Você está na página 1de 26

CAPÍTULO 5

5.1–18

5 1 Depois destas coisas, havia uma festa dos judeus, e Jesus subiu para Jerusalém. 2 Ora, em
Jerusalém, perto da Porta das Ovelhas, um tanque, chamado, em hebraico, de Betesda, o qual tem
cinco pórticos. 3 Nestes, havia uma multidão de inválidos, cegos, coxos, paralíticos. 5 Ora, havia um
certo homem ali que tinha sido afligido com sua enfermidade por trinta e oito anos. 6 Quando Jesus
viu este homem deitado ali, e quando soube que tinha estado nesta condição por um longo tempo,
ele lhe disse: “Você quer ser curado?” 7 O homem enfermo lhe respondeu: “Senhor, não tenho
ninguém que109 me ponha no tanque quando a água é agitada; e, enquanto estou vindo, outro passa
à minha frente.” 8 Então Jesus lhe disse: “Levante-se, pegue sua esteira e ande.” 9 Imediatamente o
homem foi curado, pegou sua esteira e saiu andando.
Aquele dia era sábado. 10 Por isso os judeus estavam dizendo ao homem curado: “Hoje é sábado; é
contra a lei você carregar sua esteira.” 11 Mas ele lhes respondeu: “O homem que me curou, foi ele
quem me disse: ‘Pegue sua esteira e ande’.” 12 Eles lhe responderam: “Quem é o homem que lhe disse
‘pegue [sua esteira] e ande’?” 13 Ora, o homem curado não sabia quem era Jesus, pois Jesus tinha
saído rapidamente da multidão que estava naquele lugar.
14 Depois destas coisas, Jesus se aproximou dele no templo e lhe disse: “Veja aqui, você foi curado.
Não continue mais em pecado, ou algo pior pode lhe acontecer.”110 15 O homem voltou e disse aos
judeus que foi Jesus quem o tinha curado. 16 E por essa razão os judeus ficaram perseguindo Jesus,
porque ele estava fazendo estas coisas no sábado. 17 Mas ele lhes respondeu: “Meu Pai está
trabalhando até agora, e eu também estou trabalhando.” 18 Então, por esta razão os judeus tentaram
ainda mais matá-lo, porque não somente quebrou o sábado, mas também chamou Deus de seu
próprio Pai, fazendo-se igual a Deus.

5.1. A expressão depois destas coisas (μετὰ ταῦτα, que ocorre em 3.22; 5.1,14; 6.1; 7.1;
13.7; 19.38 e 21.1) não indica necessariamente um longo tempo depois (este nem poderia ser o
significado em 19.38). Entretanto, distingue-se da expressão depois disto (μετὰ τοῦτο, que se
encontra em 2.12; 11.7,11; 19.28; em todas estas passagens se refere a eventos que ocorrem
logo depois) por ser mais indefinida. Simplesmente não dá indícios sobre a duração do
período que se passou desde os últimos eventos registrados.
Desta forma, não sabemos precisamente quando ocorreu o grande milagre ao qual se
volta nossa atenção neste capítulo. Sabemos que foi quando havia uma festa dos judeus.
Mas este indício é um tanto indefinido. A qual festa se refere o autor?

109
Quanto a ἴνα, veja a seção correspondente na Introdução.
110 Literalmente: “para que algo pior não ocorra a você”.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 1
Ao analisar esta questão, pode ser útil a tabela abaixo das festas judaicas que devem ser
consideradas neste caso. Os nomes dos meses, é claro, são aproximados; isto é, não
correspondem exatamente aos do calendário religioso judaico. O período coberto se
estende do batismo de Cristo até o derramar do Espírito Santo.

Março Abril Maio Outubro Dezembro


Durante o ano 26
Dedicação
Durante o ano 27
Purim Páscoa Pentecostes Tabernáculos Dedicação
(cf. 4.35)
Durante o ano 28
Purim Páscoa Pentecostes Tabernáculos Dedicação
(5.1?)
Durante o ano 29
Purim Páscoa Pentecostes Tabernáculos Dedicação
(6.4) (7.2,37) (10.22–23)
Durante o ano 30
Purim Páscoa (12.1; Pentecostes
13.1; 19.14) (At 2.1)

Ao examinarmos esta tabela, fica óbvio que a festa indicada em 5.1 não pode ter ocorrido
no ano 26 ou no 27, pois 4.35 já nos posiciona em dezembro de 27.
Já foi sugerido que a Páscoa mencionada em 6.4 é a do ano 28; por conseguinte, a festa de
5.1 seria a do Purim daquele ano. Contra esta opinião, apresentamos as seguintes objeções:
(1) Após deixar a Judeia pelo motivo declarado em 4.1–3,43–44, Jesus não teria retornado
àquela região tão cedo, a menos que visasse participar de uma das três festas de
peregrinação.
(2) Purim não era uma festa de peregrinação. Era celebrada nas sinagogas locais; e nesta
ocasião o livro de Ester era lido ali com grande júbilo.
(3) A Páscoa mencionada em 6.4 nos leva ao final do grande Ministério da Galileia. Ora,
se esta Páscoa tivesse ocorrido no ano 28, então todo este longo ministério – durante o qual
tantos eventos ocorreram – precisaria se encaixar em um período de quatro meses. Isso é
impossível.
Ora, se a festa de 5.1 não foi o Purim do ano 28 e se (como fica claro em 6.1: depois destas

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 2
coisas) ela não pode ser a Páscoa de 6.4, então esta última tem de ser datada no ano 29.
Chegamos à conclusão, pois, que a festa de 5.1, se era uma das três festas de peregrinação
judaicas,111 deve ter sido a Páscoa ou Pentecostes ou Tabernáculos do ano 28. Destas três, a
expressão festa dos judeus (5.1) é usada em outros textos do quarto Evangelho para indicar a
Páscoa (6.4) ou a Festa dos Tabernáculos (7.2). Além disso, em ambos os casos, o original
traz o artigo definido antes do substantivo festa. Portanto, a omissão deste artigo aqui em
5.1, segundo a melhor evidência textual, não decide a questão para nenhum dos lados.
Concluímos, então, declarando nossa opinião, que esta festa sem nome: a) era uma das
três festas de peregrinação; b) deve ser datada no ano 28; e c) era, com toda a probabilidade, a
Páscoa ou a Festa dos Tabernáculos (sem excluir a possibilidade de que fosse Pentecostes). A
favor da Páscoa, às vezes se apresentam dois argumentos adicionais: 1) É apoiada pela
tradição de Irineu; e 2) Era a única festa da qual os israelitas eram obrigados a participar. No
entanto, a evidência não é inteiramente conclusiva.
Lemos que foi Jesus quem compareceu à festa: e Jesus subiu para Jerusalém. O capítulo
inteiro não informa nada sobre os seus discípulos. Isso não prova que eles não o
acompanharam. É possível que, aqui, como em outras passagens (por exemplo, em 3.22, cf.
4.2), o grupo inteiro tenha ido, embora apenas o nome do líder seja mencionado (quanto à
expressão “subiu para Jerusalém”, veja 2.13).
2. Ora, em Jerusalém, perto da Porta das Ovelhas, um tanque, chamado, em
hebraico, de Betesda, o qual tem cinco pórticos. A Porta das Ovelhas (atual Santo
Estêvão?) era provavelmente chamada assim porque passavam por ela muitas ovelhas para
serem sacrificadas no pátio do templo, que ficava próximo. Não distante desta porta, havia
um tanque. Popularmente, este tanque é conhecido como Betesda (casa de misericórdia),
mas a leitura Bethzatha (aramaico: casa da oliveira?) tem melhor atestação textual.
Depois de muita especulação quanto à identidade deste tanque, sua localização foi
finalmente estabelecida a contento da maioria dos estudiosos. O tanque (ou, na verdade, o
reservatório que o formou) foi descoberto em 1888, em conexão com a restauração da igreja
de Santa Ana, no nordeste de Jerusalém. Um afresco desbotado na parede retrata um anjo
“mexendo” na água. Portanto, parece que este tanque era reconhecido como Bethzatha na
igreja primitiva. Na época do nosso Senhor, tinha cinco pavilhões ou colunatas cobertas,
onde os doentes podiam descansar, protegidos do tempo inclemente.112

111 É di"cil crer que, neste momento, Jesus teria ido a Jerusalém para participar de uma das festas
menores, como a da Oferta de Madeira ou até a das Trombetas, embora alguns comentaristas também
as favoreçam.
112 Veja J. Jeremias, Die Wiederentdeckung von Bethesda (Gö#ingen, 1949). Também WHAB, p. 99 e

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 3
3. Nestes cinco pavilhões ou divisões, havia uma multidão de inválidos de todos os
tipos; particularmente: cegos, coxos, paralíticos; isto é, atrofiados ou paralisados (ξηρός,
literalmente secar; logo, atrofia por doença; cf. Mc 3.3; Lc 6.6). Aparentemente, o doente
que Jesus curou era um destes atrofiados. É digno de nota que não apenas os coxos e
paralíticos buscavam cura neste tanque, mas também os cegos. Será que algum cego
recebeu visão no tanque de Betesda? Ou será que o bene"cio recebido pelo aleijado levou o
cego a imaginar que também poderia haver cura para ele?
Depois de 5.3, algumas versões apresentam os versos 3b e 4: “[… esperando que se
movesse a água. Pois um anjo descia em certa época ao tanque e agitava a água; quem fosse o
primeiro a entrar no tanque depois que a água fosse agitada, era curado de qualquer doença
que tivesse]”. Nenhum dos melhores e mais antigos manuscritos contém estas palavras.
Assim sendo, não foram mantidas em ARV.113 Por outro lado, Tertuliano
(aproximadamente 145–220 d.C.) já conhecia esta passagem, pois declara: “Um anjo, por
sua intervenção, tinha o hábito de agitar o tanque de Betesda. Os que se lamentavam por
não terem boa saúde costumavam aguardá-lo; pois quem fosse o primeiro a descer às águas,
cessava de se lamentar após o banho” (Sobre o Batismo §5).
Parece-nos que abaixo está uma posição razoável quanto ao relato, particularmente em
relação às palavras omitidas nos melhores manuscritos antigos:
(1) É provavelmente mais di"cil explicar como estas palavras foram omitidas dos
melhores manuscritos, se realmente faziam parte do texto original, do que explicar como
entraram no texto (por exemplo, como glosa marginal para explicar a agitação da água,
mencionada em 5.7, atribuindo-a à visita periódica de um anjo).
(2) Com base no texto encontrado nos melhores manuscritos (ou seja, com o verso 4
omitido), não há necessidade de crer que a agitação na água era devida a alguma causa
sobrenatural. Além disso, a ideia de que o primeiro a entrar no tanque, após a agitação, seria
curado não é apresentada aqui como sendo necessariamente a crença do autor do quarto
Evangelho, nem como ensino do Espírito Santo, mas como a opinião do enfermo (4.7b).
(3) Por outro lado, é certamente verdade que não devemos descartar a possibilidade da
atividade angélica sobrenatural. Nunca se deve esquecer que uma interpolação da margem
para o texto pode estar correta. Na época do ministério terreno de nosso Senhor, os anjos
ficaram preeminentes repetidas vezes, e energias e poderes incomuns desempenham um
papel importante.

Quadro 17B.
113 Veja mais sobre este assunto em A. T. Robertson, An Introduction to the Textual Criticism of the New
Testament (Nova York, 1925), p. 154, 183, 209.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 4
(4) Contudo, devemos salientar que o milagre que ocorre aqui quando este doente é
curado não é atribuído a qualquer virtude medicinal deste tanque particular, nem a
qualquer atividade angélica, mas ao poder e amor de Jesus! De fato, ao curar este homem, o
Senhor nem faz uso do tanque (contraste 9.7; 2 Rs 5.10,14). É neste milagre que devemos
colocar toda a ênfase; não na questão sobre se ocorriam ou não constantes milagres neste
tanque.
5. Ora, havia um certo homem ali, isto é, entre os inválidos havia um homem que
atraiu a atenção de Jesus mais que os outros. Era um homem que tinha sido afligido com
sua enfermidade por trinta e oito anos. Isso, é claro, não significa que ele estava aqui
neste tanque todo este tempo. A razão pela qual João selecionou este milagre para inclusão
em seu Evangelho já foi declarada (veja a seção Leitores e Propósito).
6. Quando Jesus viu este homem deitado ali, e quando soube que tinha estado nesta
condição por um longo tempo. Jesus viu este homem. Sem dúvida, fitou-o com um olhar
de compaixão (cf. Mc 8.3; 10.21), sondando a alma dele. O Senhor sabia que o inválido estava
naquela condição lamentável há muito tempo. Onde Jesus obteve tal conhecimento? Há três
possibilidades, nenhuma das quais deve ser descartada neste caso:
(1) Alguém lhe deu esta informação de modo perfeitamente natural e humano. Neste
caso, deveríamos traduzir: “E quando foi informado…”.
(2) O Pai pode ter revelado isso a ele.
(3) A natureza divina de Cristo pode ter compartilhado este conhecimento à sua natureza
humana, de um modo que não compreendemos.
Sabendo, pois, que esse homem estava nesta condição há muito tempo, Jesus falou com
ele. Ele lhe disse: “Você quer ser curado? Será que esta pergunta indica que a alma deste
homem tinha descido a um estado mórbido, no qual perdera até a vontade de ser curado? Se
este era ou não o caso, com toda a probabilidade estas palavras foram ditas para levá-lo a
reconhecer abertamente sua profunda miséria e sua incapacidade de se livrar dela. Assim,
por sua vez, esta confissão poderia fazer sua recuperação milagrosa se destacar em letras
douradas. A pergunta de Jesus também contém uma promessa de ajuda.
7. O homem enfermo lhe respondeu: “Senhor, não tenho ninguém que me ponha
no tanque quando a água é agitada; e, enquanto estou vindo, outro passa à minha
frente. Parece que a regra neste tanque era “cada um por si”. Ninguém jamais ajudou este
inválido com limitado poder de locomoção, em razão de sua aflição "sica. Ele nunca
conseguia ir rápido o suficiente: alguém sempre descia no tanque antes dele. Quanto a isso,
se hoje as coisas são diferentes haveria alguém para ajudar: um atendente ou um enfermeiro
–, não se deve esquecer que tais condições atuais melhores, quando existem, se devem, em
grande parte, à influência do coração amoroso e compassivo de Cristo, tal como revelado na

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 5
Escritura, incluindo o capítulo atual.
Como já foi comentado, a causa da agitação da água pode ter sido sobrenatural ou natural.
Se era natural, o borbulhar repentino parece ser causado por uma fonte intermitente que
alimentava o tanque. Em geral, pode-se dizer que é comum que pessoas afligidas por
diversas doenças se juntem ao redor de fontes minerais. Pense nas fontes ao redor de
Tiberíades, ou, nos Estados Unidos, nas águas de Hot Springs, Arkansas, que já eram
creditadas com virtudes curadoras antes de os espanhóis ali chegarem.
8. O doente reclamou, sem qualquer esperança, que alguém sempre descia ao tanque
antes dele. Quando fez isso, será que a luz de compaixão e encorajamento que brilhava no
olhar de Jesus reviveu um pouco da sua esperança, especialmente depois de ouvir: “Você
quer ser curado?” Será que ocorreu ao inválido que, talvez na próxima agitação da água, este
desconhecido poderia estar disposto a colocá-lo no tanque? Que surpresa agradável ele
recebeu quando, de repente, aquele que cura lhe falou palavras inesquecíveis. Então Jesus
lhe disse: Levante-se, pegue sua esteira e ande.114 Que desafio isso foi para um homem
que acabara de confessar sua completa incapacidade! A esteira a que Jesus se refere
(κράβαττος, cf. o latim grabatus) era uma cama de campanha, um colchão de palha, uma
esteira ou um colchão fino. Foi dito ao homem para pegá-la e começar a caminhar.
9a. Imediatamente o homem foi curado. Ele obedeceu e foi curado imediatamente
(εὐθέως). O autor do quarto Evangelho, ao contrário de Marcos, raramente usa expressões
como imediatamente, logo, no mesmo instante (também em 6.21 e 8.27; para εὐθύς, veja
13.30,32; 19.34). Isso indica que ele deseja dar ênfase especial ao caráter repentino e
completo da cura. Uma vez mais a glória do Filho de Deus é revelada. Esta cura não foi
gradual nem parcial; nem era uma falsa doença, podemos adicionar (como alguns supõem,
não obstante). Todos os “curandeiros” deveriam estudar de perto este maravilhoso relato.
Pela palavra de Jesus, novo vigor e nova força surgiram por todo o corpo deste homem; ele
pegou sua esteira e saiu andando.
9b–10. Aquele dia era sábado. Por isso os judeus estavam dizendo ao homem
curado. O dia em que Jesus curou este homem era sábado. Assim, desenvolve-se uma
controvérsia entre Jesus e os judeus (para o significado específico deste termo no quarto
Evangelho, veja o comentário a 1.19). Os fariseus impuseram sobre a lei de Deus suas
próprias distinções detalhistas e restrições rabínicas. Isto é ainda mais verdade quanto ao
sábado, como já mostramos em 3.1. Em vez de considerá-lo como um dia de consagração
especial para realizarem obras de gratidão pela salvação dada por Deus, eles o entendiam

114 Dos três imperativos, o primeiro é um Presente aorístico; o segundo, Aoristo; o terceiro, Presente
continuativo (ou durativo): continue caminhando.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 6
como um dia para cessar todo trabalho (ordinário), visando alcançar a salvação que cada
um deve merecer. Para eles, o sábado significava ociosidade; para Cristo, significava
trabalho. Contudo, para eles era uma aflição; para Cristo, descanso. Na opinião deles, o
homem foi feito para o sábado; Jesus sabia que o sábado tinha sido feito para o homem.
Portanto, os judeus disseram ao homem curado: Hoje é sábado; é contra a lei você
carregar sua esteira. Referiam-se, sem dúvida, a Êxodo 20.10 e, mais especificamente, a
Jeremias 17.19–27 (“Assim diz o SENHOR: Guardai-vos por amor da vossa alma, não
carregueis cargas no dia de sábado, nem as introduzais pelas portas de Jerusalém; não tireis
cargas de vossa casa no dia de sábado, nem façais obra alguma…”) e a Neemias 13.15
(“Naqueles dias, vi em Judá os que pisavam lagares ao sábado e traziam trigo que
carregavam sobre jumentos; como também vinho, uvas e figos e toda sorte de cargas, que
traziam a Jerusalém no dia de sábado; e protestei contra eles por venderem mantimentos
neste dia”). Nestas passagens, todavia, a referência é claramente ao tipo de carga conectada
à realização de trabalho ordinário para ganho, com trocas e comércio. Ao proibir um
homem curado de carregar sua esteira, como se isto fosse comparável a uma carga que ele
estivesse levando ao mercado para vender e ter lucro – eles estavam distorcendo a lei de
Deus.
11. A resposta do homem curado foi objetiva. Mas ele lhes respondeu: O homem que
me curou, foi ele quem me disse: ‘Pegue sua esteira e ande’. Seu raciocínio foi o
seguinte: alguém que realiza um ato tão glorioso – dando instantaneamente completa
recuperação a um indivíduo murcho, cujo corpo estava naquela condição de atrofia por 38
anos! – tem direito de ordenar o que a pessoa curada deve fazer, mesmo no sábado.
12. Eles lhe responderam: “Quem é o homem (isto é, o cara, em um tom de zombaria)
que lhe disse ‘pegue [sua esteira] e ande’? Eles não perguntam: “Quem curou você?”. Eles
não estão nem um pouco interessados na recuperação gloriosa deste homem. Estão
interessados apenas nos regulamentos minuciosos criados pelos homens. Em seu grande
zelo pela manutenção destes, deixam de ver o caráter completamente ridículo de sua
queixa: não percebem que, afinal de contas, o homem carregava apenas uma esteira (veja
antes em 5.8). Portanto, até omitem esta palavra no original grego. Na opinião deles, o
homem cometia o seguinte pecado: a) ele havia erguido algo, não importa o que fosse; e b)
ele estava caminhando com aquilo! Foram lógicos, porém, ao tentar vincular o ato terrível
àquele que o ordenou.
13. Ora, o homem curado não sabia quem era Jesus, pois Jesus tinha saído
rapidamente da multidão que estava naquele lugar. O homem curado não conhecia a
identidade de seu benfeitor, pois imediatamente após realizar o milagre Jesus se retirou da
multidão de visitantes que costumava se formar aos sábados. Será que Jesus se retirou para

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 7
evitar uma demonstração pública? Ou, talvez, para enfrentar diretamente os líderes
religiosos, e não seus seguidores? Ou, como outros já sugeriram, para dar uma
oportunidade à pessoa curada de ser fortalecida em suas convicções, ao ser forçada a
expressá-las sem ajuda de ninguém? Qualquer que tenha sido a razão ou combinação de
razões, permanece o fato de que o homem curado era incapaz de indicar quem tinha
mudado sua tristeza em alegria.
14. Depois destas coisas, Jesus se aproximou dele no templo e lhe disse: Veja aqui,
você foi curado. Não continue mais em pecado, ou algo pior pode lhe acontecer.
Quanto à expressão depois destas coisas, veja o comentário sobre 5.1. Jesus se aproximou dele
no templo; provavelmente no pátio dos gentios. Não se pode estabelecer a partir do texto se
este encontro foi no mesmo dia ou no seguinte, ou ainda mais tarde. Nem há no texto ou no
contexto algo que indique o propósito pelo qual o homem curado foi ao templo. Há diversos
motivos – rigorosamente religiosos ou não – pelos quais os judeus iam à casa de Deus, em
grande número, passar um tempo ali. Portanto, não é possível ter certeza que a presença do
homem no templo, nesta ocasião particular, fosse para trazer uma oferta de gratidão a Deus
por sua cura.
Por outro lado, parece muito óbvio o motivo pelo qual Jesus continuou a tratar com ele.
Em todo o relato da cura deste homem (5.1–13), nada se falou a respeito de uma mudança
em sua condição espiritual. Seu corpo foi curado. Não nos surpreende que aquele que cura
procure, agora, restaurar sua alma.
Assim sendo, Jesus se dirige a ele com estas palavras: “Veja aqui, você foi curado. Não
continue mais em pecado, ou algo pior pode lhe acontecer”. Em nossa interpretação desta
passagem, discordamos daqueles comentaristas – e há muitos! – que concluem que o
Senhor queria dizer: “Há mais de 38 anos você cometeu um pecado. Em consequência,
tornou-se fisicamente deformado e paralisado. Agora eu o exorto a não pecar de novo, ou
algo pior poderá lhe acontecer”. Pelo contrário, o tempo presente do verbo (μηκέτι
ἁμάρτανε) – de forma que traduzimos “não continue mais em pecado” – indica que Jesus
não se refere ao que ocorreu supostamente há mais de 38 anos, mas à condição presente do
homem.115 Neste momento, ele ainda não estava reconciliado com Deus. Jesus sabia disso.
Assim, ele o exorta para que não continue nesta condição. Caso contrário, está reservado
para ele algo pior que a doença "sica da qual foi livrado tão recentemente. Não é provável
que, com a expressão “coisa pior”, Jesus esteja indicando a punição eterna? Disto fica claro
que o relato não traz uma única palavra sobre a causa da doença "sica do homem. Esta
explicação também se harmoniza com as palavras de Cristo em 9.3.

115 Cf. F. W. Grosheide, op. cit., p. 352–353. Concordamos com ele.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 8
15. Com gratidão em seu coração, o homem voltou e disse aos judeus que foi Jesus
quem o tinha curado. Contudo, observamos uma diferença interessante entre a pergunta
dos líderes religiosos judeus e a resposta dada pelo homem. Eles tinham perguntado:
“Quem é o homem que lhe disse ‘pegue [sua esteira] e ande’ ”. Porém, ele respondeu: “Foi
Jesus quem me curou”. Ele coloca a ênfase onde é devida; a saber, na cura. Os judeus tinham
demonstrado bem pouco interesse nela.
16. Ao direcionar sua atenção a Jesus, a ira das autoridades judaicas se tornou tão intensa
que determinaram em seus corações persegui-lo até a morte. E por essa razão os judeus
ficaram perseguindo Jesus. O verbo se refere a uma atividade hostil contínua. Tornou-se
cada vez mais definida e determinada, até finalmente pregar Cristo na cruz. Quanto ao
caráter progressivo desta perseguição, veja o comentário sobre 6.41. O motivo deste ódio é
declarado nestas palavras: porque ele estava fazendo estas coisas (curando o homem e
ordenando que ele tomasse seu leito e andasse) no sábado.
17. Será que, neste momento, os judeus passaram a falar pessoalmente com Jesus,
acusando-o de violar o sábado? Ou será que o Senhor, conhecendo seus corações, dirigiu-se
a eles primeiro? De qualquer forma, Jesus se defende indicando que, ao realizar esta obra de
misericórdia no sábado, agiu em conformidade com o exemplo de seu próprio Pai (observe
meu Pai; e veja o comentário sobre 1.14, sobre a natureza da filiação de Cristo) e em
conformidade com o mandado que recebera dele. Será que os judeus realmente defendiam
que a essência do sábado é a ociosidade e que todo trabalho naquele dia é errado? Mas assim
não estariam acusando o próprio Deus de violar o sábado? Se até este momento o Pai de
Jesus está realizando sua obra de preservação e redenção, como o Filho poderia agir
diferente se permanece no relacionamento mais próximo possível dele (5.19–23)? Afinal de
contas, o Pai e o Filho estão envolvidos em uma única tarefa. Daí, lemos: Mas ele lhes
respondeu: “Meu Pai está trabalhando até agora, e eu também estou trabalhando.
18. Então, por esta razão (διὰ τοῦτο, como em 4.16), os judeus tentaram ainda mais
matá-lo (isto é, já estavam determinados a fazê-lo morrer), porque não somente quebrou
o sábado (na estimativa deles, ele era um violador de sábados; mas agora essa determinação
se tornou ainda mais intensa, ativa e enérgica; o motivo adicional era:), mas também
chamou Deus de seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus.
Com as palavras mas também chamou Deus de seu próprio Pai, fazendo-se igual a Deus, mais
uma vez o autor deixa claro o propósito de seu Evangelho. Esse propósito era fortalecer os
crentes de modo que continuassem a crer que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e que, ao
crerem, pudessem continuar a ter vida em seu nome (20.30–31).
Além desta posição quanto ao sábado, foi sua reivindicação de ser igual a Deus que levou
Jesus a ser pregado na cruz. Quando as autoridades judaicas ouviram Jesus chamar Deus de

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 9
“meu Pai”, elas não fizeram o que muitas pessoas modernas fazem. Não tentaram abrandar
o caráter da filiação de Cristo. Compreenderam imediatamente que Jesus reivindicara para
si a divindade no sentido mais alto possível para esse termo. Ou esta reivindicação era a
blasfêmia mais perversa, a ser punida com a morte; ou então era a verdade mais gloriosa, a
ser aceita pela fé. A própria natureza do sinal que Jesus acabara de realizar deveria ter levado
esses líderes religiosos a adotarem essa última alternativa. Em vez disso, escolheram a
primeira.

Síntese de 5.1–18
Veja o esboço inicial. O Filho de Deus rejeitado na Judeia, como consequência de curar um
homem em Betesda no sábado e de reivindicar igualdade com Deus.
Por oito meses inteiros, Jesus realizou seu ministério de ensino e cura em Jerusalém e na
Judeia. Então, após permanecer apenas dois dias em Samaria, entrou na Galileia. Também
aqui já realizara diversos milagres: um deles foi a cura do filho do oficial do rei. Foi um sinal
muito marcante, tendo em vista que foi realizado a uma distância de quase 25 quilômetros
da moradia da criança doente. O grande Ministério Galileu já transcorria há pelo menos
quatro meses. Durante o desenrolar deste ministério, o Senhor cumpria a profecia de Isaías
9.1: “Mas para a terra que estava aflita não continuará a obscuridade. Deus, nos primeiros
tempos, tornou desprezível a terra de Zebulom e a terra de Na"ali; mas, nos últimos,
tornará glorioso o caminho do mar, além do Jordão, Galileia dos gentios”.
A Galileia estava cheia de excitação e entusiasmo, mas não da verdadeira fé salvadora.
Ora, foi durante o curso dessa obra na província do norte que Jesus decidiu ir a uma das três
festas de peregrinação em Jerusalém. Isso ocorreu durante o ano 28. Em Jerusalém, ele
visitou o tanque de Betesda, onde curou um homem que estava paralítico há 38 anos.
Foi no sábado que Jesus disse a este homem doente: “Levante-se, pegue sua esteira e
ande”. O homem obedeceu e recebeu completa cura #sica no mesmo instante. O Senhor
também proveu para ele espiritualmente, exortando-o ao encontrá-lo no templo: “Não
continue mais em pecado, ou algo pior pode lhe acontecer”.
Quando as autoridades judaicas viram o homem carregando seu leito no sábado, em
obediência à ordem de Cristo, criticaram tanto ele como seu benfeitor. Jesus, contudo,
respondeu: “Meu Pai está trabalhando até agora, e eu também estou trabalhando”. Desta
forma, os líderes religiosos de Jerusalém fomentaram um plano para matar Jesus, por duas
razões: violação do sábado e blasfêmia (fazer-se igual a Deus).

5.19–30

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 10
19 Jesus respondeu e disse-lhes: “Muito solenemente lhes asseguro: o Filho não pode fazer nada de
si mesmo, mas somente o que ele vê o Pai fazendo; pois tudo o que ele faz, isso o Filho faz
semelhantemente. 20 Pois o Pai ama o Filho e lhe mostrou tudo o que ele mesmo está fazendo, e
maiores obras do que estas lhe mostrará, para que vocês fiquem admirados. 21 Pois assim como o Pai
ressuscita os mortos e lhes dá vida, assim também o Filho dá vida a quem ele quiser. 22 Pois o Pai não
julga ninguém, mas confiou todo julgamento ao Filho, 23 a fim de que todos honrem o Filho assim
como honram o Pai. Aquele que não honra o Filho não honra o Pai que o enviou.
24 “Muito solenemente lhes asseguro116 que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me
enviou tem vida eterna e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida. 25 Muito
solenemente lhes asseguro que a hora está chegando – sim, já chegou! – em que os mortos ouvirão a
voz do Filho de Deus, e aqueles que ouvirem viverão. 26 Pois assim como o Pai tem vida em si
mesmo, assim ele concedeu ao Filho também ter vida em si mesmo 27 e lhe deu autoridade para agir
como Juiz, porque é o Filho do homem. 28 Parem de se surpreender com isso, pois117 a hora está
chegando em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a sua voz 29 e sairão: aqueles que tiverem
feito o bem, para a ressurreição da vida, e os que tiverem praticado o mal, para a ressurreição da
condenação. 30 Não posso fazer nada de mim mesmo; assim como ouço eu julgo, e meu juízo é justo,
porque não procuro minha própria vontade, mas a vontade daquele que me enviou.”

5.19–30

5.19. Em vez de tentar moderar de algum modo sua declaração anterior (v. 17), a qual
havia suscitado a ira dos judeus, Jesus a fortalece por meio: a) de uma fórmula introdutória
majestosa: Muito solenemente lhes asseguro (veja comentário sobre 1.5); e b) do restante
do conteúdo dos versos 19 a 23. A passagem sob análise pode ser parafraseada assim: “Vocês,
judeus, me acusam de transgredir a ordenança do sábado do Pai e de blasfemar seu nome
por reivindicar igualdade com ele?” Essa acusação é absurda, pois, neste caso, a vontade do
Filho seria separada (não apenas distinta) da vontade do Pai e até mesmo se oporia àquela.
Todavia, de fato, o Filho não pode fazer nada (οὐ δύναται… ποιεῖν… ουδέν) de si mesmo,
mas somente o que ele vê o Pai fazendo; pois aqui, sem dúvida, está o padrão perfeito
daquilo que frequentemente se vê na terra; a saber, que tudo o que ele faz, isso o Filho faz
semelhantemente (aqui, de fato, há correspondência sem falhas).
20–21. “Tenho o direito de dizer isso, pois (γάρ), sendo eu mesmo o Filho, sei que o Pai
ama (filei/; veja os comentários sobre 21.15–17) e lhe mostrou tudo o que ele mesmo está
fazendo (continuamente) ao cumprir seu plano eterno de redenção. A realização de
milagres por exemplo, a cura deste homem no tanque – também pertence ao cumprimento
deste plano eterno. E maiores obras do que estas maravilhas de curar os doentes (o Pai)

116
Quanto a ὅτι nos versos 24 e 25, veja a seção correspondente na Introdução.
117 Quanto a ὅτι, veja a seção correspondente na Introdução.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 11
lhe mostrará (ao Filho) – a saber, trazer à vida os que estão mortos e pronunciar juízo
sobre todos –, para que vocês, já maravilhados com o milagre no tanque, realmente
fiquem admirados. Pois assim como o Pai ressuscita os mortos e lhes dá vida (tanto aos
espiritualmente mortos quanto aos fisicamente mortos, estes no Dia do Juízo), assim
também o Filho, sendo igualmente soberano, dá vida a quem ele quiser.
22–23. Pois o Pai não julga ninguém, mas confiou todo julgamento ao Filho. Ou seja,
o Pai nunca age sozinho (separado do Filho) ao pronunciar um juízo, mas confiou todo
julgamento ao Filho (tanto no presente, no sentido de 3.18b–19, quanto no futuro, no
sentido de Mt 25.31ss.). Desta forma, o Pai sempre opera por meio do Filho, a fim de que
todos honrem o Filho assim como honram o Pai. Isto é, a fim de que estas duas pessoas
que são iguais em essência (5.17–18) e em obras (5.19–22) também o sejam em honra. Vocês,
judeus incrédulos, que determinaram em seus corações matar o Filho (5.18), não devem
supor que podem honrar o Pai: aquele que não honra o Filho não honra o Pai que o
enviou.
24–30. Ressuscitar os mortos e pronunciar juízo são as duas maiores obras que o Pai
atribuiu ao Filho (veja os v. 20b–22). Quanto aos termos “julgar” e “julgamento”, usados nos
versos 24, 27 e 29, veja nossos comentários a 3.17–19. No parágrafo atual, nos é dito:
A. Como o Filho realiza esta obra na esfera espiritual, no presente (v. 24–25); e
B. Como se explica que o Filho é capaz de realizar esta dupla missão (ressuscitar os mortos
e pronunciar juízo) no presente e no futuro, e isto em ambas as esferas (versos 26–27).
C. Como ele completará esta tarefa na esfera !sica, no futuro (v. 28–29). Entre essas duas
passagens, há outra que demonstra
D. A passagem final (v. 30), com base nos três pontos acima, reafirma a unidade perfeita
do Filho com aquele que o enviou.
As subdivisões A e C (v. 24–25 e 28–29) se distinguem claramente pelas palavras “hora
está chegando – sim, já chegou!” do verso 25 e pelas palavras “a hora está chegando” do verso
28 (porém não se fala que “já chegou”). Sendo assim, a primeira passagem lida com a
primeira ressurreição, a saber, a da alma; a segunda subdivisão descreve a segunda
ressurreição, a saber, a do corpo. Encontramos exatamente a mesma sequência em outra
obra do mesmo autor (João), ou seja, no livro de Apocalipse. Ali o primeiro evento é
analisado em 20.4–6; o segundo, em 20.11ss.118 Observe o paralelo:

Quarto Evangelho Apocalipse

A. A primeira ressurreição A. A primeira ressurreição

118 Veja nosso livro More than Conquerors (6ª ed.; Grand Rapids, 1952), p. 231–232.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 12
Muito solenemente lhes asseguro que … Vi ainda as almas daqueles que tinham
quem ouve a minha palavra e crê naquele sido decapitados … e dos que não adoraram
que me enviou tem vida eterna… passou a besta, nem sua imagem, e não receberam
da morte para a vida. Muito solenemente a marca em sua fronte e em sua mão; e elas
lhes asseguro que a hora está chegando – viveram e reinaram com Cristo durante mil
sim, já chegou! – em que os mortos anos… Esta é a primeira ressurreição.
ouvirão a voz do Filho de Deus, e aqueles
que ouvirem viverão.

… não entrará em condenação (quanto à Bem-aventurado e santo é aquele que tem


fórmula introdutória solene, veja o parte na primeira ressurreição; sobre esses
comentário sobre 1.51) a segunda morte não tem autoridade.

B. A segunda ressurreição (para juízo) B. A segunda ressurreição (para juízo)

Parem de se surpreender com isso, pois a E vi um grande trono branco e aquele que
hora está chegando em que todos os que nele se assenta… Vi também os mortos, os
estão nos túmulos ouvirão a sua voz e grandes e os pequenos, em pé diante do
sairão: aqueles que tiverem feito o bem, trono; e os livros foram abertos: e um outro
para a ressurreição da vida, e os que tiverem livro foi aberto, que é o livro da vida: e os
praticado o mal, para a ressurreição da mortos foram julgados pelas coisas que
condenação. estavam escritas nos livros, segundo as suas
obras: e o mar entregou os mortos que
estavam nele; e a morte e o hades
entregaram os mortos que estavam neles: e
foram julgados, cada um, segundo as suas
obras… E se alguém não foi achado inscrito
no livro da vida, era lançado no lago de
fogo.

Com base nessa comparação, podemos chegar a algumas conclusões:


1. Embora frequentemente se diga que o quarto Evangelho não contém ensino sobre as
últimas coisas, isso não é verdade, como demonstra o parágrafo atual. Veja também
6.39–40,44,54; 11.24; 12.48; 14.3,28; 15.18ss.; 16.1ss.; 16.19ss.119
2. A primeira ressurreição não tem nada a ver com o corpo; referese à alma. Assim que a

119 Quanto a este assunto, veja W. F. Howard, Christianity According to St. John (Filadélfia, 1946), p.
106–128.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 13
palavra de Cristo é aceita pela fé (“quem ouve a minha palavra e crê”), tem-se “a vida
eterna” (quanto a isto, veja 1.4; 3.16) … e se “passou da morte para a vida”. O que é isso senão
a primeira ressurreição, a qual, embora começando aqui na terra, culmina na vida da alma
com Cristo no céu? No texto de Apocalipse, enfatiza-se especialmente a última fase dessa
primeira ressurreição.
3. Quem toma parte na primeira ressurreição (isto é, quem aceitou Cristo por meio de
uma fé viva) não precisa temer o dia do juízo vindouro. Na linguagem do quarto Evangelho,
ele “não entrará em condenação” (εἰς κρίσιν); na linguagem do Apocalipse, “sobre esses a
segunda morte (na qual a sentença de condenação é executada) não tem autoridade”.
4. A segunda ressurreição tem natureza "sica.120 Pertence ao grande dia da consumação
de todas as coisas. É universal: todos serão ressurretos, tanto crentes quanto incrédulos.
5. Nem o quarto Evangelho nem o Apocalipse ensinam que haverá um período de mil
anos entre a ressurreição "sica dos crentes e a ressurreição "sica dos incrédulos: “a hora
está chegando em que todos os que estão nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão” e “vi
também os mortos, os grandes e os pequenos… e os livros foram abertos… e o mar entregou
os mortos que estavam nele; e a morte e o hades entregaram os mortos que estavam neles”.
É tudo tão geral quanto possível. Calvino está certo ao comentar que aqui, no Evangelho de
João (5.28), não se pode inferir da expressão “todos os que estão nos túmulos … sairão” que os
que foram devorados por animais selvagens, ou morreram afogados ou queimados, estão
excluídos do número daqueles que ressuscitarão. Quando chegar aquela grande hora, todos
ressuscitarão e todos serão julgados! Veja também Mateus 25.46; Atos 24.15; 2 Coríntios 5.10;
2 Tessalonicenses 1.7–10. Não se indica em livro algum qualquer diferença de tempo, nem
nos escritos de João, nem nos de Paulo (1 Co 15.22–23; 1 Ts 4.13–18 não ensinam isso, como
já indicamos em outro ponto).121
6. No que se refere ao tempo, há somente uma ressurreição "sica universal. Contudo,
quanto à qualidade ou natureza, podemos falar de fato de duas ressurreições futuras (veja
também Dn 12.2). Em outras palavras, a única ressurreição universal tem duas fases, como
se ensina claramente no quarto Evangelho e no Apocalipse. Por um lado, há uma
“ressurreição da vida” (genitivo qualitativo: esta ressurreição se harmoniza com a natureza
da vida eterna; portanto, é gloriosa, etc.). Por outro lado, há uma “ressurreição da
condenação” (mesmo genitivo: esta ressurreição se harmoniza com a ideia de juízo;
portanto, é para vergonha e zombaria). Crentes são ressurretos para reinarem para sempre

120 M. Goguel, Le Quatrième Évangile (Paris, 1924), v. 2, p. 536, erra ao declarar: “A escatologia é, como
vimos, inteiramente espiritualizada”.
121 Veja nosso livro Lectures on the Last !ings (Grand Rapids, 1951), p. 31–49.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 14
com Cristo, tanto no corpo como na alma (até aqui apenas na alma). Incrédulos são lançados
no lago de fogo.
Além destas observações baseadas na comparação entre o Evangelho e o Apocalipse de
João, os pontos seguintes sobre o texto de João 5.24–30 exigem atenção:
Quanto à subdivisão A (v. 24–25):
Não ocorre ressurreição espiritual sem a palavra. No entanto, não é suficiente apenas
ouvir a palavra; ela precisa ser aceita pela fé: “quem ouve a minha palavra e crê”. O objeto
dessa fé precisa ser Jesus como o Filho de Deus: “crê naquele que me enviou”. Esse “tem a
vida eterna”. O pecador está naturalmente morto, de forma que, quando ocorre a grande
mudança, ele realmente passa “da morte para a vida”. Essa ideia não se encontra apenas
aqui, mas também em Lucas 15.32 e Efésios 2.1; 5.14. Regeneração e conversão são
mudanças básicas, transformações radicais. Não devem ser confundidas com melhorias
morais, como quando um alcoólico renuncia ao uso da bebida, por exemplo. É claro,
quando toda a personalidade é regenerada, a moral também é transformada.
A expressão “a hora está chegando – sim, já chegou!” se refere a toda esta nova
dispensação. Quando Jesus falou essas palavras, ela era tanto presente quanto futura. O
Senhor está pensando sobre as multidões de convertidos que serão atraídos das trevas para a
luz e da morte para a vida, tanto dentre os judeus como dentre os gentios, até o dia de sua
segunda vinda. “Os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus, e aqueles que ouvirem viverão.”
Quanto à subdivisão B (v. 26–27):
Pois assim como o Pai tem vida em si mesmo, assim ele concedeu ao Filho também
ter vida em si mesmo 27 e lhe deu autoridade para agir como Juiz, porque é o Filho do
homem. Assim como o Pai é autossuficiente, tendo vida eterna em si mesmo, também ao
Filho foi dado ter essa vida (inerente) em si mesmo. Isso explica o fato (observe o γάρ) de que
ele é capaz de conceder vida eterna aos seus eleitos. Em passagens assim, devemos lembrar
que a filiação mediadora de nosso Senhor, pela qual ele cumpre sua missão na terra, baseia-
se em sua filiação eterna dentro da Trindade. Quando Jesus falou essas palavras, os judeus
devem ter questionado: “De onde este homem deriva o direito de falar assim? Ele irá
realmente julgar?” Jesus indica que esta autoridade para julgar (assim como o poder para
transmitir vida) lhe foi dada porque ele é o Filho do homem. Além disso, as duas ideias, julgar
e Filho do homem, sempre estão juntas nas Escrituras (quanto ao título Filho do homem e sua
conexão com o juízo, veja o comentário a 12.34). Muitos comentaristas sugerem que é
bastante significativa a ausência do artigo antes de Filho do homem em 5.27 (o texto
apresenta υἱὸς ἀνθρώπου). Com base nesta ausência, surgiram inúmeras interpretações
deste verso; especialmente estas duas:
a) A autoridade de agir como juiz precisou ser dada a Jesus porque é como homem, e não

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 15
como Deus, que ele desempenha esta tarefa.
b) A autoridade de agir como juiz de homens lhe foi dada porque ele também é um
homem, totalmente familiarizado com pensamentos, palavras e ações humanas. Para ser
um bom juiz, é preciso compartilhar a natureza daqueles que serão julgados.
Contudo, com todo o devido respeito à capacidade desses comentaristas que baseiam
toda a sua exegese dessa passagem na ausência do artigo, não podemos concordar com suas
conclusões. De fato, é bem questionável se devemos enfatizar a ausência do artigo. É um
fato bem conhecido que títulos oficiais têm uma tendência de perder o artigo. Sem dúvida,
seria bem estranho se, nesse caso, o título tivesse um significado diferente dos demais
casos. Além disso, como foi indicado, faz muito sentido a ideia de que o direito a julgar lhe
foi dado como (o) Filho do Homem, no sentido messiânico do termo. É um pensamento
eminentemente bíblico, embora não se possa dizer o mesmo, com a mesma ênfase, quanto
às outras duas interpretações.
Quanto à subdivisão C (v. 28–29):
Os judeus não ficaram surpresos com a ideia de um juízo (condenação e absolvição; com
consequente retribuição e remuneração). Porém, o que os encheu de espanto foi a
reivindicação de Jesus (v. 22 e 27) – uma reivindicação totalmente ridícula e intolerável, tal
como eles a viam. Jesus reivindicou que ele mesmo tinha recebido o direito de julgar e que os
homens estavam sendo julgados e seriam julgados com base em sua atitude para com ele.
Então, Jesus diz: “Parem de se surpreender com isso, pois (o que eu afirmei é verdadeiro,
como será demonstrado pelo fato de que) a hora está chegando em que todos os que estão
nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão”. A declaração “todos os que estão nos túmulos
ouvirão a sua voz” parece indicar que, em vez de ser de um modo secreto ou silencioso, a
segunda vinda será pública e audível (assim como visível). Cf. 1 Coríntios 15.52.122 Observe
também que, tanto na esfera espiritual quanto na "sica, a voz de Cristo é criativa. Se não
fosse, os mortos não seriam capazes de ouvi-la! Para comentários adicionais sobre esta
passagem (v. 28–29), veja o que já foi dito sobre os versos 24–30.
Quanto à subdivisão D (verso 30):
Nesse verso, Jesus resume todo o argumento. Ele chega à conclusão que já foi declarada
no início (veja o v. 19). Porém, agora ela é enfatizada pelo uso do pronome na primeira
pessoa do singular. Ou seja, os judeus não têm direito a julgá-lo e condená-lo, como se o que
ele fez a este homem no tanque no sábado (ou, em geral, como qualquer ação que realizou)
fosse algo pelo que somente ele era responsável – e não ele e o Pai. Ele diz: Não posso fazer
nada de mim mesmo. Os judeus precisavam saber que, ao criticar o Filho de Deus, estavam

122 Veja nosso livro Lectures on the Last !ings (Grand Rapids, 1951), p. 26,33–34.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 16
se opondo ao próprio Deus. O Filho, como mediador, recebeu do Pai informações definidas
(quanto aos padrões de julgamento). Além disso, na medida em que sua filiação mediadora
se baseia em sua filiação eterna, fica evidente que ele mesmo deseja fazer toda a justa
vontade do Pai, com o qual está unido em essência: assim como ouço eu julgo, e meu juízo
é justo, porque não procuro minha própria vontade, mas a vontade daquele que me
enviou (τοῦ πεμψαντός με; há pouca diferença, se houver alguma, entre πέμπω e ἀποστέλλω
no uso de João; veja também os comentários sobre 1.6 e 3.34).

Síntese de 5.19–30
Veja o esboço inicial. O Filho de Deus rejeitado na Judeia, em consequência de curar um
homem em Betesda, no sábado, e de reivindicar igualdade com Deus (continuação).
Nesta seção, Jesus estabelece suas reivindicações sobre sua relação com o Pai. Ele faz isso
em resposta à incredulidade e ao ódio dos judeus, os quais estão determinados a matá-lo. A
defesa do Senhor pode ser sumarizada assim:
1. Ao me atacar, o Filho, vocês estão atacando o próprio Pai, pois o Filho faz o que vê o Pai
fazendo. Ele julga como o Pai julga. Não pode fazer de outro modo. Nem deseja fazer de
modo diferente.
2. Vocês estão impressionados por causa dessa cura de um doente? De fato, esta foi uma
grande obra, mas obras maiores se seguirão: transmitir vida àqueles que estão mortos (sim,
tanto aos espiritualmente mortos como, no último dia, aos fisicamente mortos) e julgar
todos os homens (tanto agora como no retorno em glória).
3. Vocês questionam como é possível que eu: a) transmita vida; e b) pronuncie e execute
julgamento? Posso fazer o primeiro porque o Pai me concedeu ter vida em mim mesmo
(assim como ele tem vida em si mesmo). Posso fazer o segundo em minha capacidade como
Filho do homem.
4. A reação apropriada às minhas palavras e obras não é incredulidade e ódio, nem
mesmo a atitude mental que não ultrapassa o espanto, mas sim a fé que honra o Filho assim
como honra o Pai.
5. Quem exerce essa fé não entra em juízo, mas mesmo agora já passou da morte para a
vida. No grande dia do juízo, eles também ressuscitarão fisicamente – junto com todos os
mortos. Porém, embora todos sejam ressuscitados, haverá uma grande diferença na
qualidade ou natureza de suas ressurreições: os que tiverem feito o bem sairão de seus
túmulos para “a ressurreição da vida”; os que tiverem praticado o mal, para “a ressurreição
da condenação”. Implicação: “Portanto, aceite pela fé o Filho de Deus!”. Cf. o propósito do
Evangelho (20.30–31).

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 17
5.31–47
31 “Se eu testifico a respeito de mim mesmo, meu testemunho não é verdadeiro.123 32 É outro que
testifica a meu respeito, e sei que o testemunho que ele dá de mim é verdadeiro. 33 Vocês, de sua
parte, enviaram a João, e ele deu testemunho da verdade. 34 Mas eu, de minha parte, não aceito
[mero] testemunho humano, mas digo estas coisas para que vocês possam ser salvos. 35 Ele era a
lâmpada que queimava e brilhava. E vocês estavam querendo se alegrar por algum tempo em sua
luz. 36 Mas eu tenho testemunho que ultrapassa o de João, pois as obras que o Pai me deu para que124
as realizasse, essas obras em que estou empenhado, testemunham a meu respeito que o Pai me
enviou. 37 E o Pai, que me enviou, ele tem testemunhado a meu respeito. Mas sua voz vocês nunca
ouviram, sua forma vocês nunca viram; 38 e vocês não têm sua palavra permanente em vocês,
porque naquele que ele enviou, nele vocês não creem. 39 Vocês estão examinando as Escrituras
porque pensam que nelas vocês têm vida eterna, e, no entanto, são elas que testificam de mim. 40
Mas vocês não querem vir a mim para que125 possam ter vida.
41 “Glória dos homens eu não aceito, 42 mas conheço vocês, sei que vocês não têm o amor de Deus
em vocês. 43 Eu vim em nome de meu Pai, mas vocês não me aceitam. Se outro vier em seu próprio
nome, vocês o aceitarão.126 44 Como vocês podem crer, vocês que aceitam glória uns dos outros,
enquanto a glória que vem do Deus único vocês não procuram? 45 Vocês não pensem que eu os
acusarei diante do Pai. Seu acusador é Moisés, sobre quem vocês colocaram sua confiança. 46 Pois se
vocês cressem em Moisés, vocês creriam em mim, pois ele escreveu sobre mim.127 47 Mas se em seus
escritos vocês não creem, como crerão em minhas palavras?”128

5.31–47

5.31. Jesus apresentou reivindicações majestosas. Mas quem é ele para fazer isso? Não é
surpresa, pois, que no parágrafo atual tais reivindicações sejam embasadas por
testemunhos sobre si mesmo. O Senhor inicia dizendo: Se eu testifico a respeito de mim
mesmo, meu testemunho não é verdadeiro. Obviamente, os comentaristas concordam
que essas palavras não podem ser entendidas literalmente, como se significassem que não é
verdade aquilo que ele disse sobre si mesmo. Se esta fosse a interpretação correta, Jesus
deixaria de ser alguém sem pecado. Outras tentativas de explicar essas palavras seguem
abaixo:
1. O significado é: “Se eu precisasse testemunhar sobre mim mesmo, meu testemunho

123 Sentença condicional 3B1; veja a Introdução.


124 Quanto a ἴνα, veja a seção correspondente na Introdução.
125 Quanto a ἴνα, veja a seção correspondente na Introdução.
126
Sentença condicional 3A1; veja a Introdução.
127
Sentença condicional 2A; veja a Introdução.
128 Sentença condicional 1B; veja a Introdução.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 18
não seria verdadeiro”. Objeção: uma rápida olhada no formato dessas palavras no original
mostra imediatamente que isso está incorreto, pois não temos uma sentença condicional
contrária aos fatos aqui, mas sim uma pertencente ao grupo 3B1.
2. O que Jesus quer dizer é: “Se eu apresento um testemunho isolado e sem base sobre mim
mesmo, meu testemunho não é verdadeiro”. Mas se este for o significado aqui, por que não
daríamos a mesma interpretação às mesmas palavras em 8.14: “Embora testemunhe de mim
mesmo, meu testemunho é verdadeiro”? Jesus não fala nada sobre um testemunho isolado e
sem base.
3. A palavra verdadeiro tem um significado diferente aqui. O sentido da passagem é: “Se
eu testifico a respeito de mim mesmo, meu testemunho não é admissível em um tribunal
legal (usualmente apelando a Mt 18.16; 2 Co 13.1; 1 Tm 5.19). Porém, este raciocínio implica
que, em 8.14, Jesus declara que tal testemunho sobre si mesmo é admissível em um
tribunal. Assim, teríamos uma contradição direta.
Encontraremos a verdadeira solução, em nosso ponto de vista, ao perceber que Jesus está
falando a linguagem do povo, o vernáculo. Uma das características deste tipo de discurso é
ser marcado por figuras de linguagem, expressões abreviadas, alusões, nuances,
implicações que os ouvintes podem perceber imediatamente, etc. Não devemos esquecer
que aqueles a quem tais palavras foram dirigidas não apenas ouviram as palavras em si, mas
também viram o olhar de nosso Senhor e perceberam o tom de sua voz e quais palavras
foram enfatizadas. Considerando tudo isso, cremos que a situação em que o Senhor se
encontra ao declarar tais palavras pode ser comparada à de alguém que fala hoje a um grupo
de pessoas pouco amigáveis em relação ao orador. Digamos que o orador é um político da
situação que fala a um grupo da oposição. Ele pode se dirigir a eles assim: “Se eu lhes disser
que meu candidato é a melhor opção que este país pode ter como presidente, então
obviamente seria um mentiroso”. Os ouvintes imediatamente interpretariam suas palavras
assim: “Se eu lhes disser que meu candidato é a melhor opção que este país pode ter como
presidente, então obviamente seria um mentiroso na opinião de vocês”.
Em nossa opinião, o mesmo se aplica à nossa passagem (5.31). Jesus simplesmente quer
dizer: “Se eu testifico a respeito de mim mesmo, meu testemunho não é verdadeiro na
opinião de vocês”. Em outras palavras: “Vocês imediatamente objetarão: ‘Você está
testificando sobre você mesmo; por isso, seu testemunho não é verdadeiro’ ”. Esta
interpretação certamente encontra apoio no fato de que isso mesmo ocorreu um pouco
depois, como indicado em 8.12–13. Ali se registra que Jesus testifica a respeito de si mesmo,
dizendo: “Eu sou a luz do mundo”. Imediatamente os fariseus vociferam sua objeção: “Você
está testemunhando sobre si mesmo; seu testemunho não é verdadeiro”.
32–33. Jesus continua: É outro que testifica a meu respeito, e sei que o testemunho

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 19
que ele dá de mim é verdadeiro. Sem admitir de modo algum que seu testemunho a
respeito de si mesmo não seria confiável, Jesus agora apresenta outra testemunha, que está
constantemente dando testemunho sobre ele. Por ser ele mesmo o Filho de Deus, Jesus sabe
que o testemunho deste outro é verdadeiro. Entretanto, ele não diz quem é esta outra
testemunha. Nós sabemos que ele se refere ao Pai, pelos versos 36 e 37. Nesse meio tempo,
sem saber disso, os judeus especulam a respeito de quem Jesus falava. Estava se referindo,
talvez, a João Batista? Percebendo o que sua audiência estava pensando, Jesus continua:
Vocês, de sua parte, enviaram a João, e ele deu testemunho da verdade. A referência é
ao testemunho de João encontrado em 1.19–28, dado a uma delegação que lhe fora enviada
(veja o comentário sobre 1.19–28). O testemunho da verdade dado por João Batista,
contudo, não se encontra apenas naquele parágrafo, mas também em 1.29–36 e em 3.22–36
(veja os respectivos comentários). Em resumo, equivale ao seguinte: “Eu (João) não sou o
Cristo; Jesus é o Cristo; ele é o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo; é sobre ele que
vi o Espírito descer e permanecer; ele é o Noivo; ele é aquele que veio de cima e está acima
de todos; ele fala as palavras de Deus e ele mesmo é o Filho de Deus”.
34. Por que Jesus mencionou esse testemunho de João Batista? Seria porque precisava
dele para si mesmo? Não! Afinal de contas, ele diz: Mas eu, de minha parte, não aceito
[mero] testemunho humano. Portanto, não era sua intenção apelar ao testemunho
humano em seu favor e em sua defesa, nem basear sua reivindicação nisso. Pelo contrário,
ele disse tais coisas porque esse testemunho a respeito dele era verdadeiro, e para que o
aceitassem, considerassem e fossem salvos. Jesus afirma: digo estas coisas para que vocês
possam ser salvos.
35. O Senhor continua: Ele era a lâmpada que queimava e brilhava. Jesus se denomina
de “a luz” (τό φῶς), mas chama João Batista de “a lâmpada” (ὁ λύχνος). Uma lâmpada precisa
ser acesa e seu pavio precisa ser alimentado com óleo; além disso, ilumina um espaço bem
limitado. Embora creiamos que a escolha da palavra tenha sido intencional, é duvidoso que
o contraste entre lâmpada e luz seja a ideia predominante na mente do Senhor. Afinal de
contas, o próprio Jesus também é uma lâmpada (mesmo termo em um livro do mesmo
autor, Ap 21.23). Ele é a lâmpada da nova Jerusalém. A ênfase em 5.35 está, sim, no fato de
que, como lâmpada, João Batista ardia e alumiava (para este termo, veja o comentário sobre
1.5) de forma que, consequentemente, atraía as pessoas! O contexto mostra claramente que é
esta característica da lâmpada (e não seu contraste com Cristo, a luz, conquanto tal
contraste não seja eliminado) que Jesus deseja enfatizar, pois ele continua: … E vocês
estavam querendo se alegrar por algum tempo em sua luz. Este era o ponto: tal como
uma lâmpada atrai insetos, assim João Batista atraiu multidões. Até mesmo Herodes
Antipas não o escutou de boa mente (Mc 6.20)? Quer dizer, por algum tempo, ao menos?

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 20
Quando Jesus usa o passado na expressão: “Ele era a lâmpada… vocês estavam querendo se
alegrar por algum tempo com a sua luz”, ele evidentemente se referia, por implicação, ao
fato de que João Batista fora removido do cenário público e agora estava na prisão! No
entanto, o propósito principal de sua observação era indicar que, ainda que os buscadores
de emoções estivessem dispostos a se alegrar por algum tempo na luz da lâmpada de João
Batista, não estavam dispostos a aceitar seu testemunho sobre Cristo para salvação.
36. Apesar disso, a observação de Jesus – “É outro que testifica a meu respeito” (v. 32) –
não se referia a João Batista. Isso fica evidente do que se segue, pois Jesus continua: Mas eu
tenho testemunho que ultrapassa o de João, pois as obras que o Pai me deu para que as
realizasse (ἵνα τελείωσω; para isto, veja o comentário sobre 4.34), essas obras em que
estou empenhado, testemunham a meu respeito que o Pai me enviou. O próprio
testemunho do Pai por meio das obras de Cristo certamente supera o testemunho indireto
dado por João Batista (quanto a referências a João Batista neste Evangelho, veja o final da
seção Leitores e Propósito). As obras confiadas a Jesus para que as realizasse são seus milagres,
incluindo a cura do homem no tanque. Sem dúvida, essas obras não produzem fé por si
mesmas. Nunca são tão importantes quanto as palavras do nosso Senhor. Não obstante, não
devem ser ignoradas. Devem fortalecer a fé. Além disso, têm valor comprobatório, pois há
verdade na observação de Nicodemos: “ninguém pode fazer estes sinais que você faz, se
Deus não estiver com ele” [3.2]. Esses sinais são um selo da aprovação do Pai;
especificamente, do fato de que o Pai o havia comissionado (ἀπέσταλκεν, veja os comentários
sobre 1.6; 3.34; cf. 5.30).
37. Jesus continua: E o Pai, que me enviou, ele tem testemunhado a meu respeito.
Houve a voz do céu no batismo (Mc 1.11), à qual João Batista alude em 1.34. Daí, há também
o testemunho do Pai nos corações dos crentes (1 Jo 5.9–10). Apesar disso, aqui nessa
passagem (5.37), como fica claramente indicado no contexto imediatamente seguinte, faz-
se referência especialmente ao testemunho do Pai nas Escrituras do Antigo Testamento. O
Pai tem testemunhado, ou seja, embora ele tenha testemunhado no passado, esse
testemunho tem validade para todas as épocas futuras: está ali para ficar. No entanto, Jesus
adiciona uma palavra de aguda repreensão. Ele diz: Mas sua voz vocês nunca ouviram,
sua forma vocês nunca viram. A voz de Deus, obviamente, é o próprio Cristo (5.19;
14.19,24); também a forma de Deus é Cristo (veja especialmente 2 Co 4.4; εἰκών –
semelhança, imagem – τοῦ θεοῦ; aqui em João 5.37 se usa o termo εἶδος – forma externa).
Os judeus hostis fracassaram em perceber a voz e a forma de Deus em Jesus. Não o
perceberam em razão de sua incredulidade.
38. A referência no verso 37 é feita distintamente contra a atitude hostil dos ouvintes.
Isso fica evidente nos versos seguintes (38–40). Jesus não nega que os judeus têm a palavra

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 21
de Deus, em certo sentido. O que ele diz é que eles não têm essa palavra em seus corações
como uma posse permanente. A razão para isso é que não depositaram sua confiança
naquele que foi comissionado pelo Pai à tarefa messiânica e vocês não têm sua palavra
permanente em vocês, porque naquele que ele enviou, nele vocês não creem. Não
conseguiam ver porque o véu da incredulidade encobria os olhos de seus corações (2 Co
3.15). Quanto a “aquele a quem ele enviou”, veja 3.34; cf. 1.6. O que se segue no verso 39 é
estreitamente relacionado a isso.
39. Jesus afirma: Vocês estão examinando as Escrituras porque pensam que nelas
vocês têm vida eterna, e, no entanto, são elas que testificam de mim. Alguns estudiosos
insistem que o verbo ἐρευνᾶτε deve ser lido como imperativo, de forma que se traduza
“examinem as Escrituras”, como na AV. Após ler todos os seus argumentos, não podemos
concordar com esta posição. Consideramos
o verbo como um presente do indicativo de ação continuada. Razões:
a) Como foi mostrado, isto se conforma inteiramente com o verso precedente (vocês têm
a palavra, mas não a têm no seu coração; então examinam as Escrituras, mas não
encontram Cristo nelas).
b) O imperativo “examinai as Escrituras” forma uma introdução estranha para a cláusula
“porque pensam”. Se o imperativo é o correto, teríamos esperado “porque vocês têm” ou
“porque vocês obterão” vida eterna nesta busca. Por outro lado, a sentença “Vocês estão
examinando as Escrituras porque pensam que nelas vocês têm vida eterna” faz completo
sentido.
c) O contexto subsequente também indica claramente que não era intenção de Jesus dizer
a seus oponentes que o pecado deles consistia em não examinar as Escrituras. Pelo
contrário, ele deseja levá-los a atentar para esta verdade importante: “Embora vocês
tenham os livros de Moisés e coloquem sua esperança neles, eles não terão valia para vocês,
antes testificarão contra vocês porque vocês não me percebem neles” (veja os v. 45 e 46).
Jesus não nega que nas Escrituras do Antigo Testamento as pessoas tinham vida eterna
(quanto a isso, veja o comentário sobre 3.16). Se os judeus julgam (observe: “porque
pensam”) seus escritos sagrados como sendo potenciais meios de graça, estão corretos.
Contudo, o Senhor deseja convencê-los disso: vocês não conseguem me ver revelado nessas
Escrituras, mas “são elas que testificam de mim”. Cristo em todas as Escrituras! Esta
verdade desvenda os mistérios do Antigo Testamento (assim como do Novo), e sem ela a
Bíblia permanece um livro fechado. Esta mesma verdade também é enfatizada nas
seguintes passagens: Lucas 24.32,44; João 5.46; Atos 3.18,24; 7.52; 10.43; 13.29; 26.22; 28.23 e
1 Pedro 1.10.
40. Por trás dessa cegueira está um coração indisposto: Mas vocês não querem vir a

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 22
mim para que possam ter vida. À luz desta passagem, devemos considerar como
exemplos de litotes as expressões “nunca ouviram”, “nem visto” e “não creem” (5.37–38). O
significado real é: na dureza dos seus corações, vocês basicamente rejeitaram o Filho de
Deus.
41–42. Qual foi o motivo do embate entre Jesus e os judeus? A resposta deles a esta
pergunta provavelmente teria sido: “Ele está irritado porque o criticamos por violar o
sábado e por sugerir que é igual a Deus. Se o tivéssemos elogiado pelo que fez ao homem no
tanque, ele teria ficado satisfeito”.
Jesus, que os conhecia profundamente e era capaz de ler os seus corações, responde
dizendo: Glória dos homens eu não aceito. Ele não a busca, e nem está disposto a
considerar válido o louvor de incrédulos. Jesus, então, dá sua própria resposta à pergunta
sobre o motivo dessa controvérsia com os judeus. O motivo real não é o seu desejo de louvor,
mas sim a falta de amor deles para com Deus. O Senhor declara: conheço vocês (como ele os
conhecia? Veja o comentário sobre 5.6), sei que vocês não têm o amor de Deus em vocês
(ou seja, amor por Deus, genitivo objetivo, como mostra claramente o contexto seguinte).
Se houvesse esse amor em seus corações, é claro, eles teriam aceitado o testemunho do Pai a
respeito de seu Filho.
43. Era fácil para Jesus provar que era verdadeira sua declaração: “vocês não têm o amor
de Deus em vocês”. A prova consistia nisto: Eu vim em nome de meu Pai, mas vocês não
me aceitam. Ele viera em nome do Pai – isto é, não apenas por sua ordem, mas
definitivamente para revelá-lo por palavras e ações – mas eles não o receberam. Aqui está
outro exemplo de litotes. Eles teimosamente o rejeitaram, a despeito de todos os poderosos
testemunhos enumerados em 5.31–40. Se outro vier em seu próprio nome, vocês o
aceitarão. Esta profecia se cumpriu inúmeras vezes. Um falso Messias foi Teudas; outro,
Judas, o galileu (At 5.36–37). Daí veio Bar Kokhba (132–135 d.C.), que foi chamado de A
Estrela de Jacó (Nm 24.17) pelo distinto rabino Akiba. Houve grande número de outros
desde aqueles dias. O último será o próprio anticristo (2 Ts 2.8–10). Todos eles se
apresentam sem credenciais apropriadas: eles vêm “em seu próprio nome”. Todavia, as
pessoas se entregam totalmente a eles, e eles desviam muitos do caminho correto.
44. Não só é verdade que os judeus não creem; na verdade, eles não podem crer, pois estão
constantemente buscando louvor de homens, e não o louvor que vem de (παρά) Deus. Jesus
declara essa verdade nas seguintes palavras: Como vocês podem crer, vocês que aceitam
glória uns dos outros, enquanto a glória que vem do Deus único vocês não procuram?
O próprio nome judeu – derivado de Judá, que significa louvado – os recorda
constantemente de louvor, glória, honra. Porém, estão buscando o tipo errado de honra,
que procede da fonte errada. Cf. Romanos 2.29, em que Paulo lembra seus leitores que um

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 23
verdadeiro judeu é aquele cujo louvor não procede dos homens, mas de Deus.
Esses judeus a quem Jesus fala podem recitar suas petições duas vezes por dia, dirigindo-
as ao Único Deus – com base em Deuteronômio 6.4–5. Todavia, não buscam o louvor que
vem do Único Deus, nem o amam, como ordenado na passagem de Deuteronômio. A falta de
amor sempre tem um efeito ofuscante. Não foi falta de evidências, e sim a falta de amor que
levou esses homens a rejeitarem o Cristo.
45–46. Os judeus ouviram a forte repreensão. Talvez tenham chegado à conclusão de que
não eram verdadeiras as palavras registradas em 5.34: “digo estas coisas para que vocês
possam ser salvos”. Talvez estivessem começando a considerar Jesus como um acusador,
seguindo o estilo de Satanás, o qual permaneceu à mão direita do Anjo do Senhor para
poder acusar Josué, o sumo sacerdote, por causa de suas vestes sujas (Zc 3.1–5). Contudo,
este não era o propósito de Jesus (cf. 3.17). De fato, nem era necessário. Com palavras de
sentido terrível, o Senhor lança este desafio final à sua audiência hostil: Vocês não pensem
(ou: não fiquem pensando; μὴ δοκεῖτε, presente do imperativo) que eu os acusarei diante
do Pai. Seu acusador é Moisés, sobre quem vocês colocaram sua confiança. Repetidas
vezes os judeus apelavam a Moisés e se vangloriavam: “Somos discípulos de Moisés” (9.28).
Moisés é o objeto constante da esperança deles. Eles sempre apelavam aos seus escritos;
debatiam suas instruções e as analisavam minuciosamente. Agora Jesus lhes diz que esse
Moisés será o acusador deles. O motivo é que, a despeito de toda a sua fala sobre serem seus
seguidores, eles na realidade não criam nele: Pois se vocês cressem em Moisés, vocês
creriam em mim, pois ele escreveu sobre mim. “Moisés escreveu sobre mim”, afirmou
Jesus. Aqui nos referimos, primeiramente, à lista de referências apresentada em nossos
comentários sobre 1.5; elas mostram que Cristo, de fato, é o centro dos escritos de Moisés e
de todo o Antigo Testamento. No Pentateuco – que, em sua essência, deve ser atribuído à
autoria de Moisés, e isso pelo testemunho de ninguém menor que o próprio Cristo neste
verso – há certas passagens que se referem de forma bem definida a Cristo; por exemplo,
Gênesis 3.15; 9.26; 22.18; 49.10; Números 24.17 e Deuteronômio 18.15–18. Mas o que Moisés
escreveu sobre Cristo certamente não se limita a estas passagens. O Pentateuco inteiro – e
não apenas o Pentateuco, mas todo o Antigo Testamento – indica a vinda de Cristo e
prepara de forma certa o caminho para sua chegada. Há quatro linhas que, correndo por
todo o Antigo Testamento, convergem em Belém e no Calvário; a saber, histórica,
tipológica, psicológica e profética.
A preparação histórica indica que repetidas vezes as forças do mal direcionaram seu
ataque contra o povo de Deus, esforçando-se para tornar impossível o cumprimento da
promessa divina a respeito do Cristo vindouro. Mas sempre que a necessidade é maior, a
ajuda está mais próxima. As dificuldades do homem são oportunidades para Deus. O

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 24
Pentateuco e o restante dos livros do Antigo Testamento estão cheios de exemplos.
A preparação tipológica indica que o caráter do Messias vindouro e da salvação nele está
retratado em tipos que são materiais ou pessoais. Por exemplo, a água da rocha ferida, o
maná, a Páscoa, a coluna de fogo, o tabernáculo com sua mobília, todo o ritual de
sacri"cios, a serpente levantada; Adão, Melquisedeque, Josué, Davi, Salomão, etc. Os livros
de Moisés estão cheios de tipos cristocêntricos.
A preparação psicológica indica que, durante toda a antiga dispensação – certamente
também nos livros de Moisés! –, salienta-se uma verdade com clareza cada vez maior. A
saber, que por sua própria força, o ser humano nunca poderá alcançar verdadeira felicidade
e salvação. Produzir tal convicção foi um dos objetivos principais da lei dada no Sinai. Se o
ser humano precisa ser salvo, Outro terá de salválo. Esse Outro é o Cristo.
Finalmente, a preparação profética indica que foram anunciados, através de profecias
diretas, a vinda de Cristo, sua obra, sofrimento e consequente glória.
Verdadeiramente, “Moisés escreveu sobre mim”. Entendido de modo apropriado, tudo o
que Moisés escreveu se refere a Cristo! 129
47. Jesus conclui sua fala aos judeus com esta pergunta retórica: Mas se em seus
escritos vocês não creem, como crerão em minhas palavras (ῥήμασιν, fala, discurso)?
(Cf. Lc 16.31). Tornou-se moda afirmar que neste verso se faz um contraste entre seus e
minhas, mas não entre escritos e palavras. Entretanto, preferimos concordar com A. T.
Robertson e outros que defendem um contraste não só entre os pronomes, mas também
entre os substantivos: contrasta-se seus escritos com minhas palavras. Se Jesus realmente
quisesse colocar somente os pronomes em contraste, provavelmente teria usado o mesmo
substantivo (por exemplo, ensinos, palavras, mandamentos) com ambos os pronomes.
Ficaria assim: “Se, porém, não credes nas suas palavras, como crereis nas minhas palavras?”.
Desta forma, o contraste desejado entre suas e minhas fica imediatamente claro. Porém,
agora, nesta sentença condicional, temos seus escritos na prótase e minhas palavras na
apódose. Além disso, faz sentido o contraste entre estes dois conceitos (cada um consistindo
de um substantivo e seu modificador). Em nossa opinião, Jesus queria dizer o seguinte:
“Vocês, judeus, estão sempre dizendo que nada é mais sagrado que a Torá escrita (embora, em
geral, na prática real vocês pareçam estimar a lei oral mais do que a escrita). Vocês colocam
aquela Lei escrita acima de tudo o mais, certamente acima de quaisquer palavras que alguém
possa emitir. Ademais, vocês consideram Moisés como seu líder principal e competem
entre si em louvar sua memória. Na opinião de vocês, ninguém hoje vivo poderia se

129 Escrevemos um sumário da história do Antigo Testamento, a qual se centraliza neste tema. Veja
Bible Survey (3ª ed.; Grand Rapids, 1949), p. 79–130.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 25
comparar a ele. Portanto, se vocês não creem nos escritos dele, como crerão nas minhas
palavras?”. A estrutura quiástica de sentenças do original, que procuramos reproduzir em
nossa tradução, confirma a ideia de que este, de fato, é o contraste que Jesus desejava. A
pergunta que Jesus fez era irrespondível. Neguem-se os escritos sagrados e tudo está
perdido. Os judeus precisavam dessa lição; assim também nós precisamos dela hoje.

Síntese de 5.31–47
Veja o esboço inicial. O Filho de Deus rejeitado na Judeia, como consequência de curar um
homem em Betesda, no sábado, e de reivindicar igualdade com Deus (conclusão).
A seção sobre as reivindicações de Jesus é seguida por esta, que lida com seus
testemunhos. Esses podem ser sumarizados assim:
(1) Seu testemunho a respeito de si mesmo (5.31; cf. 8.14). Esse é verdadeiro, mas sua
confiabilidade é negada pelos judeus.
(2) O testemunho de João Batista (5.33–35). Ele testificou da verdade quanto ao Cristo,
chamando-o de Cordeiro de Deus, Filho de Deus, etc. Esse testemunho deve ser aceito pela
fé, para salvação.
(3) O testemunho de suas obras (5.36). Elas têm valor comprobatório, provando que Jesus
foi enviado pelo Pai para cumprir sua tarefa mediadora.
(4) O testemunho do Pai (5.37–38). Ele testificou por meio da voz do céu, mas
especialmente através:
(5) Do testemunho das Escrituras (5.39–47). Os judeus ficaram cegos por sua falta de
amor por Deus, de forma que não conseguem ler esses escritos como devem ser lidos.
Portanto, Moisés, em quem se vangloriam, testificará contra eles.

Às vezes se adiciona que o quarto Evangelho proclama dois testemunhos adicionais:


(6) O testemunho de crentes individuais (15.27).
(7) O testemunho do Espírito Santo (14.16,26; 15.26).
No entanto, devemos exercer cautela aqui. Como foi mostrado na exegese, esses sete
testemunhos dificilmente devem ser considerados como testemunhos isolados. Antes, é o
Pai quem testifica por meio de todos os outros.

Hendriksen, W. (2014). João. (J. L. Hack, Trad.) (2a edição). São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã.
Exportados do Software Bíblico Logos, 19:25 21 de março de 2020. 26

Você também pode gostar