Você está na página 1de 45

Neste mundo louco, nesta noite brilhante

“Eu não sou uma fada, querida. Eu sou apenas alguém que precisou aprender a se
virar neste mundo, ok?”
1
Personagens

Vigia do KM 23

Uma mulher brasileira de meia idade. Seu cabelo e sua pele, talvez cintilantes ou
transparentes, ofuscam a vista. Numa noite como esta, ela poderia ser um tipo de fada
ou lenda ou heroína. Ou apenas uma mulher de ressaca que precisa esconder um tipo de
arma entre os seios.

Uma jovem brasileira.

2
Paisagens

Outono. Trecho de uma rodovia brasileira. Uma placa onde se vê escrito: “KM 23.
Retorno”. Um estabelecimento fechado. Postes queimados. Uma árvore brasileira
desfolhando devagar. Ao longe, sirenes de carros policiais e o som de radiopatrulha
(ocorrências policiais variadas) e de escuta aérea (aviões decolam e aterrissam em várias
partes do mundo).

Imagens variadas ao longo das cenas sugeridas pelas falas das personagens.

Pergunta:

Uma banda pode tocar ao vivo?

Obs:

As falas de escuta aérea (rádio) são adaptações livres e absurdas de instruções reais.

A função técnica da peça (ou bastidores, como chamamos aqui) – luz, trilha, projeções –
é um personagem importante para a cena e pode estar dentro dela.

3
Antes de começar: coragem

Música animada. As atrizes se preparam.

Atriz 1 (Vigia): Pronta?

Atriz 2 (L): Não sei.

Atriz 1: Oi?

Atriz 2: Acho que não.

Atriz 1: Vamos lá?

Atriz 2: Tipo amarelando.

Atriz 1: Não, não. Agora não dá. Já foi.

Atriz 2: Acho que não vou conseguir não.

Atriz 1: Vai sim. Vai conseguir sim.

Atriz 2: Vou?

Atriz 1: Vai, claro que vai.

Atriz 2: Já sentiu que não ia conseguir, alguma coisa assim?

Atriz 1: Alô?!

Atriz 2: É, batendo aqui. Podia ser uma onda. Gigante. Bem no meio dos seios.

......

Atriz 1: Ei, escuta. “Eu sei como é, você disse. Mas seu rosto desmentia. Você não tem
ideia de como é lá embaixo. Quer dizer, fundo.”

Atriz 2: “No fundo do fundo da coisa.”

Atriz 1: “No cu da coisa.”

Atriz 2: “Na profundidade abissal da coisa.

Atriz 1: “Não, você não tem ideia.”

Atriz 2: “Poucos estiveram lá e voltaram.”

Atriz 1: “Mas eu falo do alto do Himalaia dos que conseguiram.”

Atriz 2: “E, meu bem, não se parece com nada.”

4
Atriz 1: “Nada daquilo que imaginamos ou ouvimos em canções ou lemos em poemas
ou assistimos em filmes.”

Atriz 2: “É o lugar onde nenhuma lanterna.”

Atriz 1: “Ou equação matemática.”

Atriz 2: “Ou fórmula química.”

Atriz 1: “Ou foguete da Nasa.”

Atriz 2: “Ou submarino silencioso”.

Atriz 1: “O ponto onde nenhuma palavra alcança”.

Atriz 1 e Atriz 2: “Então não, meu bem, você não sabe como é.”

Elas riem.

Atriz 2: Tá bom.

Atriz 1: Você consegue, ok?

Atriz 2: Ok.

Atriz 1: Ok.

Atriz 2: Quer dizer, não sei.

Atriz 1: Ok?

Atriz 2: Ok.

5
Prólogo: o medo

A Vigia do KM 23 se distrai com um pequeno radinho de escuta/comunicação.

Rádio/fala escuta aérea (tais falas podem ser feitas por quem estiver disponível em
cena ou gravadas em off):

“Voo 4706. Autorizado ILS X-RAY pista uno quatro. Reportados pássaros sobre a
cabeceira.

Voo 1970, desça via STAR para o nível de voo zero nove zero.

1195, aguarde vetoração para a final do ILS X-Ray pista uno quatro.

090, vetoração para sequenciamento, curve à direita proa 270, desça para nível de voo
zero oito zero.

4706, chame a torre em uno uno oito decimal dois cinco. Atento pássaros.

Cargo cinco dois, desça para nível de voo zero nove zero, reduza velocidade indicada
para dois cinco zero nós.

Pássaros na vertical da cabeceira.

Cuidado com os pássaros.”

Vigia (para a plateia): É meio difícil entender o que eles falam, mas me ajuda a passar
o tempo.

Rádio:

“1127, autorizada aproximação visual, livre de restrição.”

Vigia: L-i-v-r-e d-e r-e-s-t-r-i-ç-ã-o. Entendeu? Com o tempo, você fica bom nisso.
(fala no rádio, estilo walkie-talkie) É Delta aqui, bebê. Só um alôzinho para você.

Rádio:

“Ah, você! Estou te devendo. Depois. Beijo. 1127 confirmo, autorizada aproximação
visual, cheque transponder. Não recebo altimetria.”

6
Vigia: É muito melhor escutar a coisa dos aviões porque a radiopatrulha, sabe, ela pode
ser deprimente e depois de uns anos... Ah, deixa pra lá, vai por mim, é melhor sintonizar
a escuta aérea, o modo como eles falam em códigos, alguém sempre indo embora,
alguém sempre chegando.

Fiz grandes amigos na escuta aérea.

Amigos para o fim do mundo.

Rádio:

“Voo 3390 chegando. Cuidado com os pássaros”.

Vigia: Adoro quando eles dizem c-h-e-g-a-n-d-o, sei lá, penso em pessoas se
encontrando e sentindo um tipo de amor.

Ao fundo, L entra caminhando, sempre olhando para trás com medo. Atravessa a cena
e some. A Vigia segue distraída com seu rádio.

Rádio:

“Voo 1195. Efetue espera sobre VOR e aguarde vetoração.”

Faróis altos de um carro. L entra, desta vez correndo, acossada por três ou quatro
vultos, um deles sempre em destaque no grupo. Eles passam pela cena e somem.

Rádio:

“Voo 1195, vetoração para final ILS X-RAY para a pista uno quatro, curva à direita
proa dois cinco zero, desça para cinco mil pés.

L entra seguida pelas figuras que lentamente a cercam no centro da cena.

Vigia (segue falando, paralelamente, para a plateia): Eu também adoro a voz dos
comissários de bordo, eles fazem o mundo parecer sob controle.

O rádio da escuta aérea pode ficar mais alto e frenético: números, partidas e chegadas
(“090, tráfego superado, reassuma a navegação proa de BORAK.

Alfa bravo índia, programe espera sobre o VOR, seu aeródromo de destino está com
restrições de visibilidade. Informado pela Torre 150 metros devido à fumaça.

1195, autorizado ILS X-RAY pista uno quatro. Reportados pássaros sobre a cabeceira.
7
Tango Romeu Sierra, mantenha velocidade máxima de dois cinco zero de indicada.
150, suba para o nível de voo três cinco zero e chame o Centro em uno dois três
decimal sete.
Atos cinco cinco, contato radar na decolagem, suba restrito a cinco mil pés devido à
tráfego doze horas, cinco milhas, rumo norte.
Três dois zero, nível de voo zero meia zero.”)

Os vultos acuam L e a Vigia finalmente volta sua atenção para essa cena.

Rádio:

“Mantenha esta velocidade. Cuidado com os pássaros.”

Vigia: Ah, mais uma, estava demorando. Outra cadela vira-lata ou piranha vagabunda,
como eles dizem. Quer ver? Sou invisível para eles, posso falar o que quiser aqui. Eu
disse que não aguentava mais o KM 23. São previsíveis, quer apostar? Eles andam em
círculos ao redor dela. Isso leva uns 37 segundos.

Rádio:

“Mantenha a posição”.

Vigia: Agora fecham o círculo. Ela está com medo.

Rádio:

“Vetorar à esquerda.”

Vigia: Como eu sei disso? Você não ia querer ver as coisas que eu já vi. O KM 23 é o
fim do mundo, pode acreditar... Esqueça, sou invisível, não estou aqui.

Rádio:

“8406, prossiga na aproximação. Cuidado com os pássaros.”

Som difuso de controle aéreo ficando mais baixo até silenciar.

Vigia: Ah, agora um deles – geralmente o com veias saltadas – vai chutá-la no
estômago.

Viu?

Os outros o seguirão. É bom chutar um monte de carne.

8
Agora mais embaixo.

Eles chutam até ficarem ofegantes. Ritmo animal coletivo. Ela cairá no centro do
círculo que eles fazem com seus corpos excitados em 4, 3, 2, 1. Quem será o primeiro?
Normalmente é o mais calado. Isso, aquele ali, quer ver? 1, 2, 3...

Eles jogam L no chão e a estupram.

Vigia: Um a um farão o que querem fazer. (volta-se para os bastidores) Dá pra colocar
uma música aí? Essa parte é difícil, eu nunca me acostumo. (para a plateia) Eu não
poderia suportar a vida no KM 23 sem música.

Música.

Vigia (para os bastidores): E também abaixe a luz, pode até apagar, para falar a
verdade. (ela alterna a fala entre plateia e bastidores) Já vai terminar. Eles costumam
ser rápidos.

Escrotos.

Um deles cospe.

Mais um chute.

Um soco talvez. Pontapés. O medo da morte é um instante eterno e branco deformando


as células do seu corpo.

Mas ela vai sair disto sozinha, quem sabe um golpe, não sei, aulas de defesa pessoal.

É, pode ser.

Não, não vai.

Não há o que ser feito.

Ninguém pode mudar nada, tem sido como uma enxurrada. Eu estou cansada e sou
invisível, pedi que me pusessem no setor administrativo. Sei lá, carimbos, cartas,
despachos, como diziam antigamente.

Está acabando.

9
Merda.

Ficar com a bunda dormente carimbando papéis timbrados, parece asseado e inofensivo,
eu pedi tanto a eles, eu disse: “o KM 23 daquela rodovia não, por favor, me mandem
para qualquer outro lugar”, eu disse. Ninguém quer vir pra cá, entende, você perde tudo
quando você vem para cá, vocês não me julguem, você perde tudo o que você tem de
quente ou bom dentro de você e você vai ficando invisível, começa pelos cabelos, os
cabelos são os primeiros a ficar transparentes. “Por gentileza”, eu disse, “o KM 23 é um
mundo louco”.

Falta apenas um. Animal.

Eu não sou uma pessoa boa, entendeu? Eu já perdi tudo.

O que fica por último é sempre o mais estranho.

Não existe bondade neste mundo, eu sou apenas a vigia do KM 23, apenas a vigia
invisível de um pedaço de asfalto.

Está terminando.

Ah, não tem mais um.

Ok, vocês têm razão, eu não posso permitir isso, chega. Sim, vamos fingir e tentar:
existe bondade neste mundo, heróis ainda vivem e eu sou um tipo de fada ou lenda
brilhante. (para os bastidores) Por favor, um facho bem forte de luz. Aqui, isso, um
clarão.

Sim, vamos começar de novo.

Pode trocar a música aí? Não sei, um som que inspire bons sentimentos.

Uma música mágica.

Vigia: Obrigada. Mais claro também, por favor, eu já disse.

Ela tira a arma escondida entre os seios e se ajeita.

Vigia (para a plateia): Nós vamos começar de novo, ok? Preciso que vocês imaginem.
Não sou invisível e neste instante uma árvore brasileira está lentamente perdendo as

10
folhas com o vento leve, uma coisa suave como num filme de animação, devagar e
misterioso.

Tem qualquer coisa de mágico e bom, há um tipo de esperança nascendo no meio deste
asfalto, em todas as ruas, por isso é tão bom que a gente esteja aqui hoje junto, não é por
acaso, tem qualquer coisa de extraordinário e breve, ok? Imaginaram?

Ótimo.

Vamos lá. (orientações para os bastidores) A música mágica acaba. Som de sirene de
carro da polícia se aproximando.

Isso vai afastá-los porque são covardes. Isso.

Agora um clarão.

Mais.

Um clarão como o daqueles faróis no meio do oceano sobrevivendo há séculos a ondas


gigantescas.

Ela se posiciona com a arma, mirando os vultos, de costas. Sol ofuscante.

Cena 1: um cérebro em chamas

Os vultos foram embora. L está caída no chão.

Vigia (para os bastidores): Agora uma luz mais suave, por favor. Sabe aquela que a
gente chamou de “o-mundo-é-bom-e-as-pessoas-generosas”?

......

Vigia (para os bastidores): Essa mesmo, quase... Dá para ficar melhor. Isso. Obrigada.
(chega perto de L) Deixa eu ver isto. Ah, é quase uma criança, quer dizer, não dá para
saber. (para a plateia) Eu já vivi tantos séculos que todos parecem bebês. Se você
prestar atenção, vai perceber que são todos uns bebês andando pela rua, bebês dando
seta para virar à esquerda, bebês dormindo em bancos de praça. (para L) Ei. Está
ouvindo? Estou falando.

11
L não consegue se mexer.

Vigia: Ei, ainda está aí?

......

Olá!

......

Ei, garota.

L: Vá embora.

Vigia: Ah, está!

L: Tchau.

Vigia: Você consegue se levantar?

L: Vá embora.

Vigia: Consegue me ver?

L: Me deixe dormir.

Vigia: Sabe me dizer o que aconteceu?

L: Dormir ou desaparecer.

Vigia: Qual o seu nome?

L: Não importa, vá embora.

Vigia: Eu poderia te ajudar, se você quisesse.

L: O que você quer? Tchau.

Vigia: Quer ajuda para se levantar?

L: Não dá.

Vigia: Você não consegue se levantar?

L: Não dá, não está vendo?

Vigia: O que aconteceu?

L: Quem é você?

Vigia: Você lembra?

12
L: Posso confiar em você?

Vigia: Vamos, estou aqui.

L: Vamos para onde?

Vigia: Não, eu quis dizer que estou aqui com você.

L: Não posso confiar em você com essa roupa, não sei que dia é hoje, quanto tempo
passou?

Vigia: Bom...

L: Você tem horas? Você é homem ou mulher? Posso confiar em você?

Vigia: O que você acha?

L: Já é dia? Quanto falta para a gente ir embora? Já cantaram parabéns? Nossa, estou
confusa.

Vigia: Ah, começou o delírio.

L: Desculpe, não falo inglês, estou sem calcinha. Nossa, estou confusa, o que está
acontecendo?

Vigia: Você deve estar delirando, você perdeu sangue, posso ver de perto?

L: Não.

Vigia: Pode ser a adrenalina, um tipo de pânico, lembra o que aconteceu?

L: Sim, estou bem, estou cantando parabéns sem calcinha, daqui a pouco me levanto,
serei graciosa quando sair andando, obrigada, pode ir.

Vigia: Não vai confiar em mim, não é?

L: Sim, claro que confio, agora pode ir.

Vigia: Não confia, não.

L: Sim, confio, vou te dizer o que aconteceu, quer dizer, eu estava andando e de repente
me perdi neste lugar e tudo estava escuro e eu caí e quebrei o pé, eu acho. Ou a perna.
Não tenho certeza. Agora pode ir.

Vigia: Não parece verdade. Você está sangrando.

L: Ou a perna inteira, talvez as duas pernas então, mais uma clavícula. Está tudo
quebrado, mas dá pra sair andando, talvez correndo mesmo sem calcinha e clavículas,
posso realmente correr uma maratona quando amanhecer, está satisfeita? Pode ir
embora agora.

13
Vigia: Não parece um tipo de verdade, querida.

L: Não me chame de querida. É falso.

Vigia: Desculpe.

L: Quer dizer, eu estava andando pela rua porque eu prefiro andar diretamente no
asfalto, entende? Mas o asfalto pode ficar muito quente sob os pés e acho que foi isso
que aconteceu e então eu caí. Isso aí no seu peito é uma arma? Olha, está tudo quebrado,
mas eu estou ótima, agora pode ir, não conte para ninguém, não encoste em mim, estou
imunda.

Vigia: Não podemos continuar se não tivermos franqueza aqui, ok?

L: Você podia ver o asfalto derretendo sob seus pés, foi isso. Pode ir agora. Um beijo,
querida.

Vigia: Você me chamou de querida.

L: Desculpe, nunca chamo ninguém de querida, é falso, não sei o que está acontecendo.

Vigia: Você está perdendo sangue, parece perto da cabeça, dá pra ver daqui, posso
chegar mais perto?

L: Não! Foi o asfalto derretido, estava muito quente e eu caí, uma queimadura de oitavo
grau, não sei, até quantos graus vai a classificação de uma queimadura?

Vigia: Três.

L: Ah, não importa, foi uma queimadura de grau máximo, ok? Daqui a pouco eu me
levanto e me viro sozinha, esqueci onde fica a clavícula, pode ir, um beijo.

Vigia: Não consegue imaginar alguma coisa que pareça verdade?

L: O mundo queimando sob os seus pés. É verdade. Às vezes acontece. Eles disseram
que iam voltar.

Vigia: Olha, eu posso não levar muito jeito, mas eu quero te ajudar. Eles disseram o
quê?

L: Sim, você tem razão, foi um trecho de asfalto em brasa, aquilo me pegou de surpresa
e eu perdi o equilíbrio e caí, acho que bati a cabeça, meu cérebro está em chamas.

Vigia: Não posso trabalhar com você desse jeito.

L: Está tudo quebrado e em chamas. Você precisa acreditar em mim. Você disse
trabalhar?

Vigia: É, não vai dar.

14
L: Por que você disse trabalhar?

Vigia: Nada, não falei nada. Você sabe quem eu sou?

L: Me deixe em paz.

Vigia: Você olha pra mim e pensa alguma coisa, qualquer coisa? Pode inventar.

L: O que você quer? Estou confusa, meu coração está batendo. Está meio difícil para
mim na verdade, não está vendo?

Vigia: É por isso que estou aqui.

L: Vá embora. Você está me enchendo. Ou você acha que pode me ajudar, que é um
tipo de heroína ou a mãe da Peppa Pig, não sei, vá embora.

Vigia: Peppa Pig?

L: Ah, me deixe dormir ou desaparecer. Aquelas pessoas disseram que iam voltar,
entende, que iam voltar com um monte delas e acabar com você também e depois tudo
começou a brilhar. Você, por exemplo, você brilha um pouco.

Vigia: Você está me deixando tonta. Posso checar o seu pulso?

L: Disseram que iam trazer outros, você tem uma coisa cintilante, muitos deles, alguma
coisa acetinada na sua pele, não sei, na sua roupa macia e lustrosa como cetim, talvez
seja o seu cabelo, um cabelo lustroso como um abajur ou como um monte daquelas
pessoas chegando a qualquer momento, que tipo de coisa é você, hein? Nossa! A noite
agora está muito brilhante e acetinada, quem você acha que é?

(ela grita)

Quem você pensa que é?

Você acha que é um tipo de fada?

Vá embora.

Você é velha ou nova?

Sua vaca velha.

Sua fada cintilante jovem.

Sua vaca jovem velha fada cintilante.

Sua fada vaca cintilante macia e lustrosa como cetim transparente, você sabe o que é
perder tudo?

Ah, que confuso, me deixe desaparecer, por favor.

15
A Vigia vai até ela e a abraça.

Vigia: Shhh... Calma. Vai ficar tudo bem.

L: Não tem mais como ficar tudo bem.

Vigia: Shhh... Calma. Calma.

Eu sei que você está com medo neste mundo louco, nesta noite brilhante, mas eu não
vou sair daqui.

Eu vou atravessar esta noite com você.

Eu vou tirar você daqui.

Mesmo que eu precise fazer um avião pousar bem no meio desta merda.

Mas você precisa me dizer.

L: Eu só quero dormir um pouquinho antes, daí eu vou embora, pode acreditar.

Vigia: Me dizer o que aconteceu.

Um vulto passa olhando para L, mas elas não percebem, abraçadas e alheias como a
escultura Pietà, de Michelangelo.

16
Cena 2: a dor

A Vigia continua no chão, com a cabeça de L no colo, ambas em silêncio.

Vigia: Pode não ser curioso para vocês, mas as estrelas hoje estão mais brilhantes do
que nos outros dias. Isso não é comum no KM 23, ok?

O rádio da Vigia começa a emitir uma música francesa. A Vigia começa a cantar.

L: Quem está falando?

Vigia: Ah, desculpe, esqueci de abaixar.

L: Estão voltando?

Vigia: Foi um minuto de distração, desculpe, é uma música.

L: Tudo bem, eu gostei... (dor) Ai.

Vigia (distraída com o aparelho, se levanta): É um tipo de rádio, sabe?

L parece começar a sentir dor – que aparece em picos. A Vigia segue distraída com o
rádio, sem prestar atenção na outra.

L: Não, não estou sabendo de nada hoje não. (dor) Ah!

Vigia: É um rádio, é isso. A gente pode sintonizar um monte de coisa, gosto mais dos
locutores franceses, são cafonas, mas eu amo.

L (dor): Ah!

Dói.

Nossa.

A dor é um tipo de porta.

Vigia: Não, aqui não tem nenhuma porta.

L (ofegante): Não sei, uma porta cega ou um painel transparente e você batendo de
frente.

Vigia: Este rádio já me salvou de um monte de coisas, dá para escutar as ocorrências do


Corpo de Bombeiros, um programa de músicas clássicas no Peru e essa emissora cafona
na França, sou um pouco a fim dos locutores franceses.

L: Talvez um caminhão te acertando na contramão, faróis apagados.

Vigia: Não, não tem nenhum caminhão vindo, deve ser o delírio. Ah, e também a escuta
aérea daquele aeroporto enorme, sabe?

17
L: Aiii...

Vigia: Não, você não imagina o que é sintonizar a escuta aérea – aviões pousando e
levantando voo, coordenadas em código, não sei, é como fazer sexo, sou um pouco a
fim dos controladores de voo.

L: Ahhhhhhhh. Isso realmente dói. Mãe!

Uou, por favor....

Ahhhhh. Eu prometo, mamãe, por favor, me ajude.

Ahhhhh.

Ao ouvir a palavra “mãe”, a Vigia se afasta de L, que continua chorando de dor.


Finalmente, L se acalma, a dor diminui.

L: Olá?

......

Por que ficou calada?

Pode me dar a mão?

Por que não fala nada?

Pode por aquela música de novo?

Eu juro, eu gostei.

Mamãe?

Ah, desculpe, estou confusa, eu não tenho mãe.

Mamãe?

Ah, desculpe.

Pode ser minha mãe?

Vó?

Me perdoe, eu nunca chamo ninguém de querida.

A dor volta em picos.

L: Ahhhhhh. Isso dói! Tem alguém para fazer isso parar? Uou. Por favor, desliga isso,
não fique tão calada.

Vigia (para a plateia, meio desconcertada): Ok, sempre chegamos a esta parte.

18
Eu estou acostumada. Isto aqui é o KM 23.

L: Está aí ainda? Mãe?

Vigia: Não me chame de mãe.

L: Ufa, você está aí.

Vigia (para os bastidores): Você tem uma luz mais animada, por gentileza? Ou
qualquer coisa para me ajudar, tipo vídeos de patinação artística ou imagens de pessoas
brindando numa lancha com drinks enfeitadinhos? Ou por exemplo um documentário
sobre a vida dos coelhos, coisas desse tipo. É, coelhos, coelhos é melhor, isso, para me
dar esperança, como se o mundo fosse um lugar bom e fofo cheio de coelhos e coisas
fofas como coelhos enfeitadinhos, por favor.

Imagens aleatórias que a Vigia observa por um tempo.

Vigia (para os bastidores): Ah, obrigada, já deu uma animada aqui. Ó! Animei um
pouco.

L: Ufa, você ainda existe.

Vigia (para a plateia): Às vezes a gente vacila, né? Às vezes, acordo e penso: será que
vou conseguir atravessar este dia, quer dizer, chegar até o fim dele?

Mas aí eu digo ‘se vira’ e sinto que tenho de obedecer e visto minhas meias e venho
para o KM 23. Ó! Superanimadinha, que garotona animada eu sou.

L: Aiii.

Vigia: Ok, se vira, garotona. (para a plateia) Sempre chegamos a esta parte: a DOR.
Nem todo mundo conhece a verdadeira dor, essa é a verdade. Tem gente que passa a
vida sem ter visto esse rosto, quer dizer, nem sempre é um rosto. Às vezes é outra coisa,
mas não importa, você sabe quando está diante dela.

L: Ahhhhhh...

Vigia: Não é uma coisa imediata, o cérebro leva um tempo. Primeiro estresse agudo, um
tipo de colapso. Aí o corpo libera uma onda analgésica e você só percebe a dimensão da
surra depois, quer dizer, algumas pessoas levam menos tempo, outras são mais
resistentes.

L: Uou.

Vigia: Mas ela chegou bem longe, é forte, dá pra ver. Talvez eu esteja começando a
gostar dela.

L: Ahhhhh, como pode ser...

19
Vigia: Não, não estou não, é só mais uma cadela, como eles dizem. Sabe, eu tive uma
dessas, uma menina, ela se parecia... Eu não sei, isto aqui hoje está diferente, eu não
sei...

L: Por favor, me ajude, fale comigo, isso está doendo, posso falar palavrões?

A Vigia alterna as falas entre L e plateia.

Vigia: Sim, está doendo, adrenalina e cortisol começando a diminuir.

L: Uou, aiii, qual o seu nome mesmo, como você sabe essas coisas?

Vigia: É um lance do cérebro, milhões de anos de evolução da espécie sendo testados


todos os dias no KM 23, Brasil.

L: Você parece entendida e segura como uma médica francesa magra. (dor) Ai!

Vigia: Ah, esse delírio vai longe hoje...

L: Entendida e cheia de si, ai... Posso desaparecer?

Vigia: Eu precisava de alguma coisa para beber.

L: Você sabe um monte de coisas, não é? Magra, francesa e sabichona europeia, todos
querem saber por que as francesas são magras. Ah... Isso dói como o casco de um barco.

Vigia: Uma vez, eu quis ser um barco, os barcos têm nome de mulher, eu pedi a eles,
por favor, não me mandem para o KM 23, me deixem ser um barco, qualquer coisa
serve, até o casco de alguma coisa seria melhor do que isto.

L: Tá bom, vou inventar um nome para você, sua sabichona europeia. (dor) Ahhh! (a
dor vai e volta) O nome de um desses navios gigantes carregando turistas francesas
magras em alto mar. Mademoiselle Louise. (dor) Ahhhh. Ufa. Onde você aprendeu
essas coisas que você diz, Mademoiselle Louise?

Vigia: Você me chamou de quê?

L chora uma melodia inventada e sem sentido, meio patética.

L (cantando): “Mademoiselle Louise

Sobre a água

Me leve embora

Mademoiselle Louise

Junto ao seu corpo

São uns escrotos

20
Mademoiselle Louise

O que a vida quis?

Esta cicatriz

Mademoiselle Louise.”

A Vigia fica um tempo sem saber o que dizer. L segue cantarolando baixinho.

Vigia: Pare com isso.

L: Não tem dor agora, vai e volta, sou feliz. O que a vida fez com você?

Vigia: Eu disse para você parar.

L: Pessoas como você acham que é fácil.

Vigia: E nunca mais me chame de mamãezinha, ok? Assim não vai dar pra te ajudar.

L: Que é fácil. Isso de existir.

Vigia: O que está falando?

L: Ahhhh. Eu não sei, eu não sei o que estou falando, não sei o que está acontecendo,
está voltando, isso vai e volta, faça isso parar.

Vigia: Ninguém disse que seria fácil. E também não me chame de Louise, ok?

L: Você disse que seria fácil sim, Mademoiselle. Ahhh. Louise, isso dói como um barco
de aço rasgando seu corpo como se ele fosse o mar.

Vigia: Não me chame de Louise.

L: Eu preciso te chamar de alguma coisa, ahhh, fale alguma coisa Louise, isso dói.

Vigia (para a plateia): Eu já estive aí mais de mil vezes.

Eu já morri mil dias, mil vezes neste mundo louco de mil barcos naufragados.

A dor é o casco de um barco tentando chegar em algum lugar.

Ou o rosto de alguém.

Imagem/Frase: “Keep walking”.

Vigia (para a plateia, com imagem simultânea da frase na hora em que ela aparece
abaixo): Bom. Parou. Assim não se chega a lugar nenhum. Só dá para seguir em frente,
a vida é propaganda de whisky, keep walking – eu adoro frases de efeito criadas por
imbecis. (para os bastidores) Coloca bem grande aí keep walking. (para L) Querida, eu
tenho uma ideia.
21
L: Não me chame de querida.

Vigia: A dor – você precisa mostrar quem manda.

L: É falso.

Vigia: Dá para controlar. Não fuja, olhe para ela de frente, não me chame mais de
Louise, me chame de Diana, ok?

L: Quer merda é essa?

Vigia: Concentre-se nela.

L: Que merda é essa agora? Você disse que ia me tirar daqui.

Vigia: Pense em árvores, rios correndo sobre pedras milenares.

L: Isso é um tipo de autoajuda?

Vigia: Ou imagine um futuro feliz. (para os bastidores) Por favor, vou precisar de você
de novo, alguma trilha de meditação, sabe, mas não me venha com Enya, ok?

Música de meditação da Enya.

Vigia (para os bastidores): Não, isso é um tipo de Enya, meu amor.

L: Pare com essa merda toda. Mademoiselle! Faça isso parar.

Vigia (para os bastidores): Barulho de natureza, uma coisinha leve de fundo, você tem?

L: Diana Louise! Isso é insuportável, seria melhor não existir.

Vigia: É só dor, entende, é como existir demais, existir em excesso – essa é a dor.
Concentre-se num tipo de futuro. Diga ‘foda-se, eu consigo’.

L: Não dá.

Vigia: Diga ‘isto é bolinho’.

L: Não tá dando.

Vigia: Vamos. Diga ‘foda-se, sou melhor do que esta merda’. (para os bastidores)
Vamos, não está dando para segurar aqui sozinha, não está vendo?

Música transcendente.

L: Caralho, Mademoiselle! Diana, escuta: pessoas como você acham fácil existir, mas
não é o meu caso. Eu não gosto das suas frases de efeito e das suas musiquinhas, faça
esta merda parar, diga alguma coisa de verdade, faça isso parar, merda, ahhhh!

Agora, atriz e personagem se confundem ou se somam.


22
L/Atriz 2: Diga alguma coisa decente, caramba, ahhh (dor), diga alguma coisa como
mastigue a dor, engula a dor, chute a dor, guilhotine a dor, mutile a dor. Ahhh.

Vigia: O que você está fazendo?

L/Atriz 2: Não sei, fala alguma coisa melhor, grita algo decente como degole todas as
mãos e a língua da dor, por favor, me ensine como degolar um a um, ahhh, caramba,
diga instruções para as grandes ocasiões -- como degolar todas as mãos e tentáculos e
cabeças --, ahhh, o cérebro de um polvo vale mais do que o cérebro de um homem
porque possui mais neurônios, não quero degolar polvos, quero degolar pescoços
tentáculos com uma lâmina afiada durante sete anos no Himalaia ou mesmo uma faca de
degola Twin Master anunciada no Mercado Livre, lâmina de 17 centímetros, 130
gramas, comece pelo lado esquerdo, aprofunde o corte no centro, atravesse a carne,
senhoras e senhores, com vocês: a degoladora! Ahhh. Faça esta dor parar, ahhhh.

A atriz de L cai e se debate de dor. Um vulto atravessa a cena e se detém: ele e a Vigia
se encaram por um instante. A Vigia coloca as mãos em sua arma, como proteção,
depois dispara a esmo uma vez. A figura intrusa vai embora. A música vai crescendo. A
Vigia ajuda L.

Vigia: Ok. Ok. (para a plateia, vasculhando suas coisas para achar um remédio) Ok.
Tudo bem. Não é fácil para ninguém existir. Por isso, você precisa carregar umas coisas
com você – maquiagem, lixa de unha, canivete suíço, um banquinho desmontável,
chocolate, chicletes, amendoim, música, lenços umedecidos, álcool gel, algum
instrumento musical, locutores franceses, um saco de balas mágicas. Ok. Sim, eu sou
um tipo de fada ou heroína, não importa, estou aqui há séculos e tenho o que for preciso
para estar aqui. Agora, por exemplo, tenho balas mágicas: sertralina, fluoxetina,
paroxetina, citalopram, escitalopram, diazepam, midazolam. Ah, aqui, midazolam. É
genérico, mas funciona se for de um bom laboratório. Efeito: céu-azul-sem-nuvens.

A Vigia enfia toscamente um comprimido na garganta de L.

Imagem/Frase: “Dormir é uma pausa na experiência mais radical de todas: existir”.

Vigia: Um dia, eu li em algum livro algo como “dormir é uma pausa na experiência
mais radical de todas: existir”. Ah, eu adoro frases de efeito, me perdoem.

L apaga. Um coelhinho branco cruza a cena (projeção?).

23
Cena 3: uma canção impossível

L segue apagada. A Vigia sintoniza seu rádio, agora emitindo novamente a escuta da
torre de controle de um aeroporto.

Rádio:

Atos cinco cinco, reassuma proa de CATOL, suba sem restrições.

Vigia (falando no rádio): Delta-India-Alfa-November-Alfa. Adivinha! Delta-India-


Alfa-November-Alfa. Alô...

Rádio: Ah! Espera. 3806, bom dia, suba sem restrição para o nível de voo três sete
zero. Oi! Delta!

Vigia: Consegue falar agora?

Rádio: Dá. Rapidinho. Logo. Um daqueles. 352 passageiros.

Vigia: Uau. Você adora um boeing.

Risadas.

Rádio: Positivo.

Vigia: E aquilo, deu certo?

Rádio: Sim. Obrigada. Você. Foi. Ótima. Tempo esgotando. Falamos. Mais. Tarde?

Vigia: Claro. Olha, vou precisar da sua ajuda hoje.

Rádio: Outra? Daquelas?

Vigia: É. Que horas você vai ter uma janela?

Rádio: Meia. Hora. Talvez. Menos. Posssível?

Vigia: Acho que sim. Vou precisar de algum desvio, um modelo pequeno, qualquer
coisa. Estão voltando. Muitos.

Rádio: Ok, Delta. Vou. Ver. O que. Consigo. Beijo. Até. Já. Atos cinco cinco, chame o
centro em uno dois três decimal sete.

Vigia (para a plateia): Como eu disse. Essas bolinhas podem te fazer dormir por pelo
menos 5 horas, mas com ela não, adivinhem. Vai acordar em menos de um minuto. 60,
59, 58, 57...

E quando você acorda, parece amanhecendo.

56, 55, 54, 53, 52...

24
Sem dor, é claro. Muitas esperanças.

45, 44, 43, 32, 30, 27...

É como a primeira hora de tudo.

26, 22, 21...

A primeira hora da sua vida.

20, 16, 15, 12, 9, 8, 7...

Dura uns 15 minutos. Depois acaba. A dor continua bloqueada por um tempo. Mas isso
também depois acaba. 5, 4, 3, 2, 1...

L: Nossa, que delícia.

Vigia: É como ser Chapeuzinho Vermelho se Chapeuzinho Vermelho tivesse tido uma
vida decente.

L: O que é isso que você me deu? Nossa...

Vigia: Chapeuzinha Vermelha, tente ficar quietinha agora, podemos combinar isso?

L: Parece um orgasmo.

Vigia: Eu prometo nunca mais te chamar de querida se você tentar ficar quietinha, ok?

L: Um orgasmo num cruzeiro marítimo para o Caribe, Diana Louise.

Vigia: Nossa. (checa as bolinhas na bolsa) O que eu te dei mesmo?

L: Isso é maravilhoso. Cruzeiros marítimos, a melhor opção para as suas férias. Por que
Diana, hein? O Caribe ainda existe?

Vigia: Achei que você apagaria por mais tempo.

L: Você já teve um orgasmo como este? Um navio macio, estofados de veludo, o


oceano parece gentil, nossa, nunca fui tão feliz, vai dar tudo certo, já posso me levantar.

Vigia: Acontece com a maioria, mas esta noite tudo parece diferente.

L: Espero que o Caribe ainda exista porque estou indo pra lá.

Vigia: Não sei o que está acontecendo.

L: Nossa! Estou ótima, vai ficar tudo bem, tenho uma vida inteira pela frente, coisas
boas acontecem, acho que consigo ir embora andando, o aquecimento global ainda não
engoliu o Caribe.

Vigia (plateia): O cérebro agora está inundado de endorfina.


25
L: Eu consigo me levantar, isso vai ser moleza.

Vigia: É melhor continuar deitada, Chapeuzinha, essa sensação é uma ilusão.

L: Diana Louise, você fica querendo saber sobre mim, mas você nunca conta nada sobre
você. Por que Diana, hein? (tenta se levantar) Me ajude aqui só um pouquinho.

Vigia: Isso não vai dar certo, esqueça.

L (tentando se levantar, muito sem jeito): Vai sim, Diana Louise, conte uma história pra
me dar forças, você vai ver, eu vou sair daqui.

Vigia: É melhor ficar deitada, vamos precisar da sua força daqui a pouco.

L: Não precisa ser verdade, eu aceito.

Vigia: Guarda essa força aí, tá?

L: Por que uma mulher como você está aqui a esta hora tentando me ajudar?

Vigia: Logo a gente vai precisar dela se eu conseguir o que eu estou pensando que eu
vou conseguir.

L: Pode falar mentiras, eu não me importo.

Vigia (ajudando L num movimento impossível): Tudo bem. Eu conto uma história só
minha se você me contar o que aconteceu.

L: Não seja chata, estou ótima, é a sua vez, conte qualquer coisa, uma história de outros
mares e oceanos, uma história diferente deste mundo, por favor, eu sei que você pode.

Vigia: Ok. Vamos lá, uma coisa rápida. Mitologia romana, tá? Meu nome é Diana, mas
sou mais conhecida como deusa pura, filha de Júpiter e de Latona, irmã de Febo. Isso.
Serviu? Preciso checar no Wikipédia, mas acho que está ok, tem muitas versões.

L: Que família linda, Diana Louise, continue.

Vigia: Muito linda mesmo. Tenho poderes e posso transformar homens em animais
como cervos ou hipopótamos – mas prefiro coelhinhos –, sou cínica no amor e gosto de
caçar. Meu nome é cultuado em cavernas escondidas dentro de florestas.

L: Nossa, eu vou conseguir. Sempre soube que você era poderosa, o que mais?

Vigia: Já engoli a dor e depois a cuspi inteira.

L: Isso.

Vigia: Dormi por anos no chão, mastiguei terra, pedra, vidro.

L: Mais.

26
Vigia: Vi meus cabelos perderem a cor e não me importei, controlei 2.018 furacões,
incontáveis tempestades, 517 cavalos selvagens ao mesmo tempo, nadei com peixes
monstruosos das profundezas sem luz, cavalguei mil vezes por mil horas sem destino e
estive dentro de vulcões em atividade – o que posso dizer que é maravilhoso –, morei
em cavernas, andei descalça sobre fogo, assisti séculos passarem como segundos, talvez
milênios, mergulhei até o ponto mais fundo do oceano, escalei as sete montanhas mais
altas, conheci o rosto da morte, conheci o rosto do amor.

L: Uau. Aplausos.

Vigia: E ainda estou de pé. Keep walking, little darling. (para os bastidores) Frase de
efeito, por favor! Amo muito.

Imagem/Frase: Keep walking.

L: Isso é incrível. Acho que vai dar.

Vigia: Gostou?

L finalmente consegue engatinhar a esmo.

L: Eu adorei, Lousie. Acha que consigo sair andando? Se eu morrer hoje, pelo menos
terei tentado.

Vigia: Não diga isso.

Pessoas rondam o lugar, mas L não percebe, alheia em sua tentativa de se erguer. A
Vigia se defende, atirando pontualmente.

L (engatinhando enquanto a Vigia dissipa as figuras intrusas): Nossa, estou realmente


ótima, um passo para mim não é nada.

Vigia: Shhh, quieta!

L (engatinhando): Diana Louise, estou quase andando, você precisa ver isso!

Vigia: Shhh.

L: Já que vou morrer hoje, Diana, vamos fingir?

Vigia: Shhh, por favor...

L: Posso fingir a vida que eu teria, não seria bom?

Vigia: Quieta!

L: Imaginar as mais lindas mentiras que eu conseguir. Estou chegando em casa,


Mademoiselle.

27
A Vigia tampa a boca dela para que se cale, até que as sombras vão diminuindo.
Alguns poucos coelhos passam pela cena.

Vigia: Shiu.

L: É minha última chance, posso fingir? Por favor!

Vigia: Você não vai morrer hoje, entendeu?

L: Claro que vou Mademoiselle, por favor, me deixe imaginar alguma coisa.

Vigia: Não.

L: Por favor, um tipo de vida, coisas felizes.

Vigia: Isso não dá sorte, chega.

L: Será uma vida e tanto.

Vigia (se descontrola pela primeira vez): Você não vai morrer aqui. Eu não vou deixar
você morrer aqui. Eu não vou ver outro corpo morrer neste asfalto. É só um pedaço de
asfalto, mas é meu. Isso aqui se chama KM 23 e é da minha conta sim. Eu não vou
perder mais ninguém no KM 23, entendeu?

......

Entendeu?

......

Entendeu?

L se assusta com a reação da Vigia. Elas ficam em silêncio por um tempo.

Vigia (tentando se recompor): Estamos entendidas?

L: Desculpe.

Vigia: Ok. Desculpe.

......

Agora pare de se arrastar por aí e tente preservar alguma coisa dentro de você.

Essa sensaçãozinha de força é uma ilusão.

Mesmo assim, vamos precisar dela logo.

L: Ok.

Vigia: Ok.

28
L: Posso pelo menos tentar sentar?

Vigia: Ok.

L: Ok?

Vigia: Ok.

L: Você disse ok?

Ok é “posso me sentar”?

Vigia: Tá bom.

L: Obrigada.

Vigia: Tudo bem.

L: Tem um banquinho aí?

Vigia: Devo ter.

L: Eu sabia.

Vigia: Este deve servir. Mas não se acostume nem seja irresponsável, ok?

L: Ok.

Vigia: Vamos precisar da energia que você nem tem daqui a pouco, eu já disse, a coisa
está apertando um pouco.

L: Você tem tudo aí nessas suas coisas, não é?

Vigia: Tenho o que for preciso, eu já disse.

L: Eu fico impressionada.

Vigia: Vai conseguir ficar sentada?

L: Pelo menos é mais digno.

Vigia: Ok.

L: Estou precisando de um pouco de dignidade aqui.

Vigia: Ok. Posso te ajudar com isso.

L: Aposto que você tem um violão também aí com você.

Vigia (ajudando L a sentar): Vamos. Isso. Assim fica melhor, tente apoiar esta parte,
isso, esta.

29
L: Podemos cantar uma música também, alguma coisa de amor.

Vigia: Isso, fica quietinha aqui agora, tá? Bem paradinha. Você lembra exatamente
quantos eram?

L: Você tem um violão de verdade?

Vigia: A verdade?

L: Não, de verdade. Um violão de verdade.

Vigia: Ah, não, eu quis dizer: pode me contar a verdade agora?

L: Eram muitos, Louise, foda-se.

Vigia: Quantos?

L: Não importa.

Vigia: Não temos mais tempo.

L: Eu sei. Disseram que a gente não ia conseguir, que iam acabar com a gente, mas eu já
estou até sentada, não é? Talvez eles estivessem errados.

Vigia: Sim, eles estavam errados sobre nós.

L: Eles não sabem nada sobre nós.

Vigia: Você os conhecia?

L: Está difícil ficar sentada, pra falar a verdade.

Vigia: Me dê pelo menos um nome.

L: Está ficando estranho de novo.

Vigia: Não vai me contar a verdade nunca?

L: Mas dá para aguentar.

Vigia: Já que não vai falar, vou imaginar o que aconteceu. Você faz algum movimento
ou levanta a mão quando eu estiver acertando, ok?

L: Me deixe em paz.

Vigia: Como fazem os dentistas. Os dentistas dizem “levante a mão se sentir dor”.

L: Que diferença faz?

Vigia: Você tem 17 anos e se dirige ao ponto mais alto da cidade para tirar fotos com
suas amigas. Eles estão armados e apareceram de repente. Você acaba no KM 23.

30
L: Que diferença faz você saber o que aconteceu?

Vigia: Ok. Você tem 20 e poucos anos, estuda numa faculdade e eles dão uma festa. Há
umas 20 pessoas, você está bebendo e se divertindo perto do banheiro, alguém quebra
um copo, alguém ri, você acorda no dia seguinte com sangue, hematomas e mordidas no
KM 23.

L: Por que não pode me ajudar simplesmente?

Vigia: Ok. Você já trabalha e está saindo com esse cara e ele parece legal, você chega a
pensar que gosta dele, vocês passeiam de carro depois do trabalho. Os dias da semana se
confundem e você acorda com mais de 30 deles diante de você. Estão armados, você
procura o olhar dele, mas ele parece outra pessoa agora, você está confusa, os dias e os
rostos se confundem no KM 23...

L: Por favor. Chega.

Vigia: Você só quer ir embora dali. Ele parecia legal.

L: Basta.

Vigia: Você confiava nele, mas é ele quem está dirigindo e te olha pelo retrovisor.

L: Pare. Por favor. Chega.

Vigia: Ah, me perdoe, entendi.

L: Por que está fazendo isso?

Vigia: Você o amava, mas ele estava lá com eles, não é?

L: Chega por hoje, posso desaparecer agora?

Vigia: Você o amava, não é? Essa é a cicatriz.

L: Vá embora.

Vigia: Pode me dar pelo menos um nome?

L: Eu não gosto de você.

Vigia: Apenas um nome.

L: Eu já disse, vá embora.

Vigia: Um endereço, um sobrenome. Eu só preciso de um nome, entendeu? Qual o seu


problema, garota? Eu estou tentado te ajudar. Qual o seu problema?

L agora se ergue e, neste momento, atriz e personagem novamente se somam.

L/Atriz 2: Ah. Você precisa de um nome! Ela não vai te dar um nome, ok?
31
Vigia: Você está fazendo isso de novo, merda.

L/Atriz 2: Ela não vai te dar um nome.

Vigia: Qual o seu problema?

L/Atriz 2: Você quer pegar alguém, mas isso não tem começo, isso é como a guerra, a
guerra nunca vai terminar enquanto duas pessoas andarem sobre o seu KM 23, mas você
quer um nome. Anote o primeiro nome escrito na primeira caverna usada pela primeira
criatura. Anote aí: Zeus. Anote: Sexto, filho de Tarquínio, o Soberbo, ano 500 a. C,
violador de Lucrécia, Roma. Ah, anote logo Roma e suas sete colinas povoadas graças à
submissão das sabinas. Anote desde o começo e vamos esperar sentadas enquanto você
preenche no seu caderninho o nome de todas as guerras e de todos os tempos e de todas
as capitanias também porque foi assim que fomos fundados e é assim que estamos até
hoje, Ilha de Vera Cruz, Brasil. Dá para passar séculos entregando nomes de todos os
tipos, vamos lá. Melhor: coloque aí o nome da pessoa que inventou a palavra justiça.
Essa merece uma boa surra! Ou então anote o nome da primeira pessoa que resolveu
nos chamar de humanidade. E a gente ainda fala bonito: h-u-m-a-n-i-d-a-d-e. Sabe onde
isso termina? Estamos prestes a extinguir o tubarão mais veloz do oceano, 600 quilos e
30 fileiras de dentes, mas vamos acabar com ele, sinto muito. Sabe onde isso termina?
Isso só termina perto da extinção, mas você acha que você pode me salvar, olhe para o
seu cabelo, você viu o que está acontecendo com o seu cabelo enquanto você assiste a
tudo isso? Eu recuso este papel, mas você quer o seu, não é? Você quer bancar a fada
num lance onde tudo se resolve se tivermos boas intenções! Não temos boas intenções
neste mundo louco, Diana Louise, ela não vai te dar um nome, ela vai morrer aqui
porque é isso que acontece quando fazem com você o que fazem todos os dias no KM
23 e será só mais um corpo deixado no asfalto dos séculos. (volta-se para os bastidores)
Projeção. Frase de efeito!

Imagem/Frase: “O terror acompanhou a história”.

L/Atriz 2: Ótimo. Obrigada.

Vigia: O que você está fazendo?

L/Atriz 2: Vá embora.

Vigia: Olha o que você está fazendo.

L/Atriz 2: Suma daqui. Vá embora.

Vai. Sai. Some.

Vá embora.

Tempo. Elas se olham como dois animais. A Vigia sai de cena. Tempo. A Vigia volta à
cena. Ela abre uma coca-cola e as duas tomam juntas em silêncio.

32
L/Atriz 2: Eu sabia.

Vigia: Sabia?

L/Atriz 2: Eu sabia que você ia voltar. (para a plateia) Vocês também não sabiam?
Então.

Vigia: Ok.

L/Atriz 2: Ok.

Vigia: Não vamos mais falar sobre isso.

L/Atriz 2: Não. Vamos brincar de chapeuzinho vermelho.

Vigia: Podemos continuar?

......

Pausa.

Vigia: Sabe, só teve uma vez que não deu pra sobreviver.

Quando os cães que eu amava mastigaram aquilo que eu mais amava, eu pensei
“acabou”.

Eu pensei “já era”.

A sensação de ser mastigado até o centro do osso não tem volta.

Ela acorda com você, ela almoça com você, ela dorme com você.

E mesmo assim eu estou aqui. Você está me vendo, não está?

Não está?

L/Atriz 2: Sim.

Vigia: É.

É isso aí.

Acho que vamos conseguir.

Não vamos?

L/Atriz 2: Vamos.

Vigia: Isso é um sim?

L/Atriz 2: Tanto faz.

33
Vigia: Podemos continuar?

L/Atriz 2: Ok.

Vigia: Eu vou voltar de onde eu parei e você responde o que a gente tinha combinado e
vamos até o final da peça, ok?

L/Atriz 2: Ok. Mas tem o negócio da música.

Vigia: Tá bom.

L/Atriz 2: Eu queria realmente conseguir cantar uma música antes da peça terminar,
uma música de amor, sei lá, você sabe.

Vigia: Tudo bem, vamos dar um jeito.

Eu vou continuar de onde eu tinha parado, ok?

É.... Bom.

Vamos lá.

Eu tinha dito que você o amava e que isso devia estar doendo pra valer e depois eu ia
dizer “amanhã vai ser diferente. Logo vai amanhecer, sabe? Logo vira amanhã”.

Tempo. Elas voltam à dinâmica anterior.

L: A forma como ele dizia a-m-a-n-h-ã.

Vigia: O quê?

L: A forma como ele dizia a-m-a-n-h-ã levando a mesma língua que usava para dizer a-
m-a-n-h-ã do meu seio direito à lateral da cintura. A-m-a-n-h-ã-ahhhhhhh amanhecendo
perto do seio.

......

Ahhhh (dor)... Está ficando estranho de novo.

Vigia: Você agora parece uma criança, sabe? Um tipo de filha.

L: Eu só queria que amanhecesse.

Vigia: Eu sei. Eu também.

L: Vai amanhecer?

Vigia: Eu não sei, querida.

L: Pode me chamar de querida.

34
Vigia: Você agora parece uma criança.

L: Está perdendo a graça. Diga alguma coisa engraçada, você às vezes consegue ser
engraçada.

Vigia: Você também.

L e Vigia (juntas): Como consegue?

Elas riem.

L: Como consegue ser engraçada ou rir de alguma coisa neste lugar?

Imagem/Frase: “Belo farol, rumo certo, pousado sobre um rochedo. Das ondas do
oceano, não necessitas ter medo”.

L: Então você disse que eu poderia cantar uma música, não disse? Você disse que tinha
um violão.

Vigia: Eu disse?

L: Você disse que era uma fada, você tem um violão aí?

Vigia: Eu não disse isso.

L: Disse sim.

Vigia: Ok. Devo ter alguma coisa.

L: Eu sabia, as fadas são as melhores pessoas.

Vigia: Aqui.

L: Se eu for capaz de cantar uma canção de amor neste mundo louco, nesta noite
brilhante, então tudo será possível, até dar o fora daqui.

Imagem/frase: Neste mundo louco, nesta noite brilhante.

L: Até ir embora daqui, não é? Você disse que era uma fada, me ajude a cantar uma
canção de amor.

Vigia: Ok.

Tem certeza disso?

L: Não.

Vigia: Ok. Vamos logo, antes que eles voltem.

Fraca, L começa a dedilhar o violão ou bandolim.

35
Vigia: Ok. Cante o mais bonito que você conseguir. (fingindo uma varinha de condão)
PLIM.

L canta debilmente “True Blue”, Madonna. A Vigia a incentiva e pede ajuda à banda
(ou bastidores) quando L começa a vacilar.

Vigia (aplaudindo): Muito bem, você foi maravilhosa.

L (fraca): Você gostou?

Vigia: Se eu gostei? Eu adorei! Vamos conseguir sair daqui, sua música me encheu de
esperanças.

L (desfalecendo): Sim, eu vou levantar agora e sair andando.

Vigia: Espera, eu vou te ajudar, deixa eu ver o que eu tenho mais aqui comigo, quem
sabe uma muleta.

A Vigia se distrai com suas coisas e L cai desmaiada como um saco de batatas ao
tentar se levantar. Sombras se aproximam.

36
Ato II

Cena final: delírio

A árvore brasileira perde suas últimas folhas. L segue caída no chão. Vultos e sombras
tomam a cena progressivamente.

Vigia (plateia): Sim, estou calma. Estou serena. Já passei por isso. Vai dar tudo certo,
ok? Eu vou dar um jeito. (para os bastidores) Por gentileza, pode procurar aí uma trilha
sonora de incentivo? Tipo filme de ação. (para a plateia) Sou um pouco a fim das
pessoas nos filmes de ação. Eu não devia falar isso, mas sou um pouco a fim do Bruce
Willis e da Demi Moore, fiquei chateada quando eles se separaram. Eu sei, desculpe, eu
não tenho muito tempo pra isso. (chama no rádio) Delta-India-Alfa-November-Alfa.

O rádio não responde.

Vigia (bastidores): E aí? Vai rolar a música? Eu não vou conseguir se não tiver alguma
ajuda, ok? A coisa apertou um pouco.

(grita para os vultos e dispara para cima) Ela não vai morrer aqui.

(para a plateia) A dor é o rosto da sua menina morrendo no KM 23.

(grita para os vultos e dispara para cima) Dê o fora daqui. Dê o fora da minha rua.

Os vultos recuam um pouco. Coelhos atravessam a cena (projeção).

Vigia (para si mesma): Ok, lady. Se vira. (para os bastidores) Gente, eu preciso de uma
música de filme de ação. Sabe música de filme de ação que quando ela vem tudo
acontece e dá certo? É isso.

Projeções e música de incentivo.

Vigia: Ok. Não é o que eu imaginava, mas nunca é o que a gente imagina na vida, não
é? O inferno são as nossas expectativas. Frase de efeito, por favor!

Imagem/Frase: O inferno são as nossas expectativas.

Vigia: Eu adoro frases de efeito, me desculpem, estou sendo pressionada, vamos


acordar Bela Adormecida. (vasculha suas coisas) Ok, uma bala bem animadora agora
pra mim. (toma uma pílula) E uma injeçãozinha pra ela.

Ela dá uma injeção em L.

Vigia: Isso. Animação total. Ela vai acordar e o futuro vai parecer incrível. Ficar de pé
será bolinho. (chama no rádio) Delta-India-Alfa-November-Alfa.

37
Um carro ao longe.

Vigia (sacundindo L): Vamos. Hora de acordar.

L começa a se mexer.

Vigia: Vamos, não temos tempo. (para os bastidores) Pode procurar uma música
melhorzinha?

L vira de lado, como se quisesse dormir mais.

Vigia: Aposto que vai acordar se eu a chamar de querida. Acorde, queridinha.

L: O que está fazendo?

Vigia: Vamos! Se mexa.

L: Não me chame de queridinha nunca mais.

Vigia (chama no rádio): Delta-India-Alfa-November-Alfa. Ah, que saco! Por que não
responde? (para L) Olha, você precisa realmente acordar, cheia isso aqui.

Vigia coloca um pano para ela aspirar, ela desperta mais.

Vigia (chama no rádio): Delta-India-Alfa-November-Alfa.

Um carro mais próximo. Vultos difusos.

Vigia: Nossa, eu sou ótima. Sou realmente incrível, não sou?

L: Sim, você é deslumbrante, vamos ficar juntas para sempre. Qual o tamanho do seu
sutiã?

Vigia: Como se sente?

L: Estou ótima. Acho que tem uma onda chegando.

Vigia: Uma onda?

L: É, uma onda de sutiã prestes a me pegar.

Vigia: Isso é bom. Está chegando?

L: Sim. Está chegando.

Vigia: Como é?

L: Está bem perto.

Vigia: Me diga então: você disse que eu estava brilhando, eu ainda pareço brilhante para
você?

38
L: Sim.

Vigia: Ok.

L: Você parece brilhante pra caramba.

Vigia (dançando): Ok. Eu estou dançando?

L: Não.

Vigia: Ok. Eu estou feliz?

L: Sim. Você é a pessoa mais feliz de todas.

Vigia (ela mostra os seios): Ok. Estou mostrando os seios?

L: Não. Você é muito tímida, Diana.

Vigia: Ótimo. Quer voltar a dormir?

L: Não, nunca mais quero voltar a dormir. Tenho um grande futuro pela frente. Posso
ver a minha vida inteira em uma onda, é como um filme Diana.

Vigia: Isso! Perfeito. Continue falando comigo, ok? Tente se mexer.

L: Terei uma vida extraordinária!

Vigia: Excelente, pode me contar como será? Continue falando. Keep talking. (chama
no rádio) Delta-India-Alfa-November-Alfa.

O rádio começa a emitir finalmente algum som. Carros próximos, faróis altos.

L: Eles estão aqui, eu sabia, bem no meio da onda. Por que não amanhece nunca?

Vigia: Não pense nisso. Vamos! Como será o futuro, querida?

L: Eu vou morrer aqui hoje? Parece que andei sangrando por 23 dias.

Vigia: Eu não vou deixar você morrer aqui neste pedaço de asfalto escroto, entendeu?

L: Uma onda de 23 metros, devo ter 23 anos.

Vigia: Concentre-se na sua vida. Vamos. Continue se mexendo e falando, não pare
agora, nós vamos conseguir. (chama no rádio) Aqui é Delta.

As sombras aumentam. A Vigia precisa se posicionar com sua arma.

L: Ok, está tudo claro, estão me esperando com uma festa surpresa. Esta será a minha
vida.

A Vigia precisa atirar para cima em alguns momentos para dissipar os vultos.

39
L (alheia aos tiros): Champanhe para todos! Louise é uma boa companheira, Louise é
uma boa companheira...

Vigia (gritando para L): Isso mesmo. Não pare ainda. (para os bastidores) Eu preciso
da música mais incrível de superação tipo HUHU, ok?

L: Vai dar tudo certo, você tinha razão, acho que consigo me levantar agora.

A Vigia atira para cima. L começa a precariamente tentar se levantar, sem êxito.

Vigia (para a plateia): Meu Deus, talvez ela consiga. Eu adoro o efeito dessas coisas,
sempre me surpreendo, espero que esta música melhore. (no rádio) Alô!

O rádio começa a emitir falas. Faróis altos se aproximando.

L (tentando se levantar, mas sem sucesso): Tiro carteira de motorista, faço exames
periódicos, a médica me dá parabéns, tomo café com moderação.

Rádio controle aéreo: Posição. Ok. Escuta.

Vigia: Ah! Finalmente.

L: O apresentador de TV me dá parabéns, eu digo boa noite querido, faço planos para


amanhã.

Rádio: Tudo. Pronto?

Vigia: Não muito, mas tudo bem.

L (paralelamente): Faço clareamento dentário, não chove há 23 dias.

Vigia: E você? Como está indo?

Rádio: Temos... Tempo. Para. Isso?

L: Às vezes tenho dúvidas e não sei o que fazer, mas sigo em frente, a-m-a-n-h-ã.

Rádio: Quem. Está. Falando?

Vigia: Ah, ela, você sabe. Precisamos tirá-la daqui.

Rádio: Ok. Quanto. Tempo. Temos?

L (tentando de outro modo ficar em pé): Tenho 23 anos, começo a fumar.

Vigia: Ah, hoje está diferente, a coisa apertou um pouco.

Rádio: Tudo bem. Consegui. Modelo. Pequeno. Uma. Janela. Em. 2 minutos.

Vigia: Ótimo. Obrigada.

40
L: Sim, começo a fumar e depois engordo tentando parar de fumar e tenho uma recaída,
mas faço amigos quando desço para fumar, amigos desses para quem a gente diz ‘se
cuida’ quando vai se despedir.

Vigia: Depois vamos marcar aquele jantar, preciso te agradecer.

Rádio: Claro. Vamos. Ela continua falando? Curiosa. Vamos tirá-la logo desta merda.

L: Ter um amigo para quem você pode dizer ‘se cuida’ vale uma vida inteira, Diana.

Rádio: 2 minutos.

L: A-m-a-n-h-ã no seio direito. Fazemos sexo, somos coelhos.

Carros próximos. Um grupo em movimento.

Vigia (para o rádio): Olha, na verdade, estou ficando meio sem tempo aqui.

Rádio: Ok. 1 minuto. Tem como distraí-los? Não saia da coordenada. Já volto.

Vigia: Ok. (para L) Consegue se levantar?

L: Percebo 23 fios de cabelo branco. Como gelatina, faço 46 anos, não tenho mais
colágeno.

Vigia (para L): Ei, consegue se arrastar até aqui?

L: Um beijo na nuca de alguém.

Vigia: Você precisa tentar.

L: Eu não sei.

Vigia: Tente. Pense em coisas boas, coisas pelas quais vale a pena viver. (para os
bastidores) Essa música precisa explodir daqui a pouco, ok?

Imagem/Frase: Coisas pelas quais vale a pena viver.

L (se arrastando precariamente até a Vigia): Ok. Sorvete. O barulho do mar, sabonetes
novos, o cheiro do lado de fora das fábricas de biscoito, pássaros pousados em
palmeiras, crianças, as mentiras dos rótulos de xampu, pipoca, nuca, cheiro de
amaciante, seios, montanhas, domingo de manhã, a risada da mãe que você não teve,
coelhos macios enfeitadinhos. Ah... Está escurecendo de novo.

Rádio: 42 segundos. Uma pessoa querida na cabine, ok? Piloto experiente. Mantenha a
coordenada de sempre. 31 segundos.

Vigia: Na posição.

A Vigia atira a esmo de novo.

41
Rádio*: Voo 2323.

Controle, prossiga.

Dois três dois três, atento concentração de pássaros próximos ao KM 23.

Dois três dois três, vetoração para descida, curve à esquerda proa uno oito zero.

Dois três dois três, desça para 8000 pés.

Prossiga.

Cuidado com os pássaros.

São pássaros?

Velocidade 232.

Parecem coelhos.

Proa 155. São coelhos?

Afirmativo.

Começando a voar sobre o mar.

Gound speed 258.

Parecem coelhos. Afirmativo.

Cuidado com os pássaros-coelhos.

Prossiga.

Ideal para KM 23 é a proa 345.

Cuidado com os coelhos.

Vultos mais próximos. Carros. Faróis ofuscantes. Um grupo cerca as duas em círculo.

Vigia: Vamos! Aqui. Eu não posso sair daqui. Você precisa tentar.

L continua se arrastando – tenta levantar, cai, tenta de novo, cai, continua como dá.

Rádio:

Vento variando, pássaros-coelhos.

Visibilidade boa, KM 23.

Descendo.

42
Distância 35 milhas, coelhos-pássaros.

Ground speed 210.

Distância 23 milhas, pássaros-coelhos.

Voo 2323, autorizada descida para 6 000 pés.

8 milhas para o alinhamento final.

Voo 2323 pouso autorizado no KM 23, atenção aos coelhos.

Mantendo proa.

2323, curva à esquerda, são muitos coelhos.

Mantendo a proa, interceptando o alinhamento.

Cheque trem de pouso, nunca vi tantos coelhos.

No alinhamento.

5 graus à esquerda, são brancos e parecem macios.

Cuidado com os pássaros-coelhos.

Barulho de avião chegando.

L: Eu não vou conseguir.

Vigia: Você precisa confiar em mim.

L: Está ficando escuro pra valer.

Vigia: Vamos iluminar esta noite. Agora. Tente se levantar.

L: Eu...

Vigia: Vamos dar o fora daqui. Eu não vou te deixar aqui.

L: Escuro.

Vigia: De pé. Agora. Vamos pegar aquele avião.

L: Pode ir, eu acho que não...

Vigia (erguendo L): Se vira! (para os bastidores) A melhor luz que você conseguir –
aquela, do farol. Obrigada! (para L) Vamos dar o fora desta merda. AGORA.
43
A Vigia se agarra a L, que consegue se erguer num esforço descomunal. Vultos fecham
o cerco. O grito de um bando. Tacos de baseball quebram vidraças de casas
abandonadas. Uma corrida de cavalos. Manadas de pessoas. Revoadas de coelhos.

Rádio: 6 segundos. Livre pouso, pássaros-coelhos brancos e macios, prossiga. 5, 4, 3,


2...

Som de avião sobre o KM 23. Agarrada a L, a Vigia estende a mão para cima. Música
sobe no refrão-catártico-superação. Adoráveis coelhinhos brancos enfeitadinhos ou
coelhos-pássaros tomam a cena em profusão. A luz ofuscante de um farol no meio do
oceano resistindo há séculos a ondas gigantescas.

FIM

2019
Silvia Gomez

*A quantidade de falas/offs de controle aéreo é sugestão que precisa ser testada na


encenação (adaptada para favorecer a dinâmica).

44
45

Você também pode gostar