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NO FUNDO DO CÉU

LONGO
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Imagino as Portas do Céu como uma receção nublada;


máquinas de fumo escondidas que cobrem os pés de quem entra. É
um hall moderno, mas São Pedro permanece de túnica branca. Não
o vejo, mas sinto que existe um ar-condicionado; as nuvens de
fumo branco são convulsas, como a corrente de um mar que se
assoma bravio.
……..
«Levanto-me para ir buscar uma cerveja.»
……..
Regresso e peço um isqueiro ao senhor Miguel, homem que
acabei de conhecer e de quem já dependo. Foi por culpa dele e da
Dona Céu que a descrição foi interrompida; e pareceu que cada
tentativa de movimento que a minha caneta fazia, com um intuito
já estabelecido de formular uma qualquer frase, era substituído
pelas palavras da sua conversa; a minha mão estava acorrentada às
suas bocas.
- …e este ano, se tiver vagar, quero ir à Feira de Castro…
- Feira de quem?
- Castro Verde, é uma feira muito grande…
- Quando é a feira?
- É em outubro…lá para dia dezanove?
- Dezanove é uma segunda-feira, não pode ser…
- (?)…mete muita gente! Oh! Dona Céu…
- Tem de ser num fim-de-semana…
- (…)
- (…)
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- Compra-se toda a qualidade de fruta, pá!…romãs…tudo!
É a isso que eu vou…
- Se não tiver tudo seco…
- Pá!, eu gosto mesmo daquilo…
- Lá em casa tenho uma romãzeira, com romãs boas, mas o
Zé…
- …, mas este ano, este ano, vai haver muito pouca…não
choveu…
- … o Zé lá em casa pode regar, se quiser…se tiver seca…
- Dona Céu você pode não acreditar…eu vi ameixas,
agora!, verdes ainda! Não acredita? A força da ameixa é no mês de
São João.
- Ah! A ameixa do São João, não a-meixas agora!
- (riso de tabaco)
- (riso de tabaco)
……..
«Levanto-me e vou para a praia.»
……..
Com a mão a desenhar formas sobre o areal, penso se o
cérebro não será um revisor independente; se, ao contrário do que
achava, a minha mão, livre, seguisse o mundo e não as minhas
vontades. E esta força do meu desassossego, onde o corpo parece
de si despontar novos territórios por explorar, oferece-me
novidades; são singulares os momentos em que o espírito é
confrontado com o alheio e o acolhe, transformando-o no comum
dos dias.
Imagino uma fogueira que se ateia a si mesma.
……..
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«Regresso a casa.»
……..
Pela janela vejo a água que pinga do telhado abrindo um
buraco na areia junto do ladrilhado da entrada. Cai em cima de
uma meia folha de louro que volteia e salta na fenda dos ladrilhos.
A tempestade parou. Agora, de quando em quando, a brisa agita os
ramos da romãzeira fazendo-a jorrar uma chuva espessa, que
estampa a terra de gotas brilhantes, que depois a mancha com
pequenos tumores secos.

Quero forçar todas as fechaduras. Afeiçoar as linguetas


como uma criança molda plasticina. Decidir quanto espaço deixo
para o olho espiar. Trocar todas as portas por cortinas que, como
véus, casariam a publicidade da vida com a condição do que é
privado. De janelas abertas, deixar a natureza ajustar o termóstato
da casa, com o quente sol a retocar o amarelo gasto da fachada do
prédio e o denso frio as paredes de um vermelho opaco.
……..
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«Não sei se estou acordado.»
……..
A mesa da cozinha está virada para a janela, e isso é
suficiente para coexistir com a mulher do prédio adjacente:
Ela saiu da casa-de-banho, enrolada numa toalha que lhe
cobria pouco mais que o tronco, deixando à vista a pele morena
que, só de olhar, já era suave. Pisquei os olhos e reparei que a
mulher me olhava fixamente, nua. Os seus seios empertigados
apontavam na minha direção, emoldurando a tranquilidade que o
resto do corpo transparecia - era um ato pensado, ela queria ser
admirada e causar admiração. Não se tratava de um acenar
narcisista, mas de uma simples contemplação mútua. Permanecia
quieta, com os braços estendidos ao longo do perfeito corpo, e, em
gesto de convite, desdobrou lentamente um sorriso de pérolas
brancas. Aproximei-me da janela tremendo e comecei a despir-me.
Em corpo de igualdade, imitei a mesma posição, estendendo os
braços e abrindo um sorriso que, pelo tabaco, não era tão luzidio.
Permaneci assim durante alguns minutos, a decorar as formas, os
pequenos movimentos e o efeito da sua repetição. Senti-me
perdido no corpo dela, porque era tanto espelho como quadro.
Fechei os olhos e pensei:
……..
«Estou acordado.»

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Os meus pés descansam sobre o cemitério de cigarros que


preenche de luto as ruas da cidade. O cheiro das beatas faz-me
beber o café sem afastar a chávena de ao pé da boca, evitando estes
odores com o cheiro achocolatado dos grãos triturados. A
esplanada está repleta de andorinhas que sobem para cima das
mesas em voos rasos, abanando a parte inferior das caudas brancas,
como se quisessem limpar a sua cor de fuligem. No centro da mesa
onde estou, por cima de um pires vazio, descansa uma jovem
andorinha, com as suas delicadas penas azuis. Permanece quieta,
em silêncio, e fita-me com uma tez própria dos humanos que
tentam ler a vida de outros pela sua expressão. Aproximou-se
lentamente, sem receio, nunca desviando o olhar. Imóvel, lembrei-
me da mulher e da paz que dela emanava, semelhante à expressão
do pássaro que parecia tentar compreender-me sem nada perguntar.
E à medida que esta memória se clareou em mim, a pequena
andorinha começou a transformar-se na mulher, com as asas a
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estenderem-se em longos braços, o bico desdobrando num sorriso
luzidio, as patas crescendo em pernas e os seios florescendo do seu
pequeno tronco branco. No fim da metamorfose, a mulher estava
sobre a mesa, nua, e as Portas do Céu ganharam uma nova forma:
……..
«Respiro fundo.»
……..

O Céu é agora uma casa nos arredores da cidade, com duas


avenidas sinuosas a findar em duas veredas, que desembocam num
pequeno pátio protegido por duas oliveiras. Avanço pelo caminho
da direita enquanto pressiono os dedos contra a palma da mão,
porque julgo ter atingido uma máxima universal: «não há nada que
queiramos mais do que desejar e ser desejados» – e, todavia, sei
que a verdade é tão mais que isso. Mas existem momentos como
este onde me deparo com a simplicidade da vida e sou levado a
acreditar que tudo é causa e efeito disso. A poucos metros de mim,
pela via da esquerda, consigo ver uns braços esguios a cair de um
tronco elegante: a mulher caminha comigo. Nestes momentos em
que o desconhecido toma de mim as rédeas, penso ser outro, não só
não reconheço o que se apresenta diante de mim como a minha
própria silhueta se afigura como um mistério.
Talvez por todos estes combates que travamos connosco,
que retiram da nossa boca o dom de comunicar as palavras mais
simples, o reencontro com a mulher tenha decorrido no mais
sereno dos silêncios. Junto das oliveiras encarei-a como se de um
adversário se tratasse. Lentamente, a inércia da educação empurrou
os nossos corpos até um estranho cumprimento de mãos, movendo-
nos até à campainha e até às Portas do Céu.
……..
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«Respiro fundo.»

As ações chocantes tendem a despertar em mim as análises


mais profundas, mas irrealistas, mais complexas, mas supérfluas. E
assim passei as primeiras horas no Céu, num exame minucioso do
momento em que, por acaso, as minhas mãos se entrelaçaram com
as dela. Apesar do significado destes estudos acabar por diluir-se
em inúmeras viagens ao mundo das hipóteses, e o facto tornar-se
obsessão, estas ações em particular são-me mais significantes que
outras, porque habitam na esfera do amor e das suas possibilidades.
Apesar de contingentes, estes encontros conseguem alterar por
completo a minha perceção sobre qualquer momento, e essa é uma
das muitas ilusões do amor – achar que toda a nossa existência
caminhou até um dado ponto. A expressão cair de amores sugere-
me a dimensão física destas ocasiões; um ato de queda-livre.
O anoitecer foi pautado pelo regresso do que por vezes
suponho ser a realidade – momento esse onde acho estar mais
lúcido do que o normal apenas porque analiso tudo a partir da sua
consequência. E o coração divide-se entre a tranquilidade – por me
achar capaz de controlar o futuro – e o medo – por não ter a certeza
se o controlei da melhor forma. Contudo, acho que nenhum dos
dois sabia o que fazer ou esperar desta situação, como se
estivéssemos a navegar em alto-mar sem remos e a terra fosse
apenas uma possibilidade distante.
Chegou a hora de fecho do Céu e regressámos para junto
das duas oliveiras. Permanecemos imóveis, enquanto digeríamos o
mundo de cada um; e tudo resultado de um encontro de olhos,
como dita a tradição trovadoresca: sonhos ampliados sob forma de
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imagens, das energias dos nossos corpos em conflito umas com as
outras. Ao mesmo ritmo, avançámos um para o outro e começámos
a andar pela mesma vereda. Em silêncio, observávamos o vale que
estava na mudança da pena e que, em breve, perderia a sua antiga
plumagem.
……..
«Afago a perna da mulher sob a mesa e peço outro café.»

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O regresso foi uma preparação do adeus. Na nossa rua,
colocámo-nos frente a frente, e, num demorado trejeito de
memória, meditámos: - não nos queremos despedir. Com os olhos
fixos um no outro, uma estranha gravidade começou a empurrar as
nossas pernas, os nossos peitos, os nossos braços e por fim as
nossas bocas.
Os nossos corações saltavam batimentos a cada trinca que
desferíamos, não de angústia, nem de medo, mas de uma excitação
que se apoderava dos nossos corpos a passos desmedidos.
Sentíamos o pulsar contínuo da corrente sanguínea a formar uma
ligação invisível entre os dois. Trocávamos olhares e tentávamos
entender-nos, tentávamos perceber o porquê de a razão ter fugido
de nós, dando lugar a uma necessidade de partilha – de corpo ou de
alma. Os receios eram trocados por toques subtis nas mãos e esses
estímulos produziam a partilha que procurávamos. Uma espécie de
osmose que carregava o peso de tudo num balanço suportável.
Ela agarrou-me pelo braço e arrastou-me até à porta do seu
prédio. Entrámos e começámos a serpentear as escadas a correr,
com a carícia da infância a aflorar de novo nas nossas peles, tal e
qual as túlipas que só abrem sob o carinho dos primeiros raios de
sol. Encostados à porta acariciava-lhe quase com violência os
cabelos e ela pôs-me as mãos atrás da nuca, depois começou a
passar-me a língua pelo rosto, lambia-me como se fosse um
animal, depois ria-se olhando-me de perto nos olhos e dizia que
sabia a mar. Empurrei-a contra a parede, não por virtude, mas para
a livrar do que a cobria, enquanto ela cobria-me de beijos,
descendo dos lábios ao pescoço, depois aos ombros, comigo a
puxar-lhe lentamente a túnica descobrindo-lhe os seios. O único
som do mundo eram os nomes carinhosos que ela me sussurrava,
mas eu não entendia. Sem nos interrompermos conseguimos abrir a
porta, rebolar pelas paredes do corredor e entrar no quarto - ao
amar o corpo parece ganhar facilidade nos movimentos mais
complexos.
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……..
«Entorno o café com o braço.»
……..
Se a linha que separa o romance do sonho já é ténue, as
horas seguintes foram a perda completa de qualquer distinção. Sem
regras, cada um de nós acordava e adormecia a seu tempo,
percorrendo os vastos quartéis da memória ou as oscilações do
mundo que a pele capta, coisas que quase não lhe dizem respeito,
aflorando todos os contornos sem verdadeiramente lhes tocar. O
quarto era preenchido tanto por sinais que eletrizavam a atmosfera,
com as mãos a deixaram no espaço um rasto que as revela, numa
troca que nos excede enquanto corpos, como pela beleza destes
lugares de final tranquilidade, esta que nos vem de não ser já mais
preciso adiar os nossos sonhos para um futuro improvável.
Enquanto eu a descobria com os lábios, ela observava um
lago que como um íman atraía os flocos de neve que caíam do céu.
As árvores, viradas ao contrário na água, puras e negras,
inclinando os seus braços largos umas para as outras, com as raízes
encostadas à margem, moviam-se ao sabor do vento luxado.
Pareceu-me que ela poderia ficar horas esquecida a observar esses
reflexos, onde por vezes movia a mão, como se quisesse tocar-lhes,
sentir os seus contornos fugidios sob os dedos e desenhar as suas
formas no ar. Caminhei para junto dela, atento às oblíquas cordas
prateadas que estoiravam sobre a terra solta, sulcando-a como
pólvora – eram as gotículas de uma neve muda. Sentei-me ao seu
lado e comecei também a pintar figuras no céu, seguindo as linhas
que determinavam as nuvens – o êxtase estava cada vez mais
próximo. As nossas mãos moviam-se também cada vez mais
rápido e o alinhamento dos astros parecia ganhar novos sentidos a
cada gesto: as estrelas corriam até ao infinito, as nuvens caíam sob
terra, o vento realinhava os limites do mundo e os planetas
trocavam de posições.
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E, sem pressa alguma, o clímax chegou.
……..
«Peço um descafeinado.»

Acordei com o Sol e deixei-me ficar quieto. Repeti o meu


padrão de memória favorito, decorando as formas dela, os
pequenos movimentos e o efeito da sua repetição. Estiquei a mão e
acariciei o seu tronco nu, sentindo a ondulação do seu respirar
contra a minha palma. Meditava sobre os intervalos destas
respirações e, ansioso, contava os segundos do seu regresso, como
se ela estivesse a batalhar com o seu próprio corpo para voltar para
junto de mim. E o resultado era sempre o mesmo, com a minha
individualidade a perder-se no corpo do outro. No fundo, a criação
de uma nova unidade, onde me sentia cidadão do universo por não
estar separado daqueles que me rodeiam ou chegam depois de
mim.

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……..
«Saio do café e esqueço-me de pagar a conta.»
……..
Ao crepúsculo, instalo-me na varanda de uma casa que não
existe. Diante de mim estende-se um campo de corridas e, mais
longe, uma planície lamacenta, limitada, muito além, por uma
serra. Era a minha hora predilecta, quando o perfume do jasmim,
exalando-se com violência capitosa, se mistura ao cheiro do fumo
das madeiras, com o aroma das especiarias. O Sol poente
transforma as nuvens escuras numa glória de ouro e de púrpura, e
uma claridade violeta demora-se sobre a planície vermelha como
uma névoa, esfumando a silhueta dos rebanhos. Num calor de
banho turco, no meio dos clamores da horda inquieta de imagens
que assediam a porta desta casa, o cansaço acumulado da
imaginação dos dias desfaz a realidade em mil bocados.
……..
«Adormeço e acordo. Acordo e adormeço. Não sei onde estou.»

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……..
«A manhã chegou. Saio de casa sem me levantar da cama.»
……..
Passos de cavalo sobem o vale solitário, e no silêncio das
gargantas produzem um vasto eco; as moitas no alto dos penhascos
não se movem, as raquíticas ervas amarelas estão quietas, e até as
nuvens passam no céu com particular lentidão. O caminhar do
cavalo avança devagar pela estrada: sou eu que regresso. Sou eu
mesmo, agora que estou mais próximo é fácil reconhecer-me, e no
meu rosto não se lê nenhuma tristeza especial. Não me rebelei,
pois; engoli o medo sem uma palavra e estou de volta ao meu
posto. No fundo do meu espírito grassa até a pávida satisfação de
ter evitado mudanças bruscas de vida, de não ter ainda ido ao
encontro da mulher, de poder instalar-me de novo nos meus velhos
hábitos. Iludo-me, com a ideia de um glorioso recomeçar a longo
prazo, julgo ter ainda imenso tempo à minha disposição e renuncio
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assim a luta miudinha pela vida de cada dia. Há-de chegar o dia em
que serei generosamente recompensado com coragem, penso. Mas,
entretanto, os outros antecipam-se, disputando avidamente a
passagem para serem os primeiros na fila do prazer, na fila das
vontades, superam-me a correr sem tão-pouco lhes prestar atenção,
deixando-me para trás. Vejo-os a desaparecer ao fundo, perplexo,
assaltado por dúvidas insólitas: e se de facto estou enganado? Se
não sou apenas mais um homem a quem, por direito, cabe a
dosagem universal de temores?
A escuridão alcançou-me ia ainda a caminho. O vale
estreita-se e o seu exórdio desaparece por de trás das montanhas
que o dominam. Não se vêm luzes, nem se ouvem vozes de aves
nocturnas, apenas de vez em quando me chega o berrante som de
águias distantes. À minha espera, furtivas. Experimentei chamar o
mundo, mas os ecos devolveram-me a voz com um timbre hostil.
Amarrei o cavalo a um coto de árvore à beira da estrada, onde
podia encontrar erva. Ali me sentei com as costas apoiadas ao
talude, esperei que o som chegasse e, entretanto, pensava no
caminho que faltava, na vida futura, sem encontrar qualquer
motivo de alegria. A intervalos, o cavalo batia com os cascos na
terra, de um modo apático e estranho a si.
……..
«Puxo os lençóis até à cabeça e aproximo os joelhos da boca.»
……..
Ao amanhecer, pondo-me de novo a caminho, reparo que
na vertente oposta do profundo vale, à mesma altura, havia outra
estrada, e pouco depois notei qualquer coisa que nela se movia. O
Sol ainda não descera até lá e as sombras obstruíam as
reentrâncias, impedindo-me de distinguir bem. Porém, estugando o
passo, consegui colocar-me à mesma altura e constatei que era a
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mulher. Prosseguimos paralelos, reservados na nossa omissão. Não
fui capaz de proferir uma única palavra até ela desaparecer.
……..
«Não consigo respeitar as minhas vontades.»

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Apercebi-me que as interações da vida quotidiana implicam
gestos específicos; não se desenrolam com espontaneidade e
participam numa ordem ritual que todos esperam ver respeitada;
mas, arrependo-me de ainda não ter saído do quarto, de ter ido ao
encontro da mulher e agarrado subitamente a sua mão, de traduzir
com o meu corpo a vontade de ir mais além, de reclamar um afeto
que abrisse os invólucros mais íntimos dos dois.
……..
«As paixões ignoram as regras do tempo. E eu sei que me
apaixono rapidamente pela ideia de uma pessoa.»
……..
«Nada me faz acreditar mais do que o medo. O medo é a pólvora e
o ódio o rastilho. A máxima, em última instância, é apenas um
pavio.»
……..
«Saio de casa e regresso ao Céu.»
……..
Existe nesta província deserta uma aparência que inspira a
quem a vê uma nostalgia semelhante à que provocam os claustros
mais sombrios, as charnecas mais áridas ou as ruínas mais tristes.
Talvez aqui se encontre ao mesmo tempo o silêncio do claustro, a
aridez da charneca e o descarnado das ruínas. A vida e o
movimento são aqui tão calmos que um estranho, como eu, as
julga desabitadas se de súbito não se deparasse com o olhar pálido
e frio de uma pessoa imóvel, de aspecto quase monacal, que surge
no parapeito de uma janela ao ouvir o barulho dos passos

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desconhecidos. A tarde cinzenta, húmida, fria, deserta e
extremamente penosa, um pouco antes do crepúsculo, fez ouvir do
fundo da estrada um tocar de trompetes, quase soluçado, mas
mesmo assim solene. O som foi-se aproximando e consegui avistar
dois carros abertos, de cor preta, puxados por dois cavalos de crina
alaranjada e cauda esvoaçante. E então assisti, com os meus olhos
estupefactos e curiosos de criança, a um estranho espectáculo:
Todas as janelas abriram-se, enchendo-se de rostos
interessados, porém calados. Logo a seguir, daquelas mesmas
janelas, começou a chover, em cima e à volta dos carros, pétalas de
diversas cores e feitios, atiradas com tácita fúria. A todo o
momento paravam os possantes cavalos, o ressoar das trombetas
reluzentes era mais forte e recomeçava logo adiante aquela chuva
de pasmar.
……..
«O Céu parece a véspera do fim do mundo.»
……..
Os apelos, as notas dos trompetistas, os baques surdos na
calçada, os tropéis dos cavalos transformaram, de repente, a serena
rua num tumultuoso átrio. Os carros pararam em frente ao caminho
de ladrilho azulado, onde uma mulher de cabelo louro um tanto
escuro, um agradável rosto rechonchudo e faces rosadas com
covinhas, envergando um vestido vermelho sujo, acompanhava um
homem de estatura mediana, cabelo escuro aparado e caracóis que
lhe emolduravam a testa larga. Possuía uns olhos castanho-
avermelhados, extraordinariamente brilhantes e um nariz
comprido, afilado, de papagaio. Cobria-se com uma canadiana
escura por cima do fato branco, de bom corte e bem cuidado.
Saíram coordenadamente do carro, afagando o pelo do cavalo mais
próximo em gesto de agradecimento, e continuaram pelo caminho.
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Já a menos de um metro de mim, a mulher cumprimentou-me com
um agradável sorriso e o homem tomou-me pelo braço, enquanto
sorria e acenava com o outro.

Conduziu-me a uma sala verde, laranja e cor de chocolate


no primeiro andar, instalando-me numa cadeira forrada a brocado
enquanto pediu, através de um assobio potente, a vinda do
empregado. Permanecemos em silêncio, um silêncio incómodo,
estranho.
……..
«Ficar calado é uma forma de dizer algo sem o conceituar.»
……..
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A única luz que ilumina este espaço é a que provém da
lareira, onde os troncos de lenha pareceram acalmar ligeiramente
quando a mulher olhou de relance, lançando uma vaga de fagulhas
pela chaminé. Sentámo-nos os três em cadeiras de braços forrados
de couro verde, tão fundas que ficámos quase deitados.
- …desculpa por não saber lidar com isto…não saber o que
dizer… - sussurrou o homem, retomando uma conversa deixada a
meio.
- Eu não devia ter falado disto por mensagens; as palavras
acabam por se perder ou ganhar significados que não aqueles que
queria – respondeu a mulher. Ambos ignoravam a minha presença;
o seu convite parecia relegar-me apenas a um papel de testemunha
– A minha vida não tem sido um caos, tem sido monótona, o que
me dá tempo para sentir as coisas de outra forma. Não quero que
sintas tão pouco que tornaste a minha vida caótica ou que me estás
a fazer mal; esperava que o desabafo de ontem tivesse sido a prova
contrária disso.
- (…)
- O sentimento físico e de receio de que te falei é me só
estranho por ser novo, e por isso não é menos bonito. Por ser
nutrido por alguém que conheço há tão pouco tempo e que tem esta
capacidade de me mover a sítios que ainda não conhecia em mim.
Quero agradecer-te muito por isso.
- (…)
- No fundo, o meu medo era que me visses na tua vida a
transformar-me numa preocupação, enquanto só quis ser uma
ajuda.
- (…)

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- E daí te pedir que antes de assumires qualquer decisão
como final, me deixasses olhar-te e procurar apenas uma vez
contigo as palavras que nos faltaram.
- (…)
……..
«O empregado nunca chegou a aparecer.»

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Abri a janela e encostando-me à portada acendi um cigarro.


O dia acompanhou o automatismo desta ação: as nuvens moviam-
se na mesma direção de ontem, os vizinhos repetiam os seus
trajetos diários, pisando as mesmas pedras da calçada, e os decibéis
da cidade criavam de novo uma cúpula asfixiante. Contudo, tudo
isto era um momento de partilha.
……..
«Aquilo que cabe a cada um na divisão do seu próprio excesso.»
……..
No prédio paralelo, para além da mulher, vive a Dona Céu,
que tem como único amigo o som, ao aproveitar o mínimo dos
barulhos para fugir de si e procurar os responsáveis. Quando o
encontro se dá, consegue assumir os papéis necessários para todo o

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tipo de conversas – sozinha, representa a força de um elenco
inteiro e quem sabe se era um talento inato ou um treino contínuo
nas horas que a solidão lhe disponibilizava. Esta busca
transformou-a numa pessoa de desejos simples, que incorria à vida
dos outros para compor a sua.
……..
«Diz o roto ao nu.»
……..
Por cima do seu apartamento vive uma família, ou duas, ou
três; perde a conta aquele que tentar agregar esta enchente de
pessoas numa família só. O apartamento só difere de uma pousada
pela familiaridade das pessoas com o espaço; mas percebo que isso
é insuficiente quando os fluxos que o compõem não se cruzam –
ali, as pessoas agem como se o mar nunca tocasse na areia,
deixando a partilha do mundo ao acaso das pequenas indecisões,
como decidir quem passa primeiro pela estreita porta da cozinha.
Resolvido o confronto, os circuitos restabelecem-se e a monotonia
regressa vitoriosa.
Tudo isto é suficiente para entender que o projetor ainda
funciona, que ainda cobre a superfície da terra com as mesmas
imagens passadas. Mas aguardo todas as manhãs por um percalço,
algo que faça o rolo da câmara saltar uma pulsação, estando a sorte
com os atentos que encontram estes intervalos hesitantes de
realidade.
……..
«Talvez passe tanto tempo no Céu por não ser um desses
sortudos…»

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11

……..
«Ao passear vejo uma prisão. Imagino:»
……..
Um corvo enorme, negro, luzidio, monstruoso, quase tão
grande como um ganso, saltita em frente da lucarna. De vez em
quando detém-se, com a asa descaída, a pálpebra enganadoramente
descida sobre o olho negro e redondo, como se se preparasse para
dormir. Depois, de repente, estendendo o bico, procura debicar os
olhos do homem, que brilham por detrás das barras do pequeno
orifício. Os olhos cinzentos, da cor do sílex, parecem atrair o
pássaro. Mas, o prisioneiro está vivo e afasta o rosto. Nessa altura
o corvo retoma o passeio, com saltos curtos e desajeitados. O
homem estende a mão para fora da lucarna, uma bela mão forte e
comprida, nervosa, lenta e invisível, e deixa-a inerte, como um
ramo esquecido sobre o pó dos caminhos, à espera de agarrar o
corvo pelo pescoço. Mas o pássaro também é rápido, apesar do
tamanho; com um salto, afasta-se a grasnar. Os corvos desta prisão
vivem até muito velhos, mais de cem anos pelo que se diz, por isso
o seu desejo seria concedido pelo tempo.

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O físico do homem já o declarava condenado. Qual seria a
causa da febre que o consumia, da tosse lancinante que sacudia o
seu peito magro, da sua expetoração raiada de sangue? Que
poderia ser senão uma maldição?
……..
«Os remédios são impotentes contra as maldições. O povo e o
preso partilham essa certeza.»
……..
De regresso a casa, deito-me imediatamente, ainda vestido,
na minha cama de mogno, constrangido pela chuva que martela no
telhado. Oiço os estampidos vindos da mata, sonoros como um
tiro, o quebrar dos ramos das árvores. Puxo os cobertores até à
boca, enrolo-os nos ombros e encolho-me dobrando as pernas junto
à barriga. Aperto os olhos a cada estampido, e sempre que os abro,
o quarto continua lá, as janelas intactas, mas cobertas de gelo por
fora, deixando entrar a luz enviesada da Lua, que se reflete no chão
ao nu do azulejo. Apenas o cansaço da minha luta me fez
adormecer.
……..
«Será que o Céu também é isto?»

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12

……..
«Meses depois estou longe de tudo…»
……..

Para Norte, estão espalhados prados amplos com ilhotes de


urze, e através de um espinhaço corre um pequeno riacho e outro
do lago para leste, pelos vales da charneca ocidental. A sul do
monte eleva-se uma montanha íngreme, as suas encostas estão
marcadas por derrocadas e nas fendas existem relevos cobertos da
prata verde do desconhecido. Das derrocadas erguem-se
imponentes rochas escarpadas, e num certo lugar acima dos
inúmeros currais, a montanha está rachada, tem uma fenda no
basalto e desta irrompe na Primavera uma cascata comprida e fina,
atacada pelo vento do Norte que a arrasta com um sopro,
pulverizando a água por cima da borda da montanha.
Um pequeno riacho que nunca seca corre pelos currais
abaixo, através do relvado, em semicírculo, límpido e frio. No
Verão, os raios solares brincam na sua corrente alegre, e a ovelha
está deitada mastigando nas margens com uma das patas dianteiras
estendida. Brilhantes raios de sol cintilam no lago dos cisnes e no
rio das trutas que corre serenamente pelo prado, e o brejo e o prado
emitem uma felicidade contínua e silenciosa.
Quando as brisas primaveris sopram pelo vale, quando o sol
da Primavera brilha na relva amarelada das margens do rio, e no
lago, e nos dois cisnes brancos que o acompanham, e incita a erva
a brotar dos solos húmidos, quem havia de acreditar que este
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sereno vale verdejante compreendesse a história das nossas vidas
passadas?
Lenta, lentamente o invernoso dia abre o seu olho boreal. A
partir do primeiro momento em que pestanejava até levantar as
pesadas pálpebras por completo, não passa somente hora após
hora, não, uma temporada transpõe outra temporada nas extensões
incomensuráveis da manhã, mundo após mundo, realidade após
realidade. Tão distante está este dia na sua própria manhã. Até a
sua manhã está distante de si mesma. O primeiro raio de luz fraca
no horizonte e a claridade do amanhecer na janela são como dois
começos diferentes, dois pontos de partida.
……..
«E tudo isto no Fundo do Céu…»

13

É a primeira quinta-feira da Quaresma e o sino da igreja


badala vinte e uma vezes. Velhos e novos os irmãos caminham em
direção à capela onde vão buscar a Cruz de Cristo. Dali partem em
cortejo pelas ruas iluminadas com a fraca luz das velas, içadas
pelas dezenas de mulheres que proibidas de participar na cerimónia
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as hasteiam nas janelas de suas casas. Chegados à igreja reúnem-se
com o resto dos irmãos, vestidos com opas vermelhas e que, no
regresso à capela, liderariam o cortejo. A escuridão é quase total e
os poucos círios pingam as últimas gotas de cera. O frio assobia e
uma chuva miúda cai sobre a parada, mas aqueles que caminham
descalços, cobertos apenas por um lençol branco ou com o peso da
chuva sobre a meia-coroa de espinhos que envergam na cabeça,
mantêm um silêncio rigoroso e caminham sem olhar para os lados,
como se estivessem sozinhos no mundo. Rezam salmos
semelhantes aos nomes carinhosos que em sonhos ela me
sussurrou, mas eu não entendi.
……..
«Aprendi a obsessão pelo outro; essa pessoa contra quem o roubo
é condenado. O fascínio extremo que leva outra pessoa a tornar-
se num objecto de curiosidade quase inexorável; num magnetismo
torturante que não esmorece. Acontece, com estas figuras
assumidas pelo espírito, o mesmo que com as formas nascidas das
águas indiferenciadas, ora assediando-se ora revezando-se, à
superfície do pego; e cada uma delas acaba por se desfazer no seu
próprio contrário, da mesma guisa que duas vagas, ao tocarem-se,
se aniquilam numa só e mesma branca espuma.»
……..
A noite está agradável, mas escura. Altas e fechadas, as
casas delimitam o espaço estranho e aberto a que se chama rua,
sobre o qual paira alguma coisa, a escuridão, o vento, as nuvens.
As ruas estão completamente desertas, como se minha a agitação
tivesse deixado tudo num sono profundo. Quando encontro algum
transeunte, o som dos passos ecoa ao longe durante muito tempo,
depois aproximando-se de mim como se alguma coisa importante
tivesse de ser anunciada. É uma noite em que tenho a sensação de
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que muito acontecera, como num teatro. De que houve uma
aparição neste mundo, qualquer coisa que parece maior do que
realmente é, que reverbera e, ao passar por zonas iluminadas, tem
por companhia a sua sombra, como um louco delirante que se
ergue, enorme, para no momento seguinte voltar a rastejar
humildemente atrás dos calcanhares.
Distante, não consigo parar de ouvir os ecos dos salmos
rezados, que me fazem recordar o quão longos pareciam nos dias
de infância, longe do meu mundo e da minha língua, tão alheios à
alma. Agora é precisamente o contrário, os salmos são demasiado
curtos para os dias. O eco do verso começa à procura do fio da
bobina, e quando por fim o encontra, chupa-lhe a sua ponta através
de um tubo. E tudo recomeça. Ainda não os entendo, mas esse
mistério não me incomoda.

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O velho café na colina usa o telhado inclinado com beiral


como quem usa um chapéu de aba descaída enterrado até às
orelhas. As paredes, raiadas de musgo, são moles e ligeiramente
bojudas devido à humidade. O jardim selvagem e pujante está
repleto do sussurro e frémito de vidas diminutas. Por entre a
vegetação rasteira, uma cobra esfrega-se contra uma pedra
cintilante. Rãs amarelas, enormes e esperançadas, navegam no lago
escumoso à procura de parceiros. Um mangusto encharcado
dispara pela alameda coberta de folhas.
No café, mosquitos zumbem nos bules. Insetos mortos
jazem em jarras vazias e o soalho é pegajoso; as paredes brancas
estão revestidas de um cinzento incerto; os puxadores de bronze
estão perros e viscosos ao tato; as tomadas estão obstruídas com
fuligem; os candeeiros estão cobertos por uma película de gordura;
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e a única coisa que brilha são as baratas que correm por ali fora
como plissados num cenário de cinema. Oiço:
- …quinze ou vinte cervejas durante uma tarde…
- Quinte ou vinte!?
- …umas quinze já bebi hoje…
- Quando ferrares a bomba…
- Eu disfarço! (riso de tabaco)
- (…)
- Ao meio-dia três imperiais e um Martini…
- (…)
- Em casa um penálti de vinho tinto…
- Um penálti?
- A seguir três whiskeys e um café; depois comecei a beber
médias…durante a tarde, naquela festa ali dos velhos no jardim,
mais umas quantas…E aqui já é a quarta!
- Está num bom caminho…
- É um bom caminho. Até às quatro da manhã é garantido.
- Tanto?
- Ainda vou jogar snooker quando acabar o Benfica. Ontem
gastei dezasseis euros com esta brincadeira…
……..
«Saio do café sem ter pedido nada.»
……..
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Vem do Céu um som sussurrante, forte, doce e estranho.
Olho para cima, abraçando-me a mim próprio para parar de tremer.
O sussurrar longínquo e rítmico, como música ao longe, aproxima-
se e, por um motivo desconhecido, parece trazer consigo uma
espécie de paz e segurança. Sinto-me reconfortado. Sento-me à
beira do lago e deixou-me ficar com a cabeça pesada sobre as
mãos.
……..
«O quão engraçado é atravessarmos o presente de olhos
vendados. Apenas pressentindo e adivinhando aquilo que estamos
a viver. Só mais tarde, quando desatamos a venda e examinamos o
passado, nos apercebemos dos seus sentidos, mesmo se, por vezes,
não os compreendamos.»
……..
Respiro profundamente e sinto as minhas rugas, estrias,
cabelos brancos e porismas a desaparecer.
……..
«Vejo na dor que dei à luz um filho. Não sei se será adequado
chamar filho a um flagrante produto da imaginação, mas nasceu
das entranhas do meu inconsciente e sou pai e mãe para ti, como
um monstro andrógino. Dei-te a vida e não posso dar-te mais do
que eu próprio recebi: um mundo sumptuoso e inexacto, ao mesmo
tempo, em que a realidade se mistura com o meu sonho. Dei-te a
liberdade, a força e a esperança para que, com os teus atos, te
imponhas aos meus desejos. E pus em ti a semente da morte.
Semeei dentro de ti essa flor venenosa e discreta que vai
crescendo dentro de todos nós, escondendo-se entre os nossos
órgãos e veias, enquanto se nutre descontroladamente do nosso

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conhecimento, até nos consumir. Apenas porque também não a
tenho, para isso, não te dei solução.»
……..
Respiro profundamente e sinto um sorriso a rasgar a minha
consciência em milhares de caminhos diferentes, que se estendem
a partir de cada dente que mostro.
……..
«Está na hora de regressar.»

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