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TODOS OS

GÊNEROS:
MOSTRA DE
ARTE E
DIVERSIDADE

1
São Paulo, 2022

TODOS OS GÊNEROS:
MOSTRA DE ARTE E DIVERSIDADE

CULTURA LÉSBICA
SUMÁRIO

6
APRESENTAÇÃO
10
HERDEIRAS DE SAFO

16
O USO DA LÍNGUA
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SOM DE SAPA

30
NARRATIVAS DISSIDENTES
54
UMA SAPATÃO
NO MUNDO

62
EXPEDIENTE
APRESENTAÇÃO

6
Desde 2013, a Todos os gêneros: mostra de arte e diversi-
dade investiga e tensiona os debates sobre as diferentes
faces da experiência humana, as lógicas e a diversidade
de afeto, desejo e existência da população, em especial
a das pessoas LGBTQIA+.

Nesse compromisso com a visibilidade, neste ano a mos-


tra traz o amor, o afeto, a identidade e a cultura lésbica
para o centro das atenções. A programação acontece no
Itaú Cultural (IC), de 27 a 31 de julho de 2022, e reforça
a preocupação da organização em dar voz às questões
relacionadas à diversidade.

As atividades – em formato híbrido, com atrações pre-


senciais, na sede do IC, em São Paulo (SP), e on-line,
no site itaucultural.org.br – incluem apresentações
musicais, espetáculos teatrais e mesas de debate que
exploram a diversidade cultural, política e discursiva
de mulheres que não se incomodam com o fato de ser
chamadas de sapatão. Entre os destaques virtuais, uma
mostra de filmes estreia na Itaú Cultural Play, a plata-
forma de streaming do IC.

Para ampliar o tema e celebrar o universo lésbico, esta


publicação traz artigos sobre música, literatura, ter-
minologias utilizadas na identidade das mulheres ho-
moafetivas, suas representatividades e sua autoestima,
além de entrevistas com a poeta, atriz, dramaturga e edi-
tora Bárbara Esmenia e a artista visual e pesquisadora
Marília Oliveira.

Acesse itaucultural.org.br e conheça os conteúdos das


edições anteriores, como depoimentos e versões digitais
das publicações impressas.

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8
9
POR ADRIANA FERREIRA SILVA

herdeiras
de safo
Literatura lésbica: mulheres negras e indígenas reinventam
a cena; romances conquistam prêmios, e mercado editorial
investe em estrelas da geração Z

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De cabelos curtos e descoloridos, piercing na sobrance-
lha, Elayne Baeta é recebida aos berros por um bando
de adolescentes, numa reação típica a popstars, em uma
livraria no Recife em maio de 2021. A escritora de 24
anos causou frenesi ainda maior em sua participação
na Bienal do livro do Rio, em dezembro passado, quando
dividiu os holofotes com Clara Alves, outro fenômeno da
literatura young adult (para jovens adultos). Em comum,
ambas escrevem sobre meninas que namoram meninas.
Lésbica, Elayne vendeu 50 mil exemplares de O amor
não é óbvio e Oxe, baby (Galera Record); bissexual, Clara
vendeu 100 mil títulos de Conectadas (Seguinte), ro-
mance entre uma menina lésbica e uma bissexual. “Na
literatura para jovens, há uma procura cada vez maior
por temáticas LGBTQIA+”, explica Nathalia Dimam-
bro, editora da Seguinte, uma divisão da Companhia
das Letras.

“Não enxergo como um nicho em ascensão, mas como mais abertura


das novas gerações para debater esses assuntos. A diversidade não é
tendência, é uma exigência. Os jovens querem se ver e se identificar.
Se a juventude é plural, a literatura também deve ser, e o mercado
acompanha essa demanda.”

A criação de selos focados na temática LGBTQIAP+ para


a geração Z (Elayne lança por um segmento da Record) é
a face pop de uma cena que causa comoção desde os anos
1960, quando Cassandra Rios (1932-2002), escrevendo,
entre outros temas, sobre o amor entre mulheres, se tor-
nou a primeira brasileira a vender 1 milhão de cópias de
seus livros – na época, rivalizando em popularidade com
Jorge Amado. Cassandra, a Safo de Perdizes, desbra-
vou um cenário que se renova, multiplica e espalha. São
nomes de diferentes gerações, como Cidinha da Silva,
Angélica Freitas, Natalia Borges Polesso, Ryane Leão,
Yakecan Potyguara, Bárbara Esmenia, tatiana nascimen-
to (cujo nome pede que seja escrito com letras minúscu-
las), Renata Pimentel, Adrienne Rich, Diedra Roiz, Carol
Bensimon, Katia Borges e Marize Castro, entre muitas
outras que se destacaram nas últimas décadas. Autora do
clássico Amora (Não Editora), livro de contos vencedor
do Prêmio Jabuti em 2016, Natalia Borges Polesso en-
tendeu, com a repercussão desse trabalho, que havia uma
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demanda por referências que ela própria desconhecia.
“As pessoas perguntavam quais eram minhas influên-
cias e eu pensava em Lygia [Fagundes Telles], Clarice
[Lispector], Caio [Fernando Abreu]... Eu me dei conta de
que Amora era um produto de faltas, não de referências,
e comecei a pesquisar sobre essas autoras”, explica.

Natalia dedicou seu pós-doutorado à literatura lésbica


ou sapatona, reunindo 250 nomes.

“A pesquisa foi encerrada, mas, se tivesse continuado,


esse número poderia triplicar.”

A escritora parte da grega Safo, no século VI, numa linha


que contém lacunas por motivos óbvios: as mulheres
mal podiam ser alfabetizadas, quanto mais escrever.
“Só encontramos outras autoras ou vestígios de lesbia-
nidade em 1200. Um marco é [a mexicana] Sor Juana
Inés de La Cruz, freira que em 1600 escrevia cartas de
amor para outras mulheres”, afirma. No Brasil, em 1890,
Maria Benedita Bormann publicou Lésbia, sob o pseu-
dônimo Délia Bormann. “O texto traz uma personagem
desencantada com a vida amorosa e seus parceiros, que
recusa a submissão dos papéis de gênero que podemos
pensar como um romance lésbico. Mas o marco mesmo
é Cassandra Rios”, explica Natalia.

Após o furacão Cassandra, destaca-se uma prolífica pro-


dução de poesia, seguida por um boom de romances que
tratam de diferentes temáticas e gêneros, em histórias
nas quais nem sempre o amor por outras mulheres está
em primeiro plano. Assim é a obra da própria Natalia,
composta de quatro livros de contos e das ficções Con-
trole e A extinção das abelhas (ambas pela Companhia
das Letras), além de Corpos secos (Alfaguara), trabalho
coletivo – também premiado com o Jabuti. “Escrevo a
partir de perspectivas ou vivências da lesbianidade, não
escrevo sobre ela”, diz Natalia. “Em Controle, A extinção
das abelhas e Corpos secos – esses dois últimos distopias
–, as personagens são lésbicas porque tudo o que escre-
vo está permeado desse discurso. Não faço concessões
nem dou explicações para essas vidas existirem. Elas
simplesmente estão ali.”
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Uma conclusão importante da pesquisa de Natalia é a
de que a literatura lésbica no Brasil não é branca. Para
a poeta, atriz e dramaturga Bárbara Esmenia, isso se
deve à ebulição dos saraus no início dos anos 2000, onde
surgiram poetas como Ryane Leão, autora do best-seller
Tudo nela brilha e queima e de Jamais peço desculpas
por me derramar (Planeta). Ryane é uma influenciado-
ra com 629 mil seguidores em seu perfil no Instagram
(@ondejazzmeucoracao), o que faz dela a instapoet mais
importante do país. “O movimento de saraus foi uma
retomada literária da periferia, de pessoas pretas, indí-
genas, pobres, devolvendo a palavra à oralidade, tradi-
ção afrodiaspórica e dos povos originários. Ao mesmo
tempo, ocorreu um levante sapatão, que se expressou na
fala e passou aos livros graças às editoras independen-
tes”, diz Bárbara.

Uma dessas casas, a padê editorial, foi idealizada por


Bárbara e pela poeta, compositora e cantora tatiana
nascimento – responsável por criar o primeiro Slam
das minas, em Brasília, competição de poesia falada
que depois se espalhou pelo país. “Em 2015, tatiana me
mostrou uma publicação cartonera, de capa de papelão,
costurada à mão, e meio que brincando me perguntou:
‘Vamos montar uma editora?’”, lembra Bárbara. “No ano
seguinte, fizemos meu primeiro livro, {Penetra-fresta},
e o de tatiana, Lundu, além de quatro obras soltas, que
depois batizamos de coleção Odoyá.” Foi a padê também
uma das responsáveis por medir a efervescência da pro-
dução sapatona: ao ganhar um edital e abrir inscrições
para publicar 44 autoras, recebeu mais de 200 textos.

A multiartista, professora e pesquisadora Renata Pimen-


tel destaca, ainda, o trabalho de pioneiras como Stépha-
nie Arc (Edições GLS) e Laura Bacellar e Hanna Korich
(Brejeira Malagueta), além de projetos digitais como o
Xana in box, do qual ela fez parte. Hoje, outros selos com
lançamentos badalados são Quintal, que reuniu 50 lésbi-
cas e bissexuais em Antes que eu me esqueça, coletânea
organizada por Gabriela Soutello; e Filipa, que agregou
mais de 70 poetas em Visíveis (disponível para download
gratuito no site da editora). Autora dos livros de poesia
Da arte de untar besouros e Denso e leve como o voo das
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árvores e de Copi – transgressão e escrita transformis-
ta (todos pela editora Confraria dos Ventos), Renata
nunca publicou por segmentadas e já teve dúvidas em
usar a expressão “literatura lésbica”, mas hoje a defende.
“A literatura que não é engajada não presta, porque não
diz a que veio”, acredita. Isso, segundo Renata, não sig-
nifica transformar o texto em palavra de ordem: “Auto-
ras como [a estadunidense] Carmen Maria Machado,
Natalia Borges Polesso, Nay Rosário ou Yakecan Poty-
guara complexificam tudo, falando de questões amplas,
inserindo a afeição na condição de mulher e da vida na
sociedade. Não se trata de diminuir o afeto entre mu-
lheres; pelo contrário, ele é uma lente fundamental”, diz.

No caso de Yakecan Potyguara, de 24 anos, a lesbiani-


dade se entrelaça com a luta pela terra e por direitos.
“Aprendo com a biblioteca viva que são nossos velhos
e lendo Eliane Potiguara e Auritha Tabajara, primeira
cordelista indígena, casada com outra mulher, também
indígena”, diz ela. Filha de ativistas, Yakecan primeiro
registrou a memória dos Potiguara no Nordeste. Ao as-
sumir-se lésbica, sofreu preconceito dentro e fora de sua
comunidade, experiência que a levou a fundar o coletivo
Caboclas, reunindo indígenas LGBTQIAP+, e a escrever
sob a perspectiva de uma mulher lésbica.

“Fiquei quatro anos afastada do meu povo e passei a falar sobre


minha dor e a tentativa de apagamento da minha sexualidade.
Hoje, meus parentes dizem ter orgulho de mim.”

Na mesma medida em que essas autoras ganham rele-


vância e popularidade, o circuito se expande por meio
de redes sociais, sites (Lettera, Lesboteca), iniciativas
como o Clube Lesbos (que promove encontros literários
e cursos) e endereços tradicionais, como a livraria Baleia,
em Porto Alegre, e a novíssima Pulsa, recém-inaugurada
em São Paulo. Caroline Fernandes, uma de suas idealiza-
doras, afirma que a Pulsa é o primeiro espaço exclusiva-
mente dedicado à literatura LGBTQIAP+ na cidade. Se
depender da produção, o primeiro de muitos.

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[ g o s t o ] por Bárbara Esmenia

gosto quando teu toque


ultrapassa o mero sentir
e me atinge na inteligência

me masturbo com tuas palavras

e quando concluis uma ideia


chego ao ápice
ao levar-me junta a tal síntese

minha pré-disposição a entender alerta


com neurônios fogosos
excitados de teorias que você mesma inventa

tudo isso porque


– sabe –
que o que abala minha mente
faz gozar meu corpo inteiro

15
POR CRISTIANE BATISTA

o uso da
língua
Marisa Fernandes, Yone Lindgren, Márcia Rocha e a dupla
Horrorosas Desprezíveis, formada por Amira Massabki e
Patrícia Cipriano, falam da importância das nomenclaturas na
identidade, representatividade e autoestima de todes.

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44. Bate-bife. Biscoito fino. Bofinho. Bolacha. Botina. Butch.
Caminhoneira. Chic. Chinelinho. Chupa-charque. Chupa-priquito.
Cola-velcro. Come-grama. Couro. Dyke. Entendida. Fancha.
Femme. Francha. Fressureira. Fufa. Girina. Hari. Lacha. Lady.
Lancha. Lesbiana. Lésbica. Leitinho. Lesbian chic. Machona.
Machorra. Margarida. Maria João. Marlene. Melissinha. Mulher-
-homem. Mulher-macho. Petit four. Pochetinha. Preu. S10. Sáfica.
Sapa. Sapatão. Sapateen. Sapatilha. Saveirinho. Scânia. SUV. Tête.
Torta. Tuxa. Tríbade. Urningista.

Como a construção e a desconstrução de estereótipos


em torno das mulheres que gostam de mulheres afetam
a vida de todes?

“Não há diferenças entre as palavras. A diferença se es-


tabelece na intenção e na forma de uso delas. De forma
respeitável, ok, mas usadas para ofender, xingar, aí é vio-
lência, lesbofobia”, explica Marisa Fernandes, mestre
em história social, lésbica e ativista LGBTQIAP+ há 43
anos. Em sua adolescência, termos como mulher-macho
e machona eram comuns, devido ao sucesso da música
“Paraíba”, composta por Luiz Gonzaga e Humberto Tei-
xeira em 1946 (“Paraíba masculina / Muié macho, sim
sinhô”). O baião fazia referência à atuação do estado na
Revolução de 1930, mas encontrou coro à boca miúda
com uma forma pejorativa de chamar lésbicas em geral.

“O próprio termo lésbica não era usado sob nenhuma hi-


pótese. Eu mesma não sabia que nome tinha o que eu era.
A psiquiatria tratava, de forma geral, o homossexualismo
como uma doença. Mulher-macho e machona incomoda-
vam, sim, pois faziam referência ao gênero masculino e
remetiam à única e normatizada heterossexualidade como
possibilidade de amor, afeto e sexualidade”, conta Marisa.

Mais tarde, em 1979, já no Grupo de Ação Lésbica Femi-


nista, o LF, que ajudou a fundar, ela recorda que, mesmo
nos lugares de frequência de garotas na noite paulistana,
muitas das que se autodenominavam “entendidas” tam-
bém reproduziam os padrões masculinos e femininos
pelos nomes de frachona e lady. Foi quando o LF passou
a distribuir um panfleto com o título “Homossexual: mas
pode me chamar de lésbica”, em que explicava a origem
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da palavra, proveniente da Ilha de Lesbos, na Grécia,
onde viveu a poeta Safo, no século VI, que escrevia sobre
o amor e o erotismo entre mulheres.

“Era um incentivo para que usassem em seu cotidiano a


palavra lésbica, porque só assim ela perderia a capacidade
de ferir. O esvaziamento ofensivo e pejorativo da palavra
desarmaria os inimigos, pois para nós ela deixaria de ne-
cessariamente estar associada a uma agressão. O mesmo
acontece agora com o frequente uso de sapatão. Eu adoro
isso. As jovens lésbicas transformaram o que se pretendia
ser ofensivo em afeto”, opina.

Sapatão é um termo que se popularizou no Brasil a partir


da década de 1970, e sua origem é imprecisa. Alguns o
atribuem a uma maior liberdade das mulheres na moda,
com o uso de sapatos mais confortáveis (e por que não?),
chamados de masculinizados. Há quem diga que surgiu
nos bastidores da peça de Isabel Câmara As moças: o úl-
timo beijo (Prêmio Molière em 1970), como narra o dra-
maturgo Antônio Bivar no livro O explorador de emoções
peregrinas (Maria Lucia Dahl, Coleção Aplauso, 2010):

“Dentro do feminismo crescente, as sapatas eram uma nova


tribo safista fazendo vista na sociedade. Moças destemidas,
independentes, engraçadas, glamurosas, sibaritas, amazonas
modernas com o pisar determinado”.

Isabel, poeta dessa tribo, tinha, inclusive, a intenção de


fazer uma peça usando no título uma frase que já circulava
entre o pessoal: “Viva sapatas”. O fato é que o termo caiu
na boca do povo mesmo em 1981, com o sucesso estrondo-
so de uma marchinha de Carnaval cantada por Chacrinha
e escrita por João Roberto Kelly, com o refrão:

“Maria Sapatão, Sapatão, Sapatão /


De dia é Maria / De noite é João”.

Yone Lindgren, cofundadora da Articulação Brasileira


de Lésbicas, a ABL, no Rio de Janeiro, há 44 anos no
movimento, lembra: “Sapatão veio como um xingamento.
A gente se adequou e começou a usar para não se sen-
tir mais violentada nas ruas. Eu nunca me incomodei,
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porque sempre fingia que não ouvia. Preferiria não ter
rótulos, muito embora continue na prerrogativa de gos-
tar de mulheres e ser lésbica”, diz ela.

“O chamamento interfere na autoestima e no empoderamento de


algumas mulheres, principalmente das que estão na periferia e
das que têm um visual mais masculinizado. Prefiro dizer apenas
‘mulheres que amam mulheres’.”

Márcia Rocha, primeira advogada transexual a ter o direi-


to de usar o nome social na carteirinha da Ordem dos Ad-
vogados do Brasil (OAB), se define como travesti lésbica
transfeminista. “Qual é o machismo que não me atinge?
Qual é a lesbofobia que não me atinge? Quantas vezes já
não aconteceu de olharem feio para mim e para a minha
noiva andando de mãos dadas, porque acham que são duas
mulheres que estão ali? Olham feio por eu ser mais velha
também! Então, eu acho que existe um pertencimento, um
lugar de fala dentro do movimento”, explica.

Para Márcia, as nomenclaturas agrupam características,


juntam um grupo para que ele tenha mais força na hora
de demandar direitos e políticas públicas, ainda mais
considerando que, segundo relatório divulgado em 2021
pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bisse-
xuais, Transgêneros e Intersexuais (ILGA), o Brasil seria
o país que mais mata pessoas LGBTQIAP+ no mundo.
“Só que rótulos não definem pessoas, porque cada ser
humano é múltiplo, com particularidades próprias e
exclusivas. Físicas, psíquicas, de ideias, crenças etc., e
isso precisa ser considerado com respeito”, aponta ela.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)


divulgou, no mês de maio, uma pesquisa com base nos
dados da Pesquisa nacional de saúde (PNS) que atesta
que pelo menos 2,9 milhões de brasileiros com 18 anos
ou mais se autodeclaram homossexuais ou bissexuais.
Consideradas apenas as mulheres brasileiras, 0,9% de-
clara-se lésbica e 0,8% bissexual. Tanto entre homens
quanto entre mulheres, 1,1% disse não saber e 2,3% re-
cusaram-se a responder. “Com certeza esses dados são
subnotificados. Se nós pensarmos nesse grupo que não
quis responder, no mínimo, metade é. Mas tem a questão
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da informação também; às vezes, a pessoa não entende
a pergunta e, se você falar “Você é hétero?”, muita gente
pode ficar ofendida, mesmo sendo hétero”, diz Márcia.

As artistas Patrícia Cipriano e Amira Massabki osten-


tam com orgulho a identidade sapatão. A dupla por trás
do grupo Horrorosas Desprezíveis, formado em 2016,
tem agitado Curitiba, reunindo mulheres de linguagens
como teatro, música, artes visuais, dança e cinema para
expandir seus trabalhos sob os lemas “Abaixo a felicidade
da submissão” e “Eu vim do futuro e lá só tem sapatão!”.

“A palavra lésbica não me representa, não dá match. Sapa


é aberto. Lésbica, foneticamente, parece até nome de
gripe! Além do mais, existem lésbicas que pensam em
entretenimento e pautas de saúde, mas não respeitam
a arte como ferramenta social. Sapatão é uma filosofia
de vida, um ato político. Sapatão é nome de ninguém,
mas, quando a gente reconhece uma, é uma sensação de
pertencimento sem igual”, acredita Patrícia.

Na performance Lacração, por exemplo, elas provocam a


sororidade da geral com o texto: “Lesbian prime tudo bem /
Sapatilha só de marca / Pras mulher do corre doido / Vira
a cara, ‘tô chapada’ / As manas já tão de olho no rolê mi-
soginia / No jogo da opressão, é algoz pra alguma mina /
Cobra postura de lady / Pernas, virilhas depiladas / E no
concurso de miss / Dita moda pelas magras”. “A pauta
é urgente! Precisamos pensar em cooptar formas de se
apresentar e se infiltrar nos meios, fazer articulações para
falar sobre a existência de todos os corpos”, afirma Amira.

As duas participam com outras parceiras do coletivo


Selvática Ações Artísticas, que promove iniciativas que
fortalecem a representatividade de todes por meio de
encontros e atividades culturais, além da normatividade
binária. De uma delas, a criação Yo vi el fin del mundo y
me gustó, vem a prece:

“Usaremos a língua do inimigo entre nós até que a língua do


inimigo deixe de fazer sentido, até que a língua do inimigo esteja
esgotada e nós estejamos fluentes em uma língua que até então
não existia ali”.
20
por Ryane Leão

o cheiro do corpo dela


se mistura com o cheiro dos bares
e das casas e das garrafas e das encruzas
e das estações e dos apartamentos
e das festas e dos copos e das taças
e dos carnavais e das maresias
e das viagens e dos tumultos e das marchas
e das revoluções e das praças e das músicas
e dos temporais e dos encontros e dos gostos
e das poesias e dos beijos e dos tambores

os lugares mandaram avisar


que ela não é apenas passageira
é protagonista

(poema do livro Jamais peço desculpas por me derramar – poemas de tem-


poral e mansidão, de Ryane Leão, editora Planeta)
21
POR CRISTIANE BATISTA

som de sapa
Como o amor entre mulheres toca (n)o Brasil. A música como
espaço de expressão, acolhimento, orgulho, representatividade,
resistência, luta. Angela Ro Ro, Zélia Duncan, Maria Beraldo,
Ana Gabriela e GA31 cantam seu modo de ver e perceber o mundo.

22
Autora de clássicos como “Tola foi você”, “Gota de san-
gue”, “Amor, meu grande amor” e “Balada da arrasada”,
Angela Ro Ro está no topo de qualquer playlist sapatão
que se preze. Autodenominada “lésbica diamante”, in-
victa em relação ao relacionamento afetivo/sexual com
homens, a artista começou a tocar piano aos 5 anos de
idade e, desde então, seu instrumento está “aberto às
últimas inconsequências da música e da vida”, como
publicou o jornal alternativo Chanacomchana em 1981.

Naquele ano, ela já era chamada de “a inventora do sapa-


teado”, mas o caminho até ali foi longo. Adolescente, em
peladas com os amigos na praia, Angela sofria bullying
dos meninos, que caçoavam de sua voz rouca – herança
da mãe e origem do malfadado apelido, que depois foi
ressignificado e transformado em marca registrada. O
nome Ro Ro demorou a ficar conhecido. Ela já frequen-
tava o bar carioca Caixotinho, onde a cantora Dora Lopes
(1922-1983), uma das primeiras autoras e intérpretes a
se assumir publicamente lésbica, se apresentava, quan-
do imigrou para a Europa no começo dos anos 1970, em
plena ditadura militar.

Entre bicos nos bares, encontrou Caetano Veloso em


Londres e participou, tocando gaita, do icônico disco
Transa, que completa 50 anos em 2022. Seu nome pas-
sou a circular, ela não parava de compor, mas recusa-
va convites para gravações e shows, e só foi lançar seu
primeiro disco, Angela Ro Ro, em 1979, quando estava
prestes a completar 30 anos.

Na primeira apresentação, o corpo tremia de nervoso.


“Achava as minhas músicas tristíssimas e resolvi con-
versar com o público e contar minhas histórias. Aí eu
desreprimi e descobri uma forma de ficar calma: como co-
mediante! Ia usar o termo ‘a pessoa que eu amo’, mas achei
‘entendido’ demais e disse: ‘A mulher que eu amo!’. Eu já
tinha me libertado. Minha mãe me dava aval, dizendo:
‘Eu te amo de qualquer forma. Se seu pai tiver qualquer
atitude opressora e/ou ofensiva, venha falar comigo!’.”

O cuidado da mãe, infelizmente, não a protegeu da ho-


mofobia nas ruas por muito tempo. A artista relata ter
23
sido espancada pela polícia e pela milícia, o que lhe ren-
deu a perda parcial da audição e também de um olho,
entre outros óbvios traumas.

“Para ser sincera, já sofri tudo o que é fobia. Lesbofobia,


gordofobia. Tem gente que tem ‘Ro Ro fobia’.”

O clima de deboche segue em suas músicas, muitas au-


tobiográficas, que narram os amores e dissabores das
várias relações que vive. “Ter vergonha do que a gente
é, é mais uma punição. A lesbianidade está no amor pró-
prio. Amando-me como mulher, eu amo todas as outras.
Sou louca, insana de amor pela vida, e quero que as pes-
soas nunca tenham medo de ser. Se alguém te ameaçar,
exponha quem tortura!”, incentiva ela.


ZÉLIA E A CORAGEM COMO HERANÇA

“As coragens de umas vão dando espaço às outras. Minha geração


procurava rastrear-se nas sombras e poeiras, nas invisibilidades
e nas atitudes alheias”,

conta a cantora, compositora e violonista Zélia Duncan,


que começou a cantar profissionalmente no início dos
anos 1980 e estourou em 1994 com seu CD de estreia,
Zélia Duncan, que inclui o hit “Catedral”, versão do su-
cesso da cantora alemã Tanita Tikaram, que diz: “No
silêncio, uma catedral / Um templo em mim / Onde eu
possa ser imortal / Mas vai existir / Eu sei, vai ter que
existir / Vai resistir nosso lugar”. “Ouvir sobre si mesma
com naturalidade a partir da vivência alheia é funda-
mental, por isso eu fui me soltando também. Porque,
além de ser libertador para mim, tem sido para outras
mais jovens e até para as que têm a minha idade”, afirma.

Hoje referência para muitas outras, Zélia considera que


a música, além de acolher, tem uma potência política:
“Nada escapa desse viés, isso também fui descobrin-
do. Quem você acolhe, como você ama são posições no
mundo que afetam a sociedade e a vida uns dos outros.
A sororidade em um país racista é um desafio urgente, e
não considerar mulheres trans é um paradoxo que tam-
24
bém não entendo. Depois que essas duas etapas forem
superadas, a palavra sororidade encontrará o lindo des-
tino para o qual nasceu”, pontua.

A artista acha que o campo da composição está mais aberto


às mulheres no mercado e também à participação nos bas-
tidores, como técnicas, iluminadoras e roadies: “Procuro
sempre ter mulheres de todas as naturezas no meu radar.
Tenho uma engenheira de som, que faz o P.A., que é o áudio
da plateia, fiz um álbum com minha parceira musical, Ana
Costa, que é um manifesto feminista e se chama Eu sou
mulher, eu sou feliz”. O trabalho, lançado pela Biscoito Fino
em 2019, reúne 20 cantoras e instrumentistas mulheres.

Nem sempre foi assim. No começo do século XX, em um


ambiente majoritariamente masculino, muitas das que se
aventuravam pelo caminho artístico tinham sua “moral”
questionada e, ainda assim, cantavam e tocavam músicas
feitas por homens. O acesso de musicistas e intérpretes
profissionais à esfera pública só se intensificou no Brasil a
partir da década de 1960, com o avanço da pauta feminista
de equidade de direitos, o crescimento organizado dos
movimentos identitários LGBTQIA+ e, consequentemen-
te, a tomada de protagonismo nas temáticas e construções
de novas formas de feminilidade, evoluindo também para
a transgressão de conceitos e padrões.


MARIA E A VISIBILIDADE FORA DOS ARMÁRIOS

A cantora, compositora, clarinetista e mestra em mú-


sica Maria Beraldo é uma das que vieram nesse esteio.
Seu álbum de estreia, Cavala (Risco, 2013), traz, além
de clarinetes, clarones, beats, sintetizadores e guitarras
secas, versos como

“Pai, gosto muito dos homens, sim / De tê-los ao alcance da boca,


sim / Mas no calor da manhã quem me fez delirar foi uma mulher /
Como é minha mãe” e “Gatas sapatas mães de bebê / Tão sexy com
seu sling / Tão sexy com seu bebê”.

Para ela, a visibilidade pode ser uma saída para o trans-


por de armários: “Quando eu era mais nova, não conhe-
25
cia nenhuma pessoa abertamente lésbica. Sabia que
minhas professoras de música eram um casal, mas elas
eram induzidas a omitir isso socialmente. Isso é uma
violência imensa contra elas, contra mim e todes nós.
Hoje mais mulheres são incentivadas a compor, pois
veem mulheres compondo, enxergam aquilo como algo
possível. Só que existe uma relação do mercado com as
pautas inclusivas que acho muito complexa. Tenho sem-
pre alguns pés atrás ao afirmar coisas nesse campo: em
qual camada temos mais espaço? Numa superficial, sim,
acho que estamos abrindo, mas uma mudança de fato,
uma alternância de poder, acho difícil de responder. São
passos vagarosos e árduos na nossa história. Muita gente
morreu e morre até hoje na luta por sua liberdade. Esta-
mos juntes nessa construção ao longo do tempo”, afirma.

Para Maria, a composição foi o jeito que encontrou de


dizer e também de conversar com seu público.

“Sinto a música como uma das maiores forças de comunicação


e transformação no mundo. Não conheço uma religião que não
tenha música. É muita força, é outro caminho, e dessa maneira as
narrativas lésbicas, por exemplo, chegam às pessoas por essa via.
O texto, a música, a figura física, a sensibilidade, o pensamento, o
espaço que se ocupa são comunicados de maneira sensível.”


ANA GABRIELA E A CARTA PARA A MÃE

A cantora e compositora Ana Gabriela tem se valido dessa


experiência. Começou na música ainda criança, na igreja
que frequentava com a mãe. Na adolescência, apaixonou-
-se por uma menina e veio o caos: “Foi uma coisa muito
conturbada, fiquei mal, triste, achava o tempo inteiro que
eu estava pecando, que tudo era errado; não sabia para
quem pedir conselho e acabei não falando com ninguém.
Escrevi uma carta para a minha mãe e tinha a intenção
de deixá-la debaixo do travesseiro dela, mas não o fiz. Ela
descobriu, me chamou e disse que estava triste por eu
não ter confiado nela. Quebrou minhas pernas”, lembra.

Nascia ali a música “Carta para a mãe”, que tem um


videoclipe com a presença da mãe, Isabel, o qual já
26
contabiliza quase 1 milhão e meio de visualizações no
YouTube. “Até hoje eu recebo print das pessoas, meninas
e meninos dizendo que mandaram essa música pra mãe e
que foi ótimo”, conta. A faixa faz parte do primeiro disco
da artista, Ana Gabriela (Deck, 2020), ao lado de “Não
me chama de sua”, que fala de autoconhecimento e da
questão do ciúme e da posse, outros pontos nevrálgicos
em muitas relações: “O som é sobre isto: você não ser de
ninguém. Tem cada coisa que a gente fica chocada. Não é
só porque é mulher com mulher que vamos passar pano,
pelo amor de Deus, né?”, explica.


O ORGULHO SAPATÃO DE GA31

Outra voz que clama por uma “nova era de paz, elegância,
amor e tesão para todos” é GA31, nome não binário por
trás de hits como “A força da mulher sapatona” e “Samba
digital”, que canta o autoconhecimento: “Tocar a vagina,
o valor, a verdade e as cores”. “O que começou como uma
brincadeira de transgressão e choque social acabou se
tornando um ponto de reflexão e inspiração. É divertido
fazer as pessoas pensarem de uma maneira leve, e me
choca como alguns ainda se assustam com os assuntos
mais naturais inerentes ao corpo humano”, analisa.

“Lésbica futurista”, lançada em 2014, viralizou no Tik-


Tok da Rússia no ano passado, entrando na playlist de
músicas “virais” do país no Spotify. Nos vídeos, as pes-
soas tentam reproduzir o refrão:

“Lésbica futurista / sapatona convicta / eu não vou deixar


a inveja me abalar (para sempre)”,

chamando a atenção para o orgulho sapatão. “Seja de ma-


neira acadêmica, transgressora, ingênua, irônica ou pelo
humor, toda expressão artística pode trazer consigo um
manifesto. Nós precisamos exaltar as qualidades das mu-
lheres que lutam todos os dias para existir. Estamos ao lado
de grandes personagens heroicas da vida real!”, opina.

Rumo à liberdade de ser e e(star) em qualquer tempo,


GA31 dá a dica com um spoken de uma delas, Dercy Gon-
27
çalves (1907-2008), na música “Afeminada”. A voz da
artista, que entrou para o Guinness book, o livro dos re-
cordes, como a atriz com a carreira mais longa do mundo,
aparece entre camadas eletrônicas com a frase:

“Cada um busca a sua felicidade, então deixa cada um ser o que é!”.

28
por Angélica Freitas

você não sabe o que é uma teta caída

uma teta de mulher, uma teta


que desceu do pedestal
o conteúdo macio, a pele fina
o zigue-zague das estrias, não:
nunca tocou numa teta caída
não sabe o calor das tetas de outono
não as viu por baixo, balançando
nunca pensou em dormir abraçado.

(publicado no livro Canções de atormentar, de Angélica Freitas, editora


Companhia das Letras)
29
POR ADRIANA FERREIRA SILVA

narrativas
dissidentes
Poeta com trajetória na cena literária, Bárbara Esmenia agora dá
forma física ao texto com sua estreia na dramaturgia

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As pequenas alegrias do cotidiano e da convivência e as
trocas de experiências e sentimentos entre mulheres
encarceradas inspiraram a poeta e multiartista Bárbara
Esmenia a criar Cavalos pretos são imensos, espetácu-
lo que marca sua estreia na dramaturgia. Contemplada
em 2020 no edital da 7a mostra de dramaturgia em pe-
quenos formatos cênicos, do Centro Cultural São Paulo
(CCSP), onde estreou, a montagem é também a síntese
da trajetória de uma artista cujo trabalho se desdobra
em poesia, teatro e uma intensa pesquisa sobre o método
criado pelo dramaturgo Augusto Boal, que deu a Bárbara
as ferramentas para levar seu ativismo como feminis-
ta negra e sapatão às artes. A partir desses elementos,
ela reflete sobre possíveis desdobramentos para uma
história que terminou em tragédia, a de Luana Barbosa
dos Reis, morta em consequência de um espancamento
cometido por policiais militares em abril de 2016. É a vi-
vência de corpos como o dela, uma mulher negra, lésbica
e periférica, que inspira Bárbara a dar, agora, presença
física às suas palavras.

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A HISTÓRIA DE LUANA

Sempre foi muito cara a mim a histó-


ria de Luana Barbosa dos Reis, uma
sapatão preta, periférica, [com um
tipo físico] do que chamam mas-
culinizada, que foi espancada pela MEMÓRIAS DO CÁRCERE
Polícia Militar de Ribeirão Preto em
[abril de] 2016 e morreu cinco dias A dramaturgia começou com a ideia
depois. Tenho um compromisso com de que, se Luana não tivesse sido
essa narrativa, que precisava chegar morta, o que aconteceria com esse
a mais pessoas, sair do nicho lésbico, corpo? Quais eram as possibilidades
preto, porque não é todo mundo que para essa vivência? Talvez ela fosse
conhece Luana. Eu queria que esta presa, porque Luana reagiu ao es-
fosse uma história de pertencimen- pancamento. Ela bateu nos policiais.
to e reflexão para mostrar como esse Se esse corpo não morre, a alternati-
caso é estrutural, pois intersecciona va que sobra é o cárcere. Essa pessoa
racismo, lesbofobia, corpos periféri- não tem liberdade: ou é o cárcere ou
cos e de pessoas que nasceram com é o assassinato, quando não a fome e
vulva, mas que não são femininos. as políticas de extermínio. A Luana
esteve em situação de cárcere, então
também há esse debate. Decidi co-
locar isso em cena a partir de cinco
personagens encarceradas, mas que
não são mostradas pela dor, o que é
uma questão para nossas narrativas
dissidentes. Ela está presente, mas
não vem em primeiro plano. Elas
estão rindo, falando da visita íntima
do fim de semana, quando vão namo-
rar até as pernas ficarem bambas, da
saudade do filho, de quando levaram
a filha para passear… São momentos
mágicos, de um realismo fantásti-
co, universo que me interessa, pois
quero pertencer a essa tradição li-
terária latino-americana. Mas o pú-
blico vê ainda outras camadas, como
a maternidade, de que, por não ser
mãe, eu não tinha me dado conta.
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DRAMATURGIA PREMIADA

Cavalos pretos são imensos é minha


primeira dramaturgia [desenvolvida
como parte do curso de dramaturgia
da SP Escola de Teatro]. A peça foi
uma das três contempladas no edi-
tal de pequenos formatos cênicos do
Centro Cultural São Paulo, em 2020.
Graças a isso, eu tinha a peça, mas
faltavam os corpos, então comecei a
convidar meu “elenco dos sonhos”,
com a Thais Dias, que acabou as-
sumindo a direção, e a Fernanda
Gomes, que, como eu, é do Teatro
das Oprimidas e também participa
da Coletiva Luana Barbosa – que
acompanha o processo de julgamen-
to dos policiais em Ribeirão Preto.
São pessoas de grupos e trajetórias
diferentes que, na maioria, se conhe-
ciam, mas nunca tínhamos trabalha- DANDO CARA AO TEXTO
do juntas.
O que me levou à dramaturgia foi o
interesse de juntar meu pertenci-
mento literário e o teatro, criar vi-
vências num fôlego mais longo que
não o da poesia, dentro da tradição
do eu lírico, com personagens que
contam uma história. Escrever para
corpos que vão para a cena, com
iluminação, sonoplastia, figurino e
demais elementos, faz com que [o
trabalho] deixe de ser um momento
solo e passe a uma escrita que per-
tence ao coletivo e a mais interpre-
tações. É um processo coletivizado.

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NOVAS DRAMATURGIAS

Desde 2021, tenho uma pesquisa


sobre mulheres que se relaciona-
vam com mulheres no período da
Inquisição no Brasil. Em 1591, o
Santo Ofício fez sua primeira visita
ao país para julgar os que praticavam
judaísmo, sodomia etc. Entre essas
pessoas, 19 mulheres tiveram relatos
ou foram acusadas de se relaciona-
TEATRO DAS OPRIMIDAS rem com outras. Dessas, para mim,
duas se destacam: Felipa de Souza,
Sou atriz de formação, mas não atuo uma portuguesa branca, sapatão
desde que conheci o Teatro das Opri- orgulhosa, que assumiu tudo o que
midas, há dez anos, em uma oficina fez e foi açoitada em praça pública;
que fiz com Alice Nunes, na Unesp e Francisca Luiz, uma negra livre,
[Universidade Estadual Paulista], também portuguesa, que – suspeita-
chamada Jogos do teatro dos oprimi- -se – veio ao Brasil para fugir de ser
dos. Ali, tive contato com a teoria de julgada por se relacionar com outras
Augusto Boal, que dizia que, se você mulheres no Algarve. Interessa-me
tem um corpo, uma possibilidade de tratar disso, pois temos lacunas no
expressar sua existência, você pode tempo em nossa história lésbica.
fazer teatro. Não existe mais essa
hierarquia de pessoas iluminadas,
talentosas. Além disso, Boal defen-
dia termos o controle dos meios de
produção, pois é isso o que nos torna
desfavorecidos em relação ao capi-
tal. [Na oficina,] criamos um grupo,
o Trajetórias Feministas, de que eu
participei de 2013 a 2016. Para mim,
o Teatro do Oprimido chega juntan-
do arte, política e essa possibilidade
de tratar de temas a partir de uma
metodologia que é múltipla e traz ao
debate feminismo, LGBTfobia etc.
Depois disso, passei a dar oficinas,
multiplicando e testando também
novos jogos, para não ficar estancada
no método que Augusto Boal pensou.

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51
por Diedra Roiz

Aquí y ahora

Ela como sempre


parada na frente da janela com seu camisão de
flanela xadrez caneca esmaltada do café que
leva até a boca
cuando percibe mi presencia se vira
e sorri
mostrando que nosso presente
é olhar e saber que
pasado y futuro
no son más que ilusiones
conjecturas
perdidas
entre o que escolhemos recordar y olvidar
y lo que podremos imaginar e pensar
mesmo sem saber do tempo
aquí y ahora
é com certeza
nossa única certeza [...]
52
por Carol Rocha

Dançaram-me negra

Dançaram-me negra. Dançaram-me debaixo


dos panos brancos, dançaram-me sem luzes
e meu convite para o baile dizia que a entrada
era pelos fundos. Um espelho pequeno e sem
moldura me recebeu, e quando vi os olhos
encarados me gritei, sussurrando que aquela
era a porta de saída, então eu deveria ir embora.

Mas não fui, fiquei, e dançaram-me negra.

(trechos de poemas publicados na coletânea Visíveis – Anuário Filipa


Edições 2020)
53
POR ADRIANA FERREIRA SILVA

uma sapatão
no mundo
Marília Oliveira cria narrativas visuais de afeto, cotidiano e
memória para celebrar o amor entre mulheres

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Como é a rotina de duas mulheres que se amam? Ela
deveria ser imaginada como algo banal, assim como a
de qualquer outro casal, mas nem todos os corpos têm
direito ao cotidiano por igual. “Quem é que pode, por
exemplo, andar de mãos dadas na rua?”, argumenta a
artista visual e pesquisadora Marília Oliveira.

Essas questões, junto com a determinação em tratar do


afeto como prática de liberdade e estratégia de resistên-
cia, levaram Marília a criar o fotolivro Um livro sobre o
amor sapatão (2020), “experiência visual compartilha-
da” na qual cinco casais apresentam fragmentos de seu
dia a dia como num álbum de família. “Pensar o trivial
é também se dar o direito de construir as próprias nar-
rativas a partir das micropolíticas”, acredita Marília.

O trabalho, que representa uma reviravolta na carreira


da cearense – cujas obras anteriores eram marcadas por
temas como vingança e assédio –, integra um projeto
maior, o doutorado Museu do amor sapatão, que deverá
ser finalizado com uma exposição.

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 Qual gatilho a
ADRIANA FERREIRA SILVA comprar pão sem que isso seja um
levou ao fotolivro Um livro sobre o escândalo? Para que corpos a guer-
amor sapatão? ra é quase que uma condicionante?
Pensar isso ajuda a entender por que,
Li uma entrevista da
MARÍLIA OLIVEIRA 
para mim, é importante discutir o
poeta baiana Lívia Natália, profes- cotidiano, pois o trivial, o banal, é
sora da UFBA [Universidade Federal também se dar o direito de construir
da Bahia], em que ela dizia como era suas próprias narrativas.
difícil para uma mulher negra como
ela tratar de afeto e de que maneira
atravessou isso até lançar um livro  Um livro sobre o
ADRIANA FERREIRA SILVA

de poemas de amor. Há uma deman- amor sapatão representou uma mu-


da constante pela exploração do so- dança temática em seus trabalhos,
frimento, em que [se espera que] até então sobre assédio e vingança.
pessoas negras falem sobre racis- Como isso se deu?
mo e pessoas LGBTQIAP+ só desse
tema. Eu mesma tinha dificuldade de Meu imaginário esta-
MARÍLIA OLIVEIRA 

falar de amor e, no doutorado, deci- va impregnado. As histórias que eu


di dar um primeiro passo, um gesto via e ouvia e as produções com que
prático. Comecei a olhar os casais tive contato no universo das lesbia-
de sapatonas do meu entorno cujas nidades tratavam de violência ou
trajetórias me inspiravam. Algumas erotismo. Após a eleição do atual
são artistas com quem não tinha pro- presidente, entendi que insistir
ximidade; outras, amigas íntimas. nessa estratégia era oferecer a ele e
Convidei cinco desses casais a me aos seus eleitores o que queriam: a
enviar fragmentos vários de suas mortificação do nosso corpo. Estava
relações. Juntei isso a imagens que na hora de parar de falar de violên-
produzo em meu cotidiano, algumas cia. Não que ela não tenha que ser
que fiz com minha ex-namorada, e discutida ou não seja importante.
contei uma grande história de amor, Mas também a alegria é um compro-
com fotos de família, no mar, além de misso político. É quase uma estética
coisas sutis, como um bilhete. da vingança, que me fez começar a
pensar em afeto e cotidiano como
proposições para meu doutorado, o
 O que do cotidia-
ADRIANA FERREIRA SILVA
Museu do amor sapatão.
no lhe interessa discutir?

Nem todo mundo tem


MARÍLIA OLIVEIRA 
 O que é o Museu
ADRIANA FERREIRA SILVA

direito ao cotidiano do mesmo jeito. do amor sapatão?


Precisamos nos perguntar a quem
ele é negado. Quem é que não pode Fui contemplada com
MARÍLIA OLIVEIRA 

andar de mãos dadas na rua ou se- um edital de apoio à cultura e, ao


quer entrar numa padaria para mesmo tempo, selecionada no dou-
56
torado, e decidi unir essas duas riência mediada e descrita por ou-
pesquisas. Todos os trabalhos que tras pessoas.
desenvolvi nos dois últimos anos
são parte delas. [Além do fotolivro],  Outro projeto em
ADRIANA FERREIRA SILVA

tenho uma proposição performati- que você está envolvida é a revista


vo-visual: a inauguração do Museu Nerva. Do que trata a publicação?
do Amor Sapatão. Eu fiz vários san-
tinhos, que distribuo em diferentes É uma revista de arte
MARÍLIA OLIVEIRA 

cidades, anunciando a abertura do nordestina feita por nordestines.


museu. Enquanto entrego, fotogra- Eu e mais cinco pessoas criamos
fo sem que as pessoas percebam e um corpo curatorial e lançamos
acompanho as reações, que são sem- uma convocatória para que artis-
pre diferentes. Para cada lugar é uma tas de todos os estados do Nordeste
foto no santinho. Atrás dela, coloco enviassem trabalhos que tratassem
a data da inauguração, e-mail para de autobiografia ou da relação entre
contato e o local, em geral a praça da a imagem, a palavra e o insólito,
igreja, porque toda cidade tem uma. pensando essa grande ficção que se
O Museu do Amor Sapatão passa a constrói da região. Quantos estereó-
existir quando as pessoas o imagi- tipos recaem sobre esse lugar, visto
nam. Ao final do doutorado, a ideia é como único, enquanto somos vários
que ocorra uma exposição com essas estados, com sotaques e realidades
obras, os textos e o que produzi em completamente diferentes? Consi-
torno desses pensamentos sobre deramos as estratégias xenofóbicas
amor, estética do cotidiano e as pos- do mercado da arte, que tenta fazer
sibilidades de imaginação de outros com que a gente ache que precisa
futuros e de outras experiências. estar no Centro-Sul para ser res-
peitado e incluído; e, pensando em
como contrariar isso, publicamos em
 O que é ser uma
ADRIANA FERREIRA SILVA
torno de 130 trabalhos, escolhidos
sapatão no mundo? entre 300 inscritos, e distribuímos
gratuitamente em duas edições, cada
Entrar em contato
MARÍLIA OLIVEIRA 
uma delas com 500 exemplares.
com as possibilidades da narrativa,
ter a chance de me narrar e narrar
o mundo me levou, por exemplo, a
entender o que era ser uma mulher
sapatão e uma cearense do interior.
Isso me ajudou a compreender o que
eu queria fazer com meu trabalho,
do lado de quem eu tinha de contar
a história e qual era a importância
de que pessoas como eu pudessem
fazer isso, ao invés de ter sua expe-
57
por Angela Ro Ro
(trecho de “Preciso tanto”)

Você diz que quer mas não pode


Que a sua cabeça é um bode
Pra se soltar...
Me empenho na luta seguinte
Que é você achar um acinte
Eu me excitar…
Assim não vai dar
A minha vontade é tão grande
Não pode esperar
Preciso tanto!

por GA31
(trecho de “Samba digital”)

Na manhã pós-sexo
Num verão exótico
Eu abri uma cerveja
E olhei no relógio
Te mostrei o desejo
Recitei monólogos
Te contei meus dramas
E o tesão é óbvio

por Ana Gabriela


(trecho de “Capa de revista”)

Já me avisaram desse jeito seu


Que você não ama
Mas cê tá amando seu corpo no meu
Tanta coisa boa que a gente tem
Eu também não amo
Mas eu tô amando seu corpo também

58
por Ana Gabriela
(trecho de “Teu nome imita o mar”)

Ah, bonita
Eu acho que não é de hoje que a gente se encontra e se gruda, não
Eu gosto de te ver de perto e aprender o jeito que teu beijo tem
Eu toco tua vontade
Bebo tua água e você se derrama

por Ana Gabriela


(trecho de “Mulher”)

A cidade dorme enquanto ficamos a sós


O toque da tua boca me parece diferente
De tudo que vivi antes de existir o nós
Tudo fica bom se esse tudo tem a gente

por Maria Beraldo


(trecho de “Tenso”)

Tenso
Tão desavisado, meu tesão
Vive um momento tenso
Livre, leve e solto de coração
É gostoso, é tenso
Tão desavisado, meu tesão
Vive um momento tenso
Livre, leve e solto de coração
É gostoso

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EXPEDIENTE

COORDENAÇÃO EDITORIAL
Carlos Costa

CONSELHO EDITORIAL
Ana de Fátima Sousa, Andréia Schinasi, Carlos Gomes,
Galiana Brasil, Natalia Souza e Regina Medeiros

PRODUÇÃO DE CONTEÚDO
Adriana Ferreira Silva e Cristiane Batista – Grená Conteúdo
Multiplataforma (terceirizadas)

EDIÇÃO
Fernanda Castello Branco, Icaro Mello e William Nunes

PROJETO GRÁFICO
Mily Mabe

ENSAIO FOTOGRÁFICO
Anne Karr (terceirizada)

PRODUÇÃO EDITORIAL
Luciana Araripe e Mylena Oliveira dos Santos (estagiária)

SUPERVISÃO DE REVISÃO
Polyana Lima

REVISÃO
Rachel Reis (terceirizada)
Encontre no Spotify a playlist Todos os gêneros 2022,
que celebra o amor, a identidade e a cultura lésbica.
Esta publicação foi composta das famílias tipográficas
Sentinel e Verlag. O miolo foi impresso no papel offset
120 g/m2. Duas mil unidades foram impressas pela Pig-
ma gráfica e editora em julho de 2022.
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