Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
“Eu não sou uma fada, querida. Eu sou apenas alguém que precisou aprender a se
virar neste mundo, ok?”
1
Personagens
Vigia do KM 23
Uma mulher brasileira de meia idade. Seu cabelo e sua pele, talvez cintilantes ou
transparentes, ofuscam a vista. Numa noite como esta, ela poderia ser um tipo de fada
ou lenda ou heroína. Ou apenas uma mulher de ressaca que precisa esconder um tipo de
arma entre os seios.
2
Paisagens
Outono. Trecho de uma rodovia brasileira. Uma placa onde se vê escrito: “KM 23.
Retorno”. Um estabelecimento fechado. Postes queimados. Uma árvore brasileira
desfolhando devagar. Ao longe, sirenes de carros policiais e o som de radiopatrulha
(ocorrências policiais variadas) e de escuta aérea (aviões decolam e aterrissam em várias
partes do mundo).
Imagens variadas ao longo das cenas sugeridas pelas falas das personagens.
Pergunta:
Obs:
As falas de escuta aérea (rádio) são adaptações livres e absurdas de instruções reais.
A função técnica da peça (ou bastidores, como chamamos aqui) – luz, trilha, projeções –
é um personagem importante para a cena e pode estar dentro dela.
3
Antes de começar: coragem
Atriz 1: Oi?
Atriz 2: Vou?
Atriz 1: Alô?!
Atriz 2: É, batendo aqui. Podia ser uma onda. Gigante. Bem no meio dos seios.
......
Atriz 1: Ei, escuta. “Eu sei como é, você disse. Mas seu rosto desmentia. Você não tem
ideia de como é lá embaixo. Quer dizer, fundo.”
4
Atriz 1: “Nada daquilo que imaginamos ou ouvimos em canções ou lemos em poemas
ou assistimos em filmes.”
Atriz 1 e Atriz 2: “Então não, meu bem, você não sabe como é.”
Elas riem.
Atriz 2: Tá bom.
Atriz 2: Ok.
Atriz 1: Ok.
Atriz 1: Ok?
Atriz 2: Ok.
5
Prólogo: o medo
Rádio/fala escuta aérea (tais falas podem ser feitas por quem estiver disponível em
cena ou gravadas em off):
“Voo 4706. Autorizado ILS X-RAY pista uno quatro. Reportados pássaros sobre a
cabeceira.
Voo 1970, desça via STAR para o nível de voo zero nove zero.
1195, aguarde vetoração para a final do ILS X-Ray pista uno quatro.
090, vetoração para sequenciamento, curve à direita proa 270, desça para nível de voo
zero oito zero.
4706, chame a torre em uno uno oito decimal dois cinco. Atento pássaros.
Cargo cinco dois, desça para nível de voo zero nove zero, reduza velocidade indicada
para dois cinco zero nós.
Vigia (para a plateia): É meio difícil entender o que eles falam, mas me ajuda a passar
o tempo.
Rádio:
Vigia: L-i-v-r-e d-e r-e-s-t-r-i-ç-ã-o. Entendeu? Com o tempo, você fica bom nisso.
(fala no rádio, estilo walkie-talkie) É Delta aqui, bebê. Só um alôzinho para você.
Rádio:
“Ah, você! Estou te devendo. Depois. Beijo. 1127 confirmo, autorizada aproximação
visual, cheque transponder. Não recebo altimetria.”
6
Vigia: É muito melhor escutar a coisa dos aviões porque a radiopatrulha, sabe, ela pode
ser deprimente e depois de uns anos... Ah, deixa pra lá, vai por mim, é melhor sintonizar
a escuta aérea, o modo como eles falam em códigos, alguém sempre indo embora,
alguém sempre chegando.
Rádio:
Vigia: Adoro quando eles dizem c-h-e-g-a-n-d-o, sei lá, penso em pessoas se
encontrando e sentindo um tipo de amor.
Ao fundo, L entra caminhando, sempre olhando para trás com medo. Atravessa a cena
e some. A Vigia segue distraída com seu rádio.
Rádio:
Faróis altos de um carro. L entra, desta vez correndo, acossada por três ou quatro
vultos, um deles sempre em destaque no grupo. Eles passam pela cena e somem.
Rádio:
“Voo 1195, vetoração para final ILS X-RAY para a pista uno quatro, curva à direita
proa dois cinco zero, desça para cinco mil pés.
Vigia (segue falando, paralelamente, para a plateia): Eu também adoro a voz dos
comissários de bordo, eles fazem o mundo parecer sob controle.
O rádio da escuta aérea pode ficar mais alto e frenético: números, partidas e chegadas
(“090, tráfego superado, reassuma a navegação proa de BORAK.
Alfa bravo índia, programe espera sobre o VOR, seu aeródromo de destino está com
restrições de visibilidade. Informado pela Torre 150 metros devido à fumaça.
1195, autorizado ILS X-RAY pista uno quatro. Reportados pássaros sobre a cabeceira.
7
Tango Romeu Sierra, mantenha velocidade máxima de dois cinco zero de indicada.
150, suba para o nível de voo três cinco zero e chame o Centro em uno dois três
decimal sete.
Atos cinco cinco, contato radar na decolagem, suba restrito a cinco mil pés devido à
tráfego doze horas, cinco milhas, rumo norte.
Três dois zero, nível de voo zero meia zero.”)
Os vultos acuam L e a Vigia finalmente volta sua atenção para essa cena.
Rádio:
Vigia: Ah, mais uma, estava demorando. Outra cadela vira-lata ou piranha vagabunda,
como eles dizem. Quer ver? Sou invisível para eles, posso falar o que quiser aqui. Eu
disse que não aguentava mais o KM 23. São previsíveis, quer apostar? Eles andam em
círculos ao redor dela. Isso leva uns 37 segundos.
Rádio:
“Mantenha a posição”.
Rádio:
“Vetorar à esquerda.”
Vigia: Como eu sei disso? Você não ia querer ver as coisas que eu já vi. O KM 23 é o
fim do mundo, pode acreditar... Esqueça, sou invisível, não estou aqui.
Rádio:
Vigia: Ah, agora um deles – geralmente o com veias saltadas – vai chutá-la no
estômago.
Viu?
8
Agora mais embaixo.
Eles chutam até ficarem ofegantes. Ritmo animal coletivo. Ela cairá no centro do
círculo que eles fazem com seus corpos excitados em 4, 3, 2, 1. Quem será o primeiro?
Normalmente é o mais calado. Isso, aquele ali, quer ver? 1, 2, 3...
Vigia: Um a um farão o que querem fazer. (volta-se para os bastidores) Dá pra colocar
uma música aí? Essa parte é difícil, eu nunca me acostumo. (para a plateia) Eu não
poderia suportar a vida no KM 23 sem música.
Música.
Vigia (para os bastidores): E também abaixe a luz, pode até apagar, para falar a
verdade. (ela alterna a fala entre plateia e bastidores) Já vai terminar. Eles costumam
ser rápidos.
Escrotos.
Um deles cospe.
Mais um chute.
Mas ela vai sair disto sozinha, quem sabe um golpe, não sei, aulas de defesa pessoal.
É, pode ser.
Ninguém pode mudar nada, tem sido como uma enxurrada. Eu estou cansada e sou
invisível, pedi que me pusessem no setor administrativo. Sei lá, carimbos, cartas,
despachos, como diziam antigamente.
Está acabando.
9
Merda.
Ficar com a bunda dormente carimbando papéis timbrados, parece asseado e inofensivo,
eu pedi tanto a eles, eu disse: “o KM 23 daquela rodovia não, por favor, me mandem
para qualquer outro lugar”, eu disse. Ninguém quer vir pra cá, entende, você perde tudo
quando você vem para cá, vocês não me julguem, você perde tudo o que você tem de
quente ou bom dentro de você e você vai ficando invisível, começa pelos cabelos, os
cabelos são os primeiros a ficar transparentes. “Por gentileza”, eu disse, “o KM 23 é um
mundo louco”.
Não existe bondade neste mundo, eu sou apenas a vigia do KM 23, apenas a vigia
invisível de um pedaço de asfalto.
Está terminando.
Ok, vocês têm razão, eu não posso permitir isso, chega. Sim, vamos fingir e tentar:
existe bondade neste mundo, heróis ainda vivem e eu sou um tipo de fada ou lenda
brilhante. (para os bastidores) Por favor, um facho bem forte de luz. Aqui, isso, um
clarão.
Pode trocar a música aí? Não sei, um som que inspire bons sentimentos.
Vigia (para a plateia): Nós vamos começar de novo, ok? Preciso que vocês imaginem.
Não sou invisível e neste instante uma árvore brasileira está lentamente perdendo as
10
folhas com o vento leve, uma coisa suave como num filme de animação, devagar e
misterioso.
Tem qualquer coisa de mágico e bom, há um tipo de esperança nascendo no meio deste
asfalto, em todas as ruas, por isso é tão bom que a gente esteja aqui hoje junto, não é por
acaso, tem qualquer coisa de extraordinário e breve, ok? Imaginaram?
Ótimo.
Vamos lá. (orientações para os bastidores) A música mágica acaba. Som de sirene de
carro da polícia se aproximando.
Agora um clarão.
Mais.
Vigia (para os bastidores): Agora uma luz mais suave, por favor. Sabe aquela que a
gente chamou de “o-mundo-é-bom-e-as-pessoas-generosas”?
......
Vigia (para os bastidores): Essa mesmo, quase... Dá para ficar melhor. Isso. Obrigada.
(chega perto de L) Deixa eu ver isto. Ah, é quase uma criança, quer dizer, não dá para
saber. (para a plateia) Eu já vivi tantos séculos que todos parecem bebês. Se você
prestar atenção, vai perceber que são todos uns bebês andando pela rua, bebês dando
seta para virar à esquerda, bebês dormindo em bancos de praça. (para L) Ei. Está
ouvindo? Estou falando.
11
L não consegue se mexer.
......
Olá!
......
Ei, garota.
L: Vá embora.
L: Tchau.
L: Vá embora.
L: Me deixe dormir.
L: Dormir ou desaparecer.
L: Não dá.
L: Quem é você?
12
L: Posso confiar em você?
L: Não posso confiar em você com essa roupa, não sei que dia é hoje, quanto tempo
passou?
Vigia: Bom...
L: Já é dia? Quanto falta para a gente ir embora? Já cantaram parabéns? Nossa, estou
confusa.
L: Desculpe, não falo inglês, estou sem calcinha. Nossa, estou confusa, o que está
acontecendo?
Vigia: Você deve estar delirando, você perdeu sangue, posso ver de perto?
L: Não.
L: Sim, estou bem, estou cantando parabéns sem calcinha, daqui a pouco me levanto,
serei graciosa quando sair andando, obrigada, pode ir.
L: Sim, confio, vou te dizer o que aconteceu, quer dizer, eu estava andando e de repente
me perdi neste lugar e tudo estava escuro e eu caí e quebrei o pé, eu acho. Ou a perna.
Não tenho certeza. Agora pode ir.
L: Ou a perna inteira, talvez as duas pernas então, mais uma clavícula. Está tudo
quebrado, mas dá pra sair andando, talvez correndo mesmo sem calcinha e clavículas,
posso realmente correr uma maratona quando amanhecer, está satisfeita? Pode ir
embora agora.
13
Vigia: Não parece um tipo de verdade, querida.
Vigia: Desculpe.
L: Quer dizer, eu estava andando pela rua porque eu prefiro andar diretamente no
asfalto, entende? Mas o asfalto pode ficar muito quente sob os pés e acho que foi isso
que aconteceu e então eu caí. Isso aí no seu peito é uma arma? Olha, está tudo quebrado,
mas eu estou ótima, agora pode ir, não conte para ninguém, não encoste em mim, estou
imunda.
L: Você podia ver o asfalto derretendo sob seus pés, foi isso. Pode ir agora. Um beijo,
querida.
L: Desculpe, nunca chamo ninguém de querida, é falso, não sei o que está acontecendo.
Vigia: Você está perdendo sangue, parece perto da cabeça, dá pra ver daqui, posso
chegar mais perto?
L: Não! Foi o asfalto derretido, estava muito quente e eu caí, uma queimadura de oitavo
grau, não sei, até quantos graus vai a classificação de uma queimadura?
Vigia: Três.
L: Ah, não importa, foi uma queimadura de grau máximo, ok? Daqui a pouco eu me
levanto e me viro sozinha, esqueci onde fica a clavícula, pode ir, um beijo.
L: O mundo queimando sob os seus pés. É verdade. Às vezes acontece. Eles disseram
que iam voltar.
Vigia: Olha, eu posso não levar muito jeito, mas eu quero te ajudar. Eles disseram o
quê?
L: Sim, você tem razão, foi um trecho de asfalto em brasa, aquilo me pegou de surpresa
e eu perdi o equilíbrio e caí, acho que bati a cabeça, meu cérebro está em chamas.
L: Está tudo quebrado e em chamas. Você precisa acreditar em mim. Você disse
trabalhar?
14
L: Por que você disse trabalhar?
L: Me deixe em paz.
Vigia: Você olha pra mim e pensa alguma coisa, qualquer coisa? Pode inventar.
L: O que você quer? Estou confusa, meu coração está batendo. Está meio difícil para
mim na verdade, não está vendo?
L: Vá embora. Você está me enchendo. Ou você acha que pode me ajudar, que é um
tipo de heroína ou a mãe da Peppa Pig, não sei, vá embora.
L: Ah, me deixe dormir ou desaparecer. Aquelas pessoas disseram que iam voltar,
entende, que iam voltar com um monte delas e acabar com você também e depois tudo
começou a brilhar. Você, por exemplo, você brilha um pouco.
L: Disseram que iam trazer outros, você tem uma coisa cintilante, muitos deles, alguma
coisa acetinada na sua pele, não sei, na sua roupa macia e lustrosa como cetim, talvez
seja o seu cabelo, um cabelo lustroso como um abajur ou como um monte daquelas
pessoas chegando a qualquer momento, que tipo de coisa é você, hein? Nossa! A noite
agora está muito brilhante e acetinada, quem você acha que é?
(ela grita)
Vá embora.
Sua fada vaca cintilante macia e lustrosa como cetim transparente, você sabe o que é
perder tudo?
15
A Vigia vai até ela e a abraça.
Eu sei que você está com medo neste mundo louco, nesta noite brilhante, mas eu não
vou sair daqui.
Mesmo que eu precise fazer um avião pousar bem no meio desta merda.
Um vulto passa olhando para L, mas elas não percebem, abraçadas e alheias como a
escultura Pietà, de Michelangelo.
16
Cena 2: a dor
Vigia: Pode não ser curioso para vocês, mas as estrelas hoje estão mais brilhantes do
que nos outros dias. Isso não é comum no KM 23, ok?
O rádio da Vigia começa a emitir uma música francesa. A Vigia começa a cantar.
L: Estão voltando?
L parece começar a sentir dor – que aparece em picos. A Vigia segue distraída com o
rádio, sem prestar atenção na outra.
Vigia: É um rádio, é isso. A gente pode sintonizar um monte de coisa, gosto mais dos
locutores franceses, são cafonas, mas eu amo.
L (dor): Ah!
Dói.
Nossa.
L (ofegante): Não sei, uma porta cega ou um painel transparente e você batendo de
frente.
Vigia: Não, não tem nenhum caminhão vindo, deve ser o delírio. Ah, e também a escuta
aérea daquele aeroporto enorme, sabe?
17
L: Aiii...
Vigia: Não, você não imagina o que é sintonizar a escuta aérea – aviões pousando e
levantando voo, coordenadas em código, não sei, é como fazer sexo, sou um pouco a
fim dos controladores de voo.
Ahhhhh.
L: Olá?
......
Eu juro, eu gostei.
Mamãe?
Mamãe?
Ah, desculpe.
Vó?
L: Ahhhhhh. Isso dói! Tem alguém para fazer isso parar? Uou. Por favor, desliga isso,
não fique tão calada.
Vigia (para a plateia, meio desconcertada): Ok, sempre chegamos a esta parte.
18
Eu estou acostumada. Isto aqui é o KM 23.
Vigia (para os bastidores): Você tem uma luz mais animada, por gentileza? Ou
qualquer coisa para me ajudar, tipo vídeos de patinação artística ou imagens de pessoas
brindando numa lancha com drinks enfeitadinhos? Ou por exemplo um documentário
sobre a vida dos coelhos, coisas desse tipo. É, coelhos, coelhos é melhor, isso, para me
dar esperança, como se o mundo fosse um lugar bom e fofo cheio de coelhos e coisas
fofas como coelhos enfeitadinhos, por favor.
Vigia (para os bastidores): Ah, obrigada, já deu uma animada aqui. Ó! Animei um
pouco.
Vigia (para a plateia): Às vezes a gente vacila, né? Às vezes, acordo e penso: será que
vou conseguir atravessar este dia, quer dizer, chegar até o fim dele?
Mas aí eu digo ‘se vira’ e sinto que tenho de obedecer e visto minhas meias e venho
para o KM 23. Ó! Superanimadinha, que garotona animada eu sou.
L: Aiii.
Vigia: Ok, se vira, garotona. (para a plateia) Sempre chegamos a esta parte: a DOR.
Nem todo mundo conhece a verdadeira dor, essa é a verdade. Tem gente que passa a
vida sem ter visto esse rosto, quer dizer, nem sempre é um rosto. Às vezes é outra coisa,
mas não importa, você sabe quando está diante dela.
L: Ahhhhhh...
Vigia: Não é uma coisa imediata, o cérebro leva um tempo. Primeiro estresse agudo, um
tipo de colapso. Aí o corpo libera uma onda analgésica e você só percebe a dimensão da
surra depois, quer dizer, algumas pessoas levam menos tempo, outras são mais
resistentes.
L: Uou.
Vigia: Mas ela chegou bem longe, é forte, dá pra ver. Talvez eu esteja começando a
gostar dela.
19
Vigia: Não, não estou não, é só mais uma cadela, como eles dizem. Sabe, eu tive uma
dessas, uma menina, ela se parecia... Eu não sei, isto aqui hoje está diferente, eu não
sei...
L: Por favor, me ajude, fale comigo, isso está doendo, posso falar palavrões?
L: Uou, aiii, qual o seu nome mesmo, como você sabe essas coisas?
L: Você parece entendida e segura como uma médica francesa magra. (dor) Ai!
L: Você sabe um monte de coisas, não é? Magra, francesa e sabichona europeia, todos
querem saber por que as francesas são magras. Ah... Isso dói como o casco de um barco.
Vigia: Uma vez, eu quis ser um barco, os barcos têm nome de mulher, eu pedi a eles,
por favor, não me mandem para o KM 23, me deixem ser um barco, qualquer coisa
serve, até o casco de alguma coisa seria melhor do que isto.
L: Tá bom, vou inventar um nome para você, sua sabichona europeia. (dor) Ahhh! (a
dor vai e volta) O nome de um desses navios gigantes carregando turistas francesas
magras em alto mar. Mademoiselle Louise. (dor) Ahhhh. Ufa. Onde você aprendeu
essas coisas que você diz, Mademoiselle Louise?
Sobre a água
Me leve embora
Mademoiselle Louise
20
Mademoiselle Louise
Esta cicatriz
Mademoiselle Louise.”
A Vigia fica um tempo sem saber o que dizer. L segue cantarolando baixinho.
L: Não tem dor agora, vai e volta, sou feliz. O que a vida fez com você?
Vigia: E nunca mais me chame de mamãezinha, ok? Assim não vai dar pra te ajudar.
L: Ahhhh. Eu não sei, eu não sei o que estou falando, não sei o que está acontecendo,
está voltando, isso vai e volta, faça isso parar.
Vigia: Ninguém disse que seria fácil. E também não me chame de Louise, ok?
L: Você disse que seria fácil sim, Mademoiselle. Ahhh. Louise, isso dói como um barco
de aço rasgando seu corpo como se ele fosse o mar.
L: Eu preciso te chamar de alguma coisa, ahhh, fale alguma coisa Louise, isso dói.
Eu já morri mil dias, mil vezes neste mundo louco de mil barcos naufragados.
Ou o rosto de alguém.
Vigia (para a plateia, com imagem simultânea da frase na hora em que ela aparece
abaixo): Bom. Parou. Assim não se chega a lugar nenhum. Só dá para seguir em frente,
a vida é propaganda de whisky, keep walking – eu adoro frases de efeito criadas por
imbecis. (para os bastidores) Coloca bem grande aí keep walking. (para L) Querida, eu
tenho uma ideia.
21
L: Não me chame de querida.
L: É falso.
Vigia: Dá para controlar. Não fuja, olhe para ela de frente, não me chame mais de
Louise, me chame de Diana, ok?
Vigia: Ou imagine um futuro feliz. (para os bastidores) Por favor, vou precisar de você
de novo, alguma trilha de meditação, sabe, mas não me venha com Enya, ok?
Vigia (para os bastidores): Barulho de natureza, uma coisinha leve de fundo, você tem?
Vigia: É só dor, entende, é como existir demais, existir em excesso – essa é a dor.
Concentre-se num tipo de futuro. Diga ‘foda-se, eu consigo’.
L: Não dá.
L: Não tá dando.
Vigia: Vamos. Diga ‘foda-se, sou melhor do que esta merda’. (para os bastidores)
Vamos, não está dando para segurar aqui sozinha, não está vendo?
Música transcendente.
L: Caralho, Mademoiselle! Diana, escuta: pessoas como você acham fácil existir, mas
não é o meu caso. Eu não gosto das suas frases de efeito e das suas musiquinhas, faça
esta merda parar, diga alguma coisa de verdade, faça isso parar, merda, ahhhh!
L/Atriz 2: Não sei, fala alguma coisa melhor, grita algo decente como degole todas as
mãos e a língua da dor, por favor, me ensine como degolar um a um, ahhh, caramba,
diga instruções para as grandes ocasiões -- como degolar todas as mãos e tentáculos e
cabeças --, ahhh, o cérebro de um polvo vale mais do que o cérebro de um homem
porque possui mais neurônios, não quero degolar polvos, quero degolar pescoços
tentáculos com uma lâmina afiada durante sete anos no Himalaia ou mesmo uma faca de
degola Twin Master anunciada no Mercado Livre, lâmina de 17 centímetros, 130
gramas, comece pelo lado esquerdo, aprofunde o corte no centro, atravesse a carne,
senhoras e senhores, com vocês: a degoladora! Ahhh. Faça esta dor parar, ahhhh.
A atriz de L cai e se debate de dor. Um vulto atravessa a cena e se detém: ele e a Vigia
se encaram por um instante. A Vigia coloca as mãos em sua arma, como proteção,
depois dispara a esmo uma vez. A figura intrusa vai embora. A música vai crescendo. A
Vigia ajuda L.
Vigia: Ok. Ok. (para a plateia, vasculhando suas coisas para achar um remédio) Ok.
Tudo bem. Não é fácil para ninguém existir. Por isso, você precisa carregar umas coisas
com você – maquiagem, lixa de unha, canivete suíço, um banquinho desmontável,
chocolate, chicletes, amendoim, música, lenços umedecidos, álcool gel, algum
instrumento musical, locutores franceses, um saco de balas mágicas. Ok. Sim, eu sou
um tipo de fada ou heroína, não importa, estou aqui há séculos e tenho o que for preciso
para estar aqui. Agora, por exemplo, tenho balas mágicas: sertralina, fluoxetina,
paroxetina, citalopram, escitalopram, diazepam, midazolam. Ah, aqui, midazolam. É
genérico, mas funciona se for de um bom laboratório. Efeito: céu-azul-sem-nuvens.
Vigia: Um dia, eu li em algum livro algo como “dormir é uma pausa na experiência
mais radical de todas: existir”. Ah, eu adoro frases de efeito, me perdoem.
23
Cena 3: uma canção impossível
L segue apagada. A Vigia sintoniza seu rádio, agora emitindo novamente a escuta da
torre de controle de um aeroporto.
Rádio:
Rádio: Ah! Espera. 3806, bom dia, suba sem restrição para o nível de voo três sete
zero. Oi! Delta!
Risadas.
Rádio: Positivo.
Rádio: Sim. Obrigada. Você. Foi. Ótima. Tempo esgotando. Falamos. Mais. Tarde?
Vigia: Acho que sim. Vou precisar de algum desvio, um modelo pequeno, qualquer
coisa. Estão voltando. Muitos.
Rádio: Ok, Delta. Vou. Ver. O que. Consigo. Beijo. Até. Já. Atos cinco cinco, chame o
centro em uno dois três decimal sete.
Vigia (para a plateia): Como eu disse. Essas bolinhas podem te fazer dormir por pelo
menos 5 horas, mas com ela não, adivinhem. Vai acordar em menos de um minuto. 60,
59, 58, 57...
24
Sem dor, é claro. Muitas esperanças.
Dura uns 15 minutos. Depois acaba. A dor continua bloqueada por um tempo. Mas isso
também depois acaba. 5, 4, 3, 2, 1...
Vigia: É como ser Chapeuzinho Vermelho se Chapeuzinho Vermelho tivesse tido uma
vida decente.
Vigia: Chapeuzinha Vermelha, tente ficar quietinha agora, podemos combinar isso?
L: Parece um orgasmo.
Vigia: Eu prometo nunca mais te chamar de querida se você tentar ficar quietinha, ok?
L: Isso é maravilhoso. Cruzeiros marítimos, a melhor opção para as suas férias. Por que
Diana, hein? O Caribe ainda existe?
Vigia: Acontece com a maioria, mas esta noite tudo parece diferente.
L: Espero que o Caribe ainda exista porque estou indo pra lá.
L: Nossa! Estou ótima, vai ficar tudo bem, tenho uma vida inteira pela frente, coisas
boas acontecem, acho que consigo ir embora andando, o aquecimento global ainda não
engoliu o Caribe.
L: Diana Louise, você fica querendo saber sobre mim, mas você nunca conta nada sobre
você. Por que Diana, hein? (tenta se levantar) Me ajude aqui só um pouquinho.
L (tentando se levantar, muito sem jeito): Vai sim, Diana Louise, conte uma história pra
me dar forças, você vai ver, eu vou sair daqui.
Vigia: É melhor ficar deitada, vamos precisar da sua força daqui a pouco.
L: Por que uma mulher como você está aqui a esta hora tentando me ajudar?
Vigia: Logo a gente vai precisar dela se eu conseguir o que eu estou pensando que eu
vou conseguir.
Vigia (ajudando L num movimento impossível): Tudo bem. Eu conto uma história só
minha se você me contar o que aconteceu.
L: Não seja chata, estou ótima, é a sua vez, conte qualquer coisa, uma história de outros
mares e oceanos, uma história diferente deste mundo, por favor, eu sei que você pode.
Vigia: Ok. Vamos lá, uma coisa rápida. Mitologia romana, tá? Meu nome é Diana, mas
sou mais conhecida como deusa pura, filha de Júpiter e de Latona, irmã de Febo. Isso.
Serviu? Preciso checar no Wikipédia, mas acho que está ok, tem muitas versões.
Vigia: Muito linda mesmo. Tenho poderes e posso transformar homens em animais
como cervos ou hipopótamos – mas prefiro coelhinhos –, sou cínica no amor e gosto de
caçar. Meu nome é cultuado em cavernas escondidas dentro de florestas.
L: Nossa, eu vou conseguir. Sempre soube que você era poderosa, o que mais?
L: Isso.
L: Mais.
26
Vigia: Vi meus cabelos perderem a cor e não me importei, controlei 2.018 furacões,
incontáveis tempestades, 517 cavalos selvagens ao mesmo tempo, nadei com peixes
monstruosos das profundezas sem luz, cavalguei mil vezes por mil horas sem destino e
estive dentro de vulcões em atividade – o que posso dizer que é maravilhoso –, morei
em cavernas, andei descalça sobre fogo, assisti séculos passarem como segundos, talvez
milênios, mergulhei até o ponto mais fundo do oceano, escalei as sete montanhas mais
altas, conheci o rosto da morte, conheci o rosto do amor.
L: Uau. Aplausos.
Vigia: E ainda estou de pé. Keep walking, little darling. (para os bastidores) Frase de
efeito, por favor! Amo muito.
Vigia: Gostou?
L: Eu adorei, Lousie. Acha que consigo sair andando? Se eu morrer hoje, pelo menos
terei tentado.
Pessoas rondam o lugar, mas L não percebe, alheia em sua tentativa de se erguer. A
Vigia se defende, atirando pontualmente.
L (engatinhando): Diana Louise, estou quase andando, você precisa ver isso!
Vigia: Shhh.
Vigia: Quieta!
27
A Vigia tampa a boca dela para que se cale, até que as sombras vão diminuindo.
Alguns poucos coelhos passam pela cena.
Vigia: Shiu.
L: Claro que vou Mademoiselle, por favor, me deixe imaginar alguma coisa.
Vigia: Não.
Vigia (se descontrola pela primeira vez): Você não vai morrer aqui. Eu não vou deixar
você morrer aqui. Eu não vou ver outro corpo morrer neste asfalto. É só um pedaço de
asfalto, mas é meu. Isso aqui se chama KM 23 e é da minha conta sim. Eu não vou
perder mais ninguém no KM 23, entendeu?
......
Entendeu?
......
Entendeu?
L: Desculpe.
......
Agora pare de se arrastar por aí e tente preservar alguma coisa dentro de você.
L: Ok.
Vigia: Ok.
28
L: Posso pelo menos tentar sentar?
Vigia: Ok.
L: Ok?
Vigia: Ok.
Ok é “posso me sentar”?
Vigia: Tá bom.
L: Obrigada.
L: Eu sabia.
Vigia: Este deve servir. Mas não se acostume nem seja irresponsável, ok?
L: Ok.
Vigia: Vamos precisar da energia que você nem tem daqui a pouco, eu já disse, a coisa
está apertando um pouco.
L: Eu fico impressionada.
Vigia: Ok.
Vigia (ajudando L a sentar): Vamos. Isso. Assim fica melhor, tente apoiar esta parte,
isso, esta.
29
L: Podemos cantar uma música também, alguma coisa de amor.
Vigia: Isso, fica quietinha aqui agora, tá? Bem paradinha. Você lembra exatamente
quantos eram?
Vigia: A verdade?
Vigia: Quantos?
L: Não importa.
L: Eu sei. Disseram que a gente não ia conseguir, que iam acabar com a gente, mas eu já
estou até sentada, não é? Talvez eles estivessem errados.
Vigia: Já que não vai falar, vou imaginar o que aconteceu. Você faz algum movimento
ou levanta a mão quando eu estiver acertando, ok?
L: Me deixe em paz.
Vigia: Como fazem os dentistas. Os dentistas dizem “levante a mão se sentir dor”.
Vigia: Você tem 17 anos e se dirige ao ponto mais alto da cidade para tirar fotos com
suas amigas. Eles estão armados e apareceram de repente. Você acaba no KM 23.
30
L: Que diferença faz você saber o que aconteceu?
Vigia: Ok. Você tem 20 e poucos anos, estuda numa faculdade e eles dão uma festa. Há
umas 20 pessoas, você está bebendo e se divertindo perto do banheiro, alguém quebra
um copo, alguém ri, você acorda no dia seguinte com sangue, hematomas e mordidas no
KM 23.
Vigia: Ok. Você já trabalha e está saindo com esse cara e ele parece legal, você chega a
pensar que gosta dele, vocês passeiam de carro depois do trabalho. Os dias da semana se
confundem e você acorda com mais de 30 deles diante de você. Estão armados, você
procura o olhar dele, mas ele parece outra pessoa agora, você está confusa, os dias e os
rostos se confundem no KM 23...
L: Basta.
Vigia: Você confiava nele, mas é ele quem está dirigindo e te olha pelo retrovisor.
L: Vá embora.
L: Eu já disse, vá embora.
L/Atriz 2: Ah. Você precisa de um nome! Ela não vai te dar um nome, ok?
31
Vigia: Você está fazendo isso de novo, merda.
L/Atriz 2: Você quer pegar alguém, mas isso não tem começo, isso é como a guerra, a
guerra nunca vai terminar enquanto duas pessoas andarem sobre o seu KM 23, mas você
quer um nome. Anote o primeiro nome escrito na primeira caverna usada pela primeira
criatura. Anote aí: Zeus. Anote: Sexto, filho de Tarquínio, o Soberbo, ano 500 a. C,
violador de Lucrécia, Roma. Ah, anote logo Roma e suas sete colinas povoadas graças à
submissão das sabinas. Anote desde o começo e vamos esperar sentadas enquanto você
preenche no seu caderninho o nome de todas as guerras e de todos os tempos e de todas
as capitanias também porque foi assim que fomos fundados e é assim que estamos até
hoje, Ilha de Vera Cruz, Brasil. Dá para passar séculos entregando nomes de todos os
tipos, vamos lá. Melhor: coloque aí o nome da pessoa que inventou a palavra justiça.
Essa merece uma boa surra! Ou então anote o nome da primeira pessoa que resolveu
nos chamar de humanidade. E a gente ainda fala bonito: h-u-m-a-n-i-d-a-d-e. Sabe onde
isso termina? Estamos prestes a extinguir o tubarão mais veloz do oceano, 600 quilos e
30 fileiras de dentes, mas vamos acabar com ele, sinto muito. Sabe onde isso termina?
Isso só termina perto da extinção, mas você acha que você pode me salvar, olhe para o
seu cabelo, você viu o que está acontecendo com o seu cabelo enquanto você assiste a
tudo isso? Eu recuso este papel, mas você quer o seu, não é? Você quer bancar a fada
num lance onde tudo se resolve se tivermos boas intenções! Não temos boas intenções
neste mundo louco, Diana Louise, ela não vai te dar um nome, ela vai morrer aqui
porque é isso que acontece quando fazem com você o que fazem todos os dias no KM
23 e será só mais um corpo deixado no asfalto dos séculos. (volta-se para os bastidores)
Projeção. Frase de efeito!
L/Atriz 2: Vá embora.
Vá embora.
Tempo. Elas se olham como dois animais. A Vigia sai de cena. Tempo. A Vigia volta à
cena. Ela abre uma coca-cola e as duas tomam juntas em silêncio.
32
L/Atriz 2: Eu sabia.
Vigia: Sabia?
L/Atriz 2: Eu sabia que você ia voltar. (para a plateia) Vocês também não sabiam?
Então.
Vigia: Ok.
L/Atriz 2: Ok.
......
Pausa.
Vigia: Sabe, só teve uma vez que não deu pra sobreviver.
Quando os cães que eu amava mastigaram aquilo que eu mais amava, eu pensei
“acabou”.
Ela acorda com você, ela almoça com você, ela dorme com você.
Não está?
L/Atriz 2: Sim.
Vigia: É.
É isso aí.
Não vamos?
L/Atriz 2: Vamos.
33
Vigia: Podemos continuar?
L/Atriz 2: Ok.
Vigia: Eu vou voltar de onde eu parei e você responde o que a gente tinha combinado e
vamos até o final da peça, ok?
Vigia: Tá bom.
L/Atriz 2: Eu queria realmente conseguir cantar uma música antes da peça terminar,
uma música de amor, sei lá, você sabe.
É.... Bom.
Vamos lá.
Eu tinha dito que você o amava e que isso devia estar doendo pra valer e depois eu ia
dizer “amanhã vai ser diferente. Logo vai amanhecer, sabe? Logo vira amanhã”.
Vigia: O quê?
L: A forma como ele dizia a-m-a-n-h-ã levando a mesma língua que usava para dizer a-
m-a-n-h-ã do meu seio direito à lateral da cintura. A-m-a-n-h-ã-ahhhhhhh amanhecendo
perto do seio.
......
L: Vai amanhecer?
34
Vigia: Você agora parece uma criança.
L: Está perdendo a graça. Diga alguma coisa engraçada, você às vezes consegue ser
engraçada.
Elas riem.
Imagem/Frase: “Belo farol, rumo certo, pousado sobre um rochedo. Das ondas do
oceano, não necessitas ter medo”.
L: Então você disse que eu poderia cantar uma música, não disse? Você disse que tinha
um violão.
Vigia: Eu disse?
L: Você disse que era uma fada, você tem um violão aí?
L: Disse sim.
Vigia: Aqui.
L: Se eu for capaz de cantar uma canção de amor neste mundo louco, nesta noite
brilhante, então tudo será possível, até dar o fora daqui.
L: Até ir embora daqui, não é? Você disse que era uma fada, me ajude a cantar uma
canção de amor.
Vigia: Ok.
L: Não.
35
Vigia: Ok. Cante o mais bonito que você conseguir. (fingindo uma varinha de condão)
PLIM.
L canta debilmente “True Blue”, Madonna. A Vigia a incentiva e pede ajuda à banda
(ou bastidores) quando L começa a vacilar.
Vigia: Se eu gostei? Eu adorei! Vamos conseguir sair daqui, sua música me encheu de
esperanças.
Vigia: Espera, eu vou te ajudar, deixa eu ver o que eu tenho mais aqui comigo, quem
sabe uma muleta.
A Vigia se distrai com suas coisas e L cai desmaiada como um saco de batatas ao
tentar se levantar. Sombras se aproximam.
36
Ato II
A árvore brasileira perde suas últimas folhas. L segue caída no chão. Vultos e sombras
tomam a cena progressivamente.
Vigia (plateia): Sim, estou calma. Estou serena. Já passei por isso. Vai dar tudo certo,
ok? Eu vou dar um jeito. (para os bastidores) Por gentileza, pode procurar aí uma trilha
sonora de incentivo? Tipo filme de ação. (para a plateia) Sou um pouco a fim das
pessoas nos filmes de ação. Eu não devia falar isso, mas sou um pouco a fim do Bruce
Willis e da Demi Moore, fiquei chateada quando eles se separaram. Eu sei, desculpe, eu
não tenho muito tempo pra isso. (chama no rádio) Delta-India-Alfa-November-Alfa.
Vigia (bastidores): E aí? Vai rolar a música? Eu não vou conseguir se não tiver alguma
ajuda, ok? A coisa apertou um pouco.
(grita para os vultos e dispara para cima) Ela não vai morrer aqui.
(grita para os vultos e dispara para cima) Dê o fora daqui. Dê o fora da minha rua.
Vigia (para si mesma): Ok, lady. Se vira. (para os bastidores) Gente, eu preciso de uma
música de filme de ação. Sabe música de filme de ação que quando ela vem tudo
acontece e dá certo? É isso.
Vigia: Ok. Não é o que eu imaginava, mas nunca é o que a gente imagina na vida, não
é? O inferno são as nossas expectativas. Frase de efeito, por favor!
Vigia: Isso. Animação total. Ela vai acordar e o futuro vai parecer incrível. Ficar de pé
será bolinho. (chama no rádio) Delta-India-Alfa-November-Alfa.
37
Um carro ao longe.
L começa a se mexer.
Vigia: Vamos, não temos tempo. (para os bastidores) Pode procurar uma música
melhorzinha?
Vigia (chama no rádio): Delta-India-Alfa-November-Alfa. Ah, que saco! Por que não
responde? (para L) Olha, você precisa realmente acordar, cheia isso aqui.
L: Sim, você é deslumbrante, vamos ficar juntas para sempre. Qual o tamanho do seu
sutiã?
Vigia: Como é?
Vigia: Me diga então: você disse que eu estava brilhando, eu ainda pareço brilhante para
você?
38
L: Sim.
Vigia: Ok.
L: Não.
L: Não, nunca mais quero voltar a dormir. Tenho um grande futuro pela frente. Posso
ver a minha vida inteira em uma onda, é como um filme Diana.
Vigia: Excelente, pode me contar como será? Continue falando. Keep talking. (chama
no rádio) Delta-India-Alfa-November-Alfa.
O rádio começa a emitir finalmente algum som. Carros próximos, faróis altos.
L: Eles estão aqui, eu sabia, bem no meio da onda. Por que não amanhece nunca?
L: Eu vou morrer aqui hoje? Parece que andei sangrando por 23 dias.
Vigia: Eu não vou deixar você morrer aqui neste pedaço de asfalto escroto, entendeu?
Vigia: Concentre-se na sua vida. Vamos. Continue se mexendo e falando, não pare
agora, nós vamos conseguir. (chama no rádio) Aqui é Delta.
L: Ok, está tudo claro, estão me esperando com uma festa surpresa. Esta será a minha
vida.
A Vigia precisa atirar para cima em alguns momentos para dissipar os vultos.
39
L (alheia aos tiros): Champanhe para todos! Louise é uma boa companheira, Louise é
uma boa companheira...
Vigia (gritando para L): Isso mesmo. Não pare ainda. (para os bastidores) Eu preciso
da música mais incrível de superação tipo HUHU, ok?
L: Vai dar tudo certo, você tinha razão, acho que consigo me levantar agora.
A Vigia atira para cima. L começa a precariamente tentar se levantar, sem êxito.
Vigia (para a plateia): Meu Deus, talvez ela consiga. Eu adoro o efeito dessas coisas,
sempre me surpreendo, espero que esta música melhore. (no rádio) Alô!
L (tentando se levantar, mas sem sucesso): Tiro carteira de motorista, faço exames
periódicos, a médica me dá parabéns, tomo café com moderação.
L: Às vezes tenho dúvidas e não sei o que fazer, mas sigo em frente, a-m-a-n-h-ã.
Rádio: Tudo bem. Consegui. Modelo. Pequeno. Uma. Janela. Em. 2 minutos.
40
L: Sim, começo a fumar e depois engordo tentando parar de fumar e tenho uma recaída,
mas faço amigos quando desço para fumar, amigos desses para quem a gente diz ‘se
cuida’ quando vai se despedir.
Rádio: Claro. Vamos. Ela continua falando? Curiosa. Vamos tirá-la logo desta merda.
L: Ter um amigo para quem você pode dizer ‘se cuida’ vale uma vida inteira, Diana.
Rádio: 2 minutos.
Vigia (para o rádio): Olha, na verdade, estou ficando meio sem tempo aqui.
Rádio: Ok. 1 minuto. Tem como distraí-los? Não saia da coordenada. Já volto.
L: Percebo 23 fios de cabelo branco. Como gelatina, faço 46 anos, não tenho mais
colágeno.
L: Eu não sei.
Vigia: Tente. Pense em coisas boas, coisas pelas quais vale a pena viver. (para os
bastidores) Essa música precisa explodir daqui a pouco, ok?
L (se arrastando precariamente até a Vigia): Ok. Sorvete. O barulho do mar, sabonetes
novos, o cheiro do lado de fora das fábricas de biscoito, pássaros pousados em
palmeiras, crianças, as mentiras dos rótulos de xampu, pipoca, nuca, cheiro de
amaciante, seios, montanhas, domingo de manhã, a risada da mãe que você não teve,
coelhos macios enfeitadinhos. Ah... Está escurecendo de novo.
Rádio: 42 segundos. Uma pessoa querida na cabine, ok? Piloto experiente. Mantenha a
coordenada de sempre. 31 segundos.
Vigia: Na posição.
41
Rádio*: Voo 2323.
Controle, prossiga.
Dois três dois três, vetoração para descida, curve à esquerda proa uno oito zero.
Prossiga.
São pássaros?
Velocidade 232.
Parecem coelhos.
Afirmativo.
Prossiga.
Vultos mais próximos. Carros. Faróis ofuscantes. Um grupo cerca as duas em círculo.
Vigia: Vamos! Aqui. Eu não posso sair daqui. Você precisa tentar.
L continua se arrastando – tenta levantar, cai, tenta de novo, cai, continua como dá.
Rádio:
Descendo.
42
Distância 35 milhas, coelhos-pássaros.
Mantendo proa.
No alinhamento.
L: Eu...
L: Escuro.
Vigia (erguendo L): Se vira! (para os bastidores) A melhor luz que você conseguir –
aquela, do farol. Obrigada! (para L) Vamos dar o fora desta merda. AGORA.
43
A Vigia se agarra a L, que consegue se erguer num esforço descomunal. Vultos fecham
o cerco. O grito de um bando. Tacos de baseball quebram vidraças de casas
abandonadas. Uma corrida de cavalos. Manadas de pessoas. Revoadas de coelhos.
Som de avião sobre o KM 23. Agarrada a L, a Vigia estende a mão para cima. Música
sobe no refrão-catártico-superação. Adoráveis coelhinhos brancos enfeitadinhos ou
coelhos-pássaros tomam a cena em profusão. A luz ofuscante de um farol no meio do
oceano resistindo há séculos a ondas gigantescas.
FIM
2019
Silvia Gomez
44
45