Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
LONGO
1
4
3
8
O regresso foi uma preparação do adeus. Na nossa rua,
colocámo-nos frente a frente, e, num demorado trejeito de
memória, meditámos: - não nos queremos despedir. Com os olhos
fixos um no outro, uma estranha gravidade começou a empurrar as
nossas pernas, os nossos peitos, os nossos braços e por fim as
nossas bocas.
Os nossos corações saltavam batimentos a cada trinca que
desferíamos, não de angústia, nem de medo, mas de uma excitação
que se apoderava dos nossos corpos a passos desmedidos.
Sentíamos o pulsar contínuo da corrente sanguínea a formar uma
ligação invisível entre os dois. Trocávamos olhares e tentávamos
entender-nos, tentávamos perceber o porquê de a razão ter fugido
de nós, dando lugar a uma necessidade de partilha – de corpo ou de
alma. Os receios eram trocados por toques subtis nas mãos e esses
estímulos produziam a partilha que procurávamos. Uma espécie de
osmose que carregava o peso de tudo num balanço suportável.
Ela agarrou-me pelo braço e arrastou-me até à porta do seu
prédio. Entrámos e começámos a serpentear as escadas a correr,
com a carícia da infância a aflorar de novo nas nossas peles, tal e
qual as túlipas que só abrem sob o carinho dos primeiros raios de
sol. Encostados à porta acariciava-lhe quase com violência os
cabelos e ela pôs-me as mãos atrás da nuca, depois começou a
passar-me a língua pelo rosto, lambia-me como se fosse um
animal, depois ria-se olhando-me de perto nos olhos e dizia que
sabia a mar. Empurrei-a contra a parede, não por virtude, mas para
a livrar do que a cobria, enquanto ela cobria-me de beijos,
descendo dos lábios ao pescoço, depois aos ombros, comigo a
puxar-lhe lentamente a túnica descobrindo-lhe os seios. O único
som do mundo eram os nomes carinhosos que ela me sussurrava,
mas eu não entendia. Sem nos interrompermos conseguimos abrir a
porta, rebolar pelas paredes do corredor e entrar no quarto - ao
amar o corpo parece ganhar facilidade nos movimentos mais
complexos.
9
……..
«Entorno o café com o braço.»
……..
Se a linha que separa o romance do sonho já é ténue, as
horas seguintes foram a perda completa de qualquer distinção. Sem
regras, cada um de nós acordava e adormecia a seu tempo,
percorrendo os vastos quartéis da memória ou as oscilações do
mundo que a pele capta, coisas que quase não lhe dizem respeito,
aflorando todos os contornos sem verdadeiramente lhes tocar. O
quarto era preenchido tanto por sinais que eletrizavam a atmosfera,
com as mãos a deixaram no espaço um rasto que as revela, numa
troca que nos excede enquanto corpos, como pela beleza destes
lugares de final tranquilidade, esta que nos vem de não ser já mais
preciso adiar os nossos sonhos para um futuro improvável.
Enquanto eu a descobria com os lábios, ela observava um
lago que como um íman atraía os flocos de neve que caíam do céu.
As árvores, viradas ao contrário na água, puras e negras,
inclinando os seus braços largos umas para as outras, com as raízes
encostadas à margem, moviam-se ao sabor do vento luxado.
Pareceu-me que ela poderia ficar horas esquecida a observar esses
reflexos, onde por vezes movia a mão, como se quisesse tocar-lhes,
sentir os seus contornos fugidios sob os dedos e desenhar as suas
formas no ar. Caminhei para junto dela, atento às oblíquas cordas
prateadas que estoiravam sobre a terra solta, sulcando-a como
pólvora – eram as gotículas de uma neve muda. Sentei-me ao seu
lado e comecei também a pintar figuras no céu, seguindo as linhas
que determinavam as nuvens – o êxtase estava cada vez mais
próximo. As nossas mãos moviam-se também cada vez mais
rápido e o alinhamento dos astros parecia ganhar novos sentidos a
cada gesto: as estrelas corriam até ao infinito, as nuvens caíam sob
terra, o vento realinhava os limites do mundo e os planetas
trocavam de posições.
10
E, sem pressa alguma, o clímax chegou.
……..
«Peço um descafeinado.»
11
……..
«Saio do café e esqueço-me de pagar a conta.»
……..
Ao crepúsculo, instalo-me na varanda de uma casa que não
existe. Diante de mim estende-se um campo de corridas e, mais
longe, uma planície lamacenta, limitada, muito além, por uma
serra. Era a minha hora predilecta, quando o perfume do jasmim,
exalando-se com violência capitosa, se mistura ao cheiro do fumo
das madeiras, com o aroma das especiarias. O Sol poente
transforma as nuvens escuras numa glória de ouro e de púrpura, e
uma claridade violeta demora-se sobre a planície vermelha como
uma névoa, esfumando a silhueta dos rebanhos. Num calor de
banho turco, no meio dos clamores da horda inquieta de imagens
que assediam a porta desta casa, o cansaço acumulado da
imaginação dos dias desfaz a realidade em mil bocados.
……..
«Adormeço e acordo. Acordo e adormeço. Não sei onde estou.»
12
7
……..
«A manhã chegou. Saio de casa sem me levantar da cama.»
……..
Passos de cavalo sobem o vale solitário, e no silêncio das
gargantas produzem um vasto eco; as moitas no alto dos penhascos
não se movem, as raquíticas ervas amarelas estão quietas, e até as
nuvens passam no céu com particular lentidão. O caminhar do
cavalo avança devagar pela estrada: sou eu que regresso. Sou eu
mesmo, agora que estou mais próximo é fácil reconhecer-me, e no
meu rosto não se lê nenhuma tristeza especial. Não me rebelei,
pois; engoli o medo sem uma palavra e estou de volta ao meu
posto. No fundo do meu espírito grassa até a pávida satisfação de
ter evitado mudanças bruscas de vida, de não ter ainda ido ao
encontro da mulher, de poder instalar-me de novo nos meus velhos
hábitos. Iludo-me, com a ideia de um glorioso recomeçar a longo
prazo, julgo ter ainda imenso tempo à minha disposição e renuncio
13
assim a luta miudinha pela vida de cada dia. Há-de chegar o dia em
que serei generosamente recompensado com coragem, penso. Mas,
entretanto, os outros antecipam-se, disputando avidamente a
passagem para serem os primeiros na fila do prazer, na fila das
vontades, superam-me a correr sem tão-pouco lhes prestar atenção,
deixando-me para trás. Vejo-os a desaparecer ao fundo, perplexo,
assaltado por dúvidas insólitas: e se de facto estou enganado? Se
não sou apenas mais um homem a quem, por direito, cabe a
dosagem universal de temores?
A escuridão alcançou-me ia ainda a caminho. O vale
estreita-se e o seu exórdio desaparece por de trás das montanhas
que o dominam. Não se vêm luzes, nem se ouvem vozes de aves
nocturnas, apenas de vez em quando me chega o berrante som de
águias distantes. À minha espera, furtivas. Experimentei chamar o
mundo, mas os ecos devolveram-me a voz com um timbre hostil.
Amarrei o cavalo a um coto de árvore à beira da estrada, onde
podia encontrar erva. Ali me sentei com as costas apoiadas ao
talude, esperei que o som chegasse e, entretanto, pensava no
caminho que faltava, na vida futura, sem encontrar qualquer
motivo de alegria. A intervalos, o cavalo batia com os cascos na
terra, de um modo apático e estranho a si.
……..
«Puxo os lençóis até à cabeça e aproximo os joelhos da boca.»
……..
Ao amanhecer, pondo-me de novo a caminho, reparo que
na vertente oposta do profundo vale, à mesma altura, havia outra
estrada, e pouco depois notei qualquer coisa que nela se movia. O
Sol ainda não descera até lá e as sombras obstruíam as
reentrâncias, impedindo-me de distinguir bem. Porém, estugando o
passo, consegui colocar-me à mesma altura e constatei que era a
14
mulher. Prosseguimos paralelos, reservados na nossa omissão. Não
fui capaz de proferir uma única palavra até ela desaparecer.
……..
«Não consigo respeitar as minhas vontades.»
8
15
Apercebi-me que as interações da vida quotidiana implicam
gestos específicos; não se desenrolam com espontaneidade e
participam numa ordem ritual que todos esperam ver respeitada;
mas, arrependo-me de ainda não ter saído do quarto, de ter ido ao
encontro da mulher e agarrado subitamente a sua mão, de traduzir
com o meu corpo a vontade de ir mais além, de reclamar um afeto
que abrisse os invólucros mais íntimos dos dois.
……..
«As paixões ignoram as regras do tempo. E eu sei que me
apaixono rapidamente pela ideia de uma pessoa.»
……..
«Nada me faz acreditar mais do que o medo. O medo é a pólvora e
o ódio o rastilho. A máxima, em última instância, é apenas um
pavio.»
……..
«Saio de casa e regresso ao Céu.»
……..
Existe nesta província deserta uma aparência que inspira a
quem a vê uma nostalgia semelhante à que provocam os claustros
mais sombrios, as charnecas mais áridas ou as ruínas mais tristes.
Talvez aqui se encontre ao mesmo tempo o silêncio do claustro, a
aridez da charneca e o descarnado das ruínas. A vida e o
movimento são aqui tão calmos que um estranho, como eu, as
julga desabitadas se de súbito não se deparasse com o olhar pálido
e frio de uma pessoa imóvel, de aspecto quase monacal, que surge
no parapeito de uma janela ao ouvir o barulho dos passos
16
desconhecidos. A tarde cinzenta, húmida, fria, deserta e
extremamente penosa, um pouco antes do crepúsculo, fez ouvir do
fundo da estrada um tocar de trompetes, quase soluçado, mas
mesmo assim solene. O som foi-se aproximando e consegui avistar
dois carros abertos, de cor preta, puxados por dois cavalos de crina
alaranjada e cauda esvoaçante. E então assisti, com os meus olhos
estupefactos e curiosos de criança, a um estranho espectáculo:
Todas as janelas abriram-se, enchendo-se de rostos
interessados, porém calados. Logo a seguir, daquelas mesmas
janelas, começou a chover, em cima e à volta dos carros, pétalas de
diversas cores e feitios, atiradas com tácita fúria. A todo o
momento paravam os possantes cavalos, o ressoar das trombetas
reluzentes era mais forte e recomeçava logo adiante aquela chuva
de pasmar.
……..
«O Céu parece a véspera do fim do mundo.»
……..
Os apelos, as notas dos trompetistas, os baques surdos na
calçada, os tropéis dos cavalos transformaram, de repente, a serena
rua num tumultuoso átrio. Os carros pararam em frente ao caminho
de ladrilho azulado, onde uma mulher de cabelo louro um tanto
escuro, um agradável rosto rechonchudo e faces rosadas com
covinhas, envergando um vestido vermelho sujo, acompanhava um
homem de estatura mediana, cabelo escuro aparado e caracóis que
lhe emolduravam a testa larga. Possuía uns olhos castanho-
avermelhados, extraordinariamente brilhantes e um nariz
comprido, afilado, de papagaio. Cobria-se com uma canadiana
escura por cima do fato branco, de bom corte e bem cuidado.
Saíram coordenadamente do carro, afagando o pelo do cavalo mais
próximo em gesto de agradecimento, e continuaram pelo caminho.
17
Já a menos de um metro de mim, a mulher cumprimentou-me com
um agradável sorriso e o homem tomou-me pelo braço, enquanto
sorria e acenava com o outro.
19
- E daí te pedir que antes de assumires qualquer decisão
como final, me deixasses olhar-te e procurar apenas uma vez
contigo as palavras que nos faltaram.
- (…)
……..
«O empregado nunca chegou a aparecer.»
10
20
tipo de conversas – sozinha, representa a força de um elenco
inteiro e quem sabe se era um talento inato ou um treino contínuo
nas horas que a solidão lhe disponibilizava. Esta busca
transformou-a numa pessoa de desejos simples, que incorria à vida
dos outros para compor a sua.
……..
«Diz o roto ao nu.»
……..
Por cima do seu apartamento vive uma família, ou duas, ou
três; perde a conta aquele que tentar agregar esta enchente de
pessoas numa família só. O apartamento só difere de uma pousada
pela familiaridade das pessoas com o espaço; mas percebo que isso
é insuficiente quando os fluxos que o compõem não se cruzam –
ali, as pessoas agem como se o mar nunca tocasse na areia,
deixando a partilha do mundo ao acaso das pequenas indecisões,
como decidir quem passa primeiro pela estreita porta da cozinha.
Resolvido o confronto, os circuitos restabelecem-se e a monotonia
regressa vitoriosa.
Tudo isto é suficiente para entender que o projetor ainda
funciona, que ainda cobre a superfície da terra com as mesmas
imagens passadas. Mas aguardo todas as manhãs por um percalço,
algo que faça o rolo da câmara saltar uma pulsação, estando a sorte
com os atentos que encontram estes intervalos hesitantes de
realidade.
……..
«Talvez passe tanto tempo no Céu por não ser um desses
sortudos…»
21
11
……..
«Ao passear vejo uma prisão. Imagino:»
……..
Um corvo enorme, negro, luzidio, monstruoso, quase tão
grande como um ganso, saltita em frente da lucarna. De vez em
quando detém-se, com a asa descaída, a pálpebra enganadoramente
descida sobre o olho negro e redondo, como se se preparasse para
dormir. Depois, de repente, estendendo o bico, procura debicar os
olhos do homem, que brilham por detrás das barras do pequeno
orifício. Os olhos cinzentos, da cor do sílex, parecem atrair o
pássaro. Mas, o prisioneiro está vivo e afasta o rosto. Nessa altura
o corvo retoma o passeio, com saltos curtos e desajeitados. O
homem estende a mão para fora da lucarna, uma bela mão forte e
comprida, nervosa, lenta e invisível, e deixa-a inerte, como um
ramo esquecido sobre o pó dos caminhos, à espera de agarrar o
corvo pelo pescoço. Mas o pássaro também é rápido, apesar do
tamanho; com um salto, afasta-se a grasnar. Os corvos desta prisão
vivem até muito velhos, mais de cem anos pelo que se diz, por isso
o seu desejo seria concedido pelo tempo.
22
O físico do homem já o declarava condenado. Qual seria a
causa da febre que o consumia, da tosse lancinante que sacudia o
seu peito magro, da sua expetoração raiada de sangue? Que
poderia ser senão uma maldição?
……..
«Os remédios são impotentes contra as maldições. O povo e o
preso partilham essa certeza.»
……..
De regresso a casa, deito-me imediatamente, ainda vestido,
na minha cama de mogno, constrangido pela chuva que martela no
telhado. Oiço os estampidos vindos da mata, sonoros como um
tiro, o quebrar dos ramos das árvores. Puxo os cobertores até à
boca, enrolo-os nos ombros e encolho-me dobrando as pernas junto
à barriga. Aperto os olhos a cada estampido, e sempre que os abro,
o quarto continua lá, as janelas intactas, mas cobertas de gelo por
fora, deixando entrar a luz enviesada da Lua, que se reflete no chão
ao nu do azulejo. Apenas o cansaço da minha luta me fez
adormecer.
……..
«Será que o Céu também é isto?»
23
12
……..
«Meses depois estou longe de tudo…»
……..
13
14
29
conhecimento, até nos consumir. Apenas porque também não a
tenho, para isso, não te dei solução.»
……..
Respiro profundamente e sinto um sorriso a rasgar a minha
consciência em milhares de caminhos diferentes, que se estendem
a partir de cada dente que mostro.
……..
«Está na hora de regressar.»
30
15
31