de impureza descer ralo abaixo.
Os olhos inchados agora deixavam mais visível as
poucas olheiras pela noite mal dormida, enquanto
estômago roncava, despertando o vazio.
Um cheiro de comida matutina que transpassava pelo
quarto me retomou ao presente, então fui até a
cozinha, com os pés descalços e em passos receosos.
Yuriko estava de pé a frente o fogão, de costas para
mim, vestindo um roupão cor marsala de seda e
mangas longas que realçava sua cintura fina.
— Acordou cedo — Sua voz soou um tanto rouca —
Sente-se. — Ela se virou, segurando a frigideira dando
leves puxões e empurrões.
92
Fui até a cadeira da mesa, me sentando com a postura
relaxada e corcunda, em meio alguns bocejos. — Não
parece ter dormido bem — Yuriko colocou uma tigela
de fundo vermelho e uma manteigueira na mesa,
transferindo o pão torrado para mim e enchendo a
xícara de café até a metade — Você especificou que
gostaria na chapa e não na torradeira... Também não
sabia se gostava de muita manteiga ou pouco, então
deixei que você escolhesse.

— Está ótimo. Agradeço por absolutamente tudo que a


senhora tem me proporcionado.
Devo me desculpar por ontem, sou explosiva e não era
uma boa hora.

— Lucy, você não deve se desculpar por


absolutamente nada. Deve estar sendo tudo muito
difícil. — Estendeu a mão, segurando a minha em
sinal de conforto — Quando nasci, minha mãe faleceu
antes mesmo de poder ver meu rosto.

93
Os médicos disseram que ela estava velha demais para
ter filhos, mas insistiu e deu no que deu. — A
expressão impassível em seu rosto transformou-se
num semblante pesado e melancólico, com o canto
interno das sobrancelhas repuxadas para cima,
enquanto girava o líquido na xícara.

— Sinto muito. — Baixei a cabeça um tanto sem


graça, sem saber o que exatamente dizer sobre aquela
situação.

— Sabe, eu me culpava por tudo, por nascer e até por


continuar viva, mas após eu ter encontrado a fonte
dessa dor, tudo simplesmente cessou. Não pense que
foi fácil, porque é uma luta diária, e você deve
transformar sua culpa e raiva em um aprendizado para
evolução própria.

— Como eu devo lutar? — A questionei aflita. —


Preciso da sua ajuda.

94
Yuriko acenou em concordância, se servindo do pão.
— Você será mentoreada todos os dias até encontrar
seu ponto de força. Não tenha pressa, o processo é
demorado.

Pigarreei regando a superfície crocante do pão com


manteiga, acabando-o em algumas mordidas.

A massa bem fermentada que misturava com o sal


suave da manteiga, simplesmente entregava tudo.
— Isso está ótimo — Dei um riso.
As bochechas de Yuriko tornaram-se um ruge claro,
então dei uma risada descontraída.

— É muito simpático da sua parte. — Murmurou


bebericando o café com o rosto descansado entre as
mãos, aparentemente sem fome. — Sabe... Acho que
vai gostar de uma coisa.

A não ser toda aquela mordomia que a casa de


95
senhorita Hanaoka oferecia, a última porta do corredor
chamava atenção, onde a mesma abriu em um um tom
de mistério.

— Este único apartamento foi construído com a


intenção de haver uma biblioteca particular. —
Colocou a chave da porta, dando duas voltas e girando
a maçaneta alongada.

As quatro paredes eram revestidas por vários livros


enfileirados como uma estante embutida, e mais duas
de carvalho antigo envernizado com voltas em espiral
nas pontas, remetendo ao design arcaico e oriental.
A iluminação amarela e o cheiro de papéis traziam um
ar aconchegante ao ambiente.

Senti um frenesi me tomar conta, onde ali parecia um


paraíso em formato de biblioteca.
— Uau... Isso é demais. — Cocei os olhos e olhei ao
redor quase sem fôlego.

96
— Estes são os poucos livros que descartaram. —
Abraçou os pulsos atrás do corpo, andando
sincronizadamente ao meu lado, pelos dois longos
corredores estreitos.

— Por que eles descartariam essas relíquias? —


Indaguei passando os dedos cuidadosamente por cada
livro e seus títulos em ideogramas.

— Bom... Não eram mais necessários para se


acumularem na biblioteca deles. — Pigarreou para
mim, parando bruscamente entre as estantes, retirando
um livro de capa escura e envelhecida — Está vendo?
Será importante para seu desenvolvimento acadêmico,
então vou lhe presentear com ele.
Foi reescrito por Hanaoka Mahina, a primeira mulher
a ser assumir o poder da família.

Yuriko me entregou com cuidado, mas hesitei,


sentindo uma pontada de culpa.
Não imagino que consigo guardar coisas importantes
97
como essa.
— Senhorita Hanaoka... É muita gentileza, mas não
posso aceitar, isso é uma raridade. — Suspirei
franzindo o cenho — Espero que não se sinta
ofendida... Mas não sei ler nenhum desses
ideogramas...

— ...Você irá aprender, de qualquer forma. — Yuriko


me interrompeu, dando de ombros. Forçando-me a
pegar o livro. — Apenas aceite, precisará de qualquer
maneira.

Suspirei, rendendo-me com um certo receio.


— Muito obrigada mesmo, Senhorita Hanaoka. — Dei
uma semi curvada, agradecendo-a.

— Me chame apenas de Yuriko. — Voltei a encarar,


acenando em concordância.
Admirar aquilo em minhas mãos era como segurar
uma prova viva mesmo após diversas guerras. O que é
98
indescritivelmente precioso aos meus olhos, mas
muito simples para uma das tataranetas.
Não resisti, cheirando as páginas meio amareladas
pelo tempo, com vários desenhos escritos com uma
tinta preta, trazendo o mesmo odor antigo e nostálgico.
A caligrafia era um tanto delicada e hipnotizante, com
detalhes minúsculos. Imagina uma mulher importante
para a história, escrevendo isso a mão... É sobretudo
fascinante.

— Do que se trata? — Questionei em êxtase.

— Mahina adaptou um estilo próprio de técnicas de


Kenjutsu. Portanto, está tudo aí, temos duas cópias
originais e a outra se encontra na residência dos
Hanaoka. — Deu um sorriso calmo.
Um toque eletrizante e ensurdecedor soou alto, então
Yuriko retirou um telefone de um pequeno bolso do
roupão. — Só me dê um minutinho...

99
Atendeu-o, virando se de lado com atenção e uma voz
baixa quase murmurando.
Rodei pela biblioteca, examinando cada título, agindo
como se entendesse do que se tratava.
Claramente ali não era meu lugar, inalcançável de
certa forma, e indecifravelmente lindo a olhos leigos.
Talvez por isso a minha reação maravilhada não
chegasse ao tom de indiferença de Yuriko para tudo
isso.
Por outro lado, eu também havia de imaginar como
seria o lugar no meio do nada no qual eles me
jogariam, supondo que, na verdade trabalhem para o
homem que matou minha mãe e isso seja apenas algo
para me atrair sem questionamentos, para no fim me
mandarem para algum orfanato, ou um prostíbulo
clandestino.
Se não, por que esse tempo todo minha mãe não
contou que sua família adotiva era podre de rica?
De qualquer maneira, eu não teria escolhas.

100
— Querida, está na hora de partirmos. — A mulher
concluiu desligando o telefone, e me encarando.

Confiança não seria a palavra certa para definir o que


seu olhar transmitia, mas isso me confortava o
suficiente para esquecer a história do prostíbulo e
apenas aceitar o meu destino.
De certa maneira, senhorita Hanaoka parecia entender
o que eu sentia sem precisar perguntar muito.

A estrada de terra úmida com pedras roladas,


balançava o carro, que, subia nos morros altos e
arborizados pela região de kanto, nauseando-me com
as camadas quentes da roupa e a boina breton que
usava para esconder os cabelos.
Ichiro praguejava para o velho que dirigia, o quão
difícil estava acessar aquele caminho, sem ter a
permissão de asfaltar e manter estradas, por questões
101
complicadas. O velho japonês corcunda apenas
concordava com a cabeça dando algumas risadas
cômicas com cada xingamento que Ichiro dava.
Minha cabeça estava latejando de tanto ouvir uma
língua, na qual eu deveria traduzir mentalmente antes
de deglutir e compreender do que se tratava.
Após quase uma hora e meia, o carro passou por uma
pequena ponte, feita com pedras empilhadas como
uma albarrada de meio metro. Onde abaixo havia uma
afluente, e por entre as árvores, um torii vermelho de
longe que ocupava o pequeno espaço de forma
aleatória, e seus pilares eram rodeados por tiras de
papéis quadriculados na vertical.

— Estamos chegando, Lucy.


Yuriko me retomou dos pensamentos, encarando-me
com um sorriso raso nos lábios.
Os abetos japoneses cessaram pelo caminho, e no
planalto de onde o carro andava, abaixo dos meus
olhos, uma depressão dentro da montanha se estendia

102
com um vilarejo e um vasto campo limpo, de grama
verde clara.

As casas eram de madeira e algumas pequenas demais,


outras maiores com carros e motos estacionado em
frente.
Todas as construções eram muito bem preservadas, tão
pouco antigas. Com certeza era resultado de muitas
reformas para manter o lugar com sua arquitetura
oriental e tradicional.

A maior e incomparável casa dali, se encontrava do


outro lado da montanha, parecida com um palácio
imperial de filme, mas tendo apenas dois andares.
Localizando-se poucos metros acima das outras, era
separada por uma estrada íngreme e reta, que,
acompanhava as escarpas da depressão com inclinação
de sessenta graus até a subida.
Quando o carro parou na entrada, era possível ver os
detalhes que levavam até a casa, tendo o telhado

103
alongado e o chão preenchido por pedras largas e
naturais que o texturizavam, conectando até a escada
de cinco degraus para o deque da porta corrediça
principal.

Os lados de entrada eram decoradas com arbustos


perenes, e a grama bem cuidada, e as portas
deslizantes externa tinham um vidro fosco que
simulava o papel de arroz, preenchendo-as.
Toda a beleza surreal, minimamente estruturada com
detalhes antigos me sufocavam com seu tamanho
esplendor.
Se era ali que eu viveria, então já havia atingido o
ápice da vida.

— Vou morar aqui mesmo? — Indaguei com


excitação, mas Ichiro me olhou, respondendo por com
indiferença.

104
— Exato — Seus olhos me faiscaram preocupados —
Algum problema?

— Não, claro que não... — Gaguejei vislumbrando de


dentro do carro.

A porta de correr se abriu, e de lá, uma mulher de


aparência muito velha saiu com passos lentos,
descendo os degraus com cuidado, lançando um olhar
curioso em direção ao carro. Suas mãos estavam juntas
à frente ao corpo, então ela se manteve parada ali nos
esperando.

Ichiro se virou para mim de modo sério, como se fosse


dar um sermão.
— Mostre respeito quando se apresentar. — Concordei
silenciosamente com a cabeça, me sentindo um tanto
repreendida.

105
— Estou pronta. — Concluí para mesma, em um curto
suspiro fundo.

CAPÍTULO SEIS
A CASA DO VILAREJO

106
A velha me lançou um olhar de baixo para cima, com
seus olhos enrugados, vincando as sobrancelhas ao ver
meus cabelos. Seu semblante sério era amedrontador,
pintado em um tom de indiferença, diante de minha
presença ali.
Ela vestia um quimono estranhamente simples, de cor
preta com uma faixa cinza circulando sua cintura
larga, e os cabelos grisalhos presos num coque
apertado.
Ichiro chegou perto da mulher, a cumprimentando com
devido respeito e cautela.

— Esta é a filha de Guerra Amélia. — Ichiro se


direcionou até mim, pigarreando e afrouxando a gola
apertada em seu pescoço, com certo desconforto.

Andei em direção a mulher de estatura baixa, e semi-


curvei o corpo, cumprimentando-a com os braços

107
relaxados.
— Prazer em conhecê-la, senhora Hanaoka. — Proferi,
olhando no fundo dos seus olhos castanho-escuro, com
receio em desviá-los — Me chamo Guerra Lucy.

Um silêncio mortal pairou entre nós, preenchido


apenas pelo barulho repetitivo da colisão de asas dos
grilos no mato, e o vento no dia claro seguido da
chuva de inverno.
— Sou Hanaoka Hidemi, muito prazer. — Seu
semblante permaneceu sério, constrangendo-me com
seu conservadorismo — Lamento sua perda, Amélia
era como nossa filha, e certamente está orgulhosa por
sua valência. — A voz rouca e fria como inverno me
soou familiar, com palavras ditas num sotaque puxado
e forte de interior. Logo lembrei-me, que ela era a
mulher que havia salvado minha vida naquela
madrugada.

Senti meus olhos lacrimejarem, de forma que não pude


hesitar, caindo de joelhos, apoiando as mãos no chão
108
frio de pedra e baixando a cabeça junto.

Ouvi um muxoxo de sarcasmo por parte de Ichiro, ao


meu lado.
— O que ela está fazendo? — Sua voz grossa e rouca
murmurou para Yuriko, mas permaneci estática.

— Gostaria de agradecer imensamente por me aceitar


em sua casa, prometo ser eficiente. Tenho uma dívida
muito grande com a sua família. — Repeti tudo num
fôlego só, com a cabeça direcionada para seus pés, e
ainda ajoelhada.

— Levante-se, filha. — Ergui-me, observando sua


expressão queimar de compaixão e constrangimento
— A verdade é, que, somos nós que temos uma dívida
com você.
Me acompanhe, mostrarei sua nova casa.

— Muito, muito obrigada mesmo — Agradeci

109
novamente me enrolando nas palavras enquanto a
seguia, retirando o sapato no degrau abaixo da entrada,
e calçando as suripas.
A casa tinha um formato retangular, com uma espécie
de jardim ocupando uma parte interna do terreno,
junto de arbustos perenes que acompanhavam o design
arcaico da entrada, marcado por uma trilha de pedras
texturizando o chão que levavam até uma pequena
ponte, onde abaixo se estendia um lago esverdeado,
com algumas carpas que nadavam livremente.
As únicas plantas que eu reconhecia do jardim, eram
as árvores de Ume, que ainda não estavam floridas
pelo início da estação, e os pinheiros budistas baixos
que dava um ar calmo e sério. Os crisântemos rosas e
os juníperos, deslumbravam sua aparência afunilada e
bem aparada, junto das prímulas japonesas que já
desabrochavam.
Amélia sempre que via prímulas magentas, levava
uma muda para casa, cantarolando em como a cor
combinava com seus olhos. Dizia que elas

110
significavam o amor duradouro, sendo a sua favorita.
Tudo aquilo era intocável, e devia dar um trabalho do
caralho para manter tudo tão lindo.
Dois andares eram separados por uma escada de
madeira, e em cada cômodo, uma imensidão
inexplorada.
Acompanhei a mulher com passos lentos até o meio do
jardim, onde passava para o lado oposto da casa,
separado por portas corrediças.

— Esta será sua área de treino. — Levou-me até o


lado externo, onde havia um campo grande e vazio,
com a grama verde bem aparada.

— Área de treino? — Entoei franzindo o cenho,


encarando-a confusa.

— Nossa família provém de uma casta social


importante, portanto, mantemos a arte da espada viva,
com técnicas adaptadas por nosso clã.

111
Serei sua mentora e tomarei suas aulas de kenjutsu.
Aqui é onde treinará, após concluir seus estudos
teóricos. — Falou tudo num fôlego só, voltando para
os corredores dentro da casa, de forma que eu precisei
apressar os passos para alcançá-la — No entanto,
deverá ler muitos livros para compreender toda a
essência da luta. — Parou bruscamente no meio do
caminho, virando para me encarar.

Tropecei quase levando-a junto ao chão, aturdida com


cada detalhe impecável da casa.
— C-claro — Gaguejei, sentindo meu rosto corar e
minha pele ferver de vergonha.

Eu me sentia intimidada com eles, mas Hanaoka


Hidemi havia tomado o lugar de Ichiro no quesito de
pessoas que me arrepiavam, mas passavam segurança
simultaneamente.
— Ótimo — Suspirou aliviada — Precisamos tirar sua
medida para o quimono. Temos uma especialista na

112
aldeia, e sua família as fabricam para nossas mulheres,
há séculos.

Paramos em frente a um dos cômodos ao oeste, que


dava de frente para o quintal, então Hidemi abriu a
porta corrediça, fazendo sinal para entrar.
O quarto era grande, com apenas um colchão coberto
por uma manta branca, e uma estante de madeira com
todos os livros que pedi, estando todos intactos. Uma
pequena mesa de centro de canto, com um relógio, e o
tatami de cor creme, que lembrava muito o que
usávamos em casa, só que mais novo e de qualidade
superior.
— Pode se acomodar, aqui será seu quarto. — Deu um
sorriso entrando — Após isso, Yuriko lhe apresentará
o vilarejo, e o dojô onde as meninas treinam.

Droga, estava demorando.


Não é novidade que toda garota japonesa que me
recebeu nesses últimos anos aqui, me tratou como uma

113
estrangeira inútil, principalmente em meios
acadêmicos. Não seria diferente com elas,
absolutamente não.
Primeiro vão olhar de cima abaixo e cochichar com a
amiga do lado, enquanto te encara com rabo de olho.
Depois disso, não contente, as duas vão dar risada
sincronizadas e encarar seu cabelo branco esquisito,
com uma expressão enojada.
Amélia brigava comigo porque ficava em casa
mofando, e não fazia amigos novos, mas isso
claramente nunca me ajudou.
— Ótimo. — Respondi engolindo seco.
Coloquei a mochila no gancho da parede, tentando
evitar mostrar qualquer desleixo como primeira
impressão.
O clima da casa em si, era tranquilo e agradável, com
o ambiente leve. Estar ali, era como morar em uma
época distante, mas num lugar que não me
pertencesse, por mais confortável que fosse. Talvez
por questão de adaptação cultural, e se eu quisesse me

114
encaixar numa rotina puxada para alcançar meus
objetivos, deveria haver constância.

— Termine de se acomodar, e vá até a sala de entrada.


— Hidemi pigarreou saindo do quarto, me deixando a
só, em pensamentos — O dia será longo.

*
Uma mulher alta esperava no corredor principal, com
as mãos atrás do corpo e o queixo erguido. Seu cabelo
grande e escuro, estava preso num rabo de cavalo, e de
longe ela me lançava um olhar feroz.
Andei acanhada na ponta dos pés até a mesma, que
parecia mais velha que Yuriko, com traços bem
parecidos. Seu maxilar inferior e as maçãs do rosto
eram bem salientes, com um semblante intimidador.
Vestindo uma calça escura, e uma jaqueta de couro
marrom apertada, que, demarcava seus bíceps grandes
e definidos, ela fez um gesto com os dedos para chegar
mais perto.
Ao lado esquerdo em seu pescoço, a gola tampava
115
uma tatuagem grande, preenchida por uma pétala de
ume, banhada por uma lua crescente acima e um
círculo externo, igual ao símbolo de clã demarcado no
papel da carta que Amélia me entregara naquele dia.
A mulher devia ser a mais velha dos Hanaoka,
consequentemente, mais parecida com Ichiro. Ela
transparecia uma superioridade que me dava arrepios,
e ao meu olhar, parecia a mais rebelde das irmãs, se é
que pararia por ali.

— Prazer em conhecê-la, Lucy. — Estendeu a mão


com as unhas roídas e sujas de terra, então retribuí
apertando-a, com um curto sorriso tímido. — Me
chamo Hanaoka Hisaya. A mentora Hidemi, me
convocou para lhe apresentar a aldeia, então espero
que esteja de acordo. — Seus olhos brilhantes e
confiáveis me analisaram como todos fizeram ao me
ver, estagnados ao ver meu cabelo.

— Claro... — Dei de ombros, transparecendo minha

116
falta de vontade.

Acompanhando-a em total silêncio pelas ruas estreitas


de terra, Hanaoka Hisaya cumprimentava os
moradores com certa intimidade, conversando
paralelamente com as pessoas que andavam para lá e
para cá, realizando os trabalhos de maneira
automática.
Toda aquela sobrecarga sensorial para mim era
demais, os olhares que me estranhavam e a maldita
boina que queimava meu coro cabeludo me irritavam.
Não pude evitar, buscando algum lugar para escorar e
respirar fundo, numa necessidade de um ponto focal
qualquer, para distração.
Meus pés formigavam e minha respiração
desacelerada parecia não caber nos pulmões, de modo
que eu sentia meu peito quase estourar.

— Está tudo bem, senhorita Guerra? — Interpelou


receosa. — Ficou pálida. — Sua voz ecoou em minha

117
cabeça, então engoli seco, enxugando o suor que fluía
em minha testa.

A visão voltou-me aos poucos, retrocedendo a


vertigem, então passei os olhos pelas tendas, lendo as
letras em Hiragana e Kanji, escritas em tinta nanquim
que se tornavam mais nítidas, sinalizando o comércio
de alimentos, peixaria e roupas para acertar tamanho.
Tudo de forma simples, e com um movimento calmo
de interior.
Não há com o que se precoupar, está tudo bem.

— Não tomei meus remédios... Talvez seja a falta de


anfetamina no corpo.

— Aqui você tem tudo que precisa, compras básicas,


farmácia e principalmente, um dojô para treinar. —
Seus olhos me faiscaram com um ar sério e um sorriso
presunçoso surgiu em seus lábios — Eu iria te
apresentar o dojô, mas se não se sente apta, deve

118
repousar até melhorar.

— Estou bem, sério. — Concluí suspirando.

Hisaya e eu, subimos até o topo da montanha onde


terminava o pequeno vilarejo, entrando em um
caminho alternativo de mato, que era aparado pela
trilha de terra que demarcava para algum lugar acima
da aldeia.

O silêncio marcado em sons, me tateava por dentro,


trazendo de volta os momentos de Amélia, e os lugares
que ela me prometera levar. Agora, não passava de um
ponto irrelevante e doloroso.
— Chegamos — Hisaya abriu caminho, subindo a
escada longa, onde surgia aos poucos, um grande dojô,
com portas deslizantes iguais aos da casa, e uma
entrada bem decorada com árvores perenes e pedras
roladas preenchendo todo o chão.

119
Fomos até lado oposto do lugar, onde haviam cerca de
seis meninas aparentando a mesma idade que eu,
alinhadas com certa distância, e todas com a postura
ereta, segurando arcos tão grandes quanto. Cada uma
vestia um quimono azul-marinho, com pregas em toda
sua frente e a parte superior eram peças brancas, com a
manga até o meio braço.
— Meninas. — A voz ardente de Hanaoka ecoou pelo
lugar, fazendo todas baixarem os arcos, olhando em
nossa direção — Esta é Guerra Lucy.

As garotas cochicharam enquanto me analisavam,


junto de alguns murmúrios reforçando o sobrenome
Guerra, quase que inaudíveis, não tendo tom de
sarcasmo, mas sim de algo intrigante.
Cerrei os lábios, fingindo não notar a indiferença, mas
um calor me subiu fazendo que custasse o tom
avermelhado em meu rosto.
Não havia tomado meus remédios.

120
A única que se manteve incólume, foi uma garota da
última fileira de alunas, mantendo seu olhar curioso
para mim com uma expressão ilegível de longe.
— Vocês são melhores que isso. — Hisaya murmurou
apoiando as mãos na cintura, decepcionada — Estão
dispensadas, não quero mais ninguém aqui hoje. — O
silêncio constrangedor reinou, então todas as outras
saíram murmurando algo enquanto riam.
A menina que mantinha o olhar estático aos meus,
veio andando em direção. — Lucy, gostaria de lhe
apresentar a senhorita Shinkai. — Completou com um
curto aceno.

De perto, pude ver que em sua maçã do rosto ao lado


direito, havia uma pintinha minúscula, que dava um
charme para si, e o seu queixo fino em V, trazia a
harmonia perfeita para seu rosto angelical e feminino,
com um formato hexagonal.
Não deixei de notar que seu cheiro tinha um aroma
frutado e doce, bem equilibrado, o que me

121
impressionou, porque todos os japoneses que conheci,
não suportavam perfumes marcantes.
— Prazer em conhecê-la senhorita Guerra, eu sou
Shinkai Minako. — Acenou a cabeça com um sorriso
singelo, sendo impossível não admirar sua beleza
hipnotizante — Irei te auxiliar na iniciação no Kyudo.

A jovem me apresentou o lugar, explicando detalhe


por detalhe sobre, até os materiais que originalmente
compunham os arcos e flechas, e como é uma das mais
antigas e importantes artes marciais, contemplando seu
fascínio pelo mesmo em forma de palavras.
Em sua demonstração, sentei-me ao lado de Hanaoka,
em um dos bancos de madeira que ficava de frente
para a atiradora, e o terreno de cerca de 30 metros,
observando cada movimento de Shinkai com atenção.

Os seus pés, distantes dos outros virados para fora,


formavam uma base fixa, com cotovelos abertos de
um modo harmônico, e a mão esquerda enluvada,

122
puxando a corda do arco acima dos olhos.
Sua respiração era retida em vantagem de sua mira,
soltando a mão, de maneira que a flecha zuniu aos
nossos ouvidos, cortando o vento com força, e quase
que instantaneamente, estava fincada ao meio do alvo.
A garota Ártemis fazia aquilo parecer fácil, e de certa
forma, sedutora.

— Isso é demais. — Vociferei impressionada,


tentando processar uma reação adequada — Pensei
que seria você que me ensinaria Kyudo.

— Como pode ver, senhorita Shinkai possui técnicas


avançadas para sua idade. Ganhando todas as
competições desde os dez anos, e com certeza é minha
melhor aluna, mas não posso falar perto das outras. —
Pigarreou, soltando a mão que segurava o próprio
queixo de forma crítica — Estarei fora por alguns dias,
portanto ela lhe auxiliará na iniciação dos estudos
teóricos e práticos com o Kyudo clássico. Entende?

123
Engoli seco virando para encarar a garota de volta, que
ajeitava outra flecha ao meio do arco, prestes a repetir
o movimento.
— C-claro... Mas você irá demorar para voltar? —
Indaguei acanhada, puxando a cutículas do dedo, de
maneira ansiosa.

— Quanto a isso, não deverá se preocupar. — Hisaya


me respondeu de maneira fleumática — Irei para a
capital terminar uns negócios, e depois farei uma visita
a Kyoto. Estarei de volta no próximo fim de semana.
— Soltei um suspiro indiferente — O que foi? Não
precisa temer, Shinkai é uma boa pessoa, vocês duas
se darão muito bem.

124
CAPÍTULO SETE
SANGUE DO SEU SANGUE

Os feixes de luz clara da manhã, transpassavam o


ranma junto da sonata aguda dos pássaros, me
despertando do sono profundo se repetindo num ciclo

125
incessante, que me assombraria por muito tempo.
Sussurros chegavam de maneira audível ao lado de
fora, então pude reconhecer uma das vozes que soava
pneumática, sendo da mentora Hanaoka Hidemi.

— Lucy, você tem cinco minutos para aparecer na sala


de estudos. — Seu tom de voz ergueu uma oitava por
trás da porta, fazendo-me bufar — Shinkai está te
esperando.

A menina do Kyudo de ontem que irá substituir Hisaya


por um tempo.
Gelei estática, dando um sobressalto da cama com os
olhos estalados.

Shinkai permanecia sentada à mesa longa e


envernizada da biblioteca, seus olhos finos e puxados
acompanhavam as palavras com a ponta do dedo,
folheando as páginas amarelas de um dos livros com

126
destreza.
— Com licença... — Murmurei baixo, de modo que
ela virou o rosto em minha direção, deixando um
sorriso raso surgir em seus lábios rosas e carnudos
com formato de coração.
Sentei-me, observando suas características de frente,
buscando alguma falha que eu pudesse a reprovar,
falhando miseravelmente.
O seu rosto era quase uma pintura renascentista, e toda
vez que ela me olhava, eu ficava estática e sem reação
alguma.

— Vamos começar pelo confucionismo, que foi


aderido pela cultura japonesa, sendo um fundamento
básico para seu desenvolvimento. — Umedeceu os
lábios, colocando uma mecha do cabelo atrás da orelha
— Seu estado de equilíbrio espiritual e psicológico,
deverá ser muito estudado antes de partirmos para a
prática, mentoreando sua estabilidade física.

127
Ela gesticulava com confiança em meio as palavras
formais, enquanto dava leves arqueadas com suas
sobrancelhas finas.
O sol direcionava até ela, como se a atenção fosse toda
para si, de modo que a claridade fazia seus olhos
brilharem como jóias, sendo hipnotizante até o jeito
em que lecionava sem nenhum erro na dicção.
Eu já sabia da maioria das coisas que ela contava, e
lido boa parte de suas indicações, mas ainda sim
poderia ficar horas seguidas ouvindo seu sotaque
puxado, como uma música aos meus ouvidos.
— Acertar o alvo não é prioridade, e sim uma
possiblidade de repensar sobre si internamente. Talvez
uma maneira de olhar de um jeito diferente de como
você lida com a vida. — Shinkai Minako fixou-se em
meus olhos e parou por um segundo, virando a cabeça
um tanto curiosa — Senhorita Guerra, desculpe-me
perguntar... Mas qual é sua relação com os Hanaoka?
— Sua voz angelical e fina soou desprevinida num
ímpeto.

128
— Quer saber a verdade? — Cheguei mais perto
fazendo um suspense sarcástico, então ela arregalou os
olhos, encolhendo-se para ouvir — ...Nem eu sei,
talvez um tipo de dívida familiar, ou algo assim.

Lancei um sorriso descontraído para a mesma, que


encarou minha boina breton, com uma curiosidade
embebida no semblante, antes de se voltar a mim.
— Sua mãe era Amélia Guerra?

Senti um nó em minha garganta se fechar, então um


torpor me cegou numa memória quase tocável.
Minha barriga gelava como se algum parasita
habitasse em meu cerne. Provavelmente ela já sabia de
tudo.

— Como a conhece? — Mordi o lábio inferior,


sentindo algo me acentuar no fundo do âmago aos
poucos.

129
— Ela é uma inspiração para mim. — Seus olhos
agora brilhavam mais, e um sorriso semi aberto deixou
sua expressão entorpecida, como um açoite de
emoções. — Amélia representou o dojô da aldeia por
anos na categoria, destacando-se nos campeonatos.

Franzi o cenho e estalei os olhos, como se levasse um


baque.
Ela não sabia de nada do que aconteceu em relação ao
assassinato, mas conhecia minha mãe melhor que eu.
Eu estava louca, ou o quê?
— C-Como assim? — Senti uma gargalhada nervosa
surgir aos poucos.

— Veio passar as férias no Japão? — Indagou num


tom de voz calmo, que me assolou por um momento
— Deveria estar visitando lugares monumentais... Não
empilhada em livros.
Deve visitar aqui direto, já que seu sotaque é bom.

130
Eu sentia a energia calorosa e extrovertida da garota
como algo positivo, até porque ela não parecia alguém
com quem eu devesse temer em dizer algo errado.
Shinkai era a primeira garota que consegui trocar
algumas palavras em anos, desde que cheguei, então
não poderia estragar tudo e contar que minha mãe não
é uma arquiteta rica, e está esperando-me no Brasil
com vida.
— É quase isso — Fiz um muxoxo entediado — Não
acho que voltarei tão cedo.

Não que eu quisesse retornar a minha casa, mas


bastava apenas um único motivo para eu ficar.
Anos de treino valeriam o desejo incontrolável que me
dominava por absoluto, com o gosto amargo da raiva e
o asco, que me faziam odiar a cada momento mais o
homem que eu deveria eliminar. Como eu poderia
descrever o prazer que seria a sensação de retirar os
olhos da face dele, ou amputar seus braços e pernas

131
sem piedade, o deixando apodrecer com as feridas
abertas até a morte.
Princípios não existem quando o motivo é justo.

— Você não parece bem — Shinkai me tomou do


torpor, com a voz calma — Tem algo que está lhe
machucando de dentro para fora, e é visível... — A
encarei no fundo de seus olhos, tentando evitar outra
crise.

Mordi o lábio inferior e baixei a cabeça, silenciosa.


— Está errada quanto a isso. — Respondi acertiva,
erguendo a cabeça — Não há dor, raiva e nem
ressentimentos.

Shinkai não pareceu ter dado nenhuma credibilidade


em como eu gesticulava, mas sua expressão de
incomodo alheio era indizível e marcante. Ela estava
certa de minha mentira.

132
*

O quimono violeta definia minhas curvas de modo


gracioso, se assemelhando com meu tom de pele
pálido.
— Por que eu preciso colocar isso? É alguma
comemoração especial? — Questionei reprovando a
vestimenta, com as sobrancelhas erguidas e os braços
grossos cruzados.

— É uma yukata... É comum usarmos no interior.


Nem está apertado... Melhor do que conversar com a
sua bisavó vestida numa camiseta de banda toda
rasgada. — Yuriko deu de ombros olhando um relógio
rose no pulso, que combinava com sua roupa em cores
claras — Já é hora, Hidemi se encontra no Kamiza.
Me acompanhe.

O quarto sagrado ficava ao lado leste, um andar acima


da casa, de frente ao campo de treino, sendo a parte

133
mais alta. A iluminação dentro do cômodo, clareava
uma prateleira de madeira, igual a um torii, embutida
na parede, com um pedaço grosso de corda de palha
trançada, preso acima. Dentro, havia um papel
retângular com algo escrito na vertical, preso no centro
da parede. E ali, era onde se encontrava uma katana,
com a bainha para cima e presa a um gancho.

— Sente-se — Hidemi sentada de frente para o altar,


se virou para mim, indicando a mão para o tatami a
sua frente.

A senhora Hanaoka, me encarava com as pálpebras


pesadas, e um certo ar enigmático que pesava o
ambiente sagrado.
— Não é ético de minha parte lhe trazer aqui, mas há
um assunto de extrema urgência que precisa saber. —
Completou ajeitando a postura — Toda vida há um
início, portanto há de ter um fim. Creio que gostaria de
ouvir um pouco sobre o começo de tudo.

134
Sentei-me em cima dos joelhos dobrados,
concordando calmamente.
— Amélia era orfã de uma casa cristã no Brasil, e ao
completar nove anos, sua serventia fora trocada por
dinheiro e sede de poder. Vinda através de um
embarcação clandestina, seu tio-avô, Murakami Goro,
a trouxe em uma de suas últimas viagens até o
vilarejo, a fim de cumprir a aliança entre clãs, o que
evitaria um genocídio. — Pigarreou, franzindo o
cenho — Sua tia-avó, Hanaoka Mayako, a resgatou
sem pensar duas vezes. Era repugnante a situação em
que seu tio havia a deixado. — Aquela altura, não
sabia como reagir, apenas concordar cabisbaixa —
Seus olhos são grandes como os dela, e possuem um
rancor visível. — Analisou-me com certa curiosidade
— Quer matar quem a assassinou, isso é justo, e não
irei impedi-la, mas deve reconhecer, que, tudo o que
aprender aqui, deverá ser manejado com tamanha
sabedoria, equilibrando a necessidade da defesa e do

135
ataque.

Mordisquei o lábio, revivendo a sensação de vazio que


parecia ser estimulado por cada memória guardada.
O semblante fleumático de Hanaoka Hidemi, me
deixou pensativa com suas palavras, e certamente
constrangida.
— Lucy. — Fez uma pausa longa, me analisando —
Você é motivo de ser louvada, nasceu para liderar.

Senti um aperto no esôfago, e um arrepio gelado me


subiu a cabeça.
Eu poderia chutar ser uma brincadeira de mal gosto,
mas o semblante da mulher me dizia o oposto.
— Se sou motivo de louvor, por que não moro na
capital? Preferem me esconder aqui no cú do judas,
levando uma vida bizarramente arcaica e feudal.

Um riso cômico e pneumático ressoou pelo cômodo


sagrado, enquanto seus olhos puxados e enrugados me

136
examinavam com destreza.
— Se morar em Tokyo, estará na boca do predador.
Aqui você ficará segura, e irá honrar as duas partes de
sua família.— Umedeceu os lábios finos e secos.

— O que sugere com esta informação? — Inclinei a


cabeça um tanto cética.

— Amélia sempre foi ligada à Hiro de uma forma


diferente. Desde novo, ele tinha muita paciência para
entender cada palavra dela, e ensinava frase por frase.
Os dois tinham uma conexão que transcendia, mais
que crianças inseparáveis, e quando ficaram mais
velhos, algo aflorou. Não era paixão, mas sim, amor.
— A velha parou de falar e respirou fundo. —
Murakami mantém contato comercial com o tráfico
humano, então na época conseguimos resgatar
algumas garotas. Ela era a mais nova e estava com a
saúde comprometida, por uma febre que havia
contraído ao chegar, mas Hiro cuidou dela a todo

137
momento, sempre esperando sua melhora.
Amélia se mostrou muito experiente na arte do Kyudo,
e foi muito importante para os campeonatos, mas algo
a fazia se lamentar, por não estar onde uma garota da
idade dela deveria, em uma família normal. Então
quando completou dezenove ela resolveu voltar para o
Brasil, mas um ano depois voltou para acertar algumas
responsabilidades, e foi quando tudo aconteceu.
Deixou a aldeia muito rápido, no meio da madrugada,
como se algo urgente tivesse acontecido. — Hidemi
lançou um olhar sincero e calmo, talvez preocupada
como eu reagiria.

— Ela falou algo depois? — Interpelei franzindo o


cenho. — Disse o que era de tão urgente?

— Nossa hipótese inicial, era de que, ela descobrira a


gravidez cedo e foi embora antes que percebêssemos,
já que, ela sabia que Hiro iria pedi-la em casamento e
mantê-la aqui no país, caso ele descobrisse ter uma

138
filha. — Uma pontada em meu peito me assolou, ainda
tentando conectar cada palavra. — Comparamos uma
amostra de sangue doado de Hiro, e o seu. Os
resultados confirmaram essa suposição, você é a filha
legítima de Hanaoka Hiro. — Exclamou mudando
foco de visão. Encarando meu cabelo, que media nos
ombros. — Está em seu sangue, esses cabelos
brancos... — Engoli seco com as mãos trêmulas e
suadas.

Parei de puxar as cutículas dos meus dedos, quando


percebi que estavam sangrando.
— Eu não entendo... — Baixei a cabeça, constrangida.
— Quando será a audiência?

— No fim do mês, mas antes ele te encontrará em uma


reunião dos advogados pela custódia antecipada. —
Hidemi acenou, concordando confiante.

Meu rosto latino-americano não deixava explícita

139
minha ascendência nipônica, ao qual eu estranhamente
não parecia surpresa, já que, antes de morrer, Amélia
me pedira para mostrar uma marca de nascença para
Hiro. Ligando os pontos com a história de Hidemi, faz
sentido.
Eu lembrava minha mãe em todos os aspectos, então
não conseguiria tirar uma base de como meu pai era,
apenas olhando para mim.
Talvez a agressividade impulsiva, ou até mesmo os
aspectos maquiavélicos controlados por remédios.
Coisa boa não é.

— Eu deveria ser exigente, e esperar mais tempo antes


de ter contado tudo isso, mas seu pai voltará em
poucos dias de uma conferência em Kyoto, então
deveremos adiar, pois o papel judicial deverá ser
analisado e assinado por Hiro.

Senti um rubor quente invadir meu rosto, então


mantive concordando quieta como um robô, apenas

140
abstraindo.
— Ele sabe que tem uma filha?

— Ainda não, mas Hisaya foi até Kyoto o informar


pessoalmente. — Respondeu com a voz rouca — Por
isso terá aulas teóricas com Shinkai Minako.

— Qual é o real problema aqui? — Indaguei com a


voz falha e baixa, ignorando aquele nome — Estão me
preparando para uma guerra?

— Quem mandou matar sua mãe foi Murakami Goro.


O homem que apenas você, conseguirá matar, é o seu
tio-avô. — Senti um choque fazer meu peito bater
mais rápido, quase saltando pela garganta — Ele irá
tentar te matar de qualquer maneira, custe o que
custar.
É uma discórdia antiga, que só você poderá terminar.

— Por que apenas eu? Temos uma manada de

141
treinadoras no vilarejo.

— Há uma profecia muito antiga, e cremos veemente


que você é a emissária.
Seu bisavô Hanaoka Takeo, meu falecido marido, teve
um filho com uma das mulheres de um clã rival.

— E o que houve com ele? — Engoli seco, chegando


mais perto.

A expressão de Hidemi parecia ilegível, sem algúria.


— Já ouviu falar de seppuku? — Concordei, engolindo
seco com os olhos arregalados — Seu filho bastardo
demorou para me perdoar, mas tentará de tudo até
conseguir tomar o poder, que, segundo suas palavras
equivocadas, é dele.

— Se é algo necessário, o farei, mesmo que leve anos.


— Acenei confiante, mesmo sabendo que eu deveria
matar muitos até chegar em um só.

142
— Saiba, Lucy, que isto é uma passagem para sua
verdadeira face. Só você poderá prevalecer a paz com
sua força, esse é o seu destino. Deve aceitá-lo como
seu principal propósito.

Ainda sentada sobre os joelhos, deitei meu corpo


como se louvasse uma divindade, aceitando servir de
instrumento para começar e terminar uma missão.

143
CAPÍTULO OITO
O POÇO DAS CEREJEIRAS

Todos os dias, Shinkai Minako aparecia na porta da


residência, com uma roupa rebelde e colorida para dar
suas aulas teóricas. Segundo ela, calças largas e
correntes grandes no pescoço, supostamente 'estavam
na moda', conforme eu perguntava. Ela sempre tinha
um assunto diferente para impressionar Hidemi,
principalmente sobre comida e pesca no lago ao redor
das montanhas vizinhas, enfatizando que a
144
fermentação do peixe é importante para a degustação
ser uma experiência inesquecível.
Tudo que a garota contava, tornava-se cativante, de
forma que Hidemi confiava em me deixar sair apenas
com ela aos redores da aldeia.

— Vamos ao poço das cerejeiras treinar. — Sugeriu


com um sorriso encantador, que ia de orelha a orelha,
como se conquistasse uma medalha de honra ao
finalmente me convencer da preguiça, e ir caminhar
por meia hora no Sol quente às três da tarde — Não é
longe, e se andarmos rápido demorará menos.

Em todas essas aulas sobre Kyudo, acabávamos


desviando o assunto, e terminando sobre como
poderíamos escapar daquele lugar se quiséssemos.
Shinkai me fazia rir de pequenas coisas, sempre com
um humor invejável, vendo pontos positivos em tudo,
o que, de certa maneira, me deixa confusa em como é
possível ser tão amável quanto. Seus olhos divagavam

145
entre o cômico e a angústia, com uma personalidade
totalmente oposta a minha, e isso me fazia gostar de
sua presença mais ainda.

Percorrendo pelo largo campo verde, a jovem


cantarolava algumas músicas japonesas correndo com
os braços abertos, enquanto eu a apreciava de longe,
carregando a mochila vermelha nas costas, cansada e
ofegante pelos raios solares que batiam direto em meu
rosto, queimando-o.
— Chegamos, é por aqui. — Adentrou por uma das
árvores cheias, mantendo um longo silêncio, seguida
das batidas de asa dos grilos que ecoavam pelo lugar.

— Shinkai — Gritei-a, franzindo o cenho um tanto


preocupada, já que ela nunca parava quieta.
Ao chegar mais perto, pude ver as cerejeiras vazias
pela estação, onde não demoraria muitos meses para
soltar pétalas claras de rosa, anunciando o início da
primavera de abril. Abaixo, o poço abandonado que

146
ela tinha se referido, continha musgos ao seu redor de
concreto em um formato quadrado, parecendo
totalmente abandonado.
Shinkai estendeu uma toalha no chão com estampa de
pássaros em desenhos orientais, se sentando com as
pernas cruzadas, usando uma calça jeans boca de sino,
que marcava sua silhueta ectomórfica.

— Te apresento, meu lugar de estudos — Cantarolou


lançando um sorriso singelo, que destacou
timidamente em seu rosto angelical — Quero dizer...
Nosso lugar de estudos.

Senti o rubor em meu rosto subir de forma


inescondível.
— Você vem sozinha até aqui? — Firmei a voz,
franzindo o cenho desconfortavelmente ao vê-la
acenar em concordância, me encarando por mais
segundos do que devia — É perigoso demais, não
acha? Sabe o tanto de maníaco que existe por aí? —

147
Abri um compartimento interno e escondido de minha
mochila, retirando um cigarro enrolado de maconha
antigo, que eu sempre comprava de um japonês gordo
da loja de conveniência próxima ao museu de
Kanazawa — Venha acompanhada pelo menos. — Dei
de ombros lascando o isqueiro que falhou duas vezes
antes de pegar, acendendo-o.

— Olha quem fala de perigo — Sua voz ressoou em


um murmúrio debochado, repreendendo-me.

Apertei o baseado entre os dedos, a encarando com um


semblante cômico.
— Maconha não te mata por overdose e nem te estupra
e esfaqueia, enquanto você grita por socorro sufocando
no próprio sangue. — Dei uma tragada longa, sentindo
a fumaça preencher meus pulmões de forma calmante,
logo me entorpecendo. — Prioridades.

— O que você sente quando fuma isso? — Questionou

148
enamorando o cigarro, como se fosse tirar de minha
mão para fumar.

— Meu corpo inteiro relaxa, e meus sentidos aguçam.


Sem contar que você vai ficar com muita fome —
Respondi, de modo que ela soltou um riso abafado
enquanto eu explicava, mas não de uma forma
ingênua, mas como se confiasse no que eu dizia. Não
que eu fosse um bom exemplo, mas seria mal-educado
não oferecer. — Você quer tentar? — Estendi-o em
sua direção, fazendo com que ela hesitasse por alguns
segundos antes de aceitar. — É só puxar forte, e soltar.
Não segura a fumaça, se não sua pressão vai cair.

Ela colocou o cigarro de seda clara entre os lábios,


tragando forte com o indicador e o polegar apertando a
base da piteira, soltando a fumaça entre tosses e risos.
Quase de imediato, seus olhos baixaram com um tom
vermelho, amolecendo a postura enquanto soltava
alguns risos da própria piada.

149
Talvez eu me arrependeria mais tarde, mas não
importava, já que estava com a única pessoa que me
acalmava naquele momento.

— O que achou? — A indaguei, sentindo sua energia


se entrelaçar na minha, como nunca.

— Isso foi bom para cacete. — Escorou-se na parede


no poço, me lançando um olhar alegre e confortável,
como se encontrasse seu ponto vital de calmaria. —
Senhorita Guerra... Você é linda, então por que usa
esta boina? — Sua voz trêmula soou chapada aos
meus ouvidos, de modo que me fez rir desacreditada.
— Está muito calor, isso não te incomoda?

— Não, não estou incomodada. — Cheguei mais perto


de seu rosto, sentindo sua respiração sintonizar com a
minha, então ergui uma das mãos, puxando a pequena
ponta do baseado de seus lábios, guardando-a num
frasco de plástico. — Você já fumou demais hoje.

150
— Ei!— A garota implicou, franzindo a sobrancelhas
e cruzando os braços.— Por que ficou séria tão de
repente?

— Como? — Dei de ombros, completando — Há


algumas coisas que mesmo se eu quisesse te contar,
não poderia. — Respondi para a mesma, que se
manteve desacreditada e boquiaberta. — Eu sei que
parece idiotisse, mas eu não estou blefando. Há coisas
que se você soubesse, não me veria igual, entende?

Minako me encarou insatisfeita, mordiscando o lábio


inferior.
— Então me diz, no que está pensando agora?

Deitei meu corpo sobre o pano estendido, admirando


os galhos vazios de Sakura acima de minha cabeça, e o
frescor do vento da tarde.
Talvez eu pensasse em como seria dali em diante.

151
Como meu dia a dia me tornaria futuramente? Uma
empresária, uma espadachin, ou uma máquina mortal,
o tudo isso ao mesmo tempo.
— Minako, o que acha de recomeços?

— Românticos ou familiares? — Sorriu deitando-se ao


meu lado, perto demais a ponto de sentir seu calor e
perfume frutado irradiando em minhas narinas.

— Recomeços familiares. — Afirmei virando minha


cabeça para fitá-la de volta.

Ela parou um pouco, como se processasse


mentalmente uma resposta, observando o céu azul-
turquesa sem nuvens, um tanto pensativa.
— Diariamente temos uma tarefa simples, melhorar
em todos os aspectos. Então recomeços são novas
oportunidades para melhorar suas atitudes passadas,
buscando aperfeiçoar e evoluir.

152
— Como eu sei o que devo aperfeiçoar? —
Questionei suspirando fundo.

— Medite toda manhã e noite. — Seus olhos puxados


se encontraram aos meus, lado a lado, numa troca de
mensagens profundas sem palavras — Você deve
fechar os olhos, realizando a técnica de respiração
profunda através do diafragma, então procure em sua
mente o que mais te atrapalha em continuar evoluindo,
e quando achar, use o ponto-chave do problema ao seu
favor.
Pode até levar um tempo, mas quando você conseguir
ter uma parte do controle, dominará o resto e obstruirá
esse problema, superando-o.

Um silêncio agradável emanou por nós, num


entendimento claro, e sem pensar, Minako deitou a
cabeça em meu ombro.
Senti todos os pelos do meu corpo eriçarem, de modo
que minhas mãos suaram frio. Seu toque era puro, mas

153
não conseguia distinguir se aquilo era uma forma
amigável, ou maliciosa das garotas japonesas tratarem
suas amigas.
Me mantive quieta sem falar nenhuma palavra,
aproveitando o ambiente confortável no poço das
cerejeiras, com alguém que eu conhecia a pouco
tempo, mas dividia uma conexão única.
Eu devia ceder, talvez por algum momento, e sentir o
seu doce toque sem estranheza, mas uma certa aflição
fluía do meu peito, me inquietando ao senti-la.

Suspirei recuando o foco para o tempo, que agora


entardecia, e caso não chegássemos a tempo
levaríamos um sermão da mentora, já que matamos o
dia fumando maconha e não treinando.
— O que acha de jantar em casa hoje?

— Não acha que seria muito incômodo? —


Questionou, soando insegura.

154
— Óbvio que não... Você jamais seria um incômodo.
— Revirei os olhos com um riso baixo — Todos
gostam de você, incluindo eu, é claro. — Dei de
ombros rindo para Shinkai, que ficou com o rosto num
vermelho vivo, junto de um sorriso constrangido. —
Tem que ver o jeito que Hidemi se refere a você,
parece até alguma entidade-gênio.

— Está blefando — Respondeu em meio a uma risada,


espreguiçando-se com um muxoxo.

— É sério. — Admiti envergonhada sem saber para


onde olhar. — Está entardecendo, é melhor irmos
andando.

O caminho do poço até a aldeia foi parcialmente


quieto e tenso, mas nossa intimidade parecia suficiente
para sentirmos à vontade com o silêncio uma da outra.
A casa da aldeia no topo, tinham luzes que refletiam
para fora, indicando a presença dos Hanaoka.

155
— Lucy, você demorou. — Hidemi cantarolou quando
abri a porta deslizante da entrada.

— Eu trouxe uma convidada. — Chapadas e famintas,


ficamos olhando a família à mesa, perdidas com tanta
comida.
Ichiro estava sentado ao lado direito, e a sua frente
estava Yuriko com um vestido rosa claro básico e os
cabelos soltos.
Hidemi mantinha-se sentada na ponta, nos analisando
com certa dificuldade.

— Senhorita Shinkai? É um prazer recebê-la esta


noite, presumo que goste de sukiyaki do senhor Okita.
— Hidemi deu um sorriso para ela, chamando-a para
se sentar com um curto aceno de mão.
Há minutos atrás, eu pensava que os Hanaoka fossem
ricos mesquinhos com exigência de comida luxuosa,
mas o cozinheiro da aldeia parecia estar com tudo.

156
— Mas é claro! — Minako puxou meu braço com as
suripas roxas até o corredor — Com licença... Vamos
lavar as mãos. — Minako levou em direção ao
banheiro com um riso leve e baixo.

— Eu estou fedendo cigarro? —


Seus olhos me faiscaram com preocupação, então
cheguei mais perto de seu pescoço, inalando seu
perfume que se mantinha intacto.

— Não... — Dei um alavancada com o corpo para trás,


sentindo um calafrio ao chegar milímetros perto de sua
pele quente e pulsante.

Voltamos a sala, sentando de frente para a outra,


quietas e fingindo estar sãs.
Ichiro ao meu lado me passou uma tigela de fundo
vermelho, e um par de hashis para que eu pudesse me
servir da comida recheada de verduras, carne e lamén

157
de tamanho grande. Mesmo com a beleza daquela
comida, eu não conseguia parar de olhar cada
movimento de Minako, como se eu precisasse daquilo,
por muito tempo, e alí estava ela, comendo Sukiyaki
com um sorriso espontâneo das piadas que Yuriko
soltava na mesa, sobre como o funcionário da
tesouraria enviou um email romântico para o prédio
inteiro sem querer, na tentativa de chamar a filha do
contador para sair.
Eu percebia Shinkai lançando alguns olhares de
relances, mas de forma amigável demais com um
sorrisinho sujo de molho. Aquilo me deixava...
confusa.

— Como foi o dia de vocês? — Hanaoka Ichiro fitou-


me no fundo da alma, como se soubesse todos os meus
pecados — Treinaram bastante? — Seu tom soou um
tanto debochado.

Minako soltou um riso de boca cheia, então franzi o

158
cenho de volta repreendendo-a, de modo que ela
percebeu no mesmo momento.
— Ah... É, claro, mas a postura deve ser trabalhada
primeiro com muita atenção para fazer o uso correto
do arco. — A mesma respondeu com uma voz
amigável, engolindo a comida com pressa para falar.
— Mas é fácil, com a prática ela pega o jeito.
Hidemi sorriu de volta calada, dando um ar orgulhoso
em si, que se manteve até o fim do jantar.

Descemos a ladeira que levava ao centro do vilarejo,


onde alguns moradores nos cravavam os olhares com
curiosidade, questionando entre si, o que Minako fazia
como uma garota igual a mim. Certamente mais tarde
eles jantariam com suas pacatas famílias tradicionais, e
dizer que a filha do médico anda com más
companhias.
Paramos em frente a uma das casas mais floridas do
bairro, onde havia um muro baixo de concreto com
galhos de rosas que ultrapassavam as grades de ferro

159
na vertical, separando o quintal da casa.
O vizinho ao lado, que aparentemente era um pouco
mais velho que Shinkai, vinha em sua direção, com
um sorriso claramente cego de paixão. O garoto tinha
um rosto bonito, mas um ranço que cheirava de longe,
parecido com um típico homem hétero que conseguia
qualquer camponesa do século XXI deste lugar, apenas
respirando e existindo.
Não daria para competir com aquele cabelo escorrido
até a nuca, o nariz empinado e o rosto masculino com
os maxilares inferiores salientes.

— Oi Minako, tudo bem? — Cumprimentou


referindo-a no nome próprio, sem ao menos olhar para
mim, semi inclinando a cabeça com uma voz forçada e
rouca, para parecer mais másculo — Por onde andou?
O que acha de irmos jantar na capital, já que agora
comprei uma moto...

— Sinceramente Kobashi, eu já jantei. — Um

160
desconforto soou certeiro em sua voz, puxando meu
braço para perto de si. — Essa é minha amiga Guerra
Lucy, creio que o mínimo que deve fazer é apresentar-
se antes de se dirigir a mim.

Os olhos puxados com desdém do menino me


analisaram de cima abaixo, enojando-se ao ver meu
chapéu breton na cabeça que escondia os cabelos.
— Prazer em conhecê-la.

— O prazer é todo seu, senhor Kobashi. — Repuxei o


lábio superior, repetindo seu nome como um palavrão.

— Ótimo... Então depois nos falamos, assim


marcamos um dia. — O garoto respondeu, recuando
para trás com uma vibração de quem acabara de
atingir o ápice da masculinidade frágil e caipira.

161
— Você deve se preparar, a reunião foi adiada, e
amanhã, Hanaoka Hiro pode chegar a qualquer
momento.
Senti um aperto em peito surgir, e a garganta secar.
Yuriko cruzou as longas pernas pálidas, suspirando de
maneira fleumática, como se soubesse como eu me
sentia, e aquela empatia me parecia familiar, como a
primeira vez em que ela me vira, ensanguentada e sem
destino.

— Acha que ele irá gostar de mim? — A questionei


cabisbaixa, tentando de alguma forma achar outra
maneira de lidar. — Não tem como... eu pareço ela,
ele não quer um peso para.

— Chega disso, Lucy. — Yuriko soltou uma voz


firme, me fitando com seriedade — Chega de
autossabotagem, a vida não funciona assim, e você
precisa se esforçar. Todas as suas perguntas serão
respondidas... Mas você deve aprender a esperar.

162
Concordei quieta, encolhendo o corpo na cama em
posição fetal, dando de costas para Yuriko, que tentava
me motivar do outro lado da cama.
— Tudo bem... Vou deixá-la descansar. — Um suspiro
ressoou junto de seu murmúrio, parando na linha
externa da porta deslizante — Lembre-se, ele te amará
independente de tudo, é a filha primogênita dele. Você
é invencível, Lucy, saiba reconhecer isso.
O silêncio imortal após bater a porta parecia
angustiante, então meus olhos marejaram, expelindo
cada gota que transbordava, misturado com o
sentimento de culpa que vinha à tona.

163
CAPÍTULO NOVE

UMA HANAOKA

Os advogados murmuravam uns aos outros sobre


coisas inaudíveis, enquanto alguns apontavam para
papéis de forma silenciosa em unanimidade.
Ichiro ao meu lado tentava socializar, me encorajando
a manter a postura e a cabeça erguida. Se não fosse
pelo fato de que meu pai estava vinte minutos
atrasado.
9:50.

Um estrondo na porta de entrada da casa fez com que


164
todos parassem o que estavam fazendo, para se sentar
em seus lugares, ajeitando as cadeiras. O que passava
a impressão de um ditador chegando.
Engoli seco, apertando os olhos com força, tentando
apaziguar o nervosismo e a ansiedade que pareciam
queimar meu corpo numa onda de calor intensa.

— Perdoem-me pelo atraso. — Uma voz masculina


serena e forte ressoou pela sala. Então um homem alto
e magro, parou na entrada, suspirando como se tivesse
corrido uma maratona. — O trânsito esta manhã não
me favoreceu. Fiquei sabendo de última hora.
Seu nariz meio adunco e o rosto japonês andrógino
com traços finos e perfeitos, fazia-o parecer um
modelo. Vestindo um terno preto, junto de um relógio
prata circulando seu pulso.
Ele não é nada parecido comigo.
O cabelo liso e longo medindo nas costas, num preto
tão escuro, que chegava ofuscar, era repartido pela
metade na horizontal e preso, com duas mechas lisas

165
pendendo a frente de seu rosto. — Onde está minha
filha? — Questionou no imperativo, com os olhos
puxados analisando o rosto de cada advogado, antes de
parar em mim, estático e surpreso.

Levantei da cadeira, sentindo todos a volta me


encararem com estranheza.
Repuxei um dos lábios num leve sorriso, ao vê-lo
chegar perto de mim com passos cuidadosos e lentos,
analisando-me com um semblante admirado.
Algo nele era tão calmo e intenso que fazia tudo ficar
mais leve, por mais que seu rosto autoritário fosse
intimidador.

Minha reação automática foi jogar-me em seus braços,


sentindo um acolhimento paternal que o homem não
hesitou em demonstrar.
Uma de suas mãos tocou minhas costas de forma
acolhedora, retribuindo o abraço.
— Tens o rosto e os olhos de sua mãe — Cochichou

166
com um sorriso, se afastando para olhar meus cabelos
brancos, maravilhado. — Isso é... Impressionante.

Sim, tinha esse detalhe. Nenhum dos dois tinham


cabelos brancos.

Quando a reunião havia começado, as perguntas


invasivas dos advogados pareciam com uma audiência
no tribunal, mas diferente de mim, Hiro manteve a
postura, respondendo com clareza sem errar uma
palavra sequer.
— Quando Amélia saiu da aldeia, você havia notado
algo de diferente em seu comportamento? — A
japonesa interpelava andando de um lado para o outro,
a frente da mesa da sala. De modo que seu salto
ecoava em um batuque irritante no assoalho.

— Amélia estava nervosa e me ignorou por um bom


tempo. Cheguei a achar que estava desconfortável por
algo, e lembro-me que alguns dias antes de ir embora,

167
a vi vomitando no jardim perto da área de treino.
Ela recusou meus cuidados e apenas disse que estava
enjoada do chá de Ume que eu havia preparado.
Até analisei se a causa havia sido o armazenamento
incorreto, ou na hora da secagem das folhas... Mas as
ervas de Ume estavam normais.

A mulher acenou confiante, voltando a ler alguns


papéis em sua mão com atenção.
— Senhor Hiro, você manteve contato com Amélia
Guerra após o retorno ao Brasil?

— Não.
No dia seguinte em que ela teve náuseas, estranhei a
falta dela no dojô e na residência, então tentei contatá-
la, mas já era tarde. — Hiro ajeitou a lapela do terno
lançando-me um olhar protetor de longe. O que me fez
o comparar com Ichiro por alguns momentos, mesmo
não sendo nem um pouco iguais. — Ela já havia
partido para o Brasil. Alguns registros podem

168
confirmar isto. — Completou bebericando o copo
d'água a sua frente.

— E exatos nove meses e dez dias depois, Lucy


Hanaoka Guerra nasceu. O resultado do exame mostra
compatibilidade alélica de herança paterna, e a
probabilidade é maior que noventa e nove porcento.
Portanto, Hanaoka Hiro é pai legítimo de Lucy. — A
advogada concluiu, sentando-se na cadeira e
bebericando o copo d'água cheio, com a papelada em
mãos. — Outros documentos comprovam que Amélia
passa a guarda de Lucy no caso de morte, contendo a
assinatura de Hanaoka Hidemi, que, parecia estar
ciente da situação na época. — A advogada passou os
documentos para Hiro, que apenas leu em silêncio,
fechando sua expressão com indignação da própria
avó.

— Permita-me — Hidemi pigarreou num tom irônico


para a mulher — Se é uma boa advogada, deve se

169
lembrar que eu não tinha ciência alguma da filiação
paterna de Lucy. Já que Amélia era parte de nossa
família, apenas aceitei cuidar da garota em algum caso
extremo. Não vejo erro de minha parte.

— De qualquer forma, levará algumas semanas para a


autorização sair, então poderemos manter a tutela
provisória, comunicando que o julgamento incluirá a
descoberta de paternidade.

— Diga ao juíz Katsura Shun que é um assunto de


urgência, ele entenderá. Preciso desse papel até depois
de amanhã. — Hiro alertou, assinando as folhas
rapidamente, e devolvendo-as para a advogada. —
Primeiro, ele irá ouvir a versão de Lucy sobre o
assassinato, e depois disso, poderemos apresentar as
evidências que comprovam que ela é uma Hanaoka de
berço.

Senti minha pele ferver, constrangida. Como se fosse

170
novidade se referirem a mim como uma Hanaoka.
Respirei fundo sentindo o ar entrar pelos meus
pulmões igual a um mantra om silencioso.
— Senhor Hanaoka Hiro — Os interrompi, de forma
que minha voz soou calma e aguda, fazendo com que
todos me lançassem um olhar atento de volta. — Antes
de falecer, minha mãe pediu que eu lhe mostrasse uma
marca de nascença ao qual ela alega ser importante. —
Senti as palavras saírem num fôlego só, então respirei
fundo e puxei a gola leve em V do quimono,
mostrando a ele, a marca riscada em minha clavícula,
mais parecida com um corte desenhado à mão, numa
tonalidade escura.

Pude perceber a expressão desconcertada de Hiro, que


chegou mais perto de mim, boquiaberto com o que via.
— Você é... — Ele afrouxou a gravata escura,
puxando a camisa social branca com a mão direita. E
no mesmo lugar, marcado em sua pele, um sinal igual
ao meu. — Sangue do meu sangue. — Completou

171
confiante de si.

Senti meus olhos transbordarem, e algumas lágrimas


rolarem pelo meu rosto. Um tanto aliviada por sua
reação amena, que em nenhum momento se expressou
em negação.
Ali, naquele momento, todo esforço para me manter
em pé nesses dias sombrios, valeram a pena.
Finalmente eu estava recomeçando do zero.
Uma nova família legítima, uma mãe morta que eu
futuramente vingaria, e uma amizade ao qual eu tento
convencer-me de ser apenas uma obsessão a curto
prazo. Já que eu não parava de pensar no rosto de
Minako ontem, e em sua risada, de forma que eu me
pegava rindo quando lembrava.

— Me desculpe interromper, mas ainda não


encerramos a sessão... — A voz aguda da advogada
nos fez voltarmos a olhá-la. — O assassinato de
Amélia já foi publicado pelo jornal de Kanazawa há

172
quatro dias. Se demorarmos para levar ao público,
poderá trazer desconfiança às autoridades, e não
teremos tempo de fazer aliança com os Murakami.

Sua mão nos entregou um jornal, onde na primeira


página havia uma foto de minha mãe estampada, e seu
sorriso raso escondia as atrocidades e dores
vivenciadas antes de partir.

CONTADORA BRASILEIRA É BRUTALMENTE


ASSASSINADA NA PRÓPRIA RESIDÊNCIA.

Nesta madrugada (12), a arquiteta e contadora


brasileira, Guerra Amélia foi assassinada a sangue
frio com oito facadas seguidas no peitoral, e
estrangulada.
Sinais na casa, apontam que ela tentou se defender,
lutando até a morte contra o agressor, ao qual tudo
indica ser um homem, pelas pegadas enlameadas de
tamanho 40 que se estendem por toda a casa.

173
Sua filha única, Guerra Lucy, foi recolhida e segue
abrigada por uma família, que ainda não foi
divulgada qual é, por sigilo policial. Tendo a grande
possibilidade de uma grande imprensa estar por trás
de tudo.

Deslizei os olhos cansados por cada parágrafo em


fontes de Times New Roman, apertando o jornal com
a ponta dos dedos e reprimindo o rosto com
desaprovação.
— Ela está certa — Murmurei impaciente — Como
isso será resolvido? Por que estão me escondendo?

— Os Murakami podem vir atrás de você, não


podemos arriscar. — Um tom de voz preocupado soou
junto da expressão de compaixão de Hiro — Se eles
assassinaram Amélia, não hesitarão em vir atrás de
você.

— Não. — O encarei voltando ao meu lugar aos

174
poucos, me sentindo acuada — Quem matou minha
mãe, disse que Goro ainda não sabia de minha
existência... Mas quando descobrir, não irá hesitar em
me matar com as próprias mãos. — Fechei os olhos
tentando me lembrar de cada palavra dita pelo
estrangeiro norte americano, na noite da colina.

Ichiro sentou-se ao meu lado, como se servisse de


apoio para qualquer crise instantânea. Sua presença
paterna trazia uma sensação totalmente acolhedora.
— Você lembra do rosto dele? — Indagou com a voz
pesada e rouca.

Acenei em concordância, mordendo o lábio inferior na


tentativa de me concentrar nas diversas informações.
Entrando num túnel raso de memórias recentes e
vazias.
Eu conseguia voltar naquele momento a hora que eu
quisesse. Sentir o cheiro metálico de sangue
amanhecido, e o frio da porta aberta na madrugada

175
chuvosa. — Me lembro... — A cicatriz da têmpora até
o maxilar do homem ia se tornando mais lúcido,
quanto mais eu focava — Ele era um norte
americano... E tinha uma cicatriz grande no rosto.
Talvez um militar, pois ele era autoritário e usava uma
calça camuflada.

Hiro arregalou os olhos, com uma expressão atônita.


— Esse homem... Ele disse mais alguma coisa? —
Indagou remexendo-se na cadeira, impaciente.

— Hum... Ele falou uma coisa em português... Tipo...


— Gaguejei, estalando os dedos ao lado dos ouvidos,
como se fosse me ajudar a lembrar de algo. — Algo
sobre uma Leoa Branca.

— Esse militar. — Meu avô Ichiro exclamou com voz


rouca, fazendo-me sobressaltar da cadeira assustada.
— Não irá demorar até contar sobre Lucy para os
Murakami.

176
De qualquer maneira, uma hora ele irá descobrir.

— Meu pai, o senhor está certo. — Hiro pigarreou,


entrelaçando as mãos à frente do corpo e arqueando a
postura. — Sairá em todos os lugares possíveis, de que
a garota está conosco. Ou seja, não demorará para
chegar aos ouvidos de Goro.

Eu claramente estava despreparada para uma guerra.


Não poderia fracassar novamente, e nem matar mais
pessoas por minha causa.
— O que faremos? — Questionei, com uma pontada
de ânimo na voz.

— Você não irá fazer nada, mocinha. — O empresário


me lançou um olhar protetor, reprovando a
possibilidade sem pensar duas vezes. — Permanecerá
na aldeia por um bom tempo. É tudo para o seu bem.

Contanto que Minako estivesse junto a mim, estava

177
ótimo.
— Tanto faz — Revirei os olhos, dando de ombros
com indiferença.

No fim da reunião, não demorou para que cada


advogado presente se despedisse dos três Hanaoka,
incluindo a mim com um aceno silencioso, indo
embora da aldeia, e voltando para suas respectivas
mansões na capital.
Ao entardecer, aceitei realizar algumas tarefas que
Hiro passava, achando que ia fazer eu me aproximar
dele. Por exemplo, cortar algumas rebarbas de árvores
perenes do jardim da sala principal, ou aguá-las
enquanto dava sermões sobre a espécie de cada uma.
Não estava sendo chato, e eu meio que entendia a
forma dele de dizer eu te amo, só não sabia da sua
existência. Agora, me deixa compensar esse tempo
todo com você.

— Veja estas prímulas. — Ele se virou para mim,

178
agachado sob o arbusto cheio de flores magentas —
Há muitos anos atrás, eu as plantei esperando que
Amélia voltasse, e as visse na entrada. Sabendo que
sempre seria bem-vinda. — Um sorriso leve surgiu em
seus lábios finos e simétricos.

— Ela não voltou porque sabia que não aguentaria


ficar longe depois. — Respondi, sentando-me sobre a
grama japonesa recém aparada — Lembro-me quando
ela bebeu tanto que dormiu na sala, e quando fui
acordá-la, ela deitou em meus braços e chamou pelo
seu nome. Na época eu não sabia quem você era...
Então não levei a sério. Mas agora eu entendo, o
quanto ela ainda te amava a ponto de te libertar dessa
maneira.

— Você acha isso mesmo? — Me indagou surpreso,


largando a grande tesoura de aparar no chão.

— Tenho certeza. — Sorri de volta com um aceno de

179
cabeça sincero.

Hiro se colocou a minha frente, com as mãos na


cintura, fitando-me num semblante de compaixão.
— Eu realmente peço perdão, por tudo.
Principalmente, por não acompanhar seu crescimento
quando mais precisava. — Concluiu atribuindo. —
Tudo o que passou... Não sou capaz de imaginar como
deve ter se sentido.

— Hiro — O interrompi, erguendo um sorriso de canto


— Você não tem culpa de nada, e agora está aqui
comigo, e isso é mais do que o suficiente.

Seu rosto lapidado baixou, olhando para a grama antes


de voltar a me encarar calmamente.
— Acha que as carpas vão ficar viva se você não
alimentá-las? — Mudou de assunto, com um riso
impassível ao se afastar para dentro da casa. —
Quando terminar, lave as mãos. Farei o jantar esta

180
noite.

Suspirei cansada, limpando o resto de lodo grudado na


beira do lago, onde a ponte do jardim retangular o
cortava.

Uma carpa.
Eu gostaria de ser uma carpa.
Não devia ser tão trabalhoso comer e cagar grão, para
no final de tudo, ainda ser respeitada como um
símbolo espiritual.
Pensar nisso me fez rir. E é até gratificante poder
sorrir novamente, deixando vazio de lado por um curto
espaço de tempo.
Eu ainda me sentia culpada em estar bem com a
situação, sabendo que há pouco tempo eu fizera juras
de morte. Apesar de tudo, eu não havia me esquecido,
e não poderia trazer minha mãe de volta.

Não demorou muito tempo para Hiro reaparecer,

181
segurando uma bandeja de servir, com duas xícaras
dentro, e um bule. Andando em passos alertas, ele se
sentou na beira do corredor externo, servindo-as com o
líquido.
— Lucy, sente-se comigo. — Ordenou gentilmente,
sentando-se no deque — Gosta de chá de Ume?

— Nunca experimentei. — Arqueei uma das


sobrancelhas, descansando ao seu lado — É feito com
a própria pétala? — Hiro acenou em concordância
com os olhos curiosos, entregando uma xícara para
mim.

— Além de tudo, é produzida por esta árvore aqui. —


Olhamos para os grandes troncos desfolhados, com
brotos em formato cônico, prontos para desabrochar
— Nossa produção é única, e é desidratado com
açúcar na secagem.

Beberiquei o chá, sentindo o calor em minhas papilas

182
gustativas, e o sabor fresco com uma pitada adocicada
me enfeitiçar.
Cada sabor tinha seu equilíbrio, sem ser nada
enjoativo.
— Puta merda. — Arregalei os olhos e meu corpo
estremeceu, passando por um momento em todas as
cenas boas de minha vida. — Essa é a melhor bebida
que eu já experimentei, sério.

— Fico feliz que tenha gostado. — Hiro soltou um


riso abafado, tomando um gole de sua xícara com
elegância — Gostaria de conversar sobre sua mãe.
Há algo que está pendente entre nós três nisso tudo.

Direto.
Me recolhi, ficando cabisbaixa e muda.
— O que tem? — Vociferei impaciente.

— Está sendo difícil para você... Perdeu uma mãe, e


viu tudo o que aconteceu. — Soltou um suspiro pesado

183
— Mas ela não deve ser lembrada dessa forma.
Você é minha filha, então quero que me ajude a fazer
um cerimonial para Amélia. — Ergui minha cabeça, o
encarando de sobrancelhas vincadas, e o semblante
rendido.

— Tudo bem — Acenei em concordância, sentindo as


lágrimas fluírem junto de Hiro, que era tão
emocionado quanto a mim. — Você tem razão, ela
merece muito mais.
Não poderá faltar as prímulas. — Ri em resposta,
sentindo as gotas rolarem sobre minhas bochechas
rosadas e quentes, caindo em meu colo.

— E uma grande garrafa de Sakai. — Gargalhou de


volta batendo leves palmas, animado — Apesar de
tudo eu a amava, mas este lugar não era o suficiente
para uma alma tão aventureira e livre.

— Sinceramente... Amélia era uma pessoa difícil de

184
compreender. — Admiti, numa lembrança nostálgica.
— Eu puxei ela nesse quesito.

— Você se parece com ela em praticamente tudo.


Deve se orgulhar disso. — Deu um sorriso, me
transpassando uma confiança sincera.

De fato.
Então eu pude perceber, que enquanto eu estivesse
viva, Amélia também estaria. Sendo sua última parte
que sobrou neste vasto mundo.

185
CAPÍTULO DEZ
PROFECIA

— Mantenha sua respiração profunda. — Hiro

sibilava contra o vento, sentado ao meu lado — Deixe


sua mente ser definida pelo pensamento, como uma
forma de transmutar o seu potencial físico, e utilizá-lo
a favor do seu poder espiritual.

De olhos fechados, pernas cruzadas e as mãos postas,


eu imaginava uma luz dentro do meu corpo, fluindo
por cada canto e aumentando a cada inspiração.

186
Os sons dos galhos das árvores que balançavam
contra o vento, e os pássaros na cantoria me levavam
ao êxtase da paz interior.
— O que eu faço agora? — Indaguei confusa, ainda
com os olhos cerrados e as sobrancelhas tensionadas.

Eu até tenho controle das coisas. Por alguns minutos.

— Apenas sinta, não tenha pressa em nada na vida. —


Murmurou, iniciando um tipo de mantra, ou poema em
voz alta, repetidamente. Igual um cântico tradicional,
talvez da aldeia.

Pétalas novas
Caem sobre a grama verde
Como um ciclo que renova.

Respirei fundo antes de abrir meus olhos, me


deparando do topo da montanha, onde os montes se
uniam, o sol do meio-dia se estendendo no centro do

187
céu no horizonte.
Sentados sob as árvores, estávamos longe da aldeia,
parecendo monges budistas perambulando pela mata.

— Estou morta de fome. A gente escalou esse lugar e


não trouxe nenhum lanchinho? — Me levantei,
cedendo a atenção que me cobrava demais — Estamos
fazendo isso há duas horas.

— É só o começo. Essa meditação te preparará antes


de qualquer treino ou luta prática, e se fizer do jeito
certo, será impulsionada mais rápido do que pensa em
sua evolução. — Respondeu permanecendo em
meditação, com a pose ereta, e o cabelo grande solto
ao vento, que decaía em suas costas como um véu
escuro acima das mantas claras do quimono cobrindo
seu corpo.

— Quando iremos lutar de verdade? — Bufei,


bebendo um gole da d'água com pressa. — Uns socos

188
e chutes? Talvez?

Hiro se levantou, virando para mim com a expressão


indignada.
Apertou as cinturas e semi cerrou os olhos, em um
desdém irônico.
— Então você acha mesmo que está preparada para
lutar? — Deu de ombros, chegando mais perto e
puxando a garrafinha de minha mão, bebendo o resto.
— Tudo bem, então vamos tentar. — Ele arremessou-
a, correndo para formar sua base.

Me coloquei a sua frente, com o pé direito de base e o


outro um tanto afastado e para trás.
Levantando os punhos cerrados, protegendo os lados,
e a parte frontal do rosto.
— Não vou pegar leve. — Franzi as sobrancelhas,
erguendo uma pontada de um sorriso cômico nos
lábios, pronta para lhe dar um soco ou um chute bem
dado em sua abertura de guarda.

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Hiro inspirou fundo, mantendo-se sério. Com as duas
palmas esticadas em minha direção, frente ao
abdômen, atento a qualquer ataque de minha parte.
Soltei um grito raivoso, partindo para lhe dar um soco.
Mas sem esforço algum, ele segurou meu punho
esquerdo, torcendo-o para fora, de maneira que eu que
tombei no chão, imobilizada.
Me mantive caída, e sem hesitar, foquei em sua perna
defronte, tentando puxá-lo para baixo com um golpe
nas juntas, mas com rapidez, ele alterou, chutando
minha perna de ataque com força.
Ele estava pegando leve, era visível.

— ...Você ainda não tem preparo. Mas se difere das


outras crianças, então não demorará para seu corpo
sentir a nova fase chegar. — Hiro completou, me
soltando de seus braços longos como um pedaço de
bosta. — Como eu disse, não tenha pressa.

190
Bufei levantando-me envergonhada, ajeitando a roupa
enquanto praguejava mentalmente.
A procura de seus pontos fracos, me vi falhando
miseravelmente.
— Você e sua avó são iguais. Falam a mesma coisa
sobre profecia, mas nunca contam o que isso quer
dizer. — Rebati dando as costas, andando de um lado
para o outro, insatisfeita.

— Quer mesmo saber o que você é de verdade? —


Senti sua pergunta me parecer sem escapatória, então
virei, o encarando diretamente. — A história é longa.

— Eu tenho tempo. — Me sentei sobre a grama,


abraçando as pernas juntas ao corpo.
Ao meu lado ele se pôs, e sua face demonstrava um
certo receio com minha possível reação. — O que é,
então? — Questionei, com uma das sobrancelhas
franzidas.

191
— Nosso clã, tinha, em sua maioria, filhas mulheres
em toda a árvore genealógica, e no período sengoku, a
família entrou em ascensão, trazendo consigo as terras,
que, geravam um grande lucro pelas aldeias. —
Umedeceu os lábios, fazendo uma pausa pensativa —
Então, a primogênita de Mahina, Hanaoka Hana,
acabou tendo um caso com Aratani Kagemori, o filho
de um mediúnico conhecido do vilarejo, e assim
nasceu Aratani Hanaoka Tomoko.

Desde pequena, Tomoko alegava ter premonições, o


que sempre afastava os seus colegas que não tinham
abertura sobre esse assunto, mas seus pais sabiam de
sua verdade. Então de alguma forma ela tinha um
fundamento familiar de como ter controle sobre esse
talento natural.
Aos vinte anos, no dia dezessete de abril de 1956, ela
teve uma predição, que segundo a mesma, poderia vir
a acontecer a qualquer momento.

— Qual era? — Engoli seco, sentindo minhas mãos


192
suarem frio, e o coração palpitar mais forte.

Hiro olhou no fundo dos meus olhos, soltando um


suspiro hesitante.
— Essa profecia, anunciava uma espadachin de
cabelos brancos, como o Kami do vilarejo. A mesma
guerreira, tinha uma energia pesada, e segurava uma
katana ensanguentada, onde a lâmina refletia seu ódio
e vingança.
Tomoko dizia que essa mulher seria a única pessoa
capaz de matar o sangue indigno da família, que nos
trairia, salvando nossa linhagem e toda a aldeia de um
perigo próximo. — Completou vidrado em meus
cabelos — Então Mahina não descartou as
possibilidades de acontecer, já que tinha muita
confiança e carinho pela neta Aratani. Então
documentou sua profecia, que hoje se mantém
guardada no Kamiza, com muito zelo por Hidemi, a
nossa chefe familiar mais antiga da linhagem.

193
Eu simplesmente estava boquiaberta.
— ...E vocês... Supõem que eu sou essa espadachin da
profecia? — Especulei um tanto sugestiva.

— Não supomos nada... — Hiro fez um muxoxo —


Você sem dúvidas, é a espadachin emissária que
esperamos esse tempo todo, e mesmo depois de tantos
anos, isso se concretizou fielmente as palavras de
Tomoko.
Isso a torna especial, e diferente dos outros, Lucy.

— O que significa... Que há uma guerra por vir. —


Senti tudo ao meu redor fazer mais sentido. As lutas e
os fundamentos de Amélia... Tudo se encaixava
perfeitamente — Murakami Goro... É o traidor de
sangue.

— Exato. — Respondeu de modo certeiro. — Goro irá


levar essa família ao caos por poder.
Ele pensa que tudo o que temos é dele por direito,

194
apenas por ser o filho bastardo de Hanaoka Takeo.

Me levantei num ímpeto, com os punhos cerrados ao


lado do corpo.
— Não. — Ergui uma oitava da voz, como uma
ditadora extremista. — Não haverá guerra alguma, se
eu interferir, já que você mesmo disse. Sou eu a única
capaz de matar ele.
Posso ser inútil agora, mas irei fazer de meus dias
contados para lhe achar.

— Filha. — Me aquietei, virando para Hiro, que


parecia comovido e totalmente controverso — Eu
jamais deixaria você fazer isso. Não posso perder
outra pessoa que amo. — Suspirou sem convicção
alguma — As lutas que você deve aprender serão
apenas para defesa.

— De qualquer forma. — Arfei esperançosa,


apertando a cintura, como se essa descoberta me

195
tornasse menos inútil. — Goro irá tentar me matar
quando descobrir minha existência, e você sabe que é
verdade... Então se me quer viva, deve entender que
nosso destino está em jogo. A única saída é eu aceitá-
lo de bom grado, ou morrer negando a verdade. —
Hiro não respondeu, mantendo seus olhos fixos aos
meus — Eu até entendo sua forma de me proteger,
mas uma hora isso irá me queimar.
Eu odeio promessas... Mas tenho uma última a
cumprir com minha mãe, portanto, não irei fugir do
meu destino. — Peguei minha boina jogado ao chão,
prendendo cada mecha para dentro com a ponta dos
dedos, e parti descendo a montanha a frente de Hiro.

— Se quer fazer isso. Então deve começar mudando a


partir de hoje. — Sibilou às minhas costas, me fazendo
parar, para olhar seu rosto.

— Como assim? — Questionei aflita.

196
— Hidemi irá discordar de mim de qualquer jeito, e
uma hora ou outra lhe passará os conhecimentos de
luta corporal adaptados por nossa família. Ou seja...
você será a próxima a aprendê-lo, mas será a primeira
a conhecer golpes únicos guardados a sete chaves. —
Respirou tomando fôlego, completando — Golpes que
nem eu aprendi.
Hidemi também pensa que você deve seguir seu
destino, então qual é a força da minha palavra aqui? —
A melancolia em seu rosto se tornou evidente, o que
me magoou por um momento. Não o suficiente para
me cegar, então permaneci em silêncio, buscando
qualquer coisa que me entretesse no chão, para
simplesmente não precisar ver sua decepção
transparecida — Não se preocupe, adiarei sua
iniciação nos treinos, mas não será tão fácil quanto
pensa. Deve superar esses remédios, e depender de si,
não de antidepressivos manipulados.

— Tudo tem um preço. Eu aceito. — Dei de ombros,

197
voltando a descer o morro.

Em passos ritmados, o homem chegava mais perto,


segurando a garrafinha, um tanto ofegante. — Bem
íngrime, não é?
Faz tempo que não venho até aqui. Parece que meu
pulmão vai parar a qualquer momento. — Tragou o ar
forte, me fazendo rir comicamente.

— Minha primeira vez na casa da colina em


Kanazawa foi assim. — Arfei afrouxando a postura,
sentindo a calma no torpor nostálgico.
O cheiro de madeira de carvalho brasileiro
envernizado, e o perfume de móveis de lavanda com
hibisco e hortelã me traziam tantas memórias, que me
emocionavam.
Na época que cheguei, eu me animei é óbvio. Era uma
garota pobre que iria morar em outro país, com novas
oportunidades.
Em minha cabeça tudo que fiz no passado poderia ser

198
apagado, e eu seria diferente e com uma personalidade
nova, que me traria mais amigos.
Ledo engano.
Apesar de tudo, aquela casa na colina foi meu refúgio
por muito tempo, além do meu vazio interno.

Duas horas andando na estrada de terra, chegamos até


a ponte com albarrada e uma pequena afluente que
cortava até o lago principal para fora da montanha, ao
leste. Indicando que mais a frente, chegaríamos ao
vilarejo.
As pequenas casas juntas na grande depressão cheia de
grama rala, apareciam a cada passo que dávamos
chegando na entrada.
De cima, era possível observar algumas pessoas que
andavam pelas pequenas ruas estreitas, indo e vindo.
— Está gostando daqui? — Indagou esperançoso —
Espero que esteja fazendo novas amizades...

Ah... Se eu te dissesse que conheci a deusa Amaterasu

199
em pessoa, não acreditaria.
— Aqui é perfeito. Sinto que nunca estive tão bem em
um lugar. — Concluí mordendo o lábio inferior,
constrangida — Tem pessoas muito legais... E bonitas.
— De canto de olho, senti Hiro me dar uma encarada
intensa, com um sorriso que ia de orelha a orelha.

— Não estava esperando por isso. — Admitiu


abraçando os próprios punhos atrás do corpo. — Se
não for demais, poderia me apresentar esse novo
amigo seu, mesmo que eu já deva conhecer. —
Completou confiante com uma pontada de euforia em
sua voz.

Calma... Ele pensa que eu estou falando de um garoto.


— Sim... É claro. — Respondi pigarreando, seguida de
um nervoso aleatório me estagnar, tomando meu rosto
num vermelho escarlate.

Alguns olhares alheios, julgavam minha companhia ao

200
lado de Hiro, que sempre se mantinha inabalável
quando o assunto era estar em público. Um
cumprimento aqui, outro ali, ele fazia uma parada
básica na barraca de peixes frescos da feira, que se
estendia pela estrada de terra principal do vilarejo.
Onde algumas senhoras cantarolavam o nome de Hiro
como uma música, chamando-o para conversar sobre
como o mesmo estava mais bonito a cada ano que se
passava, e sobre suas filhas mais novas que ainda
estavam solteiras e trabalhavam na capital.
— Mas quem é essa garotinha aí com você? — Uma
das idosas apontou para mim, como um tipo de bicho
exótico.
Quieta, lancei um olhar direto para ele, esperando que
respondesse por mim, antes que eu dissesse algo de
errado.

— Na verdade... Esta é Hanaoka Guerra Lucy, minha


filha primogênita. — Sua resposta tão calma e
monótona, fez todas as outras velhas ao redor da tenda

201
arregalarem os olhos, desacreditadas. Nos comparando
em cada detalhe.
Correspondi com um sorriso, e um aceno de cabeça
quieto. — Filha de Guerra Amélia, a senhora se
lembra? — Hiro interpelou, confiante.

Mesmo que ele estivesse burlando algo que Hidemi


dissera ser sigiloso, não daria para ser escondido por
muito tempo, portanto, não havia o que interferir.
— Lucy? — Às minhas costas, uma voz vindo pela
esquina onde acabava a pequena feira, me deparei com
a garota de boca rosada e a pele em tons de pêssego.
Seu rosto memorável e rosto angelical, me acertou
como uma flechada direta no peito.
Shinkai Minako.

Mesmo que não fosse uma obrigação, de certa forma


eu temi que ela tivesse ouvido, e se sentisse mal por eu
não ter te contado antes. E de qualquer forma, aquelas
velhas caipiras fofoqueiras iriam espalhar para aquele

202
vilarejo que o queridinho 'imperador' Hanaoka Hiro
tinha uma filha fora do casamento.
Eu deveria arrumar um jeito de contá-la,
urgentemente.

— Ah, oi Minako. — Gaguejei sentindo minhas mãos


suarem frio.

Ela correu em minha direção, com uma sacola plástica


no antebraço, sorrindo feito boba.
— Que bom te encontrar. Por que sumiu esses dias?
Passei para te ver na sua casa mais cedo... Mas Hisaya
disse que você havia saído.

— Hum, na verdade eu tive uns compromissos muito


corridos desde a noite retrasada. — Apertei o
indicador e o polegar a frente dos lábios, simulando
um fumo — Eu preciso falar justamente sobre isso
amanhã com você. Tudo bem? — Questionei-a
segurando as mãos em seu ombro. O que fez ela

203
congelar.

— Sobre o baseado? — A garota questionou,


franzindo a sobrancelha.

— Não... Justamente sobre esses compromissos


esquisitos que andei tendo. — Cheguei mais perto
dela, como se fosse contar um segredo fatal, temendo
que Hiro chegasse perto, e reconhecesse a pessoa que
até então ele achava ser um homem — Até o fim do
dia você vai ouvir algo aleatório. Mas eu posso te
explicar depois.

— Não entendi... Na verdade eu ia te chamar para


jantar em casa esse sábado que vem. — A pureza em
sua voz me entorpeceu por uns momentos como de
costume — Já que conheci sua família eventual, quero
que conheça meu pai.

Engoli seco, sentindo um misto de emoções.

204
— Esse sábado? É claro que sim. Que horas eu vou?

— Esteja lá às seis em ponto. — Deu um sorriso de


canto. O que quase me derrubou de vez.

Uns pigarreios propositais às minhas costas me


fizeram congelar, estática no lugar.
— Ei mocinha, não vai me apresentar sua nova amiga?
— Virei-me em câmera lenta de cenho franzido,
fitando seu rosto pálido — Você deve ser a filha do
Dr. Sonohara, não é? Prazer, me chamo Hanaoka Hiro.
— O homem apresentou-se para a garota a minha
frente, com um curto aceno de cabeça.

— É um prazer conhecê-lo. Ouvi muitas coisas boas à


respeito do senhor. — Seu sorriso pontiagudo
aumentou de tamanho, então semi curvou o busto — É
gratificante ter a oportunidade de dividir os estudos
com Lucy... Mas penso que essas férias de primavera
dela não podem ser apenas afundada em livros, não é?

205
— Seu tom sarcástico me fez querer rir, e matá-la ao
mesmo tempo.

— Férias? — A voz tranquila de Hiro aumentou uma


oitava, o que nos levou a uma troca de olhares
simultânea.

A boca de Minako abriu para responder, mas a


interrompi imediatamente antes que a mesma soltasse
qualquer bomba.
— Ora, eu estou com muita fome. Depois nos falamos,
Minako! — Sorri avistando o lugar de letreiro
vermelho, indicando estar aberto.
Restaurante do Senhor Okita.

Dei um puxão forte na manga de Hiro, o levando para


o lugar antes que ela dissesse mais alguma palavra que
me comprometesse.
Por um momento, o aroma inebriante de fritura ao
entrar, me fez canalizar toda a tensão para a fome. Ali

206
era um lugar simples e bem tradicional como o resto
do vilarejo, onde as pessoas sentadas em bancos de
madeira comiam e bebiam tranquilamente.

— Por que você fez isso? — Indagou baixo, ainda


calmo, enquanto processava a situação. — Vamos nos
sentar e respirar. Vou pedir algo para nós, e então você
me conta, tudo bem?

— Okay — Suspirei aliviada, sentando-me no fundo,


limpando as gotas de suor que desciam de minha testa.

Não demorou muito para Hiro reaparecer, se sentando


com uma latinha de refrigerante, e uma garrafa de
Sakai.
Não tem outra bebida além dessa? Ou talvez isso só
aponte que o tempo em que minha mãe passou aqui,
influenciou em seus gostos nada saudáveis. Não que
eu seja um exemplo para expor isso.
— Senhor Hiro, você não faz idéia de como foi difícil

207
conseguir uma única amiga verdadeira desde que
cheguei no Japão. — O encarei diretamente com
impaciência — Minako acha que estou de férias aqui
por um tempo, e irei voltar para uma casa inventada,
no Brasil.
Até o fim do dia ela saberá que sou uma maldita
bastarda, e sabe como vai me receber? Você sabe? —
A veia em minha testa saltou, então as narinas
expandiram, quase me levando a um colapso nervoso
— Pois ela nunca mais irá me receber. — Bati as duas
mãos fortemente na planície da mesa, o que fez ele dar
um sobressalto, atraindo olhares alheios.

— Eu sinto muito. — Fez um muxoxo e tornou-se a


ficar cabisbaixo, servindo algumas doses para si. —
Quer saber? Se ela é uma amiga verdadeira, não irá
deixar de falar com você só por isso.
Nada disso é sua culpa.

— Você quase não me conhece... — Cruzei os braços,

208
desviando a atenção de seu rosto.

Uma mulher jovem parou em nossas mesas, com uma


embalagem branca impermeável, e frango frito ao
molho, transbordando.
— Então experimenta... — Arqueou a sobrancelhas,
colocando uma dose média de sakai no copo,
empurrando-a para mim com a ponta do dedo. —
Depois dessa você pode me falar tudo o que quer.

Sua sinceridade me soou convincente, o que me fez


preparar a lista mental, e o esôfago.
Bebi a dose, retorcendo o rosto com aquele cheiro que
me enojava desde que me conheço por gente.
Mantive minha postura, servindo dos frangos com
pressa, na tentativa de tirar o gosto ruim que infectava
meu paladar.
— Eu sou melhor em humanas, e tenho dificuldade em
fazer divisão com três algarismos. — Cuspi muitas
informações aleatórias de boca cheia, preparando mais

209
coisas — Também sei recitar toda a introdução de
Pálido Ponto Azul de cor e salteado. Li e reli quase
todas as obras do Machado de Assis, Graciliano
Ramos, Carl Sagan, Charles Darwin, Richard Dawkins
e Miyamoto Musashi.
Sei falar Japonês, Inglês, Espanhol e Português, mas a
única coisa que eu mais queria esse tempo todo era
saber sobre você, e nunca tive esse privilégio. — Me
recolhi, bebendo o refrigerante quieta.

Hiro ficou estático, com os olhos marejados, contendo


um possível choro.

— Peço perdão por toda a confusão que causei. —


Murmurou de volta, servindo uma dose para si com a
mão oposta segurando o punho, virando a bebida de
uma vez.

— Não há o que perdoar. — Completei com um


sorriso vago. — Você está sendo o melhor pai do
mundo, tentando repor todos os momentos, e eu te
210
entendo. Jamais seria capaz de te culpar por isso. —
Limpei a boca, soltando um arroto.

Seu rosto simetricamente perfeito tornou a ficar


vermelho como uma pimenta.
— Eu amava sua mãe, e amo você... — Assegurou
confiante — Então me permita fazer diferente. —
Sugeriu com um tom de perseverança na voz.

— Você é... Meu pai. — Dei de ombros, completando


com frieza — Sempre terá uma chance de recomeçar
comigo, mas não significa que deve quebrar meu
coração pela segunda vez.
Mesmo com tão pouco conhecimento dele, eu já o
amava e via seu esforço diário para me manter
confortável. Hiro entende o meu tempo para assimilar
tudo, sem fritar a paciência. Sendo assim, eu apenas
aceito o seus sinais de ajuda, apenas não deixando
aparente.

211
Pelos livros, isso são absolutos sinais de alguém que
morreu por dentro.

CAPÍTULO ONZE
CERIMÔNIA INTERROMPIDA

Desde o planejamento do cerimonial de Amélia,


tenho fugido para o jardim nas ventanias da
madrugada gélida, e usado a técnica de meditação que
Hiro me ensinou, como fonte de cura para dormir e
acordar com a alma leve, me preparando de fato, para

212
o dia de hoje. Mesmo que meus pesadelos do ocorrido
continuem frequentes, as meditações me ajudaram
bastante sobre a lucidez deles, então já era um bom
começo.

— Lucy, querida. — Uma voz feminina e suave


ressoou aos meus ouvidos, fazendo-me pular da cama
num susto.

— YURIKO? — Gritei seu nome de maneira


esganiçada — Porra, eu perdi a hora? — Interpelei
coçando os olhos contra a luz do quarto que me
cegava.

— Não, está um pouco cedo. — Soltou uma risada ao


ver minha reação exagerada, abafando com o dorso da
mão. — Agora é hora de você acordar, tomar um
banho e vestir a roupa que separei. Entendido? —
Ordenou calmamente

213
Bufei espreguiçando o corpo, retomando a realidade.
— Eu não vou usar nenhum vestido, ou yukata. —
Reafirmei, a encarando com uma expressão plena. —
Se é o que está pensando.

A mulher voltou até o corredor, separado pela porta


corrediça semi aberta, com um sorriso malicioso nos
lábios.
— A roupa que vestirá... Escolhi pensando que você
fosse gostar. — Franzi o cenho, um tanto curiosa.

Após o banho matinal no ofurô de madeira. Me pus a


ajeitar o cabelo e secá-lo normalmente, cruzando os
dedos para não acordar ondulado no outro dia.
Eu estava pronta para fazer algo, que há semanas me
assombrava. A idéia de rever minha mãe, que agora se
encontrava morta e exumada numa urna, não era tão
terrível quanto parecia, contando que já vi coisas
muito piores.
Voltando ao quarto, havia um terno preto que se

214
encontrava pendurado no cabide de parede, onde era
possível admirar o paletó cinturado, com uma camisa
branca de botões por baixo, e uma gravata escura. A
calça tinha a altura perfeita, como se tudo fosse feito
exatamente para mim.
Cada detalhe de costura, escolha de linhos e tecidos,
revelavam uma qualidade que eu jamais sonhara em
vestir.
Yuriko tem bom gosto, e realmente caía bem em
minha estrutura mesomórfica, de bíceps e quadril mais
largo.

Um tempo depois de me encarar no espelho,


comparando-me a uma mafiosa de meia idade, Hiro
chamou por trás da fina camada fosca da porta de shoji
do quarto, marcando sua silhueta magra e alta pela luz
da tarde que transpassava o papel.

— Você está pronta? — Indagou seguido de um


intervalo de silêncio.

215
— ...Eu... Consigo fazer isso. — Murmurei a mim
mesma no espelho do banheiro — Estou pronta. —
Respondi em tom alto e claro, saindo do quarto com o
resto de noradrenalina que me restava.

Hanaoka Hiro estava magnífico, vestindo um terno


escuro semelhante ao meu, com um grande relógio
prata rodeando o pulso direito. Seu cabelo estava
dividido na horizontal, com a parte de cima presa num
coque alto, e duas mechas longas pendendo a frente de
seu rosto hexagonal, demarcando sua androginia.

Ele me analisou de cima abaixo, deixando um sorriso


escapar de seus lábios finos, como se estivesse
orgulhoso.
— Você está ótima. — Murmurou esperando eu dar
meu primeiro passo — Até que se parece bastante
comigo.

Consideramos que toda a cerimônia fosse na casa,


216
contando apenas com a família Hanaoka e o motorista
Oyama, sendo quase parte da família.
Ao chegar alguns centímetros da porta de entrada do
cômodo, Hiro me lançou uma expressão protetora e
serena. Parando antes de entrar.
— Está tudo bem? — Indagou olhando no fundo dos
meus olhos. Como se lesse minha alma.

— Sim. — Respondi com um curto aceno de cabeça


— Eu consigo. — Completei, confiante, inflando o
peito com uma longa inspirada.

A cada segundo, eu repetia mentalmente o mantra,


que, na língua deles, me parecia algo relaxante de se
cantarolar.
De dentro do aposento, Hidemi abriu a porta,
alternando um olhar para mim, e o que eu vestia,
reprovando veemente. Sua postura corcunda aberta
indicava para entrarmos, então o fizemos
silenciosamente.

217
O forte frescor amadeirado de incenso entrou por
minhas narinas, nauseando-me instantaneamente.
Uma quantidade absurda de arranjos de flores violetas
rodeavam o grande altar, com a foto recente de Amélia
enquadrada acima, trazendo o resto de vida que faltava
ali. Ao lado, jazia as cinzas na pequena urna branca de
cerâmica lisa. Suspirei ajoelhando-me diante da
bancada, que continha um incensário redondo
prateado, onde uma fumaça trêmula e paralela
incendiava o topo de lascas de madeira em pó.
Deitei a cabeça sobre o dorso das mãos, sentindo uma
última conexão de despedida entre nós.

Mãe, já faz três semanas desde sua partida. Não tem


sido fácil, e estou no processo de cumprir a minha
última promessa com a senhora.
Você acertou em cheio sobre seu próprio destino, mas
o meu continua em jogo. Mesmo com tudo isso, eu
darei sangue e suor para nos libertar dessa corrente.

218
Levantei, despejando com a ponta dos dedos, uma
pitada das lascas na brasa.
Coloquei-me ao lado de Hiro, que me observava com
piedade, e antes de tornar a falar, deu uma inclinada
com o corpo em minha direção.
— Não sabia que orava. — Murmurou com um sorriso
de canto.

— Não é oração, mas sim um desabafo. — Respondi


em tom frio, lançando um aceno de cabeça para
Hidemi, permitindo que ela abrisse a porta para que os
outros entrassem.

Enfileirados, Ichiro foi o primeiro. De cara fechada,


ele fez uma saudação e oração de frente ao altar e a
foto, salpicando incenso em brasa, repetindo à mesma
posição a minha frente, o que me deixou constrangida
por um momento. Em sequência, Hisaya, Yuriko, e o
Sr. Oyama refizeram igualmente.
Por fim, Hiro andou até o tatame, desabando de

219
joelhos. Não demorou muito para que suas lágrimas de
angústia começassem a descer por seu rosto
demasiadamente, desabando a chorar, queito e
cabisbaixo, encolhendo os ombros.
Senti uma pontada no peito, como se eu devesse o
acudir, mas era lindo de ver a falta de fragilidade que
ele passava, o que mostrava sermos mais parecidos do
que imaginava.

A mão de Hidemi passou por minhas costas, num leve


afago.
— Lucy, querida. — Proferiu, guiando-me até fora do
quarto, enquanto eu mantinha os olhos grudados em
Hiro, que parecia ter tomado as dores de todo mundo
naquele momento. — Se for demais... Não precisa
ficar para o jantar. Podemos levar até você se preferir.

Franzi a sobrancelha, como se tivesse deixado algo


passar.
— Estou me esquecendo... — Analisei o chão de

220
madeira envernizado, pensativa — Que horas são?

Ela ergueu o antebraço, cerrando os olhos para


enxergar os pequenos ponteiros do fino relógio que
circulava seu pulso.
— São... Seis e vinte. — Respondeu monotonamente.

Empalideci, sentindo meus olhos estalarem, e cada


batida em meu peito martelar num peso indizível.
— Eu me esqueci completamente... O jantar na casa de
Minako, é hoje. — Coloquei minhas duas mãos em
cada ombro de Hidemi — Sinto muito, muito mesmo.
Mas preciso ir agora. — Desvencilhei da mesma num
ímpeto, que permaneceu sozinha no corredor, sem
saber o que caralhos estava acontecendo.

Vesti a boina breton rapidamente, empurrando as


mechas da lateral para dentro, não deixando nenhum
fio de fora. Contornei a saída da residência, guiada por
uma rampa íngreme da descida, que levava até as ruas
do vilarejo.
221
O grande Sol que morria ao oeste, trazia cores
alaranjadas que pintavam o céu no fim do dia,
enquanto eu caminhava pelas ruas estreitas de terra da
aldeia, até chegar na casa mais florida do bairro
principal.

Escorada no portão aberto, a garota de braços cruzados


esperava pacientemente olhando de um lado para o
outro, num vestido branco que marcava suas curvas
magras.

— Minako! Espera! — Gritei ofegante, apertando os


passos — Me desculpe, de verdade. — Cheguei perto
dando uma guinada, e respirando fundo com o cenho
franzido.

Seus olhos puxados brilharam, fitando-me de baixo


para cima.
— Uau... — Sua expressão logo se abriu, fascinada. —
Foi por isso que demorou? Um terno... Sério isso?
Tem que ser riquinha até em um jantar simples?
222
— Hum... Claro. A primeira impressão é sempre a que
fica. — Gaguejei incerta, ajeitando a manga do paletó.
— Podemos entrar? Não quero que seu pai pense que
esqueci.

Eu havia me esquecido.

Minako puxou meu pulso com força, levando-me


através do pequeno jardim florido no quintal, até a
porta de entrada. — Tenta não falar sobre o nossos
"estudos". — Completou abrindo a porta, e esboçando
um sorriso forçado.

A casa internamente exalava um ambiente simples e


confortável, tendo alguns traços modernos.
Retirei os sapatos fechados, tornando a ficar apenas de
meia no assoalho. Então o pai de Shinkai, que
permanecia sentado na cadeira da mesa alta, se
levantou, voltando seu olhar completamente a mim.

223
Seu rosto redondo com traços de rugas no bigode e na
testa, revelavam sua idade avançada, com uma
aparência em torno de uns sessenta anos. Os cabelos
grisalhos tinham pontos de calvice e apesar de tudo,
ele tinha uma forte presença de um senhorzinho que
vivia tranquilamente.

— É um prazer conhecê-lo, Dr. Sonohara. — Semi


curvei o corpo em sua direção, com as mãos
descansadas ao lado do corpo — Sinto muito pelo
atraso. O cheiro de comida está ótimo.

— Não se preocupe, filha. — Estendeu os braços,


esboçando um sorriso gentil, indicando a cadeira vazia
ao lado — Por favor... sente-se.

Sobre a mesa de madeira, haviam diversas porções


divididas em tigelas vermelhas, incluindo nabo, shari
e missoshiru. A sopa estava com bastante tofu, e
regado de cebolinhas picadas em pequenas frações. De

224
maneira que seu aroma temperado e irresistível me
fizesse salivar no mesmo momento.
— Sirva-se, por favor. — Minako exigiu, tentando
decifrar minha reação — Queremos que provasse
primeiro. Fomos nós que fizemos.

— Parece estar ótimo. — Afirmei confiante,


adicionando nabos por cima do arroz, e separando um
prato de sopa quente.
Abocanhei a comida sentindo o sabor acentuado do
ácido acético, misturado com um tempero agridoce do
legume, inebriando-me com a textura fibrosa e rica em
sabor a cada mastigada.
Dr. Sonohara e Minako me encaravam estáticos,
tentando decifrar minha reação com os olhos semi
cerrados. — Isso... Está perfeito! — Enchi a colher
com o líquido de missô, bebericando alto — É tão,
saboroso...

— Ótimo. — Dr. Sonohara respondeu satisfeito,

225
começando a comer junto de Minako — Sabe, está
sendo ótimo para minha filha, dar aulas voluntárias
para você, senhorita Guerra. Ela disse que você está
conseguindo avançar rápido. — Minako deu um gole
d'água, tentando esconder o rosto envergonhado.

— Ela disse, é? — Soltei um riso abafado, voltando o


olhar cômico direto para ela, fazendo com que a
mesma engasgasse, de forma que toda água do copo
voltasse direto em seu rosto.
Se qualquer tipo de investigador tentasse interrogá-la,
provavelmente ela assumiria um crime que nem sequer
praticou, por pura pressão.

— Está tudo bem... Estou bem. — A garota retomou o


fôlego a palma da mão baixa, limpando o rosto com
um guardanapo acima da mesa.

— Ouvi dizer que é filha de Guerra. Deve ser um


prodígio como sua mãe, não é? E também tem o rosto

226
dela. — Sonohara interpelou admirado, abocanhando
uma colherada da sopa.

— Ora, eu penso que apenas puxei a aparência. —


Soltei um riso irônico, sentindo um chute embaixo da
mesa. O que me fez saltar, despertando olhares
confusos — Au! É... Mas como sabe, a prática leva a
perfeição. Passar o tempo aqui no Japão, tem me
mudado bastante, e Minako... — A encarei
embriagada por seu cheiro frutado e sua aparência
angelical. Que me olhava de volta, temendo qualquer
coisa que eu falasse — ...Está sendo a primeira, e
definitivamente a melhor amiga que eu já tive em toda
minha vida.

Sua filha é um gênio do Kyudo, senhor Sonohara, até


melhor que minha mãe. — Deu um sorriso de canto,
voltando a comer em silêncio.
A energia de muito esforço nela era angustiante, e
perceber toda a cobrança que Minako sofria em casa,
ou talvez por si mesma, era inevitável. Mesmo diante
227
de tantos sorrisos, me esqueci, que igual a mim, ela
não tinha uma mãe.

— Fico feliz em saber que todo esforço dela esteja


sendo reconhecido. — Cativado o suficiente, Sonohara
completou de imediato — Estou orgulhoso, Minako.
— O mesmo segurou a mão dela, com sinceridade
sobre a mesa, o que me fez invejar quieta, a relação
dos dois — E então, Lucy. O que pensa em fazer
quando voltar ao Brasil? Alguma faculdade em mente?

— Morarei aqui por alguns anos. Tenho um trabalho


de intercâmbio no Japão... Minha mãe quer que eu
conheça quem a criou. — Menti severamente, sem
nem falhar a dicção. — Amélia acha que isso será
importante para meu currículo, entende? — Lancei um
sorriso forçado, sentindo um clima tenso permear o
ambiente.
Minako me encarava com toda a credibilidade, como
se eu fosse alguma figura importante. Porém, o

228
semblante neutro de Sonohara me fez questionar meu
próprio poder de persuasão. Talvez a fofoca de que
Hiro era meu pai, já devia ter chegado ao seus
ouvidos.

Após o jantar, lavei todas as louças, tendo um tempo


de conversa com Minako a sós, mas que mal dera
tempo de contar sobre meus próprios cabelos. Não
poderia arriscar e falar tudo agora, pelo menos não
após a mentira descarada sobre intercâmbio, que
enganou apenas a ela.
— Acho que seu pai não gostou de mim. — Propus em
murmúrios, saindo pelo quintal até o portão de saída.

A jovem me encarou incrédula, como se discordasse.


— Qualquer Guerra ou Hanaoka é bem-vindo. Ele
conheceu todos, até Amélia. — Riu ironicamente, o
que me fez admirá-la de longe. Boba e incrédula com
sua beleza.

229
— Eu agradeço pela paciência comigo... E por ter me
chamado para um jantar. — Pigarreei encolhendo os
ombros. — São pequenos momentos, mas são muito
importantes para mim. — Sorri de canto, saindo portão
afora.

— Ei — Me chamou, estendendo um dos braços


escondidos atrás de suas costas, revelando diversas
rosas tão vermelhas quanto sangue, juntas num buquê
só.
— São as rosas daqui de casa. Eu mesma as germinei.
— Entregou em minhas mãos, tornando a ficar tímida
— Significa amor duradouro.

Estalei os olhos, congelada com o que disse.


— Muito... Muito obrigada Minako. — Correspondi
pegando o arranjo, e inalando seu cheiro adocicado —
São lindas iguais a você. — Meu estômago gelou, e
meus batimentos aceleraram. — Hum... Eu vou indo,
Hidemi me matará se eu voltar tarde. — Acenei

230
virando-me para sair, mas um puxão em meu braço me
fez voltar a encará-la. De maneira que uma pressão
macia apertou-se contra meu rosto, fazendo-me dar
conta de que eram os lábios quentes e rosados de
Minako que estavam colados em minha bochecha.

Ela rapidamente se afastou, com o rosto corado, e a


palma da mão a frente da boca. Me olhando
timidamente.
— Agora você pode ir — Respondeu, fechando o
portão de grades de ferro, e correndo para dentro de
sua casa como um foguete, sem ao menos olhar para
trás.

231
CAPÍTULO DOZE
OBSESSÃO

— O que eu faço?! — Esbravejei enquanto aparava

as folhas dos arbustos perenes no jardim principal com


Hiro, para que qualquer um que entrasse pela porta,
admirasse a perfeição em cada detalhe. — Não posso
simplesmente virar e dizer que menti, ela me odiaria
por isso. — Completei, largando a tesoura de
jardinagem e soltando um suspiro pesado após ter
passado horas no sol, tendo apenas a cobertura de um
fino chapéu de palha sobre a cabeça.

— É... Você dificultou mentindo, mas teve um motivo


para isso. — Hiro sugeriu cordialmente, descansando
232
o antebraço desnudo e levemente malhado sobre o
joelho, ponderando — Pode dizer, que, apenas não
estava confortável em relação.

Diga a verdade, se ela gosta da sua amizade, irá te


entender e perdoar.

— Você acha? — Indaguei franzindo a sobrancelha,


olhando no fundo de seus olhos. — Devo contar tudo?

Ele deu um curto sorriso, fazendo um aceno em


concordância.
— Acho sim. — Levantou a mão, afagando minha
cabeça carinhosamente — Essa semana será a
audiência, será pior se ela descobrir isso na televisão
ou jornais. Teremos que ir a público uma hora ou
outra, Lucy.

Um estrondo na porta da entrada principal nos tomou a


atenção, de maneira que ao ser escancarada, duas
crianças pequenas entraram correndo adentro, risonhas
233
e saltitantes. A semelhanças das duas garotinhas eram
até que distinguíveis, parecendo gêmeas.
Atrás delas, Yuriko entrou segurando duas mochilas
amarelas de vinil, cambaleando com seu salto.
— Haruna e Haruhi! Tirem os sapatos agora. —
Exigiu impacientemente, então as pequenas voltaram,
fazendo-o.

— Suas primas chegaram. — Hiro voltou os olhos


para mim, com um sorriso que ia de orelha a orelha —
Vamos, elas querem conhecê-la. — Completou se
levantando para sair do jardim.

— Primas? Yuriko tem filhas? — Franzi o cenho


confusa.

— Sim. — Hiro apertou as mãos na cintura, esperando


alcança-lo — Ela é divorciada, então divide a guarda
das crianças.

234
Particularmente, esse tipo de situação, tornava essa
família mais normal e interessante.
Não que eu goste de conflitos, mas meu caso não seria
o ponto central de atenção, por ser uma nova
descoberta entre eles.
Ao entrar no corredor interno, Yuriko me aguardava
com um sorriso esboçando calmaria, disfarçando após
dar um grito com suas crianças.

— Oi Lucy, como está se sentindo? — Questionou


com uma voz fina e aguda. — Gosta de crianças?
Porque eu tenho de sobra. Elas não param de perguntar
pela filha do tio Hiro. — Franziu a sobrancelha,
estalando um muxoxo como se estivesse exausta.

Na realidade eu odeio crianças, com todas as minhas


forças. Eu sei que já fui uma, e é exatamente por isso
que as odeio, mas já que estou aqui para recomeçar,
quero me desfazer de ideais nem um pouco saudáveis.
— Sim. Eu gosto. — Respondi repuxando um sorriso

235
sofrido.

— Ótimo. — Hiro bateu uma palma como se estivesse


feito. — Então... O almoço está quase pronto. —
Completou arqueando seus ombros largos. — Aposto
que Hisaya fez okono de novo. — Murmurou de canto.

— Ela só sabe fazer isso. — Yuriko soltou uma


gargalhada cômica, fazendo todos nós rirmos. — Mas
confesso que é o melhor okonomiyaki que já provei.

Senti um puxão da cintura para baixo, assustando-me.


As duas meninas idênticas, na faixa de quatro a seis
anos, me prendiam em abraços na coxa, e encaravam
tentando comparar as características de Hiro ao meu
lado. Seus olhos puxados e estalados como burcas
redondas, traziam um brilho de inocência, que, me
tornava a criar uma compaixão certeira com elas.
As sobrancelhas curtas e juntinhas davam um ar mais
simpático para as duas, com um subtom rosado em

236
suas bochechas rechonchudas, como se tivessem
pegado bastante Sol.

— Por que seu cabelo é branco? — A garotinha,


poucos centímetros mais baixa que a outra, questionou
com a voz aguda como a de um pássaro.

— Você não se parece nenhum pouco com Hiro. — A


outra rebateu ingenuamente, continuando a me
abraçar. — Seus olhos são grandes.

Soltei um riso pleno e abafado, sentindo a essência


diferente em cada uma.
— Meu rosto é mais parecido com o de minha mãe, e
os cabelos são esquisitos, nem me perguntem.
Me chamo Lucy. Hanaoka Guerra Lucy. É um prazer
conhecê-las. — Respondi afinando o vocal,
assemelhando-me a uma apresentadora de televisão
infantil — Vocês são lindas, como se chamam?

237
Imediatamente a menina mais alta segurou as mãos a
frente do corpo, como se liderasse o que cada uma
fosse falar.
— Eu me chamo Ono Hanaoka Haruna, e minha irmã
se chama Ono Hanaoka Haruhi.
É um prazer conhecê-la senhorita Lucy. — Com a
resposta da mais alta, as duas se curvaram
formalmente, o que me deixou extasiada com tamanha
fofura, me confundindo com os próprios sentimentos
anti-natalistas.

— Eu não acho seu cabelo esquisito, a cor é...


diferente. — A outra confessou, dando um sorriso
maior. — Quero te mostrar o que a gente está
aprendendo na aula, sei fazer vários origamis. — Sua
pequena mão puxou a minha, guiando para dentro de
um dos cômodos ao lado oeste. Onde curiosamente eu
ainda não tinha entrado, e era o quarto onde ficavam
as camas, com um ar simples e rústico.

238
Depois de quase descarregar minha bateria social com
as gêmeas, me rendi em ir até a casa de Minako contar
sobre os meus cabelos, após sua provação de amizade
mútua de um beijo e uma rosa. Completamente normal
aos meus olhos, não sei ela.
Ao fim da rua, onde havia uma pequena mercearia,
Hiro saía com algumas sacolas de pano branco em
cada braço, caminhando em passos devagares e
rítmicos.
— Senhor Sonohora! — O chamei em voz alta, de
maneira que todos os outros moradores olhassem de
volta curiosos.

Ele virou sua cabeça calva com cabelos grisalhos em


minha direção, um tanto espantado com os gritos.
— Boa tarde Lucy, aconteceu algo? — Interpelou
calmamente diante de minha reação.

— Boa tarde... Hum, não aconteceu nada. — Sugeri

239
encarando o peso que ele carregava, deixando sua pele
enrugada irritada e vermelha. — Deixa que eu te ajudo
a levar, por favor. — Completei puxando uma de suas
bolsas de pano, onde haviam verduras transbordando,
o que é difícil de se ver por aqui.

— Eu agradeço. — Soltou um riso abafado. — E


então. O que te traz aqui, Lucy? — Questionou
andando ao meu lado, enquanto eu tentava o
acompanhar em passos lentos. — Aconteceu algo?

— Na verdade, eu gostaria de perguntar se Minako


está em sua casa. — O encarei com um semblante
desconfortável.

— Bem, ela está no dojô desde manhã, talvez devesse


procurá-la por lá. — Assegurou confiante. — Tem
certeza de que está tudo bem? — Insistiu
questionando-me, desconfiado.

240
— C-claro. — Gaguejei parando a frente do seu portão
com grade de ferro — Muito obrigado. Irei procurá-
la.
Foi muito bom falar com o senhor.

Oi Minako. Eu menti para você, me perdoa.


Oi Minako, eu tive que te esconder a verdade para
não te magoar.
Magoar quem? Sua idiota.

Seguindo a trilha da colina mais alta, me dei conta de


estar totalmente absorta em pensamentos, escolhendo
cuidadosamente cada palavra que iria utilizar ao
encontrá-la.
Não poderia ser tão direta para não parecer rude, e
nem enrolar demais.
Meio termo. Equilíbrio.
Subindo as longas e retas escadarias de cimento antigo
que levavam até o dojô, não pude deixar de perceber a
quietude do ambiente. Trazendo apenas a ventania

241
intensa, ao qual os galhos estremeciam quando
soprados com força.
Pisando em terra, os pedregulhos começavam a se
formar, direcionando o caminho até dentro do local,
então o fiz, buscando com os olhos vidrados, algum
sinal de Minako.
O interior do lugar estava vazio, havendo apenas uma
bolsa de malha de esportes escura, jogada sobre o
tatame, sendo a mesma que usou a primeira vez que
nos conhecemos.

— Para! — Um grito feminino seguido de farfalhares


me fez correr até os fundos, na área de treino com
alvos.
Freei o corpo bruscamente ao lado da parede, e lá
estava ela. Parada na área externa, de quimono e o
arco jogado ao chão.
Seu vizinho, Kobashi, se mantinha a poucos
centímetros dela, puxando seu queixo com a ponta dos
dedos, e levando seus lábios finos próximos ao seu,

242
comprimindo um beijo longo e demorado. Minako não
relutou, permanecendo os punhos soltos ao lado do
corpo.

Senti o sorriso de confiança em meu rosto


simplesmente se esvair. Acompanhado de uma
vertigem que me tomou num torpor inevitável diante
daquela cena.
Uma aflição de insuficiência me agarrou pelo pescoço,
de maneira que meu estômago e a respiração se tornou
ofegante ao vê-la.
Eu estava enciumada, pela única pessoa que me deu
afeto estar se dando bem com outro.
Não posso aceitar isso de boa. Talvez amanhã ela
passe a dar rosas e beijos nele também, ou ela faz isso
com todo mundo que conhece.
Sinceramente eu não ligo, e por que ligaria? Eu a
conheço há poucas semanas.

Apenas dei meia volta, e retornei até a casa dos

243
Hanaoka, com uma postura abalada e encolhida por
todo o caminho.
Seu rosto angelical e sorridente não parava de vir a
minha mente. Como se fosse viciante lembrá-la, sofrer
repetindo seu nome com destreza, soando como um
grito de dor.
Mi na ko.
Não era paixão, mas sim, algo... totalmente diferente
com ela. Sua presença era quase uma eutanásia diante
de tamanha dor, e eu não podia perder isso tão rápido,
por causa de um marmanjo velho, que, mal sabe beijar
uma garota.

Um barulho grave na batente de madeira, me fez


interromper o ajuste do quimono de treino no corpo.
parada na porta corrediça, a garota entrava ofegante
com a mesma mochila que usava no dojô.
— Com licença, Lucy — Mechas úmidas do cabelo

244
preto e liso decaíam grudadas em sua testa —
Desculpe o atraso, meu pai...

— Não percebi. — Respondi indiferente. — Entre.

Minako tornou a me encarar, com os olhos semi


cerrados.
— Por que está de quimono? — Puxou os livros
encapados de sua bolsa de lado, folheando-o. — Ainda
não terminamos o penúltimo livro...

— Eu li absolutamente todos eles. — Entoei andando


em direção à porta da entrada de shoji da biblioteca de
estudos, passando ao seu lado, fazendo quase minha
postura desmoronar com seu calor e odor frutado —
...Semanas aqui, e eu tenho me esforçado para
aprender. Então antes de me apresentar a obra, ao
menos pergunte se eu conheço, talvez eu seja mais
inteligente do que pensa.

245
— Olha... Não foi isso que eu quis dizer. — Concluiu
tentando me alcançar. — Apenas sigo ordens.

— Shinkai. — Cuspi seu nome como um palavrão em


meus lábios, virando meu rosto de lado para olhá-la de
canto. — Já perdemos tempo o suficiente. Vamos
começar a aula prática. — Exigi empurrando a porta
com tamanha força, que rebateu na parede, seguido de
um estrondo alto.

— Lucy. O que eu te fiz? — Sua voz afinou num tom


choroso às minhas costas, então resisti em não
respondê-la, voltando a andar sem me virar para trás.

Eu já havia perdido parte de mim, então o racional


seria não dar o meu último pedaço para alguém que
acabei de conhecer, e que, não seria capaz de me
corresponder no mesmo nível. Tudo isso é perda de
tempo, já que meu objetivo ali não era conquistar
corações, mas sim alcançar a única pessoa que havia

246
fodido minha vida.

Trinta centímetros do alvo de feno, eu sentia minha


própria respiração, numa tentativa de incorporar a
base, com o arco de tamanho grande posicionado à
frente do meu rosto.
— Deixe os braços abertos, e o punho bem firme. —
Minako me rodeava, atenta a qualquer falha para
corrigir — Não se esqueça dos pés, eles são o que
mantém sua postura. — Chegou próxima a mim,
colocando suas mãos finas em minha cintura, girando-
a um pouco para o lado, de maneira que ficasse na reta
dos ombros, com os pés abertos para fora, num ângulo
obtuso.
Os poucos segundos que ela chegou perto de minha
nuca com sua respiração quente, foram o bastante para
me arrepiar dos pés à cabeça.
— Ah, melhore a altura desses ombros. — Corrigiu,
pressionando meus cotovelos para cima com os dedos.
— Ótimo, agora tente usar a flecha.

247
Posicionei, repuxando o braço contra o peso do grosso
fio que unia cada lado do arco, com a postura aberta e
os braços na altura dos ombros.
Soltei os dedos, sentindo o sopro de ar passar perto de
meu rosto, e em segundos, a flecha estava totalmente
fincada com uma precisão inexata no alvo.
Era um começo.

— Bem, posso tentar de novo. — Sugeri puxando


outra longa flecha da mesa de bancada ao lado, mas
Minako deu um tapa em minha mão, repreendendo-
me.

— Primeiro, analise o que acabou de fazer. — Sugeriu


encarando o alvo de longe. — Não há erros e nem
acertos no Kyudo.
Observe como a posição da flecha remete ao seu
interior, e como está se sentindo. Tente aprender com
seus desvios.

248
— Talvez se eu praticar mais... Eu consiga melhorar
— Soltei um murmúrio seco, quase que inaudível.
Ajustei outra flecha no arco, voltando a posição dos
pés abertos inicialmente.

— Sabe, nem tudo é sobre prática. — Minako


assoviou ao meu lado, dando espaço para mirar em
direção ao alvo, com os olhos atentos no ponto de
foco.

— Como ontem... Eu não sei explicar, mas mesmo


treinando sem pular um mísero dia em toda minha
vida, consegui errar todas. Tudo porque Kobashi veio
me beijar com aquela boca seca de sapo. — Senti uma
pontada em meu peito se tornar um choque, passando
por todo meu corpo como um curto circuito.

Minha mão automaticamente soltou a fina estaca de


madeira polida, que acertou em cheio o meio do alvo

249
vermelho.
— Você acabou de dizer que não existe erros no
Kyudo. — Ironizei aumentando o tom de voz.

Minako fez um muxoxo cruzando os braços, e dando


de ombros.
— Tudo é diferente quando se é uma competidora
nacional que depende disso. — Completou
aquietando-se por um longo momento, antes de tornar
a falar sobre o garoto miserável do dia passado. —
Mas sabe... Não foi tão ruim assim, eu até me senti
desejada. — Riu timidamente, de maneira que seu
rosto corou.

Por um acaso ela sabe o que é ser desejada de


verdade?
Aquele idiota só queria tirar proveito dela, porque é
jovem e ingênua, já que ele não consegue dar conta de
mulheres com a mesma idade dele.
— Olha, Shinkai. Você não sabe escolher bem. Isso é

250
fato. — Admiti fungando alto, de modo que ela me
encarou ofendida e boquiaberta. — Não vê o óbvio. —
Farpei, não resistindo em chegar perto dela,
intimidando-a de peito estufado e sugando sua alma
pelo olhar. — Por acaso sabe o que é um beijo de
verdade? Aposto que não. —
Ela cambaleou para trás quando meu rosto ficou de
frente para o dela, encarando-a mortalmente. Soltou
um suspiro envergonhado, desviando o olhar.
— Acorda. Você tem dúvidas sobre seus próprios
gostos, mas saiba que não irá conseguir manter essa
máscara por tanto tempo.

Sua energia angelical naquele momento havia se


transformado, transparecendo em seu rosto, um
sentimento obscuro.
Minako cerrou os punhos e franziu o cenho,
totalmente irada.
— E por um acaso você sabe beijar? Sabe o que é ser
amada? — Gritou caótica, me fazendo gargalhar de

251
forma cômica.

— Eu sei de coisas que você jamais sonharia. —


Rebati, largando o arco no chão. — Minako... Só vai
embora daqui. Agora.
Você nunca conseguirá me acompanhar. — Ordenei
encarando-a friamente com o dedo apontado para os
corredores externos.
A mesma bufou decidida, saindo com passos pesados
para fora do campo de treino, e batendo a porta de
entrada com força ao sair.

252
CAPÍTULO TREZE
PODER E JUSTIÇA

Permaneci inerte e focada nos livros antigos e


pesados da biblioteca, mas nada conseguia tirar a
energia densa que me acompanhava desde que fui rude
com Minako.
Talvez ela nem sentiu o suficiente a ponto de ligar ou
pensar sobre a discussão, então por que eu deveria me
preocupar?
Mesmo assim eu penava, abraçando a idéia de ir até
sua casa e pedir desculpas ajoelhada. Contando tudo
que me fez chegar até aqui, e desmentir o que eu disse.

— Lucy, compareça à sala de reuniões. — A voz


ardida de Hisaya ecoou atrás da porta corrediça, me
fazendo sobressaltar, assustada e tomada pelo torpor
enquanto tentava decifrar um velho cubo mágico, que,
253
eu achara jogado em minha bolsa vermelha, embolada
junto das roupas que trouxera de Kanazawa.

Vesti uma calça jeans com o dobro do meu tamanho, e


uma camisa regata preta, adaptando ao calor excessivo
daquele dia de quarta, que me trazia a nostalgia em
dias de verão no Brasil.
Fui até a sala de reuniões, em um dos quartos ao oeste
térreo da casa, podendo me dar conta da merda que eu
fiz, quando que Hiro, Hisaya e Hidemi estava sentados
à mesa, se encarando quietos.

— Sente-se, Lucy. — Hiro ordenou apontando para a


cadeira à sua frente. — Gostaríamos de conversar
sobre sua situação atual.

Acenei levemente a cabeça ao entrar, direcionando-me


na cadeira de madeira entalhada, com detalhes
orientais em sua lateral.

254
— Você tem que aprender a ter estabilidade
emocional, Lucy. Sonohara Shinkai era sua mentora
de Kyudo. — Hisaya andava de um lado para o outro
com as mãos juntas atrás do corpo, tentando achar
algum meio de consertar a situação, pacientemente —
O que faremos agora?

Suspirei engolindo seco, e digerindo sua bronca.


Arruinei à mim mesma, mas havia um túnel de saída
que levava às probabilidades de ser perdoada, não por
ganância ou ambição, mas porque sem Minako, tudo
era entediante e sem brilho.
— Irei me desculpar pessoalmente. — Reafirmei
decidida, acompanhando Hisaya que continuava andar
pela sala em passos inquietos — Não se preocupe,
minha tia. Perdoe-me os conflitos e desavenças
desnecessárias, irei consertar isso, imediatamente. —
Baixei a cabeça, envergonhada com todos me
encarando, reprovando meu comportamento.
Menos Hiro, que parecia aberto a decepções, vidrado

255
em mim com um semblante sereno.

— Lucy, minha filha. — Sua voz masculina ressoou


no cômodo, então o fitei, corada pelo constrangimento
— Sua única chance de fazer isso é hoje, então
apresse-se. — Ele deixou um sorriso escapar, como se
ignorasse qualquer erro meu. Suas tentativas de me
manter o mais confortável possível em relação à
minhas amizades e convívio casual, era admirável, e
eu estava desvalorizando-o completamente.

— Por que apenas hoje? — Pigarreei alternando


olhares confusos, de sobrancelha vincada.

— Te chamamos para conversar sobre a tutela, não


para questionar sua escolha de mentoria. — Hidemi
soltou uma fala seca e indiferente — Conseguimos
antecipar a data da audiência. Portanto amanhã iremos
até a capital. — Completou.

256
Acenei com a cabeça levemente, escondendo as mãos
trêmulas debaixo da mesa.
— Certo. — Engoli seco levantando-me para sair —
Estou preparada, mas preciso ir agora. Tenho algumas
coisas a terminar.

— Você está bem saída ultimamente. — Parei frente à


porta corrediça, sorrindo com a suposição de Hidemi
— Fico feliz que esteja se dando bem no vilarejo.

— Bom, até agora ninguém me pediu para sambar no


meio da rua, já é um bom começo. — Conclui, dando
as costas e saindo da sala.

Por um longo tempo, me peguei sentada no corredor


externo que levava ao jardim principal, admirando o
cantarolar dos pássaros e a batida de asa dos grilos,
enquanto procrastinava contra a realidade objetiva da
vida, onde certamente eu temia pedir perdão, mesmo
tendo em mente meus próprios erros esquivos.

257
Não fuja do seu destino. Me prometa.

Eu estava deixando de lado a constância ao qual eu


tanto prometera obter, mas entendia que para
continuar, deveria assumir minhas próprias
responsabilidades.
Desci as escadarias de pedra na entrada de casa, com
as mãos suando frio, e as pernas bambas.
No começo da estrada íngreme de terra que levava até
a aldeia, era possível enxergar o vislumbre de uma
pessoa com roupas claras subindo. Não demorei para
perceber, que, pelo andar com jogadas de quadris
harmônicas, era Shinkai, andando lentamente até o
topo da casa.
Ela está vindo para me ver? Ou esqueceu algo naquele
dia?
Apressei os passos, numa ânsia de alcançá-la para
contar tudo, sem pressa.
Freei à sua frente, tragando o ar puro pelas narinas ao

258
vê-la, estarrecida por sua beleza surreal intacta.
A sensação da estática quando cheguei perto de seu
corpo, me fez arrepiar por inteiro, como um
sentimento único e inexplicavelmente bom.
— Oi... — Suspirei dando um sorriso sem graça.

Ela repuxou o lábio desconfortavelmente, tentando


não me encarar com seus olhos melancólicos.
Trazendo sua chateação à tona.
— ...Oi. — A mesma murmurou, cabisbaixa e sem
reação — Eu vim para conversar com você, sobre
segunda-feira.

Ela não havia desistido de mim, o que me fez pensar


na possibilidade de manter nossa chama da amizade
acesa.
— Coincidência ou não, mas eu estava indo até sua
casa para falar sobre isso. — Afirmei vincando a
sobrancelha — Minako... Me perdoe por favor, eu
sinto muito, muito mesmo. Fiquei enciumada com seu

259
beijo com Kobashi, e descontei em você... Não foi
justo. — Minako me lançou um olhar atônito, como se
seu brilho rapidamente voltasse — Podemos entrar?
Quero te contar tudo, mas é uma longa história...

Ela abriu um sorriso de canto, estendendo a mão


direita a frente do corpo.
— Não há o que perdoar, brigas entre melhores amigas
acontecem, não é? — Vibrei ao ouvir sua mais nova
consideração a meu respeito, então retribuí num aperto
de mãos e um sorriso inevitável.

Levei Minako até o altar, e desabei cada pedaço de


segredo que guardei durante esse tempo todo. Desde a
morte de minha mãe, até meus laços familiares com os
Hanaoka, não deixando nada passar.

— Foi por isso que mentiu? — A garota indagou com


voz falha, e uma expressão de comiseração em seu
rosto — E ainda se culpou?! POR QUE SE

260
CULPOU?! — Interpelou aos gritos, estressando-se
com um rosto amável, mesmo que franzido.
Não contive, então soltei um riso constrangido — Está
rindo de que? Somos amigas ou não?
Tudo no seu tempo, não posso te culpar de não me
contar algo que te faz desconfortável só de pensar.

— Você está certa, mas mesmo assim, menti para o


seu pai. Não sei onde enfiar minha cara, e tem mais
uma coisa que eu não te contei no dia do poço das
cerejeiras... — Puxei minha boina, mostrando-a os
cabelos tão brancos quanto a neve que decaíam
ondulados até os ombros. Envergonhada.

Minako arregalou os olhos, tornando a ficar


boquiaberta e pálida.
— Caralho... — Sua reação pasma me deixou
desconsertada — São naturais?

— Totalmente. — Levantei-me, pegando o pequeno

261
baú acima do altar do kamiza, onde a profecia se
mantinha guardada. Dentro, havia um grande papel
grosso e antigo, então o desenrolei, abrindo a grande
mensagem escrita em hiragana com tinta nanquim, e
colocando sobre o tatame para que Minako lesse —
Isso significa que haverá uma guerra em breve.

PASSAGEM DA EMISSÁRIA

Na madrugada de verão, um prelúdio da família


Aratani Hanaoka, em questão, trouxe Tomoko
Hanaoka Aratani, neta de Mahina, e proveniente de
sua filha primogênita, Hana Hanaoka.
Breve, ocorrerá uma guerra por traição por sangue, e
o kami cultuado em vossa aldeia trará à vida a última
espadachin, a prometida e intocável. A única que será
capaz de matar o traidor, que, tentará derrubar o
império.
A emissária será uma mulher, forte e saudável, de
braços largos e a marca do clã tatuada em seu

262
pescoço.
Seu visível sinal ao pisar em terra, será seus cabelos
naturalmente brancos e ofuscantes, carregando
consigo uma katana que levará muitas almas, antes de
matar o traidor de sangue indígno.

Mordi o lábio inferior, acompanhando o olhos


estalados de Shinkai, que lambiam o papel sem pressa,
aparentando ver uma relíquia em sua frente.
— Lucy... Como? — Sua voz me questionou em um
tom incrédulo — Se você soubesse por quanto tempo a
aldeia temeu que esse dia chegasse...

— São muitas informações, eu sei, mas não tenho


culpa. — Dei de ombros soltando um longo suspiro
cansado — Nem sei se acredito verdadeiramente nessa
baboseira ritualística e hereditária.

— Culpa você não tem mesmo... Tem sorte, isso sim.


— Cantarolou disparando um sorriso sincero — Os

263
Hanaoka sempre tiveram a obsessão nas mulheres da
família exatamente por isso, então a sua vida toda você
será tratada como uma princesa ou algo do tipo.

Sua reação não convencional, me trouxe uma leve


sensação de amparo, já que eu pensava que haveriam
riscos dela nunca mais querer olhar na minha cara
após contar tudo.
Bom, particularmente eu estava lidando bem até
demais com a situação, mas algo me dava medo.
Talvez pelo protagonismo que eu não tinha nascido
para liderar, ou por ter que matar muitos, como dizia a
própria profecia transcrita, se levada ao pé da letra.
— Pensei que fosse me odiar por isso. — Murmurei
olhando no fundo dos seus olhos, que reluziam sob a
luz fraca do Kamiza.

Minako deu um riso agudo, me deixando constrangida.


— Por que eu te odiaria? Isso te torna muito
misteriosa, sabe como é, mas se alguém de olhar torto

264
na aldeia, eu mato. — Ergueu o punho, socando o ar
seguida de uma risada cômica.

— Ótimo, então posso contar com você. — Dei de


ombros.

— Por um acaso você tinha dúvidas se podia confiar


em mim ou não?! — Franziu o cenho com implicância
— Levanta, vamos continuar onde paramos na
segunda. Hisaya vai querer que eu te dê as aulas
Kyudo por um bom tempo, tenho certeza.
Pelo jeito eu preciso te treinar para matar muitas
pessoas.

— Engraçadinha. — Cantarolei em tom de ironia.

*
Junto de um silêncio mortal, Hiro se mantinha sério no
volante, alternando entre me encarar pelo retrovisor, e
olhar a frente pensativo.

265
Ichiro o caminho inteiro, lia uma papelada no banco da
frente, sem nem desviar os olhos, enquanto Yuriko e
Hidemi ao meu lado, tagarelavam coisas fúteis, que,
eu nem me esforçava para entender.

Um barulho tocou incessantemente, então Yuriko


fisgou de sua bolsa, um celular pequeno.
— Estamos descendo o estacionamento. — Respondeu
numa voz monótona, estalando os olhos — O QUE?

Hiro deu uma freada brusca no carro, virando seu


tronco para olhá-la.
— Yuriko, o que houve? — Interpelou franzindo as
sobrancelhas.

— Tudo bem, já estamos descendo. — Desligou o


celular, ainda vidrada em mim. — O caso da Lucy...
Foi vazado.

— C-como? — Questionei aumentando o tom de voz,

266
sentindo uma fraqueza indizível me assolar.

— Os repórteres descobriram que Hiro é o pai de


Lucy... Alguém de dentro vazou, e agora estão todos
esperando nossa chegada.

— Se não foi os Murakami... Então temos um traidor


trabalhando conosco. — Ichiro caçoou, ainda lendo a
papelada.

— Lucy... Você consegue fazer isto? — O homem de


rosto andrógino me fitou por uns momentos, trazendo
à tona sua compaixão momentânea. — Não responda
nada à eles.

— É... É claro. — Respondi com a voz falha, baixando


a cabeça.

O carro desceu o estacionamento subterrâneo, que se


encontrava vazio, contando apenas com uma mulher

267
de rosto familiar, que chegou mais perto de nós,
vestindo roupas formais e salto alto.
— Takamatsu. — Hiro entoou seu nome, dando um
passo a frente dela e acenando levemente a cabeça.

Era a mesma advogada que fez a reunião na casa dos


Hanaoka, com o mesmo olhar malicioso em Hiro,
analisando seu corpo alto e magro no sobretudo preto,
sem nem disfarçar.
— Ela será a advogada. — Sim, essa vaca gostosa iria
me representar.

— O-ok. — A analisei de cima abaixo, arqueando a


sobrancelha — Precisamos ir, não podemos nos
atrasar.

Ao pisarmos no saguão, diversas pessoas engravatadas


correram em nossa direção, usando câmeras com
flashes que disparavam a todo segundo, nauseando-me
instantaneamente.

268
Alguns repórteres enfiavam um microfone em minha
cara, e na de Hiro, aguardando com os rostos sedentos
de ganância, uma resposta que nenhum de nós se deu o
luxo de responder.

— HANAOKA HIRO, GUERRA LUCY É SUA FILHA


LEGÍTIMA COMO DIZEM AS INFORMAÇÕES
VAZADAS?

— LUCY, GAROTA! VOCÊ VIU QUEM MATOU SUA


MÃE? O QUE ACONTECEU NAQUELA
MADRUGADA?

— SENHORITA GUERRA, COMO ESTÁ SE


SENTINDO EM SER ADOTADA POR UMA DAS
FAMÍLIAS MAIS RICAS? É TUDO UM JOGO DE
INTERESSE?

Perguntas sem fundo, tão desnecessárias... Aquilo tudo


era o bastante para me dar vontade de vomitar, seguida

269
de uma sobrecarga sensorial que aguçava junto da
vertigem no grande espaço, ocupado por pessoas
amontoadas.

Os longos corredores do tribunal, levavam à uma sala


fechada com janelas pequenas, claramente um espaço
onde pessoas grandes iam, quando se tem poder
suficiente para não trazer algo à tona, se é que me
entende.
Havia ali, uma mesa retangular de madeira, com copos
de vidro posto em cada lugar, junto de uma jarra com
água gelada. Quando o juíz e os auxiliares chegaram,
levantamo-nos, esperando que cada um se sentasse no
lugar.

— Boa tarde senhor Hanaoka, quanto tempo. — O juíz


gordo de rosto enrugado pela idade avançada, passava
uma energia calma, cumprimentando Ichiro e Hiro
com um aperto de mão amigável e um sorriso
simpático.

270
Ele acenou para as mulheres da família
silenciosamente, pousando os pequenos olhos
escondidos entre as gorduras faciais em mim — Então
essa é a filha de Hiro, hum? — Levantei-me
novamente, semi curvando o corpo levemente.

— É um prazer conhecê-lo, vossa excelência. —


Tranquei a respiração, então o mesmo correspondeu
com um aceno de cabeça, e um sorriso indiferente.

— Sinto muito por sua perda, senhorita Hanaoka. —


Pigarreou, abrindo uma pasta com diversos papéis, e
lendo rapidamente como se revisasse por segundos —
A advogada do requerente pode prosseguir.

A mulher sentada ao meu lado se levantou, abraçando


as mãos a frente do corpo.
— Nosso pedido de tutela de urgência antecipada, foi
inicialmente motivada por questões de saúde pessoal
da vítima, que pode ser constatada por psiquiatras e

271
neurologistas nacionais. — Suas falas robotizadas
pareciam tão interessantes, que até eu parei para
escutá-la. Focada no seu modo se expressar
abertamente, passando confiança em cada palavra —
A vítima teve diagnóstico de neurodivergência logo na
infância, sendo muito afetada em ambiente casual e
escolar. Gostaria de fazer um adendo, já que estamos
falando de um caso de tutela que relaciona ao caso de
homicídio em processo investigativo, mesmo que já
tenhamos a documentação de Guerra Amélia, mãe da
vítima, direcionando a tutela para Hanaoka Hidemi,
ainda assim gostaria que ouvisse uma das testemunhas
de Guerra Amélia.

O juíz deu um gole d'água, ajeitando a túnica como se


interessasse a cada momento mais.
— Prossiga. — Respondeu em concordância.

A advogada ficou à frente de Hidemi a encarando


diretamente com um olhar inexpressivo e vazio.

272
— Testemunha, faça sob palavra de honra, o
juramento de dizer a verdade do que souber e lhe for
perguntado.

Hidemi levantou a palma de sua mão frágil, e


envelhecida.
— Juro pela minha honra, dizer toda a verdade e só a
verdade. — Afirmou de maneira automática.

— Quando recebeu a ligação de Lucy? — Indagou


diretamente.

— Eu estava dormindo quando recebi uma ligação no


telefone fixo. Era uma ou duas da madrugada. —
Hidemi respondeu sem censuras.

Por fim, a advogada lançou um olhar resoluto para o


juíz, que ouvia silenciosamente.
— E você estava ciente de que Lucy era filha legítima
de Hanaoka Hiro? — Especulou novamente, então a

273
senhora franziu o cenho, discordando veemente. — Já
que nos documentos, em caso de extrema urgência,
você seria responsável pela tutela.

— Eu jamais teria consciência disso. Ainda mais


depois de Amélia alegar que não sabia exatamente
quem era o pai. — Hidemi mentiu descaradamente,
entre caras e bocas.

É óbvio que ela já sabia que eu era filha de Hiro, pois


sua reação quando eu a liguei, não pareceu tão
surpresa assim. Esse tempo todo, Hidemi já sabia que
eu estava destinada a entrar para esta família, então
apenas esperou pacientemente.

— Uma última pergunta, senhora Hanaoka. — A


advogada pigarreou, retomando seus questionamentos.
— Qual era sua intenção inicial, ao aceitar a tutela da
filha de sua sobrinha adotiva?

274
Um silencioso momento percorreu entre nós, sentados
à mesa, mas a senhora Hanaoka prosseguiu com
convicção.
— Amélia fora uma sobrinha de consideração muito
importante para a nossa família, por isso aceitei de
bom grado cuidar de sua filha em algum caso extremo.
— Completou cordialmente.

— A real questão é, como soubemos de tantas


informações em pouco tempo. — A advogada olhou
para o juíz com um sorriso convencido. — Tudo se
iniciou quando revisamos o estado de saúde de Lucy
antes de levá-la para a aldeia, ou alguma provável
falha genética que pudesse comprometê-la
futuramente, mas fomos noticiados, quando uma de
nossas hematologistas e geneticistas particulares
analisaram o sangue de Lucy, notaram algumas
semelhança genéticas de Hanaoka Hiro. Logo em
seguida compararam alguns resultados de amostras
que ele teria feito no começo deste ano.

275
Realizamos a transcrição do relato dos especialistas
relatando o ocorrido, com um anexo de cada de
resultado. — Inspirou, retomando fôlego — Isso é
tudo. — Semi curvou o corpo, voltando a se sentar ao
meu lado e bebericar a água no copo suado de
gotículas geladas que escorriam lentamente.

— Ótimo trabalho. — Cochichei para advogada ao


meu lado, conseguindo observar de canto de olho, um
sorriso em correspondência preencher seus lábios.

O juíz com seu rosto redondo, deu uma averiguada nos


papéis com evidências anexadas, me encarando logo
em seguida com os olhinhos minúsculos.
— Gostaria de ouvir a vítima em convivência nesse
meio tempo.

Congelei em meu lugar, ajeitando a lapela do terno


cinza escuro e mordendo o lábio inferior com
insegurança.

276
Hiro sentado à minha frente, lançou um olhar
fleumático e interessado, com as sobrancelhas
levemente arqueadas.

— Testemunha, faça sob palavra de honra, o


juramento de dizer a verdade do que souber e lhe for
perguntado. — De maneira repetitiva, correspondi o
juramento com a palma da mão levantada — Como
sabia o número fixo dos Hanaoka?

— Bom... Na verdade, antes de morrer minha mãe me


contou sobre a família que ficaria responsável por
mim, então apenas me entregou um papel indicando a
quem eu deveria ligar primeiro, caso acontecesse algo
grave. — Assumi, escondendo algumas partes
instintivamente — Só não imaginava que minha mãe
temesse que minha vida fosse jogada num um orfanato
clandestino, onde se colocam imigrante sem pais. Não
a culpo por essa situação, já que ela havia passado por
tudo isso quando criança.

277
No primeiro segundo que conheci os Hanaoka, me
senti segura. Todos esses dias eu tenho conhecido um
pouco mais sobre sua cultura e as pessoas do vilarejo.
— Inspirei olhando para Hiro de volta, que sorria com
os olhos brilhando — Na verdade, eu nunca me senti
tão bem acolhida em toda minha vida. Está sendo
incrível conhecer uma parte da minha família que
nunca tive contato antes.

278
CAPÍTULO QUATORZE
O AVANÇO DO PEQUENO

Se eu não tiver a constância que tanto prometi, não


poderei dar o orgulho que os Hanaoka esperam.
Com o passar dos dias após a audiência, resolvi me
dedicar mais à leitura familiar do clã. Escondendo-me
dentro da sala de estudos até de madrugada, e lendo
cada feito no império deles, do período Sengoku até
Heisei.
Desde antes, os Hanaoka se introduziram no comércio
e política, memorando grandes nomes familiares.

279
Eu faço parte de uma família com primeira mudança
de poder feminino, instaurando Hanaoka Mahina,
como a líder do clã após a morte de seus pais, junto de
sua filha primogênita, fruto de uma relação proibida
com o herdeiro do clã rival, Yamazaki.
Hanaoka Mahina é quase um nome canônico no
vilarejo, sendo a responsável em alternar todas as
técnicas de luta, e aceitando unicamente mulheres
como espadachins para protegerem seu clã, o que
mudou significativamente as estatísticas de ataques
rivais à aldeia, e ao seu império. Consequentemente
melhorando a qualidade de vida dos moradores, até
nos dias de hoje.

O barulho da porta corrediça de shoji me fez


interromper a leitura, então a voz rouca de Hidemi
ordenou com destreza aos meus ouvidos.
— Lucy, me acompanhe por favor. — Levantei-me,
sentindo um frio gelar minha espinha.

280
— Senhora Hanaoka, tem algo que posso ajudar? —
Seguindo-a pelos corredores da casa, interpelei atônita,
de maneira que ela me encarou com seus olhos
puxados e abriu um sorriso raso, que, marcava as
linhas em seu buço.

Adentramos na sala de reuniões, sentando de frente à


extensa mesa.
— Seu pai me contou que seu desejo seria iniciar seu
caminho divino. — Pigarreou parecendo ler todos os
meus pensamentos através do meu olhar — Não tem
volta. Você realmente quer fazer parte disso tudo?
Então terá que abdicar parte da sua vida em troco de
dor e glória.

Cerrei os dentes, sentindo as batidas rítmicas do meu


peito acelerarem.
— É por isso que eu continuo viva. Não tenho outro
caminho. — Afirmei decidida.

281
Hidemi acenou com a cabeça levemente,
compreendendo em silêncio.
— Amanhã, realizarei sua iniciação. — Respondeu
confiante — Terá de se comprometer com a técnica
milenar do Clã.
Apenas eu, a anciã da família, e seu avô Ichiro,
sabemos os movimentos secretos que Hanaoka Mahina
adaptou. Então passarei todos os meus conhecimentos
a você, tendo em vista que deverá manipula-los com
extrema competência, colocando sempre a lógica a
frente de suas emoções.

Assenti, concordando veemente.


— Eu compreendo... Mas e quanto à Hiro? Como será
para ele? — Indaguei com uma pontada de culpa.

Ela fez um muxoxo, revirando os olhos.


— Vai ser difícil aceitar, mas ele tem consciência, de
que, não poderá intervir nisso.
Hiro sabe que você é rebelde igualzinha à sua mãe,

282
será sua palavra contra a de um pai de primeira
viagem, abobado por qualquer escolha da filha de
treze anos. Ele poderá nunca aceitar, mas respeitará
sua escolha porque é acima de tudo, seu pai.
Pode até não parecer, mas Hiro tem o coração mais
puro que já conheci, ele é sensível demais e teme te
perder. — Completou aquietando-se — Peço que
entenda o lado dele.

— Eu o compreendo, de verdade. — Reafirmei


mantendo o tom — Mas não posso fugir do meu
destino.

Ela se levantou, abrindo a gaveta embutida sob a


grande mesa de madeira, caçando algo escondido entre
mantas brancas de linho cru, e pela empunhadura
trançada por um laço violeta, Hidemi retirou uma
longa katana com a lâmina selada, me entregando com
as duas palmas voltadas para cima.

283
Hesitei diante de tamanha beleza, mas no fim me
rendi, permitindo sentir seu peso tornar-se parte do
meu corpo, como um só.
Retirei a bainha preta em detalhes entalhados,
hipnotizando-me pela perfeição extraordinária do fio
que ia estendendo-se com uma leve curva em seu
corpo sem desvio algum na lâmina, junto do brilho que
a polia. Na base da espada, um kanji era marcado na
horizontal em tamanho médio.
Coragem.

— Eu deveria esperar que você iniciasse antes de


receber uma... Mas é o meu presente para você como
sua bisavó, e mentora.

Inspirei fundo, lançando um olhar estarrecido para


Hidemi, que sorria com um prazer imensurável
embebido no rosto.
— Obrigada mentora Hidemi. — Guardei a lâmina,
curvando a cabeça duas vezes entre agradecimentos

284
puros e sinceros — Isso é muito especial para mim.
Cuidarei como minha vida.

— Guarde bem, se não Hiro surtará caso ache uma


katana jogada por aí. — Ela concluiu, soltando um riso
cômico e rouco, trazendo à tona seu humor ácido —
Só irá usá-la quando houver algum ataque.

Levantei-me, sentindo o coração quase saltar pela


boca, não podendo disfarçar minha afeição com tudo
que envolva armas brancas, o que, claramente justifica
eu ter ficado até tarde enamorando-a como um objeto
sagrado aos olhos humanos.

Na manhã seguinte, eu já estava em pé, com energia


acumulada em um êxtase que me consumia por inteiro.
Fui até a área de treino, onde a mentora se encontrava.
Realizando movimentos leves com o corpo, a senhora
285
com seus noventa e poucos anos tinha total controle
com seu corpo, o que mais parecia uma dança de
sintonização com os elementos, em movimentos
baixos com a perna e giros de mão contra o vento.
— Por um acaso, você está morta, Lucy? — Ela
cessou ao passar seus olhos em mim, de cima abaixo,
franzindo o cenho ao se deparar com o quimono em
meu corpo. Puxou a veste superior, invertendo a
posição da gola em V, e ajeitou a calça-saia
pregueada, na base do ódio — Como não sabe vestir o
básico? Meu senhor...

— É o quê?! — Interpelei boquiaberta e sem graça. —


Morta?

— Quanto tempo não se alonga? Treze anos? —


Interpelou com ironia, apertando os pulsos atrás do
corpo. — Antes de te iniciar, deve saber o mínimo.
Intercale trinta flexões e trinta voltas nesse campo
completo.

286
Suspirei sentindo seu sarcasmo n'alma, enquanto ela se
espreguiçava no canto como quem não quer nada.
A cada volta eu fazia dez flexões, terminando com o
braço dormente e ofegante.
Eu realmente era sedentária, e aquilo acabaria a partir
de hoje.
— Só isso? — A questionei apoiando as mãos sobre o
joelho ao finalizar, inspirando e expirando com
dificuldade.

Hidemi se aproximou, com um semblante fechado.


— Me siga, o dia será longo. — Franzi o cenho a
acompanhando para fora da área de treino até dentro
da casa, um tanto confusa.

— O que planeja, senhora Hanoka? — Aumentei o


tom de voz com curiosidade às suas costas, mas a
mesma nem se deu ao trabalho de virar para responder.
Descendo a estrada de terra que levava até o pequeno

287
vilarejo, eu tentava decifrar sua idéia com uma certa
atenção.
Andar na aldeia sem a boina, ainda me causa
estranheza, como se eu estivesse despida, mas não era
mais nenhum segredo, levando em conta os olhares
feios e cochicho que os velhos faziam ao passar por
Hidemi e eu. Apenas cumprimentando-a, como se eu
fosse invisível ou um bicho peçonhento.
Talvez todos achassem que aquele branco em meu
cabelo era fruto de descoloração química, ou nem
sequer repararam, o que me poupou muitas perguntas
um tanto retóricas. Piorando o fato de ser a filha fora
do casamento, e ainda por cima, latino-americana.

Hidemi parou em frente a um mercadinho pequeno e


antigo, me deixando perdida e ofegante.
— Acabou o arroz, tenho que abastecer o depósito. —
Deu um risinho, entrando às pressas — Vamos, deve
me ajudar. — Exigiu, me fazendo revirar os olhos com
força.

288
Sardinha, salmão fresco, farinha, ovos, verduras, leite,
queijo.

A velha jogava tudo em duas sacolas de panos


alternadamente sem pensar. Demoramos até chegar ao
tal arroz, e pode-se dizer, era a pior parte.
— Me ajude a carregar. — Ordenou apontando à pilha
de sacos, que, marcado na lateral em números grandes,
pesavam oitenta quilos.

— É sério? — Me virei para encará-la, vincando as


sobrancelhas com descrença — Eu não consigo, é
muito pesado. Achei que íamos treinar, e...

A velha revirou os olhos e suspirou, me encarando


com ódio marcado em sua expressão.
— Para de falar que não consegue, é aqui que começa.
Como irá lutar, se não sabe carregar nem um saco de
arroz, garota?

289
Bufei me rendendo, puxando uma unidade da pilha
com tanta força, que as veias em minha testa saltaram
como fios de aço, e meu rosto tornou a ficar num
vermelho vivo.
Em impulso, joguei os oitenta quilos por cima das
costas, segurando as duas pontas de pano em cada mão
até pagarmos para sair.

— Vamos até a máquina de polir arroz mais perto,


essa aqui estragou. — Alertou-me, apontando para a
grande caixa de alumínio cercada por fitas de aviso a
frente do mercadinho.

Praguejei mentalmente, soltando um arfar com peso


em meu trapézio quase esmagando-me ao chão.
Por que a porra da maquina de polir arroz ficava tão
longe? E por que caralhos, o arroz daqui tinha que ser
"polido"????.
A senhora Hanaoka era cumprimentada pelos
moradores a cada esquina que passava, respondendo

290
com um aceno curto e um sorriso, o que me irritava
imensamente, enquanto eu apenas carregava
praticamente um soldado em minhas costas e era
totalmente ignorada.
Na subida até a casa, apenas pude rezar por minha
coluna, observando com a cabeça a encurvada, a
estrada íngreme que se estendia até o alto.

— Ah, leve essas duas sacolas para mim. — Colocou


cada uma em meus braços, me lançando um sorrisinho
agradecido.

Só podia ser brincadeira.


Cada passo que eu dava, uma gota gorda de suor caía
de minha testa, enquanto eu inspirava o oxigênio de
maneira sofrida.
Ao chegar o no topo, tropecei caindo de cara no chão,
com o saco de arroz em minhas costas.
— Puta merda! — Esbravejei jogando o peso para o
lado, levantando o corpo inteiramente dolorido e a
bochecha ralada que queimava a cada momento mais.
291
— Ótimo, agora guarde no depósito que faz divisão
com a cozinha, e não se esqueça de colocar o salmão e
a sardinha no freezer. — Murmurou entrando para
dentro, me deixando sozinha e sentada na grama
enquanto recuperava o fôlego.

Terminando cada mínimo pedido seu, voltei a procurá-


la, que em questão de minutos conseguiu se esconder
em algum canto da casa.
— O que eu faço agora? — Gritei parada no corredor
principal.

Um forte estrondo me fez sobressaltar, então ela saiu


de um dos cômodos, mais especificamente da sala de
estudos, folheando um livro qualquer.
— Pegue a bolsa de malha no seu quarto. As vestes do
quimono que chegaram, estão guardadas lá. —
Afirmou indiferente — Se quer aprender, fará do jeito
certo.

292
Arregalei os olhos e franzi o cenho, incrédula.
— Então carregar um saco de arroz e subir uma colina
não fizeram parte de um treino? — Bufei sarcástica.

Hidemi soltou um riso rouco e alto que ecoou pelos


corredores da casa.
— Isso no máximo irá alongar, eu realmente só
precisava de ajuda. — Completou chegando perto de
mim, vidrando seu olhar semi cerrado — Não se
atrase, estarei lhe aguardando.

Dissociando enquanto encarava meu rosto através do


espelho do banheiro, pude perceber o quão prosaico
minha aparência se apresentava diante de tantos
acontecimentos em tão pouco tempo.
Meus cabelos ondulados e ressecados que decaíam até
os ombros, escondiam boa parte de meu rosto, me
incomodando, mesmo que eu tivesse que prendê-los
toda vez que fosse treinar dali para frente.

293
Automaticamente, minhas mãos chicotearam,
agarrando a tesoura acima da pia de mármore, e então,
por milésimos de segundos, me deixei levar pelo
impulso, puxando a primeira mecha e passando a
lâmina sem hesitar, fazendo cortes irregulares por
todos os lados, desde o topo até a lateral.

Os fios caíam desproporcionalmente, preenchendo o


chão do lugar sem esforço algum, e levando embora
também, uma outra eu.
Se esse seria o despertar para minha nova face
espiritual, o meu físico também deveria ser alterado.

Pigarreei atrás de Hidemi, sentada no beiral do


corredor externo do jardim. Ela se levantou, lançando-
me um olhar aterrorizado em seguida balançou a
cabeça em discordância.
— Estou pronta.

— Nem vou perguntar o porquê de ter feito isso, senão


vou cair dura. — Respondeu indiferente, fazendo um
294
muxoxo de descaso.
Tendo consciência do meu ínfimo interior que agora se
expandiria, eu não temia mais nada.

A porta de entrada escancarou, então, do corredor


oposto do jardim principal, pude ver Hiro entrar com
uma maleta de couro e um terno escuro que realçava
seu corpo alto, retirando os sapatos e subindo na casa
com rapidez. Percebendo nossa presença, ele me
lançou uma expressão assustada junto de um micro
sorriso que rapidamente se expandiu ao se deparar
com os fios repicados.

— Lucy... Seu cabelo está diferente, eu gostei. Mullet?


— Deu um riso andando em nossa direção com passos
confiantes — Dificilmente um Hanaoka fica ruim em
algum penteado novo, mas, por que está sangrando?
— Seus dedos magros e pálidos seguraram meu rosto
com delicadeza, virando para si.

Estufei o peito e olhei de volta para Hidemi, que


295
continuava reprovando veemente.
— Isto não é nada... Já carregou um saco de arroz nas
costas? Parece muito zen. — Farpei dando de ombros
— Chegou cedo, a propósito.

Hiro soltou uma risada abafada com o dorso da mão,


virando para encarar sua avó.
— Você não foi a única. — Respondeu cruzando os
braços.

— Hiro tinha problemas com equilíbrio físico quando


criança, acho que isso ajudou ele a ter um senso de
espaço. Se não fosse os sacos de arroz, ele não teria
avançado na luta. — A mentora admitiu, saindo do
corredor e descendo até a área de treino.

— Trouxe um presente para você, por isso vim mais


cedo. — Ele caçou algo dentro da maleta, retirando
uma pequena caixa embalada para presente com um
papel fosco preto e texturizado, me entregando com
cuidado.
296
— ...Não precisava. — Murmurei sentindo meu rosto
queimar de vergonha.
Abri as pequenas abas, retirando uma caixa de portar
jóias com detalhes curvos. Reluzindo aos meus olhos,
levantei a abertura, onde havia um anel de ouro com o
símbolo do clã gravado. Sem hesitar, coloquei-o em
meu dedo indicador, que serviu perfeitamente — Isso
é lindo... Muito obrigado, de verdade. — Dei um
sorriso de canto, o envolvendo em um abraço
apertado.

— Sei que não vai demorar muito para querer aderir a


idéia de Hisaya, e tatuar seu pescoço, mas, saiba que
de qualquer forma, você sempre será a melhor de
todos os tempos. — Completou ajeitando uma mecha
repicada em meu rosto — Agora vai, estarei lhe
assistindo. — Inclinou a cabeça para Hidemi, que
aguardava impacientemente.

297
— Pegue sua Shinai e entre em posição. — A mentora
ordenou em voz alta. — Fiquei frente à frente dela,
com os braços descansadas ao lado do corpo e a
postura ereta.
A mesma, segurava igualmente, um bastão de treino,
levantando-o com as duas mãos, segurando a ponta e o
meio do cabo. Seus cotovelos retos levavam a shinai
até o meio das costas, voltando como se partisse o ar,
em um fraco deslize de pés que alternava para frente e
para trás — Suburi. — Voltou à sua posição inicial,
completando. — Você deve saber realizar de maneira
correta antes de qualquer coisa.

Repeti o mesmo movimento do exercício por um


longo tempo, com os braços centrados, encostando o
bastão no meio das costas e voltando até a linha do
peito.
Meu corpo parecia estourar aos poucos após usá-lo
mais do que era capaz, então não demorou muito para

298
que os murmúrios de dor soassem alto.

— Já quer desistir? — A voz rouca e alta de Hidemi


me fez saltar — Me acerte. — Murmurou, encarando-
me de frente, com um olhar mortal, empunhando a
shinai.

Um grito canalizado em meu interior se expandiu para


fora, então andei em passos rápidos até Hidemi,
soltando o bastão com o balanço na tentativa de
acertar sua cabeça, mas no mesmo segundo ela rebateu
na horizontal, dando um rápido giro de corpo,
passando a grande estaca de madeira na vertical, de
canto à canto em meu abdômen. Finalizando com
desvio um direto de um corte profundo na jugular,
num curto espaço de tempo.

Apesar de sua idade, eu a subestimei, e aquilo era o


suficiente para me fazer pensar que todos da família a
temiam por boas razões.

299
Se Hidemi esperava que eu parasse por ali, ela havia
se enganado.
Abri a base das pernas de lado, com os joelhos um
tanto flexionados e os dois cotovelos dobrados na
altura do ombro, agarrando a shinai numa curta
distância dos olhos enquanto ela vinha para atacar,
defendendo suas tentativas de estocar minha cabeça e
os lados da costela. Deslizei de corpo baixo, acertando
um corte cego em sua perna, ficando às suas costas,
mas não demorou muito para ela se virar com um
chute circular, atingindo uma parte do meu punho, de
modo que o bastão de madeira voasse para longe das
minhas mãos.

— O que foi isso? — Cambaleei para trás quando ela


apontou a shinai para meu rosto, questionando-a
ofegante.

— Não existe regra quando estamos falando de


sobrevivência. — Abaixou-a, deixando de lado e

300
abraçando os punhos atrás do corpo, andando de um
lado para o outro gesticulando com a cabeça. — Se
errar um pequeno movimento... poderá morrer por si
própria.
Entende isso?

— Sim senhora. — Acenei a cabeça em concordância.

— Ataque por ataque, defesa por defesa, então


começará a aperfeiçoar cada um desses pontos, para
assim alcançar a consciência e estado de equilíbrio que
tanto deseja. — Concluiu voltando à sua postura
inicial. — Vamos fazer isso do começo. Lembre-se de
manter o lado direito e esquerdo atentos, juntamente
com a espada, antecipando os ataques...

Concordei silenciosamente, pegando o bastão de


madeira e voltando a colocação do primeiro exercício,
onde nossas lâminas cegas por farpas se encostaram
com força, de modo que meu corpo vibrou por inteiro.

301
EXTRA
GORO
Tokyo, Japão

Bati a mão em cheio na mesa, sentindo as faíscas de


fogo saltarem dos meus olhos com uma raiva que me
alimentava por inteiro.
Não é possível.
Suspirei relendo as letras impressas no papel
acinzentado de jornal.

— MALDITA HANAOKA! — Esbravejei voltando a


olhar Carter, que me observava quieto e cabisbaixo do
outro lado da escrivaninha. Sua reação não parecia
nem um pouco surpresa após as notícias rodarem por
toda a região — Não demorou para Hiro levar o posto
da filha a público... Se eu não fizer isso rápido, ela
assumirá tudo e acabará com todos esses anos de
planejamento. Bastou aquela maldita nascer... —

302
Passei a mão no cabelo, ajeitando os fios que
escapavam do lugar — Mas não ficará assim. —
Completei, bebericando o whisky quente na taça de
gleincarn.

— Por que acha que não podemos derrotar uma garota


nova? Isso não é nada perto do que já alcançamos... —
Carter afirmou, me lançando um olhar semi cerrado
como se tentasse sintonizar com meus pensamentos.

Uma gargalhada sardônica escapou dos meus lábios,


de modo que não pude contê-la.
— Não é apenas uma superstição da antiga aldeia dos
Hanaoka, mas sim um legado, que, somente foi se
concretizar no período Heisei.
Os filhos legítimos do meu maldito pai me veem como
um bastardo inútil, mas não por muito tempo, até
conseguir o que me é de direito. — Concluí confiante,
virando o resto de álcool, que desceu rasgando pela
minha garganta como ácido. — Você acredita no

303
sobrenatural?

O homem deu de ombros com indiferença,


murmurando numa voz grossa como fogo que ecoou
pela sala.
— Se o sobrenatural me beneficiar em algo, talvez eu
acredite nele. — Respondeu com um sorriso
pontiagudo de canto.

Levantei-me da cadeira de aço giratória, chegando


mais perto do homem cético.
— Pois saiba que matar a emissária espadachin, lhe
trará poder e glória, senhor Carter. — Tornei a servir
as duas taças vazias, preenchendo com mais bebida. —
A não ser que não esteja disposto a desistir de tudo
após, tantas conquistas, hum? — Segurei o copo,
dando uma leve inclinada no ar antes de beber. —
Tens minha palavra.

O militar se levantou, e chegou mais perto com o copo

304
em mãos.
— Eu tenho uma idéia, senhor Murakami. — Sugeriu
com um forte sotaque entre suas falas puxadas. — Mas
não é algo pequeno.

— Especifique. — Suspirei fundo, sentando-me na


cadeira com um sentimento misto de adrenalina e
cansaço. — Quero algo que atinja aquela garota aos
poucos, causando o máximo de dor possível. Me
entende?

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente, gostaria de agradecer eu mesma


por aguentar tantos tocos da vida, e mesmo
assim, manter as esperanças de levar este
projeto a frente intactas.

Finalmente posso compartilhar um pequeno


pedaço de um grande mundo fictício que logo

306
mais, estará completo para todos, que, apreciam
uma boa leitura.

SOBRE A AUTORA

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Sarah Peres, mais conhecida no meio literário
como Caos Peres, é uma escritora brasileira
independente que publicou seu primeiro livro
aos dezessete anos, intitulado como A Última
Espadachin, sendo a obra que deu início à saga
de quatro volumes.

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