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Resumo: Este artigo traz uma reflexão sobre a figura do eu-lírico feminino de Adélia
Prado presente nos poemas "Um jeito" e "Casamento". É traçado primeiramente um
breve resumo da trajetória de Adélia como mulher e escritora, junto a seu contexto
histórico e social, e o posicionamento da crítica literária da época a respeito do seu
lugar na literatura. Através da teoria da estética da recepção, do movimento
modernista e feminista são analisados os dois eu líricos femininos distintos dos
poemas da escritora. O objetivo principal é analisar as características presentes nos
poemas que constroem um eu-lírico adeliano e dá voz a uma mulher literária que
nascia e se desenvolvia à procura de mais espaço. Nas considerações finais,
constatamos que Adélia Prado e sua escrita enriquecem o papel da mulher na
literatura brasileira, com sua linguagem simples, direta e espiritual.
Abstract:
"(...) a autora, quando publicou seu primeiro livro, tinha já os seus 40 anos e
começara a escrever os primeiros versos por volta dos 15 anos, motivada
pelo impacto da morte de sua mãe. Na longa trajetória, vai tomando
consciência de que há um trabalho, um artesanato a ser conquistado,
desenvolvido, para se poder falar de literatura. Por volta de 1972, morre-lhe
o pai e a dor profunda amadurece definitivamente Adélia Prado para a
poesia." (MOREIRA, p. 17, 2010)
Outra escritora que também defende o viés da inspiração que Adélia insistia e
acabava polemizando a questão no meio literário, é Glória Azevedo (2020), que em
seu livro de poemas chamado ''Abissal'', explora o amor e suas múltiplas facetas,
focalizando especialmente nas experiências lésbicas, e também fala sobre "os
misteriosos reinos do estado poético", quando nos conta que:
Para ambas as autoras, fica claro que a escrita e todo o seu processo de
criação transcende o racional, manifestando-se naqueles que se entregam à
liberdade proporcionada pelo manejo singular das palavras, explorando os diversos
instrumentos de criação disponíveis. Adélia desabafa em uma entrevista a seguinte
opinião:
Não sei por que certas situações me sequestram. Todo dia está lá o ipê̂
carregado. Um belo momento aquilo me causa uma estranheza. É ela, a
experiência de natureza poética chegando, pedindo um verbo, uma
expressão. (PRADO, 1997).
Foi através deste poema, presente no livro "Bagagem" (1976), que Adélia
Prado começou a ganhar destaque como escritora a partir da década de 1970, um
período que sucedeu o auge do Modernismo. O título sugestivo, "Com licença
poética", imediatamente sugere as intenções da autora para o que viria a seguir,
pois a poetisa pede licença ao renomado escritor Carlos Drummond de Andrade
para fazer uma releitura do poema "Sete Faces", de seu livro "Alguma Poesia"
(1930). No poema de Drummond, ele escreve "Quando nasci, um anjo
torto, desses que vivem na sombra, disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida", que é
paralelo ao que Adélia nos conta em "Quando eu nasci um anjo esbelto, desses que
tocam trombeta, anunciou, vai carregar bandeira, cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada". Dessa forma, além de fazer uma referência
literária significativa em sua escrita, Adélia Prado também dá voz à mulher literária
que, nesse período histórico extremamente machista, ainda era frequentemente
apagada e não tinha muito espaço para se expressar.
O autor José de Nicola (2003) explica no livro "Literatura
brasileira das origens aos nossos dias" que:
O anjo de Drummond vive nas sombras, é torto: daí o seu presságio: vai ser
gauche na vida, vai ser torto, fora dos padrões, desajeitado. O anjo de
Adélia Prado, pelo contrário, é esbelto, toca trombetas e anuncia algo bom:
vai carregar bandeira, ou seja, vai ser alguém que terá atitudes que serão
seguidas, servirão de modelo, alguém que promoverá rupturas. (NICOLA,
p.62 , 2003)
Este o motivo por que a história nos legou tão poucos nomes de mulheres
dedicadas às atividades literárias. A tradicao, os documentos e os textos
literários só falam de escritores homens e praticamente só se conhece a
civilizaçao antiga pela boca de autores do sexo masculino. Os nomes
femininos conservados são poucos e de pouca significação, e ainda assim
vistos e interpretados do ponto de vista masculino, com exceção de uns
poucos de que há notícia, como Safo, conhecida através de fragmentos de
sua obra. (MAÍRA p.18, 1989)
Meu amor é assim, sem nenhum pudor. Quando aperta eu grito da janela —
ouve quem estiver passando — ô fulano, vem depressa. Tem urgência,
medo de encanto quebrado, é duro como osso duro. Ideal eu tenho de amar
como quem diz coisas: quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
espremer de suas costas as montanhas pequenininhas de matéria branca.
Por hora dou é grito e susto. Pouca gente gosta. (PRADO, 1976)
Presente no primeiro livro da escritora de 1976, o poema ''Um jeito” de Adélia
Prado, no livro “Bagagem”, traz perceptivelmente a figura de um eu-lírico feminino
intenso com muita sede de viver uma paixão. A pressa do eu-lírico de encontrá-lo o
mais rápido possível se confirmam com a expressão: ''eu grito da janela -ouve quem
estiver passando - ô fulano, vem depressa'', o que caracteriza também um eu lírico
feminino histérico que expressa seu amor de forma direta e franca, e pouco
preocupado com as convenções sociais do que irão pensar ou mesmo deixando
claro que não há intenção de viver um romance à moda antiga, onde se espera que
a mulher aguarde o ser amado em um tempo de conquista e cortejo.
2 de Lara, B., Rangel, B., Moura, G., Barioni, P., & Malaquias, T. (2016), p. 20, #Meu amigo secreto:
Feminismo além das redes. Edições de Janeiro.
escritora tem todas essas características.
O crítico literário alemão Hans Robert Jauss defende que a qualidade de uma
obra literária se dá além das condições históricas ou biográficas de seu nascimento,
ela depende dos critérios de recepção e do efeito produzido pela obra. Segundo o
autor, ''a poesia move-se em direção a um ouvir. É por essa razão que nela se gesta
a sociedade a qual ela se dirige: o estilo é sua lei - e, pelo conhecimento do estilo,
pode-se decifrar também o destinatário da poesia". (JAUSS, p.15, 1994)
Dessa forma, pode-se dizer que os versos adelianos se destacam justamente
por dar voz a um eu lírico feminino que "poucos gostam", como ela mesmo diz no fim
do poema. Um eu lírico feminino desesperado para viver uma paixão com tudo que
se tem direito. E é possível notar esse sentimento e anseio, fortemente misturado
com as consequências e agonia que é viver uma paixão intensa, na expressão
"medo do encanto quebrado", pois a partir daí nota-se um eu lírico feminino ciente
de que se essa conexão não der certo, haverá o trágico momento de não ter
conseguido viver aquele sentimento com o ser desejado e de ter que superá-lo.
O eu lírico adeliano se expressa ainda com "é duro como osso duro", o que
pode caracterizar um eu lírico que conhece as consequências de possuir um
coração partido, que conhece a dor do sofrimento de uma paixão que desandou ou
não deu certo no final.
Todo esse conflito também pode referenciar uma expressão bastante popular
no Brasil que é "osso duro de roer", e significa algo muito difícil de conseguir realizar
ou de se relacionar, caso a expressão seja usada para caracterizar uma pessoa. O
que mais uma vez mostra que a escrita de Adélia Prado é simples, franca, profunda
e próxima de um leitor que a recebe de forma rápida e fácil.
Segundo o teórico da recepção Hans Robert Jauss (1994) a experiência da
leitura nunca é passiva e envolve uma participação ativa do leitor na construção do
significado da obra. O leitor não apenas recebe informações do texto, mas também
traz suas próprias experiências, perspectivas e questionamentos para a interação
com a obra. Dessa forma, a interpretação da obra literária é um processo dinâmico e
subjetivo, no qual o significado é co-criado pelo texto e pelo leitor.
E a pergunta que fica é, que mulher é essa do eu lírico adeliano dos versos de
''Um jeito''? Quando a autora afirma ainda que "ideal eu tenho de amar, como quem
diz coisas: quero é dormir com você, alisar seu cabelo, espremer de suas costas as
montanhas pequenininhas de matéria branca", nota-se um eu lírico que busca por
uma relação com bastante intimidade, pois o próprio ato de espremer espinhas ou
tocar lugares do corpo do outro, demonstram bem que o eu lírico quer sentir o ser
amado com maior proximidade, e talvez dentro de uma rotina de quem mora junto ou
possui um relacionamento estável.
De alguma forma Adélia traz um eu lírico feminino histérico e ávido por viver
uma experiência amorosa o mais rápido possível, e de forma também duradoura.
Na expressão final do poema a autora diz "Por hora dou é grito e susto. Pouca gente
gosta", é perceptível que a mulher literária está em conflito com o seu momento
presente, há um certo pavor, apontado no contexto que vem em detrimento dessa
queixa e procura de encontrar o ser amado idealizado, ou seja, ainda que não o tenha
ela está buscando, sem a segurança e paz que um amor correspondido e uma paixão
já conquistada ou estável trazem.
Esse eu lírico também reconhece que seu jeito de amar pode não ser
compreendido ou aceito por todos com a expressão "Pouca gente gosta". Essa
consciência da própria singularidade e vulnerabilidade adiciona uma camada de
subjetividade à poesia, destacando a complexidade das relações humanas e a
coragem necessária para ser autêntica consigo mesmo, mesmo que isso signifique
enfrentar a incompreensão ou rejeição dos outros. Ou ainda que essa maneira
imediata de se relacionar e talvez impulsiva de se expressar possa assustar ou não
ser vista com bons olhos pelo outro.
Zygmunt Bauman (1998) fala sobre esse olhar do outro em "O mal estar da
Pós Modernidade'', que caracterizaria bastante essa mulher que ao mesmo tempo em
que se expressa sem pudor seu desejo urgente de viver uma paixão com tudo que se
tem direito, também não abdica da pureza que um romance estável e duradouro traz:
A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos que
elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro,
impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e é uma visão de ordem - isto é, de
uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum
outro. Não há nenhum meio de pensar sobre a pureza "justos" e
"convenientes"- que se ocorre serem aqueles lugares que elas não
preencheriam "naturalmente"' por sua livre vontade. O oposto da "pureza"- o
sujo, o imundo, os agentes poluidores - são coisas fora do lugar. (BAUMAN,
p.14, 1998)
Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, que pesque, mas que limpe os peixes.
Eu não.
A qualquer hora da noite me levanto,
Ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala
coisas como “este foi difícil” “prateou no ar dando rabanadas” e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir.
Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.
(PRADO, 1981)
4. Justificativa
A escolha da análise dos poemas '’Um jeito" e "Casamento" foi feita a partir
de uma reflexão sobre poetas modernistas em sala de aula e também sobre as
semelhanças na maneira que foi escrita as poesias do livro "Abissal" (2020) da
escritora Glória Azevedo, com temáticas de relacionamento, cotidiano e
espiritualidade, facilmente encontrados em qualquer obra da escritora Adélia Prado.
Coincidentemente, ou não, Glória Azevedo também faz um poema referenciando
Carlos Drummond em seu livro, considerado padrinho de Adélia Prado no meio
literário, está na página 37, intitulado "Cantiga para Drummond".
Adélia Prado também faz parte do time de escritoras homenageadas e
recitadas no meu canal literário no Youtube "Asas da Página'', o que trouxe mais
familiaridade para trabalhar com as obras da escritora. A autora também foi escolhida
por trazer polêmicas na sua carreira literária com o seu lado religioso, e como contado
no tópico de sua trajetória, por trazer assuntos em suas poesias que não estavam em
pauta nos anos 70 e 80, o qual a excluiu do meio acadêmico por um tempo.
As teorias literária da recepção e do feminismo, junto ao movimento
modernista, compõem parte do arcabouço teórico trabalhado na minha jornada
acadêmica, quando ainda era aluna de Comunicação Social e Jornalismo, e também
na minha linha de pesquisa do mestrado.
Conclui-se por fim que o eu-lírico feminino nas obras de Adélia Prado foi
identificado neste artigo, como uma voz emergente que explora as complexidades da
condição feminina num contexto histórico e com uma sensibilidade ímpar. Nas duas
poesias de Prado, esse eu-lírico feminino muitas vezes se manifesta através de
figuras familiares, como dona de casa e esposa, refletindo sobre as experiências
cotidianas e os desafios da vida, outrora essa mesma voz poética transcende os
limites do pessoal e do íntimo, abordando temas universais como amor, fé e desejos.
Dessa maneira percebe-se que a natureza e simplicidade do modernismo, faz
com que o escritor busque expressar o inexprimível e dar forma ao invisível, enquanto
desafia as convenções estabelecidas de significado e expressão.
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https://itesp.emnuvens.com.br/espacos/article/view/745
RESUMO DE BAGAGEM DE ADÉLIA PRADO. (2020, maio 16). Blog Beduka
Buscador de Faculdades. https://beduka.com/blog/materias/literatura/resumo-de-
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