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Copyright © 2023 Tom Freires

1ª Edição

Todos os direitos da obra


DISQUE 999
reservados ao autor.

F866d Freires, Tom – 2000


Disque 999 / Tom Freires. -- 1.ed. –
Brasília – DF : recurso digital

ISBN: 978-65-00-60815-1

1. Ficção brasileira 2. Terror 3. Livros Eletrônicos


I. Título II. Freires, Tom

CDD – B869.301

ESTA É UMA OBRA INTEIRAMENTE FICCIONAL.


Qualquer semelhança com a realidade não passa de mera
coincidência.
São proibidos o armazenamento e/ou reprodução de qualquer
parte desta obra, através de quaisquer meios sem autorização
prévia do autor O autor está salvaguardado contra violações a seus
direitos de autoria, como estabelecido pela lei n° 9.610/98. Com
punição prevista no art. 184 do Código Penal Brasileiro.
Dedico àqueles negligenciados e subjugados
diariamente pelos maus e males de um mundo
caótico.
I

É um novo momento, o dia parece ser


favorável e tudo conspira a bons ares. Eu
estou tão ansioso – será que eu demonstro
isso? Pouco importa –. Como a vida é
tomada por coincidências; eu sequer
participaria daquele processo seletivo,
ocorreu há quilômetros de minha casa, mal
sabia eu que se tratava de uma vaga em
uma ótima empresa, com ótimos benefícios –
para alguém de minha idade ao menos –; e
o melhor de tudo, trabalharei a minutos
daqui, mal vejo a hora. E claro, sem contar a
carga, que é baixíssima, pouco mais de seis
horas por dia. Eu não entendi muito do que
se trata, apenas; mas pego rápido. É como
um serviço policial, sem pertencer à polícia,
sem poder fazer sequer algo próximo do
que eles fazem, isso tudo via telefone. E... ao
que entendi, denunciar impunidades sofridas
pelas pessoas, ou auxiliá-las com
informações concernentes a seus problemas
e situações. Eu fiquei em êxtase quando ouvi
isso. Sabe, estaremos ali para ajudar as
pessoas. Isto é magnífico! Nós receberemos
dinheiro em troca de filantropia. E quanto às
pessoas; todos lá parecem tão bons e
competentes no que fazem. Não tem como
dar errado. Espero aprender muito com eles.

23:30
Trimmmm! Trimmmm!
– Levanta meu filho, você precisa ir – disse
minha mãe pela brecha entreaberta da
porta. Sua voz é aveludada, mas um tanto
austera, acompanhada do pequeno fecho
de luz vindo da sala, que embora
enfraquecido pelos quatro metros até a
porta, para quem acordara há pouco era
um farol de luz imponente, que atravessaria
até as brumas mais densas em um mar
tempestuoso. Isto, é claro, realçava sua voz,
que a considerar o meu estado, chegara a
mim como o retumbar de trovões ecoando
das tempestades. Mas, segundos depois, por
um breve momento, encontrei-me absorto em
minhas ideias – ou na falta delas, melhor
dizendo – e repensei quanto à ideia deste
emprego realmente ser bom. Quero dizer,
não é nenhuma novidade que se contrapor a
anos de um comportamento tão comum à
nossa espécie possa acarretar inúmeros
problemas de saúde. Eu vi outro dia, que
pode transcorrer em problemas de memória,
peso, e até transtornos mentais. Ah, sei lá, no
fundo não creio que alterar o horário de
sono cause tantos males, basta substituir a
noite pela manhã e dormir o que
habitualmente eu dormiria. Mas ainda sim
isso circunda a minha mente. Afinal, eu sou
tão novo, não quero ter problemas de
saúde. Lembrei-me de pronto do meu antigo
emprego, do quão cansativo e mal
remunerado era. E, é claro; todos as
preocupações em relação ao meu novo
horário de trabalho esvaneceram-se. E para
esquecer de vez o que me preocupava,
lembrei-me que neste novo receberia um
valor adicional sobre cada hora, por ser um
trabalho noturno. E claro, a ideia de estar
desperto sob o crepúsculo me era glamurosa
de certa forma, desde que me dou por
gente. Vaguear enquanto todos acostam-se
sobre a cama e adentram em seus próprios
mundos é prazeroso para mim, traz-me uma
sensação de controle. As ruas estarão
vazias, o silêncio apazigua e o sol não
perturba. Eu odeio andar durante o dia, a
cada dois passos uma gota de suor escorre
pelos poros; ainda vivemos em um país
tropical. Quer saber; realmente, não há
problemas, como poderia, acho até que vai
ser uma experiência e tanto, a noite é mági...
– Meu filho. ACORDA!
– EU TÔ ACORDADO!
Saindo a braçadas largas de minha
abstração fito o visor do relógio, que indica
23:32. Impressiono-me, pois acreditei ter
boiado mais tempo desta vez. Não é nada
atípico que eu fique imerso em minhas ideias,
não digo nem ideias propriamente ditas,
mas um turbilhão de abstrações que se
condensam, destoam e buscam ilustrar-se,
causando amiúdes fugas de pensamento,
memória, foco. É péssimo, eu sei. Mas eu
consigo conviver. O problema é quando eu
tenho de esforçar-me para apartar sinapses
involuntárias causadas pela minha constante
inquietação.
Levanto-me às pressas – provavelmente às
23:33, pois há pouco olhei o relógio –. Visto
o uniforme, um tanto folgado para meu
corpo esguio, escovo os dentes, apanho o
espesso casaco, coloco duas meias, porque o
frio faz as janelas rangerem e assobiarem
com seus repetidos assaltos – típico do
semiárido brasileiro; o dia castigado pelo
calor flegetoral e uma noite ártica –.
Minha mãe me oferece carona, mas
dispenso; pois farei um percurso brevíssimo,
logo, não há com o que se preocupar. Ela
sendo cuidadosa como sempre, agracia-me
com um beijo em minha fronte e roga a Deus
que me guarde. Ela é bem religiosa, à forma
dela é claro; que é a minha preferida. Livre
de preceitos e alter egos inalcançáveis.
Apenas o mais puro e preenchedor dos
sentimentos. Eu sou demasiadamente cético e
tenho certa resistência às manifestações
religiosas de minha mãe. Porém, respeito-a
e aceito de bom grado suas graças
clamadas a Deus por mim. Pego minha
bicicleta, monto-a e já regelado pelo vento
tomo rota ao trabalho.
Ao adentrar o local sinto um misto de
alegria e medo, uma sensação quase
inexprimível. Um deleite receoso, coberto
por pavor; daqueles que gelam os pés,
mãos, fagulham de brasa quente o
estômago e te fisgam o miocárdio. Mas
pensei comigo mesmo – deixa de ser tão
ansioso e se acalma –. Ao passar pela
catraca de entrada fito à minha volta em
busca de um rosto familiar; sem sucesso,
todos pareciam estar em um ponto mais
interno.
Recordo-me de alguns, do período de
treinamento. Boas pessoas. Um deles era
alto, esguio, condescendente e um sujeito até
que educado, tinha uma fala branda e lenta.
Fernando era seu nome se bem me recordo.
Ele vivia ladeado de uma figura
extremamente rude, um descortês de berço
que faltava a educação com todos à sua
volta, mas em especial com seu
aparentemente melhor amigo, Fernando. A
amizade de ambos me intrigara
profundamente desde o primeiro momento,
e era notório que também aos outros. Como
é que um sujeito tão pacífico é amigo – o
único – de uma pessoa tão desrespeitosa?
Os mistérios da vida.
A vil figura é baixa, transparece amargura
em sua face, tem os ombros ornados pela
imensa cabeça oca e anda a passos curtos e
rápidos. Seu nome é Lucas. Mas a pessoa a
quem mais me afeiçoei foi Daniel.
Daniel era alto, não mais que Fernando,
mais ainda sim, alto. Tinha o corpo recoberto
por tatuagens, uma barba imensa e bem
cuidada, assim como sua cabeça. Faltavam-
lhe pelos, mas estava sempre brilhando e em
bons tratos. Seus olhos eram caídos e
mansos. Embora fosse aos olhos desavisados
uma figura ciclópica e amedrontadora, se
tratava de uma ótima pessoa. Foi gentil
comigo desde nosso primeiro encontro e
assim era com todos. Se Lucas era o mais
longínquo antônimo da educação e dos bons
modos, Daniel era o mais similar e adjacente
dos sinônimos.

23:43
Para minha sorte, o primeiro rosto que
avisto saindo de um pequeno corredor é o
de Daniel; cumprimentei-o e pensei em
comentar com ele se também não sentira
algo estranho ao entrar naquele lugar. No
entanto, não é lá o tipo de coisa que se
comenta com alguém que pouco conhece.
Alguém com quem compartilharei todas as
minhas noites sabe-se lá até quando. Não
sei; ele é um cara bacana, mas ainda sim
pode. E deve. Me achar um esquisito se eu
comentar algo desse tipo. Antes que eu
falasse algo, ele indaga:
– Cara, você tá bem?
– Ora. Por que não estaria?
– Sei lá. Tá pálido; branco igual essa
parede – disse ele apontando o indicador
para a parede ao lado.
– É que... – Balbuciei.
– Ele reticenciou-se franzindo o cenho –.
– Eu acho que estou um pouco ansioso, é isso.
– Ah! Nem me fale, somos dois. Acredita que
eu mal me lembro dos treinamentos? A sorte
é que parte da galera refrescou minha
memória. Caso contrário, eu atenderia
embolando a língua e falando que é da
pizzaria.
– Há!Há!Há! – Sorri exagerada e
educadamente. – Já faz o quê? Um mês? –
Indaguei.
– Mais ou menos isso.
– Mas afinal de contas. Aqui tá vazio! Onde
estão os outros?
– Eles já entraram! – respondeu dando-me
os ombros. Ou você acha que é o único
ansioso com o início? Mas não se acanhe,
estamos todos no mesmo barco. Toma um
café, vai se sentir melhor, a minha é aquela
preta – indicou com os olhos uma pequena
garrafa sobre a mesa –, aproveita. Vamos
começar à meia-noite. Te espero lá dentro
com os outros. Se apressa.

23:57
Tomei o café aguado em um gole só – após
ver a hora –, sem fazer desfeita e saí
trombando as cadeiras. Passei pelo
banheiro, ajeitei os cabelos e dali saí às
pressas buscando a sala que eu sequer me
dei o trabalho de perguntar para Daniel em
que direção ficava. Mas é um lugar
relativamente pequeno e com um só
pavimento. É impossível não encontrar essa
maldita sala. Ao sair deparo-me com os
vidros que precediam cocurutos abraçados
por uma curta haste metálica – operadores
– supus.
Para bem ilustrar, a maquete do local é
baseada em um grande retângulo, sendo
sua ponta inferior direita o acesso, seguido
pela copa, banheiros e sala n°1. O espaço
que entremeia os cantos inferior direito e
esquerdo, abriga a sala de reuniões. Ao
lado da porta desta sala, já na extremidade
esquerda, ficam distribuídas as salas de
treinamento, apoio psicológico e sala n°3.
Agora, a partir da sala de reuniões,
mantendo-se apenas ao meio, encontramos
a sala dos monitores, e o “aquário” central.
Onde ficam os gestores, sempre ladeados
por algum lambe botas. Na fronte das
cadeiras celestiais encontra-se a ampla sala
n°2.
23:59
Ao localizar e atravessar a soleira da sala
n°3 – que trabalharei –, identifico de pronto
vários rostos familiares do anfiteatro, de
quando ainda estávamos em treinamento.
Mas todos estavam em seus respectivos
postos, não os atrapalharia com
cumprimentos vãos e cavilosos. Enquanto
busco um posto vazio, fui espantado pela
sincronia com que uma única frase tomou o
lugar, espalhando para longe o silêncio que
ali repousava. E a cada momento ficava
mais e mais alta, uma voz atravessa a outra
e o barulho é ensurdecedor. A bendita frase
é:
– DIREITOS DO CIDADÃO, BOM DIA,
COMO POSSO AJUDAR?
A dissonância de vozes que retumba no
ambiente me faz pressionar a mandíbula até
sentir o fervilhar da pressão sanguínea em
minhas têmporas. E enquanto eu puxo a
maldita cadeira soube, elucida-se em minha
mente que não era uma mera impressão, a
repugnância exalava pelas paredes
daquele lugar, o que eu havia sentido há
pouco não era alegria, ou medo, mas sim o
retrato da cólera que a cada segundo
passado na local, mais se aflorava.

03:14
Agora que o fluxo de ligações diminuiu,
noto que as primeiras ‘panelas’ começam a
se formar, e há mediocridade para todos os
lados. Alio-me logo aos que se mostram mais
decentes. Afinal, eu não me dou muito bem
com quem quer ser mais do que realmente é.
São aqueles descritos no famoso provérbio:
“dar passos mais largos que as próprias
pernas”. Minha mãe ensinou-me desde bem
cedo a procurar evitá-los ao máximo e é isso
o que cá farei.
Alguns se postam como superiores por
exercerem funções simbolicamente
“superiores”, e pasmem, já noto isso em meu
primeiro dia.
Mesmo em meio a carrancas ambulantes,
encontro pessoas aparentemente decentes,
como Fernando, Daniel, Otávio e Guido.
Fernando e Daniel dispensam apresentações
a esta altura. Mas, no que concerne a Otávio
e Guido nada contei-lhes.
Pois bem. Otávio, Guido e Daniel têm a
mesma estatura, variando entre um e dois
centímetros. Otávio e Guido são muito
bonitos e arrancam suspiros. Otávio tem uma
cabeça ornada por madeixas castanhas e
cacheadas, enquanto Guido ostenta uma
longa cabeleira negra e ondulada que
repousa em seus ombros. Ambos com a
barba por fazer e dotados pelo bom gênio.
Dentre todos, estes são os mais espontâneos
e cômicos. Não é à toa que todos facilmente
afeiçoem-se a eles.
Creio de fato estar aliando-me aos mais
agradáveis e decentes, acho que não terei
problemas em passar todas as noites aqui,
ao lado de figuras que tanto se discernem,
mas tanto se semelham. E quanto ao
trabalho, não sei. Se mostra muito
estressante, mas ainda sim é bem menos
cansativo que o meu anterior – muito menos
–. Se aqui me quiserem, aqui ficarei. Mas eu
ainda tenho uma má intuição sobre esse
lugar, sobre essas pessoas. Posso ter me
recoberto com as boas, mas não quer dizer
que não haj...
– DIREITOS DO CIDADÃO, BOM DIA,
COMO POSSO AJUDAR?
II
20:23
Passaram-se dois anos desde que eu
escrevi sobre meu primeiro dia naquele
maldito lugar. Ouvir absurdos em todos os
ângulos possíveis tem sido uma das piores
experiências que já vivi. Tenho tido
problemas para dormir; relacionados à
memória e reações discrepantes de raiva.
Descobri nos últimos meses que a assistência
psicológica daquela corporação de crápulas
é uma bela porcaria – isso quando atendem,
porque eles gostam mesmo é de dormir –.
Alguns riem da sua cara, outros bocejam
enquanto você tenta externalizar os males
que lhe afligem. Chega a ser irônico! Estas
coisas acontecerem justamente naquele
lugar. Mas a maior das hipocrisias está nas
campanhas motivacionais que fazem no
decorrer do mês, pregando hordas de
discursos falsamente benevolentes. Pagar
por um tratamento é demasiadamente difícil
com o salário irrisório que recebemos. Eu por
exemplo cheguei a fazer algumas consultas,
mas não tive condições financeiras de dar
andamento. Temo pelo mal que pode advir
daquele lugar. Das dores condensadas nas
particularidades de cada um dos que
comigo laboram e de minha amizade
gozam. Temo por sua saúde e por suas vidas.
Ao longo destes dois anos, ouvi coisas
horríveis e descobri de fato, que o mal está
à espreita em todos os cantos que se possa
imaginar. Ela está no bairro vizinho, como
aponta o noticiário das seis. No moço da
padaria, dobrando a rua nove. Confinada
nos muros da escola; seja dentro da sala de
aula, ou no úmido depósito do zelador. No
vizinho de olhos à espreita, ou nos sedentos
e depravados olhos de um pai.
Entrar em um contato mais próximo com a
perversidade do mundo é o abrir de olhos
que desconhecem a luz; seguido do ecoante
breu que te sussurra aos ouvidos e
paulatinamente esvai-te fragmentos da
vida. É expor o âmago ao absoluto flagelo
e a ele apenas. A lucidez cai grão a grão
pela curta silhueta da ampulheta; enquanto
você resiste ferozmente à airosa insanidade.
Um dos muitos relatos que ouvi neste
período, foi o de uma moça, que acusara o
pai de mantê-la em cárcere. No momento
não credibilizei muito seu relato, porque o
tempo de experiência acaba “calejando” e
dando certa expertise para discernir casos
verídicos de inverídicos – sim; existem
pessoas que por alguma razão doentia têm
como hobby fazer denúncias vãs –. Vejam
bem, não fazia muito sentido uma pessoa
que era mantida em cárcere ter acesso a um
telefone celular, isso só acontece em filme. E
por que é que ela ligaria para um serviço
“secundário”, digamos. Ao invés de
prontamente ligar para a polícia,
aproveitando o descuido do sequestrador.
Por que é que ela falava de forma tão
apática em relação ao que sofrera? Algo
não me convencera. No entanto, eu teria de
atendê-la, era o meu trabalho.
Reduzi um pouco os níveis de desconfiança
e pedi para que ela me dissesse tudo o que
havia ocorrido, até incidir naquele momento.
Ela informara estar num cativeiro em meio à
vegetação fechada; uma cabana,
provavelmente longínqua, considerando a
descrição da área que a beirava. Mas não
tão inacessível, pois o bendito celular tinha
sinal. Quanto à localização do local, era
uma completa incógnita. A jovem nunca
havia ido muito além da soleira – fato que
ocorrera apenas há poucos minutos –;
conseguia saber se era dia ou noite a
considerar as oscilações de temperatura ou
a tonalidade da luz que transpassava as
rangentes frestas de madeira tomadas por
fungos, que alicerçavam aquele nefasto
casebre que lhe cobrira.
Após mais de cinco minutos consegui extrair
pouquíssimo daquela moça, pois havia sido
levada para o local quando ainda tinha
doze anos de idade. Ela disse que é do
município de Feijoal-AM, e que lembrou do
número – 999 – porque quando ainda
frequentava a escola o vira em um adesivo
no portão de acesso. A memória era clara
em sua mente, por ser do último dia que
gozara de certa “liberdade”. Antes do pai
subjugá-la, enclausurá-la e isolá-la do
mundo. Perguntei é claro como ocorrera, e
ela displicentemente respondeu-me. O
canalha passou a olhá-la com outros olhos;
olhos famintos, depois que seus seios
começaram a tomar forma e seu corpo como
um todo passou a ganhar os nuances e curvas
do de uma mulher.
Desde a tenra idade, o pai lavava-lhe a
genitália com uma pressão mais elevada,
fator que ela acreditava se dar pelo pai ser
homem e não ter a devida sensibilidade e
cuidado que uma mulher teria, que uma mãe
teria.
Ele parecia paulatinamente querer
dominá-la e objetificá-la. Sempre foi muito
restrito em relação à filha, mas isso
evidentemente havia se agravado no
decorrer daquele último ano. Ela se sentia
desconfortável na presença do facínora,
sentia que ele a olhava asquerosamente,
sabia que havia em sua face uma impressão
maligna, que temia imensamente; mas
incompreendia.
O porquê dos pressentimentos ficou nítido
no dia em que ela se banhava e reparou
sons repetitivos vindos do lado de fora – o
banheiro era externo, usado apenas para
banho, comum no interior –, pensou ser
algum bicho, ou qualquer outra coisa
efêmera e ignorou. Mas, o ruidoso som se
intensificou e passou a ser acompanhado por
arfadas agudas, até que ela perscrutou os
contornos do pano que cobria a entrada do
banheiro – suspenso com o auxílio de dois
pregos – e lá avistou; no canto inferior
esquerdo, algo com um leve brilho, isto
assustou-a instantaneamente causando uma
abrupta lufada pela contração do
diafragma. Foi arqueando-se levemente
para a frente e fitando o ermo com muita
cautela, até dar um grito acentuadamente
agudo ao notar que se tratava de um olho,
um olho faminto, arregalado e sedento. Ela
afastou o pano para a direita e lá estava
aquele doente; flectido, que novamente
assustou-a, mas agora com grunhidos
guturais enquanto tremia e se retorcia de
prazer ao ejacular. Ela olhou com um misto
de assombro, nojo e repulsa. Enquanto ele,
asmódico, a observara como uma pequena
presa, acuada e agora sem escapatória.
O maldito decrépito levou violentamente
sua mão à boca dela; uma mão grossa,
enrugada, com um cheiro forte e ácido; era
a mesma com a qual ele desesperadamente
se deleitava observando-a. Ele arfava em
seus ouvidos como um animal em completo
descontrole, enquanto buscava seu olhar com
aqueles olhos, olhos famintos, ardentes como
brasas infernais.
A reles figura agarrou selvático às ancas
da garota, dizendo que se ela emitisse um
som sequer, viraria merda de porco antes do
alvorecer.
A pobre garota embora trêmula de medo
tentou se livrar das garras daquele maldito
animal, mas logo foi surpreendida com um
frio intenso que lhe arrepiou o espinhaço. O
imenso facão que o velho carregava para
todo lugar adornando-lhe a cintura, agora
dançava em volta daquele pequeno pescoço
juvenil.
Paralisada pelo medo daquele assalto,
sentiu-se vazia, um frasco de cristal
maculado e enlameado pelo porco pai. O
repulsivo pai. Que agora lhe roçava
asquerosamente. Sentiu penetrá-la uma dor
aguda, profunda e alastrante. Teve a
sensação de que se urinava, decorrida do
imediato enfraquecimento de suas pernas;
isso consolidou sua impotência diante da
violência que a vitimou. Os fugazes acochos
levavam dela a vontade de viver e
causavam-na repulsa de si própria. Este foi
o início do que seria uma desgraça diária.
Como tudo acabou naquele cativeiro?
Eu já chego lá!
O senil dos infernos, como eu disse, era
extremamente possessivo e passou a recear
que a garota abriria a boca e explanaria a
alguém suas frequentes visitas noturnas –
desde aquele banho – a outrem. A menina
passou a ser uma escrava sexual, que era
obrigada a satisfazer as vontades
degeneradas do pai.
O velho não era otário – supus – e sabia
que cedo ou tarde a tormenta o acudiria. Ele
temia que notassem o comportamento dela e
pressionassem-na a falar o que a afligia.
A arma do patife era o medo. Ele sabia
que quando ela percebesse, não hesitaria.
Acuado pelo medo de ser preso que com
ótima disposição o permeava, ele decidiu
que precisaria agir. Afinal, ele sabia o que
fariam lá, com alguém da laia dele. Seria a
sentença dele ao décimo inferno. O cu do
filho da puta teria cada prega estourada e
dilacerada. Se ele fosse bem sortudo o
matariam. Caso contrário, ela veria de longe
o topo da cadeia, enquanto os grandes
predadores o devorariam dia após dia, das
mais inexprimíveis formas.
Eu obviamente não consigo precisar
quando o velho teve a desesperadora ideia
de sumir do mapa com a filha, mas o porquê
imagino. Ele com certeza notara; e vira o
risco de expô-la por aí alguns meses mais.
A trama foi iniciada por volta do mês seis
de 2012, a partir de algumas informações
por ela relatadas. Sei que seu último dia na
escola foi marcado por um acontecimento um
tanto curioso; deveras curioso na verdade. O
amundiçado buscou-a na porta, dentro da
lata velha ruidosa que ele tinha. Uma
caminhonete caindo aos pedaços, de cor
vermelha e tomada por ferrugem. Ela viu de
longe o sorriso pútrido e asqueroso, com um
abrir nada convidativo da porta do carona,
dizendo ter uma surpresa, uma surpresa que
ela amaria. Sentou-se receosa no banco do
carona, mas tomaram viajem. Ela estava
curiosa, mas completamente amedrontada;
desde que o pai a violara, ela temia ser
morta, para ser silenciada. Temia que o
velho não acreditasse que ela fosse calar-se
de fato quanto aos abusos. Ele pegou o
acesso à autoestrada e cerca de vinte
minutos depois parou o carro no
acostamento. Sair dali viva já era uma
esperança distante demais para que ela
alimentasse, buscou pensar na morte como o
derradeiro abraço consolador, que a
levaria finalmente à presença da mãe, que
jamais vira. Ela inspirou profundamente
enquanto encarava o porta-luvas. O velho
fitou-a, e levou a desagradável mão por
entre seus cabelos, penetrando-a com o
olhar. Mas aquele, estranhamente, parecia
ser um olhar sereno e de redenção. Ela
timidamente e como tamanha dificuldade
buscou o olhar do homem que a tanto fez
sofrer, e em fissuras de tempo viu o pai se
lamentando e pedindo perdão pelas
atitudes torpes e vis, suplicando seu amor
natural. Mas isso não aconteceu, ninguém
falou sequer uma palavra por minutos; até
que a face cadavérica do velho foi
esticando-se em um sorriso diabólico, o
verdadeiro retrato do desgraçado. A
garota mal reagiu ao medo exponencial que
a tomara, porque teve a têmpora
brutalmente desferida contra o painel.
Quando acordou, já estava na cabana que
seria seu lamurioso lar pelos próximos anos.

21:00
Trimmmm! Trimmmm!
– REMÉDIO – alertava o visor da tela.
Bem, onde estávamos?
Ah! Sim!
O abominoso pai no decorrer daqueles
quatro longos anos passou a tratá-la
definitivamente como um bicho. E a lascívia
feroz que emanava do velho mostrara-se
pior, pois ele a amarrava na cama para que
não houvesse resistência às suas vontades
torpes, penetrando-a abrasivamente,
enquanto a sodomizava com o cabo de seu
facão, recoberto por uma sacola untada em
banha de porco.
Todos os acontecimentos tinham um
observador, um observador que talvez
sequer entendesse a profundidade e
perversidade daquilo que fitava tão
atentamente. Ele foi concebido cinco meses
depois do despertar confuso da garota. O
fruto de uma união inatural; lá estava,
perscrutando cada ação doentia do ignóbil
velho. A pobre criança de quatro anos mal
era capaz de falar, nunca vira nada além
da insalubre e precária cabana. Vira
apenas as intermináveis árvores
emaranhadas até onde a vista se limitava;
tudo pelas frestas do casebre. O mais banal
é que o único entretenimento da criança era
ver o pai-avô violentar a mãe das mais
diversas e sádicas formas. O maldito senil
era uma tentativa do diabo de personificar
a si e aos outros seis grandes pecados. Com
toda certeza o maldito era a placa de pétri
do capeta. Mas bem. Tudo isso se findava –
de certa forma – naquela noite, na ligação
que eu recebi no dia 13 de Julho de 2016.
O velho não vacilou em relação ao celular,
mas sim em outra coisa. O problema do
velho foi sua insaciável lubricidade, e em
desafiar o que desconhecia, aquilo que
jamais ofertara à filha. Aquela criatura
abominável era demasiadamente nefasta,
ao ponto de não compreender em qualquer
instância o que de fato é amor. O amor é um
sentimento profundo e ímpar, eu não me
darei o trabalho de tentar exprimir, porque
seria impossível. Mas é como o alvo e
benevolente olhar de uma mãe ao filho. É
findar o viver se preciso; sacrificar-se para
ser.
Eu não falava mais com uma pessoa, aquela
pobre jovem morrera há muito tempo. Isso
pesou sobre mim. Os dois últimos anos me
mostraram que aquele lugar não ajuda
ninguém, sequer se esforçam para isso. É
apenas um jogo de interesses, sabe? Uma
corporação privada que entrega os números
que o governo quer. Somente. Pessoas são
números. Eles não se preocupam com os
casos reais; querem infindáveis registros que
jamais darão em lugar algum, para que
recebam mais e mais. No entanto, existem
pessoas reais, com problemas reais. Eu notei
que passei a compor aquele sistema que
tanto aprendi a odiar; eu passei a ser o
reflexo disso tudo. Eu tratava com descaso a
maioria, por conta de uma minoria. Eu
transmitia o meu ódio pelo lugar nas pessoas
que eu deveria acudir, ajudar; fazia de uma
forma velada – na maioria das vezes –, mas
fazia. Eu não poderia ajudar ela, eu seria
punido se fizesse um registro com tamanha
lacuna de informações – de localização –. Eu
desejei profundamente que aquela moça
fosse uma maluca desvairada que tivesse
aquilo por hobby, não era lá tão
infrequente; mas dificilmente ficavam tanto
tempo em linha. Aquela voz opaca e apática
me trazia a vontade de abraçá-la, de
entoar uma canção e dizer a ela que tudo
ficaria bem, que tudo aquilo era um sonho, e
que ao acordar, nada mais a assombraria.
Mas eu evidentemente não podia, e aquilo
começou a me consumir. Fui de encontro à
minha completa impotência. E esse
sentimento, para que trabalha ali é era
deveras perigoso.

21:23
Hunnn! Hummm!
Bem. Peço desculpas, achei necessário
parar um pouco para contar o resto, mas
receio que já tenham presumido. O pai-avô
quis “saborear uma nova presa”. Sim, ele
estuprou a criança. O mais impressionante é
que ela sequer apresentou resistência, ou
aversão a tal situação. De alguma forma a
criança se habituou aos frequentes abusos
sofridos pela mãe, não entendia o grau de
perversidade que havia naqueles atos. A
criança quis replicar, ela quis reproduzir o
que sempre via. Eu não quero descrever tudo
o que ouvi, porque aquilo me levou quase
que a um ápice fisiológico. Minha cabeça
rodava e meu estômago se embrulhara por
completo... Eu ouvi diferentes casos de
estupro ao longo destes dois anos, mas
aquilo foi intragável. A macha psicológica
feita naquela criança era incurável. Poderia
ali ter nascido outro maníaco, assim como seu
inatural genitor? Eu sinceramente não sei, e
ainda tenho náuseas ao pensar sobre. Mas o
apogeu foi o que precedera a ligação.
O velho chegou bêbado e com raiva ao
findar do dia – o que era atípico –. Trouxe
consigo alguns suprimentos, deixou-os à
soleira e foi prontamente em direção à
cama, onde estava a jovem. Ele a mantinha
atada pelas mãos com dois trapos velhos e
um grilhão prendendo-lhe o pé esquerdo à
haste metálica que ornava o móvel velho.
Para dar uma maior liberdade de
movimentos, ele abria o grilhão e deixava-
lhe a perna solta.
Após se satisfazer o velho olhou para a
criança, que retribuiu o fitar, com olhos
perturbadoramente fulgurantes e famintos.
O velho reconheceu aquele olhar, e a jovem
também. Ela já não reagia de nenhuma
forma há anos. Já havia aceitado que
aquele seria seu fim, servindo eternamente à
lascívia exacerbada de seu maléfico pai.
Sua alma já não habitava aquele corpo, se
um dia foi alguém, já não mais se recordava.
Um ser rebaixado a ente. Carregava
consigo uma tristeza imensa, acrescida por
ter posto no mundo aquela débil criatura
que a olhava todos os dias, durante todo o
tempo sem dizer uma palavra sequer.
Sentia-se responsável por sua desgraça, e
pela desgraça de seu pobre filho. Preferia
morrer a ver o filho sofrer o que tanto
sofrera. Mas aquele olhar, foi um golpe
profundo demais; ao ponto de reavivar a
chama do pavio que há muito se apagou.
Sob um furor agudo ela forçou seus punhos
contra os trapos que a amarravam – embora
velhos eram muitos espessos, e o velho havia
dado muitas voltas –, ela falhou e o velho riu
sobreolhando-a com o contorcer daqueles
olhos em uma amaldiçoada volúpia. Ela
gritava e tropeçava em um emaranhado de
sentimentos, como se estivessem
adormecidos, inativos, tendo agora vindo à
tona.
Ela dilacerou o crânio daquele desgraçado
com os membros que a natureza a
presenteou; como ocorrera? Ela ainda não
conseguia descrever com grandes detalhes;
disse ter tido a sensação de que uma bomba
explodiu em sua cabeça – algo fácil de se
imaginar, tendo em vista tudo o que passara
–.
A ligação foi encerrada após um último
relato, em que ela dizia ter sido
abandonada por todos nós – a apatia
colossal em sua voz era desoladora –. Por
muito ela havia esperado, chorado,
suplicado e rezado; mas Deus tampou os
ouvidos e vendou os olhos às suas preces.
Ninguém jamais notificou seu
desaparecimento, que visivelmente foi
facilmente encoberto pelo atroz pai.
Incontáveis foram os dias e as noites em que
ela sonhou com a chegada de luzes rubras e
azuladas iluminando as frestas daquele
casebre. Mas isso nunca ocorrera. A presa
teve de ir à caça e agora era tarde demais.
Tarde demais para sua pobre criança; pois
aquilo não poderia mais viver, naqueles
olhos já chamejavam uma insaciável fome. –
Eu darei fim a tudo – disse ela precedendo
o fim daquela ligação.
Esta ligação me marcou muito
profundamente e me fez muito mal; mais até
do que eu próprio possa mensurar. Algo
passou a se desordenar desde aquele
encerramento abrupto e misterioso. Muito
passou a me perturbar e a me permear
diariamente. Gradualmente passei a ser
arrancado do senso comum de realidade,
moralidade; bem. Absolutamente tudo foi
alterado. Minha primeira consulta com um
psiquiatra foi três dias após esta ligação,
porque nada em toda a minha vida
perturbara-me mais que ela.

360 joules podem trazer de volta os batimentos


a um coração cansado. Mas podem acostar um
coração enérgico.
III

Cá estamos, cinco magníficos anos depois.


Hoje. Meus nobres leitores; é um dia para
comemorar. Hoje é o dia em que um ciclo
muito importante se encerra e um deveras
superior inicia-se. Uma supernova varrendo
os céus, para destruir uma só estrela. Mas
isso não é importante agora.

Pois bem, digníssimos filhos da puta; muitas


coisas graciosas ocorreram nesses últimos
anos e eu não quero que fiquem de fora; a
não ser que queiram, mas não é lá uma
escolha muito inteligente já que chegaram
até aqui.
Inúmeras desgraças me ocorreram. A
cólera e a dor lacerante das palavras não
ditas que me inundam acarretam boa parte
delas. A felicidade que acompanhava de
mãos dadas às notas por minhas pregas
emanadas já não mais existe. É ruim ver
criaturas serem corrompidas ao longe, mas é
duríssimo acompanhá-la em seu âmago. É
doloroso testemunhar o verter das densas
lágrimas que cobrem a secura de um
coração infértil, um coração que jamais
tornará a florescer. A angústia desoladora
da solidão que constantemente vocifera aos
cantos e brechas com o mais absoluto
prazer. A ruína da composição; o desvair do
florão rebaixado às fagulhas torpes e vis do
ódio e do descontentamento. Os gritos
guturais e o esperneio de uma alma
clemente ansiando pela aurora, pelos
gracejos que somente o dia pode curar. O
frenesi oriundo do caos latente que lhe
perturba os sentidos e sussurra aos ouvidos
que eles pagarão por lhe terem tirado tudo,
em uma barganha tão baixa quanto o
Cócito; dando-lhes um excelentíssimo
repouso abaixo daquele julgado ao frio
cabal das profundezas de seu reino.
Fui jogado à lamúria pela filha do fogo,
que me acariciou a cabeça elogiando toda
a minha beleza e magnitude em meio às
ordinárias criaturas que ali me ladeavam.
Todavia, a harpia devorara-me aos poucos
sem que eu pudesse ao menos notar.
Quando caí no áspero véu da realidade,
fora eu reduzido às traças de ferinas
bicadas enquanto enroupara-me sob suas
longas e desgrenhadas asas. O clarão
tomara-me a visão, e deparei-me com
aquela maldita depenada aos meus pés,
embebida em seu fétido sangue. Eu ataquei-
a no mais agudo furor e dilacerei-a com
minhas próprias mãos. Catei-a pela cabeça
e desferi sua cabeça contra as vigas que
alicerçavam o local na mais cruel e atroz das
ações. Os minúsculos pedaços de seu crânio
ainda comichavam em minhas mãos ou eram
distribuídos em lascas por todo o chão. Sua
massa encefálica era pouca e asquerosa;
distribuíra-se por todo aquele chão limpo
recentemente. Ah! Aquele alvo chão parecia
mais um quadro modernista. No mais, quem
daria falta de uma maldita harpia?
Após a queda de uma, este guerreiro
ascendente que vos fala teve de enfrentar
outra ímpia criatura. Esta era bela e tinha
olhos ardentes, dotada pela boa oratória e
exímia eloquência, ela era lírica como os
cânticos celestes e penetrava a mente
daqueles que apenas com os olhos a via.
Assim como o príncipe dos céus ao inferno foi
ateado, com ela o mesmo fiz. Reparem, por
favor, reparem. Quando o mal toca à sua
porta você não pode esperar que ele se
semeie, deve logo podá-lo. Imediatamente.
Eu fui demasiadamente imponderado e
inclusive deixei aquela criatura espalhar-se
por demais. Não obstante, recuperei o
tempo perdido arrancando-lhe a vida que
irresponsavelmente foi-lhe concedida,
enviando aquela criatura às suas
profundezas abissais.
Uma criatura que feria pela boca, por ela
morreria. Atá-la os membros e calá-la foi
decepcionante simples, eu tive de fazê-lo
pois caso contrário poderia acarretar em
grandes problemas e isto arruinaria por
completo a minha festa. Afinal de contas, eu
queria deleitar-me; era um dia de
regozijarmo-nos – como foi eu não vou
contar; vocês já querem informações demais,
façam vocês –. No mais, acreditei também
que seria de suma importância tolhê-la de
todos seus sentidos – não me perdoaria em
saber que eu a tive em minhas mãos e deixa-
a escapar por não perscrutar os pormenores
–, disso eu cuidei bem. Sabe, não quero me
gabar, mas a precisão cirúrgica com que
cortei ambos seus punhos sem causar
nenhuma hemorragia foi, digamos;
excitante. Suas córneas e cristalinos
captaram como última entrada de luz duas
canetas velhas fincadas com o mais profundo
êxtase. Hi!Hi!Hi! Não contive minha alegria,
cantarolei e dancei uma de minhas árias
preferidas – la donna è mobile, de Giuseppe
Verdi – enquanto balançava as mãos – como
aqueles maestros engomados fazem –.
Ahhhhhhhhhh!
FOI INCRÍVEL! – Jamais façam sem o
auxílio de um responsável –.
Enchi a boca daquela desgraçada com
tanto chumbinho que ela morreria em outras
dez vidas. Mas como eu temia que aquela
criatura execrável não morresse, amarrei-
lhe um trapo – de suas próprias vestes – que
fixava sua mandíbula à maxila, amarrada
ao topo de sua nevada cabeça; enquanto
outra mordaça cobria-lhe externamente a
boca e fixava-se com um denso nó na nuca.
Estapeei-a repetidas vezes para que
acordasse, eu queria expectar sua ruína.
Queria sim. Mas aquela merda demorou
demais e eu espalhei gasolina por todo seu
corpo, sem perder um milésimo de segundo
sequer, iniciando antecipadamente o meu
show. Não foi difícil, levei quatro litros de
gasolina na mochila, distribuídos em duas
garrafas – dessas de refrigerante – e um
lindo cutelo que comprei na internet. A ideia
era fazer tudo com minhas próprias mãos,
mas qualquer ajuda é extremamente bem-
vinda. Somente precisei esperar todas as
almas hostis se reunirem naquela cúpula
pestilenta e profana. Quando assim fizeram,
sabotei as travas de acesso, impedindo que
qualquer um deles entrasse ou saísse. Pude
então atrair aquelas duas criaturas a uma
sala oposta e subjugá-las.
Voltei à área onde deixávamos nossos
pertences, e munido de minha mochila
retornei à presença daquela criatura, a que
ainda labutava pela vida. Perscrutei
novamente os arredores para certificar-me
que todos estavam sob controle e fui assistir
à lenta morte daquela criatura inatural, mas
ela insistia em viver e então recorri ao plano
b, daria a ela uma morte mais CALOROSA.
Não ter uma saída de emergência sempre
foi visto por mim como um problema, mas
agora noto que fui agraciado com uma
dádiva de nosso pai para expurgar aquelas
pobres almas que se definham em lamúria.
Há!Há!Há!Há!
BOBAGEM, IMBECIS!
Ao passar pela porta espalhando a
penúltima garrafa sobreolhei os cocurutos
de Fernando e sua puta murmurante que não
lhe arredava o pé. Pensei que talvez
Fernando não fosse digno de meu show.
Bobagem. Aquele merda era sim! Com sua
condescendência me fez tanto mal quanto
àqueles outros, à escória nojenta, àquela
prole infernal. Mas uma torrente de
indagações tomou-me a mente:
Como é que tudo isso pode ter começado
bem?
Como foi que chegou aqui?
Aonde estão os outros?
Aonde estão os outros?
Por onde é que andas tu Otávio?
E quanto a Guido?
Aonde está?
Aonde estás tu Guido?
O QUE ELE PENSARIA DISSO?
O QUE ELE PENSARIA DE VOCÊ?

QUEM É VOCÊ?
O QUE É VOCÊ?
Amei-o como um irmão e agora não o tenho
mais. Outro maldito que me abandonou e
condenou-me à ruína. Danem-se todos esses
filhos da puta. Que Guido assista tudo do
inferno! Será um baita entretenimento.
Hi!

Hi!Hi!
Hi!Hi!
Ho!Ho!Hô!Hô!
Fui ao banheiro uma última vez para ajeitar
os cabelos. Ao sair, caminhei cautelosamente
até a entrada com a última garrafa, mas
notei que estavam tentando sair da maldita
sala onde tranquei-os. Apressei o passo, e
fui para a entrada a qual embebedei com o
fim de seus tormentos. Dirigi-me à porta e
risquei o fósforo. Um estrondo ecoou e uma
massa densa de calor empurrou-me contra o
chão. Estava feito. Eu ouvi os prantos e
clamores dos que agora queimavam e
pagavam por seus pecados. Pagavam pelas
pessoas que haviam sido; morrendo
sufocadas com a fumaça gerada pela
combustão de seus próprios corpos. Os gritos
tilintavam em minha mente. Um coral
vociferando a dor gutural que escaldava
suas entranhas e lhes beijava a pele. Eu os vi
ao longe, mas eles não podiam atravessar a
cortina de fogo que tomou todo o acesso da
central. Eu testemunhei as labaredas de fogo
agraciá-los com uma última valsa. Caí de
joelhos e entrei em prantos irresolutos que
pendulavam entre o arrependimento, o
êxtase e o prazer. Uma parte de mim
arrependera-se, outra vangloriara-se
afogando-se em risos.
Complexo Penitenciário da Papuda
Ala Especial Para Criminosos Potencialmente
Insanos
Brasília - DF
13/05/2019
Querido amigo,
Deixo uma carta para minha amada mãe e
outra para ti. Faço isso pois quero que
saibas que jamais farias a ti algum mal.
Não houve coincidência. Vi naquela fatídica
data que tu não trabalharias, tu não eras
digno de meu show nobre amigo. Tu agora
és de nós o último que restara. Clamo-te
que mantenhas em teu coração os melhores
momentos dos quais vivemos.
Amada mãe,
O maior fardo de minha vida novamente é
tu quem carrega. Tua lamúria e angústia
são fruto de minha loucura desvairada. A
beleza que tu carregas em tuas ações
demonstra a grandiosidade de teu espírito
mamãe. Sofro, por saber que iremos para
lugares díspares. Tu estarás segura sob os
braços do criador, e eu serei condenado à
regelante asa esquerda de seu filho. Adeus
mamãe! Deixo este mundo carregando
comigo por toda a eternidade o
imensurável e inenarrável amor que por ti
sinto.

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