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Revisão- Silvano Tolentino e Cristina Raposo

Capa e ilustração e foto- Beatriz Raposo de Medeiros


Autor- Edmundo Raposo de Medeiros
Direitos autorais- Autor
Colaboradores- Nina Amazonas, Carolina Escobar,
Helena Ruschel.
Diagramação- ?

-­‐  
-­‐  
 
Prefácio  Di  
 
Confesso:  quando  o    Di  me  disse  que  o  livro  estava  pronto  e  que  

estava  na  hora  de  fazer  o  prefácio,  tremi  nas  bases.  Afinal,  nunca  

tinha  lido  nenhum  texto  dele,  nunca  soube  de  seus  talentos  

literários,  o  cara  jamais  havia  escrito  outro  livro.  E  de  repente  ele  

surge  com  “A  casa  das  Meninas-­‐Senhoras”  nas  mãos,  pronta,  

acabada,  finalizada.  E  se  o  livro  não  se  sustentasse  ?  –  e  se  o  

resultado  estivesse  precário  demais?  -­‐  como  é  que  eu  sairia  


dessa  sinuca:  não  podia  detonar  o  trabalho  do  meu  amigo  justo  

no  prefácio  do  livro;  mas  ao  mesmo  tempo,  em  respeito  à  nossa  

amizade,  não  podia  mentir,  elogiar  algo  que  não  tivesse  gostado.

Pois  qual  não  foi  o  meu  alívio  ao  ler  o  texto,  ainda  numa  
apostila,  e  perceber  que  a  preocupação  se  dissipara.  Esquecendo  
minha  condição  de  “crítico”  embarquei  na  viagem  do  Di  e  
degustei  o  texto  em  uma  talagada  só!  –  mais  do  que  isso,  me  
emocionei  em  algumas  passagens,  nas  quais  me  deparei  com  
imagens  e  situações  que  iluminaram  reminiscências  que  julgava  
perdidas  para  sempre.  Observem  esse  pequeno  trecho  e  me  
digam  se    exagero:  “Sentado  na  janela,  observava  o  pequeno  
quintal  onde  havia  um  tanque  de  lavar  roupa  de  cimento  áspero.  
Uma  escadinha  feita  com  enxada  aproveitando  o  aclive  do  
terreno  dava  acesso  para  a  parte  de  terra  em  que  havia  um  
limoeiro  carregado  de  limão  siciliano,  as  folhas  verdes  
contrastavam  notavelmente  com  os  frutos  amarelos.  Sobre  os  
vasos  de  antúrio  vermelhos  enfileirados  ao  lado  da  parede,  havia  
gaiolas  de  madeira  com  canários  do  reino,  ervas  aromáticas  
secando  penduradas  e  amarradas  em  ganchos  de  palha  seca,  
avencas  por  todos  os  cantos...”    

O  resgate  imagético/emocional  dessa  fase  da  vida  que  se  


desfaz  depois  que  nos  tornamos  adultos  é  o  registro  inaugural  a  
ser  destacado  nesta  obra  do  Di  Raposo.  Um  reencontro  com  o  
passado  só  possível  em  outra  fase  da  vida:  quando,  sem  
percebermos,  chegamos  à  maturidade;  e  se  é  que  esse  estado  
pode  ser  definido  de  alguma  maneira  é  aquele  no  qual  as  
perspectivas  do  futuro  já  se  concretizaram  -­‐  para  o  bem  ou  para  
o  mal  -­‐  e  é  no  passado  que  vamos  procurar  o  sentido  do  
presente.  Sem  medo,  sem  culpas.  É  uma  viagem  dolorosa,  muitas  
vezes,  porque  feita  de  perdas,  daquilo  que  não  volta  mais,  como  
o  fascínio  diante  das  pequenas  coisas  do  mundo.  É  por  isso  que  
no  livro  no  Di  há  sempre  um  afeto  presente  nessas  recordações.  
É  quase  um  acerto  de  contas,  feito  de  homenagens  às  pessoas  
amadas  que  não  estão  mais  aqui.    

 Mas  não  apenas  isso.  Talvez  refletindo  as  experiências  da  


sua  geração,  há  uma  reverência  pelo  sentido  mágico,  surreal,  
que  os  protagonistas  vivenciam,  muitas  vezes  apelando  ao  uso  
de  substâncias  de  alteração  da  consciência.  Esse  “realismo  
mágico”  presente  em  toda  narrativa  é  a  chave  pela  qual  se  pode  
acessar  o  universo  emocional  dos  personagens  e  no  qual,  
certamente,  cada  um  de  nós  emprestará  um  significado  único,  a  
partir  da  própria  experiência  pessoal.  

 Ao  mesmo  tempo,  uma  clara  estratégia  para  deixar  o  leitor  


alerta  o  tempo  todo,  se  não  quiser  confundir  aquilo  que  
acontece  como    situação  vivida,  com  aquilo  que  de  fato  só  
acontece  no    sonho,  no  delírio,  na  imaginação.  Cortes  abruptos  
do  roteiro,  no  tempo  e  no  espaço,  só  potencializam  tal  
percepção.    

Escrever,  como  qualquer  ato  de  criação,  exige  sempre  uma  


grande  dose  de  coragem.,  porque  quem  o  faz  dá  
necessariamente  a  cara  ao  tapa.  Se  expõe.  Revela  sua  intimidade  
por  mais  que  se  esforce  por  escondê-­‐la,  porque  o  verdadeiro  ato  
de  criação  brota  da  alma,  nunca  da  mente,  ainda  que  esta  possa  
ajudar  a  formatar  a  emoção  que  gerou  a  partícula  inicial.    Quem  
o  faz,  assume  o  risco  da  crítica,  da  divergência,  do  “não  gostei”,  
do  “não  é  assim  que  se  faz”,  do  “eu  faria  melhor”...  –  E,  se  não  
fosse  por  outras  razões,  só  isto  já  basta  para  brindarmos  em  
homenagem  ao  autor:  a  coragem  de  vir  a  público  e  dividir  com  
todos,  aquilo  que  na  vida  lhe  marcou.      

  Por  último,  vale  registrar  também,  que  o  livro  do  Di,  não  
acontece  por  acaso.  Ele  chega  num  momento  em  que  a  cidade  
parece  respirar  ares  de  uma  retomada  artística/cultural.  E  a  
inauguração  desse  espaço,  Casa  Pinheiral,  que  abriga  o  
lançamento  do  livro  do  Edmundo  Raposo,  só  vem  reforçar  essa  
espécie  de  “renascimento”.  Uma  cidade  sem  arte  e  cultura  é  
uma  cidade  sem  alma,  mais  uma  razão  para  acolhermos  com  
admiração  a  chegada  deste  primeiro  livro  do  Di.  Só  nos  resta  
torcer  agora  para  que  outros  livros  se  sucedam  e  consolidem  
cada  vez  mais  o  trabalho  deste  novo  escritor  que  estreia  na  cena  
literária  da  nossa  cidade,  com  o  instigante  “A  casa  das  Meninas-­‐
Senhoras”.  

                                                                   José.  R.  F.  Cintra.....    Jornalista,  


Sociólogo,  Professor  ECA/USP  

A Casa das Meninas-senhoras


Prólogo

Aqui conto uma história, para quem quiser escutar.

Para os que rezam, para os ateus, aos que acreditam na

vida e aos incrédulos. Para os medrosos e aos que vencem

o medo com a coragem. Aos que se encolhem atrás de

pessoas e aos que estufam o peito para o enfrentamento.

Ducar Dromonde, toda vez que se deparava com uma

situação de dor, logo pensava em seu amigo Johnny que

lutou pela vida desde o nascimento e passou o maior

tempo de sua existência em hospitais ou em seu quarto,

sempre doente. Exames doloridos e intermináveis eram o


cotidiano dele e Ducar enfrentava suas dores físicas,

pensando, “Isso não é nada comparado ao meu amigo”.

Com sua morte precoce, o bairro cobriu-se de luto, as

crianças não entendiam como um ser humano de pouca

idade, ingênuo, um mensageiro entre Deus e os homens,

partia tão cedo daqui.

Numa noite de insônia, Ducar, inspirado, escreveu na

parede branca de gesso de seu quarto, com um pincel

atômico, uma homenagem ao amiguinho que se foi sem se

despedir.

Somos todos anjos

É muito cedo.

Ali diante do espelho,

Eu me olho como filho e digo:


Eu te perdoo

Por tudo que não fui até aqui,

Por aquilo que não consigo.

Ali diante do medo,

Eu rezo e espio meu corpo aos saltos

Para muito além dos arrepios

Desses desfiladeiros.

Pássaro

Verga toda a musculatura

E atravessa o nevoeiro.

Passa

Mais uma vez pela madrugada

Que todos nós te esperamos,

Caminhando um pouco mais devagar


Diante de humildes casas coloridas.

Johnny,

Somos todos anjos

Não desista de abrir tuas asas.

Um relâmpago sempre indicará ‘É por ali a estrada’.

Então,

Nenhum remédio mais de cápsulas secas,

Nenhum vício,

Só alívio.

O tempo foi passando, reformas e pinturas em sua

casa aconteceram, mas, naquela parede do seu quarto,

ninguém tocava, ela era infinita.

* * *
Naquele momento em que pressentiu a morte

próxima, Ducar se perguntou, “Será que meu melhor amigo

vai escrever em algum lugar um poema para mim? Vou

morrer agora, nesse instante, como vou saber se isso

aconteceu? Estarei presente no meu enterro? Estou sem

tempo de escolher a roupa para o meu funeral, esse tiro de

revólver não vai doer. Fui atraído e me encontro nesta

cilada, estou sem saída, apenas vou morrer...”


INADIMPLEMENTO

Posso narrar, com todo medo de errar, uma passagem

da minha vida, quando eu e mais meu amigo Ducar

Dromonde, os dois com idade não suficiente o bastante,

tínhamos, como maior preocupação, não ter preocupação

alguma, e nós nos empenhávamos nisso.

Nosso horário de estudo que ocupava meio período

do dia era respeitado, pois os mais velhos viviam falando

para os mais jovens “Estudem e tomem conta de vocês


porque o governo ignora o povo, não dá nada para o

cidadão, o que ele faz é se apoderar do país para o seu

próprio bem-estar”. Esse conselho, desde criança, nos

acompanhava causando um trauma. Por causa disso, não

faltávamos às aulas, eramos bons alunos e dessa forma,

nos traíamos já nos preocupando.

A partir dos onze anos, fomos entendendo melhor a

relação povo e governo, então, em toda semana de provas,

sentávamos próximos na sala de aula, erguíamos o livro na

altura da boca e, juntos, satirizávamos a recomendação

dos nossos pais “Estudem meninos, cuidado com os

governantes!” - usávamos um tom arremedado da

preocupação deles.
INTREPIDEZ

Pois bem, como havia dito, com nossa idade

suficiente, fomos parar na casa de duas senhoras. Uma

com mais ou menos sessenta e cinco anos, a outra irmã

era mais velha e sempre desviava o assunto quando

questionada sobre alguns fatos que pudessem revelar a

sua idade. Ducar Dromonde, sem mencionar quantos anos

elas tinham, me convenceu a ir a casa “das moças” depois

de alguns chopes que tomamos num boteco ao lado da

residência delas. Animados, depois de comer alguns

amendoins e beber vários chopes com algumas caipirinhas

de pinga com limão, indispensáveis para criarmos


coragem, lá fomos nós. “São garotas de programa”,

afirmava Ducar. Percebi então que ele não tinha muita

certeza do que falava, queria mais era me convencer sem

que precisasse responder muitas perguntas.

Batemos à porta porque não havia campainha e notei

o quanto era antiga a madeira, pois, na batida, descascou-

se a tinta, ficando marcado o local do toque. A porta era um

pouco de verde com azul, revelando outras cores por baixo

que acusavam o tempo da casa, com portas altas de pinho

de Riga.

Quando eu era criança, ia até a oficina do seu Rafael

carpinteiro para que ele fizesse rodas de carrinho de

madeira. Quanta paciência desse homem com a criançada

do bairro. Ele comentava sobre essa árvore, contava que

era uma madeira nobre e vinha de longe, lá da União

Soviética, da cidade de Riga, hoje, capital da Estônia.

Chegou ao Brasil durante os séculos dezessete e


dezenove, vinham como lastros dos navios dos gringos,

imaginem, ficando por aqui, trocadas por ouro ou café. Eu,

na marcenaria, ficava sentadinho num barril de madeira,

ouvindo com atenção a prosa dos adultos ociosos.

Ducar e eu estávamos em frente a uma raridade, hoje

conseguida somente em demolições. Recordando tudo

isso, fiquei com desejo de ver mais... Desvendar como

seria a parte interna daquela casa.

Não precisamos bater novamente, a porta se abriu e a

“moça” que o Ducar Dromonde falou apareceu sorrindo

com uma dentadura bem feita, porém com certo exagero

na cor branca dos dentes. Ela era mais velha que a minha

avó! Percebi isso de cara, mas não queria ser mal

educado, recusando o convite para entrar, também não

queria olhar para o Ducar, pois não conseguiria segurar a

risada, afinal, o meu interesse de conhecer a casa

prevalecia.
Desde pequeno, sofro de claustrofobia e, na sala

minúscula, faltava ar, pois o local, além de reduzido, estava

repleto de coisas espalhadas, sofás, cadeiras, uma mesa

oval, um monte de panos e roupas, carretéis seguros por

pregos na parede. No canto, um banquinho que era um

assento da máquina de costura. Deduzi então que elas

eram costureiras. O pé-direito alto diminuía a intensidade

do estado psicopatológico do claustrofóbico. “Coragem! Eu

vou encarar”, pensei.

Uma das senhoras, que o Ducar me falou que era

moça, estava radiante com nós dois ali na sala da casa

dela, então, rapidamente fechou a porta, mas não sem

antes olhar pela fresta com cautela, como quem não quer

ser flagrada, lembrou um pouco a Bette Davis. Fiquei com

receio, pois sempre acontece algo de ruim depois de uma

cena como essa – já tinha visto isso num filme.


TAPETES VIVOS

A Menina-senhora falou para gente ficar à vontade,

mas não tinha onde sentar, muito menos se encostar. Era

cabide pendurado, casaco por cima de calças, camisas e

panos com linhas soltas, imagens de santo coladas na

parede, um furdúncio. A única luz que passava para a sala

vinha da parte superior da porta, pela bandeira, era uma

claridade tímida entre os três vidros coloridos de roxo,

amarelo e verde.

Naquele ambiente, lembrei-me com carinho de um

alfaiate que minha mãe me levava para experimentar calça


curta sob medida. Ele sempre tinha um pirulito vermelho de

sabor inexistente para comprar a minha paciência, era uma

das razões de eu ir sem reclamar. De calça curta, ia à

missa aos domingos com mamãe e por vezes, eu a

confundia com Nossa Senhora, principalmente à noite

antes de dormir. Eu tinha medo do escuro. Sabendo que eu

era nictofóbico também, mamãe me acalentava até eu me

acostumar com a penumbra e ter certeza de que, ao abrir

os olhos, não ia ver nada sobrenatural, muito menos as

bruxas que na verdade não me assustavam. O meu temor

era em relação às enormes verrugas do narigão de velha

disneyana. Às vezes, quando eu brigava com o sono,

disputando com ele a presença de minha mãe, ela cantava

baixinho próximo ao meu ouvido a música Let it Be, como

se fosse um segredo, e me vencia:

Quando me encontro em tempos difíceis

A mãe Maria vem até mim

Dizendo palavras sábias


Deixe estar

E nas minhas horas de escuridão

Ela está em pé bem na minha frente

Dizendo palavras sábias

Deixe estar

Sussurrando palavras de sabedoria

Deixe estar

E quando as pessoas de coração partido

Morando no mundo concordarem

Haverá uma resposta

Deixe estar

Pois embora possam estar separados

Há ainda uma chance de eles verem

Haverá uma resposta


Deixe estar

E quando a noite está nublada

Ainda há uma luz que brilha em mim

E brilhará até amanhã

Deixe estar

Acordo com o som da música

A Mãe Maria vem até mim

Dizendo palavras de sabedoria

Deixe estar

Ir à missa era maçante, mas eu ia muito feliz, não para

ouvir o padre que falava sobre doações e quermesse

beneficentes, feira paroquial e outras coisas, eu ficava

admirando a igreja de séculos atrás e sentia medo das


imagens de alguns santos, principalmente de Cristo morto,

era temeroso e ao mesmo tempo excitante.

Ao comentar com um amiguinho da rua sobre isso,

ele narrou um fato parecido com a minha experiência. Sua

mãe era uma beata, por conta disso, queria que ele fosse

sacerdote. Coroinha, ele já não gostava de ser, reclamando

que tinha que vestir batina com avental de renda, achando

tudo aquilo coisa de maricas. Mas acompanhava a sua

mãe por diversas igrejas. Ducar, quando tinha chance,

zombava do menino, com chacotas diabólicas sobre santos

e mães de santo. Nosso amiguinho contou um pouco

abalado, que, em uma das igrejas que ele foi com sua mãe,

numa noite fria e chuvosa, uma nevoa densa abraçava a

capela que ficava ao lado da casa do sacristão. Lá havia

imagens de santos com cabelos de gente como a gente!

Depois daquele dia, ficou inquieto, demorava a dormir, sua

mãe teve que levá-lo conversar com um psicólogo. O

menino não entendia bem o que ia fazer lá, mas ficou

satisfeito com a notícia de que não seria um sacerdote.


Fiquei perturbado também, mesmo sem ver os santos com

cabelo natural. Será que as beatas doam seus cabelos

para a igreja? Pensei.

Outro atrativo no templo cristão eram as meninas se

preparando para a primeira comunhão. Minha mãe gostava

de se sentar na frente, nos primeiros bancos, perto do coral

e por ali elas ficavam sentadinhas de véu na cabeça.

Sempre que podia, eu achava um lugar para ficar ao lado

delas, me acomodava bem e gostava. Me sentia como um

veterano, pois há dois anos já havia participado do

banquete sagrado, como falava a minha professora de

catequese.

No momento dos cantos da missa, aproveitava para

falar com a garota que estava ao meu lado sobre a

eucaristia. Eu não sabia muito bem o que estava dizendo,

eram coisas decoradas como, Jesus Cristo está presente

sob as aparências do pão e do vinho em seu corpo, essa é

a ceia do senhor, o pão dos anjos e assim ia... Por


segurança, levava um papelzinho com as frases anotadas,

era um costume escolar na época de provas. Contudo,

enquanto falava, ela continuava cantando como se não

estivesse me ouvindo, mas eu sabia que estava escutando,

quando me calava, ela me procurava com o canto dos

olhos sem desviar a atenção do altar. Pois bem, essa era

uma maneira de impressionar a menina de véu, com

sapatinhos de boneca envernizados, meias de renda e

vestido xadrez com pregas.

Cada domingo era uma menina diferente. No caminho

para a missa, de mãos dadas com mamãe, eu ia

cantarolando as composições cristãs, pensando ao lado de

quem eu sentaria, da ruiva sardenta, da moreninha tímida,

da japonesa séria, da inquieta loirinha ou da negra feliz?

Essa incerteza me animava.

Mas tudo isso não se compara ao próximo passo do

domingo. Ainda na parte da manhã, saíamos da missa, eu

e mamãe, indo direto para a casa da tia Ninita. Lá estavam,


em cima da mesa de madeira, sobre a farinha de trigo, os

pastéis quase prontos para irem para a frigideira. Tia Ninita

me esperava porque o primeiro pastel era para o “sobrinho

querido” dela, que, naquele momento, era eu mesmo. Com

o tempo, descobri que todos os sobrinhos eram “os mais

queridos”. Enquanto os pastéis fritavam na enorme

frigideira de ferro, eu aguardava sentado na pequena

janela com venezianas de madeira, que dava da sala para

o quintal.

Na sala, havia estampas de quadros famosos

espalhados pela parede e, quando mamãe percebia meu

interesse por alguma ilustração, ela comentava sobre o

autor, fazendo um breve relato da história do quadro e em

qual museu se encontrava. Por vezes me interessava; por

outras, apenas ficava olhando e admirando o tempo

dedicado, o jeito, o carinho que a minha mãe tinha por mim.

O que mais me chamava atenção, era a Moça Com Brinco

de Pérola, um quadro de Johannes Vermeer, como

descobri depois, o segundo pintor holandês mais famoso e


importante do século XVII depois de Rembrand, “O quadro

está no Museu dos Mauritshuis na Holanda!”, explicou

mamãe. Fui me dar conta, depois de anos e de algumas

sessões de terapia, de que eu fazia uma analogia da moça

do quadro com Nossa Senhora e a minha mãe, ficando

ausente e isenta dessa situação a atriz Scarlett Johansson

que interpretou Griet no filme Moça com Brinco de Pérola.

Enfim...

Sentado na janela, observava o pequeno quintal onde

tinha um tanque de lavar roupa de cimento áspero. Uma

escadinha feita com enxada aproveitando o aclive do

terreno dava acesso para a parte de terra em que havia um

limoeiro carregado de limão siciliano, as folhas verdes

contrastavam notavelmente com os frutos amarelos. Sobre

os vasos de antúrios vermelhos enfileirados ao lado da

parede, havia gaiolas de madeira com canários do reino,

ervas aromáticas secando penduradas e amarradas em

ganchos de palha seca, avencas por todos os cantos,

pileas espalhadas pelo chão competindo com as zebrinas e


as marias-sem-vergonha, como se tudo fossem tapetes

vivos.

Meu avô contava que em lugares com árvores, flores,

grutas, nascentes com presença de muitas borboletas é

possível ver gnomos, mas somente por crianças especiais

que eles se deixam ser vistos. Vivem em baixo da terra e

em pedras, transformam pedrinhas em cristais e fertilizam a

terra para que as plantas fiquem fortes, protegendo a sua

moradia. Mas os gnomos foram embora, se ofenderam e

desapareceram, porque os homens estão destruindo as

florestas. Diz a lenda que os gnomos ficam de longe

observando as pessoas e, às vezes, escolhem alguém para

acompanhar a vida toda. Vovô terminava as pequenas

histórias fazendo um carinho em nossas cabeças.


Sonata e Lagartixa

Minhas lembranças rapidamente são interrompidas

por Ducar, que já me cutucava há algum tempo, para que

eu conhecesse a irmã da Menina-senhora. Parada a minha

frente, com o mesmo sorriso e dentadura da irmã, ela fixa o

olhar em mim, fico paralisado, não faço nenhum

movimento. Sem mexer a cabeça, procurei a outra irmã,

apenas com os olhos, para me certificar de que ela não

havia emprestado o sorriso de resina branca da mana.

“Muito prazer, senhora!” - educadamente falei

estendendo a mão. Por sua vez, a Menina-senhora mais


velha, respondeu com certa ironia, fazendo reverência,

inclinando o busto para frente, segurando com as duas

mãos as laterais do vestido, “O prazer é todo meu,

cavalheiro!”. Depois da disposição cortês, mas quase me

despedindo, percebi que Ducar já se enamorava com a

irmã mais nova, que era agora, com certeza absoluta, mais

velha que a minha avó.

Nesse instante, alguém tenta abrir a porta da sala,

querendo entrar sem bater. “Só poderia ser uma pessoa

conhecida das Meninas-senhora”, pensamos. Ficamos

apreensivos e elas emudeceram. Fizeram um sinal

simultaneamente, levando o dedo indicador à boca, para

que não fizéssemos barulho. A Menina-senhora mais nova,

com gestos, nos leva até uma claraboia, sem cobertura,

que ficava entre a sala, a cozinha e o banheiro. Ali ficamos

calados, apenas nos olhávamos e conversávamos pela

expressão dos olhos. Pelo buraco do ferrolho enferrujado e

por algumas frestas na janela cuja veneziana ficava do lado

de fora e o vidro para dentro, podíamos ver o que


acontecia. Para nossa surpresa, era uma garota bonita,

com um corpo bem feito, um corpão de mulher mais velha,

mas a menina não passava dos seus dezoito para

dezenove anos. Ducar tinha uma teoria para esse tipo de

corpo, “Tá no limite, ano que vem estoura!", com crueldade

ele profetizava.

A Menina-corpão usava roupas um tanto pequenas

para o seu número, camiseta decotada sem mangas,

barriga de fora com piercing extravagante no umbigo, short,

que um dia já tinha servido para ela, e chinelo de dedo.

Possuía um rosto bonito, sobrancelhas grossas que nunca

foram tocadas, cabelos negros, lisos por natureza, nariz

combinando com seus lábios carnudos, um aspecto

indígena. No balançar da cabeça apareciam os longos

brincos de pena de periquito em suas orelhas. Uma beleza

agradável de ver. “Olá, vovó” falou a Menina-corpão para

as Meninas-senhora, “A senhora me empresta a sonata pra

eu levar na festa de aniversário da minha vizinha, aquela

que cortou um dedo de propósito para se aposentar?”. A


Menina-corpão não esperou e já foi desligando o fio da

tomada, não dando chance de reação para uma resposta.

Por um instante, parou de enrolar o fio, ficou imóvel, franziu

a testa, levantou o lado direito do lábio desconfiando de

alguma coisa e todos nós, habitantes momentâneos,

pensamos “A Menina-corpão descobriu que havia alguém

na casa além das avós”.

Prendemos a respiração para que o silêncio reinasse

absoluto, soltei um pum silencioso e fedido, era fisiológico,

não tinha controle sobre isso. Em todo momento de pânico,

desde criança, peidava, e a minha mãe atenuava a

situação, explicando que era apenas um vento saindo, com

essa definição, eu não ficava encabulado.

A Menina-corpão contrai a testa mais uma vez e

pergunta para as avós sobre o disco do cantante latino

Nelson Ned que tem aquela música Tudo passará, essa

música é a preferida do marido da minha vizinha! Contou

vivaz, cantarolando.
Nesse instante, começa a chover e, como não havia

telhado onde estávamos, ficamos molhados. A Menina-

senhora mais velha, disfarçadamente, jogou alguns panos

para que pudéssemos nos proteger da chuva.

Ficaram de prosa na sala, notamos, pela conversa da

Menina-corpão, que ela tinha uma queda pelo marido da

vizinha sem dedo e não queria ir embora sem o disco do

cantante latino.

Para nossa surpresa a Menina-corpão se encosta,

colocando um pé de apoio na parede, e começa a

confeccionar um cigarro sem marca. Acende o baseado e,

antes mesmo de dar um tapa, passa o cigarro de maconha,

muito bem feito, pois até filtro tinha, para a Menina-senhora

mais velha, que, por sua vez, imediatamente o leva à boca,

dando uma bela tragada, segura, segura mais um pouco e

solta o fumacê como se quisesse espantar os pernilongos e

muriçocas inexistentes. Relaxada olha para sua irmã e diz

“Há quanto tempo que eu não faço isso!” Interessante, é


que hoje, sempre ouço a mesma coisa, quando um adulto é

flagrado fumando um.

Até aquele momento, eu não havia observado

nenhum mosquito na casa, talvez isso se devesse ao

número de lagartixas que se moviam lentamente

passeando pelas paredes, lembrando o estilo de alguns

quadros de Gustav Klimt. Com tal cena, Ducar pergunta

baixinho em meu ouvido se eu me lembrava do mosquito

do bordel. Movimentando a cabeça, respondi que sim.


EPITÁFIO

Passeávamos por uma zona de meretrício. Lá fomos a

um bordel, não conseguimos recusar o convite de uma

moça linda, que estava na calçada, em frente a uma boate,

colocando os curiosos para dentro, vestida sensualmente

de animadora de programa infantil, com bota de napa

branca até o joelho. Lembramos imediatamente de “una

cantante”, visto que assistíamos, há pouco tempo atrás, o

programa dela na TV, rendendo várias punhetas no sofá.

Era uma transição de fase da puberdade e, de repente, o

destino nos conduz próximos da realidade, as “covers” das

bailarinas.
Entramos, contudo deveríamos ter recusado o

convite, pois o recinto não lembrava nada o estúdio da TV,

muito menos as dançarinas que com perfume barato

amanhecido, estavam mais para as tias delas.

Consumimos bebidas com descaso e Ducar quis ir embora.

Fiquei confuso, pois ele é o rei das “primas”, mas concordei

sem perguntar a razão da sua desistência, a sua fisionomia

não era boa.

Já na calçada, ele desabafa, conta que foi picado por

um inseto e que poderia pegar uma doença contagiosa.

Relevei, não argumentei, percebi que ele estava injuriado e

queria polemizar. Porém, para não ficar calado, disse-lhe

que tem dia que a noite é assim mesmo, perguntei se ele

havia deixado sua marca, sua lembrança no local, ele

respondeu que sim.

Ducar tinha um procedimento excêntrico, em todos os

lugares que pela primeira vez ele visitava, deixava um

bilhete com elogios fúnebres, epitáfios tais como ¨Ao


operoso Prefeito Municipal, a gratidão do povo da cidade¨;

¨À memória do Capitão, tributo de amor conjugal¨ ou ¨Aqui

repousam os restos mortais do meu sempre lembrado

esposo, saudades de sua esposa e filhos¨. Ele se divertia

sem menosprezo, apenas deixava em cima da mesa ou

balcão o bilhete para quem pegasse.

Me contou que seu tio colecionava objetos pequenos

sem valor como um clipes, uma caneta de propaganda,

uma caixa de fósforos, um cinzeiro, um chaveiro, uma

recordação dos lugares que frequentava e pendurava-os

na porta do guarda roupa. Cada peça tinha uma lembrança.

Esse tio tinha mania de falar sozinho, mexendo com os

dedos em cima da mesa em objetos invisíveis como se

estivesse colocando em ordem pequenas coisas que

somente ele enxergava. Imprimia movimentos na toalha,

arrumando e desarrumando. Suas frases com a voz baixa

acompanhava a exibição e seu pensamento abstrato o

levava a responder sua própria pergunta, dando ênfase à

réplica. Esse momento era esperado por todos, os que o


conheciam e os que conviviam com ele. Era o tipo de

pessoa que está sempre numa sala de espera.

ENCANTAMENTO

A Menina-senhora mais nova fica na espera, pois

sabe que aquele fumo picado enrolado no papel de seda

vai demorar a chegar até ela, não se importa, parece curtir

aquele momento da irmã. Depois de um tempo, as irmãs

dividem o baseado, se divertem arrumando o cigarro com a

saliva por cada passada de mão. A Menina-corpão acende

mais um e não divide com ninguém, fuma com classe,

segurando-o como se fosse um puro cubano Montecristo.

Enquanto isso, nós dois tomávamos chuva naquele

cubículo úmido e esverdeado de limo.


Depois de uns vinte minutos de fumaça e a procura do

disco, finalmente a Menina-senhora mais nova acha o

bendito LP. A Menina-corpão, em vez de ir embora, não

satisfeita, instala a vitrola novamente e põe o disco de vinil

para tocar no máximo volume. As três começam a cantar e

dançar, colocando pedaços de roupas no corpo que

estavam espalhadas pela sala, imitando estolas, chapéus,

gravatas, saias, criam trajes imaginários, fantasiosos.

Conversavam entre elas, como se fossem estilistas,

discutindo uma nova tendência da moda de roupas e

acessórios. Dromonde estava abismado com o baile na

sala e percebi nele, um olhar admirado pela Menina-

corpão.

Ela era graciosa, dançava leve e solta, como uma

bailarina de Edgar Degas. Gesticulava segurando um véu

de seda lilás sobre a sua cabeça, o tecido transparente

escorregava pelo seu corpo sensual, penteando os pelos

descoloridos de suas coxas, descia até seus pés descalços

com as unhas bem feitas pintadas de azul.


Sei que Ducar Dromonde se apaixona facilmente

pelas mulheres, por muitas, porém não quer conhecê-las,

muito menos ouvir a voz de suas amadas, ficava apenas

observando-as, seus trejeitos, o modo do andar, de se

vestir. Se as conhecessem, perderia o encanto e todas

ficariam iguais, “Musas são musas.”, discursava ele,

acrescentava que as Deusas não amam, apenas permitem

serem amadas.

Recordamos juntos do filme Don Juan De Marco, a

história sobre um homem que pensava ser o maior amante

do mundo e das pessoas que tentaram curá-lo disso.

Don Juan se arruma em um quarto de hotel, com o

cuidado de colocar as abotoaduras de ouro marcadas em

alto relevo com o brasão da família, e sai a caráter pela

rua. Passa por mesas dos bares nas calçadas, exibindo

sua capa, chapéu e máscara. É aplaudido pelas pessoas.


Entra no restaurante de um hotel. Parado no hall da

entrada, ele se recorda, “Jamais uma mulher ficou

insatisfeita em meus braços, apenas uma me rejeitou e, por

capricho do destino, somente ela é importante para mim. É

por isso que aos vinte e um anos decidi dar um fim a minha

vida, mas antes disso, uma ultima conquista”. Ele se

aproxima de uma mulher sentada sozinha em uma mesa,

“Permita-me?”.

“Bem, na verdade espero alguém, ele está atrasado,

mas logo chegará”.

“Não demorarei, sou Don Juan”. Ela sorri e diz, “É

muito engraçado, há uma festa à fantasia aqui no hotel

hoje?”

“Não, sou Don Juan, descendente direto da nobre

família espanhola”.

“E você seduz mulheres?”


“Não, nunca me aproveito de uma mulher, dou prazer

a elas, se assim desejam. É, naturalmente, o maior prazer

que jamais experimentaram. Existem algumas mulheres de

traços finos, certa textura no cabelo, uma curva nas orelhas

que são como o interior de uma concha. Essas têm nos

dedos das mãos a mesma sensibilidade das pernas; as

partes dos seus dedos são tão sensíveis quanto às dos

pés, e, quando tocados nas juntas de suas falanges, é

como se sentissem acariciadas nos joelhos, e quando

tocadas nesta parte macia e carnuda dos dedos, é como se

passasse a mão em suas coxas. Toda mulher é um

mistério a ser desvendado, mas uma mulher nada esconde

de um amante verdadeiro. A cor de sua pele nos diz como

proceder: com a nuança de um botão em flor rosa pálido,

ela deve ser convencida de abrir suas pétalas com o calor

do sol; a pele clara e sardenta de uma ruiva pede luxúria de

uma onda que se arrebenta na praia e traz à tona as

espumas do prazer do amor. Apesar de não existir uma

metáfora que descreva com fidelidade o que é fazer amor


com uma mulher, a melhor comparação é tocar um

instrumento musical. Pergunto-me, será que um violino

Stradivarius sente o mesmo arrebatamento que o violinista

quando este arranca um acorde único e perfeito de seu

coração?”

Ducar e eu levamos meses para decorar essas

palavras de Don Juan que foram interpretadas por Johnny

Depp. Sempre nos lembrávamos do filme e das cenas,

falávamos as frases em voz alta com sotaque latino, era

divertido, porém nunca conseguimos por em prática o que

temos retido na memória.

A Menina-corpão o induziu a um movimento novo.

Chegou a perguntar baixinho em meu ouvido se ficaria

chato ele pedir o endereço dela para as Meninas-senhora.

Fiquei admirado com o seu interesse, não respondi e dei de

ombros.
AMOR E PAIXÃO

Ducar Dromonde odiava Shopping Center, porém, por

vezes, ia passear por lá. Apreciava as mulheres

empurrando carrinhos de bebês, pois inclinadas, acabavam

mostrando os fartos seios, “Cheios de leite para amamentar

a cria!”, dizia ele. Numa dessas idas ao Shopping, voltou

muito empolgado, contou que estava analisando a bunda

de uma mulher que sondava os preços em frente a uma

vitrine. Ele resolveu chegar mais perto, pois não conseguia

enxergar seu rosto. Aproximou-se. Ela, percebendo a

paquera, fez um gesto circular com o corpo da cintura para

cima para que seu cabelo solto se movimentasse,

deslocando o ar e levando seu perfume até ele. Perplexo

com a técnica da moça, com rapidez, Ducar cruza os


braços na altura do estômago e tórax para se proteger da

energia do amor, transformando-a em paixão. Era uma

superstição, chegou até a comprar flores na loja ao lado,

mas não lhe entregou.

A neta se despede das avós, feliz, levando a sonata e

os discos.
A CIRANDA

As Meninas-senhora continuam dançando e nos

chamam para acompanhá-las no bailado. Nesse momento,

a melodia era cantada por elas, a sonata já estava longe.

Cantavam muito bem afinadas, indicando que tiveram aula

de canto numa época da vida. Ducar se empolga, dança

pulando como uma cabrita, por vezes imitava o Freddie

Mercury, segurando uma vassoura de madeira como se

fosse um microfone, colocava o pé no sofá e mexia os

braços aclamando para o povo invisível. Fez uma

homenagem para Fred Astaire, tentando dançar como ele.

Na verdade, somente eu sabia quem ele queria imitar, por

já termos participado de algumas festas juntos, quando,


depois da imitação, me contava para qual artista tinha feito

a homenagem.

Aos poucos fui me encantando com tudo aquilo e me

soltei, deixei o corpo fluir, de mãos dadas dançamos

felizes. Fechei os olhos e me lembrei de um filme

dinamarquês, A Festa de Babett.

Após o estupendo jantar oferecido por Babett, na

despedida, os convidados e os anfitriões dançam de mãos

dadas na rua, em volta do poço em frente à casa, sob um

céu onde as estrelas estavam mais próximas e que, talvez,

se aproximassem mais, todas as noites. Era inverno, e a

limpidez oferecia a chance das pessoas terem o mesmo

valor do brilho estelar.

Dançamos em círculo, fazendo movimentos iguais

com as pernas, em coreografia. Com os olhos fechados, as


Meninas-senhora começaram a entoar um mantra, era

preciso que a calma voltasse à sala. Seguraram nossas

mãos com firmeza, para que não se rompesse o elo da

ciranda. Depois de um tempo, a Menina-senhora mais

velha entrou em transe e a roda se desfez. Ela começou a

evocar alguém que parecia ser conhecido e o sentimento

era de saudade e boas lembranças.

A cena impressionou Ducar, que ficou apavorado,

começou a rezar uma Ave-Maria. Segurei em sua mão,

apertando forte com o objetivo de que parasse de rezar, e

falei baixinho em seu ouvido – “Não tenha medo!”.

Enquanto a Menina-senhora mais nova murmurava o

mantra com a boca fechada, a mais velha se deitou no

sofá, levantou lentamente a saia até aparecer a sua

calcinha preta de renda, tamanho G, exibindo as pernas

flácidas, músculos lânguidos, sobrepondo as peles, umas

sobre as outras. Começou a se masturbar, passando o

dedo indicador e o dedo médio na virilha, afastou a

calcinha e acariciou a vulva. Levou a outra mão a sua boca,


escolhendo os mesmos dedos para afagar seus lábios,

falando em uma língua que parecia ser um dialeto

desconhecido.

Fiquei paralisado por algum tempo, com as mãos

cruzadas em meu peito, numa menção de reza, olhando

para Dromonde e as Meninas-senhora naquele entusiasmo

delirante. Eu não conseguia falar, muito menos tirar o olho

da cena espetacular que se apresentava no sofá. Sentei

em um pequeno banco de madeira no canto da sala, me

lembrei de uma viagem, que eu e ele fizemos.


O ELEVADOR

Ficamos sabendo que, na cidade que estávamos,

havia um lugar especial para se divertir, uma espécie de

boate, ou bar, como quiser chamar, falou o homem que nos

deu a dica. Lá fomos nós. Chegamos e não sei muito bem

o que era aquilo. Tivemos que entrar num elevador para

chegar ao andar que queríamos, havia escadas interna e

externa, porém o sistema da casa era assim, só subia pelo

elevador ou ficava para fora. O elevador era minúsculo,

parecido com aqueles adaptados em casarios antigos

europeus que se transformam em hotel, um metro por um

metro e meio era o espaço da caixa, puxado por corda

manualmente por dois brutamontes.


Entramos com mais cinco pessoas. Apertados,

ninguém falava nada, visivelmente incomodados com a

situação, principalmente eu, claustrofóbico desde o útero

da minha mãe. Estávamos ali, quatro homens e três

garotas. Éramos os mais jovens. Os nossos documentos

eram falsificados, com idade de dezenove anos, porque

nesses lugares, menores eram proibidos de entrar. Era fácil

falsificar carteirinha de estudante, mas se o pai de Ducar

ficasse sabendo, ia ser um quiproquó.

O doutor Dromonde, como gostava de ser chamado,

era um senhor bem apessoado, sempre de terno, alto e

gordo. Bigode inspirado em Dali, porém mais discreto e

volumoso. O perfume Yves Saint Laurent se confundia com

odor de charuto que estava impregnado na roupa e na sala

de estar da sua casa. Ocupava um cargo publico

importante e sempre alertava seu filho, com rigor nas

palavras, de que não podia ter qualquer tipo de problema,

pois a sua posição não permitia equívocos.


No elevador, as meninas aparentavam ter uns vinte

oito para trinta anos, todas de microssaia, decote abusado,

mostrando “os fartos seios”, como Ducar Dromonde

gostava de falar e olhar.

Maquiadas com base, sombra verde misturada com

azul e vermelho, cílios postiços enormes, perfume bom e

tinham olhares meio perdidos. Percebi que imitavam

modelos famosas, deixando as pálpebras semiabertas.

Apesar do aperto, notei que uma delas, com a ajuda do

salto, tinha de perna, quase a altura de Ducar.

Eram meninas para serem lembradas durante a

masturbação matutina por séculos.

Ducar, encurralado no canto, puxava a minha

camiseta, chamando a minha atenção para a cena que ele

montava naquele momento: fingia cheirar o pescoço da

moça, fechando os olhos num eterno gozo. Achei graça e,

ali, compreendi o quanto éramos infantis.


Os homens pareciam ser mais velhos, uns trinta e oito

para quarenta anos, os dois vestidos iguais, mudavam

apenas as cores da camisa polo por dentro da calça com

cinto de marca, pulôver sobre os ombros, sapatos

mocassim e cabelo arrumado com pente, que, com certeza,

estava guardado no bolso de traz.

Ducar Dromonde se divertia com isso e falava

baixinho em meu ouvido que eles gastavam muito com

perfume e roupas, que não iam sair com nenhuma garota

do bar, eram como uísque falsificado, por fora enganava

bem, mas o conteúdo dava dor de cabeça! Senti um pouco

de inveja da parte dele, mas sabia o quanto ele tinha razão,

a beleza física era de pouca importância para nós.

Chegamos, abre-se a porta e damos de cara com uma

loira de, no mínimo, um metro e oitenta de altura, cabelos

passando dos ombros, um tanto quanto hollywoodiana, era

a recepcionista. Estava seminua, com um vestido dourado

cobrindo um pouco de seus seios e da sua parte de baixo.


Ela nos recebe, dando as boas vindas em três

idiomas. “Bem-vindos!”, “Bienvenue!”, “Dobrodosli!”.

Esticando os braços longos, num gesto delicado, mostra o

caminho da entrada.

Ao passar por ela, senti um leve toque na minha

cintura. Observei, após três passos à frente, olhando para

trás, que era um anão usando apenas sunga de couro

preta, abraçado na longa perna direita da recepcionista, me

olhou com um sorriso sarcástico e me chamou com o dedo

indicador. Vacilei para entrar.

Ducar me empurra, como se eu estivesse

atrapalhando a entrada dele e, com gestos, pede para que

eu o siga, como se ele fosse frequentador assíduo do local.

Fui obediente e o segui.

Lá estávamos nós, em um lugar luxuoso e de bom

gosto, muito agradável. Trocamos um olhar de sabichões,

ligados no mesmo pensamento, de como contar para os


amigos tudo que vivenciaríamos naquele local que

prometia oferecer uma noite daquelas.

O barman, sósia do David Bowie, parecia ter saído de

um quadro do movimento pop arte de Andy Warhol, nos

chama para o balcão de granito preto com acabamento em

madeira, sem perguntas nos serve uma bebida verde em

um cálice de cristal, faz questão da nossa atenção para o

preparo do drinque, por consideração, ficamos atentos.

Colocou em cima do cálice um coador de prata com um

torrão de açúcar dentro, derrubando o absinto em seguida.

Posicionou os cálices no balcão sobre um aparador de

linho branco com acabamento de renda portuguesa. Olhou

fixamente em meus olhos por alguns segundos e não disse

nada. Imaginei que fosse um ritual ou iria cantar Where Are

We Now? Nada ocorreu.

Bebemos com certo receio, pois, além de ser

novidade, a nossa pequena mesada talvez não fosse

suficiente para satisfazer a conta. Gostamos da bebida e


tomamos mais, sempre servida da mesma maneira, com o

mesmo ritual do olhar e a sensação da música não

cantada.

No bolso do meu amigo, havia o começo de uma

coleção de bolachas de chope feitas de linho branco, cada

uma que ele guardava, falava baixinho em meu ouvido,

“Vou levar para minha mãe colocar embaixo dos santos

como aparador”. Estávamos enturmados com o ambiente,

nesse tempo e sem demora, as “namoradas”, já ao nosso

lado, entusiasmadas e felizes, nos acompanhavam nos

drinques.

As mulheres do elevador dançavam com muita

sensualidade em coreografia, compondo uma sequência de

movimentos, passos e gestos como se tivessem ensaiado

para aquele momento. Os dois playboys que completavam

o elevador faziam caras e bocas de quem não estão

gostando. Tive a impressão de que só estariam felizes

assistindo a uma apresentação de team liaders


americanas, com os gritos de guerra e bandeira

estadunidense.

Depois de beijar, dançar, se esfregar, correr a mão por

alguns lugares do corpo daquelas mulheres maravilhosas

observei atento, que elas não deixavam que colocasse a

mão entre suas pernas. Eu queria perguntar para Ducar se

ele mesmo já havia passado pela linha do Equador, era um

código que a gente usava, quando colocávamos a mão na

xereca da moça. Ele estava empolgado demais, me olhava

e esfregava as mãos, uma na outra, num gesto de

satisfação. Notei que sua calça estava manchada na

braguilha.

Não demorou a começar um show no palco, que, para

o nosso processo mental, obviamente, era um espaço para

uma banda se apresentar, isso no nosso conceito. As luzes

coloridas focam o tablado, a música começa a tocar e as

duas mulheres que estavam conosco vão para lá e

começam a se beijar, com carinho vão tirando a roupa,


uma da outra. Seminuas, dançam com intimidade e nos

olham como se nos convidassem para participar do evento.

Com uma apreciação minuciosa, observamos que elas

tinham, de nascença, um palmo de pinto e ali começaram a

fazer sexo explícito. Ducar evitou me encarar e fiquei grato

por isso.
O POEMA

A menina senhora se satisfaz no sofá, dá um grito, se

levanta, salta três vezes, como se estivesse na praia

pulando as ondas no final de ano, arruma a saia, passa a

mão para que pedaços de linha e retalhos de pano se

soltem. Desprende o cabelo que estava no formato de rabo

de cavalo amarrado com uma gravata amarela, sobe em

uma poltrona deteriorada pelo tempo e começa a declamar:

Quando Ismália enlouqueceu,

Pôs-se na torre a sonhar...


Viu uma lua no céu,

Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,

Banhou-se toda em luar...

Queria subir ao céu,

Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,

Na torre pôs-se a cantar...

Estava perto do céu,

Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu

As asas para voar...

Queria a lua do céu,

Queria a lua do mar...


As asas que Deus lhe deu

Ruflaram de par em par...

Sua alma subiu ao céu,

Seu corpo desceu ao mar... ¨

Recitou em voz alta com gestos e entonações

apropriadas, à La Fernanda Montenegro, una actriz de

America Del Sur, com calma e “aquele” olhar concentrado.

A representação não foi fiel, porém factível.


OS QUADROS NA PAREDE

Nesse tempo, Ducar Dromonde já estava no quarto com

a Menina-senhora mais nova, era sempre assim, em todas

as vezes que saíamos para namorar garotas, ele sempre

queria ficar com a mais nova, eu não me importava com

isso porque, na maioria das vezes, trocávamos de parceira.

Depois que a menina senhora mais velha declamou o

poema, fitou-me, vagarosamente, dos pés ao meu rosto e

falou “Vou tirar um cochilo”. Procurou um cobertor em vão,

achou um xale de Tonquim, colocou o dedão na

boca substituindo uma chupeta e foi repousar, arrastando o


pano pelo chão. Fiquei por ali e, por curiosidade, fui até o

quarto onde estava o casal, não entrei. Levei o banquinho

de madeira emprestado da máquina de costura e sentei ao

lado da porta no corredor.

Pendurado no alto da parede a minha frente, havia

várias gravuras enquadradas de pessoas, uma delas era

conhecida, a estampa do Coração de Jesus

Cristo que não tirava o olho de mim. Aproveitei o meu

momento íntimo com Ele para lhe fazer uma pergunta.

“Você é filho de Deus?” Todos os retratos se entreolharam

e Jesus respondeu que era meu irmão, irmão

de Ducar Dromonde e das irmãs Meninas-senhora e de

toda a humanidade. “Somos provenientes da mesma

natureza, ambos fomos criados pelo criador! Ele está em

todos os lugares, quando você olhar para o céu e observar

o lugar mais bonito, lá, Deus Pai estará olhando por você e

os seus”.
Em outra imagem estava Allan Kardec, que deu seu

parecer “Não existe exceção na criação divina, todos

nós fomos criados iguais, simples e ignorantes. Estamos

caminhando para uma simplicidade e perfeição. Deus nos

espera lá na frente, simples e sábios e Jesus não foi uma

exceção. Jesus é nosso irmão, Ele menciona isso no

Evangelho, ‘Eu vou voltar para casa do meu Pai’, ‘Eu e

meu Pai’. Por que é que repentinamente num dos concílios

a igreja católica nomeou-o Deus? Jesus nunca se intitulou

Pai.

Como a evolução não se dá somente no planeta Terra,

mas, sim, nos incontáveis planetas dentro da eternidade,

Jesus fez seu percurso antes do que nós. Como Ele foi um

dos criadores da terra, veio para trazer uma mensagem.

Veio nos salvar? Do quê? Ele nos salvou? Do quê? Do

pecado original? Quem disse que fazer sexo é pecado? Se

esse for o pecado original, então não é verdade! Ele

não salvou ninguém! Jesus nos trouxe uma doutrina

perfeita que é o Cristianismo, legando aos apóstolos os


seus ensinamentos e, depois de trinta, quarenta anos, os

apóstolos codificaram em conversa as palavras de Jesus

tentando lembrar exatamente o que foi dito na época,

compondo os quatro evangelhos aceitos como os

canônicos. Excluindo e acrescentando muitas coisas, é o

que temos hoje.

Existe uma tese muito avançada que algumas pessoas

vão ficar de cabelo em pé! Ela relata que um dia teremos a

evolução de Jesus, vamos ser iguais a Jesus, pois Ele

chegou à perfeição por intermédio da “passagem

sucessiva”, num movimento gradual e progressivo em

determinada direção! O que nós estamos fazendo:

evoluindo, caminhando. E chegaremos lá evidentemente!

A eternidade é eterna, ou seja, se olharmos para trás,

temos toda a eternidade, se olharmos para frente, temos

toda a eternidade. É uma grande verdade!

Esse espaço de tempo é dificílimo de definirmos e

compreendermos. Antes de o mundo existir, a eternidade


já era velha, todo o universo já existia. Os cientistas

estão procurando a idade do Universo, não vão chegar a

nenhuma conclusão porque, além da Via Láctea, existe

outro tanto indeterminado de planetas. Pode a Terra e

outros planetas se modificarem, porém dentro da

eternidade. Estamos no rumo da evolução do espírito para

sermos iguais a Jesus. Ele foi criado igual a nós, Deus

não faz exceção.

Jesus é um espírito que, por meio de outros planetas, os

quais muitos de nós inclusive já passamos, foi galgando a

sua perfeição, chegando a ser o que hoje nós conhecemos

como o mais perfeito e absoluto espírito que passou pela

Terra.

Passaram grandes seres maravilhosos por aqui, mas

nenhum tem o nível de evolução do espírito de Jesus.”

Outra pessoa enquadrada na parede, adepta a outra

doutrina, pede licença ao senhor Kardec e me


responde que, em sua crença, Salomão, aquele da

Bíblia, acredita que Jesus é filho de Deus e é também o

próprio Deus. É o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Essa figura volta a insistir.

“Para a humanidade compreender, Ele, humildemente,

Se coloca como filho, mas foi crucificado pela ignorância,

intolerância e arrogância da humanidade e, mesmo assim,

perdoou a todos.

As coisas de Deus são simples e bem naturais. O

universo está dentro de cada homem porque cada ser

humano é um espírito e cada espírito é uma luz com

memória tendo como objetivo o conhecimento da fé que

está dentro de nós. Através desse desenvolvimento

espiritual chegaremos à verdadeira realidade da vida.

Em outros momentos da Terra, existiram pessoas com

sabedoria admirável, luzentes, que foram consideradas

Deus. Por estarmos aqui há bilhões de anos, temos uma


fração desse tempo na lembrança do nosso passado,

presente e futuro.

Nós somos a geração da Arca de Noé, a história conta

que, antes do dilúvio universal, o poder superior interveio

em determinadas formas para auxiliar na transformação do

homem, dando uma nova oportunidade para evolução

espiritual no mesmo mundo, na mesma Terra, no mesmo

Universo.”

Desencosto da parede. Firmando meu pé para me

levantar do banquinho ouço uma voz mansa pedindo para

que eu me sentasse. Era a figura de Buda num pequeno

quadro ao lado do retrato de Jesus. Ele olha para Jesus e

sorri, volta o olhar para mim e diz, “Nós acreditamos que

sim, Jesus é filho de Deus, apesar de usarmos outras

palavras para definir a relação de filho de Deus, temos

como verdade que a natureza divina está em todo o

universo e em nós também, ela permeia tudo, portanto,


nesse sentido, somos todos filhos de Deus. É um conceito

muito importante dentro do Budismo e isso exige fé, por

isso é considerado uma religião. Precisamos acreditar

nessa centelha divina que habita em nós e que é nossa

verdadeira essência: descobrir e atualizar a qualidade

divina nos nossos relacionamentos, nos atos da vida,

trazendo à tona a natureza concedida por Deus. Essa real

missão do Budismo nesse mundo.

Nas cerimônias, dedicamos a Paz ao mundo,

acreditamos que, com a nossa prática, transformamos

méritos em benefícios para todos os seres, então, se

agirmos de uma forma altruísta, desprendida e não egoísta,

estaremos ajudando a todos em benefício do Universo.

Dessa forma praticamos um tipo de ritual, meditamos,

procuramos assim nos tornar pessoas melhores no mundo.

Aproveitando que Buda estava logo ao lado de Jesus,

perguntei-Lhe, “Quem foi Jesus?” Com a mesma tonalidade


de voz que tinha me pedido para sentar, respondeu. “Bem,

meu caro, há muitos paralelos entre Jesus e Eu. Se formos

analisar as minhas palavras, veremos que elas não se

diferem em nada do que foi dito por Ele”. Piscou com o olho

esquerdo para mim e com o direito para Jesus.

Prosseguiu dizendo que são coisas parecidas, talvez

contadas de outras formas, mas que têm o mesmo

significado em ambas as religiões. “Jesus, com certeza, é

filho de Deus e muito mais próximo do que as palavras

podem dizer”.

Ao lado do quadro de Buda, havia outra figura

enquadrada em uma moldura dourada com paspatur bege

claro, com vidro blindado para proteger a fotografia. A

roupa e o solidéu brancos contrastavam com sua pele

negra, era o Papa solicitando que lhe concedesse a

palavra.
“Pois bem, meu filho, para responder essa pergunta, se

Jesus é o filho de Deus, recorremos a Fé. É no plano

dela que poderemos compreender a grandiosidade desse

questionamento. Se olharmos para a “revelação”, vamos

perceber que ela toda vai se encaminhando, afirmando que

Jesus é o filho de Deus. No apóstolo Paulo, escrevendo

aos colossenses, encontramos que Ele, Jesus, é a imagem

do Deus invisível, o Primogênito anterior a qualquer

criatura, porque, Nele, foram criadas todas as coisas, tanto

as celestes, como as terrestres, as visíveis e as invisíveis,

tronos, soberanias, principados, autoridades... Veja, garoto,

a “revelação” diz o seguinte, “Tudo foi criado por meio Dele

e para Ele, Ele existe antes de todas as coisas e tudo Nele

subsiste. Se formos ao Evangelho, lá em Lucas, vamos

encontrar o programa de Jesus. Ele vai à Sinagoga de

Nazaré num sábado e lá toma um livro da escritura, lê o

profeta Isaías, ‘O espírito do senhor repousa sobre mim,

Ele me consagrou como a um santo para anunciar a boa

noticia aos pobres, enviou-me para proclamar a libertação


aos presos e a recuperação da vista aos cegos, para

libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do

Senhor’. Em seguida fechou o livro, entregou ao ajudante e

sentou-se. Todos na Sinagoga tinham os olhos fixos Nele e

Ele começou a dizer aos presentes, ‘Hoje se cumpriu a

passagem da escritura que vocês acabam de ouvir’. Então,

o Antigo Testamento, a Antiga Aliança, os profetas

apontam para Jesus, e o Evangelho confirma. Jesus realiza

aquilo que os profetas anunciaram.

O evangelista João, nos diz que o Pai consagrou Jesus

e o enviou ao mundo. Jesus então vai se perguntar de que

blasfêmia eles o acusam se Ele é filho de Deus. ‘Não faço

as obras do meu Pai, por que Eu quero fazer, mas porque

Ele me pediu, porque Ele me enviou para realizá-las. Se

não faço as obras do meu Pai, vocês não precisam

acreditar em mim, mas se Eu as faço, mesmo que não

queiram, acreditem. Assim vocês vão compreender de uma

vez por todas que o Pai está presente em mim e Eu estou

presente no Pai’, então é Jesus dizendo, afirmando, ‘Eu


sou o filho de Deus, Eu realizo as obras do Pai’. Na

perspectiva da fé, da “revelação”, da sagrada escritura,

somos chamados a penetrar tanto quanto possível neste

mistério que revela que Jesus veio de Deus e obedeceu a

Deus como um filho obedece ao pai, levando a sua

obediência até as últimas consequências, até a sua morte

na cruz.

Ele nos trouxe o reino da vida, da justiça, da fraternidade

e do amor. O reino que permanece para sempre como

desafio para os seus seguidores, que na força da cruz e da

ressurreição, do testemunho daqueles que o cercam,

sempre vai se concretizando, se realizando na história.”

Não pude deixar de notar um senhor muito simpático

vestido de quimono cinza-chumbo, com o braço direito

levantado na direção do seu coração, estava num quadro

ao lado do de Buda, sua imagem era protegida por

molduras esverdeadas com pequenas listras vermelhas e


douradas, e por um vidro grosso, que brilhava de tanto

asseio. Era o Meishu Sama. Ele estalou os dedos

requerendo a sua posição quanto à pergunta feita “Jesus

era filho de Deus?”

Meishu Sama, que quer dizer Senhor da Luz, ajeitou seu

quimono transpassado, estufou o peito e relatou com

autoridade de fundador da Igreja Messiânica que Deus

supremo criador do universo é o Pai, aquele que criou o

Céu e a Terra e que tudo que existe é sobre ordem divina.

Continuou afirmando que, para cada época, Deus enviou

um mensageiro que nós denominamos de Messias. Para

os Budistas, o filho de Deus é Buda; para os Islâmicos,

Maomé; para os Messiânicos, Eu, Meishu Sama; para os

espíritas, Kardec; para os cristãos, Jesus Cristo. Acabou

acrescentando, “Então cremos que Jesus é um filho de

Deus como todos nós somos, a grande diferença é o nível

da missão de Jesus que veio para redimir por amor, por

misericórdia, por compaixão, veio remir as máculas da

humanidade como redentor naquele momento. Acredito


que Jesus é um filho de Deus, com certeza. Nossa igreja é

de origem oriental e tem como missão construir o paraíso

na Terra, no intuito de que seja um mundo melhor,

consubstanciado na Verdade, no Bem e no Belo. A prática

principal é ensinar as pessoas a criar a felicidade ao

próximo, só podemos ser felizes se fizermos alguém feliz,

como Jesus disse “Amai-vos uns aos outros como vos

amei”. Sair da condição de ser servido para servir, a nossa

essência é transformar pessoas materialistas e egoístas

em espiritualistas e altruístas”.

Arrumou o seu quimono, deu um sorriso e voltou a sua

posição do início da foto.


TODAS AS MULHERES

Abri os olhos com um barulho estranho, era o gemido

de orgasmo mais falso que eu já tinha escutado. Era a

Menina-senhora mais nova valorizando a autoestima de

Ducar Dromonde. Dei um tempo e, pela afeição e

confiança que me compete, entrei no quarto. Os dois

sentados na cabeceira de mogno da cama, ela fumando e

ele com o cigarro aceso na mão, fingindo fumar. Cena

memorável, me levando às lembranças do filme Ensina-me

a Viver, com a inesquecível trilha sonora de Cat Stevens.

O filme conta que um garoto de vinte anos se

apaixona por uma mulher de setenta e nove. O menino

deprimido vivia simulando suicídio, até conhecer


essa senhora. Numa das cenas, o casal estava sentado em

um banco de madeira em frente ao rio que passava pelo

parque onde eles se divertiam. Ele a presenteia com um

broche, a senhora agradece feliz e imediatamente joga o

broche no rio e se justifica. “Assim nunca esquecerei onde

está guardado”.

Conheço muito bem Ducar Dromonde e sei que ele

gosta de todas as mulheres, as magras bonitas e feias, as

gordas feias e bonitas, as mais velhas, as mais jovens, as

estrábicas, as chatas e as legais, as intelectuais, as

metidas a intelectuais, as inteligentes e as burras, todas

são mulheres, cada uma com a sua peculiaridade, “Todas

as mulheres deveriam saber que são lindas”, diz ele.

No quarto, a Menina Senhora, de uma maneira

autoritária, ordena para que eu me sente na cama ao seu

lado. Cumpro a ordem. Ela segura no meu pulso,

colocando a palma para cima e começa a ler o

delineamento traçado na minha mão. Olhando para o teto


do quarto, anuncia que ali estava a história da minha vida.

Fiquei desorientado e curioso, não sabia se a história da

minha vida estava no teto ou realmente na minha mão e

quis saber mais.

Ducar Dromonde, ainda despido, se anima, cruza as

pernas, ficando mais próximo da conversa, deixando o

saco cor de rosa à mostra, enquanto que a Menina-senhora

não havia ainda colocado a camisa do pijama, deixando os

grandes seios flácidos de fora.

Quando a história da minha existência ia

começar, subitamente entra no quarto a Menina-senhora

mais velha, que depois da masturbação, do poema e do

cochilo, se apresenta fantasiada de Minnie, aquela figura

da Disney. Mais uma vez, ela me surpreende e

começa uma empatia entre nós. A Minnie trazia com ela o

banquinho de madeira que eu havia deixado no corredor.

Senta-se, arruma o vestidinho para que não apareça a

calcinha, ficando com os pés juntinhos no chão. Olhando


fixamente para os meus olhos me pergunta “Como

você acha que eu conheço o poema de Alphonsus de

Guimaraens?” Eu sabia que ela havia declamado Ismália

na sala, porque a minha avó, sempre que tinha

uma oportunidade, geralmente, quando recebia visita em

casa, escolhia uma neta ou um neto para recitar e, ao

terminar, tínhamos que saber o nome do autor. Era o seu

modo de fazer com que tomássemos gosto pela leitura.

Olhando para a Minnie, respondi que não fazia ideia de

como ela tinha conhecimento do poema. A Menina-senhora

se levanta do banquinho, arruma o vestidinho vermelho de

bolinhas brancas, ajeita o laço na cabeça que combinava

com o vestidinho, e tentando sapatear, se aproxima.

Segura com delicadeza a minha boca, faz menção de um

beijo, mas desvia seus lábios lentamente e em meu

ouvido diz, “Um dia eu te conto”. Fiquei curioso, pois

percebi que havia algo de meu interesse, soando como um

segredo que ela não queria revelar.


Ducar Dromonde, satisfeito, acha que é hora de

ir embora. Eu concordo de pronto, mas, mais uma vez,

para o meu espanto, ele as convida para jantar no dia

seguinte. Olhou para o meu rosto, esperando a minha

confirmação e com um gesto com a cabeça respondi que

sim e sugeri o melhor restaurante da cidade. Elas ficaram

radiantes e agradeceram pulando na cama de mola,

batendo as mãos e cantando versos de criança.


RESTAURANTES

Voltamos para o boteco onde tudo começou, lá, com

mais algumas doses, combinamos onde iríamos jantar.

“Proponho o restaurante daquele senhor italiano que

fica perto da farmácia do turco”.

Ducar Dromonde não aceitou, considerava que lá os

casais iam de turmas e sentavam as mulheres de um lado

e os homens do outro, não podia ver aquilo, era enfadonho!

“Então vamos ao restaurante daquele amigo do meu pai,

aquele que se casou com a funcionária para não pagar

indenização trabalhista!” “Não - Ducar Dromonde ponderou

- lá as pessoas ficam reclamando do preço, depois que

enchem a cara, pedem meia dose de bebida e


não aceitam couvert porque acham caro, não posso

assistir a isso, é fastidioso”. “Proponho irmos ao

restaurante da viúva do dono da funerária que tirava os

dentes de ouro dos defuntos, lembra?” “Não posso

compartilhar o mesmo local com as pessoas que

frequentam aquele estabelecimento, elas maltratam os

garçons, os chamam assobiando como se fossem cães,

batem com a colher no copo num ruído indesejado,

cochicham em voz alta depreciando o serviço e o lugar,

perguntam para o garçom se os talheres estão limpos.

Tem um sujeito que não sai desse restaurante, ele

pede chope sem espuma para não perder os vinte

miligramas de líquido, depois coloca um pouco de sal para

que o colarinho apareça! Não amigo, não consigo enfrentar

tal situação!”

Penalizado quer desistir do jantar. Ducar era uma

pessoa recatada, um pouco antissocial talvez pela sua

timidez e fazia discursos sobre o comportamento humano,

devaneando por horas para quem tinha tempo de ouvi-


lo. Pois bem, no dia seguinte, reservamos mesa

no restaurante francês, o melhor da cidade em nossa

opinião. Na verdade, não frequentávamos com assiduidade

os restaurantes porque a mesada não suportava

tal exorbitância.

No dia seguinte e na hora combinada, estávamos

lá, trajando paletó e gravata, não conseguimos trocar o

tênis por outro calçado, todavia combinava com a

calça jeans.

Batemos novamente na mesma porta marcada pela

idade e, sem demora, as Meninas-senhora

aparecem. “Buona notte”, a mais nova nos cumprimenta e

eu acabo me antecipando, não controlando a ansiedade e

respondo que iríamos num restaurante

francês. Imediatamente a mais velha,

sorrindo, diz “Ulala, bonsoir, garçons, vamos?

Estavam lindas, as duas de longo como se

fossem a um baile de aniversário do clube da cidade.


A bolsa combinando com o sapato, cabelo com

laquê cheiroso, tiara com imitação de brilhantes, brincos

hippie e alguns grampos segurando as pontas dos cabelos

que insistiam em ficar ao vento. Contentes fomos nós com

o carro do Dr. Dromonde, apesar de não ter idade para

dirigir e estar ciente da rijeza do seu pai.

Ducar sempre inventava uma história extraordinária para

conseguir as chaves, seu pai, sem paciência para ouvir,

liberava. “E que Deus te abençoe e te proteja com anjos da

guarda bem espertos”, saía falando sussurrando,

já arrependido de ter emprestado o carro.

Ducar Dromonde, com um gesto respeitoso, abaixava

a cabeça se despedindo, “Bença, pai”.


FASES

O Dr. Dromonde, apesar da sua austeridade, por

vezes, aliviava, tornando possível algumas peraltices, pois

queria compensar uma fase nebulosa vivenciada dos seis

aos oito anos de idade de seu filho.

Ducar Dromonde, aos seis anos, resolveu ficar mudo,

protestando contra um grito estridente que seu pai

enfatuado dera com a sua mãe. Até então ele nunca havia

presenciado uma discussão entre seus pais, o casal

Dromonde vivia em plena harmonia, numa total ausência

de conflitos familiares. Durante seis anos não havia

percebido qualquer tipo de desentendimento entre eles...


Ficou calado durante seis meses, deixando sua mãe

muito preocupada com a situação. Seus pais consultaram

vários médicos, psiquiatras, terapeutas, fonoaudiólogos, os

intrometidos, umbandistas, padres, espíritas, grupos com

influência esotérica, cabalísticas e outros curiosos. Todos

deram muitos palpites e diagnósticos, porém nada fazia o

menino falar uma palavra sequer. Ducar se comunicava

por mímica, gesticulando com expressões corporais o que

não deixava de ser uma linguagem de sinais.

Um belo dia, num domingo cinzento como todos os

domingos mesmo ensolarados, Ducar Dromonde se

apresenta à mesa para almoçar. Em pé, parado ao lado da

poltrona Luís XV vermelha da sala de jantar, recita:

Todos esses que aí estão

Atravancando o meu caminho

Eles passarão

Eu passarinho...
Seus pais, por um momento, não sabiam o que dizer,

eles sabiam de que era um poema de Mário Quintana, mas

não se lembravam de ter ensinado, ou falado alguma coisa

a respeito de poesia com o menino.

Felizes e satisfeitos, ficaram com o filho que voltou a

falar. Contudo, essa paz foi breve, visto que Ducar

Dromonde estava vestindo um terno preto com gravata de

cor laranja, que ele mesmo mandou fazer sem que seus

pais soubessem, não tirando mais o traje durante seis

meses. Foi um ano difícil para os Dromonde.

No aniversário de sete anos, Ducar Dromonde pediu

patinhos amarelos de presente, informando, emburrado,

que queria bichinhos de verdade, não aqueles de plástico

fedido! Compraram quatro patinhos para o mimado menino.

No dia seguinte, pela manhã, a senhora Dromonde

encontrou um pato morto na cozinha, foi até o quarto da

criança para averiguar o que se sucedia. Notou que a porta

estava trancada e raramente isso acontecia, pois Ducar


Dromonde tinha medo de ficar trancado e não conseguir

abrir nunca mais a porta, morrendo de fome e sede. Era um

dos traumas dele. Sua mãe pergunta o que está

acontecendo e o menino responde que está matando os

patinhos porque eles não sabem brincar. A senhora

Dromonde chama o marido que, desesperado pelos gritos

que partiam do corredor, chega assustado e ofegante à

porta do quarto. Ciente da situação, do lado de fora do

quarto, com toques suaves na porta, seu pai delicadamente

fala com ele, “Filhinho, você como é um menino bonzinho,

educado, obediente, devoto de São Francisco de Assis,

não vai mais matar os patinhos, não é?” A criança

responde chorando, exprimindo por entre soluços “Vou pai,

eu vou matar todos os patinhos”.

Prenuncio de um ano ruim. O mimado Ducar nessa

época, quando ia a lojas de brinquedos, sabia como

manipular a sua mãe para conseguir o qual queria. A

senhora Dromonde era muito recatada, educada e tímida,

seu filho aproveitava e abusava da frágil personalidade


dela. No momento de escolher um brinquedo, apontava

para o mais caro, dava um salto escandaloso para traz e

gritava, “Eu quero aquele, e não me belisque!”

O LICOR

De braços dados, entramos no restaurante.

Demoramos a chegar à mesa reservada que ficava ao

lado da janela, dando para a varanda, porque no caminho a

Menina-senhora mais nova nos chamou a atenção para as

obras de arte sacra, que estavam expostas na sala ao lado

do salão onde íamos jantar. Ela nos explicou sobre o que

estávamos vendo e começou a fazer caretas, imitando os

anjinhos gordinhos alados. Falou que estava interagindo

com a obra. Sem paciência alguma e com

fome, Ducar Dromonde sugeriu para irmos


jantar, pois, quando entramos, o maître, vestido a la Sean

Connery em 007, querendo nos impressionar, mandou

providenciar o champanhe com sotaque francês.

Não ficamos admirados com a bebida nem com a

pronúncia esnobe porque em nossas casas eram comuns

os jantares sofisticados, com regra cerimonial e tudo mais.

O champanhe estava na mesa dentro de um balde de

prata com gelo, à espera para abrir o nosso apetite. Aquela

noite só estava começando e prometia ser

“daquelas”. Comida e bebida da melhor, ignoramos o lado

direito do cardápio e nos fartamos de ostras, lagostas,

peixe e camarão, regados a vinho branco, tinto e rose. Na

mesa havia um Massú cheio de saque e vez por outra a

Menina-senhora mais velha, molhava o rabo do camarão

antes de comê-lo, dizia que era para melhorar o

paladar. Ouvimos com atenção as experiências da vida e

sobre a vida. Ficamos pasmos com a sabedoria

sexagenária diante de nós. Ainda ligada à sala dos anjos, a


Menina-senhora falou sobre o privilégio do Escapulário do

Carmo, contou que quem morrer com o Santo Escapulário

não padecerá o fogo do inferno. A Virgem do Carmo os

livrará do purgatório o quanto antes, principalmente no

sábado depois da morte. O Escapulário é proteção em

todos os perigos. “Todos, todos mesmo?” Ducar perguntou

já pensando onde iria arrumar um para seu resguardo. O

Escapulário do Carmo é sinal da confraternidade, da paz e

do pacto sempre eterno de concórdia, garantido pela

Virgem Maria. “Vou à igreja de Nossa Senhora do Carmo,

comprarei para vocês o Escapulário e água benta, vou

benzê-los, fazendo o sinal da cruz em suas testas e no

dedão do pé esquerdo, é assim que dá certo para que seu

corpo se feche, é, é assim que funciona”, a Menina-

senhora mais nova foi diminuindo a voz até resmungar

baixinho e emudecer com o olhar desencaminhado.

Sua irmã aproveita a deixa e continua a história,

relatando que o Escapulário do Carmo é sinal de salvação,

entenderam meninos? Ficamos sem saber o que dizer, foi


quando Ducar pergunta “Vocês vão comprar amanhã a

água benta?”

Com o passar das horas, iam ficando bonitas e

meigas, respondiam as nossas perguntas com a

maturidade que tinham de sobra. Depois da terceira garrafa

de vinho, sem contar o champanhe de entrada, a Menina-

senhora mais velha deixa escapar um segredo. Sua

irmã quis mudar de assunto bruscamente e não soube

disfarçar quando levou o dedo a boca, num gesto de

silêncio.

Dromonde, sempre foi um menino esperto, e,

notando que ela havia mencionado o nome do seu

avô, rapidamente, quebra o silêncio e pergunta, qual era o

segredo e por que ela tinha se entristecido com a

lembrança. Os olhos da Menina-senhora mais velha ficam

marejados. Faço um carinho em seus cabelos que estavam

presos com grampos coloridos e uma tiara de princesa. Ela

se aconchega, trazendo sua face marcada pelo


tempo, para encontrar a minha mão. Carinhosamente,

passo os dedos em seu rosto, sorvendo

suas lágrimas, que pareciam não saber que existiam.

Constato a minha imaturidade para consolar o seu pranto,

não consigo falar nada, apenas mimá-la com toques. Com

um olhar, a Menina-senhora mais velha pede

permissão para falar sobre o assunto, que parecia estar

há anos enterrado em seu peito. A sua irmã aprova e sorri.

“Bem meninos, contarei essa história como me

lembro. O avô de Ducar era fazendeiro, como

vocês sabem, e vinha para a cidade todos os dias bem

cedo com seus funcionários para entregar o leite e

aproveitava para resolver outros assuntos pela manhã. A

fazenda não ficava perto e ele fazia render o dia. Pois bem,

um belo dia, ele entra na farmácia que eu trabalhava como

atendente - falou olhando para Ducar Dromonde -

e, quando tirou o chapéu em respeito a minha pessoa,


pedindo um remédio para o estômago, olhando nos meus

olhos, fiquei toda arrepiada, sentindo falta de ar e

palpitações aceleradas. Como eu era jovem,

e fazia pouco tempo que tinha perdido o meu pai para a

tuberculose e seu avo sendo mais velho, pensei, ‘Estou

carente de amor paterno’. Mas não era esse o meu

sentimento. Em eternos segundos, fiquei perdidamente

apaixonada por aquele homem, que olhou para os meus

olhos enxergando e tocando a minha alma. Seu avo,

percebendo a minha aflição, ficou um pouco constrangido,

mas gostou da situação, com um ar de vaidade. No dia

seguinte, voltou no mesmo horário para comprar outro

remédio, mas na hora de pedir se atrapalhou. Foi quando

percebi que estava ali para me ver novamente, o remédio

era apenas pretexto. Na sua hesitação, me antecipei e lhe

ofereci um licor de figo que a dona da farmácia fazia para

vender. ‘Mas só para os conhecidos’, ela falava, ‘porque ali

não era local para vender bebida alcoólica’. ‘Era isso

mesmo que eu estava procurando moça, como


você adivinhou?’, perguntou o seu avô, querendo puxar

assunto. De pronto, respondi, ‘A patroa falou que quem

ganha de presente esse licor fica enamorado pela pessoa

que presenteou’. “Nossa Senhora!”, ele exclamou, e, numa

pronuncia caipira, em voz alta disse ‘Então vô levá pra

minha mulher, pra ver se a gente reata o casamento’.

Tomei isso como se fosse uma dica, de que o casamento

não estava nada bem e aproveitei a deixa. ‘O senhor

não precisa pagar nada por isso, é um presente meu’. Seu

avo ficou mudo, seu rosto enrubesceu. Eu, quase me

arrependendo do que tinha dito, quando ele, um pouco

engasgado, olhando com o canto dos olhos, para se

certificar que não havia nenhuma testemunha, mostrou-se

grato. ‘Obrigado pelo presente’, disse ele, ‘tomarei toda

essa garrafa de licor de figo e espero que dure por muito

tempo. Você faria a gentileza de me acompanhar até o

último gole?’. Na parte da tarde, lá pelas cinco horas,

estava eu, de mala e cuia, na frente da farmácia esperando


seu avo, que prometeu e foi me buscar com o seu

Chevrolet preto.”

A Menina-senhora faz uma pausa, com a cabeça

apoiada pelas mãos, fala com ela mesma. Foi o ultimo

murmúrio da história, fiz um esforço para ler seus lábios e

percebi a dor do passado. Essas coisas não se esquecem,

mas ficou para trás, você não consegue apagar o passado,

não importa o quanto queira.

Ducar Dromonde queria saber mais, mas respeitou o

momento. Porém cochichou no ouvido da Menina-senhora

mais nova que ele merecia saber o desfecho da história

porque envolvia seu avo e sua avó, logicamente, também

os seus pais e ele próprio que, por sinal, era desconfiado e

começou a suspeitar que o seu pai talvez fosse filho da

Menina-senhora mais velha.


NOSSA SENHORA

Ducar pediu mais um vinho, falando que era por conta

dele, como se ele fosse pagar sozinho tudo aquilo. Pedi

apenas para trocar as taças e trazer a sobremesa.

Afastamos as velas e colocamos os quatro pratos no centro

da mesa, as sobremesas eram diferentes e todas levavam

creme por cima, fizemos uma miscelânea. Ficamos

servindo na boca das Meninas-senhora colheradas

generosas de doce e elas retribuíam o carinho, contanto

que não derrubássemos na toalha, ponderando que não

sabíamos o trabalho que dava para tirar manchas. Pensei


comigo, “Isso é coisa de avó”. Reconsiderávamos tudo,

pois o momento era de namoro e paixão.

Entrou no restaurante uma vendedora flores. Eram

rosas vermelhas. Ela cantava e dançava em passos de

bale clássico. “Quem assistiu ao filme Oliver Twist, um

romance de Charles Dickens, quem viu? repetiu empolgado

Ducar. Antes que ela nos oferecesse, Ducar se antecipa e

chama a mocinha, compra duas rosas e as entrega em

minhas mãos, “Pra você, amigo, se preciso for, te doo

todos os meus órgãos para salvar a sua vida”. A nossa

amizade era de um amor incondicional. Devolvo uma rosa

com um beijo e lhe digo “O seu coração, você não pode

doar a ninguém, porque ele não caberia no peito de

nenhum ser humano”. As Meninas-senhora se emocionam

com aquela declaração de amizade e excitadas nos

convidam para tomar o último licor em sua casa. Perguntei

se era licor de figo. A mais velha, sorrindo, respondeu que

a dona da farmácia já tinha falecido há tempos e levou com

ela a receita.
Na casa das Meninas-senhora, sentamos com certa

intimidade colocando as almofadas e alguns trapos no

banquinho para que tivéssemos lugar. A Menina-senhora

mais nova, a caminho da cozinha, vai sussurrando palavras

desconhecidas, lembrando o dialeto que a sua irmã,

quando possuída, falava.

Antes de Ducar Drumonde começar a rezar, fiz um

gesto, balançando a cabeça negativamente e pisquei na

tentativa de acalmá-lo. Nesse tempo, percebemos que

estávamos sozinhos na sala, a Menina-senhora mais velha

tinha sumido.

Alguns minutos se passam. Segurando uma bandeja

de plástico com desenhos de frutas, surge a Menina-

senhora mais nova e nos oferece um líquido denso em

xícaras com figuras, uma da Nossa Senhora Aparecida e a

outra com Cosme e Damião. Não perguntamos o que era

aquilo, queríamos mostrar segurança de adulto. Tomamos


de virada, como adulto seguro faz em filme americano.

Muito bem, senti uma sensação física estranha, percebi

que era alucinógeno e, em segundos, a Menina-senhora

mais nova se transforma em Nossa Senhora da Conceição,

com manto branco e azul. Fiquei tranquilo porque essa

santa é minha protetora. Imediatamente, me vem à

memória o filme The Butcher Boy.

Mostra a vida conturbada de Francie, um menino de

doze anos que, para abrandar seu sofrimento, troca a

realidade por fantasias espirituais. Ele conversava com

santos, os bem-aventurados, e, em um momento do filme,

ele já adulto, se encontra com Nossa Senhora. “Cassete é

a mãe de Jesus de novo! Olá, sumida!” Como vai, Francie?

Não vejo você há anos. Mas não me esqueci de você. O

que anda fazendo? Ainda fala com gente como eu? Deus

ama cada um de nós, Francie, mas tem um lugar muito

especial em Seu coração para você. “Senhora, precisa


parar com isso de aparecer e sumir... Senão vão me

internar de novo!” Seu amigo também ama você... Mas o

mundo vai numa direção e nós vamos em outra. Entende o

que eu digo? Então não fique mais cismado com peixinhos

ou milhões de chocolates. Promete, Francie? “Diga-me,

senhora, todas as coisas bonitas acabaram?” Não, Francie.

Ainda estão todas aí. Veja, aqui está uma delas. A Nossa

Senhora joga uma pequena flor para ele. Francie se afasta

da pequena capela, volta para o banco de madeira onde

estava seu amigo que lhe pergunta. “Colheu uma flor,

Francie ?” “Sim, um fura-neve, floresceram tarde esse ano


TARANTINO

A Menina-senhora mais velha subitamente aparece

com um vestido-tubinho curto, azul cintilante, bem justo,

marcando as dezenas de formas de gordura em seu corpo.

Seu penteado lembrava uma marquesa e o cheiro do laquê

se misturava com o aroma da bebida desconhecida que

havíamos tomado. Quando achei que não teríamos mais

surpresas, a Menina-senhora mais velha começa a cantar

uma música conhecida. Fui perceber que era Mother

depois de um tempo e que ela era a própria figura

estilizada de mãe do show do Pink Floyd. Muito afinada e

com um inglês impecável, ela canta até o final. Apontou


com o dedo indicador para nós dois, “Prestem atenção!”

Ficamos atentos no que ela tinha pra nos dizer, mas o

recado já estava dado, prestem atenção!

Mãe

Mãe, você acha que eles jogarão a bomba?

Mãe, você acha que eles gostarão dessa música?

Mãe, você acha que eles tentarão me castrar?

Mãe, eu devo construir o muro?

Mãe, eu devo concorrer para presidente?

Mãe, eu devo confiar no governo?

Mãe, eles me colocarão na linha de fogo?

Isso é só uma perda de tempo?

Calma agora, bebê, bebê, não chore!


Mamãe irá fazer todos os seus pesadelos virarem

realidade.

Mamãe irá colocar todos os medos dela em você.

Mamãe vai manter você bem debaixo da asa dela.

Ela não deixará você voar, mas talvez te deixe cantar.

Mamãe vai manter o bebê aconchegado e aquecido.

Oh, bebê!

Claro que mamãe irá ajudar a construir o muro.

Mãe, você acha que ela é boa o bastante para mim?

Mãe, você acha que ela é perigosa para mim?

Mãe, ela vai dilacerar seu menininho em pedaços?

Mãe, ela irá quebrar meu coração?

Calma agora, bebê, bebê, não chore!

A mamãe vai checar todas as suas namoradas para você.


Mamãe não irá deixar ninguém sujo se aproximar.

Mamãe vai esperar acordada até você entrar.

Mamãe vai sempre descobrir por onde você esteve.

Mamãe vai sempre manter o bebê saudável e limpo.

Oh, bebê!

Você sempre irá ser uma criança para mim.

Mãe, precisava ser tanto?

Perguntei para Ducar onde estava a Nossa Senhora e

ele me responde que por ali somente havia passado dona

Angelina, sua babá de anos atrás. “E quanto à música,

você ouviu?” “Sim”, ele respondeu, era Ave Maria de Bizet.

Achei que ele queria dizer Jesus Cristo, não interferi. Sabia

que Jesus Cristo estava no corredor me aguardando, na

parede, quase no teto e, se eu passasse por ali, fatalmente

Ele estaria me olhando. Decide não me mexer e fiquei em


pé durante horas. Também não queria que aquela

sensação boa e estranha passasse, pois já havia decidido

naquele momento, que nunca mais tomaria uma bebida em

um gole, como adulto seguro.

Acordamos no dia seguinte na cama onde Ducar

Dromonde e a Menina-senhora mais nova fizeram amor

sexual. No primeiro indício de que estávamos acordados,

as Meninas-senhora entram no quarto com uma bandeja

farta de guloseimas para que a larica passasse. Enquanto

saboreávamos os quitutes, elas colocaram em cima da

cama umas fotos, tiradas enquanto dormíamos juntos. Na

foto, o nosso semblante era sereno e de satisfação, como

se tivéssemos tido um sonho bom durante a noite. Pensei

comigo, sem fazer comentários, que tudo que havia

acontecido na noite passada tinha sido um sonho. A dúvida

acabou logo, elas mostraram uma fotografia dos quatro


juntos no sofá, Ducar e eu na ponta do móvel e as duas no

centro, com as perninhas cruzadas na altura da canela,

vestidas iguais, com taillers azul-claro e chapéus. Com

mais atenção, reparei que elas estavam imitando a rainha

Elizabeth.

“Vou colocar este retrato numa moldura e pendurar na

parede, ao lado do Nosso Senhor Jesus”, a mais velha

falou. Aceitei. Eu iria ficar à esquerda ou à direita de

Jesus? Não dei palpite, estava enleado. “Em que lado de

Jesus estava o bandido bonzinho e o ruinzinho, mesmo?

Se é que existe bandido bonzinho", finalizei.

“Tem bandido bom sim, meu querido rapaz”, falou com voz

de juíza a Menina-senhora mais nova. “Meu irmão mais

novo, bem, ele teve que matar uma pessoa pra poder

sobreviver”. Ducar Dromonde, preocupado com o cunhado,

perguntou se foi em legitima defesa.


A Menina-senhora mais velha faz um som plangente

com a garganta e dá de ombros, não concordando com a

“legítima defesa”. A mais nova continua o discurso em

defesa do irmão, contando que ele matava as pessoas para

sobreviver, esse era o trabalho dele, ganhava a vida dessa

maneira.

Sem olhar, notei um desconforto de Ducar Dromonde.

“Bem, a coisa funciona assim”, continuou explicando. “As

pessoas interessadas, chamadas por ele de “clientes”,

quando tem um problema, o mano é que resolve. Meu

irmão é profissional, mata e faz parecer acidente. Quando

precisa sumir com o corpo, ninguém acha. Ele é fã numero

um do Quentin Tarantino, não sei se vocês conhecem, já

ouviram falar? Por vezes, ele se inspira em alguns de seus

filmes pra..., vocês sabem, não? Nem vou contar alguns

casos, pra que vocês não corram perigo, sabe como é, vira

testemunha”. Olhei para Ducar, ele estava com as mãos

tampando as orelhas e jurou para elas que não tinha

escutado absolutamente nada, repetia, absolutamente


nada. “Meu irmão me adora”, a Menina-senhora mais nova

falou olhando para o chão, apertando os lábios,

interpretando a cena de algum filme.

Ducar Dromonde coloca a calça, fazendo menção de

ir embora, enquanto eu estava esperando alguém para

abrir a porta da rua já há algum um tempo. Elas tinham

mania de fechar a casa e esconder a chave. Pensando

bem, eram cheias de manias.

As Meninas-senhora começam a rir sem parar,

caçoando dos meninos cagões e desmentem toda aquela

história. A mais velha me abraça e diz “Somos só nós duas,

graças ao bom Deus, não temos irmãos. Foi um alívio.

“Nesse caso, o que tem para o almoço?” perguntei.


NO PARQUE

A Menina-senhora mais velha, animadíssima, nos

convida para irmos ao mercado comprar peixe, dizendo

que iria preparar um cação com molho de camarão e ervas,

que em restaurante algum comeríamos tão bem. Ducar

Dromonde pede para que eu fique de olho nas “ervas”,

aperto a sua mão como resposta de que ele estava

protegido. Ele acaba confiando sempre nas minhas

intuições que, na maioria das vezes, não estão certas, mas

não se importa, está acostumado. No final tudo dá certo, se

não deu certo, é porque ainda não chegou ao final, era a

frase do seu avô e ele gostava de lembrar. Eu e Ducar, há


anos, não conseguimos chegar ao final de quase tudo,

estamos continuamente no meio de muitos começos.

Talvez seja por isso que estamos unidos até hoje. Para

terminar alguma coisa.

As Meninas-senhora saem do quarto, vestidas para o

mercado. Não me causava mais perplexidade de como elas

se apresentavam para cada ocasião. Estavam de Mary

Poppins, percebi de cara. Na cabeça, um chapéu de feltro

preto, com uma fita vermelha de cetim onde estavam

presas margaridas brancas de plástico. Guarda chuva de

cor preta e luvas brancas. Terno cinza chumbo, levando na

lapela um boton da Warner Bros e camisa de seda branca.

No pescoço, além da gravatinha borboleta vermelha, um

cachecol de lã amarelo que parecia ser crochê. “Meninos,

eu vou abrir o guarda chuva somente lá fora, para nos

defender do sol”, falou a mais velha.


De braços dados, saímos em casal. Na frente, ia o

casal Dromonde, como comecei a chamá-los. Por vezes,

eu tinha a impressão que a Menina-senhora mais nova

tentava voar querendo imitar a chegada de Julie Andrews

na residência onde, no filme, ela iria trabalhar.

Era uma boa caminhada para chegar ao mercado e as

meninas se cansaram. Entramos num parque no meio do

caminho, com árvores frondosas, com canteiros de jasmim-

do-cabo, azáleas, rosas de todas as cores e, perto do lago,

hortênsias azuis e brancas.

Era Primavera, estava agradável o clima. Deitamos

em uma toalha estendida pelas meninas sobre a grama, ali

ficamos esperando o tempo avisar a hora de continuarmos

o passeio até o mercado. Ficamos contemplando a

natureza, valorizando-a, pois as plantas fazem um esforço

para florir, para se sustentar. Ver as coisas belas purifica a

alma.
Ducar Dromonde colhe flores e vai colando-as no

chapéu da sua namorada, misturando as flores de plástico

com as naturais. Ele é jeitoso e faz uma composição

harmoniosa, o arranjo ficou estético e colorido. A Menina-

senhora mais velha ficou esperando o meu agrado e

rapidamente fui procurar alguma coisa. Achei uma pequena

rã, coloquei-a envolta de uma folha de plátano substituindo

o papel de presente, ficou bonito. Ela adorou, pediu para

que eu caçasse pelo menos mais umas três, piscou com os

dois olhos de uma só vez, me avisando que seria a nossa

sobremesa, “Sorvete de anfíbio, uma iguaria”, acrescentou.

Isso me trouxe à memória um desenho animado belga,

chamado As Bicicletas de Belleville.

No filme, o menino solitário se sente feliz somente

quando está andando de bicicleta. A avó, percebendo a

disposição e habilidade do neto, incentiva-o ao treinamento

e ele acaba participando da Volta da França, uma das

competições mais importantes da Europa. Na sequência,

enfrentando os percalços da vida, vão parar em Belleville.


Lá três senhoras cantoras e instrumentistas de aparelhos

domésticos detonam bombas em uma lagoa. Após a

explosão, boiam sapos que vão para a panela. Sopa de

sapo e, de sobremesa, sorvete de rã.

Deitado de barriga para cima fico observando os

pássaros nos galhos das sibipirunas e tipuanas, verdadeira

algazarra eles fazem. Alguns se divertem, outros estão na

fase de construção do ninho, um trabalho árduo na busca

de gravetos, penas perdidas, folhas secas e barro,

ingredientes para a arquitetura silvestre. Enquanto as

Meninas-senhora cochilavam, ressonando vez por outra,

chamei a atenção de Ducar para o condomínio de cinco

casas de João de Barro na paineira que, com sua sombra,

nos abrigava do sol. “A lenda conta que a fêmea do João

de Barro ajuda na construção do ninho, mas parece não

ser constante, abandonando o macho. O João de Barro é

fiel até o final, por isso, quando percebe que a parceira


mudou de amor, tampa a abertura da casa, fechando a

fêmea para sempre”, finaliza meu amigo Ducar Dromonde

com uma cara de poucos amigos, tendencioso e imparcial.

O tempo avisa que deu a hora. “Vamos, meninos!”,

com um humor pós siesta, numa entonação de um

sargento, determinou a Menina-senhora mais velha.

Fizemos a vontade dela, de imediato levantamos e fomos

para o mercado. Lá elas eram bem conhecidas, todos as

cumprimentavam e ofereciam a promoção do dia. Fomos

direto a procura do peixe. Seu Manoel era o nome da

peixaria, um tanto quanto estranho, esse nome estava mais

para padaria, todavia...

Compraram cação, salmão, camarão, as erva e alguns

condimentos. Seu Manuel, um homem buliçoso, tortuoso e

grande, que lembrava personagens dos quadros de El

Greco, cochichou no ouvido da mais nova.


Brincando, pedi para que não me levasse a sério e

perguntei se ele era um paquera dela, por sinal, regulavam

na idade. Ela respondeu que não. Contou que quando ele

corta o dedo sem querer, limpando o peixe, seu Manuel liga

para ela narrando o ocorrido e, na lateral da geladeira, a

Menina-senhora faz uma marca com o lápis computando

mais um acidente. No final do ano, ela soma quantas vezes

ele se cortou. O cochicho foi que o saldo dele estava

zerado em talhos até aquele instante.

Preferi não fazer comentário, apenas organizei o meu

processo mental, me concentrando em sair do mercado.

Resolveram voltar de taxi, falaram que estavam

chamando muito a atenção das pessoas com aquela roupa,

mas na verdade percebi que estavam esgotadas.

Voltamos em silêncio. No banco de trás, as Meninas-


senhora estavam de braços dados com Ducar. Entre as
duas, ele parecia um paxá. O chofer tentou, sem sucesso,

puxar conversa algumas vezes. Durante o percurso, com

mais reparo, notei a semelhança do motorista com Robert

De Niro. Não é que ele sabia disso! Pois, imitava o ator em

Taxi Driver. Ficou divertido daí então. Ele falava umas

palavras de efeito, interpretando algumas cenas do filme,

perguntando se estava boa a sua representação e eu, já

me sentindo Scorsese, dava a minha opinião, propondo

para que ele cortasse o cabelo no estilo moicano. “Vai ficar

bom”, claquetei.

Ao ligar o rádio do carro, a música despertou a

tagarelice de Ducar, era uma melodia do sertão, cantada

por Luiz Gonzaga, un cantante brasileño que lhe trazia

boas recordações. Empolgado, nos conta um momento de

sua vida, entre quinze e dezesseis anos.


NEO-HIPPIE

Ducar Drumonde queria ir de carona para um mega

evento no sul do estado, que iria reunir as melhores bandas

de rock do país. Combinou com vários amigos, inclusive

comigo, não me lembro de qual desculpa dei para não ir,

enfim, todos deram para trás. Uns justificaram que era

muito longe, alguns que estavam sem dinheiro, outros

querendo gorar o passeio, disseram que o show ia ser

cancelado. Ducar foi sozinho. Fantasiou-se de neo-hippie

com bolsa de couro a tira colo, mochila e uma pequena


barraca. Não rejeitou o chocolate, frutas, biscoitos e suco

que sua mãe colocou de lanche na parte de fora da

mochila. Também aceitou que sua tia o levasse até o trevo

da cidade.

Na beira da estrada, fez posição de caroneiro e não

demorou nada para que uma perua Kombi cor de abacate

parasse. Ducar tinha boa aparência e, sempre educado, as

portas se abriam com facilidade para ele. Dentro da perua

havia um rapaz, duas moças e uma pessoa de meia idade

ao volante, que era um mesclado de homem e mulher,

tendendo mais para o gênero masculino. Ducar, sem

cerimônia, entra se alojando no banco de traz, quando

perguntado para onde ia, responde que estava sem

destino, queria aproveitar as férias. Ficou arrependido de

não ter dito a verdade, por insegurança talvez. “E então,

para onde vocês vão”, perguntou. O rapaz se antecipou

aos outros e respondeu que estavam indo para um show.

Ducar, agitado, pede para ir junto com eles, disfarçando

seu itinerário sem destino, não acreditando na sorte que


teve. Achou que todas as pessoas do mundo estavam indo

para o mesmo lugar.

Eles aceitam a sua companhia, deixando claro que

dali para frente todos os gastos seriam divididos. Fechou

os olhos, cerrou os punhos, pensando, “O universo está

conspirando a meu favor”. De uma só vez, começou a

paquerar as duas moças que tinham no mínimo o dobro da

sua idade. Os viajantes trocaram informações corriqueiras

de suas vidas. Depois de horas na estrada, pararam para

um lanche e recompor a coluna vertebral. Ducar sabia que

quanto mais se distanciava de sua casa, ficava longe do

conforto, mas, mais perto do seu sonho. Fora da perua,

reparou como eram bonitas as mulheres que também

estavam caracterizadas de neo-hippies como ele. Uma

delas, de camiseta sem manga e chapéu, deixava os

cabelos longos ondulados caírem pelos ombros ocultando

as tatuagens. As duas usavam minissaia e a mais alta bata

de algodão, um pouco transparente. Uma de tênis All Star

vermelho, a outra de bota de couro cano longo marrom


claro. A mais baixa usava uma bolsa enorme de brim,

assim não se distinguia quem estava pendurada em quem.

Ducar as analisa, chegando à conclusão de que é bom ser

neo-hippie. Em qualquer perrengue, a gente liga para o

papai e ele manda o chofer ir buscar.

O rapaz usava um lenço azul marinho no pescoço

parecendo um italiano, não tirava os óculos Ray Ban de

lente verde escura. Fumava por demais, mas respeitava a

todos fumando fora do carro, longe dos avessos ao tabaco

que, no entanto, eram chegados a dona Maria Joana

Sativa, nome dado pela motorista do veículo, referindo-se à

maconha.

Ducar percebeu que a motorista era mulher mesmo

quando ela entrou no banheiro feminino, mesmo assim,

correu na janela para se certificar se faria xixi sentada ou

em pé. A mulher sai do banheiro, senta-se ao lado dele

num banco de madeira com pé de ferro na área de


descanso, onde estavam há um bom tempo, e lhe pergunta

por que foi espiá-la. Sem o menor pudor, responde que até

então não sabia se ela era homem ou mulher. Ela gosta da

sua sinceridade, estende-lhe a mão e se apresenta, “meu

nome é Maria José, contudo, pode me chamar de José

Maria, todos nós podemos fazer escolhas na vida, o duro, é

conviver com elas”. A franqueza resultou-lhe um

sentimento de afeição e José, que até aquela ocasião não

havia sequer pronunciado uma frase inteira, começa a

contar para Ducar que deu carona para as duas moças e

logo mais à frente para o rapaz e depois para ele, mas não

sabe exatamente para que show todos estão indo. Conta

também de uma encomenda que vai entregar e lhe renderá

um bom dinheiro.

A conversa é interrompida pelas neo-hippies que

impacientes dentro da Kombi os chamam para

prosseguirem.
De volta à viagem, num aparelho de tocar música que

estava com o quase italiano, ouve-se um som conhecido,

era Yes, una banda de Inglés.

SONHO E REALIDADE

Ducar se lembrou do filme Quase Famosos, dirigido

por Cameron Crowe que usa suas lembranças de quando,

aos quinze anos, acompanhou a banda Led Zeppelin em

uma turnê, trabalhando para uma revista famosa

americana. Ducar, querendo compartilhar a lembrança,

quebra o silêncio na perua e fala sobre algumas cenas

marcantes que ficou em sua memória.

No filme, o garoto Willian de quinze anos é contratado

pela revista Rolling Stone para acompanhar uma banda de

rock americana em sua primeira excursão pelos Estados


Unidos nos anos setenta. O garoto vai se envolvendo com

as pessoas e se encantando por uma das fãs que viaja

com os roqueiros. Penny Lane é a preferida do líder da

banda e também a paixão de Willian. Numa das cenas, três

garotas que acompanham a turnê vão buscar Willian que

está com Penny Lane, eles apenas conversam dentro do

banheiro do quarto do hotel onde todos estão hospedados.

As meninas levam o garoto para cama num clima lúdico,

afirmando que ele perderia a virgindade. Enquanto as

meninas vão se despindo e tirando a sua roupa, Willian fica

olhando para Penny Lane que não irá participar do

ménage, ela não disfarça o ciúme e o sentimento dele é

que deveriam estar somente os dois no seu primeiro

debute sexual. Ela gesticula um adeus calada e sai do

quarto.

Os ocupantes da Kombi se interessam pela história e

Ducar continua narrando o filme. Ele conta porque se


lembrou disso. A presença dele ali com pessoas

desconhecidas era semelhante à de Willian dentro do

ônibus da banda e as fãs companheiras. Aliás, uma das

melhores músicas do Yes é lembrada numa das cenas do

filme, com pequenos acordes como se fosse uma

homenagem a banda de rock.Depois de um surto psicótico

do líder da banda durante a noite, culminando numa

tentativa de suicídio fracassado, calados prosseguem a

viagem. No ônibus, pela manhã, começa a tocar uma

música no rádio e, aos poucos, de voz em voz, todos se

juntam num cantar orquestrado, apaziguador e de

cumplicidade. Willian, sentado com Penny Lane no banco

traseiro, conta-lhe que tem que voltar para casa. Ela, um

anjo que se fez gente, com o seu olhar sedutor, lindo e

meigo, fazendo gestos com as mãos, fingindo hipnotizá-lo,

diz “Você está em casa”.


Esses filmes eram boas lembranças que Ducar

Dromonde fazia questão de não esquecer. Falava que

preenchia sua memória com as melhores recordações, não

dando espaço para pensamentos nocivos.

Ducar caiu nas graças dos neo-hippies que foram

cuidando dele como se ele fosse caçula de uma família

carinhosa.
APACHE

A motorista pega a estrada que leva para o litoral,

Ducar acha estranho e pergunta “Para onde estamos

indo?” “Para uma reunião comemorativa numa vila de

pescadores”, falou o rapaz com entonação de voz de líder.

Ducar, como estava sem destino, pensou, sua vontade

começa a ser realizada, nada é por acaso. Todavia, ficou

intrigado e perguntou para a motorista José o quanto tinha

de verdade na conversa que tiveram há alguns minutos

atrás. A motorista responde, “Nem ligue bobo, foi falta de


assunto, contudo eu sempre oriento o meu filho, quando

não tiver o que dizer, “Fique quieto, não fale nada!”,

buzinou para um cachorro, dobrou o braço esquerdo com a

mão espalmada na testa fazendo continência para um

andarilho e seguiu em frente.

Desceram a serra asfaltada, andaram outro tanto por

cascalhos, desceram novamente outra serra íngreme de

difícil acesso e de mata fechada até chegar à praia num

local paradisíaco.

Foram direto para a casa do líder dos pescadores que

era a cara do chefe Apache Geronimo, que foi um

importante líder indígena da América do Norte. Comandou

os Apaches que durante anos guerrearam contra a

imposição pelos brancos de reservas tribais aos povos

indígenas dos Estados Unidos.

Pois bem, todos foram dormir exaustos devido à

viagem e Ducar ficou perto da fogueira que aquecia e

clareava a frente da casa de pau a pique e quase se


escondia de baixo da frondosa jaqueira centenária. O

pescador sentou-se ao lado dele e sem que perguntasse

começou a contar a história da vila dos pescadores.

“Imagine, meu ‘fio’, esse litoral maravilhoso no final

dos anos sessenta com o começo dos setenta! A estrada

que passava por aqui era muito ruim, mas tinha seu

merecimento, juntava dois estados de importância para o

país”. Em cada pausa que Geronimo fazia, balançava a

cabeça lentamente, num movimento positivo, fechava a

boca colocando os lábios inferiores em destaque. “A

estrada parava numa pequena cidade pertinho daqui, mais

ou menos uns dois quilômetros, porque a serra avançava

em direção ao oceano, ficando muito escarpado, então o

povo parou por ali também. O turismo tava começando

nessa região, por isso, fio, o lugar era muito bonito, mas

não tinha estrada”, em cada pausa o pescador repetia sua

peculiar fisionomia. “O governo tinha vários projetos com


grandes obras, eles falavam de infraestrutura pro país

crescer. Uma delas era a construção de uma ‘estrada’ que

ligasse os dois estados pelo litoral. Projetaram e

começaram esta obra que por sinal era uma coisa pros

doutor engenheiro difícil e cara, mas quanto ao dinheiro,

esse país nunca teve problema, sempre os mesmos

gostam de bulir com a moeda.

Pois bem, tinha que fazer a ‘estrada’ na serra, nos

rochedos perigosos beirando o mar. Pra chegar aqui não

tinha acesso, as comunidades de caiçaras cresceram

bastante. “A gente só saía daqui com barcos ou a pé, era

difícil, meu fio, mas a gente tava acostumado a

descomplicar o complicado”, falou o chefe com segurança.

“De modo que, quando a gente tinha necessidade,

pegava a canoa e ia pra cidade mais perto donde o

comércio e serviço, que a gente não tinha como ter aqui,

como remédios, ir no médico e outras coisas, comprava e


fazia lá. Aqui tinha muita comunidade que se virava sem

ajuda de ninguém. A gente pescava e eu era um bom

pescador” se gabou o homem, “plantava, a gente tinha roça

de milho, feijão, fruta, horta, criava galinha, porco solto, o

mar na época tinha muito peixe e alimentava todo mundo.

Os mais moços trabalhavam em barcos de pesca das

cidades grandes, até de outros estados pra você ter uma

ideia, ficando um tempão longe de casa. Aqui nas vilas, só

ficavam as mulheres, as crianças e os de idade...”,

suspirou.

“Muito bem, com a esperança da abertura da estrada,

e os doutor engenheiro fazendo os estudos, o que

aconteceu? Os homens poderosos deixaram tudo em

segredo. Por quê? Porque as grandes empresas e

especuladores ficaram de olho para se aproveitar das

nossas terras e ganhar dinheiro com isso”.

O humilde líder se referia à perspectiva da abertura

da estrada. Os estudos iniciais, como sempre acontece,


foram mantidos em segredo para a população, claro,

assim, foi alvo de grandes empresas que anteviram

projetos imobiliários de alto padrão, afinal era uma região

muito bonita e teria acesso fácil por uma estrada nova e

moderna. A única questão era que esses lugares

paradisíacos, com coqueiros e cachoeiras, estavam nas

comunidades e aí começam os problemas.

“O povo daqui, naquela época, garoto, fez outra

pausa, não tinha documento dos terrenos onde morava, a

gente só tinha posse imemorial, moramos nas

comunidades durante duzentos anos, sempre moramos

aqui, todos os nossos antepassados moraram aqui, não

tinham posse, só tinha o sentimento da posse, sabe o que

é isso, meu fio?” Bradou irado para Ducar que se mostrava

interessado na conversa, meio amedrontado pela energia

do líder e ansioso para que ele fizesse novamente a careta

de chefe.
Fazendo gestos com os braços para realçar a

expressão, o pescador conta que sua gente foi construindo

as casas nos melhores lugares, sempre por herança

familiar. Os antepassados tinham determinados pontos e

seus filhos e netos foram se instalando nas imediações,

originando núcleos familiares como se fossem bairros, mas

nunca foi colocado para eles que teriam que documentar a

área de cada família, e esse foi o grande erro. “O que

aconteceu?” Ducar estava curioso. “De acordo com

algumas pessoas, o governador de um dos estados, mais

um ministro importante e outros empresários poderosos

compraram essas terras desocupadas, que pertencem ao

país, terras que nunca foram ocupadas por particulares.

Você acha isso possível?”, O pescador estava nervoso e

indignado. Ainda disse, após o seu cacoete, que quando o

acesso se tornou possível, representantes de empresas

interessadas em projetos turísticos começaram a comprar

as suas terras, ainda que elas não tivessem os


documentos. Os empresários ofereciam dinheiro que, para

os caiçaras, representava uma fortuna.

Na sua região, devia haver umas trezentas famílias

que passavam as terras de geração para geração, desse

modo gerou um problema de superpopulação, piscou um

olho insinuando que eles não tinham muito com o que se

distrair, então “procriavam”.

Com isso, muita gente aceitou o dinheiro oferecido,

fazendo contrato particular de compra e venda, indo morar

na periferia, perto de seus parentes, das grandes cidades

próximas. Nessa primeira investida, uma parte dessas

famílias vendeu suas propriedades e foram embora.

Espalhou-se então, o boato entre os hippies apreciadores

da natureza que haviam achado o local ideal para curtir

drogas e rock and roll. Artistas, jornalistas e intelectuais

também começaram a frequentar esse litoral,

estabelecendo uma relação comercial com essa gente, ou

seja, as pessoas precisavam comer e dormir, foi onde os


moradores restantes começaram a servir almoço, arroz,

feijão, farinha e peixe, cobrando por isso naturalmente.

Enquanto contava, o homem esfregava os dedos como se

contasse dinheiro.

Com o tempo começaram a oferecer os terrenos ao

lado das casas para os turistas armarem suas barracas.

Mesmo com pouca infraestrutura, as pessoas começaram a

desfrutar do local com mais frequência, criando vínculos

com os nativos, com os quais comiam e dormiam.

Num certo momento, uma companhia multinacional

havia adquirido de certos moradores uns terrenos e

resolveram implantar alguns projetos. Mas não

conseguiram, dada a resistência de muitas famílias em não

querer vender e não sair dali, orientadas pelos turistas e

advogados que passavam férias nessas praias. Foram

alertadas de que, com o dinheiro que estariam recebendo,

não conseguiriam morar nem na periferia das cidades. “Vê

se tem cabimento”, garoto! Geronimo, o líder dos


pescadores, com os punhos serrados, mostrava ira nos

olhos. Contou ainda que a empresa, percebendo a

dificuldade na compra barata das terras, trouxe de outros

estados, jagunços, instalando uma base para eles

morarem. Esses capangas andavam armados,

aterrorizando as pessoas, chegaram a estuprar uma

professora que vinha de uma cidade próxima para lecionar

no vilarejo e punham para correr os meninos, ameaçando-

os a todo instante.

Trouxeram, também, máquinas e começaram a

derrubar a mata e as plantações de árvores frutíferas,

jaqueiras e mangueiras centenárias que faziam sombras

para as pessoas morarem. Num segundo momento, devido

à resistência dos moradores, começaram a derrubar as

casas. Derrubavam e a comunidade fazia mutirões e

reconstruía, tudo de pau a pique. A população ia para a

mata pegar bambu para fazer a estrutura da casa, ficava o

dia inteiro amassando o barro com os pés até dar a liga,

daí então, fazia bolotas de barro e “pinchava” na parede.


“Foi a melhor invenção até hoje, a casa de pau a pique, de

dia é fresquinha e a noite, com a fresca, esquenta”, falou

com propriedade de arquiteto o seu Geronimo.

“Um dos frequentadores de final de semana que

morava na capital e muito amigo e querido dos pescadores,

uma pessoa tranquila, sem projeto pessoal, idealista, meio

esotérico, uma pessoa boa, carismático e bem relacionado

na cidade grande, pois bem, ele se instalou na praia e

organizou a resistência. Um belo dia, à noite, o amigo

esotérico deu uma festa aqui perto, de repente luzes

começam a piscar na montanha, no meio da mata fechada,

ele começa uma canção que havia composto para se

comunicar com alienígenas, foi quando outro amigo da

cidade grande percebe que é um sinal de socorro com a

lanterna. Os nativos acabaram salvando uns adolescentes

perdidos. Nóis morre e não vê tudo garoto, acredite!”

Ducar empolgado alimentava o lume com gravetos

esperando o desfecho da história.


O grande dia foi quando a máquina atravessou uma

cachoeira para poder dar sequência a uma estrada para

outra praia, fatalmente iria destruir toda a beleza existente

ali. “Ainda bem que eu presenciei esse momento, fio”, disse

de boca cheia com o peito estufado. O rapaz meio

esotérico se prostrou em frente à máquina, obrigando o

maquinista a optar entre matá-lo ou parar. O tratorista na

verdade não tinha nada com isso, parou o trator e

abandonou o serviço. Com esse exemplo, pegou fogo a

resistência e os caiçaras começaram a fazer reuniões.

Contrataram advogados. O rapaz meio exotérico ligou para

os seus conhecidos e pediu socorro porque a imprensa não

sabia o que estava acontecendo. Afinal, o local era muito

isolado, desconhecido da maioria, em época de chuva

quem descia não subia.

Umas pessoas da cidade grande que haviam feito um

movimento estudantil e queriam de alguma maneira se

posicionar contra o governo ficaram sabendo da situação

dos pescadores Era tudo que queriam, foram para a vila


ajudar na resistência dos caiçaras. Faziam reuniões diárias

discutindo estratégias para a resistência. Os jornalistas

começaram a mandar para a grande imprensa notícias e

fotografias de casas queimadas, famílias morando na

estrada e em cavernas nas beiras das praias, relatos de

situações dramáticas. Com esse bom relacionamento de

pessoas ligadas a jornalistas da capital, foi levado a alguns

editores o caos que as pessoas estavam vivendo. Um

jornal novo na época, que estava em evidência, publicou

na capa e páginas inteiras tudo que estava acontecendo

naquele litoral, outros jornais se interessaram e ajudaram

na divulgação dando força as pessoas que estavam

engajadas na causa.

Esse apoio foi crescendo tanto que chegou uma hora

que tiveram que reorganizar os grupos de ajuda. Então foi

dividido um grupo numa capital, fundando uma associação

de fato, registrada em cartório. Essa liga passou a tomar

conta da causa do litoral. Nesse momento conseguiram

contato com um jurista famoso aposentado com quase


noventa anos de idade, mas que ainda era o grande

defensor das causas nobres. Ia pouco ao escritório, porém

mantinha sua equipe de advogados. “Veja só o que

fizeram!”, o chefe estava empolgado relatando a história

para Ducar. Escreveram uma carta para ele, que

sensibilizado, aceitou defender a causa gratuitamente,

diga-se de passagem, é difícil um advogado comover-se.

Montaram uma exposição com fotógrafos famosos nas

capitais dos dois estados envolvidos. Na inauguração,

compareceram senadores, deputados. Lógico que os

políticos estavam na espreita, esperando o momento de

tirar vantagem da situação e o líder dos pescadores contou

a história para todos. Esse evento teve uma enorme

repercussão nas capitais. Com abaixo-assinados,

concluíram vários documentos importantes para intervirem

a favor dos caiçaras. Mediram as áreas, averiguaram o

número de moradores, fizeram mapas dos locais onde

habitavam. Os advogados com esses dados entraram com

reintegração de posse. Foi uma guerra judicial durante


quatro anos. Fizeram um contato internacional com uma

ONG holandesa que mandou representantes e verbas para

auxiliá-los. Um grupo de médicos e dentistas desceu para o

litoral para atender as pessoas enfermas e cuidar da saúde

de todos gratuitamente. O envolvimento foi tamanho que

muitos se mudaram para lá, passaram a morar ali na praia.

A causa foi reconhecida, provocando um recuo da

companhia. Um grande momento dessa fase foi um show

feito na capital num teatro famoso que teve a presença de

dois cantores notáveis e que estavam no auge da carreira.

Cantaram músicas deles e dos estudantes, letras que

falavam da história da vila dos pescadores. Depois de dez

anos se arrastando com processos e reintegração de

posses, chegaram a um acordo, a companhia ficaria com a

parte melhor, onde construiria seus condomínios de luxo,

de alto padrão, fechando as praias em alguns locais que

existem até hoje por ali. Essa proposta de acordo gerou

uma guerra, dividindo os envolvidos, então, foi feito outro

acordo. A área foi toda medida novamente, ficando parte


para as famílias que, por sua vez, estavam cansadas das

lutas judiciárias, já quase querendo deixar o local. Umas

oitenta famílias ficaram definindo os limites dos terrenos,

gerando discórdia entre eles, amizades se perderam, mas

chegaram num denominador comum. A área ficou

conhecida e pessoas começaram a frequentar o lugar para

lazer e férias. Os pescadores foram abandonando suas

atividades virando empresários, construindo pequenas

pousadas, restaurantes, camping e até estacionamentos.

No inicio as pessoas da capital iam para lá para se

drogar, tomar ácido à vontade, fumar maconha, pois o lugar

era convidativo. Com o passar do tempo, houve um choque

cultural, pois os caiçaras eram, em sua maioria, religiosos

moralistas e, quando as meninas usavam biquíni, faziam

topless, eles se sentiam constrangidos. Os mais jovens

começaram a se interessar pelas moças da capital e elas,

bem liberais, por eles, meninos fortes, queimados do sol,

nativos, um tanto selvagens, era tudo que elas queriam.


Daí resultou uma miscigenação e a comunidade foi

obrigada a se adequar a um novo estilo de vida.

Hoje, parte das terras virou parque nacional, gerando

conflito com a polícia e os nativos, que armam suas

barracas em época de temporada para vender bebidas,

lanches e peixes. “Parece que os problemas nunca

acabam”, encerrou o “cacique”.


SEREIAS

Ducar dormiu na rede pela primeira vez em sua vida.

Com o leve balanço, sonhou que estava num escaler em

mar aberto, não conseguia ver a terra, remou a favor do

vento e por sorte uma onda gigantesca levou o pequeno

barco como se fosse uma prancha de surfe até a praia. Lá

estavam todas as pessoas, que de uma maneira ou outra,

ajudaram no processo de libertação das terras dos

pescadores. Era uma homenagem a esses personagens

que estavam com roupas havaianas, colares, dançando

hawaii songs na areia. Uma fogueira enorme iluminava o


entardecer. Xamãs, pajés, curandeiros, adivinhos, todos

estavam lá, inclusive Panoramix, o famoso druida gaulês.

Em suas barracas brancas atendiam os animais que

queriam voltar como animais nas próximas vidas, pois não

gostaram de ter vivido a experiência como gente um dia.

A vaca muge acordando Ducar Dromonde que antes

de se levantar da rede recebe um copo de suco de uvaia

oferecido por uma moça que diz ser esposa do chefe dos

pescadores. A claridade que vinha da porta aberta

ofuscava sua visão, mas pensou que pelo brilho dos

cabelos dourados a moça era nova demais para ser a

mulher do Geronimo.

Na sua puerilidade, perguntou para outra mocinha que

estava no fogão mexendo ovos numa frigideira, se era

verdade o que a menina de cachos dourados tinha dito.

Admirado ficou quando a garota respondeu que não

somente ela era esposa do pescador, como também ela, a

adolescente da frigideira, e mais outras duas, que no


momento estavam na lida da horta, eram esposas do

“chefe cacique”. Ducar pensou que estava num lugar onde

era permitida tal proeza e se interessou em comprar um

pequeno terreno, nas vizinhanças, se o seu pai financiasse.

As pessoas da perua que o levaram para a praia

tinham ido com o pescador para uma ilha logo cedo,

deixando o menino mimado por conta própria e das

Meninas-moça.

“Pois então, posso ajudar no quê?” Ducar perguntou,

não demonstrando interesse sexual. As Meninas-moça

deram-lhe a tarefa de pegar alguns caranguejos para o

almoço. A de cabelos dourados se prontificou a ensiná-lo

onde e como se pega caranguejo.

Foram os dois de balde de zinco na mão a caminho do

mangue. Pela vereda, enquanto andavam, a garota foi

educando Ducar, advertindo que iriam pegar somente o

necessário para comer e nada mais, se por ventura

pegassem uma fêmea com ovas, devolveriam ao mangue.


O menino da cidade escutava, concordava e obedecia. Ela

era falante e informada, explicou que os caranguejos são

crustáceos que possuem pernas que terminam em unhas

pontiagudas e os que possuem as últimas pernas como

nadadeiras são siris. “Eu sei disso porque a matéria que

mais gosto é biologia e quero dar aula aqui na comunidade,

quero ser professora”, concluiu. No mangue, o mimado

menino com o braço enterrado até o pescoço, metia a mão

no lodo sem medo, mostrando coragem para a futura

professora dos cabelos dourados. Naquele ambiente

selvagem, ele se sentia um pouco índio, se achando um

filho do Geronimo.

Ducar puxa um caranguejo de bom tamanho e se

gaba falando que existem os caranguejos que vivem na

terra, os que vivem no mar e os que habitam os rios.

“Todos eles moram nas tocas que eles mesmos fazem,

você sabia?”, pergunta para a professora.


A Menina-moça sabia, mas faz de conta que não,

só para não tirar o mérito do menino. Ele se apercebe da

bondade dela e se apaixona, rasga um pedaço da sua

camiseta e o amarra numa sereíba, deixando marcado o

local das quimeras do amor.

Ducar passou o dia todo com as quatro Meninas-

moça. Nas praias e cachoeiras, elas se banhavam de

roupa, não tiravam o vestido curto de chita florida para

nada, ficavam nuas somente para o chefe dos pescadores.

Na volta, foram colhendo gravetos e lenha para aquecer o

fogão. Almoçaram peixe frito com farinha de mandioca,

fizeram doce de abóbora, café no coador de pano, pipoca e

batata doce, tudo colhido na roça.

O assunto por todo tempo, entre uma coisa e outra,

era o salão de dança e bar que elas queriam, à noitinha,

levar Ducar para dançar baião ao som do Long Play de un

cantante brasileño, chamado Luiz Gonzaga. Foi o que

aconteceu, o menino mimado lá da cidade bailou


revezando com as quatro Meninas-moça pela noite afora.

Por vezes, dançava com duas ao mesmo tempo, enquanto

as outras faziam par. Voltaram tarde da noite, iluminando o

caminho com uma laterna, uma lata de óleo cortada na

lateral com vela dentro. Andavam em silêncio e a menina

mais nova avisou para ninguém fazer barulho, para que

percebessem o som da mata. Na casa, todos se deitam em

suas redes, mas o sono demora a chegar, as brasas do

fogão iluminavam o pequeno ambiente, o suficiente para

que os olhares atravessassem as rendas das redes

manifestando o desejo proibido.

Os ocupantes da Kombi e o pescador não retornaram

naquela noite, mandaram notícias que voltariam pela

manhã, pois iam resolver a venda da “merenda” da

motorista José, que iria receber um bom dinheiro por isso.

Nesta mesma manhã, Ducar resolve ir embora e se

despede pela primeira vez das Meninas-moça, que o

acompanharam até o alto da serra. Subindo a pé, colhiam


flores e frutos. De repente param no meio do caminho para

se despedir pela segunda vez, sempre com beijo e abraços

apertados. Já no asfalto, as moças não voltam para casa,

ficam fazendo companhia para o menino, se revezam no

carinho segurando sua mão, por vezes abraços, beijos no

rosto e no lóbulo da orelha, esperam por uma carona sem

desejo de êxito. A Menina-moça mais nova, pede para ele,

“fique, não vá”!

“A vida é longa, não acabamos ainda”, responde

Ducar.

Por fim, um caminhão para por conta das meninas e

Ducar sente que é hora de ir embora, dá um abraço

apertado e um selinho em cada Moça-menina, uma delas

lhe dá um colar de conchas como lembrança, ele agradece,

“Obrigado, precisava de algo de vocês para me fazer

companhia”. O caminhão vai se distanciando e ele olha

pelo retrovisor as quatro caiçaras sereias até sumirem da

vista, mas jamais desapareceriam de sua lembrança.


PAU A PIQUE

O caminhoneiro tinha um cacoete, mexia

incessantemente no chapéu e, quando o tirava para

arrumar o penteado, assemelhava-se ao Mickey Rourke em

O Lutador, exceto pelo cabelo que não era loiro.

Mickey curioso começa a bisbilhotar o porquê de

Ducar estar naquela região, era notório o burguesinho

longe de casa. Quando ficou sabendo que o rapaz, de

maneiras polidas havia dormido numa casa de pau a pique,

achou graça e explicou-lhe que esse tipo de casa é alvo de


preconceito. Antigamente eram feitas de forma muito

rudimentar e simples, sem cuidados. As pessoas usavam

matérias primas do mato e não davam acabamento

apropriado nas paredes e isso propiciava que insetos

fizessem lá seus ninhos e, em alguns casos, poderia

abrigar o barbeiro. Isso pode acontecer em qualquer tipo de

construção de alvenaria ou de cimento, se não for bem

acabada e não tivesse o reboco, acaba atraindo esses

insetos para fazer seus ninhos, explica mister Rourke, com

experiência sobre o assunto. Então, como se precisava

vender cimento e mudar o conceito de construção, difundiu-

se na população a ideia de que essas casas eram

insalubres, pois abrigavam o bicho barbeiro, e os

habitantes poderiam ser picados e ficar doentes. As

indústrias se aproveitaram disso, fazendo uma forte

propaganda denegrindo esse tipo de moradia. Em vez

disso, poderiam propor para as pessoas melhorarem as

construções de barro, estas deveriam ser feitas com

matérias primas e mão de obra local, com a ajuda da


comunidade e com o auxílio dos vizinhos. O que os

poderosos fizeram foi exatamente o contrário. Já irritado, o

caminhoneiro esbravejou que, empurraram matérias primas

industrializadas, cimento, ferro, obrigando as pessoas a

comprarem esses produtos, ajudando a expansão dessas

empresas, claro! Adotaram tal processo em muitas

prefeituras no interior do país, criando nelas regras

viciadas, pois as mesmas tinham a sua participação no

lucro ao introduzir as casas construídas com cimento. Os

financiamentos, assim, só eram possíveis quando o tipo de

construção atendesse as exigências das indústrias.

Créditos e verbas eram liberados apenas quando se fazia

uso desse tipo de matéria prima. “Mas a gente sabe muito

bem que a bioconstrução dá excelente resultado, tanto é

que nesse mundão afora existem construções de barro que

duram uma eternidade, com paredes lisas, intactas como

qualquer parede construída com matérias primas

industrializadas. Eu sou testemunha, já vi de perto, sou

motorista internacional”, se gabou. “Essa casa dá certo,


pleiba!” Às vezes, ele se referia a Ducar assim, achando o

menino um playboy.

“Ouvi dizer que no Japão existe uma técnica que é

resistente a terremotos. São paredes leves, feitas em

várias camadas, e, se por ventura essa parede cair, não

causa nenhum ferimento nas pessoas, pois não se quebra

em blocos, por serem leves, sacou, pleiba!”, deu um tapa

com o dorso da mão no braço de Ducar, buscando

intimidade.

“A casa de pau a pique é feita de bambu e barro

peneirado, bastante fino, misturado com palhas e outras

matérias primas para dar a liga perfeita na massa, inclusive

com estrume de vaca que é usado com muito sucesso nas

camadas finais, pois possui bastante fibra, formando um

revestimento térmico na superfície que ajuda a manter a

umidade da parede. Em dia muito quente e seco, ele libera

umidade para o ambiente, e, em dias úmidos com chuvas,


absorve a umidade, dando um equilíbrio termal no interior

das residências.”

Mickey empolgado continua. “Para esse tipo de casa,

você pode procurar na sua própria região o tipo de barro

que vai dar a cor do seu gosto, pode usar a base de cal,

misturar diferentes pigmentos para o acabamento final,

melhorando e muito a casa de pau a pique antiga, que tem

o seu charme, mas que era feita sem conhecimento e

técnica, dando margem a uma interpretação errada como

moradia. São casas ecologicamente corretas.” Ducar,

incomodado com o conhecimento do caminhoneiro, acaba

perguntando como é que ele sabe tanto a respeito do

assunto.

Mickey Rourke pediu para ele olhar a carga que

estava na carroceria e Ducar se deu conta de que o carreto

era de substâncias para a realização dessas casas. “Sou

construtor desse tipo de casa, pleiba!” Gargalhou

zombeteiro.
O homem não parava de falar sobre o assunto, dando

enjoo em Ducar que tentava se desligar pensando nas

Meninas-moça. O que elas estariam fazendo neste

momento? Banhando-se na cachoeira, lavando os cabelos

uma da outra, brincando de roda, colhendo flores para

enfeitar a casa, seguindo borboletas no bosque? Onde se

encontravam naquele instante? As namoradas sereias

estavam bem...

Num solavanco, por culpa de um enorme buraco na

estrada, Ducar desperta e não é que o homenzarrão dava

continuidade ao monólogo.

“Hoje em dia existe um movimento contrário com o fim

de resgatar essas técnicas mais antigas, pois, há mais de

cem anos, todos construíam dessa maneira e nossos

antepassados viviam muito bem. Com o conhecimento que

temos hoje, dá para fazer coisas melhores que

antigamente, com mais qualidade e segurança para quem

for morar dentro dessas casas.”


Com o intuito de enganar o motorista tagarela, Ducar

pegou como travesseiro o ursinho de pelúcia grande e fofo

do caminhoneiro e fingiu dormir, porque a estrada era

longa, no entanto caiu no sono de verdade.

O SACRIFICIO

Chegamos à casa das Meninas-senhora, o taxista feliz

pela sua interpretação e o apoio do Martin Scorsese não

quis cobrar a corrida e não insistimos em pagar.

Mais uma vez estávamos na casa delas, agora para o

almoço. Claro que se vestiram a caráter. A mais nova

usava um dólmã chef de cozinha com oito botões dourados

de modo impecável, a mais velha demorou um pouco para

aparecer porque sua irmã mais nova não queria apresentá-

la como ela havia pedido. Com nossa insistência, a mais


nova, injuriada, apresenta-a como se estivéssemos num

teatro e, numa investida, surge a outra vestindo um fashion

dólmã chef, usando lenço na cabeça preto estampado com

flores brancas e a mesma estampa para a saia longa

amarrada na cintura com um lenço preto.

Na cozinha, elas seguram panelas e frigideiras como

se fossem agogôs, com colheres e garfos batem ritmadas

dançando e cantarolando a princípio músicas de carnaval,

contudo não demorou a inverter o ritmo para umbanda,

com dança e murmúrios confusos. Senti a mão de Ducar

segurando na minha, apertei e repeti por duas vezes em

seu ouvido, “Não tenha medo! Combata-o com a coragem!”

As meninas-senhora se acalmam e começam a lidar

com a comida, mas antes preparam um patê com ricotas

amalgamadas com pimenta vermelha e cascas raladas de

um produto que elas não relatam o que é, apenas

mencionam que a receita era segredo. Os copos estão

cheios de vinho tinto e as torradas fartamente recheadas


de patê. A menina-senhora mais velha senta sobre a mesa

e começa a nos contar uma história de quando sua mãe foi

parar num país onde a grande maioria da população era

feliz. Ela se lembrou dessa história por que Ducar achou

muito forte o tempero do patê e, desconfiado, perguntou

sobre os ingredientes misturados no aperitivo. Ela contou

que nesse lugar a comida era muito ardida e que a

população estava acostumada a comer com pimenta,

inclusive as crianças comiam e não reclamavam. Devido a

pobre infraestrutura do país, a grande maioria não possuía

geladeira, muito menos freezer, então, colocava as carnes

salgadas e apimentadas penduradas nas cercas das casas

para conservá-las.

“Minha mãe contou, diz a Menina-senhora, que,

andando pela rua, avistavam-se, nos terrenos baldios e

quintais, plantações de maconha. Aquilo era comum, pois

os porcos se alimentavam da erva, porém era proibido

fumar e comercializar qualquer tipo de tabaco. Ela e uma

amiga que a acompanhava, nos passeios pela cidade,


colhiam algumas folhas, secavam na chapa do fogão de

lenha e fumavam escondidas da senhorinha que lhes

abrigavam, se desculpavam falando, ‘Ninguém é de ferro! ’

A amiga de mamãe era uma anã, usava muita maquiagem

em tons azul e rosa, por vezes, colocava uma peruca loira

destoante de sua pele preta, adorava sair dessa maneira,

‘Fashion!’ como dizia. Nessa hora, se parecia com Elza

Soares, una cantante brasileña. Por outras vezes, com

cabelo preso, queria que a chamassem de Nina Simone,

una cantante americana. Todas as noites fumavam as

folhas secas da chapa do fogão e aproveitavam o momento

de descontração para filosofar. A pequena Elza Soares não

se conformava com pessoas adultas que se aproveitavam

de situações para se beneficiar ilicitamente, pessoas

horrivelmente chatas, homens e mulheres prepotentes,

egoístas. Ela se perguntava como essas pessoas foram

crianças um dia?
Minha mãe não tinha medo de nada, na verdade,

quase nada, o único temor dela era que o céu caísse sobre

sua cabeça, contudo eu acho que esse problema é devido

ao fanatismo dela pelo Asterix e Obelix, registrou rindo a

Menina-senhora.

Nesse país onde estavam, foi implantado um

programa pelo rei, oficializado como FIB, Felicidade Interna

Bruta, que era baseado em três pilares, a sustentabilidade,

o bem estar socioeconômico e a preservação do meio

ambiente. Eles mantêm oitenta por cento da área com

vegetação natural, preservam a cultura a todo custo, tanto

é que minha mãe e a sua amiga eram acompanhadas por

um guia enquanto estiveram por lá. “Os governantes são

respeitados e tomam conta do povo.”

Fez uma pausa e comentou com tristeza sobre a

solidão de sua mãe no final da vida, então preocupadas,

falavam em fazer testes para quem fosse acompanhá-las

na velhice. Combinaram que adotariam um gatinho e,


conforme o tratamento dado ao animal durante uma

semana contratariam ou não essa pessoa. Aos cuidados do

acompanhante, deixariam uma samambaia, um peixinho

Betta e um livro de poesias, observariam as atitudes e

vontade do cuidador. Eram testes para aprovação ou não

do candidato.

Sobre a morte, falavam que, por vezes, a gente fica

antecipando momentos de decrepitude, de velhice, de

doença, isso tinha que ser vivido na hora de ser vivido, não

quando a gente tem saúde e vitalidade. A morte tem que

ser vivenciada na hora da morte, não antecipadamente.

“Veja esse peixe, não sabia que seria pescado,

abocanhou o seu almoço e foi fisgado, agora ele é a nossa

refeição”, se divertiam na cozinha. “Veja essa salsinha,

estava feliz na horta, vamos temperar e colorir de verde a

salada”, espalhava as salsinhas com os dedos e agradecia

falando, “thank you, salsinha, merci, salsinha...”


A Menina-senhora ia continuar a história de sua mãe,

quando percebeu que a gente apresentava um leve torpor.

Estávamos inertes, sem estímulos, largados ao chão,

encostados ombro a ombro, escorados pela portinhola de

madeira da pia. Dormíamos. As Meninas-senhora se

entreolharam, sabiam que o patê iria agir, atuando de

maneira certeira no entorpecimento de nós dois. Tiraram

nossas roupas, com uma corda, amarraram nossos pés,

penduraram-nos de ponta cabeça no canto da cozinha, um

local preparado para um sacrifício, colocaram bacias

abaixo de nossas cabeças como se fossem nos imolar,

oferecendo-nos a uma divindade.

Afiaram as facas de açougueiro e se concentraram na

porta da cozinha. Juntas, com passos harmônicos,

recitando em jogral uma poesia composta por elas,

segurando as lâminas, caminharam em nossa direção.

Com a mão esquerda, seguraram nossos cabelos

suspensos pela gravidade e que, pendurados de ponta-

cabeça, indicavam o chão. Com a direita, simularam uma


incisão violenta para separar as nossas cabeças dos

nossos corpos.

Entreolharam-se novamente e começam a gargalhar,

usaram as bacias que eram para recolher nosso sangue,

para urinar.

Vestiram as nossas roupas. Depois de um tempo,

acordamos na sala, um pouco confusos sem saber ao certo

como fomos parar no sofá. Conversamos entre nós e Ducar

contou que teve um sonho.

Disse que estava em busca de alguma coisa, sem

saber o que estava procurando. Conta que eu, seu melhor

amigo, sumia todo final de semana e falava que estava

indo a um local numa cidadezinha próxima, mas que

infelizmente não podia lhe contar por enquanto. “Por que

eu não posso ir com você?” Respondi no sonho, que eu

não tinha autorização para levá-lo e que, além disso, o

lugar era pequeno, não cabia muita gente. Quando


chegasse o momento certo, eu o levaria lá e teria certeza

que ele gostaria. “Pelo menos, conte o que você faz nesse

lugar!” “Pois bem, lá, tomamos um chá que abre um portal

para uma viagem astral.”

Ducar riu, porém se interessou ainda mais. No sonho,

eu dizia que ia para um curso de concentração mental, mas

que, na verdade, era para encontrar encarnações de mim

mesmo em outro paralelo, numa outra dimensão. Ducar

continua- “Sabendo disso, fiquei louco para ser chamado a

fim de conhecer o local, mas você falava ‘Calma, tem que

esperar’. Depois de um tempo, recebi o convite e fui para

uma nova experimentação”.

Ducar conta que no sonho teve uma experiência

intensa com o chá. Tomou a infusão ao lado da cachoeira,

aí aconteceu o seguinte: não tinha lugar para sentar, os

homens faziam as necessidades fisiológicas do lado direito

da mata e as mulheres usavam o lado esquerdo, “Achei

que o chá fosse dar uma caganeira geral”. Sentei em uma


pedra que fazia parte da corredeira de um riacho, ali fiquei.

Quando a força e a luz do chá chegaram a minha mente,

foram tão fortes que a pedra onde eu estava sentado virou

um enorme sapo, as árvores balançavam num ritmo

alucinante, começou a ventar e de repente tudo a minha

volta se transformou em um desenho colorido, aumentou a

minha percepção, era uma manifestação psicodélica, a

natureza estava maquiada com cores vibrantes. Senti

medo e não havia ninguém para segurar na minha mão,

procurei me acalmar com o pensamento de que aquilo tudo

uma hora tinha que cessar.

Um senhor a minha frente, que era chamado de

mestre, fez com a mão um gesto para que eu me

acalmasse. Interessante que depois desse turbilhão de

informações desconectas, aconteceu a calmaria,

começaram a surgir imagens na linha do horizonte em

outra dimensão como se fossem uma apresentação de

slides, e elas, quando chegavam à altura dos meus olhos,

se dividiam para que eu escolhesse em qual história eu


queria entrar”. Ducar, em pé na sala e um pouco aflito,

relatou como se fosse um depoimento eclesiástico:

“Subitamente meu corpo começa a tremer, percebo

que eu estava entrando em órbita, meu corpo sustentava

meu espírito lá no alto das nuvens. Quando as minhas

forças físicas se esgotaram, liberei o espírito que foi para o

campo da luz. A paz predominou em meus sentimentos”,

concluiu, contemplando e meditando sobre a experiência

do sonho.

“E você?”, perguntou Ducar, “O que passou?”

Respondi que havia sonhado que estava de ponta

cabeça e por pouco não tinha sido decapitado.


O PEIXE E A MAÇÃ

As Meninas-senhora nos chamaram para o almoço.

Assaram o peixe e o serviram com uma maçã na boca

porque eram peritas em desvirtuar mesmices. Trocaram o

vinho tinto pelo branco, encheram as taças alvitrando um

brinde pelo instante, pelo momento, pelo agora.

A Menina-senhora mais velha saboreia a comida

estalando entre os dentes uma pimenta do reino e

suspirando diz “isso faz a diferença”.


Ducar declama uma curta poesia, alterando algumas

palavras por esquecimento, todavia, na mesa, todos o

ignoram, sem fazer comentários. Ele se aborrece com a

indiferença. Esbravejando, fala que se aquelas palavras

ditas da mesma maneira fossem do Caetano Veloso, ou da

Angelina Jolie, ou ainda Spielberg, todos o achariam o

máximo. Foi ignorado novamente.

Sem que combinássemos, fizemos de conta que

Ducar não existia, que ele não estava ali, continuamos com

alguns brindes dedicados a formigas do Himalaia,

tamanduás em extinção, papagaios mudos, enfim, sem

olhar para Ducar, ele estava invisível.

A Menina-senhora mais velha, comilona, que chega

até a render culto à comida, triste, lembra-se de uma tia

que adorava comer. De quando em vez, depois do almoço,

sua tia saía de casa para ficar olhando os bufês de

restaurantes, com as mesas cheias de iguarias, uns doces

e uns salgados, bebidas e sucos. Aproveitava para tomar


um café com pão e manteiga, era um passatempo que

acabou virando hobby, para a ela. Lembrou com tristeza,

pois sua tia descobriu que era celíaca, justo ela que

venerava comida. O médico esclareceu que é uma doença

autoimune, causada pela ingestão de glúten em pessoas

geneticamente predispostas, e ela não sabia, coitada.

Conformou-se e uma frase a consolava “Aceita que dói

menos”. Contava que não adiantava se deprimir e que

existiam doenças piores, contudo não gostava da situação

de ser celíaca. Sabia que a doença era grave e não tinha

cura, “Felizmente não é contagiosa”, dizia para suavizar. A

tia da Menina-senhora sabia que não era mais saudável,

com cuidado e sorte, “estava saudável”. Sua vida mudou.

Para ficar conveniente a sua saúde, evitava comer fora de

casa, nem em casa de amigos fazia qualquer refeição, pois

tinha que saber se os utensílios não foram tocados por

glúten. “Vejam a situação meninos!” no forno usado para

fazer comida com glúten, a pessoa celíaca corre risco de

se contaminar. Até beijo na boca tem que ser evitado. “Se


não tomarmos cuidado, nosso organismo responde com

diarreias, vômitos, perebas na pele, correndo o risco de

problemas como diabetes, tireoide e câncer”, comentava

passando a mão pelos seios. Falava que não podia

comungar porque a hóstia não iria lhe fazer bem, continha

glúten, mas eu acho que o problema mesmo era com o

confessionário. Contudo a tia não deixava de viajar, se

informava antes onde poderia se alimentar, ia aos bailes

dançar, mas evitava colar o seu rosto no do dançarino para

que não tivesse vontade de beijar sua boca.

“Eu não tenho nada, aleluia”! gritou a Menina-senhora

mais nova. “E chega dessa conversa porque estou ficando

com fome novamente.”


CORPO E MENTE

Ducar, concentrado em seu pensamento com a

experiência vivida há pouco, pede que todos, desta vez,

prestem atenção na história que vai contar, da sua tia

médium.

“Pois bem! Escutei algumas passagens da minha tia,

experiências que minha avó contava. Ela, até os dezesseis

anos de idade, era uma adolescente comum. Quando

mocinha, terminando o curso escolar, começou a ter um

comportamento diferente do das outras meninas, suas

amigas. A família preocupada achou que ela estivesse no


inicio da loucura ou possuída pelo demônio. Aos dezoito

anos, foi levada pela minha avó, para ser exorcizada por

um padre amigo da família, que na época era famoso por

tirar o demo do corpo. Mesmo com essa intervenção, não

conseguiram ter controle sobre as atitudes da menina. Pois

então, levaram-na para uma junta espírita, a fim de fazer

um trabalho minucioso. Chegaram à conclusão de que ela

possuía uma mediunidade muito intensa, e desenvolver

essa qualidade, poderia controlar a situação. Com o tempo,

percebeu que tinha vindo ao mundo com a missão de

cuidar de crianças desamparadas e começou com esse

trabalho, adotando várias. Casou-se com o seu noivo, um

rapaz de família tradicional estrangeira que não aceitou o

tipo de vida que queriam ter. Seu marido deu-lhe todo

apoio de que necessitava e entendia sua diferença

comportamental. “Queria casar com um homem desse

tipo!” interrompeu feliz a Menina-senhora mais velha.

Então, prossegue Ducar.


“Sem controle, ela incorporava espíritos do bem e, às

vezes, necessitados. Um sobrinho dela, meu primo, teve

uma experiência intensa. Certa vez, na sala da sua casa,

ela começou a passar mal, as filhas dela tranquilizaram o

menino, alertando-o de que ela estava recebendo um

espírito. Essa entidade pediu lápis e papel para escrever

um bilhete e, para o espanto do sobrinho, a mensagem era

para ele. Sua tia começa a ter ânsia de vomito. De sua

boca saíram três botões de rosa perfumados. O perfume

era de sua namorada que havia morrido há um ano, tinha

sido uma paixão shakespeariana. No bilhete estava escrito

“Sol, lua, aqui tudo bem”, revelando tranquilidade e seu

nome assinado. Pois bem, a tia voltou ao normal e não se

lembrava do ocorrido.”

Continuam se servindo de vinho, e a história

prossegue. A Menina-senhora mais nova está de cócoras,

pés descalços simulando garras na borda do encosto da

cadeira, um urubu espreitando Ducar e sua história.


“Depois de um tempo, a mediunidade dela passou a

ser controlada, mas, vez por outra, recebia espíritos

travessos como são chamados por algumas doutrinas.

Teve um caso interessante que eu vou contar para vocês e

acreditem, pois é verdade!

Minha tia morava num sítio em uma casa bem grande

onde abrigava quase uma centena de filhos. Nesse lugar,

havia um lago fundo que não era tão pequeno, a tia era

uma senhora gorda e grande e nunca tinha aprendido a

nadar, por conta disso tinha medo d´água. Um belo dia

recebe um espírito traquina, zombeteiro.Tomou cachaça,

quebrou o copo e mastigou os cacos de vidro, engolindo-

os, saiu correndo lépida como uma lebre. Pulou no lago,

atravessou-o a nado e na outra margem, tinha um jatobá

centenário, pois ela subiu de galho em galho a mais de dez

metros de altura. No topo da árvore, o espírito desprende-

se do corpo deixando-a lá em cima.”


As Meninas-senhora, angustiadas e curiosas, querem

saber do desfecho da situação.

Ducar faz uma pausa, enche novamente seu copo

com vinho, dá um gole saboreando, curtindo a atenção de

todos e finaliza.

“Pois bem, chamaram os bombeiros para tirar a tia de

lá. Sem sequela alguma, já em casa, ela não se recordava

de nada.”

“Viva a tia de Ducar!” brindaram.


LIBERDADE

Ducar Dromonde matricula-se em uma universidade

pertencente à Federação, em outra cidade, completa

dezoito anos e ganha um automóvel seminovo para poder

voltar para casa nos finais de semana, como queriam seus

pais. Filho único de várias tentativas que resultaram em

aborto natural, agora ia deixar a casa, querido da mamãe e

do papai, saiu do berço para voar longe... Assim pensava o

casal Dromonde, sem imaginar o que o menino já tinha

aprontado pela vida. Seus pais eram uma mistura de


alegria pelo filho ter entrado na faculdade e tristeza pela

casa sem graça com a sua ausência.

Ducar sai para passear com seu carro, buscando uma

experiência nova. Raramente saía sozinho, sempre estava

acompanhado pelo seu amigo fiel, mas resolveu assim,

uma noite solitária, sem lugar determinado. Passou em

frente a um pub e pelo movimento na calçada achou que

iria se divertir. Três mulheres para um homem, Ducar tinha

essa capacidade, num rápido olhar, sondava e avaliava o

número de mulheres, quantos homens, vestuários e até o

grau de bebida ingerida pelas pessoas. Esquadrinhava os

grupos em categorias, os isolados, os pares, os

enturmados e, em segundos, sabia qual seria o seu

caminho para adentrar no local. Afirmava que era um

talento seu e, para ser franco, dificilmente errava. No

interior do bar, reencontra aquele amigo de infância que

quase foi padre e que hoje alicia meninas de programa.

Ducar se lembrou de sua mãe beata, considerou que essa

atitude tinha a ver com o reverso da moeda. O amigo lhe


oferece uma tequila e em seguida um chope; a bebida

destilada desceu em um só gole; como adulto seguro ingeri

e sem tardança as amigas do coroinha cafetão começam a

passar uma após a outra na sua frente como se fosse um

desfile de modas. Exibem-se ostentando o corpo esculpido

para esse meio de subsistência e são remuneradas pelo

exercício desse ofício. Ducar se apaixona pelas três e ao

se apresentar reconhece uma delas, é a Menina-corpão.

Ele se emociona, sente seu coração palpitar, coloca a mão

dela em seu peito, confirmando assim que ela era a

responsável por aquela aceleração coronariana.

A Menina-corpão se envaidece. Fingindo estar atraída

por ele, faz um sinal ao barman solicitando um drinque,

ainda com os dedos entrelaçados em seu peito. Ela se

aproxima. Com seus seios toca seu braço e murmura em

seu ouvido, fazendo-o sentir a umidade da sua língua.

Pede autorização para sentar-se ao seu lado. Antes

mesmo de Ducar raciocinar uma resposta maliciosa, a

garota já está sentada exibindo suas pernas lustrosas


cruzadas, com os mesmos pelos loiros de tempos atrás.

Mostrava-lhe o quanto era valiosa, testando o seu

interesse. Sem tempo de terminarem as bebidas, saem do

pub para um hotel sugerido pela Menina-corpão, onde

também receberia uma comissão. A cada passo do seu

trabalho noturno, era gratificada...

Duas semanas se passam e, contrariando o seu feitio,

Ducar pela primeira vez sai três vezes com a mesma

garota. Ele sabia que ela era “neta” das Meninas-senhora,

mas ignorou esse fato. Ele sonha acordado com a Menina-

corpão, relembra o filme onde Rembrandt sentado em

frente ao cavalete, apoiando a tela de pintura, observava

seu modelo humano. Ela usava uma tiara grossa de flores

na cabeça que prendia seus vastos cabelos crespos,

deixando a mostra o seu lindo rosto claro dono de uma

boca rosada e olhos azuis turquesa. Vestia uma túnica de

algodão que escondia suas formas perfeitas e Rembrandt


sabia que, além do tecido, só havia seu corpo nu. Ela

pergunta “O que houve? Você parou de pintar?” O pintor

decide falar “Vou lhe contar um segredo que você não

contará a ninguém. Eu tenho um olho vago. Este, o olho

esquerdo, é o meu olho bom... e este outro é o preguiçoso.

Se você contar a alguém estou destruído, pois quem

contrataria um pintor com olho mandrião? Confio-lhe meu

segredo mais destrutivo... Mas agora, finalmente, entendo

tudo! Meu olho nunca foi vago. Este olho estava

só esperando. Esperou quase trinta anos para ver você. E

agora, tendo esperado pacientemente por tanto tempo,

descobri que este é o melhor dos meus dois olhos.”

Rembrandt lhe dá um beijo no rosto com afeto e,

apontando para o olho, diz “Este é o olho que esteve

esperando para ver um milagre. E o milagre é você. E

agora este olho verá você por inteira”. Rembrandt começa

a despi-la.
Ducar sacode a cabeça, passa a mão no cabelo como

se quisesse penteá-lo e ao mesmo tempo apagar esse

filme momentaneamente do seu pensamento.

O IMPREVISTO

Omitiu a todos os conhecidos o namorico, arriscando-

se até a fazer um convite para a menina viajar com ele por

um final de semana.

A Menina-corpão não hesitou, estava inclinada por ele

também e aceita o convite. Pede a ele para não brincar

com seu afeto e impõe a condição de levar sua sobrinha de

oito anos, pois, se não fosse dessa maneira, a sua mãe


não deixaria. Era contraditório uma garota de programa,

que estava acostumada com as madrugadas e os

percalços da vida, pedir autorização para sua a mãe, mas

quem era ele para contradizer, pensou.

Inaugurando o carro seminovo na estrada, foram

passear nas montanhas. Ducar alugou um pequeno chalé

de madeira que ficava no meio de um bosque de pinheiros,

perto do centro da pequena cidade, que oferecia para os

turistas somente uma trilha de intensidade média e que

terminava numa cachoeira de pouca beleza.

Lembrou-se das histórias do avô de seu amigo que

contava sobre gnomos e fadas. Parecia-lhe que iria ao

encontro desses seres naquele momento, seria uma

experiência inesquecível, todavia Ducar sabia que os

gnomos há muito tempo já tinham ido embora porque as

florestas não eram mais primitivas.


A intenção de Ducar era outra, nem trilha, muito

menos cachoeira, queria distrair a criança para namorar

sexualmente a Menina-corpão. Passearam o dia todo,

descansaram deitados no gramado do jardim da igreja,

olhando para o céu, descobrindo nas nuvens, formas de

coelho, cachorro, avião. Ducar falava que era um

entretenimento gratuito e prazeroso. A Menina-corpão

quando se aproximava para beija-lo, ele recuava alguns

centímetros sua boca de seus lábios, para que pudesse vê-

la um pouco estrábica, era um momento único, contava

encantado. Porém, sempre foi supersticioso, jurava que se

alguém ficasse vesgo de propósito e nesse momento um

galo cantasse, a pessoa ficaria vesga para sempre.

Jantaram uma pizza na cidade, era a única opção de

comida e voltaram para o chalé, sedentos por sexo. Depois

de algumas tentativas em vão para fazer a pequena

sobrinha dormir, resolveram ficar na varanda tomando

vinho e fumando um baseado. Ouviam a menina rezar na

sala em louvor a Nossa Senhora, ela trocava, na sua


oração, “pecadores” por “pescadores”, era o bastante para

o casal entorpecido rir até!

Ducar Dromonde entra para ir ao banheiro e pegar

um agasalho, deixando a ponta do cigarro de maconha em

cima de um pequeno armário da sala. Sem ter o que fazer,

o casal vai se divertir no quarto, assistindo a TV.

Ainda inspirado pelo filme, conta uma história de amor

para a Menina-corpão. A esposa de Rembrandt, já morta

em seu leito, usava uma camisola branca de linho. Seu

corpo estava imóvel, com os pés juntos e descalços, suas

mãos entrelaçadas em seu peito, rosto pálido com uma

leve lembrança de vida. Rembrandt começa a desenhá-la

em uma folha de papel e conversa com ela como se o

escutasse “Seja razoável, Saskia! Devo acabar este

desenho Saskia, quando não estiver mais por aqui, terei

que me olhar com mais frequência no espelho! O espelho

nunca esteve muito longe, eu sei, Saskia? Tenha dó, pelo

amor de Deus! Não chegamos até aqui juntos para você


me deixar agora. Volte agora mesmo, Saskia, se você for

eu perco tudo. Saskia? Digamos que eu ceda e concorde

que você está morta. Este desenho diz que você ainda

respira. Não diz? É curioso este desenho, para todo o

sempre continuará dizendo que está dormindo. Para todo o

sempre... Pode se ver em um desenho se um corpo

está morto ou simplesmente dormindo? O que é mais

correto? Saskia? Seu corpo? Este desenho... Saskia...”

A moça e Ducar acabam dormindo, deixando a

criança entre o desperto e o sono no sofá da sala. Quando

se apercebe sozinha, a criança começa a se aventurar pela

casa e acha a ponta do cigarro de maconha. Num impulso

espontâneo e alheio à razão, a pequena menina habituada

com os fumantes da sua casa, acende e fuma até o final a

bituca esquecida.
Após algumas horas, a Menina-corpão acorda

inquieta, perturbada, com uma sensação ruim, parecia

adivinhar o acontecimento funesto. Ao chegar à sala, se

depara com a sua sobrinha desmaiada com características

de ter tido uma convulsão, sua boca e pescoço estavam

babadas e o corpo todo contraído. Logo percebeu a

situação porque a ponta do cigarro ainda estava em sua

mão. Aos gritos inarticulados, acorda Ducar que, tomando

ciência do ocorrido, tenta reanimá-la em vão. A criança,

pálida, parecia pouco viva, respirava com dificuldade.

Sem demora a levaram para o acanhado hospital da

cidade que parecia ser um grande ambulatório. O médico

de plantão foi atencioso e pediu que contassem a situação

para oferecer o procedimento correto o mais rápido

possível. Ducar não omitiu a verdade, contou que, sem

querer, a menina fumou maconha. A enfermeira Caxias que

auxiliava o médico ouviu a conversa. Seguindo o protocolo,

imediatamente chamou a polícia.


Horas mais tarde, a menina, fora de perigo de morte,

já acordada e manhosa queria a mãe. Foi um alívio para o

casal que quase teve uma síncope. Pois bem, todos foram

para a delegacia, Ducar Dromonde passeou pela primeira

vez de camburão, no xilindró, algemado. Não precisava

tanto, mas o soldado queria mostrar serviço e na verdade

era a primeira vez depois de anos que alguém ia preso

naquela pequena e pacata cidade.

Na delegacia, enquanto era tomado o depoimento do

casal, um detetive aposentado que ocupava seu tempo

jogando truco com o escrivão e se vestia como John

Wayne, usando um chapelão de cowboy, colete de couro e

um lenço no pescoço, pergunta se eles se interessavam

em saber um pouco sobre a maconha. Mesmo sem

resposta, o detetive começa a palestra sobre o assunto.

Contou que no Brasil o hábito de fumar maconha é

antigo, foram os escravos africanos que trouxeram para cá


e os caboclos que viviam às margens do rio São Francisco

eram os que mais faziam uso, os que mais gostavam da

erva. Naquela época, foi considerado o ópio dos pobres e o

seu consumo foi proibido porque associavam à insanidade,

alienação, delírios furiosos e imaginações bizarras.

Começou, então, a repressão aos viciados. Contou essa

história com os dois pés cruzados sobre a mesa, tentando

reproduzir uma cena de filme. O medico que também

estava lá para dar seu depoimento, acrescentou que as

drogas possuem efeitos específicos. Dependendo da

cultura, do momento da administração, personalidade e

escolaridade de cada pessoa, a dose e o consumo

determinará os sintomas de cada um. “Para alguns pode

até ocorrer à decadência das faculdades mentais,

transtornos semelhantes à esquizofrenia que é chamada de

psicose canábica”, finalizou querendo mostrar

conhecimento de causa.
Ducar e a Menina-corpão estavam desolados, quietos,

imóveis, ouviram as conversas de cabeça baixa sem tirar o

olhar do chão, repensando tudo o que tinha acontecido.

Repentinamente entra na delegacia um dos

vereadores da cidade com dois seguranças que mais

pareciam jagunços. Queria agir como se fosse um justiceiro

do apocalipse, era avesso a qualquer tipo de droga,

considerava-se o caudilho da Ku Klux Klan. Aos berros,

ordena “Esteje preso! Nesta cidade, quem manda é eu e

vamos preservar a moral e os bons costumes da boa

família!”, completando com “Glória a Deus, Senhor!”

Falando em voz alta e fazendo o nome do Pai, os jagunços

pontuavam, “Deus seja louvado!”

Ducar notou que o pequeno tirano era um beócio,

contudo, as pessoas que ele comandava até aquele

momento na delegacia se renderam as vontades do edil,

mostrando submissão e medo. O político era baixinho,

magricela e vaidoso. Mantinha alguns cacoetes, um deles


era de chupar o ar para dentro da boca devido a um

enorme diastema entre os dentes fazendo um ruído

nojento. A unha do dedo mindinho era pontiaguda e maior

que as outras para que ele pudesse coçar o ouvido e a

beira do nariz com a extremidade dorsal do dedinho, num

gesto continuo e circular. Simulou arrumar a camisa por

dentro da calça, somente para mostrar que estava armado,

com a intenção de intimidar ainda mais o casal que já

estava temeroso e desamparado.

O pequeno tirano logo deu a entender que era filho do

prefeito, dando um tabefe no rosto de Ducar, falou que não

gostava de forasteiros e muito menos de maconheiros

pervertidos. Discursava que, quem obriga criança a fumar

ou tomar qualquer tipo de droga não merece viver e “Digo

mais!”, gritou, “Tem que morrer aos poucos, porque sem

dor não tem perdão!” Ducar Dromonde, percebendo a

demência explicita do beócio e que a situação estava

caminhando para um descontrole irracional, pelo


comportamento imprevisível do até então suposto

vereador, exigiu um advogado.

O pequeno tirano com um soco inglês na mão falou

para que ele ficasse tranquilo, poderiam ir embora assim

que a menina tivesse alta do hospital, porém com a

condição de nunca mais voltarem para aquela cidade onde

as notícias correm como uma seriema perdida. Logo, todos

saberiam que o político expulsou os

delinquentes...Vaidade, o pecado que o diabo mais gosta,

refletiu Ducar.

Receberam um telefonema do hospital avisando que a

menina estava pronta para ir embora. Lá chegando, havia,

na porta do ambulatório, dezenas de pessoas atacadas de

raiva pelo que tinha acontecido com a criança, querendo

tirar satisfações e com a intenção de agredi-los. Por sorte,

John Wayne estava por lá e evitou o pior. Apavorados,

pegaram a menina e saíram da cidade o mais rápido


possível, queriam apagar da memória cada lugar que

passaram para nunca mais achar o caminho de volta.

ENTRE OS PAIS

O retorno foi marcado pelo silêncio como o de um

velório, a criança dormindo no banco de traz e o casal

amargurado sem assunto, ambos precisavam de amor

porém de um tipo diferente.

Sem ânimo para continuar o relacionamento,

prosseguem a viagem. Chegam tarde da noite a cidade,


Ducar a deixa em casa e insiste em ajudá-la no que for

preciso. Despedem-se com um aperto de mão como se

fosse para sempre, ele vai embora olhando para o chão

querendo achar alguma coisa que tinha perdido e sabia

que não iria encontrar. Com o carro seminovo, fica dirigindo

a esmo na madrugada pela cidade. No cd player ouve

Genesis e, quando começa a tocar The Musical Box, Ducar

para o carro no meio da rua e não consegue segurar o

choro, a música o remete ao passado, onde sua inocência

não dava brechas à violência.

Ducar Dromonde, muito abatido, entra em sua casa,

vai até o quarto de seus pais e, sem tirar a roupa, se deita

entre os dois. Num instinto da cria, sente o cheiro da

segurança e imediatamente é confortado no achego do

corpo da sua mãe e o carinho com os pés de seu pai. A

noite é infinita quando você fecha os olhos e vê o terror que

não consegue esquecer. Ducar, entre um soluço e outro,


fungava o nariz, sua mãe, sem perguntas, o que era um

alívio, passava a caixa de lenço de papel que ficava em

seu criado mudo.

Dias se passam e Ducar não sai de casa, passa o

maior tempo em seu quarto, pensa na Menina-senhora e

na sua neta, na criança que quase morreu por sua causa.

Não quer conversar com ninguém, porém responde

algumas perguntas triviais, deixando tranquilos os seus

pais quanto à mudez que no passado durou meses.

Ducar esboça um sorriso quando recebe uma carta da

Menina-corpão que quer vê-lo no final de semana num

parque próximo a casa dele. Achou estranho, poderia ter

ligado a cobrar se quisesse, mas não quis pensar o porquê,

pois estava lotado de sês e porquês em sua mente.

Ducar Dromonde faz a barba, passa um perfume

requintado, vai a uma loja de chocolates belgas, escolhe

uma caixa em formato de coração, desvia do caminho para

comprar flores e vai ao encontro da Menina-corpão.


La chegando, é abordado por dois homens fortes, mal

vestidos, cheirando a cachaça e suor, falam que estão

armados e, segurando fortemente em seu braço, o levam

até um beco onde não havia uma alma viva, nem de gente,

nem de bicho. Ducar ficou apreensivo e, com medo,

lembrou-se do seu amigo que sempre lhe dizia para não

temer, para vencer o medo com a coragem, que tudo daria

certo. Pois bem, aquele era um dia atípico ao dar certo.

Encostado na parede, sem forças para argumentar,

mostrando-lhes a chave do carro, ele explica que tem

pouco dinheiro no bolso e que seu automóvel seminovo

está logo ali, era só pegar!

De repente, surge um homem que parecia ser o chefe

da gangue. Pensou que a situação iria melhorar, mas não

aconteceu. O chefe se apresentou como pai da criança,

aquela que quase morreu na viagem, e a Menina-corpão

era sobrinha dele, portanto não era neta de ninguém.


Ducar se lembrou do Bandido-matador, irmão das

irmãs, e de que a mais velha, para tranquilizá-lo, tinha dito

que era invenção. Não teve medo, não precisou de

ninguém para segurar a sua mão, lamentou morrer jovem,

se despediu mentalmente de seus pais, do seu melhor

amigo e da vida aqui na Terra.

Um sopro de vento trouxe um odor conhecido a Ducar,

percebeu a indiferença entre as grandes vitórias e as

grandes derrotas, entendeu que a vida é um acúmulo de

cicatrizes, algumas esquecidas, outras invisíveis que

jamais se fecham.

O Bandido-matador com raiva encosta o revólver na

testa de Ducar e fala que ele é um playboizinho de merda,

que a sociedade mais favorecida se aproveita das pessoas

com necessidades, comprando-as de alguma maneira. “To

livre das drogas, mas não to livre de mim memo”, com a

voz alta, fala em seu ouvido. Ainda diz que iria matá-lo
apenas com um tiro certeiro no coração para amenizar seu

sofrimento, a pedido da sua irmã, a Menina-senhora mais

nova que tivera um carinho especial por ele.

Fechou os olhos, sereno, tranquilo. Queria ficar com

as belas lembranças, evitando assistir ao momento violento

da sua morte.

Lembrou-se de Johnny e se livrou da possível dor.

Também de outro amigo que passou a infância toda doente

e que pedia para que Ducar jogasse fubeca por ele. Morreu

cedo e no velório colocou na sua mão a fubeca preferida.

Lamentou não poder mais viver junto do seu fiel e

inseparável amigo com iria consertar o mundo. Recordou-

se de sua primeira namorada, filha de uma “médica sem

fronteiras”. Ducar se apaixonara pelas duas, um pouco

mais pela mãe. Lembrou-se de sua avó, que já velhinha,

pressentindo a morte, lhe deu uma medalha de Santo

Antonio de Categeró, dizendo que era a única coisa que ela

podia lhe deixar. Lastimou não ter abraçado seus pais com
mais frequência, principalmente a sua mãe que, por vezes,

era a Nossa Senhora. Molhou-se pouco na chuva, não

andou descalço, deixou de comer um monte de porcaria,

ficou se protegendo do sol e se esqueceu de contemplá-lo.

Por educação, evitou xingar muita gente, não participou do

ritual xamânico Temazcau por achar que era uma sauna

sem saída. Veio à memória seu amiguinho doente do

bairro, que impossibilitado de sair de casa, jogava discos e

livros pela janela, dando o recado de que também tinha

visto os filmes da matinê, mas que na verdade era mentira.

Não perguntou para os adultos oportunistas, ladrões e

enganadores, se eles foram crianças um dia. Desapontou-

se por não ter tentado subir uma montanha e tocar o céu

com a mão. Suspirou, percebendo que poderia ter dito a

todas as mulheres que conhecera que elas eram pessoas

atraentes, de extraordinária beleza e inspiradoras dos

poetas. Arrependeu-se de ter tido a oportunidade de

experimentar vários chás alucinógenos e não o fez. Pensou

novamente em seu amigo e se sentiu pronto para morrer.


O SILÊNCIO

O Bandido-matador aponta o revólver e dispara. Um

estampido alto ecoa pela rua estreita, levando o som até o

centro da cidade, onde, por alguns segundos, tudo para. As

pessoas ficam imóveis, os carros perdem a parte elétrica e

se desligam, os pássaros não voam, respeitam o momento

abstrato. A mãe de Ducar é surpreendida por uma brisa

que entra pela janela da sala, trazendo o aroma da pele do


seu filho, seu coração bate forte e a sensação não é

agradável. As Meninas-senhora se calam na sala, de mãos

dadas, seguram o mesmo terço de sementes de urucum. A

Menina-corpão derrama uma lágrima deixando-a escorrer

pelo seu rosto até o queixo. As Meninas-sereia param de

colher na horta, se entreolham com pesar e tristeza sem

saber o motivo ao certo. Seu amigo tem o mesmo

sentimento de sua mãe, com uma diferença, ele sente o

toque de sua mão.

Tudo isso veio em flashes na mente de Ducar, feito a

cena de Cinema Paradiso, quando as imagens escapam da

sala de projeção para a parede da praça da cidade. O

projétil dilacera a sua orelha direita, despedaçando-a com

violência. O sangue aquece o seu rosto, cegando-o por

alguns instantes, a dor é neutralizada pela surdez e Ducar

perde mais um sentido, o paladar, pois sua boca abriga o

liquido vampiresco.
Depois de várias cirurgias plásticas para modelar a

orelha, feitas por um médico famoso na América do Sul, ele

se recupera. Apenas uma coisa intrigou seus pais. Após

tirar os curativos e encher de orgulho toda a equipe médica

pela perfeição da operação, Ducar amarrou um lenço de

algodão branco em torno de sua cabeça, escondendo a

sua orelha.

“O que é isso, filho?”

“Vou ficar um tempo assim, pai! Será uma

homenagem a Van Gogh.

FIM

Para minha mãe Ayroza.

 
           Crédito  

Poesia:  Somos  todos  anjos-­‐  Eduardo  Lapinha  

Musica  Let  it  Be:  “Let  It  Be”  é  uma  canção  dos  Beatles  composta  por  Paul  McCartney,  
1. Don Juan DeMarco é um filme estadunidense de 1995, do gênero
romance, dirigido por Jeremy Leven e produzido por Francis Ford Coppola,
Michael De Luca e Fred Fuchs. Wikipédia
2.
A Festa de Babette: Babettes gæstebud é um filme dinamarquês de 1987, do
gênero drama, dirigido por Gabriel Axel, e com roteiro baseado em conto de
Karen Blixen. Wikipédia

Poema Ismália: Alphonsos de Guimaraens (1870/1921)

1. Ensina-me a viver:
Harold and Maude é um filme estadunidense
de drama e romance de 1971 dirigido por Hal Ashby, com roteiro de Colin Higgins e distribuído
pela Paramount Pictures. Wikipédia
2. Poeminha do contra: Mario de Miranda Quintana foi um poeta, tradutor e
jornalista brasileiro. Nasceu em Alegrete na noite de 30 de julho de 1906 e
faleceu em Porto Alegre, em 5 de maio de 1994. [Biografia de Mario Quintana]

Nó na Garganta Filme (The Butcher Boy)


1997
de Neil Jordan
com Stephen Rea, Fiona Shaw Produção: Warner Bros/Geffen Pictures

Musica: Mother- Roger Waters

Les triplettes de Belleville (br: As bicicletas de Belleville / pt: Belleville Rendez-


Vous) é um filme longa-metragem de animação franco-belga-canadense dirigido por
Sylvain Chomet, e que estreou em 18 de maio de 2003. O filme concorreu ao Oscar de
melhor filme de animação em 2004.
1. Quase Famosos (Almost Famous) é um filme estadunidense de
2000, do gênero comédia dramática e musical, escrito e dirigido por Cameron
Crowe. A pré-estreia mundial de Almost Famous aconteceu no Festival de
Toronto, no Canadá. Wikipédia Dreamworks Pictures.

Ronda da Noite: Filme sobre Rembrandt, dirigido por


Peter Greenaway.

Agradecimento

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