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"UM JEITO" E ''CASAMENTO'': QUEM É O EU LÍRICO FEMININO ADELIANO?

Fernanda de Alcantara Alencar1

Resumo: Este artigo traz uma reflexão sobre a figura do eu-lírico feminino de Adélia
Prado presente nos poemas "Um jeito" e "Casamento". É traçado primeiramente um
breve resumo da trajetória de Adélia como mulher e escritora, junto a seu contexto
histórico e social, e o posicionamento da crítica literária da época a respeito do seu
lugar na literatura. Através da teoria da estética da recepção, do movimento
modernista e feminista são analisados os dois eu líricos femininos distintos dos
poemas da escritora. O objetivo principal é analisar as características presentes nos
poemas que constroem um eu-lírico adeliano e dá voz a uma mulher literária que
nascia e se desenvolvia à procura de mais espaço. Nas considerações finais,
constatamos que Adélia Prado e sua escrita enriquecem o papel da mulher na
literatura brasileira, com sua linguagem simples, direta e espiritual.

Palavras chaves: Adélia Prado. Poesia Brasileira Contemporânea. Literatura feminina.

Abstract:

Keywords: Adélia Prado. Contemporary Brazilian Poetry. Women's Literature.

1. TRAJETÓRIA DA MULHER E POETISA ADÉLIA PRADO

Adélia Prado é uma renomada poetisa brasileira nascida na cidade de Divinópolis, no


estado de Minas Gerais, em 13 de dezembro de 1935. A vida e obra da escritora são
1 Mestranda cursando Mestrado no Programa de Pós-graduação em Linguística e Literatura
(PPGLLIT), pela Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), Campus de Araguaína-TO.
Formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela UFT - Universidade Federal do
Tocantins desde 2014. Tem MBA em Marketing Político e organização de campanha eleitoral pela
UNINTER - CENTRO UNIVERSITÁRIO INTERNACIONAL e também tem MBA em Marketing
estratégico pela UFT- Universidade Federal do Tocantins. É escritora dos livros "Srta*Fê - uma
contadora de história em busca de pontos e mais pontos de vista", de 140 páginas e "Depois da
Lamúria" de 70 páginas. É criadora do canal Asas da Página no Youtube no qual produz conteúdo
literário. Link: http://lattes.cnpq.br/6172554087186761
marcadas por uma profunda sensibilidade com temáticas que giram em torno da vida
cotidiana, da espiritualidade católica, da feminilidade e da condição humana. A
escritora é filha de um pai ferroviário e uma mãe dona de casa e iniciou seus estudos
no Grupo Escolar Padre Matias Lobato.
Em 1950, após a morte de sua mãe, Adélia escreve seus primeiros versos,
como consta em:

"(...) a autora, quando publicou seu primeiro livro, tinha já os seus 40 anos e
começara a escrever os primeiros versos por volta dos 15 anos, motivada
pelo impacto da morte de sua mãe. Na longa trajetória, vai tomando
consciência de que há um trabalho, um artesanato a ser conquistado,
desenvolvido, para se poder falar de literatura. Por volta de 1972, morre-lhe
o pai e a dor profunda amadurece definitivamente Adélia Prado para a
poesia." (MOREIRA, p. 17, 2010)

Após seu luto, Adélia se forma em Filosofia no ano de 1973. Posteriormente,


seu primeiro livro, intitulado "Bagagem", é publicado em 1976 e marca o início de
uma carreira literária brilhante.

(...) Bagagem, de poesia, é de 1976 - expôs-se em inúmeras entrevistas, na


imprensa escrita e televisiva, assim como em eventos de que tem
participado, e nunca se furtou a duas das questões mais frequentes e
polêmicas que lhe formulavam, e às quais respondeu sempre frontalmente:
a indagação sobre o seu processo criativo e sua crença na inspiração, e um
posicionamento a respeito do caráter religioso de sua poesia. (MOREIRA, p.
11, 2010)

A alegação de que a inspiração e dons divinos eram o que moviam de fato a


escrita adeliana, foi reforçada em muitos de seus trabalhos literários, em análises de
suas obras e também em entrevistas da escritora a jornalistas do famoso programa
da TV Cultura Roda Viva.
Isso trouxe polêmicas para sua trajetória que segundo Pinheiro (2018) explica
em seu artigo sobre crítica literária, a poetisa Adélia Prado representava naquele
momento, décadas de 70 e 80, ideias completamente contrárias ao viés libertário e
feminista que emergiam no país. A autora também afirma que o meio acadêmico
também via com crítica a relação de Adélia com a religião.
(…) sua poesia nasceu em pleno movimento da poesia marginal e de
poéticas vanguardistas com feições concretistas, não se identificando com
nenhum desses movimentos, embora mantivesse aproximações com alguns
deles em aspectos temáticos ou formais específicos, trazendo acentuados
traços do modernismo. No entanto, evidencia-se, inicialmente, certa
resistência da crítica à sua obra, principalmente nos primeiros anos pós-
Bagagem, por apresentar um discurso feminino não afinado com o
feminismo de sua época, além do aparente distanciamento das questões
políticas e sociais do período da ditadura e da abertura política, bem como à
forte ligação de sua poesia com a teologia católica. A maioria dos críticos
que referenciaram o seu trabalho poético nos primeiros anos, entretanto,
foram homens, e somente a partir da década de 90 sua obra passa a ser
mais evidenciada na análise da crítica de voz feminina e nas críticas ligadas
às discussões sobre gênero, destacando seu discurso feminino e erótico. É
importante, então, refletir um pouco mais sobre o que dizem as analistas:
mulheres falando de escritas de mulheres, fazendo referência a Adélia
Prado. (PINHEIRO, p. 162, 2018)

Outra escritora que também defende o viés da inspiração que Adélia insistia e
acabava polemizando a questão no meio literário, é Glória Azevedo (2020), que em
seu livro de poemas chamado ''Abissal'', explora o amor e suas múltiplas facetas,
focalizando especialmente nas experiências lésbicas, e também fala sobre "os
misteriosos reinos do estado poético", quando nos conta que:

a crítica literária leva em consideração os sentimentos contidos, aqueles


que integram à estrutura da obra e que estão, ali, representados
principalmente pelo efeito dos procedimentos retóricos e estilísticos, pelo
processo de transfiguração verbal. Enfim, pelo dispositivo da fantasia
criadora. Creio na sinceridade dos sentimentos precedentes; creio no vigor
dos sentimentos concomitantes; creio na força dos sentimentos
subsequentes, não obstante, aqui, ainda habitamos apenas os misteriosos
reinos do estado poético, um estado ainda amorfo e na mais das vezes

inapreensível, da poesia enquanto experiência do humano. (AZEVEDO,


p.9, 2020)

Para ambas as autoras, fica claro que a escrita e todo o seu processo de
criação transcende o racional, manifestando-se naqueles que se entregam à
liberdade proporcionada pelo manejo singular das palavras, explorando os diversos
instrumentos de criação disponíveis. Adélia desabafa em uma entrevista a seguinte
opinião:

Não sei por que certas situações me sequestram. Todo dia está lá o ipê̂
carregado. Um belo momento aquilo me causa uma estranheza. É ela, a
experiência de natureza poética chegando, pedindo um verbo, uma
expressão. (PRADO, 1997).

É dessa forma singular de captar sensações do cotidiano que Adélia Prado


reflete sua sensibilidade poética e habilidade de capturar a essência da vida
cotidiana unindo emocional e espiritual. Tornando-a uma das autoras mais influentes
da literatura contemporânea brasileira.
No livro "Literatura, História e Texto 3", Samira Youssef Campedelli (p.336,
1999) aborda a notável presença feminina durante os anos 70, ressaltando a ampla
divulgação de livros, músicas e antologias que amplificaram as vozes das mulheres.
Entre as autoras mencionadas, destacam-se: Adélia Prado, Leila Miccolis, Isabel
Câmara, Ângela Melin, Alice Ruiz e Ledusha Spinardi, todas elas representantes
desse fervilhante período literário que deixou um dos mais significativos legados da
década.
Em 1978, Adélia Prado é vencedora do Prêmio Jabuti com a obra "O Coração
Disparado", na qual os leitores encontram poesias explorando o coração humano em
todas as suas facetas, desde os suspiros apaixonados até as dores mais profundas
da alma.
A escritora também lança em poesia os livros “Terra de Santa Cruz” (1981),
“Oráculos de Maio” (1999), “A Duração do Dia” (2010) e "Miserere" (2013). E e em
prosa se destacam bastante o livro “Solte os cachorros” (1979), “Cacos para um
vitral” (1980), “O homem da mão seca” (1994), “Quando eu era pequena” (2006) e
“Carmela vai à escola” (2011).

2. Nasce um eu-lírico feminino da costela do Anjo Torto de Drummond

Com licença poética


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
-- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou. (PRADO, 1976)

Foi através deste poema, presente no livro "Bagagem" (1976), que Adélia
Prado começou a ganhar destaque como escritora a partir da década de 1970, um
período que sucedeu o auge do Modernismo. O título sugestivo, "Com licença
poética", imediatamente sugere as intenções da autora para o que viria a seguir,
pois a poetisa pede licença ao renomado escritor Carlos Drummond de Andrade
para fazer uma releitura do poema "Sete Faces", de seu livro "Alguma Poesia"
(1930). No poema de Drummond, ele escreve "Quando nasci, um anjo
torto, desses que vivem na sombra, disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida", que é
paralelo ao que Adélia nos conta em "Quando eu nasci um anjo esbelto, desses que
tocam trombeta, anunciou, vai carregar bandeira, cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada". Dessa forma, além de fazer uma referência
literária significativa em sua escrita, Adélia Prado também dá voz à mulher literária
que, nesse período histórico extremamente machista, ainda era frequentemente
apagada e não tinha muito espaço para se expressar.
O autor José de Nicola (2003) explica no livro "Literatura
brasileira das origens aos nossos dias" que:

O anjo de Drummond vive nas sombras, é torto: daí o seu presságio: vai ser
gauche na vida, vai ser torto, fora dos padrões, desajeitado. O anjo de
Adélia Prado, pelo contrário, é esbelto, toca trombetas e anuncia algo bom:
vai carregar bandeira, ou seja, vai ser alguém que terá atitudes que serão
seguidas, servirão de modelo, alguém que promoverá rupturas. (NICOLA,
p.62 , 2003)

É interessante lembrarmos que Drummond vem do movimento literário


modernista o qual a postura artística é questionar a realidade com mais vigor, e
onde o próprio artista também passa a se questionar como indivíduo no campo da
arte.

O resultado é uma literatura mais construtiva e mais politizada, que não


quer e não pode se afastar das profundas transformações ocorridas nesse
período, dai também o surgimento de uma corrente voltada para o
espiritualismo e o intimismo, caso de Cecília Meireles, de Jorge de Lima, de
Vinicius de Moraes e de Murilo Mendes em determinada fase. (NICOLA, p.
327, 2003)

Dessa forma, é possível compreender o contexto que a poetisa Adélia Prado


acaba denunciando, do meio literário de sua época. A partir disso, os poemas de
Adélia Prado trazem então uma identificação em falta do eu-lírico feminino com as
mulheres comuns do cotidiano, tais como a filha, a mãe e a esposa. E ao conceder
voz a essas mulheres e retratá-las de maneira próxima, a poesia de Adélia Prado
destaca-se por sua sensibilidade e empatia.
Johnny José Maíra (1989) recorda em seu livro "A mulher escritora e na
literatura greco-latina e outros estudos" que o mundo greco-romano negou a mulher
a independência necessária a cultura da arte e da ciência e explica de um modo
geral como a cultura machista afeta toda uma sociedade e também o seu futuro e
tendências:

Este o motivo por que a história nos legou tão poucos nomes de mulheres
dedicadas às atividades literárias. A tradicao, os documentos e os textos
literários só falam de escritores homens e praticamente só se conhece a
civilizaçao antiga pela boca de autores do sexo masculino. Os nomes
femininos conservados são poucos e de pouca significação, e ainda assim
vistos e interpretados do ponto de vista masculino, com exceção de uns
poucos de que há notícia, como Safo, conhecida através de fragmentos de
sua obra. (MAÍRA p.18, 1989)

Nesse texto, é destacada a escassez de nomes femininos registrados na


história da literatura, devido à predominância da narrativa masculina. A tradição,
documentos históricos e textos literários focam principalmente em escritores
homens, deixando poucos registros sobre mulheres envolvidas nas atividades
literárias. Os poucos nomes femininos mencionados são frequentemente vistos e
interpretados do ponto de vista masculino. A exceção é feita para algumas poucas
figuras, como Safo, cuja obra é conhecida através de fragmentos.
Michelle Perrot (1998), é historiadora francesa e aborda várias questões
relacionadas às mulheres em sua obra, incluindo a esfera pública. Em seu trabalho,
ela destaca a importância da compreensão da história das mulheres e sua
participação na esfera pública ao longo do tempo e nos conta que:

“Entender as proibições é também compreender a força das resistências e a


maneira de contorná-las ou subvertê-las. As frentes de luta das mulheres,
suas tentativas de atravessar os limiares muitas vezes provocam a violenta
reação dos homens. Mas existem também outros tipos de relações – de
aliança, de cumplicidade, de amizade e de amor. Trata-se menos de
guerras do que de escaramuças, menos de frentes do que de linhas
quebradas ou deslocadas. Assim, as fronteiras que limitam a vida das
mulheres, atribuindo-lhes mais um destino do que uma sina, movem-se ao
longo do tempo.” (PERROT, P. 91, 1998)

A partir dessa perspectiva, constatamos que o espaço e o lugar da mulher na


literatura é um problema que permeia muitas culturas e civilizações e que embora
Adélia Prado seja uma autora que não seja rotulada explicitamente como uma figura
feminista, ela aborda temas relevantes para a experiência feminina, transmitindo
suas reflexões e observações com profundidade e autenticidade. Alcançando mais
destaque à medida que a própria sociedade machista vai se desconstruindo.

3. "UM JEITO" E "CASAMENTO": QUEM É O EU LÍRICO FEMININO ADELIANO?

Meu amor é assim, sem nenhum pudor. Quando aperta eu grito da janela —
ouve quem estiver passando — ô fulano, vem depressa. Tem urgência,
medo de encanto quebrado, é duro como osso duro. Ideal eu tenho de amar
como quem diz coisas: quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
espremer de suas costas as montanhas pequenininhas de matéria branca.
Por hora dou é grito e susto. Pouca gente gosta. (PRADO, 1976)
Presente no primeiro livro da escritora de 1976, o poema ''Um jeito” de Adélia
Prado, no livro “Bagagem”, traz perceptivelmente a figura de um eu-lírico feminino
intenso com muita sede de viver uma paixão. A pressa do eu-lírico de encontrá-lo o
mais rápido possível se confirmam com a expressão: ''eu grito da janela -ouve quem
estiver passando - ô fulano, vem depressa'', o que caracteriza também um eu lírico
feminino histérico que expressa seu amor de forma direta e franca, e pouco
preocupado com as convenções sociais do que irão pensar ou mesmo deixando
claro que não há intenção de viver um romance à moda antiga, onde se espera que
a mulher aguarde o ser amado em um tempo de conquista e cortejo.

Além de nos censurar, a sociedade se empenha em ensinar formas de agir


consideradas mais "apropriadas " para as moças. Se os homens devem ser
diretos, nós mulheres, devemos ser extremamente cuidadosas com as
palavras e ações, para não ferir os sentimentos alheios. Se os homens
devem sempre se impor, nós por outro lado, devemos relevar o que nos
incomoda. Por séculos, mulheres que não se encaixavam no ideal de
docilidade foram diagnosticadas com uma condição chamada histeria
feminina.2

A partir disso, percebe-se que o eu lírico feminino do poema extravasa


anseios de uma mulher, que pode estar a denunciar também um contexto
sociocultural em que o papel da mulher com anseios românticos seja pré-estabelecido
em um comportamento mais calmo, doce e passivo. Simone de Beauvoir (2009)
conta na terceira parte, intitulado Mitos, de seu livro "O segundo sexo" que:

A figura da mulher se espiritualizou desde o aparecimento do cristinianismo;


a beleza, o calor, a intimidade que o homem deseja ter através dela nao sao
mais qualidades sensíveis; em lugar de resumir a saborosa aparência das
coisas, torna-se a alma delas; mais profundo do que o mistério carnal, há
em seu coração uma secreta e pura presença em que se reflete a verdade
do mundo. Ela é a alma da casa, da família, do lar. Ela é também a das
coletividades mais amplas; cidade, província, nação. (BEAUVOIR, p.253,
2009)

Nesse trecho é possível percebermos que o eu lírico de Adélia Prado, nesse


poema, não se parece com essa mulher cristã, paciente e harmoniosa, no entanto a

2 de Lara, B., Rangel, B., Moura, G., Barioni, P., & Malaquias, T. (2016), p. 20, #Meu amigo secreto:
Feminismo além das redes. Edições de Janeiro.
escritora tem todas essas características.
O crítico literário alemão Hans Robert Jauss defende que a qualidade de uma
obra literária se dá além das condições históricas ou biográficas de seu nascimento,
ela depende dos critérios de recepção e do efeito produzido pela obra. Segundo o
autor, ''a poesia move-se em direção a um ouvir. É por essa razão que nela se gesta
a sociedade a qual ela se dirige: o estilo é sua lei - e, pelo conhecimento do estilo,
pode-se decifrar também o destinatário da poesia". (JAUSS, p.15, 1994)
Dessa forma, pode-se dizer que os versos adelianos se destacam justamente
por dar voz a um eu lírico feminino que "poucos gostam", como ela mesmo diz no fim
do poema. Um eu lírico feminino desesperado para viver uma paixão com tudo que
se tem direito. E é possível notar esse sentimento e anseio, fortemente misturado
com as consequências e agonia que é viver uma paixão intensa, na expressão
"medo do encanto quebrado", pois a partir daí nota-se um eu lírico feminino ciente
de que se essa conexão não der certo, haverá o trágico momento de não ter
conseguido viver aquele sentimento com o ser desejado e de ter que superá-lo.
O eu lírico adeliano se expressa ainda com "é duro como osso duro", o que
pode caracterizar um eu lírico que conhece as consequências de possuir um
coração partido, que conhece a dor do sofrimento de uma paixão que desandou ou
não deu certo no final.
Todo esse conflito também pode referenciar uma expressão bastante popular
no Brasil que é "osso duro de roer", e significa algo muito difícil de conseguir realizar
ou de se relacionar, caso a expressão seja usada para caracterizar uma pessoa. O
que mais uma vez mostra que a escrita de Adélia Prado é simples, franca, profunda
e próxima de um leitor que a recebe de forma rápida e fácil.
Segundo o teórico da recepção Hans Robert Jauss (1994) a experiência da
leitura nunca é passiva e envolve uma participação ativa do leitor na construção do
significado da obra. O leitor não apenas recebe informações do texto, mas também
traz suas próprias experiências, perspectivas e questionamentos para a interação
com a obra. Dessa forma, a interpretação da obra literária é um processo dinâmico e
subjetivo, no qual o significado é co-criado pelo texto e pelo leitor.

Tanto em seu caráter artístico quanto em sua historicidade, a obra literária é


condicionada primordialmente pela relação dialógica entre literatura e leitor -
relação esta que pode ser entendida tanto como aquela da comunicação
(informação) com o receptor quanto como uma relação de pergunta e

resposta (JAUSS, p.23, 1994)

E a pergunta que fica é, que mulher é essa do eu lírico adeliano dos versos de
''Um jeito''? Quando a autora afirma ainda que "ideal eu tenho de amar, como quem
diz coisas: quero é dormir com você, alisar seu cabelo, espremer de suas costas as
montanhas pequenininhas de matéria branca", nota-se um eu lírico que busca por
uma relação com bastante intimidade, pois o próprio ato de espremer espinhas ou
tocar lugares do corpo do outro, demonstram bem que o eu lírico quer sentir o ser
amado com maior proximidade, e talvez dentro de uma rotina de quem mora junto ou
possui um relacionamento estável.
De alguma forma Adélia traz um eu lírico feminino histérico e ávido por viver
uma experiência amorosa o mais rápido possível, e de forma também duradoura.
Na expressão final do poema a autora diz "Por hora dou é grito e susto. Pouca gente
gosta", é perceptível que a mulher literária está em conflito com o seu momento
presente, há um certo pavor, apontado no contexto que vem em detrimento dessa
queixa e procura de encontrar o ser amado idealizado, ou seja, ainda que não o tenha
ela está buscando, sem a segurança e paz que um amor correspondido e uma paixão
já conquistada ou estável trazem.
Esse eu lírico também reconhece que seu jeito de amar pode não ser
compreendido ou aceito por todos com a expressão "Pouca gente gosta". Essa
consciência da própria singularidade e vulnerabilidade adiciona uma camada de
subjetividade à poesia, destacando a complexidade das relações humanas e a
coragem necessária para ser autêntica consigo mesmo, mesmo que isso signifique
enfrentar a incompreensão ou rejeição dos outros. Ou ainda que essa maneira
imediata de se relacionar e talvez impulsiva de se expressar possa assustar ou não
ser vista com bons olhos pelo outro.
Zygmunt Bauman (1998) fala sobre esse olhar do outro em "O mal estar da
Pós Modernidade'', que caracterizaria bastante essa mulher que ao mesmo tempo em
que se expressa sem pudor seu desejo urgente de viver uma paixão com tudo que se
tem direito, também não abdica da pureza que um romance estável e duradouro traz:

A pureza é uma visão das coisas colocadas em lugares diferentes dos que
elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro,
impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e é uma visão de ordem - isto é, de
uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum
outro. Não há nenhum meio de pensar sobre a pureza "justos" e
"convenientes"- que se ocorre serem aqueles lugares que elas não
preencheriam "naturalmente"' por sua livre vontade. O oposto da "pureza"- o
sujo, o imundo, os agentes poluidores - são coisas fora do lugar. (BAUMAN,
p.14, 1998)

Por fim, concluímos que o poema captura a essência da honestidade


emocional e da autenticidade que são marcas registradas da poesia de Adélia
Prado. E traz um eu lírico contraditório à figura estereotipada da mulher "dona de
casa" e "religiosa" que Adélia Prado costuma carregar.
Dando sequência a análise, é no terceiro livro publicado da escritora Adélia
Prado, de nome Terra de Santa Cruz (1981) que o poema Casamento, diz:

Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, que pesque, mas que limpe os peixes.
Eu não.
A qualquer hora da noite me levanto,
Ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala
coisas como “este foi difícil” “prateou no ar dando rabanadas” e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir.
Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.
(PRADO, 1981)

Podemos perceber que o eu lírico adeliano no poema "Casamento" começa


com uma comparação crítica a uma mulher incisiva e um tanto amargurada, a qual
parece ficar contrariada com a bagunça que o marido faz ao sair e voltar da pesca. No
poema fica claro que ela não quer que ele tenha expectativas de que ela terá que
arrumar sua bagunça, o que caracteriza um eu lírico adeliano expressando que uma
situação bastante comum entre casais que é a saída e chegada de um a um
determinado local para conseguir algo em detrimento da permanência do outro em
casa que mantém a ordem e a limpeza da mesma, causa bastante descontentamento
a esse tipo de mulher insatisfeita.

Beauvoir (2009) diz que:


O casamento sempre se apresentou de maneira radicalmente diferente para
o homem e para a mulher. Ambos os sexos são necessários um ao outro,
mas essa necessidade nunca engendrou nenhuma reciprocidade; nunca as
mulheres constituíram uma casta estabelecendo permutas e contratos em
pé de igualdade com a casta masculina. Socialmente, o homem é um
indivíduo autônomo e completo; ele é encarado antes de tudo como
produtor e sua existência justifica-se pelo trabalho que fornece à
coletividade. (BEAUVOIR, p. 538, 2009)

Nesse trecho da autora feminista, é possível entendermos de forma breve que


o casamento foi encarado por um longo período de tempo em várias culturas e
civilizações como uma tradição, um contrato e uma instituição de sobrevivência para
homens e mulheres. De certo modo, Adélia Prado consegue denunciar certa
evolução da condição feminina dentro da instituição casamento em seu poema,
quando o começa contando sobre essas mulheres que questionam suas atividades
domésticas e descontentes ou não, deixam claro o que querem e expressão sua
autonomia de decidir o que fazer com a saída e volta do marido da pesca.
Em seguida, o eu lírico adeliano diz ‘’Eu não. A qualquer hora da noite me
levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar’’, ou seja, existe prazer em servir o
ser amado, em vê-lo de volta e há toda uma disponibilidade para recebê-lo como
também querer agradá-lo.
O eu lírico adeliano reforça tudo isso quando diz: “É tão bom, só a gente
sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas
como “este foi difícil” “prateou no ar dando rabanadas” e faz o gesto com a mão",
claramente identificamos aí um eu lírico feminino romântico, satisfeito e passivo, que
ao se afirmar diferente das mulheres que contestam descontentes sobre seus
maridos, ainda traz de forma afetuosa a ideia de que a obrigação doméstica para ela
é algo bom e que a aproxima desse marido que ela tanto gosta. Na literatura, esse
eu lírico feminino presente no poema "Casamento" não é novidade. Já houveram
períodos na história da literatura onde esse tipo de eu lírico teve espaço e motivos
para existir.

É pelo trabalho doméstico que a mulher realiza a apropriação de seu


"ninho"; eis por que, mesmo quando "se faz ajudar", quer por a mão na
massa; vigiando; controlando; criticando; ela se esforça por tornar seus os
resultados obtidos pelos servidores. Da administração de sua residência,
tira sua justificação social; sua tarefa é também atentar para a alimentação,
as roupas, e de uma maneira geral para a manutenção da sociedade
familiar. (...) Em A la recherche de Marie, Madeleine Bourdhouxe descreve o
prazer que sua heroína tem em passar no forno de limpeza: ela sente na
ponta dos dedos a liberdade e o poder, cuja imagem brilhante a chapa de
ferro bem limpa lhe devolve. (BEAUVOIR, p. 2003)

Como podemos ver a construção da mulher romântica, passiva e do lar, não é


novidade alguma na literatura. Detectamos então que esse cenário do trabalho
doméstico ao mesmo tempo que para algumas mulheres pode ser exausto e
obrigatório, para outras se disfarça como uma fuga do vazio existencial ou sentido de
vida amparado na movimentação do ser casado.
O autor Gaston Bachelard em 1948, em sua obra "La Terre et les reveries
repos" também discorre sobre vários escritores de livros femininos que narravam
histórias sobre donas de casa que lutavam contra a sujeira de sua casa, e como
sentiam amor em fazer as tarefas domésticas com riqueza de detalhes e muita
paciência ou como a mulher encontrava plena satisfação e possuía sentimentos de
recompensa e vitória ao faxinar móveis, organizar a casa e lustrar objetos do seu lar.
Na estrofe final do poema de Prado, é falado sobre um silêncio que atravessa
a cozinha como um rio profundo, e a autora também diz que essa sensação é como
quando se viram pela primeira vez, o que dá a entender que existe uma atenção
plena entre os dois depois de organizarem a bagunça juntos, deixando claro que esse
eu lírico é paciente e acredita que a escuta e o tempo que estão trabalhando juntos os
conecta. O eu lírico adeliano segue dizendo que com os peixes na travessa pode
finalmente ir dormir com o ser amado e termina o poema falando sobre coisas
prateadas espocarem, talvez remetendo a bodas de prata, e serem noivo e noiva o
que de alguma forma nos faz entender que apesar do tempo ter passado para o casal
e de não serem mais quem eram na juventude e no início da relação, a sensação é
recuperada e restaurada com maestria quando cultivam momentos juntos e se
conectam na rotina do cotidiano.

4. Justificativa

A escolha da análise dos poemas '’Um jeito" e "Casamento" foi feita a partir
de uma reflexão sobre poetas modernistas em sala de aula e também sobre as
semelhanças na maneira que foi escrita as poesias do livro "Abissal" (2020) da
escritora Glória Azevedo, com temáticas de relacionamento, cotidiano e
espiritualidade, facilmente encontrados em qualquer obra da escritora Adélia Prado.
Coincidentemente, ou não, Glória Azevedo também faz um poema referenciando
Carlos Drummond em seu livro, considerado padrinho de Adélia Prado no meio
literário, está na página 37, intitulado "Cantiga para Drummond".
Adélia Prado também faz parte do time de escritoras homenageadas e
recitadas no meu canal literário no Youtube "Asas da Página'', o que trouxe mais
familiaridade para trabalhar com as obras da escritora. A autora também foi escolhida
por trazer polêmicas na sua carreira literária com o seu lado religioso, e como contado
no tópico de sua trajetória, por trazer assuntos em suas poesias que não estavam em
pauta nos anos 70 e 80, o qual a excluiu do meio acadêmico por um tempo.
As teorias literária da recepção e do feminismo, junto ao movimento
modernista, compõem parte do arcabouço teórico trabalhado na minha jornada
acadêmica, quando ainda era aluna de Comunicação Social e Jornalismo, e também
na minha linha de pesquisa do mestrado.
Conclui-se por fim que o eu-lírico feminino nas obras de Adélia Prado foi
identificado neste artigo, como uma voz emergente que explora as complexidades da
condição feminina num contexto histórico e com uma sensibilidade ímpar. Nas duas
poesias de Prado, esse eu-lírico feminino muitas vezes se manifesta através de
figuras familiares, como dona de casa e esposa, refletindo sobre as experiências
cotidianas e os desafios da vida, outrora essa mesma voz poética transcende os
limites do pessoal e do íntimo, abordando temas universais como amor, fé e desejos.
Dessa maneira percebe-se que a natureza e simplicidade do modernismo, faz
com que o escritor busque expressar o inexprimível e dar forma ao invisível, enquanto
desafia as convenções estabelecidas de significado e expressão.

(...) A criação e a recepção, do mesmo modo, são os processos da


descoberta permanente e nunca será provável uma descoberta descobrir
tudo o que há para ser descoberto, ou descobri-lo de uma forma que frustre
a possibilidade de uma descoberta inteiramente diversa… A obra do artista
pós-moderno é um esforço heróico de dar voz inefável, e uma conformação
tangível ao invisível, mas é também (obliquamente, através da recusa a
reafirmar os cânones socialmente legitimados dos significados e suas
expressões) uma demonstração de que é possível mais de uma voz ou
forma e, desse modo, um constante convite a se unir no incessante
processo de interpretação, que também é o processo de criação do
significado (...) o significado da obra de arte reside no espaço entre o artista
e o espectador. (BAUMAN, p.134, 1998)

Sugere-se a partir desse trecho que a reflexão sobre os processos de criação


e recepção da arte, especialmente na era pós-moderna, são processos dinâmicos e
interativos, caracterizados pela descoberta contínua e pela multiplicidade de
interpretações possíveis. É improvável portanto que uma única descoberta revele
todo o potencial de significado de uma obra de arte, assim como é improvável que
um único eu lírico adeliano represente toda a mulher Adélia Prado.
O pós-modernista convida os espectadores a participarem ativamente do
processo de interpretação, transformando-se em co-criadores de significado. Nesse
sentido, o significado da obra de arte não é fixo ou pré-determinado, mas reside no
espaço de interação entre o artista e o espectador, em um processo contínuo de
negociação e reconstrução de significados.

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