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UMNÚMERO

CARYL CHURCHILL

Tradução: Marco Aurélio Nunes


2004
UM NÚMERO - Caryl Churchill 2

Personagens

SALTER, um homem com pouco mais de 60 anos

BERNARD, seu filho, 40 anos

BERNARD, seu filho, 35 anos

MICHAEL BLACK, seu filho, 35 anos

A peça é para dois atores. Um faz o papel de Salter; o outro, os de seus filhos.
O cenário é o mesmo durante o tempo todo; é o lugar onde Salter mora.

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


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SALTER, um homem de pouco mais de 60 anos e seu filho BERNARD (B2),


35 anos.

B2 Um número

SALTER você quer dizer

B2 um grande número deles, de nós, um considerável

SALTER digamos

B2 dez, vinte

SALTER você não perguntou?

B2 tive a impressão

SALTER por que você não perguntou?

B2 não pensei em perguntar.

SALTER Não consigo imaginar por que não, pra mim seria a
primeira coisa que você ia querer saber, até onde essa
coisa chegou, quantas dessas coisas existem?

B2 Muito bem, então se alguma vez acontecer com você

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


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SALTER não você tem razão

B2 não foi uma idiotice, foi um choque, eu já estava


sabendo fazia uma semana antes de ir ao hospital mas
ainda era

SALTER ainda é, eu estou, a coisa mais chocante é que


existem esses, não quantos mas que eles existem

B2 mesmo um

SALTER exatamente, mesmo um, um gêmeo já seria um


choque

B2 um gêmeo já seria uma surpresa mas um número

SALTER um número qualquer número é um choque.

B2 Você disse coisas, essas coisas

SALTER Eu disse?

B2 você os chamou de coisas. Acho que vamos descobrir


que são pessoas.

SALTER Sim claro que são, eles são claro.

B2 Porque eu sou um.

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SALTER Não.

B2 Sim. Por que não? Sim.

SALTER Porque eles são cópias

B2 cópias? não são

SALTER cópias de você que um cientista maluco ilegalmente

B2 como você sabe disso?

SALTER Eu não mas

B2 e se uma outra pessoa for o primeiro, o verdadeiro e


eu for

SALTER não porque

B2 não é porque eu não seja verdadeiro que estou


dizendo que eles não são coisas, não chame eles de

SALTER espera um pouco, porque eu sou seu pai.

B2 Você sabe disso?

SALTER Claro.

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B2 Foi tudo normal, tudo, o parto

SALTER você acha que eu não saberia se eu não fosse seu pai?

B2 Sim claro eu fiquei só um tempo lá, mas mesmo


assim eles são pessoas como todos os gêmeos são,
todos os quíntuplos são

SALTER sim desculpe

B2 simplesmente temos idênticos somos idênticos


genética idêntica

SALTER desculpe se eu disse coisas, eu não queria dizer nada


com isso, é que

B2 não esquece isso, não é nada, é

SALTER porque claro que pra mim você é o

B2 sim eu sei o que você quer dizer, eu só, porque claro


que eu quero que eles sejam coisas, eu acho mesmo
que eles são coisas, eu não acho que eles sejam, claro
que eu acho mesmo que eles são eles tanto quanto eu
sou eu mas eu. Eu não sei o que eu acho, eu me sinto
péssimo.

SALTER Queria saber se nós podemos processar.

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B2 Processar? quem?

SALTER Eles, quem quer que tenha feito isso. Quem você viu?

B2 Só um jovem, não sei, mais jovem que eu.

SALTER Então quem fez isso?

B2 Ele morreu, era um velho e eles acabaram de achar os


registros e começaram a investigar

SALTER então processamos o hospital.

B2 Pode ser. Pode ser que a gente consiga.

SALTER Porque pegaram as suas células

B2 mas quando como eles pegaram?

SALTER quando você nasceu talvez ou depois quando você


quebrou a perna tinha dois anos você estava no
hospital, alguns fios de cabelo ou raspas da sua pele

B2 mas não houve dano

SALTER mas é você, parte de você, o valor

B2 o valor dessas pessoas

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SALTER sim

B2 e qual é o valor do

SALTER é isso, quem sabe, não tem preço, e eles pertencem

B2 não

SALTER eles pertencem a você, eles devem pertencer a você,


eles são feitos do seu

B2 eles deviam

SALTER eles foram roubados de você e você devia exigir seus


direitos

B2 mas isso é questão

SALTER o que? de dinheiro? dá pra dizer quanto vale isso?


diga quanto isso vale.

B2 Isso é meramente

SALTER quanto

B2 suponha que cada pessoa valesse dez mil

SALTER cem

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B2 cem mil?

SALTER eles tiraram uma pessoa de dentro de você

B2 multiplicado pelo número de pessoas

SALTER que a gente não sabe

B2 mas um número de qualquer modo razoavelmente


grande digamos dez

SALTER um milhão é o mínimo que você deve tirar, acho que


está mais para meio milhão por cada pessoa porque o
que eles fizeram eles mudaram sua singularidade,
enfraqueceram sua identidade, então estamos falando
de cinco milhões só pra começar.

B2 Pode ser.

SALTER Sim, porque como eles se atrevem?

B2 A gente teria que poder provar

SALTER provamos que você geneticamente é meu filho


geneticamente e depois

B2 porque não há dúvida

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SALTER dúvida nenhuma. Imagino que você não tenha visto


um?

B2 Um o quê? um deles?

SALTER dessas pessoas

B2 não eu acho que deixaram a gente separado não é pra


que a gente não estragasse tipo contaminasse a cena
do crime pra um não contar pro outro eu tenho
pesadelos ah pensando bem eu tenho pesadelos
também sendo que ele podia ter dito que não se
tivessem perguntado pra ele antes

SALTER porque eles têm que descobrir

B2 sim o quanto nós somos o mesmo, não apenas nossa


altura ou se temos asma mas qual o nome que você
deu pro seu cachorro, por que você abandonou sua
esposa nem você sabe a resposta pra essas perguntas.

SALTER Então você de repente de repente não viu

B2 o que de repente eu me vi dobrando a esquina

SALTER porque isso seria

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B2 como se eu estivesse me vendo numa câmera de uma


loja ou me ouvindo na secretária eletrônica e você
pensa meu deus é assim que eu

SALTER mas mais do que isso, seria seria

B2 não dizem que você morre quando se encontra


consigo mesmo?

SALTER dobrar a esquina e dar de cara consigo mesmo você


pode ter um ataque do coração. Porque se aquele lá
sou eu então quem sou eu?

B2 Sim mas aquele lá não sou eu

SALTER não eu sei

B2 é como ter um irmão gêmeo só isso é como

SALTER Eu sei como é.

B2 Acho que eu queria conhecer um. É uma aventura


não é e você faz parte da ciência. Eu não teria medo
de conhecer qualquer número.

SALTER Não sei.

B2 São todos seus filhos.

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SALTER Eu não quero um monte de filhos, obrigado, você já é


bastante, estou bem.

B2 Talvez depois que descobrirem tudo vão deixar todos


nós nos encontrarmos. Vão dar uma festa pra gente, a
gente podia

SALTER Eu não vou beber com esses médicos. Mas talvez


você tenha razão você tem razão, de encarar pelo
lado positivo.

B2 Tem uma coisa

SALTER o que é?

B2 uma coisa que me intriga um pouco

SALTER o que é?

B2 Eu fiquei com a impressão e eu sei eu posso estar


errado porque talvez eu estivesse chocado mas eu
fiquei com a impressão que tinha um grupo e todos
nós estávamos nele. Eu estava nele.

SALTER Não porque você é meu filho.

B2 Não mas todos nós estávamos

SALTER Eu já expliquei

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B2 mas eu não estava sendo totalmente aberto com você


porque estou confuso porque é um choque mas eu
quero saber o que aconteceu

SALTER eles roubaram

B2 não mas o que aconteceu

SALTER eu não

B2 porque eles disseram que nenhum de nós era o


original

SALTER Eles disseram isso?

B2 eu acho

SALTER eu acho que você está enganado porque está confuso

B2 você acha

SALTER você precisa voltar a falar com eles

B2 bem vou fazer isso. Mas acho que era isso que eles
queriam dizer

SALTER não é o que eles queriam dizer

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B2 tudo bem. Mas essa é a impressão que eu tenho, que


nenhum de nós é o original.

SALTER Então quem? eles sabem?

B2 eles não querem falar, eles só dizem que nós todos


éramos

SALTER eles não querem falar?

B2 então se eu fosse seu filho o original seria seu filho


também o que é uma bobagem então

SALTER é uma conseqüência?

B2 então por favor se você não for meu pai tudo bem. Se
você não podia ter filhos ou minha mãe, e fizeram
fertilização in vitro ou sei lá o que fizeram eu acho
realmente que devia me contar.

SALTER Sim, foi isso mesmo.

B2 Está tudo bem.

SALTER Sim eu sei.

B2 Obrigado por me contar.

SALTER Sim.

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B2 É melhor saber.

SALTER Sim.

B2 Então não fique chateado.

SALTER Não.

B2 Mas você ficou

SALTER Bem.

B2 Pra mim está tudo bem. Não tenho bem certeza do


que está bem. Existia uma outra pessoa qualquer o
original algum bebê ou aglomerado ou e havia um
número um número de nós feito de alguma forma e
você foi uma das pessoas que adquiriram, alguma
coisa assim.

SALTER Não foi

B2 não se preocupe

SALTER porque o que acontece é entende que não foi isso que
aconteceu. Eu sou seu pai, foi através de um artifício
a ciência mais avançada mas eu sou geneticamente.

B2 Isso é ótimo.

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SALTER Sim.

B2 Então eu sei da verdade e você continua sendo meu


pai e está tudo bem.

SALTER Sim.

B2 Mas e esse tal original? Eu não consigo eu não

SALTER Tinha uma pessoa.

B2 Tinha que tipo de pessoa?

SALTER Tinha um filho.

B2 Um filho seu?

SALTER Sim.

B2 Então quando foi isso?

SALTER Isso foi um pouco antes.

B2 Um pouco antes de eu nascer tinha

SALTER um outro filho, sim, um primeiro

B2 que o quê, que morreu

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SALTER que morreu, sim

B2 e você queria substituí-lo

SALTER eu queria

B2 em vez de ter outra criança você quis

SALTER porque sua mãe também tinha morrido

B2 mas ela morreu quando eu nasci, achei que ela

SALTER bem estou lhe contando o que aconteceu.

B2 Então o que aconteceu?

SALTER Então eles morreram num acidente de carro e

B2 minha mãe e esse

SALTER acidente de carro

B2 quando foi isso? que idade tinha a criança, ele tinha

SALTER quatro anos, ele tinha quatro anos

B2 e você queria ele de volta

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SALTER sim

B2 então eu sou apenas uma repetição dele.

SALTER Não mas você é você porque é isso que você é mas
eu queria um exatamente igual porque isso parecia
ser o mais perfeito

B2 mas outra criança poderia ter sido melhor

SALTER não eu queria a mesma

B2 mas eu não sou ele

SALTER não mas você é exatamente como eu queria

B2 mas eu poderia ter sido uma pessoa diferente não


como ele eu

SALTER como você poderia? se eu tivesse tido um outro filho


não seria você, seria. Você é este aqui.

B2 Sou apenas uma cópia. Não sou o verdadeiro.

SALTER Você é o único.

B2 Como assim único, existem todos os outros, existem

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SALTER mas eu não sabia disso, isso não fazia parte do


acordo. Eles tinham que fazer um só de você e não
um número enorme, eles roubaram isso, vamos
cuidar disso, é uma coisa para os advogados. Mas
você é o que eu queria, você é o número um.

B2 Você me deu o mesmo nome que o dele?

SALTER Isso piora mais as coisas?

B2 Provavelmente.

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SALTER, e seu outro filho BERNARD (B1), 40 anos.

SALTER Então eles roubaram – não olha pra mim – eles


roubaram seu material genético e

B1 não

SALTER são eles que você quer

B1 não

SALTER porque o que dez vinte vinte cópias de você


perambulando pelas ruas

B1 não

SALTER o que não teve absolutamente nada a ver comigo e eu


acho que você e eu devíamos estar unidos nisso.

B1 deixa eu olhar pra você.

SALTER Você está olhando pra mim o tempo

B1 deixa eu olhar pra você.

SALTER Um pouco mais velho.

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B1 Não porque um pai não é jovem quando a gente é


pequeno não é, ele não tem idade, ele mais parece
um poder. Ele é um poder muito muito sombrio é por
isso que o meu coração, as pessoas pagam personal
trainers pra o batimento subir assim, mas é porque
meu corpo reconhece ou será porque me contaram?
porque se eu tivesse visto você na rua acho que não
pararia pra gritar Papai. Mas você teria me
reconhecido não é. A menos que você achasse que eu
era um dos outros.

SALTER Faz muito tempo.

B1 A gente pode falar sobre o que você fez?

SALTER Sim é claro. Não tenho certeza de onde o que

B1 sobre você ter me mandado embora e ter mandado


fazer um outro de um pedaço do meu corpo um

SALTER não machucou você

B1 que pedaço

SALTER não sei qual

B1 um membro não, claro que eles não pegaram um


membro como se fosse uma estrela do mar e criaram

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SALTER uma partícula

B1 nem me partiram no meio como uma minhoca e


criaram o outro

SALTER uma raspagem de células uma partícula uma partícula

B1 uma partícula sim porque a gente está falando do


mundo microscópico de bolhas gigantes e gotas

SALTER só isso

B1 e fizeram essa raspagem indolor tiraram essas


partículas minúsculas de mim e guardaram isso e
você jogou fora o resto de mim

SALTER não

B1 e mandou fazer um novo

SALTER não

B1 sim

SALTER sim

B1 sim

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SALTER sim é claro, você sabe que eu fiz, não estou tentando
negar, pensei que era a melhor coisa a fazer, parecia
brilhante era a única

B1 brilhante?

SALTER parecia

B1 se livrar

SALTER não era perfeito. Era o melhor que eu podia fazer, eu


não estava muito eu estava eu estava sempre e é meio
confuso para ser honesto mas foi eu juro que foi o
melhor

B1 e essa cópia que eles criaram de mim, ela deu certo?

SALTER Algumas deram errado é claro, inevitável

B1 morreram

SALTER nos tubos de ensaio nas lâminas, me disseram que


nem todos

B1 mas no fim conseguiram um resultado satisfatório

SALTER sim mas mentiram pra mim porque não me contaram

B1 num berço

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SALTER todos aqueles outros, eles roubaram

B1 e ele tinha exatamente a minha cara não é não dava


pra distinguir

SALTER sim

B1 então funcionou muito bem. E esse filho vive e


respira?

SALTER sim

B1 fala e trepa? come e anda? nada e sonha e existe em


algum lugar neste momento sim não é? existe agora?

SALTER sim

B1 ainda existe

SALTER sim é claro

B1 feliz?

SALTER bem pode-se dizer de um modo geral

B1 tão feliz como a maioria das pessoas?

SALTER sim eu acho

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B1 porque a maioria da pessoas é feliz eu li no jornal.


Isso custou muito dinheiro?

SALTER o procedimento? pra conseguir?

B1 o bebê

SALTER sim.

B1 A gente era rico?

SALTER Ricos não.

B1 Não, não me lembro de nenhuma riqueza. Muita


poeira debaixo da cama aquele monte de pêlo que
você pega não é se você olha se você vai até lá
embaixo e deita em cima.

SALTER Não, não éramos não. Mas eu me virava. Estava


gastando menos.

B1 Você fez um esforço.

SALTER Eu fiz e por todo aquele dinheiro eu achava que seria


exclusivo

B1 eles te enganaram

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SALTER porque um o acordo era um e eles

B1 o que você espera?

SALTER de você também eles é você que eles, pra que eles
possam fazer alguma pesquisa alguma científica
alguma você tem asma você tem um cachorro qual o
nome dele você

B1 Quem você achava que estava na porta? você achava


que era um dos outros ou seu filho ou

SALTER eu não conheço os outros

B1 você conhece seu filho

SALTER eu conheço

B1 seu filho o novo

SALTER sim é claro

B1 você conhece ele

SALTER sim eu não ia achar que ele era você, não.

B1 Você não ia achar que era ele num dia ruim.

SALTER Você está com a aparência boa.

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B1 Mas poderia ser um dos outros?

SALTER Sim porque era nisso que eu estava pensando, como


os médicos puderam, acho que se pode ganhar
dinheiro com isso.

B1 Eu nunca tive sorte com cachorros. Eu tive uma


cadela preta e castanha que não obedecia em nada,
inútil. Antes disso eu tive um pastor alemão tinha que
correr pra caralho. Então um amigo meu foi em casa
se eu podia tomar conta, foi uma luta desde o começo
com aquele cachorro, rottweiler pit bull eu tive que
jogar uma cadeira, você podia bater nele com um
cinto que ele continuava voltando. Eu deixava ele
preso no outro quarto e ele latia então você tinha que
bater nele, fiquei feliz quando ele mordeu uma garota
fui lá bati nele e depois direto para o veterinário, se
livra desse desgraçado aí. Meu amigo não ficou
contente mas ele não devia ter ido até o correio.

SALTER Não isso mesmo. Eu nunca quis ter um cachorro.

B1 Não venha com paternalismo

SALTER não é isso não é isso

B1 você não sabe o que está fazendo

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SALTER eu só

B1 porque se você vai num bar e um sujeito joga cerveja


na sua cara você supostamente deve dizer desculpa,
ele só levou três pontos sou uma pessoa muito
controlada. Porque a gente está aqui neste minuto e
tem gente um monte de gente que imagina esse
sujeito numa cadeira elétrica ou com a cabeça num
tanque de água e levando chute na barriga. Tem
muita gente ruim. Então é por isso. E eles estão por
toda parte. Você anda pela rua e você vê a cara deles
e pensa você não me engana eu sei do que você é
capaz. Então não começa.

SALTER Acho que precisamos é de um bom advogado.

B1 O que eu gosto num cachorro é que ele não deixa


que as pessoas venham atrás de você, elas não vão
aparecer no meio da noite. Mas eles deixam a casa
fedida porque eu posso querer viajar por uns dias e
quando eu voltar posso querer ficar em casa por uns
dias e um cachorro pode virar um tirano pra você.
Silêncio.
Olá papai papai papai, papai olá.

SALTER Ninguém se arrepende mais do que eu de


completamente não ter previsto o imprevisível o que
não é culpa minha e torna a coisa mais irritante mas o
que eu fiz pareceu naquele momento a única e

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também é uma homenagem, eu poderia ter tido um


diferente, uma criança completamente nova é o que a
maioria das pessoas mas eu queria você de novo
porque eu achava que você era o melhor.

B1 Não era eu de novo.

SALTER Não mas a mesma base a mesma matéria-prima


porque ela era perfeita. Você era o bebê mais lindo
todo mundo dizia. Quando criança você também era
muito bonito, criança muito bonita.

B1 Sabe quando eu ficava gritando.

SALTER Não.

B1 Quando eu ficava lá no escuro. Eu ficava gritando.

SALTER Não.

B1 Sim, eu ficava gritando pai pai

SALTER Foi alguma vez que você teve um pesadelo ou?

B1 gritando sem parar

SALTER Eu acho que eu não

B1 gritando e gritando

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SALTER não

B1 e você nunca vinha, ninguém nunca vinha

SALTER então isso foi depois que sua mãe

B1 depois que minha mãe morreu isso foi depois

SALTER porque você era muito pequeno quando ela

B1 sim porque eu só consigo lembrar

SALTER você devia ter uns dois anos quando ela

B1 e eu me lembro dela sentada ali, ela ficava ali

SALTER você se lembra dessa época?

B1 ela ficava ali mas ela não ajudava em nada

SALTER que impressionante

B1 então quando eu gritava o que eu quero saber

SALTER mas quando foi isso

B1 eu quero saber se você conseguia me ouvir ou não


porque eu nunca soube se você conseguia me ouvir e

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não vinha ou se você não conseguia me ouvir mas se


eu gritasse alto o bastante você viria

SALTER não posso ter ouvido você, não

B1 ou talvez não tivesse mesmo ninguém lá e você


tivesse saído portanto por mais alto que eu gritasse
não tinha ninguém lá

SALTER não isso não teria

B1 então assim eu ia parar de gritar mas era pior

SALTER porque eu quase nunca

B1 e eu não tinha coragem de sair da cama para ir ver

SALTER eu não acho que isso possa

B1 porque se não tivesse ninguém lá isso seria


apavorante e se você estivesse lá isso seria pior mas é
uma coisa que imagino

SALTER não

B1 você me ouvia gritando?

SALTER não eu não

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B1 não

SALTER não eu não acho que isso acontecia da forma

B1 o que?

SALTER porque eu teria

B1 de novo e de novo e de novo, toda noite eu ficava

SALTER não

B1 então você não ouvia?

SALTER não mas você não pode ter

B1 sim eu ficava gritando, está me dizendo que você não

SALTER não é claro que eu não

B1 você não

SALTER não

B1 você não ficava lá sentado me ouvindo gritar

SALTER não

B1 você não estava fora

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SALTER não

B1 então eu precisava gritar mais alto.

SALTER É claro que às vezes todo mundo que já teve filhos


vai dizer que às vezes você os coloca pra dormir e
eles querem mais uma história e você diz boa noite
agora e vai embora e eles te chamam uma ou duas
vezes e você diz não vão dormir agora e eles podem
até chamar de novo e acabam dormindo.

B1 O outro. Seu filho. Meu irmão não é? meu pequeno


gêmeo.

SALTER Sim.

B1 Ele tem filhos?

SALTER Não.

B1 Porque se ele tivesse eu mataria.

SALTER Não, ele não tem filhos.

B1 Então quando você abriu a porta você não me


reconheceu.

SALTER Não porque

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UM NÚMERO - Caryl Churchill 34

B1 Você me reconhece agora?

SALTER Eu sei que é você.

B1 Não mas olha pra mim.

SALTER Eu sim. Eu sou.

B1 Não, olha nos meus olhos. Não, fica olhando. Olha.

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SALTER e BERNARD (B2).

B2 Não parece comigo em nada

SALTER não parece

B2 bem parece parece mas não idêntico não

SALTER não idêntico não não

B2 porque o que me impressiona é a diferença

SALTER sim fiquei impressionado

B2 não dá pra confundir

SALTER não não de jeito nenhum eu sabia na hora que não era

B2 embora é claro que ele é mais velho se eu fosse mais


velho

SALTER mas mesmo assim você não

B2 eu não seria idêntico

SALTER não não de jeito nenhum não, você é diferente

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UM NÚMERO - Caryl Churchill 36

B2 só um pouco parecido

SALTER bem tinha que ser um pouco

B2 porque pra começar eu não sou assustador.

SALTER Então o que ele queria ele

B2 não nada na verdade, não assustador não

SALTER ele não te bateu?

B2 bateu? claro que não, me bater? você acha?

SALTER bem ele

B2 ele podia ter batido sim, não ele gritou

SALTER gritou

B2 gritou e brigou na verdade, brigou ele não é


completamente

SALTER não, bem

B2 então foi o que, a infância dele, a vida dele, a infância


dele

SALTER todo tipo de

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B2 fez dele um pirado na verdade é o que eu acho quer


dizer um pirado não mas ele é

SALTER sim sim eu não sou, sim ele provavelmente é.

B2 Ele diz todo tipo de loucura

SALTER sim

B2 então você não sabe no que acreditar.

SALTER E como terminou a coisa, vocês ficaram amigos

B2 amigos não

SALTER não

B2 não não nós terminamos

SALTER sim

B2 nós terminamos como pretendo continuar fazendo


comigo fugindo, fiquei feliz de termos nos
encontrado num lugar público, se eu estivesse em
casa não dá pra você fugir na sua própria casa e se
estivéssemos na casa dele não sei se ele teria me
deixado ir embora ele poderia me colocar num
armário na verdade não, enfim sim eu levantei e saí e
fiquei pensando se ele tinha me seguido.

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 38

SALTER Por continuar fazendo você quer dizer que não vai
vê-lo nunca mais

B2 que vou sair do país.

SALTER Por quanto tempo uma semana ou duas um feriado,


eu não

B2 sair, continuar sim eu sei lá, ir embora, eu não quero


ficar aqui.

SALTER Mas quando você voltar ele ainda vai

B2 talvez eu não vá

SALTER mas isso, não voltar, não isso

B2 eu não sei eu não sei não me pergunte eu não sei. Eu


vou, eu não sei. Não quero nem chegar perto dele.

SALTER Acha que ele pode tentar fazer mal a você?

B2 Por que? por que você insiste

SALTER eu não sei. É isso?

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UM NÚMERO - Caryl Churchill 39

B2 Em parte é isso, é também é horrível, eu não me sinto


e tem os outros também, eu não quero vê-los eu não
quero que eles

SALTER achei que você quisesse.

B2 Achei que eu quisesse, é possível, se eu for embora


sozinho é possível que eu me sinta bem, é possível
que eu me sinta – você consegue entender isso.

SALTER sim, sim eu consigo.

B2 Porque existe esta pessoa que é idêntica a mim

SALTER ele não é

B2 que não é idêntico, que é muito

SALTER nem mesmo muito

B2 nem mesmo muito mas muito alguma coisa terrível


que é exatamente a mesma pessoa genética

SALTER não a mesma pessoa

B2 e eu não gosto disso.

SALTER Eu sei. Sinto muito.

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UM NÚMERO - Caryl Churchill 40

B2 Eu sei que sente eu não

SALTER eu sei

B2 não estou tentando fazer você dizer que sente

SALTER eu sei, simplesmente sinto

B2 eu sei

SALTER simplesmente sinto muito.

B2 Ele disse certas coisas.

SALTER Que coisas?

B2 Tem muitas coisas que eu não, pode me dizer o que


aconteceu com minha mãe?

SALTER Ela morreu.

B2 Sim.

SALTER Eu te contei que ela tinha morrido.

B2 Sim mas ela não morreu quando eu nasci e ela não


morreu com a primeira criança no acidente de carro
porque a primeira criança não está morta ele está
andando pelas ruas à noite me fazendo ter pesadelos.

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UM NÚMERO - Caryl Churchill 41

A não ser que ela tenha morrido mesmo num acidente


de carro?

SALTER Não.

B2 Não.

SALTER Sua mãe, a coisa uma coisa sobre sua mãe é que ela
não era muito feliz, ela não era uma pessoa nem um
pouco feliz, eu não quero dizer que às vezes tinha
dias que ela não estava feliz ou eu fazia coisas que a
deixavam infeliz eu fiz é claro, ela estava sempre
infeliz, muitas vezes alegre e

B2 ela se matou. Como ela fez isso?

SALTER Ela se jogou debaixo de um trem um trem de metrô,


ela foi uma dessas pessoas quando eles dizem que
uma pessoa se jogou debaixo de um trem e os trens
atrasam ela era uma dessas pessoas debaixo de um
trem.

B2 Você estava com ela?

SALTER Com ela na plataforma não, eu estava ainda com ela


mais ou menos mas não com ela não então não eu
tinha saído pra beber eu acho.

B2 E o garoto?

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 42

SALTER Sabe eu não me lembro de onde o garoto estava.


Acho que ele estava na casa de um amigo, nós
tínhamos amigos.

B2 E ele tinha quantos anos quatro?

SALTER não não ele fez quatro anos depois quando eu ele já
andava, mais ou menos dois recém começando a falar

B2 ele tinha quatro anos quando você o mandou

SALTER isso mesmo quando a mãe dele morreu ele tinha dois
anos.

B2 Então isso foi deixa eu esclarecer isso foi antes isso


foi alguns anos antes de eu nascer ela morreu antes

SALTER sim

B2 então ela já estava

SALTER sim ela estava

B2 é só pra ficar claro. E então você e o garoto você e


seu filho

SALTER nós fomos em frente nós apenas

B2 viveram sozinhos juntos

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 43

SALTER sim

B2 você estava criando ele

SALTER sim

B2 o melhor que podia

SALTER eu

B2 até

SALTER o meu melhor não era muito mas eu tive meus bons
momentos, não pense, eu fazia a comida de vez em
quando e lia uma história tenho certeza que posso me
lembrar de um livro particularmente chato e mal
escrito sobre um elefante no mar. Mas eu poderia ter
feito melhor.

B2 Sim ele disse alguma coisa sobre isso

SALTER ele disse

B2 disse

SALTER sim é claro que ele disse sim. Eu sei que poderia ter
feito melhor porque eu fiz com você porque eu parei,
me isolei de tudo, abandonei tudo deixei tudo de lado

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 44

enquanto esperava por você e eu acho que podemos


até ter lido aquele mesmo livro, talvez eu me lembre
de ter lido para você, você se lembra dele? Tinha um
elefante de calças vermelhas.

B2 Não eu acho que não

SALTER não era horrível, nós tínhamos livros muito melhores


nós tínhamos

B2 Talvez ele não devesse culpar você, talvez fosse


genético, você não conseguia deixar de beber nós não
sabemos ou as drogas na época filosoficamente pelo
que eu entendo não era visto como não como agora
quando nossa compreensão é diferente e será que
uma pessoa diferente geneticamente diferente não
teria sido assim sido tão vulnerável porque sempre
poderia haver algum componente genético mas por
outro lado alguém com a mesma genética exatamente
a mesma mas numa época diferente uma cultura
diferente e é claro as coisas pessoais todo tipo de que
acontecem na sua vida sua infância ou coisas todo o
tipo de porque imagine que você teve um irmão
idêntico um gêmeo idêntico digamos mas separado
de você ao nascer então você teve um início
totalmente diferente entende o que estou dizendo será
que ele teria feito as mesmas coisas quem pode dizer
se ele teria sido um pai devotado e de fato é claro que
você tem isso dentro de você de ser assim porque

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 45

você foi isso pra mim então é uma combinação


complicada e isso é o que você foi então
provavelmente eu não deveria culpar você.

SALTER Eu preferia que você me culpasse. Eu me culpo.

B2 Não estou dizendo que você não foi horrível.

SALTER Eu poderia não ter sido?

B2 Aparentemente não.

SALTER Se eu me tivesse me esforçado mais.

B2 Mas alguém como você não poderia ter se esforçado


mais. O que isso significa? Se você tivesse se
esforçado mais você teria sido diferente do que você
foi e você não foi você foi

SALTER mas então depois eu

B2 depois sim

SALTER eu tentei foi isso que eu fiz eu comecei de novo eu

B2 foi isso

SALTER eu era bom eu tentei ser bom eu fui bom pra você

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 46

B2 era assim que você era

SALTER eu era bom

B2 mas eu não posso você não pode eu não posso dar


crédito a você por isso se eu não culpá-lo pelo outro
foi o que você fez e foi o que aconteceu

SALTER mas a sensação

B2 a sensação

SALTER a sensação era de que eu tinha tentado eu


deliberadamente

B2 é claro a sensação

SALTER bem então

B2 a sensação é sempre a sensação não é mesmo lá


dentro é assim que nós sentimos o que somos e não
conhecemos todas essas complicações não podemos
saber o que somos é complicado demais
desembaraçar todas as causas e nós sentimos este sou
eu eu livremente e é claro que é verdade que quem
você é livremente sem ser forçado por outra pessoa
mas forçado por quem você é ou você seria outra
pessoa não seria?

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 47

SALTER Eu fiz algumas coisas ruins. Eu mereço sofrer. Eu fiz


algumas coisas melhores. Gostaria de
reconhecimento.

B2 É a sensação que todos têm, com certeza.

SALTER Ele ainda me culpa.

B2 Existe uma diferença então.

SALTER Você me faz lembrar dele.

B2 Eu me faço lembrar dele. Nós dois te odiamos.

SALTER Eu achei que você

B2 Eu não culpo você a culpa não é sua mas de como


você tem sido de como você é não posso evitar.

SALTER Sim é claro.

B2 Só que o ódio que ele sente e o ódio que eu sinto são


completamente diferentes porque o que você fez
com ele e o que você fez comigo são coisas
diferentes.

SALTER Eu fui bom pra você.

B2 sim você foi.

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 48

SALTER Você não precisa ir embora. Não por muito tempo.

B2 Talvez me faça sentir melhor.

SALTER Eu te amo.

B2 Isso é outra coisa que você não pode evitar.

SALTER Está tudo bem. Está tudo bem.

B2 Além disso estou com medo que ele me mate.

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 49

4
SALTER e BERNARD (B1).

SALTER Então que tipo de lugar era? Era

B1 o lugar

SALTER ele estava num hotel será que ele ou

B1 não

SALTER eu achei que ele estava num hotel. Então onde ele
estava?

B1 o que?

SALTER estou tentando visualizar.

B1 Isso importa?

SALTER Não vai trazê-lo de volta não é óbvio mas eu gostaria


eu gostaria não dá pra evitar sentir curiosidade você
quer entender a coisa e fica acuado em todas as
direções, seu filho morre e você quer o corpo dele,
você quer saber o último lugar onde o corpo dele
esteve quando estava vivo, não se pode evitar

B1 ele estava num quarto.

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 50

SALTER Na casa de alguém, alugado

B1 pequeno você sabe como essa gente é quando você


chega, apenas um quarto sem café da manhã você
tem que sair pra tomar café.

SALTER E era bonito com vista para o porto ou

B1 não

SALTER pensando nele de férias

B1 numa travessa qualquer

SALTER mas é claro não eram férias ele estava se escondendo


ele achava que estava se escondendo. Você entrou no
quarto?

B1 Apenas um quarto pequeno, bem escuro, uma janela


e persianas

SALTER não muito arrumado eu imagino

B1 isso mesmo, desarrumado a cama desfeita, alguns


livros, mala no chão com as roupas saindo pra fora

SALTER ele gritou?

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 51

B1 e você sabe como ele é, bagunceiro, eu sou ordeiro


você não sabe disso não é mas imagina que não não é
mas você está enganado nessa porque eu sou
meticuloso.

SALTER O que eu quero saber é como você na verdade, o que


você, como conseguiu que ele saísse para um lugar
ermo porque é isso que estou imaginando, não se
pode dar um tiro no inquilino sem que a senhoria
escute, eu não sei se você atirou eu não sei por que eu
disse atirou você poderia estar com uma faca você
podia ter estrangulado, não consigo imaginar ele
saindo com você porque ele estava apavorado e foi
por isso mas talvez você tenha falado você fez ele
sentir ou você o seguiu ou ficou de tocaia no escuro?
e eu não sei como você o encontrou lá você o seguiu
da casa dele quando ele saiu ou o seguiu daqui da
última vez que ele?

B1 eu não precisava ter te contado o que aconteceu

SALTER mas você contou tão naturalmente eu quero

B1 e minha vontade era não ter

SALTER não estou feliz

B1 e eu não vou te contar

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 52

SALTER porque eu não vou contar pra ninguém

B1 e não tem nada mais a dizer.

SALTER Mas e os outros? ou ele era o único que você odiava


porque eu o amava, eu não amo os outros, você e eu
temos uma causa comum contra os outros não se
esqueça, eu ainda espero que a gente ganhe uma
fortuna com isso. Eu vou falar com um advogado,
ando ocupado demais ocupado não mas tem sido
como uma tempestade na minha cabeça eu não sei o
que aconteceu, não faz muito tempo que tudo
começou. Você não vai ser um serial killer, matar
todos eles para ser o único, de volta ao que era no
começo eu entenderia isso. Se eles te pegarem, tenho
certeza de que não pegam tenho certeza de que sabe o
que, se eles pegarem vamos dizer a eles que fui eu
que a culpa foi minha não importa como se encare os
fatos. Você não concorda, você não sente assim? Não
pare de falar comigo. A culpa não foi dele, você
devia ter me matado, a culpa é minha você. Talvez
você vá me matar, é por isso que parou de falar?
Devo me suicidar? Eu faria isso por você se quisesse,
você quer que eu faça isso?

Sabe o que eu pensei, eu podia ter te matado mas não


matei. Posso ter feito coisas terríveis mas não te
matei. Eu podia ter te matado e tido outro filho, feito
um igual ao que fiz ou começar de novo ter um

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 53

diferente me casar de novo e não casei, eu poupei


você embora você seja essa coisa nojenta na época
qualquer um em seu juízo perfeito teria esmagado
você mas eu me lembrei de como você era no
começo e eu poupei você, eu não queria um diferente,
eu queria aquilo de novo porque você era perfeito do
jeito que era e eu o amava.

Sabe você me perguntou de quando você costumava


gritar à noite. Às vezes eu estava lá, ficava sentado e
escutava você ou não tinha a menor condição de te
ouvir ficava apenas sentado. Às vezes eu saía e
deixava você. Não acho que você levantava da cama,
você levantava da cama?, porque você ficava com
medo do que eu poderia fazer com você não tinha
problema eu sair. Isso foi num período curto quando
você gritava, mas com a idade isso passou, você ficou
tão você preferia não me ver, você queria que o
deixassem em paz à noite, você não queria que eu
viesse mais. Você quase parou de falar você se
lembra disso? sem falar sem comer eu tentava te
forçar. Eu colocava você no armário você se lembra?
ou procurava você em toda parte e achava que você
tinha fugido e o encontrava debaixo da cama. Você
gostava de lá eu colocava seu jantar lá embaixo pra
você. Mas a coisa piorou você se lembra? Não havia
ninguém além de nós. Um dia eu limpei você inteiro
e disse vou levá-lo pro orfanato. Você não estava tão
mal assim e eles te levaram embora. Meu querido.

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 54

Você se lembra disso? Você se lembra do dia porque


eu não me lembro sabe. A coisa toda é muito vaga
pra mim. Desses dois anos eu não me lembro de
quase nada mas você deve se lembrar de certas coisas
e quando você tem essa idade dois anos é um tempo
muito mais longo, não foi um tempo longo pra mim,
foi uma longa saída à noite. Você pode me contar
alguma coisa que você lembra? o dia que você
partiu? pode me contar coisas que eu esqueci que eu
posso ter esquecido?

B1 Quando eu estava seguindo ele teve uma hora que eu


estava entrando no mesmo trem e ele olhou em volta,
achei que ele estava olhando direto pra mim mas ele
não me viu. Eu entrei no trem e fui junto com ele até
o fim.

SALTER Sim? sim?

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 55

5
SALTER, e MICHAEL BLACK, seu filho, 35 anos.

MICHAEL Você se encontrou com os outros?

SALTER Você é o primeiro.

MICHAEL Você vai se encontrar com todos nós?

SALTER Pensei em começar.

MICHAEL Tenho certeza de que todos vão ficar contentes em


conhecê-lo. Sei que eu estou.

SALTER Desculpe por ficar encarando.

MICHAEL Não, por favor, eu entendo o porquê. Eu me pareço?

SALTER Sim é claro

MICHAEL é claro, eu quis dizer

SALTER não não eu não quis dizer

MICHAEL acho que quis dizer como

SALTER porque é claro que você não, você não, não


exatamente

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 56

MICHAEL não é claro

SALTER eu não confundiria

MICHAEL não

SALTER talvez fosse possível por acaso

MICHAEL é claro

SALTER mas não se eu olhar direito

MICHAEL não

SALTER não

MICHAEL porque?

SALTER por causa dos olhos. Você não olha pra mim do
mesmo modo.

MICHAEL Estou olhando para uma pessoa que não conheço é


claro.

SALTER Você podia me falar um pouco

MICHAEL sobre mim

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 57

SALTER se não se importa

MICHAEL não é claro, é o quê, você já sabe que eu sou


professor, matemática, sabe sou casado, três filhos
será que eu te contei isso

SALTER sim mas você não

MICHAEL menino de doze menina de oito e agora um bebê bem


um ano e meio então ela está andando e começando a
falar, eu não tenho nenhuma foto comigo eu não
pensei, não há necessidade de fotografias não é
quando você vê uma pessoa o tempo todo então

SALTER você é feliz?

MICHAEL o que agora? ou em geral? Sim acho que sou, eu não


penso nisso, eu sou. O trabalho me deprime às vezes.
O mundo é uma bagunça é claro. Mas não se pode
evitar, uma manhã de sol, a mudança das folhas, um
passeio no parque com o bebê, não se pode evitar
essa sensação maravilhosa pode?

SALTER Não se pode?

MICHAEL Bem eu acho que eu sou assim.

SALTER Me conte. Me perdoe

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 58

MICHAEL não continue

SALTER me fale alguma coisa sobre você que seja específica


de você mesmo, alguma coisa realmente importante

MICHAEL que tipo de?

SALTER qualquer coisa

MICHAEL é difícil de

SALTER sim.

MICHAEL Bem olha uma coisa que eu acho fascinante, eu sei de


umas pessoas que moravam em buracos debaixo da
terra, cheios de túneis e câmaras subterrâneas e às
vezes tinha uma câmara você chegava até ela através
de um labirinto de passagens e o teto ficava cada vez
mais baixo e você tinha que andar de quatro e então
rastejar de barriga e você chegava até uma câmara
muito muito profunda que tinha um buraco tipo uma
chaminé um poço um buraco até lá em cima no céu
então você podia ficar sentado nessa câmara essa sala
essa caverna que seja e olhar para cima para o
pequeno círculo de céu passando lá no alto. E quando
alguém morria eles cavavam mais salas pequenas
para que as pessoas não fossem enterradas debaixo
deles elas eram enterradas nas paredes ao lado. E
pode ser que às vezes eles emparedassem as pessoas

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 59

vivas lá dentro, é possível pela forma contorcida dos


restos mortais mas de todo jeito é claro que elas já
estão mortas agora e morreram logo depois que
foram colocadas lá é claro. E

SALTER acho que não é isso que eu estou buscando

MICHAEL ah, como, desculpe

SALTER porque o que você está me contando é sobre outra


coisa e eu esperava alguma coisa sobre você

MICHAEL acho que eu não

SALTER sinto muito eu não sei eu esperava

MICHAEL você quer o que minhas crenças, política o que eu


acho da guerra por exemplo é isso? Eu não gosto da
guerra, não fico nem um pouco contente quando as
pessoas dizem que estamos fazendo um bem enorme
com nossos bombardeios, isso sempre me incomoda
um pouco. A guerra é uma daquelas coisas, você não
acha, onde todos sempre acham que estão com a
razão já notou isso? Ninguém nunca diz nós somos os
vilões, nós vamos acabar com a raça dos mocinhos. O
que você acha?

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 60

SALTER Eu estava esperando sei lá alguma coisa mais pessoal


alguma coisa lá de dentro de você. Se não for
intromissão.

MICHAEL Quem sabe o quê quem sabe as orelhas da minha


mulher?

SALTER Sim?

MICHAEL Porque ontem à noite a gente tava assistindo o jornal


e eu pensei que orelhas mais lindas e sutilmente
estranhas ela tem, são pequenas mas os lóbulos são
grandes, grandes em comparação a uma orelha
pequena, e são levemente pontudas em cima, como
um duende da disney ou orelhas de um animalzinho e
elas sempre estiveram lá mas sabe como você de
repente nota e notando isso, sabe do jeito que eu a
amo, senti muito senti o que você disse alguma coisa
lá dentro de mim. Ou as crianças é óbvio, eu podia
falar, é esse o tipo de coisa?

SALTER não é bem

MICHAEL não

SALTER porque você está apenas descrevendo outras pessoas


ou

MICHAEL sim

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 61

SALTER não você

MICHAEL mas são pessoas que eu amo muito

SALTER não é o que estou buscando. Porque qualquer um


pode sentir

MICHAEL ah é claro eu não estou querendo impor

SALTER de alguma forma eu esperava

MICHAEL sim

SALTER me aprofundar

MICHAEL sim

SALTER apenas sobre você mesmo

MICHAEL eu mesmo

SALTER sim

MICHAEL tipo talvez eu deitado na cama e está confortável e


depois fica um pouco menos confortável e eu mexo
minhas pernas ou até me viro e depois fica

SALTER não

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 62

MICHAEL não

SALTER não isso é

MICHAEL sim é uma coisa que todos

SALTER sim

MICHAEL bem eu não sei. Eu gosto de meias azuis. Sorvete de


banana. Isso te ajuda?

SALTER Cachorro?

MICHAEL se eu gosto

SALTER cachorro

MICHAEL cachorro pra mim tudo bem. Minha filha quer um


filhote mas não sei não. Cachorro é o tipo de coisa?

SALTER Então me diga como você se sentiu quando


descobriu?
MICHAEL Fascinado.

SALTER Com raiva não?

MICHAEL Não.

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 63

SALTER Apavorado não.

MICHAEL Não, do que?

SALTER Sua vida, perder sua vida.

MICHAEL Eu ainda tenho minha vida.

SALTER Mas existem coisas existem coisas que são o que


você é, eu acho que você está evitando

MICHAEL sim talvez

SALTER porque aí você poderia ficar apavorado

MICHAEL acho que não

SALTER ou com raiva

MICHAEL nem um pouco

SALTER porque o que isso causa o que causa em você em


tudo se existem todos esses andando por aí, o que
isso causa em mim o que sou eu e nem foi comigo
que isso aconteceu, então como você pode
simplesmente, você deve pensar alguma coisa a
respeito.

MICHAEL Eu acho engraçado, eu acho adorável

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 64

SALTER adorável?

MICHAEL todas essas pessoas muito parecidas fazendo coisas


iguais aos outros ou um pouco diferentes ou o que
quer que a gente faça, que emoção pro velho
professor maluco se ele tivesse vivido para ver isso,
eu vejo a alegria da coisa. Eu sei que você não está
nem um pouco feliz.

SALTER Eu não tive a sensação de ter perdido meu filho


quando o mandei embora porque eu tive uma
segunda chance. E quando o segundo o meu filho o
segundo filho foi assassinado não foi tão mau como
se podia imaginar porque parecia justo. Eu estava de
volta com o primeiro.

MICHAEL Mas agora

SALTER agora ele se matou

MICHAEL agora você sente

SALTER agora eu o perdi, eu perdi

MICHAEL sim

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 65

SALTER agora não posso mais acertar as coisas. Porque na


segunda chance que eu tive sabe eu deixei ela
escapar.

MICHAEL Isso foi a pior coisa que você fez, ter deixado a
chance escapar?

SALTER Não é claro que não.

MICHAEL Então o que?

SALTER Outras coisas que eu fiz que não são banais como
sorvete de banana nem tão ridiculamente comuns
como virar na cama.

MICHAEL Noventa e nove por cento dos nossos são genes são
iguais aos de qualquer outra pessoa. Noventa por
cento são iguais aos de um chimpanzé. Trinta por
cento são iguais aos de uma alface. Isso te dá algum
ânimo? Eu adoro o lance da alface. Me faz sentir
parte de um todo.

SALTER Eu sinto muita falta dele. Sinto falta dos dois.

MICHAEL Existem mais dezenove de nós.

SALTER Não é a mesma coisa.

MICHAEL Não é claro que não. Isso foi uma piada.

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004


UM NÚMERO - Caryl Churchill 66

SALTER E você diz que é feliz não é? você gosta da sua vida?

MICHAEL Eu gosto sim, desculpa.

tradução Marco Aurélio Nunes - 2004

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