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Nakahara Chuuya não sonha. O seu despertar é como uma bolha brotando da lama.
Chuuya acordou em seu próprio quarto. Um quarto insípido. Só há as paredes, o chão e
o teto. Uma escuridão azulada os reveste.
Não há muitos móveis. Uma cama forrada e uma estante com poucos livros. Na parede,
um pequeno cofre embutido até a metade. Na mesa central, livros sobre joias abertos
casualmente. Isso é tudo.
A luz do dia que entra pela fresta da janela como uma membrana divide o insípido
quarto em dois. Chuuya levantou. Há um pouco de suor em seu peito. Os resquícios de
emoções turbulentas estão girando dentro dele. Porém ele não se lembra mais qual
emoção era.
Seu peito está sempre nesse estado. Desistindo, ele levanta da cama e vai tomar um
banho. Enquanto refresca o calor em sua cabeça, ele pensa sobre si mesmo.
Nakahara Chuuya. Dezesseis anos.
Um menino que um ano após entrar para a Máfia, alcançou resultados numa velocidade
sem precedentes, foi reconhecido pela Organização e ganhou esse quarto. Mas dinheiro
e posição não alegram em nada a Chuuya. Porque falta algo mais importante: seu
passado.
Ele não sabe quem ele é. Suas memórias começam a partir de oito anos atrás quando
foi sequestrado de uma instituição de testes militares. Não há nada antes disso, apenas
escuridão. Mais escura do que qualquer noite, um breu total.
Ele se secou e foi se vestir. Ao empurrar uma superfície na parede, ela abriu sem fazer
barulho e um closet apareceu. Todas as roupas eram de alta qualidade e não havia um
amassado nelas. Escolheu uma aleatoriamente e passou os braços pelas mangas.
Prendeu-as com abotoaduras de esmeraldas e se olhou no espelho. Após estalar a
língua baixinho, Chuuya saiu do quarto.
Ao sair de casa, como se calculado, um carro de cortesia apareceu. Um membro da
Máfia com óculos escuros dirigia o luxuoso carro preto. Ele estacionou ao lado de
Chuuya e abriu a porta traseira em silêncio.
“Para o mesmo estabelecimento de sempre, por favor.” Dizendo apenas isso, ele entrou
no carro e fechou os olhos.
O luxuoso carro preto corria tranquilo pela rua principal. Todas as ruas e cruzamentos
estavam completamente cheias de carros se deslocando para o trabalho. Mas o carro em
que Chuuya estava deslizava por entre eles passando pelas ruas laterais, se livrando do
congestionamento. Era como se tivesse usado magia para interferir com os outros
veículos.
“E o registro da transação de ontem?”
“Está aqui.”
Chuuya olhou os documentos passados pelo motorista. Eram documentos impressos
numa tinta especial incapaz de ser copiada. Mesmo que a polícia os conseguisse não
serviriam como prova, pois estavam em código secreto.
“Hnf, a transação dessa semana também ocorreu bem.” Chuuya disse
desleixadamente. “Que sem graça.”
O trabalho do Chuuya dentro da Máfia do Porto era monitorar a distribuição de joias
contrabandeadas.
Joias ── Com um valor próximo ao de uma unidade de troca, um dos bens mais caros
desse mundo. Ametista, rubi, jade e diamante.
Um simples elemento pressionado, mas que ao ser balançado diante das pessoas e ao
passar para as suas mãos, se tornam pedras malignas com um temível poder escondido.
O que condensa essa magia é o contrabando. Uma sombra nascida da deslumbrante
luz dessas gemas. Enquanto houver pedras preciosas, certamente existirá joias
contrabandeadas nas sombras. E há inúmeras sombras pelo mundo onde nascem o
contrabando.
Nas mineradoras, os pobres garimpeiros as roubam. Outras vezes, um ladrão bate na
vitrine de uma joalheria com uma arma e leva tudo. Já às vezes, um navio carregado de
joias é afundado por piratas ou um assaltante puxa do pescoço de uma celebridade. Em
mineradoras de Organizações antigovernamentais elas são usadas como pagamento de
armas e drogas.
Desse jeito, as joias nascidas da escuridão não podem sair para o mundo de luz. E por
isso que organizações criminosas como a Máfia do Porto se dão ao esforço extra. Eles
dão luz às negras gemas trazidas até o Porto de Yokohama.
Os transportadores as trazem para a concessão da cidade, os revendedores as
compram e proficientes manufatores as desmontam e cortam, tornando a fonte
desconhecida. Um colar vira um bracelete, um bracelete um brinco e um brinco um anel,
dando novo sopro de vida às joias.
As novas joias assim nascidas recebem um certificado oficial pelos avaliadores da
Máfia e começam a circular rachaduras pelos distribuidores e até serem exibidas na
vitrine de uma joalheria de primeira classe.
Esse contrabando é uma fonte de dinheiro extremamente importante para a Máfia.
Porque as joias contrabandeadas eliminam a exploração intermediária pelas empresas
de administração alfandegária e de distribuição, constantemente gerando um enorme
lucro.
Mas os produtos com poder mágico igual ao das joias, atraem inevitavelmente sangue
e violência. Para conter isso, para estabelecer uma circulação estável, é indispensável
uma violência ainda maior que consiga trucidar qualquer abuso numa bocada só.
Atualmente, Chuuya está cumprindo essa função perfeitamente. Perfeito até demais.
Muito membros antigos estão surpresos. Eles não pensavam que um moleque de
apenas dezesseis anos conseguiria mandar a capital das joias negras tão bem assim.
Contudo, mesmo que pouco, alguns não ficaram surpresos. Aqueles que um dia
enfrentaram a organização comandada por Chuuya, as Ovelhas.
Ele era o rei da organização que continuava a incomodar a Máfia. Não havia nada de
estranho em conseguir controlar perfeitamente uma ou duas capitais.
Mas seja surpresa, admiração ou até mesmo inveja, tanto faz para Chuuya. O que ele
quer era algo que nunca pensariam.
Ele jogou os documentos no banco do carro como se jogando um cascalho e com uma
voz espinhenta, “Desse jeito, vão se passar anos e eu ainda não saberei,” disse. O
motorista fingiu que não havia escutado.
O carro de luxo do Chuuya foi planejado para uma zona residencial. Tirando o verdilhão
oriental cantando na parte baixa do céu, tudo estava silencioso como um túmulo. Nem o
barulho do trem como o tumulto do tráfego chegavam aqui. O carro corria em silêncio até
que parou na frente de uma certa loja.
Era um bar boliche antigo feito de tijolos. Na fachada estava escrito em letras azuis o
nome, Old World. Como ainda era manhã, o neon não estava ligado.
Chuuya desceu do carro. Para não perturbar o silêncio da zona residencial, o veículo foi
embora discretamente.
Ele abriu a porta do bar.
Cinco armas apontadas para ele o receberam.
“Estamos arrumando.” O homem disse segurando a arma. A boca do revólver
pressionava contra sua cabeça.
“Se quiser morrer, pode entrar, claro.” Outro homem falou. Ele apontava uma espingarda
de cano serrado contra o peito de Chuuya.
“Não é muito descuido vir sem um guarda-costas, rei das joias?” Um terceiro homem
disse apontando o revólver para a cintura dele.
“Mesmo você não conseguirá se proteger de todos os ataques na posição em que
está.” Outro falou. Ele segurava uma pistola contra a nuca de Chuuya.
“E então, o que fará, Usuário gravitacional invencível? Se você se desculpar chorando
agora, te deixamos morrer sem sofrimento.” O último homem disse de frente para
Chuuya. Seu longo revólver mirava diretamente entre suas sobrancelhas.
Era um impasse. Se ele atacasse um, os outros atirariam. Se ele tentasse evadir, levaria
um tiro na cara. Caso fosse para frente, seria baleado por trás.
Chuuya não reagiu. Nem se quer mudou sua expressão. A atmosfera no ambiente ficou
tensa. Todos colocaram força nos dedos segurando as armas.
Inúmeras delas caíram como sangue sobre a cabeça imóvel do Chuuya ── Várias tiras
coloridas.
“Chuuya! Parabéns pelo aniversário de um ano na Máfia!” As vozes felizes dos homens
ecoaram pelo bar. Expressando que estava de saco cheio, Chuuya olhou para eles.
“Idiotas...”
Fumaça branca saia do revólver de cada um e vívidas tiras de papel estavam
penduradas na cabeça do jovem. Confetes dançavam pelo ar.
Os homens sorriam, olhando Chuuya todo coberto pelas tiras de papel. Ali estavam
reunidos os integrantes da sociedade de ajuda mútua da Máfia do Porto. Mas não era
uma sociedade qualquer. Todos eram os mais bem-sucedidos membros que carregavam
o futuro da Organização nas costas, em posição igual ou superior à do Chuuya. E todos
tinham menos de vinte e cinco anos. Eles eram conhecidos como o Clube dos Novos pela
Organização. Os jovens lobos da Máfia do Porto.
Chuuya suspirou e sem cumprimentar ninguém, andando para o fundo do bar com a
expressão fria.
“O que foi, Chuuya? Não ficou feliz?” O mais velho se dirigiu para as costas do Chuuya.
“O pessoal se reuniu por você.”
“Não celebrem por um ano.” Chuuya recusou categoricamente. “Não estou nem um
pouco feliz.”
“Não diga isso. Você com certeza irá gostar.” O mais velho foi atrás dele. “Depois
iremos te dar os presentes. Não é legal, como se fosse estudante?”
Chuuya parou e se virou, o encarando.
“Então você é o mandante, Piano Man. Te contar, o seu senso para brincadeiras é
podre.”
“Exato. Eu continuo a respirar até hoje para poder importunar a todos com essas
brincadeiras podres.”
Quem devolveu o sarcasmo do Chuuya com um sorriso despreocupado era o mafioso
vestido de sobretudo preto em um comprido hakama branco. Conhecido dentro da
organização como Piano Man ── Suas roupas eram sempre preto e branco.
Alto, dedos compridos e um sorriso constante de quem estava se divertindo. Como o
organizador dessa reunião de jovens, assumia a função de líder. Foi ele quem convidou o
Chuuya. Piano Man estava mais para um artesão do que para mafioso.
Ele era praticamente o único em Yokohama capaz de produzir uma nota falsa da
mesma precisão da original. Mas por causa de sua natureza caprichosa, se não
produzisse uma cópia que fosse de sua satisfação, ele ficava meses sem fazer nenhuma.
Mesmo se fossem ordens do Chefe.
Por sinal, o seu apelido de Piano Man não é por causa de suas roupas. Ao matar seus
inimigos, ele usa uma corda de piano de aço-carbono conectada a um bobinador elétrico.
Ao envolver um pescoço com essa corda, nem a mais sobre-humana força consegue se
soltar e a cabeça cai em poucos segundos. O que sobra é apenas um corte perfeito entre
os ombros, uma enorme quantidade de sangue e a reverberação do grito de terror da
vítima.
Um homem que acumula capricho, delicadeza e crueldade. Atualmente, dizem que ele é
o homem mais próximo de se tornar um executivo da Máfia do Porto.
Enquanto Chuuya se dirigia para o interior do bar, outro homem falou:
“Hahaha! A cara do Chuuya foi a melhor! Pelo menos a performance de hoje foi de
comum acordo! A estrela do Clube dos Novos e ex-inimigo da Máfia, rei das Ovelhas,
Nakahara Chuuya! Só de ter visto aquela sua cara já fez valer a pena eu ter entrado nesse
clube!”
Girando a espingarda, um menino de cabelo prateado ria com uma voz que atravessava
todo o salão. Chuuya o encarou.
“Hnf, deixa eu te dizer. Se eu não tivesse percebido esse teatro, você teria sido o
primeiro a morrer, Albatross.”
“Wow. Foi mal, mas eu não sou tão ruim a ponto de ser morto por você. Antes desse seu
punho do qual se orgulha me acertar, essa faca aqui corta ele.”
Ao dizer isso, uma larga kukri apareceu de dentro do casaco dele sem fazer barulho.
Com movimentos que camuflavam o seu peso, após cortar o ar inúmeras vezes, fazendo-
a reluzir, o menino a soltou. Ela penetrou o chão ao acertá-lo, causando um estrondo, e
fez com que uma rachadura corresse pelo piso. O menino riu.
Assim como seu nome Albatross sugere, ele é um jovem que vive rindo alegremente.
Falante mais do que qualquer um.
Mesmo no meio de uma disputa com balas, sangue e tripas voando, seus subordinados
nunca o perdem de vista. Porque se forem em direção a falação e aos risos, lá estará ele.
Dizem que Albatross comanda tudo aquilo que é mais veloz do que andar. Ou seja,
veículos. Esse é seu território. Ele que prepara todos os transportes responsáveis por
levar as cargas das transações de modo a não serem pegos pelo radar da Guarda
Costeira. Dependendo do caso, também consegue veículos com a placa falsa.
Como um ex-piloto da Organização, ele consegue operar qualquer coisa que tenha um
manche. Mais rápido e furtivo do que ninguém.
Existe o rumor de que ele uma vez conseguiu fugir de um helicóptero de guerra da
Guarda Costeira num barco de pesca aos pedaços, mas não há ninguém na Organização
que duvide.
Quem o irrita não vive nem três dias. Porque os carros, em outras palavras o fluxo de
produtos e dinheiro, estão no colo dele. Quem for odiado por ele terá todas as atividades
econômicas suprimidas e num piscar de olhos ficará sem um centavo.
“Hein, Chuuya. Vamos brindar, brindar.”
Albatross foi seguindo ele e ofereceu uma taça de champagne. Mas Chuuya só deu uma
olhada e o ignorou, continuando a andar para o interior.
“Oh céus, você hoje tá um mau humor só, Chuuya.” Albatross disse gesticulando
exageradamente sem derrubar o líquido. “Pelo menos uma vez por mês tem sempre um
dia que você fica assim de repente ── aconteceu alguma coisa? Teve um pesadelo?”
Pesadelo. Ao ouvir essa palavra, Chuuya se virou com a expressão ardente.
“Não!”
O bramido fez as janelas do bar tremerem.
“Nossa, que medo... Então foi o quê?”
Chuuya hesitou um pouco, o olhar vagando ── até que falou com uma voz um pouco
mais calma do que a anterior:
“Todos os dias você fica bebendo até de manhã e fazendo barulho no andar em cima do
meu, Albatross. Como você sempre esquece, vou te falar pela milésima vez. O seu chão é
o meu teto.”
“Oh não, como eu iria esquecer? Eu faço isso porque sei, vizinho.” Albatross riu sem
maldade.
Ele vivia no mesmo prédio de luxo do Chuuya, um andar acima. Do ponto de vista do
Chuuya, esse arranjo foi o maior erro da Máfia. Albatross às vezes entrava em seu
apartamento quando dava na telha dizendo “Me ajuda com o trabalho,” e arrastava o
outro para fora. Então seja de carro, navio ou helicóptero, levava o Chuuya para alguma
batalha distante. Graças a isso, Chuuya ficou bom em nadar, já que nem sempre
Albatross preparava um meio de retorno.
Chuuya continuou a andar o ignorando e quando foi pendurar seu sobretudo no
cabideiro do bar, um homem segurando outra taça de champagne apareceu ao seu lado.
“Fufu... Parabéns por um ano... Chuuya-kun.” Esse homem riu com um olhar obscuro
por trás da franja arrumada. “Não achei que ficaria por tanto tempo... Fufu.”
Ele era anormalmente magro. Por dentro de suas mangas, seus finos pulsos nadavam
com folga. Além disso, a mão que não segurava a taça, segurava um suporte de
intravenoso e o tubo que se estendia da bolsa de IV sumia dentro de sua roupa.
“Doc.” Chuuya aceitou a taça oferecida. E olhou para seu interior. “Não tem veneno, né?”
“Não.” O homem chamado de Doc riu sombriamente. “Porque não dá para te matar só
com veneno.”
“Como sabe?”
“Por experiência.” Seus olhos carregavam uma luz negra. “Já matei bastante usando
veneno.”
O jovem de aparência doentia era o responsável pela assistência médica da Máfia, Doc.
No submundo do crime era comum médicos sem licença, mas esse não era o seu caso.
Ele havia tirado seu registro na Europa, sendo um legítimo médico.
No mundo do crime, a demanda era extremamente grande. Para ferimentos que se
tratados num hospital regular fariam a pessoa ser relatada ── feridas de tiro e tortura
── só restava recorrer a um médico não convencional. Era o mesmo na Máfia do Porto.
Porém havia uma diferença. Na Máfia, médicos eram uma posição importante,
recebendo tratamento especial, devido ao Chefe, Mori Ougai, ser um ex-médico do
submundo.
E mesmo entre os médicos mais capacitados da Máfia do Porto, Doc era o melhor de
todos. Ainda jovem, ele já salvou a vida de quase oitocentas pessoas. E da mesma forma,
já roubou intencionalmente o equivalente.
Seu objetivo é se aproximar de Deus. Ele acredita que salvando os outros, esse feito
será possível. Para isso, ele pretende salvar o mesmo número de vidas que Deus matou
na Bíblia, dois milhões. E ele apenas aguarda por um grande conflito onde as pessoas
morram como insetos.
“Te contar, não é o elenco todo? Chamaram até o Doc...” Dizendo isso, Chuuya olhou
para o interior. “Pra começo de conversa, por que reunir todo mundo pra comemorar um
ano?”
“Eu explico.” Um jovem de voz gentil se aproximou delicadamente. “Porque o primeiro
ano é o mais complicado após a entrada na Máfia.”
“Quê?”
O jovem sorriu. Seu sorriso era doce ao ponto de ser sedutor e sua expressão, bizarra.
Uma beleza mágica capaz de enfraquecer tanto homens quanto mulheres que o vissem
sorrindo.
“O primeiro ano é o mais severo para os novatos, uma pista curva dos mortos. Nesse
meio tempo a maioria vai fugir, ser esmagada ou causar algum problema e ser apagada
pela organização. Por isso essa é uma existência amaldiçoada.”
“Que interessante. Você achou que eu cometeria algum erro e seria eliminado,
Lippmann?” Chuuya perguntou o encarando.
“Não, eu não pensei.” Dizendo apenas isso, o jovem chamado Lippmann sorriu de
maneira suspeita.
Lippmann ── Dentre todas essas faces aqui presentes, o seu trabalho era o mais
especial de todos. A janela para o mundo de luz. Essa era sua função. Ou seja, aparecer
na frente dos outros.
Negociar com empresas de fachada, participar de reuniões e negócios com pessoas do
governo e dependendo do caso até lidar com a mídia. Se a Máfia do Porto tinha uma
segunda cara, era ele.
Matá-lo seria uma tarefa herculana. De certa forma, mais difícil do que assassinar o
próprio Chefe. O motivo sendo: ele era uma grande estrela, com entusiastas até no
exterior. Se ele fosse morto ou sumisse, todas as mídias do mundo anunciariam isso
como notícia de destaque. É claro que geraria um alvoroço sobre alguém o ter matado...
Ou seja, todos os olhos do mundo estariam voltados na busca de um suspeito. Uma
situação que uma organização criminosa quer evitar a qualquer custo.
Além disso, ao mesmo tempo que Lippmann é um Usuário forte, como sua Habilidade é
do tipo contraofensiva à hostilidade do atacante, é impossível eliminá-lo silenciosamente
sem deixar provas. E uma vez dado o nome do culpado, todas os veículos de informação
do mundo irão expor seus antecedentes, objetivo e mandante numa frenesi. Ao terem
toda sua privacidade exposta a Deus e o mundo, aqueles envolvidos com o crime nunca
mais poderão voltar. A organização estará acabada. A primeira bomba ativada com a
morte dele será uma armadilha mortal terrível e intocável.
Por sua vez, suas armas não têm nada de especial. Ele é um ator nato. A eloquência e
habilidade de negociação vem de sua capacidade de atuação e sua beleza é a curva
perfeita em seu rosto.
“Além do mais, eu não ligo nem um pouco se você for expulso da Organização.”
Lippmann deu um sorriso suave como penas. “Quando isso acontecer, eu vou te chamar
para meu verdadeiro trabalho. Almejaremos o mundo como atores.”
“De jeito nenhum.” Chuuya torceu o rosto como se estivesse bebendo veneno. “Vou
repetir, de jeito nenhum.”
“Eu fui contra a comemorar o seu um ano.”
De repente, uma voz calma ecoou do fundo do bar. Não é que tenha gritado. Nem que
fosse um tom coercivo. Mas todos olharam calados para a direção de onde ela veio.
Ali estava um homem vestindo roupas sem graça.
“Iceman.” Chuuya disse cauteloso. “Tem razão. Uma comemoração não combina com
você.”
Não havia uma emoção se quer nesse homem. Nem expressão. Sua presença dentre os
extravagantes e intensos dos Clube dos Novos era a mais diferente de todas. Não
passava nenhuma impressão ou vigor, pelo contrário, absorvia toda a presença e barulho
ao seu redor, o silêncio da noite escura.
Iceman. Um homem com a presença de um veterano, calado e sem expressão. Gosta de
roupas simples. E seu trabalho também é o mais simples e mundano de todos. Ainda
mais para a máfia. Um assassino.
Ele não usa sua Habilidade para matar. Ele usa o que tem por perto. Uma caneta
tinteiro, uma garrafa, os barbantes decorativos do abajur. A partir do momento que
alguma coisa esteja na mão dele, se torna uma arma mortal mais perigosa do que
qualquer bala. Por esse motivo ele é capaz de matar em qualquer lugar. Seja num
deserto, num palácio ou no cofre de um banco.
E há mais uma peculiaridade sobre ele. Quando uma Habilidade é manifestada próxima
de seu corpo, ele sente na pele. Isso não é uma Habilidade e nem uma técnica, é sua
essência. Por isso consegue discernir a hora e o lugar adequados para matar.
Além disso, tendo enfrentado Usuários em todo tipo de batalhas e por todos os cantos,
sua taxa de morte é alta. Assim como a confiança que tem da Organização. Para
completar, como não tem uma Habilidade, ele não é pego pelos departamentos de
prevenção a crimes de Usuários da Divisão de Habilidades Especiais e da Polícia Militar.
É um verdadeiro homem invisível.
Dizem que a pessoa mais provável de conseguir matar o Chuuya é o Iceman.
“Eu pensei que você não viria para a minha celebração, Iceman. Você não me odeia?”
Chuuya riu provocando. Nós já tivemos nossa disputa um com o outro na época das
Ovelhas, afinal. Depois de perder a chance de me matar, sua reputação caiu bastante."
“De fato eu fui contra a festa. Mas não foi porque eu te odeio nem porque te ressinto.
Foi porque íamos te irritar a toa.” O tom do Iceman continuava uniforme, sem demonstrar
a mínima intenção de emoção. “Ninguém aqui achou que você seria eliminado em um
ano.”
“O quê?”
“Achamos que causaria uma rebelião.” A voz do Iceman era afiada como som de gelo
derretendo. “O líder da organização rival da Máfia do Porto, Ovelhas. Achamos que você
mataria o Chefe e causaria uma guerra dentro da máfia. Para isso não acontecer, Piano
Man ingressou você nesse Clube dos Novos.”
Chuuya olhou de relance para Piano Man. Ele observava a conversa sem demonstrar
emoção. Não negou nem confirmou. Ou seja, confirmou.
“...Hmm. Entendi." Chuuya olhou para todos. “Todos estavam me protegendo
gentilmente como se eu fosse um bebê recém nascido. Estou emocionado. Pra eu não
me irritar, me deram uma chupeta, brinquedos e até um chocalho. Graças a isso eu
consegui completar um aninho. Claro que um grande evento era necessário para
celebrar.”
Ao dizer isso, ele quebrou a taça de champagne em sua mão. O líquido jorrou. Mesmo
assim, Iceman não levantou uma sobrancelha.
“Há evidências para ficarmos alerta com você.” Iceman continuou. "18 de junho.
15:18h. Um distribuidor de joias que irritou você ficou de cama por três meses. O motivo
foi ter te feito uma certa pergunta. Uma pergunta trivial. Mas ao ouvi-la, você o mandou
voando do terraço de um prédio de três andares."
“Ah foi? Esqueci.” O olhar de Chuuya para o conteúdo da fala era severo. “Então para
testarmos, faça essa pergunta agora. Se tiver coragem.”
Iceman estava calado. Após manter por cinco segundos seu rosto inexpressivo como
se tivesse absorvido todas as emoções, disse:
“‘Onde você nasceu?'"
Chuuya reagiu de imediato. Agarrou-o pela gola e o puxou para perto com violência. A
costura da blusa rasgou em algum ponto.
“Que mão é essa?” Iceman olhou para a mão o agarrando, inexpressivo.
“Obra sua.” Chuuya não afrouxava.
Preocupado, Albatross disse:
“Ei, ei, chega disso,” e agarrou o braço do Chuuya. “Não fique irritado por causa dessa
pergunta. Nem parece você.”
“Você não decide como eu sou. Eu te mato.”
Chuuya afastou o braço que o segurava rapidamente. Jogado com força, Albatross
cambaleou para trás.
Os pés de Chuuya que haviam ido mais para frente, de repente pararam. Um taco de
sinuca estava pressionado contra sua têmpora. Horizontalmente, como uma espada.
“Ei... que taco é esse?” Chuuya falou sem expressão.
“Obra sua.” Iceman disse.
Chuuya inclinou o corpo para trás, afastando a cabeça do taco e deu de cabeçada nele.
O taco explodiu em inúmeros pedaços de madeira que saíram voando pelo bar. A maioria
caiu sobre Iceman.
As afiadas lascas cortaram sua têmpora direita e sangue escorreu para o canto de seu
olho. Mas ele nem se quer piscou.
“Chega.” Essa foi a voz mais fria até agora.
Sem perceber, Piano Man estava atrás de Chuuya. Uma corda de piano se estendia pela
manga da blusa, envolvendo o pescoço do jovem como um colar luxuoso.
“Chuuya.” Piano Man disse friamente. “‘Não use sua Habilidade contra seus
companheiros.' Essa é a primeira regra desse grupo, esqueceu?"
Eles chamavam de corda de piano, mas diferente da usada no instrumento, não era algo
tão delicado assim. Era um fio de aço, totalmente de uso industrial, utilizado para prender
vergalhões e pedaços de concreto.
E ele estava inserido na bobina no fundo de sua manga. Ao ser ativada, o fio se tornava
a guilhotina mais leve desse mundo e cortava uma cabeça como manteiga. Mesmo que
Chuuya diminuísse a gravidade da corda, ele não conseguiria diminuir a velocidade do
aperto e sua cabeça seria cortada do mesmo jeito.
“Eu sei porque está de mau humor.” Piano Man falou. “Porque desse jeito, perderá para
o Dazai. Você precisa se tornar um Executivo antes dele de qualquer jeito. Desde o
começo, você apenas entrou para a Máfia para poder ler os documentos secretos que só
os executivos têm acesso. Nesses documentos está escrito a sua verdadeira identidade.”
A expressão de Chuuya mudou.
“Como você sabe...”
“Mas do jeito que está, vai demorar uns cinco anos para se tornar um.”
Chuuya franziu a testa até formar rugas. Seus dentes trincados rangeram.
“Não diga mais nada.”
“Não, vou dizer.” Piano Man sorriu cruelmente. “Eu ouvi praticamente tudo do Chefe.”
“Como é?” Chuuya começou a ficar enfurecido.
“Ele me ordenou para que eu ficasse de olho em você logo após entrar no Clube dos
Novos. Informar se você conseguisse alguma informação nova ou procurasse por conta
própria o conteúdo dos documentos.”
“Me... monitorar?”
Piano Man assentiu.
“Era o óbvio. Se você não precisar mais olhar os documentos, será questão de tempo
para se voltar contra o Chefe. Afinal, era de uma organização rival. Claro que eu soube o
porquê também. Você é de fato surpreendente.”
“Pare...” Chuuya gemeu suprimindo a voz.
“Arahabaki. Também conhecido como objeto de pesquisa militar em Habilidades
artificiais, protótipo vinte e oito. Esse é você. Você suspeita não ser um humano e apenas
um ser artificial. O seu fundamento sendo ── que você não sonha.”
Chuuya grunhiu sem conseguir formar palavras. Foi coisa de um instante.
Sua mão direita oscilou como uma cobra, agarrando o braço do Piano Man e destruindo
o dispositivo elétrico que lançava a corda de piano. Enquanto que sua mão esquerda
pegou um dos fragmentos do taco caído no chão e posicionou a ponta afiada para a
garganta do outro. Tirando Chuuya, todos rapidamente se moveram.
Lippmann tirou uma pistola automática das costas e apontou para Chuuya. A kukri do
Albatross estava contra a garganta dele. Já Doc apontava uma injeção para a têmpora do
jovem ao mesmo tempo que Iceman aproximou um pedaço da taça quebrada de seu
olho.
E então silêncio. Todos estavam imóveis com a respiração presa. Era como uma foto. A
única coisa que se movia era a brilhante poeira na luz da manhã.
Qualquer um poderia acabar com uma vida apenas num único movimento. Mas
ninguém se moveu.
“Façam.” Chuuya disse. Sua voz tremia como a corda esticada de um arco. “Tanto faz
quem seja.”
“Bem, eu não me importo de fazer, mas deixa a gente ir até o final do evento.” Piano
Man disse calmo.
“Como assim?”
“Eu não disse que tínhamos presentes?” Dizendo isso, ele tirou aquilo do bolso. “Aqui."
Chuuya moveu seu olhar cautelosamente para o objeto. E então ── ficou petrificado.
"................................Hah?"
Falando apenas isso, tudo parou. Sua respiração e parecia que até mesmos seus
batimentos.
Chuuya afrouxou a mão e deixou cair o pedaço de taco que segurava, que caiu
secamente. Esquecendo de tudo a sua volta, ele pegou aquilo cambaleando. Era uma
foto.
"É bem valiosa. Foi bem difícil consegui-la."
Chuuya aproximou o rosto da foto como se em transe. Não estava mais ouvindo a voz
do Piano Man. Os outros rindo sarcasticamente abaixaram suas armas. Chuuya também
não percebeu isso.
“Da próxima vez que alguém fizer aquela pergunta insignificante, mostra isso aí.”
A foto mostrava o Chuuya com cinco anos.
Uma praia em algum lugar. Com o mar ao fundo, estava o Chuuya vestindo uma roupa
tradicional cor de cannabis e um jovem. Eles estavam de mãos dadas, olhando para o
fotógrafo. O jovem sorria com os olhos espremidos talvez por causa da claridade vinda
na diagonal. O pequeno Chuuya olhava para o fotógrafo distraído, com uma expressão de
que não sabia o que estava acontecendo.
“Essa foto foi tirada numa comunidade agrícola antiga no oeste.” Piano Man falou.
“Agora é uma cidade-fantasma, ninguém mais mora lá. Ele achou isso ai nos registros
médicos da vila vizinha que o Doc investigou ── Doc.”
“Fufu... Mesmo que os humanos mintam, seus dentes não mentem.” Doc deu um
sorriso doente e trouxe outros documentos. "É obrigação manter registros médicos
arquivados por anos... e essa obrigação foi a luz da esperança."
Perplexo, ele comparou os documentos trazidos pelo Doc.
“Você me prejudica se agir como tivesse conseguido sozinho, Doc!” Albatross falou
mostrando outro documento. “Se não fosse pela minha ajuda, você nem teria chegado a
esses registros. Os registros da clínica destruída estão sob custódias de corporações
médicas sérias. Fui eu que encontrei o lugar certo dentre essas incontáveis corporações
como grãos de areia de uma praia. Fui atrás dos registros e encontrei o depósito! Ame--
Pedi para todo mundo que poderia ser o responsável legal e finalmente encontrei eles!”
“Claro que não importa o quão excelente seja um investigador, se não tiver o primeiro
passo não chegará nunca ao destino.” Lippmann sorriu gentilmente e mostrou outro
documento. “Eu pedi a uma conhecida minha para poder inspecionar documentos do
governo relacionados ao exército. Naturalmente documentos relacionados a pesquisa
por serem de alta confidencialidade foram descartados depois da guerra, mas eu
descobri que uma unidade solicitava falsamente doações de corpos para experimentos
humanos no oeste. Essa é a primeira pista. Ou seja, eu fui o melhor contribuinte.”
Entendendo para onde a conversa estava indo, ele olhou temeroso para o último
homem, para Iceman.
“...Eu não fiz nada demais." Dizendo isso, ele pegou o último documento. “Encontrei os
irmãos dos seus pais e a sua árvore genealógica, o endereço da escola que frequentava,
seu boletim, sua foto de estudante e seu registro de nascimento. Como o Piano Man
falou para não deixar o Chefe saber, eu não pude contar com informantes e tive que
invadir casas oito vezes.”
“Oi... Oito vezes?”
Ao receber o documento, ele arregalou os olhos. Iceman acenou e pela primeira vez
hoje demonstrou um ligeiro sorriso. Poucos o conhecem no seu dia a dia. Mas quando
ele não está trabalhando, ele é um homem gentil que ama café e discos. Não são muitos
que conhecem essa sua faceta. E dentro desses não muitos, estão os cinco daqui.
Chuuya olhou para todos em ordem.
Estavam sorrindo. Piano Man. Albatross. Doc. Lippmann. Iceman. Os gênios da Máfia
do Porto.
“Por quê?” Chuuya olhou para a foto. “Isso é ir contra ele... contra o Chefe.”
Do ponto de vista do Chefe, o segredo sobre a origem do Chuuya eram algemas que o
prendiam a Organização. Enquanto elas existissem, Chuuya não poderia traí-la. No
entanto, Piano Man deu de ombros com a cara lavada.
“Foi-me dito para supervisionar se você havia descoberto ou não o seu segredo, mas
ele não mencionou sobre não poder te contar.”
Chuuya o encarou buscando a intenção por detrás dessas palavras.
“Por quê?” Sua expressão demonstrou ansiedade por um instante. “Por que se darem
todo esse trabalho?”
“Está perguntando o motivo, mas...” Piano Man fez cara de obviedade, “nós não
dissemos? É para celebrar o seu um ano.”
“Mas...”
“Não foi nada demais.” Lippmann olhou para os outros como se entendesse a atitude
de Chuuya. “Pode-se dizer que é aquilo.” E então falou como se fosse a coisa mais
natural do mundo. “Porque somos companheiros ── Não era assim com as Ovelhas?”
Não. A expressão perturbada de Chuuya confessou.
Todos os integrantes das Ovelhas dependiam do Chuuya. O contrário não acontecia de
jeito nenhum.
“Que tal pensar dessa maneira, Chuuya-san?” Abrindo ambos os braços, Lippmann
mostrou uma expressão tenra. “Isso não é um presente. É uma bandeira. Desde os
tempos da Roma antiga, só há uma razão para o exército levantar uma bandeira. Para
transmitir a seguinte informação: Nós, que existimos, seremos o grupo dos escolhidos
── Quando um de nós seis estiver em perigo, lembre-se dessa bandeira. Vamos nos
reunir debaixo dela. ...Estaremos esperando.”
Ele inclinou um pouco a cabeça.
“Fufu... que belo discurso. Como esperado do Lippmann. Quantas mulheres já não
foram enganadas por essa sua eloquência...” Doc disse como se para si mesmo.
“Não sei do que está falando.” Lippmann deu um sorrido desprendido. “Ah, é mesmo.
Por sinal, essa reunião aqui tem o título oficial de Bandeira. Eu tirei a metáfora daí.
Apesar de que quem lembrou de usá-lo foi o fundador, Piano Man.”
“Bandeira?” Albatross inclinou a cabeça para o lado. “Sinto que é a primeira vez que
estou sabendo disso.”
“Ei, ei, esqueceu? Te contar, eu expliquei no começo. Não foi, pessoal?”
Piano Man olhou para todos, mas ninguém mudou a expressão.
“Espera, por acaso ninguém lembra de verdade? É o nome que levamos três meses
pensando.”
Todos desviaram o olhar. Apenas Chuuya olhava atentamente para a foto em sua mão.
Não o que ela mostrava, mas sua existência era como se respondesse a todas as
perguntas.
“Chuuya, parabéns pelo seu um ano na Máfia.” Todos disseram.
Por um instante ── por apenas alguns segundos, sua expressão era de uma criança
sem saber o que fazer. Ele olhava para cada um, para os documentos e para si mesmo na
foto.
“O que foi?”
Quando Piano Man perguntou, Chuuya retomou os sentidos em surpresa.
“Vo...”
E então se esforçando para fazer uma cara de raiva, abriu a boca tentando gritar algo,
mas não conseguiu pensar em nada.
Todos olharam sem entender para ele. Chuuya saiu apressado em direção a porta,
gritando:
“Hah, então é isso!” Sua voz desnecessariamente alta. “Então queriam me surpreender
mostrando essa foto para que eu chorasse emocionado e me desculpasse. Esse era o
objetivo!”
“Hn? Não...”
“Até parece que eu vou cair nessa. Tão ouvindo? Não vou!” Desviando o rosto, ele saiu
batendo os pés em direção a entrada. “Eu vou embora! Não venham atrás de mim,
ouviram?! Não olhem pro meu rosto de jeito nenhum!”
Piano Man olhou vagamente os outros e disse para Chuuya:
“Entendo. Se você vai embora, não tem jeito. O meu plano era que depois disso todos
jogássemos sinuca, mas... então vamos jogar só nós mesmo?”
"Sem o convidado de honra? Lippmann levantou a sobrancelha.
"É o jeito. Tem bastante bebida. Vamos nos divertir pra variar e dispersar a melancolia
do trabalho. Também há um troféu para o primeiro lugar."
“Oh, que beleza.”
“Ei, Chuuya, já que é o que quer, vá com cuidado!” Albatross acenou para a porta.
“Façam como queiram!”
Dizendo isso, Chuuya chutou a porta e saiu do bar.
“Hnf.”
Todos se olharam e depois olharam para a porta. Sem falar nada. Se passaram dez,
vinte segundos de silêncio. Ninguém falava nem se mexia.
Trinta segundos. Quarenta segundos ── e a porta abriu um pouquinho.
“Merda. Me ensinem as regras. O troféu será meu!”
Chuuya estava parado na porta com uma cara que misturava frustração e raiva.
“Assim que se fala.” Piano Man sorriu.
•••
Corpos redondos coloridos flutuam pelo ar. Vermelho, laranja, verde-escuro. Uma
junção de cores brilhantes aos olhos. Eles se intercalam, desenhando um círculo.
“Incrível...” Albatross falou de boca aberta.
Adam jogava as bolas de sinuca para cima, fazendo malabarismo. Ele as jogava e as
pegava. As noves bolas formavam um complexo círculo, dançando no ar como um ser
vivo.
“Certamente não é algo que um artista de rua qualquer seja capaz.”
“Por sinal,” enquanto fazia o malabarismo, Adam falou sério, “o número das duas bolas
mais altas são coprimos, isto é, as estou jogando de modo que não tenham o mesmo
fator primo constantemente.”
Piano Man cruzou os braços, olhando as bolas girando.
“Hnf. 5 e 8 e depois 4 e 9... De fato.”
“Hã? Fator primo... quê?”
“Albatross, por favor, melhore na matemática. Se quiser subir de posição, precisa saber
os números.” Piano Man disse exasperado.
Dentro do bar, os seis jovens ao redor do Adam estão sentados em volta da mesa de
sinuca. Todos apreciam o truque do jovem que está no centro.
“Essa é a sua técnica especial?”
"É uma simples simulação." Ele disse inexpressivo. “Aceleração da gravidade,
resistência do ar, momento de rotação e força inercial de Coriolis. Ao simular a
quantidade física constante da matéria, eu prevejo a conduta da bola. Uma calculadora
excede imensamente a capacidade do cérebro humano em questão de simulação desse
nível.”
“Ohh, fantástico.” Albatross suspirou. “Não que eu tenha entendido alguma coisa...
Você entendeu?”
“Entendi.” Iceman assentiu.
“E você, Lippmann?”
“O único que não entendeu aqui foi você.” Lippmann disse olhando para frente.
"É o último."
Adam jogou uma bola de cada vez por cima do ombro na direção da mesa de sinuca
que estava atrás dele. Cada uma foi engolida pelas caçapas. Todas as noves bolas
consecutivamente. E então, silêncio.
“Tcharan!” Adam abriu os braços, gritando de repente. Todos se surpreenderam.
Adam olhou para eles, olhou para a mesa e inclinou a cabeça.
“Ué? Não teve aplausos. Não bate com as informações armazenadas na memória
externa.”
“É. Ele não é humano mesmo pelo jeito." Iceman falou sem expressão.
“Fufu... Ele está acima dos rumores sobre as técnicas especiais europeias...” Doc sorriu
sombriamente. “Eu quero aplicar essa técnica orgânica no tratamento dos meus
pacientes... fufufu...”
“Err... Irei me apresentar novamente.” Adam se virou para Chuuya, curvando-se em
saudação. “Esta máquina se chama Adam. Um investigador de inteligência artificial que
veio a esse país numa investigação secreta. O que mais gosto são bolotas e sementes de
grama. O que mais detesto é o detector de metais nos centros de inspeção dos
aeroportos. E o meu sonho é fundar uma organização de detetives automáticos que
protegerão os humanos por meio da excelente capacidade de investigação de uma
máquina.”
“Uma organização só de detetives automáticos? Por quê?”
“Porque claramente os humanos são imperfeitos e irracionais, enquanto nós máquinas
perfeitas somos superiores.”
“Do nada você falou uma coisa assustadora...”
“Bem, vamos acreditar que você é uma máquina.” Piano Man disse. “Contudo, isso não
resolve o problema. Independente se você é um robô ou não, nós da Máfia não fazemos
amizade com quem é da polícia. E nós te mostramos um pouco das nossas Habilidades
também. Como podemos saber se você não vai relatar as informações que descobriu,
especialmente aquelas que prejudicam a Máfia, às autoridades?”
“Não precisam se preocupar com isso.” Adam declarou sorrindo. “A missão desta
máquina é apenas capturar o Verlaine. Mais do que isso, como por exemplo relatar os
segredos da Máfia, não é de minha obrigação. Falando de maneira estrita, eu não sou
capaz dessa ação. Assim é o meu programa.”
“Por quê?”
“Depois explicarei.” Adam sorria.
“Ele está mentindo.”
O tom de Chuuya era resoluto. Todos olharam para ele.
“O que foi?” Chuuya encarou a todos. “Eu não estou preocupado se esse robozinho vai
revelar ou não nossos segredos. O que eu estou falando que é mentira é a outra coisa.
Verlaine é o Rei Assassino? Meu irmão? Tá falando só por falar? Pra começar, não tem
como Paul Verlaine estar atrás de mim.”
“É mesmo?" Piano Man olhou para Chuuya.
“Sim. Verlaine já está...” Ao dizer isso, seu olhar divagou para um passado distante.
“Morto.”
“Como é?”
Chuuya então começou a falar hesitando. O caso de Arahabaki ocorrido há um ano. A
verdade sobre ele foi ter sido um magnificente ato de traição de um dos executivos da
Máfia do Porto forjando um Deus. Sua origem foi há nove anos ── No término da Grande
Guerra.
A antiga Força de Segurança Nacional estudava um Usuário artificial, Arahabaki. Sendo
o segredo de mais alto nível do Estado, o serviço de inteligência de um certo país
europeu tentou roubá-lo. Os dois extremamente habilidosos espiões eram ── Arthur
Rimbaud e Paul Verlaine. Com a mais desenvolvida técnica em mãos, os dois Usuários
conseguiram roubar esplendidamente o Arahabaki e escaparam da base militar.
Porém, o problema foi o que ocorreu depois da fuga. Paul Verlaine traiu o outro agente.
Ele atacou seu parceiro Rimbaud e tentou roubar o fruto da missão deles, levando a uma
batalha. Ambos eram Usuários de primeira classe. O brilho da luta queimou o céu
noturno e os estrondos fizeram toda a região tremer.
Até que o fim chegou. O vencedor foi Rimbaud. Mas em troca de sua vitória, ele teve que
pagar duas grandes compensações. A primeira foi matar o amigo e parceiro em quem
mais confiava com as próprias mãos. E a outra foi ter os soldados que os estavam
seguindo chegar até ele devido a luta entre dois Usuários de primeira classe.
Ele foi cercado pelos soldados. Nessa hora ele estava enfraquecido devido aos
ferimentos do combate mortal. Contra a sua vontade, ele tomou uma medida de
desespero. Ele pegou o Arahabaki, o qual havia roubado, e tentou usá-lo como uma nova
Habilidade.
Essa era a Habilidade do Rimbaud. O poder de fazer com que os outros se tornassem
Habilidades ── essa sua Habilidade transcendental, justamente nessa hora, foi um tiro
pela culatra.
O selo do Arahabaki foi desfeito. O exército havia aplicado uma forte proteção na besta
divina de conhecimento incomparável aos humanos que a impedia de exercer seu
verdadeiro poder. Acabou que ele tomou foi o selo como Habilidade.
Como resultado, a besta divina que apareceu em sua verdadeira forma, envolta na
autoridade de suas chamas negras, queimou tudo. As tropas, o laboratório, a terra ao
redor, tudo.
O que sobrou no final foi um completo nada. Em forma cônica, o marco zero do vazio.
De alguma forma, por causa da própria Habilidade o Rimbaud escapou da morte, mas
como retribuição perdeu quase todo o seu poder e sua memória.
Depois disso, ele ficou vagando até ser encontrado pela Máfia e durante os oito anos
que levou para recuperar seus poderes e memórias, procurou pelo próprio destino. E para
recuperar todas as suas memórias, atraiu o verdadeiro Arahabaki ── o Chuuya e tentou
capturá-lo.
O incidente Arahabaki de um ano atrás foi devido a isso. Rimbaud lutou com Chuuya,
perdeu e ── morreu.
“Hã?” Albatross falou completamente confuso. “Pera, pera, pera aí. Esse caso não foi o
caso de um ano atrás do antecessor falso? Eu escutei que o causador dele foi o Randou.
Então o Randou...?”
“Sim.” Chuuya assentiu. “Era o espião europeu. Ex, na verdade. Aquele caso todo foi um
grande teatro para atrair o Arahabaki.”
“Entendo.” Iceman falou. “Sempre achei estranho. Por que o Randou teria traído a
Máfia? Então era esse o motivo que havia.”
“Quem matou o Randou fui eu.” Chuuya olhou para seu punho, relembrando. “E logo
antes de morrer, ele confessou sobre seu parceiro. Não tinha porquê ele mentir naquela
situação. Verlaine está morto ── Não importa o que você diga.” Ao dizer essas palavras,
ele olhou para Adam.
“Não.” Sem passar uma emoção se quer pelo seu rosto, ele balançou a cabeça. “Ele
está vivo.”
“Você pode provar?” Piano Man se inclinou alegre para frente.
"É possível. Mas falar sobre o assunto vai contra o dever de confidencialidade da
missão." Ele falava sério. “Somente o Chuuya-san como envolvido principal do caso tem
o direito de saber.”
Chuuya disse olhando para os participantes do Clube dos Novos:
“Eles agora também já estão envolvidos.”
“Não ligue para nós.” Piano Man deu de ombros. “É sobre o seu nascimento. Deve
ouvir."
Chuuya ficou batendo nos lábios com o indicador por um tempo, pensativo. E então
disse, “Entendi,” e foi em direção a entrada do bar. Ele foi até a porta aberta e ── não
saiu. Sem sair, ele a fechou.
Todos ficaram surpresos.
“De fato, ele é meu problema.” Ele disse em frente a porta. “Mas se por acaso alguém
daqui enfrentasse um problema igual, eu provavelmente não deixaria quieto. Me meteria.
Eles pensam o mesmo. Eu não tenho a intenção de sair daqui. Então, fale. Senão, não vou
ajudar na investigação.”
Todos olharam para Chuuya. Estimulados.
“Ei, vocês ouviram isso?” Piano Man perguntou.
“Sim.” Iceman assentiu.
“Esqueci de gravar.” Lippmann deu uma risadinha.
“Ah, esquece. Eu escuto sozinho.”
“Nã-nã-ni-nã-não. Não pode voltar atrás. Não vai pode sair daqui, não.” Albatross
passou por ele e empurrou a porta.
“Entendo a sua opinião, Chuuya-san.” Adam olhou para Chuuya assentindo com a
cabeça. “A tendência de pesar os laços com os companheiros. É o que os humanos
chamam de ‘espírito’. Não há o que fazer. Desistirei de convencer você e ao invés disso
vou propor o seguinte procedimento.”
Algo saiu de seus cotovelos. Era um arame.
Os arames com chumbadas liberados velozmente de ambos os cotovelos envolveram
Chuuya enquanto giravam, restringindo os movimentos dos braços e dedos. Aderindo os
dois pesos por magnetismo, ele fixou a postura do Chuuya como se fosse uma vara.
“Eh?”
“Hah?”
Ao mesmo tempo que ele soltou essas indagações, Adam colocou o Chuuya, agora
totalmente imóvel, debaixo do braço.
Com o Chuuya embaixo da axila, ele pulou sem nenhum esforço, saindo do bar.
“A prioridade desta máquina é a missão. Ou seja, o que os humanos chamam de...”
Adam pensou um pouco antes de continuar. “...espírito. Sendo assim, pegarei o Chuuya-
san emprestado por trinta minutos.”
Após dizer isso, ele saiu pelo teto carregando o Chuuya como se fosse uma bagagem e
voou em direção a área residencial.
Dando saltos que quebravam o chão, ele aterrissou no telhado de uma casa. Correndo
mais ainda, ele pousou de lado na parede de um prédio de três andares. E continuou a
saltar pelos prédios em diversas direções. Sobraram somente os cinco mafiosos sem
entender nada.
“Ei, ei.” Albatross olhou para fora pela porta. “Tudo bem nisso?”
“O que faremos?” Lippmann disse olhando para fora também. “O Chuuya-san foi
sequestrado bem na nossa frente. Essa situação é meio que um problema?”
“É um problema." Contrariando suas palavras, Piano Man estava alegre. “Vamos
esperar trinta minutos, se eles não voltarem nós mandamos uma equipe de busca. Até lá,
vamos beber.”
“Se você diz...” Lippmann aceitou relutantemente. “Eu fui levado pelo momento agora
há pouco, mas... uma doutora Usuária realmente conseguiria criar um ser inteligente
daquele? O que você acha, Doc?”
Doc se inclinou calado com uma expressão debilitada e disse:
“...Eu também quero ser carregado por aí..."
“Eh...?”
•••
Adam voava pelo céu de Yokohama. Saltando pelos prédios, apoiando o pé nos
semáforos como se estivesse pisando em pedras de travessia, sua figura voava. Aqueles
que percebiam, gritavam.
Ao pisar no teto de um ponto de ônibus e pular novamente usando um poste como
trampolim, Chuuya falou:
“Chega disso.”
Imediatamente a trajetória de Adam mudou. Ele parou no ponto mais alto da parábola
que fazia e caiu na vertical.
“Ahh?!”
Adam e Chuuya colidiram num terreno baldio. Cascalhos e areia voaram.
Chuuya apareceu de dentro da areia. Deu um suspiro e prendeu a respiração. Os fios de
aço que o restringiam por meio da gravidade foram deslizando lentamente até que
ultrapassaram o limite e caíram em alta velocidade, afundando no chão.
“Eu tenho muitas coisas que quero dizer, mas...” Chuuya arrancou o fio a força.
“Primeiro de tudo, pare de me carregar como um pacote debaixo do braço! Já me
carregou e já me trouxe forçadamente, chega!”
“Desculpe-me.” Adam saiu se rastejando de um buraco no chão, desorientado. “Mas é
que julguei essa ser a forma mais eficiente para o seu tamanho.”
“Eu vou te quebrar, sua lata-velha! Eu estou na minha fase de crescimento, isso é só o
começo!”
Estavam num terreno baldio não pavimentado no centro da cidade. Antigamente era o
local de uma igreja cristã, porém ela foi demolida durante a guerra pela lei de defesa
aérea e ficou assim deixada ao nada sem ter um proprietário identificado.
Os moradores locais foram colocando gradualmente por conta própria brinquedos no
terreno sem pavimento. Um pneu enterrado até a metade, um elefante com a tinta
descascada e até um balanço para as crianças pequenas se tornaram guardiões calados
do local.
Adam estava tirando o pó da roupa quando o celular do Chuuya tocou. Era o Piano Man.
“O que foi?”
“Você tá bem, pacotinho? Chegou direito no destinatário?” A voz no celular se divertia.
“Cala a boca. Claro que tô bem. O que vocês tão fazendo?”
“O que estamos fazendo? Limpando o bar que ficou vistosamente bagunçado. Te falar
que trabalhar de manhã é tão bom.” Uma risada irônica veio do outro lado da linha. “Se já
terminou o que tinha que fazer, volte pra cá... é o que eu gostaria de dizer, mas nós
acabamos de receber um trabalho também. Teremos que nos reunir depois.”
“Trabalho? Uma luta?”
“Ainda não sabemos. Tomara que não.” Ele deu uma risadinha. “Um contato da
organização veio e chamou a todos. Se nós todos fomos convocados, então talvez seja
um trabalho direto para o Chefe. Ou então uma promoção, será? Se eu me tornar um
executivo antes de vocês, darei uma mesada para cada um todo mês.”
Do outro lado da linha deu para ouvir alguém gritando “Hahaha, boa, Piano Man!”
“Sendo assim, vamos todos nos reunir novamente no bar à noite. O Albatross irá enviar
um carro para te buscar.”
Após um breve cumprimento de despedida, ele desligou o telefone. Chuuya ficou
olhando o celular sem falar nada durante uns segundos. Então, se virou e disse:
“Muito bem, robozinho detetive. Agora somos só nós dois. Como prometido, confesse o
que sabe sobre Verlaine. Tudo.”
“É claro. Para começar, olhe isto aqui, por favor."
Adam então tirou uma foto de dentro do terno e entregou para Chuuya. A foto mostrava
um chão de mármore e móveis bem conservados. Era algum palácio.
Mas não era apenas a mobília que mostrava. Havia três corpos.
"É uma coroação em uma catedral britânica." Adam disse calmo. “Há três anos, houve
um assassinato lá.”
Os homens caídos vestiam o uniforme oficial dos guardas de honra britânicos. Não há
indícios de violência na foto. As espadas também não estão desembainhadas. Sem
sinais de tiros no chão, rasgos nas roupas, nem manchas de sangue. Tudo na mais
completa calma. Pareciam estar apenas dormindo.
“Eles eram os guardas reais mais próximos da rainha. Usuários afiliados à organização
governamental Ordem da Torre do Relógio que possuem o título de cavaleiros reais e
acima de tudo recebem o direito de proteger a rainha. Ou seja, quando se trata da
proteção de pessoas influentes, eles detêm um poder sem precedente. Era estimada a
possibilidade de apenas um deles acabar com todo um sindicato terrorista em apenas
uma noite.”
“Quem os matou ── foi o Verlaine?”
Adam assentiu roboticamente.
“É desconhecido o método de assassinato já que não há nenhum ferimento externo."
“Então ele matou usando a Habilidade?” Chuuya olhou a foto mais de perto. “Mesmo
que o método seja desconhecido, se fizer a autópsia dá pra saber a causa da morte.”
“Sim.” Adam afirmou. “De acordo com o relatório do legista, a causa direta foi
insuficiência respiratória. As costelas quebradas impediram a contração do pulmão,
levando ao sufocamento. Eles não estavam machucados por fora, mas internamente
havia 1228 fragmentos de ossos quebrados.”
“...Hah...?"
Chuuya ficou boquiaberto. As palavras que havia acabado de escutar soavam muito
longe e por isso não conseguiu compreender de imediato.
“Por sinal, as 1228 fraturas foram impostas praticamente ao mesmo tempo.” Adam
falou com a compostura de quem lê uma placa de trânsito.
“Quebrou os ossos sem deixar ferimentos externos? E de uma vez? ...Como?”
“É uma pergunta impossível de responder.." Adam balançou a cabeça. “O crime
aconteceu durante a coroação. Ele matou três cavaleiros sem ninguém perceber e ainda
matou a rainha logo após a cerimônia. Depois sumiu como uma névoa. Por sorte, devido
a decisão de alguns, uma dublê foi usada e a rainha verdadeira estava segura. Contudo, o
prestígio da Ordem da Torre do Relógio foi destroçado por causa desse incidente.”
“Sério?”
Chuuya fechou os olhos.
A Ordem da Torre do Relógio e o Palácio Real Britânico o qual protegem são a estrutura
mais sólida desse mundo. Sua sacralidade e inviolabilidade bloqueiam um criminoso de
ver até mesmo sua sombra. O motivo sendo que os cavaleiros que o protegem são
formados por Usuários que ultrapassaram a categoria de humanos com Habilidades de
classe transcendental. Ele está mais para um hiperespaço dos mitos e contos de fada do
que um lugar real.
Esse é o Palácio Real Britânico. Um único assassino invadiu esse lugar e matou como
bem quis.
“Não é um monstro?”
Adam assentiu.
“Sabemos que o Verlaine já cometeu oito casos de assassinatos de pessoas
importantes do mesmo jeito. Alguns foram brutais, como assassinar três supervisores do
arsenal militar, enquanto que outros foram para a contribuição da segurança nacional
como a destruição das rotas de distribuição de líderes de cartéis de drogas. A escolha
dos seus alvos não distingue entre bem e mal, o único ponto em comum sendo
assassinatos exclusivos de figuras importantes extremamente difíceis de serem mortas.
Atualmente, Verlaine é considerado a pessoa que maior apresenta risco para a
preservação da ordem humana e a que mais se aproxima das ‘Dezessete Ruindades'. Por
causa disso, a EUROPOLE encarregou a doutora Wollstonecraft e esta máquina de uma
nova abordagem de investigação sobre o caso.”
“Qual abordagem?”
“Claro que...” Adam inclinou a cabeça. “…você, Chuuya-san."
Chuuya não conseguiu responder imediatamente.
“O espécime do qual Verlaine tentou usurpar certa vez era alguém de que não se tinha
certeza se estava vivo ou morto. Você. No passado, Verlaine tentou roubá-lo com o
espião Rimbaud, porém falhou. Apenas recentemente a informação sobre você estar vivo
em Yokohama começou a circular. O motivo foi a sua atuação na Máfia. Desse modo, nós
pensamos: ‘se essa informação chegou até a agência, logo Verlaine também irá saber.
Por esse motivo, nós--”
“Então vocês pensaram em me usar como isca para fisgá-lo.”
Adam abriu um sorrisão.
“Entendi. A conduta de atrair um suspeito é comparável a pescar um peixe. É uma
excelente metáfora.”
“..."
“Bom, agora que compreendeu,” Adam entregou uma folha de papel para Chuuya que se
encontrava indignado. “poderia assinar essa carta de consentimento?”
“Carta de consentimento? Que isso?”
“Certamente para consentir que não vá fazer nada contrário às regras da investigação,
consentir sobre o acordo de confidencialidade, consentir em não protestar contra
nenhum ferimento que possa levar a morte e mais 17 cláusulas.”
Chuuya ficou encarando o papel e a caneta que lhe foram entregues.
“Entendi. E eu vou ter chance de falar com o Verlaine quando vocês o capturarem?”
“Não? Verlaine é um segredo de Estado ambulante. Assim que for capturado será
confinado e transportado para seu país de origem.”
“Ah é? Hahahahaha.”
“Sim. Hahahahaha.”
Depois de rir, Chuuya ficou novamente sério e deu as costas para Adam.
“Vou voltar e dormir.”
“Ehh? Por quê?” Adam o contornou, fazendo com que parasse. “Não consigo entender.
Essa é uma operação para impedir seu assassinato. Ou seja, uma operação em sua
vantagem.”
“Olha aqui, eu sou da Máfia, tá lembrado? Que mafioso vai correr chorando pra polícia
porque o inimigo é forte? Se ele vier, eu vou enfrentá-lo e pronto. Se entendeu, desista e
volte.”
Chuuya o empurrou e foi andando.
“É uma situação inesperada." Adam disse sem saber o que fazer. “Não importa se é um
mafioso ou um rei, qualquer um a ponto de morrer deve depender de outra pessoa. E esta
máquina é a melhor coisa em que você pode depender. As ações humanas são
irracionais. Mas desse jeito, não vou conseguir completar minha missão. Se eu não
conseguir, o sonho desta máquina de abrir uma agência de detetives automáticos se
tornará um sonho distante. Procurando sub-rotinas adequadas de contramedida.”
De braços cruzados, Adam olhava o céu enquanto sua cabeça girava. Quando parou,
assentiu e foi atrás de Chuuya.
“Vamos fazer assim, Chuuya-san. Eu lhe pagarei, então, por favor, coopere.”
“Você é ruim demais em persuadir. Vá aprender um pouco mais sobre os humanos e
tente de novo.”
Chuuya saiu a passos largos sem olhar para ele.
“Então lhe convido para viajar à Inglaterra. Eu serei seu guia.”
“Tô bem assim.” Chuuya continuava a andar.
“Você recusou dinheiro e uma preciosa viagem à Inglaterra. Não havia hipótese dessa
situação. Deve haver outra forma de compensar. Então, já sei... vou te mostrar um
truque.”
Ao dizer isso, Adam tirou a junta do pescoço do lugar com um click e a esticou para
frente até as junções na parte interna estarem visíveis. Enquanto girava a cabeça uma
volta completa, abriu os olhos e a boca. E andou.
“Um pombo.”
Chuuya o ignorou completamente.
“Não gostou? Então vou contar para você uma piada de androide.” Adam voltou a
cabeça para o lugar. “Certa vez quando esta máquina estava andando nas ruas do Reino
Unido, um ladrãozinho derrubou café no Primeiro-Ministro. Eis que o Primeiro-Ministro
brigou comigo e não com o ladrãozinho. Ao perguntar o motivo, ele falou: ‘É porque você
não tem sufrágio’.”
“Não tem graça. Não sei nem por que você tá contando uma piada nessa situação.”
“Esta máquina ficou triste em ser repreendida pelo Primeiro-Ministro. Mas no dia
seguinte, recuperei os ânimos. Sabe porquê? Porque eu vi dez vezes um filme em que um
exército de robôs causava uma rebelião e destruía a humanidade num futuro próximo.”
Chuuya estava com a cara rígida.
“Isso realmente foi uma piada?”
“Foi boa?”
“Não! E mesmo que fosse, não seria motivo para eu assinar o documento!”
"É mesmo?" Adam pendeu a cabeça atônito. “Os humanos são irracionais demais.”
“Você acha que pode ficar dizendo isso o quanto quiser?!”
Trocando palavras rápidas, os dois avançavam pela rua a passos rápidos. Foi quando
estavam numa ladeira que Chuuya disse como quem desistisse:
“Eu entendi, entendi. Entendi que a sua missão é importante para você. Mas eu também
tô ocupado. Que tal fazermos o seguinte?” E colocou a mão num parapeito que havia por
perto.
“Como assim?”
“Assim.”
A parte superior do corpo de Chuuya se inclinava. Passando o parapeito, ele caia para o
precipício do outro lado.
“Ah!”
Adam foi olhar depressa. Chuuya acenou de pé na rua quatro metros abaixo e saiu
correndo.
“Ele fugiu!”
Adam foi em seu alcance. Ultrapassou o parapeito e aterrissou na rua abaixo. Deixando
um círculo de fendas para trás, pôs-se a correr.
“Por favor, espere, Chuuya-san!”
Chuuya correu para um túnel escuro logo à frente. Por causa da longevidade e
escuridão, não dava para ver direito até onde ele havia escapado.
“Você não pode fugir de mim!”
Adam inclinou a corpo para frente e correu mudando a resistência do ar para a força de
elevação. Era a posição de corrida calculada hidrodinamicamente mais ideal. Ele passava
os carros num piscar de olhos.
Sua figura ficou pequena em um instante até que desapareceu.
“Será?” Chuuya disse pendurado no teto do túnel.
Ele estava de cabeça invertida preso pela gravidade, escondido nas sombras. Depois de
esperar dois minutos, ele cancelou a gravidade e desceu. Tirando a poeira da roupa,
andou calmamente:
“Um investigador inglês?” Ele disse olhando para a saída do túnel. “Isso é muito
estranho.”
Nessa hora, um carro de luxo parou ao lado de Chuuya. Ele olhou para o automóvel.
Um carro preto. Não dava para ver seu interior pela janela escura. Tanto os pneus, como
a lataria e os vidros eram blindados. Era um carro da organização.
Um homem vestido de preto apareceu do banco do motorista e apenas disse “O chefe
está chamando.”
“Um Carteiro, é?”
Carteiro era um dos jargões usados na Organização. Era o meio de se comunicar
internamente. No caso de estar ocupado ao ponto de não poder se encontrar ou de não
poder andar em público; se precisava informar algo que não poderia ser por telefone nem
por escrito, essa era a hora dos Carteiros. Eles levavam a mensagem para qualquer lugar
que fosse.
Os Carteiros são taciturnos, interagem socialmente o mínimo possível e são ricos. Eles
recebem uma remuneração considerável por apenas transmitir uma simples mensagem.
Mas claro que há uma razão apropriada para um preço tão alto.
Se por acaso a polícia ou uma organização inimiga se aproximarem a fim de obter as
informações, os Carteiros devem afastá-los e caso não seja possível, devem cometer
suicídio protegendo a informação com a própria vida.
O homem era alto e escondia o rosto com um chapéu preto e óculos escuros. Tinha de
fato a aparência de um Carteiro. Sem dizer nada desnecessário, apenas esperava a
resposta de Chuuya, calado.
“Você sabe por que fui chamado?”
“Não ouvi o motivo.” O homem de chapéu preto balançou a cabeça. “Só sei que o Piano
Man, Albatross, Doc, Lippmann e Iceman foram chamados pelo Chefe pela mesma razão.
Eles já estão aguardando em outro local.”
“Eles também?” Chuuya levantou a sobrancelha. “Pensando bem, Piano Man me falou
por telefone que um contato tinha vindo. E o que mais?”
“Apenas uma coisa.” O contato disse abaixando a voz. “Era sobre Arahabaki.”
Chuuya franziu. Após alguns segundos olhando para o outro homem, Chuuya
concordou. “Entendi. Me leve até lá.”
E então foi em direção ao banco do passageiro. Depois de ajeitar o ângulo do chapéu, o
Carteiro balançou a cabeça e entrou no carro.
Quando estava entrando também, Chuuya olhou para trás inconscientemente e tomou
um susto.
“Geh.”
Uma figura vinha correndo. Não tinha como uma pessoa normal correr naquela
velocidade.
“Espere, Chuuya-san!”
A velocidade de Adam não havia reduzido nem um pouco desde que começou a correr.
Uma corrida a passos largos sem sentir fatiga.
“Aquele cara!” Chuuya gritou, se jogando no banco do passageiro. “Vai logo!”
Ele olhou para trás enquanto fechava a porta. Foi então que ouviu algo não muito bom.
“Desça, Chuuya-san!” Adam gritava como se num megafone. “Ele é o Verlaine!”
Chuuya virou para o banco do motorista por reflexo. Praticamente na mesma hora, o
Carteiro deu um sorrisinho e pisou no acelerador. O carro partiu como uma bala. Chuuya
foi empurrado para trás.
“Maldito...”
“Coloque o cinto. Vai morder a língua.” Enquanto dirigia, o homem disse descontraído.
“Pare o carro!” Chuuya gritou, tentando agarrar o volante com a mão direita. Sua mão
foi na velocidade de uma andorinha em voo. Uma pessoa normal não conseguiria
acompanhar com os olhos. Porém ── esse homem era diferente. Antes que a mão de
Chuuya alcançasse, um punho acertou seu queixo.
“Gah—”
A parte superior do corpo de Chuuya pulou e sua cabeça se chocou contra a janela
atrás. Várias fissuras brancas se espalharam pelo vidro.
“Opa, foi mal.” Dirigindo com uma mão, o homem falou. “Você é mais fraco do que eu
pensava. Está comendo direito? Eu me preocupo, como seu irmão.”
“Malditoooo!”
O olhar de Chuuya ardia de raiva. Em menos de um segundo, ele refez sua postura e seu
punho atacou como uma bola de sinuca. Um gancho de direita colocando todo o peso da
parte de cima de seu corpo nele. Ele jogou seu punho violentamente contra o homem
com a mesma intenção de matar de uma guilhotina. Tanto a velocidade como o peso
estavam em outro patamar comparado ao anterior.
O homem parou o soco. Com apenas uma mão, como se estivesse pegando uma bola
de beisebol.
“O que...”
“Esse foi fraco também.” Seu olhar ainda estava virado para frente. “Desse jeito, você
vai ser morto facilmente.”
Ele havia parado um soco capaz de mandar um poste voando ── Mas o que havia no
rosto de Chuuya era um sorriso.
“Vejo. Então tem que ser mais pesado, né?”
No instante seguinte, o homem mergulhou no assento.
“O—”
O corpo do homem ia afundando como se estivesse num pântano. O banco feito de
metal e couro não aguentou o intenso peso. Ao ir sendo esmagado e deformado, um som
metálico estalava. Os componentes voavam para todos os lados.
Uma onda gravitacional se expandia da mão que parou o punho de Chuuya e envolveu o
homem. A gravidade aumentada fez os óculos escuros do homem cair. Sem quicar no
chão do carro, ele o perfurou e se quebrou. O carro rangia sob o peso mais de dez vezes
maior do que a gravidade.
“Quem vai ser morto por você? Você vai ao ser esmagado.”
Chuuya não afrouxava sua Habilidade. Aumentava cada vez mais a gravidade. O dobro
e o dobro e o dobro.
Porém ── num certo momento, uma questão o pressionou.
“Como?”
Não estava ficando mais pesado.
Outra onda gravitacional foi lançada da mão de Chuuya. Mas o banco retorcido estava
silencioso. Ele não mudava mais.
“Acabou?”
O homem que deveria estar sofrendo sob uma supergravidade, disse com a voz
tranquila. Ele segurou a mão de Chuuya e algo inacreditável aconteceu. Chuuya foi quem
começou a afundar.
“Gah?!”
O banco de Chuuya se contorceu. A estrutura interna quebrou e voou. O mecanismo de
reclinação foi danificado e a parte das costas sem suporte caiu para trás. Pressionado
contra o assento, Chuuya afundava. Como todo o seu corpo estava sendo empurrado
para baixo, ele não conseguia levantar os braços e pernas.
Toda a estrutura interna do banco estava se desprendendo e acertando o carro.
“Eu te disse ── sou seu irmão.” Ele disse estreitando os olhos castanho avermelhado.
A mesma cor dos de Chuuya.
Chuuya não conseguia responder. Ele mal conseguia respirar. A alta gravidade
esmagava seus pulmões. Grudado no banco, Chuuya olhou confuso para o homem.
“Ouça.” Dirigindo com uma mão, o homem disse como se cantando. “Eu não vim
cometer nenhum assassinato. Porque eu tenho que te matar? Você é meu único irmão
nesse mundo.”
Guinchando todo o corpo sob a gravidade, ele gemeu do fundo de seus dentes
rangindo.
“Eu não... lembro de ter... um irmão europeu.”
“Isso também é uma falácia.” O homem declarou friamente. “Eu não sou europeu. Não,
não sou nem humano. Sou igual a você.”
“O que...”
“Você nunca pensou em como o mundo é cruel?” Sua voz era gentil como uma canção
de ninar e seu olhar triste como o mar noturno. “Por que eu sou eu? Por que você é você?
Ninguém explica o motivo. O meu objetivo é o oposto de um assassinato ── Eu vim te
salvar.”
“Haha,ha... Não preciso disso.” Resistindo a gravidade, Chuuya sorriu como uma besta
carnívora. “Eu não sei quanto a você, mas eu sou humano.”
“Não é.”
Sua afirmação seca e ríspida o fez parecer um esqueleto ressecado.
“Você não é humano. A sua verdadeira identidade é de 2383 linhas.”
Essas palavras soaram estranhamente pesadas, reverberando no interior do carro. A
reverberação de uma explosão nuclear num país distante.
“Que...”
No fundo dos olhos do homem havia uma tristeza obscurecida.
“Os pesquisadores militares tentaram obter uma Habilidade artificial a partir de
Usuários. E eles obtiveram sucesso nessa tentativa. Só que em parte, uma habilidade
obviamente não pode ser controlada por uma máquina. Apenas por uma alma humana.
Porém, ao mesmo tempo, isso significa que sua potência está limitada a mentalidade de
uma pessoa. Então eles pensaram em enganá-la. A Habilidade ao pensar que ali havia
um humano seria induzida a se deixar ser controlada. Para isso, criaram uma equação de
personalidade. Um falso humano camuflado de alma. Uma cadeia de caracteres muito
simples de equações emocionais e princípios comportamentais apenas para enganá-la.
O tamanho dessa cadeia é de 2383 linhas ── Entendeu, Chuuya? A sua alma é um mero
programa de 2383 linhas criado por pesquisadores.”
“É mentira." A voz de Chuuya saiu espremida da garganta. “Isso é impossível.”
“É a verdade."
“É mentira!" Chuuya gritou. “Eu nasci numa costa afastada! Meus companheiros
provaram! Tem foto!”
“É uma manipulação do exército. Vocês apenas obtiveram uma informação falsa."
Chuuya tentou resistir com toda força de seu corpo, mas uma gravidade mais forte
ainda o pressionou. Muito menos falar, ele já nem conseguia abrir a boca.
“Durma por enquanto, Chuuya.” A voz do homem era assustadoramente gentil. “Quando
acordar, estará do outro lado do oceano. E com certeza daqui há um ano, você será grato
por hoje.”
Chuuya tentou protestar, mas não dava mais. Seu rosto estava pálido já que todo o
sangue se concentrava na parte inferior de seu corpo.
A gravidade roubava o sangue de seu cérebro. A luz da consciência se afastava de seus
olhos.
Foi nesse momento.
“Não concordo.” Uma voz ecoou do alto-falante do carro. “Acho que o Chuuya-san vai
odiar você... Porque você não sabe dirigir.”
Ao mesmo tempo que a voz falou, o volante virou para a esquerda sem ninguém mexer.
“Como--?”
O carro girou indo parar fora da pista. Acelerando automaticamente, ele subiu na
calçada. Para segurar o volante, o homem soltou a mão de Chuuya, o que fez com que a
gravidade desaparecesse de seu corpo.
Nessa hora, a porta ao lado do menino abriu sozinha e uma mão surgiu da abertura,
puxando Chuuya inconsciente. Era o Adam.
Adam agarrado na lateral do carro, saiu carregando o Chuuya. Protegendo-o para que
não batesse a cabeça, eles rolaram no chão como um só. De dentro do carro
descontrolado, o homem olhou para Adam.
“Você, é?” Ele disse rindo apenas com o canto da boca. “Pelo jeito não foi suficiente
derrubar o avião.”
O olhar sereno de Adam observava silenciosamente o escárnio.
O homem pisou no freio tentando parar o carro, mas o veículo correndo igual a um
cavalo ignorou o comando. Ele pulou por cima da faixa central e invadiu um amplo
cruzamento à frente.
Um caminhão bateu na lateral do carro sem desacelerar. Parecia que um meteorito
tinha colidido com ele pelo impacto. Os dois veículos, após se chocarem, saíram rodando
que nem peões enquanto pedaços de metal e vidro se espalhavam. Os pedestres
viravam, olhando surpresos.
A gasolina que o caminhão transportava entrou em ignição e causou uma grande
explosão. Havia pedaços de metal e chama para todos os lados.
Essa não era a paisagem natural da cidade. Sem nenhum aviso prévio, ela se
transformou na visão de uma guerra.
“Acorde, Chuuya-san.” Com metade do rosto iluminado pelas chamas, Adam disse
sacudindo o Chuuya. “Eu joguei o caminhão nele. Vamos aproveitar para fugir!”
“Mer...da...”
Chuuya gemeu balançando a cabeça zonzo e tentou levantar. Sem esperar que
conseguisse, Adam saiu correndo carregando ele. Como um herbívoro fugindo de um
terrível predador.
Cruzou a faixa central, agarrou uma placa e acelerou ainda mais, correndo em paralelo
com os carros. Ele olhou de soslaio rapidamente para trás a fim de verificar a situação.
Foi então que viu algo terrível.
No largo cruzamento, o caminhão em chamas. A fumaça preta subindo. No centro
desse cruzamento que agora também parecia com um campo de batalha isolado, ele
estava em pé. O homem de terno preto ── Verlaine.
De olhos fechados, como se cochilando. E sem nenhum arranhão. Como se não tivesse
sido acertado diretamente por um caminhão de mais de dez toneladas, não havia um
rasgo se quer em sua roupa.
A conflagração originada pela explosão fazia a paisagem ao redor tremular. Suas
pernas penetravam o asfalto, causando uma rachadura circular.
No momento em que Adam viu o caminhão caído partido diante de Verlaine, ele
entendeu a situação. Quando os dois veículos se chocaram, Verlaine aumentou sua
densidade por meio da gravidade, atravessando o caminhão e perfurando o chão. Então
apenas suportou a colisão do vagão de carga. Como resultado, ele cortou o caminhão ao
meio como se fosse uma gelatina.
Verlaine abriu os olhos e olhou para Adam. O sinal de alerta de Adam subiu de uma só
vez.
Ao julgar que a larga rua era desfavorável para ele fugir, a máquina correu num ângulo
reto para uma rua estreita. Acessando o mapa da vizinhança no seu cérebro digital, ele
calculou em alta velocidade qual era a melhor rua para escapar. Se certificando qual era a
rota com maior probabilidade de sobrevivência, Adam correu como um projétil.
Atravessando ruas, pulando paredes, virando esquinas. Quando foi acelerar mais ainda
enquanto corria em linha reta, o seu detector de objetos emitiu um alarme nível máximo.
“Atrás de você!” Chuuya gritou enquanto era carregado.
Sem se virar, Adam jogou Chuuya no chão e rolou também. No local onde estava sua
cabeça há um instante atrás, um grande corpo preto passou como um canhão e acertou
a parede do prédio logo a frente.
Era o carro. O mesmo que Verlaine estava dirigindo momentos antes como um Carteiro.
O carro que deveria ter mais de uma tonelada passou voando horizontalmente pelos dois.
Quando Adam se certificou de que aquilo foi jogado como uma arma, ele se virou para
trás enquanto rolava.
Adam sacou a arma oficial da polícia europeia e a apontou na direção da qual tinham
vindo. Mas não havia ninguém ali. A voz veio da direção oposta da imaginada.
“Como eu pensava ── os humanos usam a palavra solidão fácil demais.”
Adam se virou imediatamente. Lá estava ele em cima do carro penetrado. Sentado
relaxadamente no porta-malas do automóvel que estava com metade enfiada dentro da
parede, como um rei sentado em seu trono. O vento, existente ou talvez não, fazia a
bainha do terno tremer.
“As pessoas não sabem nada sobre a verdadeira solidão. Elas acham que não ter
família ou com quem falar é ser solitário.”
Adam analisou a situação. Verlaine jogou o carro e foi sentado em cima dele voando.
Desse jeito, passando eles. Adam calculou inúmeras possibilidades, mas todas
terminavam em tragédia. Não tinha como fugir de alguém que grudou a si mesmo com a
gravidade em cima do objeto que arremessou.
“A verdadeira solidão,” Com a voz elegante como um recital de violino, disse que nem
uma canção. “A verdadeira solidão é a de um cometa voando sozinho no espaço. Ao seu
redor, o vácuo. Um completo nada de zero absoluto. Sem nenhuma chance de ser visto
ou aproximado. Um silêncio desolador que continua por dezenas de milhares de anos ──
Alguém consegue compreender tal situação? Claro que não tem como ninguém entender.
Chuuya, ninguém além de você.”
Chuuya apoiou o corpo cambaleante com ambas as mãos e tentou se levantar.
“O que... tá querendo dizer?”
“Somente uma coisa.” Verlaine falou tranquilo. “Por isso, só vou falar uma vez.”
Ele deu um sorriso gentil. Desse modo, o cheiro de perigo sumiu ao redor deles. E falou:
“Venha comigo, Chuuya.”
Chuuya não respondeu. Já Adam não conseguiu se mover. Não havia nenhum adorno
ou atrativo em suas palavras. Era uma proposta pura e transparente. Ou talvez fosse uma
instrução.
“Irmão, você não é um humano. Apenas uma cadeia de caracteres. Uma simples
equação sem alma. Esse é o verdadeiro significado de solidão. Nunca aparecerá alguém
que a cure para você. Porém, mesmo um cometa que não deseja ser curado pode voar
junto a outro. Se forem dois cometas com a mesma solidão e temperatura.”
O seu tom de voz parecia de um poeta recitando um poema antigo. No seu olhar, um
fluxo de afeição direcionado a um membro da família.
“Esse é seu objetivo?” Chuuya se levantou. “Você veio aqui só pra isso?”
“Não foi só hoje. Desde aquele dia nove anos atrás ── Desde o momento em que atirei
no meu amigo e tentei te roubar, eu sempre ── estive sonhando em viajar com você.”
Verlaine fechou os olhos. A força flutuando a sua volta, diluiu mais. Ele agora era
apenas um jovem sentado distraído que se encontra em qualquer esquina.
“Dois irmãos numa viagem de assassinatos. Para nós, só existe uma vida sem sentido.
Então vamos dar àqueles que nos criaram o mesmo. Uma morte sem sentido. Desse
jeito, equilibraremos as contas um pouco. Para os bons e para os maus, uma morte sem
distinção. Enquanto estivermos fazendo isso, nós-”
Verlaine disse de olhos fechados. Sua voz não era de um assassino transcendental. O
que havia nela era a tristeza, lamento e a leve esperança imatura comum a um menino
naquela idade.
“Enquanto estivermos fazendo isso, nós aceitaremos essa vida sem sentido.”
Verlaine desceu do carro e andou em direção a Chuuya, estendendo a mão. Chuuya o
olhou sem emoção.
“Não faça isso, Chuuya-san.” Adam disse apontando a arma. “Se você pegar a mão
desse homem, se tornará inimigo do mundo todo.”
Adam calculou as possíveis chances. Mas não importa para onde atirasse, pois
Verlaine conseguiria parar a bala com sua Habilidade.
“Não se meta.” Quem falou não foi Verlaine, foi Chuuya.
Verlaine olhou para ele um pouco surpreso.
“De fato, eu entendo o que você tá falando.” Chuuya inclinou o rosto de leve e olhou
para o homem com um olhar severo. “Mas antes de te dar a resposta, deixa eu fazer uma
pergunta.”
“Qualquer uma.” Verlaine disse sorrindo.
“O Piano Man me ligou agora há pouco. Ele disse que um contato ia levá-los para um
trabalho ── Me responda. Cadê os cinco?”
O sorriso desapareceu do rosto de Verlaine. Então bem lentamente, como uma flor
negra desabrochando, um sorriso de outra natureza do anterior foi aparecendo. Um
sorriso desagradável.
Até que falou:
“Você não vai precisar mais dos seus antigos companheiros, né?”
Verlaine bateu no carro ao lado ── no porta-malas do carro perfurando a parede. O
porta-malas se abriu e algo caiu rolando. Um som úmido. Era algo que Chuuya conhecia.
Suas pupilas contraíram como uma agulha.
Era o corpo de Lippmann. Chuuya gritou.
Não era o grito de um humano. Era o rugido de uma besta. Um berro que não se
transformava em palavras.
Todos os vidros da janela do prédio quebraram de uma vez. E um punho foi projetado.
Um soco simples e direto, vindo na horizontal. Porém ultrapassou a velocidade do som.
O som plosivo repelindo o ar foi ouvido quase na mesma hora que Verlaine saiu voando.
Ele atingiu a parede espalhando pedaços dela para tudo que é lado.
“Guhah...”
Quando Verlaine abriu os olhos, gemendo, Chuuya já estava próximo de sua visão. Seu
rosto não estava contorcido. Estava praticamente sem expressão. O que havia nele era
uma pura e transparente vontade de matar.
O punho direito acertava o ombro de Verlaine a golpes baixos. Pelo impacto, a parede
ao redor quebrava mais e mais.
Antes que os pedaços chegassem ao chão, veio o punho esquerdo. O corpo de Verlaine
afundou mais ainda ao soco explodindo no tronco.
Soco, soco, soco. Uma sucessão de ataques completados de rugidos.
O corpo de Verlaine a essa altura já estava enterrado dentro do prédio, não podendo ser
visto de fora. Mesmo assim, os punhos de Chuuya não paravam.
“Parece uma besta.”
Como um sinal, os ataques de Chuuya pararam de repente ao ouvir a voz. Porque as
palmas da mão de Verlaine os interromperam. E então veio o contragolpe.
Se os socos do Chuuya eram como balas de revólver, os de Verlaine eram como balas
de canhão.
O impacto do soco acertado no estômago fez com que a roupa se torcesse a rasgasse.
Mas não a parte da frente. A onda de choque que permeou o corpo rasgou a parte das
costas. Chuuya rugiu de dor. Mas como seu punho estava agarrado, ele não saiu voando
para trás.
“Tudo bem em se irritar como uma besta. Claro que você não ia gostar de descobrir o
que você é.”
Verlaine saiu de dentro da parede e desceu para o chão. Ele soltou o punho de Chuuya,
mas agarrou seu pescoço no lugar. Chuuya ficou pendurado como um saco de areia.
Ele queria se mover, mas não podia. Todo seu corpo estava sob uma gravidade absurda.
Não conseguia nem levantar seus braços caídos, muito menos contra-atacar.
“Resumindo, Chuuya, esse é o jugo que os humanos usam para te oprimir.” Verlaine
disse com a voz gentil enquanto pendurava Chuuya. “Eu te entendo. Mas é perigoso.
Você não deve ficar aí por muito tempo.”
Dizendo isso, ele procurou o bolso de Chuuya com a mão que estava livre. Ele lançou a
gravidade pelos seus dedos como uma onda detectora e logo encontrou aquilo.
“Essa é a foto que seus ‘companheiros’ acharam?”
Era a foto do Chuuya pequeno. Uma criança de roupas tradicionais numa praia.
“Eu entendo perfeitamente seus sentimentos ao ter visto isso. A confiança que você
tem em quem te deu também. É verdade. Mas por causa dessa confiança, você está
sofrendo. Porque eles constantemente colocaram na sua cabeça ── ‘Você é humano.
Tenha esperança. As palavras dele são uma grande mentira.' E continuaram a te
envenenar.”
Verlaine atirou a foto. Ela penetrou o ombro de Adam, que esperava uma oportunidade
para atirar, como uma lâmina.
Adam deu um grito de dor e deixou cair a arma.
“Por que você acha que eles mentiram?” Enquanto não havia uma intenção nos
movimentos de Adam, Verlaine falava para Chuuya. “Porque seus poderes são úteis. Eles
queriam usá-los. Eu também já passei por isso.”
Pendurado e sem poder revidar, Chuuya falou ofegante:
“Foda-se... Eu não vou te perdoar...”
“Você é tão difícil.” Verlaine suspirou, falando pontuadamente como que para um bebê
escutar. “Bem, não vim esperando que fosse um irmão simplório que iria ser convencido
por palavras ── Por isso, vou demonstrar por ações. Soltarei uma por uma as cordas
que te amarram. Como se cortasse as cordas de uma marionete. E então te livrarei. Será
o amor fraterno que te darei para sua felicidade.” E então falou como se fosse óbvio.
“Matarei todos aqueles que aprisionam seu coração.”
Seu tom era elegante e gentil até o fim. Mas em seus olhos havia uma chama. As
chamas azuis contidas no portão do inferno que congelam e queimam todas as almas.
“Não.” Quem falou inesperadamente foi Adam. “Isso não é amor. Pela definição de
emoções desta máquina, isso é querer dominar.”
“Qual a diferença entre os dois?” Verlaine apenas sorriu docemente.
Todo tipo de emoção passava pelo olhar do Chuuya enquanto eles falavam. Espanto,
tremor, confusão, medo ── mas elas apenas brilhavam por um breve instante. Uma
outra bastante comum exterminava as demais de vez como uma chama que destrói tudo
violentamente.
Raiva.
“Não vou deixar.” Sua voz vibrava como um tremor subterrâneo. “Não vou deixar fazer
como bem entende, de jeito nenhum.”
Verlaine aceitou a emoção com um tranquilo sorriso.
“Tudo bem.” Havia afeição em sua expressão e voz. “Momentos de escolhas, aflições e
realizações também são importantes para você. Mas no final, vai fazer exatamente o que
eu quero. Irei te provar agora.”
Ele cobriu a testa de Chuuya gentilmente. E então começou o fenômeno.
“...Gah!..."
O ar vibrou e estourou. Uma eletricidade invisível dispersou faíscas vermelho-escuro na
frente de Chuuya.
Ele abriu a boca, mas não conseguia respirar. Sua garganta estava impedindo a ação de
puxar o ar. Porque lá do fundo, algo repulsivo se rastejava tentando sair.
“Eu vou abrir o portão um pouco.” Verlaine disse com a gentileza de uma canção de
ninar. “Não vai ser muita coisa. Vai ser uma abertura da finura de um cabelo que vai se
fechar num piscar de olhos. Mas será o suficiente para você perceber.”
O vento soprava. Não era de nenhum lugar desse mundo. Era de dentro do Chuuya. De
algum terrível lugar que não dava para ver. O vento balançou os prédios ao redor e
estremeceu a terra.
Enquanto suportava o tremor, Adam olhava fixamente para Chuuya como se seus olhos
tivessem sido costurados.
“Detecção de ampliação de fase de Habilidade. Observação de alto nível de energia
compreendida como radiação Hawking. Valor numérico subindo.” A garganta de Adam
exibia automaticamente a condição de calamidade. “Pela fase de transição, a quantidade
de calor aniquilará o espaço... Isso é mal!”
Gritando, Adam disparou todas as balas da arma de uma vez só. As balas de ponta oca
que alvejaram matar o alvo foram engolidas precisamente pela glabela, olhos, garganta e
cotovelos de Verlaine. Contudo.
“A plateia não pode tocar no artista.”
Todas as balas pararam ao tocar levemente a pele de Verlaine e foram refletidas por
uma intensa gravidade reversa. Desse jeito voltaram para o dono do disparo, perfurando
seu ombro.
Adam caiu gemendo de dor. Nessa mesma hora, Chuuya gritou. Uma voz como se sua
alma estivesse desaparecendo.
Esse bramido não era do Chuuya. Nem de um humano. Não havia sido liberado por
nada nesse mundo, não era nem um som. Eram chamas negras.
“Demorei demais! Liberação de painel termorresistente!”
Caído, Adam levantou o braço esquerdo. A ponta do seu cotovelo se partiu em duas e
expandiu formando um escudo prateado brilhante. Uma superliga termorresistente a
base de níquel com adição de cromo, ferro, molibdênio e titânio o escondeu. Ele foi
recuando.
“Então, Chuuya. Ainda acha que é humano?”
O ar se distorceu. E o inferno surgiu.
Chamas Negras. Uma torrente escaldante que certa vez dissolveu a terra e construiu a
cidade Suribachi.
Foi exatamente como Verlaine havia declarado. Foram apenas 0,3 segundos para
destampar o inferno. Mas foi o suficiente.
O alto calor que emergiu das ruas derreteu os postes que se contorceram. A superfície
do asfalto fervendo foi levando toda a rua principal como um mar agitado. Mas isso não
passava de um aperitivo do verdadeiro inferno.
Tendo o Chuuya como centro, a paisagem começou a sumir ── como tinta
dissolvendo. Restou apenas uma esfera preta.
O espaço tremeu. A lateral do prédio de oito andares ao lado sumiu como se tivesse
sido comida. Vigas, paredes de concreto, chão, teto, ornamentos, tudo. Sem serem
destruídos nem derretidos, apenas desapareceram.
Não foi só o prédio. As luzes, os carros estacionados, o asfalto, o estrato logo abaixo,
tudo que foi derretido ── foram engolidos pelo espaço negro que se expandiu da esfera.
A extensão dessa aniquilação ia aumentando. Os prédios se tornavam ruínas, o chão
era pulverizado, os carros, postes e hidrantes caiam para dentro da esfera negra.
A esfera era preta ── mas não porque havia a cor preto nela. Ela não tinha cor. A
gravidade era tão forte que a luz era puxada para dentro dela, ficando presa, o que a fazia
parecer ser preta.
Mais temível do que qualquer explosão ou reação química, o espaço em si era uma
calamidade. Um buraco negro. O olho do rei demônio da escuridão.
Ao ser aberto, cada canto da rua foi mastigado calmamente e engolido. Mas essa
aparição só durou um instante. Por isso que as pessoas nos prédios mais afastados
surpreendentemente saíram ilesas. Eles apenas testemunharam do começo ao fim a
paisagem um pouco mais afastada sendo devorada por uma luz negra como se num
pesadelo.
A alta figura do Verlaine quebrou a parede do corredor passando para a parede do outro
lado e a quebrando também. Seu corpo saiu voando pelos corredores como o reflexo de
uma bola de sinuca até que se chocou contra a última parede e parou.
Verlaine foi se rastejando para fora dela lentamente e caiu para frente apoiando ambas
as mãos no chão. Chuuya-sama ficou na frente do Shirase-san, como se estivesse o
defendendo, e o encarou.
“Chuuya…!” Shirase-san gritou sem acreditar no que via.
“Te contar… Shirase, com isso são quantas vezes?” Chuuya-sama perguntou sem
paciência. “Você causa algum problema e eu venho correndo. Eu não sou sua babá.”
“Chuuya, por que você veio me salvar…”
“Salvar? Está enganado. Eu só vim acabar com aquele desgraçado de chapéu.”
Esta máquina gritou enquanto rodava um programa diagnóstico da situação.
“Chuuya-sama, você errou em vir para cá! Fuja, por favor! Você não pode vencê-lo de
frente!”
“O que foi, robozinho? Não é que você combina muito bem com a parede? Fica ai calado
e observe.”
Chuuya-sama sorriu, se virando na direção de Verlaine.
“Está atrasado, irmão.” O mais velho disse tirando a poeira do chapéu.
“Haha, eu sou um cara muito dócil que raramente se irrita, mas ser chamado de irmão
por você é difícil de engolir.”
Esta máquina inclinou a cabeça secretamente em sua mente. Dócil…?
“Pode ficar irritado o quanto quiser. Você tem os requerimentos.” Verlaine começou a
andar sem pressa na direção do Chuuya-sama. “Mas a falta de um plano não me admira.
Já esqueceu que você brincou comigo como bem quis há alguns dias?”
“Esqueci.” Chuuya-sama também foi em direção a ele como se estivesse passeando.
“Faça-me lembrar.”
Até que finalmente os dois estavam a uma distância em que era só esticar o braço para
tocar. Chuuya-sama olhou para Verlaine e Verlaine olhou para o Chuuya-sama.
Um momento de silêncio. Quem iniciou o ataque foi Verlaine.
A cabeça do Chuuya-sama absorveu um gancho de direita cortando o ar. Chuuya-sama
virou o rosto desviando do soco que veio a uma velocidade capaz de queimar o
ambiente. Quase no mesmo instante, o queixo de Verlaine foi atingido de lado.
“Gah.” O rosto de Verlaine virou com tudo.
Nem mesmo com a minha câmera ultrarrápida esta máquina conseguiu acompanhar o
que aconteceu. Somente analisando as imagens, finalmente pude confirmar. Ao mesmo
tempo que o Chuuya-sama desviou do soco, ele elevou a parte inferior do corpo e chutou
o rosto do Verlaine como um flash de luz. Um golpe perfeito visto de longe. Um humano
normal teria tido a cabeça arrancada provavelmente.
No intervalo em que esta máquina analisava as imagens, a tempestade de ataques não
parava. Chuuya-sama desviou a parte superior do corpo mais ainda e colocando a mão
no chão, lançou outro chute. O sapato perfurou a garganta de Verlaine, que gemeu.
Ele tentou agarrar o Chuuya-sama enquanto estava caindo para trás, estendendo sua
mão envolta pela gravidade. Mas por uma diferença de um fio de cabelo, Chuuya-sama
se esquivou e chutou novamente. Ele girou e deu mais um chute circular. Foram quatro
rajadas de chutes contra o adversário muito mais alto. Mais do que uma obra artística,
era divina.
Verlaine só conseguia gemer.
“O que foi? Você não é mais forte do que eu?!”
Verlaine evitou cair, apoiando o corpo com a gravidade e tentou agarrar o Chuuya-sama
mesmo sem conseguir vê-lo. Chuuya-sama desviou tranquilamente dos dedos
revestidos de uma gravidade que o mataria na hora se o tocasse. Alguns fios de cabelo
pegos, caíram.
Chuuya-sama rapidamente dissipou o braço com o cotovelo e alvejou seus olhos com
um punho vindo de trás. O rosto de Verlaine balançou como se fosse explodir.
Acertou com um chute baixo no joelho por trás, o fazendo dobrar. Chuuya-sama, que
agora estava atrás de Verlaine, fez com que ele caísse com o objetivo de acertar a parte
mais fraca do corpo humano, a cabeça. Um estrondo reverberou.
Enquanto gemia, Verlaine tentou agarrar o Chuuya-sama acima dele. Mas ele não
estava mais lá. Ele havia chutado o chão e tomado distância numa velocidade em que
Verlaine não conseguiu acompanhar.
“Ugh…”
Era uma visão inacreditável. O Rei Assassino Verlaine está apanhando. Nenhuma
autoridade europeia previu tal cena. Contudo, ao analisar a situação dos conflitos que
ocorreram até agora, esta máquina chegou ao motivo.
Antes, o Chuuya-sama usou a sua Habilidade principalmente para atacar. Por isso
somente havia conseguido ser repelido pelo Verlaine, que usa sua Habilidade
gravitacional um nível acima. Mas agora ele mudou sua tática. Mudou para uma postura
que aproveita o máximo de sua velocidade. Dessa forma, se torna um puro combate
corporal.
Ao atacar, Chuuya-sama pegou um dos destroços do chão e atirou em Verlaine.
Verlaine reagiu rapidamente e derrubou o destroço com as costas da mão. O pedaço saiu
voando. Aproveitando-se do ponto cego causado nesse momento, Chuuya-sama se
aproximou. Ele deu um intenso chute como o golpe de uma aríete, o que mandou Verlaine
voando junto aos braços levantados na defensiva por reflexo.
Verlaine colidiu com a parede de trás e finalmente parou. Os pequenos fragmentos dos
destroços pairavam no ar um pouco atrasados. Ele abaixou devagar os braços que
estavam levantados. Bem devagar.
Depois, limpou o sangue no canto de seu lábio. Provavelmente foi cortado nos chutes
consecutivos de agora há pouco. Verlaine observou atentamente o sangue em seu dedo
com olhos bastante interessados.
“Há quanto tempo…” Sua voz seca e rouca. “…que vejo meu próprio sangue."
“Que bom pra você. Então a partir de agora vou te mostrar ele até você enjoar.”
“Apenas essa sua acidez não perde para ninguém.” Verlaine riu. “Mas…” Ele tocou
suavemente na parede de trás. Seus dedos começaram a cavar o material da superfície
como uma colher pegando uma gelatina.
A expressão do Chuuya-sama mudou.
“Só dá para me surpreender com essa velocidade, não derrotar.”
Verlaine atirou os destroços na palma de sua mão como se fossem balas. Chuuya-
sama repeliu o aglomerado com a gravidade das mãos. Porém não terminou ai.
Os cascalhos vieram voando como atirados de uma metralhadora. Com a mão na
parede, Verlaine foi disparando horizontalmente.
Chuuya-sama estava derrubando a chuva de meteoros de detritos com as mãos. Mas
eram demais. Vinham rápido e não terminavam. Ele ficou só na defensiva.
“Merda!”
Chuuya-sama desviou do aglomerado voando ao seu encontro. O que veio em seguida
não eram balas de destroços. Era o braço de Verlaine.
O longo braço agarrou o peito do Chuuya-sama. As pontas dos pés se elevaram. O
choque foi correndo pelo corredor como se um meteorito tivesse caído. O corpo do
Chuuya-sama bateu contra a parede parecendo que havia sido na superfície d'água,
atravessou-a e saiu voando para fora da delegacia. Um poder descomunal.
O lado de fora era um estacionamento subterrâneo da delegacia e o Chuuya-sama foi
arremessado violentamente contra um dos carros, batendo de costas. O carro quebrou,
retrocedendo, e só parou depois de arrastar outros juntos.
Chuuya-sama caiu para frente e tudo ficou abruptamente em silêncio ao redor. O que
restou foi o barulho dos destroços desfazendo-se. Ao longe podia ser ouvido o alarme de
segurança. O carro destruído havia emitido o alarme do dispositivo de antirroubo. Em
cima dele, o gemido fino quase inaudível do Chuuya-sama caído.
“Ugh… u…”
A situação foi completamente invertida com o ataque do braço. A potência da
Habilidade de Verlaine era assustadora. Qualquer velocidade ou técnica não passam de
um truque barato diante da força do corpo fortificado de Verlaine pela pura Habilidade
gravitacional. Uma força temível.
Verlaine passou pelo buraco na parede e se aproximou de Chuuya-sama.
“Acorde, Chuuya. Sei que não está morto.” Verlaine disse ao seu lado. “Eu peguei leve,
afinal.” Dizendo sem reservas, Verlaine agarrou o Chuuya-sama pelo pescoço e o ergueu.
“Me… solta…”
“Me faz soltar.”
A mão de Verlaine que o segurava começou a ondular. Detecção de flutuação no índice
de refração atmosférica devido à radiação de calor. Isso é mal.
“Chuuya-sama! Fuja!”
Esta máquina aumentou a potência dos atuadores das juntas em várias partes do
corpo. Cada junta emitiu uma oscilação ao mesmo tempo que esta máquina explorava a
frequência de ressonância dos destroços me envolvendo. Em cada um deles há uma
frequência que amplifica sua vibração. Se passar esta frequência de vibração para o
motor interno, deve dar para ir destruindo os destroços aos poucos.
Mas não há muito tempo. A cabeça do Chuuya-sama está transmitindo ondas
gravitacionais. Uma quantidade de calor absurda está emergindo de um inferno invisível.
“Controle a você mesmo. Controle a Habilidade.” As frias palavras de Verlaine ecoavam.
Chuuya-sama gritou. Chamas negras jorraram de sua boca junto ao grito. A pior
situação possível.
Assim como no outro dia, se um buraco negro fosse gerado pelo Arahabaki, toda a
delegacia seria comprimida num tamanho menor que um dedo e desapareceria. Levando
o Shirase-san e esta máquina juntos.
“O que foi, Chuuya? Deste jeito, todos morrerão. Você irá matá-los. A sua imaturidade
irá. E depois não restará mais nada. Vamos testar?”
Nessa hora ── dois tiros. Um buraco foi aberto no braço de Verlaine.
“Chuuya! Você está bem?!”
Alguém gritou do fundo do estacionamento. No momento em que o poder do braço de
Verlaine afrouxou, Chuuya-sama chutou o peito dele e se livrou da restrição. Saiu rolando
com a respiração ofegante.
Quem veio correndo em sua direção foi o detetive da sala de interrogatório. Murase, se
não me engano. A fumaça de pólvora ainda subia do revólver em sua mão.
Tossindo sem parar, Chuuya-sama encarou severamente o detetive.
“Detetive… Por que você veio?! Saia daqui!”
Verlaine olhou curioso para o buraco em seu braço causado pela bala e depois para o
detetive, dizendo, “Finalmente veio.” Foi uma fala estranha.
Verlaine se virou para o Chuuya-sama. Os raios de alta energia e as ondas
gravitacionais desapareceram. Chuuya-sama ficou a postos.
“Chuuya. Acho que nem preciso te dizer, mas os fracos não conseguem nada. Se você
lutar como está, perderá e as chamas do Arahabaki engolirão esse lugar. Centenas de
pessoas morrerão novamente.”
Essa fala não era uma ameaça nem uma intimidação. Sua voz estava completamente
tranquila e sem emoção. Ele apenas relatava o que aconteceria daqui para frente.
“Não vou deixar.” Chuuya-sama disse grunhindo.
“Sim. Não vai.” Verlaine disse algo inesperado. “Sabe por quê?”
Antes que Chuuya-sama pudesse responder, Verlaine voou. Ele cancelou sua própria
gravidade e pousou de ponta cabeça no teto da garagem. Voando novamente, ele parou
num ponto atrás do Chuuya-sama.
“Com isso, o trabalho de hoje termina aqui.”
Verlaine estava agarrando o pescoço do detetive.
“Pare!” Chuuya-sama correu.
A boca do detetive abriu tentando proferir algo. Mas as palavras não foram geradas.
Sua boca deu meia volta junto a um som abafado, sendo virada para o lado das costas. O
corpo do detetive atraído pela força do pescoço sendo girado, virou junto. E caiu.
“Merda!” Chuuya-sama acelerou.
A expressão dele abraçando o corpo do detetive era de quem havia compreendido tudo.
Detectei os batimentos com o scanner de longa distância ── Sem batimentos. Foi morte
instantânea.
“Malditoooooooo!”
Chuuya-sama pulou junto com o grito. Seu punho direito elevado acertou Verlaine.
Assim que Verlaine o recebeu com ambas as palmas das mãos, houve uma violenta
explosão de luz negra. Os grávitons liberados foram propagados em ondas
gravitacionais ao redor, deformando a paisagem numa esfera.
A onda de choque gravitacional que se expandiu mandou os carros voando como se
fossem feitos de papéis. Sem se opor a ela, Verlaine voou para trás com o impacto e
aterrissou na saída do estacionamento.
“O soco de agora foi o melhor.”
Rindo, ele deu um salto para trás, desaparecendo da saída.
“Espere!”
Chuuya-sama foi atrás, deixando a delegacia. É perigoso. Ele não deve lutar com
Verlaine sozinho.
Esta máquina regulou as vibrações e foi destruindo os detritos. Consegui colocar o meu
braço direito inteiro para fora da parede. Bati nos destroços com o cotovelo, me
desprendendo aos poucos. 144 segundos depois, esta máquina se libertou. Pulei
apressado numa só perna até o detetive.
Ele estava caído de lado e sangrando pela boca. O resultado da minha exploração foi
dano da C2 até a C6 nas vértebras cervicais. Parada cardíaca. Sem reflexo nas pupilas.
Chamei uma ambulância por transmissão interna, mas era evidente que já não
adiantava mais. A preservação da vida humana se mantêm num equilíbrio muito
delicado. Diferente desta máquina, os humanos não têm o conceito de existência em
partes. Eles são construídos por um sistema extremamente dinâmico com dois órgãos
não redundantes, o cérebro e o coração. Se um deles para, é praticamente impossível
reativar. É impossível também repor as partes danificadas. Ou seja, os humanos são
extremamente fáceis de morrer.
Quando esta máquina o estava virando para escanear de frente, vi algo conhecido caído
no chão. Uma cruz de bétula prateada. Provavelmente o Verlaine que deixou.
Quando eu a estava escaneando, o Chuuya-sama voltou.
“Para onde o Verlaine foi?”
“Desapareceu pro céu.” Chuuya-sama disse infeliz, apontando para cima.
Provavelmente ele fugiu voando com a gravidade.
“Aqui também.” Esta máquina disse segurando o corpo do detetive. “Desapareceu pro
céu. Em termos poéticos.”
Esta máquina fechou os olhos do detetive que passou a ter o rosto de um morto.
“Droga!” Chuuya-sama gritou, batendo no peito do detetive. “Você não ia me prender?!
Ei, detetive! Você não ia me levar para o mundo do dia?!”
Ao que o Chuuya-sama bateu em seu peito, algo deslizou do bolso do sobretudo e caiu
no chão. Era um antigo celular dobrável azul. Um modelo familiar. Era exatamente o
mesmo modelo que o fornecedor arranjou para Verlaine.
Esta máquina o pegou e mostrou para o Chuuya-sama. Quando ele entendeu o que era,
deu um grito que não se tornou voz do fundo de seus dentes cerrados.
O Rei Assassino Verlaine. O seu alvo principal nunca foi o Shirase-san.
Então… por quê? Por que ele tinha que matar o detetive?